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4ª Jornada Benjaminiana: Filosofia e Literatura

A brevidade e o essencial: algumas hipóteses sobre linguagem e


reificação em Graciliano Ramos
João Emiliano Fortaleza de Aquino
emiliano.aquino@uece.br
(Doutor em Filosofia, professor da UECE)

Introdução

Duas considerações são importantes, até mesmo centrais, nos estudos acadêmicos sobre
Graciliano Ramos (1892-1953) e, em particular, sobre sua mais importante obra, São Bernardo
(1934). Uma, acerca de sua linguagem, de seu estilo, de sua técnica literária; outra, do teor
socialmente crítico dessa obra, que tematizaria, em seu personagem-narrador, segundo Antonio
Cândido (2006 [1955]), o “sentimento de propriedade”, ou ainda, segundo Luiz Costa Lima (1969
[1966]), a “reificação”. A relação entre essas duas últimas categorias, com base no conceito
marxiano de caráter fetiche da mercadoria (Marx, 1983), é apresentada com muito rigor e
resolvida de modo muito convincente por João Luiz Lafetá (2002), no posfácio das últimas
edições da obra pela Record. A questão que parece em aberto, contudo, é a relação entre a
técnica literária de Ramos e a tematização da reificação em sua narrativa. A discussão
protagonizada por Cândido, Lima e Lafetá, ao se deter sobre o conteúdo social do drama,
encontrando neste conteúdo a visão social do autor, parece – à primeira vista, pelo menos –
separar técnica e teor. Essa é a questão dessa proposta de comunicação, que deve desenvolver-
se sob a hipótese de que a presença da reificação na escrita de Graciliano não se dá no campo
temático, de modo isolado, mas também, e talvez centralmente, em sua técnica literária. Para
isso, tomarei como ponto de partida as tão fundamentais considerações de Cândido (idem) sobre
a escrita de Ramos, com o objetivo de confrontá-las com algumas teses de Walter Benjamin
(1892-1940) sobre a crise da escrita romanesca europeia e sua concepção da escrita moderna,
teses e concepção, justamente, que se baseiam nos conceitos de caráter fetiche da mercadoria
e, portanto, da reificação.

Desenvolvimento

Em São Bernardo, o narrador apresenta desde o início justificativas para sua escrita. Duas coisas
chamam atenção: uma, a recusa da escrita literária, ou de certa escrita literária, que se diferencia
da fala coloquial. “Está pernóstico, está safado, está idiota. Há lá ninguém que fale dessa forma!”,
insurge-se Paulo Honório contra a escrita de jornalista Azevedo Gondim, a quem tinha dado a
tarefa da escrita na “divisão de trabalho” que planejara de início. Este lhe responde: “Foi assim
que sempre se fez. A literatura é a literatura, seu Paulo. A gente discute, briga, trata de negócios
naturalmente, mas arranjar palavras com tinta é outra coisa. Se eu fosse escrever como falo,
ninguém me lia”. Página seguinte, Paulo Honório expõe sua técnica narrativa: “Talvez deixe de
mencionar particularidades úteis, que me pareçam acessórias e dispensáveis. Também pode ser
que, habituado a tratar com matutos, não confie suficientemente na compreensão dos leitores e
repita passagens insignificantes”. Na recusa da literatura que “assim sempre se fez”, surge um
estilo próprio, que é, contudo,
literário: no dizer de Cândido
(2006, p. 32), “curto”, “direto”,
“despido de recursos”. Outra coisa,
é o modo como o narrador se
compreende em sua tarefa de
narrar; não sendo escritor, assim
se apresenta: “O que é certo é que,
a respeito das letras, sou versado
em estatística, pecuária,
agricultura, escrituração mercantil,
conhecimentos inúteis neste
gênero. Recorrendo a eles,
arrisco-me a usar expressões
técnicas, desconhecidas do público; e a ser tido por
pedantes. Saindo daí, a minha ignorância é completa”
(idem, p. 9). A escrita literária é uma técnica que se
distancia da linguagem coloquial não porque a substitua,
mas porque, assim como faz aos acontecimentos narrados,
a selecione; técnica de que Paulo Honório se assenhora não como escritor, mas como alguém
versado em estatística, pecuária, agricultura, escrituração mercantil: em seu dizer, “extra[i] dos
acontecimentos algumas parcelas; o resto é bagaço” (Ramos, 2002, p. 77). A escrita que
Graciliano Ramos cria com e para Paulo Honório é, em termos filosófico-históricos,
contemporânea do relatório. Essa contemporaneidade não significa que a obra seja um relatório,
mas que é própria de um tempo em que o relatório se torna,
como gênero, um instrumento da administração pública,
empresarial, científica. O detalhe biográfico de que sua
descoberta literária por Augusto Frederico Schmidt se deu
devido à publicação de dois relatórios seus como prefeito
de Palmeira dos Índios, escritos ao Governador de Alagoas
(Marques, 2017, p. 24-25), não é uma explicação para o
que estou dizendo, mas pode servir-lhe de imagem: o
relatório tem virtudes literárias, quando a literatura pode
estabelecer com ele uma posição antitética, tal qual duas
substâncias químicas, ao se defrontarem, reagem,
revelando de modo puro as propriedade de uma delas. Nessa imagem, a narrativa de Paulo
Honório não é relatório naquilo que, em confronto com a relatoria, dela se afasta, mantendo-se
em estado puro. Lembremos que três anos depois de São Bernardo vir à luz, Jorge Amado
publica Capitães da areia, cujo início é uma reportagem de jornal, à qual seguem cartas de
leitores. O relatório e a reportagem têm em comum a informação, que, segundo Benjamin,
caracteriza a experiência literária moderna, pondo em crise o romance, que já antes sucedera à
narração tradicional. A tese de Benjamin sobre a escrita europeia moderna é a de que ela, não
sendo mais romance, se tivermos como tal a escrita romanesca do século XIX, torna-se
contemporânea da matéria jornalística, no que ela tem de ruptura com as experiências narrativas
anteriores; se Kafka, Proust e, principalmente, Brecht são contemporâneos da informação, não
é porque escrevam matérias, mas porque respondem literariamente a uma nova forma social da
percepção contemporânea expressa na reportagem. Não é exagero dizer o mesmo da escrita de
São Bernardo com relação ao relatório.

Conclusão

Sob essa hipótese, a comunicação aqui proposta, em seu desenvolvimento, deve explicar por
que a escrita contemporânea ao relatório, tal como a encontramos em São Bernardo, tem a
reificação como “fenômeno originário” (no sentido benjaminiano deste conceito), mostrando nisso
a relação dessa obra com o desenvolvimento do capitalismo no campo brasileiro, que traz
consigo as técnicas modernas de poder e dominação.
Referências bibliográficas

CÂNDIDO, Antonio. Ficção e confissão: Ensaios sobre Graciliano Ramos. – 3ª ed. revista. Rio
de Janeiro: Ouro sobre o Azul, 2006.

LAFETÁ, João Luiz. O mundo à revelia. Posfácio a São Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 2002.

LIMA, Luiz Costa. A Reificação de Paulo Honório. In: Por que Literatura. Petrópolis: Vozes, 1969.
MARQUES, Ivan. Para amar Graciliano: Como descobrir e apreciar os aspectos mais inovadores
de sua obra. Barueri, SP: Faro Editorial, 2017.

RAMOS, Graciliano. São Bernardo. – 74ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2002.

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