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PEDAGOGIA DO MERCADO:

NEOLIBERALISMO, TRABALHO
E EDUCAÇÃO NO SÉCULO XXI

Aparecida de Fátima Tiradentes dos Santos

PEDAGOGIA DO MERCADO:
NEOLIBERALISMO, TRABALHO
E EDUCAÇÃO NO SÉCULO XXI

Ibis Libris
Rio de Janeiro
2012

Copyright © Aparecida de Fátima Tiradentes dos Santos

1ª edição em novembro de 2012.

Santos, Aparecida de Fátima Tiradentes dos.


Pedagogia do mercado : neoliberalismo, trabalho e educação no século XXI / Aparecida de
Fátima Tiradentes dos Santos. Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2012.
216 p., 21 cm.

ISBN 978-85-7823-127-9

Impresso no Brasil.
2012

Todos os direitos reservados à autora.

Email da autora: apsantos@fiocruz.br

Ibis Libris
Rua Raul Pompeia, 131 / 708
Copacabana | 22080-001 Rio de Janeiro | RJ
Tel. (21) 3546-1007

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Associada à LIBRE.
www.libre.org.br

Dedicatória:

2
Dedico este livro a Luiz Cláudio dos Santos (1962-2012), com quem
pude exercer co-autoria em minha melhor obra: educar e amar nosso filho
Felipe.
Quando terminei o Curso Normal, Luiz Cláudio me presenteou com uma
coleção de livros sobre educação e materiais didáticos, os quais guardo ainda
hoje. Foram os primeiros de minha biblioteca pedagógica. Durante o curso de
Pedagogia, li toda a bibliografia porque Luiz Cláudio, funcionário do Banco do
Brasil, tinha acesso ao acervo (ainda não havia sido criado o Centro Cultural
do Banco do Brasil e sua biblioteca não era aberta ao público). Todas as sextas-
feiras retirava dois ou três livros para me emprestar, devolvia-os dias depois,
retirando outros. Assim, ao terminar o curso, obtive o primeiro lugar na prova
de redação para o magistério municipal. Tomando conhecimento do resultado
antes de mim, no Centro da Cidade do Rio de Janeiro, conseguiu localizar-me
em um seminário em Nova Iguaçu (em um tempo em que telefone fixo era raro e
internet ou celular sequer eram cogitados) para me avisar. Este era Luiz
Cláudio: a bondade e o desprendimento em pessoa. Assim transcorreu uma vida
em que pude aprender que a verdadeira amizade e generosidade a tudo supera,
a tudo sobrevive, a tudo se sobrepõe.
Tive o privilégio de ter Luiz Cláudio como amigo por 42 anos – são
inúmeros os exemplos que poderia citar. Como pai do nosso filho, por 28 anos.
Estou tentando aprender a ser mãe do Felipe sem ter por perto seu pai, sempre
pronto a dividir alegrias, preocupações, sempre pronto a nos tranquilizar, a
dizer: “Pode deixar que eu resolvo”. Ele partiu repentinamente porque, se
tivesse pedido nossa autorização, jamais a teria. O lugar dele é entre os anjos,
como anjo.
O amor e proteção que Luiz Cláudio doou aos amigos e familiares,
especialmente o que dedicou a seus filhos Felipe Luiz e Luiz Guilherme,
abastece a todos nós de modo pleno e profundo, embora sua ausência física nos
entristeça. Que ele seja sempre luz em nossos caminhos.

Agradecimentos:

Aos participantes do GEPTE-FIOCRUZ/RJ (Grupo de Estudos e


Pesquisas em Trabalho e Educação), com quem convivo desde 2003 no
desenvolvimento de pesquisas e busca de articulação entre teoria, empiria e
prática social. Muito devo aos queridos companheiros que estiveram presentes
ao longo destes anos, incluindo os parceiros de outros grupos de pesquisa e
instituições com quem temos dialogado.
À FAPERJ (Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa no
Estado do Rio de Janeiro), pela concessão de financiamento para a pesquisa
sobre universidades corporativas, na forma do APQ1– Auxílio à Pesquisa.
À FAPERJ, mais uma vez, pela concessão da bolsa “Jovens Cientistas do
Nosso Estado” a esta autora, para a pesquisa sobre capital intelectual.
Ainda à FAPERJ e ao CNPq, pela concessão de bolsas de Iniciação
Científica e PROGESTÃO a membros do grupo de pesquisa sob minha
orientação.
Ao SINPRO-RIO (Sindicato de Professores do Município do Rio de
Janeiro e Região), pela concessão de apoio à pesquisa sobre mercantilização da
Educação Superior.

3
AO CEPPES, Centro de Educação Popular e Pesquisas Econômicas e
Sociais, pela parceria com o grupo de pesquisa.
Aos colegas de trabalho na Fundação Oswaldo Cruz, pela riqueza do
convívio, apoio e colaboração com o trabalho, particularmente às equipes da
Biblioteca Emília Bustamante e da Biblioteca Virtual em Saúde-Educação
Profissional em Saúde da Escola Politécnica da Fiocruz, além dos colegas
professores com quem tenho a oportunidade de compartilhar disciplinas na Pós-
Graduação.
Um agradecimento especial à equipe de informática da Escola
Politécnica da Fiocruz pela solicitude com que nos acode.
Aos meus amigos e familiares, especialmente meu filho Felipe Luiz dos
Santos, meus pais Pedro Teixeira dos Santos e Leonízia Tiradentes dos Santos,
meus irmãos Paulo Francisco Tiradentes dos Santos, Tarcísio Tiradentes dos
Santos, Marcos Estêvão Tiradentes dos Santos, cunhadas Vânia, Magda e
Josélia, sobrinhos Paulo Vitor Menezes, Paulo Vitor Silva, Júlio, Marcos
Júnior, Ana Paula, Isabela e Yasmin, os sobrinhos de coração, Nathália Flores,
Cristiane Soares e demais membros da família estendida Tiradentes dos Santos,
pelo desprendimento em compreender quando estou privada de convívio mais
intenso em virtude das horas exigidas na realização deste trabalho e no
cotidiano de professora e pesquisadora.
Aos amigos que participam das redes virtuais que, por um breve “Olá!”
ou palavra de incentivo nos intervalos, confortam a solidão da escrita.
Aos alunos e orientandos, sempre proporcionando boas oportunidades
de convívio e aprendizado.

SUMÁRIO
Introdução,

Parte I – Pedagogia do mercado:contexto e fundamentos,


I.1 – A pedagogia do mercado e o sequestro da escola,
I.2 – Pedagogia do mercado: a dualidade escolar e os conceitos de estado, hegemonia e
sociedade civil,
I.2.1. – A pedagogia do mercado como “pedagogia da morte”,
I.2.2. – Desconstruindo a “pedagogia da morte” com as contribuições gramscianas sobre
o estado ampliado,
I.2.3 – Sociedade civil e os “novos movimentos sociais”,
I.2.4 – A pedagogia do mercado e a ideologia do empreendedorismo e da
empregabilidade,
I.3 – Hegemonia e pedagogia do mercado: a pseudoconcreticidade do “trabalhador de
novo tipo”,
I.3.1 – Contexto histórico, dualidade escolar e a “nova pedagogia do mercado”,
I.3-2 – Dualidade escolar no contexto da mundialização do capital,
I.3.3 – Mundialização, “novo mundo do trabalho” e a análise gramsciana do
americanismo e fordismo,
I.3.4 – As teses da “sociedade do conhecimento” e do “trabalho imaterial” como
sustentáculos ideológicos da “nova pedagogia do mercado”,
I.3.5. – Ideologia e pós-modernismo,
I.4 – Síntese da Parte I,

4
Parte II – Pedagogia do mercado:a “empresa educadora” e a universidade microondas,
II.1 – Introdução,
II.2 – A teoria do capital intelectual legitimando o papel da empresa como educadora,
II.3 – PREAL – O Programa de Promoção das Reformas Educacionais na América
Latina e Caribe: o capital como formulador de política educacional,
II.4 – Educação corporativa: o capital como agente imediato da formação,
II.4.1. – Conceituando educação corporativa,
II.4.2 –Educação corporativa como política governamental brasileira reassumida em
2011,
II.5 – Mercantilização e financialização na educação superior: a “universidade micro-
ondas” e a afirmação da Educação Superior como “serviço de mercado”,
II.5.1 – Elementos da reestruturação da produção e da gestão no plano da infraestrutura,
II.5.2 – Ideologia pós-moderna, relativismo e a produção do conformismo psicofísico
neofordista na universidade microondas,
II.5.3 – Sociedade civil e estado: as ações dos empresários do ensino,

Parte III – Alguns fundamentos para a construção da pedagogia orgânica da classe


trabalhadora na luta contra a pedagogia do mercado: educação, ciência, ideologia e
hegemonia em Gramsci,
III.1 – Para compreender a escola unitária: revisitando alguns conceitos,
III.1.1 – A ontologia humana em Gramsci,
III.1.2 – Escola Unitária: princípios e objetivos,
III.1.3 – Senso comum, filosofia e conhecimento escolar,
III.1.4 – Intelectuais orgânicos, educadores e a disputa hegemônica,
III.1.5 – Pedagogia escolar e pedagogia política,

IV – Bibliografia,

INTRODUÇÃO

Este livro origina-se do propósito de compreender o fenômeno que


denominamos “Pedagogia do Mercado”. Trata-se do modelo de educação imposto a
partir dos governos neoliberais no Brasil. Refiro-me tanto ao governo federal como aos
estaduais e municipais configurados pela hegemonia neoliberal (seja por identidade
neoliberal dos respectivos partidos, seja por alianças e coligações), que implantaram o
“gerencialismo” nos sistemas escolares nas duas primeiras décadas deste século,
acarretando a desfiguração do trabalho docente, restrito a simples execução, alcance de
metas e prestação de contas.
Tais políticas representam no campo da educação a adoção de pedagogia
neotecnicista1, que destitui o trabalho pedagógico de sua dimensão criadora, contextual
e transformadora.
A pedagogia do mercado responde ao discurso pactualista (“todos” pela
educação, acima dos interesses de classes), realizando-se na didática neotecnicista.
O esfacelamento da escola pública nas duas últimas décadas do século XX precede a
seu sequestro salvacionista pelo mercado. O bloco hegemônico investe na
desqualificação da escola pública – contando, inclusive, com a adesão desapercebida de
setores populares – para, em seguida, apresentar a solução: entregar a escola à

1 Termo utilizado por Saviani, 2008, na análise da pedagogia da “Qualidade Total”.

5
competência administrativa dos senhores de negócios e a seus institutos. A este
processo denominamos neste trabalho “sequestro da escola”. O espaço moral para que a
escola seja sequestrada pelo capital consiste em constatar-lhe a falência, associando-a à
democratização. Eis o caráter moral do sequestro: se, com o movimento de
democratização e autonomia, a escola pública chegou ao ponto de indigência que todos
percebem, a solução é entregá-la ao capital.
São exaustivos os estudos que apontam estratégias dominantes diretas para a
desqualificação da escola, como escassez orçamentária, municipalização de redes
desprovidas de condições de subsistência, precarização dos contratos docentes,
terceirização de atividades consideradas de apoio, como manutenção, cozinha, portaria
etc.
Procuramos considerar, além destes, elementos de outra ordem: algumas
contradições e distorções nos movimentos sociais de democratização da escola pública
nos anos 1980, que contribuíram para sua desvalorização e consequente sequestro: a
ideologia anticonteudista, a leitura vulgar do construtivismo e a “Pedagogia do Chico
Bento2“.
Em nossa hipótese, a preparação do terreno para a pedagogia do mercado
ocorreu também pela incorporação, por parte dos setores progressistas, de uma
concepção demagógica, populista, caricata da “escola tradicional”, levando à negação
dos conteúdos e do ensino da “gramática burguesa”, por exemplo. Procuramos, neste
livro, examinar esta hipótese.
Parte dessa contradição de setores dos movimentos sociais progressistas deve-se
a uma confusão conceitual em torno de sociedade civil, entendida no contexto pós-
ditadura militar como o território da democracia e participação popular. Por
considerarmos tal confusão determinante da incorporação dos aparelhos de hegemonia
capitalista na escola sob a classificação de organismos da sociedade civil, dedicamos
uma seção ao exame deste conceito.
Procuramos compreender o crescimento dos “novos movimentos sociais” nas
duas últimas décadas e sua dialética com os movimentos de classe. Buscamos, neste
intento, apoio no quadro conceitual gramsciano. Procuramos relacionar o refluxo dos
movimentos de classe com o desenvolvimento da pedagogia do mercado.
Compreendemos esta pedagogia como processo de mercantilização intrínseca,
diferindo-a da mercantilização extrínseca tradicional no capitalismo. Nesta, a
mercantilização ocorre no domínio da venda da “mercadoria educação”; naquela, a
mercantilização atinge internamente o fazer pedagógico pela incorporação do
gerencialismo toyotista3 no momento da “produção” pedagógica.
Analisamos a ideologia do empreendedorismo e da empregabilidade no quadro
educacional que denominamos “pedagogia da morte”. Buscando desvendar o fetiche do
mundo do trabalho, constatamos que o trabalho no capitalismo contemporâneo
corresponde à morte: morte simbólica e morte material.
Amparados nos estudos de Dejours, Bègue, Bauman, Sennett, Boltanski e
Chiapello, além de farta literatura da Sociologia do Trabalho, que demonstram o caráter
destrutivo do trabalho capitalista contemporâneo, sugerimos que, se o mundo do
trabalho é o mundo da morte, a pedagogia para o mundo do trabalho no capitalismo
contemporâneo é a pedagogia da morte. Neste quadro, consideramos a pedagogia do
mercado também como pedagogia da morte.

2 Ver cap. I. 1.
3 Examinaremos os impactos do Sistema Toyota de Produção sobre o mundo do trabalho em geral e o do trabalho docente em
especial.
6
Desconsiderar o caráter político crítico da educação em nome da qualidade
abstrata neotecnicista implica na redundância da função conservadora na escola do
mercado e na redundância do ciclo destrutivo do capital.
Para a compreensão de algumas contradições da pedagogia do mercado,
imergimos no conceito de “dualidade escolar”, procurando atualizá-lo no quadro desta
pedagogia, o que nos remete ao estudo da categoria trabalho como princípio educativo
na perspectiva emancipatória, que não se limita à ideia de trabalho como destinação
profissional individual. Empreendemos a crítica a versões contemporâneas da pedagogia
utilitarista do capital, as quais subordinam a formação geral à profissionalização e aos
fundamentos científicos específicos da área de formação profissional, mesmo que na
modalidade “integrada4”.
Como elementos superestruturais da pedagogia do mercado, identificamos um
grupo de correntes em torno do pós-modernismo, pós-estruturalismo, “capitalismo
cognitivo”, “sociedade do conhecimento”, “sociedade pós-industrial”, que, em nossa
compreensão, colaboram para a despolitização – repolitização conservadora da
pedagogia.
Observamos que o processo de mercantilização intrínseca da pedagogia, além de
atingir a escola pública básica, desdobra-se nos modelos de educação corporativa (ou
universidades corporativas) e na internacionalização e financeirização da Educação
Superior.
Na educação corporativa, as empresas assumem o controle direto da formação
de sua força de trabalho (e toda a cadeia de valor), estabelecendo projetos pedagógicos a
partir de seu planejamento estratégico.
Chamamos a atenção para a retomada de apoio governamental federal a esta
modalidade de ensino, ocorrida em novembro de 2011 pela convocação de uma oficina
nacional, após alguns anos de interrupção desta atividade.
Examinamos a educação corporativa a partir da teoria do capital intelectual, que
em relação dialética com a teoria do capital humano, fundamenta a relação capital-
trabalho-educação-Estado no neoliberalismo.
A mercantilização/financeirização da Educação Superior, outra face da
pedagogia do mercado, evidencia que o conceito de educação como serviço – e não
como direito – tem efetividade na política educacional para este nível de ensino. Na
condição de “serviço de mercado”, sua lógica produtiva é idêntica à que rege a
produção e circulação dos demais serviços: produtividade, lucro, remuneração do
investimento, concentração do capital.
Entendendo o Estado em sentido ampliado, de acordo com Gramsci, procuramos
analisar o papel hegemônico dos empresários do ensino na sociedade civil.
Ressaltamos que esta categoria, hoje, se revela muito mais abrangente do que a
dos tradicionais proprietários das instituições, em geral caracterizadas como empresas
familiares. Como grande parte destas realizou abertura de capital e/ou incorporaram-se a
grandes grupos educacionais, consideramos empresários de ensino também tais grupos e
seus acionistas. Em muitos casos, esses grupos de investimentos atuam na aplicação
financeira em torno de diversos setores: indústria, bancos, redes de comércio varejista
etc.
As relações entre o capital e a educação adquirem contornos sofisticados na
pedagogia do mercado. Ora temos a empresa-escola, ora a escola-empresa. Para
compreendermos a ação orgânica do capital, tomamos como exemplo um de seus
intelectuais orgânicos coletivos: O PREAL – Programa de Promoção das Reformas

4 Modalidade curricular introduzida pelo Decreto 5.154/2004, que consiste na integração da formação geral e profissional no nível
médio.
7
Educacionais na América Latina e Caribe. Dedicamos um capítulo do livro a estudar as
prescrições deste organismo para a política educacional e o trabalho docente.
Como referencial para a construção da totalidade concreta da pedagogia do
mercado, recorremos às contribuições de Gramsci. É necessário, portanto, apresentar
uma introdução a seu pensamento, sistematizando alguns conceitos apresentados em
suas obras, por vezes de forma difusa 5. O estudo do corpo teórico gramsciano é
elemento indispensável para a compreensão crítica da escola nas sociedades periféricas
e semiperiféricas do capitalismo neste início do século XXI. Recomendo ao leitor que
não se abstenha de ler também as obras que deram origem à presente sistematização.
O livro está organizado em três partes:
Na Parte I, apresentamos criticamente alguns elementos do contexto da
pedagogia do mercado e seus fundamentos no quadro neoliberal de privatização e
mercadorização da gestão do trabalho escolar, particularmente na Educação Básica
pública.
Na Parte II, analisamos os movimentos de educação corporativa e de
mercantilização da Educação Superior, compreendendo-os como expressões da
pedagogia do mercado. Para analisar os dois temas, apoiamo-nos no estudo de duas
entre as bases ideológicas desta pedagogia: a Teoria do Capital Intelectual como
sustentáculo ideológico da pedagogia do mercado e o PREAL como intelectual orgânico
coletivo do capital.
Na Parte III apresentamos uma sistematização e reflexão sobre alguns dos
conceitos fundamentais de Gramsci.
Acreditamos ser a compreensão da pedagogia do mercado condição para sua
superação. Este trabalho pretende colaborar para a percepção da historicidade desta
pedagogia, seu caráter de classe, sua pseudoconcreticidade, provocando a indignação
necessária à organização das energias da luta da classe trabalhadora.

PARTE I

PEDAGOGIA DO MERCADO: CONTEXTO E FUNDAMENTOS

I.1 – A PEDAGOGIA DO MERCADO E O SEQUESTRO DA ESCOLA

Nas duas décadas iniciais do século XXI, sob o impacto do neoliberalismo,


mundialização do capital, precarização e intensificação do trabalho, instaura-se na
educação o “novo tecnicismo de mercado”.
O pretexto de urgência salvacionista frente a uma escola deteriorada legitima a
“despolitização” da pedagogia, reduzindo-a à dimensão “técnica”, em busca obsessiva
de uma “qualidade” fenomenicamente abstrata, definida pelo mercado.
Como prática social, a educação é inexoravelmente política, tema este já
exaustivamente estudado na literatura crítica 6. “Despolitizá-la”, reduzindo-a a atividade
meramente “técnica”, portanto, é repolitizá-la em favor da manutenção da hegemonia,
sob a aparência de neutralidade, eficiência, eficácia, silenciando e desqualificando os
significados da educação como prática política transformadora e de formação humana
no sentido mais pleno.

5 Pelas condições de escrita dos cadernos no cárcere, parte de sua obra é composta por anotações preliminares, que requerem o
conhecimento do contexto e conjunto de seus escritos, para melhor compreensão.
6 Lembramos alguns dos representantes dessa literatura crítica: Karl Marx, Antonio Gramsci, Mario Alighiero Manacorda, Aníbal
Ponce, Dermeval Saviani, Paulo Freire.
8
A ideologia produtivista do mercado confina o processo ensino-aprendizagem e
a educação nos limites tecnocráticos da “pedagogia dos resultados”, validando como
qualidade aquela substancializada nos indicadores de desempenho orientados por
parâmetros do mercado, controlados heteronomamente. Impõe-se vigilância sobre o
trabalho docente, descaracterizando-o e reduzindo-o à dimensão de execução
distanciada da concepção.
As provas do novo espírito do capitalismo 7 são traduzidas na escola pela
quantificação do desempenho estudantil e docente limitados ao produto, aos resultados
em sua mensurabilidade objetiva, desconsiderando o processo de aprendizagem, o
contexto e os múltiplos pontos de partida.
A atual modalidade de redução da ação pedagógica à produção da mercadoria
força de trabalho instalou-se após alguns anos de preparação do terreno. Produziu-se
uma escola “fracassada” para, em seguida, apresentar-se a solução: sua mercantilização.
A ação pedagógica encontra-se subordinada ao papel desempenhado pelo Brasil na
divisão internacional do trabalho.
Quando nos referimos à mercantilização, não designamos especificamente a
venda da “mercadoria-educação” por meio da privatização direta. Tratamos da absorção
da lógica mercantil pelos sujeitos envolvidos na esfera da “produção” pedagógica. Tal
absorção é assegurada pela combinação de coerção e persuasão.
Eis o traço diferencial da pedagogia do mercado em sua contemporaneidade: a
mercantilização não ocorre apenas na dimensão de sua “circulação” ou “distribuição” na
forma de oferta por escolas privadas. Este traço (coexistência de escolas privadas e o
sistema público) é característica histórica do capitalismo periférico. Não foi introduzido
pelo neoliberalismo, embora tenha sido evidentemente acentuado. A mudança
qualitativa da pedagogia do mercado no neoliberalismo consiste na mercantilização do
processo, não apenas do produto. Não apenas a “distribuição” da “mercadoria-
educação” é envolvida no sistema de mercado sob a forma de sua venda por instituições
privadas. Todo o processo de produção pedagógica é submetido à lógica do mercado:
gestão escolar, relações ensino-aprendizagem, conteúdos programáticos, princípios
pedagógicos do currículo e avaliação dos resultados. O sentido e as finalidades da
educação incorporam a mercadorização já no âmbito da produção. A pedagogia do
mercado adentra a escola pública e privada desde a concepção curricular, transpassa as
práticas escolares e se evidencia nas políticas de avaliação heterônomas.
Reconhecemos que, na história da educação capitalista, a definição de conteúdos
e métodos (e da ação escolar em sentido amplo) jamais ocorreu de modo autônomo e
desvinculado do papel da classe burguesa nos aparelhos de Estado, não sendo, portanto,
este, um traço original no neoliberalismo, mas traço diferencial de natureza qualitativa.
Todavia, insistimos em destacar o caráter de mudança qualitativa no atual estágio do
capitalismo, quando todo o processo pedagógico é coercitivamente submetido ao
gerencialismo.
Na Educação Básica pública, esta penetração pelo mercado ocorre por meio de
parcerias público-privadas na gestão do trabalho pedagógico, controle, avaliação
(reduzida à mensuração de resultados) e subordinação da carreira docente aos critérios
de “mérito” do mercado.
Na Educação Superior, onde a privatização direta8 é o elemento mais evidente,
observa-se esta mudança qualitativa simultaneamente e imediatamente relacionada à
financialização ou financeirização (grande parte das universidades privadas transferem

7 Boltanski e Chiapello (2009) definem como “provas” um conjunto de critérios de validação social que atestam a consonância de
determinados valores, comportamentos, atitudes, a um modelo de sociedade referente a um determinado modelo histórico.
8 Este tema será abordado em capítulo posterior.

9
sua mantença9 a entidades de capital aberto) e à internacionalização. Ao abrirem o
capital e terem seu controle deslocado para acionistas vinculados a setores produtivos
externos, os quais impõem sobre a universidade os mesmos critérios de produtividade
adotados em seus negócios em outras áreas, as Instituições de Educação Superior (IES)
subordinam o próprio fazer pedagógico, ou o “processo de produção” da instituição, à
lógica mercantil, não apenas sua distribuição.
Nesse movimento de mercantilização interna ao processo de produção
pedagógica, os fundamentos da ação educativa, seus sentidos, significados e princípios
são deslocados de tal modo, que o direito à educação é conotado como serviço a ser
produzido com critérios de “qualidade total”, análogos à produção de outros bens de
consumo nos demais setores da economia: corte de custos, “otimização” de recursos
(inclusive do tempo), padronização, resultados objetivos, bom desempenho do
“produto” etc. Nada mais “adequado”, neste caso, do que confiar tal empreendimento a
quem sabe fazer: os empresários, particularmente o grande capital.
Antes do processo de abertura de capital, a educação privada era controlada
pelos empresários do setor de ensino. A partir do lançamento de ações dos grupos
educacionais na bolsa de valores, o domínio passa às mãos dos acionistas, cuja relação
com “o comércio da educação” é apenas parte do seu portfólio de negócios. Entre os dez
maiores grupos que controlam a educação superior privada no Brasil no ano de 2012,
encontramos acionistas que investem em “empresas de ensino” tanto quanto em
indústrias de bebidas alcoólicas, bancos, redes de “fast-food”, lojas de departamentos,
indústrias de cigarros, indústria farmacêutica etc.10
Essa relação de mercantilização interna não se circunscreve à Educação Superior
privada, o que já seria desastroso11. Os mesmos grandes grupos privados que controlam
a Educação Superior privada vêm, em sua maioria, embrenhando-se na Educação
Básica pública por meio de parcerias para “treinamento” e avaliação de professores,
desenvolvimento de material didático, consultorias, assessorias e parcerias para gestão
escolar.
O agravamento do processo de mercantilização interna da educação pública nos
anos 2000, seja pelas parcerias com o setor privado, seja pela gestão das unidades e/ou
dos sistemas escolares orientada pela lógica da produção de mercadorias, resulta na
redução do processo pedagógico a atividade limitada a fins pragmáticos e controlada
por “senhores do mercado” e seus prepostos, os institutos para fins educacionais,
vinculados a grupos econômicos que dominam os segredos da “produtividade” e da
“eficiência”.
A pedagogia do mercado realiza-se, tanto nos sistemas públicos como nas
instituições privadas, pela adoção da lógica empresarial do capitalismo. Isto inclui a
“profissionalização” da gestão, como é chamado o processo de substituição de direções
tradicionalmente vinculadas à educação por profissionais do “mundo dos negócios” 12.
Segundo Marx13, o modo de produção capitalista não produz apenas uma
mercadoria para o consumidor, mas o consumidor para a mercadoria. Sendo assim,

9 Denomina-se mantença a relação da mantenedora com a instituição mantida, conforme processo de credenciamento no MEC.
10 Este tema será desenvolvido na Parte II deste livro. Ver também Santos, 2009.
11 Segundo o Censo da Educação Superior de 2009, divulgado pelo INEP-MEC em janeiro de 2011, aproximadamente 90% das
instituições de Educação Superior brasileiras são privadas e responsáveis por cerca de 75% das matrículas neste nível de ensi no.
Esta proporção vem se mantendo estável nos últimos censos anuais, apesar da expansão das instituições públicas nos últimos anos.
12 Quando expomos as diferenças entre o tradicional modelo de gestão representado pelos empresários de ensino (gestão familiar) e
o modelo contemporâneo (gestão “profissionalizada), não desconsideramos que em ambos está presente a busca de lucro através da
educação. Não se trata da defesa de um modelo frente ao outro, mas da análise do processo histórico de aprofundamento da
mercantilização neste setor.
13 Marx, 1978.

10
antes de oferecer o novo produto (a “pedagogia do mercado”), convinha ao capital
produzir seu consumidor: uma sociedade desnorteada pelo fracasso escolar e sequiosa
por uma escola que “funcionasse”. Seria oportuno, então, conduzir a escola à falência
ou, na melhor das hipóteses, permitir que falisse, para oferecer outro produto: a escola
do mercado.
Nos anos imediatamente posteriores à “abertura política” brasileira (1979),
eclodiram movimentos de democratização da escola e a publicação de obras de autores
anticapitalistas, anteriormente censurados. Tanto no meio acadêmico como nos
movimentos sociais, incluindo o sindicalismo dos trabalhadores em educação 14, os
anseios pela democratização da escola articulavam-se com um projeto de transformação
estrutural da sociedade. A teoria gramsciana sobre “guerra de posição”15 foi um dos
instrumentos para a compreensão da luta cultural como elemento revolucionário.
Em paralelo ao movimento contra-hegemônico em torno da educação, o bloco
histórico16 dominante não se dissipou, mas delineou suas estratégias de restauração de
hegemonia17. Produziu-se, então, uma escola falida, cuja desqualificação acentuou-se
nos últimos vinte anos do século XX, para, no início deste século, apresentar-se a
fórmula para sua salvação: o novo tecnicismo de mercado, aliado ao controle externo do
trabalho escolar e à privatização direta ou indireta da escola 18. As bases behavioristas19
da “nova pedagogia do mercado” são enevoadas pela justificativa de “modernização”.
O novo tecnicismo de mercado invade a escola dissimulado sob o pretexto de
salvá-la da “incompetência” e dos “devaneios pedagógicos” dos educadores
“românticos” do final do século XX e dos “funcionários públicos” da educação,
“acomodados em seus cargos e descomprometidos com os resultados”, segundo o
discurso neoliberal20. Propõe, ainda, salvar os “bons educadores”, comprometidos com a

14 Nos anos 1980 e início dos anos 1990, o movimento sindical docente e as demais associações de categorias profissionais desta
área deflagraram um movimento de politização caracterizado pela filiação à CUT (Central Única dos Trabalhadores), transformação
de associações ou sindicatos de professores em sindicatos de trabalhadores em educação, filiação das confederações à mesma central
sindical, fusão de associações e federações, como as de orientadores educacionais e supervisores educacionais, aos sindicatos e à
CNTE (Confederação Nacional de Trabalhadores em Educação). A CUT, na época, representava o “novo sindicalismo”,
considerado mais “revolucionário”, enquanto a CGT (Central Geral dos Trabalhadores) era considerada por aquela como
representativa do “sindicalismo de resultados”, limitado aos interesses corporativistas de cada categoria. Grande parte dos sindicatos
de trabalhadores em educação viveu embates eleitorais, onde “oposições cutistas” obtiveram vitória sobre as antigas direções. A
relação entre estes movimentos e o pensamento crítico predominante no meio acadêmico naquele momento configurava um bloco
histórico que objetivava a construção de uma escola democrática e comprometida com o enfrentamento ao modo de produção
capitalista.
15 Cf. Gramsci, 1989. Ao discutir as formas de luta revolucionária, Gramsci analisa além da clássica “guerra de movimento”
(insurreição abrupta), a “guerra de posição”, onde a construção da nova hegemonia é fruto de sucessivas e progressivas posições
ocupadas pela sociedade civil na direção intelectual e moral da sociedade. Compreenderemos melhor ao vermos, em capítulos
posteriores, os conceitos de estado ampliado, hegemonia, ideologia, intelectuais orgânicos e sociedade civil nesse autor.
16 Conceito a ser discutido em capítulo posterior deste livro.
17 Restauração de hegemonia é um conceito desenvolvido por Gramsci, que nos auxilia no entendimento deste movimento de
desqualificação-requalificação burguesa da escola latinoamericana. Trata-se de uma estratégia conservadora que aparenta mudança
para impedir a transformação essencial e se pauta no fortalecimento da hegemonia. (SANTOS, 2000)
18 Chamamos de privatização indireta ainda a delegação de atividades da escola a instituições privadas, voluntários, programas
empresariais etc.
19 Mesmo sem citar Skinner, a nova pedagogia do mercado recupera muitos de seus pressupostos, como a valorização do
comportamento observável, as “respostas certas”, o produto e não o processo, a teoria do reforço, as competências, habilidades e
atitudes “moldadas” pela engenharia comportamental, em detrimento do processo de desenvolvimento individualizado e
contextualizado, a “mudança de comportamento” mensurada em sucessivos testes etc. A diferença é que as “máquinas de ensinar”
agora possuem bases microeletrônicas e não elétricas ou mecânicas, como ocorria na formulação de Skinner. Elevar as máquinas da
condição de recurso a sujeito do processo pedagógico, afirmando que as novas tecnologias “exigem” uma nova pedagogia, é
ideologia que concorre para a despolitização-repolitização conservadora da pedagogia. As novas tecnologias de informação e
comunicação são bem-vindas, como recursos e apenas nesta condição podem ser incorporadas.
20 Santos, 2004. Neste artigo comento a política de desqualificação do servidor público da educação, particularmente a partir da
produção do PREAL (Programa de Promoção das Reformas Educacionais da América Latina e Caribe), instituição criada por
representantes do grande capital internacional (Discovery, Citibank, Motorola etc.) no contexto do neoliberalismo, hoje vinculado
ao Banco Mundial, que tem por finalidade de influenciar a política educacional latino-americana. Um de seus três Grupos de
Trabalho dedica-se especificamente ao estudo e proposições sobre o trabalho docente. Trataremos deste tema em capítulo posterior.
Ver ainda em Santos, 2002.
11
“qualidade”, premiando-os por “mérito”, substituindo os mecanismos coletivos de
ascensão na carreira docente por incentivos individualizados, intentando fragmentar
seus espaços coletivos de organização e luta e convertê-los à pedagogia da hegemonia
político-econômica neoliberal.
A meritocracia, além do efeito nefasto de premiar os dóceis que aderem ao novo
modelo, coagindo-os, traz como fundamento o princípio da competitividade,
incompatível com a universalidade. Adotar a meritocracia (em relação ao trabalho
docente e ao desempenho estudantil ou escolar) significa admitir que “educação de
qualidade”, objeto de competição, consagrada em rankings, não será um bem universal.
Bons professores e boas escolas serão privilégio de alguns. Os rankings educacionais
pressupõem que, além do podium, da pole position, haja os “lanterninhas” 21, os
“retardatários”, aqueles que justificam a perpetuação da ética salvacionista do mercado,
num vício tautológico funcional. A procura pelos melhores pressupõe a admissão de
piores.
A educação, nos moldes da OMC e do GATS, 22 é considerada pelos “senhores
do mundo” como “coisa de quem entende de negócios”, de quem sabe trabalhar por
metas e resultados. Se a escola “faliu”, “vale tudo” na guerra para recuperá-la. Vale
sobrepujar a comunidade científica da Educação, reprimir os movimentos sociais
críticos e incorporar os adesistas, suprimir a participação do educador na definição dos
objetivos e dos meios de seu trabalho, alienando-o. Afinal, a “salvação” da escola
justifica tudo! Até mesmo a dissimulação de suas funções políticas. Ouve-se, tanto nas
fontes oficiais quanto em intensa campanha de mídia, o apelo salvacionista à
convocação daqueles que “sabem fazer funcionar”: o empresariado. Esta é a chantagem
imposta pelos senhores do mercado, autodenominados consumidores da “mercadoria”
produzida pela escola – a força de trabalho 23. Chantagem perversa sobre uma sociedade
marcada historicamente pela negação do direito à educação de qualidade à classe
trabalhadora.
Esta chantagem surte efeito após décadas em que a educação – especialmente a
Educação Básica pública – sofreu esfacelamento por modismos pedagógicos
desprovidos de base científica, como usos levianos dos nomes de Piaget, Vygotsky,
Paulo Freire e mesmo Gramsci. 24 Dada a popularidade destes nomes no campo da
educação na década de 1980, não foi difícil ao bloco hegemônico capturá-los a seu
favor, a seu modo, reorientando seus pressupostos pela superficialidade de leitura, e
assim conquistar a adesão dos professores às novas propostas. Uma das consequências
foi a associação direta entre democratização e anticonteudismo, difundida no senso
comum pedagógico, em que pesem os estudos rigorosos contra esta vulgarização, como,
por exemplo, os de Saviani.
Tal movimento de restauração da hegemonia burguesa acarretou a difusão de um
modelo de pedagogia baseado na desqualificação do trabalho docente e do processo
ensino-aprendizagem, retirando-lhes a dimensão científica, localizando-se no senso
comum e não no estudo austero dos autores citados. Este empreendimento conduziu a
escola a tamanho estado de indigência, que instituiu um espaço moral para o “resgate”
por quem “sabe fazer”.

21 Forma coloquial de designação do competidor que ocupa as últimas posições em concursos esportivos.
22 Organização Mundial do Comércio e Acordo Geral para Comércio de Serviços.
23 Cf. Santos, 2004. Em um dos documentos de criação do PREAL, assinado por seus sócios-fundadores, estes se declaram no
direito e dever de definir o que deve ser ensinado na escola e como deve ser ensinado, visto que eles, os empresários, são os
consumidores de seu produto, a força de trabalho. Como consumidores, devem exigir a qualidade e o teor da mercadoria que irão
consumir.
24 Os conceitos gramscianos de hegemonia, ideologia, sociedade civil e senso comum, a serem desenvolvidos em capítulos
seguintes, nos auxiliam na compreensão deste processo.
12
Por um lado, muitos foram os intelectuais comprometidos com a luta
anticapitalista no movimento de redemocratização, como Paulo Freire, Florestan
Fernandes e outros. Por outro lado, a banalização da pedagogia e o anticonteudismo
contaram com a propaganda empreendida por intelectuais fascinados pela “novidade
democrática” dos movimentos sociais, mas não suficientemente comprometidos com a
crítica estrutural ao capitalismo. A predominância do pensamento crítico na academia
naquele momento (pensamento crítico como “onda” acadêmica), combinada com a
sedução populista de um discurso anticonteudista, permitiu que muitos aderissem à
causa desprovidos de fundamentos consistentes para uma nova pedagogia que fosse
além da mera negação da cultura dominante. Esta adesão superficial inicial talvez
explique a rapidez com que muitos deles abandonaram o referencial marxista e se
incorporaram ao movimento pós-crítico nos meados dos anos 1990.
O esfacelamento da pedagogia escolar foi resultado, conforme assinalado acima,
de um processo de restauração da hegemonia, caracterizado não apenas pelas ofensivas
diretas do capital, mas significativamente também pela disseminação do populismo e
anticonteudismo no senso comum pedagógico.
Uma vez que no período de redemocratização a escola é palco de renovação das
lutas sociais, vista e assumida como espaço de construção de leituras de mundo contra-
hegemônicas, convém ao sistema desmoralizar seu trabalho para que seja mantida sua
funcionalidade capitalista. Operar no interior de tais movimentos, ressignificando suas
propostas, banalizando-as, resulta mais eficaz do que a coerção adotada pelo regime
imediatamente anterior.
A década de 1980 não comportava a repressão aberta dos anseios de democracia
como estratégia preferencial do regime 25, pois a América Latina saía de décadas de
ditadura, os movimentos sociais floresciam, o “novo sindicalismo” emergia. O controle
burguês da escola estava ameaçado, mas não seria retomado por meio da repressão.
Mais eficaz seria condenar a escola participativa e democrática ao fracasso, destruí-la
internamente. Isto foi feito pela adoção de uma “política do senso comum” de
desvalorização dos conteúdos escolares, que conduziu a escola à falência, com adesão
ingênua, indulgente ou desatenta de parcelas de educadores.
Muitas seriam as hipóteses que nos norteariam na especulação sobre as causas
de tão fácil penetração de uma ideologia de senso comum na universidade, nos
movimentos sociais e no ambiente pedagógico. Seria por ingenuidade? Seria, por outro
lado, efeito da consciência pequeno-burguesa tomada pelo “entusiasmo democrático
pós-ditadura” de segmentos de professores universitários que, na realidade, nunca se
haviam comprometido na luta contra o capitalismo, mas nutriam simpatia pela
participação popular? Quais as razões para a adesão acelerada a uma ideologia que
associava qualquer resíduo de “conteudismo”, sistematização, preparação de aulas e
correção de exercícios à perversidade da “escola tradicional”?
Como explicar que, tão logo o pensamento crítico passa à condição de
“anacrônico” nos patamares dominantes dos meios acadêmicos (substituído pelo
pensamento pós-crítico, alçado à condição de “última moda acadêmica”), as trincheiras
da guerra de posição se inibam tanto?
Em que medida o anticonteudismo dos anos 1980 conteria o “DNA” do
relativismo multiculturalista dos anos 1990 e 2000?

25 Não significa dizer que a repressão e os conflitos deixaram de ocorrer. O ano de 1988 é lembrado repressão ao movimento
sindical, a exemplo do assassinato de trabalhadores da Companhia Siderúrgica Nacional – Volta Redonda – RJ, durante uma greve.
Ainda no Estado do Rio de Janeiro, em julho do mesmo ano, a greve dos professores da rede pública enfrentou episódios de
violência policial.
13
A fragilização da escola pública, fator de conveniência à atual política de
mercado, contou com elementos internos à própria pedagogia progressista.
Paradoxalmente, além dos setores do capital (visivelmente interessados), parte dos
sujeitos da luta democrática contribuiu para seu próprio aniquilamento, sob a forma de
desqualificação da “escola tradicional”, em nome da superação dicotômica dos
“conteúdos tradicionais”. A dicotomia entre as caricaturas da “escola tradicional” e da
“escola construtivista” conduziu o trabalho escolar à amorfia, que foi em seguida
explorada pelos veículos de comunicação da classe dirigente transnacional, comparando
nossos resultados com aqueles países (“Tigres Asiáticos”) onde a educação “não se
rendeu a modismos” e manteve o caráter rigidamente conteudista.
O processo de banalização teórica do construtivismo e da pedagogia crítica é
atroz, sobretudo, por “imunizar” o campo pedagógico contra qualquer perspectiva
transformadora seriamente construtivista. Um “construtivismo” difundido de forma
leviana nos anos 1980 e início dos 1990, por ostensivo desrespeito aos seus teóricos
formuladores, passa a ser responsabilizado pelo fracasso escolar. E a solução do
mercado é trazer de volta a “escola tradicional”, ou melhor, a escola liberal em sua face
tecnicista ou neotecnicista das aulas e provas padronizadas.
Reafirmamos que a ideologia não operou sozinha – isto seria impossível-, mas
forjou-se como parte de um bloco histórico estrutura/superestrutura. Aliada à
“Pedagogia do Chico Bento”26 no campo da superestrutura, vemos, no campo da
estrutura, a precarização do trabalho docente em suas condições mais elementares, a
destruição material e simbólica das unidades escolares e a indigência nas condições de
ensino-aprendizagem. Os resultados são evidentes: alunos concluindo a Educação
Básica sem o mínimo domínio do código escrito.
Diante deste quadro de escombros, quem poderia se opor ao modelo “salvador”
oferecido pelo Banco Mundial, OMC, OCDE, PREAL27, institutos “cidadãos”
vinculados ao mercado, movimentos salvacionistas burgueses? Afinal, a escola chegou
a um estado de tamanha miséria que aos olhos do senso comum – induzido pela mídia –
qualquer medida para recuperá-la é válida e não poderíamos nos ater a “pudores
pedagógicos”.
Vale, então, desqualificar aqueles que passam a ser responsabilizados pelo
fracasso da escola: os professores. Estes mesmos professores que, por duas décadas,
foram expropriados dos conteúdos de sua formação, que se viram abandonados a uma
“pedagogia do não ensinar”, frustrante e desnorteadora. Com o agravante de serem
destituídos das condições materiais mais basilares em sua dignidade profissional.
Esta desqualificação dos educadores havia ocorrido de modo perverso e
progressivo ao longo de algumas décadas. Como antecipamos alguns parágrafos acima,
para contrabalançar a rigidez do que seria a “escola tradicional” (construiu-se uma
caricatura em torno dela) emerge nos anos 1980 a vulgata de um pseudoconstrutivismo
espontaneista, amplamente difundido nos cursos de formação de professores, palestras,

26 Denomino aqui “pedagogia do Chico Bento”, a vulgarização, por exemplo, da relação entre a linguística e a pedagogia. Se, do
ponto de vista da linguística, é legítimo dizer que, havendo comunicação, há um “falante perfeito”, do ponto de vista da pedagogia
não se pode negar que cabe à escola apresentar aos alunos as diversas manifestações da língua, inclusive -e particularmente – a
norma culta. A escola foi capturada na bipolarização entre a valorização linguística das diversas manifestações culturais e a norma
culta. Tomo Chico Bento (personagem das histórias em quadrinhos de Mauricio de Souza, conhecido por falar a “língua do povo”
rural, como “erros de concordância”, aos olhos da norma culta) como a figura-síntese. A escola se viu sob chantagem: se apresentar
a norma culta aos alunos, ficará sob suspeita de discriminar as variações culturais da língua. Isto a conduziu à redundância e à
abdicação de sua função social de oferecer, ao aluno, recursos culturais além daqueles de que este já dispõe em seu meio. A escola
não compreendeu que para valorizar acultura popular não é necessário sonegar o direito a outras formas de conhecimento. Esta
incompreensão, se não intencionalmente produzida, foi permitida e estimulada pelo poder público e academia, na formação de
professores sob uma concepção meramente anticonteudista e antidiretiva inconsequente.
27 Organização Mundial do Comércio, Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, Programa de Promoção das
Reformas Educacionais na América Latina e Caribe.
14
oficinas, capacitação docente. Segundo tal vulgata, na escola “construtivista” não se
ensina, não se planeja, não se corrige e o aluno “traz o conhecimento”. O professor não
deve “impor” um conteúdo. Só se trabalha de acordo com a “realidade do aluno”,
entendida aqui como a realidade imediata e empírica. Não se busca construir o
“concreto pensado”. Trata-se de da pedagogia da pseudoconcreticidade 28.
Registre-se, mais uma vez, que, ao contrário do que se difunde no senso comum
pedagógico, esta leviandade nenhuma relação guarda com as teses científicas de autores
como Paulo Freire, Gramsci, Piaget e Vygotsky, cujos nomes foram evocados nessa
“festa anticonteudista” por meio de leitura fragmentada de alguns trechos de suas obras
ou de seus seguidores (ou mesmo pela ausência de leitura).
A obra de Paulo Freire, por exemplo, é distorcida para justificar o
espontaneismo, a demagogia e a desvalorização dos conteúdos escolares, mais uma vez
sem base teórica que justifique tal uso 29. O que é considerado conteúdo “livresco”
precisa ser “exorcizado” da escola, segundo a interpretação do senso comum da época 30.
O livro e a cultura “letrada” são condenados pelo senso comum pedagógico à condição
de inimigos da democratização da escola e do respeito à cultura popular, numa manobra
hegemônica de dicotomização. Difunde-se um antropologismo de superfície para
explicar as diferenças culturais que impediriam a universalidade na escola.
Conhecimento científico é associado linearmente a conhecimento burguês e deveria,
segundo esta versão hegemônica populista, ser degredado das salas de aula. O professor
que assim não agisse corria o risco de ser caricaturado como um daqueles personagens
da literatura que ilustram a escola tradicional: retrógrado, violento, ultrapassado, com a
palmatória na mão.
Reconhecemos que a análise deste fenômeno “anticonteudista” merece maior
aprofundamento, como a reflexão sobre a crítica estética 31 empreendida nos anos 1960,
sintetizada no movimento conhecido como “maio de 68” e seus desdobramentos. Há
uma dimensão autêntica e densa nesta crítica, que deve ser conhecida, respeitada e
incorporada sem dicotomizações. Há fundamentos antropológicos e epistemológicos
que merecem análise cuidadosa no exame das noções de “conhecimento”, “saber”,
“cultura”32. Entretanto, o que fazemos aqui, sem entrar no mérito da análise da crítica
estética e suas múltiplas determinações, mesmo correndo o risco de reducionismo, é
registrar o modo como ocorreu a apropriação desta modalidade de crítica pelos setores

28 Ver conceito de pseudoconcreticidade em Kosik, 2002.


29 Santos, 2000. Nesse livro, a autora examina o pensamento de Paulo Freire em sua fase posterior ao exílio, onde o autor em muito
supera as teses antiinstitucionais e anticonteudistas de suas obras iniciais. Apesar de difundido no senso comum apenas como o
autor da crítica à “escola bancária”, ao tomar contato com o pensamento gramsciano e sua teoria do Estado ampliado, Freire adota a
perspectiva dialética da instituição escolar, elegendo-a como espaço de luta contra-hegemônica. Embora chame a atenção para a
dimensão ideológica do conhecimento, não propõe que a escola substitua os conteúdos por uma suposta leitura de mundo
inconsistente e voluntarista e empirista. Nem que a relação entre professor e aluno paute-se por uma “horizontalidade”
irresponsável.
30 Esta crítica foi apresentada pela autora em SANTOS, 2009.
31 Ver os conceitos de crítica estética e crítica social em Boltanski Chiapello, 2009. Em linhas gerais, os autores definem como
crítica social aquela que tem como objeto a estrutura da sociedade de classes, a divisão social do trabalho do ponto de vista da
propriedade dos meios e produção e seu controle. Já a crítica estética tem como alvo a desumanização decorrente do
desenvolvimento tecnológico, a hierarquia. Suas manifestações podem ser associadas respectivamente à luta de classes e ao
movimento de contracultura. Os autores analisam a interpenetração das duas dimensões, considerando inadequado abordar uma em
posição dicotômica frente à outra.
32 Citamos aqui, como fundamentação da advertência sobre a necessidade de rigor no exame da temática do conhecimento, toda a
tradição teórica desenvolvida, por exemplo, a partir de “A arqueologia do saber” de Foucault (2009). O que considero condenável
do ponto de vista da Pedagogia são as dicotomias entre “conhecimentos” e “saberes”, que colaboram, em última instância, para a
desqualificação do papel social da escola e da negação do direito das classes populares de acesso ao conhecimento científico.
Suponho que tais dicotomias derivam de leituras aligeiradas ou secundárias da tradição foucaultiana, difundidas no senso comu m
pedagógico. O estudo rigoroso de Foucault não conduziria à conclusão dualista de que “a escola não é mais o lugar do
conhecimento, mas somente “dos saberes”.
15
dominantes em favor da desqualificação da escola. Este fenômeno da assimilação e
apropriação da crítica é examinado com solidez em Boltanski e Chiapello 33.
Apresentada a ponderação, retomemos o problema da debilitação da escola. O
ataque às práticas “conteudistas”, aliado a políticas populistas e demagógicas, gerou
tamanha desqualificação do trabalho escolar que permite hoje o avanço neoliberal e seu
sequestro pelos tecnocratas, com apoio de setores sociais bem intencionados e desejosos
de uma escola onde, no mínimo, o aluno aprenda a ler e a escrever – o que de fato não
vinha acontecendo e é grave.
Foi o “crime perfeito”: inicialmente, os setores hegemônicos, capitalizando o
anseio de democratização, canalizam-no para a construção de uma escola que não
ensina nada a ninguém, onde ninguém aprende nada. Logo em seguida, exatamente
esses setores, os mesmos que instilaram o “veneno”, propõem a salvação dessa escola
que destruíram. E sequestram a escola.
Conexo a este sequestro, sequestra-se também a função política emancipatória e
crítica da escola, sequestra-se o trabalho docente de suas margens de autonomia,
sequestra-se o processo pedagógico de sua contextualização.
Os processos pedagógicos padronizados e a avaliação reduzida a medidas de
resultados definidos externamente (que materializa o controle heterônomo sobre a
relação ensino-aprendizagem) impedem que a escola desenvolva seu projeto político-
pedagógico com autonomia e compromisso político transformador. Representam o
controle ideológico da escola e do trabalho do professor. Não comportam divergentes
leituras de mundo. A única permitida é a que eleva os índices de desempenho da escola,
aquela imposta por quem “entende de produtividade”.
Aprendemos, no movimento de democratização da escola nos anos 1980, que
algumas perguntas fundamentam a elaboração de um projeto político pedagógico: Que
sociedade queremos construir? Que aluno queremos formar? Para que tipo de
sociedade? Que escola é necessária à construção de uma nova sociedade? Estas questões
e o debate em torno delas por toda a comunidade escolar seriam o ponto de partida para
um projeto político-pedagógico, fosse de uma escola, curso, disciplina etc. Este seria o
questionamento original para o delineamento da proposta pedagógica.
Em tempos de reestruturação neoliberal e desqualificação da ação política
transformadora e militante, o direito de formular – e sobretudo de responder a – estas
questões foi confiscado pelo mercado e seus representantes. Não se permite mais à
comunidade escolar, aos movimentos sociais e à comunidade científica formular tais
indagações, menos ainda respondê-las. Boa parte da comunidade científica, por sua vez,
não está lamentando muito esta perda, convencida do relativismo e da “inutilidade” do
pensamento crítico.
Esta preocupação tornou-se “obsoleta” aos olhos do salvacionismo neoliberal e
do relativismo pós-crítico por razões supostamente distintas, porém convergentes.
Que sociedade queremos? O mercado e seus aparelhos de hegemonia já têm a
resposta. Pensar em outro modelo de sociedade que se contraponha ao capitalismo
tornou-se lembrança de “tempos de quimeras”. Tornou-se saudosismo, objeto de
ridicularização pela pragmática pós-moderna. “Ser contemporâneo” significa resignar-
se à falta de alternativas ao capitalismo. Significa roubar às gerações formadas nesta
escola tecnocrática do “pacto pelo desenvolvimento”, o direito ao sonho de outro
mundo possível. Confiná-las ao conformismo pragmatista e ao individualismo.
Estudos exclusivamente empiristas ou particularistas sobre a escola não nos
auxiliam na compreensão de sua função política macroestrutural, deixando-nos

33 Boltanski e Chiapello, 2009.

16
atordoados diante do autoritarismo dos sistemas de gestão pedagógica contemporânea.
Como expressão do desconhecimento da totalidade e da dimensão orgânica, as críticas
ao modelo são “pessoalizadas” em um determinado prefeito e seu secretário de
educação, um determinado governador etc.
Urge que procuremos o entendimento do sentido hegemônico da pedagogia do
mercado. Parafraseando Marx, podemos dizer: já fragmentamos demais a pedagogia,
interpretando-a em seus elementos particulares e cotidianos; trata-se agora de
transformá-la, voltando a compreendê-la em seu sentido geral.
Gramsci é um dos teóricos que melhor podem amparar a elucidação deste
quadro. Como todos os autores considerados clássicos, é atemporal, mas nem por isto
menos histórico. Atemporal no sentido do tempo histórico-político, não cronológico.
Enquanto a humanidade estiver inscrita no tempo histórico da divisão social do trabalho
e da desigualdade, as categorias e conceitos fundamentais do autor nos ajudarão a
compreender e a recuperar a ação pedagógica anticapitalista.
Se pretendermos representar esta dimensão concisamente, podemos dizer: uma
escola que ensine e que, acima de tudo, eduque. A todos.
Educar significa despertar a consciência crítica, o sentido da existência, o desejo
de liberdade e as ações libertadoras. O sentido histórico das lutas sociais. O direito de
desejar a igualdade e não ser considerado pelo niilismo pós-moderno um desajustado.
Que não assimile a condenação pós-moderna, caso não se sinta muito bem nos
(in)contornos da vida líquida denunciada por Bauman. 34
A escola necessita assumir outra posição, a de educadora35, revelando que algo
não vai muito bem numa sociedade que cultiva a desumanização. Uma sociedade que
exige que vínculos sejam transitórios e corroam o caráter para preparar corações e
mentes para a falta de estabilidade no trabalho 36, como demonstra Sennett37, não pode
ser tomada como referência para a educação. Que o aluno tenha uma escola que lhe
permita compreender o trabalho estável e digno como direito, ao contrário do que a
ideologia dominante propaga: desejo estabilidade como fraqueza de caráter de gerações
passadas e falta de espírito empreendedor.
A escola neotecnicista das competências, habilidades e atitudes incute esta
desfiguração ontológica em todos os níveis de ensino. Impede que o trabalhador perceba
por que o desejo de uma vida profissional digna, segura e baseada no direito ao
reconhecimento de seu valor 38 vem sendo substituído, na mídia e na escola, pela

34 Cf. Bauman. 2001 e 2011. O autor analisa aquilo que designa como “vida líquida” contemporânea. O conceito de “liquidez” em
Bauman explica o amorfismo, a falta de solidez, a diluição de valores tradicionais de sociabilidade e a exigência de flexibilidade
infinita de um modelo cultural onde os conteúdos das relações e situações vividas se amoldam a qualquer recipiente, como
substâncias liquefeitas. Para o autor, que produziu uma série que inclui a análise do amor líquido, do medo líquido etc., esta
exigência de “falta de contornos” se estende por todas as dimensões da vida.
35 A propósito da função educadora da escola, uma das mais recentes manifestações hegemônicas no senso comum, veiculada pela
pedagogia do mercado e assimilada por educadores “de boa-fé”, consiste na difusão do princípio de que “a família educa, a escola
ensina”. Sob pretexto (legítimo) de chamar à responsabilidade a instância familiar, o senso comum difunde uma ideologia que
legitima a desqualificação do trabalho docente, restringindo-o à dimensão tecnicista, de quem “apenas ensina”, negando-lhe a
condição mais importante. Tanto quanto a pedagogia anticonteudista da década de 1980, esta pedagogia simula teor crítico, mas, ao
contrário, reflete o desejo da classe dominante de desvalorizar o professor e o trabalho escolar.
36 Além de Sennett (2006 e 2008), encontramos também em Boltanski e Chiapello (2009) a relação entre a transitoriedade dos
vínculos impostos nas provas de validação do “novo espírito do capitalismo” e as características do mundo do trabalho. Ao
apresentarem a teoria das “provas”, examinam o modo pelo qual a “sociedade em rede” (ou “sociedade de projetos”) impõe uma
pragmática onde os vínculos de todas as naturezas, inclusive os afetivos, devem se subordinar à sua capacidade de retorno prático, à
sua lucratividade, à possibilidade de “abrir portas” para novos projetos, visto que não há permanência em instituições por longo
prazo. Em Dejours (2006 e 2010), encontramos a análise sobre os efeitos dessa subordinação do “existencial-afetivo” ao
“pragmático-econômico” sobre a saúde e, particularmente, o psiquismo humano. Alves (2011), em concordância, explora os efeitos
do Toyotismo sobre a subjetividade do trabalhador.
37 Sennett, 2006.
38 Dejours (2006 e 2010) analisa a necessidade de reconhecimento e os danos causados por um padrão de gestão do trabalho
baseado em instabilidade, ameaças, pressões, competição entre pares, desvalorização e negação do reconhecimento. Atribui a tal
modelo de gestão o desencadeamento do medo. Segundo o autor, os ideólogos da administração contemporânea do trabalho supõem
17
propaganda de um espírito aventureiro do empreendedorismo, vendido também como
mercadoria.
Esta ideologia opera duplamente: prepara os trabalhadores para interiorizar o
fracasso no mundo do trabalho como falta de méritos individuais e subsidia a ciranda de
endividamento e lucros bancários. Como exemplo, destacamos o incentivo de crédito
para abertura de negócios pelos “novos empreendedores”, alimentando a cadeia de
lucros na esfera do capital financeiro.
A escola da classe trabalhadora (considerada aqui como o conjunto de
trabalhadores que vendem sua força de trabalho) tem como fundamento a preparação
para o enfrentamento coletivo, partindo do desvelamento da lógica do mundo do
trabalho, que hoje se afirma como perverso e esmagador, insuportável ao mais forte dos
seres humanos, como podemos compreender com Dejours39.
A pedagogia do mercado não comporta leituras de mundo que incluam estes
“devaneios”. Por isto, necessitamos construir outra. Na atual, o que importa é o
posicionamento da escola no ranking. E que o aluno dê as respostas consideradas certas
nas provas padronizadas. Nada mais.
Enfrentar a corrente de despolitização – repolitização conservadora da educação
é um desafio aos movimentos sociais, sindicalismo docente, sindicalismo de
trabalhadores em geral, espaços acadêmicos e não acadêmicos de reflexão e de
formação de educadores. Trata-se de um desafio que só poderá ser enfrentado “com as
mais refinadas armas da cultura”, como dizia Gramsci40, que considerava tais armas
uma questão de direito e de força dos trabalhadores.
Recuperar Gramsci num momento em que o pensamento hegemônico nas
universidades alega a morte dos autores da tradição marxista implica lutar contra o
senso comum instalado nas duas últimas décadas, já exercendo aí papel gramsciano, em
cuja teoria o embate com a mistificação do senso comum é nuclear.
Uma das manifestações do senso comum consiste em considerar
exclusivamente as questões “do cotidiano” da escola, abdicando-se de examiná-lo
também em sua historicidade e sua dimensão política macroestrutural. Articular o
cotidiano, o imediato, o local, a materialidade das práticas, as manifestações
particulares, as diversas formas de apropriação e recriação da ideologia com seus
próprios condicionantes e/ou determinantes ou, no mínimo, com seus elementos
constituintes, é mais do que atual, é urgente do ponto de vista político. E era o que
propunha Gramsci.

I.2 – PEDAGOGIA DO MERCADO: A DUALIDADE ESCOLAR E OS


CONCEITOS DE ESTADO, HEGEMONIA E SOCIEDADE CIVIL

O conceito de dualidade escolar é o ponto de partida para a compreensão dos


riscos a que a formação humana se expõe quando o poder público entrega a escola às
parcerias tecnocráticas ou às ações de “responsabilidade social” assumidas por
instituições privadas (ou da parcela da sociedade civil vinculada ao poder econômico).
Interpretando a atuação dessas instituições com base na teoria gramsciana, podemos
afirmar que tais instituições não desenvolvem ações pedagógicas filantrópicas ou
salvacionistas desinteressadas, mas atuam como “intelectuais orgânicos do capital”.

que esse medo aumentará a produtividade. Conclui que, ao contrário do pensamento corrente, não é a violência que gera o medo,
mas o medo (nas situações de trabalho ou no desemprego) gera a violência, sintetizada na banalização da injustiça social (2006),
podendo explicar a onda recente de suicídios relacionados ao processo de trabalho. (2010)
39 Dejours, 2006 e 2010.
40 Gramsci…

18
É possível pensar sobre a dualidade escolar a partir de duas modalidades: a
quantitativa e a qualitativa. Pode-se dizer que o modelo de educação de uma sociedade é
quantitativamente dualista quando a distância entre as duas classes fundamentais se dá
na forma do acesso, ou seja, quando classe trabalhadora não tem ingresso na escola. A
modalidade qualitativa diz respeito às sociedades onde convivem dois modelos básicos
de educação escolar: um orientado para a formação geral e outro para a
profissionalização. O primeiro, reservado às elites, cultiva o desenvolvimento do
espírito científico e filosófico, valoriza a dimensão intelectual. O segundo, voltado às
camadas populares, orienta-se para a inserção precoce no trabalho produtivo e denota
caráter instrumental, superficial, aligeirado, sem aprofundamento intelectual, filosófico
ou científico. Quando muito, nas formulações atuais, suporta a inserção de
conhecimentos científicos, desde que relacionados com a área de profissionalização
específica.
O conceito de dualidade, desenvolvido na literatura crítica (particularmente de
inspiração marxiana e gramsciana), diz respeito à divisão de projetos e modelos de
educação especificamente nas sociedades de classes, tendo como fundamento a
desigualdade social.
Historicamente, as classes dirigentes têm acesso ao saber sistematizado,
formação geral e intelectual, que lhes permite manter a condição hegemônica (o papel
de direção política, cultural e ideológica da sociedade), legitimando e reafirmando sua
posição na economia. Às classes trabalhadoras é reservada, quando muito, uma
formação precária, profissionalizante, instrumental, aligeirada, que lhes aprisiona e
conforma na condição de subalternas.
A educação escolar, desde sua origem, opera ativamente na consolidação da
hegemonia. Estudos como o de Manacorda41 e Ponce42 analisam o papel reprodutor da
instituição escolar desde as sociedades de classe escravistas ao capitalismo.
Althusser 43 analisa a escola capitalista como um dos aparelhos ideológicos de
Estado, os quais, segundo sua teoria, têm, como função, a manutenção do domínio de
classe através da formação e reprodução de conteúdos culturais, éticos e intelectuais
dominantes.
Entretanto, ao longo de seu percurso histórico de comprometimento com a
reprodução ideológica, a escola é sujeito e objeto de lutas sociais que veem ali a
possibilidade de disputa de hegemonia. A história da educação escolar vem sendo
desenhada na tensão entre a defesa da função reprodutivista e a possibilidade
libertadora, com predomínio, segundo os autores citados acima, da função reprodutora.
Na segunda metade do século XX, especialmente na década de 1980, a literatura
pedagógica latino-americana destacou as três concepções que fundamentam a
compreensão do papel político da escola: liberal, reprodutivista e dialética (ou histórico-
crítica)44. Esses estudos demonstram que, da concepção liberal que atribuía à escola o
papel de “redentora dos injustiçados”45, passamos à visão oposta: na condição de
“aparelho ideológico do Estado”46, a escola estaria limitada à função de reprodução
ideológica, não comportando práticas emancipatórias.
Essa literatura indica ainda que, da síntese superadora das duas concepções
postas em antítese (a liberal, que defende a função ordenadora e hegemônica da

41 Manacorda, 1992.
42 Ponce, 2001.
43 Althusser, 1985.
44 Autores como Saviani, Libâneo e outros se notabilizaram pela tipologia das concepções pedagógicas nos anos de 1980.
45 Melo, 1992.
46 Althusser, 1985.

19
educação e a crítico-reprodutivista, que denuncia e critica a anterior), surge a concepção
dialética da escola e de suas relações com a sociedade, definindo sua função social.
A concepção dialética ou histórico-crítica supera a tese do “otimismo
pedagógico” característico da concepção liberal (onde a escola promoveria a mobilidade
social individual a partir da distribuição do conhecimento, formação de capital humano
ou, em linguagem de hoje, geraria “empregabilidade”) e supera também sua antítese, o
pessimismo ou ceticismo das teorias crítico-reprodutivistas, que consideram impossível,
no contexto de sociedades de classes, outra função à escola que não a reprodução pela
dualidade. Para o pensamento crítico-reprodutivista, a escola só poderia ter outra feição
após a superação do modo de produção capitalista, pois, neste, encontrar-se-ia
aprisionada por um Estado que representa os interesses da classe dominante.
Nem apenas determinada, nem unicamente determinante. A escola, por seu
caráter contraditório e multideterminado, pode construir o terceiro caminho, o da prática
contra-hegemônica. Esta é a tese fundamental da Pedagogia Histórico-Crítica ou
Dialética. Para assumir esta dimensão dialética, histórico-crítica ou contra-hegemônica,
é necessário que a escola expresse o projeto da classe trabalhadora 47 e seus intelectuais
orgânicos48. O acesso ao saber científico, a leitura crítica do mundo, a reflexão sobre a
realidade em sua dimensão concreta49 (além da aparência), a superação do senso
comum, a elevação cultural das massas, como dizia Gramsci 50, são elementos
importantes de organização da prática social transformadora nesta concepção.
A pedagogia do mercado traz a marca estrutural da impossibilidade de realização
desta dimensão, comprometida que está com a manutenção do modo de produção
capitalista em sua face atual: neoliberalismo, mundialização do capital, precarização e
intensificação do trabalho (sob o paradigma do toyotismo).
Para assegurar sua função reprodutora, a pedagogia do mercado difunde a ética
do novo espírito do capitalismo: empreendedorismo, individualismo, superficialidade e
transitoriedade dos vínculos (afetivos, sociais, trabalhistas, institucionais),
instrumentalidade dos “saberes”, redução do conceito de cidadão a consumidor,
resignação quanto à “impossibilidade” de enfrentar e transformar “o mundo que se
globaliza”51, conformando-se às lutas focalizadas e setorizadas.
É, portanto, como dizia Gramsci, “uma questão de direito e de força”52 da classe
que vive do próprio trabalho, a construção da escola em sua perspectiva contra-
hegemônica.
Podemos identificar as raízes desta concepção dialética da escola no pensamento
de Marx, que, em 1869 no Conselho Geral da Associação Internacional dos
Trabalhadores, se manifesta sobre esta questão:

“Se, por um lado, é necessário modificar as condições sociais para criar um


novo sistema de ensino, por outro falta um sistema novo para modificar as condições
sociais. Consequentemente, é necessário partir da situação atual.” 53

47 Em sentido ampliado: os que vivem de seu próprio trabalho e os que buscam trabalho.
48 Conceito discutido em seção posterior deste livro.
49 Ao utilizar os termos “concreto” ou “concreticidade”, estamos adotando a perspectiva marxiana, que define o concreto como
resultado de muitas ou múltiplas determinações (Marx, 1978). Distancia-se, portanto, do meramente empírico ou a realidade
imediata. Trata-se do “concreto pensado”. A concreticidade, pensada na totalidade dialética de suas múltiplas determinações, opõe-
se à pseudoconcreticidade, conceito desenvolvido por Kosik (2002), para designar a realidade em sua “aparência de verdade”, tal
como “salta aos olhos”, sem reflexão.
50 Gramsci apud Santos, 2000.
51 Cf.Santos, 2002, A reforma do Ensino Médio brasileiro (1999-2000), por exemplo, apóia-se na “adaptabilidade ao mundo que se
globaliza”, e não na perspectiva da formação de um sujeito histórico transformador. O sujeito histórico da nova peda gogia do
mercado é a globalização, ou o próprio mercado.
52 Gramsci apud Santos, 2000.

20
Neste pronunciamento, Marx chama a atenção para a possibilidade contra-
hegemônica da escola, sem minimizar sua condição histórica de aparelho reprodutor. Na
dialética marxiana, não é suficiente aguardar o desenvolvimento um sistema social novo
para o surgimento de uma nova escola por consequência, como recomenda a análise
crítico-reprodutivista. É preciso construir um sistema escolar novo, ainda no interior do
velho sistema, que contribua para modificar as condições sociais. Por esta razão, não se
pode esperar que a construção de um sistema escolar transformador no interior do modo
de produção que se quer combater esteja exatamente nas mãos de seus representantes,
os intelectuais orgânicos do mercado. Tal construção requer autonomia para a disputa
de hegemonia no espaço público estatal. Ou, em outras palavras, exige que a escola
torne-se instrumento da classe trabalhadora para a luta na “guerra de posições”
gramsciana.
Finalizamos esta introdução com uma breve menção ao conceito gramsciano de
Estado, por nos permitir a compreensão da dialética da escola e de suas possibilidades
de ação ainda no contexto de seu sequestro pela pedagogia do mercado.
Gramsci adota uma concepção de Estado que, aliada à formulação marxiana
citada anteriormente, pode ser o ponto de partida para a análise do caráter dialético da
instituição escolar. Desenvolve sua teoria do Estado ultrapassando dialeticamente a
concepção de um Estado “de classe”, restrito às funções de manutenção da ordem social
burguesa. Sua concepção de “Estado ampliado” ou “Estado em sentido amplo” nos
permite trilhar a possibilidade emancipatória da escola, superando o pessimismo de sua
condenação à eterna reprodução dos valores dominantes e à inércia política da classe
trabalhadora.

I.2.1 – A PEDAGOGIA DO MERCADO


COMO “PEDAGOGIA DA MORTE”

A imobilidade derivada do pessimismo das análises reprodutivistas mencionadas


na seção anterior gera um círculo vicioso pelo vácuo de ações contra-hegemônicas. O
atordoamento gerado pelo sequestro da escola realmente permite que os setores
dominantes ocupem o espaço de definição do papel social da educação como
reprodutora, legitimando sua limitação ao marco econômico: educar para o
desenvolvimento, educar para o mercado, educar para a competitividade, educar para o
isolamento e, se formos mais longe, educar para a morte.
Adotamos o termo “pedagogia da morte”, embora possa aparentar hiperbólico,
por entendermos necessário ressaltar que educar para o capitalismo contemporâneo
significa educar para a destruição/morte. Relacionando a pedagogia do mercado aos
estudos críticos do trabalho, que apontam o caráter destruidor do capitalismo
contemporâneo, denominamos tal projeto como “pedagogia da morte”. A gravidade do
quadro esboçado a seguir não deixa dúvidas quanto à urgência de luta contra este
modelo.
Dejours & Bègue (2010) relacionam o mundo do trabalho contemporâneo ao
aumento da incidência de suicídios nos locais de trabalho, decorrentes de pressões e
competitividade insuportáveis, humilhações, frustrações, falta de reconhecimento. Estes
são considerados pelos autores como traços característicos da gestão contemporânea do
trabalho. O trabalho contemporâneo produz regularmente a morte. Esta realidade é
“hiperbólica”, não sua denominação. Educar cegamente (ou treinar, instruir) para um

53 Marx e Engels, 1983.

21
mundo do trabalho que produz regularmente a morte é, portanto, educar para a morte. A
pedagogia do mercado é a pedagogia da morte, a pedagogia da destruição humana. Não
há relativismo pós-moderno ou pós-crítico que possa ignorar esta responsabilidade
política da escola.
Os estudos de Dejours e Bègue (2010) têm como objeto a ocorrência de
suicídios diretamente relacionados a situações de trabalho a partir da década de 1990.
Consideram que, a partir daquela década, suicídios no trabalho passam a se manifestar
como um fenômeno estatisticamente relevante. Contestando as teses de que esses atos
decorreriam de situações dramáticas na vida pessoal ou que afetariam trabalhadores cuja
personalidade, já portadora de “traços patológicos”, desencadearia o gesto de desespero
sob situações de tensão no ambiente de trabalho, Dejours e Bègue afirmam ser o próprio
ambiente de trabalho o causador da patologia. Na percepção do mundo do trabalho
como causador dos suicídios (e não como simples desencadeador), reside a diferença do
estudo citado frente a outros consagrados na literatura, que consideram que o ambiente
de trabalho pode ser, quando muito, desencadeador do suicídio em psiquismos
individuais já patológicos ou em estado patológico.
A tese de Dejours e Bègue é radical: o novo modelo de gestão, que conhecemos
como toyotismo (Alves, 2011), destrói o sustentáculo existencial representado pelo
trabalho e pelo círculo social que se constitui a partir dele, destrói a autoconfiança
quando estabelece metas inalcançáveis e humilhações frente à não obtenção dos
resultados esperados, destrói a dignidade quando nega reconhecimento de valor,
produzindo, assim, um psiquismo dilacerado.
Os autores consideram fator determinante para o suicídio, nos casos
pesquisados, o ambiente de trabalho adoecedor composto pelos seguintes traços:

 captura da subjetividade do trabalhador,


 ausência de reconhecimento de seu valor,
 instabilidade,
 pressão psicológica sobre-humana,
 devassamento e inviabilização da vida privada (jornadas ilimitadas e
exigência do trabalho realizado em qualquer tempo e em qualquer lugar, por meio da
internet, do telefone celular etc.),
 metas a cumprir independentemente da jornada,
 responsabilização do trabalhador pela valorização progressiva e
incessante do capital, bem como por qualquer incidente no processo de produção,
 competitividade,
 rivalidade entre colegas, gerando desconfiança permanente, isolamento e
solidão.

Para os autores, portanto, a reestruturação produtiva e a generalização de


princípios do modelo japonês na totalidade do mundo do trabalho são os responsáveis
diretos pela onda de suicídios que vem acometendo a classe trabalhadora.
Dejours e Bègue (2010), como visto acima, discutem a destruição material da
vida do trabalhador. Se analisarmos a mesma situação apoiados em Sennett (2006),
perceberemos a destruição moral ou morte simbólica causada por:

 perda de sentido da existência,


 ruptura dos vínculos,
 impossibilidade de planejamento da vida a longo prazo,
 incerteza quanto ao amanhã,

22
 necessidade de provar a cada dia o próprio valor,
 desamparo.

Sennett (2006) explica a corrosão do caráter diante da impossibilidade de


sobrevivência moral ao desamparo. O mundo contemporâneo do trabalho não comporta
vínculos estáveis. A vida social e as relações de vizinhança e de congregação religiosa
conformam-se aos frequentes deslocamentos provocados pela desterritorialização do
trabalho. A impossibilidade de planejamento a longo prazo e a precariedade dos
relacionamentos, segundo o autor, atingem o caráter humano e expõem sua fragilidade.
Dejours (2006) analisa a relação entre medo e violência no ambiente de trabalho
e conclui que, ao contrário do que se pode imaginar à primeira vista, não é a violência,
supostamente gerada por fatores sociais e psicológicos exógenos ao mundo do trabalho,
que provoca o medo e o adoecimento. Ao contrário, é o medo, gestado na instabilidade
e “ferocidade” das relações de trabalho no novo modelo, que desencadeia condutas e
relações profissionais fundadas na violência, sabotagem, agressividade.
O autor analisa o ambiente de trabalho, partindo da ideia de “banalização da
injustiça social”. Estuda o conceito de banalidade do mal, desenvolvido por Hanna
Arendt e o transporta, com as devidas adaptações, modificações, concordâncias e
discordâncias, para o mundo do trabalho contemporâneo. O mal não ocorre por
afirmação, mas por omissão, segundo a própria Arendt, com quem Dejours concorda
neste aspecto. Sua banalização decorre de sua veiculação silenciosa, naturalizada, aceita
como imponderável.
O mundo do trabalho contemporâneo naturaliza a desumanização, gerando um
pacto de silêncio que individualiza o sofrimento. Dejours estuda, por exemplo, a relação
entre as representações sociais de virilidade e os critérios de reconhecimento de valor no
capitalismo contemporâneo. Para este autor, o trabalho contemporâneo associa
representações dominantes de virilidade ao estoicismo e à capacidade de ocultação do
sofrimento.
Boltanski e Chiapello (2009) estudam as provas de validação do novo espírito do
capitalismo, também denominado “terceiro espírito do capitalismo”, ou da “sociedade
por projetos”, ou ainda, “cidade por projetos”. Explicam como uma determinada
antropologia da dualidade entre “necessidade de vínculo” e “necessidade de liberdade”
é assimilada como elemento de justificação e legitimação da crueldade no novo espírito
do capitalismo. Na cidade por projetos não é apenas a força de trabalho que se realiza
como mercadoria: é a “pessoa” do trabalhador que deve ser vendável – seus valores,
sentimentos, vínculos. Segundo os autores, todo o “ser” do trabalhador é posto à venda.
Quando seu valor não é reconhecido e avalizado pelo mercado, todo o seu ser é negado,
desconstruído.
Para tornar-se vendável e bem sucedido nas provas do novo espírito do
capitalismo, exige-se do trabalhador que se torne ilimitadamente flexível (em todas as
dimensões, inclusive a moral), adaptável, “camaleônico”, despido de princípios de outra
ética que não seja a do capital. Precisa renunciar à própria personalidade, aos próprios
valores e princípios para colocar-se em posição de mercadoria vendável.
Paradoxalmente, sofre a exigência de um perfil ético de fidelidade irrestrita e inflexível
à corporação. O trabalhador precisa ser leve e flexível em relação às suas próprias
necessidades e valores, mas sólido e inflexível quanto à entrega irrestrita à corporação e
aos valores desta.
Analisando as provas de grandeza na sociedade por projetos, Boltanski e
Chiapello (2009) destacam a “leveza” como critério de valor na cultura produtivista.

23
O grande na cidade por projetos também é leve, porque está liberto do peso de
suas próprias paixões e de seus valores; aberto às diferenças (ao contrário das
personalidades rígidas, absolutistas, apegadas à defesa de valores universais).
Pelas mesmas razões, ele não é crítico (salvo para defender a tolerância e a
diferença). Nada deve sobrepor-se ao imperativo de ajustamento nem enlear
seus movimentos. 54

Um dos imperativos do novo espírito do capitalismo é “renunciar à amizade” 55


ou às relações pessoais que não representem utilidade para a inserção em novos projetos
ou o acesso a novos nós na rede de projetos. Outro imperativo é tornar-se leve para
deslocar-se ou ser deslocado com facilidade, não ter raízes, não ter patrimônio que o
acorrente a um endereço, mas ser apenas locatário de imóveis e automóveis. Não ter,
principalmente, patrimônio ético que o aprisione a pudores frente aos valores do
mercado.

O homem leve sacrifica certa interioridade e fidelidade a si mesmo, para


ajustar-se melhor às pessoas com as quais entra em contato e às situações
sempre mutáveis, em que é induzido a agir.56

Em linhas gerais, segundo os autores em quem nos fundamentamos, nisto


consiste o aparato ideológico e material do capitalismo em sua fase atual: isolamento,
solidão, sofrimento, destruição, morte.
A pulverização das lutas sindicais somada à implantação do modelo
individualizante de gestão do trabalho pautada na responsabilização exclusiva do
trabalhador por seu sucesso ou fracasso, na remuneração por mérito, em prêmios
individuais e não por conquistas coletivas, operam como dispositivos de destruição
humana.
Educar sem capacidade crítica para o “mundo que se globaliza” 57, para o mundo
do trabalho como se apresenta, reduzir a escola à formação de competências e
habilidades para um mundo do trabalho de caráter destruidor, significa operar a favor do
mal por inércia, trafegando nas trilhas da banalização da injustiça social.
Neste sentido, definimos a pedagogia do mercado como “pedagogia da morte”.
Reduzir a pedagogia ao marco econômico da formação pelo/para o mercado implica
silenciar sobre a dimensão política transformadora da educação, reorientando-a
tacitamente para a reprodução.
Enfrentar a pedagogia da morte significa lutar contra o mundo do trabalho
capitalista em sua destrutividade. Significa educar para transformar, educar para se
afirmar como sujeito (tanto no âmbito pessoal, como histórico), educar para uma cultura
da igualdade, da “ética do respeito”, educar para uma cultura da vida. Esta dimensão é
intrinsecamente incompatível com a pedagogia do mercado. Há, portanto, um impasse
ético-político fundamental entre as funções propostas para a escola: reproduzir ou
subverter.

I.2.2 – DESCONSTRUINDO A PEDAGOGIA DA MORTE COM AS


CONTRIBUIÇÕES GRAMSCIANAS SOBRE O ESTADO AMPLIADO

54 Boltanski e Chiapello, 2009, p. 157.


55 Boltanski e Chiapello, 2009, p.156.
56 Boltanski e Chiapello, 2009, p. 156.
57 As Diretrizes Curriculares para o Ensino Médio, divulgadas em 1999, explicitam ser esta a finalidade da escola. Cf. Santos, 2002.

24
O conceito gramsciano de Estado ampliado permite a ação crítica sobre o
impasse mencionado acima: reproduzir ou subverter.
Gramsci afirma que cada classe social, através de seus aparelhos de hegemonia,
busca obter o consenso em torno de seu projeto e torná-lo o eixo cultural e político sob
o qual a vida social se organiza. Esta é a estrutura da luta hegemônica. A configuração
do Estado resulta da capacidade da sociedade civil instituir-se como parte do Estado,
transformando suas demandas em políticas públicas.
O poder caracteriza-se (e atua) por dois elementos: força e consenso. São postos
em operação de modo combinado e/ou alternado, variando de acordo com o grau de
amadurecimento da sociedade civil e as possibilidades do momento histórico
determinado. Onde a sociedade civil é amadurecida, orgânica, coesa, há possibilidade
de “ampliação” da esfera estatal pela assimilação do projeto de direção política da
sociedade civil, tanto em sua face popular, como conservadora; tanto em suas
representações dos trabalhadores, quanto do capital. Onde, por sua vez, a sociedade civil
é “gelatinosa”, fragmentada, reprimida por um governo totalitário, o Estado fica restrito
às suas funções clássicas de “monopólio da força”.
O Estado, na concepção ampliada, é composto pela sociedade política (o aparato
de “governo”, propriamente reconhecido como tal) e pela sociedade civil, composta
pelos “aparelhos privados de hegemonia”: as associações de diversos tipos, como
sindicatos (de trabalhadores e patronais), associações de empresários, moradores,
ambientalistas etc. Gramsci denomina aparelhos “privados” de hegemonia porque a
adesão a eles é de caráter pessoal, privado, não estatal, não compulsório.
Esta denominação poderia gerar uma discussão semântica sobre se a escola
poderia ser concebida como aparelho de hegemonia, por seu caráter de obrigatoriedade
e vinculação oficial ao Estado restrito. Optamos por interpretar, na totalidade da teoria
da hegemonia de Gramsci, que não é este o elemento definidor excludente dos aparelhos
de hegemonia, mas sua função ideológica e a condição classista de seus projetos.
Os aparelhos privados de hegemonia e, por extensão, a sociedade civil, se
organizam a partir dos interesses de cada classe social (ou, como no linguajar
gramsciano, “grupo social fundamental” 58), com a finalidade de persuadir o conjunto da
sociedade sobre a universalidade de seus valores e interesses, difundir organicamente
sua concepção de mundo, produzir e reproduzir seus instrumentos e conteúdos
intelectuais,culturais e políticos.
Assim sendo, um projeto orgânico da classe trabalhadora pode pleitear a
condição de realização como política pública, desde que os aparelhos de hegemonia
desta classe comprometam-se com ele, em torno do qual se articulará um bloco histórico
e a busca de adesão popular.
Não desconsideramos a ação dos aparelhos de hegemonia do capital nesta
contenda, como o controle dos meios de comunicação de massa, os “lobbies” nas casas
legislativas e demais instâncias decisórias (conselhos de educação, esferas deliberativas
do Executivo etc.). O que se apresenta aqui é a formulação, do ponto de vista teórico, da
possibilidade formal de introdução de projetos contra-hegemônicos na esfera do Estado.
A possibilidade de êxito depende da ação histórica de cada classe em disputa, sua
capacidade de organização, os recursos de que dispõe.

58 Cf. Santos, 2000. O contexto de escrita da obra gramsciana – censura no cárcere, onde cumpriu pena entre 1926 e 1935 por
militância política – obrigou-o a escrever “em código”. Para designar “classes sociais”, mencionava “grupos sociais fundamentais”;
para referir-se ao marxismo, escrevia “filosofia da práxis”; Marx e Lênin eram citados respectivamente como “corifeu da filosofia
da práxis “e “corifeu moderno da filosofia da práxis”. Deste modo, procurava proteger da censura carcerária os cadernos onde
anotava seus apontamentos, que vieram a ser considerados sua obra madura. O domínio do léxico gramsciano é condição prévia
para leitura de sua obra. Autores como Coutinho, Bobbio, Brocolli, Portelli, Liguori, Baratta e outros produziram textos que nos
possibilitam decifrá-lo.
25
Se, por um lado, reconhecemos que o capital conta com aparelhos poderosos na
definição da política educacional reprodutora, por outro lado, chamamos a atenção
sobre as advertências de Marx e Gramsci quanto à necessidade de atuação sobre a
realidade como esta se apresenta, sob pena de banalizar o “mal” por inércia, o que, neste
caso, perpetuaria o sequestro da escola pela pedagogia do mercado. Gramsci (1987)
recomenda articular o pessimismo da razão (ou da inteligência) com o otimismo da
vontade.

I.2.3 – SOCIEDADE CIVIL E OS “NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS”

Conhecemos como “novos movimentos sociais” aqueles que não se organizam a


partir de interesses diretos ou declarados de classe (como sindicatos ou partidos, os
movimentos tradicionais), mas de “focos”, setores, frações. Organizam-se em torno de
interesses como: diversidade, direitos civis, preocupações ambientais etc. Sua
identidade é definida por condição de gênero, orientação sexual, etnia, elementos
culturais, demandas ambientais, de transportes, de direitos humanos, associações de
consumidores etc.
Um problema envolve a classificação dos “novos movimentos sociais” na
definição gramsciana de sociedade civil: a origem e o caráter de classe. Como analisar
esta forma de associação que emerge na atmosfera política de fragmentação das formas
clássicas de organização dos trabalhadores? É pertinente aplicar o conceito de sociedade
civil (e, por coerência, aparelhos de hegemonia) para compreendê-los?
Não seria prudente adotar uma taxionomia apressada dos novos movimentos.
Impossível decretar que tais organizações podem ser compreendidas à luz do conceito
de aparelhos de hegemonia, ou, ao contrário, que são despolitizados.
Há, por um lado, o elemento conservador na substituição da luta de classes por
organizações “foquistas”. Este deslocamento, além de diluir o caráter hegemônico e
orgânico das lutas sociais, representa o risco de reproduzir a ética fragmentarista do
novo espírito do capitalismo 59. No mesmo movimento histórico onde os movimentos
populares se particularizam em setores (que muitas vezes disputam entre si), as
organizações do capital fortalecem sua articulação no plano macro, com forte
cimentação ideológica de seus intelectuais orgânicos coletivos, como as organizações
internacionais (OMC, GATT, GATS etc.)60.
Por outro lado, a própria dinâmica desses “novos movimentos” e a forma como
se relacionam com os referenciais políticos lhes conferem uma diversidade de recortes
políticos e modos de agir, que ainda não permitem sua identificação estável.
Posicionam-se desde os níveis de menor articulação com o panorama estrutural de
classes, até outra extremidade, onde têm vínculos ideológicos estreitos e explícitos com
os projetos de classe em disputa (ou com sua negação ostensiva, o que já é, em si, um
posicionamento político).
Apressarmo-nos em uma tipologia dos “novos movimentos sociais”,
calcificando-os como particularistas, denota negação de suas possibilidades históricas.
Entretanto, contribui menos ainda percebê-los unicamente em sua potência democrática,
ignorando-lhe as determinações neoconservadoras.
Como exemplo de tais determinações, citamos as orientações e incentivo Banco
Mundial ao movimento ambientalista (e sua assimilação/reorientação em sentido
hegemônico individualizante, particularizante, contrarrevolucionário) como estratégia

59 Boltanski e Chiapello, 2009.


60 OMC: Organização Mundial do Comércio; GATT: Acordo Geral de Tarifas e Comércio; GATS: Acordo Geral sobre Comércio
de Serviços.
26
de diluição da luta de classes. 61 Chossudovsky registra o papel de fundações como Ford
e Rockfeller na constituição de “novos objetos” para a relação da academia com os
movimentos sociais62 e na depreciação da temática relacionada ao conceito de classes
sociais.
O conceito gramsciano de bloco histórico ajuda a compreender que as ações
orgânicas dos aparelhos de hegemonia da Sociedade Civil não operam por justaposição
mecânica nem por identidade unívoca, linear e simples. A dinâmica dos “novos
movimentos sociais” é histórica e assim deve ser compreendida. Possibilidades de
adesão desses movimentos a um ou a outro projeto hegemônico na composição de
blocos históricos dependem da opção e da ação dos sujeitos coletivos e da capacidade
de conquista de direção política de cada projeto em disputa. Dependem da articulação
de tais movimentos com os projetos orgânicos de cada uma das classes que
fundamentam as relações sociais de produção.
Outra contribuição gramsciana para a compreensão dessas contradições dos
“novos movimentos sociais” e suas possibilidades de maior ou menor organicidade
encontra-se em sua análise sobre o movimento sindical. Gramsci localiza dois
momentos: o momento econômico-corporativo e o momento ético-político.63 No
primeiro, os trabalhadores se organizam em torno de demandas imediatas e particulares
da categoria profissional; no segundo, momento de amadurecimento da consciência de
classe, o sindicalismo amplia o objeto e canaliza suas energias para a luta política contra
o modo de produção que gera a exploração. Em seguida, o autor discute a dialética entre
estes dois momentos e o papel dos intelectuais orgânicos nesta passagem, que também
pode ser compreendida como a conversão do “homem-massa” a “filósofo”. O que, no
léxico gramsciano, significa a passagem da concepção de mundo imediatista (o senso
comum do “homem-massa”) a uma concepção mais articulada e orgânica (o
pensamento filosófico, que não é atributo exclusivo dos “filósofos de profissão”).
Os dois momentos – o da consciência corporativa e o da consciência ético-
política – não representam etapas, nem podem ser compreendidos apenas em sentido
cronológico, mas político. São formas de identidade e esferas de abrangência da luta,
bem como seu grau de profundidade, que se articulam dialeticamente, operando muitas
vezes coetaneamente, outras de modo conflituoso.
O papel do partido, segundo Gramsci, seria promover a formação política que
permitisse a passagem do momento econômico-corporativo ao momento ético-político,
através da ação ideológica. Partido, por sua vez, não tem a configuração de legenda
política formal, mas de núcleo ideológico formulador e formador da consciência de
classe.
Apoiados na construção teórica acima, podemos considerar que os setores mais
particularizados dos “novos movimentos sociais”, ao contrário de apenas constituir o
projeto hegemônico de fragmentação das forças populares (como esperam deles Ford,
Rockfeller e Banco Mundial64), podem desenvolver a potência contra-hegemônica no
amadurecimento da dialética entre o particular e o geral. Sempre como resultado
imprevisível – mas possível – da ação humana, de suas escolhas, como dizia Gramsci.
Retornemos à formulação clássica sobre a relação entre Estado e hegemonia para
a compreensão dos movimentos sociais com seus limites e possibilidades, no panorama
político-pedagógico.

61 A análise do percurso do Banco Mundial e sua ação hegemônica, inclusive com a identificação da política de “esverdeamento”
das lutas sociais, pode ser encontrada em Pereira, 2010.
62 Cf. Chossudovsky, 1999.
63 Cf. Santos, 2000.
64 Cf. Chossudovsky, 1999 e Pereira, 2010.

27
Os elementos convencionalmente identificados como aparelhos “do Estado” são
designados por Gramsci como sociedade política. Os convencionalmente identificados
com a produção da ideologia dominante ganham novo caráter, pois passam de certa
forma a adquirir “autonomia” frente ao Estado (no aspecto ideológico), configurando-se
como aparelhos privados de hegemonia. Autonomia frente o Estado não significa
neutralidade, nem autonomia frente aos interesses de classe. Fazendo parte da sociedade
civil, os aparelhos privados de hegemonia compõem o segundo elemento da formação
de Estado (na concepção ampliada). Assim apresentada, a concepção gramsciana de
“Estado ampliado”65 inclui os dois elementos: sociedade política e sociedade civil. À
sociedade política caberiam as funções tradicionais de manutenção das estruturas
econômicas e políticas pela coerção; à sociedade civil caberia o papel de difundir a
ideologia orgânica da classe da qual se origina.
Neste caso, como situar os “novos movimentos sociais” no Estado e sociedade
civil capitalistas? Podemos partir do conceito de classe social, se muitos deles se apoiam
exatamente na ideia de “fim das classes sociais” ou na “inutilidade” deste conceito para
explicar os problemas sociais? O fato de recusarem a adoção do referencial de classe
realmente os constitui como não-classistas? Os aparelhos de hegemonia da classe
dirigente (a parcela da sociedade civil vinculada ao capital) têm como função orgânica
legitimar e reproduzir as estruturas econômicas e políticas da sociedade em favor de sua
classe. Isto se dá pela ação ideológica, cultural, política, jornalística, pedagógica. Já no
caso dos aparelhos de hegemonia vinculados à classe trabalhadora, a ação consiste,
principalmente, em difundir a ideologia orgânica que confere ao trabalho seu papel no
processo produtivo como elemento gerador de valor, desfazendo a
pseudoconcreticidade66 da visão de mundo difundida pelos aparelhos de hegemonia do
capital.
Deste modo, podemos considerar que, ao defenderem deliberada ou
implicitamente a concepção de mundo orgânica a uma classe, os “novos movimentos
sociais” traduzem-se, por extensão, em classistas, assim autonomeados ou não. A
existência das classes sociais no modo de produção capitalista independe de sua
enunciação. As ideologias orgânicas, não raramente, operam justamente pela
autonegação.
Assumir a ação contra-hegemônica hoje impõe fazer frente à visão de mundo
sustentada pelo grande capital transnacional e seus aparelhos (como os organismos
internacionais influentes nas políticas públicas) e seu poder de formulação política e
produção cultural, científica, intelectual, artística, incluindo o enfrentamento da negação
do conceito de classe social.
Muitos são os autores, como Boito Jr. (1999) e Antunes (1999 e 2000), que vêm
apresentando contribuições importantes na atualização do conceito de classe social
frente ao capitalismo contemporâneo, sem abrir mão de suas características
fundamentais, como fazem, por exemplo, os “neomarxistas” operaistas, discutidos em
outro capítulo deste trabalho. Se por um lado, estes se declaram marxistas, por outro
lado, negam o antagonismo fundamental entre capital e trabalho no chamado
“capitalismo cognitivo”, na “sociedade do conhecimento” ou na esfera do “trabalho
imaterial”. Boito Jr. (1999) e Antunes (1999 e 2000) analisam as mudanças no mundo

65 Esta denominação tornou-se difundida na literatura sobre Gramsci, mas não foi uma terminologia usada por ele. Como em sua
análise a esfera do Estado passa a abranger também os aparelhos da sociedade civil, tornou-se comum denominar tal teoria como a
teoria do Estado ampliado. Encontramos em Gramsci , na designação desta forma de Estado, expressões como “Estado em sentido
amplo” , “Estado integral”. (cf. Liguori, 2007)
66 Em Kosik, pseudoconcreticidade consiste na realidade em sua “aparência”, “superfície”, o senso comum. A epistemologia
dialética tem por objetivo desconstruir a pseudoconcreticidade e elaborar o concreto pensado.
28
do trabalho e demonstram a atualidade do conceito de classe social para sua
compreensão e transformação.
Considerar a possibilidade de movimentos sociais “não classistas” seria
incompatível, portanto, com a linha de pensamento percorrida neste trabalho.
Considerando o caráter contraditório da sociedade civil, composta por
movimentos conservadores e progressistas, Gramsci vê em suas formas de organização
possibilidades de construção da hegemonia pelas classes subalternas. A luta na esfera
cultural, ou seja, no âmbito da superestrutura, encontra em Gramsci lugar decisivo nas
transformações estruturais, sem que despreze o papel nuclear da infraestrutura. O papel
da infraestrutura como determinante, em última instância, não é desprezado, na medida
em que são as classes sociais o referencial para a composição dos aparelhos da
sociedade civil. Em outras palavras: o lugar que ocupa no processo produtivo cada
classe (força de trabalho ou meios de produção), acompanhado de seu respectivo
“lugar” cultural, político e ideológico.
A sociedade civil só existe no sentido gramsciano (como instância da luta
hegemônica), porque existem as classes sociais representadas pelos aparelhos de
hegemonia operando na articulação das “vontades coletivas”. Luta hegemônica, assim,
implica a organização de tais vontades coletivas, que são aglutinadas em torno de um ou
de outro projeto de classe.
Esta formulação teórica sobre Estado e sociedade civil nos permite compreender
o modelo de gestão privatizante que invade os sistemas escolares públicos nos anos
2000, apresentado como exemplo de participação da sociedade civil. Permite-nos
compreender como determinados organismos da sociedade civil, oriundos e vinculados
ao capital, dissimulados sob o rótulo de voluntariado, responsabilidade social,
filantropia, institutos culturais e similares, contam com a receptividade inadvertida e
benevolente de setores populares dos movimentos sociais, simplesmente por serem “da
sociedade civil” e não “do Estado”.
O projeto de mercantilização e privatização direta e indireta dos sistemas
escolares que emerge no neoliberalismo apoia-se em uma confusão conceitual em torno
da sociedade civil e do papel do Estado. No senso comum, a sociedade civil é
representada como o espaço do bem, dos interesses coletivos e democráticos. O Estado
é identificado como o espaço do poder, da coerção.
Esta representação é fruto de uma construção histórica que foge às origens
conceituais de sociedade civil, que tanto em Hegel quanto em Gramsci são apresentadas
como vinculadas à classe dirigente67. A diferença entre ambos é que Gramsci aponta
também a possibilidade de aparelhos de hegemonia da classe trabalhadora.
A história recente da América Latina permite compreender tal confusão
conceitual. Durante o período das ditaduras latino-americanas nas décadas de 1960 e
1970, o Estado é associado à coerção e a sociedade civil ao terreno do “bem”. Os
setores da sociedade civil vinculados à classe trabalhadora e à luta contra a ditadura
sofreram forte repressão, resultando na dispersão desses setores ou em sua fragmentação
e condenação à clandestinidade.
Com o esgotamento das ditaduras, eclodem os movimentos sociais de caráter
contra-hegemônico, o que fez com que, no imaginário social, ficasse registrada a
associação entre Estado e repressão, assim como a identificação entre sociedade civil e
democratização. Em seguida, a crítica popular ao Estado converge ao discurso
neoliberal, que adota como principal alvo discursivo exatamente o Estado.

67 Acanda, 2006.

29
Nas lacunas deixadas por esse conflito semântico-histórico, as organizações da
sociedade civil vinculadas ao capital, sob pretexto de “participação da comunidade”,
vieram ocupando a escola pública na última década68, sem que nos déssemos conta e
reagíssemos prontamente, dada a conotação positiva dedicada à sociedade civil no senso
comum.
Entretanto, na obra de Gramsci não há a associação direta e necessária entre
sociedade civil e bem comum, nem entre sociedade civil e contra-hegemonia. Entre
sociedade civil, Estado ampliado e democracia formal, sim. Ao formular sua teoria de
Estado, assinala que o conceito de Estado ampliado é pertinente apenas a sociedades
onde a sociedade civil é organizada, de tipo “ocidental”. Não se aplica a momentos em
que a sociedade civil é “gelatinosa”, sob governos totalitários, de tipo “oriental”69, como
o Brasil na ditadura militar.
Na América latina, os golpes militares instauraram décadas de um Estado
totalitário, sem espaço para os organismos da sociedade civil na esfera decisória,
particularmente os aparelhos de hegemonia vinculados aos interesses populares e da
classe trabalhadora. Os setores civis representativos do capital encontravam
interlocução no Estado, mas as organizações de trabalhadores foram submetidas à
repressão. Não é raro nem impróprio ouvirmos cientistas sociais referindo-se ao regime
como “ditadura civil-militar”, dada a aliança entre Estado e capital. Naquele momento,
aplicava-se apropriadamente o conceito de Estado como lócus político da coerção, o que
não implica estender esta condição histórica conjuntural como seu caráter permanente.
O mesmo se aplica ao conceito de sociedade civil: sua configuração histórica na década
de 1980, quando expressava em grande medida interesses da classe trabalhadora, não a
identifica como permanentemente assim composta. Mesmo nesse momento, seria
possível, em uma análise mais acurada, observar elementos contraditórios:

 construção de consenso no interior do aparelho estatal eminentemente


coercitivo,
 aparelhos da sociedade civil fortemente representativos do capital, em
incidência paralela à explosão dos aparelhos de hegemonia representativos dos setores
populares.

Ao formular seu conceito de hegemonia, Gramsci compreende como elementos


dialeticamente inseparáveis consenso e coerção. Em todas as configurações políticas,
estes dois elementos se relacionam. Se, no regime militar o Estado constituía-se como
predominantemente o momento da força, mas não abria mão das estratégias de
consenso, igualmente, em regimes formalmente democráticos, o aparelho de Estado
lança mão eventualmente de medidas coercitivas.
A dicotomia entre “Estado como monopólio da força” e “sociedade civil como
lugar da participação democrática mostra-se imprópria, se tomamos como referencial a
obra deste autor.
Na reconquista da democracia política, como vimos acima, a ideia de sociedade
civil ficou associada aos movimentos populares, especialmente pela efervescência das
associações da sociedade civil vinculadas aos trabalhadores e à democratização naquele
período.

68 Santos, 2004. No léxico dos organismos internacionais, particularmente o PREAL, percebem-se deslocamentos semânticos, onde
o termo “comunidade” designa empresariado e “contexto” significa mercado. Ver também em Santos, 2002.
69 Em Gramsci, Oriente e Ocidente não dizem respeito a critérios geográficos, mas a signos de modalidades da relação governo e
sociedade.
30
A representação do Estado como o lócus do poder e repressão (enquanto a
sociedade civil sediaria os valores da democratização) permitiu que o discurso
neoliberal, que também desqualifica o Estado, encontrasse algum grau de adesão por
setores dos quais não se esperaria, como os movimentos sociais.
Demoramos a perceber que o contexto já era outro e que, com as políticas
neoliberais e mudança do quadro político latino americano (inclusive com eleição de
alguns governos oriundos de lutas sindicais ou populares), a relação entre Estado e
sociedade civil já não seria exatamente a mesma. Isto não significa que fosse oposta.
Consideremos ainda a diversidade de perfis e projetos políticos dos governos
latino-americanos oriundos de partidos de esquerda, alguns deles realizando o projeto
neoliberal em seus aspectos essenciais, para calcularmos a dimensão da confusão
conceitual e suas consequências.
Os sentidos de Estado e sociedade civil e suas relações com a igualdade e
justiça social se mostraram mais complexas do que na representação do senso comum.
A sociedade civil não poderia ser vista apenas como o território da democratização. As
contradições políticas no interior desses novos governos, o arco de alianças constituído
para a conquista do poder, a mudança de formato na hegemonia capitalista com o fim
dos regimes socialistas do Leste Europeu que dinamizavam a polaridade, articulados à
emergência do modelo neoliberal geraram o agravamento da confusão entre as
representações sociais de Estado e sociedade civil e seus atributos de coerção e
democratização.
No vácuo desta confusão conceitual, no emaranhado de novas facetas do Estado
e da sociedade civil nos últimos anos, os movimentos sociais em alguns momentos se
viram desorientados sobre as táticas políticas “por dentro” do Estado ou na sociedade
civil.
Neste contexto, a parcela da sociedade civil vinculada ao capital desenvolveu-se,
ocupou espaço nas políticas públicas. Avançou sobre uma lacuna que se instituiu,
inclusive, por abdicação da militância por significativos setores vinculados à classe
trabalhadora.
Enumeramos a seguir alguns dos elementos produtores dessa lacuna na
sociedade civil de base trabalhadora:

 Crise de paradigmas no mundo acadêmico, que passa a desqualificar as


ciências sociais de base marxista, substituindo-a por referenciais mais preocupados com
o âmbito focal da crítica;
 Comprometimento de centrais sindicais de trabalhadores com novos
governos e a limitação/autolimitação de sua capacidade crítica;
 Práticas autofágicas no interior do movimento sindical de trabalhadores
na luta política interna;
 Adesão de importantes intelectuais originalmente vinculados à luta pela
pedagogia crítica a governos “contraditórios”70, avalizando as pedagogias do mercado
como se assim não fossem, por sua reputação histórica de “intelectual de esquerda”;
 Capitulação de parcela dos intelectuais ao pragmatismo de mercado e/ou
aos ditames de políticas educacionais oriundas do Banco Mundial e outros,
abandonando ou relativizando sua ação como intelectual orgânico da classe
trabalhadora;
 Emersão de movimentos sociais foquistas, setorizados, não-classistas;

70 Refiro-me a governos, tanto no âmbito federal como estadual e municipal cujos partidos, identificados originariamente com a
luta dos trabalhadores, ao assumirem a gestão pública ostentam mais nitidamente uma face pactualista do que classista.
31
 Desencanto de antigos militantes com a onda hegemônica de críticas ao
“Socialismo Real”;
 Poder de controle da opinião pública pelos meios de comunicação de
massa, que silenciam sobre os movimentos sociais críticos ou os ridicularizam e
“demonizam”, gerando modos de percepção desfavoráveis à ação política
transformadora;
 Intensa campanha de desmoralização dos poderes públicos,
particularmente o legislativo, induzindo à despolitização e ao desencanto com qualquer
possibilidade de mudança. Difusão no senso comum da associação entre política e
corrupção.71

Muitos foram os determinantes para o enfraquecimento dos movimentos sociais


em torno de um modelo de educação transformador ou voltados para a construção de
modelo alternativo ao capitalismo, gerando, junto à falência do sistema escolar, o
terreno favorável para a privatização direta e indireta que vemos hoje.
Este quadro levou ao abandono, pulverização ou enfraquecimento da ação
contra-hegemônica no campo da educação. O relativismo pós-moderno se institui de tal
forma na produção ideológica, que chega a parecer anacrônico pensar em educação
como ação comprometida com a transformação estrutural da sociedade.
Porém, exatamente por seu papel transformador, simultaneamente ao
enfraquecimento da crítica, a escola sofre controle sofisticado e bem delineado pelo
mercado. Esse controle é intensificado na metade dos anos 1990, especialmente por
meio dos relatórios da CEPAL/UNESCO e do Banco Mundial sobre educação e com a
criação do PREAL (Programa de Promoção das Reformas Educacionais na América
Latina e Caribe) no mesmo período.
A criação da OMC (Organização Mundial do Comércio) na mesma década,
igualmente contribui para a subordinação e padronização dos “serviços” a serem
mercantilizados no comércio global, o que inclui o controle sobre a educação,
considerada não mais como direito, mas como “serviço”. E, na condição de “serviço”,
submetida aos padrões de produtividade e competitividade dos demais serviços
mercantilizados.
No novo léxico da despolitização da ação escolar, agora como “serviço” e não
mais como direito e instrumento de emancipação, há deslocamentos importantes.
Igualdade é substituída por equidade. Desigualdade, por diferença.
A pedagogia abdica das abordagens socioeconômicas em favor das
socioculturais, como se fosse possível pensar em uma desvinculada de outra. Nem o
sociocultural se realiza fora da esfera do socioeconômico, nem o socioeconômico pode
efetivar-se desprezando sua face cultural e ideológica.
O efeito do deslocamento das categorias de análise é previsível: desigualdade
remete a indignação, luta, transformação. Já diferença, remete a inclusão, tolerância. Há
questões, entretanto, que pertencem à ordem da diferença, enquanto outras permanecem
visceralmente na ordem da desigualdade e precisam ser combatidas como tais. A mera
substituição de categorias relacionadas à crítica social por outras, relacionadas à crítica
estética,72 não tem outro efeito, a não ser o da despolitização. Ou a difusão do “novo
espírito do capitalismo”.73

71 Campanhas que levam a supor que “todo político é corrupto” desfavorecem a possibilidade de eleição daqueles que não são, já
que os que são detém a máquina eleitoral.
72 Sobre os conceitos de crítica social e crítica estética, ver nota 10.
73 Boltanski e Chiapello, 2009.

32
I.2.4 – A PEDAGOGIA DO MERCADO E A IDEOLOGIA DO
EMPREENDEDORISMO E DA EMPREGABILIDADE

A confusão conceitual em torno da sociedade civil e o processo de


despolitização da pedagogia e dos movimentos sociais atuaram de modo funcional ao
neoliberalismo, permitindo à tecnocracia limitar a escola à concepção liberal de
formação da mercadoria força de trabalho, reduzindo-a à geração de competências,
habilidades e atitudes adequadas ao fetiche da empregabilidade. Objetivam ao
desestímulo da demanda por trabalho formal, substituída pelo fetiche do
empreendedorismo, que muitas vezes oculta a precarização do trabalho e a subordinação
dos pequenos empreendedores aos clientes-empresas.
Os novos empreendedores permanecem submetidos ao capital, seja pelas
condições desiguais de produção e oferta de seus produtos e serviços, seja porque estão
sob coação do mercado ao firmarem contratos de exclusividade como fornecedores
terceirizados para grandes conglomerados. Os clientes a quem os pequenos
empreendedores terceirizados atendem costumam ser seus antigos ou potenciais
empregadores. Além da terceirização, outra forma de precarização do trabalho é a
indução ao cooperativismo 74. Os pequenos ou micro empreendedores produzem, em
condições de insuportável intensificação, sem direitos trabalhistas, para grandes grupos
que, além de controlar a qualidade do produto encomendado, manipulam a relação
demanda-oferta, coagindo os “pequenos empreendedores”. Para o grande capital
industrial, por exemplo, é vantajoso contar com uma rede de microempreendedores
individuais como fornecedores, finalizadores do produto ou mesmo produzindo, como é
o caso da indústria de confecção terceirizada, por estarem desonerados de obrigações
trabalhistas ou imprevistos funcionais que teriam, caso esses pequenos produtores
fossem seus empregados diretos.
Essa situação muito pouco difere daquela narrada por Marx75quando analisa o
impacto da grande indústria sobre a manufatura, artesanato e trabalho em domicílio. Já
na era estudada pelo autor, a expansão do grande capital industrial da confecção e
chapelaria com maquinaria moderna, por exemplo, contava com atividades indiretas de
fornecedores domiciliares ou de pequenas manufaturas, onde o trabalho mostrava sua
face mais desumana, intensificada, precarizada, adoecedora. O empreendedorismo atual,
bem como a precarização do trabalho no capitalismo contemporâneo, guarda
significativas semelhanças com as relações sociais de produção da era marxiana.
A pedagogia do empreendedorismo, que a escola tecnocrática do mercado vem
impondo, busca justificativa ideológica na “personalidade” da nova geração, que
“decidiu” “naturalmente” preferir “não trabalhar para os outros” e “abrir seu próprio
negócio”, como se de fato a subordinação ao capital desaparecesse no momento em que
se obtém registro como Pessoa Jurídica. A “revolução” da classe trabalhadora agora
limita-se à abertura de um CNPJ. A julgar por essa “pedagogia”, não mais necessitamos
de teorias políticas revolucionárias: basta substituir o CPF pelo CNPJ, que o trabalhador
se liberta! A justificativa alegada, de uma “personalidade mais dinâmica” e contrafeita
ao trabalho regulado, desconhece o fator formador sobre essa mesma personalidade
coletiva geracional, exercido pelos meios de comunicação de massa e pela pedagogia,
que implanta tal concepção desde a Educação Infantil. Mais uma vez, lembramos Marx,
que alerta para o fato de que o capitalismo não produz apenas uma mercadoria para um
consumidor, mas o consumidor para a mercadoria.

74 Antunes, 2006.
75 Marx, O Capital, livro I.

33
A precarização do trabalho formal e informal, o ritmo sobre-humano, a
intensificação da extração de mais-valia intensiva trazida com a polivalência, o aumento
extração de mais valia extensiva pela adoção do banco de horas, a instabilidade, o ritmo
insuportável de pressão e ameaças76, a escassez de empregos, aliadas a uma ideologia de
responsabilização pessoal pelo fracasso e de propagação de “novos valores” como o
“aventureirismo” em lugar da busca da estabilidade77, devoram de tal modo a energia de
luta coletiva dos trabalhadores, que só resta o “salve-se quem puder” do
empreendedorismo individual ou da competitividade, inclusive contra si mesmo: hoje
preciso provar que sou melhor do que os outros e do que eu mesmo ontem. Isto se
repete todos os dias, na busca individualizada pela empregabilidade e por boa avaliação
de “mérito”.
Produz-se todo um corpus ideológico para legitimar tal projeto. O trabalhador
das gerações anteriores é caricaturado pela mídia e pelo discurso empresarial assimilado
no meio escolar e acadêmico, como um personagem acomodado, preguiçoso, apegado a
uma única empresa durante toda a vida, sem desejo de mudança, instalado na “zona de
conforto”.
Direitos como estabilidade, limitação de jornada, horas-extras remuneradas,
licenças para tratamento de saúde, progressão na carreira conquistados em planos de
cargos negociados coletivamente com base em critérios objetivos de qualificação, como
antiguidade, posto de trabalho e titulação, são associados à suposta incapacidade e falta
de ambição.
Esta desqualificação tem como alvo, mais do que uma “personalidade
acomodada”, a potência de organização coletiva dos trabalhadores, que afetou o fiel da
balança nas relações capital-trabalho no século XX, desestabilizando o modo de
produção capitalista. É esta dimensão coletiva o objeto de combate e esfacelamento do
capital no novo modelo. O critério de remuneração já não é a qualificação (objetiva e
coletiva), mas as competências (subjetivas, individuais, instáveis, transitórias,
eventuais) e o mérito, incluindo como elemento indicador, a renúncia a direitos, como
por exemplo, licenças médicas. O “novo trabalhador” no âmbito do emprego formal tem
direito legal a férias e licença médica, mas, caso lance mão destes direitos, sua
produtividade cairá, suas metas não serão alcançadas, sua equipe ficará desfalcada,
perdendo a oportunidade de aceso aos prêmios e bônus por produtividade, que muitas
vezes representam parte indispensável da remuneração direta e indireta. Uma
trabalhadora em idade reprodutiva sempre representará um risco para seus colegas, pois
poderá entrar em licença médica em caso de gestação. Se já tiver filhos, representará
riscos de se ausentar para amamentar, acompanhar o filho ao médico, reuniões escolares
etc.
O mais cruel é que o algoz passa a ser não mais o “patrão”, mas os colegas,
prejudicados pela queda de produtividade da equipe com a ausência de um colega. O
discurso patronal mais moderno alega que agora as empresas não cobram mais
cumprimento de horários, mas de metas, que o trabalhador tem liberdade para “fazer seu
horário”. Decorre desta estrutura a fratura da solidariedade de classe, ao mesmo tempo
em que dilui o papel “repressor” do antigo supervisor fordista, representante do
“patrão”. Quem controla os tempos e movimentos do trabalhador é seu próprio colega,
temeroso de que sua equipe perca a corrida produtivista. Os considerados mais frágeis –
ou menos viris, conforme Dejours (2006) – passam a ser vistos com “maus olhos”,
passam a ser excluídos, isolados, destruídos em sua dignidade.

76 Dejours, 2010.
77 Sennett, 2006.

34
A “nova pedagogia do mercado”, contudo, apresenta o “novo mundo do
trabalho” como o reino da liberdade e da criatividade, supostamente distinto do
“desumano” mundo fordista. Os Parâmetros e as Diretrizes Curriculares do Ensino
Médio da reforma neoliberal de 1999-2000 afirmam textualmente isto, em clara
manifestação de seu posicionamento ideológico a favor do modelo de trabalho que se
apresenta, desprezando toda a literatura crítica fartamente produzida nos últimos trinta
anos sobre os danos da “reestruturação produtiva”. 78 Mais uma vez, podemos recorrer
ao conceito de banalização da injustiça social discutido por Dejours (2006) e de ciência
como ideologia, de Gramsci (1989), para compreender a incorporação da “nova
pedagogia do mercado” no discurso oficial das políticas educacionais.
Neste contexto neoliberal e pós-moderno, despolitiza-se a escola, repolitizando-a
em favor do mercado, dissimulando sua função hegemônica, para impedir sua função
contra-hegemônica.

I.3 – HEGEMONIA E PEDAGOGIA DO MERCADO:


A PSEUDOCONCRETICIDADE DO “TRABALHADOR DE NOVO TIPO”

Retornemos aos postulados teóricos de Gramsci, a fim de compreender a


gravidade do sequestro sofrido pela escola na última década, especialmente pelo
deslocamento da gestão pedagógica dos sistemas escolares para a Sociedade Civil, leia-
se, a parcela hegemônica da Sociedade Civil, personificadas em institutos privados
vinculados ao capital, que penetram no sistema escolar sob o pretexto de salvá-la da
alegada “ineficiência” do Estado para impor o controle ideológico.
Mais do que um princípio político (e também o é), a afirmação da condição de
autonomia da escola pública é, por coerência com o referencial teórico aqui adotado, a
única possibilidade de fazer frente à “nova pedagogia do mercado”. Somente o Estado
(no sentido ampliado) comporta (ainda que formalmente) a luta contra hegemônica, ou
seja, a disputa de diferentes projetos político-pedagógicos, indissociáveis de seus
respectivos projetos de sociedades. A autonomia político-pedagógica, a luta contra
hegemônica, se nos basearmos em Gramsci, só é possível no Estado em seu sentido
ampliado. A chantagem salvacionista que justifica o sequestro da escola pelo mercado
não pode silenciar esta possibilidade.
Considerando escola como um dos aparelhos de hegemonia e, portanto, como
um dos espaços necessários à formação da nova ordem intelectual e moral, Gramsci nos
abre o caminho para a reflexão do papel da escola na construção de uma ação
transformadora e libertadora.

O proletariado necessita de uma escola desinteressada. Uma escola em que seja


dada à criança a possibilidade de se formar, de se fazer homem, de adquirir os
critérios gerais que servem para o desenvolvimento do intelecto e não
constranja a sua vontade, a sua inteligência, a sua consciência em formação a
movimentar-se sobre dois trilhos com estação preestabelecida.(...). Os filhos do
proletariado devem ter também à sua frente todas as possibilidades, todos os
campos livres para poderem realizar a sua individualidade da melhor maneira,
e por conseguinte, de maneira mais produtiva para eles e para a coletividade. A
escola profissional não deve se transformar em uma incubadora de pequenos
monstros aridamente instruídos em função de um ofício, sem ideias gerais, sem

78 C. Santos, 2002.

35
cultura geral, sem alma, tão somente como olho infalível e mão firme (...) É um
problema de direito e força.79

Enfrentar a pseudoconcreticidade de uma pedagogia que reproduz a marca


dualista sob o pretexto de formar o “novo trabalhador” para os “pseudoempregos” que
requerem maior qualificação, neste início de século, exige da escola o esforço de
desvelar a ideologia da empregabilidade, do empreendedorismo, da tecnocracia, do
novo tecnicismo pedagógico; discutir o determinismo tecnológico para desmitificar o
desenvolvimento tecnológico como responsável pelo desemprego; refletir sobre a
natureza histórica e política da precarização do trabalho que leva os trabalhadores à
destruição, incluindo o fenômeno do suicídio associado à precarização do trabalho no
neoliberalismo, conforme denuncia Dejours80.
Como fazer isto, se os conteúdos escolares são controlados por meio de material
didático padronizado sob o fetiche das “novas tecnologias”, “provões” e “provinhas”
que subordinam o trabalho docente à transmissão dos conteúdos que serão exigidos
nesses instrumentos de mensuração de resultados? Qual o espaço para a função contra-
hegemônica da escola, se os institutos privados, vinculados aos “senhores do mercado”,
os “consumidores do produto da escola” 81, determinam o que deve ser ensinado na
escola e de que maneira? Se mesmo os poderes públicos estão contaminados pela lógica
tecnocrática? Que tempo pedagógico se reserva à reflexão, à leitura de mundo, numa
organização do trabalho escolar que impõe um ritmo fabril ao docente?
Gramsci possibilita refletir sobre as questões que representam hoje os maiores
desafios aos educadores e a todos aqueles que veem na educação mais do que uma
prática de (con)formação de corações e mentes à ideologia do mercado.
Marx propõe ao intelectual o desafio de: “(...) fazer da ciência um instrumento
não de dominação de classe, mas sim uma força popular.”82
Em tempos em que o Marxismo ou Materialismo Histórico-Dialético tem sido
vulgarizado, criticado como determinista, economicista, reducionista, onde se atribui à
teoria a responsabilidade sobre situações históricas consideradas totalitárias, onde se
anuncia com muita facilidade que Marx morreu, onde se pretende sepultar Marx no
intento de sepultar os erros históricos que possam ter sido cometidos em seu nome,
mesmo que não tenhamos conseguido sepultar o objeto da crítica marxiana – o
capitalismo – não nos parece excessivo sugerir ao leitor, especialmente o leitor formado
ou (re)formado no movimento de niilismo político dos últimos anos, a reflexão sobre a
concreticidade do capitalismo em suas ações de classe.
O descomprometimento do relativismo teórico dominante nos meios acadêmicos
hoje opera como as sombras da caverna de Platão. Necessário assumirmos
posicionamento teórico e político frente aos limites e impossibilidades do modo de
produção capitalista na realização da dignidade humana e, consequentemente, frente à
incompatibilidade ética de um modelo de educação pautado pelo mercado com a
realização desta dignidade.

79 Gramsci. Homens ou Máquinas? Jornal Avanti! Turim, 24/12/16 – In: CAVALCANTI, Pedro, p. 68.
80 C. Dejours, 2010. Como visto em capítulo anterior, nesta obra Dejours demonstra que o suicídio associado e provocado pela
precarização material e moral do trabalho a partir dos anos de 1990 já pode ser considerado um novo fenômeno no rol dos agravos á
saúde do trabalhador. Dejours desenvolve e fundamenta a tese de que são as novas modalidades de gestão do trabalho, pautadas na
desumanização, isolamento, extenuação das forças físicas, emocionais e mentais dos trabalhadores, isolamento, rompimento da
solidariedade, competitividade, exclusão dos mais fracos, as causas diretas dos numerosos suicídios ocorridos em locais de trabalho
nos últimos anos. O autor polemiza com as teses segundo as quais a personalidade do trabalhador suicida o inclinaria ao ato
extremo. Discorda, afirmando serem as condições de trabalho (objetivas e psicológicas), como as pressões pela intensificação
contínua e infindável de produtividade) no modelo contemporâneo, a causa do adoecimento e desintegração psíquica.
81 Cf. Santos, 2004.
82 Marx e Engels, 1983.

36
Teremos alcançado nosso objetivo, se este livro contribuir para a (re)organização
das forças populares (dentro e fora da escola), para a construção de um projeto de
formação humana onde se recoloque o sonho, a ousadia, a coragem de “fazer diferente”,
de “existir” no sentido filosófico, de desejar muito mais do que o mínimo necessário, de
retomar o direito de formular e responder às três questões fundamentais do projeto
político-pedagógico83, mesmo quando tudo isto parece perdido, quando o poder
econômico desmoralizou e destituiu de dignidade ao trabalho docente ao ponto que
vemos hoje, reduzindo a ação educativa à dimensão tecnocrática.

I.3.1 – CONTEXTO HISTÓRICO, DUALIDADE ESCOLAR E A


PEDAGOGIA DO MERCADO

O problema da dualidade escolar, que adquire centralidade na obra gramsciana, é


marca regular nas sociedades de classes. Tem sido examinada nas obras de Baudelot e
Establet1, Althusser2 e outros, em sua manifestação no sistema educacional do modo de
produção capitalista.
Se tomarmos como referência da consolidação do modo de produção capitalista
a definição de Eric Hobsbawn,3 que a situa na década de setenta do século XVIII, ou
mesmo, se considerarmos como seu marco inicial o momento de expansão comercial
dos séculos XV e XVI, veremos que a dualidade escolar é anterior ao capitalismo,
embora se sofistique neste modo de produção, inclusive pelas demandas de
universalização escolar. Mesmo nos modos de produção anteriores, havendo divisão
social do trabalho, a educação já apresentava a característica dualista. Em síntese: a
dualidade escolar é um elemento histórico já presente nas sociedades de classes
anteriores, mas adquire maior complexidade no capitalismo.
A partir do surgimento da divisão social do trabalho, da escrita e das primeiras
cidades, com a implantação das primeiras instituições escolares, a dualidade pedagógica
se torna nítida e o discurso hegemônico não se preocupa em ocultá-la, já que a
concepção de homem no escravismo e no modo de produção asiático comporta a
enunciação explícita da desigualdade social84. Nas sociedades da Antiguidade nas quais
prevaleceu o modo de produção asiático, como no Egito, ou onde vigorou o modo de
produção escravista, como em Roma e Grécia, podemos observar, com auxílio de
Manacorda4, as marcas do regime pedagógico dualista. Perpassará todas as épocas
subsequentes, assumindo formas diferentes e correspondentes à visão de mundo
predominante em cada contexto histórico, mas salvaguardando sua característica
essencial: racionalidade instrumental ou pragmatista, que cinde a ação pedagógica em
duas faces: a formação para a ação política conservadora para uns e a formação para a
execução eficaz do trabalho subalterno para outros – ou a ausência dela, quando o
trabalho subalterno não a exige. A formação para a subordinação e execução não se
expressa apenas na educação profissional, mas nos projetos de educação da classe
trabalhadora de modo geral, que se distinguem dos projetos de formação para a classe
dirigente.

83 Cf. no prefácio: Que tipo de sociedade queremos construir? Que aluno queremos formar? Que escola precisamos construir para
formar esse aluno para a nova sociedade?
1 Baudelot e Establet, 1971.
2 Althusser, 1985.
3 Hobsbawn, 1995, p. 44.
84 Manacorda, 1992.
4 Manacorda, 1992.

37
A dualidade nem sempre se apresenta em sua face formal, pela existência de
modalidades paralelas de ensino (um projeto de formação geral e outro
profissionalizante), mas se traduz na dualização qualitativa no interior de uma
modalidade. No domínio intrínseco do modelo de formação geral, uma pedagogia mais
consistente para a classe dirigente e outra mais liquefeita para a classe que vive do
próprio trabalho. Uma concepção escolar para a formação do homem político convive
com outra para o homem laborativo.
Retomando o percurso da dualidade, recorremos a Manacorda, que destaca, entre
as características da formação do “homem político”, ainda na Antiguidade, a oratória
como instrumento de ação política, por volta do século XXVII a.C.:

A palavra é mais difícil do que qualquer trabalho, e seu conhecedor é aquele


que sabe usá-la a propósito. São artistas aqueles que falam no conselho...
Reparem todos que são eles que aplacam a multidão, e que sem eles não se
consegue nenhuma riqueza... 5

A formação pelo discurso como arte da dominação, reservada a seletos membros


da classe dirigente, configura já naquele momento o caráter de exclusão pedagógica
reprodutora da exclusão social. Esta marca se perpetua até o século XXI, quando ainda
se discute a pertinência de se exigir o domínio da “norma culta da língua” nas camadas
populares. A justificativa atual não é a mesma. Na Antiguidade, no modo de produção
escravista, não havia pudores em se ordenar que, caso algum membro das camadas
populares fosse surpreendido na tentativa de aprender a ler e a escrever, deveria ser
“(...)morto, expulso e ter seu nome apagado”.85 Manacorda menciona ainda que tal
indivíduo era denominado como “charlatão”. No século XXI não cabe explicitar a
proibição às classes populares do acesso à “arte da palavra” como “arte de dominação”.
O discurso ideológico hegemônico alega que não é adequado oferecer às classes
populares conhecimentos externos à “sua cultura”. E se instala perversamente uma
bipolaridade: apresentar a chamada “norma culta”, que representaria “necessariamente”
preconceito linguístico, ou, em nome do respeito aos “falantes” populares,
representantes de outras variações, sonegar-lhes o acesso a outros códigos. Se do ponto
de vista da Linguística é correto considerar “falante perfeito” se ocorrer a comunicação,
independentemente da gramática utilizada, do ponto de vista de pedagogia, a escola não
pode renunciar à sua função de “lançar mundos no mundo” e “tal como a radiação de
um corpo negro, apontar para a expansão do universo”86. Na Grécia antiga, segundo
Ponce (2002) e Manacorda (1992), a separação entre o saber destinado ao homem livre
e a definição do que o homem não-livre não deve saber, reafirma a dualidade que será
confirmada no modelo romano, diverso na forma, mas análogo no sentido. O papel das
escolas na consolidação do Império Romano, segundo Ponce (2002), o controle
ideológico exercido pelos militares sobre o trabalho docente e a imposição de conteúdos
morais de docilidade frente ao escravismo são alguns dos exemplos que o autor nos traz
para demonstrar o caráter de classe da educação no período.
Na Idade Média, segundo os mesmos autores, além da divisão já consolidada
entre formação para política e vida na cidade, e a formação para o trabalho subalterno,
acrescente-se, segundo Manacorda, a cisão entre a educação para os “legale domini” e
os “barbari regis”, isto é, entre os homens de pena e os homens de espada, pertencentes

5 Manacorda, 1992, p. 14.


85 Manacorda, 1992.
86 Cito aqui versos da canção “Livros”, de Caetano Veloso, onde ele diz que os livros têm a função de “lançar mundos no mundo” e
de “apontar para a expansão do universo”.
38
os primeiros inicialmente aos vencidos romanos, os outros aos vencedores bárbaros.”6 A
fratura entre a formação para o trabalho nas corporações de ofícios e as escolas de
formação geral, articulada à dicotomia entre formação intelectual e cavalheiresca para
uns e formação catequética dogmática, sem conteúdos científicos, apenas os religiosos,
para outros, ilustra algumas das diversas manifestações de dualidade no modo de
produção feudal.
Na Idade Moderna, marcada pela crise da “velha cultura” frente à explosão
científica, pela disputa entre Reforma e Contrarreforma e seus correspondentes
educacionais, pela expansão da oferta de educação formal e a gênese dos sistemas
escolares de massa, a dualidade é reafirmada, dentre inúmeros exemplos discutidos por
Ponce e Manacorda, sob a forma de propostas de “preparação dos pobres ou na
reeducação dos delinquentes.”7. Mudam as orientações curriculares, prenuncia-se a
revolução epistemológica da modernidade, todavia a estrutura dualista permanece como
marca de seus sistemas escolares. A escola de formação intelectual consistente persiste
como privilégio de classe.
Na Idade Contemporânea, vale destacar um exemplo representativo desta
racionalidade dual e utilitarista que percorre, como vimos, toda a história da educação.
Esta marca dualista alcança o apogeu nos modelos fascistas do século XX, inspiradores
subliminares de algumas ideias circulantes em nosso meio pedagógico, como a
“diversificação”, subentendida como a delimitação do que os alunos das classes
populares “precisam” saber “para a vida”. Trata-se do ideário pedagógico fascista, que,
através da “maior de suas inteligências”8, Giovanni Gentile assim se expressa:

Um dos artigos fundamentais do meu e, permitam-me dizê-lo, do nosso credo


pedagógico é este: que as escolas, para que possam funcionar, devem receber
somente aqueles que podem entrar nelas com espírito despreocupado, livre de
segundas intenções, dispostos a procurar nelas a cultura pela cultura, a si
mesmos e aquilo que pretendem ser. Para que isto se torne possível, é preciso
que as escolas reduzam de muito seus efetivos escolares. (...) A exclusão de um
certo número de alunos da escola pública foi o propósito bem claro da nossa
reforma. (...) Não deve haver lugar para todos(...). A reforma visa exatamente
isto: reduzir a população escolar.9

Observamos, com apoio em Ponce e Manacorda, que o traço dualista permeia


toda a história da educação. Isto não nos impede de reconhecer que esta marca
hegemônica transcorreu em traçado linear, sem necessidade de contrapor-se a
resistências e oposição. Em toda a história das ideias e práticas pedagógicas, ora de
forma mais discreta, ora com maior importância, registram-se movimentos críticos na
educação. Este breve percurso histórico pontuando a continuidade da marca dualista nas
sociedades de classes, em que pese o risco de ser considerado reducionista e superficial,
justifica-se aqui pela afirmação da categoria dualidade em sua constância, o que lhe
confere sentido histórico e político. Reconhecemos que uma análise mais profunda
revelaria as contradições e o movimento complexo constitutivo da prática pedagógica
ao longo da história, a diversidade de práticas, sua materialidade, suas variações e
formas de apropriação, como chama a atenção a produção da “História Cultural” e

6 Manacorda, 1992, p. 317.


7 Manacorda, 1992, p. 226.
8 Manacorda, 1992, p. 331.
9 Gentile, Apud Manacorda, 1992, p. 331.

39
campos adjacentes87. Nossa finalidade aqui, contudo, é a caracterização do fenômeno em
sua dimensão histórica de longo tempo, para que possamos indagar sobre os sentidos de
sua manifestação atual.
Marca social da escola que se manifesta em “formas chinesas e filigranas” 88, na
expressão de Gramsci, a dualidade pode ser considerada seu elemento fundante nas
sociedades de classes. Realiza-se na relação triangular educação-capital-trabalho, dando
relevo e legitimação à reprodução social.
Como já tratado, a dualidade é recorrente nos sistemas educacionais nas
sociedades de classes, definindo-se pela coexistência de projetos de educação
diferenciados para as distintas classes sociais, a serviço da manutenção da ordem social
hegemônica, assegurando a função reprodutora da atividade educacional. Pode
manifestar-se quantitativamente, quando a diferença pertence essencialmente à esfera do
acesso, ou qualitativamente, quando a diferença fundamental pertence à esfera da
qualidade do ensino dispensado a cada classe social.
Tradicionalmente, a dualidade quantitativa caracteriza-se pelo paralelismo entre
a proposta de educação profissional para as camadas populares, que são convencidas a
acreditarem que “necessitam” de escolarização profissional aligeirada para a entrada
precoce no mercado de trabalho, já que – também lhes é imposto este estigma
ideológico após sucessivos fracassos na vida escolar – lhes disseram que não têm
“aptidão” para o estudo acadêmico, nem condições de manutenção de uma vida escolar
prolongada, e, por outro lado, a proposta de formação geral para as classes mais
favorecidas, a fim de que adquiram instrumentos importantes para a reprodução de sua
condição hegemônica, como analisa Gramsci:

A multiplicação de escolas profissionais (...) tende a eternizar as diferenças


tradicionais; mas, dado que ela tende, nestas diferenças, a criar estratificações
internas, faz nascer a impressão de possuir uma tendência democrática. Por
exemplo: operário manual e qualificado, camponês e agrimensor ou pequeno
agrônomo etc. Mas a tendência democrática, intrinsecamente, não pode
consistir apenas em que um operário manual se torne qualificado, mas em que
cada cidadão possa se tornar governante e que a sociedade o coloque, ainda
que ‘abstratamente’, nas condições gerais de poder fazê-lo: a democracia
política tende a fazer coincidir governantes e governados (no sentido de
governo com o consentimento dos governados), assegurando a cada governado
a aprendizagem gratuita das capacidades e da preparação geral necessária a
fim de governar. Mas o tipo de escola que se desenvolve como escola para o
povo não tende mais sequer a conservar a ilusão, já que ela cada vez mais se
organiza de modo a restringir a base da camada governante tecnicamente
preparada, num ambiente social político que se restringe ainda mais a
‘iniciativa privada’ no sentido de fornecer esta capacidade e preparação
técnico-política, de modo que, na realidade, retorna-se às divisões em ordens
‘juridicamente’ fixadas e cristalizadas, ao invés de superar as divisões em
grupos; a multiplicação das escolas profissionais, cada vez mais especializadas

87 Uma das correntes da História da Educação, que representamos em uma imagem generalizante aqui como “Nova História
Cultural”, (embora reconhecendo sua complexidade e diversidade, suas múltiplas tendências etc.), propõe a substituição das
narrativas de longo tempo, consideradas passíveis de reducionismos estruturalistas, simplismos e superficialidade, pela análi se
focada na materialidade das práticas, numa dimensão mais “particularista” e cultural. Evita narrativas de longo prazo e planos
macroestruturais de análise. Destacamos Roger Chartier (1990), um entre inúmeros historiadores deste campo. Nossa opção, em que
pesem os riscos, é outra: a narrativa de longo percurso da duplicidade dos projetos educacionais, dado que somente assim, em nossa
compreensão, podemos apreender o sentido político hegemônico, as regularidades. Apoiamo-nos, entre outros, no historiador Ciro
Flamarion Cardoso (1996).
88 Gramsci se refere aqui às formas sinuosas e por vezes imperceptíveis de manifestação da marca dualista.

40
desde o início da carreira escolar, é uma das mais evidentes manifestações
desta tendência.89

A dualidade pode configurar-se, como visto acima, pela ocorrência paralela de


educação profissionalizante para as classes subalternas e formação geral para as classes
hegemônicas. Pode expressar-se também no interior da formação geral, pela
diferenciação excludente de argumentos de contextualização (ou atendimento à
“realidade local”), onde o ensino às classes populares seria restrito aos conteúdos
escolares que estivessem relacionados com sua vivência imediata, que mais “lhes
interessassem”, ocultando-se aí uma forma cruel de expropriação. Neste caso, mesmo ao
tratar de propostas educacionais aparentemente relativas à formação geral,
desvinculando-a da formação profissional (paralela e independente) ou articulando-as
de forma “integrada”90, permanece a lógica dualista.
A filiação do discurso pedagógico dualista e instrumental da “pedagogia do
mercado” ao ideário político-econômico neoliberal assenta-se na concepção de homem
reduzido a mera força produtiva, como já denunciava Marx, lembrado aqui por
Manacorda:

(...) em ‘O Capital’, o operário reaparece (...) em sua imagem de homem


parcial, apropriado e anexado pela vida a uma função unilateral, aviltado,
mutilado, aleijado, tornado uma monstruosidade, ser incapaz de fazer algo de
independente, intelectual e fisicamente reduzido a trapos. Reaparece a
miserável população operária, alienada pelas potências intelectuais do processo
de trabalho, a degradação e a destruição das crianças e dos adolescentes, e
todas as infinitas determinações que, com dramática insistência, reapresenta, ao
longo de todo o curso da pesquisa histórica e teórica de ‘O Capital’, tanto o
estado imediato da subordinação do operário à máquina, como a condição
geral da humanidade que dela deriva.91

A forma da educação dispensada a cada classe (seja de caráter


profissionalizante, seja de formação geral) ancora-se na ideologia construída em torno
dos sentidos da existência humana relativos a cada classe nas relações sociais de
produção. O caráter utilitarista da educação burguesa destinada à classe trabalhadora
reflete sua concepção – utilitarista – da própria humanidade no modo de produção
capitalista. Os mecanismos pelos quais o capital dispõe da educação como elemento
pragmático de formação da mão de obra ou da cidadania que lhe convém, são, antes de
tudo, a expressão dos sentidos atribuídos pelo capital à vida humana na configuração

89 Gramsci, 1989b, p. 137.


90 Refiro-me à Educação Profissional Integrada de Nível Médio-Técnico, introduzida pelo Decreto 5.154/2004. Nesta modalidade,
reafirma-se a dualidade escolar ao privilegiar-se a integração pedagógica sob os princípios científicos do campo de trabalho ao qual
se destina o curso profissionalizante, em prejuízo da carga horária de formação geral do Ensino Médio e da compreensão do
“Trabalho – princípio educativo” como categoria geral, concreta, referente ao mundo da Economia e suas determinações em todas as
áreas do conhecimento, e não o trabalho como categoria instrumental, empírica, voltada ao destino profissional imediato. O
currículo integrado representa a subordinação do Ensino Médio de formação geral aos princípios científicos do campo de trabalho
específico, diferindo da concepção de Escola Unitária gramsciana, tratada em outra seção deste livro. Na concepção gramsciana, em
toda a Educação Básica o princípio do trabalho é tomado como categoria concreta e não empírica. A etapa correspondente ao Ensino
Médio dedica-se à metodologia criativa da ciência e da vida. Somente após essa formação é que o trabalho como categoria empírica
é tratado, no que Gramsci nomeia como academias, que podem orientar-se por formação geral ou profissional. Se o Decreto anterior
(2.208/97) mantinha a dualidade capitalista em perspectiva externa, formal, de separação de matrículas entre Ensino Médio de
Formação Geral, parece-nos mais grave que na integração das duas modalidades a classe trabalhadora sofra a diminuição da carga
horária anteriormente dedicada ao Ensino médio: 2.400 horas. Sob a vigência do Decreto 2.208/97, um aluno concluía o Ensino
Médio (2.400h) e o Técnico em Saúde, por exemplo (1.200h), perfazendo um total de 3.600 horas. Sob a vigência do Decreto
5.154/2004, esse mesmo aluno cursa o Ensino Médio Integrado com um total de 3.200 horas, segundo a res 05/2005, que normatiza
o decreto, tendo um prejuízo de 400 horas.
91 Manacorda, 1991, pp. 72-73.

41
das classes sociais. É, portanto, sobre essa base ideológica – a concepção burguesa de
homem e de mundo – que se afirma o problema da dualidade escolar.
A racionalidade instrumental opera nos sistemas educacionais desprezando os
elementos considerados supérfluos (não produtivos) para a realização do projeto
neoliberal. Deforma as relações pedagógicas em suas finalidades de formação
onilateral92, ao contrário do que deseja a escola gramsciana, para quem

(...) antes do operário está o homem, ao qual não se deve tirar a possibilidade
de frequentar os mais amplos horizontes do espírito (...).93

O sistema capitalista, fundado na extração de mais-valia e na ausência de tempo


livre e de disponibilidade para atividades de interesse pessoal, induz à racionalidade
utilitarista e unilateral das políticas educacionais, que, por sua vez, são reprodutoras de
suas próprias condições de produção. A reflexão sobre a dualidade no quadro da relação
de mútua determinação entre escola e sociedade lembra ao educador o compromisso na
crítica e ação política, instituindo momentos de luta contra-hegemônica no interior do
sistema educacional.

(...) Engels observa que o ensino transmitido nas escolas criadas pela
burguesia aos operários – em resumo, pelas classes dominantes às classes
subalternas – ao fazê-los perder toda a sua “disponibilidade” original, levava-
os a uma verdadeira atrofia moral e desolação intelectual; e, mais tarde,
acrescentará que os operários ingleses são homens quando começam a rebelar-
se, mas são animais quando se adaptam à situação existente.94

Gramsci propõe a reforma intelectual e moral, que consiste na ação


cultural/ideológica para a construção do “Estado ético” com a demolição do modo de
produção capitalista. Infraestrutura e superestrutura compõem o bloco histórico para a
transformação social e, por conseguinte, na reforma intelectual e moral. Esta formulação
evidencia, mais uma vez, a impossibilidade de se desenvolver no sistema escolar
sequestrado pelo capital tais reformas, a não ser quando a classe trabalhadora e seus
intelectuais orgânicos a resgatarem. Reafirmamos que a desvinculação aparente entre
escola e luta de classes em nome de um pacto social fictício representa conferir-lhe
caráter de instrumento de hegemonia do capital.

(...) uma reforma intelectual e moral não pode deixar de estar ligada a um
programa de reforma econômica. E mais, o programa de reforma econômica é
exatamente o modo concreto através do qual se apresenta toda reforma
intelectual e moral95

92 O termo “onilateralidade” (também grafado em diversas obras como “omnilateralidade”) designa, no caso de um projeto
pedagógico, a formação que procura abranger todos os aspectos da vida humana, não se limitando aos conhecimentos necessários ao
papel que o indivíduo desempenha na produção, que seria a formação unilateral. Autores como Manacorda e outros da mesma
tradição, consagraram seu uso. Preferi a forma “onilateral” a “omnilateral”, por já estar admitida no Dicionário da Língua
Portuguesa assinado por Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira.
93 Gramsci apud Cavalcanti, s/d.
94 Engels, citado por Manacorda, 1991, pp. 71-72.
95 Gramsci 1989a, p. 145.

42
Para conhecer com exatidão quais são os fins históricos de um país, de uma
sociedade, de um agrupamento, importa antes de tudo conhecer quais são os
sistemas e as relações de produção e de troca desse país, dessa sociedade. 96

A finalidade dos que não são ‘sorteados’ pelo sistema é a transformação da


riqueza-liberdade – privilégio de poucos – na riqueza liberdade como bem-
comum. Nesta transformação utilizam-se como meios a associação e a
organização dos ‘deserdados’.97

A conquista da hegemonia pressupõe a preparação política coletiva dos


trabalhadores. Gramsci amiúde enfatiza a necessidade de formação política e intelectual
de toda a classe, da formação da capacidade diretiva coletiva. Assim posta, a conquista
do Estado deve incluir um trabalho de formação popular, a “elevação cultural das
massas”, nos termos do autor.
A expressão gramsciana “elevação cultural das massas” alude à ultrapassagem
do ‘homem-massa’” a sujeito histórico. Na condição de homem-massa, orienta-se pelo
senso comum que, segundo essa teoria, compõe-se de resíduos de diversas ideologias –
incluindo as dominantes – acarretando uma concepção fragmentária e imediatista do
mundo. Sujeito histórico é a designação gramsciana para o agente coletivo de
transformação, orientado por uma concepção orgânica do mundo.
Esta “elevação cultural” não consiste especificamente em elevação da
escolaridade, nem em “elevação intelectiva” (no sentido de erudição), mas no
desenvolvimento do pensamento filosófico-crítico, para cujo alcance o conhecimento
escolar é um dos componentes. O conhecimento escolar amplo, consistente e crítico
abre caminhos para a formação do sujeito histórico.
A concepção orgânica abrange aquilo que em Kosik temos como
“concreticidade” e em Marx como “totalidade”, designando a compreensão de um
objeto em suas inúmeras determinações, as relações delas entre si e com o objeto.
Requer a análise de ações, conceitos, conhecimentos, informações e a síntese destas
relações. É a busca pelo concreto pensado, entendendo-o como dinâmico, histórico,
multifacetado e multideterminado, mas coerente, portador de sentido. Conduz ao
entendimento das relações sociais de produção e seus efeitos mediatos e imediatos na
produção da vida social. Busca as relações entre produção, cultura, ciência e ideologia
como fundamentos para a compreensão da vida e sua transformação. Para tanto, a
“elevação cultural das massas” requer rigorosa disciplina intelectual clareza política e,
simultaneamente, criatividade e criticidade.
Para Gramsci, a “elevação cultural das massas” é condição substantiva para a
construção do “Estado ético” (socialista). Um sistema escolar pautado na dualidade, ao
privar a classe trabalhadora dos conteúdos científicos e culturais fundamentais, dos
conteúdos filosóficos, estéticos e éticos para a valorização da vida em sua perspectiva
onilateral, confina o intelecto em uma pedagogia do “treinamento” instrumental,
aligeirado e operacional para o exercício de sua destinação profissional, expressão do
“Estado antiético”.

I.3.2 – DUALIDADE ESCOLAR NO CONTEXTO


DA MUNDIALIZAÇÃO DO CAPITAL

96 Gramsci apud Cavalcanti, s/d, p. 50.


97 Idem.

43
Ao capitalismo central, responsável pelo “cérebro” da produção mundial, um
modelo de educação que permita o exercício do domínio científico, intelectual, criativo
das tecnologias de produção, ocupando o lugar da concepção. A educação valorizará a
formação intelectual, científica, a “universidade científica e humanista”. Destina-se à
formação intelectual do “cérebro” do sistema.
Ao capitalismo periférico e semiperiférico, que não representa o cérebro, mas os
“braços” desse organismo produtivo mundial (onde se realizará a esfera operacional
técnica qualificada e semiqualificada), destina-se um modelo de educação igualmente
“semiqualificado” e “semiqualificante”, com enfática afirmação da educação
profissional, inclusive em cursos de mestrado e doutorado. Institui-se a pós-graduação
profissionalizante , com o objetivo de aperfeiçoar as práticas profissionais, não a ciência
básica. Nessa fração da produção mundial, a escola e a universidade privilegiarão as
dimensões operacionais, instrumentais, aligeiradas e pragmáticas. O objeto são as
práticas e o objetivo é o mercado de trabalho. Destina-se à formação dos braços do
sistema. Braços que devem ser “operacionais”, “executores”, mesmo quando esta
operacionalização comporte alguns elementos cognitivos, alguns fundamentos
científicos especificamente relacionados ao campo profissional em foco e modestos
pontos de escape para pequenas decisões de cunho operativo, no sentido do aumento de
produtividade.
Em terceiro lugar, nos bolsões do exército profissional mundial de reserva e nas
regiões de produção mais rústicas, onde serão realizadas as atividades mais insalubres,
mais ofensivas à vida, mais ameaçadoras à saúde e à qualidade de vida, mais danosas ao
meio ambiente, menos qualificadas, enfim, na “lixeira” do capitalismo contemporâneo,
um modelo de educação ainda mais precário que o semiqualificante: a ausência
quantitativa e/ou qualitativa de educação básica. Nesta divisão, tais regiões funcionam
como os “pés sujos” do organismo produtivo mundial.
Os modelos coexistem, tanto na dinâmica transnacional como internamente em
cada país. Cada sociedade é, ao mesmo tempo, essencialmente representativa do perfil
de um bloco da economia no panorama mundial e portadora, em seus limites internos,
da mesma desigualdade. Em um país do bloco de capitalismo central que representa no
primeiro plano este papel “cerebral”, observam-se também em seu interior disparidades
que comportam núcleos de pauperização típicos do capitalismo “braços e pés”. Já os
países periféricos, essencialmente “semiqualificadores” e ‘braçais”, comportam
discretos núcleos “cerebrais” na produção e na escolarização.
A cada lugar definido no mundo da economia, corresponde um modelo de
educação, e não o contrário. O discurso liberal insiste em revestir de ideologias a
correlação entre escolaridade e renda, afirmando que “quanto mais educação, mais
desenvolvimento”. O discurso crítico inverte esta relação e a dialetiza. Não é a maior
escolarização que alavanca um país para o núcleo central do capitalismo, mas é seu
lugar na divisão internacional do trabalho que institui um modelo de educação
“compatível” com sua posição. Na dialética desses polos, a educação, ao reproduzir,
realimenta e calcifica a divisão internacional do trabalho, que se define no âmbito da
economia e da política, mas não a produz. Seu papel é estratégico na legitimação e
realimentação.
Organismos internacionais como o Banco Mundial atuam como um “ministério
mundial da educação”98, definindo, por recomendações e imposições, o modelo
educacional para cada bloco econômico. Tais recomendações e imposições não se
manifestam exclusivamente como coerção linear da esfera externa sobre a interna, do

98 Cf. LEHER, Roberto. Um novo senhor da educação? A política educacional do Banco Mundial para a periferia do capitalismo.
Revista Outubro. São Paulo, n. 1, p. 19-30, 1999.
44
âmbito “estrangeiro” para o “nacional”, mas pela adesão orgânica de setores vinculados
ou representativos do capital em cada sociedade. Não é casual constatar que os
consultores do Banco Mundial para a Educação, assim como as redes de colaboradores
do PREAL, contam com nomes representativos dos intelectuais dos países periféricos
afetados por suas políticas dualistas. Quando o Banco Mundial recomenda que nos
países de capitalismo central a universidade tenha como função a produção de
conhecimentos fundamentais e na periferia, cursos aligeirados, instrumentais com a
finalidade de aplicar os conhecimentos produzidos no centro, alcançando, no máximo o
nível de “inovação tecnológica”, contam com a adesão de governantes e intelectuais
desses países periféricos. Aderimos, conforme mencionado anteriormente, aos
“mestrados profissionalizantes”, também conhecidos informalmente como “mestrados
profissionais”. A finalidade de oferecer a pós-graduação “para o mercado de trabalho”,
formulada nas políticas hegemônicas do mercado global, é replicada nos dispositivos
normativos do Ministério da Educação. No caso do Brasil, os defensores das imposições
destes organismos junto a nossas políticas educacionais são intelectuais orgânicos
internos às nossas fronteiras.
As fronteiras nacionais, por sua vez, se tornam cada vez mais fluidas com a
mundialização financeira e da produção. Os sujeitos do capital transnacional, acionistas
que controlam os grandes grupos empresariais, não possuem pátria nem face, sequer
identidade pessoal fixa. Nem por isto são menos concretos. O horizonte dos
investimentos de um grupo em um determinado negócio nem sempre é de longo prazo,
o que confere uma dinâmica que dificulta sua personalização individual ou corporativa.
O contexto da mundialização da economia e o papel dos organismos
internacionais no projeto neoliberal atualizam de forma mais abrangente a cisão entre a
escola unilateral e a onilateral. Podemos daí coligir que a dualidade não se expressa
apenas entre as classes dentro de uma mesma sociedade, mas também entre os blocos de
poder político e econômico no mercado global. O traço dual se expande
internacionalmente e “procria” em micro faces nacionais para reproduzir a divisão
internacional do trabalho.
Ainda hoje, como vimos, às classes sociais e/ou regiões do planeta que ocupam
papel periférico na economia e nas relações de poder, é destinado um aparato
pedagógico eminentemente tecnicista, aligeirado, operacional e, em alguns casos,
profissionalizante (inclusive no mestrado e doutorado, como visto acima), que lhes
mantém nessa condição de repetidores e operadores do conhecimento produzido nos
centros. Já às camadas sociais e às regiões privilegiadas no cenário político e
econômico, a educação configura-se majoritariamente como campo de formação geral,
humanista, orientada para a conservação de sua condição hegemônica.
A intensa campanha nos meios de comunicação sobre a necessidade da “boa
escola” e do “bom professor” representam menos uma demanda movida por
necessidade técnica de mão de obra qualificada do que a utilização desta suposta
necessidade como recurso de ocultação das reais causas do desemprego. O discurso que
atribui de forma simplista a responsabilidade pelo desemprego à falta de escolaridade,
de competências e de empregabilidade do trabalhador pode ser compreendida como
uma ideologia orgânica difundida pelos aparelhos de hegemonia do capital, operando
como “cortina de fumaça” para a política predatória deste modo de produção em sua
fase atual. O pacto salvacionista neoliberal conta com os organismos internacionais
(com seu poder prescritivo, persuasivo e coercitivo) na definição da pedagogia do
mercado.

45
I.3.3 – MUNDIALIZAÇÃO, “NOVO MUNDO DO TRABALHO” E A ANÁLISE
GRAMSCIANA DO AMERICANISMO E FORDISMO

Chossudovsky99 examina o intervencionismo dos programas de controle político


pelas IFIs (Instituições Financeiras Internacionais) sobre o capitalismo periférico,
relacionando-o ao papel do desemprego na economia mundial.

O movimento da economia global é regulado por um processo [...] que sufoca


as instituições do Estado Nacional e contribui para eliminar empregos e reduzir
a atividade econômica. (...) [destaca-se] o processo de reestruturação
econômica imposto pelos credores internacionais aos países em
desenvolvimento desde o começo dos anos 80. (...) essas reformas regulam o
processo da acumulação capitalista no mundo todo. Todavia, esse não é um
sistema de livre mercado: embora sustentado por um discurso neoliberal, o
chamado ‘programa de ajuste estrutural’ patrocinado pelas instituições de
Bretton Woods constitui um novo esquema intervencionista. 100

O discurso hegemônico alega que sua presença intervencionista na definição de


políticas educacionais é justificada pela atual base técnica do trabalho, já que, para
efeito de aumento de produtividade e competitividade, seria necessário dispor de um
trabalhador “de novo tipo”, com novo perfil.
Qual o perfil desejável do novo trabalhador no interior do atual modelo
produtivo? Segundo seus ideólogos, o de maior capacidade de adaptação ao ideário
corporativo, visto que, com a incorporação de máquinas “inteligentes” às tarefas
operacionais, sua função é mais intelectual. Grifamos este termo por discordarmos da
hipótese de que o trabalho capitalista contemporâneo defina-se como intelectual por
eventualmente abranger algumas competências cognitivas. Com base no conceito de
intelectual formulado por Gramsci, analisada em outra seção deste livro, afirmamos que
para definir-se assim a ação necessariamente envolve a condição de direção, de poder
decisório. Unificação entre concepção e execução, contemplando a dimensão
teleológica/ontológica no processo de trabalho. Sob a divisão capitalista, tal unificação
não ocorre. Quando muito, limita-se ao domínio operacional imediato. O poder
decisório sobre o processo produtivo em sua totalidade mantém-se alienado. Decisões
operacionais de pequeno alcance ou envolvimento de competências cognitivas para
executar o trabalho não o configuram como intelectual.
Retornando ao ponto de vista hegemônico: sendo o controle do trabalho mais
complexo do que os gestos, tempos e movimentos do trabalho tipicamente fordista, 101
torna-se imperativo do capital conquistar a subjetividade do trabalhador de modo mais
eficaz. Exige-se que este se identifique com a empresa, sinta-se parte dela.
Não são apropriadas ao modelo atual as estratégias de identificação típicas da
gestão taylorista-fordista já analisadas por Gramsci em Americanismo e Fordismo102,
como maiores salários, direitos complementares, estabilidade, etc. O modelo fordista,

99 Chossudovsky, 1999.
100 Id.
101 O discurso hegemônico classifica de modo estanque o trabalho no modelo fordista (mecanizado, parcializado, repetitivo,
impessoal) e no modelo japonês ou toyotista (que seria mais intelectual, mais participativo, menos especializado, polivalente). Não é
correto sustentar, contudo, essa separação. Podem-se observar muitas formas híbridas com incontáveis matizes entre os dois
protótipos. Múltiplas são as formas de trabalho coexistentes, que combinam desde as mais remotas às mais contemporâneas
tecnologias de produção e gestão. O hibridismo varia segundo a condição mais central ou periférica. Há hoje um processo de
intensificação que alia, por um lado, a cobrança de metas inalcançáveis, captura da subjetividade, pressão psicológica típicas dos
“novos tempos”, à extenuação, parcialização e repetição, típicas do modelo de linha de produção (fordismo).
102 Gramsci, 1989 7a ed.

46
segundo Gramsci, associa tais condições de trabalho a determinadas modalidades de
incursão à subjetividade do trabalhador, sob a forma, por exemplo, de administração de
sua vida privada por meio de associações recreativas que sob controle ocupam seu
tempo livre de modo “conveniente” – o tempo de recomposição da força de trabalho.
Constituem, para Gramsci, a expressão de um modelo que combina ao mesmo tempo
persuasão e coerção. Persuasão, por fortalecer os vínculos do empregado com relação à
empresa; coerção, por traduzir-se, em última instância, em mecanismo de
racionalização extrema, entendida como extensão, até a exaustão, da capacidade
produtiva individual. Gramsci afirma que, em consequência da rejeição a esse controle,
a resistência operária no fordismo culminou com uma surpreendente preferência por
empregos onde a remuneração era menor103. Os trabalhadores percebiam que,
relativamente, o que se lhes exigia em troca dos “benefícios” na nova racionalidade
provocava depreciação de sua “vida útil”. A exaustão esgotava a única força produtiva
de que dispunham, sua capacidade de trabalho.
No novo modelo, conhecido de modo generalizante como toyotismo, essas
estratégias de captura, que dialeticamente rompem e conservam a identidade com as
formas anteriores, deslocam o foco moralista do fordismo-taylorismo (repressão sexual,
controle sobre o consumo de bebidas alcoólicas como medidas de controle da
capacidade produtiva), para um novo moralismo (a “ética” da corporação e a soberania
de suas necessidades).
As estratégias de formação corporativa são intensivas, visando não apenas à
requalificação técnica, mas à adesão orgânica do trabalhador. Na elaboração artificial do
consenso oculta-se o conflito entre capital e trabalho, promovendo-se a consciência
individualizante, competição entre trabalhadores e identificação com a empresa.Uma
modalidade exemplar consiste nas ações corporativas de voluntariado social do
trabalhador e responsabilidade social da empresa. Ao participar de ações de
responsabilidade social da organização, o trabalhador produz triplo efeito benéfico ao
capital:

1. Geração de capital de marca para a empresa;


2. Maior produtividade: ao sentir-se valorizado, “parte” da empresa, um
“igual”, “sem diferenciação de hierarquia”, identifica-se com os objetivos da
corporação, estabelecendo uma relação de “afinidade” , o que aumenta sua disposição
psíquica para o desempenho;
3. Apatia sindical e de classe pela canalização da energia da participação
em movimentos coletivos para o aparato hegemônico do capital.

Confundindo ações de responsabilidade social da empresa com atuação em


movimentos sociais, a classe trabalhadora renuncia à participação em movimentos de
caráter classista, oposicionista, crítico. Atém seu engajamento a causas sociais mais
“adequadas”.
Na ética do novo espírito do capitalismo, as contradições das relações de
trabalho são omitidas sob os princípios de competitividade da empresa e/ou do país no
mercado global, estimulando a consciência pactualista e a disposição moral para o
esforço produtivo majorado.
Esta ideologia pactualista opera na política de cooptação desenvolvida pela
gestão do trabalho. As metas a serem alcançadas, sempre renovadas e ampliadas no
momento em que vão sendo alcançadas, são física, emocional e psiquicamente

103 Idem, p. 406.

47
extenuantes. Sua apresentação pela empresa (além do aspecto coercitivo – “ou produz
ou sai”) é revestida de ações de motivação que consistem na infantilização psicológica
dos trabalhadores por meio de “joguinhos”, esquetes teatrais e filmes motivacionais.
Apela-se ao estímulo ao “espírito esportivo”, como a conquista das metas equivalesse a
ganhar uma gincana, um campeonato. Impõe-se ainda o espírito cívico identificado com
a empresa: símbolos, rituais, hinos etc. Estas táticas funcionam como elementos de
coesão, sob o pretexto de que, aumentando a produtividade, “todos ganham”.
Se o fordismo-taylorismo, segundo Gramsci, lançou mão da difusão da
psicanálise e da figura feminina como “mamífero de luxo”104 para a conformação
psicofísica daquele modelo, percebemos que o toyotismo lança mão de correntes
contemporâneas da psicologia, como a Inteligência Emocional e outras, com o fim de
promover o “autocontrole” emocional, a capacidade de convívio dócil, o espírito de
equipe e a conotação romântica das relações de trabalho, requeridas pelo projeto
hegemônico na construção imaginária do consenso e do pacto capital-trabalho.
No conjunto de estratégias de construção do conformismo psicofísico toyotista,
o grande capital – argumentando necessitar de mão de obra adequada às “novas”
modalidades de trabalho – redescobre o problema da educação básica e dedica-se às
suas renovadas preocupações de ordem pedagógica. Organismos internacionais tais
como OCDE, Banco Mundial, PREAL, etc., instituem políticas para a formação docente
e para o trabalho pedagógico em conformidade com o modelo de educação que se
espera. “Todos”105 engajados na busca da “qualidade” da educação, como se não
houvesse interesses contraditórios em jogo.
A qualidade, não sendo uma categoria abstrata, quando desenhada nesta
perspectiva pactualista reveste-se do caráter instrumental e utilitarista que opera pelo
silenciamento da dimensão política da educação e pelo apelo a sua função econômica
liberal: gerar “empregabilidade”. A ideologia difundida no senso comum afirma que é
necessário formar o “novo trabalhador” em nome do engajamento do país no mercado
global.
Esta concepção, oriunda da Teoria do Capital Humano e atualizada na Teoria do
Capital Intelectual106, é própria da posição política do bloco histórico dominante, onde o
trabalho, de meio que seria para a realização humana, passa à condição de fim em si
mesmo. A educação, como ocorre regularmente nas sociedades de classes, é assumida
unicamente como instrumento de preparação para o trabalho (mesmo que isto signifique
preparar as massas para o “não trabalho”). Ignora-se o papel da educação como projeto
formativo para as demais dimensões da vida. O ser humano, reduzido à dimensão de
força de trabalho (a ser comprada ou relegada à condição funcional de exército de
reserva), é alvo de projetos educacionais delineados pela lógica instrumental.
A formação do “novo trabalhador mais cognitivo” exigiria maiores
investimentos em sua formação escolar. Todavia, esta suposta intelectualização do
trabalho, como já tratado, não problematiza a divisão social do trabalho. As novas

104 Gramsci, 1989A. Na seção “Americanismo e fordismo”, p. 400, Gramsci menciona o ideal feminino construído pelo fordismo:
promoção da exploração do corpo feminino, “leiloado” em concursos de beleza e atividades similares, concomitante à construção do
ideal da mulher reprodutora pelo estímulo cultural à ociosidade profissional feminina. Nesse ideal feminino, consistia grande parte
do papel atribuído à mulher na hegemonia da “sociedade fordista”: ociosidade profissional e supervalorização da “estética feminina”
como condição para a função de “esteio do lar” na manutenção da moral produtivista. Ainda de acordo com Gramsci, a popularida de
então alcançada pela psicanálise foi capturada na construção do conformismo psicofísico fordista, o que não significa dizer que a
psicanálise teria este papel.
105 Podemos citar o Movimento Todos pela Educação como exemplo da estratégia pactualista. Em uma sociedade estruturalmente
composta por interesses antagônicos, desigualdades abissais e onde as fronteiras do capital são diluídas no mercado mundial, é
impossível pensar em um projeto de educação acima dos conflitos de interesses que atenda a “todos”.
106 Santos, 2008. Aqui rejeito as tese de que o discurso empresarial na defesa das reformas educacionais do mercado representa
uma retomada da Teoria do Capital Humano e desenvolvo a tese sobre a função ideológica da Teoria do Capital Intelectual, na
relação entre Estado, capital e trabalho no neoliberalismo.
48
competências “intelectuais” do trabalhador reduzem-se ao domínio técnico e operativo,
como a apresentação de “soluções de melhorias” para aumento de produtividade.
Perversamente, estas “melhorias” sugeridas incidem, não raramente, na intensificação
do próprio trabalho. A condição deliberativa fundamental – decisões que orientam os
rumos gerais da produção – permanece restrita aos controladores dos meios de
produção. A “autonomia” anunciada encontra-se represada pelas balizas da
produtividade e paradoxalmente configurada pela internalização de normas e interesses
da empresa. Se por um lado, o desenho do trabalho contemporâneo sugere na superfície
valorizar o trabalhador em sua criatividade, por outro lado, acentua a expropriação de
suas forças físicas e psíquicas, reduzindo sua existência à função de produzir para o
capital.
A incompatibilidade que se observa entre o projeto de educação contra-
hegemônico e o do capital (a pedagogia do mercado) fundamenta-se na racionalidade
que orienta cada uma delas: a racionalidade utilitarista, legitimando um “mundo do
trabalho” cada vez mais destrutivo, enquanto a racionalidade emancipatória confere
sentido a uma pedagogia orientada para a realização plena do ser humano, incluindo
trabalho, artes, cultura, ciências, filosofia, capacidade de direção política.

Só o indivíduo humano concreto, percebido no seu condicionamento biológico e


no seu condicionamento social, é o sujeito concreto da relação cognitiva. É
então evidente que esta relação não é nem pode ser passiva, que o sujeito é
sempre ativo, que introduz – e deve necessariamente introduzir – algo de si no
conhecimento que é então sempre, numa acepção determinada destes termos,
um processo subjetivo objetivo.107

A inserção dos novos paradigmas da produção no campo da pedagogia, além de


seu objetivo final de formar o “produto” adequado ao mercado de trabalho com todas as
distorções ideológicas lembradas acima, atinge o interior da escola: instala-se na
dinâmica interna das relações pedagógicas.
A ideologia da “Qualidade Total” e dos métodos gerencialistas agride o cenário
pedagógico como a “solução técnica” para os problemas educacionais. O sequestro da
escola pelo capital consiste em impor que seja administrada com os parâmetros
industriais: produto padronizado (fabricado segundo o gosto do consumidor), validado
por critérios heterônomos de eficácia, produzidos a baixo custo (“racionalização” de
mão de obra e baixo custo dos meios de produção), controle heterônomo do trabalho.
Assimilando os interesses hegemônicos, o Estado adota na política educacional e na
gestão dos sistemas escolares a lógica mercantil de competitividade e “produtividade”.
O Materialismo Histórico toma o conceito de trabalho, o mundo da produção e as
relações sociais coletivas aí construídas como eixo para a compreensão da política
educacional e vem indicando a contradição fundamental entre a educação em um
projeto transformador e a pedagogia do mercado. Vimos nesta seção que o mundo do
trabalho persiste como alienante, ainda que eventualmente com contornos mais
cognitivos. Esta argumentação tem encontrado oposição no pensamento
neoconservador, que propõe substituir a categoria “sociedade do trabalho” por
“sociedade do conhecimento” ou “sociedade pós-industrial”. 108

107 Op. Cit.


108 Duarte, 2003. O autor fundamenta sua contestação sobre a pertinência do uso destes conceitos, considerados ideológicos no
sentido de difusão da ideologia dominante.
49
I.3.4 – AS TESES DA “SOCIEDADE DO CONHECIMENTO” E DO
“TRABALHO IMATERIAL” COMO SUSTENTÁCULO IDEOLÓGICO DA
NOVA PEDAGOGIA DO MERCADO

O termo “sociedade do conhecimento” opera como constructo ideológico que


institui a representação do conhecimento como fator determinante da produção,
omitindo outros determinantes, como o controle sobre os meios de produção, a
manipulação das leis de oferta e demanda no mercado global e o papel hegemônico dos
organismos reguladores privados.
Esta ideologia supõe que, no chamado “capitalismo cognitivo”, os sujeitos
sociais deixam de ser as classes sociais, sendo esta condição atribuída às tecnologias.
Implica a reificação do humano e a personificação da tecnologia. Nesse movimento de
progressiva despolitização das relações sociais de produção e da reflexão sobre seus
fundamentos, concepções neopositivistas e neotecnicistas buscam legitimidade pela
defesa de soluções técnicas para problemas de natureza política.
Uma das teses que procura oferecer sustentação a esta ideologia é a do
“Trabalho Imaterial”. Apresentaremos em seguida reflexões sobre o livro de Lazzarato e
Negri109 acerca do assunto, que sintetiza as discussões sobre o tema.
Contextualizados no debate sobre reestruturação produtiva, crise do fordismo e
transformações técnicas e gerenciais no mundo do trabalho, Lazzarato e Negri
examinam a noção de trabalho imaterial na base tecnológica dos novos paradigmas
produtivos, ancorados no movimento conhecido como Operaismo, corrente neomarxista
surgida na Itália na década de 60, propondo uma contribuição crítica ao que denominam
“novo regime de acumulação capitalista”. Reveem as categorias clássicas do marxismo
e as consideram insuficientes para a análise das relações sociais de produção sob o
capitalismo contemporâneo. Argumentando que os marxistas ortodoxos ignoram a nova
realidade do trabalho imaterial e, mesmo quando o consideram, o fazem apenas para
reduzi-lo ao material, os autores pretendem introduzir novas ferramentas teóricas para a
interpretação da realidade do trabalho na chamada sociedade pós-industrial.
Segundo Giuseppe Cocco, no prefácio de Lazzarato e Negri, “as origens
operaistas das abordagens em termos de ‘trabalho imaterial’ se situam exatamente
nesta perspectiva; a de um ‘assalto à história’ e ao determinismo do capital, ou seja, de
uma grande operação de apropriação – do ponto de vista do trabalho vivo – da
dinâmica do desenvolvimento.” (Ib., p.15)
De acordo com Lazzarato e Negri, no novo modelo produtivo pós-fordista,
exige-se do trabalhador, cada vez mais intelectualizado, capacidade de escolha e de
tomada de decisões, já que

(...) é a alma do operário que deve descer na oficina. É a sua personalidade, a


sua subjetividade, que deve ser organizada e comandada. Qualidade e
quantidade do trabalho são reorganizadas em torno de sua imaterialidade. (Ib.,
p. 25)

Não apreendem, nesta perspectiva, novas formas de expropriação, mas traços de


humanização, autonomia e independência. Otimistas em relação à humanização das
“novas” relações sociais de produção no capitalismo contemporâneo, os autores
identificam na realização do trabalho imaterial estrutura diferenciada daquelas relações
baseadas na exploração e na extração de mais-valia, estudadas por Marx e Engels.

109 Lazzaratto e Negri, 2001.

50
(...) o ciclo do trabalho imaterial é pré-constituído por uma força de trabalho
social e autônoma, capaz de organizar o próprio trabalho e as próprias relações
com a empresa. (Ib., p. 26-27)

Prevendo uma irreversível marcha no sentido da generalização desta modalidade


de trabalho, os autores preveem que o trabalho se transformará integralmente em
trabalho imaterial e a força de trabalho em “intelectualidade de massa”, que virá a se
transformar em um sujeito social e politicamente hegemônico.

Nessa transformação não é nem o trabalho imediato, executado pelo próprio


homem, nem é o tempo que ele trabalha, mas a apropriação de sua
produtividade geral, a sua compreensão da natureza e o domínio sobre esta
através da sua existência enquanto corpo social – em uma palavra, é o
desenvolvimento do indivíduo social que se apresenta como o grande pilar de
sustentação da produção e da riqueza. O furto do tempo do trabalho alheio,
sobre quem se apoia a riqueza atual, se apresenta como uma base miserável em
relação a esta nova base que se desenvolveu e que foi criada pela própria
indústria. Logo que o trabalho em forma imediata cessou de ser a grande fonte
da riqueza, o tempo de trabalho cessou e deve cessar de ser a sua medida, e
portanto, o valor de troca deve cessar de ser a medida do valor de uso. A mais-
valia da massa cessou de ser a condição do desenvolvimento da riqueza geral,
assim como o não trabalho dos poucos cessou de ser condição do
desenvolvimento das forças gerais da mente humana. Com isso a produção
baseada sobre valor de troca desmorona e o processo de produção material
imediato vem a perder também a forma da miséria e do antagonismo. (Ib., p. 28-
29)

Afinados com os ideólogos neoconservadores dos novos tempos, os


representantes do operarismo italiano afirmam que, sendo o conhecimento o novo fator
produtivo essencial, a categoria trabalho perde sua centralidade, a expropriação de mais-
valia não mais se afirma como intrínseca às relações de produção capitalistas e a
subordinação da força de trabalho ao capital desloca-se para o plano das subjetividades,
onde se apresentam espaços de independência e autonomia.

(...) a questão da subjetividade pode ser colocada (...) como questão relativa à
transformação radical do sujeito na sua relação com a produção. Esta relação
não é mais uma relação de simples subordinação ao capital. Ao contrario, esta
relação se põe em termos de independência com relação ao tempo de trabalho
imposto pelo capital. Em segundo lugar, esta relação se põe em termos de
autonomia com relação à exploração , isto é, como capacidade produtiva,
individual e coletiva, que se manifesta como capacidade de fruição. A categoria
clássica de trabalho se demonstra absolutamente insuficiente para dar conta da
atividade do trabalho imaterial. (Ib., p. 30)

A tese central de Lazzaratto e Negri é a de que as relações de produção não mais


subordinam o trabalho ao capital. Não mais se caracterizam como de relações de
exploração, como no marxismo clássico, mas de formas de produção e reprodução de
subjetividades, forjadas no plano da intelectualidade de massas. Na era denominada

51
gestão do conhecimento, para os autores, o capital intelectual paira acima das relações
de exploração capitalistas.

Intelectualidade de massa que se constitui independentemente, isto é, como


processo de subjetivação autônoma que não tem necessidade de passar pela
organização do trabalho para impor sua força; é somente sobre a base da sua
autonomia que ela estabelece a sua relação com o capital. (...) A subjetividade,
como elemento de indeterminação absoluta, torna-se um elemento de
potencialidade absoluta. Não é mais necessária a intervenção determinante do
empreendedor capitalista. Este último torna-se sempre mais externo ao processo
de produção da subjetividade. O processo de produção da subjetividade, isto é,
o processo de produção tout court, se constitui ‘fora’ da relação de capital, no
cerne dos processos constitutivos da intelectualidade de massa, isto é, na
subjetivação do trabalho. (Ib., p. 35)

Essas teses alegam ser o atual formato técnico do trabalho e a “imaterialidade”


em importantes setores da produção o elemento determinante da pretensa superação da
teoria marxiana do valor – trabalho. Consideram que o valor não mais pode ser
mensurado em tempo de trabalho vivo, por ser este efeito da totalidade subjetiva do
trabalhador e não o cálculo das horas trabalhadas. Não sendo, por isto, o critério para
identificação da extração de mais-valia. Daí inferem que as relações sociais
contemporâneas ocorrem fora da relação de capital.
Em nosso entendimento, a redução do conceito de mercadoria a “mercadoria
física” como fundamento para a desqualificação da Teoria do Valor representa uma
leitura empobrecedora de “O Capital”. Assim como o é, reduzir o conceito de tempo de
trabalho à dimensão aritmética. A teoria marxiana da mais-valia é mais complexa e
profunda do que os autores pretender denotar.
Os autores que consideram a teoria marxista anacrônica adotam as premissas da
imaterialidade e da intelectualização do trabalho para deduzir que as relações sociais de
produção ocorrem fora do círculo de valorização do capital. Consideram que, por não
gerarem mercadorias físicas, por não consistirem exclusivamente em trabalho braçal e
por se estenderem além do tempo objetivo da jornada, abarcando a subjetividade,
esquivam-se da caracterização de trabalho alienado. Já observamos em seção anterior
que a dimensão cognitiva do trabalho contemporâneo não o exime de sua condição de
alienação.
Além de representar uma leitura reducionista do marxismo, essa corrente de
pensamento constitui indução à ideologia do pacto capital-trabalho e da amortização do
conflito de classes nas relações de produção. Supõe haver adesão “voluntária” do
trabalhador ao trabalho “não explorado”, traduzida no espírito de colaboração com os
interesses da empresa, no desenvolvimento do “espírito de liderança” e de
“participação”.
Em nossa compreensão, ao contrário de diluir o processo de alienação, o
trabalho contemporâneo a mantém e acentua. Aprofunda-se a cultura do controle, não só
dos gestos do operário (como nas linhas de montagem convencionais), mas, sobretudo,
da motivação, da subjetividade. O domínio da cognição como força produtiva, quando
ocorre, não representa humanização no trabalho, tampouco retira-lhe o caráter
explorado, intensificado e muitas vezes precário.
O fetiche do trabalho imaterial como não alienado simula e oculta outras
dimensões do processo produtivo, como a lógica de acumulação e produção de
excedente.

52
O trabalho contemporâneo é propagado pela ideologia da “sociedade do
conhecimento” como se diferisse qualitativamente do fordismo e toda a carga de
“desumanidade” do trabalho industrial. A literatura de estudos do trabalho 110 exibe a
intensificação e precarização do trabalho vivo e não permite concluir por sua libertação.
A retórica da “sociedade do conhecimento” e do “capitalismo cognitivo” faz-se
acompanhar da retórica da formação do “novo trabalhador”, mais comprometido
afetivamente com a organização e com a produtividade. Não se indaga a quem
beneficiará toda essa produtividade, nem como serão distribuídos seus resultados 111.
A polarização heteronomia (operário clássico)/autonomia (operário social)
sustenta-se na falsa conotação de autonomia atribuída ao “novo” modelo, já que a
“flexibilidade” do trabalho e a “polivalência” do trabalhador simbolizam menos a
autonomia do que a intensificação dos ritmos e processos de trabalho, a sobrecarga e
aumento de responsabilidades, gerando tensão, visto que esse aumento vem
acompanhado de crescente desestabilidade e progressiva ameaça de desemprego. Em
suma, a “flexibilidade” do trabalho no “capitalismo cognitivo”está condicionada aos
interesses do capital.
A polaridade que supõe contrapor hoje o caráter operativo do trabalhador no
fordismo-taylorismo ao caráter cognitivo e afetivo no pós-fordismo não é inédita. Já nos
escritos de Gramsci112, este discordava da tese taylorista do “gorila amestrado”.
Afirmava que, ao contrário do desejo de Taylor, toda atividade humana possui
inexoravelmente caráter intelectual, por mais impessoal que seja o trabalho. Até mesmo
em tarefas enfadonhas e aparentemente impessoais, como as de copistas e outras
atividades que aparentam ser puramente repetitivas, o homem estabelece uma relação
lógica com sua atividade. Isto não quer dizer, conforme já discutido, que a natureza do
trabalho seja intelectual no sentido de unificar concepção e execução.
O movimento hegemônico no mundo do trabalho avança sobre a dimensão
cognitiva do trabalhador, expropriando-a, no quadro de divisão social entre capital e
trabalho. A gestão toyotista113 empreende esforço de objetivação, expropriação,
despersonalização e padronização dos gestos e atitudes do trabalhador. O conhecimento
– tácito e manifesto – é objeto de apropriação (por dinâmicas de grupo, trabalho em
equipe, sugestões para melhorias etc.) e sistematização por meio de protocolos. A
dimensão cognitiva do trabalho é apropriada do trabalhador e volta a ele sob a forma de
controle heterônomo.
A partir da adoção dos protocolos, os saberes exigidos (a despeito de sua relação
com novas tecnologias) são mais operativos e menos cognitivos do que nos modelos
anteriores, onde o próprio trabalhador avaliava o problema e prescrevia a solução “caso
a caso” quando ocorriam incidentes.
Os protocolos de trabalho da gestão toyotista, generalizados em todos os ramos,
resultam em um processo rigidamente prescrito, controlado objetivamente e
externamente, seja no atendimento hospitalar, bancário, telefônico, seja na indústria ou
no ensino. Do trabalhador coletivo cognitivo abstrato, já expropriado,surge o
trabalhador coletivo operativo. Mais “fordista”, impossível.
A esta dimensão de alienação, conjugam-se implicações de médio e longo prazo
em torno da instabilidade e despersonalização vividas pelo trabalhador, como

110 Cf. Antunes, Toledo, Amorim, Dal Rosso, Beaud e Bialoux e outros.
111 A gestão contemporânea do trabalho institui a “participação em lucros e resultados” por critérios de meritocracia e
competitividade entre os trabalhadores, ocultando que a acumulação de capital se mantém intocável, a julgar pelos balanços
financeiros publicados anualmente por grandes conglomerados financeiros, industriais etc. A valorização do capital fictício,
igualmente, alcança níveis elevadíssimos, mesmo em tempo de “crise”.
112 Gramsci, 1989.
113 Ohno, Taiichi.1997.

53
adoecimento, o que diminui a vida útil do trabalhador médio. Pelo caráter transitório e
precário dos contratos de trabalho e o abandono das garantias previdenciárias do Estado,
o capital não precisa mais ocupar-se em diminuir a taxa de depreciação desta forma de
“capital”, também “flexibilizado”, descartado na esfera individual.
Na esfera individual não há aumento da complexidade, o trabalho prescrito e
protocolizado é simples e passível de ser exercido por um trabalhador polivalente,
“genérico”. Não há riscos de grandes perdas de capital quando um trabalhador
individual tem sua capacidade produtiva depreciada, pode ser substituído com facilidade
ou ter suas funções supridas pelos demais membros da equipe. É plano coletivo abstrato
que se localiza o aumento da complexidade, mas a expropriação e protocolização
solucionam este risco em favor do capital. No exercício da polivalência e da
multifuncionalidade, todos os trabalhadores de uma equipe, rotativamente, são capazes
de executar todas as tarefas do grupo, não havendo ninguém “indispensável” à
manutenção do ritmo de trabalho.
O conhecimento, “fator estratégico na produção”, ao contrário do que sugerem
Lazzarato e Negri, não pertence ao “operário social autônomo”, que o venderá
livremente, acima das leis do mercado: é objetivado, expropriado e controlado em favor
da acumulação. Altíssimos investimentos em mapeamento de competências e em
objetivação do conhecimento tácito demonstram que o capital não abriu mão de seu
controle sobre o processo produtivo.
Em tempos de pulverização da força organizativa sindical, de negociações
salariais pautadas em desequilíbrio de forças, a ideologia dominante promove o
coroamento dessa realidade pela substituição da ética de classe pela “ética” do
individualismo e da subjetividade abstrata, o que não deixa de ser uma ética de classe,
mas a ética de sua classe.

I.4. CIÊNCIA, IDEOLOGIA E HEGEMONIA EM GRAMSCI

Gramsci114 define a ciência como síntese dialética do sujeito em sua perspectiva


histórica e o real em sua objetividade. Evidencia seu caráter superestrutural e ideológico
e a considera como produção inerente a uma concepção de mundo. Destaca a
historicidade da subjetividade, definindo a realidade objetiva como humanamente
objetiva, correspondendo a historicamente subjetiva115.
Ao utilizar o conceito de ideologia, Gramsci não o faz limitando-a à conotação
de “falsa consciência”, mas também como concepção de mundo inerente a cada classe
social, que tem o papel de conferir organicidade à compreensão da realidade e à ação
coletiva de cada classe, além de assegurar a coesão ou “cimentação” do bloco
histórico116 em torno de um projeto hegemônico, seja de natureza conservadora, seja de
cunho transformador. Não há neutralidade ou arbítrio no terreno da ideologia, supondo
o autor que esta engendra as bases das teorias políticas que representam os interesses de
cada classe fundamental.

114 Gramsci, 1989.


115 Ib.
116 O conceito de bloco histórico, fundamental na teoria gramsciana, é analisado por Portelli (1977), cujos estudos concluem que
este é o “...conceito-chave em torno do qual se articulam os principais aspectos do pensamento político do autor. Portelli destaca três
aspectos a partir dos quais deve ser considerado: o primeiro é o estudo das relações entre estrutura e superestrutura; o segundo diz
respeito à ação superestrutural dos intelectuais na vinculação orgânica dos diversos elementos do bloco histórico; o terceiro
considera a função hegemônica do novo bloco histórico na desagregação da hegemonia até então consolidada e na construção da
nova hegemonia. Se a hegemonia da classe dominante sustenta-se em seu monopólio intelectual, a nova hegemonia sustentar-se-á na
autonomia intelectual da classe trabalhadora, elaborada no interior do novo bloco histórico. Esse conceito é utilizado por Gramsci
em duas situações: quando se refere à unidade existente entre superestrutura e infraestrutura na ação política e quando faz a lusão às
alianças entre frações de classe, necessárias à construção da hegemonia”. (Santos, 2000, p. 21)
54
Neste sentido, a filosofia da práxis 117 seria, segundo sua interpretação, a
ideologia ou concepção de mundo que tornaria possível à classe trabalhadora o
reconhecimento de seu papel na construção de nova ordem social.
Ideologia é definida por Gramsci como “(...) concepção de mundo que se
manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em todas as
manifestações de vida individuais e coletivas”.118 Quanto mais consolidada, unitária e
coerente a ideologia ou concepção de mundo, maior sua capacidade de difundir-se e
tornar-se referência para a ação, para a organização da vontade coletiva na constituição
do bloco histórico.
Em Gramsci, encontramos uma relação estreita entre filosofia e ideologia. Esta
é elaborada no nível do pensamento filosófico, com rigor lógico, espírito sistemático,
coerência e conhecimento histórico. No senso comum, encontram-se fragmentos da
ideologia da classe dominante e é essa presença, segundo o autor, que permite a
aceitação, por parte das classes populares, do projeto político dominante, legitimando-o.
Para exercer seu papel, a ideologia necessita consolidar ampla base social, necessita
apresentar-se como representativa de interesses universais, ou seja, em seu sentido
hegemônico. Quando as camadas subalternas elaboram e reconhecem sua concepção de
mundo, aquela que organicamente representa seus interesses, rompe-se a base da
hegemonia da classe fundamental dominante, possibilitando a construção de uma nova
hegemonia.
O conceito de ideologia em Eagleton admite que possa haver uma dimensão
mistificadora, não na ideologia em si mesma, mas em seus usos sociais pelo bloco
histórico dominante na difusão da concepção de mundo necessária à consolidação de
sua condição como classe dirigente, no processo social e político de construção de
hegemonia de sentido.

Se, portanto, a ideologia às vezes envolve distorção e mistificação, isso ocorre


menos em virtude de algo inerente à linguagem ideologia do que em virtude de
algo inerente à estrutura social à qual pertence essa linguagem. Há certos tipos
de interesses que só podem assegurar seu domínio praticando a duplicidade;
isso não significa porém, que todos os enunciados utilizados para promover
esses interesses serão dúplices. A ideologia, em outras palavras, não é
inerentemente constituída de distorção, sobretudo se considerarmos o conceito
em sua acepção mais ampla, denotando qualquer conjuntura mais ou menos
central entre discurso e poder.119.

Esta definição nos desafia a esboçar o papel da escola como espaço de disputa
de sentidos em torno do conhecimento. Conhecimento é ideologia em suas dimensões
intrínseca e extrínseca. Se intrinsecamente é fruto de condições concretas de produção,
seus usos sociais – dimensão extrínseca – igualmente configuram-se como expressões
da luta hegemônica.
O problema da constituição curricular, portanto, envolve a consideração da
relação entre ciência e ideologia em sua dinâmica. O pacto de classes na definição da
pedagogia do mercado inviabiliza a elaboração e o reconhecimento da concepção
orgânica da classe trabalhadora. Em nada esta formulação se aproxima da concepção
demagógica que separa conhecimento e saberes ou que fetichiza o senso comum. O que
está em luta é “conhecimento e conhecimento”; “ideologia e ideologia”; concepção de

117 Filosofia da práxis no léxico gramsciano corresponde ao marxismo.


118 Gramsci, 1987, p. 16.
119 Eagleton, 1997.

55
mundo burguesa e filosofia da práxis; leitura liberal do mundo do trabalho e leitura
crítica.
O sequestro da escola por institutos representativos do capital e por modelos
gerencialistas igualmente burgueses representa a repolitização conservadora da escola
pela pedagogia do mercado, difundindo a concepção orgânica à classe dominante. Esta
difusão requer, como já visto, a desqualificação da concepção de mundo da classe,
trabalhadora, reduzindo-a ao senso comum.
Retornando a Gramsci, lembramos: a concepção orgânica da classe trabalhadora,
a única que pode enfrentar com rigor a pedagogia burguesa, é a filosofia da práxis. A
compreensão desta exige rigor, domínio dos instrumentos de decodificação da ideologia
liberal. Nem a “pedagogia do Chico Bento120“, nem a pedagogia neotecnicista do
mercado podem cumprir este papel. A dicotomia entre saber popular (senso comum) e
conhecimento científico, seja pela valorização unilateral de um ou de outro, contribui
para o apagamento das possibilidades de construção da ciência-ideologia contra-
hegemônica.

I.3.5. – IDEOLOGIA E PÓS-MODERNISMO

O pensamento Pós-Moderno é conhecido como aquele desenvolvido a partir das


contribuições de J.F. Lyotard e outros, embora suas bases epistemológicas remontem à
Fenomenologia. Caracteriza-se predominantemente por uma concepção de mundo
relativista, fragmentarista, particularista e subjetivista. Critica a ciência em sua tradição
Moderna, por “ambição de objetividade”. Argumenta que são múltiplas as
interpretações do real, não havendo critérios de verdade. Não há história, há histórias;
não há texto, há leituras e atribuição de sentidos diversos, tão diversos sejam os leitores,
como se fossem arbitrários os sentidos atribuídos.
No enfoque fenomenológico, a busca da “verdade” é ilusória, considerando que
o real é representação. Privilegia-se o exercício subjetivo de hermenêutica e
investigação das representações simbólicas. O Pós-Modernismo opõe-se ao que
considera ser a “negação do sujeito no paradigma Moderno” e polariza tal negação,
recorrendo ao extremo oposto do solipsismo e “relativismo absoluto”.
Alex Callinicos121, criticando esse modelo, situa as bases históricas do
surgimento do niilismo Pós-Moderno na trajetória dos intelectuais da “geração de 68”
que, desiludidos com as esperanças revolucionárias, abandonam a crença na
transformação social macroestrutural, passando a buscar em movimentos parcializados e
setoriais alguma resposta satisfatória.
A focalização no sujeito abstrato e a minimização das dimensões objetivas da
realidade provocam desequilíbrio semelhante à negação do sujeito, com o agravante do
fomento à indiferença política.
Apoiando-nos em Chossudovsky122, podemos discernir sobre o incentivo
neoliberal a este modelo como ideologia promotora do refluxo do pensamento crítico.
Segundo o autor, esse paradigma, negando e até desqualificando a crítica ao
capitalismo, não adota o pensamento abertamente autoritário e conservador, mas
alcança os mesmos objetivos, com a vantagem de aparentar pluralidade e democracia. O
capital incentiva a hegemonia do Pós-Modernismo na academia e na política,
controlando o contradiscurso.

120 Cf. capítulo Introdução.


121 Callinicos, 1989.
122 Chossudovsky, 1989.

56
É inegável que o movimento Pós-Moderno não se resume aos efeitos dos
interesses hegemônicos, nem a apenas uma única tendência. Entretanto, seria
ingenuidade não analisar as consequências políticas de propostas que incidem no campo
da educação, essencialmente na discussão curricular, como na formulação que se segue.
No texto, Sandra Corazza apresenta os princípios fundamentais para uma teoria de
currículo no paradigma pós-moderno ou pós-crítico.

Agudizamos a crítica da Modernidade. Interpelamos seus sonhos e promessas


de liberdade, igualdade, fraternidade. (...) Retiramos a credibilidade de suas
grandes narrativas fundacionais. Auxiliamos na erosão de suas categorias, até
então inquestionadas, como as de ideologia, ciência, verdade, revolução,
democracia, alteridade, cidadania. (...) Tornamos ‘problemático’ qualquer
conhecimento, em suas pretensões de representar, melhor e mais corretamente,
o ‘real’. Transpusemos os limites das ciências humanas. Desestabilizamos suas
crenças arraigadas. Deslocamos a linha que separava ficção de pensamento
racional. Usamos a ‘bricolagem’ de todos os saberes e metodologias que sejam
úteis para nossos trabalhos. Neles, servimo-nos do que nos serve. (...) Nossa
agenda deixou de estar subsumida na concepção tradicional de ‘classe social’.
(...) Não temos mais a responsabilidade imensa de ‘prescrever’. Privilegiamos o
‘descritivo’. Perguntamos sobre o como, em detrimento do porquê. Não
estabelecemos relações de causa-efeito, sejam transitivas, do todo sobre cada
elemento, ou estruturais. Desconstruímos todos os centros, seja o indivíduo,
uma classe, a práxis. Não somos mais compelidas/os pela homogeneidade, pela
análise global da sociedade, pela explicação do sentido total dos fatos. Não
oferecemos garantias de ‘cientificidade’. Não aceitamos a missão, ou o ‘dever
do ofício’ do/a velho/a ‘intelectual universal’, de dar conselhos, de dizer aos
outros como devem agir. Trabalhamos como ‘intelectuais específicos’.
(...) Não interpretamos mais os textos, nem procuramos sua origem. (...)
Sabemos (...) que ignoramos os motivos pelos quais agimos. E que os efeitos de
nossos atos e fala escapam a todas as ‘boas intenções’ iniciais.
(...) se sobrou alguma ‘estrutura’, [no] sujeito, é sua falta de ser, buraco,
hiância, simples virtualidade, efeito de significante, ausência nunca presente a
si. Um ser que foge, sempre, do Ente.
Antagonizamos com toda teoria a priori de sujeito.(...) Somos anti-humanistas
teóricos. (...)
Recusamos nossa ‘individualidade’. Não queremos mais saber ‘quem somos’.123

Mais de cinquenta anos após a pedagogia brasileira ter se tornado referência


mundial com as críticas de Paulo Freire às práticas pedagógicas autoproclamadas
“neutras”, desvinculadas do compromisso com a práxis, nos deparamos com o apelo
pós-modernista à neutralidade pedagógica. Quase um século após Antonio Gramsci ter
sido condenado a passar seus últimos anos no cárcere do fascismo italiano, por defender
o compromisso político dos intelectuais como parte do processo revolucionário, vemos
o retorno do ‘descritivo’, do ‘intelectual específico’. O pós-modernismo acastela a
erosão de categorias caras aos intelectuais orgânicos comprometidos com as classes
populares e, paradoxalmente, a erosão do próprio sujeito.
Não é necessário muito esforço de análise para percebermos a quem ou a que
projeto político servem tais propostas irracionalistas, quando pretendem constituir-se

123 Corazza, 2001, pp. 94-97.

57
como bases para o discurso pedagógico. Qualquer semelhança com as preocupações
positivistas em apenas constatar e descrever a sociedade industrial emergente no século
XIX, combatendo quem pretendesse contestá-la em sua “ordem natural”, não é apenas
coincidência.
Em nome da inexistência da verdade, os relativistas assumem este pressuposto
como verdade. Ocorre o mesmo na crítica à modernidade. Diversos formuladores do
paradigma pós-moderno, apesar de acusarem as teorias modernas por sua “concepção
totalizante do mundo”, incorrem também no “erro da totalização” 124, por agrupar
indiscriminadamente, tratando como uma única e monolítica concepção de mundo, toda
a produção teórica de quinhentos anos de história.
Se, na esfera política, está claro o caráter conservador do projeto pós-moderno –
também conhecido como pós-crítico-, não é menos problemática a abordagem quando
nos dedicamos ao exame da esfera cognitiva. Sem referências objetivas, o sujeito pós-
moderno, quando sobrevive, se perde em um emaranhado de significações
autorreferentes, sendo impossível constituir-se como sujeito através da ação sobre o
real, como definem tanto Piaget em seus estudos de Epistemologia Genética, quanto
Marx em seus escritos filosóficos.
O enfoque dialético, representado pelo pensamento piagetiano e pela tradição
marxista, considera a produção científica como resultado da interação do sujeito com a
realidade objetiva, bem como o posicionamento do sujeito frente a e sobre essa
realidade, num processo de assimilação e construção ativas.
De acordo com Piaget e Garcia 125, a concepção de paradigma desenvolvida por
Kuhn (e que tem servido de apoio à literatura crítica já mencionada), que se aplicaria
melhor à Sociologia do Conhecimento do que à Epistemologia, não é suficiente para
explicar as revoluções científicas, visto que as mudanças de direção na investigação
científica se dariam dentro de um mesmo quadro epistêmico.
As revoluções científicas, para os autores, significam mudanças no quadro
conceitual, por aquisição de novos instrumentos cognitivos e/ou formulação de novas
questões. A transformação intraparadigmática pode, entretanto, suscitar novos
instrumentos cognitivos e/ou questões, engendrando um novo paradigma. Como a
formulação de novos objetos está condicionada pelo sistema social de significações, na
história da ciência Piaget e Garcia verificam como a sociedade foi inserindo
historicamente novos instrumentos no quadro de significações e engendrando novos
paradigmas. Não foi apenas aperfeiçoando recursos técnico-instrumentais às mesmas
questões, mas reformulando os problemas, construindo novas perguntas. É neste
sentido que caracterizam a mudança de paradigmas como mudança de quadro
epistêmico, diferentemente de Kuhn.
Para Piaget e Garcia, um novo paradigma supera dialeticamente os esquemas
conceituais anteriormente considerados válidos, tendo significado mais amplo que a
mera rejeição social da comunidade científica a temas ou condutas metodológicas
consideradas anacrônicas. A negação social do caráter científico de determinados temas
não significa, por si só, transformação epistêmica. O problema central remete aos
mecanismos de ação dos conceitos sociais sobre o cientista: seu arsenal de instrumentos
cognitivos e a assimilação de novos objetos em determinadas condições históricas.
Exemplificam com a formulação tardia do conceito de inércia na tradição grega, em
relação à tradição chinesa, que já adotava no séc. V a.C. a premissa do movimento
incessante. Situam aí uma das raízes das relações entre ciência e ideologia. A concepção

124 Refiro-me a um suposto “erro da totalização” como recurso de contraposição desta (totalização abstrata, aglomeração,
amontoado) ao conceito de totalidade ou de “concreto pensado”, examinados em outros capítulos.
125 Piaget e Garcia, 1987.

58
de mundo aristotélica era completamente estática, tornando inconcebível a noção de
inércia, enquanto a concepção de mundo chinesa era dinâmica, possibilitando-a.
Concluímos este esboço da crítica ao paradigma pós-modernista e seus efeitos de
dissolução da energia política coletiva, com Marx, que convida a “(...) fazer da ciência
um instrumento não de dominação de classe, mas sim uma força popular.”126.

I.4 – SÍNTESE DA PARTE I

Procuramos elaborar uma reflexão sobre a “nova pedagogia do mercado”, a


partir do quadro conceitual formulado por Antonio Gramsci.
Entendemos o “sequestro” da escola por órgãos da Sociedade Civil
representativos do capital, como expressão da luta pelo controle ideológico da formação
humana em favor de uma cultura capitalista “de novo tipo”, como diria o próprio
Gramsci. Esta cultura, além da preparação do “trabalhador de novo tipo”, no que esta
preparação concerne à dimensão técnica, avança sobre os domínios da subjetividade,
exigindo que se forme um ethos condizente com a situação de desamparo social,
instabilidade e precariedade no trabalho, responsabilização individual pelo sucesso e
pelo fracasso. O que Gramsci denominaria “conformismo psicofísico” de novo tipo.
A nova pedagogia do mercado, que intenta a mercantilização do “produto” e do
“processo” pedagógico, bem como do trabalho docente, é gestada num contexto de
falência da escola após décadas de desqualificação teórica do fazer pedagógico e de
destruição de suas bases materiais, o que permite a adesão de grande parte da sociedade
à campanha salvacionista empreendida pelo capital, com intenso exercício ideológico
nos veículos de comunicação e informação, nos ambientes formadores de opinião e no
controle da produção científica “pós-crítica”.
Traduz-se por políticas públicas, concretizadas a partir de sua capacidade de
penetração nas esferas decisórias e regulamentadoras do Estado. Recorremos, para a
compreensão desta diluição de fronteiras entre o projeto da sociedade civil hegemônica
e o poder público, ao conceito de Estado Ampliado, ou “Estado em sentido amplo”, de
Gramsci. A nova pedagogia do mercado conta com robustos porta-vozes, como os
organismos internacionais tais como OMC, Banco Mundial, OCDE e PREAL, entre
outros. Compreendemos o papel de tais instituições com o auxílio do conceito de
“intelectual orgânico”, neste caso, intelectual orgânico coletivo. Estes intelectuais
orgânicos coletivos do capital desempenham função estratégica na construção da
hegemonia, tal como previsto na teoria gramsciana.
A compreensão deste quadro nos foi permitida ainda pelo recurso às
formulações de Gramsci sobre ideologia, hegemonia, senso comum, sociedade civil,
sociedade política, escola unitária. A compreensão do fenômeno da dualidade escolar ao
longo da história e do trabalho como princípio educativo mostrou-se importante quadro
referencial para o estudo da nova pedagogia do mercado. Assim como foi decisiva sua
teoria sobre as classes sociais e a dimensão intelectual de todos os tipos de trabalho para
examinarmos a ideologia de teses como sociedade do conhecimento, sociedade pós-
industrial, capitalismo cognitivo e o fetiche do trabalho imaterial.
Suas elaborações sobre ciência, filosofia da práxis e ideologia nos permitiram
examinar criticamente os efeitos do pensamento pós-crítico sobre a dimensão cultural
da hegemonia.

126 Marx e Engels, 1983, p. 93.

59
Suas elaborações sobre “bloco histórico” e sobre as fases “econômico-
corporativa” e “ético-política” na construção da consciência de classe, nos favoreceram
a reflexão sobre o fenômeno dos “novos movimentos sociais”.
A compreensão gramsciana do trabalho como princípio educativo nos conduziu
a uma análise da confusão conceitual que frequentemente afeta este campo, gerando um
posicionamento imediatista, referenciado na atividade ou no destino profissional
imediato, aproximando, por equívoco, esta da concepção neoliberal de polivalência.
Entender o trabalho como categoria ontológica nas concepções de Marx, Engels,
Lukács e Gramsci nos orientou na análise das consequências de alienação do trabalho
docente.
Ao separar as dimensões de concepção e execução no trabalho docente, ao
delegar a concepção aos institutos e órgãos da “sociedade civil” hegemônica, limitando
o trabalho docente à execução e preparação dos alunos para o alcance de metas e
sucesso em avaliações externas, além de operar por meio de material didático
padronizado e descontextualizado, não somente coloca-se em risco o processo
pedagógico, mas a própria condição ontológica do professor.
Se é o trabalho que humaniza (não o alienado, mas o trabalho que unifica análise
do contexto, formulação do problema, intencionalidade, concepção de instrumentos,
técnicas conteúdos e meios do trabalho), a docência na nova pedagogia do mercado é,
do ponto de vista filosófico, desumanizadora, quando extirpa do fazer pedagógico a
autonomia que assegura a unitariedade entre concepção e execução.
Examinar criticamente e com consistência a nova pedagogia do mercado, é,
como diria Gramsci em texto já citado aqui, uma questão de direito e de força contra a
prepotência que perpetua os privilégios e a injustiça.

PARTE II:

PEDAGOGIA DO MERCADO: A “EMPRESA EDUCADORA” E A


UNIVERSIDADE MICRO-ONDAS

II.1 – INTRODUÇÃO:

Esta parte do livro traz à discussão o panorama educacional esboçado nas


primeiras décadas do século XXI, aqui sintetizado em duas de suas manifestações-
símbolo: a mercantilização da Educação Superior e a Educação Corporativa. Para
compreendê-las em sua organicidade, recorremos ao estudo de dois temas que lhes
oferecem fundamentos:
1. Teoria do Capital Intelectual, entendida como ideologia componente do bloco
histórico dominante no capitalismo de face contemporânea.
2. As prescrições do PREAL – Programa de Promoção das Reformas
Educacionais na América Latina e Caribe.
A Educação Superior no Brasil vem sofisticando sua marca privada, tanto na
esfera da oferta por grupos empresariais do “mundo dos negócios”, quanto na esfera da
privatização indireta das instituições públicas.
Durante esta década mantém-se inalterada (com mínimas variações) a proporção
entre instituições privadas e públicas, assim como a distribuição de matrículas.
Examinando a série histórica do Censo da Educação Superior realizado pelo INEP-
MEC, constata-se que o percentual de instituições privadas permanece em torno de 89%
e o de matrículas nestas instituições correspondem a cerca de 75% do total dos alunos.

60
A expansão em números absolutos das instituições públicas federais na primeira década
deste século não representou expansão em números relativos, não ameaçou a
proporcionalidade entre o público e o privado na Educação Superior, como demonstram
as estatísticas oficiais. Ressalvamos que o crescimento da proporção de instituições
privadas seria ainda maior, não fosse o quadro de fusões e aquisições, que diminui
relativamente o número de instituições privadas isoladas, realizando a tendência à
concentração de capital também neste setor.
Conserva-se, então, o caráter evidentemente privado da Educação Superior, a
despeito, por um lado, do aumento de instituições federais e, por outro lado, do
desaparecimento de figuras jurídicas de muitas instituições que foram adquiridas por
outra. A cada ano, os dados censitários reafirmam: 3 em cada 4 alunos que estudam
neste nível de ensino encontram-se em instituições privadas e que de 9 em cada 10
instituições pertencem ao mercado. É impossível a compreensão da precarização,
aligeiramento e instrumentalização da educação pública fora da totalidade de que é
parte.
Fatores de desvalorização da universidade como instância de formação do
pensamento científico e crítico vêm corroendo de forma transversal instituições públicas
e privadas. Podemos exemplificar: instrumentalização do currículo universitário, sua
subordinação progressiva às necessidades do mercado (ou às necessidades proclamadas
pelo mercado), parcerias para captação de recursos no mundo dos negócios,
padronização das aulas presenciais e à distância, atribuição ao professor de condição de
empreendedor e captador de recursos e/ou de alunos etc.
Nas bases de dados oficiais não são consideradas as universidades corporativas,
que, por condição de definição como espaço intra-empresarial, prescindem de
credenciamento junto ao Ministério de Educação e adotam parcerias com instituições
credenciadas, sejam públicas ou privadas, para fins de certificação quando atuam na
educação formal. Ocorrendo majoritariamente na pós-graduação, tais parcerias para
certificação são ainda localizadas em cursos de graduação, constituindo-se turmas e
currículos específicos para a universidade corporativa em uma universidade acadêmica.
A desfiguração curricular neste modelo tem como ponto de partida o plano estratégico
da empresa contratante, já traduzido em termos educacionais por sua universidade
corporativa.
Nesta parte do livro procuramos contribuir para a compreensão da educação no
capitalismo contemporâneo em sua totalidade e concreticidade, a partir de dois
elementos teórico-ideológico-prescritivos e duas manifestações político-práticas.
No capítulo II.2 esboçaremos uma análise crítica da Teoria do Capital Humano
como sustentáculo ideológico da relação público-privado na educação neoliberal. No
capítulo II.3 analisaremos a atuação do PREAL como elemento de mediação da
prescrição da teoria anteriormente discutida e suas manifestações, por seu caráter de
aparelho de hegemonia surgido por iniciativa empresarial, mas com grande influência
nas políticas públicas. No capítulo II.4 trataremos da Educação Corporativa em seu
quadro conceitual e contextual e no capítulo II.5 da mercantilização e
financeirização/financialização da Educação Superior.

II.2 – A TEORIA DO CAPITAL INTELECTUAL LEGITIMANDO O PAPEL DA


EMPRESA COMO EDUCADORA

Este capítulo trata da relação entre a Teoria do Capital Humano e a Teoria do


Capital Intelectual, associando-as respectivamente a dois momentos do modo de
produção capitalista: Estado de Bem-Estar Social e Neoliberalismo. Busca compreender

61
o formato de intervenção do capital sobre o sistema escolar brasileiro nas duas últimas
décadas como ação orgânica amparada na noção de capital intelectual. Compreendemos
como sua consequência mais visível a privatização direta e indireta da educação
brasileira, seja aquela operada na Educação Superior, onde mais de 89% das instituições
são privadas127, seja na Educação Básica, onde, em que pese a natureza jurídica estatal
da grande maioria, encontra-se controlada pelo capital e seus institutos ou fundações,
por meio dos contratos de gestão, consultoria, avaliação, terceirização, capacitação
docente, formulação de currículos ou produção de material didático. Observa-se o efeito
desta formulação ainda na educação corporativa, modalidade onde a empresa assume
diretamente o lugar da escola.
No contexto da Teoria do Capital Humano, apelava-se ao Estado como executor
da ação educativa para reprodução da força de trabalho (com grande risco de
depreciação, segundo Schultz 128) conveniente ao capital. Já no contexto da Teoria do
Capital Intelectual, o próprio capital (agora menos preocupado com a taxa de
depreciação em função da generalização da precarização e rotatividade da força de
trabalho) assume diretamente como negócio a formação humana. Não prescinde,
contudo, do Estado financiador.
Propomos a análise da historicidade das duas teorias (capital humano e capital
intelectual), considerando-as dialeticamente em relação de continuidade/ruptura, como
fundamentos de projetos educacionais que operam respectivamente no fordismo e no
neofordismo, como faces (ao mesmo tempo iguais e diferentes) da esfera hegemônica.
Alguns traços da configuração do mundo do trabalho taylorista-fordista no
contexto do Estado de Bem-Estar Social, como contratos de trabalho de longa duração,
política previdenciária e sanitária, refletiam a necessidade de preservação do trabalhador
de longo prazo. O salto da Teoria do Capital Humano para a Teoria do Capital
Intelectual reside no fato de ser possível hoje objetivar, expropriar e controlar o
“conhecimento tácito”, que, segundo Nonaka e Takeuchi129 define-se como

(...)altamente pessoal e difícil de formalizar,tornando árdua a tarefa de


comunicar ou partilhar com outros. (...) Compõe-se por perspectivas subjetivas,
intuições, e palpites, (...) está profundamente enraizado nas ações e experiências
de um indivíduo, bem como nos ideais, valores ou emoções que ela(a)abraça. 130

Sendo possível seu controle, é assegurada também a produção e circulação do


conhecimento interessado no âmbito da própria empresa.
Segundo os mesmos autores, o conhecimento tácito pode ser dividido em duas
dimensões.
A primeira é a dimensão técnica, que engloba o tipo de capacidades informais
e difíceis de definir capturadas no termo ‘know-how’.

A outra dimensão é a cognitiva.


Esta consiste em esquemas, modelos mentais, crenças, e percepções de tal forma
embrenhadas que as tomamos como certas”. Esta dimensão “reflete a nossa
imagem da realidade (o que é) e a nossa visão do futuro (o que deveria ser).

127 Censo Educação Superior 2010, disponível em www.inep.gov.br


128 Schultz...
129 Nonaka e Takeuchi, 2001.
130 Nonaka e Takeuchi.

62
Philippe Zarifian131 afirma que a competência, mobilizadora dos saberes tácitos,
realiza-se pelo confronto com os eventos, provocadores do reposicionamento da
atividade humana.

Entende-se aqui, por evento, o que ocorre de maneira parcialmente imprevista,


inesperada, vindo perturbar o desenrolar normal do sistema de produção,
superando a capacidade da máquina de assegurar sua autorregulagem. Esses
eventos são bem conhecidos, constituem o cotidiano na vida de uma oficina
automatizada. São as panes, os desvios da qualidade, os materiais que faltam,
as mudanças imprevistas na programação de fabricação, uma encomenda
repentina de um cliente etc. Em resumo, tudo o que chamamos de acaso. (...)
Trabalhar é, fundamentalmente, estar em expectação atenta a esses eventos, é
pressenti-los e enfrentá-los, quando ocorrerem.132

A Teoria do Capital Humano desenvolve-se na década de 1960 na Escola


Econômica de Chicago, recebida na esfera da ciência econômica e do planejamento
educacional com alto grau de adesão, chegando seus formuladores, Theodore Schultz e
Gary Becker, a receberem o Prêmio Nobel de Economia. O primeiro em 1979 e o
segundo na década de 1990.
Dizemos que em Becker encontramos as raízes da teoria em sua elaboração
contemporânea, porque, a rigor, suas bases são tão antigas quanto o ideário que lhe dá
sustentação – o liberalismo –, manifestando-se em diversas correntes da teoria.
Encontram fundamentos em Adam Smith e Milton Friedman. Este afirma ser o
investimento em educação

(...) uma forma de investimento em capital humano precisamente análoga ao


investimento em maquinaria, instalações ou outra forma qualquer de capital
não humano. Sua função é aumentar a produtividade econômica do ser
humano.133

O princípio mais caro desse ideário reside na relação de proporção direta entre
escolaridade e renda, na causalidade mecânica entre o patrimônio escolar individual e
proventos salariais. Se é a escolaridade que determina a renda individual e a
produtividade da sociedade, então o papel dos planejadores de políticas educacionais
subordina-se à lógica produtivista do mercado: limita-se a estabelecer projetos de
formação racional e tecnicamente eficientes de modo a atender às exigências do sistema
produtivo.
O conhecimento, “fator de produção”, é um bem (capital) agregado ao
trabalhador. Sendo este também possuidor de capital, o antagonismo e a luta de classes
perdem a razão de ser, pobreza e fracassos pessoais são decorrentes da falta de mérito
do indivíduo, da ausência de senso de oportunidade familiar e pessoal nas escolhas
vocacionais. Já no plano macroeconômico, são decorrentes da ausência de
investimentos corretos no sistema educacional. Essa relação causal entre escolaridade e
renda, para cuja determinação, segundo o tecnicismo de mercado, não são considerados
fatores políticos condicionantes da distribuição de riquezas, ignora o caráter reprodutor
da educação, considerando apenas sua face produtora.

131 Zarifian, 2001.


132 Zarifian, 2001.
133 Friedman, 1977, p. 95.

63
Os trabalhadores transformaram-se em capitalistas, não pela difusão da
propriedade das ações da empresa (...), mas pela aquisição de
conhecimentos e de capacidades que possuem valor econômico.134

Para Schultz, o que explica a dinâmica das relações econômicas é o capital


menos constante, o capital humano. Perplexo pela omissão desta “forma de capital” nos
modelos explicativos do crescimento econômico que dominavam a literatura
econômica, considera que o conceito tradicional de capital necessita de ampliação. A
força de trabalho, agregada de conhecimento (meio de produção), é considerada capital.
A educação, entendida nessa teoria como meio para formar e desenvolver a
capacidade produtiva do trabalhador, é considerada investimento em capital. O capital
humano traduz-se como elemento paradoxalmente agregado ao trabalhador, embora
pertença à esfera do capital. É como uma parcela do capital sob a guarda do trabalhador.
Este é o fator responsável pelo crescimento, segundo Schultz.

Se o coeficiente de todo capital em relação à renda permanece essencialmente


constante, então o crescimento econômico inexplicado, que tem sido de uma
presença tão perturbadora, tem a sua origem primordialmente a partir da
elevação do acervo do capital humano. (...) as capacitações econômicas do
homem são predominantemente um meio fabricado de produção e que, à
exceção de alguma renda pura (em rendimentos) para marcar as diferenças em
capacitações herdadas, a maioria das diferenças de rendimentos é uma
diferença nos quantitativos que foram investidos nas pessoas. (...)a estrutura dos
ordenados e dos salários é determinada primordialmente pelo investimento na
escolarização, na saúde, no treinamento local de trabalho, na busca de
informações acerca das oportunidades de empregos, e pelo investimento na
migração. (...)uma distribuição mais equitativa de investimentos no homem
igualiza os rendimentos entre os agentes humanos (...).135

A incongruência da vinculação do “capital humano” à força de trabalho se


apresenta como um problema para o capitalismo: a duração desse “capital” é a duração
da própria vida útil do empregado, com alto risco de depreciação.

Embora o capital humano, como tal, não possa ser comprado nem vendido, é
comparativamente fácil estimar-se o valor dos serviços de produção deste
capital, porquanto são expressos em preços em termos de salários e de
ordenados no mercado de trabalho.136

A produção deste capital consiste na educação e demais políticas sociais


destinadas a formar suas capacidades produtivas e a preservar e estender sua vida útil.
Schultz adverte, então, que é necessário investir na longevidade do trabalhador,
especialmente por meio de políticas de saúde que evitem sua perda ou desvalorização.
Adverte ainda quanto ao prejuízo sofrido pelo sistema produtivo na ocasião da
aposentadoria do trabalhador, quando o capital humano individual encontra seu grau
maior de depreciação.
Frente à dificuldade de alienação desse bem agregado à força de trabalho e à
impossibilidade de objetivação e expropriação desse componente produtivo, Schultz

134 Schultz, 1973, p. 35.


135 Schultz, p. 66.
136 Schultz, p.157.

64
apela à responsabilidade individual do trabalhador na construção desse capital, visto que
é seu portador imediato.

A educação, sem dúvida alguma, aumenta a mobilidade de uma determinada


força de trabalho, mas os benefícios em mudar-se de lugar a fim de conseguir
melhores vantagens quanto a oportunidades de trabalho (emprego) são
predominantemente, senão totalmente, benefícios de ordem privada.137

Um traço importante da teoria naquele momento é que, mesmo apelando para a


iniciativa individual, concentra no poder público e na abordagem macroeconômica a
centralidade do planejamento educacional. Sendo uma produção cujo objeto importa
grande risco de depreciação, que seja o Estado a arcar com tal investimento – a
formação de longo prazo – como observamos em seguida:

(...) as opções educacionais privadas são ineficientes com respeito à


escolarização elementar e secundária 138 (...) o horizonte do investimento
privado é, na verdade, relativamente curto. 139, enquanto a formação da maior
parte desses tipos de capital exige um longo horizonte, porque as capacitações
que o estudante adquire são parte dele próprio durante o resto da duração da
sua vida.140

Além desse universo de longo prazo na formação do capital humano individual,


a ser arcado pelo Estado, Becker (1993) destaca a necessidade de transmissão de valores
no treinamento de trabalhadores, como virtude da pontualidade, honestidade, apreço a
cuidados médicos, que também constituem capital, segundo o autor.
O problema da depreciação para Becker consiste em que não se pode separar
uma pessoa de seus valores, habilidades, saúde. O conhecimento vem acompanhado da
elementos sensíveis, menos tangíveis. Vulneráveis a essa variação, as corporações
encontram-se sob risco de perder o investimento quando, por exemplo, os trabalhadores
saem de seus locais de origem. Esta era uma das fortes razões para que, na Teoria do
Capital Humano, o Estado fosse nomeado o formador ideal da força de trabalho (em
favor do capital).
Ainda sob a hegemonia do modelo taylorista-fordista, é recorrente em Becker e
em Schultz a reflexão sobre a escolha ocupacional na esfera privada, familiar e
individual, sendo, para ambos, a avaliação dos retornos pecuniários o elemento
motivador da “escolha”.
Cabe ao planejamento educacional ocupar-se da explicitação das possibilidades
de retorno. A formação da capacidade produtiva deriva do acerto das decisões
individuais e da adequação do sistema escolar a tais escolhas e ao conhecimento e
atendimento, pelo sistema escolar, das reais necessidades do mercado.
A formulação de Schultz corresponde a um momento marcado pelas políticas de
pleno emprego, bem-estar social (ambas no capitalismo central) e bipolaridade
capitalismo-socialismo, que constrangia o capital a apresentar uma face, mesmo
precária, de proteção social, fazendo frente ao Estado socialista. Essa face social, no
entanto, é insuficiente para ocultar a lógica do modo de produção capitalista. Torna-se
inevitável que se estabeleça para o sistema escolar a função supostamente integradora

137 Ib.
138 Id. 151.
139 Ib.
140 Ib.

65
entre os dois polos das relações de produção: capital e trabalho. No contexto da Teoria
do Capital Humano, esta função integradora pertence preponderantemente à escola
pública.
São dois os principais elementos de contexto que motivam a substituição da
Teoria do Capital Humano pela Teoria do Capital Intelectual no discurso empresarial,
governamental e dos organismos internacionais: a mudança do papel do Estado no
neoliberalismo e a reestruturação produtiva, facilitadora de maior expropriação do
“capital humano”, deslocado da esfera do trabalhador individual para a equipe e/ou para
os protocolos de “boas práticas”.
Surgida no contexto do neoliberalismo e reestruturação produtiva, a Teoria do
Capital Intelectual recorre ao argumento de que o conhecimento é o principal fator de
produção da era contemporânea. “A informação e o conhecimento são as armas
nucleares da nossa era.” (Stewart, 1998, p. XIII). Seu argumento central corresponde
ao das teses da “sociedade do conhecimento” ou “capitalismo cognitivo”, mencionadas
em capítulo anterior. A partir deste argumento, considera que o esforço das
organizações deve voltar-se para a produção e gestão deste componente da cadeia de
valor. A empresa passa a nomear-se educadora direta dos trabalhadores, seja por
programas internos corporativos, seja por ingerência sobre a política e gestão dos
sistemas oficiais de ensino.
Com o padrão de gestão do trabalho contemporâneo (denominado de forma
genérica modelo japonês, toyotismo ou acumulação flexível), qualidades como
polivalência, facilidade para trabalho em equipe e disposição para “participar” e sugerir
“melhorias” para aumento progressivo da produtividade são instrumentos fundamentais
para que o conhecimento se constitua como parte da estrutura da organização (não mais
do trabalhador individual). Este deslocamento representa, para Stewart, a transformação
do capital humano em capital estrutural. Ambos, além do capital de marca, compõem a
estrutura do capital intelectual.
Taiichi Ohno (1997), criador do “Sistema Toyota de Produção”, idealizou este
modelo como paradigma para a gestão do trabalho em todos os setores, não apenas em
seus domínios originais, a indústria automobilística. Tal como ocorrera com o fordismo,
o toyotismo “(...) representa um conceito em administração que funcionará para
qualquer tipo de negócio.” (Ohno, 1997, p 30).
O Sistema Toyota busca obsessivamente a redução de custos e elege estratégias
que consistem na utilização máxima, ao limite do infinito, da força de trabalho. Já
liberado do problema da depreciação individual, pode lançar mão da exploração
predatória. Se houver depreciação da força de trabalho no plano individual, o capital
humano já se transformou em capital estrutural (equipes e protocolos) e a empresa não
sofre perdas. Isto requer a substituição do trabalhador monofuncional pelo
multifuncional e permite a extinção de qualquer poro nas jornadas de trabalho, que se
estendem e se intensificam simultaneamente. Não há mais a necessidade econômica de
prolongamento da vida útil do trabalhador individual.
A expropriação do conhecimento manifesto e tácito do trabalhador individual e
seu deslocamento para a esfera de capital estrutural permitem ao capital, não apenas
abrir mão da defesa de políticas de saúde para o trabalhador, como ainda lançar mão da
intensificação predatória, precarização do trabalho na forma de contratos temporários,
informais, terceirizados e desprovidos dos mais elementares direitos previdenciários. No
plano educacional, essa passagem corresponde à transferência (material e simbólica) do
lócus de formação para os domínios da empresa.
Autores como Nonaka e Takeuchi (1997), Sveiby (2001) e Stewart (1998),
destacam a importância do conhecimento tácito como elemento estratégico na

66
composição do Capital Intelectual, considerado em seus trabalhos como o principal
ativo das organizações.

O capital Intelectual é a soma do conhecimento de todos em uma empresa, o que


lhe proporciona vantagem competitiva. (Stewart, 1998)

O capital intelectual constitui a matéria intelectual – conhecimento, informação,


propriedade intelectual, experiência – que pode ser utilizada para gerar riqueza
(...) Uma vez que o descobrimos e exploramos, somos vitoriosos. (Stewart, 1998)

A gerência dos ativos intelectuais se tornou a tarefa mais importante dos


negócios porque o conhecimento tornou-se o fator mais importante da
produção. (Stewart,1998)

O conhecimento tornou-se o principal ingrediente do que produzimos, fazemos,


compramos e vendemos. Resultado: administrá-lo – encontrar e estimular o
capital intelectual, armazená-lo, vendê-lo e compartilhá-lo – tornou-se a tarefa
econômica mais importante dos indivíduos, das empresas e dos países.
(Stewart,1998)

Segundo Stewart (1998), o Capital Intelectual compõe-se de:

 Capital Humano,
 Capital Estrutural,
 Capital de Marca (também chamado capital-cliente).

O capital humano, na tipologia acima, refere-se à dimensão individual da parcela


de conhecimento pertencente ao trabalhador. Esta dimensão passa a ser considerada
insuficiente para assegurar a reprodução do capital, além de representar risco de
depreciação sob a guarda do trabalhador. Na Teoria do Capital Humano, como visto
acima, seus autores manifestavam preocupação quanto ao risco de se manter, sob a
propriedade individual do trabalhador, um fator de produção estratégico como o
conhecimento. Alertavam, por isto, para a necessidade preservação da vida útil do
trabalhador em seu limite máximo, diminuindo sua taxa de depreciação. Esta
necessidade motivava políticas de saúde, previdência e emprego estável a fim da
maximização da vida útil do trabalhador individual.
O capital estrutural designa a mudança de posse do conhecimento da esfera
individual para a esfera organizacional. Quando o conhecimento deixa de pertencer à
esfera individual (propriedade, portanto, do trabalhador) e passa e pertencer à esfera
organizacional, sob a forma de conhecimento coletivo da equipe ou do “time” ou sob a
forma de protocolos oriundos de expropriação anterior, passa a ser designado capital
estrutural. Este salto é decisivo para facilitar ao capital ofensivas em direção à
precarização do trabalho e de eliminação medidas de proteção à durabilidade da vida
útil individual do trabalhador. Não mais portando individualmente um “fator produtivo”
considerado fundamental – o conhecimento -, o trabalhador perde as políticas de
preservação de sua vida e saúde.
O controle direto do capital sobre a formação dos trabalhadores encontra na
Teoria do Capital Intelectual mais um argumento. Não sendo agora um investimento
sob risco de depreciação individual, a educação prescinde do apelo do capital ao Estado
como agente educador. O próprio capital assume esta função.

67
Além do conhecimento explícito, faz parte da composição do capital intelectual
o conhecimento tácito. Nonaka e Takeuchi, recorrendo a Polanyi, adotam a seguinte
distinção:

O conhecimento tácito é pessoal, específico ao contexto e, por isso, difícil de


formalizar e comunicar, o conhecimento explícito e ou ‘codificado’, por outro
lado, refere-se ao conhecimento que é transmissível na linguagem formal,
sistemática. (Nonaka e Takeuchi, 2008, p. 57)

Os autores sugerem que se mantenham em permanente ciclo de conversão as


duas dimensões. Em lugar da linearidade “tácito – explícito”, sugerem o ciclo “tácito-
explícito-tácito”. Esse ciclo permanente assegura a preservação da riqueza do
conhecimento tácito enquanto tal, evitando torná-lo cristalizado sob a forma de
conhecimento explícito coletivo (já objetivado em protocolos), bem como preservando a
empresa de permitir que se perpetue na dimensão individual do conhecimento tácito.
Esta perpetuação dificultaria a possibilidade de “descartar” o trabalhador individual
portador desta “força produtiva” pessoal. O ciclo permanente mantém o equilíbrio
dinâmico das duas dimensões.
A expropriação do conhecimento tácito do trabalhador encontra sua
materialização no domínio do capital estrutural, onde o conhecimento portado pelo
indivíduo, objeto da Teoria do Capital Humano, passa a pertencer à organização, sob a
forma de conhecimento da equipe.
Segundo Nonaka e Takeuchi, o segredo da produtividade e da inovação está na
busca de controle do conhecimento tácito e sua externalização, dado que é nesta esfera
que se localiza a riqueza do trabalho.

..o conhecimento que pode ser expresso em palavras e números representa


apenas a ponta do iceberg do corpo total do conhecimento. (Nonaka e Takeuchi,
2008, p. 58)

Técnicas como o kaisen (soluções de melhorias contínuas oferecidas pelos


próprios trabalhadores através de métodos de gestão participativos oriundos do modelo
japonês) favorecem a expropriação, objetivação , padronização e reapropriação, pelo
capital, do conhecimento tácito. É o momento da passagem do conhecimento como
atributo individual do trabalhador a conhecimento como atributo da equipe. Por meio do
processo denominado por Nonaka e Takeuchi (2008) como externalização, percebemos
a expropriação do domínio individual do saber-fazer para o domínio coletivo
(organizacional).

A externalização é um processo de articulação do conhecimento tácito em


conceitos explícitos. É a quintessência do processo de criação do conhecimento,
no qual o conhecimento tácito se torna explícito, tomando a forma de metáforas,
analogias, conceitos, hipóteses ou modelos. (Nonaka e Takeuchi, 2008, p. 62)

Já no momento da internalização, outra fase do ciclo tácito-explítico-tácito,


vemos a conversão do conhecimento explícito coletivo (que já fora tácito, de domínio
individual) em conhecimento assimilado por todos e transformado outra vez em
conhecimento tácito individual.

68
Quando as experiências através da socialização, externalização e combinação
são internalizadas nas bases de conhecimento tácito do indivíduo, na forma de
modelos mentais compartilhados ou know-how técnico, tornam-se patrimônio
valioso. (...) Para que a criação de conhecimento organizacional ocorra, no
entanto, o conhecimento tácito acumulado no nível individual necessita ser
socializado com outros membros organizacionais, iniciando desse modo uma
nova espiral do conhecimento.(...) os documentos ou manuais facilitam a
transferência do conhecimento explícito para outras pessoas, auxiliando-as
assim a vivenciarem, indiretamente, as experiências dos outros, isto é,
‘revivenciarem-nas. (Nonaka e Takeuchi, 2008, p. 67)

O objetivo desse ciclo ou espiral do conhecimento é a permanente transformação


do saber individual (capital humano) em saber de equipe (capital estrutural) a ser
internalizada por todos, um a um, porém na condição de membros da equipe. Como a
equipe se constitui como uma instância da organização, compondo a dimensão do
capital intelectual conhecida como capital estrutural, aprofunda-se o fenômeno da
subsunção do trabalho ao capital.

Quando esse modelo mental é compartilhado pela maioria dos membros da


organização, o conhecimento tácito torna-se parte da cultura organizacional.
(Nonaka e Takeuchi, 2008, p. 68)

O terceiro elemento de composição do capital intelectual é o capital de marca ou


capital-cliente. Trata-se da imagem da organização na sociedade e no mercado. A rede
de associações positivas entre a marca e seus significados ultrapassa os atributos da
mercadoria-produto e alcança a dimensão da mercadoria como valor social. Ações de
“responsabilidade social”, como parte das estratégias de marketing, constituem o terreno
para a acumulação do chamado “capital de marca”, representando elemento contábil não
somente no que diz respeito a possíveis isenções fiscais, como, sobretudo, nos ganhos
de imagem. Em tempos de financialização do capital produtivo por meio da abertura de
ações nas bolsas de valores, o capital de marca traduz-se como elemento decisivo de
valor. O trabalho humano empenhado na construção do capital de marca estende-se para
a exterioridade dos domínios dos setores de marketing propriamente identificados.
Voluntariado social empreendido pelos trabalhadores em nome da empresa em seus
horários livres traduz-se como uma das formas contemporâneas de extração extensiva
de mais-valia, ao contrário do que afirmam os defensores da tese do “capitalismo
cognitivo”. O capital de marca aí produzido é contabilizado como ativo intangível.
Trata-se de trabalho não remunerado, fora das jornadas formais de trabalho, sob
pretexto de ética voluntarista, responsabilidade social e valorização da sociedade civil.
O trabalhador, caso não seja convencido a aderir “voluntariamente”, é coagido quando a
organização institui este como um dos critérios de avaliação de desempenho individual.
O trabalho voluntário do funcionário em nome da empresa, marquetizando seu papel de
organização socialmente responsável e “cidadã”, constitui elemento distintivo na
meritocracia, traduzindo-se, portanto, em critério para manutenção do emprego.
É muito frequente a associação das ações de responsabilidade social a projetos
de educação, o que confere duplo benefício à empresa: gerar capital de marca e capital
estrutural em um único empreendimento.
Outra face curiosa das ações de responsabilidade social diz respeito à
incongruência entre a “responsabilidade social” exibida e a “irresponsabilidade social”
real. Organizações que por sua atividade industrial são danosas à saúde pública e ao

69
meio ambiente desenvolvem ações de responsabilidade social exatamente nessas áreas.
E muitas vezes convertendo as multas resultantes de tais danos em ações sociais.
Revertem um dano à sociedade em benefício próprio, gerando capital de marca e
confundindo a opinião pública em relação aos danos originais.
Na Teoria do Capital Intelectual, difundida no contexto do chamado “Estado
mínimo” neoliberal, o capital assume para si a função de dirigente de projetos
educacionais formais e não formais, de modo diverso do contexto gerador da Teoria do
Capital Humano, onde ainda se propunha utilizar-se do Estado para a execução de seu
projeto de formação dos trabalhadores (Schultz, 1973). O deslocamento do papel do
Estado para o empresariado na direção e execução – não apenas na formulação
ideológica – de projetos educacionais apresenta-se com a justificativa de mudança de
base técnica do trabalho – substituição do modelo fordista pelo modelo de acumulação
flexível. Esta mudança na base técnica geraria, segundo o discurso hegemônico, a
necessidade de um novo trabalhador, formado de acordo com o ethos da empresa. O
discurso sobre educação adquire centralidade no bloco hegemônico.
A compreensão da centralidade da questão educacional no discurso do capital
nas últimas décadas somente se torna possível quando situada no movimento de
restauração hegemônica do bloco dominante em suas múltiplas faces, como a
econômica, política e técnica. A partir da segunda metade da década de 1980, ainda
timidamente, sob o pretexto da crise do fordismo e da implantação de novas bases
técnicas do sistema produtivo, o “capital intelectual” (ou sua insuficiência) passa a ser
nomeado responsável pelo sucesso ou fracasso no desenvolvimento das forças
produtivas. O apelo frequente à relação determinista entre empregabilidade, eficiência e
competitividade denota, nessa formação discursiva, o esforço pela ocultação das outras
dimensões do processo produtivo, como a lógica de acumulação e produção de
excedente.
A centralidade do discurso educacional não pode ser concebido como mera
retomada da Teoria do Capital Humano. Há uma relação dialética de continuidade e
ruptura, com destaque para significativas mudanças relacionadas ao papel do Estado
Social.
Na Teoria do Capital Humano, o trabalhador individual era o portador da força
produtiva atribuída ao conhecimento e necessitava, por isso, de políticas que lhe
preservassem o valor e lhe estendessem a vida útil. Ainda assim, representava alto risco
de depreciação. O planejamento e a condução dos programas educacionais caberiam ao
Estado, sempre em favor das necessidades do capital.
A Teoria do Capital Intelectual responde ao neoliberalismo, marcado pela
mercantilização de setores da economia ainda pertencentes ao Estado, inclusive a
educação. Junto a esta conveniência histórica para o capital, a substituição do papel do
Estado pela empresa é facilitada pela possibilidade de transformação do capital humano
em capital estrutural, sob posse e controle da organização no toyotismo.
O que ambas compartilham, como pedagogias do capital, é a concepção
economicista e utilitarista da formação humana reduzida à dimensão de força de
trabalho nos contornos do modo de produção capitalista. Tanto a pedagogia do
capitalismo de “bem-estar” social quanto a pedagogia do mercado pressupõem a função
de reprodução. A recuperação da escola como lócus de formação emancipatória requer
o reconhecimento dessa condição histórica e a construção de alternativas.

II.3. PREAL – O Programa de Promoção das Reformas Educacionais na


América Latina e Caribe: o capital como formulador de política educacional

70
Neste capítulo, pretendemos expor o modelo de educação recomendado pelo
PREAL, organismo representativo da intervenção do capital nas reformas educacionais
latino-americanas, como estratégia de afirmação hegemônica.
O PREAL (Programa de Promoção das Reformas Educacionais na América
Latina e Caribe), fundado em 1996 e codirigido pelo Diálogo Interamericano, USAID e
BID. Frequentemente realiza pesquisas sob encomenda do Banco Mundial e/ou com
financiamento desse organismo, além de contar com o apoio do Fundo GE e de
representantes do grande capital transnacional. 141 Sediado originalmente no Chile, teve
por alguns anos uma sucursal no Brasil, filiada à Fundação Getúlio Vargas. Hoje tem
sede em Washington, D.C.
Consideramos este organismo como um dos intelectuais orgânicos do capital,
tendo em conta a iniciativa empresarial em sua fundação, os consórcios, as origens do
financiamento, as parcerias e, fundamentalmente, os aspectos ideológicos recorrentes
nos textos, que não deixam dúvidas quanto à sua identidade política.
Além de textos produzidos por encomenda ou com o apoio do consórcio
PREAL/BID/ Banco Mundial/Diálogo Interamericano, a ação institucional manifesta-se
pela editoração de um boletim informativo, das séries “Preal Debates” e “Preal
Documentos”. Realizou em março de 2001, em Miami, a “Cumbre sobre la Educación
Básica em América Latina”. O encontro, que reuniu 120 líderes da educação e do
mundo empresarial (estiveram representadas a FIEMG, IBM, Citibank, AT&T,
Mastercard, Motorola, Discovery Communications, Phillips, Banco Mercantil, Bank
América entre outras), culminou com a aprovação de uma “Declaração de Ação” que se
inicia pela apresentação do pressuposto produtivista:

Nada é mais importante para o progresso econômico e social da região que a


educação dos jovens (...). Uma força de trabalho competente e dotada das
habilidades necessárias é a base de um crescimento econômico autossustentado.
As economias abertas e integradas ao mercado global requerem trabalhadores
com capacidade de adaptar-se a mudanças e capacidade de manejo de
tecnologias de vanguarda. (...) Unir vontades e esforços é imperativo para
consolidar uma reforma exitosa. Nós, os empresários, podemos colaborar com
nossos governos para iniciar e sustentar uma reforma educativa eficaz. 142

Na declaração, estabelecem o plano de ação a ser seguido pelos líderes


empresariais, que afirmam oferecer respaldo para a implantação da política educacional
latino-americana ali definida, “sem interesses políticos”. Antes de listar algumas das
ações para as quais oferecem apoio, é interessante notar que a carta é o editorial desse
número do boletim do PREAL, escrita na primeira pessoa pelos empresários como
sujeitos do discurso institucional do órgão. Seu apoio é oferecido para

(...) estabelecer padrões educacionais que definam claramente o que os alunos


devem saber e ser capazes de fazer em cada grau ou nível e área de estudos” 143,
a serem introduzidos de forma sequencial, com período de transição
apropriado; implementar sistemas de avaliação “independentes144“ associados
a estes padrões e metas; possibilitar o acesso dos professores a sistemas de
aperfeiçoamento e mecanismos de desenvolvimento profissional; medir o

141 Estas informações são apresentadas em todos os documentos publicados pelo PREAL.
142 PREAL, Resumen Ejecutivo. Número 09, maio de 2001.
143 Ib.
144 O significado de independência aqui diz respeito ao Estado. Seria uma avaliação independente, pelo mercado.

71
progresso dos estudantes com o objetivo de que cumpram os padrões; dar maior
“autoridade” e “responsabilidade” aos diretores de escolas; exigir prestação
de contas sobre a utilização de recursos; utilizar todas as oportunidades para
outorgar decidido apoio público a quem promova reformas baseadas nestes
princípios; difundir as melhores práticas e a utilização de tecnologias
associadas à Internet em relação ao aperfeiçoamento dos professores; convocar
líderes de outros setores, incluindo os meios de comunicação, para promover
estes objetivos; estimular a criação de consórcios empresariais nos diversos
países com o fim de apoiar a inovação, pesquisa e desenvolvimento na reforma
educacional; reconhecer e premiar a excelência na promoção das reformas
delineadas nesta agenda; avaliar anualmente o progresso alcançado na
região.145

O relatório do encontro de março de 2001 sugere ainda que os empresários


iniciem “ações concretas”, como: conceder entrevistas e enviar artigos aos meios de
comunicação, promover visitas de agentes educativos a empresas, com a finalidade de
mostrar-lhes as “necessidades do setor produtivo”. Detalha o cronograma para
cumprimento desta agenda pelo empresariado, que se assume como protagonista da
definição da política educacional. Através do boletim, torna-se clara a substituição do
Estado como sujeito dos projetos educacionais pelo empresariado, que assume
diretamente tal função. O papel do PREAL é nitidamente delineado como instrumento
de promoção dessa passagem.
A tônica dos textos é a descrença no Estado e o chamado à “participação’, como
designam a intervenção do mercado na elaboração das reformas educacionais.
Argumentam que, como usuários do produto educacional (a força de trabalho), como
clientes, têm o direito de determinar que produto querem. Estabelecem como alvo o
principal obstáculo a sua ação : o sindicalismo docente, cujo ativismo pode representar
barreiras à execução das reformas. Sugerem “incentivos” para que os docentes desistam
de se opor às mudanças.
Uma frente significativa de atuação ideológica, já mencionada aqui, é a
elaboração de textos que têm a função de instrumentalizar os agentes interessados na
consolidação do projeto educacional neoliberal.
Iniciaremos nossa análise pelo documento de número 3, intitulado “Obstáculos à
Reforma Educativa no Brasil” de autoria de David N. Plank, José Amaral Sobrinho,
Antônio Carlos da Ressurreição Xavier, sob contrato com o Banco Mundial. Dois
aspectos despertam a atenção do leitor durante todo o texto:

 Os sentidos atribuídos a público e privado, resultando em sua inversão.


 A redução dos conflitos políticos a divergências de interesses financeiros
no plano pessoal e corporativo, minimizando a esfera em que se dão os conflitos de
racionalidades subjacentes às propostas pedagógicas, deslocando-a para a esfera moral,
com fortes apelos ao “consenso” em torno das reformas.

O elemento “consenso” é uma presença expressiva em todos os textos, o que


chama a atenção para seu significado político, se considerarmos que, para Gramsci, este
é o principal instrumento na afirmação da hegemonia como capacidade de direção
política.

145 Ib.

72
Os debates em torno dos objetivos das políticas no sistema educacional
brasileiro caracterizam-se por um impressionante grau de consenso. Partidos
políticos, candidatos e autoridades em todos os níveis de governo concordam
que as exigências do progresso econômico e da democracia política exigem a
redução da “dívida social” para com os cidadãos mais comuns. 146

Outro elemento que denuncia o discurso em suas condições de produção é a


frequente alusão ao pacto social e desprezo às divergências políticas. O texto em estudo
exemplifica esse “grande acordo em torno da educação”, pelas plataformas educacionais
dos candidatos ao governo do estado de São Paulo em 1989, que, em sua análise, são

idênticas, tanto nos objetivos que definem, como na falta comum de


especificação de onde virão os recursos para tais objetivos.147

Uma tática argumentativa comum aos textos é a provocação de confusão no


leitor, acoplando duas ideias, indefensáveis por qualquer segmento social organizado
em torno da democratização da educação, a uma terceira, que é a que está sendo de fato
veiculada como inaceitável aos olhos do capital, induzindo à associação das três.

(...) o persistente atraso do sistema educacional brasileiro não se deve a


problemas na implantação de políticas, mas ao fato de que os propósitos
públicos afirmados por políticos e autoridades ficam sistematicamente
subordinados ao atendimento de interesses privados. Exemplos desta
subordinação incluem as diversas políticas clientelistas praticadas no sistema
educacional, a concessão de subsídios públicos a escolas privadas, e a
perpetuação do ensino superior em universidades públicas gratuitas.148

Para chegar à finalidade do argumento, que é a ideia de que as universidades


públicas são a razão do “atraso”, associam a este duas razões absolutamente
indefensáveis pelos setores que militam pelo ensino público: as políticas clientelistas e a
concessão de subsídios públicos a escolas privadas.
Logo na primeira página do texto, os autores definem como uma forma de
clientelismo a manutenção dos sistemas públicos e gratuitos de ensino superior, por
“atenderem a clientelas particulares”. O serviço público é associado a práticas
clientelistas, incompetência e corporativismo, como no trecho a seguir:

Na educação, o clientelismo compreende uma diversidade de práticas que


incluem a obtenção de empregos para clientes e partidários, a concessão de
contratos a aliados políticos e a distribuição de recursos públicos segundo as
exigências da política eleitoreira.149

Nas primeiras onze páginas do artigo, os autores ocupam-se da acusação de


incompetência ao serviço público, marcado, segundo sua ótica, pelo clientelismo,
desperdício e falta de racionalidade. Em seguida, os ataques direcionam-se aos setores
que discordam das reformas, incorrendo aí em uma contradição: se o texto inicialmente
afirma a existência de “impressionante grau de consenso” em todos os setores

146 PREAL, documento número 3, p. 9.


147 PREAL, documento número 3.
148 PREAL, documento número 3, p. 9.
149 Idem, p. 11.

73
significativos da sociedade, então quem seriam os atores políticos divergentes que, a
despeito de serem desconsiderados na afirmação do consenso, são responsabilizados
pelas dificuldades de implantação das reformas?

Conflitos políticos em torno de objetivos educacionais ocorrem quando os


interesses de grupos claramente definidos e politicamente influentes são
diretamente ameaçados, como no debate em torno da educação universitária
‘gratuita’.150

Começam a ser identificados os opositores das reformas, responsáveis pelo


“atraso” em sua implantação: aqueles que defendem a educação pública e gratuita, que o
fazem, segundo a lógica do texto, não por compromisso ideológico, mas por estarem
diretamente ameaçados em seus empregos.
Apresentam em seguida três temas que têm merecido destaque na
implementação das reformas educacionais no Brasil que, em sua opinião, devem ser
preservados: delegação de responsabilidade financeira às escolas, valorização das
diferenças regionais e o papel das escolas privadas no sistema educacional 151. Concluem
argumentando que as dificuldades e o atraso na implementação das reformas na
educação brasileira não decorrem de divergências nos objetivos políticos, mas da
divergência na seleção de instrumentos de política, como o clientelismo, representativo
de interesses “privados”, em oposição à eficiência, representativa do “interesse
público”. Esta conclusão, deslocada do seu contexto, poderia sugerir a defesa do
interesse público em uma perspectiva democrática, mas o processo de ocultamento
ideológico reside nos sentidos atribuídos no discurso a público e a privado.
Inicialmente, o público (estatal) é considerado como sinônimo de ineficiência e práticas
clientelistas, enquanto os interesses privados seriam exatamente a expressão da política
estatal, entendendo privados aqui como os interesses pessoais e corporativistas.
Posteriormente, definem os sentidos de público e privado: os interesses públicos, que,
segundo os autores, dizem respeito à eficiência, somente podem ser representados pela
iniciativa privada, aí já com sentido de sistema privado de ensino. Esses deslocamentos
de sentido no interior de um mesmo discurso operam conduzindo o leitor menos atento
à conclusão de que os espaços públicos, sendo estatais, estariam necessariamente
contaminados por instrumentos políticos contrários aos interesses da sociedade, como
clientelismo e corporativismo, enquanto somente o capital teria a preocupação com a
eficiência, administrando o sistema de ensino com a “mão de ferro” necessária, contra o
desperdício e a penetração de interesses privados, como se a própria essência do capital
não constituísse interesses privados.
Além da negação das divergências ideológicas e políticas entre os projetos
educacionais em disputa, evocando uma concepção positivista de neutralidade
pedagógica, os autores classificam como mero corporativismo o movimento social
atuante nesse campo, majoritariamente representado pelo sindicalismo docente,
desprezando os fundamentos políticos dos projetos em questão, assim como o
compromisso de amplos setores desses movimentos com a transformação social. Oculta
o caráter de classe do capital, legitimando seus propósitos como se fossem os interesses
de toda a sociedade, nomeando-os como interesses públicos.
Um dos documentos mais significativos na expressão da racionalidade
instrumental das propostas educacionais patrocinadas pelo grande capital é o de número

150 Ib.
151 Ib., pp.17-18.

74
14: “Aspectos políticos na implementação das reformas educacionais”, escrito por
Javier Corrales, da Universidade de Harvard, em abril de 2000, com o apoio financeiro
do Diálogo Interamericano, através do PREAL 152. Esse texto guarda afinidades com o
anteriormente analisado, que tratava especificamente do caso do Brasil, enquanto o
atual trata das reformas educacionais em toda a América Latina.
Um termo recorrente no texto é descentralização; descentraliza-se o sistema para
resolver todos os seus males, isto é, os males do aparelho estatal, considerado, da
mesma forma que no texto anterior, como signo da ineficiência.
A suposição do consenso, logo no início do texto, tal como no anterior, autoriza
a voz da concepção liberal de educação, que reduz o ser humano a força produtiva, a
falar por toda a sociedade.

Há consenso mundial em considerar a melhoria do desempenho das instituições


educacionais como indispensável para promoção do desenvolvimento
socioeconômico. (...) Infelizmente, porém – e principalmente por razões
políticas – é frequente ver-se que reformas educativas não são aprovadas ou
implementadas.153

Se há consenso mundial, então as discordâncias políticas que impedem a


realização das reformas emanam de setores sociais que “não contam”? Que setores
seriam esses? Obtemos essa resposta no próprio texto, quando afirma, mais uma vez,
que os setores discordantes são representados pelo sindicalismo docente, composto por
“grupos corporativistas poderosos”, que devem ser “neutralizados” por meio de
políticas de compensação ou de cooptação.

As organizações sindicais dos professores poderiam ser um desses grupos. Estas


agremiações percebem amiúde que as reformas orientadas para a qualidade
implicam grandes sacrifícios de suas partes, tanto materiais quanto políticos.
(...) se ficarem contra as reformas, podem solapar seriamente o processo. Por
estas razões, a aprovação e implantação das reformas dependem da cooperação
dos sindicatos de professores ou, ao menos, de que sejam impedidos de desviar
o processo da reforma.154

O autor não demonstra timidez na apresentação das sugestões de estratégias para


neutralizar os opositores das reformas, sugerindo explicitamente mecanismos de
cooptação. Estes seriam eficazes, em sua análise, já que acredita que a oposição dos
sindicalistas decorra apenas da ameaça de interesses “particulares”. Uma das estratégias
sugeridas é a complementação as reformas voltadas para a qualidade com elementos de
“acesso”, respondendo a esses setores, que lutam pela ampliação do direito à educação
(segundo o texto, preocupados em ampliar seu próprio mercado de trabalho). São
consideradas reformas de qualidade, as reformas do mercado, norteadas pela
“eficiência” e competitividade econômica, em contraste com as reformas de acesso,
preocupadas com a universalização da educação, que, segundo o autor, são as
defendidas por grupos particulares e corporativistas. A ampliação do “acesso” ocorre,
então, apenas como uma forma de neutralizar a oposição, revelando as causas do
descompromisso do bloco dirigente do Estado, em relação ao ensino oferecido à
população que chega às escolas.

152 PREAL, documento 14, p. 2.


153 PREAL, documento 14, p. 3.
154 Ib., p. 43-44.

75
Um aspecto curioso das reformas é justamente a presença do elemento acesso
num contexto de reforma orientada pela lógica do capital. Todavia, esse elemento não
constitui contradição da classe dirigente na enunciação da reforma, mas compõe a
lógica da reestruturação produtiva. Além de visar à cooptação, ganha um bônus: o
exército de reserva no mercado de trabalho.
A falácia da “empregabilidade” como produto do elemento acesso responde ao
discurso dirigido ao grande público, enquanto, nos “bastidores” das reformas (os
documentos do PREAL não têm um largo espectro social como público-alvo), acesso é
sugerido como mecanismo de neutralização dos opositores. Desfaz-se o aparente
paradoxo, quando o auditório passa a ser aquele que realmente importa: os formuladores
das políticas, tanto no plano do grande capital, quanto no plano dos elementos de Estado
localizados na esfera decisória.
“Reconhecer” como elemento progressista e contraditório de um ou outro
ministro, um ou outro governo, a ampliação de um segmento de ensino, analisando
apenas os discursos dirigidos ao grande auditório sobre o qual se pretende exercer
consenso, representa equívoco que tem levado setores do próprio movimento político e
sindical que, em outros planos, naquele das “grandes lutas hegemônicas”, na política
financeira, se opõem ao Neoliberalismo, a estabelecer “pactos” e “parcerias” em torno
de programas de educação e/ou formação profissional, como se tratássemos de um
campo neutro. Esses setores renunciam a uma análise política mais acurada dos
fundamentos políticos das reformas, de suas bases ideológicas e finalidades econômicas.
O mesmo texto, ao recomendar que as reformas de acesso sejam adotadas na
medida necessária ao aplacamento das frustrações dos opositores, refuta esse tipo de
diretriz como regra geral para o sistema escolar porque, segundo sua interpretação, são
fontes de desperdício: representam benefícios dispersos155, enquanto aquelas orientadas
pelo mercado representam exatamente o oposto, benefícios concentrados. Como
beneficiam setores organizados e atuantes (o mercado), seus custos não são perdidos,
têm retorno assegurado. Já as grandes massas beneficiadas pela universalização do
acesso, por serem dispersas, não saberão tirar proveito de tantos investimentos. Se os
investimentos públicos são dispersos (todos contribuem), devem concentrar-se sobre
beneficiários concentrados (mercado), que lhes darão o devido valor. Educar, nesse
ponto de vista, é considerado desperdício, a menos que os beneficiários sejam atores
sociais organicamente concentrados em torno da “produtividade”.
Outra estratégia de cooptação é o acolhimento de reivindicações salariais sob a
justificativa de aplacar frustrações com a orientação política das reformas, a exemplo do
ocorrido no Chile.

No Chile, após 1990, a nova administração democrática de centro-esquerda de


Patrício Aylwin aumentou os orçamentos e os subsídios das escolas e elevou os
salários dos professores. O governo buscava provavelmente obter o apoio (ou
aplacar a frustração) de vários atores do setor educacional que se sentiam
traídos diante da intenção do governo de manter muitas das reformas voltadas
para a qualidade, iniciadas durante o regime autoritário precedente. 156

Finalizando o elenco de estratégias de neutralização da oposição, o autor recorda


que, “(...) além de uma compensação material, os governos podem oferecer privilégios
políticos aos adversários da reforma”157, tais como: tratamento especial durante os

155 Ib. p. 6.
156 Ib. p. 22.
157 Ib. p. 22-23.

76
períodos eleitorais, acesso ao desenho das políticas, acertos frente a algumas
inquietações dos dissidentes, nomeação de líderes dos movimentos dissidentes para
posições atraentes em órgãos centrais. Alerta, porém, sobre o perigo de que mesmo
adotando tais políticas, elas se mostrem insuficientes, pela resistência dos dissidentes ou
porque os elevados gastos provoquem insatisfação na sociedade civil (neste caso, o
mercado). Uma das formas alternativas é a adoção gradual de reformas parciais, que
têm mais chance de serem executadas sem oposição, do que quando são apresentadas de
forma “global e radical”158, já que estas implicam risco de mobilização ativa e intensa
por parte daqueles que sofrem seus custos.

Um enfoque gradual evita a excessiva notoriedade da reforma no país(...)159

Na enumeração de reformas bem sucedidas160, afirma que as orientadas para o


mercado, ou “reformas de qualidade”, obtiveram sucesso por terem como traços básicos
os seguintes: maior orientação para o mercado, criando universidades privadas; criação
de escolas privadas subvencionadas; transferência de fundos para associações
comunitárias encarregadas de decidir sobre os salários, contratação e demissão dos
professores; enfoque “social voltado para o mercado”; atribuição aos pais da
responsabilidade pela contratação de professores, com autorização específica para
contratar os não sindicalizados; eliminação dos aspectos comunistas do currículo.
O texto contrapõe as reformas orientadas pelo mercado às propostas de educação
“apenas como direito social”161, denunciando a condição de irrelevância atribuída a este
critério na definição de políticas públicas consideradas eficazes.
Enquanto indica a solução para o problema das reformas no âmbito interno do
Estado através de todas as iniciativas governamentais até então sugeridas, o texto do Sr.
Corrales (encomendado ao PREAL pelo Banco Mundial) insiste no discurso de
incompetência do poder público, convertido a burocracia. Alega descompromisso
governamental com a descentralização do sistema na medida necessária, acusando o
Estado de falta de confiabilidade, inoperância, comprometimentos indevidos,
desinformação, hesitação, incompetência e entraves burocráticos.
Outra sugestão do PREAL para o sucesso das reformas é sua inclusão “(...)
dentro de um mesmo pacote com outros tipos de reformas (do Estado ou da Economia)
(...)”162, já que “(...) uma vez que o país se envolva na reforma de suas instituições, fica
mais fácil levar a opinião pública a aceitar a necessidade de novas reformas em outros
setores.”163 O maior risco, neste caso, é quando o governo dedica maior atenção às
outras reformas, ou ainda, da generalização popular em torno do caráter político das
reformas, julgando aquelas operadas no âmbito educacional “erroneamente” como
políticas. O dilema apresentado pelo Sr. Corrales é significativo, já que a reforma
educacional sustenta-se pela aparente neutralidade, pela alegada autonomia pedagógica
em relação ao contexto político, tão cara à veiculação da ideologia dominante.
Embora negando anteriormente os vínculos das reformas educacionais com o
mundo da economia global e o neoliberalismo, na página 31 do documento em análise,
o autor torna transparente a afinidade das reformas educacionais em fase de implantação
na América Latina com a Teoria do Capital Humano e a Teoria do Capital Intelectual.

158 Ib., p. 25.


159 Ib., p. 25.
160 Ib., p. 18.
161 Ib., p. 4.
162 Ib., p. 26.
163 Ib., p. 27.

77
Apresenta o seguinte argumento: “(...) a existência de maiores vínculos com o mundo
exterior ou com a economia global aumenta a probabilidade e êxito na implantação das
reformas”.164 Acresce que quanto maior for a abertura para o mundo exterior, maiores
serão os incentivos para a aplicação das reformas “de qualidade”, frente ao “imperativo
sistêmico” da competitividade, projetando-as no sentido exigido pela economia. Cita os
países do sudeste asiático como modelo de aliança produtiva entre economia e
educação, orientada pelo modelo de exportações e pela formação da força de trabalho
adequada ao projeto. Ao mencionar a experiência reformista de Cingapura, o autor
destaca como elementos geradores de sucesso, entre outros, o estímulo à concorrência
entre os alunos, que são divididos segundo suas “habilidades”, sendo selecionados, aos
nove anos de idade, os mais bem dotados intelectualmente. As escolas adotam a
concorrência, publicando quadros de desempenho como ferramentas de disputa por
autonomia, num paradoxo, onde “autonomia” é prêmio outorgado a quem fizer por
merecê-lo.
Ainda refletindo sobre a necessidade de abrir as reformas educacionais à
economia global, o autor ressalva que isto pode gerar indesejáveis reações nacionalistas,
já que nem todos os países têm vocação para a produção e exportação de bens e serviços
que carecem de mão de obra altamente capacitada, como afirma ser o caso da América
Latina, não sendo assegurada a eficácia da pressão pela competitividade.
Se considerarmos que essa concorrência global não é tão livre como deseja
aparentar, que os mecanismos de regulação da produção e comercialização de bens e
serviços é circunstanciada por forças hegemônicas que manipulam as “leis do mercado”
e que a “vocação” de cada região na economia globalizada é muito menos decidida por
qualidades naturais do que por sua condição político-econômica frente ao processo de
mundialização do capital e seus representantes orgânicos, perceberemos que o problema
não é a ausência de demanda por educação orientada pelo mercado, como leva a
concluir o texto, mas o próprio antagonismo fundamental presente nas relações sociais
de produção que, se por um lado pretende baratear os custos da reprodução ampliada do
capital, por outro lado, necessita manter, dentro de limites “seguros” e sob rigoroso
controle, os esforços realizados com essa finalidade, para que não sejam reapropriados e
reinterpretados por outra ótica.
Habilidosos na ressignificação de demandas populares pelos deslocamentos
semânticos operados em torno de conceitos como qualidade, cidadania, solidariedade,
comunidade, contexto, participação, autonomia e outros, os intelectuais orgânicos do
bloco hegemônico apelam nos textos do PREAL para outro deslocamento semântico:
aquele que ocorre em torno dos órgãos colegiados na direção de escolas e demais órgãos
do sistema educacional.
Alguns exemplos desse deslocamento semântico presente no léxico do Preal:
quando enunciam qualidade, referem-se a produtividade, eficiência, retorno financeiro,
competitividade; cidadania assume conotação de adesismo; solidariedade, ação
“voluntária” em substituição às funções do Estado; comunidade significa empresariado;
contexto é sinônimo de mercado; participação, intervenção ou privatização; autonomia,
pretexto para a desregulamentação e negação dos direitos sociais que deveriam ser
assegurados pelo poder público. Há um caso interessante de substituição, não de
deslocamento: o termo equidade é característico desse conjunto lexical, operando o
silêncio do termo igualdade, que é banido da discussão educacional.
Aos sentidos reconstruídos para os termos associados aos movimentos sociais,
surge a questão dos colegiados. O texto sugere, ainda como estratégia de neutralização

164 Ib., p. 31.

78
dos opositores das reformas, a formação de conselhos “independentes”, com
representantes de todos os setores da sociedade, para evitar o ‘déficit democrático’,
indesejável à boa reputação pública das reformas.

Os conselhos independentes podem desempenhar um papel similar ao dos


bancos centrais independentes: podem isolar as políticas difíceis das pressões
políticas e incentivar os governos a manter a disciplina apesar das pressões
populares. (...) Desta forma, os conselhos independentes constituem apoio às
reformas, pois, tanto geram um impulso em favor das políticas, como criam um
nexo entre as equipes encarregadas das mudanças da sociedade civil.165

Os poderosos grupos com capacidade de veto, tão temidos pelos formuladores


das propostas, não fazem parte da sociedade? Não estarão compondo tais conselhos?
Quem são esses representantes de ‘toda a sociedade’ que, a priori, já concordam e
aderem às reformas? Qual o sentido de representação popular e social contida nessa
concepção? A decifração do enigma semântico há pouco sugerido ajuda a compreender
a “universalidade restrita” na consideração dos setores sociais.
Mais à frente, o autor explicita como seriam formados esses conselhos.

Para serem eficazes, estas entidades independentes (...) devem ser compostas
por representantes da sociedade civil, e não por políticos. (...) é conveniente
incorporar líderes intelectuais respeitados e formadores de opinião, como
jornalistas e especialistas vindos de centros de pesquisa: os líderes intelectuais
reforçam a respeitabilidade do conselho, os formadores de opinião ajudam a
vincular o processo de reforma com os meios de comunicação, e os especialistas
vindos dos centros de pesquisa dão prova de competência tecnocrática. (...) Na
Tailândia, os líderes da comunidade ajudaram a difundir as informações
relativas às escolas e fizeram sugestões a respeito da maneira como as escolar
poderiam ajudar as comunidades.166

Esses conselhos “independentes”, nomeados pelo Executivo, têm a função


estratégica de gerar consenso, de conferir, em termos gramscianos, a “cimentação”
ideológica necessária à afirmação da hegemonia do bloco histórico dirigente,
configurando o papel de intelectuais orgânicos da classe dominante que, de acordo com
o texto, deverão assegurar respeitabilidade, credibilidade, aceitação e adesão.
O autor conclui que, mesmo cuidadosamente traçadas, tais estratégias de
construção do consenso podem falhar e a neutralização, por vias consensuais, não
ocorrer. Neste caso, os principais opositores das reformas, os ativistas do sindicalismo
docente, devem ser impedidos.

(...) se ficarem contra as reformas, podem solapar seriamente o processo. (...) a


aprovação e implantação das reformas depende da cooperação dos sindicatos
de professores ou, ao menos, de que sejam impedidos de desviar o processo de
reforma.167

Sugere que a vinculação dos organismos docentes a partidos políticos piora as


relações com tais organizações. Entretanto, se o governo busca o diálogo com tais

165 Ib., p. 33.


166 Ib.
167 Ib., p. 44.

79
partidos, pode persuadi-los a pedir a cooperação dos sindicatos para as reformas. Alega
ainda que os sindicatos que sofrem de males internos, como cisões entre tendências,
tornam-se mais propensos à oposição às reformas, pela “vigilância interna” que os
autorregula. Em contrapartida, os dirigentes sindicais que não enfrentam ameaças
internas sentem-se confortáveis negociando com o Estado, sempre e desde que recebam
alguma compensação. Recomenda que o governo invista também na fragmentação
externa dos sindicatos, com a permissão de que uma base seja representada por diversas
organizações concorrentes entre si. O governo pode ainda tentar resolver os problemas
de fragmentação interna e oferecer compensações políticas e materiais, ou, até mesmo,
criar alianças com outros grupos de pressão, como contrapeso.168O problema se agrava
quando o sindicalismo docente articula alianças com outras instituições, como
organizações estudantis, parlamentares progressistas etc. O governo, segundo o ponto
de vista defendido no documento do PREAL, deverá tentar de todas as formas
neutralizar os opositores, lançando mão, se for necessário de táticas mais ostensivas de
cooptação (e este termo é literalmente sugerido no texto). Citando um caso de sucesso,
descreve as ações governamentais: incentivo a ONGs, controle de associações de pais e
outros líderes da sociedade civil, cooptação dos diretores das escolas, entre outros. O
texto sugere que se utilizem como instrumentos na imposição das reformas, algumas de
suas características finais, como a privatização dos serviços públicos de ensino.
Nos últimos anos, o PREAL afina seus instrumentos de guerra contra os
professores, procurando atingi-los moralmente. Cria o Grupo de Trabalho (GT)
“Profissão Docente” com a finalidade de monitorar a profissão na América Latina,
analisando o perfil pessoal e profissional do docente, sua formação, seu desempenho,
suas condições e relações de trabalho.
Este GT tem atuado em duas frentes: por um lado, o combate às instâncias
coletivas de negociação das condições de trabalho e seus instrumentos, como planos de
carreira, gratificações por formação e tempo de serviço, substituindo-os pela esfera
individual da avaliação de desempenho e premiação da excelência; por outro lado, a
desqualificação e desmoralização do professor.
Os males da educação latino-americana são atribuídos aos planos de carreira dos
docentes que, por não se basearem no mérito individual e na produtividade, “premiam
os incompetentes”, os “acomodados” e desestimulam os melhores profissionais, que
abandonam a profissão. Se não há “controle da produtividade” e “avaliação de
desempenho”, como condicionantes da remuneração (que deve ser individualizada), não
há como melhorar a qualidade da educação, afirmam.
O GT abriga uma linha de pesquisa sobre docente e sua relação com a qualidade.
Cláudio Moura Castro, Gustavo Ioschpe e Denise Vaillant (coordenadora do GT na
ocasião desta pesquisa) são alguns dos estudiosos que investigam a relação entre
remuneração docente e qualidade de ensino, bem como o perfil docente. Concluem que
não há qualquer relação entre uma e outra: remuneração docente e qualidade de ensino
são variáveis não relacionadas.
Por outro lado, afirmam que a remuneração docente latino-americana não é
baixa, considerando as vantagens a seguir: alegam que a carga horária de trabalho é
pequena, trabalha-se muito pouco, desfruta-se de longas férias (4 meses ao ano) e que,
ademais, a profissão atrai somente os piores egressos da Educação Fundamental e
Média, os de mais baixo desempenho nos testes de inteligência.
Como se esta caricatura fosse insuficiente, acrescentam que, por estarmos em
uma profissão em que 70% de seus componentes na América Latina somos mulheres,

168 Ib., p. 47.

80
não necessitamos de uma remuneração maior, pois nossa contribuição ao orçamento
familiar é secundária e complementar à do cônjuge. Somos, ainda, oriundos de famílias
de baixa renda, tendo, portanto, segundo os autores, baixas aspirações.
No conjunto de estratégias para controle do trabalho docente, Castro e Ioschpe
chegam a propor mecanismos de sanções psicológicas, que “todo bom diretor sabe
usar”, a fim de estimular o bom desempenho.
O discurso do Preal ataca os docentes, ao passo que evoca a “autonomia” da
escola. No documento 15, Marcela Gajardo define o sentido de autonomia, que merece
lugar nesta análise, que, longe de representar condição democrática de exercício da
cidadania, revela a delegação de responsabilidades do poder público e supremacia dos
interesses do capital na definição das linhas de ação do sistema escolar, porque permite,
à revelia dos interesses emancipatórios, a “reorganização das estruturas com base nas
demandas do sistema produtivo e nas exigências da concorrência”.169
O documento apresenta as seguintes propostas:

 as reformas devem levar em conta algumas ações como a inclusão


crescente dos recursos privados;
 passagem da ênfase ao acesso para a ênfase na eficácia e resultados;
 adoção do critério de mérito para valorização do profissional da
docência;
 estabelecimento de uma nova relação entre escola e empresa, onde esta
última assuma a liderança;
 incorporação do conhecimento à competitividade.

Endossa o papel do Banco Mundial na determinação das políticas educacionais


implantadas a partir da década de 1990, como fator decisivo para atender à
“necessidade de recursos humanos mais qualificados, competitivos e maleáveis (...)”,
destacando as seguintes metas perseguidas na intervenção daquele órgão:

 “resultados de rendimento comparáveis internacionalmente;


 fortalecimento da autonomia escolar;
 professores mais qualificados, motivados e abertos às correntes
contemporâneas da educação;
 maior equidade”170.

Entre as exigências do Banco Mundial, Marcela Gajardo destaca:

 renovação do investimento no “elemento humano”;


 recurso à análise econômica para determinar as prioridades
educacionais;
 estabelecimento de normas de aferição do rendimento escolar a partir
de avaliação padronizada;
 recurso à família para arcar com as despesas do ensino superior.

Na atuação do BID, a autora elogia sua interferência pedagógica, a “evolução”


da ação no campo do financiamento para a esfera da influência direta sobre a ação

169 Documento PREAL número 15, sem numeração de páginas.


170 Ib.

81
didática, pela determinação de orientações curriculares compatíveis com o teor das
reformas.

As prioridades do BID para a educação, assim como as do Banco Mundial,


passaram, de uma ênfase na construção e no equipamento dos locais, para o
fornecimento de textos e materiais, capacitação de professores e
desenvolvimento do currículo (...)171

A indeterminação/ocultação do sujeito na materialidade discursiva, recurso usual


nos textos do PREAL, quando analisada nas condições de produção do enunciado,
revela a necessidade de naturalizar e transformar em lei geral aquilo que é ideológico e
político.
Formas frequentes como “afirma-se...”, “os especialistas concordam...” (sem
referências aos especialistas de que se fala), “espera-se da educação...”, “o país
espera...”, “existe consenso...”, “todos esperam...”, “é fato que...”, “segundo
pesquisas...”( sem referências às pesquisas), “estudos revelam...”, que poderiam parecer
ausência de rigor científico na apresentação dos textos, pela ausência de referências às
fontes, fundamentalmente produzem o efeito de conferir autoridade científica ao
discurso dominante, já que, em outras situações dos mesmos textos, onde se torna
interessante apresentar as fontes, as referências bibliográficas são apresentadas
corretamente.
Silenciando sobre o pensamento divergente ou caricaturando seus propósitos, o
discurso do PREAL representa o processo hegemônico de “ditadura do pensamento
único” neoliberal.
Relacionando de forma determinista educação e economia, legitima o
assujeitamento daqueles que escrevem a história da prática educativa como um espaço
de luta contra-hegemônica.
O determinismo tecnológico, naturalizado nos textos da instituição em estudo,
silencia sobre seus fundamentos, (as Teorias do Capital Humano/Intelectual). Este
silenciamento é sintomático da ideologia na qual se origina. O silêncio supõe um acordo
tácito, a unicidade e “legalidade científica” de uma teoria que é apresentada como
universal e pressuposta, a ponto de ser prescindível sua identificação explícita no
discurso, ocultando o fato de que a ela se contrapõem, no cenário teórico-prático
educacional, outras, as que são silenciadas, cujos horizontes se definem na
problematização e historicização dos fenômenos sociais.
Fatos da economia globalizada em sua fase neoliberal são tratados com a
sacralização do que é imponderável: a “nova economia”, as “novas tecnologias de
produção” são “promovidos”, da condição de fenômenos dinâmicos da vida social, ao
status de sujeitos históricos ou dados indiscutíveis que expressam um grau de
“progresso” irreversível. O que cabe à escola é promover a adaptação, a produtividade e
a “moderna cidadania vinculada à competitividade”172.
A “nova ordem mundial” conclama os pobres a enriquecerem pela escolarização. Esta
lógica falaciosa, que considera “(...) dado como certo o fato de que a renovação
educativa desempenha um papel estratégico no êxito econômico e na superação da
pobreza (...)”173, ao veicular por silenciamentos e caricaturizações os dogmas
pedagógico-economicistas de seu projeto, o faz dispensando os próprios esforços de
desnudamento da função econômica da pobreza, já que, mais do que construir

171 Documento PREAL número 15, sem numeração de páginas.


172 Documento PREAL número 15, p. não numerada.
173 Documento PREAL número 15, p. não numerada.

82
explicações consistentes sobre as relações entre educação e sistema produtivo, mediadas
pelas demais dimensões do ato educativo, sua condição de discurso hegemônico se
realiza na persuasão.

II.4 – Educação corporativa: o capital como agente direto da formação

Neste capítulo, convidamos o leitor a refletir sobre o desenvolvimento da


modalidade de formação de trabalhadores conhecida como “Educação Corporativa”.
Examina a retomada pelo governo brasileiro da indução à Educação Corporativa nos
anos de 2011 e 2012, no contexto das políticas para a formação de trabalhadores. 174 e
busca a atualização do quadro, relacionando-o com a temática emergente no campo da
Educação Profissional e as políticas públicas recentes no setor.
Examina a hipótese de que tais políticas, apoiadas no pacto capital-trabalho
anunciado na campanha presidencial de 2002 e trazido à efetividade nas gestões
protagonizadas pelo Partido dos Trabalhadores, restringem a formação de trabalhadores
à função compensatória e ainda à condição de subordinação de classe pela assimilação
das necessidades dos arranjos produtivos e da valorização do capital como princípios
educativos. Realizamos pesquisa documental em fontes públicas oficiais, disponíveis no
Portal de Educação Corporativa no sítio eletrônico do MDIC e no portal eletrônico do
MEC. Alguns dos documentos analisados foram os arquivos referentes às oficinas de
Educação Corporativa do MDIC, especialmente a oficina realizada em 2011.
No ostensivo cenário de programas e políticas governamentais na área de
formação de trabalhadores175, amplamente divulgados pelos meios de comunicação de
massa a fim de conferir visibilidade e adesão pública, observa-se que o retorno do
incentivo a uma das modalidades de formação para o trabalho ocorre com muita
discrição, mas, nem por isto, com menor efetividade: a Educação Corporativa.
Pretendemos discutir, no contexto da política governamental de formação
no/para o trabalho, os sentidos da retomada pelo governo federal do incentivo às
universidades corporativas, configurada, entre outras ações, na realização da VI Oficina
de Educação Corporativa pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio
Exterior em novembro de 2011. Entre os anos 2003 e 2007, o governo federal promoveu
regularmente as oficinas, com o objetivo de apoiar e incentivar esta modalidade de
formação176. Houve uma interrupção desta política, que foi retomada no ano de 2011.
Durante o período de interrupção, o cenário da Educação Profissional viu emergirem
programas e políticas em torno da articulação entre a formação geral e a formação
profissional, onde, em larga medida, a profissionalização constitui-se como política
compensatória e/ou complementar à formação geral precária. Esta instrumentalização
ocorre em prejuízo da formação geral concebida como direito humano fundamental para
compreensão e transformação do mundo, ampliação do universo de sociabilidade,
alcance e desenvolvimento de múltiplas formas de expressão e de comunicação, acesso
ao patrimônio cultural universal e “desinteressado” da realização imediata de papel
determinado nas relações sociais de produção ou exercício de uma profissão específica.

174 Este trabalho apoia-se em pesquisas anteriores (2003-2010) sobre Educação Corporativa, desenvolvidas no Grupo de Estudos e
Pesquisas em Trabalho e Educação, coordenado pela autora na Fiocruz/RJ Fundação Oswaldo Cruz, órgão do Ministério da Saúde,
campus Manguinhos, Rio de Janeiro.
175 Refiro-me aqui a programas de Educação Profissional em seu sentido restrito (articulado ou não à formação geral), mas também
a programas voltados à educação formal e não-formal dos trabalhadores em sentido amplo, como formação inicial, continuada ou
“em serviço”, formação geral destinada a “gerar empregabilidade” etc.
176 Molnar, 2010.

83
A retomada do incentivo, a atualização do Portal de Educação Corporativa do
MDIC177, a redefinição dos conceitos pelo próprio Ministério representa, em nossa
opinião, um dos elementos constituintes de uma política de formação de trabalhadores
que naturaliza sua condição “interessada” e subordinada à concepção pragmatista do
mercado.
Partimos da consideração de que, em seu sentido hegemônico 178, as atuais
políticas de formação de trabalhadores constituem expressão do “pacto capital-
trabalho”, sob hegemonia do capital, delineado na campanha presidencial ao primeiro
governo Lula em 2002, na “Carta ao Povo Brasileiro”, onde o então futuro governo se
comprometia a dar continuidade ao modelo vigente de incentivo aos “investimentos” do
capital. 179
Políticas e programas de formação humana emanados de tal formação
discursiva/ ideológica representam a realização da dimensão utilitarista e “interessada”
da educação em suas relações com o modo de produção capitalista. A formação da
mercadoria força de trabalho ou do exército profissional de reserva impõem-se como
ideia-força de tais políticas, sobrepondo-se à dimensão crítica de um modelo de
formação que verdadeiramente interesse à classe trabalhadora.
Um dos programas da iniciativa privada incentivados pelo governo federal com
visibilidade da mídia, manifesta como síntese do conceito publicitário, o slogan: “Bom
para o jovem, melhor para a empresa” 180. Que é melhor para a empresa a formação de
trabalhadores a partir de seus interesses, ninguém discorda. Bom para o jovem
individualmente “beneficiado”? De que ponto de vista? Do ponto de vista da chantagem
compensatória? Se esse jovem não teve oportunidade de acesso a uma escola de
qualidade, pode-se “remediar”, oferecendo-lhe a “preparação para o trabalho”? Qual
trabalho? Qual preparação? E para a classe trabalhadora em seu projeto de
transformação da sociedade, é bom?
A retórica da “necessidade” (tanto do trabalhador quanto do Brasil potência)
torna-se recurso ideológico legitimador da condição de protagonismo do empresariado
nas diretrizes educacionais. Tais diretrizes podem dizer respeito à “integração”
aligeirada e reducionista entre formação geral e formação técnica, ao domínio do capital
em conselhos e colegiados escolares, particularmente nas instituições de Educação
Profissional, às parcerias justificadas e justificadoras da falta de investimentos públicos
na escola pública, aos movimentos empresariais salvacionistas de uma escola sem
recursos porque estes mesmos são transferidos às empresas “salvadoras” das escolas,
sob a forma de financiamento público direto ou isenção e compensação fiscal. Tais
diretrizes podem ainda relacionar-se com as empresas-escolas, com o fomento às
universidades corporativas.
Todas as manifestações aqui mencionadas retiram da escola sua função
educadora ampla.
Programas de formação humana (particularmente de formação da classe
trabalhadora) fundamentados no pacto capital-trabalho padecem de uma fenda original
irrecuperável: a suposição de que os interesses entre as classes são conciliáveis.

177 MDIC. Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior.


178 Em análise de discurso, particularmente em sua vertente desenvolvida por Bakhtin e Orlandi, considera -se como sentido
hegemônico aquele cuja preponderância se institui e opera organicamente, a despeito das possibilidades de múltiplas formas de
apropriação ou outros sentidos. A formação discursiva relaciona-se diretamente com a formação ideológica do sujeito em sua
situação concreta. Ver Santos, 2002.
179 A respeito deste pacto e da análise pormenorizada da carta e da hegemonia efetivamente conquistada pelo grande empresariado
no interior do governo do Partido dos Trabalhadores, ver Chaves, 2012.
180 Programa “Aprendiz Legal”, da fundação Roberto Marinho em parceria com outras, com incentivo governamental.

84
Não nos cabe aqui, por não ser este o objeto do artigo, discutir, desenvolver ou
aprofundar o conceito de classe trabalhadora e de sua pertinência como ferramenta
explicativa no capitalismo contemporâneo – debate este que vem ocupando a Sociologia
do Trabalho 181. Contudo, faz-se necessário afirmar que o fato de o trabalho
contemporâneo caracterizar-se por elementos mais amplos que as formas do operariado
industrial formal do capitalismo dos séculos XIX e XX, não nos opõe à conservação da
centralidade do conceito de classe social, definida por sua posição nas relações sociais
de produção e na dinâmica das forças produtivas: proprietários dos meios de produção
ou vendedores da força de trabalho para extração de mais-valia nas suas formas
históricas. As formas históricas de extração de mais-valia no século XXI diferem, em
parte, das formas históricas do século XIX, mas em absoluto, isto não significa deduzir
pela obsolescência do conceito marxiano de classes sociais pautado na divisão social do
trabalho (propriedade privada dos meios de produção e venda da força de trabalho).
O trabalho precário, o chamado trabalho imaterial, o trabalho industrial e
comercial em domicílio, o trabalho do microempreendedor individual subordinado à
terceirização, o trabalho do camponês subordinado aos agronegócios como fornecedor
de insumos para a grande indústria dos alimentos (criação de animais em granjas
caseiras para os oligopólios da indústria alimentícia), as cooperativas, que nada mais são
do que a precarização e desregulamentação do trabalho subordinado, ocultadas pela
suposta “autonomia”, e outras formas históricas contemporâneas182 do trabalho não
fogem à regra geral capitalista de venda da força de trabalho para agregação de valor de
troca. O fato de este trabalho evidenciar sua face mais regulamentada ou menos
regulamentada, mais física ou menos física (ou imaterial) não lhe caracteriza como não
trabalho. Sobretudo, não caracteriza seus protagonistas como não trabalhadores nem os
excluem do conceito de classe trabalhadora.
Assim sendo, em primeira e em última instância, os interesses de classes são
inconciliáveis. Formação humana é terreno de luta, portanto. Despolitizá-lo é repolitizá-
lo em favor de uma das classes: aquela que não declara explicitamente que está
utilizando-se desse espaço para a luta de classes, mas que o faz alegando atuar em
benefício “do jovem”, do trabalhador ou do hipotético futuro trabalhador.
Feito o registro destas observações preliminares, passamos a examinar uma das
formas de despolitização-repolitização da formação humana em contornos atuais na
educação profissional (em sentido restrito e amplo): a Educação Corporativa.

II.2.1. – Conceituando Educação Corporativa

Educação Corporativa constitui-se como modelo de formação onde a empresa


ocupa o lugar da escola, desenvolvendo programas de educação formal, informal e não
formal de trabalhadores, fornecedores e a comunidade, para aumento de produtividade,
valorização do capital de marca e como estratégia hegemônica de difusão da concepção
de mundo da classe dominante.
Surgiu na década de 1950 nos Estados Unidos, com o objetivo de treinar os
trabalhadores de algumas indústrias, mas adquire maior expressão no contexto
neoliberal. Por um lado, a ideologia de desqualificação do Estado social enseja que o
capital se declare “mais competente” para formar os trabalhadores. Por outro lado, as

181 Diversos estudos, entre os quais destacamos a título de exemplo os de TOLEDO, vêm contribuindo para a caracterização do
trabalho contemporâneo e suas categorias teóricas.
182 Tais formas sequer podem ser consideradas contemporâneas ou atípicas. Marx em O Capital, ao analisar o impacto do sistema
fabril da “grande indústria” emergente sobre a manufatura e o trabalho artesanal, demonstra que as formas históricas do trabalho
precário, intensificado, subumano compõem organicamente o modo de produção capitalista mais sofisticado desde suas origens.
85
mudanças nas bases técnicas e de gestão do trabalho implicam a exigência de adesão
subjetiva do trabalhador aos valores da empresa. A Educação Corporativa passa a ter,
então, a função de promover esta adesão.
Sob a justificativa de oferecer a formação intelectual e técnica supostamente
exigida pelo mercado, de modo, segundo o capital, “mais eficiente que o Estado”, a
Educação Corporativa avança sobre a dimensão ético-política, impondo os modos de
ser, pensar, agir e sentir convenientes ao capital.
Denomina-se Educação Corporativa o projeto em seu sentido amplo e
“Universidade Corporativa” ou “Unidade de Educação Corporativa”, as instâncias
formais especialmente criadas pelas empresas para este fim. Uma empresa pode
desenvolver ações de Educação Corporativa por meio de programas dispersos, mesmo
sem ostentar uma Universidade Corporativa ou setor específico para este fim.
Igualmente, uma Universidade Corporativa pode desenvolver programas em todos os
níveis de ensino, não necessariamente a Educação Superior, podendo, ainda desenvolver
cursos livres ou atividades formativas informais.
Quando atua no âmbito da educação formal, a Universidade Corporativa, não
tendo credenciamento para certificar e emitir diplomas, institui parcerias com escolas e
universidades acadêmicas. Nestes casos, a instituição credenciada fornece sua chancela
a um projeto que nasce exatamente da desqualificação da formação acadêmica oficial.
Uma das demandas do movimento de Educação Corporativa, representado inicialmente
pela ABEC (Associação Brasileira de Educação Corporativa) é o poder de certificação
pelo mercado. Até o momento, no Brasil, esta demanda não foi aceita. Caso seja
aprovada, constituirá um fator de agravamento da subordinação do trabalho ao capital,
visto que, ao ser certificado, por exemplo, em um curso de graduação em Nutrição
emitido por uma determinada indústria de alimentos, esse trabalhador tem sua
capacidade de venda da força de trabalho limitada àquela empresa e à sua tecnologia. A
Universidade do Hambúrguer, como é denominada a universidade corporativa da Rede
McDonald’s, caso obtivesse no Brasil a autorização para certificar em seu próprio
nome, implicaria o cerceamento da liberdade formal de venda da força de trabalho de
seus egressos às redes concorrentes.
A ABEC, criada em 2004, foi porta-voz deste movimento junto ao governo
federal, desempenhando papel central nas primeiras cinco oficinas. Chegou a listar em
seu portal, 170 universidades corporativas. Sua missão e composição inicial são
transcritas abaixo:

(...) em maio de 2004, foi criada a ABEC – Associação Brasileira de Educação


Corporativa. Formada, inicialmente, por seis grandes empresas, a instituição
tem a missão de promover o desenvolvimento das práticas de educação
corporativa nas organizações, contribuindo para o crescimento de
trabalhadores, empresas e da sociedade. Entre os vários objetivos da entidade
está o de fortalecer o papel estratégico da educação corporativa, integrando as
organizações para criar oportunidades de desenvolvimento profissional para o
trabalhador e estimular a profissionalização. Tudo isso, com uma grande
vantagem: o ganho de economia e eficiência por parte das empresas no
desenvolvimento de produtos educacionais

Fundada com o aval dos ministérios da Educação, do Trabalho e do


Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, a ABEC conta com associados
de peso como Caixa Econômica Federal, Cia. Vale do Rio Doce, Eletronorte,

86
Embratel, Fiat, Hospital Albert Einstein, McDonald’s, Metrô de São Paulo,
Natura, Unimed e Votorantim Cimentos, entre outros. (ABEC, 2004)

Em 2009, foi criada a ANITEC (Associação Nacional de Inovação, Trabalho e


Educação Corporativa), que tem conquistado progressivamente espaços na definição de
políticas de Educação Profissional183. Se analisarmos os fundamentos e objetivos desta
associação, transcritos abaixo, poderemos inferir os sentidos de sua participação nos
espaços definidores das políticas de formação de trabalhadores.

A ANITEC foi fundada para:


I – Estimular as iniciativas de desenvolvimento, implementação e gestão de
projetos de inovação nas organizações em todo território nacional.
II – Apoiar a formação de profissionais para a instalação e gestão de projetos
de inovação nas organizações.
III – Propagar a articulação entre as categorias inovação, trabalho e educação
corporativa nas empresas, instituições de ensino, nas instituições
governamentais e não governamentais visando o progresso e desenvolvimento
nacional.
II – Apoiar as iniciativas institucionais de educação corporativa de empresas
públicas e privadas que visem à inovação e progresso da economia nacional.
III – Apoiar a produção, desenvolvimento e disseminação de conhecimento em
torno dos constructos inovação, trabalho e educação corporativa por meio de
pesquisas, publicações, congressos e eventos científicos em caráter
multidisciplinar.
IV – Disseminar em todo território nacional a educação corporativa como
estratégia facilitadora da inovação e manutenção dos postos de trabalho.
(ANITEC, 2012)

A Educação Corporativa tem como público-alvo “toda a cadeia de valor”,


incluindo, além dos trabalhadores, os fornecedores, a comunidade e os consumidores
reais e potenciais, o que resulta numa ameaça ainda mais abrangente quanto aos danos
políticos de um projeto de formação diretamente controlado pelo mercado.
Alegando “responsabilidade social”, muitas vezes com financiamento público
direto ou indireto (quando obtém isenção fiscal como contrapartida), o capital estende
suas ações “pedagógicas” e alcança um triplo objetivo: controlar a formação de
trabalhadores, elevar seu capital de marca ( a valorização de sua imagem junto à
sociedade majora o valor das ações no mercado financeiro e, normalmente, constitui
exigência dos investidores para adquirir tais papéis) e obter vantagem na disputa do
capital pela hegemonia, pela difusão de sua visão de mundo para a empresa e além de
seus muros.
Segundo Éboli184, são sete os princípios da Educação Corporativa:
Competitividade, Conectividade, Parceria, Perpetuidade, Cidadania, Sustentabilidade,
Disponibilidade.
Não podendo ter outra função, dada sua filiação direta ao capital, são princípios
convenientes ao capital e à reprodução de seu modo de produção da existência. São,
portanto, incongruentes com um modelo de educação que se coloque em perspectiva

183 Em seu sítio eletrônico, a ANITEC orgulha-se de ter tido papel de destaque no último Fórum Mundial de Educação Profissional
e Tecnológica, promovida pelo governo federal brasileiro em maio de 2012 na cidade de Florianópolis, SC.
http://anitec.wordpress.com acessado em 15 de julho de 2012.
184 Éboli, Marisa. Educação Corporativa no Brasil.: Mitos e verdades. São Paulo: Ed. Gente, 2004.

87
emancipatória. Os sentidos atribuídos a tais princípios pela literatura que fundamenta o
modelo denotam a perspectiva ideológica da classe dominante.
O princípio da competitividade, a priori, já seria inadequado a um projeto de
formação humana, por ser oposto à ideia de universalidade. Agrava-se ao definir-se pelo
alinhamento de estratégias, diretrizes e práticas de gestão de pessoas às estratégias de
negócio . A ação educativa consiste, por este princípio, em criar o conformismo ético-
psíquico para a adesão a um modelo de gestão pautado na competição e
individualização das responsabilidades, fragmentação das redes de solidariedade de
classe e obstrução da construção da consciência coletiva. Éboli recomenda, neste
princípio, favorecer a implantação do Modelo de Gestão por Competências. Aconselha,
ainda, a conceber programas educacionais a partir do mapeamento e alinhamento de
competências – empresariais e humanas.
Conectividade: Integração entre Educação Corporativa e Gestão do
Conhecimento. O sistema de gestão do conhecimento implica nas atividades de pesquisa
e difusão de competências e tecnologias adequadas á produção. Envolve a captura do
conhecimento tácito e do conhecimento explícito do trabalhador e sua “entrega” à
organização, o que, segundo Ricardo185, significa “agregar valor”, quando o conceito de
pesquisa refere-se á pesquisa informal nas situações cotidianas de trabalho e a
participação em círculos de qualidade ou em projetos de “soluções para melhorias
contínuas”, nos moldes toyotistas de participação intensificadora. Quando, no ciclo de
gestão do conhecimento, o termo “pesquisa” refere-se às atividades formais de produção
de conhecimento, este princípio da Educação Corporativa representa o controle pelo
mercado da produção e controle do conhecimento científico a seu favor.

Parceria: É o princípio segundo o qual a empresa firma contratos de colaboração


com instituições educacionais formais para certificação. Neste caso, a escola ou
universidade formata uma proposta curricular a partir das estratégias de negócios da
empresa. Este princípio diz respeito ainda á cultura de colaboração interna, que pode ser
lida criticamente como uma estratégia de hegemonia que consiste na produção de uma
consciência pactualista e desmobilizadora das lutas sociais.

Perpetuidade. È a transmissão da herança cultural da empresa para além de seus


muros e do seu tempo segundo Éboli. A perenização de seus valores e sua extensão às
outras dimensões da vida social.

Cidadania. Aqui afirma-se o conceito de cidadania corporativa ou cidadania


empresarial. É a extensão do ethos do capital para toda a cadeia de valor e sociedade,
consagrando o mercado e seus valores como os norteadores da vida social. Envolve,
além da assimilação strictu sensu da cultura da empresa, o comprometimento do
trabalhador com ações de responsabilidade social da empresa, com vistas aos ganhos de
capital.

Sustentabilidade. Este princípio assegura, na infindável criatividade


acumuladora do capital, que, além de representar os ganhos financeiros e ideológicos já
mencionados, o setor de Educação Corporativa torne-se um dos ramos de negócios
lucrativos ou “autossustentáveis” da empresa, pela capacidade de gerar receita direta.
Por meio de cobrança de matrículas e mensalidades, seja pela obtenção de
financiamento e bolsas.

185 Ricardo, Eleonora. Educação Corporativa e Educação a Distância Rio de Janeiro: Qualitymark, 2005.

88
Disponibilidade. É a capacidade de “aprender e ensinar em qualquer tempo e
qualquer lugar”, segundo Éboli. Representa o devassamento do tempo livre do
trabalhador na busca de conhecimentos e competências referentes á valorização do
capital. A literatura recomenda que as atividades de Educação Corporativa sejam
realizadas na modalidade de ensino a distância (EAD).

Segundo Meister186,

A Universidade Corporativa (UC) é um guarda-chuva estratégico para


desenvolver e educar funcionários, clientes, fornecedores e comunidade, a fim
de cumprir as estratégias empresariais da organização. O modelo de UC é
baseado em competências e interliga aprendizagem às necessidades estratégicas
de negócios. O conceito de Educação Corporativa surge diretamente
relacionado à estratégia de negócios.
Educação Corporativa é um sistema de formação de pessoas pautado por uma
gestão de pessoas com base em competências, devendo instalar e desenvolver
nos colaboradores (internos e externos) as competências consideradas críticas
para a viabilização das estratégias de negócio, promovendo um processo de
aprendizagem ativo vinculado aos propósitos, valores, objetivos e metas
empresariais. 187

Para melhor assegurar a sintonia entre a estratégia de negócios e a Educação


Corporativa, incluindo os aspectos atitudinais desejados no “novo trabalhador”, a
literatura recomenda que os docentes não sejam “professores profissionais”, mas
homens de negócios e funcionários bem-sucedidos da própria empresa.
A ideologia pactualista veiculada por este ideário, que vem penetrando no
território da formação humana, representando antagonismo à sua perspectiva contra-
hegemônica, a lógica utilitarista e a função hegemônica da Educação Corporativa, claras
em seus princípios e em toda a literatura que a sustenta, representam um modelo
incompatível com a perspectiva emancipatória.

II.2.2 – EDUCAÇÃO CORPORATIVA COMO POLÍTICA GOVERNAMENTAL


BRASILEIRA REASSUMIDA EM 2011

Educação corporativa pode ser definida como uma prática coordenada de


gestão de pessoas e de gestão do conhecimento tendo como orientação a
estratégia de longo prazo de uma organização.

Educação corporativa é mais do que treinamento empresarial ou qualificação


de mão de obra. Trata-se de articular coerentemente as competências
individuais e organizacionais no contexto mais amplo da empresa. Nesse
sentido, práticas de educação corporativa estão intrinsecamente relacionadas
ao processo de inovação nas empresas e ao aumento da competitividade de seus
produtos (bens ou serviços). (Brasil, MDIC, 2012)

186 Meister, J. Educação Corporativa: a gestão do capital intelectual através das universidades corporativas. São Paulo: Pearson
Makron Books, 1999.
187 Éboli, id.

89
Um dos traços da política para a Educação Corporativa no Brasil é sua
vinculação ao MDIC e não ao Ministério da Educação. A despeito da importância
atribuída ao pacto capital-trabalho nos programas oficiais para a educação brasileira,
não observamos a assimilação explícita desta modalidade naquelas que podem ser
consideradas as duas maiores iniciativas da gestão do Partido dos Trabalhadores no
campo da Educação: PDE (Plano de Desenvolvimento da Escola) com suas 28 metas e
inúmeros programas e o Projeto de Lei que visa a dar origem ao novo PNE (Plano
Nacional de Educação), que deveria ter entrado em vigor em 2011. A preponderância do
pacto já se faz notar no nome do PDE: Compromisso Todos pela Educação. O
Movimento Todos Pela Educação assenta-se justamente no pacto capital-trabalho, sob
hegemonia do capital. Já no PL encaminhado pelo governo ao Congresso Nacional,
observa-se em todo o capítulo referente à Educação Profissional, a atribuição ao
empresariado de papel diretivo nesta área, seja através do chamado Sistema S (SENAI,
SENAC, SESI, SESC etc.), seja através de parcerias com o “setor produtivo”, seja pela
própria concepção de formação subordinada ao mercado de trabalho e destinada
exclusivamente a este fim.
Se por um lado, o MEC em seus grandes projetos “ignora” a existência da
Educação Corporativa, mesmo estimulando o protagonismo do empresariado na
Educação Profissional, por outro lado, o MDIC, após 4 anos de silêncio, reassume
vigorosamente a defesa da Educação Corporativa em novembro de 2011 e prossegue ao
longo do primeiro semestre de 2012 empenhando-se no fomento a esta modalidade,
assumindo, inclusive, a condição de dirigente no sentido gramsciano.
O MIDIC, que naquela que podemos denominar de “primeira etapa” (2001-
2007), posicionou-se apenas como coadjuvante, apoiador e monitor do movimento de
Educação Corporativa, passa, em 2011 a assumir as funções de formulador. As
mudanças de conteúdo em seu portal na rede mundial de computadores no presente ano
revelam este deslocamento ou intensificação de seu papel.
Se anteriormente os discursos governamentais nas oficinas anuais
caracterizavam-se por apoio político, hoje este discurso se caracteriza pela formulação
teórica, mapeamento, classificação das modalidades internas à Educação corporativa e
pela tentativa de organizar a oferta.
Um exemplo é a classificação da oferta de Educação corporativa em:
Treinamento e Qualificação, Práticas de Educação Corporativa e Universidade
Corporativa. Esta classificação foi apresentada recentemente no portal:

Treinamento e Qualificação: São empresas que não possuem práticas de


educação corporativa, mas ao se cadastrarem aqui, manifestam interesse em tê-
las.
Prática de Educação Corporativa: São empresas que já atuam com educação
corporativa, mas não chegaram a constituir uma universidade corporativa.
Universidade Corporativa: Representa a consolidação da prática de educação
corporativa na empresa. Além das características de prática de EC, para ser
considerada uma universidade corporativa, a prática deve envolver a criação de
uma unidade física com uma ampla gama de cursos e atividades de treinamento,
qualificação e formação de pessoas (público interno e externo da empresa), de
níveis e modos de ensino distintos, com estratégias operacionais de educação
distintas e coordenadas; podendo, inclusive, constituir em uma unidade de
negócio da empresa.” (BRASIL, MDIC, 2012)

90
Como a oferta é dispersa e não há exigência de credenciamento oficial, não se
pode contar com um banco de dados que confiavelmente possa dizer quantas e quais são
as universidades corporativas no Brasil. Nem as modalidades de formação oferecidas.
Molnar (2010) analisa o papel do MDIC como indutor da política de Educação
Corporativa no Brasil, destacando que este ministério origina-se do Ministério do
Trabalho que tinha, como missão, intervir sistematicamente no conflito de classes no
contexto do primeiro Governo Vargas. Mais do que intervir no conflito de classes, hoje
o MDIC tem o papel de fomentar uma modalidade de formação de trabalhadores que é,
por definição, ao mesmo tempo preventiva e repressora deste conflito.
Se o projeto pedagógico/curricular de uma Universidade Corporativa ou de uma
unidade de Educação corporativa toma obrigatoriamente como ponto de partida o plano
estratégico da empresa (ou organização), instala-se aí uma contradição fundamental e
insanável. A literatura do campo de Estudos do Trabalho tem demonstrado
exaustivamente a subumanidade prevalecente no labor contemporâneo. A subordinação
da formação do trabalhador à empresa, especialmente quando ultrapassa o estágio de
treinamento interno para funções imediatas e avança na esfera da Educação Formal,
alimenta e reproduz as desigualdades de classes.
Um dos tentáculos da Educação Corporativa tem se ocupado diretamente da
escola pública. Um exemplo é o de uma siderúrgica na periferia do Rio de Janeiro, que
vem encontrando grande resistência dos movimentos sociais de base na região, por
danos ambientais que têm levado a população à morte por inalação de substâncias
nocivas lançadas na atmosfera pela empresa, além da destruição do ecossistema,
acarretando fim das atividades extrativistas tradicionais, como pesca artesanal.
Além de utilizar o aparato jurídico e militar para reprimir a resistência, a
empresa, por meio de sua universidade corporativa, instituiu uma escola estadual de
nível técnico em seu território interno. Além desta iniciativa, assumiu a capacitação de
professores de Ciências e Educação Ambiental da coordenadoria de Educação pública
na região, em demonstração de que os contornos da empresa-escola cada vez mais se
diluem na escola-empresa.
Compreendemos a retomada pelo governo brasileiro da indução à Educação
Corporativa como parte do conjunto de Políticas e Programas para a formação de
trabalhadores, independendo do fato de localizarem-se em ministérios diferentes,
dizerem respeito imediatamente à escola-empresa ou à empresa-escola ou de se
constituírem na esfera da educação formal ou não –formal. Independendo ainda de
alcançarem abrangência na formação geral ou profissional em sentido restrito. Cada um
destes aspectos do panorama de formação de trabalhadores é parte orgânica do todo que
se configura atualmente pela absorção das demandas educacionais do capital pelo
Estado.
Além disto, consideramos que a condição de exterioridade da política para a
Educação Corporativa a programas como PRONATEC, PDE ou, ainda, no Projeto de
Lei para o PNE não a situa como política não orgânica ou alheia às disputas de sentido.
A política geral de Educação Profissional tem como aglutinador ideológico o
pacto capital-trabalho anunciado na campanha presidencial à primeira gestão do
governo do Partido dos Trabalhadores e levado à efetividade nas três gestões
protagonizadas por este partido e sua política de alianças.
Este pacto configura-se, na área das políticas educacionais, corporativas ou não,
em igual intensidade, por redução da Educação Profissional às funções compensatórias
e às funções subalternas aos arranjos produtivos locais, regionais e àqueles desejáveis à
condição ocupada pelo país na divisão internacional do trabalho na contemporaneidade.

91
Registramos o expressivo, embora silencioso, avanço da Educação Corporativa
para a formalidade, mesmo que por meio de parcerias com universidades e escolas
credenciadas pelo MEC e Secretarias de Educação, particularmente na formação
técnica, tecnológica, na graduação e na pós-graduação, como constatam trabalhos
desenvolvidos pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em Trabalho e Educação na Fiocruz
entre 2003 e 2012188. Embora não contando com dados oficiais, pela peculiar condição
de instância interna às organizações, o próprio MDIC estima em mais de 250 o número
de universidades corporativas, o que ultrapassa o número de universidades públicas no
Brasil. Em um cenário onde a Educação Superior brasileira já se encontra privatizada
direta e indiretamente189, este dado agrava.
A retomada do fomento oficial à Educação Corporativa em 2011 e 2012
evidencia o caráter subalterno do conjunto de políticas de formação no/para o trabalho
nos contornos da posição assumida pelo governo brasileiro no processo de
“desenvolvimento” capitalista.
Em seu sentido hegemônico, a Educação Corporativa é incompatível com a
formação humana entendida como instância de construção da concepção orgânica de
mundo da classe trabalhadora.

II.5 – MERCANTILIZAÇÃO E FINANCIALIZAÇÃO NA EDUCAÇÃO


SUPERIOR: A “UNIVERSIDADE MICRO-ONDAS”190 E A AFIRMAÇÃO DA
EDUCAÇÃO SUPERIOR COMO “SERVIÇO DE MERCADO”

Neste capítulo propomos a análise do processo de mercantilização da Educação


Superior brasileira, configurado atualmente na financialização 191, internacionalização e
concentração de capital.
Considerando que cerca de 90% das instituições de Educação Superior brasileira
pertencem ao setor privado, concentradas em cerca de quinze grandes grupos, as
consequências deste fenômeno sobre a qualidade da educação, formação humana e
trabalho docente justificam seu exame rigoroso e crítico.
Constatamos a formulação e implementação de tais políticas a partir da ação
orgânica do capital no setor, por meio da ABMES – Associação Brasileira de
Mantenedoras do Ensino Superior, da Frente Parlamentar em Defesa do Ensino Superior
Privado e do Fórum da Livre Iniciativa na Educação Superior.
O quadro de precarização que vem se desenhando na Educação Superior nos
últimos anos é expressão de um projeto internacional de mercantilização desta
atividade. A partir da implantação das políticas neoliberais, a Educação, assim como
outras atividades de natureza social ou que envolvem direitos fundamentais, como a
Saúde, passam a ser consideradas como atividades econômicas de “serviços”, tanto

188 Alguns dos relatórios de pesquisa sobre universidades corporativas disponíveis no GEPTE: Educação Corporativa como política
pública (por Mônica de Oliveira Molnar); Universidade Corporativa da Vale (por Giovane Saionara Ramos); Educação Corporativa
na Fundação Unimed (por Nayla C.F. Ribeiro); Universidade Corporativa do Hospital Israelita Albert Einstein (por Carla Telles dos
Santos); Universidade corporativa da AMIL (por Nayla c. f. Ribeiro e Thalita Oliveira Almeida); Universidade Corporativa dos
Correios (Valdemar Ferreira da Silva); Universidade Corporativa da Leader Magazine (Daniele Cruz). O último relatório citado foi
orientado pela professora Dra. Neise Deluiz, enquanto os demais, pela autora deste artigo e coordenadora do GEPTE, responsável
também pela pesquisa de atualização do quadro da EC no Brasil em 2012.
189 Diretamente porque 89% das instituições de Educação Superior no Brasil são privadas, segundo o Censo da Educação Superior
referente a 2010 e divulgado em 2012 pelo INEP-MEC. Indiretamente porque são notórias as parcerias das universidades públicas
com entidades privadas para captação de recursos para pesquisa, cursos realizados por fundações privadas, mas com emissão de
certificado pelas universidades, absorção do gerencialismo de mercado e da metodologia industrial de produtividade e de controle
externo de qualidade nas universidades etc.
190 Designo “universidade micro-ondas”, por metáfora, o modelo de Educação Superior reservado ao capitalismo periférico:
descongelar e “servir” o conhecimento produzido no capitalismo central.
191 Termo adotado por Harvey, 2008, para designar a abertura de setores da economia ao mercado de capitais. Também referido
neste trabalho como financeirização.
92
quanto as instituições financeiras e comerciais. Assim consideradas, devem subordinar-
se à mesma lógica de bancos ou redes de comércio varejista: corte de custos com vistas
à ampliação da margem de lucros. O corte de custos envolve diretamente a força de
trabalho em todos os setores submetidos a esta racionalidade e não seria diferente com o
magistério. São apresentados ao magistério os mesmos mecanismos de coerção,
ameaças, avaliações punitivas, instabilidade, padronização do trabalho e perseguição de
metas inalcançáveis comuns aos demais setores. E as metas são progressivas e
inalcançáveis propositalmente, porque o objetivo não é propriamente seu alcance, mas o
acionamento do “chicote” da insegurança, o que, segundo esta corrente de gestão do
trabalho, seria o melhor elemento motivador da eficiência. A concepção de trabalho
como compromisso pessoal e político não passa pelas mentes dos gestores de negócios,
portanto não lhes é possível também supor que o professor possa exercer seu trabalho
com responsabilidade e seriedade.
Durante os primeiros anos de política neoliberal no Brasil, ocorreu uma
expansão irrefreada da Educação Superior privada e precarização da esfera pública.
Atualmente, percebe-se a ampliação das IES públicas e um movimento de “limpeza de
terreno” nas IES privadas: fusões, aquisições, enfim, a reestruturação do setor para atuar
como “gente grande” no mercado, inclusive no mercado financeiro. Consolidaram-se
cerca de quinze grandes grupos educacionais que vem devorando as menores, gerando
consequências alarmantes para o magistério e para a qualidade da formação oferecida.
A concentração de capital no setor vem acompanhada da financeirização 192 e do
deslocamento das esferas de decisão, que não mais se localizam na direção acadêmica
da IES, reduzidas a meros prestadores de contas aos acionistas, ao mercado. A Rede
Kroton é um exemplo. Seu novo modelo pedagógico não foi apresentado ou discutido
em uma reunião da comunidade docente e discente, mas na reunião de “prestação de
contas ao mercado”, realizada trimestralmente, com vistas à apresentação aos acionistas
do balanço e das perspectivas de recuperação econômica do “negócio”, de valorização
das ações na Bolsa de Valores. Ali é apresentado o novo modelo curricular, a nova
gestão do trabalho docente e administrativo, o novo modelo de relacionamento com o
“cliente”. As decisões acadêmicas, portanto, orientam-se para o aceite dos acionistas.
No processo de IPO193 são contratadas empresas de consultoria encarregadas de
formatar o novo currículo ao gosto do mercado “investidor”, pautado na ampliação dos
lucros. O coordenador pedagógico perde seu caráter intelectual e político de liderança
na construção do projeto pedagógico em conjunto com a comunidade educacional, para
reduzir-se a mero “gerente”, executor do modelo e fiscalizador do cumprimento de
metas.
A acentuação da subordinação do acadêmico ao financeiro pela externalização
da esfera de decisões que, como visto, desloca-se oficialmente do interior da IES para o
mercado, personificado nos “grupos de investimento”, afeta ainda as IES que mantém
outro perfil, como as pequenas e médias ainda não abertas ao mercado de ações, que,
compelidas às leis da concorrência, adaptam os modelos acadêmicos do mercado a seus
cursos, tanto para acompanhar os modismos pedagógicos, quanto – e sobretudo – com o
objetivo de corte de custos.

192 Nos últimos anos as IES vêm ingressando no mercado financeiro, através da abertura de capital , transformando-se em empresas
com fins lucrativos subordinadas aos acionistas. Este processo é conhecido como IPO, sigla do inglês para oferta pública inicial de
ações. Também denominado como processo de financialização.
193 Ver nota anterior.

93
O quadro de mercantilização e precarização da Educação Superior privada é de
extrema gravidade se considerarmos que, segundo o último Censo da Educação
Superior do INEP194, 90% das IES do Brasil são privadas.
As lideranças do processo de mercantilização a Educação Superior brasileira
mostram-se organizadas em torno da ABMES, Associação Brasileira de Mantenedoras
da Educação Superior e as associações por segmentos (universidades, faculdades
isoladas, centros universitários). Juntas compõem o Fórum Nacional do Ensino Superior
Privado, que vem agressivamente atuado junto ao Parlamento (conta com o apoio da
Frente Parlamentar em Defesa da Educação Superior Privada, composta por 214
congressistas). Realizam sistematicamente congresso e seminários, nos quais discutem
as políticas para o setor e traçam a agenda para o avanço da mercantilização.
O avanço das políticas neoliberais sobre o campo da educação tem se
intensificado no plano internacional, representado essencialmente pela reorientação da
política educacional sob o thelos econômico (Teoria do Capital Humano e Teoria do
Capital Intelectual) e pelo controle heterônomo do trabalho docente.
A mercantilização da educação requer a padronização do processo pedagógico e
a mutilação dos sentidos da docência e, em última instância, da formação humana. O
que está em risco com a mercantilização, com a redução da formação humana à
estratégia econômica, à formação para a adaptação à sociedade tal como ela se estrutura,
não é somente a educação, mas a própria condição humana, o potencial transformador
que um modelo de educação crítica deve valorizar.
Num contexto em que o “Novo Espírito do Capitalismo” (Boltanski e Chiapello,
2009) consiste na desumanização, na diluição dos vínculos, nas relações pautadas pelo
pragmatismo, na competitividade, nada mais adequado do que um modelo de educação
pautado nestes valores. Assim sendo, educação reduz-se a ensino e a instrução. Num
contexto onde as relações de trabalho produzem a “corrosão do caráter” (Sennett), é
possível entender a função de um projeto de educação que abra mão de sua dimensão
humana e social transformadora. A ética do “novo espírito do capitalismo” não
comporta sujeitos plenos, criativos, autônomos, em suma: humanos.
A política educacional prescrita pelos setores hegemônicos do capital
mundializado tem se afirmado de modo “desigual e combinado”, nos diversos espaços
da economia global. A cada bloco regional, a cada país, a cada continente, o modelo de
educação “útil” ao seu papel na divisão internacional do trabalho e da riqueza.
Exemplos desta ofensiva são as imposições, a partir de organismos internacionais como
OCDE, UNESCO, PREAL, de uma política de controle do desempenho escolar, do
trabalho docente, sob o pretexto de defesa da “qualidade”. Esta qualidade, longe de
pautar-se na valorização do profissional da educação, tanto no que tange às condições
de trabalho quanto à formação, desenha a caricatura de uma educação de baixa
qualidade, responsabiliza e Estado e os trabalhadores da educação, alega ser o mercado
o único capaz de formular, implementar e avaliar um modelo de ensino eficaz. Investe
contra a autonomia do trabalho pedagógico, atribui a culpa pelo fracasso escolar à
inércia dos docentes, inércia esta fomentada por planos de carreira que garantem
remuneração e estabilidade, “independentemente de critérios de desempenho”. O alvo
desta política, tal como tem acontecido em todos os setores do trabalho, são as entidades
sindicais, é a dimensão coletiva, á o potencial de crítica e luta representado pelo
movimento social. Interessa fragilizar o trabalhador, isolando-o, pondo-o a perseguir
solitariamente índices de desempenho que o tornarão merecedor de prêmios salariais.

194 Na ocasião da publicação deste livro o censo mais recente da Educação Superior é o referente a 2010, divulgado em janeiro de
2012.
94
O setor privado responde por 89,5% das IES no Brasil e 75% das matrículas.
Metade dessas matrículas se concentra no ensino noturno. Depreende-se, portanto, que a
formação da classe trabalhadora em nível superior está nas mãos do mercado.
Percebem-se comprometidas as funções sociais, científicas e tecnológicas da Educação
Superior, reduzidas ao ensino (de má qualidade).
Procuramos analisar os efeitos da reestruturação do “mercado” da Educação
Superior sobre o trabalho docente. Para tanto, abordamos elementos determinantes da
precarização do trabalho em geral e do trabalho docente em particular, como:
internacionalização por abertura ao mercado de capitais, consolidação, concentração de
capital, deslocamento de parte da produção de valor para a remuneração do capital
fictício.
Buscamos a apreensão da dinâmica da luta hegemônica, analisando a relação
Estado-Sociedade Civil, na interação de esferas do Estado, como a Frente Parlamentar
em Defesa do Ensino Superior Privado, com as da Sociedade Civil representantes do
“mercado educacional”, como Fórum das Entidades Representativas da ES Privada e a
Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior.
A atual configuração da Educação Superior expressa um movimento
desencadeado nas últimas três décadas: o deslocamento da atividade para o setor
privado, cujo ápice se deu nos anos noventa. Este setor constitui segmento da Economia
organizado como “mercado de serviços”. Seus aparelhos de hegemonia têm
desempenhado a função de propor limites à função reguladora do Estado.
Uma das características definidoras dos rumos adotados pelo setor – ou por sua
fração hegemônica – é o processo de abertura de capital ao mercado de ações, precedido
de renúncia à condição de entidades filantrópicas para caracterizarem-se como empresas
que produzem e vendem uma mercadoria. A renúncia à condição filantrópica, exigência
para listar suas ações na Bolsa, conduz à busca por mecanismos remuneratórios de
capital e cortes de custos operacionais que compensem a perda da isenção fiscal advinda
da mudança de status jurídico. Além desta motivação financeira, o novo modelo de
gestão imposto pelos investidores, em geral grandes grupos transnacionais, resulta na
busca permanente de cortes e “otimização” da gestão. A reestruturação jurídica,
financeira e de trabalho nas IES não é um fenômeno singular, mas expressão de uma
tendência que vem se afirmando há cerca de três décadas no plano internacional, como
expressão do modelo neoliberal e “neofordista”.
A Conferência de 1990 em Jomtien consagra no campo educacional o que o
Consenso de Washington consagra no plano econômico-político para o delineamento
deste modelo. Tanto um quanto outro são elementos-síntese de um processo histórico
multideterminado e, em última instância, traçam as diretrizes para a “era do mercado”.
Condensam uma ideologia, que na compreensão gramsciana 195 é a concepção de mundo
orgânica a uma classe social, posta em operação na construção da hegemonia.
Amparam-se na ideia-força196 de que o mercado é o legítimo fundamento da economia e
da sociabilidade e de que a educação consiste em atividade de natureza econômica tal
qual todas as outras, devendo ser oferecida pelo mercado sob a forma mercadoria-
serviço e sob as regras da produção e da circulação de mercadorias.
O quadro que se delineia a partir de então na ES privada compõe-se
essencialmente dos seguintes elementos: concepção mercantil da educação, abertura de
capital, internacionalização, concentração do capital em mãos de grandes grupos
nacionais e internacionais liderados no Brasil pelos grupos Objetivo, Kroton,

195 SANTOS, 2000.


196 “As afirmações do liberalismo são ideias-limite que, reconhecidas como racionalmente necessárias, tornaram-se ideias-força,
realizaram-se no Estado burguês (...)” (GRAMSCI, 2004, p. 79).
95
Anhanguera Educacional, Estácio Participações etc., mudanças curriculares de teor
neotecnicista, neoprodutivista e neofuncionalista 197.
Este quadro, além de produzir danos aos trabalhadores envolvidos no setor,
como instabilidade, ruptura dos laços socioafetivos, perda das condições de subsistência
e/ou de tempo livre, perda do sentido do trabalho, compromete a qualidade da formação
humana e do papel da ES na produção e difusão da ciência e no desenvolvimento da
consciência crítica. Se tomarmos o trabalho em sua dimensão ontológica198,
compreenderemos a destruição do sentido do trabalho docente, em última instância,
como a destruição do sentido da existência destes trabalhadores ou a corrosão de seu
caráter199. Mutilar o trabalho pedagógico, retirando-lhe a dimensão criadora,
epistemológica, política, transformadora e socioafetiva em nome das aulas padronizadas
do mercado, da economia de escala realizada em aulas por atacado, representa o
genocídio existencial de professores e alunos, impedidos da construção de novas ideias-
força que levem ao limite as ideias-força burguesas, a partir do que Gramsci chama de
elevação cultural das massas. 200

ELEMENTOS DA REESTRUTURAÇÃO DA PRODUÇÃO E DA GESTÃO NO


PLANO DA INFRAESTRUTURA

A proposta apresentada pelos Estados Unidos em 1999 para que a educação


passe a compor o rol das atividades de serviços subordinada ao mercado, por meio da
OMC/GATS, é a consignação da ideia de educação-mercadoria. Mais do que submeter
ao mercado as regras de comercialização de uma mercadoria, é a própria “produção”
desta mercadoria, seu significado, dimensões, processos e relações que são
subordinadas à lei da mais-valia e seu conflito estrutural. Dentre as características da
internacionalização ao modo da OMC/GATS temos: a internacionalização da “carteira
de clientes” (discentes) e do corpo docente, a padronização curricular e didática em
esfera mundial, o fim das “barreiras” formais para o exercício da docência, o
rebaixamento dos salários pelo menor nível do mercado internacional. A
desterritorialização neste setor, tal como em outros setores, como metalúrgicos,
operadores de call centers etc., acarretará a tendência de queda do emprego aqui, em
favor da compra de mão de obra de menor custo ali. Ainda que o Brasil não tenha
oferecido, até o momento, seu mercado educacional ao GATS, empresários do setor têm
perseguido acordos e lacunas na legislação que permitam a quebra dos limites legais e
pedagógicos representados pelos Estados nacionais. Amparam-se no chamado
“Processo de Bolonha”201, modelo de internacionalização formalizado no escopo da
União Europeia. Caracteriza-se pelo aligeiramento dos cursos, instrumentalização
curricular, padronização, desregulamentação da profissão docente e mobilidade docente
e discente. Sintetiza-se na busca do docente de menor custo onde quer que ele esteja 202 e
do discente, igualmente, onde quer que se encontre, e, ainda, na formação de consórcios
para fins de corte de custos salariais e de equipamentos. Nos consórcios, IES atuam
conjuntamente ou em rede, revezando e compartilhando encargos. Privilegia-se, para tal
fim, a EAD, Educação a Distância. A desterritorialização de regiões onde a força de

197 Ver, a respeito destes conceitos, SAVIANI, 2008.


8
LUKÁCS, 2004.
199 SENNETT, R. A corrosão do caráter. Rio de Janeiro: Record, 1999.
200 SANTOS, op. cit.
201 SIQUEIRA, 2009.
202 Refiro-me à apresentação da consultoria Sungard Higher Education, especializada em internacionalização da Educação
Superior, em evento promovido pelo Sindicato de Mantenedoras da Educação Superior do RJ, SEMEERJ, em novembro de 2008.
Na ocasião, a principal justificativa para a internacionalização foi a busca do docente de menor custo onde quer que ele estivesse.
96
trabalho apresenta acúmulo histórico de lutas, conquistas e níveis de organização
inconvenientes ao capital tem sido a tendência nos setores dos agronegócios, da
indústria e em muitas atividades de serviços, como o bancário, o teleatendimento e
outros. Realiza-se subsequentemente a reterritorialização ou relocalização da atividade
em regiões onde a força de trabalho apresenta maior vulnerabilidade.203 No caso do
Brasil, esta desterritorialização e reterritorialização pode ser observada nos últimos anos
com o deslocamento de atividades das montadoras de automóveis, indústria de bebidas
alcoólicas e o serviço privatizado das telecomunicações. Neste terreno, gerido por
“investidores” comprometidos tanto com a formação humana quanto com a indústria de
bebidas alcoólicas, de cigarros, de fármacos, de parques temáticos, 204 se move um dos
maiores setores da economia brasileira – a educação – que, somente em renúncia fiscal,
representa o montante de R$ 370 milhões ao ano 205. Segundo o censo do INEP de 2008,
publicado em fins de 2009, 90% das IES brasileiras são privadas; cerca de 75% do total
de alunos da ES estão matriculados nestas IES, em sua imensa maioria alunos
trabalhadores. O segmento da pós-graduação lato sensu apresentou crescimento na
ordem de 379% nos últimos anos no setor privado 206. A proporção entre IES públicas e
privadas inverteu-se nos últimos trinta anos. Contabilizam-se 391 mil trabalhadores
formais no setor privado brasileiro hoje, segundo Capelato 207. São 391 mil famílias
vulneráveis à instabilidade, à ameaça cotidiana de desemprego e/ou redução de carga
horária com consequente redução salarial, à perda de direitos. No caso do Rio de
Janeiro, por exemplo, cuja convenção coletiva prevê direitos como bolsas de estudos
para filhos de professores, a instabilidade no emprego docente e na carga horária
representa, adicionalmente, a instabilidade de continuidade de estudos para seus filhos.
O docente dedica-se a ensinar aos filhos dos demais trabalhadores, mas vê ameaçado o
direito de seu próprio filho permanecer estudando. Marx, ao formular o conceito de
alienação, nos auxilia na compreensão deste fenômeno.
Em pesquisa sobre a intensificação do trabalho no Brasil, Dal Rosso 208 aponta a
categoria de docentes do ensino privado como a que mais sofre os efeitos da
intensificação e da precarização do trabalho no Brasil em diversas das variáveis
consideradas. Observe-se que o autor averiguou um espectro amplo de categorias
profissionais de todos os setores da economia. Assim como nos setores bancário,
industrial, de comunicações e outros tantos, o setor educacional vem intensificando um
processo de concentração e abertura de capital ao mercado financeiro. A concentração
do capital (fusões, aquisições), nomeado por seus protagonistas como “consolidação”,
ocorre a partir de grandes grupos sediados no Rio de Janeiro e em São Paulo, que
avançam sobre IES de pequeno porte, grande parte do interior do país, como apontam
Duarte e Ribeiro:

(...) observa-se o processo de formação de conglomerados educacionais do


porte da Estácio Participações S.A., Grupo Anhanguera, Anhembi-Morumbi e a
Rede Kroton Educacional, com ramificações por vários estados. Esses grupos
protagonizaram transformações significativas no quadro de fusões e aquisições
no País. (...) a educação já é o terceiro setor em que mais ocorreram transações

203 ANTUNES, 2006.


204 DUARTE e RIBEIRO, 2009.
205 Valor divulgado por Rodrigo Capelato, presidente do SEMESP, Sindicato das Mantenedoras da Educação Superior do Estado
de São Paulo, em conferência no II Congresso da Educação Superior Particular, Araxá, MG, junho de 2009.
206 Idem.
207 Idem.
208 DAL ROSSO, 2008.

97
desse tipo no ano de 2008. Esse setor só perde para as áreas de Tecnologia de
Informação e Alimentos-Bebidas-Cigarros. (...). As IES pequenas e lucrativas
serão compradas pelas maiores; as deficitárias, fechadas; e os grandes
conglomerados formarão um forte oligopólio.209

Para o ano de 2010 a Anhanguera prevê a compra de cerca de 100 IES. No Rio
de Janeiro, o Grupo Kroton adquiriu em 2009 a SUESC e em março de 2010 adquire a
Rede IUNI, com cerca de 5.200 professores e uma “carteira de clientes” composta por
cerca de 50.000 alunos, totalizando mais de 40 campi. O IBMEC vende 75% de seu
capital ao Grupo estadunidense Capital International, detentor da rede Magazines Luiza
no Brasil. Para tal façanha, estes grupos contratam consultorias experientes em
“modernização” da gestão nos moldes toyotistas, que se dedicam a modernizar escolas
como se modernizam as cadeias de lojas de varejo, bancos, montadoras de automóveis,
indústrias de bebidas alcoólicas. Os critérios de qualidade são os do mercado, oriundos
do núcleo central do capitalismo. Nunca se falou tanto em economia de escala no setor
educacional, nem mesmo nos tempos áureos do fordismo. É interessante observar que, a
despeito de uma das características atribuídas ao modelo toyotista – em suposto
contraste com o fordista – ser a substituição da economia de escala, da produção em
série, pela produção just-in-time, por demanda e flexível, não se pode afirmar, por um
lado, que o modelo se opõe ao paradigma fordista, nem, por outro lado, que com ele se
confunde. Há uma relação dialética entre os dois modelos, que, para além da
pseudoconcreticidade do antagonismo, são, em muitos aspectos, faces complementares
que se combinam no movimento de restauração capitalista das últimas décadas. Quando
o modelo modernizado julga conveniente lançar mão da economia de escala, não o
abandona por julgá-lo ultrapassado, aprisionado historicamente no fordismo. Neste
caso, o da educação, a economia de escala aplica-se, mesmo em contexto toyotista, pela
virtualidade da universalização desta “mercadoria”. Universalização ainda longe de ser
alcançada, mas, em sua virtualidade, presente no próprio discurso da empregabilidade,
onde o capital visa à produção um consumidor para um produto 210. Há consumidores em
potencial para a produção em escala desta “mercadoria”, principalmente se as IES
privadas produzirem-no. Como exemplo desta produção de um consumidor para um
produto, temos a demanda recente do Fórum da livre iniciativa: alteração da LDB no
sentido de permitir o ingresso na ES de candidatos que não tenham cursado o Ensino
Médio.

Teriam acesso a cursos de outra natureza, (...) sem Matemática, Física, estas
coisas (...) mas voltados para a prática do trabalho (...) A costureira, o
balconista da padaria, que não cursaram o Ensino Médio, querem ter um curso
superior, e pode ser um curso diferenciado (...) Se, após cursarem um período
do curso superior, forem aprovados, recebem retroativamente o diploma do
Ensino Médio.211

A solução apresentada pelas IES para a universalização são as aulas


padronizadas e a EAD como instrumentos da produção em escala. O termo “economia

209 DUARTE e RIBEIRO, op. cit.


210 De acordo com Marx, na dialética entre produção, circulação, distribuição e consumo, a produção, ocupando papel
preponderante, não cria somente um objeto para o consumidor, mas um consumidor para o objeto (MARX, K. 1978. p. 110.
211 Transcrição da fala de Antonio Carbonari Netto, dir.-presid. do Grupo Anhanguera Educacional, em apresentação no II Cong.
da E S Particular, Araxá-MG, junho de 2009.
98
de escala” é usado despudoradamente pelo discurso das empresas de consultoria
educacional comprometidas com este modelo de gestão.
No que tange às fusões e aquisições, há hoje no Brasil, segundo a Hoper
Educacional212, 12 grupos consolidadores com R$ 1,5 bilhão para comprar. O segundo
maior grupo consolidador, a Estácio Participações S.A., navega em uma margem líquida
de lucros da ordem de 7,5% de um patrimônio gigantesco.213 Há, por outro lado, um
conjunto de 1.700 IES sem condições de sobreviver à onda consolidadora, conforme
Braga, que devem se modernizar para serem adquiridas por ou fundirem-se às maiores.
“O setor tem um brutal poder de economia de escala. (...) A consolidação é
irreversível.”214As sugestões pedagógicas para a viabilização da consolidação e da
economia de escala, segundo Braga, são:

Avaliação docente eficaz (...), material e conteúdo de apoio padronizados (...),


aula estruturada previamente com itens específicos do roteiro de preparação da
aula (...), apresentação prévia do plano de aula; planejamento aula a aula (...),
centro de estruturação metodológica – learning center – que define toda a
estrutura das aulas (...), prova colegiada: a prova não deve ser elaborada pelo
professor, nem corrigida por ele. Professores passam a metade do semestre
falando de novela e futebol e no fim são avaliados pela opinião do aluno. Dão
uma avaliação fácil para todo mundo ter boas notas. É preciso medir se o
professor realmente cumpriu o planejamento, se de fato ensinou e se
efetivamente o aluno aprendeu. (...) No início, os professores serão contra, mas
é só dizer: Tem que fazer! Se não fizer, não trabalha mais aqui!215

São estas algumas das recomendações pedagógicas de uma das maiores


empresas de consultoria educacional dedicadas no momento a preparar as IES para
adquirem ou serem adquiridas, para tornarem-se boas compradoras ou boas mercadorias
vendáveis. E para pleitear junto ao MEC e ao Legislativo dispositivos formais para tais
propósitos.
Outro elemento relevante no movimento do mercado na educação consiste na
abertura de capital ou IPO216. Condição para o IPO, a renúncia da condição de entidade
filantrópica desvela a face mercantil do setor, que passa a assumir a condição de uma
organização “de negócios”. A perda de benefícios fiscais decorrentes da renúncia à
condição de filantropia é compensada pela busca de novos modelos de financiamento.
Precedido de uma fase de cerca de três anos de ajustes e adaptação da “empresa” ao
mercado, o IPO representa a transferência de poder decisório para investidores, que
passam a controlar os resultados da atividade financiada. São contratadas consultorias,
em geral de porte internacional, especializadas em realizar reengenharia em empresas
dos mais diversos setores da economia, para prepará-las para o mercado financeiro:
corte de custos, customização, intensificação da extração de mais-valia intensiva e
extensiva, adoção dos padrões gerenciais do mercado.Um aspecto decisivo é que a
geração de valor desloca-se parcialmente da atividade-fim ou da mercadoria específica
produzida/fornecida por aquela organização e passa a se concentrar no capital

212 Transcrição da apresentação de Ryon Braga, representante da consultoria Hoper Educacional, em apresentação no mesmo
evento.
213 Idem.
214 Idem.
215 Idem.
216 Sigla do original inglês para “oferta pública inicial” de ações, que designa a abertura de capital e listagem de uma determinada
organização na Bolsa de Valores.
99
financeiro. A atividade-fim passa a ser considerada um estorvo. Um inconveniente
similar, em bases legais, às atividades ilegais de lavagem de dinheiro, a face visível do
empreendimento, que oculta as reais fontes do lucro. A valorização das ações,
paradoxalmente, ocorre pela descaracterização da atividade-fim da empresa que, neste
caso, para baixar custos, rompe com qualquer caráter acadêmico e social de qualidade.
O capital fictício alimenta-se de cadeias especulativas que pouco guardam relação com
os atributos da mercadoria, mas com sua representação no mercado. Se a representação
(ou capital de marca)217 pode derivar de uma potente estratégia de marketing, a extração
de mais-valia desloca-se das atividades-fim (ensino, pesquisa e extensão) para o
relacionamento com o mercado. Os custos com a força de trabalho, ampliados pela
inserção dos trabalhadores produtores de valor de marca, devem ser enxugados nas
atividades docentes. É o conceito de lean-production penetrando a sala de aula.
Pretende-se, com isto, substituir o trabalho vivo docente por trabalho morto, cujo valor é
repassado aos equipamentos e materiais pedagógicos veiculados por “novas
tecnologias”, cujo uso precisa ser infinitamente maximizado. Esta substituição de
trabalho vivo por trabalho morto exige a descaracterização do trabalho docente, relação
presencial, trabalho em ato, para mera transmissão mediada por suportes das novas
tecnologias. Busca-se incessantemente o corte. A atividade educacional nas IES listadas
nas bolsas de valores não pode representar, na ótica gerencialista, gastos que venham a
causar preocupações nos investidores. Por outro lado, o capital de marca, parte dos
ativos da organização e componente do capital intelectual, não se sustentaria se a
própria atividade-fim não guardasse uma margem de lucratividade compensatória aos
olhos dos grupos de investimento. Para alcançar este objetivo, traçam-se duas linhas de
ação: diminuição dos custos da produção da mercadoria-ensino por sua
descaracterização, padronização e produção em escala e busca de financiamento público
como bolsas, empréstimos a fundo perdido para capital de giro em condições especiais
por tratar-se de “atividade social”. Interessante observar que, no discurso dos
empresários do setor, a educação possui dupla face: de mercado, quando seus porta-
vozes visam à desregulamentação; e social, quando visam ao financiamento por fundos
públicos. A cadeia fecha-se viciosamente quando os agentes financiadores são também
acionistas. Emprestam dinheiro, com incentivo governamental, para gerar mais dinheiro
para si mesmos, ou seja, como acionistas de uma IES, e, ao mesmo tempo, agentes
financiadores, veem o capital retornar duplamente valorizado: pela remuneração dos
empréstimos e pela valorização das ações que detêm218. Ao pleitearem a abertura pelo
governo federal do financiamento estudantil (FIES) para bancos privados, e não
somente pela CEF219, os banqueiros acionistas de IES preparam-se para a
supervalorização de seu capital numa operação ambígua e ambivalente. Resumem-se
assim as características do atual modelo de gestão das IES, no plano da infraestrutura, .
Na próxima seção do artigo discutiremos a reestruturação da produção e da
gestão com base em elementos superestruturais. Registrando, contudo, que as duas
dimensões são inseparáveis: tanto em uma como em outra, infra e superestrutura,
contam-se elementos de ambas.

217 O conceito de capital de marca, integrante da fórmula do “capital intelectual”, é discutido criticamente em SANTOS, 2008, p.
329 a 346.
218 Fundamento-me na transcrição de gravação da fala do vice-presidente do Itaú-Unibanco, Márcio de Andrade Schettini, na
Conferência de abertura do II Cong. da ES Privada, Araxá-MG, junho de 2009.
219 Esta é uma das demandas da Carta de Araxá, documento final do II Congresso da Educação Superior particular, Araxá-MG,
junho de 2009.
100
IDEOLOGIA PÓS-MODERNA, RELATIVISMO E A PRODUÇÃO DO
CONFORMISMO PSICOFÍSICO NEOFORDISTA NA UNIVERSIDADE
MICROONDAS

O totalitarismo de mercado emerge compondo com sua face ideológica o quadro


cultural propício à desmobilização política da classe trabalhadora e ao abandono da
perspectiva crítica no currículo. Tais elementos permitem que a organização da
sociedade civil reflita em maior escala os aparelhos de hegemonia do capital do que os
da classe trabalhadora, desarticulada com a ilusão do “fim da luta de classes” que
acomete parte relevante de seus até então intelectuais orgânicos e, em parte,
fragmentada pelos modelos de gestão do trabalho pautados na competitividade. A
chamada “crise de paradigmas” afeta todos os campos do conhecimento, especialmente
o das Ciências Humanas e Sociais, provocando o rechaço ao pensamento crítico de
linhagem materialista histórica, substituindo-o por um ideário relativizante e
fragmentário. Agora, a crítica dirige-se não ao modo de produção em sua estrutura, mas
às particularidades, aos “desvios” que a humanidade, com os “parcos” e “equivocados”
recursos epistemológicos que a modernidade lhe havia legado, não havia impedido. Se a
modernidade e sua ciência geraram um mundo de desumanidade, decretemos o fim da
ciência da modernidade. Este pensamento, levado às últimas consequências, tem
contribuído para formar nos últimos 15 anos gerações de novos profissionais, refratários
a qualquer luta política na dimensão da crítica do modo de produção, preocupados
exclusivamente com particularidades, diferenças, identidades, como se as
particularidades não pudessem, ou melhor, não devessem ser objeto de reflexão
específica, porém contextualizada e articulada com o macro. E a contextualização não
pode prescindir, ou melhor, fugir com horror, do panorama econômico. Fugindo
horrorizados de um suposto economicismo mecanicista, puristas epistemológicos
abraçam um neomoralismo relativista tão mecanicista quanto. Os fatos discutidos na
seção anterior deveriam ter-nos feito suspeitar que o econômico não morrera, que a luta
de classes não tivera fim. Da “crise de paradigmas” emerge o pensamento
neoconservador, terreno favorável à desmobilização política. Fomenta-se o fetiche de
alguns segmentos identitários desconectados do que ocorre além de seu foco particular
de luta. Por sua vez, o capital continua cada vez mais articulado globalmente e como
classe. O projeto de desmobilização pós-moderna revolve o passado em busca de
paradigmas tão herdeiros da modernidade quanto o “Mecanicismo” ou o
“Estruturalismo”, ou seja, a Fenomenologia, revestida de neoconservadorismo e em sua
tradição mais aristocrática. Ressurge, leve de consciência, uma ciência descritiva e
contemplativa, horrorizada ante o risco de macular, com suas próprias “impurezas
científicas” e “pretensões de verdade”, o senso comum, o sagrado senso comum. Uma
leitura menos vulgar da tradição marxista permitiria ver a relevância da cultura em
Marx, Engels, Gramsci, Thompson, Hobsbawn e muitos outros. Não precisamos abrir
mão da crítica ao modo de produção capitalista para darmos atenção à dimensão
cultural. A projeção que este linchamento epistemológico sofrido pela tradição crítica
materialista alcançou no mundo da produção das ideias, das ideias-mercadorias, das
mercadorias-ideias é impulsionado, inclusive financeiramente, através do fomento à
pesquisa, mesmo no interior das IES públicas.
Este neoconservadorismo invade a sala de aula a partir da concepção curricular
relativista e o compromisso político do educador como eixo formador do magistério sai
de cena. Vemo-lo substituído por uma infinidade de “saberes” particulares, disciplinas
instrumentais ou de suposta formação para a “cidadania”, uma cidadania abstrata talvez
mais próxima da “cidadania corporativa”, da responsabilidade social, da

101
“culpabilização” do indivíduo pelos danos ambientais e pelas epidemias. A falta de
questionamento mutila hoje a formação do magistério em sua capacidade crítica e até
mesmo cognitiva. É esta consciência ingênua que nossas IES estão forjando nos alunos
dos cursos de Pedagogia, Licenciaturas, Serviço social etc. Esta epistemologia
neoconservadora acomoda-se perfeitamente nas mudanças infraestruturais descritas na
seção anterior. Gera o conformismo psicofísico adequado aos novos modelos de gestão
do trabalho, pautados no neotecnicismo, padronização, divisão do trabalho. A docência
é reduzida a operacionalização de uma pauta produtivista determinada
heteronomamente pela “alta hierarquia” da corporação e seus intelectuais orgânicos.
E se, mesmo contrariando a cultura do conformismo, o docente insistir em que a
aula padronizada não lhe permitirá exercer a atividade criadora, como ser cognoscente,
autônomo? E se insistir em formar novos profissionais e novos seres políticos
igualmente cognoscentes e autônomos frente às ideologias neoconservadoras? E se
persistir em seu papel de professor, de trabalhador pensa e projeta sua ação? Já temos a
resposta oferecida pela Hoper Educacional, por meio do Sr. Ryon Braga: “Tem que
fazer! Se não fizer, não trabalha mais aqui!”
Este docente, ao não abdicar de sua condição de educador, ao lutar pela
dimensão ontológica de seu trabalho, ao recusar-se à mutilação em uma prática
padronizada de transmissão de informações e veiculação de ideologias ingênuas (ou
melhor, ideologias astuciosas, mas que, para tornarem-se operantes, necessitam de
consciências ingênuas), é desqualificado como alguém refratário às novas tecnologias,
desatualizado, jurássico, “autista”, “bicéfalo”. 220
Esta política de desqualificação do trabalho docente tem como uma das
instâncias de produção ideológica o PREAL, como visto em capítulo anterior. O
Programa de Promoção das Reformas Educacionais na América Latina assim identifica
sua finalidade:

Nós, os empresários, como consumidores do produto da escola, que é a força de


trabalho, temos o direito e o dever de definir o que deve ser ensinado na escola
e como.221

Sua estratégia tem sido desmoralizar e desqualificar o docente da América


Latina. Constrói uma caricatura da atuação dos professores, argumentando que as aulas
são “declamadas” ao estilo “tradicional”; empreende ofensiva contra planos de carreira
derivados de lutas coletivas, propondo sua substituição por remuneração baseada no
mérito, em consonância com a tendência mundial no neoliberalismo de individualizar a
avaliação e a remuneração do trabalhador, deslocando o foco da negociação coletiva
para a perseguição de “metas” irrealizáveis; propõe certificação alternativa por
competências e o fim da regulamentação do exercício profissional. Objetiva à destruição
da dimensão coletiva da carreira. Formula textos e informes educativos para nortear
políticas, recorrentes no intento de desmoralização do trabalhador docente. Para ampliar
a desmoralização e vulnerabilizar ainda mais a categoria docente, a fim de veicular o
modelo da padronização para economia de escala, alegam serem os professores os
piores alunos egressos das escolas básicas, aqueles de pior desempenho nas provas de
inteligência, personalidades acomodadas que escolhem a profissão docente por ser

220 Cito aqui a transcrição da gravação da fala da consultora da FIESP, Guiomar Namo de Mello, que atribui ao docente a condição
de autista, bicéfalo, jurássico e outras qualificações menos elogiosas, ao referir-se à resistência dos docentes às mudanças, à
adaptação ao mercado. Transcrição do II Congresso da Educação Superior Particular, Araxá-MG, junho de 2009.
221 SANTOS, 2004.

102
previsível e rotineira222. Apelam com argumentação sexista para legitimar a baixa
remuneração:

(...) há que se considerar o fato de que os professores da região são em imensa


maioria do sexo feminino e provêm de lares onde a remuneração se
complementa com a do cônjuge.223

Estes são os traços decisivos, no plano da superestrutura, determinantes e


determinados do/pelo quadro de mercantilização da Educação Superior: substituição dos
paradigmas epistemológicos críticos pelo descompromisso político, do sentido de classe
pelo sentido de indivíduo ou fração, gerando uma consciência ingênua e despolitizada
nos novos professores. Essa consciência favorece a imposição, sob o disfarce da
“modernização tecnológica”, de concepções de trabalho, trabalho docente,
conhecimento, ciência, currículo e do papel social da educação convenientes ao
neopragmatismo, neofuncionalismo e neoprodutivismo, que por sua vez são ideologias
orgânicas do modelo de reestruturação produtiva discutido em capítulo anterior

SOCIEDADE CIVIL E ESTADO:


AS AÇÕES DOS EMPRESÁRIOS DO ENSINO

Esta seção trata de ações dos empresários de ensino organizados em seus


aparelhos de hegemonia, a saber, a ABMES – Associação Brasileira de Mantenedoras
da ES e o Fórum da Livre Iniciativa na ES. Ambos têm como interlocutor em sua guerra
de posições, a Frente Parlamentar em Defesa das IES Privadas. Segundo o Dep. Fed.
João Mattos, então presidente da Frente, em pronunciamento durante o II Congresso da
ES Privada em junho de 2009, este agrupamento contava naquela data com 214
parlamentares no Congresso Nacional Brasileiro. Com esta base de apoio parlamentar é
possível ao setor propor alterações a seu favor na legislação, oficializando a
mercantilização da Educação Superior. A Frente esteve presente pela representação de
diversos parlamentares durante todo o Congresso de Araxá 224, declarando afinidade com
a ideologia manifestada.
O Fórum da Livre Iniciativa na Educação Superior, organicamente ligado à
ABMES e às entidades representantes das modalidades específicas das IES, como
associações de universidades, centros universitários, faculdades isoladas e integradas, é
o responsável pela organização anual dos congressos da Educação Superior particular:

2008 – Porto de Galinhas – PE


2009 – Araxá – MG
2010 – Florianópolis – SC
2011 – Salvador – BA
2012 – Natal – RN

Destes congressos, emitiram-se documentos finais, as Cartas de Recife, Araxá,


Florianópolis, Salvador e Natal, encaminhadas ao Ministério da Educação como
demandas oficiais do setor.
Tanto a ABMES quanto o Fórum notabilizam-se pela contundência com que
atacam o Estado Nacional. Como bons representantes da economia capitalista,

222 CASTRO e IOSCHPE, 2007.


223 Idem.
224 Ver notas anteriores sobre o Congresso.

103
abominam o Estado em sua função reguladora, mas não prescindem de sua forte
presença como ente financiador. O mercado educa, mas o Estado financia.
Além da internacionalização e ampliação do financiamento público, como
expansão do PROUNI para IES inadimplentes com o fisco, expansão do PROUNI para
a pós-graduação e para a Educação Profissional, utilização dos recursos do FAT e do
FGTS para financiamento de mensalidades, obtenção de financiamento de capital de
giro junto ao BNDES, o principal foco nas duas cartas situa-se no campo da
regulamentação e supervisão exercidas pelo MEC (credenciamento, autorização,
reconhecimento, renovação, avaliação, acompanhamento).
As entidades patronais posicionam-se frontalmente contra o SINAES, Sistema
Nacional de Avaliação da Educação Superior, propondo a criação de uma agência de
acreditação para o setor privado, controlada pelo próprio setor, completamente
independente do poder público e com critérios de qualidade definidos pelo mercado.
Para a consecução destas metas (autorregulamentação com financiamento
público), vêm desenvolvendo intensa e sistemática atuação frente ao governo
(Executivo e Legislativo). Mantém-se regularmente na agenda das comissões de
Educação da Câmara Federal e do Senado, além da própria Presidência da República. A
ABMES realiza mensalmente seminários para formular suas políticas. Igualmente, as
entidades representativas das mantenedoras nos estados realizam seminários regulares.
Analisamos a mercantilização da ES empreendida nas últimas décadas no
quadro político-econômico neoliberal da mundialização do capital e da reestruturação
dos paradigmas da produção e da gestão do trabalho. A mercantilização tem concorrido
para a desqualificação docente e para a perda de sentido de seu trabalho, bem como para
a descaracterização do processo pedagógico e das relações educacionais. Aponta o rumo
do “novo” individualismo do mercado.
Como afirma Gramsci, “As baionetas dos exércitos de Napoleão encontravam o
caminho já preparado por um exército invisível de livros, de opúsculos (...)”225. Temos,
da parte da ação hegemônica do capital da educação, o exército de “livros” e
“opúsculos” do mercado imposto com seu projeto de formação de consciência ingênua
permeável a este exército.
Perelman (1996) nos permite compreender as técnicas de persuasão adotadas
pelas organizações estudadas. Apelos ao senso comum para a veiculação do ideário
neoliberal, favorecendo a pedagogia do mercado, como indica Harvey (2008), podem
ser examinadas com bases na “Nova Retórica” perelmaniana. “A adesão do interlocutor
no diálogo extrai seu significado do fato de este ser considerado uma encarnação do
auditório universal” (Perelman, 1996, p 41).

PARTE III

ALGUNS FUNDAMENTOS PARA A CONSTRUÇÃO DA PEDAGOGIA


ORGÂNICA DA CLASSE TRABALHADORA NA LUTA CONTRA A
PEDAGOGIA DO MERCADO: EDUCAÇÃO, CIÊNCIA, IDEOLOGIA E
HEGEMONIA EM GRAMSCI

III.1 – PARA COMPREENDER A ESCOLA UNITÁRIA:


REVISITANDO ALGUNS CONCEITOS

225 Gramsci, 2004, p. 59-60.

104
O empenho exigido do leitor na decodificação dos termos peculiares à obra
gramsciana acresce-se do movimento de contextualização. Foram 11 anos no cárcere
(1926-1937), precedidos por uma rica biografia, abreviada com sua morte prematura
logo após a saída da prisão.
Sua origem campesina no sul da Itália, sua experiência de juventude como
operário no norte do mesmo país, o choque cultural entre as duas realidades, enfim, sua
história de vida levou-o a valorizar a cultura escolar e a defendê-la como direito. Se
desde os primeiros anos já refletia sobre o direito á educação e contra a injustiça da
negação da escolaridade aos filhos de trabalhadores, especialmente os camponeses, ao
ingressar na vida operária e tomar contato com as atividades sindicais e políticas,
despertou para a necessidade da luta contra o capitalismo. Engaja-se no movimento
sindical e partidário socialista, torna-se um porta-voz da defesa de uma escola de
formação geral como condição para a luta hegemônica. Escrevendo em jornais
operários, recorre incessantemente ao tema da crítica à dualidade escolar, caracterizada
pela formação técnico-instrumental para os trabalhadores e cultura geral para a
burguesia. Gramsci denuncia em muitos artigos escritos na década de 1910 a
desumanização de uma escola profissional sem formação geral, sem os fundamentos
que permitem a crítica social.
Os fundamentos de seu pensamento, até o início da vida operária, mais de ordem
difusa, intuitiva e por estudos pessoais, são amadurecidos quando reconhece no
marxismo, ou filosofia da práxis, a concepção de mundo . Ao longo de toda a sua obra
constata-se a defesa permanente da filosofia da práxis considerada por ele a única
concepção verdadeiramente científica da realidade, já que desvenda o papel do trabalho
na criação de valor, por exemplo. Esta concepção de mundo deverá ser, para o autor, a
base a partir da qual as classes populares construirão sociedade que lhes assegure uma
situação de justiça, que reconheça o valor do trabalho e que lhe confira dignidade. Não
que a educação marxista se reduza ao estudo da crítica da economia burguesa, mas
todas as ciências deverão ser compreendidas em sua dimensão histórica. Somente a
historicização da filosofia e da ciência, operada pelo pensamento marxista, torna
possível ao homem a compreensão do seu papel de ator social.

Ao que parece, somente a filosofia da práxis realizou um passo à frente no


pensamento sobre a base da filosofia clássica alemã, evitando qualquer
tendência para o solipsismo, historicizando o pensamento na medida em que
assume como concepção de mundo, como ‘bom senso’ difuso na multidão (e esta
difusão não seria cabível sem a racionalidade ou a historicidade) e difuso de tal
maneira que possa converter-se em norma ativa de conduta. 226

Com Marx a história continua a ser domínio das ideias, do espírito, da atividade
consciente dos indivíduos singulares ou associados. Mas as ideias, o espírito,
substanciam-se, perdem a sua arbitrariedade, deixam de ser abstrações
fictícias, religiosas ou sociológicas. A sua substância está na economia, na
atividade prática, nos sistemas e nas relações de produção e de troca. A história
como acontecimento é pura atividade prática (econômica e moral). Uma ideia
realiza-se não enquanto logicamente coerente com a verdade pura, com a
humanidade pura ( a qual existe apenas como programa, como fim ético geral
dos homens), mas na medida em que encontra na realidade econômica a sua

226 Gramsci. 1989b, p. 33.

105
justificação, o instrumento para se afirmar. Para conhecer com exatidão quais
são os fins históricos de um país, de uma sociedade, de um agrupamento,
importa antes de tudo conhecer quais são os sistemas e as relações de produção
e de troca desse país, dessa sociedade. 227

O marxismo seria, então, a base filosófica para construção da nova cultura.


Cultura ampla. O próprio Gramsci é exemplo disso, dada a diversidade de seus
interesses culturais, transitando da Literatura ao Teatro, ao Jornalismo, à História,
Linguagem etc. Mas a cultura tem, para Gramsci, função política de compreensão do
mundo. Utiliza muito a expressão “elevação cultural das massas”, que poderia soar
estranho se, olhando superficialmente, víssemos um julgamento de valor nesta
expressão, como se ele estivesse considerando a cultura das massas inferior. Todavia, é
necessário contextualizar. De que lugar fala o autor? Qual sua origem? Em que
sociedade vive? Que experiências viveu na situação de “privação” dos instrumentos
culturais valorizados socialmente? Gramsci critica a demagogia em torno do senso
comum e assume a defesa do direito à cultura formal, ao pensamento científico.
Cultura, na obra de Gramsci, adquire uma conotação bem específica de
orientação para a prática, consolidação de uma visão de mundo coerente e
fundamentada. É ideologia orgânica. Essa “nova cultura” teria como propósito a
elaboração das bases políticas para a transformação social. A preparação política,
filosófica e científica das classes populares (reforma intelectual e moral) é condição
para o exercício da hegemonia, visto que, na sua concepção de poder, capacidade de
direção política deve ser atributo não de poucos, mas da coletividade.
A transformação das estruturas da sociedade só ocorre se precedida de um
intenso trabalho cultural, condição para a eliminação da divisão social entre governantes
e governados, dirigentes e dirigidos.

Gramsci está convencido de que para se tornar ‘classe dirigente’, para triunfar
naquela estratégia mais complexa de longo alcance, o proletariado não pode se
limitar a controlar a produção econômica, mas deve também exercer sua
direção político-cultural sobre o conjunto das forças sociais que, por esta ou
por aquela razão, desse ou daquele modo, se opõem ao capitalismo. E, para
poder fazê-lo, a classe operária tem de conhecer o efetivo território nacional
sobre o qual atua, tem de conhecer e dominar os mecanismos da reprodução
global da formação econômico-social que pretende transformar. 228

O desenvolvimento da capacidade hegemônica é a tarefa fundamental da classe


trabalhadora, segundo Gramsci, para construção da nova sociedade. Quando puder
expressar-se como classe, liberta dos interesses corporativistas, do imediatismo; classe
coesa e “cimentada”229 por uma visão do mundo coerente e unitária, estará preparada
para desarticular as causas das desigualdades sociais.
Um dos conceitos fundamentais em Gramsci é o de ideologia. Como este é um
termo de conceituação múltipla mesmo entre os autores de origem marxista, torna-se
necessário esclarecer qual é a acepção adotada por Gramsci. Embora ocasionalmente
possa referir-se à ideologia como ocultação ou dissimulação da realidade (ao referir-se à

227 Gramsci apud Cavalcanti, s/d, p. 50.


228 Coutinho,1985, p. 36 e 37.
229 Para Gramsci, a função da ideologia é cimentar e conferir organicidade à concepção de mundo e às ações de classe. (Santos,
2000).
106
ideologia da classe dominante e ao seu papel na ordem de dominação), é com a outra
acepção – a de concepção de mundo orgânica a cada classe social – que Gramsci
desenvolve sua teoria política. Nesse sentido, o marxismo seria a ideologia, a concepção
de mundo, que tornaria possível à classe trabalhadora o reconhecimento de seu papel na
construção da nova ordem social. Ideologia é definida por Gramsci como:

...concepção de mundo, que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na


atividade econômica, em todas as manifestações de vida individuais e
coletivas.”230

Quanto mais consolidada, quanto mais unitária (articulando, por exemplo fatores
da infraestrutura e da superestrutura) e coerente a concepção de mundo, maior sua
capacidade de difundir-se e tornar-se referência para a ação, para a organização da
vontade coletiva. O bloco histórico 231 que dará origem à nova sociedade deverá estar
firmemente cimentado por esta base ideológica que, mais uma vez destacamos, origina-
se no pensamento marxista.
O marxismo é, para o autor, a ideologia orgânica da classe trabalhadora na
medida em que é a única filosofia que se coloca integralmente em função de seus
interesses. Gramsci estabelece relação estreita entre filosofia e ideologia, referindo-se
àquela como “chave-mestra” desta. A ideologia é elaborada no nível do pensamento
filosófico com rigor lógico, espírito sistemático, coerência, conhecimento histórico.
No senso comum, encontram-se fragmentos difusos e dispersos da ideologia de
classe dominante. Aí residem as reservas de Gramsci quanto ao senso comum. Aquilo
que aparentemente é “popular”, sem reflexão teórica, muitas vezes é a apreensão
aligeirada dos resíduos das ideologias dominantes de várias épocas históricas. Sua
disseminação pode ocorrer de modo caótico, informal e até “despretensioso”. É esta
disseminação que confere aparência legitimidade à ideologia dominante, sua aparência
de “pureza”, de casualidade. É o que assegura a aceitação passiva pelas camadas
subalternas do projeto político dominante.
Para exercer sua influência, a ideologia necessita consolidar ampla base social,
precisa apresentar-se como representante de interesses universais, que é o que chama
Gramsci de obtenção de consenso. Na medida em que as camadas subalternas podem
reconhecer sua própria concepção de mundo, aquela que de fato serve a seus interesses,
desnudando as ideologias conservadoras e seus resíduos no senso comum, rompe-se a
base de hegemonia dominante; constrói-se a nova hegemonia.
Gramsci destaca o folclore e as religiões como veículos de difusão da ideologia
dominante. Hoje, sem dúvida, incluiria os meios de comunicação de massa. A cultura
popular está impregnada por fragmentos desta ideologia.
A elevação cultural das massas, o combate aos resíduos ideológicos contidos no
“saber popular” constitui a frente cultural para construção da democracia. A unidade
ideológica do novo bloco histórico é assegurada pela ação política direcionada para a
elaboração da nova cultura e a articulação entre filosofia e senso comum. Sendo o senso
comum, segundo Gramsci, a mescla bizarra daqueles resíduos ideológicos, e o bom
senso, o senso comum crítico, esta articulação terá como elo fundamental a
potencialidade crítica presente no bom senso. É do bom senso, ou do senso comum
crítico, que parte a crítica ideológica.

230 Gramsci, 1989b, p. 16.


231 Ver em seguida a definição de bloco histórico.

107
O conceito de bloco histórico, outra constante na teoria de Gramsci, merece
destaque. Segundo Portelli232, este é o conceito-chave em torno do qual articulam-se os
principais aspectos do pensamento político de Gramsci. Portelli destaca três aspectos a
partir dos quais deve ser considerado este conceito. O primeiro aspecto é o estudo das
relações entre estrutura e superestrutura; o segundo aspecto é a ação superestrutural dos
intelectuais na vinculação orgânica dos diversos elementos do bloco histórico; o terceiro
considera a função hegemônica do novo bloco histórico na desagregação da hegemonia
dominante até então na construção da nova hegemonia.
Se a hegemonia da classe dominante sustenta-se em seu monopólio intelectual, a
nova hegemonia residirá na autonomia intelectual da classe trabalhadora, elaborada no
interior do novo bloco histórico.
O conceito de bloco histórico aplica-se a duas situações no pensamento
gramsciano: quando se refere à unidade entre superestrutura e infraestrutura na ação
política e quando se refere às alianças de setores intraclasse na luta pela hegemonia.
O conceito de hegemonia – retomado e desenvolvido por Gramsci a partir da
formulação de Lênin – ocupa, como podemos observar, papel central na teoria
gramsciana. É o conceito que melhor explica as relações de poder, sua dinâmica, e a
formação das bases sociais para o novo Estado.
Inicialmente utilizado na tradição grega como um termo que designava a
liderança militar, passou a conotar em Lênin a capacidade de direção política, o que foi
adotado por Gramsci. Este, por sua vez, explorou e desenvolveu não somente os
aspectos estritamente políticos, como também sua dimensão cultural. Atribui à
hegemonia o sentido de reforma intelectual e moral, implicando a necessidade de uma
política educacional e cultural de massas e não somente a formação de quadros de
liderança.
Luciano Gruppi233 analisa o conceito de revolução em Gramsci, como reforma
intelectual e moral.

...o conceito de hegemonia é apresentado por Gramsci em toda sua amplitude,


isto é, como algo que opera não apenas sobre a estrutura econômica e sobre a
organização política da sociedade, mas também sobre o modo de pensar, sobre
as orientações ideológicas e inclusive sobre o modo de conhecer. 234

..a conquista do poder estatal não pode ser senão o resultado de um processo de
luta, de unificação da classe operária, de unificação de forças sociais em torno
do proletariado. A conquista do poder é o resultado da capacidade dirigente da
classe operária.235

A hegemonia é isto: determinar os traços específicos de uma condição histórica,


de um processo, tornar-se protagonista de reivindicações que são de outros
estratos sociais, da solução das mesmas, de modo a unir em torno de si esses
estratos, realizando com eles uma aliança na luta contra o capitalismo e, desse
modo, isolando o próprio capitalismo.

232 Portelli, 1977, p. 14.


233 Gruppi, 1978, p 2.
234 Ib., p. 3.
235 Ib., p. 54.

108
(...) Pôr o problema da classe operária significa, para Gramsci, pôr o problema
da função nacional da classe operária.236

A capacidade de direção política da sociedade envolve a consciência de classe, a


forma de elaboração do conhecimento, da concepção de mundo, da ideologia. Como
conteúdo “cimentador” do bloco histórico, a ideologia (projeto político, concepção de
mundo) da parcela mais amadurecida deste sobre os outros estratos deve caracterizar-se
pela capacidade de criação do consenso em torno de si, deve apresentar-se como o
“projeto nacional” capaz de responder a demandas sociais mais agudas. Projeto nacional
é entendido aqui no contexto do início do século XX, mas, se transposto para o século
XXI, talvez fosse mais adequado falar simplesmente em projeto de classe, dada a
transnacionalização/ mundialização do capital e da exploração sobre o trabalho.
A reforma intelectual e moral envolve a apropriação da teoria científica e o
desenvolvimento do pensamento filosófico pelas mais amplas camadas da população. A
construção do consenso é, mais do que a prática da coerção, a estratégia de hegemonia
nas chamadas “sociedades ocidentais”, aquelas, no léxico gramsciano, cuja sociedade
civil apresenta um grau de organicidade que permite ação efetiva no Estado.

...a luta pela hegemonia implica uma ação que, voltada para a efetivação de um
resultado objetivo no plano social, pressupõe a construção de um universo
intersubjetivo de crenças e valores. (...) Gramsci articula explicitamente a
hegemonia com a obtenção do consenso, distinguindo assim da coerção
enquanto meio de determinar a ação dos homens.237

Da construção entre forças produtivas e relações de produção, da contradição


de classe, nasce a ação da classe subalterna, primeiro de modo esporádico, não
coerente, não guiado por uma teoria, por uma estratégia política, mas que
depois com a conquista da teoria, da concepção do mundo e do método de
análise – torna-se coerente, expressa-se a nível cultural, critica a cultura
tradicional, propõe uma nova cultura. É assim que avança uma nova
hegemonia, antes mesmo que a classe que a expressa se torne dominante,
quando ela ainda está na oposição e luta pela conquista do poder. Mas, já antes
da conquista do poder, a classe que está na oposição difunde suas próprias
concepções e põe em crise a ideologia hegemônica. Na realidade, as revoluções
se efetivam quando a classe dirigente deixa de ser tal, quando sua hegemonia
entra em crise.238

Vimos, nesta inserção introdutória ao universo conceitual de Gramsci, que o


conceito de hegemonia, entendida como a capacidade de direção política por um
determinado bloco histórico, é exercida pela capacidade de tal bloco histórico inscrever-
se no Estado como o representante dos interesses “gerais”. Estado, entendido em sua
concepção ampliada: Sociedade Política e Sociedade Civil. A sociedade civil expressa a
luta pela direção política, a partir da ideologia (concepção de mundo orgânica a uma
classe social, que opera em favor dos interesses políticos e econômicos desta classe).
Não se pode confundir, portanto, Sociedade Civil com o território da “participação
democrática”, visto que tanto se compõe de aparelhos de hegemonia vinculados aos

236 Ib., p. 59.


237 Coutinho, 1985, p. 67 e 68.
238 Gruppi, 1978, p. 91.

109
interesses da classe trabalhadora, como aparelhos de hegemonia do capital. Na
Sociedade Civil (por suas representações de classe) é que se origina a disputa ideológica
ou hegemônica. A concepção de mundo de cada classe é colocada em ação orgânica nas
relações da Sociedade Civil com os espaços decisórios (aparelhos de governo), com os
espaços de formação de opinião pública, com os aparelhos de formação/difusão cultural,
escolar, científica.
Isto não significa concluir que é a superestrutura que determina a historia, ou
que Gramsci teria raízes no idealismo Filosófico, argumentando autonomia do terreno
da cultura e da ideologia sobre o da economia. Ao contrário, se são as relações sociais
de produção que definem as classes sociais e se é o pertencimento de classe que confere
o caráter hegemônico e contra hegemônico aos aparelhos que compõem a Sociedade
Civil, é do mundo da Economia que parte a analise de Gramsci, tal qual Marx. Ocorre
que, tanto em um autor quanto em outro, as determinações do econômico não se dão de
modo linear, unívoco e mecânico. E o terreno da construção da ideologia é permeado de
contradições, lutas, disputas. Um exemplo é o senso comum, como vimos aqui na
definição de Gramsci: compõe-se do registro histórico-cultural de resíduos de
ideologias, capturadas, ressignificadas.

Gramsci assume a tese marxiana segundo a qual a gênese da nova configuração


social se dá ainda na formação social vigente anteriormente. A nova classe dirigente age
como tal antes mesmo de assumir a gestão política da sociedade, segundo sua
capacidade de exercício da hegemonia, ou seja, segundo sua capacidade de direção
intelectual e moral (expressão recorrente nos textos gramscianos). Neste sentido, devem
os grupos sociais subalternos elaborar as “(...) mais refinadas e decisivas armas
ideológicas”239 para o exercício da autonomia.
Segundo esta formulação, os interesses de classe que predominarão, conferindo
o caráter assumido por determinado Estado, serão definidos a partir da interação das
forças políticas em jogo na sociedade. A luta pela hegemonia envolve os diferentes
interesses, os diversos projetos existentes no cenário político nacional e internacional.
Se as camadas populares obtêm o consenso em torno de seu projeto, a configuração
política e ideológica do Estado resulta desta situação particular e da capacidade da
Sociedade Civil instituir-se como parte do Estado, orientando as políticas públicas.
Reside aí a gênese da teoria de Estado ampliado. O poder se caracteriza por dois
elementos: força e consenso. O Estado é composto pela Sociedade Política e pela
Sociedade Civil, não tendo, a priori, qualquer essência de classe, mas assumindo-a
historicamente, pela correlação de forças em jogo.
Aos elementos convencionalmente identificados como aparelhos coercitivos do
Estado, Gramsci denomina Sociedade Política, enquanto os elementos
convencionalmente identificados com a produção da ideologia dominante ganham um
novo caráter, pois passam de certa forma a adquirir autonomia frente ao Estado (no
aspecto ideológico), configurando-se como aparelhos privados de hegemonia que,
fazendo parte da Sociedade Civil, compõem o segundo elemento da formação do
Estado. Neste sentido, a concepção gramsciana de Estado Ampliado inclui os dois
elementos: A Sociedade Política e a Sociedade Civil. À Sociedade Política caberiam as
funções tradicionais de manutenção do status quo pela coerção. Á Sociedade Civil,
caberia o papel de legitimá-lo ou de deslegitimá-lo, legitimando um novo pela
construção da hegemonia, pela busca do consenso. Gramsci, considerando o caráter
contraditório da Sociedade Civil, vê nas suas formas de organização o espaço da

239 Gramsci, 1987, p. 100.

110
possibilidade de construção da hegemonia pelas camadas sociais subalternas. A
hegemonia deve ser construída já no seio da formação social anterior, precedendo a
conquista do poder.

De acordo com o método dialético, Gramsci vê o movimento social como um


campo de alternativas, como uma luta de tendências, cujo desenlace não está
assegurado por nenhum determinismo econômico de sentido unívoco, mas
depende do resultado da luta entre vontades coletivas e organizadas. 240

A educação, por seu caráter dialético, traz em si a possibilidade de fazer do


processo de reforma intelectual e moral um dos precursores ativos dos processos de
transformação política, assumindo, assim, outras perspectivas na relação entre o
trabalho e a educação, deixando de situar a ação como instrumento de mera formação
para o trabalho alienante.
A categoria trabalho como princípio educativo em Gramsci, longe de adquirir a
conotação utilitarista de formação de mão de obra, inspira-se nas formulações
marxianas acerca da natureza humana. Marx afirma que a natureza humana define-se
pelo trabalho. “(...) esse é o homem efetivo, como resultado do seu próprio
trabalho.”241Não somente o homem, mas o próprio trabalho, que na concepção
marxiana é constituinte da natureza humana, deve ser apreendido em sua dimensão
histórica. Não é o trabalho “alienado”, “(...) no qual a atividade humana, rebaixada de
fim a meio, de automanifestação a uma atividade completamente estranha a si mesma,
nega o próprio homem.”242
Esta é uma consequência da divisão social do trabalho, onde, a quem detém o
domínio dos meios de produção permite-se também o domínio intelectual do trabalho
(compreendendo intelectual, neste sentido como atividade decisória, criativa e
dirigente), e onde, a quem se constitui como força de trabalho, permite-se apenas o
domínio operacional (a execução); situação desumanizadora, produzida pela base
econômica do modo de produção capitalista e reproduzida pelo caráter dualista do
sistema educacional. Esta forma de trabalho, alienando o trabalhador de sua dimensão
intelectual, transforma-o em um ser unilateral, incompleto.
Em Gramsci encontramos incessantes denúncias das situações nas quais o ser
humano sofre a expropriação de sua dimensão política, e consequentemente, de sua
possibilidade de autorrealização.
O pensador italiano destaca a necessidade da realização da dimensão intelectual
na construção de uma sociedade humana que possa realmente denominar-se como tal,
onde as relações sociais, incluindo inevitavelmente as relações de produção, coadunam-
se com a realização do projeto humano. Atribui à alfabetização, à cultura, nesta
perspectiva, um novo objetivo: promover na classe trabalhadora o autoconhecimento, a
sua valorização na história do trabalho, a elevação do autoconceito coletivo. Alerta
incessantemente quanto à necessidade de que a educação das classes populares tenha
um caráter “desinteressado”, despido do utilitarismo (ensino “interessado”) que visava
apenas à formação rápida de mão de obra minimamente qualificada para o ensino
técnico.

(...) ao lado do tipo de escola que poderíamos chamar de ‘humanista’ (e que é o


tradicional mais antigo), destinado a desenvolver em cada indivíduo humano a

240 Coutinho, 1989, p. 24.


241 Marx, 1978.
242 Id.

111
cultura geral ainda indiferenciada, o poder fundamental de pensar e de saber se
orientar na vida, foi-se criando paulatinamente todo um sistema de escolas
particulares de diferente nível, para inteiros ramos profissionais ou para
profissões já especializadas e indicadas mediante uma precisa individualização.
Pode-se dizer, aliás, que a crise escolar que hoje se agudiza liga-se
precisamente ao fato de que este processo de diferenciação e particularização
ocorre de um modo caótico, sem princípios claros e precisos, sem um plano bem
estudado e conscientemente fixado: a crise do programa e da organização
escolar, isto é, da orientação geral de uma política de formação dos modernos
quadros intelectuais, é em grande parte um aspecto e uma complexificação da
crise orgânica mais ampla e geral.
A divisão fundamental da escola em clássica e profissional era um esquema
racional: a escola profissional destinava-se às classes instrumentais, ao passo
que a clássica destinava-se às classes dominantes e aos intelectuais. O
desenvolvimento da base industrial, tanto na cidade como no campo, provocava
uma crescente necessidade do novo tipo de intelectual urbano: desenvolver-se,
ao lado da escola clássica, a escola técnica (profissional, mas não manual), o
que colocou em discussão o próprio princípio da orientação concreta de cultura
geral, da orientação humanista da cultura geral fundada sobre a tradição
greco-romana. Esta orientação, uma vez posta em discussão, foi destruída,
pode-se dizer, já que sua capacidade formativa era em grande parte baseada
sobre o princípio geral e tradicionalmente indiscutido de uma determinada
forma de civilização.
A tendência, hoje, é a de abolir qualquer tipo de escola ‘desinteressada’(não
imediatamente interessada e ‘formativa’, ou conservar delas tão-somente um
reduzido exemplar destinado a uma pequena elite de senhores e de mulheres que
não devem pensar em se preparar para um futuro profissional, bem como a de
difundir cada vez mais as escolas profissionalizadas, nas quais o destino do
aluno e sua futura atividade são predeterminados.243

O autor dos Cadernos do Cárcere luta pela educação clássica, pautada na


formação geral, que desenvolva os atributos intelectuais dos indivíduos de todas as
camadas sociais (mesmo conhecendo as circunstâncias geradoras dessa dualidade),
denunciando a injustiça de um sistema dualista e instrumental de ensino que oferece,
para os filhos da classe dominante, o ensino básico e humanista que lhes prepare para
perpetuar-se como classe dirigente e, para os filhos dos trabalhadores, apenas o ensino
profissionalizante – ou nos dias de hoje, podemos acrescentar, a formação geral e/ou
profissional aligeirada e mecanicista ou vazia de conteúdos –, para que desempenhem
convenientemente o papel que lhes é reservado pela ordem econômica: dóceis
executores do trabalho ou do subtrabalho, alijados do domínio intelectual, que se
traduziria, em última instância, no acesso aos espaços decisórios do sistema produtivo.
Para Gramsci, o que caracteriza o trabalho como humanizante e intelectual ou
não, não é o seu caráter artesanal ou industrial, mas o lugar que o trabalhador ocupa na
organização do processo de produção, o que sustenta a hipótese fundamental deste
trabalho: a lógica dualista permanece nas políticas educacionais brasileiras,
especificamente em nosso estudo, na Reforma do Ensino Médio, embora seja
proclamada por instituições hegemônicas uma identidade de interesses e o fim do
conflito de classes no campo dos projetos de educação. A exigência da educação de

243 Gramsci, 1989b, pp. 117-118.

112
formação geral básica, nos marcos hegemônicos, menos que romper com a dualidade
escolar, denota a imposição do “pensamento único” neoliberal e as necessidades do
capital na constituição do conformismo psicofísico necessário à afirmação de seu poder
nas relações sociais de produção. Não é o fato de desempenhar uma função considerada
técnica que torna o trabalho alienante, mas o fato de, como classe social, o trabalhador
estar excluído dos processos decisórios a respeito da produção, da organização das
relações de produção e ocupar apenas a condição de força produtiva geradora de mais-
valia, seja essa força de trabalho explorada em funções mais técnicas ou mais
cognitivas. Analogamente, não é simplesmente o fato de estar dividido entre formação
geral e profissionalizante, que define ou não o caráter dual.
O conceito de Escola Unitária desenvolvido por Gramsci supõe a unidade
dialética entre a atividade intelectual e a atividade manual, entre a ciência e a técnica,
entre a teoria e a prática, entre decisão e execução. Este projeto, permitindo ao
trabalhador o acesso ao domínio científico e político, não meramente técnico, opõe-se a
um modelo de sociedade fundada na divisão social do trabalho.E a educação define-se
como um processo de formação não apenas do trabalhador, mas do ser humano
onilateral que é, entre outras coisas, também trabalhador, desafiando a racionalidade
utilitarista das reformas neoliberais.
É necessário distinguir e articular divisão técnica e divisão social do trabalho, a
fim de que possamos compreender que, mesmo em um projeto de reforma educacional
que afirme a formação geral, aparentemente subordinando a educação profissional à
realização da educação básica, como é o caso do Decreto 2208/97 e da lei 9394/96, a
lógica dualista e a racionalidade utilitarista se mantêm intocadas. O fator decisivo é
constituído pelas relações sociais de produção para as quais se orienta o projeto
pedagógico, não a divisão entre formação geral e educação profissional, que é apenas
uma das possibilidades de manifestação de sua lógica fundamental. A distinção entre
cognitivo e intelectual talvez nos auxilie de forma mais eficaz na investigação da
racionalidade das políticas educacionais. A distribuição do domínio cognitivo do
trabalho perpassa uma e outra classe, havendo diversos matizes entre elas, já que há
segmentos do capital mais e outros menos instrumentalizados cognitivamente, assim
como também ocorre entre a classe trabalhadora. Por outro lado, em última instância. se
pudermos atribuir ao domínio intelectual, como de fato o fazemos, o acesso aos espaços
decisórios, a direção do processo produtivo, teremos reafirmada a divisão apresentada
inicialmente. Assim, o domínio cognitivo pode estar sendo exigido do trabalhador, já o
domínio intelectual, não. De um lado das relações de produção, mantém-se o capital e o
domínio intelectual; de outro lado, o trabalho e o domínio operativo, mesmo que este
domínio técnico-operacional seja expresso por atividades práticas de caráter cognitivo.
Como temos analisado, a escola tradicionalmente reproduz esta divisão ou esta
forma de organização entre saber e trabalho, seja adotando sistemas duais entre ensino
clássico (para as elites) e ensino profissionalizante (para os grupos subalternos), seja
adotando supostamente um único sistema, mas desprovendo a escola pública de
condições de funcionamento, deixando desassistidas as camadas populares.
Já afirmamos que a Escola Unitária delineada por Gramsci propõe a construção
da unidade entre teoria e ação. Há que se ter cuidado, no entanto, ao realizar a unidade
teoria-prática na escola, para que não se limite à justaposição mecanicista de um
“núcleo comum” de formação geral e uma “parte diversificada” de formação
profissional, ou, talvez, entre um Ensino Médio de formação geral e a Educação
Profissional paralela e independente. O que se verifica na Escola Unitária de Gramsci é
a articulação entre a técnica do trabalho e a sua base científica, como parte de uma
proposta de formação para as relações sociais (politecnia).

113
O advento da escola unitária significa o início de novas relações entre trabalho
intelectual e trabalho industrial não apenas na escola, mas em toda a vida
social. O princípio unitário, por isso, refletir-se-á em todos os organismos de
cultura, transformando-os e emprestando-lhes um conteúdo. 244

Ainda articulada com a formação para o trabalho, numa perspectiva politécnica,


encontramos a formação básica necessária à construção de uma nova concepção de
mundo, a formação política.

...é necessário definir o conceito de escola unitária, na qual o trabalho e a


teoria estão estreitamente ligados; e a aproximação mecânica das duas
atividades pode ser um esnobismo (...) criar um tipo de escola que eduque as
classes instrumentais e subordinadas para um papel de direção na sociedade
como conjunto e não como indivíduos singulares.245

A gênese das formas de apreensão e elaboração da cultura das classes populares


pode ser investigada a partir do conceito de ideologia orgânica em Gramsci, segundo o
qual as forças sociais na concorrência pela hegemonia adquirem, na identificação com a
concepção de mundo orgânica, a “amalgamação”, a “cimentação” que lhes possibilitam
a apreensão de sua história e das formas de fazer prevalecer sua vontade coletiva. Esse
conceito elucida o processo dialético de adesão ideológica aos interesses políticos
dominantes pela classe trabalhadora, tornando-as, por um lado, permeáveis à veiculação
de ideologia contrária a seus interesses de classe, mas, por outro lado, lhes permite
assumir a posição de luta contra-hegemônica. Ideologia, em Gramsci, é a concepção de
mundo orgânica de cada classe social, que pode ser obstaculizada pelo senso comum
que, longe da “pureza” da “cultura popular”, para ele é fundamentalmente constituído
por resíduos fragmentários de ideologias dominantes, remanescentes do projeto
hegemônico de veiculação da visão de mundo da classe dirigente. A dualidade escolar,
nesta teoria, opera como elemento impeditivo da elaboração uma concepção de mundo
transformadora, ou seja, da ideologia orgânica das classes populares.

Um proletário, mesmo inteligente, mesmo que disponha de todos os requisitos


necessários para vir a ser um homem de cultura, é obrigado a esbanjar as suas
qualidades numa atividade diferente ou a ser um marginal, um autodidata, isto é
(com as devidas exceções), um meio-homem, um homem que não pode dar tudo
o que poderia dar se se tivesse completado e robustecido na disciplina da
escola. A cultura é um privilégio. A escola é um privilégio. E não queremos que
o seja. Todos os jovens deveriam ser iguais perante a cultura. 246
O proletariado necessita de uma escola desinteressada, uma escola em que seja
dada à criança a possibilidade de se formar, de se fazer homem, de adquirir os
critérios gerais que servem para o desenvolvimento do caráter. Uma escola que
não hipoteque o futuro da criança e a constranja a sua vontade, a sua
inteligência, a sua consciência em formação a movimentar-se sobre dois trilhos
com estação preestabelecida. Uma escola de liberdade e de livre iniciativa e
não uma escola de escravidão e de mecanicidade. Os filhos do proletariado
devem ter também à sua frente todas as possibilidades, todos os campos livres

244 Id., p. 125.


245 Gramsci, 1989, p. 49.
246 Gramsci in Cavalcanti, p. 67.

114
para poderem realizar a sua individualidade da melhor maneira, e, por
conseguinte, da maneira mais produtiva para eles e para a coletividade. A
escola profissional não deve se transformar numa incubadora de pequenos
monstros aridamente instruídos em função dum ofício, sem ideias gerais, sem
cultura geral, sem alma, tão-somente com olho infalível e mão firme.247

As reformas educacionais desde a década de 1990 permanecem no domínio da


educação “interessada” e dualista, pois, nesta perspectiva, a defesa de uma formação
geral básica que desenvolva as competências e habilidades cognitivas destina-se ainda à
preparação das camadas populares para o circunscrito domínio operacional e subalterno
nas relações de produção. A análise se faz pela contraposição dialética da racionalidade
utilitarista representada pelo projeto neoliberal e pela racionalidade emancipatória,
representada aqui pelo projeto gramsciano, a fim de conferir sentidos à ação pedagógica
transformadora, à atuação orgânica.

Cada grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no


mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, de um modo
orgânico, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e
consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas também
no social e no político (...)248

Entendemos que a função orgânica desempenhada pelos organismos


internacionais hegemônicos citados acima pode ser compreendida a partir do conceito
de “intelectual orgânico” desenvolvido por Gramsci, que consiste em criar o

(...) consenso ‘espontâneo’ dado pelas grandes massas da população à


orientação impressa pelo grupo fundamental dominante à vida social, consenso
que nasce ‘historicamente’ do prestígio (e, portanto, da confiança) que o grupo
dominante obtém, por causa de sua posição e de sua função no mundo da
produção (...)249

Como intelectuais orgânicos da classe hegemônica, objetivam difundir no meio


acadêmico, político e de comunicação social sua ideologia e seu projeto. Já como
intelectuais orgânicos da classe trabalhadora, educadores comprometidos com a
transformação das bases econômicas e políticas da escola desigual, relacionam-se com
as camadas populares a partir da tomada de consciência sobre sua própria situação de
classe, com a perspectiva democrática de elaboração coletiva da concepção de mundo
necessária à ação contra-hegemônica, superando, na prática social, elementos
conservadores e neoconservadores da própria formação, que podemos ilustrar com o
seguinte texto gramsciano:

É poderoso em Dostoievski o sentimento nacional-popular, isto é, a consciência


de uma missão dos intelectuais para com o povo, que talvez seja ‘objetivamente’
constituído por ‘humildes’, mas que deve ser libertado desta ‘humildade’,
transformado, regenerado. No intelectual italiano, a expressão ‘humildes’
indica uma relação de proteção paterna e divina, o sentimento ‘autossuficiente’

247 Gramsci in Cavalcanti, p. 68.


248 Gramsci, 1989b, p. 3.

249 Idem, p. 11.

115
de uma indiscutida superioridade própria: uma relação como entre duas raças,
uma considerada superior e outra inferior: uma relação como entre adulto e
criança na velha pedagogia, ou, pior ainda, uma relação do tipo ‘sociedade
protetora dos animais’, ou tipo exército da salvação anglo-saxão diante dos
canibais da Papuásia.250

Reelaborando as relações entre a escola e as camadas populares, superando a


arrogância acima criticada por Gramsci, a nova ‘Paideia’ transformadora investigará
caminhos para elaborar a “(...) a vontade como consciência atuante da necessidade
histórica, como protagonista de um drama histórico real e efetivo.” (Maquiavel, p. 7 )

A Ontologia humana em Gramsci: o trabalho

A inovação fundamentalmente introduzida pela filosofia na práxis na ciência da


política e da história é a demonstração de que não existe uma ‘natureza
humana’ abstrata, fixa e imutável (conceito que certamente deriva do
pensamento religioso e da transcendência); mas que a natureza humana é o
conjunto das relações sociais historicamente determinadas, isto é, um fato
histórico comprovável, dentro de certos limites, através da filologia e da
crítica.251

A concepção de Gramsci acerca da “natureza humana”, para usar terminologia


usual em estudos filosóficos, é desenvolvida a partir da adoção dos postulados do
materialismo, como podemos observar na transcrição acima. A natureza humana
consiste em não ser uma “natureza”, mas história.
Em Marx, principalmente nos Manuscritos Econômico-Filosóficos,252
encontramos a preocupação em definir o homem em sua historicidade, como ser
constituído pelo e através do trabalho. Entendendo como trabalho aquela atividade que
envolve a concepção e a execução, movidas por uma intencionalidade. Ou o trabalho na
dimensão ontológica, no dizer de Lukács 253.
Para Lukács, o trabalho é aquela atividade humana que envolve uma teleologia,
um propósito, que mobiliza a inventividade do “objeto”, do “instrumento”, que pode ser
físico ou não. Na objetivação da intenção ou da “causa”, na transformação de um
projeto em um objeto, instrumento ou método, ou seja, no processo de exteriorização, se
dá a articulação entre concepção e execução. A ruptura desta unidade constitui o que
Marx denominou alienação. É por envolver concepção, inventividade e produção
movidas por uma necessidade ou propósito, que o trabalho é tipicamente humano, ou o
que define a ontologia humana. Pode-se dizer, portanto, que é neste sentido que a
“natureza humana”, ou melhor, a ontologia humana se define pelo trabalho na tradição
materialista.
Voltando a Marx, temos a definição de ser humano como o conjunto das
relações sociais das quais faz parte.”(...) esse é o homem efetivo como resultado do seu
próprio trabalho.”254 Não somente o homem, mas o próprio trabalho de que nos fala

250 Gramsci, 1978, p. 79.


251 Gramsci, 1989, p. 9.
252 Marx, 1978.
253 Lukács, 2004.
254 Marx, 1978, p. 37.

116
Marx enquanto constituinte da natureza humana, deve ser apreendido em sua dimensão
histórica. Não é o trabalho “alienado”,

(...) no qual a atividade humana, rebaixada de fim a meio, de automanifestação


a uma atividade completamente estranha a si mesma, nega o próprio
homem.255(grifos do autor)

Esta situação de alienação decorre da divisão social do trabalho, onde, a quem


detém o domínio dos meios de produção permite-se também o domínio intelectual do
trabalho (compreendendo intelectual, neste sentido, como atividade de concepção,
decisória, criativa e dirigente), e onde, a quem detém a força de trabalho como único
patrimônio, permite-se apenas o domínio operacional (a execução, mesmo que se trate
da execução de um trabalho de natureza intelectual). Se é o trabalho, pela unidade
concepção-execução que humaniza, a alienação pode ser compreendida como uma
situação desumanizadora. Esta forma de trabalho, alienando o trabalhador de sua
dimensão intelectual, transforma-o em um ser unilateral, incompleto. É uma forma de
desumanização e “despolitização” no sentido lato.
Gramsci dedica-se a denunciar, incessantemente, as situações nas quais o ser
humano sofre a expropriação de sua dimensão política, no sentido percebido acima e,
consequentemente, de sua possibilidade de autorrealização. Quando afirma que “todos
os homens são filósofos” 256, ou que “todos os homens são intelectuais (...) mas nem
todos os homens desempenham na sociedade a função de intelectuais”, 257 ou ainda,
quando nos seus escritos juvenis , afirma que para o proletariado a educação e a cultura
são um problema de “direito e de força”258, demonstra a necessidade da realização da
dimensão intelectual na construção de uma sociedade humana que possa denominar-se
realmente como tal, onde as relações sociais, incluindo inevitavelmente as relações de
produção, coadunem-se com a realização do projeto humano. E é assim que Gramsci
concebe o ser humano: como projeto, como processo.

O homem é um processo, precisamente o processo de seus atos.259

Não existe atividade humana da qual se possa excluir toda intervenção


intelectual, não se pode separar o homo faber do homo sapiens. 260

Enquanto processo e enquanto projeto, vontade política consciente e concreta, o


homem constrói-se a si mesmo e aos outros, em relação orgânica. A organicidade é que
irá conferir, nas relações interpessoais e nas relações sociais de modo geral, o caráter
dialético do desenvolvimento individual/coletivo, ou homem-massa/sujeito histórico. Se
o desenvolvimento da individualidade, o fortalecimento da personalidade, o
autoconhecimento, são pressupostos da realização coletiva, é a própria ação política que
gerará as condições para o desenvolvimento pleno da individualidade. O
autoconhecimento, neste sentido, ocorre pela inserção do indivíduo nos domínios da
história; da história da sua espécie, da história da sua classe social.

255 Ib.
256 Gramsci, 1989b, p. 11.
257 Gramsci, 1989, p. 7.
258 Gramsci apud Cavalcanti, p. 68.
259 Gramsci, 1989b, p. 38.
260 Gramsci, 1989, p. 7.

117
...cada um transforma a si mesmo, se modifica na medida em que transforma e
modifica todo o conjunto de relações do qual ele é o ponto central. Neste
sentido, o verdadeiro filósofo é – e não pode deixar de ser – nada mais do que o
político, isto é, o homem ativo que modifica o ambiente, entendido por ambiente
o conjunto das relações de que o indivíduo faz parte.261

O homem adquire consciência da realidade objetiva, assenhoreia-se do segredo


que faz mover a sucessão real dos acontecimentos. O homem conhece-se a si
mesmo, sabe quanto pode valer sua vontade individual, e como esta pode
tornar-se poderosa na medida em que, obedecendo, disciplinando-se em relação
às necessidades, acaba por dominar a própria necessidade, identificando-a com
o próprio fim. Quem se conhece a si mesmo? Não o homem em geral, mas
aquele que suporta o jugo da necessidade. A busca da substância histórica, a
sua inserção no sistema e nas relações de produção e de troca, levam a
descobrir como a sociedade dos homens se divide em duas classes. A classe que
detém o instrumento de produção já se conhece necessariamente a si mesma,
tem a consciência, ainda que confusa e fragmentária, da sua força e da sua
missão.262

O autoconhecimento que preconiza Gramsci como condição para a ação política


consequente não é apenas o autoconhecimento individual, psicológico, que caberia aos
domínios da psicologia, o conhecimento de si mesmo “...como membro de uma família
ou de uma aldeia ...”263, mas sim o autoconhecimento político e cultural, como
“...cidadão de um mundo mais vasto, com outros cidadãos, com os quais é preciso trocar
ideias, esperanças, dores.”264
Gramsci atribui à alfabetização, à cultura, nesta perspectiva, um novo objetivo:
promover na classe trabalhadora este conhecimento, a sua valorização na história do
trabalho, a elevação do autoconceito coletivo.
Como em Marx, encontramos em Gramsci a preocupação com a transformação
da sociedade como meio para a realização humana.

Se não se pode pensar no indivíduo fora da sociedade (e, portanto, se não se


pode pensar em nenhum indivíduo que não seja historicamente determinado), é
evidente que todo indivíduo (...) e toda sua atividade não pode ser pensada fora
da sociedade, de uma determinada sociedade.265

As consequências do humanismo de Gramsci para a educação poderiam ser


resumidas, se assim o desejássemos, na afirmação de que “...não se pode separar o homo
faber do homo sapiens (...)”.
Somente um projeto de educação que valorize o trabalho, tanto na sua dimensão
técnica e científica quanto na sua dimensão política, pode estar de fato comprometida
com a realização plena da natureza humana como a definem Marx e Gramsci. Um
modelo de educação que combata ativamente o pragmatismo utilitarista (e a “nova

261 Gramsci,1989b, p. 40.


262 Gramsci apud Cavalcanti, p. 51.
263 Ib., p. 66.
264 Ib., p. 66.
265 Gramsci, 1978, p. 70.

118
tecnocracia” da pedagogia do mercado, a pedagogia “de resultados”) que legitima a
expropriação da dimensão intelectual, filosófica e política.
Esta legitimação se dá pela naturalização da função ordenadora da escola, da
função de “preparar para o mundo tal qual ele se apresenta”, seja o mundo do trabalho,
da mundialização, da política. O silenciamento sobre a dimensão política
transformadora da prática pedagógica em nome do pragmatismo de mercado legitima o
abismo entre o homo sapiens e o homo faber nas sociedades de classe.
A ideologia dominante em torno do papel do trabalho nos novos modelos
produtivos, que insiste em que há maior humanização, maior participação, maior
domínio intelectual, obscurece a realidade de intensificação da exploração, precarização
e desumanização desse “novo mundo do trabalho”. Promover a “elevação cultural das
massas, neste caso, exige da escola um esforço de leitura crítica desse fenômeno,
fundamentando-se em literatura “alternativa” àquelas apresentadas peal pedagogia do
mercado e impostas no material didático padronizado, nas provas.
As Ciências, especialmente as Ciências Humanas e Sociais, não são imunes às
escolhas ideológicas. Legar ao mercado a definição do material didático e dos
conteúdos escolares, especialmente pelo controle do desempenho, significa impedir que
outras leituras de mundo sejam viabilizadas. No caso do mundo do trabalho, por
exemplo, a disciplina empreendedorismo tem sido adotada em muitos dos currículos,
como veículo de uma ideologia dominante. Se o trabalho pedagógico é controlado por
textos escolhidos à revelia do professor, provas que cobram aquilo que o mercado quer
ouvir, qual o espaço para a prática contra hegemônica?
Podemos exemplificar ainda com o caso do empreendedorismo como disciplina
escolar. Inúmeros são os autores no campo dos estudos do trabalh oque denunciam o
que há de falacioso no discurso sobre o “novo trabalhador”, “mais participativo”, ‘mais
cognitivo”, “mais responsável pela tomada de decisões”. Essa tomada de decisões,
quanto há, se limita ao domínio da solução de problemas para aumentar o ritmo da
produção, voltando-se contra o proprio trabalhador.
Obras já citadas aqui, como as de Dejours, Sennett, Boltanski e Chiapello, e
outras como as de Ricardo Antunes, Giovane alves, Danielle Linhart e muitos outros,
analisam a situação do mundo do trabalho a partir do olhar dos trabalhadores. Já outros
clássicos na área, adotam perspectiva oposta. Trata-se não apenas da melhor escolha
didática, mas da perspectiva política a aprtir da qual a escola vai apresentar ao aluno as
reflexões sobre o mundo do trabalho.
Estas reflexões nos permitem compreender que aquilo que Gramsci denomina
reforma intelectual e moral: a construção da ideologia orgânica da classe trabalhadora
depende diretamente da autonomia da escola em responder às questões sobre que
modelo de sociedade e que tipo de aluno deseja formar. Aí reside a necessidade de
retomar as contribuições de Gramsci e Freire para compreender o alcance político dos
danos causados pela nova tecnocracia do mercado sobre a educação, sob o pretexto de
salvar a escola do fracasso.
Apenas quando é coerente com o princípio de que “todos os homens são
filósofos”266 (entendendo aí a relação intrínseca existente no pensamento gramsciano
entre filosofia e história, pensamento e ação, técnica e ciência, trabalho manual e
intelectual), e quando procura, portanto, pautar-se na unitariedade, na relação dialética
entre os elementos de cada um destes binômios, é que uma pedagogia poderá reivindicar
para si o legado de Gramsci.

266 Gramsci, 1989b, p. 11.

119
ESCOLA UNITÁRIA: PRINCÍPIOS E OBJETIVOS

Desde os escritos juvenis nos jornais operários, onde educação e cultura eram
temas presentes com frequência, aos escritos da maturidade, no cárcere, Gramsci dedica
ao tema da formação humana importância central para a construção de hegemonia,
conforme vimos em capítulo anterior. Já nos escritos juvenis, alertava insistentemente
quanto à necessidade de que a educação das classes populares tivesse um caráter
“desinteressado”, despido do utilitarismo (ensino “interessado”, dualista, voltado apenas
aos interesses do mercado) que visava apenas à formação rápida de mão de obra
minimamente qualificada para o trabalho técnico.
Na literatura gramsciana, o tema da educação clássica, pautada na formação
geral, que desenvolva os atributos intelectuais é um tema consolidado. Esta proposta se
origina na crítica de um sistema dual de ensino que oferece, para os filhos da classe
dominante, o ensino básico e humanista que lhes instrumentalize para perpetuar-se
enquanto elite dirigente; e, para os filhos dos trabalhadores, apenas o ensino
profissionalizante, quando muito, que lhes habilita a ocupar o único lugar que lhes é
reservado pela ordem vigente: meros executores do trabalho técnico, alijados do
domínio intelectual e científico do processo produtivo, que se traduziria, em última
instância, no acesso aos espaços decisórios sobre a organização do trabalho, suas
condições etc.
A obra gramsciana conclama à luta por uma educação que proporcione a todos,
independentemente da origem de classe, a mesma base de conhecimentos, o acesso a
uma concepção de mundo mais elaborada, em contraposição ao pensamento
desagregado e acrítico, a-histórico, a-científico, comum, segundo ele, nas massas
populares desprovidas do direito à educação. Afirma ser, para os trabalhadores, uma
questão de direito e de força, que só será alcançado mediante exigência e coesão.

A multiplicação de tipos de escola profissional, portanto, tende a eternizar as


diferenças tradicionais; mas dado que ela tende, nestas diferenças, a criar
estratificações internas, faz nascer a impressão de possuir uma tendência
democrática. Por exemplo: operário manual e qualificado, camponês e
agrimensor ou pequeno agrônomo, etc. Mas a tendência democrática,
intrinsecamente, não pode consistir apenas em que um operário manual se torne
qualificado, mas em que cada “cidadão” possa se tornar “governante”, e que a
sociedade o coloque, ainda que “abstratamente”, nas condições gerais de poder
fazê-lo: a democracia política tende a fazer coincidir governantes e governados
(no sentido de governo e consentimento dos governados), assegurando a cada
governado a aprendizagem gratuita das capacidades e da preparação técnica
geral necessárias ao fim de governar. Mas o tipo de escola que se desenvolve
como escola para o povo não tende mais nem sequer a conservar a ilusão, já
que ela cada vez mais se organiza de modo a restringir a base da camada
governante tecnicamente preparada, num ambiente social político que restringe
ainda mais a “iniciativa privada” no sentido de fornecer esta capacidade e
preparação técnico-política, de modo que, na realidade, retorna-se às divisões
em ordens “juridicamente” fixadas e cristalizadas ao invés de superar as
divisões em grupos: a multiplicação das escolas profissionais, cada vez mais
especializadas desde o início da carreira escolar, é uma das mais evidentes
manifestações desta tendência. 267

267 Gramsci, 1989, p. 137.

120
Quando Gramsci se refere à educação de “iniciativa privada” (e ele mesmo grifa a
expressão), o faz num sentido peculiar, não o que costumamos dar à expressão, de escolas
formais administradas por pessoas jurídicas de direito privado. É o mesmo caso da expressão
“aparelhos privados de hegemonia”, conforme visto em capítulo anterior. A utilização do
adjetivo “privados” caracteriza a adesão voluntária aos organismos da sociedade civil.
Quanto à questão da esfera em que a educação deve se desenvolver, Gramsci, no mesmo
livro, Os Intelectuais e a Organização da Cultura, esclarece que cabe ao Estado promover e
manter a ação educativa, assegurando, inclusive, a distribuição de recursos materiais
necessários. E prossegue na defesa da universalização da educação escolar como
condição para a democratização e para o desenvolvimento autônomo da sociedade:

A escola é o instrumento para elaborar os intelectuais de diversos níveis. A


complexidade da função intelectual nos vários Estados pode ser objetivamente
medida pela quantidade de escolas especializadas e pela sua hierarquização:
quanto mais extensa for a área escolar e quanto mais numerosos forem os
‘graus’ ‘verticais’ da escola, tão mais complexo será o mundo cultural, a
civilização, de um determinado Estado. Pode-se ter um termo de comparação na
esfera técnica industrial: a industrialização de um país se mede pela sua
capacidade de construir máquinas e instrumentos que construam máquinas etc.
O país que possuir a melhor capacitação para construir instrumentos para os
laboratórios dos cientistas e para construir instrumentos que fabriquem estes
instrumentos, este país pode ser considerado o mais complexo no campo
técnico-industrial, o mais civilizado etc. Do mesmo modo ocorre na preparação
dos intelectuais e nas escolas destinadas a tal preparação; escolas e instituições
de alta cultura são similares. Neste campo, igualmente, a quantidade não pode
ser destacada da qualidade. À mais refinada especialização técnico-industrial
não pode deixar de corresponder a maior ampliação possível da difusão da
instrução primária e a maior solicitude no favorecimento dos graus
intermediários ao maior número. 268

A tese que o trabalho, mais precisamente o trabalho moderno, ou seja, as


relações sociais de produção contemporâneas, deve ser o princípio educativo da ação
pedagógica está amplamente desenvolvida no conjunto de seus textos. Cabe que nos
detenhamos neste ponto, que tem sido objeto de muita confusão no terreno da
pedagogia. Tomar o trabalho como princípio educativo não significa tomá-lo em sua
dimensão empírica, nem pautar o currículo escolar pela destinação profissional do
aluno. Não significa que cada conteúdo escolar deva estar imediatamente relacionado
com a atividade de trabalho a que supostamente se destina aquele aluno. É tomar o
mundo do trabalho como referencial. Assumir o trabalho como princípio educativo
implica a análise dos processos produtivos e das relações sociais, dos modos de
produção da existência articulados economicamente, ideologicamente, culturalmente em
torno desses processos. É tomar como referência para a compreensão do processo
histórico, a ação orgânica de cada classe, a relação dessa com a produção intelectual,
científica, tecnológica, artística. É ir muito além da preparação para a destinação
profissional imediata. É formar o ethos do trabalho, a compreensão crítica do mundo do
trabalho.

268 Gramsci, 1989, p. 10.

121
Não só a escola deverá pautar-se sobre o princípio do trabalho, mas a própria
ética, toda a reforma intelectual e moral deverá tomar como base situação do trabalho e
dos trabalhadores.
Tomar o trabalho como princípio educativo conduz ao entendimento de que o
que caracteriza o trabalho como humanizante ou não, não é sua dimensão técnica; não é
o seu caráter industrial ou artesanal, mas o lugar que o trabalhador ocupa na
organização do processo de produção. Não é apenas o fato de desempenhar uma função
considerada técnica que torna o trabalho alienante, mas o fato de, enquanto classe
social, o trabalhador estar alijado dos processos decisórios a respeito da produção. É a
compreensão o lugar ocupado pela força de trabalho no conjunto das forças produtivas e
das consequências materiais, educacionais, políticas, sociais, culturais deste
posicionamento. É ainda, mas não somente, nem essencialmente, no domínio científico
dos fundamentos de seu trabalho técnico, que o trabalhador encontrará expressão da sua
dimensão intelectual. O domínio científico dos fundamentos das técnicas não conferem
em si, a ruptura com o processo de alienação, caracterizado pela cisão entre concepção e
execução. Concepção, entendida em seu sentido político mais amplo, como definição do
projeto de produção, não apenas referida a decisões de âmbito imediato.Se assim não
fosse, o “novo trabalhador polivalente” exigido pelo capitalismo deste início de século,
estaria muito próximo da superação da alienação, o que os estudos já citados (Dejours,
Linhart, Antunes, Alves, Boltanski e Chiapello etc.) desmentem com irrefutável
sustentação empírica.
Tomar o trabalho como princípio educativo requer a leitura crítica fundamentada
do mundo do trabalho e para tanto, a formação intelectual geral fornece bases
indispensáveis.

...escola única inicial de cultura geral, humanista, formativa, que equilibre


equanimemente o desenvolvimento da capacidade de trabalhar manualmente
(tecnicamente, industrialmente) e o desenvolvimento das capacidades de
trabalho intelectual. Desse tipo de escola única, através de repetidas
experiências de orientação profissional, passar-se-á a uma das escolas
especializadas ou ao trabalho produtivos.269

A escola unitária ou de formação humanista (entendido este termo,


‘humanismo’, em sentido amplo e não apenas em sentido tradicional) ou de
cultura geral deveria se propor a tarefa de inserir os jovens na atividade social,
depois de tê-los levado a um certo grau de maturidade e capacidade, à criação
intelectual e prática e a uma certa autonomia na orientação e na iniciativa.(...)
a inteira função de educação e formação das novas gerações torna-se, ao invés
de privada, pública, pois somente assim ela pode envolver todas as gerações,
sem divisões de grupos ou castas. 270

O advento da escola unitária significa o início de novas relações entre trabalho


intelectual e trabalho industrial, não apenas na escola, mas em toda a vida
social. O princípio unitário, por isso, refletir-se-á em todos os organismos de
cultura, transformando-os e emprestando-lhes um novo conteúdo.271

269 Gramsci, 1989, p.118.


270 Ib., p.120.
271 Ib., p.125.

122
É esta unidade entre formação geral e formação específica para o trabalho,
juntamente com a práxis social, que dará ao homem condições de se afirmar como tal e
construir a organização da vontade coletiva, tendo como meta a construção de uma
sociedade justa. A defesa de uma escola única de formação geral sólida para todos,
imune a privilégios de classe, subverte a dualidade escolar que alimenta a reprodução.
Enquanto o sistema educacional permanecer sob a marca da dualidade e a
escola da classe trabalhadora estiver sob a chantagem de preparação de baixo custo,
aligeirada, instrumental e superficial para o mercado, não se pode esperar que a
formação humana daí originada permita a destruição da pseudoconcreticidade ou que se
desenvolva a consciência filosófica, fundamento da atividade crítica.

O fundamento de toda atividade crítica, portanto, deve se basear na capacidade


de descobrir a distinção e as diferenças por baixo de toda superficial e aparente
uniformidade, bem como a unidade essencial por baixo de qualquer aparente
contraste e diferenciação.272

SENSO COMUM, FILOSOFIA E CONHECIMENTO ESCOLAR

Oriundo do sul da Itália, sentindo pessoalmente a marginalização social sofrida


pelos povos cujo acesso à cultura valorizada socialmente é obstaculizada de todas as
formas, Gramsci dedica grande parte da sua obra a criticar os limites do senso comum e
a lutar para que todos possam superá-los, tendo acesso ao saber filosófico, às formas de
pensamento científicas e críticas, atributos estes dos quais, segundo sua formulação, o
senso comum é privado.
Para Gramsci, o senso comum compõe-se de resíduos difusos, acríticos,
incoerentes, das diversas religiões, superstições pré-científicas, que configurariam o
homem-massa. O bom senso incorpora a capacidade crítica, o discernimento; ao sujeito
histórico, conhecedor das bases e das metas de sua práxis social, ou filósofo, seria
inerente uma concepção de mundo mais crítica e coerente.
O filósofo a que se refere Gramsci não é o “filósofo individual”, dedicado
profissionalmente ao estudo da filosofia, mas, numa perspectiva coletiva, o sujeito
consciente, que conhece a si mesmo e à sua história, e que direciona sua ação política de
forma consciente e definida para objetivos criadores e transformadores. É assim que
Gramsci contrapõe, ao homem-massa, o sujeito histórico.

...qual é o tipo histórico do conformismo e do homem-massa do qual fazemos


parte? Quando a concepção do mundo não é crítica e coerente, mas ocasional e
desagregada, pertencemos simultaneamente a uma multiplicidade de homens-
massa, nossa própria personalidade é composta de uma maneira bizarra: nela
se encontram elementos dos homens da caverna e princípios da ciência mais
moderna e progressista; preconceitos de todas as fases históricas passadas,
grosseiramente localistas, e intuições de uma futura filosofia que será própria
do gênero humano mundialmente unificado. Criticar a própria concepção de
mundo, portanto, significa torná-la unitária e coerente e elevá-la até o ponto
atingido pelo pensamento mundial mais desenvolvido. Significa, portanto,
criticar, também, toda a filosofia até hoje existente, na medida em que ela
deixou estratificações consolidadas na filosofia popular.273

272 Gramsci, 1978, p. 6.


273 Gramsci, 1989b, p.12.

123
Criar uma nova cultura não significa apenas fazer individualmente descobertas
‘originais’, significa também, e sobretudo, difundir criticamente verdades já
descobertas, ‘socializá-las’ por assim dizer; transformá-las, portanto, em base
de ações vitais, em elemento de coordenação e de ordem intelectual e moral. O
fato de que uma multidão de homens seja conduzida a pensar coerentemente e
de maneira unitária na realidade presente é um fato ‘filosófico’ bem mais
importante e ‘original’ do que a descoberta de um ‘gênio filosófico’, de uma
nova verdade que permaneça como patrimônio de pequenos grupos
intelectuais.274

Este é o papel que Gramsci propõe à escola. Comprometer-se com a superação


do senso comum e com apropriação crítica da Filosofia e da Ciência, como condição
para a articulação das estratégias de transformação social . Somente desenvolvendo a
potência intelectual coletiva pode-se traçar um projeto de ação política que venha a
desfazer, conforme Gramsci, a fratura entre governantes e governados. Desfazer esta
fratura significa permitir a toda a sociedade condições políticas de pensar, participar,
decidir. Este é o propósito da “elevação cultural das massas” , da transformação do
homem-massa em filósofo.
A democratização da escola, traduzida aqui como sua universalização com
qualidade para todas as camadas sociais, representa, para Gramsci, grande parte desse
desafio da qualificação da potência transformadora coletiva.
Sua teoria considera própria do senso comum a tendência à imediaticidade na
interpretação dos fenômenos observados e suas relações de causalidade, enquanto, no
pensamento científico, a análise é minuciosa e precisa, instrumentalizada por elementos
das várias ciências que o trabalho humano produziu.
Esse elogio da Ciência, escrito há cerca de um século, relida hoje em meio ao
movimento “pós-moderno”, “pós-iluminista”, “pós-socialista”, “pós-industrial”, pode
soar anacrônica. Tornou-se quase lugar-comum no discurso pós-moderno a denúncia
sobre os limites da Ciência e de seus instrumentos para a compreensão da realidade.
Incidindo frequentemente num relativismo tão mistificador quanto aquilo que critica na
ciência: a pretensão de verdade. Mesmo que seja sob a forma de alegar a “não verdade”.
A mitificação da “pureza” das formas não científicas de compreensão da realidade nos
discursos relativistas, reflete, quase por espelhamento, o dogmatismo que critica.
Mesmo sem aprofundarmos a necessária reflexão sobre a epistemologia
anticientificista deste início de século XXI, nos bastaria olhar o nível (quantitativo e
qualitativo) da formação escolar permitida às sociedades de capitalismo periférico ou
semiperiférico, especialmente com os modelos de formação aligeirada e utilitarista da
última década, para lermos com mais simpatia a defesa gramsciana por uma escola
“séria”, no que tange à socialização dos fundamentos científicos, tanto nas ciências da
Natureza, como as do Homem e da Sociedade.
O objetivo de um projeto hegemônico que valorize a participação popular não
pode ser outro a não ser a “elevação cultural das massas”, repete Gramsci. Isto se
desenvolve pela promoção da passagem do senso comum ao bom senso e pela
incorporação de elementos críticos e científicos, além de sua renovação. Pela realização
da dialética entre particular-universal, popular-erudito, individual-coletivo,
circunstancial-estrutural, senso comum-filosofia, sujeito-sociedade.

274 Gramsci, 1989b, p.14.

124
Talvez seja útil distinguir ‘praticamente’ a filosofia do senso comum, para
melhor indicar a passagem de um momento ao outro. Na filosofia, destacam-se
notadamente as características de elaboração individual do pensamento; no
senso comum, ao invés, as características difusas e dispersas de um pensamento
genérico de uma certa época em um certo ambiente popular. Mas toda filosofia
tende a se tornar senso comum de um ambiente, ainda que restrito (de todos os
intelectuais). Trata-se, portanto, de elaborar uma filosofia que – tendo já uma
difusão ou possibilidade de difusão, pois ligada à vida prática e implícita nela –
se torne um senso comum renovado pela coerência e pelo vigor das filosofias
individuais. E isto não pode ocorrer se não se sente, permanentemente, a
exigência do contato cultural com o homem comum.275

O homem ativo de massa atua praticamente, mas não tem uma clara consciência
teórica desta sua ação, que, não obstante, é um conhecimento do mundo na
medida em que o transforma. Pode ocorrer, inclusive, que a sua consciência
teórica esteja historicamente em contradição com o seu agir. É quase possível
dizer que ele tem duas consciências teóricas (ou uma consciência
contraditória): uma, implícita na sua ação, e que realmente o une a todos os
seus colaboradores na transformação prática da realidade; e outra,
superficialmente explícita ou verbal, que ele herdou do passado e acolheu sem
crítica. Todavia, esta concepção “verbal” não é inconsequente: ela liga a um
grupo social determinado, influi sobre a conduta moral, sobre a direção da
vontade, de uma maneira mais ou menos intensa, que pode, inclusive, atingir um
ponto no qual a contraditoriedade da consciência não permita nenhuma ação,
nenhuma escolha e produza um estado de passividade moral e política. A
compreensão crítica de si mesmo é obtida, portanto, através de uma luta de
‘hegemonias’ políticas, de direções contrastantes, primeiro no campo da ética,
depois no da política, atingindo, finalmente, uma elaboração superior da
própria concepção do real.276

No texto a seguir, Gramsci manifesta mais uma vez, de forma bem nítida, a
crítica aos elementos do senso comum:
...senso comum, que é a ‘filosofia dos não filósofos’, isto é a concepção do
mundo absorvida acriticamente pelos vários ambientes sociais e culturais nos
quais se desenvolve a individualidade moral do homem médio. O senso comum
não é uma concepção única, idêntica no tempo e no espaço: é o ‘folclore’ da
filosofia e, como folclore, apresenta-se em inumeráveis formas; seu traço
fundamental e mais característico é o de ser uma concepção, inclusive nos
cérebros individuais, desagregada, incoerente, inconsequente, adequada à
posição social das multidões, das quais ele é a filosofia.277

Predominam, no senso comum, os elementos ‘realistas’, materialistas, isto é, o


produto imediato da sensação bruta, fato que, ademais, não está em contradição
com o elemento religioso, ao contrário; mas estes elementos são supersticiosos,
acríticos, graças aos quais o senso comum é ainda ptolomaico, antropomórfico,
antropocêntrico. 278

275 Gramsci, 1989b, p. 18.


276 Ib., p. 20 e 21.
277 Ib., p. 143.
278 Ib., p. 144 e 145.

125
Como visto, é farta a produção gramsciana sobre este tema, central em sua
estratégia política. Não demonstra qualquer traço de condescendência para com aqueles
que fazem a apologia do senso comum, do saber popular como fonte de verdade em si:

Este flerte de Gentile com o senso comum é algo muito ridículo. Nossas
afirmações anteriores não significam a inexistência de verdades no senso
comum. Significam que o senso comum é um conceito equívoco,
contraditório, multiforme, e que referir-se ao senso comum como prova de
verdade é um contrassenso (...) o senso comum é grosseiramente misoneísta
e conservador...279

Ressalte-se que, ao demonstrar tão poucas ilusões quanto ao senso comum, não é
ao “enunciador” desse modo de conhecer , nem a possíveis “limitações culturais” do
povo (longe disso), que Gramsci dirige tamanha repulsa. Como já visto, o senso
comum, para ele, não é a “cultura popular”, nem a “língua do povo”. É o conjunto de
resíduos fragmentários de diversas ideologias conservadoras de momentos históricos
superados que são difundidas ideologicamente (entendendo ideologia em sua função
orgânica, conforme visto) de modo acrítico e presumindo adesão igualmente acrítica.
Esclarece quanto ao pensamento de Marx sobre o tema.

“Referências ao senso comum e à solidez de suas crenças, encontram-se


frequentemente em Marx. Contudo, trata-se de referências não à validez do conteúdo de
tais crenças, mas sim à sua solidez formal e, consequentemente, à sua imperatividade
quando produzem normas de conduta. Aliás, em tais referências, está implícita a
afirmação da necessidade de novas crenças populares, isto é, de um novo senso comum
e, portanto, de uma nova cultura e de uma nova filosofia, que se radiquem na
consciência popular com a mesma solidez das crenças tradicionais.”280

Mais uma vez, vemos abaixo a oposição entre filosofia ou pensamento dialético
e o senso comum, aqui associado à lógica formal.

...o pensar dialeticamente vai de encontro ao vulgar senso comum, que é


dogmático, ávido de certezas peremptórias, tendo a lógica formal como sua
expressão.281

O texto seguinte nos permite compreender e contextualizar a “teimosia”


gramsciana sobre o direito da classe trabalhadora de ter acesso às ciências, à filosofia, à
diversas formas de cultura, não somente àquelas que lhe são consideradas “peculiares”
ou “familiares”. Segregar uma classe social a uma única forma de compreensão e
expressão é manter privilégios, inadmissíveis para o autor.

Se é verdade que a história universal é a cadeia dos esforços que o homem tem
feito para se libertar dos privilégios, dos preconceitos e das idolatrias, não se
compreende porque o proletariado, que quer acrescentar um outro elo àquela

279 Gramsci, 1989b, p. 147. Crítica a Giovanni Gentile, mentor da reforma fascista na educação italiana, defensor da educação
diversificada adequada às diferenças sociais.
280 Ib., p. 148.
281 Ib., p. 159.

126
cadeia, não deva saber como e por que e por quem foi precedido, e que
benefícios pode extrair deste saber.282

Dialeticamente, a metodologia da “elevação cultural das massas” adota como


ponto de partida o senso comum. Realiza sua superação crítica em um movimento que
articula conservação e ruptura. Rompe com os elementos considerados retrógrados no
senso comum, mas parte dele. De sua negação-afirmação, constitui a síntese. Não se
admite a dicotomização entre polos como “saber popular” e “saber erudito”,
considerados em sua historicidade. O movimento epistemológico realizado, incluindo
momentos de negação e afirmação, historiciza a produção e a assimilação dos próprios
conteúdos das concepções em confronto (senso comum e pensamento filosófico).
Assume, por exemplo, que a cultura popular é assim adjetivada em decorrência do seu
processo de elaboração, bem como a chamada cultura erudita assim se denomina em
função de contingências sociais que vetam o acesso a esta pelas camadas populares da
sociedade.
Desfazer falsas dicotomias, no entanto, não significa eliminar as diferenças entre
estas formas de pensamento, ou ignorar o quanto diferem quanto às bases utilizadas para
a compreensão e a interpretação do real. Recorrendo a Saviani, encontramos a
proposição abaixo, que contribui para a superação da concepção dicotômica e para a
compreensão da historicidade mencionada acima.

A cultura popular, entendida como aquela cultura que o povo domina, pode ser
a cultura erudita que passou a ser dominada pela população.283

Incorporar ao senso comum elementos críticos, renovando-o e articulando-o com


o bom senso e com o pensamento filosófico, significa socializar os instrumentos de
análise do real, como a contribuição das ciências, por exemplo; instrumentos estes que
não são inerentes a uma classe ou a outra, mas que, historicamente, constituíram-se em
objeto de apropriação e de expropriação social, bem como em elemento considerável na
luta hegemônica.
Enaltecer e romantizar o senso comum em sua suposta “pureza”, ao contrário de
denotar valorização, seria ignorar a historicidade nos processos de produção e de
distribuição dos conteúdos culturais, seus percursos, as lutas que se dão no próprio
interior da produção, da apropriação e da divulgação, as disputas por acesso, as formas
de propaganda, os rótulos ideológicos, as categorizações sociais em torno das
modalidades culturais, a produção do gosto, as linguagens que veiculam os “produtos”
culturais, sua identificação com projetos políticos, com as relações sociais do mundo do
trabalho, etc. É contra esta anti-historicidade na interpretação do senso comum, que
Gramsci se levanta. Dialeticamente, a “naturalização” das diferenças culturais, sob o
intuito de reagir aos preconceitos contra os saber popular, se resvalar para a extremidade
oposta, contraditoriamente legitima os mesmos abismos que denuncia.

INTELECTUAIS ORGÂNICOS, EDUCADORES E A DISPUTA HEGEMÔNICA

Os intelectuais são sujeitos fundamentais na luta hegemônica, segundo a teoria


gramsciana. Inicialmente, contudo, é necessário esclarecer o conceito de intelectual em
sua obra: para ele, são considerados intelectuais todos os seres humanos, visto que toda

282 Gramsci apud Cavalcanti, p. 61.


283 Saviani, 1991, p. 84.

127
atividade humana, por mais mecanizada que possa parecer, envolve a dimensão
intelectual. O equilíbrio entre esforço intelectual e esforço físico em cada modalidade
laboral é que sofre variações, dependendo da posição ocupada no mundo do trabalho.
Nas sociedades de classe, a dimensão operacional se distancia da dimensão intelectual
do trabalho, compreendida aqui como concepção.
Esta distância assume formas distintas em cada fase do processo produtivo,
como entre o fordismo, predominante nos primeiros 3/4 do século XX e o modelo
japonês, predominante nas últimas três décadas e no início deste século. Embora assuma
formas distintas, entretanto, se mantém a divisão do trabalho, não apenas em sua
dimensão técnica, mas na dimensão política. O fato de o trabalhador típico dos “novos
modelos produtivos” ser definido no discurso hegemônico como um trabalhador “mais
intelectual”, isto não corresponde ao conceito gramsciano. Não é o fato de o “novo
trabalhador” ser responsabilizado por algumas decisões de ordem técnica para aumento
de produtividade, por apresentar “soluções de melhoria” (melhoria para quem?) o que,
em última instância representa intensificação do trabalho explorado, que fará dele um
“intelectual” no sentido gramsciano. Assim como um trabalhador que desenvolve
atividades de natureza intelectual, se subordinado à divisão fundamental do mundo do
trabalho, ao ver seu trabalho subordinado ao processo de mercantilização, igualmente
não se inclui nesta categoria.
Gramsci não considera intelectuais apenas aqueles que se dedicam às atividades
literárias, filosóficas etc. São intelectuais todos aqueles que, nas relações sociais,
desempenham a função de validar, legitimar, e reproduzir a formação social vigente,
desenvolvendo, organizando e difundindo seus respectivos valores, práticas sociais,
atividades produtivas etc. São intelectuais, igualmente, aqueles que, na luta contra-
hegemônica buscam instaurar uma nova concepção de mundo, difundindo-a na
sociedade, gerando uma nova consciência política e a base social para um novo modelo.
A estes dois tipos, Gramsci confere o caráter de intelectuais orgânicos, cuja função
social seria a busca do consenso em torno de determinado projeto político. Cada nova
classe social elaboraria os seus intelectuais orgânicos e buscaria assimilar os intelectuais
tradicionais. São considerados tradicionais os intelectuais supostamente não vinculados
organicamente a um projeto para a sociedade, ou não identificados diretamente como
atores políticos, ou ainda aqueles formados sob a influência ideológica de um modelo já
superado, mas que ainda se constituem como seus representantes.
Na análise do papel dos intelectuais, Gramsci identifica a centralidade seu
caráter político; combate a concepção do trabalho intelectual como uma esfera neutra no
jogo social, indicando seu caráter de classe. Mostra-se inflexível com os intelectuais que
se supõem independentes, uma casta à parte, “autônoma” em relação à divisão do poder
político na sociedade. Trabalho intelectual é construção de ideologia; logo, luta política,
construção de hegemonia. E ideologia, como concepção de mundo orgânica a cada
classe social, como já visto, não se constrói apartada do mundo do trabalho, do mundo
da produção, da divisão social do trabalho. Por outro lado, esta organicidade ocorre por
mediações simbólicas, sociais.

A relação entre os intelectuais e o mundo da produção não é imediata, como é o


caso nos grupos sociais fundamentais, mas é ‘mediatizada’, em diversos graus,
por todo o contexto social, pelo conjunto das superestruturas, do qual os
intelectuais são precisamente funcionários.284

284 Gramsci, 1989, p. 10.

128
A qualificação de “‘orgânico” denota este sentido, de ser “funcionário”, de estar
“a serviço”, “em função” de um projeto econômico-político.
Como vemos, seu conceito de intelectual é bastante amplo, abarcando desde os
intelectuais convencionalmente reconhecidos como tal, até algumas funções
consideradas como técnicas ou administrativas, como gerência, supervisão, economia,
etc. Entre os intelectuais tradicionais Gramsci destaca o papel dos sacerdotes e dos
professores, principalmente por sua influência sobre as populações camponesas e de
cidades pequenas.

Toda atividade prática tende a criar uma escola para os próprios dirigentes e
especialistas e, consequentemente, tende a criar um grupo de intelectuais e
especialistas de nível mais elevado, que ensinam nestas escolas. 285

Basicamente, o que caracteriza a função de intelectual é sua capacidade de


conferir legitimidade a um projeto político. Deste modo, cada classe emergente no
poder cria em torno de si a camada de intelectuais aos quais é destinada a tarefa de
fomentar, no conjunto da sociedade, o consenso necessário à sua consolidação como
classe dirigente.

[criar] ...consenso ‘espontâneo’ dado pelas grandes massas da população à


orientação impressa pelo grupo fundamental dominante à vida social, consenso
que nasce ‘historicamente’ do prestígio (e, portanto, da confiança) que o grupo
dominante obtém, por causa de sua posição e de sua função no mundo da
produção.286

Caberia, então, à classe trabalhadora287, na construção de seu projeto contra-


hegemônico, a produção de seus intelectuais orgânicos, ou seja, intelectuais que,
vinculados aos aparelhos de hegemonia, estariam dedicados à criação da coesão popular
necessária à elaboração de uma ação consistente de transformação social.
O espaço privilegiado para a formação destes intelectuais seria o partido.
Contudo, como já observamos, em Gramsci partido adquire conotação mais abrangente,
conotação esta que adotamos aqui na análise da função da escola enquanto instituição
“partidária” dos interesses populares.
Coube à escola, historicamente, o papel de formadora dos intelectuais orgânicos
da classe dominante. O fenômeno da dualidade escolar, recorrente ao longo da História
da Educação, como vemos nas análises de Manacorda288 e de Ponce289, expressa esta
situação. A escola dirigida às elites dirigentes desdobra-se na formação intelectual,
científica e política que reproduz as qualidades de direção; já a escola das classes
populares, quando estas têm acesso, apresenta-se desprovida da qualidade e do
aprofundamento intelectual, científico e político, substituindo-o pela preparação
aligeirada e instrumental para o mercado de trabalho.
Instituída por sua historicidade, contudo, a escola representa também a
possibilidade de ação contra-hegemônica, se considerarmos os conceitos de Estado

285 Ib., p. 177.


286 Ib., p. 11.
287 O conceito de classe trabalhadora aqui é desenvolvido Antunes (1999), que denomina “classe-que-vive-do-trabalho” aquela que
envolve também os setores que estão fora da produção por exclusão, como os desempregados, os trabalhadores informais, etc.
Lembro também a terminologia adotada por Roberto Leher. (Leher e Setúbal, 2005): “classe que vive do próprio trabalho”.
288 Manacorda, 1992.
289 Ponce, 2001.

129
Ampliado e Intelectuais Orgânicos já analisados aqui. Isto requer autonomia pedagógica
que permita assumir sua dimensão política a favor da emancipação popular, ou seja,
assumir a formação dos intelectuais orgânicos da classe trabalhadora. Aqui, não se trata
da defesa de uma escola “panfletária”; a proposta de pedagogia contra-hegemônica não
se refere à instituição da supremacia do “ideológico” sobre o “científico no currículo
escolar. É a afirmação, antes de tudo, do direito á formação intelectual , acadêmica,
sólida, a todos os segmentos sociais. Compreendendo formação intelectual como mais
abrangente do que aquela que caberia num quadro conceitual do intelectual
“tradicional”. Sendo a dimensão intelectual mais abrangente do que a do “filósofo
individual”, trata-se aqui mais uma vez do projeto de “elevação cultural das massas”.
Isto requer a apropriação crítica das diversas tradições acadêmicas e filosóficas. Requer
a incorporação da dimensão estética, artística, cultural o sentido mais amplo.
Evitar a polarização entre uma escola de formação humanista clássica
“tradicional” e um projeto de formação ideológica dogmática e panfletaria, é tarefa de
grande complexidade.
Além da própria complexidade interna da construção da identidade desta escola
que agregue qualidade intelectual/científica/filosófica cultural e identidade política, há
os obstáculos “externos”, um conjunto de políticas educacionais, com enunciadores
cada vez mais “distantes” da escola empírica, mas nem por isto menos interessados,
como os organismos internacionais representativos dos interesses hegemônicos, que têm
consciência da importância de mantê-la como aparelho de reprodução.
A construção da hegemonia popular rejeita a reprodução das mesmas relações
intelectuais-massas do passado, pautadas no paternalismo daqueles e na subserviência
cultural destas.
O intelectual “nacional-popular”, segundo Gramsci, compõe um bloco
intelectual e moral com o povo. Conhece e percebe suas necessidades, aspirações e
sentimentos difusos; forma uma articulação orgânica com este mesmo povo. É
necessário que o intelectual identifique-se, autenticamente, com os anseios de libertação
do povo, que compartilhe com este a concepção de mundo unitária em torno da qual se
construirá a nova sociedade. Esta concepção de mundo, de acordo com Gramsci, teria
por base os princípios marxistas.
Cabe aos intelectuais a elaboração dos sentimentos populares e a confrontação
destes com a contribuição teórica e científica para, a partir daí, construírem juntos a
nova práxis.

...a organicidade de pensamento e a solidez cultural só poderiam ocorrer se


entre os intelectuais e os simplórios se verificasse a mesma unidade que deve
existir entre teoria e prática, isto é, se os intelectuais fossem, organicamente, os
intelectuais daquela massa, se tivessem elaborado e tornado coerentes os
princípios e os problemas que aquelas massas colocavam com a sua atividade
prática, constituindo assim um bloco cultural e social.290

Não é com a demagogia da suposta igualdade entre intelectuais e massas, nem


com a arrogância de uma relação vanguardista, elitista e unidirecional, que se construirá
este bloco histórico. Somente com a promoção da intelectualização coletiva da
população é que a sociedade civil se enriquecerá culturalmente e se aglutinará em torno
de propostas políticas sólidas e realmente inovadoras.

290 Gramsci, 1989b, p. 18.

130
O modo de ser do novo intelectual não pode mais consistir na eloquência, motor
exterior e momentâneo dos afetos e paixões, mas num imiscuir-se ativamente na
vida prática, como construtor, organizador, ‘persuasor’ permanente (...)291

Enquanto permanecer a cisão social entre intelectuais e massas, dirigentes e


dirigidos, governantes e governados; enquanto a correlação entre dimensão intelectual e
dimensão manual do trabalho ainda fundamentar-se em tão flagrante grau de
desequilíbrio, não poderemos caracterizar um projeto inovador. Somente poderemos
configurá-lo assim quando pudermos afirmar como Gramsci, apoiados não somente em
um princípio ontológico, mas na concreta organização do trabalho na sociedade: todos
os homens são intelectuais. A delimitação da ação sindical ao nível econômico-
corporativo, desejo expresso no discurso educacional do PREAL, é assinalada em
Gramsci como importante tática política do capital na contenção da luta contra-
hegemônica.

Através do liberalismo, o sindicalismo teórico é impedido de se tornar


dominante, de se desenvolver além da fase econômico corporativa, para alcançar a fase
de hegemonia ético-política na sociedade civil e dominante no Estado.292

O objetivo de qualificar o “trabalhador de novo tipo” seria menos uma exigência


de ordem técnica do que de natureza político-cultural, com a construção do
conformismo psicofísico global adequado aos novos tempos.

A conversão da educação em mercadoria implica que o processo de


mercantilização da vida chega ao último reduto da essência humana de forma
muito parecida com a biotecnologia. A biotecnologia permite manipular os
planos de evolução biológica do ser humano no aspecto físico; a educação
permite o mesmo nível da arquitetura psicossocial da personalidade. Ao
entregar-se a capacidade de decisão sobre os processos educativos aos
intelectuais orgânicos das empresas transnacionais, como o Banco Mundial, O
FMI, a UNESCO, etc., o controle da ‘genética’ psicossocial passa as mãos dos
donos da globalização.293

Assim como, em relação ao fordismo, Gramsci afirmava que “o americanismo


não é um novo tipo de civilização”, pode-se afirmar, sobre o neofordismo, que este não
representa uma nova civilização, mas uma importante forma de restauração
hegemônica, à qual os setores populares deverão fazer frente, ressignificando elementos
técnicos que representam desenvolvimento das forças produtivas. Indagando-se sobre a
forma de fazer frente ao modelo fordista, se tal base técnica deveria ser generalizada ou
não, Gramsci , confrontando-o com o sistema arcaico europeu, afirma que sim, deve ser
generalizado naquilo que se refere à atenuação do esforço muscular nervoso necessário
a formas precárias de produção. Contudo, o pensador italiano não julga ser possível que
se opere esta mudança, a menos que seja dirigida pela classe trabalhadora, segundo sua
ótica de classe, na sociedade de novo tipo, onde a reconfiguração da base técnica do
trabalho se efetivará no contexto de inovadoras relações sociais de produção, não mais
definidas pela divisão social e pela extração de mais-valia. Como Gramsci, Chomsky e

291 Gramsci, 1989b, p. 18.


292 Id., p. 33.
293 Chomsky e Dieterich, 1999, p. 211.

131
Dieterich reconhecem esse traço político-cultural na marquetização do discurso
pedagógico e na difusão da “ética toyotista”.

O controle sobre a arquitetura psicossocial da humanidade é indispensável para


que o Capitalismo global consiga a mercantilização de todas as relações sociais
conforme sua lógica sistêmica: valorizá-las – e seus sujeitos atuantes – pelo
prisma do custo-benefício, quer dizer, como mercadorias. Esta é a essência das
reformas educativas que o paradigma neoliberal exige. E à luz desta ótica, a
manutenção de uma estrutura educativa geral, pública e gratuita para toda a
população na América Latina é um custo inútil, dado que mais da metade dos
estudantes são supérfluos para o processo produtivo.294

O reconhecimento científico de seu caráter reprodutor nas sociedades de classe,


se não significar apenas um momento da ruptura dialética, se não engendrar novas
práticas coletivas transformadoras, figurará como intelectualismo cínico e imobilizador,
como já o foram correntes pedagógicas que, sob o pretexto de constatar a dualidade e a
perversidade dos sistemas escolares burgueses, propunham abandoná-lo. Como o capital
não demonstra sinais de estar pensando na possibilidade de também abrir mão do
espaço pedagógico como arena da luta de classes, a inércia reprodutivista, daqueles que,
reconhecendo os limites da escola na sociedade capitalista, resumem seu projeto
pedagógico em visões da escola no reino da liberdade, representa relevante ação
complementar à política dominante.
As reflexões aqui desenvolvidas inscrevem-se na perspectiva de contribuir para
a elaboração do que Gramsci nomeia vontade coletiva e vontade política no sentido
moderno na implementação da reforma intelectual e moral: “(...) vontade como
consciência atuante da necessidade histórica, como protagonista de um drama
histórico real e efetivo.”295
Essa vontade coletiva de construção de uma sociedade realmente “de novo tipo”,
realizada na superação da atomização dos setores populares, da setorização das lutas
sociais, que hoje se veem divididas por lotes de interesses particulares, busca a
construção de sua identidade, concretamente definida, nem fragmentada em
subjetividades abstratas, nem em sociabilidades arbitrárias.
A unidade baseada na ideologia tradicional, de que fala Gramsci no texto
transcrito em seguida, dialeticamente realizada na diversidade enunciada como a única
arena em que se pode erguer a voz o oprimido, instituída pela ordem dominante como
recurso político, será confrontada na educação comprometida com a realização da
utopia, com o fim de “(...) romper a unidade baseada na ideologia tradicional, sem cuja
ruptura a força nova não poderia adquirir consciência da própria personalidade
independente.”

A PEDAGOGIA ESCOLAR E A PEDAGOGIA POLÍTICA

Nesta seção do trabalho, abordamos as questões mais especificamente


pedagógicas da obra de Gramsci. Expomos aquilo que poderíamos chamar de “didática
gramsciana”, utilizando para didática, a conotação de “unitariedade teoria-prática”, cuja
preocupação central é de ordem teórico-metodológica, e não de ordem meramente
técnica e operativa. Preferimos o termo didática ao termo pedagogia, visto que, se

294 Chomsky e Dieterich, 1999, p. 210


295 Gramsci, 1989, p. 7.

132
considerarmos a afirmação de Gramsci segundo a qual toda relação de hegemonia é
uma relação pedagógica, concluiremos que o conjunto do trabalho aborda a pedagogia
de Gramsci, mesmo quando falamos de temas mais gerais, como as relações políticas
entre Estado/Sociedade/Escola. O conceito de didática denota a preocupação mais
strictu sensu com os elementos pedagógicos intra-escolares.
Buscaremos, em Gramsci, a definição de Escola Unitária, sua proposta de
organização e funcionamento, e seus elementos básicos (relações pedagógicas,
conteúdos, avaliação). Abordaremos também a preocupação de Gramsci com a questão
epistemológica, expressa em seus escritos sobre a relação
ciência/estrutura/superestrutura e a relação sujeito/objeto do conhecimento.
O conceito de Escola Unitária pauta-se na unidade dialética entre a atividade
intelectual e a atividade manual; entre a ciência e a técnica; entre a teoria e a prática. É a
escola que pretende contrariar a divisão social entre trabalho manual e trabalho
intelectual. Divisão esta, em nossa sociedade, decorrente de outra divisão fundamental,
entre capital e trabalho. O capital detém o domínio intelectual do trabalho e os
trabalhadores detêm apenas o domínio técnico. É claro que esta divisão, apresentada
desta forma para efeitos didáticos, não pode ser completamente reduzida, de forma
mecanicista, as estes aspectos. A distribuição do domínio intelectual do trabalho
perpassa uma e outra classe, havendo diversos matizes entre elas. Notadamente, existem
segmentos do capital mais intelectualizados e menos intelectualizados, assim como
também ocorre entre a classe trabalhadora. Mas, em última instância, se pudermos
atribuir ao domínio intelectual, como de fato o fazemos, o acesso ao espaço decisório, a
direção do processo produtivo, teremos reafirmada a divisão apresentada inicialmente.
De um lado, o capital e o domínio intelectual; de outro lado, o trabalho e o domínio
técnico.
A escola tradicionalmente reproduz esta divisão, ou esta organização entre saber
e trabalho, seja adotando sistemas duais entre ensino clássico (para as elites) e ensino
profissionalizante (para os grupos subalternos); seja adotando supostamente um único
sistema, mas desprovendo a escola pública de condições de funcionamento, deixando
desassistidas as classes populares, visto que, para os segmentos econômicos mais
favorecidos, e que podem, portanto, pagar pelo ensino, há escolas funcionando
plenamente.
A Escola Unitária propõe a tarefa de realizar a unidade entre teoria e ação. Há
que se ter muito cuidado, no entanto, ao realizar a unidade teoria-prática na escola, para
que não se caia na justaposição mecanicista de um “núcleo comum” de formação geral e
uma “parte diversificada” de formação profissional. O que se verifica na Escola Unitária
de Gramsci é a articulação entre a técnica do trabalho e a sua base científica
(politecnia). Ainda articulada com a formação para o trabalho, numa perspectiva
politécnica, encontramos a formação básica necessária à construção de uma nova
concepção de mundo, a formação política.

...é necessário definir o conceito de escola unitária, na qual o trabalho e a


teoria estão estreitamente ligados; a aproximação mecânica das duas atividades
pode ser um esnobismo, [que nada contribui para] (...) criar um tipo de escola
que eduque as classes instrumentais e subordinadas para um papel de direção
na sociedade como conjunto e não como indivíduos singulares. 296

296 Gramsci, 1989b, p. 149.

133
A formação geral, destacando-se a filosofia, a história e a língua nacional, ocupa
posição privilegiada, visto que constituem instrumentos imprescindíveis à análise,
elaboração e expressão da concepção de mundo propulsora da ação coletiva da
transformação da sociedade.

A posição da filosofia da práxis é antitética a esta católica: a filosofia da práxis não


busca manter os ‘simplórios’ na sua filosofia primitiva do senso comum, mas busca, ao
contrário, conduzi-los a uma concepção de vida superior. Se ela afirma a exigência do
contato entre os intelectuais e os simplórios não é para limitar a atividade científica e
para manter a unidade do nível inferior das massas, mas justamente para forjar um
bloco intelectual e moral, que torne politicamente possível um progresso intelectual de
massa e não apenas de pequenos grupos intelectuais.297

Colocar a filosofia como concepção de mundo – e o trabalho filosófico sendo


concebido não mais apenas como elaboração ‘individual’ de conceitos
sistematicamente coerentes, mas além disso, e sobretudo, como luta cultural
para transformar a ‘mentalidade’ popular e divulgar as inovações filosóficas
que se revelem ‘historicamente verdadeiras’, na medida em que se tornem
concretamente, isto é, histórica e socialmente, universais – a questão da
linguagem e das línguas deve ser ‘tecnicamente’ colocada em primeiro lugar.298

A Escola Unitária organizar-se-ia a partir de dois núcleos básicos, ou duas fases,


após os quais o aluno iria prosseguir seus estudos no nível superior, dedicando-se à
formação acadêmica mais geral ou à formação científica, voltada para o trabalho.
Na primeira fase, cuja duração seria de três a quatro anos, os objetivos seriam a
formação da personalidade do aluno no que Gramsci denomina “conformismo
dinâmico”, com vistas à criação da consciência coletiva, senso de disciplina intelectual,
como bases para as fases posteriores. Os conteúdos se dividiriam em dois blocos
articulados entre si: noções instrumentais (ler, escrever, fazer cálculos) e noções
políticas (direitos e deveres, primeiras noções de Estado e de sociedade).
Na segunda fase, com duração de cinco a seis anos, os objetivos seriam a
autodisciplina intelectual, a autonomia moral com consciência social sólida, a
criatividade científica. Os conteúdos seriam, basicamente, os valores fundamentais do
humanismo, com ênfase no que Gramsci chama de metodologia criativa da ciência e da
vida, ou seja, a capacidade de resolver criativamente, por esforço produtivo próprio,
ainda que as soluções não sejam originais, os problemas propostos pela ciência e pela
vida prática. Nesta fase, iniciar-se-ia o contato mais direto com o mundo do trabalho,
através da produção literária e científica, experimentos científicos etc.
Observa-se que, na primeira fase, a orientação é mais diretiva, conduzida pelo
professor, enquanto na segunda, o aluno assume papel mais autônomo. A disciplina, na
primeira fase, é “externa”, heterônoma, norteada a partir de regras que irão criar, no
aluno, o espírito de responsabilidade, autodisciplina, requisitos indispensáveis à
autonomia intelectual.

O fato de, nas escolas primárias, ser necessária uma exposição ‘dogmática’ das
noções científicas ou ser necessária uma ‘mitologia’ não significa que o dogma
deva ser o religioso e a mitologia aquela mitologia determinada. 299

297 Ib., p. 20.


298 Ib., 36.
299 Gramsci, 1989, p. 144.

134
Quanto aos estudos universitários e à função da universidade, poderíamos
resumir sua posição com a seguinte transcrição:

...a universidade tem a tarefa humana de educar os cérebros para pensar de


modo claro, seguro e pessoal, libertando-o das névoas e do caos nos quais uma
cultura inorgânica, pretensiosa e confusionista ameaçava submergi-lo, graças a
leituras mal absorvidas, conferências mais brilhantes que sólidas, conversações
e discussões sem conteúdo (...).300

No desenvolvimento do “conformismo dinâmico” da personalidade, Gramsci é


um recorrente defensor do desenvolvimento do senso de disciplina, sobretudo nos
estágios iniciais. O dogmatismo, em certa medida necessário na formação infantil, irá
dando lugar ao desenvolvimento da criticidade nos estágios posteriores.

Na realidade, toda geração educa a nova geração, isto é, forma-a; a educação é


uma luta contra os instintos ligados às funções biológicas elementares, uma luta
contra a natureza, a fim de dominá-la e de criar o homem ‘atual’ à sua época
(...)301

Mostra-se bastante enfático quanto à necessidade de seriedade e rigor na


formação da personalidade e, consequentemente, do intelecto, contrariando uma certa
tendência contemporânea de seu pensamento, de reduzir a importância da ação
pedagógica ao grau de ludicidade e espontaneidade ( ou espontaneismo), que, por vezes,
mascara o esvaziamento dos conteúdos curriculares justamente quando as camadas
populares chegam à escola.

Deve-se convencer a muita gente que o estudo é também um trabalho, e muito


fatigante, com um tirocínio particular próprio, não só muscular nervoso, mas
intelectual: é um processo de adaptação, é um hábito adquirido com esforço,
aborrecimento e mesmo sofrimento. A participação das mais amplas massas na
escola média leva consigo a tendência a afrouxar a disciplina do estudo, a
provocar ‘facilidades’(...) Se se quiser criar uma nova camada de intelectuais,
própria de um grupo social que tradicionalmente não pôde desenvolver as
aptidões adequadas, será preciso superar dificuldades inauditas. 302

O Avanti! ...defende a escola... defende a seriedade do ensino..., desejaria que


fosse restaurada a disciplina dos estudos para que a instituição escolar dê
alguma coisa à sociedade, e não seja completamente desperdiçado o dinheiro
penosamente suado dos trabalhadores e que o Estado dedica à instrução
pública.303

Manacorda analisa a relação entre liberdade e disciplina na obra de Gramsci:

300 Gramsci, 1989, p. 145.


301 Gramsci, 1989, p. 142.
302 Gramsci, 1989, p. 139.
303 Manacorda, 1990, p. 25.

135
Liberdade e disciplina (...) como dois opostos dialeticamente unidos, dos quais
um não pode subsistir sem o outro...304

Paolo Nosella, em seu livro A Escola de Gramsci, sintetiza assim a posição de


Gramsci frente à formação do caráter:

...o objetivo de Gramsci é educar a uma liberdade historicamente definida. Por


isso, articula ele a disciplina externa (impositiva) com a autodisciplina e
orientação dos exercícios de autonomia.”305

A responsabilidade do educador na condução do processo educativo é evocada


constantemente:

...penso que qualquer orientação educacional, mesmo a pior, é sempre melhor


que interferências entre dois sistemas contrastantes. (...) Creio ser bom tratar as
crianças como seres já racionais e com os quais se fala seriamente mesmo sobre
os assuntos mais sérios; isto causa neles uma impressão muito profunda,
reforça o caráter, mas especialmente evita que a formação da criança seja
deixada ao sabor das impressões do ambiente e à mecânica dos achados
fortuitos.306

Gramsci desempenha importante papel na crítica à Escola Ativa e/ou Não


Diretiva, cuja ênfase nas atividades lúdicas, no processo de “aprender a aprender”
substituiriam o rigor acadêmico em relação aos conteúdos curriculares e à disciplina
intelectual. Estas correntes valorizavam os aspectos afetivos da aprendizagem, em
detrimento dos cognitivos, separando-os dicotomicamente. Opunham ainda, de forma
antidialética, elementos como quantidade e qualidade, forma e conteúdo, autonomia e
heteronomia.
Gramsci denuncia o caráter irresponsável destas pedagogias, alertando para o
perigo do espontaneismo e do voluntarismo, na desvalorização dos conteúdos. A
influência destas correntes tem sido grande que a didática aborda , por vezes de forma
maniqueísta e reducionista, a mudança de paradigma pedagógico, atribuindo à
pedagogia tradicional somente aspectos negativos e à pedagogia ativa, ou renovada,
somente aspectos positivos, criando um mito intocável em torno da questão, mito este
que se espraia com surpreendente velocidade no senso comum pedagógico. Voltamos a
destacar o caráter a-histórico e acrítico de abordagens desta natureza, e mesmo
anticientífico, se citarmos, por exemplo, sua incompatibilidade da defesa irrestrita do
espontaneismo com a teoria construtivista de Jean Piaget, que destaca a importância do
conflito e de fatores desequilibradores para o desenvolvimento. Ou ainda buscando
apoio em Vygotsky, que alerta para a necessidade de atuação pedagógica na Zona de
Desenvolvimento Proximal, onde a aprendizagem provoca o desenvolvimento. Não há
base científica, portanto, para que a escola aguarde passivamente que o aluno “construa
o conhecimento”, sem uma intervenção pedagógica organizada e planejada, consciente
dos objetivos a alcançar.
Em Gramsci, encontramos, entre outras, as seguintes observações de alerta
quanto aos novos métodos:

304 Ib., p. 35.


305 Nosella, 1992, p. 80.
306 Gramsci, 1990, p. 182.

136
Deve-se distinguir entre escola criadora e escola ativa (...). Toda escola unitária
é escola ativa, se bem que seja necessário limitar as ideologias libertárias neste
campo e reivindicar – com certa energia – o dever das gerações adultas (...) de
‘formar’ as novas gerações. Ainda se está na fase romântica da escola ativa, na
qual os elementos da luta contra a escola mecânica e jesuítica se dilataram
morbidamente por causa do contraste e da polêmica: é necessário entrar na
fase ‘clássica’, racional, encontrando nos fins a atingir a fonte natural para
elaborar os métodos e as formas.307

os novos programas, quanto mais afirmam e teorizam sobre a atividade do


discente e sobre a operosa colaboração com o trabalho do docente, tanto mais
são elaborados como se o discente fosse uma mera passividade. 308

O professor não pode eximir-se do seu papel, da sua autoridade na formação


intelectual dos alunos. É desnecessário lembrar que a autoridade não se manifesta pelo
que, por sua vez, só está presente onde falta a verdadeira liderança, exercida com a
autoridade que a competência confere.
Quanto ao papel do professor, selecionamos alguns textos de Gramsci que
revelam sua preocupação:

...na escola, o nexo instrução-educação somente pode ser representado pelo


trabalho vivo do professor, na medida em que o mestre é consciente dos
contrastes entre o tipo de sociedade e de cultura que ele representa e o tipo de
sociedade e de cultura representado pelos alunos, sendo também consciente de
sua tarefa, que consiste em acelerar e disciplina a formação da criança
conforme o tipo superior em luta com o tipo inferior. Se o corpo docente é
deficiente e o nexo instrução-educação é relaxado, visando a resolver a questão
do ensino de acordo com esquemas de papel nos quais se exalta a
educatividade, a obra do professor se tornará ainda mais deficiente(...).”309
Eu tinha uma acentuada tendência para as ciências exatas e para a matemática
desde pequeno. Perdi-a durante os estudos ginasiais, porque não tive
professores que valessem mais que um figo podre.310

Embora Gramsci não tenha se dedicado a pormenorizar muito as questões


didáticas, encontramos em Manacorda311 a seguinte observação sobre a avaliação no
pensamento de Gramsci:

Gramsci não se opõe à avaliação e às provas. Só não concorda que isso se torne
um pretexto para o Estado burocrático e plutocrático criar maiores empecilhos
aos mais pobres. Estes, porém, não devem passar nos exames por
condescendência assistencialista. O exame é necessário, deve ser objetivo e
‘impiedoso’ no sentido de não envolver o sentimento de pena em sua aplicação.
Aos pobres devem ser oferecidas as condições materiais para seu estudo, jamais
facilitações burocrático-culturais.312

307 Gramsci, 1989, p. 125.


308 Ib., p. 133.
309 Gramsci, 1989, p. 131.
310 Gramsci, 1990, p. 109.
311 Manacorda, 1990, p. 83.
312 Ib.

137
Na valorização dos conteúdos curriculares, no entanto, Gramsci adverte para o
fato de que não podemos meramente insistir no classicismo tradicional, jesuítico. O
objetivo do ensino dos conteúdos convencionais seria a luta contra o folclore, contra o
senso comum, as formas pré-científicas do pensamento, as mistificações, (mantendo, no
entanto, o senso comum como ponto de partida) e a construção de uma “concepção
histórico-dialética do mundo.”313
Articula a sua defesa dos conteúdos, do ensino da ciência, com o cuidado de
buscar uma perspectiva metodológica que considere sujeito e objeto do conhecimento
em relação dinâmica. A ciência como síntese dialética do sujeito, sua perspectiva
histórica, e o real, a objetividade. Defende o caráter superestrutural e ideológico da
ciência.

É possível demonstrar que é um erro exigir da ciência como tal a prova da


objetividade do real, já que esta objetividade é uma concepção do mundo, uma
filosofia, não podendo ser um dado científico. Que pode dar a ciência nesta
direção? A ciência seleciona as sensações, os elementos primordiais do
conhecimento: considera determinadas sensações como transitórias, como
aparentes, como falazes, pois dependem de condições individuais especiais, ao
passo que considera determinadas outras como duradouras, como permanentes,
como superiores às condições individuais especiais.314
O trabalho científico tem dois aspectos principais: um que retifica
incessantemente o modo do conhecimento, retifica e reforça os órgãos
sensoriais, elabora princípios novos e complexos de indução e dedução, isto é,
aperfeiçoa os próprios instrumentos de experiência e de sua verificação; outro
que aplica este complexo instrumental (de instrumentos materiais e mentais)
para determinar, nas sensações, o que é necessário e o que é arbitrário,
individual, transitório. Determina se o que é comum a todos os homens pode-se
verificar da mesma maneira, independentemente uns dos outros, porque foram
observadas igualmente as condições técnicas de verificação...315
(...) na realidade, também a ciência é uma superestrutura, uma ideologia. É
possível dizer, contudo, que no estudo das superestruturas a ciência ocupa um
lugar privilegiado, pelo fato de que a sua reação sobre a estrutura tem um
caráter particular, de maior extensão e continuidade de desenvolvimento, (...).
Além disso, não obstante todos os esforços dos cientistas, a ciência jamais se
apresenta como uma noção objetiva; ela aparece sempre revestida por uma
ideologia e, concretamente, a ciência é a união do fato objetivo com uma
hipótese, ou um sistema de hipóteses, que superam o mero fato objetivo.316

Embora considere a ciência em seu revestimento ideológico, Gramsci manifesta


preocupação quanto aos excessos de subjetivismo.

É certo que toda forma de pensamento deve considerar a si mesma como ‘exata’
e ‘verdadeira’ e combater contra as outras formas de pensamento, mas isto
‘criticamente’. O problema, portanto, reside na dose de ‘criticismo’ e de
‘historicismo’ que estão contidas em todas as formas de pensamento. A filosofia

313 Gramsci, 1989, p. 130.


314 Gramsci, 1989b, p. 68 e 69.
315 Ib., p. 69.
316 Gramsci, 1989b, p. 71.

138
da práxis, reduzindo a ‘especulatividade’ aos seus justos limites (isto é, negando
que a ‘especulatividade’ –como a entendem inclusive os historicistas do
idealismo – seja o caráter essencial da filosofia), revela ser a metodologia
histórica mais adequada à realidade e à verdade.317
Objetivo significa sempre ‘humanamente objetivo’, o que pode corresponder
exatamente a ‘historicamente subjetivo’, isto é, objetivo significaria ‘universal
subjetivo’. O homem conhece objetivamente na medida em que o conhecimento
é real para todo o gênero humano, historicamente unificado em um sistema
cultural unitário; mas este processo de unificação histórica ocorre com o
desaparecimento das contradições internas que dilaceram a sociedade humana
(...). Trata-se, portanto, de uma luta pela objetividade (para libertar-se das
ideologias parciais e falazes) e esta luta é a própria luta pela unificação
cultural do gênero humano.318
O conceito de ‘objetivo’ do materialismo metafísico, ao que parece, pretende
significar uma objetividade que existe também fora do homem; contudo, quando
se afirma que uma realidade existiria ainda que não existisse o homem, ou se faz
uma metáfora ou se cai em uma forma de misticismo. Conhecemos a realidade
apenas em relação ao homem e, como o homem é um devenir histórico, também
o conhecimento e a realidade são um devenir, também a objetividade é um
devenir.319
A matéria, portanto, não deve ser considerada como tal, mas como social e
historicamente organizada pela produção e, desta forma, a ciência natural
como sendo essencialmente uma categoria histórica, uma relação humana.320
...a verdade não se deve nunca apresentar de forma dogmática e absoluta como
se estivesse madura e fosse perfeita. A verdade, para se poder difundir, deve
estar adaptada às condições históricas (ou culturais) do grupo social no seio do
qual se pretende difundir.321
O fundamento de toda atividade crítica, portanto, deve se basear na capacidade
de descobrir a distinção, e as diferenças por baixo de toda superficial e
aparente uniformidade, bem como a unidade essencial por baixo de qualquer
aparente e superficial contraste e diferenciação.322
Não é a ciência, em si mesma, ‘atividade política’ e pensamento político, na
medida em que transforma os homens, torna-os diferentes do que eram antes?323

A seleção de textos acima nos demonstra o quanto Gramsci insiste nas questões
epistemológicas, permanecendo aqui vinculado à orientação dialética observada no
conjunto de sua obra. Evita as saídas simplistas e convida o “filósofo” a percorrer os
difíceis caminhos da metodologia histórico-dialética, e a assumir os desafios inerentes a
este método de conceber e produzir a ciência.
Compreender a pedagogia do mercado em sua dimensão orgânica exige
desmembrar seus diversos aspectos, analisá-los criticamente com base na teoria e
reagrupá-los, sintetizá-los em sua dinâmica histórica, na busca da totalidade ou do
“concreto pensado”. Desta síntese, dois elementos evidenciaram-se: o caráter

317 Ib., p.79.


318 Ib., p.170.
319 Gramsci, 1989b, p. 170.
320 Ib., p.190.
321 Gramsci apud Cavalcanti, p.80.
322 Gramsci, 1978, p. 36.
323 Gramsci, 1989c, p. 87.

139
intrinsecamente político da educação, que expõe a contradição de um modelo
pactualista da pretensa qualidade técnica acima do caráter transformador, e a urgência
de autonomia na definição do projeto político-pedagógico da escola, colocando em
debate as questões que hoje são respondidas pelo mercado: que sociedade queremos
construir? Que aluno queremos formar? Que projeto de escola é necessário à formação
desse aluno para a construção dessa nova sociedade.
Apenas quando a escola resgatar o direito de responder a estas perguntas, hoje
sequestrado, como visto na introdução deste livro, sua vocação transformadora poderá
ser reassumida.

Bibliografia:

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Acabou-se de imprimir
Pedagogia do Mercado:
Neoliberalismo, Trabalho
e Educação no Século XXI
em 30 de novembro de 2012,
na cidade do Rio de Janeiro,
nas oficinas da Singular Digital,
especialmente para Ibis Libris.

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