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Escola Latino-americana
de História e Política
Escuela Latinoamericana
de Historia y Política
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética
Escola Latino-americana de História e Política - ELAHP
Centro Cultural Esperança Vermelha - CCEV
Caixa de Ferramentas
Todos os direitos reservados.
Não é permitida a reprodução total ou parcial sem expressa autorização

Organização
Leandro Eliel Pereira de Moraes
Projeto Gráfico, Diagramação e Capa
Emilio Carlos Machio Font

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Educação e revolução : a pedagogia socialista soviética /organi-
zação Leandro Eliel e Valter Pomar. -São Paulo: ELAHP:
Escola Latino-americana de História e Política, 2021.
Vários autores.

ISBN 978-65-995590-1-3

1. Educação - União Soviética - História


2. Socialismo e educação - União Soviética 3. União Soviética -
História I. Eliel, Leandro. II. Pomar, Valter.

21-76527 CDD-370.947

Índices para catálogo sistemático:


1. União Soviética : Pedagogia : Educação 370.947
Cibele Maria Dias - Bibliotecária - CRB-8/9427

Escola Latino-americana de História e Política - ELAHP


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Sumário
Apresentação 5
Leandro Eliel Pereira de Moraes
União Soviética, breve panorama 21
Valter Pomar
Educação, revolução e URSS: um panorama histórico sobre os fundamentos
pedagógicos e as políticas educacionais soviéticas 31
Leandro Sartori
Lênin – A educação para fins políticos e a
política como ferramenta educativa 49
Mario Borges Netto
Carlos Lucena
Os debates iniciais sobre a construção de uma pedagogia socialista:
a educação politécnica 63
Leandro Sartori
Embates entre o pragmatismo funcional e o projeto soviético 81
José Carlos Souza Araujo
Pistrak, Shulgin e a pedagogia soviética nos anos de 1920 107
Caroline Bahniuk
Sandra Luciana Dalmagro
Makarenko e o desafio para a formação da coletividade 131
Luiz Bezerra Neto
Concepção socialista de educação: a contribuição de Nadedja Krupskaya 145
Nereide Saviani
Anatoli Vassilievitch Lunatcharski e os princípios da escola soviética 159
Zoia Prestes
Elizabeth Tunes
Transformações educacionais nos anos de 1930:
planos quinquenais, formação escolarizada e educação social 175
Leandro Sartori
Legados da perspectiva histórico-cultural para a educação e a psicologia 195
Elizabeth Tunes
Zoia Prestes
Ingrid Lilian Fuhr
Gramsci, Revolução Russa e escola unitária 215
Marcos Francisco Martins
Sobre o problema da periodização do desenvolvimento psíquico na infância 251
D. B. Elkonin
Sobre os Autores 277
Apresentação
Leandro Eliel Pereira de Moraes

Introdução
Esse livro é resultado de um curso organizado conjuntamente
pelo Centro Cultural Esperança Vermelha (CCEV)1, Escola Latino-a-
mericana de História e Política (ELAHP)2 e a Caixa de Ferramentas3,
realizado no segundo semestre de 2020, com as contribuições de pro-
fessores e professoras que ministraram voluntariamente as aulas desse
roteiro e que enviaram seus textos para publicação.
Como coordenador pedagógico desse curso, mediando todas as
aulas, tive a grata oportunidade de acompanhar um roteiro de conteú-
dos fundamentais para a compreensão não só do processo histórico da
educação soviética, mas das polêmicas e dilemas vivenciados por uma
geração revolucionária, permitindo-me organizar uma breve síntese
nesta Apresentação. Evidentemente que o que está aqui sintetizado é
de minha inteira responsabilidade.

A pedagogia socialista soviética


Levando em consideração que as sociedades de classes produzi-
ram uma cisão entre trabalho manual e trabalho intelectual, que no
1 www.ccev.org.br
2 www.elahp.com.br
3 www.caixadeferramentas.org

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Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

campo educacional se expressa pelo dualismo educacional, a partir


das reflexões marxianas, uma sociedade socialista que promova a tran-
sição entre o capitalismo e o comunismo necessita superar a existência
das classes sociais, da exploração do trabalho, da propriedade privada
dos meios de produção e do Estado para que haja possibilidades de
unificação do trabalho entre os que pensam e os que fazem. Evidente-
mente esse é um processo histórico e social de longa duração. Em suas
reflexões em O Capital, Marx procurou evidenciar como o desenvolvi-
mento das forças produtivas materiais era elemento fundamental para
que essa transição pudesse ocorrer. O alto nível de geração de riqueza
era condição para que houvesse maiores possibilidades de sua distri-
buição. Onde havia escassez, a luta pela sobrevivência estava dada.
Por outro lado, em condições de abundância material, as possibilida-
des de uma nova sociabilidade seriam maiores.
Mas, a experiência da primeira tentativa de construção socialis-
ta não seguiu os manuais, ocorrendo em um país com baixo nível de
desenvolvimento das forças produtivas, o que provocou a reflexão de
Gramsci de que a Revolução Russa também foi uma revolução contra
O Capital, a obra. Essa situação, agravada pela I Guerra Mundial (1914-
1918), pela Guerra Civil (1918-1921) e pelo isolamento russo, aumen-
tou ainda mais as dificuldades de uma transição socialista.
É nessas difíceis condições políticas, econômicas e sociais que a
educação soviética se desenvolveu. Para um panorama histórico da
Revolução Russa, o primeiro texto do Capítulo I “União Soviética, um
breve panorama”, de Valter Pomar permite uma compreensão históri-
ca da tomada do poder, em 1917, até o fim da União Soviética, em 1991.
Logo após a tomada do poder, em 1917, foi criado o Comissa-
riado do Povo Para a Instrução Pública com a participação de impor-
tantes educadores: Nadejda K. Krupskaya (1869-1939), Panteleimon
Lepshinsky (1868-1944),Pokrovsky (1868-1932), Evgraf Litkens (1882-
1922), Anatoli V. Lunatcharski (1875-1933). Esse órgão foi responsável
pela reconstrução da educação russa e por variadas responsabilida-
des no campo cultural. Lunatcharski foi o seu primeiro presidente, até
1929.
Pistrak, Professor, pedagogo russo, destacado intelectual e mi-

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Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

litante, tece como preocupação central a elevação da consciência dos


trabalhadores, a formação de um novo homem, que forjaria a sociedade
comunista. A partir da Escola do Trabalho, defendeu a socialização do
conhecimento das leis do trabalho humano e sua manifestação no tra-
balho industrial para a compreensão das relações sociais de produção.
Defendeu a noção de trabalho socialmente útil, que fizesse com que os
alunos se sentissem úteis e se preparassem para a vida na fábrica. Para
ele, a escola deveria despertar a iniciativa dos alunos, preparando-os
para a participação na condução do novo Estado controlado pelos tra-
balhadores através de mecanismos como os sovietes, além da sua au-
to-organização – o coletivo infantil, no princípio de desenvolvimento
da iniciativa das massas. Veremos adiante sua experiência na Escola-
-Comuna.
Krupskaya, educadora russa, dedicou-se à educação de operários,
tendo iniciado suas atividades docentes na escola dominical de edu-
cação de adultos. Nos “círculos estudantis” teve contato com obras de
Marx e Engels e conheceu Lênin, com quem participou de atividades
revolucionárias que os levaram ao exílio, onde se casaram. Destacou-se
na reflexão sobre problemas de educação e na elaboração de propostas
pedagógicas para a construção do socialismo na URSS, com importan-
te papel no Comissariado do Povo Para a Instrução Pública, coorde-
nando a elaboração dos Programas Oficiais da Educação na República
dos Sovietes. Para ela, a educação era uma atividade necessariamente
política, defendendo a apropriação crítica e criativa dos conhecimentos
acumulados pela humanidade para a emancipação dos trabalhadores,
a escola como instrumento de educação da personalidade humana, a
mesma educação para ambos os sexos e uma formação multifacética
das jovens gerações, tendo o trabalho como eixo central dos conteúdos
e das atividades escolares (ensino geral e politécnico). A educação era
compreendida por Krupskaya como indispensável à construção do so-
cialismo, cuja essência seria a organização nova de todo o tecido social,
em um novo regime social, em novas relações entre os homens.
Lunacharsky, educador revolucionário, atuou na elaboração de
propostas pedagógicas para a transição ao socialismo, tendo sido pre-
sidente do Comissariado do Povo para a Instrução Pública, no período
de 1917 a 1929, coordenou a reconstrução do sistema educacional da

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Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Rússia com a construção de escolas, a formação de professores, a or-


ganização de bibliotecas, tornando-as mais acessíveis ao povo, defen-
dendo a associação da instrução pública à educação extraescolar (fora
do sistema de ensino, no âmbito da propaganda e agitação). Promoveu
a organização do poder local (criação do Conselho para a Instrução
Pública junto aos Sovietes dos Deputados Operários). Atuou na cons-
trução da Escola Única do Trabalho, que compreendia a formação cul-
tural geral e a educação politécnica, por meio de três níveis articulados
de formação: I) Educação Intelectual, a instrução científica por meio
da aquisição dos conhecimentos, pelo estudo metódico do trabalho; II)
Educação física, desenvolver o corpo, torná-lo ágil, são, belo, formação
corporal; higiene, estética; III) Educação Politécnica, a íntima relação
entre o estudo e o trabalho, como prática social, constituidora do ser
humano, o domínio das bases da indústria moderna, em seu desenvol-
vimento histórico; uma base sólida de conhecimentos gerais, associada
à formação profissional, que não se confunde com a mera instrução
para ocupações específicas, tratando-se da formação do homem novo,
para uma sociedade de novo tipo.
Veremos em seguida outros destacados educadores no processo
de reconstrução da educação soviética a partir de algumas experiên-
cias concretas. De forma geral, buscou-se aliar a formação cultural, o
compromisso do trabalho social com uma politização marcada pelo
compromisso de classe:

Uma das hipocrisias burguesas é a crença que a escola pode permanecer


indiferente a política. Você bem sabe quão falsa é esta crença. Os pró-
prios burgueses, que advogam este princípio, fazem sua própria política
burguesa à pedra angular do sistema educacional, e tentam reduzir a es-
colarização ao dócil e eficiente treinamento de servos da burguesia, para
reduzir a educação universal do topo ao inferiorizado dócil e eficiente
treinamento de servos da burguesia, de escravos e objetos do capital.
Eles nunca pensaram em fazer da escola um meio de desenvolvimento
da personalidade humana. (LÊNIN Apud SARTORI, 2020).

O desafio desses educadores era combater o ensino tradicional


e elitista do período anterior, construir as condições de uma educa-
ção socialista, com igualdade de gênero, construir o novo homem partir

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Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

das experiências mais avançadas até então e ousar a implementação


de projetos originais. A educação estava diretamente relacionada com
o processo de desenvolvimento do país, ou seja, educação e trabalho
estavam articulados. Dito de outra forma, o desenvolvimento mate-
rial e a elevação do nível cultural do povo não estavam separados. O
instrumento fundamental para isso seria a escola universal, ainda que
houvesse polêmica em torno de sua efetiva existência nos moldes an-
teriores, conforme polêmica apontada por Sartori:

[...] a discussão sobre a continuidade ou fim da escola não foi unanime


mesmo entre os soviéticos. Lunatcharski se posicionou favoravelmente
à continuidade da instituição, ainda que ela sofresse profundas modifi-
cações em sua forma e em seu conteúdo. Shulgin, dentre outros intelec-
tuais, defendeu em contrapartida o fim da educação escolarizada como
um avanço para a revolução, na medida em que rompesse com as ins-
tituições usadas para legitimação da dominação e do poderio burguês.
Não podemos igualar esses posicionamentos que existiam no seio do
Comissariado do Povo, já que representavam posicionamentos diferen-
tes em relação a escola no socialismo. (SARTORI, 2020, p. 148).

A escola, modificada pelos novos objetivos sociais de construção


do novo homem, inter-relacionou a formação intelectual, a partir de pre-
missas teóricas adequadas com a vida social, com a perspectiva de so-
lução dos problemas imediatos da reconstrução do país.

Tais mudanças determinariam precipuamente a ligação da escola com


a vida social, possibilitando uma intuição marxista por meio do conta-
to direto dos escolares com os problemas existentes nos derredores da
escola. Sendo assim, o marxismo não foi introduzido como disciplina
filosófica, econômica e histórica, mas sim, pela criação de um sentimen-
to, uma mentalidade marxista no estudante através das relações entre
escola e sociedade. O estudante, em muitos casos, deveria se ocupar de
trabalho de cunho socialmente útil. Para tanto, indicava-se que os esco-
lares poderiam se ocupar dos problemas postos no bairro em que a esco-
la se inserisse, o que implica pensar em premissas de ordem psicológica
que não se identificavam com uma biogênese, na qual a criança tem in-
teresses específicos e próprios de sua idade biológica. Para os soviéticos
foi necessário gerar o comprometimento com os problemas expressos no

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Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

cotidiano - seja no âmbito mais imediato, seja nas lutas e conquistas do


socialismo. (SARTORI, 2020, p. 149).

Para uma compreensão sobre as políticas educacionais, o texto de


Leandro Sartori, no Capítulo II “Educação, Revolução e URSS: um pa-
norama histórico sobre os fundamentos pedagógicos e as políticas edu-
cacionais soviéticas”, permite uma avaliação dos desafios iniciais de
educadores russos, enquanto o Capítulo III “Lênin – a educação para
fins políticos e a política como ferramenta educativa”, de Mário Borges
Neto e Carlos Lucena, aborda o papel de Lênin nos processos forma-
tivos dos dirigentes comunistas, antes da Revolução, e da necessária
formação política e cultural das massas com a construção socialista.
Sobre as experiências mais avançadas, além das experiências anar-
quistas e socialistas existentes, os educadores russos também conhe-
ciam a Escola Nova, sob forte influência de John Dewey (1859-1952).
Segundo Sartori (2020):

O Estado não dispunha de recursos vultuosos para a reconstrução social


no pós-guerra e mesmo para equiparar os índices sociais e de produtivi-
dade aos índices já existentes no pré-guerra. Havia um caminho a ser
percorrido, o que demandaria grande esforço. Por suposto, os métodos
ativos foram adotados na educação das massas por oferecerem uma al-
ternativa ao cumprimento da empreitada educativa. Se não se possuía
uma infraestrutura escolar bem estabelecida e com os trabalhadores ne-
cessários para pôr as escolas em pleno funcionamento, a escola se ressig-
nificou (ao menos enquanto proposição do Comissariado do Povo para
a Instrução Pública) por meio de metodologias pautadas no trabalho
socialmente útil, de maneira que fosse viabilizada a (re)construção dos
níveis de vida da sociedade. Nesse quadro, os métodos ativos cumpriram
um duplo papel: a construção de um sujeito participativo na sociedade e
a utilização pragmática deste sujeito para difundir as bases de uma nova
sociedade. (SARTORI, 2020, p. 142).

Nesse sentido, nesse processo de reconstrução educacional, as in-


fluências de perspectivas das pedagogias ativas, pragmáticas, do esco-
lanovismo não encontraram terreno vazio na Rússia, conforme alerta
Araújo (2016):

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Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Tabela 1 - Quadro estatístico acerca do desenvolvimento da Educação


Elementar
Cifras Alunos
Anos Escolas Alunos Escolas Alunos
1914-1915 104.610 7.235.988 100 100
1920-1921 114.235 9.211.351 109,2 127,3
1921-1922 99.396 7.918.751 99 109,4
1922-1923 87.559 6.808.157 83,7 94,1
1923-1924 87.258 7.075.810 83,4 978,8
1924-1925 91.086 8.249.490 87,1 116,5
1925-1926 101.193 9.487.110 96,7 131,1
1926-1927 108.424 9.903.439 103,6 136,89
Fonte: WILSON Apud ARAÚJO, 2016, p. 46.

Como ponto de partida para o estabelecimento do elo com o movimento


da Escola Nova, deve-se recordar de Liev Nikolayevich Tolstoi (1828-
1910), situável como um precursor do referido movimento na Rússia,
falecido sete anos antes da Revolução Russa de 1917. Aliás, as Impres-
sões da Rússia Soviética de Dewey fazem referências a Tolstoi: primei-
ro, de que este seria um teórico da liberdade [...], e depois de que o “[…]
crescimento da educação soviética, digamos, até 1922 ou 1923, [era] um
período em que a influência americana, agregado à de Tolstoi, exercia
predomínio”. (ARAÚJO, 2016, p. 39).

Araújo (2016) aponta que os principais educadores revolucioná-


rios russos, nascidos nas três décadas finais do século XIX, conviveram
com as produções e reflexões dessa vertente pedagógica. Se na pers-
pectiva liberal de Dewey havia uma proposta de equalização social
por meio da educação e do trabalho, nos marcos de uma sociedade ca-
pitalista democrática, para os russos tratava-se de uma perspectiva de
unificação do trabalho manual e intelectual, da formação cultural, ar-
tística e física no sentido de superação da sociedade de classes, ou seja,

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Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

da educação politécnica, tema abordado no Capítulo IV “Os debates


iniciais sobre a construção de uma pedagogia socialista: a educação
politécnica”, de Leandro Sartori.
Houve um intenso debate na Rússia, durante os anos 1920 e 1930,
sobre os avanços e limites dessa perspectiva escolanovista, sobre a ne-
cessidade de avançar para além da mera relação formal entre a forma-
ção cultural mais ampla e a educação técnica para o trabalho. Eviden-
temente que esses avanços estavam diretamente relacionados com as
condições materiais, ou seja, com o desenvolvimento da própria tran-
sição socialista.
Sobre isso, o Capítulo V “Embates entre o pragmatismo funcional
e o projeto soviético”, de José Carlos Souza Araújo aborda as influên-
cias da Escola Nova sobre a pedagogia soviética.
Em 1918, surgem as Escolas-Experimentais, que buscavam expe-
rienciar projetos educativos pilotos para sua posterior difusão pela so-
ciedade soviética. Em 1937 elas foram integradas ao sistema regular de
ensino. O destaque inicial foi a Escola-Comuna, conduzida por Pistrak,
que atendia setores sociais marginalizados pelas condições sociais do
período anterior czarista, pela situação das guerras, que deixaram uma
quantidade enorme de órfãos, pela situação de vulnerabilidade social e
pela delinquência. Essa Escola buscou aliar a formação cultural com o
trabalho, a partir das reflexões teóricas citadas anteriormente, além do
conhecimento que esses educadores russos tinham de outras experiên-
cias educativas em outros países. Para Pistrak,

[...] o trabalho imaginado na perspectiva de vida moderna, o trabalho


concebido do ponto de vista social, na base do qual se forja inevitavel-
mente uma compreensão determinada da realidade atual, o trabalho
que introduz a criança na atividade socialmente útil. E para solidificar
a base da educação comunista, não basta levar as crianças a estudar
o esforço realizado pela atividade humana; é preciso ao mesmo tempo
adaptar essa atividade às forças de sua idade, é preciso orientar que
participem no trabalho social de forma ativa, de forma consciente, so-
cialmente esclarecida [...] (PISTRAK Apud SARTORI, 2020, p.150
– grifos do original)

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Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Nessa experiência e nas escolas em que a educação politécnica foi


desenvolvida, o trabalho adquiria, nas primeiras etapas, respeitando a
idade e as capacidades próprias, o caráter de atividade prática, de ofi-
cinas, desenvolvendo-se, nos momentos seguintes, em compreensões
mais amplas sobre os processos produtivos, nos domínios técnicos em
variadas áreas, no exercício profissional, na autogestão organizativa.

É de suma importância destacar que a oficina escolar “[...] não produz


objetos sem utilidade prática.” (PISTRAK, 2011, p.53), ou seja, havia a
preocupação que os objetos produzidos pelos escolares fossem úteis para
a sociedade, de modo que em determinados casos podia haver seleção de
encomendas (pelas necessidades da própria escola ou da comunidade) à
oficina escolar. Esta seleção se dava pautada pelas necessidades imedia-
tas de vida e, igualmente, de acordo com a gradação de complexidade de
procedimentos para a produção, preocupado sempre com a viabilização
de aplicação metodológica a mais diversificada possível para que os es-
tudantes tivessem contato com as mais variadas técnicas de produção.
(SARTORI, 2020, p.151-152).

Em 1919, Lênin assinou o decreto sobre a erradicação do analfa-


betismo, que promoveu, em língua materna, a alfabetização dos povos
da URSS. Se no início da Revolução a população analfabeta estava em
torno de 68% (ARAÚJO, 2016, p. 41), nos anos seguintes essa taxa des-
pencou até a erradicação do analfabetismo nos anos 1950.
Reforçando os princípios educacionais socialistas, em 1920, du-
rante a Guerra Civil, Lênin apontava o seguinte:

Na República Soviética operária e camponesa, toda a organização da


instrução, tanto no domínio da instrução política em geral, como, mais
especialmente, no domínio da arte, deve estar impregnada do espírito
da luta de classe do proletariado pela realização vitoriosa dos objectivos
da sua ditadura, isto é, pelo derrubamento da burguesia, pela supressão
das classes e pela eliminação de toda a exploração do homem pelo ho-
mem. (LÊNIN, Sobre a cultura proletária, 1920).

Para Lênin e os demais revolucionários era fundamental um pro-


cesso de formação política da juventude, que se daria tanto no ambien-

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Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

te escolar como nos demais espaços formativos. O aumento exponen-


cial de militantes que ingressavam no Partido Bolchevique deveria ser
acompanhado de uma necessária formação dos princípios marxistas,
dos mecanismos de funcionamento da sociedade capitalista com suas
contradições e sobre as tarefas de construção do socialismo. Nesse sen-
tido, nesse mesmo texto, ele afirmou o papel do partido: “Por isso o
proletariado, tanto através da sua vanguarda, o partido comunista,
como através de toda a massa de todo o tipo de organizações proletá-
rias em geral, deve participar do modo mais activo e principal em toda
a obra da instrução pública”. (LÊNIN, Sobre a cultura proletária, 1920).
O sistema educacional russo, fortemente abalado pelas guerras, se
recupera nos anos iniciais do processo revolucionário, conforme dados
indicados por Araújo (2016):
Nessa nova escola que surgia, com as escolas experimentais de Pis-
trak, a metodologia, os conteúdos e o currículo modificaram-se no sen-
tido distinto das disciplinas tradicionais, por meio dos “complexos”,
temas que estavam articulados com a vida social e com os as diversas
áreas do conhecimento.

A organização do programa de ensino segundo os complexos foi sugerida


como capaz de abarcar uma visão dinâmica, relacional e fundamental-
mente dialética sobre um dado objeto de estudo. Essa forma organizativa
dos estudos possibilitaria aplicações metodológicas múltiplas, a depender
do tema em estudo: trabalho em laboratório, excursão, entre outras. A
seleção de temas do complexo seria o resultado das determinações e ten-
dências dispostas no programa oficial, preocupado com a compreensão
da realidade atual e alargamento da perspectiva política dos estudantes.
Isto é, o complexo não refletiria um interesse fruto do acaso. O tema se-
ria relacionado à atualidade, devendo incorrer ao plano social (a situação
dos trabalhadores da fábrica x, donde provém as matérias-primas para
a produção de y...). Os temas seriam obrigatoriamente estabelecidos em
continuidade entre as séries da escola, de modo que fosse possível esta-
belecer pontos comuns e generalizações. (SARTORI, 2020, p.153-154).

Para uma melhor compreensão das contribuições e polêmicas


sobre as escolas experimentais, o Capítulo VI “Pistrak, Shulgin e a pe-

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Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

dagogia soviética nos anos 1920”, de Caroline Bahniuk e Sandra Dal-


magro trazem importantes contribuições.
Makarenko, educador ucraniano, que também desenvolveu ativi-
dades educativas com crianças e jovens em situações vulneráveis, di-
rigiu instituições correcionais, com destaque para a Colônia Gorki, em
que educadores e educandos conviviam em ambiente de trabalho cole-
tivo, exercitando a autogestão no trabalho e na disciplina, com regras
construídas coletivamente, ainda que fosse mais centralizado que Pis-
trak, por exemplo. Em sua obra “Poema Pedagógico”, Makarenko rela-
ta a busca pelo equilíbrio entre disciplina e afetividade nas atividades
desenvolvidas nessa instituição. Luiz Bezerra Neto, no Capítulo VII
“Makarenko e o desafio para a formação da coletividade”, apresenta
reflexões acerca desse pedagogo que buscou nas condições concretas da
realidade russa os meios para a formação do homem novo.
Essas experiências iniciais, desenvolvidas após a Revolução de
1917, nas escolas experimentais, foram debatidas e avaliadas ao longo
dos anos iniciais desse processo. A adoção dos “complexos, por exem-
plo, encontrou enormes dificuldades de generalização.

Toda a política educacional deste período teve enorme dificuldade para


chegar à prática das escolas. Pesaram as condições materiais de funcio-
namento das escolas, a falta de orientações claras sobre como as escolas
e os professores deveriam proceder (reclama algo que critica), bem como
a resistência e a falta de preparação do magistério para implementar as
novas exigências curriculares. (FREITAS Apud SARTORI, 2020, p.
108).

A adoção de novas metodologias e novos conteúdos encontrava li-


mites nas heranças da velha escola tradicional, que não foi superada de
imediato e pelas necessidades imediatas da reconstrução econômica do
país. De toda forma, em 1925, essas inovações foram reforçadas pelos
Programas Oficiais, que organizaram um planejamento das atividades
educativas, dos temas dos complexos, do currículo, em meio ao desen-
volvimento da NEP. Os debates entre os educadores foram permeados
por intensas polêmicas acerca dos avanços e limites dessas inovações,
dos complexos, das divergências entre as concepções pedagógicas, so-

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Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

bre o papel da escola (fim da escola) e da educação social, sobre a auto-


gestão, sobre a necessidade de reforma educacional, que se configurou
no início dos anos 1930.
Além dos teóricos e revolucionários anteriormente citados, para
uma compreensão dessas perspectivas educacionais e pedagógicas, de
suas divergências, no Capítulo VIII “Concepção socialista de educa-
ção: A contribuição de Nadedja Krupskaya”, de Nereide Saviani e no
Capítulo IX “Anatoli Vassilievitch Lunatcharski e os princípios da es-
cola soviética”, de Zoia Prestes e Elizabeth Tunes, temos a oportuni-
dade de conhecer outros importantes teóricos e dos debates travados
durante a década de 1920.
Nesses debates, houve uma rica autocrítica acerca dessas inova-
ções pedagógicas entre os diversos educadores russos, que apontavam
a subestimação da teoria, permitindo, por exemplo, reflexões como a de
Pistrak sobre as insuficiências dos complexos, que abandonando os es-
tudos por meios das disciplinas, afirmou que “(...) da matéria restaram
retalhos, pedaços do conhecimento mal ligados entre si (...) revela-se
a ignorância do significado da teoria (...)” (PISTRAK apud SARTORI,
p.113). Além disso,

houve aplicação estática dos próprios temas de estudo, sem sequencia-


mento lógico e sem conexão entre si, gerando inconsistência quanto a
aquisição dos saberes de modo sistemático; os complexos de estudo te-
riam se tornado “complexos sentados” na medida em que não modifica-
ram as atividades de estudo; implantou-se uma “politecnização verba-
lista”: o trabalho sendo empregado como objeto de estudo externo, não
como meio de ensino.Os questionamentos se caminharam na direção de
insuficiências nos conteúdos ensinados, pela ausência de sistematicida-
de e pela desconsideração do trabalho como forma de ensino. (SARTO-
RI, 2020, p.113).

Enquanto a educação soviética se reconstruía, naquele momento a


NEP fora substituída pelos Planos Quinquenais e pela coletivização for-
çada do campo, enquanto as disputas internas no PCUS e no governo se
acirravam e marcavam o início do período denominado stalinista, em
meio ao cerco imperialista.

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Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Há uma intensa polêmica entre os estudiosos da história da


educação na URSS sobre as reformas educacionais dos anos 1930 acerca
do abandono ou não das perspectivas revolucionárias e da educação
politécnica, que pode ser conferida no Capítulo X “Transformações
educacionais dos anos 1930: planos quinquenais, formação escolari-
zada e educação social”, de Leandro Sartori.
De nossa parte, ainda é necessário percorrer um longo caminho
nos estudos desse processo para uma avaliação mais precisa. De toda
forma, após 1930, em meio a todas essas contradições e violenta luta
interna acerca dos rumos da URSS, o processo educacional socialista
permitiu a ampliação do acesso da população da URSS à educação, à
cultura, à ciência em escalas crescentes, caminhou na direção da erra-
dicação do analfabetismo e permitiu um alto nível de desenvolvimento
tecnológico, proporcionando uma melhoria significativa nas condições
de vida da população.
Finalizando este livro, temos outro texto de Zoia Prestes e Elisabe-
th Tunes, no Capítulo XI “Legados da perspectiva Histórico-cultural
para a educação e a psicologia” que trazem as contribuições de uma
psicologia marxista, produzida por uma importante escola soviética,
para o campo educacional, e o Capítulo XII “Gramsci, Revolução Rus-
sa e escola unitária”, de Marcos Francisco Martins, que aborda como
essa importante experiência educacional influenciou outros teóricos,
com destaque para Gramsci e sua formulação da Escola Unitária do
Trabalho, inspirada nessa pioneira trajetória russa.
Sabemos que superação da dicotomia entre trabalho manual e
intelectual é um resultado da superação das sociedades de classes. Nes-
se sentido, as tarefas da pedagogia russa na construção de uma educa-
ção politécnica seriam necessariamente parciais, diretamente relaciona-
das ao processo histórico de desenvolvimento das forças produtivas,
da capacitação teórica e técnica dos educadores e educandos. Portanto,
os avanços e recuos dessa experiência devem ser compreendidos nessa
perspectiva.
Entre avanços e retrocessos, é possível apontar um legado da
educação soviética em variados níveis internos e externos. Para a po-
pulação da URSS, a erradicação do analfabetismo, a elevação cultural e

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Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

intelectual, a formação científica e tecnológica e o alto nível de desen-


volvimentos das forças produtivas materiais foram elementos positi-
vos fundamentais.
A construção de uma perspectiva educacional e pedagógica da Es-
cola Unitária do Trabalho influenciou diversos teóricos e experiências
educacionais pelo mundo afora, que adotaram elementos de uma edu-
cação politécnica em distintas realidades, com variadas adaptações e
inovações.
Além disso, a existência da URSS foi um elemento de apoio aos
trabalhadores diante dos avanços dos interesses privados capitalistas,
que, diante da ameaça comunista, aceitaram, num determinado perío-
do histórico, “perder os anéis para não perder os dedos”, ou seja, acei-
taram a melhora das condições de vida e de trabalho da classe traba-
lhadora europeia para evitar novas revoluções políticas e sociais. Nesse
sentido é que essa experiência soviética colaborou na defesa da escola
pública, gratuita, laica, de qualidade em variadas partes do mundo, im-
pulsionando a defesa de novos valores solidários e de emancipação, de
ampliação do nível de consciência de classe dos trabalhadores, da ne-
cessidade de construção de instrumentos próprios de formação política
e de novas perspectivas pedagógicas.
Essas considerações não impedem o reconhecimento dos limites
e equívocos existentes, seja pelas duras condições impostas pela reali-
dade política, econômica e social, como também pelas decisões toma-
das por seus dirigentes. Cabe aos educadores do presente, que almejam
uma sociedade emancipada, com a necessária generosidade histórica
diante de um povo que superou enormes desafios, que derrotou potên-
cias numa guerra civil e que nos livrou do nazifascismo, aprender com
os erros e acertos dessa intensa experiência histórica.
Essa obra é uma contribuição à essas reflexões. Boa leitura!

Referências Bibliográficas
ARAÚJO, José Carlos Souza. Apresentação: Impressões de John Dewey sobre a Rús-
sia Soviética como interpretação de um contexto. In.: DEWEY, John. Impressões
sobre a Rússia Soviética. Uberlândia, MG: Navegando Publicações, 2016. Dis-

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Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

ponível em: https://www.editoranavegando.com/impressoes-sobre-a-russia


Acessado em: 02 Out. 2020.
FREITAS, Luiz Carlos de. A luta por uma pedagogia do meio: revisitando o conceito.
In: PISTRAK, Moisey. M. (org.). A Escola-Comuna. 1ª edição. São Paulo: Expres-
são Popular, 2009.
LÊNIN, Vladimir Ilitch. Sobre a cultura proletária. 1920. Disponível em: https://
www.marxists.org/portugues/lenin/1920/10/08.htm.
SARTORI, L. História da educação soviética: a transição como processo de aprendi-
zagem. 2020. 327f. - Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Estadual de
Campinas). Campinas, 2020.

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União Soviética, breve panorama
Valter Pomar

Antes de ser comentarista do BBB, Pedro Bial teve outra vida, que
incluiu uma frase dita em 1991 no Jornal Nacional: “este dia 25 de de-
zembro é o último dia de 1917”1.
O principal noticiário da Globo destacou uma cena simbólica: no
Kremlin, a bandeira soviética desceu para não mais subir; no seu lugar,
foi içada a bandeira russa. Pouco antes, Mikhail Gorbachev -- o prin-
cipal dirigente da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS)
– lera o seguinte discurso2:

“Caros compatriotas! Concidadãos!


Por força da situação gerada com a formação da Comunidade de Esta-
dos Independentes, estou encerrando minha atuação como Presidente
da URSS, decisão que tomo por razões de princípio.
Defendi firmemente a autonomia dos povos da URSS e a soberania das
Repúblicas, mas lutei, ao mesmo tempo, pela preservação do Estado
soviético e pela integridade do País.
Os acontecimentos tomaram outro rumo: prevaleceu uma linha de des-
membramento do País e de desintegração do Estado com a qual eu não
posso concordar.
E mesmo diante das decisões tomadas no encontro de Alma-Ata, minha
posição quanto a isso não mudou.
Além disso, estou convencido de que tais decisões, em vista de seu am-
plo alcance, deveriam ter sido ratificadas pela vontade popular.
1 Quem tiver interesse nesta edição do Jornal Nacional pode assistir aqui: http://blog.
editoracontexto.com.br/26-de-dezembro-1991-dissolucao-da-urss/
2 O discurso traduzido para o português, bem como link para a versão original, está
disponível aqui: https://www.marxists.org/portugues/tematica/1991/12/25.htm

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Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Entretanto, farei todo o possível para que os acordos assinados no en-


contro conduzam a uma real harmonia na sociedade e facilitem em al-
gum grau a solução da crise e o processo de reformas.
Discursando a vocês pela última vez como Presidente da URSS, jul-
go necessário expressar minha avaliação do caminho percorrido desde
1985, tanto mais que não são poucos, a esse respeito, os juízos contradi-
tórios, superficiais e subjetivos.
Quis o destino que já estivesse claro, quando assumi a chefia do Estado,
que havia algo de errado com o país. Tudo aqui existia em abundância:
terra, petróleo, gás e outras riquezas naturais, bem como inteligência e
talento de sobra. Porém, vivíamos muito pior do que nos países desen-
volvidos, em relação aos quais nos atrasávamos cada vez mais.
A razão disso já era evidente: a sociedade era asfixiada por um sistema
de governo autoritário e burocrático. Condenada a servir à ideologia e a
carregar o temível fardo da corrida armamentista, ela se encontrava no
limite de suas capacidades.
Todas as tentativas parciais de reforma, que não foram poucas, termina-
ram em sucessivos fracassos. O país havia perdido a perspectiva. Não se
podia continuar a viver assim. Era preciso mudar tudo drasticamente.
Eis por que jamais lamentei não ter aproveitado o cargo de Secretário-
-Geral para apenas “reinar” por alguns anos, atitude que eu considera-
ria irresponsável e imoral.
Eu compreendia que iniciar reformas de tal amplitude, numa sociedade
como a nossa, era uma tarefa dificílima e até mesmo arriscada. Mas ain-
da hoje sigo convencido da justeza histórica das reformas democráticas
iniciadas na primavera de 1985.
O processo de renovação do País e de mudanças radicais na comuni-
dade mundial se mostrou muito mais complexo do que se podia supor.
Todavia, deve ser atribuído o devido valor a tudo o que foi feito:
– A sociedade ganhou liberdade, emancipou-se política e intelectual-
mente. Essa foi a principal conquista, a qual ainda não assimilamos
inteiramente, já que não aprendemos ainda a usufruí-la. Entretanto, foi
realizado um trabalho de significado histórico:
– Liquidou-se o sistema totalitário que havia privado o País da possibi-
lidade de há muito tempo ter se tornado próspero e florescente.
– Realizou-se uma abertura rumo a transformações democráticas, tor-
nando-se uma realidade as eleições livres, as liberdades religiosas e de
imprensa, os órgãos representativos de poder e o multipartidarismo. Os

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Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

direitos humanos foram reconhecidos como o princípio mais elevado.


– Iniciou-se a transição para uma economia mista, sendo estabelecidos
direitos iguais a todas as formas de propriedade. No âmbito da reforma
agrária, o campesinato começou a renascer, surgiram fazendas priva-
das e milhões de hectares de terra foram distribuídos aos moradores do
campo e da cidade. Legalizou-se a liberdade econômica dos produtores
e começaram a ganhar força a atividade empresarial, a venda de ações
e a privatização.
– Vale lembrar que o direcionamento da economia para o mercado está
sendo feito em prol das pessoas. Nestes tempos difíceis, tudo deve ser
feito para que elas tenham proteção social garantida, especialmente os
idosos e as crianças.
Nós vivemos num mundo novo:
– Deu-se um fim à “guerra fria”, à corrida armamentista e à dispa-
ratada militarização do País, a qual havia mutilado nossa economia,
nossa consciência pública e nossa moral. Foi liquidada a ameaça de uma
guerra mundial.
Mais uma vez quero frisar que nesse período de transição, de minha
parte, tudo foi feito para que se mantivesse um firme controle sobre o
armamento nuclear.
– Nós nos abrimos para o mundo e renunciamos à intromissão nos as-
suntos de outros países e ao emprego de tropas fora de nossas fronteiras,
pelo que fomos retribuídos com solidariedade, confiança e respeito.
– Nós nos tornamos um dos principais bastiões da reestruturação da
civilização moderna sob princípios pacíficos e democráticos.
– Os povos e nações soviéticos ganharam real liberdade de optar pela
via da autodeterminação. A busca da reforma democrática do Estado
multinacional nos deixou, inclusive, à beira de concluir um novo Tra-
tado da União.
Todas essas transformações exigiram enormes esforços e uma luta acir-
rada contra a crescente resistência das forças obsoletas e reacionárias
encarnadas na antiga estrutura partidário-estatal e no aparelho eco-
nômico, bem como em nossos hábitos, nossos preconceitos ideológicos
e nossa psicologia niveladora e parasitária. As mudanças se chocaram
ainda com nossa intolerância, com o baixo nível de nossa cultura polí-
tica e com nosso medo de mudar. Eis por que perdemos tanto tempo: o
velho sistema ruiu antes que um novo conseguisse entrar em funciona-
mento, o que agravou ainda mais a crise social.

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Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Eu sei o quanto é insatisfatória e difícil a situação atual e o quanto são


duras as críticas às autoridades em todos os níveis e, particularmen-
te, à minha atuação. Porém, mais uma vez quero frisar que mudanças
drásticas num país tão vasto, ainda mais com uma herança dessas, não
podem se realizar sem tormentos, dificuldades e abalos.
O golpe de agosto levou ao limite a crise geral, na qual o colapso da
URSS como Estado é o que há de mais nocivo. E hoje me preocupa que
nossa população esteja perdendo a cidadania de um grande país, poden-
do ser as consequências disso muito graves para todos.
Penso ser de vital importância conservar as conquistas democráticas
dos últimos anos, as quais foram o árduo coroamento de nossa trágica
experiência histórica. Não se deve renunciar a elas em nenhuma cir-
cunstância, sob nenhum pretexto, caso contrário, todas as nossas me-
lhores esperanças terminarão sepultadas.
Falo sobre tudo isso de maneira franca e direta, pois esse é meu dever
moral.
Quero expressar hoje meu reconhecimento a todos os cidadãos que
apoiaram a política de renovação do País e se envolveram na realização
das reformas democráticas.
Sou grato ainda aos estadistas, políticos, figuras públicas e aos milhões
de pessoas no exterior que compreenderam e apoiaram nossos planos e
nos dispensaram sua ajuda e sua cooperação sincera.
Deixo meu posto com preocupação, mas também com esperança, com
fé em vocês, em sua sabedoria e sua força moral. Somos os herdeiros
de uma grande civilização, e agora depende de cada um de nós que ela
renasça para uma vida nova, moderna e digna.
Quero agradecer de todo coração aos que, nesses anos, defenderam jun-
to comigo uma causa justa e boa. Certamente alguns erros poderiam ter
sido evitados e muita coisa poderia ter sido feita melhor. Mas estou con-
fiante de que, mais cedo ou mais tarde, nossos esforços conjuntos darão
frutos e nossos povos viverão numa sociedade próspera e democrática.
Desejo a vocês tudo de melhor”.

O desejo de Gorbachev não atendido: a partir de então, piorou


muito a situação econômica e social da população até então soviética.
O mesmo ocorreu em outras regiões do mundo que se beneficiavam di-
reta ou indiretamente, da existência da URSS. Nas palavras sintéticas
de Vladimir Putin, ditas em 25 de abril de 2005: “a morte da URSS foi a

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Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

maior catástrofe geopolítica do século. No que se refere aos russos, ela se


tornou uma verdadeira tragédia”.”3
Hoje, quase trinta anos depois, a situação é distinta entre outros
motivos porque tanto chineses (desde 1978) quanto russos (desde a as-
censão de Putin) seguiram caminhos totalmente diferentes daqueles tri-
lhados por Gorbachev.
Queridinho do Ocidente capitalista, Gorbachev apostou suas fichas
na glasnost (transparência): na prática, reduziu o poder do Partido Co-
munista e do Estado Soviético, dentro e fora do país, neste caso em be-
nefício direto e indireto dos Estados Unidos.
Ao fazer isso, enfraqueceu o principal instrumento de que dispu-
nha para fazer a perestroika (reconstrução): na prática, a economia que
já ia mal, converteu-se num caos completo4.
Na contramão disto, os comunistas chineses fizeram sua reforma
econômica sem abrir mão do poder do Estado e do Partido. E, anos de-
pois, Putin usou e abusou do poder de Estado para retomar algum con-
trole da situação, seja contra o capitalismo mafioso, seja contra as ofensi-
vas da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
Evidentemente, Gorbachev tem suas culpas, mas não é “o” único
responsável pelas referidas “catástrofe geopolítica” e “verdadeira tra-
gédia”. Há quem aponte o dedo para a “estagnação” ocorrida no perío-
do (1964-1982) em que Leonid Brejnev foi secretário-geral do PCUS; há
quem acuse as reformas realizadas pelo secretário-geral anterior (1953-
1964), o famoso Nikita Kruschev que denunciou os “crimes de Stalin”;
há quem responsabilize Stálin e todo o chamado stalinismo (1924-1953);
mas há também quem considere que a URSS já teria nascido torta, quan-
3 Mais referências sobre o discurso de Putin podem ser encontradas aqui: https://
www.bbc.com/portuguese/noticias/story/2005/04/050425_putinro
4 Uma análise mais extensa pode ser encontrada numa trilogia escrita por Wladimir
Pomar e publicada originalmente pela Scritta Editorial: Rasgando a cortina, A miragem
do mercado e A ilusão dos inocentes. Uma versão digital do primeiro deles está aqui:
http://5c912a4babb9d3d7cce1-6e2107136992060ccfd52e87c213fd32.r10.cf5.rackcdn.
com/wp-content/files/Rasgando_a_Cortina_por_Wladimir_Pomar_2ed.pdf

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Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

do os bolcheviques5 liderados por Lenin decidiram tomar o poder numa


Rússia devastada pela Primeira Guerra Mundial, em outubro de 19176;
e há quem vá mais longe, pondo a culpa em Marx e Engels, por terem
escrito o Manifesto Comunista.

Quem preferir uma análise de outro tipo, menos centrado nos in-
divíduos e mais atento para os conflitos entre as classes sociais e entre
os Estados, deve começar lembrando que a Rússia de 1917 era um dos
maiores impérios do mundo, um colosso de pés feudais num mundo
onde o capitalismo dirigia a cena.

A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) abalou profundamente a


estabilidade política daquele Império Russo, onde a Dinastia Romanov
reinava há mais de três séculos. A Revolução de Fevereiro de 19177 der-
rubou a monarquia e instalou a república, mas pouco fez para atender
as demandas mais profundas da imensa maioria do povo: camponeses e
proletários. São estas demandas (“paz, pão e terra”) que estão na base da
revolução de outubro de 1917 levou ao poder as camadas mais radicais
da revolução: os social-democratas bolcheviques e os socialistas revolu-
cionários de esquerda, que compõem a maioria do Conselho de Comis-
sários do Povo, organismo eleito pelo Soviete de Deputados Operários,
Soldados e Camponeses.

De 1917 até 1921, o novo governo soviético lutou por sua sobrevi-
vência, ameaçada pelos exércitos alemães, pelos exércitos “brancos” (fi-
nanciados pelos latifundiários e capitalistas) e pela desorganização da
economia, após anos de conflito militar. Neste período, prevaleceu o cha-
5 Bolcheviques é uma palavra russa, que pode ser traduzida como “majoritários”. É o
nome de uma das várias frações em que se divida o Partido Operário Social Democra-
ta Russo (POSDR). O curioso é que este apelido decorre da pequena diferença obtida
durante uma votação ocorrida no segundo congresso deste partido, realizado em 1903.
Depois disso, os “majoritários” se viram várias vezes em minoria, mas o apelido per-
maneceu. A tal ponto que em 1918, quando o POSDR (b) muda seu nome para Partido
Comunista (b), mantém o apelido: bolcheviques.
6 Falamos de revolução “de Outubro”, porque quando ela ocorreu o calendário russo
era diferente do calendário ocidental. Após a revolução, o governo soviético adotou
o calendário ocidental e por isso a comemoração desta revolução russa acontece de 6
para 7 de novembro.
7 Pelos motivos já explicados, a Revolução de Fevereiro começa no dia em que, no
Ocidente, se comemorava o 8 de março...

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Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

mado “comunismo de guerra”, cuja expressão mais simples é a requisi-


ção forçada da produção dos camponeses, para alimentar as cidades e
o Exército Vermelho. Como resultado, o campesinato, que constituía a
imensa maioria da população russa, reduziu sua produção e colocou-se
paulatinamente contra o governo soviético. Para manter a aliança operá-
rio-camponesa e garantir o funcionamento da economia, o Partido Co-
munista Russo (denominação assumida, em 1918, pelos bolcheviques)
adotou a chamada NEP (Nova Política Econômica).

Segundo esta Nova Política Econômica, os camponeses passam


a ter o direito de vender o excedente de sua produção, devendo ape-
nas pagar impostos ao governo. Acabam as requisições forçadas. Os
camponeses voltam a abastecer as cidades. Mas aparecem também os
“nepman” e com eles várias características da velha ordem ao mesmo
tempo burocrática, feudal e capitalista.

De 1921 até 1927, os comunistas russos debatem os caminhos para


a construção do socialismo naquele país. Contra as expectativas ali-
mentadas pela liderança bolchevique quando da tomada do poder,
em nenhum outro país a revolução havia vencido. O isolamento in-
ternacional era agravado pelas características da sociedade russa, eco-
nomicamente atrasada e tida como um país em que poderia ser mais
fácil começar a revolução, mas onde seria muito mais difícil construir
o socialismo.

Entre as várias polêmicas daquele período, uma das mais impor-


tantes dizia respeito a como ampliar a industrialização do país, cuja
economia era majoritariamente composta pela pequena produção fa-
miliar camponesa. Grosso modo, dois caminhos foram propostos. O
primeiro deles previa um longo período de estímulo à pequena pro-
dução camponesa, cujo crescimento econômico geraria as bases para
uma ampliação da indústria. O segundo deles previa reduzir o nú-
mero de pequenas propriedades camponesas (que seriam reunidas
em cooperativas ou fazendas coletivas), gerando assim o mercado
(tanto de mão-de-obra, quanto de consumo) necessário para uma in-
dustrialização rápida. No final dos anos 1920, frente a uma crise geral
de abastecimento, o Partido Comunista Russo optou pelo caminho da
coletivização e industrialização forçadas. O campesinato foi forçado a

27
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

adotar formas coletivas de produção. Os operários foram convocados


a um brutal esforço produtivo. A expressão política e ideológica desse
processo é um dos aspectos do que se convencionou chamar, poste-
riormente, de estalinismo.
Entretanto, dez anos depois a União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas transformar-se-ia numa potência industrial, capaz de der-
rotar a máquina nazista, na Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Vista em perspectiva histórica, a opção pela coletivização e pela in-
dustrialização rápida foi, do ponto de vista econômico-social, uma
nova revolução. A principal transformação foi que milhões de pessoas
deixaram de ser pequenos proprietários e transformaram-se em ope-
rários (industriais ou agrícolas). Acontece que a nova classe operária,
surgida deste processo, não tinha a experiência política prévia, adqui-
rida ao longo de muitos anos, pelo proletariado que protagonizou a
revolução de 1917. Os novos operários, bem como a maioria dos no-
vos integrantes do Partido Comunista, eram recém-saídos das fileiras
do campesinato. Sua principal escola havia sido a guerra: a Primeira
Guerra Mundial (1914-1917) e a Guerra Civil (1918-1921); seu principal
traço psicológico era a crença de que a vontade política era capaz de
superar qualquer desafio. Nesse contexto social, o Partido Comunista
também sofreu grandes mudanças. Em 1917, quando da Revolução de
Fevereiro, os bolcheviques eram menos de 15 mil. Em 1921, são mais
de trezentos mil. No final dos anos 1920, o PC russo e as organizações
de massa que ele dirige reúnem milhões de pessoas. Em decorrência, o
trabalho de educação política ganha uma nova dimensão. As escolas, o
cinema, a rádio, as artes gráficas, a literatura são colocadas a serviço da
formação destes milhões de “homens novos” do socialismo soviético.
Trata-se de incutir, em dezenas de milhões de pessoas, os valores da
nova ordem. A fusão entre as “artes” e as necessidades educacionais e
políticas do regime soviético dá origem, assim, ao chamado “realismo
socialista”.
A decisiva contribuição dada na derrota dos nazistas durante a
Segunda Guerra Mundial transformou a URSS em um dos polos do
poder mundial, contrapondo-se durante a Guerra Fria (1947-1991) aos
Estados Unidos. Contudo, embora tenha sido capaz de derrotar o capi-
talismo existente até a Segunda Guerra e embora tenha sido capaz de

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Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

competir com o capitalismo no pós Segunda Guerra, o socialismo de


tipo soviético não foi capaz de derrotar o capitalismo que se reinven-
tou em reação à crise dos anos 1970. Diferente dos chineses, os comu-
nistas soviéticos perderam essa batalha e, por isso, perderam a guerra.
Mas a história continuou e hoje, trinta anos depois do fim da URSS,
aquela experiência continua sendo uma rica fonte para todos os que
desejam combater e derrotar o capitalismo, construir uma sociedade
sem exploração nem opressão de nenhum tipo.
Para ilustrar isso, vou apelar para duas reminiscências. A primei-
ra delas é de 1917, centenário da revolução, durante uma visita a Mos-
cou, quando a jovem guia (trinta anos, talvez) desfiou todo o clássico
repertório anticomunista sobre “como-nada-funcionava-direito”8, até
que começou a falar de como eram a habitação, a saúde, o esporte e
a educação na época da URSS. O contraste não podia ser mais brutal.
A segunda reminiscência é mais recente: o final da série O Gambito
da Rainha9, da Netflix, quando a protagonista descobre o mundo do
xadrez na União Soviética. Paro por aqui, para evitar o spoiler. Mas
fica a sugestão: conhecer todos os aspectos da vida na União Soviética.
Como busca fazer esta coletânea, no terreno tão importante da educa-
ção.

8 Um caso clássico é o de Chernobyl, que tem uma interessante versão cinematográfi-


ca: http://www.adorocinema.com/series/serie-22429/
9 Mais detalhes aqui: http://www.adorocinema.com/noticias/series/noticia-156702/

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30
Educação, revolução e URSS: um
panorama histórico sobre os
fundamentos pedagógicos e as
políticas educacionais soviéticas1
Leandro Sartori

Ao analisar a História da União das Repúblicas Socialistas Sovié-


ticas (URSS), tivemos em conta pelo menos quatro aspectos: 1. Breves
considerações historiográficas sobre as produções que analisam a Re-
volução Russa; 2. A materialidade histórica da Rússia Tzarista; 3. O
processo revolucionário, considerando particularmente o ano de 1917;
e 4. A constituição inicial do Estado Revolucionário no que tange as
tarefas educacionais.
A existência do Socialismo ao longo do século XX impactou o
mundo de diferentes formas – na cultura e nas artes, na economia, na
política, etc. Os impactos globais e locais engendrados na relação entre
o socialismo e o capitalismo no mundo ou mesmo na maneira como a
organização socialista se consolidou na Rússia Soviética, vem sendo
interpretado de formas variadas e controversas, conforme a perspecti-
va teórico-metodológico e política de quem estuda o tema.
Liberais ponderam que na URSS existiram “limites” à democra-
cia, sobretudo ao associar a noção de liberdade democrática ao direito

1 Este artigo é um desdobramento da Aula 2, com o mesmo título, aplicada no curso


Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética, promovido pela ELAHP. A aula foi
virtual no dia 26 de setembro de 2020. Tenho por base minha tese, intitulada História
da Educação Soviética: a transição como processo de aprendizagem - que consta devidamente
citada nas referências do artigo.

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Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

de propriedade privada ou ao sufrágio – como se o parâmetro bur-


guês pudesse ser tomado como modelo progressista a ser aplicado
de maneira a-histórica em todo o mundo. Sendo assim, construiu-se
o argumento do totalitarismo como chave que coloca em equivalência
nazi-fascismo e comunismo, por exemplo.
Mesmo entre os intelectuais e militantes que se situam à esquerda,
do ponto de vista político, é comum encontrar leituras que asseveram
a experiência soviética como regime falido enquanto modelo revolu-
cionário – se é que a revolução pudesse tomar algum acontecimento
como paradigma. Tal entendimento, por vezes, incorre a justificativa
de traição aos ideais marxistas e comunistas, por parte dos líderes do
processo revolucionário, como razão pela qual a revolução não deu
certo. Um ícone de traição seria Stalin, espécie de psicopata e sangui-
nário que governo a URSS.
Este posicionamento que toma o ideal marxista ou a utopia revo-
lucionária como diretriz de ação, secundariza o valor do minucioso
estudo histórico e historiográfico daquilo que compôs a revolução rus-
sa em seus dilemas, isto é, as relações entre o debate teórico e a mate-
rialidade. Tomar o ideal de socialismo como mote para jogar no lixo
anos de experiência revolucionária é, no mínimo, problemático, senão
anticomunista.
Nesse sentido, defende-se a necessidade de resgatar a história so-
viética como um processo de aprendizagem. Longe de buscar apenas
cantar loas aos feitos revolucionários, é preciso saturar de historicida-
de os processos materialmente colocados no pais, recuperando fontes
e aprofundando conhecimento sobre o tema2.
Nas pesquisas brasileiras contemporâneas sobre a pedagogia so-
2 Muito embora não seja o único acadêmico a afirmar que é preciso se debruçar sobre a
história da URSS, indo além de estigmas condenatórios idealistas, Losurdo tem grande
expressão ao recuperar esses aspectos da revolução. Ele tem ganhado relativa expres-
sividade no Brasil e, por conseguinte, tem sido alvo de críticas infundadas. Estes críti-
cos declaram que Losurdo teria sido inaugurado o neostalinismo, o qual negligenciaria
os feitos maléficos ocorridos na URSS e retomaria o culto ao líder. O livro Losurdo,
Presença e Permanência, organizado por Quartim de Moraes, resgata suas contribuições
sobre muitos aspectos significativos, demonstrando que as obras de Domenico Losur-
do têm contribuições significativas, muito além de um suposto “neostalismo”.

32
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

viética é marcante a ênfase no pensamento educacional, sobremaneira,


o pensamento educacional vinculado a alguns educadores que atua-
ram entre os anos de 1917 e o início da década de 1930. Tais estudos,
por vezes, não se atém a história, tratando do pensamento educacional
como ideia ou filosofia abstrata. E, de mais a mais, limitam a adjeti-
vação de revolucionário aos sujeitos que se situam apenas no marco
temporal mencionado.
Ao observar as considerações introdutórias, buscamos compreen-
der a revolução russa e a própria existência da URSS como um proces-
so de aprendizagem, no qual se expressa a passagem do modo de pro-
dução feudal ao capitalismo (desigual e combinado) e do capitalismo à
transição socialista após a revolução. Para tal, recuperamos elementos
históricos que constituem a Revolução Russa e que demarcam o chão
onde se configurou a pedagogia soviética nos anos iniciais da transição
socialista – isso não significa a pedagogia soviética só foi revolucioná-
ria durante esse período, ao contrário, aprofundaremos outros perío-
dos da história da educação soviética em textos subsequentes.
A Rússia se caracteriza por grandes dimensões territoriais que
ainda na idade média não se identificavam como povo unido e nacio-
nal. De fato, houve disputas de território e poder entre os povos que
habitavam as terras que hoje conhecemos como Rússia. No processo
de enfrentamento entre esses povos, emergem províncias e se forjam,
com o passar dos anos, o poderio de Tzares.
Cabe ter em vista, desse modo, a consolidação de um Estado au-
tocrático e despótico centrado na figura do Tzar – o qual é visto como
grande líder, quase um deus - e na manutenção de seus privilégios de
classe por meio de um sistema financeiro de taxação universal, no qual
os servos subsidiam o Estado Tzarista e seu forte viés militar, capaz de
resguardar os interesses da classe dominante.
Nas palavras de Pomeranz (2018) o poder russo se caracterizava
por um “Estado onipotente, com pobre base material, e um sistema
político baseado na inquestionável obediência e na ilimitada submis-
são dos súditos, no princípio das obrigações devidas por todos ao Es-
tado!”, o qual representava os interesses do Tzar. Sendo assim, todos

33
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

os servos têm de cumprir suas obrigações para com um Estado que


não promove o desenvolvimento robusto das forças produtivas e a so-
cialização da produção, mas ao contrário, concentra riqueza nas mãos
das elites relegando aos trabalhadores uma situação de vida deveras
penosa. .

O Estado, grosso modo, apesar de não investido tanto na moder-


nização produtiva se torna o motor do desenvolvimento do país, seja
pelo financiamento, posse por parte do Tsar ou pela regulação pro-
dução material. Este “ente abstrato regulador” das relações sociais na
Rússia seria glorificado à época de Catarina II, a grande – ainda no
século XVIII - como marco de coesão e progresso social russo, ao qual
todos deveriam servir com veneração.

Do ponto de vista econômico, pode-se dizer que o desenvolvi-


mento econômico teve períodos ora de proeminente crescimento, ora
de relativa estagnação. Exemplo disso se expressa na época de Pedro,
o grande no século XVII, no qual se expandem as atividades de mi-
neração e metalurgia, tendo por sustentação a ampliação da servidão
Estatal e fabril.

Sendo assim, não houve continuidade linear, longe disso, no início


do século XIX há relativa estagnação econômica, só sendo retomada a
prosperidade por volta de 1860 e com maior intensidade a partir de
1880 Há historiadores que salientam que a elite russa temia a moder-
nização da economia e seus impactos na regulação da sociedade, uma
vez que isto poderia cooperar para que o poderia os Tzares minguasse,
sobremaneira tendo em face que o desenvolvimento industrial coloca-
ria a população em situação de proletarização, fugindo ao escopo de
servidão.

A modernização foi sendo incorporada a Rússia se apresentando


como desdobramento de necessidades práticas colocadas pelos confli-
tos de defesa do país, por exemplo, ou mesmo de ampliação dos índi-
ces socioeconômicos. Percebe-se, efetivamente, progresso de ferrovias,
indústrias pesadas, petróleo – conforme vemos na tabela subsequente:

34
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

TABELA: Rússia, desenvolvimento da produção


(milhões de PUDS)*
1887 1890 1990
Ferro Gusa 36,1 54,8 176,8
Carvão 276,2 366,5 986,4
Ferro e Aço 35,5 48,3 163,0
Petróleo 155,0 226,0 631,1
Algodão 11,5 8,3 16,0
Açúcar 25,9 24,6 48,5
Fonte: Khromov (1950) apud Roger Portal, op. Cit., p.817 apud POMERANZ, 2018.
* Pud: medida russa antiga = 16,3 kg.

Como percebemos, crescem notadamente diversos setores trata-


dos acima e, mesmo que no início de 1900 o país tivesse enfrentado
grave crise econômica, por volta de 1909 já se retoma a prosperidade
com índices superiores a potências mundiais, tal qual a Grã-Bretanha.
Por certo, o desenvolvimento Russo não é homogêneo, mas apresenta
caráter desigual entre as diversas regiões, combinando locais mais in-
dustrializados e outras regiões em situações de atraso na produção e
na forma como ocorre o trabalho e o trabalhador é tratado.
O fato da Rússia ter se tornado um país substancialmente indus-
trializado – já no início do século XX - não implicou que esta moder-
nização dos processos produtivos e das relações sociais se expandisse
de forma equânime em todo o território, uma vez que o país é imen-
so. Destaca-se em contrapartida que este desenvolvimento produtivo
e industrial se deu às custas da proletarização e superexploração do
trabalhador.
A servidão coloca homens e mulheres sujeitos a condições difí-
ceis de vida, obrigados a cumprir serviços militares – impondo, nos
tempos de guerra, à muitas famílias seu esfacelamento - e a uma con-
dição relativamente próxima a escravidão, já que poderiam ser vendi-
dos pelos nobres. A libertação da servidão ocorre em 1861 no contexto
de ampliação da indústria. Entretanto, tal abolição tem sido apontada
como libertação formal, uma vez que a precondição de liberdade seria

35
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

a aquisição de terras. Como as pessoas não dispunham de recursos


para aquisição das terras, elas permaneciam alienadas por anos. As
dívidas adquiridas deveriam ser quitadas ao longo dos anos - chega-se
a mencionar 49 anos como possível prazo que vigorou a época. Tal
questão só chegou a ser flexibilizada após as revoltas de 1905, quarenta
e quatro anos após a abolição da servidão.
As condições de proletarização pós-liberação da servidão, inclu-
sive dos trabalhadores do campo, e o próprio desenvolvimento indus-
trial complexificam a estrutura social do trabalho, viabilizando inten-
sificação de revoltas por melhores condições de vida. Essas revoltas se
pautam, em especial, no início do século XX, como se faz notar no ano
de 1905 em que ocorrem inúmeras mortes no fatídico domingo sangren-
to.
No Tzarismo a educação privilegia a formação intelectual de uma
intelligentsia que nem sempre ocupou papel conservador na sociedade.
No ano de 1840, por exemplo, os nobres educados expressam hosti-
lidade a servidão e, nos anos de 1860, pessoas oriundas de camadas
médias afirmam grande compromisso com as ciências, com a razão e
com a arte útil para a sensibilidade. Nesta época, evidencia-se ideias
revolucionárias com caráter anti-servil que encaram a revolução como
ato heroico, profundamente inspirado no socialismo utópico. O mar-
xismo só terá impacto sobre a formação de intelectuais russos poste-
riormente, no último quartel do século XIX.
Para além da formação teórica a partir do marxismo, pode-se
dizer que a formação política dos militantes partidários e da própria
classe trabalhadora se dá pelo aumento de mobilizações populares
decorrentes da proletarização do trabalho e complicação das condi-
ções de vida. Destaca-se, em especial, o entremeio de crise entre 1900 e
1908, quando, por ocasião de grandes dificuldades econômicas tal qual
o fechamento de fábricas e demissões, redução de preços de produtos
agrícolas, forjam-se intensos movimentos sociais.
O ano de 1905 é marco nesse processo, como já destacamos. A
população acredita que sensibilizaria o Tzar através da manifestação
de sua insatisfação, mas, em contrapartida, recebem ofensiva violen-
ta. Mesmo com o pesar de tantas mortes, fica a experiência dos movi-

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Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

mentos e partidos políticos em relação ao poder coercitivo do Estado


Tzarista e desdobra-se a criação da Duma e dos Conselhos do Estado
como instâncias de representação – ainda que se possa questionar a
efetividade deste modelo de representação, estes se constituíram como
espaço de relativa representação diante do quadro autocrático.
No âmbito dos partidos de esquerda, se intensificam debates so-
bre o papel do Estado e da representação popular por meio dele. Isso
se expressa no clássico binômio: reforma ou revolução que é tensionado
em 1917 na Rússia. Em decorrência da segmentação da social democracia
russa entre o mencheviques - indicando o necessário etapismo de de-
senvolvimento das condições burguesas de sociabilidade e economia,
no qual a atuação dos militantes socialistas se daria por dentro das
instâncias legais - e o bolchevismo3 -pautando a urgência da tomada do
poder por parte da vanguarda e do povo, subvertendo a ordem de
exploração.
É oportuno destacar que, no Tzarismo, o ensino tradicional esco-
lar é voltado à elite, relevando grande massas a condição de analfabe-
tismo. Isso não seria resolvido antes da grande proletária de 1917.
No sentido exposto, de proletarização do trabalho e intensificação
da exploração da mão-de-obra sob duras condições de existência, de
ausência de recursos ideológicos que gerasse coesão das massas e de
alternância entre modernização econômica e atraso das condições de
produção e de vida, se forjam experiências significativas para a classe
trabalhadora urbana e do campo na Rússia em termos de formação
política, como já foi mencionado.
A conjuntura do primeiro quartel do século XX é marcada, do
3 Com vistas a aprofundar a compreensão deste processo, pode-se ler O Estado e a
Revolução e A Revolução Proletária e o Renagado Kautski, ambos escritos por Lênin em
resposta aos dilemas materialmente colocados na Rússia no ano de 1917 e nos próprios
debates da II Internacional Comunista. Nestas obras se indica o Estado burguês como
instrumento de dominação, sendo inviável a conciliação de classe pela via parlamentar
e indicando a possibilidade de que a revolução proletária, para garantir a democracia
das massas, se convertesse em um processo violento. Para Lênin a revolução não se
colocaria pelo etapismo embasado na obrigatoriedade das características da fase bur-
guesa como condição prévia ao socialismo. Era preciso pensar a revolução e a transi-
ção socialista observando a particularidade russa e a conjuntura imperialista que se
impunha no século XX e tomar o poder.

37
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

ponto de vista externo, pelas disputas imperialistas de repartilha do


globo e de suas possessões coloniais, visando garantir a continuidade
da acumulação e monopólio produtivo por parte das grandes potên-
cias capitalistas. Há que se considerar que

Em primeiro lugar, o monopólio nasceu da concentração da produção,


tendo ela atingido um elevado grau de desenvolvimento. (...) Em se-
gundo lugar, os monopólios conduziram ao controle, cada vez maior,
das principais fontes de matérias-primas sobretudo na indústria fun-
damental e mais cartelizada da sociedade capitalista (...) Em terceiro
lugar, os monopólios desenvolveram-se através dos bancos. Em tempos,
modestos intermediários, detêm hoje o monopólio do capital financeiro
(...) Em quarto lugar, os monopólios resultam da política colonial. O ca-
pital financeiro acrescentou aos numerosos “velhos” motivos da política
colonial o da luta pelas fontes de matérias-primas, pela exportação de
capitais, pelas “zonas de influencias” (...) e, finalmente, pelo território
econômico em geral. (...) então começou necessariamente a era da pos-
se monopolística das colônias, e, portanto, a era de uma luta particu-
larmente encarniçada pela partilha e “repartilha” do globo. (LÊNIN,
1982, p. 122-123)

A organização monopolística do capital desdobra-se na:

1)Privação de matérias-primas; 2) privação de mão-de-obra por meio


de “alianças”; 3) privação dos meios de transporte; 4) encerramento de
mercados; 5) acordos com compradores pelos quais estes se compro-
metem a manter relações apenas com os cartéis; 6) baixa sistemática
dos preços (para arruinar os “outsiders...”); 7) privação de créditos; 8)
boicote. (LÊNIN, 1982, p. 25-26)

Nas palavras do próprio autor, explica-se da “fusão do capital


bancário e do capital industrial, e criação, com base nesse “capital fi-
nanceiro”, de uma oligarquia financeira” (LÊNIN, 1982, p. 88) como
características do imperialismo que engendram as bases do primeiro
conflito bélico de ordem mundial.
A Rússia se coloca no conflito bélico, haja vista que é um dos paí-
ses com grandes dimensões territoriais e com grandes potencialidades

38
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

em termos de matéria-prima. A entrada da Rússia na guerra implica


direcionamento de muitas pessoas para o embate militar, retirando ho-
mens do campo e os conduzindo a frente de guerra, mesmo que essa
condução se desse em situação precária. Deve-se ter em vista, ainda,
que com a guerra a vida do povo se torna muito dura, em especial
com o aumento de preços e carências de abastecimento de alimento e
bens necessários a sobrevivência. Podemos observar o desdobramento
das assertivas acima nos aumentos de preços de alimentos. Há itens
alimentares cujo aumento supera a casa dos 700%, como a carne e o
queijo. E os preços de itens importantes à manutenção da vida, sobre-
tudo nas difíceis condições climáticas impostas às diversas regiões da
Rússia, como as vestimentas e matéria prima para fabrico de calçado,
que tiveram aumento na ordem de 1900% (Reed, 2002).
Por conseguinte, significativo número de pessoas se mobiliza em
greves com mais de 1 milhão de participantes. Destas greves também
participam aqueles trabalhadores que foram retirados do campo e im-
pingidos à atuação como soldados de guerra, à revelia da vontade do
povo. Cada vez mais as pessoas se manifestam contrárias a exploração
do trabalho e a difícil realidade imposta pela guerra e pelo regime de
exploração autocrático.
O ano de 1917 foi marcado por constantes mobilizações populares
que vislumbram a superação dos dilemas impostos por esta conjuntu-
ra. Em fevereiro de 1917, como decorrência das intensas lutas popu-
lares, ocorrem alterações no governo concedendo-lhe uma aparência
mais democrática pela participação dos partidos políticos na Duma e
pela colocação de algumas figuras centrais na cena política, tal qual
Kerensky que passa a se destacar na cena política.
O governo estabelecido em fevereiro de 1917 não logra superação
dos dilemas vivenciados pela população russa, permanecendo susce-
tível a muitas influências dos tzares. Sendo assim, mesmo com a alte-
ração formal de governo, as mobilizações sociais permanecem e se in-
tensificam, ratificando a dificuldade de estabelecer uma “governança”.
Trostsky (2007) chega a mencionar que o poder governamental
se estrutura em um regime de duplo poder, marcado pela existência
da Duma e dos Sovietes. Ainda que Kerensky tenha se mantido na li-

39
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

derança do governo provisório estabelecido em fevereiro de 1917, não


completa a constituinte que é proposta. Em verdade, o campo polí-
tico se divide entre aqueles grupos de direita que pretendem elimi-
nar sovietes e sustentar a dominação político-econômica, os de centro
que tentam firmar alianças para fazer permanência do governo repu-
blicano com vistas ao desenvolvimento de uma revolução burguesa
– representado, inclusive, por segmentos do socialismo que defendem
atuação dentro do parlamento e o etapismo revolucionário - e, mais a
esquerda, proclama-se “todo poder aos sovietes” e “paz, terra e pão”
como bandeiras aglutinadoras das massas em torno da revolução. Es-
sas bandeiras são capitaneadas junto aos bolcheviques e as teses leni-
nistas de revolução nas condições concretamente colocadas na Rússia
que põem em marcha a tomada do poder.
Os segmentos de esquerda da Rússia não são consensuais quanto
a estratégia e tática política de atuação mesmo diante do cenário de
guerra. Exemplo disso é percebido frente ao dilema estabelecido nos
enfrentamentos belicistas, para o qual delineiam-se posicionamentos
diversos, seja de defensismo, internacionalismo e derrotismo revolu-
cionário.
A impopularidade do governo de Kerensky pela continuidade
da guerra e pelo agravamento das condições sociais, o insucesso da
insurgência do general Kornilov – frente de mobilização de parte do
exército contra o papel que é desempenhado pelos sovietes – e a van-
guarda representada pelo bolchevismo e suas bandeiras de luta viabi-
lizam que a revolução se efetivasse, em particular, com a emergência
de comitês de poder popular no campo e comitês de fábrica.
Na revolução que ocorre no outubro de 1917 se empunha a defesa
pelos direitos dos trabalhadores. Esses direitos não tem sucesso de for-
ma mágica e imediata. De fato, os dirigentes revolucionários e mesmo
o povo mobilizado toma de assalto o poder, mas se faz necessário lidar
com enfrentamentos com antigos mecanismos repressivos do Estado
Russo, com os possuidores de terras, com representantes da burguesia
que começa a ser formada nos conglomerados urbanos e com parcela
do próprio povo que permanece marginal a situação fervorosa de in-
surgência colocada nas regiões mais desenvolvidas, afinal, a Rússia é

40
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

um país de dimensões continentais, onde não se estabelecem processos


contestatórios em todos os povoados de maneira concomitante.
Isto posto, instaura-se um período de guerra civil que tem a du-
ração de quase quatro anos – iniciando em 1917 e se estendendo até
1921. São anos marcados por contradições, pela permanência de mui-
tas dificuldades de vida para o povo, mas, igualmente, de estatização
de empresas e confisco da produção do campo para socialização da
produção. O comunismo de guerra, como ficou conhecido este com-
plexo período da revolução russa, é marcado por uma grande plurali-
dade de debates mesmo no interior do campo socialista e pela drástica
destruição material do país. Esta guerra civil é mobilizada por agentes
internos que estavam insatisfeitos e preocupados com os possíveis ru-
mos da socialização da economia, mas, também, por agentes externos
que apoiavam e robusteciam esses segmentos populacionais.
Nesse sentido, Lunatcharski, então responsável pelo Comissaria-
do do povo pela Instrução Pública, aponta como principais frentes de
luta: “1) a frente de defesa nacional; 2) o desenvolvimento econômico;
e 3) a instrução da população.” (LUNATCHARSKI, 1988, p. 158). Res-
saltamos que o desafio da destruição material se impunha inclusive
no sistema educativo, seja porque grande parte da infraestrutura das
escolas é afetada na guerra mundial e na guerra civil, seja porque a
pretensão é de expansão da escolarização para o conjunto da popula-
ção, superando os índices altíssimos de analfabetismo existentes a épo-
ca pelo crescimento do sistema educativo, o que implicaria senão na
criação imediata de mais escolas, pelo menos uma forte mudança no
sentido de ser e de fazer a educação. Acrescenta-se ainda a esse aspecto
de destruição material, a carência de pessoal para atuar na educação
como um enorme lacuna a ser vencida.
De imediato, o problema colocado de educar o povo passa pela
alfabetização das massas. Ela é empreendida não apenas pelos profes-
sores, mas também pelos escolares convencidos a ajudar na construção
da nova sociedade, se solidarizando para com a formação e alfabetiza-
ção da população que vivesse próxima a escola. Aparece aqui um dos
princípios escolares considerados revolucionários, o comprometimen-
to social dos escolares e professores para com as necessidades sociais

41
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

e a inserção do trabalho socialmente útil como elemento constitutivo e


organizador do espaço educativo.
As intercorrências citadas quanto a educação do povo se dão ao
mesmo tempo em que sessa a guerra civil. Lênin propõe a Nova Políti-
ca Econômica (NEP) – que é criticada com frequência. A NEP permite
a continuidade do setor privado em determinadas áreas, em particular
na produção do campo, e a substituição do confisco por taxação da
produção. Por certo, a tolerância a existência de determinadas remi-
niscências do setor privado não significa que a revolução sucumbira a
lógica do capitalismo, mas é defendido como um “passo atrás” neces-
sário para reestabelecer os níveis de produtividade e crescimento do
país.
No que se refere a educação social do povo, divulgada por meio
de cartazes e outros meios, estimula-se o comprometimento do traba-
lhador russo para com o processo revolucionário socialista. Não é pou-
co frequente a menção a existência de pessoas que tentariam retardar
o processo de trabalho e atrapalhar o aumento da produtividade do
socialismo – ícones considerados perniciosos desde a guerra civil. Os
trabalhadores desde sempre passam a ser conclamados a se reconhece-
rem como comprometidos politicamente com o governo revolucioná-
rio, de modo a entregar um trabalho produtivo satisfatório e capaz de
fazer sustentar os ideais revolucionários, ou seja, defende-se o trabalho
em sua máxima capacidade de rendimento.
No entanto, a educação social do povo se dá apenas por meio do
trabalho comprometido de alguns escolares e pela divulgação de pro-
paganda revolucionária? Por certo, a resposta a essa questão é negati-
va. Se inicia um processo organizatório de educação escolarizada. São
inúmeras adversidades a serem vencidas para o crescimento da esco-
larização na Rússia. Nereide Saviani aposta as seguintes:

(...) livrar-se da herança da escola antiga (manuais impregnados da


ideologia burguesa, ênfase em abordagens religiosas, chauvinismo,
métodos adestradores, resistência reacionária do magistério); dotar o
ensino de novo conteúdo e novos métodos; ligar a escola com a vida,
aproximando-a da população; propiciar a compreensão da vida con-

42
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

creta e o desenvolvimento da capacidade de trabalhar, estudar e viver


coletivamente. (SAVIANI, 2011, p. 29)

Livrar-se da herança da escola antiga se refere a criação de um


novo ponto de partida filosófico. Este ponto de partida é inaugura-
do pelo compromisso com a revolução socialista, mas, do ponto de
vista educativo, não há uma referência teórica fechada no marxismo
para pensar a educação escolar. Os revolucionários da União das Re-
públicas Socialistas Soviéticas (URSS) têm que desempenhar um papel
inovador e pioneiro de elaboração da educação no chão histórico da
transição socialista soviética, isto é, dialogando com a base material
existente na URSS, com a concepção teórica e política do marxismo e
com o que há de mais avançado nos países burgueses em termos de
concepção educativa – como, por exemplo, o pragmatismo escolano-
vista4.
São consequências do modo de produção capitalista ao proces-
so de socialização e humanização dos trabalhadores: a separação do
trabalhador em relação aos seus meios de trabalho, portanto, o tra-
balhador não possui os meios de executar seu trabalho produtivo e
a consequente concentração desses meios nas posses do capitalista;
engendra-se a partir disso a perda da possibilidade de que o traba-
lhador planeje e execute seu próprio trabalho, passando o controle do
processo de trabalho ao capitalista ou ao seu gerente, o que favorece o
trabalho alienado, uma vez que se perde a capacidade de compreender
o seu próprio processo de produção; e a separação do trabalhador do
produto de seu trabalho, uma vez que o mesmo pertence a quem o
contrata para executar determinados serviços. A produção na Rússia,
ao incorporar o modo de produção capitalista aos seus processos eco-
nômicos, havia sujeitado seus trabalhadores ao mesmo esvaziamento
formativo e de Desenvolvimento humano. Com a revolução, se coloca
a necessidade de alfabetização do povo e de ampliação do processo
4 Aqui se considera não apenas os fundamentos filosóficos e pedagógicos, mas tam-
bém as defesas políticas de educação pública, laica, gratuita, para ambos os sexos, etc.
Se considerarmos que a Rússia não passara por uma revolução burguesa clássica e que
seu processo pré-revolucionário, como vimos até aqui, foi complexo e controverso, se
manifesta a urgência de que os revolucionários russos assumissem bandeiras que se
assemelham bastante às bandeiras do escolanovismo.

43
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

de escolarização da população Russa. Esse processo não equivaleria a


educação burguesa, cuja suposição era de educação em doses homeopáticas
para os sujeitos da classe trabalhadora. Ao tecer a crítica aos princípios
elitistas e dispares da educação de classe na sociedade burguesa, pauta-
-se que a educação socialista ocorresse conforme as assertivas marxia-
nas, considerando a necessária educação intelectual, corporal e tecno-
lógica - considerando os princípios da produção contemporânea como
eixos elementares de formação.
Embora tivessem esses eixos norteadores claros como itens que
deveriam constituir a educação da classe trabalhadora, os revolucio-
nários não pautam suas ações de modo genuinamente novo. Consi-
deram as experiências mais avançadas do campo pedagógico naquele
momento histórico – mais especificamente as reflexões pedagógicas
decorrentes do pragmatismo – como possibilidade de reflexão que
poderia ser apropriada por uma perspectiva socialista. Grosso modo,
o pragmatismo enuncia o princípio da utilidade dos conhecimentos
aprendidos na escola, a necessidade de participação ativa do aluno no
processo de aprendizagem e a superação da ação escolar como for-
mação meramente teórica e desvinculada da vida e dos interesses dos
estudantes.
A formação escolarizada passa a ser baseada em alguns princípios
gerais que apresentamos, em linhas gerais, abaixo:
A vida como fonte educativa e o vínculo entre os saberes escolares
e a realidade atual. A escola revolucionária aponta a indissociabilidade
entre aquilo que acontece na sociedade russa e no mundo e os debates
colocados no interior da escola. A escola precisaria considerar nas suas
ações cotidianas a busca pelo entendimento qualificado em relação aos
principais temas postos no mundo e na própria comunidade que cerca a
escola. Isso tem impactos decisivos na forma como a escola se insere no
contexto local, como veremos a seguir.
Articulação do Trabalho e da Educação. Aqui dois aspectos preci-
sam ser considerados: 1. A sociedade russa enfrenta duros índices sociais
e o conjunto das escolas estava imensamente destruído do ponto de vista
infraestrutural e de pessoal. Educar as crianças, jovens e adultos passa a
demandar uma efetiva participação dos escolares, professores e militan-

44
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

tes nas atividades cotidianas de manutenção dos espaços escolares; 2.a


perspectiva de formação para o trabalho nas técnicas mais modernas da
produção é aspecto a ser atingido pelas escolas e, como desdobramento
do aprendizado escolar, objetiva-se melhoria do processo de produção
no campo e na cidade. Nesse sentido, pode-se dizer que a articulação
entre trabalho e educação seria fortemente articulado com o princípio
do ensino pela realidade atual. Mediante os níveis de desenvolvimento
local seria oportunizado o aprendizado por parte dos estudantes e, com
a formação destes, as próprias comunidades locais seriam beneficiadas
pelo aprendizado técnico e político dos mesmos, otimizando os proces-
sos de trabalho e fazendo crescer os resultados da produção. Tenta-se
consolidar este objetivo ano após ano, mas no momento inicial da re-
volução, mediante os já mencionados déficits do sistema educacional, o
trabalho escolar incorre muito mais ao autosserviço, no qual os sujeitos
escolares se comprometem principalmente com a viabilização das pró-
prias atividades e meios de vida dos atores escolares.
Os complexos. É suposto que a formação das escolas mais tradi-
cionais fosse meramente livresca e sem vínculo com as necessidades
cotidianas, seja do ponto de vista de compreensão da realidade ou dos
próprios processos de trabalho. A proposta seria eleger temas centrais
presentes no horizonte dos trabalhos desempenhados e que estes temas
servissem como elo para o estudo. As disciplinas teóricas e isoladas per-
deriam sua razão de ser, viabilizando uma formação mais integrada. Na
prática, houve a tentativa de proposição de currículos que consideras-
sem este princípio, mas houve grande dificuldade.
(Auto) Gestão, (Auto) Organização e (Auto) Disciplina. A propo-
sição é de que os atores escolares pudessem definir os rumos e ações
da vida cotidiana escolar por meio da participação direta nas assem-
bleias escolares. O entendimento seria de que os escolares, ao passar por
diferentes postos de trabalho e de liderança do processo de trabalho,
pudessem aprender a lidar com as situações mais diversas possíveis,
ocupando postos de liderança ou não. Entende-se que é necessário que
os homens sejam hábeis para lidar com as mais variadas situações da
vida, reconhecendo, sobremaneira, a solidariedade de classe como eixo
ético e moral importante para a vida socialista e o princípio da coleti-
vidade como guia na sociedade. Os docentes deixam, portanto, de ter

45
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

preponderância no pensar das ações escolares, incluindo aí funcionários


e alunos na definição dos rumos da instituição.
Com isso, a escola socialista deve ser vinculada com outras esferas
da sociedade e, para a promoção desta integração que considera como
eixo constitutivo a dimensão de formação política, a Juventude Comu-
nista tem papel preponderante. Logo, são apontados como elementos
norteadores das ações da juventude comunista, quanto a forma de sua
organização:

1) que todos os jovens que vivessem da força de trabalho; 2) fazer dos afi-
liados cidadão jovens livres e conscientes da luta em que estão inseridos;
3) inseri-los na luta internacional do movimento dos trabalhadores, liga-
das ao universo do trabalho; 4) lutar pela delimitação das horas máximas
de trabalho (e de trabalho infantil), pelo aumento salarial e pela luta em
mobilização aos operários; 5) Adquirir mais conhecimentos, com instru-
ção obrigatória até os 16 anos, pressupondo que o jovem participasse de
círculos de estudo, de capacitação e de organização de locais de estudos;
6) compor uniões independentes como formas de coletividade pautada
na autogestão. (KRUSKAYA, 1978)

Os jovens vinculados a juventude comunista seriam peças funda-


mentais na formação política dos escolares e de sua articulação com a
sociedade. A convocatória às ações de solidariedade, por exemplo, por
meio da alfabetização de adultos que vivessem próximos a escola seria
uma das ações viabilizadas por essa articulação. Assim, os escolares
teriam uma aproximação maior com a realidade extra-escolar e uma
aproximação com os trabalhadores, o que é de grande valia para que se
acercassem da realidade do trabalho no chão fabril ou do campo.
Os princípios gerais enunciados acima não são automaticamen-
te implementados nos anos iniciais da revolução. De fato, demandam
discussões acaloradas e trabalho intenso de intelectuais do comissaria-
do do povo e do próprio professorado. Não é nosso objeto deste texto
aprofundar mais esses aspectos – isso será feito mais adiante -, mas si-
nalizamos que os trabalhos empreendidos no âmbito educacional ain-
da no princípio da revolução logram êxito de ampliação das escolas e
alunado.

46
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Neste texto, evidenciamos elementos constitutivos da história


política, econômica e educacional da Rússia Tzarista e os principais
aspectos constitutivos do processo revolucionário de outubro de 1917,
compreendendo-o não como explosão revolucionária momentânea ou
vinculada a vontade de indivíduos isolados, mas como desdobramen-
to de elementos particulares da história no início do século XX.
Há que se considerar que as condições materiais e ideativas com-
plicaram a consecução de objetivos pensados como constitutivos do
socialismo, demonstrando que o mesmo não é um projeto ideal, mas
um desdobramento do processo histórico. No plano educacional, a
instigação fundamental é de solucionar os dilemas infraestruturais e
de pessoal. O trabalho como princípio educativo, em especial o traba-
lho socialmente útil, norteia as ações escolares, colocando os estudan-
tes e professores como sujeitos ativos para pôr em funcionamento a es-
cola e a educação social. Os fundamentos da educação revolucionária
enunciados nos anos iniciais sofrem intercorrências e passam a serem
objetos de algumas ressignificações nos anos subsequentes, como ve-
remos em texto adiante.

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47
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

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TROTSKI, Leon. História da Revolução Russa. São Paulo: Sundermann, 2007.

48
Lênin – A educação para fins
políticos e a política como
ferramenta educativa
Mario Borges Netto
Carlos Lucena

Para início de conversa,

Vladimir Ilyich Ulyanov (1870-1924), mais conhecido por seu


pseudônimo, Lênin, certamente foi o mais proeminente e influente lí-
der bolchevique. Ajudou a construir o Partido Operário Social-Demo-
crata Russo (POSDR) e o dirigiu na Revolução de Outubro de 1917, que
elevou o proletariado ao poder na Rússia, tornando o primeiro Estado
socialista no mundo. Sua capacidade de desenvolver em nível da mi-
litância suas habilidades teóricas, expressando o marxismo de forma
unitária, teoria e prática, pensamento e ação, levou György Lukács a
considerar Lênin “[...] o único teórico à altura de Marx até agora já pro-
duzido no interior da luta de libertação proletária”. (LUKÁCS, 2012,
p. 33).
Sua obra expressa suas reflexões e análises sobre a realidade con-
creta da Rússia de seu tempo, pré e pós revolução de 1917. Ante a
necessidade premente do proletariado construir o processo revolucio-
nário, Lênin revitalizou a teoria da revolução do marxismo e acentuou
a importância de a luta de classes ser dirigida por um partido coesa-
mente organizado. Essa foi a tônica dos seus escritos sobre a educação,
o papel formativo e organizativo do partido, a educação para fins polí-
ticos e a política como ferramenta educativa.

49
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Sobre isso trataremos nesse texto, a indissociabilidade entre edu-


cação e política nos escritos de Lênin. Vamos abordar os escritos edu-
cacionais de Lênin na perspectiva do pensamento educacional, ou seja,
enquanto fruto da atividade consciente do ser de fins teleológico e cog-
noscitivo. Os escritos educacionais serão entendidos como resposta te-
órica a uma determinada situação histórica. Nesse caso, diante de um
problema social, o ser elabora um fim (nesse caso, resolver o problema
pensado), que pressupõe um determinado conhecimento da realidade.
Essa teleologia (fim produzido) assume dupla significação, por um lado,
a negação (no sentido dialético, negar para superar) de um aspecto da
realidade que se quer mudar e, por outro, afirmar outra realidade (no
plano ideal) que ainda não existe, mas se quer alcançar. A atividade
teológica orienta e induz a atividade cognoscitiva, a produção de co-
nhecimento para intervir no real. Nesse sentido, o problema impulsiona
a produção do conhecimento, por isso, o pensamento aqui entendido
como uma atividade dúplice, atividade teleológica (pois produz um fim
a ser alcançado) e cognoscitiva (que pressupõe a elaboração de um co-
nhecimento sobre a realidade para alcançar o fim). Para tanto, se faz
necessário considerar o pensamento articulado com a situação histórica
em que ele foi forjado e não como uma atividade e/ou um conjunto de
ideias autônomas, senão circunstanciado e historicamente determina-
dos. Nessa perspectiva, recorreremos aos contextos dos textos elabora-
dos por Lênin para compreender seus sentidos e significados.
A obra de Lênin é vasta, composta por livros, brochuras, textos
avulsos escritos no calor da hora de análise de conjuntura e textos de
conferências. Selecionamos escritos educacionais que possuem as se-
guintes características: [1] a formação política como elemento central no
debate educacional; [2] tenha o objetivo de instrumentalizar a classe tra-
balhadora com o que há de mais avançado no campo do conhecimento
e da ciência, produzido pela humanidade. São textos anteriores a Revo-
lução de Outubro de 1917, como Que fazer?, de 1902, e Sobre a confusão
entre política e pedagogia, de 1905, como também, textos publicados por
Lênin, em 1920, já na liderança da Rússia revolucionária, como, Discurso
na Conferência de toda Rússia dos Comitês de Instrução Política das secções de
Gubérnia e Uezd da Instrução Pública, As tarefas das Uniões da juventude e
Sobre a cultura proletária.

50
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Nosso propósito é demonstrar a íntima relação entre educação


e política nos escritos de Lênin. Textos escritos em situações históri-
cas distintas no interior do processo revolucionário, contudo carrega
consigo a permanente tese acerca do caráter eminentemente político
da educação. Compreendemos que os escritos de Lênin expressam a
educação como meio para fins políticos e a política como ferramen-
ta educativa. Para que a exposição de nossas ideias esteja de acordo
com nossos objetivos, estruturamos o texto da seguinte forma: em um
primeiro momento, apresentaremos os textos pré Revolução de Ou-
tubro de 1917, propondo demonstrar os encaminhamentos de Lênin
em definir e defender a tese marxiana de que os comunistas devem
constituir a vanguarda do proletariado e, por isso, deve assumir fun-
ção organizativa e formativa da classe. Em um segundo momento, en-
quanto líder do Estado proletariado, destacar nos discursos de Lênin a
potencialidade de se pensar e colocar em prática a unidade educação e
política. Por fim, tecemos nossas considerações demonstrando a vitali-
dade e o legado de um pensamento político revolucionário.

I
Em março de 1902, foi publicado por Lênin a brochura Que fazer?
questões candentes de nosso movimento. O objetivo era oferecer uma contri-
buição teórica ao II Congresso do POSDR, que seria realizado posterior-
mente. Havia uma disputa teórico-organizativa no interior do partido.
O que estava em jogo e que Lênin enfrentou teoricamente na brochura
pode ser definido da seguinte forma: [1] o caráter e conteúdo da agita-
ção política do Partido; [2] a tarefa da organização do Partido; [3] o pla-
no para a criação de uma organização proletária centralizada para toda
Rússia. O impacto do livro foi imediato e seu objetivo foi atingido. O
resultado do II Congresso indicou a vitória das proposições defendidas
por Lênin1, quanto ao papel dirigente e o conteúdo da agitação política
do partido na luta de classes do proletariado.
1 A vitória das teses de Lênin no II Congresso do POSDR levou ao surgimento da deno-
minação bolcheviques (“maioria” na língua russa) para a corrente liderada por ele. Os
seus opositores, ficaram conhecidos como mencheviques (“minoria”). As principais
diferenças entre as duas tendências estavam na forma da organização do Partido e na
concepção teórica sobre o desenvolvimento da consciência de classe do proletariado.

51
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

As preocupações e as análises de Lênin expressas em Que fazer?


denotavam e denunciavam o caráter reformista burguês que crescia no
interior do POSDR. Eram fortes as influências internacionais as quais o
partido estava submetido, advindas principalmente dos debates teóri-
cos internos do Partido Social-Democrata da Alemanha. Na segun-
da metade do século XIX, o Partido Social-Democrata da Alemanha ini-
ciou um processo de mudança na doutrina partidária da esquerda para
a centro-esquerda. Isso se deu pelo fortalecimento da crença no valor da
política eleitoral e na conquista de vagas no parlamento alemão pelos
representantes dos trabalhadores. Em 1877, o Partido Social-Democra-
ta da Alemanha, no prazo de dois anos, já contava com 12 deputados
no Reichstag e recebia 493 mil votos. Esses números foram crescentes ao
longo de três décadas, chegando a 1.427 milhão de votos em 1890. (EN-
GELS, 2012). Seu programa enfatizava o socialismo de Estado, os meios
políticos legais, as liberdades civis e a democracia.

Esses aspectos motivaram esforços de reavaliações e reformulações


críticas das ideias de Marx e Engels no interior do Partido Social-Demo-
crata da Alemanha, em particular, das que diziam respeito ao desenvol-
vimento do capitalismo e à natureza de uma transição para o socialismo.

Após a morte de Marx, o Partido Social-Democrata Alemão assu-


miu o materialismo histórico como ideologia oficial. Algo novo no par-
tido, visto que em sua origem os seus integrantes contrapunham à do-
minação de classe, visavam a emancipação social dos operários, mas as
suas linhagens eram diversas, que incluía desde o marxismo, passando
por socialistas utópicos até chegar aos revisionistas e reformistas. Isso
conduziu o partido a participar de um compromisso de assumir o pro-
letariado como a classe revolucionária. Contudo, a medida em que foi
obtendo êxito nas eleições e mais organizados se mostravam, a social-
-democracia foi se deslocando para o revisionismo. Passaram a defender
a tomada do poder econômico e político do proletariado via sufrágio
universal, democracia parlamentar e controle da esfera executiva do go-
verno.

Em vista dos objetivos que foram sendo delineados para o partido,


as tendências reformistas foram sendo estimuladas devido a dois fato-
res: [1] a necessidade dos apoios extraclasse proletária e coalizões com

52
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

outros partidos para se conseguir avançar no sistema democrático parla-


mentar; [2] teorizar possibilidades de realização de reformas parciais no
capitalismo, em vista de melhorias nas condições materiais e objetivas
dos trabalhadores. As ideias de Eduard Bernstein ganhavam espaço no
partido, conquistando a ala reformista, e direcionando o debate para as
estratégias políticas que se baseava em reformas evolutivas do capitalis-
mo resultando no capitalismo.
Como destaca Przeworski (1989), a notoriedade das propostas de
Bernstein não ocorreu de forma inopinada e desgarrada da realidade.
As suas teses se fortaleceram conforme a política eleitoral do partido foi
obtendo êxito. O principal alvo das suas críticas era a teoria do fim do
capitalismo pelo colapso econômico, que havia passado a fazer parte da
ideologia partidária. Bernstein defendia a tese da complexificação das
relações de classe no capitalismo, o que resultara em um sistema social
mais complexo e as diferenciações de classes mais tênues. O autor desta-
cava o crescimento das classes médias e o crescente desenvolvimento do
padrão de vida dos operários, para o qual melhorava. Segundo essa tese,
a possibilidade de uma revolução violenta através do acirramento da
luta de classes se tornava cada vez mais remota, haja vista, as crescentes
conquistas do proletariado no parlamento alemão. Em uma democracia
liberal, o proletariado só avançaria no seu projeto político e de classe se
adotasse estratégias mais reformista, legalista e se assumisse posições
cada vez mais central. (PRZEWORSKI, 1989).
Apesar da notoriedade e espaço, as teses de Bernstein foram re-
chaçadas pelo Partido Social-Democrata Alemão. No entanto, sua fama
evade as fronteiras alemã e aterrizam na Rússia tzarista. Esse debate aos
poucos foi identificando as iniciativas revisionistas como reformismo. A
ênfase nas reformas imediatas no campo trabalhista e eleitoral, segundo
Lênin, bem poderia diminuir as iniciativas e obscurecer os objetivos re-
volucionários do POSDR, pois exigiria concessões quanto aos objetivos
finais do movimento socialista. Essa era a principal crítica dos marxistas
revolucionários, pois acreditava que as táticas e propostas reformistas
levariam ao crescente aburguesamento da organização do partido e que
os trabalhadores afastariam cada vez mais do socialismo via revolução.
Isso, sem falar da condição clandestina que o partido russo vivia, afinal,
como enveredar para uma tática política eleitoral na clandestinidade?

53
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Lênin constatou que tais ideias reformistas alemãs estavam sendo


divulgadas e assumidas no POSDR e passaram a influenciar e orientar
as ações partidárias. O caráter e conteúdo da agitação política e a tarefa
de organização do Partido passaram a ser temas de profundos debates.
De um lado, os reformistas, denominados por Lênin de economicistas,
defendiam a luta política tradeunionista cotidiana em torno de pautas
econômicas e relacionadas a relação capital versus trabalho. De outro, os
revolucionários, socialdemocratas, que defendiam que a luta econômica
era importante, mas não poderia se perder de vista a construção organi-
zada e política da revolução social de cunho socialista.
Em disputa, o caráter espontâneo versus caráter consciente da orga-
nização do proletariado: a participação do proletariado nas lutas econô-
micas por melhores condições de trabalho e salários são suficientes para
a formação da consciência de classe revolucionária? Para Lênin, não.
Contrário à política tradeunionista, cuja tese era a da espontaneidade da
promoção da consciência de classe do proletariado no envolvimento di-
reto com as lutas econômicas, Lênin compreendia que a agitação e orga-
nização dos trabalhadores precisam ser de caráter político e consciente.

[...] o erro fundamental de todos os «economistas», a saber: a convicção


de que se pode desenvolver a consciência política de classe dos operários
a partir de dentro, por assim dizer, da sua luta económica, isto é, toman-
do unicamente (ou, pelo menos, principalmente) esta luta como ponto de
partida, baseando-se unicamente (ou, pelo menos, principalmente) nesta
luta. (LÉNINE, 1977b, p.47).

Para o líder bolchevique, o espontaneísmo, por ser economicista,


era de curto alcance, pois reivindicava conquistas trabalhistas nos mol-
des capitalistas. O proletariado precisava reivindicar além das questões
relacionadas às relações de trabalho e salariais. Os comunistas, enquanto
vanguarda dos partidos proletário, deveriam assumir e organizar os tra-
balhadores coletiva e politicamente para avançar no processo de cons-
trução da revolução socialista. O bolchevismo, historicamente, se consti-
tuiu em torno dessas estratégias, de organizar e impulsionar consciente
e politicamente as mobilizações de massas para derrotar o tzarismo e
para a lutar pelo poder e construir um partido de classe essencialmente
revolucionário. Nas palavras de Lênin (1977b, p.47),

54
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

[...] chegámos a esta conclusão partindo unicamente da necessidade pre-


mente que a classe operária tem de conhecimentos políticos e de educa-
ção política. [...] «Todos estão de acordo» que é necessário desenvolver a
consciência política da classe operária. Pergunta-se, como fazê-lo e o que
é necessário para o fazer? A luta económica «leva» os operários a pensar
unicamente nos problemas relacionados com a atitude do governo em
relação à classe operária; por isso, por mais que nos esforcemos na tarefa
de «imprimir à própria luta económica um carácter político», nunca po-
deremos, dentro dos limites de tal tarefa, desenvolver a consciência polí-
tica dos operários (até ao grau de consciência política social-democrata)
porque esses próprios limites são estreitos.

A consciência política de classe vem de fora da luta econômica,


além das relações produtivas e salarias entre trabalhadores e patrões,
segundo Lênin. A vanguarda do proletariado tem o papel formativo,
por isso, deve assumir o compromisso de educar politicamente os traba-
lhadores com teoria social e cultura proletária. Nesse sentido, o partido
seria a ferramenta, que por meio da agitação política, da propaganda
socialista e, sobretudo, da intervenção direta na organização das lutas,
poderia acelerar a experiência prática dos revolucionários. A tarefa par-
tidária deve ser permanente e nunca perder de vista a transformação
radical da sociedade.

É nosso dever sempre intensificar e ampliar nosso trabalho e influência


entre as massas. [...] Em grande medida, o propósito de nossa estrita se-
paração como um partido distinto e independente do proletariado consis-
te no fato de que nós sempre e indubitavelmente conduzimos este trabalho
marxista de elevar toda a classe trabalhadora, tanto quanto possível, ao
nível da consciência social-democrata, não permitindo que ventos políti-
cos, ainda menos mudanças políticas de cenário, nos afastem dessa tarefa
urgente. [...] Esse trabalho, como dissemos, é sempre necessário. Depois
de cada revés, devemos nos lembrar, e enfatizar, que a fraqueza no traba-
lho é sempre uma das causas da derrota do proletariado. Da mesma ma-
neira, devemos sempre prestar atenção nisso e enfatizar sua importância
depois de cada vitória, do contrário a vitória será apenas aparente, seus
frutos não estarão assegurados, seu significado real na grande luta pelo
nosso objetivo definitivo será insignificante e pode até se provar adverso
(particularmente se uma vitória parcial afrouxar nossa vigilância, acal-

55
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

mar nossa desconfiança de adversários duvidosos e nos fizer esquecer


o momento correto para um ataque renovado e mais vigoroso contra o
inimigo). (LÊNIN, 1962, n.p.).

Dessas orientações de Lênin podemos compreender que a vanguar-


da (aqui entendida como direção de classe) possui papel fundamental.
Ela precisa alcançar a todas as classes sociais (e frações de classe), se es-
tiver comprometida com a revolução e com o desenvolvimento integral
da consciência política de classe. Para tanto, o partido precisa se assumir
como teórico, propagandista e organizador para educar, organizar e di-
rigir a classe na construção do processo revolucionário.

Devemos educar toda a classe de trabalhadores assalariados para o papel


de combatentes pela emancipação da humanidade de toda opressão. De-
vemos constantemente ensinar mais e mais seções dessa classe; devemos
aprender a abordar os membros mais atrasados, mais subdesenvolvidos
desta classe, aqueles que são menos influenciados pela nossa ciência e
pela ciência da vida, de modo a poder falar com eles, aproximar-se deles,
erguê-los constante e pacientemente ao nível da consciência social-de-
mocrata, sem fazer um dogmas eco de nossa doutrina – ensiná-los não
apenas a partir de livros, mas através da participação na luta diária pela
existência dessas camadas atrasadas e não desenvolvidas do proletariado.
(LÊNIN, 1962, n.p.).

Disso notamos a reiterada defesa da necessidade do partido se tor-


nar uma instituição formativa do proletariado, para melhor dirigi-lo na
luta contra a autocracia tzarista e contra o capitalismo. Essa formação
política deve, portanto, ir além da defesa de suas necessidades materiais
imediatas (ou seja, da luta econômica e trabalhista), mas para um hori-
zonte político, em busca da construção e conquista do processo revolu-
cionário.

II
Nota-se dos textos pré revolucionários que a educação possui ca-
ráter político, características que são evidenciadas também nos escritos
leninianos de 1920. Já enquanto líder da Rússia revolucionária, os es-
critos de Lênin que tratam da instrução pública apresentam a educa-

56
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

ção como um projeto de formação humana, pensado no presente para


o futuro. A formação das novas gerações se torna uma questão central
para os rumos da revolução: “[...] como prepará-la [a juventude] para
que seja capaz de acabar de construir e completar aquilo que nós co-
meçamos[?]”. (LÊNIN, 2011, p.367). A revolução de 1917 não é obra
acabada, fechada em si mesma, senão o início do processo revolucio-
nário. A luta contra o que restou da nobreza russa, contra a burguesia
nacional e o capital continuava e deveria ser travada com afinco no
campo material e ideológico. Nos textos, de 1920, o partido ainda apa-
rece como importante entidade formativa do proletariado, enquanto a
juventude aparece como nova protagonista no processo, como a gera-
ção que levará a cabo a construção da sociedade comunista. O binômio
educação-política se mantém como fundamento do processo formati-
vo e da luta de edificação revolucionária.

Num momento como este da luta devemos defender a edificação revo-


lucionária, lutar contra a burguesia tanto pela via militar como mais
ainda pela via ideológica, pela via da educação, a fim de que os costu-
mes, hábitos e convicções que a classe operária adquiriu no decurso de
muitos decénios de luta pela liberdade política, a fim de que toda a soma
destes costumes, hábitos e ideias sirva de instrumento de educação de
todos os trabalhadores; e a tarefa de resolver a questão de como precisa-
mente educar recai sobre o proletariado. (LÉNINE, 1977a, n.p.).

A preocupação com a formação das crianças e jovens soviéticas


denota a educação política e a política como ferramenta educativa. Seus
escritos indicam a construção de uma nova educação para uma nova
sociedade. A escola da classe trabalhadora para a classe trabalhadora,
enquanto espaço formativo, não pode ser a mesma escola burguesa.
Portanto, a formação não pode estar dissociada da tarefa revolucioná-
ria de edificar a sociedade comunista.

Na República Soviética operária e camponesa, toda a organização da


instrução, tanto no domínio da instrução política em geral, como, mais
especialmente, no domínio da arte, deve estar impregnada do espírito
da luta de classe do proletariado pela realização vitoriosa dos objectivos
da sua ditadura, isto é, pelo derrubamento da burguesia, pela supressão

57
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

das classes e pela eliminação de toda a exploração do homem pelo ho-


mem. Por isso o proletariado, tanto através da sua vanguarda, o partido
comunista, como através de toda a massa de todo o tipo de organizações
proletárias em geral, deve participar do modo mais activo e principal
em toda a obra da instrução pública. (LÉNINE, 1977c, n.p.).

Portanto, para ser comunista, precisa aprender sobre o comunis-


mo. E como aprender o comunismo? Para Lênin, em primeiro lugar,
deve-se renunciar à assimilação livresca, fundamentada no divórcio
entre o livro e a prática social, ao trabalho e a revolução. “Só pode
aprender o comunismo se ligar cada passo do seu estudo, da sua edu-
cação e da sua formação à luta incessante dos proletários e dos tra-
balhadores contra a velha sociedade exploradora”. (LÊNIN, 2011, p.
373). Ao mesmo tempo, deve-se garantir que seja ensinado aos filhos
da classe trabalhadora o que há de mais avançado em termos de co-
nhecimentos produzidos pela humanidade.

Os nossos discursos e artigos de agora não são uma simples repetição


daquilo que se disse antes sobre o comunismo, pois os nossos discursos
e artigos estão ligados ao nosso trabalho quotidiano e multilateral. Sem
trabalho, sem luta, o conhecimento livresco do comunismo, adquirido
em brochuras e obras comunistas, não vale absolutamente nada, porque
prolongaria o antigo divórcio entre a teoria e a prática, esse antigo di-
vórcio que constituía o mais repugnante traço da velha sociedade bur-
guesa. (LÊNIN, 2011, p.368).

Em segundo lugar, o proletariado deve saber o que tomar da ve-


lha escola. Compreender o que aproveitar passa pela necessidade de
conhecer as suas principais características e problemas delas advindos.
A velha escola correspondia aos interesses de classes, aos quais estava
submetida nas relações sociais e de produção capitalista. A formação
por ela ofertada estava de acordo com as necessidades e demandas da
(re) produção do capital. Os interesses capitalistas subordinavam toda
a potencialidade da educação à preparação de crianças e jovens para
serem úteis na produção de valor e na manutenção das relações estra-
nhadas de produção, que o trabalho humano estava submetido.

58
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

A velha escola declarava que queria criar homens instruídos em todos


os domínios e que ensinava as ciências em geral. Sabemos que isso era
pura mentira, pois toda a sociedade se baseava e assentava na divisão
dos homens em classes, em exploradores e oprimidos. Como é natu-
ral, toda a velha escola, estando inteiramente impregnada de espírito de
classe, só dava conhecimentos aos filhos da burguesia. Nessas escolas,
a jovem geração de operários e camponeses não era tanto educada como
treinada no interesse dessa mesma burguesia. Educavam-nos para pre-
parar para ela servidores úteis, capazes de lhe dar lucros, e que ao mes-
mo tempo não perturbassem a sua tranqüilidade e ociosidade. Por isso,
ao rejeitar a velha escola, propusemo-nos a tarefa de tomar dela apenas
aquilo que nos é necessário para conseguir uma verdadeira formação
comunista. (LÊNIN, 2011, p. 368).

Os escritos de Lênin nos conduzem ao entendimento que a escola


não é um mal em si. Seus efeitos sociais perniciosos estão relacionados
ao seu uso classista. Por isso, há de se resgatar as potencialidades da
instrução institucionalizada e colocar a disposição dos filhos da classe
trabalhadora todos os conhecimentos científicos e filosóficos produzi-
dos pela humanidade. Esses conhecimentos a serviço dos interesses
da classe trabalhadora contribuirão para elaboração de uma cultura
proletária autônoma e revolucionária, contudo, não apartada da cul-
tura historicamente produzida pela humanidade. A cultura proletária
é fruto da elaboração consciente dos conhecimentos produzidos pela
humanidade e colocados a serviço dos interesses da classe trabalha-
dora. O marxismo é um exemplo disso: uma teoria social a serviço da
classe trabalhadora elaborada a partir do que havia de mais avançado
na ciência e na filosofia burguesa do século XIX – filosofia alemã, eco-
nomia política inglesa e socialismo francês. (LÊNIN, 2020).

O marxismo conquistou a sua significação histórica universal como


ideologia do proletariado revolucionário porque não repudiou de modo
algum as mais valiosas conquistas da época burguesa, mas, pelo contrá-
rio, assimilou e reelaborou tudo o que houve de valioso em mais de dois
mil anos de desenvolvimento do pensamento e da cultura humanos. Só
o trabalho efectuado nessa base e nesta mesma direcção, inspirado pela
experiência prática da ditadura do proletariado como sua última luta

59
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

contra toda a exploração, pode ser considerado como o desenvolvimento


duma cultura verdadeiramente proletária. (LÉNINE, 1977c, n.p.).

Em busca de síntese, compreende-se que nos escritos de Lênin,


a consolidação do processo revolucionário comporta a conquista e a
ressignificação da escola burguesa aos filhos da classe trabalhadora.
Uma escola de novo tipo, que oferte uma formação nova para os novos
sujeitos da nova sociedade que nascia. O novo não elimina e desconsi-
dera tudo que há no velho, mas é a ressignificação e assunção do que
havia de mais avançado na escola burguesa. O conhecimento, cientí-
fico e filosófico, que outrora usado para a manutenção das relações
sociais de produção de dominação e exploração do proletariado, deve
estar a serviço da plena emancipação da classe trabalhadora. Tal como
sugere Marx (2010, p.156) em Crítica da filosofia do direito de Hegel, “[...]
assim como a filosofia encontra suas armas materiais no proletariado,
o proletariado encontra na filosofia suas armas espirituais”. Por isso, a
defesa intransigente da instrução pública e da apropriação de tudo que
há de mais avançado no campo do conhecimento pelo proletariado.
Como visto anteriormente, a educação deve estar intimamente re-
lacionada a prática social. Nos escritos de Lênin pós-revolução, a (re)
educação, enquanto projeto de formação humana, se relaciona com a
tarefa histórica da juventude socialista, que era a de edificar a socie-
dade comunista, a qual só seria possível em posse dos conhecimentos
científicos e filosóficos historicamente disponíveis. A educação na obra
de Lênin, seja partidária ou/e escolar, possui forma e conteúdo de um
instrumento social útil e necessário a classe trabalhadora, pois permi-
tiria o encontro do proletariado com as suas armas espirituais necessá-
rias para a derrocada do capitalismo e a construção de uma sociedade
sem classes.

As massas trabalhadoras, as massas de camponeses e operários devem


vencer os velhos hábitos da intelectualidade e reeducar-se para cons-
truir o comunismo - sem isso não é possível iniciar a obra de constru-
ção. Toda a nossa experiência mostra que esta obra é demasiado séria,
e por isso não devemos perder de vista o reconhecimento do papel pre-
dominante do partido, e não podemos eludi-lo ao discutir a questão da
actividade e da construção organizativa”. (LÉNINE, 1977a, n.p.).

60
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

O que podemos notar até aqui é a íntima relação entre educação


e política nos escritos de Lênin. Eles expressam a educação como meio
para fins políticos e a política como ferramenta educativa. Trata-se de
um pensamento educacional marxista comprometido com a luta do
proletariado contra as desmedidas do capital e com a construção do
processo revolucionário pelos trabalhadores. Ainda que elaborado em
situações históricas específicas, primeiras décadas do século XX, en-
quanto clássico nos deixa um legado a ser considerado.
Resumido, o pensamento educacional de Lênin expressa cinco
pontos fundamentais para as organizações políticas do proletariado da
atualidade (re) pensar a formação da classe trabalhadora: [1] a juven-
tude precisa se tornar conscientes das condições e dos objetivos da luta
disciplinada contra o capital e pela construção da revolução socialista;
[2] a obra de construção de uma nova sociedade é demasiada séria
e requer uma formação humana comprometida com os interesses de
classe do proletariado, que tenha a revolução como um ideal a ser al-
cançado; [3] a educação (escolar ou não) não pode estar separado, ideal
ou programaticamente, da luta política da classe trabalhadora contra
o capital; [4] a educação deve ser capaz de conferir ao proletariado
uma formação humana que permita a constituição de um pensamento
classista e uma cultura proletária capaz de se reproduzir em condições
de autonomia intelectual; [5] toda experiência histórica mostra o papel
preponderante e fundamental das organizações de representação de
classe dos trabalhadores, quanto ao caráter educativo, formativo e or-
ganizativo do proletariado.
Nosso texto não esgota as contribuições teóricas de Lênin para as
críticas da educação e da escola burguesa. Longe de aspirar tal objeti-
vo, buscamos indicar elementos que consideramos importantes para
os interessados na obra do líder bolchevique iniciar e aprofundar os
seus estudos. Trata-se de abrir o caminho para o conhecimento da vas-
ta obra de Lênin e não encerrar conclusões e considerações definitivas
sobre a mesma. Entendemos que Lênin foi um pensador de obra rica
e vasta que merece estudos sistematizados e aprofundados, haja vista
a vitalidade que o seu legado teórico tem demonstrado ao longo dos
anos com críticas à sociedade capitalista e contribuições para o pro-
cesso de organização da luta do proletariado pela revolução socialista.

61
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Referências Bibliográficas

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ZEWORSKI, Adam. Capitalismo e social-democracia. Tradução de Laura Tei-
xeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

62
Os debates iniciais sobre a
construção de uma pedagogia
socialista: a educação politécnica1
Leandro Sartori

O objetivo deste texto é, em continuidade ao que foi exposto em


capítulo anterior, evidenciar os desdobramentos pós-revolucionários
dados ao campo educacional. Como se sabe, o vínculo entre trabalho
e educação, a relação dos saberes com a realidade atual, a participação
dos estudantes junto a juventude comunista e o princípio da auto ges-
tão, são elementos basilares para a organização do sistema de ensino
no socialismo. Todavia, de que forma esses princípios se materializa-
ram após o fim da guerra civil, sobretudo ao considerar a formação
politecnica?

A revolução do outubro de 1917 é posta em marcha por ampla


mobilização da população insatisfeita com suas condições de vida,
mas, igualmente, pela participação direta e decidida do bolchevismo.
O partido se organiza com base em uma rigorosa e centralizada disci-
plina, atuando como vanguarda proletária no direcionamento dos ru-
mos da revolução. Esta atuação não é decorrente da prática irrefletida,
ao contrário, da relação dialética de reflexão e ação, de teoria e prática.
1 Este artigo é um desdobramento da Aula 4, com o mesmo título, aplicada no curso
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética, promovido pela ELAHP. A aula foi
virtual no dia 10 de outubro de 2020. Tenho por base minha tese, intitulada História da
Educação Soviética: a transição como processo de aprendizagem - que consta devidamente
citada nas referências do artigo.

63
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Com isso, na complexa conjuntura ano de 1917, é defendida por


Lênin a impossibilidade da conciliação de classes no interior do Estado
autocrático russo e a imperiosa necessidade de uma violenta insurrei-
ção contra as classes dominantes. A destruição da dominação burgue-
sa e tzarista sobre o Estado Russo é condição básica para que a classe
trabalhadora recuperasse sua dignidade e suas condições de existên-
cia. Destruir o Estado, na teoria leninista, não é sinônimo de anarquis-
mo, mas de rompimento da dominação pela ditadura do proletariado
(LENIN, 1982). Para essa concepção, a via parlamentar e de reformas
sociais teria caducado histórica e politicamente. Desse modo, refuta-se
frequentes teses presentes na II Internacional Comunista.

A contraposição a via parlamente não implicou abandonar as


ações de oposição dentro do parlamento. Em verdade, indica-se a com-
binação da ação política na luta oposicionista ao regime vigente dentro
do parlamento e a organização de lutas contra a ordem, conforme as
palavras de Lênin em Esquerdismo doença infantil do Comunismo (2014).
Esse caráter de luta dentro e fora das vias legais é operado a nível na-
cional e coordenado com forças progressistas internacionais. No caso
russo, em específico, a revolução se reveste de importância internacio-
nal, já que

(...) alguns dos aspectos fundamentais da nossa revolução não tem


apenas significado local, particularmente nacional, russo, mas reves-
tem-se, também, de significado internacional (...) Têm significado in-
ternacional quanto à influência que ela exerce sobre todos os países.
(LÊNIN, 2014, p. 43).

À vista disso, a revolução que ocorre em outubro de 1917 é segui-


da de intensa guerra civil – comunismo de guerra - que representa a
contrariedade dos antigos setores dominantes da economia e política
russa – os tzares, proprietários de terra e burgueses – e de setores po-
pulares do campo que não estavam a par dos acontecimentos gerais
dos grandes centros e que terminam por se posicionar de forma con-
servadora. Esses setores internos da Rússia são vigorosamente apoia-
dos por conservadores burgueses de diferentes países do mundo teme-
rosos dos impactos e consequências que decorreriam de tal processo.

64
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

No comunismo de guerra promove-se a estatização de algumas


empresas e o confisco da produção do campo. As condições de vida
e a escolarização do povo são penosas, dados os enormes problemas
infra estruturais de falta de locais propícios à educação e, igualmente,
por não haver pessoal qualificado suficiente para atender ao conjunto
da população.

Desta forma, as primeiras ações educacionais envolvem a partici-


pação direta dos estudantes nos serviços internos da escola – tal qual
o preparo da alimentação e manutenção dos espaços higienizados – e
em outros tipos de tarefas de trabalho e produção. São plurais os deba-
tes pedagógicos e as teorizações dos pedagogos revolucionários nessa
ocasião, em conformidade ao que vemos a seguir.

As elaborações pedagógicas da época são encontradas em grande


escala nos documentos publicados pelo Comissariado do Povo para a
Instrução Pública e nas obras de seus pedagogos que sofrem influên-
cias dos debates colocados no seio do marxismo e, outrossim, influên-
cias daquilo que se tinha de mais moderno em termos pedagógicos,
as produções pragmatistas ligadas, dentre outros intelectuais, a John
Dewey.

Grosso modo, do ponto de vista político poderíamos dizer que as


correntes ligadas ao pragmatismo defendem bandeiras de laicidade,
gratuidade, igualdade entre os sexos e obrigatoriedade educacional.
Essas bandeiras são incorporadas como fatores a serem conquistados
na Rússia revolucionária. Em relação ao conteúdo e a forma da escola,
existia o indicativo de que o ensino e a aprendizagem se pautasse no
critério de atividade do aluno, isto é, o aluno sendo sujeito ativo na
aquisição/construção de conhecimentos úteis.

Esses princípios são, em certa medida, incorporados e/ou res-


significados nos anos subsequentes a revolução, seja no Comunismo
de Guerra ou mesmo com a emergência da Nova Política Econômica

65
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

(NEP)2, defendida por Lênin. No campo da gestão sistêmica da educa-


ção há considerável progresso nos índices escolares, como é possível
perceber:

Tabela 1 - Quadro estatístico acerca do desenvolvimento da Educação


Elementar
Cifras Alunos
Anos Escolas Alunos Escolas Alunos
1914-1915 104.610 7.235.988 100 100
1920-1921 114.235 9.211.351 109,2 127,3
1921-1922 99.396 7.918.751 99 109,4
1922-1923 87.559 6.808.157 83,7 94,1
1923-1924 87.258 7.075.810 83,4 978,8
1924-1925 91.086 8.249.490 87,1 116,5
1925-1926 101.193 9.487.110 96,7 131,1
1926-1927 108.424 9.903.439 103,6 136,89
Fonte: WILSON Apud ARAÚJO, 2016, p. 36.
Em termos de quantitativo de alunos, o governo socialista ultra-
passa os índices do tzarismo já em 1924 e sustenta o crescimento nos
anos seguintes. Da mesma forma, o quantitativo de escolas excede os
números precedentes de maneira ágil. Aprofundamos a seguir quais
os fundamentos se tornam norteadores dos debates, de algumas ações
educativas formais vinculadas ao Comissariado e de suas orientações
curriculares. Reiteramos que o texto se dedica aos primeiros anos da
transição socialista.
Havia o enorme desafio de expandir a escolarização e formação
humana da população, superando a separação entre o trabalhador, o
processo de trabalho e o produto de trabalho. Para tanto, são apon-
tados como norteadores do fazer pedagógico a formação intelectual,

2 Sinteticamente, a NEP é representada pela continuidade de alguns traços da proprie-


dade privada em setores da sociedade russa e pela substituição do confisco de produ-
ção – traço característico do Comunismo de Guerra – pela taxação da produção. A NEP
é de suma importância para a economia soviética e colabora para a continuidade do
socialismo e de sua pluralidade de debates nos anos de 1920.

66
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

corporal e, particularmente, a formação tecnológica. Esses eixos não


são transpostos de maneira automatizada à teoria e à prática desen-
volvidas na URSS, sobretudo ao considerar que a estratégia principal
de ação se baseou no pragmatismo, considerando a necessidade de in-
tensificar a atividade do estudante e de atender as demandas úteis ao
cotidiano, afastando-se daquilo que comumente se atribui como “en-
sino meramente teórico”. À vista disso, entre 1917 e o final da década
de 1920, são apontados os princípios educativos apresentados abaixo.

O conteúdo do ensino é a vida, a realidade atual, ou seja, deve


se pautar nas necessidades e nos assuntos que sejam contemporâne-
os e que sirvam à ação na sociedade – entendido sobremaneira que o
momento que esses intelectuais estão vivendo é de revolução socialis-
ta. Assim, se afirma que: tudo aquilo “(...) que se agrupa em torno da
revolução social vitoriosa e que serve à organização da vida nova. (...)
é o imperialismo em sua última fase e o poder soviético considerado
enquanto ruptura da frente imperialista (...)” (SHULGINE apud PIS-
TRAK, 2011, p.25) deve ser objeto de reflexão e de ação escolar.

Esta formação baseada na atualidade prima pela consolidação de


uma intuição marxista afinada com os ideais da classe trabalhadora e
suas necessidades de vida. Para além dos assuntos discutidos no inte-
rior da escola, considerar a realidade atual como articuladora do traba-
lho escolar implica conceber a escola como instituição comprometida,
igualmente, com a comunidade em que está inserida, ou seja, a própria
URSS e o bairro onde se situa. Não são raras as vezes que se encontram
nas obras dos pedagogos as conexões entre o estudo escolar e o traba-
lho em fábricas, oficinas e no campo que esteja localizado próximo a
escola. Essa inserção nos diferentes espaços se daria por participação
direta na produção ou mesmo na colaboração dos estudantes para a
elevação do nível cultural das comunidades pela promoção de feiras
ou do ensino de alfabetização e técnicas produtivas.

Este aspecto de participação na realidade da comunidade demons-


tra um segundo fundamento da educação soviética, a educação social
e a ligação da escola com essas outras esferas da sociedade. Krupskaya
sublinha o compromisso de formação dos “1) de instintos sociales, 2)
de la conciencia social, y 3) de hábitos sociales.” (KRUPSKAYA, 1978)

67
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

nos escolares. Formar os instintos, consciência e hábitos sociais é tarefa


que demanda, mais que o trabalho imediato dentro dos muros da esco-
la, o engajamento na resolução dos problemas efetivamente existentes
e que nos anos iniciais da revolução não são poucos.

A origem da mobilização dos escolares para o comprometimento


com a educação social não incide unicamente sobre o trabalho do pro-
fessor. Em verdade, a Juventude Comunista se comprometeria servindo
como exemplo e incentivador dos ciclos de debate cultural, do volun-
tariado e de inserção dos jovens nos diversos espaços onde se fizesse
indispensável. Portanto, os membros da juventude comunista que são
parte da comunidade escolar deveriam ser altamente comprometidos e
engajados na promoção deste princípio que viabiliza não só a formação
de valores e hábitos nos escolares, mas também aproxima a escola e a
cultura “elaborada” e científica das pessoas que porventura não tiveram
oportunidade de acesso ao saber escolar.

Certamente, o trabalho de educação social não passa apenas pela


atuação da juventude comunista. O Proletkult desempenha, dentre ou-
tras coisas, um papel imprescindível de elevação cultural do proletaria-
do, aproximando-o de uma cultura antiburguesa. Pensava-se a noção de
sistema de educação que colaborasse para a divulgação da ciência e da
arte, incorporação contribuições da “velha cultura” e, ao mesmo tempo,
incentivo à produção cultural proletária compromissada com os valores
e objetivos da transição socialista. Vejamos o trecho:

“Não, pela milésima primeira vez eu repito que o proletariado deve ter
plena propriedade da cultural universal (...) Menosprezar a ciência e a
arte do passado sob o pretexto de que elas são burguesas é tão absurdo
quanto (...) jogar fora as máquinas das fábricas ou as estradas de ferro.
(...) O Proletkult precisa concentrar sua total atenção no trabalho (...)
encontrar e fomentar novos talentos entre o proletariado (...) (LUNAT-
CHARSKI, 2018, p. 58-59)

A lógica de incorporação do “velho” e de desenvolvimento de no-


vos elementos culturais que corroborassem o socialismo, que permeia
as ações do Proletkult, corresponde, em certa medida, à defesa que é
imputada à escola na aproximação da juventude com os saberes existen-

68
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

tes e de seu compromisso com o aperfeiçoamento dos conhecimentos e


com sua divulgação à comunidade. Talvez hoje se atribua menor valor
ao trabalho escolar no sentido de divulgação de saberes “elaborados”.
Contudo, se considerarmos o complexo período pós-guerra que os pe-
dagogos estão vivenciando, este princípio expressa como uma notável
contribuição da escola no sentido de expansão dos horizontes culturais
do povo e de modernização dos seus hábitos de vida e produção.

Do ponto de vista da formação política, deve-se considerar que a


inserção da juventude comunista na escola ocorre através dos estudan-
tes comunistas na escola. As ações desses estudantes-militantes apontam
para a constituição de novos hábitos. Indica-se que todos os jovens co-
munistas deveriam viver de sua força de trabalho, se tornando conscien-
tes de seu papel e da constituição da vida política. Esses jovens precisam
se reconhecer como parte da luta internacional dos trabalhadores contra
a exploração da força de trabalho. Para tanto, a composição de uniões
independentes autogestionárias seria fundamental para colaborar em
tais projetos. Considera-se, ainda relevante, que os jovens adquirissem
a escolarização obrigatória até os 16 anos se frequentando, inclusive, as
capacitações em locais de trabalho (KRUPSKAYA, 1978). Uma bandeira
central de luta da juventude comunista seria a delimitação das horas
máximas de trabalho diário e a própria regulamentação do processo de
“trabalho infantil”.

Ao menos dois aspectos merecem ser destacados até aqui:1. A in-


ter-relação entre educação formal escolarizada e a educação sócio-polí-
tica dos jovens vinculados a escola e dos populares que interagem com
esses jovens comprometidos com a promoção da cultura, conhecimen-
tos científicos e artísticos; 2. O trabalho como elemento que permeia os
conteúdo e meios de ensino técnico e político dos estudantes.

No que se refere ao trabalho como meio educativo, Pistrak (2015,


p.37-40) destaca pelo menos três concepções comuns sobre o tema: 1.
Aqueles que concebem o trabalho como forjador das questões a serem
estudadas em cada disciplina e assimiladas pelo trabalho físico; 2. es-
tudo de um ofício; 3. ensino do amor e da estima ao trabalho em geral,
deixando de lado as contribuições da ciência para a otimização do pro-
cesso de trabalho.

69
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

O trabalho que permeia a escola deve ser útil a sociedade e pode se


expressar de maneiras distintas. O trabalho doméstico ou autosserviço é re-
alizado dentro das próprias escolas como pré-condição de continuidade
de existência da instituição. Nos primeiros anos após a revolução não há
funcionários suficientes para operar o cotidiano da escola, sendo indis-
pensável a participação dos alunos na lavagem das louças, buscar lenha,
etc. Logo, o trabalho de autosserviço constitui uma das modalidades de
atuação da escola, respondendo a uma urgência específica da época re-
volucionária, mas que coopera, em certos aspectos, para a consolidação
dos hábitos de vida do trabalhador. Esta modalidade tem a função im-
portante de habituação das pessoas ao trabalho cotidiano para manuten-
ção de sua existência, mas dentro da escola não deveria ocupar todo o
tempo dos escolares, uma vez que poderia sobrecarrega-los e impedi-los
de atuar em outros tipos de trabalhos significativos para a sua formação.

Os trabalhos sociais foram suficientemente discutidos acima. Eles


têm um caráter de introdução dos jovens e crianças na vida da comuni-
dade local, mobilizando-os a contribuir com a sociedade, formando-os
no sentido da solidariedade socialista e, também, contribuindo para a
divulgação científica e melhoria dos hábitos sociais. Um trabalho social
importante dos anos iniciais da revolução é a tarefa de alfabetização dos
grandes contingentes populacionais que não tiveram oportunidade de
estar nas escolas. Os escolares compartilham seus saberes adquiridos no
cotidiano escolar e colaboram para a melhoria dos índices sociais de al-
fabetização.

O trabalho em oficinas é apontado como alternativa de aproximação


entre o aluno e a realidade produtiva. Por meio das oficias os estudan-
tes poderiam ter acesso às técnicas mais recorrentes para produzir os
bens úteis. Exemplo disso seria a possibilidade de existência de oficina
de marcenaria e a construção ou conserto de mesas e cadeiras essên-
cias para a escola e, eventualmente, para a comunidade mais próxima
à escola. Mais a frente veremos um debate entre os pedagogos sobre a
possibilidade do trabalho em oficinas servir de base para politecnização
do ensino.

Além do trabalho nas oficinas, o trabalho nas fábricas é recebido


com entusiasmo pelos pedagogos, no sentido de que esta seria uma

70
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

modalidade de trabalho que abre as possibilidades de aprendizado das


técnicas modernas e de ampliação da base da industrialização do país.
Como cada escola não tem sua própria fábrica, o apropriado seria que
cada uma firmasse parcerias com as fábricas existentes nas cercanias,
de maneira que os jovens pudessem visitar e participar como apren-
dizes dos trabalhos realizados pelos operários. Além de se habituar a
execução do trabalho, os estudantes poderiam, assim, desenvolver a
solidariedade de classe.
Naquelas escolas que se situem em proximidade de regiões agrí-
colas, o trabalho nos campos também seria objeto de estudo. Não o traba-
lho reiterativo no campo, mas um trabalho que incorporasse técnicas
e estudos de cunho científico e que de alguma forma cooperasse para
a elevação da qualidade do trabalho desempenhado nessas regiões e,
consequentemente, elevação da qualidade de vida do povo.
O trabalho administrativo também compõe o rol formativo. Há que
se considerar que os trabalhos administrativos são existentes na pró-
pria escola e nas demais atividades de trabalho. Portanto, o aprendi-
zado deste tipo de trabalho é fundamental na vida produtiva e para a
organização de diversas atividades, inclusive, da escola.
Todos estes tipos de trabalho foram sistematizados por Pistrak
(2011, p. 73) ao relatar a experiência da escola comuna3. O objetivo do
trabalho na escola passa pelos elementos enunciados: 1.A escola deve
dar aos alunos uma formação básica social e técnica suficiente para
permitir uma boa orientação na vida prática; 2. Ela deve assumir, antes
de tudo, um caráter prático, a fim de facilitar ao aluno a transição entre
a escola e a realidade integral da existência e de capacitá-lo a compre-
ender seu meio e a se dirigir autonomamente. Sendo assim, a atividade
prática seria de suma importância no processo pedagógico; 3. Ela deve
3 A Escola-Comuna ou Escola Lepeshinski se vinculava ao Comissariado do Povo
para a Instrução Pública. Ela contou com a participação de pedagogos, como Pistrak
e Shulgin. Nela teriam sido ensaiados os princípios da educação do homem socialista.
Esta escola foi fundada em 1918 e teve diferentes espaços físicos, que variaram de
acordo com a disponibilidade predial. As condições gerais para o trabalho pedagógico
não foram boas e geraram a necessidade de que os estudantes trabalhassem desen-
volvendo as tarefas mais gerais necessárias ao cotidiano. Nesse sentido, o flerte com o
pragmatismo pedagógico seria coerente para a formação e para a própria existência da
instituição escolar (SARTORI, 2020).

71
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

acostumá-lo a analisar e a explicar seu trabalho de forma científica,


ensinando-lhe a se elevar do problema prático à concepção geral te-
órica e a demonstrar iniciativa na busca de soluções; 4. Por meio do
conhecimento técnico-científico e da vivência prática da experiência no
local de trabalho, busca-se a ampliação da Organização Científica do
Trabalho do processo produtivo da URSS; 5. Pode-se acrescentar ainda
que a inserção na produção colabora para a formação dos hábitos e dos
valores nos escolares, não permitindo que eles se vejam como classe
intelectual ou como cidadão acima das demais classe simplesmente
por terem passado pela escolarização formal.
Como vemos, as ações escolares se articulam profundamente
com o mundo do trabalho, de modo que os conteúdos ensinados são
completamente alterados, principalmente ao se considerar a forma ati-
va como o aluno deveria se engajar no processo de aprendizagem. A
aprendizagem não seria meramente teórica, mas fundamentalmente
prática. Por isso, deixa-se de ter centralidade o ensino feito pelo profes-
sor, a distribuição dos conteúdos em disciplinas escolares e em horá-
rios fixados a priori. Os complexos passam a ser a estrutura organiza-
tória dos programas escolares. O complexo se trata de um grande eixo
temático ligado a realidade atual e ao mundo do trabalho, a partir do
qual é desencadeado o processo de ensino-aprendizagem de cada uma
das áreas de saber. Os tempos de aula e áreas de saber contempladas
em cada um dos temas do complexo variam em demasia e devem ser
discutidos pelos pedagogos da escola em constantes reuniões de pla-
nejamento.
Desta maneira, os complexos expressam a síntese dos princípios
do sistema educacional, conforme expresso a seguir: §1. “A escola ja-
mais foi apolítica.”; §2. Deve-se despertar na criança o interesse pelos
assuntos da atualidade por meio de formação científica, teórica e prá-
tica na coletividade; §3. A pedagogia se basearia sempre no trabalho e
no internacionalismo; §4. Os programas que não são feitos por matéria,
mas por complexos - “dizemos que os complexos são, para nós, o con-
junto dos fenômenos concretos, tomados da realidade e agrupados em
torno duma ideia ou tema central e definido.” (URSS, 1935, p. 26); §5.
A escola deveria se organizar, principalmente, através da prática e ati-
vidade pessoal dos estudantes; §6. Os métodos de trabalho pedagógico

72
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

primam pela noção de coletivo organizado; §7. “O programa baseia-se


no estudo da vida local.” (URSS, 1935, p. 30); e §8. O professor seria o
parceiro mais velho de seus estudantes.

Dentre os inúmeros temas discutidos, saliento a seguir um deles


para que possamos melhor compreender a organização dos programas
de ensino tomando por pressupostos os itens supracitados.

Para a idade de 10 a 11 anos são propostos três eixos dentro dos


quais se encaixam cada um dos temas escolhidos, a saber: a natureza
e o homem; o trabalho; a sociedade. São temas trabalhados em cada
um dos eixos contemplados, respectivamente: “Noções (observações)
elementares de física e química; A natureza local. A vida do organis-
mo humano; Economia da Região; e As instituições administrativas
departamentais. Imagem do passado da região.” (URSS, 1932, p. 13).
Como percebemos, não há uma vinculação direta às antigas discipli-
nas escolares e o programa distribuído nos conteúdos tradicionalmen-
te trabalhados. De fato, se expressam grande temas, como “a economia
da região”, que são subdivididos nos trimestres de trabalho – conside-
rando especialmente a distribuição de estações do ano e períodos de
intensificação do trabalho produtivo no campo.

Apesar da organização por complexos de ensino trazer a grande


novidade de inserir o trabalho como centro do processo de aprendiza-
gem, demanda uma forma diferenciada de pensar o trabalho pedagó-
gico e de gestão da escola. A gestão dos processos educativos passa a
ser mais discutida e decidida nas reuniões e assembleias periódicas.,
evidenciando a auto-organização ou auto-gestão dos coletivos esco-
lares.

Ao ter em conta o pressuposto da atividade prática do aluno por


meio da participação nos diversos tipos de trabalho e a participação
nos processos de organização e gestão da escola, a inserção do profes-
sor no processo educativo ganha preponderância em um caráter de
orientador das tarefas. Isso não implica uma ausência de disciplina
na escola, ao contrário, as normas criadas pelo coletivo são objeto de
atenção por parte dos estudantes. E as pessoas mais velhas, como os
professores, são respeitadas. Segundo Prestes:

73
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

O grande desafio estava em estabelecer um diálogo, romper com a rela-


ção de influência e imposição. Isso fez com que Makarenko chegasse à
primeira grande descoberta: todos deveriam sentir-se parte fundamen-
tal de um todo, com uma disciplina rígida, delegando e assumindo res-
ponsabilidades para organizar a convivência do grupo. Todos tinham
responsabilidades e respondiam por elas num sistema de revezamento,
de tal forma que todos pudessem trocar de papeis e conhecer as respon-
sabilidades em cada situação; enfim sentirem-se corresponsáveis pelo
coletivo. (PRESTES, 2005, p.650)

Há que se observar eventuais divergências na forma como os pe-


dagogos explicam e cobram a disciplina na escola. Pode-se notar que
existem diferenças entre Makarenko e a própria escola-comuna, por
exemplo. Essas nuances, possivelmente, seriam explicadas por dife-
renças nas origens dos estudantes, uma vez que a prática pedagógica
de Makarenko esteve, por algum tempo, envolvida com uma colônia
correcional de jovens infratores.
Em continuidade, note o comentário abaixo:

Um povo que vegetou na ignorância não pode aceder à autogestão com-


pleta e as condições de poder popular só podem ser reunidas se as mas-
sas às quais esse poder for entregue forem instruídas. Enquanto não for
preenchida essa condição, forçoso é optar por um ‘absolutismo ilumina-
do’. O poder da intelectualidade não existe. Deve, sim, haver um poder
da vanguarda desse povo, da parte do povo que representa os interesses
bem assimilados da maioria, da parte do povo que dele é força criadora.
O proletariado é essa força criativa, e a atual forma de governo não
pode ser outra senão a ditadura do proletariado. (LUNATCHARSKI,
1988, p. 14)

Certamente, a escola passou por modificações, mas a noção de


disciplina e algum tipo de autoridade não é de todo abdicada para o
conjunto dos pedagogos soviéticos.
Podemos perceber, em contrapartida, a defesa de que com a re-
volução socialista as instituições do Estado do burguês – incluindo aí
a escola – deveriam “definhar”, fazendo identificar os processos esco-
lares com os processos da vida social geral pela participação imediata

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Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

das crianças e jovens na deliberação sobre os mais variados assuntos


e, também, por sua participação no trabalho produtivo, entretanto, ase
percebe que a escola seria fundamental para o avanço do sistema pro-
dutivo. Superar a produção de cunho feudal e burguês é indispensá-
vel para que a revolução avançasse socialização da produção. Estes
avanços seriam feitos ao sobrepujar a propriedade privada no campo,
os trustes e a exploração da força de trabalho. Por isso, são propostos
os planos quinquenais com objetivo de impulsionar a industrialização.

Essa conjuntura alavancou um movimento de autocrítica entre os


pedagogos, em especial ao considerar a importância da escola na mo-
dernização da sociedade e para a própria formação política e técnica.
Esta formação é comprometida com a ampliação das bases do Estado
Proletário que se daria mediante o aumento da produtividade do tra-
balho por sua organização científica – oportunizada pelo ensino esco-
lar sistematizado (MANÉVITCH, 1985). O autor defende que

No socialismo, a lei do aumento da produtividade do trabalho tem um


outro caráter. O socialismo elimina as contradições antagônicas do capi-
talismo e as suas consequências (crises econômicas de super produção,
desemprego, rendimentos que não provém do trabalho, etc). Como todo
o rendimento nacional, é utilizado, no socialismo, nos interesses dos
trabalhadores; o crescimento da produtividade do trabalho assegura a
possibilidade do desenvolvimento contínuo da produção, a descida dos
preços das mercadorias de amplo consumo e dos produtos alimentares,
o aumento dos salários, o desenvolvimento da construção habitacional,
o aumento da rede de creches, a construção de novas escolas e hospitais,
teatros, casas de cultura. Quer dizer, o aumento da produtividade do
trabalho é utilizado para elevar o nível da vida do povo. (MANÉVIT-
CH, 1985 p. 100)

As discussões sobre formação para o trabalho e o aumento de pro-


dutividade se dão articuladas ao princípio da politecnia. Este princí-
pio, o da politecnia, suscita controversas no pensamento pedagógico
soviético.

Shulgin (2013) considera como tarefa política a aproximação en-


tre trabalho manual e intelectual, entre campo e cidade. A formação

75
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

politécnica, no entanto, só poderia acontecer mediante a aproximação


com as fábricas, não no sentido de profissionalização da mão de obra,
mas para possibilitar o aprendizado dos principais ramos técnicos de
trabalho que são base da produção moderna: politecnia sendo compre-
endida como o conhecimento dos princípios básicos de todos os processos
de produção, trabalho fundamentado em uma série de indústrias, pos-
tos de trabalho, que torna possível uma gama de habilidades práticas.
Sendo assim, a produção sendo colocada a serviço da educação, sendo
pedagogicizada de modo a viabilizar o aprendizado das crianças e jo-
vens e fazendo com que a escola se identifique com o próprio cotidiano
da vida.
O pedagogo critica frontalmente àqueles que defendem a possi-
blidade de politecnização do ensino através de oficinas, uma vez que
o trabalho entre oficina e fábrica não expressariam continuidade. Por
isso, a politecnia só seria implementada como um princípio pedagógi-
co mediante o desenvolvimento industrial.
Pistrak (2015), em contrapartida, reconhece as disparidades entre
os estágios de produção na União Soviética e indica que a redução des-
sas diferenças entre o campo e as cidades se daria pela superação do
que chamou de “teoria da ilha” – em crítica a Shulgin. Pistrak afirma
que os variados pontos de partida poderiam ser uma forma de desen-
volvimento da escola politécnica, identificando a possibilidade de se
pensar uma formação politécnica mesmo nos locais onde a industrial
ainda não fosse plenamente desenvolvida, o que implica considerar o
papel das oficinas em tal empreitada.
O pedagogo reconhece como principais ramos da produção, na
época, a serem considerados como eixos para pensar a formação po-
litécnica os seguintes: a extração de fontes de energia e dos materiais
essenciais para qualquer indústria; transformação de energia em uma
forma adequada para o consumo na produção; processamento de ma-
teriais, processos tecnológicos e mecânicos de elaboração; engenharia
civil; indústria química de base; transportes e comunicações; e ramos
da produção agrícola.
A substituição do indivíduo parcial pelo indivíduo multilateral-
mente desenvolvido, considerando a preparação geral, política e poli-

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Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

tecnica são pontos centrais também para Krupskaya. Ela dá destaque


a dois elementos essenciais: para a educação politécnica o professor
precisa ter qualificações politécnicas e o aluno precisa ser conscienti-
zado sobre a importância de que aprenda assuntos sobre as múltiplas
técnicas e tecnologias da sociedade contemporânea, de maneira que
consiga ter uma concepção e inserção diferenciada no mundo.

“El politecnismo es um sistema íntegro, asentado em el estudio de la


técnica em sus diversas formas, tomada em su desarollo y em to-
das sus diversas formas y em todas sus mediatizaciones.Comprende el
estudio de la natureza viva, de la tecnología de materiales, instrumen-
tos y mecanismos de producción, de energética. Comprende también el
estudio de la base geográfica de las relaciones económicas, la influencia
de los métodos de extracíón y elaboración sobre las formas sociales
del trabajo y la incidencia de estas últimas em todo el régimen social.”
(KRUPSKAYA, 1978, p. 74)

Para o ensino politécnico, preconiza-se como método de ensino


a participação direta na realidade do trabalho por meio de vínculos
estabelecidos entre a escola e diferentes espaços produtivos. Essa in-
serção do aluno no trabalho proporciona hábitos gerais para o trabalho
e a capacidade de compreender o trabalho do ponto de vista técnico,
organizacional, além de seu significado social como trabalhador dire-
tamente incluído no chão do sistema produtivo.

Para a autora, o avanço técnico permite a politecnização, no en-


tanto, não é necessário estar na fábrica mais avançada para se ter um
ensino politecnico. Mesmo no “Estado atual” seria possível educar
considerando esse princípio, seja no campo ou nas indústrias atrasa-
das ou mais desenvolvidas. Esse esforço de politecnização do ensino é
a autêntica base propulsora da industrialização - tão urgente à manu-
tenção do socialismo. Para esta industrialização, a racionalização dos
processos de trabalho pela criatividade da classe trabalhadora e pelos
maiores conhecimentos técnicos seriam primordiais.

Como notamos, nos anos de 1920 são superados alguns dos pro-
fundos dilemas educativos da sociedade soviética pela alfabetização
de milhares de pessoas através da participação de escolares, militantes

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Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

e professores; cresce enormemente o número de escolas e de crianças e


jovens atendidos nelas. Os fundamentos educacionais começam a ser
orientados pelo princípio do trabalho, da coletividade, da auto-organi-
zação, dos complexos de estudo, pela realidade atual, educação social
e pelas discussões em torno da possibilidade de implementação da po-
litecnia.
Em especial a noção de politecnia se refere a necessidade de so-
cialização dos saberes em torno das diversas técnicas e tecnologias de
produção nos diversos ramos de produção. Há intensa polemicas acer-
ca da possibilidade ou impossibilidade de implementação do princípio
da politecnia mediante a fase de desenvolvimento industrial da URSS,
uma vez que alguns intelectuais acreditavam que o princípio da po-
litecnia somente seria implementado com o amplo desenvolvimento
das forças produtivas.
Os planos de modernização da economia intensificam bastante
tais contradições no final da década. Ao observar o sistema educativo
algumas autocríticas são feitas por alguns pedagogos. A conjugação de
tais fatores corrobora a necessidade de uma reforma educacional que
se inicia nos anos subsequentes. Este será o debate travado em nosso
próximo texto.

Referências Bibliográficas
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sia Soviética como interpretação de um contexto. In.: DEWEY, John. Impres-
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2018.

78
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

MANÉVITCH, E. O trabalho na URSS: problemas e formas de solução. Moscovo:


Edições Progresso, 1985.
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SARTORI, Leandro. História da Educação Soviética: a transição como processo de
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repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/347093 Acessado em 20 de de-
zembro de 2020.
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ca dos Sovietes: Programas Oficiais. Companhia Editora Nacional: São Paulo,
1935.

79
80
Embates entre o pragmatismo
funcional e o projeto soviético
José Carlos Souza Araujo

O objeto deste se desenvolve em dois eixos: o primeiro é relati-


vo ao pragmatismo funcional expresso pela pedagogia escolanovista
ancorado em contexto próprio, dada a sua emergência como teoriza-
ção entre os anos de 1890 e os anos de 1930; o segundo eixo estará
dedicado, também levando em conta o contexto que, parcialmente, é
comum em vista do projeto de pedagogia soviética que paulatinamen-
te se revela marxiana, em particular a partir da Revolução Russa em
1917, mas têm à sua volta uma pedagogia escolanovista disseminada e
consolidada até a primeira metade dos anos de 1920. Por isso, o termo,
embate, revela adequadamente o entrechoque, ao fundo de duas visões
de mundo, liberalismo e marxismo, as quais ainda em nossos dias se
fazem evidentemente presentes.

Os fundamentos da Pedagogia Tradicional (também conhecida


por Pedagogia da Essência ou Pedagogia vinculada ao Humanismo
Tradicional) revelam algumas pilastras sobre as quais se estruturam
suas posições a respeito dos seguintes aspectos:

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Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Disciplina
Centração no professor
Centração no ensino
Memorização
Obediência
Passividade
Repetição verbal de conteúdos
Formação de hábitos
Verbalismo
Intelectualismo
Elaborado pelo autor

Os fundamentos do Pragmatismo Funcional no campo educacio-


nal também podem ser sintetizados por um conjunto de categorias,
as quais caracterizam a Pedagogia Ativa (também denominada por
escolanovismo, escola ativa, pedagogia vinculada ao humanismo mo-
derno, Pedagogia da Existência), cujas raízes se encontram ao final da
Renascença, particularmente no século XVI. Tal Pedagogia explicitou
em seu processo de teorização um tripé científico fundado, pela ordem
hierárquica: a Biologia se configura como base, a qual confere susten-
tação à Psicologia e à Sociologia. Categorialmente, tal Pedagogia está
lastreada pelo que segue nos próximos dois parágrafos.

A criança move-se pela necessidade, utilidade, desejo, interesse, esfor-


ço e pelo saber (este tem um valor funcional, e não em si mesmo). Tais
aspectos se constituem em moventes em vista da atividade (nesta se
funda a dimensão funcional no linguajar de Claparède, o que explicita
a dimensão ativa da pedagogia ou da escola). Tal posição está filiada
ao funcionalismo, uma orientação que concebe a percepção e a consci-
ência como funções em resposta a uma dada necessidade. Por sua vez,
a atividade é geradora de experiência, a qual faz com que se realizem
as relações entre a adaptação do organismo e o meio, os quais agem um

82
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

sobre o outro de um modo recíproco.


Para se dar melhor sustentação sobre o conteúdo do parágrafo
anterior, advoga-se que Rousseau, pai da Escola Nova, é fundamen-
to para tais categorias, posto que a liberdade antecede a tudo: “[...] o
maior de todos os bens não é a autoridade e sim a liberdade. O homem
realmente livre só quer o que pode e faz o que lhe apraz. Eis minha
máxima fundamental. Trata-se apenas de aplicá-la à infância, e todas
as regras da educação vão dela decorrer” (ROUSSEAU, 1979, p. 67.
Grifos nossos).
Esclarecidas as duas categorias filosófico-educacionais, Pedagogia
da Essência e Pedagogia da Existência, no dizer de B. Suchodolski (1984)
elas são estruturantes da atual encruzilhada entre elas desde o final
do Renascimento. O movimento da Educação Nova, emergente ao fi-
nal do século XIX é, por conseguinte, uma expressão da Pedagogia da
Existência:

Na base desta oposição encontra-se a controvérsia filosófica clássica da


filosofia da essência e da filosofia da existência, controvérsia que re-
monta aos tempos mais recuados e que se mantém até aos nossos dias.
[...] Esta diferença conduz-nos justamente ao próprio coração das que-
relas pedagógicas (SUCHODOLSKI, 1984, p. 16-17).

Em termos de uma contextualização mais próxima em relação ao


ideário pragmático-funcional no campo educacional, menciona-se o
desenvolvimento da Biologia, dado o seu largo desenvolvimento no
decorrer do século XIX; a teoria marxiana (Marx falecera em 1883, e
Engels em 1895) – uma visão de mundo que demarca inclusive os tem-
pos atuais; o darwinismo expresso pela obra, Origem das espécies, de
1859, de Charles Darwin (1809-1882); o nascimento das Ciências da
Educação, em particular da Psicologia da Educação e da Sociologia da
Educação na segunda metade do século XIX, sob a tutela teórica do Po-
sitivismo de Auguste Comte (1798-1857). Como pano de fundo, é tam-
bém o século XIX paulatinamente o século da II Revolução Industrial.
Ao lado das emergentes Ciências da Educação mencionadas, cabe
também destacar o movimento em torno da constituição da Pedagogia
como Ciência da Educação que, embora tenha suas raízes em Herbart

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Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

(1776-1841), travou embates com aquelas Ciências da Educação. Em tal


movimento também presente desde os meados do século XIX, a Peda-
gogia seria uma ciência que se divide em duas partes: teórica e prática.
A primeira cuida das “[...] regras e dita os preceitos, comforme
as circunstancias o pedem; a parte pratica ensina o meio de aplicação
dessas mesmas regras e preceitos” (CORDEIRO, 1874, p. IX). Em tal
movimento, aventemos a hipótese que o movimento escolanovista exi-
lou a Pedagogia, em vista da inserção e significação que as Ciências da
Educação passaram a ter desde a sua emergência até a sua consolida-
ção nos anos de 1940.
Em termos institucionais, estão em jogo também ao final do século
XIX o desenvolvimento capitalista e tecnológico, a industrialização, a
urbanização, bem como a desigual, mas constante, disseminação da
escola primária e do jardim de infância, além das emergentes creches
públicas, cuja inauguração em contexto europeu se deu em 1844, na
França, cuja disseminação em vários países europeus se deu em se-
guida. Tais novos tempos no século XIX tinham também uma dívida
a acertar com o significativo analfabetismo. Ressalte-se ainda que o
movimento da Escola Nova tem origem na Inglaterra em 1889.
Em 1890, vem a público a primeira obra, de William James (1842-
1910), a explicitar o que será a perspectiva estabelecida pelo escola-
novismo, o que será desenvolvido adiante. Apresentemos os teóricos
mais significativos da Escola Nova, representantes do ideário pragmá-
tico-funcional:

William James (1842-1910) Jean-Ovide Decroly (1871-1932)


John Dewey (1859-1952) Édouard Claparède (1873-1940)
Maria Montessori (1870-1952) Adolphe Ferrière (1879-1960)
Elaborado pelo autor

Antes de elucidação do pensamento destes autores, continuemos


com a contextualização, porque lançará mais luzes para compreender
o projeto escolanovista, bem como compreender o cenário soviético
após a Revolução Russa de 1917.

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Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Em 1899, funda-se, centrado na preocupação de coordenar inter-


nacionalmente a obra conjunta das escolas novas, o Bureau Internatio-
nal des Écoles Nouvelles, uma iniciativa de Adolphe Ferrière, com sede
em Genebra, Suíça.
Em 1912, funda-se o Instituto Jean-Jacques Rousseau em Genebra,
Suíça, intitulado, École des Sciences de l’Éducation, por Édouard Claparè-
de e Pierre Bovet. Trata-se de uma importante instituição de pesquisa
em Pedagogia e em Psicologia da criança. Claparède propunha que o
Instituto Jean-Jacques Rousseau cumprisse com quatro funções:

Uma escola que permitisse aos educadores se orientar, documentar-se,


exercitar-se no método científico e colaborar com a construção da ciência.
Um centro de pesquisa para assegurar o progresso desta nova ciência.
Um centro de informação que reunisse e difundisse as pesquisas.
Um centro de propaganda em favor da renovação educacional.

No decorrer da I Guerra Mundial, ocorrida entre 1914 e 1918, ocor-


reu a Revolução Russa em 1917, ano de conflitos internos que levou à
derrocada da monarquia russa e, posteriormente, ao poder o Partido
Bolchevique liderado por Vladimir Lenin (1870-1924).
Ainda no tocante à Educação Nova, em 1919 foram aprovadas
pelo referido Bureau International des Écoles Nouvelles trinta bases des-
sas escolas novas (FERRIÈRE, 2000). Tais bases são consideradas por
Ferrière porque atendem o que foi consagrado pelo uso, porém cons-
cientes e refletidas por uma concepção até aqui mal definida e incom-
pletamente precisa (Ibidem, p. 4).
Em 1921, a 06 de agosto, foi fundada a Liga Internacional da Edu-
cação Nova, primeira associação pedagógica internacional (cf. seus 7
princípios explicitados, na íntegra, em LARROYO, 1974, p. 722).
Em 1922, para além da questão pedagógica, os inovadores con-
cordavam que era necessário instituir uma “era nova”. Daí a denomi-
nação da revista publicada a partir desse ano, denominada por Liga
internacional para a Educação Nova.
E em 1924, registra-se a morte de V. Lenin em 21 de janeiro, cujo
nascimento se dera em 1870. Se 1889 é o marco concreto de emergência

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Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

de uma escola em novas bases e princípios, o movimento de institucio-


nalização da Educação Nova ainda se inicia em 1899, e se consolida em
1922 através de uma revista, passando pela fundação do Instituto Jean
Jacques Rousseau em 1912, pelo estabelecimento de bases das escolas
novas em 1919 e pela Liga Internacional da Educação Nova em 1921.
Não se pode esquecer que a Revolução Russa de 1917 deu-se no
decorrer do desenvolvimento da teorização, da institucionalização e
da disseminação da Escola Nova, e Revolução está na raiz do ideário
educacional soviético a ser construído e explicitado.

Fundamentos do ideário pragmático-funcional no campo da


Educação
A atividade é fundamento da edificação pedagógica escolanovista,
a qual estabeleceu um divisor em relação à metodologia(s) tradicio-
nal(is). O antônimo de passividade é atividade e, há pouco mais de
um século, esta se apresentou como superadora daquela, pelo menos
em termos críticos. A altercação entre a tradicional e a ativa situava-se,
da parte desta, como crítica à passividade do aluno diante do prota-
gonismo do professor em relação ao ensino. Desde o final do século
XIX, postulava-se uma posição que contrariasse uma longa tradição
pedagógica: tratava-se de ressaltar e privilegiar a atividade do aluno,
compreendida como mola propulsora da aprendizagem. O protago-
nismo do professor seria destronado, pois tratava-se de conferir prota-
gonismo ao aluno; em outros termos, o aprendente seria o carro-chefe
em detrimento do ensinante ou, ainda, o puerocentrismo substituiria
ao magistrocentrismo.
A metodologia de ensino ativa está assentada na Biologia e, deri-
vadamente na Sociologia e na Psicologia, tornada esta rainha da Edu-
cação até poucas décadas atrás; com isso, realizava a autonomização
do aluno, do professor e da escola em relação à dimensão sócio-his-
tórica, ainda que as duas ciências da educação mencionadas tenham
trazido contribuições. Todavia, tais antinomias não se edificaram sem
fundamentações antropológico-filosóficas, éticas, políticas e científicas
que se enlaçaram, necessariamente, com as dimensões pedagógicas,
metodológicas e didáticas. A princípio, parecia apenas uma antinomia

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Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

superficial, como se fosse a ponta de um iceberg, todavia estava em


construção o antagonismo inaugurado, por exemplo, com Montaigne
(1533-1592).
Como já se anunciou, tal ideário reporta-se à atividade, a qual pode
ser compreendida por diferentes acepções relacionadas à ação, ao ato, à
operação, à prática, à produção ou mesmo à realização. Segundo Fer-
rater Mora (1982, p. 39), “O vocábulo ‘ação’ é um bom exemplo desse
tipo de vocábulos com tantos e tão diversos sentidos que é pouco reco-
mendável usá-los fora do contexto ou sem especificar seu emprego”. O
antônimo de atividade, mais próximo do campo pedagógico e didáti-
co, pode ser referido à passividade, à inatividade, à inação.
Estabeleçamos então que a metodologia ativa está centrada no
aluno, posto que sua aprendizagem torna-se protagonista, secunda-
rizando-se o ensino, que fazia protagonizar o professor. Altercavam-
-se, desde então, as perspectivas puerocêntrica e a magistrocêntrica.
Em linguagem filosófico-educacional, estabelecia-se “a querela entre a
pedagogia da essência [tradicional] e a pedagogia da existência [mo-
derna] iniciada durante o Renascimento [...]” (SUCHODOLSKI (1978,
p. 29). Ou seja, tal querela se ancorava entre o humanismo tradicional
e o humanismo moderno, os quais constituíram como que uma encru-
zilhada no campo educacional, o que também envolve concepções de
educação, de escola e de professor e, é claro, de ensino e aprendizagem.
Entretanto, foi com Johann Friedrich Herbart (1776-1841) que a
Pedagogia passou a ser reivindicada e estruturada como ciência, a qual
devia, a seu ver, tornar-se experimental, posto que “[...] de uma ex-
periência nada se aprende, tal como nada se aprende de observações
dispersas [...]” (HERBART, 2003, p. 12). Sustentava então que é pela
repetição de um mesmo ensaio, por muitas vezes, que se pode chegar
a algum resultado (cf. CIVAROLO, 2008). Segundo ele ainda, à Peda-
gogia cabia construir os seus próprios conceitos, o que promoveria sua
autonomia, sua orientação e sua cientificização; para isso, ela deveria
se fundar em ciências afins.
A busca por constituí-la como ciência, “Seria seguramente me-
lhor se [...] se concentrasse tão rigorosamente quanto possível nos seus
próprios conceitos e cultivasse mais um pensamento independente”

87
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

(Ibidem, p. 13). É com essa disposição que a Pedagogia passa a ganhar


foros de cientificidade, ao assumir-se como Ciência da Educação, em
particular no decorrer da segunda metade do século XIX (VAN ZAN-
TEN, 2011).
De um modo geral, no decorrer do século XIX, o termo experiên-
cia foi tratado em vários sentidos: como apreensão imediata, como ex-
periência da vida, como apreensão sensível, como afirmação de formas
de experiência vivida etc. Já no século XX, chegou-se inclusive a classifi-
car as experiências, discriminando-as por sensível, científica, religiosa,
artística, filosófica etc.
No dizer de Ferrater Mora (1982), “muitas tendências filosóficas
no século passado [XIX) e no presente [XX] deram grande atenção à
noção de ação em suas múltiplas variantes: impulso, esforço, produ-
ção, transformação etc” (Idem, p. 40). O mesmo dicionarista também
se refere, em relação ao século XX, às ‘filosofias da ação’, sob as quais
estariam agrupadas o pragmatismo (uma das fundações da Escola
Nova), o existencialismo e o marxismo.
É sob esse clima entre o final do século XIX e as primeiras décadas
do século XX, que se configurou a metodologia ativa no âmbito do mo-
vimento da Escola Nova, a qual provocará uma significativa inflexão
entre a teoria e a prática, fundadas estas na experiência sob o signo de
Pedagogia Científica inaugurada por Herbart. Tal movimento surgiu
na Inglaterra, através de uma “New School” em 1889, de onde se disse-
minou para o continente europeu, com diferenciadas propostas afeitas
a construir ‘uma comunidade escolar livre’, ‘a educação no campo’, ‘a
escola de humanidade’, a coeducação; eram também concebidas como
inovadoras e experimentais, e tinham como perspectiva finalidades
educacionais que viessem a superar as escolas tradicionais.
Tendo em vista a elucidação dos fundamentos da metodologia
ativa no âmbito do movimento da Escola Nova, trazem-se à baila, nas
próximas páginas, os principais debates e teorizações que a sustenta-
ram. Tecem-se elas através de uma rede conceitual coesa através de
várias categorias, compreendidas como instrumentos conceituais bá-
sicos. Os autores aqui reunidos publicaram obras entre 1890 e 1931 – o
que veio a caracterizar a periodização proposta pelo título -, as quais

88
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

serão privilegiadas em vista das anunciadas categorias. Sinoticamente,


e em ordem cronológica, eis os autores, suas obras e as respectivas
datas de publicação:

QUADRO 1 – Principais fundadores da metodologia ativa

Datas de
Autores Títulos das obras em vernáculo
publicação

William James Princípios de Psicologia 1890


John Dewey Meu credo pedagógico 1897
William James Palestras pedagógicas 1899
John Dewey A escola e a criança 1906
Adolphe Ferrière A lei biogenética e a escola ativa 1910
John Dewey Democracia e Educação 1916
John Dewey A Filosofia em Reconstrução 1919
Adolphe Ferrière A escola ativa 1922
Edouard Claparède A educação funcional 1931
Elaborado pelo autor

Inicia-se então pela obra de William James (1842-1910), Princípios


de Psicologia, publicada em 1890, que se revela fecunda em considera-
ções a respeito da experiência, para a qual busca um sentido definido:
“Experiência significa experiência de algo estranho que, segundo se supõe, se
grava em nós, seja espontaneamente, seja em consequencia de nossos
esforços e atos” (JAMES, 1971, p. 479).

Entretanto, tal compreensão deve expressar dinamismo, uma vez


que “[...] a experiência nos modela a cada hora, e faz de nossas mentes
um espelho das ligações de tempo e espaço entre as coisas do mundo”
(Ibidem, p. 480). Tal dinamismo implica na passagem de um estado de
coisas a outro, o que envolve a estrutura mental constantemente mode-
lada, além do que “[...] podemos ver como frequentemente a experiên-

89
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

cia desfaz o seu próprio trabalho, e substitui uma ordem anterior por
uma nova ordem” (Ibidem, p. 480).

Para William James ainda, a conceituação de experiência, sus-


tentada pela evolução zoológica, baseia-se em dois modos em relação
aos quais a espécie humana pode progredir para ajustar-se melhor ao
seu ambiente: ao primeiro, denomina-o como ‘adaptação’ pela qual
“[...] o ambiente pode modificar seu habitante através de exercício,
solidificação e hábito a certas sequências, de forma que estes hábitos
podem, se frequentemente mantidos, tornar-se hereditários” (Ibidem,
p. 482). Tal posicionamento compreende o ambiente como promotor
de adaptação, o que remete a Lamarck (1744-1829) (a propósito, cf. o
artigo de FREZZATTI JUNIOR, 2011).

O segundo é designado por ‘variação acidental’, conforme “[...]


a denominação do Sr. Darwin [1809-1882), em que alguns jovens nas-
cem com peculiaridades que auxiliam a sua sobrevivência e a sobrevi-
vência de seus descendentes. Ninguém duvida que as variações des-
se tipo tendem a tornar-se hereditárias” (Ibidem, p. 482). Observe-se
aqui a inflexão em torno do darwinismo (cf. também FREZZATTI
JUNIOR, 2011). Ressalta no entanto que o “[...] modo de ‘experiência’
propriamente dita é a porta da frente, a porta dos cinco sentidos”
(JAMES, 1971, p. 483), os quais envolvem ‘experiências’ de natureza
orgânica, mas suas influências se realizam no cérebro, as quais se
tornam imediatamente objetos da mente.

Nomeia as primeiras como ‘relações externas’, e as segundas por


‘relações interiores’, as quais são relativas à dimensão mental; porém,
entre elas se realiza uma associaçãoa coesa, posto que “[...] as causas
e os objetos de nosso pensamento são uma coisa só; e somos, até aqui,
o que os evolucionistas materialistas desejam que sejam inteiramen-
te, isto é, simples resultados e criaturas de nosso ambiente e nada
mais” (p. 487).

Com John Dewey, a atividade é privilegiada em um pequeno es-


crito de 1897, intitulado Meu credo pedagógico. Pode-se mesmo afirmar
que este estabelece uma baliza para pensar sobre o desenvolvimento
motor da criança e de sua aprendizagem:

90
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

O aspecto ativo precede ao passivo no desenvolvimento da natureza


da criança; a expressão tem lugar antes que a impressão consciente;
o desenvolvimento muscular precede ao sensorial; os movimentos se
produzem antes que as sensações conscientes. Creio que o estado de
consciência (conciousness) é essencialmente motor e impulsivo; que
os estados conscientes tendem a projetar-se em ações. (DEWEY,
1978, p. 62)

Ainda na última década do século XIX, encontra-se outra obra


de William James, publicada em 1899, intitulada Talks to teachers on
psychology and tho students on some of life’ideals - literalmente, Palestras
aos professores sobre Psicologia e aos estudantes sobre alguns ideais de vida
-, resultante de conferências desenvolvidas em 1892. Sobressai aqui o
entendimento a respeito dos alunos como ‘máquinas de associações’, as
quais manifestam uma concepção de educação intrínseca às adapta-
ções do indivíduo ao mundo exterior:

Os alumnos, sejam elles quaes forem, são, no fim de contas, pequenas


machinas de associações. Educa-los é em cada um delles organizar de-
terminadas tendências que se associem umas às outras: as impressões
às suas conseqüências, estas às suas reacções, estas aos seus resultados
e assim por diante, indefinidamente. Quanto mais rico for o systema de
associações, tanto mais completas serão as adaptações do indivíduo ao
mundo exterior. (JAMES, 19171, p. 51)

O prefácio a esta obra é ilustrativo quanto à sua pretensão pedagógi-


ca: “Meu principal desejo tem sido fazer com que os professores con-
cebam e, se possível, reproduzam solidariamente em sua imaginação,
a vida mental de seu aluno como uma espécie de unidade ativa que
ele próprio percebe” (JAMES, 1899, p. IV). Relacionada a esta, susten-
ta o vínculo ao evolucionismo, associado à adaptação e à experiência:
“Nenhuma impressão sem expressão, tal é, pois, o primeiro ponto do
nosso conceito evolucionista sobre esse instrumento de adaptação que
é o nosso espírito” (JAMES, 1917, p. 23).
Também na mesma direção em asseverar que a criança é uma uni-
1 Esta foi traduzida e publicada no Brasil (JAMES, 1917), sob o título, Palestras Peda-
gógicas.

91
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

dade ativa, como o fez William James, John Dewey, em obra publicada
em 1906, posiciona-se ao reunir as categorias, esforço e interesse como
precedentes à atividade: “A criança enaltecida depois da teoria do es-
forço não faz senão adquirir uma maravilhosa habilidade em parecer
ocupada com coisas pouco interessantes, enquanto seu coração e o raio
de suas energias estão em outro lugar. [...] É psicologicamente impossí-
vel provocar uma atividade sem qualquer interesse” (1922, p. 42).
Na mesma obra, retoma o liame entre a atividade e a adaptação,
centrais para a antropologia infantil escolanovista: “Ora a ação é uma
resposta, uma adaptação, um ajustamento. Uma atividade psíquica
destacada de suas condições do meio, da situação, é uma impossibili-
dade” (1922, p. 118).
Um outro co-fundador da metodologia ativa, que viveu entre 1879
e 1960, foi Adolphe Ferrière (1929). Em obra publicada em 1910, A lei
biogenética e a escola activa, é de parecer que a vida é um impulso con-
tínuo e permanente, apesar de ser irregular em sua intensidade. “[...]
a criança é um ser activo. Seu elemento vital é o movimento, é a ativi-
dade. A atividade física foi sempre a condição necessária de existência
do homem. [...]” (p. 34-35). A “[...] criança se interessa pela própria
atividade na medida da utilidade que della se deriva” (1929, p. 35-36).
Em Democracia e Educação, publicada em 1916, John Dewey des-
taca que a “[...] educação [é] a aquisição dos hábitos indispensáveis
à adaptação do indivíduo a seu ambiente” (Dewey, 1979, p. 50). Tal
adaptação significa um ajustamento às condições externas que se ex-
pressam como fixidez, o que significa que “[...] esta concepção estará
naturalmente, em correlação lógica com as relações entre estímulo e
resposta [...]” (Ibidem, p. 50). Observe-se, como em W. James, o víncu-
lo à teoria comportamentalista, da qual John Broadus Watson (1878-
1958), contemporâneo de Dewey, é considerado fundador. Mais adiante,
refere-se à reciprocidade entre a adaptação e o meio:

[...] não somos capazes de converter os resultados desses ajustamentos


(que bem se poderiam chamar acomodações2 para diferençarem-se da
2 A título de apontar aproximações com Jean Piaget (1896-1980), observe-se a identida-
de de posições entre eles (PIAGET, 1970, p. 17-18).

92
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

adaptação ativa) em hábitos operantes e ativos sobre o meio [...]. Po-


deríamos então dizer [que há] um equilíbrio de adaptação. [...] é essa
adaptação definitiva que fornece o fundamento sobre o qual ocorrerão
outras adaptações especiais, quando surgir o ensejo (DEWEY, 1979, p.
50). [...] A adaptação, finalmente, é tanto a adaptação do meio à nossa
atividade, como a de nossa atividade ao meio (Ibidem).

Adolphe Ferrière (1879-1960), em outra obra, publicada em 1922,


A Escola ativa, realça o parentesco entre a educação, a filosofia e a bio-
logia: “[...] se a educação é, pelos fins que persegue, a neta da filosofia,
é, pelos meios que emprega, filha da biologia, no amplo sentido do
termo, a saber: ciência da vida do corpo e ciência da vida do espírito”
(FERRIÈRE, 1932, p. 30).eio (p. 51).
Em outra obra, A Filosofia em Reconstrução, ressalta o “[...] desen-
volvimento de uma psicologia baseada na biologia, que torna uma
nova formulação científica da natureza da experiência” (DEWEY,
1958, p. 98). Ainda em relação à Biologia considerou: “Onde quer que
exista vida, há comportamento, há atividade, e para que a vida conti-
nue necessária é que essa atividade seja ao mesmo tempo contínua e
adaptada ao meio” (Ibidem, p. 99). Porém, tal processo de adaptação
não é passivo, pois “[...] não é simples moldagem do organismo pelo
meio” (Ibidem, p. 99), uma vez que aquele não é inerte.
Também guarda vínculo com a orientação metodológico-ativa o
escolanovista Edouard Claparède (1873-1940) através da obra A Edu-
cação Funcional, vinda a público em 1931. Informa ele que, por volta
de 1911, utilizou a locução, educação funcional, que designava a educa-
ção que tinha por propósito o desenvolvimento dos processos mentais
quanto “[...] à sua significação biológica, ao seu papel, à sua utilidade
para a ação presente ou futura, para a vida. A educação funcional é a
que toma a necessidade da criança, o seu interesse em atingir um fim,
como alavanca da atividade que se deseja despertar nela” (1950, p. 1;
cf. também p. 31-32). No entanto, esclarece o mesmo a antecedência
da necessidade ao interesse: “Educação funcional é a que assenta na
necessidade: [...]. A necessidade, o interesse resultante da necessidade
– aí está o fator que, de uma reação, fará um ato verdadeiro” (Claparè-
de, 1950, p.143).

93
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

“É ativa uma reação que satisfaz uma necessidade, produzida por


um desejo cujo ponto de partida está no indivíduo que age, por um
móvel interno do agente. Neste sentido, atividade se opõe a coerção, a
obediência, a repugnância ou indiferença” (Idem, p. 150). A essa con-
cepção interliga a escola ativa, sobre a qual sustenta que seu princípio
“[...] deriva muito naturalmente da lei fundamental da atividade dos
organismos, que é a lei da necessidade, ou do interesse: a atividade é
sempre suscitada por uma necessidade. Um ato que não seja direta ou
indiretamente ligado a uma necessidade é uma coisa contra a nature-
za” (CLAPARÈDE, 1950, p. 145). “Suprima-se a necessidade prévia, e
está suprimida a causa do ato” (Idem, p. 145). Posteriormente a esta
referência textual, defende que “[...] A escola ativa só tem esse fun-
damento psicológico [o qual] é a expressão de um fato de observação
de todos os dias e de todos os instantes. É a necessidade que mobili-
za os indivíduos, os animais, os homens; é ela a mola da atividade”
(CLAPARÈDE, 1950, p. 145-146). No entanto, ressalta ele que isso se
verifica sempre e por toda a parte porém, não nas escolas, porque elas
se efetivam à margem da vida.

Na verdade, a metodologia ativa elaborada em outro tempo e es-


paços, desde o final do século XIX até as primeiras décadas do século
XX, com fundamentos autonômicos em relação à complexidade do fe-
nômeno educacional, compreende o aluno sob o manto da Biologia
primeiramente e, de modo derivado, ao da Psicologia. A centração no
ensino ou na aprendizagem não significa a mesma coisa. De um lado,
o aluno sofreria uma dicotomia, seja como objeto resultante do ensino
(tradicional), do qual simplesmente decorreria a aprendizagem; de ou-
tro, como sujeito (aluno) que promoveria a sua própria aprendizagem
(ativa).

Não se negam as dimensões biológica e psicológica do aluno, mas


não são suficientes, uma vez que ele seria situado como se regesse por
leis próprias, as quais facultariam o seu suficiente desenvolvimento.
O si-mesmo do aluno estaria ancorado por aquelas duas dimensões, as
quais seriam o bastante, o que significa uma orientação que se autonomi-
za-se da historicidade do aluno, sobrelevando-se a ela ou alheando-se
dela.

94
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Saliente-se ainda que epistemologicamente a metodologia de en-


sino ativa é contraposta à dimensão social e participativa. A postura de
Rousseau de que a educação recebida dos homens, bem como aquela
que deriva da experiência para com as coisas, compartilha de tal orien-
tação: “Dado que a ação das três educações é necessária à sua perfei-
ção, é para aquela sobre a qual nada podemos que cumpre orientar as
duas outras” (ROUSSEAU, 1979, p. 11). Essa perspectiva se enquadra
na orientação fundada no naturalismo, que se expressa pela Biologia
e constitui a base da metodologia ativa: “Antes da vocação dos pais,
a natureza chama-o [o homem] para a vida humana” (Ibidem, p. 15).

A propósito, ressalte-se a posição de Antonio Gramsci (1982, p.


131) no início dos anos de 1930 opondo-se à orientação ativa: “[...] a
consciência da criança não é algo “individual” (e muito menos indi-
viduado): é o reflexo da fração da sociedade civil da qual a criança
participa, das relações sociais tais como elas se entrelaçam na família,
na vizinhança [...]”. Mais adiante afirma: “A consciência individual da
esmagadora maioria das crianças reflete relações civis e culturais di-
versas e antagônicas às que são refletidas pelos programas escolares
[...]” (Ibidem, p. 131).

O professor deve ser “[...] consciente dos contrastes entre o tipo


de sociedade e de cultura que ele representa e o tipo de sociedade e de
cultura representado pelos alunos; sendo também consciente de sua
tarefa, que consiste em acelerar e em disciplinar a formação da criança
conforme o tipo superior em luta com o tipo inferior” (Ibidem).

Reiterativamente, a metodologia de ensino, a educação, a peda-


gogia, a didática resultam de uma compreensão sócio-histórica, pela
qual a estrutura, o contexto e a situação ou mesmo a circunstância são
fundantes. Esse modo de conceber justifica a diversidade de metodo-
logias de ensino, posto que as concepções de cultura, de homem, de
existência, de educação, de sociedade, de história se entrelaçam com
as concepções de professor, de aluno, de ensino, de aprendizagem, de
didática, de pedagogia etc, o que imprime necessariamente posiciona-
mentos teóricos, éticos, antropológicos, políticos, epistemológicos bem
diversificados. Trata-se de um embate em processo, o da superação da
atividade como aquela que aciona a aprendizagem.

95
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

O convívio soviético com o ideário educacional pragmático-


funcional
Para o inicio desta seção, cabe destaque a Tolstoi (1828-1910), pre-
cursor da Escola Nova na Rússia, uma vez que concebe a Pedagogia
como ciência pedagógica. Entre suas posições, sobressai a concepção
de que a Pedagogia não necessita para avançar de revelações filosófi-
cas, mas de “[…] experiências gerais tenazes e persistentes. O professor
não deve ser um filósofo educador e descobridor de uma nova teoria
pedagógica, mas um observador consciente e diligente, que saiba, em
certa medida, transmitir as suas observações” (TOLSTOI, 1988, p. 217).
Em relação ao seu posicionamento sobre a liberdade: “O único
critério da pedagogia é a liberdade, o único método é a experiência”
(Ibidem, p. 217). Ou ainda:

Só com a liberdade total se pode levar os melhores alunos até onde po-
dem chegar, e não travá-los por causa dos fracos, estes alunos são os
mais necessários. Só com a liberdade se pode evitar um fenômeno co-
mum, evitar que surja repulsa pelas disciplinas que antes, quando havia
liberdade, eram queridas. Só na liberdade é possível saber para que a
especialidade o aluno se inclina, só a liberdade não destrói a influência
educativa. (Ibidem, p. 232).

Entre os educadores vinculados à pedagogia soviética, podem ser


mencionados os seguintes em diferentes conjunturas e por várias vias,
todos nascidos anteriormente à Revolução Russa de 1917:
• Krupskaia (1869-1939)
• Lenin (1870-1924)
• Lunatcharski (1875-1933)
• Kalinin (1875-1946)
• Pinkevich (1883-1939)
• Blonskij (1884-1941)
• Hessen (1887-1950)
• Makarenko (1888-1939)
• Pistrak (1888-1940),
• Shulgin (1894-1965)
• Vygotsky (1896-1934)
• Luria (1902-1937)

96
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

O cenário, após a referida Revolução Russa de 1917, é comparti-


lhado somente por Lenin nos anos de 1920; por seis dentre os mencio-
nados nos anos de 1930; por três nos anos de 1940; e por um nos anos
de 1950, e por outro nos anos de 1960.

Assim, cabem algumas observações contextuais, a se iniciar pelo


decreto de 26 de dezembro de 1919 quanto ao enfrentamento do anal-
fabetismo. Estabelecia que “Todos os habitantes da URSS, de oito a
cinquenta anos de idade, que não souberem ler nem escrever, devem
aprender a ler e a escrever, seja na sua língua nativa, ou seja, na russa,
de acordo com suas preferências” (Apud NAR, 1959, p. 197).

O Censo de 1920 registrou que 68% dos habitantes da União So-


viética eram analfabetos (PINKEVICH, 1930, p. 425). Entretanto, em
1926, partindo-se dos nove anos de idade, 51% era a taxa de analfabe-
tismo (HANS, 1971, p. 409).

A reorganização fundamental do sistema educacional não iniciou se-


não na raiz da Revolução de Outubro [1917]. No terreno da educação
pedagógica, o primeiro período de reforma educacional foi assinalado
por certo maximalismo3. Os seminários de preparação de professores
que então existiam resultavam inadequados, e foi necessário fechá-los
(PINKEVICH, 1930, p. 441).

As posições deste observador-autor deixam entrever certas difi-


culdades: depois de mencionar que se criaram institutos de educação
pública com cursos de quatro anos, porém se mantiveram cursos pe-
dagógicos de três anos a título de substitutos temporais dos seminá-
rios de professores (Ibidem, p. 441).

Para Lucy Wilson (1931), os anos de 1917, 1918 e 1919


3 “Trata-se de um termo utilizado desde o final do século XIX, e designava propostas
e direções relacionadas aos ideais socialistas. Suas bases teóricas estão vinculadas aos
debates no interior da social-democracia alemã, e se propunha como “[…] programa
máximo (daí o termo Maximalismo) um objetivo final, a propriedade social dos meios
de produção e de permuta […]” (BONGIOVANNI, 1986, p. 744). [...] Hoje o termo
parece ter perdido as primitivas raízes históricas, tornando-se simples sinônimo de
intransigência ideológica e de aspereza na luta política de esquerda. Fica-lhe, porém,
a conotação negativa, a da denúncia de ações políticas sem resultado concreto e pura-
mente demonstrativas” (Ibidem, p. 745).

97
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

[…] se caracterizam por um modo de embriaguez nas atividades educa-


tivas. Duplica-se o número de professores, escolas e alunos; semeiam-se
o vasto território russo de clubes educativos, salas de leitura e conferên-
cias; as ‘Universidades’ viajam de trem, barco e aeroplano aos lugares
mais remotos do país. (p. 7).

Voltando à posição de Pinkevich (1930) comenta que o segundo


período da reforma educativa, de 1921 a 1924 reconhece a necessida-
de de “[...] criar verdadeiros insetituto de preparação de professores,
assim como Faculdades pedagógicas nas Universidades” (Ibidem, p.
442). No entanto, tal projeto não veio à tona, pois “A maioria dos insti-
tutos de educação pública se converteram em instituições pedagógicas
semisuperiores ou institutos superiores práticos. [...] Em 1924, suprimi-
ram-se os institutos práticos;” (Ibidem, p. 442).
Para Pinkevich (1930) ainda, os princípios fundamentais de edu-
cação pedagógica se formularam, finalmente, na Rússia soviética, na
Conferência Panrussa de 1924. “Nela se sublinha o papel do agente
educacional no novo regime, se formulavam os fins concretos e espe-
cíficos da educação pedagógica e se apresentava um plano de organi-
zação para a educação de professores e demais pessoas dedicadas à
educação” (Ibidem, p. 442). Ao ver desse autor deu-se a essa temática
certa sistematização, uma vez que se “[...] reconhecia a absoluta neces-
sidade de subordinar os fins da educação pedagógica aos da escola do
trabalho” (Ibidem).
Como a obra de Pinkevich (1930) expressa, ao seu final, avaliações
sobre a educação soviética, a referência anterior à escola do trabalho
envolve algumas posições de sua parte, primeiramente com relação ao
papel do ‘agente educacional’, o qual deve ser “[...] capaz de harmoni-
zar o processo educastivo com as demandas de um regime socialista
[...]” (Ibidem, p. 443), o que a seu ver é o traço fundamental da política
educacional soviética. São as necessidades dos trabalhadores que de-
vem estar em foco, o que garantiria o “[...] rápido estabelecimento de
um Estado socialista onde tal exploração [do homem pelo homem] seja
impossível” (Ibidem, p. 443).
Tal perspectiva é assumida por este autor de que cumpria ao pro-
fessor uma atividade social fora da escola, que se expressasse como o

98
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

principal agente cultural de sua região, pois “A atividade desta índole


da parte do professor converte a escola em um centro local de cultura
política” (Ibidem, p. 443).

Assim sendo, para o autor em apreço, a base da obra escolar é a


“[...] atividade de trabalho do homem”, o que encaminha para a defesa
da escola politécnica: “trata-se de iniciar o cidadão em formação de um
modo direto, e não simplesmente fundada em boatos, no processo da
produção econômica” (Ibidem, p. 443). E arremata a seguir: “Em nossa
presente condição de pobreza resulta difícil a realização desse ideal;
porém, abandoná-lo equivaleria a abandonar toda a nossa doutrina
educativa” (Ibidem, p. 443).

Salienta também que o agente educacional mencionado deve estar


familiarizado com as descobertas contemporâneas em várias ciências.
Uma vez que a teoria educacional se baseia “[...] em disciplinas huma-
nitárias, o agente educacional deverá encontrar-se bem impostado em
ciências sociais. Deverá estar particularmente familizado com a filoso-
fia marxista ou materialismo dialético e com a sociologia marxista ou
materialismo histórico” (Ibidem, p. 443-444).

Em contraponto à obra de A. Pinkevich, A Nova Educação na Rússia


Soviética (1930), aqui analisada em alguns aspectos, em defesa do ide-
ário soviético, a obra de John Dewey (2016) - publicada originalmente
em 1929, Impressões sobre a Rússia Soviética e o Mundo Revolucionário -
resultante de uma visita à mesma em 1928, possibilita uma contrastea-
ção, com resultados positivos para ambos.

John Dewey (1859-1952), por ocasião de sua visita, contava com


quase setenta anos quando verificou, onze anos depois da Revolução
Russa de 1917, o que acontecia na União Soviética de então. Impres-
sões da Rússia Soviética […] em sentido figurado, e no plural, signifi-
cariam “pensamento ou sentimento acerca de algo, que configura um
ponto de vista, uma opinião, um comentário” (HOUAISS, 2001).

Um aspecto bastante presente nessa obra de Dewey se refere à


nova mentalidade, um tema recorrente na mesma. Por exemplo: “A
união de espontaneidade e humor com seriedade fundamental pode
ou não ser um traço da Rússia; certamente marcaram os homens e mu-

99
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

lheres que estão transportando a carga de criar, por meio da educação,


uma nova mentalidade no povo russo” (2016, p. 38-39).
Ou esse trecho, mais adiante: “A razão positiva para fixar a sig-
nificação primária a esse movimento intelectual, e para pensá-lo como
educacional, é o fato de que pelas necessidades do caso o problema
central dos líderes soviéticos é a produção de uma nova mentalidade,
uma nova ‘ideologia’ […]” (Ibid., p. 51).
Como se observa em outras páginas da mesma obra, Dewey con-
fessa-se impressionado pela ‘mentalidade coletiva’ que substituiria a
‘psicologia individualista’, um legado da época burguesa, ainda pre-
sente entre a maioria dos camponeses, dos intelectuais e da própria
classe mercantil. O papel da educação, bem como da propaganda re-
gistrada por ele como muito presente naquela conjuntura, seria o de
elevar o nível de vida popular, o que promoveria uma mentalidade de
‘coletivo’ (Ibid. p. 52).

A propaganda mais eficaz, como a educação mais eficaz, é construída


para serem realizações que elevem o nível de vida popular, tornando-
-se mais completa e rica, associando os ganhos como indissoluvelmente
possíveis com uma mentalidade de “coletivo” (Ibid., p. 56), com uma
mentalidade de cooperação (Ibid., p. 56).

O segundo tema, também muito presente, que se encontra de


modo abrangente no interior de sua obra são as agências educacionais
e, em particular, a escola. “Quando eu falo, então, das agências edu-
cacionais, quero dizer algo muito mais amplo do que o funcionamen-
to do sistema escolar” (Ibid., p. 54). Por isso, ressalta “[…] o trabalho
construtivo essencial da atualidade – ou ‘transicional’ – na Rússia é
intrinsecamente educacional. […] Mudanças e medidas políticas e eco-
nômicas são, elas próprias, durante o atual período, essencialmente
educativas” (Ibid., p. 55).
Tais mudanças e medidas educativas são assim concebidas por
Dewey:

[…] como preparação das condições externas para um regime comu-


nista ulterior, mas ainda mais como criação de uma atmosfera, um

100
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

ambiente, favorável a uma mentalidade coletivista. A massa do povo


é para aprender o significado do comunismo não tanto pela indução às
doutrinas marxistas, embora haja uma profusão delas nas escolas, mas
por aquilo que é feito para a massa em libertar sua vida, dando-lhes
uma sensação de segurança, na abertura a eles acesso à recreação, lazer,
novos prazeres e novas culturas de todos os tipos (Ibid., p. 55-56).

Argumenta que as escolas significam “[…] um esforço direto e


concentrado para obter o efeito que outras instituições desenvolvem
de forma difusa e vaga. As escolas são, na expressão atual, o ‘braço
ideológico da Revolução’. (Ibidem, p. 61). Advoga ainda a favor das
escolas soviéticas, inclusive em relação a outros sistemas nacionais e
às escolas progressivas de outros países, que “[…] é precisamente o con-
trole consciente de cada processo educacional por referência a uma única
e abrangente finalidade social. É esta referência que tem em conta o
entrelaçamento social […]” (Ibidem, p. 76-77).
Considera, por algumas vezes, o papel da propaganda e da dou-
trinação no interior das escolas da URSS, enfatizando inclusive sua
imensa quantidade, mas oferece uma interpretação: “[…] parece bas-
tante seguro prever que no final essa doutrinação subordinará para o
despertar da iniciativa e poder de julgamento independente, enquanto
a mentalidade de cooperação se desenvolverá” (Ibid., p. 128-129).
No decorrer de tal análise, apresenta uma argumentação que re-
conhece o papel da educação intelectualmente livre que se desenvol-
ve, então, na União Soviética, considerando que a mesma prevalecerá
“[…] contra uma aceitação servil do dogma como dogma” (Ibid. 129).
Relata que comumente se ouve a respeito do “[…] movimento dialé-
tico por meio do qual um movimento contradiz-se no final. Eu acho
que as escolas são um fator de ‘dialética’ na evolução do comunismo
russo” (Ibid., p. 129). E conclui em seguida: “Estas observações não
diminuem a importância do movimento revolucionário russo; mais
propriamente, elas acrescentam, a meu ver, para ele, e para a necessi-
dade de estudá-lo pelo resto do mundo. E não pode ser estudado sem
contato real” (Ibid., p. 129).
Também quase ao final das 133 páginas, reconhece como muito
importante “[…] o crescimento de grupos cooperativos voluntários.

101
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Na teoria ortodoxa, estes apresentam uma fase de transição como ca-


minho para o fim predestinado do comunismo marxiano” (Ibid., p.
127-128).
Em conclusão, a filiação de John Dewey se fez sob a ótica de um
funcional pragmatismo, sob a orientação de caráter biológico como
fundamentação, o que explica sua defesa da experiência continuamen-
te reconstruída como conceituação de educação. Entretanto, os esfor-
ços e as realizações soviéticas, no contexto dos anos de 1917 até a sua
visita à URSS em 1928, são reconhecidos como expressão de uma nova
mentalidade.
Suas Impressões... mantêm interlocução com vários educadores so-
viéticos de então, tais como Krupskaia, Lenin, Lunatcharski, Pistrak,
os quais são referidos em sua obra. As concepções de escola que des-
creve, explica e interpreta, também são significativas inclusive contem-
poraneamente. Sua obra em apreço é mais do um ponto de vista, uma
opinião ou um comentário. Para além de ficar impressionado, Dewey
revela uma faceta impressionante sobre a conjuntura soviética ao final
dos anos de 1920 em vista do comunismo marxiano que inspirava a
URSS.
Confessa que

Essas mudanças influenciaram minhas primeiras impressões transfor-


mando-as em novas ideias. O resultado disso tudo para mim foi uma
mudança definitiva na própria forma de conceber aquela sociedade, dei-
xando de lado todos os meus preconceitos. A sensação de uma grande
revolução humana composta por uma explosão de vitalidade, coragem e
confiança na vida tomou conta dos meus pensamentos (DEWEY, 2016,
p. 58).

Como se entrevê, a posição deweyana aqui expressa confessa uma


mudança de concepção, o que significou que as primeiras impressões
migraram para uma nova concepção, o que implicou a superação de
preconceitos. Repetindo: “A sensação de uma grande revolução huma-
na composta por uma explosão de vitalidade, coragem e confiança na
vida [...]” (Ibidem, p. 58).
E continua com o acerto de contas intelectual:

102
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

A interpretação à qual a Revolução é essencialmente econômica e indus-


trial careceu de importância. Não que ela não fosse ou tenha sido, mas
tenho a impressão de que a revolução é um processo humano maior, pro-
jetada para além das questões econômicas e industriais. Possivelmente,
em virtude de minha apatia intelectual, não cheguei a essa conclusão em
minha própria residência (Ibidem, p. 58).

Confessa também Dewey que com o clamor pela ênfase econômica


que se disseminava entre os defensores e os inimigos do regime bolche-
vique, “[...] não só me confundiu [...]. Eu não posso ir além do registro
dessa impressão tão esmagadora como inesperada à qual ocorre na Rús-
sia uma revolução responsável pela libertação dos poderes humanos em
escala sem precedentes [...]” (Ibidem, p. 58-59).
Termina as suas Impressões... no capítulo intitulado Leningrado mos-
tra o caminho com um nota de rodapé:

Os comentários feitos mostraram que as minhas observações sobre o cará-


ter subordinado da fase econômica da revolução são demasiadas radicais.
Eu não deveria pensar em como negar que o aspecto político da revolu-
ção econômica na elevação de trabalho, especialmente os interesses dos
trabalhadores fabris, desde o fundo até o topo da escala social é um fator
fundamental na transformação psicológica e moral (Ibidem, p. 59).

Em suma, as posições de Dewey (2016) são de um intelectual honesto,


e sem circunlóquios. As suas impressões não são superficiais e, nesse sentido,
podem ser somadas às expectativas reais apresentadas por Pinkevich an-
teriormente, Ambos não ocupavam os mesmos lugares: o primeiro era
um visitante estrangeiro e filósofo da Educação Nova, e o segundo fora
professor, reitor de uma universidade, conselheiro acadêmico de Estado
na União Soviética.
Muitos são os intelectuais russos envolvidos em tal projeto de cons-
tituição de uma pedagogia soviética. Muitas são as contribuições, os
consensos e dissensos. A tarefa de compreender a pedagogia soviética, o
seu movimento, a constituição da ciência pedagógica, o lugar da escola
na sociedade soviética certamente são desafios a serem enfrentados para
se compreender o processo de construção do socialismo real na União
Soviética.

103
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

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Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

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105
Pistrak, Shulgin e a pedagogia
soviética nos anos de 1920
Caroline Bahniuk
Sandra Luciana Dalmagro

Introdução
Nesse texto nos debruçamos a respeito de Moisey Mikhaylovick
Pistrak (1888 – 1937) e Viktor Nikholaevich Shulgin (1894- 1965), dois
educadores, intelectuais e militantes que participaram ativamente da
construção da Escola Única do Trabalho nas duas primeiras décadas
após a Revolução de Outubro de 1917. Ambos se dedicaram a construir
esta experiência educacional ímpar, trabalhando principalmente nos
conceitos de auto-organização, atualidade, escola do trabalho, entre ou-
tras formulações de grande importância para a compreensão das con-
cepções pedagógicas desse período. Compreendemos serem os autores
produtos de seu tempo histórico, o que significa dizer nesse caso que,
suas elaborações e experiência somente são compreendidas no bojo do
processo revolucionário em que se encontram.
No limiar do século XX a Rússia já era um país de enorme extensão,
composto por diferentes povos e religiões, eminentemente agrária, ou
seja, a maioria da população encontrava-se no campo e dispunham de
técnicas de produção bastante rudimentares. Em descompasso com o
desenvolvimento econômico-político da Europa central, a Rússia vivia
sob o auspício do czar e apenas em algumas cidades como São Peters-
burgo e Moscou existia um processo de industrialização, controlado pela
burguesia internacional, e um movimento operário incipiente, apesar de
estrategicamente localizado (TROTSKI, 2007; HOBSBAWN, 2008).

107
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

No que diz respeito à educação, em 1917, aproximadamente 75%


da população era analfabeta e 20% somente de crianças das crianças
em idade escolar estavam na escola nos quatro primeiros anos (LE-
NIN, 1977). A escola antes da revolução era propriedade da alta bur-
guesia, dos latifundiários e da igreja, uma pequena parte estava sob o
controle do Estado. As escolas mais difundidas na época eram escolas
primárias clássicas de dois ou três anos (CAPRILES, 1989).

Depois de um longo processo de lutas, derrotas e organização,


em outubro de 1917 os trabalhadores assumem o poder na Rússia. No
entanto, a revolução enquanto um processo extenso de organização
dos trabalhadores, não começa e nem termina com a tomada do poder.
Nesse momento, os trabalhadores se defrontaram com inúmeros pro-
blemas, tais como: a guerra civil, a fome, o embargo, a escassez de re-
cursos (SERGE, 2007). Compreendemos que a sociedade socialista não
se constitui como uma sociedade perfeita e sem contradições. O velho
e o novo coexistem, há enormes disputas e contradições. O êxito da
revolução depende de revoluções em diversos países e a construção de
outro modo de produção em nível mundial acabou por não se realizar.
As deformações e limitações da experiência desenvolvida na Rússia
é conhecida no interior do debate marxista, como registra Hobsbawn
(2008).

Apesar das limitações e contradições, o processo revolucionário


assegura o direito ao trabalho, a jornada laboral de 8 horas, equipara os
salários de homens e mulheres, garante a assistência médica e a escola
gratuitas, o direito à habitação, entre outros. Em relação às mulheres
elabora-se uma legislação progressista deliberando a igualdade dos di-
reitos civis e políticos, o direito ao divórcio, ao aborto legal e gratuito e
a socialização do trabalho doméstico por meio de lavanderias, creches
e restaurantes públicos. Para as crianças e jovens também se dedica
atenção especial, dentre eles, o desenvolvimento de uma pedagogia
que buscou a articulação entre o trabalho e a educação e estimulou a
participação na vida social e política. As artes também se desenvolve-
ram significativamente no contexto revolucionário.

A revolução enfrenta velhos e cria novos problemas. Diz respeito


à um período expansivo e criativo na construção de novas relações em

108
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

diversos aspectos da vida social. Existem diversos embates, inclusive


dentre o partido comunista, sobre como desenvolver a Rússia nesse
período e alavancar a constução de uma nova sociedade, o que inclui
diferentes perspectivas inclusive no campo educacional.
Nesse texto sintetizamos as principais concepções de Pistrak e
Shulgin para o campo escolar, posteriormente à revolução de outu-
bro, em especial na década de 1920. Nesse interím desenvolvem-se as
experiências escolares em que esses pedagogos atuam diretamente e
também há a formulação de planos escolares junto ao Comissariado
Nacional de Educação, abreviado pela sigla NarKomPros, no qual am-
bos tiveram participação efetiva. Para isso, organizamos o texto em
três momentos, no primeiro apresentamos os autores e suas obras, em
seguida conceituamos a Escola Única do Trabalho, e, na terceira parte,
apresentamos as categorias centrais da pedagogia socialista soviética
do momento em análise, sistematizadas por Pistrak e Shulgin.

Pistrak e Shulgin: pioneiros da Pedagogia Socialista Soviética

Pistrak e Shulgin são poucos conhecidos no debate educacional,


isso se deve dentre outros motivos, à demonização da experiência sovi-
ética pelo mundo, operada pela ideologia burguesa, o que gerou pouco
acesso às obras desses autores. No caso brasileiro, a tradução da primei-
ra obra de Pistrak remonta à década de 1980, as demais só foram publi-
cadas a partir de 2009 pela Editora Expressão Popular1.
Mosey Mikhailovich Pistrak, nasceu em 1888 e morreu em 1937,
vítima de calúnia e perseguição foi preso e executado, por divergentes,
no período stalinista. Concluiu a Faculdade de Físico-Matemática na
Universidade de Varsóvia – Polônia em 1914 e posteriormente tornou-
-se Doutor em Ciências Pedagógicas. Durante cinco anos esteve como
1 As traduções e publicações de obras dos pioneiros da educação soviética são uma
parceria entre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o professor
Luiz Carlos de Freitas (UNICAMP), estudioso da temática e com acesso aos originais
em russo. Além das três obras de Pistrak e uma de Shulgin que indicamos no corpo
do texto, compõe parte do acervo da editora uma obra de KRUPSKAYA, N. K. A cons-
trução da Pedagogia Socialista. São Paulo: Expressão Popular, 2017. Essa obra é com-
posta por diversos artigos da autora. E ao final, a edição incluiu um conjunto de anexos
de documentos da experiência educacional soviética – coordenada pelo NarKomPros.

109
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

diretor da Escola Comuna P.N. Lepeshinsky – umas das escolas expe-


rimentais criadas pelo Narkompros para contribuir na formulação de
uma pedagogia articulada ao processo revolucionário. De 1918 a 1931
foi presidente da Subcomissão de Programas para o Segundo Grau,
na seção científico pedagógica dirigida Por Nadezhda Krupskaya, do
NarKomPros. Posteriormente trabalhou no Instituto de Pedagogia do
Norte do Cáucaso, até 1936 (FREITAS, 2009).

Como fruto do trabalho desenvolvido, Pistrak produziu as se-


guintes obras, seguidas do ano de sua primeira edição em russo: Funda-
mentos da Escola do Trabalho (1924), Escola Comuna (1924) e Ensaios
sobre a escola politécnica (1929); e um livro introdutório de Pedagogia
(1934), destas, a última não se encontra traduzida no Brasil. A primeira
edição de “Fundamentos da Escola do Trabalho” foi publicada no Brasil
em 1981, e uma segunda em 2000. Ambas as edições são advindas de
uma tradução francesa. Em 2018, a editora Expressão Popular lança uma
nova edição, originária do exemplar russo, edição esta mais extensa e
completa do que a francesa, da qual foram suprimidos alguns trechos do
original, em particular os que dizem respeito às críticas que Pistrak fez à
insuficiências do processo educativo na Rússia.

A obra “Escola Comuna” foi editada diretamente do russo, publi-


cada no Brasil em 2009. As discussões ali presentes são bastante próxi-
mas ao livro anterior, porém mais detalhadas. Consiste em uma obra
coletiva, organizada por Pistrak, com a colaboração de vários autores
e professores da Escola Comuna P.N. Lepeshinsky, em especial Shul-
gin. O livro condensa o trabalho realizada na Escola Comuna e reflexões
advindas da formação de professores. Nele são apresentadas as prin-
cipais categorias da pedagogia socialista soviética: trabalho, atualidade
e auto-organização, além do trabalho por complexos desenvolvido por
professores de diferentes disciplinas.

O livro “Ensaios sobre a escola politécnica” foi traduzido do origi-


nal em russo e publicado em 2015 no Brasil. Nesta obra, o foco do debate
se encontra na relação entre escola e trabalho, o autor debate as dife-
renças e aproximações entre Escola do Trabalho, Educação Politecnica
e Politecnismo, bem como aponta indicações e limites na construção da
Escola do Trabalho Politécnica.

110
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

No conjunto da obra de Pistrak são realçadas as seguintes elabora-


ções: a relação entre escola e trabalho, os complexos articulados às ca-
tegorias centrais da pedagogia em questão: trabalho, auto-organização,
atualidade, o papel do conhecimento escolar e da participação ativa dos
estudantes na construção da escola.

Victor Nikholaevich Shulgin, nasceu em 1894 e viveu até 1965. Edu-


cador e historiador, formou-se pela Universidade de Moscou, em 1917.
Também atuou no NarKomPros. Entre 1922 e 1931 foi diretor do Insti-
tuto de Métodos de Trabalho Escolar e entre 1921 e 1931 trabalhou na
Seção Científico-pedagógica do Conselho Científico Estatal (GUS). Em
1931 exerceu a direção do Instituto de Pedagogia Marxista-Leninista.
Depois de 1931, assim como Pistrak, sofre calúnia e suas formulações
são associadas ao antileninismo e à perspectiva de eliminação da escola.
Momento este em que se retira do trabalho com Educação e começa a
atuar no Museu da Revolução.

Colaborador de Pistrak, Shulgin compartilha com ele várias ideias


e conceitos: atualidade, auto-organização, trabalho na escola. Mas tam-
bém se embatem. Shulgin destaca-se pela formulação dos conceitos de
Politecnismo e Trabalho Socialmente Necessário, como também se dedi-
ca à ligação da escola com o meio. Em sua única obra por nós conhecida,
“Rumo ao politecnismo”, datada de 1930 e publicada no Brasil em 2015,
aparecem com força essas questões.

Sabemos pouco de Shulgin, a que forças políticas era ligado, por


exemplo. O silenciamento imposto a partir dos anos 1930 aos revolu-
cionários dos anos 1920 e a deturpação de suas ideias exige cautela na
análise. De toda forma, sabemos que ele se dedica a pensar a relação
entre o processo educativo e o meio como uma unidade orgânica. Para
ele, a pedagogia tornou-se uma ciência que organiza todo o ambiente
social do ponto de vista da formação de um novo tipo de pessoa. Segun-
do a Enciclopédia Pedagógica Soviética, Shulgin “defendeu a criação de
novos ramos da pedagogia para sindicatos, trabalho partidário e movi-
mentos infantis e juvenis”. O Instituto dirigido por ele desenvolveu um
conjunto de ferramentas produtivo e original para estudar as atitudes e
condições sociais que afetam a formação da personalidade, “sob a lide-
rança de Shulgin, pela primeira vez, um estudo massivo sobre a influên-

111
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

cia do ambiente social no processo pedagógico foi realizado” (KAIROV


e PETROV, 1965, p. 912, tradução livre).

A construção da Escola Única do Trabalho


Após a tomada de poder, no campo escolar os principais desafios
são os de construir a nova escola e realizar a alfabetização da população
por meio de campanhas e mutirões. Lênin (1977; 2011) era categórico ao
dizer que a elevação cultural e intelectual dos trabalhadores era como
condição para edificação do socialismo.
O Comissariado Nacional da Educação (NarKomPros) foi o órgão
responsável por organizar toda a vida cultural na Rússia, incluindo a
educação, sendo presidido por Lunatcharsky entre 1917 e 1929. Como
dissemos, Pistrak e Shulgin eram ligados ao NarKomPros, na seção cien-
tífica coordenada Krupskaya. (FREITAS, 2009). Portanto, a atuação de
Pistrak e Shulgin é articulada e coincide com o período em que atuam
Lunatcharsky e Krupskaya, os primeiros anos da Revolução Russa, e
com eles e outros compõe o que se denomina “pioneiros da educação
socialista”. No período aqui em análise houve diversos embates a res-
peito da escola, a necessidade de ter ou não ter escola, a finalidade dela,
se ela deveria especializar em algum ramo produtivo ou não no ensino
elementar, entre outros.
Nesse texto discutimos as experiências escolares em que se envol-
veram Pistrak e Shulgin, alinhadas ao NarKomPros. Destacamos os pri-
meiros documentos elaborados sobre escola: a “Deliberação do comitê
executivo central de toda a Rússia” de outubro de 1918, sistematiza-
do pelo Partido Comunista (COMITÊ, 2017). A partir desse material o
NarKomPros elabora no mesmo ano o documento “Declaração sobre os
princípios fundamentais da escola única do trabalho”2 (COMISSARIA-
DO, 2017).
Escola Única do Trabalho registrava a concepção de escola nos pri-
meiros anos da Revolução, esse nome foi atribuído a todas as escolas,
com exceção do Ensino Superior. Ela estava organizada em dois graus: o
2 Ambos os documentos estão traduzidos como anexos da obra: KRUPSKAYA, N. K.
A construção da Pedagogia Socialista. São Paulo: Expressão Popular, 2017.

112
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

primeiro com cinco anos de duração, para as crianças de 8 a 13 anos e o


segundo com 4 anos voltados para os estudantes de 13 a 17 anos. O ter-
mo única reporta-se ao fato dela ser gratuita, acessível a todos e por pau-
tar-se na eliminação dos privilégios de classe social na trajetória escolar.
Ao mesmo tempo, indica a construção de um único sistema educacional,
articulado, desde a Educação Infantil até a Universidade. O trabalho é a
categoria central que articula todo o processo educativo escolar e dis-
tingue-se substancialmente do ensino profissionalizante (COMITÊ 2017;
FREITAS, 2012).

Na base da vida escolar deve estar o trabalho produtivo, não como um


meio de pagar as despesas de manutenção das crianças, e não só como
método de ensino, mas especialmente como trabalho produtivo social-
mente necessário. Ele deve ser fortemente organizado em ligação com
o ensino, lançando a luz do conhecimento a toda a vida circundante.
Gradualmente tornando-se cada vez mais complexo, devendo ir além
do entorno imediato da vida da criança, o trabalho produtivo deve fa-
miliarizar a criança com uma ampla variedade de formas de produção,
até as mais complexas (COMITÊ, 2017, p.278).

Sobre as referências teóricas ou os embriões da Escola Única do


Trabalho, a questão que se colocava era acerca de como traduzir a con-
cepção marxista de educação e seu método para as escolas soviéticas
(PISTRAK, 2009, 2018). Nessa formulação são visíveis: a relação entre
ensino e trabalho; a formação para as diversas dimensões humanas e
a necessidade de compreender a realidade, a luta de classes e atuar
sobre ela.
Convém assinalar que o período em que se gesta a Escola Única
do Trabalho é concomitante ao desenvolvimento da Escola Nova, a
concepção educacional burguesa mais desenvolvida na época, em con-
traponto à pedagogia tradicional. Na leitura de Pistrak (2009, 2019) e
Shulgin (2013), percebemos o debate, a crítica e a apropriação de alguns
aspectos dessa concepção na pedagogia soviética. Para Pistrak (2009,
2018) algumas concepções, terminologias, e principalmente algumas
metodologias podem ser herdadas da escola burguesa, mas o conteú-
do, as finalidades e a forma organizativa devem ser novos, e são esses
últimos que orientam a escola. A partir disso, não coadunamos com

113
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

as leituras que reduzem as experiências soviéticas ao escolanovismo.


A Deliberação (COMISSARIADO, 2017) indica a necessidade de
constituição de escolas experimentais, com a participação de destaca-
dos pedagogos. Estas escolas experimentais tinham como foco a ela-
boração teórico-prática dos problemas educacionais e dos métodos de
ensino para orientar a construção de diretrizes gerais para as escolas
de toda a Rússia. Dentre elas e de forma destacada esteve a Escola
Comuna P.N. Lepeshinsky, na qual Pistrak e Shulgin estavam envol-
vidos.
Essas escolas não tinham as tradicionais salas de aula, existiam
os gabinetes de estudos, espaços específicos para cada disciplina e os
círculos de estudos, organizados a partir dos interesses dos estudan-
tes e em função dos quais se realizavam estudos coletivos, matinês,
jornais, excursões. Era uma escola viva, com flexibilização nas formas
organizativas, diversificação das atividades de trabalho, estudo e au-
to-organização.
Em âmbito nacional, no entanto, existiram várias dificuldades
no desenvolvimento da Escola Única do Trabalho. Inicialmente, a
não adesão de grande parte do Magistério à revolução e a escassez de
materiais nas escolas decorrente da miséria econômica em que vivia
o país, agravado pelas guerras em que czarismo se envolvera ante-
riormente e que atingiram os anos inicias da revolução vermelha. É
importante considerar também o tempo exíguo para o andamento de
uma proposta dessa envergadura em um país continental, e que lutava
por outra escola ao mesmo tempo em que precisavam construí-las. Isso
concomitante ao trabalho de alfabetizar a extensa população analfabe-
ta, se defender dos ataques internos e externos, dos embargos, e num
enorme esforço para se industrializar. Este quadro, já no contexto do
stalinismo, leva ao fim da experiência desenvolvida pelos pioneiros,
expressa na Escola Única do Trabalho, mediante a Reforma Educacio-
nal de 1931 (FREITAS, 2009). Esse desfecho não significa, porém, que a
experiência escolar produzida nos anos mais férteis da Revolução não
tenha originalidade e atualidade.

114
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Categorias centrais da Pedagogia Socialista Soviética


Para Pistrak (2018), a preparação do magistério não se refere a
oferecer indicações sobre o que fazer e sim uma apreensão teórico-prá-
tica, o que diz respeito à apreensão de categorias centrais da concepção
pedagógica em gestação. Assim, o educador teria mais elementos para
construir sua intervenção pedagógica.
Atualidade, Auto-organização, Trabalho e Complexos são as ca-
tegorias centrais da pedagogia socialista soviética; Pistrak e Shulgin
são autores-chave na sua sistematização. Ressaltamos que não se com-
preende uma categoria sem as demais, como também há precedência
da categoria trabalho, advinda de sua dimensão ontológica, relativa à
constituição basilar do ser social. Compreendemos que estas catego-
rias são sínteses da perspectiva educacional soviética, molas propul-
soras da escola para a construção da pedagogia socialista. Porém, o
desenvolvimento de experiências educacionais com base nelas, depen-
de de cada localidade, de suas condições de produção, organização e
cultura e da criatividade do magistério a partir da compreensão de tais
categorias. Para Pistrak (2018), isso pressupõe o domínio do método
marxista e sua tradução para a educação, o que permite estabelecer
relações e nexos para compreender a realidade atual e a contribuição
da escola nessa direção. A seguir, apresentamos brevemente cada uma
destas categorias.
a) Atualidade
A atualidade refere-se às questões essenciais da vida desenvol-
vidas em determinado período histórico. No referido contexto russo,
dizia respeito às contradições instauradas na construção da sociedade
socialista em luta com o imperialismo capitalista. Ela diz respeito à
essência da luta de classes e a escola, como parte da atualidade, deve
posicionar-se sobre o lado que toma nesse processo. Como dissemos
anteriormente, a Escola Única do Trabalho deve formar os estudantes
como lutadores – contra o capital e o imperialismo - e construtores
de uma nova sociedade emancipada e sem exploração. Em outras pa-
lavras: “cada estudante deve tornar-se lutador e construtor. A escola
deve esclarecer para ele pelo que e contra o que deve lutar, o que e
como ele deve construir e criar” (PISTRAK, 2009, p. 121). Desenvolver

115
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

esses objetivos na formação era a atualidade da escola soviética, mos-


trar a juventude o seu lugar na luta de classes.

Tomar a atualidade central para a escola, pressupunha, para


Pistrak (2009), rever os programas de ensino antigos, fragmentados,
e construir a unificação do ensino – o que remete aos complexos e a
relação da escola com o meio, questões que discutimos mais a fren-
te. Tem a intenção de contribuir para que os estudantes compreendam
os fenômenos sociais, naturais, entre outros, em relação, ou como parte
de um processo histórico geral. Porém isso não significa estudar na
escola somente fatos presentes, descartando o passado, o conhecimen-
to clássico, mas relacioná-lo com o processo histórico, constituidor do
presente.

  Pistrak também indica a necessidade da apropriação pela es-


cola e seus estudantes, em particular a juventude, do método marxista
de análise, o que permite conhecer o real em profundidade, revelando
suas contradições, ao mesmo tempo em que possibilita atuar de forma
mais consciente e orgânica para a construção de novas relações sociais
necessárias para a edificação do socialismo. A atualidade, desta ma-
neira, não se refere somente ao estudo, mas ao domínio da realidade
e atuação sobre ela. Construir junto aos estudantes a necessidade de
tomar partido perante a atualidade da luta de classes, o que remete ao
trabalho, às lutas e à auto-organização.

b) Auto-organização dos estudantes

Para Pistrak (2018), a pedagogia burguesa é submissa às regras


sociais burguesas, o que na escola corresponde ao auxílio e obediência
ao professor, ao autoritarimo e as formas rígidas de organização da
escola.

A auto-organização na escola soviética se encontra vinculada às


finalidades de formação de lutadores e construtores. Assim como a
construção da nova sociedade carece do envolvimento das massas por
meio dos conselhos, do partido, dos sindicatos, a escola deveria es-
timular a auto-organização dos estudantes na organização de toda a
vida escolar, mas também para além dela, como no Movimento Comu-
nista das Crianças e da União da Juventude Comunista, assim como

116
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

na vida de sua comunidade. A auto-organização tem como horizonte


desenvolver a capacidade de trabalho coletivo, a capacidade de cada
estudante realizar sua tarefa no coletivo, desenvolvendo as ações com
criatividade e autonomia. (PISTRAK, 2009; 2018).

As formas organizativas desenvolvidas na Escola do Trabalho


fundamentavam-se nos princípios de relações mais horizontais. Indi-
cava-se a variação contínua das formas organizacionais e das funções
atribuídas aos estudantes. Pistrak (2018) reforça a importância de os
estudantes vivenciarem distintas posições no coletivo, que aprendes-
sem a coordenar e a serem coordenados por outros estudantes.

A auto-organização não era um faz de conta, uma simulação


para organização na vida adulta. Ao mesmo tempo ela não se restrin-
gia em discutir e/ ou opinar sobre a escola. Ela estava intrinsicamente
vinculada ao trabalho e tinha como ponto de partida alguma necessi-
dade real. Ela poderia começar pelo auto-serviço, por trabalhos sim-
ples, como a realização de atividades de sobrevivência, servir o café,
organizar a sala, planejar excursões, entre outros e se expandir para
o todo a escola. “Gradualmente, toda a organização do trabalho, que
não se refira ao ensino, é transferida para as mãos das crianças e par-
cialmente elas colaboram até na organização do trabalho de ensino”.
(PISTRAK, 2018, p.247).

Na auto-organização, o professor tem uma função de apoio e


de organização do ambiente, ou seja, ele não dirige os espaços auto-or-
ganizativos dos estudantes, mas se envolve com eles, comprendendo
seus processos e objetivos, com uma apurada percepção de sua contri-
buição na formação dos estudantes. No entanto, afirmar a auto-orga-
nização na escola não significava abrir mão da definição do conteúdo
escolar a ser ensinado, adverte Pistrak, pois as questões referentes ao
ensino são de responsabilidade específica dos professores.

c) Trabalho

Na Declaração sobre os Princípios Fundamentais da Escola Única


do Trabalho (COMISSARIADO, 2017), apontam-se duas razões para a
introdução do trabalho como fundamento do ensino: a primeira é de
ordem “psicológica”, pois a assimilação do conhecimento só acontece

117
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

de forma ativa. Esta razão se volta contra o verbalismo vazio, a memo-


rização mecânica e assinala a importância do estudante localizar o pro-
blema que gera determinado conhecimento, ou que questões e pergun-
tas a humanidade se fez que resultam no saber acumulado e ensinado
nas escolas. Trata-se portanto de um “ensinar a pensar” (ILIENKOV,
2007), pois toda aprendizagem passa por um trabalho no pensamento
do sujeito, isto, de sua atividade reflexiva. O segundo motivo e bas-
tante articulado com o anterior, diz respeito à “pedagogia moderna”:
aprendemos com aquilo que nos envolvemos, com aquilo que é uma
questão, com o que joga papel dominante na vida social. Os objetos do
ensino não advém da ordem da contemplação, mas das situações reais.
O conhecimento, o pensamento, são resultado da atividade humana
no meio, nem são puramente produto do pensamento ou da contem-
plação, nem apenas resultado do ambiente sobre os homens (MARX e
ENGELS, 1989).

Sobre o trabalho até então existente nas escolas, Pistrak (2018)


aponta três perspectivas: a primeira delas toma o trabalho como uma
questão metodológica, isto é, o trabalho ajuda a ilustrar o ensino, ele
ocupa uma função complementar e auxiliar na escola, como propõe
o escolanovismo. A segunda concepção toma um determinado traba-
lho manual, especialmente em oficinas, e em função deste organiza o
programa de ensino. Segundo Pistrak (2018), aqui o trabalho adquire
centralidade, mas é limitado historicamente ao artesanato ou manu-
fatura, perdendo a dimensão social do trabalho que o sistema da fá-
brica descortina. A terceira vertente entende que qualquer trabalho é
educativo, e pretende, fundamentalmente, desenvolver o amor pelo
trabalho. Pistrak tece críticas a essas perspectivas, demonstrando que
em todas elas a relação entre o trabalho e a ciência é marginal. Para o
autor, o trabalho não pode ser tomado como uma disciplina isolada, o
mais relevante são as relações entre o trabalho e a realidade atual, ou
seja, reconhecer o trabalho das crianças e adolescentes como parte do
trabalho social. A questão do trabalho na escola está em relação com
os objetivos gerais da escola e desta com os objetivos mais gerais da
sociedade. Neste sentido, “a questão não está nem na própria ciência
e nem no próprio trabalho (…) mas a sua ligação às finalidades mais
gerais da vida” (PISTRAK, 2018, p. 154).

118
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Pistrak (2018) define 3 níveis crescentes em complexidade do tra-


balho na escola. Estes níveis são dependentes das forças e idade das
crianças e articulados aos Programas da Escola. O primeiro deles é
o Autosserviço, voltado à formação de hábitos básicos de organiza-
ção e higiene pessoais e coletivos. O autor alerta que esta forma mais
elementar de trabalho não deve ser objeto nem de apologia e nem de
desprezo, mas adverte para que a escola não se restrinja a esse nível
devido a menor complexidade envolvida, ainda que para crianças pe-
quenas possa ser de alta exigência. O nível intermediário se caracteriza
pelo trabalho nas oficinas, como as que utilizam diferentes materiais:
papel, tecido, madeira, metal, cuja exigência é variável. Elas contri-
buem para compreender o funcionamento das máquinas ferramentas
e as máquinas motrizes. Permitem manipular o material, trazem à tona
a dimensão do trabalho manual, da produção útil, mas também devem
permitir a imaginação e criação e são pontes com a produção indus-
trial. O trabalho, seja no autosserviço, seja nas oficinas, precisa consi-
derar o estudo e as decisões dos estudantes para tal, desde o planeja-
mento, os materiais necessários, a organização e divisão do trabalho,
até a comercialização e uso dos recursos financeiros oriundos destas
atividades. Portanto o trabalho na escola exige inúmeras capacidades
e cresce em complexidade; não deve se limitar ao artesanato ou à di-
mensão econômica.

O terceiro nível do trabalho na escola refere-se ao trabalho fabril,


considerado aquele que comporta maior atualidade, pois, ao ser o cen-
tro da vida social, deve estar também no centro do processo educativo.
A Escola do Trabalho envolvia o estudo da fábrica em toda sua ampli-
tude e complexidade, desde a origem da matéria prima até o destino
dos produtos, os aspectos geográficos, históricos, econômicos e cultu-
rais deste processo, o trabalho em toda sua cadeia, o lugar do produto
na economia local ou nacional. Desta forma, a escola não se restrige ao
estudo da fábrica em si mesma ou de suas técnicas de trabalho, ainda
que estas sejam importantes, mas inclui o trabalho e o estudo do tra-
balho dos jovens, numa visão de totalidade. Nesta direção, são abun-
dantes os exemplos e situações trazidos por Pistrak e Shulgin, como o
esforço da URSS pela eletrificação e seu significado; as transformações
na agricultura e o desafio de elevar o nível técnico e cultural no cam-

119
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

po mediante a coletivização; a busca para que os estudantes tenham


contato com a população operária em diversas situações, o trabalho de
alfabetização, correio e sanitário, entre outros.

A discussão do trabalho na escola, ganha novos contornos com o


conceito de Trabalho Socialmente Necessário (TSN). Shulgin (2013, p.
89) o define como “aquele tipo de trabalho que produz algum resultado
que é plenamente real, inteiramente concreto, por um lado; por outro, é
o tipo de trabalho que tem valor pedagógico”. Na escola, o TSN precisa
estar em sintonia com a força e o desenvolvimento dos estudantes e em
articulação com os objetivos de ensino e o conjunto das atividades esco-
lares. Não é qualquer trabalho que é TSN, as vezes também chamado de
trabalho social, para tal, precisa comportar alguma centralidade na vida
real da população.

(...) por trabalho social vamos entender o trabalho de organização da es-


cola ou do destacamento dos pioneiros, orientado para a melhoria da
economia e da vida, para elevar o nível cultural do meio, tra-
balho que dá determinados resultados positivos (se quiserem, resultados
produtivos); em segundo lugar, é o trabalho pedagogicamente valioso; em
terceiro (como desdobramento do segundo, mas é necessário enfatizar),
o T que esteja em conformidade com as forças dos adolescentes (SHUL-
GIN, 2013, p. 90, grifos nossos).

Se o trabalho na escola não se reduz à ilustração ou faz de conta e


nem tem fim em si mesmo, podemos entender que todo o trabalho que a
escola deve se envolver é um TSN. Para tal, porém, a escola precisa estar
ligada à vida social ao seu redor e contribuir com as forças que retiram
o país do atraso econômico e cultural. Neste sentido, são úteis e signifi-
cativas perguntas formuladas por Shulgin que consistem em pistas para
auxiliar as escolas na identificação do TSN: qual o lugar que a aldeia
ocupa na economia da região? Quais as tarefas econômicas que a região
enfrenta agora? Quais as principais tendências de seu desenvolvimento?

Por um lado, o TSN possibilita que as crianças se identifiquem com


a classe trabalhadora e neste sentido tem claramente um componente
ideológico, de outro, como afirmamos, Pistrak e Shulgin não fazem apo-
logia ao dispêndio da força humana de trabalho. Por repetidas vezes são

120
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

entusiastas do desenvolvimento produtivo e cultural que possibilite ao


ser humano emancipar-se do trabalho. Isto pode ser verificado, dentre
outros, na seguinte passagem: “o ideal não é que todos façam autosser-
viço, mas que todos sejam libertados deles, que a máquina esteja em
toda parte, a serviço do homem” (SHULGIN, 2013, p. 41). Este é um dos
ideais da própria revolução socialista.
No que se refere ao Trabalho na perspectiva socialista, a poli-
tecnia é outro conceito destacado por Marx. Os pioneiros da pedago-
gia soviética o desenvolvem e o denominam Politecnismo. Conforme
Freitas (2013), para Shulgin, o sistema politécnico consiste num processo
educativo que engloba desde os anos iniciais até o ensino superior.

Para nós, a educação politécnica é um sistema inteiro de reeducação não


apenas das crianças, mas de toda massa de pessoas. (...) o aspecto carac-
terístico do sistema politécnico é o conhecimento dos princípios básicos
de todos os processos de produção, trabalho fundamentado em uma série
de indústrias, postos de trabalho, que torna possível obter uma gama de
habilidades práticas. (SHULGIN, 2013, p. 214, grifos no original).

O próprio Shulgin (2013) nos alerta porém, que, se o politecnismo


pressupõe o domínio da técnica, não pode ser reduzido a isto, pois ele
se liga, necessariamente, à elevação da cultura geral. Trata-se de apren-
der a reconstruir o ambiente de trabalho, transformando-o de sua for-
ma dividida, alienada e explorada, para o trabalho social, autogerido,
tendo em vista o pleno desenvolvimento humano. Nesse sentido, a
escola só pode ser considerada como sendo politécnica se atuar de for-
ma combinada (PISTRAK, 2015, p. 22) sobre as três dimensões do que
Marx (2000) definira como educação: o desenvolvimento intelectual,
físico e politécnico, portanto omnilateral. Desta forma o trabalho na
escola possui centralidade e múltiplas articulações, mas a escola sovi-
ética não podia perder de vista a formação ampla, multidimensional,
para além dele.
Entre os pioneiros há embates sobre como desenvolver o politec-
nismo. Shulgin é um entusiasta do desenvolvimento industrial na Rús-
sia, narrando seus grandes feitos e imaginando seu desenvolvimento
futuro. Shulgin tem pressa. A politécnica para ele, somente é possível

121
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

com alto nível tecnológico (SHULGIN; 2013). Nas aldeias onde predo-
mina o trabalho artesanal não é possível desenvolvê-la. É sobre o ritmo
de industrialização e as condições para desenvolver a Escola do Traba-
lho onde se concentram as divergências entre Shulgin e Pistrak. Pistrak
(2015) estimula escolas politécnicas onde Shulgin não vê condições.
Os embates entre eles ocorrem num momento de imenso esforço pela
industrialização – os planos quinquenais nos anos 1920 - e revelam o
esforço dos bolcheviques e de toda a sociedade russa em arrancar o
país do trabalho servil, extremamente rudimentar no campo, promo-
ver a coletivização da agricultura, eletrificar, industrializar, construir
vias de acesso, formar técnicos, ensinar.
Mas Shulgin e Pistrak convergem em muitos pontos! Um deles é
a necessidade de que a escola se articule com seu meio, com seu entor-
no, questão essencial na compreensão da pedagogia soviética. A escola
não será politécnica ou formará o homem e a mulher socialistas se o
meio que a circunda não se voltar nesta direção. Por isso a escola pre-
cisa se ligar fortemente com as forças de transformação: a indústria, os
novos maquinários, os operários, as cooperativas, os técnicos, as orga-
nizações coletivas de adultos e crianças. A escola respira no seu meio,
estuda o meio, tanto o traz para “dentro” da escola quanto “vai” até
ele. Shulgin (2013) não acredita na escola se ela se constitui como um
sistema fechado, sem articulação com a vida. Escola e meio são para ele
um caminho de duas mãos. Não se espera o incipiente Estado Socia-
lista atender as demandas, cada russo precisa se ver como construtor
do futuro, atuar em nome do socialismo de forma organizada e cientí-
fica. As escolas formam para e por meio deste processo e são espaços
privilegiados nesta direção. As formas para articular escola e meio na
direção desejada são inúmeras, mas podemos sintetizar no Trabalho
Socialmente Necessário, na auto-organização, na coletividade e nos
complexos de estudo.
A centralidade da fábrica também é presente em Shulgin. Para
ele, a fábrica deixará de ser apenas um lugar de produção de bens ma-
teriais, ela se tornará um laboratório. A produção será posta a serviço
da educação, ela será pedagogizada. As fábricas devem ser grandes
centros educativos, a serviço das pessoas, da educação ampla e as
crianças estudarão no processo de produção. Shulgin leva este debate

122
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

- presente entre os pioneiros da pedagogia soviética - às últimas con-


sequências: se o meio se torna profundamente educativo no comunis-
mo, qual o lugar da escola? O fim da escola vislumbrado por Sulgin,
também se liga ao debate marxista do fim do Estado. Afinal, se o Esta-
do morre, a escola também não deveria morrer? Certamente podemos
discutir em que velocidade o Estado se extingue e as preocupações
quanto à eliminação precoce da escola, mas não podemos esquecer que
os revolucionários russos nos anos 1920 ainda aguardavam pela revo-
lução em outros países, constituindo uma ofensiva mundial do socia-
lismo. O Comunismo não era para eles algo tão distante como parece
a nós hoje. Como construtores e pioneiros do socialismo, eles querem
acelerar a transformação.
Após a reforma educativa de 1931, “as ideias de Shulgin e de
seus companheiros foram condenadas como ´ideias antileninistas er-
radas sobre a eliminação da escola`” (FREITAS, 2013, p. 8). Ainda se-
gundo Freitas (2009), o debate sobre a desescolarização era uma das
vertentes existentes na URSS, mas acabou sendo difundida no ocidente
como a única, deturpando as contribuições dos pioneiros para o debate
pedagógico marxista e relegando-os ao esquecimento.
d) Complexos
Logo no início da construção da escola soviética, muitos educa-
dores compreendiam que os programas curriculares centralizados re-
metiam à escola antiga, por conta disso, nos primeiros anos pós revo-
lução o Narkompros não formulou algo nessa direção. Porém, nessa
situação, muitos professores ficaram perdidos em como desenvolver o
ensino sem uma orientação geral. A primeira sistematização realizada
pelo NarkomPros de um Programa Escolar/Plano de Estudos, data de
19233.
Para Pistrak (2018) e os pioneiros, um programa orientador para
a escola não envolve somente os conteúdos das disciplinas, mas toda a
vida escolar, o que significa dizer que incorpora a relação com a vida,
o trabalho, a auto-organização e os conteúdos disciplinares. Era ne-
3 Encontramos uma versão desses programas traduzidos em “Programas oficiais.
A educação na república dos sovietes”, publicação de 1935, no Brasil (NarKomPros,
1935).

123
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

cessário romper com a fragmentação e esterilização do ensino, pois na


vida, os fenômenos reais não estão cindidos. A escola precisa ajudar os
alunos a entender os nexos e relações existentes, para isso deve traba-
lhar de forma menos parcelar e não dissociar o ensino dos conteúdos
de outras dimensões formativas na escola.
O organizador do programa elaborado pelo NarKomPros era o
complexo, categoria central da didática soviética. Ele não era tão so-
mente uma técnica de ensino ou um tema, e nem se determinava por
condições fortuitas, antes ele se refere ao método geral de organização
da escola.
Podemos afirmar a partir das formulações de Pistrak (2009, 2018)
que, em síntese, o complexo é uma parte determinada da realidade
concreta, capaz de dar unidade e articular o plano de estudo da esco-
la, visando compreender a realidade em suas múltiplas determinações
e relações, pelo estudo e pela realização do trabalho, articulado aos
conhecimentos escolares e a auto-organização. Assim sendo, não con-
siste em uma ilustração para desenvolver os conteúdos escolares, mas
uma forma de garantir a inserção na realidade. O complexo propõe
compreendê-la vivenciando-a e estudando-a, considerando suas con-
tradições, bem como vir a ser gerador de ações.
Em sua obra, Pistrak (2018), discorre sobre a importância da esco-
lha do fenômeno da realidade presente no complexo ser direcionada
por sua relevância social. Para tal, cita alguns exemplos de escolhas
muito restritas, que não permitem maiores conexões com a atualidade:
a vaca, o poço e o tijolo. Indica portanto, outras porções da realidade
mais significativas para composição dos complexos: o corpo humano,
a revolução de outubro, as estações do ano, a fábrica. Para ele, esses
fenômenos apresentam maior relevância social, uma teia de relações,
verdadeiros complexos que permitem compreender a realidade na for-
ma de totalidade, movimento e o lugar do ser humano neste processo.
Como já dissemos anteriormente, a fábrica tornou-se o centro do
trabalho, em maior profundidade analítica nos últimos anos da escola-
rização, sendo que essa “interessa não apenas como lugar onde se tra-
balha, mas como fenômeno principal da atualidade, onde os trabalha-
dores são vistos em seu ambiente cotidiano” (PISTRAK, 2009, p. 238).

124
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Familiarização, trabalho autônomo e síntese perfaziam os momentos


dos estudantes na fábrica. Inicialmente realizava-se a familiarização
com todas as seções e aspectos da fábrica, o que incluía os trabalhado-
res que nela atuavam e a produção desenvolvida. Posteriormente, os
estudantes aprendiam a manusear as máquinas, vivenciando-as. Esses
momentos se articulavam com o trabalho das especialidades (discipli-
nas).

Em relação à contribuição das diversas disciplinas nos anos mais


adiantados da escolarização com os jovens, sintetizamos de Pistrak
(2009) em relação ao complexo fábrica, que a Física ajudou a compre-
ender o funcionamento das máquinas a partir de suas leis (atrito, ener-
gia, potência). A História desenvolveu um trabalho sobre a história
da fábrica em relação com a URSS e com os trabalhadores, realizando
análise de documentos, entrevistas, entre outros. As Ciências Naturais
se ocuparam dos estudos do corpo humano, do trabalhador da fábri-
ca, sua constituição (anatomia, fisiologia humana, higiene e saúde). As
artes plásticas realizaram seus trabalhos artísticos na observação dos
trabalhadores da fábrica. Enfim, todas as disciplinas buscaram ligar-se
a esta porção pulsante da realidade russa para melhor compreendê-la.

Com o desenvolvimento da experiência dos complexos nas


escolas, Pistrak tece uma crítica à maneira como eles estavam sendo
desenvolvidos. Algumas escolas realizam apenas o estudo de deter-
minado aspecto da realidade, na forma tradicional de aulas, o que ele
denominou de complexos sentados. Ou nas palavras do autor, “ado-
tando os complexos devemos liquidar os complexos “sentados”, os
complexos somente para estudar, e firmemente passar para os comple-
xos de ação” (PISTRAK, 2018, p. 197, grifos no original). Ainda critica a
compreensão dos complexos, enquanto diluição das disciplinas esco-
lares e do não aprofundamento dos estudos. Em muitos casos, os com-
plexos desencadearam um processo de ensino pela realidade imediata,
aparente, como se esta pudesse ensinar à altura das exigências que a
revolução colocava, sem a mediação da teoria, neste caso, dos avanços
mais recentes da ciência e da teoria marxista.

Este é outro ponto de atenção e divergências no período aqui


enfocado. A ciência é muito valorizada e essencial para o desenvolvi-

125
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

mento da indústria, para a formação do comunista e deve ser base nas


escolas em substituição à religião. Isto se coloca nas obras do conjunto
dos pioneiros da educação. Mas como a ciência entra na escola? Como
um conhecimento pronto, estéril? A escola baseada na memorização,
no livro distanciado da vida é uma realidade que os revolucionários se
esforçam por superar. Este é o pano de fundo das divergências acerca
de como as disciplinas – e com elas, a base das ciências –deveriam en-
tram na escola: como um curso estruturado (e, portanto, com maiores
riscos de separação com o real) ou a depender das demandas dos com-
plexos (e portanto com maior dificuldade de construir uma base sólida
da ciência). A questão é portanto qual o lugar das disciplinas na escola,
questão que dividiu os especialistas das diversas áreas à época.

Considerações Finais
Nesse texto discutimos as contribuições de Pistrak e Shulgin para
a Pedagogia Socialista Soviética. Em particular para o campo escolar,
essa concepção pedagógica visava alterar tanto o conteúdo como a for-
ma da escola, uma vez que a velha instituição não servia aos propósi-
tos da nova sociedade nascente. A contribuição dos pioneiros da edu-
cação comunista permanece de extrema atualidade se considerarmos
os avanços teórico-práticos realizados quanto à auto-organização dos
estudantes, à unidade entre ciência, trabalho e vida social e à articu-
lação da escola com o seu meio. Porém ela ainda é pouco conhecida
no Brasil e mesmo nos cursos de formação de professores, exceção à
experiência educacional do Movimento Sem Terra.
Entendemos a importância dos pioneiros da educação soviética
em construírem experiências educacionais concretas na direção do so-
cialismo. Nos nossos dias, a intenção de revisitá-los não consiste em
procurar uma receita ou a mais acabada sistematização dos conceitos
numa perspectiva marxista, mas sim em se apropriar das categorias
centrais e seu desenvolvimento, como também dos limites enfrenta-
dos, considerando que o contexto de desenvolvimento daquela ser
muito distinto do nosso na atualidade.
Nas relações sociais capitalistas nas quais estamos imersos, con-
seguimos construir germes da educação socialista, tensionando com

126
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

limites e contradições a hegemonia da Pedagogia do Capital. A maior


extensão da experiência educacional socialista só se realiza com a su-
peração do modo de produção capitalista, o que, como afirmamos, não
impede que diversos ensaios tenham se realizado ao longo da história
e nos dias atuais.

A contribuição de Pistrak e Shulgin para a pedagogia soviética


gestada nos primeiros anos da revolução é imensa: estão envolvidos
diretamente na elaboração das principais categorias formuladas no pe-
ríodo, dirigem escolas, realizam formação de professores, auxiliam na
elaboração das políticas do NarKomPros. As questões sobre as quais
se dedicam, notadamente a auto-organização dos estudantes, a relação
entre a escola, o trabalho e o meio, entre os conhecimentos elaborados
e a realidade viva, são questões de enorme atualidade. Para aqueles
que se propõe a construir uma nova forma e conteúdo da escola em
sintonia com o projeto socialista, as questões por eles enfrentadas lan-
çam luz aos desafios de nosso tempo.

A luta por uma sociedade socialista, inclui formas expansivas de


educação e escola na direção da emancipação. A luta e a construção da
escola e da pedagogia socialista andam juntas com as lutas pela trans-
formação social. Seus germes estão presentes na atualidade brasileira
nas escolas do MST4, nas ocupações de escolas pelos jovens contra a
Reforma do Ensino Médio, em diferentes espaços educativos e cultu-
rais construídos pelos movimentos sociais, sindicais, populares e par-
tidários que lutam pela construção do socialismo.

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4 Sobre as escolas do MST e sua relação com a pedagogia socialista soviética, em espe-
cial a construção de uma proposta escolar organizada pelos complexos de estudos, in-
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SAPELLI, M; FREITAS, L. C; CALDART, R (orgs). Caminhos para a transformação da
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SAPELLI, M; LEITE, V; BAHNIUK, C. Ensaios da Escola do Trabalho na luta pela terra:
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128
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

SERGE, Victor. O ano I da Revolução Russa. São Paulo: Boitempo, 2007.


SHULGIN, V. N. Rumo ao Politecnismo, 1ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2013.
TROTSKI, L. A revolução de outubro. São Paulo: Boitempo, 2007.

129
130
Makarenko e o desafio para a
formação da coletividade
Luiz Bezerra Neto

Antes de iniciar esta discutição sobre os desafios para a formação


da coletividade em Makarenko, algumas advertências se fazem ne-
cessárias. Primeiro é preciso deixar claro que a discussão deste texto
surge a partir de uma aula ministrada sobre Educação e Revolução, a
pedagogia socialista soviética, depois, devo dizer que todos os estudos
sobre este autor foram realizados em obras publicadas em português,
pois nada entendo de russo, por último, quero afirmar que estou dis-
cutindo a partir da obra do autor em um determinado contexto político
e social, sem necessariamente me posicionar em relação aos conflitos
existentes no interior do partido comunista soviético, no pós revolu-
ção.

Ao explicitar que o texto fora preparado para aula, preciso dizer


que eu já havia ministrado aulas sobre este mesmo conteúdo por pelo
menos duas vezes na UNICAMP, quando discutíamos os fundamen-
tos da pedagogia histórico crítica em aulas ministradas no programa
de pós graduação daquela universidade, realizado em rede com vários
programas deste país.

Alerto ainda, que nunca fui muito afeito a desenvolver trabalhos


biográficos, pois ao estudarmos determinados autores corremos al-
guns riscos, sendo os principais: se apaixonar pela obra do autor e com
isso tornar-se apologeta do mesmo ou tornar-se um crítico ferrenho do
autor estudado.

131
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Assim, encontrar o ponto de equilíbrio entre a paixão e a ojeriza


pelo autor é sempre o desafio de quem se propõe a escrever um texto
desta natureza.

Sobre Makarenko, é preciso que se diga que ele nasceu na Ucrâ-


nia, no ano de 1888 e morreu em 1939. Teve grande importância na
construção da nova sociedade que surgia com a revolução Russa de
1917. A partir de sua luta em defesa da escola, pode ajudar a construir
uma importante obra educacional, sobretudo, dedicando-se à busca de
meios para organizar na escola, uma coletividade. Alcançou êxitos ao
colocar em prática suas energias para ver seu trabalho sendo desenvol-
vido na colônia Gorki, a partir de 1920.

O certo é que Makarenko foi um pedagogo cuja posição pedagó-


gica estava repleta de originalidades, mas pelo que podemos observar
através de seus “poemas pedagógicos” esta originalidade não se dava
por capricho, mas, pelo fato de que ele não reconhecia validade nas
doutrinas pedagógicas que conhecia e que, para ele não eram mais do
que, exatamente isso: “doutrinas”.

Ao questionar as pedagogias disponíveis no início do século XX,


Makarenko se queixava de não poder contar com técnicas pedagógicas
válidas, pois, segundo seu entendimento, os pedagogos de sua época
não entendiam de educação. Isso o deixava indignado com todas as
pedagogias conhecidas, o que o levava a afirmar que, a pedagogia lhe
decepcionara a tal ponto, que ele não duvidava em afirmar que “os
pedagogos não sabem absolutamente nada de educação”.

Se makarenko se mostrava decepcionado com os pedagogos por


sua forma tradicional de ensinar, também não era adepto do esponta-
neísmo juvenil e, com isso, condenava o culto à espontaneidade infantil,
praticado por muitos pedagogos que pensavam na escola a partir dos
desejos espontaneístas das crianças. Este espontaneísmo também não
possibilitava uma boa educação, dado que as crianças precisam ser en-
sinadas, para que possam ter acesso ao conhecimento produzido pela
humanidade.

É certo que Makarenko foi um dos principais expoentes da educa-


ção socialista, entendendo que o sistema educacional deveria servir para

132
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

formar homens e mulheres trabalhadores e cultos, para o novo regime.


Sendo assim, os trabalhadores, sob o novo regime deveriam ser reedu-
cados para assumirem o comando da nova sociedade que se instaurara.
É interessante notar que o educador ucraniano, enquanto método
de ensino e investigação, partia sempre do concreto para o abstrato, es-
tabelecendo inclusive que a única criança que poderia ser compreendida
no processo pedagógico era a criança concreta, ou melhor, as diferentes
crianças com suas marcas históricas, sociais, culturais e psicológicas.
Assim, partia-se da criança concreta, aquela que tem necessidades
concretas, sem a idealização de uma criança qualquer, assim, o proble-
ma a ser enfrentado pela pedagogia seria o da educação das diferentes
personalidades.
Makarenko entendia que a resolução do problema pedagógico na
nova sociedade estaria na constituição de um novo objeto da pedago-
gia, não mais na criança, mas na coletividade. A coletividade deveria ser
compreendida enquanto objeto da pedagogia e não poderia ser tomada
como uma abstração, mas como um novo organismo social, criado pela
experiência revolucionária, tal como os sovietes.
Assim, os fins da educação seriam determinados pelas necessida-
des sociais em constante transformações históricas, combinando e de-
senvolvendo as diferentes personalidades no processo de autogestão, tal
qual deveria ser feito na sociedade comunista recém conquistada.
Nesse caso, o aparelho escolar deveria ser organizado de acordo
com os princípios da instrução geral e do trabalho produtivo, retirando
a centralidade da sala de aula e transferindo-a para as necessidades do
educando concreto e na sua organização, tendo o trabalho como princí-
pio educativo.
Assim sendo, aos professores caberia a tarefa de instruir, de educar
e ser educado, junto aos alunos, para o desenvolvimento da vida coleti-
va autogestionária. Nesse caso, ao contrário de negar a escola, a pedago-
gia de Makarenko reconhecia a força social e revolucionária dela, prin-
cipalmente sob a influência das organizações revolucionárias da classe
trabalhadora.
Naquele período, logo após a revolução de 1917, o método peda-

133
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

gógico de Makarenko era ainda, apenas um projeto de construção de


escolas como coletividades, o que significava que era necessário pla-
nejar racionalmente os passos para o funcionamento da autogestão,
junto ao coletivo que ele precisou criar. Assim, a escola deveria ser
organizada como uma coletividade autogestionária, para que ao ser
dirigida, com o auxílio dos professores e da direção, o aluno pudesse
atingir o pleno desenvolvimento intelectual, psicológico e cultural. Se
isto ocorresse, todas as crianças poderiam atingir seu amadurecimento
pela formação, inclusive no trabalho.
O pedagogo ucraniano entendia ainda, que o trabalho, ao ser com-
preendido como princípio educativo não poderia ser tomado como
concepção abstrata, em que a criança é levada a fazer algo que não
faz muito sentido para a sua vida. Neste sentido, o trabalho deveria
fazer parte de um sistema geral da coletividade, dado que se ele fosse
separado do estudo, viria a ser compreendido apenas como trabalho
produtivo. Neste sentido, devemos ter claro que Makarenko só pode
ser compreendido se levarmos em consideração o contexto sócio-polí-
tico em que ele viveu, dado que sua formação nunca esteve descolada
de sua vida.
De acordo com Cecília da Silveira Luedmann (2002), na passagem
do século XIX para o século XX, 71% dos homens e 87% das mulheres
que viviam na Rússia eram analfabetos. Entre as crianças, apenas 20%
chegavam aos bancos escolares. Este quadro denota o quanto aque-
la sociedade era carente de escolas antes da revolução de 1917, bem
como a importância de professores preocupados com a educação de
seu povo.
Luedmann (2002), destaca ainda, que as poucas escolas públicas
existentes eram destinadas ao ensino primário, com duração de ape-
nas três anos, com um currículo mínimo de leitura, escrita, aritmética
e ensino religioso. O ensino suplementar, completando seis anos, se
realizava em apenas 5% das escolas públicas, o que demonstra que a
escola era extremamente elitista.
É importante observar que o tempo de formação dos filhos dos
trabalhadores nos centros urbanos do império russo se resumia a ape-
nas três anos na escola primária e seis anos no ginásio, complementado

134
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

pelo curso de especialização profissional com vistas ao mercado de tra-


balho. Assim, a formação da classe trabalhadora visava simplesmente
servir de mão de obra para a elite russa.
Com a pouca escolarização dos trabalhadores, só restava aos fi-
lhos destes, além do trabalho braçal, outras três opções, tais como: ser
técnico das oficinas das ferrovias, ser militar a serviço do regime tzaris-
ta ou professor primário, quase sempre, destinado a ensinar aos filhos
dos trabalhadores.
É neste sentido que Makarenko passa a compreender que não po-
deria haver, entre os operários a oposição, indivíduo versus sociedade,
dado que a oposição real era a oposição de classe, uma vez que a classe
trabalhadora estava sob o jugo do sistema representado pelos tzares.
Foi nesse contexto que Makarenko teve sua primeira experiência como
professor primário, no ano de 1905, em uma escola destinada aos filhos
dos operários da rede ferroviária, instalada em uma das oficinas de
Kriukov, onde trabalhava seu pai, semion.
Para este educador, se o conhecimento era construído socialmen-
te, ele deveria ser universal. Sendo assim, teria que estar ao alcance de
todos, embora a prática houvesse lhe mostrado que era mais fácil ensi-
nar a um filho da classe trabalhadora do que ao filho de um príncipe.
A partir de 1917, Makarenko passou a ter uma nova experiência
pedagógica marcada pelo enfrentamento contra os kulaks1 e a econo-
mia de mercado que estavam nas bases de sustentação do governo tza-
rista da Rússia. Ao adotar o princípio marxista “de cada um segundo
as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades”, ele
deu demonstrações claras de que entendia que cabia à tarefa educati-
va, tanto nas escolas, quanto nas famílias organizar e selecionar aqui-
lo que deveria ser as necessidades humanas a ser atingida em uma
sociedade sem classes, tal qual se desejava construir a partir daquele
momento na sociedade Russa.
1 Burguesia rural, que utilizava sistematicamente em suas fazendas o trabalho assala-
riado. Surgiu durante a decomposição social do campesinato e se desenvolveu na Rús-
sia depois da Reforma Camponesa de 1861. O tzarismo tratou de converter os kulaks
em seu apoio. Depois da Revolução Socialista de Outubro os kulaks lutaram ativamen-
te contra o Poder Soviético. Como classe, os kulaks foram suprimidos no começo dos
anos 1930, no curso da transformação socialista da agricultura.

135
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Para makarenko, o novo homem criado na sociedade comunista


deveria, suprir suas próprias necessidades individuais, como consu-
midor e como produtor voltado para o bem coletivo, assim o prazer do
novo homem deixaria de ser o de consumir e acumular, tornando-se
moralmente mais elevado, passando a criar, consumir e dividir. Assim,
ele partia do princípio de que a educação praticada no período anterior
à revolução não servia para os trabalhadores. Para ele, era necessário
criar o homem novo de maneira nova e, isso deveria se dar por meio
de uma educação verdadeiramente comunista.

Ao assumir a responsabilidade sobre uma colônia de jovens delin-


qüentes, Makarenko tinha consciência de que seria necessário se apro-
priar de uma nova teoria pedagógica para o trabalho de educação so-
cialista, mesmo que esta nova teoria pedagógica tivesse que ser criada,
pois esta teoria ainda não existia. Havia apenas um debate em torno de
várias correntes pedagógicas, mas ainda não existiam indicações mais
precisas, sobre esta pedagogia, apenas algumas diretrizes gerais que
deveriam ser levadas em consideração naquele novo trabalho.

Antes de 1917 as crianças, filhas da classe trabalhadora na Rússia


eram marcadas pelo preconceito e pela marginalidade, gerando a cren-
ça popular de que estes dificilmente mudariam e que não desenvolve-
riam uma cultura mais refinada. Sendo assim, estas crianças deveriam
ser educadas apenas para fazer o trabalho manual que estava destina-
do à classe trabalhadora.

De acordo com Cecília Luedemann (2002), Makarenko aceitou tra-


balhar como diretor de uma colônia de reeducação de crianças e jovens
delinqüentes, pois estava interessado em construir um método geral
de educação comunista.

Este método deveria ser construído a partir da prática, dado que


para ele, a resposta ao problema colocado pela necessidade de reedu-
cação só poderia ser encontrada na relação entre teoria e prática, que
se daria a partir de uma nova educação.

Em seu poema pedagógico, Makarenko relata que ao iniciar seu


trabalho na colônia Gorki, esta apresentou vários problemas, sobre-
tudo no que diz respeito à disciplina, demonstrando o egoísmo dos

136
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

educandos até que ele, como professor, resolveu criar regras para a
colônia. Dentre as regras estabelecidas decidiu-se que os colonos deve-
riam limpar o dormitório, aproveitou-se também para se designar um
monitor para vigiar quem entrava e quem saía da colônia. Outra regra
importante foi a que estabeleceu a proibição das saídas dos colonos
sem permissão. Com estas regras, a colônia passou a funcionar de for-
ma mais coletiva, implantando-se uma nova dinâmica na convivência
dos educandos, beneficiando todo o grupo.

Naquele período, o combate ao individualismo fazia parte de um


processo de desenvolvimento de atividades práticas em que os edu-
candos deveriam perceber o nosso no lugar do meu, o coletivo, no lu-
gar do indivíduo.

De acordo com Cecília Leudemann (2002), a obra de Makarenko


tem servido como referência para muitas reflexões pedagógicas nos
movimentos populares, especialmente o MST. Serve também como
instrumento de reflexão para pedagogos comprometidos com a educa-
ção da classe trabalhadora, seja no interior da escola pública, seja nas
escolas de formação dos movimentos populares e sindicais.

Em se tratando de movimentos sociais, sobretudo o MST, quando


este promove seus cursos de formação política ou mesmo as discus-
sões educacionais, estas experiências são levadas para a prática, sobre-
tudo na divisão de grupos de trabalhos, tal qual era proposto por nas
colônias dirigidas por aquele educador.

Aproximando-se das discussões proposta por Makarenko, nos en-


contros do movimento dos trabalhadores rurais sem terra – MST, cons-
tituem-se equipes para a distribuição de tarefas, tais como: equipes de
coordenação dos trabalhos, equipe de limpeza, equipe de ciranda, para
cuidar e ensinar as crianças, enquanto as mães participam das ativida-
des, equipe de saúde, responsável por cuidar de quaisquer problemas
que venha a ocorrer no local, equipe de animação, responsável pelas
festas, equipe de mística, equipe de biblioteca, etc.. Além disso, ainda
tem equipes que ficam responsáveis pela coordenação do dia e pelos
núcleos de base.

Makarenko, apontava ainda, para a necessidade de se retirar o ca-

137
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

ráter sagrado do trabalho, mostrando que o mesmo, isolado de um sis-


tema geral de educação não influencia na formação de novos homens,
mas ao contrário, dependendo do modo como o trabalho for realizado,
pode resultar na negação de uma educação libertadora, acentuando
ainda mais os antigos vícios do passado: exploração, competição, indivi-
dualismo e acumulação.

Assim, a vida do coletivo dependia muito mais de uma luta po-


lítica mais geral, do que do trabalho em si, para dar a seus educandos
uma formação integral, como cidadãos, tal qual deveria acontecer na
sociedade socialista.

Durante o tempo em Makarenko esteve à frente da colônia Gorki,


conviviam em um mesmo espaço, crianças e jovens, meninos e meni-
nas que formavam um único coletivo. Naquele coletivo, os mais velhos
tinham a obrigação de cuidar dos mais novos. No coletivo tem sempre
um responsável por todas as atividades desenvolvidas no grupo, quer
sejam atividades semanais quer sejam atividades diárias, o que fazia
com que os trabalhos não sobrecarregassem alguns em benefício de
outros, ou que alguém pudesse ficar sem realizar nenhuma atividade
na colônia.

Para que tudo se realizasse conforme o planejado na colônia era


preciso que se renunciasse à ideia de que uma boa escola necessita, em
primeiro lugar de bons métodos na sala de aula, dado que uma boa
escola necessita de um coletivo organizado e voltado para os interesses
do coletivo. Nesse caso, para que se tivesse uma boa escola seria ne-
cessário que se estabelecesse um sistema cientificamente organizado e
livre de todas as influências do sistema anterior.

Para Makarenko, a escola russa do trabalho deveria reestruturar-


-se totalmente, posto que, sua concepção era estava centrada numa
ideologia burguesa. Assim, o fundamento da escola não deveria se dar
com base na ocupação-trabalho, mas no trabalho-preocupação. Isto fez
com que ele tomasse o processo pedagógico como objeto da pedagogia
e observasse que a coletividade geral tinha suas fases de desenvolvi-
mento, crise e estagnação, para se chegar a um novo salto de desenvol-
vimento, numa relação dialética com a realidade.

138
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Assim, na coletividade primária produzia-se um movimento de


avanço geral de toda a coletividade marcando o desenvolvimento da
coletividade geral em fases de avanço e estagnação, tal como ocorre
em qualquer modelo de sociedade. Dessa forma podemos comprovar
que a dinâmica da sociedade comunista não está isenta de crises, como
ocorre nas sociedades capitalistas.
Makarenko entendia que as antigas formas de comportamento,
baseadas no acomodamento e no autoritarismo, vividas sob o capi-
talismo na relação explorado-explorador, deveriam ser arrebentadas
por dentro das próprias relações da coletividade, tal qual ocorrera na
colônia Gorki, mas ele tinha plena consciência de que estes modelos
relacionais ainda estavam presentes na sociedade soviética.
Assim a educação dos gorkianos, compreendida como modelo
ideal (não idealista) se dava de forma integral, transformando-se numa
luta contra os antigos sinais da propriedade privada e, sobretudo, con-
tra a presença da exploração capitalista. Assim sendo, a criança deveria
ser o centro de nossas atenções, para o processo formativo, buscando
compreender o seu desenvolvimento biológico e psicológico, com vol-
tas a atenção que deveria estar na formação do coletivo. Sendo assim, a
pedagogia socialista deveria centrar sua atenção na educação do cole-
tivo e aí, sim, estaria se educando o novo homem, dada a educação que
viria acompanhada de um caráter coletivista da criança.
Além de ter sido um homem dedicado à pedagogia, Makarenko
buscava ser também um grande literato, sonho que nunca abandonou,
por isso, durante o tempo em dirigiu a colônia Gorki dedicou-se tam-
bém ao teatro passando a valorizar estre meio como importante instru-
mento de divulgação das ideias do coletivo socialista. Ao valorizar as
colônias, valorizava-se também a vida no campo e, tal como pensava
Tolstoi reforçava se a busca pela transformação do trabalho coletivo,
compreendendo este como a principal fonte de transformação da socie-
dade, tal qual defendia Gorki, que marcou profundamente as propostas
pedagógicas de Makarenko.
Assim, o trabalho só ganha sentido dentro de um novo sistema de
relações sociais próprio do sistema comunista, tal como se podia verifi-
car na coletividade que se iniciara. Esta coletividade viria da educação e

139
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

do trabalho como princípio educativo, alcançado numa educação inte-


gral, ou seja, na educação de um novo homem que exigiria um novo tipo
de ação mais refinada, dado que todos deveriam participar de forma
consciente, com vontade própria, imprimindo um objetivo a cada nova
atividade.
É importante que se diga que os ideais comunistas verificados na
obra de Makarenko tem suas bases nas teses de Lênin sobre o Estado e
a Revolução. Com a morte de Lenin em 1924, sobrou uma aguda crise
no Partido Comunista. Naquele momento, o poder de Stalin crescia e
com isto, as divisões do partido, dado que Stálin se opunha à tese da
revolução internacionalista proposta por Trotski, outro grande expoente
do partido. Observo que embora seja importante, este não é nosso tema
central e por isso, não o discutirei aqui, tal qual não o fiz nas aulas que
deram origem a este texto.
A partir de então, o trabalho na colônia Gorki não apenas não teria
mais unanimidade, mas, pelo contrário, passaria a ter muitos adversá-
rios dentro e fora da burocracia do partido. Ao perceber que a luta pe-
dagógica se dava principalmente no campo político, Makarenko pas-
sou a apostar na organização política da coletividade. Assim, naquele
momento a discussão fundamental da colônia mudou de rota, pois a
questão era saber se a riqueza poderia se transformar em inimiga da
coletividade.
Para Makarenko não havia uma relação coerente entre a riqueza
e a acomodação, pois caso existisse, estaria se negando o princípio do
progresso material e coletivo da humanidade. Partindo deste princípio,
ele dizia acreditar que não era possível educar individualmente a perso-
nalidade coletivista, pois a educação deveria se dar sobre o conjunto da
coletividade em seus movimentos particulares e gerais.
A partir de 1926 foi organizado no interior do PC uma oposição
que defendia os princípios internacionalistas da revolução. Nesse mo-
mento um grupo liderado por Trotski passou a fazer oposição ao gru-
po de Stalin, que planejava a rápida industrialização da URSS. Diante
destas divergências, Makarenko, passou a defender que o simples fato
de fazer a economia crescer não significava conquistar uma sociedade
melhor e mais justa, para todos os trabalhadores. Por isso, ele entendia

140
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

que a educação deveria, em primeiro lugar, ter uma orientação política


muito clara, sem o impedimento da ação burocrática dos “técnicos e es-
pecialistas em pedagogia”.

Com relação ao método a ser desenvolvido, Makarenko entendia


que a vida coletiva só poderia ser criada quando toda a massa dos cam-
poneses entrasse voluntariamente, e não à força na coletividade, embora
não fosse esta a realidade daquele período. Neste sentido, o trabalho de
autogestão era um desafio que necessitava de um esforço inicial enorme
de quem a dirigia, mas depois passava a se movimentar com energia
própria, necessitando apenas de uma reflexão crítica para a tomada de
decisão coletiva e direcionamento das ações.

No final da década de 1920, a situação política da Rússia começaria


a mudar e, em 1929, após a expulsão de Leon Trotski, ficou claro para
Makarenko que todas as formas de contestação e de oposição ao novo
plano político e econômico implantado por Stalin seriam destruídas pela
lei, pelo medo e pela violência. Neste momento ele se afasta da direção
da comuna e vai se dedicar à literatura.

De acordo com Makarenko, a partir do momento em que Stalin as-


sumiu a direção do partido, a massificação foi colocada no lugar da par-
ticipação do “individuo”. Assim, a proposta de coletividade escolar foi
deixada de lado. No seu lugar, seriam construídas escolas para forma-
ção de mão-de-obra qualificada para as novas necessidades do Estado.

Concordando com Trotski, Makarenko passaria a entender que


esse seria um período de completa ausência de um operariado revolu-
cionário, período em a educação da juventude antes de tudo tornar-se-
-ia, nacionalista, conservadora, atribuindo-se ao stalinismo uma nova
forma de organização onde visava-se crescer e se desenvolver, tornan-
do-se hegemônico.

Assim, Makarenko entendeu que com Stalin, o proletariado que


conquistou o poder em outubro foi afastado e relegado a segundo pla-
no. De acordo com Trotski, a pressão imperialista e a organização do
proletariado para desenvolver a industrialização e a indústria bélica, a
ideologia do socialismo nacional, o crescimento econômico a qualquer
custo e o sentimento de patriotismo contra os inimigos imperialistas ti-

141
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

nham agora uma nova realidade objetiva, que apontava para o ultracen-
tralismo do Estado, o fim das oposições, as perseguições e eliminações
políticas, em troca de uma promessa de melhoria das condições mate-
riais de vida.

Apoiado nas leituras de “o Estado e a Revolução” de Lênin,


Makarenko acreditava que o grande desafio da revolução bolchevique
seria manter a participação ativa das massas e desenvolvê-la para a
construção da sociedade socialista. O proletariado, nesta concepção,
deveria aprender a comandar a sua própria vida, a produção, o consu-
mo e a vida socialista.

Makarenko, entendia, no entanto, que os operários ainda não ha-


viam se habituados à ideia de que eram eles a classe dominante, o que
dificultava que estes assumissem de fato o poder, além disso, a coleti-
vidade deveria desenvolver a autogestão consciente e planejada, mas
para isto ainda deveria percorrer um longo caminho. Neste sentido, a
autogestão deveria ser estudada em seu aspecto teórico e prático na
própria constituição das coletividades nas fábricas, nas fazendas, nas
escolas, etc.

Segundo Makarenko, a instrução e a educação políticas constitui-


riam partes diferenciadas de uma mesma iniciativa: a transformação da
massa trabalhadora, de massa subordinada a grupo comandante. Com
relação à educação e instrução políticas, ele concluiu que não havia
possibilidade de existir uma sem a outra se se pretendesse transformar
a sociedade numa autogestão de trabalhadores. Por isso, dever-se-ia
adotar como método a organizar da vida cotidiana com a participa-
ção do proletariado através da disciplina, da organização coletiva e da
criatividade.

Assim, ele entendeu que o limite entre o trabalho com fins capita-
listas e o trabalho para a construção da sociedade sem exploração era
quase imperceptível e muitas vezes a educação pelo trabalho na União
das Repúblicas Socialistas Soviéticas se transformou na educação para
o trabalho capitalista.

A partir das experiências desenvolvidas na colônia e posterior-


mente na comuna, com o aumento da produtividade e a conquista de

142
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

uma nova qualidade de vida, Makarenko defendeu, junto à direção da


Comuna, a redução da jornada de trabalho para duas horas diárias e o
aumento do tempo de estudo para seis horas, posição que foi combati-
da e refutada no interior do partido.
Seguindo a orientação geral de Stalin para o aumento da produ-
ção, a direção rejeitou a proposta de Makarenko, sugerindo ao contrá-
rio, a ampliação da jornada de trabalho de quatro para seis horas, o
que faria com que sua proposta de que o trabalho produtivo deveria
ter como princípio a necessidade social da coletividade, procurando
aumentar, sempre que possível, o tempo de estudo para a formação do
trabalhador culto não se realizasse.
Assim, fica evidente que a proposta de formação para o traba-
lho formulada por Makarenko poderia muito bem ser utilizada numa
sociedade comunista, mas, teria dificuldades de ser implementada na
transição entre o capitalismo e o socialismo. Com isso, espero ter dei-
xado alguma contribuição para quem pretende iniciar seus estudos
sobre a educação socialista na Rússia, em especial a obra de Anton S.
makarenko.

Referências Bibliográficas
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MAKARENKO Anton S. Poema pedagógico. São Paulo, editora 34, 2005.
LUEDEMANN, Cecília da Silveira. Anton Makarenko vida e obra – a pedagogia na
revolução. São Paulo, expressão popular, 2002.

143
Concepção socialista de
educação: a contribuição de
Nadedja Krupskaya1
Nereide Saviani

Introdução

Marco histórico do século XX, a Revolução Russa de 1917 foi uma


rica tentativa de construção socialista. Suas conquistas, seus êxitos e
fracassos merecem análise rigorosa, não como modelo a ser/não ser
seguido, mas como referência à discussão teórica, política e ideológica
que tenha por perspectiva a superação do capitalismo. De igual modo,
é importante estudar as concepções que serviram de base aos projetos
desenvolvidos nos diversos domínios da edificação da sociedade, sob
o novo regime. Em especial, no período inicial, logo após a tomada do
poder pelos bolcheviques, quando a Rússia vivia intenso cerco externo
e fortes tensões internas, numa situação de extrema pobreza, de guerra
civil.

No tocante à educação, enfrentava-se o altíssimo índice de analfa-


betismo em meio a problemas com a parte reacionária do magistério,
liderada pelo Sindicato dos Professores da época do czar. A revolução
democrático-popular, de fevereiro de 1917, que resultara em derruba-
da do czar e instituição do governo Provisório (Kerenski), desenca-
deou reformas de caráter burguês. Nesse período constituíram-se os
1 Publicado, originalmente, na Revista HISTEDBR On-line, Campinas, número es-
pecial, p. 28-37, abr2011. http://www.histedbr.fe.unicamp.br/revista/edicoes/41e/
art03_41e.pdf

145
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Soviets (conselhos populares), que se mantiveram e foram fortalecidos


a partir da revolução bolchevique de outubro (novembro, na mudança
de calendário), do mesmo ano. A aliança operário-camponesa (lidera-
da pelos bolcheviques) criou Comissariados do Povo2, em substituição
aos antigos ministérios. O Comissariado do Povo para a Instrução Pú-
blica – também referido na literatura como Comissariado Nacional de
Educação, Comissariado Popular de Instrução Pública, Comissariado
de Educação Popular – foi criado em 26/10/1917 para cuidar de toda
a vida cultural, tendo por finalidade reconstruir o sistema educacional
da Rússia. Anatoli Lunatcharski (1875-1933) foi seu presidente, no pe-
ríodo de 1917 a 1929. (Cf. FREITAS, 2009).

Já antes de outubro de 1917 criara-se a Comissão Estatal para a


Educação, cujos membros – Krupskaya (1875-1944), Lepshinsky (1868-
1944) e Pokrovsky (1868-1932) – foram responsáveis pela elaboração
do documento “Princípios Fundamentais da Escola Única do Traba-
lho”, que resultou na “Declaração sobre a Escola Única do Trabalho”,
aprovada pelo Comitê Central do Partido Comunista Bolchevique, em
30/09/1918. Com a criação do Comissariado, eles e outros educadores
entraram na sua composição, dentre os quais: Blonski (1884-1941) e
Pistrak (1888-1937). Fazia parte do Comissariado uma Comissão Esta-
tal Científica, que comportou a Seção Científico-Pedagógica (presidida
por Krupskaya), responsável pela elaboração dos programas de 1º e 2º
Graus de 1923 e sua variante de 1927. (Cf. Ibidem).

Para Krupskaya, os desafios dos primeiros anos seriam: livrar-se


da herança da escola antiga (manuais impregnados da ideologia bur-
guesa, ênfase em abordagens religiosas, chauvinismo, métodos ades-
tradores, resistência reacionária do magistério); dotar o ensino de novo
conteúdo e novos métodos; ligar a escola com a vida, aproximando-a
da população; propiciar a compreensão da vida concreta e o desen-
volvimento da capacidade de trabalhar, estudar e viver coletivamente.
2 Tais como: Abastecimento; Agricultura; Assistência Social; Assuntos Estrangeiros;
Assuntos Internos; Comércio; Comércio Exterior; Controle do Estado; Defesa; Finan-
ças; Indústria; Instrução Pública; Interior; Justiça; Saúde Pública; Segurança do Estado;
Trabalho; Vias de Comunicação.

146
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Quem foi Krupskaya? 3

Segundo informações da própria autora, em autobiografia4, seus


pais – órfãos desde tenra idade – eram de origem nobre, porém empo-
brecidos. A mãe estudou em escola pública e atuou como preceptora
de crianças, mesmo antes de concluir os estudos. O pai estudou em
Colégio Militar, tornou-se oficial e alinhou-se aos descontentes. Ela se
lembra que a casa era constantemente visitada por revolucionários,
embora nunca tenha sabido se o pai chegou a participar, com eles, de
algum movimento ou organização.
Os estudos de Krupskaya deram-se inicialmente com a própria
mãe. Aos dez anos ingressou na escola pública, mas não se deu bem: as
alunas não podiam perguntar; as professoras distinguiam as crianças
pobres das ricas; não havia amizade entre as alunas; ela sabia mais do
que aquilo que era ensinado; via de modo diferente os assuntos ex-
postos. Órfã de pai aos 14 anos, passa a dar aulas particulares. A mãe
aluga a casa para hóspedes e ela tem contatos com várias pessoas, de
origens, profissões e posições diferenciadas. Com os pais, aprende a se
indignar com as injustiças. Na literatura, reforça e amplia a visão crí-
tica. A leitura de Tolstoi, por exemplo, instiga-lhe a visão de justiça, a
indignação em face das desigualdades sociais. Por sua influência, bus-
ca conviver com operários e camponeses para auto aperfeiçoamento,
mas logo se apercebe do quanto isso é insuficiente.
Ingressa no ensino superior quando, em Petersburgo, abriram-se
cursos para mulheres – até então isso não era permitido. Porém, de-
cepciona-se com os temas tratados e com a postura do corpo docen-
te. Ao conhecer o círculo estudantil e participar de algumas reuniões,
resolve deixar os cursos e passa a estudar, no círculo, obras de Marx
e outros autores. Lê o 1º tomo d’O Capital, aprendendo o caminho re-
volucionário: a expropriação dos exploradores. Passa, então, a apoiar
3 No Índice de Nomes (In: Lenin, 1981, p. 170), lê-se: “Krúpskaya, Nadiezhda Kons-
tantinovna (1869-1939): veterana do Partido, companheira de luta e esposa de V. I. Le-
nin, relevante pedagoga soviética. Depois da Revolução Socialista de Outubro formou
parte do Colégio do Comissariado do Povo de Instrução Pública; a partir de 1921diri-
giu o Comitê Principal de Educação Política da República, e desde 1929 foi ViceComis-
sária do Povo de Instrução Pública. ”
4 Ver: “Mi Vida” (Krupskaya, s/d – p. 3-18).

147
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

o movimento operário e suas greves. Aprende mais sobre a vida dos


operários fabris quando vai dar aula na escola dominical para adul-
tos. Ali, sofre (e burla) o controle dos inspetores sobre o programa.
Outros marxistas vão trabalhar nessa escola, ensinando o marxismo
sem falar em Marx. Os operários apresentam facilidades em aprender
coisas complexas e alguns passam a frequentar os círculos estudantis.
Krupskaya trabalhou 05 anos nessa escola, até ser presa.
Com a chegada de Lenin a Petersburgo, em 1894, avança o movi-
mento e consolidasse sua organização, com regularidade das reuniões,
produção de material de propaganda, panfletagens e outras atividades
clandestinas. Krupskaya e Lenin passam a trabalhar no mesmo dis-
trito e se tornam muito amigos. Em 1896, ambos são presos, durante
atividades de apoio a uma greve de tecelões. Casam-se no exílio e se
mantêm na luta.
A partir de 1917, Krupskaya passa a ocupar-se da Instrução Pú-
blica.

As ideias pedagógicas de Krupskaya


As ideias pedagógicas de Krupskaya são muito afinadas com as
de Lênin. Embora este (tal como Marx e Engels) não tenha trabalhos
específicos sobre Educação e Pedagogia, temas dessas áreas aparecem
com muita frequência em discursos e artigos, dada sua obstinada preo-
cupação com a formação do “homem novo”, numa sociedade de novo
tipo. Nos 55 volumes de suas obras completas5 as questões educacio-
nais aparecem sob as seguintes abordagens: crítica à educação burgue-
sa; denúncia à precária situação da educação dos trabalhadores (na
Rússia e em outros países); exame de desafios a enfrentar (analfabetis-
mo / alfabetização; ensino e trabalho produtivo; organização de biblio-
tecas; a imprensa a serviço da educação; os manuais escolares; tarefas
da juventude; formação do magistério; as escolas por nacionalidades /
questões de idioma...); discussão de princípios, diretrizes e propostas
para a educação comunista; análise das experiências pedagógicas, dos
5 A localização das passagens que tratam de temas educacionais é facilitada por publi-
cações como as coletâneas La instrucción pública (Lenin, 1981) e Sobre a Educação (Leni-
ne, 1977), em 2 volumes.

148
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

movimentos estudantil e docente, da relação da educação com outras


esferas da vida social (o trabalho produtivo, a comunicação, a política,
o papel do Estado, do Partido...). Para citar os temas mais recorrentes:
Questão Nacional (nacionalismo / internacionalismo); Emancipação
dos Trabalhadores; Estado e Luta de Classes; Estado e Religião / Igre-
ja; Desenvolvimento Social e Cultural; Desenvolvimento Científico e
Tecnológico; Cultura, Cultura Nacional, Cultura Proletária.
Já Krupskaya destaca-se por uma elaboração que privilegia estu-
dos de educação e ensino, voltados para a análise da realidade educa-
cional, a elaboração de propostas pedagógicas, a reflexão sobre pro-
blemas de educação no contexto de construção da nova sociedade.
Seguindo as linhas gerais discutidas por Lênin – apoiadas, aliás, na
produção de Marx e Engels – e dialogando com concepções avançadas
de seu tempo, norteia-se por princípios e premissas que, em síntese,
assim se formulam: a educação como ato necessariamente político; a
necessária laicidade do ensino (separação Igreja/Estado); a apropria-
ção crítica e criativa dos conhecimentos acumulados pela humanidade
como imperativo para a emancipação dos trabalhadores; a escola como
instrumento de educação da personalidade humana; o papel da edu-
cação escolar na formação multifacética das jovens gerações; a mesma
educação para ambos os sexos; o trabalho como eixo central dos conte-
údos e das atividades escolares, implicando a necessária relação entre
ensino geral e politécnico.

Papel da Educação na construção da nova sociedade


Para Krupskaya, a educação é indispensável à construção do
socialismo, cuja essência é a “organização nova de todo o tecido so-
cial, em um novo regime social, em novas relações entre os homens”
(Krupskaya, s/d, p. 88). O problema do socialismo, insiste ela, não é
somente elevar a produtividade do trabalho e incrementar o desen-
volvimento econômico. Trata-se de edificar uma nova sociedade, em
novas bases objetivas e subjetivas. Para tanto, é preciso reeducar os
adultos e educar as jovens gerações.
A escola se apresenta como meio privilegiado para essa educa-
ção. Mas ela, sozinha, não pode dar conta de todos os desafios. Tem,

149
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

necessariamente, de relacionar-se com as organizações estudantis, de


docentes e outras (como a União de Mulheres, os Sindicatos). Mesmo
no que lhe diz respeito diretamente – os programas das matérias e seu
ensino – não pode restringir seu espaço: as atividades escolares devem
associar-se a atividades extraescolares, devidamente orientadas, com
tarefas que possibilitem o exercício da responsabilidade e da autono-
mia, segundo as condições e possibilidades das crianças e dos jovens.
Especial atenção é dada às Organizações Infantis – Jovens Pionei-
ros (a partir dos 11 anos) e às Organizações Juvenis – Komsomol (União
da juventude Comunista, dos 14 aos 28 anos). Seu caráter pedagógico
reside no próprio poder formativo das atividades que desenvolvem –
muito relacionadas com as finalidades escolares, mas com organização
e funcionamento peculiares. O movimento dos Pioneiros realiza ati-
vidades diversas, voltadas para formar hábitos, atitudes, habilidades,
cultivar valores, despertar emoções, formar convicções, desenvolver
costumes, incorporar conhecimentos relacionados às práticas. Sempre
no espírito do coletivismo. O Komsomol tem por finalidades: a conti-
nuidade e o aperfeiçoamento da formação; a consolidação da organi-
zação de jovens, de distintas regiões e nacionalidades, na relação entre
estudo, trabalho e ação social junto às massas operárias e camponesas;
a formação cívica no espírito do internacionalismo proletário e dos va-
lores comunistas. Nessa fase, já se estimula a atuação direta na cons-
trução do socialismo: pelo estudo, pelo trabalho, pela propaganda,
pelo esforço de superação dos problemas e dedicação à preservação
e continuidade das conquistas do novo regime. Busca-se, enfim, o de-
senvolvimento múltiplo (físico, intelectual, emocional, cultural, ético,
estético, técnico, político...) de crianças e jovens de ambos os sexos.
Krupskaya insiste que um grande desafio da revolução é a eman-
cipação das mulheres e que a educação tem de enfrentá-lo por meio
de ações voltadas não somente às meninas e moças, mas igualmente
aos meninos e rapazes, estendendo-se também aos adultos, homens e
mulheres. Ações que tenham por objetivos: 1. Exercer controle social
sistemático para superar sobrevivências do passado: insuficiente de-
senvolvimento cultural; dificuldade de estudar (decorrente da sobre-
carga de trabalho doméstico e cuidado dos filhos); não atendimento à
lei de obrigatoriedade de ensino. 2. Liquidar o analfabetismo entre as

150
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

mulheres. 3. Combinar educação social com educação familiar (elevar


a cultura e a instrução dos pais, aprimorar a educação dos meninos e
rapazes). 4. Garantir às mulheres o direito ao estudo. 5. Enfrentar de
modo novo os problemas milenares: conceitos de matrimônio, mater-
nidade e família; papel e tarefas da mulher; direitos e saúde da mulher;
sua condição na sociedade.

A educação multifacética de crianças e jovens

A personalidade da criança só se desenvolve plena e multiface-


ticamente na coletividade. Mas é preciso despertar-lhe a consciência,
evitando o apego ao formalismo e à disciplina forçada. Organizar
atividades que lhe permitam perceber relações, captar contradições,
compreender mudanças – observando o meio e recorrendo aos livros.
Ajudála a compreender (e exercer) práticas de trabalho socialmente
útil. Proporcionar-lhe condições de tomar e manifestar iniciativas. In-
centivar todas as crianças e valorizar suas realizações, sem discrimina-
ção nem privilégio.

Os jovens devem ser fortes e sãos; adquirir o máximo possível de


conhecimentos, em todas as áreas; desenvolver a consciência de classe;
saber organizar-se. Conhecer as leis de desenvolvimento da sociedade
e os mecanismos de exploração, especialmente os da forma mais ele-
vada, o capitalismo (a Mais Valia) e as tendências do desenvolvimento
social, na abolição de toda e qualquer exploração. Conhecer o ramo de
trabalho a que se vão dedicar; dominar os métodos adequados de re-
solver os problemas a ele inerentes; possuir conhecimentos politécni-
cos que permitam conhecer as tarefas econômicas e as relações de tra-
balho nesse ramo e em outros. Relacionar as atividades culturais com
as tarefas da produção (material e não material); a cultura e a técnica
com o desenvolvimento humano. Pautar-se na concepção materialista
de mundo; ligar a formação teórica com a prática social; ligar a forma-
ção política com a vida. Aprender a pensar por conta própria.

A educação multifacética consiste em formar cidadãos livres e


conscientes, no espírito de unidade e fraternidade de todos os traba-
lhadores.

151
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Educação Geral e Politécnica


A Escola deve desenvolver, por todos os meios, a compreensão
e a valorização da vida social. Desenvolver práticas de trabalho cole-
tivo e de autogestão. Contribuir para a formação de uma moral nova
(interesses gerais acima dos particulares). Preparar a jovem geração
para valorizar e realizar tanto o trabalho manual quanto o intelectual.
Proporcionar aos estudantes os fundamentos das ciências (torná-los
cultos). Formar especialistas em todos os domínios.
É este o sentido da Educação Politécnica: a íntima relação entre
o estudo e o trabalho produtivo6. Implica o domínio das bases da in-
dústria moderna, em seu desenvolvimento histórico – mundial, nacio-
nal e local. Isto exige o conhecimento dos inúmeros tipos de indústria;
condições de seu desenvolvimento; matérias primas e sua produção/
aquisição; relação com a natureza; relações técnicas e sociais de produ-
ção; contribuições da ciência e da tecnologia; o desenvolvimento hu-
mano (condições de trabalho, segurança, saúde dos trabalhadores e da
população em geral); relações internacionais de produção; circulação e
repartição dos bens... Entre outros fatores.
Trata-se, pois, da formação de profissionais, que não se confunde
com a mera instrução profissional. Supõe uma base sólida de conheci-
mentos gerais:
Em um país que se industrializa rapidamente, é preciso que os
aprendizes tenham uma ideia da produção em seu conjunto, conhe-
çam em que direção se desenvolve a técnica e saibam trabalhar em
qualquer máquina, quer dizer, que possuam cultura geral do traba-
lho e conheçam em geral a matéria. Quem adquiriu uma preparação
6 Segundo Marx, trabalho produtivo é aquele que gera mais valia, faz crescer o capi-
tal, acresce valor: trabalho trabalho pago acrescido de trabalho excedente não pago
(Marx, 1987). Em Krupskaya (s/d), a expressão não tem esse sentido. Refere-se ao
trabalho socialmente útil, aquele que resulta em produtos ou serviços necessários ao
desenvolvimento da sociedade. Ou seja, a relação estudo-trabalho implica a realização
de atividades laboriais e a compreensão dos processos produtivos (atuais e passados,
dos diversos povos, considerando-se as experiências da localidade, da cidade, do país
e do mundo, nos âmbitos material e não material). Não se restringe aos chamados tra-
balhos escolares (no sentido de exercícios de confecção e elaboração, relacionados aos
temas das matérias); nem às representações infanto-juvenis dos brinquedos e jogos (o
“brincar de trabalhar”).

152
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

desse tipo se adapta facilmente às mudanças constantes da técnica.


(KRUPSKAYA, s/d, p. 164 – negritos meus).
Fundamental nessa formação é garantir a compreensão do sur-
gimento e do desenvolvimento da indústria moderna, em seus vários
ramos e nas suas múltiplas relações. A indústria têxtil, por exemplo. O
que cabe à escola? “Não ensinará a tecer ou fiar à mão ou com máqui-
nas” – diz a autora – mas aquilo “que é necessário saber sobre a produ-
ção” (p. 164). Assim, deve garantir o estudo do papel da indústria têx-
til na economia do mundo inteiro e na do país – seu desenvolvimento
histórico (desde as formas artesanais às manufaturas e às maquinarias
recentes, na grande indústria). Quanto às especificidades dessa pro-
dução na URSS, ensinar: onde se localizam as fábricas; matérias pri-
mas utilizadas (linho, algodão, lã, seda) e onde/como são produzidas;
características dos métodos de produção e perspectivas de seu apri-
moramento; profissões/tarefas envolvidas nessa produção, condições
de desempenho e necessidades formativas; organização do trabalho
nas fábricas – na produção têxtil e em outras – e sua relação com a
organização do trabalho em geral; condições de trabalho (seguridade,
remuneração, jornada); trabalho infantil e trabalho da mulher; história
e desenvolvimento atual do movimento operário e sindical (na URSS
e nos países capitalistas); relações internacionais. (Cf. KRUPSKAYA,
s/d, 164-165).
Tudo isso não proporcionará aos alunos uma profissão determi-
nada que talvez se torne inútil no dia de amanhã, mas uma vasta ins-
trução politécnica e hábitos gerais que lhes permitirão chegar à fábrica,
não como peritos cegos que se tropeçam todos, mas como operários
conscientes, hábeis, que só necessitam de uma curta aprendizagem es-
pecial. (Ibidem, p. 165).

Abordagem semelhante deve se realizar em relação a outros ra-


mos industriais e também a outras áreas profissionais. Este é o real
objetivo da escola única do trabalho: consolidar a educação geral e
politécnica – imprescindível para propiciar à juventude as condições
para a escolha da profissão que melhor corresponda às suas tendências
e condições pessoais, considerando-se as necessidades e prioridades

153
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

sociais: “A insuficiente instrução geral e politécnica reduz a liberdade


de escolher a profissão e faz essa escolha depender da casualidade”.
(Ibidem, p. 175).
Tais preocupações devem nortear a definição do conteúdo dos
programas de ensino nos vários ramos e níveis, superando-se as “bar-
reiras entre a escola primária, secundária e superior” em “estreita co-
ordenação da teoria com a prática”. (Ibidem, p. 175)

Os Programas Oficiais da URSS


Como presidente da Seção Científico-Pedagógica (parte da Co-
missão Estatal Científica do Comissariado do Povo para a Instrução
Pública), Krupskaya coordenou a elaboração dos programas de 1º e
2º Graus de 1923 e sua variante de 1927 (PROGRAMAS OFICIAIS,
1935). Nas Indicações Práticas que abrem o Programa, por ela assina-
das, encontram-se as “ideias centrais e fundamentais” que serviram
de base à sua elaboração: “a) o trabalho humano é o eixo em torno
do qual se agrupa todo o material; b) composição por complexos; c)
a atualidade”. (Ibidem, p.12). E, na Nota Introdutória aos Programas
da Escola de 1º Grau, enfatiza-se que: a escola jamais foi apolítica; na
URSS, ela cumpre o duplo papel de travar a luta conta a burguesia e
contribuir para a construção do socialismo; seus principais problemas
são despertar o interesse pela ciência, ensinar a pesquisar, tratar a vida,
o trabalho e o estudo de forma integrada, formar conhecimentos e há-
bitos adequados aos princípios e necessidades da nova sociedade que
se quer edificar. (Cf. Ibidem, p. 22-24).
O estudo do trabalho humano é a base do programa, comportan-
do questões que, em linhas gerais, são tratadas em todas as etapas,
com gradativa complexidade. Orienta-se que o trabalho na família, na
escola, na aldeia, no bairro, na cidade e no país seja tratado na relação
com o trabalho da humanidade, na sua evolução histórica e em suas
características atuais. Mesmo nos anos iniciais, as experiências concre-
tas, vivenciadas ou observadas pela criança, devem ser relacionadas
com o registro de outras experiências, em outros tempos e espaços.
Estudar pela observação do meio e pelos livros – lema recorrente em
artigos e discursos de Krupskaya – aparece com ênfase nas indicações

154
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

metodológicas do Programa. Este é organizado não por matérias, mas


por complexos, que são definidos como “conjunto dos fenômenos con-
cretos tomados da realidade e agrupados em torno de uma ideia ou
tema central e definido. ” (PROGRAMAS OFICIAIS, 1935, p. 26).

Os temas centrais são eixos em torno dos quais todas as forças


da escola devem ser empregadas, incluindo-se o estudo das matérias.
Nesse processo, a elocução, a leitura, a escrita, o cálculo, devem ter
ligação estreita com os fenômenos reais. O estudo deve estar sempre
ligado à histórica luta dos explorados contra os exploradores e voltado
para a apropriação da ciência moderna e a compreensão de sua aplica-
ção na técnica. Para tanto, requer-se a superação de fórmulas prontas
e de sentenças prescritivas. Os problemas propostos não devem ser
artificiais, mas basear-se em situações reais e constituir-se em meio de
estudo. As diversas atividades devem permitir que os alunos desen-
volvam e manifestem iniciativa e criatividade.

No modelo de complexos, o método pedagógico – entendido


como instrumento aperfeiçoado de transmissão de conhecimentos e
de orientação da aprendizagem – depende da matéria em estudo e
das condições de seu ensino. Assim, o melhor método é aquele que
mais permite o desenvolvimento dos alunos e provoca a manifestação
da sua atividade pessoal, com iniciativa e capacidade de trabalho in-
dependente. Ele exige a formação do hábito de trabalho coletivo, que
deve se organizar segundo plano elaborado pelos próprios alunos, de
acordo com as características de sua idade e sob a orientação dos pro-
fessores.

Para o desenvolvimento dos Programas, a Seção Científico-Peda-


gógica orienta as Comissões Locais de Instrução Pública quanto à sua
“individualização”, isto é, a elaboração de esquemas próprios, com
base nas diretrizes gerais.

Considerações Finais

Esse exame (preliminar) das contribuições da autora, a partir dos


artigos e discursos publicados na obra em pauta (Krupskaya, s/d),
aponta estreita relação entre os princípios proclamados/teses defendi-

155
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

das, as análises da situação educacional e as justificativas teóricas e po-


líticas das propostas programáticas. Trabalho interessante seria analisar
tais propostas, quanto ao conteúdo e à metodologia, identificando-se
pressupostos subjacentes e eventuais contradições que, certamente, hão
de existir.
Nos limites deste artigo – e do estudo realizado – não foi possí-
vel tratar da interlocução de Krupskaya com a literatura pedagógica de
sua época, algo que pudesse indicar se e como se apropriou das con-
tribuições de pedagogos burgueses e outros. Há passagens em que ela
cita John Dewey, William James e outros, em alguns casos até aceitando
formulações ou análises. Porém, da leitura que fiz, não depreendo ele-
mentos que justifiquem a crítica, por vezes atribuídas a essa autora, de
que teria aderido a propostas pedagógicas predominantes nos Estados
Unidos da América e que os Programas Oficiais da URSS, elaborados
sob sua coordenação, teriam um quê de escolanovismo transplantado.
Outra questão digna de estudo e reflexão é a concepção de escola
única. A julgar pela formulação de princípios e pelas propostas de orga-
nização e funcionamento do sistema de ensino, não se trata de visão de
uniformidade e homogeneidade, mas de unidade na diversidade. Ou
seja, não há várias escolas dispersas, mas uma escola, com seus vários
ramos, modalidades, graus e níveis, articulados por diretrizes comuns,
a serem seguidas segundo as especificidades. Semelhante ponderação
vale para a ideia de currículo único: as orientações para seu ajuste às
especificidades locais indicam que não se trata de receituário para se
seguir à risca, em toda e qualquer situação.
Evidentemente, o que se discute, aqui, refere-se à concepção, sob
a ótica de uma autora determinada, expressa na obra selecionada. Suas
derivações práticas seriam interessante objeto de estudo.
Por fim, cabe alertar para a necessidade de discutir as contribui-
ções destacadas, considerando-se o tempo, o lugar e as condições de sua
produção. Parafraseando Saviani (1993), trata-se de examinar o texto e
o contexto, a letra e o espírito, as linhas e as entrelinhas. Do contrário, o
estudo pode se limitar a um elenco de “curiosidades” ou, o que é pior,
pode resultar num conjunto esquemático de ideias traduzidas em mo-
delo, que os simpatizantes extemporaneamente se propõem a seguir e

156
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

os desafetos abordam para tecer a crítica, de modo descontextualizado.

Referências Bibliográficas
FREITAS, L C de. A luta por uma pedagogia do meio. In: PISTRAK, M. M. A Escola-
Comuna. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
KRUPSKAIA, N. Acerca de la Educacion Comunista - Articulos y Discursos. Tradu-
cido del ruso por V. Sanchez Esteban. Moscú. Ediciones en Lenguas Extranjeras.
S/d. LENINE, V. I. . Sobre a Educação. Lisboa: Seara Nova, 1977. [2 vols.]
LENIN. La Instrucción Pública. Moscú: Editorial Progreso, 1981.
MARX, K. 1987. O Capital. Livro 4 – Teorias da Mais-Valia. Volume 1. São Paulo:
Bertrand Brasil. Último capítulo [s/ nº] Produtividade do Capital. Trabalho Pro-
dutivo e Improdutivo – pp. 384-406.
PROGRAMAS OFICIAIS. A educação na República dos Soviets. Tradução de Violeta
Sandra. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935.
SAVIANI, D. Análise Crítica da Organização Escolar Brasileira através das Leis nºs
5540/68 e 5692/71. In: Educação – do senso comum à consciência filosófica.
Campinas: Autores Associados. 11ª Ed., 1993 – p. 191-223.
SAVIANI, N. Educação e Pedagogia na Rússia Revolucionária. In: LOMBARDI, J.
C. Disciplina Pedagogias Marxistas. Aula 4. Unicamp, Faculdade de Educação,
2010. http://cameraweb.ccuec.unicamp.br/video/cw0aWacZZY/

157
Anatoli Vassilievitch Lunatcharski
e os princípios da escola soviética1
Zoia Prestes
Elizabeth Tunes

Resolução do Comissariado do Povo para a Educação sobre a


revogação de nota

Parágrafo 1o: Fica revogada a aplicação do sistema de avaliação dos co-


nhecimentos e do comportamento dos estudantes em todos os casos da
prática escolar sem exceção.
Parágrafo 2o: A transferência de uma série para outra e a emissão de
Certificados serão feitas com base no êxito dos estudantes, segundo pa-
receres do conselho pedagógico sobre a realização do trabalho acadêmi-
co.
Assinado: Anatoli Lunatscharki
Comissário do Povo para a Instrução Pública
Maio de 1918

No momento em que Lunatcharski, o primeiro Comissário do


Povo para Instrução Pública da Rússia Soviética, assinou a Resolução
apresentada em epígrafe, a Revolução Socialista Russa de 1917 estava
entrando apenas no seu sétimo mês e, como é possível observar pelo
documento, o vertiginoso fluxo do processo revolucionário de ruptura
com o velho sistema não se dava apenas no campo político, mas em
todas as frentes, e a organização do sistema de educação era uma das
1 Artigo publicado originalmente na Movimento – Revista de Educação da Faculdade
de Educação da Universidade Federal Fluminense (Niterói, RJ), edição 6, p. 254-271.

159
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

tarefas mais importantes para que o novo regime se firmasse. Estava


em pauta a formação do novo homem. A Resolução, além de escanca-
rar as portas da escola, dando acesso a todos e rompendo com o seu
modelo monárquico elitista, evidencia a visão humanística de Lunat-
charski, ao propor a abolição da avaliação dos estudantes com a atri-
buição de nota, adotada na escola tzarista, pois caso prevalecesse, seria
impossível que os filhos de trabalhadores e camponeses ingressassem
e permanecessem na escola já que não poderiam atender ao padrão
de conhecimento aos quais os professores da “velha escola” estavam
acostumados.
O documento também transpira o contexto histórico: seria impos-
sível uma escola genuinamente socialista sem assumir que o seu ver-
dadeiro dono é o povo trabalhador e mais ninguém, como ele mesmo
destaca em um dos seus discursos:

“Primeiramente, liquidamos os restos do antigo aparelho, suprimimos


a função de procuradores dos distritos, de directores e inspectores das
escolas. Esta reforma foi preparada durante vários anos, agora acaba-
mos com ela. Seguidamente, foi necessário suprimir da escola as carac-
terísticas inaceitáveis para nós e publicamos um decreto proibindo o
ensino do catecismo, eliminando o latim dos programas; revogamos os
certificados de maturidade, substituindo-os por certificados de fim de
curso, suprimimos as notas e introduzimos o ensino misto. Qualquer
pedagogo reconhece que estas reformas são uma condição indispensável
para uma escola minimamente normal.”
“Mais não fizemos do que varrer da escola o velho pó, do que desemba-
raçá-la de certas taras que saltam aos olhos. Feito isto, é tempo de ime-
diatamente se passar a uma verdadeira reforma construtiva da escola”
(LUNATCHARSKI, 1988, p. 16).

Anatoli Vassilievitch Lunatcharski nasceu em 23 de novembro de


1875, numa cidadezinha chamada Poltava, na Ucrânia. Com três anos
mudou-se para a cidade Nijni Novgorod e ficou aos cuidados do pai
Aleksandr Ivanovitch Antonov (1829-1885), primeiro marido de sua
mãe, Aleksandra Iakovlevna Rostovtseva (1842-1914). Segundo Lunat-
charski, seu pai era um homem com ideias revolucionárias e democrá-
ticas e foi quem impulsionou seu espírito ateísta.

160
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

A casa em Poltava em que


nasceu A. V. Lunatcharski.
Fonte: http://lunacharsky.
newgod.su/

Não há muita informação a respeito do fato de Anatoli ter ado-


tado o patronímico e sobrenome do padrasto, Vassili Fiodorovitch
Lunatcharski. No entanto, ele afirma que ser filho de um funcionário
público com ideias liberais foi muito marcante em sua vida e, em suas
recordações, os pais são retratados como pessoas muito corajosas e ati-
vas. Além disso, lembra também, como era muito comum nas famílias
nobres da intelectualidade, que, ainda muito pequeno, gostava de ficar
sentado num sofá até tarde da noite, ouvindo como Aleksandr Ivano-
vitch lia para sua mãe obras de autores clássicos russos e estrangeiros,
prestando atenção aos comentários que acompanhavam a leitura do
pai.
Após uma cirurgia malsucedida, seu pai faleceu e a mãe viven-
ciou a perda de forma muito difícil, mudando radicalmente sua perso-
nalidade: de uma mulher alegre, feliz e amável, transformou-se numa
pessoa triste, fechada e rígida. Anatoli tornou-se o principal alvo de
todas as reclamações da mãe, segundo ele, não apenas por ser muito
parecido com o pai, (bonachão, gordinho), mas também por ter total
aversão a qualquer atividade física; preferia ficar em casa lendo e isso
irritava sua mãe. Logo começou a manifestar duras críticas ao compor-
tamento da mãe e dizer que “a casa se tornou uma casa de proprietá-
ria de terras”. O ambiente piorou muito, por isso passou a ficar mais
tempo na rua com os amigos. No entanto, mesmo fazendo inúmeras
cobranças, a mãe gostava muito dele. Aquela convivência mais harmô-
nica, que havia anteriormente, mudou, mas seu sentimento em relação

161
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

à mãe continuava igual. Ele mantinha uma boa relação com ela, gosta-
va muito dela e respeitava-a.
Anatoli Lunatcharski nutria um verdadeiro ódio pela escola e o
declarou ao falar do ensino de matérias desnecessárias que eram en-
sinadas de forma “seca”, sem despertar nenhum interesse. Por ser um
aluno mediano, terminou a escola primária e o ginásio com notas mé-
dias. Muitos pesquisadores da vida e da obra de Lunatcharski ainda se
impressionam com o fato de que ele se formou no ginásio apenas com
20 anos, ou seja, bem mais tarde que seus colegas. Ele mesmo registrou,
em sua biografia, que repetiu de ano e por isso perdeu dois anos. Mas
vale revelar um fato curioso: enquanto na escola era considerado um
aluno mediano, tanto em conhecimento como em comportamento, em
casa, já tinha lido os grandes filósofos: aos quatorze anos leu Marx e
estudou Mill. Em sua autobiografia, contou que com quinze anos já ti-
nha lido o primeiro volume de O Capital, de Marx, e que com a mesma
idade ingressou no Partido Social-Democrático Russo, considerando-
-se um “social democrata”, porém marxista (LUNATCHARSKI, 2017).

V. Lunatcharski com 13 anos


Fonte: http://lunacharsky.newgod.su/

A partir desse momento, Lunatcharski começou a assumir uma


posição ideológica de esquerda e a fazer parte de uma organização
política, fazendo propaganda entre os ferroviários na cidade onde mo-
rava e participando do processo revolucionário que estava sendo ges-

162
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

tado no final do século XIX e início do século XX, na Rússia. Por ser um
jovem politicamente suspeito, as portas da Universidade da Rússia es-
tavam fechadas para ele. Então, tentou convencer a mãe de que a saída
seria estudar fora da Rússia. Depois de resistir muito, ela aceitou que
ele fosse para uma Universidade em Zurique, onde tornou-se aluno
de Pavel Akselrod, filósofo russo marxista que praticamente o adotou.
Além disso, estudou também com Avenarius, filósofo francês. Lunat-
charski destacou em sua biografia que estes dois pensadores influen-
ciaram sobremaneira sua visão de mundo, pois ambos deram muito
suporte a seus estudos e o ajudaram a definir seus interesses.

Um dos biógrafos de Lunatcharski afirma que o interesse por fa-


tos da sua vida e pela obra foi despertado mais recentemente, porém,
na sua maioria, se resume a sua atuação no Comissariado para Instru-
ção, desconsiderando sua enorme produção intelectual literária. Além
disso, algumas informações mais detalhadas sobre sua formação tam-
bém só ficaram conhecidas nos últimos anos.

É curioso que, pelo visto, sem desconfiar disso, Anatoli Vassilie-


vitch seguiu os passos do avô, tornando-se estudante ouvinte da Uni-
versidade de Munique, participando, de acordo com sua escolha, de
aulas nas Universidades de Nice, Reims, Paris e da Universidade de
Moscou, por ocasião de seu retorno à Rússia em 1898. Em suas memó-
rias Recordações de um passado revolucionário, Anatoli Vassilievitch
escreveu:

“Minhas aulas na Universidade de Munique, que duraram menos de


um ano, foram muito férteis... Eu afundei em livros de filosofia, histó-
ria, sociologia e elaborei para mim mesmo um programa, combinando
o departamento de filosofia da faculdade de ciências naturais, seu de-
partamento naturalístico, e algumas aulas da faculdade de direito e, até
mesmo, com aulas do Politécnico de Munique. Os cursos importantíssi-
mos nesse programa para mim foram: a anatomia, com Martin; a fisio-
logia, com Gaulle; e principalmente a fisiologia das sensações, com Vla-
sak; a economia política, com Platten. Mas, é claro, tudo passava para
o segundo plano – no sentido das minhas aulas universitárias – diante
dos trabalhos de Avenarius...” (LUNATCHARSKAIA, 1979, p.

163
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Lunatcharski estudou e se formou em filosofia. Além disso, de-


dicou-se também à arte e escreveu muitas críticas e resenhas. Lenin se
referiu a ele, certa vez, dizendo que era um homem “diabolicamente
inteligente”. Realmente, ele possuía um saber enciclopédico, era fluen-
te em onze línguas e, por isso, conhecia bem, e no original teóricos
com os quais dialogava em seus trabalhos. Era um homem muito culto,
muito sábio, muito tranquilo e admirado. Escreveu diversos livros que
são pouco conhecidos, principalmente, no Ocidente, inclusive roman-
ces e resenhas literárias.

Obviamente, sua militância no partido desde muito jovem e sua


ativa participação no processo revolucionário o levaram à prisão na
Rússia várias vezes. Para escapar de algumas, preferiu permanecer no
exterior como um típico representante da elite intelectual russa do fi-
nal do século XIX, um exemplo entre muitos intelectuais que a Rússia
formou, que participaram ativamente do movimento revolucionário
de organização do novo regime e que entraram na luta conscientemen-
te, com ideais, esperança e muita determinação. Abdicou também do
seu título de nobreza.

Com a vitória da Revolução e a instalação do poder dos Sovietes,


por ser um homem de inúmeras qualidades, saberes valiosos e sólida
formação, Lunatcharski foi indicado por Lenin para ocupar o cargo de
Comissário do Povo para a Instrução Pública – órgão do governo so-
viético responsável pelo sistema de instrução e educação. Ele aceitou e
assumiu, registrando da seguinte forma em seus escritos:

“Estão me dando uma responsabilidade muito grande e como vou con-


duzir isso?”. Um tempo depois de ser nomeado, segundo Lunatchaski,
Lenin o encontrou nos corredores do quartel general da revolução e lhe
disse: “Anatoli, preciso falar com você, preciso comentar duas coisas e
dar algumas instruções a respeito de suas novas responsabilidades. No
entanto, neste momento, estou sem tempo e ainda não organizei o que
pensei e o que você tem que fazer nestes primeiros passos da revolução,
principalmente, na educação. É claro que vamos ter que revirar muita
coisa e seguir por novos caminhos” (LUNATCHARSKI, 2017, p. 185).

Há inúmeras passagens que narram a relação de confiança que

164
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Lunathcarski mantinha com Lenin. Algumas delas, sem dúvida, estão


relacionadas à Revolução Cultural que era parte integrante da Revo-
lução Socialista, juntamente com o trabalho na educação - uma das
principais tarefas dessa Revolução. Segundo Lenin, era preciso educar
pessoas ativas e participantes da construção da sociedade socialista,
formadas com uma visão dialético-materialista de mundo e da moral
comunista. Para isso não bastava liquidar o analfabetismo, decretar a
educação pública gratuita, reforçar a escola, oferecer uma educação
dentro dos princípios comunistas, mas também defender a arte. E
como um intelectual preocupado com a formação estética, em diferen-
tes momentos Lunatcharski teve que enfrentar algumas resoluções de
Lenin com as quais não concordava, como no caso em que se decidiu
cortar as verbas do Teatro Bolchoi “qualificando-o de ‘cultura tipica-
mente latifundiária’ e a ópera do Bolshoi ‘de estilo cortesão luxuoso’”
(FISCHER, 1967, p. 710). No entanto, por outro lado, Lenin defendia
o cinema como meio de propaganda e educação política das massas
(Idem).
Ao assumir o cargo de Comissário para Instrução, Lunatcharski
colocou na ordem do dia a tarefa de transformar a velha escola do
regime monárquico, que era voltada apenas para filhos da nobreza,
em uma escola pública para toda a população, uma escola baseada nos
princípios da laicidade, da obrigatoriedade, da acessibilidade, da ges-
tão democrática, da diversidade, do respeito às diferenças nacionais e
locais (1982, p. 335). Além desse desafio, havia muitos outros, mas foi
a este que Lunatcharski dedicou especial atenção, conclamando os do-
centes para a tarefa de erigir a nova escola que, como apontava Lenin,
teria um papel primordial na construção da nova sociedade socialista.
Tendo os professores como os personagens principais da tarefa
que se apresentava, apenas em 1918, na República Federativa Socia-
lista Soviética da Rússia, foram realizados 164 Congressos locais (em
cidades e regiões) de docentes e 81 Congressos dos trabalhadores da
instrução pública (1988, p. 247).

“Antes de mais nada, devíamos construir correctamente o departamen-


to da Instrução Pública. Estava fora de questão o carácter burocrático.
Queremos um autêntico poder do povo, isto é, a entrega de todo o poder

165
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

às massas. A nossa orientação é, portanto, a de interessar a população


pela escolaridade, de modo a que o professor seja eleito e controlado pela
população, que a população local, organizada em comitês ou em sovie-
tes, assuma a direção suprema da escola. Sabíamos que em muitos locais
não íamos ser compreendidos: camadas populares de opinião comunista
ir-nos-iam seguir, mas toda a massa da pequena burguesia, a massa dos
camponeses incultos a quem escapa o sentido da nova reforma, que só
vê nela inquietação, que tende a dar marcha atrás – são massas bastan-
te amplas – não iriam ao encontro da nossa reforma, e é por isso que
muitas das questões relativas à escola devem em última instância ser
decididas pelo governo”(LUNATCHARSKI, 1988, p. 13-14).

Para formar professores era necessário pensar na ampliação do


acesso da juventude proletária às instituições de ensino superior. Le-
nin fez a defesa da revolução cultural e, para ele, a tarefa de construção
da nova escola e da formação do novo homem estava no âmbito da
revolução cultural e os professores deveriam ser aqueles que levariam
a cultura para o povo. Lenin afirmou que Lunatcharski deveria convo-
car os intelectuais e conversar sobre a participação deles nessa luta. E
nesse processo seria muito importante, uma vez que seriam os profes-
sores formados com a ajuda deles, que iriam fazer a revolução cultural.
A palavra era convocar, pois era preciso contar com especialistas em
diversas áreas, já que Lenin tinha consciência de que apenas com os
comunistas, membros do partido, eles não iriam muito longe.

V. Lunatcharski e V. I. Lenin em
1919
Fonte: http://lunacharsky.newgod.
su/

166
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Como um intelectual do campo da literatura, filósofo e um ho-


mem politicamente comprometido com a formação intelectual da ju-
ventude, Lunatcharski escreveu vários artigos em que aborda ideias
valiosas sobre questões da educação no novo regime, indicando com
clareza os pontos que considerava mais desafiadores: a escola burgue-
sa não servia, mas qual escola deveria servir? De que escola precisa o
estado proletário? Como seria essa escola? O que é educar no socialis-
mo? Qual seria o papel da educação estética? Qual formação deveria
ter o pedagogo?

“Para nós é importante que o pedagogo seja o homem mais universal e


mais perfeito do Estado, porque ele deve ser a fonte da alegre transfor-
mação dos pequenos seres que vivem pleno processo de desenvolvimen-
to progressivo e suas forças. É nisso que consiste a alta vocação do peda-
gogo, e é incontestável que nenhuma outra profissão coloca ao indivíduo
exigências semelhantes. O pedagogo deve realizar na sua pessoa o ideal
humano. Mas, simultaneamente, o pedagogo como especialista, deve ser
um tanto limitado, razão por que os pais, eles também, devem participar
da administração da escola” (LUNATCHARSKI, 1988, p. 22).

Era o ano de 1918, mas as críticas que Lunatcharski fazia são atu-
ais até hoje. A formação de professores e pedagogos ainda se apresen-
ta como um grande nó na educação, especialmente em países como o
Brasil. No entanto, pode-se perceber que não se tratava de pensar em
modelos nem de escola e muito menos de profissionais da educação.
Era necessária uma escola nova, em um país que estava em processo
revolucionário, era preciso avaliar e respeitar a herança cultural, mas
não havia um modelo, não se sabia aonde iriam chegar, porém, ha-
via uma proposta. E nela estava a formação do novo homem, o novo
homem livre para pensar e escolher, homem formado com visão de
mundo, com visão estética, capaz de se posicionar e conviver com as
diferenças.
Seguindo as recomendações de Lenin, Lunatcharski faz a con-
vocação e muitos intelectuais decidem deixar a Rússia, porém outros
tantos ficaram e colaboraram com o novo regime, participando do pro-
cesso de formação de novas gerações de professores. No III Congresso
da Juventude Comunista, em outubro de 1920, Lenin fez um discurso

167
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

em que destacou a principal tarefa da juventude: estudar, estudar e


estudar. A ênfase deveria estar nos estudos sem negar toda herança
cultural deixada, pegar o que de melhor havia sido produzido e tornar
disponível para todos. Essa seria a verdadeira revolução cultural para
o povo. Obviamente, as instituições educacionais desempenhariam
um papel importantíssimo nessa revolução cultural, seria por meio de-
las que a revolução cultural teria início.
No artigo As tarefas das escolas soviéticas no plano da educação
(LUNATCHARSKI, 1988, p. 223), ele afirma:

“A educação política das novas gerações, que deverão tomar o lugar das
actuais, está longe de ser tudo: as tarefas econômicas exigem com não
menor premência uma atenção em relação ao indivíduo. Reeducar os
adultos, educar os adolescentes e as crianças são outras tantas premis-
sas para ulteriores êxitos, econômicos e políticos, sem falar do facto de
que assim se transforma a vida dos homens, o que confere a todo movi-
mento proletário o seu verdadeiro sentido. É dentro deste espírito que o
processo pedagógico ocupa um dos lugares capitais.
Vladimir Ilitch [Lênin] tinha razão quando dizia que a nossa ge-
ração será obrigada a empreender a reconstrução da vida dos homens se
bem que esteja ainda atolada nos velhos preconceitos e nas antigas tor-
pezas. Somos pessoas mutiladas, ainda não somos socialistas: estamos
sobremaneira a ver a tendência para isso, mas é com dificuldade que
sabemos mais ou menos correctamente adaptar o nosso comportamento
àquilo que queremos.”

Em outro texto, Lunatcharski aponta para sua visão da educa-


ção na sociedade socialista e diz:

“O socialismo é uma sociedade humana normal, cujo princípio funda-


mental e essencial é a simples noção de comunidade de todos os homens
para o bem de todos.
A questão é, portanto, a de saber realmente como o organizar. E trata-se
de uma questão gigantesca. Mas o essencial é claro: para que cesse a
exploração do homem pelo homem é preciso unir forças com vista a um
objectivo comum. Em consequência, uma sociedade normal deve ser
concebida e organizada com a finalidade de todos dela tirarem proveito

168
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

e não apenas alguns privilegiados. Só a partir deste momento a pedago-


gia começa a tornar-se normal, pelo menos em esperança. A educação
normal é social, por isso – no que diz respeito à finalidade da educação
– não é questão de contradição entre educação individualista e social”
(LUNATCHARSKI, 1988, p. 36).

É possível perceber que, para ele, a educação tem uma função


social e que ela acontece também no espaço escolar, mas, ao mesmo
tempo, a escola é alvo de suas críticas em função de sua forma de se
organizar. Sua defesa é em prol da diversidade e não de um padrão de
escola.

“(...) Não queremos que, em todas as províncias e distritos, todas as es-


colas sejam de um único e mesmo tipo: pelo contrário, quanto maior for
a diversidade, tanto melhor, mas, naturalmente que o admitimos dentro
de certos limites. Não se pode obrigar as crianças a ficarem sentadas
várias horas nas carteiras a respirarem a poeira e o ar viciado. Aí tra-
tar-se-ia não de diversidade, mas de estupidez” (LUNATCHARSKI,
1988, p. 21).

Evidentemente, a questão da diversidade de escolas estava rela-


cionada com outra questão apresentada desde a vitória da Revolução
com o lema todos na escola! Por isso, também, editou-se a Resolução
com a abolição da avaliação por notas, porque, se houvesse a avaliação,
no momento de acesso, as crianças deveriam, obviamente, correspon-
der a um determinado padrão estabelecido pela escola que já existia.
Então, as crianças que nunca frequentaram a escola e deveriam, a par-
tir de então, ter acesso a ela, jamais o teriam. Além disso, a avaliação,
do ponto de vista de Lunatcharski, não deve ter a finalidade de avaliar
o resultado; para ele, o conhecimento não é produto da educação e da
instrução, mas um meio para o desenvolvimento do ser humano.

Segundo seu modo de pensar, o desenvolvimento humano é inse-


parável da arte e da educação artística. Como um homem preocupado
com a arte e o seu papel na educação, Anatoli Vassilievitch destacou,
em diferentes obras, a importância da educação estética e o quanto
estava fora dos debates.

169
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

“A arte organiza o coração dos homens, do mesmo modo que a ciência


organiza as cabeças, e o seu resultado directo é o entusiasmo moral das
massas. Ora, para que isso aconteça, essa arte não deve ser a arte de-
pravada para qual tendeu a burguesia durante o último período da sua
existência... Sempre na arte do passado houve numerosos grupos de
intelectuais que se revoltaram muito energicamente contra o espírito
burguês. No curso de toda história, procuraram permanentemente criar
uma consciência artística, uma arte ao mesmo tempo religiosa e estéti-
ca” (LUNATCHARSKI, 1988, p.68).
“Falamos de tudo num período ao mesmo tempo feliz e infeliz, quando
voávamos, qual Ícaro, nas asas de cera do nosso entusiasmo revolucio-
nário. Essas asas de cera derreteram e pouco a pouco fomos descendo à
terra de pecado. Mas há que lembrar que o fizemos para em seguida de
novo elevarmo-nos, diminuímos por um momento nossa exigência para
com a escola para depois abalançarmos num impulso melhor.
A educação artística é outro enorme tema da educação. Neste domínio,
quase nada se faz. Quando no Comissariado do Povo para a Instrução
foram elaborados os princípios da escola soviética, dispensamos gran-
de importância à educação artística. Seguidamente, por falta de meios,
nada ficou da educação artística, salvo aqui e ali aulas de canto, um
pouco de teatro ou desenho de arte, e alguns dos meus colegas de es-
pírito realista até me disseram que a predileção pela educação artística
se devia pelo facto do Comissário do Povo ser um original apaixonado
pela arte que queria introduzi-la na escola, mas que na realidade isso
era a quinta roda da carroça, como a gente sabe. Quando formos ricos,
poderemos pensar na arte
Este ponto de vista denota uma extrema ignorância. A educação artísti-
ca é um factor de educação particularmente importante, e não só porque
é agradável desenvolver no aluno este ou aquele dom artístico, para
que ele possa cantar, tocar violino ou desenhar bem, e também não só,
como com frequência dizem os pedagogos burgueses, para desenvolver
na criança capacidade de fruir a natureza e as obras artísticas que lhe
permitam sentir-se feliz.
O importante não reside nisso. O importante é que quase não existe
outro meio de educar as emoções humanas e, por conseguinte, a vonta-
de humana. Claro que é necessário ligar a educação à vida social. Mas
notem que as festas não se compõem, do princípio ao fim, por elementos
artísticos. A própria vida, tal como ela é, tão caótica e contraditória que

170
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

mal podemos servir-nos dela com base pedagógica, é preciso organizá-


-la. E essa organização podemos sobretudo consegui-la graças à arte:
musica, literatura, teatro, cinema, artes plásticas. Visto que colectiva-
mente são criadas pelas crianças obras de arte, ou por elas assimiladas,
elas vão produzir na sua consciência uma impressão indelével. A este
propósito, o génio de Tolstoi foi plenamente expresso nesta definição: a
arte é antes de mais uma organização de palavras, de sons, de linhas,
de cores, etc., que dá como finalidade a comunicar a uma massa de
ouvintes, de espectadores, de leitores, etc., os estados de alma, os sen-
timentos, as emoções do autor. Isso é principalmente força de comuni-
cação, é o elemento importante que difunde a imitação, e se o pedagogo
de modo nenhum é um artista, de modo nenhum será pedagogo. Ser
artista significa, antes de mais, organizar os meios de expressão que
ajam directamente sobre os sentimentos humanos, e transformá-los”
(LUNATCHARSKI, 1988, p. 214-215).

A questão da educação estética continua fora dos nossos deba-


tes hoje; ela não é apresentada como questão para a educação.

V. Lunatcharski Comissário do Povo


para Instrução Pública
Fonte: http://lunacharsky.newgod.su/

171
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Vem à mente a cena do filme soviético Poslanniki vetchnosti (Mis-


sionários da eternidade). O roteiro trata de um dos personagens que,
na Revolução de Outubro, teve como tarefa a preservação do Palácio
de Inverno e de todas as obras de arte que estavam em seu interior. Ao
tomarem o Palácio, soldados e marinheiros receberam a orientação de
que tudo deveria ser preservado. A ordem vinha expressamente de
Lênin: não destruir nada e preservar tudo. Numa determinada cena, os
soldados entram numa sala em que há uma réplica da Vênus de Milo
e ficam em volta admirando a escultura. Quando chega à sala o chefe
do batalhão, ele observa a escultura e diz: “Quem arrancou os braços
da mulher?”
Com a ascensão de Stalin ao poder, após a morte de Lenin em 1924,
Lunatcharski é destituído do cargo de Comissário e sua atuação passa a
ser na área cultural e ele viaja pelo país com palestras.
Em dezembro de 1931, Lunatcharski responde aos críticos que
viam em suas obras “um sistema de opinião não-marxista e não-leninis-
ta sobre a literatura e a arte”, propondo organizar um grupo especial de
pessoas competentes que apresentaria um esclarecimento completo de
aspectos positivos e negativos a respeito de seus trabalhos o que possibi-
litaria uma avaliação de sua parte também. Percebe-se que Lunatcharski
não era um homem vaidoso e orgulhoso, pois sua principal preocupa-
ção era discutir amplamente a obra, mas, infelizmente, o que ele deseja-
va não aconteceu.
O escritor Gorki, assim como fez com vários participantes do
movimento revolucionário, o incentivou a escrever um livro autobio-
gráfico e escreveu a Lunatcharski no outono de 1932:

“O senhor viveu uma vida difícil, mas muito iluminada e realizou um


grande trabalho. Durante muito tempo, quase a vida inteira, caminhou
ombro a ombro com Lenin e com os companheiros mais destacados. O se-
nhor, como ninguém, pode fazer isso – apresentar um maravilhoso retra-
to de A. A. Bogdanov [Malinovski]. Domina a palavra como um artista
da palavra e quando quiser... O livro seu sobre sua vida é objetivamente
necessário” (LUNATCHARSKI, 1925, p. 19)2.
2 As citações seguintes foram traduzidas do russo para o português por Zoia Prestes.

172
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Uma característica muito interessante é apresentada por Trotski, ao


saber da morte de Lunatcharski:

“Como comissário do povo para instrução, Lunatcharski era insubsti-


tuível na relação com os velhos círculos universitários e pedagógicos em
geral que, convictamente, aguardavam “dos usurpadores ignorantes” a
total liquidação das ciências e das artes. Lunatcharski com entusiasmo e
sem dificuldade mostrava para esse mundo fechado que os bolcheviques
não apenas respeitam a cultura, mas que também não são alienados para
conhece-la. Muito sábio da cátedra teve que, naqueles dias, olhar boquia-
berto para esse vândalo que lia em meia-dúzia de novas línguas e em
duas clássicas e que, de passagem, manifestava inesperadamente uma tal
erudição diversificada que bastaria facilmente para uma dezena de pro-
fessores acadêmicos. O aceite em colaborar com o poder soviético por par-
te da intelectualidade diplomada e patenteada pertence a Lunatcharski.
Porém, como organizador direto do sistema de educação ele revelou-se
fraco. Após as primeiras malsucedidas tentativas, em que a fantasia de
diletante se trançava com a fragilidade administrativa, Lunatcharski dei-
xou de pretender ocupar qualquer direção na prática. O Comitê Central
designava para ele ajudantes que, acobertados pela autoridade pessoal do
Comissário do Povo, mantinham com firmeza as rédeas em suas mãos.
Assim, sobrava mais tempo para Lunatchsrski se dedicar, nas horas de
descanso, à arte. O Ministro da revolução era não apenas um apreciador
e conhecedor do teatro, mas um fértil dramaturgo. Suas peças desvelam
toda a diversidade de seus conhecimentos e interesses, a impressionante
leveza de penetração na história e na cultura de diversos países e de épo-
cas, finalmente, uma capacidade ímpar de combinar a invenção com o
adquirido. E mais, não há um carimbo do autêntico gênio nelas.
Em 1923, Lunatcharski publicou o tomo “Silhuetas”, dedicado a carac-
terísticas dos líderes da revolução. O livrinho veio à luz num momento
muito impróprio e basta dizer que o nome de Stalin sequer era menciona-
do. Já no ano seguinte, “Silhuetas” foi censurado e Lunatcharski se sentiu
meio desonrado. No entanto, mesmo neste momento seu traço feliz, a
complacência, não o deixou. Rapidamente se reconciliou com o golpe no
coletivo que dirigia e se rendeu por completo aos novos donos da situa-
ção. Porém, permaneceu até o fim como uma pessoa estranha nesse meio.
Lunatcharski conhecia muito bem o passado da revolução e do partido,
conservou interesses bem diversos e, enfim, era muito bem formado para

173
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

não compor uma mancha imprópria nas fileiras da burocracia. Demi-


tido do posto de Comissário do Povo, em que, aliás, conseguiu realizar
até o fim sua missão histórica, Lunatcharski permaneceu praticamente
sem função até ser designado embaixador na Espanha. Porém, ele não
conseguiu ocupar o novo posto: a morte o alcançou em Menton. Não só
amigo, mas até um adversário honesto não negará respeito até mesmo a
sua sombra” (TROTSKI, 2017).

Em 1932, Lunatcharski adoeceu e viajou para tratamento na Alema-


nha. No ano seguinte, ele é nomeado Embaixador da URSS na Espanha
por Stalin, porém o tratamento não surtiu efeito e ele falece sem assumir
o posto.
Para finalizar este breve artigo, é importante destacar que, com Sta-
lin no poder, o sonho da Revolução Socialista Russa foi desvirtuado.
No entanto, a história da humanidade jamais poderá desconsiderar a
enorme importância que teve a educação no processo de construção do
novo país. Seus princípios foram anunciados e desenvolvidos por Ana-
toli Vassilievitch Lunatcharski – homem de grande valor humano e que
elaborou os fundamentos da escola socialista, tendo por base as tarefas
urgentes da escola, a instrução como base da cultura e a arte como or-
ganizadora do coração do humano. Provavelmente, seu desejo também
era que qualquer pessoa soubesse que a Vênus de Milo é uma das obras
de arte mais maravilhosas criadas pelo homem e que seus braços não
foram arrancados por soldados “ignorantes” da Revolução.

Referências Bibliográficas
FISCHER, L. A vida de Lênin. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.
LUNATCHARSKI, A. V. Artigos e discursos sobre a instrução e a educação. Mosco-
vo: Edições Progresso, 1988.
LUNATCHARSKI, A. V. Iz neopublicovannoi avtobiografii. Disponível em: http://
lunacharsky.newgod.su/lib/vospominaniya-i-vpechatleniya/iz-neopubliko-
vannoj-avtobiografii Acessado em 25 de março de 2017 às 14:30.
KONSTANTINOV, N. A., MEDINSKI, E.N. e CHABAIEVA, M.F. Istoria pedagogiki.
Moskva: Prosveschenie, 1988 (em russo).
TROTSKI, L. Anatoli Vassilievitch Lunatcharski. Disponível em: http://lunachar-
sky.newgod.su/bio/trockij-o-lunacharskom Acessado em 30 de abril de 2017 às
17:37.

174
Transformações educacionais nos
anos de 1930: planos quinquenais,
formação escolarizada e educação
social1
Leandro Sartori

Resumo

O texto tem por objetivo discutir alguns problemas pedagógi-


cos característicos do final dos anos de 1920 na URSS e inventariar as
opções educacionais tomadas como eixo da educação formal a partir
dos anos de 1930. A despeito de existir ampla possibilidade de fontes
a serem pesquisadas, este é um período muito criticado da história
soviética e com poucas pesquisas que se dediquem a aprofundar os
debates. Optamos, neste trabalho, por abordar a legislação produzida
entre 1931 e 1936. Cresce a expectativa em relação a atuação da escola
na preparação das pessoas para atuar produtivamente e para compre-
ender os dilemas da atualidade a partir da luta de classes.

A Revolução Russa não é propulsora de insurreições socialistas


nos países de capitalismo central, como se supunha - isso não nega o
valor da revolução para as esquerdas no mundo. Como a revolução
não rebenta nos países mais avançados, a tática vigente é de forta-
1 Este artigo é um desdobramento da Aula 10, com o mesmo título, aplicada no curso
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética, promovido pela ELAHP. A aula foi
virtual no dia 05 de dezembro de 2020. Tenho por base minha tese, intitulada História
da Educação Soviética: a transição como processo de aprendizagem - que consta devidamente
citada nas referências do artigo.

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Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

lecimento nacional. Dentre os intelectuais do Partido Comunista da


União Soviética, Stalin (1979)2 destaca a relevância de se pensar a na-
ção e, em particular, o desenvolvimento econômico da União das Re-
públicas Socialistas Soviéticas (URSS) como condição de sustentar o
processo revolucionário naquele país. Tal ênfase ganha relevo em fins
da década de 1920.

As supostas atrocidades cometidas pelo governo socialista ainda


não pesam tanto sobre a imagem da URSS naquela época. Ao contrá-
rio, há certo entusiasmo ao observar a sociedade socialista:

(...) seria por demais dizer que essas instituições são deliberadamente
planejadas com o único objetivo de desintegrar a vida familiar; há ou-
tras causas mais visíveis sem dúvida. Elas fazem parte de toda uma
rede de agências por meio do qual o governo soviético demonstra seu
cuidado especial com a classe trabalhadora a fim de obter o seu apoio
político e ministrar uma lição prática da importância do trabalho no
regime comunista. (DEWEY, 2016, p. 72)

Efetivamente, há uma preocupação para com a classe trabalha-


dora, suas condições de vida e a própria elevação da qualidade do
trabalho. À educação escolar, portanto, é atribuída a função de cola-
borar para a qualificação e otimização dos processos de trabalho. Ob-
serva-se, também, preocupação com ampliação do acesso às artes. Es-
ses “benefícios sociais” se estendem ainda a outros aspectos da vida,
como a construção das moradias – as Stalisnkas, por exemplo. Há que
se aprofundar a pesquisa sobre estes múltiplos aspectos que envol-
vem a vida dos soviéticos e suas condições de vida, escolarização e
acesso à cultura.

Os planos quinquenais que passam a ser orientadores das polí-


ticas estatais delineiam a necessidade de superação de alguns limites
colocados desde a Nova Política Econômica (NEP). Com a NEP as em-
presas se tornam unidades administrativas e passam a ter direitos de
vender e trocar seus produtos, o que termina por ratificar a existência
2 Neste aspecto em específico, Pierre Villar, ferrenho crítico de Stalin, reconhece suas
contribuições teóricas para pensar a singularidade do conceito de nação nos primeiros
anos do século XX.

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Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

da propriedade privada. Com esta permanência se consolidam trustes


e carteis que inviabilizam a expansão e aprimoramento das bandeiras
revolucionárias de socialização econômica, já que se demarca a con-
centração de lucros nas mãos dos donos das terras e unidades admi-
nistrativas. Nestes anos se fortalece a concorrência entre as unidades
administrativas, em especial em setores do campo (HEGEDÜS, 1986).

Romper com os carteis, socializar o campo e modernizar a pro-


dução se tornam bases para dar continuidade ao socialismo soviético,
garantindo condições sociais de trabalho adequadas, com respaldo na
ciência e na de gestão dos processos produtivos – pela designação de
normas de trabalho, de tempo, metas de produção e serviços.

A coletivização do campo forjaria as condições para subsidiar


o crescimento da produção industrial nos conglomerados urbanos,
fornecendo alimentos e matéria-prima. Este processo seria garantido
pela taxação da produção coletiva do campo. O desenvolvimento in-
dustrial, todavia, não seria conquistado apenas pelo fornecimento de
insumos alimentícios e matéria-prima. De fato, se torna primordial a
consolidação de conhecimentos técnicos e científicos, de modo que as
pessoas pudessem atuar de maneira qualificada na produção e, ou-
trossim, que essas pessoas se posicionassem em favor da revolução. O
sistema educativo – social e escolarizado - seria imprescindível para
elevação da qualificação profissional da população.

Os revolucionários estão lidando com os desdobramentos dire-


tos da política implementada a partir da revolução, no que se refere
a superação do atraso material e cultural das massas. Lunatcharsrki
(1988), de pronto, indica três esferas de luta: defesa nacional; desen-
volvimento econômico; e instrução pública da população. No intento
de pôr em marcha essas frentes de luta pós-revolucionária, há plurais
discussões no seio do partido e da própria sociedade para definir as
estratégias mais adequadas. Grosso modo, os princípios educativos se
constituiam em: realidade atual e a própria vida como fonte educa-
tiva; a entreita articulação entre educação e os processos de trabalho
(social, na fábrica, nas oficinas, no campo, como autosserviço, etc); os
complexos como eixo de estruturação do ensino; a ligação da escola
com a sociedade e comunidade que circunda a escola; a formação téc-

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Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

nica e política; a auto organização do coletivo escolar; e a disciplina


como conquista necessária dos escolares.

Os indícios da necessidade de reforma educacional, visando for-


mação para o trabalho, não surgem idealmente e a revelia das antigas
discussões estabelecidas. Em fins da década de 1920, acentua-se os
diálogos sobre como para garantir as condições humanas e produti-
vas dessa modernização econômica. Demanda-se, especialmente, que
a escola coopere de maneira robusta no ensino dos saberes essenciais
à produção. Os intelectuais da pedagogia soviética ponderam sobre
os fundamentos da educação soviética consolidados nos anos de 1920
e estabelecem incisivas críticas, propondo caminhos viáveis.

Krupskaya (1986), por exemplo, reconhece limites dos métodos


de ensino construídos e assente sobre a possiblidade de rever algumas
questões colocadas no sistema, em particular, por perceber a urgência
de pôr o trabalho produtivo como alicerce da vida escolar. Não tratan-
do do trabalho em abstrato, mas resgatando o princípio da politecnia.

Segundo Freitas (2009), Pistrak também teria composto duras


críticas ao pensamento pedagógico construído na década de 1920. O
autor estabelece, por alto, uma periodicidade aos problemas da es-
cola soviética: da revolução ao ano de 1922 o princípio do trabalho
teria se reduzido a atividade da criança e a sua participação direta
na execução de tarefas do cotidiano; entre 1923 e 1929 os complexos
teriam se tornado o eixo metodológico. Para Pistrak, os complexos são
antimarxistas, pois, apesar de enunciar o estudo sistemático dos pro-
blemas da realidade atual, secundarizam a teoria e não incorporaram
a politecnia como núcleo de organização da ação pedagógica; após
1929 haveria o crescimento das tendências negativas à escolarização,
optando pela inserção direta da criança nas atividades do cotidiano
como forma de aprendizado e, por outro lado, a percepção da neces-
sidade de reforma educacional, apontando para a sistematização dos
conhecimentos historicamente acumulados por parte dos escolares,
da formação para o trabalho e da própria elaboração de consciência
política junto aos estudantes.

Dadas as dificuldades e críticas apresentadas às produções ini-

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Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

ciais, Pistrak propõe para a reestruturação do sistema: 1. A identifi-


cação do tipo de trabalho politécnico das escolas, as experiências que
deveriam ser vivenciadas por cada idade específica, percebendo o ca-
ráter propedêutico para o trabalho; 2. esclarecer os principais ramos
da produção que devem ser objeto de estudo na escola; 3. formação da
visão de mundo materialista na escola, pensando o aspecto ideológico
que deve ser objeto de preocupação pedagógica. Esses elementos dis-
cutidos por Pistrak compõem, de fato, parte das mudanças do sistema
educacional que ocorrem nos anos de 1930, como veremos a frente.
Esta obra de Pistrak precisa, certamente, ser mais aprofundada nos es-
tudos brasileiros, de maneira a compreender com mais profundidade
as críticas colocadas pelo autor.

Como já foi mencionado, o período dos anos de 1930 é bastante


controverso, não apenas pelos fatos que se concretizam, mas também
pelas análises históricas que são feitas sobre ele. Cabe aqui uma pe-
quena digressão teórico-metodológica, antes de entrarmos propria-
mente nas questões legais.

Grosso modo, analistas indicam a existência de um regime auto-


ritário, de uma liderança psicopatológica no governo, do culto a um
líder, da incapacidade do partido em lidar com as necessidades das
massas, da atribuição do termo totalitarismo como componente defi-
nidor do regime, já que prisões e perseguições políticas são parte das
atrocidades da URSS3. Em alguns desses trabalhos, as fontes utiliza-
das são relatos testemunhais de desertores do regime. Negligencia-se
outros tipos de fontes, como as próprias documentações oficiais, por
exemplo. Por isso, neste texto o foco central será mapear os conteúdos
preponderantes em cada documento.

Consideramos significativo divisar que

... é preciso considerar várias etapas: a luta por espaço político dentro
3 Curioso que na década de 1930, as vésperas da II Guerra Mundial, o “atroz regime
socialista” tinha um índice de processos no sistema penal que correspondia a 0,29% de
sua população – de acordo com dados de Lewim (2007). A “democracia brasileira” no
ano de 2017 tem um índice de 0,34% da população vinculada ao sistema penitenciário
(INFOPEN, 2019).

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Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

da ordem, a tomada do Estado e a organização da dominação de Classe


e do poder da maioria, os momentos específicos de transição para o
socialismo, a implementação do comunismo. Para muitos a problemá-
tica central é a do Estado e da sua destruição Final. Na verdade, essa
problemática é mais ampla e apanha todos os aspectos da organização
da economia e da sociedade, pois se trata da emergência de um novo
padrão de civilização (...) se impõe o socialismo comunista. O movi-
mento tolera a absorção de várias formas de autoritarismo vigentes
(...) [nada de “hipocrisia burguesa” = 1. ditadura do proletariado como
uma realidade explicita; 2. impedir a contrarrevolução, a partir de den-
tro e a partir de fora; 3. construir a nova forma de produção socialista,
a sociedade correspondente ao Estado democrático proletário]. A mé-
dio e a longo prazos, porém, a oscilação não é só anticapitalista, ela é
antiautoritária. (...) (FERNANDES, 1979)

A despeito de reconhecer que existe algum tipo de autoritarismo,


Fernandes enriquece a perspectiva de análise ao contemplar as três di-
mensões citadas como decisivas no final dos anos de 1920: ditadura
do proletariado; impedir a contrarrevolução; e construir a produção
socialista. Esses três aspectos indicam que é necessário ponderar so-
bre a luta implacável contrarrevolucionária e a defesa ferrenha dos
interesses da classe trabalhadora.
Sendo assim, propusemos em nossa tese avançar a análise para
além dos anos de 1930 (SARTORI, 2020), baseados na premissa de en-
tender a URSS como um processo de aprendizagem (LOSURDO, 20044).
Isto não implicaria incorporar tudo com sentido valorativo posi-
tivo, mas, partindo da práxis, derivar todas as categorias e análises
(MARKOVIC, 1968). Para compreender os desdobramentos e refor-
mas educacionais dos anos de 1930, é necessário perceber os limites,
polêmicas e amplo espaço de debate e revisão de caminhos colocado
no final dos anos de 1920 e as urgências que se abriam na década sub-
sequente, como já vimos destacando precedentemente.
4 Recentemente, surgem comentários e produção bibliográfica acusando a Losurdo
e àqueles que o utilizam nas referências bibliográficas como “neostalinistas” ou re-
visionistas, num sentido depreciativo da obra e das produções científicas do autor
. Indicamos que o livro Losurdo, Presença e Permanência vem sendo apontado como
contribuição importante, no sentido de resgatar as contribuições de Losurdo e instigar
as discussões.

180
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

A necessidade de que a escolarização qualificasse melhor


para atuação no trabalho produtivo, se tornando muito presente a de-
fesa pela politecnização do ensino e entrando em declínio a discussão
sobre os complexos é marca constitutiva desta época. Esta discussão
se insere no contexto de colocação do plano quinquenal, onde se pre-
coniza a coletivização dos campos e a industrialização da economia
do país.
Com o excerto literário abaixo, recuperamos pontos cen-
trais da conjuntura que impactam a vida cotidiana dos soviéticos:

Saburov era um homem da sua geração. Como quase todas as pessoas


de sua idade, tinha começado a trabalhar quando menino e havia sido
transferido de um sítio de construção para outro. Várias vezes tinha
começado a estudar e de cada vez, primeiro mobilizado pelos Komso-
mols e mais tarde pelo Partido Comunista, tinha rompido seus estudos
e voltado ao trabalho. Quando fez seu serviço militar compulsório, ser-
viu durante dois anos no exército e dele saiu como segundo-tenente.
Tinha voltado à profissão de contra-mestre de construção, e de novo
recomeçara a passar dias e noites nos andaimes da usina de aço de
Magnitogorsk.
Os anos do primeiro Plano Quinquenal o tinham atraído, assim como
a muitos outros, pela febre de construção. Baralhado totalmente as
cartas, aqueles anos tinham-no afastado do trabalho com que havia
sonhado desde a infância. Mas, ainda como muitos outros, acabou afi-
nal tendo a coragem de abandonar o trabalho ao qual se acostumara,
o pagamento, sua vida normal, e trocar tudo isto, apesar de já não ser
mocinho, por uma carreira de estudante, um catre num dormitório e
um estipêndio de cem rublos.
Um ano antes da guerra tinha-se matriculado no curso de história
na Universidade de Moscou. À 21 de junho de 1941, com um brilho
que surpreendeu a todos quantos o conheciam, passou nos primeiros
exames universitários. Na manhã do dia seguindo ouviu o discurso do
Molotov pelo rádio, no qual anunciava a invasão fascista. Tinha acon-
tecido o que todos esperavam, mas que, no fundo, ninguém julgava que
acontecesse de verdade. A guerra tinha começado. Era a guerra que,
num ano e três meses, levaria saburov – o homem que tinha desejado
ser professor de história, e que agora já tinha rompido três cercos, fora

181
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

condecorado duas vezes e ferido levemente cinco vezes, ali – a Stalin-


grado. (SIMONOV, 1947, p.56-57)

A década de 1930 inicia com as marca da tarefa de desenvolvi-


mento econômico. Com o passar dos anos, amplia-se a escolaridade
do povo. Em contrapartida, a segunda guerra mundial irrompe no fi-
nal da década afetando fortemente essas conquistas e o próprio modo
de fazer política. Não será nosso objeto debater os meandros da guer-
ra, os avanços e retrocessos conjunturais. No entanto, salientamos es-
ses elementos aludindo a pontos obscuros e bastantes complicados
da história soviética. Mesmo considerando problemas existentes nos
anos de 1930, avalia-se que

O núcleo da ação histórica no stalinismo é este: ele encontrou a Rússia


que arava a terra com arados de madeira e a deixou dona da bomba
atômica. Elevou a Rússia ao grau de segunda potência industrial do
mundo e não se tratou apenas de uma questão de puro e simples pro-
gresso material e de organização. Não se poderia obter um resultado
semelhante sem uma vasta revolução cultural, no decorrer da qual se
mandou para a escola um país inteiro para que recebesse uma instru-
ção extensiva.” (DEUTSCHER apud LOSURDO, 2011, p. 10)

Esta ação história do poder stalinista não se baseia apenas na fi-


gura de um grande líder das massas, mas na existência de grupo que
constitui, segundo Fitzpatrick (2017), o time de Stalin. Para a autora,
não se pode dizer que Stalin governa sozinho ou a revelia do comitê
central. Determinadas decisões são assinadas unicamente pelos mem-
bros do comitê, outras são acompanhadas de perto por Stalin.

O poder soviético se estrutura através dos Sovietes da União e


Sovietes das Nacionalidades que em votação compõem o supremo
soviete do qual se constitui o Presidium. O Presidium tinha um pre-
sidente, 11 vice-presidentes, 1 secretário e 24 membros. Portanto, a
estrutura do Estado passa por uma complicada estrutura que se ba-
seia no sufrágio universal nas mais diversas regiões para constituir os
sovietes, mas a composição do Presidium e do soviete supremo se dá
em votação interna dentre os líderes escolhidos (URSS, 1936). Como
se percebe Stalin não está sozinho. A configuração do time de Stalin se

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Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

reflete na legislação educacional que configura a reforma dos anos de


1930.

A educação na URSS não pode ser compreendida apenas por


meio do acesso as escolas, uma vez que outros espaços instruem as
massas e promovem a ampliação dos horizontes culturais das pes-
soas: a imprensa, as obras de arte nas estações de metrô, a própria
divulgação de cartazes, o acesso a teatros e espaços de fazer artístico,
etc. Esses itens corroboram para uma educação multifacetada e se tra-
duzem nos escritos de relatos de viajantes.

Jorge Amado (1954) escreve sobre o caso de um operário que ao


visitar uma fábrica estadunidense observa o processo produtivo e
contribui com sugestões para seu aprimoramento. Os operários es-
tadunidenses buscam o silenciar, pois não reconhecem que os apri-
moramentos nos processos produtivos seriam benéficos para si, mas
para o patrão. Este simples evento poderia ser um indício de que o
trabalhador soviético se reconhecia como beneficiado direto pelo cres-
cimento da produção. Graciliano Ramos (2007) reitera ao longo de seu
texto as possibilidades de participação dos trabalhadores nos diversos
espaços de arte e cultura, contribuindo para a ampliação da formação
humanística e política das pessoas. Participação em espetáculos de te-
atro e dança são um dos exemplos citados com entusiasmo pelo autor.

Apesar de reconhecemos essa interface de educação social pre-


sente na URSS, nos deteremos aqui na reforma do ensino escolar que
ocorre entre 1931 e 1936. Nos anos de 1930 há expansão da rede de
escolas desde os jardins de infância até a universidades e, também, a
reestruturação do sistema de ensino ampliando o período de escolari-
zação formal e estabelecendo os critérios de ingresso no ensino supe-
rior. Além disso, ocorrem algumas alterações na estruturação curricu-
lar da Geografia, da História e dos próprios fundamentos da educação
– tomando por base as críticas feitas a pedologia. Portanto, a reforma
educacional se orienta em três aspectos centrais: a formação política, a
disciplina e a preocupação com o trabalho.

Quanto a formação política, destaca-se a importância da agitação


das massas e conscientização quanto ao momento histórico, enten-

183
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

dendo em particular a importância do trabalho produtivo e da pers-


pectiva comunista para a compreensão da realidade. Esta perspectiva
comunista é definida por Kalinin nos seguintes termos:

A perspectiva comunista é para os combatentes da revolução proletária


o que um poderoso telescópio, digamos, é para o astrônomo, ou um
microscópio para o pesquisador de laboratório. A visão mundial co-
munista permite ao trabalhador político, ativo nos assuntos públicos,
entender correta e compreensivamente a situação em que está traba-
lhando, organizar as massas e levá-las à batalha, corretamente, para
ver, entender e delinear perspectivas futuras. (KALININ, 1950, p. 38)

Nesse sentido, o cidadão soviético deixa de lado uma visão indi-


vidualista, substituindo-a por uma visão disciplinada e comprometi-
da com os interesses da classe trabalhadora. Como Makarenko indica:

Do cidadão soviético exigimos uma disciplina muito mais ampla. Exi-


gimos que não só compreenda porquê e para que deve cumprir uma
ordem, mas que sinta a necessidade e o desejo de cumpri-la da melhor
maneira possível. (...) exigimos dele a capacidade de abster-se de atitu-
des ou atos que servem somente para proporcionar-lhe proveito e satis-
fação pessoais, e que, no entanto, podem prejudicar terceiros ou toda a
sociedade. (...) e que saiba dar valor aos afazeres dos que o rodeiam, sua
vida, sua conduta; que demonstre seu apoio não só com palavras, mas
também com fatos, mesmo que isso signifique sacrifício de parte de sua
tranquilidade pessoal. (MAKARENKO, 1981, p. 37)

A perspectiva comunista envolve, portanto, uma nova forma de


pensar a relação indivíduo e sociedade, na qual as necessidades de
classe se sobrepõem às demandas individuais.

Cabe salientar que esses pontos se tornam questões importantes


para pensar a educação do povo soviético, no entanto, a reforma se
constitui como desdobramento de múltiplas ações estatais que impac-
tam a própria gestão da educação. Abaixo sistematizamos pelo menos
oito leis sobre a educação soviética publicadas entre os anos de 1931 e
1936. Observemos o quadro.

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Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Quadro 1- Legislação Educacional Soviética nos anos de 1931 a


1936

DATA ASSUNTO QUEM ASSINA O DOCUMENTO

Sobre as Atividades para Melhorar as Escolas


8 de junho de
de Aprendizagem de Fábrica Geridas por V. MOLOTOV
1931
Conselhos Superiores da Economia Nacional P. KERZHENTSEV
da URSS e Repúblicas da União

Conselho dos Comissários do


Sobre os Resultados da Recepção de
Povo da RSFSR
25 de março de Outono de 1931 nas Instituições Técnicas
Gerente de Negócios
1932 Profissionais, Sobre o Recebimento de
Conselho dos Comissários do
Contingentes de Investimentos de Capital
Povo e o Conselho Econômico da
nestas Instituições em 1932
RSFSR
M.KALININ
Sobre as Escolas de Fábrica - Aprendizagem
15 de setembro V.KUYBYSHEV
de Fábrica
de 1933 Secretário do Comitê Executivo
Central da URSS
15 de maio de Sobre Ensinar a História Civil nas Escolas da V. MOLOTOV
1934 URSS STALIN
15 de maio de Sobre o Ensino de Geografia na Escola V. MOLOTOV
1934 Elementar e Secundária da URSS STALIN
15 de maio de Sobre a Estrutura das Escolas Elementares e V. MOLOTOV
1934 Secundárias na URSS STALIN
4 de julho de Sobre Distúrbios Pedológicos no Sistema Comitê Central do PCUS
1936 Narkompross
Sobre o Trabalho de Instituições
23 de julho de V. MOLOTOV
Educacionais Superiores e sobre Gestão
1936 STALIN
Escolar
Fonte: SARTORI, 2020.

Estas leis cumprem um papel de reorganizar a educação escolari-


zada. Dentre elas, percebemos que quatro são diretamente assinadas

185
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

por Stalin, sobretudo as que versam a respeito dos aspectos ideo-po-


líticos no ensino.
O decreto de 1931 se refere as escolas de fábrica. Amplia-se vagas
e se estabelece a idade entre 15 e 18 anos para que os que buscam for-
mação profissional se dedicassem ao estudo sistemático do trabalho
fabril. Neste modelo, os estudantes devem dedicar pelo menos 25 %
de seu tempo ao estudo dos ramos industriais em que estão inseridos
como força de trabalho e 15% do tempo aos estudos sócio políticos.
O decreto não traz no corpo do texto o termo politecnia, apesar de ex-
primir preocupação de que os estudantes compreendessem questões
para além do ramo industrial que estavam inseridos.
No ano seguinte, em 1932, expande-se o quantitativo de vagas e o
investimento para instituições de cunho técnico e superior, cumprindo
planejamento e provisão orçamentária própria para a consecução des-
ses objetivos. Ao que parece, os decretos de 1931 e 1932 cooperam para
a crescimento dos cursos de profissionalização vinculados ao chão das
fábricas.
O tempo total de instrução estabelecido para estes cursos nas es-
colas de fábrica é demasiadamente grande – dada a urgência do setor
produtivo. O decreto de 1933 acelera o tempo dos cursos. Ao com-
preender que a escola de sete anos provisiona a formação politécnica,
indica-se a possibilidade de que o aprendizado da técnica passasse dos
três anos para a duração de 6 meses a 1 ano. A carga horária de ativi-
dades práticas deveria equivaler a 80% do curso. Deve-se ter em mente
que essa época é marcada pela urgência de aumento do número de
técnicos formados na própria URSS e pela demanda por intensificar e
otimizar a produção.
É recorrente na literatura aparecer episódios em que se relata a
inserção de espiões e/ou estrangeiros comprometidos com o capital no
seio da produção – esses fatos não se limitam apenas aos anos de 1930,
se estendendo a períodos posteriores. Em geral, estrangeiros qualifi-
cados são incumbidos de cargos técnicos na produção, dada a falta de
de mão de obra soviética, pelas difíceis condições de vida e de educa-
ção colocadas até então. Eles atravancariam a manufatura impondo
um ritmo menor a produção. Sendo assim, formar trabalhadores para

186
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

atuar no sistema produtivo é fundamental para o governo socialista,


de maneira que o próprio ritmo e procedimentos de trabalho fossem
maiores.

Nas imagens colocadas no anexo – ao final do texto – fica mani-


festo o incentivo que as pessoas permanecessem vigilantes contra os
infiltrados no regime, de maneira que contivessem suas ações e ga-
rantissem a melhoria dos índices do sistema. E, de mais a mais, reco-
menda-se aproveitar ao máximo o tempo no trabalho – percebendo
o estabelecimento de 8 horas diárias de trabalho como um direto dos
trabalhadores – para atuar produtivamente. Pode-se inferir, pois que
a escola tem a função central de ensinar os procedimentos mais ade-
quados para elevar a produtividade do trabalho e, igualmente, para a
consolidação da consciência política de classe, comprometida com a
consecução dos objetivos do socialismo.

Observe na tabela abaixo os números dos trabalhadores indus-


triais entre 1925 e 1950, identificando o aumento significativo de pes-
soas qualificadas.

Tabela – Evolução do nível profissional de qualificação dos operários


da indústria no período de 1925-1972 (em % do total de operários da
URSS)
Níveis de qualificação 1925 1950
Qualificados e altamente qualificados 18,5 49,6
Semiqualificados 41,3 47,9
Não qualificados 40,2 2,5
Fontes: V. P. JEJELENKO; N. E. OVTCHÍNNIKOV; KH, CHARÍPOV apud MANÉVITCH, 1985, p. 134

O quantitativo geral de operários não qualificados decai vertigi-


nosamente no período mencionado, com notável incremento do quan-
titativo de qualificados e semiqualificados. Certamente, esses números
dialogam com a política educacional de profissionalização estabeleci-
da. Não apenas a política de profissionalização se fez presente. Ocor-
reu no ano de 1934 a reorganização curricular nas disciplinas de His-
tória e Geografia.

187
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

No caso da história5, uma leitura marxista (percepção da luta de


classes) dos acontecimentos históricos deve ser ensinada aos escola-
res, isto é, respeita-se a divisão clássica dos tempos históricos, mas co-
locando a luta de classes como eixo articulatório da compreensão da
história. Isso abala frontalmente a concepção da história como Magistra
Vitae, ou seja, como lugar dos bons exemplos e práticas a serem incor-
poradas de maneira naturalizada. A formação do professor historiador
passa a ocorrer em universidades e são indicadas referências oficiais
sobre a compreensão das questões históricas de acordo com os temas
e tempos históricos.

No que se refere à Geografia, consta uma crítica à Geografia abs-


trata. Organiza-se os temas centrais distribuindo-os sequencialmente
ao longo das séries escolares. São eixos do trabalho geográfico na esco-
la: a localização espacial pelo mundo, os dados econômicos, físicos e de
mapeamento. Além do ordenamento mencionado, há a preocupação
de fornecer subsídios materiais para o estudo disciplinar como mapas,
materiais impressos e livros didáticos ao professor e aos estudantes.

No ano de 1934 ainda, amplia-se a escolarização obrigatória para


10 anos, conforme distribuição subsequente: 1ª a 4ª séries compondo a
escola primária; 5ª a 7ª série compondo a escola secundária incomple-
ta; e 8ª a 10ª série como escola secundária completa. A escola secundá-
ria habilita ao ensino superior. Durante a escola primária e secundária
deve-se ter o princípio da politecnia como eixo do currículo, pensando
a dimensão do trabalho e das técnicas de trabalho.

Em 1936 ocorrem duas reorganizações importantes, uma de ges-


tão e outra de ordem ideo-política. Quanto a reforma de ordem ideo-
-política, questiona-se o desenvolvimento e aplicação dos estudos
pedológicos nos cursos de formação de professores. A pedologia põe
foco no desenvolvimento infantil sob perspectiva biologicista. Esses
estudos beiram o risco de classificação dos seres humanos em raças
inferiores e superiores, uma vez que o desenvolvimento se dá como
desdobramento de noções biológicas. Para além de ser contra as pre-
5 É importante notar que isto acontece no ano de 1934, quando muitos dos debates que
hoje são recorrentes aos historiadores – como as problemáticas e contribuições levan-
tadas junto a Escola dos Annales-, ainda não se colocavam.

188
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

missas de igualdade de classe, os estudos são bastantes problemáticos


na conjuntura de desenvolvimento do nazismo e de raças superiores
e inferiores. O comite central indica banimento desta perspectiva teó-
rica, recomendando não usar desta teoria na formação de professores
e evitar a publicação de materiais que são fundamentados nesta con-
cepção.

No outro decreto, mostra-se baixa efetividade do processo de for-


mação e seleção em vestibular para a universidade, sendo necessário
adensar a formação teórica e prática. Uma das possibilidades para in-
tensificar a formação teórica poderia adivir da tradução de materiais
escritos em língua estrangeira, ou seja, não se recomenda um isola-
mento cultural soviético na universidade. Aconselha-se a normatiza-
ção das formas de acesso a universidade, carga horária dos cursos e
outros procedimentos ligados ao ensino superior.

Dentre as legislações investigadas duas são voltadas ao conteúdo


de disciplinas escolares específicas, uma à área de conhecimento pe-
dologia, outras se referem a profissionalização, ao conteúdo de ensino
vinculado a ciência e ao trabalho ou a reorganização de elementos no
sistema educacional.

Não se pode afirmar que a reforma dos anos de 1930 é uma com-
pleta ruptura para a educação soviética. Como podemos notar, a con-
juntura demanda intensificação da produção econômica e o avanço da
pauta política da transição socialista, como forma de fazer frente aos
países de capitalismo central e ao crescimento do nazi-fascismo. As
discussões educacionais sinalizam para um caminho de profissionali-
zação de trabalhadores – de forma a ampliar o leque de técnicos que
pudessem atuar produtivamente, - de maneira rápida e comprometida
com as demandas locais. Apesar da ênfase na profissionalização, não
se perde totalmente de vista a polectinização do ensino.

Além desses itens, amplia-se a escolarização para a escola de 10


anos, considerando um duplo caminho: ou o estudante cursa a escola
secundária incompleta seguida do curso profissional, ou segue na es-
cola secundária completa. Ambos os caminhos possibilitam o acesso a
universidades por meio de exames próprios.

189
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Há ainda alterações no rumo das disciplinas Geografia e História,


para as quais se propõem rumos novos e materiais auxiliares de ensino
ajustados ao conteúdo proposto.
Recupera-se com essas legislações a função central da escola na
preparação das pessoas do ponto de vista teórico e prático, tendo o
trabalho como horizonte norteador das ações escolares. De forma pre-
liminar, constata-se que os pedagogos recuam quanto ao uso dos com-
plexos como eixo estruturador do currículo e o uso do próprio prag-
matismo, proporcionando experiência direta do aluno na resolução de
questões do cotidiano é reconduzido ao princípio de participação dire-
ta nas atividades de trabalho quando da formação profissional.
Não foi objeto específico deste texto abordar outras questões da
formação social e cultural, mas cabe ratificar o que afirmamos em nos-
sa tese: a sociedade soviética utiliza-se de outros espaços e recursos
para educação do povo. A propaganda, por exemplo, se constitui como
poderoso instrumento para mapear debates colocados na sociedade - a
espionagem, a necessidade de aumento da produtividade do trabalho,
o combate de guerra contra o nazismo, etc. Além desta, o cinema, a
literatura, o teatro, a imprensa e as próprias deliberações governamen-
tais sinalizam tentativa de fortalecimento de uma sociabilidade dife-
rente da capitalista.

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Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

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portugues/stalin/biografia/ludwig/constituicao.htm Acessado em 04 de mar-
ço de 2016.

191
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Anexo 1

Tradução textual: Vigilân-


cia é a nossa arma!

192
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Anexo 2

Tradução textual: Use


produtivamente os 480
minutos

193
Legados da perspectiva
histórico-cultural para a educação
e a psicologia
Elizabeth Tunes
Zoia Prestes
Ingrid Lilian Fuhr

“Aproximam-se os tempos, em que fica cada vez mais evidente, até mes-
mo para um cego, que, enquanto em um sexto da Terra as pessoas lutam
pela libertação de toda a humanidade, pelas possibilidades reais de for-
mação de um tipo de personalidade superior, nova e jamais vista na his-
tória, enquanto povos humilhados e atrasados são postos na vanguarda
da humanidade, no campo da burguesia, a consciência das pessoas se
orienta pelos cacos da Idade Média que está sendo ressuscitada.”

Lev Semionovitch Vigotski (1934)

O objetivo do presente capítulo é destacar algumas informações a


respeito de três importantes teóricos da perspectiva histórico-cultural,
no campo da psicologia e da educação, analisando-se como suas vidas
se entrelaçaram com o grande teórico que a criou e que liderou, magis-
tralmente, com enorme força e genialidade, os seus desdobramentos
teóricos e práticos mais importantes.
Apresentamos um breve perfil de Aleksei Nikolaievitch Leontiev
e Aleksandr Romanovitch Luria que, junto com Lev Semionovitch Vi-

195
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

gotski, o criador da psicologia histórico-cultural, formavam a troika,


como era denominado esse grupo de professores do Instituto de Psi-
cologia da Universidade de Moscou. Daniil Borisovitch Elkonin, que
também apresentamos aqui, veio a incorporar-se ao grupo, um pouco
mais tarde, tendo sido aluno de Lev Semionovitch. Trazemos para o
leitor alguns dados biográficos de cada um e uma menção às suas prin-
cipais contribuições para a perspectiva histórico-cultural, assim como
procuramos caracterizar alguns aspectos importantes de suas relações
com Lev Semionovitch.

Lev Semionovitch Vigotski nasceu em Orcha, na Bielorrussia, em


1896. Mudou-se para Gomel quando ainda era bebê e, talvez, por isso,
considerava-a sua cidade natal. Seus primeiros anos de estudos foram
em casa, ingressando na escola apenas no sexto ano do ginásio, depois
de prestar todos os exames dos cinco anos iniciais. Concluiu esse ciclo
em 1913, com medalha de ouro, o que lhe deu o direito de participar do
sorteio de vagas para a Faculdade de Medicina pelo sistema de cotas
para judeus que havia na Rússia. Assim, prestou exame para a Univer-
sidade Imperial de Moscou, foi aprovado, mas, um mês após o início
das aulas, transferiu-se para a Faculdade de Direito, na mesma univer-
sidade (PRESTES, TUNES e NASCIMENTO, 2013). Em 1914, começou
a frequentar o curso de Filosofia e História, na Universidade Popular
Chaniavski, onde se formou como crítico literário. Sua monografia de
final de curso versou sobre Hamlet, abrindo-lhe a possibilidade de de-
senvolver um trabalho teórico que, posteriormente, foi publicado em
seu livro Psicologia da Arte.

Lev Semionovitch concentrou seus estudos, principalmente, em


três campos: arte, desenvolvimento atípico (defectologia), ao qual se
dedicou no decorrer de toda a sua vida1, e desenvolvimento cultural
da criança, com o qual esteve bastante envolvido nos anos finais de sua
vida. Muitas pessoas acreditam que sua carreira científica teve início
1 A propósito, vale citar o seguinte trecho: “ao aceitar o convite para integrar um gru-
po de pesquisadores no recém-inaugurado Instituto de Psicologia da primeira Univer-
sidade de Moscou, em resposta à pergunta ‘em que área se considera mais útil?’, ao
preencher o formulário do Narcompros, Vigotski escreve: ‘no campo da educação das
crianças cegas, surdas e mudas’. A esses estudos Vigotski estará ligado até sua morte”
(PRESTES, TUNES E NASCIMENTO, 2013, P. 54).

196
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

em 1924, o que é um equívoco, pois, entre 1917 e 1924, já atuava inten-


samente, tendo, inclusive, apresentado seu trabalho sobre Investigações
Reflexológicas e Psicológicas - sobre as possibilidades do estudo objetivo da
psique, no Congresso de Neuropsicologia, em Petrogrado, quando co-
nheceu Luria.

Suas obras estiveram proibidas na União Soviética, por um lon-


go período e somente após a morte de Stalin algumas começaram a ser
republicadas, outras publicadas pela primeira vez, difundindo-se por
todo o mundo. Contudo, até hoje ainda não temos acesso à sua obra
completa, pois a composição, revisão e edição de toda a sua produção
é um trabalho bastante difícil e demorado, conforme relatos das pesso-
as nele envolvidas.

Em novembro de 2015, durante o evento XV Leituras Interna-


cionais Vigotski, organizado anualmente pelo Instituto de Psicologia
L. S. Vigotski, da Universidade Russa de Humanidades de Moscou
(Rússia), foi lançado o primeiro volume das Obras Completas (VIGOT-
SKI, 2015). Esse primeiro volume contém obras sobre dramaturgia e
teatro. É aberto com a monografia do autor, escrita em 1915/1916, A
tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca, de W. Shakespeare; seguem-se
dois artigos críticos sobre teatro, datados de 1917 e 1919 e, logo após,
acham-se 69 resenhas críticas teatrais publicadas em 1922 e 1923. Por
fim, publica-se o artigo científico Questões sobre a psicologia do ator, de
1932. Segundo Sobkin (2015), as resenhas teatrais de Lev Semionovit-
ch constituem a origem da teoria histórico-cultural. Nelas, com muita
nitidez, aparecem conceitos que, posteriormente, serão desenvolvidos
em outros textos teóricos quase uma década depois.

Lev Semionovitch Vigotski estabeleceu os fundamentos filosófi-


cos e teóricos da psicologia histórico-cultural, estruturou o seu sistema
conceitual e suas principais constelações de conceitos, em seu curto
período de vida: faleceu em 11 de junho de 1934, com apenas 37 anos.
Ele tem influenciado e inspirado várias gerações de estudiosos e pes-
quisadores, tanto no campo da psicologia como no da educação, des-
de, aproximadamente, 1920 até os dias atuais. Vigotski é genial; gênios
são imortais:

197
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Não seria exagero dizer que Vigotski era um gênio. Em mais de cinco
décadas de trabalho no meio científico, nunca mais encontrei qualquer
pessoa cujas qualidades se aproximassem das de Vigotski: sua clareza
mental, sua habilidade na identificação da estrutura essencial de pro-
blemas complexos, a extensão de seu conhecimento em vários campos,
e a capacidade que tinha de antever o desenvolvimento futuro de sua
ciência (LURIA, 1992, p. 43).

ALEKSEI NIKOLAIEVITCH LEONTIEV (1903-1979).

Dados biográficos

Aleksei Nikolaievitch Leontiev nasceu em Moscou, 14 anos antes


da revolução de outubro. Sua família vivia com uma situação financei-
ra razoavelmente confortável. Ele estudou no Primeiro Ginásio Real
de Moscou que se transformou numa escola única do trabalho, nos
anos finais de sua formação. Os acontecimentos que vivenciou desde
então influenciaram seus interesses pelas ciências sociais, área em que
se formou.

No Instituto de Psicologia da Universidade de Moscou, seu di-


retor, G. I. Tchelpanov, foi professor de Aleksei Nikolaievitch. Esse
Instituto teve um papel importante, naquele momento, por agregar
pensadores e jovens recém-formados, que se prepararam para a car-
reira docente, além de aderirem às tarefas da revolução. Assim que se
formou, em 1923, foi convidado por Tchelpanov a permanecer no Ins-
tituto, preparando-se para o trabalho docente e para a carreira científi-
ca. A partir de então, teve início sua vida acadêmica (ver LONGAREZI
e FRANCO, 2013).

Tchelpanov era psicólogo, filósofo e professor. Em 1923, segundo


Luria (1992), deixou o cargo de diretor do Instituto, que foi assumido
por K. N. Kornilov, aluno de Tchelpanov. Algum tempo depois, em
1924, Aleksandr Romanovitch Luria assistiu a uma apresentação de
Lev Semionovitch Vigotski, no Congresso de Neuropsicologia, em Pe-
trogrado e ficou bastante impressionado com a profundidade, clareza
e originalidade das ideias expostas. Em vista disso, consultou Kornilov
sobre a possibilidade de se convidar Lev Semionovitch para trabalhar

198
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

no Instituto. Após voltar à sua casa, em Gomel, e se casar, Lev Semio-


novitch retornou a Moscou para integrar o grupo que viria a ser conhe-
cido como troika, a saber, Luria, Leontiev e Vigotski.
A mudança de Vigotski para Moscou marcou uma trajetória im-
portante para ele, Luria e Leontiev. Em suas recordações, Luria (1992)
afirma ter percebido uma liderança natural de Vigotski, ao buscar
construir uma nova ciência fundamentada em princípios do materia-
lismo histórico-dialético, visando à edificação de uma psicologia do
homem concreto. Conforme apontou, Vigotski era, inegavelmente, por
seus próprios méritos, o principal teórico do grupo, cabendo a cada
um dos componentes do mesmo a realização de determinadas tare-
fas, em determinados tempos. Por exemplo, em certa ocasião, coube
a Aleksandr Romanovitch a tarefa de criar modelos experimentais de
comportamento instrumental e a Aleksei Nikolaievitch, o desenvol-
vimento de estudos sobre a memória. Aleksei Nikolaievitch Leontiev
teve participação fundamental na elaboração da nova Psicologia e da
nova Pedagogia soviética, enfrentando com o grupo vários desafios
decorrentes do trabalho de construção dessas novas ciências. Contudo,
Vigotski foi o grande artífice da teoria que ele próprio chamava ora de
cultural, ora de instrumental, ora de histórica, estabelecendo seus fun-
damentos teóricos e filosóficos e estruturando seu sistema de conceitos
ou sua constelação conceitual, em tempo recorde:

Na breve década compreendida entre a chegada de Vigotski a Moscou, e


sua morte por tuberculose em 1934, sua inteligência e sua energia cria-
ram um sistema psicológico que, sem dúvida, ainda não foi completa-
mente explorado. Praticamente, todos os ramos da psicologia soviética,
na teoria como na aplicação prática, foram influenciados por suas ideias
(LURIA, 1992, p. 60).

Ao final dos anos de 1920 e início de 1930, Stalin consolidou-se no


poder, na União Soviética. Por essa ocasião, ocorreu o que se costuma
apontar como uma espécie de vulgarização do materialismo histórico-
-dialético e de ideias marxistas, de um modo geral. Essa vulgarização,
entre outros fatores, ensejou o início de uma perseguição ideológica à
troika e seus associados. Com as constantes perseguições, o grupo viu
suas atividades profissionais seriamente ameaçadas. Em função disso,

199
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Lev Semionovitch empreendeu uma negociação com o Instituto de Psi-


coneurologia, de Rharkov, buscando condições para dar continuidade
aos trabalhos do grupo. Apesar de ter sido o pivô de toda a negociação,
ele mesmo não se mudou de Moscou e viajava, com frequência para
Rharkov. Conforme apontamos em outro momento:

Os parafusos ideológicos começavam a ser “apertados” [...] Na edu-


cação teve fim a “escola única do trabalho” criada com os esforços de
Krupskaia e Lunatcharski sob a base conceitual elaborada por Blonski
e Vigotski. Surgiu uma série de decretos do comitê central do Partido
Comunista da Rússia [...] que retrocediam a escola soviética ao “ideal”
do ginásio pré-revolucionário. Na psicologia, ocorreu a discussão sobre
a “teoria da reactologia”, que resultou na destituição de K. N. Kornilov
do cargo de diretor, em 1931. Foram veementemente destroçadas, do
ponto de vista ideológico, a reflexologia e psicotécnica de Bekhterev (to-
dos os seus líderes, em seguida, sofreram repressão), o “behaviorismo”
de Borovski e, finalmente, a escola histórico-cultural de Vigotski (TU-
NES e PRESTES, 2009, p. 293-294).

Aleksei Nikolaievitch Leontiev trabalhou em diferentes institui-


ções científicas de Moscou, entre 1924 e 1930. Em Rharkov, dedicou-se
ao desenvolvimento de uma teoria que, mais tarde, viria a ser conhe-
cida como a Teoria da Atividade. No período de 1930 a 1935, foi di-
retor da Academia de Psiconeurologia da Ucrânia e chefe da Cátedra
do Instituto de Pedagogia, de Rharkov. Entre 1936 e 1940, trabalhou,
concomitantemente, em Moscou (no Instituto de Psicologia) e em Le-
ningrado (no Instituto Estatal de Pedagogia, de N. K. Krupskaia). Em
1940, defendeu seu doutorado em Psicologia. A partir de 1943, dirigiu
o Laboratório e, posteriormente, o Departamento de Psicologia Infan-
til, no Instituto de Psicologia de Moscou.

Cabe destacar sua liderança na construção e organização do Hos-


pital de Reabilitação de Feridos de Guerra. Com o final da guerra, as-
sumiu vários cargos importantes que lhe permitiram defender seus
colegas em meio às inúmeras perseguições. Conforme afirmações de
seus familiares, ele se colocava de peito aberto em defesa de seus par-
ceiros e colaboradores.

200
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Assumiu a chefia da Cátedra de Psicologia da Universidade de


Moscou, onde foi professor desde 1949. Fundou a Faculdade de Psi-
cologia da Universidade de Moscou, que viria a ser o Instituto de Psi-
cologia, independente e autônomo. Em 1950, foi nomeado membro
da Academia de Ciências Pedagógicas da Federação Russa, ocupando
o cargo de vice-presidente. Colaborou com a iniciativa de Aleksandr
Romanovitch Luria de realizar as primeiras publicações, na época do
degelo, de obras de Lev Semionovitch Vigotski, nos anos de 1950 e 1956,
após a morte de Joseph Stalin.
A partir de 1966, tornou-se decano da Faculdade de Psicologia
da Universidade de Moscou e chefe da Cátedra de Psicologia Geral.
Em 1968, tornou-se membro da Academia de Ciências Pedagógicas da
URSS. Recebeu título de Doutor Honoris Causa de uma série de univer-
sidades estrangeiras, incluindo a Sorbonne.

Relações com Lev Semionovitch Vigotski


No que tange às relações com Lev Semionovitch Vigotski, sobres-
sai o que o filho e o neto de Aleksei Nicolaievitch Leontiev chamam
de mito do rompimento: um suposto desentendimento grave entre os
dois, que teria culminado com o rompimento de suas relações pessoais
e profissionais. O principal motivo do rompimento seria uma suposta
carta de Aleksei Nicolaievitch Leontiev a Aleksandr Romanovitch Lu-
ria, convidando-o para continuarem trabalhando juntos, em Rharkov,
mas descartando Vigotski, considerado por Leontiev ultrapassado,
por ser “o ontem da Psicologia”. Lev Semionovitch teria sido infor-
mado do fato por Aleksandr Romanovitch, que lhe mostrara a carta;
sentiu-se, então, traído pelo colega e amigo, rompendo relações com
ele (ver TUNES e PRESTES, 2009).
O filho e o neto de Leontiev discordaram da história contada e
publicaram duas cartas: uma, de Aleksei Nicolaievitch a Lev Semio-
novitch e outra, deste último, supostamente uma resposta ao colega e
amigo. Segundo afirmam ambos, o conteúdo das duas cartas permite
caracterizar o suposto rompimento como um mito ou uma lenda. As-
sim, cabe trazer o conteúdo das cartas, segundo nossa compreensão e
interpretação do que nelas aparece escrito. O conteúdo das cartas dei-

201
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

xa explícito que, se não houve um rompimento, ocorreu, pelo menos,


um estremecimento nas relações entre eles.
Dizem que Luria informou Vigotski sobre o conteúdo da carta e,
logo após recebê-la, deixou Rharkov, retornando a Moscou. Vale lem-
brar ao leitor que foi Vigotski quem liderou todo o processo de nego-
ciação no Instituto de Psiconeurologia, em Rharkov. Contudo, parece
que devido a questões familiares e ao fato de que a Ucrânia enfrentava
um momento de muita necessidade e fome, ele não se mudou para lá e
indicou o nome de Luria para diretor. Com a saída de Luria, Leontiev,
até então diretor do Departamento de Psicologia Experimental, assu-
miu a direção do Instituto.
Na carta que escreveu a Vigotski, em 5 de fevereiro de 1932, Le-
ontiev reconheceu que havia uma crise entre os membros do grupo,
ressaltando a existência de alguns nós que, se impossíveis de serem
desatados, deveriam ser, então, cortados. Via como extrema a situação
dos três e, por isso, afirmou que iria cortar os nós. Queixou-se de um
silenciamento de Vigotski a respeito da relação entre eles dois, indican-
do sentir-se obrigado a quebrar o silêncio. Admitiu, ainda, que havia
uma crise na relação entre as pessoas do grupo, o que incluía Luria
e outros participantes que se encontravam em Rharkov. Queixou-se,
também, das ameaças às ideias do grupo, teceu fortes críticas a Luria,
a quem acusou de sobrepor suas ideias e iniciativas às do coletivo, ad-
mitindo que, por isso, o trabalho comum fora destruído. Como forma
de reforçar seu argumento, citou um parágrafo de carta anterior de Vi-
gotski para afirmar, em seguida, que sua forma de agir encontrava-se
em perfeita consonância com o que ele lhe escrevera:

Então, estabelecer um severo regime monástico de pensamento; isola-


mento de ideias, caso seja necessário. O mesmo deve ser exigido dos ou-
tros. Explicar que trabalhar com a psicologia cultural não é brincadeira,
nem nos intervalos do trabalho ou mesmo ao longo de uma série de ou-
tros trabalhos; também não é terreno para as dúvidas próprias de cada
nova pessoa. Externamente, disso decorre o mesmo regime organizacio-
nal ... Confio firmemente na sua iniciativa e no papel de preservação
disso (trecho da carta de Vigotski, de 1929, citado na carta de Leontiev,
1932. Ver TUNES e PRESTES, 2009, p. 300).

202
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Declarou-se contrário à decisão de Vigotski de separar-se do gru-


po e continuar sozinho, queixando-se: “Sem você, vou tentar encontrar
o meu caminho, pode ser que esteja fora da Psicologia ...” (trecho da
carta de Leontiev, 1932. Ver TUNES e PRESTES, 2009, p. 301).
Teceu elogios ao grupo de Rharkov, citando três pessoas (Zapo-
rojets, Bojovitch e Morozova), excluindo Luria. Pediu a Vigotski que
reconsiderasse sua decisão, citando mais um trecho de uma carta dele:

Há vantagem [...] que a Psicologia Instrumental tenha caído no rol das


atividades desvantajosas. Particularmente, não posso expressar com
força suficiente como ponho no alto (no campo ético) a ideia sobre a
máxima pureza e o rigor da ideia. Essa é a nossa tarefa principal contra
a confusão e o “habitué”; (trecho da carta de Vigotski, de 1929, citado
na carta de Leontiev, 1932. Ver TUNES e PRESTES, 2009, p. 301).

Nesse trecho da carta, Vigotski afirmou sua posição, que é muito


clara em toda sua obra, sobre a exigência de extremo rigor metódico
e ético para a construção de uma Psicologia Cultural, vendo alguma
vantagem no fato de terem que se recolher, retraírem-se. Citando Spi-
noza para reforçar o seu ponto de vista de que a solução não se en-
contraria no isolamento do grupo, mas na busca de apoio, Leontiev
discordou da posição de Vigotski. Contudo, na visão deste, o apoio
implicaria tornar público o trabalho que estava sendo desenvolvido,
o que poderia comprometê-lo, naquele momento. Leontiev seguiu co-
mentando as relações pessoais entre ele e Vigotski e entre ele e Luria.
Novamente, citou um trecho de uma carta de Vigotski:

Em uma coisa eu o apoio até o fim e vejo nisso a salvação: maximum de


precisão organizacional e firmeza de caráter – isso é a pedra angular da
pureza interna da pesquisa, e é a suprema Lex também da PUREZA
DAS RELAÇÕES PESSOAIS (trecho da carta de Vigotski, de 1929,
citado na carta de Leontiev, 1932. Ver TUNES e PRESTES, 2009, p.
302).

Ao fazer essa citação, demonstrou que havia divergências entre ele


e Vigotski: quando se declara que existe “uma coisa” em que se apoia
alguém até o fim é porque há outras em que a pessoa não é apoiada,

203
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

pelo menos, em sua totalidade. Quanto a Luria, Leontiev acusou-o de


ter relações políticas questionáveis, superficialidade e ecletismo teóri-
co, má compreensão da psicologia cultural, idealista, postura empresa-
rial destrutiva das relações no grupo como um todo, menosprezo pela
psicologia cultural, valorizando-a apenas de modo utilitarista e espe-
culativo. Seguiu ainda com mais críticas fortes do mesmo teor a Luria,
apresentando algumas questões teóricas que considerava as mais ur-
gentes e importantes naquele momento. Concluiu afirmando que sem
Vigotski seria impossível continuar a parceria com Luria.

Não se sabe, ao certo, se Vigotski respondeu a essa carta. Segun-


do A. A. Leontiev e D. A. Leontiev, respectivamente, filho e neto de
Aleksei Nikolaievitch, nos arquivos deste, há uma carta de Lev Semio-
novitch, datada de 7 de agosto de 1933 que poderia ser, se não uma
resposta à carta de 5 de fevereiro de 1932, pelo menos, a continuação
dos assuntos nela tratados (ver TUNES e PRESTES, 2009). Entre eles,
encontra-se o problema da relação de Leontiev com Luria. Vigotski
afirmou respeitar a decisão de Leontiev de não querer conviver com
Luria, embora visse de modo diferente tudo o que aconteceu.

Os fatos aqui narrados parecem indicar que houve, de fato, se não


um rompimento radical das relações entre Leontiev e Vigotski, pelo
menos, algum estremecimento nas mesmas e a decisão de Vigotski de
seguir, então, a direção que desejava de outra maneira, talvez, um pou-
co mais solitário.

Principal legado científico

O principal legado científico de Aleksei Nikolaievitch é a Teoria da


Atividade, alicerçada, principalmente, na ideia da interdependência en-
tre a atividade e o desenvolvimento do ser humano. Sua teoria começou
a ser formulada em Rharkov, na década de 1930 e foi apresentada após
a morte de Vigotski, ao final da década. No cenário acadêmico e de for-
mação de pedagogos e psicólogos, na União Soviética, foi protagonista
até a década de 1950.

Trata-se de uma teoria bastante interessante, que permite reflexões


importantes, especialmente, mas não exclusivamente, no campo da prá-

204
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

tica educacional. Difere bastante do sistema teórico de Lev Semionovi-


tch, principalmente, a nosso ver, quanto à natureza do que venha a ser
desenvolvimento psíquico e ao lugar que esse processo ocupa na cons-
telação conceitual. Há também diferenças importantes entre os dois te-
óricos no que concerne ao próprio conceito de atividade. Contudo, foge
ao escopo do presente capítulo a análise comparada das duas teorias.

Após a morte de Stalin, deu-se início à realização de inúmeras ações


de recuperação e divulgação das obras de Lev Semionovitch Vigotski,
que começaram, então, a reassumir o protagonismo perdido no longo
período em que estiveram proibidas na União Soviética. Com essas ini-
ciativas, as obras de inúmeros teóricos ligados, de algum modo, ao gru-
po de Vigotski e à perspectiva histórico-cultural, na psicologia e educa-
ção, entre eles, Aleksei Nikolaievitch Leontiev, foram mais amplamente
difundidas e conhecidas no mundo.

ALEKSANDR ROMANOVITCH LURIA (1902-1977).

Dados biográficos
Aleksandr Romanovitch Luria foi o fundador da neuropsico-
logia soviética. Nasceu em Kazan, capital da República do Tartaris-
tão, em 1902. Formou-se em 1921, na Faculdade de Ciências Sociais
da Universidade de Kazan. Em 1937, concluiu o curso de medici-
na no Instituto de Medicina de Moscou. Foi o primeiro a traduzir as
obras de Freud para o russo, na década de 1920. A partir de 1923, le-
cionou na Academia de Educação Comunista e na Universidade de
Moscou. Em 1937, obteve o título de Doutor em Ciências Pedagógicas
e, em 1943, em Ciências Médicas. Em meados da década de 1940, tor-
nou-se professor da Universidade de Moscou e membro da Academia
de Ciências Pedagógicas da Federação Russa. Em 1968, passou a fazer
parte da Academia de Ciências Pedagógicas da URSS e assumiu a chefia
da Cátedra de Psicologia Médica da Faculdade de Psicologia da Univer-
sidade de Moscou. De 1969 até 1972, ocupou o cargo de vice-presidente
da União Internacional de Psicologia Científica.

Elaborou as bases teóricas da neuropsicologia, expressas na teoria


da localização sistêmica e dinâmica das funções psíquicas superiores

205
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

e realizou pesquisas no campo da neuropsicologia da fala, da percep-


ção, da atenção, da memória, do pensamento e dos movimentos e ações
voluntárias. Desenvolveu, também, métodos de restabelecimento de
funções psíquicas atingidas por lesões cerebrais locais. Suas pesquisas e
obras são conhecidas mundialmente. Em todas as referências a ele cons-
ta ter sido um homem generoso, bondoso e uma pessoa amável e cola-
boradora com todos com quem convivia.

Relações com Lev Semionovitch Vigotski


Luria tinha relação muito próxima com Lev Semionovitch Vigotski
e sempre declarava sua enorme admiração por ele. Dizia: “Toda minha
biografia eu divido em dois períodos: um pequeno, sem importância,
antes do encontro com Vigotski e outro longo e fundamental, após en-
contrar com ele” (AKHUTINA, 2013, p. 112). Em várias ocasiões foi en-
faticamente defendido por Vigotski, especialmente, quando criticado
por Leontiev.
Foi um dos principais responsáveis por retomar a divulgação e pu-
blicação das obras de Vigotski, na União Soviética, ao ter início o perí-
odo do degelo e um dos que mais contribuiu para a divulgação de seus
trabalhos no ocidente. Dava importância enorme ao legado de Vigotski;
apesar de serem colegas de trabalho, considerava-o seu professor e dedi-
cou um capítulo sobre ele em sua autobiografia (LURIA, 1992).
Sua ida para Rharkov foi motivada pelas perseguições que ele e
todo o grupo começaram a sofrer, perseguições essas que se exacerba-
ram após as expedições realizadas à Ásia Central. Após os desentendi-
mentos com Leontiev, deixou Rharkov, retornando a Moscou. Daí em
diante, realizou um ou outro trabalho com Vigotski e, após a morte des-
te, não mais se associou a Leontiev, a não ser eventualmente em uma
outra pequena iniciativa.

Principal legado científico


Luria realizou, magistralmente, estudos experimentais e de campo.
O mais conhecido está descrito no livro Desenvolvimento cognitivo: seus
fundamentos culturais e sociais (LURIA, 2010). O estudo foi realizado por

206
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Luria e seus colaboradores, no verão de 1931 e 1932, na Ásia Central,


nas regiões do Uzbesquistão e da Kirghizia. Este estudo fez enorme su-
cesso e, ao mesmo tempo, foi muito criticado pelo poder central. Foi um
trabalho bastante elogiado por Vigotski que a ele se referiu em várias
ocasiões. No prefácio, escrito em 1976, Luria afirma que os dados foram
coletados nos anos de 1931 e 1932, “durante a reestruturação mais radi-
cal da União Soviética: a eliminação do analfabetismo, a transição para
uma economia coletivista e o realinhamento da vida pelos novos prin-
cípios socialistas” (LURIA, 2010, p. 7), o que configurou esse período
como uma oportunidade ímpar para examinar as mudanças que ocorre-
riam na estrutura dos processos intelectuais. Ao final do prefácio, Luria
reconhece a dívida profunda, como escreve, com o mestre e amigo L. S.
Vigotski, que falecera logo após a conclusão do trabalho, mas chegou a
conhecê-lo, fazendo-lhe a seguinte apreciação:

(...) está experimentalmente comprovada (em material concreto – mais


rico do que em qualquer estudo etnopsicológico e mais puro e correto do
que o de Levy-Bruhl) a existência de uma camada filogenética do pen-
samento complexo e a relação de dependência entre esta camada e uma
outra estrutura de todos os sistemas básicos da psique, de todos os tipos
mais importantes de atividade, perspectivamente, da própria consciência
(VIGOTSKI, 2004, em AKHUTINA, 2012, p. 117-118).

De fato, essa pesquisa de Aleksandr Romanovitch é muito impor-


tante para a perspectiva histórico-cultural por apresentar dados empí-
ricos que permitem sustentar a importante tese acerca da origem social
e histórica da consciência humana, bem como a identificação de suas
bases materiais na atividade do homem e na sua relação com os instru-
mentos culturais.
Cabe também destacar a investigação sobre a memória, descrita na
obra A mente e a memória (LURIA, 1999). Esse estudo é considerado, até
os dias de hoje, um dos mais importantes sobre o tema, apesar de ser,
na maioria das vezes, mal compreendido por alguns estudiosos. Bruner
critica esses estudiosos ao afirmar que sequer indicaram essa obra na
bibliografia das principais obras de Luria, em inglês. Não compreende-
ram o caráter da narrativa que, em vez de excluir os doentes e deficien-
tes do âmbito da explicação humana, pergunta, “ao contrário, sobre seu

207
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

universo subjetivo, sua epistemologia implícita, seus pressupostos. Eles


deixam de ser ‘casos’, e voltam a ser seres humanos. E tornam-se parte
tanto da literatura quanto da ciência” (BRUNER, 1999, p. X).
Trata-se do que Luria gostava de chamar de “ciência romântica”,
em contraposição à ciência clássica. A esse respeito, diz: “O romantismo
em ciência não pretende nem cindir a realidade viva em seus compo-
nentes elementares nem representar a riqueza dos acontecimentos con-
cretos da vida em modelos abstratos que perdem as propriedades dos
próprios fenômenos”. Acrescenta ainda:

Por muito tempo indaguei-me qual das duas abordagens, em princípio,


conduz a uma melhor compreensão da realidade viva [e essa questão] foi
objeto de preocupação durante os primeiros anos de minha vida intelectu-
al [e] um dos principais fatores que me levaram até Vigotski foi sua ênfase
na necessidade de resolver essa crise (LURIA, 1999, p. XIII).

Nesse ponto, Luria refere-se à preocupação de Vigotski em realizar,


de fato, uma psicologia do homem concreto, ascender ao concreto. No
livro que estamos a examinar, não se limitou a investigar a memória do
mnemonista Cherechevski. Procurou verificar como sua fantástica me-
mória “influenciou seu pensamento, seu comportamento e sua persona-
lidade” (LURIA, 1999, p. XV). Interessava- lhe, sobretudo, responder às
seguintes questões:

Que efeito exerce uma notável capacidade de memória sobre outros as-
pectos importantes da personalidade, sobre os hábitos de pensamento e de
imaginação de um indivíduo, sobre o comportamento e o desenvolvimen-
to de sua personalidade? Que mudanças ocorrem no mundo interno de
uma pessoa, no seu relacionamento com os outros, no seu próprio estilo
de vida, quando um elemento de sua constituição psíquica, sua memória,
desenvolve-se num grau tão excepcional que começa a alterar todos os
outros aspectos de sua atividade? (LURIA, 1990, p.3-4).

Foram trinta anos de observação, de 1920 a 1950, o que demons-


tra a grandeza de um experimentador que abraça o rigor e a paciên-
cia, descartando o açodamento. Os primeiros materiais apresentados ao
mnemonista foram reapresentados a ele 30 anos depois e Cherechevski

208
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

não os havia esquecido. Foi possível a Luria verificar que a excessiva


memorização tirava dele a possibilidade de usar filtros, o que prejudi-
cava, enormemente, a compreensão de textos escritos e outras funções
intelectuais. Esse estudo é considerado uma das obras mais importantes
sobre a memória já escrita até os dias de hoje.

Luria realizou também estudos no campo da neurologia e da neu-


ropsicologia. No livro Fundamentos de Neuropsicologia (LURIA, 1981), são
descritos resultados obtidos pelo autor e sua equipe durante quarenta
anos de pesquisa. Em 1981, ano da edição dessa obra em português,
Antonio Lefrève, professor de Neurologia Infantil da Universidade de
São Paulo, escreveu no prefácio à edição brasileira: “Em um contato
pessoal que tivemos em Moscou, interroguei Luria a que especialidade
ele se sentia ligado, ou melhor, como ele se denominaria como especia-
lista. ‘Neuropsicólogo’, foi sua pronta resposta, ‘como Ajuriaguerra e
Critchley o são’” (Luria, 1981, p. VII). Para Lefrève, com Luria, a neu-
rofisiologia e a neuropsicologia atingiram seu ponto máximo na Rús-
sia, destacando-se sua enorme contribuição ao colocar em xeque-mate
a hipótese localizacionista do funcionamento cerebral, desenvolvendo e
demonstrando a ideia de que o cérebro funciona como um todo, como
um sistema.

Esse trabalho de Luria foi precedido de outros, de igual valor, no


mesmo campo. Por exemplo, a descrição do caso Zazetski, segundo Le-
frève, é modelar. Durante a guerra, o jovem militar sofrera um grave
ferimento no hemisfério cerebral esquerdo que resultou em graves dis-
túrbios da atividade nervosa superior, entre eles, afasia, agnosia visual,
apraxia, etc. O quadro clínico do paciente foi acompanhado e descrito
por mais de 20 anos. Do ponto de vista metodológico, a grande contri-
buição de Luria foi mostrar como se estuda o cérebro vivo, em ação. Ele
também realizou estudos sobre afasia cujos resultados e conclusões são
válidos até os dias de hoje e estão descritos na mesma obra.

Outro estudo que merece destaque é sobre o desenvolvimento in-


telectual em gêmeos, descrito em seu livro Linguagem e desenvolvimento
intelectual na criança (LURIA e YOUDOVICH, 1987). Luria e Yudovich
relatam a experiência que realizaram com um par de gêmeos, visando a
demonstrar a influência da fala no desenvolvimento dos processos men-

209
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

tais. Eram dois gêmeos idênticos, com cinco anos de idade, com algum
tipo de déficit que criava as condições para atraso no desenvolvimento
da fala. Além disso, a situação gemelar era uma condição adicional de
atraso, na medida em que os gêmeos não necessitavam desenvolver a
fala para se comunicarem. Eles constituíam um par autossuficiente. Foi
feita, então, a separação dos gêmeos que passaram a ter a companhia
de outros meninos falantes, na creche em que estavam. Em três meses,
os resultados começaram a aparecer: os gêmeos não só começaram a
desenvolver a fala como também demonstravam mudanças notáveis no
desenvolvimento intelectual. Mais uma vez, Luria apresentava funda-
mentos empíricos para a tese de Vigotski sobre a relação pensamento e
fala e sobre a importância do coletivo para o desenvolvimento cultural
da criança.

DANIIL BORISOVITCH ELKONIN (1904 –1984).


Dados biográficos
Elkonin nasceu na província de Poltava, Ucrânia. Concluiu os estu-
dos superiores em Psicologia, em 1927, no Instituto Guertsen de Lenin-
grado, na Faculdade de Pedologia. Iniciou sua trajetória como educador
em uma colônia para menores infratores.
A partir de 1931, tornou-se aluno de L. S. Vigotski com estudos so-
bre a brincadeira da criança, que resultou em sua obra Psicologia do Jogo
(ELKONIN, 1998). Em 1932, foi vice-diretor científico do Instituto Cien-
tífico-prático de Pedologia, de Leningrado. Em 1936, depois da Resolu-
ção sobre as Deturpações da Pedologia, perdeu o emprego e o título de
doutor, por não ter negado suas convicções científicas.
De 1938 a 1940, trabalhou em escolas, escreveu uma cartilha de alfa-
betização que, até hoje, é reconhecida na Rússia. Às vésperas da Segunda
Guerra Mundial, defendeu outra tese de doutorado, recuperando seu tí-
tulo, voluntariou-se e participou ativamente da guerra. Ingressou como
soldado e, ao final, foi para a reserva como major. A guerra provocou
uma das maiores tragédias de sua vida: perdeu as duas filhas e a esposa.
Da década de 1950 em diante, trabalhou na Academia de Ciências
Pedagógicas, dirigindo o Departamento de Psicologia Escolar, Psicolo-

210
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

gia do Adolescente, de Diagnóstico do Desenvolvimento Psíquico de


Escolares e lecionou na Faculdade de Psicologia da Universidade de
Moscou. Desenvolveu estudos a respeito das atividades na infância (ati-
vidades-guia), da periodização do desenvolvimento e da infância e da
brincadeira de representação de papéis.

Relações com Lev Semionovitch Vigotski


Desde 1929, interessou-se pelo estudo da Pedologia, o que o levou
a aproximar-se de Vigotski, que compareceu em Leningrado para con-
ferências e supervisão em cursos de pós-graduação, nos anos de 1931,
1932 e 1933. Elkonin trabalhou com Vigotski por pouco mais de quatro
anos (aproximadamente, entre 1930 e 1934). Nesse período, dedicou-se,
principalmente aos estudos do papel da brincadeira e do jogo no desen-
volvimento cultural da criança.
A conferência de Vigotski sobre o papel da brincadeira no desen-
volvimento psíquico da criança é a pedra de toque do que Elkonin vi-
ria a desenvolver, posteriormente, a respeito da psicologia do jogo e da
brincadeira infantil, conforme diz: “Foi nas ideias expressas por Vigot-
ski nessa conferência que apoiei minhas pesquisas posteriores sobre a
psicologia do jogo” (LAZARETTI, 2013, p. 206).
Após o decreto proibindo a Pedologia na União Soviética, Elkonin
viu-se forçado a abandonar sua linha principal de pesquisa, dedicando-
-se a outras áreas de estudo.

Principal legado científico


Elkonin é um dos pensadores que mais se aproximou dos funda-
mentos teóricos e filosóficos do pensamento de Vigotski, segundo nosso
modo de ver. Atuou como pesquisador por mais de cinquenta anos.
Escreveu livros, artigos científicos, fez conferências, etc. Enfim, teve uma
produção relativamente abundante. Conforme Lazaretti (2013),

(...) sua produção focaliza temas sobre a dinâmica e as características dos


períodos do desenvolvimento humano, desdobrando discussões sobre a
atividade de comunicação emocional direta; atividade objetal manipula-

211
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

tória; atividade jogo de papéis; atividade de estudo; atividade de comuni-


cação íntima pessoal; e atividade profissional de estudo (p. 203).

Seus trabalhos sobre a periodização do desenvolvimento psicoló-


gico e da infância são bastante interessantes, dão continuidade às ideias
de Vigotski a respeito do assunto e, pode-se dizer, são bastante inovado-
res. Por essa razão, no presente volume apresentamos a tradução de seu
texto O problema da periodização do desenvolvimento psíquico na infância. O
texto apresenta um panorama geral acerca da periodização do processo
de desenvolvimento psíquico da criança, afirmando ser esse o problema
fundamental da psicologia da criança, dependente da estratégia de es-
truturação do sistema de educação e de instrução das futuras gerações.
Do ponto de vista da educação e da psicologia do desenvolvimento cul-
tural da criança, Elkonin demonstra no texto por que, se desejamos uma
sociedade sem classes sociais, devemos lutar por uma escola única do
trabalho, desejo não realizado de Lunatcharski.

Referências Bibliográficas
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Andréa Maturano; PUENTES, Roberto Valdés (Orgs.). Ensino desenvolvimen-
tal – vida, pensamento e obra dos principais representantes russos. Uberlân-
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ELKONIN, Daniil Borissovitch. Psicologia do jogo. Tradução do espanhol por Álvaro
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LAZARETTI, Lucinéia Maria. Daniil Borisovich Elkonin: a vida e as produções de um estu-
dioso do desenvolvimento humano. Em: Andréa Maturano Longarezi e Roberto Val-
dés Puentes (Orgs.). Ensino desenvolvimental – vida, pensamento e obra dos
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LURIA, A. R. Fundamentos de Neuropsicologia. Tradução de Juarez Aranha Ricardo.
Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos e São Paulo: EDUSP, 1981.
LURIA, A. R. e YUDOVICH, F. I. Linguagem e desenvolvimento intelectual na
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LURIA, A. R. A construção da mente. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Pau-
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LURIA, A. R. A mente e a memória: um pequeno livro sobre uma vasta memória.
Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

212
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

LURIA, A. R. Desenvolvimento cognitivo: seus fundamentos culturais e sociais. Tra-


dução de Fernando Limongeli Gurgueira. São Paulo: Ícone, 2010.
LONGAREZI, Anfréa Maturano; FRANCO, Patrícia Lopes Jorge. A. N. Leontiev: a
vida e a obra do psicólogo da atividade. Em: LONGAREZI, Andréa Maturano;
PUENTES, Roberto Valdés (Orgs.). Ensino desenvolvimental – vida, pensa-
mento e obra dos principais representantes russos. Uberlândia, MG: EDUFU,
2013. p. 67-110
SOBKIN, Vladimir. Komentarii k teatralnim retsenziam Lva Vigotskogo. Em: VIGOTSKI,
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teatr. Moskva: Lev, 2015.
PRESTES, Z.; TUNES, E.; NASCIMENTO, R. Lev Semionovitch Vigotski: um estudo da
vida e da obra do criador a psicologia histórico-cultural. LONGAREZI, Andréa Matu-
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samento e obra dos principais representantes russos. Uberlândia, MG: EDUFU,
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TUNES, E. e PRESTES, Z. Vigotski e Leontiev: ressonâncias de um passado. Em: Cadernos
de Pesquisa, 2009, v. 39, no 136, p. 285-314.
VIGOTSKI, Lev Semionovitch. Polnoie sobranie sotchineni. Tom 1. Dramaturguia e
teatr. Moskva: Lev, 2015.

213
Gramsci, Revolução Russa e escola
unitária
Marcos Francisco Martins

Introdução

Neste capítulo encontra-se uma síntese do conteúdo da palestra


ministrada no dia 19 de dezembro de 2020, último encontro do cur-
so intitulado “Educação e revolução – pedagogia socialista soviética”,
promovido pela ELAHP (Escola Latino Americana de História Políti-
ca) e pela CCEV (Casa de Cultura Esperança Vermelha) durante o ano
de 2020 de modo remoto.

Como naquela oportunidade, objetiva-se aqui apresentar uma lei-


tura do impacto da Revolução Russa na ação política de juventude e
nas reflexões educativas de Gramsci.

Para tanto, serão apresentadas duas ideias centrais, a saber: a) uma


mais consolidada entre os estudiosos do legado de Gramsci, a de que
ele tentou traduzir a revolução soviética na Itália, principalmente na
juventude, durante o Biênio Vermelho (1919-1920), reproduzindo nos
Conselhos de Fábrica a experiência dos sovietes (“conselho” em rus-
so); b) outra menos comentada, dada, sobretudo, a escassez de fonte,
a de que Gramsci também tentou traduzir a escola única do trabalho,
articulada pelos pioneiros da educação russa (Krupskaya, Lunatchar-
ski, Pistrak e Shulgin), na proposta de escola unitária que produziu
na maturidade, no cárcere. O corolário dessas ideias é que o conceito
de tradução precisará ser explorado, nem que de modo introdutório,
considerando as limitações do presente texto.

215
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Esse conteúdo do capítulo será exposto em uma estrutura textual


dividida em cinco partes. Na primeira estão apresentadas particulari-
dades dos escritos de Gramsci. Depois, há uma introdução ao conceito
de tradução/tradutibilidade, que é seguida pela exposição sobre a mi-
litância de Gramsci junto aos Conselhos de Fábrica. Sequencialmente,
é feita uma aproximação entre as formulações dos pioneiros da edu-
cação russa e a proposição educativa de Gramsci, para demonstrar a
tese de que este tentou traduzir aqueles. Por fim, a proposta de escola
unitária é analisada. Na conclusão, encontra-se a síntese do que foi
anteriormente exposto, visando a estimular outras reflexões sobre as
formulações educacionais de Gramsci.

Sobre os escritos de Gramsci

Gramsci nunca escreveu um livro, mas há vários livros com os


escritos de Gramsci. Ele foi convidado, em 1918 e 1920, a publicar na
forma de coletânea os artigos que produziu na juventude pré-carcerá-
ria, mas negou-se a fazê-lo, como também “[...] em 1924, o deputado
Franco Ciarlantini me propôs escrever um livro sobre o movimento de
L’Ordine Nuovo [...], mas recusei: talvez, agora penso, fosse melhor
ter aceito” (GRAMSCI, 2005b, p. 83 – Carta a Tatiana, 07 set. 1931). A
negativa de publicar os escritos pré-carcerários sustentava-se na ideia
de que “[...] foram escritos ‘para o dia-a-dia’, tais artigos eram destina-
dos a morrer ‘tão logo se encerrasse o dia’” (COUTINHO, 1999, p. 7).
Contudo, no cárcere, imbuiu-se do desejo e mesmo da necessidade de
produzir não apenas textos “panfletários”, mas de

[...] algo für ewig [...] segundo um plano preestabelecido [...] sistema-
ticamente de alguns temas [...]. São eles: 1) uma pesquisa sobre [...] os
intelectuais italianos [...]; 2) Um estudo de linguística comparada [...];
3) Um estudo sobre o teatro de Pirandello e sobre a transformação do
gosto teatral italiano [...]; 4) Um ensaio sobre os romances de folhetim e
o gosto popular na literatura. (GRAMSCI, 2005a, p. 128-129 – Carta
a Tatiana, 19 mar. 1927)

Se os textos pré-carcerários eram “interessados”, porquanto visa-


vam à militância política imediata, os escritos carcerários guardavam

216
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

um espírito “desinteressado”, “für ewig”, de longo alcance histórico.


Em todos os textos, contudo, percebe-se um Gramsci militante que, em
condições adversas, problematizou a própria prática social e produziu
formulações teóricas que impactaram e impactam diferentes áreas do
saber: da filosofia às letras, da sociologia ao direito, da ciência política
à pedagogia.

O comunista sardo escreveu diversos tipos de texto: artigos em


jornais operários, críticas literárias, reflexões sobre organizações par-
tidárias e sindicais, cartas, análises de conjuntura, entre outros. Con-
tudo, os mais famosos são os que Gramsci produziu no cárcere, onde
ficou encerrado de 8/11/1926 a 27/04/1937. Na prisão, redigiu cartas
a amigos, à família e aos companheiros(as) militantes, bem como um
conjunto de Cadernos com comentários variados (33 no total, sendo
4 deles com exercícios de tradução, embora dessa atividade tenha re-
sultado também anotações em parte dos Cadernos 7 e 9), visando a
posterior publicação.

Tendo começado a escrever os Cadernos do Cárcere em 8/2/29, a


produção se encerrou em meados de 1935, pelos problemas de saúde
enfrentados, que foram agravados pelas condições da prisão fascista.
Gramsci escrevia em vários cadernos ao mesmo tempo e os reescre-
via também, embora o próprio autor tenha feito uma identificação dos
mesmos, intitulando-os de “miscelâneos” (Cadernos de 1 ao 9, 14, 15
e 17), que continham notas variadas para posterior síntese, e de “es-
peciais” (Cadernos de 10 ao 13, 16 e do 18 ao 29), geralmente mais
tardios, nos quais articulava as escritas anteriormente feitas por temas
específicos, o que indica certa expressão dos diferentes momentos da
produção textual no processo de pesquisa (Cadernos Miscelâneos) e
de exposição (Especiais), tal como indicou Marx no Prefácio à 2ª edição
de “O Capital” (cf. MARX, 1999)1. Preservados e retirados do cárcere
da clínica de Quisisana pela cunhada, Tatiana Schucht, que atendia
Gramsci na prisão, os Cadernos foram por ela remetidos a Moscou e
1 Para conhecer uma apresentação detalhada dos Cadernos, cf. a “Descrizione dei
Quaderni” presente no o volume 4 da Edição Gerratana (1975), p. 2367 a 2442, e Fran-
cioni (2019).

217
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

numerados aleatoriamente em algarismos romanos (de I a XXXIII)2,


o que foi posteriormente revisto pela edição reconhecida e citada in-
ternacionalmente como “Edição crítica”, patrocinada pelo Instituto
Gramsci e coordenada por Gerratana. Ele desenvolveu um rigoroso
trabalho de ordenamento cronológico dos textos, numerou os pará-
grafos e identificou os escritos dos Cadernos Miscelâneos, chamados
por Gerratana de textos “A”, mas que foram reescritos posteriormente
(textos “C”), bem como os que ficaram com escrita única, sem reescrita
(textos “B”).

Ocupando, aproximadamente, 2500 páginas impressas, os Ca-


dernos foram editados e reeditados no Brasil e fora dele. A primeira
edição, em seis volumes, foi publicada na Itália entre os anos de 1948
a 1951, pela editora Einaudi, que contou com o trabalho editorial de
Felice Platone e Palmiro Togliatti, os quais decidiram agrupar os textos
por temas para publicá-los, daí ser conhecida como “Edição temática”.
Os problemas verificados na primeira edição, como é o caso, inclusive
de “[...] cortes censórios realizados pelo editor (que permanece anôni-
mo, mas todos sabiam tratar-se de Togliatti)” (COUTINHO, 1999, p.
24), foram superados, em alguma medida, pela Edição crítica. No Bra-
sil, a primeira versão dos Cadernos do Cárcere foi publicada entre 1966
e 1968 pela Editora Civilização Brasileira a partir da Edição temática,
cuja editoria ficou a cargo de Ênio Silveira. A mais recente edição dos
Cadernos também foi publicada pela Civilização Brasileira, principal-
mente contando, no trabalho editorial, com a inestimável contribuição
de Carlos Nelson Coutinho, entre outros colaboradores. Na Itália, está
em curso um grandioso projeto editorial: “Edição nacional dos escritos
de Antonio Gramsci”, conduzido pelo Instituto da Enciclopédia Italia-
na e financiado pelo governo da Itália. Até o final de 2020, haviam sido
publicados sete volumes de um total que poderá alcançar a casa dos
cinquenta. Entre eles estarão os dedicados aos escritos da juventude e
da maturidade de Gramsci, incluindo o epistolário.

De fato, usos e abusos na edição e na interpretação são registrados


pelos que se dedicam ao estudo do legado de Gramsci, até porque “[...]
2 O Caderno 12, assim identificado pela pesquisa de Gerratana, foi numerado aleato-
riamente por Tatiana como sendo o de número XXIX.

218
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

o modo pelo qual os textos de Gramsci foram lidos e tiveram influência


– sobretudo no caso dos Cadernos do Cárcere – dependeu não apenas
do conteúdo dos mesmos, mas também, em grande medida, da forma
pela qual foram tornados públicos pelos variados editores” (COUTI-
NHO, 1999, p. 8).
Embora fragmentária (porque não finalizada pelo autor e nem,
muito menos, revisada para a publicação) e de viés exploratório, toda
essa produção textual contém coerência interna, ou melhor, “[...] a sua
concepção filosófico-política guarda uma profunda unidade que atra-
vessa não apenas toda a extensão dos seus escritos, mas se manifesta
na direção inalterada de suas escolhas políticas e na coerência inabalá-
vel de suas convicções” (SEMERARO, 2001, p. 233). Para ser adequa-
damente interpretada, há que se tomar a vida, a militância política e
sindical, e a produção teórica como uma totalidade, cujos conceitos-
-chave para a leitura são, sobretudo, a luta de classe e a práxis.
Esse Gramsci descrito foi definitivamente impactado pela Revolu-
ção Russa, o que é verificável em diferentes focos de análise, especial-
mente, os três seguintes, entre outros:
a) a Revolução Russa favoreceu a maturidade intelectual de
Gramsci, tornando-o um materialista histórico-dialético com leitura
leninista desse paradigma3, ele que até então era próximo do neoidea-
lismo de vertente croceana, tanto assim que 1916 afirmou que “O ho-
mem é sobretudo espírito, ou seja, criação histórica, e não natureza”
(GRAMSCI, 2004a, p. 58 – Socialismo e cultura, Il Grido del popolo, 29
jan. 1916); contudo, amadurecido,

Gramsci estabelece a sua polêmica em duas frentes: por um lado, ele


combate contra as tendências auto-intituladas ortodoxas, que fundam
o marxismo sobre o materialismo vulgar, sobre o fatalismo mecanicista,
transformando-o em uma simples sociologia positivista (como é o caso
de Bukharin); por outro, contra as tentativas de destruí-lo, enquanto
concepção unitária de mundo, fragmentando-o em partes isoladas – e
descaracterizadas – que possam ser assimiláveis por uma outra con-
3 “E é sob esse signo da experiência soviética e, em particular, do pensamento leninista
que se desenvolverá agora, ainda que não sem algumas contradições, o pensamento de
Gramsci.” (MANACORDA, 1990, p. 39)

219
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

cepção, idealista ou especulativa (como é o caso de Croce). Em suma,


Gramsci empreende a luta contra o dogmatismo e contra o revisionismo
(COUTINHO; KONDER, 1995, p. 4).

b) como materialista histórico-dialético, soube aprender com o su-


cesso da Revolução de 1917 e com o fracasso da revolução socialista em
outros países, como a Itália, porque “[...] a sociedade civil italiana era
diferente da russa. Seu aparelho político também era diferente” (NO-
SELLA, 1992, p. 44), e desse processo produziu atualizações teóricas
internamente ao paradigma teórico-metodológico a que filiou.

A biografia e a militância política de Gramsci não deixam dúvidas


quanto à sua íntima vinculação com o marxismo; [...] Gramsci, acima
de tudo, é um autor que, como poucos dentro do marxismo, conseguiu
perceber as transformações profundas de uma época e se envolveu to-
talmente nas lutas sociopolíticas do seu tempo, ampliando o campo de
visibilidade e as conquistas das classes trabalhadoras. Foram estas [...]
as condições que lhe permitiram empreender uma reelaboração teórica
e política do marxismo, cujos resultados, em grande parte, permanecem
atuais até hoje. E, neste processo, como Marx, uniu dialética e criativa-
mente a ação política à liberdade do pensamento crítico, enriquecendo
a tradição revolucionária com novos instrumentos teóricos e práticos.
(SEMERARO, 2000, s/p.)

c) paralelamente à atualização conceitual no âmbito marxista,


Gramsci também renovou as formulações sobre a prática revolucio-
nária em sociedades cujo metabolismo econômico-social do capital é
mais desenvolvido (sociedades ocidentais); ele dá sequência ao de-
safio que Engels apresentou na Introdução de As lutas de classes em
França4, tratando da renovação das formas de luta revolucionária após
1848, o que Gramsci assume: “[...] a fórmula da ‘revolução permanen-
te, própria de 1848, é elaborada e superada na ciência política com a
fórmula da ‘hegemonia civil’. Ocorre na arte política o que ocorre na
4 “[...] a história também não nos deu razão e demonstrou que os nossos pontos de
vista dessa altura eram uma ilusão. E foi ainda mais além: não só destruiu o nosso erro
de então como revolucionou totalmente as condições em que o proletariado tem de
lutar. O modo de luta de 1848 está hoje ultrapassado em todos os aspectos. E este é um
ponto que merece ser examinado mais de perto” (ENGELS, 1982, p. 16).

220
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

arte militar: a guerra de movimento torna-se cada vez mais ‘guerra de


posição’”. (GRAMSCI, 2000b, p. 24)5
De fato, poder-se-ia discutir aqui cada um desses três itens, mas
a opção foi por apresentar nas linhas abaixo dois impactos da Revolu-
ção de 1917 em Gramsci, todos eles, contudo, relacionados à tradução
que ele tentou fazer dos eventos revolucionários russos à realidade na-
cional-popular italiana: na juventude, Gramsci procurou traduzir os
sovietes nos Conselhos de Fábrica (Biênio Vermelho – 1919 a 1920); na
maturidade carcerária, os indicativos são de que ele traduziu a escola
única do trabalho russa, dos pioneiros da educação soviética, na pro-
posição de escola unitária. Antes de entrar nesse debate, porém, será
preciso definir o que se entende por tradução no âmbito do legado
gramsciano.
Alguns apontamentos sobre tradução e tradutibilidade em Gramsci

Tradução e tradutibilidade não são conceitos muito “famosos” no cabedal


teórico-metodológico gramsciano, mas são significativos para compreen-
dê-lo.
O substantivo “tradutibilidade”, e os adjetivos “traduzível”, “traduzí-
veis” [têm] importância estratégica [...] em seu discurso global. O con-
ceito está intimamente ligado ao de “tradução”, mas os dois aspectos – a
possibilidade teórica de traduzir algo e a atividade prática de traduzir –
são discutidos separadamente (BOOTHMAN, 2017b, p. 782).

Fontes para essa discussão são encontradas, por exemplo, nos Ca-
dernos Especiais 10 e 11. Considerando os termos tradução e tradutibili-
dade, ao observar o plano de produção de escrita “für ewig” que Grams-
ci elaborou na prisão, é evidente o interesse dele nas questões literárias
e linguísticas. Aliás, ele foi estudante na Faculdade de Letras em Turim,
pois sonhava em ser professor de Literatura, mas teve que abandonar
o curso antes da conclusão. A propósito, alguns cadernos tratam des-
5 Cabe observar que essa questão suscita a discussão sobre as proximidades e dis-
tanciamentos entre Gramsci e Trotsky. Mesmo considerando que as referências de
Gramsci a Trotsky (por vez tratado com pseudônimo: Leão Davidovitch Bronstein)
nos Cadernos são críticas, sendo a única referência explícita a Stálin (Cad. 14, § 68) feita
em sua defesa, há autores que consideram ser essa uma questão aberta, que exige mais
estudos e pesquisas, como é o caso de Bianchi (2008).

221
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

sas questões, como o 21, 23 e o 29, para ficar com apenas três exemplos
de Cadernos Especiais. Autores como Larcorte (2014), Lo Piparo (2008),
Silveira Júnior (2015), Schirrù (2017) e Boothman (2017a e 2017b) são al-
guns comentaristas renomados sobre esse tema em Gramsci.
O interesse acadêmico pela questão linguística foi despertado em
Gramsci pela experiência de vida que teve. Veja-se, por exemplo: a Itália
se compunha de uma miríade de dialetos, com parca difusão do idioma
oficial; havia a exigência de dominar línguas pelo intercâmbio político
que Gramsci fazia no movimento comunista; a atividade jornalística que
desempenhava requisitava apreensão da literatura socialista internacio-
nal; no cárcere fascista, fez exercícios de tradução em quatro dos cader-
nos.
Contudo, tradução e tradutibilidade são tomados por Gramsci
como conceitos não restritos às dimensões da literatura e da linguísti-
ca. A eles é imputada evidente dimensão política, na medida em que
o comunista revolucionário da Sardenha assumiu o desafio posto por
Lênin no IV Congresso da Internacional Comunista: “Em 1921, tratando
de problemas de organização, Vilitch [Lênin] escreveu ou disse (mais
ou menos) o seguinte: não soubemos ‘traduzir’ nas línguas européias a
nossa língua” (GRAMSCI, 1999, p. 185 – Cad. 11, § 46), referindo-se ao
fracasso da revolução socialista no ocidente. Assim, é colocada em pauta
para Gramsci a questão sobre como traduzir a revolução socialista para
outras formações econômico-sociais, outros contextos e culturas, até
porque ele próprio liderou um movimento revolucionário que tentou
traduzir, como uma transposição simples, a experiência russa na Itália
(os Conselhos de Fábrica, durante o Biênio Vermelho – 1919 a 1920), mas
fracassou. Disse ele no artigo intitulado “Contra o pessimismo”, publi-
cado em 1924 no L’ordine Nuovo:

[...] nós, por uma série de razões, não partimos – para definir nossa ação
– daquilo que ocorria na Itália [...] limitamo-nos a insistir em questões
formais, de pura lógica, de pura coerência, e fomos derrotados, já que a
maioria do proletariado organizado não nos deu razão, não nos seguiu
[...] não soubemos traduzir em linguagem compreensível por todo operá-
rio e camponês italiano o significado de cada um dos eventos italianos dos
anos 1919-1920” (GRAMSCI, 2004b, p. 242-243).

222
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Foi exatamente o fracasso do movimento revolucionário dos Con-


selhos que estimulou Gramsci a refletir na maturidade sobre como é
possível traduzir na realidade nacional italiana a revolução socialista, na
qual a educação e as escolas tiveram destacado papel estratégico. Assim,
a tradução tem muita relevância nas formulações teórico-metodológicas
gramscianas, mas “[...] a tradução em Gramsci não autoriza interpreta-
ções que entendem a linguagem como estruturante de seu legado, como
faz Lo Piparo6” (MARTINS, 2017a, p. 999), pois isso o afastaria do mate-
rialismo histórico-dialético que identifica o legado que produziu.
Importa destacar que tradução em Gramsci não se reporta à inter-
pretação autêntica, fiel de um texto, visando à transposição para outro
contexto, e nem o exercício disso em relação à teoria e à prática. Não
se constitui, portanto, como reprodução ipsis litteris, porquanto em
Gramsci “Traduzir não significa [...] repetir, mas recriar” (MENESES,
2017, s/p.). A propósito, esse posicionamento em favor da crítica e da
criatividade nos processos de tradução é um dos fundamentos dos for-
tes questionamentos de Gramsci ao Manual de Sociologia de Bukharin
(GRAMSCI, 1999, p. 114 a 168 – Cad. 11, parte II – V: “Tradutibilidade
de linguagens científicas e filosóficas”, do § 13 ao 35). Segundo Grams-
ci, o Manual pretendia popularizar o materialismo histórico-dialético,
apresentando-o com um conteúdo universal, desconsiderando, porém,
as diferenças contextuais, particularmente as que definem o metabolis-
mo social do capital no oriente e no ocidente.
Gramsci interessava-se, particularmente, em aplicar as experiências
da Revolução Russa na Itália e, em geral, traduzir o materialismo históri-
co-dialético para o contexto europeu. A partir dos fracassos das tentati-
vas revolucionárias no ocidente, observou que a tradução exige acurada
análise histórica dos contextos, capacidade crítica e criativa, conheci-
mento da práxis originária, disposição e habilidade para atualizar a teo-
ria e a práxis, com vistas à consecução do objetivo almejado, mas sempre
considerando as particularidades da formação econômico-social. Dado
que “[...] duas estruturas fundamentalmente similares têm superestru-
turas correspondentes e reciprocamente traduzíveis, qualquer que seja
6 “[...] a matriz primitiva da sua filosofia [de Gramsci] não deveria ser buscada em
Marx, em Lênin ou em qualquer outro marxista, mas na ciência da linguagem.” (LO
PIPARO, 2008, s/p.)

223
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

sua linguagem particular nacional” (GRAMSCI, 1999, p. 190 - Cad. 11,


§ 49), a tradução procura manter o essencial do que se traduz, sem ecle-
tismos, mas atualizando-o de acordo com a particularidade do contexto.
Desse modo, o trabalho de tradução exige “[...] encontrar as semelhan-
ças mesmo onde elas parecem não existir, e saber descobrir as diferen-
ças mesmo onde parecem existir apenas semelhanças etc.” (GRAMSCI,
1999, p. 240 – Cad. 7, § 81).
Desta feita, pode-se dizer que Marx e Engels souberam sintetizar
e traduzir as mais avançadas formulações teóricas da época7 para a
práxis política do proletariado, visando aos interesses e necessidades
das classes subalternas. Sobre isso, disse Gramsci:

Filosofia - Política - Economia. Se estas três atividades são os elemen-


tos constitutivos de uma mesma concepção do mundo, deve existir ne-
cessariamente, em seus princípios teóricos, convertibilidade de uma
na outra, tradução recíproca na linguagem específica própria de cada
elemento constitutivo: um está implícito no outro e todos, em conjunto,
formam um círculo homogêneo. (GRAMSCI, 1999, p. 209 - Cad. 11;
§ 65)

Por sua vez, Lênin conseguiu traduzir as formulações da teoria


revolucionária de Marx e Engels para a práxis no contexto russo com
sucesso, algo não alcançado em outras formações econômico-sociais
europeias ocidentais. De fato, “[...] a obra prima dos bolcheviques
consiste precisamente nisso [...]: em ter traduzido historicamente, na
realidade experimental, a fórmula marxista da ditadura do proletaria-
do” (GRAMSCI, 2004a, p. 241).
Depois do fracasso da tentativa de transposição prática ipsis lit-
teris da revolução bolchevique nos Conselhos de Fábrica na Itália,
Gramsci tentou produzir no cárcere a tradução teórica de Marx e En-
gels, e de Lênin, para o contexto do século XX das chamadas “civili-
zações ocidentais”, bem como a proposta de escola única do trabalho
dos pioneiros da educação russa na escola unitária. E, assim, atuali-
zou o materialismo com a “filosofia da práxis” e as orientações para a
7 “[...] a filosofia clássica alemã, a economia política inglesa e o socialismo francês”
(LÊNIN, 1985, p. 15).

224
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

práxis revolucionária desenvolvida em países ocidentalizados.

Nesse processo de tradução, fica evidenciado que “[...] a tradu-


tibilidade constitui o núcleo teórico do marxismo gramsciano, que
deriva e, ao mesmo tempo, desenvolve algo que em Marx e Lênin
era apenas implícito” (LACORTE, 2014, p. 64). De fato, “[...] a teoria
gramsciana da linguagem e a da política, pela tradutibilidade, [...] são
entrelaçadas como teoria da hegemonia: nesta, o político é ‘linguís-
tico-simbólico-cultural’ e, ao mesmo tempo, o linguístico-simbólico-
-cultural é ‘político’” (LACORTE, 2014, p. 64).

O exercício da tradução mobiliza o que se tem de mais basilar no


método marxista, expresso por Lênin nos termos da análise concreta
de situação concreta, trabalhando com os conceitos e categorias do
materialismo histórico-dialético, atualizando-os na relação dialética
com a prática. Assim operando, Gramsci repensou a própria prática,
para construir uma nova civilização (“sociedade regulada”, socialis-
mo), o que exige compreender que “Não se pode traduzir uma ideia,
uma teoria, uma linguagem usadas em um certo espaço-tempo-cul-
tura, sem “popularizá-la[s] e adequá-la[s] às condições concretas”
(GRAMSCI, 2004b, p. 248).

A tradução dos sovietes nos Conselhos de Fábrica por Gramsci

É consolidada entre os estudiosos do legado de Gramsci a inter-


pretação de que o movimento de ocupação das fábricas no Norte da
Itália, realizado entre os anos de 1919-1920, articulado pelo Conselhos
de Fábrica, é uma tentativa de tradução dos sovietes russos. A pro-
pósito, “Depois de 1917, a palavra de ordem, escrita e ouvida com
insistência [na Itália], era ‘fazer como na Rússia.” (JESUS, 2005, p. 31).
Há farta referência sobre essa questão.

Em 1911, Gramsci chegou em Turim - centro do movimento ope-


rário e socialista italiano - para estudar graças à bolsa de estudos que
ganhou, mas que não lhe garantia adequadas condições de vida. Na-
quela fase da vida, ele guardava uma concepção de mundo sardista
(reformismo regionalista) e idealista, mas a estada no Norte o fez tran-
sitar ao socialismo, embora ainda com certa dose de “voluntarismo”
até a década de 1920.

225
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Ingressando na Faculdade de Letras de Turim, deparou-se Grams-


ci com um ambiente cultural em que predominava o positivismo, do
liberalismo e certo neorromantismo, com baixa difusão do marxismo
e do idealismo historicista de Croce. Na medida em que ele aprofun-
dou os estudos e se aproximou do movimento operário e socialista,
fez avançar a própria concepção de mundo em direção ao materialis-
mo histórico-dialético. E, assim, por exemplo, na formação histórico-
-cultural das classes subalternas italianas, ele identificou um tipo de
desenvolvimento desigual e combinado entre a burguesia industrial
do Norte e a elite agrária do Sul8, com predomínio daquela sobre essa
na manutenção da hegemonia burguesa. A esse respeito, Gramsci for-
mulou uma alternativa socialista ao problema: forjar a hegemonia das
classes subalternas a partir da aliança operário-camponesa, com vistas
a construir a Itália como uma nova civilização, superadora do modo de
produção capitalista.

No processo de amadurecimento da concepção de mundo, Grams-


ci se filiou ao PSI (Partido Socialista Italiano) e, aos 23 anos, passou a
militar na Federação Juvenil Socialista-Turim, dedicando-se à educa-
ção dos jovens e ao jornalismo (atua no Avanti!, La Città Futura, Il
Grido del Popolo, L’Ordine Nuovo e, do final de 1923 a início de 1924,
com o pseudônimo de “G. Masci”, colabora com La Correspondence
Internationale, órgão da III Internacional).

Nos anos que antecedem ao final da I Guerra, a Itália teve mobi-


lizações populares, como foi a “Revolta do Pão”, em 1917. Com pro-
tagonismo feminino e em busca de comida, por causa da fome gerada
pela guerra, essa revolta ganhou contornos políticos e Turim ficou sem
direção por alguns dias, do que adveio a repressão militar. Além dis-
so, entre outubro e novembro de 1917, ocorreu a Batalha de Caporeto,
perdida pela Itália para o império austro-húngaro. Derrota com alto
custo humano, que desmoralizou o exército, a Batalha passou a ser, na
linguagem corrente, sinônimo de derrota total. Finalizada a I Guerra,
criou-se em geral na Europa um sentimento de revolta, que fez com
8 Gramsci redigiu pequenos textos sobre essa questão (a “questão meridional”) antes
de ser encarcerado, mas a formulação mais acabada da percepção dele está no famoso
escrito de 1926, que ficou inacabado por causa da prisão e foi popularizado sob o título
de “Alguns temas da questão meridional” (GRAMSCI, 2004b, p. 403-435).

226
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

que a “A luta de classe assumi[sse], em todos os países da Europa e do


mundo, um caráter nitidamente revolucionário” (GRAMSCI, 2004a, p.
292 – “Os sindicatos e a ditadura”, L’Ordine Nuovo, 15 out. 1919), do
que resultou o chamado Biênio Vermelho na Itália, entre os anos de
1919 e 1920.

Gramsci foi um dos mais destacados dirigentes dessa tentativa


de revolução baseada na ocupação do território fabril pelos trabalha-
dores para, a partir dele, assaltar o poder, em um movimento típico
de “guerra de movimento”. Visando a fazer o movimento alastrar-se
por toda a Itália, Gramsci contou com o apoio da III Internacional, mas
com resistência não apenas dos patrões, mas também do PSI e da CGL
(Confederação Geral dos Trabalhadores).

Apesar de nesse processo Gramsci ter se aproximado do marxis-


mo, a visão que tinha da construção do socialismo ainda era marcada
por certo voluntarismo, sustentado na estratégia da “guerra de movi-
mento”. Diz Gramsci em artigo intitulado “O problema das ‘Comis-
sões Internas’ e publicado no L’Ordine Nuovo, em 23 de agosto de
1919: “O método comunista é o método da revolução permanente. É
preciso entender essa fórmula e adaptá-la a todas as contingências da
vida proletária” (GRAMSCI, 2004a, p. 271). Isso é evidente nos tex-
tos que publicou entre os anos de 1917 a 1920, na imprensa operária,
sindical e partidária. Essa questão, na verdade, se tornou central nas
reflexões e nas ações de Gramsci.

Mesmo com a dificuldade em ter notícias precisas sobre o que


ocorria na Rússia e com a posição interesseira da imprensa burguesa,
que tendia sempre a desqualificar o evento, em “Notas sobre a Revo-
lução Russa” (GRAMSCI, 2004a, p. 100 a 104 – Il Grido del Popolo, 29
abr. 1917), Gramsci apresentou a revolução bolchevique como prole-
tária e não burguesa, e questionou a visão corrente na imprensa de
que o evento era movimento de uma “autocracia” sendo substituída
por outra. Além disso, no referido artigo, Gramsci criticou o “jacobi-
nismo” da Revolução Francesa, por ser “[...] um fenômeno puramente

227
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

burguês” (GRAMSCI, 2004a, p. 101), privilegiar a violência9 em um


movimento de vanguarda burguesa e não a construção da hegemonia,
por entender a história como “contrato” e não concretamente. Cabe
destacar que Gramsci revisou essa visão negativa do jacobinismo, pos-
teriormente, na maturidade10.
No interstício de 1917 a 1920, Gramsci publicou muitos artigos
no Il Grido del Popolo, no Avanti! e no L’Ordine Nuovo, analisando
a Revolução Russa e a tradução dela que ele estava operando no ter-
ritório do Norte italiano. Mas dois deles merecem destaque, por mais
claramente se reportarem ao fenômeno dos Conselhos. O primeiro
é “Democracia operária” (GRAMSCI, 2004a, p. 245 a 249 – L’Ordine
Nuovo, 21 jun. 1919). Inspirado em leituras dos textos de Lênin, que
chegaram na Itália, como “O Estado e a revolução”, Gramsci defende
a transformação das Comissões Internas em Conselhos de Fábrica. As
primeiras, apesar de eleitas pelos trabalhadores, mas apenas os sindi-
calizados, atuavam no âmbito das relações de tipo capitalistas, eram
controladas pelos sindicatos e contavam com o apoio do reformismo
que prevalecia no PSI. Os Conselhos, por sua vez, deveriam ser eleitos
por todos os trabalhadores e, assim, constituírem-se como o germe do
Estado Operário, porque por eles os trabalhadores seriam os controla-
dores da produção. O domínio do “chão da fábrica” era visto como um
passo fundamental para a expansão desse processo aos demais “ter-
ritórios” das relações sociais, em um movimento de assalto ao poder
por uma vanguarda operária, contra o capital e para destruir o Estado
burguês. O entendimento de Gramsci naquele momento era o de que
“O conselho de fábrica é o modelo do Estado proletário” (GRAMSCI,
2004a, p. 288 – “Sindicatos e conselhos”, publicado no L’Ordine Nuovo
em 11 de outubro de 1919). Assim, os Conselhos deveriam, segundo
Gramsci e com apoio da III Internacional, impor a vontade operária,
elevada política e culturalmente. Essa estratégia revolucionária resul-
tou na greve geral em Turim, em abril de 1920, quando 291 fábricas fo-
9 Sobre a discussão da violência e da ação política fora da institucionalidade, importa
destacar que Gramsci “[...] se coloca francamente favorável também à luta por fora da
legalidade, ao desafio à institucionalidade vigente, desde que respaldada em bases
populares de massa” (FRESU, 2017, p. 225).
10 Por exemplo, no Caderno 13, redigido entre 1932 a 1934, Gramsci reconheceu que
os jacobinos souberam organizar a vontade coletiva na tentativa de criar outro Estado.

228
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

ram ocupadas e cerca de 200 mil trabalhadores paralisados, mas não se


ampliou e foi derrotada pelos patrões, não tendo conquistado o apoio
do reformismo presente no PSI11 e nos sindicatos12.

Esse debate dividiu a esquerda italiana e projetou Gramsci e o


grupo do L’Ordine Nuovo, porta voz dos Conselhos. Gramsci enten-
dia, naquele momento, que a revolução na Itália deveria seguir as
orientações da III Internacional e tentar traduzir nos Conselhos as ex-
periências dos sovietes; identificava o PSI como reformista e os Conse-
lhos com profundo papel político na condução da revolução. Por sua
vez, Bordiga, referência a muitos que articulavam a criação do novo
partido, mesmo assentindo com a vinculação à Internacional e con-
cordando com caracterização do PSI como reformista, acreditava que
o partido é que deveria assumir a condução da revolução e divergia
sobre à possibilidade de tradução da revolução bolchevique na Itália,
pois a considerava bastante diferente da Rússia. A superação da visão
“conselhista” por Gramsci o levou, junto com o grupo de ordinovistas e
Bordiga, a protagonizarem a criação do PCI (Partido Comunista Italia-
no)13, em 1921.

Outro artigo que cabe destacar no período do Biênio Vermelho é,


em especial, “A revolução contra O Capital”. Publicado como editorial
da edição nacional do Avanti! (24 dez. 1917), ele “[...] sintetizava toda a
sua [de Gramsci] compreensão da Revolução Russa naquele momento”
(DEL ROIO, 2017, p. 110). No texto, Gramsci manifesta-se como um ide-
11 “O Partido Socialista não teve êxito, porém, na parte essencial de sua tarefa histó-
rica: não conseguiu dar uma forma permanente e sólida ao aparelho [Conselhos] que
conseguiu criar através da agitação das massas [...] caiu numa crise de marasmo e le-
targia [...] se despedaça [...] os eventos se processam e o Partido está ausente deles [...]
caiu numa crise de infantilismo político” (GRAMSCI, 2004a, p. 319 – “Antes de mais
nada, renovar o partido”, L’Ordine Nuovo, 24 jan. 1920)
12 “A teoria sindicalista fracassou completamente na experiência concreta das revolu-
ções proletárias [...] O sindicalismo revelou-se nada mais do que uma forma da socie-
dade capitalista, não uma superação potencial dessa sociedade” (GRAMSCI, 2004a, p.
299 – “Sindicalismo e conselhos”, L’Ordine Nuovo, 8 nov. 1919).
13 “[...] surgindo das cinzas dos partidos socialistas, repudia suas origens democrá-
ticas e parlamentares” (GRAMSCI, 2004a, p. 420 – “O Partido Comunista”, L’Ordino
Nuovo, 4 set. 1920) e é “[...] capaz de organizar o Estado operário e as condições para o
advento da sociedade comunista” (GRAMSCI, 2004a, p. 427 – “O Partido Comunista”,
L’Ordino Nuovo, 4 set. 1920)

229
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

alista14 ao interpretar a Revolução Russa: “A revolução dos bolcheviques


se baseia mais em ideologias do que em fatos” (GRAMSCI, 2004a, p.
126). O título do texto indica que não apenas a revolução é proletária,
portanto, contra o capital como processo social, mas também que é con-
tra o livro de Marx, pois, segundo Gramsci, a ideia marxiana de que a
revolução ocorreria nos países capitalistas que tivessem maior desenvol-
vimento das forças produtivas15 foi negada, efetivamente, pelos bolche-
viques. Assim sendo, na acepção que Gramsci naquele momento tinha
do processo revolucionário, “O Capital de Marx era, na Rússia, o livro
dos burgueses, mais do que dos proletários” (GRAMSCI, 2004a, p. 126),
referindo-se ao fato que os burgueses esperavam que, na superação do
czarismo, a Rússia passasse pela implantação do capitalismo. Mas, como
destacou Staccone “[...] a ironia de Gramsci não está dirigida a Marx, e
sim às leituras economicistas de O Capital” (STACCONE, 1995, p. 24),
às leituras positivistas e evolucionistas do marxismo, desse paradigma
entendido como dogma, como o fez Turati. Para Gramsci, o povo russo
soube superar as condições objetivas e dar um “salto na história”, por
meio da articulação da vontade nacional popular, “sentimento” que bro-
tou das agruras da I Guerra, que Marx não poderia prever.

A proposição da escola unitária à luz da escola única do trabalho


As discussões sobre a escola unitária encontram-se, sobretudo,
nos Cadernos Miscelâneos 1 e 4, e mais articulada e explicitamente
proposta no Caderno Especial 12 (Apontamentos e notas dispersas
para um grupo de ensaios sobre a história dos intelectuais), de 1932,
com referências no Caderno 22 (Americanismo e fordismo), de 1934.
A escola unitária é de base marxiana. Não tem com as formula-
ções educacionais de Marx e Engels apenas proximidades, mas dis-
14 No artigo “Um ano de história” (Il Grido del Popolo, 16 mar. 1918): “Não, as forças
mecânicas jamais predominam na história: são os homens, são as consciências, é o
espírito que plasma a aparência exterior e termina sempre por triunfar.” (GRAMSCI,
2004a, p. 160)
15 Nem todos concordam com essa leitura, pois “[...] a partir dos textos da conjuntura
revolucionária de 1848, Bordiga demonstra que Marx pensara a possibilidade de um
país atrasado (a Alemanha) realizar a passagem de uma revolução burguesa a uma
revolução proletária. E, com isso, afirma, as observações de La revoluzione contro il
‘Capitale’ estariam desautorizadas.” (DIAS, 2000, p. 86)

230
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

tanciamentos também. Abdicando de tratar aqui da polêmica sobre a


denominação adequada (politécnica, formação omnilateral, formação
tecnológica de teoria e prática...) às proposições escolares do marxis-
mo originário (cf. NOSELLA, 2007; SAVIANI, 2007), importa dizer que
ambas, a escola unitária gramsciana e a resultante por inferência dos
escritos de Marx e Engels sobre educação e ensino, têm dois funda-
mentos e um compromisso (cf. MARTINS, 2017b), quais sejam: funda-
mentam-se no entendimento da educação como imanente à dinâmica
de produção do ser social e assumem o trabalho16 como princípio edu-
cativo, além de comprometerem-se com a superação da sociedade de
classes, com a construção do socialismo por um processo que articula
formação intelectual e tecnológica (de teoria e prática). Todavia, há di-
ferenças: a) enquanto as formulações educacionais marxianas volta-
vam-se à escola da classe operária, a escola unitária é “[...] única para
todo o povo [porque assim] abre uma perspectiva socialista e represen-
ta um componente essencial da luta política” (BETTI, 1981, p. 170); b) a
escola marxiana foi formulada no contexto do século XIX, na dinâmica
do Estado restrito à sociedade política, enquanto Gramsci elaborou a
escola unitária no e para o século XX, quando as funções de domínio e
direção do Estado se ampliaram, articulando a coerção dos aparelhos
da sociedade política aos consensos sociais em torno da concepção de
mundo burguesa promovidos pelos aparelhos da sociedade civil; c)
elaborada no interior da dinâmica de produção do ser social do século
XIX, que para ser transformada radicalmente exigia um ataque fron-
tal, uma guerra de movimento, o modelo escolar que resulta das pro-
posições marxianas originárias guarda baixo potencial de intervenção
na luta social, na revolução, mas a escola unitária, forjada no contexto
do século XX, no qual há destacada a atuação da sociedade civil na
conquista e manutenção do poder, integra centralmente a estratégia
revolucionária, porque é elemento basilar da guerra de posições; d)
restringindo a concepção de educação marxiana como politécnica e
entendo-a como formação em múltiplas técnicas produtivas (proposta
16 Trabalho na acepção marxiana do termo (no sentido ontológico e histórico: ativi-
dade por meio da qual o ser humano garante a própria existência pela transformação
da natureza, visando a atender suas necessidades, do que resulta na transformação de
si mesmo), não como “atividade” do(a) aluno(a), que é próprio da escola nova, e nem
como “emprego”, que se identifica com a concepção tecnicista ou neotecnicista.

231
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

predileta da burguesia, como assinalou Marx), e não na perspectiva


da formação omnilateral, a escola unitária se diferencia porque colo-
ca ênfase no humano: “[...] para Gramsci, a dificuldade principal [...]
estava no fato de esses termos [politecnismo e tecnologia] deslocarem
o foco de análise do ser humano para o seu instrumento de trabalho”
(NOSELLA, 2017, p. 146).

Contudo, cabe ressaltar a centralidade na escola unitária da es-


cola única do trabalho, resultante do esmero pessoal de Lênin17 e dos
pioneiros da educação russa, particularmente os que atuaram articula-
dos ao Narkompros (Comissariado do Povo para a Instrução Pública):
Krupskaia, Pistrak, Shulgin e Lunatcharski. Na verdade, evidências
apontam que Gramsci tentou traduzir a escola única do trabalho na es-
cola unitária, até porque esta não “[...] pode ser entendida sem o exem-
plo da comuna-escola soviética, da mesma forma que as ‘associações
livres’ de cultura política propostas por Gramsci em 1921 tinham por
modelo o Proletkult.” (MANACORDA, 1990, p. 46). Contudo, a essa
assertiva cabe fazer três observações.

A primeira é a de que é possível afirmar que Gramsci sabia da


revolução escolar que os pioneiros fizeram nas escolas, pois esteve na
Rússia por quase dois anos18, mas é difícil dizer, pelas fontes dispo-
níveis, o grau de profundidade do conhecimento que ele teve dessa
experiência, uma vez que as biografias, quando tratam de Gramsci na
Rússia, se dedicam a explorar os dilemas políticos (trabalho junto à III
Internacional) e pessoais (encontro com a esposa - Julia Schucht) que
17 “Lênin tinha tal convicção no papel estratégico da educação para o sucesso da
revolução socialista que, como chefe máximo da revolução [...] se empenhou pessoal-
mente para que no VIII Congresso do Partido Comunista (bolchevique), realizado em
março de 1919, fosse aprovada a resolução que determinou: ‘1- Instrução geral e
politécnica gratuita e obrigatória para todas as crianças e adolescentes dos dois sexos,
até os 17 anos de idade; 2- Plena realização dos princípios da escola única do trabalho,
com o ensino na língua materna, estudo em comum das crianças dos dois sexos,
absolutamente laica, livre de qualquer influência religiosa, que concretize uma
estrita ligação do ensino com o trabalho socialmente produtivo, que prepare membros
plenamente desenvolvidos para a sociedade comunista’” (BITTAR; FERREIRA JÚ-
NIOR, 2011, p. 381).
18 De 26/05/1922 a 3/12/1923, como membro da Executiva da III Internacional, des-
locando-se para Viena e lá permanecendo até 12/05/1924. Em 1925, retornou em breve
estada para participar de reunião da Executiva.

232
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

enfrentou. De fato, “A escola soviética constitui a temática de algumas


cartas, escritas entre 1931 e 1933, à cunhada e à mulher, [mas nelas] a
escassez das informações de que dispõe lhe permite infelizmente qua-
se que somente interrogações e hipóteses” (MANACORDA, 1990, p.
95). Desta feita, “Certamente é difícil determinar-se até que ponto a
influência do exemplo soviético fez-se sentir em Gramsci, dada inclusi-
ve a aspereza das polêmicas que se desenvolveram na União Soviética
em torno da idéia da comuna-escola; mas não faltam também aqui as
referências quase diretas” (MANACORDA, 1990, p. 46). Manacorda
refere-se à passagem do Caderno 11, na qual Gramsci é textual na “[...]
revelação sobre as fontes de seu modelo escolar” (MANACORDA,
1990, p. 149):

Neste ponto, insere-se um elemento proposto por Vilitch [Lênin] no


programa de abril de 1917, no parágrafo dedicado à escola unitária; pre-
cisamente na nota explicativa de tal parágrafo (cf. a edição de Genebra,
publicada em 1918), recorda-se que o químico e pedagogo Lavoisier,
guilhotinado sob o Terror, havia sustentado precisamente o conceito da
escola unitária (GRAMSCI, 1999, p. 205-206 - Cad. 11, § 62 – grifos
nossos)

Observe-se que é o próprio Gramsci que se reporta ao que se de-


nomina de escola única do trabalho com o termo “escola unitária”. De
fato, “[...] é muito importante que nos chegue finalmente de Gramsci
a indicação explícita e direta do modelo existente de escola unitária, a
‘escola única do trabalho’” (MANACORDA, 1990, p. 150)
A segunda observação é que não se identifica no que Gramsci es-
creveu sobre a escola unitária a explícita presença dos “complexos de
estudo”19, isto é, dos “[...] programas [que] prescreveram conteúdos
atuais que devessem ser aplicados, indicando as relações com o traba-
lho, com a natureza, com o homem e com a sociedade” (GONÇALVES,
19 “A noção de complexo de estudo é uma tentativa de superar o conteúdo verbalista
da escola clássica, a partir do olhar do materialismo histórico-dialético, rompendo com
a visão dicotômica entre teoria e prática (o que se obtém a partir da centralidade do
trabalho socialmente útil no complexo). Ele não é um método de ensino, em si, embora
demande, em associação a ele, o ensino a partir do trabalho socialmente útil é o elo,
a conexão segura, entre teoria e prática, dada sua materialidade.” (FREITAS, 2009, p.
37 e 38)

233
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

2020, p. 159), de modo que se constituíam em “[...] uma tentativa de su-


peração da escola verbalista clássica, buscando a unidade entre teoria e
prática [...] não apenas um ‘tema’, mas a articulação entre a atualidade,
a auto-organização e o trabalho” (DALMAGRO, 2016, p. 4). Contudo,
a escola proposta por Gramsci admite o trabalho como princípio edu-
cativo e é “[...] escola única, intelectual e manual, [que] tem ainda esta
vantagem: a de colocar o menino em contato, ao mesmo tempo, com a
história humana e com a história das “coisas”, sob o controle do pro-
fessor” (GRAMSCI, 2000a, p. 63 - Cad. 1, § 123), assim como nos com-
plexos havia a indicação para que a instrução ocorresse na articulação
do trabalho com a natureza (societas rerum, como Gramsci menciona)
e com a sociedade (societas hominum).

Terceira observação: se os pioneiros da educação russa incorpo-


raram por superação a escola nova20, Gramsci o fez em alguma medi-
da também, mas de modo bem mais crítico, inclusive, considerando a
escola unitária como “criadora”, isto é, que contempla a escola ativa
apenas como uma de suas fases: “A escola criadora é o coroamento da
escola ativa [...] Assim, escola criadora não significa escola de ‘invento-
res e descobridores’; indica-se uma fase e um método de investigação
e de conhecimento, e não um ‘programa” predeterminado’” (GRAMS-
CI, 2000a, p. 39 – Cad. 12, § 1). Enquanto os pioneiros renegavam a
velha escola tradicional como medida necessária à construção da nova
escola russa, observando e assumindo parte das mais avançadas pro-
postas escolares da época (escola nova)21, Gramsci concebia a escola
humanista tradicional com um potencial formativo importante a ser
resgatado, em outra dinâmica, na escola unitária.

Feitas as ponderações, é possível asseverar a escola unitária como


tradução da escola única do trabalho. Veja-se que ambas assumem o
trabalho, na acepção marxiana do termo, como princípio educativo,
que assim se materializou na experiência russa:
20 “Trata-se de realizar uma Aufhebung, uma superação que, longe de ser sinônimo
de liquidação sumária, implica, como momento essencial, a assunção de uma heran-
ça.” (LOSURDO, 2006, p. 305)
21 “[...] a primeira concepção do princípio do trabalho é a de que a criança deve ins-
truir-se por meio do trabalho, isto é, por métodos vivos, ativos” (LUNATCHARSKI,
s/d, p. 6).

234
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

[...] havia dois níveis de ensino: o primário, para crianças dos oito aos
13 anos, e o secundário, que envolvia jovens de 13 a 17 anos. No pri-
meiro segmento, o ‘trabalho’ que caracterizava a escola era definido,
oficialmente, como um princípio que deveria ‘dirigir para o conheci-
mento do mundo criativo, vivo e ativo’. ‘Nesse bloco, a proximidade
com o trabalho tem essa significação de tornar o ensino ativo, de modo
que não seja livresco, um ensino que não seja só de ouvir o professor
falar em sala de aula’ [...] ‘Trabalho tem aqui o sentido de que a vida
em geral é um palco de aprendizagem e ela pode ser assim tomada pela
escola’. Já no segundo nível, a ideia era colocar os estudantes em contato
com os variados trabalhos, com base no estudo da ‘cultura politécnica’.
‘Aí o trabalho está mais formalmente presente, mas ainda na forma de
oficinas escolares de metal, madeira e também com o que será desen-
volvido como trabalho socialmente necessário, ou seja, um conjunto de
atividades de conexão da escola com a vida, com o bairro. [É a ideia de]
que os estudantes se conectem com essa vida para resolver problemas
concretos que estão acontecendo na comunidade’ [...] ressaltando que a
especialização em alguma profissão só poderia acontecer a partir dos 17
anos. (FREITAS, 2020, s/p.)

Além disso, as finalidades da escola unitária e da escola única do


trabalho são as mesmas: os pioneiros russos tinham o objetivo geral de
formar o ser humano novo22, o que exigia uma completa transformação
dos processos educativos, uma revolução cultural, e Gramsci indica a
necessidade de construir uma nova civilização, um novo ser humano
e, para tanto, advogou a reforma moral e intelectual. Uma referência
histórica para tanto é a “[...] América, [onde] a racionalização deter-
minou a necessidade de elaborar um novo tipo humano, adequado ao
novo tipo de trabalho e de processo produtivo” (GRAMSCI, 2001, p.
248 – Cad. 22, § 2), com a “[...] educação do homem adequado aos
novos tipos de civilização, isto é, às novas formas de produção e de
trabalho” (GRAMSCI, 2001, p. 262 – Cad. 22, § 10).

Lênin, líder maior do processo revolucionário, preocupado com


22 “Elaboração de um novo tipo de humano, no quadro daquilo que ele chamará de-
pois “racionalização da população”: esse é o motivo do americanismo que fundamen-
talmente interessa a Gramsci e que não se pode ignorar dentro do campo pedagógico”.
(MANACORDA, 1990, p. 128)

235
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

o papel da educação nele, no discurso proferido no III Congresso de


Juventudes Comunistas da Rússia, em 2/10/1920, não descartou os
conhecimentos da velha escola, pois entendia que a cultura proletária
deveria ser resultante do “[...] desenvolvimento do conjunto de conhe-
cimentos conquistados pela humanidade sob o julgo da sociedade ca-
pitalista” (LÊNIN, 1977, p. 125). Esse posicionamento é similar ao de
Gramsci, porque ele valorizou os conteúdos da formação humanística
tradicional, inclusive o grego e o latim23. Lênin era a favor da instrução
“geral” (conhecimento do patrimônio histórico-cultural que a humani-
dade produziu, “[...] de todo o saber humano elaborado pela humani-
dade” - MANACORDA, 1990, p. 41) e “politécnica” (conhecimento dos
fundamentos da ciência como força motriz da sociedade contemporânea
e exercício prático para dominar as habilidades – e não uma especialida-
de! - necessárias à grande indústria), a mesma posição de Gramsci, que
na escola unitária articulou saber e fazer.

A crise [escolar] terá uma solução que, racionalmente, deveria seguir esta
linha: escola única inicial de cultura geral, humanista, formativa, que
equilibre de modo justo o desenvolvimento da capacidade de trabalhar
manualmente (tecnicamente, industrialmente) e o desenvolvimento das
capacidades de trabalho intelectual. Deste tipo de escola única, através de
repetidas experiências de orientação profissional, passar-se-á a uma das
escolas especializadas ou ao trabalho produtivo. (GRAMSCI, 2000a, p.
34 – Cad. 12, § 1)
23 “Na velha escola, o estudo gramatical das línguas latina e grega, unido ao estudo
das literaturas e histórias políticas respectivas, era um princípio educativo na medida
em que o ideal humanista, que se personifica em Atenas e Roma, era difundido em
toda a sociedade, era um elemento essencial da vida e da cultura nacionais. Até mes-
mo a mecanicidade do estudo gramatical era encaminhada a partir dessa perspectiva
cultural. As noções singulares não eram aprendidas com vistas a uma imediata finali-
dade prático-profissional: tratava-se de algo desinteressado, pois o que contava era o
desenvolvimento interior da personalidade, a formação do caráter através da absorção
e da assimilação de todo o passado cultural da civilização européia moderna. Não se
aprendia o latim e o grego para falá-los, para trabalhar como garçom, intérprete ou
correspondente comercial. Aprendia-se para conhecer diretamente a civilização dos
dois povos, pressuposto necessário da civilização moderna, isto é, para ser e conhecer
conscientemente a si mesmo. As línguas latina e grega eram aprendidas segundo a
gramática, mecanicamente; mas existe muita injustiça e impropriedade na acusação de
mecanicidade e de aridez.” (GRAMSCI, 2000a, p. 45 e 46 – Cad. 12, § 2)

236
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Além disso, Lênin era contrário à formação profissionalizante res-


trita (pretendia a formação geral e politécnica) e precoce, e Gramsci
também24: “A escola profissional não deve se tornar uma incubadora de
pequenos monstros aridamente instruídos para um ofício, sem ideias
gerais, sem alma, mas só com olho certeiro e a mão firme.” (GRAMSCI,
2004a, p. 75 – Avanti!, 24 dez. 1916). De fato, quando Gramsci criticou a
formação profissionalizante precoce e enunciou a escola unitária como
formação integral do ser humano, ele

[...] deveria estar bem consciente de que não estava enunciando um


princípio em si novo ou original; toda a reformulação soviética sobre as
posições marxianas em torno da instrução centravam-se essencialmen-
te nesse objetivo da formação de homens harmoniosamente, totalmente,
omnilateralmente, desenvolvidos. (MANACORDA, 1990, p. 99)

A propósito, “Lênin, ainda que jovem, foi o primeiro leitor inteli-


gente da pedagogia marxiana” (MANACORDA, 1990, p. 99), tanto as-
sim que, em “A doença infantil do ‘esquerdismo’ no comunismo” (1920),
ele afirma o que há de mais elementar da proposição educativa que se
extrai por inferência dos textos de Marx e Engels, qual seja que o projeto
societário soviético deverá passar pela “[...] supressão da divisão do tra-
balho entre os homens, à educação, ensino e preparação de homens uni-
versalmente desenvolvidos e universalmente preparados, homens que
saberão fazer tudo” (LÊNIN, 1980, p. 299). Essa perspectiva de formação
omnilateral é característica também da escola unitária.

Krupskaya, por sua vez, além de ter a mesma posição de Lênin so-
bre a profissionalização precoce e sobre a instrução geral e politécni-
ca, advogava que deveria ser a educação soviética “[...] direcionada
para o desenvolvimento de todas as capacidades de cada criança, ele-
vando o nível de sua atividade e de sua consciência, em prol do de-
senvolvimento pleno de sua personalidade, de sua individualidade”
24 “A tendência atual é a de abolir qualquer tipo de escola “desinteressada” (não
imediatamente interessada) e “formativa”, ou de conservar apenas um seu reduzido
exemplar, destinado a uma pequena elite de senhores e de mulheres que não devem
pensar em preparar-se para um futuro profissional, bem como a de difundir cada vez
mais as escolas profissionais especializadas, nas quais o destino do aluno e sua futura
atividade são predeterminados.” (GRAMSCI, 2000a, p. 34 – Cad. 12, § 1)

237
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

(KRUPSKAYA apud PROZOROV, 1958-1959, p. 35). Gramsci, por sua


vez, disse que a escola unitária “[...] tende a expandir a personalidade,
tornada autônoma e responsável, mas com uma consciência moral e
social sólida e homogênea.” (GRAMSCI, 2000a, p. 39 – Cad. 12, § 1).

Lunatcharski, no Decreto de 16/10/1918, Art. 12, apresenta cla-


ramente o trabalho como princípio educativo da nova educação esco-
lar russa25, o que é largamente reconhecido quando se trata do princí-
pio educativo da escola unitária: “O conceito e o fato do trabalho (da
atividade teórico-prática) é o princípio educativo imanente à escola”
(GRAMSCI, 2000a, p. 43 – Cad. 12, § 2). E mais ainda, disse Lunatchar-
ski que “Compete à escola ensinar os rudimentos do conhecimento
sem esquecer que o ideal não é preparar o homem para esta ou aquela
especialidade, mas fazer dele um combatente pelo humanismo” (LU-
NATCHARSKI, 1988, p. 52), e Gramsci, no Caderno 12, informa que
“[...] na escola unitária, a última fase deve ser concebida e organizada
como a fase decisiva, na qual se tende a criar os valores fundamen-
tais do “humanismo”, a autodisciplina intelectual e a autonomia moral
necessárias a uma posterior especialização.” (GRAMSCI, 2000a, p. 39
– Cad. 12, § 1). Apesar de o modelo escolar revolucionário soviético
não ser “[...] nem unívoco e nem facilmente interpretável à distância;
e Gramsci não se encontra imediatamente em condições de captar e
interpretar, sobretudo no campo cultural e educacional, seus aspectos
mais genuínos e vitais” (MANACORDA, 1990, p. 39), durante o Biênio
Vermelho “[...] ele parece mais um discípulo de Lunacharski” (MA-
NACORDA, 1990, p. 39), pois “As palavras de Gramsci, quando ele
fala da ‘possibilidade de uma cultura proletária, criada pelos próprios
operários’, ecoam, às vezes diretamente, as de Lunacharski” (MANA-
CORDA, 1990, p. 40).

Pistrak, líder das experiências educativas na Escola Lepechinski,


em Moscou, durante os anos de 1918 a 1924, detalhou aspectos da prá-
tica educativa que promoveu, inclusive em relação à gestão participa-
25 “[...] o fundamento da vida escolar deve ser o trabalho produtivo, não como serviço
para a conservação material da escola ou somente como método, mas como atividade
produtiva e socialmente necessária. Esta deve estar estritamente ligada e de uma ma-
neira orgânica ao ensino e permitir a compreensão científica da realidade externa na
sua totalidade” (LUNATCHARSKI apud SOARES, 2000, p. 361).

238
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

tiva da escola, por meio de assembleias de estudantes e da auto-or-


ganização deles, o que não fez Gramsci na escola unitária. Contudo,
o comunista sardo defendeu textualmente que a escola unitária fosse
“[...] ligada à vida” (GRAMSCI, 2000a, p. 45 - Cad. 12, § 2), com “[...]
profunda e orgânica ligação entre ela e um específico dinamismo social
objetivo” (NOSELLA, 1992, p. 57), e disse Pistrak, na mesma linha, que
“[...] é impossível imaginar uma escola soviética isolada, separada da
vida” (PISTRAK, 2000, p. 49).
Shulgin, Diretor do Instituto de Investigações de Metodologia Es-
colar de Moscou e colaborador de Pistrak na Escola Comuna, reconhe-
cido como formulador teórico da escola única do trabalho, também
teve muitas proposições educativas que se incorporaram à proposta
de escola unitária de Gramsci. Contudo, cabe destacar entre eles uma
diferença: o que há nos escritos de Gramsci é uma sobrevalorização
da escola no processo revolucionário, de modo que ele não concorda
que “[...] as escolas deveriam ser substituídas por um ambiente social
organizado, preferencialmente comunidades de trabalho associadas
a fazendas e fábricas” (SOARES, 2000, p. 358), pois “[...] assim como
o Estado deveria desaparecer no curso da ditadura do proletariado,
também a escola deveria ser extinta, pois ela tinha o mesmo papel do
Estado” (SOARES, 2000, p. 359). E nisso Gramsci está aliado a Lênin,
porque ele “[...] discordava da tese de que a introdução do princípio
do trabalho na formação educacional levasse à ‘morte da escola’, subs-
tituindo-a pela fábrica.” (SOARES, 2000, p. 363)
Importa destacar que a tensão para reduzir a idade da profissio-
nalização estava presente na Rússia logo após a revolução, mas com a
NEP - Nova Política Econômica -, proclamada em março de 1921 com
a pretensão de acelerar o desenvolvimento industrial na Rússia, ganha
força o processo que visa à especialização profissional e à redução do
período para a instrução geral na escola politécnica, mesmo com a re-
sistência de Krupskaia e de Lênin. Com a morte de Lênin (21/01/1924)
e ascensão e Stálin, “[...] a tendência profissionalizante predominará
sobre a formação técnica, enquanto o ensino geral retomará os princí-
pios dominantes na chamada ‘escola humanista’” (SOARES, 2000, p.
352). “Surgem as ‘Escolas juntos às fábricas’ e as ‘escolas da juventude
camponesa”: quatro anos de educação geral e três anos de preparação

239
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

técnica, pelas quais Shulgin se entusiasma; extingue-se a proposta dos


pioneiros da educação geral e politécnica” (FREITAS, s/d, s/p.)26.

Sobre a escola unitária de Gramsci

A escola unitária, tradução da escola única do trabalho, é a formu-


lação escolar madura de Gramsci. É uma escola marxista, atualizada à
dinâmica do capital do século XX.

Obviamente, a formulação da escola unitária não nasceu pronta,


foi amadurecendo ao longo dos tempos. Na juventude, Gramsci pro-
pugnava uma escola desinteressada, “[...] de ampla visão, séria, profun-
da, universal e coletiva, que interessa a todos os homens” (NOSELLA,
1992, p. 19), de formação humanística e de cultura geral, com acesso
democratizado. Na maturidade, superou a concepção escolar que ti-
nha e formulou uma proposta de escola que articula saber (trabalho
intelectual) e fazer (trabalho manual), isto é, uma formação propedêu-
tica, de cultura geral, articulada à formação para o moderno trabalho
industrial. Uma “[...] escola única inicial de cultura geral, humanista,
formativa, que equilibre equanimemente o desenvolvimento da capa-
cidade de trabalhar manualmente (tecnicamente, industrialmente) e o
desenvolvimento das capacidades de trabalho intelectual” (GRAMSCI,
2000a, p. 33 - Cad. 12, § 1), com vistas a formar em cada jovem um novo
ser humano, apto a construir uma nova civilização, porque, sendo “[...]
um tipo único de escola preparatória (primária-média) [...] conduz[a]
o jovem até os umbrais da escolha profissional, formando-o, durante
este meio tempo, como pessoa capaz de pensar, de estudar, de dirigir
ou de controlar quem dirige.” (GRAMSCI, 2000a, p. 49 - Cad. 12, § 2).
Em outras palavras, é uma escola fundada no trabalho como princípio
educativo e com o objetivo de colaborar no processo de superação do
modo de produção e reprodução capitalista.

Essa proposição escolar nasceu da crítica e síntese produzidas


por Gramsci aos modelos escolares do tempo em que viveu (SOARES,
2000, p. 439). Se a escola burguesa da época era vista negativamente
por Gramsci, porquanto ser interesseira e visar à formação de mão de
26 Para aprofundar esse debate, cf. Nobre (2019).

240
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

obra pela profissionalização precoce, positivamente ela se queria uni-


versal, guardava a racionalização como característica, indispensável
para superar a visão mítica da vida. Se a escola tradicional (na Itália
de Gramsci, escola proveniente da Lei Casati, de 1859) se apresentava
historicamente, de um lado, como autoritária e distante dos dilemas
sociais, e de outro, fundava-se no humanismo como princípio formati-
vo, privilegiava a aquisição da capacidade dirigente e defendia a trans-
missão do patrimônio histórico-cultural da humanidade às gerações
futuras, o que Gramsci admirava porque poderiam “[...] ser reorien-
tados para as exigências populares de acesso ao saber” (DORE, s/d,
s/p.). Da escola nova, Gramsci renegava o espontaneísmo27 (porquan-
to a criança, “[...] deixada à sua ‘espontaneidade’, dá frutos casuais,
caóticos” - MANACORDA, 1990, p. 75) e a finalidade de consolidar
o capitalismo, mas reconhecia a importância do princípio da ativida-
de entre professor(a) e aluno(a), que para ele deveria ser socialmente
construído (e não naturalmente dado – cf. SOARES, 2000, 423 a 426)
e expandido para toda a sociedade, rompendo a divisão dirigente-di-
rigido, governante-governado, que é base ao exercício da hegemonia
das classes subalternas. Além disso, Gramsci criticou a reforma escolar
fascista de Gentile (1922 e 1923), porque cindiu “[...] a escola primária e
média, por um lado, e a escola superior, por outro” (GRAMSCI, 2000a,
p. 42 – Cad. 12, § 2), bem como propunha a instrução profissional e
religiosa aos trabalhadores, conformando-os na passividade ético-po-
lítica.
A escola unitária adota como princípio educativo o trabalho28, en-
tendido esse termo na acepção marxiana, e como finalidade a formação
integral do ser humano, já que

[...] não acredito nestas inclinações genéricas tão precoces [...] Acredito
que [...] coexistam todas as tendências [...] em todas as crianças, tanto
a prática quanto a teoria ou fantasia, e que seria correto guia-los neste
sentido, para um ajuste harmonioso de todas as faculdades intelectuais
27 “A ‘espontaneidade’ é uma destas involuções” (GRAMSCI, 2000a, p. 63 - Cad. 1, §
123).
28 “Se no ensino fundamental a relação é implícita e indireta, no ensino médio a
relação entre educação e trabalho, entre o conhecimento e a atividade prática deverá
ser tratada de maneira explícita e direta” (SAVIANI, 2007, p. 160).

241
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

e práticas, que pode se especializar no tempo apropriado [...] O homem


moderno deveria ser uma síntese daquelas características que são...
hipostasiadas como características nacionais: o engenheiro americano,
o filósofo alemão, o político francês, recriando, por assim dizer, o ho-
mem italiano do Renascimento, o tipo moderno de Leonardo da Vinci
transformado em homem-massa ou homem coletivo, ainda que man-
tendo sua forte personalidade e originalidade individual. (GRAMSCI,
2005b, p. 224-225 – Carta a Iulca, 1 ago. 1932)

Esse processo exige apropriar-se dos instrumentos culturais mais


desenvolvidos pelo espírito humano (científico, tecnológico, filosófico
e artístico), de modo a elevar o nível de consciência para induzir outro
tipo de ação e, assim, ter melhores condições para superar os problemas
identificados na realidade vivida. Nesse movimento, o processo de en-
sino-aprendizagem articula o saber e o fazer. A apropriação do saber
viabiliza conhecer o mundo natural e social, bem como identificar as
contradições sociais no contexto vivido. O fazer favorece a atuação cons-
ciente no mundo do trabalho, na produção e reprodução do ser social.

O saber é apropriado por meio do acesso ao conhecimento hu-


manístico propedêutico, que favorece o desenvolvimento da capacida-
de crítica e criativa, o que eleva a consciência do sujeito sobre si e sobre
o mundo natural e social, propiciando melhores condições para o de-
senvolvimento da própria personalidade, a autonomia moral. O fazer
é apropriado por meio do domínio dos princípios do mundo do traba-
lho em seu hodierno estágio de desenvolvimento (ciência e tecnologia
como força motriz do trabalho moderno) e das habilidades para lidar
efetivamente com ele, para operá-lo com disciplina, autodisciplina e ra-
cionalização, que são próprios do tipo de desenvolvimento da moderna
indústria.

Articulando saber e fazer, trabalho intelectual e trabalho manual,


surge a proposição da escola unitária em Gramsci. Chama-se unitária
porque; a) é uma única escola para todos, pois a escola não pode ser
privilégio; rompendo o dualismo escolar característico do modo de
produção capitalista, a escola unitária se apresenta como pública, laica,
integral, gratuita e estatal; b) articula saber e fazer, teoria e prática, tra-
balho intelectual e trabalho manual em um mesmo processo formativo;

242
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

c) propõe um caminho único no sistema escolar, sem filtros econômicos,


sociais e/ou culturais, com “[...] ‘certa unitariedade’ entre o ensino bá-
sico e o ensino superior” (NOSELLA, 2020, s/p.); d) forma a todos para
serem tanto dirigentes como dirigidos, mas dirigidos aptos a coordenar
quem dirige.

Em relação ao método, a escola unitária, obviamente, descarta os


dotes naturais, “[...] rejeita todo inatismo, como uma hipótese [...] me-
tafísica, enfatizando, ao contrário, a existência de uma determinação
ambiental” (MANACORDA, 1990, p. 74). Gramsci entende como equi-
vocada a concepção educativa “[...] excessivamente metafísica, isto é,
que pressuponha que na criança está em potência todo o homem e é
necessário ajudá-la a desenvolver o que já contém em estado latente”
(GRAMSCI, 2005a, p. 385 – Carta a Giulia, 30 dez. 1929). Dessa equívoca
concepção decorreria um método educativo que consistiria apenas no
“[...] desenrolamento de um fio preexistente” (GRAMSCI, 2005a, p. 386
– Carta a Giulia, 30 dez. 1929), o que não é o da escola formulada por
Gramsci. Na verdade, o método da escola unitária se articula por pares
dialéticos; por exemplo: entre o espontaneísmo e a intervenção, entre a
coerção e o consenso, entre natureza e liberdade, entre o conformismo
e ativismo, “Contra as dicotomias automatismo versus criatividade, [...]
heteronomia versus autonomia [...] escola mecânica e escola ativa” (SA-
VIANI, 2013, p. 75). Assume o princípio da atividade entre professor e
aluno, mas sem se deixar levar pelo espontaneísmo da escola nova, da
qual Gramsci desconfiava, encaminhando o processo educativo pela va-
lorização da disciplina29 e de acordo com o desenvolvimento intelectivo,
físico-biológico e moral de cada educando(a), advogando a necessidade
de se ter mais intervenção do educador no ponto de partida e mais au-
tonomia, autodisciplina, liberdade e criatividade do educando no ponto
de chegada. O processo educativo desenvolvido segundo as propostas
da escola unitária, portanto, tem a igualdade como ponto de chegada,
29 “Pela disciplina se adquire o hábito do estudo sistemático, superando os inconve-
nientes do autodidatismo e se trava a luta ‘contra a concepção mágica do mundo e da
natureza que a criança absorve do ambiente’; ‘contra as tendências à barbárie individ-
ualista e localista’; ‘contra o folclore, contra todas as sedimentações tradicionais de
concepções do mundo’. Ainda pela disciplina se faz adquirir os ‘hábitos de diligência,
de exatidão, de compostura também física, de concentração psíquica’; em suma, os
hábitos psicofísicos apropriados ao trabalho intelectual.” (SAVIANI, 2013, p. 73)

243
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

pois se entende que no início há diferenças profundas entre educador e


educando, entre professor e aluno; supõe-se que o educador/professor
saiba mais e, assim, tenha autoridade (e não autoritarismo) para condu-
zir o educando/aluno a alcançar outra concepção de mundo e a prática
social dela decorrente.
O conteúdo proposto à escola unitária articula a instrução intelec-
tual-humanística tradicional e a moderna instrução tecnológica, sem re-
baixar o nível do ensino nas escolas do povo. Acreditava Gramsci que
se subalternos(as) tivessem condições adequadas, eles(as) poderiam
aprender o que a classe dominante aprende, apropriação necessária à
superação da própria condição de subalternidade ético-política.
Esses princípios, finalidades, método e conteúdo possibilitam for-
mar desinteressadamente os sujeitos ética e politicamente, mas aptos a
exercer a hegemonia. Desse modo, a escola unitária assume papel estra-
tégico na revolução, ao se apresentar como “[...] instrumento para ela-
borar intelectuais de diversos níveis” (GRAMSCI, 2000a, p. 19 - Cad. 12,
§ 1), os quais terão condições de colaborar na elevação do nível cultural
das massas, “[...] atuando decisivamente no processo de reforma inte-
lectual e moral, na luta pela hegemonia e na construção do novo bloco
histórico.” (SAVIANI, 2013, p. 71). Assim, a escola proposta por Gramsci
é interessada em superar o capitalismo como modo de produção e re-
produção, mas por meio da formação de uma cultura “desinteressada”,
anti-sectária, historicista e humanista, não diretamente profissionalizan-
te, para produzir catarse.

Pela catarse o processo educativo atinge seu ápice, propiciando aos edu-
candos atingir uma concepção superior, liberta de toda magia e bruxaria.
Pela catarse dá-se a passagem do nível puramente econômico ao momen-
to ético-político. Igualmente, pela catarse dá-se a elaboração superior da
estrutura em superestrutura na consciência dos homens, ou seja, ocorre
a assimilação subjetiva das condições objetivas, permitindo a passagem
da condição de classe em-si para a condição de classe-para-si. É, enfim,
pela catarse que tudo aquilo que era objeto de aprendizagem se incorpora
no próprio modo de ser dos homens, operando uma espécie de segunda
natureza que transforma qualitativamente sua vida integralmente, isto
é, no plano das concepções e no plano da ação. (SAVIANI, 2013, p. 74)

244
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

A catarse como “elaboração superior da estrutura em superestrutu-


ra na consciência dos homens” (GRAMSCI, 1999, p. 314 – Cad. 10, § 6),
como elevação do nível de consciência sobre si e sobre o mundo, do sen-
so comum à consciência filosófica, induz outros tipos de ação individual
e coletiva e, assim, sintetiza o ponto de chegada do projeto educativo
gramsciano, que visa a construir uma nova civilização, “[...] reivindi-
ca[ndo] [...] o dever [...] do Estado de ‘conformar’ as novas gerações”
(GRAMSCI, 2000a, p. 39 – Cad. 12, § 1) com a formação de sujeitos “[...]
capaz[es] de pensar, de estudar, de dirigir e de controlar quem dirige”
(GRAMSCI, 2000a, p. 49 – Cad. 12, § 2),

Desse modo compreendida, a escola unitária não faz a revolução,


mas necessariamente é parte do processo de superação do capitalismo
em sociedades ocidentais, até porque no novo contexto das formações
econômicas e sociais, a “[...] revolução [é] uma ‘imensa obra educativa’”
(SCHLESENER; LIMA, 2017, p. 56).

À guisa de conclusão

Pelo exposto, entende-se que Gramsci foi decididamente impac-


tado pela Revolução Russa, ou melhor, foi “A Revolução Russa como
caminho de Gramsci para o marxismo” (DEL ROIO, 2017, p. 109). Isso
se verifica no fato de que ele tentou traduzir os sovietes nos Conselhos
de Fábrica durante o Biênio Vermelho e, ainda, na proposta de escola
que formulou, a escola unitária, traduziu a escola única do trabalho
dos pioneiros da educação russa para o contexto das sociedades oci-
dentais.

Como demonstrado, os princípios, finalidades, método e conteú-


do da escola única do trabalho estão bem “espelhados” na escola uni-
tária, ou melhor, dialeticamente “transpostos”, com a devida “criati-
vidade” e considerando o contexto italiano. Sobretudo em relação à
finalidade, elas têm profunda correspondência, porque ambas tinham
a pretensão revolucionária socialista, qual seja a de produzir uma nova
cultura e um novo ser humano.

Se para Marx a teoria pode ser uma arma concreta nas mãos das
classes subalternas, Gramsci esperava instrumentalizá-las intelectual

245
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

e culturalmente por meio da escola unitária, para produzir a trans-


formação radical na vida social, superando o modo de produção e
reprodução capitalista e objetivando construir uma nova civilização,
o socialismo. Assim, no âmbito marxista, Gramsci situou a cultura e,
particularmente, a educação “[...] como uma das mais importantes
frentes de luta na ‘guerra de posição’. A essa perspectiva é fundamen-
tal o processo de educação das massas para que estas possam se inserir
de modo ativo e consciente na vida política.” (SOARES, 2000, p. 191)

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250
Sobre o problema da periodização
do desenvolvimento psíquico na
infância1
D. B. Elkonin

A periodização do desenvolvimento psíquico na infância é um


problema fundamental da psicologia infantil. A elaboração desse pro-
blema tem importância teórica significativa, uma vez que é pela deter-
minação dos estágios do desenvolvimento psíquico e pela identifica-
ção das regularidades das transições de um período para o outro que,
eventualmente, poderá ser resolvido o problema das forças motrizes
do desenvolvimento psíquico. Pode-se afirmar que qualquer concep-
ção sobre as forças motrizes do desenvolvimento psíquico deve ser,
antes de tudo, testada com “base” na periodização.

A estratégia de estruturação do sistema de educação e instrução


das futuras gerações depende bastante da solução correta do proble-
ma da periodização. O significado prático desse problema aumentará
à medida que nos aproximarmos do ponto em que possamos elaborar
os princípios para um sistema social único de educação que englobe
todo o período da infância. Devemos enfatizar o fato de que a possi-
1 Tradução do russo de Elizabeth Tunes Zoia Prestes e do original ELKONIN, D. B. K
probleme periodizatsii psirhitcheskogo razvitia v detskom vozraste [Sobre o problema da pe-
riodização do desenvolvimento psíquico na infância]. Em: ELKONIN, D. B. Izbrannie
psirhologuitcheskie trudi [Obras escolhidas de psicologia]. Moskva: Pedagoguika,
1989. Embora no livro esteja indicado que o texto foi publicado pela primeira vez na
União Soviética, em 1974, na realidade, sua primeira publicação foi na Revista Voprosi
psirhologuii [Questões de psicologia], em 1971, n. 4, p. 6-20.

251
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

bilidade de construção desse sistema, em acordo com as leis de tran-


sição dos períodos da infância, surge, pela primeira vez, na sociedade
socialista, pois, apenas em tal sociedade há um máximo de interesse
no desenvolvimento completo e multifacetado das capacidades de
cada um de seus membros e, consequentemente, no aproveitamento
mais completo das possibilidades de cada período.

No momento, na nossa psicologia infantil, utiliza-se a periodi-


zação construída com base no sistema de educação e instrução de fato
constituído. Os processos de desenvolvimento psíquico estão intima-
mente ligados à instrução e à educação da criança, mas o próprio des-
membramento do sistema educacional e de instrução baseia-se numa
enorme experiência prática. A divisão da infância realizada em bases
pedagógicas aproxima-se muito do real, mas não coincide com ele e, o
mais importante, não está relacionada à solução da questão a respeito
das forças motrizes do desenvolvimento infantil e das regularidades
das transições de um período para o outro. As mudanças que ocorrem
no sistema educacional e de instrução indicam que “a periodização
pedagógica” não tem fundamentos teóricos precisos, nem condição
de responder a uma série de questões práticas essenciais (por exem-
plo, quando é preciso começar a instrução escolar, quais são as espe-
cificidades do trabalho educativo do ensino na transição para cada
novo período, etc.). Está em curso uma crise específica da periodiza-
ção existente.

Durante os anos trinta, a questão da periodização do desenvol-


vimento recebeu uma grande atenção de P. P. Blonski e L. S. Vigotski
que estabeleceram os fundamentos do desenvolvimento da psicologia
infantil em nosso país. Infelizmente, a partir daí, não foi feito qual-
quer trabalho fundamental sobre o problema.

P. P. Blonski destacou a mudança histórica dos processos de de-


senvolvimento psíquico e o surgimento de novos períodos da infância
no curso do desenvolvimento histórico. Ele escreveu: “o homem con-
temporâneo, sob condições sociais favoráveis ao seu desenvolvimen-
to, desenvolve-se cada vez mais rapidamente do que o ser humano de
épocas históricas anteriores. Consequentemente, a infância não é um
fenômeno eterno imutável: ela é diferente em outro estágio do desen-

252
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

volvimento do mundo animal, é outra em cada diferente estágio do


desenvolvimento histórico da humanidade. Quanto mais favoráveis
forem as condições econômicas e culturais, mais rápido será o desen-
volvimento” (1934, p. 326). Seguindo: “ao mesmo tempo, vemos que,
agora, a própria juventude, ou seja, a continuação do crescimento e
do desenvolvimento após a maturação sexual, não é um patrimônio
comum: em povos ou comunidades que estão em condições de desen-
volvimento desfavoráveis, o crescimento e o desenvolvimento findam
com a maturação sexual, e se constitui como uma aquisição tardia da
humanidade que ocorreu praticamente às vistas da história” (idem).

P. P. Blonski opôs-se às noções puramente evolucionistas sobre o


curso do desenvolvimento infantil. Ele o considerava como um pro-
cesso principalmente de transformações qualitativas, acompanhadas
por rupturas e saltos. Ele escreveu que essas mudanças “podem ocor-
rer bruscamente, criticamente e até mesmo gradualmente, de modo
quase imperceptível. Convencionamos denominar de épocas e está-
gios os tempos da vida infantil separados uns dos outros por crises
mais (épocas) ou menos (estágios) bruscas. Convencionamos também
denominar de fases aqueles momentos que, na vida de uma criança,
apenas fluem ou desembocam um no outro” (1930, p. 7).

Nos últimos anos de sua vida, L.S. Vigotski dedicava-se a escre-


ver um trabalho muito importante sobre psicologia infantil. Embo-
ra alguns capítulos tenham sido concluídos, outros se preservaram
apenas como esboços de estenogramas de aulas ministradas. O pró-
prio Vigotski preparou para publicação o capítulo intitulado Proble-
ma vozrasta [O problema da idade], que sistematiza e apresenta uma
análise teórica de materiais soviéticos e estrangeiros, então existentes
na psicologia, sobre o problema da periodização do desenvolvimento
psíquico na infância2.

Vigotski escreveu: “quais devem ser os princípios da construção


de uma verdadeira periodização? Já sabemos” – afirmou – “onde de-
vemos procurar seu fundamento real: apenas as mudanças internas
do próprio desenvolvimento, apenas as rupturas e os desvios no seu
2 Esse texto foi publicado em VIGOTSKI, L. S. Sobranie Sotchineni [Obras Reunidas], T.
4. Moskva: Pedagoguika, 1984 (N. do A.).

253
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

curso podem dar uma base segura para a definição das principais épo-
cas de construção da personalidade da criança que denominamos de
idades” (1984, T. 4, p. 247).
Ao caracterizar as principais especificidades do período de tran-
sição do desenvolvimento, L.S. Vigotski disse: “Assim, desvenda-se,
diante de nós, um quadro regular. Idades de estabilidade são inter-
rompidas por idades de crises. Estas últimas são os pontos de ruptura
e de transição no desenvolvimento, que, novamente, confirmam a tese
de que o desenvolvimento da criança é um processo dialético em que
a transição de um estágio para o outro ocorre não por evolução, mas
por revolução.
Mesmo que as idades críticas não tivessem sido empiricamente
descobertas, ainda assim, com base na análise teórica elas deveriam
ser introduzidas, conceitualmente, no esquema de desenvolvimento.
Seja como for, cabe à teoria apenas a tarefa de conhecer e dar sentido
ao que já foi estabelecido pela investigação empírica” (idem, p.252).
Do nosso ponto de vista, as abordagens ao problema da perio-
dização, esboçadas por P. P. Blonski e L. S. Vigotski, devem ser man-
tidas e, ao mesmo tempo, desenvolvidas de acordo com os saberes
contemporâneos. Primeiramente, é a abordagem histórica aos ritmos
do desenvolvimento e à questão do surgimento de certos períodos da
infância, no curso do desenvolvimento histórico da humanidade. Em
segundo lugar, a abordagem a cada período etário do ponto de vista
da posição que ocupa no ciclo geral do desenvolvimento psíquico da
criança. Em terceiro, a ideia de desenvolvimento psíquico como um
processo dialeticamente contraditório, que ocorre não ao longo de um
caminho evolucionário, mas de um caminho marcado por rupturas
na sua continuidade e pela emergência de estruturas qualitativamen-
te novas no seu percurso. Quarto, a identificação de pontos críticos
e de rupturas obrigatórios e necessários como indicadores objetivos
importantes das transições de um período para o outro. Em quinto
lugar, a discriminação de transições heterogêneas por seu caráter e,
de acordo com isso, a distinção de épocas, estágios e fases no desen-
volvimento psíquico.
P. P. Blonski e L. S. Vigotski não conseguiram realizar os prin-

254
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

cípios da periodização apresentados por eles, devido à ausência de


condições, à época, para resolver o problema das forças motrizes do
desenvolvimento psíquico da criança. A resposta a este problema, na-
quela época, girava em torno dos fatores de desenvolvimento e da
questão dos papéis relativos ao meio e à hereditariedade no desen-
volvimento psíquico. Embora ambos os pesquisadores tentassem en-
contrar um caminho para o impasse criado pela teoria dos “fatores
de desenvolvimento”, embora reconhecessem as insuficiências cien-
tíficas concretas e metodológicas daquela visão e embora Vigotski ti-
vesse lançado a base para a elaboração do problema da instrução e do
desenvolvimento, nenhuma de suas buscas teóricas conduziu a uma
solução para o problema. Isso impedia também, especialmente, o es-
tudo do problema da periodização.

No final de 1930, A. N. Leontiev e S. L. Rubinstein começaram a


estudar o problema da formação e desenvolvimento da psique e da
consciência, introduzindo o conceito de atividade3. A nova aborda-
gem mudava radicalmente tanto a ideia a respeito das forças motrizes
do desenvolvimento psíquico quanto os princípios de diferenciação
de seus estágios. Pela primeira vez, a solução da questão das forças
motrizes do desenvolvimento psíquico uniu-se à questão a respeito
dos princípios de diferenciação dos estágios do desenvolvimento psí-
quico da criança.

Essa nova ideia apareceu mais claramente desenvolvida nos tra-


balhos de A. N. Leontiev. No estudo do desenvolvimento da psique
da criança, dizia ele, deve-se partir da análise do desenvolvimento de
3 Em 1933, L. S. Vigotski proferiu uma palestra no Instituto Guertzen, em Leningrado,
na qual examinou o papel da atividade no desenvolvimento da criança, descrevendo,
detalhadamente, a função da atividade brincadeira de faz de conta no desenvolvi-
mento da criança pré-escolar e propondo o conceito de atividade guia do desenvol-
vimento. D. B. Elkonin esteve presente a essa conferência (ver Lazzaretti, L. M. Daniil
Borisovich Elkonin: a vida e as produções de um estudioso do desenvolvimento humano. Em A.
M. Longarezi e R. V. Puentes (Orgs.) Ensino desenvolvimental – vida, pensamento e
obra dos principais representantes russos. Uberlândia: EDUFU, 2013). O texto com-
pleto desta conferência foi publicado apenas em 1966 e Elkonin teve acesso às notas
elaboradas por Vigotski para ministrar sua conferência. Brevemente, este texto será
publicado em Vigotski, L. S. Escritos de Lev Semionovitch Vigotski: psicologia, educação e
desenvolvimento. Tradução, organização e edição de Zoia Prestes e Elizabeth Tunes. São
Paulo: Expressão Popular, no prelo (N. da T.).

255
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

sua atividade, pois ela se forma em condições concretas de sua vida.


A vida ou a atividade, em geral, não se forma, mecanicamente, apoia-
da em tipos distintos de atividade. Numa determinada etapa, alguns
tipos de atividade serão guias, tendo um maior significado para o de-
senvolvimento futuro da personalidade; outros tipos terão significado
menor. Alguns tipos terão papel central no desenvolvimento; outros,
papel subordinado. Esta é a razão pela qual devemos falar sobre a
dependência que o desenvolvimento da psique tem da atividade guia
e não da atividade geral. Em conformidade a isto, podemos dizer que
cada estágio de desenvolvimento psíquico caracteriza-se por uma de-
terminada relação da criança com a realidade, um determinado tipo
de atividade guia. “O indicador da transição de um estágio a outro é
exatamente a mudança do tipo de atividade guia, que guia as relações
da criança com a realidade” (Leontiev, 1983, Tomo I, p. 285).

Nas pesquisas experimentais de A. N. Leontiev, A. V. Zaporojets


e seus colaboradores, no trabalho de A. A. Smirnov, P. I. Zintchenko
e de seguidores de S. L. Rubinstein verificou-se a dependência entre
o nível de funcionamento dos processos psíquicos e o caráter de sua
inclusão em determinada atividade, ou seja, a dependência entre os
processos psíquicos (desde os sensório-motores elementares até os in-
telectuais superiores) e os motivos e objetivos da atividade, bem como
seus lugares na estrutura da mesma (ações, operações). Esses dados
tiveram um significado importante para a solução de uma série de
problemas metodológicos da psicologia. Infelizmente, não propicia-
ram a elaboração de uma teoria do desenvolvimento psíquico e seus
estágios. Em nossa opinião, a principal razão para isso se encontra no
fato de que, nas buscas do conteúdo psicológico da atividade, igno-
rou-se seu conteúdo e objeto, como se não fossem de caráter psicoló-
gico, dando-se atenção apenas à estrutura da atividade, à correlação
entre motivos e tarefas, entre ações e operações. A solução da questão
dos estágios do desenvolvimento psíquico limitou-se também ao es-
tudo de somente duas atividades diretamente relacionadas ao desen-
volvimento psíquico na infância, a saber, a brincadeira e o estudo.
Contudo, o processo de desenvolvimento psíquico, de fato, não pode
ser compreendido sem uma profunda investigação do conteúdo e do
objeto da atividade, ou seja, sem esclarecer com quais aspectos da re-

256
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

alidade a criança interage numa determinada atividade e, consequen-


temente, qual a orientação que nela se forma.
Até o momento atual, uma insuficiência essencial no estudo do
desenvolvimento psíquico da criança é a ruptura entre os processos
de desenvolvimento mental e o da personalidade. Sem fundamentos
suficientes, o desenvolvimento da personalidade resumiu-se ao de-
senvolvimento das esferas necessidade-afeto ou necessidade- motiva-
ção.
Já em 1930, L. S. Vigotski apontou a necessidade de estudar o de-
senvolvimento do afeto e do intelecto como uma unidade dinâmica.
Até hoje, contudo, o desenvolvimento das forças cognitivas de uma
criança e o da esfera necessidade – afeto foram estudados como pro-
cessos que possuem suas próprias linhas independentes, que não se
entrecruzam. Na teoria e prática pedagógica, isso se expressa como
ruptura entre educação e instrução e entre instrução e educação.
O quadro do desenvolvimento do intelecto divorciado do de-
senvolvimento da esfera necessidade - afeto apresenta-se mais clara
e conclusivamente na concepção de J. Piaget. Ele extraiu cada degrau
do desenvolvimento do intelecto diretamente do precedente (aliás,
essa análise do desenvolvimento intelectual da criança em diferen-
tes etapas é característica de quase todas as teorias intelectualistas).
A principal insuficiência dessa concepção consiste na impossibilidade
de explicar as transições de um estágio de desenvolvimento do inte-
lecto para outro. Por que a criança passa do estágio pré-operacional
ao operacional concreto e, em seguida, para o operacional formal (se-
gundo Piaget)? Por que a criança passa do pensamento por comple-
xo ao pré-conceitual e, em seguida, para o pensamento por conceitos
(segundo L. S. Vigotski)? Por que ocorre a passagem do pensamento
por ação prática para o pensamento por imagens e, depois, para o
discursivo – verbal (segundo a terminologia atual)? Não há uma res-
posta clara para essas questões. Nesta ausência, o caminho mais fácil
é aludir à “maturação” ou a outras forças externas ao processo de de-
senvolvimento psíquico.
O desenvolvimento da esfera necessidade – afeto que, como já
apontamos, é frequentemente identificado com o desenvolvimento da

257
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

personalidade, é visto de modo análogo: seus estágios são linearmen-


te arranjados, independentemente do desenvolvimento intelectual.
As transições de determinadas necessidades e motivos da atividade a
outros permanecem sem explicação.

Assim, na análise do desenvolvimento psíquico, de um lado, sub-


jaz um dualismo peculiar e, de outro, um paralelismo de duas linhas
de desenvolvimento: a do desenvolvimento da esfera da necessidade -
motivo e a do desenvolvimento de processos intelectuais (cognitivos).
Sem a superação desse dualismo e desse paralelismo, é impossível
compreender o desenvolvimento psíquico da criança como um pro-
cesso único.

Na base desse dualismo e paralelismo se encontra a abordagem


naturalista do desenvolvimento psíquico da criança, característica
da maioria das teorias estrangeiras e que, infelizmente, ainda não
foi superada pela psicologia infantil soviética. Antes de mais nada,
essa abordagem vê a criança como um indivíduo isolado para quem
a sociedade representa apenas um peculiar “meio para habitar”. Em
segundo lugar, o desenvolvimento psíquico é visto apenas como um
processo de adaptação às condições de vida na sociedade. Em tercei-
ro lugar, compreende-se a sociedade como algo que consiste, de um
lado, do “mundo das coisas” e, de outro, do “mundo das pessoas”,
não interligados, essencialmente, e que se apresentam como dois ele-
mentos primordiais do “meio para habitar”. Em quarto lugar, com-
preende-se como profundamente distintos os mecanismos de adapta-
ção ao mundo das coisas e ao mundo das pessoas, que são o conteúdo
do desenvolvimento psíquico.

O que gerou a ideia de duas linhas desarticuladas de desenvol-


vimento psíquico foi o seu estudo como o desenvolvimento de meca-
nismos adaptativos nos sistemas “criança - coisas” e “criança - outras
pessoas”. Dessa mesma fonte surgiram duas teorias: a do intelecto
e desenvolvimento intelectual, de J. Piaget e a da esfera necessidade
- afeto e seu desenvolvimento, de Sigmund Freud e dos neo-freudia-
nos. A despeito de diferenças no conteúdo psicológico concreto, essas
concepções relacionam-se, estritamente, no que diz respeito às inter-
pretações básicas do desenvolvimento psíquico como o desenvolvi-

258
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

mento de mecanismos adaptativos de comportamento. Para J. Piaget,


o desenvolvimento do intelecto, que é um mecanismo adaptativo, é o
desenvolvimento de formas de adaptação da criança ao “mundo das
coisas”. Para Freud e os neo-freudianos, os mecanismos de adaptação
das crianças ao “mundo das pessoas” são a substituição, a repressão,
o deslocamento, etc.

Devemos enfatizar o fato de que, ao analisar a adaptação da crian-


ça no sistema “criança – coisas”, tratam-se estas, principalmente, de
objetos físicos com suas propriedades físicas e espaciais. Ao examinar
a adaptação da criança no sistema “criança - outras pessoas”, estas são
indivíduos casuais com seus temperamentos, traços de caráter, etc. Se
as coisas são vistas como objetos físicos e as pessoas, como indivíduos
casuais, então, a adaptação das crianças a esses “dois mundos” pare-
ce, de fato, ocorrer ao longo de duas linhas paralelas, fundamental-
mente independentes4.

A superação dessa abordagem não é uma questão fácil, princi-


palmente porque, para a criança, a realidade que a circunda aparece
sob duas formas. Constatamos essa divisão da realidade das crianças
em um “mundo das coisas” e um “mundo das pessoas” em nossas
pesquisas experimentais sobre a natureza da brincadeira [de repre-
sentação] de papéis, em crianças pré-escolares. Para tentar elucidar
a questão da sensibilidade da atividade de faz de conta a essas duas
esferas da realidade, em alguns casos, familiarizamos crianças em re-
lação a coisas, suas propriedades e suas finalidades. Por exemplo, du-
rante uma visita ao zoológico, narravam-se para as crianças estórias
sobre animais, seus habitats, sua aparência externa e assim por diante.
Após a visita, não ocorreu a brincadeira [de representação] de papeis,
embora tenham sido colocados animais de brinquedo no dormitório
das crianças. Em outros casos, usamos a visita para familiarizá-las
com as pessoas que trabalhavam no zoológico, suas funções e inter-
-relações: o caixa e o bilheteiro, os guias, os tratadores dos animais, o
“médico veterinário dos animais selvagens” e assim por diante. Em
4 Nossa tarefa não incluía a análise das condições históricas de surgimento desse dua-
lismo e paralelismo, no estudo do desenvolvimento psíquico. Destacamos apenas que
essas ideias são reflexo real da alienação do homem dos produtos de sua atividade, na
sociedade de classe existente (N. do A.).

259
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

geral, o resultado dessas informações recebidas era uma brincadeira


[de representação] de papéis, longa e interessante, em que as crianças
imitavam as tarefas dos adultos e as relações entre eles. Além disso,
nessas brincadeiras, o conhecimento previamente obtido pelas crian-
ças acerca dos animais adquiria um contexto e um significado. Os re-
sultados dessa investigação testemunham o fato de que a brincadeira
[de representação] de papeis é primariamente sensível ao “mundo
das pessoas” - na brincadeira, as crianças “imitam” as finalidades e
os motivos da atividade humana, bem como as normas das relações
entre as pessoas. Adicionalmente, o experimento mostrou que, para a
criança, o mundo circundante parece estar dividido em duas esferas,
havendo, em ambos, um elo estreito entre as ações dela (embora, nes-
sa investigação, não tenha sido possível esclarecer as características
específicas desse elo).

A superação da concepção naturalista do desenvolvimento psí-


quico requer um tratamento radicalmente novo da questão da inter-
-relação criança e sociedade. Chegamos a essa conclusão por meio de
uma pesquisa especial sobre a emergência histórica da brincadeira [de
representação] de papeis. Contrariamente à visão segundo a qual essa
brincadeira é um fenômeno eterno, extra-histórico, formulamos a hi-
pótese de que essa atividade emergiu numa etapa específica do desen-
volvimento social, quando o lugar da criança na sociedade mudou, no
curso da história. A brincadeira é uma atividade social em sua origem
e, consequentemente, social em seu conteúdo.

Essa hipótese acerca da origem histórica da brincadeira é forta-


lecida por uma riqueza de material antropológico e etnográfico que
demonstra que a brincadeira [de representação] de papeis emergiu
com a mudança do lugar da criança na sociedade.

O lugar da criança na sociedade mudou, no curso da história,


mas, em todas as épocas e lugares, a criança foi parte da sociedade.
Nos primeiros estágios de desenvolvimento da humanidade, o elo en-
tre a criança e a sociedade era direto e imediato - desde muito peque-
na, as crianças viviam uma vida em comum com os adultos. O desen-
volvimento da criança no âmbito dessa vida comum era um processo
unificado e integral. A criança constituía uma parte orgânica agregada

260
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

às forças produtivas da sociedade, sendo sua participação limitada


apenas pelas suas capacidades físicas.

À medida que os meios de produção e as relações sociais torna-


ram-se mais complexos, o elo entre a criança e a sociedade mudou:
anteriormente direto, ele passou a ser mediado pela educação e ins-
trução. O sistema “criança - sociedade”, entretanto, não mudou; não
se tornou um sistema “criança e sociedade” (a conjunção “e”, é claro,
pode implicar tanto o contraste quanto a combinação). Seria mais cor-
reto falar de um sistema “criança na sociedade”. No processo de de-
senvolvimento social, as funções da formação e educação tornaram-
-se, cada vez mais, responsabilidade da família, a qual, por sua vez,
constituiu-se como uma unidade econômica independente. Ao mes-
mo tempo, os laços entre a família e a sociedade tornaram-se, cada vez
mais, indiretos. O conjunto de relações caracterizadoras da “criança
na sociedade” foi, assim, obscurecido e dissimulado pelo sistema de
relações “criança-família” e, neste, pelo “a criança e o adulto”.

Ao analisarmos a formação da personalidade no sistema “crian-


ça na sociedade”, poderemos ver como os elos nos sistemas “criança
– coisa” e “criança –adulto” assumem um caráter radicalmente dife-
rente. De dois sistemas independentes, eles se transformam em um
sistema único. Como resultado, o conteúdo de cada sistema é essen-
cialmente modificado. Quando examinamos o sistema “criança-coi-
sa”, vemos, agora, que as coisas, que possuem propriedades físicas
espaciais definidas, aparecem para a criança como objetos sociais: são
os modos de ação socialmente evoluídos com esses objetos os que se
apresentam em primeiro plano.

O sistema “criança-coisa” é, na realidade, o sistema “criança-


-objeto social”. Os modos de ação socialmente elaborados com esses
objetos não decorrem imediatamente das propriedades físicas dos
mesmos. Não está inscrito no objeto sua origem social, os modos de
ação com ele, como podemos operar com ele e reproduzi-lo. Portanto,
esse objeto não pode ser dominado por meio de adaptação, por meio
de mera “acomodação” às suas propriedades físicas. Internamente,
torna-se necessário um processo de domínio pela criança de meios
sociais de ação com os objetos. Nesse processo, as propriedades físicas

261
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

de um objeto servem meramente como referentes para a orientação da


criança quanto às suas ações com ele5.

À medida que a criança começa a dominar os modos de ação


socialmente elaborados com os objetos, ocorre sua formação como
membro da sociedade, incluindo suas forças intelectuais, cognitivas
e físicas. Para a própria criança (bem como para os adultos que não
estão diretamente envolvidos no processo organizado de educação e
instrução), esse desenvolvimento se apresenta, antes de tudo, como
expansão da esfera e elevação do nível de domínio das ações com ob-
jetos. É exatamente seguindo esses parâmetros que as crianças com-
param seu nível e suas possibilidades com o nível e as possibilidades
de outras crianças e de adultos. Nessa comparação, o adulto aparece
para ela não apenas como portador dos modos sociais de ação com
objetos, mas também como uma pessoa que desempenha tarefas so-
ciais específicas.

As características distintivas da descoberta que a criança faz acer-


ca do sentido humano das ações com os objetos foram descritas em
várias pesquisas. Por exemplo, F. I. Fradkina (1946) descreveu como,
num certo estágio do domínio de ações com objetos, a criança peque-
na começa a comparar suas próprias ações com as dos adultos. O fato
de a criança chamar-se, simultaneamente, por dois nomes, o seu pró-
prio e o de um adulto, demonstra isso. Por exemplo, ao imitar a ação
de um adulto lendo um jornal ou escrevendo, o menino pode dizer
“Misha - papai”, ou uma pequena garota, ao preparar sua boneca para
dormir, pode referir-se a “Vera - mamãe”. L. S. Slavina (1948), em
seus trabalhos, mostrou como a criança, uma vez tenha descoberto
o sentido humano de ações com objetos, apega-se a ele tenazmente,
imprimindo-o mesmo nas manipulações mais simples.

Essas pesquisas foram conduzidas com material limitado a res-


peito do desenvolvimento de ações com objetos, em crianças bem pe-
quenas. Mas sugerem que a aquisição de modos de ação com objetos
conduz a criança, naturalmente, ao adulto, uma vez que ele é o porta-
5 Esse processo de aquisição de modos de ação socialmente elaborados foi demons-
trado com maiores detalhes na pesquisa de P. Ia. Galperin e seus colaboradores (N.
do A.).

262
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

dor das metas sociais da atividade. Faz-se necessário, ainda, realizar


uma pesquisa para determinar o mecanismo psicológico da transição
em cada caso concreto e em cada etapa concreta do desenvolvimento.
O sistema “criança-adulto”, por sua vez, emprega um conteúdo
substancialmente diferente. O adulto não mais aparece, primordial-
mente, para a criança, como uma coleção de atributos individuais e
aleatórios, mas como portador de certos tipos de atividade social, por
sua natureza, como executor de algumas tarefas, como alguém que
existe em várias relações com outras pessoas e como uma pessoa que
se conforma a normas estabelecidas. Contudo, os fins e motivos da
atividade de um adulto não são perceptíveis. Externamente, a criança
percebe uma determinada atividade como transformação e produção
de objetos. Os fins e motivos de uma atividade transparecem apenas
à medida que ela é conduzida à sua forma final, real, na totalidade
das relações sociais; contudo, a criança é incapaz de ver a ativida-
de naquele contexto. Consequentemente, surge a necessidade de um
processo especial de domínio dos objetivos e motivos da atividade
humana e das normas de relações humanas às quais as pessoas se
ajustam quando a realizam.
Infelizmente, as características psicológicas particulares desse
processo não foram suficientemente investigadas. Entretanto, há fun-
damentos para supor que o domínio pelas crianças dos objetivos, dos
motivos e das normas das relações existentes na atividade dos adul-
tos, é atingido por meio da reprodução ou imitação dessas relações
na sua própria atividade, nos grupos, associações e coletivos a que
pertence. É interessante notar que, nesse processo, a criança se depara
com a necessidade de dominar novas ações com objetos, sem as quais
é impossível realizar a atividade dos adultos. Assim, ela vê o adulto
como portador de novos modos de ação com objetos, cada vez mais
complexos, como portador de padrões e normas socialmente elabora-
dos, necessários para a orientação no mundo circundante.
Desse modo, a atividade da criança nos sistemas “criança-objeto
social” e “criança-adulto social” é um processo integrado no qual a
personalidade da criança se forma.
No curso do desenvolvimento histórico, entretanto, esse processo

263
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

de vida da criança na sociedade, integrado por sua natureza, repar-


te-se e divide-se em dois. Essa repartição cria as pré-condições para
o desenvolvimento hipertrofiado de cada um dos dois lados. Numa
sociedade de classes, a escola explora essa possibilidade, educando
certas crianças, principalmente, como executoras de aspectos opera-
cionais e técnicos do trabalho, enquanto educa outras, primordial-
mente, como portadoras de objetivos e motivos dessa atividade. Essa
abordagem dicotômica ao processo único de vida e desenvolvimento
da criança na sociedade, que surgiu historicamente, é própria da so-
ciedade de classes.

Os postulados teóricos apresentados guardam uma relação dire-


ta com o problema da periodização do desenvolvimento psíquico da
criança. Voltemo-nos para o material factual acumulado na psicolo-
gia infantil. Das múltiplas investigações realizadas por psicólogos nos
últimos 20-30 anos, selecionamos as que enriqueceram nosso conhe-
cimento acerca dos tipos básicos de atividade das crianças. Examina-
remos, brevemente, as mais importantes.

1. Até recentemente, havia muita incerteza em relação às carac-


terísticas contextuais objetivas da atividade do bebê, em particu-
lar, a respeito da questão da atividade guia nessa idade. Alguns
pesquisadores (L. I. Bojovitch e outros) consideravam primária a
necessidade de estímulos por parte do bebê. Consequentemente,
o aspecto mais importante da atividade deste era o desenvolvi-
mento de ações orientadoras. Outros (Piaget e outros) prestavam
mais atenção ao desenvolvimento da atividade sensório-motora
e manipulativa. Um terceiro grupo (G. L. Rozengard – Pupko e
outros) enfatizavam o significado importante da relação de con-
vivência do bebê com o adulto.

Em anos recentes, pesquisa conduzida por M. I. Lissina e seus


colaboradores (1974) demonstrou, de modo convincente, que os
bebês têm uma forma especial de atividade de convivência, que

264
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

é emocional. O “complexo de agitação6”, que aparece durante o


terceiro mês de vida do bebê, antes considerado apenas uma sim-
ples reação ao adulto (o estímulo mais forte e o mais complexo),
é, na realidade, uma ação complexa cuja função é estabelecer uma
relação de convivência com o adulto, utilizando meios especiais.
É importante notar o fato de que esta ação aparece bem antes de
a criança começar a manipular objetos ou do ato de apreensão
ter se aperfeiçoado. Após a atividade manipulativa e de apre-
ensão desempenhada junto com os adultos ter sido formada, as
ações da relação de convivência não se diluem na atividade con-
junta, não confluem para uma interação prática com os adultos,
e conservam seus meios e conteúdos peculiares. Essas e outras
pesquisas mostraram que um déficit de relação de convivência
emocional (e, provavelmente, um excesso desse contato) exerce
influência decisiva no desenvolvimento psíquico, nesse período.
Assim, podemos assumir que a relação de convivência emocional
com o adulto é a atividade guia do bebê, que tem em si própria e
como pano de fundo as ações manipulativas, sensório-motoras e
de orientação.
2. Essas mesmas pesquisas definiram a transição da criança – ao
final da fase de bebê – para a atividade com objeto propriamente
dita, isto é, o domínio de modos de ação socialmente elaborados
com objetos. O domínio dessas ações, claro, é impossível sem a
participação de adultos que as demonstram para a criança e as
realizam junto com ela. O adulto é apenas um elemento – ainda
que o principal – no contexto da ação com o objeto. A relação de
convivência emocional imediata com o adulto recua para o se-
gundo plano; em primeiro plano apresenta-se a colaboração prá-
tica. A criança se ocupa do objeto e das ações com o mesmo. Vá-
rios pesquisadores, repetidamente, têm chamado a atenção para
6 O “complexo de agitação” é um conceito introduzido na década de 1920 por N.
M. Schelovanov e designa diferentes reações motoras do bebê, nos primeiros meses
de vida, a diferentes estímulos (o rosto do adulto, brinquedos e sons diversos). Esse
complexo de agitação pode fornecer informações sobre vivências emocionais positivas
da criança e começa a se manifestar no período de transição de recém-nascido para
bebê (N. da T.). (Fonte: http://childpsy.ru/glossary/17726/, acesso em 05 de janeiro
de 2021).

265
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

como a criança parece, assim, ser ligada, diretamente, ao campo


de suas ações. É nesse ponto que observamos a emergência do
“fetichismo objetal”: a criança parece não notar o adulto, que fica
“eclipsado” pelo objeto e suas propriedades.

Muitos pesquisadores, tanto soviéticos quanto estrangeiros, vêm


mostrando que um processo intensivo de domínio de operações
instrumentais e objetais ocorre durante esse processo, formando-
-se o assim denominado intelecto prático. Além disso, pesquisas
detalhadas sobre a gênese do intelecto na criança, conduzidas por
Piaget e seus colaboradores, mostram que é, precisamente, du-
rante esse período que ocorre o desenvolvimento sensório-motor
do intelecto, que prepara a emergência das funções simbólicas. Já
nos referimos aos estudos de F. I. Fradkina que mostraram como,
no processo de domínio de uma ação, esta parece tornar-se des-
colada do objeto em relação ao qual ela foi originalmente assi-
milada: a ação é transferida para outros objetos que, embora si-
milares, não são idênticos ao objeto original. Assim, as ações são
generalizadas. F. I. Fradkina mostrou, por meio de experimenta-
ção, que é, precisamente, pelo deslocamento das ações em relação
aos objetos e sua generalização que se torna possível à criança
comparar suas ações com as dos adultos; desse modo, ela começa
a obter acesso ao significado e às finalidades das ações humanas.

Esses resultados indicam que a atividade guia, no início da in-


fância, é precisamente a atividade instrumental com o objeto; no
curso da mesma, a criança assimila modos socialmente elabora-
dos de ação com o objeto.

À primeira vista, isto parece ser contraditório com o fato de a


criança desenvolver formas verbais de relação de convivência
com os adultos, durante esse período. De um ser sem fala e cuja
relação de convivência com os adultos ocorre por meio de emo-
ções e gestos, a criança torna-se um ser falante que emprega uma
gramática e um vocabulário relativamente amplo. Entretanto, a
análise dos contatos verbais da criança indica que ela usa a fala,
primordialmente, como meio de favorecer a cooperação com os
adultos no contexto de sua atividade conjunta com objetos. Em

266
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

outras palavras, a fala serve como meio de contato puramente


prático entre a criança e o adulto. Além disso, temos razões para
acreditar que as próprias ações com objetos e a destreza com a
qual as executamos são, para a criança, um modo de estabelecer
uma relação de convivência com os adultos. Essas relações são
mediadas pelas ações da criança com os objetos. Portanto, o de-
senvolvimento intensivo da fala como meio de estabelecimento
de colaboração com adultos não contradiz nossa ideia de que a
atividade guia, durante esse período, é a atividade com objetos,
na qual a criança aprende modos socialmente evoluídos de ação
com eles.

3. Após os trabalhos de Vigotski, Leontiev e outros, a psicolo-


gia soviética demonstrou que a atividade guia do pré-escolar é a
brincadeira, na sua forma mais ampla (brincadeira de represen-
tação de papeis). O significado da brincadeira para o desenvol-
vimento psíquico da criança nessa idade tem muitos aspectos. O
mais importante se encontra nos meios peculiares da brincadeira
(a criança assume o papel e as funções sócio-laborais do adulto;
ela reproduz ações com objetos generalizadas na representação;
ela transfere o significado de um objeto a outro, etc.) com os quais
ela imita as relações entre as pessoas.

Tomada isoladamente, uma ação com objeto não traz, “escritas


em si”, respostas para questões como por que ela foi executada,
qual é o seu significado social e seu motivo real. Somente quando
uma ação com objeto integra-se a um sistema de relações huma-
nas é que podemos descobrir seu verdadeiro sentido social, seu
direcionamento para outras pessoas. Esse tipo de “integração”
também ocorre na brincadeira. A brincadeira de representação
de papeis é uma atividade em que a criança começa a se orientar
em direção aos sentidos mais universais e fundamentais da ativi-
dade humana. Nessa base, a criança começa a empenhar-se numa
atividade socialmente significante e valorizada que se apresenta
como o indicador principal de prontidão para a instrução escolar.
Esse é o principal significado da brincadeira para o desenvolvi-
mento psíquico; nisso consiste sua função de guia.

267
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

4. No início da década de 1930, L. S. Vigotski apresentou o pos-


tulado sobre o significado da instrução escolar como guia para o
desenvolvimento mental de crianças na idade escolar. Natural-
mente, não é qualquer tipo de instrução que influencia o desen-
volvimento, apenas a “boa”. De modo cada vez mais acentuado,
a qualidade da instrução está começando a ser avaliada, exata-
mente, pelo modo como influencia o desenvolvimento intelectu-
al da criança. Os psicólogos vêm realizando vários experimentos
com a finalidade de determinar como a instrução escolar influi no
desenvolvimento mental. Os limites do presente artigo não nos
permitem examinar os diferentes pontos de vista. Chamaremos
a atenção apenas para o fato de que a maioria dos pesquisadores
- independentemente do modo como concebem o mecanismo in-
terno dessa influência e o significado que atribuem aos vários as-
pectos da instrução (conteúdo, método, organização) – concorda
ao reconhecer que a instrução tem um papel de guia no desenvol-
vimento mental da criança, nos primeiros anos de vida escolar.

A atividade de estudo, na qual a criança domina novos conheci-


mentos e para a qual o sistema de instrução deve oferecer orien-
tação própria, é a atividade guia desse período. As forças intelec-
tuais e cognitivas da criança são ativamente formadas durante o
curso desse processo. O significado da atividade de estudo como
guia é determinado também pelo fato de que ela faz a mediação
de todo o sistema de relações da criança com os adultos que se
encontram ao seu redor, incluindo a convivência pessoal na fa-
mília.

5. A identificação da atividade guia, durante a adolescência, apre-


senta dificuldades maiores relacionadas à atividade fundamental
nessa idade que é o estudo escolar. Para os adultos, o sucesso
ou o fracasso na escola continua servindo como critério principal
para avaliar os adolescentes. Além do mais, nas condições educa-
cionais atuais, a transição para a adolescência não é acompanha-
da por quaisquer mudanças externas substanciais. Apesar disso,
é precisamente a transição para o período da adolescência que a
psicologia distingue como o mais crítico.

268
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Na ausência de quaisquer mudanças nas condições gerais de vida


e de atividade, é natural que se tenha procurado encontrar a cau-
sa da transição para a adolescência nas mudanças que ocorrem no
próprio organismo, no processo de maturação sexual que ocorre
nesse período. É claro que o desenvolvimento sexual exerce uma
influência na formação da personalidade, durante esse período,
mas essa (influência) não é primordial. Assim como outras mu-
danças ligadas ao desenvolvimento físico e intelectual da criança,
a puberdade exerce sua influência indiretamente, por meio das
relações da criança com o mundo que a circunda e da compara-
ção que ela faz de si mesma com os adultos e outros adolescentes,
isto é, somente no interior do complexo total de mudanças que
ocorrem nesse momento.
Vários pesquisadores têm demonstrado como, no início desse
período, emerge uma nova esfera de vida. H. Wallon expressou essa
ideia mais claramente quando escreveu: “quando a amizade e a com-
petição não se baseiam mais em interesses comuns ou no antagonismo
e tarefas realizadas ou ainda precisam ser realizadas, quando tentam
explicar a amizade e a competição com proximidade espiritual ou
com diferenças, sendo que elas estão relacionadas a aspectos pessoais
e não à cooperação ou conflitos, significa que o amadurecimento sexu-
al chegou” (1967, p.194).
Em anos recentes, pesquisas conduzidas por D. B. Elkonin e T.
V. Dragunova Vozrastnie i individualnie osobennosti mladchirh podros-
tkov [Especificidades etárias e individuais de pré-adolescentes] (1967)
mostraram que uma atividade especial emerge e se desenvolve na
adolescência, e consiste no estabelecimento de relações pessoais ín-
timas entre adolescentes. Ela tem sido denominada de atividade de
convivência. Difere de outros tipos de interrelações que ocorrem na
cooperação prática entre colegas, no sentido de que seu conteúdo
principal diz respeito a outro adolescente visto como um ser humano
com determinadas qualidades pessoais. Em todas as formas de ativi-
dade coletiva entre adolescentes, podemos observar como as relações
são subordinadas a um código de camaradagem. Na convivência pes-
soal, as relações podem se estruturar, e se estruturam, com base não
apenas no respeito mútuo, como também na confiança total e nos in-

269
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

teresses comuns da vida pessoal. Essa esfera de vida em comum entre


amigos é particularmente importante na adolescência.

A formação de relações no grupo de adolescente com base no


código de camaradagem e, principalmente, de relações pessoais nas
quais esse código se apresenta com mais clareza, tem um significado
importante para a formação da personalidade do adolescente. O códi-
go de camaradagem, por seu conteúdo objetivo, reproduz as normais
mais gerais de relações existentes entre adultos numa determinada
sociedade.

Assim, a atividade de convivência é uma forma específica de re-


produção, entre coetâneos, de relações existentes entre os adultos. No
processo de convivência, as normas dessas relações são assimiladas
e a orientação por elas se aprofunda. Desse modo, é razoável admitir
que a atividade guia, durante esse período de desenvolvimento, seja a
relação de convivência, que consiste na estruturação de relações com
companheiros com base em determinadas normas éticas e morais que
permeiam as condutas dos adolescentes.

Entretanto, podemos ir além. A relação de convivência estrutura-


da sobre a confiança total e interesses comuns da vida pessoal é a ati-
vidade na qual se formam as visões mais universais da criança sobre
a vida, sobre as relações humanas e sobre o seu próprio futuro – em
resumo, os sentidos sociais de sua vida. Graças a isso, surgem con-
dições para a emergência de novas tarefas e motivos para a própria
atividade, que se transforma em atividade orientada para o futuro e,
por isso, adquire um caráter de formação profissional.

Apresentamos apenas uma rápida visão dos fatos essenciais re-


lativos às características contextuais e objetivas dos tipos de atividade
guia que foram, até aqui, destacados. Com base nisso, podemos clas-
sificar todos os tipos em dois grandes grupos.

O primeiro grupo inclui atividades que são acompanhadas por


uma orientação intensa para os sentidos fundamentais da atividade
humana e pela assimilação dos objetivos, motivos e normas das rela-
ções humanas, isto é, atividades no sistema criança – adulto social. Evi-
dentemente, há diferenças essenciais entre a relação de convivência

270
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

emocional do bebê, a brincadeira de representação de papeis e a con-


vivência pessoal íntima entre adolescentes, tanto em termos do conte-
údo concreto quanto da profundidade de penetração das crianças na
esfera dos motivos e objetivos da atividade adulta. Isso representa um
tipo de escada de assimilação progressiva pela criança dessa esfera.
Apesar disso, essas atividades têm um conteúdo básico comum. Na
realização desse grupo de atividades, desenvolve-se, predominante-
mente, nas crianças, a esfera de motivos e necessidades.
O segundo grupo consiste de atividades pelas quais a criança as-
simila tanto os modos socialmente elaborados de ação com objetos
quanto os padrões que distinguem os vários aspectos de objetos, isto
é, essas são as atividades no sistema “criança – objeto social”. Natural-
mente, há diferenças essenciais entre atividades desse grupo. A ma-
nipulação de objetos realizada pela criança bem pequena tem apenas
uma semelhança superficial com a atividade de estudo da criança na
fase inicial de escolarização e menos ainda com a atividade de estu-
do e de formação profissional de adolescentes mais velhos. O que há
de comum ou que relação, de fato, existe entre o domínio das ações
com objetos que envolvem um copo ou uma colher e o domínio da
gramática ou da matemática? Ambos esses domínios têm uma carac-
terística em comum: são todos elementos da cultura humana. Eles têm
uma origem comum e um lugar comum na vida da sociedade; ambos
representam o resultado de um produto da história precedente. Pela
assimilação de modos socialmente elaborados de ação com objetos a
criança começa a se orientar de modo mais profundo no mundo dos
objetos, ocorre a formação de suas forças intelectuais e ela se torna
parte das forças produtivas da sociedade.
Aqui, precisamos, entretanto, ressaltar um ponto: quando fala-
mos da atividade guia e de seu significado para o desenvolvimento
da criança, num determinado período, isso não significa que ela esteja
se desenvolvendo, também, em outras direções. Em cada período, a
vida da criança é multifacetada e são variadas as atividades que com-
põem a sua vida. Surgem novos tipos de atividades na vida e novas
relações da criança com a realidade. O surgimento e a transformação
de atividades em atividades guia não anulam as que já existem: estas,
simplesmente, mudam de lugar no sistema geral de relações da crian-

271
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

ça com a realidade, que se tornam mais ricas.


Se tomarmos os tipos de atividade da criança que distinguimos
até aqui, organizando-os em grupos, conforme a ordem em que se
tornam atividade guia, obtemos a seguinte série:
Relação de convivência emocional...................................primeiro grupo
Manipulação de objetos.....................................................segundo grupo
Brincadeira de representação de papel...........................primeiro grupo
Atividade de estudo...........................................................segundo grupo
Relações íntimas de convivência pessoal........................primeiro grupo
Atividade de formação profissional.................................segundo grupo
Assim, por um lado, o desenvolvimento da criança é composto
de períodos caracterizados, principalmente, pela assimilação das fi-
nalidades, motivos, normas das relações humanas e, nessa base, pelo
desenvolvimento da esfera motivação – necessidade e, por outro lado,
de períodos caracterizados, principalmente, pela aquisição de modos
socialmente elaborados de ações com objetos e, nessa base, a forma-
ção do potencial intelectual e cognitivo da criança, suas capacidades
operacionais e técnicas.
A análise da substituição progressiva de períodos permite for-
mular a hipótese sobre a periodicidade dos processos de desenvolvi-
mento psíquico, que consiste na substituição repetitiva e regular de
períodos.
Uma razoável quantidade de material da psicologia soviética e
estrangeira permite-nos discriminar duas transições pontuais no de-
senvolvimento psíquico da criança: antes de tudo, a transição da pri-
meira infância para a idade pré-escolar, usualmente denominada de
crise dos 3 anos e, em segundo lugar, a transição do primeiro mo-
mento da idade escolar para a adolescência, comumente chamada de
crise da puberdade – a “crise da maturação sexual”. Uma comparação
dos sintomas dessas duas transições mostra uma grande similaridade
entre eles. Em ambos os períodos, surge uma tendência em direção à
independência, bem como uma série de manifestações negativas liga-

272
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

das às relações com os adultos. Se inserirmos essas transições críticas


no esquema de períodos de desenvolvimento na infância, obteremos
o padrão geral de épocas, períodos e fases mostrados na figura abaixo.

Como é evidente, cada época consiste de dois períodos regular-


mente ligados. O primeiro é caracterizado pela assimilação das fina-
lidades, motivos e normas da atividade humana e pelo desenvolvi-
mento da esfera da motivação – necessidade. Nesse ponto, prepara-se
a transição para o segundo período, marcado pela assimilação de
modos de ação com objetos e a formação de possibilidades técnicas e
operacionais.

Fases I II I II I II I II I II I II
Primeira Início da Pré
Períodos Bebê
infãncia
Pré Escolar
escolarização adolescência
Adolescência

Épocas Primeira infância Infância Adolescência

Desenvolvimento da esfera de motivos e necessidade Transição de Transição de


época para período para
Desenvolvimento das possibilidades operacionais e técnicas período período

273
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Todas as três épocas (primeira infância, infância e adolescência)


estruturam-se segundo o mesmo princípio e são compostas de dois
períodos regularmente interligados. A transição de uma época para a
seguinte é marcada por uma discrepância entre as possibilidades ope-
racionais e técnicas da criança e as tarefas e motivos da atividade com
base nas quais elas se formaram. Sabemos muito pouco sobre a transi-
ção de um período para outro ou de uma fase para outra, no curso de
um período.

Qual é, exatamente, o significado teórico e prático da nossa hi-


pótese a respeito da periodicidade dos processos de desenvolvimento
e do esquema de periodização estruturado com base em tal hipóte-
se? Antes de tudo, o significado teórico principal da nossa hipótese
se encontra no fato de que ela permite superar a ruptura existente na
psicologia da criança entre o desenvolvimento da dimensão motivação
– necessidade e intelecto - cognição da personalidade; ela nos permite
mostrar a unidade contraditória desses aspectos do desenvolvimento
da personalidade. Em segundo lugar, nossa hipótese torna possível
ver o processo de desenvolvimento psíquico não linearmente, mas
como uma espiral ascendente. Em terceiro, ela abre perspectivas para
o estudo dos elos entre os períodos existentes e para o estabelecimento
do significado funcional de cada período antecedente para o início do
próximo. Em quarto lugar, nossa hipótese divide o desenvolvimento
psíquico em épocas e estágios, de modo que corresponda às leis inter-
nas do mesmo e não a meros fatores externos.

O significado prático da hipótese consiste no fato de que ela serve


como um guia para resolver a questão da susceptibilidade dos vários
estágios de desenvolvimento da criança a tipos particulares de influ-
ência e oferece uma nova abordagem ao problema dos elos entre as
várias instituições no nosso sistema educacional atual. Conforme as
exigências derivadas dessa hipótese, no momento em que há uma rup-
tura no nosso sistema atual (instituições pré-escolares - escola), deve-
ríamos ter um elo orgânico mais firme e, ao contrário, onde, agora,
temos continuidade (anos escolares iniciais - anos escolares médios),
deveria haver, na verdade, uma mudança abrupta para um novo sis-
tema educacional.

274
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

É claro que apenas com mais pesquisa poderemos ver o quão acu-
radamente nossa hipótese reflete a realidade do desenvolvimento psí-
quico da criança.

Referências Bibliográficas
BLONSKI, P. P. Vozrostrania pedologuia. [Pedologia das idades]. Moskva-Lenin-
grad: Rabotnik Prosveschenia, 1930.
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ELKONIN, D. B.; DRAGUNOVA, T. V. (Eds.) Vozrastnie i individualnie osobennosti
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LEONTIEV, A. N. Problemi razvitia psirhiqui [Problemas do desenvolvimento do
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LISSINA, M. I. (Eds.) Osobennosti obschenia u detei rannego vozrasta v protsesse
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VIGOTSKI, L. S. Problema vozrasta [O problema da idade]. Em: VIGOTSKI, L. S. So-
branie sotchineni [Obras reunidas], T. 4. Moskva: Pedagoguika, 1984, p. 244-268.
WALLON, H. Psirhologuitcheskoie razvitie rebionka [Desenvolvimento mental da
criança]. Moskva: Prosveschenie, 1967.

275
Sobre os Autores

Carlos Lucena
Doutor em História e Filosofia da Educação, pela Universida-
de Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor do Programa
de Pós-Graduação em Educação (PPGED) e da Faculdade de
Educação (FACED), da Universidade Federal de Uberlândia
(UFU).
E-mail: lucenabonsais@gmail.com

Caroline Bahniuk
Doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa Ca-
tarina e Pós- doutora em Serviço Social pela mesma Universi-
dade. Professora da Faculdade de Educação da UNB.
E-mail: carolbahniuk@yahoo.com.br

Elizabeth Tunes
Graduada em Psicologia, Mestre e Doutora em Psicologia. Pro-
fessora do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Edu-
cação da Universidade de Brasília (UnB), do Curso de Psicolo-
gia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Centro
Universitário de Brasília (UniCEUB).
E-mail: bethtunes@gmail.com

Ingrid Lilian Fuhr


Doutorado e mestrado em Educação com Graduação em Pe-
dagogia pela Universidade de Brasília/UnB. Leciona na gra-
duação e pós-graduação. Pesquisa sobre os seguintes temas:
desenvolvimento humano, pensamento conceitual em ativi-
dades artesãs, conhecimento científico e conhecimento escolar,
desenvolvimento atípico e deficiência, processo de escolariza-
ção e medicalização.
E-mail: ingridlfra@gmail.com

277
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

José Carlos Souza Araújo


Licenciou-se em História pela Pontifícia Universidade Católi-
ca de Campinas, cursou Filosofia pelo Instituto Estigmatino de
Campinas, e é bacharel em Teologia pela Faculdade de Teolo-
gia Nossa Senhora da Assunção, São Paulo, SP. Mestre em His-
tória Social pela Universidade de São Paulo (USP), e Doutor
em Educação na área de Filosofia e História da Educação, pela
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
E-mail: jcaraujo.ufu@gmail.com

Leandro Eliel Pereira de Moraes


Pós-doutorando em Educação Pela Universidade Estadual de
Campinas - UNICAMP, Doutor em Educação pela Universi-
dade Metodista de Piracicaba - UNIMEP, Mestre em Educação
pela Universidade Metodista de Piracicaba - UNIMEP (2012),
especialista em Economia do Trabalho e Sindicalismo pela Uni-
versidade Estadual de Campinas - UNICAMP (2005), gradua-
do em História pela Pontifícia Universidade Católica de Cam-
pinas - PUC (1995) e educador popular.
E-mail: leandroeliel@gmail.com

Leandro Sartori
Doutor em educação pela Faculdade de Educação da Univer-
sidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e graduado em Pe-
dagogia pela Faculdade de Educação da Baixada Fluminense
(FEBF/UERJ). Atualmente, é professor substituto do Departa-
mento de Gestão de Sistemas Educacionais da Faculdade de
Educação da Baixada Fluminense (FEBF/UERJ).
E-mail: leandrosartorigoncalves@yahoo.com.br

278
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Luiz Bezerra Neto


Graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica
de Campinas, especialista em Economia do Trabalho e Sindica-
lismo com mestrado e doutorado em Educação pela Universi-
dade Estadual de Campinas, pós-doutorado pela Universidade
Federal da Bahia - UFBA. Professor associado da Universidade
Federal de São Carlos.
E-mail: lbezerra@ufscar.br

Marcos Francisco Martins


Professor Associado da UFSCar (Universidade Federal de São
Carlos), mestre e doutor em Educação pela Unicamp (Univer-
sidade Estadual de Campinas).
E-mail: marcosfranciscomartins@gmail.com

Mário Borges Netto


Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Maringá
(UEM). Graduado em Pedagogia e Mestre em Educação pela
Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Professor da Uni-
versidade Federal de Uberlândia (UFU) junto ao Instituto de
Ciências Humanas do Pontal (ICHPO) e ao Programa de Pós-
-Graduação em Educação (PPGED).
E-mail: mario.netto@ufu.br

Nereide Saviani
Possui graduação em Pedagogia (1972) pela Pontifícia Univer-
sidade Católica de São Paulo PUC-SP, Mestrado em Educação
(Supervisão e Currículo) pela PUC-SP (1981) e doutorado em
História e Filosofia da Educação pela PUC-SP. Atualmente é
Diretora de Formação da Fundação Maurício Grabois.
E-mail: nereide.saviani@gmail.com

279
Educação e Revolução: a pedagogia socialista soviética

Sandra Luciana Dalmagro


Doutora em Educação pela UFSC e pós-doutora pela Universi-
dade de Lisboa. É professora no Centro de Ciências da Educa-
ção da UFSC.
E-mail: sandradalmagro@yahoo.com.br

Valter Pomar
Professor no Bacharelado de Relações Internacionais da Uni-
versidade Federal do ABC. Professor na pós-graduação de
Economia Política Mundial da Universidade Federal do ABC.
Graduado em História pela Universidade de São Paulo (1996),
mestre em História Econômica pela Universidade de São Paulo
(2000) e doutor em História Econômica pela Universidade de
São Paulo (2006).
E-mail: pomar.valter@gmail.com

Zoia Prestes
Graduada em Pedagogia e Psicologia Infantil, Mestre e Dou-
tora em Educação. Professora da Faculdade de Educação (Ni-
terói) da Universidade Federal Fluminense (UFF) e do Progra-
ma de Pós-Graduação em Psicologia do Centro Universitário
de Brasília (UniCEUB).
E-mail: zoiaprestes@uahoo.com.br

280
profundamente os destinos na humanidade,

de uma sociedade socialista. No campo

originais de abnegados educadores, foi

que buscava construir uma nova humanidade,

humano.

concretas que influenciaram diversas outras

trabalhadoras que tiveram acesso a um


conhecimento historicamente produzido e que

Escola Latino-americana
de História e Política
Escuela Latinoamericana
de Historia y Política

www.elahp.com.br

educadores e suas teorias e do legado da

www.ccev.org.br

www.caixadeferramentas.org/

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