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S O C I E D A D E EXCITADA
FILOSOFIA DA SENSAÇÃO
TRADUÇÃO
A n t o n i o A . S. Z u i n
Fábio A. D u r ã o
Francisco C. Fontanella
Mario Frungillo
UMICAMP
U N I V E R S I D A D E E S T A D U A L DE C A M P I N A S
Reitor
FERNANDO FERREIRA C O S T A
C o o r d e n a d o r Geral d a Universidade
E D G A R SALVADORÍ DE D E C C A
C D 1 T o R3
|UN 1 c A MP |
C o n s e l h o Editorial
Presidente
PAULO F R A N C H E T T I
A L C I R P É C O R A - ARLEY R A M O S M O R E N O
JOSÉ A . R . G O N T I J O - JOSÉ ROBERTO Z A N
MARCELO KNOBEL - MARCO A N T O N I O ZAGO
E D I T O R A U H I C A H P
SEDI H I R A N O - YARO B U R I A N J Ú N I O R
FICHA CATALOGRAFICA ELABORADA PELO
S I S T E M A DE B I B L I O T E C A S DA UNICAMP
D I R E T O R I A DE T R A T A M E N T O DA I N F O R M A Ç Ã O
CDD 100
230 AGRADECIMENTOS
151.1
612
ISBN 978-85-268-0856-0 301.04 Do autor: Reiner Stach acompanhou o manuscrito da primeira até a
última página. Ele foi sua espinha dorsal e sua consciência. RalfJohannes
índices para catálogo sistemático:
deu impulsos importantes para a concepção total, assim como Gerhard
1. Filosofia 100
2. Teologia
Schweppenhàuser proporcionou conselhos refrescantes nos períodos de
250
3- Sentidos e sensações 1 52.1 seca. Andreas Gruschka e Oliver Decker ajudaram com anotações para
4- Fisiologia 612
alguns capítulos. Detlef Felken leu e corrigiu com grande cuidado. Mas
S- Teoria critica 301.04
talvez nada teria sido possível sem o amor de Angelika.
Título original: Erregte Gesdlschafi
Copyright © by Verlag C. H. Beck o H G , München 2002
Copyright © by Christoph Türcke
Dos tradutores: agradecemos as colaborações de Claudia Gerth, Maj-Lis
Strunk Costa, Markus Lasch e Oswaldo Giacóia jr.
Copyright © 201 o by Editora da Unicamp
Editora da Unicamp
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SUMÁRIO
PREFÁCIO 9
1 P A R A D I G M A DA S E N S A Ç Ã O 13
2 LÓGICA DA SENSAÇÃO 87
3 F I S I O T E O L O G I A DA SENSAÇÃO 121
5 S U B S T I T U T O DA S E N S A Ç Ã O 233
PREFÁCIO
A palavra ' a u d i o v i s u a l " presta-se a equívocos; cia coloca o ouvir antes d o ver. Na realidade, a hierarquia
d o s s e n t i d o s c inversa. Já cm C í c e r o isso está p r e s e n t e : P o d e m o s m e l h o r representar aquilo q u e nos é
6 K. Kraus. Wchgcricht. I.cipzig. 1919. Nova e d i ç ã o : F r a n k f u r t . 1988. vol. I. p. 15.
t r a n s m i t i d o pelos s e n t i d o s c q u e os m a r c a ; p o r é m o s e n t i d o mais a g u d o é a f a c u l d a d e visual. Por isso
cunstâncias, o sentido teológico e político daquilo que "necessariamente nos funcionários desses setores possuíam contratos fixos de trabalho e uma renda
atin»e" é enfraquecido; o sentido fisiológico da expressão entra em cena de garantida, assim c o m o benefícios de seguridade social — mesmo q u a n d o a
forma renovada. O que atinge, toca, comove é aquilo que, e n q u a n t o injeção, rentabilidade das empresas deixava a desejar e o contribuinte tinha que pagar
foi agudizando o suficiente o nosso sistema nervoso e, ainda q u e seja apenas a diferença. Sob uma perspectiva estritamente mercadológica, isso não pode
por u m instante, chama a atenção. acontecer, como, por sinal, Engels já notara quase um século antes. Ele vivenciou
Sensação hoje, na linguagem coloquial, q u e r dizer simplesmente "aquilo na época c o m o "as grandes iniciativas de transporte: os correios, telégrafos, as
que causa sensação". Q u a n d o a palavra passou d o latim para as línguas nacionais vias férreas" eram estatizados por toda parte e ofereceu a seguinte interpretação:
européias, representava bem genericamente a primazia fisiológica d o sentimento se o Estado não tem outra opção senão tomar ele mesmo a liderança nesses
ou da percepção — sem nenhuma conotação espetacular. E o que é mais notável é empreendimentos, para poder garantir à economia capitalista de mercado as
que, justamente a alta pressão noticiosa do presente, que quase automaticamente condições estruturais estáveis para seu desenvolvimento, então ele não apenas
associa "sensação" a "causar u m a sensação", n ã o apenas se sobrepõe ao sentido fortalece a si mesmo, mas também mina a si próprio. Sua ação significa tanto
fisiológico antigo de sensação, mas t a m b é m o movimenta de uma nova maneira. "progresso econômico", em seu sentido capitalista, quanto "atingir um estágio
O u seja, se tudo o que não está em condições de causar u m a sensação t e n d e a preliminar para a tomada, por parte da própria sociedade, de todas as forças
desaparecer sob o fluxo de informações, praticamente não sendo mais percebido, produtivas" 8 . Lênin levou adiante esse pensamento e não teve pudores de con-
então isso quer dizer, inversamente, que o r u m o vai na direção de que apenas o siderar "o correio como o padrão da economia socialista";
que causa uma sensação é percebido. A percepção d o que causa u m a sensação
converte-se na percepção tout court, o caso extremo da percepção em instância o mecanismo social dc condução da economia já está disponível aqui. Derrubem-se os
normal. Por certo, estamos apenas n o princípio dessa tendência, mas a pressão capitalistas; quebre-se, com o punho de aço dos trabalhadores armados, a resistência
econômica da concorrência global cuida para que ela se acelere — uma tendência desses exploradores; aniquile-se a maquinaria burocrática do Estado moderno — e
que na alta pressão noticiosa só faz manifestar-se mais evidentemente. teremos diante de nós um mecanismo altamente desenvolvido tecnicamente, livre
dos "parasitas", e que os próprios trabalhadores unidos podem muito bem pôr em
movimento 9 .
Propaganda desenfreada O r a , por volta de 1980 os Estados Unidos não estavam verdadeiramente
ameaçados por n e n h u m a revolução socialista dos correios e outras "grandes
A pressão concorrencial pertence ao capitalismo assim c o m o a pressão san- firmas de transporte". Mesmo assim, causavam desconforto. Porém o respon-
güínea, ao corpo. Em si, é uma velha conhecida. Porém, n o fim dos anos 1970, sável pelo d e s c o n f o r t o não era algum movimento social, mas o "milagre" no
recebeu um empurrão da alta tecnologia, cuja extensão apenas gradualmente se Silicon-Valley califomiano: o desenvolvimento de uma estonteante nova tec-
fez notável. Começou nos Estados Unidos. M e s m o lá, na terra industrialmente nologia, que em seus primórdios já deixava entrever que em breve por toda a
mais desenvolvida, os precursores e advogados de uma e c o n o m i a de mercado extensão das unidades produtivas, da administração e do setor de serviços,
livre sempre haviam contado um tanto de vantagem. Serviços de infraestrutura inúmeros empregados seriam substituídos por computadores de desempenho
elementares estatais como a telecomunicação, o correio, o sistema de transpor- incomparável. Esse "milagre" foi percebido pelo governo Carter, acima de tudo,
te ferroviário, rodoviário e aéreo escapavam de fato à concorrência geral. O s do p o n t o de vista da política externa: como a miraculosa arma final na Guerra
Fria. Finalmente acenava a dianteira técnica que o opositor socialista nao mais
é possível m a n t e r de f o r m a mais fácil o q u e se ouve se a q u i l o q u e é r e g i s t r a d o pela a u d i ç ã o o u p e l o e n t e n -
d i m e n t o t a m b é m lor t r a z i d o à consciência pela m e d i a ç ã o d o s olhos" ( C í c e r o , De oratore/Über den Redner.
Trad. H . M e r k l i n . Stutcgart, 1997, p. 435). O d e c l í n i o d o r á d i o na era d a televisão r e p r e s e n t a u m a c o m - 8 R~Eiigels! Anli-Dührhiig. MF.W - M a r x - E n g e l s Wcrke [ O b r a s de Marx e Engels], Berlim. .975 [1894],
provação tardia disso. Só faz assim c o n s o l i d a r i n d u s t r i a l m e n t e o q u e há m i l ê n i o s já se praticava. Q u a n d o
se falar de "audiovisual", pensar-sc-á sempre n o p r i m a d o d o ó t i c o , m e s m o q u a n d o ele n ã o tor m e n c i o n a d o
explicitamente.
9 und Revolution. Wcrke [Obras], Berlim. 1972 [ 1917), vol. 25, P . 439.
recuperaria, não mais poderia enfrentar. E, à luz dessa o p o r t u n i d a d e histórica,
merecendo, assim, uma proteção categórica contra as leis de mercado. Agora,
os e m p r e e n d i m e n t o s estatais q u e davam p r e j u í z o q u a n d o p r o p o r c i o n a v a m
ISSO já não era mais evidente. Por que deveria haver serviços não rentáveis?
benefícios de infraestrutura, e que cuidavam para q u e t o d o s tivessem à dispo-
C o m essa simples pergunta desconcertante iniciou-se a desregulamentação.
sição cartas que fossem entregues, meios de t r a n s p o r t e a preços razoáveis, ca-
Sob seu p o n t o de vista, n e n h u m a instituição, n e n h u m a firma, n e n h u m g r u p o
bines telefônicas, acesso básico à educação e a serviços de saúde, apareceram,
tem direito a existência se não estiver em condições de se manter economica-
de uma hora para outra, c o m o ilhas de má administração, c o m o relíquias da-
mente - eis p o r que desde então n e n h u m a escola, n e n h u m a clínica ou prisão
quele socialismo não rentável, que estava a p o n t o de ser exorcizado, e q u e ad-
escapa de análises administrativas que lhes apontem o que podem economizar
quiriu ele mesmo, c o m o um espectro expulso d o c o r p o , os traços de u m para-
em termos de pessoal e material empregados. Não que com isso todas as insti-
sita. Por que mesmo deveriam o correio e as empresas de transporte e telefonia
tuições sociais se tornem firmas, mas se deixa bem claro a todas que a firma é
ser privilegiados — perguntava triunfalmente, e com um gesto de justiça social,
o modelo que doravante devem seguir e o padrão pelo qual serão medidas. Q u e
a administração política — e não trabalhar sob as mesmas condições de mer-
empresas c o m o o M c D o n a l d s e a C o c a - C o l a financiem o e q u i p a m e n t o de
cado c o m o a General M o t o r s ou a IBM? E assim c o m e ç a v a , já n o g o v e r n o
escolas inteiras, de forma a poder oferecer seus produtos aos alunos n o recreio;
Carter, e depois com mais vigor sob o Reagan, o processo global de "desregu-
que grupos c o m o a Microsoft e a Intel forneçam computadores sob condições
Iamentação" 1 ": a privatização de firmas estatais; o a f r o u x a m e n t o de c o n t r a t o s
especiais, influenciando, assim, de forma determinante as bases e o direciona-
fixos de trabalho; o declínio dos benefícios de seguridade social; a substituição
m e n t o d o p r o g r a m a educacional como um todo, já é há muito uma rotina na
de grupos inteiros de secretárias, telefonistas, tipógrafos, impressores, enge-
vida escolar dos Estados Unidos - e é algo tido como exemplar para além dos
nheiros, especialistas até os níveis médios da administração, p o r softwares in-
Estados Unidos. Na Alemanha, circulam modelos segundo os quais os direto-
teligentes ; a redução de uma parte considerável da classe m é d i a a empregos de
res de escola devem recrutar por conta própria o pessoal apropriado, de forma
curta duração, ou mal remunerados n o setor de serviços; a expulsão de indiví-
a supervisionar os alunos durante as aulas canceladas e após o término do pe-
duos há muito ativos até então para o desemprego de longa duração, o tráfico
ríodo, até que seus pais estejam em casa de volta do trabalho. N o perfil de ap-
de drogas e a criminalidade - e uma bela r e c o m p e n s a para o q u a r t o ou quin-
tidão dos postos administrativos mais altos penetram cada vez mais as quali-
to grupos na parte de cima, que conseguiram galgar à posição de "realizadores"
dades d o manager. Q u e m considera o tesouro como a contabilidade de uma
de uma nova e c o n o m i a , cujo t r u q u e é prosperar, apesar d o d e s e m p r e g o em
empresa e c o n s t a n t e m e n t e procura saber c o m o reduzir suas despesas — por
massa, ou por causa dele. Sua f ó r m u l a mágica: joblessgrowth.
meio da racionalização ou eliminação de processos ineficientes de trabalho,
Mesmo antes de a desregulamentação ter-se i m p o s t o nos Estados Unidos, pela captação de recursos e pessoal não estatais —, este será o f u n c i o n á r i o
e bem antes de ter t o m a d o a Europa Ocidental e o Japão nos anos 1980, trazen- público do hituro, responsável e competitivo. A captação de firmas privadas e
do a falência da economia estatal-socialista de c o m a n d o , q u e d i a n t e d o p o d e r de patrocinadores significa, porém, a sua adulação — significa fazer propaganda
econômico elevado da microeletrônica não tinha, p o r fim, a m e n o r chance, ela em prol da própria instituição, apresentá-la de maneira que os patrocinadores
ja visava a uma mudança de mentalidade - r o m p e r u m tabu que d u r a n t e um doem apoio a ela e não a outras. E isso quer dizer também oferecer novo espa-
século e meio se havia firmado na base d o capitalismo p a u l a t i n a m e n t e , c o m o ço aos adulados para a sua própria propaganda. Dessa maneira, a propaganda
um calo, e que havia ao mesmo t e m p o consolidado e restringido o sistema: o p e n e t r a direta e legalmente em uma parte da esfera pública, à qual até então
de que determinados empreendimentos estatais de base seriam direito de todos, tinha o acesso oficialmente interditado. Ela transforma-se em um fermento da
administração estatal, sem o qual setores inteiros da formação e manutenção,
1 N S ESC ad S U n Í d
dos serviços médicos e assistencial mais cedo ou mais tarde dificilmente serão
° Z S , ° . ° °S' P°r « C m
P l o
« ú m e r o d e prescrições, n a realidade, n ã o
es u u T X Í L s n , p a l m C
7 ' ,n°Va<ÓCS « « » » necessitam f r e q ü e n t e m e n t e de regulação funcionais; torna-se um item cada vez mais imperativo da qualificação profis-
para a t e l e c o m u n ic ^ H c o m o , p o r exemplo, na concessão de feqténdb, sional — e com isso, em um fator central do c o m p o r t a m e n t o social geral: um
dl c r t
vcTçãoÍtataTno S ' ™ t e d o s setores de saúde, s e g u r i d a d e e m e i o a m b i e n t e a inter-
critério principal para a "competência comunicativa".
tom 1 erltercr der Globalmerung. H a m b u r g o . 1999. p. 82.)
Justamente nesse uso recentíssimo reemerge o significado mais antigo da pa- represente um dos emblemas mais eloqüentes desta virada de século. Faz uma
lavra "propaganda" [Werbung]. O Werben do alemão arcaico é definido noDeuts- diferença decisiva se a propaganda é apenas u m acessório no ramo das comu-
cbem Wôrterbuch dos irmãos G r i m m c o m o "girar-se" — mais especificamente, nicações, ou se constitui sua condição de existência; se seus comerciais são
-irar em torno de algo. Pode ser um p o n t o na água, ao redor d o qual gira um apenas um tapa-buraco entre os programas, ou se representam sua força unifi-
redemoinho, uma articulação, uma dobradiça ou u m eixo, mas t a m b é m u m a cadora básica. E q u a n d o uma tal força passa a f u n c i o n a r com certeza de si,
mulher quando cortejada por u m h o m e m [umwerben], um indivíduo q u a n d o então todas as leis de restrição à propaganda ficam anuladas, então a propagan-
alistado em um Exército [anwerben], ou mesmo um bem valioso, cuja aquisição da assume o papel de estabelecedora de um trend para a ação comunicativa e
profissional e venda não por acaso levam o n o m e de "indústria" [Gewerbe]. para a expressão estética. Não é por acaso que, na era da desregulamentação,
Werben — rodar em torno de algo, ou cuidar de algo, procurar saber, lidar com r e n o m a d o s diretores de cinema comecem a filmar comerciais: Polanski para
algo ou com alguém, comerciar, negociar — t i n h a na Alta Idade Média u m a cerveja, Z e f f i r e l l i para casacos, Fellini para bebidas alcoólicas, G o d a r d
<;ama de significados similarmente vasta ao que se chama hoje "ação comunica- p a r a j e a n s — um fato que não pode de forma alguma ser meramente reduzido
tiva". A restrição do sentido da palavra ao c a m p o comercial, a nada mais do que à corrupção e à decadência da imagem do artista-crítico para um formador de
à preconização astuta de mercadorias, corresponde a u m estreitamento d o sécu- imagens comercial-conformista. Por mais que possam ter estado de olho no
lo XIX, e principalmente d o XX — e não é sem ironia q u e justamente em u m dinheiro, eles perceberam também que o comercial, a concentração de efeitos
estado de extrema limitação o significado de Werbung se converta de maneira audiovisuais em um espaço mínimo de tempo, representa um desafio estético
renovada em algo universal. Exatamente c o m o para "sensação!" a p r o p a g a n d a de primeira grandeza. O atrativo é mais ou menos aquele que sentiu Nietzsche
de produtos torna-se a propaganda pura e simples; c o m o a percepção d o sen- q u a n d o escreveu que "minha ambição é dizer em dez frases o que qualquer
sacional se torna a percepção pura e simples. Mais d o que nunca a p r o p a g a n d a o u t r o diz — o que qualquer outro não diz em um livro [...]" i: . Transposto, um
persegue um único fim banal: fazer as mercadorias falarem u m "compre-me" século depois, para a visão desregulamentada de um businessman da mídia, o
irresistível. Porém, precisamente por causa disso, tal "compre-me" se configu- chefe da Gallimard-Jeunes, esse dito significa: "Se existe um gênio da escrita
ra em um ponto crucial em torno do qual toda uma nova cultura comunicativa de hoje, ele é a concisão, a concentração, a pegada. Desse p o n t o de vista, mui-
é formada. Em outras palavras, q u a n t o mais desenfreadamente a p r o p a g a n d a tos dos fazedores de propaganda podem figurar entre os maiores escritores de
persegue seu objetivo final, tanto m e n o s se absorve nele sem deixar vestígios. nosso tempo" 1 3 . E a trabalhosa avaliação de 8.500 propagandas de televisão
da Europa Ocidental apresentada por Rolf Kloepfer e Hanne Landbeck mos-
Sem dúvida, esse p o n t o só é atingido por c o m p l e t o na época da desregula-
tra bem o n d e o gênio da concisão e da pegada melhor floresce. "A França tem
mentação. Em especial, isso pode ser estudado na Europa dos anos 1980, quan-
u m a cultura de propaganda própria, que já em 1985 tinha u m nível que a Ale-
do, seguindo o modelo norte-americano, o sistema televisivo e de radiodifusão
m a n h a só alcançaria vários anos depois."
público foi colocado sob pressão pela concorrência com o setor privado, que
se financiava exclusivamente por comerciais, e q u e f o r ç o u as estações esta-
O estilo, agtig, a agudeza, a idéia certeira, o efeito, a novidade - todas elas
tais a entrar na luta p o r patrocinadores e níveis de a u d i ê n c i a " , acelerando,
categorias discursivas - caracterizam o comercial [...] E nada é mais excitante do
assim, a mudança de sentido de propaganda [ Werbung] e sensação, o que talvez
cue o eros que aparece como infinitamente conjugável; cutânea e tecnológica, uto-
picamente em uma França high-tecb e nas horas do amor na dance France, ubiquo-
11 "A m u d a n ç a para u m sistema m i s t o c o m e ç o u na Itália; c m o u t r o s paises dcu-sc mais l e n t a m e n t e . S. Bcr- urbano-eletrizante, de forma que o olho fique sobrecarregado, e repentinamente
lusconi, o m a g n a t a d a televisão privada n a Itália, 6 c o m o F. B o u y g u e s , o p r i n c i p a l p r o p r i e t á r i o d a T F I em uma proximidade atemporal, na admiração de um detalhe: a eternidade de um
francesa, u m e s t r a n h o n o r a m o . A m b o s vieram da c o n s t r u ç ã o civil e d ã o p r o v a , c o m suas aquisições de
canais de televisão, de sua grande atratividade e c o n ô m i c a . [...] C o m a T F 1, BouygUCS c o m p r o u a estação,
n ã o mais rentável para o Estado, p o r causa d e u m a esperança justificada de lucro. U m p a r a d o x o ? A p e n a s
a p a r e n t e m e n t e . O s canais estatais são regidos p o r restrições aos a n ú n c i o s m u i t o mais severas d o q u e os 12 F. N i e t z s c h e , Góetzen-Ddêmmerung. Kritische Studienausgabe (KSA) [Edições críticas]. M u n i q u e : C o l l i /
privados. O E s t a d o v e n d e u m a e m i s s o r a p o r estar n o v e r m e l h o , ao passo q u e o c o m p r a d o r c m p o u c o M o n t i n a r i . 1988, vol. 6, p. 153.
t e m p o atinge altos lucros. É a p r o p a g a n d a q u e t o r n a isso possível." ( R . K l o e p f e r e H . L a n d b e c k , Àsthetik
13 A p u d 11. K l o e p f e r e H . L a n d b e c k , Àsthetik der Werbung, p. 127.
der Werbung — Der Femsehspol in Europa ais Symptom neuer Macht. Frankfurt, 1991, p. 30.)
instante, o sublime da paisagem de um corpo, a infinitude de um azul cambiante de a compra d o p r o d u t o promete. Um comercial está então no ápice de seu meio
um fechar de pálpebras. quando preenche o requisito daquilo que em francês é chamado nerveuxr1 — quan-
d o excita o sistema nervoso como um todo, prazerosa e eletrizantemente, em
O comercial francês apresenta um número extremo de cortes. [...] Aqui, joga-se uma estrutura sensorial na qual o produto em questão se encontra firmemente
com tudo que é bom e caro: todas as técnicas combinadas de câmera, de som, de meios inserido.
eletrônicos, todos os gêneros televisivos e de outras mídias, todas as artes e todas Entretanto, deve-se ter cuidado com as conclusões eufóricas precipitadas
as formas de refinamentos lingüísticos são empregados para, através da respectiva
decorrentes dessa constatação. Q u e o comercial surja como cada vez mais opu-
melhor maneira de dizer, economizar tempo".
lento, eletrizante e pretensioso, é sem dúvida uma tendência, mas não tem ca-
ráter excludente. C o m o sempre, para determinados produtos e níveis de con-
O corte e o desperdício entram aqui em u m a relação explosiva. A n u n c i a r
sumidores usam-se as pessoas de sempre, que se tornaram queridas do público,
um produto da melhor forma possível significa m u i t o mais do q u e m e r a m e n t e
e os mesmos padrões, que simples e continuamente inculcam o nome e a imagem
preconizá-lo: ensaiar toda uma forma de percepção na qual o preconizado tem
do produto, com um mínimo de variações. Além disso, o comercial pretensio-
seu lugar assegurado. Apenas assim se exaurem todas as capacidades d o meio
so de forma alguma torna o sentido automaticamente mais "estético" 18 , ou seja,
audiovisual. Em comparação com isso, parecem c h i n f r i n s e caseiros aqueles
sempre mais sublime, rico em vivências e mais prazeroso. Essa superolerta de
comerciais (por m u i t o tempo usuais na A l e m a n h a ) nos quais o p r o d u t o é ape-
refinamento estético não pareceria, ao contrário, corresponder a uma tentativa
nas mostrado, imóvel, e alguém em posição de autoridade — dentista, piloto, desesperada para combater uma perda crescente da capacidade de ter prazer?
playboy ou dona de casa — argumenta q u e ele é praticamente imprescindível. N ã o é menos impertinente declarar o comercial pretensioso como contribuição
Q u a n d o se descortina, em contrapartida, c o m o praticado de maneira precur- à emancipação, apenas porque aprendeu a exigir do espectador e a bajulá-lo, em
sora pela indústria do cigarro, um m u n d o mágico de pores d o sol, desfiladeiros, vez de tão somente lhe inculcar o nome e a forma do produto? Não representa
cavernas, contornos ondulosos de corpos ou carros chiques, barcos, helicóp- antes u m a u m e n t o de sua tutela, quando gentilmente se submerge em estrutu-
teros, e uma atmosfera é criada em que se acredita q u e se possa cheirar, tocar e ras inteiras e formas de percepção, em vez de receber produtos separados a
provar, então o meio audiovisual começa a mover-se em seu ambiente próprio. marteladas? Finalmente, o fato de que o comercial produz uma alta eletrizaçao
E quando, por fim, "o h o m e m d o Camel encontra o d o M a r l b o r o ao pé de u m a estética, de que se tornou um dos principais centros de intercâmbio entre arte
fonte de água e ambos resolvem o problema dos dentes amarelados p o r m e i o e comércio, de forma que grandes cineastas nele se aventuram e publicitários
de um determinado creme dental" 15 , esse m u n d o mágico já se coloca c o m o u m vestem as roupas de cineastas, de maneira alguma permite que se chame o ge-
padrão perceptivo a partir d o qual se p o d e m até criar novos efeitos em t o m de nero c o m o u m t o d o de u m a "forma artística nova e especial""'. Sem duvida,
brincadeira. A propaganda torna-se autorreferencial 1 6 , autoirônica, não mais acontece de um comercial ter uma qualidade artística. Porém ele a possui por-
concebe o espectador como u m tolo, ou d e s l u m b r a d o i n g ê n u o a ser esclareci- que anuncia um produto ou apesar disso? Na medida em que taz o anúncio ou
do, mas como um apto c o m p a r t i l h a d o r de c o n h e c i m e n t o , u m c o p e n s a d o r , na m e d i d a em que faz mais do que anunciar? O comercial é ele mesmo uma
alguém com quem só se terá sucesso se o comercial adiantar algo d o prazer que forma artística ou apenas seu material e estímulo? Não fazer tais questões, mas
ignorar a imensa quantidade de desperdício que a produção de comerciais traz
consigo, é apenas outra forma de se deixar enganar pelos comerciais.
14 Idcm. o p . cic., p. 123.
15 I d e m . o p . cit., p. 215.
16 "A nova t o m a d a d o comercial de sopa e n c o n t r a uma utilização para a p r o p a g a n d a de c à m e r a s f o t o g r á h c a s ;
a malha branca e preta c o m u m a f o r m a e n i g m á t i c a , utilizada p o r u m j o r n a l i n d e p e n d e n t e , é utilizada e m
poucas semanas para u m a barra dietética." " O c a r t a z de u m comercial l o n g o converte-se, ao t é r m i n o desse
processo, cm u m a n ú n c i o para o u t r o comercial." " O d e s e n v o l v i m e n t o e x t r e m o de m e m ó r i a s artificiais n ã o
2 vivenciar c o m o a l g u é m capaz de ver, ouvir. r o
apenas p e r m i t e u m e s q u e c i m e n t o maior, mas t a m b é m possibilita q u e o q u e foi a r m a z e n a d o seja p r o d u t i - s e n t i d o de algo. o u m e s m o o desenvolve, .sso e estét.co ( t d e m . o p . « , P- - 6 ) .
vamente variado, t r a n s f o r m a d o , distanciado, seja c o m p o s t o c o m t o d a espécie de material arquivado. • ( I d c m ,
19 l d c m , o p . cic.» p- 15.
op. cit., pp. 232-3).
Tanto mais pesa o comercial como nova forma de comunicação e de percep- apenas "empréstimos mútuos" entre elas, por exemplo, q u a n d o "informações
ção. Em n e n h u m outro lugar fica tão claro o que é alta pressão de notícias d o que objetivas são utilizadas como roupagem da propaganda". "Mesmo as reporta-
nele — econômica, estética e fisiologicamente. N o r m a l m e n t e u m a c o m p a n h i a gens são enriquecidas, do p o n t o de vista do estilo ou dos planos-sequência,
recebe u m a fração de m i n u t o c o m o t e m p o de emissão, paga p o r isso dezenas com m o m e n t o s do entretenimento, para não entediar. Entretanto, é normal-
ou centenas de milhares de euros, d e p e n d e n d o do nível de audiência d o canal m e n t e [...] fácil reconhecer a q u e campo de programa o p r o d u t o se dirige" 21 .
em questão, e precisa exprimir sua cara mensagem nos poucos segundos q u e N a t u r a l m e n t e , isso está correto — superficialmente. Ainda há certos critérios
tem à sua disposição. Por isso é preciso m a q u i n a r o mais precisamente possível externos de diferenciação. Até as crianças notam usualmente que o h o m e m do
quais imagens e sons são capazes de criar i n s t a n t a n e a m e n t e u m a atmosfera de cigarro Camcl, o apresentador do Jornal Nacional e os personagens da novela das
c o n f o r t o , f r ê m i t o , ânsia ou inveja, quais signos e quais c o r t e s intensificam, oito p e r t e n c e m a tipos diferentes de programas, dos quais se tem expectativas
b a r r a m ou descarregam os afetos — em suma, a imensa pressão de c u s t o e diferentes. Das notícias exige-se que comuniquem o que de fato aconteceu ou
de t e m p o faz do comercial audiovisual u m laboratório estético-psicológico- está acontecendo. D a propaganda não. Ela "procura manipular, funciona sem
fisiológico para o teste das formas c o m u n i c a c i o n a i s mais pregnantes. Q u e m sinceridade e pressupõe que isso já está suposto". Ela "declara seus motivos.
seria capaz de expressar de improviso o que jaz em seu coração tão equilibrada Ludibria e esconde muito freqüentemente seus meios". Seu receptor "reconhe-
e precisamente q u a n t o um comercial b e m - s u c e d i d o ? Era inevitável q u e ad- cerá, então, que se trata de uma propaganda, mas não como ele é influenciado.
quirisse u m caráter modelar. "A m u d a n ç a qualitativa reside n o fato de que os Sugere-se a ele que possui a liberdade de escolha, e isso inclui que ele queira
comerciais não apenas copiam as notícias, mas a p o n t a m o c a m i n h o de c o m o a por si aquilo que na realidade de forma alguma queria" 22 .
informação p o d e ser transmitida em sua forma mais e c o n ô m i c a , p o r q u e mais A perspicácia de L u h m a n n , tanto em sua avaliação da propaganda q u a n t o
intensiva"- 0 . O s políticos anseiam por comunicar, com a brevidade, concisão, em sua separação em relação ao jornalismo, desaparece, porém, assim que passa
e veemência do comercial, aquilo que desejam realizar. Programas de notícias a lidar com o entretenimento. Chama-o de "uma segunda realidade", "dissociada
passam a ser medidos pelo p a r â m e t r o de q u a n t o são capazes de satisfazer esse da realidade normal" 2 3 e "marcada óptica ou acusticamente" 2 ' como um campo
ideal; todo um gênero de curta-metragem — noticiários, esportivos, d o c u m e n - especial. Isso quer dizer aparentemente que aqui não impera nem a pressão de
tários — surgiu t e n d o o comercial c o m o modelo. Sob condições e c o n ô m i c a s venda da propaganda nem a pressão de realidade do jornalismo, mas sim que se
de desregulamentação, o comercial converte-se em regulador da informação. abre uma esfera de textos e de seqüências de imagens ou sons que é desobrigada e
Sob uma alta pressão generalizada de notícias, é ele q u e marca o p a d r ã o da descomprometida, na qual se pode entrar e da qual se pode sair ao seu bel-prazer,
comunicação de efeito mais forte. em que é possível se perder e depois se reencontrar. O problema é apenas que
já há m u i t o t e m p o se p o d e agir exatamente assim em relação ao jornalismo e
à p r o p a g a n d a . A diferenciação entre realidade "normal" e "segunda" não tem
Teoria de sistema deficiente seletividade alguma, e m u i t o menos a seguinte definição: " O entretenimento
possibilita u m autoposicionamento de si no m u n d o representado" 2 1 , Isso po-
Mas p r o p a g a n d a e notícias ainda assim não são a m e s m a coisa! Isso não é d i t o deria ser válido, sem n e n h u m a modificação, para a arte, a ciência, o direito ou
apenas pelos planejadores de programas, não é apenas sugerido pelas revistas a política. Estes representam, porém, de acordo com Luhmann, sistemas pró-
de televisão; a teoria dos meios de comunicação de massa de L u h m a n n apela prios, estritamente separados do entretenimento. O que constitui u m sistema
para todos os registros da teoria dos sistemas para fazer essa proposição plau-
sível. Ela concebe as notícias, a p r o p a g a n d a e o e n t r e t e n i m e n t o c o m o "três 21 N . L u h m a n n , Die Re,üil.ü der Missenmedien. 1' cd. O p l a d e n , 1996, p. 117.
categorias de programa", que devem ser "tratadas separadamente", e vislumbra 22 I d e m , o p . cit., p p . 85-6.
2 3 I d e m , o p . cit., p. 9 7 .
2 4 I d e m , o p . cit., p. 98.
20 I d e m , op. cit., p. 229. 25 I d e m , o p . cit., p. 115.
não p o d e caracterizar outro; o que pertence a um não pode, ao mesmo t e m p o de massa, p o r q u e ele oculta sua pré-história, de forma alguma simétrica. Luh-
e sob o mesmo p o n t o de vista, ser aplicável a outro. mann conhece-a m u i t o bem 29 , mas não leva em conta onde ela se apresenta
De imediato, coloca-se um problema q u e segue a teoria de sistemas, assim como um estorvo. Pensar sistematicamente parece significar não poder pensar
c o m o a sombra segue a luz. Se os programas jornalísticos se assemelham aos genealogicamente em pontos decisivos. Sua concepção simplesmente não en-
comerciais ou os comerciais, aos programas jornalísticos, o q u e deriva disso? contra n e n h u m uso para o fato de que é apenas sob as condições econômicas
Deriva que aparentemente um desvio sistêmico ocorreu. D e t e r m i n a d o s ele- do capitalismo precoce, ou seja, do estabelecimento dos jornais como firmas,
mentos de um sistema se deslocaram para outro, e este o u t r o foi capaz de in- com efetivos inteiros alimentando-se do abastecimento permanente de notícias,
corporá-los a seu "campo operacional" 2 6 .Com efeito, tais desvios, s e g u n d o b e m c o m o de pressão concorrencial sob a qual isso se dava, que pode ocorrer
L u h m a n n , pertencem à formação e preservação dos sistemas assim c o m o as a emancipação da imprensa, seu "fechamento operativo", como se diz em lin-
lascas, à plaina. Mais d o q u e isso: certos sistemas não são capazes de existir guagem técnica, em u m sistema de comunicação de massa. Esse sistema tem,
sem outros. O sistema "sociedade", por exemplo, necessita dos sistemas "vida" sem dúvida, uma lógica própria, crescentemente vigorosa, mas ela é uma forma
e "consciência" 2 ". Porém, q u a n d o d e t e r m i n a d o s f e n ô m e n o s são e n c o n t r a d o s fenomenal, especificação, expressão da coerção de forças econômicas m u i t o
tanto em u m q u a n t o em outro sistema, então se torna apenas u m a questão de mais abrangentes. "Sobre a carne que falta a vocês na cozinha / não se decide
p o n t o de vista saber a qual podem e devem ser atribuídos. C o m o , por exemplo, na cozinha", diz B r e c h t " . Da mesma maneira, não é nos meios de massa que
n o caso da propaganda e da economia. se decide sobre seu funcionamento autônomo. Eles mantêm-se funcionando
e n q u a n t oforem mantidos funcionando — através da pressão econômica, que
A propaganda é sem dúvida um mercado próprio do sistema econômico, com preserva a sociedade unida e que, por sua vez, é preservada em alta atividade
organizações próprias, orientadas para mercados especiais. Mas não é apenas isso. pelo sistema nervoso dos indivíduos que lhe são subordinados. A lógica própria
Pois a propaganda precisa submeter seus produtos à dinâmica própria do sistema dos meios de comunicação de massa é assim também uma lógica extrínseca.
social dos meios de comunicação de massa [...] Consequentemente, no campo da Sob um p o n t o de vista, ela é algo em si próprio, sob outro, apenas emprestada;
propaganda a economia é remetida ao sistema das mídias, assim como este a ela; e em um, real, em o u t r o , tão somente aparência, porém não como um mero
não é possível estabelecer-se, como é típico para o caso de acoplamentos estruturais, engodo, mas como fenômeno de algo que ela mesma não é, mas que nela vem
nenhuma assimetria lógica dos campos, nenhuma hierarquia. É possível somente, à tona. Esse ser-um e ser-diferente simultâneo do mesmo e do estranho, do ser
como em um termostato, determinar um círculo cibernético, no qual fica dependendo e da aparência, d o fenômeno e daquilo que nele vem à luz, nele manifesta-se
do observador se ele quer que o aquecimento regule, com o auxílio do termostato, e esconde-se, satisfaz as condições da dialética31. Ela é, para a forma sistêmica
a temperatura do ambiente, ou se a temperatura do ambiente regule, com o auxílio
do termostato, o funcionamento do aquecimento 28 .
29 I d e m , o p . cit., p. 98.
3 0 B. B r c c h t , Die Aíulter, cena 1.
Também depende do observador saber se o cachorro dá voltas com o rabo, 31 Q u a s e n ã o sc o u s a mais mencionar esse conceito c o m p r o m e t e d o r , mas não se consegue livrar-se dele — as-
sim c o m o d o c o n c e i t o de " f e n ô m e n o " [Erscheimmg], que, no m o m e n t o em q u e a filosofia lhe dava adeus,
ou se o rabo dá voltas com o cachorro; entretanto, é possível decidir qual pon-
t r o c a n d o - o p o r "construção", volta c o m t o d a a força no Corporate Desig,n. Q u a l q u e r firma e instituição
to de vista é o mais acertado. E x a t a m e n t e c o m o o termostato, por sinal, q u e exige h o j e u m a i m a g e m de aparência [Erscheinungsbild\. Assim, a dialética está inegavelmente de novo na
o r d e m d o dia. Q u e m tala de fenômeno pode dizer o q u e quiser, mas n ã o conseguira evitar pressupor algo
sem dúvida é parte integrante do a q u e c i m e n t o , mas não da t e m p e r a t u r a d o d o q u a l o fenômeno é f e n ô m e n o . N ã o se quer dizer d e f o r m a alguma c o m isso q u e esse "algo corresponda
ambiente. O círculo cibernético, de q u e o t e r m o s t a t o representa o exemplo a u m a "essência" ou "cm-si" mais elevada, p r o f u n d a o u eterna, q u e o m u n d o fenomèmco cobre c o m o u m
véu fugaz. Deve-se a d m i t i r , a dialética foi P o r m u i t o t e m p o pensada dessa m a n e i r a . M a s .sso representa
questionável, n o t a d a m e n t e já não se ajusta à relação entre e c o n o m i a e meios sua h i p o t e c a h i s t ó r i c a , n ã o seu nervo. É j u s t a m e n t e n a s novas semiótica e h l o s o h a d a l i n g u a g e m . q u e
c o n s i d e r a m a dialética u m velho peso m o r t o metafísico, q u e isso poderia ser m o s t r a d o . Palavras e signos
ser somente p o r q u e n i n g u é m o percebe. Caspar Hauser não c o m e ç o u a existir registrar precisamente o c o m p o r t a m e n t o de compra de alguém, organizar um
apenas q u a n d o foi n o t a d o por outros h o m e n s . perfil de seus hábitos e inclinações pessoais, mantendo-o consumindo por meio
N o entanto, ser e não ser t a m b é m têm u m sentido social figurado. Sempre de ofertas idiossincraticamente selecionadas. O perfil individual obtido pelo
houve grupos h u m a n o s nos quais havia fortes e fracos, poderosos e indefesos, cálculo dc dados de consumo — que, por sinal, tanto mais fiel à realidade fica
a m a d o s e odiados, conspícuos e discretos. É óbvio q u e os g r u p o s e r a m , n o q u a n t o menos a individualidade se diferencia de padrões de consumo — repre-
princípio, p e q u e n o s o suficiente para que m e s m o os fracos e discretos fossem senta sem dúvida um caso-limite. Deve-se temê-lo ou ansiar por ele? Por um
n o t a d o s — n e m sempre sendo isso vantajoso, p o r q u e ser n o t a d o significava lado, corresponde a uma invasão na vida privada, com meios que na polícia são
ser controlado. Mas, a partir do m o m e n t o em que as c o m u n i d a d e s tradicionais c h a m a d o s de rastreamento. Por outro, é sinal de atenção. Ter um perfil consu-
baseadas na família, na tribo, n o vilarejo ou na c i d a d e c o m e ç a r a m a dissol- midor digno de n o t a significa ser alguém. Q u e m nem mesmo consegue fazer-se
ver-se, de c o n j u n t o s de convívio de longa duração passando a c o n c e n t r a ç õ e s percebido para ter um tal perfil simplesmente não conta: não é ninguém.
esporádicas e fugazes, notar o p r ó x i m o sofreu u m processo de diferenciação, N ó s estamos acostumados a entender o "alguém" e o "ninguém" nesse con-
p o r assim dizer, s e g u i n d o uma divisão de t r a b a l h o . T r a n s f o r m o u - s e em u m texto m e t a f o r i c a m e n t e . Ser alguém eqüivale a ser levado em consideração,
ato administrativo. Todos que não q u e r i a m ficar sem direitos deveriam estar respeitado, tratado com reverência. É assim que desde sempre se lidou com os
registrados — com nome, e n d e r e ç o e t o d a u m a série de características pes- detentores de poder, de altos cargos e dignitários. Seu contrário eram os subor-
soais. O Estado nacional m o d e r n o desenvolveu-se e m u m mestre d o perceber. dinados, os serviçais e lacaios. Não os notar significava, naturalmente, não lhes
O s poucos despercebidos, isto é, os que p e r t e n c e m ao s u b m u n d o ou q u e são dar atenção, mas não significava não percebê-los no sentido fisiológico da pala-
imigrantes ilegais, vivem em constante m e d o de serem percebidos; os m u i t o s vra — não vê-los, ouvi-los ou cheirá-los. Q u e m está presente com seu corpo
percebidos, inversamente, na insegurança sobre se não teria sido percebido mais não p o d e deixar de ser percebido, por mais discreto ou tímido que seja. Não
de suas vidas do que cabe ao Estado. Sua capacidade de registrar cresce com p o d e existir sem ruídos corporais, sem determinada postura, gestos e expressões
cada avanço nas telecomunicações e n o p r o c e s s a m e n t o de dados. O sigilo de faciais, sem transpirar. À sua forma de existência pertence uma radiação inalie-
informações fica sempre um passo atrás e só p o d e proibir a divulgação de dados nável. U s a n d o o vocabulário heideggeriano, está, por assim dizer, inserida no
não autorizados, nunca impedir sua existência. Estes, é óbvio, não p o d e m ser "aí" de seu ser 43 . Esse "aí", n o entanto, passa por mudança de sentido decisiva
defendidos contra abusos tais c o m o os h o m e n s . D e t e r m i n a ç õ e s para a p r o t e - a p a r t i r d o m o m e n t o em que a presença do corpo desaparece p o r detrás da
ção de dados são eficazes apenas na medida em que seu d e t e n t o r se c o m p o r t e presença midiática — basicamente, desde a marcha triunfal do cinema. Não é
lealmente — o que é particularmente a m e d r o n t a d o r , em vista d o novo c a m p o por acaso q u e atrizes de cinema envelhecidas não se mostravam mais em pú-
de informação aberto pela engenharia genética. Em breve, a tara genética, as blico, para não estragar a imagem de sua juventude 4 4 . Greta Garbo e Marlene
anormalidades e as suscetibilidades para certas doenças serão determináveis já Dietrich t i n h a m seu "aí" na imagem cinematográfica. Consequentemente, não
antes do nascimento. Estimativas a respeito do nível de performance esperado queriam estar "aí" de uma maneira que não correspondesse a essa imagem. Em
d o novo habitante da Terra serão possíveis antes m e s m o q u e este c h o r e pela m e a d o s d o século XX, isso era u m a excentricidade exclusiva dos artistas de
primeira vez. Cientistas e especialistas na área de seguros já estão d i s c u t i n d o cinema e televisão. Todavia, desde então algo disso penetrou a forma média e
agora a respeito de que dados genéticos devem ser abertos aos planos de saúde habitual de percepção nos países industrializados: por todos os lados, a pre-
e quais devem ser considerados tabu ' 2 . sença corporal p r o d u z u m efeito pálido e apagado em comparação com a nu-
4 3 Cf. M . Heidegger, Sein unciZeil. I V ed.. 2' rcimpr. T ü b i n g e n , 1984, PP- 132 e segs.
4 2 C f . O S c h õ f f s k i , " G u t e u n d schlcchce Risiken. G c n a n a l y s e n — Fluch o d e r Scgcn Rir dc V c r s i c h c r i m -
44 Cf. G. A n d e r s , Die Antiquierheil <les Memchen. M u n i q u e , 1956. p. 57, vol. I.
gswirtschaft", Frankfurter Rundschau, 7 mar., 2000, p. 10.
diácica. Isso n ã o é válido apenas para o telespectador, q u e está "aí" em u m Anders com relação a um fenômeno de tempo livre norte-americano dos anos
sentido m u i t o mais fraco d o q u e aquilo que cintila em seu aparelho. Vale tam- 1950, em " O homem tomando banho de sol, que bronzeia suas costas, enquanto
bém para t u d o que é filmado. Sua existência s o m e n t e está "aí" para ser um "aí" seus olhos passeiam por uma revista ilustrada, seus ouvidos participam de uma
das mídias de massa: como suporte e material da presença midiática. Sua radia- partida esportiva, suas mandíbulas mascam uma goma".
ção física dissolve-se em uma radiação das mídias a p o n t o de tornar-se irreco-
\ nhecível 45 . E c o m o cada instituição sofre a pressão para converter-se em uma Se fosse perguntado a esse homem tomando banho de sol, no que consistiria sua
verdadeira empresa, se quiser sobreviver e c o n o m i c a m e n t e , e c o m o cada firma atividade "real", [...] é claro que ele não poderia responder, pois a pergunta por algo
sofre a pressão para tornar-se uma emissora, se quiser ser percebida, isso passa de "real" já se baseia em uma falsa pressuposição, a saber, que ele seria o sujeito das
a acontecer, em uma escala menor, com cada indivíduo. T a m b é m ele n ã o p o d e atividades e do deter-se em algo. Se aqui ainda se pode falar de "sujeito" ou "sujeitos",
os termos têm que se referir aos seus órgãos: os olhos que estão com as fotografias
esquivar-se de administrar seus interesses c o m o u m a firma e de tirar p a r t i d o
da revista, os ouvidos que estão com a partida esportiva, as mandíbulas que estão
de si p r ó p r i o c o m o u m a emissora privada 4 6 . Entra, assim, em u m estado de
com a goma.
pressão para emitir (Sendedruck), cujas conseqüências para sua individualida-
de ainda não são previsíveis. U m ser h u m a n o tem u m a radiação m í n i m a , mes-
E o que o leva "a essa atividade desorganizada"? "É o horror vacui" "Seu
mo q u a n d o não está ativamente "emitindo"; não é u m emissor. A o emitir, está
trabalho acostumou-o tão definitivamente a ser ocupado, ou seja, a ser depen-
"aí"; não o fazendo, está "fora" — e a estação emissora p e r m a n e c e c o m o seu
dente, que, q u a n d o o trabalho acaba, não consegue estar à altura da tarefa de
mero resíduo físico: tão ocioso e sem sentido c o m o a força de trabalho que não
ocupar a si próprio." E assim,
é empregada.
A ociosidade representava a n t i g a m e n t e um sinal de p l e n i t u d e . Se n ã o se
decompõe-se em funções separadas, já que ele mesmo não atua como elemento or-
cultivasse uma, de um total de três áreas, d e i x a n d o - a recuperar-se p a r a u m a ganizador. Mas naturalmente essas suas tunções estão tão acostumadas quanto ele ao
nova fertilidade, significava que o agricultor p o d i a dar-se ao luxo de fazê-lo. mero JíT-oçupadas. Por isso agarram-se agora — cada uma delas —, no momento de
Se debaixo da cama houvesse uma meia toda cheia de o u r o e jóias, intocada, seu "desemprego", ao primeiro conteúdo apropriado, e qualquer conteúdo primeiro
queria dizer que se tinha e c o n o m i a s . H o j e , u m p e d a ç o de terra sem cultivo é justamente apropriado, por ser simplesmente um conteúdo, por simplesmente se
ou uma meia de dinheiro, que não gera juros, são associados a dissipação ou mostrar como suporte ao qual a função pode agarrar-se' .
vazio. O caso exemplar e mais extremo desse vazio m o d e r n o é d a d o pela força
de trabalho desocupada. É sabido que antes d o capitalismo o desemprego era "Exagero no sentido da verdade" é como Anders chama seu procedimento;
uma ocorrência esporádica. Ele só se tornou decisivo e uma ameaça à existência a c e n t u a r especialmente aqueles traços em u m f e n ô m e n o que ameaçam ser
q u a n d o a maioria da população foi obrigada, para melhor ou pior, a levar sua d o n o s do f u t u r o . " O h o m e m t o m a n d o banho de sol" representa tal caso: ex-
força de trabalho ao mercado e a oferecê-la aos proprietários dos instrumentos tremo, talvez, mas q u e se encontra em vias de tornar-se normal e n q u a n t o
e das condições de trabalho. E q u a n d o uma ameaça e c o n ô m i c a vital perdura durarem as relações presentes de ocupação. O extremo é, além disso, unilate-
por gerações, ou mesmo se agrava, não é de t o d o improvável q u e c o m e c e a r a l m e n t e i n t e r p r e t a d o . Em vez de enfatizar o esfacelamento da pessoa em
transformar-se em algo de natural. Isso foi drasticamente analisado por Giinther funções separadas, poder-se-ia também admirar o malabarismo que permite
m a n t e r tais funções díspares f u n c i o n a n d o simultaneamente. Só que esse ma-
labarismo já representa uma resistência do organismo a seu estado de deriva
4 5 Essa dissolução se traduz, c m casos extremos, em violência física i m e d i a t a . M i c h a e l J a c k s o n , p o r exemplo, diluidora, ou seja, não se trata justamente de uma submersáo em um relaxa-
deixou-se r e c o n s t r u i r c o r p o r a l m e n t e a serviço d a r a d i a ç ã o m i d i á t i c a . Fica difícil d e c i d i r se seu r o s t o a i n d a
m e n t o distraído, mas de um amortecimento fisiológico de fenômenos de dis-
é seu o u se é apenas um mero a r t e f a t o cirúrgico.
4 6 U m gosto disso já e d a d o pelos atletas profissionais, q u e , ao r e c e b e r e m o m i c r o f o n e i m e d i a t a m e n t e após
u m a vitória o u d e r r o t a , já d i z e m , e m b o r a ainda sem fôlego, c o m o agentes, c o m frases feiras, c o m o n o fu-
t u r o p r e t e n d e m "trabalhar mais" o u "chegar mais à frente". 4 7 G . A n d e r s , Die Antiquierhâit..., p. 138.
sociação mentais, u m estágio precoce daquela capacidade sintética manifes- tornar-se percebido: ser. Não emitir é equivalente a não ser — não apenas
tada pelos esquizofrênicos q u a n d o u n e m os estados nervosos díspares, entre sentir o horror vacui da ociosidade, mas ser t o m a d o da sensação de simples-
os quais oscilam em um ú n i c o sistema nervoso. E m suma, o m a l a b a r i s m o é m e n t e não existir. Não mais apenas: "há um vácuo em mim", porém "sou um
exaustivo; não compensa a dissociação, mas é o p a d e c i m e n t o crônico dela. A vácuo" — de forma alguma "aí"48.
unilateralidade exposta em " O h o m e m t o m a n d o b a n h o de sol" de f o r m a al- Q u a n d o a linguagem dos jovens se refere a alguém d o r m i n d o até tarde e
guma rouba sua força exemplar. Exibir a situação da e c o n o m i a na fisiologia, ainda s o n h a n d o como "ainda não conectado", ela expressa bem mais do que se
no c o m p o r t a m e n t o d o t e m p o livre, o q u e o t r a b a l h o faz em alguém plena- imagina, a saber, a lei básica de uma nova ontologia: quem não transmite não
mente ocupado, significa desemprego: trata-se de u m a estratégia h e r m e n ê u - está "aí". N ã o irradia nada. Em um sentido imediato isso é tão falso quanto o
tica de p r o f u n d i d a d e , dificilmente realizável p o r q u e m se a t é m a sistemas esse est percipi. Todos irradiam, mesmo se o cheiro de seu corpo for leve, sua
e subsistemas operativamente autocontidos. A n d e r s exagera, p o r é m antecipa respiração, fraca, sua postura, gestos e caras, tão discretos que praticamente
o que desde então foi muitas vezes c o n f i r m a d o c o m respeito aos desempre- não se possam percebê-los. N o entanto, quando a tecnologia vai tão f u n d o no
gados. São justamente eles q u e são especialmente assolados p o r u m a inquie- indivíduo que cada um não pode senão metamorfosear-se em um transmissor
tação motora, e que sentem uma compulsão tão dolorosa a ocupar-se, p o r q u e de si p r ó p r i o , então sua radiação pessoal é obscurecida por uma etérea, que
não p o d e m dar-lhe vazão sob a forma de uma atividade socialmente reconhe- abala o próprio fenômeno do estar-aí. Ao "aí" do ser, pode-se dizer, pertenceria
cida. Sem dúvida, há regiões n o m u n d o — c o m o o T i b e t e , a A m a z ô n i a ou o inalienavelmente, desde Platão a Heidegger, seu aqui e agora: seu ser-presente
Saara — o n d e a fisiologia de " O h o m e m t o m a n d o b a n h o de sol" ainda não se físico em um d e t e r m i n a d o meio. Mas o que constitui o "aí" de um emissor?
impôs — a não ser sob a f o r m a de turistas. Mas nos últimos 50 anos, com o Sem dúvida, para emitir, ele deve estar situado em algum lugar, totalmente
auxílio de aparelhos de som portáteis, telefones celulares e laptops, ela tem indiferente, c o n t a n t o que funcione. Está "aí" na medida em q u e "esteja na
avançado por t o d o o globo, desenvolvendo novos p a d r õ e s c o m p o r t a m e n t a i s linha": n o éter, nas freqüências que permitem sua recepção. Em oposição a
híbridos como, por exemplo, s i m u l t a n e a m e n t e assistir à televisão, m a n d a r isso, o aqui e agora da estação transmissora corresponde àquilo que sobra,
e-mails, telefonar, acariciar o c a c h o r r i n h o ou o ser a m a d o , u m a virtuosidade q u a n d o n ã o mais está "aí": seu resíduo físico. U m resíduo, por sinal, em um
própria, para não dizer novas qualidades administrativas, e com isso t a m b é m duplo sentido 4 9 , pois sua presença-aqui-e-agora encontra-se em irremediável
novas cargas nervosas — em relação a isso já n ã o resta a m e n o r d ú v i d a . E atraso em relação à sua presença etérea. E se esta desaparece, adquire a aparência
também pertence a esse f e n ô m e n o o fato de a c o m p u l s ã o difusa e generaliza- de resíduo no sentido de "resíduo alimentar": uma sobra, detrito, cadáver ou
da para fazer algo, aquele coletivo malabarismo defensivo c o n t r a a desocupa- lixo. E m suma, a essência ontológica de um emissor consiste na separação de
ção, que mesmo n o t e m p o livre não desaparece e q u e é p r e e n c h i d a até sua seu "aí" em relação a seu aqui e agora, e na transfiguração em u m "aí" etéreo,
capacidade máxima com o q u e lhe é "ofertado", sofrer u m a notável estandar- receptível em todos os lugares de um determinado campo de transmissão, mas
dização, precisamente com a velocidade com a qual o d e s e n v o l v i m e n t o téc- em lugar algum palpável. Um "aí" sem aqui e agora, e u m aqui e agora sem um
nico converge para um aparelho universal: o c o m p u t a d o r . Ele já n ã o t e n d e "aí" são quimeras. Mas são quimeras que existem50. Elas são p r o d u t o de uma
a ser apenas um i n s t r u m e n t o geral de t r a b a l h o , mas t a m b é m a representar "absurdização" generalizada. N o fundo, essa "absurdização" já estava em curso
o e n t r o n c a m e n t o técnico, o p o n t o de e n c o n t r o social e o nevrálgico indivi-
dual, em que processamento e transmissão de dados, televisão e telecomuni- 4 8 N o a n o 2000, a circulação de telefones celulares na A l e m a n h a entre jovens de 12 a 15 anos a u m e n t o u 100%.
cação, trabalho e atividade de t e m p o livre, concentração e distração, ser "ba- E m o u t r o s países, mais ainda. Por q u e j u s t a m e n t e nesse g r u p o etário, q u e ainda não tem n e n h u m a o b n g a -
r o r i e d a d e e c o n ô m i c a de estar disponível p e r m a n e n t e m e n t e , mas q u e se e n c o n t r a na fase mais prccana de
cana" e "por fora", observado e ignorado, se m i s t u r a m até a indiferenciação. f o r m a ç ã o d o ego? D e o n d e viria a c o m p u l s ã o a ligar c o n s t a n t e m e n t e para amigos c o m a final,dade de co-
Baixar dados, enviá-los e recebê-los passa a significar a atividade por excelên- m u n i c a r - l h e s nulidades, senão por causa d o s e n t i m e n t o de submergir em u m vácuo mdefin.vel, caso nao
se faça c o n s t a n t e m e n t e notável?
cia. A compulsão à ocupação é especificada em uma compulsão à emissão. Ela
4 9 Rücksttind, t a n t o "resíduo" q u a n t o "atraso". ( N . d o T.)
transforma-se, entretanto, em uma forma vital de expressão. Emitir quer dizer 50 Q u a n d o o "aí" se separa d o aqui e agora, separa-se t a m b é m a presente reflexão da de Heidegger. Desneces-
sário desenvolver o a r g u m e n t o dc q u e n ã o interpreta c o r r e t a m e n t e seu a , . Ela desloca-o.
com o advento d o telégrafo, do telefone e da televisão. Porém é s o m e n t e com pressão "vergonha prorneteica" 52 para designar o f e n ô m e n o de que os homens
a alta pressão de notícias dos meios de c o m u n i c a ç ã o de massa — q u e gera crescentemente sentem sua própria constituição como insuficiente diante da-
uma c o m p u l s ã o em todos os indivíduos a emitir — q u e ela a d q u i r e o caráter quilo que as máquinas, criadas por eles, são capazes de realizar: mover-se com
de u m a c o n d i ç ã o existencial. velocidade sobre-humana, voar, produzir por horas a fio sem fadiga ou falta
Para designá-la, foi introduzida a equivocada expressão "realidade virtual". de atenção etc. O h o m e m como criador de coisas — daí a figura mitológica de
Virtual quer dizer "no registro d o possível". A irradiação midiática, n o entanto, P r o m e t e u — é de tal forma relegado à sombra por suas criações, que se enver-
existe de fato. As freqüências, canais ou redes nos quais é recebida, as cores gonha e começa a assemelhar-se a seus próprios produtos: viver de acordo com
e os sons que a c o m p õ e m não representam d a d o s e s p a ç o t e m p o r a i s m e n o r e s o relógio, trabalhar no ritmo de máquinas, ligar e desligar suas funções vitais.
que narizes ou chapéus — p o d e m ser m e n o s palpáveis, mas de f o r m a alguma, Pertence t a m b é m a esse processo a compulsão à ocupação que o homem como
meramente virtuais. A presença etérea é u m a presença real c o m u m efeito tão criador de coisas descreve em " O homem tomando banho de sol". É com pudor
poderoso, que é m u i t o fácil esquecer-se, p o r o u t r o lado, dc q u ã o fantasmática que encobre as vergonhas da ociosidade — do desemprego. Porém a vergonha
ela é — sob d e t e r m i n a d o p o n t o de vista, n a d a mais d o q u e u m espectro. É prorneteica já há muito iniciou sua própria história. Desde que não são mais as
apenas necessário que acabe a eletricidade, q u e a bateria se esvazie ou q u e h a j a máquinas colossais, ruidosas e arfantes que dominam o processo de trabalho,
u m defeito na antena para q u e desapareça 5 1 . Mas ai de nós, se tais situações mas as superfícies brilhantes dos monitores, a incerteza subliminar a respeito
acontecem. Então o aqui e agora não brilha em u m novo frescor de vida, mas da capacidade corpórea transforma-se gradualmente em uma dúvida sobre a
p e r m a n e c e ocioso c o m o resíduo de emissão. D a m e s m a f o r m a que, q u a n d o existência d o corpo. Naturalmente, não no sentido grosseiro de se acreditar não
a televisão quebra, a família não volta s i m p l e s m e n t e a jogar d o m i n ó , assim ter cabeça, braços, pernas e tronco, mas no de sentir que no próprio corpo se
também quem tem o c o m p u t a d o r danificado não retorna alegremente para a insere u m difuso sentimento de carência. Algo falta. Algo que não é em si mesmo
boa e velha máquina de escrever. Em vez disso, ocorrem casos de sintomas de corpóreo, mas que dota o corpo de um "aí": sua irradiação. Na verdade, esta é
abstinência vitais, como se os envolvidos fossem pacientes dos quais se retirasse mil vezes potencializada por meio da irradiação midiática. C o m o e-mail, meu
o soro. É apenas agora, no m o m e n t o de sua ausência, q u e se mostra o q u a n t o é aqui e agora chega até os recantos mais longínquos do mundo; com a televisão,
real aquilo que pretensamente seria somente u m a realidade virtual, e o q u a n t o o rosto dos famosos brilha em cada sala de estar. Mas o que potencializa a irra-
se fez pálido e insosso o aqui e agora. Ela adquire a aparência de u m a força vital diação pessoal também a ofusca. E isso parece acontecer tão poderosamente sob
coletiva, cuja ausência não mais p o d e ser s u p o r t a d a . E até o n d e vai essa força as condições da microeletrônica, que a irradiação etérea se converte não apenas
fica evidente pelo que começa até m e s m o a redefinir o q u e seriam a vida e a em fantasma da pessoa, mas também em seu vampiro. Suga-a e coloca-se em
morte. Q u e m não emite não é, ou seja, ele p o d e estar tão vivo q u a n t o possível, seu lugar. A potencialização mensurável da irradiação pessoal traz consigo uma
ter os melhores parâmetros sangüíneos e o melhor caráter; midiaticamente está imensa despotencialização 53 . C o m o no medo à castração, instala-se o sentimento
morto. E a ilusão midiática, que o faz parecer m o r t o , é irradiada, p o r sua vez, de que algo se apodera da vergonha, da identidade pessoal. Acontece, porém,
como se representasse a vida plena, e m b o r a seja feita dc pixels m o r t o s . que a instância apoderadora representa algo de muito difuso e não uma figura
paterna identificável. É igualmente difícil de compreender o que exatamente
É verdade que essa troca de valores ainda não é u m fato c o n s u m a d o , mas
ameaça; não a amputação da genitália, mas ainda assim algo que toca a pessoa
a revolução microeletrônica a impulsiona. Anders c u n h o u , há 50 anos, a ex-
em s e u p o i n t d'honneur - como se algo semelhante a sua epiderme lhe fosse re-
tirado, seu contorno, aquilo que responderia por sua perceptibilidade específica:
51 Basta apenas isso para que fracasse a Declaração de independência do cyberspace, c o m a qual J o h n Perry seu "aí". A castração é sem dúvida uma sangrenta forma elementar de remoção
Barlow, um dos pioneiros da Internet, criou u m rebuliço em 1996. " G o v e r n o s d o m u n d o industrializado,
gigantes de carne e aço, v e n h o d o cyberspace, a nova m o r a d a d o espírito. [,..] D e c l a r o o espaço social global
que erigimos c o m o t o t a l m e n t e i n d e p e n d e n t e da tirania q u e vós vos esforçais para infligir sobre nós. (...) 52 G . Anders, Die Antiquierheit..., p. 21.
O cyberspace não faz parte de vosso território". (Telepolis. D i e Zeitschrift d e r N e t z k u l t u r , o - N u m m e r , 1996, 5 3 Isso foi i g n o r a d o com m u i t a obstinação p o r McLuhan, defensor eufórico das mídias. Cf. capítulo > deste
p. 85.) P o u c o s a n o s d e p o i s , só era possível mover-se na "nova m o r a d a d o espírito", g u i a d o p o r sites de
volume.
busca, p o r u m a selva comercial.
do "aí" M a s nem a t o d o ser sem "ai" corresponde um ser-castrado, nem t o d o causar uma sensação por um período maior de tempo sem chocar premeditada
m e d o existencial é u m m e d o de castração 54 . Além disso, o m e d o existencial tem e planejadamente. Este foi o caso — o mais discutido até então — do fotógrafo
um índice histórico. N ã o permanece idêntico em todas as eras, mas é, e m vez Toscani. Ele tirou a foto das roupas de um soldado bósnio m o r t o por sérvios:
disso, atrelado às condições sociais, aos padrões culturais e técnicos. N a Idade uma clara marca do tiro na região do coração, o sangue esparramado em torno
da Pedra não seria nem r e m o t a m e n t e possível para alguém ter m e d o de estar da cavidade com forte efeito de cor. A distância da imagem em relação ao que
m i d i a t i c a m e n t e m o r t o . Sob condições microeletrônicas, esse m e d o c o m e ç a representava era discreta. Não a tentativa de arrastar o terror para o centro
a atingir o nervo vital. A i n d a faltam em g r a n d e m e d i d a as palavras para isso. da fotografia, mas a de fazê-lo aparecer de forma mediada, em seus rastros.
Fala-se m u i t o da talta de dinheiro, mas da falta de "aí", quase nada. N o entanto, Em suma, a imagem não atende à ânsia sensacionalista, mas se esquiva dela, e
ela é demonstrada em grande escala: da maneira c o m o uma sociedade inteira se justamente por isso comove.
sente compelida a aparecer em emissões, a exigir atenção, a criar uma sensação. Este deveria ser o teor da foto, não fosse o que estava escrito n o canto da
O esse estpercipi cai-lhe c o m o um pesadelo. imagem, que provocou o escândalo: a marca da empresa Benetton. Esta não teve
escrúpulos para pôr em cena, em um cartaz comercial, o gibão cravado de balas
do soldado, e aliciar fregueses com uma tocante foto de guerra. O acontecimen-
Surrealismo d e s r e g u l a m e n t a d o to desencadeou, mesmo entre os defensores da propaganda, uma onda de indigna-
ção. As vendas da empresa caíram temporariamente, e não era difícil identificar
Essa pressão traz consigo um enorme nivelamento. U m a das regras mais básicas a hipocrisia em sua explicação de que teria apenas desejado unir o útil ao agradá-
da e c o n o m i a de mercado é que as firmas t ê m de ser percebidas, se quiserem vel, realizando, ao mesmo tempo, um anúncio de roupas de qualidade e uma
vender, e só podem ser percebidas, se fizerem comerciais, e os comerciais somente mensagem para despertar as pessoas para o terror da guerra. N o entanto, perma-
fazem sentido se forem uma sensação. Q u e n o anúncio, caso seja bem-sucedido necia a pergunta: C o m o era possível que uma foto tocante perdesse sua qualida-
de estética e moral, tão somente porque continha uma inscrição na margem que,
n o trabalho de precisão de construir i n s t a n t a n e a m e n t e atmosferas e p a d r õ e s
além disso, não tinha nada a ver com seu conteúdo? Aparentemente, porque essa
perceptivos inteiros, p o d e concentrar-se, de f o r m a exemplar, a c o m p e t ê n c i a
insígnia possuía uma "competência comunicativa" muito peculiar. Era o logoti-
comunicativa de uma sociedade, isso foi mostrado, assim c o m o sua tendência a
p o da empresa, hoje chamado por todos de "logo": abreviação para a forma com
abrir campos de associação midiáticos próprios e mover-se neles cada vez mais
que se deseja que a marca apareça na esfera pública. E uma firma que estampa as
lúdica, irônica, autorreferencial e sublimemente. Obviamente, isso corresponde
peças de roupa com seu logo, enobrecendo-as como "roupas de marca", e que
a apenas uma tendência. Ela corre, em primeiro lugar, o risco de tornar-se su-
consiga p o r t e m p o suficiente associar essas peças a imagens marcantes de um
blime demais, de dissipar-se em sua própria riqueza associativa, de se atrofiar a
estilo de vida refinado, pode, por fim, confiar que essas imagens surgem por si só
uma diversão para conhecedores e p ô r a perder o u t r a vez a atenção das massas
nos consumidores, assim que apareça o logo — como o cachorro de Pavlov, que
conquistadas. Por isso, já contém em germe a tendência oposta. N ã o é possível
por certo tempo ainda saliva quando a lâmpada brilha, sem que ele veja a ração.
5 4 É m u i t o fácil para Lacan r e c o n h e c e r e negar isso a u m só t e m p o , graças a u m c o n c e i t o de falo s e m a n t i c a - À história do logo pertence sua força condicionadora. Na medida em que
m e n t e — e p r o v a v e l m e n t e não apenas s c m a n t i c a m e n t e — , m u l t í p l a m e n c e s o b r e c a r r e g a d o . Ele refere-se
cresce, aumenta também o respeito p o r ele: a disposição de reconhecê-lo como
t a n t o ao m e m b r o m a s c u l i n o q u a n t o ao i d e n t i t á r i o d a pessoa c o m o u m r o d o ( v a l e n d o , aliás, p a r a a m b o s os
sexos); p o d e significar t a n t o o s u j e i t o d e s e j a n t e q u a n t o o o b j e t o desejado, i n c l u i n d o , p o r fim, sua realiza- uma das forças motrizes do processo social. Na avaliação estética da foto de Tos-
ção c o n s t a n t e m e n t e negada (cf. J. Lacan, " O significado d o falo", in Escritos. E s t e n d e - s e p a r a m u i t o além
d a psicanálise, c h e g a n d o ate a metafísica, e revela-se uma f o n t e q u a s e inesgotável de u m j o g o i n t e l e c t u a l cani, discutia-se apenas se sem o logo da Benetton ela seria uma obra de arte. Mas
i n t i m i d a d o r e eharadístico. U m a das regras desse j o g o é n u n c a deixar r e c o n h e c e r c l a r a m e n t e de q u a l desses isso é insuficiente, deixando de lado o cerne temporal da arte. Imagine-se que um
significados se trata em d e t e r m i n a d o m o m e n t o . Lacan teria sem d ú v i d a r e a l i z a d o o f e i t o d e i n c o r p o r a r a
p e r d a d o "aí" c o m o f e n ô m e n o de castração à sua teoria d o falo, r e j e i t a n d o ao m e s m o t e m p o , i n d i g n a d o , artista, 20 anos atrás, colocasse o logo de uma empresa famosa em uma loto
q u a l q u e r suspeita de u m e s t r e i t a m e n t o sexualízante. O b v i a m e n t e , q u a n t o inaís o falo, i n f l a d o e m m e t á f o -
igualmente impactante. M u i t o provavelmente a firma reagiria processando-o
ra de si m e s m o , b r u s a d o para a explicação d e t u d o q u e se relaciona c o m o p o d e r e a d o m i n a ç ã o , t a n t o
m e n o r sua p o t ê n c i a explicativa. Nesse sentido, este t r a b a l h o se n u t r e d e o u t r a s f o n t e s psicanalítícas; cf. por danos morais, mostrando a todos, por meio do escândalo, o que faz o co-
capítulo 3 deste volume.
mercial: u m a sensação, i n d e p e n d e n t e m e n t e de c o m o o faz. D a mesma f o r m a e n g a j a m e n t o social. Em n o m e da liberdade de opinião e de expressão 56 . C o m
que D u c h a m p m o s t r o u - q u a n d o colocou a palavra «farmácia" em u m a re- efeito, a empresa seguiu tão somente um princípio básico do surrealismo: dei-
p r o d u ç ã o de u m a paisagem de inverno, assinando o q u a d r o e a n u n c , a n d o - o xar colidir duas representações díspares soltando uma multidão de faíscas e,
c o m o um ready-made - o que a arte faz: transfigura as coisas, ou seja, ret.ra-as assim, q u e b r a n d o tabus 57 . N o entanto, os pais do surrealismo entendiam algo
de seus contextos usuais. A força i l u m i n a d o r a - c c o m ela t a m b é m a qualida- f u n d a m e n t a l m e n t e diferente por quebra de tabu: a explosão de uma camisa de
de estética de tais d e m o n s t r a ç õ e s - é altamente dependente do m o m e n t o força cultural, que sufocava a imaginação e a criatividade, nem ao menos im-
temporal adequado. E D u c h a m p acertou o t e m p o em 1914. O ready-made foi p e d i n d o q u e nações de cultura como a Alemanha e a França se dilacerassem
c o m o que um ataque surpresa que, n o c a m p o de força p o l í t i c o - c u l t u r a l ime- no c a m p o de batalha. Em oposição a isso, quebrar tabus significa, nas agências
diatamente anterior à Primeira Guerra, conseguiu, de u m a maneira desconcer- de propaganda, romper limites de pudor de maneira bem planejada e dosada.
tantemente simples, t a n t o realizar q u a n t o desmascarar o m o v i m e n t o elemen- Em outras palavras: significa desregular, da mesma forma que a infraestrutura
tar d a arte - uma irritação q u e até hoje p e r m a n e c e c o m o u m e s p i n h o p a r a e os serviços de seguridade social em grande medida parecem, à luz neoliberal,
c o m o concessões vergonhosas a reivindicações exageradas de cidadãos indese-
p r o d u ç ã o histórica da arte. Já o pôster da B e n e t t o n , em c o n t r a p a r t i d a , veio
josos de responsabilidades próprias — como tabus que cresceram, devido ao
uma ou duas décadas tarde demais: q u a n d o a força c o n d i c i o n a d o r a d o logo já
m e d o que t i n h a m os eleitores demasiado acomodados, e que, enfim, têm de ser
estava tão avançada que u m a empresa podia, sem se p r e o c u p a r com sua even-
quebrados. O cartaz da Benetton instaura novos padrões. Ele íala a língua da
tual ruína, e n c o m e n d a r esse tipo de trabalho. N ã o se criou u m escândalo e m
estética da desregulação. Não que fosse novidade ganhar dinheiro com vítimas
t o r n o dela; a própria empresa encarregou-se disso. Seu pôster possui, i n d u -
de guerra, mas colocá-los engenhosamente em exibição em cartazes como cha-
bitavelmente, a força para mostrar o q u e a p r o p a g a n d a faz; p o r é m , antes de
marizes p a r a a venda de camisas e jaquetas, isso ainda não havia acontecido.
qualquer coisa, ele faz propaganda. Expõe sua própria capacidade crítica de mos-
U m surrealismo desprovido de seu cerne moral e estético, associativamente
trar — como domador de macacos.
desinibido e reduzido ao mero efeito sensacionalista, faz aqui um curto-cir-
Obviamente, os protestos contra o a n ú n c i o já haviam sido calculados, ain-
cuito entre produtos têxteis e um campo político, com o qual não tem a menor
da que talvez não na medida correta. Mas m e s m o os mais c o n t u n d e n t e s per-
afinidade. Assim, evidentemente, não se politiza a clientela.
deram a força, e a queda nas vendas causada p o r eles já foi há m u i t o superada.
N e n h u m a das controvérsias em torno do cartaz da Benetton contribuiu, de
N o entanto, a maior bênção ainda estava p o r vir. A proibição imposta na Ale-
qualquer maneira que fosse, para uma compreensão mais p r o f u n d a da guerra
m a n h a à " p r o p a g a n d a - d e - c h o q u e da B e n e t t o n " foi suspensa pelo T r i b u n a l
na Bósnia, mas todas elas contribuíram para que se concebesse a guerra sob o
Constitucional Federal. "A sensibilidade despreocupada d o cidadão em relação
prisma d a propaganda — não importando se a favor ou contra o anúncio. Este
à miséria do m u n d o " não t i n h a direito à p r o t e ç ã o legal, de a c o r d o com os jui-
impõe, mesmo a seus opositores, o p o n t o de vista sob o qual quer ser discutido,
zes, pois alguns temas c h o c a n t e s — além d o caso m e n c i o n a d o , a B e n e t t o n
ao m e s m o t e m p o trabalhando para que a guerra se converta em material pro-
realizara anúncios com um pato c o b e r t o de óleo e u m traseiro nu, o n d e estava
pagandístico, assim c o m o pores do sol ou quedas d'água. Foi a tal ponto, que
estampado "HIV positivo" — poderiam igualmente ser lidos c o m o d e n ú n c i a " .
C o m o se aqueles que receberam o pôster c o m o p u r o e simples escárnio esti-
vessem r e c l a m a n d o um m u n d o p r o p a g a n d í s t i c o i m a c u l a d o e devessem ser 56 E m c i o o caso, a C o r t e S u p r e m a Federal insurgiu-se c o n t r a essa decisão, renovando a Proibição d o co-
mercial d a B e n e t t o n , u m a n o após o veredito d o Tribunal C o n s t i t u c i o n a l Federal (cf. Frankfurter Runds-
ensinados que a realidade não é assim tão rósea. O p r o t e s t o foi virado de cabe- chau 7 dez, 2001. p. 34). Isso, ..o e n t a n t o , só faz enfatizar o q u a n t o a sentença d o s ,u.zes constituc.ona.s
ça para baixo com o veredito da corte constitucional, o fazer de anúncios en- A p r e s e n t o u u m v e d a d e i r o marco p a r a o desenvolvimento d o aparato s e n s o r i a l / s e n s a o o n a l colenvo
volvendo a guerra, o sofrimento e a miséria alheia sendo festivamente reconhe- 57 A i m a g e m surrealista "não p o d e surgir de uma comparação, mas sim de uma
des mais ou m e n o s distantes. Q u a n t o mais distantes e p r e n s a s as re ações das r e a M a d s p o ^ a l a d o a Iado
cidos c o m o u m aviso de alerta contra a guerra, o s o f r i m e n t o e a miséria: c o m o t a n t o mais i m p a c t a n t e será a imagem.» " O valor da imagem d e p e n d e em grande me
cas almejadas- é assim, u m a f u n ç ã o da diferença de tensão entre os c o n d u t o r e s Q u a n d o essa d.terença c
apenaTmuijpa fraca, c o m o na comparação, não saem faíscas". (A. Breton. E»^Mamjest des Surreal.smus,
1924. R c i n b c c k , 1986, pp. 23 c 35.)
5 5 Frankfurter Rundschau, 13 dez., 2000, p. 5.
progrediu o poder das associações arbitrárias nesse espaço de tempo. O surrea- chamaria de um "prazer negativo" 58 . Nada nele agrada aos sentidos como a
lismo e o behaviorismo foram apropriados de maneiras m u i t o diferentes. O s f r u i ç ã o da c o m i d a , do sexo ou da arte, ao passo que o agir febril c o n t í n u o
frutos desse trabalho recaem sobre a propaganda. Aqui, a associação arbitrária por meio d o qual esse prazer é obtido, como se sabe, cobra um alto preço dos
torna-se um bem comum, u m lugar-comum, uma forma universal de comunicação sentidos e dos nervos. O que é usufruído é tão somente o sentimento sublime
e percepção. A associação chocante daquilo que não é associável c o r r e s p o n d e de pertencer aos que contam, àqueles a quem sucede "ser" aí, ou seja, não estar
tão s o m e n t e ao c o n t r a p o n t o da construção, em u m piscar de olhos, de sutis midiaticamente morto, assim como para São Tomás de Aquino a santidade dos
que foram salvos se reduziria, em última instância, à alegria celeste de não ter
campos de associação, e ambos constituem o centro de força da p r o p a g a n d a , o
sido m a n d a d o ao inferno 5 9 .
cerne de sua competência comunicativa, que visa apenas a u m objetivo: chamar
a atenção, certificar-se de que se é notado, de que se está "aí". No cangote de uma tal alegria funga o medo, assim como a fruição da presença
E, da mesma maneira que as mercadorias somente têm chance de ser escolhi- é perseguida pela compulsão para emitir (Sendezwang). Sob essa compulsão,
a u m e n t o u exponencialmente a disposição de se deixar sabatinar por qualquer
das q u a n d o se sobressaem, assim t a m b é m os políticos. Eles são especialmente
um que acene com microfone e câmera, de se submeter a testes de perspicácia
suscetíveis à alta pressão das notícias, tanto como sujeitos q u a n t o c o m o objetos.
e a questionários embaraçosos. Programas inteiros de televisão foram criados
Sem serem mencionados cotidianamente na imprensa, rádio e televisão, sem
com esse objetivo. N ã o são poucos os políticos que no Roda Viva ou no Cara
serem entrevistados, não há c o m o levarem a d i a n t e suas carreiras, pois cada
a Cara já passaram por suadouros. E, no entanto, por que tantos se dispõem a
entrevista para microfones ou câmeras oferece a o p o r t u n i d a d e não apenas de
ser dessa maneira interrogados e insultados? Porque mais importante do que
divulgar o p o n t o de vista de u m grupo, mas t a m b é m o de q u e m fala; não ape-
fazer u m a boa figura é fazer alguma figura. Esse estpercipi também quer dizer:
nas de representar a linha d o partido, mas t a m b é m de levá-la para u m a direção
quem é visto pode deixar de sê-lo. Estar presente passa a ser quase equivalente a
própria; não apenas de descrever políticas, mas t a m b é m de fazer política. C a d a
fazer uma boa figura. Assim, mesmo na fofoca, fica-se em evidência. Menos do
entrevista, cada mesa de debates, que traz a público a opinião de um partido,
que nunca é garantido que manchetes negativas possam desacreditar alguém.
divide também o partido. C a d a entrevistado é c o n s t a n t e m e n t e t e n t a d o a apa-
Sem dúvida, Bill Clinton teria dado muito para que fosse poupado da revelação
recer mais do que seu partido. Só p o d e fazer carreira partidária q u e m ao mes-
de seu caso sexual. Mas o simples fato de que este não o demoliu, de que dois
mo t e m p o faz a sua própria carreira. H á assim, c o n t i n u a m e n t e , d e s e n t e n d i -
anos depois era celebrado como um político global, que com ar respeitável
mentos a respeito de declarações públicas não afinadas com os outros m e m b r o s
recebia prêmios internacionais, sugere um bônus que o mero estar-presente
d o partido, q u e os m e l i n d r a m ou colocam sob pressão. Já há m u i t o q u e se
midiático traz consigo. Políticos que têm, devido a escândalos, seus rostos
fazem disputas políticas intrapartidárias por meio da televisão, e cada c o n t r o -
constantemente iluminados pelos holofotes da atenção pública tornam-se tão
vérsia a portas fechadas já é c o n d u z i d a em vista da m e l h o r f o r m a c o m q u e familiares ao público, tão humanos, demasiadamente humanos, que na época
pode ser veiculada ao público — "vendida", c o m o dizem sem o m e n o r p u d o r
das eleições este lhes agradece de forma especial.
os envolvidos.
A l u t a pela atenção, que a alta pressão das notícias p r o d u z na passagem
Sob tal pressão de notícias, ser um político profissional tornou-se, c o m o
para u m a compulsão generalizada à emissão, é uma luta pelo "aí". As campa-
nunca antes, algo destruidor dos nervos. Antes dos encontros de trabalho, as
nhas publicitárias das grandes firmas, a autoapresentação da elite política, a
entrevistas matinais; entre os encontros, as vespertinas; depois dos encontros,
aparição d t p o p s t a r s , constituem a sua versão de luxo. Mas a alta pressão ocorre
as noturnas, os programas de discussão, os talk sbows, e, em cada evento, prestar
atenção a t u d o o que se diz, mesmo às mais simples frases, para que não se possa 5 8 i T c o m o se caracteriza o "sentimento d o s u b l i m e ' : um prazer "que surge apenas indiretamente", "na medi-
mudar seu sentido. Q u e m , de b o m grado, aceitaria t a n t o estresse? Aparente- 1 I q u e a T m a n ã o apenas é atraída p e l o s o b j e t o s mas a U c r n a d a m e n t e s e m p r e d e n o v o r e p e h d a .
' JJ
(I. K a n t , Kruik der UrJlskraft, B 75. Werke [Obras]. F r a n k f u r t : W, We.schedel, s.d. vol. X, p. 329.
mente, apenas pessoas para quem o gozo d o p o d e r passou a eqüivaler ao gozo 59 "E desc i m a n e i r a os santificados alegrar-se-ão c o m as penas dos ímpios: c o n t e m p l a r ã o neles a o r d e m da
j ^ r i ç a d i v i n a c sua própria absolvição, c o m a qual se regozijarão." ( T o m á s de A q u . n o , tbeolog.c,
da presença, e que se curvam a ele — o político — c o m o antes os monges, ao
S u p p l e m e n c u m , q. 94 a 3).
reino dos céus. O gozo da presença etérea representa, obviamente, o que K a n t
em todos os graus da escala social. A publicidade distribuída d i a r i a m e n t e nas emissão. Porém não se resume ao econômico. Não estar "em transmissão", não
caixas de correio é testemunha disso, assim c o m o as m o n t a n h a s dc manuscritos irradiar nada, torna-se, aparentemente, cada vez menos tolerável, mesmo que
que chegam às redações e que cada vez mais se assemelham a essa publicidade. não esteja imediatamente associado à decadência nos negócios ou ao desempre-
Um cabeçalho mais chamativo, u m envelope excêntrico, u m a h o m o n í m i a com go. O u de que outra maneira seria possível explicar esse estranho magnetismo
alguém já conhecido, tais detalhes irrelevantes p o d e m ser decisivos para q u e que é irradiado dos talk shows, nos quais pessoas como você ou eu são convidadas
u m redator comece a ler um manuscrito, ou para que u m empregador olhe com para, pelo menos uma vez, poder falar a partir de suas entranhas e resolver seus
mais cuidado para o formulário de u m candidato. E q u e m está p r o c u r a n d o u m conflitos? O confessional, talk é uma ração de emergência de todos os emissores
emprego ou clientes precisa hoje de uma homepage - da mesma forma c o m o privados. A receita é mais simples do que se possa imaginar. Pessoas comuns,
outrora se precisava ter o n o m e na lista telefônica e sob a campainha —, confec- donas de casa, aposentados, desempregados etc., são encorajados a abrir sua estera
cionada da maneira mais profissional possível e com uma assinatura característica, mais íntima e a falar em tom pessoal em sessões de programa com títulos como
em palavras ou imagens: um logo. O s logos existiam, n o começo, para fazer Agora chega, Eu o traí, Te odeio, Perdoe-me, Vamos começar de novo. Que isso tem
sobressaírem certos produtos como não intercambiáveis, exclusivos em relação c o m o intenção atrair os curiosos e elevar os níveis de audiência, é óbvio. Mas
à massa de ofertas. O s especialistas chamam isso de branding: a imagem, com a o que levaria uma multidão de pessoas a se inscrever em tais talk shows para ser
ambientação sonora, tem de ser tão marcante, que, por assim dizer, estampa a objeto de exposição? As poucas centenas de reais pagos são uma compensação
ferro em brasa o sistema nervoso — se não n o primeiro contato, então em u m a fraca demais para os embaraços nos quais os participantes se colocam, mesmo
repetição planejada. A marca da C o c a - C o l a , a estrela da M e r c e d e s , a maçã . porque os envolvidos freqüentemente não têm noção das conseqüências de suas
da Apple conseguiram realizar isso exemplarmente. Já representam clássicos da confissões e arroubos diante das câmeras. H á muito se sabe da destruição de
sensação — penetraram, por meio de um hábil branding, na economia sensorial relações amorosas e de amizade, assim como das demissões, como custos fixos
coletiva. Em seguida, o signo identitário d o p r o d u t o transforma-se n o da firma. de tais aparições. É assim tão mais surpreendente quão pouco se espantam. Para
Constrói-se, em torno do logo, a imagem que se deseja fornecer para o público, ficarem "aí", completamente, custe o que custar, pelo menos uma vez por alguns
e ao logo se ligam campos associativos inteiros. A m e r c a d o r i a * não deve apenas caros minutos no ar, pessoas deixam-se ser pressionadas por perguntas delicadas
deleitar, mas, ao mesmo tempo, proporcionar u m d e t e r m i n a d o estilo de vida, feitas por apresentadores pegajosos, mesmo correndo o perigo de estarem depois
uma atitude, um pertencimento social. Ela passa, assim, a marcar t a m b é m seus prontas para o seguro-desemprego ou para sessões de psicoterapia. Ocorre apenas
consumidores. O logo se estende de seus p r o d u t o s para os indivíduos — u m que aqueles que se coagem a um confessional talk tão autodestruidor estão ao
desenvolvimento que obteve um n o v o i m p u l s o c o m a I n t e r n e t . O logo não mesmo tempo praticando uma nova forma de autoconservaçáo, que a compulsão
corresponde mais apenas a um sinal de r e c o n h e c i m e n t o daquele que adota o para emitir (,Sendezwang) tendencialmente impõe a todos. São arautos, ainda
estilo de vida y e que pertence à cena z. Sob a compulsão generalizada à emissão, que atabalhoados; já interiorizaram exemplarmente a lição do esse estpercipi,
ele converte-se em um puro e simples sinal de identidade — em u m sinal q u e mesmo se lhes faltam meios materiais ou espirituais para aproveitar-se disso. São,
faz com que eu esteja "aí". N ã o ter um logo significa de agora adiante ficar sem por um lado, parvos. Por outro, adere-lhes a aura de terem sido, ao menos uma
nome, sem individualidade, sem p e r t e n c i m e n t o , em suma, perdido 6 0 . vez, por um momento, estrelas de televisão, como uma prova de que na realidade
não p o d e m ser parvos. Estar na programação não corresponderia justamente
Sem dúvida, existem inúmeras pessoas hoje que sobrevivem m u i t o bem sem ao contrário de ser tolo ? O show business já reconheceu essa irritação como um
uma homepage ou logo. Mas seu n ú m e r o d i m i n u i ; o novo estar-perdido, pelo novo fator de entretenimento: levar para diante das câmeras, de forma que não
contrário, está apenas começando e ainda chegando. Economicamente falando, se saiba mais se estão no caminho de se tornar estrelas, ou se prontos para levar
ele traduz a incapacidade, para o mercado na era da compulsão generalizada, à uma sova. As possibilidades subjacentes a isso podem ser bem medidas no caso
de u m a aposentada da Saxônia que, em uma disputa bizarra com um vizinho,
6 0 Mais c o m p l e t a m e n t e em C . Tiircke, Design oder Nichtseín. D e r K a m p f u m s Logo. Frankfurter Rundschau, para decidir quem deveria cortar os galhos de uma árvore, que cresciam por
29 m a i o , 1999, p. Z B 3. Vale n o t a r o s u r g i m e n t o de u m m o v i m e n t o c h a m a d o No Logol\ cf. c a p í t u l o 5
deste volume.
cima de u m a cerca de arame, p r o n u n c i o u a expressão "cerca de arame" em u m e espontânea vontade; uma vontade tão livre e espontânea quanto a das mari-
dialeto cômico, cuja o p o r t u n i d a d e u m d i r e t o r de p r o g r a m a ç ã o aproveitou, posas voando em torno da lâmpada. Ninguém as coage. De um ponto de vista
deixando-a entrar ao vivo no ar. A resposta foi avassaladora. A "cerca de arame" p u r a m e n t e técnico, poderiam muito bem desviar sua rota de voo. A decisão é
no dialeto da Saxônia foi rapidamente gravada em CD c o m u m f u n d o musical; de cada um.
a gravação do CD foi filmada; e, q u a n d o milhares de curiosos f o r a m visitar e
rodear a famosa casa com cerca de arame, e arrasando as cercanias c o m seus
a c a m p a m e n t o s predatórios, a senhora a m e d r o n t a d a foi levada de avião para Integração: a outra face da exclusão
um luxuoso hotel parisiense.
Isso aconteceu ainda antes d o BigBrother. O q u e é mais s u r p r e e n d e n t e a Um puro livre-arbítrio nunca houve. Hoje, uma compulsão a emitir, tão intan-
respeito da idéia de trancafiar u m g r u p o de pessoas p o r cem dias em u m recin- gível q u a n t o crescente, soma-se a suas condições de existência. Se a globaliza-
to repleto de câmeras e microfones, ligados 24 horas, talvez seja o fato de não ção microeletrônica possui uma marca, é esta. Q u e m não quer falar dessa com-
ter sido realizada antes. O chão midiático para t a n t o já estava há m u i t o prepa- pulsão deve também se calar a respeito da emancipação, da autodeterminação
rado. N o entanto, o BigBrother marca u m novo grau na compulsão para emi- e da democracia. O desdobramento destas encontra-se relacionado àquela. Mas
tir (Sendezwang). O que é alarmante não é o que acontecia n o recinto. Lá se essa compulsão possui aspectos ainda mais abrangentes do que a sensação de
arrastava apenas uma rotina banal de dar sono, e os organizadores tiveram de ausência de pessoas que não têm e-mail, logo ou roupas de marca, embora esse
se esforçar m u i t o para tentar fazê-la interessante com brincadeiras e atrações sentimento não deva ser subestimado. Os casos que se acumulam, por exemplo,
adicionais sem graça. O q u e é a l a r m a n t e é a perspectiva q u e o Big Brother em São Paulo, de crianças de rua que, carentes, no mais alto grau, de comida,
descortina. Introduz-se aqui um novo gênero de jogo em grupo, q u e p e d e por roupas e moradia, chegam a matar para conseguir um par de tênis ou uma
uma continuação sob condições ainda mais acentuadas. Já se trabalha c o m a camisa de marca, não seriam tão enigmáticos se esse sentimento fosse suficien-
idéia de trancafiar pessoas em um espaço mais exíguo e mantê-las em condições temente levado em consideração como uma realidade que está adquirindo uma
de maior privação. N ã o deve d e m o r a r m u i t o até que diferentes descendentes força universal. Ao menos uma vez na vida estar "aí", como a roupa de marca o
do BigBrother lutem simultaneamente pelos índices de audiência. Mas talvez p e r m i t e : tal ânsia pode ser facilmente reconhecida como uma versão desespe-
ainda se configurem cenários de uma ordem bem diferente. Em abril de 2001, rada d o tema esse estpercipi. É claro, trata-se de um tema dotado de dimensões
lutou-se pela primeira vez nos Estados U n i d o s pelos direitos de transmissão geopolíticas. A luta pelo "aí" também se dá entre lugares e regiões. As bolsas
de u m a execução. Desejava-se que, q u a n d o o responsável pelo a t e n t a d o de de Nova York, Tóquio e Londres têm, por assim dizer, um lugar cativo, por sua
O k l a h o m a recebesse sua injeção letal, fosse possível a c o m p a n h a r o evento ao presença midiática contínua. Inversamente, partes inteiras do m u n d o ficam de
vivo pela Internet, os recursos obtidos com isso indo para os parentes das víti- fora, e, para saber quem, nesse caso, está "midiaticamente morto", o relatório
mas — e o próprio criminoso declarou-se, pelo m e n o s por certo tempo, a favor anual de desenvolvimento do Banco Mundial não é uma má referência. Para o
da transmissão 61 . Dessa vez a Justiça ainda foi contra, mas que, com o próximo ano de 1997, calculam-se "133 países com mais de 1 milhão de habitantes". N o
criminoso célebre, a pressão será aumentada, é tão certo q u a n t o a dinâmica q u e e n t a n t o , "Afeganistão, Bósnia, Iraque, Irã, C u b a , Coréia d o N o r t e e outras
assegura que a compulsão à emissão institucional e pessoal se reforcem mutua- tantas 20 nações ao Sul do Saara não estão incluídas nas estatísticas. Outras
mente. À luz disso, o BigBrother dá a impressão de ser um palco de ensaio para c o m o o Iêmen, o Camboja, Haiti, Laos, Líbano, assim como todos os Estados
jogos de gladiadores ainda imprevisíveis. Em t o d o caso, candidataram-se ins- desmembrados da antiga União Soviética e a Iugoslávia, apresentam mais que-
tantaneamente mais de 20 mil pessoas para esse palco. Entenda-se bem, de livre sitos em branco (isto é, 'dados não disponíveis') do que percentuais". "Há 40,
50, ou possivelmente até 80 países' no m u n d o para os quais ou não existem
dados, ou, se os há, estão cheios de lacunas, não são confiáveis, já caducaram,
61 C f . G . S c h õ n , " S t e r b c n vor l a u f c n d c r Kamera" Frankfurter Rundschau, 23 abr., 2001, p. 13; a respeito, ver ou são puramente virtuais."
C . Tiircke, " D i c mysthische Angst, nichc dabei zu sein", DieZeit, 20 abr., 2001, p. 38.
Qual a estatística que dá conta das áreas sob controle da Unita angolana, do a falta de orientação, a migração e o êxodo fazem parte de seu dia a dia. Q u a n -
Mujahedin afegão, do Khmer Vermelho, do Sendcro Luminoso, do Tuareg saanano, d o tais áreas repentinamente caem sob os holofotes da opinião pública, isso
dos zapatistas mexicanos, do Cartel de Medellín, do GIA Argelino, dos Tigres de Li- se dá, na maioria das vezes, de uma forma tão brutal q u a n t o a ignorância sob
bertarão de Tamil, dos War Lords da Somália, do PKK curdo, do Hesbolá? Para nao a qual antes vegetavam: por meio de terremotos, secas catastróficas, surtos
falar da Caxemira, do Sul do Sudão, dos Estados do Chan, das favelas,shaty-towns,
epidêmicos, massacres. E para chamar a atenção à sua miséria sobram quase
Bidonvilles e slums nas periferias das megalópoles asiáticas, l a t i n o - a m e r i c a n a s e
sempre apenas poucas alternativas para os grupos de resistência e minorias:
africanas. No meio da África, há uma única zona de guerra, desde Angola, passando
t o m a r reféns, seqüestrar aviões, fazer greves de fome ou ataques a bomba.
pelo Congo, Ruanda, Burundi, e chegando até o Sul do Sudão e além, até a Ettópia e
O seqüestro de turistas ocidentais nas Filipinas, promovido pelo G r u p o
a Eritréia, onde a distinção clássica entre guerra e guerra civil não mais se aplica. As
Abu Zayyaf, os protestos para a libertação de Òcalan ou a retirada de Milose-
marcas brancas no mapa, a nova terra incógnita, crescem 62 .
vic, a ocupação da plataforma da Brent-Spar pelo Greenpeace ou de um hospi-
tal pelos rebeldes chechenos, a campanha publicitária da Benetton ou a cam-
Q u e a globalização consistisse em u m a interligação q u e cobrisse, p o r meio
p a n h a p o l í t i c a usual: esses são f e n ô m e n o s f u n d a m e n t a l m e n t e diferentes.
das telecomunicações, toda a Terra, é s i m p l e s m e n t e u m absurdo. Já a p r ó p r i a
N ã o obstante, a compulsão generalizada para emitir coloca-os todos no mes-
metáfora da "rede" a desmente. Redes possuem linhas e nós, m a s entre eles há
m o saco. C h a m a r a atenção, para não sucumbir: esse é o imperativo, quase
bastante ar. Isso t a m b é m é válido g e o p o l i t i c a m e n t e . C o m o antes, são as me-
categórico, que todos seguem, ainda que cada um à sua maneira. Ele não con-
trópoles e os centros econômicos que concentram os p o n t o s nodais das teleco-
tribui p o u c o para que a "integração" tenha ascendido à posição de um dos
municações. E n e m m e s m o eles são h o m o g ê n e o s . Já as favelas nas periferias
t e r m o s m e n o s contestados, como um objetivo e algo desejável, das ciências
das megacidades, verdadeiros formigueiros h u m a n o s , são antes marcas b r a n -
sociais e da política — para além de todas as fronteiras partidárias. Não ser
cas d o p o n t o de vista das telecomunicações. E mais a i n d a as extensas áreas
percebido significa estar de fora, e estar de fora é como estar m o r t o em um
despovoadas entre as metrópoles. Visto globalmente, o êxodo rural a i n d a está
c o r p o vivo — incompatível com a dignidade humana. C o n s e q u e n t e m e n t e ,
a u m e n t a n d o . Até se levando em c o n t a a crescente m o b i l i d a d e das estações de temos de incluir todos: os idosos e os enfermos, os desempregados e os presi-
transmissão, o fato de p o d e r levar u m c o m p u t a d o r na pasta para o n d e q u e r diários, os que pensam e os que agem diferente. A integração converteu-se em
que seja, q u e m tem esse privilégio não vai "aonde quer q u e seja". Pode m u i t o sinônimo de salvação e humanidade — esquecendo-se de que, ainda há algumas
bem ir ao Caribe, à Toscana ou às ilhas Baleares, para de lá, de u m confortável poucas décadas, o conceito circulava com um sentido contrário. Ainda n o úl-
ambiente, realizar d e t e r m i n a d o trabalho e enviá-lo p o r e-mail, mas não vai à timo A d o r n o , pode-se ler: " O genocídio representa a integração absoluta, que
Sibéria ou a Ruanda, à Caxemira ou ao Afeganistão. Tais regiões estão m o r t a s é preparada por toda parte onde os homens são feitos intercambiáveis, 'ralados',
midiaticamente, não necessariamente p o r q u e não haveria lá estações de trans- c o m o são chamados entre os militares, até que, diferenciados do conceito de
missão. Mas p o r q u e n ã o d i s p õ e m d o m í n i m o de i n f r a e s t r u t u r a , aos quais sua total nulidade, sejam literalmente exterminados. Auschwitz comprova a
programas de ajuda, investimentos e relações comerciais pudessem razoavel- proposição filosófica da pura identidade com a morte'
mente se conectar. E o n d e falta esse m í n i m o não é possível m e d i r estatistica- Q u e m escreve assim é alguém que por m u i t o pouco escapou do processo
mente necessidades e carências, retratá-las, torná-las m i d i a t i c a m e n t e conce- de uniformização social total chamado pelos nazistas de "pôr na linha". Nos
bíveis. Elas subtraem-se à percepção da esfera pública n o â m b i t o m u n d i a l . A Estados Unidos, a terra democrática que salvou Adorno teve então de descobrir
região como um t o d o fica desprovida de u m "aí". T a n t o mais terrível é, via de igualmente tendências de pôr as pessoas na linha, m u i t o menos brutais, sem
regra, o seu aqui e agora, sem o suporte de u m sistema regulado para a distri- dúvida, mas não menos abrangentes. Paradigmático para A d o r n o foi o fenô-
buição de alimentos, para a saúde, a educação ou o direito. A fome, a doença, m e n o da indústria cultural, que trazia ao m u n d o artefatos de cultura concebi-
2 U. Mcnzcl, Die weifien Flecken aufder Landkarte nehmen zu. "Übcr das Vcrschwindcn der Drittcn Wclr", 63 Th. \V. Adorno, NegariveDialcktik, p. 355.
Frankfurter Rundschau, 31 maio, 2000, p. 9.
dos desde o princípio c o m o mercadorias de c o n s u m o de massa, isto e, u n i f o r - E, não obstante, lembra-se com isso de algo importante: que a integração
mizados, assim c o m o carros ou geladeiras: confeccionados com clichês e frases social não era, em seu princípio, de maneira alguma um idílio — sem dúvida,
feitas, q u e marcavam os p r o d u t o s c o m o a p t o s p a r a o c o n s u m o ligeiro, e se m e l h o r do que ser expulso da coletividade, o que significava a morte, mas ain-
i m p u n h a m ao c o n s u m i d o r c o m o esquemas para a percepção e para o pensa- da assim não deixando de ser uma imensa coerção. Crescia-se, sem ser consul-
mento. Q u a n d o A d o r n o , sob essa impressão, f o r m u l o u : "A cultura hoje i m p õ e tado, sob a u n i f o r m i d a d e dos medos e traumas por meio dos quais o terror
a semelhança a tudo" 6 4 , reverberava o h o r r o r diante d o "pôr na linha" nacional- natural estruturava o sistema nervoso do Homo sapiens. Era-se violentamente
socialista. Mesmo uma estrutura em miniatura da SA e da SS parecia ser encontrá- a c o s t u m a d o a participar nos rituais de sacrifício, caça, iniciação e conjuração,
vel nos Estados Unidos: os rackets. Assim se chamavam os b a n d o s c as gangues com os quais o g r u p o procurava d o m a r tal terror 6 7 . Oferecia-se p r o t e ç ã o e
que ameaçavam os estabelecimentos comerciais de Chicago, Nova York ou Sao compensação aos indivíduos, e ainda assim de forma muito desigual, apenas
Francisco com sua proteção forçada. Mas poderia receber esse n o m e qualquer na m e d i d a em que estes se submetessem a esses procedimentos de adaptação.
tipo de g r u p o jurado, de uma agremiação esportiva até u m cartel, desde q u e so É claro, os escravos eram integrados às sociedades escravocratas, sendo, afinal,
conhecesse dois tipos básicos de diferenciação n o m u n d o : a de c i m a e a de seus principais produtores; o mesmo dava-se com os servos da gleba na socie-
baixo, e a de d e n t r o e a de fora. H o r k h e i m e r t e n t o u m e s m o , p o r u m c u r t o dade feudal e o proletariado, na capitalista. Não eram excluídos da sociedade,
período, caracterizar o racket c o m o "a f o r m a f u n d a m e n t a l de d o m i n a ç ã o " 6 5 , mas apenas de suas compensações decisivas. Q u e esse simples fato, hoje, não
que teria começado com a h o r d a h u m a n a p r i m o r d i a l estendendo-se desde "o seja mais óbvio, que por toda parte se entenda pelo termo "integração" apenas
sussurro n o conselho dos anciãos das tribos primitivas até os e n t e n d i m e n t o s u m fator secundário — ou seja, o c o n j u n t o de possibilidades de seguridade,
entre os industriais e o Exército nos clubes ou salas de conferência". " O racket benefícios ou organizações coletivas que uma sociedade proporciona a seus
deixou sua marca, até hoje, em t o d o s os f e n ô m e n o s sociais; exerceu d o m í n i o m e m b r o s — e não mais o fator primário de uma adaptação forçada, que lhe
c o m o racket do clero, da vila, dos ocupantes, da raça, dos h o m e n s , dos adultos, antecede, está relacionado com a natureza da moderna socialização capitalista
da família, da polícia, dos criminosos e, m e s m o d e n t r o dessas organizações, que p r o m o v e uma certa confusão deliberada com as realizações de sua inte-
c o m o racket individual contra o resto do círculo" 6 6 . N o e n t a n t o , H o r k h e i m e r gração. Em sua fase de emergência, ela foi primeiramente uma sociedade que
deixou essas anotações em uma gaveta, talvez p o r ter n o t a d o que se c o l o c a m agia de maneira brutalmente desagregadora. Retirou uma parte considerável
da p o p u l a ç ã o rural da terra de seus ancestrais e separou os trabalhadores de
as coisas de cabeça para baixo q u a n d o se p r o p õ e u m e p i f e n ô m e n o da organi-
seus i n s t r u m e n t o s de trabalho, mas também o avaro de suas posses, o nobre
zação social capitalista — ou seja, que os indivíduos desenraizados, arrancados
de suas p r o p r i e d a d e s de família, o cavalariço do e q u i p a m e n t o militar mais
dos contextos hereditários da família e do trabalho, e em busca de apoio m ú t u o ,
m o d e r n o , assolando as estruturas tradicionais da nobreza, guildas, cidades,
se juntam em grupos f i r m e m e n t e organizados — c o m o sendo u m f e n ô m e n o
vilarejos e famílias 68 . O p o n t o a partir do qual esse turbilhão se formou era o
primordial da socialização d o m i n a d o r a . Essa inversão inflaciona o conceito de
velho e conhecido mercado, mas com uma nova função: não mais como local
racket, torna-o tão pouco específico que a formação de grupos e de gangues não
para a troca de mercadorias, mas como instância de socialização. Gradualmen-
mais p o d e ser diferenciada, a tal p o n t o que, por fim, os próprios m e m b r o s d o
te, foi s u g a n d o a p o p u l a ç ã o c o m o um t o d o para d e n t r o de si, o b r i g a n d o a
instituto de H o r k h e i m e r deveriam ser considerados c o m o rackets-, não se con-
maioria não apenas a oferecer algo, mas também a colocar a si próprio à venda,
tribui, assim, n e m para a sociologia dos meios à la Al C a p o n e , n e m p a r a a
a p r ó p r i a força de trabalho isolada. O mercado começou, assim, a regular o
compreensão das estruturas arcaicas de d o m i n a ç ã o e de afinidade c o m o algo
concreto.
6 7 S o b r e isso, cf. capítulo 3 deste volume.
6 8 O " p r o c e s s o d e separação d o t r a b a l h a d o r da posse d o s meios d e p r o d u ç ã o - ainda é u m a chave central
par e n t e n d e r a m o d e r n a f o r m a ç ã o social. C o m ele c o m e ç a a q u i l o q u e Marx d c n o m . n a a c h a m a d a
64 M . H o r k h e i m e r e Th. W . A d o r n o , Dialektik der Aufklàrung, p. 128. a c u m u l a ç ã o primitiva" ( K . M a r x , Das KapUal, MF.W 23, 1962. vol 1, p. - 4 2 ) . Ela e n t r o u para os anais
da h u m a n i d a d e c o m traços de s a n g u e e fogo" ( p . 743). Para uma a b o r d a g e m ma.s c o m p l e t a , ct. cap.ru-
6 5 M . H o r k h e i m e r , Die Rackets und der Geist — Ges. Schriften. F r a n k f u r t , 1985, vol. 12. p. 287.
los 2 c 4 d e s t e v o l u m e .
66 Idem, o p . cit.. p. 291.
processo cie trabalho da sociedade c o m o u m t o d o . É possível falar de u m a "era descrevem as ocorrências de loucura, histeria e criminalidade, pode desvelar
moderna" a partir do m o m e n t o em q u e o potencial de sucção d o m e r c a d o se mais sobre a constituição da razão moderna do que a interpretação de todos
torna a principal força de integração da sociedade. Graças a tal força, o merca- os textos filosóficos de referência.
do cuida para que os homens p o n h a m à venda a si próprios ou suas mercadorias, E n t r e t a n t o , a história dc formação dessa razão só pode ser coerentemente
mas não garante que elas sejam vendidas. O n d e há c o m p r a , há t a m b é m escolha. escrita c o m o uma história da exclusão se a natureza das medidas de disciplina-
O que é visto c o m o inútil é deixado de lado c o m o invendável. Esta é a versão rização, internação e quartelização, tão brilhantemente descritas por Foucault,
mercadológica d o d i t o bíblico s e g u n d o o qual " m u i t o s são c h a m a d o s , m a s ficar clara — mais clara do que no próprio Foucault Representam, sem dúvida,
p o u c o s são os escolhidos". Assim c o m o lacunas f a z e m p a r t e d o m e r c a d o , a uma adaptação elementar e violenta dos indivíduos a coerções sociais, mas são,
falta d o extremamente necessário, assim t a m b é m o excesso d o supérfluo. M a s c o n t u d o , uma integração ao segundo grau: reações à coerção seletiva do mer-
o que fica ocioso, o que não é "escolhido", precisa, ainda assim, n u m m o m e n t o cado. A integração, porém, que por sua vez precede essa coerção, a primária, a
anterior, ter sido "chamado". O p o d e r de seleção d o m e r c a d o t e m c o m o pre- de "ser chamado" ao mercado, a obrigação de lá oferecer algo, ou a si próprio,
condição o p o d e r de integração. tornou-se, p o r um lado, tão óbvia, e por outro, tão abstrata — não há ninguém
É i m p o r t a n t e levar em consideração essa s e q ü ê n c i a , caso se q u e i r a fazer c o n c r e t a m e n t e que obrigue ou chame, vai-se p o r si só, por assim dizer, de
produtiva aquela visão a respeito da tecnologia social de exclusão, com a qual espontânea vontade — que suas conseqüências violentas ameaçam tornar-se
invisíveis. Mas nesse caso o olhar para a interpenetração específica da integração
Foucault enriqueceu a teoria social, q u a n d o analisou c o m o a sociedade europeia
e exclusão já se turvou. E fica ainda mais turvo quando o processo mundial de
começou, desde o século XVI, a separar loucos de "sãos", d o e n t e s de "saudá-
desregulamentação passa a ser sinônimo de desintegração. É impossível negar que
veis", delinqüentes de "normais" 6 9 . Os m o d e r n o s c o n c e i t o s de razão, saúde e
a desagregação é evidente, seja ela a do bloco soviético, do estado de bem-estar
normalidade foram constituídos, segundo Foucault, n o rastro desse processo
social, das metrópoles, da esfera pública. Todavia, tudo o que está desmoronando
de exclusão. Seu m o d e l o não dito, e n u n c a c l a r a m e n t e desenvolvido m e s m o
aqui são integrações secundárias, e uma teoria social que tematize apenas tais
por Foucault, é a racionalidade selecionadora d o m e r c a d o : o q u e não tem uso
esfacelamentos, p o r q u e o poder de integração primário, a força de sucção do
é deixado de lado. O r a , um fardo de palha ou u m c a r r e g a m e n t o de m i l h o q u e
mercado, lhe é incompreensível em todos os sentidos da palavra, comporta-se
fiquem parados, m o f a n d o em armazém, não representam um problema real para
c o m o uma psicanálise que optasse apenas por tratar de processos secundários
essa racionalidade. Em contrapartida, uma multidão de homens, dos quais foram
d o espírito, p o r q u e os primários lhe pareceriam por demais insondáveis. Ela
arrancadas as condições ancestrais de subsistência, que são considerados inúteis
abre m ã o de sua própria base, impossibilitando a abordagem dos nexos mais
para o processo produtivo, não p o d e ser armazenada assim tão facilmente. Toda
decisivos: que somente pode ser excluído aquele que anteriormente já estava
uma administração, u m a terapêutica e o c o n j u n t o das ciências h u m a n a s têm de
i n t e g r a d o às coerções do g r u p o c o m o um t o d o ; que a exclusão hoje ocorre
ser desenvolvidos para acalmá-los: por meio de e n t o r p e c i m e n t o , instituições
fechadas e medidas disciplinares e de ressocialização. Isso c o r r e s p o n d e t a n t o
7 0 O e n t u s i a s m o persistente que Foucault tem gerado se deve, além d a g r a n d e q u a n t i d a d e de material histó-
às primeiras grandes tentativas de domesticação da racionalidade mercantil rico q u e apresenta, e d o olhar que se move por diversas disciplinas, a falta de clareza recorrente e exc.tan-
te, q u e se foz sentir em todos os níveis de sua obra, a respeito de uma questão de base decisiva: , a razao um
q u a n t o aos primeiros passos para sua concretização total na sociedade. C o m o
p o d e r de seleção o u o p o d e r de seleção, apenas seu atributo? E a diferenciação entre razao e msanidade ela
o poder de seleção do mercado não tem controle sobre si próprio, ele tem de ser m e s m a insana, ou tornaram-se insanamente d i f e r e n ç a d a s apenas no p e n e d o m o d e r n o ? É ^ a d c d
saber, na verdade, vontade de poder, o u a verdade surge c o m o desenvolvimento d a vontade
traduzido no poder de definição da justiça, pedagogia, psiquiatria e medicina. p r ó p r i a 5 Essa fale, de clareza não é realmente necessária. A Dialética negaUva, de A d o r n o p o r exemplo.
O estudo dessa tradução, das práticas de admissão e internação, da m e d i c a - Mofe ia possibilidade d e pensar a razão c o m o uma mstància que. com e f e u o . nao p o d e f u n a o n a r sem
u m p o d e r dc identificação e seleção. mas que é ao mesmo t e m p o capaz de se elevar sobre s, mesma O la-
ção e da formação dos conceitos científicos, que t a n t o criam q u a n t o t r a t a m e ne, to d e Foucault, p o u c o antes de sua m o r t e , de não ter a p r i m o r a d o seu arsenal c o n c e i t u a i com o d a
Z Z Crítica, c o m o qual teria m u i t a afinidade, p o d e referir-se a isto: "Se tivesse c o n h e c i d o a Escola de
' k^r hora certa, isso me teria e c o n o m i z a d o m u i t o trabalho. N ã o teria d , t o algumas besteiras e nao
6 9 M . F o u c a u l t , D i e Geburt der Klinik, F r a n k f u r t , 1976; Wahsmnn und Gesellschaji, F r a n k f u r t , 1973; Überwa- o caminho." (Michel Foucault, Gcspràcb mit Gérard Raulet. Spuren, 1983. vol. 1, P . 2 , ) .
chen und Strafen, F r a n k f u r t , 1976.
sempre dentro da sociedade, e que os desempregados e os e sem-teto, longe dc
estarem excluídos do mercado, são aqueles q u e estão mais d e s p r o t e g i d a m e n t e cer, fazer c o m o os outros, ficar por dentro, seguir a moda, revela que a h o m o -
sujeitos às suas coerções, q u a n t o m e n o s p a r t i c i p e m de seus benefícios; q u e ser geneização completa já não é algo que o assuste minimamente, e então, coloca-
excluído p o d e significar t a n t o um vagar incessante q u a n t o o e n c l a u s u r a m e n t o se a questão sobre a razão disso: Por que na era da desregulamcntação desen-
em prisões, asilos, clínicas e instituições de retenção. freada nao há mais homogeneização ou por que sua forma microeletrônica se
t o r n o u tão abrangente e óbvia, que praticamente não é mais percebida?
Se por um lado, n o r m a l m e n t e , é m e l h o r ter t r a b a l h o d o q u e ser desempre-
gado, ter assistência do que ser deixado à m í n g u a , e se a prática política e social
é n u m p r i m e i r o m o m e n t o instada a p r e s t a r p r i m e i r o s socorros e a fornecer,
para aqueles que sofrem mais d i r e t a m e n t e a violência social primária, as com- Sensation seeking
pensações q u e se façam necessárias, p o r o u t r o lado é fatal concluir-se apressa-
damente que a integração seria em si boa, e a exclusão, má. A integração sempre A compulsão à emissão não é qualquer uma. Ela corresponde à força de sucção
se deu de forma compulsória, antes de tornar-se algo a se buscar, assim c o m o , d o mercado sob condições microeletrônicas. Não se trata, necessariamente, de
inversamente, o tabu sempre representou um "ser marcado", em um d u p l o sen- vestir uniformes ou andar em passos sincronizados, mas sim de estar "ligado",
tido: t a n t o ser excluído q u a n t o estar em evidência. O assassino distinguia-se em condições de emitir. C o m isso, o alemão Gleichschaltung, o "pôr na linha",
pelo apedrejamento, o xamã, pela santificação. A a m b i g ü i d a d e d o ser m a r c a d o recupera algo de seu sentido técnico original, deixando entrever algo de seu
não p o d e ser ignorada na história d o s g r a n d e s c o n f l i t o s da h u m a n i d a d e . Se alcance f u t u r o . E da mesma forma que a força integradora do mercado nunca
foi s o m e n t e econômica, nunca d e c i d i n d o apenas a respeito do trabalho ou
0 b a n i d o não entendesse a e x c o m u n h ã o t a m b é m c o m o distinção, sua perse-
desemprego, mas sempre também sobre uma aceitação ou rejeição, em certo
g u i d o t a m b é m c o m o grande eleição c prova, os p r o f e t a s d o Velho Testamen-
sentido, então, sobre o ser ou não ser, assim também essa pressão ontológica
to nao tc11,11)1 existido, nem <> cristianismo p r i m i t i v o , n e m a R e f o r m a , n e m
sob condições de uma compulsão generalizada para a emissão adquiriu uma
mesmo n pro/cthilt, ou «, lema / i / a i s beautifar. E q u e até a Estrela de Davi
forma estética. Dito inversamente: a estética ganhou u m peso ontológico como
nao esteja livre dessa ambigüidade foi algo q u e Ruth Klüger, uma sobrevivente
nunca tivera. Isso t a m b é m faz parte do esse estpercipi. Essa frase expressa não
d. A um h w i t / . vivetu iou d.i foi ma mais impressionante na escola, em V i e n a :
apenas a ontologia paradoxal da era microeletrônica, que uma existência sem
I I " ditcioi veio pessoalmente para.. sala c nos explicou a saudação hitlerista. presença eletrônica é u m aqui e agora sem um "aí", um não ser em um corpo
1 l « l . , / i , o K , sto p.u .1 nós, e a turma imitava, mas as crianças judias, elas t i n h a m vivo; t a m b é m aponta o que isso significa para a fisiologia da percepção. Sem
<!' I'.... sentadas no f u n d o c nao saudar. [...| Na aula de educação artística os dúvida, o emitir não é uma via de mão única. O n d e se emite também se recebe.
a l e g a s aprendiam a cola. st.ást k as (citas de papéis coloridos; nós, de q u a t r o a Mas se as estações de emissão são também estações de recepção, então o esse est
M h 1, 7
Í»Ji.»%. ciiláv.niio.s o que queríamos" '. " N ã o posso dizer q u e car- percipi contém também um esse estpercipere: ser é perceber. Em outras palavras:
•egav* a I st,ela de I)avi de mau grado. N a q u e l a s circunstâncias, ela parecia q u e m não tem sensações não é. Em um sentido especificamente fisiológico,
72
•<P'"I» ''ida. Se era para valer, então era para valer" . Era justamente o sinal de isso é m e r a m e n t e tautológico. Da mesma forma que a curvatura em relação
nao pcrteiKe. àqueles que tão d e s u m a n a m e n t e estampavam o sinal n o s o u t r o s ao círculo, a sensibilidade faz parte do organismo. Se não se p o d e mais sentir
N e s s e sentido, possuía a ambigüidade d o Ecce-bomo, pois deixava, contra sua é p o r q u e se está morto. A aparelhagem midiática, todavia, apodera-se desse
vontade, transparecer justamente em seu p o r t a d o r algo daquela dignidade q u e d a d o fisiológico dc sua própria maneira. Assim c o m o ofusca a irradiação de
estava a p o n t o de roubar completamente. A exclusão p o d e ser degradante, mas cada organismo, despotencializando-o até ele se tornar irreconhecível, assim
a integração também. Q u e m apenas quiser integração, nada mais d o que perten- t a m b é m o faz em relação à capacidade de percepção. C o m o parecem insossos
os estímulos d o meio imediato em comparação com aqueles que, berrantes,
se faz. Q u a n d o se está sob u m a torrente de água, os sentidos de equilíbrio e de choque. Na verdade, nem quer ser torrente. Torna-se uma, na medida em que cada
orientação, ou seja, uma c a m a d a p r o f u n d a d o s e n t i m e n t o de si p r ó p r i o , ficam um de seus elementos emite, ótica ou acusticamente, seu tão imperioso quanto
i m p l o r a n t e "percebe-a para que possa existir", que quer justamente se destacar
vitalmente afetados. Q u e m é pego em um r e d e m o i n h o tem a cada instante um
da torrente — contribuindo, assim, para sua perpetuidade. Cada imagem, cada
aqui e agora diferente. N o e n t a n t o , não p o d e localizar-se, orientar-se e, mui-
som luta pelo seu próprio "aí" de forma que imagens e sons se sucedem uns aos
to menos, apresentar-se. O a f o g a m e n t o na t o r r e n t e de estímulos é p a r e c i d o .
outros cada vez mais rápida e violentamente. É apenas necessário comparar a
N e m de longe tão veemente, mas i g u a l m e n t e c o n s t a n t e , ela t a m b é m ataca o
velocidade média com a qual as imagens passam no cinema e na televisão de
s e n t i d o de o r i e n t a ç ã o . N ã o cjLIc tire de eixo da m e s m a f o r m a , m a s t o c a e m
hoje com aquela de 30 anos atrás, para ter uma noção do que a "luta pelo aí"
algo que está i n t i m a m e n t e ligado à sensação de equilíbrio. Apenas na m e d i d a
significa. A t r e m e n d a aceleração não pode ser explicada como uma tendência
em que a percepção é capaz de fixar-se em algo, juntar-se a algo, é que ela p o d e
estética p o n t u a l com a qual grandes cineastas já sabiam antigamente expressar
tornar-se uma unidade concreta de experiência, p o d e dar coesão ao o r g a n i s m o
a inebriação, o sonho, o torpor, ou a desorientação; ela toma todos os campos.
sensível, u m a identidade, um "aí", t a n t o em sentido objetivo q u a n t o subjetivo:
Os videoclipes e os comerciais fornecem o ritmo; shows, documentários e jornais
c o m o o "aí" é algo de determinado, que posso localizar e fixar, posso eu m e s m o
seguem com maior ou menor distância. Mas a força de atração é generalizada, a
me localizar, ter um apoio, sentir-me c o m o u n i d a d e de m i n h a s percepções e
73
crescente movimentação das imagens manifesta a desconfiança contra o poder
sentimentos, estar "aí" . É justamente isso que a torrente impede, criando ainda
de efeito da imagem individual. Está apenas "aí", na medida em que a atenção
mais a necessidade desse "aí", uma sensação q u e se projete para fora d o fluxo,
está voltada para ela. Q u a n d o some, um outro "aí", uma nova imagem tem que
permitindo, assim, ao organismo vir à t o n a — c o m o alguém que, e m e r g i n d o
surgir. N ã o é o prazer da velocidade, c o m o o sentido pelos paraquedistas ou
de um sonho difuso e torturante, aliviado percebe os c o n t o r n o s c o n h e c i d o s d o
pilotos de corrida, que faz com que o ritmo das imagens seja acelerado, mas
ambiente e, assim, não apenas nota que está "aqui", p o r exemplo, em sua cama, estar assolado pelo m e d o de cair no abismo de não ser notado.
mas t a m b é m que é a pessoa tal, que existe, que está "aí".
A "luta pelo aí" tem então duas faces. A primeira c o r r e s p o n d e à luta con-
7 4 H á uma pesquisa e s p e c i a l m e n t e voltada para a sensation seeking. Ela mede, p o r m e i o de uma escala, "a
correncial generalizada pela presença midiática: a luta p a r a ser percebido. A necessidade de sensações novas, complexas c variadas" e a "prontidão para levar em c o n t a os riscos físicos
e sociais para o b t e r tais sensações". Nessa escala, são anotadas d e t e r m i n a d a s disposições de c o m p o r t a m e n -
outra, no entanto, é a luta pela percepção. N e m m e s m o isso é mais óbvio. Por to, resultados dc questionários elaborados e exames neurológicos, c o m o por exemplo " t b r i l ! a n d a d v e n t u -
um lado, pertence ao organismo c o m o aquilo que lhe é mais próprio; p o r outro, re seeking", i.e., "tendência para atividades arriscadas [...] dc vivências intensas ( m o n t a n h i s m o , paraquedis-
m o etc.)", "CAperience seeking". i.e., "tendência para novas experiências obtidas por meio de viagens, apre-
hquid.fica.se e evapora-se na torrente de estímulos. É u m a característica espe- ciação artística, n o v i d a d e s gastronômicas, pessoas interessantes". "disinhibition", i.e.. " t e n d ê n c i a para
desinibição em situações sociais, e.g., cm festas", 'boredom susceptibility", i.e.. "tendência a evitar exibições
cifica d o s e n t i m e n t o de nulidade da era microeletrônica ser ludibriado em sua
(de filmes), atividades e pessoas m o n ó t o n a s c repetitivas". (K. Schneider e F. Rheinberg, "Erlebnissuche
u n d Risikomotivation", in M. A m c l a n g ( c d ) , E m y k l o p i i d i e der Psychologie. G õ t t i n g e n , Bern, Toronto,
Seatde, 1996, vol. 3. pp. 409, 112). Correlacionam-se em seguida essas disposições, que. diz-se, "são condi-
73 cionadas t a n t o p o r experiências sociais q u a n t o p o r causas genéticas" (p. -i09), com fatores c o m o sexo,
S i r i : í S T i S T i S í ótcl r tcm uma ™ r a v i , h
— W , „ força egoica, iniciativa social, c o n f o r m i s m o , radicalismo (p. 413), para chegar a resultados tão iluminado-
qU,1 qUe Cada hoIricm ani
t u d o um -isso a r _ u X Z j , ' , ° ' ™< — é a n t e s de res, c o m o o de q u e uma percentagem significativa de h o m e n s não conformistas c c o m um forte ego que
( P É a e n M na
"seres 1 0 " , pac f ' " ' f • 'Y ' " " Y ^ P ™d i d
* «» o b s e r v o tais gostam d e subir m o n t a n h a s ou viajar. Q u a n t o mais p e d a n t e m e n t e essa f o r m a de pesquisa se perde n o
d e t a l h a m e n t o dos perfis d e sensação, t a n t o mais ignorante se torna diante da força niveladora da compul-
são à emissão e sua f o r m a de converter a sensation seeking e m uma disposição dc massa.
Essa tendência de intensificação tem n o sensation seekingseu correlato fisio-
também trabalham nesse sentido, quando a tela sobe como uma torre em volta
lógico. As sensações que agitadamente t o m a m o organismo, fazendo-se sentir
dos espectadores, procurando, por assim dizer, envolvê-los em imagens e sons.
em todas as suas fibras, e que parecem dar-lhe de volta a percepção subtraída, o
N ã o há intenção de que a impressão sensorial produza efeito, pois sabe-se que
sentimento pleno de si, são p r e c i s a m e n t e aquelas q u e o anestesiam. A q u a n -
ela é autêntica; em vez disso, o conhecimento de que se acaba de mergulhar
tidade de d a n o s auditivos p r o d u z i d a em jovens nas discotecas ou por meio
em um m u n d o de ilusão não deve mais ser páreo para aquilo que se impõe aos
de fones de ouvido tala p o r si só. O b o m b a r d e i o audiovisual faz os sentidos
sentidos. Porém, quanto mais eles são manipulados tecnologicamente, quanto
ficarem d o r m e n t e s . As sensações criam a necessidade de o u t r a s mais fortes.
mais fazem, por assim dizer, cócegas a cada um deles, tanto menos a percepção
A dose atual de imagens e sons de pessoas feridas, desfiguradas, aterrorizadas,
lhes pertence. Se as cócegas param, para também a sensação nelas contida. A
fugindo de algo, sem roupa, as cenas de assassinato e de sexo, q u e já represen- permanência das impressões é algo constitutivo da percepção própria, e também
tam a normalidade no cenário dos programas, p r a t i c a m e n t e n ã o mais p o d e m a elaboração ativa de estímulos, transformando-os em fermentos de experiên-
ser percebidas senão c o m o u m a preparatória para novas doses a u m e n t a d a s de cia própria. Os aparatos de sensação surgem assim como se quisessem auxiliar
excitaçào. A reality-TVè um verdadeiro progresso nessa linha. E s t a r á vivo o essa atividade. N o entanto, quanto mais p r o f u n d a m e n t e penetram o sistema
mais possível q u a n d o casas pegam fogo, aviões caem, pilotos de carros sofrem nervoso, tanto mais passam a organizar a percepção.
acidentes, q u a n d o se fazem reféns. Produzir o calafrio de u m a vivência autên- N ã o é possível vencer a luta pela percepção por meio de sensações audio-
tica: isto aqui não foi m o n t a d o , é de verdade. Por um c u r t o período de tempo, visuais. Pelo contrário, a percepção perde-se nisso, e em um duplo sentido.
a fascinação da autenticidade p o d e emanar dos mais tolos objetos d o dia a dia. N ã o sc trata apenas de que sua própria atividade se converta em uma atividade
O s funcionários d o Instituto de Informática de O x f o r d trabalhavam em um estranha. Ela também fica sob uma pressão constante para não notar o decisivo.
andar, mas a cozinha com o café, sempre necessário, encontrava-se em outro. O instrumento de direcionamento em meio à torrente midiática de estímulos
Instalou-se, assim, uma câmera na cozinha para que a casa inteira pudesse ver por da televisão é conhecidamente o controle remoto. Um aparelho fantástico. É
Intranet quanto café ainda havia na jarra. Mas isso não era suficiente. Certa feita, só apertar um botão e já se está livre das imposições de uma emissora, poden-
colocou-se a jarra de café na Internet, que estava então cm vias de desabrochar, d o ver o q u e as outras oferecem. A torrente de estímulos fica canalizada da
e ela foi visitada em massa: imagens completamente entediantes de u m a jarra de f o r m a mais conveniente, e de 50 até 100 emissoras ficam à disposição da livre
vidro enchendo-se gradualmente e sendo esvaziada, e cuja excitação residia em escolha d o espectador, por assim dizer, implorando-lhe. O u pelo menos é o
ver isso acontecer em um novo meio, em t e m p o real 75 . Cenários em 3D contri- que diz a propaganda, mas vejamos os fatos. Não se trata apenas de perguntar
buem à sua maneira para a sugestão de autenticidade. Vestimentas inteiras são o quão livre é a escolha entre dez novelas ou 12 programas de entrevista; cada
desenvolvidas, semelhantes às de pilotos de corrida e astronautas, consistindo escolha significa também deixar de lado outras possibilidades. Q u a n d o uma
de um capacete, n o qual está embutido o espetáculo audiovisual tridimensional, criança pode selecionar a mais bonita de cinco balas, ela alegra-se. Mas se tem
e uma roupa q u e oferece d e t e r m i n a d a s possibilidades de sensação c u t â n e a , que escolher entre 50 ou 100, ela sente-se sobrecarregada. C o m os adultos e os
m o t o r a e de d i r e c i o n a m e n t o . Tais vestimentas s u b m e r g e m o o r g a n i s m o em programas de televisão não é muito diferente. Cada escolha significa abrir mão
um m u n d o fechado de ilusões, no qual os sentidos são tratados isoladamente, de uma centena de outras possibilidades, cada decisão seguida da suspeita de
n e n h u m deles p o d e n d o mais escapar: o olho não p o d e mais projetar-se para ser equivocada. Os planejadores de programa há muito já levam isso em conta.
alem da tela e assegurar-se de que se trata apenas de um espetáculo; o ouvido Sequer preveem um telespectador que veja um programa do começo ao fim,
nao pode mais ouvir outros ruídos, a pele nada mais p o d e tocar. Novos cinemas e pressupõem o zapping ° como um c o m p o r t a m e n t o completamente normal.
me um
í a Iitcralm^Tc U m nwfo n á t ^ p o d " ' ^ ^' ntessagc, n ã o faz s e n t i d o , q u a n d o c t o m a - 76 "A palavra foi t o m a d a e m p r e s t a d a pelos especialistas c m p r o p a g a n d a d o linguajar d o s westems, em q u e
od
tender a t r a n ^ u m " . g " Ü a r ^ " " ^ ^ * * *•» P < significa literalmente apagar a tiros " o u seja, a "supressão do comercial televisivo", ao passo q u e a palavra
iss
a cerca de a r a m e filmados p o r l o n ^ * °' ° ^ * café o u c o r r e t a p a r a o "ir e vir p o r e n t r e d i f e r e n t e s canais ' é na realidade sivitcbing. ( H . Winkler, Switching —
05 C m CX reSsào dcss
dência, a f ó r m u l a acerta em c h e i o " """P' " ° ° P » <en- Zapping — Ein Text zum Thenta und ein paralUUaufendes L 'nterballungsprogramm. D a r m s t a d t . 1991,
E imediatamente aparecem teóricos da m í d i a que s a ú d a m o "zappista" c o m o
marginalizados, excluídos do processo de trabalho, de um salário digno ou de
pioneiro de uma nova estética, c o m o u m t i p o de c o m p o s i t o r de seu p r ó p r i o
serviços sociais elementares. N o entanto, a compulsão para emitir coloca esse
programa bizarro . A suposta atividade composicional é obviamente, antes de
fato sob uma luz difusa. Por um lado, ofusca-a por meio de um nivelamento.
qualquer coisa, uma inquietação m o t o r a , o correlato fisiológico da inquietação
Todos precisam emitir, criar uma sensação, falar a linguagem dos comerciais,
na tela, intensificada por velocidade de imagens e diversidade de canais: o não
se quiserem ver-se "aí": do guerrilheiro até o marqueteiro, do desempregado
poder esperar até o p r ó x i m o highlight, o e s t r a n h o m e d o p e r m a n e n t e de estar
até o alto executivo. Todos têm de estar antenados se quiserem participar da
no p r o g r a m a errado e perder, e n q u a n t o se assiste a algo r a z o a v e l m e n t e inte-
conversa. Por outro lado, a marginalização é aumentada justamente por causa
ressante, outra coisa m u i t o mais atrativa. Isso afeta t o d a a maneira c o m q u e a
disso. A televisão conseguiu realizar o feito, c o m o diz Anders, de "trazer o
percepção se dá. Basta apenas uma q u e d a de tensão e m um p r o g r a m a , e m e s m o m u n d o para casa". Por um lado, ele é meu convidado, e faço-me presente na
que seja somente p o r q u e ele se torna algo mais ambicioso, exigindo um p o u c o m e d i d a em que participo de sua presença etérea. Por outro, cada emissão me
de concentração e paciência, e o polegar já c o m e ç a a coçar p a r a a p e r t a r o bo- mostra que o que é de interesse se passa sempre em outro espaço: nos lugares
tão de troca de canais. Dá-se o m e s m o na Internet. Escreve-se o t e r m o de busca a partir dos quais se faz a transmissão, e de forma alguma no local trivial onde
"Nietzsche" e obtêm-se mil títulos e milhares de links e referências cruzadas. estou sentado. A tela que me liga ao m u n d o todo é também a divisória que me
Percorrê-los de fato significa perder-se. N ã o percorrê-los significa correr o risco ,separa dele, fazendo o próprio domicílio assemelhar-se a um posto a n ô n i m o de
de ignorar o mais i m p o r t a n t e diante dos p r ó p r i o s olhos. T o d o o sistema de hi- quarentena e gerando um novo estado: o do excluído completamente integrado.
pertexto está organizado dessa forma. O olho d o leitor encontra constantemente M e s m o os mais pobres encontram uma tela que os faz participar do mundo, e
conceitos marcados c h a m a n d o para o u t r o s textos q u e p r o m e t e m u m a leitura m e s m o os pioneiros das novas mídias passam pela experiência, diante dela, de
mais excitante d o q u e a q u e se faz agora, e apenas o e s f o r ç o de u m a negação não estarem completamente à altura dos acontecimentos. É verdade que, por
teimosa contra tais saltos de página p e r m i t e que se esteja e m c o n d i ç õ e s dc ler meio de teleconferências, podem, em poucos segundos, reunir audiovisualmente
o texto em questão, de uma vez só, até o fim. Cria-se aqui u m imenso potencial pessoas de diferentes partes do m u n d o para discussões ou negociações. Porém
ocasionam com isso menos o calor h u m a n o do que a parceria comercial e a
de distração, um tipo de percepção q u e n ã o mais sente a si p r ó p r i a c o m o tal,
pressão concorrencial. Cada conexão de negócios em rede deixa o sentimento
p o r q u e está à disposição, não p o d e mais envolver-se c o m nada sem reservas,
de incerteza se não haveria outra melhor; cada transmissão de dados transmite
sempre m i r a n d o de soslaio para outras coisas. Sua suspeita p e r m a n e n t e : o n d e
t a m b é m a experiência de quantos outros existem aos quais não se tem acesso.
estou não é o "aí". Estou excluído d o q u e é decisivo.
Sempre haverá, em algum lugar, gente que vai estar bem mais à frente em termos
Se por certo tempo parecia que, pelo menos nos países ocidentais d o estado
de tecnologia, hardware ou software, informações ou conexão. A integração
de bem-estar social, as durezas da formação social capitalista haviam sido ame- midiática total alimenta a suspeita de já se estar excluído do que é decisivo.
nizadas a p o n t o de se t o r n a r e m insignificantes, o neoliberalismo dissipou essa Desempregados, idosos e exilados sentem de forma muito concreta que o lugar
ilusão. O n d e quer que sua desregulamentação t o m e força, a u m e n t a com í m p e t o o n d e se e n c o n t r a m não tem u m "aí". Mas aqueles muitos que se e n c o n t r a m
renovado a distância entre ricos e pobres. M e s m o n o s países ricos não f a l t a m empregados e que têm todos os dias de manhã de passar pelo engarrafamento
para chegar a um trabalho mais ou menos indiferente, voltando à noite pelo
— P- os engarrafamento, sentem o mesmo, à sua maneira. E não é mais possível deter-
minar com total certeza se a sua necessidade de sensações, atrelada a seu "aí",
CU,Ulral t C COm
f T » " «" * -SC « « l a d a sala d e estar u m
te. uma . u n ç ã o d e l S * ^ ^ d o s
«nais: potencial,,,-,, representa um querer sair, digamos, da integração triturante dos negócios, ou
u m a irregularidade ^ r o g r a m a d " assuntos, cores e a t m o s f e r a s d i s t i n t o s , um querer entrar, a saber, nos próprios sentimentos, percepções, ou na vida que
P- 265). I assim o u e J o ã o c T o ^ o n m ™ £ ^ Audiovisioneu. Ránbck, 1989,
precisa de uma complexa ^ 3 A '^ ^ T " * "" ^ a
P " ° M - Derrida
os negócios lhes retiram. A marginalização, um fato na realidade objetificável
, i m ü n O V O rÍCO
que. não c o n s e g u i n d o ^ ^ ' ^ " » Molièrc. sociologicamente, em parte até quantificável estatisticamente, dissolve-se em
0 J4 dC 4 an S
prosa, sem q u e fsso n ^ ^ ^ ^ ,^ " ** ^ ° ° ^ «»
m C CSdarCCCr
^ « Edet^Zoll *^ ^
um estado generalizado no qual estar excluído e se sentir excluído se t o r n a m
indiferenciáveis, e cujas manifestações p o d e m cada vez menos ser apreendidas m e n t a r vem à t o n a nisso. Há uma passagem bíblica que o resume com uma
por meio de uma sociologia de estratos ou dc a m b i e n t e . concisão invejável: "E o Senhor fez uma marca em Caim, de forma que ninguém
o matasse q u a n d o o encontrasse" (Gênesis 4, 15). Por um lado, trata-se de um
t r e c h o que não faz m u i t o sentido. Q u e m mataria Caim? Seu irmão Abel, ele
Tattoo - Piercing - Amok (Caim) acabara de matar, restando apenas Adão e Eva, seus pais. Até então não
havia mais ninguém. E, no entanto, essa é uma passagem fundamental. Não dá
As sensações audiovisuais fascinam. Fazem o dia a dia, n o qual cintilam, cm- indícios de c o m o a marca foi feita. Mas o que a linguagem burocrática chama
palidecer. Mas também frustram. M a n t ê m o sensacional, que t o r n a m próximo, de "características definitivas", exigindo sua presença em documentos de iden-
à distância. São o seu substituto. Assim, d ã o origem à exigência de mais subs- tificação, são n o r m a l m e n t e cicatrizes. A marca de C a i m só faz sentido se é
titutos e de mais do que substitutos. N o desejo de reality-shows mais d u r o s de concebida c o m o algo talhado, a inscrição de um corte, um branding: a forma
mais câmeras ao vivo, de cenários tridimensionais mais plásticos, encontra-se primordial da tatuagem. É claro, são os próprios homens que as infligem, mas
ao mesmo tempo, o desejo mais radical de t o d o esse m u n d o de ilusão audiovi- c o m o se u m a força maior guiasse suas mãos, como se Deus Ele mesmo impri-
sual de se apoderar, p o r meio da tela e d o m o n i t o r , d a q u i l o q u e aparece neles misse a marca, deixando, assim, sentir o poder que está a p o n t o de tomar-lhes
apenas c o m o um engodo. Esse desejo, n o entanto, n ã o p o d e ser a d m i t i d o . Far- c o m o possessão e sob proteção. A marca significa: pertenço a tal e tal força
se-ia hgura absolutamente estúpida, se se tentasse destruir o m o n i t o r para captu- superior, sou por ela protegido, e mesmo definido; minha identidade jaz nela.
rar as coisas mesmas, ou seja, sem as coisas, sem suas imagens, e c o m u m a tele- A tatuagem corresponde a uma primeira forma de escrita, a cicatriz talhada
visão ou um c o m p u t a d o r quebrado, sendo o o b j e t o de pilhéria de t o d o s à sua pela assinatura da divindade, e o o r n a m e n t o representa seu acessório sobre
volta. E, n o entanto, esse desejo existe. Desde q u e os h o m e n s tiveram de passar a pele: o material brilhante no qual a força divina se reflete e pela qual os ini-
a g a n h a r a vida c o m o "apêndices das m á q u i n a s - , a agressividade c o n t r a as migos são repelidos. Penas, dentes e ossos podem desempenhar o mesmo papel,
maquinas tem sido um ímpeto bem humano. A "vergonha prometeica» correspon- se devidamente preparados, mas os metais preciosos são preferíveis" 9 .
de ao tabu que se fez disso: a f o r m a com q u e uma sociedade inteira se p r o í b e Aqueles que hoje usam anéis nos narizes e lábios freqüentemente não sa-
tal1 ímpeto. Isso acontece p o r meio de uma inversão. O desejo de aniqtulação bem por que e c o m o os chamados povos primitivos o faziam. Mas, mesmo que
desconheçam completamente a origem sagrada dessas práticas, normalmente
o 3 C O n V e r t e " S C " Sentimem° ^ nã° ~ sou
eu d o q u e assimilam sua f u n ç ã o criadora de identidade com a certeza dos sonâmbulos.
-sou capaz - em c o m p a r a ç ã o com esses aparelhos fabulosos? Mas o n d e h i a N ã o q u e necessariamente se submetessem a uma força superior, de maneira,
vergonha promete,ca também prolifera a ira prometeica. Ela é p o r demais p r i
então, que simplesmente entrassem no lugar das forças divinas, dos ancestrais
É 1 : : d,fUSa P a r a t e r P a , a v r a s Claras- p o r é m , f o r m a s de e x p i e i ou da tribo ou g r u p o ao qual pertencessem e cujo signo de r e c o n h e c i m e n t o
t apenas necessário aprender a lê-las. U m a p a r t i c u l a r m e n t e bem m a s c a r a d a ' se imprimisse na pele. Isso acontece apenas em casos isolados, e não represen-
mas nem p o r isso menos manifesta, sena a m o d a d o body pierTngZlTul
tativos. O piercing e a tatuagem têm sua mais ampla difusão c o m o algo bem
individualizado. Representam, sim, atos de aquisição de poder, mas de um
p o d e r sobre si. Seu lema, expresso filosoficamente: sentio, ergo sum. C o m o é
= s i s p p = s = que alguém, em condições de audiovisualidade total, p o d e assegurar-se de si
rio são botões; o que exigem é que se os tateiem. São utilizados c o m delicadas c o ç a n d o de vontade", torna-se uma tortura q u a n d o não há nada com que se
possa coçar, salvo apenas um rastelo ou uma buldôzer - e quando faltam todos
pontas dos dedos, deslizando rapidamente sobre suas superfícies até escorregar
os i n s t r u m e n t o s de coçar e arranhar que relativamente pudessem ajudar. U m a
para outros lugares, não t e n d o nunca algo q u e possa ser agarrado. D a í a p r o -
irritação difusa, não localizável, que quase não se sente, surge de uma torrente
f u n d a ânsia p o r experiências táteis, t a n t o n o s e n t i d o de q u e as sensações au-
de sensações p r e d o m i n a n t e m e n t e audiovisuais, sendo deixada, intocada, a si
diovisuais em rápida sucessão adiram, p r e n d a m , m a r q u e m e forneçam apoio,
própria, por assim dizer, entre as quatro paredes estofadas de uma vida, na qual
em vez de m e r a m e n t e oferecer estímulos passageiros, q u a n t o t a m b é m n o sen-
não se é percebido, mas também não se percebe realmente, não se é por nada
tido de que o p r ó p r i o indivíduo queira p ô r as mãos, t a n t o física q u a n t o meta-
verdadeiramente tocado, sem ao mesmo tempo poder tomar nada nas mãos:
foricamente. N o piercing, essa ânsia e n c o n t r o u u m a válvula de escape bem
q u a n d o essa irritação se converte em uma condição para a sociabilidade geral,
digerível socialmente. A ira p r o m c t ê u t i c a articula-se aqui m u i t o avergonha-
então surge a questão: É de espantar que comece a querer ser descarregada de
damente com matizes masoquistas. Ela pode, sem dúvida, descarregar-se tam-
f o r m a excessiva e excepcional e que surja uma exigência incontrolável de mer-
bém muito robustamente em algo exterior. Q u a n d o funcionários de escritórios
gulhar na vida real e com uma tal falta de instintos contra seus perigos reais
fazem férias aventureiras ou praticam esportes radicais, referem-se n a maioria
q u e só o exílio n o m u n d o audiovisual p o d e produzir? N a t u r a l m e n t e , cada
das vezes à "compensação" que p r o c u r a m para u m a rotina p o b r e em experiên-
caso é u m caso; cada um possui seus próprios motivos. Mas todos esses casos
cias. E por que a busca p o r compensação, ou, d i z e n d o de f o r m a mais extrema,
que hoje em dia geram desde a perplexidade até o terror têm algo em comum:
p o r recompensa, por ajuste de contas, ou vingança não estaria em jogo q u a n d o
uma desproporção, para não dizer uma total falta de proporção, de arrepiar os
jovens se entregam a uma seita ou às drogas ou atacam estrangeiros, colegas de cabelos, c o m o se lhes faltasse contato com as coisas e com os seres vivos com
escola ou transeuntes - não em u m acerto de contas p o r atos d e t e r m i n a d o s que lidam ao seu redor, uma relação com eles. Há, assim, os jovens que dançam
mas em relação a um ambiente indiferente e fugaz, que os faz bater em borracha sobre os vagões de trem, quando cada movimento em falso, cada salto atrasado,
os cerca ou os a f u n d a em e n c h i m e n t o s de algodão, não o f e r e c e n d o n e n h u m a p o d e ser fatal; 011 então se deitam obliquamente na rua para testar se os carros
resistência confiável em relação à qual possam ter uma experiência c o n t i n u a d a desviarão. N ã o brigam apenas aos socos, mas batem e chutam até que o atin-
de s, próprios. Se é possível trazer alguma luz aos atos de violência aparente- gido não mais possa mover-se; não somente xingam os professores malvistos,
mente desmotivados que se dão nas escolas e n o m u n d o da subeultura jovem mas apunhalam-nos, e existem aqueles casos de excesso insano quando alunos
eles tem de ser inseridos nesse c o n t e x t o mais amplo. invadem a sala de aula atirando em colegas e professores (Littleton), ou quando
um e s t u d a n t e atira de sua janela aleatoriamente em transeuntes, para depois
m a t a r sua irmã e a si próprio (Bad Reichenhall) — não porque estivessem em
u m a situação sem saída, ou gravemente feridos, ou houvessem sido desmo-
ralizados, ou ainda p o r q u e quisessem chamar a atenção para desigualdades
81 é
E z r r j ^ r - ~ • — terríveis, realizar um programa político, ou enriquecer, mas por quê? Faltam
p r i m e i r a o r d e m . " O interesse p r e m e n t e I n t ? c o n s c i e n t e d e s. - u m d e s a f i o filosófico d e
[-..] C a d a estação t r a , em ^ s T í n l v Í c T a t T Í ^ ° ^ í , ™ ^ P - n a i s . motivos concretos. A mãe sem afeto, o pai portador de armas, desempregado e
8
Q u e m soubesse lê-los saberia de n Z ã o o """f C°d,ficados sccr s
« ° * coisas v i n d o u r a s ,
" o v o s dispositivos legais, g u e r r t 2 *^ ' T ^ n O W CC déndaS d
" > dos
com tendências ao alcoolismo e à violência, o fracasso no colégio, o professor
[Obras completas], R T i e d e m a n n e
B EXCITADA: FILOSOFIA DA SENSAÇÃO P A R A D I G M A DA S E N S A Ç Ã O
SOCIEDAD
autoritário, os colegas de sala p r o v o c a d o s e sabe-se Ia o que mais da historia ato — para a qual há, no entanto, causas claramente nomeáveis. Sem dúvida,
de vida específica de cada um: nada disso tem normalmente uma relaçao com a perda em experiências e palpabilidade que a implementação das condições
a gravidade do ato, para o qual, via de regra, o agente, ele m e s m o nao t e m de vida audiovisuais traz consigo é dificilmente comprovável em casos indivi-
palavras, sejam de esclarecimento, de horror, ou arrependimento. Sao c o m o duais, p o r ser tão difusa. Todavia, sua falta de nitidez representa apenas o outro
um enigma para eles próprios - e desprovidos de qualquer interesse digno de lado de seu alastramento mundial. E tal expansão é tão clara quanto o impulso
nota para resolvê-lo. O "ódio", que mais freqüentemente fornecem c o m o motivo globalizante atual c o m o um todo. Q u e r dizer, a perda em palpabilidade será
para seus atos. parece mais uma mensagem cifrada do que uma chave para seu tão mais opressivamente vivcnciada quanto mais difusa, quanto mais aquilo
comportamento. Age tão difusa e incompreensivelmente quanto a torrente de que se perde não forem objetos determinados, mas a própria objetivação. É um
estímulos audiovisuais, que ele em grande medida faz parar - c o m o se fosse processo que tem c o m o característica a perda de algo sem nome, para o qual as
meramente enxertado nos respectivos pais, professores, colegas ou estranhos, palavras faltam, e que, na medida em que adquire uma natureza global, passa
contra os quais se volta, a cada ocorrência dirigível a outros objetos. A pala- gradualmente a representar um poder de uma disposição frustradora supraindi-
vra "ódio" soa, na boca dos culpados, como um refúgio que p r o p o r c i o n a u m vidual, para cuja descarga as frustrações individuais possivelmente não passem
nome, uma plausibilidade, uma causa para suas ações, encaixando-se, assim, de válvulas de escape. C o m efeito, essa raiva difusa que irrompe repentina,
no arcabouço conceituai usual da psicologia — individual, de grupo, ou d o excessiva e extaticamente nos atos violentos dos jovens poderia ser um arauto
meio —, servindo às necessidades de explicação dos terapeutas, e a b r i n d o u m de u m a tal disposição, u m a nova imediaticidade de forças globais agindo no
pequeno espaço de manobra: se dizemos o que querem ouvir, então talvez nos sistema nervoso individual. Seja como for, a raiva possui todas as característi-
deixem logo em paz82. cas de u m a sensation seeking desesperada. É atendo-se a algo que se sente em
Em suma, é difícil determinar os motivos individuais, difícil dizer se estão si p r ó p r i o ; agarrar até que o agarrado deixe de esboçar qualquer resistência e
somente ocultos, ou se nem mesmo existem. Mas justamente essa falta de clareza tenha proporcionado toda a satisfação táctil possível: na incapacidade de poder
1 az parte do perfil supraindividual do infrator. O que lhe é mais significativo é parar de bater, até que o objeto das pancadas não mais se mexa, celebra-se o
não poder reconhecer motivos importantes para seus atos. Não poder compreen- t r i u n f o do pegar, festas da certificação de si. Por ao menos um instante, sair da
der o que levou à ação: isso os criminosos têm em comum com os terapeutas, insensível cela de paredes forradas: Sentio, ergo sum.
juristas e comentaristas. Mas e se precisamente essa falta de motivos concretos
tosse o motivo? Se fosse simplesmente necessário inverter a frase? O que levou
ao ato é justamente esse não poder compreender: um déficit de tato, t a n t o em C o m p l e x o - Dispositivo - Paradigma
sentido literal quanto metafórico 83 . A irritação sensível-insensível que deixa nas
pessoas não é meramente um produto "da televisão", mas de um ambiente, para Mostrou-se que a sensação corresponde a todo um complexo de elementos. Em
nao dizer de um mundo, que está prestes a transmitir todos os sinais importantes primeiro lugar, algo subjetivo: a percepção; depois, sua intensificação: percep-
em telas Uisplays. Com isso, nenhum dos casos mencionados perde sua incom- ção daquilo que chama a atenção; em seguida, algo objetivo, aquilo que chama
preensibilidade, mas esta adquire certa inteligibilidade. Ela apresenta-se c o m o a atenção; e, p o r fim, a interpenetração e a intensificação recíprocas do subje-
nova forma,de uma relação de pouca nitidez entre causa e efeito, motivação e tivo e d o objetivo. Ambos são m o m e n t o s de uma compulsão generalizada a
emitir, que t a n t o faz com que a luta pela existência seja cada vez mais estetiza-
da em uma luta pela percepção q u a n t o torna "o que chama a atenção" um si-
direita e à comprovação do ^ ^ ^ ^ ^ ^ ^ P ^ * *
escudo fundamental d . A. Gruschka. ^ ^ * ° n ô n i m o para a sensação, e sua percepção em percepção tout court. O caso ex-
83 As tentativas recentes dc incentivo do cato - c o m o por e * . m „ l " t r e m o da sensação passa a aproximar-se do normal; aquilo que não chama a
M W e 0 u
)ogos táteispedagógicos, ou ate mesmo experimentos dc toou 7 "
uma
" expressão desse
uesse déficit
aejicit do que ttestemunhos
e s t e dem« , a uc „ „n h - o v ,i J
a" " •»«--•
I n t e r n" e t —
- sao
são m u i t o mais
atenção n ã o é notado. E a sensação torna-se uma necessidade vital. F. imperio-
chichte$rSinne. VonderA„1 bisztim so provocá-la e obtê-la se se quiser sentir "aí", ganhar a vida em sentido literal
. /
um lado, uma compulsão d o mer- e s p o n t a n e a m e n t e . Mas cada u m a se estende também para além das relaçc
e figurado. A compulsão para emitir e, por oes
sociais de p o d e r que nela se imprimem. A forma de percepção neutrali
cado: a forma tecnologicamente avançada da velha luta concorrencial capita- íza-as
ao torná-las condições universais de socialização. Dessa forma, também cresce
lista, que traz consigo todas as suas hipotecas por resolver, como sua coerçao
o complexo de sensação daqueles que sob ele se formam. Ninguém pode mais
de expansão, suas relações de exploração e exclusão, que tão somente redefine,
perceber e expressar-se, senão sob as condições que esse complexo impõe: ne-
e cujo saldo apenas posterga. Por outro lado, a compulsão a emitir leva a cabo
n h u m a política, n e n h u m a arte, n e n h u m saber científico. Mesmo a reflexão
um processo de nivelamento e de transposição que vai além disso. Todos, in-
que aqui é exposta lhe é subordinada, mas fornece a comprovação de que suas
dependentemente de quem sejam, são envolvidos por ela. N i n g u é m é ou está
condições de percepção não correspondem aos seus limites de pensamento. O
"aí" sem se submeter à pressão de emitir. No entanto, esse "aí", cuja ambivalen-
complexo "sensação", assim, aproxima-se muito daquilo que Foucault chama
te multiplicidade de sentidos foi várias vezes apontada neste capítulo, começa
de "dispositivo": "um c o n j u n t o definido e heterogêneo que engloba discursos,
então a adquirir uma memorável vida própria. A transformação do brilho pes-
instituições, e m p r e e n d i m e n t o s arquiteturais, decisões regulamentadoras, leis,
soal em um brilho etéreo levou a uma usurpação do pessoal, p r o d u z i n d o o
medidas administrativas, pronunciamentos científicos, proposições filosóficas,
paradoxo ontológico de um aqui e agora sem um "aí", e um "aí" sem aqui e
morais ou filantrópicas, em suma: tanto aquilo que é dito quanto o não dito.
agora. Este último, o etéreo, é tão "inquieto e vão na terra"8"1 como apenas o foi
São esses os elementos d o dispositivo. O próprio dispositivo é a rede que pode
a maldição divina sobre Caim, o assassino. Mas o aqui e agora, ao perder seu
"aí", também se converte, à sua maneira, em algo "inquieto e vão", isto é, cai em ser tecida entre tais elementos" 8 5 . A loucura e a sexualidade foram os exem-
um estado em que sua percepção deixa de ser sua, e seu sistema sensorial é plos privilegiados de Foucault para essas "redes". A sensação poderia ainda ser
afetado até as camadas mais profundas da percepção de equilíbrio e da orien- evidenciada c o m o algo outro. Não é isso que se fará aqui, pois um conceito se
tação espacial. Ele precisa lutar por suas próprias sensações, que o atingem em impõe, ainda mais abrangente e fundamental, sob o qual o âmbito histórico
todas as faculdades sensoriais e que instauram a identidade, d e f e n d e n d o - s e , do complexo da sensação se torna de todo acessível; um conceito, aliás, para o
assim, da torrente de sensações audiovisuais que se lhe impõem. É claro, nisso qual, inversamente, o complexo da sensação poderia fornecer certa reabilitação
também se dá a continuação de algo que o capitalismo trouxe ao m u n d o : a e a p r o f u n d a m e n t o : o de paradigma. A inflação que o conceito sofreu não lhe
produção da pobreza por meio do excesso. A estrutura das crises de superpro- foi benéfica. H o j e , o m u n d o todo fala, em cada mudança de tendências ou de
dução imprime-se no aparato sensorial. No entanto, sucede-se algo de a i n d a opiniões, de uma troca de paradigma. Na verdade, Thomas S. Kuhn não pensava
mais básico: o não ter lugar torna-se uma condição para a percepção. Ter um em algo tão trivial q u a n d o forjou o conceito. Paradigmas não representavam
lugar deixa de ser óbvio, quando o aqui e agora passa a ser multiplicável ao para ele u m a teoria ou visão qualquer, mas sim aquelas que, no âmbito de uma
bel-prazer, intercambiável, indiferente. A luta pela percepção converte-se, tam- cultura, são tão f u n d a m e n t a i s que qualquer outra abordagem do m u n d o so-
bém, em uma luta contra tal indiferença. Dar um lugar para um aqui e agora m e n t e p o d e surgir sob suas bases, como, por exemplo, "a Física de Aristóteles,
significa dotá-lo de um pertencimento, um contexto, um significado, u m sen- o Almagesto de Ptolomeu, os Principia ou a Óptica de Newton, a Eletricidade
tido E isso vale para pessoas. Por isso o direito a asilo é tão precioso. Mas isso dc Franklin e a Química de Lavoisier" 86 . E há, para Kuhn, algo como o paradig-
também e valido para percepções. Uma percepção que não t e n h a um lugar n o ma das m u d a n ç a s de paradigma: a revolução copernicana 8 '. Aparentemente,
tratava-se apenas de u m problema astronômico: que determinados planetas
meu sistema nervoso pode sem dúvida afligir-me e torturar-me, mas n u n c a
realmente pertencer-me. não se movessem ciclicamente em torno da Terra, como deveriam, segundo a
que desde então se lhe sobrepuseram 9 ". teórica para uma sensação vital de mundo. Esse processo entra agora em seu
estágio manifesto, sem que ninguém por detrás dos panos o controle, condu-
O paradigma copernicano também se distingue pelo fato de que, p o r assim
z i n d o - o intencionalmente para o estabelecimento de um novo paradigma. O
dizer, se faz sentir postumamente. Com uma grande defasagem temporal, m u i t o
novo consolida-se, no entanto, como algo natural, acéfalo, por meio de forças
após ter sido cientificamente ultrapassado e reincorporado por outras teorias,
não coordenadas de uma compulsão global à emissão, dando a ver que o novo
começa a impor-se fisiológica e esteticamente. Encontra-se, aqui, um notável
paradigma corresponde ao velho póstumo. É como uma estrela cuja luz só chega
descompasso em funcionamento, que remonta a algo f u n d a m e n t a l : a capaci-
a o u t r a região cósmica depois de ter ela mesma morrido. A revolução coperni-
dade do sistema nervoso humano de formar conceitos. Estes não estão ligados
cana, há m u i t o passada, apenas com a revolução microeletrônica celebra seu
a um aqui e agora; podem mover-se, como memória, para o passado e, c o m o
advento nas profundezas do sistema nervoso. Somente agora seu chocante teor
expectativa, para o futuro. Foi uma espécie de golpe de gênio de Epicuro q u a n d o
cosmológico se converte em uma disposição sensorial elementar: em uma forma
chamou os conceitos deprolepsis: antecipações». Na realidade, eles são algo
de estruturação da sensação. Mais ainda: a concepção de mundo copernicana
secundano: sensações e percepções volatizadas e universalizadas". Mas, uma vez
torna-se então, n o sentido rigoroso do termo, uma visão de mundo.
existentes, antecipam toda a experiência subsequente. Funcionam c o m o recep-
aculos mentais abstratos, dentro dos quais as sensações e percepções concretas Dessa maneira, abre-se abruptamente no conceito de paradigma uma dimen-
são p r o f u n d a , fisiológico-estética, a qual não ocorreu a ninguém que participou
Sed mentam e n
; ' * * L° — • P<" - a i s que haja sedimentação, n u n c a são
d o d e b a t e teórico-científico iniciado por Kuhn. Discutiu-se aí a respeito de
completamente preenchidos. Por mais certo que seja que ao conceit^ d e T v o r e
q u a n d o uma teoria científica seria tão f u n d a m e n t a l a p o n t o de satisfazer os
precedem expenências de muitas árvores i n d i v i d u ^ t a m b é m é c 1
as resjamais u e
™::r a í ; t o d a s
r z z :
critérios de um novo paradigma, e qual combinação de motivações racionais
e irracionais levam à sua implementação. Mas o sistema nervoso, o ponto de
partida de todas as teorias em disputa, foi tacitamente aceito como um dado
c o n s t a n t e da constituição humana. N o entanto, agora fica claro que ele é tão
p o u c o imutável q u a n t o as próprias teorias. O discurso epistemológico da mu-
dança de paradigmas esbarra grosseiramente em pressuposições fisiológicas
lV l
n i c d i d a c m que não procedeu i m i A i f • -
domncdtoi ^ po :x Q I I R S R R °KUHN1F 1 - — irrefletidas. Suas coordenadas são deslocadas. Sob certa perspectiva, o paradigma
da sensação é mais "paradigmático" do que o concebido por Kuhn: não apenas
não importa que ele esteja na Terra ou no Sol, ou em alguma outra estrela, tem sem-
pre a impressão de localizar-se, por assim dizer, em um ponto central imóvel, e que
tudo o mais se movimenta, por isso também iria, enconcrando-se no Sol, na Terra,
na Lua, em Marte etc., formar certamente novos polos. De sorte que a arquitetura
do mundo é como se toda parte tivesse o seu centro e em lugar algum a sua periferia,
C O m H
Í ^ S t E S S ^ ^ tf f ° à emissáo, parece ser uma vez que sua periferia e seu ponto central são Deus, que se encontra em todos os
dam por meio da ^ Z ^ ^ M ^ l 7/° T ™ ^ "<«
M u n i lugares e em lugar nenhum 1 .
Mcnscbcnmarkt. Rcinbek. 2001) No c « a n t o ' f 1 ' ^ ^ ^ ^ 1998= A" Künzli.
na relação entre revoluções J o I T ^ ^ t Z Z ' ^ ^ ^ "
s,muI
depois a biocecnológica; ou. aqui uma lá a J r l P j . « ™ < W e : primeiro a microeletrônica,
E esse autor não acabou na fogueira? Muito pelo contrário: acabou como um
modificam, e s p e r a m as " ^ Y * ^ ^
n.co, também a biocecnológica surge sob c o n d i r i ' . ° C ° r r C U S o b e o n d i Ç õ « da de Copér- n o b r e cardeal. Q u e D e u s esteja "em todos os lugares e em lugar nenhum", um
h o m e n s - física estética, . L t a . n ^ e ^ I Z t Z t t ^ W ' -
dos na moderna luta pelo "ai". É isso que faz a n o c i n n c P 0SSlbllltar
bem-sucedi-
p e n s a m e n t o que soa suspeitosamente panteísta, se não chega até a ser ateísta,
a medida fosse a perfeição, não haveria o q e r c c \ Z r M ^ " ' í m c d i d a * » a s s o m b r a d o r u . Se converte-se aqui em um p o n t o de fuga intangível da ortodoxia, tão somente outra
c uais
•deais sob condições de compulsão a ' - as m e d i d a s
tancias e p o n t o s de vista, está "aí", se faz ver, n T ™ ^ Sob todas as
circuns- expressão para a idéia de que Deus seja ao mesmo tempo a completa unidade
Michael Jackson procurou fazer eom o auxíl o d o S e i ^ c a ^ f * ™ ™ Aquilo que
C O m
e totalidade - a absoluta identidade de tudo aquilo que para a expenencia e
m u c a a engenharia genética deve proporcionar d ^ ° P " - ' v a m e , u C diletantes da cirurgia cos-
a conf
« Ç à o da forma h u m a n í midiática e m " o Z ^tangenteeprofissio-
mCn 6
; : " possibilidades e os riscos da e n g e n h a r i a l ^ ^ ^ J " * * ' ™ - " " «clonal-
C o n
paradigma da sensação como sua P r e c o n ! i ç ã o q a f " r a " s o d 7 — ™ c e o
1 N i c o l a u d e Gusa, De docta garantia. Diebelebrte Vnurissenbei, Livro 11.2-ed. H a m b u r g o . 1977. p. 95.
limitação humanas sempre sc divide apenas em sucessões e paralelos. E assim, comprovado: que a percepção não é algo que acontece passiva e irracionalmen-
Nikolaus de Kues, chamado de Nicolau de Cusa, p ô d e permitir-se relativizar, te, mas u m trabalho complexo de transformação, no qual os diferentes órgãos
em vista desse absoluto, concepções espaçotemporais inteiras. M e s m o às formas sensoriais estão envolvidos. Todavia, o fenômeno da percepção não era, para
geométricas mais elementares, c o m o a linha, o círculo e o triângulo, f a l t a m Aristóteles, o grande desafio intelectual. Em seu escrito Sobre a alma, começa
a perfeição e a exatidão, m e s m o os corpos mais sólidos carecem de s o l i d e z e c o m o b o m materialista: primeiro vem a alimentação, depois a percepção e
2
imobilidade, seguindo-se daí que a Terra gira" e que não poderia ser um p o n t o em seguida o p e n s a m e n t o - quase como para Brecht, primeiro a devoração e
central, porque "nenhum p o n t o central poderia existir sem que houvesse o u t r o depois a moral. Mas a percepção sensorial, como infraestrutura do pensamen-
3
mais verdadeiro e preciso" . Dessa forma, Nicolau de Cusa gerou uma p r o f u n d a to, p e r m a n e c e - l h e subordinada. Bem mais alto na hierarquia, situa-se, para
inquietação na cosmologia geocêntrica sem que se p u d e s s e provar q u e ele a Aristóteles, o pensamento, representando o único acesso ao verdadeiro ser, à
tocava. Este é o truque de sua docta ignorantia, que t a m b é m f o r n e c e u o t í t u l o sustância ideal d o mundo, que dá amparo e orientação ao mundo. Essa avaliação
de sua obra principal, de 1440: audácia subversiva em u m a i n t e n ç ã o r e s t a u r a - foi seguida pelos intelectuais ocidentais até a Alta Idade Média, praticamente
dora. Q u e se c o m b i n e em D e u s aquilo que se separa n o t e m p o e n o e s p a ç o , em uníssono. As faculdades sensoriais, é certo, são vistas como uma dádiva
que apenas em Deus exista a absoluta exatidão q u e f a l t a em t o d a s as m e d i d a s , divina, mas c o m o subalternas. Em oposição ao intelecto, elas "não apreendem
números, e comparações terrenas: este deveria ser o p e n s a m e n t o s a l v a d o r , q u e a essência das coisas, apenas seus acessórios externos" 7 , como decreta sucinta e
possibilitasse expressar a erosão da visão cristã de m u n d o , a o m e s m o t e m p o e m precisamente Tomás de Aquino.
que a conduzisse a um patamar mais elevado. Essa concepção, obviamente, ainda era a de Nicolau de Cusa. Entretanto, em
Uma vez no m u n d o , porém, a inquietação s e g u e seu p r ó p r i o c u r s o . Ela De docta ignorantia, ele deixa cair, como que incidentalmente, i.e., na dedicatória
coniere uma cintilação peculiar à doutrina de Nicolau de C u s a , c o m o e m u m i n t r o d u t ó r i a ao livro, na qual se esperaria encontrar apenas as delicadezas de
quadro impressionista, cujos detalhes p o d e m a p e n a s ser a p r e e n d i d o s p o r m e i o praxe, u m a gota de veneno espiritual, que subverte sensivelmente a hierarquia
da luz que os faz cintilar, mas que ao mesmo tempo os dissolve. Esse fato afetou tradicional de p e n s a m e n t o e percepção, a saber, a comparação entre intelecto
de passagem também um conceito que à época recebia p o u c a a t e n ç ã o , e q u e e e s t ô m a g o . E, nesse contexto, aparece rapidamente o c o n c e i t o de sensatio:
ainda não deixava entrever a promoção q u e s o f r e r i a : o c o n c e i t o d e s e n s a ç ã o . É " S e g u n d o dizem os estudiosos da natureza, o apetite é antecedido por certa
apenas no latim da Alta Idade Média que gradualmente se transforma sensação triste (tristem sensationem) na entrada do estômago, a fim de que a
no^ ermo usual para aquilo que fazem os sentidos: sentir, perceber. N ã o q u e natureza, q u e necessita manter-se, seja levada a restaurar-se. Daí, parece-me
^ disso nao se pensasse a respeito. Aristóteles já abordara, um após outro, justificar-se que o espanto, ao qual se deve o filosofar, preceda o ímpeto ao saber,
a visão, o ouvir, o cheirar, o provar e o tocar, com um conceito fixo para a fim de que o intelecto [...] se aperfeiçoe por meio do zelo pela verdade" s . Isso
S n " : E k
"é ^ ^ * apreender as f o r l s p ^ soa tão convencional, que não se percebe à primeira vista que velhos lugares
ceptiveis sem a matena, como a cera registra a marca do anel sem o ferro ou c o m u n s filosóficos recebem aqui um novo significado, cheio de conseqüên-
cias. O apetite e o espanto, Nicolau suspeita, possuem a mesma motivação:
a,g ma
rqual V^o ^ t r 2 i T 'r T "™ rd ee bK imd Í an ^ — ^ d e t e r m i n a d a sensação de falta, sem a qual nem o movimento corporal nem o
gos e J y n " Z ™<*ança»>, na
espiritual entram em curso. Ao estômago, quando se excita, falta obviamente
o alimento. Mas o que falta ao intelecto quando se espanta? Falta uma explica-
ção. O espanto já corresponde ao princípio da busca por uma elucidação. Daí a
2
Mem»op. cit., p. 91.
3 Idem, op. cit., p. 89. famosa definição de Aristóteles: "Os homens começam a filosofar, tanto agora
4 Aristóteles, Über die Seele 424*.
3 Idcra f op.cit.,4l6 b .
6 Idem, op. cit., 424*.
7 T o m á s dc A q u i n o , Summa tbeologica I, questão 57. artigo 1, a.2.
8 Nicolau de C u s a , De docta ignorantia. Die belehrte Unwissenheit. Livro 1.4' ed. H a m b u r g o . 199i. p. 2.
L Ó G I C A DA S E N S A Ç Ã O
S O C I E D A D E: E X C I T A D A : F I L O S O F I A D A S E N S A Ç Ã O
como antes, porque se espantam" 9 . É isso que Nicoiau quer dizer, mas c o m a suposto poder medicinal contra venenos e doenças, mas simplesmente, e cada
diferença de que o espanto não tem uma primazia puramente espiritual E de vez mais, porque eram objetos curiosos: fascinantes excentricidades da natureza.
um só golpe, sua associação lapidar de intelecto e estômago expõe o subsolo Obviamente, isso significava inverter uma característica humana que um pai da
físico do espanto: o mal-estar específico no qual um o r g a n i s m o p e n s a n t e é Igreja, Agostinho, há mil anos qualificara como vício: curiositasn.
colocado diante de todos os fenômenos que lhe aparecem como inadequados, Q u e "todos os h o m e n s busquem, por sua própria natureza, o conhecimen-
enigmáticos ou não solucionáveis pelo pensamento, cirando-lhe d o repouso, t o " " , como disse Aristóteles, foi expressamente aceito pela doutrina cristã como
roubando-lhe a certeza e incitando-o a restabelecê-los por meio do pensamento. algo desejado por Deus, o correto desejo pelo saber (.studiositas) tendo sido
Essa incitação está muito próxima da sensação de falta do estômago, o apetite visto como uma virtude — e tanto mais diferenciado de seu par nocivo, a curio-
sendo um espanto corporal, assim como o espanto, um apetite da alma, e am- sidade (curiositas), que se iniciaria como um desejo de ver, de deixar-se atrair
bos se constituindo em tristissensatio: a sensação triste, excitação q u e leva o por ocorrências naturais excitantes, entretenimentos de palco ou belas mulhe-
organismo a restaurar-se"'. res, m e r g u l h a n d o n o sensual pelo prazer dos sentidos, em vez de pelo Criador,
Porém o que é que faz os homens espantarem-se ? "No começo espantavam-se e a d q u i r i n d o saber por vaidade e poder próprios, em vez de pelo verdadeiro
porque se confrontavam com algo inexplicável {aporia)", diz Aristóteles, c o m o c o n h e c i m e n t o de Deus 1 4 . E agora isso: aprender a valorizar o raro em si, a ad-
por exemplo "marionetes que se movam a si próprias, o eclipse do Sol ou a in- mirar, em vez de seu aspecto supostamente sobrenatural, suas características
comensurabilidade das diagonais"". Mas mesmo aqui De C u s a p õ e u m a nova naturais de fato; registrá-las e estudá-las como um alargamento de horizonte,
ênfase. "São as raridades, ainda que sejam monstros, que costumam mover-nos." c o m o u m aperitivo para as peculiaridades que em bibliotecas, na terra ou em
Monstrum, o conceito latino para aquilo que d e c o r a t i v a m e n t e desvia d o o u t r o s continentes ainda pudessem estar à espera de ser descobertas: isso se
curso habitual da natureza, pode ter vários sentidos: uma intervenção divina, transformaria em u m dos traços mais marcantes da inquietude e do esclareci-
uma marca, um milagre, o inacreditável, mas também o monstruoso, disforme, m e n t o humanistas em seus primórdios. C o m isso esmorecem os limites entre
abominável. Qual desses significados Nicoiau de Cusa tem em mente, é algo que o studiositas e a curiositas. E justamente Nicoiau de Cusa foi uma testemunha
não podemos saber; porém temos conhecimento de que, e n q u a n t o estudante privilegiada de que não podem ser separados de forma precisa. Já em seus anos
em Pádua, tinha contato e vínculos de amizade com humanistas italianos, com em Colônia, distinguiu-se como colecionador de livros ao descobrir a Naturalis
os quais o espírito de uma nova época começava a emergir sob a forma de u m a Historia, d o jovem Plínio, e 12 comédias de Plauto, até então desconhecidas.
atividade intensa de colecionar — impulsionada pelo comércio exterior, que, Posteriormente, ele participou do redescobrimento dos escritos curtos de Tá-
além de especiarias e cetim, peças de metal trabalhado e porcelanas, p e d r a s cito, entre eles o Germania; comprou no Reichstag de Nuremberg, "por 38
exóticas em abundância, mariscos, penas, ossos, plantas, por vezes também trazia florins", c o m o ele mesmo toma nota, além de livros raros, preciosos aparelhos
macacos vivos, camelos, leões e até mesmo orientais e africanos. O século XV astronômicos, que p o d e m ser encontrados ainda hoje em sua biblioteca em
representou a época na qual se iniciou uma busca profissional por manuscritos Cusa 1 5 , e f o r m u l o u ainda o argumento psicológico-cognitivo que lhe fez pa-
antigos, perdidos ou raros, a época na qual se organizaram jardins botânicos recer tal versatilidade e amadorismo iluministas inócuos: "São raridades, ainda
com plantas extraordinárias, a época de surgimento dos gabinetes de raridades, q u e sejam monstros, que costumam mover-nos" 16 . Em outras palavras: studio-
quando dentes de elefantes e tubarões, ossos de mamutes, chifres de rinocerontes,
ovos de avestruz e pedras preciosas não mais eram procurados por causa dc seu
12 A g o s t i n h o , Confissões, X. 35.
13 Aristóteles, Metafísica 980'.
9 Aristóteles, Metafísica 982 b ; cf. Platão, Teeteto 155 J .
14 T o m á s d e A q u i n o , Summa theologica II, questão l67a.2v
10 Pode-se quase acreditar ouvir Nietzsche- o e s D Í r i r n m , A - 1 -
15 C f . E. M e f i e r t , Nikolaus von Kues. Stuttgarc, 1982, pp. 44, 112. ,
sua capacidade digestiva', para usar unia i m a Z L e n ' ° n ° 8 T d V ™ ^ a
ProPriadora-
que qualquer coisa, a um estômago" (F Nier A . P , ° c s P ' r i t 0 se a s s e m e l h a , mais d o 16 N o lugar o n d e se e n c o n t r a , ou seja. na dedicatória de D, docta igvorantia. esta
P-168). 8 U IN CUSChc /
' ' ' ' " " alé»> do bem edo mal. KSA 5 [Edições criticas], teológica a i n d a mais radical. N i c o i a u de Cusa .az referência ao s c n n d d ^ n n » do r o
o
Dotar de uma ilusão de vida aquilo que havia sido inanimado p o r meio da uma população em torno de 22 mil habitantes abria suas portas duas vezes por ano
coleção — este era o ápice do exótico, o ponto no qual o gabinete de maravilhas para receber um contingente de aproximadamente cem mil visitantes para as feiras.
se transformava abertamente em teatro; o p o n t o no qual aquela irritante indi- Viajavam de barco, em caravanas, ou a pé; vinham de Londres, Antuérpia, Lion e
ferença, de tirar o fôlego, entre natureza e cultura podia ter o maior impacto, Veneza, mas também de vilarejos vizinhos, mudando durante três semanas toda a
concretizando com isso sua pretensão híbrida de colocar a natureza em u m a vida da cidade. Como em um grande "bazar", podia-se admirar, nas ruas e nas praças,
condição na qual pudesse ser completamente desfrutada pelos h o m e n s . N a nas casas, e até m e s m o nos claustros, o que a engenhosidade h u m a n a havia concebi-
medida em que os gabinetes de maravilhas (curiosidades) se firmavam c o m o d : os produtos artesanais mais sofisticados, as descobertas técnicas m . =
representantes autênticos do reino da natureza, sugeriam que a própria natu- mercadorias exóticas do além-mar, pinturas, livros eruditos e
assim como " N o v o s Jornais" (notícias, "reportagens"), que eram lidos ou cantados
reza representaria no fundo um estoque inesgotável de raridades (curiosidades).
Com isso, são precursores de uma nova concepção de natureza. O olhar ana- p o r seus «autores-0.
19
z i f e ^ ^ * Geschichtc der K u n s d c a ^ c , u n d die Basel, 2001, p. 37.
mais é necessária para a venda quanto mais aparentemente similares forem as pegadas das rotas das mercadorias, no princípio organizadas pelos próprios
mercadorias. Colocar mercadorias à venda é uma forma de espetáculo. N o s grandes comerciantes. Apenas quando negociantes engenhosos tiveram a idéia
lugares em que isso acontece em grande estilo, os espetáculos convertem-se, de fazer dela u m a profissão própria, essa circulação começou a autonomizar-se
inversamente, em um oferecimento à venda. E assim, o lugar da m u l t i d ã o de significativamente. O u seja, só foi possível transformar as notícias em negócio
vendedores é também o lugar onde curandeiros, artistas de circo e saltimbancos, q u a n d o não mais eram somente notícias de negócios. Tudo aquilo que poderia
bufões e domadores de animais chamam aos gritos a atenção para sua arte. chamar a atenção de um vasto público, fosse um produto de uma imaginação
desenfreada ou de sóbria observação, provado ou não, satisfazia as condições
Gêneros artísticos e do dia a dia estão tão intimamente misturados na feira que de u m a notícia, se era possível fazer crer que acabara de chegar, que ainda era
é difícil estabelecer uma fronteira entre eles. O vendedor de medicamentos e o anun- p r a t i c a m e n t e presente. Assim, veiculavam-se, nos "Novos Jornais" do século
ciador de mercadorias eram ao mesmo tempo atores de feira; os Gritos de Paris eram
XVI, "novas a respeito de lutas religiosas, guerras turcas, decisões papais, assim
recitados em verso e em melodias determinadas. O estilo do convite (verbal) na ca-
c o m o histórias sobre chuva de sangue e de fogo, abortos, pragas de gafanho-
bine de apresentações não se diferenciava em nada do estilo dos anúncios dos ven-
tos, terremotos, tempestades, e fenômenos celestes" 22 , sem qualquer ordem
dedores de livros populares (e os longos títulos, semelhantes a reclames, tinham
ou distinção. N o princípio, os jornais apareciam apenas esporadicamente,
comumente o tom de convites gritados nas feiras)21.
q u a n d o havia alguma coisa a ser relatada e em aglomerações populares, que se
encarregavam de u m a divulgação ampla. Os mercados anuais representavam,
Muito mais franco do que seu correlato nobre-aristocrático, o gabinete de
assim, u m solo fértil para a impressão dos primeiros jornais e livros, as feiras
curiosidades a céu aberto, a feira anual, revela o que há de fugidio e d ú b i o na
valorização das raridades. Disso já se encarregam os comediantes e os saltim- de Lyon e F r a n k f u r t em pouco tempo dedicando-se expressamente a livros.
bancos de toda espécie. Pode-se estar certo de que não apenas p õ e m à venda N o entanto, hoje é difícil dar-se conta do que significou a transição para uma
caricaturas do valor de raridades, mas também que caricaturizam tal valor eles difusão semanal regular.
mesmos. Pois a agudeza de suas apresentações consiste justamente em esvaziar
a presunção inflada de supostas raridades, desmascarando-as c o m o miseráveis Era necessário um espírito empreendedor considerável, uma avaliação certamen-
criaturas cotidianas. É assim que, já bem cedo, a gritaria das feiras se banhava te arriscada do mercado e uma estrutura organizacional abrangente de coleta de in-
em sua própria autoironia - sem, no entanto, saber, no princípio, se para seu formações, para quem quisesse começar um negócio, baseado na expectativa de que
enfraquecimento ou fortalecimento. também na semana seguinte haveria informações suficientes publicáveis. Para con-
temporâneos, como Ben Jonson, por exemplo, a produção periodizada de novidades
prova justamente que se trata, 110 caso, de uma enganação: "um engodo semanal para
ganhar dinheiro" 23 .
Comércio exterior e imprensa sensacionalista
Q u a n d o esse mesmo J o n s o n , em sua comédia de 1625, 7}je staple ofthe
O comércio exterior é um empreendimento arriscado e, para se certificar de
news, interpreta os jornais como um espelho "no qual a época pôde vislumbrar
que os lugares pelos quais se quer passar não estão sujeitos a catástrofes natu-
sua p r ó p r i a estupidez ou a fome e sede por panfletos de notícias que são tra-
zidos à luz cada sábado, mas feitos todos em casa e sem uma sílaba de verdade
neles"2'1, ele reage corno um sismógrafo de precisão à sistematização da pro-
; X o d d °U 7 ? neCCSSÍta Se
' ^ lnf
°rn^ÓeS aS
- a i s possíveis:
2 2 J. H a b c r m a s , Strukturwandel der õffèntlkhkeit. Frankfurt. 1990. P . 73.
2 3 N . L u h m a n n , Die Realitãt derMassennicdicn, p. 53.
21 Mikhail Bakhrin, Rabelais und sou Welt. Frankfurt. 1987, p. 194. 24 " W h e r e i n t h c age may see her o w n e folly, or h u n g e r and thirst after p u b l i s h d p a m p h l e t s of Newes, set out
everv Saturdáy, b u t made ali at h o m e , & no syllable of truth in t h e m ( a P u d ib.demj.
dução de notícias: ao estranho jogo de m ú t u o reforço que é p o s t o e m movi- teatral" de jogos, fábulas e sistemas filosóficos25. C o m certeza, Descartes fez
mento assim que a curiosidade é objetivada em um negócio cuja existência da dúvida generalizada um m é t o d o filosófico, dando validade'apenas àquilo
toda consiste na espreita às novidades, que vive de satisfazer e incitar a curio- de q u e é impossível duvidar 2 6 . N o entanto, nenhum dos dois fez realmente
sidade individual de forma planejada e, inversamente, de ser a l i m e n t a d o e uma tábula rasa. Em Bacon permaneceu intacta a confiança metafísica de que
inflado por ela. A autonomização da novidade em um valor em si, que é acom- um e n t e n d i m e n t o purgado de seus ídolos, ou seja, que, partindo da percepção
panhada da realimentação recíproca de curiosidade privada e empresarial, sensorial, e t a t e a n d o indutivamente, penetre paulatinamente na essência das
corresponde ao segundo passo decisivo da m u d a n ç a de valor d a curiositas. coisas exteriores, restabelecendo, dessa forma, passo a passo, a harmonia com
Primeiramente sua neutralização: de um pecado a um impulso básico de t o d a a natureza, p e r d i d a desde o pecado original; e a virada de 180 graus de Des-
percepção; agora, sua ascensão: de um impulso fisiológico a u m a força sistê- cartes, de u m a dúvida universal para a suposta indubitabilidade da existência
mica. Isso não deixou de ser notado, como atesta o exemplo de J o n s o n , m a s de Deus, assim c o m o de idéias inerentes ao entendimento, dá origem logo em
não foi inicialmente relacionado ao conceito que, para nós, é corriqueiro n o seguida ao que há de mais duvidoso.
que concerne a tais novidades: o de sensação. Na época de seu s u r g i m e n t o , os D e acordo com Locke, uma verdadeira tábula rasa, uma limpeza geral, só
jornais, sem qualquer ética profissional, correspondiam e x a t a m e n t e ao q u e p o d e fazer q u e m compreende o próprio entendimento como uma tábula rasa:
hoje chamamos de imprensa sensacionalista. Porém, se as notícias e a novida- " S u p o n h a m o s , pois, que o espírito seja, como se diz, uma folha de papel em
de convergiam, como, por exemplo, nas nouvelles francesas ou nas news ingle- branco, sem quaisquer inscrições, livre de quaisquer ideias r ; como estas então
sas, a palavra "sensação" não aparecia de forma alguma o n d e ela nos é mais lhe são adicionadas? [...] D e onde tomou o material para seu entendimento e
próxima: não pela divulgação mais ou menos negligente de notícias, nem pelo c o n h e c i m e n t o ? R e s p o n d o com uma única palavra: da experiência"1*.
espetáculo das feiras anuais, nem pela passagem pelo gabinete de maravilhas
(curiosidades). Sua carreira começa em um lugar t o t a l m e n t e d e s p r o v i d o de
Quando nossos sentidos entram em contato com determinados objetos percep-
sensação: no meticuloso processo de autoconscientização d o sujeito m o d e r n o tíveis sensorialmente, então fornecem ao espírito uma série dc percepções diferentes
por meio da filosofia. das coisas [...]. Dessa forma chegamos às idéias que temos de amarelo, branco, quente,
frio, suave, duro, amargo e doce, e de tudo que chamamos de qualidades perceptíveis
sensorialmente. Quando digo que os sentidos fornecem ao espírito, quero dizer com
Filosofia sensualista isso que fornecem, a partir dos objetos do mundo exterior ao espírito, aquilo que
a percepção desencadeia nele. A essa importante fonte da maioria de nossas idéias,
que dependem totalmente de nossos sentidos e que por estes são fornecidas ao en-
Como asensatio constitui a infraestrutura do pensamento, então ela é subal-
tendimento, chamo de sensação2^.
terna. Assim se argumentou durante toda a era cristã. J o h n Locke, u m d o s
precursores e condutores intelectuais da Revolução inglesa, virou a m e s a .
C o m o a sensatio é a infraestrutura do pensamento, argumenta, ela representa
sua forma elementar. Tem de estar no centro da atenção. Apenas assim seria
2 5 C f . F. Bacon. Neues Organ der Wissemchafien. I. 39. Darmstadt, 1974. p. 32.
possível levar adiante de forma rigorosa a luta contra os preconceitos, q u e os
2 6 C f . R. Descartes, Mediuitionen itberdie GrundUgen der Pbilosophie. Hamburgo, 1959. p. 30.
pioneiros filosóficos da era moderna haviam começado. Sem dúvida, já em Bacon
27 ••[-] c o . n o u m q u a d r o n o qual, a t u a l m e n t e , nada está escrito", diz Aristóteles {Sobrea alma, 430'); no
ha um olhar critico direcionado aos chamados ídolos, aquelas "divindades d o e n t a n t o , q u e r dizer algo diferente: não que as idéias ou formas espirituais somente surjam q u a n d o algo e
i m p r e s s o n o espírito, mas q u e nesse processo são apenas atualizadas, despertadas, por ass.m d i z e r U c
preconce.to , presentes em parte na própria constituição do gênero h u m a n o , a c o r d o c o m Aristóteles, o espírito imprime as coisas a s , , não as t o m a passivamente, mas torma-as a .vã-
em par e no carater e p o n t o de vista de um indivíduo particular, p a r t e p o r m e n t e . d e v e n d o fazer uso d a s forças espirituais necessárias para tanto. A faculdade por me.o da qua a
a l m a p e n s a c e l u c u b r a " c c o n s e q u e n t e m e n t e e n t e n d i d a c o m o uma parte separada da alma. que nao
da m i s t u r a c o m o c o r p o (429'): em suma, o contrário da folha cm branco de Locke.
ndepe d t ' " " d " ^ ^ humana, parte p ' l a
independencia da imaginação e do p e n s a m e n t o c o n s t i t u i n d o u m m u n d o 2 8 j . L o c k e , Versuch iiberdenmescblicben Verstand, Livro II. Cap. 1,2. H a m b u r g o . 1981, p. 107.
29 I d e m . o p . c i t . , 11,1.2, p. 108.
C o m isso, a sensação é elevada à categoria de conceito-chave da epistemo- desejar"-, nao é nada que seja, na realidade, originado por estímulos externos
logia. O u seja, não mais como em uma tabela com duas colunas — aqui os diretos. N a o e possível evitar sentir-se por vezes como um ser que percebe de
sentidos, que apenas sentem e percebem o mundo, lá o intelecto, q u e conhe- seja, duvida raciocina, e ter, n o entanto, de admitir que essa percepção é de' um
ce por meio de conceitos —, mas a percepção converte-se ela mesma em u m a n p o diferente daquela de amarelo, branco, quente, frio, macio, duro, amargo
forma de conhecimento, o conhecimento como outra forma do perceber, e a doce , apesar de ambas gerarem "idéias igualmente claras" às de "corpos quê
mesma instância é responsável por ambos: o espírito. As idéias q u e esse espí- afetam nossos sentidos" 3 3 . A conclusão de Locke: onde há diferentes f o n m s
rito "tem" não correspondem a formas eternas, nem a suas cópias, ou a u m a de percepção, deve haver diferentes fontes de conhecimento.
substância pensante qualquer (res cogitam), mas, antes de tudo, a estados men-
tais t o t a l m e n t e elementares, nos quais não faz sentido d i f e r e n c i a r e n t r e Mas, assim como chamo a outra de sensação, chamo a esta de reflexão, porque as
sentimentos, representações e conceitos. Em Locke, a sensação significa basi- idéias que engendra são apenas as que o espírito obtém ao refletir sobre suas próprias
camente a excitação dos sentidos: tanto aquela que se dá por meio de estímu- operações em si. [...] Duas coisas distintas, portanto, i.e., as coisas materiais externas
los exteriores quanto a que circula interiormente pelo organismo. As idéias como objetos da sensação e as operações internas de nossos espíritos como os objetos
não são, inicialmente, mais do que excitações, e o "espírito" é o p o n t o focai da reflexão são para mim os únicos originais a partir dos quais todas as nossas idéias
tomam seu princípio 34 .
no qual o organismo sente essas excitações como suas. Locke pensa de uma
forma quase neurológica: as coisas do mundo exterior afetam-nos dc tal forma
que "um determinado movimento deve proceder de nossos nervos, ou espíritos Todavia, quem assume duas origens, quaisquer que sejam, tem de enfrentar
vitais, para alguma parte de nossos corpos, para o cérebro ou o cerne da sensa- o problema de base d o dualismo: são ambas igualmente originais, ou uma sur-
ção, para produzir em nossos espíritos as idéias particulares que temos desses ge da outra? Locke parece tender para a última opção. "Com o tempo, o espí-
objetos exteriores 30 . rito chega a refletir sobre suas próprias operações a respeito das idéias obtidas
das sensações e com isso adquire um novo conjunto de idéias, que chamo de
Não tomar como cerne da sensação órgãos como o coração ou o ventre, mas
31 idéias de reflexão" 3 5 . Em outras palavras: a reflexão só entra em cena após a
o cérebro, que em outra passagem recebe o belo nome de "sala de audiência" do
sensação e refere-se a ela. Isso não quer dizer que ela corresponda tão somente
espírito, explica, assim, a sensação como sendo o próprio núcleo d o espírito, e
a uma sensação que tenha mudado de natureza, tenha sido sublimada, adqui-
todas as representações e conceitos do verdadeiro, sublime, sagrado como sendo
rido um caráter reflexivo, em suma, que seja algo secundário? Dever-se-ia pen-
duplicações e refinamentos de estados de excitação neuromental: isso eqüivale
sar assim, até mesmo porque, para Locke, "primário" e "secundário" represen-
naturalmente a um poderoso golpe em toda a metafísica, e parece ser espanto
tam p o n t o s centrais de ordenação. Ele divide todo o mundo de corpos segun-
diante de sua própria ousadia quando Locke, enquanto elucida peremptoria-
mente o papel central da sensação para todo o processo de conhecimento, ao d o q u a l i d a d e s p r i m á r i a s e secundárias. Primárias seriam aquelas que se
mesmo tempo enfatiza, repetidas vezes, que ela seria apenas uma de duas fontes configuram c o m o "totalmente inalienáveis" ao corpo, como a "solidez, exten-
de conhecimento. Ele tinha razões para proceder dessa maneira. É que os estados são, forma [figure] e mobilidade" 3 6 . A elas é conferida a admirável capacidade
mentais causados pela sensação, que chama de "idéias", não são estáticos, mas de deixar em qualquer sensação uma impressão autêntica e objetiva de si mes-
no momento de sua excitação, uma vida própria; são regulados, esta- mas, ao passo q u e as qualidades secundárias são apenas transmitidas junto com
bihzados transformados pela instância coordenadora interna que esses estados as primárias e "não demonstram nenhuma semelhança com os corpos"' como
possuem , e essa capacidade, que Locke denomina de "operações d Z Í
e entre as quais inclui "o pensar, o duvidar, o acreditar, o raciocinar, ^ o 32 Idem, o p . cit.. 11,1,4, p. 108.
3 3 I d e m , o p . cit., II, I . 4 , p . 109.
34 I b i d c m .
4 0 G . Berkeley, Eine Abhandlung über die Primipien der menscblichen Erkenn^, § I- Hamburgo, 1979.
38 Idem, op. cit., II, VIII, 17. p. 151.
p. 25.
39 Cf. H . Macurana, Was isl erkennen? Munique, 1996, p. 96.
41 I d e m , o p . cic., § 3, p. 26.
"idéias", bem no sentido de Locke, não deveriam ser nada mais que sensações: Eis aqui o famoso esse est percipi. N o capítulo anterior foi esboçado como
estados mentais. E, todavia, são ao mesmo tempo declaradas objetos - C o m o essa f ó r m u l a adquire um teor de verdade surpreendente, a posteriori, em uma
iS so é possível ? As idéias dos objetos deveriam ser os p r o p n o s objetos ? Prime,- situação de compulsão global à emissão. Agora se deve investigar sua origem
r a mente, os objetos são tudo aquilo que vejo, ouço, tateio; a sensaçao e sempre histórica, para que se possa revelar a mudança de sentido que contribuiu para
sensação de algo. Ela não ,'esse algo, mas tão somente o estado mental n o qual sua f a m a p ó s t u m a . E m primeiro lugar, ela apresenta-se como radicalização
algo, isto é, um objeto, se apresenta para mim, e m i n h a sensação n ã o e capaz extrema da crítica à epistemologia. Berkeley, na realidade, chega ao ponto de
de fornecer nenhuma informação sobre se esse meu estado e o d i t o o b j e t o sao não dar validade a uma reflexão que diferenciasse da sensação, nem a um mundo
semelhantes um ao outro, adequados, ou o que quer que seja. Ela n a o p o d e exterior existindo em si, nem mesmo a uma unidade dc percepção advinda dos
sair de si e comparar-se, de fora, com seu objeto, por assim dizer, n e u t r a m e n t e . diferentes órgãos sensoriais:
Daí se segue, de um lado, o que Berkeley diz: para seres sensíveis não existem
objetos puros, mas somente da forma como se apresentam aos sentidos. Por Sentado em meu escritório, ouço um coche passar pela rua; olho pela janela
outro lado, entretanto, deduz-se o que Berkeley escamoteia: q u e a sensação e vejo-o; saio de casa e nele entro; desta forma a linguagem comum levar-me-ia a
nunca é pura; ela é constituída do fato de que algo é s e n t i d o : a l g u m a coisa pensar que ouvi, vi e toquei no mesmo objeto, a saber, o coche. No entanto, é certo
que as idéias mediadas por cada sentido são cm muito diferentes e distintas umas das
diferente dela, um objeto.
outras. Porém, tendo sido observadas constantemente em conjunto, são tidas como
Acontece, porém, que o próprio estado sensorial pode tornar-se u m objeto,
se fossem a mesma coisa".
a saber, quando é notado, referido ou refletido. Todavia, Berkeley faz c o m o se o
refletir de uma sensação não diferisse em nada dela, c o m o se o perceber de u m
N o entanto, o coche ouvido, visto e tocado eqüivale a três percepções entre
objeto não fosse senão a percepção dessa percepção, como se, consequentemente,
as quais n ã o existe a m e n o r conexão? Não é n e n h u m a percepção, nenhuma
a percepção não tivesse nenhum objeto fora de si mesma. "Há, na realidade, uma
sensação convertível em outra, cada uma apenas um ponto em si, não menos
opinião estranhamente predominante entre os homens de que casas, montanhas,
isolada do que a m ô n a d a de Leibniz, perdidas em sua multiplicidade não rela-
rios, em suma, todos os objetos sensíveis possuem uma existência n a t u r a l ou
cionada ? O n d e então há consistência e solidez no mundo ?
real, distinta do fato de que são percebidos pelo entendimento." Porém "o q u e
são os objetos supracitados senão as coisas que percebemos pelos sentidos? E Elas existem em duas instâncias, para Berkeley, as quais surgem para ele
o que percebemos além de nossas próprias idéias e sensações?" 42 . E q u e m con- c o m o indubitáveis. Por um lado, deve haver algo "junto com toda essa infinita
ceder isso também é obrigado a engolir o seguinte: "Se digo que a mesa sobre a variedade de idéias e objetos do conhecimento",
qual escrevo existe, isso quer dizer: vejo-a e sinto-a; e caso me e n c o n t r e fora de
que os conhece ou percebe, e executa diversas operações com eles, tais como desejar,
meu escritório, devo expressar sua existência no sentido de que, se eu estivesse
imaginar, lembrar. Esse ser ativo e sensível corresponde ao que chamo de mente,
em meu escritório, poderia percebê-la, ou de que algum o u t r o espírito a per-
espírito, alma, ou eu mesmo. Com essas palavras não designo nenhuma de minhas
cebesse no momento. Dizer que havia um odor significa que foi cheirado; que
idéias, mas algo inteiramente distinto delas, no qual elas existem, ou, o que significa
havia um som, que ele foi ouvido; uma cor ou forma, que foi percebida pela dizer o mesmo, por meio do qual são percebidas, pois a existência de uma idéia
visão ou tato. Este é o único sentido que tais expressões p o d e m ter. Pois o que
consiste em ser percebida
habitualmente se diz da existência absoluta de coisas não pensantes, sem relação
alguma com o fato de que são percebidas, parece ser completamente ininteligível. E q u e m garante que esse "eu" não seja outra vez apenas um nome coletivo
A existência [esse] de tais coisas é o seu ser percebido {percipi)"*. para u m a miríade de percepções díspares - não é outro senão Deus. E Ele a
O desenvolvimento da linguagem coloquial não costuma orientar-se por fi lósofos, livro chamará a atenção, para designar 'fazer uma sensação'". Joachim Heinrich
mas cabe aos filósofos, quando são bons, exibir os abismos n o desenvolvimento Campe, finalmente, um dos observadores mais atentos da língua alemã e de suas
da linguagem coloquial. É tanto mais digno de nota que justamente Berkeley, trocas c o m a francesa, resume, em seu Wôrterbuch zur Erklàrungund Verdeuts-
interessado na restauração da teologia e da Igreja, tenha ares de cão farejador do chungder unserer Sprache aufgedrungenenfreniden Ausdrücke, de 1801: "Sendo
que estava por vir; com efeito, a lógica inerente ao conceito de sensação desdo- assim, sensação é emoção e sentimento ( l ) . Mas também é usado no linguajar
brou sua teoria do conhecimento e da percepção na mesma direção t o m a d a c o m u m f r a n c o - g e r m â n i c o como atenção, movimento, ruído e fermentaçao
Será que é realmente verdade que estou em Paris, meu caro T*? [...] Que as peças A palavra sensação não aparece aqui, mas o que é descrito corresponde a
teatrais que foram encenadas nos últimos dias, e que ainda o são diariamente, não uma verdadeira incubadora para sua mudança de sentido. Tudo aquilo que está
são uma criação da minha imaginação, um sonho, mas fatos? [...] Consegui des- a p o n t o de causá-la se encontra reunido: em primeiro lugar, a dúvida: "sonho
vencilhar-me das ondas humanas, que mais do que nunca lavam as ruas e os lugares ou estou acordado?", com a qual o missivista reage a um poder avassalador
públicos; agora me instalei nas margens do Sena, isto é, em meu quarto, para poder, de impressões e sem hesitar faz uso da metáfora que mais corriqueiramente
tanto quanto possível, ordenar e organizar a imensa quantidade de novas imagens,
ocorria aos c o n t e m p o r â n e o s da Revolução Francesa: o teatro. Que se visse no
idéias e sensações que, como um enxame de abelhas, assolam o observador a cada
espetáculo a aurora da liberdade ou então o crepúsculo da ordem divina, dos
passo que dá. Em vão! O rumorejar da tempestade humana passa pelas janelas, portas
costumes e da moral — t a n t o dentro quanto fora da França havia uma grande
e paredes até chegar a meu pequeno quarto isolado; a voz de baixo, rouca e rasgada,
u n a n i m i d a d e a respeito do fato de que acontecia em grande escala, ou seja, em
dos anunciadores de novidades, com seu eterno Voilà du nouveau et du curieux!
gritado de novo a cada hora, sabe-se lá por quanto tempo, desvia incessantemente relação ao curso do m u n d o , e de maneira condensada, algo de fora do comum e
de e n o r m e significado, que anteriormente ocorria apenas em ordem pequena, a
minha atenção da ordenação da massa de idéias e sentimentos recolhidos, fazendo o
caos ficar ainda mais caótico. Como serei capaz de vedar os sentidos exteriores, para saber, para u m a reunião de espectadores proporcionada pelas artes cênicas. Onde
poder criar o espaço interior e o tempo necessários para que o estoque, já recolhido, há teatro, há público. Isso é válido para a Paris de 1789-1793, primeiramente no
de novas imagens, possa ser separado em unidades, e a memória possa registrá-los em sentido de q u e era o palco do mundo, cujos acontecimentos eram seguidos por
seus compartimentos devidos? Penso ter achado um meio próprio para tanto. Uma toda parte q u e os jornais alcançavam, contribuindo para um salto na circulação
conversa com o senhor, caro T", tornar-me-á insensível, enquanto ela durar, contra de notícias, e que forneceu uma primeira amostra do que uma publicidade no
todas as impressões exteriores. Por isso escrevo-lhe48 espaço p ú b l i c o m u n d i a l poderia ser. A participação desse disperso publico
mundial - "mundo", bem entendido, restringindo-se em grande medi a a
- por exemplo, como ocorreu a chegada: Europa - ia desde manifestações de apoio e repúdio até a mterferencia mil.ta
e política; com efeito, a revolução não foi um experimento de campo s o e , nu
um estado de g u e r r a , ao menos latente, com todas as torças feudais da Europa
e e n f r S uV7 T ^ ^ ^ ^ ° S u f i d e n c e P ™ que duas carrua-
gens ou cabnolesU] pudessem avançar lado a lado; e essas ruas estreitas, sujas ou,
48 J. H. Campe, Bri.fi aus P a r i s z u r Z e i l ^ ^ ^ ^ _
49 I d e m , o p . cit.. p. 41.
e um arauto de esperança para muitos salões e cafés burgueses. Se, p o r t a n t o , as classes sociais, que, visível, se acotovelava pelas ruas, desejoso de comprar
já esse público que, fascinado, assistia aos eventos de u m a Paris t o r n a d a palco ou de assistir, ou que se amontoava nas praças, fosse superposto por um pú-
do mundo, não se limitava ao papel passivo, característico dos espectadores blico de s e g u n d a ordem, um público de privilegiados e cultos, cujo elixir vital
de teatro, isso vale muito mais para o "ir e vir de uma m u l t i d ã o e m ebulição" 5 0 , era o salão e o café, e cuja matéria dc discussão era tirada de livros e notícias de
que, por assim dizer, atuou como o baixo-contínuo da revolução, "um público jornal, u m p ú b l i c o q u e n u n c a se fez m u i t o visível como uma grande massa
infinitamente colorido e variado de estivadores e finos senhores, de mulheres h u m a n a , mas que discutia oralmente apenas em pequenos círculos e que, afo-
de pescadores e polidas damas, de soldados e clérigos" 51 — a p r e s e n t a n d o ele ra isso, só se encontrava ligado pela leitura, pela escritura e pelas vias de distri-
mesmo um dos produtos mais significativos da dissolução da sociedade pré- buição d a palavra impressa, mas um público que, justamente devido à sua
moderna. Onde há público desaparecem as barreiras dos estamentos feudais, incorporeidade, constituía um espaço, dificilmente controlável, favorável para
os representantes de diferentes classes convergem em u m a massa a m o r f a , já a f o r m a ç ã o de espíritos livres, de atividades artísticas e de crítica social, sem o
tomados pelos determinados mecanismos básicos da m o d e r n a f o r m a ç ã o de q u e a Revolução Francesa não teria sido colocada em movimento. E o primei-
mobilidade: por exemplo, a metamorfose violenta de u m a g r a n d e p a r t e da ro olhar de C a m p e p o r sobre Paris descobre imediatamente os elementos de
população rural em força de trabalho comprável por meio de sua expulsão do ligação entre o público de primeira e de segunda ordem: o anunciador de no-
solo de origem e migração em massa para as cidades, cuja m e t a m o r f o s e e m tícias e os jornais espalhadores de rumores. Com 'seu eterno Voilà du nouveau
centros de manufatura têxtil e de metalurgia em acelerada expansão e de u m et du curieux! gritado de novo a cada hora, sabe-se lá por quanto tempo", jun-
comércio em florescimento, em um caldeirão de pessoas desenraizadas e outras tam-se aos vendedores berrantes do mercado e aos saltimbancos, que oferecem
já estabelecidas, arrivistas e perdedores — r e s u m i n d o : naquilo q u e C a m p e t r u q u e s e peças, sendo parte do espetáculo, que corresponde, por um lado, à
retrata como uma feira de um ano inteiro. sua f o n t e de alimento — para dizer filosoficamente, a "condição de sua possibi-
Esse estado de exceção urbano chamado feira, que reunia pessoas, de p e r t o lidade" — e, p o r outro, ao risco constante de serem engolidos em um barulho
e de longe, para a admiração de mercadorias úteis e luxuosas, malabaristas, generalizado —, o que seria completamente contraproducente, pois aquilo que
artistas, fazedores de truques de toda espécie; que levava à tentação d o excesso tinham para oferecer de nouveu et curieux era de tal forma fantástico, que Cam-
nas compras, na embriaguez, na medição de forças, com todas as formas res- pe n ã o hesita p a r a falar em milagres: "contanto que o senhor concorde em
pectivas de escândalo e ressaca — a feira, c o m o foi m o s t r a d o acima — teve chamar de milagres aquilo que em toda a história, que eu saiba, até os dias de
desde o começo traços de festival popular. E o povo agrupado, o alvo d a corte hoje, foi sem igual, e que, portanto, como algo acintoso, parece estar para além
de comerciantes e artistas, tanto catalisador do espetáculo geral q u a n t o seu da o r d e m e da natureza das coisas, como conhecida até hoje" 52 . E tão acintoso
objeto, espectador e participante, representa o germe do público m o d e r n o . A
isso e para C a m p e , que
saída da vida cotidiana por meio da entrada na feira corresponde, ao m e s m o
tempo, a um exercício preparatório de um estado no qual t e n d e n c i a l m e n t e a escória de Paris, misturada com o escolho das províncias, um exército de mendigos
toda a sociedade entra, quando é arrancada, pelas forças do mercado, de suas famintos, despossuídos, e miseráveis, [...] começou a grande obra da redenção burguesa,
formas pré-modernas. Por isso é tão instrutiva a imagem de uma feira que dure sem liderança, sem uma combinação prévia e, todavia, em conjunção tao perfeita
do primeiro ao último dia do ano. Ela dá conta de uma vez só da m u d a n ç a tão ordenada e organizadamente, e realizada não apenas tão corajosa, quanto hábil
de um espetáculo festivo de um dia convertendo-se em uma condição de vida, e regularmente, que a milícia mais disciplinada, sob a liderança do hero, de guerra
uma transformação que chegou, em Paris, nos primeiros dias da revolução, mais experiente, não poderia proceder de maneira mais inteligente, coordenada e
a um cumulo nunca antes visto. Faz parte desse processo que o público de todas eficaz 53 .
>
2 I d e m , o p . cit, p. 223.
i çpYiial cuja
i c u i a libido se m e t a m o r f o s e o u em
«-»•-»!-*• i'irir»
da estimulação que apresentaria as condições mais favoráveis para a recepção de
angustiosos são sonhos de conteúdo sexual, nu.
estímulos e já não seria mais capaz de uma nova modificação (p. 236)." Ela se
3
angústia"
torna, segundo Freud, dura e inorgânica: morre, porém garante com sua "mor-
Só a Primeira Guerra Mundial o levou a confrontar-se d e c i d i d a m e n t e com
te" que todas as camadas mais p r o f u n d a s do organismo "sejam poupadas do
um fenômeno que nem com toda força de vontade ele ainda p o d e r i a p ô r na
m e s m o destino". O que Freud chama de "casca" é, portanto, pele morta, "cal-
conta da realização cifrada de desejos ou da libido m e t a m o r i o s e a d a em an-
cinada", endurecida em legítima defesa contra o mundo exterior. E a partir daí
gústia. Aqui, evidentemente, algo qualitativamente diferente do m e d o estava
ele dá curso a uma ousada especulação. E se o córtex, a casca do cérebro, aque-
em ação: o pavor. "Mas pavor é o nome que se dá ao estado e m q u e e n t r a m o s
la liga firme de células nervosas cinzentas e presumível sede de todas as funções
quando nos vemos diante do perigo sem que estejamos preparados para ele."
mentais se tivesse efetivamente originado da maneira que essa palavra sugere:
"Eu não creio que o medo possa causar uma neurose traumática; n o m e d o há
c o m o camada p r o t e t o r a paulatinamente endurecida em torno do interior do
algo que protege do pavor e, portanto, também da neurose do pavor" 4 . Mas se
cérebro? E se o seu caráter de casca fosse um aceno fisiológico para que com-
o pavor e a angústia são tão diferentes, então a compulsão à repetição causa-
preendêssemos t a m b é m a consciência, o pensamento, a percepção como "cas-
da pelo susto também será qualitativamente distinta daquela que decorre da
ca": c o m o instintos, desejos, sentimentos "calcinados", como a pele morta deles,
excitação provada por desejos reprimidos. A psicoterapia de Freud tinha por
seus resíduos e representantes exteriores enrijecidos? É como se ouvíssemos
alvo a última; fazer reviver e trabalhar intensamente desejos reprimidos e não
u m eco das leituras nietzschianas de Freud: "Ah, que sois vós afinal, meus pen-
superados da primeira infância, de modo a fazer com que cessem de a t o r m e n -
samentos escritos e pintados! [...] Que coisas escrevemos e pintamos, nós man-
tar e se integrem tanto quanto possível sem atritos à personalidade c o m o um
darins com pincel chinês, nós perpetuadores das coisas que se deixam escrever, o
todo, é o objetivo principal de sua terapia. Na neurose traumática, ao contrário,
que é que conseguimos nós enfim retratar? Ai, sempre apenas aquilo que está
está em ação outra força natural. Ela não provoca ruídos no interior da pessoa
para fenecer e principia a perder o perfume! Ai, sempre apenas tempestades
como libido cindida, reprimida, mas irrompe, chocante, de fora para dentro.
que a m a i n a m e se esgotam e sentimentos tardios e amarelecidos!" \ Na termi-
E se com isso ela provoca no sistema nervoso uma compulsão à repetição, esta
nologia f r e u d i a n a : "coisas calcinadas" 6 .
tem de ser "mais primitiva, elementar, instintiva do que o princípio de prazer,
que ela põe de parte" (p. 233).
5 F. N i e t z s c h e J f w j r / W von Gut und Bóse, § 296, KSA 5, p. 239.
C o m isso se estabelece uma arqueologia da compulsão à repetição. Em Freud 6 Além do princípio de prazer é e v i d e n t e m e n t e uma alusão a Além do bem e domai Freud leu Nictzsche
q u a n d o a i n d a era u m jovem e s t u d a n t e c levou consigo seus escritos para o ex.l.o l o n d n n o . ^ o u r a d o
ela não ultrapassou seus primórdios: um retrocesso tateante, especulativo,
deles t a n t o u m p r o v e i t o inestimável q u a n t o s o f r i m e n t o , pois lhe p a r e ç a q u e a l c a n ç a m p o r meio d
àquela fisiologia neurológica a partir da qual a sua psicanálise se tinha u m dia u m v o o l e v i a n o e genial os m e s m o s c o n h e c i m e n t o s com os qua.s ele própr.o se ocupava, sen n d o que
apenas m a n q u e j a v ! cm busca dc sua f u n d a m e n t a ç ã o cientifica. Daí sua constante m m u m z a ç a o c ot
desenvolvido. De modo aparentemente singelo, ele principia p o r apresentar t à n c i a d c N i e t z s c h e p a r a ele, q u e necessita ela própria de ps,canal.se, A « s e r sp .to, ^
"o organismo vivo em sua máxima possibilidade de simplificação c o m o u m a Umwertung allerpsyíhischen I Verte-, "Freud ais Leser von Nietzsche , m C . Jamme (org.), 6
o interior do corpo. Essapele ou membrana se encontra em constante adaptação cie s o b r e a qual se escreve não mostra mais n e n h u m traço se aparelho
cera, p o r é m ' só p o d e a i n d a ser lido "mediante uma h u m a n o . "Seja co.no
ao mundo exterior, até que ela "por fim se encontra tão calcinada pelo efeito a r e p r e s e n t a ç ã o d o m o d o c o m o os traços de memória NU ^ y celulóide e papel encerado com
for, n á o me parece o u s a d o e m demas.a c o m p a r a r a J «'inconsciente P o r
o sistema vigília-consciència e sua p r o t e ç ã o consciência durante a percepção"
trás dele e a aparição e desaparição d o escrito Z\h\oco mágico". Finalmente se ofereça
3 Idcm, Die Traumdeutung, Stjjgienausgabe. Frankfurt, 1972, vol. II p 176 ( i b i d e m ) . Ê compreensível q u e Freud sc tenha sentido atraído pelo c o n t r a a excitação
4 làem,Jenseíts des Ustprinz.p, p. 223. Daqui cm diante a numeração das páginas aparecerá n o texto. u m a imagem taci m e n t e compreensível de c o m o a consciência p o d e r » P
Ao buscar o rasrro da compulsão à repetição, Freud inesperadamente^en- iniciar seu d o m í n i o " (p. 241). "Se existe um para além do princípio do prazer'
contra também o rastro da infraestrutura fisiológica e do possível sentido da t a m b é m será lógico admitir uma pré-história para a tendência realizadora de
consciência. Ambos os rastros convergem no fenômeno da proteção c o n t r a os desejos d o sonho" (p. 242).
estímulos. "Para o organismo a proteção contra os estímulos é uma tarefa quase O que Freud apresenta aqui não seria uma mistura de ciência ultrapassada
mais importante que a recepção de estímulos." Ele "tem. antes de t u d o , dc al- e m e t á f o r a anticientífica? É o que se poderia objetar, do p o n t o de vista da
mejar preservar as formas especiais de transformação de energia que atuam nele m o d e r n a neurofisiologia. N a mesma medida em que é acertada a imagem da
contra o influxo nivelador, e portanto destruidor, das energias excessivamente "vesícula de substância estimulável", já que a forma elementar do orgânico real-
fortes que agem fora dele" (p. 237), c quando a pele fracassa e um excesso de m e n t e é d e f i n i d a pelo fato de que uma membrana envolve o núcleo de uma
estímulos exteriores invade o organismo, ele tem de conter esse excesso com célula, p r o t e g e n d o - o contra o seu ambiente tanto quanto regulando seu inter-
seu próprio suprimento de excitações, com o quantum "de energia catéxica câmbio com ele, é também inadmissível dizer que a "casca do cérebro", o neocór-
quiescente (vinculada) e energia catéxica livremente móvel" desse s u p r i m e n t o tex, d e s e m p e n h a o papel de uma membrana ou invólucro do cérebro todo,
(p. 236), para o que são convocadas energias de todas as regiões do c o r p o para assim c o m o , de resto, t a m b é m não se encontram nele "sistemas" autônomos
as "redondezas do ponto de invasão", para estabelecer uma "anticatexia" a fim de que seriam responsáveis exclusivamente por sentimento, percepção ou consciên-
transformar a "nova energia afluente" em "energia catéxica quiescente, ou seja, cia, e sim tão s o m e n t e áreas que são interligadas umas às outras de maneira
psiquicamente Vinculada" — ao preço, porém, de que, entretanto, "se e m p o - altamente complexa e que, quando muito, deixam reconhecer uma intensiva
brecem todos os outros sistemas psíquicos, resultando uma extensa paralisação participação nesta ou naquela função. Não se deve esquecer que a maior parte
ou redução do resto da função psíquica" (p. 240). A assim chamada anticatexia do c o n h e c i m e n t o neurofisiológico foi adquirida através de casos patológicos.
é uma espécie de legítima defesa do sistema nervoso; ele tenta, precariamente, Foi observado que determinadas atividades de mobilidade, percepção, memó-
refazer, a partir do interior, algo para cuja realização a pele exterior é m u i t o ria, fala e c o m b i n a ç ã o p a r a m de funcionar quando partes determinadas do
mais apropriada: proporcionar à insuportável sobre-excitação uma possibili- cérebro são avariadas. Sem dúvida isso só pode querer dizer: uma atividade não
dade de descarga. E exatamente aqui começa a conclusão analógica de Freud. é possível sem a respectiva função da parte avariada do cérebro, mas não; ela
Em casos de pavor desmesurado ocorreria o mesmo que nos de f e r i m e n t o físi- só p o d e ser a t r i b u í d a a essa função. Nesse entretempo, com efeito, surgiram
co. O que a pele é para o corpo, a angústia é para o "órgão anímico" (p. 2 4 l ) : variados meios técnicos para refazer o caminho de trás para diante e estimular
uma grande proteção contra os estímulos. Se tal proteção faltar, q u a n t i d a d e s células isoladas do cérebro ou averiguar com exatidão quando e com que torça
insuportáveis de estímulos o invadem, provocando um choque, e os "sonhos elas são ativas. C o m isso, porém, não foi apenas o conhecimento neurológico
do paciente de neurose traumática", que "reconduzem com tanta regularidade detalhado que deu um salto quantitativo; descobriu-se também que a excitação
o enfermo à situação de acidente", "procuram recuperar pelo desenvolvimento de células nervosas isoladas (neurônios) ou de conjuntos de células afeta também
da angústia a dominação dos estímulos, cuja negligência se t o r n o u a causa da outros c o n j u n t o s de um m o d o ainda imprevisível. Mesmo ali onde neurônios
neurose traumática". E Freud conclui: "Aqui seria necessário realizar u m tra- isolados "queimam" e m intensidade exatamente mensurável é possível que se
balho anímico pré-erótico, pré-sexual, antes que o princípio do prazer possa localize apenas o forno identificável de uma excitação muito mais disseminada.
sim de tal forma que o tronco cerebral e o neocórtex "são i n t i m a m e n t e liga- P- - e m Nietzsche, ela continuamente
9 A a g u d e z a d e Freud. nesse p o n t o , eorpo, e nada fora disso;
dos entre si, tanto anatômica quanto funcionalmente" (p. 184). M e s m o f u n -
a u m e n t o u , até q u e este por fim. fez seu Zara ustr d a c , Lu - P , KSA 4, p. 39).
ções c o m o a avaliação de c o m p o r t a m e n t o e a f o r m a ç ã o da m e m ó r i a , q u e e alma é apenas uma palavra para algo n o c o r p o {Alsospuu»
excitação que o acomete repentinamente com os mesmos meios: "vincular", epigenético. Assim, o nervo óptico encontra sua região de destino no diencéfalo e no
mesencéfalo mesmo quando se tenta "redirecioná-lo" ou quando o cortamos e o
c o m o diz Freud. ,
deixamos novamente crescer. Os resultados desse prematuro processo de auto-or-
Esses meios são os da ligação neuronal. O cérebro h u m a n o se constitui de
ganização, em parte intrínseco, em parte dependente do meio ambiente, se solidi-
estimadamente meio bilhão a um bilhão de neurônios. As possibilidades de li-
ficam rapidamente e "endurecem" consideravelmente até formar uma malha mais
gações entre eles em pontos de contato condutores de excitaçao, as c h a m a d a s
ou menos firme. Essa armadura básica determina consideravelmente a fase sensorial
sinapses, não são, em v i r t u d e de sua d i v e r s i d a d e , de m a n e i r a n e n h u m a
e precognitiva da percepção, por exemplo, o modo como claridade, contraste, cor,
aleatórias; são, porém, em virtude de sua imensa quantidade, quase inesgotá- movimento são assimilados no sistema visual e como a percepção de espaço e pro-
veis, inclusive no sentido de que o sistema nervoso p o r si m e s m o não t e n d e fundidade se desenvolve. A maior parte desses processos inconscientes e automati-
absolutamente a experimentá-las todas. Tendo-se, porém, aberto o caminho para zados não será mais modificada por experiências individuais posteriores. Nós com-
certas ligações — e "abrir caminho" é uma metáfora freudiana recorrente para aque- partilhamos esse processo com outros mamíferos e em parte com outros inverte-
les traços de excitação que atravessam o sistema nervoso e constituem o fato "psi- brados" (pp. 135-237).
que" _ uma vez que os neurônios se mostraram bem-sucedidos processadores
de excitação, é muito mais cômodo conservá-los e p a u l a t i n a m e n t e automati- Difícil dizer o n d e começa a formação da memória. Em todo caso, ela se
zá-los. A aquisição das capacidades motoras e sensoriais mais simples, seja a de estende até a constituição física e a estabilização de organismos. Muito antes
pegar objetos ou a de diferenciar contrastes, figuras e cores, é já u m abrir cami- de assumir formas conscientes, ela age como autoasseguramento de processos
nho, um ligar e fixar redes nervosas e, com isso o e s t a b e l e c i m e n t o de u m a orgânicos. Angústia, p o r sua vez, como expectativa de algo doloroso, nunca
memória. Redes nervosas são experiência registrada, fixada, t o r n a d a repetível. o c o r r e sem n e n h u m a lembrança de dores vivenciadas, de um excedente de
Não que células nervosas individuais ou grupos de células se j u n t e m ou m e s m o excitação que foi m i n o r a d o através de determinadas ligações neuronais. A ati-
recordem de acordo com um plano. Elas mesmas nada sabem. M e m ó r i a não é vação dessa ligação e a lembrança do desconforto que ela dominou são para
algum tipo de conteúdo, como uma imagem ou som, que se grave nelas, e sim o sistema nervoso o mesmo processo. A suspeita de Freud de que na angústia
tão somente a combinação em que elas se interligam no m o m e n t o da transmis- houvesse algo que protegesse contra o pavor ganha em solidez: a sua qualidade
são da excitação. Memória é a própria rede, não algo d e n t r o dela. Por q u e essa de m e m ó r i a é essa proteção. Se há algo que dê segurança a um organismo, esse
rede se interliga cada vez de uma maneira e não de outra, para isso não há u m a algo é sua m e m ó r i a processual ou implícita, ou seja, a rede que seu sistema
regra lógica reconhecível, por mais certo que seja que todas as regras lógicas nervoso tece. Ela é a realização neuronal elementar da formação de confiança,
repousam em um certo grau de interligações regulares. m u i t o antes de entrar em jogo o que na psicologia se chama desconfiança. O
Em todo caso, existem graus muito variados de firmeza nessas redes. A mais familiar, c o n h e c i d o , seguro, se constitui de início em realizações motossen-
firme, naturalmente, é soriais de ligações e, mesmo que a sua realização e possibilidades de variação
nem de longe t e n h a m sido estudadas à exaustão, uma coisa é certa: somente
a organização fundamental do cérebro, como se formou na filogênese, ou seja, o fato sobre a base daquelas ligações que descem até a ontogênese e a filogênese são
de que nosso cérebro é um típico cérebro de vertebrado, mamífero e primata. Ademais, possíveis novas ligações e, q u a n t o mais tarde elas ocorrem, mais instáveis e
é próprio de órgãos do sentido serem ordenadamente ligados do mesmo m o d o a frágeis, mas t a m b é m mais flexíveis e variáveis elas são, e maior é o trabalho
determinadas regiões cerebrais em todos os casos normais de indivíduos da espécie,
gênero etc., e que então essas regiões cerebrais se liguem umas às outras de maneira nervoso necessário para fixá-las.
igualmente ordenada. Tudo isso acontece em parte independentemente de experiência, Para esse t r a b a l h o nervoso existe a palavra "atenção". Mas, assim como o
no entanto não de modo que houvesse genes que o prescrevessem com exatidão. c o n h e c i m e n t o não começa apenas com a identificação consciente e a nomeaçao
Existem, pelo contrário, durante o desenvolvimento individual do cérebro, determi- de acontecimentos e de estruturas regulares, assim também a atençao nac.tem
nadas condições gerais sob as quais a ordenação estrutural do cérebro, e com isso o seu início apenas q u a n d o um "eu" se c o n c e n t r a sobre um objeto idêntico. Min-
sistema de geração de significações primárias, se forma de modo auto-organizador, to antes disso são registrados incontáveis estímulos em âmbito subcortical e
depois é feita uma "pré-seleçáo", para ver se eles requerem realmente total aten- Ainda assim duas coisas são sabidas: 1) o trabalho nervoso que chama aten-
ção Assim como existe trabalho cerebral precognitivo, u m p o r assim dizer ção é u m t r a b a l h o pesado. "Para compreender isso, é necessário saber que o
conhecer antes do conhecimento, assim também há um trabalho pré-atennvo: cérebro apresenta um consumo muito acima da média de oxigênio e energia
notar antes que se note algo. Apenas sobre as bases de seu p r ó p r i o «pré- metaból ica (açúcar — glicose). Embora represente apenas 2% da massa corpo-
um ••j —- — — — a _
juízo - fé que um cérebro se torna capaz de julgar. Se a sua atenção não é nem de ral, o cérebro c o n s o m e em média 20% de toda energia, quer dizer, dez
vezes
lon-e sempre consciente, a consciência, pelo contrário, é diretamente definida mais d o q u e lhe caberia de fato." "Ao mesmo tempo, o cérebro vive 'da
mão
pela atenção: como o estado no qual uma rede de percepção, p e n s a m e n t o e para a boca', quer dizer, ele não possui nenhuma reserva de oxigênio e açúcar.
comando está tão tensa, quer dizer, tão desperta, que sente t u d o q u a n t o faz Em caso de falta de abastecimento de oxigênio, em apenas poucos minutos ele
e vivência como seu fazer e vivência, e a si dentro deles c o m o u m "eu" idêntico, estará irreversivelmente avariado" (p. 201). Ninguém desprovido de reservas
continuado. Notar-se como esse "eu" e preparar-se objetivamente para t u d o realiza um t r a b a l h o tão pesado sem correr nenhum perigo, muito menos o
quanto lhe acontece: esse duplo esforço de concentração p o d e então ser t o m a d o cérebro, com sua tendência a processar excitações da maneira mais cômoda, a
como o epítome da atenção, quando esse epítome simplesmente se ergue dos saber, p o r meio das ligações já preparadas. 2) Embora não se possa dizer como
esforços de atenção pré-consciente como a ponta de um iceberg. O r a , p o d e m o s a atenção é possível, existe um meio fatalmente seguro de torná-la efetiva: o
até constatar corretamente de um p o n t o de vista neurológico: " p o r t a n t o , a c h o q u e . As considerações de Freud a respeito da "anticatexia", para a qual o
consciência surge pela participação dos mais variados sistemas que perpassam organismo subitamente acometido puxa energias de toda parte, contêm tam-
todo o cérebro e não é, de modo algum, um f e n ô m e n o cortical" (p. 211). Mas bém algo de arqueologia da atenção. Q u a n d o o choque não é tão grande a
saber quais elementos neuronais participam da atenção consciente já signifi- p o n t o de atordoar, então o organismo desperta completamente. Dito de outra
caria saber como a atenção se dá? De maneira nenhuma. U m a vez que se tornou maneira: q u a n d o a onda de estímulo invasora não é tão poderosa que o sistema
não apenas presumível o quanto as ligações neuronais são complexas, mas tam- nervoso capitule, então ele tentará canalizá-la através de uma formação hipe-
bém notório que nenhum titereiro as controla, o fato da concentração chega rativa de novas redes. Sua tensão, neste caso, é o epítome da atenção. Nós a
às raias de um milagre, quer dizer, o fato de que células nervosas isoladas —
um número inimaginável delas —, sem o menor conhecimento umas das outras, m e n t o . D e s i g n a r a " u n i d a d e d a apercepção" c o m o "transcendental" significa para ele, antes de qualquer
sem nenhum plano, sejam, não obstante, reunidas com um objetivo definido, coisa, u m a r e n ú n c i a : n ã o atribuí-la a nada mais elevado ou mais profundo, sejam leis naturais, idéias con-
gênitas, u m a substância anímica imortal ou sabedoria divina, antes se resignar a apreendê-la como um ato
se juntem em uma unidade consistente da percepção e da consciência. Pode-se d e e s p o n t a n e i d a d e " (edição B 133. p. 136), quer dizer, c o m o algo inderivável. Apenas um bocado menos
r e s e r v a d a m e n t e p e n s a d o q u e K a n t , u m m o m e n t o só a mais de espanto diante de um cerebro que. nao
constatar que tal unidade se realiza, pode-se descrever a sua realização tão de-
o b s t a n t e , a cerca de u m bilhão d e células nervosas com um trilhão de possibilidades de ligações, e sem uma
talhadamente como talvez nunca antes, mas não se p o d e dizer c o m o ela é pos- instância s u p e r i o r c o o r d e n a d o r a , realiza a proeza de um espaço de vivência homogêneo, autoconsc.ente
e já se i n s i n u a c o m nova força s e d u t o r a o p e n s a m e n t o de uma ' h a r m o n i a preestabelec.da com o qual
sível. Atenção, concentração, síntese permaneceram t a m b é m para a fisiologia L e i b n i z t e n t o u s o l u c i o n a r a crise de ex plicação inpuncto síntese. C o m o poderia, e o que ele pergunta, a t
o que elas sempre foram para a filosofia: incompreensíveis 1 0 . incontáveis m ô n a d a s surgir a estrutura ordenada de um mundo, se uma supermònada. uma ' ^ d . g e ^ a
d i v i n a n ã o as reunir m i r a c u l o s a m e n t e em constelações duráveis e reconhecíveis í A ™
cheia d e milagres, mas de milagres d a razão", escreve ele a Bossuet (apud Ernst
10 Também a palavrinha "auto-organização" não nos leva m u i t o a d i a n t e neste caso. Ela diz j u s t a m e n t e q u e syrnbolischen Fonnen, parte 2, D a r m s t a d t , .994, p. 309). Tais são para ele os m,lagres ^ ™
não se pode encontrar nenhum "si-mesmo" p o r meio de cuja atividade c o o r d e n a d o r a se pudesse explicar a d a -síntese, o u seja, da p r ó p r i a h a r m o n i a preestabelecida. Esta e o milagre por excelência e W -
surpreendente coesão; tal unidade teria antes s u r g i d o / w s i mesma. Por si m e s m a q u e r dizer sem si m e s m a . n e n h u m . A d o u t r i n a d a h a r m o n i a preestabelecida é sem dúvida uma variante par a ^
Em outras palavras: não se sabe como. "Auto-organização" é cifra para uma crise da explicação, n ã o u m a D e u s a partir d a o r d e n a ç ã o intencional da natureza. Kant o e n t . c o ^ ^ ; ; i
explicaçao. Neste p o n t o a neurofisiologia inteira não representa n e n h u m passo além d e K a n t . C o m verve co b e m q u e a sua insuficiência não lhe tirava a fascinação. "Esta prova merece : * r
ela pode até demonstrar q u e os esquemas mentais que nós, c o m o seres h u m a n o s , s e m p r e t r a z e m o s à baila, d e f c r ê n c i a . É a mais velha, mais clara e mais apropriada sempte nova
q u a n d o nos pomos a estruturar a variedade das excitações q u e agem sobre n ó s em u m a experiência o r d e - e s t u d o d a n a t u r e z a , assim c o m o ela p r ó p r i a deve a cie sua ex s a n u a c ^ c d g IP
nada, nao se encontram apriori em nós, c o m o Kant sugeriu. Eles são t o d o s p r o d u t o s de u m s e m - n ú m e r o f o r ç , Ela [...] a m p l i a n o s s o s c o n h e c i m e n t o . ^ ^ s o b r e suas c/usas,a
d,- repetições pouco a pouco concentradas em ligações nervosas. Mas a partir daí n ã o se esclarece n e m u m
c u j o p r i n c í p i o está tora da natureza. Esses conhecimentos, porem, convicção
irresis-
p o u q u i n h o c o m o esses esquemas p o d e m produzir uma "unidade da apercepção". É verdade q u e K a n t foi saber a idéia originária, e a u m e n t a m a crença em um criador s u p r e n a p ™ r "oi-mesmo"
longe demais q u a n d o chamou essa unidade de "transcendental" (I. K a n t , Kri.ik der reinen Vernunft, edição
tível" ( i d e m . op. cit.. edição B 651 f. p p . 550 e segs.). Q u e m um a espécie de
139, P 4 M S u n t n l e a alav c o m o h a r m o n i a preestabelecida deve perguntar-se se nao o .magmou desde sem,
, r ; í " P ™ b e m observada, antes cifra para uma crise d a explicação q u e
uma explicaçao efetiva. E ass.m Kant a utilizou preferencialmente, pelo m e n o s em sua crítica d o c o n h e c i - a p a r a t o insensível para a incompreensibilidade de sua coesão.
um tal exercício implica poderia ter começado de outro modo senão sob uma
conhecemos em sua forma bruta em caso de dor repentina. Toda a atenção se
violenta compulsão à repetição.
dirige ao p o n t o dolorido. A fratura de uma perna faz com q u e t o d o o organis-
C o m isso a neurose traumática aparece sob uma nova luz: e se aquela compul-
mo de um golpe se torne perna, a dor de dentes o transforma em dente 1 1 . Nes-
são doentia à repetição, cuja força capaz de arruinar os nervos Freud enfatizou,
se caso o organismo exerce concentração no seu sentido mais literal: centra-se,
fosse em seus inícios exatamente o contrário: uma força constituidora de nervos',
enrola-se em torno do órgão dolorido, tomando-lhe a forma, c o m o se quisesse
i m p u l s i o n a d o r a daquelas ligações neuronais que enfim resultaram no Homo
envolvê-lo em uma capa protetora, recuperar uma f u n ç ã o negligenciada da
sapiens? O p r ó p r i o Freud apontou para essa direção. O choque que afeta um
pele. Em momentos como esse ele se encontra em um p o n t o de indiferenciação
organismo é o estranho no mais alto grau: o inesperado, o incomensurável, o
entre atividade e paralisia. Só depois que a dor já foi assimilada a um p o n t o em
avassalador, contra o qual lhe faltam as possibilidades nervosas de assimilação.
que comece a ceder é que o lado diferenciador da atenção p o d e mostrar-se: "o
A angústia, "que protege contra o pavor", ao contrário, é a expectativa do que
notar" certas figuras ou acontecimentos ao redor, "de fora" e a percepção de
é p a v o r o s o — o q u e ela só p o d e ser com a condição de já guardar consigo a
mínimas diferenças entre eles. Essa atividade de fixação* nos dois sentidos da
experiência do pavor: a lembrança de algo pavoroso já vivido, mas ao mesmo
palavra é a reação que ocorre em toda parte onde o organismo se veja c o n f r o n -
t e m p o assimilado. Mas na mesma medida em que o pavoroso é assimilado,
tado com algo que ele ainda não conhece, não p o d e fazer ou n u n c a exercitou:
canalizado nervosamente, ele próprio se torna conhecido, familiar, livre de sua
aquilo para o que ainda não foi estabelecida ou adestrada n e n h u m a rede ner-
pavorosa estranheza, até mesmo um elemento de proteção contra os estímulos
vosa. C o m isso não se quer dizer que esse estabelecimento ou a d e s t r a m e n t o
d i a n t e de novos sustos. A recuperação da angústia faltante é, portanto, uma
também seja bem-sucedido, mas sim que foi necessário u m e n o r m e d i s p ê n d i o
m e d i d a de estabilização: a mobilização posterior de um modelo já conhecido
de atenção para que se realizassem as ligações específicas entre as zonas sub-
e a tentativa de remeter o desconhecido/pavoroso a esse conhecido, de como
corticais e o córtex a que damos o n o m e de consciência e que n e n h u m a o u t r a
entretecê-lo com esse modelo por meio dos mais eficientes pontos de agulha
espécie conhecida ainda levou a cabo. Por que justamente o Homo sapiens? Para
e, com isso, torná-lo ele próprio conhecido, familiar. E o artifício específico da
isso é possível indicar determinadas condições, c o m o o t a m a n h o i n c o m u m de
espécie h u m a n a para isso é a autonomização da repetição; imitar o pavor vivido
seu cérebro em relação ao corpo, a formação peculiar de sua laringe 12 e a libe-
de propósito e tão longamente que ele empalidece e passa a pertencer às ligações
ração de suas mãos graças à postura ereta; mas estes não são motivos suficientes.
neuronais adestradas que constituem o sentimento de segurança.
E tampouco é sabido por que caminhos e descaminhos, motivadas p o r q u e
acontecimentos, tais ligações neuronais se iniciaram e se exercitaram. C e r t o é O m i m e t i s m o p o d e ser freqüentemente observado no mundo animal. A
apenas que o intenso exercício daquelas capacidades que se c h a m a m consciên- lebre se faz semelhante ao solo sobre o qual ela se encolhe, a lagarta da mari-
cia, pensamento, formação de conceitos é um trabalho nervoso pesado, q u e posa, ao r a m o sobre o qual ela repousa, o linguado assume defensivamente a
nenhum organismo toma a si a não ser sob grande pressão. Dito de outra forma: cor d o f u n d o do mar. Mas a repetição compulsoriamente autonomizada de que
simplesmente não é possível fazer uma idéia de como a repetição constante que se trata aqui é u m mimetismo que ultrapassa a si mesmo: não apenas a busca
de proteção diante do pavoroso, mas também no pavoroso. Ela não apenas se
adapta ao pavoroso, mas também adapta o pavoroso a si: começa a tomar-lhe
11 "Subjetivamente considerada, a dor de dentes / É sem dúvida mal vinda: / Mas ela tem uma boa qualidade,
/ D e lazer com que a lorça vital / Q u e quase sempre desperdiçamos e x t e r i o r m e n t e . / Se volte para u m as rédeas. A angústia é disseminada por todo o mundo animal; todo estímu-
p o n t o dentro de nos / E se concentre nele energicamente. / Mal s e n t i m o s a p r i m e i r a a g u l h a d a , / Mal
lo q u e n ã o é mensurável pela própria rede nervosa desencadeia impulsos de
percebemos a conhecida broca / A vibração, o solavanco e o ruído, / E a história m u n d i a l chega a o fim, /
?°"q"CC lS
' '° S lmpOStOS e 3 t a b u a d a
'1 s u m a , t o d a f o r m a de ser h a b i t u a l , / fuga. M a s o d o m í n i o da angústia por meio da produção de angustia inverte
T1- T T 7
, R A DC RCPCMC I N C X
—« W ~ - o impulso de fuga: torna-o fuga para frente. Ela se assemelha a um processo
a l m a
» R
K ; vol.( 11,
H oo cl hh hh uu tt hh ?|org.j). TMunique, 1982,
- H
W a h d m
p 542
Busch
' Bald
"in S a m t l i c h e Wcrke,
de autovacinação, n o qual o organismo administra a si mesmo uma dose do
O autor joga. nesta passagem, com dois sentidos d o verbofeststellen: dar-se c o n t a e fixar. ( N . d o T.)
pavoroso, a fim de se tornar imune a ele, ou seja, volta-o contra si a hm de
ge c Z l Z T ^ T * d r Í n g U C , d ° t S ° U t r ° S P r Í m a t a S P ° r U m a relativamente baixa da larin-
soiís espcciahncmc no ou° ?
7 T ^ ^ ^ ^ P - ^ i l i d a c l e s de p r o d u ç ã o d e
preservar. E se esse voltar-se contra si mesmo, essa aurorreferenciahdade tosse
sons. especialmente no que se refere à produção de vogais" (G. Roth, Das Gehirr, undseinZ p. 62).
a forma primitiva da reflexividade h u m a n a : o berço d a q u i l o q u e mais tarde últimos dias da humanidade], de Karl Kraus; como rejeição da classe burguesa em
seria chamado de consciência, pensamento, conceito? A o q u e t u d o indica, a Geschichte undKlassenbewusstsein [História e consciência de classe], de Geoi^
compulsão traumática à repetição, cuja força destrutiva, agindo antes de qual- Lukács; c o m o prédica carismática sobre o poderoso irromper da misericórdia
quer sentimento de prazer, impressionou tanto Freud q u e ele chegou a pensar divina que faz saltar pelos ares todas as categorias culturais em Rómerbrief
em conceder-lhe o status de uma "pré-história" do princípio de prazer, foi, em [Epístola aos romanos], de Karl Barth. E assim, não é nenhum acaso que em
seus primórdios, um formador de atenção e identidade. Talvez ela t e n h a sido 1917 t a m b é m tenha sido publicado um livro cujo modo de considerar os abalos
algo mais: um criador de cultura de primeira ordem? A essa suspeita, que Freud dá a impressão de ser uma contrapartida ao de Freud, como se fosse o contraste
desperta, mas da qual não partilha, que R o t h sugere, mas não expressa, deve-se radiográfico que desse a necessária nitidez à profundidade dc Além do princípio
agora dar o alimento que ela está a pedir. de prazer. Trata-se de Das Heilige [O sagrado], de Rudolf Otto.
Podemos classificá-lo como uma obra de psicologia profunda, uma vez que
se p r o p õ e a penetrar nos níveis mais profundos da vida sentimental humana
O pavor e o sagrado e descobrir ali um vulcão religioso. "Observemos o que há de mais recôndito e
p r o f u n d o em cada comoção forte e piedosa dos sentimentos que seja ainda mais
Certos acontecimentos históricos que, t o m a d o s em si mesmos, n ã o são tão que crença n o sagrado, confiança ou amor", "e só há uma expressão que se nos
desconcertantes, podem, quando existe uma sensibilidade especial para eles, parecerá adequada para definir esse fato: sentimento do mysterium tremendum."
produzir um efeito desproporcional. O terremoto de Lisboa, no a n o de 1755, "Ele p o d e [...] i r r o m p e r repentinamente da alma com arrancos e tremores.
foi sem dúvida uma catástrofe terrível. Mas foi só sob as condições de meios Pode levar a estranhas agitações, à embriaguez, arrebatamento e êxtase. Tem
modernos de divulgação de notícias que ele pôde causar uma comoção tão gran- suas f o r m a s selvagens e demoníacas. Pode descer a pavores e terrores quase
de nos espíritos. De fato ele não era necessário para provocar dúvidas q u a n t o fantasmagóricos. Tem suas preliminares e manifestações brutas e bárbaras. E
à organização divinamente sábia do m u n d o , mas q u a n d o o i n t u m e s c i m e n t o tem sua evolução para algo delicado, depurado e transfigurado" 13 . Tremendum,
dessa dúvida, do qual o bimiienar livro de J ó já dá t e s t e m u n h o , progredisse de qualquer forma, é uma palavra insuficiente para isso, pois "tremor é em si
até um ponto determinado, então um a c o n t e c i m e n t o dessa espécie p o d e r i a apenas m e d o : u m 'sentimento natural' bem conhecido", e por isso, segundo
funcionar como gasolina no fogo e conduzir ad absurdum toda a acuidade O t t o , p o d e ser "somente uma denominação analógica para uma reação senti-
físico-teológica que procurava demonstrar ser o m u n d o existente o m e l h o r m e n t a l de espécie inteiramente peculiar", "que de fato tem semelhança com
possível, uma ótima constelação de harmonia preestabelecida. T a m p o u c o era o medo", "mas que é ainda algo totalmente diferente de amedrontar-se". "O
necessária a Primeira Guerra Mundial para que se soubesse o que são neuroses Velho T e s t a m e n t o é rico em expressões sinônimas para esse sentimento. Es-
traumáticas. Mas ela fez com que estas se manifestassem com t a n t a freqüência p e c i a l m e n t e digna de n o t a aqui é a ematjaveh, o pavor de Deus', que Javé
que também Freud não poderia olhar ao largo delas por mais t e m p o — sob o p o d e d i f u n d i r , mesmo enviar [..] e que é estreitamente aparentado ao deíma
risco de que abalassem toda a sua teoria dos instintos. É certo que apenas em um panikón [o pavor pânico] dos gregos." "Este é um pavor cheio de terror íntimo
mundo burguês europeu confortável mente organizado, embalado pela certeza c o m o nada na Criação, nem mesmo o que há de mais ameaçador e poderoso,
de um progresso cultural e espiritual em uma medida hoje quase inimaginável, p o d e inspirar." (pp. 14 e segs.) E isso porque mistério não é apenas segredo, e
a Primeira Guerra Mundial, que afinal de contas náo era a primeira guerra, p o - sim o "estranho e causador de estranhamento" por excelência (p. 31); porque
deria eclodir provocando um abalo tão grande que o sensório dos intelectuais aqui eu sou c o n f r o n t a d o com o que é absolutamente diferente, que por sua es-
foi aguçado como que aos solavancos para o significado cultural dos abalos. pécie e essência é incomensurável para o meu ser e diante do qual eu por esse
De modo muito ambíguo, aliás: com genuflexão diante d o p o d e r n a t u r a l da motivo, recuo, presa de uma admiração paralisante" (pp. 32 e segs.). b nesse
guerra no livro In Stahlgewittern [Nas tempestades de aço], de Ernst J ü n g e r ;
13 R. O t t o . ^ / / ^ . M u n i q u e , 1963. pp. >3 e segs. D a q u i em d i a n t e a n u m e r a ç ã o serd indicada no
como sátira desesperada da realidade em Die letzten Tage der Menschheit [Os
texto.
que o mesmo campo de significação. Aqui parecia que nos defrontávamos com
«ser absolutamente diferente" reside não apenas a força repulsiva de um pavor
o nível primevo, supracultural, dos conceitos religiosos15. Mas a caça às palavras
indizível, mas também "ao mesmo t e m p o algo de s i n g u l a r m e n t e a t r a e n t e ,
originais da religião, que na última virada de século se tornara uma espécie de
envolvente, fascinante, que então entra em uma estranha h a r m o n i a contras-
esporte dos etnólogos, é improdutiva. O mérito de O t t o é ter tornado isso
tante com o m o m e n t o repulsivo do tremendurn: "a criatura q u e t r e m e dian-
claro. As pretensas palavras originais já representam elas próprias uma situação
te dele em humílimo desalento sente sempre t a m b é m , s i m u l t a n e a m e n t e , o
precária de tradução: sínteses e compressões canhestras de morosos processos
impulso de se voltar para ele, e mesmo de se apropriar dele de alguma forma
de excitação coletivos. "Aquilo para o que possuímos nomes, nós já o ultrapas-
(p 42), seja "por meio de ações cultuais mágicas, por meio de fórmula, 'bênção,
samos" 16 . Já não nos d o m i n a tanto que pudéssemos apenas ficar paralisados,
conjuração, consagração, encantamento" ou por meio das "técnicas xamânicas
balbuciar ou gritar. Nomes criam distância do vivido; sua força sintetizadora
da possessão', habitação, autorrealização pela exaltação e pelo êxtase" (p. 44),
é t a m b é m domesticadora, suavizadora, tranquilizadora. As aparentes palavras
motivo pelo qual essas formas de direcionamento, rigorosamente consideradas,
originais não são, portanto, a origem religiosa vivida, e sim já sua assimilação.
são já processos secundários, reações, medidas para o d o m í n i o d o pavor - in-
O ato de pronunciá-las é uma válvula de escape de uma excitação indizível,
dícios de "que o sentimento religioso, no primeiro degrau de sua evolução,
e n a d a p r o v o c a t a n t o tal excitação, segundo O t t o , quanto o pavor pânico.
irrompeu de início apenas com um de seus polos, a saber, com o repulsivo, e
O sagrado não é nem uma palavra original nem um conceito que fosse exatamente
de início ganhou forma apenas como t e m o r demoníaco" (p. 43). "'Aterrori-
apropriado para uma coisa, um ser vivo ou um fato. É muito mais uma abreviação
zante' e 'terror' já nos são conhecidos sem o acréscimo do adjetivo c o m o ter-
para u m processo de assimilação de pavor, que evidentemente não se pode
ror sagrado". "Desse 'temor' e sua forma 'bruta', que em algum m o m e n t o ir-
a b s t r a i r da c o n s t i t u i ç ã o d o Horno sapiens e do qual indubitavelmente se
rompeu pela primeira vez como o sentimento de algo 'sinistro' e q u e surgiu
precisa para colocar sob a lupa da teoria da religião a compulsão traumática
como qualquer coisa de estranho e novo nas almas da h u m a n i d a d e primitiva
à repetição, a presumível "pré-história" do princípio de prazer.
é que se iniciou toda a evolução histórica da religião" (p. 16).
O que quer que O t t o possa ter feito para turvar essa descoberta 1 ', ela é
inovadora. De fato havia muito já que os teólogos tinham a consciência de que
o moderno adjetivo "sagrado" não passava de um derivado pálido d o antigo A compulsão à repetição como criadora de cultura
hebraico qados ou do grego hagios — uma tradução moralizadora, q u e torna
algo que causa temor {furcht) em algo que inspira veneração (ehrfurcbt). Mas e se A origem da religião está envolta em trevas. Nem se deixa desencavar de um
já o qados fosse a sublimação de algo mais primitivo, monstruoso, se as palavras nível p r o f u n d o da psique, e nem os mais antigos vestígios encontráveis da assi-
originais da religião já não possuíssem n e n h u m a clareza evidente nos escritos milação da natureza pelo homem a revelam. É verdade que se pode comumente
referenciais das religiões monoteístas avançadas, e sim, quando muito, entre os deduzir algo sobre a coletividade que tinha a ver com eles a partir de restos de
assim chamados povos naturais? E assim os etnólogos se voltaram d u r a n t e u m fogueiras, cabanas, vasos, armas ou inscrições na pedra. E assim que suas técnicas
bom tempo para o Mana, que entre os melanésios significa algo c o m o a força seus costumes e usos ganham contornos um pouco mais nítidos, com maior
que retira as coisas ou os seres vivos de seu ambiente natural e as coloca em uma regularidade se evidenciam neles os traços c u l t u r a i s - m á g i c o s . Coleções de ossos
excitante situação de exceção chamada tabu. Q u a n t o a isso se observou q u e o significativas, acrescidas de restos de plantas, minerais, vasilhas, machadinhas
Manitu da língua dos algonkin e o Wakanda da língua sioux abrangem quase ou lanças não são apenas indícios seguros para túmulos ou altares de sacrifício
cerimonialmente cuidados, nos quais os mortos eram providos dos objetos mais
preciosos disponíveis, como também são as principais fontes da arqueologia da
14 A aplicação irrefletida do próprio s u p r i m e n t o de sentimentos, e s t r i t a m e n t e p e s s o a l o u seja, o de u m p r o -
fessor centro-europeu do século X X à camada mais p r o f u n d a da h u m a n i d a d e ; a afirmação n ã o c o n f i r m a d a
por nada de que o sentimento primevo seria "religioso", suigeneris c não passível dc c o m p a r a ç ã o c o m ne-
15 a ; excelente síntese da discussão etnológica da última v i n d a de século, dominada pelos nomes de Prazer.
n h u m sentimento natural"; enfim, a recomendação d o mysteriufn tremendurn c o m o f o n t e da j u v e n t u d e
C o d r i n g t o n , W u n d t , H u b e r t e Mauss em E. Cassirer. Ph,lcsoph,e.... PP. 93 se b s.
para a m o d e r n a cultura decadente, c o m o meio de revitalização da faculdade de vivência h u m a n a e n f e r m a
de civihzaçao, t u d o isso já é uma terrível prova de paciência. 16 F. N i e t z s c h e , Gotzen-Dàmmerung* p. 128.
pré-história. Da ongem d a religião, dc todo modo, elas estão m u i t o longe O que cais c u l t u r a s relativamente tardias só são ainda primitivas no sentido
que para os arqueólogos é um tempo inicial, para o Homo sapiens, bem contadas de q u e a i n d a não c o m p l e t a r a m uma separação e diferenciação estrita entre
as coisas, já é um tempo tardio, e achados de meados da Idade da Pedra, de cerca a vida religiosa e a social, entre cultura e culto, natural e sobrenatural, que
de dez a oito milênios antes da era cristã, que d e m o n s t r a m a indiíerenciaçao seu culto é culto dos mortos - culto de sacrifícios. Não existe culto quê não
entre o modo de vida social e o cultual-mágico, não dizem nada sobre c o m o essa remeta a u m a prática de sacrifícios, a um derramamento coletivo concentrado
espécie se relacionou com a religião 30 ou 40 milênios antes 1 . C e r t o é apenas de sangue de seres h u m a n o s e de animais. A questão da origem da religião é a
da origem d o sacrifício 18 .
Sacrifícios são tentativas de reparação. Por meio deles algo deve ser remo-
1 - Aqui sc coloca um problema dc princípio n ã o apenas para a arqueologia c a p a l e o n t o l o g i a , c o m o t a m b é m
para a etnologia. T a m b é m esta surgiu do esforço "de sc chegar p r ó x i m o da o n g e m m e s m o q u e 1 > u r k h e , m vido d o m u n d o . M e s m o quando eles não deixam claro o que seja: que se trate
tenha procurado dar "à palavra origem' t a n t o c o m o à palavra p r i m i t i v o u m s e n t i d o t o t a l m e n t e relativo :
de algo pavoroso que clama por apaziguamento, purificação, é tanto um traço
"sob tal conceito não e n t e n d e m o s n e n h u m inicio absoluto, e sim a situação social mais simples q u e é co-
nhecida açora, a situação social para além da qual é h o j e impossível p a r a nós avançar (E. D u r k h e t m , D/e essencial de todas as formas arcaicas de sacrifício quanto seu caráter repetitivo.
dementarem Formen des religiõsen Lebens. F r a n k f u r t , 1981 [ 1912], p. 26). E q u e se e n c o n t r e m e n t r e os
povos que são, do p o n t o de vista europeu, primitivos, situações "simples", talvez n a o a p u r a o r i g e m d a
Apaziguar uma única vez não basta. O sacrifício tem de ser sempre novamente
humanidade, mas algo que não sc afaste m u i t o disso, é a crença inicial d a etnologia, da q u a l ela t e m mais consumado. Ele é paradoxal. Ele quer apaziguar algo pavoroso, mas é ele próprio
dificuldades de sc livrar do que ela própria tem consciência. C l a r o q u e ela sabe há m u i t o q u e os assim
chamados "povos naturais" não são mais "antigos" do que os "povos de cultura"; eles d e s c e n d e m d o m e s m o pavoroso. Ele quer remover algo do mundo, mas o rememora constantemente. A
núcleo de humanidade, apenas conheceram uma outra evolução. O u t r a , p o r é m , não significa m e n o r . A l g u n s
m e m ó r i a implícita atua, como já vimos, muito abaixo do limiar da consciência;
deles chegaram a sistemas dc parentesco e de linguagem, cuja c o m p l e x i d a d e supera a ca p a c i d a d e d e c o m -
preensão dos centro-curopeus (cf. C. Lévi-Strauss, Das wildeDenken. F r a n k f u r t , 1968 1962]). " M e n o r " atua em t o d a parte onde um sistema nervoso realiza fortes ligações neuronais
aquela outra evolução c apenas sob um p o n t o dc vista: ela levou a uma m e n o r objetivação c a natureza — vale
dizer, dominação da natureza. Esse "menor", porém, pesa m u i t o , pois a c o m p u l s ã o à objetivação, f a l a n d o
que ficam à disposição dele para outras assimilações de excitação. A mais an-
neurologicamentc, à canalização dc excitações, para a familiarização através da repetição ou, t c o l o g i c a m e n - tiga das formas palpáveis de memória explícita, especificamente humana, ao
te falando, para a profanação, é um impulso elementar de t o d o progresso h u m a n o . O r a , a p r o f a n a ç ã o n ã o
começa apenas com os gregos antigos ou na Idade M o d e r n a , e sim, c o m o a i n d a sc d e m o n s t r a r á d e t a l h a d a - contrário, é o sacrifício. Em primeiro lugar, no sentido superficial de que aqui
mente neste capítulo, já c o m o ato de tornar compreensível o incompreensível, t o r n a r c ô m o d o o i n c ô m o -
u m a coletividade rememora de maneira muito decidida um acontecimento
do, por meio de sua presentificação repetida, ritualizada, p o r t a n t o já c o m a c o n s t i t u i ç ã o d o sagrado, e n ã o
apenas com sua profanação. O impulso de p r o f a n a ç ã o c o n t é m um imprescindível tertium comparationh\ pavoroso passado, mas não superado. Mas se levarmos em conta que os mais
existem, pois, culturas que ele fez avançar mais, e outras q u e ele fez avançar m e n o s ; a l g u m a s q u e n ã o se
mantiveram no nível dc objetivação d o culto aos antepassados, d o t o t e m i s m o , d o s sacrifícios a n i m a i s e q u e
antigos rituais de sacrifício conhecidos — nos quais provavelmente uma horda
finalmente desaguaram na escrita, n o d i n h e i r o e na indústria, e outras, q u e p e r m a n e c e r a m n a q u e l e nível. h u m a n a se atirou sobre indivíduos de sua própria espécie ou animais escolhidos
Apenas não p o d e m o s imaginar que as últimas em a l g u m m o m e n t o s i m p l e s m e n t e e s t a g n a r a m e daí cm
diante caíram numa apatia vegetativa; pode-se t a n t o dar a u m baixo nível de o b j e t i v a ç ã o u m alto grau d c para tal, os m a t o u ou mesmo os devorou — são formas tardias na evolução do
refinamento q u a n t o , n u m alto, se e m b r u t e c e r p r o f u n d a m e n t e . " M a i s c o m p l e x o ' o u " m a i s s i m p l e s " n ã o
Homo sapiens, frutos de no mínimo 20 milênios de trabalho cultural, então o
são, portanto, de maneira n e n h u m a denominações inequívocas para culturas mais ou m e n o s desenvolvidas:
e m u i t o menos "muito valioso" ou "menos valioso" E é t a n t o m e n o s c o n v i n c e n t e q u a n d o e t n ó l o g o s c o m referido acontecimento pavoroso que esse trabalho cultural rememora perma-
base justamente nesse p o n t o dc vista procuram e n f r a q u e c e r o v e l h o d i t o l a t i n o primos in orbe deos fecit
timor (o temor criou os primeiros deuses sobre a terra). " Q u a s e t o d o s os relatos q u e missionários ou via-
n e n t e m e n t e , p o r q u e não pode parar de repeti-lo, aparece sob uma nova luz.
jantes p r o d u z i r a m sobre religiões primitivas d ã o notícia sobre o t e m o r , o p a v o r ou t e r r o r d o s q u a i s os Ao q u e t u d o indica, o seu poder traumático não é apenas objeto, é também
adeptos dessas religiões são presas." ' Mas etnólogos q u e pesquisaram mai* dc p e r t o essas c u l t u r a s p r i m i t i -
vas poucas vezes encontraram vestígios de temor. Evans-Pritchard escolheu p a r a suas investigações s o b r e criador da m e m ó r i a . Apenas este pôde dar existência a uma memória especi-
a bruxaria os zandes, u m povo que lhe deu a impressão dc ser o mais satisfeito e d e s p r e o c u p a d o d o Sudão",
ficamente h u m a n a , de m o d o que uma cerimônia comemorativa não significa
e ele escreve que os nuers são h o m e n s p r o f u n d a m e n t e religiosos q u e veem o seu deus c o m o u m a m i g o
/ „ aqui apenas que um acontecimento passado seja comemorado solenemente, e
intimo (M. Douglas, Reinheit und «"<« Gefahrdung.
yjcjuuKiung. EincC.II1C Studic
o t u a i c zu
zu Vorstellunecn
v o r s t e ü u n g c n von
von Vcrunrciniinint»
Verunreimgung und
l a b u [Pureza e risco. Um estudo sobre as idéias de conspurcação c t a b u ] , F r a n k f u r t , 1988, p p . 11 e segs.). sim, s o b r e t u d o , que a memória explícita comemora a si mesma, o seu próprio
A "satisfação" dos zandes e nuers do século X X , caso ela fosse m e s m o tão g r a n d e q u a n t o pareceu aos et-
nólogos, obviamente não prova a insignificância de pavor c t e m o r para a f o r m a ç ã o de rituais e b r u x a r i a , e
sim. q u a n d o muito, prova o q u a n t o a assimilação do pavor tinha avançado aqui, o q u a n t o ela fora cultiva-
~~o7be amor, e n q u a n t o a descoberta de q u e determinadas espécies de repetição só se estabelecem
da sobre um determinado nível de objetivação, em suma, o q u ã o p o u c o primitivos são esses povos - en-
quanto lhes e atribuído um m á x i m o de primitivismo, e até m e s m o dc p r o x i m i d a d e às origens, t o d a vez q u e s o b c o m p u l s ã o traumática o sustenta decididamente.
tiverem de serv.r de prova para uma nova abertura etnológica q u e afirma: n ã o t ê m de ser n e c e s s a r i a m e n t e 18 c a palavra grega e a latina Í
t e m o r c pavor, p o d e m ser outras coisas t o t a l m e n t e diferentes ( s e g u n d o , p o r e x e m p l o , M a r y D o u g l a s , o q u e a m o r r e sacrificai j;í passou p o r ser a açao h u m a n a / . , » L r i e c h i s c h e r Opferriten
a m o r pela ordem), que levam à formação de ritual e cultura. U m a tal a b e r t u r a , n o e n t a n t o , é u m a "solução h u m a n o e m sua especificidade ( W . Burkert, Homo Nccans. Interpretar,onen altgnecluscn p
de 1 ollyanna antropológica. Sua constatação de "satisfação" entre os "povos naturais" r e f u t a o primos in u n d M y t h e n . 2 ' e d . a m p l i a d a . Berlim, 1997. pp. 9 e segs).
aparecimento c o m o faculdade de rememoração, p o r t a n t o c o m o a faculdade pida e sua lenta regularização simultânea. Mas esta não é apenas a tentativa de
de pensar. N o ritual sacrificai, essa faculdade comemora, p o r assim dizer, o seu fazer empalidecer o acontecimento pavoroso por meio de sua familiarização
aniversário. O paradoxal na rememoração sacrificai se revela, com isso, c o m o o senão t a m b é m de tomá-lo sob o próprio governo. Que se o inflija a si mesmo em
paradoxo solenemente fortalecido e intensificado da própria memória h u m a n a . lugar de recebê-lo passivamente, que seja o seu sujeito em vez de seu objeto já
Em sua fase originária ele evidentemente não foi outra coisa que não o desejo lhe retira algo de sua estranheza assustadora e é uma primeira mínima centelha
desesperado e sempre renovado de se libertar de uma inundação t o r t u r a n t e de dc soberania h u m a n a .
estímulos. Apenas por meio da repetição, como dizemos hoje, é que gravamos Nisso se manifesta de maneira especialmente drástica a enorme transvalo-
alguma coisa. N o começo era o contrário: apenas através da repetição é q u e ração que a compulsão traumática à repetição efetua já em suas formas elemen-
se podia debelar um excesso insuportável de estímulos. Epistemologicamente tares 2 '. Liberar-se d o a c o n t e c i m e n t o pavoroso reproduzindo-o, em vez de
falando: a memória surgiu de uma tentativa extenuante de esquecer 1 9 . f u g i n d o dele, é u m a forma de dar-lhe seu W p l á c i t o . Mas dar o beneplácito a
É tempo de desenvolver um tino para o refinamento psicológico presente algo pavoroso significa nada menos que romper com a interpretação animal
nesse contrassenso. A repetição, afinal, não se livra do a c o n t e c i m e n t o pavoro- do m u n d o . Pois t a m b é m os animais interpretam o seu ambiente quando per-
so, pois ela é seu constante da capo. Mas justamente por isso ela se liberta de cebem d e t e r m i n a d o s estímulos, como perigo, alimento, proteção ou objeto
seu aqui e agora. Ela realiza o artifício da presentificação. Ela faz algo que não sexual. Mas apenas o n d e essa interpretação ganha um terreno equívoco ela se
mais existe, que não tem mais n e n h u m aqui e agora, retornar, apesar de t u d o , t o r n a especificamente h u m a n a . É interessante que isso ocorra no ponto da
livre de sua presença física singular — sob a forma de seu eco, citação, cópia, maior univocidade, a saber, do maior terror e pavor, que só pede uma coisa: a
reprodução, extrato. O que retorna não é a coisa mesma, e sim o seu "espírito", mais p r o n t a reação salvadora. Justamente esse pavor é tomado pela compulsão
só que esse espírito ainda está longe de ser imaginado c o m o uma assombração traumática à repetição c o m o aquilo que salva dele. Interpreta-se nele mesmo
fantasmagórica independente. Sua imaginação é antes sua representação, sua o seu contrário. Ele se separa em superfície e fundo, em "aparência" e "essência":
performance, e ela constitui a atividade corporal total d o solene ato coletivo o pavoroso pelo que ele causa, e o portador da salvação que reside nele. Presen-
de lançar-se sobre determinadas pessoas e animais. "Espírito" é inicialmente tificá-lo, p o r t a n t o , não significa apenas libertá-lo de seu singular aqui e agora,
apenas essa ação em si, nada destacado dela, mas essa ação é o começo de sua multiplicá-lo, esquematizá-lo, familiarizá-lo, mas também ao mesmo tempo
liberação, da abstração do aqui e agora: um primeiro tatear desajeitado naquele privá-lo de sua univocidade, provê-lo de uma segunda dimensão: a de um sen-
caminho que Bachofen já chamara de "libertação do espírito das aparições da tido mais elevado, salvador. A afirmação disso, porém, esse esforço para nascer
natureza" 20 e cujos inícios nós mal podemos imaginar o q u a n t o foram penosos inerente a qualquer metafísica e teologia, tem de início a forma da inibição de
e demorados. O "espiritual" aí é de início tão somente a própria repetição estú- um instinto: certos seres se acostumam a não mais ceder imediatamente ao seu
impulso de fuga e proteção. Sob choque eles começam antes a redirecioná-lo
19 Para encontrar a pista da formação especificamente h u m a n a da m e m ó r i a , é necessário, c o m o Jan A s s m a n n
demonstrou em um grande estudo (J. Assman, Das kulturelle Gedáchtnis. Schriji, Erinnerung und 0his-
e a buscar p r o t e ç ã o do pavoroso no pavoroso. Se há um lugar onde se deve ir
che Identitãt infrühen Hochkulturen, M u n i q u e , 1992), começar m e n o s pela "arte d a m e m ó r i a " q u e os in- buscar o germe daquilo a que mais tarde se deu o nome de "espírito", é nesse
divíduos praticam a fim de memorizar a maior q u a n t i d a d e de coisas possível, d o q u e pela m u i t o mais a n -
tiga "cultura da memória" que uma coletividade preserva a fim de presentificar c o n s t a n t e m e n t e aquilo q u e r e d i r e c i o n a m e n t o . E o referido germe tem a inestimável vantagem de tornar
constitui sua identidade. C u l t u r a da memória se articula p r i m a r i a m e n t e c o m o celebração. " C e l e b r a ç õ e s e
ritos propiciam na regularidade de seu r e t o r n o a c o m u n i c a ç ã o e a transmissão d o c o n h e c i m e n t o assegura-
claro de súbito o q u e em formas mais evoluídas era obscuro: o quanto as assim
d o r da identidade e, c o m isso, a reprodução d a identidade cultural. Repetição ritual assegura a coerência
d o g r u p o n o espaço e no tempo" (p. 57). Mas primeiro foi preciso q u e se chegasse a isso. Q u a n d o a cele-
bração significa a preservação de uma obrigação social" e é d e t e r m i n a d a pela p e r g u n t a : " O q u e n ã o deve-
21 N e l a já se e n c o n t r a t a m b é m o núcleo daquela "transvaloraçào dos
mos esquecer? (p. 30), o seu caráter obrigatório já se afrouxou consideravelmente. A q u i l o q u e não devemos
esquecer somos capazes de esquecer. A obrigatoriedade do "não dever esquecer" já é u m p r o d u t o cultural d o q u e d e m o n s t r a n d o , atrela ao tipo d o sacerdote. A saber este c e n a ^ ^ J ^ Z Z i á * * »
moral sublimado. Ela substitui a mais antiga, mais poderosa d o "não p o d e r esquecer". A c u l t u r a d a m e m ó - natural d o m u n d o e d o s valores da força e da fraqueza ^ ^ " n a J r e ^ t á v e l marcha histó-
ria, q u e Assman considera o f u n d a m e n t o dc t o d a r e m e m o r a ç ã o , é ela p r ó p r i a u m p r o d u t o já t a r d i o d a sua p r ó p r i a f r a q u e z a e miséria física em u m a força ardilosa e msondaN ei um d , da d o
22 O p e n d o r para aquela figura de p e n s a m e n t o que em filosofia se e h a m a -falácia naturalista", q u e r e t o r n a a ficaçáo c o m ele só i percebida sob condições c u l t u r a , bem - " ^ ^ X i f i açáo que e submetido
cada nova geraçao com torça renovada, ou seja, o p e n d o r para apresentar a n a t u r e z a , a p e s a r de t o d o s os p a r t i c i p a ç ã o no devenir h u m a n o desaparece. Por m a , que o ~ m o d e .dent.hc^ç ^ q ^ ^ ^ ^
seus aspectos desagradáveis, c o m o boa em si, c o m o p r o d u t o da boa v o n t a d e de u m c r i a d o r ou c o m o a sede à análise e
das normas e valores supremos, mostra o q u a n t o é d i f k i b e libertar d ó s p r ó p rios erros congenicos. t r a t a m e n t o possa ainda parecer um processo anmiicc ( * .
c u l t u r a ele é u m f e n ô m e n o secundário, domesticado em alto grau.
se a partir do terror não é "possível n e n h u m a transição" "para os sentimentos se interpusesse com todas as suas crueldades e renúncias25. De fato, aconteceu o
positivamente voltados ao n u m a ? (p. 43). Ora, o poder da compulsão à repe- contrário: o impulso mágico de impor ao ambiente natural os próprios desejos
tição de transformar o negativo em positivo iessa transição, o m o t o r de toda foi inicialmente o impulso de legítima defesa, de repelir por meio da conjuração
magia. A imitação proposital de forças naturais, que não falta em n e n h u m a o p o d e r superior, aniquilador desse ambiente. Sua pertinência não deriva de
cultura arcaica, é uma compulsão à repetição aperfeiçoada até se transformar uma livre vontade, e sim da compulsão traumática à repetição. Esta, porém,
em técnica de dominação. A chuva imitada deve cair, o leão imitado deve per- e n c o n t r a sua autorrepresentação, sua autointerpretação e sua autojustificativa
der sua força ameaçadora, a caça imitada deve abater o m a m u t e de antemão, c o n c e n t r a d a s na imolação de seres humanos e animais. Não é mais possível
e tais ritos são de tão vital importância para os envolvidos, são tão "ofício" averiguar q u a n d o se começou a diferenciar entre seres humanos e animais e
quanto o trabalho apropriado do solo ou a fabricação de ferramentas e armas. em que m e d i d a isso se deu no início e, como já foi dito, mesmo o estágio mais
E a magia imitativa é inicialmente praticada c o m o m e d i d a de d o m i n a ç ã o da primitivo palpável das práticas de sacrifício é já um estágio avançado doMomo
natureza exatamente como os atos de colecionar, caçar e arar. A força sobre a sapiens. O n d e quer que o sacrifício ganhe contornos, isso já ocorreu na fase de
qual ela repousa se chama semelhança. Na compulsão à repetição já reside u m a sua autointerpretação: não mais uma compulsão à repetição puramente refle-
lógica da semelhança: a tentativa de apaziguar algo pavoroso por meio de u m xiva, e sim u m a para a qual já existia um destinatário, um para quê. Não se faz
seu semelhante e tendcncialmente privá-lo de seu poder. A produção de seme- um sacrifício pelo sacrifício, e sim para alguém: um poder superior que exige
lhança é produção de segurança e familiaridade, busca de p r o t e ç ã o c o n t r a o reparação. U m dos meios elementares contra o pavor é voltá-lo para o exterior
que é completamente estranho, e tudo que presentiíica, encarna, relembra u m na representação de um objeto que o encarna. Poderes superiores como Mana,
objeto é, antes de tudo, vivenciado como semelhante. Pode ser sua imitação, Wankanda, demônios ou deuses, são encarnações do pavor dessa espécie: elas o
mas também uma parte física ou um acessório dele, ou algo p r o v e n i e n t e de objetivam, t o r n a m - n o compreensível. E ele se torna especialmente bem com-
sua vizinhança espacial ou temporal. A dança da chuva é tão "semelhante" à preensível assim que for apreendido de maneira antropomórfica: como acesso
chuva quanto o dente do mamute, ao mamute, a lança ao guerreiro, a p e d r a de ira de seres semelhantes ao homem. A imaginação de tais seres já se aprovei-
ao cume da montanha, o mensageiro do i n f o r t ú n i o ao i n f o r t ú n i o . N a dança tou da relação de alternância da semelhança. Aqueles poderes pavorosos aos
"possui-se" a chuva, no dente, o mamute etc., no semelhante, p o r t a n t o , o se- quais nós nos fazemos semelhantes são também semelhantes a nós. Interpretar
melhante: esse é o fundamento prático palpável d o princípio epistemológico seu t u m u l t o c o m o ira significa, de um lado: ele tem um motivo reconhecível,
posterior, segundo o qual o semelhante é reconhecido tão somente por meio a saber, nosso c o m p o r t a m e n t o errado. E significa, de outro lado: onde há ira
de um semelhante 2 '. O centro e o concentrado desse f u n d a m e n t o prático é há a possibilidade de aplacá-la. Podemos contrabalançar nossa culpa por uma
o sacrifício. É a-histórica a idéia de que houve em algum m o m e n t o u m a fase reparação correspondente a ela. A prática do sacrifício concretiza a compulsão à
humana prévia de influência e encantamento mágicos imediatos d a natureza, repetição c o m o compulsão à reparação, em que as formas primitivas da justiça,
obsedada pela satisfação desenfreada de desejos, antes que a prática de sacrifícios da e q u i v a l ê n c i a e de p a g a m e n t o coincidem 2 6 .
Mas, na m e d i d a em que a compulsão à repetição é ao mesmo tempo trans-
valoração, o u seja, o ato de dar seu beneplácito ao pavoroso, ela também e a
24 A pedra de coque para t o d o b o m materialista é. naturalmente, o trabalho material. "Pode-se diferenciar o
homem dos animais acravés da consciência, através da religião, através d o que se quiser. O s h o m e n s m e s m o s f o r m a germinal de t o d o s aqueles ritos de transição que f u n a o n a m como b a i -
começam a se diferenciar dos animais n o m o m e n t o em que c o m e ç a m a produzir seus alimentos", dizem
xas na vida de coletividades arcaicas. O seu protótipo, por sua vez. e o propno
Marx e Engels em uma passagem célebre (.Diedeutsche Ideologie, M E W 3 [ O b r a s de Marx e Engels, vol. 3],
Berlim, 1969, p. 21). e eles tem razão. N ã o se trata aqui de algo c o m o fazer o t r a b a l h o derivar d o culto, e sacrifício. N e n h u m ato de sacrifício no qual não estivesse c o n n d o um morre
sim apenas da diferenciação inicial entre culto e trabalho; a m b o s tiveram seu p o n t o de p a r t i d a n o esforço
de dominação d o pavor. É certo que a idéia de utilizar u m a p e d r a c o m o m a c h a d i n h a , u m osso c o m o clava, c v e m a ser", q u e n ã o celebrasse de algum m o d o a morte c o m o uma trans.çao
u m galho c o m o alavanca, e para isso prepará-los um pouco, não se origina i m e d i a t a m e n t e d e n e n h u m
pavor nem de n e n h u m a compulsão à repetição. Mas a idéia p o r si só t a m b é m nada faz; ela lampeja c n o -
vamente se apaga. Os seres h u m a n o s só c o m e ç a m a se diferenciar dos animais q u a n d o a idéia tiver sido
fixada, isto é, q u a n d o ela se civer transformado em t o d o u m sistema de trabalho p e r m a n e n t e m e n t e repro- 2 5 C o m o e m E. Cassircr, Phi/osopbíe.... pp- 265 e segs.
duzível, e e simplesmente inimaginável c o m o isso seria possível sem a c o m p u l s ã o à repetição. 26 Sobre isso, mais d e t a l h a d a m e n t e , ver o capítulo 4 deste volume.
para uma nova vida. Por que razão o sangue dos sacrificados seria aspergido, presença apavorante sua memória está aí para que não se precise sempre
por que eles próprios ou parte deles seria sepultada, queimada ou comida? Para pensar neles - uma prova confiável para o fato de que a memória surgiu da
que deles brote nova vida. E pôr-se a interpretar toda nova vida c o m o prove- tentativa incessantemente repetida de se libertar de algo.
niência da morte, cada nova fase da vida c o m o a m o r t e da velha, a p u b e r d a d e
como a morte da infância, o casamento c o m o a m o r t e da adolescência etc., e,
finalmente, fazer de cada cesura significativa no curso da vida e dos anos u m a Êxtase e pulsão de morte
variação do "morre e vem a ser" não passa de um caraminholar sobre essa idéia
de sacrifício: a convalescença despede a doença c o m o algo m o r t o ; o tratado de O pavor — assim chamamos esse algo até agora, mas sem dizer no que ele se
paz, a guerra; a lua nova, o solstício de inverno, o início da primavera, a estação constitui. Se deduzimos do caráter aterrorizante dos sacrifícios arcaicos aquilo
passada2". Na magia do culto sacrificai todas as transições são estilizadas c o m o de q u e eles são o eco, então só pode tratar-se de um horrível crime primevo,
transpasse da vítima. O culto da vida que os ritos de passagem celebram é sem- e Freud se t o m o u famoso pela suspeita de que esse ato teria sido o parricídio.
pre também culto dos mortos. Assim como não há sacrifício sem m o r t e , não Mas essa suspeita se alimenta de um pressuposto não absoluto: a proporcio-
há celebração dos mortos sem sacrifício. O que nos m o r t o s causa terror não é nalidade entre o pavor e aquilo que o desencadeia. O irônico no pavor é a sua
de início o fato de que eles não mais existem, e sim de que eles estão privados i n c o m e n s u r a b i l i d a d e — não apenas no sentido terrível, quando uma força
da vida e, no entanto, ainda estão aqui. É isso q u e os faz tão p a v o r o s a m e n t e natural i r r o m p e repentinamente, mas também num sentido trivial. Podem-
estranhos. A vida que os deixou, que os fazia tão familiares e sem a qual não se se assustar p r o f u n d a m e n t e crianças pequenas e causar-lhes danos psíquicos
pode imaginá-los, torna-se para os vivos um pavor incompreensível. Este tem através de barulhos e gestos que não contêm o menor perigo físico para elas. O
de ser conjurado. Por isso os mortos são objetivados c o m o fantasmas e d e m ô - pavor que o raio e principalmente o trovão causaram a coletividades arcaicas
nios que se podem apreender. Eles já são uma forma de pacificação d o pavor não guarda n e n h u m a proporção com a sua real periculosidade, e no mito de
sem nome e sem forma no qual a vida que se foi se t r a n s f o r m o u , e o culto dos Pan, q u e n o calor d o meio-dia se esgueira pela floresta e instila no pastor que
mortos consiste em continuar a invocar e a configurar plenamente essas formas cochila aquilo que, p o r sua causa, se chama pavor pânico, essa desproporção
de pacificação, até que elas passem t o t a l m e n t e para o estado de r e p o u s o dos entre o pavor e aquilo que o desencadeia está propriamente tematizada. Uma
antepassados, que constitui o f u n d a m e n t o em repouso dos vivos, propiciador constituição nervosa, suscetível ao pavor, encontra pelos quatro cantos do mundo
de segurança e continuidade, e que tem de ser mantido em repouso através o p o r t u n i d a d e de levar um susto pavoroso. Por que vias e como ele encontra
da repetição. A presentificaçáo regular dos m o r t o s acontece para q u e a sua essa o p o r t u n i d a d e depende inteiramente das condições interiores e exterio-
res. Experiência e assimilação do pavor são constitutivos para a humanidade
primitiva; o desencadeador do pavor, ao contrário, é contingente. Na Terra do
2. Arnold van G c n n e p reconheceu pela primeira vez o significado c o n s t i t u t i v o d e ritos de passagem p a r a
todos os povos naturais, de cuja variedade étnica ele retirou u m e s q u e m a básico e m trés partes: "ritos d c Fogo ou n o Amazonas, na Sibéria ou na Mesopotâmia são muito variados os
separaçao caracterizam a lase de libertação, ritos de limiar ou de t r a n s f o r m a ç ã o , a fase i n t e r m e d i á r i a [...] e
ritos de agregação, a fase de integração" (A. van G c n n e p , Übergangsriteu. F r a n k f u r t , 1986 [ 1909], p. 21).
poderes naturais que o desencadeiam. Não existe nenhum d e s e n c a d e a d o ^
A lase decisiva, naturalmente, é a intermediária, na qual o iniciando ou a coletividade já n ã o está n a velha excellence, por isso a enorme variedade, a abundância das especific.dades étnicas
e ainda nao esta na nova situação; q u a n d o se "boia entre dois m u n d o s " ( p . 27), você se e n c o n t r a espacial
ou socialmente em uma terra de n i n g u é m , seja n u m a cabana isolada pela coletividade o u de f a t o n o deser-
e culturais para uma atividade surpreendentemente uniforme em sua estrutura
to, no pântano ou em uma selva intransitável, você é afastado s i m b o l i c a m e n t e d a rede social, t r a t a d o c o m o básica: a compulsão traumática à repetição. Porque a proporção entre pavor e
alguém sem classe, sexo, defesa, p r e p a r a d o violentamente para a nova vida na qual se deve e n t r a r p o r m e i o
SOn
°' f a n c a d a s ' m u t l l a
^ « ' ^ u n c i s õ e s . V i c t o r T u m e r {Das Ritual. Frank-
perigo tem de ser primeiro aprendida - talvez essa seja a primeira realizaçao
VÍ nCÍa d a
H r Z! 1 " w " 3
f SÍtUaÇâ
° dc ,imiar c o m o
° n ú c l e o a r d e n t e de t o d o s os rituais. d o assim c h a m a d o princípio de realidade é bem possível que a repetição
ckntesTmn H C r P r C C T n
7 r 0 f i s i 0 l ° 8 i c a m c n c e - D t c i f r a r o s " t o s de passagem c o r r e s p o n -
„ ;aS ma'S °U mCnOS Cultivad
f * — transvaloração dos valores nascida d e tuna c o m p u l s ã o compulsiva d o pavor experimentado sobrepuje em muito o Desencadeador d
e
r \ y » t o r n a r
" " h e d v e l ° verdadeiro t e m a de sua riqueza de variações n ã o seria pavor original em poder destrutivo, que a vítima que se ntualiza e uni a tod
, , f i C a n t e P a COntCr r rig r à CCOrÍa d o r i t u a l a
r „ « S Í Z i T T ' ° » de seu e s g a r ç a m e n t o - e uma
on i l l o " i r 3 C t , l 0 l g i a U m filÓSOf
° ° ^ COm
° h i - - d o t d a A n t i g ü i d a d e , não p o d e ser
u m a coletividade para infligir-lhe a morte não seja apenas uma pahda copia
considerado senamente, mas t a n t o mais c o m o sismógrafo para transvalorações: N i e t z s c h e .
um estágio dc evolução cultural no qual a simples morte sacrificai como apa-
e sim um denso concentrado, a realização de uma síntese, na qual u m excesso
ziguamento do pavor há muito já não basta, antes já é ela própria sentida como
represado de excitação torturante se representa de m o d o organizado e p r o d u z
tão p a v o r o s a m e n t e brutal que necessita ser acompanhada de circunstâncias
um escape.
a m e n i z a d o r a s p a r a p o d e r ser ao menos suportada pelos participantes - do
A essa organização, de resto, também pertence algo que n o r m a l m e n t e t e m
m e s m o m o d o c o m o mais tarde se servia álcool aos pelotões de fuzilamento.
antes a aparência de ser caótico: o êxtase, literalmente, o estar fora de si. Q u e m
H o j e d i s p o m o s das dosagens e instrumentos necessários para pôr seres vivos
é presa de dor e pavor violento fica fora de si, fora de qualquer equilíbrio n a
imediatamente e, se necessário, contra sua vontade, sob o efeito da hipnose, do
excitação, fora de qualquer controle. Mas e q u a n d o se consegue provocar p o r
álcool, de h e r o í n a ou qualquer outra forma de embriaguez. Originalmente,
si mesmo esse estar fora de si, fazer dele um processo v o l u n t a r i a m e n t e p r o d u -
entrar em êxtase era resultado de um extenuante esforço pessoal, de uma cus-
zido, algo que é uma situação extrema, c o m o c h o q u e ou dor, mas ao m e s m o
tosa técnica de repetição e concentração — e que podia, quando muito, ser
tempo uma espécie de vacina autoproduzida contra eles: em condições de apa-
facilitada por estimulantes embriagadores, mas, devido a sua pequena dosagem,
nhá-lo e com isso náo apenas suavizá-lo, mas t a m b é m de transformá-lo ativa-
não substituída p o r eles 29 .
mente em algo diferente da dor? Essa foi talvez a tarefa mais difícil n o ritual
O êxtase, de resto, tem uma relação ambígua com a sexualidade: ele pode
sacrificai em formação. Difícil dizer o q u a n t o u m a c o m p u l s ã o t r a u m á t i c a à
significar a intensificação dela até se tornar uma parte constituinte do culto
repetição que pouco a pouco se ritualizava já poderia agir m e s m o sobre u m
como, p o r exemplo, a cópula ritual para a conjuração da chuva fertilizante, que
sistema nervoso humano primitivo, hipnotizando-o, p o n d o - o em transe, em-
então, p o r sua vez, é imaginada como a cópula do céu com a terra. Mas também a
briagando-o, e o quanto era necessário para isso o auxílio de substâncias tóxi-
abstinência sexual é um abandono da situação normal de satisfação dos instintos.
cas encontradas em ervas, raízes e frutos. É fato q u e e m b r i a g u e z , h i p n o s e ,
Colocar-se demonstrativamente em situação de abstinência levando atrás de si
transe não são de maneira nenhuma a mesma coisa, p o d e n d o mesmo, e n q u a n -
todos os registros da técnica do êxtase não é menos freqüentemente combinado
to situações clínicas, ser diferenciadas com bastante exatidão, mas, c o m o formas
com a oferenda de vítimas sacrificais em culturas antigas que o excesso sexual.
do estar-fora-de-si, recebem uma denominação c o m u m e, antes de q u a l q u e r
Essa descoberta exige que se decifre a compulsão à repetição a partir da teoria
coisa, têm uma existência pré-clínica — tanto no sentido histórico q u a n t o n o
sentido de seu grau de intensidade —, na qual os seus c o n t o r n o s não se desta-
29 A a f i r m a ç ã o d c N i c t z s c h c a respeito da casta "aristocrático-cavalheiresca, que nos primeiros tempos da
cam com nitidez uns dos outros e em que não está esclarecido de que maneira h u m a n i d a d e se e n c o n t r a v a no t o p o e, com ela "uma poderosa corporcidade, uma saúde florescente, rica, c
morfina e opiáceo próprios do corpo agem aqui c o n j u n t a m e n t e com drogas m e s m o transbordanre, além daquilo que determina a sua preservação, guerra, aventura, caça, dança, torneios
e a b s o l u t a m e n t e t u d o q u a n t o implica uma atividade forte, livre, alegre-, até que enfim um "modo dc valo-
ingeridas, como estimulantes ou sedativos. A p r o d u ç ã o de u m tal estado, q u e ração sacerdotal" derivado dela "contrário à equação de valores aristocrática (bom = distinto - poderoso
= belo = feliz = a m a d o p o r Deus) ousou, com uma conseqüência assustadora, a inversão e decretou o seu
pode ter tanto um lado de intensificação i n c o m u m de excitação q u a n t o de o p o s t o , a saber, q u e " s o m e n t e os miseráveis são bons. os pobres, impotentes, interiores (F. Nietzsche.
entorpecimento e é o entrelaçamento de ambos, deve ter sido n o início u m a Gencaloric der mor A, KSA 5 [Edições críticas], pp. 266 e segs.); essa afirmação não pode ser levada a sério
c o m o descrição d o transcurso histórico real. T a n t o mais produtiva ela se mostra para a psicologia do xama
medida autodisciplinadora de primeira ordem, êxtase não c o m o recaída n o d o p i o n e i r o da técnica d o êxtase. N u m b a n d o de animais existe normalmente apenas uma ^ a d e ^ d a
desregramento, e sim como técnica de anestesia da d o r c t r a n s f o r m a ç ã o d a força física, r a r a m e n t e a da idade e apenas e n q u a n t o a idade estiver combinada a
disso, dc fato, trata-se de uma inversão quase impossível de ser superestimada q ™ d o .o ^ h d
excitação do pavor no sentimento de prazer da embriaguez. "Vou e m peregri- c o m e ç a a i n t e r p r e t a r a febre, o transe, ataques epilépticos c o m o tabus, literalmente ^ ^ Z . o
c o n s i d e r a r c o m o "eleitas" pessoas q u e de m o d o espetacular entram nesses « « d o E . e can so o
nação para o outro lado / e cada pena /será um aguilhão da volúpia" é a fórmu- q u e a c o n t e c e n o x a m a n i s m o : a associação da suprema autoridade rnbal c o - u m e s t ^ - d s, que m
la genial de Novalis para isso 28 . E onde se e n c o n t r a m formas ritualizadas de t o d o s os s i n t o m a s de e n f e r m i d a d e s ou debílidades. Porém uma espécie especc a l ^ ^ ' e
êxtase, são formas solenes que envolvem a prática do sacrifício c o m o u m a capa fiuo d e q u e ele sofre ataques epilépticos que,
seu prestígio, e sim ao f a t o de q u e ele a d o m i n a ( M . E l a d e ^ se d l f c r c n c i a r táO nidda-
protetora. Gesticulação frenética e danças até à exaustão, a u t o m o r t i f i c a ç ã o , F r a n k f u r t , 1975. p. 38). E m e s m o q u e os estados dc êxtase do xama ^ ^
excesso sexual, sejam quais forem as formas que o êxtase tomar, elas i n d i c a m m e n t e c o m o "mais elevados», religiosos, de o u t r o s estados d o e n t o na ura s <orno g ^
p r i n c i p i o e a t r a n s f o r m a ç ã o de fraquezas em torças, a inversão £ t r-fora d ^ s de H ,^ ^
pessoa p a r a algo q u e se "domina". Q u a n d o a autoridade ^ Pura o ^ H ^ q CQ
É certo que a debelação do desprazer não é a produção de prazer, mas é uma chama de além d o princípio do prazer é também aquém. Como força desvian-
espécie de preparação para ela. "É um sentimento maravilhoso q u a n d o a d o r te que, n o m o m e n t o mesmo em que leva a cabo a debelação do desprazer tam-
cessa", explica o louco da conhecida piada seu costume dc bater a cabeça volun- bém trabalha para a construção do prazer, a compulsão à repetição é o instinto
tariamente. C o m o piada pode ser fraca; do p o n t o de vista da teoria dos instin- h u m a n o par excellence. O material sobre o seu papel como criador de cultura
tos, é forte. Se o instinto significa algo como buscar o prazer e evitar o despra- teria sido c o m o que dado de presente a Freud pelas pesquisas etnológicas que
zer — e preparar o melhor c a m i n h o nervoso possível para a canalização da lhe eram bem conhecidas. Mas ele não desperdiça um único pensamento com
excitação é apenas uma expressão neurológica para isso —, então o instinto, ali isso. É certo que ele liga uma nova definição de instinto à compulsão à repetição,
onde o desprazer não pode ser evitado, tem de se c o n s t i t u i r na busca p a r a a mas esta é singularmente pré-cultural: "um instinto seria, portanto, um impul-
melhor íorma possível de debelá-lo. A tese de Freud segundo a qual na assimi- so inerente ao orgânico vivo à restauração de um estado anterior" (p. 246). Ele
lação do pavor por meio da repetição o princípio de prazer é "desativado com- não n o t a que isso p o d e ser lido como uma definição francamente exemplar do
pletamente" 3 ' 1 é totalmente íncompreensiva. Ele trabalha simplesmente incóg- sacrifício cultuai — e o associa exclusivamente a processos naturais. As migra-
nito na preparação de si mesmo, para falar filosoficamente: nas condições de ções dos peixes para a desova, os caminhos das aves de arribaçáo, eternamente
sua possibilidade. Assim como não é certo, d o p o n t o de vista da história da iguais, o transcurso imutável do germe através das mesmas fases até tornar-se
religião, que a humanidade se tenha encontrado de início em u m a fase de de- um o r g a n i s m o plenamente formado, a indolência da vida orgânica como tal,
senfreada formação de desejos mágica, de uma o n i p o t ê n c i a que, p o r assim são para ele indicadores da direção para a qual a compulsão à repetição empur-
dizer, velejava livremente, até que a invenção do sacrifício interviesse com t o d a ra e impele os organismos: para um estado "que o vivente abandonou em algum
sua força, também não é certo, de um p o n t o de vista psicogenético, q u e pri- m o m e n t o e p a r a o qual ele anseia retornar através de todos os desvios da evo-
meiro um princípio de prazer livre de tutela estivesse em ação até que viesse a lução". " O objetivo de toda vida é a morte" (p. 248). No estágio de surgimento
ser enquadrado por um princípio de realidade. D o desejo do lactente p o r ime- d o o r g â n i c o esse objetivo foi ainda buscado em linha reta: a tensão que se
diata satisfação oral, nós só sabemos que esta não ocorreu p o r q u e a criança instalou na matéria no m o m e n t o em que esta se tornou viva "aspirava neutra-
chora. O assim chamado "princípio" do prazer se reconhece tão s o m e n t e pelo lizar-se; assim surgiu o primeiro instinto, o de retornar ao inanimado (p. 248).
lato de não poder ser rastreado. Ele se encontra desde o início sob condições Assim, p o r t a n t o , i n t r o d u z Freud sua famosa pulsão de morte: como puisao
dc abstenção. O n d e começa a se articular, ele se choca contra resistências q u e primordial de t o d o orgânico. E como aconteceu de ele não permanecer o umeo.
o levam a tomar desvios. O princípio de prazer puro não tem, c o m o o paraíso, Pretensamente p o r q u e os organismos começaram a produzir células germinais
nenhuma realidade histórica. O assim chamado princípio de realidade, porém, Estas "provavelmente conservam a estrutura original da substancia viva e se
desligam, depois de u m tempo, do todo do organismo" (p. 2,9). começam
viVer uma vida própria e contrariam com isso a ânsia de morte original. Assim
30 S. Freud Jenseits da Lustprinzips, p. 239.
as células germinais trabalham contra a m o r t e da substância viva" (p. 249). O tensão n a o é completa, pois tensão .'vida. Mas se ela for completa nada mais
que se manifesta nelas "são os verdadeiros instintos de vida e, assim, é c o m o se é vivenciado; o c o r p o está m o r t o . A busca de prazer é a tentativa de realizar
houvesse um ritmo vacilante na vida dos organismos; um g r u p o de instintos esse impossível, e n o s poucos momentos em que a debelação pode ser fruída
se atira para frente, a fim de alcançar o mais rápido possível o objetivo final da de m o d o tão livre de incômodos quanto se ela fosse completa, tem-se um an-
vida, o outro se lança para trás em um certo trecho desse c a m i n h o , para tornar tegosto desse impossível, aí se prova, em linguagem bíblica, do fruto da terra
a percorrê-lo a partir de um certo p o n t o , e assim p r o l o n g a r sua d u r a ç ã o " prometida, o n d e não se consegue chegar. Não por acaso o grande teórico cristão
(p_ 250) — um processo que "levou a desvios cada vez maiores n o c a m i n h o do i n s t i n t o imaginou a eterna bem-aventurança como a eternização daquele
original da vida e a desvios cada vez mais complicados até alcançar o seu obje- m o m e n t o de felicidade n o qual o impossível parece realizar-se: "no qual se
tivo de morrer" (p. 248). irradia de m i n h a alma o que espaço algum pode conter, no qual ressoa o que
Segundo essa idéia, o eros é de início apenas um autoimpedimento da pulsão t e m p o algum leva, no qual recende o que vento algum dissipa, no qual há um
de morte: nada além de um desvio e postergação com q u e ele se presenteou sabor que saciedade alguma estraga, no qual se aninham e buscam um no outro
por meio de um arremesso de células germinais. Assim, p o r é m , q u e o eros é o que n e n h u m fastio separa" 33 .
introduzido, recebe o status de um poder independente, ele é t o m a d o p o r um Q u a n d o um organismo deseja preservar-se, ele é conservador. Mas quando
adversário equivalente da pulsão de morte e "a própria vida" c o m o "uma luta ele ao m e s m o t e m p o busca uma debelação completa da tensão, ele é o contrário
e um compromisso entre esses dois anseios" 31 . Deixemos de lado os despropó- de regressivo. Matéria inanimada é provavelmente mais antiga que animada,
sitos que são inevitáveis q u a n d o se supõe a existência de um instinto primevo mas o ser i n a n i m a d o não é o estado primeiro de cada corpo animado, como
para depois duplicá-lo em dois equivalentes que devem, ambos, obedecer à lei se ele já estivesse anteriormente ali e só então lhe tivesse sido insuflada a vida.
da debelação de tensões, mas de maneiras tão opostas, que u m busca a m o r t e N o exato m o m e n t o em que ele é algo, ele é um complexo de células, uma
e outro, a vida, e cada excitação instintual é colocada t a n t o na c o n t a de u m o r g a n i z a ç ã o orgânica, e sua busca da debelação completa da tensão não é a
quanto na do outro, podendo ser interpretada tanto como prazer q u a n t o c o m o busca de u m estado inorgânico, e sim de algo que ainda não havia existido. Ele
frustração 32 . Mais fundamentais são as duas "qualidades essenciais" que Freud não é regressivo, e sim utópico, e a idéia cristã da eterna bem-aventurança é a
atribui ao instinto primevo: conservador e regressivo. Elas significam coisas insuperada objetivação dessa utopia. A idéia de Freud do impulso regressivo de
completamente diferentes; uma, algo c o m o se preservar, e a outra, desejar vol- t o d o orgânico para a restauração de um estado primevo inorgânico provém, ao
tar a um estado anterior. Freud as trata c o m o se fossem a mesma coisa, c o m o contrário, de uma esfera da qual nesse contexto ele não toma consciência: a do
se ambas provassem unívoca e inequivocamente, que desejar a debelação da culto. A pulsão de m o r t e é concebida exatamente como o desejo que sente uma
tensão não significa senão não querer mais viver, pois vida é tensão. Mas isso coletividade q u e realiza um sacrifício: o de colocar-se em consonância com sua
é apenas um lado da debelação da tensão. Pois, a partir do m o m e n t o em que a origem. Apenas, a real origem cultuai significa o máximo de inquietude, a saber,
tensão não é mais apenas a física entre coisas inanimadas, e sim a orgânica n o o pavor traumático, enquanto Freud o imagina como o exato oposto disso: como
interior de um corpo vivo, este deseja, a partir daí, algo impossível: vivência?' estado de repouso inorgânico, pelo qual pretensamente todo orgânico anseia.
a completa debelação da tensão. E n q u a n t o vivcnciamos algo, a debelação da Assim ele e n c o b r e a compulsão traumática à repetição com o seu contrário,
c o m o q u e a deita para que repouse, envolve-a na roupagem de um instinto na-
31 S. Freud, Das Ich und rias Es. [ O ego e o id). Studienausgabe, vol. III, p. 307. tural pré-cultural em que a sangrenta ação fundamental do culto aparece como
32 Q u e "ali o n d e se manifestam f e n ô m e n o s c o m o o m a s o q u i s m o , a a u t o p u n i ç ã o o u o u t r o s s e m e l h a n t e s , algo c o m p l e t a m e n t e natural: como o autossacrifício, a autodissoluçao, para a
apoiando-se na teoria da pulsão de m o r t e , se pare c o m a análise e se p e n s e ter d i a n t e d e si f a t o s já pri-
mários, d e origem biológica", ou q u e se t o m e "a eficácia da c e n s u r a d o s o n h o c o m o prova d a existência
qual t o d a carne é impelida por si mesma. Esse ocultamento consuma o fato da
da pulsão de m o r t e - são apenas os abusos mais crassos de f r e u d i a n o s q u e O t r o Fenichel c e d o já n o -
tara ( O . F-cnichel, " Z u r Kritik des Todestriebs", in Aufsãtze. O l t e n e Freiburg, 1979 [1935], vol. 1, p p 369
e segs.). O problema é tão s o m e n t e : a teoria do eros e d a pulsão de m o r t e n ã o tem n e n h u m freio m e t ó d i c o ririrr, felicidade tornou-se costumeira a expres-
contra tais atribuições arbitrárias. Freud, em principio, não procedeu aqui de m o d o d i f e r e n t e , a p e n a s in- 3 3 A. A g o s t i n h o , BekemUinisse X, 6. Para esse m o m e n t o fo. B ü é c i o > D e Trmitau. 4. Mas
comparavelmente mais cuidadoso, q u e alguns dc seus discípulos afoitos. são nunestans aeternitatis [agora estático da eternidade], ^ u u n . - l
a q u i l o q u e ela significa já se e n c o n t r a insuperavelmente representado em Agosunh
repressão. Já o título Além do princípio de prazer evoca p r o g r a m a t i c a m e n t e o Freud se aferre decididamente, mesmo em seus escritos tardios, à idéia de que
que Freud pretende. A compulsão traumática à repetição deve ser b a n i d a para a cultura se deve a um crime sexual capital e a sua expiação. Mais adiante ele
além do círculo concreto de ação da psicanálise, para a esfera pré-psicológica da narra o m i t o d o poderoso patriarca que reivindicava para si todas as mulheres
pura biologia e fisiologia. Desse além ela então só encontra ingresso na teoria da h o r d a , afastava todos os filhos que desejavam aplacar seu ardor com elas:
e na práxis psicanalítica da mesma forma pela qual o p e n s a m e n t o latente n o "encontrou seu fim na indignação dos filhos, que se uniram contra o pai", e ao
sonho encontra ingresso no conteúdo manifesto do s o n h o : censurada. O u ex- m e s m o t e m p o os venceu postumamente: para poder viver em paz uns com os
plicitamente como compulsão à repetição, mas então apenas c o m o c o m p u l s ã o outros, os irmãos vencedores renunciaram às mulheres por causa de quem eles,
neurótica à repetição, desenvolvida a partir dos transtornos psicossexuais d o n o entanto, haviam matado o pai, e adotaram a exogamia"37.
triângulo edipiano 3 4 ; ou então como representante da p u l s ã o de m o r t e q u e
é apresentado como encontrável em c o n s t a n t e mistura e separação c o m sua
contraparte, o eros. A idéia de mistura é nesse caso um verdadeiro cúmplice da To de ti
censura psicanalítica. Ela é exterior o bastante para não tocar em n e n h u m dos
dois instintos que se misturam, e coringa o suficiente para p o d e r ser utilizada Ora, n e n h u m pesquisador moderno sabe exatamente como as coisas se passaram
em qualquer parte em que a ambivalência f u n d a m e n t a l dos sentimentos, seja na origem da cultura. N e n h u m estava lá. Mesmo assim: a renúncia ao instinto
no caso do sadismo, do masoquismo, da p r o n t i d ã o para a g u e r r a ou para a com certeza não surgiu tão facilmente como Freud sugere aqui. Ela não está
submissão, exija uma rápida explicação. Ela fornece até mesmo o "sentido da na origem da cultura, e sim é ela própria um produto avançado da cultura.
evolução da cultura": "ela tem de nos mostrar a luta entre eros e m o r t e , pulsão Seres que querem praticá-la têm de estar já exercitados em grande medida no
de vida e pulsão de destruição, como ele se consuma na espécie humana" 3 5 . U m desvio de instintos. Para perceber que em certas situações poderia ser "melhor"
tal lugar-comum é o preço pago por Freud não ter p o d i d o mostrar-se seriamente não ceder ao instinto de satisfação sexual eles teriam de já ter percorrido uma
receptivo à mais excitante descoberta de sua época. Ele p o d e incorporar a com- história bem-sucedida de redirecionamento dos instintos: ter aprendido a se
pulsão traumática à repetição somente até um p o n t o em que o p o d e r criador de colocar n u m a situação extraordinária que apara o desprazer e o transforma
cultura dela permanece irreconhecível. D o contrário, t o d o o trabalho psicana- t e n d e n c i a l m e n t e em prazer. Em outras palavras: eles teriam de já haver ido
lítico, centrado na sexualidade, baseado n o conflito edipiano, seria abalado. A longe com a capacidade do êxtase. Técnica do êxtase não é necessariamente
pulsão de morte é exatamente a "explicação", quer dizer, a cifra da c o m p u l s ã o
traumática à repetição, que previne contra esse abalo. Essa explicação é para a análise feita p o r M e l a n i e Klein da separação do seio materno durante a primeira infância entre uma parte
teoria psicanalítica o que o sonho é para o sono: protetor 3 6 . Ela faz com q u e " b o a " e o u t r a má" e t o r n o u o olhar m u i t o mais agudo para a micrologia e a importância desse processo dc
separação p a r a a c o n s t i t u i ç ã o d o "si-mesmo" infantil e, portanto, atuou dc modo heuristicamente produ-
tivo, sem c o m isso se t o r n a r mais verdadeira, ( c f . por exemplo, Melanie Klem Bemerkungen uber e m g e
s c h i z o i d e M e c h a n i s m e n " , in Gesammelte Scbrifien. Frankfurt, 2000 [1946], vol. III.).
34 Ver acima nota 23. d e m o r t e t a m b é m faz das suas q u a n d o , por assim dizer, à sua sombra, alguns P ^ f ^ ^
35 S. Freud. Das Unbebagen in der Kultur. Studienausgabc. F r a n k f u r t , 1974, vol. IX, p. 249. p r o n t o s a acolher vítimas de traumas vitais, c o m o por exemplo sobreviventes de c a m p « * « J ^ J ^
\ a a p r o f u n d a r sua própria compreensão do trauma, mesmo quando, com isso. a es de q u o ~ »
36 N ã o por acaso a pulsão dc m o r t e não permaneceu o capricho pessoal dc Freud. Sua a t i t u d e a m b i v a l e n t e m e d i d a em q u e p r o v o í a um estado d e desfcsão dos instintos e
diante dele (apenas "especulações", q u e foram "de início e m p r e e n d i d a s apenas s o b a f o r m a de tentativa", pulsão de m o r t e ( D . Laub, "Eros o d e r Thanatos. Der Kampt um die
mas com o correr d o t e m p o ganharam um tal p o d e r sobre m i m , q u e eu n ã o posso mais p e n s a r de o u t r a 9 P /. 0. 2000, p. 862) n ã o se t o r n a mais convincente. Por r
maneira [Das Unbebagen in der Kultur, p. 246]) transmitiu-se para t o d o o discurso psicanalítico. M e s m o crítica à pulsão de m o r t e . Sua dccifraçâo soc.al-crit.ca P d a qu;a ^HerDerrM
rcnichel, q u e censurava na pulsão de m o r t e t a n t o a frita de uma f o n t e s o m á t i c a d o i n s t i n t o q u e t o r n e o
sistema ps.qu.co a m á v e l e, c o m o auxílio dc estímulos sensoriais, r e a l m e n t e excitado", c o m o t a m b é m a c o n s i s t e em s i m p l e s m e n t e r e c o n t a r acriticamente « ^ ^ ^ t S ^ / S e a condição
írrealizada transformação da fonte, que c o r r e s p o n d e à expulsão' da excitação = distensão". e c o m isso fazer-lhe a ressalva d e q u e sob "condições nao repressivas tudo sen* obv.a jnconsclciUc q u e
considera impossível o p o r a pulsão de m o r t e ' c o m o uma espécie d e p u l s ã o a u m a o u t r a espécie", está d c vida alcançada f J e agradável e desejável, isso . « » « . — ^ S n t o s s e a p a z i ^
c h a m a os i n s t i n t o s de volta para um estado anterior. A n a t u r e z a M a r c u S ( , mebstruktur und
longe de negar os fatos assim c o m o a p r o f u n d i d a d e filosófica q u e s u b j a z à h i p ó t e s e f r e u d i a n a . " " U m a
generalizaçao biológ.ca d o princípio d o nirvana parece m u i t o p r o f u n d a e i m p r e s s i o n a n t e . " " Q u e a v i d a ria n u m a a t u a l i d a d e plena. A m o r t e cessaria de ser um alvo a o inst decididamente muito
/• II I f n i f ; 1Q-71 íiQSSl no ' 1 9 ce 232). Para uma teoria crítica j s s o e u c u
se,a um curso que leva à m o r t e , parece-me corresponder p r o f u n d a m e n t e à essência d o f e n ô m e n o d a vida" GcseUschaj. F r a n k f u r t , 1 9 / 3 [ I505J. PP- ' ^ '
inofensivo. , . i i v n S7S
° P ' ^ - P ' 5 ' 3 6 4 c sc & s - c 3 7 ° ) - A concepção dualista de u m a vida d i v i d i d a e n t r e eros e pulsão d e
37 S. Freud. DerMann Moses und die rnonotbetsHscbe Reltgion, Studienausgabe, vol. IX. p. •
morte, e puxada ora para um ora para o u t r o , i n d u b i t a v e l m e n t e t a m b é m teve i n f l u ê n c i a na m i n u c i o s a
técnica da ascese, mas a técnica da ascese é uma f o r m a sublime da técnica d o
ou indicar a l g u m a coisa - nada que pudesse destacar-se da atividade mími
êxtase. Portanto é completamente anacrônica a concepção de q u e filhos sem
co-gestual d o corpo inteiro como algo independente. E mesmo sob condições
nenhuma prática cultural, sem a menor idéia do que seja o desvio d o instinto,
culturais m o d e r n a s - nas quais cada criança pequena, por mais maltratada
pudessem, através do assassinato coletivo do patriarca, ter evoluído para a alta
que seja, cresce sob certo p o n t o de vista envolvida em algodão, em comparação
realização cultural da má consciência j u n t a m e n t e com a d e s c o b e r t a de q u e
com os primórdios d o Horno sapiens, quer dizer, abrigada em um sistema social
muito melhor do que continuar a fazer c o m o o velho é a d o t a r a renúncia ao
c linguístico já em funcionamento que, não obstante tudo o que se possa dizer
instinto de uma ordem matrimonial exogâmica. Tal f o r m a de pensar passaria
contra ele, dá mostras de uma alta capacidade de agir como camada protetora
tão ao largo da morosidade da evolução histórica q u a n t o se imaginássemos
contra a irrupção de pavores naturais imediatos a transformação do som
que, ao primeiro sentimento de insuficiência de compreensão, a h u m a n i d a d e
da voz de apêndice da atividade mímico-gestual em um sistema de expressão
tivesse incontinenti inventado o correio p o r meio de sinais de f u m a ç a ou a
independente é um processo extenuante. Não podemos imaginar o quão penoso
sonata de piano, ao primeiro mal-estar, com a m o n o t o n i a das batidas rituais de
ele deve ter sido sem camada protetora e caminhos previamente abertos, e é
tambor. Mesmo que ninguém possa fazer um relato empírico d o surgimento da
simplesmente inimaginável de que outro modo ele poderia realizar-se senão sob
continência sexual: as primeiras menções a ela, em todas as culturas, a t r a t a m
uma forte compulsão: justamente a compulsão à repetição. Se é verdade que a
como situação extraordinária de caráter ritual, forçada pela expiação, luto,
assim c h a m a d a interjeição, quer dizer, "o som isolado, expressivo de afeto ou
menstruação ou propósitos tribais de importância vital. É uma situação que vem
excitação, arrancado por uma fortíssima impressão momentânea" 38 , constitui
acompanhada de sacrifícios ou que os acompanha, isso q u a n d o o p r ó p r i o ato
o e l e m e n t o fisiológico essencial da linguagem, então a linguagem não deve
de abstinência não é ele mesmo oferecido c o m o sacrifício. E se acrescentarmos
ter sido de início outra coisa senão interjeição desenvolvida sob a compulsão
a isso o refinamento fisiológico de que aqui é praticado u m êxtase cuja ação
à repetição.
é mais duradoura e efetiva do que o transe ou a embriaguez, q u e n ã o turva a
Só sob esse p o n t o de vista é que, de resto, se mostra o quanto é genial a
consciência clara, planejadora, antes colabora para a sua concentração (quase
f ó r m u l a aristotélica para o primeiro ato de nomear, em torno do qual se for-
como um posto firme na preparação para expedições de caça ou guerra), além
m o u o sistema de linguagem humano: todeti, literalmente, "este algo"V). Seus
de ser mais facilmente suportável do que a automutilação ou a abstinência de
exemplos para isso são simples de imaginar: "este homem determinado ou este
alimento, e que com isso representa na tomada-do-governo do pavor, n o aparar
cavalo determinado" 4 0 . Esses "este algo" são aquilo sobre o que se apoia toda
do desprazer pelo desprazer ou na transformação de desprazer em prazer u m
n o m e a ç ã o . Sem imaginar um "este algo" como "uma coisa indivisível e, pelo
exercício altamente adequado para quem já está avançado, e n t ã o t u d o leva a
n ú m e r o , singular" 4 1 , não se poderia nomear nada; a linguagem não teria um
crer que os primórdios históricos da continência sexual devem de fato ser bus-
apoio firme em nada. O argumento de Aristóteles vai até aí. Mais interessante,
cados onde os mais antigos documentos os localizam: n o culto. A capacidade
n o entanto, é o subtexto, a sensibilidade francamente arqueológica em sua fór-
e a prontidão para praticá-la deve ter c a m i n h a d o de mãos d a d a s com a sua
mula: tode ti é uma abreviatura insuperável para o processo inteiro de formação
descoberta como meio mágico e apenas depois de ter sido aperfeiçoada c o m o
da atenção. O cavalo determinado ou o homem determinado são já "este algo"
técnica cultural no campo de forças d o ritual sacrificai ela p ô d e ser t a m b é m sob condições culturais bem temperadas, em que um sistema de linguagem já
empregada como meio profano de dominação.
c o m p l e t a m e n t e trabalhado tem uma palavra pronta para tudo o que circunda
Também a voz h u m a n a deve ter de início evoluído para u m a l i n g u a g e m alguém ou que p o r algum motivo desperta a atenção. Mas foi preciso primei-
articulada apenas na medida em que ela se introduziu c o m o meio mágico n o ro chegar a isso e neurofisiologicamente já aprendemos o seguinte: nao e um
grande processo de assimilação do pavor, cujo p o n t o central é representado
pelo sacrifício cultuai. Nas crianças de hoje o som da voz ainda se manifesta
38 B. Cassirer, Pbilosophie.... p a r t e 1. Darmst.uk 1994. pp. 133 e segs.
em primeiro lugar como mensageiro do desprazer e, q u a n d o ele começa a se
39 Aristóteles, Kiitcgoricn V, 3 b .
referir a objetos, ele é de início apenas um a c o m p a n h a m e n t o d o ato de agarrar 4 0 Idcm, op. cit., V 2".
41 Para isso h á a expressão grega atomon, cm latim nulivuluum-. idem. op. cit.,
"este algo" qualquer que seria capaz de despertar a atenção a tal p o n t o q u e o c o n s t a n t e m e n t e retrabalhadas no curso de seu desenvolvimento e, P or outro
penoso trabalho de nomeação está intimamente ligado a ele; a f o r m a ç ã o tao só aparecem c o m o "religiosas" em retrospecto, depois que o processo de fami-
longamente exercitada e repetida de uma determinada combinação de sons até liarização p o r meio da articulação, quer dizer, a nomeação, já apreendeu as
que daí surgisse uma palavra fixa disponível, um n o m e próprio, não poderia coisas mais comuns, cotidianas. Mana, Tabu ou Manitu não são, claro, palavras
ser um "este algo" qualquer; capaz disso só seria o "este a l g o ' > r excellence: o originais, e sim vocábulos bem articulados, polidos, evoluídos há muito para
pavor. Ele é o reivindicado." de atenção por excelência: presença absoluta que faz além de p u r o s ecos d o pavor - já tão generalizados ou familiarizados, que
com que tudo empalideça. Em outras palavras: um "algo" categórico. C o m o se p o d e m ser empregados para tudo quanto tenha a aparência do incomum 43 . E,
sabe, o pavor não é um objeto, e sim um acontecimento. A palavra se m a n t é m , no e n t a n t o , são um eco distante de tais palavras originais, a lembrança de que
então, suspensa entre aquilo que desencadeia o pavor e o s e n t i m e n t o dele, e a h o u v e u m a vez n o m e a ç õ e s , nas quais a atribuição de nome e o balbucio
fórmula aristotélica reproduz exatamente essa indiferenciação entre o b j e t o e de pavor ainda eram indiferenciados — inteiramente no sentido colocado aci-
sujeito. Ela não nomeia um objeto determinado, está aí para cada objeto deter- ma, de q u e a recordação era de início criptorrecordação: caminhar encoberto
minado, mas não para o objeto em si, e sim justamente para o ato de indicá-lo: d i a n t e d a q u i l o que recordamos. Que o nome constitua a "essência" de uma
a concentração nervosa em um estímulo que reivindica atenção. Tode ti não é pessoa ou coisa, que aquele que lhes conhece o nome também dispõe delas, é
p o r c e r t o u m a crença antiga, documentada por um sem-número de mitos e
um nome próprio, mas talvez a fórmula que contém o segredo da formação dos
;s. Nomes são originalmente interjeiçào articulada: p r o n o m e s d e m o n s - contos de fadas, mas na magia dos nomes ela representa um estágio tardio que
nomes
trativos 42 . Eles não se referem a algo de geral, e sim a algo p u r a m e n t e singular: encobre as próprias origens. Essa magia não começou com a expressão do ser
incomensurável. E são a tentativa de torná-lo, pela repetição, comensurável: e sim com o b a n i m e n t o do nào-ser, e o não-ser par excellence, o pavor, é o ne-
de torná-lo familiar. Em outras palavras: de início eles não expressam algo que gativo a p a r t i r d o qual são reveladas todas as concepções de um ser, de uma
é, e sim algo que subjuga. Sua expressão é de início o gesto de e m p u r r a r para essência, um tipo, caráter, por-si, propriedade ou que outro nome a filosofia
longe. Eles não começam como identificação de um objeto, e sim c o m o defesa lhe dê. "Ser" é não ser banido. Isso pode significar: tornado inofensivo, como
acústica contra o pavor. Nomes são criptônimos em d u p l o sentido, t a n t o no n o f a m o s o c o n t o Rumpelstilzchen, dos irmãos Grimm, no qual a filha do rei
de que eles encobrem o pavor quanto no de que eles dão cobertura ao falante salva o seu filho p r o n u n c i a n d o o nome daquele que quer roubá-lo, aniquilan-
diante dele. A linguagem começa como linguagem cifrada. Ela faz pela voz o d o sua força — a ele próprio. Mas o não ser banido também pode significar
que o culto faz no conjunto: colocar uma camada protetora em t o r n o daquele apaziguado. O n o m e consuma em pequenas dimensões a grande reviravolta da
feixe de nervos que só muito mais tarde se chamar ihomines sapientes. E a junção c o m p u l s ã o à repetição, que consistiu em procurar proteção no pavoroso con-
de interjeições em nomes articulados faz parte do processo de formação ritual tra o pavoroso. Ele é proteção contra o pavoroso - de início no sentido de
que produz essa camada protetora. q u e deve p r o t e g e r q u e m o balbucia ou exclama diante de algo que ameaça
subjugá-lo. Mas, assim c o m o com isso o que apavora se transforma no que
Hipóteses modernas para o surgimento da linguagem estão sempre sujeitas
salva, a p r o t e ç ã o diante de algo, pela qual o nome implora, se transforma em
à tentação de pressupor implícita ou explicitamente um sistema de linguagem
proteção para algo. O próprio nomeado deve ser protegido para, P or sua vez,
já existente. A busca etnológica por palavras religiosas originais, p o r exemplo,
seria para colher as referidas palavras como plantas preciosas brotadas d o solo p o d e r dar proteção ao nomeador.
As diferentes nuanças de significado que o ato de nomear adquinu nesse
de uma linguagem já a meio caminho do completo desenvolvimento, em vez de
processo e a c o m o d o u em estratos ao longo de um espaço de tempo que se mede
refletir se não se daria exatamente o contrário: que a linguagem é o desenvolvi-
mento de tais palavras originais, apenas que, por um lado, elas próprias foram
4 3 "Assim é relatado, especialmente a respeito d o Manitu dos Algonkin. que a ^ p r « s a o ™
p a r t e o n d e a fantasia e a imaginação são excitadas por algo dc i . ^ a cxprcssào de Manitu [...]
se pesca u m peixe de espécie até então desconhecida, logo se ei p • m c a i n t e r j e i ç õ e s de
4 2 Unia das formulações verdadeiramente bcm-sucedidas na obra de O t t o , q u a n d o ele c h a m a as "divindades
As expressões 'wakaut 'wakanda entre os Sioux parecem remeter
arabicas antigas" dc 'nu,nina locais" "que na verdade não são senão p r o n o m e s d e m o n s t r a t i v o s em trans-
formação (p. 149). espanto" (E. Cassircr, Pbilosophie..., p- 99).
antes em milênios que em séculos, em lugar algum p o d e m ser mais bem dedu- cem, p o r isso, u m subtexto: a p e n a s « posso chamar-te pelo teu nome pois ele
zidas que na famosa passagem de Isaías, cão desgastada pela predileção com é derivado de m i m . Também isso é abreviação de um longo processo histórico-
que é escolhida para prédicas dominicais edificantes: "Eu te chamei pelo n o m e ; o n d e o n o m e p r ó p r i o da coletividade começa a se diferenciar do nome do
44 poder p r o t e t o r - da divindade ele expressa inicialmente apenas o fato de
tu es meu . Essas poucas palavras contêm a mais c o m p r o m e t i d a m e m ó r i a de
neu"
ter sido derivado dela. Ter um nome próprio significa ter-se apropriado dele.
nome . A camada mais antiga da designação de nomes ainda pode ser perfeita-
Esse p e r t e n c e r é a "essência" do que é nomeado na medida em que deve pro-
mente perceptível: a desesperada exclamação h u m a n a na situação da ameaça
de morte. Eu invoco o poder natural portador da m o r t e para que ele ceda e se mover a paz entre os membros da tribo - e e da natureza do sacrifício que ele
mc
seja realizado u n a n i m e m e n t e . Só mais tarde o nome próprio deve ter chegado
corne "meu". Essa subjugação por meio da atribuição de n o m e começou, con-
forme d e m o n s t r a d o , em dimensões p e q u e n a s : não c o m o t o m a d a de posse lá o n d e hoje o percebemos pela primeira vez: no indivíduo humano. E mesmo
triunfante, e sim como uma transvaloração paulatina, furtiva d o pavoroso em aí, de início, de u m a maneira pavorosa: receber um nome próprio significa
seu oposto através da contínua repetição compulsiva. A atribuição de n o m e inicialmente ser destacado da multidão dos membros da tribo — como vítima.
não é, de início, outra coisa que não a face oral de tal transvaloração. O não-ser "Eu te chamei pelo meu nome, tu és meu" significa nesse caso algo como: tu
deve, ao receber um nome, tornar-se "ser": " b o m para mim", m e u p o d e r pro- serás sacrificado, és o eleito que produzirá a unanimidade entre os outros, o
tetor. O pavor deve ser apenas o seu reverso, que então vem à luz q u a n d o o tributo da paz, p e n h o r da proteção. E apenas no curso do recuo paulatino dos
poder protetor não é tratado "bem". E apenas pelo desvio do p o d e r p r o t e t o r o sacrifícios h u m a n o s p ô d e a "particularidade" do indivíduo humano mudar de
n o m e desenvolve uma força criadora de identidade. O s necessitados de prote- sentido e, em lugar d o isolamento do indivíduo na falta absoluta de proteção,
ção desejam a proteção de um poder mais alto. Eles o expressam sob a f o r m a passar a significar o seu particular merecimento à proteção. Em outras palavras:
do desejo de ter parte no n o m e desse p o d e r : que esse poder é q u e lhes dá u m só à s o m b r a d o pavor se pôde formar aquela delicada camada da magia dos
nome. Esta é a segunda camada de significado na citação de Isaías: inversão do nomes q u e a citação de Isaías no melhor dos casos encobre como um sopro de
nomeado no verdadeiro nomeador. O "eu" que ali chama pelo n o m e não é mais verniz utópico: "Tu és meu" no sentido de completamente abrigado, a produ-
o pobre balbuciante h u m a n o , e sim Javé, o p o d e r divino absoluto, e ele não ção de tal abrigo c o m o o objetivo final secreto do nome, a totalidade da atri-
busca proteção quando nomeia, e sim a concede. Além disso, o "tu" que Javé buição h u m a n a de nomes como representante desse objetivo final, assim como
chama pelo nome não é algo como um indivíduo, e sim uma coletividade: Is- na história bíblica da criação Adão, em nome de Deus, como seu representan-
rael, seu povo. Nisso se sedimenta a lembrança dc algo que o t o t e m i s m o pre- te, dá n o m e s aos animais. E essa idéia de representação tem seu sentido, até
servou com a maior nitidez: que os nomes de pessoas foram de início n o m e s hoje não resolvido, n o fato de que aquilo que o nome - que é dado ao recém-
de coletividades, e por certo nomes emprestados de poderes p r o t e t o r e s : nós nascido não c o m o u m mero número de identificação e sim como uma proteção,
pertencemos a tal e tal poder protetor e por isso levamos seu nome 4 5 . A f o r m a uma bênção - deseja só pode ser verdadeiramente realizado por um deus todo
anterior, ainda clara, transparente, não retocada da citação de Isaías é, p o r t a n - p o d e r o s o e benevolente: o desenvolvimento individual total, mas completa-
to: "Eu te chamei pelo meu n o m e [...]". A correção final de "meu" para "teu" m e n t e intacto, daquele que carrega esse nome.
A palavra "sensação" ainda não apareceu neste capítulo. No entanto ele girou
49 O Deus que no começo d o Antigo Testamento chama o m u n d o à existência ao p r o n u n c i a r seus e l e m e n t o s
cósmicos j á é uma forma tardia, ontologicamcnte lapidada que apenas ainda deixa intuir aquilo a que R e n é exclusivamente em t o r n o dela: de sua pré-história. É verdade que se poderia
Girard deu o n o m e tão belo dc "violência f u n d a d o r a ' (R. Girard, Das Heilige und die Gewalt. Z u r i q u e ,
ter c o n t e n t a d o em deslizar ao longo de sua superfície e notar que obviamente
1987. p. 140) e que em parte alguma foi representada de maneira tão c o m p a c t a q u a n t o na Teogonia d e
Hesíodo, o n d e os deuses mais jovens se atiram um dc cada vez sobre os mais antigos, até q u e f i n a l m e n t e o não existem eventos espetaculares apenas a partir do momento em que eles se
mais jovem de todos, Zeus, em luta com os titãs, alcança uma vitória tão avassaladora que, c o m isso, o
m u n d o é "fundado", quer dizer, torna-se um cosmos cm si consistente. "Para p o d e r viver n o m u n d o , é
c h a m a m sensações; que cortejos, danças, encenações teatrais, torneios, execu-
preciso fundá-lo — e n e n h u m m u n d o surge n o caos' da h o m o g e n e i d a d e c relatividade d o espaço p r o f a n o . ções e t u d o o mais que possa excitar a atenção das massas é muito mais antigo
A descoberta ou a projeção dc um p o n t o fixo, d o centro', se assemelha á criação d o mundo", diz Eliade ( M .
Eliade, Das He.Hge und das Profane. Frankfurt, 1990, p. 24), e acrescenta a b u n d a n t e material h i s t ó r i c o - e, antes de tudo, de origem sagrada. Poder-se-ia ter designado o culto sacrificai
rchgioso de todos os continentes, que demonstra que esse p o n t o , através de todas as cspccificidades cultu-
c o m o seu núcleo histórico e salientar que o sacrifício, originalmente sacnhcio
rais, e presentihcado c o m o p o n t o dc uma perfuração, uma cravadura, um a r r o m b a m e n t o . Seja representa-
d o p o r meio de uma estaca sagrada cravada na terra, em t o r n o da qual o clã se reúne e à qual a vítima é h u m a n o , era de u m a seriedade sangrenta, no qual estava em ,ogo a vida ou a
amarrada, ou por uma coluna que penetra na terra c o m o o eixo d o m u n d o e se ergue para o céu, ou p o r
uma p e d r a que afundou na terra como um meteoro, ou uma m o n t a n h a que irrompeu dela c o m o u m vulcão,
m o r t e de todo um clã. Se havia algo cujo fascínio atraía a atenção incondicional
ou do p o n t o de interseção da cruz c o m o símbolo dos quatro p o n t o s cardeais, sempre se imagina u m c h o -
que na marcaçao do centro, sempre se recorda uma "violência fundadora". N ã o p o d e m o s deixar de a d m i r a r
a capacidade da mitologia de retratar cosmologicamente sua própria origem traumática e c o m isso trans-
bordar dc tanta fantasia: assim c o m o o culto se enrola em t o r n o d o pavor traumático, t a m b é m o "mundo", 50 F. Nietzsche, Gotzen-Dàmmerung, p. 78.
c o m o camada protetora contra o caos, se enrola em t o r n o de u m p o n t o central nevrálgico d o m u n d o . 51 Th. \V. A d o r n o , M í n i m a Mora/ia, § 79. Frankfurt. 1976, p. 158.
da coletividade, e portanto, era espetacular ao extremo, era o ritual sacrifica , no Mas que significa dizer isso? O sagrado afinal não é algo que se compreenda
qual se acreditava estar presente, tanto destruindo quanto salvando, o sagrado, o por si mesmo, n e n h u m a "categoria a prior?» e sim, como demonstrado, uma
terrível poder protetor divino. C o m isso se teria chegado com relativa presteza situação precária de tradução, um criptônimo e um nome coletivo posteriores
ao resultado de que a suma daquilo que hoje chamamos sensacional era para os para processos extraordinários de excitação que se passaram sob eles e por trás
povos arcaicos a epifania do sagrado. Poder-se-ia então ter acrescentado que, deles e com isso constituíram nada menos do que o sensório especificamente
para a moderna população do mundo, quase n e n h u m acontecimento mais p o d e h u m a n o j u n t a m e n t e com sua faculdade especial de familiarização por meio da
tornar-se tão espetacular quanto os eventos cultuais o eram para as coletivida- repetição a que hoje chamamos razão ou espírito. O que em O t t o é chamado
des antigas. Quando, por exemplo, a festa do solstício de inverno atraía para si de m o d o tão impressionante de mysterium tremendurn foi de início apenas um
todos os membros de um clã, e lhes dava o sentimento de que a t r a n s f o r m a ç ã o tremendurn, que fazia arrepiar até a medula, quer dizer, pavor pânico, e onde
do declínio do sol em sua ascensão, da escuridão em luz, da vida em m o r t e e, aparece c o m o mysterium ele é já um tremendurn mistificado, nesse momento
com isso, não apenas a chegada do novo ano, mas t a m b é m a c o n t i n u i d a d e da havia m u i t o já que a ressignificação da violência pavorosa em poder protetor
existência do mundo dependia de sua consumação estática, inexorável do sacri- começara a atuar c o m o formadora de cultura — e faz seu produto parecer aos
fício, esse evento deveria tê-los aterrorizado, fascinado, extenuado mais d o que pósteros, por exemplo, aos teólogos modernos, como a origem por excelência:
o terremoto de Lisboa aos seus contemporâneos, desde que eles não t e n h a m c o m o a onipotência divina em pessoa, como o sagrado por si que em toda parte
sido diretamente afetados por ele, ou do que as devastações m u i t o mais terrí- onde se revela autenticamente provoca o arrepiante "sentimento do numinoso" 53
veis do furacão "Mitch" na América Central às pessoas de hoje, q u e captaram e confere aos homens uma profundidade de vivência e plenitude de sentimento
dele apenas imagens fugazes. E o que foi possível às dionisíacas, aos grandes em comparação com as quais todo o outro sentimento e a vivência, e até mesmo
festivais sagrados dos antigos atenienses, a saber, fazer de todos os cidadãos da a totalidade da percepção sensorial "natural" parece uma simples alegoria, um
pólis — desde que livres e do sexo masculino, bem e n t e n d i d o — espectadores pálido reflexo profano ou um eco. Isso é empolamento religioso. Não é, porém,
extasiados da representação das novas tragédias, especialmente compostas para menos a-histórico e antipsicológico o raciocínio contrário, ateu: a humanidade,
essa ocasião, ou seja, reunir de fato todos eles em um anfiteatro em t o r n o de de início orientada unicamente por suas necessidades físicas, teria sido, por fim,
um único evento espetacular que p u n h a t u d o o mais à sombra, não o consegue levada pelo impulso de "realizar tarefas cada vez mais complicadas", também
hoje mais nenhuma olimpíada, nenhum festival de rock, n e n h u m a loveparade. a imaginar quimeras religiosas. "À caça e à criação de animais veio juntar-se a
Isso naturalmente se deve à estrutura das coletividades, que hoje são aglomera- agricultura; a esta, a fiação e a tecelagem, o trabalho com os metais, a cerâmica,
ções de massas complexas, heterogêneas e não mais tribos h o m o g ê n e a s c u j o a navegação. A o lado d o comércio e da indústria se colocaram finalmente a
campo de ação se estende só até a próxima encosta de m o n t a n h a ou curso de arte e a ciência, de tribos se fizeram nações e estados. A justiça e a política se
rio. Deve-se também aos próprios eventos que se alternam vertiginosamente, desenvolveram e com eles o reflexo fantástico das coisas humanas no cérebro
concorrem entre si, se reproduzem, abreviam, trivializam sob forma audiovisual, h u m a n o : a religião"''.
aos quais mal se deixa tempo para um efeito posterior. Já não é nem m e s m o Não, a origem d o sensório humano não é nem religiosa nem profana o
comum atrair um p e q u e n o núcleo familiar para o m e s m o p r o g r a m a de TV, sagrado não é nem poder original real nem projeção prescindível, e sim cifra
razão pela qual aumenta rapidamente a ocorrência de um s e g u n d o ou terceiro imprescindível. A formação do sensório especificamente humano e a formaçao
aparelho no quarto das crianças ou no dc dormir. Em suma, p r a t i c a m e n t e já dessa cifra f o r a m o m e s m o processo. Representar, imaginar, compreender
não existe algo que seja simplesmente espetacular, pelo qual, até o n d e alcança a algo - de início atividades indiferenciadas - significou em primeiro lugar
experiência individual, todos fiquem de fato fascinados, falem dele e o consumam combater o ato h u m a n o de identificar, proteger-se dele, encobri-lo. Assim como
e, sendo assim, é correto insistir: as sensações de hoje são pálidos sucedâneos
da epifania do sagrado inflacionados sob condições de concorrência global até 52 R. O t t o , Das Heilige, p. 137.
5 6 M a t e u s 5, 2 9 . f w Benjamin, Franz
55 W Benjamin. "Notizen und Vorarbeitcn zu den ' I W . in Üherde,, Begriffder Geschkhte, Ges. Sehrífien 5 7 Se é q u e essa f o r m u l a ç ã o , q u e B e n j a m i n lhe atribui s e m r c f e r e n c a . e m e s m o
J
[Obrascompletas), 1974, vol. l . p . 1.235.
Kafka. Ges. Schriften [Obras completas], 2, vol. II, p- 432.
iluminá-lo - através do caprichoso movimento semântico em que ela entrou
Retorno ao f u n d a m e n t o
C o m o nesse m o v i m e n t o ela muda seu significado de percepção do comum
C o m isso estamos diante dc u m resultado paradoxal da história dos concei- para percepção do incomum, daquilo que excita os sentidos, e por fim para essa
tos. Se a sensação primeva dos seres humanos é o pavor, um "eis' categonco, excitação mesma, ficou demonstrado no capítulo anterior. Mas só agora esse
absoluto, isso então significa que, q u a n d o a percepção c o m e ç o u a se t o r n a r m o m e n t o ventila seu segredo histórico-filosófico. Ele se revela como um grande
especificamente humana, ela se inflamou ao extremo, ao p r i m o r d i a l m e n t e ex- evento social daquilo que a neurofisiologia chama de "memória processual". O
citante. Ela se tornou sensatio através do sensacional/wr excellence. Apenas p o r que ela faz é nada menos que percorrer aceleradamente de trás para frente os
meio do artifício singular de torná-lo familiar pela repetição, de temperar sua milênios ao longo dos quais se deu o processo de desescalada da sensação do
torrente de excitação é que foi exercitado, treinado, preparado aquilo que hoje incomensurável para o comum, da sensação em si para a sensação em geral, e
se evidencia como sensório humano e que parece transmitir-se de geração para recordá-lo p o r meio d o procedimento da reescalada semântica. Este não é um
geração como um conjunto de certas formas de percepção e presentificação mais processo consciente, mas um processo literalmente elucidativo. Ele faz girar sua
ou menos firmemente interligadas. Em outras palavras: o sensório h u m a n o , própria história de trás para diante como Penélope faz à noite com seu tecido.
que nos parece um dote constante do Homo sapiens, é o resultado de uma lon- E, obviamente, esse retorno da sensação a si mesma não é apenas um processo
ga desescalada da sensação, aliás, tão longa que p o d e m o s errar no seu cálculo lingüístico. Q u e a partir de 1780 a palavra "sensação" tenha, para além das fron-
temporal em algumas dezenas de milhares de anos. Seus vestígios culturais teiras das línguas nacionais, passado por uma escalada semântica na linguagem
mais antigos ainda palpáveis são todos eles já sedimentações e transposições c o r r e n t e c e n t r o - e u r o p e i a e assumido as conotações de assombro, excitação,
de outros consideravelmente mais velhos. Eles marcam já o estágio tardio da efervescência, inquietação, e por fim, daquilo mesmo que excita e assombra,
paulatina pacificação e consolidação do sensório h u m a n o c o m o u m a unidade é expressão de u m a escalada social muito mais abrangente: da passagem da
homogênea. E os últimos cinco milênios, muito mais bem d o c u m e n t a d o s pela sociedade m o d e r n a para uma feira que dura o ano inteiro, onde a propaganda
arquitetura, pintura e escrita que todos os anteriores, e por isso freqüentemente b a r u l h e n t a e o caráter sensacional foram familiarizados como condição de
confundidos com "a" história humana, nos sugerem essa unidade, enfim, c o m o percepção e de vida. Mas essa passagem, um vigoroso movimento para frente
fato consumado. Evidentemente continua a existir uma grande q u a n t i d a d e de da sociedade burguesa, se revela, porém, ao mesmo tempo como um passo para
excitações e sensações que podem tirar o sensório h u m a n o d o sério. Mas esse trás da história mundial. E justamente esse correr em direção contrária constitui
"sério" é sempre pensado como seu estado normal; a sensação, apenas c o m o o em si o fato que em Hegel se chama "retorno ao fundamento". Que a lógica da
estado extremo que se distancia do normal. Q u e o d i s t a n c i a m e n t o original- sensação t e m a forma de contínuo de um tal regresso era ao final do capítulo
mente fosse justamente o contrário, que o assim c h a m a d o estado normal seja a n t e r i o r a i n d a u m a suspeita vaga. Agora ele tem a proto-história inteira da
na verdade apenas o estado extremo pacificado é um fato c o m o que apagado. sensação c o m o prova. Impõe-se o pensamento de que a via de fuga que afasta a
Nada mais parece lembrar o longo processo de familiarização ou profanação que sociedade m o d e r n a em ritmo high-tech de suas origens arcaicas leva justamente
o sensório h u m a n o percorreu no seu caminho para u m a situação cultural bem de volta para elas, que o ruído das salvas de artilharia das sensações produzidas
temperada — uma situação que os primeiros teóricos sistemáticos da percepção, em escala industrial esteja a p o n t o de despertar de seu sono a proto-histona da
Platão e Aristóteles, tomam em toda evidência c o m o uma constante natural. sensação e fazê-la c a m i n h a r e m passo de caranguejo.
E ainda o fazem também todos aqueles que, dois milênios depois, introduzem C o m isso se c o l o c a a i n d a u m a o u t r a m u d a n ç a de perspectiva. A n u a n ç a de
sentimento, na teoria do conhecimento. No entanto, com essa palavra se chegou d e s e n s a ç ã o f o i s e m d ú v i d a a d e i n q u i e t u d e , efervescência, revolta, razao pela
a uma peripécia. É certo que ela começa sua carreira com u m grave equívoco: a q u a l a R e v o l u ç ã o F r a n c e s a p o d e , e m t o d o s o s s e n t i d o s , ser c o n s i d e r a d a a se, -
compreensão errônea de algo que veio a ser culturalmente como natureza. Mas sação d e s u a é p o c a . A g o r a ela se a p r e s e n t a c o m o o p r i m e i r o g r a n d e % ^
[...] melhorando o meu processo, consegui reproduzir uma imagem (point de mie)
tão boa quanto eu poderia desejar [...] Essa imagem foi tomada de teu quarto em Le
Gras, para isso eu me servi de minha maior câmera e de minha maior pedra. A ima-
gem dos objetos aparece até em seus mínimos detalhes com uma exatidão e nitidez
surpreendentes e com suas tonalidades mais delicadas. Como esta cópia é quase sem
cor, só se pode avaliar bem seu efeito observando a pedra obliquamente. Só então ela
se torna visível aos olhos, por causa das sombras e dos reflexos de luz. e esse efeito, eu
posso ce dizer, é maravilhoso 2 .
A q u e l a s h o r a s s i l e n c i o s a s n a s q u a i s a l u z d o sol d e s e n h o u pela p r i m e i r a
v e z s o b r e a p e d r a o s c o n t o r n o s d o s p r é d i o s f r o n t e i r i ç o s d e m o d o q u e se p u -
tradicional que mata ele mesmo o animal e o leva c o m o butim. Ele acerta ape- que a conhece, volta novamente para fora o conceito filosoficamente carrega-
nas o aqui e agora de um objeto, faz com que se enrijeça sob a f o r m a de instan- d o de eidos e afirma: o essencial nas coisas não é o interior invisível, e sim o
tâneo e faz cópias dele. Essa tomada de cópias é a única coisa que lhe diz res- aspecto exterior. Em suas palavras: "Deem-nos alguns negativos de algo digno
peito. Em comparação com o caçador, ele leva m u i t o menos consigo. Mas não de ser visto, t o m a d o de diferentes perspectivas — mais do que isso não preci-
também mais ? A pálida cópia não será justamente a pele aurática da coisa, seu samos. E se quiserem, podem então demolir ou botar fogo no objeto." "Existe
protótipo, seu verdadeiro si-mesmo, e o fotógrafo não será, p o r t a n t o , o mais apenas u m Coliseu ou Panteão, mas quantos milhões de possíveis negativos
refinado dos caçadores? Essa suspeita transitava realmente entre os pioneiros eles forneceram desde que foram construídos — a base para bilhões de imagens?
da fotografia. Oliver Wendell Holmes, que se poderia chamar o p r i m e i r o teó- Matéria em grandes quantidades é sempre imóvel e cara; forma é barata e trans-
rico de sua epistemologia, apoia-se expressamente em um filósofo da Antigüi- portável. N ó s preservamos o fruto da Criação e não precisamos preocupar-nos
banimento se inverte; ele passa a insuflar nova vida ao que foi d o m i n a d o , des- t e m p o , não apenas no tempo, e com isso fazer com que a vida estancada seja
provido devida: uma vida inofensiva, dócil, conduzida pelo h o m e m . Essa pas- ao m e s m o t e m p o a vida consumada. O artifício divino tem, porém, um senão:
sagem é a da legítima defesa para a arte. C o n t r a um mysterium tremendum só é algo p u r a m e n t e imaginado, acreditado, esperado pelos homens. Mas agora
existe um meio: torná-lo inofensivo através da paralisação. Mas se ele já está os h o m e n s inventaram um aparelho que realmente realiza algo desse artifício:
tão paralisado, pacificado, que já não mais provoca tremedeira, então suas en- " H á na Bíblia a bela passagem: 'Deus disse: faça-se a luz, e a luz se fez.' Agora
carnações podem aos poucos começar a se tornar massa de moldar da fantasia se p o d e ordenar às torres da Notre-Dame: 'Façam-se imagem!' e as torres obe-
humana. Pode-se ilustrar sua forma com palavras ou esculpi-las em pedra de decem. Assim c o m o obedeceram a Daguerre, que um belo dia as levou inteiras
tal forma que elas pareçam viver — e o desejo que t o r n o u Pigmalião famoso consigo" 1 5 . Levar consigo se pode tão somente um instante paralisado. Ele foi
comece a se manifestar: o de que a estátua que ele esculpiu no m á r m o r e abris- privado de sua vida própria, mas também preservado; morto, mas também
se os olhos e se tornasse sua amante. A paralisação se torna uma nova vivificação salvo. E o lado da salvação não deve ser avaliado como muito pequeno. Mesmo
daquilo que fora paralisado. É certo que o combate ao pavor se articula origi- que t o d o s saibam que não serão abençoados ao serem fotografados, o mons-
nalmente como desejo de matar. Mas, à medida que o pavor empalidece, mani- truoso sucesso comercial da fotografia, comprovado por bilhões de cópias, se
festa-se nesse desejo de matar o desejo de viver. Sim, t a m b é m ele deseja total- alimenta de u m a lisonja totalmente elementar. Ter diante de si, fotografados,
mente a vida, mas justamente uma vida sob suas condições: u m a q u e não mais a si mesmo, a sua amada, sua vizinhança mais próxima, significa: o aqui e agora
apavora. Existe uma vida assim? Não. Vida é uma condição dc tensão, c o m o que eu vejo aqui não é um qualquer, e sim um especialmente fixado - desta-
aprendemos em Freud, e Nietzsche se tornou ainda mais explícito: "Vida é em cado dos incontáveis instantes imperceptivelmente transcorridos, em suma.
si essencialmente apropriação, ferida, d o m i n a ç ã o d o e s t r a n h o e mais fraco, algo excepcional. Se não foi fixado justamente por ser algo excepcional, então
13 " C r i s t i a n i s m o é p l a t o n i s m o para o ' p o v o ' " (F. N i e t z s c h e , v o n Gul und fíòse, KSA 5 [ E d i ç õ e s 14 Idem, op. cic., p. 207.
criticas], p. 12). 15 J. J a n i n , a p u d W. Keinp, Tbeone der Fotograjie I. Munique, 1980. p. 4 / .
é certamente algo excepcional p o r q u e foi fixado. E as primeiras heiiografias O olho da câmera
de Niépce, a vista da janela ou a mesa posta não tiravam o fôlego p o r causa d a
mesa ou da vista, mas porque aqui foi possível pela primeira vez fazer com que A época d o surgimento da fotografia é a época da Revolução Industrial quando
fossem desenhadas pelo Sol sobre uma pedra. u m novo m o d o de produção, o uso de máquinas a vapor, começou a marcar o
Mais de um século e meio de vertiginosa evolução não p u d e r a m destruir compasso da evolução social, quando se recrutou, entre a população de artesãos
essa magia congênita da fotografia, e ela faz o olhar voltar-se n o v a m e n t e p a r a e trabalhadores rurais privados de seu ganha-pão, entre uma gente nômade e a
a substância sensível à luz da qual ela se originou. Essa substância reage apenas escória das cidades, u m proletariado que só podia ganhar seu escasso alimento
quimicamente à luz, sem prejudicar com isso qualquer o u t r o o b j e t o em t o r n o v e n d e n d o sua força de trabalho aos proprietários das máquinas, e o crescimen-
de si. E, no entanto, ela põe em ação algo que diz respeito a t o d o s os objetos to d o m e r c a d o nessa época, até ao ponto de se tornar uma feira perene, não
em torno dela e lhes transforma o valor: o imperativo "façam-se imagens!" E se deveu s o m e n t e ao aumento dos bens à venda nele, mas também ao fato de
essa é a mosca metafísica em que ela acerta. C l a r o q u e ela p r ó p r i a nada sabe que ele foi i n u n d a d o por criaturas humanas que precisam vender-se. Ora, o
disso. O seu processo químico age metafisicamente apenas sobre a consciên- mercado sempre foi um lugar de seleção. Vender mercadorias freqüentemente
cia h u m a n a . Mas j u s t a m e n t e : ele age. E de tal f o r m a que, através dele, u m a significa t a m b é m ter o direito de deixá-las ficar num canto. Só que faz uma
nova propriedade é dada como presente à natureza c o m o 11111 t o d o , na m e d i d a diferença f u n d a m e n t a l decidir sobre bens de consumo ou sobre seres humanos.
em que ela é capaz de se manifestar p o r meio da substância sensível à luz: a As conseqüências não são as mesmas de quando são matérias-primas, móveis
propriedade de se tornar imagem. Apenas, esse presente é o n e r a d o p o r u m a ou víveres que se deixam ficar. Para os seres humanos o mecanismo de seleção
hipoteca, cujo peso só se revela aos poucos: p o d e r tornar-se i m a g e m significa do m e r c a d o se t o r n a instância do destino que, por um desígnio insondável,
talvez se tornar imagem e, mais cedo ou mais tarde, ter de se t o r n a r imagem. rejeita u m e elege o outro. E, mesmo quando a eleição tem um caráter muito
O imperativo "façam-se imagens" põe em ação um e s t r a n h o sorvedouro. N o miserável, c o m o por exemplo, o de mourejar a vida inteira por um salário de
estágio inicial da fotografia ele ainda mal é perceptível. Aqui é o fotógrafo que fome, ela é, apesar de tudo, um ato atribuidor de sentido. Pois o sentido e o
está em primeiro plano, c o m o herói m o d e r n o : assim c o m o D e u s c o m a n d a a objetivo de t o d a mercadoria é ser vendida, mas apenas a mercadoria humana
luz com sua palavra, Daguerre comanda, com a luz, as torres de N o t r e - D a m e . sente se tais sentidos e objetivos foram alcançados ou não. Para uma força de
É um privilégio fixar pela imagem um objeto privilegiado. Mas fazia p a r t e da trabalho, ser invendável significa vegetar sem sentido, quer dizer, sem meios
magia congênita da fotografia a certeza de que em p o u c o t e m p o ela deixaria de de sobrevivência e ignorada — uma situação que em geral também começa a
ser um privilégio. Sua massiva difusão comercial estava calculada de antemão. d e c o m p o r rapidamente os atingidos por ela quando, como ocorre em países
Ter dado o primeiro impulso a ela deveria fazer a fama de seus pioneiros. Niépce ricos, u m a rede social a envolve de maneira incompleta. Marx chama a rique-
e Daguerre fecharam seu famoso c o n t r a t o "a fim de tirar t o d o s os proveitos za das sociedades modernas de uma "coleção monstruosa de mercadorias" 1 ,
possíveis desse novo ramo de negócios" 16 . O contexto ao qual H o r k h e i m e r e m o n s t r u o s a especialmente porque a força de trabalho humana se torna um
A d o r n o deram o nome de indústria cultural está aqui p r e v i a m e n t e estabele- e l e m e n t o constitutivo dessa coleção; sua venda, um ato fundador da coesão
cido: o p r o d u t o cultural em questão não caiu p o s t e r i o r m e n t e nas garras d o social; o mercado, um fundador. Em seu campo de forças, cada uma das peças
mercado, foi, pelo contrário, desenvolvido especialmente para ele. A indústria isoladas dessa coleção recebe, com a forma de mercadoria, como que uma injeção
cultural não começa de maneira n e n h u m a apenas no século XX. da necessidade de ser aceita pelo mercado: ganhar um sentido. Claro que nao
se trata de uma injeção física. Mesmo para o mais precioso veículo, ou peça de
vestuário ou joia, é indiferente se permanece inutilizado ou apodrece; apenas
para os seres h u m a n o s que tratam com eles não é. Eles têm a impressão de que
vedouro. A partir de agora cada objeto e cada m o m e n t o pode tornar-se imagem, t a n t o registrar, controlar, quanto aceitar, salvar. E um é inseparável do outro.
mas ai daqueles aos quais isso não é possível. E a câmera tem uma capacidade Isso é q u e faz a imparcialidade do olho da câmera tão irritante. Quando ele
limitada a apenas uma parte deles. Mas t u d o que não é f o t o g r a f a d o p e r t e n c e realmente reproduz nitidamente cada chaminé em todos os seus ângulos não
doravante à massa indistinta, amorfa, de m o m e n t o s transcorridos sem serem menos m i n u c i o s a m e n t e que o Apoio do Belvedere, ele então, desse ponto de
notados. E assim ocorre que a realidade começa a se dissolver para o o l h o da vista, não é superior ao olho humano apenas pela técnica óptica, mas também
câmera em uma infinidade de m o m e n t o s que almejam t o d o s eles ser u m dos m o r a l m e n t e . Ele não conhece nenhuma hierarquia e autoridade, nenhuma
instantes eleitos para serem fixados. É claro que ser aceito pela retina artificial preferência arbitrária e apagamento, de modo algum respeita mais o poderoso,
pode ser uma eleição tão miserável q u a n t o a de ser aceito pelo mercado. E, no o p r o e m i n e n t e , o atrativo, que o impotente, o canhestro, o antipático. Diante
entanto, isso significa a salvação daquela banalidade e insignificância pelas quais de seu caráter insubornável, o tempo se dissolve numa seqüência de momentos
tudo que não se torna imagem está ameaçado de ser acometido. Mas, com o igualmente válidos, e cada m o m e n t o fixado, em um espaço de detalhes igual-
sorvedouro que a fotografia começa a pôr em exercício, revoga-se t a m b é m o que m e n t e válidos. Essa visada, por assim dizer, democrática dissolve todas aquelas
no primeiro capítulo foi chamado de "luta pelo aí'". O que não se torna imagem relações de subsunção que o olho vivo imediatamente produz ou constata em
não está documentado, está sem identidade autenticada — não está aí. Isso já seu c a m p o de visão. Pois a sua vitalidade consiste em classificar as impressões
soa como subtexto quando Benjamin compara as fotos que Eugène Atget fez c o m o c o n h e c i d a s ou desconhecidas, importantes ou desimportantes, e em
de praças, cantos, escadas parisienses desertas "com aquelas d o cenário de u m integrar novos estímulos o menos dispendiosamente possível em modelos de
crime ' e então continua, generalizando: "Mas cada p o n t o de nossas cidades percepção já existentes, quer dizer, em redes neuronais já treinadas. Indolên-
não é cenário de um crime? Cada passante não é um criminoso?" 1 8 . D e fato: a cia e venalidade são dois dos segredos do sucesso do sistema nervoso central
fotografia, mesmo nas situações mais inofensivas, tem algo de criminalístico. na a p r e e n s ã o d o m u n d o , e o m o m e n t o fixado fotograficamente é o espelho
Mesmo quando ela — no que Jeff Wall é um virtuose — "coloca" o m o m e n t o que repreende ao olhar h u m a n o exatamente esses vícios, por assim dizer, sua
como o diretor coloca a cena, quer dizer, sutilizado até o m e n o r detalhe, ela precária c o m p r e e n s ã o da democracia, e lhe mostra aquilo sobre o que, mesmo
não deixa de "colocá-lo" em outro sentido: da mesma maneira que o guarda ao com a melhor boa vontade, ele resvala, distraído, todos os detalhes ínfimos que
ladrão. Nenhum arranjo pode ser preparado de antemão até o último grãozinho merecem tão p o u c o ser ignorados como ele próprio.
de poeira, até o último músculo do rosto, de tal forma que a câmera não flagrasse Assim, o o l h o da câmera aparece como o advogado do individual: como
algo ou alguém. O que quer que seja f o t o g r a f a d o o é in jlagranti. É preciso, u m a espécie de libertador óptico. De certo modo ele faz de maneira finamen-
porém, acrescentar algo: cada local é o cenário de um crime, cada passante é um te estética o que o mercado, como instância socializadora, foz de maneira ru-
d e m e n t e e c o n ô m i c a . T a m b é m ele faz com que indivíduos saiam de todas as
18 \V. Benjamin, Kleine Geschicbte der Photographie, p. 385. relações de subsunção feudais nas quais eles estavam integrados como servos,
arrendatários, vassalos, e os coloca sobre suas próprias pernas, mas justamente raem cobre, da impressão de livros e da litografia são apenas uma das linhagens
sob condições de mercado que p o d e m fazer o indivíduo desprovido de meios de antepassados da fotografia. A outra é a exposição de curiosidades minerais
e trabalho — quer dizer, aquele que não é "aceito" — perecer de maneira mui- plantas e animais exóticos, remédios milagrosos e truques de mágica, ' '
, . . 11 . ~ "»a&ic«t, câmaras
to mais indiferente do que em todas as relações de subsunção feudal. Assim ópticas nas quais o olho passeia por paisagens estrangeiras, depois panoramas
também a indiferença da retina artificial. Q u a n d o ela fixa todos os detalhes de nos quais se abre a possibilidade de contemplação em todas as direções e
um m o m e n t o com a mesma intensidade, fazendo-os sair das relações dc sub- por fim, dioramas que colocam uma paisagem sob uma iluminação que varia
sunção que o olhar h u m a n o notoriamente constata em seu campo de visão, e a b r u p t a m e n t e , d a n d o a impressão de que ela se movimenta. Ocasionalmente,
oferece esse m o m e n t o desatado ao olhar humano, desprotegido, pode aconte- fazia parte dos ilusionismos de feira até mesmo o enegrecimento de cloreto dê
cer que uma insignificância qualquer provoque nele inesperadamente u m a tal prata sob a ação da luz — sem, contudo, se ter a mínima idéia do que isso teria
obstinação, como se voasse para o coração d o observador e, em sua forma pa- a ver com as câmaras ópticas. Quando Niépce, para quem a heliografia inicial-
ralisada, essa insignificância se tornasse tão bem apanhada, viva, significativa mente só servia ao aperfeiçoamento da litografia, e o explorador de panoramas
para ele como jamais fora em forma vivente ou jamais viria a ser — e lhe dê e dioramas, Daguerre, fecharam seu contrato, ambas as linhagens se uniram
aquela aguilhoada repentina a que Roland Barthes deu o n o m e tão belo de num mesmo rebento que de um golpe se emancipou tanto do esforço artesanal
punctum19. O observador atento se curva sobre uma tal foto c o m o um salvador tradicional para a confecção de "negativos" quanto da feira como local tradi-
que chegasse tarde demais, ao qual a mecha vital em brasa desse punctum en- cional da exposição. N a passagem da feira esporádica para a perene, a foto-
viasse seu SOS apenas postumamente, quando já se encontrasse em situação de grafia representa u m salto qualitativo. Seus pioneiros previram com muita
se apagar. Ele só pode salvá-la metaforicamente, através de atenção posterior, clareza q u e em breve ela deveria tornar-se um artigo de massa que penetra
através da memória — quando ele tem a sensibilidade de perceber no piscar de igualmente todas as classes sociais, o público e a esfera privada. Menos evi-
olhos fixado o olho que se quebra, a despedida paralisada. d e n t e era para eles em que medida o novo artigo também atuaria como uma
O punctum é, porém, apenas o acaso feliz da fotografia. Nem toda foto tem nova f o r m a de intuição.
um, nem todo observador é sensível a ele, ao passo que n i n g u é m p o d e deixar
de ver o efeito bruto da fotografia: seu caráter de instantâneo. O imperativo
"façam-se imagens", que faz com que uma abundância de detalhes se enrijeça Fotografia como forma de intuição
de um modo chocante, tem um eco inevitável: o imperativo "olhem para cá",
com o qual o instante enrijecido devolve de m o d o chocante o efeito ao obser- Forma de intuição? O conceito carrega um grande peso filosófico. Kant o re-
vador posterior. Este segundo imperativo nós já o conhecemos. Ele está em servou para nada menos que o espaço e o tempo, pois, como ele diz, tudo o que
casa, na feira, na qual não por acaso se desenrolou uma parte i m p o r t a n t e da é sensível só se deixa perceber no espaço e no tempo, mas o espaço e o tempo
pré-história da fotografia. As técnicas de reprodução da xilogravura, da gravu- em si não são de m o d o algum perceptíveis, porque não são sensíveis. Portanto,
conclui ele, são algo que nós desde sempre trazemos conosco para a percepção ou
a intuição: as duas formas elementares pelas quais elas nos são dadas:". De que
19 "O punctum dc u m a fotografia é a q u i l o q u e nela é casual, q u e ?ne corrompi- (mas c a m b e m m e fere, me
atinge)/' E "essa palavra corresponderia tanco m e l h o r à m i n h a idéia p o r t a m b é m refletir a idéia d a p o n - maneira, n o entanto, espaço e tempo podem ser minhas formas, se eu mesmo,
tuação, c as fotografias dc que falo aqui se e n c o n t r a m de fato c o m o q u e p o n t u a d a s , a l g u m a s vezes franca-
mente saturadas desses p o n t o s sensíveis; e considerados c o m exatidão, esses sinais, essas feridas são p o n t o s " por m i n h a vez, estou no espaço e no tempo, ou como, se pudesse efetivamente
(R. Barthes, Die helle Kammer — Bemerkung zur Photographic, p p . 35 e segs.). B a r t h e s perpassa, e n t ã o , haver algo q u e transcendesse espaço e tempo, esse transcendental poder,a ser
uma série de fotos a fim dc d e m o n s t r a r através de d e t a l h e s a p a r e n t e m e n t e i n s i g n i f i c a n t e s — u m c i n t o
largo, sapatos dc fivelas, braços cruzados, um d e d o a t a d o etc. — o q u e ele e n t e n d e p o r punctum. Ele o f a z capaz de qualquer intuição concreta são problemas do discurso kant,ano ate
de maneira m u i t o pessoal. O q u e o c o r r o m p e não me c o r r o m p e necessariamente. O punctum é t o t a l m e n -
hoje náo resolvidos, que tornam aconselhável localizar a forma de mtuiçao
te subjetivo. Mas não a p o n t u a l i d a d e , que já se e n c o n t r a no golpe q u e faz c o m q u e u m aqui e agora vivo se
paralise em f o r m a de fotografia e se c o m u n i q u e inapelavclmcntc c o m o seu observador. A p e n a s a i n d a n á o
foi d i t o como. H á fotografias q u e nos vêm ao e n c o n t r o quase q u e r u i d o s a m e n t e e desencadeiam um efei-
to de c h o q u e manifesto, sem q u e q u a l q u e r punctum se evidencie nelas. O punctum é silencioso.
2 0 I. K a n r , " D i c t r a n s z c n d e n t a l c Asthccik" .a Kritik der reine» Vemunft. P. 69.
num p o n t o um pouco mais p r o f u n d o e sob ela compreender cm primeiro lugar fotografia o faz em s.lencio e muito além do espaço público. Onde quer que se
as ligações que estão tão firmemente atadas em cada sistema nervoso que todas as a contemple, m e s m o em camerazinhas silenciosas, ela desencadeia o seu "olhe
outras ligações ocorrem sobre sua base. Então t a m b é m se p o d e r ã o chamar de para ca . Ela tem o efeito de um ubíquo pregão de feira óptico e, se o olharmos
formas de intuição as regulamentações que são impostas de fora de u m siste- detidamente, poderemos ler nele um apelo furtivo, que soa quase bíblico- toma
maa de percepção, seja com efeito intensificador ou amortecedor, canalizador me, seja c o m o for que eu seja tomado. Mas nesse piscar de olhos o est percipi
ou difusor, e nesse sentido a fotografia indubitavelmente é u m a delas. Certas de Berkeley inicia sua mudança de significado histórica. Ser é ser percebido
funções elementares da visão, c o m o a diferenciação entre claro e escuro e entre Mas ser p e r c e b i d o é ser tomado. E é preciso ser tomado tanto pelo mercado
cores, percepção de formas e m o v i m e n t o s , não se t o r n a m diferentes através c o m o pela retina artificial. Mas ambos, tanto o ser tomado economicamente
da fotografia, mas são dirigidas de maneira diferente. O q u e é f o t o g r a f a d o é q u a n t o o fotograficamente, trazem em si tanto o significado criminalístico do
presa do olhar — tanto no sentido de ser a p r e e n d i d o pelo piscar de olhos de provar, certificar indícios, registrar, controlar, como também o caritativo de
uma retina artificial como também no de que, c o m o algo apreendido, ele por tomar, abrigar, salvar. Eles reúnem em si o que a teologia nunca pôde reunir
sua vez apreende o olhar do observador, e isso de m o d o tão a b r u p t o q u a n d o em D e u s sem contradição: tanto o olhar implacavelmente julgador sobre o
ele próprio foi apreendido. m u n d o q u a n t o o misericordioso.
Tudo quanto foi apreendido desse modo está salvo — ao menos de pertencer C o m t u d o isso a fotografia exerce desde o início o que apenas muito mais
à massa obscura dos momentos passados sem serem percebidos. U m a aparelha- tarde, a saber, nos anos 70 do século XX, recebeu o nome de "estética da merca-
gem lhe conferiu o status de excepcionalidade, de m e r e c i m e n t o de atenção. Aí doria" 2 '. C o m isso se queria dizer que a apresentação de mercadorias é sempre
está um meio cuja realização específica consiste em transferir a curiosidade d o t a m b é m um evento estético. Coisas que já vêm ao mundo como mercadoria
lado do conteúdo para o da forma. O c o n t e ú d o p o d e ser tão cotidiano q u a n t o e, p o r t a n t o , têm de ser preparadas para o mercado já durante a fabricação, são
quiser; levado para a forma de um instante fixado, ele se torna curioso, d i g n o providas de u m a superfície brilhante. C o m isso a produção de mercadorias
de contemplação, e só dentro dessa forma é que se p o d e diferenciar entre o que traz consigo a necessidade interna de toda uma tecnologia de configuração da
é mais ou menos curioso. Holmes, p o r t a n t o , não c o m e t e u n e n h u m exagero superfície. C o m um golpe seguro Emile Zola apreendeu a atmosfera dc seus
digno de nota quando afirmou: "Obtivemos o f r u t o da criação e não precisamos p r i m e i r o s t e m p o s : "Todos estavam de acordo em que o chefe era o melhor
preocupar-nos com a semente.' Pois o m o d o a b r u p t o pelo qual a fotografia faz d e c o r a d o r de Paris, um decorador verdadeiramente revolucionário, que fun-
as coisas se enrijecerem e como lhes copia a forma é, afinal, o d a d o curioso que dara a escola d o brutal e do colossal na arte da decoração de vitrines. Ele exigia
se transmite abruptamente ao observador. A câmera, p o r t a n t o , "dispara" duas massas aparentemente desordenadas, como que caídas casualmente das gavetas
vezes: primeiro, quando fixa o objeto em sua retina artificial; depois, q u a n d o esvaziadas e desejava que elas incandescessem nas cores mais quentes e se inten-
esse instante fixado dispara uma saraivada sobre a retina viva d o observador. Isso sificassem m u t u a m e n t e no efeito. Ele costumava dizer que os olhos das pessoas
é, por assim dizer, o ricochete atrasado do primeiro "disparo"; em linguagem t i n h a m de doer q u a n d o saíssem da loja"22. A fotografia é o multiplicador ideal
filosófica, sua reflexão. É indiferente se o objeto em si é excitante ou tedioso de e o intensificador de tais arranjos de vitrines. Assim como ela tendencialmente
matar; a câmera o transfor?na em presa d o olhar, coloca-o sob o status de u m t r a n s f o r m a cada um de seus motivos no cenário de um crime, o mesmo ocor-
"isto aí" — e com isso lhe instila automaticamente o imperativo "olhe para cá" re e m u m a vitrine. Sim, ela faz com que ambos coincidam. Nenhum cenário
que ele então irradia sobre o observador. Essa reflexão a u m t e m p o mágica e que não seja t a m b é m uma vitrine, nenhuma vitrine que não seja também um
mecânica do instante é o segredo do sucesso da fotografia. Ela p r o d u z cenários cenário. Nesse sentido se poderia chamar Holmes o primeiro epistemologo
de crime e criminosos aos metros que fazem empalidecer os tradicionais. O que da fotografia, igualmente o primeiro esteta da mercadoria. "Temos o fruto da
cada um dos mercadores, charlatães, saltimbancos e curandeiros têm de fazer
aos berros nas cenas urbanas tradicionais para o n d e acorrem em massa, a saber,
apregoar seus artigos a fim de colocá-los na condição de excepcionalidade, a 21 Cf. W. F. H a u g , Kritik der HUren.istheíik. Frankfurt, 1972.
22 E. Z o l a , Das Paradies der Damen. Munique. 1976, p. 79.
criação e não precisamos preocupar-nos com a semente" — com isso ele quis do c o n t i n u o d o tempo como também de todo contínuo de excitação netvosa
dizer: o "fruto", aquela pele ou superfície que a fotografia reproduz abruptamente E apenas o n d e há excitação há significado. No momento do entijecimento a
das coisas, é o decisivo. Isso deveria ser teoria da fotografia, mas t a m b é m p o d e excitação cessa, e significação enrijecida não é nenhuma, a não ser para seres
passar por estratégia de venda: não importa o que é envolvido pela superfície. vivos, excitáveis, que sabem como reanimá-la, assim como a leitura é rcanimação
Para o vendedor tanto f i z se a coisa oferecida realmente garante o prazer q u e de signos de escrita que por si e em si, quer dizer, sem leitores, nada significam
sua superfície promete. A fotografia é sua aliada natural: mestra da superfície. A diferença é que o pintor ou o escritor tentam transmitir para uma superfície
Toda mercadoria aspira a ser representada fotograficamente e ao mesmo t e m p o com o pincel ou o lápis a sua visão ou o seu pensamento, enquanto o fotógrafo
a se dissolver na superfície que constitui a "essência" da mercadoria. E o brilho deixa ver por ele u m olho mecânico que não é excitado pela luz, apenas exposto
que ela ganha com isso não é apenas u m a cintilação q u e causa desejo, mas à luz: quimicamente transformado. Mas talvez essa transformação se represente
também a irradiação aurática do senso de mercado, promessa de estar a salvo como se fosse a grande excitação. A retina artificial toma qualquer instante com
de ser deixado ficar que se realiza na venda 23 . u m a entrega que uma retina viva só teria pelos instantes mais sublimes. E ao
Não há dúvida de que a forma de intuição da sensação, que sob condições despertar n o observador um interesse tão profundo por qualquer chaminé tanto
microcletrônicas cresceu a p o n t o de se tornar um poder global paradigmático, quanto pelo Apoio do Belvedere, ela transforma o Apoio em uma chaminé um
por assim dizer abriu os seus olhos na fotografia. Ela é o meio que deu o empurrão pouco diferente. O mais insignificante dos detalhes aqui ainda é digno de atenção,
técnico decisivo para o deslocamento d o significado da palavra "sensação" de mas todos os detalhes devem essa dignidade à miserável situação de que uma apa-
percepção absolutamente inespecífica para percepção d o q u e é sensacional e relhagem os tornou "dignos" por meio da mera fixação: como que num processo
por fim para o sensacional em si. O que em Schiller ainda era metáfora, q u a n d o indiscriminado de nobilitação. O punetum, para o qual um detalhe qualquer de
ele se iludia presumindo-se impregnado por uma "língua que verseja e pensa uma foto repentinamente me arrebata, é apenas uma migalha especial que caiu no
por você", começa a se tornar literal na fotografia: o olho da câmera realmente curso de um nivelamento geral. Pois onde tudo é enobrecido, a nobreza deixa de
vê por você, mesmo que você seja cego. Aí ocorre u m ver t o t a l m e n t e sobre- existir e o que ocorre se pode exprimir através do conhecido título de um livro:
humano, como se demonstrou. A intensidade e a imparcialidade com que esse A transfiguração do familiar2 .
ver fixa toda a abundância de detalhes de um instante, f a z e n d o com q u e ela M a s aqui ocorre ao mesmo tempo o seu contrário: a familiarização do ex-
escape de todas as relações de subsunção, ultrapassam qualquer olho vivo e o cepcional. D e fato, na fotografia os extremos se interpenetram. Uma prática
humilham quando ele começa a notar, em sua viagem de descoberta através de mágica arcaica, a paralisação do instante, é consumada com os meios mais mo-
uma foto, milhares de insignificâncias que lhe escaparam ou lhe teriam escapado dernos. Mas originalmente o que tinha de ser paralisado não era algo qualquer,
na vida real. Para um sensório tão suscetível, o olho da câmera é u m completo e sim o q u e fazia arrepiar até a medula, o que era sensacional no mais alto grau,
espelho de virtudes. Mas ele só tem a virtude para os outros. Em si m e s m o ele era sensação par excellence: o pavor. Tratava-se de fugir dele. A idéia cristã do
é completamente indiferente. Por isso pode fixar cada instante com a mesma agora estático c o m o momento de felicidade eternizado é um estribilho tardio
intensidade incondicionalmente inquiridora, pois todos esses instantes lhe para isso. Ele transforma a idéia original negativa de salvação, como a de ser
são indiferentes. Não significam nada para ele. Estão destacados não apenas p o u p a d o , na idéia positiva de salvação, como bem-aventurança eterna, mas nao
m u d a em nada o fluo de que a paralisação do instante está indisfarçavelmen-
te associada c o m a salvação: seja querer salvar-*daquilo que se paralisa, seja
2 3 C o m o que, no encanto, não se q u e r dizer q u e a fotografia n ã o seja senão pregão de feira t r a n s f o r m a d o em
torma de intuição. C o n t r a tal afirmação fala especialmente o conceito d c p u n e t u m d e s e n v o l v i d o p o r Bar-
thes: aquela p u n ç ã o fina c aguda q u e j u s t a m e n t e não se origina d o imperativo grosseiro "olhe para cá", e
sim de um d e t a l h e que, por assim dizer, se e n c o l h e debaixo desse i m p e r a t i v o para e n t ã o se e v i d e n c i a r c 2 4 A . C. D a n ç o , " B i n e P h ü o s o p h i c d e r K W . in 1 » / ^ ^ ^ ^ ^ ^
saltar para tora dele e de sua constelação de intenções, de u m m o d o q u e n e m o o l h o d o fotógrafo n e m o se• dd e v e m d e i x a r c l a r a s d u a s c o i s a , . ) A a r r e . d e s d e ^ ^ ^ J a s t i g „ r ^ o
d a câmera c o do receptor p o d e r i a m prever — e q u e transcende t o d a utilização comercial. T a m b é m aque- tr;a n s f i g u r a ç ã o . Q u a l q u e r c l i q u e d e s p . d o d e a r r e e r a J j ^ c o n t r á r i a : na ( a l a r i -
le trabalho fotográfico artístico que mereça esse n o m e consiste em m i n a r o caráter de p r e g ã o de feira d o d o f a m i l i a r s i g n i f i c a e s q u e c e r q u e t a m b é m a a r t e c o m e ç o u UL q ess0
c h o q u e imagetico, torná-lo estranho, arrebentá-lo. Mas ele n u n c a o consegue p a s s a n d o ao largo das novas / a ç ã o d o p a v o r o s o . A t r a n s f i g u r a ç ã o d o c o m u m é af u m p r o c e s s o s e c u n d a n o q u e
f o r m a s de intuição, e sim apenas através delas.
primário e o esconde.
querer salvar aquilo que se paralisa. De uma maneira ou de outra, trata-se d o suas condições de vida e suas relações mútuas" 26 I s s o d f
rém ape dosIado sdare voica Eiai
extremo dos sentimentos. T a n t o o pavor paralisado q u a n t o o seu negativo, o
instante feliz paralisado, consumam o ato da epifania do sagrado; são sensação
7 rz , T -
sagrado era t a m b é m a sacrahzação do mercado, a degradação de t u d o qU
no significado extremo da palavra. E esse extremo vai agora cair nas garras de
era c o n f i g u r a r de sentido para mera mercadoria caminhava lado a lado com
uma aparelhagem que, e n q u a n t o durar o s u p r i m e n t o de retina artificial, p o d e
a ascensao da mercadoria para uma encarnação de sentido e salvação. Mas o
paralisar um instante depois do outro com a mesma intensidade e sem n e n h u m a
que significa isso ? Q u e aqui apenas uma nova religião substitui a outra> Que o
manifestação de cansaço, e que confere a cada instante paralisado a aparência
sagrado simplesmente retorna sob outra forma? Isso acerta no geral, mas erra no
ou, em linguagem filosófica, a forma de intuição de uma sensação, que onera a
que é decisivo. M e s m o os que se deixaram fascinar completamente pelo novo
cada um com o imperativo "olhe para cá" e dá a entender ao sensório h u m a n o :
brilho d a mercadoria, e n q u a n t o ainda mantinham a razão, não acreditaram
percepção só se torna algo plenamente digno desse n o m e através d o solavanco
seriamente q u e a configuração de sentido sugerida pela mercadoria pudesse
que lhe é dado pelos instantes paralisados.
substituir na medida de um para um aquela salvação e redenção geral do mundo
C o m isso, a epifania do sagrado é degradada para o rés do chão das merca-
pela qual se responsabilizava o Deus cristão. A sacralização da mercadoria ainda
dorias de fancaria produzidas tecnicamente em série, ao mesmo t e m p o em que
não chegara a tanto. Da mesma forma seria ridículo afirmar que a cada foto a
é conferido à retina artificial o status paradoxal de uma mercadoria de fancaria
sensação d o sagrado acometesse o observador; as pessoas apenas não se davam
especial. Apregoar a mercadoria c o m u m em altos brados c o m o algo completa-
conta. Elas se davam conta perfeitamente de que aqui não estava presente nada
mente incomum é desde sempre um p r o c e d i m e n t o mercadológico c o m u m . A
de sagrado, q u e fotografar e ser fotografado nem salva nem torna bem-aven-
retina artificial se eleva acima dele. Ela absorve em si o pregão de feira, liberta-
t u r a d o — e apesar disso a magia do instante paralisado não cessa pelo fato de
o do aqui e agora do t u m u l t o do mercado, transporta-o da orelha para o olho
que uma aparelhagem a multiplica aos bilhões. A relação com tal magia não é
ao mesmo tempo em que o multiplica freneticamente, faz com que seu silen-
religiosa; mesmo quem expõe os retratos de seus entes queridos como ícones não
cioso "olhe para cá" atue em toda parte o n d e fotos são contempladas — e dá
acredita s e r i a m e n t e que sejam imagens sagradas. Mas essa relação também
com isso a "bilhões de fotos" o sopro da epifania. O que Marx censurou na
não é s i m p l e s m e n t e irreligiosa. O impulso de paralisar instantes e seguir o
mercadoria em geral, "que é uma coisa m u i t o espinhosa, cheia de sutilezas
25 seu "olhe p a r a cá" é maior que nunca. A indústria fotográfica vive um boom.
metafísicas e caprichos teológicos" , vale p l e n a m e n t e para a fotografia. Em
Assim c o m o o sistema nervoso central humano conhece memória implícita
cada uma de suas tomadas, por mais pueris que sejam, ela consuma um movi-
e explícita 27 , ele evidentemente também conhece crença implícita e explícita, e
m e n t o duplo teológico-metafísico: p r o f a n a algo sagrado, ressacraliza algo
onde não se p o d e mais encontrar uma crença explícita não quer dizer que já não
profano. Mas agora se trata de colocar esse m o v i m e n t o d u p l o sob a lupa.
haja n e n h u m a crença, assim como não haver uma ponta saindo da água não sig-
nifica q u e já não haja iceberg. Muito ao contrário, tudo leva a pensar que aqui
se t e n h a iniciado um "retorno ao fundamento": que a crença explícita se tenha
Memória imagética da Revolução Industrial
reelementarizado c o m o uma crença explícita — se recolhido, por assim dizer,
às camadas mais p r o f u n d a s do sistema nervoso: de uma atitude reflexiva para
Ao longo de 150 anos se falou em toda parte que a Revolução Industrial não
outra antes refletora, de uma produtividade intelectual para uma antes sensó-
foi apenas a devastação que o Manifesto comunista diagnosticou em sua pri-
rio-motora. D a í a singular situação oscilante para a qual transporta a magia do
meira fase: "Tudo o que era sólido e estável se dissipa, t u d o o que era sagrado é
instante paralisado fotograficamente. Obstinar-se na idéia de que ele irradia
profanado, e os homens finalmente são obrigados a encarar com olhos serenos
a sensação d o sagrado é absurdo; mas dizer que ele não o faz de modo algum
salário de fome. E a imposição de se adaptar a essa máquina e de realizar certos com as palavras aladas: "Non, Sire, c est une T " ^ ^
movimentos de maneira igualmente trepidante e mecânica foi de início, para fala, e politicamente pela última vez, no sentido da velha n ^ ^
toda uma classe da população, o aspecto dominante de trepidação e choque, em um m o v i m e n t o celestial para a terra, mas aqui também ouvimos como talve
comparação com o qual o c h o q u e imagético se colocava na esfera do repouso, pela primeira vez o t o m m u d a e a ênfase de significado se desloca da normali-
a contemplação de fotos entre os lazeres parcimoniosamente semeados. Q u e dade d o curso fechado em si para a irresistibilidade própria desse movimento
o choque imagético devesse um dia tornar-se a força propulsora, a pulsação de circular Tao incessantemente quanto os astros voltam para o início em seu
toda a produção industrial, que ela devesse submeter-se ao c o m a n d o dele na curso, a rebelião que eclodiu aqui vai voltar-se para frente e provocar a queda
mesma medida em que ela se refinava de u m a p r o d u ç ã o movida a vapor para de t o d o u m edifício social: este é o pensamento por trás das palavras aladas de
uma eletrificada e, por fim, microeletrônica, q u e u m dia t u b o s de imagens Liancourt. Ele acendeu e revirou o próprio conceito de revolução. "A idéia de um
marcariam o compasso de todo o processo de trabalho social: t u d o isso ainda movimento irresistível que poucas décadas depois seria entendido conceituai mente
não era previsível. Mas talvez a síntese entre a magia mais arcaica e a técnica como idéia de uma necessidade histórica atravessa como uma linha vermelha a
mais moderna que o choque imagético fotográfico produz fosse então evidente, história da Revolução Francesa" 32 .
mas subestimada. Aqui há necessidade de recapitulação. E absolutamente ne- Mais ainda: a referida idéia se transferiu na geração seguinte para a época
cessário aprender a ler o instante fotograficamente paralisado c o m o a m e m ó r i a do estabelecimento de grandes maquinários. "A burguesia não pode existir sem
imagética involuntária da Revolução Industrial — e com isso t a m b é m c o m o revolucionar continuamente os instrumentos de produção, portanto as relaçcões
mémoire involontaire do sedimento arcaico que essa revolução revolveu em sua de produção, p o r t a n t o todas as relações sociais"33, diz a conhecida formulação
carreira triunfal. Recapitulemos, portanto. do Manifesto comunista. Por revolução ela entende, naturalmente, urna revira-
volta para frente, derrubada — e no entanto não o tipo da revolução política
representado pela inglesa, americana ou francesa. Refere-se muito mais àque-
Mercadoria fetiche la m u d a n ç a começada no século XVI, que Marx descreveu mais tarde, de modo
emocionante, nas relações inglesas, em que ele se realizou de maneira especial-
mente brutal, c o m o "pretensa acumulação original": aquela separação levada
Revolução significa literalmente "voltar para trás". C o p é r n i c o i n t i t u l o u sua
a cabo c o m "sangue e fogo" entre produtores e meios de produção, que expul-
obra principal De revolutionibus orbium coelestium — não para ser "revolu-
sou uma g r a n d e parcela da população rural europeia de seu torrão, tomou a
cionário" em sentido m o d e r n o , e sim para expressar algo em ú l t i m a análise
uma p a r t e considerável dos artesãos o apoio da oficina e da corporação, impe-
conservador, envolto na aparência de eternidade: o curso dos corpos celestes.
liu-os para as grandes manufaturas juntamente com um povo nômade e men-
E quando passou, na Inglaterra do século XVII, para a esfera política, não foi
dicante c o m o força de trabalho desprovida de meios e vendável e, finalmente,
em relação, por exemplo, com a tomada de poder por Cromwell, "e sim, pelo
para as novas máquinas a vapor, e fez dos proprietários dessas máquinas a nova
contrário, no ano de 1660, quando o parlamento foi d e r r u b a d o e a m o n a r q u i a
classe d o m i n a n t e . Esse processo revolucionário modificou o mundo de modo
restabelecida. Exatamente no mesmo sentido a palavra ainda foi utilizada em
incomparavelmente mais fundamental e duradouro que a revolução americana
1688, quando os Stuarts foram banidos e G u i l h e r m e e Maria sc apossaram da
e a francesa juntas 3 '. Os direitos humanos proclamados na BillofRights ainda
dignidade real. A 'revolução gloriosa' [...] não foi de m o d o algum sentida c o m o
revolução, e sim como a restauração do poder real" 30 . A grande reviravolta no
significado se deu exatamente a 14 de julho de 1789 em Paris, q u a n d o a notícia
31 I d e m , o p . cit., p. 58.
da tomada da Bastilha foi transmitida ao rei e ele exclamou: "C'est une revolte", 32 I d e m , o p . cit., p. 59.
33 K. M a r x e F. Engels, Martifest..., p. 465. , . , . „„
34 N o g r a n d e livro sobre a revolução de H . Arcndt ele não aparece. Em sua teoria poht.ca ele desempenha
30 H . A r c n d t , ÜberdieRevolution. Trad. alemã. M u n i q u e , 1994 (1963], pp. 51 papel dc u m p o n t o cego.
estão longe de se tornar realidade, enquanto a sociedade capitalista, p r o d u t o - capitalismo da forma da mercadoria. Mas, agora q u e Marx passa por cachorro
ra de mercadorias, está de tal forma estabelecida, que ninguém é mais capaz de morto, sua urgência se torna manifesta. Assim como náo sl pod tra "
removê-la do pensamento ou de livrar-se dela. T a n t o mais digno de nota é o tan ciai m e n t e da sensaçao sem esclarecer sua relação com o .'grado, tan ,
fato de que essa Revolução Industrial incomparavelmente bem-sucedida rece- nao se p o d e tratar da mercadoria sem discutir o do fetiche. Aqui apen
ba o adjetivo de "contínua" — sendo entendida como algo que, u m a vez posto a observação e x a u da resultado. A palavra fetiche vem do português / L f
em movimento, não pode mais parar. Sua vitória sobre a sociedade pré-moder- obra de magia . Por tras dela está o latimfactitius: "feito artificialmente" De
n a não poderia ser mais completa, mas a condena a vencê-la sempre mais u m a início se referia a obras de fancaria primitivas de tribos africanas diante das
vez , sempre mais rapidamente. Seu próprio movimento revolucionário se tor- quais viajantes europeus franziam o nariz»: figuras precariamente entalhadas
n a c o m isso um c o n t í n u o girar em t o r n o de si mesma, a renovação obriga- esculpidas, moduladas, que depois de prontas eram irrefletidamente incorpo-
toriamente p e r m a n e n t e dos instrumentos técnicos e das relações sociais se radas de imediato ao culto da tribo como encarnações de poderes divinos O
torna uma compulsão à repetição, um marchar para frente, q u e n o e n t a n t o achado de Marx é, então: uma sociedade produtora de mercadorias nao não ttem
se inicia. Inesperadamente, o significado de revolução se aproxima daquele n e n h u m direito de franzir o nariz diante de tais práticas, pois o que ela faz no
curso imutável das estrelas com o qual ele parecia ter r o m p i d o do m o d o mais f u n d o não é outra coisa. Ela projeta um segundo valor sobre objetos totalmen-
radical. E que o movimento para frente da sociedade m o d e r n a pudesse ser ao te rotineiros, cujo valor consiste em que se pode servir-se deles conveniente-
mesmo tempo retrocedente, que sua permanente transformação t a m b é m pos- mente para a satisfação de necessidades, e declara esse segundo valor como
sa ser revolucionária no sentido de que ela torna a revolver coisas que há mui- verdadeiro q u a n d o acha que um material, uma saia ou um pão, vaie tanto ou
to se criam ultrapassadas, sedimentadas, arcaicas — justamente Marx nunca tanto — e m b o r a este segundo valor, o chamando valor de troca, não decorra
abandonou essa suspeita. De u m lado, ele põe muita ênfase na profanação d o p r o p r i a m e n t e da constituição natural de cada coisa, e sim apenas do fato de
sagrado que essa sociedade pratica. "Ela afogou os frêmitos sagrados da exal- que as pessoas igualam quantitativamente coisas e objetos físicos dos mais di-
tação piedosa, do entusiasmo cavalheiresco, da melancolia pequeno-burguesa ferentes qualitativamente, os fazem trocáveis entre si — e assim, pouco a pou-
na água gelada do cálculo egoísta. Ela dissolveu a dignidade pessoal n o valor co, i n t r o d u z u m mercado entre eles, no qual tudo de que se quer desfrutar tem
de troca e [...] colocou no lugar da exploração disfarçada com ilusões religiosas de ser antes c o m p r a d o . Ora, se toda uma sociedade acredita que o referido
e políticas a exploração aberta, i m p u d e n t e , direta, seca" , s . Por o u t r o lado, valor de troca q u e transforma uma coisa em mercadoria é uma propriedade
Marx é o criador da fórmula sobre o "caráter fetichista da mercadoria" 36 . C o m o dessa mesma coisa, então ela projeta numa coisa sensível um valor "mais alto'
isso pode rimar? insensível — exatamente como a tribo africana que toma sua obra entalhada
Nos anos 1960 e 1970 muita tinta foi desperdiçada com esse assunto —• na pela encarnação de poderes divinos. Transformado em uma mercadoria, qual-
maior despreocupação com o status teológico, para não dizer ontológico, des- quer o b j e t o de uso trivial passa a circular de vez como "coisa sensível supra-
se fetiche. Pois se ele é u m : que significa isso? Q u e na sociedade capitalista sensível"; adquire "caráter de fetiche" 18 .
simplesmente uma nova religião, moderna, substitui a pré-moderna? E que, Mas o q u e significa aqui "caráter"? Que a coisa de fato fetiche, ou apenas
além disso, a nova é mais primitiva, mais arcaica que sua predecessora cristã? como u m fetiche? Em Marx isso náo é de maneira nenhuma tão inequívoco
Tais perguntas nem sequer foram colocadas seriamente pelas prolixas exegeses como parece à primeira vista. Claro que normalmente se afirma a respeito de
dc Marx, que percorreram de cima a baixo a relação entre a lógica d o ser hege- uma mercadoria apenas que um certo valor é Inerente a ela, mas não um poder
liana e o capital, que soletraram à exaustão a relação entre valor de uso e valor divino. Nesse sentido o conceito de fetiche serve apenas como metáfora. "E
de troca, entre trabalho abstrato e concreto e repetidas vezes "derivaram" o por isso, para encontrar uma analogia, precisamos refugiar-nos na região ne-
35 Idcm, op. cic., pp. 464 c segs. 3 7 Cl". C h . D e Brosses, Du culte dadieuxfétiches. Paris, 1760.
36 K. Marx. Das Kapital /, p. 85. 38 K. Marx, Das kapitalI, p. 85.
buJosa do m u n d o religioso. Aqui os p r o d u t o s da m e n t e h u m a n a parecem pro- ato de ver, a luz de uma coisa, do objeto exrpri^,- ^ c •
B R E
vidos de vida própria, figuras a u t ô n o m a s em relação consigo mesmas e c o m os UMA C O O,HO», . :
homens. Assim também no m u n d o da mercadoria os p r o d u t o s da m ã o h u m a - deveria consistir em que "a relação d e t e r m i n ^ , A > mercadoria
na. A isso eu dou o n o m e de fetichismo, que se cola aos p r o d u t o s d o trabalho
a partir do m o m e n t o em que eles são produzidos c o m o mercadoria e, p o r t a n - atenuaçao. D e um ado a projeção é evidenciada como atitude elementar uma
to, são inseparáveis da produção de mercadorias" 3 9 . Mas será possível separar na; de o u t r o , imediatamente separada em fisiologia "verdadeira" e metafísica
assim tão claramente cabeça e mão? A graça d o que foi d i t o acima era exata- fantasmagórica - exatamente segundo o exemplo dos cem táleres verdadeiros
mente que sem a cabeça que projeta sobre objetos físicos a f o r m a da possibili- e dos apenas imaginados, que Marx criticara de modo tão fulminante em seus
dade de troca, a mão não poderia produzir nem trocar u m a única mercadoria. anos de juventude. Mas f o r a a descoberta de que mesmo o fantasmagórico
E vice-versa: a "região nebulosa do m u n d o religioso" não é apenas um p r o d u t o é real, de que mesmo o metafísico tem poder físico. Por que agora o precipitado
da cabeça. Isso o jovem Marx já demonstrara convincentemente n u m a passagem recuo abaixo do nível do conceito de projeção então pressagiado por ele mesmo >
na qual discute a posição de K a n t e de Hegel diante da prova da existência de Por t e m o r de q u e o tema pudesse tornar-se mais teológico do que o desejado e
Deus. À conhecida objeção de K a n t segundo a qual cem táleres imaginados obrigasse à admissão de que o dinheiro / u m deus e não apenas como um deus;
não são ainda cem táleres reais, ele responde: a mercadoria, de fato um fetiche e não apenas como um?42.
O velho Moloch não dominava? O Apoio de Delfos não era um poder verdadeiro
na vida dos gregos? Aqui também a crítica de Kant nada significa. Quando alguém C o m p u l s ã o à repetição - Troca - Dinheiro
imagina possuir cem táleres, quando essa imaginação não é para ele uma qualquer,
subjetiva, quando ele acredita nela, os cem táleres imaginados têm para ele o mesmo
Apenas um retrocesso pode trazer claridade ao problema: retrocesso à origem
valor que cem táleres reais. Ele fará, por exemplo, dívidas sobre a sua imaginação, ele
sagrada d o d i n h e i r o e da mercadoria. Mas ela não se localiza em torno dos
agirá do mesmo modo pelo qual toda a humanidade faz dívidas sobre os seus deuses. [...]
séculos VIII ou VII a.C., quando os lídios cunharam as primeiras moedas, e sim
Será que um táler real tem existência em outro lugar que não na imaginação, mesmo
que seja uma imaginação geral, ou antes comunitária das pessoas? Leve papel-moeda
41 K . M a r x , Das Kapital 1, p. 86.
para um país onde não se conheça esse uso do papel, e todos irão rir da sua imagi- 42 T a m b é m o d e b a t e atual f o r m u l a ao largo desse problema como se não se tratasse dc um. Christoph Deuts-
nação subjetiva. Vá com seus deuses para um país onde outros deuses reinam, e lhe c h m a n n , p o r exemplo, q u e trouxe de volta a idéia d o fetiche da mercadoria para o debate sociológico com
m u i t o s r e s u l t a d o s esclarecedores (Die Verheissung des absoluten Reichtums — Zur religiõseti Naturdes
demonstrarão que você sofre de ilusões e abstrações'10.
Kapitalismus. F r a n k f u r t , 1999), não é, nesse ponto, nem um milímetro mais claro que Marx: "Sua tese era
[...] q u e o c u l t o religioso aos ídolos que o m u n d o pré-moderno cultivava foi substituído na sociedade
b u r g u e s a t ã o s o m e n t e p o r u m o u t r o : o econômico" (p. 65). C u l t o aos ídolos é religião, a diferença entre
A diferença entre Deus e dinheiro se t o r n a difusa. A m b o s são projeções, em c u l t o aos ídolos religioso e e c o n ô m i c o é algo c o m o a que exisce entre um círculo redondo e um grande.
J o c h e n H õ r i s c h i n v e n t o u o neologismo "ontossemiologia' como o mínimo denominador comum para
ambos tomam parte a cabeça e a mão. E principalmente: projetar não é apenas
aquilo q u e " i n ú m e r a s religiões, filosofias, teorias e cosmogonias expressam ou implicitamente" buscam:
fantasiar. O Marx maduro vai até mais longe no seu capítulo sobre o fetiche: " d e m o n s t r a r u m a correlação e n t r e ser e sentido ou criá-la de tal forma [...] que a pergunta sobre se essa
criação t a m b é m é dc f a t o intersubjetivamente válida nem mesmo se coloca" [Kopfoder Zahl. Poesie des
trata-se de um processo fisiológico elementar. "Assim, a impressão de luz de Geldes. F r a n k f u r t , 1996, p. 26). Sobre esse m í n i m o denominador, na conta do qual se p o d e c o l o c a [ q u a l 1 u e r
um objeto sobre o nervo óptico se apresenta não c o m o estímulo subjetivo d o p r e t e n s ã o de validade, repousa e n t ã o a grande tese: "A eucaristia, o dinheiro c os novos me.os elétron.cos
f o r m a m ( u m d e p o i s d o o u t r o e sobrepondo-se uns aos outros) a moldura ontossem.ológ.ca de nossa cul-
próprio nervo óptico, mas como forma concreta de um objeto fora d o olho." t u r a p r e t e n s a m e n c c cristã-ocidental-racional." (p. 26). C o m o os três "meios condutores ontossem.olog.cos
eles s ã o nivelados na vaga característica c o m u m de serem "de feto inevitáveis e produz,rem um m o d d o
Q u e r dizer: sem projeção não se p o d e nem m e s m o ver, que dirá c o n h e c e r ,
de t e c i d o s o c i o c u l t u r a l " "que prove todas as ocorrências particulares com um fundamento °nentador
pensar, interpretar. Tanto mais discutível, q u a n d o Marx prossegue: "Mas no ( p . 27). Para a d i f e r e n ç a específica entre o caráter ferichísta da mercadoria e o serv.ço ^ ^ do^orpo
e s a n g u e d e C r i s t o segue-se que: "a ontossemiologia funcional do dinhe.ro toma
gia s u b s t a n c i a l d a eucaristia" ( p . 31). C o m o se a eucaristia não fosse també,n a l « n ente tun onal em
39 Idem, op. cit., pp. 86 e segs.
40 K. Marx, /Inmerkungen zur Doktordisscrtation, MF.W, v o l u m e c o m p l e m e n t a r , I ' p a r t e . Berlim, 1974, relação ao seu fim, a c o m u n i d a d e de c u l t o : c o m o se o pão se tornasse de fato ^
m o m e n t o d e ser c o m i d o , é t o m a d o pelo c o r p o de Cristo. Não d e v e r a então também o d,nhc.ro
p. 371.
tancial" e n q u a n t o m o e d a corrente? "Ontossemiologia" é um ferro lenhoso.
muito antes. A cunhagem de moedas é apenas o ú l t i m o ato de um longo pro-
t fr -^sssssss
cesso que não se c o m p r e e n d e se não se tem antes clareza de u m fato: a troca é
muito mais antiga que o mercado. Sua origem foi h á m u i t o tema deste livro.
Mas se é preciso tornar claro o m o d o c o m o a pré-história e a alta tecnologia
da sensação se e n g r e n a m , ela tem de ser n o v a m e n t e t o m a d a sob u m o u t r o
duos da d e s p r o p o r ç ã o . Q u a n t o mais insuportável se torna p
ponto de vista. Essa origem é o sacrifício. A compulsão traumática à repetição,
oferecer seus semelhantes em sacrifício, maior a urgência d L l ^ Z
da qual surgiu um dia a prática humana de sacrifícios, foi pormenorizadamente
dádiva p o r o u t r a mais suportável, «mais equivalente". A compulsão pela rep
descrita no capítulo anterior. Reproduzir o pavoroso para justamente com isso
tiçao começa a se tornar manifesta como compulsão à substituição*
torná-lo suportável, c o n h e c i d o e m e s m o familiar, foi a legítima defesa fisio-
H á u m a antiga palavra grega que, como nenhuma outra, pode esclarecer
lógica de feixes de nervos que de o u t r o m o d o não saberiam o n d e correr para
c o n t u n d e n t e m e n t e esse processo: hekatombe" Ela significa algo como "cem
debelar o excesso repentino de excitação do c h o q u e t r a u m á t i c o e c o n s t r u i r
bois" c está d o c u m e n t a d a como uma antiga medida sagrada de sacrifício Cla-
trilhos nervosos para sua descarga. Em suma, a base neurológica da compulsão
r a m e n t e cabia aos deuses em ocasiões especiais uma centena de bois; na antiga
à repetição é o anseio pela debelação de tensões: p o r proporções equilibradas
Atenas, p o r exemplo, no começo do ano. O primeiro mês do ano chamava-te
de excitação. E aí já está contido, n o limite entre o mero reflexo e o incipiente
ali hekatombaion - "o mês em que uma hecatombe é oferecida". Este era o mês
alvorecer do pensamento, o motivo f u n d a m e n t a l da equivalência: a obsessão
em q u e Atenas celebrava anualmente sua festa de fundação, quando ela forta-
de que a repetição compulsiva é igual ao pavor que ela repete, e p o r t a n t o equi-
lecia p o r meio de conjuração sua própria boa fundação e sua pacífica solidez e,
valente a ele, p o d e n d o representá-lo, substituí-lo, ressarci-lo. Por m u i t o t e m p o
c o n s e q u e n t e m e n t e , considerava conveniente empregar a maior dose de tran-
essa obsessão p ô d e ser sentida apenas de m o d o a b a f a d o - t o r t u r a n t e e apenas
qüilizantes divinos: justamente a centena de bois. Na llíada uma hecatombe é
praticada de m o d o reflexivo, antes que, a fim de suavizar seu p r ó p r i o t o r m e n -
oferecida em diferentes ocasiões, sempre quando o perigo é grande e o humor
to, ela começasse a se dar um destinatário, um objetivo, um sentido. E aqui
dos deuses, ruim. Mas ela não aparece apenas como uma medida de sacrifício,
deve ter-se iniciado uma das proezas mentais do p r i m e i r o Homo sapiens. O
e sim t a m b é m c o m o equivalente para artefatos extremamente selecionados
desejo pelo equilíbrio da excitação foi voltado para fora: para o desejo de re-
c o m o , p o r exemplo, a armadura de ouro de Glauco ou as borlas de ouro do
lações naturais equilibradas. O pavor é objetivado c o m oforças pavorosas, essas
escudo de Atena. Q u a n d o elas são contadas às "centenas bovinas", isso soa como
forças são personificadas, com o que a repetição compulsiva adquire a aparên-
uma constante e veneranda medida antiga. Tanto mais estranho que nada mais
cia de uma dádiva a ser oferecida a essas forças a fim de q u e elas cessem de
exista que fosse valioso o bastante para ser medido por ela. É preciso dividi-la
apavorar — de "irar-se". U m a medida de emergência para o equilíbrio da ex-
em frações para que ao menos armaduras preciosas, lanças, tripés, tigelas ou
citação começa a representar a si mesmo c o m o m e d i d a de a p a z i g u a m e n t o e
m e s m o "uma m u l h e r " sejam medidas por tais frações, podendo valer 20, 12,
estabilização de todas as relações naturais — do "mundo". Sacrifício em paga
quatro ou ainda menos bois, mas nunca cem, para não talar dos utensílios diá-
de ser p o u p a d o : essa é a primeira forma manifesta do equivalente, a primeira
rios, p a r a os quais um boi já seria um valor grande demais. Isso indica, sem
equação explícita de troca. Ela não b r o t a d o desejo p o r este ou aquele prazer
dúvida, q u e a h e c a t o m b e é uma medida com a qual não mais se mede, uma
físico, e sim de uma pressão desproporcional d o s o f r i m e n t o . T o r n a r o insu-
m e d i d a arcaica, cuja função já não quer mais ser lembrada. E se não existissem
portável suportável, o incomensurável c o m e n s u r á v e l : esse é o seu m o t i v o .
Apenas que, com isso, ela não se livra da d e s p r o p o r ç ã o . O u será acaso p r o - 4 3 A história d a evolução da equivalência pode tampouco ser escrita aqui quanto, no capítulo anterior, a da
evolução da l i n g u a g e m . A p e n a s se pode reproduzir sua lógica específica, e se isso acontece preferenc.d-
porcional que a coletividade h u m a n a , a fim de ser p o u p a d a c o m o um t o d o , m e n t e p e l o e x e m p l o d o espaço mediterràneo-europeu, não é por estreitezaeuroccntrK. es-n po ,uc
sacrifique uma parte de si mesma? Um deus sairia prejudicado ao p o u p a r u m a r e f e r i d a lógica t o m o u u m a f o r m a especialmente significativa e não por acaso começou ali a ascensao
mundial do dinheiro. , , . ,
t o d o e receber por isso apenas u m a parte desse t o d o . Mas u m a coletividade
4 4 S o b r e o q u e v e m a seguir, cf. B. Laum, Heilips Geld - Eme bistorische
humana não pode dar mais que uma parte de si; se oferecesse o todo, nada mais Ursprurig des Geldes. T ú b i n g e n , .924. Um estudo cuja i m p o r t à n a a para o problema da e q u n a l e n c a
m o d o a l g u m está esgotada.
em antigos documentos sobejos indícios da permutabilidade d o ser h u m a n o de utensílio, t o m a r um formato manuseável e receber Dor m,- ^
por um animal - Isaac e Ifigênia são apenas os casos mais p r o e m i n e n t e s se de c u n h a g e m a i m a g e m i m p r e s s a d a q u i l o
náo houvesse sempre aqui e ali menções dispersas do uso de resgatar u m pri- lente, e as moedas estão prontas. l^cequiva-
sioneiro ou um condenado à morte p o r uma quantia de bois, se não existisse,
A t é chegar a esse p o n t o transcorreram séculos. Quando a circulação de
enfim, entre as reparações combinadas entre clãs e famílias para os danos cau-
m o e d a s começa, a troca ,4 é arcaica. Apenas sua liberação do culto sacnfic.
sados pela contraparte, a quantia de cem bois para u m indivíduo m o r t o c o m o
c o m p a r a t i v a m e n t e ainda engatinha. Fica claro que o processo de equivalên-
45
uma verba quase fixa , nós apenas p o d e r í a m o s adivinhar o que h e c a t o m b e
cia q u e se iniciou com a substituição dos sacrifícios humanos é apenas um
significava originalmente: sacrificar cem bois é o mesmo que sacrificar um ser
o u t r o aspecto do processo de profanação que se investigou no capítulo ante-
humano, e "o mesmo que" significa, nesse caso, "melhor que". O sacrifício de
rior. Revelou-se como dado irônico desse processo o fato de ele ter-se iniciado
animais libera da pressão do sofrimento: do sacrifício h u m a n o . Ele é, p o r t a n t o ,
n o coraçao d o sagrado, que a própria constituição do sagrado já brota de um
mais adequado para seres humanos, "mais equivalente", e n q u a n t o p a r a os deu-
primeiro m o v i m e n t o de profanação. Reavaliar o pavor, dar-lhe o beneplácito
ses significa ser alimentado com um sucedâneo, motivo pelo qual não é acon-
p o r me,o de sua repetição, fazer dele algo sagrado já é um primeiro ainda que
selhável sublinhar especialmente a que a hecatombe é equivalente.
imperceptível passo de distanciamento. Ou, do ponto de vista da teoria da
46
Pode-se chamar a isso "astúcia" na troca sacrificai, quando se pensa t a m b é m troca: o pavor insuportável é substituído pelo equivalente de um mais supor-
que essa astúcia inicialmente partiu de uma legítima defesa plena de pavor e tável. E essa dinâmica de profanação ganha tanto mais impulso quanto mais
ainda náo tinha o aspecto de p a n t o m i m a de c o m e r c i a n t e m a l a n d r o . Só aos ela se distancia de sua origem e substitui a vítima humana por dádivas menos
poucos a permuta adquire esse aspecto — na m e d i d a em que a substituição d o dolorosas. Assim como é quase impossível determinar exatamente o ponto em
sacrifício h u m a n o é refinada, em que hecatombe não mais significa cem bois, que a debelação do desprazer se transforma em ganho de prazer, porque um já
mas tão somente "muitos", em que um boi se t o r n a substituível p o r um certo está c o n t i d o n o outro em estado de latência, também dificilmente se poderia
número de ovelhas ou cabras, o animal inteiro p o r uma p a r t e dele e p o r fim a indicar o p o n t o em que a profanação da troca sacrificai se torna tão profana
oferenda real, quer dizer, o abate de algo vivo, pela oferenda simbólica, a de- que uma outra forma de troca começa a se derivar da troca sacrificai. Mas esse
1
posição de algo inanimado, mas durável: preferencialmente metal' '. E apenas p o n t o existe e p o d e ser delimitado.
nessa fase da cultura, quando se chega a transformar a própria lança sacrificai
Para isso, porém, é necessário preencher certas condições históricas. É pre-
(em grego óbelos ou óbolos) em oferenda n o lugar d o a n i m a l que deveria ser
ciso ter a p r e n d i d o que o epítome do pavor natural, o sagrado, não é o único
48
abatido por ela , a própria tigela sacrificai no lugar da carne que deveria ser as-
parceiro de troca possível; que é possível assegurar-se por meio da troca contra
sada nela ou a reprodução em metal do animal no lugar do original vivo, apenas
formas menores, mas por isso mesmo mais palpáveis, de pavor natural. Quan-
aí se atingiu a forma primitiva daquilo que se t o r n o u corrente para nós c o m o
do hordas antropoides vagantes encontram umas às outras, cria-se justamente
49
dinheiro. O metal, em regra ouro ou prata , tem apenas de se livrar da f o r m a
a situação crítica que significa: guerra ou troca. O que não significa que se
48 Cf. B. Laum, Heiliges Geld, pp. 106 e segs. vezes e 1 / 3 mais valioso q u e a prara era tão disseminada na Antigüidade ^ ^ T ^ l ^ S Z
m o d e r n a : n ã o p o r q u e m o e d a s de o u r o fossem 13 vezes e 1/3 mais durave.s nlhancc o rab l,o S
49 Isso t a m b é m por motivos sagrados. O o u r o é s u p r a c u l t u r a l m e n t c , talvez c m t o d o lugar c m q u e ele exista, q u e as de p r a t a , e sim p o r q u e o curso anual do Sol abrange em si em torno de 13 cursos lunares. C f ,dem,
c o m p r e e n d i d o c o m o reflexo terrestre da luz d o Sol e a r m a z e n a d o r dc sua força divina. O m e s m o vale p a r a
op. cit., p p . 128 c segs.
troquem imediatamente raízes ou frutas por peles ou carne 5 0 . Antes, o que se D a troca dc refens como forma primeva da troca inter-humana deduz-se
troca é o que há de mais precioso, o que de o u t r o m o d o só se ofereceria aos t a m b é m a pratica da e x o g a m . a " Ela tinha de início um motivo muito ma
deuses: seres humanos. Entregam-se reféns uns aos outros a fim de se assegu- forte que o i n c o m o d o com o incesto e suas conseqüências degeneradoras ou
rarem uns contra os outros. Não sabemos quando e onde isso começou; n e n h u m a prevenção contra um crescimento exagerado da própria coletividade• neces-
antropólogo cultural o t e s t e m u n h o u . Mas, se é indemonstrável t a n t o neuro- sidade vital de proteção contra pavores ameaçadores. O "transplante" recípro
lógica q u a n t o p s i q u i c a m e n t e que a troca c o m e ç o u c o m o m e d i d a de defesa co só é bem-sucedido quando o órgão transplantado se integra ao metabolis-
contra o pavor, então dificilmente a f o r m a primitiva da troca i n t e r - h u m a n a m o d o o u t r o corpo, quer dizer, o refém, nos costumes sexuais da outra coleti-
terá sido outra coisa que não a troca de reféns. Reféns são pessoas destinadas à vidade. Mas, se a troca de reféns é tão transparente como forma primeva do
morte, mas elas são trocadas para que p e r m a n e ç a m vivas. Sua troca tem t o d a p a c t o de não agressão, da celebração de alianças e da paz, então de um golpe
a intensidade de um transplante m ú t u o : assim c o m o vocês p l a n t a m entre nós se t o r n a t a m b é m clara a lógica da troca de presentes {Potlatsch), cujo papel
um pedaço de vocês, nós também plantamos u m pedaço de nós entre vocês. O constitutivo para as primeiras e primitivas sociedades está já conclusivamente
refém que se introduz numa outra coletividade leva consigo as p r o p r i e d a d e s atestado 5 3 , mas para muitos economistas modernos ainda não é uma troca
de sua própria coletividade, em primeira linha suas e n t i d a d e s p r o t e t o r a s , e "verdadeira", pois eles sentem nela a falta de um interesse econômico palpável
estas ameaçam a coletividade hospedeira com uma terrível vingança, caso ela e n ã o p e r c e b e m que o início de toda economia é a economia das pulsões.
cause dano ao refém. É por conta da maior desconfiança q u e se entrega mu- C u l t o e aliança se interpenetram como verticais e horizontais. A troca, que
t u a m e n t e o que se tem de mais precioso; mas é ao m e s m o t e m p o a m e d i d a entre h o m e n s se t o r n a "horizontal", continua a troca "vertical" com os deuses
formadora de confiança par excellence. Ela parte do princípio de que o p r ó p r i o sob o u t r o s sinais. E, assim como no culto, pouco a pouco o sacrifício humano
se protege melhor contra o estranho inoculando em si mesmo, c o m o u m a va- é s u b s t i t u í d o , t a m b é m na aliança os reféns. Em lugar de pessoa por pessoa
cina, uma pequena dose do estranho. E não se p o d e m fazer reféns sem receber
com eles uma dose de suas entidades protetoras. Por isso é impensável que a Q u e esse c o r t e j o nas passagens mencionadas já aconteça apenas de forma mistificada (um torno fumegan-
tc e u m a espada a r d e n t e passam entre os pedaços de carne), ou já nem mesmo ocorra, se deve ao fato de
troca de reféns pudesse ocorrer sem a celebração solene de u m a aliança, quer que a aliança, a f o r m a primeva da troca humana, aqui já se encontrava bastante exagerada: transposta para
dizer, sem que ambos os partidos invocassem juntos seus deuses c o m o teste- a relação e n t r e D e u s e os h o m e n s — dois parceiros não exatamente iguais. Em parte alguma a idéia dc
aliança foi mais e n f a t i c a m e n t e preservada que no Velho Testamento, mas isso à custa de sua intenção
munhas e lhes oferecessem juntos um sacrifício — de resto u m sacrifício de f u n d a m e n t a l simétrica.
animais, já que o p o n t o central da aliança é, afinal, a preservação de pessoas. 52 M a s não, a o c o n t r á r i o , a troca da exogamia. como se a proibição do incesto, ou seja, da imposição de
b u s c a r m u l h e r e s d e o u t r o clã, tivesse levado à invenção de um equivalente primeiro: o pagamento da
Reféns são apenas p o t e n c i a l m e n t e vítimas h u m a n a s , e a aliança é celebrada noiva. O n d e se t o r n o u c o s t u m e que as mulheres mudem para uma outra coletividade mediante o paga-
para que eles permaneçam potenciais. O n d e isso se confirma substitutos têm m e n t o d e u m preço, a troca já se encontra bastante adiantada, c a compra da noiva é tudo menos sua forma
p r i m e v a . C o n f u n d i - l o com isso é o constante ponto cego no trabalho de Horst Kurnitzky [Tnebstruktur
de tomar o lugar das pessoas poupadas — em primeiro lugar, animais. Sem já des Geldes. Berlim, 1974; DerheiligeMarkt. Frankfurt, 1994). afora isso muito interessante e que mereceu
ter uma intuição da permutabilidade entre pessoas e animais dificilmente se até a g o r a m u i t o p o u c a atenção. Ele considera a renúncia sexual de homens e mulheres o motivo funda-
m e n t a l da troca, d o d i n h e i r o e por fim. da economia capitalista - e com isso continua na corrente da ta-
poderia celebrar uma aliança. Por outro lado, o ato de buscar em t o r n o de si a bula das h o r d a s primitivas dc Freud, que sugere exatamente essa renúncia como o dado fundamental
celebração de alianças deveria ter dado um impulso enérgico à transferência c u l t u r a h u m a n a . Ver o capítulo 3 deste volume.
5 3 Por exemplo, ver M . Mauss, Die Gabe. Trad. alemã. Frankfurt, 1968[1950] um clássico da
do sacrifício h u m a n o para o de animais 5 1 . a f o r m a l i s a n t i g a da troca. " D c início não são indivíduos, e
m u t u a m e n t e , q u e trocam e contratam [...]: clãs, tribos, famílias [ De outro lado o qu é
exclusivamente bens c riquezas, pertences móveis ou imóveis, objetos ^
de t u d o cortesias, banquetes, rituais, serviços
50 É mais ou menos assim que economistas c o s t u m a m imaginar o início nas trocas i n t e r - h u m a n a s . T a m b é m fim esses serviços e contrasserviços se consumam cm uma forma an es QU úbli_
Marx, nesse p o n t o , era apenas economista. O que ele c h a m a de " f o r m a simples d e valor" (Das Kapiial /, dádivas, e m b o r a n o f u n d o eles sejam r i c a m e n t e S d e garante J toda
pp. 63 e segs.) não é de m o d o algum a f o r m a e l e m e n t a r da troca, e sim uma f o r m a tardia já derivada da ca" ( p p . 21 e segs.). Esse "sistema dos serv.ços totais (p ^ Z l * » ™ relação equilibrada com sua
troca sacrificai. a sua existência, c não apenas com q u a l q u e r d c i x , Atrever a função primi-
51 N o A n t i g o Testamento, "celebrar u m a aliança" significa, literalmente, "cortar uma aliança". A n i m a i s sa- vizinhança, é já de fato em alto grau desenvolvido e " C a s o contrário, não sabe-
crificados são "cortados", cm geral longitudinalmente. As partes separadas são dispostas d c m o d o a formarem tiva de p r o t e ç ã o da troca. E apenas a partir dela se deduz a lóg.ca desse
uma ruazinha que os que celebram a aliança devem percorrer juntos (Gênesis 15, 10 e 18; Jeremias 34, 18). mos o que é Potlatsch.
e n c r a animal por animal, armadura por armadura, arma por arma, p e n h o r por proveito. D e início apenas uma única "demanda" partia dos locais de culto- a
penhor — sem que a troca se afaste seriamente do â m b i t o cultuai da assimila- d e m a n d a p o r dàdrvas sacnficais dignas. Mas sobte a dignidade eta o clero ou
ção do pavor. H á algo, porém, que ela nunca deixa passar em branco: o equi- decidia. Ele era o entreposto central das dádivas.
valente. Na troca sacrificai ele era p u r a m e n t e imaginado, a contraparte divina Supraculturalmente faz parte do estabelecimento da autoridade clerical que
nunca verdadeiramente visível. Agora ele entra no solo da realidade e se torna ela responda pelo comércio especializado com os deuses, especialmente pela
tão inequívoco como nunca outra vez na história. A equivalência dos objetos equivalente consumação do sacrifício, e deseje ser por isso especialmente re-
trocados é averiguável, pois eles são da mesma espécie, quer dizer, exatamente munerada, por m e n o s que se possa determinar quando e onde esse desejo pri-
o que do p o n t o de vista da f u t u r a troca p r o f a n a de mercadorias é completa- meiramente brotou - a cesura que ele representa no processo de profanação
mente absurdo. Pois a graça aí é justamente trocar coisas diferentes: dar o q u e dificilmente p o d e ser exagerada. Onde da dádiva aos deuses se ramifica uma
se tem em excesso para receber o que se deseja, mas não pele por pele, cereal dádiva aos sacerdotes como pagamento por essa oferenda especializada de sa-
por cereal etc. crifícios já não se encontra mais a pura assimilação do pavor, ali espreita, do
A lógica compulsória da substituição que leva da troca de reféns aopotlatsch apaziguamento temeroso dos deuses, o desejo de fruição física, de privilégios,
não leva de maneira nenhuma do mesmo m o d o do potlatsch ao comércio pro- de p o d e r . O c o m b a t e ao desprazer se transformou em ganho manifesto de
fano, da troca dos iguais à troca dos diferentes. A última deveria ter sido antes prazer. Sacerdotes que guardam para si um pedaço do animal a ser oferecido
um subproduto não intencional da primeira. Q u a n d o se torna costume supe- em sacrifício começam a negociar pelas costas dos deuses. Eles não têm pejo
rar-se m u t u a m e n t e na troca de presentes para não se ficar devedor da contra- de deixar florescer n o interior do culto uma economia paralela. Se há um lugar
parte, o afastamento do equivalente exato dificilmente p o d e ser evitado no o n d e se p o d e localizar a origem da pantomima de comerciante malandro, esse
decorrer do tempo. Mas nessa fase o potlatsch já está altamente desenvolvido. lugar é aqui"". Mas, n o momento em que uma tal pantomima começa a deitar
Q u a n d o e como exatamente a troca dos diferentes se originou dele está imerso as mãos em t o r n o de si, já se preparou o próximo passo da profanação. Pois
em sombras. Algo, porém, é certo: muita coisa significativa tinha de acontecer agora t a m b é m há pessoas interessadas em substituir a oferenda de seres vivos
até que a troca esporádica, casual, de diferentes se tornasse u m a f o r m a própria pela de metal. Animais abatidos estragam facilmente. Mesmo o sacerdote mais
de comércio: o mercado. Para isso, em primeiro lugar, era necessário q u e hou- comilão só p o d e aproveitar uma certa quantidade deles. Dádivas em ouro e
vesse excedentes. Era preciso aprender, p o r exemplo, a se aproveitar dos des- prata são, ao contrário, duráveis. Podem ser acumuladas ilimitadamente sob a
pojos de guerra, em lugar de oferecê-los aos deuses propiciadores da vitória: forma de figuras sagradas, lanças ou tigelas. Mais ainda: se um boi ou cordeiro
inimigos como força de trabalho, animais c o m o alimento, armas para f u t u r a s é confiado ao sacerdote como dádiva, ele queima uma parte e guarda a outra
expedições de pilhagem. Também um sistema de trabalho que produzia mais para seu uso próprio. Se o que lhe é confiado é metal, ele tanto pode otertar o
alimentos do que a coletividade consumia ainda estava para ser criado. Além t o d o c o m o deixá-lo ficar. Basta depositá-lo no templo. O local sagrado se tor-
disso, tribos nômades tinham de se tornar sedentárias — ramificadas em u m a na, assim, local da formação de um tesouro 55 , de uma "acumulação primitiva",
aliança de tribos, mas reunidas em torno de um centro de culto c o m u m : a sede que merece m u i t o mais esse nome que aquele grande processo de formação do
de uma autoridade sacerdotal geralmente reconhecida. A palavra grega agora,
que traduzimos por "mercado", significava originariamente apenas "lugar de
5 4 N o espaço m e d i t e r r â n e o esse c o m p o r t a m e n t o foi vivido possivelmente como
reuniões": locais centrais de culto. Nas sociedades agrárias d o espaço mediter- E m t o d o caso se e n c o n t r a em H e s í o d o uma genial indicação de tempo m.tológca^ Quando os deuses
râneo e do Oriente Próximo ela se tornou um p o n t o de cristalização da cultu- os m o r t a i s se s e p a r a r a m ' . Exatamente nesse p o n t o ele faz Prometeu entrar ^ ^ l ^ Z o eSma
boi": " D e u m lado. ele coloca a carne e as gordas entranhas em u n - pele em l ^ n d o - on o s
ra urbana: talvez propriamente o epítome de centro da cidade. Ali se reúnem go d o t o u r o ; de o u t r o , ele coloca os ossos
c o m g o r d u r a brilhante» "para iludir os sentidos , parte.
as tribos e clãs isolados para o sacrifício c o m u m . E para ali eles levam não ape-
s e g u n d o M a r x "o mais d i s t i n t o s a n t o c m á r t i r d o calcndáno hloso l d o ja _
nas a oferenda sacrificai prevista, mas pouco a pouco t a m b é m certos exceden- Berlim, 1974, p. 263, volume complementar), é, segundo Hes.odo, antes de ma,s 1
c e r d o t c q u e negocia pelas costas dos deuses.
tes. Não que se arrastasse para lá t u d o quanto se pudesse passar nos cobres com
55 B. L a u m , Heiliges Geld., pp. 109 c segs.
capital no início da m o d e r n i d a d e ao qual Marx deu esse nome 5 6 . Pois a graça tcrior d a casca de u m a árvore algumas partes se desprendem, aqui também
desse tesouro não é a de repousar apenas c o m o reserva para o caso de necessi- partes d o tesouro do templo se desprendiam furtivamente, contra um paga-
dade e sim a de constantemente se multiplicar de m o d o p r o f a n o cm virtude de m e n t o p r o f a n o , da circunscrição dc, sagrado para retornar a ele como dádiva
sua força sagrada. C o m o p o d e ser? M u i t o simplesmente: desobrigam-se, aque- sacrificai. C o m isso, porém, abria-se uma porta decisiva na fronteira nevrálgica
les que vêm aos locais de culto, de trazer suas próprias dádivas. Antes sc coloca entre a esfera sagrada e a profana e sc prenunciava uma forma de troca inau-
à disposição deles — mediante pagamento, é claro — u m a peça digna d o te- d i t a m e n t e p r e n h e de futuro. Faltava apenas compreender que o tesouro do
souro d o templo. D e um p o n t o de vista teológico: subtrai-se essa peça dos templo era copiávcl, que também fora dc sua circunscrição se podia acumular
deuses para que ela possa ser de novo o f e r t a d a a eles. D e u m p o n t o de vista metal. Em s u m a : era preciso imitar lá fora o que os sacerdotes tinham antes
econômico: retira-se por um m o m e n t o a peça d o tesouro para que ela possa p r a t i c a d o lá d e n t r o . Pois cies próprios já eram negociantes. Os negociantes
voltar a ele imediatamente e multiplicada — para ser trocada pelo atalho mais profanos apenas profanaram uma prática sacerdotal. Eles fazem explicitamente
curto por algum bem profano pelo qual o clero tenha desejo. Mas aqui é per- do metal aquilo que no tesouro do templo era apenas, implicitamente, capital.
ceptível um p o n t o no qual a troca de objetos diferentes cessa definitivamente Capital c t e s o u r o d o templo profanado. Ele é, como o tesouro, trocado por
de ser apenas esporádica e casual. Ela ganha um m é t o d o . J u s t a m e n t e c o m o c o n t a dc sua f u t u r a acumulação. Utensílios são adquiridos em troca de metal,
m o t o r da multiplicação d o tesouro d o t e m p l o ela c o m e ç a a desenvolver seu para serem vendidos em troca de mais metal. Essa circulação profana de metal
capricho profano. c utensílios constitui o mercado. Ele sc destaca da troca dc oferendas — e com
A troca p r o f a n a p o d e ter t i d o seus c o m e ç o s e s p o r á d i c o s a r e b o q u e d o isso, n o entanto, não cessa dc se alimentar dela. Justamente a compulsão arcai-
potlatsch, às margens da existência comunitária. Não o sabemos. Mas o merca- ca para a unanimidade, que fazia com que coletividades humanas originalmente
do como instituição sólida, por sua vez, se forma n o centro, ali o n d e sc imagi- se lançassem sobre a vítima eleita, sc torna o anjo da guarda dessa vítima. Essa
na estar a ferida sagrada d a f u n d a ç ã o ou o eixo sagrado em t o r n o d o qual o c o m p u l s ã o tem um avesso humano. Nos locais sagrados não é permitido por
m u n d o gira. Seu surgimento, porém, apresenta uma estrutura sistemática que preço a l g u m erguer a mão contra nada que não seja a vítima. E exatamente
já encontramos uma vez em outro contexto. Assim c o m o o c o r p o dolorido gira p o r isso o m e r c a d o começa à sombra protetora do santuário. Ele precisa da
em torno do trauma, o culto, em t o r n o da oferenda, a linguagem, em t o r n o d o garantia de que aqui as armas se calam, que de fato se troca e não se rouba. A
gemido de pavor, assim o m e r c a d o gira em t o r n o da "acumulação original" palavra grega para troca, katallagé, significa não apenas dar e receber, c sim
do tesouro do templo. O mercado é um sedimento d o culto: por assim dizer, t a m b é m compensação pacífica, reconciliação. Ela está muito próxima do he-
sua casca de proteção "calcinada". N o metal utilizado c o m o meio de pagamen- braico berit (aliança). Aí se abre a perspectiva de uma troca não compulsória
to essa casca sc torna palpável, representa, porém, u m sacrifício h u m a n o con- de bens, de costumes, de habilidades e de idéias. E a agora tem no espaço do
gelado, enrijecido, neutralizado — uma couraça q u e p r o t e g e t a n t o contra a mediterrâneo, especialmente nas cidades gregas, algo dessa atmosfera de alian-
proximidade arcaica, devoradorade homens, do sagrado, c o m o t a m b é m inicia ça, da utopia dc um comércio pacificado.
sua vida própria em defesa do sagrado. E, dc fato, essa vida própria começa a se
movimentar no próprio tesouro d o templo. Em sua q u a l i d a d e de "casca", o Aqui, diante dos navios, rodeados de templos, edifícios públicos, monumentos,
lojas e casas de câmbio, tantos deles para quantos pudesse haver lugar, o grego sc
mercado provavelmente envolvia e adornava a oferenda de seres vivos q u e con-
dedicava ao w m m t í n . aquela atividade que para os nórdicos náo pode ser traduzida
tinuava a ser realizada no interior d o templo. Mas assim c o m o da camada ex-
por nenhuma palavra. Os dicionários dizem: "comerciar no mercado, comprar ^
cursar, aconselhar etc.", mas náo podem traduzir o agrupamento e a perambulaçao
56 Cf. K. M a r x , Das Kapital I, p p . 741 e segs. O p r ó p r i o M a r x sabe disso: " E m t o d o s os p o v o s a n t i g o s o
acúmulo dc o u r o c prata aparccc originalmente c o m o privilégio clcrical e real." " O t e s o u r o d o Estado c o m o feitos da mistura de negócio, conversa e ócio feliz5 .
f u n d o de reserva e o t e m p l o são os primeiros bancos o n d e essas coisas sagradas são conservadas. A a c u m u -
lação e o a r m a z e n a m e n t o [ a l c a n ç a m ] sua ú l t i m a evolução n o s b a n c o s m o d e r n o s : m a s a q u i c o m u m a
d e t e r m i n a ç ã o mais desenvolvida" ( K . Marx, Grundrisseder Kritik der Politischen Ofonomie. Berlim, 1974,
p. 141). E esta já não é mais "primitiva". 57 J. B u r c k h a r d t , Grieschische Kultiirgcschicbte. Munique. 1977. v o l I. p.
ele, de o u t r o lado se torna aquilo que o sagrado era anteriormente: instância
Mas essas diferentes atividades só p o d i a m combinar-se de m a n e i r a tão
social,zadora. Metaforicamente falando: torna-se ele próprio o ponto central
despreocupada p o r q u e elas não cessavam de se desenrolar em tomo daqueles
que até então envolvia como casca. O que é qualitativamente novo nesse pon
santuários dos quais elas se t i n h a m desprendido, mas em cuja s o m b r a elas,
t0 central: ele é sem lugar, ubíquo, exatamente como no mundo que se revelou
todavia, continuavam a se abrigar.
a G i o r d a n o B r u n o como universo infinito, não há mais um ponto central - e
por isso está em toda parte 58 . O mercado se adapta à cosmologia de Bruno59.
Ele se volatiliza em um eixo mundial que não se pode mais localizar fixamen-
O point d'bonneur da troca
te em parte alguma e, não obstante, está em toda parte onde uma equação de
troca é realizada: " O n d e dois ou três se reunirem em meu nome, eu estarei
Até hoje a aura d o mercado não se dissipou c o m p l e t a m e n t e . Visitantes dc
entre eles" 60 .
cidades antigas sentem-se atraídos magneticamente para a praça d o mercado.
Esta é exatamente a singular inversão levada a cabo pelo capitalismo mo-
O que a faz encher-se de turistas é a saudade do centro u r b a n o perdido. T a n t o
derno: a inversão d o m u n d o que ele iniciou. Seu passo em direção à completa
mais surpreendente o longo tempo durante o qual, supraculturalmente, a pra-
profanidade é u m passo da ressacralização. O capital comercial que circundava o
ça do mercado foi esse centro. Entre a Atenas de Péricles e a Florença dos
santuário era um meio de troca completamente profano que circulava segundo
Médicis há uma distância de dois milênios. D u r a n t e esse t e m p o quase t u d o se
suas próprias leis: a u t ô n o m o em contraposição à troca sacrificai sagrada. Mas
modificou: o nível econômico, técnico e cultural, a estrutura social, o culto.
justamente em contraposição a ela. Sua profanidade se define por meio da delimi-
Mas m u i t o p o u c o se modificou o papel da praça d o mercado. T a m b é m nas
tação d o sagrado — mas com isso também em relação ao sagrado —, na qual a
cidades renascentistas a vida e a atividade u r b a n a a c o n t e c e m n o m e r c a d o :
originalidade e a autoridade do sagrado permanecem nolens volens pressupostas.
"rodeadas de templos, edifícios públicos, monumentos, lojas e casas de câmbio",
O passo d o capital comercial para o moderno capitalismo é o passo de uma
apenas que agora os templos se chamam igrejas; os edifícios públicos, câmaras
delimitação de u m mercado profano autônomo para a abolição de seus limites.
municipais e as lojas tendem a se tornar palácios. A estrutura f u n d a m e n t a l do
O surgimento da possibilidade de compra de terra e solo, e com isso também
mercado manteve uma constância digna de nota. Ela chega até a modernidade.
a da força de trabalho que neles atua foi o rompimento de dique do século
Não por acaso a dupla camada de sentidos da palavra grega agora, original-
XVI que permitiu que o dinheiro acumulado, que até então apenas regulava a
mente local de culto, só depois praça do mercado, e n c o n t r o u sua exata conti-
troca de utensílios, se transformasse em um poder que se alastrou para todo o
nuação no latim missa. Missa (messe): assim se chama de início o serviço di-
processo de produção de bens materiais, de modo que a força de trabalho não
vino cristão. O mercado que o rodeia, que, nas datas solenes do ano, c o m o o
pode ser empregada de outro modo que não em sua qualidade de mercadoria
solstício de inverno e o de verão ou o equinócio da primavera e o d o o u t o n o ,
vendida, os instrumentos com os quais ela trabalha já são mercadorias e os pro-
cresce e se torna mercado anual, não foi d u r a n t e séculos senão uma "casca"
dutos de sua atividade já vêm ao mundo como mercadoria: como produzidos
profana em torno da celebração da eucaristia, antes q u e o comércio interna-
para o mercado. Mas com isso "os tremores sagrados do entusiasmo religioso
cional, que desde o século XIV pouco a pouco se espalhou pela Europa Central,
[...] são afogados na água gelada do cálculo egoísta". Apenas, essa profanaçao
transformasse os mercados anuais em espetáculos de massa. Agora eles é que
d o sagrado é ao mesmo tempo o prelúdio de uma nova consagraçao por meio
são chamados de "messe" ("feira"). O nome se transfere do núcleo sagrado para
da qual a mercadoria profana é novamente carregada justamente com aquela
a "casca" profana. Aparentemente apenas um p e q u e n o deslocamento dc sig-
sacralidade arcaica da qual ela parecia tão emancipada.
nificado. Apenas pouco a pouco é que se manifesta o q u a n t o ele é i m p o r t a n t e .
O mercado anual, ao tomar o nome de "messe", faz algo que n e n h u m mercado
antes fez: ele se transforma numa feira que dura o ano todo, ele se desliga d o 58 Cf. G i o r d a n o B r u n o , Zwiegesprãcbe vom uncndlicbcn Ali und dc» f f i t o * . „
59 A d c B r u n o é, dc rcsro. apenas a f o r m a primitiva da cartes.ana; uma r „ P
santuário, se torna literalmente absoluto e isso tem dois significados: de um
m i r a d a , é u m universo infinito, desprovido de centro.
lado ele se torna completamente profano. J u s t a m e n t e por causa disso é q u e 60 Mateus 18,20.
Ser mercadoria significa possuir valor de troca. O valor de troca começa sua ccr Cd e
™ â d a
^ menores coisas. Claro que ser vendido não signi-
história ali o n d e pela primeira vez algo foi considerado d i g n o de ser trocado: fica ser r e d i m i d o ou salvo, mas salva de ser deixado ficar e por isso continua
onde pessoas foram sacrificadas c o m o p a g a m e n t o pelo favor divino. A d q u i r i r efetivamente associado à salvação que não é. É salvação, mas sob a forma de seu
valor de troca e ser consagrado eram originalmente a m e s m a coisa, e o valor dc p r ó p r i o sucedâneo: como sombra de si mesma. De onde se esclarece contun-
troca era o mais alto valor: a vida h u m a n a . N ã o a entregavam p o r q u e possuís- d e n t e m e n t e c o m o o caráter de fetiche deve ser entendido: a mercadoria é feti-
sem um excedente dela, mas a arrancavam compulsoriamente d o coração. Q u e che na m e d i d a em q u e o mercado no qual ela é oferecida é realmente uma
seres humanos sejam insubstituíveis não era de início u m a defesa de sua into- instância p r o d u t o r a de sentido, salvadora; e ela é apenas como um fetiche na
cabilidade e de seu desenvolvimento individual, e sim o f u n d a m e n t o d o sacri- medida em que o mercado é apenas como um salvador, a saber, seu mísero suce-
fício h u m a n o . E vice-versa: sua substitutibilidade significava inicialmente a dâneo, sua s o m b r a vazia de sangue. Na sociedade produtora de mercadorias, a
salvação do sacrifício h u m a n o . A profanação t i n h a o sentido h u m a n o de asse- mercadoria tem caráter de fetiche tanto em sentido traduzido quanto em sen-
gurar uma esfera da vida poupada do ataque d o sagrado, e podia considerar-se tido direto, sem que se possa dizer que um sentido seja o verdadeiro e o outro,
poupado o que se tornara disponível, calculável. O desenvolvimento de um o que atua paralelamente. Antes, ambos coincidem e dão ao fetiche da merca-
equivalente geral, do dinheiro, prestou de início um serviço inestimável para doria o status ambivalente de uma metáfora real ou metáfora de si mesmo. E
o estabelecimento de um â m b i t o assim protegido: possibilitou uma oferenda justamente aí reside tanto seu poder quanto também sua impalpabilidade.
recíproca entre pessoas que não custa n e n h u m sangue, que serve à vantagem Evidenciar essa ambivalência é imprescindível. Numa época em que lojas e
mútua e está sob o primado do prazer e não d o pavor. N ã o se precisa mais ar- bancos se t o r n a m templos das global cities, as vitrines, altares e os arquitetos,
rancar, cheio de temor, algo do coração para impedir algo ainda mais temível, cada vez mais semelhantes a sacerdotes 61 , é uma inadvertência capital ignorar
mas pode-se entregar algo prescindível para receber em troca o que se deseja. E a teoria marxista do caráter de fetiche da mercadoria. Deve-se antes torná-la
só sobre essa base é que a atribuição de valor se p o d e p r o f a n a r e completar sua mais forte e clara do que é no próprio Marx — o que só é possível porque ela não
mudança de significado, que marcou época: de ligação libidinosa para taxação se integra de m o d o algum sem fraturas ao conceito geral da crítica da economia
sóbria. Só agora pode começar a busca de uma m e d i d a de valor profana, obje- política c o m o M a r x sugeriu. Enquanto a luta em torno de Marx constituía
tiva, em relação à qual as coisas trocadas são iguais. Em suma, ser trocável p o r troca de socos entre os inimigos e defensores desse conceito geral, o olhar não
dinheiro significa inicialmente adquirir a forma de mercadoria profana, ter-se estava livre para os decisivos pontos de fratura. Mas eles são visíveis à luz do
tornado alheio à troca sacrificai sagrada, ter escapado ao c u l t o fetichista. O dia. C o m o se sabe, passa por ser o maior dos artifícios de Marx o fato de ele ter
chiste da mercadoria profana a qual n o r m a l m e n t e se tem em m e n t e q u a n d o derivado "o m o d o de produção capitalista e as relações de produção e comércio
nós falamos em troca é que ela não tem em si, ou seja, c o m o simples encarnação a ele correspondentes" 6 2 de seu embrião: da mercadoria. Da mercadoria pro-
de algo que a faça digna de troca, o caráter de fetiche, e sim q u e ela só adquire fana, é claro. A sua longa pré-história sagrada não conta. A forma tardia profa-
esse caráter justamente ao entrar num mercado cujos limites foram abolidos, na é t o m a d a irrefletidamente como a forma primeva da mercadoria a troca,
um mercado que cessa de ser casca do sagrado e, nesse sentido, absoluto, com- c o m o ação genuinamente profana - como uma equiparação sóbria de coisas
naturais qualitativamente diferentes que, descontadas as suas primeiras tatean-
pletamente profano; m o d e r n a m e n t e falando, a mercadoria se t r a n s f o r m a de
tes tentativas, devem ter seguido desde o início um princípio claro: a compara-
subsistema em sistema por excelência — e justamente com esse e n o r m e passo
ção das quantidades de trabalho. Essa tese se deve a um postulado, e precisa-
para frente inicia furtivamente aquele m o v i m e n t o para trás que realiza o fato
daquele "retorno ao fundamento". Exatamente isso é a inversão d o m u n d o : n o
m o m e n t o em que o mercado começa a se tornar absoluto, seu mecanismo pro-
fano de seleção se eleva a uma instância de eleição e rejeição, do destino, da 61 " ' Q u e m m a i s a i n d a oferece orientação, o n d e ficamos nôs
d o u t o r H e n n (o a r q u i t e t o de Wolf sburg. a c.dade da \ W )• * g as c r j a d o r a s d e ic,u,do do
produção de sentido. Todos sabem o quanto esse sentido é miserável, mas todos
ideologias p e r d e r a m seu poder. O q u e P- 38).
têm de percebê-lo como um sentido elementar por meio do qual sua vida ma- f u t u r o ' " ( H . R a u t e r b e r g . "Glaube, Liebe. Auspuft . DieZeU.
;
O a u t o r j o g a a q u i c o m a s palavras. I n d e n i z o , em alemão
6 3 Cl. I. Kant, Kritikderpraktiscben Vernunft, Livro 2, capítulo 2. P a r t e principal. V. pela d o r (causada)". D a í sua afirmação: "nenhuma dor pode ser compensada P
Ela já pressupõe u m espaço tão pacificado que nele se p o d e trocar sem perigo. certo que existem indicadores para a reparação, mas nenhuma medida objetiv
etiva.
Apenas no espaço protetor da circunscrição de um templo ou de u m a aliança
u m
< * " « « ) - *
ar
s i n a i d c
podem medrar aqueles cálculos de custos e benefícios que os economistas cha- de reparação (.Entschãdigung,I, mas ocorre com o ponto em que a reparação se
mam de atribuição de valor. torna dano, o acordo extorsão, o mesmo que com o ponto fronteiriço entre
O espaço pacificado é postulado em exato sentido k a n t i a n o : u m dever-ser prazer e desprazer: pode-se em todo caso delimitá-lo, mas nunca indicá-lo com
que é. De um lado ele é fato; se nele as armas não se calassem de fato, não se exatidão. Ele permanece objeto de um postulado - e no entanto, ou justamente
chegaria a n e n h u m a troca. De outro, ele é justamente apenas u m dever-ser. A por isso, o point d honneur de toda troca.
atividade mercadológica cotidiana o desmente a cada passo. N o espaço pacifi- N i n g u é m postulou a justiça nas trocas com tanta ênfase quanto Marx. Mas
cado regateia-se, logra-se, extorque-se à vontade. Ele t a m b é m é a zona f r a n c a apenas postulá-la era muito pouco para ele. Ela deveria ser um fato averiguá-
para uma forma de violência nova, mais refinada, não mais evidente, que aparece vefc estar à disposição dos proletários como medida objetiva, a fim de que eles
sob a pele de cordeiro do acordo pacífico. Q u e isso se dê c o m t a n t o sucesso, pudessem demonstrar de modo efetivo que a sua miséria brotava da troca in-
deve-se à debilidade específica dos postulados. O da justiça nas trocas não pode justa. Em suma, o postulado tinha de se tornar prova, e isso tem tão poucas
nem impor-se e nem livrar-se dos pontos cegos em seu interior: o espaço vazio probabilidades de acontecer com a justiça nas trocas quanto com Deus. Que
da avaliação subjetiva. Justamente p o r q u e a justiça nas trocas é tão s o m e n t e na troca de bens materiais não fossem as suas diferentes qualidades a serem
um postulado, a sua realidade nunca pode ser mais q u e u m "como se". O n d e as igualadas, e sim apenas a quantidade de trabalho contida neles, que a troca
pessoas não decidem de c o m u m acordo aceitar u m sucedâneo para o que foi fosse definitivamente justa quando de ambos os lados estivessem quantidades
dado como se ele fosse a própria reconstituição do que foi dado, não se chega iguais de trabalho, que desde que fazem trocas os seres humanos já se tenham
à troca. Essa decisão é a avaliação sem a qual qualquer m e d i d a de diferentes o r i e n t a d o p o r essa "lei", embora, até Marx, ela ainda não estivesse tão clara
quantidades de bens nunca conduz à equivalência. N e n h u m a equivalência existe teoricamente 6 ': todas essas afirmações têm logicamente a estrutura de uma
sem o postulado, a decisão ou ainda a "celebração de uma aliança" que diz: entre
nós deve ser assim, de m o d o que o diferente valha c o m o igual, o sucedâneo, 6 4 "Ao c o n s i d e r a r os seus diferentes produtos como valores iguais no momento da troca, eles igualavam re-
c i p r o c a m e n t e c o m o trabalho h u m a n o os seus diferentes trabalhos." E então a frase famosa, sem fundamen-
como reconstituição da própria coisa entregue. Assim como, segundo a práxis t o a l g u m , q u e trouxe em sua esteira t o d o um discurso exegético: "Eles não sabem disso, mas o praticam
(Das Kapitai /, p. 88). Alfred Sohn-Rethel fez do esclarecimento dessa frase algo como uma missão de vida.
moral de Kant, só é possível que a lei dos costumes, que afinal exige tão cate-
A s s i m c o m o a Crítica da razão pura teria d e m o n s t r a d o c o m o seria possível uma ciência natural pura,
goricamente uma moral, seja enfim possível de ser seguida pelos homens, se se era p r e c i s o q u e houvesse a sua c o n t r a p a r t e históríco-materialista: a demonstração das condições pelas
q u a i s os d i f e r e n t e s são igualados na troca de mercadorias (cf. A. Sohn-Rethel, Geistige und kõrperliche
postula um Deus que veja os atos que se originam de u m a boa vontade como se Arbeit — Revidierte undergãnzteNeuaufiage. Weinheim 1989, p. 7). Enquanto Marx pensava a equipara-
eles mesmos fossem bons, assim também a justiça nas trocas só é possível onde ção c o m o u m processo m u i t o simples, a saber, c o m o comparação entre quantidades dc trabalho, ficando
apenas e n i g m á t i c o p o r q u e não se deveria afinal perceber o que se faz nele, em Sohn-Rethel ele se torna
existe a decisão tomada de boa vontade de considerar bens oferecidos e quan- algo q u e n ã o se p o d e de m o d o algum perceber, pois ele se dá "por trás das costas dos participantes (idem,
o p . cit., p. 21): uma "abstração real" (p. 9). Ele a constrói assim: " O ato da troca e o ato de usar se excluem
tidades de serviços prestados como encarnação da "boa vontade" de reparação,
m u t u a m e n t e n o t e m p o . E n q u a n t o mercadorias são objetos de negociações de troca [...] e as nao poderiam
de completa reconstituição do que foi dado — e dc t o m a r a boa vontade por ser t o m a d a s e m uso." " N o mercado, nas lojas, nas vitrines etc. as mercadorias estão paralisadas. estão su-
jeitas a "ficção de c o m p l e t a inalterabilidade material [...] Mesmo da natureza se pensa que ela como que
ato. Sem esse mínimo de boa vontade n e n h u m objeto físico poderia adquirir r e t é m sua respiração no c o r p o da mercadoria e n q u a n t o o preço continuar o mesmo (p /). Por , s o
a forma de mercadoria. Apenas q u a n d o ele é lido e efetivamente aceito c o m o e n t ã o , a troca é abstrata", e "abstrata aqui significa descontadas todas as marcas de uma p o - ' . ^
das m e r c a d o r i a s " E q u e se (possam?) "observaras mercadorias, e v e n r u a l m e n c c ^
sinal de boa vontade e como reconstituição de algo que ele apenas substitui, rimentá-las, q u e se possa m a n d a r fazer uma demonstração de seu uso (p. 18). fa» s e r v u ao omen e
i n s t r u ç ã o m e n t a l e l f o r m a ç ã o de um juízo por parte do cliente : o uso d f co.sas P ™ ^
como urna reparação que ele apenas pode significar, mas não realizar, é q u e ele
i n t e r e sados, pura imaginação'" cm todo caso, cheia de consequencas:
é revestido sem hesitação da forma de mercadoria. Esse "aceitar c o m o se", esse m e r c a d o a imaginação se separa da ação dos seres ' " ^ à troca seria! porwnto^â ação abstrata
postular que algo seja o que não é, é. de um lado o que há de reconciliador na consciência privada» (p. 19). E m b o r a se,a uma açao tae^ZO). jaoc po ^ ^ m c , m 0 s j m u .
p o r excelência: de tal f o r m a distanciada d o contexto da produção e do con 1
troca, de outro lado o que há dc subjetivo-arbitrário nela — e com isso o portão L i a a p a r a d a d o t e m p o , p o r t a n t o um verdadeiro "vácuo no concreta da vida.
de entrada para toda a violência e exploração que a forma da troca adquire. E a natureza" ( p . 22), algo c o m o u m buraco e m , £ « * estrutura social, esse
m a s u m b u r a c o m u i t o real. Ainda mais: uma vez que c a troca
petitio principiu de u m a imputação do que deve ser d e m o n s t r a d o . Para que a t o r n o u moeda corrente nas máquinas a vapor do século XIX. Quando alguém
justiça nas trocas seja lei, é necessário torná-la apreensível quantitativamente, era c o n d e n a d o a fazer durante ,2 a 15 horas por dia sempre os mesmos onco
reduzi-la a uma verificação de quantidades de trabalho: a u m algoritmo, hpara gestos estúpidos num tear, então o "desgaste de cérebro, nervo, músculo e órgã
que essa lei seja verdadeiramente uma, ela teria de ter valido desde sempre. Po- do sentido h u m a n o etc. quer dizer, o trabalho qualitativo, pode sem J L a
vos naturais que promovem os feitiços sacrifkais mais sangrentos apenas para parecer c o m o se fosse simplesmente o «portador» de uma quantia: a do tempo
obter melhor clima ou astros mais propícios, e de m o d o algum consideraram de trabalho. Apenas, Marx se deixa iludir por essa aparência. Justamente o tra-
desproporcional imolar seus pertences mais preciosos para isso, devem estar balho capitalista remunerado desqualificado, desumanizado, que afinal deveria
a postos com u m olhar examinador, comparador de quantidades de trabalho, ser abolido, deve desmascarar-se como "trabalho sanspbrase"" e trazer à luz
assim que se tratar da troca de bens profanos. Esse a n a c r o n i s m o crasso nem que a "essência" do trabalho é a quantidade, enquanto tudo que seja qualitativo
dá na vista do excelente historiador Marx, por ele perceber aqui a pré-história nele não passa de "aparência", acessório, exterioridade. No entanto é claro que
humana através das lentes daquele trabalho altamente desqualificado que se esse trabalho remunerado mesmo é apenas uma forma de manifestação histó-
rica c o m o todas as outras - com a particularidade de ser desproporcional e
buraco real passa a ser um buraco central, o n d e se realiza a síntese social, a p u r a socializaçao ( p . 22). Este compulsivamente fixado em quantidade, tempo e velocidade de trabalho. Mas
seria porém, o segredo d a q u i l o q u e K a n t c h a m a de "síntese t r a n s c e n d e n t a l d o s p u r o s c o n c e i t o s de e n t e n -
d i m e n t o " - t a n t o seu f u n d a m e n t o real q u a n t o o p o n t o cego nela. Assim, p o r t a n t o , a Critica da razao pura
essa particularidade não constitui a essência [Wesen) do trabalho, e sim apenas
deve virar de cabeça para baixo, "por meio da d e d u ç ã o d o s p u r o s c o n c e i t o s de e n t e n d i m e n t o a p a r t i r d o a aberração (Unwesen) do trabalho remunerado.
ser social, mais exatamente: da fisicalidade abstrata da ação de troca" ( p . 21). " D o p o n t o d e vista matéria-
lista o p e n s a m e n t o p u r o se a p r e s e n t a [...] c o m o a s o c i a l i z a ç ã o d o p e n s a m e n t o ' ( p p . 20 e segs ). N ã o existe n e n h u m a lei do "valor", O próprio Marx percebeu isso cada vez
Se ao m e n o s esse " p o n t o de vista materialista" n ã o fosse t ã o e x c e n t r i c a m e n t e idealista e d e s p r o v i d o de
qualquer sensibilidade para o p e n s a m e n t o m í t i c o - d i f e r e n t e m e n t e , aliás, de M a r x , q u e desenvolveu seu mais. Entretanto, ele deixou inacabado o terceiro volume do Das Kapital, no
c o n c e i t o de fetiche j u s t a m e n t e a p a r t i r de u m c o n h e c i m e n t o í n t i m o d a m i t o l o g i a a n t i g a . S o h n - R e t h e l
qual deveria apresentar ao proletariado a luz definitiva sobre essa lei. Aparente-
i n t r o d u z nos conceitos "puros" u m a socialização i g u a l m e n t e "pura", em vez d e d e m o n s t r a r a i m p u r e z a d o s
conceitos e d a socialização. Ele t r a d u z "abstrato" p o r *não e m p í r i c o " ( p . 19), e m vez d e p e r c e b e r q u e ne- mente, ele não mais se convenceu tanto de sua própria tese nos anos posteriores,
n h u m a abstração escapa do e m p i r i s m o . Ela é quase sempre abstração d e algo — apenas reconhecível c o m o
abstração q u a n d o aquilo de q u e ela abstrai deixa seus rastros e resíduos t r a n s p a r e c e r e m nela. E abstração
mesmo se esforçando para mostrar que, em princípio, as mercadorias seriam
não começa c o m o mercado, e sim c o m o devir h u m a n o . O ritual sacrificai é f r a n c a m e n t e u m a r q u é t i p o d e vendidas "pelo seu valor" e que as mudanças nos preços seriam apenas uma
abstração real: r e p e t i ç ã o c o m p u l s i v a de u m p a v o r t r a u m a t i z a n t e , m a s n ã o o p r ó p r i o p a v o r o s o , e sim
s o m e n t e a sua representação, algo c o p i a d o dele, p o r mais h o r r i p i l a n t e q u e seja. A a b s t r a ç ã o , c o m o foi oscilação em volta desse "valor", isto é, da quantidade de trabalho presente nas
m o s t r a d o no capítulo 3, c inicialmente performance. O s q u e a realizam " n ã o s a b e m disso, m a s a praticam".
mercadorias. Mas, com certeza a elas adere um caráter fetichista na sociedade
E q u a n d o eles finalmente c o m e ç a m a i m a g i n a r a p o d e r e s d i a n t e d o s quais r e p r e s e n t a m seus rituais, q u a n -
d o "representação", p o r t a n t o , p o u c o a p o u c o se sublima d o teatral p a r a o m e n t a l , e n t ã o a abstração e n t r a capitalista. Marx o evidenciou de uma vez por todas, embora de um modo
em sua segunda grande fase: a da imaginação. É absurda a idéia de q u e apenas c o m a " f o r m a ç ã o d o sistema
de mercado a imaginação" se t e n h a separado "da ação d o s seres h u m a n o s " c o m o sc t o d a a r i q u e z a da fan-
discutível. Pois ele toma, como todos os economistas contemporâneos, a troca
tasia mitológica tivesse sido ligada j u s t a m e n t e p o r aqueles bens d e uso q u e já se p o d i a m t o c a r a i n d a a n t e s c o m o algo genuinamente profano. Isso se vinga. Em Marx, de um modo que a
do pagamento d o preço e utilizar "na imaginação". D e i x a r as imaginações c o a g u l a r e m n u m sistema cate-
gorial fixo foi o trabalho seguinte da abstração, q u e abrangeu milênios, e já sc pensava em t e r m o s de con- ignorada pré-história sagrada da troca celebra um retorno especial. Já em atos
ceitos, juízos e conclusões m u i t o antes q u e fossem fixados aqueles c o n c e i t o s e s p e c i a l m e n t e a b s t r a t o s c o m
de troca completamente elementares, Marx vê algo quase religioso em ação:
os quais sc inicia a filosofia ocidental. E m e s m o entre cies n e n h u m é tão a b s t r a t o q u e n ã o mais se colasse a
ele nada do complexo dc r e p r e s e n t a ç ã o d o qual ele foi a b s t r a í d o . E j u s t a m e n t e o e x e m p l o d e c i s i v o d e um m e c a n i s m o de projeção não analisado mais de perto. Sobre ele ficamos
S o h n - R e t h e l , aquele ser (to on) q u e P a r m é n i d e s p r o c u r a c o m p r e e n d e r a p e n a s p e l o p e n s a m e n t o ( p . 6 4 )
s o m e n t e aos p o u c o s se descola de um m i t o de assunção e está b a s t a n t e c r i v a d o dc insígnias d o m u n d o
sabendo apenas que alcança até a fisiologia da percepção e tende ao engano
empírico d a representação. Por c e r t o é d i g n o de t o d a a t e n ç ã o q u e o i n í c i o d a filosofia o c i d e n t a l quase geral. E de fato já se sucumbiu a ele quando se diz que uma certa quantia de
coincida c o m a incipiente circulação de m o e d a s , mas n ã o de f o r m a q u e o d i n h e i r o fosse o d i s t i n t i v o d e
uma socialização "pura" ocasionada pela abstração da troca, d i s t a n c i a d a da "troca m e t a b ó l i c a c o m a n a t u - grãos valeria uma certa quantia de carne. Pois aí já se trataria o valor como se
reza" que se imprimiu insidíosa, mas d i r e t a m e n t e na cabeça d o s filósofos c o m o "pura" conceituai idade. D c
ele se prendesse às coisas por natureza, como o seu brilho, sua dureza ou acidez.
resto, um e n t e n d i m e n t o notavelmente estreito d o "processo de troca m e t a b ó l i c a h u m a n a c o m a n a t u r e z a ,
caso apenas fizessem parte dela a p r o d u ç ã o e o c o n s u m o , mas n ã o a troca, n a q u a l e m t o d o caso matérias Mas o seu valor é - e aqui Marx tem toda razão - o prestígio que elas tem em
naturais p e r m u t a m da maneira mais palpável, j u s t a m e n t e seus p r o p r i e t á r i o s . Em t o d o caso. deve-se apenas
a essa estreiteza a existência de espaço livre para a sugestão de que a troca seria o b u r a c o real-abstrato n o
processo social empírico-concreto. É espantoso c o m o essa " d e d u ç ã o d o p u r o c o n c e i t o d c e n t e n d i m e n t o a
partir d o ser social" p ô d e ser p o r t a n t o t e m p o considerada a g r a n d e t e n t a t i v a d c d e c i f r a r u m e n i g m a da
6 5 K. M a r x , Das Kapital I. p. 86.
teoria marxista. 66 Idem, Grundrisse der Kritik da Politiscben Õkonomie, p. 25.
de troca sc t o r n a com isso um deus ou um fetiche. Projeção de um valor em
uma sociedade, e náo sua propriedade natural. Esse prestígio - Marx o chama
de "relação social" - é, porém, uma trama complexa. Ele abrange t u d o o que coisas naturais diz de inicio apenas que se a considera como ressarcimento para
uma coletividade considera c o m o sagrado e p r o f a n o , p u r o e impuro, d i g n o de tais e tantas outras. Querer pegar aqui a formação de ídolos pela raiz significa
preservação e estima, vendável ou invendável. E a isso pertencem t a m b é m obje- praticar a critica da religião no objeto errado. Não que faltassem objetos "cer-
tos de troca. U m a certa quantidade de grãos é vista c o m o se ela ressarcisse u m a tos". Pois a troca começou no meio dos mais sombrios processos de formação
certa quantidade de carne. Isso obviamente não é possível sem q u e se atribua de ídolos. A aliança arcaica, por exemplo, que então se selava com uma equi-
aos objetos uma força de ressarcimento que eles por natureza não possuem. Em paração projetiva de vidas humanas desiguais em comum acordo, era inteira-
outras palavras: sem projeção. Projeção é condição da possibilidade de troca. mente, n o sentido do jovem Marx, um "suspiro da criatura oprimida": um ar-
Mas justamente isso a "lei d o valor" não quer permitir. N e n h u m " c o m o se" q u é t i p o daquela projeção por pressão do sofrimento que na troca profana é
pode ser equivalente. Marx exige uma igualdade verificável, legal — a u m alto s u b l i m a d a até se t o r n a r irreconhecível. Só que para Marx a troca sagrada
preço. N o ato de troca como ele o imagina, toda a "relação social" se c o m p r i m e é inexistente — nada mais que a pré-história reprimida da troca profana. Ele só
em um algoritmo nu, culturalmente indiferente, de q u a n t i d a d e s de trabalho; p o d e ater-se a esta última: na camada tardia, na casca "calcinada" da troca. Mas
o que há de projetivo na equiparação de desiguais, a margem de avaliação na ela é t o m a d a c o m o se fosse o núcleo. Isso se chama deslocamento psicanalítico.
troca aparece já apenas c o m o fator de perturbação, falta de agudeza, afasta- A projeção que Marx acredita perceber na troca profana não mora nela de modo
mento da "lei"; e a própria "lei", embora p r e t e n s a m e n t e atuante desde sempre algum. Por isso ela dá a impressão de ser imotivada em dois sentidos: de um lado
como instância de avaliação insubornável de quantias de trabalho efetivamente não ficamos sabendo o que obriga a ela. Fica incompreensível o que é que tem
despendidas, seria, não obstante, obstinadamente i n c o m p r e e n d i d a c o m o essa o e n o r m e p o d e r de levar a humanidade inteira desde milênios a tornar nebu-
instância, porque as pessoas não poderiam deixar de obscurecer m e s m o as suas losa a simples, clara "lei do valor" por meio da autonomização mental do valor
relações mais claras por meio de projeções. de troca, q u a n d o ela afinal também já obedeceu bravamente a essa "lei" por
t a n t o t e m p o e nada teria a temer por confessá-lo. De outro lado, é um mistério
É preciso ler isso através da psicanálise. Transformar a equivalência e m al-
c o m o a projeção p o d e praticar a configuração de ídolos se a pressão do sofri-
goritmo significa racionalizá-la. Isso não é possível sem negar e separar o que
m e n t o não for o seu motor. O conceito de projeção que Marx veste na troca
há de projetivo nela. A palavra técnica para isso é repressão. Mas c o m o não
p r o f a n a — u m a projeção como na religião, mas sem o seu motivo — é o pro-
pode existir equivalência sem projeção, o reprimido tem de retornar. A proje-
d u t o de u m a involução. Ele se aproxima novamente da tendência geral, em
ção emerge subitamente, e precisamente, c o m o aquilo que não p o d e ser: c o m o
grande m e d i d a inexplicável dos seres humanos, ao autoestranhamento, ao obs-
o mau costume, o obscurecimento, a c o n d u ç ã o enganosa q u e envolve a "lei"
curecimento das próprias relações claras - portanto, do conceito de projeção
em sombras. A projeção é, portanto, entendida c o m o inversão d o m u n d o — to-
de Feuerbach, que o jovem Marx criticara contundentemente como humani-
talmente segundo o m o d e l o da religião, que M a r x já nos anos de j u v e n t u d e
tarismo abstrato. Apenas em um espaço onde o caráter de fetiche da mercado-
chamara de "uma consciência invertida d o mundo". Apenas, naquela época ele
ria já estava completamente desenvolvido e a crítica da religião de Marx goza-
sabia fornecer um motivo convincente para essa inversão: a pressão d o sofri-
va de crédito tão ilimitado que a vaga analogia segundo a qual na simples tro-
mento. As pessoas projetam seus desejos terrenos em figuras divinas, a fim de
ca de mercadorias as coisas se passavam o m * na religião já era tomado como
suportar a miséria terrena. "A religião é o suspiro da criatura o p r i m i d a , a alma
um a r g u m e n t o irrefutável, o encadeamento das quatro idéias seguintes pode-
de um m u n d o sem coração, [...] o ópio d o povo" 67 . Q u a n d o , pelo contrário, as
ria despertar a aparência de realizar uma dedução estrita do carater de fetiche
pessoas concordam que uma saia vale 20 côvados de tecido, e p o r isso é algo
da mercadoria a partir da simples troca de mercadorias: 1) a lei do valor com
valioso, então elas precisamente projetaram nela um valor de troca. Mas tão
tal é u m claro fato algorítmico; 2) ela não tem nenhuma culpa se a r n ^ j e n
certo que aí a pressão do sofrimento se reduz quase a zero, t a m p o u c o o valor
turada tendência humana, demasiado humana, de encobrir relaço c l . s pe
p r o j e ç ã o se sente magneticamente atraída justamente por ela; 3)
67 K. Marx, Kritikder Hegelscben Recbtsphilosophie. Einleitung, MKW 1. Berlim, 1977, p. 378.
surgiu o mau costume da projeção, aí começa t a m b é m a idolatria, a formação
plenitude que não a compra e a venda e com isso é capaz de realizar o artifício
de fetiche, e demonstra que florescências ela é capaz de p r o d u z i r ; 4) o culto da de fazet a p r o f a n i d a d e e a sacralidade coincidirem até à indiferença.
mercadoria da sociedade moderna.
Para gerações inteiras de marxistas havia apenas duas possibilidades: ou
sucumbir à sugestão dessa argumentação, defender até o fim a lei do valor e o Mercado absoluto
fetichismo da mercadoria como o coração indivisível, imprescindível da teoria
marxista, ou dar de mão a ambos e renegar Marx. T a n t o mais se fazia urgente "Em t o d o século a humanidade tem de ser reprovada"71, pode-se ler em Benja-
o esclarecimento de que há uma terceira possibilidade. A "lei d o valor" é insus- min, e assim é claramente necessário recapitular no século XXI tudo o que o
tentável. Mas com isso a idéia da justiça na troca é tão pouco desmentida — como c h o q u e imagético, que o instante paralisado fotograficamente exerce, já con-
se ela não constituísse senão oferta e demanda — q u a n t o a do caráter de fetiche centrava em si n o século XIX. Mas se ele em primeiro lugar se mostrou como
da mercadoria sai enfraquecida 6 8 . Ao contrário: apenas ao se emancipar da "lei o retrato em miniatura no qual a Revolução Industrial se cristalizou monadi-
do valor" ela pode ganhar a clareza necessária. O p r ó p r i o Marx t a m b é m admi- camente, então essa mônada atrai o observador para dentro de si de modo tão
te de passagem que o "fetichismo [...] se cola aos p r o d u t o s d o t r a b a l h o assim semelhante c o m o Benjamin imaginou. "O materialista histórico se acerca de
que eles passam a ser produzidos como mercadoria" 69 , ou seja, apenas em uma um o b j e t o histórico única e exclusivamente ali onde esse objeto vem ao seu
sociedade na qual os produtos já vêm ao m u n d o c o m o mercadoria, o n d e o mer- e n c o n t r o c o m o mônada. [...] Ele a utiliza a fim de extrair uma determinada
cado, e precisamente o mercado desenfreado, solto, absoluto, é o alfa e o ômega época d o curso homogêneo da história; assim também ele extrai da época uma
deles. Apenas por meio do mercado é que os p r o d u t o s são t a n t o p r o f a n a d o s ao vida determinada, assim também uma obra determinada da obra dessa vida. O
extremo como t a m b é m batizados "na água gelada d o cálculo egoísta" quer resultado de seu procedimento é que na obra a obra dessa vida, na obra dessa
dizer, providos de um sentido de vida e m u n d o q u e n ã o c o n h e c e n e n h u m a vida a época e na época todo o curso da história está preservado e transcendi-
do" 72 . Ora, aqui "todo o curso da história" não foi nem de longe completamen-
te esclarecido, mas provavelmente foi consumado um retorno ao fundamento,
68 O f u l m i n a n t e ensaio de A d o r n o , " Ü b e r den Fetschcharaktcr in der M u s i k u n d die Regression des H õ r c n s " que c o m p r e e n d e o choque imagético "extraído" como expressão da Revolução
[Sobre o caráter de fetiche na música e a regressão da c a p a c i d a d e d e o u v i r ] , d e 1938, n ã o é o p i o r dos
exemplos disso. C o m toda naturalidade ele pressupõe a validade d o c a p í t u l o de Marx a respeito d o fetiche, Industrial, a Revolução Industrial como o revolver de seu subsolo arcaico, e
assim c o m o A d o r n o ainda nos anos 1950 vez p o r outra falava na "lei d o valor" c o m o se ela estivesse acima
mostra que a extensão da "sensação absoluta" só pode ser medida quando está
de todas as dúvidas (cf. Th. W . A d o r n o , Mínima Moralia, § 147, p. 307). Mas esse frágil p r e s s u p o s t o não
causa n e n h u m prejuízo à análise da música. A a mercadoria-ouvir'' (Th. W . A d o r n o , " Ü b c r d e n Fctschcha- claro o que significa "mercado absoluto". O seu teórico mais importante até
rakter..." in Dissonanzen, GesammelteSchriften. F r a n k f u r t , 1973, vol. 14, p. 21), q u e n ã o sabe mais apreen-
der a composição musical c o m o u m t o d o , p r e n d e n d o - s e apenas "ao estímulo particular, sensual" (p. 37),
hoje é Marx, e sem uma reflexão que retorne a ele não se pode compreender o
à melodia fácil, ao colorido instrumental, às peças dc acrobacia isoladas, e n ã o percebe nela senão melodias paradoxo daquele culto profano que se enreda como uma trepadeira em torno
reconhecíveis e de propaganda ou o equivalente d o que sc p a g o u p o r ela, em nada recuou nos ú l t i m o s 60
anos — tampouco q u a n t o à tentação de c o m p o r de m o d o quase tão r e d u z i d o q u a n t o se ouve. Agarrar a da m o d e r n a mercadoria. A tese de que no capitalismo uma nova religião apenas
sociedade c o m o que pelas orelhas e revelar-lhe m u s i c a l m e n t e o caráter d c fetiche da m e r c a d o r i a c o m o
t o m o u o lugar da cristã, e, portanto, não se pode falar em secularização, é na
dependência permanece u m dos grandes feitos da crítica musical. U m a q u e s t ã o t o t a l m e n t e d i f e r e n t e é se
essa crítica procede realmente cm tanta c o n f o r m i d a d e com Marx q u a n t o ela pensa. Aqui há u m a necessi- verdade tão rasa e não dialética 73 quanto a tese contrária: a abundância de in-
dade imperiosa de clarificação. Será que, p o r exemplo, q u a n d o c h a m o u à "troca a sccularização d o sacrifí-
cio" (Dialektik der Aufklãrung, p. 56), A d o r n o tinha idéia de que c o m isso ele n o f u n d o já tinha v o l t a d o o
machado para a "lei d o valor"? D c m o d o que ele possivelmente não soubesse tão e x a t a m e n t e o q u a n t o ela
71 W. B e n j a m i n , D,is Passagen-Werk, p. 177.
é de fato sustentável? Náo seria por isso talvez q u e para ele a crítica da e c o n o m i a p o l í t i c a era "o c e n t r o
p o u p a d o " (R. Johannes, 'Das ausgesparte Zentrum", in G . S c h w e p p c n h á u s e r [org.], Soziologieim Spátka- 72 Idem, Überden Begriffder Geschicbte. p. 703. „ r .
pitalismus. Zur Gesellschaftstheorie Tbeodor W. Adorno. D a r m s t a d t , 1995): aquele em t o r n o d o qual gira 7 3 N e m m e s m o . n o , encontrada n o e s P 6 ü o dc B e . a m i
toda a teoria, mas t a m b é m u m p o u c o mal, assim c o m o em t o r n o d e m i n g a u q u e n t e ? D e t o d o m o d o é Schriften, 1985. vol. VI, está completamente hvre dela . q u a n d o h b ( t o o p » dogmánca
d i g n o de nota que em A d o r n o não haja n e n h u m escrito que se p o s i c i o n e cm c o n s o n â n c i a c o m Marx de ção essencialmente religiosa". Ele seria "uma puta reüg.ao de culto , el ccon6mica e 0 debate
m o d o semelhante ao de seus estudos sobre Kant e Hegel. especial, n e n h u m a teologia" - - m o se não houvesse toda , i f o ,Ü d a
ruína dos nervos e das famílias 74 . C o m o parecem primitivos os primeiros trens l i i t i q u e p e r m a n e n t e m e n t e procura conter seu ^ ^ ^ J ^ ^ ^ g ^ ^ ^ ^ J â m e n t c ^ í a n d o , reflacão da
m o d e r n i d a d e consiste principalmente em revogar a primeira. u a j , m d e v c n 0 vamen-
reflexão, restauração de uma imediatez m t f a d a ^ 3 > é m rearcaização:
m e n t e inaudito" nele "que a religião n ã o [seria] mais a r e f o r m a d o ser. c sim sua d e s t r u i ç ã o " ( p p . 100 te r o d a r sem i m p e d i m e n t o s . A modernização de nrar o ^ ^ ^ de - l c i r ; l " , "segunda"
e segs.). Precisamente isso necessita de u m alto grau de discussão; mas j u n t a m e n t e c o m a idéia d c q u e o f u n d a m e n t o d o qual o Estado s o c a um dia surgiu. A muu P ^ ^ semmcntc
m ^ I ^ I ^ d ^ "simples" e "reflexiva". a l - ç a essa d i . e t i ,
capitalismo se teria "desenvolvido n o O c i d e n t e parasitariamente sobre o cristianismo' ' ( p . 102), essas con-
c o n h e c i m e n t o n e m da pré-história d o Est ^ « r i - l nem do Terceiro Mundo.
siderações mostram q u e , se B e n j a m i n tivesse t r a b a l h a d o a n o t a até o fim, ele d i f i c i l m e n t e teria p o d i d o
, , „,' V , V . I Schivelbusch,Die ÔeschicbtederEisenbabn-
ter-se d e t i d o na tese inicial. d o s
7 5 Assim foi a ferrovia e n t e n d i d a já no início do secuioé c u l o XAI —
A. w
» . o u m ^ ^ , ^ c o n s i d e r a d 0 s os
o* menos
menos de
74 N ã o passa de um conto de fadas que apenas em t o r n o d o final do século X X u m a "segunda" m o d e r n i d a d e reise. F r a n k f u r t , 1989, p. 16. U m achado ridículo d o ponto < _ ( ^ a qualidade propagandística:
t e n h a c o m e ç a d o a reagir à "primeira" com u m a " m o d e r n i z a ç ã o reflexiva" c o m o sugere Ulrich Beck ( p o r 30 q u i l ô m e t r o s p o r hora em que ela andava então lanto ma
excmi
exemplo, "Der konflikt d c r z w e i M o d e m e n " , in DiefeindloseDemokratie. S t u t t g a r t , 1995, p. 11). "Primci- expressa c l a r a m e n t e o princípio do a u m e n t o da velocidade das máquu
que ela ordena aos instantes isolados, a exata c o n t r a p a r t e a nova experiencia de guerras e epidemias, e só admitiam a salvação de alguns poucos "justos" essas
de velocidade da ferrovia, que faz as paragens passarem voando, os instantes se eram visões extravagantes Desde que existem armas A, B e C, elas se tornaram
confundirem uns com os outros de m o d o nunca antes conhecido, marca uma c o m p l e t a m e n t e realistas. A idéia cristã de que Deus salvaria os eleitos trans-
poderosa cesura. O choque específico que o instante paralisado exerce sobre f o r m a n d o a existencia deles em um bem-aventurado "agora estático" era um
o observador é, com suafinesse técnica e incalculável reprodutibilidade, uma desejo pio insustentável, até que a fotografia lhes forneceu, através da produção
intervenção de uma espécie tão nova no sensório humano, que a enorme evolução de incontáveis "agoras estáticos" um ccnofundamentem in re. O est percipi
que a imagem técnica conheceu desde então se deixa representar inteiramente era um axioma epistemológico facilmente refutável, até que a moderna socie-
como um grande laborar nesse choque. Apenas com o t r a n s b o r d a m e n t o mi- dade da sensação lhe concedeu uma inesperada verdade estético-ontológica.
croeletrônico do m u n d o das imagens é que se torna retroativamente claro o Assim, não é de admirar que o filme também tenha proporcionado uma nova
quanto essa cesura era verdadeiramente incisiva — assim c o m o só se conhece dignidade a uma teoria filosófica de há muito falsificada.
a fatalidade de uma experiência traumática por t o d a s as suas conseqüências. Movimento, decretou Zenão, o discípulo teimoso do grande Parmênides, é
E a fatalidade da fotografia consiste em que, no seu c h o q u e imagético, a forma ilusão de óptica. Para nós apenas parece que a flecha disparada voa, enquanto
de intuição da sensação se cristaliza como m ô n a d a . Essa m ô n a d a é o elo entre ela de fato se encontra simplesmente numa seqüência de incontáveis pontos e,
a pré-história e a atualidade da sensação: o p o n t o no qual o seu caráter arcaico na verdade, parada em cada um deles. Aristóteles não expôs esse argumento sem
de epifania ainda cintila, e o seu já de alta tecnologia. Aqui ambos se iluminam t a m b é m imediatamente refutá-lo. Zenão supunha que "o tempo se constitui
mutuamente. Mas o p o n t o de sua sobreposição recíproca é o p o n t o n o qual dos agoras'", quer dizer, de mínimos instantes colocados uns ao lado dos outros.
o caráter de fetiche da mercadoria se torna patente — talvez o único a partir "Isso é falso, pois o tempo não se constitui dos agoras', como também nada que
do qual toda a sua extensão se deixa mensurar. Eis o motivo de se permanecer seja estendido" Zenão somente teria razão se os próprios espaço e tempo se
tanto tempo diante de uma fotografia. desintegrassem em partes mínimas. Agora, porém, foi inventado um meio que
no c o n t í n u o de espaço-tempo projeta o artifício de um movimento zenônico.
E o fato de que ela foi há muito t e m p o suplantada pelo filme, de m o d o que
Filme é ilusão de óptica. É verdade que a fita corre continuamente e não através
quase ninguém mais presta atenção a retratos estáticos q u a n d o cintilam os
de u m a infinidade de pontos de agoras. Mas o que aparece na tela ou no tubo de
movimentados? Isso é verdade, mas não é n e n h u m a réplica. Pois o filme é tão
imagens como imagem em movimento é apenas a seqüência de imagens paradas.
somente fotografia posta em movimento, desdobrada. E precisamente o movi-
Se a seqüência for de mais de 24 imagens por segundo, o olho humano não tem
mento que ele realiza é uma daquelas maluquices que a tecnologia dos séculos
alternativa: ele percebe um movimento corrente que demonstravelmente não
XIX e XX produz. N o r m a l m e n t e o seu progresso cada vez mais vertiginoso é
ocorre. Se ilusão ou não, 110 mínimo se pode dizer que o enrijecimento foto-
percebido sob o lema "o velho é o falso". Assim que um novo sistema de armas é
gráfico a b r u p t o do instante foi superado por ele. Isso, no entanto, seria mudar
desenvolvido, o velho pode ser empacotado — e só ser vendido ainda n o Terceiro
de assunto para disfarçar - reprimir, no exato sentido psicanalítico. O filme
Mundo. Assim que um novo software está à disposição, é necessário adaptar-se
só p o d e simular continuidade 00 tempo, mas não continuidade do tempo.
a ele o mais rapidamente possível, a fim de não perder a conexão. Assim que
N ã o se p o d e filmar cada ponto do mundo ininterruptamente. Não haveria ca-
uma nova técnica medicinal tem sucesso, a sua não utilização já é quase uma
meras suficientes, nem capacidade de armazenamento nem filmadores, nenhum
quebra do juramento de Hipócrates. Mas também há uma corrente contrária
filme jamais ficaria pronto, e a tomada indiscriminada de tudo o que acontece
nessa tecnologia. Ao ultrapassá-la, ela não apenas falsifica c o n s t a n t e m e n t e o
ao redor da câmera seria insuportável tanto para os filmadores quanto para os
estágio técnico-científico de ontem. Por vezes ela t a m b é m é capaz de t o r n a r
espectadores. O filme vive da possibilidade de parar a qualquer momento a hta
de certo m o d o verdadeiras, aposteriori, especulações que b r o t a r a m das cabe-
fotográfica e de selecionar por meio de cortes muito daquilo que foi reg.strado.
ças de teólogos e filósofos exaltados que há m u i t o se provaram insustentáveis.
Quando, na época do início d o cristianismo, judeus pios escreveram os assim
chamados "Apocalipses", que previam para breve o fim da humanidade por causa
7 6 Aristóteles. Física Z 9, 239 b .
Mas sempre que houver uma parada, um corte, a c o n t i n u i d a d e é desmentida. que precisamos nao e a observaçao, e sim a ação. Não precisamos de nenhuma
O solavanco da imagem enrijecida retorna e ganha, pelo contraste n o qual ele câmera-olho, e sim de uma camera-punho. Ofilmesoviético tem de tamborilar sobre
trabalha para a continuidade simulada, u m a intensidade que ele jamais tivera o crâniol . Vertov, por sua vez, acusa Eisenstein de desfigurar a realidade por
na fotografia. O p o n t o de corte no filme potencializa o c h o q u e imagético da meio da montagem encenada. Ele não montaria as coisas do modo como elas se
relacionam. Por isso: "Abaixo a encenação do dia a dia: filmem-nos de improviso
fotografia.
Ele é principalmente o p o n t o d o filme q u e salta, o p o n t o no qual o filme como somos! " O drama filmado é ópio para o povo." "Drama filmado e religião
se torna saltitante, associativo, o n d e u m a seqüência se i n t e r r o m p e e o u t r a são uma arma mortal nas mãos dos capitalistas. Com a demonstração de nosso
dia a dia revolucionário nós arrancamos as armas das mãos do inimigo." Mas é
é acrescentada a ela por meio da m o n t a g e m . Por isso, os p i o n e i r o s d o filme
óbvio que também Vertov encena à sua maneira. "De olhos abertos, consciente
soviético se encontravam n o ápice d o novo m e i o q u a n d o c o n s o l i d a r a m na
do ritmo da máquina, entusiasmado pelo trabalho mecânico, reconhecendo a
montagem suas diferenças a respeito d o papel estético e político d o filme.
beleza de processos químicos, nós compomos o poema-filme de chamas e usinas
"Diante de mim há u m p e d a c i n h o amassado, a m a r e l a d o de papel", escreve
elétricas" 79 , confessa ele sinceramente. "É totalmente absurdo", nota por isso
Serguei Eisenstein em 1929.
Vsevolod Pudóvkin, "classificar Vertov como um 'documentarista'" 80 . E Lev
Kulechov pensa até que nenhum dos assim chamados filmes documentários
Nele se lê uma nota misteriosa: acoplamento = P e choque = E. Esse é o vestígio
merece esse nome. Em todos o mesmo erro fundamental: "montagem falsa", "d
materializado de um acalorado duelo sobre o tema montagem entre mim — E — e
montagem não serviu o material de modo que ele que se manifestasse." A única
Pudóvkin — P — (há meio ano). Nesse meio tempo o seguinte se tornou costume:
exceção: Esfir Schub. Seu grande filme 0fim da dinastia Romanov, montado
em períodos de tempo regulares ele passa em minha casa tarde da noite, e a portas
exclusivamente com documentos da época czarista, seria "montagem da mais
fechadas nós nos lançamos um sobre o outro por questões de princípios. Aqui também.
Como discípulo da escola de Kulechov, ele defendeu fervorosamente o conceito de alta qualidade técnica" "que deixa o material falar, organiza-o e põe a nu a
montagem como acoplamento de segmentos. Em uma corrente. Telhas. Telhas, que na substância de seu conteúdo" 81 .
série de um pensamento expõem. Eu lhe opus meu ponto de vista sobre a montagem O p o n t o de corte no filme é o retorno do solavanco fotográfico e ao mesmo
como choque. Um ponto no qual por meio do choque de duas realidades surge um
t e m p o sua intensificação. Com isso a montagem se torna opoint d'honneur
pensamento . de t o d a uma visão de mundo. Para os pioneiros do filme soviético isso signi-
ficava: o fiel da balança da revolução mundial. Por isso tanta coisa para eles
A montagem é para Eisenstein exatamente o p o n t o em q u e o filme p o d e dependia de saber se na montagem fala "o material" ou o autor, se ela produz
tornar-se imediatamente combativo, no qual ele adquire a força de u m trator, associações arbitrariamente ou se involuntariamente descobre contextos que
"que ara a consciência do espectador no sentido d o p o n t o de vista de classe de- de o u t r o m o d o jamais se tornariam evidentes com tanta nitidez. O debate dos
sejado". Para isso, porém, é necessário também que se encene conscientemente anos 1920 permanece irresolvido. Mas se ele ainda hoje continua, não é mais
como choque o solavanco inevitável que o corte da imagem p r o d u z . E é isso por causa d o caminho certo da revolução, e sim por conta dos índices mais altos
que Eisenstein sente faltar em Dziga Vertov, a cabeça que liderava o movimento de audiência. C o m o se constrói em segundos com um mínimo de cortes uma
Kinoglas (câmera-olho). "Vertov tece um tapete de u m a imagem pontilhista, cadeia de associações irresistível, seja lisonjeando, seja "tambordando sobre
pois ele não influencia a seleção dos segmentos da vida real por meio de uma o crânio", sobre isso matutam os filmadores de comerciais. O choque imagé-
montagem premeditada." "À semelhança dos famosos impressionistas,'Kinoglas tico não é mais foco de uma visão de mundo revolucionária especial, e sim
persegue com o caderno de notas na mão (!) as coisas como elas são, sem tomar
de assalto a inevitável causalidade estatística de suas relações." "Mas aquilo de 7 8 Idem» o p . cir., p. 27.
7 9 D. Vertov, in i d e m , op. cit., p. 25.
80 V. P u d ó v k i n , in idem. op. cit., p. 29.
77 S. Eisenstein, in Berlincr F i l m k u n s t h a u s Babylon (cd.), Film. Auge - Faust - Sprache. F i l m d e b a t t e n der
20er Jahre in Sowjctrussland. Berlim, s.d., p. 17. 81 I,. Kulechov, in i d e m , op. cit.. p. 33-
apenas u m a f o r m a de intuição geral: a da sensação. Ele coloca em inquietação
e fermentação elementares, revolve a m o d e r n a sociedade capitalista até em
seus sedimentos pré-modernos, mas de tal m o d o que com isso ele ao m e s m o
S U B S T I T U T O DA S E N S A Ç Ã O
tempo a redefine e revivifica. Porém p o r meio de u m a vida verdadeiramente
artificial. Q u e ele atue sobre o sistema nervoso h u m a n o c o m o u m excitante
incessantemente m i n i s t r a d o em doses m í n i m a s , já se d e l i n e o u n o p r i m e i r o
capítulo. Mas apenas a passagem através da história da sensação trouxe à luz
do dia a "química" desse meio, seus micronutrientes fisioteológicos arcaicos em
extensão tal que agora, pouco a pouco, seu efeito geral se torna apreensível para
os olhos. Pode-se resumi-lo n u m a palavra, q u a n d o se tem presente o q u a n t o
ela é rica cm nuanças: vício.
Frenesi e história
"espinho da luxúria".
A forma original da confraternização é o triunfo extático sobre o horror. Foi
m u i t o bem acolhido t u d o aquilo que pudesse tornar-se comestível e potável e
que estimulasse tal êxtase triunfante, o mesmo êxtase que provavelmente des-
cobre, desde os primórdios, o efeito excitante de determinadas raízes, folhas e
frutos. Festa, frenesi e êxtase significaram a mesma coisa. Deve-se ter desejado foi m e n c i o n a d a pela "primeira vez p o r Salernus (aproximadamente 1,30 i ^
e confiado tanto na droga que seu c o n s u m o parece não ter provocado o vício.
2 Cf. W. Schivelbusch, Das Paradies, der Geschmack und die Vcrnunft. Eine Geschicbte der Genussmiltel. 4 Ibidem.
F r a n k f u r t , 1990, p. 32.
impostos fiscais que foram atribuídos ao destilado, mas t a m b é m p o r causa das cado, as drogas têm sua origem no sacrifício sacro; tal como o mercado, elas se
duas forças totalmente opostas presentes no seu agente químico. A primeira desenvolveram na condição de inseparáveis companheiras e benfeitoras, c o m o
referiu-se à devastação e à corrosão do culto de Deus, da moral do trabalho e d o assessório e ingrediente de ações de culto, e permaneceram, m e s m o q u a n d o
sentido de família; já a outra força possibilitava a disciplina com m u i t o mais se destacam desse c o n t e x t o de culto, a ele relacionadas. O m e d i c a m e n t o e o
b a n q u e t e p r o f a n o s foram identificados c o m o "camadas externas" do uso sacro
eficácia.
das drogas, d a mesma forma como ocorreu a relação do mercado com o sagrado.
O soldado individual, que até então tinha certa liberdade de atuação, se transfor- E t a m b é m na virada m o d e r n a ambos se ratificam. O mercado se t o r n a abso-
ma, nos séculos XVII e XVIII, numa peça de engrenagem de uma tropa matemática e luto, ele desce ao chão, ao primeiro "absoluto", ou seja, por meio da destilação
racionalmente organizada. A bebida destilada, que lhe era ministrada em porções da droga, q u e é extraída de seu meio de f e r m e n t a ç ã o natural, ele apresenta
diárias, serve como um tipo de lubrificante fisiopsicológico assegurando que as fun- seu verdadeiro cortejo triunfal. E a droga é absoluta não apenas n u m sentido
ções serão executadas sem dificuldades. As porções distribuídas de destilado parecem técnico, mas t a m b é m social. Ela é c o m o que destilada para fora de t o d o s os
conter a exata medida que proporciona a anestesia (e não a embriaguez), para fazer contextos sacros e cessa de ser uma experiência que extasiava e alçava t o d o o
com que os soldados sejam membros integrados de uma tropa mecânica. Aqui já se coletivo para além do seu cotidiano. Por um lado, ela se torna i n f i n i t a m e n t e
identifica o trabalho preparatório para a posterior disciplina que será exigida nas
banal, é mera substância que provoca frenesi, sansphrase, sem qualquer signi-
indústrias6.
ficado mais elevado. Por outro, ela não tem mais nada sobre si própria. Então,
subitamente, ela mesma começa a representar o vago papel d o mais elevado,
Não se pode imaginar a aguardente fora dessa situação. pois deixa de ser acessório para se tornar algo fundamental, deixa de ser acidente
para se t r a n s f o r m a r em substância, filosoficamente falando. Em duplo sentido
O trabalhador chega cansado do seu trabalho e quer relaxar em casa; então ele
ela se t r a n s f o r m a n u m concentrado. E isso ocorre não só p o r q u e a destilação
encontra uma moradia sem qualquer conforto, úmida, pouco agradável e suja; ele ne-
a u m e n t a sua dosagem alcoólica dez ou até 20 vezes, mas sim p o r q u e seu alto
cessita urgentemente de algo que o alegre, deve ter algo que faça valer a pena o esforço
percentual concentra t a m b é m as mais elevadas expectativas concernentes, n o
do trabalho, que torne suportável a expectativa do próximo dia árduo; sua disposição
início, a um contexto cultural harmonioso que posteriormente se eleva à esfera
abatida, desconfortável e hipocondríaca [...] é recrudescida por meio da situação de
vida que lhe resta, por meio da insegurança de sua existência, pela sua dependência sacra. A a g u a r d e n t e se transforma n o sucedâneo do sagrado desaparecido, no
de todos os possíveis acasos e pela sua incapacidade de salvaguardar sua própria si- substituto da própria coisa. O frenesi absoluto p r o d u z i d o releva-se c o m o o par
tuação, até o ponto de se tornar insuportável [...] e, diante de tudo isso, o trabalhador da sensação absoluta que irradia o "olhe para cá" da fotografia. Sabe-se que não
não deveria ser tentado a se entregar ao alcoolismo? Ele deveria ser capaz de resistir existe a epifania salvadora que as fotos sugerem, mas a sugestão não deixa de
a essa tentação ? Além disso, "donos de fábricas, até o final do século XIX, distribuí- existir. D a mesma forma, sabe-se que a aguardente não proporciona nenhuma ex-
ram gratuitamente aguardente para a sua força de trabalho e, com isso, estimularam periência extática redentora e, entretanto, ela não para de simular tal experiência.
consideravelmente o alcoolismo entre os trabalhadores. Em muitas fábricas, uma Há milênios as drogas e imagens coexistiram, a reboque d o culto, c o m o meio
parte do salário era paga em bebida destilada'. heterogêneo de elevação ao sagrado. Por meio do m o d e r n o p r o c e d i m e n t o téc-
nico da isolação, que desprende as substâncias ativas de seu contexto original
Assim c o m o na Bíblia D e u s se fez h o m e m , na m o d e r n i d a d e o m e r c a d o n u m piscar de olhos, sendo que uma é desprendida através da destilação e outra,
desenfreado se fez representar n o consumo desenfreado das drogas. U m a co- por meio da paralisação do instante, t a n t o a droga q u a n t o a imagem recebem,
munidade antiquíssima adentrou numa nova fase. D a mesma forma que o mer- repentinamente, uma inédita e conhecida h o m o g e n e i d a d e . Nas condições de
substância viciadora e de f o t o revelada, a droga e a imagem, tanto na maneira
6 Idem, op. cit., p. 164. de serem feitas q u a n t o na forma de se efetivarem, se aproximam c o m o parentes
F. Engels, Die Lage der arbeitenden Klasse in England> MEW 2. Berlim, 1976, p. 33 J. íntimos. Inicia-se uma comunicação idiomática entre ambas, pois compartilham
8 S. Scheercr, Drogen..., p. 21.
particularidades entre si, de tal m o d o que sem essa comunicação não se p o d e n e n h u m a outra droga o fizera anteriormente. O sustentáculo d o desenraizado
compreender seriamente a atual dependência da sensação. r e p r e s e n t a d o na garrafa de a g u a r d e n t e que, p o r sua vez, sustenta um apoio
existencial, representa simplesmente a data-base do vício, a chave da compreen-
são para o seu desenvolvimento geral que se torna cada vez mais difuso e com-
Condição moderna plexo 10 . O vício é a busca de um apoio vital n u m objeto falso, sendo que aque-
les que o p r o c u r a m n ã o devem ser informados de que se trata de algo falso. Eles
Meios que entorpecem não p o d e m ser desprezados. O que seria da medicina sentem, eles sabem que a substância na qual se aferram não fornece n e n h u m
moderna sem a anestesia? A bebida destilada, usada para e n t o r p e c e r as dores apoio, mas eles não têm outra e, por isso, cada vez mais se jogam a ela, a mesma
e angústias insuportáveis dos soldados, sendo que ocorria inevitavelmente o substância que os priva daquilo que lhes deveria proporcionar. Q u a n d o se fala
e n t o r p e c i m e n t o do caráter do soldado, p o d e ser p o r isso registrada c o m o a em sintomas de abstinência, os quais seguem o vício d o mesmo m o d o c o m o a
"primeira ajuda". O destilado, c o m o ração pcriódica p a r a os soldados, c o m o s o m b r a segue a luz, esquece-se facilmente de que o p r ó p r i o vício já é um sin-
meio de lubrificação fisiopsicológico, c o m o algo que garante o f u n c i o n a r sem toma de abstinência. Entretanto, a sua abstinência, que representa uma forma
dificuldades é, no entanto, algo qualitativamente diferente, a saber, preparação de reação desamparada, silenciosa, e c o n t i n u a m e n t e moderna, não é tão evi-
para um cotidiano que não é de n e n h u m m o d o c o m p o s t o apenas por estados dente. Deve-se deduzi-la e, para tanto, não se pode evitar o emprego de reflexões
de dor e de angústia cortantes, mas que se t o r n o u , em certa medida, p r o f a n o , teorético-pulsionais. O n d e há abstinência perdeu-se algo que fora desejado. A
e que, sem a ajuda desses meios de e n t o r p e c i m e n t o , dificilmente seria supor- energia emocional, p o r meio da qual se ligou ao desejado, vagueia p o r todos
tado. E tal cotidiano se iniciou na época do já m e n c i o n a d o processo de desen- os lados, pressiona p o r recolhimento; e o n d e ela se vincula com algo que serve
raizamento, datado, em grande estilo, do início da m o d e r n i d a d e . É claro que c o m o alternativa para tal, e que não se distancia t a n t o assim d o que fora priva-
a sociedade feudal que se esfacelara não foi n e n h u m idílio, pois ela antes cor- do e desejado, mas c o m o que se coloca em seu lugar e é tratada c o m o se fosse
respondeu a uma violenta amarra social. Os servos e vassalos q u e vegetavam esse algo, realiza-se aquilo que Freud d e n o m i n o u "fetichismo". Seja o fetiche
sob a ameaça da fome ou do chicote dos senhores feudais, bem c o m o a austera um sapato, um tecido, um lápis, uma bebida, é sempre "absoluto" n o sentido
disciplina dos monges e freiras nos mosteiros, tornaram n o t ó r i o aquilo que a de que cie é percebido c o m o algo desatado e separado d o objeto de desejo que
crescente sociedade moderna obsta à vista: que a integração é um ato de vio- fora privado. E n t r e t a n t o , a escolha d o fetiche nunca é aleatória, pois ele deve
lência, antes que suas indenizações possam ter alguma chance 9 . Mas estas tam- ser percebido c o m o algo que remete ao privado, t o r n a n d o possível tal substi-
bém não faltaram na sociedade feudal. O efeito terapêutico dos sacramentos tuição e, p o r outro lado, deve diferenciar-se dele, de tal m o d o que o fetiche não
e das relíquias foi tão inculcado milenarmente por meio das festas cíclicas, dos lembre claramente o privado, fazendo com q u e a dor da privação não penetre
ritos e das preces, que finalmente ele se converteu n u m apoio, n u m consolo, no limiar da consciência. O fetiche, p o r t a n t o , possui u m significado peculiar
numa dada e desejada rotina. A ruína do contexto de vida feudal não p r o p o r - e flutuante. Ele representa o abstraído e, ao m e s m o tempo, oculta-se; ele é, na
cionou apenas liberdade de espaço. Ela significou também a fratura desse apoio, mesma m e d i d a , seu substituto e seu código. Freud escolhe, e essa escolha já é
na medida em que grupos sociais rigidamente delimitados se t r a n s f o r m a r a m autorreveladora, um conceito d o arsenal religioso para p o d e r analisar os pro-
em massas amorfas e jogadas dc um lado para o outro, sem q u e tivessem meios cessos p r o f a n o s da vida pulsional dos neuróticos. Mas ele não c o m p r e e n d e o
seguros de subsistência, sem uma coesão social segura, cujos hábitos e costumes fetiche tal c o m o a c o m u n i d a d e religiosa, ou seja, c o m o um objeto identificado
tradicionais se desvaneceram. Todos sentiram a necessidade de escapar desse que corporifica as forças divinas, mas sim c o m o um objeto totalmente trivial
estado e aspiraram a uma saída. Eis que o álcool destilado a oferece triplamen-
te: ele era m u i t o barato, facilmente acessível e agia de forma rápida, tal c o m o
1() O c o n s u m o d o t a b a c o , q u e n o século XVII já d e m o n s t r a v a , de f o r m a s e m e l h a n t e , indícios de ser algo q u e
vicia, foi i n i c i a l m e n t e c o n s i d e r a d o pela o p i n i ã o pública c o m o u m a p ê n d i c e d o c o n s u m o de a g u a r d e n t e ,
s e n d o q u e n ã o t i n h a s e q u e r u m n o m e p r ó p r i o , p o i s era c h a m a d o "Álcool d e névoa", " B e b e r f u m a r " o u
9 C o n f e r i r p. 57.
" B e b e d e i r a seca" ( W . Schivelbusch, Das Paradies..., p. 108).
que é meramente sobrecarregado de significado ou, psicologicamente falando, próprios pés e instituir seu próprio sentido. E isso ele faz q u a n d o o caráter fe-
hipercatexizado com energia libidinal. E tal hipercatexia é observada por Freud, tichista da m e r c a d o r i a cresce p o r meio da relação de concorrência e p r o d u z
tanto na ocasião em que uma c o m u n i d a d e se a p i n h a d i a n t e de u m a lasca da alienação. Recebe-se mais do que se dá: essa desigualdade matemática trivial
cruz de Cristo ou do hábito de São Francisco q u a n t o n o c o m p o r t a m e n t o d o ganha u m a nova aparência, pois há muito não mais significa mera obtenção de
neurótico q u e acaricia um sapato de mulher. A neurose se afirma t a n t o n o vantagem ou incremento de poder. Ela se transforma em algo para cuja causa se
culto privado q u a n t o coletivamente n o culto da relíquia oficial. O conceito vive e, então, se obtém sentido: esse é o credo do mercado. De fato, esse é um sen-
freudiano de fetiche tem, metafórica e literalmente, c o n o t a ç õ e s "profana" e tido que desmente a si próprio, pois é sentido apenas na condição de ser um com-
"sacra", da mesma forma c o m o Marx c o m p r e e n d e tal conceito. E n t r e t a n t o , a parativo que consiste m e r a m e n t e n o ter mais que o outro. E isso implica o fato
perspectiva freudiana ajuda a iluminar aquilo que a marxiana oculta: o mecanis- de que, sempre que há alguém mais rico, outro alguém se t o r n a mais pobre. E
mo de formação substitutiva. O caráter fetichista da mercadoria não consiste na mesmo os mais ricos possuem, no final das contas, menos do que poderiam ter,
observação de que a sociedade de mercado venera o valor de troca (literalmen- pois precisariam ser ainda mais habilidosos na venda de seus produtos. O sen-
te como força divina) presente em todos os seus valores de uso. A ressacraliza- tido, q u a n d o atua no comparativo, é um não sentido: nunca é autossuficiente,
ção da troca de mercadorias resulta, antes (tal c o m o foi observado no capítulo pois é s e m p r e a m e a ç a d o pelo prejuízo e pelo excedente, o c o r r e n d o sempre
anterior), do fato de que o mercado p r o f a n o perdeu seu p o n t o de referência, ausência de sentido até se tornar um substituto de sentido: algo que se subtrai
seu centro p r o f u n d a m e n t e carregado de sentido sacro, sobre o qual o m e r c a d o q u a n d o se faz presente. O sentido comparativo da mercadoria faz dela própria
se alicerçou na forma de uma camada externa. U m a vez q u e ele se sobressaiu um sintoma de abstinência, pois fornece a ela, t a m b é m no aspecto teorético-
em relação ao outro e se tornou sistematicamente autorreferente, ele assumiu pulsional, um caráter fetichista, e revela a dinâmica de expansão do capitalismo
o lugar do sagrado que fora perdido e se t r a n s f o r m o u e m seu sucedâneo. c o m o viciadora. U m a dinâmica que se origina dos organismos h u m a n o s e que,
todavia, passa p o r eles a p o n t o de não mais se identificar com os próprios. Ela
O mercado absoluto desencadeado é, viciosa e t e o r i c a m e n t e falando, um
se t r a n s f o r m o u , em escala global, numa necessidade autorreíerente e autorre-
gigantesco sintoma de abstinência. A sua compulsão para a expansão, para o
forçadora. O simples desejar mais do que se tem se t r a n s f o r m o u n u m a obsti-
"crescimento econômico", é usualmente esclarecida apenas na d i m e n s ã o eco-
nação penetrante, tenaz e sistemática, e a dinâmica sistematicamente viciado-
nômica. Logo que o mercado cresce na forma de u m a instância de sociabiliza-
ra se t o r n o u u m p a n o de f u n d o social d o qual se servem todos os c o m p o r t a -
ção, aprofunda-se a concorrência, que não se restringe mais a u m p r o b l e m a
m e n t o s viciados particulares. Se o c o n c e i t o f r e u d i a n o de fetiche auxilia a
específico da relação entre negociantes e compradores, mas se t r a n s f o r m a em
reconhecer a lógica d o vício n o caráter fetichista da mercadoria, por outro lado,
um problema existencial. A concorrência penetra em todas as relações de tra-
ele se revela o c o n t r á r i o d o vício pela mercadoria, uma vez que se limita a um
balho e não para nem diante da relação familiar tradicional. Pai e filho, mãe e
caso sobre o qual Freud constrói toda a sua teoria d o fetichismo. Originaria-
filha, esposo e esposa se tornam tendencialmente concorrentes, assim q u e os
mente, o fetiche nada mais é d o que "um substituto para o falo da mulher (no
postos de trabalho se t o r n a m exíguos e cada um só p o d e vender sua p r ó p r i a
caso, a mãe), em que o garotinho acreditava e ao qual [...] ele não queria renun-
mercadoria, ou seja, sua própria força de trabalho. O mercado é um caldeirão
ciar"". Evidentemente, tais casos existiram, mas eles são generalizados c o m o
que junta os diferentes indivíduos, mas que t a m b é m os isola n o ato d a troca.
uma experiência original de abstinência traumática, da qual se derivam todas
Cada um se troca contra o outro. Por isso, na luta geral d o mercado só se impõe
as relações bem constituídas. " T o d o g a r o t i n h o que, d i a n t e da constatação da
quem troca melhor do que o outro. E sempre que o capital é investido, deve-se
ausência de pênis na mãe, exibe um c o m p o r t a m e n t o análogo consideravelmen-
gerar mais daquilo que fora aplicado. A compulsão para o crescimento e c o n ô -
te complexo (que conclui que ser mulher significa ser castrada e que, se a mulher
mico é o motor do capitalismo, até aqui o seu estado e c o n ô m i c o f u n d a m e n t a l ,
que pode ser igualmente lido como uma realidade de privação e de substituição.
Na medida em que o sagrado perde o seu carisma p r o f u n d a m e n t e carregado
de sentido (e que envolvia o mercado), o mercado deve c a m i n h a r com seus
11 S. Freud, "Fecichismus", Studienausgabe, vol. III, p. 383.
formadores tanto praguejaram 1 4 , na transição da Idade Média p a r a a m o d e r - de destilado". Antes de t u d o , foi uma imensa experiência de privação que en-
nidade, c o m o prova do crescimento da alegria de viver. Isso p o d e significar gendrou u m novo p a d r ã o de c o m p o r t a m e n t o social, que se d e n o m i n a vício,
exatamente o contrário: que se hoje se tem mais festas é p o r q u e o particular assim c o m o a ele correspondeu uma dinâmica sistemática geral que foi deno-
não mais possui a mesma força rebelde e entusiástica de t e m p o s passados; que minada "crescimento econômico", sem que seu caráter viciador fosse seriamen-
o aumento de sua quantidade não significou simplesmente mais diversão, mas te considerado.
sim sintoma de abstinência. Para muitos, a inflação festiva n o limiar dessa épo- Mas esse caráter pode ser levado em conta quando, súbita, viciosa e teori-
ca representa uma instintiva (certamente não consciente de si e difícil de ser camente, se lê a famosa observação do Manifesto comunista-.
"epidemia de destilado". Evidentemente, "os olhos sóbrios" são aqui identificados como uma metáfora,
Foi diante da impressão de um consumo excessivo de a g u a r d e n t e p o r parte pois, q u a n d o o olhar não é atrapalhado pela dissimulação metafísica, as relações
dos trabalhadores assalariados, para os quais o c o n s u m o de ópio se apresenta- podem ser finalmente reconhecidas como elas de fato são, da mesma forma como
va, em muitas regiões, como excessivamente caro, que Marx p ô d e formular sua elas p o d e m revolucionar para melhor. Mas pode-se t a m b é m c o m p r e e n d e r o
famosa metáfora da religião como o "ópio do povo". D e certo m o d o , essa me- termo "sóbrio" literalmente. A privação de tudo aquilo que era sólido, duradouro
táfora perdeu o trem da história, ela não interessa ao t e m p o n o qual a pobreza e venerável p r o d u z u m a sobriedade p r o f a n a e sem compaixão. Esse período de
não mais se afina com o apoio transmitido pela religião. Pelo contrário, a "ab- inquietude, para o qual a privação se transfere, é u m típico sintoma de absti-
soluta" substância viciadora assume seu lugar e se consubstancia com a indi- nência. Tal sobriedade não p o u p a n i n g u é m . E, em geral, ela é suportável? D e
ferença confessional ou mesmo com o ateísmo m a n i f e s t o , de m a n e i r a q u e acordo com Engels, a resposta é negativa, ao menos em relação à grande massa
ocorre, antes de tudo, a seguinte reviravolta: a aguardente e o ó p i o se transfor- de proletários. Eles necessitam de forças quase sobre-humanas para suportar a
mam na religião do povo. Essa nova religião d o p o v o é u m a religião q u e se sua condição de vida sem aguardente. Tais forças sempre a c o m p a n h a r a m , em
codifica e se nega a si própria. O destilado, na sua condição p r o f a n a , oculta e silêncio, t o d o o raciocínio de Marx e Engels concernente à sua teoria social, na
substitui o sagrado negado 15 . O álcool destilado p ô d e existir p o r séculos sem expectativa de que elas produzissem uma revolução geral. Q u a n d o os proletários
que fosse considerado uma substância viciadora. E t a n t o as privações pessoais finalmente pudessem escolher entre reproduzir t a n t o sua miséria q u a n t o de
quanto os golpes do destino não eram agentes provocadores dc uma "epidemia toda a sociedade, p o r meio de seu trabalho assalariado forçado, ou, p o r meio
de um esforço coletivo, acabar com essa forma de sociedade miserável, eles não
14 " Q u e sc retirem todas as festas e se conserve isoladamente o domingo", "pois se f a z e m o s uso i n d e v i d o da teriam quaisquer dúvidas e escolheriam a segunda alternativa.
bebida e d o jogo. se somos ociosos e caímos em pecado, irritamos a D e u s sc p r o c e d e m o s dessa f o r m a mais
nos dias santos d o q u e nos o u t r o s dias". "E devem-se, s o b r e t u d o , e l i m i n a r as festas de i n a u g u r a ç ã o d a s Sabe-se n o que essa esperança se t r a n s f o r m o u . Mas isso não m u d a em nada
igrejas, pois elas se t r a n s f o r m a r a m cm nada m e n o s d o q u e verdadeiras tavernas, feiras anuais e j o g a t i n a s
que apenas aumentam a desonra a Deus e a desgraça da alma" ( M . L u t e r o , An den christlichen Aclel deutscher o fato de q u e a m e n c i o n a d a citação d o Manifesto comunista formula, de ma-
N.ition — Von des christlichen Standes Besserung, 1520, trad. alemã, Auseewáhlte Schriften [ Obras escolhidas].
Berlim, 1916, p. 73).
neira insuperável, a condition ynoderne, aliás, mais profética e p r o f u n d a m e n t e
condition modeme, ou como o par de gêmeos d o fetichismo m o d e r n o : vício e m e n t o dos dogmas, e que se expressa na infalibilidade do próprio dogma, cer-
17 Este assunto foi m i n u c i o s a m e n t e tratado em C . Türcke. Kdssensturz — Zur Lage der Vteologie. Frankfurt, 18 W . Schivelbusch, Das Parodies..., p. 217.
1992. 19 I d e m , o p . cit., p. 220.
positivos que se abriram diante de mim, no abismo da alegria então repentinamente v ã m e n t e h u m a n o s , n u m m u n d o destituído de paraísos, fornece c o m o que a
revelada [...] aqui estava o segredo da felicidade sobre a qual os filósofos haviam dis- radiografia de cada f u n d a m e n t a l i s m o teológico que se empenha em teoremas
cutido durante tantos anos. A felicidade podia agora ser comprada com uma moeda cuja insustentabilidade lhe é bem familiar 2 2 .
e carregada no bolso do casaco: êxtases portáveis poderiam ser engarrafados e a paz A camada de verniz poética, que se coloca sobre o ópio e o haxixe, não deve
de espírito poderia ser remetida em galões pela diligência do correio' 0 . provocar o engano de que eles são tratados cotidianamente conforme o prosaico
exemplo d o álcool, ou seja, de que eles são tratados com a intenção de destilar
Mas ele sabe, e por isso escreve, que uma felicidade q u e p o d e ser c o m p r a d a concentrados. " C o m a vitória da morfina (1817) e da heroína (1874) sobre o ópio
por um preço irrisório p o d e muito bem significar n e n h u m a . A glorificação d o ocorre, n o cenário das drogas, algo semelhante ao papel do destilado no cenário
ópio é, para De Quincey, meramente o lado reverso da descrição do sofrimento da bebida: uma multiplicação da eficácia tóxica com consideráveis conseqüências
que ele padeceu logo que se tornou viciado. As confissões de um inglês consumidor sociais" 23 . A vitória da cocaína sobre as folhas de coca t a m b é m é um p r o d u t o
de ópio são um ato de desespero literário, uma tentativa de descrever o sofrimen- do século XIX. C a d a vez mais as drogas concentradas, pelas quais se erige um
to da alma a fim de exorcizá-lo, a partir d o m o m e n t o em que ele adquire u m a modelo de comportamento, a exemplo da epidemia de destilado, se transformam
existência literária. Não obstante, o livro p ô d e ser lido p o r seus simpatizantes, naquilo q u e d e n o m i n a m o s vício: "entrega-se, aconteça seja lá o que for, a uma
particularmente Baudelaire, como um novo gênero literário. O ópio e o haxixe fixação emocional que se expressa na forma de u m c o m p o r t a m e n t o estereo-
não são apenas identificados c o m o válvulas de escape d o c o t i d i a n o , mas sim tipado de grande intensidade pulsional e é, por isso, racionalmente soberana
como parte integrante de um p r o j e t o de vida estético. Este foi, e m s e n t i d o (ao menos p o r um t e m p o determinado), de m o d o que todos os outros valores
literal, o artifício, a chance para que o meio de e n t o r p e c i m e n t o , suas origens e atividades são colocados em segundo plano" 2 '. U m a vez instalado tal padrão
e efeitos (para os quais o proletariado não teve voz alguma) adquirissem u m a de c o m p o r t a m e n t o , ocorre algo semelhante com o caso do f u n d a m e n t a l i s m o
expressão saturada de experiência. E da incomensurável necessidade foi feita teológico, pois ele perde seu c o n t o r n o nítido, ele se dilui, se transforma n u m a
uma virtude solitária. É claro que, para Baudelaire, esta é u m a "má" virtude, variação de si mesmo. Esse padrão deve ser impreterivelmente essa substância? Ora,
tal como foi exposta no seu livro As flores do mal., e isso n u m d u p l o sentido. uma outra t a m b é m o é. Ele deve ser um concentrado puro? Parece que não, pois
Os paraísos artificiais, para os quais o ópio e o haxixe c o n d u z e m , têm, p o r um t a m b é m se dilui. Talvez ele nem sequer seja uma droga. O tipo de concentração
lado, uma inexprimível raiz no p r o i b i d o que p e r m i t e p o n d e r a r os paraísos fetichista, que é praticada nas drogas concentradas, também pode ser transferido
como teologicamente corretos. Por o u t r o lado, tais paraísos possuem o sub- para o c o n s u m o de amendoins, hobbies, qualquer o u t r o meio de obter prazer
solo melancolicamente p r o f u n d o do s e n t i m e n t o seguro de que, n o meio de ou quaisquer outras formas de c o m p o r t a m e n t o . E isso tem t u d o a ver com a
sua felicidade, o indivíduo se encontra i n f i n i t a m e n t e solitário. Desde o prin- lógica de desenvolvimento d o vício, quando seu padrão básico varia de múltiplas
cípio eles são diabolicamente concebidos, exatamente c o m o isso foi expresso formas e se t o r n a irreconhecível. O vício de comer cada vez mais, o vício de
na Ladainha de Satã: " Ó rei do exílio que se cobre com vergonha, e que vence, emagrecer, o vício de jogar, de trabalhar, de fazer sexo, de amar, são, há tempos,
cheio de obstinação, quando levanta a cabeça apenas um p o u c o mais alto. Satã, objetos de pesquisas científicas correntes. Mas continuará infrutífero o esforço
compadeça-se com a minha p r o f u n d a necessidade!" 2 1 . O m u n d o do ópio e d o
haxixe é esse exílio. Este é um m u n d o de sensação absoluta: o c o m p l e t o , iso-
lado e desesperançoso deleite da felicidade na f o r m a de seu fugaz substituto. 22 A diabólica exposição estética baudelairiana d o f u n d a m e n t a l i s m o teológico, a i n d a que f o r m u l a d a apro-
p r i a d a m e n t e , c e r t a m e n t e n ã o se c o n f u n d e com cada "estetização da religião", que foi d e n o m i n a d a p o r
O insistir obstinado em antiparaísos artificiais, c o m o sendo paraísos exclusi-
Stefan Breuer c o m o " f u n d a m e n t a l i s m o estético" e analisada, p r i n c i p a l m e n t e , p o r Stefan G e o r g e c o m o a
c r e n ç a n o "santificado p o r excelência". E isso não *por causa de seu c o n t e ú d o específico" mas sim em
f u n ç ã o das sensações q u e suscitam o santificado, tais c o m o o s e n t i m e n t o d e respeito, a c o m o ç ã o apreensi-
va, o a c a n h a m e n t o d i a n t e d o sublime, o entusiasmo pelo t o d o , d o qual resulta, no e n t a n t o , o espírito de
20 fliomas dc Quincey. Bekenntnisse ei>ies englisehen Opiumessers. Berlim, s.d., p. 48. C f . idem. Confissões de a b n e g a ç ã o e de favor" (S. Breuer, Àstbetischer Fundamentalismus — Stefan George und der deutsche Anti-
um comedor de ópio. Trad. Ibanez Filho. P o r t o Alegre: L & P M . 2001. modernismus. D a r m s t a d t , 1995, p. 3).
21 C h . Baudelaire, Die Blumen des Bósen. Trad. Tli. R o b i n s o n , Ges. Schrifien [Obras completas]. Kempten, 2 3 \V. Schivelbusch. Das Paradies.... p. 225.
s.d., vol. 6, p. 261. 24 S. Schcercr, Drogen..., p. 32.
de discernir quais fenômenos p o d e m ser classificados c o m o vícios e quais não siasmar-se para algo, são aspirações legítimas da natureza h u m a n a . Nós pode-
podem enquanto eles não forem c o m p r e e n d i d o s c o m o sintomas de diluição mos, e devemos, c o n c e d e r a essa necessidade a satisfação de uma qualidade
de seu padrão básico, e n q u a n t o não se estiver atento ao processo histórico de artística cada vez mais apurada e, ao mesmo tempo, fornecer a diversão c o m o
diluição que se livra do nítido e evidente c o m p o r t a m e n t o de vício, assim c o m o ferramenta da educação coletiva, sem tutela pedagógica, sem que se faça a in-
de tudo que se encontra "parado" e q u e é pulverizado n o m o i n h o da condition conveniente c o n d u ç ã o aos trilhos da verdade. A mais i m p o r t a n t e ferramenta,
moderne. Para falar de drogas, pesadas ou não, é u s u a l m e n t e c o m u m , e útil, em relação a todas as outras, p o d e ser, atualmente, o cinema". E l e ' e uma ferra-
diferenciar os concentrados, ou seja, aqueles que prejudicam perigosamente a menta que se impõe por si própria: o melhor instrumento da propaganda — da
saúde e a posse das faculdades mentais e os que p r o p o r c i o n a m u m m o d e r a d o p r o p a g a n d a técnica, cultural, relativa à produção, antialcoólica, sanitária, po-
prazer e são, em geral, inofensivos. Da mesma forma, é sensato distinguir entre lítica, em geral ao alcance de todos, atraente, além de se fixar na memória — e,
o vício forte e o brando, assim c o m o é sensato diferenciar o f u n d a m e n t a l i s m o eventualmente, u m a coisa rentável. Q u a n d o o cinema se torna atraente e di-
brando do radical. SÓ se fixa no vício, tal c o m o n o discurso f u n d a m e n t a l i s t a , vertido, ele concorre, consequentemente, com a economia e com o botequim".
quem tem uma cabeça limpa. Apenas por meio das radicais f o r m a s originais, Mas "o cinema concorre não apenas com o botequim, corno também com a igreja".
as quais já são, em parte, ultrapassadas, deixa-se iluminar aquilo que se obscu- "Não se f r e q ü e n t a a igreja por causa da religiosidade, pois a igreja é iluminada,
rece nas formas atuais de vício e, respectivamente, de f u n d a m e n t a l i s m o q u e bela, muitas pessoas lá se e n c o n t r a m e cantam. Esta é t o d a uma série de m o -
se tornaram cada vez mais difusas e fugazes. E é à luz de tal r e t o r n o que p o d e m e n t o s públicos e esteticamente atraentes que não são oferecidos nem na fá-
tornar-se profícua a produção específica de cada pesquisa empírica que identifica brica, n e m na família e nem na vida cotidiana. " 0 elemento da distração, da
determinadas experiências traumáticas, distúrbios psicossexuais ou ambientes diversão, do entretenimento, desempenha um papel colossal na cerimônia religio-
com tendências significativas para d e t e r m i n a d o s tipos de vício. Mas p o d e m sa. A igreja age, por meio de métodos teatrais, no olhar, na audição, no oljato (por
também surgir os limites de tal pesquisa. Ela p o d e nem dizer o q u e é vício, e meio do incenso!) e, através destes, produz efeito na capacidade imaginativa". A
nem o m o d o como seus padrões básicos se originaram, mas apenas c o m o esses p r o p a g a n d a antirreligiosa não é suficientemente poderosa para p o d e r libertar
padrões, quando eles já são cultivados e socialmente praticados, exercem força de a g r a n d e massa d o cerimonial, da religiosidade da vida c o t i d i a n a . E, então,
atração sobre determinadas disposições psicossociais que são, p o r isso mesmo, nosso p e n s a m e n t o é naturalmente direcionado para a ferramenta mais podero-
posteriormente especificadas, modificadas e diferenciadas. sa, p o r q u e democrática, da teatralidade: o cinema. Ele "liberta da necessidade de
estar sob influência da igreja. O cinema é o g r a n d e c o n c o r r e n t e não apenas
d o b o t e q u i m , c o m o t a m b é m da igreja' 2 5 . Esse texto é u m a pérola, pois ele é
muito mais revelador do q u e se propõe. Ele demonstra que os três concorren-
Igreja - Aguardente - C i n e m a
tes, os quais e x t e r n a m e n t e se colocam um contra o outro, se relevam intima-
m e n t e ligados. Todos os três distraem, divertem e entretêm. A esse respeito,
O que é o vício? Talvez uma teoria do fetichismo possa responder essa questão,
cada u m deles p o d e colocar-se n o lugar d o o u t r o , assim c o m o a santíssima
pois ela coloca o sintoma de abstinência e a formação substitutiva no c o n t e x t o
trindade. Sabe-se que o cristianismo a concebeu de forma que cada uma das
ao qual eles pertencem: o teológico. S u r p r e e n d e n t e m e n t e , foi u m revolucio-
três personagens se distinguiu das outras com as quais se liga — Deus é sempre
nário russo quem esboçou esse contexto em alguns traços e que, n u m p e q u e n o
pai e nunca filho e nem espírito santo, o filho nunca é pai ou espírito santo, o
escrito dedicado meramente a uma tática política, acidentalmente f o r n e c e u a
espírito santo nunca é pai ou filho —, sem que a personagem isolada fosse, por
tríade que compõe a fórmula do fetichismo moderno: aguardente — igreja — ci-
isso, m e r a m e n t e u m terceiro deus. Cada uma é totalmente Deus 2 6 . Essa relação
nema. O autor se chama Trótski. "Só após a conquista d o p o d e r por m e i o da
classe trabalhadora, que se transforma no construtor armado da nova economia,
a luta estatal contra o alcoolismo recebe o seu significado histórico, no sentido 2 5 L. T r ó t s k i . " S c h n a p s , K i r c h c u n d Kino", in Beriiner F i l k u n s h a u s Babylon (ed.), Film. Auge — Faust —
S p r a c h e , p. 66.
do esclarecimento cultural e da proibição d o álcool". " O esforçar-se, o e n t u - 2 6 Cf. A. A u g u s t i n u s , De Trinitnte, 1. 5, 8; 6 , 9 .
partir d o m o m e n t o em que a paixão em relação ao cinema desejou meramente
de correspondência t a m b é m é válida para a aguardente, a igreja e o cinema.
participar d o destino corrente de pessoas c o m o eu e você e ocultou a sutileza
Cada u m dos três é apenas ele próprio e nunca um dos outros dois e, c o n t u d o ,
messiânica. C e r t a m e n t e , o cinema oferece uma sensação final redentora da
cada um deles é também o poder total, indiviso e c o n c e n t r a d o de distrair, di-
mesma forma que a aguardente. Mas que ambos a sugerem, por um m o m e n t o
vertir e entreter. É nesse aspecto que Trótski identifica a grande chance d o ci-
mais breve ou mais duradouro, é algo que também sai do campo visual, restan-
nema. Entretanto, neste m o m e n t o , não há mais analogia com a t r i n d a d e cristã
do apenas u m cálculo politicamente pragmático: sem sugestão não há domi-
em virtude de uma súbita e diabólica intenção oculta: o cinema só é m e l h o r
nação, mas t a m b é m não ocorre a revolução. Então t u d o depende da escolha
que a aguardente e a religião, c o n q u a n t o ele se t r a n s f o r m e na m e l h o r aguar-
d o meio c o r r e t o de sugestão: ele não p o d e ser o meio embriagador do álcool
dente e na melhor religião. Q u a n d o Marx c u n h o u a expressão "ópio d o povo"
ou da cerimônia religiosa impregnada de incenso, mas é aquele que, por meio
isso ressoou da seguinte forma: q u a n d o as relações miseráveis fossem transfor-
de seu imperativo categórico "olhe para cá", não apenas age de forma mais su-
madas, ninguém mais teria necessidade de se drogar. A vida seria prazerosa e
gestiva d o que os outros dois, como também possibilita a propaganda "correta"
livre, livre t a m b é m das drogas, pois elas são meros sucedâneos da felicidade.
que esclarece ao proletariado sobre sua situação social e lhe imputa sua tarefa
Uma tal liberdade já não é mais prometida pelo político socialista real Trótski,
histórica.
uma vez que ele a substitui por um credo antropológico: "A necessidade de o
ser humano ter contato com o teatral, ou seja, para ver e ouvir algo que o con- N o capítulo anterior, o c h o q u e imagético revelou-se c o m o algo eminen-
duza para o incomum, para o deslumbrante, para fora da m o n o t o n i a da vida, t e m e n t e teológico, ou seja, c o m o sensação do sagrado q u a n d o se generalizou
é enorme, insaciável e se faz presente desde a infância até a velhice" 2 ". Igreja, e se inflacionou até se tornar indecifrável. Neste capítulo, mostrou-se o vício
botequim e cinema oferecem isso de diversas formas, mas eles o fazem neste c o m o um f e n ô m e n o de c u n h o fundamentalista m u i t o p r o f u n d o e, p o r t a n t o ,
mundo. É notável a sutileza messiânica que aqui passa desapercebida pelo judeu não m e n o s teológico; c o m o uma peça lateral que penetra até nas vísceras de
Trótski. "Aquilo que n e n h u m olho viu e n e n h u m ouvido escutou foi prepara- cada sensação absoluta que o choque imagético administra. Então Trótski junta
do por Deus para aqueles que o amam" 2 8 , diz o apóstolo Paulo. Já Trótski diria aguardente e cinema — num propósito propagandístico, sem o menor escrúpulo
a segunda parte dessa frase da seguinte maneira: "o cinema prepara o i n a u d i t o (de m o d o que t a m b é m a propaganda "correta" p o d e ser lavagem cerebral), sem
para aqueles que o freqüentam". O u em suas próprias palavras: "Apaixão em a m e n o r preocupação se a necessidade do deslumbrante é condição h u m a n a ou
relação ao cinema se localiza no empenho de promover distração, de ver algo novo, mera d e f o r m a ç ã o m o d e r n a — por meio da religiosidade que se e n c o n t r a em
algo que nunca existiu . Seus freqüentadores p r o c u r a m o i n c o m u m e o deslum- ambos, e faz isso com grande perícia. A tríade de sua fórmula é grosseira, mas
brante não meramente porque algo tenha essas características, mas sim p o r q u e extraordinariamente clara. C o m u m só golpe, transforma vício em f e n ô m e n o
eles possibilitam fazer com que se saia dos trilhos da mesmice opaca, u m a vez sensacional, a sensação é r e c o n h e c i d a c o m o f e n ô m e n o viciador e ambos se
que rompem a limitação, a algema, o cárcere da experiência cotidiana. Anseia- t o r n a m decifráveis c o m o manifestações de u m idêntico: do sagrado inflacio-
se pelo redentor naquilo que deslumbra: u m algo que satisfaça t o d o o sistema n a d o p o r meio da técnica m o d e r n a . Isso se torna manifesto eletronicamente
nervoso; um tipo de sensação messiânica final. Esta é u m a perspectiva q u e n o c h o q u e imagético e t e c n i c a m e n t e n a destilação das drogas pesadas, de
imediatamente tonteia Trótski. N o meio da frase, o ateu Trótski recua assustado m o d o q u e a ingestão de drogas se revela c o m o o equivalente d a percepção
diante do judeu Trótski. N o m o m e n t o em que ele ainda mencionava o e m p e n h o de c h o q u e s audiovisuais.
"de ver algo novo e que nunca existiu", ele prossegue: "com o p r o p ó s i t o de rir
e chorar, não da própria infelicidade, mas sim da alheia 29 . Mas o novo, o nunca
O destilado acaba com a tradicional cultura do beber [...] Enquanto a cervcja
antes visto é imediata e n o v a m e n t e r e d u z i d o ao já há m u i t o c o n h e c i d o , a
e o vinho eram consumidos em tragos e o processo de embriaguez era mais gradativo,
o copo de bebida destilada é rapidamente virado e o frenesi é, por assim dizer, uma
27 L. Trótski, Schnaps..., p. 66. conseqüência imediata. O destilado representa um processo de aceleração do frenesi
28 I Corintios 2,9. que se vincula internamente a outros processos de aceleração da modernidade. [...]
29 L. Trótski, Schnaps..., p. 66.
A maximização do efeito, a aceleração e a redução do preço fazem do destilado um dificilmente se percebe o corte feito entre elas, pois não cessam nem a mudança
filho genuíno da Revolução Industrial. O destilado é, na esfera do beber, aquilo que de cenário e das regulagens, e nem a violenta e tátil penetração no espectador.
a cadeira de tear mecânica é para a tecelagem 30 . Mas e n q u a n t o Eisenstein tinha a intenção de golpear o capital, por meio da
p r o p a g a n d a — " O filme soviético deve martelar o crânio" ou atuar como "um
Também nesse aspecto as drogas pesadas seguiram o e x e m p l o da bebida trator que ara a psique d o espectador n o sentido de uma desejada perspectiva de
destilada. Até mesmo no gesto da aplicação elas m o s t r a m que têm esse efeito classe" 33 — , Benjamin já considerava o sensório que deve preparar as imagens
brusco. Aquilo que o virar é para o aguardente o picar é para a heroína. Da-se fílmicas c o m o um p o s t o ativo historicamente decisivo. O filme necessita de
u • »
recipientes adequados e que saibam absorver corretamente seus projéteis 34 . Este
um tiro .
é um pensamento de espantosa semelhança com a passagem do Manifesto comu-
nista, citada anteriormente. Aquilo que lá se afirmou como condition moderne é
aqui f o r m u l a d o c o m o condition dufilm. O "contínuo abalo de todos os estados
O filme c o m o projétil
sociais" tem sua concretude fílmica nas seqüências ininterruptas dos choques
Quando Benjamin procurou uma comparação adequada para a imagem fílmica, audiovisuais. E, n o final das contas, ambas as citações colocam aquilo a que a
ocorreu-lhe o termo "projétil". O processo fílmico é "em p r i m e i r o lugar u m descrita condition obriga: Marx e Engels mencionam a capacidade de observar a
processo tátil que se f u n d a m e n t a na m u d a n ç a dos cenários e das regulagens, própria situação com "olhos sóbrios"; já Benjamin alude a um estado de espírito
as quais p e n e t r a m a b r u p t a m e n t e n o espectador", o m e s m o e s p e c t a d o r que, intenso que nada mais é d o que a forma adequada de olhar sobriamente o filme
diante da recepção do filme, não tem n e n h u m a chance de observá-lo de f o r m a c o m o meio de comunicação de massa. Mas c o m o isso é possível se as pessoas
não s u p o r t a m a pressão da sobriedade ? Esta foi a pergunta presente no Mani-
contemplativa e detalhadamente.
festo comunista; já a questão correspondente ao filme é a seguinte: c o m o isso é
possível, se o filme, através de seus choques, impossibilita o estado de espírito
O espectador quase não fixa a imagem nos olhos, pois quando ele o faz, ela já
mudou. Ela não pode ser fixada. Duhamel, que detesta o filme e não compreende que é necessário para absorver produtivamente esses mesmos choques?
nada sobre seu significado, mas sim algo de sua estrutura, registra essa situação acima Benjamin se ocupou dessa resposta em u m de seus mais interessantes escritos:
da seguinte maneira: "Eu não posso mais pensar aquilo que desejo. As imagens em A infância berlinenseem 1900, naquilo que ele denominou como "procedimento
movimento ocuparam o lugar de meus pensamentos." De fato, essa seqüência de de vacinação". "Eu [...] clamo pelas imagens que tratam, n o exílio, de despertar
associações, que contempla as imagens, é imediatamente rompida em função dessa
m i n h a saudade da forma mais intensa: as imagens da infância. O sentimento
mudança. Nisso se fundamenta o efeito de choque do filme que, tal como todo efeito
de choque, deseja ser absorvido por um estado de espírito intenso .
3 3 S. Eisenstein, Film. Auge - Faust - Spracbe, p. 27.
3 4 N ã o se q u e t dizer, c o m isso, q u e os filmes de Eisenstein são t ã o p r o p a g a n d í s t i c o s , algo q u e sc d á a e n t e n d e r
Evidentemente, Eisenstein foi o p a d r i n h o dessa situação com o seu prin- em v i r t u d e dc m u i t a s declarações feitas pelo p r ó p r i o d i r e t o r ou em f u n ç ã o das perspectivas de seus clientes.
Seu inegável t a l e n t o para a p r o d u ç ã o dc imagens e s e q ü ê n c i a s carregadas de tensão passa desapercebido
cípio da montagem 3 2 . C e r t a m e n t e , o c h o q u e das e com as imagens se t o r n a , cm c a d a p l a n o c u j a falta de a m b i g ü i d a d e é identificada. N a verdade, exige-se mais d o e s p e c t a d o r d o q u e o
m a r t e l a r em seu c é r e b r o ou o arar de sua a l m a , o u seja, exige-se u m p o n t o de vista i m a g é t i c o novo, acele-
para Benjamin, o p o n t o angular de uma posterior teoria d o filme. As imagens
r a d o e i n c r i v e l m e n t e ativo. u O b j e t i v a e compositoriamente> s e m p r e m e esforço p a r a q u e as imagens n u n c a
fílmicas são, de acordo com Benjamin, projéteis, e o são p o r meio de seu feitio. se restrin jam a u m a s p e c t o presente na tela. O o b j e t o deve ser escolhido e desenvolvido, ele deve ser colocado,
n o c a m p o de visão, c o m a i n t e n ç ã o dc q u e se origine, ao lado da apresentação, u m c o m p l e x o de associações
Mesmo quando são montadas umas em relação às outras, de forma não tão veloz, capaz d c r e c u p e r a r a carga racional e e m o c i o n a l d a s e q ü ê n c i a . [...] O véu de nuvens verticais n o filme Ivá,
o terrível, de Kasan, não é s i m p l e s m e n t e a manifestação de u m f e n ô m e n o meteorológico, mas sim a imagem
d a s o b e r a n i a d o s Czares. E a colossal s i l h u e t a d e s f i g u r a d a d o g o n i ô m e t r o sobre a cabeça d o moscovita
30 W . Schivelbusch, Das Paradies..., p. 164. Z a r c n n ã o foi s i m p l e s m e n t e p e n s a d a c o m o u m efeito de luz, mas sim associada à imagem de u m cardiogra-
m a . q u e r e p r e s e n t a a o r d e m de idéias de u m político perdido e m suas reflexões'' (Idem, op. cit., p. 39). E m
31 W . Benjamin, Das Kunstwerk im Zeitalter seiner tcchnischcn Reproduzierbarkeit, p. 502.
geral, é d o feitio dos filmes de propaganda que eles a praticam q u a n d o não são explicitamente filmes de propagan-
32 C o n f e r i r a instrutiva d o c u m e n t a ç ã o dc S. K r a m e r , Monticrte Bi/der — Ziir Bedeutung derfilmischen da. N o caso de Eisenstein, ocorreu e x a t a m e n t e o inverso, pois a i n t e n ç ã o p r o p a g a n d í s t i c a é confessada aber-
Montage jur Walter Benjamins Denkcn und Schreiben, in A. L e m k e e M. S c h i c r b a u m (eds.), In die Hóbe t a m e n t e , m a s o filme vai além disso.
jallen — Grenzgánge zwischen Litcratur und Philosophie. W ü r z b u r g , 2000.
de saudade deve cornar-se o s e n h o r d o espírito da m e s m a f o r m a c o m o a va- de c o m p o r t a m e n t o que o preparam para a sua tarefa historicamente universal:
a revolução da sociedade capitalista.
cina deve assenhorear-se d o c o r p o sadio. Através disso, p r o c u r e i conservar
o juízo não na irreparabilidade f o r t u i t a e biográfica d o passado, mas sim na O s muitos amigos falsos que Benjamin ganhou postumamente por causa da
sua irreparabilidade socialmente necessária", de m o d o "que, nesta experiência, sua opção de distração em relação às esferas midiática e artística não se interessa-
se abdicou t o t a l m e n t e dos traços biográficos [...]. Eu me esforço para p o d e r ram de f o r m a alguma p o r tal revolução. Na verdade, eles desejaram uma nova
apoderar-me das imagens, nas quais a experiência da grande cidade se precipita arte, novos meios de comunicação de massa e superlativos estéticos. N o entanto,
na criança de classe burguesa". "Percebe-se m u i t o b e m , p o r meio delas ...], o t e o r e m a da destruição é um p e n s a m e n t o apocalíptico, pois a despedida do
como muitas das que aqui f o r a m m e n c i o n a d a s p r o p o r c i o n a m , mais tarde, a m u n d o burguês que esse pensamento proclama é, principalmente, uma despe-
35
proteção que fora destinada à infância" . Benjamin, o solitário e sem recursos, dida da arte e não a defesa de um conceito de arte dilatado 3 8 . Para Benjamin,
intelectual burguês no exílio, apartado de sua família e de sua classe, e q u e fora a arte não tem mais n e n h u m f u t u r o estético, pois sua aura se desvaneceu, sua
destituído de todas as gratificações com as quais o m u n d o burguês c o r r o m p e promessa de felicidade se esgotou. Tal promessa de felicidade da arte não se
os seus membros, se consome, não obstante t u d o isso, de desejo da infância deixa c o n s e r v a r viva p o r meio de gerações de obras de arte que ainda estão
preservada, a mesma infância que ele experimentou n o regaço deste m u n d o : p o r vir, mas apenas p o r meio da sua transformação em ação política. E os cho-
ele sabe que não tem o u t r o remédio, além de se vacinar c o n t r a a s a u d a d e da ques audiovisuais são eleitos como os que possibilitam tal transformação. Para
infância através das imagens dessa mesma infância, ou seja, com imagens de Benjamin, tais choques se caracterizam c o m o o coveiro da arte, assim c o m o o
uma proteção falsa porque provenientes de um m u n d o falso, o m u n d o capi- proletariado é, no Manifesto comunista, o coveiro da sociedade capitalista. Apenas
talista burguês. Entretanto, foram imagens d a m e t r ó p o l e de g r a n d e f u t u r o , tais c h o q u e s não são associados, de acordo com Benjamin, àquela certeza de
que devem ser incondicionalmente preservadas para um m u n d o melhor (de modo vitória que Marx e Engels ainda observavam no caso do proletariado. Benjamin
que antecipem uma experiência social futura 3 6 ), u m m u n d o no qual elas, c o m o se sabe m u i t o bem que as forças que sepultam essa sociedade não devem ser as
fossem uma casa que protege verdadeiramente, p o d e r i a m receber seus legíti- forças redentoras de uma sociedade melhor. Neste sentido, segundo Benjamin,
mos moradores. A reflexão de B e n j a m i n c o n d u z à seguinte q u e s t ã o : se essas os choques audiovisuais se transformam n o fiel da balança histórico-mundial.
imagens p r o p o r c i o n a r a m a ele, f i l h o da burguesia, o êxito da p r o d u ç ã o de O u eles deslocam as modernas forças produtivas para um estado de distração
uma vacina mental que lhe possibilitou suportar a difícil despedida d o m u n d o produtiva e, com elas, exercitam o "intenso estado de espírito" que os capacita a
burguês — da classe social de que nunca foi beneficiário neste m u n d o , da qual revolucionar integralmente a formação social moderna, ou... A alternativa foi,
nunca recebera proteção, e que não deveria sofrer com q u a l q u e r s e n t i m e n t o no máximo, insinuada por Benjamin, mas ela está presente no subtexto obscuro
de despedida deste m u n d o —, ele não deveria estar com a razão ao se vacinar, de t o d a a sua reflexão. Se os choques não conseguirem transformar a debilitada
através dos meios mais desenvolvidos deste próprio m u n d o , c o n t r a os seus de- promessa de felicidade da arte em realidade política, então eles simplesmente
saforos? Por detrás da esperança de Benjamin q u a n t o à força revolucionária do atiram até arrebentá-la. A destruição da aura por meio do filme não significa, de
filme se encontra a idéia secreta de que os choques audiovisuais poderiam ser a acordo com Benjamin, q u e a arte possa continuar a existir mesmo sem a aura,
vacina que tornariam o proletariado imune às contemplativas concepções de mas sim que ela está n o fim. O que aparece c o m o arte nova é m e r a m e n t e arte
m u n d o e de arte burguesa. Em vez delas, o proletariado seria c o n d u z i d o a um antiga apodrecida. Q u e a arte progredisse infatigavelmente; que ela, p o r meio
estado de distração salutar, f u n d a m e n t a d o "muito menos em um reparar tenso
do que num perceber passageiro" ; que exerce u m a nova forma de percepção e 3 8 N e s t e s e n t i d o , N o r b e r t Bolz, d a f o r m a mais inescrupulosa, distorceu o p e n s a m e n t o d e B e n j a m i n . Afirma
B o l z : "Ao c o n t r á r i o d e seu a m i g o A d o r n o , q u e p e r m a n e c e u m e l a n c o l i c a m e n t c fixado n u m c o n c e i t o d e
a r t e b u r g u e s a , B e n j a m i n o p t o u , n ã o sem dor, p o r u m a d e s p e d i d a d e c i d i d a desta e, c o m isso, corporificou
a "interface e n t r e a galáxia dc G u t e n b e r g c o m u n d o dos novos meios de c o m u n i c a ç ã o de massa" ( N . Bolz,
35 W . Benjamin, Berliner Kindheit um neunzehnhundert, Ges. Schrifien [Obras completa). F r a n k f u r t , 1989, " S c h w a n e n g e s a n g d e r Gutenberg-Galaxis", in \V. Van Rcijen (org.), Allegorie und Melancbolie. F r a n k f u r t ,
vol. II, p. 385. 1992, p. 238). G e r l i a r d S c h w c p p e n h ã u s e r asseverou o necessário sobre isso n o texto: "Bildkraft, prismatis-
36 Ibidem. c h e A r b e i t u n d ideologische Spiegelweltcn. M e d i e n á s t h e t i k u n d P h o t o g r a p h i e bei Walter Benjamin", in
Die Flucbtbahn des Subjekts. M ü n s t c r . 2001, p. 197.
37 W . Benjamin, Das Kunstwerk..., p. 505.
interessados no bem coletivo" 43 . As diversões de massa foram muito ambivalen-
do progresso técnico e da m u d a n ç a na f o r m a de percepção, se enriquecesse
tes: p o r um lado, foram focos de excitação incontrolável (tal como o carnaval)
incessantemente como arte midiática, arte conceituai, t o d o tipo de instalações
e, com isso, formas originais de revolta; por outro, representaram um prejuízo
e obras publicizadas, até poder chegar a p o n t o de se elevar, obra a obra, açao
do proletário contra si próprio, uma autodestruição na forma do alcoolismo,
por ação ao dia de São Nunca, ora, esta é uma concepção t a n t o estética q u a n t o
da dívida e d o a b a n d o n o . Politicamente falando: foram tão revolucionárias
historicamente incompatível com todo o pensamento de Benjamim O s choques
q u a n t o reacionárias.
fílmicos t a m b é m devem acabar com ela. D e u m m o d o ou de o u t r o , eles sao
Mas h á u m certo cinismo q u a n d o se repreende a massa esgotada que "pro-
pensados como o início do fim, pois se eles não são salvadores, e n t ã o se t o r n a m
cura distração, ao passo que a arte [...] exige concentração". E n t r e t a n t o , isso
destruidores, de tal modo que a h u m a n i d a d e "vive sua própria destruição c o m o
39
não é t o t a l m e n t e incorreto. E mais do que em relação à arte, exigiu-se concen-
u m prazer estético de primeira ordem" .
tração d o proletariado n o seu cotidiano. Se eles não se concentrassem na pró-
O otimismo cansativo, com o qual Benjamin associou a força de distração
pria f o r m a ç ã o , nas f o r m a s de organização e de convívio, não seria possível
do filme, é apenas um verniz finíssimo de um subsolo desesperado e t a m b é m
n e n h u m a f o r m a de resistência contra a exploração. Benjamin não quis ouvir o
fraco, d o p o n t o de vista argumentativo, algo que é m u i t o raro em relação a
m o m e n t o de verdade presente na falsa fanfarronice burguesa em relação à arte,
seus textos. Ele t o m a como alvo "a antiga lamentação de que a massa procura
pois ele se manteve, p o r demais intransigente, n u m a simples alternativa. " O
distração, ao passo que a arte exige c o n c e n t r a ç ã o m e n t a l p o r p a r t e de seus
concentrado mergulha na obra de arte diante de si [...] Já a massa distraída, por
40
observadores" . Benjamin foi alérgico a isso, mas ele ouviu a i n d i g n a ç ã o d o
sua vez, m e r g u l h a a obra de arte em si própria" 4 4 . Trata-se de uma bela frase,
burguês saturado sobre a falta de cultura das diversões de massa, que a própria
mas c o m o é possível m e r g u l h a r uma obra de arte em si p r ó p r i a ? B e n j a m i n
massa persegue, desde que ela foi violentamente expulsa do seu contexto de vida
expõe o alicerce da obra: " O arquiteto apresenta o p r o t ó t i p o de uma obra de
rural e procurou compensar sua desconsolada existência com bebida destilada,
arte, cuja recepção ocorre na distração e através d o coletivo. As obras são rece-
jogos de azar, rinhas e brincadeiras rudes. C o m o uma das reações à Revolução
bidas de uma dupla maneira: por meio do uso e da percepção, ou melhor, tátil
Industrial, especificamente na Inglaterra, observa-se a c a m p a n h a d a recreação
e opticamente" 4 5 . O s turistas olham embasbacados para as obras famosas. Já "a
racional, sendo que esta foi a primeira medida da política de t e m p o livre m o -
recepção tátil ocorre em meio t a n t o à atenção q u a n t o ao hábito" ' 6 . É algo que
derna. " N e n h u m álcool e dança, n e n h u m d i v e r t i m e n t o rude e c o m e m o r a ç õ e s
acontece q u a n d o se está diante das obras mencionadas, ou se mora, se trabalha,
devassas, nada disso é útil aos trabalhadores, mas sim u m a c o n d u t a de vida
se compra ou se flana nos seus arredores, ou quando se freqüentam determinados
moderada e econômica, a reflexão e o aprendizado religioso" ' E interessante
eventos. Na verdade, são apenas construções que representam objetos recebidos
o tipo de aliança variada que se une nessa exigência. Ela se origina de u m a igreja
tatilmente pelas massas, e muito raramente são obras de arte. As massas podem
nomeadamente protestante. Devoção e oração, em vez de bebida e jogo, foi o
habitar, utilizar e devastar as construções, mas não mergulhá-las em si. Isso não
seu lema. D e seus patrões, nota-se a aliança mais severa. Eles "precisavam de
é válido nem sequer para o caso do estádio de futebol. Q u a n d o muito, as cons-
uma força de trabalho que trabalhasse de 7 0 a 80 horas p o r semana, que fosse
truções habitadas, nas quais se confia e que são casualmente percebidas no meio
resistente, incansável, sóbria e pontual e que se adaptasse a essas exigências n o
cotidiano, p o d e m tornar-se parte integrante de uma percepção familiar.
42
seu tempo livre" . Já nos sindicatos dos trabalhadores, observa-se a mais com-
penetrada aliança: "eles estavam convencidos de que um f u t u r o m e l h o r seria Evidentemente, Benjamin se ocupa com esse estado de percepção, pois tal
conquistado apenas com proletários e operários obedientes, disciplinados e estado deve p r o p o r c i o n a r u m m o d e l o de c o m p o r t a m e n t o h e g e m ô n i c o . " O
distraído t a m b é m p o d e f o r m a r hábitos. E mais, o fato de q u e d e t e r m i n a d a s
4 3 Ibidem.
39 W. Benjamin, Das Kunstwerk..., p. 508.
4 4 \V. Benjamin, Das Kunstwerk..., p. 504.
40 Idem. op. cit., p. 504.
45 Ibidem.
41 K. Maase, Grenzenloses Vergnügen. Der AufstiegderMassenkultur ISSO-1970. Frankfurt, 1997, p. 49.
46 Idem, op. cit., p. 505.
42 Ibidem.
permite o demorar-se na imagem isolada, mas sim remete imediatamente, e aos
atividades prevaleçam na distração prova q u e elas se diluíram a p o n t o de se
solavancos, a atenção para as próximas imagens. Porém ele distrai por meio de
transformar n u m hábito" 4 7 . Tal raciocínio é correto, mas fica a p e r g u n t a : de
um confisco ofensivo da capacidade de atenção. Ela é desviada de seu cotidiano
que modo se forma esse hábito? A n d a r sozinho, comer e regular a digestão se
e exige mais projéteis imagéticos do que se podem absorver. Mas a distração, que
costuma aprender quando, na infância, a atenção é t o t a l m e n t e canalizada para
é o b t i d a por meio do desviar sistemático, é totalmente diferente da distração
tais atividades. E na velhice, q u a n d o tais forças esmorecem, essas atividades
que se t e m através da adaptação a um ambiente que permanece sempre igual.
elementares podem perder seu caráter acidental e, n o v a m e n t e , transformar-se
B e n j a m i n confundiu ambos os momentos como se os choques fílmicos, que são
em atividades que exigem maior concentração. Aquilo que prevalece, p o r meio
permanentemente alternados, pudessem engendrar uma forma tranqüila de percep-
do hábito, na distração é, de forma alguma, a p r e n d i d o por meio da distração.
ção distraída, como se eles pudessem produzir uma construção na qual se confiasse.
Todo aprendizado, até mesmo o aprendizado das funções mais primitivas, exige,
Isso significa o mesmo que exigir que a criança d u r m a e n q u a n t o nela se fazem
em princípio, atenção. O hábito nada mais é d o q u e atenção c o m p e n e t r a d a ,
cócegas i n i n t e r r u p t a m e n t e , em vez de niná-la por meio de uma canção calma
mecanizada, ligada em redes neurais. Por isso, é inadmissível que distração e
e de u m balançar compassado.
concentração se coloquem superficialmente u m a em relação à o u t r a . Isso se
faz ainda menos evidente no salto da arquitetura para o filme. "A recepção na E n t ã o esta é a q u e s t ã o crucial do filme: c o m o é possível ocorrer aquela
distração que se faz perceptível na esfera da arte com ênfase crescente, e que absorção produtiva dos choques, mencionada anteriormente, se esses mesmos
é sintoma das m u d a n ç a s mais radicais da percepção, tem, n o caso d o filme, choques impossibilitam o estado de espírito necessário para que aconteça tal
seu próprio instrumento de exercício. O filme vem ao e n c o n t r o dessa f o r m a absorção ? Então seu efeito agitador é, ao mesmo tempo, desordenado, seu efei-
de recepção através de seu efeito de choque" 4 8 . Mas c o m o ? D e a c o r d o c o m to mobilizador é paralisado e seu efeito que p r o d u z distração é triturado. H á
o raciocínio de Benjamin, assim c o m o t o d o t i p o de p e r c e p ç ã o d i s t r a í d a da mesmo u m a revolução no sensório, mas não no sentido desejado por Benjamin.
paisagem de uma construção se t r a n s f o r m a n u m h á b i t o , tal p e r c e p ç ã o deve Pelo contrário, o "contínuo abalo de todos os estados sociais", abalo este que se
ser precisamente exercitada por meio dos choques fílmicos. Mas c o m o isso é origina d o mercado absoluto, se traduz na metralhadora audiovisual e penetra
possível, se cada choque diz o seu próprio "olhe para cá"? A paisagem de u m a cada forma de intuição da sensação, que foi destacada no início deste livro e para
construção só pode ser percebida distraidamente caso tais choques não existam, a qual se retorna sob um novo p o n t o de vista: o da distração concentrada.
ou seja, caso ela seja tocada, habitada e e n c o n t r a d a r o t i n e i r a m e n t e . Já o filme
distrai as massas de outra maneira: q u a n d o ele as reúne e m g r a n d e s salas, de
modo que as massas se tencionam e se fascinam diante das seqüências de imagens Distração concentrada
emitidas pelo filme. Elas são táteis, mas não p o r q u e aludiriam a u m c o n t a t o
rotineiro, mas sim porque elas p r o p o r c i o n a m um c o n t a t o fora d o c o m u m : o Todos precisam de distração. A distração mais tranqüila é o sono, n o qual o
do choque. É ilusória a concepção de que o público senta d i s t r a i d a m e n t e na o r g a n i s m o ajusta t o t a l m e n t e o seu a u t o c o n t r o l e desperto e objetivo que foi
cadeira do cinema da mesma forma que senta na cadeira das casas que servem d e n o m i n a d o "eu". O deixar-se impulsionar físico ou mental, o estado de relaxa-
café e, não obstante, se comporta c o m o "examinador", c o m o " a p r e c i a d o r " E m e n t o distraído é, visto dessa forma, c o m o uma f o r m a preliminar de sono, na
o público do cinema não se t o r n o u "examinador" ou "apreciador" nos últimos qual o "trabalho" regressou no sono, o que significa que nunca cessa totalmente
30 anos. O filme distrai aqueles que o assistem, n o sentido de q u e eles se esque- o processamento d o que fora vivenciado n o estado de vigília. Mas o trabalho
cem de suas necessidades pessoais no período de duração da fita excitante. E, é reduzido a um m í n i m o . Porém a formação social m o d e r n a interveio no rit-
enquanto o filme distrai, t a m b é m atua em cada sistema nervoso, pois ele não mo natural de p r o d u ç ã o da tensão — e de sua redução —, da concentração e
da distração, de uma maneira inaudita. A p r o d u ç ã o em massa capitalista não
47 Ibidem. apenas trouxe consigo a jornada de trabalho e t o r n o u independentes as fases
4 8 Ibidem. do trabalho e do descanso das fases d o dia e da noite, c o m o também penetrou
49 Ibidem.
no tempo livre ao regulá-lo. Por volta de meados d o século XIX, com o cortejo e diversão — os quais foram abastadamente entremeados ao longo do dia de
triunfal da fotografia, a imprensa popular, os folhetins, romances sensacionalistas trabalho artesanal, cm meio a um divagar, durante o qual os trabalhadores se
também começaram a i n u n d a r o mercado e e n c o n t r a r a m , ao lado dos salões ocupavam, entrementes, com as crianças ou com a instrução — se expressam,
de festa, dos bulevares e dos teatros de revista, u m a massa de c o n s u m i d o r e s posteriormente, n o "bater papo", até que, gradativamente, passam para o final
mista e variada. C o m o reação aos excessos de final de semana, praticados pelo do dia de trabalho e, pela primeira vez, se isolam do processo de trabalho, de
proletariado nos bares, nas ruas e nos salões de dança, foram tomadas medidas tal m o d o que duas esferas separadas são estabelecidas: na fábrica, na loja ou no
por meio de uma recreação racional. Ela possibilitou o i n c r e m e n t o d o prazer escritório nada mais se faz d o que trabalhar, com o m í n i m o possível de pausas.
da leitura nos proletários, apresentou-lhes o reflexo — e t a m b é m o lixo — da Mas, q u a n d o se deixa o p o s t o de trabalho, abre-se um vácuo tão inorgânico
cultura burguesa, ao mesmo t e m p o em que t o r n o u n o t ó r i o o fato de o burguês q u a n t o a atividade cansativa d o serviço, atividade esta que é substituída pelo
ter mais prazer na escória cultural do que em suas grandes obras de arte, com seu equivalente exato: o t e m p o livre. Ele é mesmo um p r o d u t o do m o d o de
as quais se fanfarronava. E então, tal recreação preparou gradativamente cada p r o d u ç ã o capitalista. Agora o t e m p o se torna perceptível, o mesmo tempo que
disposição de massa sensório-estética que o c h o q u e fílmico f u l m i n a c o m o se deve ser rejeitado q u a n d o se manifesta na forma de um desejado e vazio boce-
fosse um raio. Assim como outrora a fotografia concentrou, n u m único p o n t o , jar. M a s o t e m p o era t a m b é m p r e e n c h i d o com distrações pré-modernas, tais
a litografia, o panorama, a exibição nas feiras, e os filmes consubstanciaram os c o m o os restos da romaria e da feira anual, que foram passados para o ambien-
espetáculos de massa em si e os transformaram em imagens seqüenciais claras, te d o proletariado pequeno-burguês, ou das festas cortesãs que foram assimi-
velozes e impactantes, da mesma f o r m a todas as sensações se t o r n a r a m legíveis ladas pelas camadas sociais elevadas.
na imprensa e nos escritos sensacionalistas. Este é u m resultado sintético de Porém a "real" subsunção d o t e m p o livre se inicia com o filme. As várias
primeira categoria, pois, por meio dessas imagens, o filme p ô d e expor seu efeito formas de diversão são canalizadas n u m meio que exige a atenção de todas
de distração, exatamente do mesmo m o d o c o m o o m e r c a d o a p r e s e n t o u seu as classes e categorias profissionais, de tal maneira que a forma específica de
efeito de exclusão graças ao seu efeito de integração. exigência dos nervos, que a vida industrial na grande cidade traz consigo tanto
no p o s t o de trabalho q u a n t o na rua, t a m b é m passa para a esfera na qual o lazer
Portanto, o f u n d a m e n t o dos choques fílmicos q u e distraem é a concentra-
deveria realizar-se. Esse processo foi expresso, de f o r m a magistral, n u m filme
ção. Por um lado, os mais diferentes p r o d u t o s e programas de distração foram
antigo: Tempos modernos. O m o v i m e n t o brusco — que perpassa t o d o o corpo
empacotados em um meio de comunicação de massa. Por outro, o t e m p o livre é
de u m trabalhador numa linha de montagem, cuja tarefa consiste unicamente
incorporado ao sistema de trabalho de uma maneira jamais vista anteriormente.
em fixar, s i m u l t a n e a m e n t e , dois parafusos n u m p r o d u t o que passa diante de
Q u a n d o a Revolução Industrial concentrou as massas h u m a n a s sem recursos
si — se i n d e p e n d e n t i z a na f o r m a de u m tique que penetra todas as situações
nas grandes fábricas, e as obrigou a g a n h a r seu s u s t e n t o com a execução de
vividas pelo trabalhador e que foi registrado, de forma notável, pela mímica de
gestos mecânicos sempre idênticos n o manuseio de grandes máquinas, conse-
C h a p l i n . Tal m o v i m e n t o deve ser visto c o m o m ô n a d a , na qual a "subsunção
quentemente a relação de p r o d u ç ã o capitalista conseguiu o b t e r para si t a n t o
real" d o t e m p o livre à "lei de movimento" da sociedade m o d e r n a se cristaliza
os meios quanto a força de trabalho adequados. Marx d e n o m i n o u esse proces-
de f o r m a exemplar. Por um lado aqui se manifesta, repentina e extremamente,
so "a subsunção real do trabalho ao capital" em oposição à m e r a "subsunção
o significado d o t r a b a l h o assalariado: p o r meio d o c o n t r a t o de trabalho, o
formal"' 0 , na qual o trabalho assalariado m o d e r n o a i n d a faz uso dos instru-
trabalho assalariado deve ser concentrado e reduzido a determinadas funções,
mentos de trabalho e de técnicas artesanais pré-modernas. O r a , de f o r m a aná-
sendo que, n o pior dos casos, a uma única. A decomposição do trabalho humano
loga à esfera da produção, pode-se aplicar tal raciocínio à esfera d o lazer que,
em d e t e r m i n a d a s operações mecânicas decompõe, necessariamente, também
sob a forma de sociabilização capitalista, apresenta uma fase de subsunção "for-
as pessoas empregadas. Q u a n d o uma indústria faz uso de determinadas capaci-
mal" e outra de subsunção "real". O primeiro passo consiste n o fato de que lazer
dades humanas em períodos separados, ela as arranca de seu contexto corporal
e psicossocial, no qual elas, bem ou mal, se desenvolveram n u m d e t e r m i n a d o
50 K. Marx, Das KapitalI, p. 533.
indivíduo. Desta forma, tais capacidades se tornam funções e transformam t u d o um slapstick após o outro. A transformação do impulso industrial em diversão
aquilo que o indivíduo ainda conserva como particularidade e capacidade. E isso praticada n o t e m p o livre é t a m b é m a continuação do trabalho industrial com
também no sentido de u m arsenal de funções virtuais. A força de concentração outros meios. "Após um dia de trabalho, me relaxa muito quando sento diante
da atividade de trabalho é, concomitantemente, u m a força de decomposição, de da televisão e me deixo irrigar", dizem os trabalhadores, e eles não mentem. E
distração, e exatamente esse efeito duplo passa para a imagem fílmica e para sua isso da m e s m a f o r m a c o m o o organismo, que se adapta ao consumo de doses
conduta r e c e p t i v o - e s t é t i c a correspondente. A pancada, c o m a qual o trabalha- de nicotina, álcool e cocaína, t a m b é m relaxa ao consumi-las. Por meio de tal
dor da linha de montagem fixa os parafusos e, dessa forma, se d e c o m p õ e c o m o relaxamento, pôde-se demonstrar o que se exigiu do sistema nervoso, que não
pessoa presente nos tempos modernos, encontra seu c o r r e s p o n d e n t e n o c h o q u e suportaria mais, em estado desperto, uma quantidade menor de excitação e de
da imagem fílmica. De m o d o f u l m i n a n t e , o c h o q u e c o n c e n t r a a atenção n u m tensão. E isso náo anula de m o d o algum o fato de que os choques audiovisuais,
ponto, para poder triturar essa concentração através de incontáveis repetições. que oferecem relaxamento, apenas continuam, de outra forma, a fazer aquilo que
O meio de concentração é, propriamente, o meio de decomposição. A impressão a r o t i n a de t r a b a l h o deixa transparecer: a "subsunção real" do t e m p o livre.
dominante, que a imagem fílmica desempenha em cada cultura sem filme e que é Mas a a d a p t a ç ã o dos p r o c e d i m e n t o s de t e m p o livre à lei de m o v i m e n t o da
penetrada por essa imagem - leem-se aquelas lembranças, que foram jovens como p r o d u ç ã o q u e d e u , n o início do século XX, com o filme, o seu grande salto
a juventude do próprio filme51 ou, c o m o ainda hoje se vê em certas regiões d o qualitativo teve, nos anos 1970, um p o n t o de mutação memorável. C o m a re-
mundo, nas quais a televisão já chegou, famílias inteiras perseguindo atentamente volução microeletrônica, iniciou-se, ao mesmo tempo, uma subsunção reversa:
cada movimento que ocorre na tela —, seguramente t a n t o se desgasta q u a n t o da esfera d a p r o d u ç ã o à b a t u t a da n o r m a do t e m p o livre. A tela, o g r a n d e
exige a sua conservação. Em seu encanto, o tiro ótico cativa de f o r m a irresistível, recheio d o t e m p o livre, penetrou p r o f u n d a m e n t e , por meio d o computador,
pois através de uma repetição permanente ele orienta, de m o d o gradativo, t o d o n o m u n d o d o t r a b a l h o ; a coordenação de processos inteiros de p r o d u ç ã o e
o sensório em si, tanto fisiológica q u a n t o esteticamente, até se t o r n a r impres- a d m i n i s t r a ç ã o perpassa p o r ela, de tal m o d o que se apresenta c o m o o instru-
cindível, como se fosse uma injeção de que o organismo precisa diariamente. E m e n t o de e n s i n o d o f u t u r o .
porque toda injeção t a m b é m anestesia, torna-se u m a conseqüência inevitável E m t o d o s os lugares nos quais a tela assume esse papel, realiza-se aquilo
a exigência de doses mais poderosas. A vacina se revela c o m o substância que que t e m o aspecto de u m a unio mystica [união mística]: o c h o q u e fílmico e
vicia. Porém ela é ingerida na condição de vacina, mas não tal c o m o Benjamin a atividade de trabalho se t o r n a m um só. O imperativo categórico "olhe para
pensou, ou seja, como estimulante para a realização da revolução d o processo cá" se t r a n s f o r m a , ao mesmo tempo, em necessidade econômica. As imagens
de trabalho capitalista. Ela é ingerida para poder imunizar-se contra esse efeito de c o m p u t a d o r n o local de trabalho agem, em comparação com aquelas que
triturador e extrair prazer de seus impulsos. N o caso da apresentação tragicô- passam c o m o u m raio nas telas da televisão e do cinema, na maioria das vezes
mica que o clown Chaplin exibe, pode-se ver claramente q u e não se precisou c o m o sedativos. Elas se m o v i m e n t a m pouco, quase nada, não provocam sola-
de nenhuma contribuição mental para a r e p r o d u ç ã o d o tique a n t e r i o r m e n t e vancos espetaculares, tão logo apresentem cada focagem com a autoridade de
mencionado. C o n t u d o , ela é um highlight e isso não m u d a o fato de que, ao u m d i t a d o e c o n ô m i c o , tão logo os dados, os quais a b r u p t a m e n t e eu acesso,
longo do tempo, a sensação de prazer proveniente do c h o q u e representa uma me acessem p a r a q u e sejam trabalhados ou deletados. E o n d e a atividade de
considerável reviravolta que estressa e desgasta o sistema nervoso. É cansativo trabalho se t r a n s f o r m a em c h o q u e imagético, t a m b é m todos os choques ima-
géticos e sonoros, os quais vão ao éter c o m o pura diversão ou p u r o passatempo,
adquirem a aparência de tarefas de trabalho virtuais. A seriedade da vida palpita
51 Por exemplo: " M i n h a juventude e a d o cinema t r a n s c o r r e r a m p a r a l e l a m e n t e e. na efervescência intelectual, neles. T o d a a existência começa a depender, de uma forma absurda, de estar
q u e eu vivi nessa época tão f r u t í f e r a , era-me d e m a s i a d a m e n t e difícil a p a g a r o f o g o juvenil — q u e n ã o
precisava dc n e n h u m a razão externa para se manifestar. Era difícil evitar a excitação q u e se a p o d e r a v a dc presente, de ser percebido ou perceber, de estar esteticamente presente, enfim,
m i m q u a n d o me deparava c o m o q u a d r o mais recente de Picasso, a o b r a mais nova d c Stravinsky ou n o de estar "aí". Aquilo que se m o s t r o u n o primeiro capítulo, em sua face externa,
caso dos filmes a q u e eu, ainda u m a l u n o de ginásio, c o m f e r v o r religioso, ia assistir t o d a s as tardes de
d o m i n g o n u m a p e q u e n a sala escura no Q u a r t i e r Latin ou cm M o n t m a r t r e " ( C . Lévi-Strauss, Ein llymnui c o m o a luta pelo "aí", pela percepção, pela imagem e pelo logotipo, produziu,
an dieJungend. F r a n k f u r t e r R u n d s c h a u , 21 mar., 1995, p. 8).
gradativamente, sua evidência fisioteológica e p o d e ser r e c o n h e c i d o c o m o um indivíduos. Entretanto, a desapropriação e a exploração foram mais facilmente
pressionar vício-saudosista para o contato com a vacina scnsório-transcendental identificadas nas sociedades pré-modernas. As definições de ambos os conceitos
redentora que devem aplicar os projéteis estéticos. eram feitas com p r o c e d i m e n t o s elementares. Desapropriar: tomar de alguém
o que lhe pertence, c o m o se ele fosse sempre o dono, seja por meio do roubo,
da herança, da doação, da descoberta, da geração, da compra, do trabalho ou
Exploração: econômica - física - estética de o u t r a coisa. Explorar: tirar de alguém os frutos de seu trabalho, os produtos
nos quais alguém empregou atenção, doação e força, ou seja, algo de si próprio,
A metamorfose, a inflação, a codificação d o s a g r a d o a n t i q u í s s i m o n o cho- com o objetivo de torná-los prazerosos física ou esteticamente. Este é um caso
que imagético m o d e r n o percorreram um longo c a m i n h o . Já a carreira q u e o especial de desapropriação, mas um caso especialmente agravado, pois se trata
choque imagético fez nos últimos 150 anos foi v e r t i g i n o s a m e n t e rápida. Ele de uma cisão p r o f u n d a na relação íntima entre p r o d u t o r e produto, bem como
foi, na forma da fotografia, o símbolo m o n á d i c o da Revolução Industrial; já no manancial de riqueza social. Desde tempos imemoriais faz parte do processo
na condição de imagem fílmica, o c h o q u e foi a f o r m a de a p a r ê n c i a d a sub- de sociabilização que os frutos do trabalho de determinados grupos ou não lhes
sunção real do t e m p o livre à p r o d u ç ã o capitalista. F i n a l m e n t e , n a imagem pertençam ou lhes pertençam apenas em parte. Isso é evidente n o caso dos es-
de computador, o choque, e n q u a n t o f o r m a de aparência, se m e t a m o r f o s e o u cravos ou dos servos. Para poder obter seus víveres, eles tiveram de trabalhar um
na própria coisa, ou seja, transformou-se n o m o t o r d o processo de produção, d e t e r m i n a d o período de t e m p o do dia. Porém eles foram coagidos a trabalhar
realizando um clássico "retorno ao f u n d a m e n t o " ; t r a n s f o r m o u - s e n o p o n t o o dia t o d o até à exaustão, de tal m o d o que lhes era concedido apenas o m í n i m o
de identidade e de reciprocidade d o t r a b a l h o e do t e m p o livre, n o p o n t o de para que pudessem existir, ao passo que t o d o o resto era t o m a d o para se poder
social, num poder de concentração global sem precedentes — e faz isso ter u m a vida agradável. O desenvolvimento de toda uma teoria da exploração,
coesão
todos os lugares onde ele se apresenta, c o m o n e n h u m o u t r o meio, de f o r m a p o r p a r t e de Marx, deve-se u n i c a m e n t e ao fato de que a existência da explora-
em
fugaz, d i f u n d i d a e difusa. A síntese social q u e ele f u n d a é, p o r u m lado, tão ção não é identificada de forma tão evidente. Por um lado, nota-se o formigar
impalpável e inatingível e, p o r outro, tão instável c o m o n e n h u m a o u t r a . Tal das massas em configurações embriagadas, abandonadas em volta dos distritos
síntese mina e frustra a si própria em cada u m a de suas p r o d u ç õ e s concentra- industriais, cujas relações de trabalho eram danificadas ao extremo. Por outro,
das 52 . A estetização de todas as relações de p r o d u ç ã o e de vida é t a m b é m u m a os t r a b a l h a d o r e s não eram colocados d i a n t e das m á q u i n a s sob a ameaça da
estetização da desapropriação e da exploração. E com isso esses dois conceitos ação d o c h i c o t e ou de a l g u m a arma, mas sim se p e r m i t i a m ser contratados,
caem por terra, sendo que foram proscritos desde o colapso d o bloco socialista de m o d o q u e sua força de trabalho era trocada, por meio de um acordo com o
oriental, e se juntam ao combalido conceito de "luta de classes". Pode-se dizer c o m p r a d o r , por um equivalente: o salário d o trabalho. Então, surge a questão:
de tudo do capitalismo high-tech, ou seja, q u e ele n ã o t e m coração, q u e ele
o n d e está a exploração?
estressa, que rouba a orientação, que precisa de poucas forças de trabalho, que
É nesse p o n t o que intervém a teoria de Marx sobre a troca justa, tal c o m o
distribui os rendimentos de maneira desigual, mas não q u e ele explora. Em
foi discutido no capítulo anterior, ou seja, o "valor" de uma mercadoria nada
vez disso, fala-se de vencedores e de perdedores no processo de modernização,
mais é d o q u e a quantidade de trabalho que se corporifica na mercadoria, sen-
como se todos sentassem diante de uma grande e n e u t r a roleta, na qual cada
d o que, na média social geral, com oscilações insignificantes, as mercadorias
um faz sua aposta com mais ou menos sorte. Esta é u m a idéia e q u i v o c a d a e
são efetivamente vendidas pelo seu "valor", e o mesmo vale para a mercadoria
totalmente superficial, que p e r m a n e c e presente, na m e d i d a em q u e a forma
força de trabalho. Mas, p a r a Marx, ela é uma mercadoria totalmente especial:
de sociabilização d o mercado intervém nos indivíduos, ao m e s m o t e m p o em
a única q u e não é apenas "valor", mas que t a m b é m p r o d u z "valor". Ela não
que desenvolve, cuida e desgasta as disposições e capacidades desses mesmos
é c o n s u m i d a c o m o se fosse um pão ou um vestido, mas sim q u a n d o ela se
deixa produzir. E isso lhe fornece u m a tal ambigüidade que possibilita, sob o
pretexto da troca justa, a realização da mais desavergonhada exploração. Ela é
52 Esta c a mediação q u e a terminologia política internacional d e n o m i n o u c o m o globalização.
vendida como cada mercadoria, por u m valor que ela possui, mas utiliza-se o com o propósito dc calcular, de forma clara, a exploração, produz também am-
valor que ela produz e que é mais valor do que o valor da p r ó p r i a mercadoria, bigüidade e imprecisão. E tal estado já se inicia com o valor com o qual a força
ou seja, é mais-valia, que é apropriada pelo seu c o m p r a d o r . Marx apresenta tal de trabalho é pretensamente vendida. Esse valor deve compor-se de dois tipos
teoria num exemplo simples: q u a n d o a força de trabalho deve ser exercida p o r de custo: o primeiro se refere "a alimentação, à vestimenta, ao aquecimento e
nove horas para poder compensar seu salário, mas, na realidade, ela se realiza à moradia", os quais são necessários para que a força de trabalho conserve uma
numa jornada de trabalho de 12 horas, então o capitalista se a p r o p r i a de um condição de vida normal, sendo que este adjetivo "normal", para que possa ser
quarto do quantum de trabalho c o m o mais t r a b a l h o não pago, t a m b é m no- considerado válido, depende, tal como Marx bem sabe, das "particularidades
53
meado como "mais-valia absoluta" . Além disso, q u a n d o as m á q u i n a s e n t r a m climáticas e naturais", assim c o m o do "nível cultural do país" 55 . Já o outro custo
nesse circuito t o r n a n d o o trabalho tão produtivo, de tal f o r m a q u e a força de diz respeito à educação e à formação necessárias para que "a natureza humana se
trabalho empregada em oito horas já compensa seu salário, e n t ã o a mais-valia t r a n s f o r m e n u m a força de trabalho específica e desenvolvida, de tal m o d o que
<;eral de um terço. Naturalmente, Marx sabe que tais n ú m e r o s cristalinos não cálculos que nunca são corretos, uma vez que largas lacunas permanecem em
se realizam no cálculo e c o n ô m i c o concreto, que tais postos "valor" e "mais- relação a quais mercadorias e necessidades devem ser avaliadas para que se tenha
valia" não existem em lugar algum; que, para a e c o n o m i a da e m p r e s a , não uma "condição de vida normal", assim c o m o sobre qual seria a quantidade de
tem tanta importância aquilo que a força de t r a b a l h o rende, mas sim q u a n t o trabalho necessária para a educação e a formação e n q u a n t o fatores de custo.
o investimento geral proporciona c o m o g a n h o . N o e n t a n t o , o m a i o r dos três O r a , tais forças t a m b é m são empregadas na casa dos pais e na escola primária.
volumes do Capital concebeu a comprovação minuciosa de que t o d o o processo Elas são consumidas apenas por meio dos professores pagos? O u então apenas
econômico moderno nada mais é do que o d e s d o b r a m e n t o , a complexificação, na p r o d u ç ã o de uma d e t e r m i n a d a habilidade?- E, principalmente, tão logo
a ocultação desse modelo básico cristalino de valor e mais-valia. Isso se firma, surjam dúvidas sobre se os m u i t o distintamente remunerados técnicos espe-
fundamentando-se em Hegel, c o m o a "essência", em relação à qual os processos cializados, engenheiros, juristas, gerentes, professores são contratados "pelo
econômicos concretos representam a "aparência". E a mesma aparência, q u e se seu valor", pode-se fazê-lo sob o pretexto não de u m a m é d i a estatística, mas
t o r n o u invisível na roupagem da troca de equivalentes e na m a t a espessa d o sim de u m a m é d i a metafísica que nunca pode ser verificada por meio de pes-
mercado, deve tornar-se n o v a m e n t e visível p o r meio da crítica d a e c o n o m i a quisas empíricas e nem desmentida, pois tais pesquisas são sua mera aparência
política, da mesma forma que, nos tempos p r é - m o d e r n o s , sem q u e houvesse oscilante: números e preços, que m e r a m e n t e oscilam n o "valor" e que nunca o
teoria, os camponeses tinham a obrigação de entregar o dízimo. Inversamente, expressam no u m a um, ou seja, na mesma proporção.
isso significa que a mais-valia é pensada c o m o se fosse u m dízimo enclausurado, A exploração, que é calculada sobre tal base leviana, inicia-se, aliás, admi-
que ela pode ser, em caso desfavorável, desapropriada t a m b é m na "quinta", na ravelmente tarde: primeiramente, no m o m e n t o do dia de trabalho, na ocasião
"quarta" 011 na sua "terça" parte e que é, finalmente, decifrada c o m o u m r o u b o d o n ã o p a g a m e n t o da mais-valia. Mas, e antes disso? O r a , tão logo a torça
estrutural com o objetivo de que os que foram roubados possam lutar c o n t r a de t r a b a l h o apenas equilibre os custos que ela mesma p r o d u z , de m o d o que
tal usurpação de forma adequada. Entretanto, a "essência" de Hegel se atrofia trabalhe "para si" ao invés de trabalhar para seus compradores, realiza-se, de
muito não hegelianamente diante de um quantitativo, pois se trata de um tran- acordo c o m esse tipo de cálculo, uma troca de equivalentes justa. Porém a rea-
sempírico, uma base de cálculo metafísica, em s e n t i d o literal, q u e não é 11111 lidade da exploração — na qual também, nesse lapso de tempo, o "apêndice da
número, mas que "aparece" nas relações numéricas. U m tal quantum metafísico
é um ferro amadeirado. A tentativa de determinar a troca justa em algoritmos,
55 I d e m , o p . cit., p. 185.
56 Idem, o p . cit., p. 186.
57 M a r x , de m a n e i r a d e s a r m a d a e franca, afirma o m e s m o : "Ao c o n t r á r i o de outras mercadorias, a determi-
53 K. Marx, Das Kapital /. p. 192. nação d o valor d a força de t r a b a l h o c o n t é m u m e l e m e n t o histórico e m o r a l " ( i d e m . op. e t . , p. 185). mas
n ã o há, p a r a isso, u m a chave de conversão.
54 Idem, op. cit., p. 331.
máquina" 58 , tal como Marx, em outra ocasião, n o m e o u o trabalhador, executa, dos músculos e dos órgãos sensoriais" 6 ' também pode recrudescer o autodes-
de maneira fatigante, um par de gestos mecanizados — permanece t o t a l m e n t e perdício, além de que o tornar-se suficientemente mutilado numa atividade de
sem contestação do p o n t o de vista teórico. A q u i as m á q u i n a s se afirmam, às trabalho é a contrapartida rigorosa do concentrar de todas as forças na resolução
avessas, c o m o apêndice da criação de valor h u m a n o ; filosoficamente falando, de um desafio. E n t r e t a n t o , há um delicado toque de extremos: ou q u a n d o a
revelam-se c o m o acidentes; p o r meio delas a "substância" da mais-valia ab- relação de u m a atividade de trabalho dolorosa assume a forma da identifica-
soluta atinge a "substância" da mais-valia relativa. As m á q u i n a s deveriam en- ção c o m o agressor, e os explorados compreendem, de forma equivocada, sua
trar em ação e t a n t o se p e r m i t i r i a m o p e r a r de f o r m a agradável c o m o tam- exploração c o m o autodesperdício, ou q u a n d o aquele que desperdiça prova do
bém aumentariam consideravelmente a produtividade da força de trabalho, a p r ó p r i o v e n e n o d o comparativo, ao invejar o trotar vagaroso do seu colega e
mesma força de trabalho que precisa apenas de uma fração do dia de trabalho começar a suspeitar d o próprio desgaste das forças da (auto)exploração 6 2 .
para equilibrar seus custos. Desta forma, poder-se-ia calcular, de m o d o crista- O juízo subjetivo não é eliminado nem da troca justa e nem t a m b é m do
lino, a exploração crescente na forma d o nível de ruído, de esforço, de desgaste seu contrário, ou seja, da exploração. Esta ocorre por meio de uma constelação
nervoso, de m o d o que o trabalhador p o d e r i a voltar para casa com mais salário de c o n t o r n o p o u c o nítido e nunca se deixa dizer exatamente o n d e começa ou
e menos desgastado. Mas a exploração calculada e a vivenciada n ã o c o m b i - t e r m i n a . E n t r e t a n t o o c o n t o r n o é m u i t o fino, em comparação com aquela
nam entre si. O trabalho insuportavelmente desgastante é contabilizado c o m o constelação q u e ele rodeia. É um absurdo querer acabar com a exploração por
uma parte do dia de trabalho sob a troca correta de equivalentes, da m e s m a meio de m e r o juízo, pois ela é um fato global. Os salários de f o m e que são
forma que as horas extras não pagas que alguém pede para fazer, u m a vez que pagos p o r u m a j o r n a d a de trabalho fatigan te são objetivamente constatáveis e
a atividade de trabalho o fascina, p e r m a n e c e m c o m o pura exploração. A fal- não coincidem com toda pobreza "absoluta", na qual, de acordo com estimati-
ta de indenização, a não restauração das próprias forças que foram extraídas, vas da O r g a n i z a ç ã o das Nações Unidas, mais de um bilhão de pessoas vivem,
revela-se o f u n d a m e n t o físico da exploração. Mas a exploração tem u m sósia sendo que essa i n f o r m a ç ã o é raramente divulgada. A grande série de imagens
que, entretanto, representa exatamente o seu c o n t r á r i o : o a u t o d e s p e r d í c i o . publicada n o livro Trabalhadores, do fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado,
Sentem-se e desenvolvem-se as próprias forças apenas q u a n d o elas são expressas. t o r n a p ú b l i c o aquilo que é estatisticamente flagrante: a maioria dos trabalhos
Não há autodescobrimento sem que haja autoexpressão, não há prazer se não
houver dedicação, seja em relação às coisas, seja em relação às pessoas, seja n o
trabalhar, no brincar ou no viver. E n q u a n t o for obstaculizado aos seres h u m a n o s
paralisar seus m o m e n t o s de felicidade e serem eles t r a n s p o r t a d o s para a glória d e s p e r d i ç a d o r : sua grandeza reside no seu esgotamento..?. Reconhece-se seu sacrifício, elogia-se seu 'he-
roísmo', sua indiferença em relação a seu p r ó p r i o bem, sua dedicação para uma idéia, para u m a grande obra,
eterna, a realização de tais m o m e n t o s , através d o desperdício incondicional, para a pátria; t u d o isso é u m mal-entendido [...] ele sc derrama, ele flui, ele se consome, não se cuida — t u d o
isso c o m fatalidade, funesta e i n v o l u n t a r i a m e n t e , da m e s m a f o r m a que é involuntário o t r a n s b o r d a r de um
revela-se c o m o que a "segunda m e l h o r viagem" 5 9 — a m e l h o r possível, s o b
rio sobre sua m a r g e m " (F. Nietzsche, Gòtzen-D.immerung, p. 146). Este é um p o n t o de grande aproximação
as condições do efêmero 6 0 . A exploração d o "cérebro h u m a n o , dos nervos, entre Marx e Nietzsche.
61 K. M a r x , Das KapitalI, p. 85.
62 A e q u i p e dc t r a b a l h o neoliberal é o p o n t o dc indiferença dc ambos. A autoexploração e o autodesperdício
resvalam u m n o o u t r o até se t o r n a r e m indiscerníveis. N ã o sc sabe mais a que se atar. não sc conhece mais
58 Idcm, op. cit., p. 674.
a si próprio. O q u a n t o isso sc c o n f u n d e foi demonstrado, de forma impressionante, p o r Richard Sennct (Der
59 U m conceito magnífico de Platão cm relação ao m é t o d o socrático d o verdadeiro ser que se priva d e t o d o flexibleMensch. Berlim, 1998). D i a n t e da "capacidade dc t r a b a l h a r bem e m c o n j u n t o , com um g r u p o
acesso direto e que, ao ser ao menos m e d i a d o através de sua cópia, sc t o r n a p a r t í c i p e : "Pareceu-me (...) ser d e pessoas q u e p o d e m ser trocadas entre si", n i n g u é m p o d e levantar alguma objeção; escuta-se paciente-
necessário ter cuidado, para que eu não sofresse aquilo que acontece c o m aqueles q u e observam c c o n t e m - mente, a j u d a m - s e os outros, assume-se a direção, e n q u a n t o se troca de u m a e q u i p e para a outra" (p. 148).
plam o Sol obscurecido. M u i t o s c o r r o m p e m seus o l h o s q u a n d o o b s e r v a m sua imagem não na água ou E n t ã o , d c f a t o se crê que "os f u n c i o n á r i o s realmente náo concorrem uns c o m os outros". "Funcionários e
coisa s e m e l h a n t e (p. 279). Eu refleti c temi t o r n a r - m e t o t a l m e n t e cego q u a n t o à m i n h a alma, q u a n d o superiores n ã o são adversários. Pelo contrário, o chefe é o m o d e r a d o r d o processo de g r u p o " (p. 149). E,
olhasse para as coisas c tentasse tocá-las com t o d o s os sentidos. P o r t a n t o , p a r e c e u - m e q u e deveria recorrer n o e n t a n t o , cada pesquisa m o s t r a e x a t a m e n t e o contrário: a nova " p r o m o ç ã o das capacidades individuais
aos p e n s a m e n t o s e neles contemplar a verdade d o ser" (Platão. Fédon, 991)- d o t r a b a l h a d o r " (p. 150) p r o d u z u m a inaudita pressão de g r u p o . "Os diferentes g r u p o s de trabalho f o r a m
60 Marx sabe disso; apenas tal questão permanece, n o que se refere a u m a teoria da exploração, sem conse- c o l e t i v a m e n t e responsáveis pela p r o d u ç ã o dc t r a b a l h o de seus membros, sendo q u e os g r u p o s criticaram
qüências. " D e fato, mesmo o trabalhar livremente, p o r exemplo, a c o n c e p ç ã o de algo, é, ao m e s m o t e m p o , uns aos outros". "Eles f o r a m aconselhados pelos Meetings, os quais se assemelhavam a grupos de terapia, a
de uma seriedade das mais terríveis, além dc exigir um esforço dos mais intensos." (K. M a r x , Grundisse, fazer u m a terapia em n o m e dos interesses d o balanço comercial" (p. 152). Sob tais condições, cada com-
p. 505). Nietzsche concedeu a isso u m a segunda voz: " O gênio, e m seu trabalho, é necessariamente u m paração c o m os colegas se t r a n s f o r m a n u m a identificação com o agressor.
manuais ocorre na margem da existência mínima, a maioria é m e c a n i c a m e n t e dilatam, c o n t i n u a m e n t e se tramam e se permitem engendrar novas formas de
tosca e utiliza meios técnicos arcaicos. c o m b i n a ç ã o de maneira quase inesgotável; mesmo q u a n d o o se tornar con-
A constelação básica da exploração c o n t i n u a s e n d o a física. E ela não se centrado, compulsiva e chocantemente, através de incontáveis repetições no
reduz à mais-valia que não é paga. Mas Marx esperava q u e ela se reduzisse a transcorrer dos milênios, passa a ser, e m grande medida, um autoconcentrar,
isso. Na base de seu modelo de exploração se encontra o m o d e l o p r é - m o d e r n o , m e s m o assim a concentração nunca se t o r n o u autárquica. M e s m o o sistema
feudal, de pagamento do dízimo, ao passo que o capitalismo m e r a m e n t e dis- filosófico mais idealizado, e que aparenta ser totalmente assentado em si, vive
simularia tal situação. C o n t u d o o capitalismo t r a n s f o r m o u a p r ó p r i a situação dc estímulos q u e sua época lhe fornece, e lembra involuntariamente o quão
da exploração, sendo que o quão p r o f u n d a m e n t e ela foi t r a n s f o r m a d a só p ô d e p o u c o a concentração h u m a n a se livrou de suas origens obscuras e que foram
ser mostrado posteriormente, pois a exploração foi transformada no seu estado d e t e r m i n a d a s p o r forças externas. As cicatrizes são códigos, pois se elas escon-
estético, de forma que se tornou evidente o seguinte fato: c o m o expulsar das dem algo, esse algo t a m b é m é indicado. Elas d o c u m e n t a m a cura, mas também
capacidades humanas de seu contexto de desenvolvimento e adequação para a indicam q u e ela não aconteceu totalmente, uma vez que algo ficou retido: um
realização de atividades de trabalho isoladas, pôs-se em m o v i m e n t o u m a con- resíduo f o r m a d o com a intenção de não deixar nada para trás, de fazer com que
versão técnica do organismo c o m o u m t o d o ; t a m b é m na ocasião e m q u e tal a ferida desaparecesse totalmente e, desta forma, ele próprio desaparecesse. A
conversão, em casos isolados, teve suas benesses, q u a n d o ampliou o horizonte, concentração é, originalmente, tal resíduo: um sinal d o h o r r o r arcaico — na
inaugurou novos espaços de desenvolvimento e e m a n c i p o u , p o r meio de tais expressão "campo de concentração", tal h o r r o r ressurge a b r u p t a m e n t e — e é,
espaços, o que Marx e Engels tão maliciosamente d e n o m i n a r a m de "idiotismo não obstante, o p e n h o r de sua superação. Se tão pouca concentração em si é algo
da vida rústica" 63 . Mas o d e s m o n t e do processo de t r a b a l h o em atividades iso- vantajoso, p o r o u t r o lado, é t a m b é m certo que, sem ela, não existe n e n h u m a
ladas, e do indivíduo em funções separadas, penetrou violenta e p r o f u n d a m e n - vantagem. O n d e ela falta não ocorre t o d o equilíbrio interno que me permite
te em todo o movimento e, gradativamente, em todas as seqüências de pensa- concentrar recepções, representações e pensamentos c o m o meus, de forma que
mentos e da percepção. Q u a n t o menos a força muscular foi aplicada às máqui- neles, e p o r meio deles, eu possa experimentar-me c o m o "eu"
nas colossais, quanto mais as pontas dos dedos e os m o v i m e n t o s oculares foram Este concentrar-se elementar, n o m e a d o por Kant como "percepção origi-
motora e refinadamente alinhavados a aparelhos m i c r o e l e t r ô n i c o s , mais se nal" 64 — c o m o eixo de t o d a percepção e p e n s a m e n t o , eixo este que é incon-
destaca para qual direção a transformação da exploração a p o n t a : para a explo- d i c i o n a d o , inatingível, e que transcende a t o d a transformação histórica —,
ração da concentração. há m u i t o foi m i n a d o e se apresenta a t u a l m e n t e apenas p o r meio da luz da
Uma pessoa se torna o que é por meio daquilo que ela reúne, daquilo que ela onipresença dos choques audiovisuais. A grande conquista cultural d o con-
concentra. Concentração é o seu âmago. Mas ela não lhe "pertence" tal c o m o centrar-se, do ater-se em algo, do, p o r assim dizer, tornar sedentários os sen-
um nariz ou uma camisa. Ela sempre precisa de algo q u e dela se diferencie: um timentos, as representações e os pensamentos, desde o início dos tempos mo-
foco ou impulso, para o qual ela se dirige ou se concentra. Sua f o r m a original dernos superou-se a si própria de uma maneira singular. Q u a n d o o mercado
foi apresentada no terceiro capítulo deste livro: um desdobrar-se em t o r n o absoluto se t o r n o u onipresente — ao desenvolver um magnetismo social sem
do choque traumático, cuja repetição compulsiva gradativamente a acumula precedentes, ao concentrar massas humanas nas cidades e ajustar as forças de
c o m o se tosse uma crosta ou camada em t o r n o d o t r a u m a . C o n c e n t r a ç ã o é trabalho na execução de operações isoladas —, ele transformou a concentração
excitação ligada, é excitação traumaticamente cicatrizada, que se solidifica e se n u m m e c a n i s m o sistemático. Ela passa através do organismo h u m a n o e não é
resfria em formas assentadas de recepção e de expressão, as quais finalmente nada sem aquela concentração nervosa, mas não é mais idêntica a ela. A con-
se mostraram aptas a iniciar uma vida própria e a se sublimarem p a r a a esfera centração nervosa é penetrada pela sistemática e, desde que esta se cristalizou
mental de representações e conceitos. Mas, m e s m o q u a n d o elas p r ó p r i a s se em choques audiovisuais, manifestou apenas aquilo que no f u n d o há m u i t o já
63 K. Marx c F. Engels, Manifcst..., p. 466. 64 I. Kant, Kritik der reinen Verriunfi, edição B. pp. 132. 136.
acontece: o quanto a concentração, que é empregada nas atividades isoladas, A resposta é fácil: existe u m a m e d i d a básica que se corporifica na "força de
q u a n d o toda a própria vida de trabalho de alguém se r e d u z i u à execução de trabalho simples que, em média, cada ser h u m a n o possui em seu organismo,
poucas e simples operações de trabalho nas máquinas, é, em geral, ainda a sua sem que haja um desenvolvimento especial para isso". Já o trabalho complexo
concentração. Desde o início da Revolução Industrial isso se t o r n o u incerto. é simplesmente o trabalho simples multiplicado65. Q u a n d o o ourives recebe o
E muito eloqüente foi a sentença d o Tribunal Federal A l e m ã o d o Trabalho, triplo d o que seu colega sem instrução, então ele gastou o triplo de trabalho
feita nos anos 80 do século passado: ouvir rádio n o local de trabalho não deve simples. Q u e o ourives não realizou, de m o d o alc;um, o triplo de operações
ser proibido sem que haja o consentimento dos trabalhadores. Em outras pa- manuais, mas sim apenas operações mais hábeis e complexas, e que a conversão
lavras: ouvir ruído de rádio é u m direito adquirido do trabalhador, c o n q u a n t o dessas qualidades em quantidades dá livre acesso a qualquer julgamento, são
ele não prejudique declaradamente o desenvolvimento do trabalho. U m a sen- aspectos ignorados por Marx, pois isso não é compatível com seu objetivo de
tença do mais importante órgão judicial expressou a característica f u n d a m e n - provar que a força de trabalho é vendida "pelo seu valor". Mas se ficam os dedos
tal de trabalho moderno: foi formalmente estipulado que o trabalho puro, sans da convertibilidade, então, subitamente, ganha sentido o par de conceitos "sim-
phrase, sem a proteção do ruído, ou melhor, sem a proteção por meio d o ruído, ples/ complexo" D e qualquer maneira, é o operar, aprendido rapidamente, da
sem uma irrigação duradoura, se torna insuportável, se transforma n u m horror máquina, a forma "simples" do trabalho industrial, só que a forma simples não
vacui, da mesma forma que o t e m p o livre se torna insuportável se não há ofer- é o d e n o m i n a d o r da complexa, mas sim seu modelo, seu tipo ideal, filosofica-
tas de diversão. O " H o m e m t o m a n d o b a n h o de sol", q u e foi caricaturado de m e n t e falando. O processo industrial transcorre num duplo sentido: tanto no
forma tão impiedosa por Anders, é, tal c o m o foi mostrado n o primeiro capí- sentido de que as máquinas sejam sempre eficientes quanto no de que a opera-
tulo deste livro, o caso paradigmático daquilo q u e resta da força de trabalho ção destas se ajuste cada vez mais ao trabalho simples 66 . Por isso existe, com
modernamente simplificada, q u a n d o a atividade de trabalho s u p r i m e aquilo cada nova tecnologia, um novo grau de complexidade para assimilar e simpli-
que mantém a força de trabalho nas horas de serviço: são órgãos isolados sem ficar — pois a complexidade é sempre u m mero f e n ô m e n o involuntário da
ocupação, que não suportam o vácuo de sua existência desocupada e se aferram maior capacidade de p r o d u ç ã o — aquilo que ainda não foi suficientemente
à primeira coisa que lhes fornece ocupação: o ouvido n o rádio, o o l h o na re- simplificado, e não simplificar algo de contrapeso equivalente. É certo que o
vista ilustrada, o maxilar na goma de mascar. Essa dispersão, ocorrida n o tem- t r a b a l h o não se torna sempre mais linearmente mecanizado, uma vez que as
po livre, e lida por Anders, nos anos 50 d o século passado c o m o o negativo do máquinas t a m b é m se t o r n a m mais rápidas e inteligentes, além de que exigem
progresso do processo de trabalho industrial, se t r a n s f o r m a — na m e d i d a em e desencadeiam, tal c o m o isso se manifesta n o caso d o aficionado em informá-
que a tela se faz presente em todos os recantos privados, até chegar aos locais tica, novas tormas e levas de construção e composição. Mas cada uma dessas
de direção da produção — em parte integrante de um processo de concentra- levas é apenas o adiamento de uma tendência básica que esse adiamento pode
ção de toda uma sociedade, fato este que leva à seguinte constatação: a concen- q u a n d o m u i t o frear, mas não p o d e parar: a de extrair, n o campo de ação das
tração é roubada pela concentração, ou seja, a sistemática rouba a nervosa. Esse máquinas, t a n t o trabalho q u a n t o possível e, p o r t a n t o , torná-lo sempre cada
processo retrata o lado interno estético-neurológico de cada exploração, da vez mais simples, quero dizer, sempre mais barato. Os violinistas que ainda
qual o pagar menos constitui o lado externo econômico. aprendem a tocar seus instrumentos como Paganini, ou seja, de acordo com a
mesma técnica pré-industrial, resistem, por enquanto, a essa esteira. Já os es-
Entretanto, a exploração interna não é simplesmente o reflexo da externa, pecialistas em software, que são procurados, com urgência, em toda parte e,
mas sim uma exploração qualitativamente modificada. Para que ela possa ser eventualmente, até mesmo no exterior, se inserem nesse meio. Seu trabalho
compreendida, utiliza-se j u s t a m e n t e u m a o p o r t u n a diferenciação, feita por
Marx, quando ele desejou esclarecer — e calcular — a exploração econômica
6 5 K. M a r x , Das Kapital/, p. 59.
externa: a exploração do trabalho simples e do complexo. A questão foi a se- 6 6 Q u e m u i t a s o p e r a ç õ e s atuais e, s o b r e t u d o , as mais antigas, sobrecarreguem seus c o m p u t a d o r e s e que se
guinte: como é possível que um ourives ganhe o triplo d o q u e recebe um tra- t e n h a de operar c o m a n d o s à distância, não significa contraprova alguma. Esses aparelhos são também fáceis
d e operar, p r o p o r c i o n a l m e n t e \ sua capacidade de p r o d u ç ã o , sendo que apenas eles p r o d u z e m , despropor-
balhador sem instrução, sendo que ambos tiveram o mesmo tempo de trabalho? c i o n a l m e n t e , m u i t o mais que aquilo q u e o usuário c o m u m precisa.
complexo é altamente avaliado p o r q u e ele p r o m e t e tornar-se supérfluo, a lon- c o m o t a m b é m se transforma na condição de sua possibilidade, pois o trabalho
go prazo, na f o r m a das m á q u i n a s que operem a si p r ó p r i a s e nos p r o g r a m a s se t o r n a dificilmente suportável sem a presença do ruído ambiente
com que qualquer leigo possa trabalhar 6 7 . Sob tais condições, t o d o t r a b a l h o Aqueles organismos h u m a n o s que são empregados no trabalho simples, ou
complexo recebe um estigma. Ele é o resíduo originado na tentativa de se fazer m e s m o aqueles que não possuem trabalho, são minimamente protegidos con-
desaparecer, de se diluir em trabalho simples. A n d e r s já havia d i t o q u e o tra- tra o efeito de dispersão, de decomposição e de expropriação dos choques au-
balho complexo é trabalho "retido". Nele permanece algo do trabalho pré-ma- diovisuais. M a s é t a m b é m por meio deles que se torna m u i t o claro o quão
quinal, daquele d e m o r a r mental c o m algo, d e m o r a r este q u e se d e n o m i n a p o u c o a exploração estético-nervosa é absorvida na exploração econômica.
concentração, de m o d o que se p o d e formular a seguinte regra: q u a n t o mais N a t u r a l m e n t e , ela tem, assim c o m o dantes, seu lado econômico. Não por
complexo é um trabalho, mais se torna imprescindível que a concentração, que acaso, a cisão entre pobres e ricos recrudesceu ainda mais, mundialmente, com
lhe é exigida, seja a do próprio trabalhador. Q u a n t o mais simples ele se t o r n a , a revolução microeletrônica, e m u i t o dinheiro foi ganho pelo chefe da indús-
mais ele se c o m p õ e de meros "tornar-se concentrados", mais insuportável se tria midiática, c o m o d a m e n t e sentado em sua poltrona. Mas o tirar proveito
torna dever concentrar-se no trabalho. O trabalho simples p o d e m u i t o b e m ser não acontece dessa forma, ou seja, toda vez que u m choque audiovisual dá sua
definido por meio do seguinte exemplo: ouvir rádio n ã o só não o prejudica, estocada em algum lugar soa a caixa registradora em outro. E isso dita quanto
ainda se p o d e extrair, em geral, do trabalho simples. Dos desempregados, pelos
menos, extrai-se quase que absolutamente nada. Mas ambos os grupos são os
6 " M a r x - K e n n e r o b s e r v o u , p o s t e r i o r m e n t e , q u e e n t r e os t r a b a l h o s simples e os c o m p l e x o s p r e d o m i n a u m
tipo de d i n â m i c a contrária e assimétrica q u e M a r x a c r e d i t o u p o d e r d e m o n s t r a r c m algo t o t a l m e n t e dife- mais explorados nervosa e esteticamente. Eles se põem o mais cedo possível
rente: "A lei da queda tcndcncial d a taxa de lucro" (Das Kapital III, M E W 25, Berlim, 1977, p. 221). A lei
se expressa da s e g u i n t e f o r m a : q u a n t o mais m a q u i n a r i a u m e m p r e s á r i o a d q u i r e , m e n o r a q u o t a d e seu
d i a n t e d o conta-gotas midiático e, através de injeções incessantes, preenchem
custo geral, q u e é s u p r i m i d a nas forças de t r a b a l h o . M a s c o m isso se tem m e n o s mais-valia, q u e . de a c o r d o seu t e m p o vazio e esvaziam seu próprio interior. Mas e os que tiram proveito?
c o m Marx, nasce, u n i c a m e n t e , d o trabalho. J u n t o à extorsão d a mais-valia q u e persiste, o capitalista tem
uma margem de p o u c o lucro, ao passo q u e crescem os custos da m a q u i n a r i a , e n q u a n t o a taxa d e l u c r o cai. Eles são mais resistentes contra a exploração mencionada, e isso na medida em
E p a r a q u e n ã o vá à falência, o c o r r e - l h e a q u i l o q u e M a r x n o m e o u c o m o " C a u s a s d e e l e i t o c o n t r á r i o "
q u e sua f o r m a ç ã o e sua capacidade permaneceram mais "retidas". C o n t u d o
(p. 242): "Elevação d o grau de e x p l o r a ç ã o d o trabalho", " D i m i n u i ç ã o d o valor d o s a l á r i o d c trabalho",
" B a r a t e a m e n t o dos elementos de capital c o n s t a n t e " ( p . 2+2), isco é, d o m e i o dc t r a b a l h o , da m a t é r i a - p r i m a eles não f o r a m , de forma alguma, poupados. Neste sentido, artistas e intelec-
etc. Essas m e d i d a s f a z e m c o m q u e a q u e d a da taxa dc lucro seja m e r a m e n t e " t e n d e n c i a l " ; p o r t a n t o , q u e
seja t e m p o r a r i a m e n t e estagnada ou m e s m o q u e retroceda. Mas, n o geral, ela p e r m a n e c e irreversível. As
tuais — apesar de, de vez em quando, seus salários serem bem modestos —, são
causas de efeito contrário, c o m o t e m p o , n ã o c o n c o r r e m c o n t r a a taxa de lucro. Para M a r x , a taxa de l u c r o mais privilegiados d o que alguns milhões de executivos dos quais as seqüências
representa a revogação segura d o colapso d o m o d o de p r o d u ç ã o c a p i t a l i s t a . E n t r e t a n t o , se a u t i l i z a ç ã o
intensificada da maquinaria faz c o m que o p r e ç o das mercadorias caia, e n t ã o os custos de m a n u t e n ç ã o dos de c o m p r o m i s s o s se aproximam, precariamente, da seqüência fílmica das re-
trabalhadores deveriam t a m b é m ser m e n o r e s c seu salário real deveria, p o r t a n t o , ser maior. M a s a m b o s
gulagens e dos cenários.
p e r m a n e c e m constantes. E então, é de suspeitar q u e m a i o r q u a n t i d a d e de m á q u i n a s p r o v o q u e , já p o r si só,
uma "elevação d o grau de exploração d o trabalho", e q u e p o s t e r i o r m e n t e n ã o seja apenas causa de e f e i t o
contrário, que, de fato, não seja uma c o n t r a m e d i d a que e x t o r q u e e q u e se t o r n e mais i n t e n s a c q u e M a r x
P o r é m n ã o h á vencedores que, nessa situação, não t e n h a m sido t a m b é m
n o m e o u c o m o " p r o l o n g a m e n t o da j o r n a d a de t r a b a l h o e d e intensificação d o t r a b a l h o " ( p . 242), mas sim vítimas. E algo novo começa a se destacar: uma exploração de todos sem que
u m a maquinaria mais produtiva q u e extrai mais, de lorma incomparável (e, por v e n t u r a , c o m mais cuida-
do), da própria torça de trabalho e eleva a mais-valia relativa. O a u m e n t o da m a q u i n a r i a , de a c o r d o c o m haja u m beneficiário identificável; ocorre, por assim dizer, uma exploração em
Joan Robínson (Grundprobleme der Marschen Òkonomie, 1966: M a r b u r g 1987, p. 56), p e r m i t e recrudescer
si e p o r si, e que se eleva n o v a m e n t e do mais antigo alvorecer: de cada abuso
ou o salário ou a taxa de exploração. De a c o r d o c o m o c o n c e i t o de exploração e c o n ô m i c a , e l a b o r a d o por
Marx, torna-se possível q u e a m b o s cresçam ao m e s m o t e m p o , de tal f o r m a q u e se extraia t a n t o da força dc do coletivo h u m a n o em si p r ó p r i o que, da mesma forma, não teve um benefi-
trabalho q u e algo disso acabe por reverter a si p r ó p r i o . A m a q u i n a r i a c t ã o p o u c o o "coveiro" d o capitalis-
m o q u a n t o d o proletariado, c nada indica q u e ela aproxime a taxa de l u c r o a zero. N ã o se trata d o colapso
ciário reconhecível — apenas fictício — e que desperdiçou forças humanas
d o m o d o de p r o d u ç ã o capitalista, a n u n c i a d o por R o b e r t Kurz {Der Kollapsder Modernisientng. Frankfurt, preciosas com o único objetivo de poder suportar, neurologicamente, o próprio
1991) há já bons dez anos. O q u e não deve significar q u e , nos ú l t i m o s dez a n o s , n ã o o c o r r e r a m abalos
graves e que novos abalos não lhe possam fazer s o m b r a . Mas são abalos q u e a c o n t e c e r a m n o i n t e r i o r d o a b a n d o n o na natureza. Essa exploração se eleva, p o r t a n t o , do sacrifício de ví-
sistema capitalista e não d o p r ó p r i o sistema. A ' lei da q u e d a tendencial d a taxa de lucro" é u m a c o n s t r u ç ã o
timas humanas. A exploração, n o sentido de mais trabalho extorquido, é já uma
h i s t ó r i c o - í i l o s ó f i c a , talvez a m e l h o r prova de q u e M a r x , de m o d o a l g u m , p e n s o u o d e c u r s o p o s t e r i o r
da h i s t ó r i a de f o r m a tão d e t e r m i n i s t a c o m o s e m p r e lhe foi i m p u t a d o . I n f e l i z m e n t e , ela n ã o vale c o m o lei. racionalização de tal abuso. Q u a n d o se permitiu que os prisioneiros de guerra
E n t r e t a n t o , a d i n â m i c a da sucção e do a d i a m e n t o , da c o r r e n t e e da c o n t r a c o r r e n t e , q u e tal lei descobre,
pertence à elementar 'lei de m o v i m e n t o " da sociedade capitalista, se b e m q u e n ã o c o m o r e s u l t a d o previs-
c o n t i n u a s s e m a viver e q u e trabalhassem para os vencedores, em vez de, tal
to por Marx. c o m o a lei mágica da guerra exigia, serem ofertados à divindade vitoriosa, esta
foi uma "Lista da razão" em primeiro grau; foi, c o m p a r a t i v a m e n t e , u m a des-
bém o m e l h o r filósofo deve esquecer, enquanto persegue tais imagens, o pro-
coberta humanista e também u m a descoberta da raiz da escravidão. A racio-
cesso de abstração que ocorre p o r detrás delas. Disso se abstrai que nós não
nalização da exploração que se coloca em m o v i m e n t o — escravos n o lugar de
teríamos n e n h u m a imagem dessas imagens sem a forma de pensar moderna,
vítimas de sacrifício, servos n o lugar de escravos — atinge, na m o d e r n i d a d e ,
q u e d e c o m p õ e a natureza, que sente sua ausência e que a reduz a processos
seu apogeu histórico: trabalhadores assalariados em vez de servos. E t a m b é m
mecânicos e eletromagnéticos. Todas as qualidades de cor e forma, as quais
neste sentido, o tal apogeu é, ao mesmo tempo, u m m o m e n t o crítico, u m a vez
f o r m a l m e n t e , passam para as fotos, filmes e monitores de computador, são
que a imposição global do m o d o de p r o d u ç ã o capitalista apresentou esse "re-
reduzidas a números e fórmulas, são pulverizadas em minúsculos grãos, dados
torno ao fundamento". Q u a n t o mais tal imposição se refina audiovisuaimente,
ou impulsos, sendo reunidas numa densidade e numa velocidade imperceptíveis
mais ela aproxima a exploração de sua forma original sacra, ou seja, a explora-
pelos órgãos humanos, de tal m o d o que se produz o seguinte: concentrados da
ção com a qual alguém se beneficia se torna exploração sansphrase. E não se
dispersão extrema. As imagens que os engendram representam, como de cos-
trata, de forma alguma, de um m o d o de falar metafisicamente floreado, quan-
tume, acontecimentos reais ou fictícios69. Mas a sua estupenda aproximação da
do os choques audiovisuais são qualificados c o m o formahigh-tech d o sagrado;
vida é simulada; sua sensualidade consiste na sua resolução, de tal m o d o que
não se trata de um caso posterior, q u a n d o as fantasias místicas se t o r n a m reais
q u a n t o m a i o r a sua resolução, melhor é a imagem. Q u a n t o mais a imagem é
por meio da alta tecnologia. O que aqui se objetiva tecnicamente não é a forma
penetrada de abstração, mais ela manifesta maior concretude. Mas, nesse caso,
de um Moloch devorador com pele e cabelo, mas sim a f o r m a de u m vampiro
abstração e concretude não se colocam num contexto de referência, nas con-
que crava seus dentes na vítima que está à sua mercê, de m o d o q u e a vítima a
dições de significado e significante, de essência e aparência, pois elas não sig-
ele se vicia e se adapta. Os refinados vampiros audiovisuais não sugam sangue,
nificam e representam um ao outro, mas sim se penetram e se tornam irreco-
mas sim, para usar uma forma de expressão marxiana, n e r v o e cérebro. Eles
nhecíveis entre si. Um é o outro, porém ambos não se relacionam entre si. Essa
absorvem uma enorme quantidade de excitação q u a n d o injetam, incessante-
abstração real que se pode nomear também como aparência de concretude foi
mente, seu "ser notado", sendo que eles p r ó p r i o s n ã o c o n s e g u e m reter nada
i n v e n t a d a pelo cérebro h u m a n o . Mas ela própria abstrai, c o m o cérebro, de
disso, pois não se saciam em n e n h u m m o m e n t o e sempre sugam mais. Eviden-
outra forma, ou seja, ela o faz técnica e mecanicamente. E logo que ela se ob-
temente, tal p r o c e d i m e n t o é feito em doses h o m e o p á t i c a s , de f o r m a tal que
jetiva em seu próprio curso maquinai ocorre com a abstração aquilo que acon-
cada dose singular é completamente inócua. Mas q u a n d o há u m a grande quan-
tece c o m a concentração: a abstração independente, que se torna sistemática,
tidade, então o caso é outro: são gotas contínuas que p e n e t r a m na p e d r a e, há
começa a abusar da abstração nervosa.
muito, se reproduziram na f o r m a de uma t o r r e n t e de estímulos. P o r t a n t o , a
exploração estético-nervosa nunca é identificada no caso isolado. Mas, como
torrente de estímulos, ela também é dificilmente identificada, pois é c o m o que
ricamente ofertada. Ela intensifica o esvaziamento por meio da superlotação,
a abstração por meio do concreto. O conceito de "abstração real", a l t a m e n t e 69 N ã o faz s e n t i d o q u e r e r negar tal fato. Neste p o n t o , V i l é m Flusser ultrapassou sua p r ó p r i a originalidade.
Ele observa, d c f o r m a t o t a l m e n t e correta, q u e : "A imagem técnica é u m a i m a g e m p r o d u z i d a p o r aparelhos.
duvidoso quando ele deseja provar que, desde t e m p o s mais remotos, os seres
Nessas c o n d i ç õ e s , os aparelhos são, p o r sua vez, p r o d u t o s de textos c i e n t i f i c a m e n t e utilizados, trata-se de
humanos equiparam sua quantidade de trabalho na troca 68 , subitamente ganha p r o d u t o s i n d i r e t o s de textos científicos n o â m b i t o das imagens técnicas" (V. Flusser, Für eine Pbilosophie
der Fotograjie. G õ t t i n g e n , 199-í, p. 13). Q u e m desconsidera esse fato t o m a as imagens c o m o o real, pois o
evidência, q u a n d o ele é voltado para a dimensão estética. Aquilo q u e fascina "caráter a p a r e n t e m e n t e n ã o s i m b ó l i c o e o b j e t i v o das imagens técnicas c o n d u z o espectador a observá-las
nas imagens high-tech é que elas, mesmo q u a n d o m e r a m e n t e c i n d i a m etérea e n ã o c o m o imagens, mas sim c o m o janelas. Ele confia nas imagens d o m e s m o m o d o c o m o c o n h a nos seus
olhos". P o r é m elas n ã o são c o m o t o d a s as i m a g e n s simbólicas, mas sim representam complexos simbólicos
superficialmente, despertam a aparência da maior c o n c r e t u d e e da maior pre- a i n d a mais a b s t r a t o s d o q u e as imagens tradicionais. Elas são m e t a c ó d j g o s dos textos, as quais não signifi-
cam o m u n d o exterior, mas sim são "textos", s e n d o que, desta f o r m a , e n g a n a m e p r o d u z e m conclusões
sença. Sua percepção sugere que aquilo que elas representam é algo real. Tam-
e q u i v o c a d a s ( i d e m , o p . cit., p. 14). C o m o se os meios d a representação fossem, t a m b é m e necessariamente,
os o b j e t o s d a representação, o u seja, c o m o se as imagens, t r a n s f o r m a d a s p o r m e i o de u m a p a r e l h o abs-
t r a t o , c o n c e b i d o c o n c e i t u a i e t e x t u a l m e n t e , p o r sua vez, t a m b é m n a d a representassem e significassem
68 Ct. A. Sohn-Rethel. Gestíge undkórperluhe Arbfií — RevidierteundergànzteNeuauHage. W c i n h e i m , 1989, à revelia desse a p a r e l h o . Isso seria c o m o se os p i n t o r e s t r a d i c i o n a i s tivessem r e p r e s e n t a d o s e m p r e , e
p. 225. a p e n a s , seu p i n c e l .
Escrita e imagem cada vez mais refinadamente deduzida. Tal materialidade refinada é o concei-
to. Assim como n e n h u m a pintura pode ser tão abstrata, a ponto de não mais
Sabe-se que coda abstração é deduzida de algo, e as primeiras abstrações, tal conter vestígios d o concreto do qual ela se abstrai, da mesma forma nenhum
como foi discutido no terceiro capítulo, devem ter-se concretizado de forma conceito pode existir sem o seu f u n d o imagético. C o m o objetivo de significar
pavorosa: por meio das repetições compulsivas dos choques traumáticos que, tal f u n d o , Kant procurou palavras quando conjecturou que "nossos conceitos
no âmbito de todo seu horror, não foram mais o p r ó p r i o susto original, mas sensoriais puros não se f u n d a m e n t a m nas imagens dos objetos, mas sim nos
apenas o seu eco, sua apresentação ou representação gradativamente ritualizada. esquemas da razão" 2, portanto, uma mediação que é mais desfigurada que a
As representações mentais já são tal c o m o se pode observar na história da imagem concreta, mas, ao mesmo tempo, um tipo de forma preliminar imagé-
espécie humana — representações de segundo grau, ou seja, são abstrações de re- tica e o abrir c a m i n h o do conceito. O erro foi apenas o de desejar prescrever o
presentações ritualisticamente t e a t r a l i z a d a s . P o r m e i o de u m a r e p e t i ç ã o esquemático ou, melhor dizendo, de prescrever os esquemas com contornos
ritualística aquilo que traumatiza é reprimido e canalizado em redes neurais, vagos, ao defini-los filosófica e transcendentalmente por inteiro. Exatamente
de tal modo que, custe o que for, náo deve mais ser apresentado. Ele pode ser isso a sua volatilidade não suporta. Nesse sentido, é mais adequado a tal vola-
insinuado, significado ou imaginado. A representação teatral exterior se inte- tilidade qualificar as imagens mentais como "imagens não determinadas", re-
rioriza em imagens, em representações mentais. Elas se c o m p õ e m de ligações correndo-se exatamente ao duplo sentido do não fixado e do não constatado,
neurais internas relativamente consistentes, as quais, por sua vez, são, natural- q u e N i e t z s c h e utilizou para d e n o m i n a r o ser h u m a n o como o "animal não
mente, produtos de um exercício prolongado, ou seja, de incontáveis repetições. d e t e r m i n a d o " \ As imagens mentais são excitação em estado conjunto, e são
Mas logo que o organismo h u m a n o desenvolveu rotinas satisfatórias e virtuo- relativamente consistentes. Entretanto, na condição de massa de excitação viva
sidade, a p o n t o de equilibrar tais ligações, ele não reagiu da f o r m a mais gros- são, em grande medida, tanto inconstantes quanto desfocadas. N e n h u m a pin-
seira, de tal m o d o que aprendeu a catexizar em imagens mentais t u d o q u e lhe tura e n e n h u m a sinfonia se originam sem que tenha existido, primeiramente,
impressionara, e não apenas aquilo que traumatizara. Mas o q u e aqui significa u m a imagem mental observada e, então, elas são colocadas de dentro para fora
"imagem"? Aristóteles se manifestou a esse respeito: "imagens m e n t a i s são na tela ou n o papel. A transformação do interior é, primeiramente e em geral,
(phántasmata) como imagens decorrentes da percepção (aistbemata), apenas a sua gradativa "observação", ou seja, é um processo complexo que inclui uma
não possuem matéria" 70 , sendo esta a sua informação concisa. Disso se d e d u z reação à resistência do material exterior e aos próprios impulsos. Um comple-
que as imagens decorrentes da percepção são intensamente desmaterializadas. xo semelhante, e imageticamente excitado, é o da formação do conceito. O
C o n t u d o , não se pode ter na cabeça a própria coisa percebida, mas sim as suas p e n s a m e n t o abstrato é um processo contínuo de acompanhamento perceptivo
impressões visuais, auditivas, táteis, palatáveis ou olfativas. A imagem mental e imagético 7 4 . As abstrações mentais não poderiam conservar-se, caso não fos-
é ela própria desprendida dessas impressões físicas; ela é um tipo de imagem sem forradas e revestidas dessa massa de excitação imagética. Mesmo o mais
deduzida dessas impressões 71 . Mas, tal como dantes, ainda permanece u m enig- abstrato, a trama do mais p u r a m e n t e "original", deve nascer do m u n d o como
ma para a neurofisiologia o m o d o como os impulsos nervosos se configuram u m t o d o e não pode ser pensado sem ser associado com a representação de sua
em imagens mentais e como essa materialidade se constitui. Trata-se de uma luz original, que ele irradia; sem a representação de sua fonte original, que ele
materialidade fugaz, uma materialidade que se volatiliza em cada nível de abs- deságua. Ele não pode ser pensado sem que nele ressoe algo da experiência de
tração posterior, quando se refina das primeiras representações grosseiras e é proteção simbólica. Isso para não falar do Deus do Velho Testamento, no qual
pairaram várias associações de majestade, de elevação, de inacessibilidade, tal
7
6 S. Freud, Drei Abhandlungen zur Sexualtbeorie, Studienausgabe. F r a n k f u r t , 1972, vol. V, p. 115. 7 7 H . M a r s h a l l M c L u h a n , Die magischen Kanãle. Düsseldorf, W í e n , 1992, p. 11.
sentidos permaneceriam intactos, na condição daquilo que já foram. O meio lado b o m , q u a n d o ajuda o adolescente e o notoriamente tímido a ultrapassar
dc comunicação apenas ajuda os respectivos órgãos dos sentidos a ultrapassar a barreira psicológica para que possam ter seus primeiros contatos. Isso para
enormes distâncias à velocidade da luz. O r a , para que isso ocorra, faz-se ne- não falar dos frágeis, solitários e desesperados, para os quais a Internet pode
cessário um condutor. E n e n h u m c o n d u t o r transporta estímulos sem que os tornar-se u m a i m p o r t a n t e ligação com o m u n d o exterior, assim c o m o é o tele-
próprios estímulos sejam canalizados e filtrados, seja na forma de sons separados, fone. A chamada de emergência e o serviço de ajuda por telefone [no Brasil, o
na forma de cortes de imagens em perspectiva - até o n d e já se desenvolveu a c h a m a d o CVC — C e n t r o de Valorização da Vida] são, sem n e n h u m a dúvida,
técnica para isso seja como pressão digital mensurável. Q u a n d o se trata de organizações benéficas. Por meio da proteção do a n o n i m a t o e da reserva, mui-
objetivos rigorosamente delimitados, tais c o m o a negociação de u m c o n t r a t o tos expressam aquilo que nunca teriam coragem de dizer de outra maneira. Da
ou o desenvolvimento coletivo de u m programa ou aparelho, o filtro midiático mesma forma, a Internet não pode ser subestimada na condição de um confes-
é altamente efetivo: ele elimina, gradativamente, aquilo q u e se desvia do obje- sionário m o d e r n o e lugar de um cuidado psíquico recíproco e informal. Por
tivo coletivo, prepara aquilo que lhe serve, e reduz, da maneira mais drástica, o u t r o lado, é fatídico fazer passar a necessidade c o m o virtude, ou seja, as esta-
os processos de formação de vontades determinadas e de decisão, para os quais ções psíquicas iniciais c o m o se fossem fóruns de comunicação bem-sucedida.
certamente seria necessária toda uma gama de pesquisas, reuniões, conferên- E assim, n ã o é mais t e m a t i z a d o aquilo q u e o a n o n i m a t o , a reserva e o filtro
cias e viagens para várias partes d o globo. N ã o há dúvida de que tais reduções m i d i á t i c o da a u t o c o m u n i c a ç ã o extirpam desde o princípio. A comunicação
podem ser entusiasticamente vivenciadas não apenas c o m o u m a facilitação, presencial não é necessariamente "melhor" do que aquela mediada midiatica-
mas também como uma vitória sobre a natureza, como u m salto técnico, c o m o m e n t e , tal c o m o c o m p r o v a m as inúmeras relações arruinadas. Porém t o d a
superioridade sobre todos aqueles que ainda têm de seguir os morosos trilhos c o m u n i c a ç ã o m e d i a d a se n u t r e da comunicação imediata e a ela permanece
dos caminhos antigos. C o n t u d o espaço e tempo não p o d e m ser superados. A referida. N e n h u m lactante p o d e ser h a b i t u a d o , de forma cuidadosa, à vida
proximidade instituída por tais aparelhos consiste meramente n u m a superação h u m a n a , a n ã o ser p o r meio da p r o x i m i d a d e corporal c o n t í n u a do m e m b r o
de distâncias espaçotemporais, redução e aceleração ao máximo dos limitados familiar mais próximo. E as cartas de amor de Kafka, ou seja, de um ser huma-
processos de comunicação, e isso não pode ser c o n f u n d i d o com "proximidade n o t o t a l m e n t e incapaz de uma proximidade física duradoura, respiram, linha
humana" no sentido de uma participação m ú t u a e da identificação, q u e só p o - por linha, a saudade de tal aproximação e não seriam, sem tal sentimento, nem
dem ser gradativamente construídas ao logo d o convívio m ú t u o e da troca de escritas e n e m sequer despertariam qualquer interesse. Toda comunicação rea-
experiências. E para isso, necessita-se, o mais urgentemente possível, daquilo lizada p o r meios técnicos, da carta até a Internet, tem caráter secundário, se
que as novas tecnologias desejam economizar ao máximo: t e m p o . originou c o m o recurso para a superação da ausência e do isolamento; e o cul-
tivo de tais expedientes, para as mais detalhadas formas de arte e de expressão,
O mesmo ocorre no caso da Internet. É fora de questão que esse novo meio só logra êxito se partilha algo da privação da qual ela nasceu. U m a comunicação
de comunicação ata os processos de comunicação, os quais antigamente passa- secundária, q u e se isola t o t a l m e n t e da primária, e que se relaciona com outro
vam, um ao lado do outro, na forma dos livros, dos jornais e d o telefone. Assim ser vivo exclusivamente p o r meio d o correio ou de canais técnicos, realiza o
como é certo que a comunicação foi intensificada e acelerada. Porém a proxi- estado de coisas da tortura do isolamento. U m a teoria da mídia, que considera
midade obtida permanece ainda na condição de sucedâneo. E n q u a n t o se p o d e a f o r m a de comunicação primária c o m o a n t i q u a d a e a secundária c o m o uma
ir e vir quando se deseja, por meio do clicar d o mouse, sem que sc sintam todas m u i t o excitante f o r m a de trânsito d o futuro, serra o galho da árvore n o qual
as dificuldades e obrigações que acompanham os encontros pessoais ou a vida toda c o m u n i c a ç ã o secundária se apoia e o único pelo qual p o d e permanecer
em comum, o contato do eterno começo permanece c o m o u m a aproximação suportável. Isso é algo tão original q u a n t o a proposta de se desabituar de comer,
que não acontece realmente, ou seja, faz-se presente a c o m u n i d a d e virtual no p o r q u e viver de brisa é m u i t o mais excitante 7 *.
sentido original da palavra: surfa-se ao redor, realiza-se o pré-prazer d u r a d o u -
ro de uma satisfação continuamente ausente. Entretanto, até mesmo a troca de
insignificâncias, cultivada por inúmeros cbats, pode ocasionalmente ter seu 7 8 E s p o r a d i c a m e n t e , tal teoria se m a n i f e s t a c o m o as b r o c h u r a s d e p r o p a g a n d a s eróticas, q u a n d o ela conside-
ra a rroca d e sexo, de i n t i m i d a d e e o sexo na I n t e r n e t c o m o "novas i d e n t i d a d e s e m paisagens virtuais". As
q u a n d o eles não mais são c o n s u m i d o s . Eles oferecem m u i t o mais a demolição
A realidade virtual de uma aparelhagem midiática onipresente obriga que
d o desprazer do que a construção do prazer. Seu gozo é muito mais pré-prazer do
o estado de coisas do pré-prazer seja n o v a m e n t e soletrado, mas de u m a nova
que prazer. Os choques audiovisuais trabalham sistematicamente para o retrocesso
forma. Freud nunca deixou de falar c o m o u m velho neurologista, q u a n d o as-
d o prazer em pré-prazer; p a r a a expropriação d o prazer e n q u a n t o aquisição
severou que "uma sensação de tensão deve p o r t a r consigo o caráter d o despra-
cultural; para sua desavergonhada exploração por meio da superexcitação. Eles
zer". "Mas, q u a n d o se avalia a tensão da excitação sexual q u a n t o à sensação de
p r o d u z e m nada menos q u e a declaração de insolvência do princípio do prazer.
desprazer, então se reconhece o fato de que ela mesma é, i n d u b i t a v e l m e n t e ,
79
E, p o r m e i o disso, p e r m i t e m reconhecer o q u ã o fina é a camada de verniz d o
sentida c o m o pleno prazer" . A tensão é n o t o r i a m e n t e algo q u e d e p e n d e , e
prazer erigida sobre a base d o pré-prazer q u a n d o eles a aniquilam. E então se
muito, do contexto. Já o pré-prazer não é algo já pleno de prazer, mas sim o seu
faz presente o " r e t o r n o ao f u n d a m e n t o " . O " t e m p o anterior ao princípio d o
início, quando ele se transforma no f e r m e n t o do desejo erótico. E Freud o te-
prazer" inicia-se na condição de seu t e m p o posterior.
matizou apenas nesta perspectiva, que, aliás, n ã o é a ú n i c a e n e m m e s m o a
elementar. Primeiramente, o pré-prazer é aquilo q u e se coloca antes do prazer,
ou seja, aquilo que Freud em outro m o m e n t o n o m e o u c o m o " t e m p o anterior
ao princípio do prazer". Este foi o tema do terceiro capítulo deste livro, n o qual A m o r ao próximo, a m o r ao mais distante
se mostrou que a repetição compulsiva d o h o r r o r serve para se libertar d o pró-
prio horror. Tal repetição foi, desde o início, demolição d o desprazer — para Música d o f u t u r o ? É verdade, mas ela é tocada agora. A forma de intuição da
diferenciar da construção do prazer —, mas foi inteiramente precursora e arau- sensação já se faz presente há muito. Agora é possível reconhecê-la c o m o forma
to do prazer; num sentido m u i t o literal foi seu modelo, assim c o m o o "esque- de vício; agora se vê obrigada à confissão de que é vício do particular em vias de
ma" kantiano é modelo d o conceito. O pré-prazer se t r a n s f o r m a em f e r m e n t o se t o r n a r geral, de que c a m i n h a d o estado de d e p e n d ê n c i a de d e t e r m i n a d a s
da construção do prazer, primeiramente é preparação para o prazer, é a p r o d u - substâncias q u e viciam para se t o r n a r u m a existência básica global. Agora se
ção de um estado de relativos alívio e tranqüilidade, estado este que se sente a p r e n d e a p e n s a r o vício p o r m e i o de categorias políticas, antropológicas e
agradecido pela minimização da dor. O pré-prazer é condição para q u e possa teológicas, e não mais c o m o algo que se distingue p o r si. Todos nós somos vi-
tornar-se, em geral, prazer. Ele é inseparável da redução da tensão sexual, mas ciados e q u e m reflete sobre isso é t a m b é m parte d o problema. S e g u i n d o essa
tampouco é por ela absorvido. O pré-prazer é uma p r o d u ç ã o cultural, da qual linha de raciocínio, o p r i m e i r o problema, o qual se deveria aprender a consi-
participou todo o sensório do Horno sapiens. U m a aparelhagem midiática, que derar com novo e a d m i r a d o olhar, é a característica essencialmente conformis-
irradia estímulos iniciais na forma de contínuas repetições compulsivas, leva ta d o vício: a disposição de u m a q u a n t i d a d e colossal de seres h u m a n o s de se
essa produção cultural à loucura. Tal aparelhagem prepara, de f o r m a constan- colocar d i a n t e d o conta-gotas de uma aparelhagem multimidiática e deixar-se
te, o c a m i n h o para o prazer, cuja construção ela frustra ao m e s m o t e m p o . A explorar neurológica e esteticamente. A q u i l o que foi n o m e a d o n o p r i m e i r o
inflação de tal preparação resulta diretamente na f o r m a clássica d o estado de capítulo c o m o "compulsão para emitir" é apenas o lado exterior dessa explora-
abstinência. U m organismo, n o qual tais estímulos iniciais já a t u a m h á u m ção, u m a pressão q u e atua t a n t o objetiva q u a n t o subjetivamente [daí ser tam-
tempo suficientemente longo, não pode mais tomar algo diferente daquilo que bém u m a compulsão], t a n t o c o m o pressão externa q u a n t o c o m o necessidade
os próprios estímulos iniciais t o m a m para si, a saber: que eles iniciam e obstam. própria, de tal f o r m a que p o d e ser considerada u m consenso global tácito que
Os substitutos se transformam na própria coisa: em fetiches, em substâncias está na base de todas as diferenças manifestas e das n o t a d a m e n t e políticas e
que viciam. C o n t u d o , eles são ingeridos para evitar o desprazer que se engendra f u n c i o n a c o m o seu, p o r assim dizer, inconsciente coletivo. C o n t u d o o vício é
sempre algo p r o f u n d a m e n t e ambivalente. O s viciados anseiam t a n t o pela subs-
8 5 S. Freud, Totem und Tabu, Studienausgabe. F r a n k f u r t , 1974, vol. IX, p. 374. 8 6 F. N i e t z s c h e , Also spracb Zaratbustra, p. 77.
técnica da eletricidade" pois "ampliamos o sistema nervoso central para uma se localiza à mão, o u seja, ela não se deixa realizar. A "expropriação dos ex-
propriadores" revelou-se algo factível, mas ela fez com que regressassem todos
rede de abrangência mundial" 8 .
os p r o b l e m a s de abastecimento, distribuição e gerência, cujas falsas soluções
Já se m o s t r o u o quão p o u c o isso é correto. E, e n t r e t a n t o , a euforia pela téc-
são p o r ela despedaçadas, da m e s m a f o r m a c o m o crescem n o v a m e n t e as cabe-
nica, demonstrada por McLuhan, tentou simplesmente Fazer com q u e a teoria
ças decepadas da hidra, ou seja, com crescente impertinência. Mesmo quando,
do amor ao mais distante, q u e foi pensada t a n t o d o p o n t o de vista b u r g u ê s
p a r a a sua realização, se desejam c a m i n h o s d i f e r e n t e s daqueles p e r c o r r i d o s
quanto do socialista, pudesse tornar-se realmente eficiente, na m e d i d a em q u e
p o r L ê n i n , Stálin ou M a o — tal c o m o n o caso da c o n c e p ç ã o elaborada p o r
caminhasse p o r meio de p e r n a s capitalistas. O q u a n t o ele confia nas forças
G r a m s c i de u m a sociedade civil socialista —, em n e n h u m desses casos a ex-
eletrotécnicas — confiança esta que p o d e ser c o m p a r a d a à expectativa q u e os
p r o p r i a ç ã o d o e x p r o p r i a d o r seria o p r e l ú d i o de u m a s o c i e d a d e m u n d i a l
grandes críticos socialistas t i n h a m em relação às forças espirituais h u m a n a s ,
u n a n i m e m e n t e socialista. Mas, tão logo tal expropriação não mais aconteça,
até que, finalmente, as adversidades d a f o r m a de sociabilização existente se
realizam-se todas as transformações dos f u n d a m e n t o s sociais capitalistas. Elas
tornaram dominantes — se expressa na aproximação d o a m o r ao p r ó x i m o e d o
não são políticas socialistas, mas sim, n o máximo, políticas com intenção so-
amor ao mais distante numa nova unanimidade de seres h u m a n o s ligados entre
cialista. A respeito da questão de c o m o é ainda possível a existência de uma
si. Esta é a pitada da fantasia de onipotência que a teoria socialista d o processo
p o l í t i c a socialista, há apenas u m a resposta: ela não é possível. N e m m e s m o
de formação da vontade concreta já previra na essência da natureza h u m a n a ,
C u b a a executa seriamente, e da C h i n a , então, nem se fala. E partidos c o m o
e não p r i m e i r a m e n t e a práxis. E é p o r isso q u e se simplifica demais q u a n d o ,
o PDS [ParteidesDemokratischen Sozialismus — Partido d o Socialismo D e m o -
simplesmente, se joga a boa idéia d o socialismo c o n t r a a sua má realização. O
c r á t i c o ] d e s e n v o l v e m - s e c o m o v a r i a n t e d a s o c i a l - d e m o c r a c i a com restos
fim da má realização sugeriu t a m b é m a fraqueza da p r ó p r i a idéia. Ela n u n c a
de retórica socialista.
foi simplesmente pensada, em sua forma intensa e séria, ou seja, a marxiana,
c o m o o reino de D e u s na Terra, tal c o m o foi m a l i c i o s a m e n t e i m p u t a d o p o r O d e s l o c a m e n t o n o irreal, ou seja, isso que ocorre com a visão socialista,
seus adversários, mas sim apenas c o m o u m estado d e c i d i d a m e n t e m e l h o r d o não faz dela algo ilegítimo e t a m b é m algo necessariamente destituído de força.
que o e n c o n t r a d o , sendo que isso tornaria suportável a c o n s t a t a ç ã o d a não As idéias teológicas p o s s u e m um p o d e r o s o elo: a vida pulsional h u m a n a , o
existência do reino de Deus' 8. Mas sua visão d o a m o r ao p r ó x i m o e d o a m o r ao n ú c l e o a r d e n t e dos desejos h u m a n o s e a f o r m a de sociabilização capitalista
mais distante numa sociedade unânime e m u n d i a l m e n t e solidária, e possuidora atiçam esse ardor com t o d a sua torça maquinai. A p r o d u ç ã o do c o n t í n u o pré-
do estado técnico mais desenvolvido, c o n t é m uma pretensão d o reino de D e u s prazer, p o r meio de choques visuais incessantemente repetidos, é c o m o o tor-
maior do que lhe poderia ser apropriada. Imagina-se isso c o m o a fachada social nar imagem de cada estimulador de apetite básico que forma a lei de movimen-
da h u m a n i d a d e que se reconcilia consigo p r ó p r i a e c o m a n a t u r e z a , ou seja, t o da s o c i e d a d e desde a Revolução Industrial. A g r a n d e m a q u i n a r i a q u e se
algo que a teologia n o m e o u c o m o glória eterna. instala e q u e é, desde então, c o n s t a n t e m e n t e refinada, p r o m e t e realmente a
O colapso do bloco do leste europeu t o r n o u evidente para o n d e apontava libertação do cansaço e da fome, da mesma forma c o m o a rede de telecomuni-
a visão socialista da vida reta: para o lado das idéias teológicas 8 9 , cuja fraqueza cações p r o m e t e o juntar-se n u m a aldeia global. P o r t a n t o , ela p r o m e t e aquilo
q u e a visão socialista apenas expressava. Apesar do naufrágio de t o d o socialis-
87 H . Marshall M c L u h a n , lhe Meditou is tbe mcssagc. R e i n o U n i d o : P e n g u i n Books, 1987, p. 2. m o real, ainda vale o seguinte: q u e m deseja aquilo que a sociedade capitalista
8 8 A esfera da p r o d u ç ã o social p e r m a n e c e "sempre u m reino de necessidade. Para além desse reino, o desen-
p r o m e t e , deve desejar um o u t r o tipo de sociedade. E p o r isso, apela-se para a
volvimento das forças humanas, que se coloca c o m o objetivo próprio, inicia o verdadeiro reino da liberdade,
que só p o d e d e s a b r o c h a r daquele reino d a necessidade que r e p r e s e n t a sua base Para que isso o c o r r a , a idéia de salvação marxiana, que não é tão diversa daquilo que Kant prognosti-
redução d a j o r n a d a de t r a b a l h o é c o n d i ç ã o f u n d a m e n t a l ( K . Marx, Das Kapital///, p. 828). U m a u t o p i a
m o d e s t a notável.
89 N ã o deixou de ser charmosa a parábola de B e n j a m i n c o n c e r n e n t e ao invencível a u t ô m a t o q u e joga xadrez c o m o se sabe, p e q u e n a e o d i a d a e n ã o d e v e deixar-se ã m o s t r a . " ( W . B e n j a m i n , Über den Begrijj der
diante de u m a boneca de h á b i t o turco, em c u j o interior se e n c o n t r a u m a n ã o c o r c u n d a q u e n ã o p o d e ser Geschichte, p. 693). Isso mostra o s e g u i n t e : o materialismo histórico é mais d o que mero casulo da teologia,
visto, que fora um mestre d e xadrez, e q u e c o n t r o l a a m ã o d a b o n e c a p o r meio de cordas. M a s a i n t e r p r e - pois ele criou suas p r ó p r i a s raízes nela: criou sua camada, sua pele e n r u g a d a exterior, n ã o m e n o s d i m i n u í d a
tação de Benjamin coloca algo cm evidência: "A b o n e c a deve ser sempre vitoriosa e se c h a m a "materialismo e o d i a d a , n o s ú l t i m o s 30 anos, d o q u e a teologia que ressurge hoje na forma o b s t i n a d a da euforia f u n d a -
histórico". E tal êxito é o b t i d o mais f a c i l m e n t e se ela p u d e r c o n t a r com o auxílio da teologia, q u e é hoje, m e n t a l ista.
S O C I E D A D E E X C I T A D A : F I L O S O F I A DA SENSAÇÃO
S U B S T I T U T O DA S E N S A Ç Ã O
cou, teleologicamente, c o m o prova da existência de Deus, 011 seja, a i n d a não teológicas na f o r m a racional significa t o m a r o presunçoso juízo que elas fazem
se p o d e m tomar da crítica mais c o n t u n d e n t e a fascinação e a plausibilidade de de si, juízo esse que elas utilizam para se inserir na vida; significa fazer com que
seu p o d e r de argumentação. Prevê-se, p o r t a n t o , um verdadeiro renascimento elas, nas condições de desejos prometidos, se t o r n e m transparentes. Mas sig-
das idéias de Marx, e não apenas o seu p o n t o t e m p o r a l e sua f o r m a teórico- nifica t a m b é m perceber q u e elas são, nessa qualidade, o extremo da razão; são,
prática. "Ele intensifica o estudo da natureza, assim c o m o ele p r ó p r i o deriva p o r assim dizer, razão par excellence, manifestações diretas de sua essência, pois
seu ser desse e s t u d o e, p o r isso, sempre recebe nova força" 9 0 , assevera K a n t razão Í-' O desejar traduzido. O intelecto h u m a n o não p o d e deixar de, constan-
sobre a prova teleológica da existência de Deus. Pelo menos este seria o seu uso temente, avaliar, esclarecer, interpretar, ou seja, de fazer a unidade da multipli-
racional, seu uso limitado, deve-se acrescentar. E a visão de u m a s o c i e d a d e cidade, de trazer c o n t e x t o e sentido àquilo que é disparate. E, em sua infatigá-
mundial u n â n i m e ? Ela não intensifica o estudo da sociedade, assim c o m o de- vel busca p o r consistência lógica e determinação, ele empresta, à sua maneira,
riva seu ser desse estudo e, p o r isso, recebe sempre nova força? Isso ocorre em u m a f o r m a coerente à necessidade, à expressão de toda dor e privação de um
completa sintonia com seu uso racional. E mais ainda: o m o n s t r u o s o jogo de m u n d o cicatrizado. Ele transforma em conceito aquilo que o "suspirar da cria-
pré-prazer que promove a sociedade existente; cada p e r m a n e n t e iniciar e obs- tura" 9 2 expressava antes d o p r ó p r i o conceito. Nas idéias teológicas, esse fazer
tar de possibilidades, que atinge seu ápice apenas na p r o d u ç ã o c o n t í n u a dc é s i m p l e s m e n t e explicitado, confessado e, q u a n d o convém, consciente de si
sensações audiovisuais, não p o d e ser concebido sem o desejo de sua superação. p r ó p r i o . Mas ele pode, na m e l h o r das hipóteses, na condição de megafone para
E o n d e esse desejo se aclara, de tal m o d o que da obscura pressão afetiva se en- o "suspirar" viciado — que constitui o estado de i n q u i e t u d e latente da socie-
gendram representações mentais, c o m e ç a m a transitar "imagens não observa- d a d e em geral —, p r o d u z i r um inestimável serviço de esclarecimento. Talvez
das" da sociedade mundial unânime. Elas são os d e m ô n i o s socialistas da f o r m a u m c o n c e i t o de vício, voltado a u m a dimensão político-teológica, possa auxi-
de sociabilização capitalista; são, p o r assim dizer, os " f a n t a s m a s de Marx", e liar a esclarecer o irritante estado de coisas em que o c o n f o r m i s m o e a resistên-
n e n h u m a autoconsciência racional é capaz de torná-las mais livres. E n t r e t a n t o cia se t o r n a m difíceis de discernir um d o outro. Assim c o m o o c o n f o r m i s m o
o c o n t e ú d o dessa imagem e dessa representação não é t o t a l m e n t e evidente. O m a n i f e s t o dos d e p e n d e n t e s de imagens c o n t é m em si uma revolta latente, da
desejo de salvação, que se e n c o n t r a nessa f o r m a , n u n c a é assepticamente se- m e s m a f o r m a as erupções manifestas d o c o t i d i a n o high-tech — tais c o m o se
parado dos desejos de vitória, de vingança e de desforra. N ã o existe a u t o p i a lançar n u m a aventura, as drogas pesadas, as gangues, seitas, até chegar ao apa-
pura. A saudade que ela dá à luz é t a m b é m p o r ela obscurecida. É p o r isso que, r e n t e m e n t e sem motivos A m o k , com o qual nos ocupamos n o primeiro capí-
em certas ocasiões, se torna tão difícil distinguir a saudade socialista d a fascis- tulo — p o r t a m consigo u m a reação conformista. E na sua revolta pode-se ler
ta. E tão urgente é o trabalho mental em ambas. "A razão sempre existiu, mas facilmente a "luta pelo aí", a necessidade de ser observado, de estar integrado
não sempre na forma racional" 91 , afirma Marx. Isso se aplica, de f o r m a p r i m o - e m vez de ser d e p e n d e n t e ou excluído, e tal necessidade se faz presente não
rosa, às idéias teológicas, as quais são sua m e n o r e maior expressão. Sabe-se q u e apenas o n d e ela se expressa n a f o r m a de um potencial difuso de intranqüilida-
elas surgiram pequenas. Fisiologia e teologia foram, em princípio, dificilmen- de e de d e s c o n t e n t a m e n t o , mas t a m b é m na ação política visada. Tal c o m o
te diferenciadas. O sagrado, tal c o m o foi d i t o n o terceiro capítulo deste livro, existe na filosofia transcendental de Kant um "eu penso" que p o d e acompanhar
é código de um p o d e r o s o excesso de excitação. Para expressá-lo e m palavras "todas as m i n h a s representações", há t a m b é m , sob todas as condições quase
entra em ação a p r o d u ç ã o elementar teológica. Essas palavras são razão na t r a n s c e n d e n t a i s de u m a c o m p u l s ã o universal para emitir, um "eu devo ficar
forma irracional; em princípio, elas não têm n e n h u m vislumbre daquilo que n o loco q u e a c o m p a n h a t o d a s as m i n h a s ações de resistência". Fisiologica-
são, ou seja, feixe de excitação, mas sim representam aquilo que não são: fiado- mente, observou-se esse "devo ficar no foco" na qualidade de vício; mentalmen-
res de forças incrivelmente redentoras que norteiam o m u n d o . C o n v e r t e r idéias te, ele instituiu a consistência da forma de intuição da sensação; e na dimensão
diariamente como freios q u a n d o eles dosam o c o n s u m o de imagens televisivas chocada. A ascese específica de um Schõnberg, de um Klee, de um Gropius não
das crianças, sendo esta u m a atividade p o u c o valorizada. Algumas pessoas que p e r m i t e um fácil ajustar artístico, de m o d o que ela se impõe, nesse meio-tempo,
procedem dessa forma se sentiriam estimuladas, caso lhes fosse claro em qual de f o r m a c o m p l e t a m e n t e não artística: nas ruas, nas lojas, nos restaurantes,
tradição o seu penoso fazer se coloca. N o início do século XX, q u a n d o pintores nos bancos, nos postos de trabalho, ou seja, o n d e geralmente se tenta buscar
começaram a dar a impressão de se retirar do c a m i n h o do estilo c o n c r e t o e de u m isolamento d o r u í d o e d o cintilar contínuos, q u a n d o se deseja permanecer
reprodução de retratos, estilo esse que eles desejavam c o n t i n u a r ; q u a n d o mú- j u n t o aos sentidos. A alavanca para o freio de emergência, que outrora a arte
sicos deformaram, gastaram o m u n d o dos tons tonais para que eles pudessem realizou de maneira espetacular, elementarizou-se aqui em pequenas ações de
ser atualizados, aconteceu algo não m u i t o diferente d o q u e a alavanca p a r a o legítima defesa cotidianas. Mas elas recebem, em sua completa trivialidade, um
freio de emergência, ou seja, ocorreu u m opor-se ao e m b o t a m e n t o , àquilo que peso significativamente i n c o m u m . Algo tão trivial c o m o decidir se a música
foi anteriormente nomeado c o m o exploração estético-neurológica. O sensório de f u n d o de um restaurante agrada ou não, subitamente pode transformar-se
desses artistas foi suficientemente refinado para perceber as linguagens imagética n u m a questão de princípios e n u m a prova de valor cívico. E isso para não falar
e tonai concretas c o m o linguagens gastas. E p r o c e d e r a m dessa f o r m a q u a n d o da luta em ouvir rádio n o local de trabalho, que recebe, de mais a mais, situações
ainda mal se podia perceber isso, ou seja, q u a n d o a aparelhagem audiovisual, bizarras, pois as gerências que proíbem esse ouvir rádio lutam contra o vício,
p o r meio da qual eles teriam tido tal percepção, a i n d a estava em seu início. ao passo que os empregados que o exigem apenas lutam contra seu sintoma de
O traço estético da arte de vanguarda é evidente; ele é, para A d o r n o , exata- abstinência. A transcrição de textos e fórmulas, antigamente a marca c o m u m da
m e n t e o seu critério qualitativo, ou seja, o traço de que "a arte de v a n g u a r d a chamada pedagogia tradicional f u n d a m e n t a d a na memorização dos conteúdos,
não se p e r m i t e f r u i r " "Toda arte simples' e admissível t o r n o u - s e a p a r e n t e e p o d e tornar-se, de repente, sob as condições gerais da agitação d o m o n i t o r da
mentirosa [...], e a promessa de felicidade, tal c o m o certa vez se definiu a arte, tela de c o m p u t a d o r — das quais t a m b é m as salas de aula se distinguem cada
não se encontra mais em parte alguma, uma vez que foi arrancada a máscara vez menos —, u m a m e d i d a de concentração motora, afetiva e mental, de reco-
da falsa felicidade" 9 6 . Evidentemente, esta não é n e n h u m a recusa d o p r a z e r l h i m e n t o interior e, por que não dizer, de recordação, ou seja, uma medida não
em geral, mas sim do prazer "falso", do prazer desgastado e d e g r a d a d o a m e r o m u i t o d i f e r e n t e daquilo que, na linguagem teológica, se chama devoção. O s
estímulo. As formas rigorosamente abstratas, atonais e g e o m é t r i c a s d e v e m , professores q u e a t e n t a m rigorosamente para esse fato, que aqui não é subesti-
por si próprias, p r o p o r c i o n a r prazer. Mas j u s t a m e n t e cada prazer m e d i a d o , mado, p r o d u z e m resistência, m e s m o que para eles seja válida uma terminolo-
cada "segundo melhor prazer" parece ainda prazeroso, uma vez q u e o prazer gia política tradicional e conservadora. Se cada complacência diante da comichão
imediato se deteriorou na forma de uma simples comichão de sentidos externa de sentidos midiática estimula a autodesapropriação estético-neurológica, já o
e prometeu salvaguardar a percepção da sua regressão a u m m e r o m e c a n i s m o isolamento diante da irradiação audiovisual t o m a o partido da sensualidade dos
96 Th. \V. A d o r n o , "Llbcr den Fetschcharakcer in der Musik u n d die Regression d e s H õ r e n s " p. 19.
9 7 " W a s b e d e u t e n asketische Ideale?" (F. N i e t z s c h e , Genealogie der Moral. D r i t t e A b h a n d l u n g , p. 339).
código da negação d o desprazer; ela sempre ansiou por i n d e n i z a r o prazer de sua dignidade estética a recusa em simplesmente se entregar a tal força de
fugidio com u m prazer maior. O r a , ocorre exatamente isso q u a n d o t a m b é m gravidade de u m meio de comunicação. N ã o se trata de a arte fazer aquilo que
a ascese se dirige ao "retorno ao fundamento". Q u a n d o ela se t r a n s f o r m a na o usuário c o m u m faz. Fotografias, cartazes, filmes, videoinstalações reivindicam
ultima ratio contra o vampirismo audiovisual, acaba por nutrir-se n o v a m e n t e para si o posto de ser arte. Mas, para isso, eles são avaliados no q u a n t o conse-
guem ter êxito em voltar o meio de comunicação contra si próprio ou, moral-
da legítima defesa arcaica.
m e n t e falando, fazer com q u e ele fale por si próprio.
A legítima defesa cotidiana diante da torrente de estímulos se coloca, tenha-
se consciência ou não, em aliança com a arte de vanguarda e a revela c o m o um O r e t a r d a m e n t o das seqüências de imagens e sons que o sensório conserva,
passado que não se esvaeceu. H á tempos que ela foi encoberta pelas posteriores sendo q u e eles desejam ir além, ou sua aceleração até chegar às raias da implo-
correntes artísticas e, entretanto, as gerações posteriores não conseguem livrar- são; o colocar-se n o lugar da perspectiva externa de marginalizados, crianças,
se dela. Seu escândalo não se refere mais ao seu conteúdo, mas sim ao fato de animais, anjos etc.; regulagens micro e telescópicas; o recurso de um meio téc-
que ela não cessa de ser u m marco. Por mais q u e a arte se articule, de f o r m a nico arcaico, da câmera escura, no m o m e n t o em que a câmera digital já é anun-
heterogênea, ao redor das atuais mudanças de final de século, ela não deixa de ciada; partículas de filme p r e t o e branco à altura da técnica do filme colorido;
ter um denominador c o m u m . Q u a n d o se pergunta, quase t o d o s os artistas di- a b e m calculada incidência ou falta de linguagem, da música ou do barulho; a
zem ter como prioridade o rompimento c o m u m a forma de percepção adorme- anulação d o material representativo, algo c o m o q u a n d o as figuras principais
cida e acabada; todos lutam contra o prazer insosso dos estímulos superficiais não mais aparecem por si próprias; apagar gradativamente showdowns-, senti-
e a favor de um outro tipo de prazer. T a m b é m q u a n d o incluem a própria arte mentos que não são mais pormenorizadamente considerados; mostrar o horror,
de vanguarda como uma forma de percepção adormecida e lutam contra isso, tal c o m o o da Shoah, n u m mosaico de testemunhos em vez de ser realística e
eles mesmos continuam a batalha com outros meios. A forma de intuição da falsamente apresentado na forma de "autênticos" bastidores nazistas e de cam-
sensação tornou a arte difusa, de forma inédita, na sua forma de aparência, mas pos de concentração; transformações da concretude em abstração, na repro-
na sua intenção ela a fez u n i f o r m e t a m b é m de m o d o inédito. Isso significa o dução minuciosa d o interior altamente tecnologizado da sociedade, a mesma
seguinte: a própria maquinaria da sensação se d i f u n d e em incontáveis estímulos sociedade q u e p e r m i t e q u e se veja t u d o no seu detalhe mais preciso e, não
sensoriais, ao mesmo tempo em que ela, em sua dinâmica, uniformiza de forma obstante, que t u d o oculta, pois se retirou o representado de cada compreender
rasante. E o estado de coisas da distração concentrada t a m b é m pertence a isso. identificante: estas são apenas alusões vagas, cada particular é caracterizado em
Q u e os atos de sexo e de violência, os corpos nus e mutilados, as faces trans- u m conglomerado de obras de arte. " Q u a n t o mais de perto se observa a palavra,
bordantes de lágrimas e sangue passem rapidamente nas telas com freqüência para mais d i s t a n t e ela remete de volta o olhar" 9 s , afirma Karl Kraus. Se essa
cada vez maior — desde que a luta pela percepção se transformou na luta existen- experiência é empregada n ã o apenas para os caracteres gráficos, mas também
cial dos canais de televisão —, todas essas situações não implicam u m abuso para as imagens técnicas, então se injeta no c h o q u e imagético c o m o que um
dos meios de comunicação de massa, mas sim a ostentação desenvolta daquilo interruptor, de tal m o d o que ele se contorce na forma de u m c h o q u e reflexivo.
que significa choque imagético. Antes de tudo, o c h o q u e é simplesmente algo Q u a n d o isso dá certo, o c h o q u e imagético é forçado a se separar da quase na-
formal: a forma brusca como as imagens penetram na aparência. Mas essa forma tural força de gravidade d o meio de comunicação. Sempre se teve de lutar com
como que grita pelos conteúdos que lhe são adequados. Esta é a própria força o material para q u e a pedra, as cores, os sons e a ação recebessem as formas que
de gravidade do meio de comunicação, ou seja, quando se traduz o choque ima- lhes concernem. Mas a flexão d o meio audiovisual para reflexão assemelha-se
gético em conteúdos chocantes, que o tornam mais forte; ou até se encarregam c o m um trabalho de Sísito. E cada flexão vitoriosa se parece com o gotejar de
da estimulação sensorial e da comichão de nervos que ele não mais produz. Sob um óleo de freio, que é incerto se será mais do que óleo lubrificante do empreen-
tais condições t u d o aquilo que ainda pode receber o n o m e de arte atua c o m o d i m e n t o artístico. Portanto, não há n e n h u m a razão para esperar efeitos revo-
freio de emergência contra tal força de gravidade. E isso não p o r q u e os artistas
fossem avaliados, sobretudo, como revolucionários, mas sim p o r q u e faz p a r t e
9 8 K. Kraus. Pro domo et mundo. Leipzig, 1919. p. 164.
anos 1960. N ã o há dúvidas de q u e esse m o v i m e n t o teve um núcleo marxista
lucionários, dignos de nota, da ação de freio da arte, pois isso d e p e n d e de seu
fervoroso que se disseminou t a m b é m , em algumas ocasiões, sobre seus sequa-
contexto. O autovacinar e a autoblindagem diante da torrente de estímulos são
zes marginalizados, e que sugeriu a derrocada do sistema capitalista "tardio".
como que a preparação silenciosa, sem a qual o sensório não poderia preservar
Mas o m o v i m e n t o não foi além da condenação da Guerra do Vietnã, da prá-
n e n h u m a capacidade de registro para fins de p r o d u ç ã o do freio da arte. E essa
tica de desobediência civil, da flexibilização dos m o d o s de c o m p o r t a m e n t o e,
produção adquire novamente atualidade contextual em c o n j u n t o com as ações
na Alemanha, da tematização d o passado nacional-socialista, o que, convenha-
de freio, as quais são, essencialmente, agarradas de m o d o mais direto. T a m b é m
mos, não é p o u c a coisa. Já nos dias de hoje, os zapatistas mexicanos e os sem-
sob esse aspecto a arte de vanguarda é um passado que não se desvanece. N o
terra brasileiros só p o d e m ser racionalmente apoiados se não forem poupados
início do século XX ela prefigurou a alavanca p a r a o freio de emergência e o
da ofensa de q u e eles não são o novo c o m e ç o d o socialismo, mas que são, na
que restou, em seu fim, c o m o única f o r m a de resistência. N ã o foi n e n h u m a
verdade, m o v i m e n t o s de freio da desavergonhada exploração e que lutam por
coincidência o fato de ter sido u m teórico de p r o f u n d o vínculo c o m a estética
uma distribuição justa da riqueza social. São, p o r t a n t o , m o v i m e n t o s vivos d o
aquele que encontrou a fórmula dessa f o r m a de resistência. U m a f ó r m u l a que
fato de q u e a idéia socialista de uma sociedade igualitária t a m p o u c o se deixou
adoece p r o f u n d a m e n t e . Aqueles que se o c u p a r a m , na U n i ã o Soviética, com a
eliminar, a exemplo d o suspiro teológico de Nietzsche: "A dor fala: desfaça-se!
construção do socialismo desejaram estar à frente, ser locomotivas. A maioria
E n t r e t a n t o , t o d o prazer quer ser eterno' , | ( , n .
deles percebeu a arte de vanguarda e x a t a m e n t e c o m o ação de freio, da qual
Benjamin fala, mas c o m o traição à revolução e não c o m o seu segredo. L o g o N a m e d i d a em que a arte de vanguarda se destaca c o m o o arquétipo da re-
após o colapso do bloco socialista d o leste europeu, pôde-se, e n t r e t a n t o , ousar sistência m o d e r n a , associa-se a ela u m valor de r e c o n h e c i m e n t o político pós-
ter o pensamento de que a vanguarda, sem que se suspeitasse, já naquele t e m p o t u m o . E o peso d o estético t a m b é m cresce, às avessas, nas formas de resistência
preludiava a sua melodia c o m o música do futuro, ou seja, q u e t a m b é m o socia- q u e n ã o t ê m n e n h u m a a m b i ç ã o de serem caracterizadas c o m o artísticas. A
lismo não teria sido nada além de um grande p r o j e t o c o n t r a a globalização ca- c a m p a n h a d o Não-Logol, inspirada n o livro h o m ô n i m o de N a o m i Klein, foi
pitalista, sendo que esse freio executou medidas inumanas pelas quais ele não talvez u m exemplo de vida curta, mas, ao m e s m o tempo, bastante instrutivo.
se responsabilizou e que, com t o d a violência, desejou ser mais d o que freio de Ela foi direcionada c o n t r a empresas tais c o m o a M c D o n a l d s , a C o c a - C o l a e a
emergência. E o que é válido para o bloco do leste europeu aplica-se m u i t o bem Nike, cujos logos literalmente conquistaram o m u n d o . Mas, no m o m e n t o em
para os movimentos anticapitalistas realizados nos centros do m u n d o ocidental q u e tais logos se a p r e s e n t a m a b e r t a m e n t e c o m o insígnias de culto, reluzem
na segunda metade do século XX. Foi i n j u s t a m e n t e esquecido o m o v i m e n t o t a m b é m c o m o s í m b o l o s de uma d u p l a exploração. Por detrás da exploração
da Internacional Situacionista, uma ousada mescla de Marx e surrealismo que, e c o n ô m i c a , da qual seus c o n s u m i d o r e s p a d e c e m , s o b r e t u d o os do Terceiro
na Paris do final dos anos 50 d o século passado, esboçou o "conceito de u m M u n d o , encontra-se a exploração estético-neurológica, a exploração sansphra-
urbanismo unitário" e desejou compor revolucionários "campos de força", "meio se que ocorre o n d e tais logos, na condição de f u n d a d o r e s de identidade e de
ambientes", "atmosfera de bairro" e "situações" 99 nos espaços a n ô n i m o s e abs- fetiches, absorvem um n ú m e r o incomensurável de sistemas nervosos. Esse mo-
tratos da grande cidade, sob a "utilização de todas as direções artísticas e téc- m e n t o de revelação se alastrou, n u m abrir e piscar de olhos, em escala mundial
nicas", por meio dos quais se chegaria à revolução das metrópoles. Visto retros- e converteu d e s c o n t e n t a m e n t o s vagos n u m a rede de ações tais c o m o convoca-
pectivamente, o situacionismo se revela a vanguarda na luta pela salvação d o ções para greves, boicotes e protestos. E n t r e t a n t o , tal rede afrouxa num duplo
lugar concreto contra o espaço abstrato, do vivenciável aqui e agora c o n t r a o sentido e se distancia t a n t o dos grupos de ação mais sólidos q u a n t o dos grupos
impalpável aí do espetáculo midiático. Ele aciona o freio de emergência e isso de ambições mais exaltadas. Deseja-se um "novo m o v i m e n t o de protesto", mas
de m o d o não diferente do que fez o m o v i m e n t o de p r o t e s t o internacional dos não c o m o o dos anos 60 do século passado. "Eles foram tão ingênuos, tão ro-
mânticos [...] tão diretos, de tal m o d o que eles t i n h a m mesmo de ser derrotados,
112 Aliás, este f a t o é t a m b é m p o u c o esclarecido, pois tal sucesso se apoia e m registros falsos sobre a quanti-
d a d e d e ó l e o na p l a t a f o r m a m a r í t i m a , s e n d o q u e até hoje a i n d a não se esclareceu se sua s u b m e r s ã o n o
m a r não teria s i d o a solução m e n o s i m p a c t a n t e .
110 T u t t e Bianche, Aufitandder Gespenster. K o n k r e t . set., 2001. p. 16. 1 13 T h . G e b a u e r , "... v o n n i e m a n d e m g e w á h l t ! " Ü b e r die d e m o k r a t i s c h e L e g i t i m a t i o n von N G O " , in
U. B r a n d ; A. D e m i r o v i c ; C h . G õ r g e J. H i r s c h (orgs.), Niehtregierungorganisationen in der Transforma -
111 Cl. Benjamin, Denkbilder. Ges. Schriften {Obras completas], 1972, vol. IV, p. 305.
tion des Staates. Münsrer, 2001, p. 113.
t r a r ã o o este aí r e d e n t o r — o messias, t e o l o g i c a m e n t e f a l a n d o —, mas elas
é algo que dificilmente será ultrapassado em termos de violência simbólica. Ele é uma
continuarão sempre significando-o. Toda redenção efetiva pode ser apenas uma
intervenção real com milhares de mortos, mas também simboliza a destruição dos
provisória, frágil e segunda melhor redenção — e isso quando, por meio dela,
Estados Unidos. Ele é "meramente" um ataque terrorista, mas é também um ataque
que significa a guerra numa forma inaudita. Ele semeia o lusco-fusco de uma guerra se p o d e sentir que ela mesma poderia ser melhor. As sensações p r o f u n d a s são
simbólica, ou seja, trata-se de uma guerra, mas também dc nenhuma. E pertence à o frágil luzir desse melhor. E p o r isso atraem a atenção para si na condição de
sua força simbólica o fato de que ele se refere imperiosamente à guerra, ou seja, de um filamento brilhante que não deve apagar-se.
que ele parece obrigar a existência da guerra real, da guerra não simbólica. Diante
desses acontecimentos, considera-se o "contrafogo", que aqui se coloca para debate,
de forma semelhante àquilo que Israel raptado é para os profetas no cativeiro babi-
lônico: um filamento brilhante" 4 .
114 I s a í a s 4 2 , 3.
115 I C o r í m i o s 2 , 9 .
116 Esta é a famosa canção da b a n d a d e rock Pink H o y d , que, p o r volta de 1980, c o n s e g u i u t r a d u z i r o senti-
m e n t o de vida de t o d a uma geração.
ÍNDICE ONOMÁSTICO
Copérnico, N. 80-1,83-4,86,196
B a c h o f e n , J. J. 140 C u s a , Nicoiau dc 8 7 - 9 2 , 1 7 9
Bacon, F. 9 8 - 9
Bakhtin, M. 96 Daguerre. L.J. M . 174-5,177,181-2,184,187
Barthes, R. 176, 186, 190 Daniels, D. 15
Baudelaire, C . 2 4 9 - 5 0 D a n t o , A. C . 191
Beck, U. 2 2 6 - 7 , 311 Darwin, C. 247
B e n j a m i n , W . 7 4 , 161, 168-9, 175, 177, 184, 195, D e b o r d , G. 1 1 , 3 0 8
225-6, 256-63, 266, 294, 296. 298-9. 303, 308. Demócrito 178-9
316.318 Descartes, R. 8 3 , 9 9
Berkeley, G . 3 9 - 4 0 , 103-8. 118-9, 189 D e u t s c h m a n n , C . 201
Blackwcll, L. 2 8 6 D o u g l a s , M . 138
Bode, Th. 3 1 2 D u c h a m p , M . 50
Bolz, N . 2 5 9
B o u r d i e u , P. 3 1 0 Eisenberg, G. 76
B r e c h t , B. 3 1 , 8 9 Eisensteín, S. 2 3 0 - 1 , 2 5 6 - 7
Brcton, A. 51 Engels, F. 2 1 . 1 4 4 , 1 6 7 . 1 9 3 . 1 9 7 , 2 2 4 . 2 3 6 , 2 4 5 , 2 5 7 ,
Breuer, S. 2 5 1 259, 2 7 4
B r u n o , G. 8 0 , 8 3 , 2 1 3 Epicuro 8 4 . 1 2 7
B u r c k h a r d t . J . 211 Erikson, E. 2 4 2
Lacan, J. 4 8 Quincey, Th. D c 249-50 T a l b o t , W . H . F. 175-6
Fenichel, O . 152,154
Landbeck, H . 24-5 Tillich, P. 15
Feuerbach, L. 2 2 3
L a u b . D . 155 Rath, N. 38 T o m á s de A q u i n o 5 3 , 8 9 , 9 1 , 179
Flusser, V. 281
Laum, B. 2 0 3 - 4 , 2 0 9 Rautêrberg, H . 215 Toscani, O . 4 9
Foucault, M . 6 2 - 3 , 7 9
Leibniz, G . W . 1 0 5 , 1 3 1 R i f k i n . J . 86 Trótski, L. 2 5 2 - 5 . 3 1 3
Freud, A. 143
Lênin, W . I. 2 1 , 2 9 9 , 3 1 3 - 4 R o b i n s o n , J. 2 7 8 Tiircke, C . 5 4 , 5 6 , 8 3 , 141, 1 7 4 , 2 4 8
Freud,S. 121-5. 1 2 7 - 9 , 1 3 1 . 133-5, 143. 1 4 7 , 1 5 0 - 5 ,
Lévi-Strauss 138,266 Roth.G. 125,132,134 Turklc, S. 2 9 2
169, 180, 2 0 7 , 2 3 9 - 4 1 . 2 4 3 , 2 4 7 , 2 8 8 - 9 , 2 9 2 ,
Locke,J. 9 8 - 1 0 4 . 1 0 6 - 7 , 114 Turner, V. 146
294,296
Luhmann, N. 28-33,97 Salgado, S. 2 7 3
Lukács, G. 3 6 , 3 8 , 135 Sarcinelli, U. 3 1 5 Usener, H . 160
Gebauer.Tli. 3 1 7
Lutero, M. 3 3 . 2 4 2 , 2 4 4 Saussure, F. 2 8 2
G e n n e p , A. 146
L u t t w a k , E. 22 Scheercr, S. 2 3 4 - 6 , 2 5 1 Vogt, I. 2 3 5
Gcorge, S. 251
Luxemburgo, R. 313-4 Schivelbusch, W . 2 2 7 , 2 3 4 - 5 , 2 3 9 , 2 4 4 , 2 4 9 , 2 5 1 , 2 5 6 Vertov, D. 230-1
G i r a r d . R . 164
G o e t h e , J. W . 1 0 9 , 3 1 4 - 5 Schlesier, R. 123
H o r k h e i m e r , M. 3 5 - 6 , 6 0 , 1 8 2 , 2 0 4 . 2 9 6 , 3 0 2 McLuhan, H. 4 7 , 6 8 . 2 8 9 , 2 9 7 - 8
H u m e . D . 118 McTaggart, D. 3 1 2
M e f f e r t , E. 9 1
J a n i n . J . 181 Menzel, U. 5 8
J o h a n n e s , R. 2 2 4 Mõhl, W. 312
Jütte. R. 7 6 Molière 7 0
M o r s e . S . 177
Kafka.F. 2 9 1
Kant, 1. 52-3. 80-1, 118, 130-1, 187, 2 0 0 , 2 1 6 , 2 1 8 , Niépce, J . N . 173-5. 182, 187
Klein, N . 3 0 9 - 1 0 2 8 3 , 2 9 7 , 305, 3 0 9
Klüger, R. 64
Krainer, S. 2 5 6 O t t o , R. 135-7, 1 4 3 , 1 5 8 , 1 6 7
Kraus.K. 18,135,307
Krõll, K. 9 5 Parmênides 163,220,229
K u h n , T h . 79, 83-5 Platão 4 5 . 9 0 , 170, 1 7 9 , 2 7 2
Kulechov, L. 230-1 P l o t i n o 179
Künzj® A. 86 P o e . E . A. 33, 1 1 8 , 2 4 9
Kurnitzky, H . 2 0 7 Portirio 163
Kurz, R. 2 7 8 P u d ó v k i n , W . 230-1
Título Sociedade excitada: filosofia da sensação
Autor C h r i s t o p h Türcke
ESTA O B R A F O I I M P R E S S A NA R E T T E C A R T E S G R Á F I C A S
P A R A A E D I T O R A DA U N I C A M P EM J U N H O DE 2 0 IO.
ti-00
ChristophTürcke, nascido em
1948, é professor de filosofia
na Hochschule für Grafik und
Buchkunst em Leipzig. Dentre
suas principais publicações,
destacam-se: Der tolle Mensch.
Nietzsche und der Wahnsinn
der Vernunft (4a ed., 2000), livro
que foi traduzido para a língua
portuguesa com o seguinte
título: O louco: Nietzsche e a
mania da razão (Vozes, 1993);
Sexus und Geist: Philosophie
im Geschlechterkampf
(3a ed., 2001); e Rückblick aufs
Kommende: Altlasten der
neuen Weltordnung.
L .