Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
do Poder
História, Política
e Relações Internacionais
Conselho Editorial da Série História Chanceler
(Editor) Leandro Pereira Gonçalves, Dom Jaime Spengler
Pontifícia Universidade Católica
Reitor
do Rio Grande do Sul, Brasil
Joaquim Clotet
António Costa Pinto,
Instituto de Ciências Sociais da Vice-Reitor
Universidade de Lisboa, Portugal Evilázio Teixeira
História
66
Dimensões
do Poder
História, Política
e Relações Internacionais
CDD 981
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio
ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos,
fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bem como
a inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas
proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos
direitos autorais é punível como crime (art. 184 e parágrafos, do Código Penal), com pena de prisão e
multa, conjuntamente com busca e apreensão e indenizações diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de
19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).
Sumário
prefácio................................................................................................................................ 7
apresentação.................................................................................................................... 9
A fronteira no centro................................................................................................... 13
Rui Cunha Martins
| 7
Apresentação
| 9
apresentação
10 |
apresentação
Os Organizadores
| 11
A fronteira no centro
Rui Cunha Martins
Universidade de Coimbra
1. Função
2. Modelo
| 13
a fronteira no centro
3. Designação
1
MARTINS, Rui Cunha. O Método da Fronteira: Radiografia Histórica de Um Dispositivo
Contemporâneo (Matrizes Ibéricas e Americanas). Coimbra: Almedina, 2008, p. 112.
14 |
rui cunha martins
4. Centralidade
| 15
a fronteira no centro
5. Contingência
Há ainda um terceiro aspecto a ter em conta. Tem a ver com o espaço re-
servado à contingência no campo do conceito de fronteira e, nomeadamente,
com o necessário recuo crítico perante assimilações demasiado rápidas entre
contingência e alternativa. Vejamos. Não sobram dúvidas sobre as inúmeras
facetas que imprimem à fronteira um elevado grau de resistência a esforços de
uniformização: pense-se no seu carácter “contextual”, na sua propensão plural
ou no seu potencial de desdobramento, características que têm nas figuras
da duplicação de fronteiras, da sobreposição de fronteiras, do apagamento de
fronteiras e da reposição de fronteiras a sua expressão acabada. Dito isto, im-
porta frisar que, se estes elementos existem, em qualquer fronteira, de modo
latente, vigorando nela em potência, não é, contudo, forçosa, e menos ainda
permanente, a sua manifestação. Semelhante latência não pode, portanto,
tomar-se como a essência da própria fronteira, como que antecipando-se, por
inerência, à contextualização proporcionada, a essa mesma fronteira, pelos res-
16 |
rui cunha martins
pectivos quadros históricos; aquilo que, em bom rigor, está próximo do âmago
da fronteira e pode ser talvez dito essencial nela é, agora sim, a disponibilidade
assegurada por essa latência, o carácter “negocial” adveniente à fronteira por
via de uma eventual ativação desses elementos potenciais, ou até – e este é o
ponto a reter - a possibilidade em aberto de que cada uma dessas iniciativas e
ativações permita mesmo aclarar uma sede (chame-se-lhe também centro ou
referente) produtora e organizadora desse mesmo quadro de multiplicidade.
Donde, constatar a presença da instabilidade e da contingência por entre os
elementos integrantes do corpo do conceito só pode significar a consciência de
que é no enfrentamento com essa contingência (um enfrentamento entendido
como “negociação” pelo que se considere ser, em contexto, a melhor opção)
que se instaura a possibilidade de um referente, ou seja, que se torna possível
ativar a matéria autoral – porque, de acordo com nosso ponto de vista, “toda
a fronteira tem autor”. Por conseguinte: permitir o exercício demarcatório
que confira sentido à dispersão; e permitir o reconhecimento desse esforço
ordenador; são estes os dois momentos complementares que a contingência,
contra ela própria, acaba por assegurar. Daí que ao pensamento moderno não
se imponha terminar com a ambiguidade mas geri-la, até porque só essa gestão
permite a definição das situações de transgressão, de exceção, de punição ou de
perdão, expressões autorais máximas em matéria de fronteira, tal como só ela
permite o gesto articulador que, integrando todas essas modalidades, designe
o autor. Porque o autor e a sua centralidade são demarcados pelo próprio ato
de demarcação que ele assegura.
6. Adaptabilidade
| 17
a fronteira no centro
7. Interioridade
18 |
rui cunha martins
de onde provém um povo, mas aquilo em direção ao qual ele avança”2 . Com o que
a localização da interioridade devém, em última instância, promessa de futuro.
Ora, ao generalizar-se o modelo do estado-nação, ou, dizendo-o com maior
ancoragem historiográfica, à medida que a modernidade processa esse longo
movimento de exportação do estado-nação como forma de arrumação política,
primeiro nas margens do espaço europeu e depois para fora dele, em direção à
sua periferia – movimento que, deste ponto de vista, pode ser perseguido até
à contemporaneidade –, também esta modalidade de realização da fronteira
enquanto centro (a da “fronteira interior”) segue junto com todas aquelas que,
em paralelo, integram o quadro de valências do mecanismo “fronteira”. O re-
sultado maior da sua ativação conjugada é, provavelmente, a american frontier,
tal como desenhada por Turner. Aí, a fronteira parece caminhar irreversivel-
mente para a sua própria centralidade. Mas só aí? E no caso brasileiro? Aqui,
a impressão que se colhe é a de que o tópico da centralidade, tanto quanto os
da ilimitação e da demarcação, será também ele francamente mobilizado por
um debate identitário brasileiro que, em Oitocentos, surge obcecado com a
definição das fronteiras jurídico-políticas e culturais. E, por arrasto, com a
definição dos argumentos conexos: com o lugar da Ibéria nesse quadro, sem
dúvida; com os modos da especificidade e da diferença, com certeza que sim;
e, inevitavelmente, com as virtudes demarcatórias do elemento híbrido.
8. Hibridização
2
BALIBAR, Étienne. Fichte et la Frontière Intérieure. À propos des Discours à la nation al-
lemande. In: BALIBAR, E. La crainte des masses. Politique et Philosophie avant et après Marx.
Paris: Galilée, 1997, p. 150.
3
GAUER, Ruth. A construção do Estado-Nação no Brasil. A contribuição dos Egressos de Coimbra.
Curitiba: Juruá, 2001, p. 35-36.
| 19
a fronteira no centro
9. Historicidade
4
SILVA, Mozart Linhares da. O Império dos Bacharéis. O pensamento jurídico e a organização
do Estado-Nação no Brasil. Curitiba: Juruá, 2003, p. 265-269.
5
Idem, p. 269.
6
MARTINS, Rui Cunha, op. cit.
20 |
rui cunha martins
10. Limite
7
PAREDES, Marçal de Menezes. Fronteiras Cuturais Luso-Brasileiras: Demarcações da história
e Escalas identitárias (1870-1910). Coimbra: FLUC, 2007.
| 21
a fronteira no centro
11. Continuidade
12. Evolução
8
PAREDES, Marçal, op. cit., p., 25-122; HOMEM, Amadeu Carvalho. Da Monarquia à República.
Viseu: Palimage, 2001, p. 13-25.
22 |
rui cunha martins
Bomfim e Sílvio Romero, por exemplo, alinham-se por este diapasão. Uma vez
mais não cuidaremos aqui das diferenças, profundas ou de ocasião, entre eles.
Por todos, seguiremos Romero. E aquilo que de particularmente expressivo
pretendemos elucidar a seu respeito, é a compaginação que pode ser feita entre
o seu discurso e o de um outro americano, este do norte, Frederick Jackson
Turner9. Longe do nosso intuito reabrir o debate sobre a recepção e o papel da
obra turneriana no Brasil. O que, por outro lado, pretendemos aqui sublinhar é
que, independentemente das circunstâncias quanto às condições de recepção,
e, ainda, à margem de qualquer preocupação em estabelecer afinidades inte-
lectuais ou doutrinárias entre ambos, a proximidade que se detecta entre os
dois discursos é irrecusável. Bem vistas as coisas, Romero, como Turner, tinha
pela frente a tarefa de integrar a presença de uma fronteira em movimento e
as especificidades por ela introduzidas no processo de demarcação de uma
dada sociedade cultural e política. A um como a outro se impunha dotar de
coerência o movimento ilimitado.
Uma das principais consequências analíticas a retirar dessa comum necessi-
dade será uma também comum recusa do passado europeu que a cada um coube.
Já destacámos este ponto para o caso de Turner. Por seu turno, Sílvio Romero é,
quanto a este ponto, igualmente conclusivo. Atente-se, desde logo, na sua con-
vicção de que “uma nação se define e se individualiza quanto mais se afasta pela
história do carácter das raças que a constituíram, e imprime um cunho peculiar à
sua mentalidade”, ou, na mesma linha, na sua certeza de que “a nação brasileira,
se tem um papel histórico a representar, só o poderá fazer quanto mais separar-se
do negro africano, do selvagem tupi e do aventureiro português”10. Por detrás destas
ideias germinam conceitos do neolamarckismo (dos quais fará também visível
uso um Manoel Bomfim na altura de caracterizar o “mal de origem” brasileiro
enquanto “parasitismo” português, cuja “cura” era o afastamento do passado
ibérico) e o cruzamento de preceitos darwinistas ou aparentados, canalizados
para uma interpretação naturalista da evolução dos povos na qual o potencial de
mistura e de combinação inesperada de elementos de diversa proveniência era
sobrestimado enquanto garante de uma originalidade em permanente eclosão.
No âmbito desta linha evolutiva em direção à singularidade e à diferença em que
a própria história se transforma, a fronteira brasileira não pode ser em caso algum
a fronteira portuguesa, mas, bem ao invés, a sua constante negação, o lugar do
perpétuo movimento para longe de Portugal e das raízes onde estiolava o “velho
reino”, esse que “havia feito completa bancarrota de ideias” e que, resignado
à condição de “ínfimo glosador dos desperdícios franceses”, não era mais do
que a raiz longínqua que “perdeu definitivamente o encanto a nossos olhos”11.
9
MARTINS, Rui Cunha, op. cit., p. 129-135.
10
PAREDES, op. cit., 114.
11
Idem, 116-121.
| 23
a fronteira no centro
13. Delimitação
12
TURNER, Frederick Jackson. The Frontier in American History. Tucson: The University of
Arizona Press, 1986.
13
PAREDES, Marçal, op. cit., p. 77-93.
14
MARTINS, J. P. Oliveira. Política e História. Lisboa: Guimarães Editores, 1957. Veja-se também:
MATOS, Sérgio Campos. Portugal e Brasil: crónicas esquecidas de Oliveira Martins. In: MARTINS,
J. P. de Oliveira. Portugal e Brasil (1875), ed. Sérgio Campos Matos, Lisboa: Universidade de Lisboa,
2005, p. 7-36; e, do mesmo Autor, Iberismo e Identidade Nacional (1851-1910), Clio, 14 (2006), p.
349-400.
24 |
rui cunha martins
propiciasse o encontro brasileiro com o seu âmago (arrisquemos desde já: com
a sua fronteira interior). Tanto assim era que, em simultâneo com a sugestão da
“liga ibérica”, mas em nítido sentido concorrencial com ela, o espírito antilusita-
no se aplica na promoção de uma escala americana de referência, contraposta à
anterior. Este reforço do cunho americanista está presente na órbita do “Manifesto
Republicano de 1870”, em que o processo abolicionista brasileiro e a questão do
derrube da monarquia se fazem acompanhar da denúncia do passado português
e concretamente europeu e, ao mesmo tempo, da estima confessa que deveria
merecer, nos areópagos republicanos, o culto do sentimento americanista, ver-
tido na mensagem óbvia de que “somos da América e queremos ser americanos”15.
Preocupações demarcatórias, claro. Uma vez mais. Só que, desta vez, a demar-
cação cultural extirpava o sangue e optava pelo território.
14. Essência
15
PAREDES, Marçal, op. cit., p. 256.
| 25
a fronteira no centro
16. Ilimitação
16
Ibidem.
26 |
rui cunha martins
Referências
BALIBAR, Étienne. Fichte et la Frontière Intèrieure. À propos des Discours à la nation
allemande. In: BALIBAR, E. La crainte des masses. Politique et Philosophie avant et après
Marx. Paris: Galilée, 1997.
GAUER, Ruth. A construção do Estado-Nação no Brasil. A contribuição dos Egressos de
Coimbra. Curitiba: Juruá, 2001.
HOMEM, Amadeu Carvalho. Da Monarquia à República. Viseu: Palimage, 2001.
MARTINS, Rui Cunha. O Método da Fronteira: Radiografia Histórica de Um Dispositivo
Contemporâneo (Matrizes Ibéricas e Americanas). Coimbra: Almedina, 2008.
MATOS, Sérgio Campos. Iberismo e Identidade Nacional (1851-1910), Clio, 14, 2006.
______. Portugal e Brasil: cróniqcas esquecidas de Oliveira Martins. In: OLIVEIRA MARTINS,
J. P.. Portugal e Brasil (1875), ed. Sérgio Campos Matos. Lisboa: Universidade de Lisboa, 2005.
OLIVEIRA MARTINS, J. P. Política e História. Lisboa: Guimarães Editores, 1957.
PAREDES, Marçal de Menezes. Fronteiras Cuturais Luso-Brasileiras: Demarcações da história
e Escalas identitárias (1870-1910) Coimbra: FLUC, 2007.
SILVA, Mozart Linhares da. O Império dos Bacharéis. O pensamento jurídico e a organização
do estado-Nação no Brasil. Curitiba: Juruá, 2003.
TURNER, Frederick Jackson. The Frontier in American History. Tucson: The University of
Arizona Press, 1986.
| 27
De frente para o futuro.
O Conceito de nação nos processos de
independência hispano-americana1
Fabio Wasserman
Instituto Ravignani Conicet –
Universidade de Buenos Aires
Introdução
1
Este texto é uma tradução com pequenas variações do meu artigo “La nación como concepto
fundamental en los procesos de independencia hispanoamericana (1780-1830)”, em Gilberto
Loaiza Cano e Humberto Quiceno (coord.), Aproximaciones al concepto de nación (Colombia, siglo
XIX), Cali, Universidad del Valle, 2014.
| 29
de frente para o futuro
2
É impossível fazer uma lista ainda que breve dos trabalhos dedicados a estes temas, portanto
me permito citar uma obra coletiva onde se definiram algumas das linhas que renovaram os enfo-
ques sobre a história do período: Antonio Annino e François-Xavier Guerra, coords., Inventando
la nación. Iberoamérica. Siglo XIX, (México: Fondo de Cultura Económica, 2003)
3
Para tanto, retomo e reformulo um trabalho realizado no marco de um projeto de história
conceitual ibero-americana: Fabio Wasserman, “El concepto de nación y las transformaciones
del orden político en Iberoamérica (1750-1850)”, em Jahrbuch für Geschichte Lateinamerikas, 45
(2008): 197-220, também publicado em Javier Fernández Sebastián dir., Diccionario político y social
del mundo iberoamericano. La era de las revoluciones, 1750-1850 [Iberconceptos-I] (Madrid: Fundación
Carolina – Centro de Estudios Políticos y Constitucionales – Sociedad Estatal de Conmemoraciones
Culturales, 2009), 851-869 [http://www.iberconceptos.net/wp-content/uploads/2012/10/DPSMI-
I-bloque-NACION.pdf]. O trabalho original reuniu contribuições de José María Portillo Valdés
(Espanha); Hans-Joachim König (Nueva Granada/Colômbia); Elisa Cárdenas (México); Isabel
Torres Dujisin (Chile); Marcel Velázquez Castro (Peru); Marco Antônio Pamplona (Brasil); Sérgio
Campos Matos (Portugal); Véronique Hébrard (Venezuela); Nora Souto e Fabio Wasserman (Río de
la Plata/Argentina). Cabe salientar que todas as afirmações são de minha inteira responsabilidade.
30 |
fabio wasserman
4
Uma revisão dos diversos enfoques e teorias de Gil Delanoi e Pierre-André Taguieff comps.,
Teorías del nacionalismo (Barcelona: Paidós,1993) e Anthony D. Smith, The Nation in History.
Historiographical Debates about Ethnicity and Nationalism (Hanover: University Press of New
England, 2000). Para Iberoamérica Hans-Joachim König “Nacionalismo y Nación en la historia
de Iberoamérica”, Cuadernos de Historia Latinoamericana nº 8 (2000): 7-47 e Tomás Pérez Vejo
“La construcción de las naciones como problema historiográfico: el caso del mundo hispánico”,
Historia Mexicana, LIII, 2 (2003): 275-311.
5
Reinhart Koselleck, “Historia de los conceptos y conceptos de historia”, Ayer 53 (1) (2004):
35; “Un texto fundacional de Reinhart Koselleck. Introducción al Diccionario histórico de con-
ceptos político-sociales básicos en lengua alemana”, Anthropos 223 (2009): 93.
6
Daí o valor de projetos como Iberconceptos, que permitiu desenvolver um estudo compara-
tivo de alcance ibero-americano no qual foi tratado sistematicamente um conjunto de conceitos
fundamentais. No volume I, já citado na nota 3, foram analisados América, Cidadão, Constituição,
Federalismo, História, Liberalismo, Nação, Opinião Pública, Povo e República. O volume II, que
também incorporou equipes com trabalhos sobre o Uruguai, América Central, Caribe e Antilhas
Hispânicas, inclui estudos sobre Civilização, Democracia, Estado, Independência, Liberdade, Ordem,
Partido, Pátria, Revolução e Soberania. Javier Fernández Sebastián dir., Diccionario político y social
del mundo iberoamericano. Conceptos políticos en la era de las independencias, 1770-1870 [Iberconceptos
II] (Madri, Centro de Estudos Políticos e Constitucionais e Universidade do País Basco: 2014).
| 31
de frente para o futuro
7
A principal referência é a obra de Reinhart Koselleck. Além dos textos citados na nota 5, pode
ser consultado Futuro pasado. Para una semántica de los tiempos históricos (Barcelona: Paidós, 1993).
8
Uma síntese dos significados e usos pré-modernos do termo em Alessandro Campi, Nación.
Léxico de Política (Buenos Aires: Nueva Visión, 2006); Aira Kemiläinen, Nationalism. Problems
Concerning the Word, the Concept and Classification (Jyväskylä: Kustantajat Publishers, 1964);
José Andrés Gallego “Los tres conceptos de nación en el mundo hispano”, em Cinta Cantarela
ed., Nación y constitución: De la Ilustración al liberalismo (Sevilla: Universidad Pablo de Olavide y
Sociedad Española de Estudios del Siglo XVIII, 2006), 123-146.
32 |
fabio wasserman
nesse mesmo dicionário se acrescia esta outra definição cujo uso social estaba
muito difundido: “A coleção dos habitantes de uma Província, País ou Reino”9.
Em segundo lugar, e como também assinalava esse dicionário, a palavra
nação poderia assumir um caráter mais impreciso ao ser empregada como sinô-
nimo de estrangeiro sem precisar explicitar sua origem ou procedência. Outro
dicionário dava o seguinte exemplo desse uso: “As pessoas humildes de Madri
chamam nação a qualquer um que seja de fora da Espanha, assim, ao ver uma
pessoa loira dizem, por exemplo, se parece nação”10. Foi empregado do mesmo
modo pelos comuneiros neogranadinos ao expressar seu repúdio às reformas
borbônicas que limitavam o acesso dos nativos a cargos hierárquicos. O pasquim
conhecido como Salud, Señor Regente, que circulou em Nova Granada durante
1781, afirmava que “se estes domínios têm seus próprios donos, senhores nativos,
por que motivo vêm governar-nos malditos estrangeiros de outras regiões”11.
Em terceiro lugar, a palavra nação era empregada para designar populações
que compartilhavam traços físicos ou culturais como língua, religião e costu-
mes. Este uso tendia a sobrepor-se aos anteriores, supondo-se que aqueles que
tinham a mesma origem também deveriam partilhar algumas características
capazes de distingui-los.
Desta perspectiva, nação poderia remeter a uma ampla gama de referên-
cias. Seguindo uma antiga tradição, utilizava-se a mesma para designar povos
considerados por sua alteridade, fossem bárbaros, gentios, pagãos ou idólatras.
Mas também poderia referir-se a uma comunidade que se distinguisse por
determinadas características que não expressassem necessariamente uma
distância tão radical. Félix de Azara, um funcionário enviado pela Coroa ao
Rio da Prata no final do século XVIII, escreveu uma obra sobre a história e a
geografia da região informando a seus leitores potenciais que “Chamarei nação a
qualquer congregação de índios que tenham o mesmo espírito, usos e costumes,
com idioma próprio tão diferente dos conhecidos por lá, como o espanhol do
alemão”12 . Certamente que para o ilustrado Azara a diferença entre espanhóis
e alemães não era da mesma natureza que entre estes e os indígenas.
Este significado teve uma trajetória particular no continente americano,
pois foi endossado pelos grupos que eram designados dessa maneira. É o caso
9
Real Academia Espanhola, Diccionario de la lengua castellana, en que se explica el verdadero sentido
de las voces, su naturaleza y calidad, con las phrases o modos de hablar, los proverbios o refranes, y otras
cosas convenientes al uso de la lengua [...] Compuesto por la Real Academia Española. Tomo quarto. Que
contiene las letras G.H.I.J.K.L.M.N, (Madrid: Imprenta de la Real Academia Española, 1734), 644.
10
Esteban de Terreros y Pando, Diccionario Castellano con las voces de Ciencias y Artes y sus correspon-
dientes de las tres lenguas Francesa, Latina e Italiana (Madrid: Imprenta de la viuda de Ibarra, hijos y
compañía, 1786), t. II, 645. Grifo no original. Nesta e em todas as citações a ortografía foi atualizada.
11
Pablo E. Cárdenas Acosta, El movimiento comunal de 1781 en el Nuevo Reino de Granada (Bogotá:
Editorial Kelly, 1960), t. II, 127.
12
Félix de Azara, Descripción e historia del Paraguay y del Río de la Plata, (Buenos Aires: Editorial
Bajel, 1943), 100 (o texto foi escrito em 1790 e editado postumamente em Madri, 1847).
| 33
de frente para o futuro
13
Carlos Daniel Valcárcel ed., Colección Documental de la Independencia del Perú. Tomo 2: La
Rebelión de Túpac Amaru (Lima: Comisión Nacional del Sesquicentenario de la Independencia
del Perú, 1971), vol. 2, 346.
14
Terreros y Pando, Diccionario Castellano, t. II, 645. Definições similares podem ser en-
contradas em outras línguas que compartilham a mesma raiz, como português e francês (que
incorporava também um componente linguístico): “Nome colectivo, que se diz da Gente, que
vive em alguma grande região, ou Reino, debaixo do mesmo Senhorio”; “Tous les habitants d’un
mesme Estat, d’un mesme pays, qui vivent sous mesmes loix, & usent de mesme langage”. Rafael
Bluteau, Vocabulário Portuguez & Latino (Lisboa: Oficcina de Pascoal da Sylva, 1716), vol. V, 568;
Dictionnaire de l’Académie français, (1694), 110.
15
Emmer du Vattel, Le droit de gens ou principes de la loi naturelle apliques a la conduite et aux
affaires des nations et des souveaines, (Leyden, 1758), citado em José C. Chiaramonte, Nación y
estado en Iberoamérica. Los lenguajes políticos en tiempos de las independencias, (Buenos Aires:
sudamericana, 2004), 34.
16
Assim, ao comentar uma citação extensa de Christian Wolff na qual aparece a palavra nação,
Vattel esclarecia que “Une nation est ici un État souverain, une société politique indépendente”
cit. en Chiaramonte, Nación y Estado, 34.
34 |
fabio wasserman
As referências da nação
17
Joaquín de Finestrad, El Vasallo instruido en el estado del Nuevo Reino de Granada y en sus
respectivas obligaciones, Margarita González Int. e transcrição (Bogotá: Faculdade de Ciências
Humanas – Universidade Nacional da Colômbia, 2000), 224 y 321.
| 35
de frente para o futuro
18
Finestrad, El Vasallo, 343.
19
Antonio Nariño “Apología”, em José Manuel Pérez Sarmiento comp., Causas Célebres a los
precursores, (Bogotá: Imprenta Nacional, 1939) t. I, 129.
20
José Cadalso, Defensa de la nación española contra la Carta persiana LXXVIII de Montesquieu,
(Toulouse: France-Iberie Recherche, 1970).
36 |
fabio wasserman
Portillo Valdés, José María, La vida atlántica de Victorián de Villava (Madrid: Fundación
21
MAPFRE, 2009).
22
O debate sobre a pertinência de considerar as Índias como colônias foi retomado há pouco
tempo em “Para seguir con el debate en torno al colonialismo ...”, Nuevo Mundo Mundos Nuevos,
On-line desde 08 fevereiro 2005, consultado em 08 julho 2013. http://nuevomundo.revues.org/430.
Uma análise que aborda o problema a partir da perspectiva conceitual em Francisco Ortega,
“Ni nación ni parte integral. Colonia, de vocablo a concepto en el siglo XVIII iberoamericano”,
Prismas. Revista de Historia Intelectual, 2011 (15), 11-29.
23
Uma exaustiva análise das considerações feitas sobre o continente americano em Antonello
Gerbi, La disputa del nuevo mundo. Historia de una polémica 1750-1900 (México: Fondo de Cultura
Económica, 1982).
| 37
de frente para o futuro
24
Juan José Eguiara y Eguren, Bibliotheca Mexicana, Benjamín Fernández Valenzuela trad. do
Latin, Ernesto de la Torre Villar coord., (México: Universidad Nacional Autónoma de México,
1986), 53 y 175.
25
Francisco Javier Clavijero, Historia Antigua de México, (México: Editorial Porrúa, 1991, 1ra.
ed. em italiano, 1780), 44/5.
26
Juan Ignacio Molina, Compendio de la Historia Civil del Reino de Chile, Nicolás De La Cruz y
Bahamonde ed. e tradutor de italiano (Madrid: Imprenta de Sancha, 1795,), 12.
27
David Brading, Los orígenes del nacionalismo mexicano, (México: Era, 1997), 25.
38 |
fabio wasserman
28
Elías Palti realizou uma interpretação deste processo complexo destacando os problemas
que acarretava conceber a soberania nacional, unindo dois conceitos até então antagônicos, em
El tiempo de la política. El siglo XIX reconsiderado (Buenos Aires, Siglo XXI: 2007), cap. 2.
| 39
de frente para o futuro
aumentou sua carga polêmica. Não foi um fenômeno isolado, pois a mesma coisa
ocorreu com muitos outros conceitos com os quais formou uma trama política e
discursiva. As relações que nação estabelecia com esses outros conceitos eram
de natureza diversa. Podiam ser de oposição, como aconteceu com colônia, ou
com facção e partido, pois eram considerados expressão de interesses parciais
que dividiam a nação. E aconteceria a mesma coisa com província e povo/s no
marco das disputas entre federais ou autonomistas e centralistas. Mas os vín-
culos nem sempre eram claros e inequívocos: povo/s poderia ser associado de
maneira positiva a nação se esta se identificava com um povo ou com a união
de povos que concordavam em reunir-se em um corpo político. Nação tam-
bém se vinculou positivamente a conceitos como pátria, território, América,
cidadão, independência, opinião pública, ordem e, acima de tudo, soberania,
constituição e representação, que davam conta da inovação que implicava a
existência ou criação da nação como sujeito autônomo e soberano, que devia
constituir-se através de seus representantes.
No discurso articulado em torno desta rede conceitual ganharam forma
problemas enormes delimitados pela necessidade de redefinir os vínculos po-
líticos e sociais dos súditos da Coroa. É devido a isso que, se o conceito nação
remetia até então a estados de coisas existentes e, em particular, à Monarquia,
seus domínios e seus súditos, invocá-lo em um contexto pactista legitimado
pela doutrina da retroversão da soberania permitiu que também propagasse a
possibilidade de criar comunidades políticas de cunho novo, que fossem também
expressão de relações sociais não menos inovadoras. Nesse sentido, podem ser
identificadas duas tendências, ainda que na prática as propostas costumassem
combinar elementos de ambas: a daqueles que idealizavam uma nação única
e indivisível de caráter abstrato constituída por indivíduos, e a daqueles que
julgavam que era formada por corpos coletivos, fossem estamentos ou povos
que reassumiram sua soberania ante o estado de acefalia – reinos, províncias,
povos ou cidades. De uma forma ou de outra, a verdade é que isto implicou
em uma temporalização do conceito: a nação orientava-se inevitavelmente em
direção ao futuro que não se desejava que fosse legatário do passado.
A possibilidade de definir conjuntos políticos de essência diversa, agora
associada à ideia de soberania, também levou a uma expansão dos marcos de
referência de nação. Nesse sentido havia a possibilidade de manter unidos
todos os domínios da Coroa; de levar a uma divisão entre sua seção europeia e
americana; à proclamação como nações de alguns de seus vice-reinados, reinos
e províncias; ou à associação de algunas dessas entidades ou de parte delas em
diferentes órgãos políticos.
Afora essa diversidade, o que não foi questionado de modo algum foi o
caráter católico que essas nações deveriam ter e, exceto para os absolutistas
contrarrevolucionários, a necessidade de sua organização exigir uma sanção
constitucional para dar-lhe consistência e regular as relações entre seus mem-
bros, além de assegurar-lhes seus direitos. Por isso o debate político confundiu-
40 |
fabio wasserman
29
Francois-Xavier Guerra, Modernidad e Independencias. Ensayo sobre las revoluciones hispánicas,
(Madrid: Mapfre, 1992), 157.
30
Antonio de Capmany, Centinela contra franceses (Madrid: Gómez Fuentenebro y Compañía,
1808), 94 [http://156.35.33.113/derechoConstitucional/pdf/espana_siglo19/centinela/centinela.pdf].
| 41
de frente para o futuro
[…] declaro que minha real intenção é não apenas não jurar nem
consentir com a referida constituição nem com qualquer decreto das
Cortes gerais e extraordinárias, a saber, os que reduzem os direitos
e prerrogativas da minha soberania, estabelecidas pela constituição
e as leis em que a nação tem vivido por muito tempo, mas o de de-
clarar aquela constituição e tais decretos nulos e de nenhum valor e
efeito, agora nem em tempo algum, como se tais atos não tivessem
acontecido jamais, [...]32 .
31
Constitución política de la Monarquía Española: Promulgada en Cadiz a 19 de Marzo de 1812.
Precedida de un Discurso preliminar leído en las Cortes al presentar la Comisión de Constitución
el proyecto de ella (Madrid: Imprenta que fue de García; Imprenta Nacional, 1820), 4. Tanto a
Constituição como uma seleção significativa dos documentos institucionais produzidos a partir
de 1808 podem ser consultados no portal http://www.cervantesvirtual.com/portal/1812
32
“Decreto dado en Valencia a 4 de mayo de 1814 firmado por YO, EL REY”, citado em Juan
Angel de Santa Teresa, Sumario de injusticias, fraguadas por el liberalismo impío, contra la religión
42 |
fabio wasserman
catolica e inocencia cristiana de España (Zaragoza: Imprenta de Andrés Sebastián, 1823), 10.
33
Santa Teresa, Sumario, 11.
34
O maior apelo à pátria em situação bélica foi relatado há varias décadas por Pierre Vilar em
“Patria y nación en el vocabulario de la guerra de la independencia española”, Hidalgos, amo-
tinados y guerrilleros. Pueblos y poderes en la historia de España, (Barcelona: Crítica, 1982), 237.
Sobre a tríade pode ser consultado Gabriel di Meglio “Patria” em Noemí Goldman ed., Lenguaje
y revolución. Conceptos políticos clave en el Río de la Plata, 1780-1850, (Buenos Aires, Prometeo,
2008), 115-130.
| 43
de frente para o futuro
Em janeiro de 1809 a Junta Central, que procurava reunir todo o apoio pos-
sível, emitiu uma Proclama afirmando que os domínios americanos não eram
colônias, mas “uma parte essencial e integrante da monarquia espanhola”, motivo
pelo qual também tinham direito de escolher representantes para participar
desse corpo diretivo. Contudo esse reconhecimento ficou manchado ao outor-
gar aos americanos uma representação exígua em relação a sua população. Esta
decisão, que deu lugar a eleições em numerosas cidades americanas, provocou
reações que oscilavam entre o apoio irrestrito e o mais absoluto repúdio. Mas
mesmo nesse caso, a liderança nativa parecia contentar-se com a obtenção de
mais direitos e um maior grau de autonomia sem que isso acarretasse deixar
de pertencer à nação espanhola. Em novembro de 1809, Camilo Torres redigiu
uma Representação da Municipalidade de Santafé endereçada à Junta Suprema,
sustentando que
Ainda que possa parecer paradoxal, a ênfase com que Torres defendia
o pertencimento dos americanos à nação espanhola não fazia mais do que
evidenciar o progressivo distanciamento entre os nativos e a metrópole, cujo
desfecho, contudo, ainda não se vislumbrava com clareza.
No início de 1810, após o triunfo das forças francesas que ocuparam a
Espanha, a Junta Central foi dissolvida, escolhendo-se em substituição um
Conselho de Regência que se instalou na Ilha de León sob a proteção da ma-
rinha britânica. A reação na América foi imediata: em várias cidades ocorre-
ram movimentos que desconstituiram as autoridades coloniais e instituiram
Juntas governamentais amparando-se no estado de acefalia que justificava a
retomada da soberania por parte do povo. O Conselho de Regência ignorou as
juntas americanas, que em geral também o rejeitaram por considerá-lo uma
autoridade ilegítima cujo poder não emanava do Rei nem dos povos ou, para
aqueles que preferiam considerá-los como um único corpo, da nação. É o caso de
Francisco Miranda, que em um artigo publicado em El Colombiano, de Londres,
35
Camilo Torres, “Representación del Cabildo de Santafé (Memorial de agravios)”, em José Luis
Romero y Luis A. Romero (comps.), Pensamiento político de la emancipación (1790-1825), (Caracas:
Biblioteca Ayacucho, 1977), t. I, 29.
44 |
fabio wasserman
reproduzido pelo diário oficial de Buenos Aires, afirmava que a Junta Central
havia “criado um Soberano sem a participação da nação”36 .
É importante ter em conta os deslizes conceituais ocorridos nesse breve
período, os quais a revolução e a guerra tornaram irreversíveis, pois foi nessas
circunstâncias em que nada ainda estava definido e que eram confusas para
seus próprios protagonistas que foi concebida a possibilidade de que os povos,
além de reassumir a soberania, também pudessem constituir nações sobe-
ranas, livres e independentes. Neste sentido, é paradigmática a trajetória de
Camilo Torres, que em pouco tempo deixou de reclamar uma representação
mais equitativa no seio da nação espanhola para passar a propor a formação
de uma nação neogranadina. Em uma longa carta datada de 29 de maio de
1810, endereçada a seu tio José Ignacio Tenorio, que integrava a Audiência de
Quito, Torres repassava as diferentes alternativas que se apresentavam aos
americanos, concluindo que
Sem dúvida alguma eles também eram aqueles que continuavam acreditando
na possibilidade de que a Espanha subsistiria, por conseguinte mantinham sua
lealdade às autoridades metropolitanas e aos vice-reinados. Para eles a nação
seguia sendo o conjunto da Monarquia ou, em todo caso, o de seus súditos, que
deviam fidelidade e obediência ao Rei, como sustentou a Gazeta de Montevideo
em meados de 1811:
36
La Gazeta de Buenos Ayres, n° 18, 4/X/1810, 288.
37
Proceso histórico del 20 de Julio de 1810. Documentos, (Bogotá: Banco de la República, 1960),
66. O documento foi citado em várias ocasiões, às vezes datado de maio de 1809, quando Torres
faz referência a fatos ocorridos posteriormente, como a batalha de Ocaña. Avalio que o erro se
deve ao afã por dotar os protagonistas das revoluções de uma consciência nacional.
| 45
de frente para o futuro
38
Gazeta de Montevideo n° 33, 14/VIII/1811 (Montevideo: Imprenta de la Ciudad de Montevideo),
283.
39
El Peruano (Lima: 1812), 425.
40
D. D. Mateo Joaquín de Cosío, Elogio Fúnebre del señor D. José Gabriel Moscoso, Teniente Coronel
de los Reales Ejércitos, Gobernador Intendente de Arequipa. En las exequias que el ilustre Cabildo
justicia y regimiento de dicha ciudad hizo en honor y sufragio de tan benemérito jefe el dia 9 de mayo
de 1815 (Lima: Bernardino Ruiz, 1815), 47.
46 |
fabio wasserman
41
Miguel Hidalgo, “Proclama del cura Hidalgo a la Nación Americana” em Haydeé Miranda
Bastidas y Hasdrúbal Becerra sel., La Independencia de Hispanoamérica. Declaraciones y Actas
(Caracas: Biblioteca Ayacucho, 2005), 38.
42
Miguel Hidalgo, “Abolición de la esclavitud y otras medidas decretadas por Hidalgo” em
Carlos Herrerón Peredo, Hidalgo. Razones de la insurgencia y biografía documental (México: SEP,
1986), 242.
43
Francisco de Miranda, “Bosquejo de Gobierno provisorio” em Romero y Romero, Pensamiento
político, t. I, 13-19.
44
“Sobre el Congreso convocado y Constitución del Estado”em Gaceta de Buenos Aires nº 27,
6/XII/1810.
45
Embora não seja o tema deste trabalho, gostaria de chamar a atenção sobre a necessidade de
questionar a nítida distinção que se costuma fazer entre as guerras de independência e as guerras
civis, o que é apenas uma das muitas consequências do fato de considerar as nações americanas como
entidades preexistentes ou destinadas a se constituírem da maneira como as conhecemos hoje.
| 47
de frente para o futuro
aberto e indeterminado que foi assumindo novos significados para seus próprios
protagonistas à medida que transcorria. Para isto foram decisivos alguns conceitos
como nação, que além de dotar os acontecimentos de inteligibilidade, eram capazes
de delinear cursos de ação possíveis ao indicar um norte para orientá-los.
A independência, que supostamente era o propósito inicial dos revolucioná-
rios, não foi necessariamente proclamada pelas Juntas erigidas no contexto da
crise nem pelos governos que surgiram depois delas. Ao mesmo tempo em que se
mantinha a lealdade a Fernando VII, eram feitos pronunciamentos contraditórios
ou ambíguos em relação a seu pertencimento à nação espanhola. Então, poucos
dias após ter sido criada, a Junta de Caracas decidiu dirigir-se ao Conselho de
Regência, fazendo-o perceber que “É muito fácil confundir o significado dos
nossos procedimentos e dar a uma comoção provocada apenas pela lealdade
e o sentimento de nossos direitos, o caráter de insurreição antinacional”46 .
Estes “procedimentos” incluiam a eleição de deputados que formaram uma
representação nacional dos povos da Venezuela. Mas esta representação, que
expressava uma comunidade munida de um governo próprio, não comportava
uma identidade nacional venezuelana e tampouco se opunha a uma eventual
“concorrência às cortes gerais de toda a nação, desde que sejam convocadas
com aquela justiça e equidade de que é credora a América que forma a maior
parte dos Domínios do cobiçado e perseguido Rei da Espanha”47.
Evidente que essa “justiça e equidade” não foi uma característica da liderança
da metrópole, cuja visão sobre a posição subordinada que a América deveria ter
na nação espanhola apenas aprofundou a brecha existente entre as elites nati-
vas, apesar da ampliação de direitos promovida pelas Cortes. Assim, nos anos
seguintes e no contexto das guerras que sacudiram o continente, diversos povos
ou reuniões de povos declararam sua independência e seu desejo de constituir-se
em nações soberanas, procurando organizar instituições governamentais que
pudessem garantir seus direitos e os de seus membros. Conforme observava
o diário oficial do governo de Buenos Aires, isto implicava em “Ascender da
condição degradante de Colônia obscura à hierarquia de uma Nação”48 .
Para grande parte dos americanos, esse processo confuso em que estavam
imersos há anos havia encontrado no calor da revolução e da guerra um rumo
e um sentido precisos: a transição de colônias a entidades soberanas que po-
deriam constituir-se como nações. A nação voltava-se para um futuro no qual
reinariam a liberdade e a independência, enterrando no passado o despotismo
e os séculos de opressão e dominação colonial.
46
“A la Regencia de España, 3 de mayo de 1810” em Actas del 19 de Abril. Documentos de la
Suprema Junta de Caracas (Caracas: Concejo Municipal, 1960), 99.
47
Gazeta de Caracas, 27/VII/1810.
48
Gazeta de Buenos Ayres, 27/V/1815.
48 |
fabio wasserman
Mas como se poderia alcançar esse futuro? E, mais precisamente, como eram
constituídas as nações? Como eram reconhecidas? Quais eram seus atributos?
Que papel se atribuía aos indivíduos e aos povos que as formavam? Em termos
teóricos ou ideológicos havia um repertório de respostas mais ou menos exatas
que podiam divergir em alguns aspectos e por isso davam lugar a debates e
polêmicas. Mas a maior fonte de conflitos foi sua decisão prática, isto é, polí-
tica, já que através de suas concepções se expressavam e se buscavam impor
posições e intereses políticos, sociais, econômicos, territoriais ou jurisdicionais.
Em maio de 1825, o Congresso Constituinte das Províncias do Rio da Prata
discutiu a possibilidade de criar um exército nacional perante a iminente dis-
puta com o Brasil pela Banda Oriental (conflito cujo desfecho seria a criação da
República do Uruguai como nova nação soberana). Um dos entusiastas deste
debate foi o cônego saltenho Juan Ignacio Gorriti, que se opôs à criação desse
exército alegando que a nação era inexistente. Embora concordasse com a criação
de uma nação que centralizasse o poder e governasse o território rio-platense,
entendia que mesmo que não fosse sancionada uma Constituição as províncias
continuariam sendo soberanas. Ao ter sua opinião questionada, viu-se obrigado
a explicar que “De duas maneiras pode ser considerada a nação, ou como pessoas
que têm um mesmo idioma, apesar de formarem diferentes estados, ou como
uma sociedade já constituída sob o regime de um único governo”. O primeiro
caso seria o da antiga Grécia ou Itália, assim como da América do Sul, que na
sua opinião poderia ser considerada como uma nação mesmo tendo diferentes
Estados, “mas não no sentido de uma nação que é regida por uma única lei, que
tem um único governo”, que era ao que ele se referia 49.
Gorriti assim sintetizava os dois significados do conceito nação que, em
meados da década de 1820, e após ter sido declarada a independência de qua-
se todo o continente, seguiam percorrendo caminhos separados. Embora sua
acepção como população que possui traços idiossincráticos continuasse sendo
utilizada, a que prevaleceu naquela época foi a de caráter político, que a distin-
guia por ser resultado de um ato voluntário de seus membros para constituir
uma comunidade regida pelas mesmas leis e um único governo.
Esse ato voluntário foi revelado algumas semanas mais tarde, quando os
representantes dos povos do Alto Peru declararam sua independência, descar-
tando a possibilidade de juntar-se ao Peru ou às Províncias do Rio da Prata. A
esse respeito, sustentaram que “A representação Soberana das Províncias do
Alto Peru” havia decidido erigir-se
49
Sesión del 4/V/1825 em Emilio Ravignani (ed.), Asambleas Constituyentes Argentinas, 1813-
1898, (Buenos Aires: Peuser, 1937), t. I, 1325.
| 49
de frente para o futuro
Do mesmo modo, no Direito das Gentes, publicado dez anos mais tarde
no Chile, Andrés Bello afirmava que “Nação ou Estado é uma sociedade de
homens que tem por objetivo a preservação e felicidade dos associados; que é
governada por leis positivas emanadas dela própria e é dona de uma porção de
território”52 . A permanência desta concepção e sua vasta difusão na América
Latina devem-se a suas numerosas reedições corrigidas que seguiram sendo
publicadas durante décadas em Santiago, Caracas, Cochabamba, Lima, Buenos
50
Declaração de 6 de agosto de 1825 em Colección oficial de leyes, decretos y órdenes de la República
Boliviana. Años 1825 y 1826 (La Paz: Imprenta Artística, 1826), 17.
51
Antonio Sáenz, Instituciones elementales sobre el derecho natural y de gentes, (Buenos Aires:
Faculdade de Direito e Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires, 1939), 61.
52
Andrés Bello, Principios de Derecho de Jentes (Santiago de Chile: Imprenta de la Opinión, 1832), 10.
50 |
fabio wasserman
Aires, Madri e Paris, embora a partir de 1844 com o título modernizado como
Princípios de Direito Internacional53 .
O fato das nações poderem constituir-se pela vontade de seus membros
favorecia a criação de entidades inovadoras. Essa característica tornou-se ex-
plícita na própria denominação em alguns casos como Bolívia, Argentina ou
Colômbia, o que, é claro, também implicou na criação de novos adjetivos ou de
sua resignificação54 . De qualquer forma, nos Vice-reinados, Reinos ou Províncias
que durante o período colonial podiam ser reconhecidos como nações, também
se podia legitimar a construção de um poder político como representação dessa
entidade preexistente. No Sermão que abriu um Congresso Nacional no Chile
em julho de 1811, o frei Camilo Henríquez fez constantes referências à “nação
chilena” que, além de ser católica, era detentora de direitos que a habilitavam a
fazer uma constituição capaz de garantir sua liberdade e felicidade ante o estado
de acefalia em que se encontrava a monarquia 55 . Da mesma maneira, quando
dez anos mais tarde aconteceu a declaração de independência do México como
reação de parte de suas elites ante o triunfo da revolução liberal na Espanha,
seus autores deixaram claro que se tratava de uma nação que existia há séculos:
“A nação mexicana, que por trezentos anos nem teve vontade, nem livre o uso
da voz, hoje sai da opressão em que viveu”56 .
O fato de proclamar a independência, seja de nações que se consideravam
preexistentes ou de povos que aspiravam a formar uma nova instituição, po-
deria ser considerado uma clara demonstração da existência de uma vontade
nacional. No entano, isso não era suficiente, pois se quisesse ter existência
política e ser reconhecida como uma nação, também deveria ser sancionada
uma constituição para dar-lhe forma. O periódico La Abeja Republicana recor-
dava, em setembro de 1822, a declaração de independência realizada no ano
anterior por José de San Martín, alegando que a libertação do Peru permitira a
seus habitantes transitar “da classe dos colonos […] para compor uma grande
e heroica nação” capaz de apresentar-se “perante as nações”57. Mas como iriam
perceber seus redatores semanas mais tarde, este propósito somente poderia
ser cumprido através de um Congresso Constituinte: “E a formação desta nação,
53
Andrés Bello, Principios de Derecho Internacional, 2da. ed. Corrigida e ampliada (Valparaíso:
Imprenta del Mercurio, 1844).
54
José Carlos Chiaramonte e outros, comps., Crear la nación. Los nombres de los países de América
Latina (Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 2008).
55
Camilo Henríquez, “Sermón en la instalación de Primer Congreso Nacional”, em Escritos
Políticos de Camilo Henríquez Raúl Silva Castro rec., (Santiago de Chile: Ediciones de la Universidad
de Chile, 1960), 50-59.
56
“Acta de Independencia del Imperio Mexicano pronunciada por su Junta Soberana, congregada
en la capital de él, en 28 de septiembre de 1821”, em Bastidas y Becerra, La Independencia, 42.
57
La Abeja republicana (Lima: Imprenta de José Masias, 22/IX/1822).
| 51
de frente para o futuro
como começá-la? Que o decida o Congresso Soberano a cujas luzes foi confiada
a sorte das gerações presentes e futuras”58 .
Se era somente através da constituição que a nação poderia ganhar forma,
compreende-se por que motivo sua análise e a dos debates constitucionais
permitem penetrar nas diversas concepções sobre a ordem social e política
que o conceito veiculava. A Constituição Política da República Peruana, sancio-
nada em novembro de 1823, afirmava, em seu primeiro artigo, que “Todas as
províncias do Peru reunidas em um só corpo formam a Nação Peruana” e, no
terceiro, que “A soberania reside essencialmente na Nação”59. Por sua vez, a
Constituição para a República Peruana, também conhecida como Constituição
Vitalícia, promulgada em novembro de 1826 sob a inspiração de Bolívar, sus-
tentava que “A Nação Peruana é a reunião de todos os Peruanos”, e o mesmo se
estabelecia naquela sancionada na mesma época pela Bolívia60. Quase todas as
constituições asseguravam que a “soberania reside essencialmente na nação”
ou em fórmulas similares que a convertiam no sujeito político por excelência.
Precisamente por isso podiam expressar diversas concepções sobre o que era
ou deveria ser a nação e, em particular, sobre quem a compunha. Na constitui-
ção de 1823 as províncias do Peru eram corpos coletivos; enquanto que na de
1826 os peruanos eram indivíduos. Mas mesmo dentro dessas opções também
se poderia encontrar alternativas. Os corpos coletivos podiam ser estamentos
tal como se propôs em alguns projetos constitucionais. E os indivíduos podiam
ser considerados de outro modo: a Constituição Política sancionada em março
de 1828 declarava que “A Nação Peruana é a associação política de todos os
cidadãos do Peru” e já não “a reunião de todos os peruanos”. Definição que faz
sentido quando se tem presente que muitos de seus habitantes não reuniam as
qualidades necessárias para ser considerados cidadãos61.
Esta última questão remete ao lugar que, nas diferentes propostas de nação,
era atribuído às classes subalternas, cujos membros podiam ser considerados
ou não como cidadãos plenos. Os indígenas, por exemplo, costumavam ser
excluídos da cidadania política, distanciando-se, assim, das regras de alguns
dos discursos e projetos propostos no contexto do processo revolucionário que
aspiravam a sua integração social e política, seja como indivíduos ou como co-
munidades. Esse distanciamento ficou explícito em mais de uma ocasião, como
em meados do século, quando Juan B.Alberdi, ao repassar as constituições que
haviam sido sancionadas no continente para decidir o modelo mais adequado
58
La Abeja republicana (Lima: Imprenta de José Masias, 24/XI/1822).
59
http://bib.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/01482074789055978540035/index.htm
60
http://bib.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/01479514433725784232268/index.htm
61
http://bib.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/02450576436134496754491/index.
htm.
52 |
fabio wasserman
para a nação argentina, permitiu-se afirmar com total crueza que “O indígena
não figura nem é levado em conta na nossa sociedade política e civil”62 .
A composição social e étnica não era o único motivo de discussão em
torno da construção da nação. Muito mais acirrada foi a disputa em relação
à soberania dos povos e a sua integração ou não com a nação que, com muita
frequência, estimulou os conflitos entre autonomistas, federalistas e centralistas
ou unitários. Enquanto que os primeiros tendiam a utilizar o conceito de nação
enfatizando a vontade dos povos para constituí-la, os segundos costumavam
acrescentar como requisito uma espécie de critério informal e pragmático:
ter capacidade suficiente para poder manter sua soberania e independência63 .
No início de 1822 e perante à resistência de Guaiaquil em incorporar-se
à República da Colômbia, Simón Bolívar escreveu uma carta a José Joaquín
Olmedo, que presidia o Conselho Diretivo, afirmando que “uma cidade com um
rio não pode formar uma nação” e que a própria natureza fez com que a cidade
e sua região fizessem parte da Colômbia, de modo que reconhecia a esse povo o
direito à “completa e livre representação na Assembleia Nacional”64 . Dois anos
antes essa mesma concepção havia encorajado a intervenção de Francisco Zea
ao presidir as sessões do Congresso da recém-criada República da Colômbia.
Zea defendia que esse extenso território pródigo em riquezas somente poderia
“entrar no mundo político” por vontade expressa de seus membros. No entanto,
também advertia que era uma condição insuficiente ao salientar que
62
Juan B. Alberdi, Bases y puntos de partida para la organización política de la República Argentina,
(Buenos Aires: Plus Ultra, 1982), 82 [Valparaíso, 1852].
63
Este critério é semelhante ao “princípio do limiar” defendido em meados do século por
nacionalistas europeus como Giuseppe Mazzini. Eric Hobsbawm, Naciones y nacionalismo desde
1780 (Barcelona, Crítica, 2000), 39-48.
64
Cali, 2/1/1822 Simón Bolívar, Doctrina del Libertador, Manuel Pérez Vila comp. (Caracas:
Fundación Biblioteca Ayacucho, 1992): 137/8.
65
Correo del Orinoco n° 50, Angostura, 29/I/1820.
| 53
de frente para o futuro
66
José María Luis Mora, “Discurso sobre la independencia del Imperio Mejicano” [21/XI/1821]
em Obras sueltas de José María Luis Mora, ciudadano mejicano (París: Librería de Rosa, 1837), t. II,
11.
67
Bastidas y Becerra, La Independencia, 84.
54 |
fabio wasserman
68
Norberto Pinilla, La polémica del romanticismo (Buenos Aires: Americalee, 1943).
69
Real Academia Espanhola, Diccionario de la lengua castellana décima primeira edição (Madrid:
Imprenta de Don Manuel Rivadeneyra, 1869), 631.
| 55
de frente para o futuro
56 |
fabio wasserman
70
Para o conceito História me remeto aos trabalhos publicados em Fernández Sebastián,
Diccionario político y social, t. I 551-692. Um panorama que aborda diversos casos de vínculo
entre história e nação no século XIX em Guillermo Palacios, comp., La nación y su historia.
Independencias, relato historiográfico y debates sobre la nación. América Latina, siglo XIX, (México:
El Colegio de México, 2009). Uma análise comparativa de três histórias nacionais produzidas na
segunda metade do século XIX em Fernando Devoto, “La construcción del relato de los orígenes
en Argentina, Brasil y Uruguay: las historias nacionales de Varnhagen, Mitre y Bauzá” em Jorge
Myers, ed. volume e Carlos Altamirano dir. Coleção, Historia de los intelectuales en América Latina.
I. La ciudad letrada, de la conquista al modernismo, (Buenos Aires: Katz Editores, 2008), 269-289.
Mais detalhes sobre o que poderia ser considerado uma história nacional, em Fabio Wasserman,
Entre Clío y la Polis. Conocimiento histórico y representaciones del pasado en el Río de la Plata (1830-
1860), (Buenos Aires: Teseo, 2008), 91-107.
71
“Nacionalidad” em El Nacional nº 137 (Buenos Aires: Imprenta Argentina, 27/10/1852).
| 57
de frente para o futuro
Referências
AAVV. Para seguir con el debate en torno al colonialismo ..., Nuevo Mundo Mundos Nuevos,
on-line desde 08 fevereiro 2005. Consultado em: 08 jul. 2013. http://nuevomundo.revues.
org/430.
ANNINO, Antonio; GUERRA, François-Xavier Guerra (coords.). Inventando la nación.
Iberoamérica. Siglo XIX. México: Fondo de Cultura Económica, 2003.
BRADING, David. Los orígenes del nacionalismo mexicano. México: Era, 1997.
CAMPI, Alessandro. Nación. Léxico de Política. Buenos Aires: Nueva Visión, 2006.
CARDENAS ACOSTA, Pablo. El movimiento comunal de 1781 en el Nuevo Reino de Granada.
Bogotá: Editorial Kelly, 1960.
CHIARAMONTE, José Carlos. Nación y estado en Iberoamérica. Los lenguajes políticos en
tiempos de las independencias. Buenos Aires: sudamericana, 2004.
CHIARAMONTE, José Carlos e outros (comps.). Crear la nación. Los nombres de los países
de América Latina. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 2008.
DELANOI, Gil Delanoi; TAGUIEF, Pierre-André (comps.). Teorías del nacionalismo. Barcelona:
Paidós, 1993.
DEVOTO, Fernando. La construcción del relato de los orígenes en Argentina, Brasil y
Uruguay: las historias nacionales de Varnhagen, Mitre y Bauzá. In: MYERS, Jorge (ed.
volumen) y ALTAMIRANO, Carlos (dir. Colección). Historia de los intelectuales en América
Latina. I. La ciudad letrada, de la conquista al modernismo. Buenos Aires: Katz Editores,
2008, pp. 269-289.
DI MEGLIO, Gabriel di. Patria. In: GOLDMAN, Noemí (ed.). Lenguaje y revolución. Conceptos
políticos clave en el Río de la Plata, 1780-1850. Buenos Aires: Prometeo, 2008, pp. 115-130.
FERNÁNDEZ SEBASTIÁN, Javier (dir.). Diccionario político y social del mundo iberoamerica-
no. La era de las revoluciones, 1750-1850 [Iberconceptos-I]. Madrid: Fundación Carolina –
Centro de Estudios Políticos y Constitucionales – Sociedad Estatal de Conmemoraciones
Culturales, 2009.
______. Diccionario político y social del mundo iberoamericano. Conceptos políticos fundamen-
tales, 1770-1870 [Iberconceptos II]. Madri: Centro de Estudos Políticos e Constitucionais
e Universidade do País Basco, 2014.
GALLEGO, José Andrés. Los tres conceptos de nación en el mundo hispano. In: CANTARELA,
Cinta (ed.). Nación y constitución: De la Ilustración al liberalismo. Sevilla: Universidad Pablo
de Olavide y Sociedad Española de Estudios del Siglo XVIII, 2006, pp. 123-146.
GERBI, Antonello. La disputa del nuevo mundo. Historia de una polémica 1750-1900. México:
Fondo de Cultura Económica, 1982.
GUERRA, Francois-Xavier. Modernidad e Independencias. Ensayo sobre las revoluciones
hispánicas. Madrid: Mapfre, 1992.
58 |
fabio wasserman
| 59
de frente para o futuro
Fontes
ACTA de Independencia del Imperio Mexicano pronunciada por su Junta Soberana, congre-
gada en la capital de él, en 28 de septiembre de 1821. In: MIRANDA BASTIDAS, Haydeé y
BECERRA, Hasdrúbal (sel.). La Independencia de Hispanoamérica. Declaraciones y Actas.
Caracas: Biblioteca Ayacucho, 2005, pp. 42-44.
ACTAS del 19 de Abril. Documentos de la Suprema Junta de Caracas. Caracas: Concejo
Municipal, 1960.
ALBERDI, Juan B. Bases y puntos de partida para la organización política de la República
Argentina. Buenos Aires: Plus Ultra, 1982. [1ra. ed. Valparaíso, 1852].
AZARA, Félix de. Descripción e historia del Paraguay y del Río de la Plata. Buenos Aires:
Editorial Bajel, 1943. [o texto foi escrito em 1790 e editado postumamente em Madrid, 1847).
BANCO DE LA REPÚBLICA (ed.). Proceso histórico del 20 de Julio de 1810. Documentos.
Bogotá: Banco de la República, 1960.
BELLO, Andrés. Principios de Derecho de Jentes. Santiago de Chile: Imprenta de la Opinión,
1832.
______. Principios de Derecho Internacional. 2da. ed. Corrigida e ampliada. Valparaíso:
Imprenta del Mercurio, 1844.
BLUTEAU, Rafael. Vocabulário Portuguez & Latino. Lisboa: Oficcina de Pascoal da Sylva,
vol. V, 1716.
BOLÍVAR, Simón. Doctrina del Libertador. PÉREZ VILA, Manuel Pérez (comp.). Caracas:
Fundación Biblioteca Ayacucho, 1992.
DICTIONNAIRE de l’Académie français. Paris: Chez la Veuve de Jean Baptiste Coignard, 1694.
CADALSO, José. Defensa de la nación española contra la Carta persiana LXXVIII de Montesquieu.
Toulouse: France-Iberie Recherche, 1970.
CAPMANY, Antonio de. Centinela contra franceses. Madrid: Gómez Fuentenebro y Compañía,
1808.
CLAVIJERO, Francisco Javier. Historia Antigua de México. México: Editorial Porrúa, 1991
[1ra.ed. em italiano, 1780].
COLECCIÓN oficial de leyes, decretos y órdenes de la República Boliviana. Años 1825 y
1826. La Paz: Imprenta Artística, 1826.
CONSTITUCIÓN política de la Monarquía Española: Promulgada en Cadiz a 19 de Marzo de
1812. Precedida de un Discurso preliminar leído en las Cortes al presentar la Comisión de
Constitución el proyecto de ella. Madrid: Imprenta que fue de García; Imprenta Nacional, 1820.
CORREO del Orinoco. Angostura: 1820.
COSÍO, D. D. Mateo Joaquín de. Elogio Fúnebre del señor D. José Gabriel Moscoso, Teniente
Coronel de los Reales Ejércitos, Gobernador Intendente de Arequipa. En las exequias que
el ilustre Cabildo justicia y regimiento de dicha ciudad hizo en honor y sufragio de tan
benemérito jefe el dia 9 de mayo de 1815. Lima: Bernardino Ruiz, 1815.
60 |
fabio wasserman
| 61
de frente para o futuro
SANTA TERESA, Juan Angel de. Sumario de injusticias, fraguadas por el liberalismo impío,
contra la religión catolica e inocencia cristiana de España. Zaragoza: Imprenta de Andrés
Sebastián, 1823.
SILVA CASTRO, Raúl (rec.). Escritos Políticos de Camilo Henríquez. Santiago de Chile:
Ediciones de la Universidad de chile, 1960.
TERREROS y PANDO, Esteban de. Diccionario Castellano con las voces de Ciencias y Artes
y sus correspondientes de las tres lenguas Francesa, Latina e Italiana. Madrid: Imprenta de
la viuda de Ibarra, hijos y compañía, t. II, 1786.
TORRES, Camilo. Representación del Cabildo de Santafé (Memorial de agravios). In:
ROMERO, José Luis y ROMERO, Luis A. (comps.). Pensamiento político de la emancipación
(1790-1825). Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1977, t. I, pp. 25-42 [Quito, 1809].
VALCÁRCEL, Carlos Daniel (ed.). Colección Documental de la Independencia del Perú. Tomo
2: La Rebelión de Túpac Amaru. Lima: Comisión Nacional del Sesquicentenario de la
Independencia del Perú 1971.
62 |
Nas origens do nacionalismo político
da I República Portuguesa: o projeto da
“nacionalização do Estado” e o debate jurídico
e político em torno da conceção da soberania e
do modelo de representação política
Paula Borges Santos
Instituto de História Contemporânea – Universidade Nova de Lisboa
Introdução
| 63
nas origens do nacionalismo político...
1
Cf. CATROGA, Fernando. O Republicanismo em Portugal. Da Formação ao 5 de Outubro de
1910, 3.ª edição, Alfragide, Casa das Letras, 2010, pp. 277-283.
2
Atualmente é abundante a literatura sobre o tema. Entre outros estudos, destaque-se:
CATROGA, Fernando, ibidem, pp. 235-276; RAMOS, Rui. A Segunda Fundação (1890-1926), de
História de Portugal, dir. de José Mattoso, vol. VI, Lisboa, Editorial Estampa, 1994, pp. 401-433
e 529-560; MATOS, Sérgio Matos, História, Mitologia, Imaginário Nacional. A História no Curso
dos Liceus (1895-1939), Lisboa, Livros Horizonte, 1990, pp. 89-164; LEAL, Ernesto Castro. Nação
e nacionalismo: a cruzada nacional D. Nuno Álvares Pereira e as origens do Estado Novo (1918-
1938), Lisboa, Cosmos, 1999, 537 p.; PINTASSILGO, Joaquim. República e Formação de Cidadãos.
A Educação Cívica nas Escolas Primárias da Primeira República Portuguesa, Lisboa, Colibri,
1998, 278 p.
64 |
paula borges santos
3
Cf. SOUZA, Marnoco. Direito Político. Poderes do Estado. Sua organização segundo a sciencia
política e o direito constitucional português, Coimbra, França Amado Editor, 1910, p. 14.
4
Entre as “teorias teológicas”, explicava Marnoco e Souza, encontravam-se: a teoria do dire-
ito divino sobrenatural, a teoria do direito divino providencial, a teoria do patriarcado, a teoria
legitimista, a teoria do direito divino dos reis e, por fim, a teoria do direito divino dos povos. As
“teorias metafísicas” envolviam: a teoria da soberania popular, a teoria da soberania da razão e
da justiça, a teoria da soberania da inteligência e da força (Cf. Idem, ibidem, pp. 9-14 e 16-21).
5
Cf. CATROGA, Fernando. O “complexo” cartista do parlamentarismo republicano português.
In: Das Urnas ao Hemiciclo. Eleições e Parlamento em Portugal (1878-1926) e Espanha (1875-1923),
coord. de Pedro Tavares de Almeida e Javier Moreno Luzón, Lisboa, Assembleia da República, 2012,
p. 224.
| 65
nas origens do nacionalismo político...
6
Cf. Idem, ibidem, pp. 14-17.
66 |
paula borges santos
7
Cf. CATROGA, Fernando. O Republicanismo em Portugal. Da Formação ao 5 de Outubro de
1910…, pp. 44-46.
8
Cf. Idem, ibidem, pp. 49-51.
| 67
nas origens do nacionalismo político...
9
Cf. Idem, ibidem, pp. 57-58.
10
Cf. “Manifesto-Programa do Partido Republicano Português” [publicado em O Século, 12 de
janeiro de 1891, pp. 1-2], consultável em: Ernesto Castro Leal, Partidos e Programas. O campo
68 |
paula borges santos
13
Cf. Idem, ibidem, pp. 532-541.
14
Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Prefácio. In: SOUZA, Marnoco e. Constituição da
República Portuguesa: Comentário. Prefácio. Coord. de J.J.Gomes Canotilho, Lisboa, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 2011, p. 10.
15
Cf. CRUZ, Manuel Braga da. Sociologia. In: Dicionário de História de Portugal, coord. de António
Barreto e Maria Filomena Mónica, vol. IX, Porto, Livraria Figueirinhas, 2000, p. 466.
70 |
paula borges santos
neste capítulo de direito público, célebre por tantas alucinações, diremos sem
muitos rodeios, que a soberania de um povo e de uma nação reside essencial-
mente nesse povo, nessa nação”16 .
Nos anos de 1880, também Manuel Emídio Garcia, influente doutrinador
do pensamento republicano (e, ainda, do pensamento socialista) ensinou,
designadamente, que a ideia metafísica da soberania popular, tal como havia
sido formulada por Rousseau, correspondia a uma visão anacrónica da so-
ciedade porque excessivamente contratualista. Para aquele lente prevalecia
o princípio de que o indivíduo só pode ser compreendido na sua dimensão
social. Apresentava ainda a noção de “povo” como “ser orgânico, que para se
converter em organizado precisa de formar-se e constituir-se em nação”; e,
à ideia de “nação” como “ser organizado”, fazia corresponder a coordenação
de distintos graus de soberania, “a do indivíduo, da família, da comuna, do
município, da província”17.
Em 1910, seria a vez do professor Marnoco e Souza, que nesse ano assu-
mira funções como ministro e secretário de Estado da Marinha e Ultramar no
gabinete de Teixeira de Sousa (o último governo da monarquia constitucional),
na obra Direito Político. Poderes do Estado. Sua organização segundo a sciencia
política e o direito constitucional português, registar críticas a várias teorias
sobre a soberania e a organização dos poderes e eleger, como orientação mais
adequada para explicar e organizar politicamente a sociedade e o Estado, uma
das três “teorias positivas”: a teoria da soberania nacional18 . Explicava aquele
lente que aquela teoria surgida de forma ainda embrionária nas doutrinas de
Romagnosi e de Sismondi, fora desenvolvida por Palma, autor da chamada escola
“histórica-evolucionista”, que sustentara que a soberania não podia deixar de
pertencer “substancial e originariamente à nação”. Isto significava entender,
em sentido político, o povo como uma “comunidade organizada” e não como
“multidão inorgânica”. De acordo com esta teorização, os direitos de soberania
cabiam à “universalidade dos cidadãos”, não podendo ser gozados por “nenhum
indivíduo, nenhuma fração ou associação parcial”, aos quais não tivessem sido
confiados expressa ou implicitamente. Sem hesitar em considerar que a teoria
da soberania nacional era aquela que “melhor satisfaz as exigências do direito
político moderno”, Marnoco e Souza não a julgava completamente aperfeiçoada,
à data em que escrevia.
16
Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Introdução. In: PRAÇA, José Joaquim Lopes. Direito
Constitucional Portuguez, vol. I, Coimbra, Coimbra Editora, 1997, pp. 11-13.
17
Cf. CATROGA, Fernando, ibidem, pp. 166-167.
18
Segundo Marnoco e Souza, eram quatro as “teorias positivas”: a teoria da soberania da util-
idade social, acolhida preferencialmente em Inglaterra, construída por Bentham e, mais tarde,
desenvolvida por Mill, Bain e Herbert Spencer; a teoria da soberania do Estado, com defensores
na Alemanha e em Itália, produzida por autores como Gneist, Bluntschli, Zorn, Orlando e Icilio
Vanni; a teoria da soberania da sociedade, formulada por Miceli; e, por fim, a teoria da soberania
da nação (Cf. SOUZA, Marnoco e, ibidem, pp. 25-32).
| 71
nas origens do nacionalismo político...
19
Cf. SOUZA, Marnoco e, ibidem, p. 30.
20
Sintetizando os princípios daquela teoria, Marnoco e Souza escrevia que correspondiam aos
seguintes: a soberania reside essencialmente no indivíduo, não sendo a soberania social senão
resultante da soma dos poderes individuais; todos os indivíduos são soberanos, tendo um domínio
absoluto sobre as pessoas; quando os indivíduos se reúnem, mediante o contrato social, renun-
ciam, para constituir o poder coletivo, à sua liberdade e soberania; […] a soberania é, em última
análise, a vontade popular, entendida como a expressão da maioria numérica dos cidadãos” (Cf.
Idem, ibidem, p. 17).
21
Cf. Idem, ibidem, pp. 22-23.
22
Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes, “Prefácio”…, p. 10.
72 |
paula borges santos
23
Cf. SOUZA, Marnoco e, ibidem, pp. 30, 39-41.
24
Cf. ARRIAGA, José de. Os Últimos 60 Anos da Monarquia. Causas da Revolução de 5 de Outubro
de 1910, Lisboa, 1911, p. 8.
25
Cf. Diário da Assembleia Nacional Constituinte, n.º 1, 19 de junho de 1911, p. 3.
| 73
nas origens do nacionalismo político...
26
Cf. CATROGA, Fernando, ibidem, pp. 165-167.
27
Sublinhe-se que as Constituições de 1822 e 1838 serviram de fonte para a globalidade do
texto constitucional de 1911, e não só para o artigo 5.º. De resto, não foram as únicas fontes, pois
a Constituição de 1911 veio a assimilar algumas disposições da Constituição brasileira de 1891
(Cf. SOUZA, Marnoco e. Constituição Política da República Portuguesa. Commentario, Coimbra,
F. França Amado Editor, 1913, pp. 6-7).
28
Cf. HESPANHA, António Manuel, ibidem, pp. 175-176.
29
Cf. CATROGA, Fernando. O “complexo” cartista do parlamentarismo republicano português…,
pp. 223 e 230.
74 |
paula borges santos
dividiram-se sobre esse conceito. Para uns tratava-se de uma república em que
os poderes do Estado (legislativo, executivo e judicial) eram exercidos pelo povo.
Outros consideravam que tal expressão apontava apenas para a questão da soberania
pertencer à generalidade dos cidadãos. Na ausência de consenso, decidira-se fixar
simplesmente que “a Nação, organizada em Estado Unitário, adota como forma de
governo a República”. Deliberadamente afastava-se a hipótese de significar que o
regime comportava uma ação direta do povo, isto é, rejeitava-se que o povo pudesse
exercer por si, e não por meio de delegados, uma parte das funções do governo e da
legislatura. A aplicação de um tal modelo no País seria rotulada de uma “fantasia
de sonhadores, que se imaginavam eguaes, nas suas condições nacionais, àquelas
que fazem da Suissa um bello e extraordinario povo”30.
Esta argumentação exemplifica como os constituintes se dividiam entre si sobre
questões fundamentais para a organização política a consagrar pela Constituição,
mas que mais não eram do que remanescências de divergências transportadas
da fase da propaganda, suscitadas pelas diferenças programáticas que animavam
“federalistas” e “unitários”. Outro exemplo disso mesmo, encontra-se na decisão
dos constituintes de sancionarem a forma unitária do Estado, resultando dessa
opção a derrota da corrente federalista na Assembleia Constituinte (sendo que,
para tanto, um dos argumentos evocados foi o de que o País apresentava uma rara
unidade da comunidade política e social, sedimentada na história).
Ao contrário dos legisladores liberais, os constituintes em 1911 não caracte-
rizaram formalmente, no texto constitucional, o que entendiam por “nação”. Em
1822, optara-se por considerar a Nação como “a união de todos os Portugueses de
ambos os hemisférios” (art. 20.º), numa valorização da ideia de “comunidade de
pessoas vinculadas entre si por uma razão mais forte (o sangue) do que o facto
de terem nascido no território sujeito a um mesmo rei”. Afirmara-se que a Nação
era “livre, independente, e não pode ser património de ninguém”, cabendo-lhe,
por intermédio dos deputados reunidos em cortes, fazer a Constituição, “sem
dependência de sanção do Rei” (art. 27.º). Em 1838, o legislador entendera a nação,
da qual emanavam todos os poderes e onde residia a soberania, como “associa-
ção política de todos os cidadãos portugueses” (art. 1.º), considerando que estes
eram os indivíduos nascidos em Portugal e nos seus domínios (com exceção dos
que tivessem assumido outra naturalidade). Desvalorizara-se a relação entre
poder e súbditos para, sobretudo, definir e reforçar os laços políticos pelo prin-
cípio da territorialidade, noção que fora já introduzida na Carta Constitucional
de 182631. Com efeito, a razão mais direta para a curta fórmula adotada no art.
5.º da Constituição de 1911 prendeu-se com a falta de entendimento entre os
constituintes quanto a dizer-se que a nação exercia, “por delegação voluntária”,
a soberania. Essa ideia fora avançada pela comissão redatora do projeto cons-
30
Cf. SOUZA, Marnoco e, ibidem, pp. 9-11.
31
Cf. HESPANHA, António Manuel, ibidem, pp. 203-204.
| 75
nas origens do nacionalismo político...
titucional, mas caíra após se considerar que podia abrir caminho a cenários de
renúncia ou de abdicação do exercício de soberania32 .
O discurso de alguns constituintes evidenciava que a nação era uma entidade
distinta dos indivíduos que a compunham. Traduzia-se por uma vontade geral,
superior às vontades individuais, e, portanto, era una e indivisível, revelando
uma consciência de continuidade histórica. Daí que se traduzisse nos hábitos
e costumes e estivesse preparada para cooperar nos progressos exigidos pelo
futuro histórico. Com esse espírito, repudiavam-se teses contratualistas. “A
soberania da nação não é mais do que esse mútuo consenso, que origina todas as
instituições sociais”, afirmava Teófilo Braga, presidente do Governo, perante a
Assembleia Constituinte, e acrescentava: “um indivíduo isolado tem a sua capa-
cidade civil e os seus direitos, mas é impotente para os manter e reivindicar”33 .
Com efeito, o lugar do indivíduo no novo ordenamento a erigir não foi óbvio
para todos os constituintes, sendo que tal se manifestou quanto a dois aspetos:
por um lado, na hierarquia de matérias elencadas pela Constituição, envolvendo
os direitos individuais e a organização atribuída aos poderes do Estado; por
outro lado, no alcance dos direitos individuais que foram consagrados.
Sobre o primeiro aspeto, refira-se que no projeto proposto pela comissão en-
carregada de redigir uma primeira versão da Lei Fundamental (daqui em diante
designado projeto primitivo), a enumeração das liberdades individuais surgia
depois de se tratar a organização dos poderes do Estado, num sistema que era
igual ao da Carta Constitucional. Esta ordem de matérias foi alterada, por via de
se considerar que “os direitos e garantias individuais são o limite natural da ação
dos diversos poderes do Estado”, donde não resultaria apresentá-los como uma
concessão do poder, ainda que este tivesse o “direito de regular as manifestações
da atividade dos indivíduos, de modo a assegurar a vida da sociedade”34 .
Quanto ao segundo aspeto, como demonstrou Rui Ramos, embora o catálogo
de direitos inscrito na Constituição tenha sido extenso, não correspondeu ao
que os dirigentes do PRP haviam defendido durante o seu combate à Monarquia
cartista. De facto, sucederam-se os casos em que se registaram limitações ao
alcance prático da maior parte das anteriores reivindicações republicanas35 .
Não foi, por exemplo, fixada a doutrina do sufrágio universal, embora tenham
existido constituintes a defendê-la com os argumentos de que: a república só
seria democrática caso contemplasse aquele critério; a exclusão do sufrágio
universal só permitiria o voto a entidades e classes privilegiadas, quando,
32
Cf. SOUZA, Marnoco e, Ibidem, pp. 206-208.
33
Cf. BRAGA, Teófilo. Discursos sobre a Constituição Política da República Portugueza. Proferidos
na discussão na generalidade e especialidade, nas Sessões de 18 de julho e 2 de agosto de 1911,
na Assembleia Nacional Constituinte, Lisboa, Livraria Ferreira, 1911, p. 33.
34
Cf. SOUZA, Marnoco e, Ibidem, pp. 7-8.
Cf. RAMOS, Rui. Para uma história política da cidadania em Portugal. In: Análise Social, vol.
35
Considerações finais
36
Cf. SOUZA, Marnoco e, ibidem, p. 264.
37
Cf. RAMOS, Rui, ibidem, p. 561; CATROGA, Fernando, ibidem, p. 233; Idem, O Republicanismo
em Portugal…, pp. 175-187.
38
Sobre a “revolução cultural” desencadeada pela I República, e as causas que aí pretenderam
defender, veja-se: RAMOS, Rui, A Segunda Fundação (1890-1926)…, pp. 401-433.
| 77
nas origens do nacionalismo político...
39
Para maior detalhe das ideias e das personalidades políticas e intelectuais que iniciaram a dis-
cussão e a crítica ao modelo de representação liberal, consulte-se: OTERO, Paulo. Corporativismo
político. In: Dicionário de História de Portugal, coord. de António Barreto e Maria Filomena Mónica,
vol. VII, Porto, Livraria Figueirinhas, 1999, pp. 425-428; RAMOS, Rui. Oligarquia e caciquismo
como forma de pensar: Oliveira Martins, Joaquim Costa, Gaetano Mosca e a transformação
da cultura política liberal na Europa do Sul (c. 1800-c.1900). In: Cultura. Revista de História e
Teoria das Ideias, 2.ª série, n.º 16, pp. 179-216. Como referência da atenção que essas propostas
despertaram também entre os lentes de direito público, lembre-se que Marnoco e Souza, em
1910, refletindo sobre o exercício da soberania e a questão da representatividade política, fez a
primeira defesa, no âmbito do direito constitucional, da representação dos interesses sociais. Sem
desenvolver doutrina sobre este aspeto, mas considerando que essa seria a forma mais perfeita de
representatividade, deixava transparecer um otimismo quanto à futura concretização histórica
desse tipo de propostas, porque um “tal acordo doutrinal só se pode encontrar em épocas em
que as ideias estão maduras para se transformarem numa realidade” (algo que, cerca de trinta
anos mais tarde sucederia, de facto, através do projeto político do regime autoritário de Salazar e
Marcelo Caetano) (Cf. SOUZA, Marnoco e. Direito Político. Poderes do Estado..., pp. 164, 174-175).
40
Sobre os motivos que dificultaram, em 1911, a adesão às propostas de representação de
índole corporativa, veja-se: CATROGA, Fernando, ibidem, pp. 248-249; Idem, O Republicanismo
em Portugal…, pp. 168-172.
78 |
paula borges santos
Referências
ARRIAGA, José de. Os Últimos 60 Anos da Monarquia. Causas da Revolução de 5 de Outubro
de 1910, Lisboa, 1911.
BRAGA, Teófilo. Discursos sobre a Constituição Política da República Portugueza. Proferidos
na discussão na generalidade e especialidade, nas Sessões de 18 de julho e 2 de agosto de
1911 na Assembleia Nacional Constituinte, Lisboa, Livraria Ferreira, 1911.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Prefácio. In: SOUZA, Marnoco e. Constituição da República
Portuguesa: Comentário, coord. de J. J. Gomes Canotilho, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa
da Moeda, 2011, pp. 9-14.
41
Cf. HESPANHA, António Manuel, ibidem, p. 189.
42
Diga-se, aliás, que a proibição da perseguição religiosa e da indagação da pertença religiosa
por agentes do Estado eram garantias já consagradas, respetivamente, pela Carta Constitucional
e pelo Código Civil de 1867.
43
Também aqui deve ser lembrado o caminho nesse sentido já feito antes da República. Apesar
de a Carta Constitucional de 1826 iniciar com a fórmula tradicional das cartas de lei (“D. Pedro IV,
pela graça de Deus, rei de Portugal…”), não era dado no seu articulado qualquer indicação de uma
fundamentação sobrenatural do poder ou da soberania, nem sequer repetindo a fórmula inicial
da Constituição mais democrática de 1822 (“Em nome da Santíssima e Indivisível Trindade…”).
| 79
nas origens do nacionalismo político...
______. Introdução. In: PRAÇA, José Joaquim Lopes. Direito Constitucional Portuguez, vol.
I, Coimbra, Coimbra Editora, 1997, pp. 5-19.
CATROGA, Fernando. O Republicanismo em Portugal. Da Formação ao 5 de Outubro de 1910,
3.ª edição, Alfragide, Casa das Letras, 2010.
______. O “complexo” cartista do parlamentarismo republicano português. In: Das Urnas ao
Hemiciclo. Eleições e Parlamento em Portugal (1878-1926) e Espanha (1875-1923), coord.
de Pedro Tavares de Almeida e Javier Moreno Luzón, Lisboa, Assembleia da República,
2012, pp. 223-252.
CRUZ, Manuel Braga da. Sociologia. In: Dicionário de História de Portugal. Coord. de António
Barreto e Maria Filomena Mónica, vol. IX, Porto, Livraria Figueirinhas, 2000, pp. 466-468.
DIÁRIO da Assembleia Nacional Constituinte, n.º 1, 19 de junho de 1911.
HESPANHA, António Manuel. Guiando a Mão Invisível. Direitos, Estado e Lei no Liberalismo
Monárquico Português, Coimbra, Livraria Almedina, 2004.
LEAL, Ernesto Castro. Nação e nacionalismo: a cruzada nacional D. Nuno Álvares Pereira e
as origens do Estado Novo (1918-1938), Lisboa, Cosmos, 1999.
MATOS, Sérgio Campos. História, Mitologia, Imaginário Nacional. A História no Curso dos
Liceus (1895-1939), Lisboa, Livros Horizonte, 1990.
OTERO, Paulo. Corporativismo político. In: Dicionário de História de Portugal. Coord. de
António Barreto e Maria Filomena Mónica, vol. VII, Porto, Livraria Figueirinhas, 1999, pp.
425-428.
PINTASSILGO, Joaquim. República e Formação de Cidadãos. A Educação Cívica nas Escolas
Primárias da Primeira República Portuguesa, Lisboa, Colibri, 1998.
RAMOS, Rui. A Segunda Fundação (1890-1926); MATTOSO, José (dir.), História de Portugal
Lisboa, Editorial Estampa, 1994, v. VI.
______. Para uma história política da cidadania em Portugal. In: Análise Social, vol. XXXIX
(172), 2004, pp. 547-569.
______. Oligarquia e caciquismo como forma de pensar: Oliveira Martins, Joaquim Costa,
Gaetano Mosca e a transformação da cultura política liberal na Europa do Sul (c. 1800-
c.1900). In: Cultura. Revista de História e Teoria das Ideias, 2.ª série, n.º 16, pp. 179-216.
SOUZA, Marnoco e. Direito Político. Poderes do Estado. Sua organização segundo a sciencia
política e o direito constitucional português. Coimbra, França Amado Editor, 1910.
______. Constituição Política da República Portuguesa. Commentario, Coimbra, F. França
Amado Editor, 1913.
80 |
Nacionalismos e política
externa portuguesa no pós-25 de Abril1
José Pedro Zúquete
Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa
De cravos e de rosas
No dia 25 de abril de 2014, a Revolução dos Cravos, que pôs fim a quase cin-
quenta anos de ditadura, celebrou o seu quadragésimo aniversário. Em Portugal,
fizeram-se conferências, colóquios, exposições, as televisões recorreram a ima-
gens de arquivo, as revistas e os jornais encheram-se de memórias históricas e
de opiniões sobre o evento, os políticos juraram mais uma vez fidelidade eterna
aos valores de abril, e um pouco por todo o lado se falou do “significado” da
revolução e sobretudo do seu “legado” para o Portugal dos nossos dias. Falar da
Revolução de 25 de Abril de 1974, portanto, significa falar de um acontecimento
que marcou a história do país, abriu um novo ciclo político e inaugurou uma
Terceira República. Mas também de um acontecimento que mudou a história
de famílias, muitas famílias, quer aquelas que estavam no Portugal continental,
como as que estavam no que à época se chamava de Ultramar.
Quarenta anos depois, se há algo que passou para todo o sempre a estar associado
na mentalidade colectiva portuguesa ao 25 de Abril é a ideia de Liberdade. Ainda
recentemente o Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa publicou um
1
Este texto conjuga duas intervenções no âmbito de mesas-redondas em universidades bra-
sileiras: no dia 9 de abril de 2014, no “Seminário Internacional Nacionalismo e Política: Portugal e
Brasil”, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), e no dia 24 de abril de
2014, no evento “Os Cravos de Abril: Os Quarenta Anos da Revolução Portuguesa (1974-2014)”,
na Universidade Federal Fluminense (UFF).
2
Clemente, 2009: 31.
| 81
nacionalismos e política externa portuguesa...
estudo de opinião onde se verifica que cerca de 60% dos portugueses consideram
o 25 de Abril como o facto mais importante da história. Muito à frente da Batalha
de Aljubarrota, ou das viagens de Vasco da Gama. Claro que esta percepção tem
a ver com a proximidade histórica (é um episódio mais perto das pessoas), mas
não deixa de ser relevante. Existe um antes e um depois – e se o antes era autori-
tário –, o depois, através da transição, passou a ser o Portugal de hoje, o Portugal
democrático. E o 25 de Abril como um símbolo consensual, final, desse processo.
Mas se a um nível abstrato, difuso, essa ideia impera, se nós descermos ao
concreto, ou seja, à opinião das pessoas sobre o funcionamento da democracia
em Portugal (aquilo que os cientistas políticos chamam de “qualidade da demo-
cracia”), verificamos que, quarenta anos depois, para a maioria das pessoas, a
tal promessa de um Portugal novo e democrático ainda está por cumprir. Um
dos últimos Eurobarómetros (um inquérito europeu feito com regularidade),
do outono de 2013, não deixa margem para dúvidas: dos 28 países da União
Europeia, os portugueses são, de todos os europeus, os mais insatisfeitos com
o funcionamento da democracia (85% dos portugueses estão insatisfeitos – e
em todos os grupos sociodemográficos). 3 E resultados de 2015 confirmam a
desconfiança, bem acima da média europeia, dos portugueses relativamente ao
parlamento e ao governo da nação.4 “Abril” venceu, sim, mas o jogo está longe
de ter acabado. Ainda falta muito para que os cravos se transformem em rosas. 5
A Sereia Europeia
3
Eurobarómetro, 2013: 9, 10.
4
Eurobarómetro, 2015: 2.
5
Ver também História Viva, 2014.
6
Ferreira, 1976: 44.
82 |
josé pedro zúquete
7
Eurobarómetro, 2013: 3.
8
Lopes, 2011: 199.
9
Diário de Notícias, 2012.
10
Relvas, 2012.
| 83
nacionalismos e política externa portuguesa...
Lusofonia representa uma rede ambiciosa e profunda que é concebida como uma
comunidade de valores, interesses e afinidades comuns, e como uma maneira
de redefinir e revalorizar a importância de Portugal no mundo contemporâneo.
Claro que esta visão lusófona tem uma dimensão obviamente pragmática,
ou seja, tirar vantagem política, económica e cultural de uma relação especial
entre países unidos pela mesma língua. De um ponto de vista utilitário é um
passo lógico. Mas é importante não nos limitarmos a este entendimento da
Lusofonia, sob pena de não entendermos uma importante dimensão, mais
profunda e imaterial, da sua atração e do seu apelo na mentalidade colectiva
do Portugal de hoje. E isso tem a ver com a identidade portuguesa e com o
nacionalismo cultural que hoje se manifesta através da via lusófona.
A sua origem é a mitologia nacional. Esse nacionalismo cultural emerge das
fontes histórico-culturais e sagradas da identidade portuguesa. E quais são elas?
• Em primeiro lugar, a ideia do excepcionalismo lusitano, a longa tradição
de eleição na história de Portugal. O sentimento de que Portugal se
enquadra na tradição dos povos missionários, eleitos para liderar e,
no fim, transformar o mundo. Se à França, desde o início, se atribuiu
a “Gesta Dei per Francos”, e a Inglaterra e os Estados Unidos, em dife-
rentes momentos, foram vistos como a “Nova Israel”, também Portugal,
na sua historiografia, foi visto como uma espécie de “menino Jesus
das nações”, como notou esse psicanalista da história lusa chamado
Eduardo Lourenço.11 Nesta visão, que reemerge ao longo dos tempos
de diferentes formas e feitios, o imaginário dos descobrimentos, e da
expansão ultramarina, é fundamental.
11
Lourenço, 1988.
12
Lopes, 2011: 265.
84 |
josé pedro zúquete
13
Sobral, 2012:93.
14
Antunes, 2008: 18.
15
Ver Zúquete 2013; Marchi 2010.
| 85
nacionalismos e política externa portuguesa...
pelo Estado português, pela sociedade civil, pela comunicação social. E esse
nacionalismo cultural tem como símbolo o “Portugal que sempre se misturou”.
É que a Lusofonia é uma corrente transversal à sociedade portuguesa. Ela
não se identifica primariamente com nenhuma corrente ideológica, nem com
nenhuma força política. Ela existe para além de uma simples divisão entre
Direita e Esquerda. Mas supera essa divisão. E isso é claramente visível nas
políticas dos governos portugueses desde o final do século XX. E é também a
partir dessa altura que a Lusofonia é definida como uma “prioridade” da polí-
tica externa portuguesa.16 A Lusofonia navega num mar comum às principais
correntes dominantes, mainstream, respeitáveis, da sociedade portuguesa.
16
Ver, por exemplo, Portas, 2011.
86 |
josé pedro zúquete
17
CPLP 1996.
18
Lusa, 2008.
19
Barroso, 1995b: VIII.
20
Sobre este assunto ver Zúquete, 2008.
21
Afonso, 2008.
| 87
nacionalismos e política externa portuguesa...
22
Nova Águia, 2008.
23
Real, 2012: 137.
88 |
josé pedro zúquete
A longa travessia
24
Epifânio, 2010: 116-17.
| 89
nacionalismos e política externa portuguesa...
25
Margarido, 2000.
26
Por exemplo, Jornal de Angola, 2013.
27
Jornal Novo, 1978: 20.
28
Flama, 1975.
29
Barroso, 1995a: 80.
90 |
josé pedro zúquete
30
Notícias Lusófonas, 2010.
31
Ver, por exemplo, Paredes, 2011.
32
O Globo, 1942.
33
Correio da Manhã, 1985.
| 91
nacionalismos e política externa portuguesa...
− Para complicar a imagem, talvez pueril, que se tem da Lusofonia (e, por
conseguinte, da CPLP) como primariamente uma comunidade de valores, assente
na língua e na defesa de um património imaterial e histórico comum, acelerou-se
a tendência (e o perigo, para alguns) da sua transformação, ou mutação, para uma
espécie de clube de negócios. A adesão à CPLP, e a integração no Bloco Lusófono,
em julho de 2014, na décima cimeira da organização em Timor- Leste, da Guiné
Equatorial (o que aumentou para nove o número de estados-membros), um país
que só marginalmente comunga desse imaginário histórico e cultural, mas que
acrescenta, contudo, um peso energético e petrolífero importante à comuni-
dade, simboliza esse reforço cada vez maior daquilo que o Primeiro-Ministro
Português Pedro Passos Coelho chamou de “lusofonia económica” e “lusofonia
energética”.34 Mesmo que a população do novo estado- membro não fale a língua
(apressadamente reconhecida como “oficial”) ou que o seu executivo ditatorial não
partilhe dos valores humanistas que estão na base da CPLP e que, supostamente,
distinguem a ação “ecuménica” e “universalista” da experiência portuguesa no
mundo. Talvez por isso, e mesmo com essa atração irresistível pelos benefícios
económicos, Portugal tenha sido o último país a aceitar, relutantemente, ao fim
de um processo que durou anos, e sob pressão dos outros estados-membros
(como o Brasil e Angola), a entrada do novo estado africano na organização.35
− Finalmente, é difícil não ter consciência do elitismo de muitas destas
dinâmicas associadas à Lusofonia. Embora ela assente na língua, que é “de-
mocraticamente” partilhada por todos, com sotaque ou não, os projetos a ela
associados correspondem muitas vezes a interesses, desejos e sonhos de elites
políticas, elites económicas e, sobretudo (embora a sua influência possa estar
a desvanecer-se), de elites culturais.
Pelo meio, existe um enorme desconhecimento e desprendimento popular,
relativamente à construção da Lusofonia como uma via possível para um futuro
comum e integrado de todos os países de língua portuguesa. Pode até dizer-se
que existe um “deficit democrático” nesse sentido.
Em suma, talvez o mais inultrapassável dos obstáculos seja o de sentir que
a realidade é sempre a maior madrasta do lirismo dos poetas, dos sonhos dos
pregadores, e dos projetos grandiosos de políticos desprevenidos.
34
Lusa, 2014.
35
Sobre este tem ver, por exemplo, Público, 2014.
92 |
josé pedro zúquete
36
Ver por exemplo, Rodrigues, 2008.
37
Steger, 2009.
| 93
nacionalismos e política externa portuguesa...
Referências
AFONSO, Simonetta Luz. Entrevista em Expresso, 25 de abril, 2008.
ANTUNES, António Lobo. Mais dois, três livros e pararei. JL – Jornal de Letras e Ideias, ano
XXVI, n.º 941, 25 de outubro, p. 18, 2008.
BARROSO, José Manuel Durão. A Política Externa Portuguesa; Seleção de discursos, confe-
rências e entrevistas do Ministro dos Negócios Estrangeiros (1994-1995), Lisboa: Ministério
dos Negócios Estrangeiros, 1995a.
BARROSO. José Manuel Durão. Cooperação Portuguesa. Portugal: Dez anos de Política de
Cooperação, Lisboa: Ministério dos Negócios Estrangeiros, 1995b.
CLEMENTE, D. Manuel. Há uma desmesura que nos explica como portugueses. Ípsilon, 25
de setembro, p. 31, 2009.
COELHO, Pedro Passos. Discurso de Posse como Primeiro-Ministro de Portugal, Lisboa, 24
de junho, 2011.
CORREIO DA MANHÃ. Brasileiros acordam a pensar em Portugal, 29 de janeiro, p. 20, 1985.
CPLP – Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Declaração Constitutiva. Disponível
em: http://www.fd.uc.pt/CI/CEE/OI/CPLP/CPLP-D-Constitutiva_e_estatutos.htm, 1996.
DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Edição Especial: Como o nosso futuro vai voltar a passar pelo mar, 10
de junho, 2012.
EPIFÂNIO, Renato. A Via Lusófona: Um Novo Horizonte para Portugal. Sintra: Zéfiro, 2010.
EUROBARÓMETRO. Standard 80/Outono. Relatório Nacional: Portugal, 2013.
______. Standard/83. Relatório Nacional: Portugal, 2015.
FERREIRA, José Medeiros. Elementos para uma política externa do Portugal contemporâneo.
Lisboa: Ministério dos Negócios Estrangeiros, 1976.
FLAMA. Primeiro estadista Africano a visitar Portugal, janeiro, pp. 18-21, 1975.
GOODMAN, James. Reflexive Solidarities. In: GOODMAN, James; JAMES, Paul (Org.).
Nationalism and Global Solidarities. London: Routledge, 2007, pp. 187-204.
ORTIZ, Fabíola. O que restou da revolução dos cravos. História Viva, junho, pp. 42-45, 2014.
JORNAL DE ANGOLA. Adeus Lusofonia, 21 de outubro. Disponível em: http://jornaldean-
gola.sapo.ao/opiniao/editorial/adeus_lusofonia, 2013.
JORNAL NOVO. “Samora Machel na OUA: ‘Colonizadores utilizam agora a lusofonia’”, 20
de julho, p. 20, 1978.
38
Goodman, 2007
94 |
josé pedro zúquete
| 95
nacionalismos e política externa portuguesa...
ZÚQUETE, José Pedro. Beyond reform: the orthographic accord and the future of the
Portuguese language. South European Society & Politics, 13 (4), pp. 495-506, 2008.
______. Conclusion. Between Land and Sea: Portugal’s Two Nationalisms in the Twenty-First
Century. In: MANUEL, Paul Christopher; LYON, Alynna e WILCOX, Clyde (Org.). Religion
and Politics in a Global Society Comparative Perspectives from the Portuguese-Speaking World.
Lanham: Lexington Books, pp. 205-226, 2013.
96 |
Nacionalismos e Impérios:
o caso da Itália fascista
João Fábio Bertonha
Universidade Estadual de Maringá
Introdução
| 97
nacionalismos e impérios: o caso da itália fascista
1
BERTONHA, João Fábio. Os Italianos. São Paulo: Contexto, 2005, cap. 5; Um imperialismo dos
pobres: O Império italiano da era liberal ao fascismo. In: SILVA, Francisco Carlos Teixeira da.
Impérios na História. Rio de Janeiro: Campus, 2009, p. 259-269; Entre Continuidade e ruptura. A
Política Externa Fascista como um Problema Histórico e político. Contexto Internacional, v. 23,
n. 2: 399-434, 2001. Ver também vários artigos meus sobre o imperialismo italiano e a “diplo-
macia paralela” de Mussolini reunidos em Sobre a direita: estudos sobre o fascismo, o nazismo e o
integralismo. Maringá, Eduem, 2008.
98 |
joão fábio bertonha
2
MALLET, Robert. The Italian Navy and Fascist expansionism, 1935-1940. London: Frank Cass,
1998, p. 48 e 60; GOOCH, John. Mussolini e i suoi Generali. Forze Armate e politica estera fascista.
Gorizia: Libreria Editrice Goriziana, 2011, p. 737. Para outros dados estatísticos e bibliografia
sobre o tema, ver Bertonha, Os italianos, cap. 5.
| 99
nacionalismos e impérios: o caso da itália fascista
3
MALLETT, Robert. The Italian Navy; CEVA, Lucio. The Strategy of Italian Fascism: A Premise.
In: MALLETT, Robert; SORENSEN, Gert. Internacional Fascism, 1919-1945. London: Frank Cass
Publishers, 2002, p. 41-54; e MINNITI, Fortunato. Fino alla Guerra. Strategie e conflitto nella
politica di potenza di Mussolini, 1923-1940. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2000.
100 |
joão fábio bertonha
outros, como um substituto aos meios econômicos e militares que a Itália não
dispunha no volume necessário para conseguir o que desejava. Um imperia-
lismo paralelo, mais sutil, que se articulava com o tradicional ou o substituía,
conforme o momento e a região do mundo.
Dessa forma, a Itália mobilizou todos os recursos disponíveis para suprir a
sua falta de recursos militares e econômicos. Alguns eram tradicionais e comuns
à maioria dos países, como a formatação de laços econômicos ou financeiros, a
venda de armamentos4 , o estabelecimento de relações diplomáticas de amizade
e uma política cultural e de propaganda.
O modelo fascista trazia, contudo, algumas novidades. A mobilização e o
controle das colônias de italianos espalhadas pelo mundo, a ligação com os movi-
mentos fascistas e com governos estrangeiros pelo viés ideológico, a formatação
de uma propaganda cultural marcada pelos pressupostos ideológicos e os esforços
de subversão da ordem interna de outros países foram os elementos centrais
dessa “diplomacia paralela”, que existia ao lado da diplomacia oficial italiana.
Vários desses elementos já eram pensados dentro da realidade geopolítica
italiana desde antes do fascismo (como a propaganda cultural e a mobilização
dos emigrantes) e vários outros países – democráticos ou não - também recor-
riam a esses elementos para ampliar seu poder internacional naqueles anos.
Mesmo hoje, a política cultural ainda é parte da diplomacia da maioria dos
Estados e mesmo de instituições como a União Europeia. Agir nas sombras na
política interna de outros Estados e mobilizar os simpáticos e adeptos de uma
dada ideologia em outros países também não era e nem é algo novo. O fascis-
mo italiano, contudo, reelaborou estes elementos, associou-os ao pensamento
imperialista tradicional e os ligou a uma concepção particular de Império,
relacionada à tradicional, mas com aspectos novos.
De qualquer forma, fica claro, aqui, como a Itália fascista buscava, em todo
momento, não fugir do imperialismo tradicional, mas buscar métodos alter-
nativos ou suplementares a ele, de forma que Roma pudesse atuar com mais
eficiência no sistema imperialista global, ainda que os resultados finais, como
é conhecido, não tenham sido dos melhores.
4
SABA, Andrea Filippo. L´imperialismo opportunista. Politica estera italiana e industria degli
armamenti (1919-1941). Napoli, Edizioni Scientifiche Italiane, 2001.
| 101
nacionalismos e impérios: o caso da itália fascista
5
RODOGNO, Davide. Il Nuovo Ordine mediterraneo. Le politiche di occupazione dell´Italia
Fascista in Europa (1940-1943), Torino, Bollati Boringhieri, 2003. DELL´ERBA, Nunzio. L´idea di
romanità durante il fascismo. Nuova Storia Contemporanea 13, 6 (2009), 33-60. CORNI, Gustavo.
Imperio e spazio vitale nella visione e nella prassi delle dittature (1919-1945). Ricerche di storia
politica, 9, 3 (2006), 345-57, e GENTILE, Emilio. La Grande Italia. Ascesa e declino del mito della
nazione nel Ventesimo Secolo, Milano, Mondadori, 1997.
6
Ver, entre outros, DOMINIONI, Matteo. I limiti dell´espansionismo fascista. Il fallimento
dell´annessione della provincia di Lubiana. In: L´Annale Irsifar - Politiche di occupazione dell´Ita-
lia Fascista, Milano, Franco Angeli, 2008; p. 58-77; FOCARDI, Filippo, e KLINKHAMMER,
Lutz. Italia potenza occupante: una nuova frontiera storiografica. In: Idem, p. 21-31; PIPITONE,
Cristiana. Dall´Africa all´Europa: Pratiche italiane di occupazione militare. In: Idem, p. 31-42, e
MICHELETTA, Luca. La resa dei conti. Il Kosovo, l´Italia e la dissoluzione della Iugoslavia (1939-
1941), Roma, Edizioni Nuova Cultura, 2008.
102 |
joão fábio bertonha
7
O tema da política cultural fascista para o exterior tem se revelado dos mais promissores
na historiografia italiana e internacional nos últimos anos. Ver, por exemplo, LONGO, Gisella.
L´Istituto Nazionale Fascista di Cultura. Da Giovanni Gentile a Camillo Pellizzi (1925-1943),
em GENTILE, Emilio. Gli Intellettuali tra partito e regime. Roma, Antonio Pellicani, 2000;
CAVAROICCHI, Francesca. Avanguardie dello Spirito. Il fascismo e la propaganda culturale
all’estero, Roma, Bulzoni, 2010; MÉNDEZ, Rubén Domínguez. La Política Cultural del fascismo
en Espana (1922-1945). Sociabilidad, Propaganda y Proselitismo. Tese de doutorado em História,
Universidad de Valladolid, 2011, e GARZARELLI, Benedetta. Parleremo al mondo intero. La
propaganda del fascismo all´estero. Alessandria, Edizioni dell´Orso, 2004.
8
Para uma visão geral, ver SAVARINO, Franco. Apuntes sobre el fascismo italiano en América
Latina (1922-1940). Reflejos (Revista de la Universidad Hebrea de Jerusalén), 9 (2001), p. 100-110;
En busca de un “Eje” Latino: la política latinoamericana de Italia entre las dos guerras mundiales.
Anuario del Centro de Estudios Históricos “Profesor Carlos Segreti”, 6, 6 (2006), p. 239-61, e Juego
de ilusiones: Brasil, México y los ‘fascismos’ latinoamericanos frente al fascismo italiano. Historia
Crítica, 37 (2009), p. 120-47.
9
OSTENC, Michel. La politica estera italiana e il concetto di Civiltà (1914-1943). Nuova Storia
Contemporanea, 13, 3 (2009), p. 11-24; GODESA, B. Le autorità italiane di occupazione e gli intel-
lettuali sloveni. Qualestoria, 27, 1 (1999), p. 133-170, e Penetrazione culturale in Europa Orientale,
1918-1939. Le grandi potenze occidentali in confronto. Passato e Presente, 56 (2002), p. 85-114, e
SANTORO, Stefano. Panslavismo e latinità negli studi di “L´Europa Orientale”. Qualestoria, 27, 2
(1999), p. 55-70. Do mesmo autor, é fundamental L´Italia e l´Europa orientale. Diplomazia culturale
e propaganda, 1918-1943, Milano. Franco Angeli, 2005.
10
Ver, apenas a título de exemplo de uma imensa bibliografia para o caso dos Estados Unidos,
LUCONI, Stefano. La “Diplomazia Parallela”- Il regime Fascista e la mobilitazione politica degli
italo-americani, Milano, Franco Angeli Editore, 2000.
| 103
nacionalismos e impérios: o caso da itália fascista
A América Latina e o Brasil estariam, com certeza, nos círculos mais exter-
nos das ambições imperiais italianas, o que explica os limites dessas e também
porque o recurso aos métodos indiretos foi mais intenso nesse continente do
que em outros, conforme trabalhei em diversos outros textos11.
É importante ressaltar novamente como não havia uma separação abso-
luta entre o imperialismo tradicional e o alternativo. As fronteiras entre um
e outro eram móveis e sutis, podendo ser ultrapassadas de um lado ao outro
sem dificuldades se as ocasiões o exigissem. Na Tunísia, por exemplo, depois
de décadas de esforço de subversão por meio da cultura e da mobilização dos
italianos locais, a conquista italiana acabou se dando, apesar de ser por pouco
tempo, pela via militar, em conjunção com as tropas alemãs.
A Europa oriental e balcânica também é um exemplo excelente disso. Nos
anos 1930, havia um apelo aos valores culturais compartilhados, como a latini-
dade (no caso romeno, mas, de resto, aplicado também na América Latina e na
Europa do sul), o catolicismo, etc. A Itália seria a herdeira romana nos Bálcãs,
a dominar pela cultura e pela ascendência. Nessa região, os contatos com os
emigrantes italianos, a difusão cultural e a busca de contato com os sacerdotes
católicos e os movimentos fascistas locais foram intensificados e coordenados
para permitir uma maior difusão da mensagem fascista12 .
Na verdade, a política cultural fascista para a Europa Oriental não falhou,
tendo tido excelente repercussão entre as elites da região. Os mitos da latinidade,
da romanidade e os ideais do corporativismo e da Itália como alternativa ao
nazismo tinham repercussão na região e eram bem vistos. A diplomacia cultural
só não teve os resultados previstos em termos de influência e poder porque não
foi associada a uma força econômica e militar adequada e, pelo contrário, foi
anulada pelo domínio alemão nestes aspectos, especialmente nos anos 1940.
Se, nesse caso, o fascismo preferiu não cruzar a fronteira para um impe-
rialismo tradicional, frente ao esmagador poder alemão, em outros momentos
isso aconteceu. Na Eslovênia, por exemplo, em 1941, depois de uma tentativa
de cooptar os intelectuais locais e convencer os eslovenos das vantagens da
associação à Itália, Roma preferiu usar o método direto da anexação13 .
11
Ver mais detalhes nos meus “¿Un imperio italiano en América Latina? Inmigrantes, fascistas y
la política externa “paralela” de Mussolini”. In: SAVARINO, Franco e GONZÁLEZ, José Luis. México.
Escenario de confrontaciones, México, ENAH, 2010, p. 161-188, e Los fascismos en América Latina. Ecos
europeos y valores nacionales en una perspectiva comparada. In: SAVARINO, Franco e BERTONHA,
João Fábio. El fascismo en Brasil y en América Latina. Ecos europeos y desarrollos autóctonos. México,
DF, ENAH, 2013, pp. 31-66 e La “Diplomacia Paralela” de Mussolini en Brasil: Vínculos culturales,
emigratorios y políticos en un proyecto de poder (1922-1943). Pasado y Memoria, nº. 11 (2012): 71-92..
12
Além do já citado, ver BIANCHINI, Stefano. L´idea fascista dell´Impero nell´area danubi-
ano-balcanica. In: DI NOLFO, Ennio. L’Italia e la politica di potenza in Europa (1938-1940). Milano:
Marzorati, 1988, pp. 173-86.
13
BURGWYN, H. James. L´Impero sull´Adriatico. Mussolini e la conquista della Jugoslavia, 1941-
1943. Gorizia: Libreria Editrice Goriziana, 2006.
104 |
joão fábio bertonha
14
GOGLIA, Luigi. Sulle Organizzazioni Fasciste Indigene Nelle Colonie Africane Dell´Italia. In:
DI FEBO, Giuliana e MORO, Renato. Fascismo e Franchismo. Relazioni, Immagini, Rappresentazioni.
Soveria Mannelli: Rubbettino, 2005, pp. 173-212.
15
RODOGNO, Davide. Il Nuovo Ordine mediterraneo, p. 63.
16
Sobre esses cônsules, ver, entre outros, BERTONHA, João Fábio. O Fascismo e os Imigrantes
Italianos no Brasil. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001; ODDONE, Juan. Serafino Mazzolini: Un Misionero
del Fascismo en Uruguay, 1933-1937. Estudios Migratorios Latinoamericanos 12, no. 37 (1997):
375-87; PAPINI, M. Serafino Mazzolini: Un Diplomatico a Salò. Storia e Problemi Contemporanei
18, no. 39 (2005): 61-84; ROSSI, Gianni Scipione. Mussolini E Il Diplomatico. La Vita E I Diari Di
Serafino Mazzolini, Un Monarchico a Salò. Rubbettino: Soveria Mannelli, 2005; SCARANTINO,
Anna. La Comunità Ebraica in Egitto Fra Le Due Guerre Mondiali. Storia Contemporanea 17, no.
6 (1986): 1033-82; CRESCIANI, Gianfranco. A Not So Brutal Friendship: Italians Responses to
National Socialism in Australia. AltreItalie - Rivista Internazionale di studi sulle popolazioni di origine
italiana nel mondo (2007); BASTIANINI, Giuseppe. Gli Italiani All’estero. Milano: Mondadori, 1939
e CATTARUZZA, Camila. L’italia E Il Confine Orientale, 1866-2006. Bologna: Il Mulino, 2007.
| 105
nacionalismos e impérios: o caso da itália fascista
Isso não significa afirmar que havia uma perfeita sintonia entre as várias
partes desse sistema. Os vários órgãos e personalidades do regime divergiam
entre si sobre os caminhos a tomar e as oscilações táticas eram constantes. Do
mesmo modo, se nem mesmo no tocante ao imperialismo tradicional o fascismo
conseguiu elaborar uma Estratégia militar e de política externa coerente, arti-
culando objetivos e meios, como indicado acima, como esperar que a Estratégia
Nacional fascista, articulando seus vários modelos imperiais, o fosse?
Não obstante, havia uma linha geral de atuação e tal linha se relacionava
diretamente à dicotomia entre força e pretensões que a Itália atravessava
naquele período. Todo fascismo é imperialista, mas, ao defrontar-se com a
realidade material da Itália e com as suas tradições – também derivadas dessa
realidade – de um imperialismo liberal mais focado no comércio e na cultura
já desde antes do fascismo, este reelaborou a sua noção de Império, mas sem
jamais abandonar a sua pretensão imperial. Sem o imperialismo, a noção de
nacionalismo defendida pelo fascismo se tornaria algo vazio: sem um sonho
imperial, não pode haver fascismo.
17
GENTILE, Emilio. La Grande Italia. Os parágrafos a seguir se baseiam nesse livro, especial-
mente nas pp. 46-153.
106 |
joão fábio bertonha
expansionista, como Nação orgânica e unida pela língua e cultura começou a ser
uma versão com crescente força e popularidade. A descoberta do imperialismo
teve um papel fundamental na transformação dessa Itália liberal e democráti-
ca para uma imperialista, que reformulou o conceito de Nação para algo mais
exclusivista e restritivo. Mussolini reforçou esse processo, associando a Nação
a uma ideologia, o fascismo.
No nacionalismo fascista, assim, muitas (mas não todas) correntes do nacio-
nalismo antiliberal anterior confluíram e formaram uma nova versão de Nação,
que deveria ser una e com homogeneidade ideológica e cultural. Desapareceu
também a identificação da Nação como pertencente a algo maior, a humani-
dade, em favor de uma nação voltada à política de potência e ao imperialismo.
O nacionalismo fascista, contudo, teria tido várias fases. Primeiro, se pensou
em “regenerar a estirpe itálica” (no início do movimento) e em “restaurar a
nação” (nos primeiros anos de poder); depois surgiu a proposta de “regeneração
totalitária da nação” (anos finais da década de 1920 e início da de 1930); a era
da “civilização imperial” (entre a guerra da Etiópia e 1942) e a “guerra revolu-
cionária” (durante a Repubblica Sociale Italiana). Esses conceitos e propostas
conviveram na maior parte do tempo, mas sempre com alguns predominando
e outros recuando conforme a época.
O fascismo, na verdade, sempre identificou a regeneração da Nação ou da raça
italianas com o expansionismo externo, ao mesmo tempo em que considerava
tal regeneração como fundamental para sustentar a expansão externa. Qual
dos polos predominava é uma questão sobre a qual os historiadores têm sempre
debatido18 , mas a interação entre política externa e interna, entre concepção de
Nação e de Império, era especialmente visível no regime de Mussolini.
Nas fases finais do fascismo, especialmente, a sua doutrina começou, com
efeito, a ir além da Nação. Ele regeneraria ou criaria a mesma e partiria para
o destino imperial, até como forma de garantir essa regeneração. Haveria,
contudo, outro passo a seguir, dentro de uma missão civilizadora, mundial,
revolucionária. Não no sentido mazziniano, mas de destino epocal, de coman-
do e influência no mundo. Um nacionalismo universalístico, mas também de
dominação e poder.
Com efeito, as imensas discussões sobre uma nova civilização europeia e
o papel das várias Nações, da Itália e do fascismo dentro dela estavam sendo
feitas com uma perspectiva hierárquica. Seria uma Europa como uma comuni-
dade imperial que superaria o velho imperialismo, mas onde os grandes países
seriam superiores aos pequenos e todos girariam em torno de um polo, aquele
de onde emanava a nova civilização, a Itália19.
18
BERTONHA, Entre Continuidade e ruptura, pp. 402-405.
19
Para o papel do Istituto Nazionale Fascista di Cultura nessa elaboração teórica, ver LONGO,
Gisella. L´Istituto Nazionale Fascista di Cultura e Gli intellettuali tra partito e regime. Roma: Antonio
Pellicani, 2000.
| 107
nacionalismos e impérios: o caso da itália fascista
20
CORNI, Gustavo. Imperio e spazio vitale.
21
RODOGNO, Davide, pp. 65-66.
108 |
joão fábio bertonha
22
MAZOWER, Mark. Hitler´s Empire – How the Nazis ruled Europe. New York: Penguin Books,
2008.
| 109
nacionalismos e impérios: o caso da itália fascista
Conclusões
Como indicado inicialmente, não é possível ser fascista sem ter sonhos ou
ambições imperiais, mas as tradições de cada país, as avaliações de poder e as
prioridades alteraram os contornos de cada tipo de imperialismo. Dessa forma,
enquanto o integralismo brasileiro propunha uma espécie de “imperialismo
interno” e uma hegemonia ideológica sobre a América do Sul, com leves menções
a uma atuação mais efetiva no Rio da Prata 25 , o nazismo, como visto, propunha
23
BREPOHL, Marion. Os pangermanistas na África: inclusão e exclusão dos nativos nos planos
expansionistas do Império, 1896-1914. Rev. Bras. Hist. [online]. 2013, vol.33, n.66, pp. 13-29
24
RODOGNO, Davide, pp. 96-100.
25
Ver as várias discussões a esse respeito no meu Integralismo. Problemas, perspectivas e questões
historiográficas. Maringá: Eduem, 2014.
110 |
joão fábio bertonha
Referências
BASTIANINI, Giuseppe. Gli Italiani All’estero. Milano: Mondadori, 1939.
BERTONHA, João Fábio. O fascismo e os imigrantes italianos no Brasil. Porto Alegre: Edipucrs,
2001.
______. Entre Continuidade e ruptura. A Política Externa Fascista como um Problema
Histórico e político. Contexto Internacional, v. 23, n. 2: 399-434, 2001.
______. Os italianos. São Paulo: Contexto, 2005.
26
Ver, entre outros, CALLEJA, Eduardo González; NEVADO, Fredes Limón. La Hispanidad como
instrumento de combate. Raza e Imperio en la prensa franquista durante la Guerra Civil española,
Madrid, CSIC, 1988; GÓMEZ-ESCALONILLA, Lorenzo Delgado. Diplomacia Franquista y política
cultural hacia Iberoamérica, 1939-1953, Madrid, CSIC, 1988, e Imperio de papel: acción cultural y política
exterior durante el primer franquismo, Madrid, CSIC, 1992; REIN, Raanan. Francoist Spain and Latin
America, 1936-1953. In: LARSEN, Stein Ugelvik, op.cit, pp. 116-152; ROLLAND, Denis et alii. L’Espagne,
la France et l’Amérique latine. Politiques culturelles, propagandes et relations internationales. XXe
siècle, Paris, L’Harmattan, 2001.
| 111
nacionalismos e impérios: o caso da itália fascista
BERTONHA, João Fábio. Sobre a direita: estudos sobre o fascismo, o nazismo e o integralismo.
Maringá: Eduem, 2008.
BERTONHA, João Fábio. Um imperialismo dos pobres: O Império italiano da era liberal
ao fascismo. In: SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Impérios na História. Rio de Janeiro:
Campus, 2009, p. 259-269.
______. Integralismo. Problemas, perspectivas e questões historiográficas. Maringá: Eduem,
2014.
BIANCHINI, Stefano. L´Idea fascista dell´Impero nell´area danubiano balcanica. In: DI
NOLFO, Ennio. L’Italia e la politica di potenza in Europa (1938-1940). Milano: Marzorati,
1988, pp. 173-86.
BREPOHL, Marion. Os pangermanistas na África: inclusão e exclusão dos nativos nos planos
expansionistas do Império, 1896-1914. Rev. Bras. Hist. [on-line]. 2013, vol.33, n.66, pp. 13-29.
BURGWYN, H. James. L´Impero sull´Adriatico. Mussolini e la conquista della Jugoslavia.
1941-1943. Gorizia: Libreria Editrice Goriziana, 2006.
CALLEJA, Eduardo Gonzàlez; NEVADO, Fredes Limon. La Hispanidad como instrumento de
combate. Raza e Império en la prensa franquista durante la Guerra Civil española. Madrid,
CSIC, 1988.
CATTARUZZA, Camila. L’Italia e il confine orientale, 1866-2006. Bologna: Il Mulino, 2007.
CAVAROICCHI, Francesca, Avanguardie dello Spirito. Il fascismo e la propaganda culturale
all’estero. Roma: Bulzoni, 2010.
CORNI, Gustavo. Imperio e spazio vitale nella visione e nella prassi delle dittature (1919-
1945). Ricerche di storia politica, 9, 3: 345-57, 2006.
CRESCIANI, Gianfausto. A Not so Brutal Friendship: Italians Responses to National Socialism
in Australia. AltreItalie – Rivista Internazionale di studi sulle popolazioni di origine italiana
nel mondo, n. 34:4-38, 2007.
DELL´ERBA, Nunzio. L´idea di romanità durante il fascismo. Nuova Storia Contemporanea,
13, 6: 33-60, 2009.
DOMINIONI, Matteo. Lo sfascio dell’Impero. Gli Italiani in Etiopia, 1936-1941. Roma-Bari:
Laterza, 2008.
______. I limiti dell´espansionismo fascista. Il fallimento dell´annessione della provincia
di Lubiana. L´Annale Irsifar – Politiche di occupazione dell´Italia Fascista. Milano, Franco
Angeli, 2008, p. 58-77.
FOCARDI, Filippo e KLINKHAMMER, Lutz. Italia potenza occupante: una nuova frontie-
ra storiografica. In L´Annale Irsifar – Politiche di occupazione dell´Italia Fascista. Milano,
Franco Angeli, 2008, p. 21-31.
GARZARELLI, Benedetta. Parleremo al mondo intero. La propaganda del fascismo all´estero.
Alessandria: Edizioni dell´Orso, 2004.
GENTILE, Emilio. La Grande Italia. Ascesa e declino del mito della nazione nel Ventesimo
Secolo. Milano: Mondadori, 1997.
GODESA, B. Le autorità italiane di occupazione e gli intellettuali sloveni. Qualestoria, 27,
1: 133-170, 1999.
112 |
joão fábio bertonha
| 113
nacionalismos e impérios: o caso da itália fascista
114 |
A década de 20 e a gênese
das ideias autoritárias no Brasil:
o jovem Francisco Campos1
Cláudia Maria Ribeiro Viscardi
Universidade Federal de Juiz de Fora
Este capítulo faz parte de um projeto mais amplo, que tem por fim prestar
uma contribuição para o debate acerca do advento das ideias nacionalistas e
autoritárias difundidas no período republicano brasileiro no contexto da déca-
da de 1920. O nacionalismo na Primeira República é visto de forma marginal,
em geral associado aos militares. Há um reconhecimento da existência de um
sentimento nacionalista florianista, no final do XIX, cuja maior expressão foi
o movimento jacobino, eminentemente xenófobo e especificamente lusófobo.
Entre suas propostas estavam uma maior intervenção do Estado na economia
com fins industrializantes, o fortalecimento do poder executivo, a ditadura
militar e o anticlericalismo. Cabe destacar a criação da Liga da Defesa Nacional
por Olavo Bilac, Pedro Lessa e Miguel Calmon - presidida por Rui Barbosa - em
1916, cujo objetivo era apoiar os aliados na Primeira Guerra e instituir o ser-
viço militar obrigatório, aprovado em 1908 e viabilizado só pela ação da Liga.
O nacionalismo era exaltado como justificativa para se ter um exército forte e
um soldado-cidadão, ou seja, mais envolvido na política.
Em que pesem tais iniciativas, em geral, a Primeira República é vista como um
regime eminentemente liberal, onde o papel do Estado é o de observador, cabendo
às unidades federadas um maior protagonismo nos processos decisórios. O estatismo
ou o sentimento nacionalista estaria enfraquecido pelo próprio espírito federalista,
responsável pela prevalência do poder local/regional sobre a ideia de nação.
O mesmo se pode dizer acerca do autoritarismo. A perspectiva de pre-
dominância de um liberalismo oligárquico como regime político dominante,
obnubilou a presença de ideias autoritárias que estiveram presentes. No início
da República, o Castilhismo positivista e o próprio jacobinismo florianista
1
Este é um resultado parcial de um projeto mais amplo de pesquisa, realizado com o apoio do
CNPq e da FAPEMIG.
| 115
a década de 20 e a gênese das ideias autoritárias...
2
Gostaríamos de destacar alguns deles: Gellner (1993) Hobsbawm (1990), Anderson (1983 e
2008), Mann (1993 e 1994), Smith (1991, 1996, 1998, 1999 e 2000).
3
A produção bibliográfica de F. Campos é razoavelmente ampla. No entanto, não há muitas
publicações na década de vinte, objeto de nossas pesquisas, a não ser a obra Pela Civilização Mineira:
Documentos de Governo, 1926-1930 (1930), publicada ao final da década. Antes, no entanto, foram
publicados os seguintes trabalhos: Democracia e unidade nacional, de 1914. Antecipações à reforma
Política, também de 1914. A Doutrina da População, de 1916. Natureza Jurídica da Função Pública,
de 1917. O Animus na Posse, de 1918. Introdução Crítica à Filosofia do Direito, também de 1918.
4
Populações Meridionais no Brasil, de Oliveira Viana, foi publicado em 1920. Há mais cinco
obras de sua autoria nos anos vinte: Pequenos Estudos de Psicologia Social (1921), O Idealismo na
Evolução Política do Império e da República (1922), Evolução do Povo Brasileiro (1923), O Ocaso
do Império (1925) e O Idealismo na Constituição (1927). De Bomílcar, A Política no Brasil ou o
Nacionalismo Radical, 1920 – em memória de Floriano.
116 |
cláudia maria ribeiro viscardi
Por outro lado, abrimos mão de pensar tais atores como “frutos de seus res-
pectivos contextos”. Interessa-nos a relação texto-contexto, na medida em que
os discursos produzidos fazem parte do conjunto de “acontecimentos”, além de
interferirem sobre o rumo das coisas. Todo discurso é um ato de fala (Austin, 1975).
Embora a maior parte dos nossos atores estivessem fora dos altos cargos de
comando do regime, não se encontravam a sua margem. Muitos deles já haviam
iniciado sua trajetória política como deputados ou secretários de estado. Como
jovens, galgavam vagarosamente os degraus do poder e, na maioria das vezes,
não encontrando um ambiente hostil.
No caso específico de Francisco Campos, optamos por analisar seus discursos
parlamentares, uma vez que não há publicações do autor ao longo da década de
1920. Especificamente para os fins deste texto, optamos por analisar seu posi-
cionamento diante das revoltas militares de 1922 e 1924. Pretendemos perceber
sua linguagem política inserindo-a no meio em que vivia, de forma a perceber
o que falava, o que estava fazendo ao falar e mais marginalmente, os efeitos de
sua fala sobre os receptores de seu discurso. As referências à vertente inglesa
da História dos Conceitos são nítidas5 . J. Austin (1975, 7th Lecture), em análises
discursivas que fundamentaram a formulação dos trabalhos dos historiadores
da Escola de Cambridge, afirma que o discurso político – que se constitui em
atos de fala – possui três dimensões a serem levadas em conta: a locucionária
(of saying), que diz respeito ao conteúdo da proposição, que se manifesta no
ato de discursar. A ilocucionária (in saying), que leva em conta o que o agente
está fazendo no momento em que profere o discurso. E a perlocucionária (by
saying), relativa aos efeitos produzidos pelo ato de fala na audiência. Em nossa
análise, procuraremos identificar as três dimensões, reconhecendo, no entanto
os limites de nossas fontes para a abordagem da terceira dimensão.
Serão objeto de investigação dois discursos proferidos no Congresso Nacional
por Francisco Campos. O primeiro em sessão de 7 de julho de 1922, dois dias
após a revolta do Forte de Copacabana. O segundo em sessão de 10 de julho de
1924, cinco dias após a tomada do poder pelos tenentes na revolta de 1924.6 Em
ambas as ocasiões, Francisco Campos se valeu da tribuna do Parlamento para
condenar as revoltas e defender a restauração da ordem política oligárquica,
ameaçada pelas manifestações dos militares.
Como dissemos, em razão da natureza das fontes disponíveis, a primeira e
segunda dimensões (locucionária e ilocucionária) serão levadas em conta com
5
A História dos Conceitos nasceu e se consolidou em duas escolas, a de Bielefeld na Alemanha,
onde se destacou Reinhart Koselleck e a de Cambridge, no Reino Unido, cujos maiores expoen-
tes são Quentin Skinner e John Pocock. As escolas caminharam de forma independente. A este
respeito já existe vasta bibliografia, produzida inclusive por brasileiros. Entre o valioso material
disponível destacamos: KOSELLECK, Reinhart (1992), POCOCK, J.G.A. (2003), JASMIN, Marcelo
G.(2005) e PALONEN, Kari (2005).
6
Os discursos encontram-se disponíveis nos Anais da Câmara de Deputados. Nos valemos de
sua publicação no livro: BONAVIDES (1979).
| 117
a década de 20 e a gênese das ideias autoritárias...
prioridade, uma vez que através da análise dos discursos parlamentares –objeto
de investigação deste capítulo - fica muito difícil perceber a terceira dimensão
de seu discurso, qual seja, os efeitos produzidos pela sua fala no Parlamento, ou
mesmo sobre a opinião pública. Quando muito, tivemos acesso à recepção de
alguns parlamentares que se manifestaram ou através de aplausos ou de apartes
à fala de Francisco Campos. Mas tais manifestações, por serem esparsas e em
número não significativo, nos impedem de perceber o real impacto do discurso
sobre seus receptores. Portanto, não dispomos de fontes que evidenciem de
que forma os discursos proferidos foram aceitos ou rejeitados.
Com o fim de perceber a dimensão ilocucionária dos discursos, passare-
mos a seguir a acompanhar com brevidade a trajetória política de Campos até
o momento em que os discursos foram proferidos.
Quem fala
118 |
cláudia maria ribeiro viscardi
7
A trajetória política de Campos envolveria ainda sua participação no regime pós 64, tendo sido
ele responsável pela elaboração dos Atos Institucionais 1 e 2. Para informações mais detalhadas
sobre sua vida ver: Malin, M. (2013).
| 119
a década de 20 e a gênese das ideias autoritárias...
De onde se fala
ameaça que assolava o país em sua visão naquele momento: o comunismo. Pela
sua rejeição ao comunismo e pelo medo do povo organizado e mobilizado no
período, a Igreja assumiria uma postura conservadora, mas próxima ao projeto
nacional-autoritário em curso na Europa do que ao projeto liberal tradicional
dominante. No entanto, é preciso destacar que seus elos com as oligarquias
agrárias permaneciam e sua intervenção político-partidária seria limitada.
Este era também um período de ascensão do movimento operário, impactado
pelo desenvolvimento industrial do Pós I Guerra, o qual havia proporcionado
no Brasil uma maior concentração de operários por fábrica (Suzigan, 1986). Sob
o impacto do vitorioso projeto bolchevique, os anarquistas foram definitiva-
mente afastados das direções sindicais, abrindo espaço para a fundação do PCB.
Aprofundava-se, no entanto, o autoritarismo de esquerda, seguindo as diretrizes
da III Internacional, sobretudo após a morte de Lenin em 1924. O PCB fundaria em
1927 o Bloco Operário Camponês (BOC), que assumiu o discurso antiliberal e anti-
-oligárquico, em prol de um comunismo de viés maoísta. O centralismo partidário
também conferiu um tom menos democrático ao seu discurso, com predominância
do nacionalismo sobre o internacionalismo dos trotskistas, que haviam se tornado
minoritários. O PCB se colocaria ao lado das oligarquias dissidentes, sem participar
da Revolução de 30, após recusa pessoal de Prestes. Mas sua crítica aos limites da
democracia burguesa contribuiu para o desgaste do regime. 8
Uma outra evidência de que caminhava-se rumo a um Estado mais interven-
tor e centralizado esteve na regulamentação das conquistas trabalhistas obtidas
pelas ondas grevistas de 1917 e 1918. O viés intervencionista, para além da dura
repressão aos movimentos dos trabalhadores, do exílio e da prisão dos líderes,
foi a criação de um conselho arbitral de interesses entre capital e trabalho. O
Conselho Nacional do Trabalho, criado em 1923, quebrou um dos pilares do li-
beralismo brasileiro neste campo: o da não intervenção do Estado nos processos
de negociação. Paralelamente houve o esvaziamento de associações autônomas
dos trabalhadores, como as mutuais de ofício. Enquanto na Inglaterra elas foram
incorporadas a um projeto de construção da previdência pública, no Brasil foram
colocadas à margem do processo e esvaziadas pelos montepios e seguradoras,
responsáveis pela viabilização das Caixas de Aposentadorias e Pensões, primeiro
esboço da instituição de uma previdência pública no Brasil (Viscardi, 2010).
Outro conjunto de atores destacados no período foram os tenentes. Estes
ganham uma importância maior para nós em razão da análise que faremos dos
discursos de Francisco Campos acerca do movimento. O conjunto de revoltas
colocou em risco a estabilidade, levando Bernardes a governar em estado de
sítio. Antes, tal medida, embora recorrente, tinha caráter extraordinário e curta
duração. Com Bernardes, o regime de exceção foi a regra. Dentre as revoltas
militares, a Coluna Prestes foi a que teve maior impacto, inclusive em solo eu-
8
Há muitos e relevantes estudos sobre o PCB. Entre vários trabalhos, destacamos: Carone
(1989), Dulles (1977), Karepovs (2006) e Del Roio (2007).
| 121
a década de 20 e a gênese das ideias autoritárias...
9
Acerca do Tenentismo ver, entre outros: Forjaz (1978), Drummond (1986), Prestes (1991),
Castro (1995) e Carvalho (2005).
10
Acerca do Modernismo destacamos: Sevcenko (1992), Travassos (2000), Silva (2009) e Velloso (2010).
122 |
cláudia maria ribeiro viscardi
trário, como veremos, Campos será um árduo defensor da Carta de 1891 – mesmo
admitindo-se a necessidade de alguns ajustes – em defesa das oligarquias liberais
no poder e opondo-se ao “bando de ideias novas” que emergira nos anos de sua
juventude. Mas passemos agora à dimensão locucionária de nosso personagem.
11
Em razão dos limites do texto, não nos é possível discutir historiograficamente as eleições
de 1922. O tema foi recentemente revisitado e maiores informações podem ser obtidas em:
VISCARDI, Cláudia M.R. Teatro das Oligarquias: uma revisão da política do café com leite. Belo
Horizonte, Fino Traço, 2012, cap. 7 e FERREIRA, Marieta de M. e PINTO, Surama Conde de S.
A crise dos anos 1920 e a Revolução de 1930. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucília de A.
N. (orgs.) O Brasil republicano: o tempo do liberalismo excludente, da proclamação da República
à revolução de 1930. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003. O mesmo acerca do próprio
movimento tenentista. Nos limitaremos a fazer uma síntese sumária acerca dos eventos trata-
dos pro Francisco Campos, o que de forma nenhuma esgota tema tão tradicional e tão debatido
pela historiografia brasileira. Acerca do tenentismo, indicamos dois trabalhos mais recentes:
PRESTES, Anita. L. A Coluna Prestes, 2ed, São Paulo: Brasiliense, 1991 e LANNA Jr. Tenentismo
e crise política na Primeira República. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucília de A. N. op. cit.
124 |
cláudia maria ribeiro viscardi
Para ele, não fosse a omissão de Borges, Nilo não teria tido êxito em insuflar
a revolta dos tenentes. O peso todo de seu discurso recairia sobre o senador
fluminense. Portador de uma “retórica de falso propagandista da república”,
Nilo teria atiçado entre os jovens o desejo pela revolução. Expressões como
“covarde” e portador de “desvario mental” conferem um tom agressivo ao
discurso, aplaudido por membros da bancada mineira, que lhe faziam apartes,
complementando sua fala. Poucos deputados gaúchos procuraram intervir,
apoiando Bernardes, mas a palavra era de Campos e dela ele se valia para cons-
truir uma interpretação sobre um evento contemporâneo, tentando construir
uma memória acerca do que havia acontecido muito recentemente.
Ao narrar este evento traumático, Campos, além de construir uma versão
sobre seus algozes, definiu bem quem eram as vítimas do processo: os tenentes
(“holocausto para a flor da mocidade brasileira”), o povo e o próprio Hermes
da Fonseca. Todos manipulados pelos líderes.
A revolta, pela sua dramaticidade, foi qualificada através das seguintes ex-
pressões: subversão, revolução, ameaça à integridade do país, ato inconstitucional,
| 125
a década de 20 e a gênese das ideias autoritárias...
| 127
a década de 20 e a gênese das ideias autoritárias...
128 |
cláudia maria ribeiro viscardi
12
Entre os diversos trabalhos destacamos: Lamounier (1989), Oliveira (1982) e Beired (1999).
| 129
a década de 20 e a gênese das ideias autoritárias...
As falas finais
Ao traçar este breve panorama, nossa intenção era de inserir nosso ator em
seu meio, com o fim de compreender as posições políticas por ele assumidas
diante das mudanças em curso na década de 1920. O discurso dos dissidentes, ou
seja, os que estavam à margem do poder nos anos 20, manifestava-se pela crítica
à República como projeto; pelo desejo de uma uma maior intervenção do Estado
sobre a economia; pelo realce dos problemas do federalismo; pela denúncia do
caráter oligárquico do regime; por uma visão positiva sobre a Monarquia; pelo
nacionalismo que rejeitava o eurocentrismo, o estrangeirismo e a importação
de modelos externos; que valorizava símbolos e demais elementos da cultura
genuinamente brasileira. Formava-se no período um contra-discurso de mudança,
como uma estratégia de emergência ao poder destes mesmos grupos dissidentes.
Embora este discurso possa eventualmente relacionar-se às propostas autoritá-
rias, Campos a ele não aderiu naquele momento, por estar comprometido com
a sustentação política de Bernardes, no âmbito do regime liberal-oligárquico.
Um dos ganhos da análise do discurso como ato de fala é evitar-se o ana-
cronismo. É tentador relacionar o discurso de Campos às ideias autoritárias já
existentes nos anos de sua juventude, por já conhecermos seus compromissos
futuros com a formulação e manutenção do Estado Novo. Mas a análise de
seus discursos no período não autoriza esta interpretação. E a compreensão
de seu papel político no período, não como um intelectual, mas como um
político emergente, justifica seu papel no campo do conservadorismo liberal,
conquanto tenha incorporado parte do discurso crítico difundido por boa parte
dos membros de sua geração.
No momento em que se projeta na política, Campos esteve mais interessado
em pavimentar sua trajetória do que somar-se aos críticos do regime. Afinal,
ele não se encontrava à margem do poder. Havia sido alçado ao Partido na
condição de um dos seus talentos mais promissores. Cabia a ele defender o
governo de Bernardes ante as ameaças representadas pelas oligarquias dissi-
dentes reunidas na Reação Republicana e denunciar a sua instrumentalização
| 131
a década de 20 e a gênese das ideias autoritárias...
Referências
ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. São Paulo: Ática, 1983.
______. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e difusão do nacionalismo. São
Paulo: Cia das Letras, 2008.
AUSTIN, John Langdon. How To Do Things with Words (2. ed.). Cambridge, Massachusetts,
Harvard University Press, 1975.
AZZI, Riolando. A neo-cristandade: um projeto restaurador. São Paulo: Paulus, 1994.
BEIRED, José L. B. Sob o signo na nova ordem: intelectuais autoritários no Brasil e na Argentina.
São Paulo, Loyola, 1999.
BONAVIDES, Paulo. Perfis parlamentares: Francisco Campos. Livraria José Olympio e Câmara
dos Deputados, Rio de Janeiro/Brasília, 1979.
132 |
cláudia maria ribeiro viscardi
| 133
a década de 20 e a gênese das ideias autoritárias...
MALIN, Mauro. Francisco Campos In: Dicionário da Elite Republicana (1889-1930). Disponível
em: http://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/CAMPOS,%20
Francisco.pdf. Acessado em 09/06/2014.
MANN, Michael. The Sources of Social Power: The rise of classes and nation- states. Cambridge:
Cambridge University Press, 1993.
______. A political theory of nationalism and its excesses. Madrid: Instituto Juan March de
Estudios e Investigaciones, 1994.
MARSON, Adaberto. A ideologia nacionalista em Alberto Torres. São Paulo, Duas Cidades, 1979.
MOTTA, Marly da Silva. A nação faz 100 anos: a questão nacional no centenário da inde-
pendência. Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 1992.
OLIVEIRA, Lúcia L. de. et alii. Estado Novo – Ideologia e poder. Rio de Janeiro, Zahar, 1982.
PRESTES, Anita L. A coluna Prestes. 2. ed., São Paulo: Brasiliense, 1991
SANTOS, Marco A. C. Dos. Francisco Campos: um ideólogo para o estado Novo. Locus,
Revista de História. Disponível em: http://locus.ufjf.emnuvens.com.br/locus/article/
view/1235/981. Acessado em 09/06/2014.
SANTOS, Rogério D. dos. Francisco Campos e os fundamentos do Constitucionalismo Anti-
liberal no Brasil. Revista dados. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ar
ttext&pid=S0011-52582007000200003. Acesso em 09/06/2014.
SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos fre-
mentes anos 20. 2. ed., São Paulo: Cia das Letras, 1992.
SILVA, Anderson P. da. Mário e Oswald: uma história privada do modernismo. Rio de Janeiro:
Faperj/7Letras2009.
SILVA, Lígia O. A crise política no quatriênio Bernardes: repercussões políticas do caso
Itabira Iron. In: DE LORENZO, Helena de C. e COSTA, Wilma P.(orgs). A década de vinte e
as origens do Brasil Moderno. São Paulo: UNESP, 1997.
SMITH, Anthony D. National identity. Londres: Penguin, 1991.
______. Nationalism and Modernism. Londres: Routledge, 1998.
______. Myths and Memories of the Nation. Oxford: Oxford University Press, 1999.
______. The Nation in History. Cambridge: Polity Press,2000.
SUZIGAN, Wilson. Indústria brasileira: origem e desenvolvimento. São Paulo: Brasiliense, 1986.
TRAVASSOS, Elizabeth. Modernismo e música brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.
VELLOSO, Mônica P. História e modernismo. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.
VISCARDI, Cláudia. M. R. Minas de Dentro para Fora: A Política Interna Mineira no Contexto
da Primeira República. Revista Locus, Juiz de Fora, v. 5, n. 2, p. 89-99, 1999.
______. Trabalho, previdência e associativismo: as leis sociais na Primeira República. In:
LOBO, Valéria, DELGADO, Ignacio e VISCARDI, Cláudia (orgs.). Trabalho, proteção e direitos:
o Brasil além da era Vargas. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2010.
______. Teatro das oligarquias: uma revisão da política do café com leite, Belo Horizonte:
C/Arte, 2001.
134 |
Padrões e tendências das relações
internacionais do Brasil em perspectiva
histórica: uma síntese tentativa1
Paulo Roberto de Almeida
Centro Universitário de Brasília (Uniceub)
1
As opiniões e argumentos desenvolvidos no presente ensaio são as do próprio autor, e não refletem
posições ou políticas da instituição diplomática ou do governo brasileiro.
| 135
padrões e tendências das relações internacionais...
era Vargas, a República de 1946, o regime militar e, para a fase mais recente, a
chamada “nova República”, também identificada como de redemocratização,
embora já se esteja longe do processo de reconstrução institucional do final
dos anos 1980 e do início da década seguinte.
Esses ensaios de periodização também podem se fixar numa vertente
menos linear politicamente, e mais de tipo econômico, a partir das grandes
características estruturais de cada época: a economia primário-exportadora,
a era (e a diplomacia) do café, a industrialização substitutiva de importações,
o nacional-desenvolvimentismo dos anos 1950, a modernização autoritária
do período militar, ou um alegado (pelos seus adversários ideológicos, mas
totalmente inexistente) “neoliberalismo” dos anos 1990, com eventualmente
mais alguns processos intermediários. Vários desses rótulos, no entanto, são
necessariamente simplificadores e sempre estarão sujeitos às revisões histo-
riográficas que normalmente ocorrem nas ciências humanas e sociais. Pode-se
também argumentar que alguns rótulos são francamente ideológicos, como
parece ocorrer com o presumido “neoliberalismo”, que alguns observadores
– talvez até historiadores – querem associar aos processos de abertura econô-
mica e de liberalização comercial dos anos 1990, uma classificação altamente
improvável no caso de um país que jamais foi liberal, muito menos neoliberal,
e sempre seguiu uma cartilha abertamente intervencionista, mesmo quando
se tratou de corrigir os excessos do estatismo anterior (com governos sempre
recorrendo a decretos e medidas provisórias).
A fase recente, ou seja, as administrações identificadas com o presidente
Lula e o Partido dos Trabalhadores, tem se prestado a algumas das simplifi-
cações e abusos a que se submetem alguns momentos de ruptura, quando sua
interpretação e registro são dominados pelos discursos daqueles mesmos que
querem fazer acreditar que este período de “história imediata” tenha sido de
fato marcado por mudanças cujo caráter eles previamente se encarregaram
de definir segundo um rótulo escolhido a propósito. Demonizar a chamada
“herança maldita”, pespegar o rótulo equivocado de “neoliberal” a qualquer
orientação de política econômica que não lhes parece condizente com seus
objetivos protonacionalistas e reconhecidamente estatizantes, arrogar-se a pre-
tensão de retomada da “política externa independente” de outras eras, tudo isso
faz parte mais da luta política e ideológica do que da análise acadêmica, como
deveria ser o propósito legítimo de qualquer governo sério. Tais explicações,
convenientes do ponto de vista dos que pretendem definir os traços do período,
geralmente em oposição ao que existia no período anterior, e favoravelmente
ao que seus protagonistas querem realçar como alegada excelência do seu
próprio momento – que seria insuperável em suas qualidades e benfeitorias
para o país, como eles gostariam de registrar –, podem ser enfeixadas sob dois
outros rótulos: fraude acadêmica e desonestidade intelectual.
Como tentar, então, falar de padrões e tendências das relações internacionais
do Brasil no longo prazo, da independência à era contemporânea, sem incorrer
136 |
paulo roberto de almeida
| 137
padrões e tendências das relações internacionais...
140 |
paulo roberto de almeida
Na Velha República, assim como o Brasil era café e o café era o Brasil, a
diplomacia era o Barão e o Barão era a diplomacia: desde então, nunca mais
se conseguiu superar o paradigma, embora alguns tenham tentado imitá-lo,
até em longevidade. Mas o Barão tinha uma noção muito precisa do equilíbrio
que era preciso manter entre os interesses europeus e americanos no Brasil, e
sobre como conduzir os negócios sul-americanos do Brasil, com plena afirma-
ção, sem arrogância, mas também na estrita defesa dos interesses nacionais,
sem qualquer concessão a algum vizinho mais afoito ou atrabiliário, de qual-
quer tamanho que fosse. Ela não dava muita relevância para ideologias, mas
dava, sim, muito valor às ideias, se possível claras, diretas, sem afetação e sem
ceder a modismos circunstanciais, e sem precisar lembrar o tempo todo que
estava defendendo a soberania nacional (para ele isso era tão evidente que
sequer precisava ser dito, o que poderia denotar algum sinal de insegurança
psicológica). Sem bravatas, conseguiu manter a Argentina no seu lugar – ou
seja, sem interferir na capacitação estratégica do Brasil – e também entreteve
boas relações com bolivianos, assim como o teria feito com bolivarianos, se
por acaso existissem em sua época.
O Barão não cultivava nenhuma mania de catalogar geograficamente a
política externa, para o Norte, para o Sul, ou para qualquer direção: ele sim-
plesmente cuidava pragmaticamente da política externa, e sempre disse, desde
o primeiro dia, que não tinha entrado no governo para servir a partidos, e sim
ao Brasil. Uma lição razoável para os dias que correm, embora não se possa
esperar que todos os homens públicos sejam razoáveis, ou pautados pelo simples
bom senso, como parecia ser o Barão.
Uma das grandes questões das relações internacionais do Brasil, que o
Barão teve de administrar em sua época – mas a mesma questão permanece
até hoje, cem anos depois, ainda que de forma talvez um pouco diferente – foi
a transição de projeção de poder entre o velho hegemonismo imperial britâ-
nico e a crescente ascendência da nova potência americana, o que ele fez de
modo muito natural, sem qualquer demanda por uma relação especial e sem
afetar qualquer tipo de hostilidade vazia ou descabida. Quando teve de se
opor a posições americanas – o que ocorreu tanto na conferência americana
do Rio de Janeiro, quanto na segunda Conferência da Paz da Haia – ele assim
procedeu sem pedir licença a ninguém, mas também sem vangloriar-se de tal
feito. Não precisou ficar agredindo a potência hemisférica apenas porque ela
não reconhecia o papel do Brasil na região e em outras esferas.
Depois do Barão, o Brasil conheceu pequenos e grandes chanceleres, como
Oswaldo Aranha, por exemplo, que, já na era Vargas, soube avaliar muito bem
onde estavam os interesses brasileiros numa era de enfrentamentos globais, tendo
conseguido preservar tanto a autonomia do Brasil quanto alianças estratégicas
adequadas e convenientes em função dos interesses de longo prazo do Brasil,
numa conjuntura em que muitos apostavam na ascensão das potências fascistas.
| 141
padrões e tendências das relações internacionais...
A menção a Oswaldo Aranha nos leva justamente à era Vargas, que começou
quando os gaúchos amarraram seus cavalos no Obelisco do Rio de Janeiro, para
ali ficar durante algumas décadas, pelo menos até o final do regime militar. A
revolução que levou Vargas ao poder não teria acontecido, precisamente, se
não fosse por Oswaldo Aranha, um líder decidido, decisivo, e de clara visão
quanto aos problemas do Brasil, bem como sobre os melhores caminhos para
resolvê-los. Getúlio Vargas, como se sabe, era basicamente um hesitante, ainda
que com várias qualidades maquiavélicas – no sentido vulgar da expressão
– para preservar-se no poder durante breves quinze anos, como ele mesmo
mencionou. Sem a ação de Aranha talvez jamais tivesse acontecido a revolução
de outubro de 1930. Sem ele, aliás, provavelmente a política externa do Brasil,
no decorrer dos anos 1930, e ao longo da Segunda Guerra, teria sido muito
diferente, e talvez o Brasil tivesse ficado na incômoda posição dos argentinos,
que se mantiveram neutros – na verdade simpáticos aos nazifascistas – até
quase o final da guerra, e só mudaram de posição por pressões americanas e
muitos gestos brasileiros.
Talvez não só a política externa, mas também a própria política econômica
do Brasil e sua posição internacional teriam sido muito diferentes, caso Oswaldo
Aranha tivesse ascendido a posições ainda mais altas na política nacional, o
que ele não fez por amizade e condescendência com Getúlio e em virtude das
várias traições deste último. Ele poderia ter sido presidente em 1934, em 1938,
na redemocratização pós-1945, e também em qualquer um dos pleitos que
foram feitos na República de 1946, até 1960, quando morreu, de certa forma
ainda jovem. O Brasil teria adotado outras políticas econômicas, mais liberais,
menos estatizantes ou protecionistas, mais abertas ao capital estrangeiro e a
uma presença internacional de maior prestígio, graças à inteligência, habilidade
política e conhecimento do mundo e dos grandes líderes que Aranha exibia.
Mas estas são hipóteses que pertencem ao terreno da história virtual, aos
“big ifs” da trajetória da nação. A era Vargas só termina, de fato, em 1964, quando
militares efetivam um golpe para afastar as forças varguistas e populistas que eles
consideravam nefastas ao desenvolvimento do país. Antes disso, durante a República
de 1946, o Brasil manteve uma política externa tradicional, que um crítico chamou
de “bacharelesca”, e que outros apelidavam de “punhos de renda”. De fato, antes
que os militares entrassem com os seus punhos de aço – inclusive projetando
poder brasileiro sobre outros governos do Cone Sul – os bacharéis da diplomacia
brasileira conduziram uma diplomacia bastante previsível em seus grandes tra-
ços de alinhamento ao Ocidente durante a Guerra Fria, com alguns momentos de
aparente modernização, quando se tentou impulsionar ações e iniciativas próprias
do país, sempre voltado para as questões cruciais do desenvolvimento econômico.
O Brasil pretendia, por exemplo – tanto na conferência interamericana de
Bogotá, em 1948, quando se criou a OEA, quanto nas demais conferências eco-
142 |
paulo roberto de almeida
146 |
paulo roberto de almeida
148 |
paulo roberto de almeida
150 |
paulo roberto de almeida
Depois do furacão Collor, o Brasil entrou em outro tipo de furacão, mas sob
a presidência honesta, ainda que confusa, do vice-presidente Itamar Franco,
conhecido pela sua perfeita correção política, mas por alguns rompantes eco-
nômicos, que o fizeram trocar três ou quatro vezes de presidentes do Banco
Central e de ministros da Fazenda. Finalmente, e para sua sorte, um senador
que resolveu esquecer o que tinha escrito nos tempos de desvarios acadêmicos,
em torno da teoria da dependência, deu à presidência Itamar a melhor marca
de reconhecimento nacional a que um governo pode aspirar numa era turbu-
lenta como a que o Brasil viveu, com a inacreditável aceleração inflacionária
do início dos anos 1990.
Com origem nos diversos planos frustrados de estabilização que tinham sido
ensaiados desde o governo militar, e de forma crescente e recorrente na “Nova
República”, o Brasil passou de uma inflação anual de três dígitos para a casa do
152 |
paulo roberto de almeida
154 |
paulo roberto de almeida
e impossível de ser igualada pelas gerações que seguirão nos próximos anos ou
décadas. Não se deve ser muito derrogatório com um governo que, finalmente,
ao preservar todos os elementos essenciais da política econômica anterior – que
os petistas chamam, com bastante má-fé, e de forma algo ignorante, de neoli-
beral –, conseguiu manter o Brasil ao abrigo de um retrocesso econômico que
não deixou de ocorrer em diversos países da região; de fato, em vários deles se
observa, de forma circunstancial ou cumulativa: retorno da inflação, fuga de
capitais, manipulações cambiais, recrudescimento do protecionismo, enfim,
desorganização da vida econômica, embora alguns desses aspectos começam
a ser visíveis também no Brasil, e de maneira bastante preocupante.
Atendo-se exclusivamente aos aspectos diplomáticos do governo do “nunca
antes”, pode-se aliás argumentar que, nem sob esse aspecto, o panorama é total-
mente inédito. Ao presidir a uma diplomacia superpresidencialista, e bastante
personalista, Lula, segundo o grande intelectual da diplomacia que é o embaixador
Rubens Ricupero, conduziu uma política externa de roupagem gaullista, ou seja,
moldada na figura do General De Gaulle. Vários diplomatas, que acompanharam
em momentos diversos os passos da diplomacia lulista, confirmam que o Itamaraty
foi colocado a serviço pessoal do chefe de Estado, de suas muitas viagens e de
sua desenvoltura nos contatos com vários líderes internacionais, inclusive com
personalidades que, por suas características especiais, não frequentam muito
os foros internacionais ou não são convidados amiúde para visitas bilaterais;
algumas das afinidades eletivas do governante e de seu partido foram de fato
inéditas em todos os planos, a começar pela ilha dos irmãos Castro.
A diplomacia do “nunca antes” assistiu, de fato, a eventos nunca antes vistos
na história do Itamaraty, como a aceitação passiva de uma expropriação violenta
e unilateral feita contra um patrimônio nacional por país vizinho; registrou-se,
ainda, o rompimento do velho preceito constitucional da não intervenção em
assuntos internos de outros países, inclusive no que tange ao apoio eleitoral a
candidatos ditos progressistas, bem como, de forma geral, alianças com regimes
e governos que provavelmente não passariam em alguns testes elementares
em relação a princípios democráticos e de respeito aos direitos humanos. A di-
plomacia do “nunca antes” foi, sobretudo, uma diplomacia partidária, o que foi
formalmente confirmado pelo próprio presidente em discurso feito num dia
do diplomata, no Itamaraty, ao se referir ao seu assessor internacional como
o companheiro dedicado a manter as relações com os partidos de esquerda da
América Latina. Impossível não concordar com o argumento, quando fatos
como esse são confirmados nesse nível de responsabilidade governamental.
O Brasil de fato aumentou sua presença no mundo, abriu embaixadas em
lugares nunca dantes explorados e contraiu várias “parcerias estratégicas”,
em nível bilateral, plurilateral ou de grupo, que duplicaram a capacidade de
expressão do país nos mais diferentes cenáculos internacionais. O ativismo
dessa diplomacia foi realmente exemplar, embora em alguns episódios possa ter
ocorrido mais transpiração do que propriamente inspiração, como evidenciado
| 155
padrões e tendências das relações internacionais...
nos casos das relações com a China, nas frustradas tentativas de fazer a paz
no Oriente Médio, de se envolver numa solução ao programa nuclear iraniano
(em grande medida clandestino), ou na própria pretensão – ilusória, para os
diplomatas experientes – de exercer uma liderança na região, como base para
um salto de qualidade no plano mundial.
Alguns erros de cálculo foram cometidos, inclusive no trato com alguns
países vizinhos, assim como foram mantidas expectativas irrealistas quanto à
realização de diversos objetivos retoricamente proclamados. Em certos temas
da agenda externa, observou-se um descompasso completo entre um diagnós-
tico realista das opções abertas ao Brasil e intenções idealistas constantemente
exibidas, seja quanto à “transformação das relações de força no mundo”, seja
quanto a uma fantasmagórica “nova geografia do comércio internacional”.
A China, por exemplo, já tem a sua geografia comercial bem assentada: ela
importa matérias-primas de todos os fornecedores possíveis, e exporta seus
manufaturados – grande parte produtos de design e tecnologia ocidentais – para
todos os mercados abertos ao engenho e arte de seus diplomatas e mercadores
absolutamente pragmáticos quanto aos resultados esperados, sem qualquer
concessão a veleidades ideológicas ou uma patética aliança de não hegemônicos
contra os poderosos do mundo. A maior parte dos países, aliás, segue os mesmos
preceitos: eles procuram antes trabalhar na perspectiva de ganhos concretos
do que simplesmente projetar transformações imaginárias do cenário mundial.
São muitos, de fato, os aspectos inéditos da diplomacia partidária na era do
“nunca antes” e seria especioso discorrer sobre acertos e desacertos da política
externa de Lula e dos seus companheiros de partido. A historiografia futura,
provavelmente mais sensata que certos vieses acadêmicos atualmente em curso,
se encarregará de filtrar, e de avaliar, na sua justa medida, os aspectos positivos
e os menos positivos dessa diplomacia que foi de verdade especial, sem que se
possa dizer se o Brasil real, o do seu sistema produtivo e o da sua capacidade
de competição internacional, tenha usufruído da pirotecnia praticada durante
a década “lulopetista” na política externa. O Brasil perde espaço nos mercados
internacionais – e o grande debate no momento é o da desindustrialização – e
a integração regional não avançou de fato nos aspectos que deveriam contar: a
abertura recíproca de mercados, a inserção das economias dos países-membros nas
redes produtivas mundiais (de fato, ocorreu o contrário), e até o livre-comércio,
que deveria vigorar internamente ao bloco, tem retrocedido a olhos vistos.
Dos três grandes objetivos da diplomacia lulista – a obtenção de uma ca-
deira permanente para o Brasil no Conselho de Segurança da ONU, o reforço
e a expansão do Mercosul e a conclusão exitosa das negociações comerciais
multilaterais da Rodada Doha –, não se pode dizer que algum deles tenha sido
conquistado, sequer arranhado. O Mercosul, a despeito de preservado, perde
espaço na interface externa do Brasil e abandonou quase completamente suas
156 |
paulo roberto de almeida
| 157
padrões e tendências das relações internacionais...
158 |
paulo roberto de almeida
Fazenda, tentando colocar mais uma vez em ordem o câmbio e as contas nacionais,
esgarçadas por crises externas e comportamentos populistas e irresponsáveis
dos decisores políticos; finalmente, mas talvez já fosse tarde, em 1955, quando
várias opções e alianças partidárias ainda lhe estavam abertas.
Depois de Rio Branco, bastante mitificado e incontestável no seu domínio
dos temas e dos métodos diplomáticos, Oswaldo Aranha foi, possivelmente, o
maior e melhor chanceler que a diplomacia brasileira conheceu no século 20,
numa conjuntura de extremos desafios e de opções contrastadas para o futuro
da nação: ele soube manter o rumo das alianças corretas e das escolhas certas,
o que assegurou ao país bastante prestígio durante certa época. No período
seguinte, o Brasil se perdeu na ditadura – pelo menos no plano moral, ainda que
os progressos materiais tenham sido reais – tanto quanto na voragem inflacio-
nária que destruiu várias possibilidades de crescimento sustentado, construindo
um Brasil desigual, sempre penalizado pela baixa educação geral do seu povo.
Oswaldo Aranha, provavelmente, teria optado por outras variantes de políticas
econômicas e de alinhamentos internacionais, possivelmente mais condizen-
tes com as possibilidades do país e com as necessidades de sua modernização
produtiva e social. Sua não ascensão ao cargo de maior responsabilidade no
comando da nação representou uma das muitas oportunidades perdidas pelo
Brasil, um país que nunca perdeu uma oportunidade de perder oportunidades,
como não se cansava de lembrar o diplomata e economista Roberto Campos
(uma espécie de Raymond Aron nacional, um pensador que teve razão antes do
tempo, mas que não conseguiu, tampouco, reformar a França, como também
ocorreu com Oswaldo Aranha no caso do Brasil).
Alguns líderes, verdadeiros estadistas, conseguem elevar seus países ao
ponto máximo de suas possibilidades transformadoras, mas tais iniciativas pa-
recem pertencer ao terreno dos fatores contingentes na História. O que ocorre
mais frequentemente, na vida das sociedades, é que elites esclarecidas logrem
conduzi-las pelo caminho correto, o das políticas econômicas adequadas, o da
educação de qualidade, o das escolhas mais vantajosas no plano internacional.
O Brasil, infelizmente, não tem sido premiado com lideranças particularmente
brilhantes, e pode-se mesmo indagar se, na presente conjuntura da política
nacional, o país não está de fato retrocedendo, bem mais no plano mental do
que propriamente material. As possibilidades não se fecharam, mas elas são
estreitas, para um país que praticamente não tem educação de qualidade, os-
tenta baixíssima produtividade e capacidade de inovação e que tem exibido um
quadro de corrupção institucional e de degradação moral nunca antes visto na
história nacional. O cenário pode parecer muito pessimista, mas é a constatação
que emerge a partir de uma visão realista sobre os atuais padrões políticos e
as tendências econômicas associadas.
Ao mencionar padrões e tendências, se volta ao tema central do presente
ensaio, sobre os padrões e tendências das relações internacionais do Brasil
em perspectiva histórica. Poder-se-ia pensar que uma postura mais ativista,
| 159
padrões e tendências das relações internacionais...
por parte da diplomacia brasileira, seria uma via possível de vencer alguns
dos desafios que se apresentam ao Brasil atual, um pouco na linha do que foi
empreendido na fase recente da vida política, como forma de avançar deci-
sivamente na solução dos problemas mais cruciais do país. Mas, de fato, não
existem respostas reais a esses problemas do lado da diplomacia, sequer pela
ação de uma política externa mais ativista do que a tradicionalmente conduzida
pelo Itamaraty. Durante toda a história do Brasil, a diplomacia teve uma função
puramente subsidiária nos grandes desafios que a nação enfrentou, em cada
etapa, e provavelmente não foi ela que contribuiu para encontrar as soluções
mais criativas aos problemas detectados.
O Brasil, assim como metade da humanidade, iniciou seu itinerário histórico
como colônia. Tal condição de submissão, a um ou outro dos centros dominan-
tes da economia mundial, em alguma etapa preliminar, não constitui nenhuma
fatalidade quanto ao futuro itinerário do país, assim como não constituiu uma
tragédia definitiva, impeditiva do desenvolvimento de países como Estados
Unidos, Canadá, Austrália ou até mesmo vários países europeus, que também
foram colônias ou nações dominadas por vizinhos mais poderosos. Tal passado
não os impediu de se desenvolverem e de se tornarem grandes benfeitores da
humanidade, como de fato são, pela via da ciência e tecnologia, pelos progressos
da medicina, pela paz e segurança e pela manutenção dos direitos humanos e
das liberdades democráticas, que estão de fato concentrados nos capitalismos
competitivos das modernas democracias de mercado.
Se o Brasil não se libertou do tráfico de escravos no momento recomendado
por José Bonifácio, durante a independência e a constituinte, foi por escolha
de suas elites, não por imposição de portugueses ou de britânicos, aliás bem
ao contrário, no que concerne estes últimos. Se ele não começou a construir
uma economia aberta aos investimentos externos e à iniciativa privada, como
recomendava Irineu Evangelista de Souza, depois barão de Mauá, foi por deci-
sões de suas elites, as do Estado e as da economia escravocrata, que teimavam
em preservar as mesmas estruturas anacrônicas. Se ele não se libertou da es-
cravidão, como pressionavam os britânicos e como pedia o idealista Nabuco,
foi inteiramente por decisão de suas elites, nos estertores do Império. Se, na
República nascente, ele não fez uma reforma agrária e não implantou a educa-
ção universal, como também queriam Nabuco, o barão do Rio Branco, e tantos
reformistas educacionais, como Lobato, Azevedo, Teixeira e vários outros,
estas também foram escolhas inteiramente nacionais, não determinadas por
nenhuma imposição ou relação de dependência externa. Nunca houve uma
demanda externa pelo atraso nacional.
A diplomacia, de vez em quando, oferecia algumas sugestões, colhidas ao
acaso entre as elites ilustradas dos países mais avançados, mas não se pode dizer
que ela, até meados do século 20 quase totalmente expatriada, tenha influenciado
decisivamente as grandes escolhas feitas pela nação. A modernização acabou
chegando, inclusive por força das contingências externas, devido às crises e o
160 |
paulo roberto de almeida
Não se deve, contudo, terminar um ensaio deste tipo por uma nota de
angústia existencial ao estilo de Kierkegaard. Mas tampouco convém ser inge-
nuamente otimista em face da retórica grandiloquente de certos falsos profetas
da atualidade. O que cabe fazer é tentar manter a racionalidade instrumental
quanto aos meios e fins do objetivo nacional do desenvolvimento econômico e
social do país e quanto ao amplo espectro de reflexões registradas nas últimas
décadas a esse respeito, inclusive no que se refere a algumas poucas contribui-
ções no campo da diplomacia.
| 161
padrões e tendências das relações internacionais...
Já foi dito, por exemplo, que a salvação do Brasil não virá pela diplomacia,
nem pelo lado externo. Os principais desafios do Brasil estão mesmo dentro
do país, e os instrumentos para superá-los dependem inteiramente de suas
elites, do leque de políticas públicas escolhidas, das opções adotadas por uma
sociedade consciente quanto aos desafios, ou orientada nesse sentido por elites
esclarecidas. Muitos procuram bodes expiatórios para o baixo crescimento do
país na situação externa, num fantasmagórico tsunami financeiro de países
ricos, na concorrência desleal de países que não protegem sua mão de obra
ou o meio ambiente. Estas são escapatórias à realidade, e não será na proteção
mercantilista do mercado interno que o Brasil vai encontrar a solução dos seus
problemas de falta de competitividade e de ameaça concreta de desindustria-
lização. Ao contrário, o ambiente internacional, a inclusão na globalização,
oferecem oportunidades inigualáveis para o crescimento e o desenvolvimento
de qualquer país, como a própria China demonstra a cada dia.
Enquanto não for conduzido um diagnóstico correto da presente situação, e
uma autocrítica sincera, da qual, aliás, todos os marxistas deveriam gostar – so-
bretudo os leninistas, como ainda existem alguns –, enquanto não se reconhecer
todas as políticas equivocadas que têm sido implementadas nos últimos anos,
no plano interno e no plano externo, não será possível superar os desafios do
presente. O mundo é complicado, talvez, mas a cabeça de certas pessoas parece
ser muito mais. O mundo, por sinal, oferece exemplos fabulosos de progresso
e melhorias de bem-estar com algumas receitas muito simples. Algumas das
mais comprovadas por sua eficácia podem ser assim resumidas: estabilidade
macroeconômica; abertura e competição no nível microeconômico; níveis ex-
celentes de governança e de gestão próxima à de mercados competitivos para
a maior parte dos bens e serviços; alta qualidade dos recursos humanos; e, por
fim, mas não menos importante, abertura ao comércio e aos investimentos
internacionais. Tudo isso requer, obviamente, elites esclarecidas, uma merca-
doria talvez rara nos tempos atuais.
Referências
ABREU, Marcelo Paiva. O Brasil e a economia mundial, 1930-1945. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1999.
______. (org.). A ordem do progresso: cem anos de política econômica republicana, 1889-1989.
Rio de Janeiro: Campus/Elsevier, 1990.
ALBUQUERQUE, J. A. Guilhon (org.). Sessenta anos de política externa brasileira (1930-1990).
São Paulo: Cultura Editores Associados e Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais
da USP, 1996, v. I e II.
______. Sessenta anos de política externa brasileira (1930-1990). São Paulo: Annablume e
Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da USP, 2000, v. III e IV.
162 |
paulo roberto de almeida
ALMEIDA, Paulo Roberto de. Nunca Antes na Diplomacia...: A política externa brasileira em
tempos não convencionais. Curitiba: Editora Appris, 2014.
______. Relações internacionais e política externa do Brasil: a diplomacia brasileira no contexto
da globalização. Rio de Janeiro: LTC, 2012.
______. O Estudo das Relações Internacionais do Brasil: um diálogo entre a diplomacia e a
academia. Brasília: LGE Editora, 2006.
______. Formação da diplomacia econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais
no Império. 2ª ed. São Paulo: Editora Senac, 2005.
ARAÚJO, João Hermes Pereira de. (org.). Três ensaios sobre diplomacia brasileira. Brasília:
Ministério das Relações Exteriores, 1989.
BARRETO FILHO, Fernando P. de Mello. A Política Externa Após a Redemocratização; tomo
1: 1985-2002; tomo 2: Brasília: Funag, 2012.
______. Os sucessores do Barão, 2: relações exteriores do Brasil, 1964-1985. São Paulo: Paz
e Terra, 2006.
______. Os sucessores do Barão: relações exteriores do Brasil, 1912-1964. São Paulo: Paz e
Terra, 2001.
BAUMANN, Renato (org.). O Brasil e a economia global. Rio de Janeiro: Campus-Elsevier, 1996.
BUENO, Clodoaldo. Política externa da Primeira República: os anos de apogeu, de 1902 a
1918. São Paulo: Paz e Terra, 2003.
______. A República e sua política exterior (1889 a 1902). São Paulo: Universidade Estadual
Paulista; Brasília: Funag, 1995.
CARVALHO, Carlos Delgado de. História diplomática do Brasil. Organização e introdução:
Paulo Roberto de Almeida. Edição fac-similar: Brasília: Senado Federal, 1998; reedição: 2003.
CERVO, Amado Luiz. O parlamento brasileiro e as relações exteriores, 1826-1889. Brasília:
Editora da UnB, 1981.
CERVO, Amado Luiz; BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. 4a ed. rev.
Brasília: Editora da UnB, 2011 [1ª ed.: 1992].
DANESE, Sérgio França. Diplomacia presidencial. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999.
HILTON, Stanley E. O Brasil e as grandes potências: os aspectos políticos da rivalidade co-
mercial, 1930-1939. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
MAGNOLI, Demétrio. O corpo da Pátria: imaginação geográfica e política externa no Brasil
(1808-1912). São Paulo: Unesp e Moderna, 1997.
MOURA, Gerson. Autonomia na dependência: a política externa brasileira de 1935 a 1942.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
______. Sucessos e ilusões: relações internacionais do Brasil durante e após a Segunda Guerra
Mundial. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1991.
OLIVEIRA, Henrique Altemani de; LESSA, Antônio Carlos (orgs.). Relações internacionais
do Brasil: temas e agendas. São Paulo: Saraiva, 2006, 2 v.
| 163
padrões e tendências das relações internacionais...
164 |
A Questão do Acre nas Caricaturas dos
Jornais Cariocas (1903-1904)
Luís Cláudio Villafañe G. Santos
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
1
Registre-se, por exemplo, a quase completa ausência de recortes sobre a Conferência da Haia,
na qual o brilho maior junto à imprensa e à opinião pública ficou reservado a Ruy Barbosa.
| 165
a questão do acre nas caricaturas...
Figura 1: “Mapa da Linha Verde” – Duarte da Ponte Ribeiro e Isaltino José Mendonça
de Carvalho (1860).
Fonte: Mapoteca do Itamaraty.
2
Rio Branco arguiu desconhecer o “Mapa da Linha Verde” durante as negociações com os
plenipotenciários bolivianos, ainda que depois, com o Tratado de Petrópolis já assinado, em
meio às discussões no Congresso para sua ratificação, esse documento tenha “reaparecido” e sido
entregue por Rio Branco ao presidente da comissão parlamentar que analisava o Tratado, como
evidência de que, caso o tema houvesse sido encaminhado para arbitragem, como propunham
alguns, entre os quais Ruy Barbosa, a derrota seria certa.
| 167
a questão do acre nas caricaturas...
168 |
luís cláudio villafañe g. santos
| 169
a Questão do acre nas caricaturas...
Figura 4: A Bolívia, representada por uma figura feminina, tem atrás de si uma repre-
sentação do “Tio Sam”, em alusão ao Bolivian Syndicate, em desafio às tropas brasileiras
que vão em direção à fronteira. O texto da charge não deixa margem a dúvidas: “Os
arreganhos da Bolívia denotam que ela tem as costas quentes”.
Fonte: O Malho, 24 de janeiro de 1903.
170 |
luís cláudio villafañe g. santos
Figura 5: O general Pando representado como uma marionete nas mãos da Argentina
e dos Estados Unidos, as “forças ocultas” que estariam por trás da reação boliviana.
Fonte: Tagarela, 29 de janeiro de 1903.
| 171
a questão do acre nas caricaturas...
Figura 6: Rio Branco é retratado em trajes militares, com a patente de cabo, pronto
para o combate. Sua conhecida vaidade é ironizada no título da charge “O cabo Pavão”
e o texto decreta que ele deveria ser “o primeiro que devia seguir para o Acre em
defesa da Pátria”.
Fonte: Jornal não identificado, fevereiro de 1903.
172 |
luís cláudio villafañe g. santos
Figura 7: Tio Sam (Estados Unidos) e John Bull (Inglaterra) dividindo a indenização
paga pelo Brasil para que o Bolivian Syndicate rescindisse seu contrato com a Bolívia
para a administração do Acre.
Fonte: O Malho, 7 de março de 1903.
Figura 8: O cartunista Crispim do Amaral deixa clara sua impaciência com as ne-
gociações sobre o Acre: “- E dizem que vai acabar a questão do Acre... qual! Nós até
apresentamos a cara do sr. barão do Rio Branco, daqui a 20 anos, a parafusar sobre
os meios de resolver essa questão.”
Fonte: A Avenida, 28 de setembro de 1903.
3
A discussão entre Ruy Barbosa e o filólogo baiano Carneiro Ribeiro acerca do projeto de
Código Civil preparado por Clóvis Beviláqua foi muito acertadamente qualificada de a “mais
espantosa polêmica gramatical e filológica da história brasileira, altamente reveladora do bizan-
tinismo mental da República dos Bacharéis”. ALEXEI, Bueno; ERMAKOFF, George (org.). Duelos
no Serpentário: uma antologia da polêmica intelectual no Brasil 1850-1950. Rio de Janeiro: G.
Ermakoff Casa Editorial, 2005, p. 497.
174 |
luís cláudio villafañe g. santos
Rio Branco acabou por divergir de Ruy, que preferia levar a questão a um
processo de arbitragem e não se convenceu da conveniência da fórmula finalmen-
te aceita de troca de territórios: o Brasil ficaria com cerca de 191 mil km 2 antes
bolivianos, incluindo-se 48 mil ao sul do paralelo de 10° 20´ e cederia 2.200 km 2
no triângulo entre os rios Madeira de Abunã, no Amazonas, e 860 km 2 em Mato
Grosso. A Bolívia receberia, ainda, uma indenização de dois milhões de libras
esterlinas e ao Brasil caberia construir uma estrada de ferro entre os rios Madeira
e Mamoré, facilitar o trânsito boliviano por essa via e pelos rios amazônicos até
o oceano e outorgar as correspondentes facilidades alfandegárias. A renúncia de
Ruy Barbosa, em 17 de outubro, fez a delícia dos caricaturistas e abriu um intenso
debate sobre as concessões que o Brasil estaria fazendo, julgadas excessivas para
alguns, em especial a contrapartida (ainda que altamente vantajosa) de territórios
| 175
a questão do acre nas caricaturas...
Figura 10: Um altivo Ruy Barbosa apresentando sua renúncia ao presidente e aos
ministros.
Fonte: O Malho, 24 de outubro de 1903.
176 |
luís cláudio villafañe g. santos
Desaba a tempestade
| 177
a questão do acre nas caricaturas...
Figura 11: “A Desilusão” e a legenda explica: “Os castelos que erguia o pensamento...”.
Fonte: A Larva, 25 de outubro de 1903.
178 |
luís cláudio villafañe g. santos
| 179
a questão do acre nas caricaturas...
Figura 13: “Resultado Final” decreta: “Descalçou o par de botas mas nos custou
muito caro”.
Fonte: Correio da Manhã, 21 de novembro de 1903.
180 |
luís cláudio villafañe g. santos
Figura 14: “- Cuidado, barão! Com esta bomba nem S. Pedro com seus tiros o salvará”.
Fonte: O Malho, 26 de dezembro de 1903.
| 181
a Questão do acre nas caricaturas...
Amende Honorable
182 |
luís cláudio villafañe g. santos
184 |
luís cláudio villafañe g. santos
Figura 19: Agora: “Mesmo por ser contra, sempre fui a favor do Rio Branco”.
Fonte: A Avenida, 23 de janeiro de 1904.
| 185
a questão do acre nas caricaturas...
Figura 20: Um exultante Rio Branco, nos ombros do povo, agradece o reconhecimento
de seu trabalho: “- Obrigado, meu povo, obrigado...”
Fonte: Jornal do Brasil, 22 de fevereiro de 1904.
186 |
luís cláudio villafañe g. santos
dos jornais e revistas cariocas nos anos de 1903 e 1904, pode-se ter uma visão
clara da evolução e reviravoltas do clima político em que as negociações com a
Bolívia transcorreram (e também com o Peru, mas estas com um desenlace pos-
terior). Como o episódio demonstra, as negociações diplomáticas não se resumem
ao plano externo, e os humores do Congresso, da opinião pública e da imprensa
constituíram-se em uma variável incontornável, mas com a qual também soube
Rio Branco lidar. A partir de 1904, a situação de Rio Branco na política interna
consolidou-se como também suas relações com a imprensa no manejo de sua
imagem pessoal e da política externa por ele dirigida.
Por outro lado, as preocupações e os problemas, naturalmente, não se
extinguiram. No que tange à questão das fronteiras do Acre e do Amazonas,
seguiu pendente ainda por alguns anos a negociação com o Peru, cujos direitos
tinham sido ressalvados no encaminhamento bilateral entre Brasil e Bolívia.
Os cartunistas tampouco deixariam de se aproveitar dessa circunstância, como
mostra a charge de K. Lixto, agora já menos claramente crítico ao barão. Esse
novo debate, no entanto, já escapa ao foco deste artigo.
Figura 21: O Pesadelo do Barão: “- Safa! É Peru por todos os lados, agora!”
Fonte: A Avenida, 23 de abril de 1904.
| 187
a questão do acre nas caricaturas...
Referências
ALEXEI, Bueno e ERMAKOFF, George (org.). Duelos no Serpentário: uma antologia da po-
lêmica intelectual no Brasil 1850-1950. Rio de Janeiro: G. Ermakoff Casa Editorial, 2005.
PORTO, Ângela. Barão do Rio Branco e a caricatura: coleção e memória. Rio de Janeiro:
FUNAG, 2012.
RICUPERO, Rubens. “Acre: o momento decisivo de Rio Branco”. In: GOMES PEREIRA,
Manoel. Barão do Rio Branco: 100 Anos de Memória. Brasília: FUNAG, 2012, pp. 119-161.
SANTOS, Luís Cláudio Villafañe G. “O Barão do Rio Branco e a Imprensa”. In: Revista
Brasileira. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, jul.-ago.-set., 2012, Ano I, Fase VIII,
nº 72, págs. 135-168. Disponível em: http://www.academia.org.br/abl/media/Revista%20
Brasileira%2072%20-%20PROSA.pdf
188 |
Sobre os autores
Fabio Wasserman
Doutor em História pela Facultad de Filosofía y Letras de la UBA, onde é docen-
te. Investigador do Conicet, sua área de interesse é a história política e cultura
argentina e ibero-americana dos séculos XVIII e XIX. Atualmente desenvolve
investigações na imprensa e vida pública de Buenos Aires na década de 1850.
Autor, entre outras obras, de Entre Clio y la Polis. Conocimiento histórico y re-
presentaciones del pasado en el Río de la Plata (1830-1860) e Juan José Castelli.
De súbdito de la corona a líder revolucionário.
| 189
sobre os autores
190 |
sobre os autores
| 191
tipografia Gandhi Serif
ano 2015