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Dimensões

do Poder
História, Política
e Relações Internacionais
Conselho Editorial da Série História Chanceler
(Editor) Leandro Pereira Gonçalves, Dom Jaime Spengler
Pontifícia Universidade Católica
Reitor
do Rio Grande do Sul, Brasil
Joaquim Clotet
António Costa Pinto,
Instituto de Ciências Sociais da Vice-Reitor
Universidade de Lisboa, Portugal Evilázio Teixeira

Jorge Ferreira, Conselho Editorial


Universidade Federal Fluminense, Brasil
Jorge Luis Nicolas Audy | Presidente
Maria Helena Capelato, Gilberto Keller de Andrade | Diretor da EDIPUCRS
Universidade de São Paulo, Brasil Jorge Campos da Costa | Editor-Chefe
Agemir Bavaresco
Maria Izilda Santos de Matos,
Pontifícia Universidade Augusto Buchweitz
Católica de São Paulo, Brasil Carlos Gerbase
Carlos Graeff-Teixeira
Jens Hentschke,
Clarice Beatriz da Costa Söhngen
Newcastle University,
Reino Unido
Cláudio Luís C. Frankenberg
Érico João Hammes
René E. Gertz, Gleny Terezinha Guimarães
Pontifícia Universidade
Lauro Kopper Filho
Católica do Rio Grande do Sul, Brasil
Luiz Eduardo Ourique
Rui Cunha Martins, Luis Humberto de Mello Villwock
Instituto de História e Teoria das Ideias/ Valéria Pinheiro Raymundo
Universidade de Coimbra, Portugal
Vera Wannmacher Pereira
Wilson Marchionatti
Série

História
66

Dimensões
do Poder
História, Política
e Relações Internacionais

Marçal de Menezes Paredes, Leandro Pereira Gonçalves


Luciano Aronne de Abreu e Helder Gordim da Silveira
Organizadores

Porto Alegre, 2015


© EDIPUCRS 2015
DESIGN GRÁFICO [CAPA e DIAGRAMAÇÃO]  Dani.Editorial

REVISÃO DE TEXTO  Clea Motti

TRADUÇÃO ESPANHOL/PORTUGUÊS DO CAPÍTULO De frente para o futuro  Clea Motti

Edição revisada segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Publicação apoiada pela Capes.


Esta obra não pode ser comercializada e seu acesso é gratuito.

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

D582  Dimensões do poder : história, política e relações


internacionais [recurso eletrônico] / Org. Marçal de
Menezes Paredes et al. – Porto Alegre : EDIPUCRS, 2015.
191 p. – (Série História ; 66).

Modo de Acesso: <http://www.pucrs.br/edipucrs>


ISBN 978-85-397-0715-7

1. Brasil – História Pólítica. 2. Brasil – Relações Exteriores -


História. I. Paredes, Marçal de Menezes Paredes. I. Título.

CDD 981

Ficha catalográfica elaborada pelo Setor de Tratamento da Informação da BC-PUCRS.

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multa, conjuntamente com busca e apreensão e indenizações diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de
19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).
Sumário

prefácio................................................................................................................................ 7

apresentação.................................................................................................................... 9

A fronteira no centro................................................................................................... 13
Rui Cunha Martins

De frente para o futuro. O Conceito de nação nos processos


de independência hispano-americana...................................................................... 29
Fabio Wasserman

Nas origens do nacionalismo político da I República Portuguesa: o projeto


da “nacionalização do Estado” e o debate jurídico e político em torno da
conceção da soberania e do modelo de representação política........................... 63
Paula Borges Santos

Nacionalismos e política externa portuguesa no pós-25 de Abril....................... 81


José Pedro Zúquete

Nacionalismos e Impérios: o caso da Itália fascista............................................... 97


João Fábio Bertonha

A década de 20 e a gênese das ideias autoritárias no Brasil:


o jovem Francisco Campos....................................................................................... 115
Cláudia Maria Ribeiro Viscardi

Padrões e tendências das relações internacionais do Brasil


em perspectiva histórica: uma síntese tentativa.................................................. 135
Paulo Roberto de Almeida

A Questão do Acre nas Caricaturas dos Jornais Cariocas (1903-1904)........... 165


Luís Cláudio Villafañe G. Santos

sobre os autores......................................................................................................... 189


Prefácio

Este livro, como muitos outros, originou-se da organização de dois seminários


de pesquisa realizados na PUC de Porto Alegre, que tiveram como eixo comum os
estudos ibero-americanos. Um tipo de atividade bastante frequente nos programas
de pós-graduação brasileiros e também bastante frutífero, já que, aliando ensino e
pesquisa, permite o contato entre graduandos, pós-graduandos, professores estran-
geiros e professores nacionais de várias partes do país. Portanto, é uma estratégia
que deve permanecer sendo experimentada por muito tempo e com muito proveito.
Um dos resultados esperados de tais seminários costuma ser a produção de um
livro que reúna um conjunto de trabalhos neles apresentados e debatidos. Nesse
aspecto, este livro é como vários outros resultantes dessa rica dinâmica. Contudo,
ele se diferencia de quase todos eles, ao se propor não tanto a reunir textos, mas a
reorganizá-los segundo uma nova perspectiva, ela mesma produto das discussões dos
seminários. Esse fato explica, a meu ver, sua estrutura bem-acabada e suas diversas
contribuições, assentadas, basicamente, em um forte convite a novas reflexões.
O tema do nacionalismo é a grande marca de todos os capítulos, que se dedicam
à política e às relações internacionais na história de três países: Brasil, Portugal e, em
menor escala, a Itália. Essa questão clássica aparece, em boa parte desses capítulos,
associada a outra, não menos instigante: a da experiência autoritária, absolutamente
incontornável nesses três casos de Estados nacionais. Assim, o leitor poderá conhecer
dimensões do nacionalismo português e do brasileiro, em diferentes temporalida-
des, além de se beneficiar de um capítulo que analisa o fascismo italiano pela via
de sua política de expansão colonial. Em todos os trabalhos é possível encontrar
um esforço de reflexão teórica, que se explicita nos dois capítulos iniciais do livro,
dedicados, respectivamente, às categorias de nação e nacionalismo e ao conceito
de fronteira, cujo(s) significado(s) é/são retomado(s) para realizar a conexão entre
a política e as relações internacionais. Dessa forma, acredito que o livro renova,
para o leitor, o tratamento de temas que são muito visitados, justamente por serem
sempre desafiadores, sobretudo, nos estudos ibero-americanos.

Angela de Castro Gomes


Professora Titular da Universidade Federal Fluminense e
Professora Visitante da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

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Apresentação

Ao longo dos últimos anos, as diferentes linhas de pesquisa do Programa


de Pós-Graduação em História (PPGH) da PUCRS têm promovido uma série
de eventos, de variadas dimensões e temáticas, com o objetivo de refletir sobre
suas próprias práticas de pesquisa histórica e as novas tendências nacionais
e internacionais da historiografia contemporânea, tanto em termos teórico-
-metodológicos quanto empíricos. A esse respeito, pode-se dizer que esses
eventos têm se constituído cada vez mais em importantes espaços de diálogo
não apenas entre os próprios professores, pesquisadores e alunos do PPGH
da PUCRS, mas também com seus pares de outras reconhecidas instituições
nacionais e internacionais de pesquisa histórica, com as quais têm procurado
estreitar ainda mais suas relações de parceria no campo da História.
Nesse sentido, deve-se destacar que os estudos aqui reunidos e publicados
em livro são o resultado de amplas discussões ocorridas no “IX Congresso
Internacional de Estudos Ibero-Americanos” e no “Seminário Nacionalismo
e Política: Brasil e Portugal”, eventos organizados pelas linhas de pesquisa
“Sociedade, Política e Relações Internacionais” e “Sociedade Urbanização e
Imigração” do PPGH da PUCRS. Em que pese a grande variedade e qualidade dos
trabalhos então apresentados nesses eventos, que contaram com a participação
de professores e alunos de instituições como Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Universidade Federal Fluminense, Universidade Federal de Juiz de Fora,
Universidade Estadual de Maringá, Universidade de Coimbra, Universidade
de Lisboa, Universidade Nova de Lisboa e outras, os professores atualmente
vinculados à linha de pesquisa “Sociedade, Política e Relações Internacionais”
do PPGH da PUCRS optaram por reunir na presente obra apenas os estudos
com temáticas mais afins às questões do nacionalismo e autoritarismo, como
se verá a seguir.
Rui Cunha Martins e Fabio Wasserman abordam o tema numa perspectiva
mais teórico-conceitual, o primeiro sobre a fronteira, o segundo sobre a nação.
O próprio título do texto sugere a riqueza da perspectiva teórica de Rui Cunha
Martins – A fronteira no centro. Trata-se de recuperar no debate em torno da
fronteira – tratada como dispositivo conceitual moderno – suas diversas fun-
cionalidades, muito além do seu uso mais corriqueiro, como margem contrária

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apresentação

ao centro. A análise do autor aponta, entre outras questões, para o próprio


mecanismo de ativação do limite a partir de um centro de referência que, ao
fazê-lo, designa a si próprio como poder. Em De frente para o futuro: o conceito
de nação nos processos de independência hispano-americana, Fabio Wasserman
critica o essencialismo e a teleologia presentes na forma como são costumei-
ramente tratados os temas das nações e dos nacionalismos. Para além destes
ecos do romantismo, o autor nos apresenta uma pluralidade de significados
existentes sobre a palavra nação no contexto das Independências da América
Hispânica entre 1780-1830. Trata-se de um texto que, à luz de algumas dire-
trizes da História Conceitual de Reinhart Koselleck, desnuda a historicidade
dos significados políticos e sociais e aponta para a necessidade de o historia-
dor ter atenção às mudanças de sentido e significado, precavendo-se contra
a naturalização dos significados na história. Como se vê, ambos os textos são
desafiadores e complexos, vocacionados, cada um a seu modo, para a instrução
de um debate aberto e crítico por excelência.
Paula Borges Santos e José Pedro Zúquete tomam como referência o caso
português, ainda que em períodos diferentes – a primeira, analisando as origens
do nacionalismo na I República, e o segundo, sua versão mais contemporânea,
pós-25 de Abril. Nesse aspecto, a nacionalização do Estado Português no con-
texto da Primeira República é verificada enquanto a hipótese da narrativa sobre
a soberania ter correspondência na representação política; assim Paula Borges
Santos busca estabelecer se o nacionalismo teve uma matriz revolucionária ou
tradicionalista e conservadora no contexto de rompimento da ordem política
vigente. Em um contexto contemporâneo, Zúquete apresenta uma reflexão
sobre a Lusofonia em torno de uma rede ambiciosa que é concebida e ativa no
século XXI com o objetivo de redefinir e revalorizar a importância de Portugal,
40 anos após a Revolução dos Cravos.
João Fábio Bertonha analisa o clássico caso do nacionalismo italiano e sua
perspectiva imperialista e apresenta ao leitor reflexões sobre o fascismo ita-
liano como uma proposta sofisticada em termos teóricos, que tentou exercer a
prática expansionista no período entre as duas guerras mundiais, entretanto,
com erros que causaram desgraças ao povo italiano no âmbito da Segunda
Guerra Mundial.
Cláudia Viscardi toma por referência o caso brasileiro, refletindo a concep-
ção nacionalista autoritária de Francisco Campos, um dos mais importantes
intelectuais vinculados ao Estado Novo de Getúlio Vargas, entretanto a impor-
tância da análise está na reflexão dos discursos parlamentares do jovem Campos
como defensor das oligarquias situacionistas e do modelo liberal-oligárquico
nos anos 20, explicitando alterações nos rumos políticos, uma vez que esteve
ao lado dos revolucionários de 30 e foi um dos principais articuladores do golpe
do Estado Novo ao lado de Vargas.

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apresentação

Paulo Roberto de Almeida e Luís Cláudio Villafañe Gomes dos Santos


analisam a questão nacional brasileira a partir de suas relações internacio-
nais, ou seja, do modo como o Brasil se colocou diante das demais nações e
com isso reafirmou seus próprios interesses políticos, territoriais e mesmo de
construção de uma nação. Nessa direção, Paulo Roberto de Almeida apresenta
uma ampla reflexão na qual analisa os sentidos fundamentais da política ex-
terna e da inserção internacional do Brasil desde suas origens no século XIX,
colocando assim em perspectiva histórica as tendências e condicionamentos
contemporâneos deste aspecto da vida nacional. Luís Cláudio Villafañe Gomes
dos Santos propõe por seu turno um exame do período fundamental de Rio
Branco à frente do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, a partir das
caricaturas na imprensa referentes à atuação do chanceler brasileiro, que viria a
constituir-se em patrono do Itamaraty e em figura simbólica da nacionalidade.
Com este conjunto de interpretações, cremos estar dando continuidade à
vocação do Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul em priorizar o desenvolvimento e a difusão de
perspectivas historiográficas qualificadas e com a melhor apetência crítica em
torno dos principais temas em debate em nosso tempo.

Os Organizadores

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A fronteira no centro
Rui Cunha Martins
Universidade de Coimbra

1. Função

Consta das funcionalidades asseguradas pelos dispositivos da fronteira a


produção de centralidades. Uma propriedade, é bom dizê-lo, nem sempre fácil
de detectar (desde logo porque o senso comum analítico tende a privilegiar as
figuras do limite conotadas com demarcação e confim, em detrimento das figuras
resultantes do desdobramento do limite sobre si próprio) e cujo reconhecimento,
quando acontece, tem sido mais ou menos reconduzido a uma expressão mais das
inversões de sentido exibidas pela contemporaneidade recente e assimilada, por-
tanto, a fenómenos como a reconhecida propensão das fronteiras para o respectivo
deslocamento ou a manifesta apetência dos centros para a respectiva multiplicação.
Ora, é nosso entendimento que a funcionalidade em causa, isto é, essa
produção de centralidade pelos dispositivos fronteiriços, corresponde, afinal,
a um dos mecanismos desde há muito residentes no corpo do conceito de
fronteira e que, mais do que tratar-se de mero epifenómeno que traduziria um
momento de particular turbulência no desempenho desse conceito, é antes
constitutivamente produzido por ele, ganhando, por ocasião da sua mobiliza-
ção pelas diversas conjunturas históricas, novos recortes funcionais e novas
formas de realização. Tanto assim é que, uma vez ensaiada uma concretização
do problema no quadro da modernidade, se torna possível detectar, pelo menos,
duas modalidades pelas quais se concretiza essa dimensão do limite enquanto
centralidade: a da designação; e a do hibridismo.

2. Modelo

Nos inícios da modernidade, a noção de fronteira encontra-se suficiente-


mente burilada para que se tornem claras, já então, as respectivas propriedades
e condições de desempenho. A impressão com que se fica é a de que, por essa

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a fronteira no centro

altura, andam associados ao conceito elementos de vária ordem, desde princípios


teóricos e doutrinários até funções pragmáticas, passando por experiências
concretas, historicamente inscritas. Alguns desses elementos tendem a ser
agregados entre si, reunidos no âmbito do conceito de soberania, enquanto que
outros sugerem persistir mais ou menos arredios a esforços de compactação
teórica e de normalização. De alguma forma, o trabalho da modernidade con-
sistirá em assegurar a manutenção de ambas as vias, ou, dito de outro modo,
em investir sobremaneira na primeira, estimando ao mesmo tempo a margem
de manobra e a agilidade funcional garantidas pela segunda.
É nesta perspectiva, só nela, que tem cabimento falar de um modelo mo-
derno de fronteira. A expressão designa precisamente essa possibilidade de
sentido e esse investimento de coerência em torno do conceito; nada disto fere
a disponibilidade da ideia de fronteira para as dimensões da adaptabilidade,
da variabilidade e da dispersão de significado, as quais, de resto, constarão de
modo gradual do seu recorte conceptual e da sua eficácia. O nosso ponto de vista
aponta, portanto, para um grau de razoável estabilidade da noção de fronteira
no quadro das primeiras sínteses produzidas pelo pensamento e pela teoria
política modernas, estabilidade essa que, ao imputar à fronteira determinado
conjunto de competências e determinado tipo de operatividade, lhe permite
integrar, com visível sucesso, o painel de elementos que a modernidade se
encarregará de popularizar quer ao sabor da sua apetência expansiva, quer da
sua incorrigível apetência ordenadora.
É dentro desta linha de raciocínio que se torna possível isolar, por entre
aqueles que aparentam ser, do ponto de vista da modernidade, os eixos maiores
dessa configuração funcional e doutrinária – desse conjunto de mecanismos,
será com certeza a expressão conveniente – que é a fronteira, aquilo a que em
outro trabalho chamámos já o eixo da designação1. E a tese que lhe está subja-
cente pode ser dada pela seguinte fórmula: as fronteiras correspondem tanto à
definição de uma exterioridade, quanto, sobretudo, à pretensão de visibilidade do
invólucro que elas delimitam. Que quer isto exatamente dizer?

3. Designação

Basicamente o seguinte: que as fronteiras não remetem apenas para os


contornos do que se demarca, nem apenas para aquilo que, pelo ato da de-
marcação, ganha estatuto excêntrico ou alienígena; qualquer demarcação,
na medida em que se faz a partir de um interior que se quer ver demarcado,
remete, com naturalidade, para esse invólucro que é a entidade patrocinadora
da ativação dos limites. Subjacente a esta tese está, pois, a seguinte percepção:

1
MARTINS, Rui Cunha. O Método da Fronteira: Radiografia Histórica de Um Dispositivo
Contemporâneo (Matrizes Ibéricas e Americanas). Coimbra: Almedina, 2008, p. 112.
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rui cunha martins

qualquer mecanismo de separação, e, mais ainda, aqueles que, como as fron-


teiras políticas, são regularmente trabalhados, não separa virado para fora,
separa virado para o interior de si mesmo. A delimitação é uma designação – o
“traço” denuncia um referente.
A este título, a relevância da atividade demarcatória, ou, especificamente,
de cada um desses momentos de fixação dos marcos fronteiriços – ocasiões
em que uma entidade política (seja o reino), enquanto entidade demarcada, se
instancia e se refaz, à escala local, no próprio ato de fixação dos símbolos que
o delimitam –, essa relevância, se é certo decorrer, por um lado, da possibi-
lidade de construir as exterioridades tidas por pertinentes, decorre também,
por outro, da evidenciação assim garantida à própria entidade demarcada, como
o atesta, de resto, o investimento narrativo-memorial a que esta se entrega.
Neste sentido, cada cerimónia de instalação dos marcos visa conferir ao corpo
do reino o estatuto de facto notório (não ensinara a tradição jurídica medieval
que um tal estatuto designava uma verdade de tal modo evidente e perceptível
ao olhar que, uma vez alojada no espírito dos homens, aí residiria ad aeter-
num?). Um reino demarcado, crê-se perene. O corpo dinástico designado pela
demarcação, também.

4. Centralidade

Assim se compreende um segundo nível da questão: as fronteiras, enquanto


margens, não funcionam apenas como o contrário dos centros; são também a
reserva destes, quando não a sua outra natureza. Trata-se, aqui, de retirar as
devidas consequências de exemplos como o fornecido por uma leitura da his-
tória portuguesa enquanto virtual mobilização em direção a um horizonte de
fronteira. Uma leitura segundo a qual, desde essa protoexpansão que é a recon-
quista peninsular, até à expansão africana, e, mais genericamente, ultramarina,
ocorreu uma perpétua reinvenção de um limite posto diante dos portugueses,
e deslocando-se sempre para diante deles à medida que dele se aproximavam,
como se o mundo fosse irremediavelmente fronteira, ou como se a ucronia se
fosse sucessivamente realizando enquanto utopia. Ora, reconhecer-se-á, mes-
mo sem ser preciso abandonar esta matriz explicativa, que essa progressão
em direção às fronteiras se fez acompanhar, em simultâneo, da constatada
capacidade da Coroa em instituir-se, desde sempre, como polo configurador
desses processos estruturantes da construção portuguesa.
Uma percepção que se manifesta em dois níveis. Por um lado, no esforço
de captação dos recursos mais visíveis desses espaços marginais por parte de
uns centros de decisão só em aparência confinados à retaguarda da dinâmica
fronteiriça (pense-se, por exemplo, neste sentido, na rentabilização do contra-
bando, pela esfera do rei e das elites sociopolíticas, na fronteira castelhana de
Quatrocentos; mas pense-se então, com maior abrangência, que essa atuação

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a fronteira no centro

é uma etapa de uma tendência longa em que igualmente se inscreverão, quer o


gradual envolvimento da monarquia, em negócios similares, a partir da frontei-
ra marroquina de Quinhentos, quer o modo de atuação da Coroa na fronteira
brasileira, especialmente na segunda metade do século XVIII). E manifesta-
-se, por outro lado, no modo como as franjas do reino, ou do império, foram
configurando um espaço de escoamento das tensões existentes no seu seio, à
laia de “reserva” onde se fazia desembocar a energia social tida por excessiva.
Está aqui em causa, afinal, a ativação da dimensão da fronteira como potencial
receptora de tensões, como margem estimada, paradoxalmente, enquanto garante
das sinergias procuradas, internamente, por uma sociedade em expansão. Será
irónico, mas é assim: só um centro bem delimitado (i.e, solidamente designado)
pode estimar o potencial ilimitado das margens.
Naturalmente que, assim sendo, a fronteira, factor de complexificação his-
tórica que é, não age, porém, sobre o real como garantia de metamorfose social.
Persiste, com efeito, na fronteira, uma dimensão de resistência à “metamorfose”,
cuja expressão é o inusitado “conservadorismo” que o nível socio-histórico da
análise lhe surpreende: recorde-se, com base nos indicadores empíricos, que
a sua ativação enquanto mecanismo social propicia mesmo, sob não poucos
ângulos de visão, a cristalização das matrizes socio-históricas em presença,
mas não a respectiva reversão. Na verdade, já deverá aparecer como seguro, no
quadro da primeira modernidade, aquilo que a própria experiência histórica
moderna se encarregará de ir comprovando (e que, bem perto de nós, Prigogine
explicará tecnicamente): que, mesmo quando o limiar marca o aparecimento de
um regime de funcionamento novo, esse novo deve entender-se de uma maneira
relativa, isto é, sempre explicável por referência ao que o produz.

5. Contingência

Há ainda um terceiro aspecto a ter em conta. Tem a ver com o espaço re-
servado à contingência no campo do conceito de fronteira e, nomeadamente,
com o necessário recuo crítico perante assimilações demasiado rápidas entre
contingência e alternativa. Vejamos. Não sobram dúvidas sobre as inúmeras
facetas que imprimem à fronteira um elevado grau de resistência a esforços de
uniformização: pense-se no seu carácter “contextual”, na sua propensão plural
ou no seu potencial de desdobramento, características que têm nas figuras
da duplicação de fronteiras, da sobreposição de fronteiras, do apagamento de
fronteiras e da reposição de fronteiras a sua expressão acabada. Dito isto, im-
porta frisar que, se estes elementos existem, em qualquer fronteira, de modo
latente, vigorando nela em potência, não é, contudo, forçosa, e menos ainda
permanente, a sua manifestação. Semelhante latência não pode, portanto,
tomar-se como a essência da própria fronteira, como que antecipando-se, por
inerência, à contextualização proporcionada, a essa mesma fronteira, pelos res-

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rui cunha martins

pectivos quadros históricos; aquilo que, em bom rigor, está próximo do âmago
da fronteira e pode ser talvez dito essencial nela é, agora sim, a disponibilidade
assegurada por essa latência, o carácter “negocial” adveniente à fronteira por
via de uma eventual ativação desses elementos potenciais, ou até – e este é o
ponto a reter - a possibilidade em aberto de que cada uma dessas iniciativas e
ativações permita mesmo aclarar uma sede (chame-se-lhe também centro ou
referente) produtora e organizadora desse mesmo quadro de multiplicidade.
Donde, constatar a presença da instabilidade e da contingência por entre os
elementos integrantes do corpo do conceito só pode significar a consciência de
que é no enfrentamento com essa contingência (um enfrentamento entendido
como “negociação” pelo que se considere ser, em contexto, a melhor opção)
que se instaura a possibilidade de um referente, ou seja, que se torna possível
ativar a matéria autoral – porque, de acordo com nosso ponto de vista, “toda
a fronteira tem autor”. Por conseguinte: permitir o exercício demarcatório
que confira sentido à dispersão; e permitir o reconhecimento desse esforço
ordenador; são estes os dois momentos complementares que a contingência,
contra ela própria, acaba por assegurar. Daí que ao pensamento moderno não
se imponha terminar com a ambiguidade mas geri-la, até porque só essa gestão
permite a definição das situações de transgressão, de exceção, de punição ou de
perdão, expressões autorais máximas em matéria de fronteira, tal como só ela
permite o gesto articulador que, integrando todas essas modalidades, designe
o autor. Porque o autor e a sua centralidade são demarcados pelo próprio ato
de demarcação que ele assegura.

6. Adaptabilidade

Justificar-se-á, neste ponto, uma pergunta: é esta fronteira, assim entendida no


quadro da modernidade, um mecanismo dotado de uma capacidade de adequação
tal que lhe permita ser exportável para diferentes contextos e, em simultâneo,
acrescentar ao seu recorte conceptual, a partir desses trajetos históricos, novas
formas de operatividade? Tudo indica que sim. Tudo indica, com efeito, que
uma disponibilidade constante para que possam manifestar-se ou ser ativadas
as diversas figuras do limite, consoante os contextos, os quadros doutrinários e
as estratégias políticas subjacentes, é característica tópica do regime fronteiriço
da modernidade. Uma verificação que pode bem traduzir-se na ideia de que as
fronteiras são historicamente disponíveis, valência que cauciona, em larga medida,
a gradual constituição da fronteira moderna enquanto dispositivo.
Joga-se aqui, como está bom de ver, a plasticidade do modelo. Não propria-
mente, ou não somente, no âmbito da sua matéria conteudística, quer dizer, não
somente ao nível da coerência interna dos elementos residentes no conceito
de fronteira; sim, muito mais, ao nível do modo como esses mesmos elemen-
tos interagem com dimensões como o contexto ou a conjuntura, ao nível, por

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a fronteira no centro

conseguinte daquilo que podemos chamar a matéria da historicidade e que


justifica essa predisposição das formas fronteiriças para a respectiva ativação
em moldes não uniformes. Só esta dimensão pode explicar o sucesso histórico
do modelo e a sua pouco linear mas duradoura operatividade. Quando o século
XIX se dispõe a tratar do tema da fronteira, tem já ao seu dispor uma gama
infindável de modalidades de ativação e configuração de um mecanismo da
fronteira cada vez mais disponível para assumir a sua valência de dispositivo.

7. Interioridade

O cruzamento dessas possibilidades produzirá fórmulas tão variadas quanto


as conjunturas concretas que as enquadram. A sua descodificação nem sempre
é fácil. Até porque, gradualmente, não só as mais clássicas figuras do limite (de-
limitação e ilimitação) surgem articuladas com figuras relevando da dimensão
da autoria ou da centralidade, no sentido em que atrás se fez referência, como
também esta última dimensão vai ela própria arredondando a sua presença,
complexificando as suas expressões. Bom exemplo disso é a noção de “fronteira
interior”, de matriz fichteana, a qual, da perspectiva que é a nossa, pode bem
ser entendida enquanto expressão do desdobramento do limite em direção a si
mesmo e, por conseguinte, como mais uma expressão, também, da produção
de centralidade pelo dispositivo fronteiriço.
Por que interior? O próprio Fichte o explica: “As fronteiras primeiras, origi-
nais e verdadeiramente naturais dos Estados são sem dúvida nenhuma as suas
fronteiras interiores […] É somente desta fronteira interior, traçada pela própria
natureza espiritual do homem, que resulta o traçado das fronteiras exteriores
do seu habitat, que não é senão a sua consequência”. Deixando de lado, neste
momento, a problemática das “fronteiras naturais” em que notoriamente o texto
está ancorado, o que toma particular relevo para nós é que esta propensão para
a interioridade traduz, uma vez mais, agora em um nível mais intimista ou, em
nomenclatura técnica, mais da ordem do sensível, o desdobramento do limite
em direção ao centro. Ao seu centro, por certo que sim; mas reconhecer-se-á
então, e já não será pouco, que o limite tem uma estrutura compósita que con-
templa a vigência de centralidades. E para que seja possível afirmar, a propósito
desse desdobramento fichteano, que nele se cruzam “uma dialéctica temporal e
uma dialéctica do território”, obrigatório será entendê-lo, fundamentalmente,
como uma recusa de desalojamento originário, não como modo de preservar
a essência correspondente a essa fronteira interior, mas como forma de nesse
limite interno sediar a inspiração para os rumos a tomar (pela germanidade, no
caso) em direção ao futuro, lugar em potência da regeneração espiritual e moral.
Porque, neste raciocínio, aquele âmago, aquele ponto central essencial e origi-
nário permanentemente descoberto pela fronteira interior “não designa aquilo

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rui cunha martins

de onde provém um povo, mas aquilo em direção ao qual ele avança”2 . Com o que
a localização da interioridade devém, em última instância, promessa de futuro.
Ora, ao generalizar-se o modelo do estado-nação, ou, dizendo-o com maior
ancoragem historiográfica, à medida que a modernidade processa esse longo
movimento de exportação do estado-nação como forma de arrumação política,
primeiro nas margens do espaço europeu e depois para fora dele, em direção à
sua periferia – movimento que, deste ponto de vista, pode ser perseguido até
à contemporaneidade –, também esta modalidade de realização da fronteira
enquanto centro (a da “fronteira interior”) segue junto com todas aquelas que,
em paralelo, integram o quadro de valências do mecanismo “fronteira”. O re-
sultado maior da sua ativação conjugada é, provavelmente, a american frontier,
tal como desenhada por Turner. Aí, a fronteira parece caminhar irreversivel-
mente para a sua própria centralidade. Mas só aí? E no caso brasileiro? Aqui,
a impressão que se colhe é a de que o tópico da centralidade, tanto quanto os
da ilimitação e da demarcação, será também ele francamente mobilizado por
um debate identitário brasileiro que, em Oitocentos, surge obcecado com a
definição das fronteiras jurídico-políticas e culturais. E, por arrasto, com a
definição dos argumentos conexos: com o lugar da Ibéria nesse quadro, sem
dúvida; com os modos da especificidade e da diferença, com certeza que sim;
e, inevitavelmente, com as virtudes demarcatórias do elemento híbrido.

8. Hibridização

Escreveu-se já que a construção do Estado-Nação brasileiro, ao colocar desa-


fios que não encontravam resposta no contexto europeu, promoveu outro tipo de
respostas e outras técnicas, basicamente as que resultaram de uma incorporação
da tradição em modalidades próprias do contexto sul-americano, sendo que “o
primeiro passo dado nesse sentido foi o da miscigenação”, no sentido em que “a cul-
tura brasileira nasceu da articulação vinculada à miscigenação, nasceu envolvida
em uma trama de convenções sociais heterogéneas, [pelo que] as suas instituições
são marcadas por essa heterogeneidade mediada pelo sincretismo que a compõe”3.
E, com efeito, consulte-se, dentro deste espírito, o Código Criminal brasileiro
de 1830. Produto do modo de construção legislativa e de concepção jurídica que
assiste, desde 1822 e até meados do século, ao processo de Independência e de
construção do Estado, produto, também, de intelectuais-estadistas formados na
Universidade de Coimbra, geração entretanto prolongada pela que frequenta, desde
1827, os Cursos Jurídicos de Olinda e São Paulo, a cultura jurídica brasileira, e de

2
BALIBAR, Étienne. Fichte et la Frontière Intérieure. À propos des Discours à la nation al-
lemande. In: BALIBAR, E. La crainte des masses. Politique et Philosophie avant et après Marx.
Paris: Galilée, 1997, p. 150.
3
GAUER, Ruth. A construção do Estado-Nação no Brasil. A contribuição dos Egressos de Coimbra.
Curitiba: Juruá, 2001, p. 35-36.
|  19
a fronteira no centro

modo muito particular o referido Código, “explicita a capacidade de hibridização


de elementos tradicionais e modernos, condizentes com a sociedade e a cultura
que lhe conferem significado. Ao mesmo tempo em que é reflexo de um conhe-
cimento universal, é particular, não deixa de absorver as peculiaridades de uma
sociedade escravista, sem perder o viés da sociedade liberal da época”. Deste
ponto de vista, “a legislação penal brasileira do século XIX abarca, na mesma
construção lógica, o espírito científico ocidental, trazido e relido pela Reforma
Pombalina, e a hierarquia revelada pela Escolástica barroco-aristotélica”4 . Um
pensamento jurídico, portanto, indiciador de uma sociedade vocacionada para
a conciliação dos opostos, registo polifónico que é afinal, também, o do próprio
processo de independência brasileira genericamente considerado, no âmbito do
qual, perante as dicotomias entre ruptura e continuidade e entre liberalismo/
constitucionalismo e tradição mercantil-escravista, “venceu o meio-termo, uma
vitória eclética que procurou fundir liberalismo com escravismo e constitucio-
nalismo com absolutismo do mesmo modo que se mantiveram em equilíbrio de
antagonismo a Casa-Grande e os Sobrados nas disputas políticas do Império”5.
Importará agora verificar se esta mesma propensão para o “equilíbrio de an-
tagonismos” se detecta igualmente no momento de forjar uma especificidade
político-cultural que de certa maneira o campo jurídico brasileiro já delineava.

9. Historicidade

A segunda metade do século XIX e os inícios do século XX correspondem,


à escala luso-brasileira – também à escala ibero-americana, como veremos –
a um momento de particular esforço de clarificação identitária por parte das
nações envolvidas. Como é usual em casos que tais, esse esforço tem expressão
em fenómenos de demarcação cultural e política, no estabelecimento de dife-
rentes escalas de referência identitária, na reavaliação de memórias nacionais e
na sobreposição concorrencial entre os vários critérios avançados para os fins
demarcatórios em vista. Compreende-se, neste contexto, que ao levantar-se
a questão do relacionamento entre as entidades político-culturais brasileira e
portuguesa, tópicos como a dívida, a herança, a fraternidade, a diferença e a
originalidade impusessem um estado de permanente mobilização das historici-
dades, ele mesmo desafiador do lugar da história nos processos de definição dos
contornos nacionais. E compreende-se, de igual modo, que todo este complexo
cruzamento de razões desembocasse em verdadeiras fricções demarcatórias e
naquilo a que chamámos já, em outro local, “turbulências do limite”6 .

4
SILVA, Mozart Linhares da. O Império dos Bacharéis. O pensamento jurídico e a organização
do Estado-Nação no Brasil. Curitiba: Juruá, 2003, p. 265-269.
5
Idem, p. 269.
6
MARTINS, Rui Cunha, op. cit.
20 |
rui cunha martins

Esta problemática foi tratada recentemente, de forma esclarecedora, por


Marçal Paredes7. Da sua análise exaustiva torna-se possível isolar, mesmo cor-
rendo o risco de sacrificar a sua abrangência aos nossos objectivos imediatos,
cinco aspectos fundamentais diretamente relacionados com a nossa investiga-
ção. Podemos, na realidade, considerar, do ponto de vista do nosso argumento,
que se trata de cinco propostas de resolver o problema da fronteira à escala
transatlântica: (I) o entendimento do Brasil como prolongamento de Portugal
e, portanto, o entendimento de uma “longa” e eterna fronteira portuguesa,
prolongando-se na fronteira brasileira tanto quanto na africana; (II) a recusa
da leitura anterior por via de uma demarcação de sentido oposto, qual seja, a
de um afastamento brasileiro da herança portuguesa; (III) o alargamento da
primeira proposta – a da continuidade, portanto –, a uma escala ibérica de
referência, no âmbito da qual os povos sul-americanos são entendidos como
neoibéricos (pressupondo, assim sendo, uma “longa” e eterna fronteira ibérica,
prolongando-se na América); (IV) a recusa desta última proposta por via da
contraposição de uma escala americanista de referência, ela sim passível de
demarcar as culturas sul-americanas; (V) a proposição de uma demarcação
brasileira pela originalidade, isto é, basicamente, pela celebração do carácter
singular do mestiço.

10. Limite

Podemos ensaiar uma tradução deste painel para a linguagem do limite.


Obteremos então o seguinte panorama: em (I) e em (II) temos propostas clara-
mente inscritas num pano de fundo de ilimitação (a insistência na continuidade
ilimitada da fronteira portuguesa para lá das evidentes rupturas introduzidas
pela história encontra correspondência, à luz deste raciocínio, no próprio
modelo que a recusa, visto que a leitura do afastamento de Portugal enquanto
afastamento evolutivo de dado passado só pode inscrever-se no tempo longo
da ilimitação); em (III) e (IV) temos propostas que concedem em trabalhar
a questão do limite mediante um exercício de complementaridade entre a
dimensão ilimitada (tal como constatada nos pontos anteriores) e uma dimen-
são delimitadora, que, para não negar aquela, propõe-se demarcar escalas de
significação amplas (num caso a Ibéria, no outro a América, são os referentes
com que se propõe demarcar o ilimitado); em (V), por fim, deparamos com
uma mobilização simultânea e sucessiva das várias figuras do limite: conforme
teremos oportunidade de explicar, essa inflexão para o “centro” que é a aposta
na originalidade, feita critério demarcatório por intermédio da mestiçagem,
constrói-se sobre o círculo vicioso da ilimitação.

7
PAREDES, Marçal de Menezes. Fronteiras Cuturais Luso-Brasileiras: Demarcações da história
e Escalas identitárias (1870-1910). Coimbra: FLUC, 2007.
|  21
a fronteira no centro

11. Continuidade

Comecemos pela primeira tendência. Abdicaremos aqui de reproduzir a


multiplicidade de posicionamentos e linhas interpretativas passíveis de filiação
na visão do Brasil enquanto prolongamento português. Essa tarefa está feita.
Para o que aqui interessa, a tendência vale pelo seu todo, sendo que a diferença
entre os que, como Oliveira Martins (de igual modo Eduardo Prado ou Eça de
Queirós), apelam à “comunidade de sangue” entre portugueses e brasileiros
para justificar o Brasil enquanto futuro de dado passado e, donde, como nação
neoportuguesa na América e produto da obra civilizacional portuguesa, e aque-
les outros que, no contexto do republicanismo, celebravam na interação entre
as duas culturas a lei das afinidades que, segundo a filosofia positiva, regia a
relação de “povos irmãos”, não anula o essencial: a visão de uma linha de con-
tinuidade transatlântica que recusava reduzir a fronteira cultural (e não só ela,
evidentemente) ao rincão lusitano. E porque a fronteira de qualquer uma das
duas entidades era sempre, de acordo com esta ideia, fronteira luso-brasileira,
daí se seguia que qualquer alteração que às fronteiras brasileiras respeitasse
lesava a própria ideia de Portugal. Eis-nos bem em face do ilimitado da fron-
teira. O debate entre unitarismo e federalismo no Brasil não podia deixar de
aparecer, a esta luz, como debate português também (sabido que era, como se
rezava em alguns círculos, ser a Espanha um país que chegara à uniformidade
por via da “junção violenta de muitos estados”). Bem assim, os sucessos ocor-
ridos na fronteira do Rio Grande do Sul não podiam deixar de ser gravosos
para a imagem de Portugal, tanto ou tão pouco que se ensaia uma comparação
entre essa ameaça de desagregação no sul do Brasil e a ameaça inglesa sobre
as pretensões coloniais portuguesas em África, ambas tidas por problema
maior da portugalidade nos finais do século XIX8 . A autorreferencialidade de
semelhante visão resulta patente.

12. Evolução

É, dissemo-lo já, sobre uma mesma lógica de ilimitação que procede o


entendimento simétrico do anterior. Agora, porém, a insistência é no sentido
de um afastamento da herança portuguesa e da ligação a Portugal, estratégia
de distanciamento que mobiliza primacialmente as matérias da “lei natural” e
da “evolução dos povos” e que impõe, com base nesses ensinamentos, a recusa
do passado colonial, maxime a sua superação, como única forma de obter os
traços de originalidade e diferenciação que deveriam resultar do processo evo-
lutivo e da gradual adaptabilidade de qualquer cultura. Araripe Júnior, Manoel

8
PAREDES, Marçal, op. cit., p., 25-122; HOMEM, Amadeu Carvalho. Da Monarquia à República.
Viseu: Palimage, 2001, p. 13-25.
22 |
rui cunha martins

Bomfim e Sílvio Romero, por exemplo, alinham-se por este diapasão. Uma vez
mais não cuidaremos aqui das diferenças, profundas ou de ocasião, entre eles.
Por todos, seguiremos Romero. E aquilo que de particularmente expressivo
pretendemos elucidar a seu respeito, é a compaginação que pode ser feita entre
o seu discurso e o de um outro americano, este do norte, Frederick Jackson
Turner9. Longe do nosso intuito reabrir o debate sobre a recepção e o papel da
obra turneriana no Brasil. O que, por outro lado, pretendemos aqui sublinhar é
que, independentemente das circunstâncias quanto às condições de recepção,
e, ainda, à margem de qualquer preocupação em estabelecer afinidades inte-
lectuais ou doutrinárias entre ambos, a proximidade que se detecta entre os
dois discursos é irrecusável. Bem vistas as coisas, Romero, como Turner, tinha
pela frente a tarefa de integrar a presença de uma fronteira em movimento e
as especificidades por ela introduzidas no processo de demarcação de uma
dada sociedade cultural e política. A um como a outro se impunha dotar de
coerência o movimento ilimitado.
Uma das principais consequências analíticas a retirar dessa comum necessi-
dade será uma também comum recusa do passado europeu que a cada um coube.
Já destacámos este ponto para o caso de Turner. Por seu turno, Sílvio Romero é,
quanto a este ponto, igualmente conclusivo. Atente-se, desde logo, na sua con-
vicção de que “uma nação se define e se individualiza quanto mais se afasta pela
história do carácter das raças que a constituíram, e imprime um cunho peculiar à
sua mentalidade”, ou, na mesma linha, na sua certeza de que “a nação brasileira,
se tem um papel histórico a representar, só o poderá fazer quanto mais separar-se
do negro africano, do selvagem tupi e do aventureiro português”10. Por detrás destas
ideias germinam conceitos do neolamarckismo (dos quais fará também visível
uso um Manoel Bomfim na altura de caracterizar o “mal de origem” brasileiro
enquanto “parasitismo” português, cuja “cura” era o afastamento do passado
ibérico) e o cruzamento de preceitos darwinistas ou aparentados, canalizados
para uma interpretação naturalista da evolução dos povos na qual o potencial de
mistura e de combinação inesperada de elementos de diversa proveniência era
sobrestimado enquanto garante de uma originalidade em permanente eclosão.
No âmbito desta linha evolutiva em direção à singularidade e à diferença em que
a própria história se transforma, a fronteira brasileira não pode ser em caso algum
a fronteira portuguesa, mas, bem ao invés, a sua constante negação, o lugar do
perpétuo movimento para longe de Portugal e das raízes onde estiolava o “velho
reino”, esse que “havia feito completa bancarrota de ideias” e que, resignado
à condição de “ínfimo glosador dos desperdícios franceses”, não era mais do
que a raiz longínqua que “perdeu definitivamente o encanto a nossos olhos”11.

9
MARTINS, Rui Cunha, op. cit., p. 129-135.
10
PAREDES, op. cit., 114.
11
Idem, 116-121.
|  23
a fronteira no centro

A definição turneriana da fronteira norte-americana como movimento ilimitado


para longe da origem europeia – movimento pelo qual a América renascia em
permanência – não é dita de modo substancialmente diferente12 .

13. Delimitação

Dispunham, entretanto, os cultores da ligação inquebrantável entre Portugal


e Brasil de um outro argumento: o da inscrição desse relacionamento na escala
mais ampla da ibericidade. Fosse no decurso de uma leitura dessa relação nos
termos clássicos da herança, fosse, o que para a perspectiva que é a nossa vai
dar no mesmo, nos termos de uma marca de negatividade referencial, o certo
é que se assiste à regular sugestão de que o posicionamento de exceção detido
pelos países ibéricos no contexto europeu – Espanha e Portugal aparecendo,
nessas teorias, claramente demarcados relativamente aos saxões – tinha prolon-
gamento natural à escala americana, ou, dito com maior propriedade, à escala
“neoibérica”, fazendo das ex-colónias sul-americanas “filhos ibéricos”, nos
quais, por conseguinte, seguia vigente o “génio peninsular” cuja transposição
transatlântica o curso da história havia garantido (neste cenário, o contexto
luso-brasileiro seria um subconjunto)13 . Era como se, de certa forma, o agru-
pamento de povos formado por Espanha, Portugal e pelas nações que deles
haviam derivado em solo americano, se apresentassem como conjuntamente
distintos, compondo uma fronteira ibero-americana que os demarcasse dos
restantes polos congregadores. O texto de Oliveira Martins intitulado justa-
mente “A Liga Ibérica”, publicado em 1892, resume, melhor do que qualquer
outro, o espírito deste desiderato14 .
Mas se parece incontornável, a dado estado do debate, que alguma dose de
limitação seja imposta às pretensões ilimitadas patenteadas por várias das inter-
pretações em presença, era tudo menos seguro que essa operação, essa busca de
uma escala de referencialidade por parte da cultura brasileira, em relação à qual
esta pudesse desenvolver sentimentos de pertença, coincidisse com o mundo
ibérico. Pense-se que, de acordo com alguns analistas e, sobretudo, a partir da
contaminação do pensamento letrado brasileiro pela propaganda republicana, o
passado português – ou ibérico, que importava? – era o passado a ser superado.
A fundação ou refundação do Brasil exigia um sentimento “regenerador”, que

12
TURNER, Frederick Jackson. The Frontier in American History. Tucson: The University of
Arizona Press, 1986.
13
PAREDES, Marçal, op. cit., p. 77-93.
14
MARTINS, J. P. Oliveira. Política e História. Lisboa: Guimarães Editores, 1957. Veja-se também:
MATOS, Sérgio Campos. Portugal e Brasil: crónicas esquecidas de Oliveira Martins. In: MARTINS,
J. P. de Oliveira. Portugal e Brasil (1875), ed. Sérgio Campos Matos, Lisboa: Universidade de Lisboa,
2005, p. 7-36; e, do mesmo Autor, Iberismo e Identidade Nacional (1851-1910), Clio, 14 (2006), p.
349-400.
24 |
rui cunha martins

propiciasse o encontro brasileiro com o seu âmago (arrisquemos desde já: com
a sua fronteira interior). Tanto assim era que, em simultâneo com a sugestão da
“liga ibérica”, mas em nítido sentido concorrencial com ela, o espírito antilusita-
no se aplica na promoção de uma escala americana de referência, contraposta à
anterior. Este reforço do cunho americanista está presente na órbita do “Manifesto
Republicano de 1870”, em que o processo abolicionista brasileiro e a questão do
derrube da monarquia se fazem acompanhar da denúncia do passado português
e concretamente europeu e, ao mesmo tempo, da estima confessa que deveria
merecer, nos areópagos republicanos, o culto do sentimento americanista, ver-
tido na mensagem óbvia de que “somos da América e queremos ser americanos”15.
Preocupações demarcatórias, claro. Uma vez mais. Só que, desta vez, a demar-
cação cultural extirpava o sangue e optava pelo território.

14. Essência

Resta, enfim, a tendência que deixámos propositadamente para o final. Em


rigor, não se pode dizer que ela inove por comparação com aquelas interpre-
tações que, de entre as por nós repertoriadas, pugnavam por um afastamento
em relação à herança portuguesa. A ideia do afastamento, de resto maioritária
à escala político-cultural luso-brasileira, é também a que traduz o espírito
da proposta que agora nos ocupa. Mas ela é mais do que isso: a sua ambição
de diferenciação face às raízes portuguesa, ibérica e europeia (diferenciação
também almejada, a breve trecho, frente ao negro e ao índio) redunda numa
aspiração de originalidade. Uma demarcação pela singularidade e pela essên-
cia, pela clara delimitação dos caracteres específicos, eis do que se trata. Uma
fronteira definida a partir de dentro, dir-se-á também. A ideia pode resumir-se
num objectivo: estabelecer as fronteiras da nação ali mesmo naquele ponto
exato em que deixar de se sentir o eco daquilo que se entenda ser a genuinidade
nacional. E esta, afinal, o que se poderia entender que ela fosse?
Sílvio Romero, sempre ele, sabe o que procura. Ele começa por saber que
o transformismo, para o dizer nas suas próprias palavras, “é a lei que rege a
história brasileira”. E se, assim sendo, a ação da história, no Brasil, surge como
elemento determinante na definição do carácter brasileiro, é porque só ela
(não exatamente só ela, mas a intersecção do historicismo com o materialis-
mo monista) permite explicar o facto de o choque de culturas resultante da
ocupação e da colonização não ter preservado nenhuma etnicidade em estado
puro; como só ela permite entender que os sucessivos cruzamentos étnicos só
podem oferecer, como realidade ontológica passível de ser comemorada enquan-
to expressão verdadeiramente nacional, a mestiçagem (“todo brasileiro é um
mestiço, quando não no sangue, nas ideias”, dita o mais célebre dos aforismos

15
PAREDES, Marçal, op. cit., p. 256.
|  25
a fronteira no centro

romerianos) 16. Este é o resultado único e, por isso, absolutamente singular,


dos regimes de adaptabilidade em que se fundou a ação da história no Brasil.

16. Ilimitação

Declinemos o exposto de acordo com o ponto de vista do limite, que cons-


titui o nosso posto de observação privilegiado. Intuitos de demarcação como
o protagonizado por Sílvio Romero, ao colocarem o mestiço no centro da de-
finição de uma identidade brasileira, consagram o potencial de liminaridade
do elemento híbrido. É verdade que, posta assim a questão, a mestiçagem, que
apresenta, por definição, um estatuto de transitoriedade e de indefinição, remete
fundamentalmente para uma realidade transfronteiriça, situada algures entre
os distintos caminhos ditados pelas exigências de adaptabilidade. Nem outra
coisa se poderia deduzir de um fenómeno produzido a partir da inexistência de
pureza e, por consequência, menos apto a delimitações puras do que à definição
de contornos demarcatórios difusos. Mas, mesmo posta a questão nestes termos,
o facto é que o mestiço é colocado, em definitivo, no centro. Como se, de cada
vez que a história brasileira perguntasse pelo seu verdadeiro âmago, pela sua
essência, ou (digamo-lo, agora, com toda a propriedade) pelo seu interior, não
pudesse ser senão o mestiço que ela descobrisse. Assim perspectivado, o híbrido
é expressão de uma fronteira interior. E esta, como sabemos, ou é tida por ponto
de partida (o “genuíno nacional”) ou é apeadeiro (a “gradual autonomização”da
forma mestiça) de uma longa marcha para o futuro. Um trajeto futuro tão
ilimitado quanto se acreditava ser o destino dos povos que, no seguimento da
sua própria marcha evolutiva, se haviam voltado para si próprios na demanda
do respectivo traço distintivo. O que quer dizer, em sede do nosso argumento,
que a tentativa de resolver o ilimitado por intermédio de uma demarcação feita
a partir do centro acabava por entregar a fronteira memorial, cultural e política
brasileira, de novo, ao ilimitado que se abria diante dela, como sempre se usou
na sequência de processos de demarcação ancorados na demanda identitária.
Hobbes sabia-o; a seu modo, os Founding Fathers norte-americanos, também:
a noção de movimento, e, por maioria de razão, a de movimento gradual adap-
tativo, desenvolve apertada conivência com a de ilimitação. Nesta, a linha
rapidamente devém circularidade. Esse círculo é por norma vicioso.

16
Ibidem.
26 |
rui cunha martins

Referências
BALIBAR, Étienne. Fichte et la Frontière Intèrieure. À propos des Discours à la nation
allemande. In: BALIBAR, E. La crainte des masses. Politique et Philosophie avant et après
Marx. Paris: Galilée, 1997.
GAUER, Ruth. A construção do Estado-Nação no Brasil. A contribuição dos Egressos de
Coimbra. Curitiba: Juruá, 2001.
HOMEM, Amadeu Carvalho. Da Monarquia à República. Viseu: Palimage, 2001.
MARTINS, Rui Cunha.  O Método da Fronteira: Radiografia Histórica de Um Dispositivo
Contemporâneo (Matrizes Ibéricas e Americanas). Coimbra: Almedina, 2008.
MATOS, Sérgio Campos. Iberismo e Identidade Nacional (1851-1910), Clio, 14, 2006.
______. Portugal e Brasil: cróniqcas esquecidas de Oliveira Martins. In: OLIVEIRA MARTINS,
J. P.. Portugal e Brasil (1875), ed. Sérgio Campos Matos.  Lisboa: Universidade de Lisboa, 2005.
OLIVEIRA MARTINS, J. P. Política e História. Lisboa: Guimarães Editores, 1957.
PAREDES, Marçal de Menezes. Fronteiras Cuturais Luso-Brasileiras: Demarcações da história
e Escalas identitárias (1870-1910) Coimbra: FLUC, 2007.
SILVA, Mozart Linhares da. O Império dos Bacharéis. O pensamento jurídico e a organização
do estado-Nação no Brasil. Curitiba: Juruá, 2003.
TURNER, Frederick Jackson. The Frontier in American History. Tucson: The University of
Arizona Press, 1986.

|  27
De frente para o futuro.
O Conceito de nação nos processos de
independência hispano-americana1
Fabio Wasserman
Instituto Ravignani Conicet –
Universidade de Buenos Aires

Introdução

Basta examinar o catálogo de qualquer biblioteca especializada na América


Latina para perceber que a nação, a questão nacional ou Estado nacional, são
algumas das temáticas mais investigadas pela historiografia, a ensaística, a
crítica literária e as ciências sociais. Não se trata de um interesse casual, uma
vez que considera a nação como um dos eixos articuladores da experiência
histórica continental nos dois últimos séculos.
A atribuição desta centralidade é compartilhada por autores das mais va-
riadas correntes e posições ideológicas, teóricas e epistemológicas, razão pela
qual também são diversos os problemas suscitados e as abordagens utilizadas
para dar conta da nação. O que é notável é que, apesar desta diversidade, na
maioria dessas indagações prevalece uma visão essencialista e teleológica que,
tributária do princípio das nacionalidades difundido pelo romantismo, deu
forma às histórias escritas a partir da segunda metade do século XIX.
Essas histórias, assim como grande parte da historiografia e da ensaística
do século XX, compartilham um pressuposto fundamental que calou fundo
em nossas sociedades, como se pôde constatar nas recentes comemorações dos
bicentenários das revoluções hispano-americanas que proclamaram as inde-
pendências no primeiro quarto do século XIX: considerar que esses processos

1
Este texto é uma tradução com pequenas variações do meu artigo “La nación como concepto
fundamental en los procesos de independencia hispanoamericana (1780-1830)”, em Gilberto
Loaiza Cano e Humberto Quiceno (coord.), Aproximaciones al concepto de nación (Colombia, siglo
XIX), Cali, Universidad del Valle, 2014.
|  29
de frente para o futuro

foram protagonizados por nacionalidades preexistentes ou, em todo caso, por


atores com consciência ou interesses nacionais que pretendiam acabar com o
jugo colonial para poder constituir os atuais Estados nacionais.
Nos últimos anos a historiografia questionou estas interpretações ao pro-
mover uma profunda revisão tanto das revoluções de independência como
do vínculo que se estabelecia entre estas e a nação. Com efeito, colocar em
primeiro plano a crise monárquica como justificativa para o início do processo
revolucionário de um lado e outro do Atlântico (a revolução liberal na Espanha
e a independentista na América), levou a questionar a existência dessas nações
ou nacionalidades e a estabelecer outras formas de conceber as comunidades
políticas, fossem cidades, províncias ou reinos2 . Basta recordar que a maioria
das declarações de independência foram feitas em nome de entidades que não
coincidiam com as nações atuais, e que o mesmo pode ser dito em relação
aos primeiros congressos, que não as representavam nem necesariamente
promoveram sua criação. Mas não se trata apenas de uma diferença no que se
refere ao alcance territorial ou a sua denominação, que são talvez as questões
que primeiro chamam a atenção, mas principalmente aos seus fundamentos e
aos seus componentes sociais e políticos. Isso não deveria surpreendernos, já
que nessa época eram inconcebíveis nossas ideias sobre nação, nacionalidade
e o Estado nacional.
No entanto, isso não significa de modo algum que nessa época não existisse
o conceito de nação ou que este não tivesse nenhum importância. Muito pelo
contrário, se considerarmos as revoluções de independência em um intervalo
de tempo maior, se poderia muito bem argumentar que o conceito teve um
papel decisivo no proceso de transição entre colônia e república.
Neste texto pretendo desenvolver esta afirmação tomando como objeto
de análise os usos e significados do conceito de nação na América Hispânica
entre 1780 y 18303 . Este propósito o distingue de grande parte dos estudos

2
É impossível fazer uma lista ainda que breve dos trabalhos dedicados a estes temas, portanto
me permito citar uma obra coletiva onde se definiram algumas das linhas que renovaram os enfo-
ques sobre a história do período: Antonio Annino e François-Xavier Guerra, coords., Inventando
la nación. Iberoamérica. Siglo XIX, (México: Fondo de Cultura Económica, 2003)
3
Para tanto, retomo e reformulo um trabalho realizado no marco de um projeto de história
conceitual ibero-americana: Fabio Wasserman, “El concepto de nación y las transformaciones
del orden político en Iberoamérica (1750-1850)”, em Jahrbuch für Geschichte Lateinamerikas, 45
(2008): 197-220, também publicado em Javier Fernández Sebastián dir., Diccionario político y social
del mundo iberoamericano. La era de las revoluciones, 1750-1850 [Iberconceptos-I] (Madrid: Fundación
Carolina – Centro de Estudios Políticos y Constitucionales – Sociedad Estatal de Conmemoraciones
Culturales, 2009), 851-869 [http://www.iberconceptos.net/wp-content/uploads/2012/10/DPSMI-
I-bloque-NACION.pdf]. O trabalho original reuniu contribuições de José María Portillo Valdés
(Espanha); Hans-Joachim König (Nueva Granada/Colômbia); Elisa Cárdenas (México); Isabel
Torres Dujisin (Chile); Marcel Velázquez Castro (Peru); Marco Antônio Pamplona (Brasil); Sérgio
Campos Matos (Portugal); Véronique Hébrard (Venezuela); Nora Souto e Fabio Wasserman (Río de
la Plata/Argentina). Cabe salientar que todas as afirmações são de minha inteira responsabilidade.
30 |
fabio wasserman

sobre as nações que enfocam os nacionalismos e os processos de formação e


consolidação dos Estados nacionais4 . As principais divergências têm origem no
objeto de estudo e no enfoque utilizado, pois muitos desses trabalhos partem
de definições apriorísticas sobre o que é uma nação, seja por ter um caráter
normativo como por utilizá-la como categoria de análise, enquanto minha in-
tenção é esclarecer os conceitos de nação que os atores da época tinham e como
estes delimitavam, ordenavam ou orientavam cursos de ação possíveis. Para
tanto, e seguindo algumas das diretrizes desenvolvidas pela história conceitual,
considerarei a função referencial do conceito como indicador e modelador de
estados de coisas, experiências e expectativas, mas também como um fator do
movimento histórico. Minha hipótese é que ao longo desses anos nação foi se
constituindo em um “conceito histórico fundamental”, isto é, aquele que, “em
combinação com dezenas de outros conceitos de similar importância, direciona
e informa inteiramente o conteúdo político e social de uma língua”, atuando
como “conceitos-guia do movimento histórico”5 .
Antes de iniciar a análise gostaria de fazer alguns esclarecimentos que
permitirão calibrar os alcances e os limites do trabalho. O primeiro é que,
embora o sentido dos conceitos não possa ser captado plenamente quando são
examinados de forma isolada, já que formam parte de uma trama conceitual
e discursiva, por razões de espaço e de clareza expositiva concentrei-me em
nação e farei apenas breves alusões a outros com os quais estava vinculado6 .
O segundo é que me restrinjo às elites pois são escassos os estudos sobre as
classes subalternas que utilizam uma perspectiva conceitual e que poderiam
ser aproveitados em um trabalho de síntese como este. O terceiro é que também
incluí a Espanha, pois a história da metrópole e suas colônias estava estreita-
mente inter-relacionada, além de compartilhar o mesmo universo político e

4
Uma revisão dos diversos enfoques e teorias de Gil Delanoi e Pierre-André Taguieff comps.,
Teorías del nacionalismo (Barcelona: Paidós,1993) e Anthony D. Smith, The Nation in History.
Historiographical Debates about Ethnicity and Nationalism (Hanover: University Press of New
England, 2000). Para Iberoamérica Hans-Joachim König “Nacionalismo y Nación en la historia
de Iberoamérica”, Cuadernos de Historia Latinoamericana nº 8 (2000): 7-47 e Tomás Pérez Vejo
“La construcción de las naciones como problema historiográfico: el caso del mundo hispánico”,
Historia Mexicana, LIII, 2 (2003): 275-311.
5
Reinhart Koselleck, “Historia de los conceptos y conceptos de historia”, Ayer 53 (1) (2004):
35; “Un texto fundacional de Reinhart Koselleck. Introducción al Diccionario histórico de con-
ceptos político-sociales básicos en lengua alemana”, Anthropos 223 (2009): 93.
6
Daí o valor de projetos como Iberconceptos, que permitiu desenvolver um estudo compara-
tivo de alcance ibero-americano no qual foi tratado sistematicamente um conjunto de conceitos
fundamentais. No volume I, já citado na nota 3, foram analisados América, Cidadão, Constituição,
Federalismo, História, Liberalismo, Nação, Opinião Pública, Povo e República. O volume II, que
também incorporou equipes com trabalhos sobre o Uruguai, América Central, Caribe e Antilhas
Hispânicas, inclui estudos sobre Civilização, Democracia, Estado, Independência, Liberdade, Ordem,
Partido, Pátria, Revolução e Soberania. Javier Fernández Sebastián dir., Diccionario político y social
del mundo iberoamericano. Conceptos políticos en la era de las independencias, 1770-1870 [Iberconceptos
II] (Madri, Centro de Estudos Políticos e Constitucionais e Universidade do País Basco: 2014).
|  31
de frente para o futuro

cultural. O quarto é que devido ao tratamento muito desigual do ponto de vista


conceitual que diferentes espaços, momentos e atores mereceram, é inevitável
que alguns casos recebam melhor tratamento do que outros.O leitor observará,
por exemplo, que não há nenhuma referência sobre a América Central e as
Antilhas, enquanto que outras áreas como México, Colômbia e Rio da Prata,
e em especial suas cidades mais importantes, podem estar ou parecer super-
-representadas. A fim de mitigar este déficit, procurei que os exemplos citados
fossem o mais representativos possível, independente de quem tenham sido
seus autores.

Uma pluralidade de significados: a palavra nação no século XVIII

A linha metodológica que conduz esta pesquisa sustenta que os conceitos


se caracterizam por sua polissemia, pois para ser considerados como tal devem
reunir vários conteúdos significativos, seja no que se refere a experiências,
estados de coisas ou expectativas. Desse modo, e ao contrário das palavras
que podem ter significados diversos mas definíveis de forma mais ou menos
inequívoca, os conceitos somente podem ser apreendidos através de uma in-
terpretação histórica e linguística que recomponha essa diversidade de forma
sincrônica e diacrônica7.
No entanto, ainda que os conceitos não se limitem aos termos que costumam
designá-los, pode ser útil iniciar sua análise recorrendo a uma aproximação
lexicográfica que permita dar conta de suas definições. A esse respeito cabe
salientar que em meados do século XVIII a palavra nação tinha acepções di-
ferentes e, portanto, seus usos também eram diversos.
Em primeiro lugar, e como assinalava o Dicionário da Real Academia
Espanhola, o termo era empregado como sinônimo do ato de nascer, por isso
poderia ter um significado aproximado ao de ser “cego de nascença”. Ainda
mais importante foi seu uso para explicar a origen ou o local de nascimento
de pessoas ou grupos, como se fazia na Baixa Idade Média para distinguir
membros das ligas universitárias, mercantis ou conciliares8 . É por isso que

7
A principal referência é a obra de Reinhart Koselleck. Além dos textos citados na nota 5, pode
ser consultado Futuro pasado. Para una semántica de los tiempos históricos (Barcelona: Paidós, 1993).
8
Uma síntese dos significados e usos pré-modernos do termo em Alessandro Campi, Nación.
Léxico de Política (Buenos Aires: Nueva Visión, 2006); Aira Kemiläinen, Nationalism. Problems
Concerning the Word, the Concept and Classification (Jyväskylä: Kustantajat Publishers, 1964);
José Andrés Gallego “Los tres conceptos de nación en el mundo hispano”, em Cinta Cantarela
ed., Nación y constitución: De la Ilustración al liberalismo (Sevilla: Universidad Pablo de Olavide y
Sociedad Española de Estudios del Siglo XVIII, 2006), 123-146.
32 |
fabio wasserman

nesse mesmo dicionário se acrescia esta outra definição cujo uso social estaba
muito difundido: “A coleção dos habitantes de uma Província, País ou Reino”9.
Em segundo lugar, e como também assinalava esse dicionário, a palavra
nação poderia assumir um caráter mais impreciso ao ser empregada como sinô-
nimo de estrangeiro sem precisar explicitar sua origem ou procedência. Outro
dicionário dava o seguinte exemplo desse uso: “As pessoas humildes de Madri
chamam nação a qualquer um que seja de fora da Espanha, assim, ao ver uma
pessoa loira dizem, por exemplo, se parece nação”10. Foi empregado do mesmo
modo pelos comuneiros neogranadinos ao expressar seu repúdio às reformas
borbônicas que limitavam o acesso dos nativos a cargos hierárquicos. O pasquim
conhecido como Salud, Señor Regente, que circulou em Nova Granada durante
1781, afirmava que “se estes domínios têm seus próprios donos, senhores nativos,
por que motivo vêm governar-nos malditos estrangeiros de outras regiões”11.
Em terceiro lugar, a palavra nação era empregada para designar populações
que compartilhavam traços físicos ou culturais como língua, religião e costu-
mes. Este uso tendia a sobrepor-se aos anteriores, supondo-se que aqueles que
tinham a mesma origem também deveriam partilhar algumas características
capazes de distingui-los.
Desta perspectiva, nação poderia remeter a uma ampla gama de referên-
cias. Seguindo uma antiga tradição, utilizava-se a mesma para designar povos
considerados por sua alteridade, fossem bárbaros, gentios, pagãos ou idólatras.
Mas também poderia referir-se a uma comunidade que se distinguisse por
determinadas características que não expressassem necessariamente uma
distância tão radical. Félix de Azara, um funcionário enviado pela Coroa ao
Rio da Prata no final do século XVIII, escreveu uma obra sobre a história e a
geografia da região informando a seus leitores potenciais que “Chamarei nação a
qualquer congregação de índios que tenham o mesmo espírito, usos e costumes,
com idioma próprio tão diferente dos conhecidos por lá, como o espanhol do
alemão”12 . Certamente que para o ilustrado Azara a diferença entre espanhóis
e alemães não era da mesma natureza que entre estes e os indígenas.
Este significado teve uma trajetória particular no continente americano,
pois foi endossado pelos grupos que eram designados dessa maneira. É o caso

9
Real Academia Espanhola, Diccionario de la lengua castellana, en que se explica el verdadero sentido
de las voces, su naturaleza y calidad, con las phrases o modos de hablar, los proverbios o refranes, y otras
cosas convenientes al uso de la lengua [...] Compuesto por la Real Academia Española. Tomo quarto. Que
contiene las letras G.H.I.J.K.L.M.N, (Madrid: Imprenta de la Real Academia Española, 1734), 644.
10
Esteban de Terreros y Pando, Diccionario Castellano con las voces de Ciencias y Artes y sus correspon-
dientes de las tres lenguas Francesa, Latina e Italiana (Madrid: Imprenta de la viuda de Ibarra, hijos y
compañía, 1786), t. II, 645. Grifo no original. Nesta e em todas as citações a ortografía foi atualizada.
11
Pablo E. Cárdenas Acosta, El movimiento comunal de 1781 en el Nuevo Reino de Granada (Bogotá:
Editorial Kelly, 1960), t. II, 127.
12
Félix de Azara, Descripción e historia del Paraguay y del Río de la Plata, (Buenos Aires: Editorial
Bajel, 1943), 100 (o texto foi escrito em 1790 e editado postumamente em Madri, 1847).
|  33
de frente para o futuro

dos escravos africanos e seus descendentes, que se agrupavam em nações


identificadas com seus lugares de procedência, como Congo e Benguela. Ou de
alguns povos indígenas, como no final de 1780 quando Tupac Amaru dirigiu-se
ao Bispo de Cusco para explicar-lhe que o movimento por ele liderado buscava
acabar com os tributos cobrados pelos corregedores “aos fiéis vassalos de minha
nação” que gravavam também “as demais nações”, razão pela qual solicitava “a
isenção plena em minha nação de todo tipo de impostos”13 .
Por fim, havia uma série de usos e significados do termo cujas conotações
eram de caráter político. Com efeito, a palavra nação também poderia ser em-
pregada para fazer referência a populações regidas por um mesmo governo ou
as mesmas leis muito além de sua origem ou traços socioculturais. Por isso, em
alguns dicionários dos séculos XVII y XVIII pode-se encontrar definições como
as seguintes: “Nome coletivo que significa alguma cidade grande, Reino, ou
Estado. Submisso a um mesmo Príncipe ou Governo”14 . Como observou José C.
Chiaramonte, esta concepção forjada no marco do processo de reordenamento
político da Europa moderna, foi difundida por tratadistas e divulgadores do
Direito Natural e das Gentes que enfatizavam o caráter contratual desta asso-
ciação política às vezes denominada Estado. Emmer de Vattel, autor de uma das
obras desta corrente de maior circulação em ambos lados do Atlântico entre
meados dos séculos XVIII e XIX, sustentava, por exemplo, que “As nações ou
estados são corpos políticos ou sociedades de homens reunidos com a finalidade
de procurar sua preservação e vantagem, mediante a união de suas forças”15 .
Isto evidencia que, ao contrário do que se costuma alegar, a acepção política
de nação antecedeu a Revolução Francesa. Em todo caso, isto possibilitou que
fosse considerada como sujeito soberano, ideia que também estava presente
em autores como Vattel, ainda que atribuindo-lhe outras características que
não faziam nenhuma referência à soberania popular16 .

13
Carlos Daniel Valcárcel ed., Colección Documental de la Independencia del Perú. Tomo 2: La
Rebelión de Túpac Amaru (Lima: Comisión Nacional del Sesquicentenario de la Independencia
del Perú, 1971), vol. 2, 346.
14
Terreros y Pando, Diccionario Castellano, t. II, 645. Definições similares podem ser en-
contradas em outras línguas que compartilham a mesma raiz, como português e francês (que
incorporava também um componente linguístico): “Nome colectivo, que se diz da Gente, que
vive em alguma grande região, ou Reino, debaixo do mesmo Senhorio”; “Tous les habitants d’un
mesme Estat, d’un mesme pays, qui vivent sous mesmes loix, & usent de mesme langage”. Rafael
Bluteau, Vocabulário Portuguez & Latino (Lisboa: Oficcina de Pascoal da Sylva, 1716), vol. V, 568;
Dictionnaire de l’Académie français, (1694), 110.
15
Emmer du Vattel, Le droit de gens ou principes de la loi naturelle apliques a la conduite et aux
affaires des nations et des souveaines, (Leyden, 1758), citado em José C. Chiaramonte, Nación y
estado en Iberoamérica. Los lenguajes políticos en tiempos de las independencias, (Buenos Aires:
sudamericana, 2004), 34.
16
Assim, ao comentar uma citação extensa de Christian Wolff na qual aparece a palavra nação,
Vattel esclarecia que “Une nation est ici un État souverain, une société politique indépendente”
cit. en Chiaramonte, Nación y Estado, 34.
34 |
fabio wasserman

Na verdade isto era impensável não apenas no mundo hispânico, pois a


ideia dominante há séculos era que a sociedade não poderia existir sem alguma
autoridade, seja resultado de um pacto de obediência entre povo e monarca,
fruto da vontade divina, ou atribuída a uma combinação de ambas as origens.
Esta concepção está presente, por exemplo, na crítica realizada por Joaquín de
Finestrad ao movimento comuneiro neogranadino de 1781. Para o frei capu-
chinho, “A Nação deve ser vista como um indivíduo. É um corpo político que
tem partes integrantes e cabeça que o compõem”, deixando claro em várias
passagens que, para poder subsistir como comunidade, os membros deveriam
submeter-se a sua cabeça, que era o Rei. Propósito que, como deixava explícito,
coincidia com a definição política de nação: “A Pátria é o Reino, é o Estado, é o
corpo da Nação, da qual somos membros e onde vivemos unidos pelo vínculo
das mesmas leis sob o governo do mesmo Príncipe”17.
Esta breve análise permite concluir que até o final do século XVIII a pa-
lavra nação era utilizada em dois sentidos diversos que percorriam caminhos
separados: o sociocultural ou étnico e o político. Ao contrário da concepção
que iria se impor a partir de meados do século seguinte, mantendo-se até os
dias atuais, o pertencimento a uma nação entendida como submissão a um
Estado ou a uma mesma estrutura política não implicava nem tinha como pres-
suposto que seus membros deveriam compartilhar uma identidade étnica ou
algum outro atributo que os distinguisse. Embora admitindo-se que uma certa
homogeneidade da população poderia contribuir para sua governabilidade, a
fundação da nação entendida como sujeito político repousava/assentava-se no
direito divino ou na realização de acordos entre seus membros, fossem corpos
coletivos ou indivíduos.

As referências da nação

O termo nação tinha significados de natureza diversa, mas em todos os


casos cumpria com uma função precisa que, considerada a longo prazo, talvez
seja sua marca mais perene: distinguir, delimitar ou definir populações e/ou
estruturas políticas.
No final do século XVIII esta delimitação tinha diferentes posibilidades
que não eram apenas uma consequência das diversas acepções do termo. A
nação, muitas vezes escrita com maiúscula, designava em primeiro lugar a
totalidade dos reinos, províncias e povos que deviam obediência à monarquia
espanhola, bem como sua população, com exceção das castas e, em alguns
casos, da república dos índios. Finestrad afirmava, por exemplo, que “O Povo

17
Joaquín de Finestrad, El Vasallo instruido en el estado del Nuevo Reino de Granada y en sus
respectivas obligaciones, Margarita González Int. e transcrição (Bogotá: Faculdade de Ciências
Humanas – Universidade Nacional da Colômbia, 2000), 224 y 321.
|  35
de frente para o futuro

Americano e o Espanhol, formam ambos nossa Nação e ambos devem reco-


nhecer como seu legítimo Rei e Senhor Natural ao Senhor Dom Carlos III”18 .
Porém não se tratava apenas de uma convicção dos espanhóis peninsulares ou
europeus, já que as elites nativas, cujos membros muitas vezes denominavam-se
espanhóis americanos, também se consideravam parte dessa nação. Mesmo os
protagonistas das reações provocadas pelas reformas bourbônicas no final do
século XVIII mostravam-se críticos do “mau governo”, mas sem questionar a
lealdade para com o Rei nem o fato de fazer parte da nação espanhola. Mais
do que isso, este pertencimento podia ser usado como argumento para exigir
um tratamento mais justo. No processo realizado em 1795 por ter traduzido
e publicado a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, Antonio Nariño
defendeu-se alegando que

Um deles é o piedoso Monarca que a todos nós governa, nós mesmos


somos seus vasalos, algumas são suas justas leis; elas não fazem dis-
tinção entre recompensa e punição para os que nascem aos quatro e
meio graus de latitude daqueles que nascem aos quarenta, abraçam
toda a extensão da Monarquia e sua influência benéfica deve abranger
igualmente toda a nação19.

As menções diretas a nação referiam-se à Espanha, porém entendida como


o conjunto da monarquia cujos domínios se expandiam por vários continen-
tes. Contudo, também poderia considerar-se que em seu âmago conviviam
nações de outra índole: províncias e reinos americanos ou peninsulares que
se distinguiam por sua densidade demográfica, social e cultural, ou por seu
desenvolvimento econômico, político e institucional.
Estes traços característicos foram destacados e estilizados por escritores
em cujos textos tomaram forma representações que favoreceram seu reconhe-
cimento como nações concebidas em caráter sociocultural. É o caso de alguns
ilustrados peninsulares que, entre meados e o final dos Setecentos, promoveram
uma reflexão sobre a natureza da nação espanhola. Esta empreitada, animada por
um espírito reformista, levou-os a unificar os diferentes reinos que coexistiam
na Península e a traçar uma demarcação entre esta, entendida como uma nação
europeia, e a Coroa, que possuia um caráter pluricontinental. José Cadalso, por
exemplo, escreveu, em 1768, uma inflamada Defesa da nação espanhola para
rebater as críticas feitas por Montesquieu em uma de suas Cartas Persas que,
certamente, eram compartilhadas por mais de um ilustrado europeu 20. Em sua

18
Finestrad, El Vasallo, 343.
19
Antonio Nariño “Apología”, em José Manuel Pérez Sarmiento comp., Causas Célebres a los
precursores, (Bogotá: Imprenta Nacional, 1939) t. I, 129.
20
José Cadalso, Defensa de la nación española contra la Carta persiana LXXVIII de Montesquieu,
(Toulouse: France-Iberie Recherche, 1970).
36 |
fabio wasserman

argumentação, Cadalso deixou explícito que a nação espanhola era a sociedade


estabelecida na Península, além de fazer uma breve revisão de sua história, e
de destacar suas riquezas naturais, seu desenvolvimento cultural e moral, e as
qualidades que distinguiam os espanhóis, como coragem, compaixão e senso
de honra.
No marco deste movimento que buscava deslindar a nação espanhola da
monarquia que a regia, promoveu-se também uma reflexão sobre sua constituição
social, estabelecendo a existência de leis que lhe davam forma e cujo conheci-
mento remontava a vários séculos atrás. Estas considerações não implicavam
de forma alguma em ignorar a autoridade do Rei, mas favoreciam a possibili-
dade, então conjetural, de promover reformas para que a nação tivesse uma
representação própria e, portanto, gozasse de certa autonomia. Nesse sentido
destacou-se Victorián de Villava, o Fiscal de Audiência de Charcas nascido em
Zaragoza em cujos Apontamentos para a reforma da Espanha, escritos em 1797
e inéditos por um quarto de século, propunha criar um “Conselho Supremo
da Nação” com participação de representantes americanos21. Tratava-se, po-
rém, de uma raridade, pois essas propostas costumavam omitir as províncias
americanas, já que a maioria dos reformistas tratavam-nas como colônias ou
almejavam que cumprissem esse papel 22 .
Este tratado apenas reforçou a reação dos nativos letrados que há décadas
procuravam enfrentar os preconceitos de alguns autores europeus sobre o
continente e seus habitantes, muitos dos quais eram compartilhados e difundi-
dos pelos próprios espanhóis23 . Desse modo seus atributos morais e materiais
começaram a destacar-se, em um movimento que, em alguns casos, resultou
na identificação como nações de seus reinos ou províncias. Assim, em res-
posta ao desdém com que Manuel Martí havia se referido ao desenvolvimento
intelectual da Nova Espanha em suas Cartas latinas, publicadas em 1735, o
Bispo de Yucatan e ex-Reitor da Universidade do México, Juan José Eguiara y
Eguren, propôs “transformar em ar e fumaça a calúnia levantada contra nossa
nação”. Para tanto, decidiu editar a Biblioteca Mexicana, que deveria acomodar
a vasta obra produzida pelos escritores “mexicanos de nascença”, onde incluía
obras de nativos, espanhóis e indígenas, destacando em mais de um trecho o

Portillo Valdés, José María, La vida atlántica de Victorián de Villava (Madrid: Fundación
21

MAPFRE, 2009).
22
O debate sobre a pertinência de considerar as Índias como colônias foi retomado há pouco
tempo em “Para seguir con el debate en torno al colonialismo ...”, Nuevo Mundo Mundos Nuevos,
On-line desde 08 fevereiro 2005, consultado em 08 julho 2013. http://nuevomundo.revues.org/430.
Uma análise que aborda o problema a partir da perspectiva conceitual em Francisco Ortega,
“Ni nación ni parte integral. Colonia, de vocablo a concepto en el siglo XVIII iberoamericano”,
Prismas. Revista de Historia Intelectual, 2011 (15), 11-29.
23
Uma exaustiva análise das considerações feitas sobre o continente americano em Antonello
Gerbi, La disputa del nuevo mundo. Historia de una polémica 1750-1900 (México: Fondo de Cultura
Económica, 1982).
|  37
de frente para o futuro

desenvolvimento cultural e as qualidades dos antigos habitantes do México e


seus descendentes24 . Isso permite compreender sua decisão, então inusitada,
de designar como mexicanos o vasto e heterogêneo grupo de autores cuja obra
almejava resenhar.
Recorrer a este qualificativo iria ser de grande importância, pois um dos ele-
mentos em jogo na hora de considerar alguns reinos ou províncias como nações
era a possibilidade de reivindicação de uma população nativa que permitisse
particularizá-las, conferir-lhes densidade histórica e identificá-las. Daí o valor
e interesse que adquiriram as obras escritas ou publicadas por alguns jesuítas
após sua expulsão em 1767, já que muitas delas associavam o território de um
reino ou província com um povo indígena detentor de determinada identidade
ou homogeneidade étnica. Francisco Javier Clavijero, por exemplo, em sua
História Antiga do México, utilizava a palavra nação para enumerar cada um
dos povos que habitaram o Anahuac (toltecas, chichimecas, acolhuas, olmecas,
otomis, etc.), mas acabava identificando seus traços físicos e morais com um
deles: “os mexicanos”25 . Da mesma forma, mas fazendo referência a um reino
localizado do outro lado do continente, para Juan Ignacio Molina “Parece que
no início tivesse se estabelecido no Chile uma única nação; todas as tribos in-
dígenas que ali vivem, embora independentes umas das outras, falam a mesma
língua e têm a mesma fisionomia”26 .
Embora não tenha sido necessariamente o objetivo de seus autores, estas
considerações foram usadas mais de uma vez pela elite nativa no momento de
reconhecer-se ou imaginar-se membro de uma nação. O Chile, por exemplo,
apesar de não ter o mesmo desenvolvimento econômico, sociocultural e institu-
cional que o México, contava com uma produção discursiva sobre os araucanos
que, somada a outras condições como seu relativo isolamento e sua organização
como Capitania Geral, criou condições favoráveis para ser considerado como
uma nação. Contudo, a reivindicação destas particularidades, ou de outras,
como a veneração da Virgem de Guadalupe no México e a de Santa Rosa, no
Peru, que encorajavam o que alguns autores decidiram chamar de “patriotismo
crioulo”27, não implicava uma tradução política nem um afã de independência:
no final do século XVIII a nação compreendida como um Estado ou como po-
pulações submetidas a um único governo, continuava tendo como referência a
Monarquia com o Rei à frente. Por isso se poderia estabelecer a existência de

24
Juan José Eguiara y Eguren, Bibliotheca Mexicana, Benjamín Fernández Valenzuela trad. do
Latin, Ernesto de la Torre Villar coord., (México: Universidad Nacional Autónoma de México,
1986), 53 y 175.
25
Francisco Javier Clavijero, Historia Antigua de México, (México: Editorial Porrúa, 1991, 1ra.
ed. em italiano, 1780), 44/5.
26
Juan Ignacio Molina, Compendio de la Historia Civil del Reino de Chile, Nicolás De La Cruz y
Bahamonde ed. e tradutor de italiano (Madrid: Imprenta de Sancha, 1795,), 12.
27
David Brading, Los orígenes del nacionalismo mexicano, (México: Era, 1997), 25.
38 |
fabio wasserman

nações consideradas pelo caráter étnico, sociocultural ou territorial que, por


sua vez, faziam parte da nação espanhola definida pelo fato de compartilhar a
lealdade à Coroa e às leis da monarquia.
Levando-se em conta a perspectiva conceitual, o que mais se destaca nesta
pluralidade de referências de nação é sua baixa densidade e fato de que, em
geral, remete a estados de coisas mais do que à abertura de novos horizontes
ou possíveis cursos de ação. Se bem que sua acepção em caráter contratual
permitia a criação de uma nova nação ou que alguma já existente se procla-
masse soberana, eram possibilidades que recém começaram a surgir no con-
texto da crise desencadeada pelas Abdicações de Baiona, em maio de 1808, e
a resistência à coroação de José I, irmão de Napoleão Bonaparte. Apesar das
inovações introduzidas pelos ilustrados durante a segunda metade do século
XVIII, continuou prevalecendo a ideia de que a existência da nação, seja como
corpo político ou como sociedade, dependia de sua subordinação ao Rei. E se
havia algo inimaginável na época era exatamente isso, a ausência do monarca.

A crise monárquica e o surgimento da nação como sujeito soberano

A crise da Coroa e as revoluções na Espanha e América deram início a um


processo durante o qual o conceito de nação passou a ocupar o primeiro plano
ao surgir a possibilidade de sua existência sem o monarca e a criação de novas
entidades políticas. Fator decisivo nesse aspecto não foi tanto uma mudança no
plano das ideias, o que sem dúvida aconteceu e foi radical, mas nas condições
de produção das mesmas e dos discursos nos quais estas ganhavam forma e
circulavam 28 .
No contexto desse processo, cujo ritmo e intensidade não foram similares
em todos os espaços nem setores sociais, a palavra nação passou a ter uma
difusão mais ampla, além de sofrer importantes mudanças qualitativas que
a dotaram de maior densidade. Enquanto aumentavam significativamente as
qualificações de que era credora/merecedora ou os atributos que lhe impunham,
em geral positivos, disseminava-se a adjetivação de experiências com o termo
nacional. E se nação havia tido até então um papel passivo no discurso social,
pois somente poderia ser uma questão de ações para melhorá-la, elogiá-la,
exaltá-la ou defendê-la, o fato de passar a ser considerada como sujeito político
autônomo possibilitou que também agisse, ainda que devesse fazê-lo através
de seus representantes.
Em termos conceituais também aconteceram mudanças decisivas, já que
o termo nação sofreu um rápido processo de politização e ideologização que

28
Elías Palti realizou uma interpretação deste processo complexo destacando os problemas
que acarretava conceber a soberania nacional, unindo dois conceitos até então antagônicos, em
El tiempo de la política. El siglo XIX reconsiderado (Buenos Aires, Siglo XXI: 2007), cap. 2.
|  39
de frente para o futuro

aumentou sua carga polêmica. Não foi um fenômeno isolado, pois a mesma coisa
ocorreu com muitos outros conceitos com os quais formou uma trama política e
discursiva. As relações que nação estabelecia com esses outros conceitos eram
de natureza diversa. Podiam ser de oposição, como aconteceu com colônia, ou
com facção e partido, pois eram considerados expressão de interesses parciais
que dividiam a nação. E aconteceria a mesma coisa com província e povo/s no
marco das disputas entre federais ou autonomistas e centralistas. Mas os vín-
culos nem sempre eram claros e inequívocos: povo/s poderia ser associado de
maneira positiva a nação se esta se identificava com um povo ou com a união
de povos que concordavam em reunir-se em um corpo político. Nação tam-
bém se vinculou positivamente a conceitos como pátria, território, América,
cidadão, independência, opinião pública, ordem e, acima de tudo, soberania,
constituição e representação, que davam conta da inovação que implicava a
existência ou criação da nação como sujeito autônomo e soberano, que devia
constituir-se através de seus representantes.
No discurso articulado em torno desta rede conceitual ganharam forma
problemas enormes delimitados pela necessidade de redefinir os vínculos po-
líticos e sociais dos súditos da Coroa. É devido a isso que, se o conceito nação
remetia até então a estados de coisas existentes e, em particular, à Monarquia,
seus domínios e seus súditos, invocá-lo em um contexto pactista legitimado
pela doutrina da retroversão da soberania permitiu que também propagasse a
possibilidade de criar comunidades políticas de cunho novo, que fossem também
expressão de relações sociais não menos inovadoras. Nesse sentido, podem ser
identificadas duas tendências, ainda que na prática as propostas costumassem
combinar elementos de ambas: a daqueles que idealizavam uma nação única
e indivisível de caráter abstrato constituída por indivíduos, e a daqueles que
julgavam que era formada por corpos coletivos, fossem estamentos ou povos
que reassumiram sua soberania ante o estado de acefalia – reinos, províncias,
povos ou cidades. De uma forma ou de outra, a verdade é que isto implicou
em uma temporalização do conceito: a nação orientava-se inevitavelmente em
direção ao futuro que não se desejava que fosse legatário do passado.
A possibilidade de definir conjuntos políticos de essência diversa, agora
associada à ideia de soberania, também levou a uma expansão dos marcos de
referência de nação. Nesse sentido havia a possibilidade de manter unidos
todos os domínios da Coroa; de levar a uma divisão entre sua seção europeia e
americana; à proclamação como nações de alguns de seus vice-reinados, reinos
e províncias; ou à associação de algunas dessas entidades ou de parte delas em
diferentes órgãos políticos.
Afora essa diversidade, o que não foi questionado de modo algum foi o
caráter católico que essas nações deveriam ter e, exceto para os absolutistas
contrarrevolucionários, a necessidade de sua organização exigir uma sanção
constitucional para dar-lhe consistência e regular as relações entre seus mem-
bros, além de assegurar-lhes seus direitos. Por isso o debate político confundiu-
40 |
fabio wasserman

-se muitas vezes com o constitucional, sendo incontáveis as convocatórias para


assembleias e as constituições promulgadas a partir de 1808. Nestas foram
colocadas em discussão concepções sobre a nação e seus alcances, sejam es-
paciais (que territórios ou povos faziam parte da nação), sociais (que setores
a integravam e quais estavam excluídos; de que forma e sob quais princípios
deveriam ser estruturadas as relações sociais), ou políticos (quais os direitos e
obrigações de seus membros, como eram concebidos e representados).
Esta diversidade traduziu-se em conflitos que expressavam diferentes
visões e interesses, pois a partir da crise monárquica e das revoluções pôs-se
em foco o acesso ao poder mas também, e isso é decisivo para entender o radi-
calismo dos enfrentamentos que animaram a vida política pós-revolucionária,
sua própria definição. A partir de então a definição de nação não poderia mais
ser ignorada, constituindo-se em um conceito histórico fundamental dessa
conflituosa experiência.

A nação espanhola: entre as cortes de Cádis e a monarquia absoluta

Para embrenhar-se na análise deste processo é necessário começar pela


própria Espanha. Em maio de 1808 aconteceram as Abdicações de Baiona, que
levaram à prisão de Fernando VII e à coroação do irmão de Napoleão sob o título
de José I, provocando, para assombro de muitos, a rejeição de grande parte da
população, que se levantou em armas e enfrentou as tropas francesas. Se no
início desse movimento convocou-se os habitantes das cidades, províncias e
reinos, ou seja, as comunidades políticas que protagonizavam a insurreição e
proclamavam as Juntas para defender os direitos de Fernando VII, a guerra
favoreceu a difusão de uma concepção unitária de nação29. Às vezes esta ope-
ração era explícita, como se pode constatar em um texto do político e ensaísta
catalão Antonio de Capmany:

O que seria dos espanhóis se não houvesse aragoneses, valencianos,


murcianos, andaluzes, asturianos, galegos, estremenhos, catalães,
castelhanos, etc.? Cada um destes nomes inflama e envaidece e
destas pequenas nações compõe-se a massa da grande Nação […]30.

A invocação à nação como sujeito disseminou-se no discurso público e


avalizou-se com a criação, em setembro de 1808, de uma Junta Central que foi
reconhecida pela maioria dos espanhóis e americanos. Pouco tempo depois este
conselho diretivo realizou uma convocatória às Cortes para que os representantes

29
Francois-Xavier Guerra, Modernidad e Independencias. Ensayo sobre las revoluciones hispánicas,
(Madrid: Mapfre, 1992), 157.
30
Antonio de Capmany, Centinela contra franceses (Madrid: Gómez Fuentenebro y Compañía,
1808), 94 [http://156.35.33.113/derechoConstitucional/pdf/espana_siglo19/centinela/centinela.pdf].
|  41
de frente para o futuro

do povo pudessem dotar a nação de um marco institucional. Mas este propósito


poderia implicar em diversas opções, razão pela qual também foi motivo de dis-
putas. Para alguns esse chamado deveria limitar-se a promover uma colaboração
entre o Rei e a nação, como vinham propondo alguns reformistas ilustrados
desde o final do século anterior. Ao contrário, aqueles que brandiam ideias mais
radicais acreditavam que a nação era um sujeito soberano que tinha o direito
de constituir-se segundo sua vontade, interesse e necessidade. Esta posição,
encorajada por aqueles que se identificariam como liberais, foi a que prevaleceu
quando, em setembro de 1810, e no contexto de uma situação crítica provocada
pela derrota das forças espanholas que no início daquele ano levou à dissolução
da Junta Central e à criação de um Conselho de Regência, as Cortes conseguiram
reunir-se em Cádis, decretando que nelas residia a soberania nacional. E teve
sua confirmação em março de 1812 ao ser sancionada uma constituição em que
se proclamava que a nação era livre e independente e que nela residia essencial-
mente a soberania, embora seu título fosse Constituição Política da Monarquia
Espanhola, talvez para preservar seu caráter pluricontinental. Cabe salientar
que, diferente de outras constituições da época que começavam proclamando
direitos individuais, esta definia a Nação espanhola como “a reunião de todos os
espanhóis de ambos hemisférios”, adjetivo com o qual eram designados todos os
homens livres e domiciliados nos territórios da monarquia 31.
Porém esta concepção de nação não estava tão difundida como pareciam
acreditar os deputados das Cortes ou, se preferirmos, não contava com a mes-
ma legitimidade que o soberano. A derrota das forças francesas e a queda de
Napoleão permitiram a Fernando VII subir ao trono em 1814 sem que encon-
trasse maiores obstáculos para restaurar o absolutismo. Uma de suas primeiras
medidas foi decretar a anulação da Constituição e a suspensão das Cortes,
ameaçando com a pena de morte aqueles que as invocassem ou promovessem:

[…] declaro que minha real intenção é não apenas não jurar nem
consentir com a referida constituição nem com qualquer decreto das
Cortes gerais e extraordinárias, a saber, os que reduzem os direitos
e prerrogativas da minha soberania, estabelecidas pela constituição
e as leis em que a nação tem vivido por muito tempo, mas o de de-
clarar aquela constituição e tais decretos nulos e de nenhum valor e
efeito, agora nem em tempo algum, como se tais atos não tivessem
acontecido jamais, [...]32 .

31
Constitución política de la Monarquía Española: Promulgada en Cadiz a 19 de Marzo de 1812.
Precedida de un Discurso preliminar leído en las Cortes al presentar la Comisión de Constitución
el proyecto de ella (Madrid: Imprenta que fue de García; Imprenta Nacional, 1820), 4. Tanto a
Constituição como uma seleção significativa dos documentos institucionais produzidos a partir
de 1808 podem ser consultados no portal http://www.cervantesvirtual.com/portal/1812
32
“Decreto dado en Valencia a 4 de mayo de 1814 firmado por YO, EL REY”, citado em Juan
Angel de Santa Teresa, Sumario de injusticias, fraguadas por el liberalismo impío, contra la religión
42 |
fabio wasserman

O que importa aqui, como se depreende do Decreto, é que se pode constatar


que nessa época nem mesmo os defensores do absolutismo poderiam ignorar
o conceito de nação. Sua generalização para dar conta da sociedade espanhola
como comunidade o havia convertido em um conceito indiscutível e, portanto,
polêmico: já que não se podia ignorá-lo, se deveria discutir seu conteúdo e seu
significado. Isto pode ser constatado em um libelo publicado quando ocorreu a
segunda restauração de Fernando VII após outro breve interregno constitucional,
conhecido como o triênio liberal (1820-3), cujo autor, um clérigo absolutista,
recordava com satisfação a extinção das Cortes e da Constituição, alegando
que “com este Decreto Real a nação oprimida respirou” 33 .

Os povos americanos: de colônias a nações

Entre 1808 e 1810 os americanos também sofreram o impacto da crise


monárquica, distanciando-se progressivamente da metrópole que logo se
converteria em uma revolução e uma longa guerra que iria culminar com a
independência de grande parte do continente. No contexto desse conflituoso
e confuso processo começou a ser considerada a possibilidade de que nação,
entendida como corpo político soberano, fosse a própria América, mas tam-
bém seus vice-reinados, reinos e províncias ou a associação de algunas dessas
entidades ou dos povos que as formavam.
A ruptura que ocorreu com a Espanha e com a antiga ordem não foi apenas
factual mas também discursiva, além de implicar em uma forte carga emocio-
nal e uma redefinição das identidades, como é possível constatar em nação e
em outros conceitos fundamentais através dos quais estas mudanças foram
expressas. A esse respeito cabe ressaltar que quando se buscava mobilizar a
população, e especialmente nos tempos de guerra, apelava-se mais à pátria do
que à nação. Isto deveu-se tanto a sua maior carga emocional quanto ao uso
generalizado entre amplos setores sociais, que davam continuidade à tradição
hispânica de invocar a tríade Deus (ou religião), Pátria e Rei, embora reformulada
ao associar-se a valores como liberdade e igualdade, e ao começar a suprimir
o monarca da mesma 34 . A nação, no entanto, era mais invocada e passava ao
primeiro plano quando eram discutidas a soberania, a representação e a criação
de instituições políticas.

catolica e inocencia cristiana de España (Zaragoza: Imprenta de Andrés Sebastián, 1823), 10.
33
Santa Teresa, Sumario, 11.
34
O maior apelo à pátria em situação bélica foi relatado há varias décadas por Pierre Vilar em
“Patria y nación en el vocabulario de la guerra de la independencia española”, Hidalgos, amo-
tinados y guerrilleros. Pueblos y poderes en la historia de España, (Barcelona: Crítica, 1982), 237.
Sobre a tríade pode ser consultado Gabriel di Meglio “Patria” em Noemí Goldman ed., Lenguaje
y revolución. Conceptos políticos clave en el Río de la Plata, 1780-1850, (Buenos Aires, Prometeo,
2008), 115-130.
|  43
de frente para o futuro

Em janeiro de 1809 a Junta Central, que procurava reunir todo o apoio pos-
sível, emitiu uma Proclama afirmando que os domínios americanos não eram
colônias, mas “uma parte essencial e integrante da monarquia espanhola”, motivo
pelo qual também tinham direito de escolher representantes para participar
desse corpo diretivo. Contudo esse reconhecimento ficou manchado ao outor-
gar aos americanos uma representação exígua em relação a sua população. Esta
decisão, que deu lugar a eleições em numerosas cidades americanas, provocou
reações que oscilavam entre o apoio irrestrito e o mais absoluto repúdio. Mas
mesmo nesse caso, a liderança nativa parecia contentar-se com a obtenção de
mais direitos e um maior grau de autonomia sem que isso acarretasse deixar
de pertencer à nação espanhola. Em novembro de 1809, Camilo Torres redigiu
uma Representação da Municipalidade de Santafé endereçada à Junta Suprema,
sustentando que

Estabelecer pois uma diferença neste aspecto, entre América e


Espanha, seria destruir o conceito de províncias independentes e
de partes essenciais e constituintes da monarquia, e seria supor
um princípio de degradação. As Américas, senhor, não são com-
postas de estrangeiros para a nação espanhola. Somos filhos, somos
descendentes dos que derramaram seu sangue para adquirir estes
novos domínios da coroa de Espanha […] Somos tão espanhóis como
os descendentes de Dom Pelayo e por esta razão tão credores das
distinções, privilégios e prerrogativas do resto da nação35 .

Ainda que possa parecer paradoxal, a ênfase com que Torres defendia
o pertencimento dos americanos à nação espanhola não fazia mais do que
evidenciar o progressivo distanciamento entre os nativos e a metrópole, cujo
desfecho, contudo, ainda não se vislumbrava com clareza.
No início de 1810, após o triunfo das forças francesas que ocuparam a
Espanha, a Junta Central foi dissolvida, escolhendo-se em substituição um
Conselho de Regência que se instalou na Ilha de León sob a proteção da ma-
rinha britânica. A reação na América foi imediata: em várias cidades ocorre-
ram movimentos que desconstituiram as autoridades coloniais e instituiram
Juntas governamentais amparando-se no estado de acefalia que justificava a
retomada da soberania por parte do povo. O Conselho de Regência ignorou as
juntas americanas, que em geral também o rejeitaram por considerá-lo uma
autoridade ilegítima cujo poder não emanava do Rei nem dos povos ou, para
aqueles que preferiam considerá-los como um único corpo, da nação. É o caso de
Francisco Miranda, que em um artigo publicado em El Colombiano, de Londres,

35
Camilo Torres, “Representación del Cabildo de Santafé (Memorial de agravios)”, em José Luis
Romero y Luis A. Romero (comps.), Pensamiento político de la emancipación (1790-1825), (Caracas:
Biblioteca Ayacucho, 1977), t. I, 29.
44 |
fabio wasserman

reproduzido pelo diário oficial de Buenos Aires, afirmava que a Junta Central
havia “criado um Soberano sem a participação da nação”36 .
É importante ter em conta os deslizes conceituais ocorridos nesse breve
período, os quais a revolução e a guerra tornaram irreversíveis, pois foi nessas
circunstâncias em que nada ainda estava definido e que eram confusas para
seus próprios protagonistas que foi concebida a possibilidade de que os povos,
além de reassumir a soberania, também pudessem constituir nações sobe-
ranas, livres e independentes. Neste sentido, é paradigmática a trajetória de
Camilo Torres, que em pouco tempo deixou de reclamar uma representação
mais equitativa no seio da nação espanhola para passar a propor a formação
de uma nação neogranadina. Em uma longa carta datada de 29 de maio de
1810, endereçada a seu tio José Ignacio Tenorio, que integrava a Audiência de
Quito, Torres repassava as diferentes alternativas que se apresentavam aos
americanos, concluindo que

[…] perdida a Espanha, dissolvida a monarquia, rompidos os vínculos


políticos que a uniam às Américas, e destruído o governo que havia
organizado a Nação para comandá-la em meio à tempestade, e en-
quanto tinha esperanças de salvar-se —; não há solução. Os reinos
e províncias que compõem estes vastos domínios são livres e inde-
pendentes, e não podem nem devem reconhecer outro governo nem
outros governantes além daqueles que os mesmos reinos e províncias
nomeiem e se deem livre e espontaneamente de acordo com suas
necessidades, seus desejos, sua situação, seus objetivos políticos, seus
grandes interesses, e conforme a índole, caráter e costumes de seus
habitantes. Cada reino escolherá a forma de governo que mais lhe
convier, sem consultar a vontade de outros com quem não mantenha
relações políticas nem qualquer dependência. Este Reino, por exemplo,
está tão distante dos demais, seus interesses são tão diversos destes,
que realmente pode ser considerado como uma nação separada das
demais, unido apenas por laços de sangue e por relações familiares;
este reino, digo, pode e deve organizar-se por si só 37.

Sem dúvida alguma eles também eram aqueles que continuavam acreditando
na possibilidade de que a Espanha subsistiria, por conseguinte mantinham sua
lealdade às autoridades metropolitanas e aos vice-reinados. Para eles a nação
seguia sendo o conjunto da Monarquia ou, em todo caso, o de seus súditos, que
deviam fidelidade e obediência ao Rei, como sustentou a Gazeta de Montevideo
em meados de 1811:

36
La Gazeta de Buenos Ayres, n° 18, 4/X/1810, 288.
37
Proceso histórico del 20 de Julio de 1810. Documentos, (Bogotá: Banco de la República, 1960),
66. O documento foi citado em várias ocasiões, às vezes datado de maio de 1809, quando Torres
faz referência a fatos ocorridos posteriormente, como a batalha de Ocaña. Avalio que o erro se
deve ao afã por dotar os protagonistas das revoluções de uma consciência nacional.
|  45
de frente para o futuro

Os direitos do Trono a ele transmitidos pelos Povos são sagrados e


perpétuos, e a vassalagem destes é necessária e perdurável. A pessoa
do Rei, que é o Magistrado Supremo, reúne as obrigações de todos
os cidadãos à Nação, e qualquer um que tentar separar-se desta, ou
negar-lhe seus direitos ou contestar suas deliberações, é um réu de
lesa-majestade ou, o que é a mesma coisa, da Nação.38

Contudo, o fato de reivindicar o pertencimento à nação espanhola não im-


plicava necessariamente em uma relação de submissão colonial ou uma defesa
obstinada do absolutismo. Também poderia ser aproveitada para exigir igualdade
de direitos, como havia proposto anos antes, mas agora sob a proteção providen-
ciada pelo constitucionalismo liberal gaditano. Foi o que fez, por exemplo, Gaspar
Rico y Angulo quando, em 1812, defendeu o periódico El Peruano do Conselho de
Censura, alegando que “a soberania é indivisível, pois residindo essencialmente
na nação e constituindo a nação de espanhóis de ambos hemisférios, é igual em
todos os povos, e não muda nos lugares onde acidentalmente se situa”39.
Nessa época, assim como na Espanha, na América também havia se pro-
pagado o uso polêmico de nação. Nenhum ator que interviesse no debate pú-
blico podia evitá-lo, nem mesmo os absolutistas contrarrevolucionários que
tiveram que discutir seu significado com os insurgentes e, ao mesmo tempo,
com aqueles que aderiram ao liberalismo gaditano. Assim, ao recordar Gabriel
Moscoso, o Governador de Arequipa que morreu vítima da revolução iniciada
em Cusco em 1814, o Presbítero Mateo Joaquín de Cosío revelou-se crítico da
Constitução de 1812 por “abrir as portas de par em par para a insurreição”,
enquanto elogiava Fernando VII por tê-la anulado, deixando claro que “os fiéis
vassalos desejamos apenas que se conservem conservadas as antigas leis que
nossos pais obedeceram, reconhecendo a Soberania no Rei e não na nação; pois
esta, desde sua fundação, sempre a respeitou nos reis; […]”40 .
No discurso dos insurgentes ou revolucionários, no entanto, houve um
processo de politização do patriotismo crioulo do século XVIII. Isto deu lugar
a uma renovada identidade americana associada a ideias e valores como a li-
berdade, em oposição à espanhola que passou a ser considerada expressão do
despotismo colonial. Grande parte dos líderes revolucionáríos não hesitava
em afirmar que a sua nação era a América, como fez o padre mexicano Miguel
Hidalgo em uma Proclama de setembro de 1810 à “Nação Americana” na qual

38
Gazeta de Montevideo n° 33, 14/VIII/1811 (Montevideo: Imprenta de la Ciudad de Montevideo),
283.
39
El Peruano (Lima: 1812), 425.
40
D. D. Mateo Joaquín de Cosío, Elogio Fúnebre del señor D. José Gabriel Moscoso, Teniente Coronel
de los Reales Ejércitos, Gobernador Intendente de Arequipa. En las exequias que el ilustre Cabildo
justicia y regimiento de dicha ciudad hizo en honor y sufragio de tan benemérito jefe el dia 9 de mayo
de 1815 (Lima: Bernardino Ruiz, 1815), 47.
46 |
fabio wasserman

incitava os “americanos” a libertar-se da “tirania dos europeus”41. Ou no Decreto


de Abolição da Escravidão, de 27 de novembro de 1810, em que fazia referência
ao “feliz momento em que a valorosa nação americana pegou em armas para
sacudir o pesado jugo que a mantinha oprimida por cerca de três séculos”42 .
Quanto à possibilidade de constituir uma nação americana como um corpo
político, embora tenha havido expressões prematuras como a federação idealizada
por Miranda enquanto permanecia em Londres nos primeiros anos do século XIX,
apenas adquiriu consistência no contexto da crise que deu lugar ao processo revo-
lucionário e independentista43. Como é fato conhecido/Comoé sabido, apesar da
prédica e dos esforços nesse sentido realizados por líderes como Simón Bolívar, essa
nação jamais seria constituída. Na carta enviada a seu tio em maio de 1810, Camilo
Torres advertia sobre as dificuldades que sua realização acarretaria, concluindo
que Nova Granada deveria constituir-se em uma nação. E a mesma proposta seria
apresentada poucos meses depois por Mariano Moreno, líder da ala radical dos
revolucionários rio-platenses e Secretário da Junta de Governo de Buenos Aires,
quando sustentou que era inviável convocar um congresso americano devido às
dificuldades materiais e geográficas, e também injustificado, pois tendo a soberania
retrovertido aos povos perante a ausência do Rei, não havia motivo para que perma-
necessem unidos, embora acreditasse que aqueles que integravam o Vice-reinado
do Rio da Prata deveriam fazê-lo 44. Portanto, foram outros os marcos territoriais
nos quais foram definidas as novas unidades políticas concebidas como nações,
embora a ideia de uma nação americana, entendida em termos culturais como
expressão de unidade continental, iria desfrutar de uma longa vida.
As disputas em torno da dimensão territorial, do papel dos povos e do caráter
que a nação deveria ter, são alguns dos fios condutores que articularam em uma
mesma trama a crise, a revolução e as guerras de independência, com os enfrenta-
mentos que se sucederam ou foram solapados e que muitas vezes são considerados
como guerras civis45. Quanto a isso, e contra o que estabeleceu a historiografia
durante mais de um século, o mínimo que pode ser dito é que foi um processo

41
Miguel Hidalgo, “Proclama del cura Hidalgo a la Nación Americana” em Haydeé Miranda
Bastidas y Hasdrúbal Becerra sel., La Independencia de Hispanoamérica. Declaraciones y Actas
(Caracas: Biblioteca Ayacucho, 2005), 38.
42
Miguel Hidalgo, “Abolición de la esclavitud y otras medidas decretadas por Hidalgo” em
Carlos Herrerón Peredo, Hidalgo. Razones de la insurgencia y biografía documental (México: SEP,
1986), 242.
43
Francisco de Miranda, “Bosquejo de Gobierno provisorio” em Romero y Romero, Pensamiento
político, t. I, 13-19.
44
“Sobre el Congreso convocado y Constitución del Estado”em Gaceta de Buenos Aires nº 27,
6/XII/1810.
45
Embora não seja o tema deste trabalho, gostaria de chamar a atenção sobre a necessidade de
questionar a nítida distinção que se costuma fazer entre as guerras de independência e as guerras
civis, o que é apenas uma das muitas consequências do fato de considerar as nações americanas como
entidades preexistentes ou destinadas a se constituírem da maneira como as conhecemos hoje.
|  47
de frente para o futuro

aberto e indeterminado que foi assumindo novos significados para seus próprios
protagonistas à medida que transcorria. Para isto foram decisivos alguns conceitos
como nação, que além de dotar os acontecimentos de inteligibilidade, eram capazes
de delinear cursos de ação possíveis ao indicar um norte para orientá-los.
A independência, que supostamente era o propósito inicial dos revolucioná-
rios, não foi necessariamente proclamada pelas Juntas erigidas no contexto da
crise nem pelos governos que surgiram depois delas. Ao mesmo tempo em que se
mantinha a lealdade a Fernando VII, eram feitos pronunciamentos contraditórios
ou ambíguos em relação a seu pertencimento à nação espanhola. Então, poucos
dias após ter sido criada, a Junta de Caracas decidiu dirigir-se ao Conselho de
Regência, fazendo-o perceber que “É muito fácil confundir o significado dos
nossos procedimentos e dar a uma comoção provocada apenas pela lealdade
e o sentimento de nossos direitos, o caráter de insurreição antinacional”46 .
Estes “procedimentos” incluiam a eleição de deputados que formaram uma
representação nacional dos povos da Venezuela. Mas esta representação, que
expressava uma comunidade munida de um governo próprio, não comportava
uma identidade nacional venezuelana e tampouco se opunha a uma eventual
“concorrência às cortes gerais de toda a nação, desde que sejam convocadas
com aquela justiça e equidade de que é credora a América que forma a maior
parte dos Domínios do cobiçado e perseguido Rei da Espanha”47.
Evidente que essa “justiça e equidade” não foi uma característica da liderança
da metrópole, cuja visão sobre a posição subordinada que a América deveria ter
na nação espanhola apenas aprofundou a brecha existente entre as elites nati-
vas, apesar da ampliação de direitos promovida pelas Cortes. Assim, nos anos
seguintes e no contexto das guerras que sacudiram o continente, diversos povos
ou reuniões de povos declararam sua independência e seu desejo de constituir-se
em nações soberanas, procurando organizar instituições governamentais que
pudessem garantir seus direitos e os de seus membros. Conforme observava
o diário oficial do governo de Buenos Aires, isto implicava em “Ascender da
condição degradante de Colônia obscura à hierarquia de uma Nação”48 .
Para grande parte dos americanos, esse processo confuso em que estavam
imersos há anos havia encontrado no calor da revolução e da guerra um rumo
e um sentido precisos: a transição de colônias a entidades soberanas que po-
deriam constituir-se como nações. A nação voltava-se para um futuro no qual
reinariam a liberdade e a independência, enterrando no passado o despotismo
e os séculos de opressão e dominação colonial.

46
“A la Regencia de España, 3 de mayo de 1810” em Actas del 19 de Abril. Documentos de la
Suprema Junta de Caracas (Caracas: Concejo Municipal, 1960), 99.
47
Gazeta de Caracas, 27/VII/1810.
48
Gazeta de Buenos Ayres, 27/V/1815.
48 |
fabio wasserman

A nação como criação política: entre a vontade, a legitimidade


e a possibilidade

Mas como se poderia alcançar esse futuro? E, mais precisamente, como eram
constituídas as nações? Como eram reconhecidas? Quais eram seus atributos?
Que papel se atribuía aos indivíduos e aos povos que as formavam? Em termos
teóricos ou ideológicos havia um repertório de respostas mais ou menos exatas
que podiam divergir em alguns aspectos e por isso davam lugar a debates e
polêmicas. Mas a maior fonte de conflitos foi sua decisão prática, isto é, polí-
tica, já que através de suas concepções se expressavam e se buscavam impor
posições e intereses políticos, sociais, econômicos, territoriais ou jurisdicionais.
Em maio de 1825, o Congresso Constituinte das Províncias do Rio da Prata
discutiu a possibilidade de criar um exército nacional perante a iminente dis-
puta com o Brasil pela Banda Oriental (conflito cujo desfecho seria a criação da
República do Uruguai como nova nação soberana). Um dos entusiastas deste
debate foi o cônego saltenho Juan Ignacio Gorriti, que se opôs à criação desse
exército alegando que a nação era inexistente. Embora concordasse com a criação
de uma nação que centralizasse o poder e governasse o território rio-platense,
entendia que mesmo que não fosse sancionada uma Constituição as províncias
continuariam sendo soberanas. Ao ter sua opinião questionada, viu-se obrigado
a explicar que “De duas maneiras pode ser considerada a nação, ou como pessoas
que têm um mesmo idioma, apesar de formarem diferentes estados, ou como
uma sociedade já constituída sob o regime de um único governo”. O primeiro
caso seria o da antiga Grécia ou Itália, assim como da América do Sul, que na
sua opinião poderia ser considerada como uma nação mesmo tendo diferentes
Estados, “mas não no sentido de uma nação que é regida por uma única lei, que
tem um único governo”, que era ao que ele se referia 49.
Gorriti assim sintetizava os dois significados do conceito nação que, em
meados da década de 1820, e após ter sido declarada a independência de qua-
se todo o continente, seguiam percorrendo caminhos separados. Embora sua
acepção como população que possui traços idiossincráticos continuasse sendo
utilizada, a que prevaleceu naquela época foi a de caráter político, que a distin-
guia por ser resultado de um ato voluntário de seus membros para constituir
uma comunidade regida pelas mesmas leis e um único governo.
Esse ato voluntário foi revelado algumas semanas mais tarde, quando os
representantes dos povos do Alto Peru declararam sua independência, descar-
tando a possibilidade de juntar-se ao Peru ou às Províncias do Rio da Prata. A
esse respeito, sustentaram que “A representação Soberana das Províncias do
Alto Peru” havia decidido erigir-se

49
Sesión del 4/V/1825 em Emilio Ravignani (ed.), Asambleas Constituyentes Argentinas, 1813-
1898, (Buenos Aires: Peuser, 1937), t. I, 1325.
|  49
de frente para o futuro

[…] em um Estado Soberano e Independente de todas as nações, tanto


do velho como do novo mundo, e os departamentos do Alto Peru,
firmes e unânimes nesta tão justa e magnânima decisão, protestam
perante o mundo inteiro, que sua vontade irrevogável é governar-se
por si próprios, e ser regidos pela constituição, leis e autoridades que
eles próprios se dessem, e acreditassem mais condizentes com sua
futura felicidade como nação, e a sustentação inalterável de sua santa
religião católica, e dos sagrados direitos de honra, vida, liberdade,
igualdade, propriedade e segurança 50.

Se bem que poderiam ter apelado para alguma particularidade capaz de


identificar esses povos que buscavam constituir-se como nação, o certo é que
em nenhuma declaração de independência ou constituição associava-se nação
com sua definição étnica ou com algum traço sociocultural, pois predominava o
fato de ser considerada como corpo político soberano, constituído pela vontade
de seus membros, sejam indivíduos ou sujeitos coletivos como as províncias.
Não se tratava de uma exceção nem obedecia apenas à natureza política
desses documentos. Nos textos jurídicos da época e no ensino do Direito, por
exemplo, a nação também era definida dessa forma. No curso sobre Instituições de
Direito Natural e das Gentes, ministrado em 1822/3 na recém-criada Universidade
de Buenos Aires, Antonio Sáenz ensinava a seus alunos que

A sociedade assim chamada por antonomásia também costuma ser


denominada nação e Estado. É uma reunião de homens que se sub-
meteram voluntariamente à direção de alguma autoridade suprema,
também chamada soberana, para viver em paz e conseguir seu próprio
bem e segurança 51 .

Do mesmo modo, no Direito das Gentes, publicado dez anos mais tarde
no Chile, Andrés Bello afirmava que “Nação ou Estado é uma sociedade de
homens que tem por objetivo a preservação e felicidade dos associados; que é
governada por leis positivas emanadas dela própria e é dona de uma porção de
território”52 . A permanência desta concepção e sua vasta difusão na América
Latina devem-se a suas numerosas reedições corrigidas que seguiram sendo
publicadas durante décadas em Santiago, Caracas, Cochabamba, Lima, Buenos

50
Declaração de 6 de agosto de 1825 em Colección oficial de leyes, decretos y órdenes de la República
Boliviana. Años 1825 y 1826 (La Paz: Imprenta Artística, 1826), 17.
51
Antonio Sáenz, Instituciones elementales sobre el derecho natural y de gentes, (Buenos Aires:
Faculdade de Direito e Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires, 1939), 61.
52
Andrés Bello, Principios de Derecho de Jentes (Santiago de Chile: Imprenta de la Opinión, 1832), 10.
50 |
fabio wasserman

Aires, Madri e Paris, embora a partir de 1844 com o título modernizado como
Princípios de Direito Internacional53 .
O fato das nações poderem constituir-se pela vontade de seus membros
favorecia a criação de entidades inovadoras. Essa característica tornou-se ex-
plícita na própria denominação em alguns casos como Bolívia, Argentina ou
Colômbia, o que, é claro, também implicou na criação de novos adjetivos ou de
sua resignificação54 . De qualquer forma, nos Vice-reinados, Reinos ou Províncias
que durante o período colonial podiam ser reconhecidos como nações, também
se podia legitimar a construção de um poder político como representação dessa
entidade preexistente. No Sermão que abriu um Congresso Nacional no Chile
em julho de 1811, o frei Camilo Henríquez fez constantes referências à “nação
chilena” que, além de ser católica, era detentora de direitos que a habilitavam a
fazer uma constituição capaz de garantir sua liberdade e felicidade ante o estado
de acefalia em que se encontrava a monarquia 55 . Da mesma maneira, quando
dez anos mais tarde aconteceu a declaração de independência do México como
reação de parte de suas elites ante o triunfo da revolução liberal na Espanha,
seus autores deixaram claro que se tratava de uma nação que existia há séculos:
“A nação mexicana, que por trezentos anos nem teve vontade, nem livre o uso
da voz, hoje sai da opressão em que viveu”56 .
O fato de proclamar a independência, seja de nações que se consideravam
preexistentes ou de povos que aspiravam a formar uma nova instituição, po-
deria ser considerado uma clara demonstração da existência de uma vontade
nacional. No entano, isso não era suficiente, pois se quisesse ter existência
política e ser reconhecida como uma nação, também deveria ser sancionada
uma constituição para dar-lhe forma. O periódico La Abeja Republicana recor-
dava, em setembro de 1822, a declaração de independência realizada no ano
anterior por José de San Martín, alegando que a libertação do Peru permitira a
seus habitantes transitar “da classe dos colonos […] para compor uma grande
e heroica nação” capaz de apresentar-se “perante as nações”57. Mas como iriam
perceber seus redatores semanas mais tarde, este propósito somente poderia
ser cumprido através de um Congresso Constituinte: “E a formação desta nação,

53
Andrés Bello, Principios de Derecho Internacional, 2da. ed. Corrigida e ampliada (Valparaíso:
Imprenta del Mercurio, 1844).
54
José Carlos Chiaramonte e outros, comps., Crear la nación. Los nombres de los países de América
Latina (Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 2008).
55
Camilo Henríquez, “Sermón en la instalación de Primer Congreso Nacional”, em Escritos
Políticos de Camilo Henríquez Raúl Silva Castro rec., (Santiago de Chile: Ediciones de la Universidad
de Chile, 1960), 50-59.
56
“Acta de Independencia del Imperio Mexicano pronunciada por su Junta Soberana, congregada
en la capital de él, en 28 de septiembre de 1821”, em Bastidas y Becerra, La Independencia, 42.
57
La Abeja republicana (Lima: Imprenta de José Masias, 22/IX/1822).
|  51
de frente para o futuro

como começá-la? Que o decida o Congresso Soberano a cujas luzes foi confiada
a sorte das gerações presentes e futuras”58 .
Se era somente através da constituição que a nação poderia ganhar forma,
compreende-se por que motivo sua análise e a dos debates constitucionais
permitem penetrar nas diversas concepções sobre a ordem social e política
que o conceito veiculava. A Constituição Política da República Peruana, sancio-
nada em novembro de 1823, afirmava, em seu primeiro artigo, que “Todas as
províncias do Peru reunidas em um só corpo formam a Nação Peruana” e, no
terceiro, que “A soberania reside essencialmente na Nação”59. Por sua vez, a
Constituição para a República Peruana, também conhecida como Constituição
Vitalícia, promulgada em novembro de 1826 sob a inspiração de Bolívar, sus-
tentava que “A Nação Peruana é a reunião de todos os Peruanos”, e o mesmo se
estabelecia naquela sancionada na mesma época pela Bolívia60. Quase todas as
constituições asseguravam que a “soberania reside essencialmente na nação”
ou em fórmulas similares que a convertiam no sujeito político por excelência.
Precisamente por isso podiam expressar diversas concepções sobre o que era
ou deveria ser a nação e, em particular, sobre quem a compunha. Na constitui-
ção de 1823 as províncias do Peru eram corpos coletivos; enquanto que na de
1826 os peruanos eram indivíduos. Mas mesmo dentro dessas opções também
se poderia encontrar alternativas. Os corpos coletivos podiam ser estamentos
tal como se propôs em alguns projetos constitucionais. E os indivíduos podiam
ser considerados de outro modo: a Constituição Política sancionada em março
de 1828 declarava que “A Nação Peruana é a associação política de todos os
cidadãos do Peru” e já não “a reunião de todos os peruanos”. Definição que faz
sentido quando se tem presente que muitos de seus habitantes não reuniam as
qualidades necessárias para ser considerados cidadãos61.
Esta última questão remete ao lugar que, nas diferentes propostas de nação,
era atribuído às classes subalternas, cujos membros podiam ser considerados
ou não como cidadãos plenos. Os indígenas, por exemplo, costumavam ser
excluídos da cidadania política, distanciando-se, assim, das regras de alguns
dos discursos e projetos propostos no contexto do processo revolucionário que
aspiravam a sua integração social e política, seja como indivíduos ou como co-
munidades. Esse distanciamento ficou explícito em mais de uma ocasião, como
em meados do século, quando Juan B.Alberdi, ao repassar as constituições que
haviam sido sancionadas no continente para decidir o modelo mais adequado

58
La Abeja republicana (Lima: Imprenta de José Masias, 24/XI/1822).
59
http://bib.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/01482074789055978540035/index.htm
60
http://bib.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/01479514433725784232268/index.htm
61
http://bib.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/02450576436134496754491/index.
htm.
52 |
fabio wasserman

para a nação argentina, permitiu-se afirmar com total crueza que “O indígena
não figura nem é levado em conta na nossa sociedade política e civil”62 .
A composição social e étnica não era o único motivo de discussão em
torno da construção da nação. Muito mais acirrada foi a disputa em relação
à soberania dos povos e a sua integração ou não com a nação que, com muita
frequência, estimulou os conflitos entre autonomistas, federalistas e centralistas
ou unitários. Enquanto que os primeiros tendiam a utilizar o conceito de nação
enfatizando a vontade dos povos para constituí-la, os segundos costumavam
acrescentar como requisito uma espécie de critério informal e pragmático:
ter capacidade suficiente para poder manter sua soberania e independência63 .
No início de 1822 e perante à resistência de Guaiaquil em incorporar-se
à República da Colômbia, Simón Bolívar escreveu uma carta a José Joaquín
Olmedo, que presidia o Conselho Diretivo, afirmando que “uma cidade com um
rio não pode formar uma nação” e que a própria natureza fez com que a cidade
e sua região fizessem parte da Colômbia, de modo que reconhecia a esse povo o
direito à “completa e livre representação na Assembleia Nacional”64 . Dois anos
antes essa mesma concepção havia encorajado a intervenção de Francisco Zea
ao presidir as sessões do Congresso da recém-criada República da Colômbia.
Zea defendia que esse extenso território pródigo em riquezas somente poderia
“entrar no mundo político” por vontade expressa de seus membros. No entanto,
também advertia que era uma condição insuficiente ao salientar que

As nações existem de fato e são reconhecidas, digamos, por seu


tamanho, designando por esta palavra o conjunto de território, po-
pulação e recursos. Vontade manifesta e um tamanho considerável
são os dois únicos títulos que podem ser exigidos de um povo novo
para ser admitido na grande sociedade das nações 65 .

Um ano depois, o mexicano José María Luis Mora publicava no Semanário


Político e Literário um texto que procurava contestar os liberais espanhóis e
legitimar a recente independência do México e sua instituição como nação.
Para tanto considerou necessário definir em que consistia, començando por
desconsiderar uma possível má interpretação do princípio de soberania popular
que, no seu entender, havia causado um grande dano ao

62
Juan B. Alberdi, Bases y puntos de partida para la organización política de la República Argentina,
(Buenos Aires: Plus Ultra, 1982), 82 [Valparaíso, 1852].
63
Este critério é semelhante ao “princípio do limiar” defendido em meados do século por
nacionalistas europeus como Giuseppe Mazzini. Eric Hobsbawm, Naciones y nacionalismo desde
1780 (Barcelona, Crítica, 2000), 39-48.
64
Cali, 2/1/1822 Simón Bolívar, Doctrina del Libertador, Manuel Pérez Vila comp. (Caracas:
Fundación Biblioteca Ayacucho, 1992): 137/8.
65
Correo del Orinoco n° 50, Angostura, 29/I/1820.
|  53
de frente para o futuro

[…] povo ignorante, persuadido de sua soberania e carente de ideias


precisas que determinem de um modo firme e exato o sentido da
palavra nação, acreditou que se deveria considerar como tal toda
reunião de indivíduos da espécie humana, sem outras qualidades
e circunstâncias. Equívocos que devem promover a discórdia e a
desunião e fomentar a guerra civil!
[…]
Que é então que entendemos por esta palavra nação, povo ou socie-
dade? E qual o sentido que lhe deram os ensaístas quando afirmam
sua soberania nos termos expressos? Não pode ser outra coisa senão a
reunião livre e voluntária de homens que podem e querem constituir-
-se na terra legitimanente possuída, em um Estado independente dos
outros. Nem é crível que as nações reconhecidas como soberanas
e independentes possam alegar outros títulos, a capacidade para
constituir-se como tal e sua vontade para efetuá-lo

Depois disso, passava a enumerar essas condições indispensáveis para


constituir-se como nação que, conforme alegava, possuia o recém-criado
Império Mexicano: território, população, instrução e forças armadas capazes
de garantir a ordem interna e defendê-lo de qualquer agressão externa. Para
concluir, o que se demandava era “uma terra possuída legitimamente e a força
física e moral para mantê-la”66 .
Em resumo, para aqueles que defendiam este ponto de vista, a existência
da nação não dependia somente do livre arbítrio e do consentimento de seus
membros. Também era preciso contar com uma base moral e material capaz de
dar-lhe sustento. É por isso que mesmo em uma declaração de independência
tão tardia como a realizada pelo Congresso do Paraguai, em novembro de 1842,
se alegava “que além dos justos títulos que tem como fundamento, a natureza
o favoreceu para que seja uma nação forte, populosa, fértil em recursos, e em
todos os ramos da indústria e comércio”67.

Rumo a um novo conceito de nação: de frente para o futuro


mas com raízes no passado

Em 1842, mesmo ano em que o Paraguai proclamava formalmente sua inde-


pendência, produzia-se no Chile um intenso e prolífico debate sobre literatura
entre escritores locais e rio-platenses, exilados devido a sua oposição ao governo
de Juan Manuel de Rosas. Nesses artigos jornalísticos, que ficariam conhecidos
como A polêmica do romantismo, percebe-se uma ênfase maior nas referências

66
José María Luis Mora, “Discurso sobre la independencia del Imperio Mejicano” [21/XI/1821]
em Obras sueltas de José María Luis Mora, ciudadano mejicano (París: Librería de Rosa, 1837), t. II,
11.
67
Bastidas y Becerra, La Independencia, 84.
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fabio wasserman

culturais e identitárias que o conceito ‘nação’ poderia portar 68 . Não se tratava


de um fato excepcional, pois nessa época, tanto nação como a trama conceitual
e discursiva da qual fazia parte, estavam ocorrendo importantes mudanças
que estavam entrelaçadas com transformações econômicas, sociais, políticas e
culturais mais vastas. O ritmo e intensidade destes processos foi variável, mas
o resultado a médio prazo seria o mesmo: a unificação dos dois significados
de nação, o étnico ou sociocultural e o político, tal como ficaria sintetizado no
sintagma Estado nacional. Esta nova conceituação implicou também outras
mudanças decisivas, como o fato de considerar a origem da nação em um pas-
sado longínquo e quase mítico, ou a atribuição de um caráter transcendente
que tendia a atenuar, resignificar ou, em suas versões mais extremas, fazer
desaparecer a vontade de seus membros. A análise dessas mutações excede as
possibilidades do presente trabalho, motivo pelo qual, nestas linhas finais, me
limitarei a fazer algumas observações de caráter geral.
Este breve apanhado começará pelo mesmo lugar que o anterior: os di-
cionários. Em sua edição de 1869, o Dicionário da Real Academia Espanhola
não parecia registrar nenhuma alteração, pois continuava definindo nação do
mesmo modo que vinha fazendo há mais de um século. Contudo, nas entra-
das seguintes que assinalam alguns termos derivados de nação, se percebe a
existência de usos e significados que dotavam o conceito de um novo sentido.
Uma das novidades foi a introdução de uma palavra até então ausente, como
nacionalismo, se bem que ainda não se atribuia a ela nenhum caráter políti-
co, pois era definida como “Apego dos nativos de uma nação a ela própria e a
quanto lhe pertence”. Esta característica, no entanto, era registrada na acepção
que se dava à palavra nacionalidade e que, em grande parte, era tributária do
princípio das nacionalidades elaborado e difundido por escritores, ensaístas e
políticos pertencentes ao movimento romântico e aos nacionalismos europeus.
Com efeito, enquanto que nas edições anteriores “nacionalidade” somente fazia
alusão a uma inclinação particular de alguma nação, agora era definida pela
primeira vez como a “Condição e caráter peculiar do agrupamento de povos
que formam um Estado independente”69.
Como costuma acontecer com os dicionários, esta edição apenas recolhia
usos e significados que já existiam há vários anos, até mesmo décadas. No caso
das repúblicas hispano-americanas se pode perceber que a partir de 1830 houve
um interesse crescente por conhecer, inventariar e difundir valores, instituições
e modos de vida locais. Este traço distintivo expressava-se através da palavra
nacionalidade, que embora ainda tivesse um caráter algo difuso quanto a seus
conteúdos e contornos, evidenciava a progressiva tendência a unificar no con-

68
Norberto Pinilla, La polémica del romanticismo (Buenos Aires: Americalee, 1943).
69
Real Academia Espanhola, Diccionario de la lengua castellana décima primeira edição (Madrid:
Imprenta de Don Manuel Rivadeneyra, 1869), 631.
|  55
de frente para o futuro

ceito nação o pertencimento a uma comunidade política representada por um


Estado e uma identidade coletiva de caráter sociocultural.
Esta mudança conceitual foi possível graças a uma combinação de vários
fatores, a começar pela formação de identidades e interesses compartilhados por
diferentes grupos sociais e regionais após décadas de vida independente. Este
processo favoreceu, em alguns casos, a consolidação de estruturas estatais que,
por sua vez, procuravam adquirir maior legitimidade alegando ser a expressão
de uma nacionalidade. Mais do que acordos, alianças e experiências em comum
que possibilitaram este processo, também foram decisivos os conflitos e en-
frentamentos em cujo desenvolvimento foi se consolidando a associação entre
nação, identidade e território. Nesse contexto, cabe diferenciar três tipos de
conflitos armados. Os internos, que costumam ser interpretados como guerras
civis e que em mais de uma ocasião provocaram o enfraquecimento de lide-
ranças regionais, favorecendo a consolidação de estruturas estatais nacionais.
As guerras entre Estados americanos mais ou menos consolidados, como a que
mantiveram Chile e a Confederação Argentina contra a Confederação Peru-
Bolívia (1836-1839), a Guerra da Tríplice Aliança na qual Argentina, Brasil e
Uruguai combateram contra o Paraguai (1865-1870), ou a Guerra do Pacífico
entre Chile, Peru e Bolívia (1879-1883). E, por último, os que envolveram po-
tências estrangeiras, como a ocupação do México por tropas dos Estados Unidos
(1846-1848) e França (1862-1867), as intervenções da França e Inglaterra no
Rio da Prata entre 1838 e 1850, ou os ataques da marinha espanhola às costas
do Pacífico (1864-1866). Estas considerações merecem pelo menos dois escla-
recimentos para que não sejam mal interpretadas. A primeira é que a distinção
entre conflitos internos e externos nem sempre foi muito nítida, e certamente em
mais de um caso foram seu desenvolvimento e seu resultado que contribuiram
para formar expressões, representações e identidades nacionais, sem mencio-
nar que também podem ter favorecido a consolidação de Estados nacionais e a
derrota de forças oponentes. A segunda é que não há uma relação automática
de causa-efeito entre conflito bélico e identidades, mas sem dúvida tendem a
criar condições favoráveis para sua difusão e consolidação.
Claro que para que isto fosse possível, também foi necessário pôr em ação
escritores e ensaístas que elaboraram discursos e representações em que essas
identidades tomaram forma. Destacaram-se os autores românticos que colo-
caram a nação, a cultura e a identidade nacional no centro de sua produção
literária, jornalística, ensaística e historiográfica. Embora todos estes gêneros
tenham uma grande importância, talvez a mais decisiva a médio e longo prazo
tenha sido a historiográfica. Na rede que articulava esses relatos históricos, que
com toda justiça passaram a ser consideradas histórias nacionais, aspirava-se
a mostrar o processo de constituição da nação em um passado longínquo ou,
ao menos, o dos elementos que estavam predestinados a formá-la, assim como
o das leis ou princípios que regiam seu futuro e a orientavam para um destino

56 |
fabio wasserman

inexorável70 . Dessa maneira, era possível atribuir-lhes um caráter transcen-


dente que as tornava imunes às contingências ou à vontade dos homens, como
explicitou Bartolomé Mitre em 1852 ao referir-se à nacionalidade argentina:

A tradição, os antecedentes históricos, a constituição geográfica, os


sacrifícios comuns, a identidade de crenças e de caráter, a unidade de
raça, a planície ininterrupta do pampa, e essa atração misteriosa que um
povo exerce sobre o outro, tudo conspira para fazer que a Confederação
Argentina seja indivisível [sic] como a túnica do Redentor.
Este sentimento, este princípio é mais forte que os homens, é mais
forte que os próprios povos. Em vão reagir contra ele […]
A nacionalidade é uma lei orgânica, uma lei constitutiva desse pedaço
de terra que hoje se chama Confederação Argentina. É independen-
te da vontade dos homens, porque reside em todos os elementos
essenciais da sociedade, circula em seu sangue, aspira-se com o ar,
é a alma desse corpo e, como a alma, ainda viverá, à semelhança do
patriotismo romano quando se dissolver o corpo que o abrigou 71 .

Contudo, mesmo que nesse momento o novo sentido de nação estivesse


disponível e pudesse ser encontrado nas produções intelectuais e nos debates
públicos, a verdade é que levou muito tempo para se impor. De fato, até a segunda
metade do século XIX continuou prevalecendo a concepção pactista de nação
cuja legitimidade consistia no livre arbítrio ou consentimento de seus mem-
bros, como foi se consolidando no calor das revoluções de independência. As
inovações que tendiam a fundir seu sentido étnico e político recém começavam
a ter repercução e mostrariam todo seu potencial décadas mais tarde, quando
conseguiram consolidar-se os Estados nacionais que buscavam estabelecer-
-se e legitimar-se no princípio das nacionalidades. É claro que nessa época o
panorama social, político e intelectual havia sido transformado radicalmente
e o mundo em que fora concebido era inevitavelmente outro.

70
Para o conceito História me remeto aos trabalhos publicados em Fernández Sebastián,
Diccionario político y social, t. I 551-692. Um panorama que aborda diversos casos de vínculo
entre história e nação no século XIX em Guillermo Palacios, comp., La nación y su historia.
Independencias, relato historiográfico y debates sobre la nación. América Latina, siglo XIX, (México:
El Colegio de México, 2009). Uma análise comparativa de três histórias nacionais produzidas na
segunda metade do século XIX em Fernando Devoto, “La construcción del relato de los orígenes
en Argentina, Brasil y Uruguay: las historias nacionales de Varnhagen, Mitre y Bauzá” em Jorge
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Mais detalhes sobre o que poderia ser considerado uma história nacional, em Fabio Wasserman,
Entre Clío y la Polis. Conocimiento histórico y representaciones del pasado en el Río de la Plata (1830-
1860), (Buenos Aires: Teseo, 2008), 91-107.
71
“Nacionalidad” em El Nacional nº 137 (Buenos Aires: Imprenta Argentina, 27/10/1852).
|  57
de frente para o futuro

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62 |
Nas origens do nacionalismo político
da I República Portuguesa: o projeto da
“nacionalização do Estado” e o debate jurídico
e político em torno da conceção da soberania e
do modelo de representação política
Paula Borges Santos
Instituto de História Contemporânea – Universidade Nova de Lisboa

Introdução

A experiência histórica do primeiro tempo do republicanismo em Portugal,


enquanto poder público constituído, designadamente o período compreendido
entre 1910 (ano da proclamação da República) e 1926 (ano da instauração da
Ditadura Militar no País, na sequência do golpe militar de 28 de maio), fez-
-se sob o signo da modernização da sociedade, a realizar por via do próprio
processo de republicanização (tido simultaneamente como seu propulsor e
como seu instrumento viabilizador). Os cultores desse desígnio projetaram tal
modernidade para todos os domínios sociais, sem exclusão do espaço político
e da configuração das suas instituições. O dinamismo que envolveu a recom-
posição do sistema político-institucional passou, em boa medida, por uma
transformação dual: por um lado, foi promovida a emancipação do indivíduo
face às instituições, mas, por outro lado, a autonomia do indivíduo foi restrin-
gida com fundamento em teses que abandonavam a conceção individualista
e contratualista como origem da sociedade e do poder político, e as próprias
instituições revelaram estar dependentes, em maior ou menor grau, de novos
procedimentos de regulação. Nestes eixos refletiram-se a recriação política da
“nação” e da identificação desta com o próprio Estado.
A complexidade desta última articulação impôs a necessidade de resposta à
questão: como se nacionalizou o Estado? Ou, por outras palavras, de que modo
as mudanças introduzidas no que até então foi a conceção tradicional de “nação”,

|  63
nas origens do nacionalismo político...

determinaram um ideário que não só gerou a reconstituição simbólico-cultural


da identidade nacional como serviu para reorganizar o Estado e os seus poderes?
Com efeito, os republicanos construíram um discurso sobre a “nação”, onde se
refletiu o duplo objetivo de, por um lado, resgatá-la da situação de decadência
que acreditavam afetá-la, e, por outro lado, de organizá-la1, sendo que este as-
peto, em particular, não foi dissociável da edificação do próprio Estado. Tem
sido frequente a historiografia ocupar-se do processo de “nacionalização do
Estado” republicano privilegiando a análise dos seus sistemas cultural ou edu-
cativo, identificando tanto a influência de movimentos intelectuais e políticos
exteriores a Portugal nas opções dos edificadores daqueles sistemas, como o
pensamento e o papel de intelectuais e políticos na construção da mundividên-
cia e da simbologia da I República, ou ainda a ação da propaganda do regime
na inculcação dos valores do republicanismo ou no fomento de uma cultura
de massas2 . Neste artigo, para observar a “nacionalização do Estado”, parte-se
antes da análise da noção de soberania que foi adotada pelo legislador repu-
blicano em 1911 e da solução de representação política que lhe correspondeu,
não se ignorando que as mesmas resultaram de contribuições das distintas
sensibilidades republicanas. Trata-se de verificar se a narrativa sobre a sobe-
rania e seu respetivo exercício teve ou não correspondência na representação
política e nos dispositivos que a suportaram, e de perceber se o nacionalismo,
que serviu de pano de fundo às várias escolhas, teve um cariz revolucionário
ou, ao invés, foi tradicionalista e conservador, isto é, se rompeu ou não com as
normas simbólicas e políticas da monarquia liberal e constitucional.
Para desenvolvimento desta problematização, opta-se por cruzar o que
foram discursos políticos e jurídicos, tomando como referência as condições
ideológicas e legais que aí se apontaram para explicar a origem da noção de
soberania e sustentar qual a sua melhor configuração constitucional, bem
como para fundamentar as escolhas de representatividade política que lhe
estiveram associadas.

1
Cf. CATROGA, Fernando. O Republicanismo em Portugal. Da Formação ao 5 de Outubro de
1910, 3.ª edição, Alfragide, Casa das Letras, 2010, pp. 277-283.
2
Atualmente é abundante a literatura sobre o tema. Entre outros estudos, destaque-se:
CATROGA, Fernando, ibidem, pp. 235-276; RAMOS, Rui. A Segunda Fundação (1890-1926), de
História de Portugal, dir. de José Mattoso, vol. VI, Lisboa, Editorial Estampa, 1994, pp. 401-433
e 529-560; MATOS, Sérgio Matos, História, Mitologia, Imaginário Nacional. A História no Curso
dos Liceus (1895-1939), Lisboa, Livros Horizonte, 1990, pp. 89-164; LEAL, Ernesto Castro. Nação
e nacionalismo: a cruzada nacional D. Nuno Álvares Pereira e as origens do Estado Novo (1918-
1938), Lisboa, Cosmos, 1999, 537 p.; PINTASSILGO, Joaquim. República e Formação de Cidadãos.
A Educação Cívica nas Escolas Primárias da Primeira República Portuguesa, Lisboa, Colibri,
1998, 278 p.
64 |
paula borges santos

A secularização da soberania antes da República: soberania


popular ou soberania nacional?

Em 1910, em obra editada ainda antes da proclamação da República, o


antigo regente da disciplina de Direito Público da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra, o professor José Ferreira Marnoco e Souza, escrevia:
“O Estado não é uma instituição religiosa, mas uma organização política, e por
isso a soberania nunca pode ser uma emanação da divindade, mas um fenómeno
natural próprio da vida das sociedades”3 . Ao proferir esta afirmação, Marnoco
e Souza revelava um pensamento estruturado pela filosofia positivista, que
começara a difundir-se em Portugal, sobretudo a partir do último quartel do
século XIX, e que, sobre o aspeto concreto da natureza da soberania, excluía
os argumentários suportados tanto por teorias “teológicas” como por teorias
“metafísicas”4 . Longe de representar uma posição singular e estritamente aca-
démica, o comentário de Marnoco e Souza enunciava, antes, uma reflexão que
fizera caminho, nos anos anteriores, fruto da evolução cultural e política do
País, e que já se encontrava difundida fora da universidade, em especial, entre
círculos de pensamento republicano, e até outros de pensamento socialista.
Em tais círculos, formados por políticos mas também por figuras da in-
telectualidade portuguesa - que conheciam o positivismo de Comte, a escola
de Littré e o positivismo liberal de Stuart Mill, e haviam aderido a diferentes
correntes da sociologia (sobretudo ao naturalismo positivista, ao evolucionismo
biológico e social de Herbert Spencer e à Escola da Ciência Social de Frédéric
Le Play) e a outras conceções filosóficas que haviam entrado em Portugal, como
o monismo naturalista de Haeckel, o evolucionismo biológico de Darwin ou o
materialismo de Vogt, Moleschott e Büchner5 -, a recusa da natureza religiosa da
soberania, ou, se se quiser, da sua origem sobrenatural, era, nessa época, uma
ideia generalizada. Com efeito, não obstante as diversas apropriações doutri-
nárias resultarem em diferentes visões sobre a sociedade e o que poderia ser a
reforma social ou a organização do Estado, tornara-se frequente o julgamento
de que, naquele que era então o tempo presente, o princípio religioso já deixa-
ra de poder ser considerado como “fator de coesão e harmonia dos agregados

3
Cf. SOUZA, Marnoco. Direito Político. Poderes do Estado. Sua organização segundo a sciencia
política e o direito constitucional português, Coimbra, França Amado Editor, 1910, p. 14.
4
Entre as “teorias teológicas”, explicava Marnoco e Souza, encontravam-se: a teoria do dire-
ito divino sobrenatural, a teoria do direito divino providencial, a teoria do patriarcado, a teoria
legitimista, a teoria do direito divino dos reis e, por fim, a teoria do direito divino dos povos. As
“teorias metafísicas” envolviam: a teoria da soberania popular, a teoria da soberania da razão e
da justiça, a teoria da soberania da inteligência e da força (Cf. Idem, ibidem, pp. 9-14 e 16-21).
5
Cf. CATROGA, Fernando. O “complexo” cartista do parlamentarismo republicano português.
In: Das Urnas ao Hemiciclo. Eleições e Parlamento em Portugal (1878-1926) e Espanha (1875-1923),
coord. de Pedro Tavares de Almeida e Javier Moreno Luzón, Lisboa, Assembleia da República, 2012,
p. 224.
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nas origens do nacionalismo político...

humanos”, como sucedera durante a “infância da civilização”. A esse raciocínio


subjazia uma conceção evolutiva da vida em sociedade, de acordo com a qual a
“eliminação da crença como fundamento da soberania” surgia como resultado
dos “ditames da ciência” e do progresso político6 . Esta última dimensão era
ainda relacionada com a própria necessidade de implantação da República, que
se impunha inevitavelmente em consequência do devir histórico, para os que
pensavam a situação nacional por via da questão do regime. Saliente-se, porém,
que o problema da fonte da soberania não se colocou apenas aos adversários do
regime monárquico (republicanos, socialistas, anarquistas); a cultura cientista
da época e o exercício de desvio da atenção das formas legais para as realidades
sociais serviu também, como adiante se verá, a alguns monárquicos ou simpa-
tizantes de uma chefia de Estado dinástica para defenderem a secularização
da fonte de autoridade do rei, fazendo-a emergir da Nação.
No interior do campo republicano, a debilidade teorética que se apontava às
teses que faziam radicar, quer no direito divino, quer na razão natural, a origem
do poder não eliminou a dificuldade de se tomarem posições sobre essa questão
nem de encontrar um sistema de representatividade política que correspondesse
à especificidade da idiossincrasia da República, como reinvenção da respublica e
como solução para a crise do sistema eleitoral e do sistema partidário vigente sob
a Carta Constitucional. No momento do derrube violento da Monarquia e perante
a oportunidade de assumirem a governação e de se apresentarem como poder
constituinte, os republicanos não tinham visões e posicionamentos consolidados
sobre o exercício da soberania e a organização dos poderes do Estado. Apenas
no decurso dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, eleita em 28 de
maio de 1911 e reunida entre 19 de junho e 21 de agosto daquele ano, lograriam
alcançar um acordo político funcional sobre aquelas questões, onde pesaram mais
conceções doutrinais híbridas e argumentos de cariz histórico do que a alegada
pureza dos ideais republicanos, defendidos nos anos de combate à instituição
monárquica e ao constitucionalismo cartista. Com efeito, os republicanos, tendo
passado o último quartel de oitocentos a debater entre si diferentes visões sobre
as teses contratualistas, o constitucionalismo da Revolução Francesa e o modelo
de Estado unitário proposto pela tradição jacobina, haviam-se dividido quanto
ao princípio fundador da soberania e ao modelo de representação nacional.
Por exemplo, como já enunciou Fernando Catroga, o primeiro programa
federalista (1873), assinado por Horácio Esk Ferrari – onde transpareciam a
influência do pensamento de Henriques Nogueira e referências a Pi y Margall,
Proudhon, Tocqueville, Vacherot, Stuart Mill, mas também aos textos constitu-
cionais dos Estados Unidos da América e da Suíça, e ao movimento krausista  –,
norteado por um ideal de democracia direta, tinha-se proposto desenvolver o
princípio da soberania popular (aceitando o sufrágio universal, para homens

6
Cf. Idem, ibidem, pp. 14-17.
66 |
paula borges santos

e mulheres maiores de 18 anos) e transformá-lo no único meio de legitimação


do poder. A soberania não era pensada como una e indivisível, sendo que
também não se tinha do Estado uma conceção unitária. Daí que se recusasse
a existência da figura do presidente da República (sobre a qual se projetavam
os princípios de personalização e unificação do poder), mas se reconhecesse a
representatividade política das minorias, se aceitasse o “mandato imperativo”
e se optasse pelo federalismo quer para a organização interna de poderes do
Estado, quer para orientação das relações externas entre países com afinida-
des (i.e., projetando primeiro uma “federação ibérica” e depois a construção
dos Estados Unidos da Europa). No primeiro caso, a divisão da nação fazia-se
em vários governos autónomos: provinciais, municipais ou de freguesia, que
possuíam ampla capacidade legislativa; o poder central recaía sobre uma assem-
bleia federal eleita por sufrágio direto, mas de limitada competência legislativa
(i.e., reservada para assuntos de interesse geral: orçamento, justiça, segurança,
serviços públicos e política externa). Na dependência dessa assembleia federal
era colocado o poder executivo, que exercia funções por delegação7.
Neste modelo político-administrativo, que sustentou a candidatura dos fe-
deralistas nas eleições de 1878 e 1881, não se reviram republicanos “unitários”,
como patentearam o programa democrático de 1873 e o projeto de programa
de 1878. Aí se consagrava o princípio da soberania nacional e a conceção de
Estado unitário, na linha do jacobinismo francês. O sufrágio moldava-se a um
critério censitário. Papel hegemónico era dado ao poder legislativo, de feição
parlamentarista (a sua designação variou entre 1873, quando a referência se
fazia ainda às “cortes”, e 1878, onde passou a “assembleia nacional”), que ti-
nha no poder executivo uma “delegação”. O projeto federalista era recusado,
admitindo-se apenas que o poder local fosse exercido “por meio da adminis-
tração municipal e distrital”8 .
O manifesto-programa republicano de 1891, escrito por Manuel de Arriaga,
Teófilo Braga, Homem Cristo, Bernardino Pinheiro, Azevedo e Silva e Jacinto
Nunes, num momento em que, pelo agravamento da crise do sistema político
suscitada pela questão do Ultimatum (1890), o partido buscava uma solução de
compromisso a fim de conseguir organizar-se em definitivo, procurou conciliar
as propostas de sistema político-administrativo, defendidas anteriormente pelos
elementos federalistas e “unitários” do movimento. Assim, a separação de pode-
res continuava a determinar a organização do Estado, não sendo incompatível
com a supremacia concedida ao legislativo, que resultaria de “eleição direta”.
Admitia-se que o poder executivo, de “delegação temporária do legislativo”,
se especializasse na ação presidencial para as relações gerais do Estado. Numa
cedência aos interesses federalistas, esse poder surgia estruturado por níveis:

7
Cf. CATROGA, Fernando. O Republicanismo em Portugal. Da Formação ao 5 de Outubro de
1910…, pp. 44-46.
8
Cf. Idem, ibidem, pp. 49-51.
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nas origens do nacionalismo político...

em primeiro, previa-se a “federação de municípios”, “legislando em Assembleias


provinciais sobre todos os atos concernentes à segurança, economia e instrução
provincial, dependendo das relações mútuas de homologação da Assembleia
Nacional”; em segundo, estabelecia-se a “federação de províncias”, que, “legislando
em Assembleia nacional e sancionando sob o ponto de vista do interesse geral
as determinações das Assembleias provinciais”, deveria velar “pela autonomia e
integridade da Nação”; e, por último, a “Constituinte decenal”, encarregada não
só da revisão da Lei Fundamental como também de “reformar a Codificação
geral”. A influência federalista encontrava-se ainda presente na aceitação da
representação das minorias e na questão do sufrágio, que se alargava também às
mulheres (mas ainda assim de forma discriminatória, já que se ponderava a sua
“educação progressiva”, de modo a que apenas exercesse “a capacidade política
em correlação com as obrigações civis a que estiver sujeita”)9.
As exigências programáticas e os compromissos entre fações republicanas
que subjaziam ao manifesto-programa de 1891 não foram, contudo, suficientes
para gerar consenso no tocante às propostas com dimensão política (como,
aliás, em relação às demais esferas: económica, social e cultural). A redação
do próprio documento, na parte do programa propriamente dita, evidenciava
uma atitude de uma calculada evasão. O que aí se registava, em frases tele-
gráficas, não passava de princípios, alguns a carecer de maior clareza no seu
enunciado. Essa mesma consciência parecem ter tido os seus redatores que
começaram por divulgar o texto com o título de “Indicações para o Programa
do Partido Republicano Português [PRP]”. A construção de um “código
doutrinário”, a partir do desenvolvimento dos “tópicos” aí condensados, era
um esforço que, como admitiam, reservavam “à imprensa republicana e aos
conferentes democráticos” dos congressos e centros republicanos (e até de
sessões promovidas pela Maçonaria). No começo dos anos de 1890, impunha-
-se, cada vez mais, para as lideranças do Partido Republicano, na persecução
dos objetivos que as animavam de reorganização política da nação, seguir a
ação revolucionária em detrimento de uma tática legalista. Bastava-lhes, por
isso, no manifesto associado àquele programa, criticar, nos aspetos que aqui
estão em análise, a Monarquia Constitucional por se fundar “na amálgama
irracional da soberania do direito divino com a soberania da nação” e reafir-
mar que a República era “a nacionalidade exercendo por si mesma a própria
soberania, intervindo no exercício normal das suas funções e magistratura”.
Afinal, como também acrescentavam: “no momento que atravessamos não
há lugar para demonstrações teóricas, nem mesmo para argumentar com os
pedantocratas do constitucionalismo”10 .

9
Cf. Idem, ibidem, pp. 57-58.
10
Cf. “Manifesto-Programa do Partido Republicano Português” [publicado em O Século, 12 de
janeiro de 1891, pp. 1-2], consultável em: Ernesto Castro Leal, Partidos e Programas. O campo
68 |
paula borges santos

O caminho paulatino para a afirmação da soberania nacional em


detrimento da soberania popular

A última afirmação dos redatores do manifesto-programa de 1891, atrás


citada, sugerindo implicitamente um divórcio entre agentes do mundo político
e do mundo jurídico, naquele que foi um momento de transformação profunda
da sociedade portuguesa, impõe que, neste trabalho, se coloque a seguinte
interrogação: acompanharam o direito público e o direito constitucional por-
tuguês, na transição do século XIX para o XX, e no começo de novecentos, as
modificações que sofriam as ideias políticas sobre o direito de soberania e a
construção do Estado, e que apontavam para alterações dos próprios princípios
jurídicos, sendo que essa não era uma realidade exclusivamente portuguesa, mas
antes se inscrevia na evolução registada um pouco por toda a Europa ocidental?
A crer no diagnóstico que fazia, em 1878, um dos mais prestigiados lentes
de Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, José Joaquim
Lopes Praça, a literatura jurídico-constitucional não era nem extensa, nem
apresentava grande utilidade e sofria de um carácter difuso no estilo11. O pole-
mismo não encontrava acolhimento fácil nos compêndios de ensino de direito
constitucional e as teorias ministradas não se substituíam com facilidade, quer
pela resistência da maioria dos professores a novas doutrinas, quer pelos exíguos
índices da sua própria produção autoral (a escrita de lições não foi usual até
cerca de 1870 e, ainda assim, haveriam de passar algumas décadas até se tornar
frequente os professores produzirem esse tipo de escritos). Como demonstrou
António Hespanha, a evolução foi lenta entre o primeiro liberalismo e o início
do século XX. Refira-se, sinteticamente, que, depois de 1836, haviam sido
abandonadas as bases filosóficas do jusnaturalismo, de índole individualista,
para se adotar a filosofia krausista, numa ação fomentada especialmente pelo
professor Vicente Ferrer Neto Paiva. Nessa época, também o organicismo social,
que caracterizara os romantismos alemão (designadamente, a Escola Histórica
Alemã) e francês (de F. Guizot), recolheu alguma adesão. A renovação do corpo
docente do curso jurídico, em 1850, facilitou a introdução de nova bibliografia
em algumas disciplinas, como direito público ou direito constitucional (cátedra
criada apenas em 1865). Algum ecletismo dominou então o ensino ministrado
na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra12 , que incorporou referên-
cias a teses de filosofia política individualista, ao hegelianismo, sem abandono
da doutrina solidarista. Gradualmente, no final da década de 1860, os textos

partidário republicano português 1910-1926, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra,


2008, pp. 143-149.
Cf. HESPANHA, António Manuel. Guiando a Mão Invisível. Direitos, Estado e Lei no Liberalismo
11

Monárquico Português, Coimbra, Livraria Almedina, 2004, pp. 531-532.


12
Esta foi a única Faculdade de Direito em Portugal até 1913, ano em que, por iniciativa gover-
namental, foi criada a Faculdade de Direito e Ciências Sociais em Lisboa.
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nas origens do nacionalismo político...

trabalhados registaram também citações de autores seduzidos por um novo


organicismo (entre os quais se destacou J.K. Bluntschli), que privilegiava agora
o papel ordenador do Estado (por influência das propostas do estadualismo
político, avançadas, por exemplo, por Bismarck), sobre os direitos individuais
e sobre os elementos de auto-organização da sociedade. Uma nova rutura no
ensino do direito (nas suas várias especialidades), ocorreu cerca de dez anos
mais tarde, suportada pela integração da filosofia positivista, de matriz comtia-
na, nos programas de várias cadeiras, tendo o lente Manuel Emídio Garcia
realizado, nesse sentido, um esforço pioneiro. Até 1910, os pressupostos natu-
ralistas do positivismo vieram a favorecer a afirmação do anti-individualismo
como substrato da filosofia política e cultivou-se a ideia de que “todo o direito
público se deveria construir sobre os agregados naturais da sociedade, desde
as famílias ao Estado”, cuja função reguladora também se acentuava13 . Esta ten-
dência reforçar-se-ia nos anos finais da Monarquia Constitucional, quando, na
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, se tornaram dominantes três
correntes metodológicas no ensino do direito público: a escola do “positivismo
estatal” (Laband, Meyer, Jellinek), de influência alemã; a escola do realismo
francês (L. Duguit); e a escola histórico-evolucionista, de origem italiana14 .
Da sociologia voltaram, nessa época, a surgir novos subsídios para a formação
daquele ramo do direito, designadamente por via da ciência social da escola
de Le Play, divulgadas pelo lente Marnoco e Souza.
Esta evolução de algumas décadas que o próprio Direito registou, quanto
ao seu fundamento como área científica, de afastamento do jusnaturalismo e
de aproximação ao que se concebia ser a realidade social em transformação15 ,
ajuda a explicar que, a partir de 1878, no direito público e no direito constitu-
cional se preferissem explicações sobre a origem da soberania que refutavam
“princípios idealistas e abstratos” e não fossem independentes dos fenómenos
sociais e da sua historicidade.
Com efeito, logo em 1879, Lopes Praça, de formação política liberal e defen-
sor de uma monarquia hereditária representativa, não hesitaria em subscrever
a teoria da soberania nacional. Escrevia o professor: “A quem pertence o direito
de soberania? Variam as respostas segundo os sistemas, está no direito divino,
entendido pelos seus ministros, responde a teocracia; está na hereditariedade
e legitimidade monárquica, asseguram os absolutistas; reside na vontade po-
pular, emendam os sectários de Rousseau; M. Royer-Collard fazia depender
a soberania política da razão […]. Se é preciso dizer o nosso modo de pensar

13
Cf. Idem, ibidem, pp. 532-541.
14
Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Prefácio. In: SOUZA, Marnoco e. Constituição da
República Portuguesa: Comentário. Prefácio. Coord. de J.J.Gomes Canotilho, Lisboa, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 2011, p. 10.
15
Cf. CRUZ, Manuel Braga da. Sociologia. In: Dicionário de História de Portugal, coord. de António
Barreto e Maria Filomena Mónica, vol. IX, Porto, Livraria Figueirinhas, 2000, p. 466.
70 |
paula borges santos

neste capítulo de direito público, célebre por tantas alucinações, diremos sem
muitos rodeios, que a soberania de um povo e de uma nação reside essencial-
mente nesse povo, nessa nação”16 .
Nos anos de 1880, também Manuel Emídio Garcia, influente doutrinador
do pensamento republicano (e, ainda, do pensamento socialista) ensinou,
designadamente, que a ideia metafísica da soberania popular, tal como havia
sido formulada por Rousseau, correspondia a uma visão anacrónica da so-
ciedade porque excessivamente contratualista. Para aquele lente prevalecia
o princípio de que o indivíduo só pode ser compreendido na sua dimensão
social. Apresentava ainda a noção de “povo” como “ser orgânico, que para se
converter em organizado precisa de formar-se e constituir-se em nação”; e,
à ideia de “nação” como “ser organizado”, fazia corresponder a coordenação
de distintos graus de soberania, “a do indivíduo, da família, da comuna, do
município, da província”17.
Em 1910, seria a vez do professor Marnoco e Souza, que nesse ano assu-
mira funções como ministro e secretário de Estado da Marinha e Ultramar no
gabinete de Teixeira de Sousa (o último governo da monarquia constitucional),
na obra Direito Político. Poderes do Estado. Sua organização segundo a sciencia
política e o direito constitucional português, registar críticas a várias teorias
sobre a soberania e a organização dos poderes e eleger, como orientação mais
adequada para explicar e organizar politicamente a sociedade e o Estado, uma
das três “teorias positivas”: a teoria da soberania nacional18 . Explicava aquele
lente que aquela teoria surgida de forma ainda embrionária nas doutrinas de
Romagnosi e de Sismondi, fora desenvolvida por Palma, autor da chamada escola
“histórica-evolucionista”, que sustentara que a soberania não podia deixar de
pertencer “substancial e originariamente à nação”. Isto significava entender,
em sentido político, o povo como uma “comunidade organizada” e não como
“multidão inorgânica”. De acordo com esta teorização, os direitos de soberania
cabiam à “universalidade dos cidadãos”, não podendo ser gozados por “nenhum
indivíduo, nenhuma fração ou associação parcial”, aos quais não tivessem sido
confiados expressa ou implicitamente. Sem hesitar em considerar que a teoria
da soberania nacional era aquela que “melhor satisfaz as exigências do direito
político moderno”, Marnoco e Souza não a julgava completamente aperfeiçoada,
à data em que escrevia.

16
Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Introdução. In: PRAÇA, José Joaquim Lopes. Direito
Constitucional Portuguez, vol. I, Coimbra, Coimbra Editora, 1997, pp. 11-13.
17
Cf. CATROGA, Fernando, ibidem, pp. 166-167.
18
Segundo Marnoco e Souza, eram quatro as “teorias positivas”: a teoria da soberania da util-
idade social, acolhida preferencialmente em Inglaterra, construída por Bentham e, mais tarde,
desenvolvida por Mill, Bain e Herbert Spencer; a teoria da soberania do Estado, com defensores
na Alemanha e em Itália, produzida por autores como Gneist, Bluntschli, Zorn, Orlando e Icilio
Vanni; a teoria da soberania da sociedade, formulada por Miceli; e, por fim, a teoria da soberania
da nação (Cf. SOUZA, Marnoco e, ibidem, pp. 25-32).
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nas origens do nacionalismo político...

Alertava para o facto de os principais autores da teoria da soberania nacio-


nal não terem definido convenientemente o conceito de soberania, pelo que
os próprios estabeleciam, não raras vezes, confusões entre esta e “o direito
de eleger os depositários do poder” ou o direito de fiscalizar o exercício do
poder público”. A ausência de uma boa conceptualização levava também a que
equiparassem, erradamente na sua opinião, “nação” e “Estado” ou “nação” e
povo”. Com essas posições, aproximavam-se das doutrinas que a própria teoria
da soberania nacional, na origem, pretendera questionar e face às quais quise-
ra servir de contraponto: a soberania do Estado e a soberania popular19. Se a
primeira fora importante, especialmente para o interior da cultura científica
e da política alemãs, suscitando alguns defensores em Itália, Marnoco e Souza
não hesitava em afirmar que, para a evolução histórica e política, tivera maior
importância a teoria da soberania popular, sobretudo depois da formulação que
lhe fora atribuída por Rousseau. Apresentava a Revolução Francesa como a sua
mais direta consequência e assegurava que toda a política do presente século”
se havia desenvolvido sob o poder do seu domínio irresistível”.
Porém, na linha do que Manuel Emídio Garcia já registara, Marnoco e
Souza escrevia que nada era mais inadmissível do que a teoria da soberania
popular de João Jacques Rousseau”. Sobre os princípios fundamentais dessa
teoria 20 , o professor adiantava que tornavam o Estado um produto arbitrário”,
lançado na instabilidade e perturbação”. Recusava que fosse possível conciliar
as ideias de soberania do povo” e de liberdade absoluta do indivíduo”, porque
seria “manifestamente absurdo sustentar que obedecer ao povo é obedecer a si
mesmo”. Do mesmo passo, via na identificação entre soberania e vontade geral
uma incompatibilidade, já que a segunda “por si só não pode de modo algum
constituir um direito”. Afinal, acima da vontade geral, que não era outra coisa
senão o “agregado mecânico do maior número”, estavam “condições de exis-
tência e de desenvolvimento da vida social, com que ela se deve conformar”21.
Esta última observação relacionava-se com a outra fragilidade apontada
por Marnoco e Souza à teoria da soberania nacional. Revelando um fôlego
teórico e dogmático próprio, onde transparecia a sedução que haviam exerci-
do sobre si os ensinamentos da “psicologia coletiva”22 , sustentava que aquela

19
Cf. SOUZA, Marnoco e, ibidem, p. 30.
20
Sintetizando os princípios daquela teoria, Marnoco e Souza escrevia que correspondiam aos
seguintes: a soberania reside essencialmente no indivíduo, não sendo a soberania social senão
resultante da soma dos poderes individuais; todos os indivíduos são soberanos, tendo um domínio
absoluto sobre as pessoas; quando os indivíduos se reúnem, mediante o contrato social, renun-
ciam, para constituir o poder coletivo, à sua liberdade e soberania; […] a soberania é, em última
análise, a vontade popular, entendida como a expressão da maioria numérica dos cidadãos” (Cf.
Idem, ibidem, p. 17).
21
Cf. Idem, ibidem, pp. 22-23.
22
Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes, “Prefácio”…, p. 10.
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paula borges santos

teoria ganharia em ser combinada com a “doutrina da consciência coletiva”.


Por “consciência coletiva” entendia “o fenómeno de coordenação das consci-
ências individuais”, percetível enquanto “processo psicossocial”, inscrito na
temporalidade, sendo que rejeitava as considerações dos que advogavam que
aquela consciência era distinta dos indivíduos que a compunham e possuía
até um carácter místico e transcendente. A “doutrina da consciência coletiva”
surgia-lhe como um instrumento capaz de responder à necessidade de captar a
“característica fundamental da nacionalidade”, noção que retinha, a seu ver, a
“verdadeira teoria da soberania”. Explicava porquê: “um agregado social [leia-
-se: a nação] que tenha os caracteres duma nacionalidade [i.e., conhecimento
das suas condições de existência e desenvolvimento, das leis reguladoras da
sua evolução e das influências do meio ambiente envolvente] goza do direito
não só de afirmar a sua independência relativamente aos outros, mas também
de se organizar politicamente pela forma que melhor [lhe] convier”23 .
Do que fica dito, e sem prejuízo da necessidade de uma investigação mais
aturada sobre o modo como se cruzaram o pensamento político e o pensamento
jurídico quanto às questões em apreço neste artigo (explorando-se, por exem-
plo, se os dirigentes políticos se socorreram ou não das teses jurídicas para
legitimarem as suas posições ou se seguiram outras referências e quais), parece
interessante notar que a passagem de um quadro político fundado no “princí-
pio monárquico” para outro ancorado no “princípio democrático” (para usar a
antítese em que se expressava José de Arriaga 24) se fez sem grandes comoções
doutrinais no ambiente académico português. De facto, doutrinadores (Lopes
Praça, Manuel Emídio Garcia e Marnoco e Souza) de diferentes gerações e perfis
políticos, partindo da crítica aos dogmas metafísicos da construção liberal do
Estado (contrato social, soberania, representação parlamentar) concordaram no
sentido da mudança de fundamento da fonte da soberania. Mais, como demons-
tram as posições citadas dos três lentes de Coimbra, essa viragem antecedeu,
num período de tempo considerável (1879-1910), a própria realidade política –
recorde-se que, apenas em 19 de junho de 1911, durante a primeira reunião da
Assembleia Constituinte, se decretou “para sempre abolida a monarquia e banida
a dinastia de Bragança” e se declarou que “a forma de Governo de Portugal é
a República Democrática”25. Mesmo que se pretenda levar em consideração a
facilidade do que podia ser uma tomada de posição científica, em boa medida
inspirada nos exemplos de realidades políticas da Europa ocidental coeva e da
literatura especializada sobre o tema produzida em fóruns internacionais, quando
comparado com as exigências colocadas à ação política interessada na derrocada
do regime monárquico constitucional, não será de negligenciar a unanimidade

23
Cf. SOUZA, Marnoco e, ibidem, pp. 30, 39-41.
24
Cf. ARRIAGA, José de. Os Últimos 60 Anos da Monarquia. Causas da Revolução de 5 de Outubro
de 1910, Lisboa, 1911, p. 8.
25
Cf. Diário da Assembleia Nacional Constituinte, n.º 1, 19 de junho de 1911, p. 3.
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nas origens do nacionalismo político...

que se regista no pensamento jurídico evocado, quanto à subscrição da teoria da


soberania nacional. Com efeito, essa unanimidade não existiu no pensamento
político republicano, e até socialista, da época. Nas vésperas do 5 de outubro de
1910, alguns núcleos da propaganda republicana tinham ainda por tema maior
a reafirmação da soberania popular26 , sendo que nos trabalhos constituintes de
1911 essa sensibilidade voltou a manifestar-se entre alguns deputados. Também
no interior do Partido Socialista Português, em 1911, o problema da origem da
soberania não tinha uma resposta única.

Poder constituinte, nação, soberania e representação política

A Constituição de 1911 estabeleceu o princípio de que “a soberania reside


essencialmente na Nação” (art. 5.º), adotando a teoria da soberania nacional na
esteira de anteriores redações das Leis Fundamentais de 1822 e 1838, particu-
larmente da primeira (no seu art. 26.º)27. A razão para tal aproximação filiou-se
na circunstância desses textos constitucionais recolherem influência de um
pensamento político que, convocando argumentos do constitucionalismo da
Revolução Francesa, entendia que à ordem legalista e democrática assistia “um
carácter voluntário, constitutivo e progressivo”28 . Também a opção aí tomada
de ruptura com a representação política do modelo tradicional das cortes, onde
se deduzia o acolhimento das teses de Sieyès, justificou o não rompimento da
República com o constitucionalismo liberal. Finalmente, não menos importante
terá sido a promessa regeneradora da pátria, alimentada pelo republicanismo,
que passava, em certa medida, pela convicção de que era necessário consumar
todas as revoluções traídas ou inacabadas, como teria sido o caso das revoluções
de 1820-1822 e de 1836. O cultivo da memória vintista, setembrista e patuleia
completava essa atitude29, embora para efeitos das opções de redação do texto
constitucional, tenha tido pouca importância.
Apesar de não terem surgido projetos de alteração constitucional propondo a
adesão ao princípio da soberania popular, este esteve subjacente a diversas posições
defendidas sobre outros pontos do articulado do projeto de Constituição. Ainda na
discussão do projeto primitivo, logo a propósito do art. 1.º, onde se declarava que a
nação assumia como forma de governo a “república democrática”, os constituintes

26
Cf. CATROGA, Fernando, ibidem, pp. 165-167.
27
Sublinhe-se que as Constituições de 1822 e 1838 serviram de fonte para a globalidade do
texto constitucional de 1911, e não só para o artigo 5.º. De resto, não foram as únicas fontes, pois
a Constituição de 1911 veio a assimilar algumas disposições da Constituição brasileira de 1891
(Cf. SOUZA, Marnoco e. Constituição Política da República Portuguesa. Commentario, Coimbra,
F. França Amado Editor, 1913, pp. 6-7).
28
Cf. HESPANHA, António Manuel, ibidem, pp. 175-176.
29
Cf. CATROGA, Fernando. O “complexo” cartista do parlamentarismo republicano português…,
pp. 223 e 230.
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paula borges santos

dividiram-se sobre esse conceito. Para uns tratava-se de uma república em que
os poderes do Estado (legislativo, executivo e judicial) eram exercidos pelo povo.
Outros consideravam que tal expressão apontava apenas para a questão da soberania
pertencer à generalidade dos cidadãos. Na ausência de consenso, decidira-se fixar
simplesmente que “a Nação, organizada em Estado Unitário, adota como forma de
governo a República”. Deliberadamente afastava-se a hipótese de significar que o
regime comportava uma ação direta do povo, isto é, rejeitava-se que o povo pudesse
exercer por si, e não por meio de delegados, uma parte das funções do governo e da
legislatura. A aplicação de um tal modelo no País seria rotulada de uma “fantasia
de sonhadores, que se imaginavam eguaes, nas suas condições nacionais, àquelas
que fazem da Suissa um bello e extraordinario povo”30.
Esta argumentação exemplifica como os constituintes se dividiam entre si sobre
questões fundamentais para a organização política a consagrar pela Constituição,
mas que mais não eram do que remanescências de divergências transportadas
da fase da propaganda, suscitadas pelas diferenças programáticas que animavam
“federalistas” e “unitários”. Outro exemplo disso mesmo, encontra-se na decisão
dos constituintes de sancionarem a forma unitária do Estado, resultando dessa
opção a derrota da corrente federalista na Assembleia Constituinte (sendo que,
para tanto, um dos argumentos evocados foi o de que o País apresentava uma rara
unidade da comunidade política e social, sedimentada na história).
Ao contrário dos legisladores liberais, os constituintes em 1911 não caracte-
rizaram formalmente, no texto constitucional, o que entendiam por “nação”. Em
1822, optara-se por considerar a Nação como “a união de todos os Portugueses de
ambos os hemisférios” (art. 20.º), numa valorização da ideia de “comunidade de
pessoas vinculadas entre si por uma razão mais forte (o sangue) do que o facto
de terem nascido no território sujeito a um mesmo rei”. Afirmara-se que a Nação
era “livre, independente, e não pode ser património de ninguém”, cabendo-lhe,
por intermédio dos deputados reunidos em cortes, fazer a Constituição, “sem
dependência de sanção do Rei” (art. 27.º). Em 1838, o legislador entendera a nação,
da qual emanavam todos os poderes e onde residia a soberania, como “associa-
ção política de todos os cidadãos portugueses” (art. 1.º), considerando que estes
eram os indivíduos nascidos em Portugal e nos seus domínios (com exceção dos
que tivessem assumido outra naturalidade). Desvalorizara-se a relação entre
poder e súbditos para, sobretudo, definir e reforçar os laços políticos pelo prin-
cípio da territorialidade, noção que fora já introduzida na Carta Constitucional
de 182631. Com efeito, a razão mais direta para a curta fórmula adotada no art.
5.º da Constituição de 1911 prendeu-se com a falta de entendimento entre os
constituintes quanto a dizer-se que a nação exercia, “por delegação voluntária”,
a soberania. Essa ideia fora avançada pela comissão redatora do projeto cons-

30
Cf. SOUZA, Marnoco e, ibidem, pp. 9-11.
31
Cf. HESPANHA, António Manuel, ibidem, pp. 203-204.
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nas origens do nacionalismo político...

titucional, mas caíra após se considerar que podia abrir caminho a cenários de
renúncia ou de abdicação do exercício de soberania32 .
O discurso de alguns constituintes evidenciava que a nação era uma entidade
distinta dos indivíduos que a compunham. Traduzia-se por uma vontade geral,
superior às vontades individuais, e, portanto, era una e indivisível, revelando
uma consciência de continuidade histórica. Daí que se traduzisse nos hábitos
e costumes e estivesse preparada para cooperar nos progressos exigidos pelo
futuro histórico. Com esse espírito, repudiavam-se teses contratualistas. “A
soberania da nação não é mais do que esse mútuo consenso, que origina todas as
instituições sociais”, afirmava Teófilo Braga, presidente do Governo, perante a
Assembleia Constituinte, e acrescentava: “um indivíduo isolado tem a sua capa-
cidade civil e os seus direitos, mas é impotente para os manter e reivindicar”33 .
Com efeito, o lugar do indivíduo no novo ordenamento a erigir não foi óbvio
para todos os constituintes, sendo que tal se manifestou quanto a dois aspetos:
por um lado, na hierarquia de matérias elencadas pela Constituição, envolvendo
os direitos individuais e a organização atribuída aos poderes do Estado; por
outro lado, no alcance dos direitos individuais que foram consagrados.
Sobre o primeiro aspeto, refira-se que no projeto proposto pela comissão en-
carregada de redigir uma primeira versão da Lei Fundamental (daqui em diante
designado projeto primitivo), a enumeração das liberdades individuais surgia
depois de se tratar a organização dos poderes do Estado, num sistema que era
igual ao da Carta Constitucional. Esta ordem de matérias foi alterada, por via de
se considerar que “os direitos e garantias individuais são o limite natural da ação
dos diversos poderes do Estado”, donde não resultaria apresentá-los como uma
concessão do poder, ainda que este tivesse o “direito de regular as manifestações
da atividade dos indivíduos, de modo a assegurar a vida da sociedade”34 .
Quanto ao segundo aspeto, como demonstrou Rui Ramos, embora o catálogo
de direitos inscrito na Constituição tenha sido extenso, não correspondeu ao
que os dirigentes do PRP haviam defendido durante o seu combate à Monarquia
cartista. De facto, sucederam-se os casos em que se registaram limitações ao
alcance prático da maior parte das anteriores reivindicações republicanas35 .
Não foi, por exemplo, fixada a doutrina do sufrágio universal, embora tenham
existido constituintes a defendê-la com os argumentos de que: a república só
seria democrática caso contemplasse aquele critério; a exclusão do sufrágio
universal só permitiria o voto a entidades e classes privilegiadas, quando,

32
Cf. SOUZA, Marnoco e, Ibidem, pp. 206-208.
33
Cf. BRAGA, Teófilo. Discursos sobre a Constituição Política da República Portugueza. Proferidos
na discussão na generalidade e especialidade, nas Sessões de 18 de julho e 2 de agosto de 1911,
na Assembleia Nacional Constituinte, Lisboa, Livraria Ferreira, 1911, p. 33.
34
Cf. SOUZA, Marnoco e, Ibidem, pp. 7-8.
Cf. RAMOS, Rui. Para uma história política da cidadania em Portugal. In: Análise Social, vol.
35

XXXIX (172), 2004, p. 560.


76 |
paula borges santos

contraditoriamente, a todos os indivíduos que compunham a nação se exigia o


pagamento de impostos e o cumprimento dos deveres perante o Estado; todos
os indivíduos tinham o direito de fiscalizar o governo; o sufrágio destinava-se
ao povo e a ele se devia a República. Nestas posições reaparecia o acolhimento
dado ao princípio da soberania popular, sendo, uma vez mais, essa sensibilidade
derrotada perante parlamentares que defenderam o sufrágio restrito, alegando
a elevada taxa de analfabetismo para sustentar a impreparação desses sectores
da população para se pronunciarem politicamente36 . Não passaram também
propostas que sugeriam a adoção do mandato imperativo e o alargamento do
sufrágio universal às mulheres, cuja capacidade política só era reconhecida
desde que fossem “chefes de família há mais de um ano” e tivessem o “exame de
instrução primária”. Como alguns autores já apontaram, a principal motivação
para a regulação restritiva destes direitos relacionou-se com o receio de que o
pleno uso destes beneficiasse os opositores do poder constituído. Não tendo,
aparentemente, tido particular significado o facto de, nos anos anteriores, a
propaganda republicana ter discutido o défice de legitimidade da monarquia
a propósito dos problemas que apontavam ao modelo de sufrágio e de círculos
eleitorais, sobre os quais a representação política se organizava 37.

Considerações finais

O projeto republicano de “nacionalização do Estado”, do ponto de vista político,


enformou de características que não corresponderam a um pleno desenvolvi-
mento do ideal republicano, tal como este fora defendido nos anos de combate à
Monarquia Constitucional. O sucesso desse projeto foi acentuadamente cultural,
tendo expressão na criação do culto da pátria (constituído à volta de uma nova
simbologia nacional, formada pelo hino, bandeira, heróis já desaparecidos, novos
feriados nacionais, festas cívicas, comemorações de efemérides republicanas,
e donde se excluíam todos os vestígios de internacionalismo), nas medidas de
escolarização (ensino laico, obrigatório e gratuito) e no incentivo ao reencontro
do “valor primitivo” da respublica, com fundamento na história de Portugal38 .
Sobre o projeto político em si, uma primeira nota: foi utilizada uma ar-
gumentação híbrida para explicar a nação como entidade, assistindo-se a um
desligamento da ideia, inerente às propostas demoliberais, de comunidade
política como a soma dos indivíduos para, ao invés, se salientar a importância
dos agregados sociais que compunham a sociedade. Esta tendência incorporava

36
Cf. SOUZA, Marnoco e, ibidem, p. 264.
37
Cf. RAMOS, Rui, ibidem, p. 561; CATROGA, Fernando, ibidem, p. 233; Idem, O Republicanismo
em Portugal…, pp. 175-187.
38
Sobre a “revolução cultural” desencadeada pela I República, e as causas que aí pretenderam
defender, veja-se: RAMOS, Rui, A Segunda Fundação (1890-1926)…, pp. 401-433.
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nas origens do nacionalismo político...

manifestamente o impacto de novas correntes do pensamento jurídico e do


debate político, realizado a partir da segunda metade do século XIX, onde a
tomada de posições defensoras de uma noção de representação política, assente
na representatividade dos interesses sociais e menos no sufrágio individual,
começara a tornar-se atrativa e a generalizar-se entre personalidades intelec-
tuais (onde os jurisconsultos se incluíram) e políticas (atraídas pelas teorias
políticas do organicismo, mas também do estadualismo pós-liberal)39. Não foi
por acaso que, apesar de não ter sido reconhecido o carácter constitucional
da orgânica da sociedade civil em 1911, como pretendiam algumas propostas
apresentadas na Assembleia Constituinte, de composição do Senado tendo por
base a representação dos corpos administrativos locais e de certas corporações
socioprofissionais, essa experiência foi tentada, mais tarde, durante o consulado
de Sidónio Pais (decreto n.º 3977, de 30 de março de 1918)40 .
Decorrente do ponto anterior, um segundo apontamento: a busca do interesse
público e da ordem social, que se pensou serem exercidos por um modelo de
Estado antifederalista e centralizador, concorreu para uma limitação da própria
participação democrática. Aos republicanos interessou mais o desenvolvimento
do projeto do Estado educador, e em menor grau do Estado higienista, e a dedi-
cação do indivíduo às necessidades da vida coletiva e o cultivo dos seus afetos
pátrios (fundamentados na tradição, nos costumes e na história do País), do que
fomentar o aumento da legitimidade democrática do regime, pelo alargamento
da capacidade política dos indivíduos. Nessa medida, o Estado republicano
iniciou um percurso de desligamento da vinculação da promoção dos direitos
individuais políticos, dado que, para os seus mentores, as restrições legais eram
“menos graves do que as limitações de liberdade que se verificam no domínio
das relações privadas, porque as primeiras são impostas em nome do interesse

39
Para maior detalhe das ideias e das personalidades políticas e intelectuais que iniciaram a dis-
cussão e a crítica ao modelo de representação liberal, consulte-se: OTERO, Paulo. Corporativismo
político. In: Dicionário de História de Portugal, coord. de António Barreto e Maria Filomena Mónica,
vol. VII, Porto, Livraria Figueirinhas, 1999, pp. 425-428; RAMOS, Rui. Oligarquia e caciquismo
como forma de pensar: Oliveira Martins, Joaquim Costa, Gaetano Mosca e a transformação
da cultura política liberal na Europa do Sul (c. 1800-c.1900). In: Cultura. Revista de História e
Teoria das Ideias, 2.ª série, n.º 16, pp. 179-216. Como referência da atenção que essas propostas
despertaram também entre os lentes de direito público, lembre-se que Marnoco e Souza, em
1910, refletindo sobre o exercício da soberania e a questão da representatividade política, fez a
primeira defesa, no âmbito do direito constitucional, da representação dos interesses sociais. Sem
desenvolver doutrina sobre este aspeto, mas considerando que essa seria a forma mais perfeita de
representatividade, deixava transparecer um otimismo quanto à futura concretização histórica
desse tipo de propostas, porque um “tal acordo doutrinal só se pode encontrar em épocas em
que as ideias estão maduras para se transformarem numa realidade” (algo que, cerca de trinta
anos mais tarde sucederia, de facto, através do projeto político do regime autoritário de Salazar e
Marcelo Caetano) (Cf. SOUZA, Marnoco e. Direito Político. Poderes do Estado..., pp. 164, 174-175).
40
Sobre os motivos que dificultaram, em 1911, a adesão às propostas de representação de
índole corporativa, veja-se: CATROGA, Fernando, ibidem, pp. 248-249; Idem, O Republicanismo
em Portugal…, pp. 168-172.
78 |
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público”41. Um exemplo desse procedimento encontra-se na imposição da Lei de


Separação, em 1911, pelo Estado às Igrejas e, por extensão, aos crentes das várias
confissões religiosas, de carácter fortemente restritivo da libertas ecclesiae, ao
mesmo tempo que se promoveu a liberdade religiosa, na sua vertente de dimensão
individual e privada (ninguém podia ser perseguido por motivo de religião, nem
perguntado por autoridade alguma acerca da mesma)42 .
Por fim, refira-se que o fator mais original do projeto político de “naciona-
lização” do Estado republicano, indissociável da forma de governo estabelecida
pelo regime, foi a secularização promovida da origem e da função do poder
político, ao retirar-lhe fundamentações de ordem teológica e metafísica43 . Em
boa medida, talvez as maiores inovações e ruturas que o novo regime poderia
ter introduzido naquele projeto (e na nova ordem constitucional), radicassem
nas propostas que foram rejeitadas pela Assembleia Constituinte. As divisões
que se revelaram existir entre os constituintes não permitiram, contudo, a sua
adoção (como ilustram quer o projeto constitucional apresentado por Teófilo
Braga, quer as reações que suscitou). Donde a maior radicalidade da “nacionali-
zação” do Estado, na sua dimensão política, residiu na apropriação que foi feita
pelo republicanismo (enquanto poder constituinte) do projeto democratizante
da tradição vintista/setembrista, ao concretizar a abolição do pariato (existente
nas duas constituições oitocentistas de curta duração), mas também, desta vez,
a própria monarquia (não se limitando a neutralizar o poder do rei).

Referências
ARRIAGA, José de. Os Últimos 60 Anos da Monarquia. Causas da Revolução de 5 de Outubro
de 1910, Lisboa, 1911.
BRAGA, Teófilo. Discursos sobre a Constituição Política da República Portugueza. Proferidos
na discussão na generalidade e especialidade, nas Sessões de 18 de julho e 2 de agosto de
1911 na Assembleia Nacional Constituinte, Lisboa, Livraria Ferreira, 1911.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Prefácio. In: SOUZA, Marnoco e. Constituição da República
Portuguesa: Comentário, coord. de J. J. Gomes Canotilho, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa
da Moeda, 2011, pp. 9-14.

41
Cf. HESPANHA, António Manuel, ibidem, p. 189.
42
Diga-se, aliás, que a proibição da perseguição religiosa e da indagação da pertença religiosa
por agentes do Estado eram garantias já consagradas, respetivamente, pela Carta Constitucional
e pelo Código Civil de 1867.
43
Também aqui deve ser lembrado o caminho nesse sentido já feito antes da República. Apesar
de a Carta Constitucional de 1826 iniciar com a fórmula tradicional das cartas de lei (“D. Pedro IV,
pela graça de Deus, rei de Portugal…”), não era dado no seu articulado qualquer indicação de uma
fundamentação sobrenatural do poder ou da soberania, nem sequer repetindo a fórmula inicial
da Constituição mais democrática de 1822 (“Em nome da Santíssima e Indivisível Trindade…”).
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nas origens do nacionalismo político...

______. Introdução. In: PRAÇA, José Joaquim Lopes. Direito Constitucional Portuguez, vol.
I, Coimbra, Coimbra Editora, 1997, pp. 5-19.
CATROGA, Fernando. O Republicanismo em Portugal. Da Formação ao 5 de Outubro de 1910,
3.ª edição, Alfragide, Casa das Letras, 2010.
______. O “complexo” cartista do parlamentarismo republicano português. In: Das Urnas ao
Hemiciclo. Eleições e Parlamento em Portugal (1878-1926) e Espanha (1875-1923), coord.
de Pedro Tavares de Almeida e Javier Moreno Luzón, Lisboa, Assembleia da República,
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80 |
Nacionalismos e política
externa portuguesa no pós-25 de Abril1
José Pedro Zúquete
Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa

As pessoas têm um ideal para o país


que é muito maior do que o seu esqueleto.
D. Manuel Clemente2

De cravos e de rosas

No dia 25 de abril de 2014, a Revolução dos Cravos, que pôs fim a quase cin-
quenta anos de ditadura, celebrou o seu quadragésimo aniversário. Em Portugal,
fizeram-se conferências, colóquios, exposições, as televisões recorreram a ima-
gens de arquivo, as revistas e os jornais encheram-se de memórias históricas e
de opiniões sobre o evento, os políticos juraram mais uma vez fidelidade eterna
aos valores de abril, e um pouco por todo o lado se falou do “significado” da
revolução e sobretudo do seu “legado” para o Portugal dos nossos dias. Falar da
Revolução de 25 de Abril de 1974, portanto, significa falar de um acontecimento
que marcou a história do país, abriu um novo ciclo político e inaugurou uma
Terceira República. Mas também de um acontecimento que mudou a história
de famílias, muitas famílias, quer aquelas que estavam no Portugal continental,
como as que estavam no que à época se chamava de Ultramar.
Quarenta anos depois, se há algo que passou para todo o sempre a estar associado
na mentalidade colectiva portuguesa ao 25 de Abril é a ideia de Liberdade. Ainda
recentemente o Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa publicou um

1
Este texto conjuga duas intervenções no âmbito de mesas-redondas em universidades bra-
sileiras: no dia 9 de abril de 2014, no “Seminário Internacional Nacionalismo e Política: Portugal e
Brasil”, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), e no dia 24 de abril de
2014, no evento “Os Cravos de Abril: Os Quarenta Anos da Revolução Portuguesa (1974-2014)”,
na Universidade Federal Fluminense (UFF).
2
Clemente, 2009: 31.
|  81
nacionalismos e política externa portuguesa...

estudo de opinião onde se verifica que cerca de 60% dos portugueses consideram
o 25 de Abril como o facto mais importante da história. Muito à frente da Batalha
de Aljubarrota, ou das viagens de Vasco da Gama. Claro que esta percepção tem
a ver com a proximidade histórica (é um episódio mais perto das pessoas), mas
não deixa de ser relevante. Existe um antes e um depois – e se o antes era autori-
tário –, o depois, através da transição, passou a ser o Portugal de hoje, o Portugal
democrático. E o 25 de Abril como um símbolo consensual, final, desse processo.
Mas se a um nível abstrato, difuso, essa ideia impera, se nós descermos ao
concreto, ou seja, à opinião das pessoas sobre o funcionamento da democracia
em Portugal (aquilo que os cientistas políticos chamam de “qualidade da demo-
cracia”), verificamos que, quarenta anos depois, para a maioria das pessoas, a
tal promessa de um Portugal novo e democrático ainda está por cumprir. Um
dos últimos Eurobarómetros (um inquérito europeu feito com regularidade),
do outono de 2013, não deixa margem para dúvidas: dos 28 países da União
Europeia, os portugueses são, de todos os europeus, os mais insatisfeitos com
o funcionamento da democracia (85% dos portugueses estão insatisfeitos – e
em todos os grupos sociodemográficos). 3 E resultados de 2015 confirmam a
desconfiança, bem acima da média europeia, dos portugueses relativamente ao
parlamento e ao governo da nação.4 “Abril” venceu, sim, mas o jogo está longe
de ter acabado. Ainda falta muito para que os cravos se transformem em rosas. 5

A Sereia Europeia

A Revolução Portuguesa – e o consequente desejo de refazer Portugal –


desde cedo que esteve vinculada à ideia que era preciso integrar Portugal,
decisivamente e definitivamente, na Europa. Até para sedimentar o novo
regime político. Toda a política externa portuguesa, a partir de 25 de abril, se
orientou nesse sentido.
A adesão a um projeto europeu teve o consenso das elites políticas no
Portugal democrático. Era esse o caminho para a modernização de Portugal.
O “destino” europeu de Portugal foi exaltado como talvez nunca tenha sido
ao longo da história. José Medeiros Ferreira disse, em 1976, num discurso no
Conselho da Europa, que com o 25 de Abril “Portugal volta por fim oficialmente
à convivência com a Europa”. Esse era “um ato” que exprimia “a consciência
do nosso destino histórico”. Era, nas palavras do então Ministro dos Negócios
Estrangeiros, “o regresso de Portugal às suas raízes continentais”.6

3
Eurobarómetro, 2013: 9, 10.
4
Eurobarómetro, 2015: 2.
5
Ver também História Viva, 2014.
6
Ferreira, 1976: 44.
82 |
josé pedro zúquete

O destino estava traçado. E o destino era europeu. Nos anos 80 ou 90 do


século passado, não eram muitos os que falavam de Lusofonia como um “des-
tino” alternativo para Portugal. Mas se existe algo que qualquer observador
nota é que a palavra “lusofonia” explodiu literalmente no vocabulário. E essa
explosão dá-se, sobretudo, na passagem do século XX para o século XXI.
Hoje em dia, em Portugal, é difícil não ler ou ouvir a palavra na mídia. É
difícil não ouvir políticos a falar de Lusofonia como raiz e como horizonte da
relação de Portugal com o mundo. E a todo instante nós vemos eventos/grupos
que promovem a Lusofonia: o Grupo de Reflexão Lusófona, os Encontros da
Lusofonia pela União dos Médicos Escritores e Artistas Lusófonos, os Encontros
das Mulheres Lusófonas, os Congressos dos Mares da Lusofonia. Até os Jogos
da Lusofonia já vão na quarta edição.
E por que agora? E eu aí penso que isso tem a ver, ou pelo menos está rela-
cionado, em boa parte, com o fim do deslumbramento com a Europa. Seria fácil
limitar-me a mostrar os resultados do último Eurobarómetro de 2013, que mostra
que Portugal é o terceiro país da União Europeia que tem pior imagem sobre a
União Europeia (apenas 22% dos portugueses veem a União Europeia de forma
positiva).7 Mas por detrás da frieza dos números existe algo mais profundo nas
mentalidades. É que progressivamente houve a constatação, e os momentos de
crise económica, austeridade financeira e desemprego ajudam naturalmente a
agravar esse sentimento, que o projeto Europeu não é suficiente. E assim se come-
çou a falar cada vez mais 1) da necessidade de reposicionar Portugal em termos
estratégicos, ou o regresso a uma “visão atlântica”8 , 2) do mar como destino, ou
“regresso ao mar”9, 3) dos povos de língua portuguesa espalhados pelo mundo,
4) enfim, da Lusofonia como realidade, como projeto e como sonho.
Só dentro deste contexto é que se entende que um ministro do governo de
Portugal diga, em 2012, que “nos últimos 20 anos preocupamo-nos demasiado
com a Europa, e se nós olharmos para a nossa história nós sabemos que cada vez
que fomos empurrados para o oceano esses foram os momentos de maior glória
da nossa história … Portugal é tão mais forte quanto mais olha para o mundo”.10
E este comentário é apenas um sinal, entre tantos outros, dos novos tempos.

O mundo como âncora

E o que é a Lusofonia? A um nível básico: a Lusofonia faz referência aos oito


países (nove, desde 2014) cuja língua oficial é o português, assim como às comu-
nidades de origem portuguesa espalhadas pelo mundo. A um nível superior: a

7
Eurobarómetro, 2013: 3.
8
Lopes, 2011: 199.
9
Diário de Notícias, 2012.
10
Relvas, 2012.
|  83
nacionalismos e política externa portuguesa...

Lusofonia representa uma rede ambiciosa e profunda que é concebida como uma
comunidade de valores, interesses e afinidades comuns, e como uma maneira
de redefinir e revalorizar a importância de Portugal no mundo contemporâneo.
Claro que esta visão lusófona tem uma dimensão obviamente pragmática,
ou seja, tirar vantagem política, económica e cultural de uma relação especial
entre países unidos pela mesma língua. De um ponto de vista utilitário é um
passo lógico. Mas é importante não nos limitarmos a este entendimento da
Lusofonia, sob pena de não entendermos uma importante dimensão, mais
profunda e imaterial, da sua atração e do seu apelo na mentalidade colectiva
do Portugal de hoje. E isso tem a ver com a identidade portuguesa e com o
nacionalismo cultural que hoje se manifesta através da via lusófona.
A sua origem é a mitologia nacional. Esse nacionalismo cultural emerge das
fontes histórico-culturais e sagradas da identidade portuguesa. E quais são elas?
• Em primeiro lugar, a ideia do excepcionalismo lusitano, a longa tradição
de eleição na história de Portugal. O sentimento de que Portugal se
enquadra na tradição dos povos missionários, eleitos para liderar e,
no fim, transformar o mundo. Se à França, desde o início, se atribuiu
a “Gesta Dei per Francos”, e a Inglaterra e os Estados Unidos, em dife-
rentes momentos, foram vistos como a “Nova Israel”, também Portugal,
na sua historiografia, foi visto como uma espécie de “menino Jesus
das nações”, como notou esse psicanalista da história lusa chamado
Eduardo Lourenço.11 Nesta visão, que reemerge ao longo dos tempos
de diferentes formas e feitios, o imaginário dos descobrimentos, e da
expansão ultramarina, é fundamental.

• E daqui parte a segunda grande dimensão da mitologia nacional, ou


seja, o universalismo português. A ideia é simples: é a ideia de que
Portugal provou, ao longo da história, ter desenvolvido um modelo de
convivência entre os povos que é superior. E é esse humanismo e ecu-
menismo português que distingue a experiência portuguesa no mundo.
A meu ver, a Lusofonia é a manifestação contemporânea, com novas vestes
e novos ares, destes dois grandes esteios do nacionalismo cultural da nação
portuguesa. E por isso, dentro desta perspectiva, a Lusofonia é um mito. E é
um mito de refundação nacional: redefinir e revalorizar o papel de Portugal no
mundo; reaproximar Portugal do seu destino; impulsionar e projetar o “modo
português de estar no mundo” visto como único, ecuménico e humanista (como
afirmou o economista e pensador português Ernani Lopes, e grande defensor
da Lusofonia, “nós [nós portugueses] só somos nós quando formos para além
de nós”)12 ; no fundo, mostrar que Portugal, embora hoje estatisticamente pe-

11
Lourenço, 1988.
12
Lopes, 2011: 265.
84 |
josé pedro zúquete

queno e geograficamente periférico, é, na sua natureza, um país grande. Por


isso não é surpreendente que um “certo fascínio pelo império” persista nas
narrativas identitárias portuguesas.13 O escritor António Lobo Antunes disse
uma vez, numa entrevista, “eu acho insuportável ouvir que nós somos um país
pequeno e periférico. Para mim, Portugal é central e muito grande”.14 Para um
estrangeiro, estas palavras podem parecer um paradoxo, mas o comum do ci-
dadão português, sem ter que pensar muito, entende aquilo que o escritor quer
dizer. E é isso. É exatamente isso. É essa a razão mais profunda, e irresistível,
do nacionalismo cultural português (Portugal universalista, um país de destino,
um país que sendo pequeno é grande). Esse nacionalismo cultural é intuitivo
e instantâneo. Naturalmente aceite, ele nem sequer é visto, ou racionalizado,
como nacionalismo. E nós sabemos que uma ideologia, seja ela qual for, triunfa,
ela verdadeiramente triunfa quando não é sentida como ideologia mas como
senso comum. Ninguém pensa na composição química do ar que respiramos,
limitamo-nos a respirar. O mesmo se passa com uma ideologia triunfante. E
como os restos do império perdido, ela encontra-se em quase todo o lado.
E este traço mental português é ainda mais peculiar porque coexiste com
um outro nacionalismo que, ao nível das elites e da opinião pública, é resolu-
tamente rejeitado: o nacionalismo étnico (identificado com a extrema-direita,
marginal e eleitoralmente insignificante).15 Ao contrário da visão do mundo da
Lusofonia que vê Portugal como enraizado em valores espirituais e culturais
ligados ao expansionismo além-mar, este etnonacionalismo entende Portugal
unicamente como algo enraizado num povo, dentro de um território físico e
concreto. E qual é o mapa mental que guia estes etnonacionalistas? É a ideia-
-motora que Portugal está num período insuportável de decadência – perda
de soberania e de identidade – causada pela globalização, por entidades su-
pranacionais e por políticas “criminosas”, como a abertura de fronteiras, que
minam e corrompem as raízes profundas do povo português. E tudo isto com
a colaboração dos políticos, traidores da pátria. Este é o diagnóstico. Qual a
cura? O renascimento da nação exige a homogeneização étnica no território
original onde ao longo dos séculos a comunidade “indígena” se formou – e daqui
surgem ideais de pureza e a rejeição de elementos “estranhos” e subversores
da autêntica cultura e etnia lusitanas (políticas anti-imigração, encerramento
das fronteiras, rejeição de organizações transnacionais). Este nacionalismo
étnico representa o “Portugal que não se mistura” – e defende esse Portugal.
E este nacionalismo étnico trava uma batalha desigual, e condenada a partida,
contra o nacionalismo cultural da Lusofonia, promovido de várias maneiras

13
Sobral, 2012:93.
14
Antunes, 2008: 18.
15
Ver Zúquete 2013; Marchi 2010.
|  85
nacionalismos e política externa portuguesa...

pelo Estado português, pela sociedade civil, pela comunicação social. E esse
nacionalismo cultural tem como símbolo o “Portugal que sempre se misturou”.
É que a Lusofonia é uma corrente transversal à sociedade portuguesa. Ela
não se identifica primariamente com nenhuma corrente ideológica, nem com
nenhuma força política. Ela existe para além de uma simples divisão entre
Direita e Esquerda. Mas supera essa divisão. E isso é claramente visível nas
políticas dos governos portugueses desde o final do século XX. E é também a
partir dessa altura que a Lusofonia é definida como uma “prioridade” da polí-
tica externa portuguesa.16 A Lusofonia navega num mar comum às principais
correntes dominantes, mainstream, respeitáveis, da sociedade portuguesa.

Figura 1: “Um dos muitos exemplos de promoção da Lusofonia no século XXI”.

16
Ver, por exemplo, Portas, 2011.
86 |
josé pedro zúquete

A “maneira portuguesa” de ver o mundo

E reparem: não é um acaso que seja exatamente neste período histórico


que se dê um impulso decisivo para a criação da Comunidade dos Países de
Língua Portuguesa, a CPLP, em 1996. Independentemente das motivações
utilitárias, pragmáticas e comerciais que estiveram também na sua origem, há
algo mais profundo subjacente ao interesse português. O documento fundador
descreve estes países como partilhando uma “identidade única” reforçada por
uma língua que difunde globalmente os seus valores culturais de uma forma
aberta e “universalista”.17 António Pinto Ribeiro, ministro da Cultura num dos
governos socialistas, revela esse lado mais intercultural e espiritual da empresa,
quando afirma [e eu cito] “politicamente a miscigenação é o futuro. Ou seja, os
indivíduos são os mesmos, mesmo que sejam diferentes, isso é aquilo que nós
[portugueses] somos, isso é aquilo que nós [portugueses] fizemos. Entender
isto é entender a CPLP”.18
Eu poderia dar outros exemplos de afirmações deste tipo na história recente,
de cronistas, políticos, deputados ou governantes que revelam à exaustão esta
narrativa de eleição que gira à volta da “forma portuguesa de estar no mundo”, do
“modo de ser português”, invariavelmente visto como intercultural, ecuménico,
humanista e cosmopolita – e a CPLP e a Lusofonia como manifestações, como
frutos dessa “vocação” universalista, como um dia afirmou o então Ministro
dos Negócios Estrangeiros português, José Manuel Durão Barroso.19
E pensem no seguinte: o debate sobre o acordo ortográfico e a procura
de uma plataforma comum durou quase 100 anos, mas foi só a partir do final
do século passado que o projeto avançou, levando à sua aprovação definitiva.
Existiram críticas (e as críticas continuam, o debate apaixonado até aumentou
nos últimos tempos, assim como os problemas de implementação do acordo),
mas inicialmente houve um consenso generalizado em nível político.20
E isso tem um significado. Mais do que um simples retoque na linguagem,
existe toda uma estratégia de poder por detrás, que vê no acordo um passo
inicial necessário para o fortalecimento de um espaço geolinguístico e a imple-
mentação de uma estratégia cultural e política no mundo. Veja-se, e é apenas
um exemplo, a posição da anterior presidente do Instituto Camões, Simonetta
Luz Afonso – que descreve a língua como um “instrumento de poder”.21 E nin-
guém podia dar maior legitimidade a esta visão do que o próprio presidente da
República, que vê no português, no âmbito da CPLP, “um instrumento essencial

17
CPLP 1996.
18
Lusa, 2008.
19
Barroso, 1995b: VIII.
20
Sobre este assunto ver Zúquete, 2008.
21
Afonso, 2008.
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nacionalismos e política externa portuguesa...

para afirmar internacionalmente os nossos países e a nossa maneira de ver o


mundo”. A língua é, assim, muito mais do que um instrumento de comunicação,
a) ela contém valores, b) encerra uma visão lusófona, e c) é uma fonte de poder
para a “nossa maneira de ver o mundo”.

O mar alto da lusofonia

No Portugal de hoje nem todas as pessoas sentem o chamamento da


Lusofonia da mesma maneira. Esta manifestação do nacionalismo cultural luso
existe numa escala que contém diferentes níveis de intensidade, que vai desde
a indiferença à efervescência.
Nesta escala, a corrente de pensamento agregada ao Movimento Internacional
Lusófono (MIL) encontra-se no topo. Este movimento, fundado em 2008, tem
membros de todos os países da CPLP e muitos brasileiros, e tem como órgão
principal a revista Nova Águia. Aqui, o imaginário lusófono surge em toda a
sua intensidade e expansionismo; até abranger, para os militantes da Lusofonia
redentora, o mundo inteiro.
Como afirma o seu manifesto: “Portugal e a comunidade lusófona poderão
ser uma espécie de pátria alternativa mundial, embrião dessa possível comu-
nidade planetária futura cuja visão é tão presente na nossa tradição”. Assim, a
Lusofonia representa um “serviço prestado a toda a humanidade”, levando, se
se cumprir a sua promessa, a um “mundo novo”.22
Para os apóstolos da Lusofonia, o modelo de civilização superlativo que
Portugal gerou em contacto com as ex-colónias, visto como sincrético, fraternal
e harmónico, contém a chave ética e espiritual para pôr termo à globalização
atual e desumana do materialismo, do egoísmo e do consumismo. Deste modo,
a Lusofonia adquire os contornos e o conteúdo, para estes apoiantes, de uma
globalização alternativa.
Veja-se como esta ideia está presente, por exemplo, num livro de 2012 do
filósofo português Miguel Real:

Face à situação atual profundamente desequilibrada entre os conti-


nentes, esvaziadora da esperança; face ao alto grau de conflitualidade
política e religiosa existente; face a um sistema económico mundial
assente na exploração intensa das grandes massas e na especulação
financeira, a novel comunidade lusófona, a existir como comunida-
de, deverá provocar uma espécie de choque cultural radicalmente
subversor dos valores dominantes no mundo contemporâneo.23

22
Nova Águia, 2008.
23
Real, 2012: 137.
88 |
josé pedro zúquete

Ou seja, a criação de um “bloco civilizacional lusófono” – que constitua


“um exemplo para os outros povos do mundo” e que sirva de contrapeso ao
falhanço do modelo “anglo-saxónico de civilização”.24
De acordo com esta visão, a convergência dos países da Lusofonia deve ser
absoluta e englobar todas as áreas, incluindo, decisivamente, a convergência
política. Por isso, o MIL defende propostas como a refundação da CPLP como
União Lusófona, a criação de um parlamento lusófono, um passaporte lusófo-
no, ou uma força lusófona de manutenção de paz. E este movimento, embora
pouco conhecido, não é insignificante. Tem uma intensa atividade cultural, e
o apoio de figuras como Mário Soares, Adriano Moreira, Fernando Nobre ou
Ximenes Belo.
De qualquer forma, esta representa apenas uma demonstração mais exu-
berante, mais efervescente, de um credo lusófono que, como já foi referido,
está muito bem representado, também noutros sectores. E esse credo tem a
alimentá-lo a ideia, que é expressa de forma explícita ou implícita, de que o
destino de Portugal se cumpra através da Lusofonia.

A longa travessia

Mas a marcha da Lusofonia no século XXI, não obstante os desejos, realis-


tas ou irrealistas, tem a percorrer um longo caminho, árduo e potencialmente
tortuoso.
− A começar pela terminologia, pois o termo “luso” gera desconforto, visto
que ao remeter especificamente para a origem portuguesa, corre o risco, para
os opositores, de legitimar uma visão hierárquica de um projeto que deveria
ser horizontal, pois engloba as experiências de vários países.
Não é de admirar, portanto, que em certos meios académicos, nomeada-
mente anglo-saxónicos, se evite a palavra “lusofonia”, e o seu uso é visto como
politicamente incorreto.
Além disso, muitos habitantes de países oficiais de língua portuguesa,
nomeadamente em África, não falam a língua, o que coloca entraves à sua
designação como lusófonos. Esta realidade, contudo, está a ser gradualmente
alterada e nesses países são cada vez mais os falantes da língua.
− Mas o que é um facto é que, quer em Portugal, quer noutros pontos do
espaço lusófono, muitos críticos veem na Lusofonia pouco mais do que uma
“ideologia colonial revitalizada”, uma mera ferramenta ideológica para manter
o papel civilizador do ex-colonizador na época contemporânea. Em Portugal,
Alfredo Margarido escreveu um pequeno texto, no ano 2000, sobre a Lusofonia

24
Epifânio, 2010: 116-17.
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nacionalismos e política externa portuguesa...

como um “novo mito português”. E é esse o seu argumento principal, ou seja, a


Lusofonia seria uma tentativa desesperada de recuperar o império.25
Aliás, este é um discurso muito utilizado em África, contra Portugal, quando
surgem divergências diplomáticas. O Jornal de Angola, por exemplo, é incansável
na denúncia do que chama de “neocolonialismo” luso cada vez que as posições
dos governos ou da justiça portuguesa não agradam ao status quo angolano.26
Mas logo em 1978, Samora Machel, então Presidente de Moçambique, numa
cerimónia da Organização de Unidade Africana (OUA), alertava: “os coloniza-
dores utilizam agora para nos dividir conceitos como francofonia, anglofonia,
e até mesmo a lusofonia”.27 Embora, no caso da CPLP, e ao contrário das outras
duas organizações (como a Commonwealth – 1949; e a Francofonia – 1970), a
sua criação não foi logo imediata ao fim das colónias (isso só aconteceu mais
de 20 anos depois).
Esta questão deve ser problematizada, e não deve haver uma generalização.
Ao longo do tempo, muitos devotos da Lusofonia e de projetos de constituição de
uma comunidade afro-luso-brasileira não eram portugueses de nacionalidade.
Veja-se, apenas e só a título de exemplo, a figura do ex-presidente do Senegal,
Leopold Senghor, nos anos 70, um dos primeiros a falar explicitamente em
Lusofonia e na importância do “grande desígnio de um humanismo lusófono
e moderno”.28 E alguns dos maiores mentores e impulsionadores da criação
da CPLP são brasileiros (como, por exemplo, o embaixador José Aparecido
de Oliveira). O prémio da CPLP (instituído em 2014) para as personalidades
lusófonas de destaque, tem, aliás, o nome do político mineiro brasileiro. De
qualquer forma, tem que haver alguma precaução quanto à ideia de que a
Lusofonia é inevitavelmente apenas e só uma “ideologia colonial” portuguesa.
Pelo menos deve reconhecer-se que ela engloba uma realidade histórica viva
e complexa, com múltiplos contributos, e que por isso não pode ser vista de
uma forma simplista e redutora.
A título de curiosidade: Durão Barroso, como Ministro dos Negócios
Estrangeiros de Portugal, nos anos 90, sentia sempre a necessidade de afirmar
em público que a CPLP era uma “proposta brasileira” que os portugueses tinham
aceite.29 Exatamente nesta perspectiva de “fugir” da acusação de neocolonialismo.
− Mas o expansionismo lusófono debate-se com um outro grande obstáculo.
É certo que o Brasil, pelo seu peso demográfico e crescente poderio económi-
co, político e cultural, assume-se, naturalmente, como a força propulsora da
Lusofonia na atualidade. E esse papel de líder é reconhecido, e até esperado,

25
Margarido, 2000.
26
Por exemplo, Jornal de Angola, 2013.
27
Jornal Novo, 1978: 20.
28
Flama, 1975.
29
Barroso, 1995a: 80.
90 |
josé pedro zúquete

pelos defensores do projeto. Assim, António Monteiro, antigo Ministro dos


Negócios Estrangeiros (2004-5), deu voz a esta realidade afirmando, em 2010,
“Temos uma língua que tem poder a escala mundial e esse poder é o Brasil”. 30
Se há uma palavra que define as relações luso-brasileiras é a palavra “li-
rismo”, ou o discurso grandiloquente da “boa vontade”, das “raízes comuns”,
da “união fraternal”, etc. Desde cedo que foi assim, mesmo que, e também
desde cedo, no nível intelectual certas vozes apregoem que o mal de origem
do Brasil advém da lusitanidade. 31 Mas esse lirismo, essa política romântica
das intenções, é como que um fio condutor que atravessa todos os regimes dos
dois lados do Atlântico. As intenções estão bem presentes ao longo do século
XX e, nos anos 40, o Presidente Getúlio Vargas teve uma afirmação que teve
grande repercussão na mídia portuguesa da época: “nada do que acontece no
Brasil pode ser indiferente a Portugal, da mesma forma que nada que diga res-
peito a Portugal pode ser indiferente ao Brasil”. 32 A primeira parte da equação,
hoje em dia, até faz sentido. A cultura popular brasileira, do entretenimento
à música, penetrou claramente a sociedade portuguesa. E até na comunicação
social seguem-se as eleições brasileiras com interesse. Mais problemática é a
parte que respeita ao “Portugal no Brasil”. Existe um enorme desconhecimento,
no nível das massas, do que se passa ou produz em Portugal. A indiferença é a
norma. E essa realidade choca com o que tem proclamado, ao longo dos tem-
pos, a classe política brasileira. Como o presidente eleito Tancredo Neves que,
na sua visita a Portugal em 1985, no seu discurso à Assembleia da República,
afirmou o seguinte: “Não existe hoje um só brasileiro que ao acordar não tenha
dois pensamentos: um voltado para Deus, e outro para Portugal.”33 E de uma
forma ou doutra, com mais ou menos floreados, este discurso mantém-se ao
longo dos tempos, e dos dois lados do Atlântico.
A Lusofonia será tanto mais forte quanto maior for o empenho do Brasil:
é esta a lógica. Mas essa intenção esbarra com uma política externa brasileira
que se rege, como tantas outras, pelo realismo e os tais “interesses egoístas”
noutros espaços, e mercados, não lusófonos (como, por exemplo, o Mercosul ou
os BRICS). É comum ouvir dizer-se que, desde o início do século, o empenho
brasileiro na Lusofonia tem sido mais visível. Mas resta saber se alguma vez
será suficiente. Porque, e sem lirismos, o realismo diz-nos que a Lusofonia será
tanto mais forte quanto maior for a consciência do Brasil de que pode lucrar com
ela, numa perspectiva de interesse próprio. E, até o momento, esse interesse
parece ser mais propagandeado do que realmente efetivado.

30
Notícias Lusófonas, 2010.
31
Ver, por exemplo, Paredes, 2011.
32
O Globo, 1942.
33
Correio da Manhã, 1985.
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nacionalismos e política externa portuguesa...

− Para complicar a imagem, talvez pueril, que se tem da Lusofonia (e, por
conseguinte, da CPLP) como primariamente uma comunidade de valores, assente
na língua e na defesa de um património imaterial e histórico comum, acelerou-se
a tendência (e o perigo, para alguns) da sua transformação, ou mutação, para uma
espécie de clube de negócios. A adesão à CPLP, e a integração no Bloco Lusófono,
em julho de 2014, na décima cimeira da organização em Timor- Leste, da Guiné
Equatorial (o que aumentou para nove o número de estados-membros), um país
que só marginalmente comunga desse imaginário histórico e cultural, mas que
acrescenta, contudo, um peso energético e petrolífero importante à comuni-
dade, simboliza esse reforço cada vez maior daquilo que o Primeiro-Ministro
Português Pedro Passos Coelho chamou de “lusofonia económica” e “lusofonia
energética”.34 Mesmo que a população do novo estado- membro não fale a língua
(apressadamente reconhecida como “oficial”) ou que o seu executivo ditatorial não
partilhe dos valores humanistas que estão na base da CPLP e que, supostamente,
distinguem a ação “ecuménica” e “universalista” da experiência portuguesa no
mundo. Talvez por isso, e mesmo com essa atração irresistível pelos benefícios
económicos, Portugal tenha sido o último país a aceitar, relutantemente, ao fim
de um processo que durou anos, e sob pressão dos outros estados-membros
(como o Brasil e Angola), a entrada do novo estado africano na organização.35
− Finalmente, é difícil não ter consciência do elitismo de muitas destas
dinâmicas associadas à Lusofonia. Embora ela assente na língua, que é “de-
mocraticamente” partilhada por todos, com sotaque ou não, os projetos a ela
associados correspondem muitas vezes a interesses, desejos e sonhos de elites
políticas, elites económicas e, sobretudo (embora a sua influência possa estar
a desvanecer-se), de elites culturais.
Pelo meio, existe um enorme desconhecimento e desprendimento popular,
relativamente à construção da Lusofonia como uma via possível para um futuro
comum e integrado de todos os países de língua portuguesa. Pode até dizer-se
que existe um “deficit democrático” nesse sentido.
Em suma, talvez o mais inultrapassável dos obstáculos seja o de sentir que
a realidade é sempre a maior madrasta do lirismo dos poetas, dos sonhos dos
pregadores, e dos projetos grandiosos de políticos desprevenidos.

34
Lusa, 2014.
35
Sobre este tem ver, por exemplo, Público, 2014.
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josé pedro zúquete

Em busca de um imaginário global

Independentemente destas considerações, e até como forma de conclusão, o


que é certo é que este debate sobre a Lusofonia pode levar-nos a uma discussão
mais académica, ou conceptual, se quisermos.
Sobre nacionalismo: por exemplo, relativamente a conceitos que tem sido
usados mais recentemente, exatamente devido à intensificação dos processos
da globalização, como o de “nacionalismo cosmopolita”. Ou seja, a ascensão
no mundo de um nacionalismo mais aberto, inclusivo e que tem o globo como
referência; uma reorientação do nacionalismo para fins mais transnacionais.
Isso pode ter um fundo de verdade no caso da Lusofonia mesmo que as raízes
portuguesas desta crença lusófona estejam bem presentes. Embora o objectivo
final possa ser um projeto global transnacional e transcontinental, ele está ligado
culturalmente e espiritualmente à identidade nacional portuguesa. Embora,
como já foi dito, a Lusofonia não deva ser reduzida apenas a essas origens, não
é de estranhar que seja exatamente em Portugal que o apelo da Lusofonia te-
nha maior sucesso, e que continue a ser um conceito mobilizador, quer através
do Estado, quer através da sociedade civil. De qualquer forma, o imaginário
lusófono é um imaginário global, ou seja, tem um sentido do global, que parte
do nacional, e que ajuda também a moldá-lo. 36 O sociólogo Manfred Steger diz
mesmo que esse é o caminho das novas ideologias. Elas já não vão ser mais
apenas nacionais, mas cada vez mais têm o globo como referência (veremos se
será mesmo assim). 37 De qualquer forma, este imaginário lusófono enquadra-se
bem nesta discussão de imaginários.
Mas este debate sobre a Lusofonia pode gerar uma incursão pela geopolítica.
Porque a própria geopolítica da Lusofonia (a chamada “Lusofonia global”), esse
ideal de criação de um bloco linguístico, unido por uma língua e valores comuns,
e portanto um bloco potencialmente geopolítico, pode ser entendida como parte
de um mundo multipolar em construção. Ou seja, pode ser enquadrado num
discurso contra-hegemónico, uma afirmação de diversidade e distinção (neste
caso dos países de língua portuguesa), no seio das dinâmicas de uniformização
da globalização dominante. Esta tentativa de afirmação de um espaço lusófono,
com todos os seus defeitos de origem, seria, simultaneamente, uma resistência
à globalização atual, e uma tentativa de a superar através de um projeto trans-
nacional diverso e autónomo. Dessa forma, e tirando partido dos processos
da globalização (da compressão do tempo e do espaço), a Lusofonia seria um
exemplo do aparecimento de “novas formas de comunidade política,” e “novas
visões de uma política integrada,” que refletem “comunidades de consciência

36
Ver por exemplo, Rodrigues, 2008.
37
Steger, 2009.
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nacionalismos e política externa portuguesa...

transnacionais,”38 assentes em novas formas de mobilização que ultrapassam


as fronteiras nacionais e reconfiguram as identidades nacionais.
Talvez estes sejam novos caminhos que se esperam redentores para Portugal,
40 anos depois da outra luz redentora, a do 25 de Abril de 1974.

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38
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josé pedro zúquete

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96 |
Nacionalismos e Impérios:
o caso da Itália fascista
João Fábio Bertonha
Universidade Estadual de Maringá

Introdução

A concepção de mundo dos fascismos implica a presença do nacionalismo e


do imperialismo. Composições, acordos e revisões são e eram sempre possíveis,
mas um fascismo com tons cosmopolitas ou pacifistas seria uma contradição
em termos, praticamente negando o modelo.
A grande questão é definir melhor esses termos. O nacionalismo é uma
ideologia com múltiplos significados, indo desde uma visão de luta por direitos
de cidadania (como em Mazzini ou Garibaldi), até um patriotismo mais ou me-
nos inofensivo, passando por visões mais ou menos excludentes, centradas na
economia ou na cultura. É possível, assim, ser nacionalista sendo democrata ou
não, de direita ou de esquerda, conservador ou revolucionário. Tudo depende
de que nacionalismo se está falando.
No caso dos fascismos, o que temos, em geral, é uma concepção excludente
de Nação, que identifica claramente o “nós”e o “eles” a partir de elementos na-
cionais ou raciais e concebe um “outro” como um inimigo a ser destruído. E esse
“outro” não é apenas externo, mas também interno, a ser combatido através da
reorganização completa da sociedade em novos termos, corporativistas, com
partido único, etc. Dessa forma, dizer que os fascismos eram nacionalistas é
repetir o óbvio, sendo fundamental esclarecer qual o tipo de nacionalismo de
que estamos falando.
Sobre o imperialismo, a mesma questão se apresenta. Não é possível ser
fascista sem uma perspectiva imperial, mas as tradições históricas, a geopolítica
e as prioridades condicionavam cada tipo de imperialismo e é conveniente, para
a precisão histórica, entender as várias possibilidades de imperialismo dentro
do universo dos fascismos e da extrema-direita como um todo.

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nacionalismos e impérios: o caso da itália fascista

Para tanto, esse artigo trabalhará a questão do imperialismo na Itália fascis-


ta. Inicialmente, procurarei apresentar a questão do imperialismo na ideologia
fascista e sua importância no seu projeto de renovação da Itália na perspectiva
do regime. Posto isso, abordarei os vários mecanismos, diretos e indiretos, com
que a Itália de Mussolini tentou exercer seu imperialismo no período entre
as duas guerras mundiais e como tais mecanismos se articularam num todo
contraditório, mas não totalmente incoerente. Por fim, farei uma abordagem
geral a respeito da noção de Império dentro da Itália fascista, comparando-a
com a outra perspectiva central do universo do fascismo, a nazista.

Império e imperialismo na Itália fascista

Os historiadores italianos debatem intensamente, há décadas, a respeito


das diferenças e continuidades entre a política imperial praticada pelo Estado
italiano na era liberal e durante o regime fascista. Sem querer entrar nesse
debate, já abordado por mim em outras ocasiões1, é possível perceber como
há uma diferença significativa entre o imperialismo promovido pelo regime
fascista e aquele liberal e, mais especialmente, entre o imperialismo liberal e
aquele promovido pelo regime na década de 1930, sendo a de 1920 um mo-
mento de transição.
Realmente, na sua primeira década no poder, ou seja, entre 1922 e 1932, o
fascismo manteve algumas das estratégias e padrões que haviam caracterizado
a política externa italiana no período liberal, como o equilibrismo entre as gran-
des potências, a amizade com a Grã-Bretanha, a ênfase das ambições italianas
no Mediterrâneo e no Adriático, certa moderação, etc. Para os observadores
externos parecia que o fascismo, apesar da retórica nacionalista, não mudara
em essência a tradicional política externa italiana e, de fato, não o fez. Durante
a sua primeira década no poder, assim, o