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Dimensões

do Poder
História, Política
e Relações Internacionais
Conselho Editorial da Série História Chanceler
(Editor) Leandro Pereira Gonçalves, Dom Jaime Spengler
Pontifícia Universidade Católica
Reitor
do Rio Grande do Sul, Brasil
Joaquim Clotet
António Costa Pinto,
Instituto de Ciências Sociais da Vice-Reitor
Universidade de Lisboa, Portugal Evilázio Teixeira

Jorge Ferreira, Conselho Editorial


Universidade Federal Fluminense, Brasil
Jorge Luis Nicolas Audy | Presidente
Maria Helena Capelato, Gilberto Keller de Andrade | Diretor da EDIPUCRS
Universidade de São Paulo, Brasil Jorge Campos da Costa | Editor-Chefe
Agemir Bavaresco
Maria Izilda Santos de Matos,
Pontifícia Universidade Augusto Buchweitz
Católica de São Paulo, Brasil Carlos Gerbase
Carlos Graeff-Teixeira
Jens Hentschke,
Clarice Beatriz da Costa Söhngen
Newcastle University,
Reino Unido
Cláudio Luís C. Frankenberg
Érico João Hammes
René E. Gertz, Gleny Terezinha Guimarães
Pontifícia Universidade
Lauro Kopper Filho
Católica do Rio Grande do Sul, Brasil
Luiz Eduardo Ourique
Rui Cunha Martins, Luis Humberto de Mello Villwock
Instituto de História e Teoria das Ideias/ Valéria Pinheiro Raymundo
Universidade de Coimbra, Portugal
Vera Wannmacher Pereira
Wilson Marchionatti
Série

História
66

Dimensões
do Poder
História, Política
e Relações Internacionais

Marçal de Menezes Paredes, Leandro Pereira Gonçalves


Luciano Aronne de Abreu e Helder Gordim da Silveira
Organizadores

Porto Alegre, 2015


© EDIPUCRS 2015
DESIGN GRÁFICO [CAPA e DIAGRAMAÇÃO]  Dani.Editorial

REVISÃO DE TEXTO  Clea Motti

TRADUÇÃO ESPANHOL/PORTUGUÊS DO CAPÍTULO De frente para o futuro  Clea Motti

Edição revisada segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Publicação apoiada pela Capes.


Esta obra não pode ser comercializada e seu acesso é gratuito.

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

D582  Dimensões do poder : história, política e relações


internacionais [recurso eletrônico] / Org. Marçal de
Menezes Paredes et al. – Porto Alegre : EDIPUCRS, 2015.
191 p. – (Série História ; 66).

Modo de Acesso: <http://www.pucrs.br/edipucrs>


ISBN 978-85-397-0715-7

1. Brasil – História Pólítica. 2. Brasil – Relações Exteriores -


História. I. Paredes, Marçal de Menezes Paredes. I. Título.

CDD 981

Ficha catalográfica elaborada pelo Setor de Tratamento da Informação da BC-PUCRS.

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multa, conjuntamente com busca e apreensão e indenizações diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de
19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).
Sumário

prefácio................................................................................................................................ 7

apresentação.................................................................................................................... 9

A fronteira no centro................................................................................................... 13
Rui Cunha Martins

De frente para o futuro. O Conceito de nação nos processos


de independência hispano-americana...................................................................... 29
Fabio Wasserman

Nas origens do nacionalismo político da I República Portuguesa: o projeto


da “nacionalização do Estado” e o debate jurídico e político em torno da
conceção da soberania e do modelo de representação política........................... 63
Paula Borges Santos

Nacionalismos e política externa portuguesa no pós-25 de Abril....................... 81


José Pedro Zúquete

Nacionalismos e Impérios: o caso da Itália fascista............................................... 97


João Fábio Bertonha

A década de 20 e a gênese das ideias autoritárias no Brasil:


o jovem Francisco Campos....................................................................................... 115
Cláudia Maria Ribeiro Viscardi

Padrões e tendências das relações internacionais do Brasil


em perspectiva histórica: uma síntese tentativa.................................................. 135
Paulo Roberto de Almeida

A Questão do Acre nas Caricaturas dos Jornais Cariocas (1903-1904)........... 165


Luís Cláudio Villafañe G. Santos

sobre os autores......................................................................................................... 189


Prefácio

Este livro, como muitos outros, originou-se da organização de dois seminários


de pesquisa realizados na PUC de Porto Alegre, que tiveram como eixo comum os
estudos ibero-americanos. Um tipo de atividade bastante frequente nos programas
de pós-graduação brasileiros e também bastante frutífero, já que, aliando ensino e
pesquisa, permite o contato entre graduandos, pós-graduandos, professores estran-
geiros e professores nacionais de várias partes do país. Portanto, é uma estratégia
que deve permanecer sendo experimentada por muito tempo e com muito proveito.
Um dos resultados esperados de tais seminários costuma ser a produção de um
livro que reúna um conjunto de trabalhos neles apresentados e debatidos. Nesse
aspecto, este livro é como vários outros resultantes dessa rica dinâmica. Contudo,
ele se diferencia de quase todos eles, ao se propor não tanto a reunir textos, mas a
reorganizá-los segundo uma nova perspectiva, ela mesma produto das discussões dos
seminários. Esse fato explica, a meu ver, sua estrutura bem-acabada e suas diversas
contribuições, assentadas, basicamente, em um forte convite a novas reflexões.
O tema do nacionalismo é a grande marca de todos os capítulos, que se dedicam
à política e às relações internacionais na história de três países: Brasil, Portugal e, em
menor escala, a Itália. Essa questão clássica aparece, em boa parte desses capítulos,
associada a outra, não menos instigante: a da experiência autoritária, absolutamente
incontornável nesses três casos de Estados nacionais. Assim, o leitor poderá conhecer
dimensões do nacionalismo português e do brasileiro, em diferentes temporalida-
des, além de se beneficiar de um capítulo que analisa o fascismo italiano pela via
de sua política de expansão colonial. Em todos os trabalhos é possível encontrar
um esforço de reflexão teórica, que se explicita nos dois capítulos iniciais do livro,
dedicados, respectivamente, às categorias de nação e nacionalismo e ao conceito
de fronteira, cujo(s) significado(s) é/são retomado(s) para realizar a conexão entre
a política e as relações internacionais. Dessa forma, acredito que o livro renova,
para o leitor, o tratamento de temas que são muito visitados, justamente por serem
sempre desafiadores, sobretudo, nos estudos ibero-americanos.

Angela de Castro Gomes


Professora Titular da Universidade Federal Fluminense e
Professora Visitante da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

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Apresentação

Ao longo dos últimos anos, as diferentes linhas de pesquisa do Programa


de Pós-Graduação em História (PPGH) da PUCRS têm promovido uma série
de eventos, de variadas dimensões e temáticas, com o objetivo de refletir sobre
suas próprias práticas de pesquisa histórica e as novas tendências nacionais
e internacionais da historiografia contemporânea, tanto em termos teórico-
-metodológicos quanto empíricos. A esse respeito, pode-se dizer que esses
eventos têm se constituído cada vez mais em importantes espaços de diálogo
não apenas entre os próprios professores, pesquisadores e alunos do PPGH
da PUCRS, mas também com seus pares de outras reconhecidas instituições
nacionais e internacionais de pesquisa histórica, com as quais têm procurado
estreitar ainda mais suas relações de parceria no campo da História.
Nesse sentido, deve-se destacar que os estudos aqui reunidos e publicados
em livro são o resultado de amplas discussões ocorridas no “IX Congresso
Internacional de Estudos Ibero-Americanos” e no “Seminário Nacionalismo
e Política: Brasil e Portugal”, eventos organizados pelas linhas de pesquisa
“Sociedade, Política e Relações Internacionais” e “Sociedade Urbanização e
Imigração” do PPGH da PUCRS. Em que pese a grande variedade e qualidade dos
trabalhos então apresentados nesses eventos, que contaram com a participação
de professores e alunos de instituições como Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Universidade Federal Fluminense, Universidade Federal de Juiz de Fora,
Universidade Estadual de Maringá, Universidade de Coimbra, Universidade
de Lisboa, Universidade Nova de Lisboa e outras, os professores atualmente
vinculados à linha de pesquisa “Sociedade, Política e Relações Internacionais”
do PPGH da PUCRS optaram por reunir na presente obra apenas os estudos
com temáticas mais afins às questões do nacionalismo e autoritarismo, como
se verá a seguir.
Rui Cunha Martins e Fabio Wasserman abordam o tema numa perspectiva
mais teórico-conceitual, o primeiro sobre a fronteira, o segundo sobre a nação.
O próprio título do texto sugere a riqueza da perspectiva teórica de Rui Cunha
Martins – A fronteira no centro. Trata-se de recuperar no debate em torno da
fronteira – tratada como dispositivo conceitual moderno – suas diversas fun-
cionalidades, muito além do seu uso mais corriqueiro, como margem contrária

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apresentação

ao centro. A análise do autor aponta, entre outras questões, para o próprio


mecanismo de ativação do limite a partir de um centro de referência que, ao
fazê-lo, designa a si próprio como poder. Em De frente para o futuro: o conceito
de nação nos processos de independência hispano-americana, Fabio Wasserman
critica o essencialismo e a teleologia presentes na forma como são costumei-
ramente tratados os temas das nações e dos nacionalismos. Para além destes
ecos do romantismo, o autor nos apresenta uma pluralidade de significados
existentes sobre a palavra nação no contexto das Independências da América
Hispânica entre 1780-1830. Trata-se de um texto que, à luz de algumas dire-
trizes da História Conceitual de Reinhart Koselleck, desnuda a historicidade
dos significados políticos e sociais e aponta para a necessidade de o historia-
dor ter atenção às mudanças de sentido e significado, precavendo-se contra
a naturalização dos significados na história. Como se vê, ambos os textos são
desafiadores e complexos, vocacionados, cada um a seu modo, para a instrução
de um debate aberto e crítico por excelência.
Paula Borges Santos e José Pedro Zúquete tomam como referência o caso
português, ainda que em períodos diferentes – a primeira, analisando as origens
do nacionalismo na I República, e o segundo, sua versão mais contemporânea,
pós-25 de Abril. Nesse aspecto, a nacionalização do Estado Português no con-
texto da Primeira República é verificada enquanto a hipótese da narrativa sobre
a soberania ter correspondência na representação política; assim Paula Borges
Santos busca estabelecer se o nacionalismo teve uma matriz revolucionária ou
tradicionalista e conservadora no contexto de rompimento da ordem política
vigente. Em um contexto contemporâneo, Zúquete apresenta uma reflexão
sobre a Lusofonia em torno de uma rede ambiciosa que é concebida e ativa no
século XXI com o objetivo de redefinir e revalorizar a importância de Portugal,
40 anos após a Revolução dos Cravos.
João Fábio Bertonha analisa o clássico caso do nacionalismo italiano e sua
perspectiva imperialista e apresenta ao leitor reflexões sobre o fascismo ita-
liano como uma proposta sofisticada em termos teóricos, que tentou exercer a
prática expansionista no período entre as duas guerras mundiais, entretanto,
com erros que causaram desgraças ao povo italiano no âmbito da Segunda
Guerra Mundial.
Cláudia Viscardi toma por referência o caso brasileiro, refletindo a concep-
ção nacionalista autoritária de Francisco Campos, um dos mais importantes
intelectuais vinculados ao Estado Novo de Getúlio Vargas, entretanto a impor-
tância da análise está na reflexão dos discursos parlamentares do jovem Campos
como defensor das oligarquias situacionistas e do modelo liberal-oligárquico
nos anos 20, explicitando alterações nos rumos políticos, uma vez que esteve
ao lado dos revolucionários de 30 e foi um dos principais articuladores do golpe
do Estado Novo ao lado de Vargas.

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apresentação

Paulo Roberto de Almeida e Luís Cláudio Villafañe Gomes dos Santos


analisam a questão nacional brasileira a partir de suas relações internacio-
nais, ou seja, do modo como o Brasil se colocou diante das demais nações e
com isso reafirmou seus próprios interesses políticos, territoriais e mesmo de
construção de uma nação. Nessa direção, Paulo Roberto de Almeida apresenta
uma ampla reflexão na qual analisa os sentidos fundamentais da política ex-
terna e da inserção internacional do Brasil desde suas origens no século XIX,
colocando assim em perspectiva histórica as tendências e condicionamentos
contemporâneos deste aspecto da vida nacional. Luís Cláudio Villafañe Gomes
dos Santos propõe por seu turno um exame do período fundamental de Rio
Branco à frente do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, a partir das
caricaturas na imprensa referentes à atuação do chanceler brasileiro, que viria a
constituir-se em patrono do Itamaraty e em figura simbólica da nacionalidade.
Com este conjunto de interpretações, cremos estar dando continuidade à
vocação do Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul em priorizar o desenvolvimento e a difusão de
perspectivas historiográficas qualificadas e com a melhor apetência crítica em
torno dos principais temas em debate em nosso tempo.

Os Organizadores

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A fronteira no centro
Rui Cunha Martins
Universidade de Coimbra

1. Função

Consta das funcionalidades asseguradas pelos dispositivos da fronteira a


produção de centralidades. Uma propriedade, é bom dizê-lo, nem sempre fácil
de detectar (desde logo porque o senso comum analítico tende a privilegiar as
figuras do limite conotadas com demarcação e confim, em detrimento das figuras
resultantes do desdobramento do limite sobre si próprio) e cujo reconhecimento,
quando acontece, tem sido mais ou menos reconduzido a uma expressão mais das
inversões de sentido exibidas pela contemporaneidade recente e assimilada, por-
tanto, a fenómenos como a reconhecida propensão das fronteiras para o respectivo
deslocamento ou a manifesta apetência dos centros para a respectiva multiplicação.
Ora, é nosso entendimento que a funcionalidade em causa, isto é, essa
produção de centralidade pelos dispositivos fronteiriços, corresponde, afinal,
a um dos mecanismos desde há muito residentes no corpo do conceito de
fronteira e que, mais do que tratar-se de mero epifenómeno que traduziria um
momento de particular turbulência no desempenho desse conceito, é antes
constitutivamente produzido por ele, ganhando, por ocasião da sua mobiliza-
ção pelas diversas conjunturas históricas, novos recortes funcionais e novas
formas de realização. Tanto assim é que, uma vez ensaiada uma concretização
do problema no quadro da modernidade, se torna possível detectar, pelo menos,
duas modalidades pelas quais se concretiza essa dimensão do limite enquanto
centralidade: a da designação; e a do hibridismo.

2. Modelo

Nos inícios da modernidade, a noção de fronteira encontra-se suficiente-


mente burilada para que se tornem claras, já então, as respectivas propriedades
e condições de desempenho. A impressão com que se fica é a de que, por essa

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a fronteira no centro

altura, andam associados ao conceito elementos de vária ordem, desde princípios


teóricos e doutrinários até funções pragmáticas, passando por experiências
concretas, historicamente inscritas. Alguns desses elementos tendem a ser
agregados entre si, reunidos no âmbito do conceito de soberania, enquanto que
outros sugerem persistir mais ou menos arredios a esforços de compactação
teórica e de normalização. De alguma forma, o trabalho da modernidade con-
sistirá em assegurar a manutenção de ambas as vias, ou, dito de outro modo,
em investir sobremaneira na primeira, estimando ao mesmo tempo a margem
de manobra e a agilidade funcional garantidas pela segunda.
É nesta perspectiva, só nela, que tem cabimento falar de um modelo mo-
derno de fronteira. A expressão designa precisamente essa possibilidade de
sentido e esse investimento de coerência em torno do conceito; nada disto fere
a disponibilidade da ideia de fronteira para as dimensões da adaptabilidade,
da variabilidade e da dispersão de significado, as quais, de resto, constarão de
modo gradual do seu recorte conceptual e da sua eficácia. O nosso ponto de vista
aponta, portanto, para um grau de razoável estabilidade da noção de fronteira
no quadro das primeiras sínteses produzidas pelo pensamento e pela teoria
política modernas, estabilidade essa que, ao imputar à fronteira determinado
conjunto de competências e determinado tipo de operatividade, lhe permite
integrar, com visível sucesso, o painel de elementos que a modernidade se
encarregará de popularizar quer ao sabor da sua apetência expansiva, quer da
sua incorrigível apetência ordenadora.
É dentro desta linha de raciocínio que se torna possível isolar, por entre
aqueles que aparentam ser, do ponto de vista da modernidade, os eixos maiores
dessa configuração funcional e doutrinária – desse conjunto de mecanismos,
será com certeza a expressão conveniente – que é a fronteira, aquilo a que em
outro trabalho chamámos já o eixo da designação1. E a tese que lhe está subja-
cente pode ser dada pela seguinte fórmula: as fronteiras correspondem tanto à
definição de uma exterioridade, quanto, sobretudo, à pretensão de visibilidade do
invólucro que elas delimitam. Que quer isto exatamente dizer?

3. Designação

Basicamente o seguinte: que as fronteiras não remetem apenas para os


contornos do que se demarca, nem apenas para aquilo que, pelo ato da de-
marcação, ganha estatuto excêntrico ou alienígena; qualquer demarcação,
na medida em que se faz a partir de um interior que se quer ver demarcado,
remete, com naturalidade, para esse invólucro que é a entidade patrocinadora
da ativação dos limites. Subjacente a esta tese está, pois, a seguinte percepção:

1
MARTINS, Rui Cunha. O Método da Fronteira: Radiografia Histórica de Um Dispositivo
Contemporâneo (Matrizes Ibéricas e Americanas). Coimbra: Almedina, 2008, p. 112.
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rui cunha martins

qualquer mecanismo de separação, e, mais ainda, aqueles que, como as fron-


teiras políticas, são regularmente trabalhados, não separa virado para fora,
separa virado para o interior de si mesmo. A delimitação é uma designação – o
“traço” denuncia um referente.
A este título, a relevância da atividade demarcatória, ou, especificamente,
de cada um desses momentos de fixação dos marcos fronteiriços – ocasiões
em que uma entidade política (seja o reino), enquanto entidade demarcada, se
instancia e se refaz, à escala local, no próprio ato de fixação dos símbolos que
o delimitam –, essa relevância, se é certo decorrer, por um lado, da possibi-
lidade de construir as exterioridades tidas por pertinentes, decorre também,
por outro, da evidenciação assim garantida à própria entidade demarcada, como
o atesta, de resto, o investimento narrativo-memorial a que esta se entrega.
Neste sentido, cada cerimónia de instalação dos marcos visa conferir ao corpo
do reino o estatuto de facto notório (não ensinara a tradição jurídica medieval
que um tal estatuto designava uma verdade de tal modo evidente e perceptível
ao olhar que, uma vez alojada no espírito dos homens, aí residiria ad aeter-
num?). Um reino demarcado, crê-se perene. O corpo dinástico designado pela
demarcação, também.

4. Centralidade

Assim se compreende um segundo nível da questão: as fronteiras, enquanto


margens, não funcionam apenas como o contrário dos centros; são também a
reserva destes, quando não a sua outra natureza. Trata-se, aqui, de retirar as
devidas consequências de exemplos como o fornecido por uma leitura da his-
tória portuguesa enquanto virtual mobilização em direção a um horizonte de
fronteira. Uma leitura segundo a qual, desde essa protoexpansão que é a recon-
quista peninsular, até à expansão africana, e, mais genericamente, ultramarina,
ocorreu uma perpétua reinvenção de um limite posto diante dos portugueses,
e deslocando-se sempre para diante deles à medida que dele se aproximavam,
como se o mundo fosse irremediavelmente fronteira, ou como se a ucronia se
fosse sucessivamente realizando enquanto utopia. Ora, reconhecer-se-á, mes-
mo sem ser preciso abandonar esta matriz explicativa, que essa progressão
em direção às fronteiras se fez acompanhar, em simultâneo, da constatada
capacidade da Coroa em instituir-se, desde sempre, como polo configurador
desses processos estruturantes da construção portuguesa.
Uma percepção que se manifesta em dois níveis. Por um lado, no esforço
de captação dos recursos mais visíveis desses espaços marginais por parte de
uns centros de decisão só em aparência confinados à retaguarda da dinâmica
fronteiriça (pense-se, por exemplo, neste sentido, na rentabilização do contra-
bando, pela esfera do rei e das elites sociopolíticas, na fronteira castelhana de
Quatrocentos; mas pense-se então, com maior abrangência, que essa atuação

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a fronteira no centro

é uma etapa de uma tendência longa em que igualmente se inscreverão, quer o


gradual envolvimento da monarquia, em negócios similares, a partir da frontei-
ra marroquina de Quinhentos, quer o modo de atuação da Coroa na fronteira
brasileira, especialmente na segunda metade do século XVIII). E manifesta-
-se, por outro lado, no modo como as franjas do reino, ou do império, foram
configurando um espaço de escoamento das tensões existentes no seu seio, à
laia de “reserva” onde se fazia desembocar a energia social tida por excessiva.
Está aqui em causa, afinal, a ativação da dimensão da fronteira como potencial
receptora de tensões, como margem estimada, paradoxalmente, enquanto garante
das sinergias procuradas, internamente, por uma sociedade em expansão. Será
irónico, mas é assim: só um centro bem delimitado (i.e, solidamente designado)
pode estimar o potencial ilimitado das margens.
Naturalmente que, assim sendo, a fronteira, factor de complexificação his-
tórica que é, não age, porém, sobre o real como garantia de metamorfose social.
Persiste, com efeito, na fronteira, uma dimensão de resistência à “metamorfose”,
cuja expressão é o inusitado “conservadorismo” que o nível socio-histórico da
análise lhe surpreende: recorde-se, com base nos indicadores empíricos, que
a sua ativação enquanto mecanismo social propicia mesmo, sob não poucos
ângulos de visão, a cristalização das matrizes socio-históricas em presença,
mas não a respectiva reversão. Na verdade, já deverá aparecer como seguro, no
quadro da primeira modernidade, aquilo que a própria experiência histórica
moderna se encarregará de ir comprovando (e que, bem perto de nós, Prigogine
explicará tecnicamente): que, mesmo quando o limiar marca o aparecimento de
um regime de funcionamento novo, esse novo deve entender-se de uma maneira
relativa, isto é, sempre explicável por referência ao que o produz.

5. Contingência

Há ainda um terceiro aspecto a ter em conta. Tem a ver com o espaço re-
servado à contingência no campo do conceito de fronteira e, nomeadamente,
com o necessário recuo crítico perante assimilações demasiado rápidas entre
contingência e alternativa. Vejamos. Não sobram dúvidas sobre as inúmeras
facetas que imprimem à fronteira um elevado grau de resistência a esforços de
uniformização: pense-se no seu carácter “contextual”, na sua propensão plural
ou no seu potencial de desdobramento, características que têm nas figuras
da duplicação de fronteiras, da sobreposição de fronteiras, do apagamento de
fronteiras e da reposição de fronteiras a sua expressão acabada. Dito isto, im-
porta frisar que, se estes elementos existem, em qualquer fronteira, de modo
latente, vigorando nela em potência, não é, contudo, forçosa, e menos ainda
permanente, a sua manifestação. Semelhante latência não pode, portanto,
tomar-se como a essência da própria fronteira, como que antecipando-se, por
inerência, à contextualização proporcionada, a essa mesma fronteira, pelos res-

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rui cunha martins

pectivos quadros históricos; aquilo que, em bom rigor, está próximo do âmago
da fronteira e pode ser talvez dito essencial nela é, agora sim, a disponibilidade
assegurada por essa latência, o carácter “negocial” adveniente à fronteira por
via de uma eventual ativação desses elementos potenciais, ou até – e este é o
ponto a reter - a possibilidade em aberto de que cada uma dessas iniciativas e
ativações permita mesmo aclarar uma sede (chame-se-lhe também centro ou
referente) produtora e organizadora desse mesmo quadro de multiplicidade.
Donde, constatar a presença da instabilidade e da contingência por entre os
elementos integrantes do corpo do conceito só pode significar a consciência de
que é no enfrentamento com essa contingência (um enfrentamento entendido
como “negociação” pelo que se considere ser, em contexto, a melhor opção)
que se instaura a possibilidade de um referente, ou seja, que se torna possível
ativar a matéria autoral – porque, de acordo com nosso ponto de vista, “toda
a fronteira tem autor”. Por conseguinte: permitir o exercício demarcatório
que confira sentido à dispersão; e permitir o reconhecimento desse esforço
ordenador; são estes os dois momentos complementares que a contingência,
contra ela própria, acaba por assegurar. Daí que ao pensamento moderno não
se imponha terminar com a ambiguidade mas geri-la, até porque só essa gestão
permite a definição das situações de transgressão, de exceção, de punição ou de
perdão, expressões autorais máximas em matéria de fronteira, tal como só ela
permite o gesto articulador que, integrando todas essas modalidades, designe
o autor. Porque o autor e a sua centralidade são demarcados pelo próprio ato
de demarcação que ele assegura.

6. Adaptabilidade

Justificar-se-á, neste ponto, uma pergunta: é esta fronteira, assim entendida no


quadro da modernidade, um mecanismo dotado de uma capacidade de adequação
tal que lhe permita ser exportável para diferentes contextos e, em simultâneo,
acrescentar ao seu recorte conceptual, a partir desses trajetos históricos, novas
formas de operatividade? Tudo indica que sim. Tudo indica, com efeito, que
uma disponibilidade constante para que possam manifestar-se ou ser ativadas
as diversas figuras do limite, consoante os contextos, os quadros doutrinários e
as estratégias políticas subjacentes, é característica tópica do regime fronteiriço
da modernidade. Uma verificação que pode bem traduzir-se na ideia de que as
fronteiras são historicamente disponíveis, valência que cauciona, em larga medida,
a gradual constituição da fronteira moderna enquanto dispositivo.
Joga-se aqui, como está bom de ver, a plasticidade do modelo. Não propria-
mente, ou não somente, no âmbito da sua matéria conteudística, quer dizer, não
somente ao nível da coerência interna dos elementos residentes no conceito
de fronteira; sim, muito mais, ao nível do modo como esses mesmos elemen-
tos interagem com dimensões como o contexto ou a conjuntura, ao nível, por

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a fronteira no centro

conseguinte daquilo que podemos chamar a matéria da historicidade e que


justifica essa predisposição das formas fronteiriças para a respectiva ativação
em moldes não uniformes. Só esta dimensão pode explicar o sucesso histórico
do modelo e a sua pouco linear mas duradoura operatividade. Quando o século
XIX se dispõe a tratar do tema da fronteira, tem já ao seu dispor uma gama
infindável de modalidades de ativação e configuração de um mecanismo da
fronteira cada vez mais disponível para assumir a sua valência de dispositivo.

7. Interioridade

O cruzamento dessas possibilidades produzirá fórmulas tão variadas quanto


as conjunturas concretas que as enquadram. A sua descodificação nem sempre
é fácil. Até porque, gradualmente, não só as mais clássicas figuras do limite (de-
limitação e ilimitação) surgem articuladas com figuras relevando da dimensão
da autoria ou da centralidade, no sentido em que atrás se fez referência, como
também esta última dimensão vai ela própria arredondando a sua presença,
complexificando as suas expressões. Bom exemplo disso é a noção de “fronteira
interior”, de matriz fichteana, a qual, da perspectiva que é a nossa, pode bem
ser entendida enquanto expressão do desdobramento do limite em direção a si
mesmo e, por conseguinte, como mais uma expressão, também, da produção
de centralidade pelo dispositivo fronteiriço.
Por que interior? O próprio Fichte o explica: “As fronteiras primeiras, origi-
nais e verdadeiramente naturais dos Estados são sem dúvida nenhuma as suas
fronteiras interiores […] É somente desta fronteira interior, traçada pela própria
natureza espiritual do homem, que resulta o traçado das fronteiras exteriores
do seu habitat, que não é senão a sua consequência”. Deixando de lado, neste
momento, a problemática das “fronteiras naturais” em que notoriamente o texto
está ancorado, o que toma particular relevo para nós é que esta propensão para
a interioridade traduz, uma vez mais, agora em um nível mais intimista ou, em
nomenclatura técnica, mais da ordem do sensível, o desdobramento do limite
em direção ao centro. Ao seu centro, por certo que sim; mas reconhecer-se-á
então, e já não será pouco, que o limite tem uma estrutura compósita que con-
templa a vigência de centralidades. E para que seja possível afirmar, a propósito
desse desdobramento fichteano, que nele se cruzam “uma dialéctica temporal e
uma dialéctica do território”, obrigatório será entendê-lo, fundamentalmente,
como uma recusa de desalojamento originário, não como modo de preservar
a essência correspondente a essa fronteira interior, mas como forma de nesse
limite interno sediar a inspiração para os rumos a tomar (pela germanidade, no
caso) em direção ao futuro, lugar em potência da regeneração espiritual e moral.
Porque, neste raciocínio, aquele âmago, aquele ponto central essencial e origi-
nário permanentemente descoberto pela fronteira interior “não designa aquilo

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rui cunha martins

de onde provém um povo, mas aquilo em direção ao qual ele avança”2 . Com o que
a localização da interioridade devém, em última instância, promessa de futuro.
Ora, ao generalizar-se o modelo do estado-nação, ou, dizendo-o com maior
ancoragem historiográfica, à medida que a modernidade processa esse longo
movimento de exportação do estado-nação como forma de arrumação política,
primeiro nas margens do espaço europeu e depois para fora dele, em direção à
sua periferia – movimento que, deste ponto de vista, pode ser perseguido até
à contemporaneidade –, também esta modalidade de realização da fronteira
enquanto centro (a da “fronteira interior”) segue junto com todas aquelas que,
em paralelo, integram o quadro de valências do mecanismo “fronteira”. O re-
sultado maior da sua ativação conjugada é, provavelmente, a american frontier,
tal como desenhada por Turner. Aí, a fronteira parece caminhar irreversivel-
mente para a sua própria centralidade. Mas só aí? E no caso brasileiro? Aqui,
a impressão que se colhe é a de que o tópico da centralidade, tanto quanto os
da ilimitação e da demarcação, será também ele francamente mobilizado por
um debate identitário brasileiro que, em Oitocentos, surge obcecado com a
definição das fronteiras jurídico-políticas e culturais. E, por arrasto, com a
definição dos argumentos conexos: com o lugar da Ibéria nesse quadro, sem
dúvida; com os modos da especificidade e da diferença, com certeza que sim;
e, inevitavelmente, com as virtudes demarcatórias do elemento híbrido.

8. Hibridização

Escreveu-se já que a construção do Estado-Nação brasileiro, ao colocar desa-


fios que não encontravam resposta no contexto europeu, promoveu outro tipo de
respostas e outras técnicas, basicamente as que resultaram de uma incorporação
da tradição em modalidades próprias do contexto sul-americano, sendo que “o
primeiro passo dado nesse sentido foi o da miscigenação”, no sentido em que “a cul-
tura brasileira nasceu da articulação vinculada à miscigenação, nasceu envolvida
em uma trama de convenções sociais heterogéneas, [pelo que] as suas instituições
são marcadas por essa heterogeneidade mediada pelo sincretismo que a compõe”3.
E, com efeito, consulte-se, dentro deste espírito, o Código Criminal brasileiro
de 1830. Produto do modo de construção legislativa e de concepção jurídica que
assiste, desde 1822 e até meados do século, ao processo de Independência e de
construção do Estado, produto, também, de intelectuais-estadistas formados na
Universidade de Coimbra, geração entretanto prolongada pela que frequenta, desde
1827, os Cursos Jurídicos de Olinda e São Paulo, a cultura jurídica brasileira, e de

2
BALIBAR, Étienne. Fichte et la Frontière Intérieure. À propos des Discours à la nation al-
lemande. In: BALIBAR, E. La crainte des masses. Politique et Philosophie avant et après Marx.
Paris: Galilée, 1997, p. 150.
3
GAUER, Ruth. A construção do Estado-Nação no Brasil. A contribuição dos Egressos de Coimbra.
Curitiba: Juruá, 2001, p. 35-36.
|  19
a fronteira no centro

modo muito particular o referido Código, “explicita a capacidade de hibridização


de elementos tradicionais e modernos, condizentes com a sociedade e a cultura
que lhe conferem significado. Ao mesmo tempo em que é reflexo de um conhe-
cimento universal, é particular, não deixa de absorver as peculiaridades de uma
sociedade escravista, sem perder o viés da sociedade liberal da época”. Deste
ponto de vista, “a legislação penal brasileira do século XIX abarca, na mesma
construção lógica, o espírito científico ocidental, trazido e relido pela Reforma
Pombalina, e a hierarquia revelada pela Escolástica barroco-aristotélica”4 . Um
pensamento jurídico, portanto, indiciador de uma sociedade vocacionada para
a conciliação dos opostos, registo polifónico que é afinal, também, o do próprio
processo de independência brasileira genericamente considerado, no âmbito do
qual, perante as dicotomias entre ruptura e continuidade e entre liberalismo/
constitucionalismo e tradição mercantil-escravista, “venceu o meio-termo, uma
vitória eclética que procurou fundir liberalismo com escravismo e constitucio-
nalismo com absolutismo do mesmo modo que se mantiveram em equilíbrio de
antagonismo a Casa-Grande e os Sobrados nas disputas políticas do Império”5.
Importará agora verificar se esta mesma propensão para o “equilíbrio de an-
tagonismos” se detecta igualmente no momento de forjar uma especificidade
político-cultural que de certa maneira o campo jurídico brasileiro já delineava.

9. Historicidade

A segunda metade do século XIX e os inícios do século XX correspondem,


à escala luso-brasileira – também à escala ibero-americana, como veremos –
a um momento de particular esforço de clarificação identitária por parte das
nações envolvidas. Como é usual em casos que tais, esse esforço tem expressão
em fenómenos de demarcação cultural e política, no estabelecimento de dife-
rentes escalas de referência identitária, na reavaliação de memórias nacionais e
na sobreposição concorrencial entre os vários critérios avançados para os fins
demarcatórios em vista. Compreende-se, neste contexto, que ao levantar-se
a questão do relacionamento entre as entidades político-culturais brasileira e
portuguesa, tópicos como a dívida, a herança, a fraternidade, a diferença e a
originalidade impusessem um estado de permanente mobilização das historici-
dades, ele mesmo desafiador do lugar da história nos processos de definição dos
contornos nacionais. E compreende-se, de igual modo, que todo este complexo
cruzamento de razões desembocasse em verdadeiras fricções demarcatórias e
naquilo a que chamámos já, em outro local, “turbulências do limite”6 .

4
SILVA, Mozart Linhares da. O Império dos Bacharéis. O pensamento jurídico e a organização
do Estado-Nação no Brasil. Curitiba: Juruá, 2003, p. 265-269.
5
Idem, p. 269.
6
MARTINS, Rui Cunha, op. cit.
20 |
rui cunha martins

Esta problemática foi tratada recentemente, de forma esclarecedora, por


Marçal Paredes7. Da sua análise exaustiva torna-se possível isolar, mesmo cor-
rendo o risco de sacrificar a sua abrangência aos nossos objectivos imediatos,
cinco aspectos fundamentais diretamente relacionados com a nossa investiga-
ção. Podemos, na realidade, considerar, do ponto de vista do nosso argumento,
que se trata de cinco propostas de resolver o problema da fronteira à escala
transatlântica: (I) o entendimento do Brasil como prolongamento de Portugal
e, portanto, o entendimento de uma “longa” e eterna fronteira portuguesa,
prolongando-se na fronteira brasileira tanto quanto na africana; (II) a recusa
da leitura anterior por via de uma demarcação de sentido oposto, qual seja, a
de um afastamento brasileiro da herança portuguesa; (III) o alargamento da
primeira proposta – a da continuidade, portanto –, a uma escala ibérica de
referência, no âmbito da qual os povos sul-americanos são entendidos como
neoibéricos (pressupondo, assim sendo, uma “longa” e eterna fronteira ibérica,
prolongando-se na América); (IV) a recusa desta última proposta por via da
contraposição de uma escala americanista de referência, ela sim passível de
demarcar as culturas sul-americanas; (V) a proposição de uma demarcação
brasileira pela originalidade, isto é, basicamente, pela celebração do carácter
singular do mestiço.

10. Limite

Podemos ensaiar uma tradução deste painel para a linguagem do limite.


Obteremos então o seguinte panorama: em (I) e em (II) temos propostas clara-
mente inscritas num pano de fundo de ilimitação (a insistência na continuidade
ilimitada da fronteira portuguesa para lá das evidentes rupturas introduzidas
pela história encontra correspondência, à luz deste raciocínio, no próprio
modelo que a recusa, visto que a leitura do afastamento de Portugal enquanto
afastamento evolutivo de dado passado só pode inscrever-se no tempo longo
da ilimitação); em (III) e (IV) temos propostas que concedem em trabalhar
a questão do limite mediante um exercício de complementaridade entre a
dimensão ilimitada (tal como constatada nos pontos anteriores) e uma dimen-
são delimitadora, que, para não negar aquela, propõe-se demarcar escalas de
significação amplas (num caso a Ibéria, no outro a América, são os referentes
com que se propõe demarcar o ilimitado); em (V), por fim, deparamos com
uma mobilização simultânea e sucessiva das várias figuras do limite: conforme
teremos oportunidade de explicar, essa inflexão para o “centro” que é a aposta
na originalidade, feita critério demarcatório por intermédio da mestiçagem,
constrói-se sobre o círculo vicioso da ilimitação.

7
PAREDES, Marçal de Menezes. Fronteiras Cuturais Luso-Brasileiras: Demarcações da história
e Escalas identitárias (1870-1910). Coimbra: FLUC, 2007.
|  21
a fronteira no centro

11. Continuidade

Comecemos pela primeira tendência. Abdicaremos aqui de reproduzir a


multiplicidade de posicionamentos e linhas interpretativas passíveis de filiação
na visão do Brasil enquanto prolongamento português. Essa tarefa está feita.
Para o que aqui interessa, a tendência vale pelo seu todo, sendo que a diferença
entre os que, como Oliveira Martins (de igual modo Eduardo Prado ou Eça de
Queirós), apelam à “comunidade de sangue” entre portugueses e brasileiros
para justificar o Brasil enquanto futuro de dado passado e, donde, como nação
neoportuguesa na América e produto da obra civilizacional portuguesa, e aque-
les outros que, no contexto do republicanismo, celebravam na interação entre
as duas culturas a lei das afinidades que, segundo a filosofia positiva, regia a
relação de “povos irmãos”, não anula o essencial: a visão de uma linha de con-
tinuidade transatlântica que recusava reduzir a fronteira cultural (e não só ela,
evidentemente) ao rincão lusitano. E porque a fronteira de qualquer uma das
duas entidades era sempre, de acordo com esta ideia, fronteira luso-brasileira,
daí se seguia que qualquer alteração que às fronteiras brasileiras respeitasse
lesava a própria ideia de Portugal. Eis-nos bem em face do ilimitado da fron-
teira. O debate entre unitarismo e federalismo no Brasil não podia deixar de
aparecer, a esta luz, como debate português também (sabido que era, como se
rezava em alguns círculos, ser a Espanha um país que chegara à uniformidade
por via da “junção violenta de muitos estados”). Bem assim, os sucessos ocor-
ridos na fronteira do Rio Grande do Sul não podiam deixar de ser gravosos
para a imagem de Portugal, tanto ou tão pouco que se ensaia uma comparação
entre essa ameaça de desagregação no sul do Brasil e a ameaça inglesa sobre
as pretensões coloniais portuguesas em África, ambas tidas por problema
maior da portugalidade nos finais do século XIX8 . A autorreferencialidade de
semelhante visão resulta patente.

12. Evolução

É, dissemo-lo já, sobre uma mesma lógica de ilimitação que procede o


entendimento simétrico do anterior. Agora, porém, a insistência é no sentido
de um afastamento da herança portuguesa e da ligação a Portugal, estratégia
de distanciamento que mobiliza primacialmente as matérias da “lei natural” e
da “evolução dos povos” e que impõe, com base nesses ensinamentos, a recusa
do passado colonial, maxime a sua superação, como única forma de obter os
traços de originalidade e diferenciação que deveriam resultar do processo evo-
lutivo e da gradual adaptabilidade de qualquer cultura. Araripe Júnior, Manoel

8
PAREDES, Marçal, op. cit., p., 25-122; HOMEM, Amadeu Carvalho. Da Monarquia à República.
Viseu: Palimage, 2001, p. 13-25.
22 |
rui cunha martins

Bomfim e Sílvio Romero, por exemplo, alinham-se por este diapasão. Uma vez
mais não cuidaremos aqui das diferenças, profundas ou de ocasião, entre eles.
Por todos, seguiremos Romero. E aquilo que de particularmente expressivo
pretendemos elucidar a seu respeito, é a compaginação que pode ser feita entre
o seu discurso e o de um outro americano, este do norte, Frederick Jackson
Turner9. Longe do nosso intuito reabrir o debate sobre a recepção e o papel da
obra turneriana no Brasil. O que, por outro lado, pretendemos aqui sublinhar é
que, independentemente das circunstâncias quanto às condições de recepção,
e, ainda, à margem de qualquer preocupação em estabelecer afinidades inte-
lectuais ou doutrinárias entre ambos, a proximidade que se detecta entre os
dois discursos é irrecusável. Bem vistas as coisas, Romero, como Turner, tinha
pela frente a tarefa de integrar a presença de uma fronteira em movimento e
as especificidades por ela introduzidas no processo de demarcação de uma
dada sociedade cultural e política. A um como a outro se impunha dotar de
coerência o movimento ilimitado.
Uma das principais consequências analíticas a retirar dessa comum necessi-
dade será uma também comum recusa do passado europeu que a cada um coube.
Já destacámos este ponto para o caso de Turner. Por seu turno, Sílvio Romero é,
quanto a este ponto, igualmente conclusivo. Atente-se, desde logo, na sua con-
vicção de que “uma nação se define e se individualiza quanto mais se afasta pela
história do carácter das raças que a constituíram, e imprime um cunho peculiar à
sua mentalidade”, ou, na mesma linha, na sua certeza de que “a nação brasileira,
se tem um papel histórico a representar, só o poderá fazer quanto mais separar-se
do negro africano, do selvagem tupi e do aventureiro português”10. Por detrás destas
ideias germinam conceitos do neolamarckismo (dos quais fará também visível
uso um Manoel Bomfim na altura de caracterizar o “mal de origem” brasileiro
enquanto “parasitismo” português, cuja “cura” era o afastamento do passado
ibérico) e o cruzamento de preceitos darwinistas ou aparentados, canalizados
para uma interpretação naturalista da evolução dos povos na qual o potencial de
mistura e de combinação inesperada de elementos de diversa proveniência era
sobrestimado enquanto garante de uma originalidade em permanente eclosão.
No âmbito desta linha evolutiva em direção à singularidade e à diferença em que
a própria história se transforma, a fronteira brasileira não pode ser em caso algum
a fronteira portuguesa, mas, bem ao invés, a sua constante negação, o lugar do
perpétuo movimento para longe de Portugal e das raízes onde estiolava o “velho
reino”, esse que “havia feito completa bancarrota de ideias” e que, resignado
à condição de “ínfimo glosador dos desperdícios franceses”, não era mais do
que a raiz longínqua que “perdeu definitivamente o encanto a nossos olhos”11.

9
MARTINS, Rui Cunha, op. cit., p. 129-135.
10
PAREDES, op. cit., 114.
11
Idem, 116-121.
|  23
a fronteira no centro

A definição turneriana da fronteira norte-americana como movimento ilimitado


para longe da origem europeia – movimento pelo qual a América renascia em
permanência – não é dita de modo substancialmente diferente12 .

13. Delimitação

Dispunham, entretanto, os cultores da ligação inquebrantável entre Portugal


e Brasil de um outro argumento: o da inscrição desse relacionamento na escala
mais ampla da ibericidade. Fosse no decurso de uma leitura dessa relação nos
termos clássicos da herança, fosse, o que para a perspectiva que é a nossa vai
dar no mesmo, nos termos de uma marca de negatividade referencial, o certo
é que se assiste à regular sugestão de que o posicionamento de exceção detido
pelos países ibéricos no contexto europeu – Espanha e Portugal aparecendo,
nessas teorias, claramente demarcados relativamente aos saxões – tinha prolon-
gamento natural à escala americana, ou, dito com maior propriedade, à escala
“neoibérica”, fazendo das ex-colónias sul-americanas “filhos ibéricos”, nos
quais, por conseguinte, seguia vigente o “génio peninsular” cuja transposição
transatlântica o curso da história havia garantido (neste cenário, o contexto
luso-brasileiro seria um subconjunto)13 . Era como se, de certa forma, o agru-
pamento de povos formado por Espanha, Portugal e pelas nações que deles
haviam derivado em solo americano, se apresentassem como conjuntamente
distintos, compondo uma fronteira ibero-americana que os demarcasse dos
restantes polos congregadores. O texto de Oliveira Martins intitulado justa-
mente “A Liga Ibérica”, publicado em 1892, resume, melhor do que qualquer
outro, o espírito deste desiderato14 .
Mas se parece incontornável, a dado estado do debate, que alguma dose de
limitação seja imposta às pretensões ilimitadas patenteadas por várias das inter-
pretações em presença, era tudo menos seguro que essa operação, essa busca de
uma escala de referencialidade por parte da cultura brasileira, em relação à qual
esta pudesse desenvolver sentimentos de pertença, coincidisse com o mundo
ibérico. Pense-se que, de acordo com alguns analistas e, sobretudo, a partir da
contaminação do pensamento letrado brasileiro pela propaganda republicana, o
passado português – ou ibérico, que importava? – era o passado a ser superado.
A fundação ou refundação do Brasil exigia um sentimento “regenerador”, que

12
TURNER, Frederick Jackson. The Frontier in American History. Tucson: The University of
Arizona Press, 1986.
13
PAREDES, Marçal, op. cit., p. 77-93.
14
MARTINS, J. P. Oliveira. Política e História. Lisboa: Guimarães Editores, 1957. Veja-se também:
MATOS, Sérgio Campos. Portugal e Brasil: crónicas esquecidas de Oliveira Martins. In: MARTINS,
J. P. de Oliveira. Portugal e Brasil (1875), ed. Sérgio Campos Matos, Lisboa: Universidade de Lisboa,
2005, p. 7-36; e, do mesmo Autor, Iberismo e Identidade Nacional (1851-1910), Clio, 14 (2006), p.
349-400.
24 |
rui cunha martins

propiciasse o encontro brasileiro com o seu âmago (arrisquemos desde já: com
a sua fronteira interior). Tanto assim era que, em simultâneo com a sugestão da
“liga ibérica”, mas em nítido sentido concorrencial com ela, o espírito antilusita-
no se aplica na promoção de uma escala americana de referência, contraposta à
anterior. Este reforço do cunho americanista está presente na órbita do “Manifesto
Republicano de 1870”, em que o processo abolicionista brasileiro e a questão do
derrube da monarquia se fazem acompanhar da denúncia do passado português
e concretamente europeu e, ao mesmo tempo, da estima confessa que deveria
merecer, nos areópagos republicanos, o culto do sentimento americanista, ver-
tido na mensagem óbvia de que “somos da América e queremos ser americanos”15.
Preocupações demarcatórias, claro. Uma vez mais. Só que, desta vez, a demar-
cação cultural extirpava o sangue e optava pelo território.

14. Essência

Resta, enfim, a tendência que deixámos propositadamente para o final. Em


rigor, não se pode dizer que ela inove por comparação com aquelas interpre-
tações que, de entre as por nós repertoriadas, pugnavam por um afastamento
em relação à herança portuguesa. A ideia do afastamento, de resto maioritária
à escala político-cultural luso-brasileira, é também a que traduz o espírito
da proposta que agora nos ocupa. Mas ela é mais do que isso: a sua ambição
de diferenciação face às raízes portuguesa, ibérica e europeia (diferenciação
também almejada, a breve trecho, frente ao negro e ao índio) redunda numa
aspiração de originalidade. Uma demarcação pela singularidade e pela essên-
cia, pela clara delimitação dos caracteres específicos, eis do que se trata. Uma
fronteira definida a partir de dentro, dir-se-á também. A ideia pode resumir-se
num objectivo: estabelecer as fronteiras da nação ali mesmo naquele ponto
exato em que deixar de se sentir o eco daquilo que se entenda ser a genuinidade
nacional. E esta, afinal, o que se poderia entender que ela fosse?
Sílvio Romero, sempre ele, sabe o que procura. Ele começa por saber que
o transformismo, para o dizer nas suas próprias palavras, “é a lei que rege a
história brasileira”. E se, assim sendo, a ação da história, no Brasil, surge como
elemento determinante na definição do carácter brasileiro, é porque só ela
(não exatamente só ela, mas a intersecção do historicismo com o materialis-
mo monista) permite explicar o facto de o choque de culturas resultante da
ocupação e da colonização não ter preservado nenhuma etnicidade em estado
puro; como só ela permite entender que os sucessivos cruzamentos étnicos só
podem oferecer, como realidade ontológica passível de ser comemorada enquan-
to expressão verdadeiramente nacional, a mestiçagem (“todo brasileiro é um
mestiço, quando não no sangue, nas ideias”, dita o mais célebre dos aforismos

15
PAREDES, Marçal, op. cit., p. 256.
|  25
a fronteira no centro

romerianos) 16. Este é o resultado único e, por isso, absolutamente singular,


dos regimes de adaptabilidade em que se fundou a ação da história no Brasil.

16. Ilimitação

Declinemos o exposto de acordo com o ponto de vista do limite, que cons-


titui o nosso posto de observação privilegiado. Intuitos de demarcação como
o protagonizado por Sílvio Romero, ao colocarem o mestiço no centro da de-
finição de uma identidade brasileira, consagram o potencial de liminaridade
do elemento híbrido. É verdade que, posta assim a questão, a mestiçagem, que
apresenta, por definição, um estatuto de transitoriedade e de indefinição, remete
fundamentalmente para uma realidade transfronteiriça, situada algures entre
os distintos caminhos ditados pelas exigências de adaptabilidade. Nem outra
coisa se poderia deduzir de um fenómeno produzido a partir da inexistência de
pureza e, por consequência, menos apto a delimitações puras do que à definição
de contornos demarcatórios difusos. Mas, mesmo posta a questão nestes termos,
o facto é que o mestiço é colocado, em definitivo, no centro. Como se, de cada
vez que a história brasileira perguntasse pelo seu verdadeiro âmago, pela sua
essência, ou (digamo-lo, agora, com toda a propriedade) pelo seu interior, não
pudesse ser senão o mestiço que ela descobrisse. Assim perspectivado, o híbrido
é expressão de uma fronteira interior. E esta, como sabemos, ou é tida por ponto
de partida (o “genuíno nacional”) ou é apeadeiro (a “gradual autonomização”da
forma mestiça) de uma longa marcha para o futuro. Um trajeto futuro tão
ilimitado quanto se acreditava ser o destino dos povos que, no seguimento da
sua própria marcha evolutiva, se haviam voltado para si próprios na demanda
do respectivo traço distintivo. O que quer dizer, em sede do nosso argumento,
que a tentativa de resolver o ilimitado por intermédio de uma demarcação feita
a partir do centro acabava por entregar a fronteira memorial, cultural e política
brasileira, de novo, ao ilimitado que se abria diante dela, como sempre se usou
na sequência de processos de demarcação ancorados na demanda identitária.
Hobbes sabia-o; a seu modo, os Founding Fathers norte-americanos, também:
a noção de movimento, e, por maioria de razão, a de movimento gradual adap-
tativo, desenvolve apertada conivência com a de ilimitação. Nesta, a linha
rapidamente devém circularidade. Esse círculo é por norma vicioso.

16
Ibidem.
26 |
rui cunha martins

Referências
BALIBAR, Étienne. Fichte et la Frontière Intèrieure. À propos des Discours à la nation
allemande. In: BALIBAR, E. La crainte des masses. Politique et Philosophie avant et après
Marx. Paris: Galilée, 1997.
GAUER, Ruth. A construção do Estado-Nação no Brasil. A contribuição dos Egressos de
Coimbra. Curitiba: Juruá, 2001.
HOMEM, Amadeu Carvalho. Da Monarquia à República. Viseu: Palimage, 2001.
MARTINS, Rui Cunha.  O Método da Fronteira: Radiografia Histórica de Um Dispositivo
Contemporâneo (Matrizes Ibéricas e Americanas). Coimbra: Almedina, 2008.
MATOS, Sérgio Campos. Iberismo e Identidade Nacional (1851-1910), Clio, 14, 2006.
______. Portugal e Brasil: cróniqcas esquecidas de Oliveira Martins. In: OLIVEIRA MARTINS,
J. P.. Portugal e Brasil (1875), ed. Sérgio Campos Matos.  Lisboa: Universidade de Lisboa, 2005.
OLIVEIRA MARTINS, J. P. Política e História. Lisboa: Guimarães Editores, 1957.
PAREDES, Marçal de Menezes. Fronteiras Cuturais Luso-Brasileiras: Demarcações da história
e Escalas identitárias (1870-1910) Coimbra: FLUC, 2007.
SILVA, Mozart Linhares da. O Império dos Bacharéis. O pensamento jurídico e a organização
do estado-Nação no Brasil. Curitiba: Juruá, 2003.
TURNER, Frederick Jackson. The Frontier in American History. Tucson: The University of
Arizona Press, 1986.

|  27
De frente para o futuro.
O Conceito de nação nos processos de
independência hispano-americana1
Fabio Wasserman
Instituto Ravignani Conicet –
Universidade de Buenos Aires

Introdução

Basta examinar o catálogo de qualquer biblioteca especializada na América


Latina para perceber que a nação, a questão nacional ou Estado nacional, são
algumas das temáticas mais investigadas pela historiografia, a ensaística, a
crítica literária e as ciências sociais. Não se trata de um interesse casual, uma
vez que considera a nação como um dos eixos articuladores da experiência
histórica continental nos dois últimos séculos.
A atribuição desta centralidade é compartilhada por autores das mais va-
riadas correntes e posições ideológicas, teóricas e epistemológicas, razão pela
qual também são diversos os problemas suscitados e as abordagens utilizadas
para dar conta da nação. O que é notável é que, apesar desta diversidade, na
maioria dessas indagações prevalece uma visão essencialista e teleológica que,
tributária do princípio das nacionalidades difundido pelo romantismo, deu
forma às histórias escritas a partir da segunda metade do século XIX.
Essas histórias, assim como grande parte da historiografia e da ensaística
do século XX, compartilham um pressuposto fundamental que calou fundo
em nossas sociedades, como se pôde constatar nas recentes comemorações dos
bicentenários das revoluções hispano-americanas que proclamaram as inde-
pendências no primeiro quarto do século XIX: considerar que esses processos

1
Este texto é uma tradução com pequenas variações do meu artigo “La nación como concepto
fundamental en los procesos de independencia hispanoamericana (1780-1830)”, em Gilberto
Loaiza Cano e Humberto Quiceno (coord.), Aproximaciones al concepto de nación (Colombia, siglo
XIX), Cali, Universidad del Valle, 2014.
|  29
de frente para o futuro

foram protagonizados por nacionalidades preexistentes ou, em todo caso, por


atores com consciência ou interesses nacionais que pretendiam acabar com o
jugo colonial para poder constituir os atuais Estados nacionais.
Nos últimos anos a historiografia questionou estas interpretações ao pro-
mover uma profunda revisão tanto das revoluções de independência como
do vínculo que se estabelecia entre estas e a nação. Com efeito, colocar em
primeiro plano a crise monárquica como justificativa para o início do processo
revolucionário de um lado e outro do Atlântico (a revolução liberal na Espanha
e a independentista na América), levou a questionar a existência dessas nações
ou nacionalidades e a estabelecer outras formas de conceber as comunidades
políticas, fossem cidades, províncias ou reinos2 . Basta recordar que a maioria
das declarações de independência foram feitas em nome de entidades que não
coincidiam com as nações atuais, e que o mesmo pode ser dito em relação
aos primeiros congressos, que não as representavam nem necesariamente
promoveram sua criação. Mas não se trata apenas de uma diferença no que se
refere ao alcance territorial ou a sua denominação, que são talvez as questões
que primeiro chamam a atenção, mas principalmente aos seus fundamentos e
aos seus componentes sociais e políticos. Isso não deveria surpreendernos, já
que nessa época eram inconcebíveis nossas ideias sobre nação, nacionalidade
e o Estado nacional.
No entanto, isso não significa de modo algum que nessa época não existisse
o conceito de nação ou que este não tivesse nenhum importância. Muito pelo
contrário, se considerarmos as revoluções de independência em um intervalo
de tempo maior, se poderia muito bem argumentar que o conceito teve um
papel decisivo no proceso de transição entre colônia e república.
Neste texto pretendo desenvolver esta afirmação tomando como objeto
de análise os usos e significados do conceito de nação na América Hispânica
entre 1780 y 18303 . Este propósito o distingue de grande parte dos estudos

2
É impossível fazer uma lista ainda que breve dos trabalhos dedicados a estes temas, portanto
me permito citar uma obra coletiva onde se definiram algumas das linhas que renovaram os enfo-
ques sobre a história do período: Antonio Annino e François-Xavier Guerra, coords., Inventando
la nación. Iberoamérica. Siglo XIX, (México: Fondo de Cultura Económica, 2003)
3
Para tanto, retomo e reformulo um trabalho realizado no marco de um projeto de história
conceitual ibero-americana: Fabio Wasserman, “El concepto de nación y las transformaciones
del orden político en Iberoamérica (1750-1850)”, em Jahrbuch für Geschichte Lateinamerikas, 45
(2008): 197-220, também publicado em Javier Fernández Sebastián dir., Diccionario político y social
del mundo iberoamericano. La era de las revoluciones, 1750-1850 [Iberconceptos-I] (Madrid: Fundación
Carolina – Centro de Estudios Políticos y Constitucionales – Sociedad Estatal de Conmemoraciones
Culturales, 2009), 851-869 [http://www.iberconceptos.net/wp-content/uploads/2012/10/DPSMI-
I-bloque-NACION.pdf]. O trabalho original reuniu contribuições de José María Portillo Valdés
(Espanha); Hans-Joachim König (Nueva Granada/Colômbia); Elisa Cárdenas (México); Isabel
Torres Dujisin (Chile); Marcel Velázquez Castro (Peru); Marco Antônio Pamplona (Brasil); Sérgio
Campos Matos (Portugal); Véronique Hébrard (Venezuela); Nora Souto e Fabio Wasserman (Río de
la Plata/Argentina). Cabe salientar que todas as afirmações são de minha inteira responsabilidade.
30 |
fabio wasserman

sobre as nações que enfocam os nacionalismos e os processos de formação e


consolidação dos Estados nacionais4 . As principais divergências têm origem no
objeto de estudo e no enfoque utilizado, pois muitos desses trabalhos partem
de definições apriorísticas sobre o que é uma nação, seja por ter um caráter
normativo como por utilizá-la como categoria de análise, enquanto minha in-
tenção é esclarecer os conceitos de nação que os atores da época tinham e como
estes delimitavam, ordenavam ou orientavam cursos de ação possíveis. Para
tanto, e seguindo algumas das diretrizes desenvolvidas pela história conceitual,
considerarei a função referencial do conceito como indicador e modelador de
estados de coisas, experiências e expectativas, mas também como um fator do
movimento histórico. Minha hipótese é que ao longo desses anos nação foi se
constituindo em um “conceito histórico fundamental”, isto é, aquele que, “em
combinação com dezenas de outros conceitos de similar importância, direciona
e informa inteiramente o conteúdo político e social de uma língua”, atuando
como “conceitos-guia do movimento histórico”5 .
Antes de iniciar a análise gostaria de fazer alguns esclarecimentos que
permitirão calibrar os alcances e os limites do trabalho. O primeiro é que,
embora o sentido dos conceitos não possa ser captado plenamente quando são
examinados de forma isolada, já que formam parte de uma trama conceitual
e discursiva, por razões de espaço e de clareza expositiva concentrei-me em
nação e farei apenas breves alusões a outros com os quais estava vinculado6 .
O segundo é que me restrinjo às elites pois são escassos os estudos sobre as
classes subalternas que utilizam uma perspectiva conceitual e que poderiam
ser aproveitados em um trabalho de síntese como este. O terceiro é que também
incluí a Espanha, pois a história da metrópole e suas colônias estava estreita-
mente inter-relacionada, além de compartilhar o mesmo universo político e

4
Uma revisão dos diversos enfoques e teorias de Gil Delanoi e Pierre-André Taguieff comps.,
Teorías del nacionalismo (Barcelona: Paidós,1993) e Anthony D. Smith, The Nation in History.
Historiographical Debates about Ethnicity and Nationalism (Hanover: University Press of New
England, 2000). Para Iberoamérica Hans-Joachim König “Nacionalismo y Nación en la historia
de Iberoamérica”, Cuadernos de Historia Latinoamericana nº 8 (2000): 7-47 e Tomás Pérez Vejo
“La construcción de las naciones como problema historiográfico: el caso del mundo hispánico”,
Historia Mexicana, LIII, 2 (2003): 275-311.
5
Reinhart Koselleck, “Historia de los conceptos y conceptos de historia”, Ayer 53 (1) (2004):
35; “Un texto fundacional de Reinhart Koselleck. Introducción al Diccionario histórico de con-
ceptos político-sociales básicos en lengua alemana”, Anthropos 223 (2009): 93.
6
Daí o valor de projetos como Iberconceptos, que permitiu desenvolver um estudo compara-
tivo de alcance ibero-americano no qual foi tratado sistematicamente um conjunto de conceitos
fundamentais. No volume I, já citado na nota 3, foram analisados América, Cidadão, Constituição,
Federalismo, História, Liberalismo, Nação, Opinião Pública, Povo e República. O volume II, que
também incorporou equipes com trabalhos sobre o Uruguai, América Central, Caribe e Antilhas
Hispânicas, inclui estudos sobre Civilização, Democracia, Estado, Independência, Liberdade, Ordem,
Partido, Pátria, Revolução e Soberania. Javier Fernández Sebastián dir., Diccionario político y social
del mundo iberoamericano. Conceptos políticos en la era de las independencias, 1770-1870 [Iberconceptos
II] (Madri, Centro de Estudos Políticos e Constitucionais e Universidade do País Basco: 2014).
|  31
de frente para o futuro

cultural. O quarto é que devido ao tratamento muito desigual do ponto de vista


conceitual que diferentes espaços, momentos e atores mereceram, é inevitável
que alguns casos recebam melhor tratamento do que outros.O leitor observará,
por exemplo, que não há nenhuma referência sobre a América Central e as
Antilhas, enquanto que outras áreas como México, Colômbia e Rio da Prata,
e em especial suas cidades mais importantes, podem estar ou parecer super-
-representadas. A fim de mitigar este déficit, procurei que os exemplos citados
fossem o mais representativos possível, independente de quem tenham sido
seus autores.

Uma pluralidade de significados: a palavra nação no século XVIII

A linha metodológica que conduz esta pesquisa sustenta que os conceitos


se caracterizam por sua polissemia, pois para ser considerados como tal devem
reunir vários conteúdos significativos, seja no que se refere a experiências,
estados de coisas ou expectativas. Desse modo, e ao contrário das palavras
que podem ter significados diversos mas definíveis de forma mais ou menos
inequívoca, os conceitos somente podem ser apreendidos através de uma in-
terpretação histórica e linguística que recomponha essa diversidade de forma
sincrônica e diacrônica7.
No entanto, ainda que os conceitos não se limitem aos termos que costumam
designá-los, pode ser útil iniciar sua análise recorrendo a uma aproximação
lexicográfica que permita dar conta de suas definições. A esse respeito cabe
salientar que em meados do século XVIII a palavra nação tinha acepções di-
ferentes e, portanto, seus usos também eram diversos.
Em primeiro lugar, e como assinalava o Dicionário da Real Academia
Espanhola, o termo era empregado como sinônimo do ato de nascer, por isso
poderia ter um significado aproximado ao de ser “cego de nascença”. Ainda
mais importante foi seu uso para explicar a origen ou o local de nascimento
de pessoas ou grupos, como se fazia na Baixa Idade Média para distinguir
membros das ligas universitárias, mercantis ou conciliares8 . É por isso que

7
A principal referência é a obra de Reinhart Koselleck. Além dos textos citados na nota 5, pode
ser consultado Futuro pasado. Para una semántica de los tiempos históricos (Barcelona: Paidós, 1993).
8
Uma síntese dos significados e usos pré-modernos do termo em Alessandro Campi, Nación.
Léxico de Política (Buenos Aires: Nueva Visión, 2006); Aira Kemiläinen, Nationalism. Problems
Concerning the Word, the Concept and Classification (Jyväskylä: Kustantajat Publishers, 1964);
José Andrés Gallego “Los tres conceptos de nación en el mundo hispano”, em Cinta Cantarela
ed., Nación y constitución: De la Ilustración al liberalismo (Sevilla: Universidad Pablo de Olavide y
Sociedad Española de Estudios del Siglo XVIII, 2006), 123-146.
32 |
fabio wasserman

nesse mesmo dicionário se acrescia esta outra definição cujo uso social estaba
muito difundido: “A coleção dos habitantes de uma Província, País ou Reino”9.
Em segundo lugar, e como também assinalava esse dicionário, a palavra
nação poderia assumir um caráter mais impreciso ao ser empregada como sinô-
nimo de estrangeiro sem precisar explicitar sua origem ou procedência. Outro
dicionário dava o seguinte exemplo desse uso: “As pessoas humildes de Madri
chamam nação a qualquer um que seja de fora da Espanha, assim, ao ver uma
pessoa loira dizem, por exemplo, se parece nação”10. Foi empregado do mesmo
modo pelos comuneiros neogranadinos ao expressar seu repúdio às reformas
borbônicas que limitavam o acesso dos nativos a cargos hierárquicos. O pasquim
conhecido como Salud, Señor Regente, que circulou em Nova Granada durante
1781, afirmava que “se estes domínios têm seus próprios donos, senhores nativos,
por que motivo vêm governar-nos malditos estrangeiros de outras regiões”11.
Em terceiro lugar, a palavra nação era empregada para designar populações
que compartilhavam traços físicos ou culturais como língua, religião e costu-
mes. Este uso tendia a sobrepor-se aos anteriores, supondo-se que aqueles que
tinham a mesma origem também deveriam partilhar algumas características
capazes de distingui-los.
Desta perspectiva, nação poderia remeter a uma ampla gama de referên-
cias. Seguindo uma antiga tradição, utilizava-se a mesma para designar povos
considerados por sua alteridade, fossem bárbaros, gentios, pagãos ou idólatras.
Mas também poderia referir-se a uma comunidade que se distinguisse por
determinadas características que não expressassem necessariamente uma
distância tão radical. Félix de Azara, um funcionário enviado pela Coroa ao
Rio da Prata no final do século XVIII, escreveu uma obra sobre a história e a
geografia da região informando a seus leitores potenciais que “Chamarei nação a
qualquer congregação de índios que tenham o mesmo espírito, usos e costumes,
com idioma próprio tão diferente dos conhecidos por lá, como o espanhol do
alemão”12 . Certamente que para o ilustrado Azara a diferença entre espanhóis
e alemães não era da mesma natureza que entre estes e os indígenas.
Este significado teve uma trajetória particular no continente americano,
pois foi endossado pelos grupos que eram designados dessa maneira. É o caso

9
Real Academia Espanhola, Diccionario de la lengua castellana, en que se explica el verdadero sentido
de las voces, su naturaleza y calidad, con las phrases o modos de hablar, los proverbios o refranes, y otras
cosas convenientes al uso de la lengua [...] Compuesto por la Real Academia Española. Tomo quarto. Que
contiene las letras G.H.I.J.K.L.M.N, (Madrid: Imprenta de la Real Academia Española, 1734), 644.
10
Esteban de Terreros y Pando, Diccionario Castellano con las voces de Ciencias y Artes y sus correspon-
dientes de las tres lenguas Francesa, Latina e Italiana (Madrid: Imprenta de la viuda de Ibarra, hijos y
compañía, 1786), t. II, 645. Grifo no original. Nesta e em todas as citações a ortografía foi atualizada.
11
Pablo E. Cárdenas Acosta, El movimiento comunal de 1781 en el Nuevo Reino de Granada (Bogotá:
Editorial Kelly, 1960), t. II, 127.
12
Félix de Azara, Descripción e historia del Paraguay y del Río de la Plata, (Buenos Aires: Editorial
Bajel, 1943), 100 (o texto foi escrito em 1790 e editado postumamente em Madri, 1847).
|  33
de frente para o futuro

dos escravos africanos e seus descendentes, que se agrupavam em nações


identificadas com seus lugares de procedência, como Congo e Benguela. Ou de
alguns povos indígenas, como no final de 1780 quando Tupac Amaru dirigiu-se
ao Bispo de Cusco para explicar-lhe que o movimento por ele liderado buscava
acabar com os tributos cobrados pelos corregedores “aos fiéis vassalos de minha
nação” que gravavam também “as demais nações”, razão pela qual solicitava “a
isenção plena em minha nação de todo tipo de impostos”13 .
Por fim, havia uma série de usos e significados do termo cujas conotações
eram de caráter político. Com efeito, a palavra nação também poderia ser em-
pregada para fazer referência a populações regidas por um mesmo governo ou
as mesmas leis muito além de sua origem ou traços socioculturais. Por isso, em
alguns dicionários dos séculos XVII y XVIII pode-se encontrar definições como
as seguintes: “Nome coletivo que significa alguma cidade grande, Reino, ou
Estado. Submisso a um mesmo Príncipe ou Governo”14 . Como observou José C.
Chiaramonte, esta concepção forjada no marco do processo de reordenamento
político da Europa moderna, foi difundida por tratadistas e divulgadores do
Direito Natural e das Gentes que enfatizavam o caráter contratual desta asso-
ciação política às vezes denominada Estado. Emmer de Vattel, autor de uma das
obras desta corrente de maior circulação em ambos lados do Atlântico entre
meados dos séculos XVIII e XIX, sustentava, por exemplo, que “As nações ou
estados são corpos políticos ou sociedades de homens reunidos com a finalidade
de procurar sua preservação e vantagem, mediante a união de suas forças”15 .
Isto evidencia que, ao contrário do que se costuma alegar, a acepção política
de nação antecedeu a Revolução Francesa. Em todo caso, isto possibilitou que
fosse considerada como sujeito soberano, ideia que também estava presente
em autores como Vattel, ainda que atribuindo-lhe outras características que
não faziam nenhuma referência à soberania popular16 .

13
Carlos Daniel Valcárcel ed., Colección Documental de la Independencia del Perú. Tomo 2: La
Rebelión de Túpac Amaru (Lima: Comisión Nacional del Sesquicentenario de la Independencia
del Perú, 1971), vol. 2, 346.
14
Terreros y Pando, Diccionario Castellano, t. II, 645. Definições similares podem ser en-
contradas em outras línguas que compartilham a mesma raiz, como português e francês (que
incorporava também um componente linguístico): “Nome colectivo, que se diz da Gente, que
vive em alguma grande região, ou Reino, debaixo do mesmo Senhorio”; “Tous les habitants d’un
mesme Estat, d’un mesme pays, qui vivent sous mesmes loix, & usent de mesme langage”. Rafael
Bluteau, Vocabulário Portuguez & Latino (Lisboa: Oficcina de Pascoal da Sylva, 1716), vol. V, 568;
Dictionnaire de l’Académie français, (1694), 110.
15
Emmer du Vattel, Le droit de gens ou principes de la loi naturelle apliques a la conduite et aux
affaires des nations et des souveaines, (Leyden, 1758), citado em José C. Chiaramonte, Nación y
estado en Iberoamérica. Los lenguajes políticos en tiempos de las independencias, (Buenos Aires:
sudamericana, 2004), 34.
16
Assim, ao comentar uma citação extensa de Christian Wolff na qual aparece a palavra nação,
Vattel esclarecia que “Une nation est ici un État souverain, une société politique indépendente”
cit. en Chiaramonte, Nación y Estado, 34.
34 |
fabio wasserman

Na verdade isto era impensável não apenas no mundo hispânico, pois a


ideia dominante há séculos era que a sociedade não poderia existir sem alguma
autoridade, seja resultado de um pacto de obediência entre povo e monarca,
fruto da vontade divina, ou atribuída a uma combinação de ambas as origens.
Esta concepção está presente, por exemplo, na crítica realizada por Joaquín de
Finestrad ao movimento comuneiro neogranadino de 1781. Para o frei capu-
chinho, “A Nação deve ser vista como um indivíduo. É um corpo político que
tem partes integrantes e cabeça que o compõem”, deixando claro em várias
passagens que, para poder subsistir como comunidade, os membros deveriam
submeter-se a sua cabeça, que era o Rei. Propósito que, como deixava explícito,
coincidia com a definição política de nação: “A Pátria é o Reino, é o Estado, é o
corpo da Nação, da qual somos membros e onde vivemos unidos pelo vínculo
das mesmas leis sob o governo do mesmo Príncipe”17.
Esta breve análise permite concluir que até o final do século XVIII a pa-
lavra nação era utilizada em dois sentidos diversos que percorriam caminhos
separados: o sociocultural ou étnico e o político. Ao contrário da concepção
que iria se impor a partir de meados do século seguinte, mantendo-se até os
dias atuais, o pertencimento a uma nação entendida como submissão a um
Estado ou a uma mesma estrutura política não implicava nem tinha como pres-
suposto que seus membros deveriam compartilhar uma identidade étnica ou
algum outro atributo que os distinguisse. Embora admitindo-se que uma certa
homogeneidade da população poderia contribuir para sua governabilidade, a
fundação da nação entendida como sujeito político repousava/assentava-se no
direito divino ou na realização de acordos entre seus membros, fossem corpos
coletivos ou indivíduos.

As referências da nação

O termo nação tinha significados de natureza diversa, mas em todos os


casos cumpria com uma função precisa que, considerada a longo prazo, talvez
seja sua marca mais perene: distinguir, delimitar ou definir populações e/ou
estruturas políticas.
No final do século XVIII esta delimitação tinha diferentes posibilidades
que não eram apenas uma consequência das diversas acepções do termo. A
nação, muitas vezes escrita com maiúscula, designava em primeiro lugar a
totalidade dos reinos, províncias e povos que deviam obediência à monarquia
espanhola, bem como sua população, com exceção das castas e, em alguns
casos, da república dos índios. Finestrad afirmava, por exemplo, que “O Povo

17
Joaquín de Finestrad, El Vasallo instruido en el estado del Nuevo Reino de Granada y en sus
respectivas obligaciones, Margarita González Int. e transcrição (Bogotá: Faculdade de Ciências
Humanas – Universidade Nacional da Colômbia, 2000), 224 y 321.
|  35
de frente para o futuro

Americano e o Espanhol, formam ambos nossa Nação e ambos devem reco-


nhecer como seu legítimo Rei e Senhor Natural ao Senhor Dom Carlos III”18 .
Porém não se tratava apenas de uma convicção dos espanhóis peninsulares ou
europeus, já que as elites nativas, cujos membros muitas vezes denominavam-se
espanhóis americanos, também se consideravam parte dessa nação. Mesmo os
protagonistas das reações provocadas pelas reformas bourbônicas no final do
século XVIII mostravam-se críticos do “mau governo”, mas sem questionar a
lealdade para com o Rei nem o fato de fazer parte da nação espanhola. Mais
do que isso, este pertencimento podia ser usado como argumento para exigir
um tratamento mais justo. No processo realizado em 1795 por ter traduzido
e publicado a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, Antonio Nariño
defendeu-se alegando que

Um deles é o piedoso Monarca que a todos nós governa, nós mesmos


somos seus vasalos, algumas são suas justas leis; elas não fazem dis-
tinção entre recompensa e punição para os que nascem aos quatro e
meio graus de latitude daqueles que nascem aos quarenta, abraçam
toda a extensão da Monarquia e sua influência benéfica deve abranger
igualmente toda a nação19.

As menções diretas a nação referiam-se à Espanha, porém entendida como


o conjunto da monarquia cujos domínios se expandiam por vários continen-
tes. Contudo, também poderia considerar-se que em seu âmago conviviam
nações de outra índole: províncias e reinos americanos ou peninsulares que
se distinguiam por sua densidade demográfica, social e cultural, ou por seu
desenvolvimento econômico, político e institucional.
Estes traços característicos foram destacados e estilizados por escritores
em cujos textos tomaram forma representações que favoreceram seu reconhe-
cimento como nações concebidas em caráter sociocultural. É o caso de alguns
ilustrados peninsulares que, entre meados e o final dos Setecentos, promoveram
uma reflexão sobre a natureza da nação espanhola. Esta empreitada, animada por
um espírito reformista, levou-os a unificar os diferentes reinos que coexistiam
na Península e a traçar uma demarcação entre esta, entendida como uma nação
europeia, e a Coroa, que possuia um caráter pluricontinental. José Cadalso, por
exemplo, escreveu, em 1768, uma inflamada Defesa da nação espanhola para
rebater as críticas feitas por Montesquieu em uma de suas Cartas Persas que,
certamente, eram compartilhadas por mais de um ilustrado europeu 20. Em sua

18
Finestrad, El Vasallo, 343.
19
Antonio Nariño “Apología”, em José Manuel Pérez Sarmiento comp., Causas Célebres a los
precursores, (Bogotá: Imprenta Nacional, 1939) t. I, 129.
20
José Cadalso, Defensa de la nación española contra la Carta persiana LXXVIII de Montesquieu,
(Toulouse: France-Iberie Recherche, 1970).
36 |
fabio wasserman

argumentação, Cadalso deixou explícito que a nação espanhola era a sociedade


estabelecida na Península, além de fazer uma breve revisão de sua história, e
de destacar suas riquezas naturais, seu desenvolvimento cultural e moral, e as
qualidades que distinguiam os espanhóis, como coragem, compaixão e senso
de honra.
No marco deste movimento que buscava deslindar a nação espanhola da
monarquia que a regia, promoveu-se também uma reflexão sobre sua constituição
social, estabelecendo a existência de leis que lhe davam forma e cujo conheci-
mento remontava a vários séculos atrás. Estas considerações não implicavam
de forma alguma em ignorar a autoridade do Rei, mas favoreciam a possibili-
dade, então conjetural, de promover reformas para que a nação tivesse uma
representação própria e, portanto, gozasse de certa autonomia. Nesse sentido
destacou-se Victorián de Villava, o Fiscal de Audiência de Charcas nascido em
Zaragoza em cujos Apontamentos para a reforma da Espanha, escritos em 1797
e inéditos por um quarto de século, propunha criar um “Conselho Supremo
da Nação” com participação de representantes americanos21. Tratava-se, po-
rém, de uma raridade, pois essas propostas costumavam omitir as províncias
americanas, já que a maioria dos reformistas tratavam-nas como colônias ou
almejavam que cumprissem esse papel 22 .
Este tratado apenas reforçou a reação dos nativos letrados que há décadas
procuravam enfrentar os preconceitos de alguns autores europeus sobre o
continente e seus habitantes, muitos dos quais eram compartilhados e difundi-
dos pelos próprios espanhóis23 . Desse modo seus atributos morais e materiais
começaram a destacar-se, em um movimento que, em alguns casos, resultou
na identificação como nações de seus reinos ou províncias. Assim, em res-
posta ao desdém com que Manuel Martí havia se referido ao desenvolvimento
intelectual da Nova Espanha em suas Cartas latinas, publicadas em 1735, o
Bispo de Yucatan e ex-Reitor da Universidade do México, Juan José Eguiara y
Eguren, propôs “transformar em ar e fumaça a calúnia levantada contra nossa
nação”. Para tanto, decidiu editar a Biblioteca Mexicana, que deveria acomodar
a vasta obra produzida pelos escritores “mexicanos de nascença”, onde incluía
obras de nativos, espanhóis e indígenas, destacando em mais de um trecho o

Portillo Valdés, José María, La vida atlántica de Victorián de Villava (Madrid: Fundación
21

MAPFRE, 2009).
22
O debate sobre a pertinência de considerar as Índias como colônias foi retomado há pouco
tempo em “Para seguir con el debate en torno al colonialismo ...”, Nuevo Mundo Mundos Nuevos,
On-line desde 08 fevereiro 2005, consultado em 08 julho 2013. http://nuevomundo.revues.org/430.
Uma análise que aborda o problema a partir da perspectiva conceitual em Francisco Ortega,
“Ni nación ni parte integral. Colonia, de vocablo a concepto en el siglo XVIII iberoamericano”,
Prismas. Revista de Historia Intelectual, 2011 (15), 11-29.
23
Uma exaustiva análise das considerações feitas sobre o continente americano em Antonello
Gerbi, La disputa del nuevo mundo. Historia de una polémica 1750-1900 (México: Fondo de Cultura
Económica, 1982).
|  37
de frente para o futuro

desenvolvimento cultural e as qualidades dos antigos habitantes do México e


seus descendentes24 . Isso permite compreender sua decisão, então inusitada,
de designar como mexicanos o vasto e heterogêneo grupo de autores cuja obra
almejava resenhar.
Recorrer a este qualificativo iria ser de grande importância, pois um dos ele-
mentos em jogo na hora de considerar alguns reinos ou províncias como nações
era a possibilidade de reivindicação de uma população nativa que permitisse
particularizá-las, conferir-lhes densidade histórica e identificá-las. Daí o valor
e interesse que adquiriram as obras escritas ou publicadas por alguns jesuítas
após sua expulsão em 1767, já que muitas delas associavam o território de um
reino ou província com um povo indígena detentor de determinada identidade
ou homogeneidade étnica. Francisco Javier Clavijero, por exemplo, em sua
História Antiga do México, utilizava a palavra nação para enumerar cada um
dos povos que habitaram o Anahuac (toltecas, chichimecas, acolhuas, olmecas,
otomis, etc.), mas acabava identificando seus traços físicos e morais com um
deles: “os mexicanos”25 . Da mesma forma, mas fazendo referência a um reino
localizado do outro lado do continente, para Juan Ignacio Molina “Parece que
no início tivesse se estabelecido no Chile uma única nação; todas as tribos in-
dígenas que ali vivem, embora independentes umas das outras, falam a mesma
língua e têm a mesma fisionomia”26 .
Embora não tenha sido necessariamente o objetivo de seus autores, estas
considerações foram usadas mais de uma vez pela elite nativa no momento de
reconhecer-se ou imaginar-se membro de uma nação. O Chile, por exemplo,
apesar de não ter o mesmo desenvolvimento econômico, sociocultural e institu-
cional que o México, contava com uma produção discursiva sobre os araucanos
que, somada a outras condições como seu relativo isolamento e sua organização
como Capitania Geral, criou condições favoráveis para ser considerado como
uma nação. Contudo, a reivindicação destas particularidades, ou de outras,
como a veneração da Virgem de Guadalupe no México e a de Santa Rosa, no
Peru, que encorajavam o que alguns autores decidiram chamar de “patriotismo
crioulo”27, não implicava uma tradução política nem um afã de independência:
no final do século XVIII a nação compreendida como um Estado ou como po-
pulações submetidas a um único governo, continuava tendo como referência a
Monarquia com o Rei à frente. Por isso se poderia estabelecer a existência de

24
Juan José Eguiara y Eguren, Bibliotheca Mexicana, Benjamín Fernández Valenzuela trad. do
Latin, Ernesto de la Torre Villar coord., (México: Universidad Nacional Autónoma de México,
1986), 53 y 175.
25
Francisco Javier Clavijero, Historia Antigua de México, (México: Editorial Porrúa, 1991, 1ra.
ed. em italiano, 1780), 44/5.
26
Juan Ignacio Molina, Compendio de la Historia Civil del Reino de Chile, Nicolás De La Cruz y
Bahamonde ed. e tradutor de italiano (Madrid: Imprenta de Sancha, 1795,), 12.
27
David Brading, Los orígenes del nacionalismo mexicano, (México: Era, 1997), 25.
38 |
fabio wasserman

nações consideradas pelo caráter étnico, sociocultural ou territorial que, por


sua vez, faziam parte da nação espanhola definida pelo fato de compartilhar a
lealdade à Coroa e às leis da monarquia.
Levando-se em conta a perspectiva conceitual, o que mais se destaca nesta
pluralidade de referências de nação é sua baixa densidade e fato de que, em
geral, remete a estados de coisas mais do que à abertura de novos horizontes
ou possíveis cursos de ação. Se bem que sua acepção em caráter contratual
permitia a criação de uma nova nação ou que alguma já existente se procla-
masse soberana, eram possibilidades que recém começaram a surgir no con-
texto da crise desencadeada pelas Abdicações de Baiona, em maio de 1808, e
a resistência à coroação de José I, irmão de Napoleão Bonaparte. Apesar das
inovações introduzidas pelos ilustrados durante a segunda metade do século
XVIII, continuou prevalecendo a ideia de que a existência da nação, seja como
corpo político ou como sociedade, dependia de sua subordinação ao Rei. E se
havia algo inimaginável na época era exatamente isso, a ausência do monarca.

A crise monárquica e o surgimento da nação como sujeito soberano

A crise da Coroa e as revoluções na Espanha e América deram início a um


processo durante o qual o conceito de nação passou a ocupar o primeiro plano
ao surgir a possibilidade de sua existência sem o monarca e a criação de novas
entidades políticas. Fator decisivo nesse aspecto não foi tanto uma mudança no
plano das ideias, o que sem dúvida aconteceu e foi radical, mas nas condições
de produção das mesmas e dos discursos nos quais estas ganhavam forma e
circulavam 28 .
No contexto desse processo, cujo ritmo e intensidade não foram similares
em todos os espaços nem setores sociais, a palavra nação passou a ter uma
difusão mais ampla, além de sofrer importantes mudanças qualitativas que
a dotaram de maior densidade. Enquanto aumentavam significativamente as
qualificações de que era credora/merecedora ou os atributos que lhe impunham,
em geral positivos, disseminava-se a adjetivação de experiências com o termo
nacional. E se nação havia tido até então um papel passivo no discurso social,
pois somente poderia ser uma questão de ações para melhorá-la, elogiá-la,
exaltá-la ou defendê-la, o fato de passar a ser considerada como sujeito político
autônomo possibilitou que também agisse, ainda que devesse fazê-lo através
de seus representantes.
Em termos conceituais também aconteceram mudanças decisivas, já que
o termo nação sofreu um rápido processo de politização e ideologização que

28
Elías Palti realizou uma interpretação deste processo complexo destacando os problemas
que acarretava conceber a soberania nacional, unindo dois conceitos até então antagônicos, em
El tiempo de la política. El siglo XIX reconsiderado (Buenos Aires, Siglo XXI: 2007), cap. 2.
|  39
de frente para o futuro

aumentou sua carga polêmica. Não foi um fenômeno isolado, pois a mesma coisa
ocorreu com muitos outros conceitos com os quais formou uma trama política e
discursiva. As relações que nação estabelecia com esses outros conceitos eram
de natureza diversa. Podiam ser de oposição, como aconteceu com colônia, ou
com facção e partido, pois eram considerados expressão de interesses parciais
que dividiam a nação. E aconteceria a mesma coisa com província e povo/s no
marco das disputas entre federais ou autonomistas e centralistas. Mas os vín-
culos nem sempre eram claros e inequívocos: povo/s poderia ser associado de
maneira positiva a nação se esta se identificava com um povo ou com a união
de povos que concordavam em reunir-se em um corpo político. Nação tam-
bém se vinculou positivamente a conceitos como pátria, território, América,
cidadão, independência, opinião pública, ordem e, acima de tudo, soberania,
constituição e representação, que davam conta da inovação que implicava a
existência ou criação da nação como sujeito autônomo e soberano, que devia
constituir-se através de seus representantes.
No discurso articulado em torno desta rede conceitual ganharam forma
problemas enormes delimitados pela necessidade de redefinir os vínculos po-
líticos e sociais dos súditos da Coroa. É devido a isso que, se o conceito nação
remetia até então a estados de coisas existentes e, em particular, à Monarquia,
seus domínios e seus súditos, invocá-lo em um contexto pactista legitimado
pela doutrina da retroversão da soberania permitiu que também propagasse a
possibilidade de criar comunidades políticas de cunho novo, que fossem também
expressão de relações sociais não menos inovadoras. Nesse sentido, podem ser
identificadas duas tendências, ainda que na prática as propostas costumassem
combinar elementos de ambas: a daqueles que idealizavam uma nação única
e indivisível de caráter abstrato constituída por indivíduos, e a daqueles que
julgavam que era formada por corpos coletivos, fossem estamentos ou povos
que reassumiram sua soberania ante o estado de acefalia – reinos, províncias,
povos ou cidades. De uma forma ou de outra, a verdade é que isto implicou
em uma temporalização do conceito: a nação orientava-se inevitavelmente em
direção ao futuro que não se desejava que fosse legatário do passado.
A possibilidade de definir conjuntos políticos de essência diversa, agora
associada à ideia de soberania, também levou a uma expansão dos marcos de
referência de nação. Nesse sentido havia a possibilidade de manter unidos
todos os domínios da Coroa; de levar a uma divisão entre sua seção europeia e
americana; à proclamação como nações de alguns de seus vice-reinados, reinos
e províncias; ou à associação de algunas dessas entidades ou de parte delas em
diferentes órgãos políticos.
Afora essa diversidade, o que não foi questionado de modo algum foi o
caráter católico que essas nações deveriam ter e, exceto para os absolutistas
contrarrevolucionários, a necessidade de sua organização exigir uma sanção
constitucional para dar-lhe consistência e regular as relações entre seus mem-
bros, além de assegurar-lhes seus direitos. Por isso o debate político confundiu-
40 |
fabio wasserman

-se muitas vezes com o constitucional, sendo incontáveis as convocatórias para


assembleias e as constituições promulgadas a partir de 1808. Nestas foram
colocadas em discussão concepções sobre a nação e seus alcances, sejam es-
paciais (que territórios ou povos faziam parte da nação), sociais (que setores
a integravam e quais estavam excluídos; de que forma e sob quais princípios
deveriam ser estruturadas as relações sociais), ou políticos (quais os direitos e
obrigações de seus membros, como eram concebidos e representados).
Esta diversidade traduziu-se em conflitos que expressavam diferentes
visões e interesses, pois a partir da crise monárquica e das revoluções pôs-se
em foco o acesso ao poder mas também, e isso é decisivo para entender o radi-
calismo dos enfrentamentos que animaram a vida política pós-revolucionária,
sua própria definição. A partir de então a definição de nação não poderia mais
ser ignorada, constituindo-se em um conceito histórico fundamental dessa
conflituosa experiência.

A nação espanhola: entre as cortes de Cádis e a monarquia absoluta

Para embrenhar-se na análise deste processo é necessário começar pela


própria Espanha. Em maio de 1808 aconteceram as Abdicações de Baiona, que
levaram à prisão de Fernando VII e à coroação do irmão de Napoleão sob o título
de José I, provocando, para assombro de muitos, a rejeição de grande parte da
população, que se levantou em armas e enfrentou as tropas francesas. Se no
início desse movimento convocou-se os habitantes das cidades, províncias e
reinos, ou seja, as comunidades políticas que protagonizavam a insurreição e
proclamavam as Juntas para defender os direitos de Fernando VII, a guerra
favoreceu a difusão de uma concepção unitária de nação29. Às vezes esta ope-
ração era explícita, como se pode constatar em um texto do político e ensaísta
catalão Antonio de Capmany:

O que seria dos espanhóis se não houvesse aragoneses, valencianos,


murcianos, andaluzes, asturianos, galegos, estremenhos, catalães,
castelhanos, etc.? Cada um destes nomes inflama e envaidece e
destas pequenas nações compõe-se a massa da grande Nação […]30.

A invocação à nação como sujeito disseminou-se no discurso público e


avalizou-se com a criação, em setembro de 1808, de uma Junta Central que foi
reconhecida pela maioria dos espanhóis e americanos. Pouco tempo depois este
conselho diretivo realizou uma convocatória às Cortes para que os representantes

29
Francois-Xavier Guerra, Modernidad e Independencias. Ensayo sobre las revoluciones hispánicas,
(Madrid: Mapfre, 1992), 157.
30
Antonio de Capmany, Centinela contra franceses (Madrid: Gómez Fuentenebro y Compañía,
1808), 94 [http://156.35.33.113/derechoConstitucional/pdf/espana_siglo19/centinela/centinela.pdf].
|  41
de frente para o futuro

do povo pudessem dotar a nação de um marco institucional. Mas este propósito


poderia implicar em diversas opções, razão pela qual também foi motivo de dis-
putas. Para alguns esse chamado deveria limitar-se a promover uma colaboração
entre o Rei e a nação, como vinham propondo alguns reformistas ilustrados
desde o final do século anterior. Ao contrário, aqueles que brandiam ideias mais
radicais acreditavam que a nação era um sujeito soberano que tinha o direito
de constituir-se segundo sua vontade, interesse e necessidade. Esta posição,
encorajada por aqueles que se identificariam como liberais, foi a que prevaleceu
quando, em setembro de 1810, e no contexto de uma situação crítica provocada
pela derrota das forças espanholas que no início daquele ano levou à dissolução
da Junta Central e à criação de um Conselho de Regência, as Cortes conseguiram
reunir-se em Cádis, decretando que nelas residia a soberania nacional. E teve
sua confirmação em março de 1812 ao ser sancionada uma constituição em que
se proclamava que a nação era livre e independente e que nela residia essencial-
mente a soberania, embora seu título fosse Constituição Política da Monarquia
Espanhola, talvez para preservar seu caráter pluricontinental. Cabe salientar
que, diferente de outras constituições da época que começavam proclamando
direitos individuais, esta definia a Nação espanhola como “a reunião de todos os
espanhóis de ambos hemisférios”, adjetivo com o qual eram designados todos os
homens livres e domiciliados nos territórios da monarquia 31.
Porém esta concepção de nação não estava tão difundida como pareciam
acreditar os deputados das Cortes ou, se preferirmos, não contava com a mes-
ma legitimidade que o soberano. A derrota das forças francesas e a queda de
Napoleão permitiram a Fernando VII subir ao trono em 1814 sem que encon-
trasse maiores obstáculos para restaurar o absolutismo. Uma de suas primeiras
medidas foi decretar a anulação da Constituição e a suspensão das Cortes,
ameaçando com a pena de morte aqueles que as invocassem ou promovessem:

[…] declaro que minha real intenção é não apenas não jurar nem
consentir com a referida constituição nem com qualquer decreto das
Cortes gerais e extraordinárias, a saber, os que reduzem os direitos
e prerrogativas da minha soberania, estabelecidas pela constituição
e as leis em que a nação tem vivido por muito tempo, mas o de de-
clarar aquela constituição e tais decretos nulos e de nenhum valor e
efeito, agora nem em tempo algum, como se tais atos não tivessem
acontecido jamais, [...]32 .

31
Constitución política de la Monarquía Española: Promulgada en Cadiz a 19 de Marzo de 1812.
Precedida de un Discurso preliminar leído en las Cortes al presentar la Comisión de Constitución
el proyecto de ella (Madrid: Imprenta que fue de García; Imprenta Nacional, 1820), 4. Tanto a
Constituição como uma seleção significativa dos documentos institucionais produzidos a partir
de 1808 podem ser consultados no portal http://www.cervantesvirtual.com/portal/1812
32
“Decreto dado en Valencia a 4 de mayo de 1814 firmado por YO, EL REY”, citado em Juan
Angel de Santa Teresa, Sumario de injusticias, fraguadas por el liberalismo impío, contra la religión
42 |
fabio wasserman

O que importa aqui, como se depreende do Decreto, é que se pode constatar


que nessa época nem mesmo os defensores do absolutismo poderiam ignorar
o conceito de nação. Sua generalização para dar conta da sociedade espanhola
como comunidade o havia convertido em um conceito indiscutível e, portanto,
polêmico: já que não se podia ignorá-lo, se deveria discutir seu conteúdo e seu
significado. Isto pode ser constatado em um libelo publicado quando ocorreu a
segunda restauração de Fernando VII após outro breve interregno constitucional,
conhecido como o triênio liberal (1820-3), cujo autor, um clérigo absolutista,
recordava com satisfação a extinção das Cortes e da Constituição, alegando
que “com este Decreto Real a nação oprimida respirou” 33 .

Os povos americanos: de colônias a nações

Entre 1808 e 1810 os americanos também sofreram o impacto da crise


monárquica, distanciando-se progressivamente da metrópole que logo se
converteria em uma revolução e uma longa guerra que iria culminar com a
independência de grande parte do continente. No contexto desse conflituoso
e confuso processo começou a ser considerada a possibilidade de que nação,
entendida como corpo político soberano, fosse a própria América, mas tam-
bém seus vice-reinados, reinos e províncias ou a associação de algunas dessas
entidades ou dos povos que as formavam.
A ruptura que ocorreu com a Espanha e com a antiga ordem não foi apenas
factual mas também discursiva, além de implicar em uma forte carga emocio-
nal e uma redefinição das identidades, como é possível constatar em nação e
em outros conceitos fundamentais através dos quais estas mudanças foram
expressas. A esse respeito cabe ressaltar que quando se buscava mobilizar a
população, e especialmente nos tempos de guerra, apelava-se mais à pátria do
que à nação. Isto deveu-se tanto a sua maior carga emocional quanto ao uso
generalizado entre amplos setores sociais, que davam continuidade à tradição
hispânica de invocar a tríade Deus (ou religião), Pátria e Rei, embora reformulada
ao associar-se a valores como liberdade e igualdade, e ao começar a suprimir
o monarca da mesma 34 . A nação, no entanto, era mais invocada e passava ao
primeiro plano quando eram discutidas a soberania, a representação e a criação
de instituições políticas.

catolica e inocencia cristiana de España (Zaragoza: Imprenta de Andrés Sebastián, 1823), 10.
33
Santa Teresa, Sumario, 11.
34
O maior apelo à pátria em situação bélica foi relatado há varias décadas por Pierre Vilar em
“Patria y nación en el vocabulario de la guerra de la independencia española”, Hidalgos, amo-
tinados y guerrilleros. Pueblos y poderes en la historia de España, (Barcelona: Crítica, 1982), 237.
Sobre a tríade pode ser consultado Gabriel di Meglio “Patria” em Noemí Goldman ed., Lenguaje
y revolución. Conceptos políticos clave en el Río de la Plata, 1780-1850, (Buenos Aires, Prometeo,
2008), 115-130.
|  43
de frente para o futuro

Em janeiro de 1809 a Junta Central, que procurava reunir todo o apoio pos-
sível, emitiu uma Proclama afirmando que os domínios americanos não eram
colônias, mas “uma parte essencial e integrante da monarquia espanhola”, motivo
pelo qual também tinham direito de escolher representantes para participar
desse corpo diretivo. Contudo esse reconhecimento ficou manchado ao outor-
gar aos americanos uma representação exígua em relação a sua população. Esta
decisão, que deu lugar a eleições em numerosas cidades americanas, provocou
reações que oscilavam entre o apoio irrestrito e o mais absoluto repúdio. Mas
mesmo nesse caso, a liderança nativa parecia contentar-se com a obtenção de
mais direitos e um maior grau de autonomia sem que isso acarretasse deixar
de pertencer à nação espanhola. Em novembro de 1809, Camilo Torres redigiu
uma Representação da Municipalidade de Santafé endereçada à Junta Suprema,
sustentando que

Estabelecer pois uma diferença neste aspecto, entre América e


Espanha, seria destruir o conceito de províncias independentes e
de partes essenciais e constituintes da monarquia, e seria supor
um princípio de degradação. As Américas, senhor, não são com-
postas de estrangeiros para a nação espanhola. Somos filhos, somos
descendentes dos que derramaram seu sangue para adquirir estes
novos domínios da coroa de Espanha […] Somos tão espanhóis como
os descendentes de Dom Pelayo e por esta razão tão credores das
distinções, privilégios e prerrogativas do resto da nação35 .

Ainda que possa parecer paradoxal, a ênfase com que Torres defendia
o pertencimento dos americanos à nação espanhola não fazia mais do que
evidenciar o progressivo distanciamento entre os nativos e a metrópole, cujo
desfecho, contudo, ainda não se vislumbrava com clareza.
No início de 1810, após o triunfo das forças francesas que ocuparam a
Espanha, a Junta Central foi dissolvida, escolhendo-se em substituição um
Conselho de Regência que se instalou na Ilha de León sob a proteção da ma-
rinha britânica. A reação na América foi imediata: em várias cidades ocorre-
ram movimentos que desconstituiram as autoridades coloniais e instituiram
Juntas governamentais amparando-se no estado de acefalia que justificava a
retomada da soberania por parte do povo. O Conselho de Regência ignorou as
juntas americanas, que em geral também o rejeitaram por considerá-lo uma
autoridade ilegítima cujo poder não emanava do Rei nem dos povos ou, para
aqueles que preferiam considerá-los como um único corpo, da nação. É o caso de
Francisco Miranda, que em um artigo publicado em El Colombiano, de Londres,

35
Camilo Torres, “Representación del Cabildo de Santafé (Memorial de agravios)”, em José Luis
Romero y Luis A. Romero (comps.), Pensamiento político de la emancipación (1790-1825), (Caracas:
Biblioteca Ayacucho, 1977), t. I, 29.
44 |
fabio wasserman

reproduzido pelo diário oficial de Buenos Aires, afirmava que a Junta Central
havia “criado um Soberano sem a participação da nação”36 .
É importante ter em conta os deslizes conceituais ocorridos nesse breve
período, os quais a revolução e a guerra tornaram irreversíveis, pois foi nessas
circunstâncias em que nada ainda estava definido e que eram confusas para
seus próprios protagonistas que foi concebida a possibilidade de que os povos,
além de reassumir a soberania, também pudessem constituir nações sobe-
ranas, livres e independentes. Neste sentido, é paradigmática a trajetória de
Camilo Torres, que em pouco tempo deixou de reclamar uma representação
mais equitativa no seio da nação espanhola para passar a propor a formação
de uma nação neogranadina. Em uma longa carta datada de 29 de maio de
1810, endereçada a seu tio José Ignacio Tenorio, que integrava a Audiência de
Quito, Torres repassava as diferentes alternativas que se apresentavam aos
americanos, concluindo que

[…] perdida a Espanha, dissolvida a monarquia, rompidos os vínculos


políticos que a uniam às Américas, e destruído o governo que havia
organizado a Nação para comandá-la em meio à tempestade, e en-
quanto tinha esperanças de salvar-se —; não há solução. Os reinos
e províncias que compõem estes vastos domínios são livres e inde-
pendentes, e não podem nem devem reconhecer outro governo nem
outros governantes além daqueles que os mesmos reinos e províncias
nomeiem e se deem livre e espontaneamente de acordo com suas
necessidades, seus desejos, sua situação, seus objetivos políticos, seus
grandes interesses, e conforme a índole, caráter e costumes de seus
habitantes. Cada reino escolherá a forma de governo que mais lhe
convier, sem consultar a vontade de outros com quem não mantenha
relações políticas nem qualquer dependência. Este Reino, por exemplo,
está tão distante dos demais, seus interesses são tão diversos destes,
que realmente pode ser considerado como uma nação separada das
demais, unido apenas por laços de sangue e por relações familiares;
este reino, digo, pode e deve organizar-se por si só 37.

Sem dúvida alguma eles também eram aqueles que continuavam acreditando
na possibilidade de que a Espanha subsistiria, por conseguinte mantinham sua
lealdade às autoridades metropolitanas e aos vice-reinados. Para eles a nação
seguia sendo o conjunto da Monarquia ou, em todo caso, o de seus súditos, que
deviam fidelidade e obediência ao Rei, como sustentou a Gazeta de Montevideo
em meados de 1811:

36
La Gazeta de Buenos Ayres, n° 18, 4/X/1810, 288.
37
Proceso histórico del 20 de Julio de 1810. Documentos, (Bogotá: Banco de la República, 1960),
66. O documento foi citado em várias ocasiões, às vezes datado de maio de 1809, quando Torres
faz referência a fatos ocorridos posteriormente, como a batalha de Ocaña. Avalio que o erro se
deve ao afã por dotar os protagonistas das revoluções de uma consciência nacional.
|  45
de frente para o futuro

Os direitos do Trono a ele transmitidos pelos Povos são sagrados e


perpétuos, e a vassalagem destes é necessária e perdurável. A pessoa
do Rei, que é o Magistrado Supremo, reúne as obrigações de todos
os cidadãos à Nação, e qualquer um que tentar separar-se desta, ou
negar-lhe seus direitos ou contestar suas deliberações, é um réu de
lesa-majestade ou, o que é a mesma coisa, da Nação.38

Contudo, o fato de reivindicar o pertencimento à nação espanhola não im-


plicava necessariamente em uma relação de submissão colonial ou uma defesa
obstinada do absolutismo. Também poderia ser aproveitada para exigir igualdade
de direitos, como havia proposto anos antes, mas agora sob a proteção providen-
ciada pelo constitucionalismo liberal gaditano. Foi o que fez, por exemplo, Gaspar
Rico y Angulo quando, em 1812, defendeu o periódico El Peruano do Conselho de
Censura, alegando que “a soberania é indivisível, pois residindo essencialmente
na nação e constituindo a nação de espanhóis de ambos hemisférios, é igual em
todos os povos, e não muda nos lugares onde acidentalmente se situa”39.
Nessa época, assim como na Espanha, na América também havia se pro-
pagado o uso polêmico de nação. Nenhum ator que interviesse no debate pú-
blico podia evitá-lo, nem mesmo os absolutistas contrarrevolucionários que
tiveram que discutir seu significado com os insurgentes e, ao mesmo tempo,
com aqueles que aderiram ao liberalismo gaditano. Assim, ao recordar Gabriel
Moscoso, o Governador de Arequipa que morreu vítima da revolução iniciada
em Cusco em 1814, o Presbítero Mateo Joaquín de Cosío revelou-se crítico da
Constitução de 1812 por “abrir as portas de par em par para a insurreição”,
enquanto elogiava Fernando VII por tê-la anulado, deixando claro que “os fiéis
vassalos desejamos apenas que se conservem conservadas as antigas leis que
nossos pais obedeceram, reconhecendo a Soberania no Rei e não na nação; pois
esta, desde sua fundação, sempre a respeitou nos reis; […]”40 .
No discurso dos insurgentes ou revolucionários, no entanto, houve um
processo de politização do patriotismo crioulo do século XVIII. Isto deu lugar
a uma renovada identidade americana associada a ideias e valores como a li-
berdade, em oposição à espanhola que passou a ser considerada expressão do
despotismo colonial. Grande parte dos líderes revolucionáríos não hesitava
em afirmar que a sua nação era a América, como fez o padre mexicano Miguel
Hidalgo em uma Proclama de setembro de 1810 à “Nação Americana” na qual

38
Gazeta de Montevideo n° 33, 14/VIII/1811 (Montevideo: Imprenta de la Ciudad de Montevideo),
283.
39
El Peruano (Lima: 1812), 425.
40
D. D. Mateo Joaquín de Cosío, Elogio Fúnebre del señor D. José Gabriel Moscoso, Teniente Coronel
de los Reales Ejércitos, Gobernador Intendente de Arequipa. En las exequias que el ilustre Cabildo
justicia y regimiento de dicha ciudad hizo en honor y sufragio de tan benemérito jefe el dia 9 de mayo
de 1815 (Lima: Bernardino Ruiz, 1815), 47.
46 |
fabio wasserman

incitava os “americanos” a libertar-se da “tirania dos europeus”41. Ou no Decreto


de Abolição da Escravidão, de 27 de novembro de 1810, em que fazia referência
ao “feliz momento em que a valorosa nação americana pegou em armas para
sacudir o pesado jugo que a mantinha oprimida por cerca de três séculos”42 .
Quanto à possibilidade de constituir uma nação americana como um corpo
político, embora tenha havido expressões prematuras como a federação idealizada
por Miranda enquanto permanecia em Londres nos primeiros anos do século XIX,
apenas adquiriu consistência no contexto da crise que deu lugar ao processo revo-
lucionário e independentista43. Como é fato conhecido/Comoé sabido, apesar da
prédica e dos esforços nesse sentido realizados por líderes como Simón Bolívar, essa
nação jamais seria constituída. Na carta enviada a seu tio em maio de 1810, Camilo
Torres advertia sobre as dificuldades que sua realização acarretaria, concluindo
que Nova Granada deveria constituir-se em uma nação. E a mesma proposta seria
apresentada poucos meses depois por Mariano Moreno, líder da ala radical dos
revolucionários rio-platenses e Secretário da Junta de Governo de Buenos Aires,
quando sustentou que era inviável convocar um congresso americano devido às
dificuldades materiais e geográficas, e também injustificado, pois tendo a soberania
retrovertido aos povos perante a ausência do Rei, não havia motivo para que perma-
necessem unidos, embora acreditasse que aqueles que integravam o Vice-reinado
do Rio da Prata deveriam fazê-lo 44. Portanto, foram outros os marcos territoriais
nos quais foram definidas as novas unidades políticas concebidas como nações,
embora a ideia de uma nação americana, entendida em termos culturais como
expressão de unidade continental, iria desfrutar de uma longa vida.
As disputas em torno da dimensão territorial, do papel dos povos e do caráter
que a nação deveria ter, são alguns dos fios condutores que articularam em uma
mesma trama a crise, a revolução e as guerras de independência, com os enfrenta-
mentos que se sucederam ou foram solapados e que muitas vezes são considerados
como guerras civis45. Quanto a isso, e contra o que estabeleceu a historiografia
durante mais de um século, o mínimo que pode ser dito é que foi um processo

41
Miguel Hidalgo, “Proclama del cura Hidalgo a la Nación Americana” em Haydeé Miranda
Bastidas y Hasdrúbal Becerra sel., La Independencia de Hispanoamérica. Declaraciones y Actas
(Caracas: Biblioteca Ayacucho, 2005), 38.
42
Miguel Hidalgo, “Abolición de la esclavitud y otras medidas decretadas por Hidalgo” em
Carlos Herrerón Peredo, Hidalgo. Razones de la insurgencia y biografía documental (México: SEP,
1986), 242.
43
Francisco de Miranda, “Bosquejo de Gobierno provisorio” em Romero y Romero, Pensamiento
político, t. I, 13-19.
44
“Sobre el Congreso convocado y Constitución del Estado”em Gaceta de Buenos Aires nº 27,
6/XII/1810.
45
Embora não seja o tema deste trabalho, gostaria de chamar a atenção sobre a necessidade de
questionar a nítida distinção que se costuma fazer entre as guerras de independência e as guerras
civis, o que é apenas uma das muitas consequências do fato de considerar as nações americanas como
entidades preexistentes ou destinadas a se constituírem da maneira como as conhecemos hoje.
|  47
de frente para o futuro

aberto e indeterminado que foi assumindo novos significados para seus próprios
protagonistas à medida que transcorria. Para isto foram decisivos alguns conceitos
como nação, que além de dotar os acontecimentos de inteligibilidade, eram capazes
de delinear cursos de ação possíveis ao indicar um norte para orientá-los.
A independência, que supostamente era o propósito inicial dos revolucioná-
rios, não foi necessariamente proclamada pelas Juntas erigidas no contexto da
crise nem pelos governos que surgiram depois delas. Ao mesmo tempo em que se
mantinha a lealdade a Fernando VII, eram feitos pronunciamentos contraditórios
ou ambíguos em relação a seu pertencimento à nação espanhola. Então, poucos
dias após ter sido criada, a Junta de Caracas decidiu dirigir-se ao Conselho de
Regência, fazendo-o perceber que “É muito fácil confundir o significado dos
nossos procedimentos e dar a uma comoção provocada apenas pela lealdade
e o sentimento de nossos direitos, o caráter de insurreição antinacional”46 .
Estes “procedimentos” incluiam a eleição de deputados que formaram uma
representação nacional dos povos da Venezuela. Mas esta representação, que
expressava uma comunidade munida de um governo próprio, não comportava
uma identidade nacional venezuelana e tampouco se opunha a uma eventual
“concorrência às cortes gerais de toda a nação, desde que sejam convocadas
com aquela justiça e equidade de que é credora a América que forma a maior
parte dos Domínios do cobiçado e perseguido Rei da Espanha”47.
Evidente que essa “justiça e equidade” não foi uma característica da liderança
da metrópole, cuja visão sobre a posição subordinada que a América deveria ter
na nação espanhola apenas aprofundou a brecha existente entre as elites nati-
vas, apesar da ampliação de direitos promovida pelas Cortes. Assim, nos anos
seguintes e no contexto das guerras que sacudiram o continente, diversos povos
ou reuniões de povos declararam sua independência e seu desejo de constituir-se
em nações soberanas, procurando organizar instituições governamentais que
pudessem garantir seus direitos e os de seus membros. Conforme observava
o diário oficial do governo de Buenos Aires, isto implicava em “Ascender da
condição degradante de Colônia obscura à hierarquia de uma Nação”48 .
Para grande parte dos americanos, esse processo confuso em que estavam
imersos há anos havia encontrado no calor da revolução e da guerra um rumo
e um sentido precisos: a transição de colônias a entidades soberanas que po-
deriam constituir-se como nações. A nação voltava-se para um futuro no qual
reinariam a liberdade e a independência, enterrando no passado o despotismo
e os séculos de opressão e dominação colonial.

46
“A la Regencia de España, 3 de mayo de 1810” em Actas del 19 de Abril. Documentos de la
Suprema Junta de Caracas (Caracas: Concejo Municipal, 1960), 99.
47
Gazeta de Caracas, 27/VII/1810.
48
Gazeta de Buenos Ayres, 27/V/1815.
48 |
fabio wasserman

A nação como criação política: entre a vontade, a legitimidade


e a possibilidade

Mas como se poderia alcançar esse futuro? E, mais precisamente, como eram
constituídas as nações? Como eram reconhecidas? Quais eram seus atributos?
Que papel se atribuía aos indivíduos e aos povos que as formavam? Em termos
teóricos ou ideológicos havia um repertório de respostas mais ou menos exatas
que podiam divergir em alguns aspectos e por isso davam lugar a debates e
polêmicas. Mas a maior fonte de conflitos foi sua decisão prática, isto é, polí-
tica, já que através de suas concepções se expressavam e se buscavam impor
posições e intereses políticos, sociais, econômicos, territoriais ou jurisdicionais.
Em maio de 1825, o Congresso Constituinte das Províncias do Rio da Prata
discutiu a possibilidade de criar um exército nacional perante a iminente dis-
puta com o Brasil pela Banda Oriental (conflito cujo desfecho seria a criação da
República do Uruguai como nova nação soberana). Um dos entusiastas deste
debate foi o cônego saltenho Juan Ignacio Gorriti, que se opôs à criação desse
exército alegando que a nação era inexistente. Embora concordasse com a criação
de uma nação que centralizasse o poder e governasse o território rio-platense,
entendia que mesmo que não fosse sancionada uma Constituição as províncias
continuariam sendo soberanas. Ao ter sua opinião questionada, viu-se obrigado
a explicar que “De duas maneiras pode ser considerada a nação, ou como pessoas
que têm um mesmo idioma, apesar de formarem diferentes estados, ou como
uma sociedade já constituída sob o regime de um único governo”. O primeiro
caso seria o da antiga Grécia ou Itália, assim como da América do Sul, que na
sua opinião poderia ser considerada como uma nação mesmo tendo diferentes
Estados, “mas não no sentido de uma nação que é regida por uma única lei, que
tem um único governo”, que era ao que ele se referia 49.
Gorriti assim sintetizava os dois significados do conceito nação que, em
meados da década de 1820, e após ter sido declarada a independência de qua-
se todo o continente, seguiam percorrendo caminhos separados. Embora sua
acepção como população que possui traços idiossincráticos continuasse sendo
utilizada, a que prevaleceu naquela época foi a de caráter político, que a distin-
guia por ser resultado de um ato voluntário de seus membros para constituir
uma comunidade regida pelas mesmas leis e um único governo.
Esse ato voluntário foi revelado algumas semanas mais tarde, quando os
representantes dos povos do Alto Peru declararam sua independência, descar-
tando a possibilidade de juntar-se ao Peru ou às Províncias do Rio da Prata. A
esse respeito, sustentaram que “A representação Soberana das Províncias do
Alto Peru” havia decidido erigir-se

49
Sesión del 4/V/1825 em Emilio Ravignani (ed.), Asambleas Constituyentes Argentinas, 1813-
1898, (Buenos Aires: Peuser, 1937), t. I, 1325.
|  49
de frente para o futuro

[…] em um Estado Soberano e Independente de todas as nações, tanto


do velho como do novo mundo, e os departamentos do Alto Peru,
firmes e unânimes nesta tão justa e magnânima decisão, protestam
perante o mundo inteiro, que sua vontade irrevogável é governar-se
por si próprios, e ser regidos pela constituição, leis e autoridades que
eles próprios se dessem, e acreditassem mais condizentes com sua
futura felicidade como nação, e a sustentação inalterável de sua santa
religião católica, e dos sagrados direitos de honra, vida, liberdade,
igualdade, propriedade e segurança 50.

Se bem que poderiam ter apelado para alguma particularidade capaz de


identificar esses povos que buscavam constituir-se como nação, o certo é que
em nenhuma declaração de independência ou constituição associava-se nação
com sua definição étnica ou com algum traço sociocultural, pois predominava o
fato de ser considerada como corpo político soberano, constituído pela vontade
de seus membros, sejam indivíduos ou sujeitos coletivos como as províncias.
Não se tratava de uma exceção nem obedecia apenas à natureza política
desses documentos. Nos textos jurídicos da época e no ensino do Direito, por
exemplo, a nação também era definida dessa forma. No curso sobre Instituições de
Direito Natural e das Gentes, ministrado em 1822/3 na recém-criada Universidade
de Buenos Aires, Antonio Sáenz ensinava a seus alunos que

A sociedade assim chamada por antonomásia também costuma ser


denominada nação e Estado. É uma reunião de homens que se sub-
meteram voluntariamente à direção de alguma autoridade suprema,
também chamada soberana, para viver em paz e conseguir seu próprio
bem e segurança 51 .

Do mesmo modo, no Direito das Gentes, publicado dez anos mais tarde
no Chile, Andrés Bello afirmava que “Nação ou Estado é uma sociedade de
homens que tem por objetivo a preservação e felicidade dos associados; que é
governada por leis positivas emanadas dela própria e é dona de uma porção de
território”52 . A permanência desta concepção e sua vasta difusão na América
Latina devem-se a suas numerosas reedições corrigidas que seguiram sendo
publicadas durante décadas em Santiago, Caracas, Cochabamba, Lima, Buenos

50
Declaração de 6 de agosto de 1825 em Colección oficial de leyes, decretos y órdenes de la República
Boliviana. Años 1825 y 1826 (La Paz: Imprenta Artística, 1826), 17.
51
Antonio Sáenz, Instituciones elementales sobre el derecho natural y de gentes, (Buenos Aires:
Faculdade de Direito e Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires, 1939), 61.
52
Andrés Bello, Principios de Derecho de Jentes (Santiago de Chile: Imprenta de la Opinión, 1832), 10.
50 |
fabio wasserman

Aires, Madri e Paris, embora a partir de 1844 com o título modernizado como
Princípios de Direito Internacional53 .
O fato das nações poderem constituir-se pela vontade de seus membros
favorecia a criação de entidades inovadoras. Essa característica tornou-se ex-
plícita na própria denominação em alguns casos como Bolívia, Argentina ou
Colômbia, o que, é claro, também implicou na criação de novos adjetivos ou de
sua resignificação54 . De qualquer forma, nos Vice-reinados, Reinos ou Províncias
que durante o período colonial podiam ser reconhecidos como nações, também
se podia legitimar a construção de um poder político como representação dessa
entidade preexistente. No Sermão que abriu um Congresso Nacional no Chile
em julho de 1811, o frei Camilo Henríquez fez constantes referências à “nação
chilena” que, além de ser católica, era detentora de direitos que a habilitavam a
fazer uma constituição capaz de garantir sua liberdade e felicidade ante o estado
de acefalia em que se encontrava a monarquia 55 . Da mesma maneira, quando
dez anos mais tarde aconteceu a declaração de independência do México como
reação de parte de suas elites ante o triunfo da revolução liberal na Espanha,
seus autores deixaram claro que se tratava de uma nação que existia há séculos:
“A nação mexicana, que por trezentos anos nem teve vontade, nem livre o uso
da voz, hoje sai da opressão em que viveu”56 .
O fato de proclamar a independência, seja de nações que se consideravam
preexistentes ou de povos que aspiravam a formar uma nova instituição, po-
deria ser considerado uma clara demonstração da existência de uma vontade
nacional. No entano, isso não era suficiente, pois se quisesse ter existência
política e ser reconhecida como uma nação, também deveria ser sancionada
uma constituição para dar-lhe forma. O periódico La Abeja Republicana recor-
dava, em setembro de 1822, a declaração de independência realizada no ano
anterior por José de San Martín, alegando que a libertação do Peru permitira a
seus habitantes transitar “da classe dos colonos […] para compor uma grande
e heroica nação” capaz de apresentar-se “perante as nações”57. Mas como iriam
perceber seus redatores semanas mais tarde, este propósito somente poderia
ser cumprido através de um Congresso Constituinte: “E a formação desta nação,

53
Andrés Bello, Principios de Derecho Internacional, 2da. ed. Corrigida e ampliada (Valparaíso:
Imprenta del Mercurio, 1844).
54
José Carlos Chiaramonte e outros, comps., Crear la nación. Los nombres de los países de América
Latina (Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 2008).
55
Camilo Henríquez, “Sermón en la instalación de Primer Congreso Nacional”, em Escritos
Políticos de Camilo Henríquez Raúl Silva Castro rec., (Santiago de Chile: Ediciones de la Universidad
de Chile, 1960), 50-59.
56
“Acta de Independencia del Imperio Mexicano pronunciada por su Junta Soberana, congregada
en la capital de él, en 28 de septiembre de 1821”, em Bastidas y Becerra, La Independencia, 42.
57
La Abeja republicana (Lima: Imprenta de José Masias, 22/IX/1822).
|  51
de frente para o futuro

como começá-la? Que o decida o Congresso Soberano a cujas luzes foi confiada
a sorte das gerações presentes e futuras”58 .
Se era somente através da constituição que a nação poderia ganhar forma,
compreende-se por que motivo sua análise e a dos debates constitucionais
permitem penetrar nas diversas concepções sobre a ordem social e política
que o conceito veiculava. A Constituição Política da República Peruana, sancio-
nada em novembro de 1823, afirmava, em seu primeiro artigo, que “Todas as
províncias do Peru reunidas em um só corpo formam a Nação Peruana” e, no
terceiro, que “A soberania reside essencialmente na Nação”59. Por sua vez, a
Constituição para a República Peruana, também conhecida como Constituição
Vitalícia, promulgada em novembro de 1826 sob a inspiração de Bolívar, sus-
tentava que “A Nação Peruana é a reunião de todos os Peruanos”, e o mesmo se
estabelecia naquela sancionada na mesma época pela Bolívia60. Quase todas as
constituições asseguravam que a “soberania reside essencialmente na nação”
ou em fórmulas similares que a convertiam no sujeito político por excelência.
Precisamente por isso podiam expressar diversas concepções sobre o que era
ou deveria ser a nação e, em particular, sobre quem a compunha. Na constitui-
ção de 1823 as províncias do Peru eram corpos coletivos; enquanto que na de
1826 os peruanos eram indivíduos. Mas mesmo dentro dessas opções também
se poderia encontrar alternativas. Os corpos coletivos podiam ser estamentos
tal como se propôs em alguns projetos constitucionais. E os indivíduos podiam
ser considerados de outro modo: a Constituição Política sancionada em março
de 1828 declarava que “A Nação Peruana é a associação política de todos os
cidadãos do Peru” e já não “a reunião de todos os peruanos”. Definição que faz
sentido quando se tem presente que muitos de seus habitantes não reuniam as
qualidades necessárias para ser considerados cidadãos61.
Esta última questão remete ao lugar que, nas diferentes propostas de nação,
era atribuído às classes subalternas, cujos membros podiam ser considerados
ou não como cidadãos plenos. Os indígenas, por exemplo, costumavam ser
excluídos da cidadania política, distanciando-se, assim, das regras de alguns
dos discursos e projetos propostos no contexto do processo revolucionário que
aspiravam a sua integração social e política, seja como indivíduos ou como co-
munidades. Esse distanciamento ficou explícito em mais de uma ocasião, como
em meados do século, quando Juan B.Alberdi, ao repassar as constituições que
haviam sido sancionadas no continente para decidir o modelo mais adequado

58
La Abeja republicana (Lima: Imprenta de José Masias, 24/XI/1822).
59
http://bib.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/01482074789055978540035/index.htm
60
http://bib.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/01479514433725784232268/index.htm
61
http://bib.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/02450576436134496754491/index.
htm.
52 |
fabio wasserman

para a nação argentina, permitiu-se afirmar com total crueza que “O indígena
não figura nem é levado em conta na nossa sociedade política e civil”62 .
A composição social e étnica não era o único motivo de discussão em
torno da construção da nação. Muito mais acirrada foi a disputa em relação
à soberania dos povos e a sua integração ou não com a nação que, com muita
frequência, estimulou os conflitos entre autonomistas, federalistas e centralistas
ou unitários. Enquanto que os primeiros tendiam a utilizar o conceito de nação
enfatizando a vontade dos povos para constituí-la, os segundos costumavam
acrescentar como requisito uma espécie de critério informal e pragmático:
ter capacidade suficiente para poder manter sua soberania e independência63 .
No início de 1822 e perante à resistência de Guaiaquil em incorporar-se
à República da Colômbia, Simón Bolívar escreveu uma carta a José Joaquín
Olmedo, que presidia o Conselho Diretivo, afirmando que “uma cidade com um
rio não pode formar uma nação” e que a própria natureza fez com que a cidade
e sua região fizessem parte da Colômbia, de modo que reconhecia a esse povo o
direito à “completa e livre representação na Assembleia Nacional”64 . Dois anos
antes essa mesma concepção havia encorajado a intervenção de Francisco Zea
ao presidir as sessões do Congresso da recém-criada República da Colômbia.
Zea defendia que esse extenso território pródigo em riquezas somente poderia
“entrar no mundo político” por vontade expressa de seus membros. No entanto,
também advertia que era uma condição insuficiente ao salientar que

As nações existem de fato e são reconhecidas, digamos, por seu


tamanho, designando por esta palavra o conjunto de território, po-
pulação e recursos. Vontade manifesta e um tamanho considerável
são os dois únicos títulos que podem ser exigidos de um povo novo
para ser admitido na grande sociedade das nações 65 .

Um ano depois, o mexicano José María Luis Mora publicava no Semanário


Político e Literário um texto que procurava contestar os liberais espanhóis e
legitimar a recente independência do México e sua instituição como nação.
Para tanto considerou necessário definir em que consistia, començando por
desconsiderar uma possível má interpretação do princípio de soberania popular
que, no seu entender, havia causado um grande dano ao

62
Juan B. Alberdi, Bases y puntos de partida para la organización política de la República Argentina,
(Buenos Aires: Plus Ultra, 1982), 82 [Valparaíso, 1852].
63
Este critério é semelhante ao “princípio do limiar” defendido em meados do século por
nacionalistas europeus como Giuseppe Mazzini. Eric Hobsbawm, Naciones y nacionalismo desde
1780 (Barcelona, Crítica, 2000), 39-48.
64
Cali, 2/1/1822 Simón Bolívar, Doctrina del Libertador, Manuel Pérez Vila comp. (Caracas:
Fundación Biblioteca Ayacucho, 1992): 137/8.
65
Correo del Orinoco n° 50, Angostura, 29/I/1820.
|  53
de frente para o futuro

[…] povo ignorante, persuadido de sua soberania e carente de ideias


precisas que determinem de um modo firme e exato o sentido da
palavra nação, acreditou que se deveria considerar como tal toda
reunião de indivíduos da espécie humana, sem outras qualidades
e circunstâncias. Equívocos que devem promover a discórdia e a
desunião e fomentar a guerra civil!
[…]
Que é então que entendemos por esta palavra nação, povo ou socie-
dade? E qual o sentido que lhe deram os ensaístas quando afirmam
sua soberania nos termos expressos? Não pode ser outra coisa senão a
reunião livre e voluntária de homens que podem e querem constituir-
-se na terra legitimanente possuída, em um Estado independente dos
outros. Nem é crível que as nações reconhecidas como soberanas
e independentes possam alegar outros títulos, a capacidade para
constituir-se como tal e sua vontade para efetuá-lo

Depois disso, passava a enumerar essas condições indispensáveis para


constituir-se como nação que, conforme alegava, possuia o recém-criado
Império Mexicano: território, população, instrução e forças armadas capazes
de garantir a ordem interna e defendê-lo de qualquer agressão externa. Para
concluir, o que se demandava era “uma terra possuída legitimamente e a força
física e moral para mantê-la”66 .
Em resumo, para aqueles que defendiam este ponto de vista, a existência
da nação não dependia somente do livre arbítrio e do consentimento de seus
membros. Também era preciso contar com uma base moral e material capaz de
dar-lhe sustento. É por isso que mesmo em uma declaração de independência
tão tardia como a realizada pelo Congresso do Paraguai, em novembro de 1842,
se alegava “que além dos justos títulos que tem como fundamento, a natureza
o favoreceu para que seja uma nação forte, populosa, fértil em recursos, e em
todos os ramos da indústria e comércio”67.

Rumo a um novo conceito de nação: de frente para o futuro


mas com raízes no passado

Em 1842, mesmo ano em que o Paraguai proclamava formalmente sua inde-


pendência, produzia-se no Chile um intenso e prolífico debate sobre literatura
entre escritores locais e rio-platenses, exilados devido a sua oposição ao governo
de Juan Manuel de Rosas. Nesses artigos jornalísticos, que ficariam conhecidos
como A polêmica do romantismo, percebe-se uma ênfase maior nas referências

66
José María Luis Mora, “Discurso sobre la independencia del Imperio Mejicano” [21/XI/1821]
em Obras sueltas de José María Luis Mora, ciudadano mejicano (París: Librería de Rosa, 1837), t. II,
11.
67
Bastidas y Becerra, La Independencia, 84.
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fabio wasserman

culturais e identitárias que o conceito ‘nação’ poderia portar 68 . Não se tratava


de um fato excepcional, pois nessa época, tanto nação como a trama conceitual
e discursiva da qual fazia parte, estavam ocorrendo importantes mudanças
que estavam entrelaçadas com transformações econômicas, sociais, políticas e
culturais mais vastas. O ritmo e intensidade destes processos foi variável, mas
o resultado a médio prazo seria o mesmo: a unificação dos dois significados
de nação, o étnico ou sociocultural e o político, tal como ficaria sintetizado no
sintagma Estado nacional. Esta nova conceituação implicou também outras
mudanças decisivas, como o fato de considerar a origem da nação em um pas-
sado longínquo e quase mítico, ou a atribuição de um caráter transcendente
que tendia a atenuar, resignificar ou, em suas versões mais extremas, fazer
desaparecer a vontade de seus membros. A análise dessas mutações excede as
possibilidades do presente trabalho, motivo pelo qual, nestas linhas finais, me
limitarei a fazer algumas observações de caráter geral.
Este breve apanhado começará pelo mesmo lugar que o anterior: os di-
cionários. Em sua edição de 1869, o Dicionário da Real Academia Espanhola
não parecia registrar nenhuma alteração, pois continuava definindo nação do
mesmo modo que vinha fazendo há mais de um século. Contudo, nas entra-
das seguintes que assinalam alguns termos derivados de nação, se percebe a
existência de usos e significados que dotavam o conceito de um novo sentido.
Uma das novidades foi a introdução de uma palavra até então ausente, como
nacionalismo, se bem que ainda não se atribuia a ela nenhum caráter políti-
co, pois era definida como “Apego dos nativos de uma nação a ela própria e a
quanto lhe pertence”. Esta característica, no entanto, era registrada na acepção
que se dava à palavra nacionalidade e que, em grande parte, era tributária do
princípio das nacionalidades elaborado e difundido por escritores, ensaístas e
políticos pertencentes ao movimento romântico e aos nacionalismos europeus.
Com efeito, enquanto que nas edições anteriores “nacionalidade” somente fazia
alusão a uma inclinação particular de alguma nação, agora era definida pela
primeira vez como a “Condição e caráter peculiar do agrupamento de povos
que formam um Estado independente”69.
Como costuma acontecer com os dicionários, esta edição apenas recolhia
usos e significados que já existiam há vários anos, até mesmo décadas. No caso
das repúblicas hispano-americanas se pode perceber que a partir de 1830 houve
um interesse crescente por conhecer, inventariar e difundir valores, instituições
e modos de vida locais. Este traço distintivo expressava-se através da palavra
nacionalidade, que embora ainda tivesse um caráter algo difuso quanto a seus
conteúdos e contornos, evidenciava a progressiva tendência a unificar no con-

68
Norberto Pinilla, La polémica del romanticismo (Buenos Aires: Americalee, 1943).
69
Real Academia Espanhola, Diccionario de la lengua castellana décima primeira edição (Madrid:
Imprenta de Don Manuel Rivadeneyra, 1869), 631.
|  55
de frente para o futuro

ceito nação o pertencimento a uma comunidade política representada por um


Estado e uma identidade coletiva de caráter sociocultural.
Esta mudança conceitual foi possível graças a uma combinação de vários
fatores, a começar pela formação de identidades e interesses compartilhados por
diferentes grupos sociais e regionais após décadas de vida independente. Este
processo favoreceu, em alguns casos, a consolidação de estruturas estatais que,
por sua vez, procuravam adquirir maior legitimidade alegando ser a expressão
de uma nacionalidade. Mais do que acordos, alianças e experiências em comum
que possibilitaram este processo, também foram decisivos os conflitos e en-
frentamentos em cujo desenvolvimento foi se consolidando a associação entre
nação, identidade e território. Nesse contexto, cabe diferenciar três tipos de
conflitos armados. Os internos, que costumam ser interpretados como guerras
civis e que em mais de uma ocasião provocaram o enfraquecimento de lide-
ranças regionais, favorecendo a consolidação de estruturas estatais nacionais.
As guerras entre Estados americanos mais ou menos consolidados, como a que
mantiveram Chile e a Confederação Argentina contra a Confederação Peru-
Bolívia (1836-1839), a Guerra da Tríplice Aliança na qual Argentina, Brasil e
Uruguai combateram contra o Paraguai (1865-1870), ou a Guerra do Pacífico
entre Chile, Peru e Bolívia (1879-1883). E, por último, os que envolveram po-
tências estrangeiras, como a ocupação do México por tropas dos Estados Unidos
(1846-1848) e França (1862-1867), as intervenções da França e Inglaterra no
Rio da Prata entre 1838 e 1850, ou os ataques da marinha espanhola às costas
do Pacífico (1864-1866). Estas considerações merecem pelo menos dois escla-
recimentos para que não sejam mal interpretadas. A primeira é que a distinção
entre conflitos internos e externos nem sempre foi muito nítida, e certamente em
mais de um caso foram seu desenvolvimento e seu resultado que contribuiram
para formar expressões, representações e identidades nacionais, sem mencio-
nar que também podem ter favorecido a consolidação de Estados nacionais e a
derrota de forças oponentes. A segunda é que não há uma relação automática
de causa-efeito entre conflito bélico e identidades, mas sem dúvida tendem a
criar condições favoráveis para sua difusão e consolidação.
Claro que para que isto fosse possível, também foi necessário pôr em ação
escritores e ensaístas que elaboraram discursos e representações em que essas
identidades tomaram forma. Destacaram-se os autores românticos que colo-
caram a nação, a cultura e a identidade nacional no centro de sua produção
literária, jornalística, ensaística e historiográfica. Embora todos estes gêneros
tenham uma grande importância, talvez a mais decisiva a médio e longo prazo
tenha sido a historiográfica. Na rede que articulava esses relatos históricos, que
com toda justiça passaram a ser consideradas histórias nacionais, aspirava-se
a mostrar o processo de constituição da nação em um passado longínquo ou,
ao menos, o dos elementos que estavam predestinados a formá-la, assim como
o das leis ou princípios que regiam seu futuro e a orientavam para um destino

56 |
fabio wasserman

inexorável70 . Dessa maneira, era possível atribuir-lhes um caráter transcen-


dente que as tornava imunes às contingências ou à vontade dos homens, como
explicitou Bartolomé Mitre em 1852 ao referir-se à nacionalidade argentina:

A tradição, os antecedentes históricos, a constituição geográfica, os


sacrifícios comuns, a identidade de crenças e de caráter, a unidade de
raça, a planície ininterrupta do pampa, e essa atração misteriosa que um
povo exerce sobre o outro, tudo conspira para fazer que a Confederação
Argentina seja indivisível [sic] como a túnica do Redentor.
Este sentimento, este princípio é mais forte que os homens, é mais
forte que os próprios povos. Em vão reagir contra ele […]
A nacionalidade é uma lei orgânica, uma lei constitutiva desse pedaço
de terra que hoje se chama Confederação Argentina. É independen-
te da vontade dos homens, porque reside em todos os elementos
essenciais da sociedade, circula em seu sangue, aspira-se com o ar,
é a alma desse corpo e, como a alma, ainda viverá, à semelhança do
patriotismo romano quando se dissolver o corpo que o abrigou 71 .

Contudo, mesmo que nesse momento o novo sentido de nação estivesse


disponível e pudesse ser encontrado nas produções intelectuais e nos debates
públicos, a verdade é que levou muito tempo para se impor. De fato, até a segunda
metade do século XIX continuou prevalecendo a concepção pactista de nação
cuja legitimidade consistia no livre arbítrio ou consentimento de seus mem-
bros, como foi se consolidando no calor das revoluções de independência. As
inovações que tendiam a fundir seu sentido étnico e político recém começavam
a ter repercução e mostrariam todo seu potencial décadas mais tarde, quando
conseguiram consolidar-se os Estados nacionais que buscavam estabelecer-
-se e legitimar-se no princípio das nacionalidades. É claro que nessa época o
panorama social, político e intelectual havia sido transformado radicalmente
e o mundo em que fora concebido era inevitavelmente outro.

70
Para o conceito História me remeto aos trabalhos publicados em Fernández Sebastián,
Diccionario político y social, t. I 551-692. Um panorama que aborda diversos casos de vínculo
entre história e nação no século XIX em Guillermo Palacios, comp., La nación y su historia.
Independencias, relato historiográfico y debates sobre la nación. América Latina, siglo XIX, (México:
El Colegio de México, 2009). Uma análise comparativa de três histórias nacionais produzidas na
segunda metade do século XIX em Fernando Devoto, “La construcción del relato de los orígenes
en Argentina, Brasil y Uruguay: las historias nacionales de Varnhagen, Mitre y Bauzá” em Jorge
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Mais detalhes sobre o que poderia ser considerado uma história nacional, em Fabio Wasserman,
Entre Clío y la Polis. Conocimiento histórico y representaciones del pasado en el Río de la Plata (1830-
1860), (Buenos Aires: Teseo, 2008), 91-107.
71
“Nacionalidad” em El Nacional nº 137 (Buenos Aires: Imprenta Argentina, 27/10/1852).
|  57
de frente para o futuro

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62 |
Nas origens do nacionalismo político
da I República Portuguesa: o projeto da
“nacionalização do Estado” e o debate jurídico
e político em torno da conceção da soberania e
do modelo de representação política
Paula Borges Santos
Instituto de História Contemporânea – Universidade Nova de Lisboa

Introdução

A experiência histórica do primeiro tempo do republicanismo em Portugal,


enquanto poder público constituído, designadamente o período compreendido
entre 1910 (ano da proclamação da República) e 1926 (ano da instauração da
Ditadura Militar no País, na sequência do golpe militar de 28 de maio), fez-
-se sob o signo da modernização da sociedade, a realizar por via do próprio
processo de republicanização (tido simultaneamente como seu propulsor e
como seu instrumento viabilizador). Os cultores desse desígnio projetaram tal
modernidade para todos os domínios sociais, sem exclusão do espaço político
e da configuração das suas instituições. O dinamismo que envolveu a recom-
posição do sistema político-institucional passou, em boa medida, por uma
transformação dual: por um lado, foi promovida a emancipação do indivíduo
face às instituições, mas, por outro lado, a autonomia do indivíduo foi restrin-
gida com fundamento em teses que abandonavam a conceção individualista
e contratualista como origem da sociedade e do poder político, e as próprias
instituições revelaram estar dependentes, em maior ou menor grau, de novos
procedimentos de regulação. Nestes eixos refletiram-se a recriação política da
“nação” e da identificação desta com o próprio Estado.
A complexidade desta última articulação impôs a necessidade de resposta à
questão: como se nacionalizou o Estado? Ou, por outras palavras, de que modo
as mudanças introduzidas no que até então foi a conceção tradicional de “nação”,

|  63
nas origens do nacionalismo político...

determinaram um ideário que não só gerou a reconstituição simbólico-cultural


da identidade nacional como serviu para reorganizar o Estado e os seus poderes?
Com efeito, os republicanos construíram um discurso sobre a “nação”, onde se
refletiu o duplo objetivo de, por um lado, resgatá-la da situação de decadência
que acreditavam afetá-la, e, por outro lado, de organizá-la1, sendo que este as-
peto, em particular, não foi dissociável da edificação do próprio Estado. Tem
sido frequente a historiografia ocupar-se do processo de “nacionalização do
Estado” republicano privilegiando a análise dos seus sistemas cultural ou edu-
cativo, identificando tanto a influência de movimentos intelectuais e políticos
exteriores a Portugal nas opções dos edificadores daqueles sistemas, como o
pensamento e o papel de intelectuais e políticos na construção da mundividên-
cia e da simbologia da I República, ou ainda a ação da propaganda do regime
na inculcação dos valores do republicanismo ou no fomento de uma cultura
de massas2 . Neste artigo, para observar a “nacionalização do Estado”, parte-se
antes da análise da noção de soberania que foi adotada pelo legislador repu-
blicano em 1911 e da solução de representação política que lhe correspondeu,
não se ignorando que as mesmas resultaram de contribuições das distintas
sensibilidades republicanas. Trata-se de verificar se a narrativa sobre a sobe-
rania e seu respetivo exercício teve ou não correspondência na representação
política e nos dispositivos que a suportaram, e de perceber se o nacionalismo,
que serviu de pano de fundo às várias escolhas, teve um cariz revolucionário
ou, ao invés, foi tradicionalista e conservador, isto é, se rompeu ou não com as
normas simbólicas e políticas da monarquia liberal e constitucional.
Para desenvolvimento desta problematização, opta-se por cruzar o que
foram discursos políticos e jurídicos, tomando como referência as condições
ideológicas e legais que aí se apontaram para explicar a origem da noção de
soberania e sustentar qual a sua melhor configuração constitucional, bem
como para fundamentar as escolhas de representatividade política que lhe
estiveram associadas.

1
Cf. CATROGA, Fernando. O Republicanismo em Portugal. Da Formação ao 5 de Outubro de
1910, 3.ª edição, Alfragide, Casa das Letras, 2010, pp. 277-283.
2
Atualmente é abundante a literatura sobre o tema. Entre outros estudos, destaque-se:
CATROGA, Fernando, ibidem, pp. 235-276; RAMOS, Rui. A Segunda Fundação (1890-1926), de
História de Portugal, dir. de José Mattoso, vol. VI, Lisboa, Editorial Estampa, 1994, pp. 401-433
e 529-560; MATOS, Sérgio Matos, História, Mitologia, Imaginário Nacional. A História no Curso
dos Liceus (1895-1939), Lisboa, Livros Horizonte, 1990, pp. 89-164; LEAL, Ernesto Castro. Nação
e nacionalismo: a cruzada nacional D. Nuno Álvares Pereira e as origens do Estado Novo (1918-
1938), Lisboa, Cosmos, 1999, 537 p.; PINTASSILGO, Joaquim. República e Formação de Cidadãos.
A Educação Cívica nas Escolas Primárias da Primeira República Portuguesa, Lisboa, Colibri,
1998, 278 p.
64 |
paula borges santos

A secularização da soberania antes da República: soberania


popular ou soberania nacional?

Em 1910, em obra editada ainda antes da proclamação da República, o


antigo regente da disciplina de Direito Público da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra, o professor José Ferreira Marnoco e Souza, escrevia:
“O Estado não é uma instituição religiosa, mas uma organização política, e por
isso a soberania nunca pode ser uma emanação da divindade, mas um fenómeno
natural próprio da vida das sociedades”3 . Ao proferir esta afirmação, Marnoco
e Souza revelava um pensamento estruturado pela filosofia positivista, que
começara a difundir-se em Portugal, sobretudo a partir do último quartel do
século XIX, e que, sobre o aspeto concreto da natureza da soberania, excluía
os argumentários suportados tanto por teorias “teológicas” como por teorias
“metafísicas”4 . Longe de representar uma posição singular e estritamente aca-
démica, o comentário de Marnoco e Souza enunciava, antes, uma reflexão que
fizera caminho, nos anos anteriores, fruto da evolução cultural e política do
País, e que já se encontrava difundida fora da universidade, em especial, entre
círculos de pensamento republicano, e até outros de pensamento socialista.
Em tais círculos, formados por políticos mas também por figuras da in-
telectualidade portuguesa - que conheciam o positivismo de Comte, a escola
de Littré e o positivismo liberal de Stuart Mill, e haviam aderido a diferentes
correntes da sociologia (sobretudo ao naturalismo positivista, ao evolucionismo
biológico e social de Herbert Spencer e à Escola da Ciência Social de Frédéric
Le Play) e a outras conceções filosóficas que haviam entrado em Portugal, como
o monismo naturalista de Haeckel, o evolucionismo biológico de Darwin ou o
materialismo de Vogt, Moleschott e Büchner5 -, a recusa da natureza religiosa da
soberania, ou, se se quiser, da sua origem sobrenatural, era, nessa época, uma
ideia generalizada. Com efeito, não obstante as diversas apropriações doutri-
nárias resultarem em diferentes visões sobre a sociedade e o que poderia ser a
reforma social ou a organização do Estado, tornara-se frequente o julgamento
de que, naquele que era então o tempo presente, o princípio religioso já deixa-
ra de poder ser considerado como “fator de coesão e harmonia dos agregados

3
Cf. SOUZA, Marnoco. Direito Político. Poderes do Estado. Sua organização segundo a sciencia
política e o direito constitucional português, Coimbra, França Amado Editor, 1910, p. 14.
4
Entre as “teorias teológicas”, explicava Marnoco e Souza, encontravam-se: a teoria do dire-
ito divino sobrenatural, a teoria do direito divino providencial, a teoria do patriarcado, a teoria
legitimista, a teoria do direito divino dos reis e, por fim, a teoria do direito divino dos povos. As
“teorias metafísicas” envolviam: a teoria da soberania popular, a teoria da soberania da razão e
da justiça, a teoria da soberania da inteligência e da força (Cf. Idem, ibidem, pp. 9-14 e 16-21).
5
Cf. CATROGA, Fernando. O “complexo” cartista do parlamentarismo republicano português.
In: Das Urnas ao Hemiciclo. Eleições e Parlamento em Portugal (1878-1926) e Espanha (1875-1923),
coord. de Pedro Tavares de Almeida e Javier Moreno Luzón, Lisboa, Assembleia da República, 2012,
p. 224.
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nas origens do nacionalismo político...

humanos”, como sucedera durante a “infância da civilização”. A esse raciocínio


subjazia uma conceção evolutiva da vida em sociedade, de acordo com a qual a
“eliminação da crença como fundamento da soberania” surgia como resultado
dos “ditames da ciência” e do progresso político6 . Esta última dimensão era
ainda relacionada com a própria necessidade de implantação da República, que
se impunha inevitavelmente em consequência do devir histórico, para os que
pensavam a situação nacional por via da questão do regime. Saliente-se, porém,
que o problema da fonte da soberania não se colocou apenas aos adversários do
regime monárquico (republicanos, socialistas, anarquistas); a cultura cientista
da época e o exercício de desvio da atenção das formas legais para as realidades
sociais serviu também, como adiante se verá, a alguns monárquicos ou simpa-
tizantes de uma chefia de Estado dinástica para defenderem a secularização
da fonte de autoridade do rei, fazendo-a emergir da Nação.
No interior do campo republicano, a debilidade teorética que se apontava às
teses que faziam radicar, quer no direito divino, quer na razão natural, a origem
do poder não eliminou a dificuldade de se tomarem posições sobre essa questão
nem de encontrar um sistema de representatividade política que correspondesse
à especificidade da idiossincrasia da República, como reinvenção da respublica e
como solução para a crise do sistema eleitoral e do sistema partidário vigente sob
a Carta Constitucional. No momento do derrube violento da Monarquia e perante
a oportunidade de assumirem a governação e de se apresentarem como poder
constituinte, os republicanos não tinham visões e posicionamentos consolidados
sobre o exercício da soberania e a organização dos poderes do Estado. Apenas
no decurso dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, eleita em 28 de
maio de 1911 e reunida entre 19 de junho e 21 de agosto daquele ano, lograriam
alcançar um acordo político funcional sobre aquelas questões, onde pesaram mais
conceções doutrinais híbridas e argumentos de cariz histórico do que a alegada
pureza dos ideais republicanos, defendidos nos anos de combate à instituição
monárquica e ao constitucionalismo cartista. Com efeito, os republicanos, tendo
passado o último quartel de oitocentos a debater entre si diferentes visões sobre
as teses contratualistas, o constitucionalismo da Revolução Francesa e o modelo
de Estado unitário proposto pela tradição jacobina, haviam-se dividido quanto
ao princípio fundador da soberania e ao modelo de representação nacional.
Por exemplo, como já enunciou Fernando Catroga, o primeiro programa
federalista (1873), assinado por Horácio Esk Ferrari – onde transpareciam a
influência do pensamento de Henriques Nogueira e referências a Pi y Margall,
Proudhon, Tocqueville, Vacherot, Stuart Mill, mas também aos textos constitu-
cionais dos Estados Unidos da América e da Suíça, e ao movimento krausista  –,
norteado por um ideal de democracia direta, tinha-se proposto desenvolver o
princípio da soberania popular (aceitando o sufrágio universal, para homens

6
Cf. Idem, ibidem, pp. 14-17.
66 |
paula borges santos

e mulheres maiores de 18 anos) e transformá-lo no único meio de legitimação


do poder. A soberania não era pensada como una e indivisível, sendo que
também não se tinha do Estado uma conceção unitária. Daí que se recusasse
a existência da figura do presidente da República (sobre a qual se projetavam
os princípios de personalização e unificação do poder), mas se reconhecesse a
representatividade política das minorias, se aceitasse o “mandato imperativo”
e se optasse pelo federalismo quer para a organização interna de poderes do
Estado, quer para orientação das relações externas entre países com afinida-
des (i.e., projetando primeiro uma “federação ibérica” e depois a construção
dos Estados Unidos da Europa). No primeiro caso, a divisão da nação fazia-se
em vários governos autónomos: provinciais, municipais ou de freguesia, que
possuíam ampla capacidade legislativa; o poder central recaía sobre uma assem-
bleia federal eleita por sufrágio direto, mas de limitada competência legislativa
(i.e., reservada para assuntos de interesse geral: orçamento, justiça, segurança,
serviços públicos e política externa). Na dependência dessa assembleia federal
era colocado o poder executivo, que exercia funções por delegação7.
Neste modelo político-administrativo, que sustentou a candidatura dos fe-
deralistas nas eleições de 1878 e 1881, não se reviram republicanos “unitários”,
como patentearam o programa democrático de 1873 e o projeto de programa
de 1878. Aí se consagrava o princípio da soberania nacional e a conceção de
Estado unitário, na linha do jacobinismo francês. O sufrágio moldava-se a um
critério censitário. Papel hegemónico era dado ao poder legislativo, de feição
parlamentarista (a sua designação variou entre 1873, quando a referência se
fazia ainda às “cortes”, e 1878, onde passou a “assembleia nacional”), que ti-
nha no poder executivo uma “delegação”. O projeto federalista era recusado,
admitindo-se apenas que o poder local fosse exercido “por meio da adminis-
tração municipal e distrital”8 .
O manifesto-programa republicano de 1891, escrito por Manuel de Arriaga,
Teófilo Braga, Homem Cristo, Bernardino Pinheiro, Azevedo e Silva e Jacinto
Nunes, num momento em que, pelo agravamento da crise do sistema político
suscitada pela questão do Ultimatum (1890), o partido buscava uma solução de
compromisso a fim de conseguir organizar-se em definitivo, procurou conciliar
as propostas de sistema político-administrativo, defendidas anteriormente pelos
elementos federalistas e “unitários” do movimento. Assim, a separação de pode-
res continuava a determinar a organização do Estado, não sendo incompatível
com a supremacia concedida ao legislativo, que resultaria de “eleição direta”.
Admitia-se que o poder executivo, de “delegação temporária do legislativo”,
se especializasse na ação presidencial para as relações gerais do Estado. Numa
cedência aos interesses federalistas, esse poder surgia estruturado por níveis:

7
Cf. CATROGA, Fernando. O Republicanismo em Portugal. Da Formação ao 5 de Outubro de
1910…, pp. 44-46.
8
Cf. Idem, ibidem, pp. 49-51.
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nas origens do nacionalismo político...

em primeiro, previa-se a “federação de municípios”, “legislando em Assembleias


provinciais sobre todos os atos concernentes à segurança, economia e instrução
provincial, dependendo das relações mútuas de homologação da Assembleia
Nacional”; em segundo, estabelecia-se a “federação de províncias”, que, “legislando
em Assembleia nacional e sancionando sob o ponto de vista do interesse geral
as determinações das Assembleias provinciais”, deveria velar “pela autonomia e
integridade da Nação”; e, por último, a “Constituinte decenal”, encarregada não
só da revisão da Lei Fundamental como também de “reformar a Codificação
geral”. A influência federalista encontrava-se ainda presente na aceitação da
representação das minorias e na questão do sufrágio, que se alargava também às
mulheres (mas ainda assim de forma discriminatória, já que se ponderava a sua
“educação progressiva”, de modo a que apenas exercesse “a capacidade política
em correlação com as obrigações civis a que estiver sujeita”)9.
As exigências programáticas e os compromissos entre fações republicanas
que subjaziam ao manifesto-programa de 1891 não foram, contudo, suficientes
para gerar consenso no tocante às propostas com dimensão política (como,
aliás, em relação às demais esferas: económica, social e cultural). A redação
do próprio documento, na parte do programa propriamente dita, evidenciava
uma atitude de uma calculada evasão. O que aí se registava, em frases tele-
gráficas, não passava de princípios, alguns a carecer de maior clareza no seu
enunciado. Essa mesma consciência parecem ter tido os seus redatores que
começaram por divulgar o texto com o título de “Indicações para o Programa
do Partido Republicano Português [PRP]”. A construção de um “código
doutrinário”, a partir do desenvolvimento dos “tópicos” aí condensados, era
um esforço que, como admitiam, reservavam “à imprensa republicana e aos
conferentes democráticos” dos congressos e centros republicanos (e até de
sessões promovidas pela Maçonaria). No começo dos anos de 1890, impunha-
-se, cada vez mais, para as lideranças do Partido Republicano, na persecução
dos objetivos que as animavam de reorganização política da nação, seguir a
ação revolucionária em detrimento de uma tática legalista. Bastava-lhes, por
isso, no manifesto associado àquele programa, criticar, nos aspetos que aqui
estão em análise, a Monarquia Constitucional por se fundar “na amálgama
irracional da soberania do direito divino com a soberania da nação” e reafir-
mar que a República era “a nacionalidade exercendo por si mesma a própria
soberania, intervindo no exercício normal das suas funções e magistratura”.
Afinal, como também acrescentavam: “no momento que atravessamos não
há lugar para demonstrações teóricas, nem mesmo para argumentar com os
pedantocratas do constitucionalismo”10 .

9
Cf. Idem, ibidem, pp. 57-58.
10
Cf. “Manifesto-Programa do Partido Republicano Português” [publicado em O Século, 12 de
janeiro de 1891, pp. 1-2], consultável em: Ernesto Castro Leal, Partidos e Programas. O campo
68 |
paula borges santos

O caminho paulatino para a afirmação da soberania nacional em


detrimento da soberania popular

A última afirmação dos redatores do manifesto-programa de 1891, atrás


citada, sugerindo implicitamente um divórcio entre agentes do mundo político
e do mundo jurídico, naquele que foi um momento de transformação profunda
da sociedade portuguesa, impõe que, neste trabalho, se coloque a seguinte
interrogação: acompanharam o direito público e o direito constitucional por-
tuguês, na transição do século XIX para o XX, e no começo de novecentos, as
modificações que sofriam as ideias políticas sobre o direito de soberania e a
construção do Estado, e que apontavam para alterações dos próprios princípios
jurídicos, sendo que essa não era uma realidade exclusivamente portuguesa, mas
antes se inscrevia na evolução registada um pouco por toda a Europa ocidental?
A crer no diagnóstico que fazia, em 1878, um dos mais prestigiados lentes
de Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, José Joaquim
Lopes Praça, a literatura jurídico-constitucional não era nem extensa, nem
apresentava grande utilidade e sofria de um carácter difuso no estilo11. O pole-
mismo não encontrava acolhimento fácil nos compêndios de ensino de direito
constitucional e as teorias ministradas não se substituíam com facilidade, quer
pela resistência da maioria dos professores a novas doutrinas, quer pelos exíguos
índices da sua própria produção autoral (a escrita de lições não foi usual até
cerca de 1870 e, ainda assim, haveriam de passar algumas décadas até se tornar
frequente os professores produzirem esse tipo de escritos). Como demonstrou
António Hespanha, a evolução foi lenta entre o primeiro liberalismo e o início
do século XX. Refira-se, sinteticamente, que, depois de 1836, haviam sido
abandonadas as bases filosóficas do jusnaturalismo, de índole individualista,
para se adotar a filosofia krausista, numa ação fomentada especialmente pelo
professor Vicente Ferrer Neto Paiva. Nessa época, também o organicismo social,
que caracterizara os romantismos alemão (designadamente, a Escola Histórica
Alemã) e francês (de F. Guizot), recolheu alguma adesão. A renovação do corpo
docente do curso jurídico, em 1850, facilitou a introdução de nova bibliografia
em algumas disciplinas, como direito público ou direito constitucional (cátedra
criada apenas em 1865). Algum ecletismo dominou então o ensino ministrado
na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra12 , que incorporou referên-
cias a teses de filosofia política individualista, ao hegelianismo, sem abandono
da doutrina solidarista. Gradualmente, no final da década de 1860, os textos

partidário republicano português 1910-1926, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra,


2008, pp. 143-149.
Cf. HESPANHA, António Manuel. Guiando a Mão Invisível. Direitos, Estado e Lei no Liberalismo
11

Monárquico Português, Coimbra, Livraria Almedina, 2004, pp. 531-532.


12
Esta foi a única Faculdade de Direito em Portugal até 1913, ano em que, por iniciativa gover-
namental, foi criada a Faculdade de Direito e Ciências Sociais em Lisboa.
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nas origens do nacionalismo político...

trabalhados registaram também citações de autores seduzidos por um novo


organicismo (entre os quais se destacou J.K. Bluntschli), que privilegiava agora
o papel ordenador do Estado (por influência das propostas do estadualismo
político, avançadas, por exemplo, por Bismarck), sobre os direitos individuais
e sobre os elementos de auto-organização da sociedade. Uma nova rutura no
ensino do direito (nas suas várias especialidades), ocorreu cerca de dez anos
mais tarde, suportada pela integração da filosofia positivista, de matriz comtia-
na, nos programas de várias cadeiras, tendo o lente Manuel Emídio Garcia
realizado, nesse sentido, um esforço pioneiro. Até 1910, os pressupostos natu-
ralistas do positivismo vieram a favorecer a afirmação do anti-individualismo
como substrato da filosofia política e cultivou-se a ideia de que “todo o direito
público se deveria construir sobre os agregados naturais da sociedade, desde
as famílias ao Estado”, cuja função reguladora também se acentuava13 . Esta ten-
dência reforçar-se-ia nos anos finais da Monarquia Constitucional, quando, na
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, se tornaram dominantes três
correntes metodológicas no ensino do direito público: a escola do “positivismo
estatal” (Laband, Meyer, Jellinek), de influência alemã; a escola do realismo
francês (L. Duguit); e a escola histórico-evolucionista, de origem italiana14 .
Da sociologia voltaram, nessa época, a surgir novos subsídios para a formação
daquele ramo do direito, designadamente por via da ciência social da escola
de Le Play, divulgadas pelo lente Marnoco e Souza.
Esta evolução de algumas décadas que o próprio Direito registou, quanto
ao seu fundamento como área científica, de afastamento do jusnaturalismo e
de aproximação ao que se concebia ser a realidade social em transformação15 ,
ajuda a explicar que, a partir de 1878, no direito público e no direito constitu-
cional se preferissem explicações sobre a origem da soberania que refutavam
“princípios idealistas e abstratos” e não fossem independentes dos fenómenos
sociais e da sua historicidade.
Com efeito, logo em 1879, Lopes Praça, de formação política liberal e defen-
sor de uma monarquia hereditária representativa, não hesitaria em subscrever
a teoria da soberania nacional. Escrevia o professor: “A quem pertence o direito
de soberania? Variam as respostas segundo os sistemas, está no direito divino,
entendido pelos seus ministros, responde a teocracia; está na hereditariedade
e legitimidade monárquica, asseguram os absolutistas; reside na vontade po-
pular, emendam os sectários de Rousseau; M. Royer-Collard fazia depender
a soberania política da razão […]. Se é preciso dizer o nosso modo de pensar

13
Cf. Idem, ibidem, pp. 532-541.
14
Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Prefácio. In: SOUZA, Marnoco e. Constituição da
República Portuguesa: Comentário. Prefácio. Coord. de J.J.Gomes Canotilho, Lisboa, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 2011, p. 10.
15
Cf. CRUZ, Manuel Braga da. Sociologia. In: Dicionário de História de Portugal, coord. de António
Barreto e Maria Filomena Mónica, vol. IX, Porto, Livraria Figueirinhas, 2000, p. 466.
70 |
paula borges santos

neste capítulo de direito público, célebre por tantas alucinações, diremos sem
muitos rodeios, que a soberania de um povo e de uma nação reside essencial-
mente nesse povo, nessa nação”16 .
Nos anos de 1880, também Manuel Emídio Garcia, influente doutrinador
do pensamento republicano (e, ainda, do pensamento socialista) ensinou,
designadamente, que a ideia metafísica da soberania popular, tal como havia
sido formulada por Rousseau, correspondia a uma visão anacrónica da so-
ciedade porque excessivamente contratualista. Para aquele lente prevalecia
o princípio de que o indivíduo só pode ser compreendido na sua dimensão
social. Apresentava ainda a noção de “povo” como “ser orgânico, que para se
converter em organizado precisa de formar-se e constituir-se em nação”; e,
à ideia de “nação” como “ser organizado”, fazia corresponder a coordenação
de distintos graus de soberania, “a do indivíduo, da família, da comuna, do
município, da província”17.
Em 1910, seria a vez do professor Marnoco e Souza, que nesse ano assu-
mira funções como ministro e secretário de Estado da Marinha e Ultramar no
gabinete de Teixeira de Sousa (o último governo da monarquia constitucional),
na obra Direito Político. Poderes do Estado. Sua organização segundo a sciencia
política e o direito constitucional português, registar críticas a várias teorias
sobre a soberania e a organização dos poderes e eleger, como orientação mais
adequada para explicar e organizar politicamente a sociedade e o Estado, uma
das três “teorias positivas”: a teoria da soberania nacional18 . Explicava aquele
lente que aquela teoria surgida de forma ainda embrionária nas doutrinas de
Romagnosi e de Sismondi, fora desenvolvida por Palma, autor da chamada escola
“histórica-evolucionista”, que sustentara que a soberania não podia deixar de
pertencer “substancial e originariamente à nação”. Isto significava entender,
em sentido político, o povo como uma “comunidade organizada” e não como
“multidão inorgânica”. De acordo com esta teorização, os direitos de soberania
cabiam à “universalidade dos cidadãos”, não podendo ser gozados por “nenhum
indivíduo, nenhuma fração ou associação parcial”, aos quais não tivessem sido
confiados expressa ou implicitamente. Sem hesitar em considerar que a teoria
da soberania nacional era aquela que “melhor satisfaz as exigências do direito
político moderno”, Marnoco e Souza não a julgava completamente aperfeiçoada,
à data em que escrevia.

16
Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Introdução. In: PRAÇA, José Joaquim Lopes. Direito
Constitucional Portuguez, vol. I, Coimbra, Coimbra Editora, 1997, pp. 11-13.
17
Cf. CATROGA, Fernando, ibidem, pp. 166-167.
18
Segundo Marnoco e Souza, eram quatro as “teorias positivas”: a teoria da soberania da util-
idade social, acolhida preferencialmente em Inglaterra, construída por Bentham e, mais tarde,
desenvolvida por Mill, Bain e Herbert Spencer; a teoria da soberania do Estado, com defensores
na Alemanha e em Itália, produzida por autores como Gneist, Bluntschli, Zorn, Orlando e Icilio
Vanni; a teoria da soberania da sociedade, formulada por Miceli; e, por fim, a teoria da soberania
da nação (Cf. SOUZA, Marnoco e, ibidem, pp. 25-32).
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nas origens do nacionalismo político...

Alertava para o facto de os principais autores da teoria da soberania nacio-


nal não terem definido convenientemente o conceito de soberania, pelo que
os próprios estabeleciam, não raras vezes, confusões entre esta e “o direito
de eleger os depositários do poder” ou o direito de fiscalizar o exercício do
poder público”. A ausência de uma boa conceptualização levava também a que
equiparassem, erradamente na sua opinião, “nação” e “Estado” ou “nação” e
povo”. Com essas posições, aproximavam-se das doutrinas que a própria teoria
da soberania nacional, na origem, pretendera questionar e face às quais quise-
ra servir de contraponto: a soberania do Estado e a soberania popular19. Se a
primeira fora importante, especialmente para o interior da cultura científica
e da política alemãs, suscitando alguns defensores em Itália, Marnoco e Souza
não hesitava em afirmar que, para a evolução histórica e política, tivera maior
importância a teoria da soberania popular, sobretudo depois da formulação que
lhe fora atribuída por Rousseau. Apresentava a Revolução Francesa como a sua
mais direta consequência e assegurava que toda a política do presente século”
se havia desenvolvido sob o poder do seu domínio irresistível”.
Porém, na linha do que Manuel Emídio Garcia já registara, Marnoco e
Souza escrevia que nada era mais inadmissível do que a teoria da soberania
popular de João Jacques Rousseau”. Sobre os princípios fundamentais dessa
teoria 20 , o professor adiantava que tornavam o Estado um produto arbitrário”,
lançado na instabilidade e perturbação”. Recusava que fosse possível conciliar
as ideias de soberania do povo” e de liberdade absoluta do indivíduo”, porque
seria “manifestamente absurdo sustentar que obedecer ao povo é obedecer a si
mesmo”. Do mesmo passo, via na identificação entre soberania e vontade geral
uma incompatibilidade, já que a segunda “por si só não pode de modo algum
constituir um direito”. Afinal, acima da vontade geral, que não era outra coisa
senão o “agregado mecânico do maior número”, estavam “condições de exis-
tência e de desenvolvimento da vida social, com que ela se deve conformar”21.
Esta última observação relacionava-se com a outra fragilidade apontada
por Marnoco e Souza à teoria da soberania nacional. Revelando um fôlego
teórico e dogmático próprio, onde transparecia a sedução que haviam exerci-
do sobre si os ensinamentos da “psicologia coletiva”22 , sustentava que aquela

19
Cf. SOUZA, Marnoco e, ibidem, p. 30.
20
Sintetizando os princípios daquela teoria, Marnoco e Souza escrevia que correspondiam aos
seguintes: a soberania reside essencialmente no indivíduo, não sendo a soberania social senão
resultante da soma dos poderes individuais; todos os indivíduos são soberanos, tendo um domínio
absoluto sobre as pessoas; quando os indivíduos se reúnem, mediante o contrato social, renun-
ciam, para constituir o poder coletivo, à sua liberdade e soberania; […] a soberania é, em última
análise, a vontade popular, entendida como a expressão da maioria numérica dos cidadãos” (Cf.
Idem, ibidem, p. 17).
21
Cf. Idem, ibidem, pp. 22-23.
22
Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes, “Prefácio”…, p. 10.
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paula borges santos

teoria ganharia em ser combinada com a “doutrina da consciência coletiva”.


Por “consciência coletiva” entendia “o fenómeno de coordenação das consci-
ências individuais”, percetível enquanto “processo psicossocial”, inscrito na
temporalidade, sendo que rejeitava as considerações dos que advogavam que
aquela consciência era distinta dos indivíduos que a compunham e possuía
até um carácter místico e transcendente. A “doutrina da consciência coletiva”
surgia-lhe como um instrumento capaz de responder à necessidade de captar a
“característica fundamental da nacionalidade”, noção que retinha, a seu ver, a
“verdadeira teoria da soberania”. Explicava porquê: “um agregado social [leia-
-se: a nação] que tenha os caracteres duma nacionalidade [i.e., conhecimento
das suas condições de existência e desenvolvimento, das leis reguladoras da
sua evolução e das influências do meio ambiente envolvente] goza do direito
não só de afirmar a sua independência relativamente aos outros, mas também
de se organizar politicamente pela forma que melhor [lhe] convier”23 .
Do que fica dito, e sem prejuízo da necessidade de uma investigação mais
aturada sobre o modo como se cruzaram o pensamento político e o pensamento
jurídico quanto às questões em apreço neste artigo (explorando-se, por exem-
plo, se os dirigentes políticos se socorreram ou não das teses jurídicas para
legitimarem as suas posições ou se seguiram outras referências e quais), parece
interessante notar que a passagem de um quadro político fundado no “princí-
pio monárquico” para outro ancorado no “princípio democrático” (para usar a
antítese em que se expressava José de Arriaga 24) se fez sem grandes comoções
doutrinais no ambiente académico português. De facto, doutrinadores (Lopes
Praça, Manuel Emídio Garcia e Marnoco e Souza) de diferentes gerações e perfis
políticos, partindo da crítica aos dogmas metafísicos da construção liberal do
Estado (contrato social, soberania, representação parlamentar) concordaram no
sentido da mudança de fundamento da fonte da soberania. Mais, como demons-
tram as posições citadas dos três lentes de Coimbra, essa viragem antecedeu,
num período de tempo considerável (1879-1910), a própria realidade política –
recorde-se que, apenas em 19 de junho de 1911, durante a primeira reunião da
Assembleia Constituinte, se decretou “para sempre abolida a monarquia e banida
a dinastia de Bragança” e se declarou que “a forma de Governo de Portugal é
a República Democrática”25. Mesmo que se pretenda levar em consideração a
facilidade do que podia ser uma tomada de posição científica, em boa medida
inspirada nos exemplos de realidades políticas da Europa ocidental coeva e da
literatura especializada sobre o tema produzida em fóruns internacionais, quando
comparado com as exigências colocadas à ação política interessada na derrocada
do regime monárquico constitucional, não será de negligenciar a unanimidade

23
Cf. SOUZA, Marnoco e, ibidem, pp. 30, 39-41.
24
Cf. ARRIAGA, José de. Os Últimos 60 Anos da Monarquia. Causas da Revolução de 5 de Outubro
de 1910, Lisboa, 1911, p. 8.
25
Cf. Diário da Assembleia Nacional Constituinte, n.º 1, 19 de junho de 1911, p. 3.
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nas origens do nacionalismo político...

que se regista no pensamento jurídico evocado, quanto à subscrição da teoria da


soberania nacional. Com efeito, essa unanimidade não existiu no pensamento
político republicano, e até socialista, da época. Nas vésperas do 5 de outubro de
1910, alguns núcleos da propaganda republicana tinham ainda por tema maior
a reafirmação da soberania popular26 , sendo que nos trabalhos constituintes de
1911 essa sensibilidade voltou a manifestar-se entre alguns deputados. Também
no interior do Partido Socialista Português, em 1911, o problema da origem da
soberania não tinha uma resposta única.

Poder constituinte, nação, soberania e representação política

A Constituição de 1911 estabeleceu o princípio de que “a soberania reside


essencialmente na Nação” (art. 5.º), adotando a teoria da soberania nacional na
esteira de anteriores redações das Leis Fundamentais de 1822 e 1838, particu-
larmente da primeira (no seu art. 26.º)27. A razão para tal aproximação filiou-se
na circunstância desses textos constitucionais recolherem influência de um
pensamento político que, convocando argumentos do constitucionalismo da
Revolução Francesa, entendia que à ordem legalista e democrática assistia “um
carácter voluntário, constitutivo e progressivo”28 . Também a opção aí tomada
de ruptura com a representação política do modelo tradicional das cortes, onde
se deduzia o acolhimento das teses de Sieyès, justificou o não rompimento da
República com o constitucionalismo liberal. Finalmente, não menos importante
terá sido a promessa regeneradora da pátria, alimentada pelo republicanismo,
que passava, em certa medida, pela convicção de que era necessário consumar
todas as revoluções traídas ou inacabadas, como teria sido o caso das revoluções
de 1820-1822 e de 1836. O cultivo da memória vintista, setembrista e patuleia
completava essa atitude29, embora para efeitos das opções de redação do texto
constitucional, tenha tido pouca importância.
Apesar de não terem surgido projetos de alteração constitucional propondo a
adesão ao princípio da soberania popular, este esteve subjacente a diversas posições
defendidas sobre outros pontos do articulado do projeto de Constituição. Ainda na
discussão do projeto primitivo, logo a propósito do art. 1.º, onde se declarava que a
nação assumia como forma de governo a “república democrática”, os constituintes

26
Cf. CATROGA, Fernando, ibidem, pp. 165-167.
27
Sublinhe-se que as Constituições de 1822 e 1838 serviram de fonte para a globalidade do
texto constitucional de 1911, e não só para o artigo 5.º. De resto, não foram as únicas fontes, pois
a Constituição de 1911 veio a assimilar algumas disposições da Constituição brasileira de 1891
(Cf. SOUZA, Marnoco e. Constituição Política da República Portuguesa. Commentario, Coimbra,
F. França Amado Editor, 1913, pp. 6-7).
28
Cf. HESPANHA, António Manuel, ibidem, pp. 175-176.
29
Cf. CATROGA, Fernando. O “complexo” cartista do parlamentarismo republicano português…,
pp. 223 e 230.
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paula borges santos

dividiram-se sobre esse conceito. Para uns tratava-se de uma república em que
os poderes do Estado (legislativo, executivo e judicial) eram exercidos pelo povo.
Outros consideravam que tal expressão apontava apenas para a questão da soberania
pertencer à generalidade dos cidadãos. Na ausência de consenso, decidira-se fixar
simplesmente que “a Nação, organizada em Estado Unitário, adota como forma de
governo a República”. Deliberadamente afastava-se a hipótese de significar que o
regime comportava uma ação direta do povo, isto é, rejeitava-se que o povo pudesse
exercer por si, e não por meio de delegados, uma parte das funções do governo e da
legislatura. A aplicação de um tal modelo no País seria rotulada de uma “fantasia
de sonhadores, que se imaginavam eguaes, nas suas condições nacionais, àquelas
que fazem da Suissa um bello e extraordinario povo”30.
Esta argumentação exemplifica como os constituintes se dividiam entre si sobre
questões fundamentais para a organização política a consagrar pela Constituição,
mas que mais não eram do que remanescências de divergências transportadas
da fase da propaganda, suscitadas pelas diferenças programáticas que animavam
“federalistas” e “unitários”. Outro exemplo disso mesmo, encontra-se na decisão
dos constituintes de sancionarem a forma unitária do Estado, resultando dessa
opção a derrota da corrente federalista na Assembleia Constituinte (sendo que,
para tanto, um dos argumentos evocados foi o de que o País apresentava uma rara
unidade da comunidade política e social, sedimentada na história).
Ao contrário dos legisladores liberais, os constituintes em 1911 não caracte-
rizaram formalmente, no texto constitucional, o que entendiam por “nação”. Em
1822, optara-se por considerar a Nação como “a união de todos os Portugueses de
ambos os hemisférios” (art. 20.º), numa valorização da ideia de “comunidade de
pessoas vinculadas entre si por uma razão mais forte (o sangue) do que o facto
de terem nascido no território sujeito a um mesmo rei”. Afirmara-se que a Nação
era “livre, independente, e não pode ser património de ninguém”, cabendo-lhe,
por intermédio dos deputados reunidos em cortes, fazer a Constituição, “sem
dependência de sanção do Rei” (art. 27.º). Em 1838, o legislador entendera a nação,
da qual emanavam todos os poderes e onde residia a soberania, como “associa-
ção política de todos os cidadãos portugueses” (art. 1.º), considerando que estes
eram os indivíduos nascidos em Portugal e nos seus domínios (com exceção dos
que tivessem assumido outra naturalidade). Desvalorizara-se a relação entre
poder e súbditos para, sobretudo, definir e reforçar os laços políticos pelo prin-
cípio da territorialidade, noção que fora já introduzida na Carta Constitucional
de 182631. Com efeito, a razão mais direta para a curta fórmula adotada no art.
5.º da Constituição de 1911 prendeu-se com a falta de entendimento entre os
constituintes quanto a dizer-se que a nação exercia, “por delegação voluntária”,
a soberania. Essa ideia fora avançada pela comissão redatora do projeto cons-

30
Cf. SOUZA, Marnoco e, ibidem, pp. 9-11.
31
Cf. HESPANHA, António Manuel, ibidem, pp. 203-204.
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nas origens do nacionalismo político...

titucional, mas caíra após se considerar que podia abrir caminho a cenários de
renúncia ou de abdicação do exercício de soberania32 .
O discurso de alguns constituintes evidenciava que a nação era uma entidade
distinta dos indivíduos que a compunham. Traduzia-se por uma vontade geral,
superior às vontades individuais, e, portanto, era una e indivisível, revelando
uma consciência de continuidade histórica. Daí que se traduzisse nos hábitos
e costumes e estivesse preparada para cooperar nos progressos exigidos pelo
futuro histórico. Com esse espírito, repudiavam-se teses contratualistas. “A
soberania da nação não é mais do que esse mútuo consenso, que origina todas as
instituições sociais”, afirmava Teófilo Braga, presidente do Governo, perante a
Assembleia Constituinte, e acrescentava: “um indivíduo isolado tem a sua capa-
cidade civil e os seus direitos, mas é impotente para os manter e reivindicar”33 .
Com efeito, o lugar do indivíduo no novo ordenamento a erigir não foi óbvio
para todos os constituintes, sendo que tal se manifestou quanto a dois aspetos:
por um lado, na hierarquia de matérias elencadas pela Constituição, envolvendo
os direitos individuais e a organização atribuída aos poderes do Estado; por
outro lado, no alcance dos direitos individuais que foram consagrados.
Sobre o primeiro aspeto, refira-se que no projeto proposto pela comissão en-
carregada de redigir uma primeira versão da Lei Fundamental (daqui em diante
designado projeto primitivo), a enumeração das liberdades individuais surgia
depois de se tratar a organização dos poderes do Estado, num sistema que era
igual ao da Carta Constitucional. Esta ordem de matérias foi alterada, por via de
se considerar que “os direitos e garantias individuais são o limite natural da ação
dos diversos poderes do Estado”, donde não resultaria apresentá-los como uma
concessão do poder, ainda que este tivesse o “direito de regular as manifestações
da atividade dos indivíduos, de modo a assegurar a vida da sociedade”34 .
Quanto ao segundo aspeto, como demonstrou Rui Ramos, embora o catálogo
de direitos inscrito na Constituição tenha sido extenso, não correspondeu ao
que os dirigentes do PRP haviam defendido durante o seu combate à Monarquia
cartista. De facto, sucederam-se os casos em que se registaram limitações ao
alcance prático da maior parte das anteriores reivindicações republicanas35 .
Não foi, por exemplo, fixada a doutrina do sufrágio universal, embora tenham
existido constituintes a defendê-la com os argumentos de que: a república só
seria democrática caso contemplasse aquele critério; a exclusão do sufrágio
universal só permitiria o voto a entidades e classes privilegiadas, quando,

32
Cf. SOUZA, Marnoco e, Ibidem, pp. 206-208.
33
Cf. BRAGA, Teófilo. Discursos sobre a Constituição Política da República Portugueza. Proferidos
na discussão na generalidade e especialidade, nas Sessões de 18 de julho e 2 de agosto de 1911,
na Assembleia Nacional Constituinte, Lisboa, Livraria Ferreira, 1911, p. 33.
34
Cf. SOUZA, Marnoco e, Ibidem, pp. 7-8.
Cf. RAMOS, Rui. Para uma história política da cidadania em Portugal. In: Análise Social, vol.
35

XXXIX (172), 2004, p. 560.


76 |
paula borges santos

contraditoriamente, a todos os indivíduos que compunham a nação se exigia o


pagamento de impostos e o cumprimento dos deveres perante o Estado; todos
os indivíduos tinham o direito de fiscalizar o governo; o sufrágio destinava-se
ao povo e a ele se devia a República. Nestas posições reaparecia o acolhimento
dado ao princípio da soberania popular, sendo, uma vez mais, essa sensibilidade
derrotada perante parlamentares que defenderam o sufrágio restrito, alegando
a elevada taxa de analfabetismo para sustentar a impreparação desses sectores
da população para se pronunciarem politicamente36 . Não passaram também
propostas que sugeriam a adoção do mandato imperativo e o alargamento do
sufrágio universal às mulheres, cuja capacidade política só era reconhecida
desde que fossem “chefes de família há mais de um ano” e tivessem o “exame de
instrução primária”. Como alguns autores já apontaram, a principal motivação
para a regulação restritiva destes direitos relacionou-se com o receio de que o
pleno uso destes beneficiasse os opositores do poder constituído. Não tendo,
aparentemente, tido particular significado o facto de, nos anos anteriores, a
propaganda republicana ter discutido o défice de legitimidade da monarquia
a propósito dos problemas que apontavam ao modelo de sufrágio e de círculos
eleitorais, sobre os quais a representação política se organizava 37.

Considerações finais

O projeto republicano de “nacionalização do Estado”, do ponto de vista político,


enformou de características que não corresponderam a um pleno desenvolvi-
mento do ideal republicano, tal como este fora defendido nos anos de combate à
Monarquia Constitucional. O sucesso desse projeto foi acentuadamente cultural,
tendo expressão na criação do culto da pátria (constituído à volta de uma nova
simbologia nacional, formada pelo hino, bandeira, heróis já desaparecidos, novos
feriados nacionais, festas cívicas, comemorações de efemérides republicanas,
e donde se excluíam todos os vestígios de internacionalismo), nas medidas de
escolarização (ensino laico, obrigatório e gratuito) e no incentivo ao reencontro
do “valor primitivo” da respublica, com fundamento na história de Portugal38 .
Sobre o projeto político em si, uma primeira nota: foi utilizada uma ar-
gumentação híbrida para explicar a nação como entidade, assistindo-se a um
desligamento da ideia, inerente às propostas demoliberais, de comunidade
política como a soma dos indivíduos para, ao invés, se salientar a importância
dos agregados sociais que compunham a sociedade. Esta tendência incorporava

36
Cf. SOUZA, Marnoco e, ibidem, p. 264.
37
Cf. RAMOS, Rui, ibidem, p. 561; CATROGA, Fernando, ibidem, p. 233; Idem, O Republicanismo
em Portugal…, pp. 175-187.
38
Sobre a “revolução cultural” desencadeada pela I República, e as causas que aí pretenderam
defender, veja-se: RAMOS, Rui, A Segunda Fundação (1890-1926)…, pp. 401-433.
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nas origens do nacionalismo político...

manifestamente o impacto de novas correntes do pensamento jurídico e do


debate político, realizado a partir da segunda metade do século XIX, onde a
tomada de posições defensoras de uma noção de representação política, assente
na representatividade dos interesses sociais e menos no sufrágio individual,
começara a tornar-se atrativa e a generalizar-se entre personalidades intelec-
tuais (onde os jurisconsultos se incluíram) e políticas (atraídas pelas teorias
políticas do organicismo, mas também do estadualismo pós-liberal)39. Não foi
por acaso que, apesar de não ter sido reconhecido o carácter constitucional
da orgânica da sociedade civil em 1911, como pretendiam algumas propostas
apresentadas na Assembleia Constituinte, de composição do Senado tendo por
base a representação dos corpos administrativos locais e de certas corporações
socioprofissionais, essa experiência foi tentada, mais tarde, durante o consulado
de Sidónio Pais (decreto n.º 3977, de 30 de março de 1918)40 .
Decorrente do ponto anterior, um segundo apontamento: a busca do interesse
público e da ordem social, que se pensou serem exercidos por um modelo de
Estado antifederalista e centralizador, concorreu para uma limitação da própria
participação democrática. Aos republicanos interessou mais o desenvolvimento
do projeto do Estado educador, e em menor grau do Estado higienista, e a dedi-
cação do indivíduo às necessidades da vida coletiva e o cultivo dos seus afetos
pátrios (fundamentados na tradição, nos costumes e na história do País), do que
fomentar o aumento da legitimidade democrática do regime, pelo alargamento
da capacidade política dos indivíduos. Nessa medida, o Estado republicano
iniciou um percurso de desligamento da vinculação da promoção dos direitos
individuais políticos, dado que, para os seus mentores, as restrições legais eram
“menos graves do que as limitações de liberdade que se verificam no domínio
das relações privadas, porque as primeiras são impostas em nome do interesse

39
Para maior detalhe das ideias e das personalidades políticas e intelectuais que iniciaram a dis-
cussão e a crítica ao modelo de representação liberal, consulte-se: OTERO, Paulo. Corporativismo
político. In: Dicionário de História de Portugal, coord. de António Barreto e Maria Filomena Mónica,
vol. VII, Porto, Livraria Figueirinhas, 1999, pp. 425-428; RAMOS, Rui. Oligarquia e caciquismo
como forma de pensar: Oliveira Martins, Joaquim Costa, Gaetano Mosca e a transformação
da cultura política liberal na Europa do Sul (c. 1800-c.1900). In: Cultura. Revista de História e
Teoria das Ideias, 2.ª série, n.º 16, pp. 179-216. Como referência da atenção que essas propostas
despertaram também entre os lentes de direito público, lembre-se que Marnoco e Souza, em
1910, refletindo sobre o exercício da soberania e a questão da representatividade política, fez a
primeira defesa, no âmbito do direito constitucional, da representação dos interesses sociais. Sem
desenvolver doutrina sobre este aspeto, mas considerando que essa seria a forma mais perfeita de
representatividade, deixava transparecer um otimismo quanto à futura concretização histórica
desse tipo de propostas, porque um “tal acordo doutrinal só se pode encontrar em épocas em
que as ideias estão maduras para se transformarem numa realidade” (algo que, cerca de trinta
anos mais tarde sucederia, de facto, através do projeto político do regime autoritário de Salazar e
Marcelo Caetano) (Cf. SOUZA, Marnoco e. Direito Político. Poderes do Estado..., pp. 164, 174-175).
40
Sobre os motivos que dificultaram, em 1911, a adesão às propostas de representação de
índole corporativa, veja-se: CATROGA, Fernando, ibidem, pp. 248-249; Idem, O Republicanismo
em Portugal…, pp. 168-172.
78 |
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público”41. Um exemplo desse procedimento encontra-se na imposição da Lei de


Separação, em 1911, pelo Estado às Igrejas e, por extensão, aos crentes das várias
confissões religiosas, de carácter fortemente restritivo da libertas ecclesiae, ao
mesmo tempo que se promoveu a liberdade religiosa, na sua vertente de dimensão
individual e privada (ninguém podia ser perseguido por motivo de religião, nem
perguntado por autoridade alguma acerca da mesma)42 .
Por fim, refira-se que o fator mais original do projeto político de “naciona-
lização” do Estado republicano, indissociável da forma de governo estabelecida
pelo regime, foi a secularização promovida da origem e da função do poder
político, ao retirar-lhe fundamentações de ordem teológica e metafísica43 . Em
boa medida, talvez as maiores inovações e ruturas que o novo regime poderia
ter introduzido naquele projeto (e na nova ordem constitucional), radicassem
nas propostas que foram rejeitadas pela Assembleia Constituinte. As divisões
que se revelaram existir entre os constituintes não permitiram, contudo, a sua
adoção (como ilustram quer o projeto constitucional apresentado por Teófilo
Braga, quer as reações que suscitou). Donde a maior radicalidade da “nacionali-
zação” do Estado, na sua dimensão política, residiu na apropriação que foi feita
pelo republicanismo (enquanto poder constituinte) do projeto democratizante
da tradição vintista/setembrista, ao concretizar a abolição do pariato (existente
nas duas constituições oitocentistas de curta duração), mas também, desta vez,
a própria monarquia (não se limitando a neutralizar o poder do rei).

Referências
ARRIAGA, José de. Os Últimos 60 Anos da Monarquia. Causas da Revolução de 5 de Outubro
de 1910, Lisboa, 1911.
BRAGA, Teófilo. Discursos sobre a Constituição Política da República Portugueza. Proferidos
na discussão na generalidade e especialidade, nas Sessões de 18 de julho e 2 de agosto de
1911 na Assembleia Nacional Constituinte, Lisboa, Livraria Ferreira, 1911.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Prefácio. In: SOUZA, Marnoco e. Constituição da República
Portuguesa: Comentário, coord. de J. J. Gomes Canotilho, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa
da Moeda, 2011, pp. 9-14.

41
Cf. HESPANHA, António Manuel, ibidem, p. 189.
42
Diga-se, aliás, que a proibição da perseguição religiosa e da indagação da pertença religiosa
por agentes do Estado eram garantias já consagradas, respetivamente, pela Carta Constitucional
e pelo Código Civil de 1867.
43
Também aqui deve ser lembrado o caminho nesse sentido já feito antes da República. Apesar
de a Carta Constitucional de 1826 iniciar com a fórmula tradicional das cartas de lei (“D. Pedro IV,
pela graça de Deus, rei de Portugal…”), não era dado no seu articulado qualquer indicação de uma
fundamentação sobrenatural do poder ou da soberania, nem sequer repetindo a fórmula inicial
da Constituição mais democrática de 1822 (“Em nome da Santíssima e Indivisível Trindade…”).
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nas origens do nacionalismo político...

______. Introdução. In: PRAÇA, José Joaquim Lopes. Direito Constitucional Portuguez, vol.
I, Coimbra, Coimbra Editora, 1997, pp. 5-19.
CATROGA, Fernando. O Republicanismo em Portugal. Da Formação ao 5 de Outubro de 1910,
3.ª edição, Alfragide, Casa das Letras, 2010.
______. O “complexo” cartista do parlamentarismo republicano português. In: Das Urnas ao
Hemiciclo. Eleições e Parlamento em Portugal (1878-1926) e Espanha (1875-1923), coord.
de Pedro Tavares de Almeida e Javier Moreno Luzón, Lisboa, Assembleia da República,
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80 |
Nacionalismos e política
externa portuguesa no pós-25 de Abril1
José Pedro Zúquete
Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa

As pessoas têm um ideal para o país


que é muito maior do que o seu esqueleto.
D. Manuel Clemente2

De cravos e de rosas

No dia 25 de abril de 2014, a Revolução dos Cravos, que pôs fim a quase cin-
quenta anos de ditadura, celebrou o seu quadragésimo aniversário. Em Portugal,
fizeram-se conferências, colóquios, exposições, as televisões recorreram a ima-
gens de arquivo, as revistas e os jornais encheram-se de memórias históricas e
de opiniões sobre o evento, os políticos juraram mais uma vez fidelidade eterna
aos valores de abril, e um pouco por todo o lado se falou do “significado” da
revolução e sobretudo do seu “legado” para o Portugal dos nossos dias. Falar da
Revolução de 25 de Abril de 1974, portanto, significa falar de um acontecimento
que marcou a história do país, abriu um novo ciclo político e inaugurou uma
Terceira República. Mas também de um acontecimento que mudou a história
de famílias, muitas famílias, quer aquelas que estavam no Portugal continental,
como as que estavam no que à época se chamava de Ultramar.
Quarenta anos depois, se há algo que passou para todo o sempre a estar associado
na mentalidade colectiva portuguesa ao 25 de Abril é a ideia de Liberdade. Ainda
recentemente o Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa publicou um

1
Este texto conjuga duas intervenções no âmbito de mesas-redondas em universidades bra-
sileiras: no dia 9 de abril de 2014, no “Seminário Internacional Nacionalismo e Política: Portugal e
Brasil”, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), e no dia 24 de abril de
2014, no evento “Os Cravos de Abril: Os Quarenta Anos da Revolução Portuguesa (1974-2014)”,
na Universidade Federal Fluminense (UFF).
2
Clemente, 2009: 31.
|  81
nacionalismos e política externa portuguesa...

estudo de opinião onde se verifica que cerca de 60% dos portugueses consideram
o 25 de Abril como o facto mais importante da história. Muito à frente da Batalha
de Aljubarrota, ou das viagens de Vasco da Gama. Claro que esta percepção tem
a ver com a proximidade histórica (é um episódio mais perto das pessoas), mas
não deixa de ser relevante. Existe um antes e um depois – e se o antes era autori-
tário –, o depois, através da transição, passou a ser o Portugal de hoje, o Portugal
democrático. E o 25 de Abril como um símbolo consensual, final, desse processo.
Mas se a um nível abstrato, difuso, essa ideia impera, se nós descermos ao
concreto, ou seja, à opinião das pessoas sobre o funcionamento da democracia
em Portugal (aquilo que os cientistas políticos chamam de “qualidade da demo-
cracia”), verificamos que, quarenta anos depois, para a maioria das pessoas, a
tal promessa de um Portugal novo e democrático ainda está por cumprir. Um
dos últimos Eurobarómetros (um inquérito europeu feito com regularidade),
do outono de 2013, não deixa margem para dúvidas: dos 28 países da União
Europeia, os portugueses são, de todos os europeus, os mais insatisfeitos com
o funcionamento da democracia (85% dos portugueses estão insatisfeitos – e
em todos os grupos sociodemográficos). 3 E resultados de 2015 confirmam a
desconfiança, bem acima da média europeia, dos portugueses relativamente ao
parlamento e ao governo da nação.4 “Abril” venceu, sim, mas o jogo está longe
de ter acabado. Ainda falta muito para que os cravos se transformem em rosas. 5

A Sereia Europeia

A Revolução Portuguesa – e o consequente desejo de refazer Portugal –


desde cedo que esteve vinculada à ideia que era preciso integrar Portugal,
decisivamente e definitivamente, na Europa. Até para sedimentar o novo
regime político. Toda a política externa portuguesa, a partir de 25 de abril, se
orientou nesse sentido.
A adesão a um projeto europeu teve o consenso das elites políticas no
Portugal democrático. Era esse o caminho para a modernização de Portugal.
O “destino” europeu de Portugal foi exaltado como talvez nunca tenha sido
ao longo da história. José Medeiros Ferreira disse, em 1976, num discurso no
Conselho da Europa, que com o 25 de Abril “Portugal volta por fim oficialmente
à convivência com a Europa”. Esse era “um ato” que exprimia “a consciência
do nosso destino histórico”. Era, nas palavras do então Ministro dos Negócios
Estrangeiros, “o regresso de Portugal às suas raízes continentais”.6

3
Eurobarómetro, 2013: 9, 10.
4
Eurobarómetro, 2015: 2.
5
Ver também História Viva, 2014.
6
Ferreira, 1976: 44.
82 |
josé pedro zúquete

O destino estava traçado. E o destino era europeu. Nos anos 80 ou 90 do


século passado, não eram muitos os que falavam de Lusofonia como um “des-
tino” alternativo para Portugal. Mas se existe algo que qualquer observador
nota é que a palavra “lusofonia” explodiu literalmente no vocabulário. E essa
explosão dá-se, sobretudo, na passagem do século XX para o século XXI.
Hoje em dia, em Portugal, é difícil não ler ou ouvir a palavra na mídia. É
difícil não ouvir políticos a falar de Lusofonia como raiz e como horizonte da
relação de Portugal com o mundo. E a todo instante nós vemos eventos/grupos
que promovem a Lusofonia: o Grupo de Reflexão Lusófona, os Encontros da
Lusofonia pela União dos Médicos Escritores e Artistas Lusófonos, os Encontros
das Mulheres Lusófonas, os Congressos dos Mares da Lusofonia. Até os Jogos
da Lusofonia já vão na quarta edição.
E por que agora? E eu aí penso que isso tem a ver, ou pelo menos está rela-
cionado, em boa parte, com o fim do deslumbramento com a Europa. Seria fácil
limitar-me a mostrar os resultados do último Eurobarómetro de 2013, que mostra
que Portugal é o terceiro país da União Europeia que tem pior imagem sobre a
União Europeia (apenas 22% dos portugueses veem a União Europeia de forma
positiva).7 Mas por detrás da frieza dos números existe algo mais profundo nas
mentalidades. É que progressivamente houve a constatação, e os momentos de
crise económica, austeridade financeira e desemprego ajudam naturalmente a
agravar esse sentimento, que o projeto Europeu não é suficiente. E assim se come-
çou a falar cada vez mais 1) da necessidade de reposicionar Portugal em termos
estratégicos, ou o regresso a uma “visão atlântica”8 , 2) do mar como destino, ou
“regresso ao mar”9, 3) dos povos de língua portuguesa espalhados pelo mundo,
4) enfim, da Lusofonia como realidade, como projeto e como sonho.
Só dentro deste contexto é que se entende que um ministro do governo de
Portugal diga, em 2012, que “nos últimos 20 anos preocupamo-nos demasiado
com a Europa, e se nós olharmos para a nossa história nós sabemos que cada vez
que fomos empurrados para o oceano esses foram os momentos de maior glória
da nossa história … Portugal é tão mais forte quanto mais olha para o mundo”.10
E este comentário é apenas um sinal, entre tantos outros, dos novos tempos.

O mundo como âncora

E o que é a Lusofonia? A um nível básico: a Lusofonia faz referência aos oito


países (nove, desde 2014) cuja língua oficial é o português, assim como às comu-
nidades de origem portuguesa espalhadas pelo mundo. A um nível superior: a

7
Eurobarómetro, 2013: 3.
8
Lopes, 2011: 199.
9
Diário de Notícias, 2012.
10
Relvas, 2012.
|  83
nacionalismos e política externa portuguesa...

Lusofonia representa uma rede ambiciosa e profunda que é concebida como uma
comunidade de valores, interesses e afinidades comuns, e como uma maneira
de redefinir e revalorizar a importância de Portugal no mundo contemporâneo.
Claro que esta visão lusófona tem uma dimensão obviamente pragmática,
ou seja, tirar vantagem política, económica e cultural de uma relação especial
entre países unidos pela mesma língua. De um ponto de vista utilitário é um
passo lógico. Mas é importante não nos limitarmos a este entendimento da
Lusofonia, sob pena de não entendermos uma importante dimensão, mais
profunda e imaterial, da sua atração e do seu apelo na mentalidade colectiva
do Portugal de hoje. E isso tem a ver com a identidade portuguesa e com o
nacionalismo cultural que hoje se manifesta através da via lusófona.
A sua origem é a mitologia nacional. Esse nacionalismo cultural emerge das
fontes histórico-culturais e sagradas da identidade portuguesa. E quais são elas?
• Em primeiro lugar, a ideia do excepcionalismo lusitano, a longa tradição
de eleição na história de Portugal. O sentimento de que Portugal se
enquadra na tradição dos povos missionários, eleitos para liderar e,
no fim, transformar o mundo. Se à França, desde o início, se atribuiu
a “Gesta Dei per Francos”, e a Inglaterra e os Estados Unidos, em dife-
rentes momentos, foram vistos como a “Nova Israel”, também Portugal,
na sua historiografia, foi visto como uma espécie de “menino Jesus
das nações”, como notou esse psicanalista da história lusa chamado
Eduardo Lourenço.11 Nesta visão, que reemerge ao longo dos tempos
de diferentes formas e feitios, o imaginário dos descobrimentos, e da
expansão ultramarina, é fundamental.

• E daqui parte a segunda grande dimensão da mitologia nacional, ou


seja, o universalismo português. A ideia é simples: é a ideia de que
Portugal provou, ao longo da história, ter desenvolvido um modelo de
convivência entre os povos que é superior. E é esse humanismo e ecu-
menismo português que distingue a experiência portuguesa no mundo.
A meu ver, a Lusofonia é a manifestação contemporânea, com novas vestes
e novos ares, destes dois grandes esteios do nacionalismo cultural da nação
portuguesa. E por isso, dentro desta perspectiva, a Lusofonia é um mito. E é
um mito de refundação nacional: redefinir e revalorizar o papel de Portugal no
mundo; reaproximar Portugal do seu destino; impulsionar e projetar o “modo
português de estar no mundo” visto como único, ecuménico e humanista (como
afirmou o economista e pensador português Ernani Lopes, e grande defensor
da Lusofonia, “nós [nós portugueses] só somos nós quando formos para além
de nós”)12 ; no fundo, mostrar que Portugal, embora hoje estatisticamente pe-

11
Lourenço, 1988.
12
Lopes, 2011: 265.
84 |
josé pedro zúquete

queno e geograficamente periférico, é, na sua natureza, um país grande. Por


isso não é surpreendente que um “certo fascínio pelo império” persista nas
narrativas identitárias portuguesas.13 O escritor António Lobo Antunes disse
uma vez, numa entrevista, “eu acho insuportável ouvir que nós somos um país
pequeno e periférico. Para mim, Portugal é central e muito grande”.14 Para um
estrangeiro, estas palavras podem parecer um paradoxo, mas o comum do ci-
dadão português, sem ter que pensar muito, entende aquilo que o escritor quer
dizer. E é isso. É exatamente isso. É essa a razão mais profunda, e irresistível,
do nacionalismo cultural português (Portugal universalista, um país de destino,
um país que sendo pequeno é grande). Esse nacionalismo cultural é intuitivo
e instantâneo. Naturalmente aceite, ele nem sequer é visto, ou racionalizado,
como nacionalismo. E nós sabemos que uma ideologia, seja ela qual for, triunfa,
ela verdadeiramente triunfa quando não é sentida como ideologia mas como
senso comum. Ninguém pensa na composição química do ar que respiramos,
limitamo-nos a respirar. O mesmo se passa com uma ideologia triunfante. E
como os restos do império perdido, ela encontra-se em quase todo o lado.
E este traço mental português é ainda mais peculiar porque coexiste com
um outro nacionalismo que, ao nível das elites e da opinião pública, é resolu-
tamente rejeitado: o nacionalismo étnico (identificado com a extrema-direita,
marginal e eleitoralmente insignificante).15 Ao contrário da visão do mundo da
Lusofonia que vê Portugal como enraizado em valores espirituais e culturais
ligados ao expansionismo além-mar, este etnonacionalismo entende Portugal
unicamente como algo enraizado num povo, dentro de um território físico e
concreto. E qual é o mapa mental que guia estes etnonacionalistas? É a ideia-
-motora que Portugal está num período insuportável de decadência – perda
de soberania e de identidade – causada pela globalização, por entidades su-
pranacionais e por políticas “criminosas”, como a abertura de fronteiras, que
minam e corrompem as raízes profundas do povo português. E tudo isto com
a colaboração dos políticos, traidores da pátria. Este é o diagnóstico. Qual a
cura? O renascimento da nação exige a homogeneização étnica no território
original onde ao longo dos séculos a comunidade “indígena” se formou – e daqui
surgem ideais de pureza e a rejeição de elementos “estranhos” e subversores
da autêntica cultura e etnia lusitanas (políticas anti-imigração, encerramento
das fronteiras, rejeição de organizações transnacionais). Este nacionalismo
étnico representa o “Portugal que não se mistura” – e defende esse Portugal.
E este nacionalismo étnico trava uma batalha desigual, e condenada a partida,
contra o nacionalismo cultural da Lusofonia, promovido de várias maneiras

13
Sobral, 2012:93.
14
Antunes, 2008: 18.
15
Ver Zúquete 2013; Marchi 2010.
|  85
nacionalismos e política externa portuguesa...

pelo Estado português, pela sociedade civil, pela comunicação social. E esse
nacionalismo cultural tem como símbolo o “Portugal que sempre se misturou”.
É que a Lusofonia é uma corrente transversal à sociedade portuguesa. Ela
não se identifica primariamente com nenhuma corrente ideológica, nem com
nenhuma força política. Ela existe para além de uma simples divisão entre
Direita e Esquerda. Mas supera essa divisão. E isso é claramente visível nas
políticas dos governos portugueses desde o final do século XX. E é também a
partir dessa altura que a Lusofonia é definida como uma “prioridade” da polí-
tica externa portuguesa.16 A Lusofonia navega num mar comum às principais
correntes dominantes, mainstream, respeitáveis, da sociedade portuguesa.

Figura 1: “Um dos muitos exemplos de promoção da Lusofonia no século XXI”.

16
Ver, por exemplo, Portas, 2011.
86 |
josé pedro zúquete

A “maneira portuguesa” de ver o mundo

E reparem: não é um acaso que seja exatamente neste período histórico


que se dê um impulso decisivo para a criação da Comunidade dos Países de
Língua Portuguesa, a CPLP, em 1996. Independentemente das motivações
utilitárias, pragmáticas e comerciais que estiveram também na sua origem, há
algo mais profundo subjacente ao interesse português. O documento fundador
descreve estes países como partilhando uma “identidade única” reforçada por
uma língua que difunde globalmente os seus valores culturais de uma forma
aberta e “universalista”.17 António Pinto Ribeiro, ministro da Cultura num dos
governos socialistas, revela esse lado mais intercultural e espiritual da empresa,
quando afirma [e eu cito] “politicamente a miscigenação é o futuro. Ou seja, os
indivíduos são os mesmos, mesmo que sejam diferentes, isso é aquilo que nós
[portugueses] somos, isso é aquilo que nós [portugueses] fizemos. Entender
isto é entender a CPLP”.18
Eu poderia dar outros exemplos de afirmações deste tipo na história recente,
de cronistas, políticos, deputados ou governantes que revelam à exaustão esta
narrativa de eleição que gira à volta da “forma portuguesa de estar no mundo”, do
“modo de ser português”, invariavelmente visto como intercultural, ecuménico,
humanista e cosmopolita – e a CPLP e a Lusofonia como manifestações, como
frutos dessa “vocação” universalista, como um dia afirmou o então Ministro
dos Negócios Estrangeiros português, José Manuel Durão Barroso.19
E pensem no seguinte: o debate sobre o acordo ortográfico e a procura
de uma plataforma comum durou quase 100 anos, mas foi só a partir do final
do século passado que o projeto avançou, levando à sua aprovação definitiva.
Existiram críticas (e as críticas continuam, o debate apaixonado até aumentou
nos últimos tempos, assim como os problemas de implementação do acordo),
mas inicialmente houve um consenso generalizado em nível político.20
E isso tem um significado. Mais do que um simples retoque na linguagem,
existe toda uma estratégia de poder por detrás, que vê no acordo um passo
inicial necessário para o fortalecimento de um espaço geolinguístico e a imple-
mentação de uma estratégia cultural e política no mundo. Veja-se, e é apenas
um exemplo, a posição da anterior presidente do Instituto Camões, Simonetta
Luz Afonso – que descreve a língua como um “instrumento de poder”.21 E nin-
guém podia dar maior legitimidade a esta visão do que o próprio presidente da
República, que vê no português, no âmbito da CPLP, “um instrumento essencial

17
CPLP 1996.
18
Lusa, 2008.
19
Barroso, 1995b: VIII.
20
Sobre este assunto ver Zúquete, 2008.
21
Afonso, 2008.
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nacionalismos e política externa portuguesa...

para afirmar internacionalmente os nossos países e a nossa maneira de ver o


mundo”. A língua é, assim, muito mais do que um instrumento de comunicação,
a) ela contém valores, b) encerra uma visão lusófona, e c) é uma fonte de poder
para a “nossa maneira de ver o mundo”.

O mar alto da lusofonia

No Portugal de hoje nem todas as pessoas sentem o chamamento da


Lusofonia da mesma maneira. Esta manifestação do nacionalismo cultural luso
existe numa escala que contém diferentes níveis de intensidade, que vai desde
a indiferença à efervescência.
Nesta escala, a corrente de pensamento agregada ao Movimento Internacional
Lusófono (MIL) encontra-se no topo. Este movimento, fundado em 2008, tem
membros de todos os países da CPLP e muitos brasileiros, e tem como órgão
principal a revista Nova Águia. Aqui, o imaginário lusófono surge em toda a
sua intensidade e expansionismo; até abranger, para os militantes da Lusofonia
redentora, o mundo inteiro.
Como afirma o seu manifesto: “Portugal e a comunidade lusófona poderão
ser uma espécie de pátria alternativa mundial, embrião dessa possível comu-
nidade planetária futura cuja visão é tão presente na nossa tradição”. Assim, a
Lusofonia representa um “serviço prestado a toda a humanidade”, levando, se
se cumprir a sua promessa, a um “mundo novo”.22
Para os apóstolos da Lusofonia, o modelo de civilização superlativo que
Portugal gerou em contacto com as ex-colónias, visto como sincrético, fraternal
e harmónico, contém a chave ética e espiritual para pôr termo à globalização
atual e desumana do materialismo, do egoísmo e do consumismo. Deste modo,
a Lusofonia adquire os contornos e o conteúdo, para estes apoiantes, de uma
globalização alternativa.
Veja-se como esta ideia está presente, por exemplo, num livro de 2012 do
filósofo português Miguel Real:

Face à situação atual profundamente desequilibrada entre os conti-


nentes, esvaziadora da esperança; face ao alto grau de conflitualidade
política e religiosa existente; face a um sistema económico mundial
assente na exploração intensa das grandes massas e na especulação
financeira, a novel comunidade lusófona, a existir como comunida-
de, deverá provocar uma espécie de choque cultural radicalmente
subversor dos valores dominantes no mundo contemporâneo.23

22
Nova Águia, 2008.
23
Real, 2012: 137.
88 |
josé pedro zúquete

Ou seja, a criação de um “bloco civilizacional lusófono” – que constitua


“um exemplo para os outros povos do mundo” e que sirva de contrapeso ao
falhanço do modelo “anglo-saxónico de civilização”.24
De acordo com esta visão, a convergência dos países da Lusofonia deve ser
absoluta e englobar todas as áreas, incluindo, decisivamente, a convergência
política. Por isso, o MIL defende propostas como a refundação da CPLP como
União Lusófona, a criação de um parlamento lusófono, um passaporte lusófo-
no, ou uma força lusófona de manutenção de paz. E este movimento, embora
pouco conhecido, não é insignificante. Tem uma intensa atividade cultural, e
o apoio de figuras como Mário Soares, Adriano Moreira, Fernando Nobre ou
Ximenes Belo.
De qualquer forma, esta representa apenas uma demonstração mais exu-
berante, mais efervescente, de um credo lusófono que, como já foi referido,
está muito bem representado, também noutros sectores. E esse credo tem a
alimentá-lo a ideia, que é expressa de forma explícita ou implícita, de que o
destino de Portugal se cumpra através da Lusofonia.

A longa travessia

Mas a marcha da Lusofonia no século XXI, não obstante os desejos, realis-


tas ou irrealistas, tem a percorrer um longo caminho, árduo e potencialmente
tortuoso.
− A começar pela terminologia, pois o termo “luso” gera desconforto, visto
que ao remeter especificamente para a origem portuguesa, corre o risco, para
os opositores, de legitimar uma visão hierárquica de um projeto que deveria
ser horizontal, pois engloba as experiências de vários países.
Não é de admirar, portanto, que em certos meios académicos, nomeada-
mente anglo-saxónicos, se evite a palavra “lusofonia”, e o seu uso é visto como
politicamente incorreto.
Além disso, muitos habitantes de países oficiais de língua portuguesa,
nomeadamente em África, não falam a língua, o que coloca entraves à sua
designação como lusófonos. Esta realidade, contudo, está a ser gradualmente
alterada e nesses países são cada vez mais os falantes da língua.
− Mas o que é um facto é que, quer em Portugal, quer noutros pontos do
espaço lusófono, muitos críticos veem na Lusofonia pouco mais do que uma
“ideologia colonial revitalizada”, uma mera ferramenta ideológica para manter
o papel civilizador do ex-colonizador na época contemporânea. Em Portugal,
Alfredo Margarido escreveu um pequeno texto, no ano 2000, sobre a Lusofonia

24
Epifânio, 2010: 116-17.
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nacionalismos e política externa portuguesa...

como um “novo mito português”. E é esse o seu argumento principal, ou seja, a


Lusofonia seria uma tentativa desesperada de recuperar o império.25
Aliás, este é um discurso muito utilizado em África, contra Portugal, quando
surgem divergências diplomáticas. O Jornal de Angola, por exemplo, é incansável
na denúncia do que chama de “neocolonialismo” luso cada vez que as posições
dos governos ou da justiça portuguesa não agradam ao status quo angolano.26
Mas logo em 1978, Samora Machel, então Presidente de Moçambique, numa
cerimónia da Organização de Unidade Africana (OUA), alertava: “os coloniza-
dores utilizam agora para nos dividir conceitos como francofonia, anglofonia,
e até mesmo a lusofonia”.27 Embora, no caso da CPLP, e ao contrário das outras
duas organizações (como a Commonwealth – 1949; e a Francofonia – 1970), a
sua criação não foi logo imediata ao fim das colónias (isso só aconteceu mais
de 20 anos depois).
Esta questão deve ser problematizada, e não deve haver uma generalização.
Ao longo do tempo, muitos devotos da Lusofonia e de projetos de constituição de
uma comunidade afro-luso-brasileira não eram portugueses de nacionalidade.
Veja-se, apenas e só a título de exemplo, a figura do ex-presidente do Senegal,
Leopold Senghor, nos anos 70, um dos primeiros a falar explicitamente em
Lusofonia e na importância do “grande desígnio de um humanismo lusófono
e moderno”.28 E alguns dos maiores mentores e impulsionadores da criação
da CPLP são brasileiros (como, por exemplo, o embaixador José Aparecido
de Oliveira). O prémio da CPLP (instituído em 2014) para as personalidades
lusófonas de destaque, tem, aliás, o nome do político mineiro brasileiro. De
qualquer forma, tem que haver alguma precaução quanto à ideia de que a
Lusofonia é inevitavelmente apenas e só uma “ideologia colonial” portuguesa.
Pelo menos deve reconhecer-se que ela engloba uma realidade histórica viva
e complexa, com múltiplos contributos, e que por isso não pode ser vista de
uma forma simplista e redutora.
A título de curiosidade: Durão Barroso, como Ministro dos Negócios
Estrangeiros de Portugal, nos anos 90, sentia sempre a necessidade de afirmar
em público que a CPLP era uma “proposta brasileira” que os portugueses tinham
aceite.29 Exatamente nesta perspectiva de “fugir” da acusação de neocolonialismo.
− Mas o expansionismo lusófono debate-se com um outro grande obstáculo.
É certo que o Brasil, pelo seu peso demográfico e crescente poderio económi-
co, político e cultural, assume-se, naturalmente, como a força propulsora da
Lusofonia na atualidade. E esse papel de líder é reconhecido, e até esperado,

25
Margarido, 2000.
26
Por exemplo, Jornal de Angola, 2013.
27
Jornal Novo, 1978: 20.
28
Flama, 1975.
29
Barroso, 1995a: 80.
90 |
josé pedro zúquete

pelos defensores do projeto. Assim, António Monteiro, antigo Ministro dos


Negócios Estrangeiros (2004-5), deu voz a esta realidade afirmando, em 2010,
“Temos uma língua que tem poder a escala mundial e esse poder é o Brasil”. 30
Se há uma palavra que define as relações luso-brasileiras é a palavra “li-
rismo”, ou o discurso grandiloquente da “boa vontade”, das “raízes comuns”,
da “união fraternal”, etc. Desde cedo que foi assim, mesmo que, e também
desde cedo, no nível intelectual certas vozes apregoem que o mal de origem
do Brasil advém da lusitanidade. 31 Mas esse lirismo, essa política romântica
das intenções, é como que um fio condutor que atravessa todos os regimes dos
dois lados do Atlântico. As intenções estão bem presentes ao longo do século
XX e, nos anos 40, o Presidente Getúlio Vargas teve uma afirmação que teve
grande repercussão na mídia portuguesa da época: “nada do que acontece no
Brasil pode ser indiferente a Portugal, da mesma forma que nada que diga res-
peito a Portugal pode ser indiferente ao Brasil”. 32 A primeira parte da equação,
hoje em dia, até faz sentido. A cultura popular brasileira, do entretenimento
à música, penetrou claramente a sociedade portuguesa. E até na comunicação
social seguem-se as eleições brasileiras com interesse. Mais problemática é a
parte que respeita ao “Portugal no Brasil”. Existe um enorme desconhecimento,
no nível das massas, do que se passa ou produz em Portugal. A indiferença é a
norma. E essa realidade choca com o que tem proclamado, ao longo dos tem-
pos, a classe política brasileira. Como o presidente eleito Tancredo Neves que,
na sua visita a Portugal em 1985, no seu discurso à Assembleia da República,
afirmou o seguinte: “Não existe hoje um só brasileiro que ao acordar não tenha
dois pensamentos: um voltado para Deus, e outro para Portugal.”33 E de uma
forma ou doutra, com mais ou menos floreados, este discurso mantém-se ao
longo dos tempos, e dos dois lados do Atlântico.
A Lusofonia será tanto mais forte quanto maior for o empenho do Brasil:
é esta a lógica. Mas essa intenção esbarra com uma política externa brasileira
que se rege, como tantas outras, pelo realismo e os tais “interesses egoístas”
noutros espaços, e mercados, não lusófonos (como, por exemplo, o Mercosul ou
os BRICS). É comum ouvir dizer-se que, desde o início do século, o empenho
brasileiro na Lusofonia tem sido mais visível. Mas resta saber se alguma vez
será suficiente. Porque, e sem lirismos, o realismo diz-nos que a Lusofonia será
tanto mais forte quanto maior for a consciência do Brasil de que pode lucrar com
ela, numa perspectiva de interesse próprio. E, até o momento, esse interesse
parece ser mais propagandeado do que realmente efetivado.

30
Notícias Lusófonas, 2010.
31
Ver, por exemplo, Paredes, 2011.
32
O Globo, 1942.
33
Correio da Manhã, 1985.
|  91
nacionalismos e política externa portuguesa...

− Para complicar a imagem, talvez pueril, que se tem da Lusofonia (e, por
conseguinte, da CPLP) como primariamente uma comunidade de valores, assente
na língua e na defesa de um património imaterial e histórico comum, acelerou-se
a tendência (e o perigo, para alguns) da sua transformação, ou mutação, para uma
espécie de clube de negócios. A adesão à CPLP, e a integração no Bloco Lusófono,
em julho de 2014, na décima cimeira da organização em Timor- Leste, da Guiné
Equatorial (o que aumentou para nove o número de estados-membros), um país
que só marginalmente comunga desse imaginário histórico e cultural, mas que
acrescenta, contudo, um peso energético e petrolífero importante à comuni-
dade, simboliza esse reforço cada vez maior daquilo que o Primeiro-Ministro
Português Pedro Passos Coelho chamou de “lusofonia económica” e “lusofonia
energética”.34 Mesmo que a população do novo estado- membro não fale a língua
(apressadamente reconhecida como “oficial”) ou que o seu executivo ditatorial não
partilhe dos valores humanistas que estão na base da CPLP e que, supostamente,
distinguem a ação “ecuménica” e “universalista” da experiência portuguesa no
mundo. Talvez por isso, e mesmo com essa atração irresistível pelos benefícios
económicos, Portugal tenha sido o último país a aceitar, relutantemente, ao fim
de um processo que durou anos, e sob pressão dos outros estados-membros
(como o Brasil e Angola), a entrada do novo estado africano na organização.35
− Finalmente, é difícil não ter consciência do elitismo de muitas destas
dinâmicas associadas à Lusofonia. Embora ela assente na língua, que é “de-
mocraticamente” partilhada por todos, com sotaque ou não, os projetos a ela
associados correspondem muitas vezes a interesses, desejos e sonhos de elites
políticas, elites económicas e, sobretudo (embora a sua influência possa estar
a desvanecer-se), de elites culturais.
Pelo meio, existe um enorme desconhecimento e desprendimento popular,
relativamente à construção da Lusofonia como uma via possível para um futuro
comum e integrado de todos os países de língua portuguesa. Pode até dizer-se
que existe um “deficit democrático” nesse sentido.
Em suma, talvez o mais inultrapassável dos obstáculos seja o de sentir que
a realidade é sempre a maior madrasta do lirismo dos poetas, dos sonhos dos
pregadores, e dos projetos grandiosos de políticos desprevenidos.

34
Lusa, 2014.
35
Sobre este tem ver, por exemplo, Público, 2014.
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josé pedro zúquete

Em busca de um imaginário global

Independentemente destas considerações, e até como forma de conclusão, o


que é certo é que este debate sobre a Lusofonia pode levar-nos a uma discussão
mais académica, ou conceptual, se quisermos.
Sobre nacionalismo: por exemplo, relativamente a conceitos que tem sido
usados mais recentemente, exatamente devido à intensificação dos processos
da globalização, como o de “nacionalismo cosmopolita”. Ou seja, a ascensão
no mundo de um nacionalismo mais aberto, inclusivo e que tem o globo como
referência; uma reorientação do nacionalismo para fins mais transnacionais.
Isso pode ter um fundo de verdade no caso da Lusofonia mesmo que as raízes
portuguesas desta crença lusófona estejam bem presentes. Embora o objectivo
final possa ser um projeto global transnacional e transcontinental, ele está ligado
culturalmente e espiritualmente à identidade nacional portuguesa. Embora,
como já foi dito, a Lusofonia não deva ser reduzida apenas a essas origens, não
é de estranhar que seja exatamente em Portugal que o apelo da Lusofonia te-
nha maior sucesso, e que continue a ser um conceito mobilizador, quer através
do Estado, quer através da sociedade civil. De qualquer forma, o imaginário
lusófono é um imaginário global, ou seja, tem um sentido do global, que parte
do nacional, e que ajuda também a moldá-lo. 36 O sociólogo Manfred Steger diz
mesmo que esse é o caminho das novas ideologias. Elas já não vão ser mais
apenas nacionais, mas cada vez mais têm o globo como referência (veremos se
será mesmo assim). 37 De qualquer forma, este imaginário lusófono enquadra-se
bem nesta discussão de imaginários.
Mas este debate sobre a Lusofonia pode gerar uma incursão pela geopolítica.
Porque a própria geopolítica da Lusofonia (a chamada “Lusofonia global”), esse
ideal de criação de um bloco linguístico, unido por uma língua e valores comuns,
e portanto um bloco potencialmente geopolítico, pode ser entendida como parte
de um mundo multipolar em construção. Ou seja, pode ser enquadrado num
discurso contra-hegemónico, uma afirmação de diversidade e distinção (neste
caso dos países de língua portuguesa), no seio das dinâmicas de uniformização
da globalização dominante. Esta tentativa de afirmação de um espaço lusófono,
com todos os seus defeitos de origem, seria, simultaneamente, uma resistência
à globalização atual, e uma tentativa de a superar através de um projeto trans-
nacional diverso e autónomo. Dessa forma, e tirando partido dos processos
da globalização (da compressão do tempo e do espaço), a Lusofonia seria um
exemplo do aparecimento de “novas formas de comunidade política,” e “novas
visões de uma política integrada,” que refletem “comunidades de consciência

36
Ver por exemplo, Rodrigues, 2008.
37
Steger, 2009.
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nacionalismos e política externa portuguesa...

transnacionais,”38 assentes em novas formas de mobilização que ultrapassam


as fronteiras nacionais e reconfiguram as identidades nacionais.
Talvez estes sejam novos caminhos que se esperam redentores para Portugal,
40 anos depois da outra luz redentora, a do 25 de Abril de 1974.

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38
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josé pedro zúquete

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nacionalismos e política externa portuguesa...

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96 |
Nacionalismos e Impérios:
o caso da Itália fascista
João Fábio Bertonha
Universidade Estadual de Maringá

Introdução

A concepção de mundo dos fascismos implica a presença do nacionalismo e


do imperialismo. Composições, acordos e revisões são e eram sempre possíveis,
mas um fascismo com tons cosmopolitas ou pacifistas seria uma contradição
em termos, praticamente negando o modelo.
A grande questão é definir melhor esses termos. O nacionalismo é uma
ideologia com múltiplos significados, indo desde uma visão de luta por direitos
de cidadania (como em Mazzini ou Garibaldi), até um patriotismo mais ou me-
nos inofensivo, passando por visões mais ou menos excludentes, centradas na
economia ou na cultura. É possível, assim, ser nacionalista sendo democrata ou
não, de direita ou de esquerda, conservador ou revolucionário. Tudo depende
de que nacionalismo se está falando.
No caso dos fascismos, o que temos, em geral, é uma concepção excludente
de Nação, que identifica claramente o “nós”e o “eles” a partir de elementos na-
cionais ou raciais e concebe um “outro” como um inimigo a ser destruído. E esse
“outro” não é apenas externo, mas também interno, a ser combatido através da
reorganização completa da sociedade em novos termos, corporativistas, com
partido único, etc. Dessa forma, dizer que os fascismos eram nacionalistas é
repetir o óbvio, sendo fundamental esclarecer qual o tipo de nacionalismo de
que estamos falando.
Sobre o imperialismo, a mesma questão se apresenta. Não é possível ser
fascista sem uma perspectiva imperial, mas as tradições históricas, a geopolítica
e as prioridades condicionavam cada tipo de imperialismo e é conveniente, para
a precisão histórica, entender as várias possibilidades de imperialismo dentro
do universo dos fascismos e da extrema-direita como um todo.

|  97
nacionalismos e impérios: o caso da itália fascista

Para tanto, esse artigo trabalhará a questão do imperialismo na Itália fascis-


ta. Inicialmente, procurarei apresentar a questão do imperialismo na ideologia
fascista e sua importância no seu projeto de renovação da Itália na perspectiva
do regime. Posto isso, abordarei os vários mecanismos, diretos e indiretos, com
que a Itália de Mussolini tentou exercer seu imperialismo no período entre
as duas guerras mundiais e como tais mecanismos se articularam num todo
contraditório, mas não totalmente incoerente. Por fim, farei uma abordagem
geral a respeito da noção de Império dentro da Itália fascista, comparando-a
com a outra perspectiva central do universo do fascismo, a nazista.

Império e imperialismo na Itália fascista

Os historiadores italianos debatem intensamente, há décadas, a respeito


das diferenças e continuidades entre a política imperial praticada pelo Estado
italiano na era liberal e durante o regime fascista. Sem querer entrar nesse
debate, já abordado por mim em outras ocasiões1, é possível perceber como
há uma diferença significativa entre o imperialismo promovido pelo regime
fascista e aquele liberal e, mais especialmente, entre o imperialismo liberal e
aquele promovido pelo regime na década de 1930, sendo a de 1920 um mo-
mento de transição.
Realmente, na sua primeira década no poder, ou seja, entre 1922 e 1932, o
fascismo manteve algumas das estratégias e padrões que haviam caracterizado
a política externa italiana no período liberal, como o equilibrismo entre as gran-
des potências, a amizade com a Grã-Bretanha, a ênfase das ambições italianas
no Mediterrâneo e no Adriático, certa moderação, etc. Para os observadores
externos parecia que o fascismo, apesar da retórica nacionalista, não mudara
em essência a tradicional política externa italiana e, de fato, não o fez. Durante
a sua primeira década no poder, assim, o imperialismo fascista, apesar da sua
retórica, não se afastou muito do padrão anterior.
Já na década de 1930, por motivos tanto de ordem interna como pela mu-
dança do contexto internacional, o fascismo implantou uma política externa
muito diferente da do período anterior, caracterizada por uma agressividade
intensa, objetivos imperiais ainda mais amplos e rompimento da tradicional
aliança com a Inglaterra. A Itália se tornou um país muito mais agressivo e ligou

1
BERTONHA, João Fábio. Os Italianos. São Paulo: Contexto, 2005, cap. 5; Um imperialismo dos
pobres: O Império italiano da era liberal ao fascismo. In: SILVA, Francisco Carlos Teixeira da.
Impérios na História. Rio de Janeiro: Campus, 2009, p. 259-269; Entre Continuidade e ruptura. A
Política Externa Fascista como um Problema Histórico e político. Contexto Internacional, v. 23,
n. 2: 399-434, 2001. Ver também vários artigos meus sobre o imperialismo italiano e a “diplo-
macia paralela” de Mussolini reunidos em Sobre a direita: estudos sobre o fascismo, o nazismo e o
integralismo. Maringá, Eduem, 2008.
98 |
joão fábio bertonha

claramente, a partir da metade da década, os seus destinos aos da Alemanha


de Hitler.
Um ponto que convém deixar claro é que o fascismo nunca renunciou ao uso
do poder militar para construir seu Império, da forma mais clássica possível. O
regime de Mussolini não hesitou em utilizar, quando pôde, as forças armadas
para exercer poder e o fez em nada menos do que cinco guerras (reconquista
da Líbia, Etiópia, Espanha, invasão da Albânia e a Segunda Guerra Mundial),
de diferentes intensidades. Essa ênfase no poder militar e na sua utilização
para a conquista do Império levou a imensos investimentos por parte de Roma.
No período crítico do imperialismo fascista, entre 1934-1935 e 1939-1940,
os gastos militares passaram de 4,75 a 27 bilhões de liras ao ano. O orçamento
do Exército passou de 2,6 a 6,9 bilhões ao ano, o da Força Aérea de 810 milhões
a 6,9 bilhões e o da Marinha de 1,3 para 5,2 bilhões. No seu auge, a despesa
militar italiana se aproximava da britânica e ultrapassou a francesa, ao menos
por algum tempo. A diferença no padrão de gastos militares italianos, que,
entre 1911 e 1930, segue a média histórica de 4% do PIB de 1860 a 1945, mas
sobe para 12% do PIB entre 1931 e 1940, confirma essa nova fase da política
externa italiana, muito mais agressiva, na década de 1930 2 .
Enquanto potência internacional, a necessidade de uma estratégia militar
de longo prazo era evidente e essa surgiu, mas nunca se converteu em algo co-
erente e que tenha sido realmente posta em prática. A influência de Mussolini
e dos objetivos políticos fascistas davam o norte para as forças armadas, mas, a
partir daí, havia liberdade para o pensamento militar. Talvez até demais, pois o
desinteresse de Mussolini pelo planejamento estratégico de longo prazo levou
a uma subutilização dos recursos disponíveis e ao domínio, na sua elaboração,
dos militares e seus interesses pessoais e corporativos.
Mussolini, assim, nunca forçou as várias armas a formatarem uma Estratégia
militar unificada. O Exército, por exemplo, permaneceu com a sua doutrina
de “força nos números”, enquanto a Marinha e a Força Aérea não se articula-
ram para uma projetada guerra contra a Inglaterra no Mediterrâneo, o que foi
desastroso a partir de 1940. As forças armadas faziam planos operacionais,
de forma isolada, mas sem articular-se para uma luta unificada contra um
adversário claro.
Os inimigos também variavam ao sabor das decisões de Mussolini e as ne-
cessidades operacionais oscilavam entre conter os alemães nos Alpes, invadir a
península Balcânica ou destruir as frotas francesa e inglesa no Mediterrâneo, o
que impedia o estabelecimento de prioridades. Por fim, como indicado, o fascismo
deixou os interesses corporativos dos militares e da grande indústria atuarem sem

2
MALLET, Robert. The Italian Navy and Fascist expansionism, 1935-1940. London: Frank Cass,
1998, p. 48 e 60; GOOCH, John. Mussolini e i suoi Generali. Forze Armate e politica estera fascista.
Gorizia: Libreria Editrice Goriziana, 2011, p. 737. Para outros dados estatísticos e bibliografia
sobre o tema, ver Bertonha, Os italianos, cap. 5.
|  99
nacionalismos e impérios: o caso da itália fascista

maiores freios, o que levou a aquisições desnecessárias, inúteis ou redundantes


e a escolhas desastrosas, como o não investimento em porta-aviões e em radar,
inteligência naval de baixa qualidade, pouca autonomia tática para os oficiais, etc.3.
Em última instância, é claro que o que levou o fascismo (e seu Império) à
derrocada na Segunda Guerra Mundial foi a pequena base produtiva da indústria
italiana, incapaz de manter um sistema militar adequado para uma guerra contra
potências industriais como os Estados Unidos. A incompetência, a corrupção e
a incapacidade do Estado em articular uma Estratégia nacional mais elaborada
também tiveram, contudo, impacto.
Nesse aspecto, cumpre ressaltar o trabalho de Fortunato Minniti, citado,
o qual destaca que a Itália fascista teve uma grande estratégia, ou Estratégia
Nacional, entre 1923 e 1940, quando se tornou um aliado menor do Reich. O
regime era imperialista e militarista, mas também realista, identificando as
fraquezas da Itália e que a guerra, apesar de instrumento e opção, poderia ser
um potencial desastre para o país. Era através da ação política, diplomática e da
“diplomacia paralela” que o poder italiano se manifestaria e que o país obteria
reconhecimento como grande potência, o que de fato aconteceu. Minniti chega a
concluir que a própria relutância da Itália pela guerra (a não ser quando parecia
sem riscos) era, em boa medida, reflexo do receio de que um insucesso faria
esse reconhecimento desaparecer, o que, novamente, acabou por acontecer.
John Gooch, citado, também compartilha dessa avaliação, ou seja, que o
imperialismo fascista era agressivo por natureza, mas que era também realista,
tanto que, quando não havia condições internas ou externas para aventuras,
o regime se conteve, pois sabia de seus limites militares, sendo 1940 o maior
equívoco nesse sentido. Ele também ressalta como o estamento militar, o res-
ponsável pela Estratégia militar do país, também falhou enquanto instituição.
De qualquer modo, o mais importante a reter aqui é que, por mais que o
imperialismo fascista italiano desejasse, até por suas convicções ideológicas
próprias e pela tradição imperial europeia, atuar de forma direta e conquistar
o Império que lhe parecia de direito e se preparasse para isso dentro de suas
possibilidades, as condições práticas não o permitiam. Isso levou a abordagens
mais sutis e que hoje chamaríamos, para usar termos conhecidos da teoria das
relações internacionais, soft power.
Em outras palavras, o imperialismo mais tradicional, hard power, foi suple-
mentado, no caso italiano, pela diplomacia tradicional e por um tipo de impe-
rialismo mais sutil, por uma “diplomacia paralela”, de base expressivamente
subversiva e ideológica. Essa “diplomacia paralela” foi pensada, em alguns
casos, como suplementar à ação imperialista mais tradicional da Itália e, em

3
MALLETT, Robert. The Italian Navy; CEVA, Lucio. The Strategy of Italian Fascism: A Premise.
In: MALLETT, Robert; SORENSEN, Gert. Internacional Fascism, 1919-1945. London: Frank Cass
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100 |
joão fábio bertonha

outros, como um substituto aos meios econômicos e militares que a Itália não
dispunha no volume necessário para conseguir o que desejava. Um imperia-
lismo paralelo, mais sutil, que se articulava com o tradicional ou o substituía,
conforme o momento e a região do mundo.
Dessa forma, a Itália mobilizou todos os recursos disponíveis para suprir a
sua falta de recursos militares e econômicos. Alguns eram tradicionais e comuns
à maioria dos países, como a formatação de laços econômicos ou financeiros, a
venda de armamentos4 , o estabelecimento de relações diplomáticas de amizade
e uma política cultural e de propaganda.
O modelo fascista trazia, contudo, algumas novidades. A mobilização e o
controle das colônias de italianos espalhadas pelo mundo, a ligação com os movi-
mentos fascistas e com governos estrangeiros pelo viés ideológico, a formatação
de uma propaganda cultural marcada pelos pressupostos ideológicos e os esforços
de subversão da ordem interna de outros países foram os elementos centrais
dessa “diplomacia paralela”, que existia ao lado da diplomacia oficial italiana.
Vários desses elementos já eram pensados dentro da realidade geopolítica
italiana desde antes do fascismo (como a propaganda cultural e a mobilização
dos emigrantes) e vários outros países – democráticos ou não - também recor-
riam a esses elementos para ampliar seu poder internacional naqueles anos.
Mesmo hoje, a política cultural ainda é parte da diplomacia da maioria dos
Estados e mesmo de instituições como a União Europeia. Agir nas sombras na
política interna de outros Estados e mobilizar os simpáticos e adeptos de uma
dada ideologia em outros países também não era e nem é algo novo. O fascis-
mo italiano, contudo, reelaborou estes elementos, associou-os ao pensamento
imperialista tradicional e os ligou a uma concepção particular de Império,
relacionada à tradicional, mas com aspectos novos.
De qualquer forma, fica claro, aqui, como a Itália fascista buscava, em todo
momento, não fugir do imperialismo tradicional, mas buscar métodos alter-
nativos ou suplementares a ele, de forma que Roma pudesse atuar com mais
eficiência no sistema imperialista global, ainda que os resultados finais, como
é conhecido, não tenham sido dos melhores.

Os círculos do imperialismo fascista

De extremo interesse para a nossa discussão é a ideia de “imperialismos


concêntricos”. Segundo essa perspectiva, as elites diplomáticas e do Partido
fascista italiano conceberam, com o tempo, uma ideia de um Império italiano
a ser integrado por círculos concêntricos, com o centro formado pela Itália e
com as camadas exteriores abrangendo quase todo o mundo.

4
SABA, Andrea Filippo. L´imperialismo opportunista. Politica estera italiana e industria degli
armamenti (1919-1941). Napoli, Edizioni Scientifiche Italiane, 2001.
|  101
nacionalismos e impérios: o caso da itália fascista

Dessa forma, haveria um núcleo, formado pela Itália e anexações (ilhas


Jônias, Dalmácia, Eslovênia, Nice, Córsega, Savoia, etc.), além das colônias
africanas (às quais seriam acrescentadas o Sudão, o Egito e a Tunísia), no qual
o poder italiano seria absoluto. Num segundo nível, estariam os protetorados
coloniais, como a Turquia, a Palestina, o Iêmen e outros, além de, provavel-
mente, as colônias remanescentes de França e Inglaterra, que deveriam ser
mais permeáveis aos interesses italianos. No terceiro nível ou camada, por
sua vez, estariam os protetorados da comunidade imperial na Europa (Grécia,
Croácia, Montenegro, Sérvia, uma grande Albânia), no qual o poder italiano
seria hegemônico, mas não total.
No quarto nível, estariam Estados com forte ligação cultural e política com a
Itália e ligados a ela pela raça, civilização e cultura: Bulgária, Romênia, Espanha,
Portugal, Hungria e talvez a França. Esses Estados seriam independentes, mas
girariam ao redor do eixo italiano. Numa quinta camada, estariam as áreas de
influência além-mar, como os vários países da América Latina ou a China, nas
quais se poderia esperar dependência e obediência, mas não dominação nem
hegemonia. Por fim, na sexta camada, haveria locais como os Estados Unidos
ou a Alemanha, onde a possibilidade de influência italiana seria diminuta, mas
onde, mesmo assim, todos os meios indiretos de ação deveriam ser cultivados
para garantir algum papel à Itália nesses núcleos de poder.
É claro que nunca houve um consenso absoluto sobre quais Estados e regiões
ficariam em qual camada e esse consenso não existe também entre os historiado-
res. A elaboração acima, por exemplo, é minha, não sendo igual às reflexões de
outros historiadores que também trabalham o tema5. Parece evidente, igualmente,
que os planos e sonhos italianos tiveram que se adaptar continuamente aos fatos
reais, às vitórias (e, especialmente, às derrotas) das suas forças armadas. Mas é
possível ver alguns padrões. Quanto mais perto do núcleo, mais o imperialismo
fascista seria tradicional, a apelar à força para exercer a conquista e a dominação.
Sinais de como seria a vida nessas regiões podem ser encontrados na brutalidade
da ocupação italiana na Iugoslávia ou na Etiópia6.

5
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Imperio e spazio vitale nella visione e nella prassi delle dittature (1919-1945). Ricerche di storia
politica, 9, 3 (2006), 345-57, e GENTILE, Emilio. La Grande Italia. Ascesa e declino del mito della
nazione nel Ventesimo Secolo, Milano, Mondadori, 1997.
6
Ver, entre outros, DOMINIONI, Matteo. I limiti dell´espansionismo fascista. Il fallimento
dell´annessione della provincia di Lubiana. In: L´Annale Irsifar - Politiche di occupazione dell´Ita-
lia Fascista, Milano, Franco Angeli, 2008; p. 58-77; FOCARDI, Filippo, e KLINKHAMMER,
Lutz. Italia potenza occupante: una nuova frontiera storiografica. In: Idem, p. 21-31; PIPITONE,
Cristiana. Dall´Africa all´Europa: Pratiche italiane di occupazione militare. In: Idem, p. 31-42, e
MICHELETTA, Luca. La resa dei conti. Il Kosovo, l´Italia e la dissoluzione della Iugoslavia (1939-
1941), Roma, Edizioni Nuova Cultura, 2008.
102 |
joão fábio bertonha

Ao afastar-se dele, os métodos indiretos, como o apelo às populações de imi-


grantes, a solidariedade ideológica e a política cultural7 ganhariam importância,
ainda que todos os elementos estivessem sempre presentes também nos outros
níveis. Além disso, mesmo dentro de uma dada região geográfica, os interesses
italianos, a presença de coletividades italianas mais ou menos próximas do fas-
cismo, de movimentos fascistas locais ou a ação de outras potências estrangeiras
também faziam a combinação dos elementos variar enormemente. O caso da
América Latina é emblemático, com objetivos e combinações diferenciadas entre,
por exemplo, o México e a Argentina ou a Bolívia e o Uruguai8. O mesmo pode ser
dito da Europa oriental, cada vez mais bem estudada pela historiografia italiana9.
Assim, não espanta como, apesar da manipulação das coletividades de imi-
grantes ou dos fascismos do exterior serem uma constante na política imperial
italiana, em todos os níveis, na prática a situação variava enormemente. No
caso de países situados na esfera imediata dos interesses imperiais italianos,
por exemplo, o objetivo do governo fascista parece ter sido o de utilizar os
emigrantes italianos e os fascistas locais como força de espionagem e quinta
coluna, à espera da futura chegada das tropas italianas. Esse foi, sem dúvida,
o caso da Tunísia, de Malta ou da Suíça. Já nos Estados Unidos, o uso dos emi-
grantes e das amizades políticas não podia deixar de ter objetivos bem mais
modestos e tendo por instrumento central o poder eleitoral dos italianos10.

7
O tema da política cultural fascista para o exterior tem se revelado dos mais promissores
na historiografia italiana e internacional nos últimos anos. Ver, por exemplo, LONGO, Gisella.
L´Istituto Nazionale Fascista di Cultura. Da Giovanni Gentile a Camillo Pellizzi (1925-1943),
em GENTILE, Emilio. Gli Intellettuali tra partito e regime. Roma, Antonio Pellicani, 2000;
CAVAROICCHI, Francesca. Avanguardie dello Spirito. Il fascismo e la propaganda culturale
all’estero, Roma, Bulzoni, 2010; MÉNDEZ, Rubén Domínguez. La Política Cultural del fascismo
en Espana (1922-1945). Sociabilidad, Propaganda y Proselitismo. Tese de doutorado em História,
Universidad de Valladolid, 2011, e GARZARELLI, Benedetta. Parleremo al mondo intero. La
propaganda del fascismo all´estero. Alessandria, Edizioni dell´Orso, 2004.
8
Para uma visão geral, ver SAVARINO, Franco. Apuntes sobre el fascismo italiano en América
Latina (1922-1940). Reflejos (Revista de la Universidad Hebrea de Jerusalén), 9 (2001), p. 100-110;
En busca de un “Eje” Latino: la política latinoamericana de Italia entre las dos guerras mundiales.
Anuario del Centro de Estudios Históricos “Profesor Carlos Segreti”, 6, 6 (2006), p. 239-61, e Juego
de ilusiones: Brasil, México y los ‘fascismos’ latinoamericanos frente al fascismo italiano. Historia
Crítica, 37 (2009), p. 120-47.
9
OSTENC, Michel. La politica estera italiana e il concetto di Civiltà (1914-1943). Nuova Storia
Contemporanea, 13, 3 (2009), p. 11-24; GODESA, B. Le autorità italiane di occupazione e gli intel-
lettuali sloveni. Qualestoria, 27, 1 (1999), p. 133-170, e Penetrazione culturale in Europa Orientale,
1918-1939. Le grandi potenze occidentali in confronto. Passato e Presente, 56 (2002), p. 85-114, e
SANTORO, Stefano. Panslavismo e latinità negli studi di “L´Europa Orientale”. Qualestoria, 27, 2
(1999), p. 55-70. Do mesmo autor, é fundamental L´Italia e l´Europa orientale. Diplomazia culturale
e propaganda, 1918-1943, Milano. Franco Angeli, 2005.
10
Ver, apenas a título de exemplo de uma imensa bibliografia para o caso dos Estados Unidos,
LUCONI, Stefano. La “Diplomazia Parallela”- Il regime Fascista e la mobilitazione politica degli
italo-americani, Milano, Franco Angeli Editore, 2000.
|  103
nacionalismos e impérios: o caso da itália fascista

A América Latina e o Brasil estariam, com certeza, nos círculos mais exter-
nos das ambições imperiais italianas, o que explica os limites dessas e também
porque o recurso aos métodos indiretos foi mais intenso nesse continente do
que em outros, conforme trabalhei em diversos outros textos11.
É importante ressaltar novamente como não havia uma separação abso-
luta entre o imperialismo tradicional e o alternativo. As fronteiras entre um
e outro eram móveis e sutis, podendo ser ultrapassadas de um lado ao outro
sem dificuldades se as ocasiões o exigissem. Na Tunísia, por exemplo, depois
de décadas de esforço de subversão por meio da cultura e da mobilização dos
italianos locais, a conquista italiana acabou se dando, apesar de ser por pouco
tempo, pela via militar, em conjunção com as tropas alemãs.
A Europa oriental e balcânica também é um exemplo excelente disso. Nos
anos 1930, havia um apelo aos valores culturais compartilhados, como a latini-
dade (no caso romeno, mas, de resto, aplicado também na América Latina e na
Europa do sul), o catolicismo, etc. A Itália seria a herdeira romana nos Bálcãs,
a dominar pela cultura e pela ascendência. Nessa região, os contatos com os
emigrantes italianos, a difusão cultural e a busca de contato com os sacerdotes
católicos e os movimentos fascistas locais foram intensificados e coordenados
para permitir uma maior difusão da mensagem fascista12 .
Na verdade, a política cultural fascista para a Europa Oriental não falhou,
tendo tido excelente repercussão entre as elites da região. Os mitos da latinidade,
da romanidade e os ideais do corporativismo e da Itália como alternativa ao
nazismo tinham repercussão na região e eram bem vistos. A diplomacia cultural
só não teve os resultados previstos em termos de influência e poder porque não
foi associada a uma força econômica e militar adequada e, pelo contrário, foi
anulada pelo domínio alemão nestes aspectos, especialmente nos anos 1940.
Se, nesse caso, o fascismo preferiu não cruzar a fronteira para um impe-
rialismo tradicional, frente ao esmagador poder alemão, em outros momentos
isso aconteceu. Na Eslovênia, por exemplo, em 1941, depois de uma tentativa
de cooptar os intelectuais locais e convencer os eslovenos das vantagens da
associação à Itália, Roma preferiu usar o método direto da anexação13 .

11
Ver mais detalhes nos meus “¿Un imperio italiano en América Latina? Inmigrantes, fascistas y
la política externa “paralela” de Mussolini”. In: SAVARINO, Franco e GONZÁLEZ, José Luis. México.
Escenario de confrontaciones, México, ENAH, 2010, p. 161-188, e Los fascismos en América Latina. Ecos
europeos y valores nacionales en una perspectiva comparada. In: SAVARINO, Franco e BERTONHA,
João Fábio. El fascismo en Brasil y en América Latina. Ecos europeos y desarrollos autóctonos. México,
DF, ENAH, 2013, pp. 31-66 e La “Diplomacia Paralela” de Mussolini en Brasil: Vínculos culturales,
emigratorios y políticos en un proyecto de poder (1922-1943). Pasado y Memoria, nº. 11 (2012): 71-92..
12
Além do já citado, ver BIANCHINI, Stefano. L´idea fascista dell´Impero nell´area danubi-
ano-balcanica. In: DI NOLFO, Ennio. L’Italia e la politica di potenza in Europa (1938-1940). Milano:
Marzorati, 1988, pp. 173-86.
13
BURGWYN, H. James. L´Impero sull´Adriatico. Mussolini e la conquista della Jugoslavia, 1941-
1943. Gorizia: Libreria Editrice Goriziana, 2006.
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joão fábio bertonha

Nas colônias africanas, a Itália agiu de forma semelhante a outras potên-


cias coloniais, alternando repressão e cooptação. Setores do Partito Nazionale
Fascista, contudo, propuseram, por alguns anos, que as populações coloniais
fossem incorporadas ao projeto imperial fascista sem que isso se resumisse a
uma simples submissão. Houve ideias de conceder uma cidadania parcial aos
líbios ou de colocar jovens da Líbia em organizações fascistas.
Tais iniciativas foram aplicadas em parte na Líbia, mas não foram adiante,
pois era impensável associar um povo dominado, o líbio, com os conquistado-
res italianos. Já na Etiópia, as iniciativas fascistas se limitaram, em essência,
a tentar recrutar o máximo de soldados locais para o Exército colonial14 . Isso
indica como as ideias de “imperialismo indireto” eram, essencialmente, voltadas
para os locais onde o fascismo dispunha de menos poder direto e/ou na Europa.
Outro exemplo nesse sentido é a presença de vários teóricos e diplomatas
fascistas que pensaram a questão dos emigrantes, da cultura e dos vínculos
ideológicos como um fator de potência italiana atuando como governadores
militares em regiões ocupadas da Grécia ou da Dalmácia.
Serafino Mazzolini, por exemplo, foi um grande operador da “diplomacia
paralela” de Mussolini em São Paulo e Montevidéu, para depois se converter em
figura-chave do imperialismo fascista no Egito e governador do Montenegro ocu-
pado. O mesmo pode ser dito de Amedeo Mammalella, cônsul em Curitiba e depois
em Sydney, o qual terminou sua carreira como cônsul em Dubrovnik, preocupado
com a hipótese de que o Império Austro-Húngaro pudesse ser reconstruído15.
Já Giuseppe Bastianini foi um homem-chave na direção e desenvolvimento
dos fasci all´estero (instrumento para a difusão do fascismo entre os italianos do
Exterior) por toda a década de 1920 e 1930, para depois se tornar governador da
Dalmácia, onde implantou a política de italianização forçada dos habitantes16 .
Para homens como esses, e muitos outros, a fusão das várias maneiras de ser
imperial se dava em carne e osso e a transição entre níveis era quase natural,
conforme as circunstâncias.

14
GOGLIA, Luigi. Sulle Organizzazioni Fasciste Indigene Nelle Colonie Africane Dell´Italia. In:
DI FEBO, Giuliana e MORO, Renato. Fascismo e Franchismo. Relazioni, Immagini, Rappresentazioni.
Soveria Mannelli: Rubbettino, 2005, pp. 173-212.
15
RODOGNO, Davide. Il Nuovo Ordine mediterraneo, p. 63.
16
Sobre esses cônsules, ver, entre outros, BERTONHA, João Fábio. O Fascismo e os Imigrantes
Italianos no Brasil. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001; ODDONE, Juan. Serafino Mazzolini: Un Misionero
del Fascismo en Uruguay, 1933-1937. Estudios Migratorios Latinoamericanos 12, no. 37 (1997):
375-87; PAPINI, M. Serafino Mazzolini: Un Diplomatico a Salò. Storia e Problemi Contemporanei
18, no. 39 (2005): 61-84; ROSSI, Gianni Scipione. Mussolini E Il Diplomatico. La Vita E I Diari Di
Serafino Mazzolini, Un Monarchico a Salò. Rubbettino: Soveria Mannelli, 2005; SCARANTINO,
Anna. La Comunità Ebraica in Egitto Fra Le Due Guerre Mondiali. Storia Contemporanea 17, no.
6 (1986): 1033-82; CRESCIANI, Gianfranco. A Not So Brutal Friendship: Italians Responses to
National Socialism in Australia. AltreItalie - Rivista Internazionale di studi sulle popolazioni di origine
italiana nel mondo (2007); BASTIANINI, Giuseppe. Gli Italiani All’estero. Milano: Mondadori, 1939
e CATTARUZZA, Camila. L’italia E Il Confine Orientale, 1866-2006. Bologna: Il Mulino, 2007.
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nacionalismos e impérios: o caso da itália fascista

Isso não significa afirmar que havia uma perfeita sintonia entre as várias
partes desse sistema. Os vários órgãos e personalidades do regime divergiam
entre si sobre os caminhos a tomar e as oscilações táticas eram constantes. Do
mesmo modo, se nem mesmo no tocante ao imperialismo tradicional o fascismo
conseguiu elaborar uma Estratégia militar e de política externa coerente, arti-
culando objetivos e meios, como indicado acima, como esperar que a Estratégia
Nacional fascista, articulando seus vários modelos imperiais, o fosse?
Não obstante, havia uma linha geral de atuação e tal linha se relacionava
diretamente à dicotomia entre força e pretensões que a Itália atravessava
naquele período. Todo fascismo é imperialista, mas, ao defrontar-se com a
realidade material da Itália e com as suas tradições – também derivadas dessa
realidade – de um imperialismo liberal mais focado no comércio e na cultura
já desde antes do fascismo, este reelaborou a sua noção de Império, mas sem
jamais abandonar a sua pretensão imperial. Sem o imperialismo, a noção de
nacionalismo defendida pelo fascismo se tornaria algo vazio: sem um sonho
imperial, não pode haver fascismo.

O imperialismo e o Império na ideologia fascista

Emilio Gentile17 oferece uma interessante abordagem nesse aspecto. Ele


indica como, na Itália liberal, havia pouco espaço para ideias de uma raça ita-
liana e a concepção de Nação então vigente se fundava num passado comum
e num destino comum. Uma vontade de um povo em se unir, mais do que um
destino natural mediado pela natureza e destino. Não havia o mito da “raça
italiana”, mas o mito negativo do “caráter dos italianos”, mal visto pelas elites
e a ser modificado pelo uso do poder do Estado.
Nesse mito nacional liberal, as imagens da Grande Itália e da nova Roma não
deixavam de ter peso e levavam a sonhos e conquistas imperiais (como aconteceu
na Eritreia ou Líbia) ou, ao menos, à concepção de que a Itália não devia ser uma
potência inferior, como uma Bélgica ou uma Grécia. A noção geral que delimitava
a ideia de Nação, contudo, era ainda a liberal, associando Nação com liberdade
e modernidade, um espaço para que vivessem, em liberdade, todos os italianos,
não importando a sua filiação política e religiosa ou as diferenças culturais. A
uniformidade linguística, por exemplo, seria atingida pela ação escolar e pelo
poder do Estado, mas de forma natural, pelo tempo, sem necessidade de reprimir
as minorias dialetais, que sumiriam naturalmente com o tempo.
Os socialistas, os católicos, os republicanos, os nacionalistas e outros não se
reconheciam nesta Itália e propunham alternativas identitárias, especialmente
nas duas primeiras décadas do século XX. Uma Itália definida pelo nacionalismo

17
GENTILE, Emilio. La Grande Italia. Os parágrafos a seguir se baseiam nesse livro, especial-
mente nas pp. 46-153.
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joão fábio bertonha

expansionista, como Nação orgânica e unida pela língua e cultura começou a ser
uma versão com crescente força e popularidade. A descoberta do imperialismo
teve um papel fundamental na transformação dessa Itália liberal e democráti-
ca para uma imperialista, que reformulou o conceito de Nação para algo mais
exclusivista e restritivo. Mussolini reforçou esse processo, associando a Nação
a uma ideologia, o fascismo.
No nacionalismo fascista, assim, muitas (mas não todas) correntes do nacio-
nalismo antiliberal anterior confluíram e formaram uma nova versão de Nação,
que deveria ser una e com homogeneidade ideológica e cultural. Desapareceu
também a identificação da Nação como pertencente a algo maior, a humani-
dade, em favor de uma nação voltada à política de potência e ao imperialismo.
O nacionalismo fascista, contudo, teria tido várias fases. Primeiro, se pensou
em “regenerar a estirpe itálica” (no início do movimento) e em “restaurar a
nação” (nos primeiros anos de poder); depois surgiu a proposta de “regeneração
totalitária da nação” (anos finais da década de 1920 e início da de 1930); a era
da “civilização imperial” (entre a guerra da Etiópia e 1942) e a “guerra revolu-
cionária” (durante a Repubblica Sociale Italiana). Esses conceitos e propostas
conviveram na maior parte do tempo, mas sempre com alguns predominando
e outros recuando conforme a época.
O fascismo, na verdade, sempre identificou a regeneração da Nação ou da raça
italianas com o expansionismo externo, ao mesmo tempo em que considerava
tal regeneração como fundamental para sustentar a expansão externa. Qual
dos polos predominava é uma questão sobre a qual os historiadores têm sempre
debatido18 , mas a interação entre política externa e interna, entre concepção de
Nação e de Império, era especialmente visível no regime de Mussolini.
Nas fases finais do fascismo, especialmente, a sua doutrina começou, com
efeito, a ir além da Nação. Ele regeneraria ou criaria a mesma e partiria para
o destino imperial, até como forma de garantir essa regeneração. Haveria,
contudo, outro passo a seguir, dentro de uma missão civilizadora, mundial,
revolucionária. Não no sentido mazziniano, mas de destino epocal, de coman-
do e influência no mundo. Um nacionalismo universalístico, mas também de
dominação e poder.
Com efeito, as imensas discussões sobre uma nova civilização europeia e
o papel das várias Nações, da Itália e do fascismo dentro dela estavam sendo
feitas com uma perspectiva hierárquica. Seria uma Europa como uma comuni-
dade imperial que superaria o velho imperialismo, mas onde os grandes países
seriam superiores aos pequenos e todos girariam em torno de um polo, aquele
de onde emanava a nova civilização, a Itália19.

18
BERTONHA, Entre Continuidade e ruptura, pp. 402-405.
19
Para o papel do Istituto Nazionale Fascista di Cultura nessa elaboração teórica, ver LONGO,
Gisella. L´Istituto Nazionale Fascista di Cultura e Gli intellettuali tra partito e regime. Roma: Antonio
Pellicani, 2000.
|  107
nacionalismos e impérios: o caso da itália fascista

O imperialismo fascista era assim, ao menos no papel, menos de conquista,


de erradicação populacional e ocupação e mais de domínio por superioridade
de cultura. Haveria uma liderança fascista na Europa, sendo o grande problema
como encaixar a Alemanha e seu próprio imperialismo. Como já indicado, é
claro que este plano estava mais dirigido à Europa do que às colônias africanas
e a brutalidade da ocupação italiana na África e na Iugoslávia indica, volto a
ressaltar, como os vários círculos do imperialismo fascista podiam ser cruzados
com facilidade. Não obstante, perto do nazismo, o Império fascista seria mais
inclusivo e menos genocida, se é que podemos classificar Impérios dessa forma 20.
Essa versão de um “imperialismo universalista” era uma clara derivação
das fraquezas materiais italianas, mas também era uma proposta apresentada
como contraposição e alternativa ao imperialismo da outra matriz do univer-
so fascista, o nazismo alemão. Com efeito, não espanta que essa proposta foi
refinada justamente nos anos da Segunda Guerra Mundial, quando o poder
italiano entrava em colapso e ficava evidente que a Itália seria subordinada ao
poder alemão, mesmo em caso de vitória do Eixo.
Dessa forma, foi apenas em abril de 1943 que o governo italiano preparou,
com aval de Mussolini, a “Carta da Europa”. Nesta, estavam presentes quatro
pontos: respeito do princípio da nacionalidade e do direito dos Estados de se
constituírem com base na homogeneidade étnica; respeito à soberania e à livre
organização interna dos Estados; princípio da colaboração baseada no reco-
nhecimento da unidade moral da Europa e sobre o direito de desenvolvimento
das nacionalidades individuais, e a promessa que o Eixo guiaria a Europa para
a paz, a prosperidade e a distribuição equitativa dos recursos do mundo. Esse
documento representa um desesperado esforço italiano para salvar algo em
uma realidade decepcionante, na qual a Itália se tornava cada vez mais depen-
dente de Berlim.
Não obstante, esse documento também refletia anos de reflexão sobre os
limites do poder italiano e seu desejo de construção de um Império e a expe-
riência de dois anos de ocupação militar nos Bálcãs, quando os italianos con-
cluíram que a política implacável dos alemães não era viável, ao menos para os
recursos militares italianos, e que algum tipo de cooptação e acomodação com
os dominados tinha que ser encontrado para que o Império existisse. O fato
de os alemães terem proibido os italianos de irem em frente com esse projeto
indica, igualmente, como Berlim estava consciente de que esse era uma jogada
final da Itália fascista para salvar o possível de sua influência na Europa e como
esse modelo de imperialismo não era compatível com o de Hitler21.

20
CORNI, Gustavo. Imperio e spazio vitale.
21
RODOGNO, Davide, pp. 65-66.
108 |
joão fábio bertonha

O imperialismo fascista e nazista em confronto

A visão nazi de Império era realmente muito mais darwinista, de busca de


uma reordenação nacional e racial da Europa de forma implacável e praticamente
sem compromissos. Como aconteceu com o fascismo italiano, a visão imperial
nazista acabou por superar, num certo sentido, a Nação alemã e avançou para
uma concepção de um Império organizado racialmente e no qual a raça ariana
seria a dominante, sendo os alemães os seus principais representantes. Sua
maneira de lidar com a oposição e seus planos de gerir, transferir e eliminar a
população europeia iam muito além do que o fascismo esperava realizar.
Como ressaltou Mazower22 , o nazismo trouxe para a Europa boa parte da
brutalidade dos países europeus nas colônias e pensou a dominação de forma
tal que compromissos eram quase impossíveis e transferir ou eliminar popula-
ções era a tônica. Domínio direto e absoluto, frente ao qual os planos imperiais
fascistas e mesmo suas ações repressivas nos Bálcãs (na maior parte dos casos,
em resposta à pressão alemã ou a ações de guerrilha) pareciam escaramuças
menores.
O que Mazower indica é que, na verdade, mesmo para os estágios iniciais,
os nazistas não tinham muita segurança sobre o que fazer. A unificação dos
povos alemães dentro de um Estado nazista era algo mais ou menos simples
de conceber e imaginar. No entanto, mesmo os passos posteriores, apesar de
sempre pensados, nunca haviam se convertido em planos e diretrizes prontas
a serem aplicadas. Assim, quando quase toda a Europa caiu sob o controle
alemão, entre 1939 e 1941, a ideologia nazista oferecia apenas alguns esboços
gerais do a ser feito, sendo necessárias inúmeras adaptações e experiências
para tentar delimitar o que fazer.
Claro que algumas diretrizes centrais já estavam mais ou menos estabe-
lecidas. Haveria uma hierarquização geral dos povos europeus com base na
doutrina racial e todos os recursos desse espaço serviriam para manter a má-
quina de guerra alemã e, ao seu final, para o engrandecimento desse Império.
Também está claro como haveria povos que seriam mais ou menos tolerados,
como os europeus ocidentais, e outros destinados à escravidão, como os polo-
neses, além, é claro, da eliminação, pela emigração ou morte, dos judeus. Mas
isso eram apenas ideias gerais, que, ao serem confrontadas com a realidade,
levaram, muitas vezes, à improvisação e a experiências diversas.
Os nazistas tiveram que recorrer, assim, às únicas fontes de inspiração
possíveis, ou seja, os velhos padrões colonialistas europeus, os tradicionais
objetivos geopolíticos alemães na Europa do Leste e as suas obsessões raciais.
Do mesmo modo, impossível não recordar como o próprio colonialismo alemão

22
MAZOWER, Mark. Hitler´s Empire – How the Nazis ruled Europe. New York: Penguin Books,
2008.
|  109
nacionalismos e impérios: o caso da itália fascista

na África foi especialmente implacável, como indica o genocídio na Namíbia 23 .


Foi com base nessas tradições e experiências que eles construíram suas políticas,
numa combinação de tradição e novidade realmente notável.
Eles tendiam a ver, no Leste Europeu, um verdadeiro “Far West” nos moldes
da conquista americana do oeste, no qual eles exterminariam os povos nativos,
ou uma Índia, a ser dominada pela raça superior. Ou seja, eles seguiam padrões
tradicionais para o colonialismo europeu, com o diferencial de estarem aplicando
estes padrões no continente europeu e os combinando com a obsessão racial. O
resultado foi uma proposta imperial muito mais genocida, rígida e intolerante.
No caso alemão, assim, a difusão cultural era mera propaganda, a ser
utilizada especialmente nas populações racialmente aceitáveis ou nas quais
era politicamente, instrumentalmente, útil investir. O uso completamente
instrumental que o Reich fez dos movimentos fascistas estrangeiros durante a
guerra também indica isso. A Alemanha confiava muito mais no seu hard power
para reformatar o continente europeu e o mundo, e o caráter implacável do
mesmo colaborou para a sua queda, pois gerou reações em todo o continente,
facilitando a tarefa dos Aliados.
A proposta italiana, assim, implicava em compromissos e na criação de
hierarquias: nacionais (com a Itália no topo), raciais (italianos, outros europeus,
árabes, africanos), de direitos e de padrões de exploração econômica, tendo por
fim último o domínio de um espaço. Já a nazista implicava em reformatação
desse espaço e a criação de uma hierarquia única, entre senhores e escravos,
sendo compromissos apenas táticos e circunstanciais24 . Ambas são imperialistas
e condenáveis, mas a diferença de enfoque e estilo merecem ser consideradas,
até para que entendamos as contradições, contatos e separações entre as duas
matrizes centrais do universo fascista.

Conclusões

Como indicado inicialmente, não é possível ser fascista sem ter sonhos ou
ambições imperiais, mas as tradições de cada país, as avaliações de poder e as
prioridades alteraram os contornos de cada tipo de imperialismo. Dessa forma,
enquanto o integralismo brasileiro propunha uma espécie de “imperialismo
interno” e uma hegemonia ideológica sobre a América do Sul, com leves menções
a uma atuação mais efetiva no Rio da Prata 25 , o nazismo, como visto, propunha

23
BREPOHL, Marion. Os pangermanistas na África: inclusão e exclusão dos nativos nos planos
expansionistas do Império, 1896-1914. Rev. Bras. Hist. [online]. 2013, vol.33, n.66, pp. 13-29 
24
RODOGNO, Davide, pp. 96-100.
25
Ver as várias discussões a esse respeito no meu Integralismo. Problemas, perspectivas e questões
historiográficas. Maringá: Eduem, 2014.
110 |
joão fábio bertonha

um imperialismo muito mais agressivo e implacável, trazendo para a Europa o


padrão violento da colonização europeia na África e Ásia.
No caso da Itália, houve um investimento intenso nas formas tradicionais
de imperialismo e de política externa associado a uma “diplomacia paralela”
fortemente calcada na propaganda cultural, na questão dos emigrantes e em
vínculos ideológicos. Conforme as condições e as possibilidades, tais políticas se
complementavam, se articulavam e até mesmo se contrapunham, mas a simples
ênfase do regime em ambas indica a amplitude dos sonhos imperiais italianos
naquele período e uma avaliação realista das capacidades e possibilidades de
ação por parte do Estado italiano.
Interessante observar como o falangismo espanhol (e mesmo o primeiro
franquismo) combinava uma ação imperial direta na África e negociações com
a Alemanha para adquirir algumas colônias francesas (já durante a Segunda
Guerra Mundial) com um esforço de imperialismo indireto, cultural, voltado
à América Latina 26 . O fato de Espanha e Itália serem, em diferentes níveis,
potências médias, talvez ajude a compreender essa combinação particular de
hard power e soft power que ambas fizeram.
A proposta italiana, contudo, era muito mais sofisticada em termos teóricos
e a Espanha, até pelos seus recursos materiais ainda menores, não tentou apli-
car essa política externa com duas faces com a mesma intensidade que a Itália.
Até por isso, Franco não entrou na Segunda Guerra Mundial, o grande erro de
Mussolini que, ao final, reduziu a pó seu Império na África, sua influência na
Europa e sua rede de apoio indireto pelo mundo, trazendo, além disso, imensas
desgraças ao povo italiano.

Referências
BASTIANINI, Giuseppe. Gli Italiani All’estero. Milano: Mondadori, 1939.
BERTONHA, João Fábio. O fascismo e os imigrantes italianos no Brasil. Porto Alegre: Edipucrs,
2001.
______. Entre Continuidade e ruptura. A Política Externa Fascista como um Problema
Histórico e político. Contexto Internacional, v. 23, n. 2: 399-434, 2001.
______. Os italianos. São Paulo: Contexto, 2005.

26
Ver, entre outros, CALLEJA, Eduardo González; NEVADO, Fredes Limón. La Hispanidad como
instrumento de combate. Raza e Imperio en la prensa franquista durante la Guerra Civil española,
Madrid, CSIC, 1988; GÓMEZ-ESCALONILLA, Lorenzo Delgado. Diplomacia Franquista y política
cultural hacia Iberoamérica, 1939-1953, Madrid, CSIC, 1988, e Imperio de papel: acción cultural y política
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A década de 20 e a gênese
das ideias autoritárias no Brasil:
o jovem Francisco Campos1
Cláudia Maria Ribeiro Viscardi
Universidade Federal de Juiz de Fora

Este capítulo faz parte de um projeto mais amplo, que tem por fim prestar
uma contribuição para o debate acerca do advento das ideias nacionalistas e
autoritárias difundidas no período republicano brasileiro no contexto da déca-
da de 1920. O nacionalismo na Primeira República é visto de forma marginal,
em geral associado aos militares. Há um reconhecimento da existência de um
sentimento nacionalista florianista, no final do XIX, cuja maior expressão foi
o movimento jacobino, eminentemente xenófobo e especificamente lusófobo.
Entre suas propostas estavam uma maior intervenção do Estado na economia
com fins industrializantes, o fortalecimento do poder executivo, a ditadura
militar e o anticlericalismo. Cabe destacar a criação da Liga da Defesa Nacional
por Olavo Bilac, Pedro Lessa e Miguel Calmon - presidida por Rui Barbosa - em
1916, cujo objetivo era apoiar os aliados na Primeira Guerra e instituir o ser-
viço militar obrigatório, aprovado em 1908 e viabilizado só pela ação da Liga.
O nacionalismo era exaltado como justificativa para se ter um exército forte e
um soldado-cidadão, ou seja, mais envolvido na política.
Em que pesem tais iniciativas, em geral, a Primeira República é vista como um
regime eminentemente liberal, onde o papel do Estado é o de observador, cabendo
às unidades federadas um maior protagonismo nos processos decisórios. O estatismo
ou o sentimento nacionalista estaria enfraquecido pelo próprio espírito federalista,
responsável pela prevalência do poder local/regional sobre a ideia de nação.
O mesmo se pode dizer acerca do autoritarismo. A perspectiva de pre-
dominância de um liberalismo oligárquico como regime político dominante,
obnubilou a presença de ideias autoritárias que estiveram presentes. No início
da República, o Castilhismo positivista e o próprio jacobinismo florianista

1
Este é um resultado parcial de um projeto mais amplo de pesquisa, realizado com o apoio do
CNPq e da FAPEMIG.
|  115
a década de 20 e a gênese das ideias autoritárias...

foram doutrinas de viés autoritário. Há inúmeros outros indícios da presença


do autoritarismo nos anos 10, sobretudo consolidado na obra de Alberto Torres
(Gentil, 1938 e Marson, 1979) e entre os militares reunidos na Revista da Defesa
Nacional de 1913. (Capella, 1985, p.79)
Fora do Brasil há uma literatura ampla sobre o nacionalismo2 . Entre eles
realçamos nosso vínculo intelectual com as análises propostas por Benedict
Anderson (2008), que analisa o fenômeno não como uma ideologia política pronta
e acabada, mas como um sistema cultural, difundido principalmente pela literatura
e pela imprensa, com o fim de criar-se uma abstração, uma construção de nação
imaginada, a ser compartilhada pelos diferentes atores que dela se apropriam.
Na década de 1920 foram publicadas as primeiras obras de teóricos autori-
tários brasileiros como Oliveira Vianna, Francisco Campos 3 , Álvaro Bomílcar4 ,
dentre outros. Pretendemos entender de que forma os acontecimentos viven-
ciados por estes intelectuais se constituíram em um ambiente propício para o
advento das críticas e para A aceitação e difusão de seus projetos alternativos
ao liberalismo imperante. Dentro deste projeto que é mais amplo, conferiremos
neste capítulo um destaque especial a Francisco Campos, em seu posiciona-
mento sobre o movimento tenentista em curso no período.
Longe estamos de realizar um trabalho que se relacione à História das Ideias.
Entendemos que boa parte destes pensadores nacionalistas ou autoritários não
compunham uma elite intelectual autônoma, pelo menos durante o período de
nossa análise. Muitos viviam da ocupação de cargos públicos e/ou da própria
ação política. Portanto, sua produção intelectual esteve vinculada a interesses -
explícitos ou não – vinculados à manutenção ou renovação de poderes instituídos
e é desta forma que suas produções serão lidas e interpretadas. Por esta razão,
privilegiaremos a análise dos discursos políticos proferidos no Parlamento ou pela
imprensa, acerca das conjunturas nas quais se inseriam, com o fim de identificar
a leitura que faziam da realidade e os caminhos que propunham para a mudança
ou conservação da mesma. Procuraremos identificar relações de fidelidade e
compromisso políticos, com o fim de entender os discursos e ideias professadas.

2
Gostaríamos de destacar alguns deles: Gellner (1993) Hobsbawm (1990), Anderson (1983 e
2008), Mann (1993 e 1994), Smith (1991, 1996, 1998, 1999 e 2000).
3
A produção bibliográfica de F. Campos é razoavelmente ampla. No entanto, não há muitas
publicações na década de vinte, objeto de nossas pesquisas, a não ser a obra Pela Civilização Mineira:
Documentos de Governo, 1926-1930 (1930), publicada ao final da década. Antes, no entanto, foram
publicados os seguintes trabalhos: Democracia e unidade nacional, de 1914. Antecipações à reforma
Política, também de 1914. A Doutrina da População, de 1916. Natureza Jurídica da Função Pública,
de 1917. O Animus na Posse, de 1918. Introdução Crítica à Filosofia do Direito, também de 1918.
4
Populações Meridionais no Brasil, de Oliveira Viana, foi publicado em 1920. Há mais cinco
obras de sua autoria nos anos vinte: Pequenos Estudos de Psicologia Social (1921), O Idealismo na
Evolução Política do Império e da República (1922), Evolução do Povo Brasileiro (1923), O Ocaso
do Império (1925) e O Idealismo na Constituição (1927). De Bomílcar, A Política no Brasil ou o
Nacionalismo Radical, 1920 – em memória de Floriano.
116 |
cláudia maria ribeiro viscardi

Por outro lado, abrimos mão de pensar tais atores como “frutos de seus res-
pectivos contextos”. Interessa-nos a relação texto-contexto, na medida em que
os discursos produzidos fazem parte do conjunto de “acontecimentos”, além de
interferirem sobre o rumo das coisas. Todo discurso é um ato de fala (Austin, 1975).
Embora a maior parte dos nossos atores estivessem fora dos altos cargos de
comando do regime, não se encontravam a sua margem. Muitos deles já haviam
iniciado sua trajetória política como deputados ou secretários de estado. Como
jovens, galgavam vagarosamente os degraus do poder e, na maioria das vezes,
não encontrando um ambiente hostil.
No caso específico de Francisco Campos, optamos por analisar seus discursos
parlamentares, uma vez que não há publicações do autor ao longo da década de
1920. Especificamente para os fins deste texto, optamos por analisar seu posi-
cionamento diante das revoltas militares de 1922 e 1924. Pretendemos perceber
sua linguagem política inserindo-a no meio em que vivia, de forma a perceber
o que falava, o que estava fazendo ao falar e mais marginalmente, os efeitos de
sua fala sobre os receptores de seu discurso. As referências à vertente inglesa
da História dos Conceitos são nítidas5 . J. Austin (1975, 7th Lecture), em análises
discursivas que fundamentaram a formulação dos trabalhos dos historiadores
da Escola de Cambridge, afirma que o discurso político – que se constitui em
atos de fala – possui três dimensões a serem levadas em conta: a locucionária
(of saying), que diz respeito ao conteúdo da proposição, que se manifesta no
ato de discursar. A ilocucionária (in saying), que leva em conta o que o agente
está fazendo no momento em que profere o discurso. E a perlocucionária (by
saying), relativa aos efeitos produzidos pelo ato de fala na audiência. Em nossa
análise, procuraremos identificar as três dimensões, reconhecendo, no entanto
os limites de nossas fontes para a abordagem da terceira dimensão.
Serão objeto de investigação dois discursos proferidos no Congresso Nacional
por Francisco Campos. O primeiro em sessão de 7 de julho de 1922, dois dias
após a revolta do Forte de Copacabana. O segundo em sessão de 10 de julho de
1924, cinco dias após a tomada do poder pelos tenentes na revolta de 1924.6 Em
ambas as ocasiões, Francisco Campos se valeu da tribuna do Parlamento para
condenar as revoltas e defender a restauração da ordem política oligárquica,
ameaçada pelas manifestações dos militares.
Como dissemos, em razão da natureza das fontes disponíveis, a primeira e
segunda dimensões (locucionária e ilocucionária) serão levadas em conta com

5
A História dos Conceitos nasceu e se consolidou em duas escolas, a de Bielefeld na Alemanha,
onde se destacou Reinhart Koselleck e a de Cambridge, no Reino Unido, cujos maiores expoen-
tes são Quentin Skinner e John Pocock. As escolas caminharam de forma independente. A este
respeito já existe vasta bibliografia, produzida inclusive por brasileiros. Entre o valioso material
disponível destacamos: KOSELLECK, Reinhart (1992), POCOCK, J.G.A. (2003), JASMIN, Marcelo
G.(2005) e PALONEN, Kari (2005).
6
Os discursos encontram-se disponíveis nos Anais da Câmara de Deputados. Nos valemos de
sua publicação no livro: BONAVIDES (1979).
|  117
a década de 20 e a gênese das ideias autoritárias...

prioridade, uma vez que através da análise dos discursos parlamentares –objeto
de investigação deste capítulo - fica muito difícil perceber a terceira dimensão
de seu discurso, qual seja, os efeitos produzidos pela sua fala no Parlamento, ou
mesmo sobre a opinião pública. Quando muito, tivemos acesso à recepção de
alguns parlamentares que se manifestaram ou através de aplausos ou de apartes
à fala de Francisco Campos. Mas tais manifestações, por serem esparsas e em
número não significativo, nos impedem de perceber o real impacto do discurso
sobre seus receptores. Portanto, não dispomos de fontes que evidenciem de
que forma os discursos proferidos foram aceitos ou rejeitados.
Com o fim de perceber a dimensão ilocucionária dos discursos, passare-
mos a seguir a acompanhar com brevidade a trajetória política de Campos até
o momento em que os discursos foram proferidos.

Quem fala

Nascido em Minas Gerais, na pequena cidade de Dores de Indaiá, no centro do


estado, graduou-se em Direito na capital e teve rápida ascensão política, atuando
como deputado estadual e federal pelo Partido Republicano Mineiro. 
Francisco
Campos pertencia a uma segunda geração de políticos mineiros, trazidos ao poder
sob a batuta de Arthur Bernardes. É conhecido pela historiografia o processo de
renovação dos quadros do Partido Republicano Mineiro (PRM), empreendido
por Bernardes quando esteve à frente do governo de Minas, entre 1918 e 1922
(Viscardi, 1999). Para que fosse assegurada a sua projeção nacional, Bernardes
cuidou de afastar do poder lideranças mais tradicionais, que eventualmente
poderiam frear sua ascensão ou com ele competir. Sua intervenção sobre as
eleições da comissão executiva do PRM permitiu que fossem trazidos para os
quadros partidários jovens políticos e afastadas antigas lideranças, a exemplo
de Francisco Sales e Wenceslau Brás. Por indicação de Raul Soares, parceiro
político de Bernardes, Francisco Campos foi trazido ao grupo, somando-se
às demais lideranças jovens, porém, mais críticas às práticas recorrentes do
Partido em Minas. Além de Francisco Campos, outras lideranças emergiram na
nova correlação de forças estabelecida no estado, como Odilon Braga, Cristiano
Machado, Daniel de Carvalho, entre outros.
A renovação de quadros do PRM fazia parte de um projeto de ascensão de
Bernardes à presidência da República. Suas ambições foram dificultadas pela
formação de um eixo oposicionista, reunido na Reação Republicana. Em razão
dos diversos conflitos advindos de uma acirrada disputa eleitoral, Bernardes
ao assumir o poder decretou o Estado de Sítio. Campos era deputado federal
no período, e não só apoiou a medida extraordinária, mas insistiu que fosse
prorrogada, o que se comprova a partir de seus discursos parlamentares.

118 |
cláudia maria ribeiro viscardi

Ao final de seu governo, tendo conseguido apaziguar um pouco as dissidên-


cias através de medidas autoritárias, que ameaçavam a autonomia das unidades
federadas que contra ele se uniram, Bernardes viabilizou a primeira reforma
constitucional em 1926. Embora as propostas de revisão tenham sido recor-
rentes desde a primeira década republicana, havia uma rejeição por parte das
elites dirigentes em reconhecer os problemas da carta de 1891. Alberto Torres
sempre fora um defensor da revisão com o fim de conferir à União maiores
poderes. Chegou a propor a criação de um quarto poder (o Coordenador: órgão
autônomo com os mesmos poderes do Moderador, porém ser estar vinculado a
Presidente). Com a mudança de perspectiva e de correlação de forças, a neces-
sidade de revisão tornou-se um consenso. Dentre os itens reformados, destaca-
-se um maior detalhamento do artigo sexto, que tratava das possibilidades de
intervenção da União sobre a autonomia dos estados. Antes, o artigo era muito
fluído e pequeno. A partir de 1926, foram listadas todas as circunstâncias em
que a intervenção seria permitida, o que gerou uma ampliação das possibilidades
de intervenção, reduzindo a autonomia dos estados. Tais mudanças ampliavam
a centralização e diminuíam os marcos do federalismo. Na ocasião, Francisco
Campos era deputado federal e atuou como aliado de Bernardes neste projeto.
Na condição de Secretário do Interior do então governador de Minas,
Antônio Carlos, Francisco Campos atuou na luta eleitoral ao lado de Vargas
e depois na Revolução de 1930. Quando Vargas assumiu, foi seu Ministro da
Educação e Saúde, ministério novo criado durante o governo provisório. Como
Ministro realizou uma reforma do ensino médio e superior, pelo qual tornou-
-se bastante conhecido. Em Minas aliou-se à Legião de Outubro, organização
criada em vários estados para conferir sustentação política a Vargas.
Em vão tentou eleger-se deputado constituinte em 34, mas não obteve
êxito. Recebeu como prêmio de consolação a incumbência de ser o Secretário
de Educação do Distrito Federal, freando os avanços ocorridos sob a gestão de
Anísio Teixeira, afastado em razão de suas pretensas ligações com o comunismo.
Foi um dos principais articuladores do golpe do Estado Novo e seu mais im-
portante jurista, na medida em que elaborou o texto da Constituição de 1937. Sua
permanência no governo como homem de confiança de Vargas se encerrou quando o
Brasil aproximou-se dos aliados. Como novo prêmio de consolação, passou a presidir
a Comissão Jurídica Interamericana. Sua biografia nos interessa até este ponto, dados
os propósitos deste artigo.7 Para compreendermos melhor o discurso de Campos
e os ideais por ele defendidos, faz-se importante acompanhar o que se passava no
Brasil dos anos 20, sobretudo entre os jovens políticos e intelectuais de sua geração.

7
A trajetória política de Campos envolveria ainda sua participação no regime pós 64, tendo sido
ele responsável pela elaboração dos Atos Institucionais 1 e 2. Para informações mais detalhadas
sobre sua vida ver: Malin, M. (2013).
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a década de 20 e a gênese das ideias autoritárias...

De onde se fala

A década de 20 no Brasil foi marcada por muitas mudanças nos diversos


setores da sociedade civil. O impacto da Grande Guerra e da Revolução Russa
sobre os mercados, os costumes e a política foram significativos. Francisco
Campos esteve envolvido neste conjunto de mudanças. Portanto se faz impor-
tante identificá-las, para que possamos compreender de que forma ele interveio
e se inseriu neste conjunto de mudanças e como sua produção intelectual e suas
práticas políticas foram perpassadas pelos acontecimentos em curso.
A emergência de ideais autoritários de caráter antiliberal que ocorria em
solo europeu no entre guerras não deixaria de influenciar o país. No entanto,
como veremos, as críticas ao regime republicano, muito comuns ao longo de
toda a década de 1920 no Brasil, não eram majoritariamente autoritárias, mas
nasciam entre os próprios liberais, desencantados com os rumos tomados pelo
regime inaugurado em 1889.
Na década de 20 eclodiram propostas que preconizavam uma maior in-
tervenção do Estado na vida econômica do país, bem como a necessidade de
arrefecer os problemas derivados do federalismo. A crítica ao federalismo foi
muito importante, pois no período, o regime descentralizado foi associado à
ideia de “paroquialismo” e de poder dos chefes locais. O que ao final do século
XIX era considerado o melhor caminho para a resolução das crises econômicas
e políticas do Império, nos anos 20, passou a ser a causa dos maiores problemas
da República. Por esta razão, as críticas ao federalismo vinham acompanhadas
de um saudosismo em relação ao Império.
A crítica política tinha como foco o combate às fraudes eleitorais e a neces-
sidade de se resolver a crise econômica derivada da depressão do pós-guerra. As
fraudes eleitorais tinham como causa, na visão dos contemporâneos, o controle
do voto pelos coronéis, possível em razão da descentralização política. Por sua
vez, a crise econômica era vista como resultante do excesso de autonomia dos
estados, que podiam se endividar livremente no exterior, à revelia do equilíbrio
econômico da nação.
Alguns eventos importantes contribuíram para a criação e consolidação
desta atmosfera crítica, nos mais variados campos. Proliferaram o pensamento
conservador, autoritário, nacionalista e antiliberal.
No campo da religiosidade, a fundação do Centro Dom Vidal (1922) propu-
nha uma renovação da prática católica a partir de um maior distanciamento em
relação a Roma e de uma aproximação com o povo. Emergiram figuras como o
Padre Júlio de Maria, Jackson de Figueiredo, Alceu Amoroso Lima, Carlos de
Laet, dentre outros (Azzi, 1994). Ainda inspirados pela Encíclica Rerum Novarum,
viam o povo não como coautor de um projeto de mudança, mas como público
que deveriam trazer para o seio da Igreja, sem necessariamente integrá-lo. Não
se tratava mais de discutir a separação entre Estado e Igreja, questão que até
então havia mobilizado os católicos no Brasil, mas de como combater a maior
120 |
cláudia maria ribeiro viscardi

ameaça que assolava o país em sua visão naquele momento: o comunismo. Pela
sua rejeição ao comunismo e pelo medo do povo organizado e mobilizado no
período, a Igreja assumiria uma postura conservadora, mas próxima ao projeto
nacional-autoritário em curso na Europa do que ao projeto liberal tradicional
dominante. No entanto, é preciso destacar que seus elos com as oligarquias
agrárias permaneciam e sua intervenção político-partidária seria limitada.
Este era também um período de ascensão do movimento operário, impactado
pelo desenvolvimento industrial do Pós I Guerra, o qual havia proporcionado
no Brasil uma maior concentração de operários por fábrica (Suzigan, 1986). Sob
o impacto do vitorioso projeto bolchevique, os anarquistas foram definitiva-
mente afastados das direções sindicais, abrindo espaço para a fundação do PCB.
Aprofundava-se, no entanto, o autoritarismo de esquerda, seguindo as diretrizes
da III Internacional, sobretudo após a morte de Lenin em 1924. O PCB fundaria em
1927 o Bloco Operário Camponês (BOC), que assumiu o discurso antiliberal e anti-
-oligárquico, em prol de um comunismo de viés maoísta. O centralismo partidário
também conferiu um tom menos democrático ao seu discurso, com predominância
do nacionalismo sobre o internacionalismo dos trotskistas, que haviam se tornado
minoritários. O PCB se colocaria ao lado das oligarquias dissidentes, sem participar
da Revolução de 30, após recusa pessoal de Prestes. Mas sua crítica aos limites da
democracia burguesa contribuiu para o desgaste do regime. 8
Uma outra evidência de que caminhava-se rumo a um Estado mais interven-
tor e centralizado esteve na regulamentação das conquistas trabalhistas obtidas
pelas ondas grevistas de 1917 e 1918. O viés intervencionista, para além da dura
repressão aos movimentos dos trabalhadores, do exílio e da prisão dos líderes,
foi a criação de um conselho arbitral de interesses entre capital e trabalho. O
Conselho Nacional do Trabalho, criado em 1923, quebrou um dos pilares do li-
beralismo brasileiro neste campo: o da não intervenção do Estado nos processos
de negociação. Paralelamente houve o esvaziamento de associações autônomas
dos trabalhadores, como as mutuais de ofício. Enquanto na Inglaterra elas foram
incorporadas a um projeto de construção da previdência pública, no Brasil foram
colocadas à margem do processo e esvaziadas pelos montepios e seguradoras,
responsáveis pela viabilização das Caixas de Aposentadorias e Pensões, primeiro
esboço da instituição de uma previdência pública no Brasil (Viscardi, 2010).
Outro conjunto de atores destacados no período foram os tenentes. Estes
ganham uma importância maior para nós em razão da análise que faremos dos
discursos de Francisco Campos acerca do movimento. O conjunto de revoltas
colocou em risco a estabilidade, levando Bernardes a governar em estado de
sítio. Antes, tal medida, embora recorrente, tinha caráter extraordinário e curta
duração. Com Bernardes, o regime de exceção foi a regra. Dentre as revoltas
militares, a Coluna Prestes foi a que teve maior impacto, inclusive em solo eu-

8
Há muitos e relevantes estudos sobre o PCB. Entre vários trabalhos, destacamos: Carone
(1989), Dulles (1977), Karepovs (2006) e Del Roio (2007).
|  121
a década de 20 e a gênese das ideias autoritárias...

ropeu. A Coluna se confunde com a liderança de Prestes, o que de certa forma


nos leva a omitir seu distanciamento em relação à classe operária, sua crítica ao
liberalismo oligárquico, sua proposta de fortalecimento do poder executivo e
sua crítica ao federalismo. As propostas do fim da fraude eleitoral e a defesa do
voto secreto os aproximavam dos anseios dos dissidentes da Reação Republicana.
Em que pese a heterogeneidade do movimento, as propostas tenentistas iam ao
encontro de uma República mais centralizada e nacionalista.9
Para além de católicos, trabalhadores e militares, não se pode falar em
atores políticos na década de 20 sem se referir aos modernistas. Não faz parte
dos objetivos deste capítulo aprofundar as discussões relativas ao movimento,
mas apenas destacar que o pensamento nacionalista também esteve presente
em seu seio e que o grupo que dele participou, em sua complexidade, reuniu
tanto comunistas, como liberais e integralistas. A própria historiografia sobre o
Modernismo, em razão da simpatia por um movimento intelectual genuinamente
nacional, acabou por homogeneizar o grupo e superestimá-lo. O elo entre eles era
a busca de uma identidade nacional, a partir da rejeição ao passado, do combate
ao eurocentrismo da produção artística, mas também de sua “antropofagia”. A
recuperação dos mitos nacionais, a valorização do mestiço e o contato com a
natureza foram instrumentos de fortalecimento do nacionalismo10.
É neste período que se consolida no empresariado nacional emergente, o
nacionalismo econômico e as críticas ao liberalismo fundador da república. Com
os investimentos industriais proporcionados pela diversificação de investimentos
do capital cafeeiro, aliados ao processo de substituição de importações do Pós
I Guerra, panorama agravado pelo refluxo de capital internacional, a burguesia
industrial nascente buscaria mais proteção do Estado e criticaria o liberalismo.
Um exemplo importante desta nova postura, por estar associado ao nosso perso-
nagem principal, esteve nos debates travados nos governos Epitácio e Bernardes
acerca da estatização da Itabira Iron. Com o desenvolvimento siderúrgico em Minas
Gerais, havia um interesse do Estado em não se limitar a ser um mero exportador
de matéria-prima, mas faltava-lhe tecnologia. Epitácio e Bernardes recusaram
acordos com a mineradora inglesa, já presente na exploração do minério em
Minas, em prol de um contrato com os belgas. Das intensas negociações nasceu
a Belgo-Mineira, explorando minério e transferindo tecnologia, com participa-
ção estatal (Silva,1997). A intransigência de Bernardes e seu nacionalismo eram
dados novos no horizonte. Foi também em seu governo que foi aprovada a defesa
permanente do café, o que gerou oposições de liberais, mas não tão fortes como
a de 1906. A intervenção do Estado era vista com maior naturalidade neste perí-
odo e reivindicada pela burguesia emergente. E foi neste período que Francisco
Campos estava sendo trazido ao PRM, sob o aval de Bernardes.

9
Acerca do Tenentismo ver, entre outros: Forjaz (1978), Drummond (1986), Prestes (1991),
Castro (1995) e Carvalho (2005).
10
Acerca do Modernismo destacamos: Sevcenko (1992), Travassos (2000), Silva (2009) e Velloso (2010).
122 |
cláudia maria ribeiro viscardi

Destaca-se que a Nação completava em 1922 seus 100 anos de existência,


evento que ensejava uma reavaliação sobre o projeto republicano (Motta, 1992).
Nesta ocasião (1921) foram transplantados para o Brasil os restos mortais de D.
Pedro II (bem como de Tereza Cristina, Conde D’eu e outros familiares da rea-
leza), como uma das formas de comemorar-se o centenário da independência. O
enterro de seus despojos ganhou honras militares, houve decretação de feriado
nacional e inúmeras festividades foram realizadas sob a condução do IHGB, que
comparou o evento ao processo abolicionista, equiparando-os como se tivessem
igual importância (Fagundes, 2013). Lembre-se que no ano anterior, o banimento
da família real havia sido revogado, após intensos debates no Parlamento. A re-
descoberta do Monarca refletia o saudosismo do Estado centralizado do passado,
abrindo espaço para a crítica ao federalismo e à própria República.
Estes diversos grupos de interesse tinham alguns elementos comuns em
meio a diferentes projetos e estratégias: o nacionalismo, a crítica ao federalis-
mo e ao liberalismo, a oposição às oligarquias situacionistas, o fortalecimento
do executivo, a desqualificação do parlamento – tido como espaço de uma elite
bacharelesca e inútil -, a crítica aos processos eleitorais em curso e a busca de
uma identidade nacional alternativa. Sua estratégia era veiculada através de um
discurso de desqualificação do sistema, aprofundado posteriormente pela era
Vargas. Em tese anterior sugerimos que a expressão “café com leite”, vulgari-
zada a partir de 1926, esteve relacionada a este processo de desqualificação do
federalismo, ao associá-lo a um suposto monopólio do poder por parte de a uma
aliança Minas-São Paulo, o que de fato não ocorria (Viscardi, 2001). Na prática,
esta crítica se dava às eleições, ao poder do Parlamento, ao sufrágio universal, aos
partidos políticos, ou seja, ao liberalismo formal em curso, que se queria mudar.
Importante ressaltar que a crítica vinha de quem encontrava-se fora do
poder. As elites oligárquicas consolidadas no controle do regime se opunham
às dissidências e aos movimentos de contestação. Reprimiu duramente os traba-
lhadores grevistas. Puniu exemplarmente os dissidentes da Reação Republicana.
Reprimiu com rigor as rebeldias dos tenentes. Mas não deixou de incorporar
algumas das reivindicações em curso, a exemplo da reforma constitucional de
1926 e de viabilizar algumas concessões aos trabalhadores.
Bernardes era o objeto principal da crítica do movimento tenentista e
dos líderes remanescentes da Reação Republicana. Portanto, seus apoiadores
sentiam-se impelidos a combater as críticas ao federalismo, às fraudes eleito-
rais e sobretudo aos tenentes. Como vimos, Francisco Campos fora alçado ao
poder por Bernardes e seria seu porta-voz no Parlamento. Sem estar imune
ao ambiente conturbado pelo qual passava a república, Campos se colocaria
a favor da manutenção da ordem e se oporia a estes movimentos de contesta-
ção. Ao mesmo tempo, teria participação destacada no processo de reforma
constitucional em 1926.
Nosso argumento é que durante a década de 20, nada nos autoriza a qualificar
Francisco Campos como um intelectual autoritário ou mesmo antiliberal. Ao con-
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a década de 20 e a gênese das ideias autoritárias...

trário, como veremos, Campos será um árduo defensor da Carta de 1891 – mesmo
admitindo-se a necessidade de alguns ajustes – em defesa das oligarquias liberais
no poder e opondo-se ao “bando de ideias novas” que emergira nos anos de sua
juventude. Mas passemos agora à dimensão locucionária de nosso personagem.

O que Francisco Campos fala

Como afirmamos anteriormente, partiremos da análise de dois discursos


políticos enunciados por Campos ao longo dos anos 20. No período, era deputado
federal pela bancada de Minas Gerais. Em 7 de julho de 1922, dois dias após a
tomada do Forte de Copacabana pelos revoltos e sua imediata repressão pelas
forças militares fiéis ao governo federal, Francisco Campos fez uso da palavra no
Congresso Nacional acerca do evento recente, a revolta dos tenentes, ocorrida
no Forte de Copacabana em 5 de julho de 1922, na cidade do Rio de Janeiro.
Participaram da revolta 18 revoltosos, um deles civil. Seu objetivo primor-
dial era impedir a posse de Arthur Bernardes, candidato vitorioso no pleito
de 1922, em oposição a Nilo Peçanha, que concorreu pela chapa da chamada
Reação Republicana. Bernardes era candidato da situação e contava com o
apoio das oligarquias paulistas e pernambucanas, além da mineira e paraibana
(o Presidente na época era Epitácio Pessoa, da Paraíba). O estopim da revolta
havia sido a prisão de Hermes da Fonseca, presidente do Clube Militar e que
havia apoiado a candidatura da Reação. Por ter feito críticas duras ao processo
eleitoral, Epitácio o mandou prender, gerando revolta entre os jovens militares.
O forte foi duramente bombardeado pelas forças militares fieis ao governo.
17 militares se renderam e foram em marcha a caminho do Palácio do Catete.
Tiveram, durante o percurso, a adesão de um civil. Ao chegarem no posto três,
foram metralhados pelas forças da ordem. Dos 18, apenas dois sobreviveram:
Siqueira Campos e Eduardo Gomes11.
Francisco Campos inicia seu discurso atacando os que para ele tinham
sido os reais responsáveis pela revolta: Nilo Peçanha e Borges de Medeiros, o
primeiro candidato derrotado na chapa de oposição e o segundo, governador

11
Em razão dos limites do texto, não nos é possível discutir historiograficamente as eleições
de 1922. O tema foi recentemente revisitado e maiores informações podem ser obtidas em:
VISCARDI, Cláudia M.R. Teatro das Oligarquias: uma revisão da política do café com leite. Belo
Horizonte, Fino Traço, 2012, cap. 7 e FERREIRA, Marieta de M. e PINTO, Surama Conde de S.
A crise dos anos 1920 e a Revolução de 1930. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucília de A.
N. (orgs.) O Brasil republicano: o tempo do liberalismo excludente, da proclamação da República
à revolução de 1930. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003. O mesmo acerca do próprio
movimento tenentista. Nos limitaremos a fazer uma síntese sumária acerca dos eventos trata-
dos pro Francisco Campos, o que de forma nenhuma esgota tema tão tradicional e tão debatido
pela historiografia brasileira. Acerca do tenentismo, indicamos dois trabalhos mais recentes:
PRESTES, Anita. L. A Coluna Prestes, 2ed, São Paulo: Brasiliense, 1991 e LANNA Jr. Tenentismo
e crise política na Primeira República. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucília de A. N. op. cit.
124 |
cláudia maria ribeiro viscardi

do Rio Grande do Sul, que havia se somado à articulação oposicionista. Os


tenentes foram poupados de suas acusações. Em sua visão, os jovens militares
haviam sido manipulados pelas lideranças oligárquicas dissidentes, o que para
ele, constituiu-se em ato de covardia.

Da mocidade enviada na frente, desprevenida na sua ignorância e inge-


nuidade para bater o caminho pelo qual haviam de passar os triunfadores
dessa mocidade é que lançaram mão os políticos misericordiosos para com
a dor humana, para varrerem as resistências que, por acaso, encontrassem
no seu caminho, atentos na bondade dos soldados ao verem aproximar-
-se a primavera formassem alas para que ela passasse (Bonavides: 68).

O discurso de Campos é construído de forma a atribuir a Nilo Peçanha o


papel de mandante e a Borges de Medeiros, o de omissão. Contra eles se vale de
expressões duras. Embora afirme respeitar a autoridade moral do líder gaúcho,
acusou-o de ter permanecido em “solidão especulativa” ou em “hibernação
positivista”. Sobre o papel de Borges de Medeiros, assim se manifesta Campos:

[...] já existia [a revolta] virtualmente no silêncio budista do Sr. Borges


de Medeiros na indiferença com que S. Exa. considerava o desenrolar
dos acontecimentos sem prever suas consequências, com o abandono
da direção política que lhe cabia tomar, como órgão mais autorizado,
das mãos do Sr. Nilo Peçanha. E, portanto, participando por omissão
criminosa, do movimento revolucionário, porque era de seu dever, já não
digo de estadista e chefe de estado, mas dever de caridade, fazer valer
sua autoridade moral, o seu prestígio para que não se produzissem os
efeitos irreparáveis da revolução política (Bonavides: 64 – grifos nossos).

Para ele, não fosse a omissão de Borges, Nilo não teria tido êxito em insuflar
a revolta dos tenentes. O peso todo de seu discurso recairia sobre o senador
fluminense. Portador de uma “retórica de falso propagandista da república”,
Nilo teria atiçado entre os jovens o desejo pela revolução. Expressões como
“covarde” e portador de “desvario mental” conferem um tom agressivo ao
discurso, aplaudido por membros da bancada mineira, que lhe faziam apartes,
complementando sua fala. Poucos deputados gaúchos procuraram intervir,
apoiando Bernardes, mas a palavra era de Campos e dela ele se valia para cons-
truir uma interpretação sobre um evento contemporâneo, tentando construir
uma memória acerca do que havia acontecido muito recentemente.
Ao narrar este evento traumático, Campos, além de construir uma versão
sobre seus algozes, definiu bem quem eram as vítimas do processo: os tenentes
(“holocausto para a flor da mocidade brasileira”), o povo e o próprio Hermes
da Fonseca. Todos manipulados pelos líderes.
A revolta, pela sua dramaticidade, foi qualificada através das seguintes ex-
pressões: subversão, revolução, ameaça à integridade do país, ato inconstitucional,
|  125
a década de 20 e a gênese das ideias autoritárias...

catástrofe, criminosa e perturbadora do sossego público. Tais expressões conferem


um tom maior do que de fato a revolta possuía. Os jovens tenentes, quando muito,
ousaram se opor à posse de um presidente eleito, segundo eles, favorecido pela
fraude eleitoral. Não se tratava de uma revolução, mas de um protesto armado.
Em seu idealismo de juventude, chegaram a propor a substituição de Bernardes
por um outro oligarca mineiro, o ex-presidente Wenceslau Brás. Embora revol-
tas militares assumam um tom de indisciplina e sedição, o exagero de Campos
pode ser explicado pelo seu compromisso com a manutenção da ordem e com a
garantia da posse de seu conterrâneo Arthur Bernardes. Os tons por ele confe-
ridos aos líderes e à própria revolta, antes de revelarem seu respeito às normas
constitucionais ou a rejeição aos conflitos políticos, identificavam suas relações
de fidelidade política ao líder que o havia alçado ao poder em Minas Gerais.
No que concerne às razões da revolta, em nenhum momento Campos admite
a autonomia do movimento tenentista. Para ele, os militares eram objeto de
manipulação pelos membros da Reação Republicana, ignorando que naquele
momento, já construíam uma pauta própria de reivindicações e um rosário de
críticas aos descaminhos que a república trilhava. Campos não conseguia –
ou não admitia – ver no movimento a expressão dos descontentamentos dos
contemporâneos com o regime. Ele mesmo se somaria mais tarde ao grupo dos
descontentes. Mas naquela ocasião, estava mais comprometido com a manuten-
ção do governo de Bernardes do que com qualquer outra postura alternativa.
Ao não reconhecer autonomia aos tenentes, tratando seu movimento como um
objeto dos interesses das dissidências oligárquicas, Campos não se opunha ao
tenentismo em si, mas à Reação Republicana. Poupou de suas críticas os milita-
res – entre eles, o próprio Hermes da Fonseca – deixando sua reprovação cair
sobre as lideranças de oposição ao governo ao qual cabia sustentar politicamente.
No contexto de crise institucional em curso, cuja maior expressão eram as
revoltas militares que se espalhavam por diferentes regiões do território nacional,
a dimensão ilocucionária do discurso é a mais perceptível. Francisco Campos,
ao trazer o tema para a plenária do Parlamento, atuava como um porta-voz dos
interesses do situacionismo mineiro e desejava convencer a plateia acerca da
inconveniência da plataforma tenentista, bem como de seus métodos para levá-
-la à frente. Ao mesmo tempo, tinha por objetivo identificar responsabilidades
civis sobre as ações dos jovens militares. Desta forma, tentava criar uma aura
de vitimização de Bernardes – objeto dos protestos – e de medo, ao anunciar
os riscos que a nação estava correndo a partir da ação armada dos militares.
Colocava-se com um defensor da ordem liberal-oligárquica.
No dia 5 de julho de 1924, estourou outra revolta dos tenentes, desta vez
na cidade de São Paulo, com apoio de outras cidades do interior paulista. Os
revoltosos tomaram o poder na capital durante 23 dias. A cidade foi bombar-
deada por aviões e a revolta também fora combatida por tropas de terra, fieis a
Bernardes e ao governador Carlos de Campos, então refugiado no interior. Os
tenentes foram vencidos e tentaram migrar para o Mato Grosso, onde sofreram
126 |
cláudia maria ribeiro viscardi

suas maiores perdas humanas. Já fragilizados, dirigiram-se a Foz do Iguaçu,


para se se unirem à coluna liderada por Prestes, que então se organizava.
Cinco dias após o início da revolta, enquanto os rebeldes ainda mantinham
a cidade sob controle, Francisco Campos foi à tribuna do Congresso para uma
vez mais conferir sustentação política a Bernardes, novamente ameaçado pelas
convulsões das casernas. Seu breve discurso foi proferido após o de Antônio
Carlos, deputado mineiro, líder da maioria. Nele, o que se destaca são os valo-
res defendidos que se resumem no compromisso com a manutenção da ordem
e no respeito às instituições. Interessante destacar as expressões escolhidas
por Campos para se referir a tais valores: “escravidão às responsabilidades” e
“submissão à ordem”, como se observa na citação abaixo:

Sr. Presidente, submissão à ordem, escravidão às responsabilidades,


apagando-as as atitudes individuais, para que apareça e se acuse a solida-
riedade geral indispensável à realização de toda a obra política, que não é
apenas a obra de indivíduos isolados, senão o resultado de uma convergência
de vistas, em que as individualidades se sacrificam e se apagam, disciplina
essencial a todos os corpos, assim como os corpos políticos, disciplina que
não representa uma abdicação, disciplina que não representa uma ablação
dos órgãos mentais, senão uma surdina destes órgãos e uma aplicação mais
atenta deles aos seus deveres (grifos nossos , p.75).

Ressalta-se o apelo à solidariedade, obtida pela subsunção do interesse


individual ao bem público. O pacto proposto por Campos passa pela concessão
ao Estado de parte da soberania individual ou corporativa. Parte, porque não
significa abrir-se mão do raciocínio, mas apenas estar momentaneamente surdo,
para o cumprimento dos deveres. Tais expressões revelam uma relação com
o poder no qual o indivíduo autônomo não se submete ao Estado na condição
de súdito, servo ou escravo, mas delega a ele parte de sua soberania, mantendo
sua autonomia enquanto membro da polis ou cidadão. Nada mais liberal do que
o contrato por ele proposto.
O discurso da submissão servia como justificativa ao estado de sítio im-
posto por Bernardes, para ele, uma medida de manutenção da ordem. Pode-se
aventar, que a adesão incondicional de Campos ao estado de sítio implique em
sua relação com o pensamento autoritário. Mas o instrumento estava previsto
pela Constituição de 1891 e por diversas vezes havia sido usado ao longo do
regime. Consistia em expediente provisório, com o fim de resolver-se alguma
crise, ameaça à estabilidade do regime ou defesa da própria constituição. Tal
medida está prevista nas constituições liberais, pois nos regimes autoritários
ela não se faz necessária. Portanto, a defesa do expediente, feita por Campos,
não configura sua adesão às ideias autoritárias.
Há igualmente no discurso de Campos um reforço da imagem construída em
torno do papel de Minas na federação, como o centro de equilíbrio do regime

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a década de 20 e a gênese das ideias autoritárias...

republicano, ao mesmo tempo em que se vale de um símbolo monárquico – a


coroa – quando se refere ao papel do estado:

Sr. Presidente, pelos sentimentos de Minas, pelo pensamento político de


Minas, pela atitude de Minas, afinam igualmente o pensamento, o sen-
timento e a atitude dos outros estados da república, todos eles reunidos,
como uma coroa, em torno do governo federal, traçando este círculo de
garantias morais e políticas sobre o qual repousa (grifos nossos, p. 74).

A ele interessava o reforço desta imagem para que a liderança de Bernardes


deixasse de ser contestada pela ameaça dos tenentes. O fato de Francisco Campos
ter trazido para seu discurso símbolos monárquicos e defendido a aplicação de
medidas de exceção, antes de ter sido um compromisso precoce do persona-
gem com as ideias autoritárias que defenderia mais tarde – até para fugirmos
ao anacronismo – era uma estratégia de justificação das ações discricionárias
levadas a cabo por Bernardes, líder com o qual estava comprometido a defender.
Daí a alusão à Coroa e ao papel de Minas Gerais.
Tomando por base as análises de Austin, a dimensão ilocucionária de seu
discurso encontra-se na posição em que está Francisco Campos no momento em
que o profere: é um parlamentar da base de apoio da presidência da República,
alçado ao poder por ele, e que precisa reforçar o discurso de Antônio Carlos, que
como líder da maioria, defendeu arduamente o governo, então ameaçado por
uma revolta, até o momento, exitosa. Debatia-se no plenário a proposta de uma
moção de confiança e de aplauso à enérgica atitude do Presidente da República
e de admiração à atitude de Carlos de Campos, governador de São Paulo, ao
reprimir duramente os adversários. Cabia a Campos defender a aprovação da
moção e justificar o estado de sítio em curso.
Seu discurso, como ato de fala, tinha por objetivo justificar a aplicação de
medidas repressoras sobre o movimento e para este fim se valeu da escolha de
expressões nada fortuitas, como as aludidas acima. Esta é a dimensão locucio-
nária, da qual nos falava Austin. A expectativa de Campos era que o Parlamento
conferisse poderes discricionários a Bernardes, como claramente encontra-se
expresso ao final de seu discurso:

... [daria] o meu apoio ao projeto autorizando o Governo a decretar o


estado de sítio, como também a todas as medidas, ainda as mais extre-
mas, repito, que o Congresso julgar necessárias, aparelhando o Poder
Executivo, indo mesmo até à delegação de plenos poderes ao Sr. Presidente
da República para exercer, durante o tempo que fosse preciso, uma ação
discricionária (grifos nossos, p. 76).

Previa a constituição de 1891 que o estado de sítio poderia ser instituído,


por prazo determinado (não estabelecia qual) em duas ocasiões: invasão es-

128 |
cláudia maria ribeiro viscardi

trangeira ou comoção interna. A segunda ocasião justificara sua instituição. A


clara defesa do estado de exceção pode ser entendida como uma vinculação de
Campos às ideias autoritárias que defenderia mais tarde. No entanto, acredita-
mos que a esta altura, o deputado estava mais interessado em garantir a ordem
para viabilizar o governo de seu conterrâneo e aliado, do que em defender
ideias autoritárias. Embora quisesse conferir a Bernardes poderes extra cons-
titucionais, não chegou a propô-los, limitando-se a defender seu líder, dentro
da ordem constitucional.

O que se fala sobre Francisco Campos

Para uma leitura mais apropriada do discurso de Campos, é importante


nos valer das contribuições, sobretudo as mais recentes, produzidas sobre
ele. A maior parte dos trabalhos, no entanto, analisa o pensamento político de
Campos no período pós 30, uma vez que sua trajetória ascendente na política
lhe conduziu a cargos muito importantes na gestão do Estado varguista e por
ter publicado no período a maior parte de seus trabalhos. Poucas referências
estão disponíveis sobre seu período de juventude, o que nos interessa mais
para os fins deste capítulo.
Em geral, Campos é visto com um teórico autoritário e nacionalista12 . Seu
compromisso com a sustentação política do Estado Novo e com a redação da
Carta de 1937 conferem o tom dos trabalhos sobre ele produzidos. Procuramos
evitar partir destes pressupostos ao analisar os seus escritos de juventude, sob
pena de procurarmos elementos autoritários em seus discursos, quando ainda
não existiam, conforme foi visto.
Paulo Bonavides (1979:12,14 e 21) afirma que o líder político mineiro Bias
Fortes, por ocasião da reforma constitucional de 1926, já lamentava o pensa-
mento centralizador de F. Campos. Bem sabemos que a reforma ampliou os
poderes da União, diminuindo a autonomia dos estados, ao regulamentar mais
detalhadamente o artigo sexto, que tratava destas relações. Bonavides afirma
que Campos criticou os excessos de regionalismo, que dificultavam a cons-
trução da nacionalidade brasileira. No entanto, o próprio autor reconhece que
no período não havia uma filiação totalitária de Campos, mas pode ter havido
uma “antecipação” doutrinária, que se pressente em seus discursos, sem que,
no entanto, abrisse mão de seus compromissos com a liberalismo.
Rogério Santos (2007) inova ao perceber Francisco Campos não como um
teórico do autoritarismo, mas como um crítico ao constitucionalismo antiliberal,
inspirado por Carl Schimitt. O autor fundamenta muito bem seu argumento,
quando afirma que a proposta de representação pela via das corporações ou pela
via plebiscitária – que seria mais tarde proposta por Campos - já era defendida

12
Entre os diversos trabalhos destacamos: Lamounier (1989), Oliveira (1982) e Beired (1999).
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a década de 20 e a gênese das ideias autoritárias...

pelo jurista alemão. Além do que, o esvaziamento do Parlamento e a crítica das


instituições liberais, que faziam parte do discurso de Campos nos anos 30 e 40,
encontravam eco nos trabalhos de Schimitt. Para Santos, Francisco Campos se
coloca em uma posição diferente de Alberto Torres, Plínio Salgado ou Alceu
Amoroso Lima, os quais vinculam a garantia da ordem ao Estado autoritário.
Para Francisco Campos, a democracia seria uma opção, mas não a democracia
liberal clássica, mas uma adaptada a nossa própria realidade cultural. Estava
mais próximo ao pensamento conservador europeu do que ao autoritário.
Embora considere bem fundamentada a hipótese de Rogério Santos, torna-se
muito difícil afiançá-la, quando observa-se o comportamento político de Campos,
para além de suas ideias registradas em suas obras e discursos. Quando atenta-
mos para as suas práticas, percebemos que o político mineiro contribuiu com a
arquitetura de dois regimes autoritários, não só do ponto de vista teórico, como
prático. Foi um verdadeiro intelectual orgânico de ambos os regimes, nos valendo
de uma visão de Gramsci. A Carta de 37 foi de sua autoria, bem como os dois atos
institucionais que inauguraram a ditadura civil-militar. Considerá-lo conservador
implica em avaliar ambos os regimes como tais, o que não se justifica.
Apesar de não podermos considerar Francisco Campos um escritor au-
toritário nos anos 20 – e neste ponto concordamos com Rogério Santos ao
caracterizá-lo como um conservador - já se percebe em seu discurso, uma crítica
aos limites do liberalismo, conforme apontava Bonavides. Chamava atenção
para a indiferença do povo e lhe incomodavam as tumultuadas relações entre
civis e militares nos anos iniciais da República. Só a unidade em torno da lei
seria capaz de preservar a democracia. Mas a partir dos anos 30, é difícil não
associá-lo a um projeto claramente autoritário de governo.
Para o período que nos interessa, a pesquisa de Rogério Santos abarca uma
análise de um ensaio do jovem Francisco Campos, intitulado “Democracia e
Unidade Nacional”, publicado em 1914. O trabalho do autor nos informa que
Campos já se mostrava crítico à descentralização republicana e ao federalismo
em si, desde os seus primeiros escritos. Associava democracia à descentrali-
zação, denunciando seus vícios, que eram a ausência de unidade e as ações
desagregadoras das facções partidárias. Segundo Campos, eram as tradições
monárquicas que permaneceram mesmo após a instituição da República, as
responsáveis pela manutenção de uma certa unidade, garantia de sobrevivên-
cia do novo regime. Para ele, a democracia liberal era um mal necessário e o
ideal seria um governo de juristas, capazes de tutelar as instituições liberais.
Para Marco Cabral dos Santos (2007) o pensamento de Campos pode ser
observado a partir de três vetores distintos. O primeiro é ver o Parlamento
como um obstáculo ao desenvolvimento de um bom regime, dado o seu papel
estéril. O segundo é a necessidade de entregar o exercício do governo a uma
elite tecnicamente qualificada. E o terceiro é a ideia de que o líder corporifica
a nação. Em discordância explícita com o trabalho de Rogério dos Santos, vê
Francisco Campos como o grande arquiteto teórico do Estado Novo e portanto,
130 |
cláudia maria ribeiro viscardi

um intelectual autoritário. Para Marco Cabral o regime ditatorial varguista foi


uma obra de Francisco Campos.
Embora o objetivo do artigo seja estabelecer os vínculos do pensamento de
Francisco Campos com o Estado Novo, Marco Cabral também analisou o ensaio
de 1914, conferindo destaque ao papel atribuído por Francisco Campos à elite
jurídica, capaz de corrigir os excessos do temperamento democrático. Mais
tarde, nos anos 30, Campos travaria um debate mais árduo contra a democracia,
por ser um regime que permitiria a emergência de doutrinas autoritárias. Com
este argumento justificava sua proposta de centralização, para que a própria
democracia fosse preservada.

As falas finais

Ao traçar este breve panorama, nossa intenção era de inserir nosso ator em
seu meio, com o fim de compreender as posições políticas por ele assumidas
diante das mudanças em curso na década de 1920. O discurso dos dissidentes, ou
seja, os que estavam à margem do poder nos anos 20, manifestava-se pela crítica
à República como projeto; pelo desejo de uma uma maior intervenção do Estado
sobre a economia; pelo realce dos problemas do federalismo; pela denúncia do
caráter oligárquico do regime; por uma visão positiva sobre a Monarquia; pelo
nacionalismo que rejeitava o eurocentrismo, o estrangeirismo e a importação
de modelos externos; que valorizava símbolos e demais elementos da cultura
genuinamente brasileira. Formava-se no período um contra-discurso de mudança,
como uma estratégia de emergência ao poder destes mesmos grupos dissidentes.
Embora este discurso possa eventualmente relacionar-se às propostas autoritá-
rias, Campos a ele não aderiu naquele momento, por estar comprometido com
a sustentação política de Bernardes, no âmbito do regime liberal-oligárquico.
Um dos ganhos da análise do discurso como ato de fala é evitar-se o ana-
cronismo. É tentador relacionar o discurso de Campos às ideias autoritárias já
existentes nos anos de sua juventude, por já conhecermos seus compromissos
futuros com a formulação e manutenção do Estado Novo. Mas a análise de
seus discursos no período não autoriza esta interpretação. E a compreensão
de seu papel político no período, não como um intelectual, mas como um
político emergente, justifica seu papel no campo do conservadorismo liberal,
conquanto tenha incorporado parte do discurso crítico difundido por boa parte
dos membros de sua geração.
No momento em que se projeta na política, Campos esteve mais interessado
em pavimentar sua trajetória do que somar-se aos críticos do regime. Afinal,
ele não se encontrava à margem do poder. Havia sido alçado ao Partido na
condição de um dos seus talentos mais promissores. Cabia a ele defender o
governo de Bernardes ante as ameaças representadas pelas oligarquias dissi-
dentes reunidas na Reação Republicana e denunciar a sua instrumentalização

|  131
a década de 20 e a gênese das ideias autoritárias...

das rebeldias militares. Como visto, em nenhum momento Campos criticaria


os tenentes. Ao contrário, os colocaria como vítimas, ressaltando a injustiça de
perder-se a juventude nas batalhas campais. Opunha-se desta forma a alguns
setores oligárquicos, sustentando outros. Deixava em aberto futuras parcerias
com os militares, poupando-os de sua crítica. Defendia a atribuição de poderes
discricionários ao líder, não como uma estratégia de governo, mas apenas como
medida excepcional de controle da crise. Seu pensamento era genuinamente
pragmático.
Sabemos que Campos esteve ao lado dos revolucionários de 30 e foi um dos
principais articuladores do golpe do Estado Novo, para ele, um golpe preventivo
que viria evitar as distorções da Carta de 1934 – excessivamente liberal – e
recuperar os ideais da Revolução. Ou seja, na década de 20 encontramos um
jovem Francisco Campos defensor das oligarquias situacionistas e do modelo
liberal-oligárquico em curso. Menos de dez anos depois, o vimos atuar ao lado
dos mesmos críticos do regime, como os tenentes e os gaúchos. Como explicar
as correções de rumo? Ao analisar Campos menos pelos seus ideais, e mais pelo
seu pragmatismo político. Era um conservador, interessado em manter-se a
ocupar posições políticas de mando e controle. Importante perceber que para
ele a revolução de 30 fora um golpe antiliberal e anti-oligárquico. Lembre-se
que a Revolução fora conduzida sob a liderança das oligarquias tradicionais,
agregando-se a ela os jovens tenentes e os jovens filhos de oligarcas. Boa par-
te deste grupo era crítico ao Liberalismo, mas todos eram filhos dele e nele
haviam sido gestados.
A partir de suas experiências, pôde elaborar uma crítica ao regime repu-
blicano oligárquico, justamente no momento em que ele não conseguia se abrir
para a entrada de novos atores, sedentos por serem integrados. Neste momen-
to, Campos acompanharia Vargas e toda a elite mineira envolvida no projeto
revolucionário de 30. Ao fim e ao cabo, mantinha-se governista.

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Padrões e tendências das relações
internacionais do Brasil em perspectiva
histórica: uma síntese tentativa1
Paulo Roberto de Almeida
Centro Universitário de Brasília (Uniceub)

1. Introdução: premissas conceituais e suas limitações

Abordar a problemática dos padrões e tendências das relações internacio-


nais do Brasil em perspectiva histórica implica, implícita ou explicitamente,
examinar as mudanças de regime ocorridas em suas configurações ao longo do
tempo, discorrer sobre eventuais paradigmas ou conceitos unificadores daquelas
características em suas diferentes etapas, bem como tentar detectar aquilo que
se costuma chamar de “linhas de continuidade”ou, alternativamente, “momen-
tos de ruptura”, isto é, conjunturas de descontinuidade em relação aos traços
predominantes na fase anterior. Representa também identificar os componentes
definidores das relações exteriores do Brasil, no seu sentido amplo, em cada
um dos períodos pretensamente homogêneos da história nacional, e aplicar,
a esses conjuntos, alguns rótulos que supostamente ofereceriam uma síntese
de suas identidades respectivas em uma dinâmica de sucessão de políticas.
Tais exercícios de síntese não faltam na historiografia nacional, eventu-
almente até na área das relações internacionais do Brasil, embora sejam bem
mais comuns nas áreas da história política ou da econômica. Eles começam
sempre por algum tipo de periodização, que serve, justamente, para delimitar
as grandes fases da história nacional. Os marcos definidores mais comumente
aceitos na historiografia nacional poderiam ser representados por estes pro-
cessos ou etapas da vida nacional: o período colonial, o primeiro e o segundo
reinados (eventualmente intercalados pelas regências), a velha República, a

1
As opiniões e argumentos desenvolvidos no presente ensaio são as do próprio autor, e não refletem
posições ou políticas da instituição diplomática ou do governo brasileiro.
|  135
padrões e tendências das relações internacionais...

era Vargas, a República de 1946, o regime militar e, para a fase mais recente, a
chamada “nova República”, também identificada como de redemocratização,
embora já se esteja longe do processo de reconstrução institucional do final
dos anos 1980 e do início da década seguinte.
Esses ensaios de periodização também podem se fixar numa vertente
menos linear politicamente, e mais de tipo econômico, a partir das grandes
características estruturais de cada época: a economia primário-exportadora,
a era (e a diplomacia) do café, a industrialização substitutiva de importações,
o nacional-desenvolvimentismo dos anos 1950, a modernização autoritária
do período militar, ou um alegado (pelos seus adversários ideológicos, mas
totalmente inexistente) “neoliberalismo” dos anos 1990, com eventualmente
mais alguns processos intermediários. Vários desses rótulos, no entanto, são
necessariamente simplificadores e sempre estarão sujeitos às revisões histo-
riográficas que normalmente ocorrem nas ciências humanas e sociais. Pode-se
também argumentar que alguns rótulos são francamente ideológicos, como
parece ocorrer com o presumido “neoliberalismo”, que alguns observadores
– talvez até historiadores – querem associar aos processos de abertura econô-
mica e de liberalização comercial dos anos 1990, uma classificação altamente
improvável no caso de um país que jamais foi liberal, muito menos neoliberal,
e sempre seguiu uma cartilha abertamente intervencionista, mesmo quando
se tratou de corrigir os excessos do estatismo anterior (com governos sempre
recorrendo a decretos e medidas provisórias).
A fase recente, ou seja, as administrações identificadas com o presidente
Lula e o Partido dos Trabalhadores, tem se prestado a algumas das simplifi-
cações e abusos a que se submetem alguns momentos de ruptura, quando sua
interpretação e registro são dominados pelos discursos daqueles mesmos que
querem fazer acreditar que este período de “história imediata” tenha sido de
fato marcado por mudanças cujo caráter eles previamente se encarregaram
de definir segundo um rótulo escolhido a propósito. Demonizar a chamada
“herança maldita”, pespegar o rótulo equivocado de “neoliberal” a qualquer
orientação de política econômica que não lhes parece condizente com seus
objetivos protonacionalistas e reconhecidamente estatizantes, arrogar-se a pre-
tensão de retomada da “política externa independente” de outras eras, tudo isso
faz parte mais da luta política e ideológica do que da análise acadêmica, como
deveria ser o propósito legítimo de qualquer governo sério. Tais explicações,
convenientes do ponto de vista dos que pretendem definir os traços do período,
geralmente em oposição ao que existia no período anterior, e favoravelmente
ao que seus protagonistas querem realçar como alegada excelência do seu
próprio momento – que seria insuperável em suas qualidades e benfeitorias
para o país, como eles gostariam de registrar –, podem ser enfeixadas sob dois
outros rótulos: fraude acadêmica e desonestidade intelectual.
Como tentar, então, falar de padrões e tendências das relações internacionais
do Brasil no longo prazo, da independência à era contemporânea, sem incorrer
136 |
paulo roberto de almeida

em alguns desses rótulos simplificadores e buscando ser o menos ideológico


possível? O exercício é arriscado, inclusive porque o autor destas linhas não
costuma prender-se a conceitos acadêmicos, mesmo os mais sofisticados – como,
por exemplo, a autonomia pelo distanciamento, ou a mesma, pela participação –,
nos trabalhos mais descritivos ou interpretativos produzidos nos últimos anos,
e tampouco se deixa enredar nas legitimações oficiais das políticas públicas, que
sempre trazem a marca da chamada langue de bois, mais vulgarmente conhecida
entre nós como discurso “chapa branca”. Este ensaio não pretende sucumbir a
qualquer um dos escolhos que costumam marcar certos consensos acadêmicos
ou que soem frequentar os escritos e discursos de acadêmicos ou diplomatas.
O autor não se considera suficientemente acadêmico para juntar-se às manias
temporárias das academias, nem se assume como um diplomata politicamente
correto para aderir acriticamente ao discurso do momento, aliás, de qualquer
outro momento. Ele se vê apenas um observador da realidade ambiente e um
estudioso da história, o que lhe permite fazer seus próprios julgamentos, sem
ter de apelar a paradigmas universitários consagrados ou submeter-se a qual-
quer versão oficial da história. A História, aliás, não pode ter versões oficiais,
pelo menos não deveria, ainda que governos, ou melhor, pessoas de governos
sempre tentem assim proceder.
Mas mesmo adotando uma perspectiva libertária no plano intelectual, e
pouco disciplinada no contexto profissional, não é fácil escapar de certos cons-
trangimentos metodológicos e de algum enquadramento conceitual, que estão
inevitavelmente vinculados a qualquer tipo de empreendimento acadêmico que
se pense fazer em torno da questão, tal como posta aqui: padrões e tendências
das relações internacionais do Brasil em perspectiva histórica. Este ensaio pro-
curará ser o mais objetivo possível, ainda que não se possa evitar algum grau
de subjetividade na escolha dos temas e das questões relevantes que é possível
identificar nessa área relativamente complexa da atividade governamental.

2. Periodização tentativa: cinco momentos das relações


internacionais do Brasil

Em qualquer tipo de exercício histórico, é inevitável começar por algum


tipo de periodização, abordagem aliás incontornável, em vista das importantes
transformações, com graus diversos de aprofundamento, que o Brasil enfrentou
desde sua constituição, enquanto Estado nacional independente, até o período
contemporâneo, tanto na esfera política quanto no domínio econômico.
Podemos adotar, para tal exercício, a divisão clássica da historiografia na-
cional, que cobre razoavelmente bem os três primeiros períodos, e que podem
circunscrever, igualmente, as relações externas da nação: o Império, até 1889;
a Velha República, até 1930; e a era Vargas, que, numa certa concepção, vai
até 1964. O regime militar, de 1964 a 1985, representaria um quarto período

|  137
padrões e tendências das relações internacionais...

identificado com um rápido e intenso processo de modernização do país, mas


com pouca, por vezes quase nenhuma, autonomia da cidadania no que se refere
à representação política e aos espaços decisórios a ela correspondentes, que de
fato não foram livres e estiveram muito pouco abertos a concepções alternativas
de organização econômica e política da nação; mas ele também correspondeu
a uma forma peculiar de o Estado organizar as suas relações exteriores. Por
fim, à falta de melhor termo, e como se trata de um espaço de tempo que cobre,
grosso modo, uma geração, costumamos nos referir ao período contemporâneo,
o quinto da periodização aqui adotada, como sendo a era da redemocratização,
mas este é um termo genérico, ou indistinto, que provavelmente será revisto
pela historiografia do futuro; afinal, no que se refere às suas relações exterio-
res, a redemocratização também correspondeu a um novo perfil com o qual o
Brasil se apresentou na cena internacional.
Como parece mais interessante, ou necessário, examinar este último período
de forma mais detalhada, ele será dividido, por sua vez, em quatro diferentes
momentos das últimas três décadas: (a) a redemocratização, estrito senso, que
corresponde ao processo de reconstitucionalização do país, entre os anos de
1985 e 1989, quando também o país passou a oferecer um outro discurso no
plano externo, tendo retomado, por exemplo, o processo de integração regional;
(b) os anos de crise e de transformação, uma conjuntura bastante confusa que
corresponde à aceleração inflacionária e às crises político-econômicas dos anos
1990-1994, culminando na estabilização do Plano Real, período no qual as rela-
ções financeiras internacionais do Brasil podem até ter prevalecido sobre outros
aspectos de suas relações internacionais; (c) a consolidação da estabilidade e a
reinserção do Brasil no mundo, num movimento bastante aberto e receptivo à
globalização, anos que correspondem aos dois mandatos de Fernando Henrique
Cardoso; e, finalmente, (d) a grande afirmação internacional do Brasil e a trans-
formação do cenário político nacional, nos anos distributivistas do governo Lula,
que foram identificados à chamada diplomacia Sul-Sul, período ainda em aberto.
O ensaio tratará perfunctoriamente dos quatro períodos anteriores à fase
contemporânea, que figuram aqui apenas a título de enquadramento histórico
preliminar à discussão dos problemas atuais das relações internacionais do
Brasil. Maior atenção será dedicada, como já indicado, ao período atual, mesmo
sob risco de algumas dificuldades interpretativas, já que o discurso oficial da
diplomacia brasileira, por um lado, ou os diversos enfoques analíticos privile-
giados na academia, por outro, sempre podem estar sujeitos a certo imediatismo
de tipo subjetivo ao tratar da presente fase.

2.1. O Império: a construção da nação e as bases de sua diplomacia

A emergência do Estado, no Brasil, e, portanto, de suas relações internacio-


nais, se fez com base na herança portuguesa deixada por D. João VI em 1821.
Na “herança” figuravam os conflitos no Prata, algumas pendências com Estados
138 |
paulo roberto de almeida

europeus (Espanha, por exemplo) e diversos compromissos assumidos pela ex-


-potência colonial obrigando o Brasil, como o tratado de comércio de 1810 com a
potência protetora, ou já em nome do Reino Unido, como o de abolição do tráfico,
no quadro do Congresso de Viena. Eles não deixaram de apresentar consequências
práticas para a economia do Estado nascente. A primeira providência, contudo, foi
a de assegurar o reconhecimento do novo Estado, processo que se delongou por
três anos, tempo necessário para concretizar negociações com Portugal e com a
Grã-Bretanha, de escopo sobretudo financeiro. O Brasil começou assumindo para
si empréstimos contraídos pela Coroa portuguesa na Grã-Bretanha, e também por
acatar indenizações em favor do soberano português: a longa trajetória, tortuosa
e torturada, da dívida externa começou naquele mesmo momento.
Os esforços para assegurar o livre trânsito no Rio da Prata – indispensável
para o acesso às províncias brasileiras do interior, pela via dos rios da bacia
platina – e certo controle de segurança sobre as fronteiras meridionais também
ocuparam a nascente diplomacia, na qual iniciativas tomadas pelo próprio pri-
meiro imperador muitas vezes predominavam sobre as opiniões da Assembleia
Geral ou sobre outras orientações do governo de gabinete. A guerra em torno da
Cisplatina, bem como as desavenças familiares em torno da sucessão do trono
português consomem recursos e a atenção do chefe de Estado, terminando por
gerar conflitos políticos que encontrariam o seu desenlace no ato de abdicação
de 1831. Antes, contudo, frustrado pela recusa da Grã-Bretanha em renunciar
às vantagens que lhe tinham sido concedidas pelo tratado de comércio de 1810,
o governo resolveu estender os privilégios da tarifa baixa aos demais países que
buscavam estabelecer relações comerciais com o Brasil. O problema do tráfico
foi outro irritante nas relações com a principal potência da época, questão sobre
a qual as elites dominantes do Brasil tergiversaram enquanto foi possível, em
meio a demonstrações da prepotência britânica; o assunto se arrastou por um
quarto de século após um tratado de “abolição” (“para inglês ver”) de 1826, até
a lei de proibição do tráfico de 1850.
As regências foram mais dominadas por conflitos internos do que externos,
ainda que a situação turbulenta do Prata e outras incertezas quanto às fronteiras
amazônicas continuassem preocupando o governo. Mas foi nessas circunstân-
cias que foram assentadas algumas das bases da diplomacia imperial, entre elas
a preocupação com os equilíbrios do Prata, o que significava, basicamente,
garantir a independência do Uruguai e do Paraguai em face das pretensões e
dos interesses de Buenos Aires, cujos líderes pretendiam reconstruir o Vice-
Reinado do Prata, que se estendia até o sul da Bolívia. Essa preocupação levou
o Brasil a mais de uma intervenção nos assuntos internos do Uruguai, um dos
vetores para assegurar esse equilíbrio e a liberdade de acesso, o que culminou
com a aliança com os inimigos de Rosas, ditador de Buenos Aires, e acabou
resultando, mas por outros motivos, na guerra do Paraguai. Esse conflito, a
maior guerra na qual o Brasil se envolveu, é até hoje uma tragédia paraguaia,
deixando marcas também em certa historiografia enviesada; ela foi oportu-
|  139
padrões e tendências das relações internacionais...

namente revista, e corrigida, pelo historiador Francisco Doratioto, cujo livro,


Maldita Guerra, desfaz muitos mitos e equívocos cometidos por historiadores
dos quatro países envolvidos no conflito.
O Império não tinha vergonha ou remorsos de suas intervenções no Prata,
comportamento de certa forma “imperial” que, a partir da era Vargas, passou
a ser apagado da historiografia nacional, num exercício precoce de revisio-
nismo histórico: tenta-se eludir o fato de que o Brasil praticou intervenções
nas tribulações platinas, não exatamente para ampliar o território, mas para
garantir a segurança e a integridade de suas fronteiras meridionais. O Império
foi um renitente tomador de empréstimos externos, e um bom pagador, ainda
que fosse eventualmente obrigado a contrair novos empréstimos para pagar
os anteriores. Mas o Império sempre honrou as suas dívidas, o que já não
mais seria o caso da República, que incorreu em moratórias e em insolvências
diversas vezes ao longo de mais de um século de anarquia emissionista e de
esquizofrenias econômicas.

2.2. A Velha República: os mitos e as deficiências da política externa

A República começou confusa, revisando as bases da diplomacia imperial, e


se mostrando simpática aos americanos do norte e do sul, consoante o refrão do
Partido Republicano: “somos da América e queremos ser americanos”. Com os
primeiros foi contraído um acordo comercial rapidamente desconstruído pelo
errático protecionismo americano, embora nunca tivesse havido, na história
econômica mundial, país tão protecionista quanto o Brasil, sob o Império, sob
a República, sob qualquer regime, até hoje, aliás. Com os segundos, mais espe-
cialmente com os argentinos, o primeiro chanceler da República acertou um
acordo de fronteiras que praticamente deixava o Rio Grande do Sul isolado do
Brasil, já que reproduzindo alguns mapas maldesenhados do tratado de Madri;
o Congresso recusou aprovação para esse acordo malcosturado, o que permitiu
a Rio Branco começar a brilhar, logo depois, na demarcação por via arbitral das
fronteiras da pátria. Justamente, nos primeiros dez anos de regime republicano,
o Brasil teve praticamente dez chanceleres, senão mais, ao passo que teve um
só nos dez anos seguintes. O Barão se identificou tão completamente com as
bases da política externa do Brasil que virou o patrono da diplomacia brasileira,
passando a figurar em cédulas de praticamente todos os regimes monetários
desde 1913. Estes foram muitos, ao longo do século XX: mil-réis (e bilhetes da
caixa de conversão em 1906), cruzeiro em 1942, cruzeiro novo em 1967, de
volta ao cruzeiro três anos depois, cruzado em 1986, cruzado novo em pouco
mais de dois anos, cruzeiro de volta em 1990, cruzeiro real e, finalmente, o
real (o Barão do Rio Branco só esteve ausente da URV, pois esta não conheceu
bilhetes impressos, já que tratou de uma moeda virtual).

140 |
paulo roberto de almeida

Na Velha República, assim como o Brasil era café e o café era o Brasil, a
diplomacia era o Barão e o Barão era a diplomacia: desde então, nunca mais
se conseguiu superar o paradigma, embora alguns tenham tentado imitá-lo,
até em longevidade. Mas o Barão tinha uma noção muito precisa do equilíbrio
que era preciso manter entre os interesses europeus e americanos no Brasil, e
sobre como conduzir os negócios sul-americanos do Brasil, com plena afirma-
ção, sem arrogância, mas também na estrita defesa dos interesses nacionais,
sem qualquer concessão a algum vizinho mais afoito ou atrabiliário, de qual-
quer tamanho que fosse. Ela não dava muita relevância para ideologias, mas
dava, sim, muito valor às ideias, se possível claras, diretas, sem afetação e sem
ceder a modismos circunstanciais, e sem precisar lembrar o tempo todo que
estava defendendo a soberania nacional (para ele isso era tão evidente que
sequer precisava ser dito, o que poderia denotar algum sinal de insegurança
psicológica). Sem bravatas, conseguiu manter a Argentina no seu lugar – ou
seja, sem interferir na capacitação estratégica do Brasil – e também entreteve
boas relações com bolivianos, assim como o teria feito com bolivarianos, se
por acaso existissem em sua época.
O Barão não cultivava nenhuma mania de catalogar geograficamente a
política externa, para o Norte, para o Sul, ou para qualquer direção: ele sim-
plesmente cuidava pragmaticamente da política externa, e sempre disse, desde
o primeiro dia, que não tinha entrado no governo para servir a partidos, e sim
ao Brasil. Uma lição razoável para os dias que correm, embora não se possa
esperar que todos os homens públicos sejam razoáveis, ou pautados pelo simples
bom senso, como parecia ser o Barão.
Uma das grandes questões das relações internacionais do Brasil, que o
Barão teve de administrar em sua época – mas a mesma questão permanece
até hoje, cem anos depois, ainda que de forma talvez um pouco diferente – foi
a transição de projeção de poder entre o velho hegemonismo imperial britâ-
nico e a crescente ascendência da nova potência americana, o que ele fez de
modo muito natural, sem qualquer demanda por uma relação especial e sem
afetar qualquer tipo de hostilidade vazia ou descabida. Quando teve de se
opor a posições americanas – o que ocorreu tanto na conferência americana
do Rio de Janeiro, quanto na segunda Conferência da Paz da Haia – ele assim
procedeu sem pedir licença a ninguém, mas também sem vangloriar-se de tal
feito. Não precisou ficar agredindo a potência hemisférica apenas porque ela
não reconhecia o papel do Brasil na região e em outras esferas.
Depois do Barão, o Brasil conheceu pequenos e grandes chanceleres, como
Oswaldo Aranha, por exemplo, que, já na era Vargas, soube avaliar muito bem
onde estavam os interesses brasileiros numa era de enfrentamentos globais, tendo
conseguido preservar tanto a autonomia do Brasil quanto alianças estratégicas
adequadas e convenientes em função dos interesses de longo prazo do Brasil,
numa conjuntura em que muitos apostavam na ascensão das potências fascistas.

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padrões e tendências das relações internacionais...

2.3. A era Vargas: escolhas estratégicas, a despeito de tudo

A menção a Oswaldo Aranha nos leva justamente à era Vargas, que começou
quando os gaúchos amarraram seus cavalos no Obelisco do Rio de Janeiro, para
ali ficar durante algumas décadas, pelo menos até o final do regime militar. A
revolução que levou Vargas ao poder não teria acontecido, precisamente, se
não fosse por Oswaldo Aranha, um líder decidido, decisivo, e de clara visão
quanto aos problemas do Brasil, bem como sobre os melhores caminhos para
resolvê-los. Getúlio Vargas, como se sabe, era basicamente um hesitante, ainda
que com várias qualidades maquiavélicas – no sentido vulgar da expressão
– para preservar-se no poder durante breves quinze anos, como ele mesmo
mencionou. Sem a ação de Aranha talvez jamais tivesse acontecido a revolução
de outubro de 1930. Sem ele, aliás, provavelmente a política externa do Brasil,
no decorrer dos anos 1930, e ao longo da Segunda Guerra, teria sido muito
diferente, e talvez o Brasil tivesse ficado na incômoda posição dos argentinos,
que se mantiveram neutros – na verdade simpáticos aos nazifascistas – até
quase o final da guerra, e só mudaram de posição por pressões americanas e
muitos gestos brasileiros.
Talvez não só a política externa, mas também a própria política econômica
do Brasil e sua posição internacional teriam sido muito diferentes, caso Oswaldo
Aranha tivesse ascendido a posições ainda mais altas na política nacional, o
que ele não fez por amizade e condescendência com Getúlio e em virtude das
várias traições deste último. Ele poderia ter sido presidente em 1934, em 1938,
na redemocratização pós-1945, e também em qualquer um dos pleitos que
foram feitos na República de 1946, até 1960, quando morreu, de certa forma
ainda jovem. O Brasil teria adotado outras políticas econômicas, mais liberais,
menos estatizantes ou protecionistas, mais abertas ao capital estrangeiro e a
uma presença internacional de maior prestígio, graças à inteligência, habilidade
política e conhecimento do mundo e dos grandes líderes que Aranha exibia.
Mas estas são hipóteses que pertencem ao terreno da história virtual, aos
“big ifs” da trajetória da nação. A era Vargas só termina, de fato, em 1964, quando
militares efetivam um golpe para afastar as forças varguistas e populistas que eles
consideravam nefastas ao desenvolvimento do país. Antes disso, durante a República
de 1946, o Brasil manteve uma política externa tradicional, que um crítico chamou
de “bacharelesca”, e que outros apelidavam de “punhos de renda”. De fato, antes
que os militares entrassem com os seus punhos de aço – inclusive projetando
poder brasileiro sobre outros governos do Cone Sul – os bacharéis da diplomacia
brasileira conduziram uma diplomacia bastante previsível em seus grandes tra-
ços de alinhamento ao Ocidente durante a Guerra Fria, com alguns momentos de
aparente modernização, quando se tentou impulsionar ações e iniciativas próprias
do país, sempre voltado para as questões cruciais do desenvolvimento econômico.
O Brasil pretendia, por exemplo – tanto na conferência interamericana de
Bogotá, em 1948, quando se criou a OEA, quanto nas demais conferências eco-
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paulo roberto de almeida

nômicas subsequentes desse organismo, e nas reuniões da Cepal, ou no projeto


de JK de uma Operação Pan-Americana –, que os Estados Unidos financiassem
uma espécie de Plano Marshall para a América Latina, ou seja, a transferência
de capitais governamentais americanos para impulsionar o desenvolvimento
econômico da região. Os EUA sempre responderam – aliás pela boca do próprio
Marshall, em Bogotá – que os países latino-americanos deveriam reformar e
modernizar suas estruturas econômicas, abrir-se ao comércio e aos investi-
mentos estrangeiros, e apoiar-se bem mais nos capitais privados do que em
grandes projetos governamentais, se desejassem manter ritmos de crescimento
sustentável, ademais de melhorar a educação, a distribuição de renda e de
terras. As mesmas recomendações eram feitas, aliás, pela Cepal, assim como
pela OEA, pelo Banco Mundial e por muitos economistas estrangeiros e da
própria região. O Brasil, assim como outros países da região, aprecia os capitais
estrangeiros, mas não tanto os capitalistas estrangeiros, assim que o seu grau
de abertura externa sempre permaneceu limitado, estritamente dependente
de capitais de empréstimos.
O Brasil, em todo caso, soube fazer algumas escolhas estratégicas, como
foi a industrialização impulsionada pelos capitais estrangeiros da era JK, que
os nacionalistas da época depreciavam como sendo entreguista e submissa ao
imperialismo. O Brasil, de fato, deu seu primeiro passo no sentido de avançar
na industrialização plena nessa época, processo que depois seria completado
pelos militares, mas com as deformações estruturais que se conhecem – de
protecionismo excessivo, de introversão tecnológica, de custos muito altos –
que pesariam muito na fase ulterior de descontrole inflacionário e de baixo
coeficiente de abertura externa.
A chamada “política externa independente”, que teve início com Jânio
Quadros e Afonso Arinos, e continuou sob Jango e seus muitos ministros,
transformou-se numa espécie de mito histórico, tendo sido magnificada muito
além das realizações efetivas; ela aparece, retrospectivamente, como tendo
sido excepcional, devido, em certa medida, à radical reversão de orientações
na primeira fase do regime militar. Registre-se, porém, que esta reversão ao
alinhamento quase incondicional se desenvolveu por um tempo relativamente
limitado, pois a partir de 1967, no segundo governo da era militar, já ocorreria
uma recondução a padrões mais afirmativamente desenvolvimentistas e orien-
tados para o pleno exercício da soberania brasileira. As avaliações acadêmicas
sobre a PEI, assim como as dos próprios diplomatas, estão, talvez, ainda im-
pregnadas de certo viés saudosista e de algum sentimento de perda; caberia,
provavelmente, uma revisão historiográfica mais acurada, para recolocá-la em
seu contexto histórico de mudança geral nas relações internacionais – pro-
cessos como os da descolonização e de um começo de détente entre as duas
grandes potências – e também nos próprios padrões da diplomacia brasileira,
que seguia as transformações rápidas que passaram a ocorrer no país desde
meados dos anos 1950.
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padrões e tendências das relações internacionais...

2.4. O regime militar: consolidação do corporativismo diplomático

Consoante a intenção de discorrer brevemente sobre a diplomacia brasileira


das eras que precederam o período contemporâneo, cabe também ser breve
sobre o regime militar, em grande medida porque já existem dezenas de teses
acadêmicas e muitos livros sobre o período, inclusive do ponto de vista diplo-
mático, mas cuja qualidade e sobretudo objetividade, como soe acontecer em
relação a muitas outras avaliações dessa fase autoritária da história nacional,
podem ser consideradas divergentes, em função, precisamente, dos preconceitos
políticos e da memória “sentimental” da geração que viveu na carne aquelas
duas décadas de fechamento político e de muita contestação por parte da cha-
mada intelligentsia nacional. Tais circunstâncias políticas podem dificultar um
julgamento mais matizado sobre o período, feito de grandes traumas políticos,
é verdade, mas também de grandes avanços econômicos, ainda que marcados
pelo supercentralismo estatal e uma política de superaquecimento da máquina
econômica, o que parece ter ecos ainda atualmente. A historiografia brasileira
sobre o período também mereceria um sério esforço de revisão, para afastar
maniqueísmos e simplismos que ainda caracterizam boa parte da literatura
especializada produzida em torno e a propósito do regime militar.
Em todo caso, na diplomacia, depois de alguns poucos anos de alinhamen-
tos com o império – o que levou o Brasil a romper com Cuba, a enviar tropas
para a República Dominicana, e aprovar uns quantos atos favoráveis ao capital
estrangeiro na legislação econômica –, logo se voltou, até com maior empe-
nho, a um padrão de comportamento que foi chamado de desenvolvimentista
(certamente) e de terceiro-mundista, no sentido mais corriqueiro da palavra.
Em outros termos, se passou ao alinhamento em favor de teses reformistas
da ordem econômica internacional, do tratamento especial e diferenciado em
favor dos países em desenvolvimento, do princípio da não reciprocidade nas
relações comerciais, de modo a refletir as novas aspirações das economias que
buscavam industrialização e acesso a mercados. Os problemas da nova postu-
ra não estavam aí, contudo, e sim na tentativa de capacitação nuclear plena,
inclusive para fins não declarados, o que envolvia não apenas a recusa formal
dos mecanismos de não proliferação nuclear e de salvaguardas aplicadas às
tecnologias duais e sensíveis, como implicava também conflitos potenciais com
as potências guardiãs da ordem nuclear e com a própria Argentina, cujos suces-
sivos regimes militares (e também civis) perseguiam igualmente a tecnologia
nuclear, numa competição pouco saudável para ambos os países.
Ocorreram conflitos menores com os Estados Unidos, no terreno comercial
e em diversas votações dos organismos da ONU, no contexto subjacente do
enorme problema da dependência financeira e da quase completa dependência
da importação de petróleo, uma vez que o histórico nacionalismo petrolífero
não permitia qualquer associação da monopolista estatal com empresas es-
trangeiras, obviamente mais capacitadas em tecnologias de prospecção e de
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paulo roberto de almeida

exploração. Havia também o clima de renovada Guerra Fria, com a aparente


expansão mundial da União Soviética, o que levou o Brasil à participação em
alguns golpes contra regimes ditos progressistas na América do Sul, cujos
contornos e intensidade não foram ainda totalmente esclarecidos pelos arqui-
vos militares e diplomáticos. De resto, os militares conduziram uma política
econômica, e externa, bastante nacionalista e autárquica, o que levou o Brasil a
inacreditáveis índices de autossuficiência no abastecimento interno, que jamais
seriam igualados desde então, embora o protecionismo comercial continue
renitente, e até renovado em sua pujança.
O regime militar foi, justamente, mais derrotado pelos seus erros econô-
micos – inflação galopante, crise da dívida externa, crescimento errático – do
que pela eventual dureza da ditadura política, relativamente morna comparada
a padrões mais brutais observados em países vizinhos. Os cidadãos brasileiros
saíram às ruas para protestar contra a ausência de eleições diretas, mas, na ver-
dade, a transição foi negociada e basicamente aceita pelos militares, inclusive
porque se partiu de uma dupla anistia que alguns pretendem atualmente revisar,
com certo ânimo de vingança. O regime militar se esgotou nele mesmo, mais
do que foi derrubado pelas forças de oposição, ainda que existisse um forte
movimento de opinião contrária. Os militares não tinham sucessor próprio, e
aceitaram compor, em 1984, com o candidato moderado das oposições.
No âmbito da política externa, pode parecer estranho, mas foi um dos pe-
ríodos em que os diplomatas se sentiram mais “livres”, se cabe o contraditório,
no sentido em que a corporação dos militares respeitava muito a casta dos
diplomatas e lhe concedeu, salvo em poucas áreas consideradas de segurança
nacional, ampla autonomia política e operacional, inclusive com os vários di-
plomatas se sucedendo à frente do Itamaraty. A Casa se profissionalizou mais
ainda, criando uma corporação bastante autocentrada, que depois seria objeto
de críticas de certa diplomacia partidária que se manifestou mais adiante. Em
todo caso, a autonomia funcional obtida durante o regime militar tinha suas
peculiaridades e a historiografia especializada ainda precisa fazer o balanço
dessa época, no que tange ao aparato institucional do Itamaraty no período.
Sob o regime militar, os valores e princípios essencialmente profissionais
cultivados pela diplomacia foram ainda mais acentuados por uma relativa intro-
versão do corpo diplomático no estrito cumprimento de seus deveres funcionais,
o que de certa forma foi permitido pelo mútuo respeito que mantinham as duas
corporações mais tradicionais do Estado brasileiro – soldados e diplomatas –,
aliás, de qualquer estado. Assim, o estamento diplomático preservou as tradi-
ções de profissionalismo e de adesão aos grandes princípios, mesmo quando
certas iniciativas do regime – em relação a governos progressistas na América
do Sul, por exemplo – destoaram do padrão normalmente seguido pela estrita
política de não intervenção do Itamaraty.
O alto profissionalismo de seu corpo de funcionários permanentes, o res-
peito absoluto ao direito internacional, a seriedade no tratamento dos dossiês
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padrões e tendências das relações internacionais...

diplomáticos, a preservação das tradições herdadas do Império (de fato, as boas


qualidades da velha diplomacia lusitana) passaram a ser, assim, uma marca
distintiva do serviço exterior brasileiro em face de congêneres no continente
e além. “El Itamaraty no improvisa” era uma frase muito ouvida na Casa de Rio
Branco durante décadas, tanto se tornou um refrão repetido incessantemente
durante anos a fio, mas caberia indagar se ela ainda é válida, não exatamente na
diplomacia, mas na política externa. A principal ferramenta da diplomacia é o
corpo de funcionários permanentes a ela dedicados, mas o conteúdo mesmo da
política externa é dado pelo soberano, seja ele, dependendo do país, o monarca,
um chefe de gabinete, o presidente ou até um ditador ou uma junta militar.

3. A redemocratização e as relações exteriores do Brasil

A quinta etapa desta periodização tentativa é a atual, aliás imediatamente


contemporânea, fase que costuma ser enfeixada sob o conceito de redemocrati-
zação, ou de Nova República, o que parece pouco apropriado para uma correta
apreciação de todos os seus matizes e rupturas, por vezes dramáticas, seja no
plano político, seja, especialmente, na área econômica. O termo tampouco se
presta a uma caracterização mais precisa de suas implicações e peculiarida-
des do ponto de vista da política externa; esta tem a ver com a capacidade de
projeção externa e de defesa dos interesses do país no plano mundial, o que
também tem pouco a ver com a natureza de um determinado regime político.
Algumas considerações iniciais, de caráter conceitual, são de rigor.
Ditaduras exibem política externa e capacidade de projeção internacional,
tanto quanto as democracias. Por vezes se tem a situação esdrúxula de ver
democracias ditas ideais se comportarem de modo arrogante no plano exter-
no – comportamentos ditos imperiais, ou unilaterais –, assim como perfeitas
ditaduras podem exibir, por exemplo, uma política externa formalmente correta,
sem ofender o direito internacional. É claro que um país democrático sempre
possuirá uma melhor imagem internacional do que uma ditadura aberta. O Brasil
dos militares não conformou a pior das ditaduras do planeta, e certamente não
no plano regional, mas não se pode negar que a volta à democracia e o respeito
aos direitos humanos, tanto quanto a estabilidade econômica, fizeram um bem
enorme ao Brasil, desde meados dos anos 1980 e especialmente após conquistada
a estabilidade econômica. Ainda persistem problemas quanto ao respeito dos
direitos humanos, não por motivos políticos, mas de pessoas comuns; também
esses aspectos serão corrigidos, pouco a pouco...
A redemocratização é, portanto, um conceito inadequado, para discorrer sobre a
evolução e as novas características da política externa brasileira, que deve ser vista
em seu âmbito próprio, inclusive porque a diplomacia pode guardar certa distância
das tribulações da política interna. Por isso mesmo, uma nova subdivisão se impõe
como forma de apreender as mudanças ocorridas ao longo do último quarto de século.

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paulo roberto de almeida

3.1. Uma periodização diplomática para o período contemporâneo

O ano de 1985 é o ponto de partida de um período marcado pela reconstrução


constitucional do país, depois de mais de duas décadas de regime autoritário mili-
tar. Ele foi seguido pelos anos turbulentos de reformas econômicas e sociais, com
a chamada ruptura do “neoliberalismo” – um termo profundamente equivocado,
mas que pode contentar os mais estatizantes, ao risco de descontentar os verda-
deiramente liberais. O período de reconstitucionalização foi marcado por algumas
importantes mudanças conceituais e práticas nas relações internacionais do Brasil.
Essa segunda fase do período contemporâneo foi especialmente conturbada
em todas as frentes das políticas públicas, mas ela desembocou no processo de
estabilização macroeconômica comandada por FHC – primeiro como ministro
econômico, depois em dois mandatos como presidente –, ela mesma profun-
damente perturbada pelas crises financeiras dos anos 1994 a 2002, com todos
os ajustes adicionais que o país teve de fazer para superar essas conjunturas
difíceis nos contextos econômicos nacional e internacional. Finalmente, a
partir de 2003, o país entrou numa fase bem diferente das precedentes, e que
continua, mesmo na ausência do seu promotor e patrono, com políticas na área
externa bastante distintas daquelas seguidas nos períodos anteriores.
Pode-se distinguir, pois, quatro grandes fases da vida política e econômica
nacional, desde o final do regime militar, às quais não caberia, por enquanto,
atribuir qualquer novo rótulo simplista, o que aliás denotaria uma falsa iden-
tidade entre, de um lado, os processos em curso nos terrenos da política e da
economia, na frente doméstica e no plano internacional, e, de outro lado, nas
relações internacionais do país, uma área que por vezes apresenta um compor-
tamento de certa forma autônomo em relação aos desdobramentos que ocorrem
no cenário interno no período contemporâneo imediato.
Essa relativa autonomia das relações exteriores do país, em relação às du-
ras realidades da conjuntura interna, pode ser vista como algo relativamente
natural, considerando-se as distintas modalidades de tomada de decisões em
cada frente, ou os procedimentos adotados na condução das relações exterio-
res, mais autocentrados, em face, por exemplo, das intensas pressões que se
exercem em qualquer área das políticas públicas na frente interna. Ela também
depende da personalidade e do engajamento do presidente, que dispõe de ampla
margem de manobra nessa área, mas que também pode escolher para liderá-la
um aliado político ou um profissional da própria diplomacia, casos nos quais
se apresentam agendas e resultados eventualmente diferentes, em função das
próprias personalidades e suas perspectivas políticas. Não se pode tampouco
negligenciar os influxos ou demandas externas, já que a agenda internacional
se faz, ou se constrói, a partir de outras forças e outras dinâmicas, às quais o
país nem sempre consegue influenciar ou se adaptar de modo adequado, sem
falar de crises externas, ou de desequilíbrios internos que se transformam em
crises de transações correntes ou em outros desafios do gênero.
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padrões e tendências das relações internacionais...

Em qualquer hipótese, uma característica distingue profundamente as três


primeiras fases deste exercício de periodização de sua fase mais recente, a que se
desenvolve no presente, enfeixada sob o rótulo ainda provisório do “lulopetismo”.
Nos três primeiros períodos – chamemo-los, simplificadamente de “redemocra-
tização”, de “ruptura neoliberal” e de “reformas globalizadoras” – as relações
exteriores do Brasil, no plano estritamente diplomático, estiveram enfeixadas,
talvez dominadas, pelo staff diplomático, ou seja, o próprio corpo de profissio-
nais do Itamaraty, que forneceu alguns ministros, conselheiros presidenciais
e, mais importante, determinou grande parte da agenda externa, senão toda
ela; ocorreu, também, o fato relativamente inédito, desde a ditadura do Estado
Novo, de uma grande estabilidade na condução da política econômica, com um
único ministro da Fazenda a permanecer durante dois mandatos presidenciais
no comando da pasta. O período do “lulopetismo” foi caracterizado por muitos
observadores como sendo o de uma diplomacia partidária, o que parece evidente
em muitas opções de política externa, com claro distanciamento em relação às
linhas tradicionais de ação do Itamaraty, e também pelo fato de que o conse-
lheiro presidencial é um funcionário do partido, bem menos identificado com
as posturas relativamente neutras do corpo diplomático em diversas matérias
da política internacional e regional.
Cabe agora examinar, na sequência, os padrões e as características das re-
lações internacionais do Brasil no período atual, ou seja, na fase da redemocra-
tização estrito senso, na fase da ruptura “neoliberal” e dos ajustes reformistas,
ambos dos anos 1990, e, finalmente, na fase da diplomacia partidária iniciada
com o “lulopetismo”, ainda em curso. Serão igualmente sugeridos alguns ele-
mentos interpretativos sobre as grandes tendências da diplomacia brasileira
em cada uma dessas fases, com considerações finais sobre as características
do desenvolvimento brasileiro e seus desafios mais importantes.

3.2. A restauração constitucional e os erros econômicos

O processo de reconstitucionalização do país, engajado ao término do


regime militar e no seguimento de diversos outros atos relevantes da história
política do País, não foi efetuado mediante a convocação de uma Assembleia
Constituinte exclusiva, que tivesse trabalhado independentemente das deman-
das que normalmente se exercem sobre os representantes e partidos engajados
na luta pelo poder. Optou-se por um Congresso Constituinte, que procedeu em
bases relativamente inéditas, mesmo tendo sido precedido por uma Comissão
Constitucional, da qual ele não acolheu formalmente as propostas feitas por
um grupo selecionado pelo vice-presidente, escolhido na eleição indireta feita
no período autoritário, empossado como presidente na doença do titular.
A Constituição saída desse exercício não produziu alterações radicais no
plano das relações internacionais do Brasil, mas algumas características merecem
ser apontadas na sequência desta apresentação. O novo texto constitucional

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paulo roberto de almeida

contemplou toda uma gama de novas garantias e benefícios constitucionais que


repercutiram de maneira definitiva na organização econômica e social da nação,
mas negativamente, já que distribuindo favores a todos, numa demonstração
de inconsciência econômica que corre o risco de comprometer, de maneira
estrutural e sistêmica, as possibilidades de crescimento sustentado no Brasil.
O contrato social efetuado pela nova constituição andou na direção de distri-
buir renda e favores, antes de acumular produção e renda ampliada, distorção
econômica que ainda não foi corrigida pelos contemporâneos.
A fase da democratização foi marcada por essa mudança política fundamen-
tal, ou seja, uma Carta prolixa, carregada de direitos e benefícios para todos os
brasileiros, exageradamente nacionalista, ou introvertida, num momento em
que o mundo se abria a nova fase da globalização. Mas essa fase também esteve
caracterizada por uma inegável deterioração da situação econômica, o que levou
as autoridades econômicas a implementar diversos planos de estabilização,
todos fracassados até o advento do Plano Real. O Brasil acumulou, nesses anos
de 1985 a 1994, mais inflação do que em toda a sua história pregressa, estimada
por alguns economistas em cifras astronômicas, na casa de alguns quatrilhões
por cento, com todas as trocas de moedas.
Não parece existir, na história econômica mundial, algum outro país que
tenha tido, não uma ou duas trocas de moedas, mas cinco ou seis instrumentos
monetários sucessivos, num turbilhão de inflação e de mudança de regras poucas
vezes visto no cenário mundial das hiperinflações. Senão vejamos: do cruzeiro
ao cruzado, em 1986, depois ao cruzado novo, dois anos depois, seguido pela
volta ao cruzeiro, logo adiante, que foi por sua vez substituído pelo cruzeiro
real, até chegar ao real, passando por uma moeda indexada, a URV, unidade
real de valor. Isso se descontarmos a troca do cruzeiro pelo cruzeiro novo, em
1967, voltando ao antigo padrão três anos depois, que por sua vez já tinha se
substituído ao mil-réis (uma moeda já inflacionada, como evidenciado pelo seu
próprio nome) em 1942. Em matéria de padrões e mudanças de regimes eco-
nômicos e monetários, o Brasil foi, sem dúvida alguma, um campeão mundial.
As mudanças constitucionais nas relações internacionais estrito senso,
foram menos relevantes, ou quase imperceptíveis, registrando-se apenas a
consolidação dos valores e princípios pelos quais se deveria guiar o Brasil –
promoção e defesa dos direitos humanos, por exemplo, repúdio ao terrorismo,
entre outros – e a inscrição, inédita nos textos anteriores, da busca da integra-
ção latino-americana como uma espécie de obrigação constitucional imposta
ao país no seu relacionamento com os vizinhos. A demanda pela integração
regional pode ser até legítima, mas deve-se reconhecer que ela é rara nos anais
do constitucionalismo mundial, podendo talvez existir no contexto europeu
nas últimas duas ou três décadas.
Esse preceito da integração latino-americana – pela qual lutou o senador
Franco Montoro – cria, em todo caso, uma agenda praticamente compulsória
para as relações exteriores do país, que terá de buscar atender ao requisito, in-
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padrões e tendências das relações internacionais...

dependentemente do contexto regional, das condições políticas e econômicas


vigentes nos países vizinhos, de suas orientações políticas, ou de sua própria
factibilidade, para não dizer de sua razoabilidade ou racionalidade econômica.
Alguns economistas poderiam argumentar que, de um ponto de vista estrita-
mente econômico, seria muito melhor a abertura econômica e a liberalização
comercial unilateral, e a ênfase nos acordos multilaterais, antes que nos esque-
mas minilateralistas, sempre discriminatórios, do que essa necessidade de se
construir um bloco econômico regional, mas aparentemente ninguém cogitou
mudar esse dispositivo, no quadro de emendas constitucionais que foram cor-
rigindo, nos anos 1990, os excessos mais evidentes do nacionalismo econômico
e do estatismo renitente do texto original da Constituição.

3.3. Os anos turbulentos das revisões radicais do momento neoliberal

A presidência Sarney, a despeito do nome pretensioso de Nova República,


representou um retorno do sistema político aos padrões mais usuais da Velha
República, com criação de ministérios, cargos, distribuição de favores, a própria
mudança para um mandato de cinco anos, no regime presidencialista, contra
as expectativas constituintes de um regime de feições mais parlamentaristas e
de um retorno aos quatro anos tradicionais da Velha República. A presidência
Collor, por sua vez, constituiu um episódio inédito para os padrões conhecidos
na Velha ou na Nova República. Começou com uma promessa praticamente
impossível, de terminar com a inflação – que ao finalizar o governo Sarney
alcançava 80% ao mês – com um golpe de “ippon”, típica de um lutador de caratê,
e terminou com a vitória da inflação sobre o caçador de marajás, e seu afasta-
mento da maneira mais melancólica possível, por acusações de corrupção e de
desvio de recursos públicos. Em todo caso, o governo realmente começou com
um “ippon”, mas sobre as contas dos cidadãos, com o sequestro compulsório
de todas as contas bancárias superando um determinado valor; aquele golpe
efetivamente paralisou a dinâmica da inflação durante algum tempo, inclusive
porque, entre outras violências econômicas e constitucionais, o Plano Collor
representou o tabelamento de contratos, tarifas e outros valores, que engessa-
ram a economia num beco sem saída, ou com saídas cada vez mais arbitrárias
que representaram, ao mesmo tempo, a volta da inflação, em patamares até
mais agressivos do que antes.
A despeito dos malabarismos econômicos, o governo Collor também sig-
nificou outras transformações no plano da política externa, com implicações
importantes ainda hoje, vários deles até positivos para o Brasil, pelo menos
numa perspectiva contrária ao que vinha ocorrendo até então, ou ao que poderia
ocorrer, se o candidato socialista, Lula, tivesse conseguido ser eleito naquela
ocasião, quando o PT defendia um tipo de política econômica diferente do que
veio a sustentar quando do primeiro mandato do líder sindical. Com efeito, se-

150 |
paulo roberto de almeida

gundo as promessas do candidato do PT – todas no sentido da nacionalização,


estatização, socialização, protecionismo, rompimento de contratos e recusa do
pagamento das dívidas públicas –, uma eventual presidência petista poderia
aproximar o Brasil bem mais de um governo à la Salvador Allende do que de
um líder socialista moderado como Felipe González, responsável pelo ingresso
da Espanha na OTAN, na Comunidade Econômica Europeia, pela abertura aos
investimentos estrangeiros e outras atitudes contrárias aos velhos dogmas so-
cialistas aos quais se aferram ainda alguns personagens em outros continentes.
Ao lado da abertura econômica e da liberalização comercial – com uma im-
portante reforma tarifária que fez com que o Brasil passasse do protecionismo
exacerbado para um protecionismo relativamente moderado, para os padrões
históricos da nossa introversão comercial –, o governo Collor tinha a pretensão
de retirar o Brasil da condição de primeiro dos países pobres para o último dos
países ricos, ou seja, deslocá-lo do grupo dos países em desenvolvimento para o
clube da OCDE. Ele não o conseguiu, obviamente, inclusive porque as reformas
ficaram no meio do caminho, e as resistências de grupos de interesse foram
mais fortes do que as intenções do presidente. Mas ele começou a reformular
diversos outros aspectos da política externa que estavam colocando o Brasil na
condição de “pária” do sistema internacional, como, por exemplo, no terreno
da não proliferação e das tecnologias sensíveis, ou de uso dual.
Com efeito, o Brasil mantinha, ao lado do programa nuclear legal e reconhe-
cido, baseado na construção de centrais nucleares com tecnologia estrangeira e
a supervisão da AIEA, um programa paralelo e clandestino, de natureza militar,
que visava alcançar o domínio tecnológico e o desenvolvimento prático de um
artefato explosivo, o que de resto se chocava com dispositivos mandatórios
da Constituição nesse aspecto. Collor operou, portanto, a primeira viragem
decisiva na política nuclear brasileira, ao terminar com as loucuras militares,
ao aceitar a ratificação plena do tratado de Tlatelolco e ao dar prosseguimento
à construção de confiança com a Argentina nessa área, que levaria à assinatura
do acordo quadripartite de salvaguardas extensivas – Brasil, Argentina, Abacc
e AIEA – e, mais adiante, à aceitação, já por FHC, do famigerado TNP, o Tratado
de Não Proliferação Nuclear de 1968, gesto pelo qual este último é considerado
um traidor dos interesses nacionais por vários militares e alguns diplomatas. As
escolhas decisivas foram feitas por Collor, e independentemente dos fracassos
econômicos, esse crédito diplomático lhe deve ser inteiramente concedido.
Em um outro aspecto, ele também significou um avanço, que ocorreu no
âmbito da política econômica externa, mais especificamente, no contexto da
integração regional. O processo com a Argentina teve início em meados dos
anos 1980, sobre a base de protocolos setoriais, visando uma complementação
produtiva e uma abertura apenas recíproca, que deveria ser flexível, gradual e
administrada; ou seja, se tratava de um modelo de abertura comercial limitado,
conduzindo a fluxos administrados pelos dois governos, numa concepção que
se aproximava mais do mercantilismo do século 17 do que do multilateralismo
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padrões e tendências das relações internacionais...

ilimitado, incondicional e não discriminatório do século 20. O que o governo


Collor fez foi, por meio da Ata de Buenos Aires, de julho de 1990, substituir o
esquema em vigor dos protocolos setoriais e do Tratado de Integração de 1988
por um mecanismo automático, irrecorrível e universal – ou seja, não mais se-
torial – de reduções tarifárias, conduzindo ao livre comércio com a Argentina
na metade do tempo previsto no tratado em vigor (que, aliás, não garantia que o
livre comércio, ou o mercado comum, viessem realmente a existir nos dez anos
anteriormente previstos). Nascia aí, verdadeiramente, o Mercosul, que só veio
a ser quadrilateralizado um ano depois, mas sobre os mesmos dispositivos de
abertura econômica e de liberalização comercial que tinham sido concertados
entre os governos Collor e Menem.
O fato de o Mercosul não ter avançado em fases posteriores, ou de ter até
regredido, institucionalmente, na fase recente, não tem muito a ver com desvios
“neoliberais” cometidos pelos dois governos. Quem conhece o protecionismo
exacerbado vivido pelos dois países nos anos anteriores à década de 90, não pode
em sã consciência achar que o Brasil ou a Argentina estivessem se rendendo
ao capitalismo internacional com o modesto grau de abertura operado naquele
momento por esses dois governos, apenas em algumas frentes econômicas. A
culpa da estagnação relativa e do real retrocesso institucional do Mercosul
tem a ver com o descumprimento, pelos governos ulteriores, sobretudo na fase
recente, de cláusulas fundamentais do Tratado de Assunção, não por causa dos
mecanismos antes criados para operar o estabelecimento de um mercado co-
mum, ou pelo menos de uma união aduaneira, entre os quatro países membros.
Brasil e Argentina retornaram ao protecionismo rústico dos anos 1970 e 80,
sendo que a Argentina parece ter retornado às patéticas medidas de controles
de capitais e de manipulações cambiais típicas da época da grande depressão,
nos anos 1930.

3.4. Estabilização macroeconômica e nova presença internacional

Depois do furacão Collor, o Brasil entrou em outro tipo de furacão, mas sob
a presidência honesta, ainda que confusa, do vice-presidente Itamar Franco,
conhecido pela sua perfeita correção política, mas por alguns rompantes eco-
nômicos, que o fizeram trocar três ou quatro vezes de presidentes do Banco
Central e de ministros da Fazenda. Finalmente, e para sua sorte, um senador
que resolveu esquecer o que tinha escrito nos tempos de desvarios acadêmicos,
em torno da teoria da dependência, deu à presidência Itamar a melhor marca
de reconhecimento nacional a que um governo pode aspirar numa era turbu-
lenta como a que o Brasil viveu, com a inacreditável aceleração inflacionária
do início dos anos 1990.
Com origem nos diversos planos frustrados de estabilização que tinham sido
ensaiados desde o governo militar, e de forma crescente e recorrente na “Nova
República”, o Brasil passou de uma inflação anual de três dígitos para a casa do

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paulo roberto de almeida

milhar, e já tendo conhecido seis trocas de moedas no espaço de uma geração. O


que o senador Fernando Henrique Cardoso fez, para seu crédito pessoal, e com a
aprovação do presidente, foi juntar uma equipe de jovens e ousados economistas
que souberam colocar as bases de um processo de estabilização macroeconômica,
não mais baseado em golpes milagrosos e repentinos, mas atacando as bases da
dinâmica inflacionária, autoalimentada pelo mecanismo de indexação generalizada
que tinha se estendido por toda a economia brasileira, mas de forma anárquica e
sustentado nos mais diversos indicadores de correção de valores (dólar, títulos
públicos, índices de preços e o que mais servisse para garantir alguma reposição
do poder de compra de uma moeda que já não mais servia de parâmetro para as
suas três funções fundamentais e tradicionais).
O Plano Real, cujas características não é necessário descrever aqui, teve
uma importância fundamental também para a política externa, pois significou
igualmente a recuperação da credibilidade do Brasil nos mercados interna-
cionais, não apenas em termos de atração de investimentos e de contratos
financeiros externos, mas sobretudo no que se refere à capacidade do Brasil de
engajar-se em processos negociadores com parceiros internacionais em con-
dições minimamente previsíveis quanto à preservação da legalidade jurídica
e à capacidade do país de honrar seus compromissos externos, num ambiente
liberado das ameaças de mudança contínua de regras como tinha sido o caso
até ali, e praticamente desde o início da crise do petróleo, ainda nos anos 1970.
Com a casa colocada novamente em ordem a partir do início dos seus dois
mandatos, FHC pôde dar continuidade à política externa de abertura modera-
da nos planos regional e mundial e, de forma geral, em relação à globalização,
o que era inédito para os padrões históricos do Brasil desde o entreguerras e
que, de certa forma, também voltou a patamares ainda mais modestos na sua
sucessão. O Brasil abandonou o conceito difuso de América Latina, em favor
do espaço geográfico bem mais concreto da América do Sul, avançou bastante
na construção de mecanismos de inserção nos foros mais sensíveis da agenda
mundial de segurança – nos terrenos nuclear, espacial, e de exportações de
equipamentos de uso dual – e também desenvolveu um diálogo desprovido de
vieses ideológicos com as entidades multilaterais da globalização financeira, o
que foi relevante em função das turbulências por que o mundo passou a partir
das crises do México (1994), da Ásia (1997), da moratória russa (1998) e da
própria crise brasileira de 1999, logo seguida pela crise terminal do modelo
argentino de estabilização (com forte impacto no Brasil).
FHC estimulou o que passou a ser chamado de diplomacia presidencial, para
a qual ele estava amplamente preparado desde seus curtos meses de chanceler,
no início do governo Itamar Franco, e em função de sua experiência como
acadêmico conhecido internacionalmente. Os bons resultados foram em certa
medida obscurecidos pela ocorrência de crises externas e internas, justamente,
comprovando, assim, que o processo de estabilização deve ser levado de modo
contínuo em todas as frentes da economia, sobretudo nos planos fiscal e mone-
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padrões e tendências das relações internacionais...

tário. O Plano Real foi amplamente bem sucedido ao desmantelar os aspectos


mais nefastos da indexação generalizada em que vivia o Brasil, mas pelo fato
de que o presidente Itamar se opunha veementemente a qualquer tratamento
de choque, ou recessivo, os ajustes fiscais foram muito moderados e tiveram
de ser compensados por uma taxa de juros relativamente alta, inclusive porque
estados e municípios ainda não tinham se ajustado aos novos tempos e ainda
não existia a Lei de Responsabilidade Fiscal ou o câmbio flutuante.
Deve ser registrado, porque se trata de fato histórico importante para a correta
avaliação da trajetória ulterior do Plano Real, que o Partido dos Trabalhadores se
opôs frontalmente à sua implementação, em quaisquer de suas etapas, tentando
inclusive embargar a Lei de Responsabilidade Fiscal em processo movido junto ao
STF; o partido empreendeu igualmente uma campanha de desinformação, antes
e depois, em relação não apenas aos aspectos internos do plano de estabilização
macroeconômica, como também no que se refere aos acordos concluídos no pla-
no externo com o Fundo Monetário Internacional, objetivando a superação das
fragilidades cambiais do país. Felizmente, a primeira administração do governo
do PT soube preservar os elementos mais relevantes do Plano Real, ainda que nas
administrações posteriores determinados aspectos (metas de inflação, superávit
primário e flutuação cambial) tenham conhecido sensível deterioração, tal como
confirmado pelos principais indicadores econômicos.
Diversas das iniciativas exibidas posteriormente pelos governos do PT
como feitos “inéditos” na política externa a partir de 2003 – nos terrenos da
integração, das negociações comerciais internacionais e inter-regionais, do rela-
cionamento com parceiros ditos estratégicos – tinham sido de fato iniciadas sob
os dois mandatos de FHC. O governo FHC se beneficiou apenas parcialmente
do crescimento meteórico da China, cuja demanda elevou a níveis historica-
mente inéditos os preços das commodities exportadas pelo Brasil a partir de
2004 e ajudou na própria expansão do PIB durante o governo Lula. Bafejado
pela procura chinesa, este último pouco fez para estimular a competitividade
brasileira, anteriormente beneficiada pelas medidas de abertura adotadas pelos
governos FHC, em especial, a revisão radical dos aspectos mais discriminató-
rios e economicamente irracionais da carta constitucional de 1988 e a correção
cambial feita em 1999. Depois de FHC, nenhuma outra reforma estrutural foi
empreendida pelos governos do PT para dar continuidade aos processos de
abertura comercial e de inserção econômica internacional do Brasil.

3.5. Por fim, a era do “nunca antes”: a diplomacia personalista de Lula

A fase atual, finalmente, corresponde à era do “nunca antes”, a este período


inédito na história do Brasil durante o qual todos os recursos da propaganda
governamental e da retórica presidencial foram mobilizados para dar a im-
pressão de que o país ingressava numa era de ouro, jamais vista desde Cabral

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paulo roberto de almeida

e impossível de ser igualada pelas gerações que seguirão nos próximos anos ou
décadas. Não se deve ser muito derrogatório com um governo que, finalmente,
ao preservar todos os elementos essenciais da política econômica anterior – que
os petistas chamam, com bastante má-fé, e de forma algo ignorante, de neoli-
beral –, conseguiu manter o Brasil ao abrigo de um retrocesso econômico que
não deixou de ocorrer em diversos países da região; de fato, em vários deles se
observa, de forma circunstancial ou cumulativa: retorno da inflação, fuga de
capitais, manipulações cambiais, recrudescimento do protecionismo, enfim,
desorganização da vida econômica, embora alguns desses aspectos começam
a ser visíveis também no Brasil, e de maneira bastante preocupante.
Atendo-se exclusivamente aos aspectos diplomáticos do governo do “nunca
antes”, pode-se aliás argumentar que, nem sob esse aspecto, o panorama é total-
mente inédito. Ao presidir a uma diplomacia superpresidencialista, e bastante
personalista, Lula, segundo o grande intelectual da diplomacia que é o embaixador
Rubens Ricupero, conduziu uma política externa de roupagem gaullista, ou seja,
moldada na figura do General De Gaulle. Vários diplomatas, que acompanharam
em momentos diversos os passos da diplomacia lulista, confirmam que o Itamaraty
foi colocado a serviço pessoal do chefe de Estado, de suas muitas viagens e de
sua desenvoltura nos contatos com vários líderes internacionais, inclusive com
personalidades que, por suas características especiais, não frequentam muito
os foros internacionais ou não são convidados amiúde para visitas bilaterais;
algumas das afinidades eletivas do governante e de seu partido foram de fato
inéditas em todos os planos, a começar pela ilha dos irmãos Castro.
A diplomacia do “nunca antes” assistiu, de fato, a eventos nunca antes vistos
na história do Itamaraty, como a aceitação passiva de uma expropriação violenta
e unilateral feita contra um patrimônio nacional por país vizinho; registrou-se,
ainda, o rompimento do velho preceito constitucional da não intervenção em
assuntos internos de outros países, inclusive no que tange ao apoio eleitoral a
candidatos ditos progressistas, bem como, de forma geral, alianças com regimes
e governos que provavelmente não passariam em alguns testes elementares
em relação a princípios democráticos e de respeito aos direitos humanos. A di-
plomacia do “nunca antes” foi, sobretudo, uma diplomacia partidária, o que foi
formalmente confirmado pelo próprio presidente em discurso feito num dia
do diplomata, no Itamaraty, ao se referir ao seu assessor internacional como
o companheiro dedicado a manter as relações com os partidos de esquerda da
América Latina. Impossível não concordar com o argumento, quando fatos
como esse são confirmados nesse nível de responsabilidade governamental.
O Brasil de fato aumentou sua presença no mundo, abriu embaixadas em
lugares nunca dantes explorados e contraiu várias “parcerias estratégicas”,
em nível bilateral, plurilateral ou de grupo, que duplicaram a capacidade de
expressão do país nos mais diferentes cenáculos internacionais. O ativismo
dessa diplomacia foi realmente exemplar, embora em alguns episódios possa ter
ocorrido mais transpiração do que propriamente inspiração, como evidenciado
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padrões e tendências das relações internacionais...

nos casos das relações com a China, nas frustradas tentativas de fazer a paz
no Oriente Médio, de se envolver numa solução ao programa nuclear iraniano
(em grande medida clandestino), ou na própria pretensão – ilusória, para os
diplomatas experientes – de exercer uma liderança na região, como base para
um salto de qualidade no plano mundial.
Alguns erros de cálculo foram cometidos, inclusive no trato com alguns
países vizinhos, assim como foram mantidas expectativas irrealistas quanto à
realização de diversos objetivos retoricamente proclamados. Em certos temas
da agenda externa, observou-se um descompasso completo entre um diagnós-
tico realista das opções abertas ao Brasil e intenções idealistas constantemente
exibidas, seja quanto à “transformação das relações de força no mundo”, seja
quanto a uma fantasmagórica “nova geografia do comércio internacional”.
A China, por exemplo, já tem a sua geografia comercial bem assentada: ela
importa matérias-primas de todos os fornecedores possíveis, e exporta seus
manufaturados – grande parte produtos de design e tecnologia ocidentais – para
todos os mercados abertos ao engenho e arte de seus diplomatas e mercadores
absolutamente pragmáticos quanto aos resultados esperados, sem qualquer
concessão a veleidades ideológicas ou uma patética aliança de não hegemônicos
contra os poderosos do mundo. A maior parte dos países, aliás, segue os mesmos
preceitos: eles procuram antes trabalhar na perspectiva de ganhos concretos
do que simplesmente projetar transformações imaginárias do cenário mundial.
São muitos, de fato, os aspectos inéditos da diplomacia partidária na era do
“nunca antes” e seria especioso discorrer sobre acertos e desacertos da política
externa de Lula e dos seus companheiros de partido. A historiografia futura,
provavelmente mais sensata que certos vieses acadêmicos atualmente em curso,
se encarregará de filtrar, e de avaliar, na sua justa medida, os aspectos positivos
e os menos positivos dessa diplomacia que foi de verdade especial, sem que se
possa dizer se o Brasil real, o do seu sistema produtivo e o da sua capacidade
de competição internacional, tenha usufruído da pirotecnia praticada durante
a década “lulopetista” na política externa. O Brasil perde espaço nos mercados
internacionais – e o grande debate no momento é o da desindustrialização – e
a integração regional não avançou de fato nos aspectos que deveriam contar: a
abertura recíproca de mercados, a inserção das economias dos países-membros nas
redes produtivas mundiais (de fato, ocorreu o contrário), e até o livre-comércio,
que deveria vigorar internamente ao bloco, tem retrocedido a olhos vistos.
Dos três grandes objetivos da diplomacia lulista – a obtenção de uma ca-
deira permanente para o Brasil no Conselho de Segurança da ONU, o reforço
e a expansão do Mercosul e a conclusão exitosa das negociações comerciais
multilaterais da Rodada Doha –, não se pode dizer que algum deles tenha sido
conquistado, sequer arranhado. O Mercosul, a despeito de preservado, perde
espaço na interface externa do Brasil e abandonou quase completamente suas

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paulo roberto de almeida

características iniciais, por sinal as únicas legítimas, já que derivadas do Tratado


de Assunção, uma promessa frustrada. Pode-se, nessas condições, fazer um
balanço esplendoroso, como pretendem seus executores, do “nunca antes”
diplomático? Para todos os efeitos, a formidável máquina de propaganda do
PT – construída, diga-se de passagem, com vários milhões ou bilhões de reais
de recursos públicos – vai encarregar-se de passar uma imagem fabulosa destes
tempos inéditos, quando se alega que tudo foi realmente maior e mais vigoroso
do que antes, inclusive em certos aspectos talvez menos recomendáveis.
Parafraseando uma expressão muito conhecida, poder-se-ia dizer da diplo-
macia lulista que, onde ela foi nova, não foi boa; e onde foi passavelmente boa,
ou apenas razoável, não era nova. A diplomacia presidencial, por exemplo, já
existente (mas nunca referida sob esse conceito), foi levada a extremos, e isso
não é bom, nem para a diplomacia, nem para a figura do presidente, de qual-
quer presidente. Presidentes devem se reunir quando todos os estudos técnicos
tenham sido feitos pelos diplomatas e quando os chanceleres tenham limpado
o terreno para a assinatura e os discursos, geralmente vazios e anódinos, dos
presidentes; nunca antes na história diplomática do Brasil tivemos tantas vezes
o presidente, com suas contrapartes regionais ou externas, discutindo projetos
e novas iniciativas, que deveriam ficar no âmbito das chancelarias respectivas.
Presidente é a última linha de decisão, não a primeira de discussão.
Por outro lado, nunca antes na história da região se fizeram tantas reuniões
de cúpula, e não se pode dizer que a causa da integração tenha avançado satisfa-
toriamente com toda a retórica a seu favor. Ao contrário; a América Latina está
fragmentada em pelo menos três modelos, ou experimentos, de organização
regional, um dos quais é declaradamente anti-integracionista, a despeito de
toda as proclamações em contrário: o bolivarianismo só se sustenta à base de
petrodólares chavistas e com indução estatal de um subcomércio totalmente
desequilibrado; o segundo modelo é o livre-comércio e o da inserção nas redes
mundiais de integração produtiva, o da Aliança do Pacífico, ou da abertura unila-
teral à la chilena; no meio, sem uma caracterização mais precisa, ficam os países
do Mercosul e outros desgarrados, sem saber exatamente para onde pretendem ir.
Cabe registrar, também, que muitas das novas entidades apressadamente
criadas nos últimos anos, o foram para dar um caráter exclusivamente regional,
ou introvertido, ao que antes era exageradamente hemisférico e “assimétrico”,
como se comprazem em repetir os neófitos. Mas será que a América Latina
vai realmente progredir, ao orientar para dentro todos os seus movimentos
políticos e econômicos? Será que ela não teria nada a aprender com os países
asiáticos e ocidentais da imensa bacia do Pacífico, que estão substituindo cinco
séculos de dominação econômica norte-atlântica, por meio do estímulo a todos
os intercâmbios possíveis, sem discriminação de espécie alguma?

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padrões e tendências das relações internacionais...

4. O que concluir de tudo isto? Que lições ficam de nossa trajetória


histórica?

Acadêmicos, em geral, historiadores em especial, exibem uma inclinação


um pouco doentia por paradigmas, por modelos explicativos, por padrões e
tendências que eles imaginam detectar no imenso caos material que é a traje-
tória das sociedades humanas sobre a face da Terra. A História não seria tão
emocionante, e não teria tantos cultores, amadores ou profissionais, se ela não
apresentasse, justamente, esses acidentes contingentes, essas possibilidades de
caminhos alternativos e de trajetórias insuspeitas, que dependem, basicamen-
te, de duas coisas: de um lado, as chamadas forças profundas, como gostam
de lembrar os durosellianos e alguns marxistas estruturalistas (ou seja, sem
aqueles fatalismos simplistas da sucessão inevitável dos modos de produção);
de outro lado, dos imponderáveis da ação humana, que, muito longe dos de-
terminismos históricos, está impregnada de paixões e de racionalidade, nem
sempre bem calculada.
É por isso que temos a história virtual, os big ifs que especulam um pouco
sobre tudo, especialmente sobre as grandes viradas do processo histórico. O
que teria ocorrido conosco se tivessem sido os chineses a ocupar as Américas?
O que teria acontecido na Europa se os muçulmanos não tivessem sido detidos
nos Pirineus, ou nas muralhas de Viena? O que teria acontecido se Napoleão ti-
vesse vencido a Grã-Bretanha, se Hitler tivesse derrotado a União Soviética, ou
se os soviéticos tivessem conseguido, de fato, submergir a Europa ocidental, com
base não em tanques, mas na sua ideologia que prometia futuros radiantes numa
sociedade sem classes? Nelson, Churchill, o Papa polonês, entre vários outros
líderes, foram realmente decisivos em algumas grandes reviravoltas da história
contemporânea? Stalin, Hitler, Mao poderiam ter sido contidos, ao fazer o mal
sobretudo para os seus próprios povos? Ou são as forças profundas da história
que sempre se impõem, independentemente de líderes geniais ou malévolos?
Pode-se especular sobre como o Brasil poderia ter se desenvolvido, de forma
diferente, caso Oswaldo Aranha, o grande líder gaúcho da revolução de 1930,
tivesse ascendido à presidência da República, em alguma das muitas oportunidades
que a história talvez lhe tenha oferecido, nas quais ele deixou passar a oportu-
nidade, seja por imposição ou amizade com o ditador castilhista que dominou a
história brasileira durante praticamente três décadas. Poderia ter sido em 1934,
mas talvez fosse muito cedo, num momento em que ele ainda parecia demonstrar
algumas simpatias pelo modelo fascista de organização social; provavelmente
em 1938, se ele não tivesse sido afastado do país pelos cálculos maquiavélicos
do mesmo Vargas; com maior razão, ainda, em 1945, em sua condição de líder
inconteste da oposição democrática, mas quando o terreno foi ocupado por dois
candidatos militares; ou talvez em 1950, quando ele decididamente continuou
apoiando o ex-ditador, e a quem serviu uma segunda vez como ministro da

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paulo roberto de almeida

Fazenda, tentando colocar mais uma vez em ordem o câmbio e as contas nacionais,
esgarçadas por crises externas e comportamentos populistas e irresponsáveis
dos decisores políticos; finalmente, mas talvez já fosse tarde, em 1955, quando
várias opções e alianças partidárias ainda lhe estavam abertas.
Depois de Rio Branco, bastante mitificado e incontestável no seu domínio
dos temas e dos métodos diplomáticos, Oswaldo Aranha foi, possivelmente, o
maior e melhor chanceler que a diplomacia brasileira conheceu no século 20,
numa conjuntura de extremos desafios e de opções contrastadas para o futuro
da nação: ele soube manter o rumo das alianças corretas e das escolhas certas,
o que assegurou ao país bastante prestígio durante certa época. No período
seguinte, o Brasil se perdeu na ditadura – pelo menos no plano moral, ainda que
os progressos materiais tenham sido reais – tanto quanto na voragem inflacio-
nária que destruiu várias possibilidades de crescimento sustentado, construindo
um Brasil desigual, sempre penalizado pela baixa educação geral do seu povo.
Oswaldo Aranha, provavelmente, teria optado por outras variantes de políticas
econômicas e de alinhamentos internacionais, possivelmente mais condizen-
tes com as possibilidades do país e com as necessidades de sua modernização
produtiva e social. Sua não ascensão ao cargo de maior responsabilidade no
comando da nação representou uma das muitas oportunidades perdidas pelo
Brasil, um país que nunca perdeu uma oportunidade de perder oportunidades,
como não se cansava de lembrar o diplomata e economista Roberto Campos
(uma espécie de Raymond Aron nacional, um pensador que teve razão antes do
tempo, mas que não conseguiu, tampouco, reformar a França, como também
ocorreu com Oswaldo Aranha no caso do Brasil).
Alguns líderes, verdadeiros estadistas, conseguem elevar seus países ao
ponto máximo de suas possibilidades transformadoras, mas tais iniciativas pa-
recem pertencer ao terreno dos fatores contingentes na História. O que ocorre
mais frequentemente, na vida das sociedades, é que elites esclarecidas logrem
conduzi-las pelo caminho correto, o das políticas econômicas adequadas, o da
educação de qualidade, o das escolhas mais vantajosas no plano internacional.
O Brasil, infelizmente, não tem sido premiado com lideranças particularmente
brilhantes, e pode-se mesmo indagar se, na presente conjuntura da política
nacional, o país não está de fato retrocedendo, bem mais no plano mental do
que propriamente material. As possibilidades não se fecharam, mas elas são
estreitas, para um país que praticamente não tem educação de qualidade, os-
tenta baixíssima produtividade e capacidade de inovação e que tem exibido um
quadro de corrupção institucional e de degradação moral nunca antes visto na
história nacional. O cenário pode parecer muito pessimista, mas é a constatação
que emerge a partir de uma visão realista sobre os atuais padrões políticos e
as tendências econômicas associadas.
Ao mencionar padrões e tendências, se volta ao tema central do presente
ensaio, sobre os padrões e tendências das relações internacionais do Brasil
em perspectiva histórica. Poder-se-ia pensar que uma postura mais ativista,
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padrões e tendências das relações internacionais...

por parte da diplomacia brasileira, seria uma via possível de vencer alguns
dos desafios que se apresentam ao Brasil atual, um pouco na linha do que foi
empreendido na fase recente da vida política, como forma de avançar deci-
sivamente na solução dos problemas mais cruciais do país. Mas, de fato, não
existem respostas reais a esses problemas do lado da diplomacia, sequer pela
ação de uma política externa mais ativista do que a tradicionalmente conduzida
pelo Itamaraty. Durante toda a história do Brasil, a diplomacia teve uma função
puramente subsidiária nos grandes desafios que a nação enfrentou, em cada
etapa, e provavelmente não foi ela que contribuiu para encontrar as soluções
mais criativas aos problemas detectados.
O Brasil, assim como metade da humanidade, iniciou seu itinerário histórico
como colônia. Tal condição de submissão, a um ou outro dos centros dominan-
tes da economia mundial, em alguma etapa preliminar, não constitui nenhuma
fatalidade quanto ao futuro itinerário do país, assim como não constituiu uma
tragédia definitiva, impeditiva do desenvolvimento de países como Estados
Unidos, Canadá, Austrália ou até mesmo vários países europeus, que também
foram colônias ou nações dominadas por vizinhos mais poderosos. Tal passado
não os impediu de se desenvolverem e de se tornarem grandes benfeitores da
humanidade, como de fato são, pela via da ciência e tecnologia, pelos progressos
da medicina, pela paz e segurança e pela manutenção dos direitos humanos e
das liberdades democráticas, que estão de fato concentrados nos capitalismos
competitivos das modernas democracias de mercado.
Se o Brasil não se libertou do tráfico de escravos no momento recomendado
por José Bonifácio, durante a independência e a constituinte, foi por escolha
de suas elites, não por imposição de portugueses ou de britânicos, aliás bem
ao contrário, no que concerne estes últimos. Se ele não começou a construir
uma economia aberta aos investimentos externos e à iniciativa privada, como
recomendava Irineu Evangelista de Souza, depois barão de Mauá, foi por deci-
sões de suas elites, as do Estado e as da economia escravocrata, que teimavam
em preservar as mesmas estruturas anacrônicas. Se ele não se libertou da es-
cravidão, como pressionavam os britânicos e como pedia o idealista Nabuco,
foi inteiramente por decisão de suas elites, nos estertores do Império. Se, na
República nascente, ele não fez uma reforma agrária e não implantou a educa-
ção universal, como também queriam Nabuco, o barão do Rio Branco, e tantos
reformistas educacionais, como Lobato, Azevedo, Teixeira e vários outros,
estas também foram escolhas inteiramente nacionais, não determinadas por
nenhuma imposição ou relação de dependência externa. Nunca houve uma
demanda externa pelo atraso nacional.
A diplomacia, de vez em quando, oferecia algumas sugestões, colhidas ao
acaso entre as elites ilustradas dos países mais avançados, mas não se pode dizer
que ela, até meados do século 20 quase totalmente expatriada, tenha influenciado
decisivamente as grandes escolhas feitas pela nação. A modernização acabou
chegando, inclusive por força das contingências externas, devido às crises e o
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paulo roberto de almeida

fechamento de mercados do entreguerras, mas o Brasil estaria muito melhor se


o mundo tivesse continuado a ser aberto como foi até 1914, e se o Brasil, sobre-
tudo, tivesse escolhido o caminho da inserção internacional. Ao contrário: dos
anos 1930 aos anos 1980, o coeficiente de abertura externa do Brasil se reduziu
dramaticamente e, no auge do regime militar, o grau de nacionalização do mer-
cado interno atingia absurdos 95% da oferta disponível em bases correntes. O
Brasil era um país fechado e aparentemente contente com essa autonomia, essa
autossuficiência, essa independência de fontes externas. Qual foi o papel da
diplomacia em todos esses anos de desenvolvimentismo acelerado? Justamente
o de defender o modelo, resistir às investidas estrangeiras pela abertura, como
aliás acontece até hoje, num recrudescimento de atitudes introvertidas que se
acreditava terem sido superadas nos anos 1990. Não, elas não foram enterradas,
e a diplomacia, mais uma vez, serve de anteparo, escudo e justificativa para esses
caminhos para dentro que não devem conduzir o Brasil a parte alguma.
Se é possível, portanto, resumir o sentido da trajetória nacional, sintetizar os
padrões e tendências das relações internacionais do Brasil, não há como escapar
de algumas velhas paranoias de sua história, de algumas grandes obsessões da
sociedade: a ideologia nacional brasileira, desde os anos 1930, pelo menos, parece
ser o culto do desenvolvimento nacional, nessa exata combinação de palavras.
Culto, quase religioso, a um objetivo que é visto como desejado por todas as
camadas sociais, por todos os líderes políticos e defendido ardorosamente por
todos os diplomatas. Deve ser por isso que os padrões e tendências do Brasil
nas relações internacionais sejam tão enviesados para dentro, que suas políticas
econômicas sejam tão arraigadamente keynesianas, que as legitimações para
certas posições nas negociações econômicas internacionais sejam tão cansa-
tivamente prebischianas, ou cepalianas da velha escola, e que o máximo de
legitimação para as mesmas políticas que os dirigentes políticos exibem seja
essa espécie de crítica a um fantasmagórico neoliberalismo, a la Ha-Joon Chang,
que nada mais é do que keynesianismo prebischiano requentado ao molho de
conceitos do momento. Tais características apenas comprovam quão pobre é
a reflexão da intelligentsia nacional sobre a diplomacia e o desenvolvimento.

5. Nota final: reformas internas e inserção na globalização

Não se deve, contudo, terminar um ensaio deste tipo por uma nota de
angústia existencial ao estilo de Kierkegaard. Mas tampouco convém ser inge-
nuamente otimista em face da retórica grandiloquente de certos falsos profetas
da atualidade. O que cabe fazer é tentar manter a racionalidade instrumental
quanto aos meios e fins do objetivo nacional do desenvolvimento econômico e
social do país e quanto ao amplo espectro de reflexões registradas nas últimas
décadas a esse respeito, inclusive no que se refere a algumas poucas contribui-
ções no campo da diplomacia.

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padrões e tendências das relações internacionais...

Já foi dito, por exemplo, que a salvação do Brasil não virá pela diplomacia,
nem pelo lado externo. Os principais desafios do Brasil estão mesmo dentro
do país, e os instrumentos para superá-los dependem inteiramente de suas
elites, do leque de políticas públicas escolhidas, das opções adotadas por uma
sociedade consciente quanto aos desafios, ou orientada nesse sentido por elites
esclarecidas. Muitos procuram bodes expiatórios para o baixo crescimento do
país na situação externa, num fantasmagórico tsunami financeiro de países
ricos, na concorrência desleal de países que não protegem sua mão de obra
ou o meio ambiente. Estas são escapatórias à realidade, e não será na proteção
mercantilista do mercado interno que o Brasil vai encontrar a solução dos seus
problemas de falta de competitividade e de ameaça concreta de desindustria-
lização. Ao contrário, o ambiente internacional, a inclusão na globalização,
oferecem oportunidades inigualáveis para o crescimento e o desenvolvimento
de qualquer país, como a própria China demonstra a cada dia.
Enquanto não for conduzido um diagnóstico correto da presente situação, e
uma autocrítica sincera, da qual, aliás, todos os marxistas deveriam gostar – so-
bretudo os leninistas, como ainda existem alguns –, enquanto não se reconhecer
todas as políticas equivocadas que têm sido implementadas nos últimos anos,
no plano interno e no plano externo, não será possível superar os desafios do
presente. O mundo é complicado, talvez, mas a cabeça de certas pessoas parece
ser muito mais. O mundo, por sinal, oferece exemplos fabulosos de progresso
e melhorias de bem-estar com algumas receitas muito simples. Algumas das
mais comprovadas por sua eficácia podem ser assim resumidas: estabilidade
macroeconômica; abertura e competição no nível microeconômico; níveis ex-
celentes de governança e de gestão próxima à de mercados competitivos para
a maior parte dos bens e serviços; alta qualidade dos recursos humanos; e, por
fim, mas não menos importante, abertura ao comércio e aos investimentos
internacionais. Tudo isso requer, obviamente, elites esclarecidas, uma merca-
doria talvez rara nos tempos atuais.

Referências
ABREU, Marcelo Paiva. O Brasil e a economia mundial, 1930-1945. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1999.
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A Questão do Acre nas Caricaturas dos
Jornais Cariocas (1903-1904)
Luís Cláudio Villafañe G. Santos
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

Com sinceridade, afianço a vossa excelência que


para mim vale mais esta obra [...] do que as duas outras
[a defesa brasileira nas arbitragens nas questões de Palmas e do
Amapá], julgadas com tanta bondade pelos nossos cidadãos.
(Barão do Rio Branco: Exposição de Motivos
sobre o Tratado de Petrópolis, 1903)

Profundamente atento ao papel da imprensa e à força crescente da opinião


pública, desde seu r etorno ao Brasil, em 1902, até sua morte, dez anos depois,
o barão do Rio Branco selecionou pessoalmente e arquivou recortes de notícias
e matérias de opinião dos jornais brasileiros sobre assuntos de política externa,
relativas a sua própria figura e muitos outros temas. Esse acervo está preservado
nos 147 volumes da “Coleção de Recortes de Jornais” no Arquivo Histórico do
Itamaraty, no Rio de Janeiro. Dentre esses documentos encontram-se mais de
mil caricaturas, que merecem um realce especial por seu poder de condensar
em espaço reduzido os sentimentos e os debates da época.
O critério que guiou Rio Branco na seleção dos recortes de jornal, e das
caricaturas, foi manifestamente pessoal e está patente na escolha dos temas: o
próprio barão, eventos de política externa, referências a seus amigos e desafetos,
críticas à Igreja (recorde-se o papel da chamada “questão religiosa” na queda do
gabinete de seu pai na década de 1870), entre outros.1 Aparentemente, não há
nessa seleção censura contra caricaturas críticas de suas políticas ou, mesmo,
ataques pessoais, bastante presentes, especialmente no início de seu longo man-
dato no Itamaraty. Os agravos contra ele atingiram seu ponto máximo durante
o transcurso da questão do Acre, cuja discussão nas caricaturas da coleção de
Rio Branco será o objeto deste artigo. A escolha do tema explica-se não só pela

1
Registre-se, por exemplo, a quase completa ausência de recortes sobre a Conferência da Haia,
na qual o brilho maior junto à imprensa e à opinião pública ficou reservado a Ruy Barbosa.
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a questão do acre nas caricaturas...

importância em si da negociação que o próprio chanceler considera sua maior


vitória diplomática, mas também pelo comportamento da imprensa e da opinião
pública carioca ao longo dos acontecimentos. A imagem de Rio Branco ora é
louvada, ora atacada e, sem dúvida, por trás dessas oscilações há uma série de
circunstâncias que não serão examinadas no presente texto, cujo propósito é
primordialmente ilustrativo, mas que explorei em outro contexto (Santos, 2012).
Ao chegar ao Rio de Janeiro para assumir o Ministério das Relações Exteriores,
depois das vitórias que obtivera como advogado do Brasil nas questões de fron-
teira com a Argentina e com a França, o barão era uma unanimidade nacional.
No entanto, a disputa pelo Acre, que o esperava, era um problema candente e
de natureza muito distinta das arbitragens em que ele pôde, na tranquilidade
de seu gabinete de estudos, fazer valer sua notável erudição e aprofundados
estudos da geografia e da história brasileiras. No caso da fronteira com a Bolívia,
nada poderia ser mais distinto: o tema já se encontrava altamente politizado e
os ânimos estavam exaltados, com opiniões fortemente polarizadas. Ainda que
Rio Branco tenha procurado afastar-se das lutas partidárias desde seu primeiro
discurso (ainda no dia de sua chegada), quando retornou ao Brasil, dissipou-se o
consenso que se havia criado em torno de sua figura, que passou a ser vista com
desconfiança pelos monarquistas mais radicais, que não aprovaram sua parti-
cipação no governo, e por republicanos exaltados, que o viam como o possível
líder de uma conspiração monárquica. Havia, portanto, uma grande expectativa
sobre as diretrizes e caminhos que adotaria para resolver a espinhosa questão
da fronteira com a Bolívia e o destino dos milhares de brasileiros que viviam
e trabalhavam na região, em conflito aberto contra as autoridades de La Paz.
Os fatos sobre a chamada questão do Acre são conhecidos e não é o objetivo aqui
rediscuti-los ou reinterpretá-los, mas vale uma breve resenha para contextualizar
as visões da imprensa com a cronologia dos acontecimentos. As fronteiras do Brasil
com a Bolívia estavam estabelecidas pelo Tratado de 1867, que determinava que
o ponto inicial da reta que serviria de fronteira entre os dois países, na região que
hoje é o Acre, encontrava-se no rio Madeira, aos 10° 20´ de latitude sul. “Deste rio
para o oeste seguirá a fronteira por uma paralela tirada de sua margem esquerda
da latitude 10° 20´ até encontrar o rio Javari”, dizia o tratado. Na década de 1860, a
latitude da nascente do Javari não era conhecida (foi estabelecida apenas em 1898,
aos 7° 1´de latitude, muito mais ao norte, portanto) e imaginava-se que estivesse
mais ou menos aos 10° e, assim, o tratado fala de uma “paralela”. No entanto, o texto
do tratado de 1867 ia além e determinava que “Se o Javari tiver as suas nascentes
ao norte daquela linha leste-oeste, seguirá a fronteira desde a mesma latitude, por
uma reta, a buscar a origem principal do Javari”. Já em 1867, portanto, era clara a
possibilidade da nascente do Javari situar-se mais ao norte e, nesse caso, a linha de
fronteira não seria coincidente com o paralelo de 10° 20´, mas uma reta oblíqua a
essa linha. O célebre “Mapa da Linha Verde” (de 1860), que serviu de subsídio para
as negociações do Tratado de 1867, bem como a “Carta Geral do Império” (de 1875),
registram claramente essa possibilidade. Ambos documentos, aliás, da lavra de
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luís cláudio villafañe g. santos

Duarte da Ponte Ribeiro, o maior especialista em temas fronteiriços do Império.2


Vale notar, ainda, que, em 1902, a ocupação brasileira estendia-se também por uma
extensa zona ao sul do paralelo 10° 20´, em território indiscutivelmente boliviano
qualquer que fosse a exata localização das nascentes do Javari ou a interpretação
dada ao Tratado de 1867.

Figura 1: “Mapa da Linha Verde” – Duarte da Ponte Ribeiro e Isaltino José Mendonça
de Carvalho (1860).
Fonte: Mapoteca do Itamaraty.

Até 1902, o governo brasileiro reconhecia cabalmente a soberania bolivia-


na sobre a região que hoje corresponde ao estado do Acre. A cidade de Puerto
Alonzo (hoje Porto Acre) ostentava, inclusive, um consulado brasileiro, prova
contundente de que o território era considerado estrangeiro. No entanto, com
a exploração da borracha, milhares de brasileiros tinham-se deslocado para
lá e, desde 1899, os colonos brasileiros promoviam revoltas armadas contra as
autoridades bolivianas. Uma “República do Acre”, chefiada pelo espanhol Luis

2
Rio Branco arguiu desconhecer o “Mapa da Linha Verde” durante as negociações com os
plenipotenciários bolivianos, ainda que depois, com o Tratado de Petrópolis já assinado, em
meio às discussões no Congresso para sua ratificação, esse documento tenha “reaparecido” e sido
entregue por Rio Branco ao presidente da comissão parlamentar que analisava o Tratado, como
evidência de que, caso o tema houvesse sido encaminhado para arbitragem, como propunham
alguns, entre os quais Ruy Barbosa, a derrota seria certa.
|  167
a questão do acre nas caricaturas...

Gálvez Rodríguez de Arias, chegou a ser proclamada, mas a soberania bolivia-


na foi restabelecida em 1900. Ainda naquele ano, o governador do estado do
Amazonas apoiou um segundo movimento separatista, que foi derrotado em
poucas semanas. Em agosto de 1902, iniciou-se uma nova revolta, agora liderada
por José Plácido de Castro, outra vez com o apoio do governo do Amazonas.
O movimento era visto com grande simpatia pela opinião pública brasileira,
inclusive na capital da república, e, certamente, correspondia a importantes
interesses econômicos em Manaus e no Rio de Janeiro, pois a borracha já figu-
rava como o segundo item de maior importância nas exportações brasileiras.
Em síntese, no momento em que Rio Branco assumiu a chancelaria, o Acre
era reconhecido como território boliviano, ainda que, na prática, as autoridades
daquele país não detivessem o controle da região, nas mãos de revoltosos brasileiros.
Para complicar, em 1901, o governo boliviano havia assinado um contrato com um
grupo de investidores ingleses e estadunidenses que dava ao Bolivian Syndicate,
empresa por eles criada, a completa administração da região, inclusive com poderes
de polícia, um tipo de concessão então comum na África e em partes da Ásia, que
geralmente era o prenúncio de um esforço de colonização direta pelas potências
europeias. No entanto, o acesso do Bolivian Syndicate ao território dependia, na
prática, da navegação fluvial por território brasileiro e já antes da chegada de Rio
Branco a passagem de navios da companhia pelo Amazonas tinha sido proibida.

Figura 2: Com o toureiro (a Bolívia) fora de combate, o povo pede ao Presidente


Rodrigues Alves e a Rio Branco que entrem na arena e peguem o touro (o Acre) “a
unha”, ao estilo das touradas portuguesas.
Fonte: O Malho, 13 de janeiro de 1903.

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luís cláudio villafañe g. santos

O presidente da Bolívia, general José Manuel Pando, estava decidido a su-


perar esse impasse e submeter militarmente os revoltosos para restabelecer
a autoridade boliviana. Anunciou que chefiaria pessoalmente uma expedição
armada ao Acre para retomar o controle sobre a região. A opinião pública brasi-
leira reagiu com indignação contra Pando e previa-se a possibilidade de muitas
vítimas brasileiras no possível conflito contra as tropas bolivianas. Para evitar
o choque entre os militares chefiados por Pando e os revoltosos brasileiros,
Rio Branco propôs a compra do território à Bolívia, pois a quase totalidade de
sua população era brasileira, oferta que foi recusada por Pando.

Figura 3: O general Pando, presidente da Bolívia, representado como um macaco,


que “quer meter a mão na cumbuca...” do Acre.
Fonte: O Malho, 24 de janeiro de 1903.

Persistia o temor de que os Estados Unidos atuassem em favor da Bolívia


para atender aos interesses reunidos em torno do Bolivian Syndicate, e não só
os Estados Unidos, mas também a Argentina (onde o caso era acompanhado
com interesse pela imprensa portenha), eram vistos como insufladores da
reação militar boliviana

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a Questão do acre nas caricaturas...

Figura 4: A Bolívia, representada por uma figura feminina, tem atrás de si uma repre-
sentação do “Tio Sam”, em alusão ao Bolivian Syndicate, em desafio às tropas brasileiras
que vão em direção à fronteira. O texto da charge não deixa margem a dúvidas: “Os
arreganhos da Bolívia denotam que ela tem as costas quentes”.
Fonte: O Malho, 24 de janeiro de 1903.

Antecipando-se à chegada das tropas bolivianas ao Acre, o governo brasi-


leiro ocupou militarmente a região conflagrada e, para justificar esse passo, Rio
Branco abandonou a interpretação de seus antecessores e o governo brasileiro
deixou de reconhecer a linha oblíqua como divisa entre os dois países, declarando
litigioso todo o território ao norte do paralelo de 10° 20´ (ainda que a ocupação
tenha se estendido também à porção do território ocupada por brasileiros ao
sul dessa linha). Negociou com os investidores do Bolivian Syndicate, que, em
fins de fevereiro de 1903, abandonaram seu acordo com a Bolívia em troca de
uma indenização de 114 mil libras esterlinas. Em março, assinou-se em La Paz
um modus vivendi, um acordo provisório que reconhecia a situação no terreno,
e anunciaram-se as negociações bilaterais, tendo sido resguardados os direitos
do Peru, que também alegava ser soberano sobre parte do território em litígio.

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Figura 5: O general Pando representado como uma marionete nas mãos da Argentina
e dos Estados Unidos, as “forças ocultas” que estariam por trás da reação boliviana.
Fonte: Tagarela, 29 de janeiro de 1903.

A expectativa de uma guerra, o possível apoio estadunidense e argentino


à Bolívia e a formação de batalhões de voluntários para lutar no Acre foram
objeto de inúmeras charges nas diversas folhas ao longo de janeiro e fevereiro
de 1903. Nesse momento, a imprensa carioca mostrou-se majoritariamente a
favor da reação dura traduzida no envio de tropas e a ocupação da região em
litígio. Ainda assim, até que se conhecesse o recuo de Pando e o cancelamento
da expedição boliviana ao Acre – que resultaria em uma guerra entre os dois
países –, também houve espaço para charges contrárias à decisão de arriscar
a eclosão de um conflito militar e, mesmo, críticas diretas a Rio Branco, mas
contrabalançadas por charges laudatórias, que predominaram em quantidade.
Em caricatura publicada em O Malho, em 14 de fevereiro, por exemplo, um
cidadão louva um Rio Branco que assiste à passagem das tropas brasileiras di-
zendo: “Isto é que é ministro! Ainda dizem que é o ministro dos estrangeiros...
Ministro dos brasileiros é que ele é!”. Em contraste, não faltaram sugestões no
sentido de que próprio Rio Branco deveria estar entre os primeiros a serem
enviados para a frente de combate.

|  171
a questão do acre nas caricaturas...

Figura 6: Rio Branco é retratado em trajes militares, com a patente de cabo, pronto
para o combate. Sua conhecida vaidade é ironizada no título da charge “O cabo Pavão”
e o texto decreta que ele deveria ser “o primeiro que devia seguir para o Acre em
defesa da Pátria”.
Fonte: Jornal não identificado, fevereiro de 1903.

Critica-se também o pagamento de indenização ao Bolivian Syndicate.


Caricatura publicada no Jornal do Brasil, em 27 de fevereiro, mostra a imagem
de um capitalista, indicado como “Bolivian Syndicate”, com uma grande bolsa
de dinheiro em que está escrito “Indenização do Brasil”, de frente a um general
Pando, vestido em traje típico, que lhe pergunta: “E se ´rachássemos´...?”.

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luís cláudio villafañe g. santos

Figura 7: Tio Sam (Estados Unidos) e John Bull (Inglaterra) dividindo a indenização
paga pelo Brasil para que o Bolivian Syndicate rescindisse seu contrato com a Bolívia
para a administração do Acre.
Fonte: O Malho, 7 de março de 1903.

O Brasil negociou um tratado com a Bolívia a partir de uma posição de


força, pois ocupava a zona litigiosa militarmente e a esmagadora maioria da
população lá residente era de brasileiros. Por questões logísticas, as negociações
demoraram alguns meses para se iniciar, em Petrópolis. Do lado brasileiro,
ademais do próprio Rio Branco, participaram Assis Brasil e Ruy Barbosa. A
presença de Ruy foi explicada por Ricupero (2012: 141) pela “insegurança de
Paranhos no primeiro teste e o natural desejo de reforçar a retaguarda, asso-
ciando à responsabilidade pela decisão a voz mais influente dos críticos da
interpretação oficial”. Esses dois temas, a suposta demora nas negociações e a
escolha de Ruy Barbosa para integrar o trio de plenipotenciários, foram o tema
de muitas sátiras. Os negociadores – Rio Branco, Assis Brasil e Ruy Barbosa,
pelo lado brasileiro, e Claudio Pinilla e Fernando Guachalla, representando o
governo boliviano –, de fato, demoraram cerca de quatro meses para começar
suas discussões, mas, uma vez iniciado, o processo negociador foi bastante
rápido, pois o tratado acabou sendo firmado em 17 de novembro. A opinião
pública e a imprensa, no entanto, estavam impacientes.
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a questão do acre nas caricaturas...

Figura 8: O cartunista Crispim do Amaral deixa clara sua impaciência com as ne-
gociações sobre o Acre: “- E dizem que vai acabar a questão do Acre... qual! Nós até
apresentamos a cara do sr. barão do Rio Branco, daqui a 20 anos, a parafusar sobre
os meios de resolver essa questão.”
Fonte: A Avenida, 28 de setembro de 1903.

A decisão de incluir Ruy Barbosa no trio de negociadores brasileiros foi


bem recebida pela imprensa, que realçou sua grande erudição, mas sem deixar
de insinuar, com humor, que as intervenções e pareceres do intelectual baiano
muitas vezes se estendiam interminavelmente. Caricatura publicada no jornal
O Malho, em 18 de julho de 1903, por exemplo, mostra Ruy falando ao barão:
“Aceito essa espiga [problema] de entrar na pendenga do Acre; mas olhe lá: se
encontrar alguma batata [asneira], faço um relatório maior do que o do Código
Civil”. 3 No caso, o cartunista satirizava o longo parecer de Ruy ao projeto de
Código Civil, publicado no ano anterior.

3
A discussão entre Ruy Barbosa e o filólogo baiano Carneiro Ribeiro acerca do projeto de
Código Civil preparado por Clóvis Beviláqua foi muito acertadamente qualificada de a “mais
espantosa polêmica gramatical e filológica da história brasileira, altamente reveladora do bizan-
tinismo mental da República dos Bacharéis”. ALEXEI, Bueno; ERMAKOFF, George (org.). Duelos
no Serpentário: uma antologia da polêmica intelectual no Brasil 1850-1950. Rio de Janeiro: G.
Ermakoff Casa Editorial, 2005, p. 497.
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luís cláudio villafañe g. santos

Figura 9: Rio Branco, certamente o maior especialista nos problemas de fronteiras


de seu tempo, apresenta-se a um Ruy Barbosa transmutado na “biblioteca nacional”
e pergunta se pode consultar uma obra sobre a questão do Acre.
Fonte: A Larva, 18 de setembro de 1903.

Rio Branco acabou por divergir de Ruy, que preferia levar a questão a um
processo de arbitragem e não se convenceu da conveniência da fórmula finalmen-
te aceita de troca de territórios: o Brasil ficaria com cerca de 191 mil km 2 antes
bolivianos, incluindo-se 48 mil ao sul do paralelo de 10° 20´ e cederia 2.200 km 2
no triângulo entre os rios Madeira de Abunã, no Amazonas, e 860 km 2 em Mato
Grosso. A Bolívia receberia, ainda, uma indenização de dois milhões de libras
esterlinas e ao Brasil caberia construir uma estrada de ferro entre os rios Madeira
e Mamoré, facilitar o trânsito boliviano por essa via e pelos rios amazônicos até
o oceano e outorgar as correspondentes facilidades alfandegárias. A renúncia de
Ruy Barbosa, em 17 de outubro, fez a delícia dos caricaturistas e abriu um intenso
debate sobre as concessões que o Brasil estaria fazendo, julgadas excessivas para
alguns, em especial a contrapartida (ainda que altamente vantajosa) de territórios

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a questão do acre nas caricaturas...

à Bolívia. Ainda antes da renúncia, em 3 de outubro, O Malho publicou charge de


K. Lixto, que mostra o barão tentando descalçar botas assinaladas com a palavra
“Acre” e pede auxílio a Ruy: “– Creio, seu Ruy, que, descalçada a bota, está o mal
sanado, por via dos calos”. A resposta de Ruy, no entanto, é clara: “– Lá isso, não;
com troca de territórios não embarco...”
Outra caricatura desse mesmo dia, também publicada no jornal O Malho,
agora de autoria de Falstaff, intitulada “Leilão de Prendas”, mostra Rio Branco
com um martelo de leiloeiro às mãos incitando o presidente Rodrigues Alves
a assinar “em cruz” um documento, ou seja, sem o examinar. O barão diz: “–
Assine em cruz para arrematar”; e o presidente, coagido, responde: “– Arre!
Matar o quê?!” Rio Branco é retratado em uma tentativa de impor sua negocia-
ção aproveitando-se da confiança do presidente, em contraste com a atitude
cautelosa e patriota de Ruy Barbosa.
Depois de consumada a renúncia, em 24 de outubro, no mesmo O Malho, o
cartunista K. Lixto apresenta um Ruy altissonante que apresenta sua renúncia
ao barão, ao presidente e a outros ministros com palavras duras: “– Não quero,
senhores, criar-lhes embaraços: exonero-me. Mas, na verdade vos digo, maldito
seja aquele que cede ao estrangeiro um palmo do território nacional!”

Figura 10: Um altivo Ruy Barbosa apresentando sua renúncia ao presidente e aos
ministros.
Fonte: O Malho, 24 de outubro de 1903.

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Desaba a tempestade

A reticência em aceitar a compra do Acre, disfarçada em uma troca de ter-


renos altamente desigual e outras compensações não territoriais, só se explica
em face das imensas expectativas criadas pelos precedentes das arbitragens
de Palmas e do Amapá, em que os territórios em litígio foram integralmente
outorgados ao Brasil, sem contrapartida ou compensação de qualquer espécie.
A resolução desfavorável para as pretensões brasileiras da arbitragem sobre a
questão da fronteira com a Guiana Inglesa, no ano seguinte, 1904, mostraria
cabalmente que a solução arbitral nem sempre seria vantajosa. No caso da
questão do Acre, as bases jurídicas dos argumentos brasileiros eram muito
frágeis e, a prevalecer a tese de Ruy Barbosa, provavelmente a região teria sido
devolvida integralmente ao governo boliviano. Ainda assim, ao fim de 1903
e no início de 1904, até sua aprovação por ampla maioria nas duas Casas do
Congresso, o Tratado de Petrópolis e Rio Branco estiveram sob severo ataque
nas páginas dos jornais. Se o tratado chegou a ser chamado de “mancha negra
em nossa história” e “vergonha de dois povos”, entre outros qualificativos
(apud Ricupero, 2012:146), o próprio Rio Branco não foi menos vilipendiado.
Em face das expectativas irrealistas, a decepção com a solução proposta
por Rio Branco traduziu-se rapidamente em desapontamento em relação ao
próprio negociador. Exemplo significativo está ilustrado pela charge de Alfredo
Cândido publicada no jornal A Larva: um personagem representando o “zé-
-povinho” mantinha um busto do barão sustentado em um castelo de cartas que
se desfaz com um dragão (de papel?) assinalado como o “Tratado”; lá se vão as
cartas e a estátua erguida a Rio Branco para o chão. Para não deixar dúvidas, a
caricatura tem como título “A Desilusão” e a legenda explica: “Os castelos que
erguia o pensamento...”.

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a questão do acre nas caricaturas...

Figura 11: “A Desilusão” e a legenda explica: “Os castelos que erguia o pensamento...”.
Fonte: A Larva, 25 de outubro de 1903.

O mesmo Alfredo Cândido publicou outra caricatura do mesmo dia, tam-


bém no A Larva, intitulada “Mons Parturiens (O parto da montanha)”, em que
Rio Branco é comparado a uma montanha que geme e produz um pequeno
rato. “De um grande esforço diplomático, o danado do rato viu a luz!”, Cândido
arrematou. A acusação principal contra o tratado ficava por conta da entrega
de territórios. O cartunista Crispim do Amaral chegou a dedicar uma carica-
tura ao Exército em que Rio Branco aparece como um açougueiro retalhando
com um facão marcado como Ministério do Exterior o corpo, já decapitado,
de um índio gigantesco, representando o Brasil. No cadáver está estampada a
frase “Presente à Bolívia de F. P. R. A.”, as iniciais do presidente Francisco de
Paula Rodrigues Alves. A solicitação de uma intervenção das forças armadas
contra o tratado é óbvia, bem como a insinuação de traição à pátria, por parte
do ministro e do presidente.

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Figura 12: “A cabeça já está no prego... Agora toca a retalhar o resto!”.


Fonte: A Avenida, 31 de outubro de 1903.

Nesse mesmo dia 31 de outubro, O Malho trazia uma caricatura, “Precauções”,


com um personagem não identificado comentando que iria cortar seu cava-
nhaque para evitar ser confundido com Rio Branco. Dava-se a entender que
o antes tão popular barão corria o risco de ser agredido fisicamente nas ruas.
Os caricaturistas projetavam, ainda, a existência – na verdade, muito du-
vidosa – de uma imensa satisfação na Bolívia pelo resultado da negociação.
Em O Coió de 2 de novembro, uma ilustração intitulada “Na Bolívia” traz dois
personagens que mantinham o seguinte diálogo, pretensamente em espanhol:
“ – Entonces, Lola, El Brazil és nuestro?
– No, señor Generale, inda no. El adoreble Baron no lhego a la presidencia”.
Ainda que a contrapartida territorial tenha sido o principal foco das críticas
ao tratado e a Rio Branco, não faltaram também queixas contra a compensação
financeira. O Tagarela de 19 de novembro traz uma caricatura de Falstaff em
que Rio Branco está jogando um saco de dinheiro, assinalado como sendo no
valor de dois milhões de libras esterlinas, na boca de um vulcão que exala uma
fumaça com os dizeres “Questão do Acre”. A legenda explica: “Como se procura

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a questão do acre nas caricaturas...

abafar um vulcão”. Já no Correio da Manhã de 21 de novembro, o cartunista K.


Lixto mostrava Rio Branco, com o presidente e seu ministério por trás, com um
par de botas com a palavra “Acre”, já no piso, entre ele e uma figura feminina
representando a Bolívia. Em uma alusão à ideia de descalçar as botas como ima-
gem para se desembaraçar de um problema. O texto da caricatura “Resultado
Final” decreta: “Descalçou o par de botas mas nos custou muito caro”.

Figura 13: “Resultado Final” decreta: “Descalçou o par de botas mas nos custou
muito caro”.
Fonte: Correio da Manhã, 21 de novembro de 1903.

A polêmica estava, portanto, instalada e em fins de 1903 era difícil prever o


futuro do convênio assinado com a Bolívia, ao qual estava atado o futuro político
de Rio Branco. A revista A Avenida, em 28 de novembro, traz um Rio Branco com
ar desesperado, exclamando: “Arre! Fechei o Tratado! Mas agora quem precisa
ser tratado sou eu!”. No Tagarela, em 3 de dezembro, caricatura de Falstaff, in-
titulada “A Célebre Questão”, que mostra Rio Branco montando um cavalo em
direção a um precipício marcado com a palavra “descrédito”. Para o lado oposto
há uma placa indicando “Questão do Acre – bom caminho”. Ainda que o cavalo
se mostre apavorado com a queda iminente, Rio Branco comenta: “Parece que
vou errado... Vejo aqui um precipício. Não faz mal! Prossigamos: alea jacta est.”

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luís cláudio villafañe g. santos

Temeu-se pela aprovação do Tratado no Congresso. O Malho, em 26 de de-


zembro, traz uma caricatura de K. Lixto que resume esse sentimento. Mostra
Rio Branco entrando em uma sala assinalada como “Câmara” (dos Deputados)
com uma grande bomba nas mãos marcada como “Acre”, um pouco atrás apa-
rece Ruy Barbosa acendendo a mecha da bomba. O título da charge indica as
expectativas do caricaturista: “Pum!”.

Figura 14: “- Cuidado, barão! Com esta bomba nem S. Pedro com seus tiros o salvará”.
Fonte: O Malho, 26 de dezembro de 1903.

Ruy Barbosa, um dos senadores mais influentes do Congresso, alinhava-se


claramente contra a aprovação do Tratado de Petrópolis. Depois de abandonar
a equipe de negociadores brasileiros, divulgou sua Exposição de Motivos do
Plenipotenciário Vencido em que atacou o resultado alcançado e se posicionou
pela hipótese de levar a questão a uma arbitragem. A possibilidade de conseguir
a cessão do território sem contrapartidas ou compensações, como havia sido
o caso nas questões de Palmas e do Amapá, seduzia parte do público e da im-
prensa. O Tagarela, na edição de 9 de janeiro de 1904, estampa uma caricatura
sobre o Acre com um gigantesco Ruy encurralando um assustado (e minúsculo)
oponente em um canto com uma longa espada.

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a Questão do acre nas caricaturas...

Figura 15: “Mestre Ruy na estacada prepara a estocada...”


Fonte: O Tagarela, 9 de janeiro de 1904.

A despeito desses agouros, o Tratado de Petrópolis acabou aprovado com


facilidade nas duas Casas do Congresso: 118 votos a favor e 13 contra na Câmara,
e 27 a favor e 4 contra no Senado. Ruy Barbosa, aliás, ausentou-se da votação no
Senado, de 12 de fevereiro de 1904, que ratificou a negociação concluída pelo
chanceler brasileiro. Quando das votações no Congresso, a maré da opinião
pública já tinha mudado e passado a favorecer o convênio.

Amende Honorable

Na verdade, certamente como resultado de uma campanha ativa, já antes


da aprovação do tratado no Congresso o clima político vinha modificando-se
a favor de Rio Branco. Um exemplo marcante dessa tendência é a caricatura
de Alfredo Cândido publicada na revista A Larva, em 11 de janeiro. O título,
“Amende Honorable”, já deixa claro do que se trata – uma retratação pública
do cartunista, que pede desculpas a Rio Branco pelo tratamento severo que
recebeu em suas caricaturas anteriores sobre a questão do Acre. Alegorias
representando a História, o Acre, o Amapá e Palmas (Missões) homenageiam
um busto de Rio Branco colocado sobre uma coluna.

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luís cláudio villafañe g. santos

Figura 16: “Atravessaste as opiniões mais desencontradas e a todas nós procuramos


interpretar nas colunas deste semanário. Hoje limitamo-nos a transportar para aqui
uma das páginas da História.”
Fonte: A Larva, 11 de janeiro de 1904.

No Tagarela de 14 de janeiro, em um simpático desenho do barão feito pela


pena de J. Carlos, sob o título “O Acre”, um orgulhoso Rio Branco comenta:
“– Dizem que estou muito inchado com o tratado... Engano, eu sempre fui
assim... gorducho”. A Larva, em sua edição de 23 de janeiro, insiste na ideia de
retração aos ataques sofridos por Rio Branco. Este, como um professor com
uma palmatória nas mãos e o tratado embaixo do braço, aparece frente a um
quadro negro em que está escrito “3 + 3 = 7” e “Acre” e admoesta três alunos:
“Andem lá meninos! Deem a mão à palmatória!”.
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a questão do acre nas caricaturas...

Figura 17: “O Acre”.


Fonte: A Larva, 23 de janeiro de 1904.

Nesse mesmo 23 de janeiro, dois dias antes da aprovação do tratado pela


Câmara dos Deputados, também a revista A Avenida já refletia a mudança de
ânimo da opinião pública.

Figura 18: Antes do Tratado: “- Infâmia! Vender o território da Pátria!”.


Fonte: A Avenida, 23 de janeiro de 1904.

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luís cláudio villafañe g. santos

Figura 19: Agora: “Mesmo por ser contra, sempre fui a favor do Rio Branco”.
Fonte: A Avenida, 23 de janeiro de 1904.

A aprovação do Tratado de Petrópolis no Congresso traduziu-se em uma


avalanche de homenagens a Rio Branco. A imprensa, de modo geral, adotou um
tom laudatório, ainda que tenham permanecido vozes críticas, mas cada vez
mais esparsas. Nem por isso, as sátiras dos adversários de Rio Branco deixavam
de ser mordazes e muitas vezes violentas. Um bom exemplo é a caricatura de
Taninho, publicada no jornal O Brasil em 20 de fevereiro. Nela, Rio Branco
atravessa com uma lança um indígena que traz uma faixa revelando que se trata
do Brasil ao mesmo tempo que, com a mão marcada por um cifrão, fecha a boca
de uma figura feminina que ostenta uma faixa para deixar claro que se trata
da imprensa. O texto arremata: “Como se consegue um triunfo diplomático”.
Naquele mesmo 20 de fevereiro de 1904, no entanto, uma multidão reuniu-
-se no Palácio Itamaraty para festejar o Tratado e homenagear o barão do Rio
Branco. O Jornal do Brasil da segunda-feira dia 22, para ilustrar a manifestação,
traz uma caricatura em que Rio Branco é carregado em triunfo pelo povo. As
vozes críticas contestaram o caráter espontâneo da homenagem e indicaram
sua preparação prévia e, mesmo, com ameaças (possivelmente reais) contra
os funcionários públicos que não comparecessem ao evento. A Tribuna de 20
de fevereiro, por exemplo, mostra uma caricatura em que um personagem se
queixa: “E esta! Já nem me lembrava que tenho que comparecer ao Carnaval
do Rio Branco! E se não comparecer... perco o emprego!”

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a questão do acre nas caricaturas...

Figura 20: Um exultante Rio Branco, nos ombros do povo, agradece o reconhecimento
de seu trabalho: “- Obrigado, meu povo, obrigado...”
Fonte: Jornal do Brasil, 22 de fevereiro de 1904.

O episódio do Acre foi um momento decisivo para a carreira política de Rio


Branco. O fracasso, ou a percepção de uma derrota, no tratamento da questão
teria, possivelmente, posto em risco o patrimônio de credibilidade e populari-
dade alcançado com os laudos favoráveis obtidos nas arbitragens de Palmas e do
Amapá. Em uma análise fria, o Tratado de Petrópolis resume-se a uma compra de
território, disfarçada em uma troca desigual de terrenos e outras contrapartidas.
Em uma região que se caracterizava por conter, naquele momento, um recurso
natural de enorme demanda no mercado internacional e que estava habitada,
praticamente, só por brasileiros, indiscutivelmente, o resultado da negociação foi
amplamente favorável. Mas, ainda assim, no plano da política interna, a aprovação
do tratado foi objeto de uma verdadeira batalha pela imprensa. Pelas caricaturas

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luís cláudio villafañe g. santos

dos jornais e revistas cariocas nos anos de 1903 e 1904, pode-se ter uma visão
clara da evolução e reviravoltas do clima político em que as negociações com a
Bolívia transcorreram (e também com o Peru, mas estas com um desenlace pos-
terior). Como o episódio demonstra, as negociações diplomáticas não se resumem
ao plano externo, e os humores do Congresso, da opinião pública e da imprensa
constituíram-se em uma variável incontornável, mas com a qual também soube
Rio Branco lidar. A partir de 1904, a situação de Rio Branco na política interna
consolidou-se como também suas relações com a imprensa no manejo de sua
imagem pessoal e da política externa por ele dirigida.
Por outro lado, as preocupações e os problemas, naturalmente, não se
extinguiram. No que tange à questão das fronteiras do Acre e do Amazonas,
seguiu pendente ainda por alguns anos a negociação com o Peru, cujos direitos
tinham sido ressalvados no encaminhamento bilateral entre Brasil e Bolívia.
Os cartunistas tampouco deixariam de se aproveitar dessa circunstância, como
mostra a charge de K. Lixto, agora já menos claramente crítico ao barão. Esse
novo debate, no entanto, já escapa ao foco deste artigo.

Figura 21: O Pesadelo do Barão: “- Safa! É Peru por todos os lados, agora!”
Fonte: A Avenida, 23 de abril de 1904.

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a questão do acre nas caricaturas...

NOTA: A “Coleção de Recortes de Jornais” encontra-se no Acervo do Barão do Rio


Branco, no Arquivo Histórico do Itamaraty, no Rio de Janeiro. O original do “Mapa
da Linha Verde” está guardado na Mapoteca do Itamaraty, na mesma cidade. O autor
agradece ao Centro de História e Documentação Diplomática (CHDD), em especial à
senhora Maria do Carmo Strozzi Coutinho, pelo inestimável apoio recebido.

Referências
ALEXEI, Bueno e ERMAKOFF, George (org.). Duelos no Serpentário: uma antologia da po-
lêmica intelectual no Brasil 1850-1950. Rio de Janeiro: G. Ermakoff Casa Editorial, 2005.
PORTO, Ângela. Barão do Rio Branco e a caricatura: coleção e memória. Rio de Janeiro:
FUNAG, 2012.
RICUPERO, Rubens. “Acre: o momento decisivo de Rio Branco”. In: GOMES PEREIRA,
Manoel. Barão do Rio Branco: 100 Anos de Memória. Brasília: FUNAG, 2012, pp. 119-161.
SANTOS, Luís Cláudio Villafañe G. “O Barão do Rio Branco e a Imprensa”. In: Revista
Brasileira. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, jul.-ago.-set., 2012, Ano I, Fase VIII,
nº 72, págs. 135-168. Disponível em: http://www.academia.org.br/abl/media/Revista%20
Brasileira%2072%20-%20PROSA.pdf

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Sobre os autores

Rui Cunha Martins


Professor da Universidade de Coimbra (Instituto de História e Teoria das
Ideias) e membro do corpo docente do Programa de Doutoramento em Altos
Estudos Contemporâneos dessa mesma universidade, é investigador integrado
do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX/CEIS20, bem como in-
vestigador associado do CITCEM. As suas áreas de investigação, genericamente
reportadas à História Contemporânea (problemática da mudança política e da
transição, problemática da fronteira e da estatalidade, regimes da prova e da
verdade), situam-se na confluência da Teoria da História, da Teoria do Direito
e da Teoria Política. É autor, entre outros trabalhos, de O método da fronteira:
radiografia histórica de um dispositivo contemporâneo (matrizes ibéricas e ame-
ricanas) (Coimbra: Almedina, 2008) e de O ponto cego do Direito. The brazilian
lessons (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010).

Fabio Wasserman
Doutor em História pela Facultad de Filosofía y Letras de la UBA, onde é docen-
te. Investigador do Conicet, sua área de interesse é a história política e cultura
argentina e ibero-americana dos séculos XVIII e XIX. Atualmente desenvolve
investigações na imprensa e vida pública de Buenos Aires na década de 1850.
Autor, entre outras obras, de Entre Clio y la Polis. Conocimiento histórico y re-
presentaciones del pasado en el Río de la Plata (1830-1860) e Juan José Castelli.
De súbdito de la corona a líder revolucionário.

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sobre os autores

Paula Borges Santos


Doutora em História Contemporânea pela Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH-UNL). É investigadora do
Instituto de História Contemporânea (IHC) da FCSH-UNL, onde coordena
o Grupo de Investigação Justiça, Regulação e Sociedade. É também investi-
gadora do Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica
Portuguesa (CEHR-UCP). Desenvolve atualmente, no âmbito do Instituto de
História Contemporânea (IHC) da FCSH-UNL e do Centro Studi sull’Europa
Mediterranea (CSSEM) da Università di Viterbo (UV-Itália), com o apoio da
Fundação para a Ciência e a Tecnologia, o seu projeto de pós-doutoramento,
designado: “As câmaras de representação política nos Estados autoritários e
fascistas: Portugal, Espanha e Itália (1922-1976)”.

José Pedro Zúquete


Investigador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS/
UL). Tem experiência na área de Ciência Política e História Contemporânea,
atuando principalmente nas pesquisas sobre nacionalismo, assim como nos
estudos sobre antiglobalização e geopolítica. Doutor em Política Comparada
pela University of Bath, possui pós-doutoramento na Harvard University. Faz
parte da rede europeia COST sobre populismo. Autor de vários artigos cien-
tíficos, publicou os livros Missionary politics in contemporary Europe (Syracuse
University Press) e The struggle for the world (Stanford University Press).
Coeditou também A vida como um filme (Leya) e Grandes chefes na história de
Portugal (Leya).

João Fábio Bertonha


Professor da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e pesquisador do CNPq.
Doutor em História pela Unicamp, com estágio na Itália e na Inglaterra. É livre-
-docente em História pela Universidade de São Paulo (USP) e realizou estágios
de pós-doutorado na USP e na Università La Sapienza, Roma. Atualmente é visi-
ting fellow na European University Institute, Firenze. É também especialista em
assuntos estratégicos internacionais pela National Defense University (USA) e
foi pesquisador visitante em inúmeras universidades na Europa e nas Américas.
Autor de vários artigos e vários livros publicados no Brasil e no exterior. Destaque
para Os Italianos (Contexto, 2005), O fascismo e os imigrantes italianos no Brasil
(EdiPUCRS, 2001) e Sob a sombra de Mussolini: os italianos de São Paulo e a luta
contra o fascismo, 1919-1943 (Annablume, 1999)

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sobre os autores

Cláudia Maria Ribeiro Viscardi


Professora titular da Universidade Federal de Juiz de Fora e professora do
Programa de Pós-Graduação em História. É bolsista de produtividade do CNPq
e pesquisadora da Fapemig. É doutora em História Social pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro e realizou Pós-Doutorado na Manchester Metropolitan
University (Manchester, Reino Unido), onde foi também professora visitante.
Tem experiência nas áreas de História Política e Social, com ênfase na Primeira
República. Autora do livro O teatro das Oligarquias: uma revisão da política do
café com leite (Fino Traço), entre outros trabalhos.

Paulo Roberto de Almeida


Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas, Mestre em Planejamento
Econômico e Economia Internacional pelo Colégio dos Países em Desenvolvimento
da Universidade de Estado de Antuérpia e formou-se em Ciências Sociais pela
Universidade de Bruxelas. Defendeu tese de história diplomática no Curso de
Altos Estudos do Instituto Rio Branco do Ministério das Relações Exteriores.
É Diplomata de carreira desde 1977. Foi professor no Instituto Rio Branco e
na Universidade de Brasília (UnB). Diretor do Instituto Brasileiro de Relações
Internacionais (IBRI) e, desde 2004, é professor de Economia no Programa de
Pós-Graduação em Direito no Centro Universitário de Brasília (Uniceub). É editor
adjunto da Revista Brasileira de Política Internacional; livros mais recentes: Nunca
Antes na Diplomacia (Appris, 2014); Integração Regional (Appris, 2013); Relações
internacionais e política externa do Brasil (LTC, 2012); Globalizando (Lumen Juris,
2011); O Moderno Príncipe (Senado Federal, 2010).

Luís Cláudio Villafañe G. Santos


Graduado em Geografia pela Universidade de Brasília e em Diplomacia pelo
Instituto Rio Branco. Doutor e mestre em História pela Universidade de Brasília.
Atualmente é pesquisador associado ao Observatório das Nacionalidades
(Fortaleza) e diplomata do Ministério das Relações Exteriores. Tem experi-
ência na área de história latino-americana. É autor, entre outros trabalhos,
dos livros O Dia em que Adiaram o Carnaval: política externa e a construção do
Brasil (UNESP, 2010) e O Evangelho do Barão: Rio Branco e a identidade brasileira
(UNESP, 2012). Foi curador da mostra oficial, patrocinada pelo MRE/FUNAG,
sobre o centenário da morte do patrono da diplomacia brasileira: Rio Branco: 100
Anos de Memória (Brasília, Rio de Janeiro). Sócio correspondente do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro desde 2012.

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tipografia Gandhi Serif

número de páginas 196

ano 2015

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