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ORGANIZADORES

Francisco José Bezerra Souto


Gustavo Taboada Soldati
Lin Chau Ming
Reinaldo Duque-Brasil
Rumi Regina Kubo

“QUANDO PENSA
QUE NÃO...”

Contos, crônicas e causos


em
Etnoecologia

Vol. III
Bruno Rodrigo Carvalho Domingues
Bruno Rodrigo Carvalho Domingues é um jovem pes-
quisador do interior da Amazônia, atualmente cursa o
último ano do curso de Bacharelado em Ciências Sociais
pela Universidade Federal do Pará e é bolsista de Ini-
ciação Científica do CNPq. Ultimamente tem pesquisado
acerca do diálogo possível entre Etnobiologia e diversi-
dade sexual e de gênero, estudando os usos sexuais da
sociobiodiversidade e o que eles podem nos dizer sobre
as emoções e subjetividades dos indivíduos humanos e
não humanos.
brunodomingues121@gmail.com

Claudia Nunes Santos


Uma Calin sergipana, que nasceu em São Paulo, filha de
Francisco e Marli. Bióloga, Mestre em Zoologia e Dou-
tora em Genética. Professora na Universidade Federal
do Pará. Aquariana, mãe da Shayna e da Bárbara. Muito
cedo, libertou-se do espelho e viu seu reflexo em tartaru-
gas marinhas, mamíferos terrestres, caranguejos e aves.
claudianunes.bio@gmail.com

Edison Auqui-Calle
Licenciado en Ciencias Biológicas y Ambientales por la
Universidad Central del Ecuador, Candidato a Magister
por la Maestría de investigación en Estudios Socioam-
bientales de la Facultad Latinoamericana de Ciencias
Sociales (FLACSO-Ecuador), miembro de la mesa direc-
tiva de la Sociedad Ecuatoriana de Etnobiología. Línea
de investigación relacionada con diversas áreas como:
Ecología trófica de avifauna insectívora de zona baja de
la Amazonía ecuatoriana, Etnobiología de serpientes,
aspectos ecológicos de calidad de agua a través de fito-
plancton y zooplancton. Actualmente la línea de investi-
gación está vinculada a la relación humano-naturaleza y

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“Quando pensa que não...” Contos, causos e crônicas em Etnoecologia Vol. III

Os deuses querem chorar por amor?


Bruno Rodrigo Carvalho Domingues

Quando tive acesso ao volume II do livro “Quando


pensa que não... Contos, causos e crônicas em Etnoecologia”
fiquei encantado com a publicação, em especial, com o capí-
tulo publicado por Flávio Bezerra Barros sobre o homem que
desafiou sexualmente a fêmea do boto, a bota, e através dele
pude recordar de muitas crônicas e causos que ouvi ao longo
dos meus poucos 22 anos de vida e de Amazônia. O mais re-
cente escutei durante as minhas andanças no interior do Pará,
em especial junto aos povos de terreiro e diz respeito ao ro-
mance entre uma jovem mulher e a entidade Zé Pilintra, um
caboclo malandro que se apresenta na cabeça de pais, mães,
filhos e filhas de santo nos terreiros de umbanda e mina-nagô,
entre outros.
Este romance me foi compartilhado enquanto eu es-
tava realizando pesquisa de campo para o meu trabalho de
conclusão de curso de Ciências Sociais, investigando os usos
sexuais da sociobiodiversidade. Era uma manhã de sábado e
fui até a casa de um dos interlocutores da pesquisa em um
agitado bairro do município de Abaetetuba, no nordeste pa-
raense, a este interlocutor chamarei de Bento, para preservar
sua identidade. Estávamos na cozinha de sua casa e conver-
sávamos após uma jogada de cartas, um frente ao outro en-
quanto eu bebia um copo d´água. O assunto da vez era como
os encantados, caboclos e pombagiras sentem a necessidade
de (re)estabelecer relações humanas, seja bebendo cachaça,
fumando cigarros, fazendo fofocas, brincadeiras e gaiatices

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“Quando pensa que não...” Contos, causos e crônicas em Etnoecologia Vol. III

durante as giras ou mesmo através de relacionamentos amo-


rosos e sexuais.24
Neste momento Bento então me confidenciou que em
um famoso terreiro de Min-Nagô da cidade há alguns anos
foi feito um trabalho para afastar uma entidade de uma bela
jovem, pois estavam se relacionando amorosa e sexualmente.
Curioso, eu procurei saber mais sobre o ocorrido, e Bento me
contou.25
Forte era a admiração de Miriam por Zé Pilintra.
Mais do que uma devoção, era uma paixão. A jovem não re-
sistiu aos encantos da entidade de origem pernambucana que
mesmo estando às margens do Estado (em vida) nunca dei-
xou que os entraves sociais o impedissem de estampar um
lindo sorriso. Zé Pilintra, que migrou para o Rio de Janeiro,
experimentou ou aperfeiçoou toda sua malandragem digna
da carioquice. Sempre pelos bares da vida, ele era um galan-
teador e sempre vestia a sua negra pele com um terno branco,
gravatas e adereços vermelhos e um chapéu, esbanjando bom
humor e luz como um verdadeiro malandro dos subúrbios
cariocas. Certamente, mesmo após sua passagem pela terra,
Zé Pilintra continuava a encantar com sua luz e seu charme,
o que fez com que Miriam mergulhasse em um amor pós-hu-
mano.
O amor passou a ser percebido e correspondido pela
entidade, até que a jovem se permitiu viver este romance. Os

24 Utilizo o termo “deuses” no texto como uma simples convenção,


sem pretender avançar na discussão deste termo e sem adentrar em ques-
tões do que se configura enquanto um deus. A inspiração do título vem da
música “Esú” de “Baco Exu do Blues”, no momento em que o rapper diz
“Aqui se escuta o batuque do trovão/Thor e seu martelo, Jorge e o seu dra-
gão/Ciranda no céu, rave de tambor/Os deuses queriam chorar por amor”.
25 Todos os nomes neste texto são fictícios.
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“Quando pensa que não...” Contos, causos e crônicas em Etnoecologia Vol. III

dois passaram a se encontrar todas as noites, ela em matéria,


ele em espírito, entre conversas, conselhos, galanteios, beijos,
toque, sexo. Tanta era a paixão que a jovem não mais sentia
vontade de sair do quarto, para não se sentir longe do seu
amado.
Um amor pós-humano assim como os amores huma-
nos, quando de forma exagerada pode causar danos àqueles
que estão nesta relação, em especial àquele constituído por
matéria. Foi quando a jovem começou a apresentar-se fraca,
adoecia, desmaiava, não sentia vontade de se alimentar, só
tinha energias para o seu amado.
A mãe da jovem, preocupada, não sabia o que fazer
para ter a vitalidade da sua filha devolvida. Ela não sabia so-
bre o romance que a Miriam vivera, afinal, divulgar o namoro
secreto colocaria em risco a permanência do seu amado em
sua casa. Mas durante uma noite quente, sua mãe foi até a
cozinha beber água e escutou barulhos vindos do quarto de
Miriam e decidiu ir até lá para ver o que estava acontecendo
e, para a sua surpresa, se deparou com a jovem em posições
sexuais, mas não conseguia visualizar quem a possuía. As-
sustada, a mãe levou-a ao terreiro e constatou que a garota se
envolvera amorosamente com uma entidade.
No terreiro foi necessário realizar um trabalho de
separação, utilizando as entidades para separarem um igual,
processo que embora fosse um alívio à família, causara sofri-
mento à jovem e principalmente à entidade que não mais irá
reviver os sentimentos humanos, ou ao menos não os senti-
mentos do gozo, pois nesta separação, Zé Pilintra chorou por
amor.

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