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Antropologia Social

e Cultural
Profª Milena Cassal
Profª Priscila Farfan Barroso

2017
Copyright © UNIASSELVI 2017
Elaboração:
Profª Milena Cassal
Profª Priscila Farfan Barroso

Revisão, Diagramação e Produção:


Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri


UNIASSELVI – Indaial.

301
B277a Barroso, Priscila Farfan

Antropologia social e cultural / Priscila Farfan Barroso;


Milena Cassal. Indaial : UNIASSELVI, 2017.

221 p. : il.

ISBN 978-85-515-0079-8

1.Sociologia e Antropologia.
I. Centro Universitário Leonardo Da Vinci.

Impresso por:
Apresentação
Ao iniciar este livro de estudos, convidamos você a mergulhar na
história da antropologia e em suas diversas vertentes, buscando conhecer
outras formas de perceber os indivíduos em sociedade. A antropologia
desvenda os detalhes existentes entre os grupos sociais. A partir da etimologia
(origem da palavra) sabemos que ANTHROPOS=HOMEM e LOGIA=
ESTUDO. Ou seja, antropologia é o estudo do homem. Mas por que devemos
estudar o homem? Já não existem tantas ciências a estudá-lo?

Ao estudar antropologia, compreendemos melhor o funcionamento de


determinados grupos sociais. Deste modo é mais fácil desconstruir determinadas
visões sobre diversos assuntos. A desconstrução de ideias é um dos principais
enfoques das ciências sociais, com uma forte contribuição da antropologia,
já que a base de muitas de suas pesquisas inicia-se pelo “senso comum” e o
“transformam” em outros conceitos, a partir da perspectiva do pesquisado.

A antropologia surgiu na segunda metade do século XIX, juntamente


com a sociologia, devido a grandes acontecimentos sociais, econômicos e
políticos. No decorrer dos séculos, esta ciência se modificou para observar e
compreender as mudanças citadas acima. Neste sentido, estudar antropologia
é caminhar por várias formas de “ver” o mundo.

Este livro de estudos apresenta as concepções da antropologia, assim


como sua abordagem na sociedade. Apresenta as especificidades antropológicas,
buscando conhecer como é produzido o fazer antropológico a partir das suas
diversas correntes teóricas. Na primeira unidade buscamos compreender
a origem da antropologia, assim como seus métodos, e iniciamos nossa
caminhada pela antropologia cultural e social. Continuamente, na Unidade 2,
verificamos os principais teóricos e suas abordagens dentro deste campo de
estudo, e ao chegarmos à Unidade 3 trabalharemos com temas que permeiam o
fazer do professor na área das ciências sociais: antropologia e educação.

Neste livro de estudos avaliamos que seria importante trabalhar


com um contexto dinâmico, com uma linguagem voltada para o cotidiano
do aluno, fazendo com que ele tenha mais facilidade na compreensão dos
conceitos apresentados, realizando de forma mais integrada os exercícios
propostos neste livro.

Seja bem-vindo, acadêmico, ao universo da Antropologia Social e


Cultura!

Profª Milena Cassal


Profª Priscila Farfan Barroso

III
UNI

Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para
você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano,
há novidades em nosso material.

Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o


material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato
mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura.

O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação
no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir
a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo.

Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente,


apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade
de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador.
 
Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para
apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto
em questão.

Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas
institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa
continuar seus estudos com um material de qualidade.

Aproveito o momento para convidá-lo para um bate papo sobre o Exame Nacional de
Desempenho de Estudantes – ENADE.
 
Bons estudos!

UNI

Olá acadêmico! Para melhorar a qualidade dos


materiais ofertados a você e dinamizar ainda
mais os seus estudos, a Uniasselvi disponibiliza
materiais que possuem o código QR Code, que
é um código que permite que você acesse um
conteúdo interativo relacionado ao tema que
você está estudando. Para utilizar essa ferramenta,
acesse as lojas de aplicativos e baixe um leitor
de QR Code. Depois, é só aproveitar mais essa
facilidade para aprimorar seus estudos!

IV
V
VI
Sumário
UNIDADE 1 - INTRODUÇÃO E CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA ANTROPOLOGIA .... 1

TÓPICO 1 - CONCEITOS INICIAIS PARA ESTUDO DA ANTROPOLOGIA ........................... 3


1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................................................... 3
2 COMO SURGEM OS ESTUDOS DO HOMEM .............................................................................. 4
3 O QUE É ETNOCENTRISMO? ......................................................................................................... 11
4 IDEOLOGIAS ETNOCÊNTRICAS ................................................................................................... 14
5 O DISTANCIAMENTO, O ESTRANHAMENTO E A ALTERIDADE ...................................... 16
6 A XENOFOBIA E SUA LIGAÇÃO COM O ETNOCENTRISMO .............................................. 17
LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 18
RESUMO DO TÓPICO 1 ....................................................................................................................... 22
AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 23

TÓPICO 2 - O QUE É ANTROPOLOGIA? ......................................................................................... 25


1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 25
2 CAMPOS INICIAIS DA ANTROPOLOGIA .................................................................................. 26
3 A ANTROPOLOGIA COMO CIÊNCIA NO BRASIL ................................................................... 29
LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 33
RESUMO DO TÓPICO 2 ....................................................................................................................... 36
AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 37

TÓPICO 3 - METODOLOGIA DA ANTROPOLOGIA ................................................................... 39


1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 39
2 OBJETOS DE ESTUDO DA ANTROPOLOGIA ............................................................................ 39
3 O OLHAR DO PESQUISADOR ........................................................................................................ 43
4 O OUVIR DO PESQUISADOR ......................................................................................................... 44
5 O ESCREVER DO PESQUISADOR .................................................................................................. 45
6 A ESCRITA ANTROPOLÓGICA E A CONSTRUÇÃO DE “PERFIS” SOCIAIS .................... 45
LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 49
RESUMO DO TÓPICO 3 ....................................................................................................................... 53
AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 54

UNIDADE 2 - PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA ....................... 57

TÓPICO 1 - A CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO ANTROPOLÓGICO .............................. 59


1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 59
2 EVOLUCIONISMO SOCIAL E MATERIALISMO CULTURAL ................................................ 59
2.1 MORGAN E A SOCIEDADE ANTIGA ........................................................................................ 60
2.2 TYLOR E A CIÊNCIA DA CULTURA . ........................................................................................ 61
2.3 FRAZER E A ANTROPOLOGIA SOCIAL .................................................................................. 62
2.4 PARTICULARISMO HISTÓRICO E CULTURAL ..................................................................... 64
2.5 MÉTODO ETNOGRÁFICO E A ESCRITA .................................................................................. 67
2.6 FUNÇÃO, ESTRUTURA E ORGANIZAÇÃO SOCIAL . ........................................................... 70
LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 74

VII
RESUMO DO TÓPICO 1 ....................................................................................................................... 79
AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 80

TÓPICO 2 - PERSPECTIVAS CLÁSSICAS DA TEORIA ANTROPOLÓGICA ......................... 81


1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 81
2 A ESCOLA FRANCESA ....................................................................................................................... 81
2.1 REPRESENTAÇÕES COLETIVAS E FORMAS PRIMITIVAS DE CLASSIFICAÇÃO .......... 82
2.2 PENSAMENTO SELVAGEM E ESTRUTURALISMO ................................................................ 86
3 A ESCOLA AMERICANA .................................................................................................................... 90
3.1 CULTURA, PERSONALIDADE E GÊNERO . ............................................................................. 91
3.2 INTERPRETATIVISMO E DESCRIÇÃO DENSA ....................................................................... 96
4 A ESCOLA BRITÂNICA .................................................................................................................. 100
4.1 PROCESSO RITUAL E OS DRAMAS SOCIAIS ........................................................................ 100
4.2 PUREZA E SIMBOLISMO ............................................................................................................ 103
LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................. 106
RESUMO DO TÓPICO 2 ..................................................................................................................... 110
AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................... 111

TÓPICO 3 - INQUIETAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DA ANTROPOLOGIA ....................... 113


1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................... 113
2 CULTURA COMO INVENÇÃO ...................................................................................................... 113
2.1 AUTORIDADE DO ETNÓGRAFO E POSSIBILIDADE DE ESCRITAS ................................ 116
2.2 GRANDES RUPTURAS E NOVOS QUESTIONAMENTOS .................................................. 118
LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................. 120
RESUMO DO TÓPICO 3 ..................................................................................................................... 123
AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................... 124

UNIDADE 3 - TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E


CULTURAL ............................................................................................................................................. 125

TÓPICO 1 - CITAÇÕES ........................................................................................................................ 127


1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................... 127
2 EDUCAÇÃO E ANTROPOLOGIA ................................................................................................. 128
3 DESIGUALDADES NA EDUCAÇÃO: UM OLHAR DA ANTROPOLOGIA ....................... 135
LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................. 138
LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................. 143
RESUMO DO TÓPICO 1 ..................................................................................................................... 152
AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................... 153

TÓPICO 2 - DISCUSSÕES DE CONTEÚDOS ................................................................................ 155


1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................... 155
2 TEMAS DA EDUCAÇÃO E ANTROPOLOGIA .......................................................................... 156
2.1 DESIGUALDADE ECONÔMICA ENTRE GÊNEROS ............................................................ 157
2.2 AS RELAÇÕES ÉTNICAS RACIAIS NA EDUCAÇÃO ........................................................... 159
3 GÊNERO E DIVERSIDADE NA ESCOLA SEGUNDO A ANTROPOLOGIA ...................... 173
LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................. 179
LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................. 184
RESUMO DO TÓPICO 2 ..................................................................................................................... 189
AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................... 191

TÓPICO 3 - ANTROPOLOGIA: POR UMA EDUCAÇÃO INCLUSIVA E REFLEXIVA ........ 193


1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................... 193

VIII
LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................. 199
LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................. 205
RESUMO DO TÓPICO 3 ..................................................................................................................... 210
AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................... 211
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................................... 213

IX
X
UNIDADE 1

INTRODUÇÃO E CONCEITOS
FUNDAMENTAIS DA ANTROPOLOGIA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Esta unidade tem por objetivos:

• conceituar antropologia, sua origem e métodos;

• compreender o significado da antropologia cultural e social.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está organizada em três tópicos. Neles você encontrará dicas,
textos complementares, observações e atividades que lhe darão uma maior
compreensão dos temas a serem abordados.

TÓPICO 1 – CONCEITOS INICIAIS PARA ESTUDO DA ANTROPOLOGIA

TÓPICO 2 – O QUE É A ANTROPOLOGIA?

TÓPICO 3 – METODOLOGIA DA ANTROPOLOGIA

1
2
UNIDADE 1
TÓPICO 1

CONCEITOS INICIAIS PARA


ESTUDO DA ANTROPOLOGIA

1 INTRODUÇÃO
Iniciamos nossa jornada de estudos buscando compreender melhor o
significado de antropologia cultural e social, que, no caso, diz respeito a TUDO
que constitui uma sociedade, incluindo a nossa: “[...] seus modos de produção
econômica, suas técnicas, sua organização política e jurídica, seus sistemas de
parentesco, seus sistemas de conhecimento, suas crenças religiosas, sua língua, sua
psicologia, suas criações artísticas” (LAPLANTINE, 2000, p. 19).

De acordo com Lévi-Strauss (1974, p. 80), o antropólogo busca compreender


aquilo que os homens “não pensam habitualmente em fixar na pedra ou no papel”.
Os gestos, as trocas simbólicas, os detalhes do comportamento humano são os objetos
do estudo do homem. A antropologia é o estudo das culturas humanas, assim como
de um TODO na sua diversidade histórica e geográfica (LAPLANTINE, 2000).

A antropologia social trabalha, inicialmente, com os sistemas de


pensamento, destaca a coesão das instituições, o caráter integrativo da família,
da moral e da religião (DURKHEIM,1979). A antropologia social e cultural tem o
mesmo campo de investigação:
O social é a totalidade das relações (relações de produção, de exploração,
de dominação...), que os grupos mantêm entre si dentro de um mesmo
conjunto (etnia, região, nação...) e para com outros conjuntos, também
hierarquizados. A cultura, por sua vez, não é nada mais que o próprio
social, mas é considerado dessa vez sob o ângulo dos caracteres
distintivos que apresentam os comportamentos individuais dos
membros desse grupo, bem como suas produções originais (artesanais,
artísticas, religiosas...) (LAPLANTINE, 2000, p. 95).

Os antropólogos culturais e sociais possuem os mesmos métodos


etnográficos, fazem análises comparativas. No ângulo da antropologia social, a
comparação é o social como sistema de relações sociais e na antropologia cultural
observa-se o social através dos comportamentos particulares dos membros do
grupo pesquisado. “Nossas maneiras específicas, enquanto homens e mulheres
de uma determinada cultura, de pensar, de encontrar, trabalhar, se distrair,
reagir frente aos acontecimentos (por exemplo, o nascimento, a doença, a morte)
(LAPLANTINE, 2000, p. 96).

3
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO E CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA ANTROPOLOGIA

A partir destes pontos destacamos os seguintes questionamentos: como


surge o estudo do homem? O que é antropologia? Qual é o seu método?

Verificaremos nas próximas páginas as respostas para estas perguntas,


assim como nas unidades seguintes conheceremos seus principais autores e linhas
de pensamento teórico.

FIGURA 1 - ESTUDO DO HOMEM

FONTE: Disponível em: <https://kmarx.files.wordpress.com/2015/10/multicult-


stubble-brush.jpg>. Acessado em: 15 out. 2016.

2 COMO SURGEM OS ESTUDOS DO HOMEM

A antropologia tem origem na Europa, assim como a sociologia. Na França


e em alguns países, muitos cientistas sociais não fazem distinção entre as duas.
O surgimento da sociologia e da antropologia deve-se a uma série de mudanças
políticas, sociais e econômicas do cenário daquela época. O contato com os novos
povos gerou muitos questionamentos, desde o início das grandes navegações
nos séculos XIV e XV. Marco Polo (apud LAPLANTINE, 2000, p. 60) fez um dos
primeiros questionamentos antropológicos a partir da experiência de estar em
contato com novos povos: “Como podem povos tão iguais (física e biologicamente)
produzir culturas tão diferentes?”

O que você acha, caro acadêmico? Como povos tão iguais desenvolvem
culturas tão diferentes? Vivemos em um país com diversas culturas locais
riquíssimas, mas fazemos parte da mesma nacionalidade, somos todos brasileiros,
no entanto, praticamos ações e visões culturais bastante diferentes dos demais em
nosso país.

4
TÓPICO 1 | CONCEITOS INICIAIS PARA ESTUDO DA ANTROPOLOGIA

Voltamos para as grandes navegações e suas expansões pelos saberes


antropológicos. Primeiramente, as sociedades espanhola e portuguesa delegaram
à Igreja Católica Romana a função de conhecer e compreender os povos
conquistados, através das pesquisas dos jesuítas com os indígenas no processo
de catequização. Seus estudos tinham o objetivo de conhecer o povo nativo para
“dominá-lo” e colonizá-lo. Como bem sabemos, os indígenas (e depois os africanos
escravizados) foram utilizados como mão de obra em muitas terras conquistadas
pelos portugueses e espanhóis. Os britânicos, franceses e holandeses utilizaram
outra técnica de dominação dos povos nativos, que não estava ligada à religião.
Desejavam manipular sua base econômica para a produção comercial, não se
interessavam em mudar as leis dos povos ou impor-lhes sua religião, tinham
um objetivo: “Conhecer para manter”. A partir desta origem, a antropologia está
embasada em três temas:

Antropologia pragmática, “conhecer outros povos para explorá-los”,


que poderia ser trabalhada no estudo da linha evolucionista na antropologia.
Antropologia romântica, que tenta proteger o povo conquistado do contato e
absorção pela civilização dominadora. E a antropologia científica, sendo estudada
na linha funcionalista e estruturalista – social e cultural. Estas linhas serão
estudadas na Unidade 2.

A antropologia estuda todas as sociedades humanas, inclusive a nossa


sociedade. É recente o estudo das chamadas sociedades complexas, as primeiras
pesquisas trataram dos aspectos “tradicionais” das sociedades não tradicionais.
Analisavam-se as comunidades camponesas europeias, logo após a atenção foi
voltada para grupos marginais e há poucos anos iniciou-se o estudo nas cidades.

Anteriormente, a antropologia voltou-se para o estudo das civilizações


primitivas, porém seu objeto de pesquisa mudou e, assim, muitas reflexões foram
desenvolvidas para que as bases epistemológicas fossem amadurecidas.

A profissão de antropólogo e a ciência antropológica surgiram no início


do século XX, com os antropólogos Franz Boas (USA) e Bronislaw Malinowski
(Inglaterra). A antropologia como ciência contribui com diversas formas de analisar
as sociedades, o estranhamento da cultura do outro, o choque cultural a partir do
contato com outra cultura e a negação do etnocentrismo são fatores positivos para
um olhar diferenciado para o modo de viver em sociedade.

5
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO E CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA ANTROPOLOGIA

FIGURA 2 - CULTURA OU CULTURAS

FONTE: Disponível em: <https://www.kickante.com.br/


campanhas/cultura-box>. Acesso em: 15 out. 2016.

A antropologia estuda ou analisa diversas formas de culturas e suas relações


com o viver em sociedade. Segundo Giddens (2005), a cultura de uma sociedade
compreende tanto aspectos intangíveis – as crenças, as ideias e os valores que a
formam –, como também os aspectos tangíveis, ou seja, os objetos, os símbolos ou
a tecnologia que expressam este conteúdo.

A noção de cultura parece ofertar a resposta mais ampla à questão da


diferença entre os povos. De acordo com Cuchê (1999), o homem é essencialmente
um ser cultural. “A cultura permite ao homem não somente adaptar-se a seu
meio, mas também adaptar este meio ao próprio homem, a suas necessidades e
seus projetos. Em suma, a cultura torna possível a transformação da natureza”
(CUCHÉ, 1999, p. 10).

No final do século XVIII e no início do século XIX, o termo germânico


“Kultur” era utilizado para simbolizar todos os aspectos espirituais de uma
comunidade, enquanto a palavra francesa “Civilization” referia-se principalmente
às realizações materiais de um povo. Ambos os termos foram sintetizados por

6
TÓPICO 1 | CONCEITOS INICIAIS PARA ESTUDO DA ANTROPOLOGIA

Edward Tylor (1832-1917) (1971, p. 71) no vocábulo inglês “Culture”, que "tomado
em seu amplo sentido etnográfico é este todo complexo que inclui conhecimentos,
crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos
adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade". Com esta definição
Tylor abrangia em uma só palavra todas as possibilidades de realização humana,
além de marcar fortemente o caráter de aprendizado da cultura em oposição à
ideia de aquisição inata, transmitida por mecanismos biológicos (LARAIA, 2005).

O conceito de cultura, utilizado atualmente, foi definido pela primeira vez


por Tylor. Ele formalizou uma ideia que vinha crescendo na mente humana. A
ideia de cultura, com efeito, estava ganhando consistência talvez mesmo antes
de John Locke (1632-1704) que, em 1690, ao escrever Ensaio acerca do entendimento
humano, procurou demonstrar que a mente humana não é mais do que uma caixa
vazia por ocasião do nascimento, dotada apenas da capacidade ilimitada de obter
conhecimento, através de um processo que hoje chamamos de endoculturação.
Locke (1978) refutou fortemente as ideias correntes na época, de princípios ou
verdades inatas impressas hereditariamente na mente humana, ao mesmo tempo
em que ensaiou os primeiros passos do relativismo cultural ao afirmar que os
homens têm princípios práticos opostos:

Quem investigar cuidadosamente a história da humanidade,


examinar por toda a parte as várias tribos de homens e com
indiferença observar as suas ações, será capaz de convencer-
se de que raramente há princípios de moralidade para serem
designados, ou regra de virtude para ser considerada... que não
seja, em alguma parte ou outra, menosprezado e condenado pela
moda geral de todas as sociedades de homens, governadas por
opiniões práticas e regras de condutas bem contrárias umas às
outras (LOCKE apud LARAIA, 2005, p. 14-15).

Mais de um século transcorrido, Kroeber (1950, p. 85) escreveu que "a maior
realização da Antropologia na primeira metade do século XX foi a ampliação e a
clarificação do conceito de cultura". Porém, as centenas de definições formuladas
após Tylor serviram mais para estabelecer uma confusão do que ampliar os limites
do conceito. Em 1973, Geertz escreveu que o tema mais importante da moderna
teoria antropológica era o de "diminuir a amplitude do conceito e transformá-lo
num instrumento mais especializado e mais poderoso teoricamente" (GEERTZ
apud CUCHÊ,1999, p. 15). A cultura, segundo Clifford Geertz (1978), é um sistema
de teias de significado que foi tecido pelo próprio homem. A cultura não seria uma
ciência experimental, mas uma ciência interpretativa à procura de um significado.

7
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO E CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA ANTROPOLOGIA

FIGURA 3 - O DESENVOLVIMENTO DO CONCEITO DE CULTURA

FONTE: <https://www.google.com.br/search?sa=G&hl=pt&q=co
municacion+marketing&tbm=isch&tbs=simg:CAQSkwEJSq74TsQ
QGWkahwELEKjU2AQaAAwLELCMpwgaYgpgCAMSKKsUpxSfCrIU-
RO3FKUUrBSmCbYU-D35Pcw3mjWZNZkptiebKfMi-ygaMAvBeg6wg7RL
jcyqN705jhayOVsx52pspk9V4S_1xa1ApgP3Kg4lY6idFDKSL4oHDyCAED
AsQjq7-CBoKCggIARIEwFQNCgw&ved=0ahUKEwj8koPO4cvQAhWBG
ZAKHSkLDVgQ2A4IGygB&biw=1366&bih=662#imgdii=YnK1cCmMC_
z0cM%3A%3BYnK1cCmMC_z0cM%3A%3BbtAyr1D_
W7hWOM%3A&imgrc=YnK1cCmMC_z0cM%3A>. Acesso em: 16 out. 2016.

A primeira definição de cultura que foi formulada do ponto de vista


antropológico, como vimos, pertence a Edward Tylor, no primeiro parágrafo de seu
livro Primitive Culture (1871). Tylor (1871) procurou, além disto, demonstrar que
cultura pode ser objeto de um estudo sistemático, “pois trata-se de um fenômeno
natural que possui causas e regularidades, permitindo um estudo objetivo e uma
análise capazes de proporcionar a formulação de leis sobre o processo cultural e a
evolução” (TYLOR apud LARAIA, 2005, p. 17).

Mais do que preocupado com a diversidade cultural, Tylor preocupava-


se com a igualdade existente na humanidade. A diversidade é explicada por
ele como o resultado da desigualdade de estágios existentes no processo de
evolução. Assim, uma das tarefas da antropologia seria a de "estabelecer, grosso
modo, uma escala de civilização", simplesmente colocando as nações europeias
em um dos extremos da série e em outro as tribos selvagens, dispondo o resto
da humanidade entre dois limites. Mercier (1974) mostra que Tylor pensava as
"instituições humanas tão distintamente estratificadas quanto a terra sobre a
qual o homem vive. Elas se sucedem em séries substancialmente uniformes por
todo o globo, independentemente de raça e linguagem – diferenças essas que
são comparativamente superficiais –, mas moduladas por uma natureza humana
semelhante, atuando através das condições sucessivamente mutáveis da vida
selvagem, bárbara e civilizada" (LARAIA, 2005, p. 18).

Para entender Tylor é necessário compreender a época em que ele viveu. O


seu livro foi produzido nos anos quando a Europa sofria o impacto da Origem das

8
TÓPICO 1 | CONCEITOS INICIAIS PARA ESTUDO DA ANTROPOLOGIA

espécies, de Charles Darwin, e a “nascente antropologia foi dominada pela estreita


perspectiva do evolucionismo unilinear” (LARAIA, 2005, p. 18) A principal reação
ao evolucionismo, então denominado método comparativo, inicia-se com Franz
Boas (1858-1949), nascido em Westfália (Alemanha) e inicialmente um estudante
de física e geografia em Heidelberg e Bonn. Uma expedição geográfica a Baffin
Land (1883-1884), que o “colocou em contato com os esquimós, mudou o curso de
sua vida, transformando-o em antropólogo” (LARAIA, 2005, p. 19).

São as investigações históricas – reafirma Boas (1986) – o que convém para


descobrir a origem deste ou daquele traço cultural e para interpretar a maneira
pela qual toma lugar num dado conjunto sociocultural. Em outras palavras, Boas
(1986) desenvolveu o particularismo histórico (ou a chamada Escola Cultural
Americana), segundo a qual cada cultura segue os seus próprios caminhos em
função dos diferentes eventos históricos que enfrentou. A partir daí a explicação
evolucionista da cultura só tem sentido quando ocorre em termos de uma
abordagem multilinear BOAS apud LARAIA, 2005, p. 20).

Alfred Kroeber (1950) (1876-1960), antropólogo americano, em seu artigo


"O superorgânico", mostrou como a cultura atua sobre o homem, ao mesmo tempo
em que se preocupou com a discussão de uma série de pontos controvertidos, pois
suas explicações contrariam um conjunto de crenças populares. Demonstrou que
graças à cultura, a humanidade distanciou-se do mundo animal. Para ele, o homem
passou a ser considerado um ser que está acima de suas limitações orgânicas.

A preocupação de Kroeber era evitar a confusão, ainda tão comum, entre


o orgânico e o cultural. Não se pode ignorar que o homem, membro proeminente
da ordem dos primatas, depende muito de seu equipamento biológico. Para se
manter vivo, independentemente do sistema cultural ao qual pertença, ele tem que
satisfazer um número determinado de funções vitais, como a alimentação, o sono,
a respiração, a atividade sexual etc., mas, embora estas funções sejam comuns a
toda humanidade, a maneira de satisfazê-las varia de uma cultura para outra. É
esta grande variedade na operação de um número tão pequeno de funções que faz
com que o homem seja considerado um ser predominantemente cultural. Os seus
comportamentos não são biologicamente determinados. A sua herança genética
nada tem a ver com as suas ações e pensamentos, pois todos os seus atos dependem
inteiramente de um processo de aprendizado.

O homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado. Ele é


um herdeiro de um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento
e a experiência adquirida pelas numerosas gerações que o antecederam. A
manipulação adequada e criativa desse patrimônio cultural permite as inovações
e as invenções. Estas não são, pois, o produto da ação isolada de um gênio, mas o
resultado do esforço de toda uma comunidade.

De acordo com Laraia (2005), não basta a natureza criar indivíduos


altamente inteligentes, isto ela o faz com frequência, mas é necessário que coloque
ao alcance desses indivíduos o material que lhes permita exercer a sua criatividade
de uma maneira revolucionária.
9
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO E CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA ANTROPOLOGIA

Resumindo, a contribuição de Kroeber, segundo Laraia (2005) para a


ampliação do conceito de cultura pode ser relacionada nos seguintes pontos:

1. A cultura, mais do que a herança genética, determina o comportamento do


homem e justifica as suas realizações.
2. O homem age de acordo com os seus padrões culturais. Os seus instintos foram
parcialmente anulados pelo longo processo evolutivo pelo qual passou.
3. A cultura é o meio de adaptação aos diferentes ambientes ecológicos. Em vez
de modificar o seu aparato biológico, o homem modifica o seu equipamento
superorgânico.
4. Em decorrência da afirmação anterior, o homem foi capaz de romper as barreiras
das diferenças ambientais e transformar toda a Terra em seu hábitat.
5. Adquirindo cultura, o homem passou a depender muito mais do aprendizado
do que a agir através de atitudes geneticamente determinadas.
6. Como já era do conhecimento da humanidade, desde o Iluminismo, é este
processo de aprendizagem (socialização ou endoculturação) que determina o
seu comportamento e a sua capacidade artística ou profissional.
7. A cultura é um processo acumulativo, resultante de toda a experiência histórica
das gerações anteriores. Este processo limita ou estimula a ação criativa do
indivíduo.
8. Os gênios são indivíduos altamente inteligentes que têm a oportunidade de
utilizar o conhecimento existente ao seu dispor, construído pelos participantes
vivos e mortos de seu sistema cultural, e criar um novo objeto ou uma nova
técnica. Nesta classificação podem ser incluídos os indivíduos que fizeram as
primeiras invenções, tais como o primeiro homem que produziu o fogo através
do atrito da madeira seca; ou o primeiro homem que fabricou a primeira
máquina capaz de ampliar a força muscular, o arco e a flecha etc. São eles gênios
da mesma grandeza de Santos Dumont e Einstein.

Sem as suas primeiras invenções ou descobertas, hoje consideradas


modestas, não teriam ocorrido as demais. E pior do que isto, talvez nem mesmo a
espécie humana teria chegado ao que é hoje.

No final do século XIX havia uma ideia de que civilizados eram os europeus
e os norte-americanos, e as outras populações eram vistas como menos evoluídas,
ou atrasadas. Franz Boas (1986) critica o uso do termo cultura com o sentido de
ser mais ou menos civilizado. Para ele a cultura era múltipla, não se tratava de
uma cultura, mas sim de várias “culturas”. Ao pensar cultura no “plural” pode-
se desconstruir as hierarquias do pensamento colonial e racista da época, assim
como analisamos cada cultura em sua perspectiva. Para Franz Boas (1986), os
diferentes povos que há no mundo possuem diferentes culturas e entre elas é difícil
estabelecer qualquer hierarquia. Em sua pesquisa com povos indígenas do noroeste
americano e do Alasca, Boas (1986) verificou que as histórias das comunidades são
tão particulares e preenchidas por interesses tão diversos que não há possibilidade
de comparação.

Para Franz Boas, cultura era um todo integrado, e não um conjunto


desagregado de práticas, hábitos, técnicas, relações e pensamentos. Tal integração
10
TÓPICO 1 | CONCEITOS INICIAIS PARA ESTUDO DA ANTROPOLOGIA

de múltiplos elementos se dá a partir de um princípio compartilhado por todos os


indivíduos de uma sociedade específica, assim se criaria a cultura. Por isso seria
única e exclusiva de cada sociedade, o que inviabilizaria qualquer comparação.
Segundo Boas (1986), qualquer comparação exigiria tanto cuidado e investigação
histórica e antropológica que, na prática, seria muito difícil realizar tal ação,
porque [...] “a cultura inclui o processo de simbolização, ou seja, de processos de
substituição de uma coisa por aquilo que a significa” (SANTOS, 2006, p. 41).

Para Santos (1984), a cultura é compreendida como a totalidade de uma


dimensão da sociedade. Nos tempos atuais, ela seria algo como o conhecimento
num sentido ampliado, ou seriam as maneiras pelas quais a realidade que se
conhece é codificada por uma sociedade, através de palavras, ideias, doutrinas.

3 O QUE É ETNOCENTRISMO?

Vamos falar um pouco sobre a negação do etnocentrismo e o que isto tem a


ver com antropologia e com nossas relações cotidianas. Começaremos com alguns
exemplos para a tentativa de compreensão do que é etnocentrismo. Seguimos
pela área musical, você gosta de que tipo de música? Você acredita que o estilo
musical funk é melhor que a música popular brasileira (MPB)? Ou MPB é melhor
que música clássica?

De que forma classificamos o que é “melhor” ou “pior” em termos


generalizantes? Quem dita as regras, ou normas, do que é bom para cada grupo
social, povo ou nação? Questionamentos como estes nos levam a iniciar nossas
reflexões a respeito do etnocentrismo, que etimologicamente significa: ETNOS:
nação, tribo ou pessoas que vivem juntas, e CENTRISMO: centro. Logo, a ideia
de que o grupo está no centro. Assim, as ideias, conceitos, modos de conviver,
regramentos sociais, morais, culturais, sexuais, religiosos, ambientais, políticos,
são para o grupo o centro de tudo. Ou seja, tais pontos dão-se como o “certo” e o
que não se ajusta a isso está “errado”.

CUCHÉ (1999) relata que de acordo com o sociólogo americano William G.


Sumner (1906), etnocentrismo “é o termo técnico para a visão das coisas segundo
a qual nosso próprio grupo é o centro de todas as coisas e todos os outros grupos
são medidos e avaliados em relação a ele”.

Cada grupo alimenta seu próprio orgulho e vaidade, considera-se


superior, exalta suas próprias divindades e olha com desprezo as
estrangeiras. Cada grupo pensa que seus próprios costumes (folkways)
são os únicos válidos e se ele observa que outros grupos têm outros
costumes, encara-os com desdém (SIMON apud CUCHÊ, 1999).

Para Rocha (1994), o etnocentrismo pode ser visto por dois planos, o
plano intelectual e o plano afetivo. No plano intelectual o etnocentrismo pode

11
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO E CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA ANTROPOLOGIA

ser observado como a dificuldade de pensarmos a diferença. Já no plano afetivo,


analisamos como sentimentos de estranheza, medo e hostilidade etc. De acordo
com Everaldo Rocha (1994), o etnocentrismo mistura estes dois planos, pois
eles compõem um fenômeno bastante presente na sociedade e que também é
muito encontrado em nosso cotidiano. De certo modo, ao nos depararmos com o
“diferente” nos sentimos ameaçados, já que nossa identidade cultural está sendo
ferida ou contestada.

Existe uma clara distinção entre grupos, o grupo do “EU” e o grupo do


“OUTRO”. O choque cultural se dá quando se verificam as formas como o viver de
cada grupo se difere e nestes aspectos a diferença sobressai, assim o “EU” determina
que sua visão é a única, ou a superior, a correta. Os questionamentos sobre como o
grupo do “OUTRO” vive de determinada forma são frequentemente explanados. O
grupo do “OUTRO” irá apresentar-se diante do grupo do “EU” como o engraçado,
absurdo, anormal etc. O grupo do “EU” trabalha na perspectiva de fortalecimento
da identidade, identificando-se como “perfeitos”, “excelentes” ou “ser humano”, e
ao “OUTRO” chamam de “macacos da terra” ou “ovos de piolhos” (por exemplo).
O grupo do “EU” é visto como “superior” e “civilizado”, seria a sociedade onde
existem o saber e o progresso, já a do “OUTRO” seria “atrasada”.

Voltando aos estilos musicais, identificamos diversos tipos de músicas,


muitas são visualizadas como “boas” ou “ruins”, “decentes” ou “indecentes” e
também são caracterizadas conforme sua origem de classe social. Caso venha de
classe mais abastada, com grande poder aquisitivo, de um grupo que “aparenta”
ter “conhecimento” de música, é vista como músicas “boas”, porém se o estilo
musical tem origem de classes mais pobres, em que já se preconiza um estereótipo
de “falta de conhecimento”, as músicas já são vistas como “ruins”. Contudo,
estamos colocando nestas observações juízos de valores etnocêntricos, pois cada
grupo vai compreender que seu estilo musical é melhor, assim, não se consegue
desenvolver uma crítica mais qualificada sobre o processo de criação musical e
qual sua função nos meios em que é praticado.

Segundo Lévi-Strauss (1986), os homens têm dificuldade de encarar a


diversidade das culturas como um fenômeno natural. Quando falamos das grandes
navegações, iniciamos a construção do conceito de humanidade. Para os povos
primitivos, a humanidade acaba em suas fronteiras étnicas ou linguísticas, assim
denominam-se “os homens”, “os excelentes” ou “os verdadeiros”, opondo-se aos
estrangeiros que não são reconhecidos como humanos completos. Na sociedade
greco-romana antiga, todos que não participavam da cultura greco-romana eram
“bárbaros”. Na Europa ocidental, os que não pertenciam à civilização ocidental
eram “selvagens”. O barbarismo demonstra confusão, desarticulação e desordem
(ROCHA,1994).

Aqueles que são diferentes do grupo do “EU” – os diversos “OUTROS”


deste mundo –, por não poderem dizer algo de si mesmos, acabam
representados pela ótica etnocêntrica e segundo as dinâmicas
ideológicas de determinados momentos (ROCHA, 1994, p. 15).

12
TÓPICO 1 | CONCEITOS INICIAIS PARA ESTUDO DA ANTROPOLOGIA

Ser etnocêntrico, pensar de forma etnocêntrica, pode causar formas


extremas de intolerância cultural, religiosa, política. A antropologia inicia a
ideia de relatividade das culturas e da não hierarquização. Para a antropologia,
recomenda-se a aplicação do método da observação participante para escapar do
etnocentrismo na pesquisa. Para a antropologia, segundo Rocha (1994), a diferença
é a forma como os grupos sociais deram soluções distintas a limites ou problemas
existenciais comuns. A diferença não seria uma ameaça ou algo ruim, mas sim
uma alternativa, ou uma possibilidade que o “OUTRO” pode abrir para o “EU”.

Você já deve ter ouvido falar em noticiários, nas redes sociais e demais
meios de comunicação, sobre o grande aumento de casos de xenofobia. Mas, afinal,
o que é isso? O que a antropologia tem a ver com este fenômeno social?

Xenofobia é o ato de repudiar, hostilizar e/ou odiar estrangeiros,


fundamenta-se em fatores sociais, culturais, raciais, religiosos, históricos etc. O
termo "xenofobia" é formado por dois termos: “xénos” (estrangeiro, estranho ou
diferente) e “phobos” (medo), que corresponde, literalmente, ao medo do diferente.

Ao constatarmos que uma cultura se sobrepõe como fator de superioridade a


outra, estamos contribuindo com um olhar preconceituoso e xenófobo, produzindo
estereótipos que podem violentar uma cultura e um povo de diversas formas.

Para contrapor o etnocentrismo existem algumas ideias, e entre elas está a


relativização. Mas o que seria a relativização?

Quando vemos que as verdades da vida são menos uma questão de


essência das coisas e mais uma questão de posição: estamos relativizando.
Quando o significado de um ato é visto não na sua dimensão absoluta,
mas no contexto em que acontece: estamos relativizando. Quando
compreendemos o “outro” nos seus próprios valores e não nos nossos:
estamos relativizando. Enfim, relativizar é ver as coisas do mundo
como uma relação capaz de ter tido um nascimento, capaz de ter um fim
ou uma transformação. Ver as coisas do mundo como a relação entre
elas. Ver que a verdade está mais no olhar que naquilo que é olhado.
Relativizar é não transformar a diferença em hierarquia, em superiores
e inferiores ou em bem e mal, mas vê-la na sua dimensão de riqueza por
ser diferente (ROCHA, 1994, p. 20).

A antropologia, ao longo de seus estudos, busca visualizar as diferentes


formas, maneiras, resoluções que os indivíduos deram para as situações que se
configuravam como limites existenciais. A diferença, para a antropologia, não é
ameaça, é alternativa. Segundo Rocha (1994, p. 10), “Ela (diferença) não é uma
hostilidade do “outro”, mas uma possibilidade que o “outro” pode abrir para o
“eu””.

Compreender que a diferença do “EU” em relação ao “OUTRO” pode


ser pensada através do olhar da relativização é algo que vem a desconstruir os
pensamentos etnocêntricos. As ideologias mais extremas, por exemplo, possuem
grande dificuldade de aceitar a relativização, pois são gestadas e mantidas pelo seu

13
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO E CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA ANTROPOLOGIA

próprio monólogo, e a relativização descentraliza o pensamento, o que causa uma


multiplicidade de pontos de vista, questionamentos e respostas. Franz Boas nos
mostra a partir do relativismo que a cultura do homem só poderia ser interpretada
na perspectiva de sua cultura local.
O outro passou a ser visto na condição de fazedor de cultura e essa
cultura entendida a partir do contexto no qual estava inserida. Isto é,
análise não acontecia mais em função dos padrões do analista, mas em
função dos padrões do próprio pesquisado (MENESES, 2009, p. 51).

Sob a perspectiva do etnocentrismo, compreendemos a cultura como


algo único, sendo entendida do ponto de vista daquele que está contando a
história. Como exemplo, o colonizador insere em suas narrativas suas formas de
contar, suas crenças, hábitos, costumes, formas de ver o mundo. Todavia, com o
relativismo, ao percebermos a cultura em que o colonizado está inserido, fica mais
fácil compreender o ponto de vista deste.

4 IDEOLOGIAS ETNOCÊNTRICAS

Ao longo da história, várias ações etnocêntricas foram sendo desenvolvidas


em prol da evolução da humanidade. Nas visões etnocêntricas, as relações de
poder, superioridade e dominação sempre são estabelecidas. “[...] a negação do
“Outro” enquanto tal. E nega-o por senti-lo como uma ameaça à sua própria
maneira de ser, e mesmo ao seu ser. E como a melhor defesa é o ataque, pode partir
para a eliminação física do Outro (PAULO, 2006, p. 13).

Como exemplo histórico destas relações de dominação, relembramos o


holocausto judeu, durante a Segunda Guerra Mundial, quando Hitler compreendia
que a raça ariana era superior à judaica e outras. Milhares de pessoas foram retiradas
de suas casas, cidades, famílias e aprisionadas em campos de concentração, onde
eram expostas a trabalhos forçados, experiências médicas e mortas em câmaras de
gás.

14
TÓPICO 1 | CONCEITOS INICIAIS PARA ESTUDO DA ANTROPOLOGIA

FIGURA 4 - HOLOCAUSTO JUDEU

FONTE: Disponível em: <https://www.google.com.br/


search?q=bosnia+kosovo&espv=2&biw=1280&bih=894&source=
lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwiZqY7v0r_
PAhUJgJAKHWlhB5UQ_AUICCgD#tbm=isch&q=holocausto&imgrc=g0caTTAE0YN5jM%3A>.
Acesso em: 4 nov. 2016.

Recentemente, Slobodan Milosevic, presidente da Sérvia, liderou uma


guerra civil, em que bósnios e kosovares foram dizimados, causando um verdadeiro
genocídio. Já citamos aqui também o processo da escravidão dos africanos, nas
Américas e Europa, onde os escravizados eram sequestrados de suas regiões na
África e, ao chegar nas colônias, eram batizados com nomes cristãos, pois eram
considerados seres sem alma, ou seja, inferiores aos colonizadores.

Existe uma forma mais sutil de lidar com o outro: mantendo a alteridade,
porém esta é pretexto para oprimi-lo.

A diferença torna-se título que legitima a dominação e exploração, já


que demonstra uma degradação da condição humana; por isso, merece
um estatuto de inferioridade e de discriminação. Por exemplo, maior
esforço na produção, menor fatia na distribuição, privação do poder
decisório; não ter a plenitude dos direitos do cidadão; ser considerado
como objeto e não como sujeito da história (PAULO, 2006, p. 13).

15
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO E CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA ANTROPOLOGIA

Vejamos alguns exemplos de ideologias etnocêntricas:

• Grandes navegações: Supremacia cristã, em que Deus era o único a ser venerado.
Durante as expedições ao Novo Mundo, costumes e rituais que não eram
cristãos, o demônio era retirado das pessoas pagãs.
• Época das luzes: A desqualificação do outro se dá pelo “atraso” em relação
à civilização ocidental, devido ao triunfo do racionalismo e do cientificismo.
Desejava-se expandir a “cultura” e o progresso sobre os continentes bárbaros.
Inúmeras barbáries em prol do progresso foram realizadas, destruições de
culturas, pilhagem econômica, opressão política e massacres.
• Racismo: Formulado com conceitos científicos, onde a raça branca era superior
às demais, que situavam entre os primatas superiores e o homem europeu, onde
se entende a Europa como centro (eurocentrismo). Veremos mais sobre racismo
na Unidade 3.
• Evolucionismo cultural: Prega que o europeu ou o wasp americano ocupe o
lugar mais alto da cultura, ou seja, é aquele em que a sociedade e a cultura
europeia são as mais evoluídas. A cultura é vista em etapas, todas caminharão
para a evolução, que no caso seria a visão europeia de cultura. Deste modo,
os “civilizados” controlariam as populações selvagens, bárbaras ou primitivas,
até que possam alcançar a evolução cultural ou maturidade cultural, conduzida
pelos europeus.

5 O DISTANCIAMENTO, O ESTRANHAMENTO E A ALTERIDADE

O antropólogo, ao investir em uma nova pesquisa, desenvolve algumas


formas de analisar seus objetivos. Nas primeiras sociedades estudadas houve um
contato direto com os nativos, os antropólogos faziam uma espécie de imersão
no contexto estudado. Distanciavam-se de suas realidades e aproximavam-se dos
locais e pessoas pesquisados, contudo, deveriam fazer o exercício de distanciamento
inúmeras vezes para que pudessem analisar, com certa neutralidade, os dados
coletados. O estranhamento, a perplexidade ao deparar-se com o não conhecido foi
fundamental para o exercício do fazer etnográfico antropológico. Estranhar leva à
modificação do “olhar” que temos sob a cultura do outro e também a nossa. “[...]
presos a uma única cultura, somos não apenas cegos à dos outros, mas míopes
quando se trata da nossa” (LAPLANTINE, 2000, p. 21).

Distanciar, estranhar e compreender o outro a partir de suas especificidades,


a partir de suas peculiaridades e diferenças, ou seja, exercer a alteridade é o
exercício inicial para compreender a antropologia e suas reflexões. A experiência
da alteridade pode nos fazer “ver” que não teríamos condições de imaginar, devido
a nossa dificuldade em prestar atenção no que é habitual, familiar e cotidiano, e, é
claro, o que é evidente. O conhecimento antropológico de nossa cultura perpassa
pelo conhecimento de outras culturas, deste modo percebemos que não somos a
única cultura que existe, e nem a “mais correta” ou “ética”, nossa cultura pode ser
possível entre tantas existentes.

16
TÓPICO 1 | CONCEITOS INICIAIS PARA ESTUDO DA ANTROPOLOGIA

Gilberto Velho (1987, p. 126), no texto “Observando o familiar”, relata o


exercício de estranhar o familiar.

O que sempre vemos e encontramos pode ser familiar, mas não é


necessariamente conhecido, e o que não vemos e encontramos pode ser
exótico, mas, até certo ponto, conhecido. No entanto, estamos sempre
pressupondo familiaridades e exotismo como fontes de conhecimento
ou desconhecimento, respectivamente.

Praticar o exercício de integração, empatia, talvez possa ajudar neste


processo de tornar o desconfortável em “menos desconfortável”, pois acreditamos
que ao tornar-se confortável demais, alguns olhares de pesquisadores perdem-se.
Para melhor compreender o conceito e desenvolvimento da xenofobia, segue um
texto para reflexão.

6 A XENOFOBIA E SUA LIGAÇÃO COM O ETNOCENTRISMO


Ao decorrer das gerações, alguns grupos étnicos se elevaram em relação
a outros menos favorecidos economicamente e tecnologicamente. Com a
ascensão e o poder destes grupos, demais etnias e culturas começaram a ser
menosprezadas, tornadas como ridículo ou motivo de ódio.

Tomando como base a realidade atual mundial, podemos fazer uma


analogia e dizer que o povo europeu é um destes membros opressores que se
mantém nessa posição etnocentrista. Com vários países europeus possuindo
partidos políticos que visam o favorecimento da “população nacional”, começa
a ocorrer o surgimento agrupado de xenófobos organizados, na qual por
muitas vezes se manifestam contrários, publicamente, acerca de imigrantes ou
descendentes desses. (No caso europeu, principalmente muçulmanos).

Em um mundo tão moderno como o atual, é incrível ainda ouvir pessoas


discutindo sobre superioridade de tal nação tendo como critérios sua cultura,
características físicas e afins, já que além de ser uma ação puramente etnocentrista
e sem fundamentos, esses comentários “a la Gobineau” muitas vezes servem
apenas para que o indivíduo agressor se autoafirme. Mas mesmo assim, é visível
que um grande número de pessoas ainda tenha essas atitudes.

É interessante notar que a ideia de xenofobia não se restringe apenas


para imigrantes, mas também migrantes – pessoas da própria nação. Tomando
o Brasil como exemplo, infelizmente é comum encontrar – principalmente
por meios digitais como a internet – indivíduos que difamam pessoas de
outros estados e regiões, por exemplo, o Acre e todo o Nordeste. No programa
Fantástico, exibido pela Rede Globo, em um dos episódios do quadro “Vai
fazer o quê?”, foi encenado um ataque xenofóbico entre uma paulista contra
uma vendedora de pipoca de origem nordestina com o objetivo de ver a reação

17
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO E CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA ANTROPOLOGIA

do público. Eticamente houve pessoas que declararam à paulista sua repulsa


pelo que ela fizera. Assim, felizmente mostrando que o xenofobismo não é uma
atitude exercida por toda a população.

Em contrapartida, um fato real ocorreu em Porto Alegre, RS, o qual teve


grande repercussão por causa de um vídeo gravado por um brasileiro agredindo
a imagem de imigrantes haitianos que exerciam seus trabalhos em um posto
de abastecimento. Perante entrevista para o programa CQC, ao ser questionado
pelo repórter, o xenófobo fica sem argumentos para se explicar acerca do que
fizera, mostrando incapacidade de sustentar sua defesa.

Concluindo, a xenofobia é um grave problema social, que, se analisado,


ocorre em maior escala em países desenvolvidos, onde os indivíduos sentem-se
ameaçados de certa forma por povos diferentes. Essa aversão a estrangeiros,
contudo, é inexplicável, já que com um mundo globalizado que pertencemos,
até mesmo o país onde vive o xenófobo, ao longo dos tempos, recebeu certa
influência estrangeira.
FONTE: Disponível em: <http://www.geledes.org.br/xenofobia-e-sua-ligacao-com-o-
etnocentrismo/#ixzz4EmzKXgNX>. Acesso em: 18 jul.2016.

LEITURA COMPLEMENTAR

A DIVERSIDADE CULTURAL: ALGUMAS REFLEXÕES

Fragmento do texto currículo e diversidade cultural,


de Nina Lino Gomes

O ser humano se constitui por meio de um processo complexo: somos


ao mesmo tempo semelhantes (enquanto gênero humano) e muito diferentes
(enquanto forma de realização do humano ao longo da história e da cultura).
Podemos dizer que o que nos torna mais semelhantes enquanto gênero humano é
o fato de todos apresentarmos diferenças: de gênero, raça/etnia, idades, culturas,
experiências, entre outros. E mais: somos desafiados pela própria experiência
humana a aprender a conviver com as diferenças. O nosso grande desafio está
em desenvolver uma postura ética de não hierarquizar as diferenças e entender
que nenhum grupo humano e social é melhor ou pior do que outro. Na realidade,
somos diferentes. Ao discutir a diversidade cultural, não podemos nos esquecer
de pontuar que ela se dá lado a lado com a construção de processos identitários.
Assim como a diversidade, a identidade, enquanto processo, não é inata. Ela se
constrói em determinado contexto histórico, social, político e cultural. Jacques
d’Adesky (2001, p. 76) destaca que a identidade, para se constituir como realidade,
pressupõe uma interação. A ideia que um indivíduo faz de si mesmo, de seu “eu”,
é intermediada pelo reconhecimento obtido dos outros em decorrência de sua ação.

18
TÓPICO 1 | CONCEITOS INICIAIS PARA ESTUDO DA ANTROPOLOGIA

Assim como a diversidade, nenhuma identidade é construída no


isolamento. Ao contrário, ela é negociada durante a vida toda dos sujeitos por
meio do diálogo, parcialmente exterior, parcialmente interior, com os outros.
Tanto a identidade pessoal quanto a identidade social são formadas em diálogo
aberto. Estas dependem de maneira vital das relações dialógicas com os outros.
A diversidade cultural varia de contexto para contexto. Nem sempre aquilo que
julgamos como diferença social, histórica e culturalmente construída recebe a
mesma interpretação nas diferentes sociedades. Além disso, o modo de ser e de
interpretar o mundo também é variado e diverso. Por isso, a diversidade precisa ser
entendida em uma perspectiva relacional. Ou seja, as características, os atributos
ou as formas “inventadas” pela cultura para distinguir tanto o sujeito quanto
o grupo a que ele pertence dependem do lugar por eles ocupado na sociedade
e da relação que mantêm entre si e com os outros. Não podemos esquecer que
essa sociedade é construída em contextos históricos, socioeconômicos e políticos
tensos, marcados por processos de colonização e dominação. Estamos, portanto,
no terreno das desigualdades, das identidades e das diferenças.

Trabalhar com a diversidade na escola não é um apelo romântico do


final do século XX e início do século XXI. Na realidade, a cobrança hoje feita em
relação à forma como a escola lida com a diversidade no seu cotidiano, no seu
currículo, nas suas práticas faz parte de uma história mais ampla. Tem a ver com
as estratégias por meio das quais os grupos humanos considerados diferentes
passaram cada vez mais a destacar politicamente as suas singularidades, cobrando
que as mesmas sejam tratadas de forma justa e igualitária, desmistificando a
ideia de inferioridade que paira sobre algumas dessas diferenças socialmente
construídas e exigindo que o elogio à diversidade seja mais do que um discurso
sobre a variedade do gênero humano. Ora, se a diversidade faz parte do acontecer
humano, então a escola, sobretudo a pública, é a instituição social na qual as
diferentes presenças se encontram. Então, como essa instituição poderá omitir
o debate sobre a diversidade? E como os currículos poderiam deixar de discuti-
la? Mas o que entendemos por currículo? Segundo Antonio Flávio B. Moreira e
Vera Maria Candau (2006, p. 86), existem várias concepções de currículo, as quais
refletem variados posicionamentos, compromissos e pontos de vista teóricos. As
discussões sobre currículo incorporam, com maior ou menor ênfase, debates sobre
os conhecimentos escolares, os procedimentos pedagógicos, as relações sociais, os
valores e as identidades dos nossos alunos e alunas.

Os autores se apoiam em Silva (1999), ao afirmarem que, em resumo,


as questões curriculares são marcadas pelas discussões sobre conhecimento,
verdade, poder e identidade. Retomo, aqui, uma discussão já realizada em outro
texto (GOMES, 2006, p. 31-2). O currículo não está envolvido em um simples
processo de transmissão de conhecimentos e conteúdos. Possui um caráter político
e histórico e também constitui uma relação social, no sentido de que a produção
de conhecimento nele envolvida se realiza por meio de uma relação entre pessoas.
Segundo Tomaz Tadeu da Silva (1995, p. 194), o conhecimento, a cultura e o
currículo são produzidos no contexto das relações sociais e de poder. Esquecer
esse processo de produção – no qual estão envolvidas as relações desiguais de
poder entre grupos sociais – significa reificar o conhecimento e reificar o currículo,
19
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO E CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA ANTROPOLOGIA

destacando apenas os seus aspectos de consumo e não de produção. Ainda


segundo esse autor, mesmo quando pensamos no currículo como uma coisa, como
uma listagem de conteúdos, por exemplo, ele acaba sendo, fundamentalmente,
aquilo que fazemos com essa coisa, pois, mesmo uma lista de conteúdos não teria
propriamente existência e sentido, se não se fizesse nada com ela. Nesse sentido, o
currículo não se restringe apenas a ideias e abstrações, mas a experiências e práticas
concretas, construídas por sujeitos concretos, imersos em relações de poder.

Currículo pode ser considerado uma atividade produtiva e possui um


aspecto político que pode ser visto em dois sentidos: em suas ações (aquilo que
fazemos) e em seus efeitos (o que ele nos faz). Também pode ser considerado
um discurso que, ao corporificar narrativas particulares sobre o indivíduo e a
sociedade, participa do processo de constituição de sujeitos (e sujeitos também
muito particulares). Sendo assim, as narrativas contidas no currículo, explícita
ou implicitamente, corporificam noções particulares sobre conhecimento, sobre
formas de organização da sociedade, sobre os diferentes grupos sociais. Elas
dizem qual conhecimento é legítimo e qual é ilegítimo, quais formas de conhecer
são válidas e quais não o são, o que é certo e o que é errado, o que é moral e o que
é imoral, o que é bom e o que é mau, o que é belo e o que é feio, quais vozes são
autorizadas e quais não o são (SILVA, 1995, p. 195). A produção do conhecimento,
assim como sua seleção e legitimação, está transpassada pela diversidade.
Não se trata apenas de incluir a diversidade como um tema nos currículos. As
reflexões do autor nos sugerem que é preciso ter consciência, enquanto docentes,
das marcas da diversidade presentes nas diferentes áreas do conhecimento e no
currículo como um todo: ver a diversidade nos processos de produção e de seleção
do conhecimento escolar. O autor ainda adverte que as narrativas contidas no
currículo trazem embutidas noções sobre quais grupos sociais podem representar
a si e aos outros e quais grupos sociais podem apenas ser representados ou até
mesmo serem totalmente excluídos de qualquer representação. Elas, além disso,
representam os diferentes grupos sociais de forma diferente: enquanto as formas
de vida e a cultura de alguns grupos são valorizadas e instituídas como cânone, as
de outros são desvalorizadas e proscritas.

Assim, as narrativas do currículo contam histórias que fixam noções


particulares de gênero, raça, classe – noções que acabam também nos fixando em
posições muito particulares ao longo desses eixos (de autoridade) (SILVA, 1995,
p. 195). A perspectiva de currículo acima citada poderá nos ajudar a questionar a
noção hegemônica de conhecimento que impera na escola, levando-nos a refletir
sobre a tensa e complexa relação entre esta noção e os outros saberes que fazem
parte do processo cultural e histórico no qual estamos imersos. Podemos indagar
que histórias as narrativas do currículo têm contado sobre as relações raciais, os
movimentos do campo, o movimento indígena, o movimento das pessoas com
deficiência, a luta dos povos da floresta, as trajetórias dos jovens da periferia,
as vivências da infância (principalmente a popular) e a luta das mulheres? São
narrativas que fixam os sujeitos e os movimentos sociais em noções estereotipadas
ou realizam uma interpretação emancipatória dessas lutas e grupos sociais?
Que grupos sociais têm o poder de se representar e quais podem apenas ser
representados nos currículos? Que grupos sociais e étnico/raciais têm sido
20
TÓPICO 1 | CONCEITOS INICIAIS PARA ESTUDO DA ANTROPOLOGIA

historicamente representados de forma estereotipada e distorcida? Diante das


respostas a essas perguntas, só nos resta agir, sair do imobilismo e da inércia e
cumprir a nossa função pedagógica diante da diversidade: construir práticas
pedagógicas que realmente expressem a riqueza das identidades e da diversidade
cultural presente na escola e na sociedade. Dessa forma poderemos avançar na
superação de concepções românticas sobre a diversidade cultural presentes nas
várias práticas pedagógicas e currículos.

DICAS

Para um melhor aprendizado, sugerimos que assista ao filme “ELE ESTÁ DE VOLTA”
(2015). Na trama baseada no livro Ele Está de Volta, de Timur Vermes, Hitler acorda de um longo
sono na Berlim de 2011. Completamente perdido, é confundido com um imitador perfeito,
torna-se celebridade instantânea e ganha um programa de televisão! Dirigido por David
Wnendt (Feuchtgebiete), o longa tem cenas filmadas com câmeras escondidas durante uma
espécie de turnê que a equipe fez com Oliver devidamente caracterizado. Foram nessas
interações que as pessoas se mostraram mais simpáticas com o político, o que estarreceu o
ator principal.

FONTE: Disponível em <http://www.adorocinema.com/noticias/filmes/noticia-116517/>.


Acesso em: 18 jul. 2016.

21
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico você viu que:

• A antropologia tem origem na Europa. O surgimento da sociologia e da


antropologia deve-se a uma série de mudanças políticas, sociais e econômicas do
cenário daquela época.

• Os três temas da antropologia são: Antropologia pragmática, “conhecer outros


povos para explorá-los” (linha evolucionista); Antropologia romântica, que tenta
proteger o povo conquistado do contato e absorção pela civilização dominadora;
e a antropologia científica, sendo estudada na linha funcionalista e estruturalista
– social e cultural.

• A cultura, segundo Clifford Geertz, é um sistema de teias de significados que foi


tecido pelo próprio homem. A cultura não seria uma ciência experimental, mas
uma ciência interpretativa à procura de um significado.

• Para Franz Boas, cultura era um todo integrado, e não um conjunto desagregado
de práticas, hábitos, técnicas, relações e pensamentos.

• Etnocentrismo, segundo Sumner (1906), “é o termo técnico para a visão das


coisas segundo a qual nosso próprio grupo é o centro de todas as coisas e todos os
outros grupos são medidos e avaliados em relação a ele.

• Xenofobia é o ato de repudiar, hostilizar e/ou odiar estrangeiros, fundamenta-se


em fatores sociais, culturais, raciais, religiosos, históricos etc.

• Quando a cultura se sobrepõe como fator de superioridade a outra, estamos


contribuindo para um olhar preconceituoso e xenófobo, produzindo estereótipos
que podem violentar uma cultura e um povo de diversas formas.

22
AUTOATIVIDADE

1. Ao ler esta unidade, convidamos você a relacionar exemplos de


situações/fatos/ações etnocêntricas e xenofóbicas. Identifique-
as também no seu cotidiano.

2. Disserte sobre o conceito de cultura a partir da concepção de Franz Boas e


Tylor.

23
24
UNIDADE 1
TÓPICO 2

O QUE É ANTROPOLOGIA?

1 INTRODUÇÃO
Muito frequentemente surge o questionamento acerca do que é a
antropologia, e logo surge no imaginário algo bem primário, como a imagem
de uma pessoa vestida com roupas estilo safári ou como Indiana Jones. Primeira
informação a se saber sobre antropologia é: NÃO! Escavadores de túmulos ou
cavadores da arca perdida, assim como paleontólogos ou arqueólogos, não são
ANTROPÓLOGOS! De acordo com Rafael José dos Santos (2005, p. 17), no livro
Antropologia para quem não vai ser antropólogo, a antropologia é:

Antropologia pode ser pensada como um conjunto de teorias (nem


sempre concordantes) e diferentes métodos e técnicas de pesquisa que
buscam explicar, compreender ou interpretar as mais diversas práticas
dos homens e mulheres em sociedade. 

Para que estas teorias sejam desenvolvidas, os antropólogos realizam


pesquisas de campo onde, através da participação direta com seus “objetos” de
pesquisa, retiram dados para que possam ser analisados e refletidos, surgindo
assim novas teorias antropológicas.

De acordo com Hoebel e Frost (apud MARCONI; PRESOTTO, 2010),


antropologia é uma ciência da humanidade e da cultura. Seria uma ciência
superior social e comportamental, em sua relação com as artes, é também uma
disciplina humanística, devido ao fato do antropólogo comunicar os modos de
viver de povos ou grupos sociais específicos. Para responder ao que é o homem, ou
os seres humanos, a antropologia ramifica-se em algumas dimensões: a biológica,
com a antropologia física; a dimensão sociocultural, com a antropologia social e/
ou cultural, e a dimensão filosófica, com a antropologia filosófica. É uma ciência
polarizadora, e necessita da colaboração de outras áreas do saber, porém mantém
sua essência, seu foco é o estudo do homem e da cultura.

25
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO E CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA ANTROPOLOGIA

FIGURA 5 - O QUE É ANTROPOLOGIA?

FONTE: Disponível em: <https://www.google.com.br/


search?q=antropologia&espv=
2&biw=1280&bih=899&site=webhp&source=lnms&tbm
=isch&sa=X&ved=0ahUKEwiQhfLs0YTLAhUHFZAKHR62AAoQ_
AUIBigB>. Acesso em: 10 fev. 2016.

2 CAMPOS INICIAIS DA ANTROPOLOGIA


Durante muito tempo a antropologia foi considerada a história natural física
do homem e seu processo evolutivo, no espaço e no tempo. Deste modo, houve uma
restrição em seu campo de estudos, o que privilegiaria a antropometria, ciência
que trata das mensurações do homem fóssil e dos seres vivos. A antropologia
desempenha um papel muito maior no estudo dos seres humanos, definindo,
assim, uma ciência que estuda suas produções e seus comportamentos.

Enquanto uma espécie (o homem) que se caracteriza pela formação


de grupos sociais, agrupamentos de indivíduos que compartilham de
uma mesma história e de uma mesma visão de mundo, e que definem
regras de comportamento, convivência e sobrevivência. O conjunto
dessas regras é o que se convencionou chamar de CULTURA. Então,
todo grupo social, ou sociedade, possui uma cultura que, como já foi
dito, define a visão que seus indivíduos têm do mundo em que vivem,
definindo formas de atuarem sobre ele. Todo grupo social é também
um grupo cultural; toda sociedade possui a sua cultura particular
(PASSADOR, 2002, p. 1).

Preocupa-se em revelar os fatos da natureza e da cultura, interessa-se pelo


homem biológico e o ser cultural existente neste homem. Na busca de compreender
a existência humana em todos os seus aspectos, no espaço-tempo, identifica
também a compreensão das manifestações culturais, do comportamento e da vida
social.

26
TÓPICO 2 | O QUE É ANTROPOLOGIA?

As questões sobre o homem sempre foram frequentes. Este sempre foi


objeto de atenções. Alguns homens teóricos “inventaram” modelos elaborados
em “casa”. Os famosos antropólogos de gabinete, como bem veremos na Unidade
2. Analisar o homem de forma antropológica se dá através de uma abordagem
integrativa, objetivando a observação das inúmeras dimensões do ser humano em
seu grupo social.

Ao efetivar a coleta de dados e desenvolver formas de investigação, o


antropólogo aprende que seu fazer se dá nas correlações que realiza em seus e
com seus campos de investigações. Ele não os separa totalmente, a fim de poder
visualizar todos os ângulos de seu objeto. Neste sentido, o antropólogo relaciona-
se com cinco áreas. Vamos conhecê-las?

Antropologia biológica ou física: Tem sua atenção nas relações entre o


patrimônio genético e o meio (geográfico, ecológico, social). Esta área atenta para
as particularidades morfológicas e fisiológicas ligadas a um meio ambiente, assim
como observa a evolução destas particularidades.

O antropólogo biologista estará atento aos fatores culturais que influenciam


o crescimento e a maturação do indivíduo. Esta área é importante para manter a
comunicação entre as ciências biológicas e as ciências humanas.

Antropologia pré-histórica: é o estudo do homem através dos vestígios


materiais enterrados nos solos. Integra-se à arqueologia, busca reconstituir as
sociedades desaparecidas, tanto em suas técnicas e organizações sociais, quanto
suas produções culturais e artísticas.

Antropologia linguística: É o estudo dos dialetos, e também das novas


técnicas modernas de comunicação. O estudo da língua busca compreender como
os homens pensam, o que vivem e o que sentem, analisam-se suas categorias
psicoativas e psicocognitivas (etnolinguística).

“Compreendemos também como os homens expressam o universo


e o social” (LAPLANTINE, 2000, p. 18), através do estudo da literatura, com a
tradição oral. Assim, compreendemos com a antropologia linguística como são
interpretados seu próprio saber e saber-fazer, as chamadas etnociências.

Antropologia psicológica: É o estudo dos processos e do funcionamento


do psiquismo humano. Através da análise de comportamentos, conscientes ou
inconscientes, dos homens em seus grupos sociais, é que podemos apreender esta
totalidade. A dimensão psicológica é absolutamente indissociável do campo da
antropologia, ela é parte integrante destes estudos.

Antropologia social e cultural: É o estudo que está relacionado a “tudo”


que constitui uma sociedade. “Seus modos de produção econômica, suas técnicas,
sua organização política e jurídica, seus sistemas de parentesco, seus sistemas de

27
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO E CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA ANTROPOLOGIA

conhecimentos, suas crenças religiosas, sua língua, sua psicologia, suas criações
artísticas” (LAPLANTINE, 2000, p. 19).

A antropologia social e cultural procura compreender, de acordo com


Levi Strauss, “o que os homens não pensam habitualmente em fixar na pedra
ou no papel” (LAPLANTINE, 2000). Os gestos, as trocas simbólicas, os detalhes
dos comportamentos, fazem com que a antropologia social e cultural tenha uma
abordagem fundamentalmente diferente dos métodos utilizados pelos colegas
geógrafos, economistas, juristas, sociólogos, psicólogos etc. Trabalha-se com o
estudo de todas as sociedades humanas, das culturas da humanidade em suas
diversidades históricas e geográficas.

Inicialmente, a antropologia atribuiu como seu objeto de estudo as


populações não ocidentais, que seriam as chamadas sociedades primitivas. Com
o avanço da evolução social, o universo dos “selvagens” desaparece, assim o
antropólogo depara-se com uma crise de identidade: seria o fim da antropologia?

Neste momento, o antropólogo reflete sobre seu fazer, retoma seus


contatos com as ciências humanas e reencontra a sociologia, a partir da sociologia
comparada. Deste modo, busca-se uma nova área de investigação: o camponês, o
nativo que estava mais perto do que se imaginara. Ao voltar sua atenção para sua
prática, compreende que a especificidade de seu fazer não está apenas no objeto
empírico o selvagem, o camponês, mas sim em uma abordagem epistemológica
constituinte. A antropologia constitui-se no enfoque que trabalhamos ao efetivar o
“estudo do homem inteiro e o estudo do homem em todas as sociedades, sob todas
as latitudes e todos os seus estados em todas as épocas” (LAPLANTINE, 2000, p.
16).

Para aprofundar seus conhecimentos sobre as linhagens antropológicas,


segue texto para reflexão, de autoria de Mariza Peirano.

LINHAGENS ANTROPOLÓGICAS

Mariza G. S. Peirano

É sobre a tensão entre o presente teórico e a história da disciplina que a tradição


da antropologia se transmite, resultando que, no processo de formação, cada
iniciante estabelece sua própria linhagem como inspiração, de acordo com
preferências que são teóricas, mas também existenciais, políticas, às vezes,
estéticas e mesmo de personalidade. Assim, além dos clássicos Durkheim, Marx
e Weber, que ensinarão a postura sociológica, o antropólogo em formação entra
em contato com uma verdadeira árvore genealógica de autores consagrados (e
outros malditos), na qual construirá uma linhagem específica sem desconhecer
a existência de outras. Na antropologia, as linhagens disciplinares são tão
importantes que se pode imaginar que, sem elas, o antropólogo não tem lugar na
comunidade de especialistas. Mas, como ocorre até nas mais rígidas linhagens

28
TÓPICO 2 | O QUE É ANTROPOLOGIA?

africanas, as mudanças são aceitas e, neste caso, vistas como ‘conversão’. Este
foi o caso de Marshall Sahlins que, partindo de uma vertente economista-
ecológica, se converteu ao estruturalismo, como o atestam as mudanças de Stone
age economics (1972) para Cultura e razão prática (1979) ou Ilhas da história (1990).

 Nesse processo de transição disciplinar, o conhecimento etnográfico a respeito de


várias sociedades e culturas se enriquece. Isso significa que um antropólogo bem
formado teoricamente é um antropólogo bem informado etnograficamente. Para
alguns, este treinamento através da literatura permite que, hoje, o antropólogo
prescinda da pesquisa de campo em sociedade desconhecida antes de confrontar
a sua própria; para outros, trata-se da surpresa de descobrir-se subitamente com
capacidades inesperadas, como a de reconhecer as diferenças estéticas entre uma
máscara Iatmul da Nova Guiné, de outra dos Kwakiutl do Noroeste da América
do Norte, ou dos Bororo do Brasil Central, através da leitura de Bateson, Boas e
Lévi-Strauss. Mas o fato mais marcante talvez seja o seguinte: a transmissão de
conhecimento e a formação de novos especialistas através dos processos pelos
quais se deu o refinamento de conceitos, mas mantiveram-se os problemas –
favorece uma prática na qual os autores nunca são propriamente ultrapassados.
Nomes conhecidos, que um dia foram criticados e combatidos, frequentemente
são incorporados nas gerações seguintes porque, relidos, revelam riquezas
antes desconhecidas. Este mecanismo de incorporação de autores, que marca
a disciplina, talvez se explique como um culto a ancestrais: embora raramente
se encontre hoje um especialista que se autodefina como um estruturalista
stricto senso, também dificilmente um antropólogo deixa de incluir vários dos
princípios do estruturalismo na sua prática disciplinar. O mesmo talvez possa
ser dito a respeito de todos os fundadores de linhagens, num mecanismo que
não respeita fronteiras: aqui no Brasil, Darcy Ribeiro incorporou Herbert Baldus,
que foi incorporado, junto com Florestan Fernandes, por Roberto Cardoso de
Oliveira, e assim sucessivamente. (O reconhecimento das filiações é, contudo,
muito menos explicitado do que no caso das vinculações estrangeiras).

FONTE: PEIRANO, Mariza G. S. Os antropólogos e suas linhagens.

3 A ANTROPOLOGIA COMO CIÊNCIA NO BRASIL

A história da Antropologia no Brasil foi dividida em três fases: os pioneiros,


período formativo e a fase contemporânea. A Primeira fase pode ser delimitada
entre 1835, com a descoberta por Peter W. Lund (1801-1880) do material ósseo de
Lagoa Santa, e 1933. Nove nomes deste período contemplavam o fazer clássico do
antropólogo, ou seja, aquele que investigava todos os aspectos da Antropologia
em seu sentido lato.

29
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO E CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA ANTROPOLOGIA

FIGURA 6 - ANTROPOLOGIA NO BRASIL

FONTE: Disponível em: <https://www.google.com.br/search?q=


historia+antropologia+brasileira&espv=2&biw=1280&bih=894&source=lnms&tbm
= i s c h & s a = X & v e d = 0 a h U K E w i n 5 M S 8 s u X PA h V E j J A K H b a d C r w Q _
AUICCgD#tbm=isch&q=+antropologos+brasileira&i
mgdii=FoqKi1MNspV8mM%3A%3BFoq
Ki1MNspV8mM%3A%3B8ys_53JE0E5vxM%3A&imgrc=FoqKi1MNspV8mM%3A>.
Acesso em: 10 out. 2016.

Apenas cinco eram brasileiros ou tinham residência permanente no


Brasil: Barbosa Rodrigues e Curt Nimuendaju no Norte, Nina Rodrigues na
Bahia, e Von Ihering e Roquete Pinto, respectivamente, em São Paulo e no Rio de
Janeiro. Ehrenreich, Ranke e Koch-Grünberg, de nacionalidade alemã, realizaram
expedições de estudos, de caráter temporário, de nossos indígenas.

30
TÓPICO 2 | O QUE É ANTROPOLOGIA?

QUADRO 1 - HISTÓRIA DA ANTROPOLOGIA NO BRASIL. FASE 1: OS PIONEIROS (1835-1933)

FONTE: FARIAS (1952); Salzano (1997)

Período Formativo (1934-1954): A fundação da Universidade de São Paulo


(USP) foi marco decisivo para a institucionalização da pesquisa científica no
Brasil. A universidade estabeleceu um critério de valorização da excelência. Um
grande recrutamento de intelectuais foi desenvolvido, especialmente na Europa,
e o exemplo foi seguido, pelo menos parcialmente, em outras regiões do país.
Nomes como Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes, Roger Bastide, entre outros,
compuseram o quadro de docentes da USP.

Fase Contemporânea: Criação da Associação Brasileira de Antropologia


(ABA), em que os antropólogos em sua maioria são identificados como
antropólogos sociais/culturais; as exceções são três, que podem ser categorizados
como antropólogos físicos/biológicos (Castro Faria, Loureiro Fernandes, Thales de
Azevedo) e uma linguista (Yonne Leite).

A sociologia destaca-se nas décadas de 40 e 50 no Brasil, e a antropologia


inicia sua atuação como ciência social nas décadas de 60 e 70.

O fato de a antropologia ter se consolidado no Brasil como uma das


ciências sociais é pleno de consequências, se comparamos o caso
brasileiro com o desenvolvimento da disciplina em outros contextos,
especialmente nos centros reconhecidos de produção intelectual. Mas,
mesmo como uma das ciências sociais, a antropologia no Brasil manteve
a dimensão de alteridade que é característica fundante da disciplina
(PEIRANO, 2000, p. 229).

A implantação dos primeiros programas de pós-graduação em antropologia


nas universidades federais e a relação entre a antropologia e sociologia, na qual
o contexto social apresentava uma “fricção interétnica”, que seria a inclusão de
pontos de vista e orientações teóricas considerados, na época, sociológicos a
uma temática reconhecida como antropológica, demarcam o fortalecimento da

31
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO E CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA ANTROPOLOGIA

antropologia como ciência social no Brasil. O tema do índio surge como motivação
para se pensar a sociedade nacional “através da presença certamente ‘incômoda’
dos grupos tribais”, segundo Roberto Cardoso de Oliveira (1978). “O índio era um
indicador sociológico para os que estudavam a sociedade nacional, seu processo
expansionista e sua luta para o desenvolvimento – tanto quanto o negro havia
servido ao mesmo propósito para Florestan Fernandes” (PEIRANO, 2000, p. 220).

A população indígena forneceu um novo e vasto material de observação


para os antropólogos brasileiros. O primeiro etnógrafo brasileiro foi também
o primeiro cronista dos feitos da descoberta. A preocupação inicial fora a do
registro dos grupos indígenas existentes, com suas línguas, suas "originalidades",
suas "esquisitices", seus costumes "exóticos", suas práticas "pagãs", seus hábitos
"ferozes" ou "não civilizados", tão diferentes dos padrões de vida dos primeiros
observadores, segundo Ramos (2015). Ao final do século XIX e começo do XX,
ainda permaneciam as classificações linguísticas.

Até os anos 60, a antropologia entendia-se de forma dominante no estudo


de sociedades tribais ou primitivas, como era comum nos grandes centros europeus
e norte-americanos. Essa antropologia (social) contextualizava-se na arqueologia,
antropologia física, paleontologia e, de forma especial, encontrava-se nos museus.
Com a fundação dos programas de pós-graduação nas décadas de 60/70, à (nova)
antropologia cabia enfrentar o mesmo desafio dos sociólogos: “analisar, compreender
e, assim, transformar a sociedade brasileira”.

DICAS

Dica de filme: A ANTROPÓLOGA

FONTE: Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/


filme-202602/>. Acesso em: 10 out. 2016.

32
TÓPICO 2 | O QUE É ANTROPOLOGIA?

Costa da Lagoa, reduto açoriano na Ilha de Santa Catarina. Malú (Larissa


Bracher) tem 33 anos e realiza no local sua pesquisa de doutorado na área de
etnobotânica. Com dona Ritinha (Sandra Ouriques) ela aprende a cultura mística
que os descendentes açorianos mantêm viva. Ao acompanhar o tratamento com
ervas aplicadas em Carolina (Rafaela Rocha de Barcelos), Malú subitamente tem
contato com o sobrenatural. Ela passa a enfrentar o ceticismo científico e tenta
provar a experiência que vivenciou.

LEITURA COMPLEMENTAR

A antropologia hoje

Bela Feldman-Bianco
 
A antropologia constitui campo consolidado e dinâmico no Brasil que tem
obtido reconhecimento nacional e internacional pelos seus patamares de excelência
científica. Combinando o interesse em compreender o mundo com a preocupação
em desvendar os códigos culturais e os interstícios sociais da vida cotidiana, a
pesquisa antropológica é extremamente relevante para desvendar problemáticas
que estão na ordem do dia sobre a produção da diferença cultural e desigualdades
sociais, saberes e práticas tradicionais, patrimônio cultural e inclusão social e, ainda,
desenvolvimento econômico e social. No quadro da globalização contemporânea,
além de contribuir cada vez mais para a formulação de políticas públicas e
propostas para a sociedade, a antropologia apresenta os aparatos necessários para
expor a dimensão humana da ciência, tecnologia e inovação. Ao mesmo tempo,
no curso de seus processos de transformação e internacionalização, surgem novos
desafios e perspectivas para o ensino, a pesquisa e a atuação de antropólogos e
antropólogas.

Esses desafios incluem, por exemplo, as políticas científicas que favorecem a


expansão da pós-graduação. Os números são eloquentes. Enquanto em 2001 havia
dez programas de mestrado e seis programas de doutorado, hoje são 20 programas
de mestrado e 12 de doutorado que, ainda que insuficientes, implicaram em melhor
distribuição no Nordeste e na inédita e bem-vinda criação de dois mestrados e
doutorados na Amazônia Legal. Dobrou-se o número de programas em dez anos.
Abrangem, ainda, um aumento da demanda discente por cursos de antropologia,
a ampliação do mercado de trabalho, além de mudanças no campo de atuação
frente às políticas educacionais e políticas públicas, de modo geral, inclusive no
que concerne às relações da antropologia com o Estado e a sociedade.

Assiste-se, ademais, à emergente reapropriação do modelo dos "quatro


campos" (arqueologia, antropologia social/cultural, antropologia biológica e
antropologia linguística) e à revisão das relações com outras áreas constitutivas
das ciências humanas. Este modelo, originalmente utilizado para analisar a
humanidade através de grandes esquemas evolucionistas e difusionistas, está

33
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO E CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA ANTROPOLOGIA

sendo reelaborado e sobreposto às práticas de trabalho de campo, desenvolvidas a


partir de estudos sobre culturas e sociedades particulares. A tradição antropológica
de pesquisa de campo, requerendo vivência prolongada dos pesquisadores
com seus sujeitos de pesquisa e implicando em compromisso perante esses
sujeitos, fornece um aprendizado para olhar o mundo com sensibilidade e,
assim, compreender, apreciar e traduzir códigos culturais diversos e respeitar a
diferença cultural. Destarte, a produção antropológica tem o potencial não só de
desenvolvimento científico no sentido restrito, mas de ação social no sentido mais
amplo, particularmente quanto à elaboração de políticas públicas para segmentos
sociais urbanos e rurais em situações de desvantagem e risco social e grupos
étnicos diferenciados.

Com base na constante renovação de seus horizontes empíricos,


antropólogos e antropólogas têm realizado pesquisas de ponta na intersecção
de várias áreas de conhecimento. Destaca-se a ampla experiência de pesquisa na
Amazônia, tanto no Cerrado quanto no Pantanal, sobre a relação entre populações,
agrobiodiversidade e conhecimento tradicional, desenvolvimento e padrões de
agricultura sustentável, conflitos ambientais, entre outros. Ressalta-se também a
relevância da pesquisa antropológica na interface com as políticas públicas para as
populações tradicionais. A qualidade e seriedade dessa atuação dos antropólogos
exprimem-se, por exemplo, na existência de um duradouro e ativo convênio entre
a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e o Ministério Público da União.

Estudos realizados na cidade, seja na intersecção com a sociologia


ou com o direito, têm examinado problemáticas sobre, por exemplo, grupos
urbanos, pobreza, movimentos sociais, violência, justiça, religião e políticas de
administração de conflitos, entre outras que podem igualmente subsidiar políticas
públicas. Nesse âmbito, os estudos sobre gênero, família, gerações, sexualidade e
reprodução recobrem focos muito importantes de preocupação pública. Por sua
vez, os trabalhos em antropologia visual são cruciais tanto para a divulgação da
disciplina quanto para compreensão de uma sociedade cada vez mais imagética.
Ainda que incipiente, desenvolve-se com grande vigor a antropologia da ciência
e da técnica, acompanhando tendências internacionais. Na interconexão com
a saúde, a análise antropológica torna-se de grande valia para se entender as
representações sobre doenças e processos terapêuticos como parte dos sistemas
simbólicos culturalmente ordenados e os contextos sociais nos quais ocorrem,
como também para examinar e analisar os aspectos organizacionais, institucionais
e político-ideológicos dos programas de saúde pública.

Concomitantemente à histórica predominância de estudos relacionados


à etnologia indígena, às populações afro-brasileiras, às questões do campo
e da cidade no Brasil, bem como aos diversos aspectos da cultura nacional, há
antropólogos realizando pesquisas na América Latina, África, Europa, América do
Norte e em países como Timor Leste e China. Como resultado, a antropologia do
Brasil ocupa hoje inegável liderança na América Latina. Pela ação pioneira da ABA
na criação do World Council of Anthropologial Associations, as antigas relações
com a antropologia francesa, inglesa e norte-americana foram redefinidas, e novos

34
TÓPICO 2 | O QUE É ANTROPOLOGIA?

diálogos institucionais e acadêmicos foram iniciados com antropologias de outros


continentes.

Essa multiplicação de temáticas e sujeitos de pesquisa apresenta desafios


que requerem uma agenda de prioridades de pesquisa. Se o trabalho de campo
(que tende a ser individual) e a relação artesanal entre orientador e orientando
constituem pontos fortes da produção do conhecimento antropológico e da
formação disciplinar, ao mesmo tempo tendem a levar a uma aparente fragmentação
da produção em grande número de linhas e grupos de pesquisa. Para não se
perder essa indispensável característica da pesquisa antropológica minuciosa e
intensa, as perspectivas que se abrem são no sentido de se estimular a formação
de redes que possam levar à elaboração de grandes projetos transdisciplinares.
Essa estratégia molda, por exemplo, a emergente criação dos INCTs, alguns
dos quais liderados por antropólogos. A ampliação do mercado de trabalho
traz também desafios para a formação e a atuação dos antropólogos em órgãos
governamentais e não governamentais, no Ministério Público, nas empresas e nos
movimentos sociais, cujas demandas implicam, muitas vezes, expertise em laudos
antropológicos. Com a reestruturação e expansão das universidades federais,
em vez da tradicional formação em ciências sociais ou da abertura de mestrados
profissionais, foram criados vários cursos de graduação em Antropologia que
visam propiciar a necessária competência profissional, com ênfase em pesquisa
de campo e interfaces com outras áreas interdisciplinares. Como são cursos novos
e polêmicos, com currículos variados, torna-se imperativo acompanhar, avaliar e
refletir criticamente se suprem as necessidades de formação.

A crescente relação entre a antropologia e políticas públicas no contexto


brasileiro contemporâneo e o papel de intermediação dos antropólogos entre Estado
e movimentos sociais constituem desafios que merecem reflexões propositivas.
Nesse sentido, deve-se levar em conta que as transformações no próprio corpus
conceitual e analítico da disciplina se fazem acompanhar de mudanças nas relações
com os sujeitos da pesquisa antropológica, seja por seu acesso ao sistema formal
de ensino (inclusive em programas de pós-graduação em Antropologia), seja pela
crescente agência política que passaram a desempenhar em cenários globalizados.
Se falar junto, falar com estas populações (mais do que falar em lugar delas) é
um imperativo que a ABA afirmou na luta pelo reconhecimento dos direitos das
populações tradicionais, hoje esses sujeitos estão se tornando parceiros e colegas
tanto no âmbito acadêmico como de atuação política. Essa parceria marca um novo
ciclo de atuação política dos antropólogos no Brasil.

  Bela Feldman-Bianco  é presidente da Associação Brasileira de


Antropologia (ABA) (2011-2012), professora colaboradora da Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP) e cocoordenadora do Gt Migración, Cultura Y
Políticas da Clacso (2011-2012).

FONTE: Disponível em: <http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.


php?pid=S000967252011000200002&script=sci_arttext>. Acesso em: 10 out. 2016.

35
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico você viu que:

• A antropologia é uma ciência da humanidade e da cultura.

• A antropologia ramifica-se em algumas dimensões, a biológica, com a


antropologia física, a dimensão sociocultural, com a antropologia social e/ou
cultural, e a dimensão filosófica com a antropologia filosófica.

• Antropologia biológica ou física está atenta às relações entre o patrimônio


genético e o meio (geográfico, ecológico, social).

• Antropologia pré-histórica é o estudo do homem através dos vestígios materiais


enterrados no solo.

• Antropologia linguística é o estudo dos dialetos, e também das novas técnicas


modernas de comunicação.

• Antropologia psicológica é o estudo dos processos e do funcionamento do


psiquismo humano.

• Antropologia social e cultural é o estudo que está relacionado a “tudo” que


constitui uma sociedade.

• À antropologia contemporânea cabe o desafio dos sociólogos: “analisar,


compreender e, assim, transformar a sociedade brasileira”.

36
AUTOATIVIDADE

Correlacione as colunas:

(1) Antropologia social e cultural ( ) dialetos


(2) Antropologia biológica ( ) vestígios materiais
(3) Antropologia psicológica ( ) “Tudo” de uma sociedade
(4) Antropologia linguística ( ) psiquismo humano
(5) Antropologia pré-histórica ( ) patrimônio genético

37
38
UNIDADE 1
TÓPICO 3

METODOLOGIA DA ANTROPOLOGIA

1 INTRODUÇÃO
Já sabemos o que é antropologia, como surgiu, mas qual é o método
utilizado pelos antropólogos? Como eles realizam suas pesquisas? De que forma
desenvolvem suas teorias? Como é sua coleta de dados?

Antes vamos pensar: o que é método? Para que serve na antropologia?

Neste item estudaremos as formas metodológicas do saber antropológico,


compreendendo suas formas de investigar e ler seus objetos de estudo, assim como
suas maneiras de transmitir tais leituras ao mundo.

2 OBJETOS DE ESTUDO DA ANTROPOLOGIA


De acordo com Calderón (1971), método é um conjunto de regras úteis
para investigação, é um procedimento cuidadosamente elaborado, visando
provocar respostas na natureza e na sociedade, e descobrir, consequentemente,
sua lógica e leis. Na antropologia usam-se diversos procedimentos a fim de
atender a seus objetivos de maneira mais fácil e segura, como método histórico,
estatístico, etnográfico, comparativo, etnológico, monográfico ou de estudo de
caso, genealógico, funcionalista.

FIGURA 7 - SOCIEDADES PRIMITIVAS

FONTE: Disponível em: <https://www.google.com.br/sear


ch?q=antropologia&espv=2&biw=1280&bih=899&site=webhp&source=lnms
&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwiQhfLs0YTLAhUHFZAKHR
62AAoQ_AUIBigB#imgdii=GvqLyPF9Dh9vUM%3A%3BG
vqLyPF9Dh9vUM%3A%3BkqeSG5ICUOPDXM%3A&imgrc=GvqLyPF9Dh9vUM%3A>.
Acesso em: 7 nov. 2016.

39
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO E CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA ANTROPOLOGIA

Com as grandes descobertas marítimas, o que a antropologia explora


e estuda são os novos habitantes destes espaços de conquistas, são os ditos
“selvagens”. Contudo, no século XIX, a antropologia se firma enquanto disciplina
autônoma, tornando-se a ciência das sociedades primitivas, nas dimensões
biológica, técnica, econômica, política, religiosa, linguística e psicológica. Contudo,
no século XIX, a antropologia se firma enquanto disciplina autônoma, tornando-se
a ciência das sociedades primitivas, nas dimensões biológica, técnica, econômica,
política, religiosa, linguística e psicológica. Neste momento, a antropologia é
constituída como antropologia moderna, quando o antropólogo acompanha de
perto os passos do colono, ou nativo.

África, Índia, Austrália e Nova Zelândia são os novos polos de pesquisa. Os


pesquisadores enviavam questionários para todos os locais, e assim uma rede de
novos dados surge. Gerando, dessa forma, os materiais para reflexão das primeiras
obras antropológicas. A ideia destas pesquisas é formar um grande “corpus
etnográfico” da humanidade. O que modifica a perspectiva em relação à época das
“luzes”, quando o indígena das sociedades extraeuropeias torna-se o primitivo,
deixando de ser o selvagem. O primitivo nada mais é que o ancestral do civilizado.
Levando a antropologia como o campo que está ligado ao conhecimento da nossa
origem, ou seja, “das formas simples de organização social e de mentalidade que
evoluíram para as formas mais complexas das nossas sociedades” (LAPLANTINE,
2000, p. 65) Assim, surge a antropologia evolucionista, que veremos na Unidade 2.

A antropologia do século XIX atenta-se para alguns pontos, que são


visualizados em seus escritos clássicos:

a) Estudo dos aborígines ou sociedade arcaicas, sendo a Austrália o local


mais estudado, onde se designa a origem das instituições.
b) Estudos dos parentescos, é a busca da evidência da anterioridade
histórica dos sistemas de filiação matrilinear sobre os sistemas patrilineares.
c) Estudos da religião, onde os antropólogos, em sua maioria agnósticos e
céticos, pesquisam as religiões primitivas.

O antropólogo, nesta época, poucas vezes coleta os materiais informativos


que estuda, neste momento a valorização da etnografia como prática intensiva de
conhecimento de uma cultura não se dá neste sentido e sim como uma tentativa de
compreensão, a mais “extensa” possível no tempo e espaço, de todas as culturas.
Dava-se neste ponto uma generalização das culturas.

40
TÓPICO 3 | METODOLOGIA DA ANTROPOLOGIA

FIGURA 8 – A ETNOGRAFIA

FONTE: Disponível em: <https://www.google.com.br/search?q=etnografia&sou


rce=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwjSkb3Ju-XPAhVBOZAKHWATBDIQ_
AUICCgB&biw=1280&bih=894>. Acesso em: 10 out. 2016.

Na antropologia trabalha-se com mais frequência com o método etnográfico.


Em Argonautas do Pacífico, Bronislaw Malinowski ressalta a importância da
descrição e apresentação dos métodos para coleta do material etnográfico.
Primeiro, surge uma dúvida: o que é etnográfico ou etnografia?

FIGURA 9 - ANTROPÓLOGOS

FONTE: Disponível em: <https://www.google.com.br/s


earch?q=antropologia&espv=2&biw=1280&bih=899&site=webhp&source=lnms&tb
m=isch&sa=X&ved=0ahUKEwiQhfLs0YTLAhUHFZAKHR62AAoQ_AUIBigB>.
Acesso em: 10 out. 2016.

41
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO E CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA ANTROPOLOGIA

UNI

Segundo Lévi-Strauss (1989), etnografia seria o modo mais preciso e objetivo.


“Consiste na observação e análise de grupos humanos considerados em sua pluralidade
(frequentemente escolhidos por razões teóricas e práticas, mas que não se prendem de
modo algum à natureza da pesquisa, entre aqueles que mais diferem do nosso) e visando à
reconstituição, tão fiel quanto possível, da vida de cada um deles”.

Malinowski é um dos grandes expoentes da antropologia, o conheceremos


mais na Unidade 2 deste livro. Através de suas pesquisas etnográficas pode-se
discutir o método de pesquisa da antropologia. Para ele:

Um trabalho etnográfico só terá valor científico irrefutável se nos permitir


distinguir claramente, de um lado, os resultados da observação direta
e das declarações e interpretações nativas e, de outro, as inferências
do autor, baseadas em seu próprio bom senso e intuição psicológica
(MALINOWSKI, 1978, p. 17).

A apresentação dos dados faz com que os leitores compreendam a
familiarização do pesquisador com o objeto e com os fatos que apresenta, além de
como obteve as informações. O objeto de estudo da etnografia nos ditos de povos
primitivos centra-se nas culturas simples, já nas sociedades complexas centra-se
nos grupos sociais, ou no indivíduo moderno. Seria o antropólogo estudando sua
própria sociedade, sendo objeto de si mesmo. O etnógrafo é o especialista dedicado
ao conhecimento exaustivo da cultura material e imaterial dos grupos. Observa
e descreve, analisa e reconstitui culturas. É um pesquisador de campo focado
na coleta do material referente aos mais diversos contextos culturais existentes.
“[...] a etnografia é um trabalho sistemático, onde ir ao campo com frequência, e
travar conhecimento com o espaço e com os que ali habitam requer também uma
sistematicidade e persistência” (CASSAL, 2014, p. 31).

No entanto, para chegarmos ao conhecimento do fazer antropológico,


o pesquisador deve estar em campo, colocar-se no espaço do seu pesquisado,
juntamente com ele. O antropólogo deve realizar uma incursão ao campo de
pesquisa, mesmo que seja em outro país, cidade ou bairro, é importante “deslocar-
se” em todos os sentidos para desenvolver o trabalho etnográfico. Este “estar lá”
(GEERTZ,1978) chama-se observação participante. “Os pesquisadores são levados
a compartilhar os papéis e os hábitos dos grupos observados para estarem em
condição de observar fatos, situações e comportamentos que não ocorreriam ou
que seriam alterados na presença de estranhos” (MARTINS, 1996, p. 270).

Malinowski (1978) questiona a validade das informações coletadas nos


espaços de pesquisa. Muitas vezes, tais dados chegavam até o antropólogo com
outras interpretações. Buscava-se uma participação adequada dos pesquisadores
dentro dos grupos observados, assim reduzia-se a estranheza do nativo para com
o pesquisador e os dados tornavam-se um pouco mais fidedignos.
42
TÓPICO 3 | METODOLOGIA DA ANTROPOLOGIA

Malinowski também sistematizou as regras metodológicas para a pesquisa,


entendia-se que somente através de imersão no espaço e cotidiano de outra cultura
o antropólogo poderia melhor compreendê-la ou interpretá-la. Percebe-se que a
experiência direta do observador no cotidiano do pesquisado é capaz de revelar
ações íntimas, atitudes e episódios que de outro ponto de vista poderiam ficar
obscurecidos. O antropólogo passa por um processo de transformação ao inserir-
se no campo de pesquisa, com sua aproximação, deixa de ser um “ESTRANHO”
e quase torna-se um nativo. Quase, pois ele está sempre fazendo o deslocamento
entre “ser” nativo e pesquisar o nativo, trabalhando o distanciamento do que lhe
fica familiar e do que pode ser novo neste espaço.

Questiona-se, ao trabalhar a observação participante, quanto se participa e


quanto se observa quando se está em campo. Será que estar no espaço interfere na
cena? Altera nossa pesquisa? Afinal, também fazemos parte da cena etnográfica.
As relações construídas durante o processo de pesquisa podem contribuir para dar
visibilidade e reflexão aos conflitos sociais emergentes nas relações sociais, luta
contra dominação e opressão, contra preconceito e as discriminações. A relação
do pesquisador com o campo de pesquisa é uma relação de implicação, levando o
pesquisador a repensar tanto os destinos de sua pesquisa como também a respeito
de sua posição pessoal. "É necessário que o cientista e sua ciência sejam, primeiro,
um momento de compromisso e participação com o trabalho histórico e os projetos
de luta do outro, a quem, mais do que conhecer para explicar, a pesquisa pretende
compreender para servir" (BRANDÃO, 1984, p. 12).

Para traduzir uma cultura, um modo cultural de determinado grupo


social, o antropólogo insere-se no espaço de vida destes grupos, e inicia a partir
daí uma incursão cotidiana no modo de viver de seus pesquisados. Neste sentido,
conforme Roberto Cardoso de Oliveira (1986) explicita para realizar esta tradução,
ou apreensão dos fenômenos sociais, é importante estar atento a três pontos
importantes para o antropólogo: o olhar, o ouvir e o escrever.

3 O OLHAR DO PESQUISADOR

Ao iniciar uma pesquisa, uma das primeiras experiências do pesquisador


em campo é o olhar. O pesquisador, ao olhar seu objeto, deve “domesticar” seu
olhar, ou seja, treiná-lo, induzi-lo à disciplina.
Seja qual for esse objeto, ele não escapa de ser apreendido pelo esquema
conceitual da disciplina formadora de nossa maneira de ver a realidade.
Esse esquema conceitual – disciplinadamente apreendido durante o
nosso itinerário acadêmico, daí o termo disciplina para as matérias que
estudamos -, funciona como uma espécie de prisma por meio do qual a
realidade observada sofre um processo de refração – se me é permitida
a imagem (OLIVEIRA, 2000, p. 19).

43
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO E CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA ANTROPOLOGIA

Ao se olhar para esta refração, pode ser melhor compreendida. Desta forma
conseguimos “captar” o máximo de informações que nosso olhar busca. Para tanto
é importante nos apropriarmos a respeito do que estamos pesquisando. Realizar
um estudo prévio sobre nosso objeto de pesquisa é imprescindível, para que
nosso olhar esteja “sensível” ao que estivermos deparando, fazendo a leitura dos
espaços, grupos, com mais propriedade, e ambientados ao tema.

4 O OUVIR DO PESQUISADOR
Ao olhar, acionamos também outros sentidos, e o ouvir é o segundo
ponto importante para o antropólogo. Existem inúmeras construções a respeito
da relação entre “entrevistador e entrevistado”, como também há uma arraigada
tradição na literatura etnológica sobre a relação “pesquisador/informante”.
Segundo Malinowski (apud OLIVEIRA, 2000, p. 23), a tradição se consolida
apenas na realização da entrevista, nesta relação quando o etnólogo, ao “ouvir” o
informante, exerce um poder extraordinário sobre o mesmo. Contudo, na relação
pesquisador/informante o ato de ouvir pode ser ilusório, pois as perguntas feitas
em busca de respostas pontuais, junto à autoridade de quem as faz, desenvolverá
um campo ilusório de interação, demonstrando não haver interação entre o nativo
e pesquisador. Já na relação com o informante, o etnólogo não cria condições de
diálogo concreto. Não é uma relação dialógica. Porém, ao transformar o informante
em “interlocutor”, outra modalidade de relacionamento se constrói. Deste modo,
os horizontes semânticos, do pesquisador e do nativo, se abrem um ao outro,
transformando o que seria um “confronto” em um “encontro etnográfico”.
Quando se gera um espaço semântico compartilhado pelos dois, ocorre uma
“fusão de horizontes”. Para que isto ocorra é importante que o pesquisador tenha
habilidade de ouvir o nativo e por ele ser ouvido, “construindo um diálogo entre
“iguais”, sem receio de estar contaminando o discurso do nativo com elementos de
seu discurso” (OLIVEIRA, 2000, p. 24).

Mesmo porque, acreditar ser possível a neutralidade idealizada


pelos defensores da objetividade absoluta, é apenas viver em uma
doce ilusão. Ao trocarem ideias e informações entre si, etnólogo e
nativo, ambos igualmente guindados a interlocutores, abrem-se
a um diálogo em tudo e por tudo superior, metodologicamente
falando, à antiga relação pesquisador/informante. 0 ouvir ganha
em qualidade e altera uma relação, qual estrada de mão única em
uma outra de mão dupla, portanto, uma verdadeira interação.
(OLIVEIRA, 2000, p. 24).

Neste encontro etnográfico, o ouvir se daria de forma aberta, clara e sem


imposições de ambos os lados. A descoberta do outro seria dupla, pois o nativo
também se sente curioso com aquele que conversa, sobre sua cultura, hábitos e
ações, tornando, assim, a prática etnográfica em algo natural de se desenvolver.

44
TÓPICO 3 | METODOLOGIA DA ANTROPOLOGIA

5 O ESCREVER DO PESQUISADOR
Ação de escrever define-se como a configuração final do produto do
trabalho. De acordo com Clifford Geertz (1978), o trabalho empírico poderia ser
dividido em duas partes: a primeira seria o “estar dentro do campo” ou “estando
lá” (being there) e a segunda seria o “estando aqui” (being here), onde se trabalharia
os dados coletados em campo. Neste sentido, olhar e ouvir fariam parte do “estando
lá” e escrever seria o “estando aqui”. Escrever, no estágio “estando aqui”, seria o
processo de textualização dos fenômenos socioculturais observados “estando lá”.
Para tanto, estar entre os pares, no seio da comunidade profissional, é de extrema
importância.

De acordo com Oliveira (2000), o ato de escrever é simultâneo ao ato de


pensar. Ao desenvolver a escrita de um texto o pensamento encontra soluções que
dificilmente surgirão antes da textualização dos dados resultantes do olhar e ouvir.
Com poucas razões consegue externar as conclusões relativas aos dados coletados
sem antes escrevê-los e pensá-los ou pensá-los e escrevê-los. Pensar e escrever são
atos que trabalham juntos. Como relata Roberto Oliveira (2000, p. 32), “o texto não
espera que seu autor tenha primeiro todas as respostas para, só então, poder ser
iniciado”.

O texto pode e deve ser escrito e reescrito inúmeras vezes, para aperfeiçoar
sua forma metodológica, assim como para melhorar a veracidade das descrições
e da narrativa, e também para que ocorra uma maturidade e aprofundamento da
análise e consolidação dos argumentos expostos a partir dos dados apresentados.

6 A ESCRITA ANTROPOLÓGICA E A CONSTRUÇÃO DE


“PERFIS” SOCIAIS

Claudia Fonseca (2006), em seu texto Classe e a recusa etnográfica, inicia sua
argumentação discorrendo sobre a falta de trabalhos sobre classe. Contrastando
com outras áreas onde as pesquisas são diversas, o tema classe é pouco discutido.
Uma falta significativa para a sociedade, em que muitos trabalhos etnográficos
contribuem para o conhecimento de suas especificidades.

Os profissionais que trabalham com classe buscam conceitos e abordagens


analíticas desenvolvidas por outras disciplinas em que não se realizam as
etnografias em sua maioria. Quando o assunto é tratado, os exemplos geralmente
são de pessoas que vivem na margem, e se sobressaíram tornando-se mediadores
de um grupo ou outro. Normalmente usam-se as trajetórias individuais (artistas,
músicos) utilizando sua classe como pano de fundo.

A autora denomina de classes subalternas as camadas populares ou grupos.


Ela sugere que os pesquisadores não trabalhem apenas seus dados empíricos
exclusivamente em termos de impacto da sociedade dominante e, não abraçando

45
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO E CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA ANTROPOLOGIA

esse como objetivo principal de análise, sofrem o pejo de “culturalista” (FONSECA,


2006, p. 16). Para a sociologia espontânea, de Bordieu, a criação de estereótipos, das
camadas populares da base para alguns antropólogos que trabalham nesta área.
É interessante abordar o aspecto da cultura dessas camadas, que serviria como
contrapeso a estereótipos que diminuem estes grupos.

POBRE NÃO DEVERIA NEM EXISTIR

É muito discutido o tratamento discriminatório que os setores dominantes


reservam aos mais pobres ou excluídos, contudo não são analisadas formas de
evitar a discriminação. Se existe exclusão e, por isso, excluídos e estes são os pobres,
é defendida a ideia de que exclusão não deveria existir e, logo, os pobres também
não. Essa ideia é um demonstrativo de que não há interesses nessas camadas.

As exclusões sociais, os grupos populares, são uma parcela de pessoas


que não estão na lógica econômica capitalista. E esta presença causa desajuste à
concepção de que a sociedade é integrada, justa e harmonicamente, na visão dos
antropólogos americanos.

No Brasil, na década de 80, ocorreu uma forte produção antropológica,


sobre classe. Estudos sobre a periferia, mostrando a cultura musical, circense,
clubes de futebol, organização familiar, as formas de participação etc. Ação
inspirada na escola inglesa.

Nos anos 90, com a conciliação entre partidos políticos de direita e de


esquerda e o incentivo de agências financiadoras internacionais, a pesquisa volta-
se para problemas de gênero, etnia e outras instâncias.

O popular é subsumido na ideia de cultura de massa, esquecendo o método


etnográfico, práticas e experiências compartilhadas no dia a dia no âmbito de
determinado modo ou padrão de vida. Mas, e as posturas dos pesquisadores em
relação às classes populares?

Claudia Fonseca (2006) questiona, neste novo clima neoliberal político, o


fato de que os profissionais em questão não tomaram para si um silêncio discursivo.
E se não ocorreu a tendência de não ver aquelas dimensões da realidade que se
choca com a ideologia hegemônica.

Outro questionamento, levantado no texto e também quanto à falta,


à diminuição de pesquisas sobre classe, traria consequências políticas para a
sociedade. Enquanto as pesquisas da década de 80 estavam sendo produzidas,
ajudavam a mostrar e influenciar a realidade dos grupos aos quais eram chamados
de populares. Com a troca do termo “popular” para “excluídos” foi criada uma
característica negativa dessas camadas da população, estereotipada de modo
negativo a todos eles.

46
TÓPICO 3 | METODOLOGIA DA ANTROPOLOGIA

SE EXISTE POBRE, NOSSA TAREFA É TRANSFORMÁ-LO.

Não necessariamente porque existem pobres os antropólogos devem ajudá-


los a sair da miséria. Muitos pesquisadores acreditam que a própria motivação da
pesquisa já remediará a situação dos pesquisados.

Ao pensar na remediação dos pobres, o pesquisador pouco preparado


procura nos dados etnográficos as curas da miséria e também suas próprias
causas. As estruturas capitalistas são identificadas como causa última da pobreza
e com isso o etnógrafo procura, através de sua pesquisa, mecanismos educativos.
Capazes de provocar uma transformação libertadora de valores entre os próprios
pobres.

Contudo, pelo fato de o pesquisador “dar uma mão” aos seus pesquisados,
ele corre dois perigos:
- Resistência “Reificada”, quando se reduz o modo de vida da população
estudada aos seus aspectos “reativos”, ignorando a historicidade endógena de
mundos locais.
- Idealismo romântico, em que, admitida a possibilidade de algo
“endógeno”, esse modo de vida seja positivo a tal ponto que não se enxerga mais
conflitos, desigualdades ou formas de dominação inerentes às dinâmicas internas
do grupo, produzindo uma imagem caricata do grupo, dificultando a etnografia
densa.

Algumas pesquisas utilizam a autoridade de estudo etnográfico para


documentar a carência moral e espiritual que, na consciência do pesquisador,
parece acompanhar a carência material, de acordo com o texto de Fonseca (2006).

As críticas à análise culturalista aparecem nos trabalhos; as ações


“ignorantes”, “alienadas” ou “atrasadas” dos pobres são mostradas como causa
principal da miséria. E algumas atitudes são postas em prática como medida de
intervenção que tem o objetivo mais de disciplinar as populações do que alterar as
suas condições de vida.

Muito dos trabalhos visionários de melhora das camadas é devido à


mentalidade dos não nativos de vontade de mudança unilateral (a verdade levada
por “nós” e para “eles”) usando uma versão pobre da pesquisa etnográfica para
legitimar o esforço.

SE A ETNOGRAFIA NÃO SERVE PARA REMEDIAR A SITUAÇÃO DO


POBRE, PELO MENOS SERVE PARA DENUNCIÁ-LA.

Se não é possível remediar a condição do pobre através de estudos


etnográficos, o pesquisador decide usar seu estudo para denunciar a miséria.
Contudo, Claudia Fonseca (2005) ressalta que isso pode causar uma divisão entre
o bem e o mal, onde os dominantes, é que estarão à espera de ajuda dos que têm
mais conhecimento. Ela cita alguns exemplos:
47
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO E CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA ANTROPOLOGIA

- Nancy Sheper Hughes – Pesquisou sobre o abandono de crianças doentes


no Nordeste brasileiro e o linchamento e execução por fogo de jovens acusados de
roubo na África do Sul. Nancy comenta em seu texto como ajudou a salvar a vida
de alguns de seus informantes. Ela critica o sistema de saúde brasileiro, que usa
tranquilizantes e nada mais para acalmar a fome dos agonizantes, mas também as
mães supostamente lobotomizadas pela miséria. No caso sul-africano ela aponta
para a indiferença dos brancos locais (inclusive os antropólogos).
- Loic Wanquant – Escreve sobre o gueto negro de Chicago, onde os artigos
de cunho sociológico são muito ricos e seu livro “Corpo e alma: notas etnográficas de
um aprendiz de boxe” é bastante elogiado. Contudo, nos seus artigos para algumas
revistas acadêmicas, vemos um uso desconcertante de seus dados de campo.
Ele homogeneíza a variedade de pessoas no gueto, pinta suas estratégias como
meramente compensatórias, se não mal adaptadas, privilegia o recorte econômico
(como se a única preocupação do pobre fosse logicamente sua sobrevivência e
melhoria financeira).
- Bougois – Trabalhou com outro gueto norte-americano, em Boston. Ele
leva o leitor para dentro da experiência de vida de seu protagonista, e realiza a
denúncia das condições injustas que este enfrenta sem moralismo.
G. Marcus (1998, p. 18), em seu tratado sobre as ânsias políticas do etnógrafo,
coloca preocupações semelhantes às nossas:

Certa parcela da etnografia é guiada por conceitos teóricos e sentimentos


com os quais ela [a etnografia] é incapaz de lidar de forma coerente.
Assim, o problema de qualquer etnografia particular é enunciado e
pensado em termos que a etnografia, como gênero e método, não foi
tradicionalmente equipada para investigar.
Ou então, o etnógrafo [...] não fez o trabalho difícil e incerto de
traduzir pela pesquisa de campo os termos teóricos para um projeto
de investigação. O resultado é a superficialidade que caracteriza tanta
etnografia do campo de estudos culturais, e para dizer a verdade, cada
vez mais, a da antropologia também.

“A etnografia “micro” deve, sim, levar a generalizações e, para fazer sentido


no contexto contemporâneo, deve endereçar-se aos múltiplos nexos entre local
e global”. O autor continua afirmando que “Os termos da análise propriamente
etnográfica devem ser contestados e reconstruídos do chão para cima, isto é, a
partir da experiência da pesquisa” (MARCUS, 1998, p. 40).

Porém é de se esperar que, mantendo o norte da descrição densa, traz-se


uma contribuição não somente para a reflexão acadêmica sobre processos sociais,
mas também para planejadores e agentes de intervenção que procuram, através
do diálogo com os múltiplos agentes da sociedade contemporânea, instrumentos
para combater a desigualdade política e econômica, desigualdade esta que reforça
diariamente as fronteiras de classe.

48
TÓPICO 3 | METODOLOGIA DA ANTROPOLOGIA

LEITURA COMPLEMENTAR

O TRABALHO DE CAMPO1

Bronislaw Malinowski

Imagine o leitor que, de repente, desembarca sozinho numa praia tropical,


perto de uma aldeia nativa, rodeado pelo seu material, enquanto a lancha ou
pequena baleeira que o trouxe navega até desaparecer de vista. Uma vez que se
instalou na vizinhança de um homem branco, comerciante ou missionário, não tem
nada a fazer senão começar imediatamente o seu trabalho etnográfico. Imagine
ainda que é um principiante sem experiência anterior, sem nada para o guiar e
ninguém para o ajudar, pois o homem branco está temporariamente ausente, ou
então impossibilitado ou sem interesse em perder tempo consigo. Isto descreve
exatamente a minha primeira iniciação no trabalho de campo na costa Sul da
Nova Guiné. Lembro-me bem das longas visitas que efetuei às povoações durante
as primeiras semanas e da sensação de desânimo e desespero depois de muitas
tentativas obstinadas, mas inúteis, com o objetivo frustrado de estabelecimento
de um contato real com os nativos ou da obtenção de algum material. Atravessei
períodos de desânimo, alturas em que me refugiava na leitura de romances, tal
como um homem levado a beber numa crise de depressão e tédio tropical.

Imagine-se, agora, o leitor, entrando pela primeira vez na aldeia, sozinho


ou na companhia do seu cicerone branco. Alguns nativos juntam-se em seu
redor, especialmente se pressentirem que há tabaco. Outros, mais distintos e
idosos, mantêm-se sentados onde estão. O seu companheiro branco tem a sua
forma habitual de lidar com os nativos e não compreende, nem parece querer
compreender, a maneira como você, enquanto etnógrafo, os terá de abordar. A
primeira visita deixa-o com a esperança de que, quando voltar sozinho, as coisas
correrão melhor. Essa era, pelo menos, a minha expectativa.

Regressei na primeira oportunidade e depressa reuni uma audiência à minha


volta. Umas saudações em pidgin-English1*2 de ambas as partes e algumas trocas de
tabaco instalaram uma atmosfera de amabilidade mútua. Tentei então passar ao
assunto. Primeiro, para começar com temas que não levantassem suspeitas, comecei
a «fazer» tecnologia. Alguns nativos estavam ocupados a fabricar um ou outro
objeto. Era fácil observá-los e obter os nomes das ferramentas e mesmo algumas
expressões técnicas sobre os procedimentos, mas logo se esgotou o assunto. É
preciso não esquecer que o pidgin-English é um instrumento muito imperfeito para
expressar ideias e que, antes de se alcançar um treino razoável na construção de
perguntas e compreensão de respostas, a sensação é a de que nunca se virá a atingir
uma comunicação fluente com os nativos; e eu era incapaz de estabelecer qualquer
conversa clara ou detalhada com eles. Estava ciente de que o melhor remédio para
1 Extraído do texto Argonautas do Pacífico, de Malinowski.
2 Inicialmente utilizado em contexto chinês, o pidgin-English refere-se genericamente a apropriações locais
rudimentares da língua inglesa, para comunicação entre indígenas e forasteiros geralmente comerciantes.
(Nota de revisão científica.)

49
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO E CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA ANTROPOLOGIA

ultrapassar isto era empreender a recolha de dados concretos e, então, elaborei


um censo da aldeia, registei genealogias, tracei planos e recolhi os termos que
designam as formas de parentesco. Mas tudo isto era material morto que pouco
adiantava para o conhecimento da verdadeira mentalidade ou comportamento
nativo, uma vez que eu nem sequer podia adquirir uma boa interpretação local
de nenhum destes temas nem alcançar aquilo que poderemos designar como o
sentido da vida tribal. Relativamente às suas ideias sobre a religião e a magia, as
suas crenças na feitiçaria e nos espíritos, nada era conseguido, para além de alguns
temas superficiais de folclore deturpados devido ao constrangimento do pidgin-
English.
A informação que recebi de alguns brancos residentes na região, embora
valiosa à sua maneira, foi mais desencorajadora do que qualquer outra relacionada
com o meu próprio trabalho. Ali estavam aqueles que, vivendo há anos no local,
com oportunidades constantes de observar os nativos e de comunicar com eles,
pouco ou nada sabiam com exatidão a seu respeito. Como podia eu, então, em
poucos meses ou mesmo num ano, esperar superá-los e ir mais além? Além disso,
a maneira como os meus informadores brancos falavam dos nativos e expunham
as suas opiniões era, naturalmente, a de mentes destreinadas e pouco acostumadas
a formular os seus pensamentos com algum grau de consistência e precisão. Na sua
maioria, e quer se tratasse de um administrador ou de um comerciante, estavam,
como seria de esperar, marcados por preconceitos e opiniões precipitadas,
habituais no homem prático comum, mas tão repugnantes para uma mente que
lutava por uma perspectiva objetiva e científica dos factos. O hábito de tratar com
uma frivolidade arrogante o que é realmente sério para o Etnógrafo e a negligência
votada àquilo que, para este, é um tesouro científico – refiro-me às peculiaridades
e autonomia mentais e culturais – estas características, comuns entre os escritores
amadores de segunda, eram a tônica dominante no espírito da maioria dos
residentes brancos.

De facto, foi apenas quando me encontrei sozinho na região que a


minha primeira obra de pesquisa etnográfica na costa Sul começou a avançar;
descobri então, à minha custa, onde residia o segredo do verdadeiro trabalho de
campo. Qual é, afinal, esta magia do Etnógrafo pela qual ele é capaz de evocar
o verdadeiro espírito dos nativos, a verdadeira imagem da vida tribal? Como
de costume, o sucesso só pode ser obtido através de uma aplicação sistemática
e paciente de um determinado número de regras de bom senso e de princípios
científicos bem definidos e não através de qualquer atalho miraculoso que leve
aos resultados desejados sem esforço ou problemas. Os princípios do método
podem ser agrupados em três itens principais: em primeiro lugar, como é
óbvio, o investigador deve guiar-se por objetivos verdadeiramente científicos,
e conhecer as normas e critérios da etnografia moderna; em segundo lugar, deve
providenciar boas condições para o seu trabalho, o que significa, em termos
gerais, viver efetivamente entre os nativos, longe de outros homens brancos;
finalmente, deve recorrer a um certo número de métodos especiais de recolha,
manipulando e registando as suas provas. Falemos um pouco destas três pedras
basilares do trabalho de campo, começando pela mais elementar: a segunda.

50
TÓPICO 3 | METODOLOGIA DA ANTROPOLOGIA

Condições adequadas ao trabalho etnográfico.

Como já referi, o mais importante é mantermo-nos afastados da companhia


de outros homens brancos e num contato o mais estreito possível com os nativos, o
que só pode ser realmente conseguido acampando nas suas próprias povoações. É
muito reconfortante estabelecer uma base na propriedade de um branco por causa
dos mantimentos e em caso de doença ou saturação da vida indígena. Mas ela
deve estar suficientemente afastada de modo a não se tomar no local onde se vive
permanentemente e de onde se sai a horas fixas com o objetivo de ir «trabalhar
na aldeia». Não deve estar sequer tão próxima que permita um acesso rápido e
a qualquer momento para distração. Isto porque o nativo não é o companheiro
natural de um homem branco, e depois de se ter estado a trabalhar com ele durante
algumas horas, observando o modo como arranja os seus jardins, escutando as suas
informações sobre folclore ou discutindo os seus costumes, é natural que se anseie
pela companhia dos nossos semelhantes. Mas se se estiver só, numa aldeia com
difícil acesso a outros brancos, sai-se para um passeio solitário de cerca de uma
hora, regressa-se e depois, de forma natural, procura-se a convivência dos nativos,
desta vez para resolver a solidão, como se faria com qualquer outra companhia. E,
através deste relacionamento natural, aprende-se a conhecê-los e a familiarizar-se
com os seus costumes e crenças de forma muito mais conveniente do que quando
se recorre a um informador pago e muitas vezes aborrecido.

Existe uma diferença enorme entre uma escapadela esporádica na


companhia dos nativos e um contato real com eles. O que significa isto? Da parte
do Etnógrafo, significa que a sua vida na aldeia – no início uma aventura muitas
vezes estranha e desagradável, outras vezes intensamente interessante – assume
depressa um curso natural em harmonia progressiva com aquilo que o rodeia.

Pouco tempo depois de me estabelecer em Omarakana (Ilhas Trobriand),


comecei, de certa forma, a participar na vida da aldeia, a esperar pelos
acontecimentos importantes ou festivos e a interessar-me com prazer nas
maledicências e no desenvolvimento das pequenas ocorrências locais (fofocas).
Acordava todas as manhãs para um dia que se me apresentava mais ou menos
semelhante ao de um nativo. Saía de debaixo do meu mosquiteiro e observava a
vida da aldeia despertando em meu redor ou aqueles que já tinham começado o
seu trabalho, consoante a hora ou a estação do ano, pois as tarefas eram iniciadas de
acordo com as necessidades do trabalho. À medida que dava o meu passeio matinal
pela aldeia, podia apreciar detalhes íntimos da vida familiar, de higiene corporal,
cozinha ou culinária; podia observar os preparativos para o dia de trabalho, as
pessoas iniciando as suas incumbências ou grupos de homens e mulheres ocupados
com algumas tarefas artesanais. Brigas, piadas, cenas familiares, acontecimentos
triviais, por vezes dramáticos, mas sempre significativos, constituíam a atmosfera
da minha vida diária, tal como a deles. Deve ser lembrado que o facto de os
nativos me verem diariamente fez com que deixassem de se interessar, recear ou
mesmo de ficar condicionados pela minha presença, deixando eu de constituir um
elemento perturbador da vida tribal que queria estudar, de alterá-la com a minha
aproximação, como sempre acontece com um recém-chegado a uma comunidade

51
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO E CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA ANTROPOLOGIA

selvagem. De facto, como sabiam que iria meter o nariz em tudo, mesmo onde um
nativo bem-educado não sonharia fazê-lo, acabaram por me encarar como parte
integrante das suas vidas, um mal ou um aborrecimento necessário, mitigado por
donativos em tabaco.

Mais tarde, durante o dia, qualquer coisa que acontecesse se tomava de


fácil alcance e dificilmente escapava ao meu conhecimento. Alarmes sobre a
aproximação do feiticeiro ao fim do dia, uma ou duas grandes brigas importantes
e desentendimentos dentro da comunidade, casos de doença, tentativas de cura e
mortes, ritos mágicos que tinham de ser executados, tudo isto se passava mesmo
à frente dos meus olhos, por assim dizer, à minha porta e, por isso, não tinha de
perseguir nenhum destes casos com receio de que me escapassem. E devo insistir
que de cada vez que se passa algo dramático ou importante é essencial investigá-lo
no preciso momento em que ocorre, pois os nativos não conseguem então deixar
de falar do assunto e estão demasiado excitados para se mostrarem reticentes e
demasiado interessados para se tornarem parcimoniosos nos detalhes. Também
muitas e muitas vezes não cumpri a etiqueta, facto que os nativos, já familiarizados
comigo, não hesitaram em apontar. Tive de aprender a comportar-me e, até certo
ponto, adquiri «a sensibilidade» para o que entre os nativos se considerava “boas”
ou “más” maneiras. Foi graças a isto, e à capacidade em apreciar a sua companhia e
partilhar alguns dos seus jogos e diversões, que comecei a me sentir em verdadeiro
contato com os nativos. E esta é, certamente, a condição prévia para poder levar a
cabo com êxito o trabalho de campo.

FONTE: MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacífico Ocidental, 1984, p. 18-19.

52
RESUMO DO TÓPICO 3

Neste tópico você viu que:

• O método é um conjunto de regras úteis para investigação, é um procedimento


cuidadosamente elaborado, visando provocar respostas na natureza e na sociedade,
e descobrir, consequentemente, sua lógica e leis.

• O etnógrafo é o especialista dedicado ao conhecimento exaustivo da cultura


material e imaterial dos grupos. Observa e descreve, analisa e reconstitui culturas.

• O pesquisador, ao olhar seu objeto, deve “domesticar” seu olhar, ou seja, treiná-
lo, induzi-lo à disciplina, como também realizar um estudo prévio sobre nosso
objeto de pesquisa é imprescindível, para que nosso olhar esteja “sensível” com o
que estivermos nos deparando.

• É um pesquisador de campo focado na coleta do material referente aos mais


diversos contextos culturais existentes.

• Observação participante é quando o antropólogo realiza uma incursão ao campo


de pesquisa, mesmo que seja em outro país, cidade ou bairro, “deslocando-se” em
todos os sentidos para desenvolver o trabalho etnográfico.

• É importante que o pesquisador tenha habilidade de ouvir o nativo e por ele ser
ouvido, “construindo um diálogo entre “iguais”, sem receio de estar contaminando
o discurso do nativo com elementos de seu discurso.

• O ouvir se daria de forma aberta, clara e sem imposições de ambos os lados.

• Ação de escrever define-se como a configuração final do produto do trabalho.

53
AUTOATIVIDADE

1- De que forma você planejaria uma pesquisa etnográfica, que


pontos colocaria em seus planejamentos?

2- Leia o trecho do relato da pesquisa etnográfica e procure analisar os


pontos explicitados como exercício da pesquisadora ao defrontar-se com o
“estranhamento” e a familiarização de sua pessoa e de seus pesquisados no
campo de pesquisa. Faça um breve relato de como compreendeu a cena e
suas implicações no espaço etnográfico.

"Esta reflexão sobre as denominações que os meninos e meninas


do laguinho e do Areal me designam está relacionada ao espaço em que
nos encontramos, nossas formas de interação e relação, e seus modos de
aceitação em relação a mim. Relato um dos episódios que tanto os(as)
guris(as) parecem me “familiarizar” e aceitar naquele lugar. Nos últimos
meses de pesquisa, eu ainda sentia certa “distância” por parte dos(as)
guris(as) do laguinho. Ainda que eu fosse diversas vezes lá, e conversasse
com todos, fosse acolhida por uma das adultas mais frequentes do lugar.
Ainda assim Gisele, uma das meninas mais assíduas ali, resistia a minha
presença e era seguida por quem estava com ela. No domingo de Páscoa de
2013 fui até o laguinho ver se encontrava alguém. Estava muito calor.
Ao chegar encontro Gisele com sete guris, sendo que cinco deles
eram seus irmãos. O mais novo tinha menos de um ano, estava no carrinho
de bebê, eu já tinha visto Gisele com ele na praça. Quando chego, alguns dos
guris me reconhecem e abanam para mim. Gisele diz ao irmão que estou
ali fazendo um trabalho para faculdade. Em pouco tempo os meninos me
mostraram os peixes e me convidam para “pescar”, passamos muito tempo
fazendo isso, alimentando os peixes que por sinal são muitos. Sento no chão,
tiro os sapatos e vibro junto com os guris quando um peixe enorme abocanha
um pão. Como era Páscoa, o grupo recebe de algumas pessoas que passam
por ali muitos doces e eu também recebo. Os guris e Gisele recebem doações
de doces e percebo que isso é comum, pois encontramos Darlene com seus
dois filhos e ela nos mostra a quantidade de doces, roupas e brinquedos que
receberam de doações. Estranho o fato de também ter recebido doces e noto
que fui “confundida” como alguém que pertence àquele meio e ao grupo.
Percebo também que ao estranhar este fato, vejo que eu ainda não
aceitei o espaço e as condições que ele e as pessoas que pesquiso me propõem.
Descubro nestas percepções meus preconceitos em relação ao meio e as
pessoas que pesquiso. Eu também posso ser vista como alguém do grupo,
contudo eu ainda estou em uma posição de distanciamento do grupo, talvez
isso me afaste, e me passe a sensação de distanciamento de alguns guris

54
e gurias no laguinho. Aceitar o campo é mais uma espécie de “relaxar”,
deixar as coisas acontecerem naquele espaço, sem muitas reflexões. E com
isso também trabalho com os meus pré-julgamentos morais.
Dividimos os doces, e comemos juntos naquele dia. E recordo que
olhei para meus pés e roupas e percebi que estava bem suja. Comento isso a
um deles, que me olhou concordando, fazendo uma careta. As pessoas que
passavam pela praça nos olhavam e me olhavam com uma cara interrogativa
e ao mesmo tempo sorriam. Encontrei um menino que conheci no Ação Rua,
e ele me perguntou se aquelas crianças eram meus filhos, eu disse que não.
E depois percebi que era assim que estavam nos vendo. Eu poderia ser mãe
daquelas crianças, e poderia ser confundida também porque todos eram
negros. Os guris e Gisele se sentiram bem à vontade com minha presença.
Consegui conversar com Gisele que sempre era bastante arredia. Neste dia
dividiu algumas confidências em relação aos meninos que já tinha ficado e o
menino que gostava que por sinal eu conhecia, pois também era frequentador
do lago. Neste dia, me senti “parte” do grupo, talvez este momento tenha
sido meu ritual de passagem no campo, me senti mais à vontade com eles e
percebi que eles também estavam mais à vontade comigo, pena que o tempo
de pesquisa já estava terminando”.

FONTE: Brincando de sair pra rua! Entre arreganhos, implicâncias e cuidados no “pátio” do
quilombo, na “piscina” do laguinho. Dissertação de mestrado-2014 – PUCRS – Milena Cassal
Pereira.

55
56
UNIDADE 2

PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS
DA ANTROPOLOGIA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Esta unidade tem por objetivos:

• conceituar a construção do pensamento antropológico;

• compreender os movimentos históricos na antropologia;

• conhecer os novos questionamentos da antropologia.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está organizada em três tópicos. Neles você encontrará dicas,
textos complementares, observações e atividades que lhe darão uma maior
compreensão dos temas a serem abordados.

TÓPICO 1 – A CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO


ANTROPOLÓGICO

TÓPICO 2 – PERSPECTIVAS CLÁSSICAS DA TEORIA


ANTROPOLÓGICA

TÓPICO 3 – INQUIETAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DA


ANTROPOLOGIA

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58
UNIDADE 2
TÓPICO 1

A CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO
ANTROPOLÓGICO

1 INTRODUÇÃO

Caro acadêmico! Toda disciplina se embasa em estudos clássicos para


se constituir como ciência, por isso temos de conhecer os nossos clássicos a fim
de não inventarmos a roda novamente. Ou seja, é a partir deles que os estudos
sobre o homem na sociedade vão partir. Conhecer a história desses autores, seus
ensinamentos e seus dilemas antropológicos nos faz repensar a nossa própria
prática no âmbito desta disciplina. Então vamos lá?

2 EVOLUCIONISMO SOCIAL E MATERIALISMO CULTURAL

FIGURA 10 - CAMINHO LINEAR DA HISTÓRIA DO HOMEM

FONTE: Disponível em: <http://brasilescola.uol.com.br/filosofia/evolucionismo


-cultural-segundo-lewis-morgan.htm>. Acesso em: 20 maio 2016.

59
UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA

Caro acadêmico! Toda disciplina se embasa em estudos clássicos para


se constituir como ciência, por isso temos de conhecer os nossos clássicos a fim
de não inventarmos a roda novamente. Ou seja, é a partir deles que os estudos
sobre o homem na sociedade vão partir. Conhecer a história desses autores, seus
ensinamentos e seus dilemas antropológicos nos faz repensar a nossa própria
prática no âmbito desta disciplina.

Em 1830 tem-se o embrião de uma Antropologia Evolucionista, na


Inglaterra, apoiada na Teoria da Evolução, que defende a questão da mutabilidade
das espécies, de modo que cada mutação ocorrida no homem passa por uma
seleção. Por outro lado, tem-se os argumentos dos enciclopedistas da Idade Média,
que acreditavam num mundo ordenado a partir de uma “Grande cadeia do ser”,
e assim sendo, numa estabilidade da espécie. Entretanto, quem mais influenciou os
“primeiros antropólogos” foi o filósofo inglês Herbert Spencer, com suas ideias de
escala evolutiva ascendente baseada na noção de “estágios”. Esse Evolucionismo
Unilinear se apoiou na ideia de que há uma linha dominante no sistema evolutivo,
em que todas as sociedades passam pelos mesmos estágios, o que permitiria à
Antropologia, como ciência, relacionar passado e presente.

Durante esta época acontecia a expansão colonial e o comércio exterior que


instigavam a busca por um conhecimento global, mas também se estruturava uma
crítica forte da sociologia britânica, representada por ativistas, em relação ao tráfico
de escravos e a legalidade da instituição da escravidão nas colônias britânicas.
Ou seja, buscamos mais conhecimento, mas agimos de formas ainda grotescas e
impondo nossa força.

2.1 MORGAN E A SOCIEDADE ANTIGA

Também inspirado por essa linha de pensamento unilinear, o norte-


americano Lewis Henry Morgan (1818-1881) trabalhou muito tempo observando
os iroqueses e outros povos americanos. Através desse contato e com a ajuda de
um intérprete, ele percebeu que o sistema de parentesco dos iroqueses era similar a
outras tribos da América e até mesmo de outras tribos no mundo. Para reforçar sua
pesquisa, enviou questionários para missões religiosas, agências governamentais
e instituições científicas nos Estados Unidos que trabalhavam com povos nativos
e fez viagens curtas a reservas indígenas. Com esse material ele desenvolveu um
modelo comparativo para a compreensão do sistema de parentesco em todo o
mundo, concluindo que a história da raça humana é somente uma, e cada povo
passa por estágios, de acordo com a ordem proposta: selvageria, barbárie e
civilização.

Para ele, todos nasciam com iguais capacidades, mas desenvolvê-las


seria outra questão. Aqueles privilegiadamente nascidos estariam “separados”
socialmente dos desprovidos. Porém, haveria uma uniformidade das operações
da mente humana, em que através de invenções e descobertas a inteligência se

60
TÓPICO 1 | A CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO ANTROPOLÓGICO

desenvolvia. Para se reconhecer o estágio em que está a tribo, poder-se-ia registrar


e classificar suas instituições, sendo estas entendidas como germes primários do
pensamento capazes de desenvolver a sua logicidade. Inicia-se de um estoque
original comum até o desenvolvimento dessa inteligência que alcançaria a
civilização, ponto onde os povos teriam mais experiências e maior poder mental
e moral. Partindo dessa investigação das formas de governo, do sistema de
parentesco e questão da propriedade, Morgan estabelece a sistematização de
evidências do progresso humano.

NOTA

Os iroquereses pertencem a uma das cinco diferentes nações que vivem em torno
da região dos Grandes Lagos na América do Norte, envolvendo Canadá e Estados Unidos. E
suas terras já foram alvo de disputas comerciais no século XVI, sendo que Morgan os defendeu
através de uma petição.

2.2 TYLOR E A CIÊNCIA DA CULTURA

Edward Burnett Tylor (1832-1917) nasceu na Inglaterra e, trabalhando nos


negócios de fundição de bronze da família, teve a oportunidade de conhecer o
México e acessar as ruínas astecas arqueológicas. Sua metodologia dedutiva –
que parte da conclusão geral para uma premissa particular – era comparar povos
iguais a fim de identificar as variações da forma cultural entre eles, classificando
em graus de estágios.

Dentro da discussão antropológica, ele se concentrava na ideia do progresso


da humanidade através da análise de traços culturais úteis e persistentes no hábito
humano, o que reforçou a ideia de evolução dos grupos também a partir da noção
de "sobrevivências". Os relatos de fenômenos da cultura similares serviam de
evidências dessa progressão na busca de sistematizações gerais da civilização.
Por isso, raças menos desenvolvidas poderiam fornecer evidências da cultura pré-
histórica de povos primitivos com o objetivo de classificá-los nos mesmos estágios
evolutivos da cultura.

Há uma premissa de unidade psíquica humana, uma vez que, ao tê-la como
objeto de estudo, Tylor percebe a capacidade de raciocínio de seus informantes,
ainda que seja numa linha progressiva. Através de tabelas comparativas, o autor
evidenciou leis gerais que explicariam as associações humanas ou conexões
históricas particulares, e esse modo de análise influenciou outros antropólogos
culturais. Assim sendo, seu principal interesse de pesquisa foi sobre a origem
humana e, na sequência, sobre evolução de crenças na religião, sendo esta última,
produto de esforço das pessoas para explicar o mundo.

61
UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA

Ele é conhecido como o Pai da Antropologia Cultural, uma vez que tentou
definir o que é cultura através de um conceito científico. Para Tylor, cultura ou
civilização é todo aquele complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral
lei, costume e outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem em condição
de membro da sociedade. Entretanto, essa conceituação que trata a humanidade
como homogênea pode ser limitada para compreender a diversidade social ou
cultural, ao mesmo tempo em que deixa de lado a especificidade da história de
vida desses povos e o contexto da sua localização geográfica.

2.3 FRAZER E A ANTROPOLOGIA SOCIAL

James George Frazer (1854-1941) nasceu na Escócia e teve sua formação


acadêmica através da leitura dos clássicos na Inglaterra, através da qual produziu
a obra "O ramo de ouro". O objetivo é descobrir leis gerais que possam presumir
como os fatos particulares se conformam. Sem ter realizado pesquisa de campo,
valeu-se do método comparativo através do raciocínio indutivo – que é a premissa
particular para a conclusão geral –, em que propõe comparar raças de homens,
afinidades e entender a evolução do pensamento e das instituições humanas.
Segundo ele, se a natureza for realmente uniforme, é de esperar que se regule no
futuro, e caberia à antropologia descobrir essas leis gerais que regem a história
humana desde o passado.

Frazer foi convidado para ser professor de Antropologia Social na


Universidade de Liverpool, na Inglaterra. Ali, ele seguiu duas vertentes de estudos:
o estudo da selvageria e do folclore. No primeiro, verificou crenças e costumes
dos selvagens. No segundo, as relíquias (fósseis) ainda existentes dessas crenças e
costumes, que estavam presentes na noção de “sobrevivências” (desde as ideias e
práticas mais primitivas que ascenderam a planos mais elevados).

Mas Frazer pede a atenção de que os selvagens de hoje são primitivos


apenas no sentido relativo, uma vez que serão comparados conosco e não com
o homem primitivo (aquele idealizado na origem da sociedade), por isso não
são primitivos no sentido absoluto. Ele reforça que sobre a condição do homem
primitivo nada sabemos.

Entretanto, para ele, haveria similaridade do funcionamento da mente


humana de todas as raças de homens, em que as diferenças seriam mais qualitativas
do que quantitativas, visto que todos teriam igual capacidade mental e moral.
Ainda assim, julgava de modo prepotente que os pensadores disseminariam as
melhores ideias na sociedade, estando ele entre esses.

62
TÓPICO 1 | A CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO ANTROPOLÓGICO

NOTA

A obra "O ramo de ouro" (1890), de Frazer, afirmava que a magia nas sociedades
primitivas poderia, então, ser pensada como ciência aplicada ou tecnológica nas sociedades
contemporâneas, considerando uma linha contínua e de caráter progressista em que a magia
está numa ponta e a ciência na outra. Cabe lembrar que essa obra não está pautada num
trabalho de campo propriamente dito, mas numa compilação de mitos, lendas, relatos de magia
e religião dispostos em acervo documental. Caso queiram acessar a obra digitalizada numa
versão ilustrada, o link é <http://www.classicos12011.files.wordpress.com/2011/03/45354652-o-
ramo-de-ouro-sir-james-george-frazer-ilustrado.pdf>.

Esses trabalhos do final do século XIX e início do século XX na Antropologia


Britânica são baseados fortemente em recursos patrocinados, ou seja, empresas e
Estado tinham interesse em descobrir sobre a vida dos povos que habitavam outras
terras e levar a "civilização" até eles. Assim, o que era produzido sobre esses povos
através das escritas de viajantes e de descobridores se tornou de grande importância
para os pesquisadores da época, sendo que a observação direta no campo estaria
mais em segundo plano, conforme definiam os estudiosos dos clássicos e da
história. Debruçados sobre esses dados, as principais investigações dos “primeiros
antropólogos” se concentraram na questão da origem e desenvolvimento gradual
da história humana, visto que tendo ou não material documental, havia um esforço
na reconstrução – a partir de pistas sobre evidências – do progresso da sociedade
humana.

Ainda que esses pesquisadores fossem reconhecidos como “antropólogos


de gabinete”, pois ficavam mais em seus escritórios do que entre os nativos, é preciso
destacar que Morgan realizou pesquisa de campo e que as definições conceituais
na investigação do estudo da sociedade foram de grande importância para a
pesquisa antropológica. Essas estratégias de pesquisa através da possibilidade de
documentar a diversidade de costumes e instituições permitiram a reflexão sobre
novas metodologias para a disciplina. Aqui, destaca-se o método comparativo,
que será escrutinado e questionado nas abordagens antropológicas subsequentes.
Também se elucidam as contribuições de Morgan, Frazer e Tylor no estudo das
terminologias descritivas, que se esforçam para compreender a diversidade de
expressões culturais, como: o animismo, a matrilinearidade, a exogamia, o tabu
etc.

63
UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA

2.4 PARTICULARISMO HISTÓRICO E CULTURAL

FIGURA 11 - FRANZ BOAS POSANDO PARA ESCULTOR DO MUSEU

FONTE: Disponível em: <h http://photo-performanceblog.blogspot.com.br/2009/03/


anthropologist-franz-boas-posing-for.html>. Acesso em: 31 maio 2016.

Franz Boas nasceu em Minden, em Vestfália (Alemanha), no ano de 1858,


numa família de comerciantes judeus assimilados à cultura alemã. Cursou Física
e Geografia em universidade alemã, e logo em seguida mudou-se para Berlim,
mantendo relações próximas com Adolf Bastian (1826-1905), diretor do Museum
für Völkerkunde (Museu do Folclore). Na sequência, foi estudar Antropologia
com o médico anatomista Rudolf Virchow (1821-1902).

Ainda que influenciado pelo estudo das Ciências Naturais, Boas ia se


questionando sobre a objetividade da ciência nos estudos dos fenômenos humanos,
e encontrando seus limites. Ele foi testando seus pressupostos e considerou
a questão de maneira mais complexa, sujeitando as explicações das causas dos
fenômenos também aos fatores psicológicos elucidados pela história.

Em 1883, Boas planejou uma expedição à Ilha de Baffin, no Canadá, para


estudar os esquimós – os Inuit –, e foi custeado por um dono de jornal em troca
de artigos sobre a experiência. Esse foi o seu primeiro trabalho de campo entre

64
TÓPICO 1 | A CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO ANTROPOLÓGICO

os “nativos”, contudo manteve-se muito mais como observador do que como


pesquisador participante. Três anos depois, Boas viajou para os Estados Unidos
e aproveitou para fazer uma expedição de perspectiva etnográfica ao Noroeste
do Pacífico, entre os índios Kwakiutl, com o objetivo de estudar línguas, crenças,
mitos nativos e conseguir objetos para coleções museológicas. Um intermediário
em campo – George Hunt – com pai inglês e mãe indígena é que mediava o contato
de Boas com os nativos.

NOTA

No final do século XIX, os Inuit diminuíram sua população por causa da alteração
da dieta e das doenças europeias, em consequência do contato constante com os europeus.
Houve um declínio da caça de baleias e aumento da caça de raposas objetivando o comércio
com os fabricantes europeus. Já no século XX, os Inuit se tornaram mais sedentários,
dispersando-se entre outros povos “modernos”. Uma das comunidades mais conhecidas das
Ilhas Baffin é Cape Dorset, que é reconhecida em todo o mundo pelas esculturas em pedra-
sabão, gravuras e desenhos de seus artistas Inuit.

Em 1896 ele trabalhou na curadoria das coleções etnográficas do American


Museum of Natury History, em Nova York, o que lhe permitiu produzir artigos
a fim de expor suas críticas à etnologia cultural na maneira de organização dos
significados de conjuntos culturais.

Para Boas (2004), em primeiro lugar não havia apenas UMA cultura
humana, em evolução linear como propunham os evolucionistas, e sim “culturas”,
no plural. E estas culturas em nada teriam de comportamento animal, como
estabeleciam as ciências naturais.

Em segundo lugar, a classificação unilinear preconcebida era criticada


por ser entendida como arbitrária, em que remete apenas ao ponto de vista do
observador e não está remetida a uma forma derivada do próprio fenômeno.
Dessa maneira, Boas chama (2004) a atenção para o esforço do relativismo cultural
que não pode ser esquecido pelo antropólogo, uma vez que este deve também
relativizar suas noções para identificar os fenômenos culturais dos povos.

Em terceiro lugar, os efeitos diferentes dos produtos culturais não teriam


necessariamente causas diferentes, ou seja, há uma reivindicação boasiana do viés
pluricausal, que enfatiza condicionantes ao invés de determinantes. Desse modo,
estariam em jogo as condições ambientais, condições psicológicas e conexões
históricas do desenvolvimento da cultura, e não uma determinação social sobre a
espécie humana que coloca uns mais avançados que outros.

Dessa maneira, é relevante destacar que Boas critica veementemente o


método de comparação dedutivo dos evolucionistas, mas não a Teoria da evolução
65
UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA

de Herbert Spencer, e consequentemente vai defender o método da indução


empírica no estudo dos fenômenos humanos. Em uma primeira fase, ele se dedicou
a uma abordagem histórica, em relação à distribuição geográfica dos elementos
da cultura. Portanto, o pesquisador deveria investigar os processos pelos quais
os estágios culturais se desenvolveram, partindo da ideia de que os fenômenos
poderiam se desenvolver a partir de fontes diversas, e se houvesse a possibilidade
de comparabilidade do material através de evidências, aí então seria plausível
generalizar enquanto lei que rege o fenômeno.

Assim, a semelhança e classificação do resultado do que é culturalmente


concebido não são para ele um ponto de partida, um fato dado, mas uma meta
a ser explorada arduamente. Para Boas, se deveria relacionar o elemento à sua
totalidade, ou seja, o objeto comporia seu “meio ambiente” tomado como produto
da história de um povo, de modo a compor várias relações com outras produções
da tribo.

Na segunda fase, Boas se interessou pelo modo como o “gênio de um povo”


integrava os elementos da acumulação quase acidental de processos históricos
que se reuniam numa cultura particular. Esses grupos tomavam emprestados
elementos culturais e os adaptavam sobre elementos dominantes da cultura, o que
criaria a cultura com essa adição acidental de diversos elementos individuais e
dava ensejo, então, a uma totalidade espiritual integrada.

Para ele, haveria dinâmicas dos processos culturais em que novos elementos
eram incorporados a um padrão tradicional. Sendo assim, existiriam níveis de
integração dos elementos em conjuntos culturais, de modo a se referenciar por
um padrão tradicional que é expresso em categoriais definidas e universais. Aqui,
há uma preocupação de integração do autor entre os elementos em conjuntos
concebidos como uma integração psicológica, fundada em ideias das relações
dos elementos baseadas em categorias internalizadas inconscientemente e na
integração histórica, de acidentes no contato entre culturas sujeitas a mudanças.

Na Antropologia, Boas se destacou por dar importância ao trabalho de
campo e ao esforço de compreensão da linguagem de outros povos, trazendo um
rigor metodológico (influência do romantismo alemão) e profissionalizando esta
disciplina nos EUA. Ele desenvolveu uma perspectiva antiteórica, em que não
reforçou a ideia da humanidade, sendo esta somente alcançada através de uma
comparação metódica dos processos históricos dos diferentes povos.

Na refutação do determinismo racial, o autor destacou a sua luta pela


igualdade racial e apresentou que as culturas sofrem influência da tradição dos
povos. Ele procurou entender os traços culturais não só como derivados de uma
causalidade, mas como processos históricos únicos (baseados numa ideia de
difusão e modificação), em que a explicação não está baseada necessariamente
na unidade psíquica humana. Dessa maneira, Franz Boas vai criticando as bases
do evolucionismo, e constituindo uma nova forma de pensar, baseada num
particularismo histórico, de perspectiva culturalista, dando ensejo para outros
paradigmas na disciplina de Antropologia.

66
TÓPICO 1 | A CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO ANTROPOLÓGICO

DICAS

Vale a pena a leitura do livro Antropologia Cultural, de Franz


Boas, organizado por Celso de Castro, para aprofundar o
conhecimento da discussão do autor. Ali, artigos do antropólogo
foram traduzidos e podem ser apreciados para se apreender as
contribuições dele no âmbito da disciplina estudada.

FONTE: Disponível em: <https://umapiruetaduaspiruetas.files.


wordpress.com/2010/05/franz-boas-antropologia-cultural.
pdf>. Acesso em: 16 jul. 2016.

2.5 MÉTODO ETNOGRÁFICO E A ESCRITA


FIGURA 12 - MALINOWSKI ENTRE OS NATIVOS

FONTE: Disponível em: <http://antropologiaestudos.blogspot.com.br/


2012_05_01_archive.html>. Acessado em: 31 maio 2016.

67
UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA

Bronislaw Kaspar Malinowski nasceu em Cracóvia, na Polônia, em 1884.


Cursou matemática, física e filosofia na Jagiellonian University, na Polônia. Já na
Alemanha, ele começou a se interessar por estudos da psicologia experimental e
da economia. Seu posicionamento abandonava as inquietações baseadas na busca
de uma origem humana e nas explicações históricas que tanto preocupavam a
tradição de antropologia britânica tayloriana. Esse esgotamento do evolucionismo
seria substituído por uma nova exigência na análise de dados etnográficos
através da imersão nos detalhes de como a ação dos nativos se desenrolava na
contemporaneidade.

Assim, era necessário que o antropólogo buscasse o entendimento e a


explicação de dentro do próprio objeto de estudo. Essa atitude foi uma ruptura
definitiva com os fundamentos tradicionais acadêmicos da disciplina, visto que
Malinowski adotou uma orientação sincrônica – ao invés da perspectiva diacrônica
(evolução no tempo) antes instalada – e a perspectiva da sociologia funcionalista.

NOTA

Aqui, há grande influência dos escritos do sociólogo Émile Durkheim (1858-1917)


para a Année Sociologique como fonte de ideias ao estrutural-funcionalismo, e
mais especificamente do funcionalismo, na questão dos rituais. Junto com Marcel Mauss (1872-
1950), seu sobrinho, eles suscitaram ideias sobre a continuidade do pensamento primitivo e
científico a partir de uma abordagem sobre as classificações da mente humana, em que o
segundo reflete os elementos estudados pelo primeiro. Ou seja, a ideia de reconhecimento
explícito da unidade psíquica da humanidade.

Considerado o pai da antropologia britânica, Malinowski desenvolveu uma


análise por meio do funcionalismo que afirmava: todas as partes de uma cultura
local desempenham um papel de funcionamento com todas as outras partes, e cada
cultura local constituía um mecanismo integrado e complexo, tendo o “homem”
como um organismo adaptado ao seu ambiente físico e coletivo.

Logo, o pesquisador teria que fazer um trabalho de campo intensivo para


apreender todos os detalhes culturais através dos registros nos diários de campo.
No início, esses pareceriam arbitrários e sem sentido – tanto nas práticas da
população local como o modo das pessoas sobreviverem no ambiente local –, mas
com a acumulação de dados etnográficos – devido ao tempo que o pesquisador
permanece ali –, alguns núcleos de sentido viriam à tona, e o antropólogo se
tornaria mediador do significado da sociedade do outro.

Malinowski foi autorizado a realizar o trabalho de campo em áreas da Nova


Guiné, administrada pela Austrália, mesmo durante a Primeira Guerra Mundial.
Entre setembro de 1914 e outubro de 1918, ele passou cerca de 30 meses, em três
viagens separadas da Austrália, concentrando-se nas Ilhas Trobriand e realizando

68
TÓPICO 1 | A CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO ANTROPOLÓGICO

seu trabalho na Nova Guiné. Em 1922, Malinowski publicou os “Argonautas do


Pacífico Ocidental” e ali ele descreve sobre o método, o assunto e escopo, e a
geografia das ilhas Trobriand e sua chegada às ilhas. Sua pesquisa trata das regras
de troca no kula, a construção das canoas, magia e cerimônia.

NOTA

O kula é uma instituição enorme e complexa de troca intertribal de presentes/


objetos que obedecem a leis específicas quanto ao sentido geográfico de suas transações.
Nesse sentido, os artigos trocados não têm apenas uma utilidade prática (Malinowski critica
a interpretação vigente na época sobre economia primitiva), mas trocam objetos que serão
usados em danças cerimoniais e reuniões importantes. Entre as comunidades do kula há um
aspecto moral colocado, em que a equivalência da troca de objetos não pode ser questionada
por quem recebe, e sim por quem dá. Para eles, a generosidade é sinal de riqueza, e não a
acumulação de riquezas, como as joias da rainha da Inglaterra.

Assim, Malinowski (1975) se opôs veementemente ao evolucionismo dos


“antropólogos de gabinete” e criou uma tradição de trabalho de campo com base
no uso da língua nativa através da “observação participante”, esta seria imparcial
e objetiva. Para ele, era necessária a documentação estatística por evidência para
a construção de quadros sinópticos feitos a partir de um levantamento exaustivo
de exemplos detalhados, a fim de considerar os imponderáveis da vida social –
captando a subjetividade – que dão carne e sangue à vida real nativa, preenchendo o
esqueleto das construções abstratas. Mas ainda que a subjetividade do pesquisador
interfira, deveríamos deixar os fatos falarem por si mesmos, conforme destaca o
autor.

Seu método incentiva passagens do trabalho de campo com contato


próximo com informantes durante um longo período de tempo. Resumindo
seus ensinamentos, temos que: a) organização da tribo e anatomia da sua cultura
através do método de documentação concreta e estatística; b) fatos imponderáveis
da vida social, bem como os tipos de comportamento através da metodologia da
observação participante e do diário de campo; e c) corpus inscriptionum a partir de
coleções de asserções como documento da mentalidade nativa. Essas são questões
objetivas: apreender o ponto de vista do nativo, seu relacionamento com a vida,
sua visão de mundo.

Para haver uma base de cientificidade na pesquisa, Malinowski se


preocupava com o “recurso da sinceridade metodológica”, em que o pesquisador
deveria saber a diferença dos dados referentes da observação direta e interpretações
nativas e dos dados que são inferências do pesquisador a partir do seu ponto de
vista. Assim, a importância da etnografia incentivava a tolerância aos costumes
estrangeiros e levava ao esclarecimento dos leitores sobre os propósitos de
costumes diferentes dos seus próprios.

69
UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA

Em 1937, Malinowski partiu de Londres para os Estados Unidos para um


ano intenso na Universidade de Yale, em 1938. Com a eclosão da Segunda Guerra
Mundial, ele estava nos Estados Unidos. Preferiu ficar lá, mas morreu em 1942,
pouco depois de aceitar um cargo permanente na Yale.

DICAS

Indicamos a leitura do livro "Um diário no sentido estrito do termo",


de Bronislaw Malinowski, que apresenta as reflexões diárias de
seu trabalho etnográfico na Nova Guiné, publicado pela primeira
vez em 1967. Essa publicação ocorreu por decisão da esposa,
Valetta Malinowska, após a morte do autor, e causou furor entre os
estudiosos das ciências sociais, porque ali apareciam suas impressões
estereotipadas sobre os nativos.

FONTE: Disponível em: <https://repositorio.ufsc.br/


handle/123456789/1365>. Acesso em: 31 mai. 2016.

2.6 FUNÇÃO, ESTRUTURA E ORGANIZAÇÃO SOCIAL


FIGURA 13 - O PERFIL DE RADCLIFFE-BROWN

FONTE: Disponível em: <https://pensandoaantropologia.wordpress.com/


sobre-os-autores/radcliffe-brown/>. Acesso em: 31 maio 2016.

70
TÓPICO 1 | A CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO ANTROPOLÓGICO

Alfred Reginald Radcliffe-Brown nasceu em Birmingham, na Inglaterra, no


dia 17 de janeiro de 1881. Em 1901 ele entrou para a Universidade de Cambridge
com o objetivo de estudar filosofia, psicologia, economia e as ciências naturais.
Logo depois de concluir o bacharelado, em 1904, ele se inscreveu na Pós-graduação
do Departamento de Antropologia, ainda na mesma universidade. E ali, em 1906,
Radcliffe-Brown participou da expedição nas Ilhas Andam, no Estreito de Torres,
e então seus estudos se consolidaram na Antropologia Britânica.

Baseado numa abordagem “estrutural-funcionalista”, ele se preocupava


mais com o lugar dos indivíduos na ordem social e com a construção dessa ordem
social do que com a ação individual. Seus estudos foram diretamente influenciados
pelas ideias dos precursores evolucionistas e pela analogia entre a vida orgânica e
vida social, fazendo com que aderisse a uma espécie de “sociologia comparada”.
Por um lado, Radcliffe-Brown elogia seus antecessores no que se refere aos
objetivos comparativos, mas rejeita seus métodos conjecturais; por outro, ele rejeita
os objetivos relativistas de seus contemporâneos americanos, mas não discorda
dos métodos de observação e descrição empregados.

O que Radcliffe-Brown propõe como método nas ciências sociais se alinha


na perspectiva comparativa – permeada pelo indutivismo –, visto que para ele
a antropologia deveria descobrir as “leis naturais da sociedade”, entretanto,
ele mesmo não foi muito longe com isso. Para esse antropólogo britânico não
interessavam somente explicações históricas e as origens dos sistemas ou
instituições, como se preocupavam os evolucionistas, e sim os fatos presentes dos
povos, de modo a estudá-los enquanto partes interagindo como uma unidade
composta da vida.

Caberia então aos pesquisadores a observação dos atos de comportamento


desses indivíduos, seus atos de linguagem e os produtos materiais de ações
passadas, seguidas de comparações e classificações dos fenômenos, numa
perspectiva de que a Antropologia Social trata dos estudos da sociedade humana
– tendo como objeto o processo da vida social.

O que difere da proposição de Boas dos EUA sobre a observação da


“cultura” dos povos ou mesmo de que elabora uma teoria científica da cultura,
esses focos de investigação são considerados por Radcliffe-Brown abstratos para
definir a realidade concreta. Ele prefere a perspectiva dos fenômenos sociais –
que pretende o estudo da sociedade humana – e se preocupa com as formas de
associação entre os indivíduos para apreender essa rede de relações existentes
que denotam características gerais das estruturas sociais, sendo esse estudo
fundamental para seu trabalho ter status científico.

71
UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA

NOTA

Segundo Radcliffe-Brown (1973), a estrutura social pode ser apreendida através


das observações reais para que, na sequência, o antropólogo possa formular generalizações da
forma estrutural, ou seja, produzir suas inferências sobre a sociedade.

O seu método antropológico se assemelha aos métodos usados nas


Ciências Físicas ou Biológicas, entretanto, Radcliffe-Brown destaca dois pontos em
que o estudo da vida social não pode ser comparado ao estudo da vida orgânica:
quando se pretende estudar a estrutura social independente do seu funcionamento
e quando se entende que sociedade muda seu tipo de estrutura ao longo dos anos,
diferente do animal, que não modifica sua estrutura ao longo da vida.

Entre 1906 e 1908, Radciffe-Brown realizou trabalho de campo nas Ilhas


Andaman, na Índia, imaginando que essa sociedade representasse o nível mais
primitivo da vida humana por causa da baixa estatura dos pigmeus. Apesar dos
esforços, ele nunca desenvolveu com facilidade a língua andamanesa, e a maioria
dos dados foi coletada por meio de um intérprete de língua hindi. Ali, o antropólogo
explicou os rituais em termos de suas funções sociais.

Entre 1910 e 1912, ele realizou trabalho de campo entre os aborígines na


Austrália Ocidental, com o objetivo de analisar, a partir da perspectiva estrutural-
funcionalista, o parentesco, o mito, o totemismo, no contexto de organização
social. E depois, como professor de Antropologia, pôde viajar ao redor do mundo
pela Inglaterra, África do Sul, China, Brasil e Egito. Desse modo, Radcliffe-Brown
compilou fatos do presente entre os povos estudados a fim de conectá-los através
do estudo da sociedade como unidade composta de vida, de modo a comparar a
estrutura social de uma sociedade com outra, e chegar a uma forma estrutural da
sociedade.

Assim, ele considerou a perspectiva da função como hipótese de trabalho,


ou seja, ele partiu de um esquema articulado a partir da função relacionada
ao processo e a estrutura para interpretar os sistemas sociais humanos. Este
direcionamento da investigação não se propõe a uma afirmação dogmática de
que tudo TEM uma função, mas que pode ter uma função, sendo que um mesmo
costume social, em sociedades distintas, pode ter funções diferenciadas.

Radcliffe-Brown entende que a antropologia social deve abranger a


totalidade da vida social de um povo, considerando relações diversas que levam
ao estudo do indivíduo e da sua adaptação à vida social. Para ele, a perspectiva
histórica pode ser complementar à hipótese funcional, uma vez que os acidentes
históricos também conduzem ao processo da vida social. Entretanto, ele vê com
maus olhos a ideia da difusão dos traços culturais, como se a cultura fosse um

72
TÓPICO 1 | A CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO ANTROPOLÓGICO

acumulado de relações acidentais entre os povos e não houvesse uma unidade


funcional dos sistemas sociais.

Assim, somente a observação direta dos povos apresenta uma rede


complexa de relações sociais, o que faz com que o autor vincule essas ideias da
hipótese funcional à noção de estrutura social, questão que vamos analisar no
momento. Numa aproximação com os precursores evolucionistas, Radcliffe-Brown
também objetiva a descoberta das características gerais das estruturas sociais, mas
aqui as unidades componentes são os seres humanos, que têm uma dada posição
social nesta estrutura. Trata-se de apreender certa constância da estrutura social
que permite entender sua continuidade através do tempo.

As críticas mais ferrenhas em relação ao trabalho de Radcliffe-Brown se


referem às ideias do todo conexo proposto pelo funcionalismo, de que a vida
social se organiza numa coerência funcional entre diversos elementos, de modo a
manter sua estrutura social em equilíbrio, numa continuidade que reitera. Nesse
sentido, Radcliffe Brown pensava que podia haver mudanças na forma estrutural,
mas havia certa permanência da estrutura, o que vai chocar com perspectivas mais
recentes, que querem justamente trabalhar com a ideia do conflito na sociedade,
e na perspectiva de Radcliffe-Brown esse conflito estaria colocado de maneira
funcional na estrutura social.

Esse autor se dedica aos estudos das abordagens clássicas, como a


terminologia do totemismo e a questão do parentesco, com o objetivo de entender
teoricamente a sua função relacionada ao todo da sociedade. Essa relação fica
explícita nos costumes ritualísticos e cerimoniais, que mantêm esses valores nas
sociedades primitivas. Dessa maneira, ele conclui que a função do casamento seria
fixar a posição social dos filhos do matrimônio, e assim se adota um padrão de
comportamento com seus parentes.

DICAS

Indicamos a leitura do livro "Estrutura e Função na Sociedade Primitiva",


de Radcliffe-Brown, que apresenta ensaios reunidos de diferentes
épocas escritos pelo autor e que dão a dimensão do seu argumento
teórico a partir das sociedades primitivas.

Disponível em: <http://docslide.com.br/documents/estrutura-e-


funcao-na-sociedade-primitiva-radcliffe-brownpdf-55ef44e6c8876.
html>. Acessado em: 16 jul. 2016.

73
UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA

LEITURA COMPLEMENTAR

Por que ler os clássicos

Ítalo Calvino

Comecemos com algumas propostas de definição.

Os clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer: "Estou
relendo..." e nunca "Estou lendo...".

Isso acontece pelo menos com aquelas pessoas que se consideram "grandes
leitores"; não vale para a juventude, idade em que o encontro com o mundo e com
os clássicos como parte do mundo vale exatamente enquanto primeiro encontro.

O prefixo reiterativo antes do verbo ler pode ser uma pequena hipocrisia
por parte dos que se envergonham de admitir não ter lido um livro famoso. Para
tranquilizá-los, bastará observar que, por maiores que possam ser as leituras "de
formação" de um indivíduo, resta sempre um número enorme de obras que ele não
leu. Quem leu tudo de Heródoto e de Tucídides levante a mão. E de Saint-Simon? E
do cardeal de Retz? E também os grandes ciclos romanescos do Oitocentos são mais
citados do que lidos. Na França, se começa a ler Balzac na escola, e pelo número de
edições em circulação, se diria que continuam a lê-lo mesmo depois. Mas na Itália,
se fosse feita uma pesquisa, temo que Balzac apareceria nos últimos lugares. Os
apaixonados por Dickens na Itália constituem uma restrita elite de pessoas que,
quando se encontram, logo começam a falar de episódios e personagens como se
fossem de amigos comuns. Faz alguns anos, Michel Butor, lecionando nos Estados
Unidos, cansado de ouvir perguntas sobre Emile Zola, que jamais lera, decidiu ler
todo o ciclo dos Rougon-Macquart. Descobriu que era totalmente diverso do que
pensava: uma fabulosa genealogia mitológica e cosmogônica, que descreveu num
belíssimo ensaio. Isso confirma que ler pela primeira vez um grande livro na idade
madura é um prazer extraordinário: diferente (mas não se pode dizer maior ou
menor) se comparado a uma leitura da juventude. A juventude comunica ao ato de
ler como a qualquer outra experiência um sabor e uma importância particulares; ao
passo que na maturidade apreciam-se (deveriam ser apreciados) muitos detalhes,
níveis e significados a mais. Podemos tentar então esta outra fórmula de definição:

— Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para


quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menor para quem
se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores condições para apreciá-
los.

De fato, as leituras da juventude podem ser pouco profícuas pela


impaciência, distração, inexperiência das instruções para o uso, inexperiência
da vida. Podem ser (talvez ao mesmo tempo) formativas no sentido de que dão
uma forma às experiências futuras, fornecendo modelos, recipientes, termos de

74
TÓPICO 1 | A CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO ANTROPOLÓGICO

comparação, esquemas de classificação, escalas de valores, paradigmas de beleza:


todas, coisas que continuam a valer mesmo que nos recordemos pouco ou nada
do livro lido na juventude. Relendo o livro na idade madura, acontece reencontrar
aquelas constantes que já fazem parte de nossos mecanismos interiores e cuja
origem havíamos esquecido. Existe uma força particular da obra que consegue
fazer-se esquecer enquanto tal, mas que deixa sua semente. A definição que dela
podemos dar então será:

— Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se


impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória,
mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual.

Por isso, deveria existir um tempo na vida adulta dedicado a revisitar as


leituras mais importantes da juventude. Se os livros permaneceram os mesmos
(mas também eles mudam, à luz de uma perspectiva histórica diferente), nós, com
certeza, mudamos, e o encontro é um acontecimento totalmente novo. Portanto,
usar o verbo ler ou o verbo reler não tem muita importância. De fato, poderíamos
dizer:

— Toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a


primeira.
— Toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura.
A definição 4 pode ser considerada corolário desta:
— Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha
para dizer.
Ao passo que a definição 5 remete para uma formulação mais explicativa,
como:
— Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo as marcas
das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura
ou nas culturas que atravessaram (ou, mais simplesmente, na linguagem ou nos
costumes).

Isso vale tanto para os clássicos antigos quanto para os modernos. Se


leio a Odisseia, leio o texto de Homero, mas não posso esquecer tudo aquilo que
as aventuras de Ulisses passaram a significar durante os séculos e não posso
deixar de perguntar-me se tais significados estavam implícitos no texto ou se
são incrustações, deformações ou dilatações. Lendo Kafka, não posso deixar de
comprovar ou de rechaçar a legitimidade do adjetivo kafkiano, que costumamos
ouvir a cada 15 minutos, aplicado dentro e fora de contexto. Se leio Pais e filhos,
de Turgueniev, ou Os possuídos, de Dostoievski, não posso deixar de pensar em
como essas personagens continuaram a reencarnar-se até nossos dias.

A leitura de um clássico deve oferecer-nos alguma surpresa em relação à


imagem que dele tínhamos. Por isso, nunca será demais recomendar a leitura direta
dos textos originais, evitando a mais possível bibliografia crítica, comentários,
interpretações. A escola e a universidade deveriam servir para fazer entender que
nenhum livro que fala de outro livro diz mais sobre o livro em questão; mas fazem
de tudo para que se acredite no contrário. Existe uma inversão de valores muito
75
UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA

difundida segundo a qual a introdução, o instrumental crítico e a bibliografia são


usados como cortina de fumaça para esconder aquilo que o texto tem a dizer e que
só pode dizer se o deixarmos falar sem intermediários que pretendam saber mais
do que ele. Podemos concluir que:

— Um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de


discursos críticos sobre si, mas continuamente as repele para longe.

O clássico não necessariamente nos ensina algo que não sabíamos; às vezes
descobrimos nele algo que sempre soubéramos (ou acreditávamos em saber), mas
desconhecíamos que ele o dissera primeiro (ou que de algum modo se liga a ele de
maneira particular). E mesmo esta é uma surpresa que dá muita satisfação, como
sempre dá a descoberta de uma origem, de uma relação, de uma pertinência. De
tudo isso poderíamos derivar uma definição do tipo:

— Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir
dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos.

Naturalmente, isso ocorre quando um clássico "funciona" como tal, isto é,


estabelece uma relação pessoal com quem o lê. Se a centelha não se dá, nada feito:
os clássicos não são lidos por dever ou por respeito, mas só por amor. Exceto na
escola: a escola deve fazer com que você conheça bem ou mal um certo número de
clássicos, dentre os quais (ou em relação aos quais) você poderá depois reconhecer
os "seus" clássicos. A escola é obrigada a dar-lhe instrumentos para efetuar uma
opção: mas as escolhas que contam são aquelas que ocorrem fora e depois de cada
escola.

É só nas leituras desinteressadas que pode acontecer deparar-se com aquele


que se torna o "seu" livro. Conheço um excelente historiador da arte, homem de
inúmeras leituras e que, dentre todos os livros, concentrou sua preferência mais
profunda no Documentos de Pickwick, e a propósito de tudo cita passagens
provocantes do livro de Dickens e associa cada fato da vida com episódios
pickwickianos. Pouco a pouco, ele próprio, o universo e a verdadeira filosofia
tomaram a forma do Documento de Pickwick, numa identificação absoluta. Por
esta via, chegamos a uma ideia de clássico muito elevada e exigente:

— Chama-se de clássico um livro que se configura como equivalente do


universo, à semelhança dos antigos talismãs.

Com esta definição nos aproximamos da ideia de livro total, como sonhava
Mallarmé. Mas um clássico pode estabelecer uma relação igualmente forte de
oposição, de antítese. Tudo aquilo que Jean-Jacques Rousseau pensa e faz me
agrada, mas tudo me inspira um irresistível desejo de contradizê-lo, de criticá-lo,
de brigar com ele. Aí pesa a sua antipatia particular num plano temperamental,
mas por isso seria melhor que o deixasse de lado; contudo não posso deixar de
incluí-lo entre os meus autores. Direi, portanto:

76
TÓPICO 1 | A CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO ANTROPOLÓGICO

— O "seu" clássico é aquele que não pode ser-lhe indiferente e que serve
para definir a você próprio em relação e talvez em contraste com ele.

Creio não ter necessidade de justificar-me se uso o termo clássico sem fazer
distinções de antiguidade, de estilo, de autoridade. (Para a história de todas essas
acepções do termo, consulte-se o exaustivo verbete "Clássico", de Franco Fortini,
na Enciclopédia Einaudi, vol. III). Aquilo que distingue o clássico no discurso
que estou fazendo talvez seja só um efeito de ressonância que vale tanto para
uma obra antiga quanto para uma moderna, mas já com um lugar próprio numa
continuidade cultural. Poderíamos dizer:

— Um clássico é um livro que vem antes de outros clássicos; mas quem leu
antes os outros e depois lê aquele, reconhece logo o seu lugar na genealogia.

A esta altura, não posso mais adiar o problema decisivo de como relacionar
a leitura dos clássicos com todas as outras leituras que não sejam clássicas.
Problema que se articula com perguntas como: "Por que ler os clássicos em vez de
concentrar-nos em leituras que nos façam entender mais a fundo o nosso tempo?"
e "Onde encontrar o tempo e a comodidade da mente para ler clássicos, esmagados
que somos pela avalanche de papel impresso da atualidade?" É claro que se pode
formular a hipótese de uma pessoa feliz que dedique o "tempo-leitura" de seus dias
exclusivamente a ler Lucrécio, Luciano, Montaigne, Erasmo, Quevedo, Marlowe,
o Discours de la méthode, Wilhelm Meister, Coleridge, Ruskin, Proust e Valéry,
com algumas divagações para Murasaki ou para as sagas islandesas. Tudo isso
sem ter de fazer resenhas do último livro lançado nem publicações para o concurso
de cátedra e nem trabalhos editoriais sob contrato com prazos impossíveis. Essa
pessoa bem-aventurada, para manter sua dieta sem nenhuma contaminação,
deveria abster-se de ler os jornais, não se deixar tentar nunca pelo último romance
nem pela última pesquisa sociológica. Seria preciso verificar quanto um rigor
semelhante poderia ser justo e profícuo. O dia de hoje pode ser banal e mortificante,
mas é sempre um ponto em que nos situamos para olhar para a frente ou para
trás. Para poder ler os clássicos, temos de definir "de onde" eles estão sendo lidos,
caso contrário tanto o livro quanto o leitor se perdem numa nuvem atemporal.
Assim, o rendimento máximo da leitura dos clássicos advém para aquele que sabe
alterná-la com a leitura de atualidades, numa sábia dosagem. E isso não presume
necessariamente uma equilibrada calma interior: pode ser também o fruto de um
nervosismo impaciente, de uma insatisfação trepidante.

Talvez o ideal fosse captar a atualidade como o rumor do lado de fora da


janela, que nos adverte dos engarrafamentos do trânsito e das mudanças do tempo,
enquanto acompanhamos o discurso dos clássicos, que soa claro e articulado no
interior da casa. Mas já é suficiente que a maioria perceba a presença dos clássicos
como um reboar distante, fora do espaço invadido pelas atualidades, como pela
televisão a todo volume. Acrescentemos então:

— É clássico aquilo que tende a relegar as atualidades à posição de barulho


de fundo, mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse barulho de fundo.

77
UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA

— É clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a


atualidade mais incompatível.

Resta o fato de que ler os clássicos parece estar em contradição com nosso
ritmo de vida, que não conhece os tempos longos, o respiro do otium humanista;
e também em contradição com o ecletismo da nossa cultura, que jamais saberia
redigir um catálogo do classicismo que nos interessa.

Eram as condições que se realizavam plenamente para Leopardi, dada a sua


vida no solar paterno, o culto da antiguidade grega e latina e a formidável biblioteca
doada pelo pai Monaldo, incluindo a literatura italiana completa, mais a francesa,
com exclusão dos romances e em geral das novidades editoriais, relegadas no
máximo a um papel secundário, para conforto da irmã ("o teu Stendhal", escrevia
a Paolina). Mesmo suas enormes curiosidades científicas e históricas, Giacomo as
satisfazia com textos que não eram nunca demasiado up-to-date: os costumes dos
pássaros de Buffon, as múmias de Federico Ruysch em Fontenelle, a viagem de
Colombo em Robertson. Hoje, uma educação clássica como a do jovem Leopardi é
impensável, e sobretudo a biblioteca do conde Monaldo explodiu.

Os velhos títulos foram dizimados, mas os novos se multiplicaram,


proliferando em todas as literaturas e culturas modernas. Só nos resta inventar
para cada um de nós uma biblioteca ideal de nossos clássicos; e diria que ela
deveria incluir uma metade de livros que já lemos e que contaram para nós, e outra
de livros que pretendemos ler e pressupomos possam vir a contar. Separando uma
seção a ser preenchida pelas surpresas, as descobertas ocasionais.

Verifico que Leopardi é o único nome da literatura italiana que citei. Efeito
da explosão da biblioteca. Agora deveria reescrever todo o artigo, deixando bem
claro que os clássicos servem para entender quem somos e aonde chegamos, e
por isso os italianos são indispensáveis, justamente para serem confrontados
com os estrangeiros, e os estrangeiros são indispensáveis exatamente para serem
confrontados com os italianos. Depois deveria reescrevê-lo ainda uma vez para
que não se pense que os clássicos devem ser lidos porque "servem" para qualquer
coisa. A única razão que se pode apresentar é que ler os clássicos é melhor do que
não ler os clássicos.

E se alguém objetar que não vale a pena tanto esforço, citarei Cioran (não
um clássico, pelo menos por enquanto, mas um pensador contemporâneo que só
agora começa a ser traduzido na Itália): "Enquanto era preparada a cicuta, Sócrates
estava aprendendo uma ária com a flauta. "Para que lhe servirá?", perguntaram-
lhe. "Para aprender esta ária antes de morrer".

FONTE: Adaptado. CALVINO, Itálo. Por que ler os clássicos. Companhia das Letras, 1993.
Disponível em: <http://www.alfredo-braga.pro.br/discussoes/classicos.html>. Acesso em: 3 jun.
2016.

78
RESUMO DO TÓPICO 1
Nesse tópico você viu que:

• Para se constituir como ciência, a Antropologia se baseou nas teorias das Ciências
Naturais.

• A busca por leis gerais da sociedade foi uma preocupação inicial da Antropologia.

• A teoria evolucionista influenciou uma visão linear das sociedades, da primitiva


à civilização.

• A definição do conceito de cultura foi se complexificando ao longo do tempo.

• Cada vez mais os antropólogos saíram dos escritórios e foram a campo, fazer
etnografia.

79
AUTOATIVIDADE

1 A emergência da Antropologia como ciência foi processual


e definida de acordo com a circunscrição de seu objeto de
estudo, sua metodologia e os conceitos-chave. Nesse sentido,
inicialmente baseada na produção científica das Ciências
Naturais, a Antropologia se aproximou dessas disciplinas
para aos poucos se diferenciar, criando suas próprias
teorias e metodologias. Logo, disserte sobre as teorias que
influenciaram a Antropologia e como se deu o diálogo entre
essas disciplinas.

2 Cada vez mais a ideia de realizar o trabalho de campo entre os nativos é


reificada na Antropologia. Bronislaw Malinowski foi o pioneiro nessa
metodologia de forma mais metódica, passando temporadas entre eles
e vivenciando o cotidiano junto aos nativos. A partir de seus estudos,
comente sobre o aporte metodológico da Antropologia e o que permite essa
metodologia em relação a outras ciências.

3 Visite um local diferente do seu cotidiano. Pode ser uma igreja, um mercado,
um parque, um serviço de saúde. Passe ali um turno observando tudo o que
acontece, podendo interagir com o ambiente e as pessoas. Depois, em casa,
produza um diário de campo sobre essa experiência, detalhando os seus
estranhamentos e percepções das situações vistas, fazendo comentários e
trazendo as descrições do que viu, ouviu e sentiu em campo. Essa atividade
fará com que você vivencie por um momento a experiência do trabalho
de campo, de modo a se aproximar das metodologias utilizadas pelos
antropólogos.

80
UNIDADE 2 TÓPICO 2

PERSPECTIVAS CLÁSSICAS DA TEORIA


ANTROPOLÓGICA

1 INTRODUÇÃO
Depois de conhecer o panorama geral da emergência da Antropologia
como ciência, vamos nos aprofundar em cada escola que se apropriou dessa
disciplina a fim de avançar em relação às suas teorias e suas metodologias. Essa
divisão geográfica e temporal permitirá que se dê conta das especificidades de
estudos antropológicos, e se conheça a possibilidade de reflexão a partir dessa
matéria. Vamos lá então, acadêmico?

2 A ESCOLA FRANCESA

Baseado na herança da tradição intelectualista franco-germânica, Émile


Durkheim (1858-1917) propôs a criação de uma nova matéria, de caráter científico,
intitulada sociologia. Ou seja, o estudo da sociedade a partir do que é o próprio ser
humano e suas relações sociais. Esta disciplina também formulava as bases para
a antropologia, especificando o estudo do homem, na Escola Francesa. De forma
rigorosa, o sociólogo define métodos e aplicações da nova ciência com o objetivo
de colocá-la no mesmo patamar de outras áreas do conhecimento, e a antropologia
aprofunda esses princípios de acordo com sua especificidade, numa perspectiva
mais microssocial.

81
UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA

2.1 REPRESENTAÇÕES COLETIVAS E FORMAS PRIMITIVAS DE


CLASSIFICAÇÃO
FIGURA 14 - RITUAIS PRIMITIVOS

FONTE: Disponível em: <http://nepo.com.br/2014/11/25/religiosidade-primitiva


-e-o-pensamento-fundamentalista/>. Acesso em: 6 jun. 2016.

Émile Durkheim é considerado fundador da Antropologia Francesa e da


Sociologia Moderna, tendo sido influenciado pelas ideias de Auguste Comte e
Herbert Spencer. O último já foi apresentado, mas Auguste Comte não. Este foi um
filósofo e matemático francês, nascido em 1798. Suas ideias, de cunho positivista,
reforçavam a teoria do darwinismo social, em que seriam naturais a evolução e o
avanço da sociedade de um estágio inferior para outro superior, garantindo a vida
dos grupos de indivíduos mais evoluídos. Essa visão influenciou os estudos dos
fenômenos sociais.

Durkheim fez uso dessas ideias e tentou resolver a questão da categoria


do entendimento humano através da perspectiva do sujeito, e então elaborou
os limites entre a filosofia e a sociologia/antropologia. Ele ressaltou que essas
categorias não são inatas, mas construídas socialmente, visto que se concebe as
categorias de entendimento como “representações coletivas” apreendidas na
socialização dos sujeitos. Este sujeito durkheimiano é coerente, homogêneo e
conhece objetivamente os fenômenos sociais em suas formas universais e imutáveis
a partir dessas categorias de entendimento socializantes; assim, Durkheim espera
resolver alguns problemas antigos da filosofia e fundar a nova disciplina.

Para ele, as “representações coletivas”, de caráter autônomo e vinculadas


ao inconsciente do indivíduo que as possui, são configurações específicas
estabelecidas a partir das mesmas categorias para todos, em que o homem – como

82
TÓPICO 2 | PERSPECTIVAS CLÁSSICAS DA TEORIA ANTROPOLÓGICA

ser social – pensa sua experiência através de conceitos. Por conseguinte, sendo
possível o estudo dessas representações, a ciência sociológica pretende acessá-
las através de fenômenos por meio dos quais o grupo representa as suas práticas
sociais no mundo, como, por exemplo, os ritos e os símbolos. A fim de alcançar
o conhecimento das outras sociedades, o autor se vale do método comparativo
cartesiano para a análise das diferentes “representações coletivas” existentes, e
assim, diferencia esta disciplina da Psicologia que, para Durkheim, tinha como
objeto de estudo as “representações individuais”.

DICAS

Para compreender o que é Sociologia, temos de diferenciá-la da Filosofia e também


da Psicologia, por isso se recomenda o estudo dessas diferenciações. Um dos links possíveis
para esse estudo é <http://www.cafecomsociologia.com/2013/01/o-que-e-sociologia.html>.

Portanto, o objeto de estudo da sociologia durkheimiana passa a ser os


“fatos sociais” – que, em conjunto, são entendidos como um sistema permeado
por “representações coletivas” –, caracterizados como coercitivos, exteriores
aos indivíduos e gerais, sendo eles tratados como ‘coisas’. Nesta perspectiva, a
dimensão histórica perde lugar para a abstração do tempo, de forma tal que a
sociedade apresenta seu modelo de apreensão do mundo a partir do consciente
coletivo (normas e valores). Para Durkheim, a manutenção da ordem social é
referenciada pelo sentimento de solidariedade entre os indivíduos, sendo esta
sociedade não resumida ao agrupamento das partes, mas há nela algo que seria
“transcendente” e constrangeria coletivamente suas maneiras de pensar e as
relações sociais.

Essa certa consciência social poderia ser mantida nos ritos – como
agenciando “representações coletivas” –, que seriam atualizados e reafirmados na
sociedade em questão ao mesmo tempo em que a ação social realizada perpassaria
o indivíduo e reforçaria o “todo”. Assim, a eficácia do rito mantém (cria e recria)
a materialidade da sociedade por meio da conexão do indivíduo ao seu coletivo
por esse “fato social” que é exterior aos sujeitos; logo, conhecer os símbolos
dessas representações torna possível mensurá-los, e assim, formular hipóteses e
explicações sociais.

Marcel Mauss (1872-1950) é seguidor das ideias de Durkheim, aprofunda


sua reflexão teórica no sentido de tentar trazer, através do método comparativo,
semelhanças estruturais entre as práticas presentes na sociedade contemporânea
e todas as sociedades existentes na história. A partir do conceito de “fato social
total”, este autor deseja estudar as práticas disponíveis na sociedade que remetam
à sua totalidade, de modo que tudo o que acontece nesta sociedade é válido para
formular sua compreensão.

83
UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA

Marcel Mauss nasceu em Epinal, na França. Ele era sobrinho de Émile


Durkheim e participou das principais discussões sociológicas da época. Mauss
teve um papel importante como fundador do jornal L’Humanité, foi militante do
Partido Socialista e foi bastante ativo durante os debates mais radicais. Ele estudou
história, dedicou-se à sociologia das religiões e posteriormente a linguística através
do estudo do sânscrito. Em 1898 ele assumiu a cadeira de Religiões Indianas
na seção dos estudos religiosos da Ecole Pratique des Hautes Etudes e em 1902 foi
nomeado diretor de estudos das religiões primitivas dessa mesma instituição.

Para Mauss, os fatos estão carregados de significações simbólicas – conforme


expõe Durkheim (1989) ao se remeter às obrigações sociais –, no entanto podem
compor novas configurações a partir de invariantes de um modelo inacabado, no
qual o social só emerge como sistema integrado quando está atrelado à experiência
individual. Mais preocupado com o todo do que com as partes, Mauss estuda as
trocas sociais enquanto “fatos sociais totais”, como perpassadas por uma série de
atividades heterogêneas e institucionalizadas, realizando, assim, um estudo da
sociedade enquanto sistemas morais em que há uma flexibilização possível.

A partir da teoria dos ritos como estruturantes da vida social de Durkheim,


Mauss (1974) propõe a Teoria Geral da Magia, na qual os ritos seriam como “ritos
mágicos” – diferente dos ritos religiosos, dispostos num culto organizado –, com
ações definidoras de outros elementos dessa magia, de modo que o pensamento
mágico agiria como “representação coletiva” apropriado individualmente pela
tradição, e, assim, seria reforçado pelo social.

Na compilação de “Ensaio sobre a dádiva” (1924), Mauss estuda a
reciprocidade entre os homens como atributo humano a fim de conceber as relações
sociais pautadas nas trocas. A partir do potlach – forma de troca ‘mais evoluída’ –,
entende que a dádiva está relacionada ao “sistema de prestações totais”, sendo
elas desinteressadas e obrigatórias, com a consequência de que havendo uma
instabilidade hierárquica entre diferentes chefes tribais, essa prática de dons e
contradons estimula tanto a manutenção (ou não) dos laços sociais, como o fato
de que a aceitação de um compromisso dignifica e prestigia aquele que expõe suas
riquezas.

84
TÓPICO 2 | PERSPECTIVAS CLÁSSICAS DA TEORIA ANTROPOLÓGICA

FIGURA 15 - FESTAS RITUAIS E TROCAS SOCIAIS BASEADAS NO POTLACH

FONTE: Disponível em: <http://www.donsmaps.com/


potlatch.html>. Acesso em: 6 jun. 2016.

Por conseguinte, Mauss (1974) propaga três obrigações totais desse sistema
de prestação: (1) obrigação de dar, em que se deve oferecer a outros clãs coisas
para mostrar que se é favorecido pelos espíritos e por riquezas, e então coloca o
donatário em relação de dívida estabelecendo um vínculo jurídico; (2) obrigação
de receber, em que se deve aceitar o compromisso, e não agir dessa maneira seria
recusar a aliança e a comunhão; e (3) a obrigação de retribuir, de dar de volta o
"hau" da coisa dada, de maneira a colocar-se em constante troca com quem deu
algo.

Para Mauss (1974), há na “coisa dada” uma virtude produtora que explicita
a personalidade do clã daquele que deu a “coisa”, forçando as dádivas a circularem
entre as sociedades. Entretanto, o autor chega a esta explicação a partir da
conclusão nativa sobre o “hau”, de que um indivíduo dá o objeto a outrem, sendo
esse transferido para uma terceira pessoa, o último deve devolver este “espírito da
coisa dada” através de algo de maior valor simbólico, até que se chegue ao primeiro
doador, estabelecendo entre eles um “vínculo das almas” numa constante troca,
que fundaria a reciprocidade.

Enquanto Mauss pensava que a observação empírica do fato social seria


suficiente para apreender a realidade em sua totalidade, Levi-Strauss (1974)
entendia o observador como sendo da mesma natureza do seu objeto, logo, deveria
considerar-se parte da observação – não haveria dicotomia rígida entre o sujeito
e o fato social –, e que a vivência do fato como indígena lhe daria a consciência da
diferença entre a sua teoria e a teoria indígena, o que não foi feito pelo autor do
“Ensaio sobre a dádiva”. Consequentemente, para Levi-Strauss (1974), Mauss só
replicaria o que diz o nativo, e destacaria a lógica ordenadora da dádiva conforme
buscava, porém não construiria uma interpretação antropológica do pensamento
humano.
85
UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA

DICAS

Para conhecer mais sobre o trabalho de Marcel


Mauss, é possível ver o documentário "Marcel
Mauss segundo suas alunas", produzido pelo
NAVI/UFSC, que está disponibilizado na internet
em partes. O link é <https://www.youtube.com/
watch?v=4_bsGMv1Ns8>.

2.2 PENSAMENTO SELVAGEM E ESTRUTURALISMO

FIGURA 16 - O PERFIL DE LÉVI-STRAUSS APÓS ENTREVISTA

FONTE: Disponível em: <http://www.substantivoplural.com.br/


a-logica-do-sensivel/>. Acesso em: 6 jun. 2016.

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TÓPICO 2 | PERSPECTIVAS CLÁSSICAS DA TEORIA ANTROPOLÓGICA

Claude Lévi-Strauss (1908-2009) nasceu em Bruxelas e estudou filosofia.


Passou um período de ensino na França e em 1935 veio para o Brasil, sendo
nomeado como professor na Universidade de São Paulo. Aqui ele realizou diversas
expedições nos territórios indígenas.

Em 1940 voltou para a França, mas por causa da II Guerra Mundial foi para
Nova York e assumiu uma cátedra na School of Higher Studies. Somente em 1948
conseguiu voltar para a França, onde defendeu sua tese “Les structures élémentaires
de la parenté” e “La vie familiale et sociale des Indiens Nambikwara”. Em 1950, Lévi-
Strauss sucedeu Maurice Leenhardt (1878-1954) na Ecole Pratique des Hautes Etudes
e em 1958 foi eleito para o Collège de France, ficando ali até 1983, até se aposentar.

Lévi-Strauss aprofundou os estudos na Escola Francesa e tornou-se o


fundador da Antropologia Estrutural. De maneira tal que se passa a realizar uma
análise das estruturas da mente humana, e não das representações sociais (como
propagava Durkheim) ou das relações sociais (como desejava Mauss). Tendo o
pensamento humano como objeto antropológico, Lévi-Strauss foi fundador da
Antropologia Estrutural na França.

Nesse sentido, Lévi-Strauss afastou-se do estudo dos fenômenos conscientes


para acessar estruturas do inconsciente, com a consequência de que a palavra (ou
um átomo básico social, no caso do estudo do parentesco) não mais seria tratada
como unidade independente, mas sim, em termos de suas relações entre si por
meio de operadores binários refletindo as leis do inconsciente. Essa afirmação de
Lévi-Strauss daria ensejo para o estabelecimento de leis gerais do pensamento
humano – tanto para os ditos “selvagens” como para as sociedades “modernas”
–retomando a discussão do clássico, que já vimos anteriormente.

Para ele, a estrutura social é composta por modelos de pensamento que


permitem fazer classificações sociais, como nos sistemas totêmicos, em que
os símbolos relacionados a animais e plantas são referenciados à ação social,
de maneira que esses signos são inconscientemente apreendidos e, apesar de
permitir transformações, e inovações para se complexificar, são limitados por
suas combinações nas estruturas. Em outras palavras, para Lévi-Strauss, como se
trata de um pensamento baseado numa lógica racional, as relações entre símbolos
inconscientemente apreendidos são complexas, porque são recombinadas de
diferentes maneiras. No entanto, mesmo assim esse autor apresenta essa estrutura
de certa forma como sendo estática, em que ela só se renova em suas relações e não
em seus conteúdos.

Este antropólogo apresenta uma estrutura rígida e imutável, em que


apenas no plano lógico é que surgem combinações entre simbolismos para
articular a ação social. Lévi-Strauss se interessa pela análise do funcionamento do
intelecto, no qual o modelo agenciado informa sobre fenômenos socioculturais e
os mecanismos da mente. Diferente de Mauss, Lévi-Strauss considera as relações
sociais como matéria-prima para a formulação dos modelos referidos da estrutura
social, consequentemente os símbolos e signos são os meios para a comunicação
entre os indivíduos.
87
UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA

Segundo Lévi-Strauss (1975), o inconsciente é vazio de imagens, porém,


através da sua estrutura, a função simbólica é de impor leis estruturais por meio
da atividade inconsciente do espírito, impondo formas a um conteúdo. Por
conseguinte, para este autor teríamos o produto social como sistema simbólico, e
o antropólogo deveria se esforçar em dar uma explicação nativa baseada em uma
explicação antropológica.

Por isso, como afirma Lévi-Strauss (1975) na pergunta dessa questão – e


explicitamos neste ensaio –, a Escola Francesa passa da análise do conjunto de
“representações sociais” permeadas por ritos e símbolos, exterior ao indivíduo,
que Durkheim espera agrupar fazendo uma sociologia do simbólico, para uma
compreensão maussiana em que as relações sociais enquanto simbólicas agiriam,
dessa maneira, no laço social entre os sujeitos. Entretanto, Lévi-Strauss se apropria
dessas questões para ir além e procurar a origem desse simbólico “dentro” do
indivíduo, uma vez que os símbolos são formas agenciadas nas estruturas do
inconsciente do pensamento humano, configurando assim um “novo” objeto para
o estudo antropológico.

DICAS

Indicamos o documentário "Claude Lévi-Strauss:


Saudade do Brasil", produzido em 2005 pela TV Senado,
que reconstitui a experiência do antropólogo no país
e problematiza suas questões teóricas. Está disponível
em: <https://youtu.be/i32Mf_eeYJg>.

Afastou-se do estudo dos fenômenos conscientes para acessar estruturas


do inconsciente, de modo que a palavra (ou um átomo básico social, no caso do
estudo do parentesco) não mais seria tratada como unidade independente, mas
em termos de suas relações entre si. Essa afirmativa de Lévi-Strauss daria ensejo
para o estabelecimento de leis gerais do pensamento humano – tanto para os ditos
“selvagens” como para as sociedades “modernas”. A partir da escrita do prefácio
do “Ensaio sobre a dádiva” (publicada pela primeira vez em 1950), de Marcel
Mauss, Lévi-Strauss aprofundou sua proposta do estudo das estruturas da mente

88
TÓPICO 2 | PERSPECTIVAS CLÁSSICAS DA TEORIA ANTROPOLÓGICA

humana e se posicionou criticamente sobre a questão da dádiva teorizada pelo


autor do livro.

Segundo Lévi-Strauss (1974), a solidariedade em Mauss articula relações


reais e práticas entre a psicologia e a sociologia, de modo que se parte da ideia
da psiquê para analisar a sociedade. O conceito de “fato social total” de Mauss
traria, então, a ideia de que o social só emerge como sistema integrado quando
está atrelado à experiência individual. Assim, Lévi-Strauss se apropria dessa ideia
de complementariedade entre o psíquico e o social para interpretá-la como relação
dinâmica, em que tanto um como o outro compõe os significados que permeiam os
simbolismos da vida social, de modo que só se pode apreendê-lo a partir da síntese
entre as duas dimensões, sem subordiná-las.

Baseada nessa análise, a observação empírica do fato social total não seria
suficiente para apreender a realidade em sua totalidade, como pensava Mauss, o
que faz Lévi-Strauss chamar a atenção de que o observador é da mesma natureza
que seu objeto, e essa questão deveria ser considerada como parte da observação.
Assim, não haveria uma dicotomia rígida entre o sujeito e o fato social, e o etnógrafo
deveria se esforçar para viver o fato como indígena, mas tendo noção da dimensão
entre a sua teoria e a teoria indígena.

Da mesma forma, o pesquisador não poderia deixar que a sua apreensão


subjetiva se sobrepusesse – de maneira totalizante – sobre a teoria indígena. Na
busca obstinada de Marcel Mauss pela lógica ordenadora da dádiva, as atividades
sociais de trocas são observadas, mas Levi-Strauss entende que o antropólogo só
apreende as três obrigações relacionadas à troca e não aprofunda essa questão como
forma do pensamento humano. Dessa forma, Mauss é criticado por Levi-Strauss
por deixar-se mistificar pela teoria “indígena” ao entender que a restituição de um
objeto dado carregaria algo como um “espírito da coisa”. Assim, Mauss não entra
no mecanismo de funcionamento das trocas sociais entre os grupos estudados,
o que Levi-Strauss vai tentar explicar pela via da capacidade de simbolizar, até
chegar nas estruturas inconscientes do espírito.

Este antropólogo está mais preocupado com a estrutura dessa teoria da


dádiva, que revelaria a virtude da troca, não só enquanto ato de troca, mas como
concepção. Para ele, o “hau” não seria o último motivo da troca, como expõe Mauss,
de modo que ela não é real, é da ordem do pensamento. Assim, Levi-Strauss entende
que a teoria indígena está numa relação mais direta com a realidade indígena do
que com uma teoria proposta e elucidada de Mauss. Resumindo o que esclarece
Levi-Strauss (LEVI-STRAUSS, 1974, p. 32):

A troca não é um edifício complexo, construído a partir de obrigações


de dar, receber e retribuir, com auxílio de um cimento afetivo e místico.
É uma síntese imediatamente dada ao e pelo pensamento simbólico, que
na troca como toda outra forma de comunicação, supera a contradição
que lhe é inerente de perceber as coisas como elementos de diálogo,
simultaneamente sob a relação de si e do outro e destinadas por natureza
a passar de um para o outro.

89
UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA

Assim, para este autor teríamos o produto social como sistema simbólico,
e o antropólogo deveria se esforçar para dar uma explicação nativa baseada numa
explicação antropológica. Esse raciocínio contribui com os estudos antropológicos
posteriores.

DICAS

Levi-Strauss ainda discutiu sobre outras questões, do âmbito mais geral


em Antropologia, que podem ser acessadas on-line numa compilação
de textos didáticos e objetivos. O livro se chama "Raça e Cultura", de 1952,
com traduções em português e separado por temáticas relevantes, no
link: <http://disciplinas.stoa.usp.br/pluginfile.php/965742/mod_resource/
content/1/Ra%C3%A7a-e-Hist%C3%B3ria-L%C3%A9vi-Strauss.pdf>.

3 A ESCOLA AMERICANA

Outra vertente emerge nos anos de 1920, baseada numa relação entre
“cultura e personalidade”. Essa perspectiva centrou-se na personalidade dos
membros de cada sociedade, os considerando como produto de sua cultura.
Tinha duas etapas claras: a primeira, influenciada pela psicologia, considerando
o indivíduo como principal objeto de pesquisa; e a segunda, mais voltada para as
noções de “personalidade básica” e de caráter nacional. As principais expoentes
destacadas dessa escola são Ruth Benedict e Margaret Mead. O contexto é pós 1ª
Guerra Mundial e início da 2ª Guerra Mundial, no qual se deseja compreender as
lógicas de outras sociedades objetivando uma ação militar mais harmoniosa.

90
TÓPICO 2 | PERSPECTIVAS CLÁSSICAS DA TEORIA ANTROPOLÓGICA

3.1 CULTURA, PERSONALIDADE E GÊNERO

FIGURA 17 - RUTH BENEDICT

FONTE: Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Cultural


_anthropology>. Acesso em: 11 jul. 2016.

Ruth Fulton Benedict (1887-1948) nasceu em Nova York, nos EUA. Em 1919
iniciou seus estudos de Antropologia na New School for Social Research, e no ano de
1922 matriculou-se na Columbia University e trabalhou como assistente de Franz
Boas no Barnard College. Ali se inspirou para a realização da primeira experiência
de campo entre os Serranos no sul da Califórnia, e desenvolveu uma pesquisa
comparativa entre os índios americanos, resultando em material para sua defesa
de doutoramento em 1923.

A partir destas pesquisas, Benedict concebeu a Teoria da Configuração


Cultural, segundo a qual cada grupo selecionaria um arsenal de recursos humanos
dentre possibilidades diversas, estabelecendo assim suas próprias feições culturais.
Essa perspectiva converge à ideia de que um todo cultural (ou linguístico)
determinaria a natureza das partes e suas relações.

As ideias de Benedict serão melhor desenvolvidas na obra “Padrões de


Cultura”, de 1934, já que nessa obra argumenta a possibilidade de compreensão do
processo de transformação e de diferenciação das culturas, junto a cada tradição,
modelando a conduta humana dos membros em questão. Para compreender os
padrões culturais dominantes, a autora estuda as diferentes formas de expressão
culturais e variedades de costumes nas vidas dos indivíduos.

91
UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA

O método utilizado é o fato de que cada membro tem sua “história de vida”
como prova concreta da acomodação aos padrões tradicionalmente transmitidos
pela cultura que vive. Desse modo, a antropóloga reforça sua defesa de que a cultura
não seria transmitida biologicamente e se contrapõe ao método evolucionista, que
pretende agrupar fragmentos culturais de épocas e locais distintos para estabelecer
a historicidade da conduta humana, como também já criticava Boas.

Para Benedict, a cultura está referida em um modelo mais ou menos


consistente de pensamento e ação, em que não se tem só a soma de feições
particulares, mas cada cultura teria um arranjo único e uma única inter-relação
entre as partes, resultando assim numa “nova entidade”. Desse modo, como Boas
compreende a “configuração” (ou modelo cultural) como espírito de cada cultura,
Benedict pretende estudar as partes, não só enquanto partes, mas considerando
o “conjunto cultural”. Sua crítica é para com os trabalhos antropológicos que
preferem destacar a análise de feições culturais ao invés do estudo da cultura como
um todo articulado, na qual se possibilitaria contextualizar suas diferentes formas
de combinações.

Para tanto, a antropóloga entende que se deve estudar as sociedades


primitivas, e não as sociedades contemporâneas. Como um “laboratório” de
análise da diversidade de instituições humanas, as culturas primitivas teriam
um relativo isolamento regional e vários séculos para elaborar temas culturais
apropriados. Elas não seriam consideradas inferiores, entretanto teriam menos
conexões históricas e poderiam ser estudadas enquanto totalidades.

Assim prontas, seriam fontes vivas de informações sobre as variações de


ajustamentos humanos, permitindo a compreensão dos processos culturais. Nesse
sentido, a tradição cultural das sociedades primitivas é percebida por Benedict
como simples, contrapondo-se à nossa complexa civilização, sendo possível
apreender a conduta humana e a moral dos membros ajustadas num padrão bem
definido como numa cultura homogênea.

A autora deixa claro que não pretende fazer a reconstituição da origem


humana, nem estabelecer uma generalização através de uma lei social geral.
Seu objetivo é estudar a distribuição de feições universais da sociedade humana
encontrada em diferentes combinações e associações, por meio do conhecimento
da “infância” da humanidade.

Para tanto, a metodologia empregada é o registro das formas e condições


variantes, como fez em “Padrões de Cultura”, ao comparar os Zuni do Novo México,
os Kwakiutl da ilha de Vancouver e os Dobuanos da Melanésia, exercitando certo
relativismo cultural ao destacar que o que é entendido de uma forma numa cultura
é entendido de diferente maneira em outra.

Durante a 2ª Guerra Mundial, Benedict trabalhou para o Army Information


Bureau, no War Department, onde apoiou a entrada dos EUA na guerra contra o
racismo do totalitarismo alemão e desenvolveu uma monografia sobre o Japão, a
92
TÓPICO 2 | PERSPECTIVAS CLÁSSICAS DA TEORIA ANTROPOLÓGICA

fim de que se pudesse compreender os contextos de mudanças sociais e determinar


se o imperador deveria ficar ou sair do país. Ela não era muito dedicada ao trabalho
de campo, e em seu livro “O crisântemo e a espada” (1946) defendeu a possibilidade
de estudar os japoneses sem ter ido ao Japão, valorizando a pesquisa de “cultura
à distância”, de forma que considera o contato com adultos – que desenvolveram
sua personalidade em tal cultura – uma fonte fidedigna sobre a cultura, mesmo o
indivíduo estando em outro local.

Desde 1923, Benedict assumiu a cadeira de Antropologia na Columbia


University, onde orientou diversos trabalhos sobre Apaches do Sudoeste (1930),
Blackfoot das Planícies do Norte (1938) e pesquisas comparativas entre até mesmo
culturas contemporâneas. Em 1948, então presidente da Associação Americana de
Antropologia, Benedict morre.

FIGURA 18 - MARGARET MEAD ENTRE NATIVOS

FONTE: Disponível em: <https://www.letemps.ch/culture/2016/02/26/margaret-


mead-anthropologue-scandale>. Acesso em: 6 jun. 2016.

Margaret Mead (1901-1978) nasceu na Filadélfia, nos EUA. Em 1920 iniciou


seus estudos em psicologia no Barnard College, onde teve como professor Franz
Boas. Em 1925, o National Research Council permitiu sua viagem para Samoa a fim
de estudar a vida das meninas adolescentes, onde foi possível traçar comparações
com adolescentes norte-americanas em relação à passagem para a vida adulta, e
defender que esta etapa não era natural, mas culturalmente construída.

Ela foi uma das primeiras antropólogas a estudar a educação das crianças
e a estabelecer uma relação positiva para a dicotomia “nós” e “eles”. Em 1928,
defendeu sua tese de doutorado e tornou-se assistente em etnologia do Museum of
Natural History. Em seguida ganhou uma bolsa de pesquisa para viajar por alguns
meses nas Ilhas do Almirantado. Em 1930 publicou o livro intitulado “Organization
of Manu’a”, explicitando as estruturas sociais dos Manus, destacando a questão do
parentesco.

93
UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA

Mead (2006) acreditava que para compreender os complicados padrões de


cultura era preciso estudar o desenvolvimento da criança, e, assim, percebendo
como se modela a personalidade, desafiava a máxima universal que incutia os
problemas da adolescência. Para Mead (2006), é através da socialização que o
temperamento é agenciado em termos culturais, e essas escolhas estão orientadas
pelo que está previsto na sociedade em questão. Nesse sentido, interessava
a personalidade individual relacionada ao padrão de comportamento, o que
convergia com os objetivos de Benedict sobre a compreensão dos padrões culturais
dominantes. Dessa forma, as duas antropólogas se contrapunham às ideias
eugenistas, conforme influência boasiana, e dialogavam sobre a relação entre raça
e comportamento social de forma não natural.

Em sua escrita, Mead não se referia aos nativos, mas mencionava os


indivíduos por seus nomes. Sua escrita etnográfica é fácil e agradável de ler,
assim como a de Malinowski. A metodologia da autora se baseava num trabalho
de campo com observação participante, em que se realizavam entrevistas em
profundidade, objetivando trazer uma perspectiva sincrônica (a-histórica) e holista.
Cabe destacar que, para Mead, a cultura é estabelecida enquanto “novelos”, em
que cada sociedade foi dignificada com sua forma e pelo seu significado, e assim
o indivíduo está inclinado a um tipo de comportamento possível nessa trama de
cultura.

No seu livro “Sexo e Temperamento”, publicado pela primeira vez em


1935, a autora evidencia que o temperamento entre os sexos era determinado
culturalmente e não de forma biológica. Para ela, não há padrões universais, e sim
condicionamentos sociais, de modo que se torna um comportamento automático
com necessidade de transformações internas. A partir do trabalho de campo na
Nova-Guiné entre os Arapesh (montanheses), os Mundugumor (habitantes do rio)
e os Tchambuli (habitantes do lago), entre os anos de 1931 e 1933, a antropóloga
concluiu que o padrão de comportamento masculino e feminino em cada cultura é
diferente quanto ao que se refere aos papéis de gênero.

Os primeiros – Arapesh – têm homens e mulheres cooperativos (ambos


têm natureza gentil), não agressivos (a guerra é praticamente desconhecida
entre eles), e que dividem igualmente as responsabilidades e os cuidados com
as crianças (criadas num ambiente de tranquilidade e felicidade). Os segundos
– Mundugumor –, por sua vez, são canibais e têm uma hostilidade natural entre
os membros, independentemente do sexo (a agressidade é encorajada), relação
de propriedade privada, as mulheres fazem os trabalhos duros e há rivalidade
constante, até mesmo entre familiares. Já os terceiros – Tchambuli – têm os homens
preocupados com a arte, e as mulheres com o poder, o controle da pesca e das
manufaturas, sendo eles uma sociedade patrilinear (os homens estão submetidos
às suas companheiras). Por conseguinte, cabe destacar que este trabalho de Mead
traz uma comparação direta com o modo que os papéis sexuais são pensados na
sociedade ocidental e a constatação de não haver semelhanças entre esses e as
culturas distantes.

94
TÓPICO 2 | PERSPECTIVAS CLÁSSICAS DA TEORIA ANTROPOLÓGICA

FIGURA 19 - ESTUDOS DAS CARACTERÍSTICAS BALINESAS

FONTE: Disponível em: <https://www.loc.gov/exhibits/


mead/field-bali.html>. Acesso em: 6 jun. 2016.

Quanto às contribuições das autoras da Escola da Cultura e da Personalidade,


temos o relativismo cultural, que propaga a possibilidade de entender uma lógica
do Outro ainda que esta não tenha relação direta com a lógica cultural da sociedade
ocidental. Ruth Benedict enfatiza a determinação cultural do que é considerado
normal ou não, deixando de lado os princípios mais biologicistas (naturais) sobre
a questão da normalidade. Enquanto Margaret Mead dá o ensejo para os estudos
de gênero posteriores e propõe uma antropologia aplicada.

DICAS

Margaret Mead ainda se aproximou dos estudos de Antropologia Visual como


estratégia para estudar a performance nas diferentes culturas, juntamente com o companheiro
Gregory Bateson. Eles utilizaram o registro fotográfico de danças e situações do cotidiano dos
povos estudados como material de estudo, e também como justificativa das suas argumentações
teóricas publicando parte das fotos. Essa discussão pode ser melhor acessada no artigo Visual
Anthropology in post-colonial worlds: "What has gone wrong?", de João Mendonça, disponível
no link: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-43412012000200008>.

95
UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA

3.2 INTERPRETATIVISMO E DESCRIÇÃO DENSA

FIGURA 20 - CLIFFORD GERTZ EM SEU ESCRITÓRIO

FONTE: Disponível em: <http://teoriaehistoriaantropologica.blogspot.com.


br/2012/05/clifford-geertz-la-cultura-como-texto.html>. Acesso em: 11 de jul.
2016.

Em 1926, Clifford Geertz nasceu em São Francisco, na Califórnia. Tendo


servido na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), beneficiou-se de um projeto de
lei que abrangia a educação profissional para veteranos da II Guerra Mundial,
chamado de GI Bill. Dessa maneira, obteve o B.A. da Antioch College, o que o
aproximou de Margareth Mead e possibilitou sua inserção no departamento de
relações sociais na Harvard University. Já de 1952 a 1953 realizou pesquisa de campo
na Indonésia. Depois voltou para os EUA e finalizou seu Ph.D. Entre 1957 e 1958,
Geertz fez diversas visitas a Bali. Antes de assumir o professorado em Berkeley, ele
foi professor assistente nesta universidade, publicando – na sequência – sua tese
sobre a religião do Java.

Em seguida, realizou pesquisas entre 1965 e 1971 no Marrocos, o que


possibilitou publicar “Observando o Islã” (1968). Em 1970, Geertz fundou a Escola
de Ciências Sociais no Instituto de Estudos Avançados da Princeton University,
deixando de lado suas construções teóricas para se dedicar às reflexões etnográficas.
Em 1973 publica “A interpretação das culturas” e ensaios que dão ensejo à Escola
da Antropologia Interpretativa nos EUA, baseada no paradigma hermenêutico.

Geertz (2008) apoiava a proposição de um caráter mais interpretativo para


a disciplina, aproximando-a de outras matérias no âmbito das ciências humanas.
Para ele, a cultura não era mais “gramática” a ser desvendada, e sim uma “língua”
a ser traduzida a partir da cultura do antropólogo para os membros de outras
culturas, de modo que ele se tornou um expoente interpretativista na Antropologia
Americana.

96
TÓPICO 2 | PERSPECTIVAS CLÁSSICAS DA TEORIA ANTROPOLÓGICA

O conceito de cultura em Geertz terá um caráter semiótico e será


designado como “teia de significados” constituída pelo homem, o que dá ensejo
para estabelecer o seu estudo a partir de uma ciência interpretativa na busca
por significados, e não necessariamente por leis que regem a sociedade. Nesse
sentido, a cultura é compreendida como uma entidade relativamente autônoma,
em que o antropólogo tem como desafio desvendar os símbolos presentes através
da interpretação. Assim, o comportamento humano é constituído como ação
simbólica, que deve ser interpretado a partir do seu contexto cultural, e não como
se pudesse ser explicado de maneira definitiva em si. A cultura não é uma conduta
baseada num padrão, nem é um estado da mente.

Para tanto, Geertz (2008) considera que a principal prática do


antropólogo social com o objeto de acessar esses significados é a etnografia,
sendo que esta não é só uma questão de método, mas sim de estabelecer relações,
selecionar informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos,
manter um diário, e assim por diante. A necessária dedicação intelectual está aliada
à possibilidade de uma “descrição densa” sobre a cultura do outro.

Ou seja, a partir da descrição densa – desenvolvida na prática etnográfica


– o antropólogo poderia considerar a hierarquia estratificada de estruturas
significantes. Assim, o que é exposto finalmente por este antropólogo não é uma
verdade incontestável, mas uma afirmação etnográfica sobre sua interpretação das
estruturas de significado socialmente estabelecidas, pois interpretar o que quer
dizer uma piscadela carece de uma análise maior do contexto.

O principal objetivo da antropologia, para Geertz, é inspecionar o fluxo do


discurso social, numa atenção elucidativa aos significados que vêm e vão, sendo
que os processos de observação, análise e registro do pesquisador são simultâneos,
e não momentos diferenciados de compreensão da cultura do Outro. Sendo assim,
o texto etnográfico como tal é imbuído de um esforço criativo, próximo ao gênero
literário. Ao escrever, o antropólogo fixa e guarda o “dito” pelo discurso social,
permitindo, assim, pesquisar inúmeras vezes e de variadas formas os jogos de
linguagem nas estruturas significantes.

Para este autor, o trabalho de campo é uma grande e complexa experiência


em que o antropólogo vai com premissas ao encontro do outro e, a partir das
dificuldades e negociações instaladas, as interpretações são configuradas. Durante
esse processo, Geertz não dispensa por completo a possibilidade de comparação,
uma vez que ela não tem necessariamente o propósito de inferir generalizações,
mas sim de interpretar a cultura do outro considerando o empenho do antropólogo
em relativizar seus próprios valores.

Para compreender o outro é preciso lembrar, como enfatiza o autor, que


os antropólogos não estudam nas "aldeias", o que significa que há uma escolha
por pesquisar um objeto específico em detrimento do locus como um todo. De
modo que somos aconselhados a se concentrar em “voos baixos”, sendo esses mais
vantajosos do que os “voos altos”. Como ciência interpretativa caberia, então, à

97
UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA

antropologia mais incitar, propor perguntas, refinar debates do que fazer grandes
afirmações, gerar consensos e estabelecer explicações definitivas.

Na sua obra “A interpretação das culturas”, de 1989, quando trata da pessoa,
do tempo e da conduta em Bali, Geertz se interessa no como se define as pessoas e
como elas são percebidas na interação com outras pessoas. Assim, ele aposta numa
investigação empírica e sistemática em que a experiência do Outro está imbuída
de uma troca constante de símbolos significantes. Seu foco – do estudo da cultura
– são os mecanismos empregados pelos indivíduos ou grupos de indivíduos ao
se situar(em) no mundo. Objetiva-se a compreensão da estrutura significativa da
experiência sem perder de vista a dimensão temporal.

Nesse sentido, o autor se dedica ao estudo da identidade e concepção de


pessoa, destacando algumas definições de ordens simbólicas – temporalmente
concebidas – da sociedade balinesa. Cada termo indicatório apresenta a relação
entre o indivíduo e a concepção despersonalizada de pessoa. Este é acionado
conforme a mediação de formulações culturais que reforçam a padronização, a
idealização e a generalização dos indivíduos durante os encontros entre uns com
outros na vida cotidiana.

FIGURA 21 - BRIGA DE GALO

FONTE: Disponível em: <http://vejanarede.com.br/posts/


detalhe/179>. Acessado em: 16 jul. 2016.

98
TÓPICO 2 | PERSPECTIVAS CLÁSSICAS DA TEORIA ANTROPOLÓGICA

Quanto ao estudo da briga de galo na sociedade balinesa – considerada


de extrema importância nesta cultura local –, Geertz (2008) interpreta que a rinha
entre os animais no espaço público explicita aspectos culturais nos quais os homens
se realizam simbolicamente no que lhe é “interditado” socialmente. Destaca-se
que há aversão ao comportamento animal. Entretanto, as pessoas estão absorvidas
num fluxo de atividade comum que as relaciona entre si, sendo que os galos são
entendidos enquanto ampliação da personalidade de seus proprietários, em que
se explicita uma rivalidade entre status.

As apostas nos galos realizadas nos bastidores estão atreladas a uma


série de regras em que o pesquisador deve se atentar para que a ação social
seja interpretada a partir do contexto cultural, uma vez que a cultura é pública.
Enquanto se desenrola a briga de galos, as pessoas assumem temas – como morte,
masculinidade, perda, beneficências, oportunidade – e estabelecem uma ordenação
significativa para essas temáticas que estão atreladas a uma estrutura globalizante,
sendo elas reais num sentido ideacional. Assim, a briga de galos – como metáfora –
é uma maneira de exibir suas paixões sociais em meio a penas, sangue, multidões
e dinheiro.

Quanto ao legado de Geertz, destaca-se o estilo literário dado ao texto


etnográfico, de modo que ele se propõe a apresentar – pela escrita – o presente
etnográfico considerando o sujeito histórico que se transforma. Seu trabalho é
acessível em outros campos do conhecimento, ao mesmo tempo suas definições
conceituais não são estanques e se abrem para outras noções. Assim, o autor
propõe um desafio pós-moderno para a disciplina, configurando antropologia
como um esforço criativo, de modo a influenciar escritores americanos, franceses,
brasileiros e outros.

DICAS

Indicamos o livro "Obras e vidas: o antropólogo como autor",


de Clifford Geertz, visto que ali tem-se a reflexão sobre o
posicionamento do antropólogo diante do seu objeto de estudo.
Não só durante o trabalho de campo, como também quando o
antropólogo escreve e apresenta outras culturas.

FONTE: Disponível em: <http://www.antropologia.com.br/res/


res11.htm>.

99
UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA

4 A ESCOLA BRITÂNICA

A antropologia social britânica, no início do século XX, criticava o


evolucionismo e buscava uma disciplina que privilegiava a pesquisa empírica,
estando, de algum modo, preocupada com o estudo in loco dos nativos. Assim, a
preocupação com o trabalho de campo se sobrepunha às questões de ordem teórica.
Logo, a principal ideia era observar a forma social de vários povos, compará-los e
classificá-los, como justificação da base de procedimento científico.

4.1 PROCESSO RITUAL E OS DRAMAS SOCIAIS

FIGURA 22 - VICTOR TURNER

FONTE: Disponível em: <https://www.librarything.com/author/


turnervictorwitter>. Acesso em: 16 jul. 2016.

Victor Witter Turner (1920-1983) nasceu em Glasgow, Escócia. Estudou


língua inglesa e literatura na University College of London de 1938 a 1941. Depois
da II Guerra Mundial, aproximou-se das obras Coming of Age in Samoa, de
Margaret Mead, e The Andaman Islanders, de A. R. Radcliffe-Brown, continuando
seus estudos com os principais antropólogos sociais na época.

Em 1955, entregou sua tese de doutorado sobre os Ndembu e em 1957


publicou Schism and Continuity in an African Society: A Study of Ndembu Village
Life, tratando da organização social Ndembu, a fim de compreender os mecanismos
de resolução dos conflitos sociais na sociedade entre eles. A partir daí, focou-se

100
TÓPICO 2 | PERSPECTIVAS CLÁSSICAS DA TEORIA ANTROPOLÓGICA

nos estudos das atividades rituais, aprofundando esses estudos e introduzindo o


conceito de drama social. Para ele, dramas sociais são unidades de processo social
harmônicas e desarmônicas, decorrentes dos "conflitos" sociais.

Pode-se dizer que Turner é Interacionista Simbólico, que se opõe ao


Estruturalismo, pois ele evidencia que os fenômenos culturais estão repletos de
símbolos e de crenças de forma não estrutural, mas traz esse aspecto atrelado à
relação com a estrutura. Nesse sentido, a ação viva jamais pode ser consequência
lógica, mas há uma estrutura processual da própria ação social e uma potência
ilimitada de arranjos sociais alternativos.

O Interacionismo Simbólico é baseado nos significados que os produtores


e usuários dos meios de comunicação elaboram em sua interação, analogamente
às relações pessoais cotidianas. Ou seja, os símbolos servem para orientar as ações
nas sociedades humanas. Assim, esses símbolos são conscientes e atuam durante
o processo ritual em que eles se apresentam em forma de objetos, gestos, cantos,
para expor a mensagem num estado de communitas.

O encadeamento de símbolos dentro do ritual ordena e constrói a ideia de


que está se passando de um ponto de classificação a outro. Numa dinâmica cultural
se entende que a communitas atua entre mudanças estruturais, sendo ela necessária
e tendo sua condição considerada como atemporal entre a temporalidade de uma
estrutura a outra.

O trabalho de Turner está baseado no método etnográfico, um intensivo


estudo dos povoados Ndembu. Turner entendeu que não podia estudar os
símbolos fora de sua sequência temporal em relação com outros acontecimentos
(eventos), já que estão imbricados no processo social. Deste modo, o símbolo ritual
se converte em um fator da atividade social e que, em um contexto adequado, a
estrutura e as propriedades de um símbolo são as de uma entidade dinâmica.

FIGURA 23 - MENINOS DO POVO NDEMBU

FONTE: Disponível em <http://www.cse.iitk.ac.in/users/amit/books/


turner-1969 -ritual-process-structure.html>. Acesso em: 11 jul. 2016.

101
UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA

Turner define ritual como o comportamento formal prescrito para ocasiões


não devotadas à rotina tecnológica, tendo como referência a crença em seres ou
poderes místicos, e entende o símbolo como as unidades mínimas de comportamento
ritual. Por isso os símbolos são estudados em relação com outros acontecimentos,
uma vez que estão implicados no processo ritual. Dessa maneira, as celebrações
rituais são como fases específicas dos processos rituais que os grupos passam para
ajustar suas mudanças internas e adaptar-se ao meio ambiente. Ou seja, o símbolo
ritual se converte em um fator de ação social, uma vez que a sociedade vivencia e
dramatiza como dimensões da vida social que reflete sobre si mesma.

Turner vai tratar sobre a relação entre a communitas e estrutura social, que
são modalidades humanas (mais em analogia do que em oposição). Ele diz que
nenhuma delas predomina sobre a outra, mas sim há uma relação dialética entre
elas que se sustenta no caráter de humanidade para além da posição social, em que
o ser precisa estar à “margem” da sociedade em alguns momentos, como durante
um processo ritual, até para se restabelecer na estrutura.

A communitas é espontânea e autógena. Pode se tornar normativa. Parece


uma exigência social indispensável aos homens. Ela é um perigo real à estrutura
e se constitui uma ameaça às inibições normativas. Ela tem uma atração afetiva,
mais imediata aos homens; mas como a estrutura é a arena na qual eles perseguem
seus interesses materiais, a communitas é reprimida para o inconsciente. Ela reduz
as diferenças sociais, enquanto a estrutura reforça essas diferenças. Os ritos, os
símbolos e os mitos são complexos, e suas formas culturais neste estado pressupõem
que esses elementos possam ser vivenciados com maior profundidade do que em
qualquer outro contexto, sendo transmitidos a partir de ideias e valores.

DICAS

Para acompanhar a argumentação do autor sobre o processo


ritual e seus estados possíveis, indicamos o filme "Os mestres
loucos", do antropólogo Pierre Verger, gravado em 1955, na
Costa do Outro, na África.

FONTE: Disponível em: <https://www.youtube.com/


watch?v=z2jG3rQ0MNA>.

102
TÓPICO 2 | PERSPECTIVAS CLÁSSICAS DA TEORIA ANTROPOLÓGICA

4.2 PUREZA E SIMBOLISMO

FIGURA 24 - MARY DOUGLAS

FONTE: Disponível em: <http://teoriasantropologicas.com/2011/03/


11/mary-douglas/>. Acesso em: 11 jul. 2016.

Em 1921 nasce Mary Douglas, em Sanremo, na Itália. Ela se aproximou dos


estudos antropológicos na University of Oxford, teve formação católica e também
se interessou pelos estudos das questões religiosas. Os estudos de Douglas
concentraram-se em grupos da África Centro-equatorial. Assim, discutiu assuntos
que perpassavam esses povos, procurando compreender categorias que pudessem
ser entendidas como fenômenos sociais, numa perspectiva mais durkheimiana,
pois, para ela, as relações sociais se davam como protótipos das relações lógicas
entre os objetos.

Em sua obra Pureza e Perigo (1976), ela analisou os conceitos de
contaminação, poluição e seus tabus, percebendo a noção de impureza e higiene
como algo intrínseco às sociedades primitivas e possibilitando pensar as mesmas
questões em nossa sociedade. Desse modo, os rituais de pureza e impureza oferecem
e constroem certa unidade à nossa experiência, explicitando a continuidade das
estruturas de um sistema social. Pois na definição do que é puro e do que é impuro
se reflete como se ordena e hierarquiza a experiência a fim de expressar o grau de
organização e de estabilidade de uma sociedade.

Assim, para Douglas, a sujeira é desordem. E esta definição está atrelada à


noção de periculosidade dos símbolos ambíguos, de modo que se há ambiguidade
não há ordem, e para manter um padrão, ter ordem, é preciso ser limpo. Logo,
para ela, os símbolos ambíguos são ligados aos rituais e às atividades sagradas dos
povos ditos "primitivos".

103
UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA

Nada é puro ou impuro de forma absoluta. Por isso, é durante os rituais que
as cosmologias dos símbolos se revelam e se definem, explicitando classificações
simbólicas atribuídas às práticas sociais sobre o que é puro, poluído ou perigoso
naquela sociedade. Esse poder arbitrário na função dos símbolos se estabelece a
partir do que faz sentido para o sistema social, ao mesmo tempo em que legitima
a ordem hierárquica dentro de uma sociedade.

O rito aparece como código simbólico que se modifica pela própria maneira
como se exprime, ou seja, há uma eficácia simbólica do rito. Pode-se dizer, assim,
que sagrado e impuro estão baseados num princípio da diferenciação pelo qual se
pauta a sociedade em questão. Se o símbolo é pensado na esfera do arbitrário, logo
não é natural, e os estudos de Douglas sobre os símbolos naturais demonstram a
dialética entre a observância e o desprezo das normas rituais presentes em várias
culturas.

Como significante universal, o corpo humano e os produtos, em todas


a culturas, acabam por dispor o corpo como uma forma de comunicação,
estabelecendo essa diferenciação, de alguma forma, que circunscreve as
diferenciações na sociedade em questão.

Douglas ainda aposta em estudos econômicos a partir da antropologia, de


modo que os objetos explicitam as lógicas latentes nas culturas em questão em ‘O
mundo dos bens’ (1978), com Baron Isherwood. Faleceu no final da década de 80.

FIGURA 25 - EDMUND LEACH

FONTE: Disponível em: <https://elizabethsberger.wordpress.


com/tag/edmund-leach/>. Acesso em: 12 jul. 2016.

104
TÓPICO 2 | PERSPECTIVAS CLÁSSICAS DA TEORIA ANTROPOLÓGICA

Edmund Leach nasce em 1910, na Inglaterra. Estudou Ciências Médias


em Cambridge, mas em final dos anos 30 se aproxima do trabalho de campo na
Birmânia a partir da convocação da II Guerra Mundial. É na London School of
Economics que ele desenvolve seu PhD em Antropologia e dá continuidade aos
seus estudos.

No norte da Birmânia (hoje Myanmar), estudou a distribuição de poder


entre pessoas e grupos na sociedade Kachin, procurando os mecanismos de
mudanças estruturais das unidades políticas. Deste modo, para Leach (1996), a
ação ritual e a crença dos nativos devem ser entendidas como forma de afirmação
simbólica sobre a ordem social, que constrói a identidade tanto étnica, quando
estética. Sua metodologia se deu a partir da recorrência de documentos primários
e sobretudo secundários, mas também de relatos de acontecimentos históricos,
testemunhais e mitológicos.

Como perdeu parte de suas anotações de campo, utilizou-se de memórias


e fontes históricas deixadas por missionários, viajantes e funcionários do governo.
O modo como se deu esse processo influenciou nas suas argumentações sobre
mudanças políticas e variação cultural a partir do grupo estudado.

Essas estruturas sociais particulares podem expressar culturas diferentes,


ainda que tenham um mecanismo básico de mudança social. Dessa forma, Leach
introduziu o pensamento levistraussiano na Grã-Bretanha, demonstrando que o
estruturalismo permite criticar o funcionalismo comparativo. Ou seja, demonstra
como as estruturas particulares podem assumir várias interpretações culturais,
evidenciando a cultura no seu aspecto relacional entre os subsistemas, sendo o
sistema simbólico pautado na comunicação. Em 1898, Leach faleceu.

DICAS

Para conhecer mais sobre o trabalho de E. Leach, vale a pena acessar a análise
feita pela antropóloga Mariza Peirano no link: Disponível em: <http://www.marizapeirano.com.
br/capitulos/2014_leach.pdf>.

105
UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA

LEITURA COMPLEMENTAR

AS PRINCIPAIS TENDÊNCIAS DO PENSAMENTO


ANTROPOLÓGICO

François Laplantine

Com o trabalho efetuado pelos pais fundadores da etnografia – Boas,


Malinowski, Rivers – e pelos primeiros teóricos da nova ciência do social – Durkheim
e Mauss –, podemos considerar que a antropologia entrou em sua maturidade. O
que examinaremos agora são os desenvolvimentos contemporâneos. Não se trata
evidentemente de apresentar aqui um panorama completo desse período que cobre
mais de meio século (1930-1986), tão grande é a diversidade e a riqueza do campo
antropológico explorado, e também porque nos falta distância para fazer o balanço
dos trabalhos que nos é propriamente contemporâneo. Contentar-nos-emos, mais
modestamente, em abrir algumas trilhas (mais próximas da trilha do que da
autoestrada) que permitam destacar as tendências dominantes do pensamento e
da prática dos antropólogos de nossa época. Podemos fazer isso de três diferentes
maneiras.

[...]

Determinações culturais

Uma segunda via, que apenas esboçaremos aqui, consistiria em mostrar


o que a pesquisa do antropólogo deve à cultura à qual ele próprio pertence.
As condições históricas e sociais de produção do saber antropológico são
eminentemente diversificadas, e não seria satisfatório relacioná-las apenas ao
“Ocidente”, como se este fosse um bloco homogêneo e imutável. Mostraremos
quais foram os caracteres culturais distintivos que marcavam profundamente e
continuam influenciando várias sociedades nas quais o pensamento e a prática
(antropológicos) estão hoje particularmente desenvolvidos. Limitar-nos-emos a
três: a antropologia americana, a britânica e a francesa.

A antropologia americana

Tendo tido um crescimento rápido com o impulso especialmente do
evolucionismo e de seu principal teórico, Lewis Morgan, pode ser caracterizada
da seguinte maneira:

1) Trata-se de um tipo de pesquisa que destaca a diversidade das culturas –,


as variações praticamente ilimitadas que aparecem quando se comparam as
sociedades entre si. Esse estudo, conduzido mais a partir da observação dos
comportamentos individuais do que do funcionamento das instituições, visa
evidenciar a especificidade das personalidades culturais, bem como das produções

106
TÓPICO 2 | PERSPECTIVAS CLÁSSICAS DA TEORIA ANTROPOLÓGICA

culturais características de uma etnia ou nação. Disso decorre a importância, nos


Estados Unidos, das relações da etnologia com a psicologia ou a psicanálise.

2) A antropologia americana não se interessa apenas pelos processos de interação


entre os indivíduos e sua cultura, mas também entre as próprias culturas: forjou,
em especial, o conceito de “aculturação”, ao qual voltaremos mais adiante.

3) Nunca foi confrontada, ao contrário do que ocorreu na França e na Inglaterra, aos


processos da colonização e descolonização, mas, em contrapartida, aos problemas
colocados por suas próprias minorias (negra, índia e porto-riquenha).

4) Acrescentemos, finalmente, que se a antropologia americana contribuiu muito


cedo em grande parte (Boas) para pôr um fim à arrogância das reconstituições
históricas especulativas, reatualizou e renovou, ao mesmo tempo, em seus
desenvolvimentos contemporâneos, a abordagem evolucionista sob a forma do
que é hoje chamado neo-evolucionismo.

A antropologia britânica

Seu crescimento, também muito rápido, como nos Estados Unidos, deve
ser relacionado à importância de seu império colonial. Pode ser caracterizada das
seguintes formas:

1) é uma antropologia antievolucionista, que se constituiu desde Malinowski em


oposição a uma compreensão histórica do social (as reconstruções hipotéticas dos
estágios, indo das sociedades ”primitivas” às ”civilizadas”, bem como a abordagem
da historiografia). Dedica-se preferencialmente à investigação do presente a partir
de métodos funcionais (Malinowski), e, em seguida, estruturais (Radcliffe-Brown):
uma sociedade deve ser estudada em si, independentemente de seu passado, tal
como se apresenta no momento no qual a observamos. O modelo pode, portanto,
ser qualificado de sincrônico, enquanto a pesquisa baseia-se no levantamento da
totalidade dos aspectos que constituem uma determinada sociedade:

2) é uma antropologia antidifusionista, o que a opõe à antropologia americana, a


qual se preocupa em compreender o processo de transmissão dos elementos de
uma cultura para outra. Para a maioria dos pesquisadores ingleses, uma sociedade
não deve ser explicada nem pelo que herda de seu passado, nem pelo que empresta
a seus vizinhos.

3) é uma antropologia de campo, que se desenvolve muito rapidamente, a partir


do início do século, com Malinowski e, antes, com Radcliffe-Brown, o qual é,
mais ainda que Malinowski, um dos pais fundadores de quem a maioria dos
antropólogos britânicos contemporâneos se considera sucessora. Esse caráter
empírico (observação direta de uma determinada sociedade, a partir de um trabalho
exigindo longas estadias no campo) e indutivo da prática dos antropólogos ingleses
apoia-se numa longa tradição britânica: o empirismo dos filósofos desse país, que
se pode opor ao racionalismo e ao idealismo do pensamento francês. Hoje ainda,

107
UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA

um antropólogo que pode ser considerado como um dos mais importantes da Grã-
Bretanha, Leach, não hesita em qualificar-se de “empirista”, e até de “materialista”,
e vê a abordagem de um Lévi-Strauss como tipicamente francesa: racionalista e
idealista.

4) finalmente, é uma antropologia social que, ao contrário da antropologia


americana, privilegia o estudo da organização dos sistemas sociais em detrimento
do estudo dos comportamentos culturais dos indivíduos.

A antropologia francesa

A França está praticamente ausente da cena da antropologia social e


cultural da segunda metade do século XIX. Nenhum pesquisador francês teve,
nessa época, a influência de um Tylor (inglês) ou de um Morgan (americano). As
preocupações da antropologia francesa estavam voltadas para outra área. Quando
se falava de antropologia, tratava-se da antropologia física, que era então ilustrada
pelos trabalhos de Broca, Quatrefages ou Topinard, que publicou em 1876 uma
obra intitulada simplesmente "A Antropologia".

Esse atraso da etnologia francesa – muito importante se considerarmos


a intensa atividade que se desenvolvia do outro lado do canal da Mancha e do
Atlântico – não será recuperado no início do século XX. Enquanto que um campo
empírico e teórico considerável se constituía tanto nos Estados Unidos como na
Grã-Bretanha; enquanto, nesses dois países, administradores utilizavam cada vez
mais os serviços de antropólogos formados nas universidades, a etnologia francesa
dessa época permanecia ainda uma etnologia selvagem, que não era praticada
por etnólogos e sim por missionários e por alguns administradores de colônias
francesas.

Mais uma vez, as preocupações francesas estão voltadas para outros


aspectos: trata-se dessa vez de preocupações teóricas de filósofos e sociólogos
que, sem dúvida, exercerão uma influência decisiva na constituição científica
da etnologia, mas não são sustentadas por nenhuma prática etnográfica. Nem
Durkheim (cujo pensamento vai impregnar profundamente a antropologia
inglesa), nem Lévy-Bruhl efetuaram qualquer observação. O próprio Mauss, que é
paradoxalmente autor de uma excelente obra, Manual de investigação etnográfica
(1967), nunca realizou uma investigação no campo. Será preciso esperar os anos 30
para que uma verdadeira etnografia profissional comece a se constituir na França.

A primeira missão de caráter científico (a famosa ”Dacar-Djibuti”) será


efetuada por Mareei Griaule e seus colaboradores, em 1931. A partir da mesma
época, Maurice Leenhardt, que permaneceu por mais de 20 anos na Nova Caledônia
como missionário protestante, empreendeu trabalhos (1946, 1985) que podem ser
qualificados de pioneiros, enquanto Paul Rivet passava a ser um dos principais
artesãos da organização da antropologia no nosso país. A partir dessa época, mas
só a partir dela, pode-se considerar que, com o impulso especialmente dos homens
que acabamos de citar, a antropologia francesa entrou em sua maturidade.

108
TÓPICO 2 | PERSPECTIVAS CLÁSSICAS DA TEORIA ANTROPOLÓGICA

A partir desse momento, as pesquisas foram prosseguindo, estendendo-


se e aprofundando-se em um ritmo ininterrupto. Seria difícil, principalmente em
algumas frases, caracterizar os desenvolvimentos propriamente contemporâneos
dessa pesquisa francesa, cuja riqueza não tem mais nada a invejar dos Estados
Unidos ou da Inglaterra. Lembremos apenas aqui alguns aspectos relevantes:

• as preocupações teóricas dos antropólogos franceses que aparecem


particularmente quando confrontamos seus trabalhos (e debates) à prática da
antropologia anglo-saxônica, frequentemente mais empírica;

• um objeto de predileção que é o estudo dos sistemas de “representações”


(particularmente a religião, a mitologia, a literatura de tradição oral), termos que
devemos a Durkheim, enquanto Lévy-Bruhl já se interessava pelo que chamava de
“mentalidades”;

• uma renovação metodológica, com o impulso especialmente:

1) do estruturalismo (do qual Lévi-Strauss é evidentemente o representante mais


ilustre);

2) de pesquisas conduzidas dentro da perspectiva do marxismo;

• um crescimento muito recente, mas apoiado em uma sólida tradição, da


etnografia, da museografia e da etnologia da própria sociedade francesa, em suas
diversidades e mutações.

FONTE: Adaptado de LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. São Paulo, Brasiliense, 1987.

109
RESUMO DO TÓPICO 2
Nesse tópico você viu que:

• As tendências do pensamento antropológico se dividem em escolas, a partir do


aporte geográfico.

• Estrutura social, sistema social e as relações sociais são questões que perpassam
o interesse antropológico.

• A metodologia na Antropologia é uma preocupação frequente, uma vez que é a


partir dela que se definirá o olhar sobre o Outro.

• As definições em cada sociedade variam e falam sobre sua compreensão da vida


humana.

110
AUTOATIVIDADE

1. A partir deste caderno e de pesquisa em materiais bibliográficos,


construa um quadro colocando na linha horizontal as três
escolas estudadas (Francesa, Britânica e Americana) e na
linha vertical objeto de estudo, influências, autores principais,
metodologias e contribuições para a disciplina. Assim,
preencha o quadro.

2. Sabe-se que a metodologia, na área da Antropologia, passou por um


processo de experimentação e foi se legitimando como estratégia científica
que possibilita o conhecimento do Outro. Logo, comente como o trabalho de
campo de Bronislaw Malinowski foi fundamental para esse reconhecimento.

3. Pensando na sua prática docente, estabeleça um plano de ensino


evidenciando filmes ou textos que possam dialogar com a discussão teórica
de Lévi-Strauss, Clifford Geertz e Mary Douglas, a fim de complementar a
aula dada.

111
112
UNIDADE 2
TÓPICO 3

INQUIETAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DA
ANTROPOLOGIA

1 INTRODUÇÃO
Vimos, até aqui, quanto os conceitos vão se delimitando e explicitando
formas, modelos, perspectivas para interpretar as sociedades, entretanto, o
modo como elas são percebidas perpassa as definições dadas por pontos de vista
diferentes. Assim, percebemos que os próprios conceitos são construções que
podem ser questionadas, reinterpretadas e reavaliadas, o que tensiona ainda mais
os autores estudados até o momento no âmbito da Antropologia.

Nesse sentido, este tópico vai apresentar possibilidades de repensar a


produção de conhecimento em antropologia, e também fazer com que se possa
acessar as discussões contemporâneas sobre essa disciplina. Longe de ser um
conteúdo pronto, cabe mostrar novas ideias e reflexões, que partem dos clássicos,
para ir adiante nessa fonte infindável que é o conhecimento.

2 CULTURA COMO INVENÇÃO


FIGURA 26 - PAPANGUS

FONTE: Disponível em: <http://bezerroshoje.ne10.uol.com.br/papangus-podem-se-


tornar-patrimonio-cultural-da-humanidade-pela-unesco/>. Acesso em: 12 jul. 2016.

113
UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA

Autores como o antropólogo Roy Wagner, nascido em Ohio-EUA, em 1938,


explicitam que a antropologia, muitas vezes, estuda a cultura como se houvesse
uma única "cultura humana", ou pensam cultura num registro de tradições
geográficas e históricas definidas. Desse modo, questiona-se o uso do conceito
definido a partir de elementos ou aspectos de um padrão geral que é aplicado ao
estudo de diferentes povos, e se pensa que talvez o conceito de cultura seja, de fato,
uma invenção.

Entretanto, o antropólogo que usa habitualmente o conceito de cultura,


ao colocar as definições dadas em suspenso, ele também se coloca em suspenso.
Compreender uma cultura a partir de termos universais não seria reduzir suas
possibilidades interpretativas? Cultura engloba apenas ações e propósitos humanos?
E ao repensar o termo cultura, como o entendimento do fazer antropológico se
modifica? E o antropólogo, quem é ele a partir dessa nova reflexão?

Assim, Wagner se propõe a renunciar à pretensão racionalista das definições


conceituais mais "fechadas" para buscar uma objetividade relativa, na qual o
conceito pode ser reavaliado e repensado. Deste modo, o antropólogo é obrigado
a fazer também uma investigação de si para pensar o objeto de estudo, pois suas
perspectivas teóricas e metodológicas é que vão permitir um certo enquadramento
na análise social. Logo, ter noção dessa reflexão é algo importante para pensar
produção de conhecimento sobre o estudo do homem.

A possibilidade de realização do trabalho de campo é percebida pelo autor


como experiência criativa e produtiva, ainda que a produção final de análise não
englobe tudo o que foi visto, percebido e refletido no espaço do Outro. Ainda que
se estruture uma rotina de trabalho, ela pode ser frustrante, pois nem sempre o
trabalho intenso e a vocação refletem num produto final desejável, essa é apenas
uma ideia ocidental, da qual nos valemos no nosso cotidiano de estudos do Outro.

Para realizar a etnografia, vai interessar como o etnógrafo está engajado em


suas pesquisas e o modo como ele implementa esse engajamento em campo em
meio aos seus interlocutores. Aqui, a ideia de "nativos" e "informantes" também
é ultrapassada, e emerge a discussão de que o antropólogo está em campo com
interlocutores que vão trocar questões sobre a sociedade analisada.

Ou seja, tanto a questão conceitual como a questão metodológica estão


sendo colocadas em xeque para que se possa repensar os atributos da antropologia
como disciplina que questiona o seu fazer científico ao mesmo tempo em que se
legitima como matéria necessária na área das ciências humanas. Essa reflexão
sobre o Outro é uma reflexão sobre nós mesmos.

Nesse sentido, Wagner (2010) aponta que o conceito de cultura utilizado


por muitos anos era uma invenção moderna ocidental para falar sobre os outros, e
reforça que a sociedade humana se constitui como uma máquina de símbolos que
opera por meio de uma dialética sem síntese entre convenção e invenção.

114
TÓPICO 3 | INQUIETAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DA ANTROPOLOGIA

E se a antropologia coloca esse questionamento, ela não é mais em si


uma linguagem, mas realiza sobre si uma metalinguagem. Ou seja, repensar-
se é fundamental para que se tenha noção da apropriação da cultura ocidental
do discurso do Outro. Assim, outros discursos são possíveis e é importante a
antropologia ter essa noção.

Esses novos constructos conceituais possibilitam apreender os significados


dispostos nas sociedades, deixando de lado a ideia de que a Antropologia está se
constituindo como um museu de cera, que apenas disponibiliza curiosidades e
particularidades dos povos, para se aproximar do que é a cultura para os povos
estudados, de fato.

Perceber que os modelos construídos pelos antropólogos sempre seriam


aceitos pelos próprios "nativos" estudados, fazendo com que a construção teórica
sobre uma outra sociedade perca seu estatuto de dado e universal. Por isso,
Wagner (2010) enfatiza que busquemos uma objetividade relativa com relatividade
cultural, na qual quem observa é observado, estabelecendo uma mediação da sua
própria cultura para a compreensão do Outro. Por isso, o antropólogo experiencia
a relativização da sua própria cultura para acessar a cultura do Outro.

Dessa forma, a experiência etnográfica questiona as próprias categorias


analíticas do antropólogo e propõe algo que se constrói na mediação com o Outro se
justificando como invenção e reinvenção. Ou seja, esse processo de reconhecimento
de alteridade para com o Outro é que emerge na cultura como algo universal do
fenômeno humano. A partir desse diálogo, Wagner ainda propõe uma noção de
antropologia reversa, na qual pensar a dicotomia "nós e os outros" faz parte da
prática e da reflexão antropológica.

DICAS

Para se aproximar ainda mais da ideia de antropologia reversa de Roy Wagner,


recomendamos o texto da antropóloga Sônia Maluf sobre "A antropologia reversa e "nós":
alteridade e diferente", em que versa sobre a discussão acima, disponível no link: <https://
periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/article/view/2175-8034.2010v12n1-2p41/20799>.

115
UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA

2.1 AUTORIDADE DO ETNÓGRAFO E POSSIBILIDADE DE


ESCRITAS

FIGURA 27 - MÃOS QUE SE ESCREVEM

FONTE: Disponível em: <http://www.estranho.com/show_img.


php?id=925>. Acesso em: 19 jul. 2016.

Ao mesmo tempo, questionar a escrita dessa etnografia também é uma


questão latente, afinal de contas, o modo como o antropólogo apresenta a cultura
do Outro é, muitas vezes, através da escrita. Então, por que não se questionar sobre
essa escrita? Ou mesmo, qual é a forma mais legítima de apresentar o Outro por
meio da descrição? Ou mesmo, quanto estamos autorizados a falar sobre o Outro
de maneira contundente? Quais são os limites que essa apresentação pela escrita
impõe? Todas essas questões são questionamentos da própria antropologia, e não
podemos mais passar desapercebidos por elas.

Nesse sentido, o antropólogo norte-americano James Clifford lança seu


livro "A experiência etnográfica", em 1998, justamente a fim de pensar a autoridade
da produção etnográfica e questionar sobre os engodos da experiência descritiva
da escritura do Outro. Num limiar entre literatura e antropologia, o rigor científico
tenta se afastar da poética, mas é aí que o autor reforça que poético e político são
inseparáveis, constituindo assim, etnografias como verdades parciais.

Pensar o papel do texto no processo etnográfico coloca em questão a


representação social dos discursos presentes e a relação de poder que o antropólogo
estabelece com seus interlocutores na leitura do produto final sobre a cultura do
Outro. Sair da perspectiva clássica confere um exercício de tradução e de um
cuidado maior, no qual a etnografia se coloca entre sistemas de significação. Ou
seja, ela está na fronteira entre civilizações, culturas, classes, raças e gênero.

Assim, o texto se configura como um método de apreensão da realidade.


O que cria uma implicação estética, mas também ética sobre os recortes temporais,
espaciais e conceituais que o antropólogo escolhe para falar sobre e expor o Outro.

116
TÓPICO 3 | INQUIETAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DA ANTROPOLOGIA

Assim, a ciência também acontece nesse registro de negociações, imposições e


escolhas no qual se dá o trabalho etnográfico.

Desse modo, Clifford (1998) reforça que as etnografias são ficções,


pois trazem a parcialidade das verdades históricas e culturais, enfatizando
a sistematicidade etnográfica de apreensão da totalidade e exclusividade da
experiência entre os interlocutores.

A tradução da experiência para forma textual deve contemplar a polifonia


das vozes naquele campo, de modo a apresentar os sistemas culturais muito mais
como um conjunto dialógico, interpretativo, experiencial, trazendo as camadas
presentes do objeto estudado, no qual a apresentação coerente pressupõe o modo
controlador de autoridade. Assim, considerando as múltiplas leituras possíveis é
que se desestabiliza a compreensão de que o monopólio de certas culturas e classes
é apenas do Ocidente.

Logo, a etnografia depende muito mais do leitor do que propriamente do


autor do texto. Essa reflexão nos provoca a repensar nossa escrita sobre o Outro e
a relativizar o que lemos sobre os outros.

FIGURA 28 - BIQUÍNI E A BURCA

FONTE: Disponível em: <http://blogdomarcelogurgel.blogspot.com.br/


2013/02/o-biquini-e-burca.html>. Acesso em: 19 jul. 2016.

117
UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA

2.2 GRANDES RUPTURAS E NOVOS QUESTIONAMENTOS

FIGURA 29 - A CHEGADA DOS ANTROPÓLOGOS

FONTE: Disponível em: <http://www.cafecomsociologia.com>.


Acesso em: 19 jul. 2016.

A perspectiva que influencia a antropologia é uma perspectiva ocidental.


Esse pensamento europeu e norte-americano, no qual se fundou a antropologia, é
um ponto de vista possível, mas não é o único. Cada vez mais universidades de
todas as partes do mundo produzem discussões antropológicas com persistência
e seriedade. Por isso, neste último subtítulo queremos refletir sobre a relação da
hegemonia e subalternidade no âmbito da Antropologia. Não se trata de uma
questão geográfica, mas geopolítica.

Pensar em uma antropologia do mundo é considerar a produção clássica,


mas também a produção antropológica apropriada pelos nativos e, de certa maneira,
ressignificada a seu modo. Por isso, trata-se da emergência e visibilização de uma
comunidade transnacional a partir da premissa da globalização, questionamento
do pensamento hegemônico, transcendência da ideia de centro e periferia, indo
além das estruturas de poder para propor uma disciplina mais simétrica. Nesse
sentido, um olhar local se amplia e pode se tornar um olhar global.

Num contexto pós-colonial, considera-se que o sistema está baseado nas


relações entre unidades heterogêneas, que disputam poderes e saberes para

118
TÓPICO 3 | INQUIETAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DA ANTROPOLOGIA

se constituírem como tal. É preciso estabelecer negociações entre os mundos


imaginados e os mundos vividos, a fim de que a alteridade prevaleça e todos
possam ser ouvidos. Estar preparado para analisar esse novo mundo deve ser
um exercício constante do antropólogo, para que ele possa ser dialógico, e não
unilateral.

As sociedades complexas moderno-contemporâneas são heterogêneas,


híbridas e têm suas fronteiras borradas pelo convívio com outros contextos, povos
e histórias, por isso, o estudo antropológico, na atualidade, tem de estar atento
a essas multiplicidades e camadas sobrepostas. Nesse sentido, para aprender
é preciso desaprender. Trazer a perspectiva do escravizado, do indígena, do
subalterno por ele mesmo é uma luta de todos nós. O falar "por" é limitado e as
teorias nem sempre se encaixam.

E então, pergunta-se: com que ou quem a antropologia está compromissada?


As questões do nativo são as mesmas que as do antropólogo? Como a academia
interfere e modela a prática da experiência etnográfica? Quais posições temos em
campo? Qual posição política que vamos adotar? Que implicações isso tem para
nossos interlocutores? Somos militantes ou apenas evidenciamos uma realidade
parcial? De onde partimos para pesquisar?

Todas essas são questões novas aos antropólogos, entretanto pertinentes


ao contexto da prática etnográfica e suas implicações na sociedade. E por isso
temos de estar atentos não à antropologia, mas às antropologias que estão sendo
produzidas, para saber a qual queremos nos filiar e, conjuntamente, produzir
conhecimento sobre o mundo.

DICAS

Para maior aprofundamento da questão, indicamos o livro organizado


pelos antropólogos Gustavo Lins Ribeiro e Artur Escobar, intitulado
"Antropologias Mundiais: transformações da disciplina em sistema de
poder".

Fonte: Disponível em: <http://aa.revues.org/722>.

119
UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA

LEITURA COMPLEMENTAR

O RITUAL DO CORPO ENTRE OS NACIREMA

Horace Minner

Todas as culturas possuem uma configuração particular, um estilo.


Frequentemente, um determinado valor central ou uma forma de perceber o mundo
deixam suas marcas em várias instituições da sociedade. Neste artigo, Horace
Minner demonstra que “atitudes quanto ao corpo” têm influência generalizada
em muitas instituições da sociedade Nacirema. As crenças e práticas mágicas deste
povo apresentam aspectos tão pouco usuais, que nos parece importante descrevê-
las como exemplos dos extremos a que o comportamento humano pode chegar.

Embora, há mais de 20 anos, o Prof. Linton já tivesse chamado a atenção


dos antropólogos para o complexo ritual dos Nacirema, a cultura deste povo ainda
é pouco compreendida. Eles constituem um grupo norte-americano que vive no
território que se estende entre os Cree, do Canadá, aos Yaqui e Tarahumara, do
México, e aos Caribe e Aruque, das Antilhas. Pouco se sabe quanto à sua origem,
embora a tradição mítica afirme que eles vieram do Leste.

A cultura Nacirema se caracteriza por uma economia de mercado altamente


desenvolvida, que se beneficiou de um ‘habitat’ natural muito rico. Embora,
nesta sociedade, a maior parte do tempo das pessoas seja devotada à ocupação
econômica, uma grande porção dos frutos destes trabalhos, e uma considerável
parte do dia, são despendidas em atividades rituais. O foco destas atividades é
o corpo humano, cuja aparência e saúde constituem a preocupação dominante
dentro do ‘ethos’ deste povo.

A crença fundamental subjacente a todo o sistema parece ser a de que


o corpo humano é feio, e que sua tendência natural é a debilidade e a doença.
Encarcerado em tal corpo, a única esperança do homem é evitar essas características,
através do uso de poderosas influências do ritual e da cerimônia. Todo o grupo
doméstico possui um ou mais santuários dedicados a tal propósito. Os indivíduos
mais poderosos desta sociedade têm vários santuários em sua casa e, de fato, a
opulência de uma moradia é frequentemente aferida em termos da quantidade
destes centros de rituais que abrigam. O ponto focal do santuário é uma caixa ou
arca embutida na parede. Nesta arca são guardados os inúmeros feitiços e poções
mágicas, sem os quais nenhum nativo acredita que poderia viver.

Tais feitiços e poções são obtidos de vários curandeiros cujos serviços devem
ser retribuídos por meio de presentes substanciais. No entanto, o curandeiro não
fornece as poções curativas para os fiéis, decidindo apenas os ingredientes que
nela devem entrar, escrevendo-os, em seguida, em linguagem antiga e secreta. Tal
escrita deve ser decifrada pelos herbanários, os quais, mediante outros presentes,
fornecem o feitiço desejado. O feitiço não é descartado depois de ter servido a seu
propósito, mas colocado na caixa de mágica do santuário doméstico.

120
TÓPICO 3 | INQUIETAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DA ANTROPOLOGIA

Como esses materiais mágicos são específicos para certas doenças, e


considerando-se que as doenças reais ou imaginárias deste povo são muitas, a
caixa de mágica costuma estar sempre transbordando. Os pacotes mágicos são tão
numerosos que as pessoas esquecem sua serventia original, e temem usá-los de
novo.

Embora os nativos tenham se mostrado vagos em relação a essa questão,


só podemos concluir que a ideia subjacente ao costume de se guardar todos os
velhos materiais mágicos é a de que sua presença na caixa de mágica, diante da
qual os rituais do corpo são encenados, protege de alguma forma o fiel. Embaixo
da caixa de mágica existe uma pequena fonte. Todo dia, cada membro da família,
em sucessão, entra no santuário, curva a cabeça diante da caixa de mágica, mistura
diferentes tipos de água sagrada na fonte e realiza um breve rito de ablução.
Na hierarquia dos profissionais da magia, e abaixo do curandeiro em termos de
prestígio, estão os que são designados como ‘homens-da-boca-sagrada’.

Os Nacirema nutrem um misto de horror pela fascinação por suas bocas


que chega às raias da patologia. Acredita-se que a condição da boca possui uma
influência sobrenatural nas relações sociais. Assim, o ritual do corpo, cotidianamente
realizado por todos, inclui um rito bucal. O rito consiste na introdução de um
pequeno feixe de cerdas na boca, juntamente com uma espécie de creme mágico e,
em seguida, na movimentação deste feixe, segundo uma série de gestos altamente
ritualizados. Além deste rito bucal privado, as pessoas procuram um ‘homem-
da-boca-sagrada’, uma ou duas vezes por ano. No seu templo, este mago possui
uma impressionante parafernália que consiste em uma variedade de perfuratrizes,
furadores, sondas e agulhas.

O uso destes objetos no exorcismo dos perigos da boca implica uma quase
e inacreditável tortura ritual do fiel e, usando as ferramentas citadas, alarga
qualquer buraco que o uso tenha feito nos dentes. Se não se encontram buracos
naturais nos dentes, grandes seções de um ou mais dentes são serradas, para que
a substância sobrenatural possa ser aplicada. Na imaginação do fiel, o objetivo
destas aplicações é deter o apodrecimento dos dentes e atrair amigos. O caráter
extremamente sagrado e tradicional do mito fica evidente no fato de que os nativos
retornam, todo ano, ao ‘homem-da-boca-sagrada’, embora seus dentes continuem
a se deteriorar. Os curandeiros possuem um templo imponente, o Latipsoh, em
cada comunidade, de algum tamanho. As cerimônias mais elaboradas, necessárias
para o tratamento de fiéis considerados muito doentes, só podem ser realizadas
neste templo. Tais cerimônias envolvem não só o taumaturgo, mas também um
grupo permanente de vestais que se movimentam nas câmaras do templo com
uma roupa distintiva.

As cerimônias no Latipsoh podem chegar a ser tão violentas que


surpreende o fato de que uma razoável proporção dos nativos realmente doentes,
que entram no templo, consiga se curar. Crianças pequenas, cuja doutrinação é
ainda incompleta, costumam resistir às tentativas de levá-los ao templo, alegando
que ‘é aonde você vai para morrer’. Apesar disso, os doentes adultos não apenas
desejam, como ficam ansiosos para submeter-se à prolongada purificação ritual, se
121
UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA

possuem meios para tanto. Os guardiães do templo, não importa quão doente o
suplicante esteja ou quão grave a emergência, não admitem o fiel se ele não puder
dar um rico presente ao zelador.

Mesmo depois que se conseguiu a admissão e se sobreviveu às cerimônias,


os guardiães não permitem a saída do neófito até que este dê ainda outro presente.
O(a) suplicante, ao entrar no templo, é despido(a) de todas as suas roupas. Na
vida cotidiana, os Nacirema evitam a exposição de seus corpos quando das suas
funções naturais. O banho e a excreção são realizados somente na intimidade do
santuário doméstico, aonde são ritualizados, fazendo parte dos ritos corporais.
Poucos suplicantes no templo estão suficientemente bem para fazer qualquer coisa
que não seja ficar deitado em suas camas duras.

As cerimônias implicam desconforto e tortura. Com precisão ritual, as


vestais acordam a cada madrugada seus miseráveis crentes, rolam-nos em seus
leitos de dor, enquanto realizam abluções, cujos movimentos formalizados são
objeto de treinamento intensivo das vestais. Em outros momentos, elas inserem
varas mágicas na boca do fiel, ou obrigam-no a ingerir substâncias que são
consideradas curativas. De tempos em tempos, os curandeiros vêm até seus fiéis e
atiram agulhas, magicamente tratadas, em sua carne. O fato de que estas cerimônias
do templo possam não curar, ou até matar o neófito, não diminui de modo algum
a fé do povo nos curandeiros.

Para concluirmos, deve-se mencionar certas práticas que estão baseadas na


estética nativa, mas que dependem da aversão generalizada ao corpo e às funções
naturais. Há jejuns rituais para fazer pessoas gordas ficarem magras, e banquetes
cerimoniais para fazer pessoas magras ficarem gordas. Outros ritos ainda são
usados para tornar maiores os seios das mulheres, se eles são pequenos, e menores,
se são grandes. Nossa descrição da vida dos Nacirema certamente mostrou que eles
são um povo obcecado pela magia. É difícil compreender como eles conseguiram
sobreviver por tanto tempo, sob os pesados fardos que eles próprios se impuseram.
Mas, mesmo costumes tão exóticos quanto estes ganham seu verdadeiro sentido
quando encarados a partir do esclarecimento feito por Malinowski: “Olhando de
cima e de longe, dos lugares seguros e elevados da civilização desenvolvida, é
fácil ver toda a rudeza e a irrelevância da magia. Mas, sem este poder e este guia,
o homem primitivo não poderia ter dominado as dificuldades práticas como fez,
nem poderia o homem ter avançado até os mais altos estágios de civilização”.

FONTE: MINNER, Horace. Body ritual among the Nacirema. American Anthropologist, 1956.

122
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico você viu que:

• O conceito de cultura não está pronto e fechado, e pode ser pensado como
invenção.

• A escrita do texto etnográfico não é evidente, e permite uma profunda reflexão


sobre seus objetivos.

• E devemos estar atentos para acessar as antropologias mundiais, considerando


os contextos, a história e a geopolítica em questão.

123
AUTOATIVIDADE

1. Retome o texto "O ritual do corpo entre os Nacirema", de Horace Minner,


disponível na Leitura Complementar 1, e perceba que ele está falando dos
americanos – nacirema de trás para a frente é "american" –, ou seja, nós. A
ideia de fazer esse texto era para que justamente possamos estranhar os
nossos próprios costumes e rituais, de modo que assim nos aproximemos
desse outro que parece tão distante, por exemplo, o Latipsoh, de trás para a
frente é hospital, e assim vai. Discorra sobre os elementos do texto que você
reconhece na sua própria cultura.

2 - Comente sobre os novos questionamentos da antropologia e


como eles colocam em xeque as perspectivas estudadas até o
momento. Ou seja, pensar a antropologia daqui para a frente
é se basear nos clássicos e contemporâneos, mas se dando
conta de que há muito para avançar.

3 - Pensando na sua prática docente, construa um plano de aula sobre a


discussão de cultura desde os primórdios até este tópico, além de evidenciar
as práticas pedagógicas que poderiam facilitar a elucidação do tema.

124
UNIDADE 3

TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM
ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

A partir desta unidade você será capaz de:

• conhecer uma visão antropológica da educação;

• problematizar o modo de educar no cotidiano;

• descomplexificar a compreensão da educação.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está organizada em três tópicos. Neles você encontrará dicas,
textos complementares, observações e atividades que lhe darão uma maior
compreensão dos temas a serem abordados.

TÓPICO 1 – ANTROPOLOGIA E EDUCAÇÃO: TRABALHANDO A


ANTROPOLOGIA NO ESPAÇO ESCOLAR

TÓPICO 2 – DISCUSSÕES DE CONTEÚDOS

TÓPICO 3 – ANTROPOLOGIA: POR UMA EDUCAÇÂO INCLUSIVA

125
126
UNIDADE 3
TÓPICO 1

ANTROPOLOGIA E EDUCAÇÃO: TRABALHANDO


A ANTROPOLOGIA NO ESPAÇO ESCOLAR

1 INTRODUÇÃO

FIGURA 30 - CRIANÇAS NA ESCOLA

FONTE: Disponível em: <http://rede.novaescolaclube.org.br/files/


alunos-na-escola-15263jpg>. Acessado em: 26 jul. 2016.

Caro acadêmico! Compreender o espaço escolar não é algo evidente. O


cotidiano da sala de aula é um desafio aos estudantes, professores e gestores da
área da educação, por isso trazer o olhar antropológico para observar, vivenciar
e ensinar na esfera escolar é uma estratégia importante nos dias de hoje. Assim
como, conhecer o contexto sócio-histórico da instituição e da comunidade escolar
e observar com criticidade os objetivos do ato de ensinar na sociedade em que
vivemos é fundamental para formação do licenciando.

Esse olhar antropológico é um enquadramento que não tem apenas uma
perspectiva, mas que tenta abarcar diferentes pontos de vista e relacioná-los a fim
de indicar respostas possíveis para tantas indagações sobre a sociedade. Ao mesmo
tempo, se deseja perceber as complexidades, as camadas, os nós dos fenômenos
sociais, e não somente ter uma resposta simples, fácil, pronta e reducionista. Temos
de refletir de modo mais profundo! Dessa forma, a antropologia deve ajudar não
só a pensarmos sobre o outro, mas pensarmos em nós mesmos nesse processo de
leitura do mundo e imaginação a partir dele.
127
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

No entanto, o modo de enxergar o mundo é um exercício constante de


reflexão. E por trás dessas reflexões estão também concepções teóricas sobre o que
é e como funciona esse mundo. Ou seja, em meio aos problemas sociais, como a
violência, drogas, mendicância, tentamos explicar, entender e compreender seus
acontecimentos durante a prática cotidiana de convivência com o outro, visto que
compartilhamos ideias, espaços e vivências sobre o motivo e por que as coisas
acontecem. E nesta busca explicativa, sair do lugar comum, do único ponto de
vista, ou seja, da resposta ingênua faz com que estejamos em uma atenção constante
sobre o que pensamos e fazemos para nós e para os outros, principalmente dentro
da sala de aula. Logo, o professor deve ser um “pesquisador-em-ação” (MOREIRA,
1995) na sala de aula, e não um mestre com um saber congelado que “despeja” o
conteúdo para os seus alunos.

2 EDUCAÇÃO E ANTROPOLOGIA

Considerando as desigualdades sociais, históricas, econômicas e políticas


na nossa sociedade, estimular a crítica é fator essencial para que possamos perceber
a heterogeneidade que nos rodeia. Diferente do que diz o senso comum, ser crítico
não é ser negativo, falar mal sobre algo ou ser intrometido. A palavra "criticidade"
vem do grego e significa “discernir, interpretar, julgar, distinguir entre verdade
e erro", então quem ensina deve perceber as nuances dos fenômenos sociais e
fazer com que seus alunos e alunas compreendam as complexidades das questões
que envolvem a todos. Nesse sentido, um dos papéis fundamentais da escola é
possibilitar uma visão mais ampliada da realidade e permitir outras possibilidades
de pensamentos, questionamentos e percepções sobre o que acontece no nosso
mundo.

Como se diz, "sair de cima do muro" é se expor, defender, lutar e se
posicionar sobre o que ocorre na sociedade. Mas, para isso, precisamos estudar,
pesquisar, conhecer, debater, discutir, e o docente é uma das pessoas que mais
vai estimular essas ações e reações de seus estudantes. Mostrando que todos
somos responsáveis de alguma forma pelo que acontece no mundo social, e
podemos, sim, nos posicionar e modificar a realidade por um mundo mais justo
e igualitário. Se manter quieto e impassível também é uma posição que se toma,
e é preciso saber o que isso acarreta. Ou seja, a apatia dos indivíduos não garante
a desresponsabilização pelas mazelas do mundo, pelo contrário, a aparente
indiferença pode ser justamente responsabilizada pela conivência e insensibilidade
para com a desigualdade praticada.

Às vezes, tomamos uma versão da história como a correta, e não dos


damos conta de que existem outras versões para a mesma história. Cada um vai
defender aquela que lhe faz mais sentido, entretanto para isso temos de ir atrás a
fim de conhecer as outras versões e perceber quanto um olhar mais profundo dá
outras dimensões sobre o mesmo fato. Numa guerra, por que será que dividimos
um em "bonzinho" e outro em "mal"? Será que os dois lados não carregam um

128
TÓPICO 1 | ANTROPOLOGIA E EDUCAÇÃO: TRABALHANDO A ANTROPOLOGIA NO ESPAÇO ESCOLAR

teor de maldade e bondade? Mas então, quais critérios utilizaremos para pensar
de que lado estamos? O que sabemos sobre cada lado? Que informações vêm até
mim? Como as informações chegam? Será que existem outras maneiras de eu
conhecer essa realidade? Aqui, não queremos condenar ou vitimizar um dos lados,
entretanto, estar aberto para conhecer versões nos torna mais sensíveis para talvez
perceber que estamos errados. E que bom, pois errar é humano, e "sair de cima do
muro" pode ser muito compensador.

Logo, cabe nos conscientizarmos de que nosso etnocentrismo pode conter


uma dose de injustiça ao colocar uns acima de outros ou dizer quem é certo ou
errado, por isso, rever em que valores, ideais e noções estão pautadas nossas
concepções sobre o mundo pode ser um começo para utilizar a antropologia e
pensar as questões de educação. É no contato com o outro que praticamos nossa
alteridade e nos questionamos sobre como pensamos o outro, por isso exercitar
essa reflexão permite que nos coloquemos numa posição mais humilde e menos
soberba diante da sociedade moderno-contemporânea.

DICAS

Recomenda-se ver o vídeo da escritora Chimamanda Adichie sobre o perigo


da história única e reflexões que ela faz diante da sua história de vida e o
modo de conhecer o outro.
Disponível em: <https://youtu.be/ZUtLR1ZWtEY>.

As instituições formam uma rede simbólica, pautada num mundo de


significações, no qual a captação das categorias dispostas pelos homens pode ser
assimilável no sentido prático por outros homens, como evidencia Castoriadis
(1982). Logo, a escola é uma instituição social que favorece a socialização e torna
possível a instauração de uma nova significação operante no mundo social, pois
é no convívio diário com outros colegas, professores, funcionários, diretores que
os indivíduos incutem normas e regras sociais, aprendem os meios formais de
comunicação na sociedade, conhecem outras maneiras de aprender, acessam
diversos materiais e estabelecem vínculos sociais.

Sabemos que nem todas as pessoas tiveram a oportunidade de frequentar a


escola como um espaço formal de aprendizagem, por isso enfatizamos que o espaço
escolar não é o único local que permite ao indivíduo aprender. Muitas vezes ouve-
se dizer "Eu frequentei a escola da vida!", e nessa afirmação deve-se considerar a
dimensão experiencial como um processo de aprendizagem extremamente válido.

129
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

Entretanto, hoje em dia, cada vez mais a aprendizagem formal tem sido exigência
para as vagas de empregos nas diferentes áreas, logo, as formações, graduações
e especializações ensinam não só o conteúdo, mas como se posicionar, como se
relacionar no ambiente de trabalho e como se socializar na área de conhecimento
desejado. Ou seja, a instituição escolar deixou de permear uma fase da vida do
indivíduo para permear a vida do indivíduo retomando a ideia de que a socialização
permitida nesse âmbito favorece aprendizagens distintas.

Ou seja, "saindo" da família para a escola, o indivíduo é levado a perceber


que ele não é mais o centro do mundo, como era tratado em sua família. Na escola,
nem sempre será o centro da atenção, nem sempre terá todas as suas vontades
atendidas e terá de obedecer a regras que talvez não sejam tão familiares. Ao
mesmo tempo que esse processo é cheio de altos e baixos, é importante considerar
o espaço escolar como locus importante no processo de aprendizagem de estar no
mundo. Lidar com emoções, conviver com outras pessoas e adaptar-se a situações
adversas também faz com que o indivíduo se flexibilize no seu modo de estar no
mundo. Conforme enfatiza Ciavatta (2001), a prática educativa deveria incentivar
o aluno a realizar uma prática mediadora no campo dos objetos problematizados
nas suas múltiplas relações de tempo e espaço, sob a ação dos sujeitos sociais, em
que se realiza numa perspectiva de análise e não numa relação de causalidade e
cronologia.

No âmbito da educação, podemos simplesmente reproduzir o que
aprendemos ou criar novas possibilidades e potencialidades ao ensinar, a fim
de chegarmos a uma educação mais democrática e inclusiva. Assim, o educador
será evidenciado nesse tópico como um facilitador, no qual a interação no espaço
escolar permite um ato emancipatório. Nesse ínterim, o docente ensina conteúdo
e conduta, ao mesmo tempo que também aprende a partir do que seus estudantes
trazem para a sala de aula, por isso dizemos que o ensino é um processo de ensino-
aprendizagem que se dá no âmbito da sala de aula.

A ideia de uma “pedagogia de gerenciamento” (GIROUX, 1997), quando o


professor apresenta um conhecimento pronto para ser deglutido e é um repetidor
de fórmulas, deve ser combatida. Nesse sentido, cabe ao docente rever a sua
metodologia a fim de criar estratégias para desenvolver um pensamento crítico
em seus alunos e alunas. Logo, é necessário o professor agir com mais “espírito
pedagógico” (MAKARENKO, 2006) do que baseado em seus sentimentos frustrados
por ser um homem (ou mulher) que não criou uma pedagogia maravilhosa e
que revolucionou práticas docentes, por isso a formação é uma etapa relevante
para que o estudante se depare com a realidade na sala de aula. Ali, neste espaço
determinado e num certo tempo, o docente vai experienciar e "se virar" para dar
aula, fazer a chamada, pedir a atenção dos estudantes e dividir com eles esse
momento de aprendizagem que será aprendido no cotidiano da escola. Não há
cartilhas para ensinar a ensinar, apenas diretrizes que podem ser seguidas ou não.

130
TÓPICO 1 | ANTROPOLOGIA E EDUCAÇÃO: TRABALHANDO A ANTROPOLOGIA NO ESPAÇO ESCOLAR

Cada aula é uma aula, cada turma é uma turma, cada escola é uma escola, e
apesar do processo educacional que desempenha, a vivência do docente é única. Por
isso, cabe continuar considerando a sala de aula como um espaço de construção de
ideias, valores e visões de mundo que o professor provoca para intermediar o que
deve ser conhecido e o que apreende a subjetividade do aluno (MIZUKAMI, 1986),
deixando de lado a aplicação de fórmulas pedagógicas que limitam a atuação do
aluno. Estimular essas potencialidades dos estudantes para ser mais pertinente
para uma educação mais democrática e inclusiva, como veremos adiante. Ainda
que o aluno não possa ter liberdade total em sala de aula, afinal de contas está
em uma instituição escolar, com regras e éticas, ele precisa de um “clima” na sala
de aula que possibilite liberdade para aprender, assim como descreve Mizukami
(1986), quando fala da abordagem humanista, e não de um ambiente em que o
professor os faça se sentirem oprimidos ou culpados por uma situação estrutural
do sistema econômico refletido na escola.

Assim deve-se ter consciência de que, como sugere Mészáros (2005), o


professor, apesar de se achar crítico do sistema, acaba por favorecer ainda mais
uma internalização dos valores da lógica capital, que dificulta a realização de uma
prática docente diferente, já que ele não é passivo desse processo, pelo contrário,
querendo ou não, realiza uma aceitação ativa da lógica vigente, e sua criticidade
é limitada por ela. Também por sua vida de trabalho intenso, este professor não
parece ter tempo e paciência para pensar e refletir sobre sua prática de ensino
e sobre as situações de aprendizagens da sala de aula, para, então, continuar a
lapidar a metodologia empregada, como sugere Moreira (1995).

FIGURA 31 - AULA EM RODA

FONTE: Disponível em: <http://novaescola.org.br/fundamental-2/ano-alunos-8o-ano-se-


tornaram-escritores-735246.shtml#ad-image-0>. Acessado em: 17 ago. 2016.

131
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

De modo que o método de o professor expor a sua aula não deixa claras
as contradições entre o “currículo oficial”, das normas e orientações da instrução
formal e o “currículo oculto”, dos valores e crenças não declarados que são
transmitidos aos estudantes junto com o conteúdo formal (GIROUX, 1997). Por
exemplos, podemos pensar no modo de sentar na sala de aula. O professor em
frente aos alunos demonstra poder, autoridade, sabedoria, mas em roda se coloca
em situação de igualdade com os estudantes para que todos possam se ver e
ser vistos. Quando o professor enfatiza alguns pensadores com mais ênfase do
que outros, vai inculcando nos estudantes, mesmo que não explicitamente, uma
simpatia com algumas ideologias em detrimento de outras, “introjetando” uma
espécie de “currículo oculto” em seus alunos. Entretanto, para se pensar uma
educação mais democrática, o professor tem de estar atento a que a teoria curricular
deveria contestar os discursos hegemônicos e não os legitimar (MOREIRA, 1995).

Por isso, Mészáros (2005) traz como proposta que o professor se afaste
dessa lógica do capital que influencia todos os âmbitos de nossas vidas, e também
a educação, que acaba por reproduzir às crianças valores perversos do capitalismo
que não as deixa mudar de ponto de vista sobre a construção social pautada
em normas brutas e cruéis. Nesse sentido, não se está negando o atual modelo
econômico, mas enfatiza-se que o professor paute a multiplicidade de processos
políticos possíveis, e não se baseie apenas no vigente para explicitar seus pontos
de vista. Levando-se em conta que currículo escolar de cada disciplina é que
direciona o que será ensinado em sala de aula, é necessário pensar no currículo
oferecido, pois, como demonstra Moreira (1995), currículo e o conhecimento são
indissociáveis, uma vez que os dois participam do processo pelo qual o indivíduo
adquire, assimila e constrói seu entendimento do mundo.

Dessa forma, o modo como olhamos o outro tem relação com o modo
como aprendemos o conhecimento, e esse é um aporte importante de reflexão. E
aqui, a antropologia que está amparada como conhecimento científico nos ajuda
a superar o etnocentrismo que pauta o mundo intersubjetivo, de modo que o
professor vai perceber sua visão etnocêntrica para tentar se afastar dela e superar
a sua própria cultura – tanto em termos políticos, econômicos e sociais – para
poder conhecer e compreender melhor a realidade de outro, podendo, com isso,
dividir com seus estudantes conteúdos mais plurais e diversos no âmbito da sala
de aula. Deste modo, a educação deve ser percebida como um projeto que pode ser
perverso, porque partindo da visão ocidental, ele é autocentrado, homogeneizador
e etnocêntrico. E ter consciência dessa questão faz com que o professor possa
relativizar seu posicionamento de uma maneira mais firme, e se abrir para uma
educação mais democrática, que seja inclusiva e dê conta das particularidades dos
estudantes, para que todos possam compartilhar as discussões e aprendizagens
em sala de aula de uma maneira profícua.

Pensando que é na sala de aula que o diálogo deve imperar, considera-


se que diálogo faz parte do processo de socialização e aprendizagem, e é através
dele que se dá a troca de conhecimento e transmissão de herança cultural. Por
isso, compreender o que aprendemos é um saber localizado, nos faz pensar em

132
TÓPICO 1 | ANTROPOLOGIA E EDUCAÇÃO: TRABALHANDO A ANTROPOLOGIA NO ESPAÇO ESCOLAR

situações pedagógicas que apresentem outros saberes. Assim, os estudantes


podem conhecer e se apropriar de outras lógicas de conhecimentos e estarem
mais permeáveis para compreender realidades que estejam mais distantes a eles,
desenvolvendo mecanismos democráticos, perante a diversidade social e cultural
existente no nosso mundo.

DICAS

Assista ao filme Pro dia nascer feliz, de João Jardim,


realizado em 2007, que mostra as diferentes escolas do
Brasil e, consequentemente, as situações vivenciadas
pelos estudantes, práticas pedagógicas dos funcionários
escolares e condições do ambiente escolar.

FONTE: Disponível em: <https://www.youtube.com/


watch?v=29zuO59qYE8>.

Nesse sentido, podemos nos apropriar da análise crítica de Gramsci (2005),


quando ele dizia que a escola atraía os filhos do proletariado para transmitir-lhes
a ideologia dominante e ocupar o mercado de trabalho, reproduzindo as relações
sociais desiguais e mantendo o sistema econômico vigente. Logo, teríamos que
rever o papel da escola, e consideramos que ali pode ser um local de construção
contra-hegemônica-operária e de mudança da sociedade existente, de modo a
formar "intelectuais orgânicos", compromissados com os ideais de transformação
da sociedade. Ou seja, a escola seria um ambiente de luta pela hegemonia.

Logo, entende-se que o que é visto, aprendido e trocado em sala de aula


ultrapassa os limites das escolas e rebate em outras esferas da sociedade. Por isso,
não só o que se desenvolve na sala de aula permite transformar a sociedade, bem
como podemos modificar o próprio espaço escolar. Ou seja, o conhecimento não
está pronto, a escola não está fadada a ser sempre a mesma coisa, a sociedade não é
naturalmente assim, de forma que tudo são construções sociais até mesmo enquanto
poder institucional. Se pensarmos na época quando nossos pais estudaram, eles
vão falar de uma outra escola e, com certeza, no futuro poderemos construir outra
escola também.

133
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

O que está se dizendo é que há uma relação próxima entre educação e


cultura, e é esse aporte que envolve ensinar e aprender em todas as dimensões da
vida social. Conforme diz Brandão (2009, p. 12),

a educação é – como tudo o mais que é humano e é criação de seres


humanos – uma dimensão, uma esfera interativa e interligada a
outras, um elo, uma trama (no bom sentido da palavra) na teia de
símbolos e saberes, de sentidos e significados, como também de
códigos, de instituições que configuram uma cultura, uma pluralidade
interconectada (não raro, entre acordos e conflitos) de culturas e entre
culturas, situadas em uma ou entre várias sociedades.

Ou seja, a antropologia e educação se aproximam na discussão sobre o
conhecimento e relacionar seus conceitos e conteúdos pode nos dar pistas para
repensar como a educação tem atuado ao longo dos anos, além de problematizar
as potencialidades e possibilidades em sala de aula, junto aos estudantes. Trocar
conhecimento e aprendizagens é um processo contínuo, que ultrapassa a instituição
escolar e nos provoca a pensar.

Podemos ir mais adiante e pensar como propõe Ingold (2014), a antropologia
como uma prática da educação na qual o modo de aprender também se relaciona
com a cultura na qual estamos e temos de ter uma postura para aprender a
aprender. Nesse sentido, essa aprendizagem supõe que estamos dispostos a
estudar as condições e as possibilidades de ser humano, mais do que se dedicar a
uma disciplina específica. Essa atenção com o que se deseja aprender se estabelece
num constante processo de educação enquanto uma postura que se aprende a ter
e desenvolver.

O processo educacional é permeado por uma rede complexa de atores,


instituições, disciplinas, conteúdos e práticas, e o sujeito vivenciando esse cotidiano
se apropria de aprendizagens para estabelecer a sua atenção para com o mundo.

DICAS

Acesse o link a seguir e veja o trabalho do fotógrafo inglês Julian Germain, que
fotografou as salas de aula de vários locais do mundo em busca de mostrar essas diferenças
dos contextos escolares. Vale a pena refletir!

LINK: Disponível em: <https://catracalivre.com.br/geral/educacao-3/indicacao/o-mundo-e-


uma-escola-conheca-diferentes-salas-de-aula-ao-redor-do-globo/>. Acessado em: 17 ago.
2016.

134
TÓPICO 1 | ANTROPOLOGIA E EDUCAÇÃO: TRABALHANDO A ANTROPOLOGIA NO ESPAÇO ESCOLAR

3 DESIGUALDADES NA EDUCAÇÃO: UM OLHAR DA


ANTROPOLOGIA

Alguns autores pesquisaram a respeito da desigualdade educacional.


Durkheim (1987; 1995) apresenta suas reflexões em relação à organização do ensino
público e sinaliza a importância da educação escolar, a partir de sua função coletiva
e civilizadora, na organização dos jovens para a vida social. Southwell (2008, p. 121)
relata, na modernidade, que “os sistemas de escolarização foram estabelecidos em
torno da ideia de que a sociedade era resultado da ação educacional”. Aspectos
que nos apresentam a extensão da importância dada à educação pública no século
XIX e as ideologias em suas probabilidades civilizatórias e também sua efetiva
ação no desenvolvimento de um trabalhador atento às novas formas de produção
econômica, segundo Tura (2014).

Forquin (1995) relata que as dificuldades ao prosseguimento dos estudos


estão relacionadas à origem social dos alunos e não ao talento individual. Estas
observações reforçam a discussão referente aos déficits culturais de certos grupos
sociais e o desajustamento de currículos escolares pautados nos códigos culturais de
uma elite social erudita. Pierre Bourdieu (1999) analisou “as desigualdades frente
à escola e à cultura”, onde sua referência era aquilo que se podia compreender
como uma expectativa, uma estimativa “objetiva” de sucesso e fracasso escolar
baseada nas diferentes origens sociais dos estudantes.

Bourdieu (1999, p. 41) critica a “escola libertadora”, que tem a função


de propiciar a mobilidade social numa sociedade democrática. Dados de
levantamentos estatísticos realizados indicavam que “um jovem da camada
superior tem oitenta vezes mais chances de entrar na universidade que o filho de
um assalariado agrícola e quarenta vezes mais que um filho de operário”. Para
Bourdieu, é necessário descrever os mecanismos que determinam essas diferenças
ou a eliminação contínua das crianças dos grupos mais desfavorecidos.

Deste modo, o autor trabalha com a noção de capital cultural, que nada mais
é que um conjunto de códigos de linguagem, valores, costumes, saberes e gostos
próprios de uma cultura letrada e erudita que é transmitida como herança cultural
aos filhos dos indivíduos posicionados nos grupos sociais mais favorecidos. A
instituição escolar determina seu currículo tendo por embasamento os códigos
dessa cultura letrada e erudita, que por sinal também é a matriz da produção do
conhecimento científico. Deste modo, a família de origem dos indivíduos marca
de forma substancial a trajetória escolar do aluno. “O capital cultural é um ter
que se tornou ser, uma propriedade que se fez corpo e tornou-se parte integrante
da ‘pessoa’, um ‘habitus’” (BOURDIEU, 1999b, p.74-75). Já Tura (2014, p. 439)
afirma que “A instituição escolar, ao conferir àquele que possui o capital cultural
o reconhecimento de seu saber e de sua competência – o diploma –, sanciona as
diferenças relativas à incorporação dos benefícios econômicos, sociais e culturais”

135
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

(TURA, 2014, p. 439).

No Brasil, na década de 1970, a política de universalização da educação


básica foi aplicada, com objetivo de completa cobertura, que só foi finalizada no
século XX. Contudo, universalização não significou igualdade de oportunidades,
já que a massificação do ensino primário e secundário se deu em detrimento da
qualidade. Criando um sistema dual (desigual), no qual os pobres vão para escolas
primárias e secundárias públicas e os que possuem maior poder aquisitivo mandam
seus filhos para escolas primárias e secundárias particulares. As desigualdades
raciais e de gênero também se apresentam entre os dados educacionais.

TABELA 2 – DADOS EDUCACIONAIS

Taxa de frequência líquida a estabelecimento de ensino da população


residente de
6 a 24 anos de idade, por grupos de idade, nível de ensino e cor ou raça,
segundo as Grandes Regiões – 2013
Taxa de frequência líquida a estabelecimento de ensino da população

residente de 6 a 24 anos de idade, por grupos de idade e nível de ensino (%) (1)
Grandes Regiões
6 a 14 anos, 15 a 17 anos, 18 a 24 anos,

no Ensino Fundamental no Ensino Médio no Ensino Superior (2)

Branca

Brasil 92,7 63,6 23,5


Norte 91,6 53,8 19,2
Nordeste 91,5 52,9 19,7
Sudeste 93,1 69,5 24,4
Sul 93, 62,9 24,
Centro-Oeste 92,9 62,8 29,4

Preta ou parda

Brasil 92,4 49,5 10,8


Norte 91,5 42,8 10,5
Nordeste 91,6 44, 9,5
Sudeste 93,7 57,3 10,9
Sul 94,1 48,5 9,6
Centro-Oeste 92, 54, 17,3
       

FONTE: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2013.

(1) Exclusive as pessoas de cor ou raça amarela e indígena. (2)


Exclusive mestrado e doutorado.

136
TÓPICO 1 | ANTROPOLOGIA E EDUCAÇÃO: TRABALHANDO A ANTROPOLOGIA NO ESPAÇO ESCOLAR

QUADRO 2 - DADOS EDUCACIONAIS POR GÊNERO

Distribuição das pessoas de 25 anos ou mais de idade, por sexo, segundo os


grupos de anos de estudo – Brasil – 2014
Grupos de anos de Total Homens Mulheres
estudo
Sem instrução e menos 11,7 12,1 11,3
de 1 ano
1 a 3 anos 9,6 10,0 9,2
4 a 7 anos 22,3 23,2 21,5
8 a 10 anos 13,8 14,5 13,3
11 a 14 anos 30,1 29,2 30,9
15 anos ou mais 12,4 11,1 13,6
Não determinados 0,1 0,1 0,1
FONTE: IBGE (2014)

Estudos sobre a distribuição de renda mostram a educação como fator


fundamental para explicar diferenças nos salários. É inegável que há, em
geral, uma forte correlação entre o número de anos de estudo e o salário
percebido, mas talvez isso seja uma leitura incompleta da natureza da
estrutura distributiva (LUNA; KLEIN, p. 2009).

De 2007 para 2014, o nível de instrução obteve um crescimento, o grupo de


pessoas com pelo menos 11 anos de estudo, na população de 25 anos ou mais de
idade, passou de 33,6% para 42,5%. O nível de instrução feminino manteve-se mais
elevado que o masculino, segundo o IBGE. Em 2014, no contingente de 25 anos ou
mais de idade, a parcela com pelo menos 11 anos de estudo representava 40,3%,
para os homens, e 44,5%, para as mulheres, a partir dos dados apresentados pela
PNAD.

137
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

LEITURA COMPLEMENTAR
TABUS ACERCA DO MAGISTÉRIO

Theodor Adorno

O que irei expor constitui apenas a apresentação de um problema; nem é


uma teoria constituída, para o que não tenho legitimidade por não ser pedagogo,
tampouco o relato de resultados de investigações empíricas. Seria necessário
acrescentar pesquisas ao que apresento, sobretudo estudos de casos individuais,
principalmente em termos psicanalíticos. Minhas considerações prestam-se no
máximo a tornar visíveis algumas dimensões da aversão em relação à profissão
de professor, que representam um papel não muito explícito na conhecida crise
de renovação do magistério, mas que, talvez até por isto mesmo, são bastante
importantes. Ao fazê-lo, tocarei simultaneamente, ao menos por alto, numa série
de problemas que se relacionam com o próprio magistério e sua problemática, na
medida em que as duas coisas dificilmente podem ser separadas.

Permitam-me começar pela exposição da experiência inicial: justamente


entre os universitários formados mais talentosos que concluíram o exame oficial,
constatei uma forte repulsa frente aquilo a que são qualificados pelo exame oficial,
e em relação ao que se espera deles após este exame. Eles sentem seu futuro como
professores como uma imposição, a que se curvam apenas por falta de alternativas.
É importante ressaltar que tenho a oportunidade de acompanhar um contingente
não desprezível de tais formados, com motivos para supor que não se trata de uma
seleção negativa.

Muitos dos motivos de tal aversão são racionais e tão conhecidos que não
preciso me deter neles. O principal é a antipatia em relação ao que se encontra
regulamentado, ao que se encontra disposto por meio do desenvolvimento
definido por meu amigo Hellmut Becker como dirigido à escola administrada.
Existem também motivações materiais: a imagem do magistério como profissão de
fome aparentemente é mais duradoura do que corresponde à própria realidade na
Alemanha. A desproporção que registro por esta via parece-me, já me adiantando,
típica para todo o conjunto em questão, caracterizado pelas motivações subjetivas
da aversão contra o magistério, em especial as que são inconscientes. Tabus
significam, a meu ver, representações inconscientes ou pré-conscientes dos
eventuais candidatos ao magistério, mas também de outros, principalmente das
próprias crianças, que vinculam esta profissão como que a uma interdição psíquica
que a submete a dificuldades raramente esclarecidas. Portanto utilizo o conceito
de tabu de um modo relativamente rigoroso, no sentido da sedimentação coletiva
de representações que, de um modo semelhante àquelas referentes à economia,
já mencionadas, em grande parte perderam sua base real, mais duradouramente
até do que as econômicas, conservando-se, porém, com muita tenacidade como
preconceitos psicológicos e sociais, que por sua vez retroagem sobre a realidade
convertendo-se em forças reais. [...]

138
TÓPICO 1 | ANTROPOLOGIA E EDUCAÇÃO: TRABALHANDO A ANTROPOLOGIA NO ESPAÇO ESCOLAR

Nesta medida, conforme a percepção vigente, o professor, embora sendo


um acadêmico, não seria socialmente capaz; quase poderíamos dizer: trata-se
de alguém que não é considerado um "senhor", nos termos em que este termo
é usado no novo jargão alemão, aparentemente relacionado à alegada igualdade
de oportunidades educacionais. Numa complementariedade peculiar parece
encontrar-se o inabalado prestígio do professor universitário, apoiado inclusive
em estatísticas. De um lado, o professor universitário como a profissão de maior
prestígio; de outro, o silencioso ódio em relação ao magistério de primeiro e
segundo graus; uma ambivalência como esta remete a algo mais profundo. Na
mesma ordem de questões situa-se a proibição do título de "professor", negado
na Alemanha pelos docentes universitários aos docentes do segundo grau (hoje
chamados de Studienräte, algo como "conselheiro de estudos"). Em outros países,
como a França, não existe essa diferenciação rigorosa dividindo um sistema, o
que possibilita uma ascensão continua. Não tenho condições de avaliar se isto
influencia o próprio prestígio do magistério e os aspectos psicológicos a que me
refiro.

Os que são mais diretamente afetados pela questão deveriam acrescentar
a esses sintomas outros mais impositivos. Mas os mencionados até aqui deveriam
bastar para possibilitar algumas especulações. Afirmei que na Alemanha a pobreza
do professor é uma imagem do passado. Contudo, permanece inquestionavelmente
a discrepância entre a posição material do docente e a sua exigência de status
e poder, que deveriam lhe corresponder ao menos conforme prega a ideologia
vigente. Esta discrepância não deixa de afetar o espírito. Schopenhauer atentou
para essa situação no que se refere aos docentes universitários. Acreditava que o
comportamento subalterno que constatava neles há mais de cem anos relacionava-
se a seus péssimos salários. [...]

Conforme o sentido dessas imagens, o professor é um herdeiro do escriba,


do escrivão. Como já assinalei, o menosprezo de que é alvo tem raízes feudais e
precisa ser fundamentado a partir da Idade Média e do início do Renascimento;
por exemplo, na "Canção dos Nibelungos", onde se expressa o desprezo de Hagen,
que considera o capelão um débil, justamente aquele capelão que a seguir escaparia
com vida. Cavaleiros feudais cuja educação passou pelos livros constituíram
exceções; caso contrário, o nobre Hartmann von der Aue não teria se vangloriado
tanto de sua capacidade de leitura. Além disso, há que se acrescentar a influência
de antigas referências de professores como escravos. 1 O intelecto encontrava-se
separado da força física. É certo que sempre detinha uma determinada função
na condução da sociedade, mas tornava-se suspeito em qualquer lugar onde as
prerrogativas da força física sobreviveram à divisão do trabalho. Este passado
distante na história ressurge permanentemente. O menosprezo pelos professores
que certamente existe na Alemanha, e talvez inclusive nos países anglo-saxônicos,
ao menos na Inglaterra, poderia ser caracterizado como o ressentimento do
guerreiro que acaba se impondo ao conjunto da população pela via de um
mecanismo interminável de identificações. Todas as crianças revelam afinal uma
forte tendência a se identificar com "coisas de soldados", como se diz tão bem hoje
em dia; lembro apenas o prazer com que os meninos se fantasiam de cowboys, e a

139
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

satisfação com que correm "armados" por aí. Ao que tudo indica, eles reproduzem
de novo, ontogeneticamente, o processo filogenético, que gradualmente libertou
os homens da violência física. Todo o complexo da violência física, bastante
dotado de ambivalência e de forte conteúdo afetivo em um mundo em que ela é
exercida somente nas situações-limite por demais conhecidas, desempenha aqui
seu papel decisivo. Numa anedota famosa o condottiere Georg von Frundsberg
bate nos ombros de Lutero na Dieta de Worms dizendo: "Padrezinho, padrezinho,
agora segues um caminho perigoso". Uma atitude em que se misturam o respeito
pela independência do espírito e um desprezo. Ainda que tênue, por quem, não
portando armas, logo pode se tornar vítima de esbirros. Movidos por rancor, os
analfabetos consideram corno sendo inferiores todas as pessoas estudadas que se
apresentam dotadas de alguma autoridade, desde que não sejam providas de alta
posição social ou do exercício de poder, como acontece no caso do alto clero. O
professor é o herdeiro do monge; depois que este perde a maior parte de suas
funções, o ódio ou a ambiguidade que caracterizava o ofício do monge é transferido
para o professor.

A ambivalência frente aos homens estudados é arcaica. É verdadeiramente


mítico o impressionante conto em que Kafka narra o assassinato do médico do
interior rural que atendia a um chamado noturno que se revelaria falso; a etnologia
sabe que o curandeiro ou o cacique tanto pode usufruir de honrarias quanto pode
ser sacrificado em determinadas situações. Pode-se perguntar por que o tabu
arcaico e a ambivalência arcaica foram transferidos justamente aos professores,
enquanto outras profissões intelectuais ficaram livres deles. Explicar por que algo
não ocorreu sempre implica grandes dificuldades do ponto de vista da teoria do
conhecimento. Limitar-me-ei a uma consideração baseada no senso comum. Os
juristas e os médicos não se subordinam àquele tabu e são igualmente profissões
intelectuais. Mas estas constituem o que se chama hoje de profissões livres.
Subordinam-se à disputa concorrencial; são providas de melhores oportunidades
materiais, mas não são contidas e garantidas por uma hierarquia de servidor
público, e por causa dessa liberdade gozam de maior prestígio. Aqui se anuncia
um conflito social possivelmente dotado de alcance maior. Uma ruptura no próprio
plano da burguesia, ao menos na pequena burguesia, entre os que são livres e
ganham mais, embora sua renda não seja garantida, e que gozam de um certo ar
de nobreza e ousadia, e, por outro lado, os funcionários permanentes e com pensão
assegurada, invejados por causa de sua segurança, mas desprezados enquanto
se assemelham a verdadeiros animais de carga em escritórios e repartições,
com horários fixos e vida regrada pelo relógio de ponto. Por sua vez, os juízes e
funcionários administrativos têm algum poder real delegado, enquanto a opinião
pública não leva a sério o poder dos professores, por ser um poder sobre sujeitos
civis não totalmente plenos, as crianças. O poder do professor é execrado porque
só parodia o poder verdadeiro, que é admirado. Expressões como "tirano de
escola" lembram que o tipo de professor que querem marcar é tão irracionalmente
despótico como só poderia sê-lo a caricatura do despotismo, na medida em que
não consegue exercer mais poder do que reter por uma tarde as suas vítimas,
algumas pobres crianças quaisquer.

140
TÓPICO 1 | ANTROPOLOGIA E EDUCAÇÃO: TRABALHANDO A ANTROPOLOGIA NO ESPAÇO ESCOLAR

O reverso dessa ambivalência é a adoração mágica dispensada aos


professores em alguns países, como outrora na China, e em alguns grupos, como
entre os judeus devotos. O aspecto mágico da relação com os professores parece
se fortalecer em todos os lugares onde o magistério é vinculado à autoridade
religiosa, enquanto a imagem negativa cresce com a dissolução dessa autoridade.
É digno de nota que os professores que gozam do maior prestígio na Alemanha,
ou seja, justamente os acadêmicos universitários, na prática muito raramente
desempenham funções disciplinares, e, ao menos de modo ideal e para a opinião
pública, são pesquisadores produtivos que não se fixam no plano pedagógico
aparentemente ilusório e secundário de acordo com a exposição anterior. O
problema da inverdade imanente da pedagogia estaria em que o objeto do
trabalho é adequado aos seus destinatários, não constituindo um trabalho objetivo
motivado objetivamente. Em vez disso, este seria pedagogizado. Só isto já bastaria
para dar às crianças inconscientemente a impressão de estarem sendo iludidas.
Os professores não reproduzem simplesmente de um modo receptivo algo já
estabelecido, mas a sua função de mediadores, um pouco socialmente suspeita
como todas as atividades da circulação, atrai para si uma parte da aversão geral.
Max Scheler disse certa feita que só atuou pedagogicamente porque nunca tratou
seus estudantes de maneira pedagógica. Se me permitem a observação pessoal, a
minha própria experiência confirma inteiramente este ponto de vista. Ao que tudo
indica, o êxito como docente acadêmico deve-se à ausência de qualquer estratégia
para influenciar, à recusa em convencer. [....]

Mencionei a função disciplinar. Se não me engano, com ela toco na questão


central, embora seja necessário repetir que não se trata de conclusões de pesquisa.
Por trás da imagem negativa do professor encontra-se o homem que castiga, figura
que também ocorre no Processo de Kafka. Mesmo após a proibição dos castigos
corporais, continuo considerando este contexto determinante no que se refere aos
tabus acerca do magistério. Esta imagem representa o professor como sendo aquele
que é fisicamente mais forte e castiga o mais fraco. Nesta função, que continua a
ser atribuída ao professor mesmo depois que oficialmente deixou de existir, e em
alguns outros lugares parece constituir-se em valor permanente e compromisso
autêntico, o docente infringe um antigo código de honra legado inconscientemente
e com certeza conservado por crianças burguesas. Pode-se dizer que este não é
um jogo honesto, limpo, não é um fair play. Esta unfairness (desonestidade) – e
qualquer docente o percebe, inclusive o universitário – também afeta a vantagem
do saber do professor frente ao saber de seus alunos, que ele utiliza sem ter direito
para tanto, uma vez que a vantagem é indissociável de sua função, ao mesmo
tempo em que sempre lhe confere uma autoridade de que dificilmente consegue
abrir mão. Esta unfairness existe na ontologia do professor, na medida em que
excepcionalmente posso usar o termo ontologia neste contexto. É só pensar como o
professor universitário pode dispor da cátedra em longas exposições sem qualquer
contestação, para se compartilhar este resultado. Quando a seguir o professor
oferece aos estudantes a oportunidade de perguntar, procurando aproximar a aula
expositiva de um seminário, ironicamente há muito pouca reciprocidade por parte
dos alunos. Estes hoje em dia parecem preferir aulas como preleções expositivas
dogmáticas. Mas de um certo modo não é somente a profissão do magistério que
impele o professor à unfairness: o fato de saber mais, ter a vantagem e não poder

141
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

negá-la. Ele também é impelido nessa direção pela sociedade, e isto me parece
mais profundo.

A sociedade permanece baseada na força física, conseguindo impor suas
determinações quando é necessário somente mediante a violência física, por mais
remota que seja esta possibilidade na pretensa vida normal. Da mesma maneira,
as disposições da chamada integração civilizatória que, conforme a concepção
geral, deveriam ser providenciadas pela educação, podem ser realizadas nas
condições vigentes ainda hoje apenas com o suporte do potencial da violência
física. Esta violência física é delegada pela sociedade e ao mesmo tempo é
negada nos delegados. Os executantes são bodes expiatórios para os mandantes.
O modelo originário negativo – refiro-me a um imaginário de representações
inconscientemente efetivas, e não a uma realidade, a não ser que esta seja referida
de modo apenas rudimentar – é constituído pelo carcereiro ou, melhor ainda, o
suboficial. Não sei até que ponto é procedente a afirmação de que nos séculos
XVII e XVIII soldados veteranos eram aproveitados como professores nas escolas
primárias. Mas certamente esta crença popular é bastante característica para a
imagem do professor. A expressão "quem malha o traseiro", acima referida, tem
conotação militar; inconscientemente os professores talvez sejam imaginados
como veteranos, como uma espécie de mutilados, como pessoas que no âmbito
da vida propriamente dita do processo real de reprodução da sociedade não têm
nenhuma função, contribuindo apenas de um modo pouco transparente e pela
via de uma graça especial à continuidade do conjunto e de sua própria vida. Mas,
em decorrência dessa imagem, quem se opõe ao castigo físico defende o interesse
do professor ao menos tanto quanto o interesse do aluno. Só é possível esperar
alguma mudança neste complexo a que me refiro quando até o último resquício de
punição tiver desaparecido da memória escolar, como parece ser o caso na maior
parte dos Estados Unidos. [...]

Por fim, coloca-se a questão inevitável do "que fazer?", para a qual neste
caso, como em geral, considero-me extremamente desautorizado. Muitas vezes
esta questão sabota o desenvolvimento consequente do conhecimento, necessário
para possibilitar qualquer transformação. Nas discussões acerca dos problemas
aqui aventados já se automatizou a atitude do "é um belo discurso, mas a situação
se coloca de modo diferente para quem trabalha em meio à questão". De qualquer
modo, posso enumerar alguns aspectos sem qualquer pretensão sistemática ou de
resultados maiores. [...]

Referi-me aos tabus acerca do magistério, e não à realidade da docência e


nem à constituição efetiva dos docentes; mas ambos os planos não são inteiramente
independentes entre si. De qualquer modo, podem ser observados sintomas que
justificam a esperança de que tudo isto se transforme quando a democracia tomar
a sério sua chance, desenvolvendo-se na Alemanha. Esta é uma dessas parcelas
limitadas da realidade para a qual a reflexão e a ação individual podem contribuir.
Não é por acaso que o livro que considero politicamente mais importante publicado
na Alemanha dos últimos vinte anos, seja o de um professor: Sobre a Alemanha, de
Richard Matthias Müller. Mas não se deve esquecer que a chave da transformação

142
TÓPICO 1 | ANTROPOLOGIA E EDUCAÇÃO: TRABALHANDO A ANTROPOLOGIA NO ESPAÇO ESCOLAR

decisiva reside na sociedade e em sua relação com a escola. Contudo, neste


plano, a escola não é apenas objeto. A minha geração vivenciou o retrocesso da
humanidade à barbárie, em seu sentido literal, indescritível e verdadeiro. Esta é
uma situação em que se revela o fracasso de todas aquelas configurações para as
quais vale a escola. Enquanto a sociedade gerar a barbárie a partir de si mesma, a
escola tem apenas condições mínimas de resistir a isto. Mas se a barbárie, a terrível
sombra sobre a nossa existência, é justamente o contrário da formação cultural,
então a desbarbarização das pessoas individualmente é muito importante. A
desbarbarização da humanidade é o pressuposto imediato da sobrevivência.
Este deve ser o objetivo da escola, por mais restritos que sejam seu alcance e suas
possibilidades. E para isto ela precisa libertar-se dos tabus, sob cuja pressão se
reproduz a barbárie. O pathos da escola hoje, a sua seriedade moral, está em que,
no âmbito do existente, somente ela pode apontar para a desbarbarização da
humanidade, na medida em que se conscientiza disto. Com barbárie não me refiro
aos Beatles, embora o culto aos mesmos faça parte dela, mas sim ao extremismo:
o preconceito delirante, a opressão, o genocídio e a tortura; não deve haver
dúvidas quanto a isto. Na situação mundial vigente, em que ao menos por hora
não se vislumbram outras possibilidades mais abrangentes, é preciso contrapor-
se à barbárie principalmente na escola. Por isto, apesar de todos os argumentos
em contrário no plano das teorias sociais, é tão importante do ponto de vista
da sociedade que a escola cumpra sua função, ajudando, que se conscientize do
pesado legado de representações que carrega consigo.

FONTE: Adaptado. Disponível em: <http://adorno.planetaclix.pt/tadorno12.htm>. Acesso em: 11


maio 2017.

LEITURA COMPLEMENTAR

Carta de Paulo Freire aos professores

PAULO FREIRE

Ensinar, aprender: leitura do mundo, leitura da palavra

Nenhum tema mais adequado para constituir-se em objeto desta primeira


carta a quem ousa ensinar do que a significação crítica desse ato, assim como a
significação igualmente crítica de aprender. É que não existe ensinar sem aprender e
com isto eu quero dizer mais do que diria se dissesse que o ato de ensinar exige a
existência de quem ensina e de quem aprende. Quero dizer que ensinar e aprender se
vão dando de tal maneira que quem ensina aprende, de um lado, porque reconhece
um conhecimento antes aprendido e, de outro, porque, observado a maneira como
a curiosidade do aluno aprendiz trabalha para apreender o ensinando-se, sem o
que não o aprende, o ensinante se ajuda a descobrir incertezas, acertos, equívocos.

O aprendizado do ensinante ao ensinar não se dá necessariamente através


da retificação que o aprendiz lhe faça de erros cometidos. O aprendizado do
143
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

ensinante ao ensinar se verifica à medida que o ensinante, humilde, aberto, se ache


permanentemente disponível a repensar o pensado, rever-se em suas posições; em
que procura envolver-se com a curiosidade dos alunos e dos diferentes caminhos e
veredas, que ela os faz percorrer. Alguns desses caminhos e algumas dessas veredas,
que a curiosidade às vezes quase virgem dos alunos percorre, estão grávidos de
sugestões, de perguntas que não foram percebidas antes pelo ensinante. Mas
agora, ao ensinar, não como um burocrata da mente, mas reconstruindo os caminhos
de sua curiosidade – razão por que seu corpo consciente, sensível, emocionado,
se abre às  adivinhações  dos alunos, à sua ingenuidade e à sua criatividade – o
ensinante que assim atua tem, no seu ensinar, um momento rico de seu aprender.
O ensinante aprende primeiro a ensinar, mas aprende a ensinar ao ensinar algo
que é reaprendido por estar sendo ensinado. O fato, porém, de que ensinar ensina
o ensinante a ensinar um certo conteúdo não deve significar, de modo algum, que
o ensinante se aventure a ensinar sem competência para fazê-lo. Não o autoriza
a ensinar o que não sabe. A responsabilidade ética, política e profissional do
ensinante lhe coloca o dever de se preparar, de se capacitar, de se formar antes
mesmo de iniciar sua atividade docente. Esta atividade exige que sua preparação,
sua capacitação, sua formação se tornem processos permanentes. Sua experiência
docente, se bem percebida e bem vivida, vai deixando claro que ela requer uma
formação permanente do ensinante. Formação que se funda na análise crítica de
sua prática.

Partamos da experiência de aprender, de conhecer, por parte de quem se


prepara para a tarefa docente, que envolve necessariamente estudar. Obviamente,
minha intenção não é escrever prescrições que devam ser rigorosamente seguidas,
o que significaria uma chocante contradição com tudo o que falei até agora. Pelo
contrário, o que me interessa aqui, de acordo com o espírito mesmo deste livro, é
desafiar seus leitores e leitoras em torno de certos pontos ou aspectos, insistindo
em que há sempre algo diferente a fazer na nossa cotidianidade educativa, quer
dela participemos como aprendizes, e, portanto, ensinantes, ou como ensinantes
e, por isso, aprendizes também. Não gostaria, assim, sequer, de dar a impressão
de estar deixando absolutamente clara a questão do  estudar, do  ler, do  observar,
do reconhecer as relações entre os objetos para conhecê-los. Estarei tentando clarear
alguns dos pontos que merecem nossa atenção na compreensão crítica desses
processos. Comecemos por estudar, que envolvendo o ensinar do ensinante, envolve
também, de um lado, a aprendizagem anterior e concomitante de quem ensina e a
aprendizagem do aprendiz que se prepara para ensinar amanhã ou refaz seu saber
para melhor ensinar hoje ou, de outro lado, aprendizagem de quem, criança ainda,
se acha nos começos de sua escolarização.

Enquanto preparação do sujeito para aprender, estudar é, em primeiro


lugar, um que-fazer crítico, criador, recriador, não importa que eu nele me engaje
através da leitura de um texto que trata ou discute um certo conteúdo que me foi
proposto pela escola ou se o realizo partindo de uma reflexão crítica sobre um certo
acontecimento social ou natural e que, como necessidade da própria reflexão, me
conduz à leitura de textos que minha curiosidade e minha experiência intelectual
144
TÓPICO 1 | ANTROPOLOGIA E EDUCAÇÃO: TRABALHANDO A ANTROPOLOGIA NO ESPAÇO ESCOLAR

me sugerem ou que me são sugeridos por outros. Assim, em nível de uma posição
crítica, a que não dicotomiza o saber do senso comum do outro saber, mais
sistemático, de maior exatidão, mas busca uma síntese dos contrários, o ato de
estudar implica sempre o de ler, mesmo que neste não se esgote. De  ler o mundo,
de ler a palavra e assim ler a leitura do mundo anteriormente feita. Mas ler não é
puro entretenimento, tampouco um exercício de memorização mecânica de certos
trechos do texto.

Se, na verdade, estou estudando e estou lendo seriamente, não posso


ultrapassar uma página se não consegui, com relativa clareza, ganhar sua
significação. Minha saída não está em memorizar porções de períodos lendo
mecanicamente duas, três, quatro vezes pedaços do texto fechando os olhos
e tentando repeti-las como se sua fixação puramente maquinal me desse o
conhecimento de que preciso. Ler é uma operação inteligente, difícil, exigente,
mas gratificante. Ninguém lê ou estuda autenticamente se não assume, diante
do texto ou do objeto da curiosidade, a forma crítica de ser ou de estar sendo
sujeito da curiosidade, sujeito da leitura, sujeito do processo de conhecer em
que se acha. Ler é procurar buscar criar a compreensão do lido; daí, entre outros
pontos fundamentais, a importância do ensino correto da leitura e da escrita. É que
ensinar a ler é engajar-se numa experiência criativa em torno da  compreensão. Da
compreensão e da comunicação.

E a experiência da compreensão será tão mais profunda quanto sejamos nela


capazes de associar, jamais dicotomizar, os conceitos emergentes da  experiência
escolar aos que resultam do mundo da cotidianidade. Um exercício crítico sempre
exigido pela leitura e necessariamente pela escuta é o de como nos darmos
facilmente à passagem da  experiência sensorial  que caracteriza a cotidianidade
à  generalização  que se opera na linguagem escolar e desta ao concreto tangível.
Uma das formas de realizarmos este exercício consiste na prática que me venho
referindo como "leitura da leitura anterior do mundo", entendendo-se aqui como
"leitura do mundo" a "leitura" que precede a leitura da palavra e que perseguindo
igualmente a compreensão do objeto se faz no domínio da cotidianidade. A leitura
da palavra, fazendo-se também em busca da compreensão do texto e, portanto,
dos objetos nele referidos, nos remete agora à leitura anterior do mundo. O que
me parece fundamental deixar claro é que a leitura do mundo que é feita a partir
da experiência sensorial não basta. Mas, por outro lado, não pode ser desprezada
como inferior pela leitura feita a partir do mundo abstrato dos conceitos que vai da
generalização ao tangível.

Certa vez, uma alfabetizanda nordestina discutia, em seu círculo de


cultura, uma codificação (1) que representava um homem que, trabalhando o
barro, criava com as mãos, um jarro. Discutia-se, através da "leitura" de uma série
de codificações que, no fundo, são representações da realidade concreta, o que
é cultura. O conceito de cultura já havia sido apreendido pelo grupo através do
esforço da compreensão que caracteriza a leitura do mundo e/ou da palavra. Na sua

145
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

experiência anterior, cuja memória ela guardava no seu corpo, sua compreensão do


processo em que o homem, trabalhando o barro, criava o jarro, compreensão
gestada sensorialmente, lhe dizia que fazer o jarro era uma forma de trabalho
com que, concretamente, se sustentava. Assim como o jarro era apenas o objeto,
produto do trabalho que, vendido, viabilizava sua vida e a de sua família.

Agora, ultrapassando a experiência sensorial, indo mais além dela, dava


um passo fundamental: alcançava a capacidade de  generalizar  que caracteriza a
"experiência escolar". Criar o jarro como o trabalho transformador sobre o barro
não era apenas a forma de sobreviver, mas também de fazer cultura, de fazer arte.
Foi por isso que, relendo sua leitura anterior do mundo e dos que-fazeres no
mundo, aquela alfabetizada nordestina disse segura e orgulhosa: "Faço cultura.
Faço isto". Noutra ocasião presenciei experiência semelhante do ponto de vista
da inteligência do comportamento das pessoas. Já me referi a este fato em outro
trabalho, mas não faz mal que o retome agora. Me achava na  Ilha de São Tomé,
na  África Ocidental, no  Golfo da Guiné.  Participava com educadores e educadoras
nacionais, do primeiro curso de formação para alfabetizadores.

Havia sido escolhido pela equipe nacional um pequeno povoado, Porto


Mont, região de pesca, para ser o centro das atividades de formação. Havia
sugerido aos nacionais que a formação dos educadores e educadoras se fizesse
não seguindo certos métodos tradicionais que separam prática de teoria. Nem
tampouco através de nenhuma forma de trabalho essencialmente dicotomizante de
teoria e prática e que ou menospreza a  teoria, negando-lhe qualquer importância,
enfatizando exclusivamente a prática, a única a valer, ou negando a prática fixando-
se só na  teoria. Pelo contrário, minha intenção era que, desde o começo do curso,
vivêssemos a relação contraditória entre prática e teoria, que será objeto de análise
de uma de minhas cartas.

Recusava, por isso mesmo, uma forma de trabalho em que fossem reservados
os primeiros momentos do curso para exposições ditas teóricas sobre matéria
fundamental de formação dos futuros educadores e educadoras. Momento para
discursos de algumas pessoas, as consideradas mais capazes para falar aos outros.
Minha convicção era outra. Pensava numa forma de trabalho em que, numa única
manhã, se falasse de alguns conceitos-chave – codificação, decodificação, por
exemplo — como se estivéssemos num tempo de apresentações, sem, contudo, nem
de longe imaginar que as apresentações de certos conceitos fossem já suficientes para
o domínio da compreensão em torno deles. A discussão crítica sobre a prática em
que se engajariam é o que o faria. Assim, a ideia básica, aceita e posta em prática,
é que os jovens que se preparariam para a tarefa de educadoras e educadores
populares deveriam coordenar a discussão em torno de codificações num círculo
de cultura com 25 participantes. Os participantes do círculo de cultura estavam
cientes de que se tratava de um trabalho de afirmação de educadores. Discutiu-se
com eles antes sua tarefa política de nos ajudar no esforço de formação, sabendo
que iam trabalhar com jovens em pleno processo de sua formação. Sabiam que
eles, assim como os jovens a serem formados, jamais tinham feito o que iam fazer.
A única diferença que os marcava é que os participantes liam apenas o mundo

146
TÓPICO 1 | ANTROPOLOGIA E EDUCAÇÃO: TRABALHANDO A ANTROPOLOGIA NO ESPAÇO ESCOLAR

enquanto os jovens a serem formados para a tarefa de educadores liam já a palavra


também. Jamais, contudo, haviam discutido uma codificação assim como jamais
haviam tido a mais mínima experiência alfabetizando alguém. Em cada tarde
do curso com duas horas de trabalho com os 25 participantes, quatro candidatos
assumiam a direção dos debates. Os responsáveis pelo curso assistiam em silêncio,
sem interferir, fazendo suas notas. No dia seguinte, no seminário de avaliação de
formação, de quatro horas, se discutiam os equívocos, os erros e os acertos dos
candidatos, na presença do grupo inteiro, desocultando-se com eles a teoria que se
achava na sua prática. Dificilmente se repetiam os erros e os equívocos que haviam
sido cometidos e analisados. A teoria emergia molhada da prática vivida.

Foi exatamente numa das tardes de formação que, durante a discussão de


uma codificação que retratava Porto Mont, com suas casinhas alinhadas à margem
da praia, em frente ao mar, com um pescador que deixava seu barco com um peixe
na mão, que dois dos participantes, como se houvessem combinado, se levantaram,
andaram até a janela da escola em que estávamos e olhando Porto Mont lá longe,
disseram, de frente novamente para a codificação que representava o povoado:
"É. Porto Mont é assim e não sabíamos". Até então, sua "leitura" do lugarejo, de
seu mundo particular, uma "leitura" feita demasiadamente próxima do "texto",
que era o contexto do povoado, não lhes havia permitido ver Porto Mont como ele
era. Havia uma certa "opacidade" que cobria e encobria Porto Mont. A experiência
que estavam fazendo de "tomar distância" do objeto, no caso, da  codificação  de
Porto Mont, lhes possibilitava uma nova leitura mais fiel ao "texto", quer dizer,
ao contexto de Porto Mont. A "tomada de distância" que a "leitura" da codificação
lhes possibilitou os aproximou mais de Porto Mont como "texto" sendo lido. Esta
nova leitura refez a leitura anterior, daí que hajam dito: "É. Porto Mont é assim e
não sabíamos". Imersos na realidade de seu pequeno mundo, não eram capazes de
vê-la. "Tomando distância" dela, emergiram e, assim, a viram como até então jamais
a tinham visto.

Estudar é desocultar, é ganhar a  compreensão  mais exata do objeto, é


perceber suas relações com outros objetos. Implica que o estudioso, sujeito do
estudo, se arrisque, se aventure, sem o que não cria nem recria. Por isso também é
que ensinar não pode ser um puro processo, como tanto tenho dito, de transferência
de conhecimento do ensinante ao aprendiz. Transferência mecânica de que resulte
a memorização maquinal que já critiquei. Ao estudo crítico corresponde um
ensino igualmente crítico que demanda necessariamente uma forma crítica de
compreender e de realizar a leitura da palavra e a leitura do mundo, leitura do
contexto.

A forma crítica de compreender e de realizar a leitura da palavra e a leitura


do mundo está, de um lado, na não negação da linguagem simples, "desarmada",
ingênua, na sua não desvalorização por constituir-se de conceitos criados na
cotidianidade, no mundo da experiência sensorial; de outro, na recusa ao que se
chama de "linguagem difícil", impossível, porque desenvolvendo-se em torno de
conceitos abstratos. Pelo contrário, a forma crítica de compreender e de realizar a

147
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

leitura do texto e a do contexto não exclui nenhuma das duas formas de linguagem
ou de sintaxe. Reconhece, todavia, que o escritor que usa a linguagem científica,
acadêmica, ao dever procurar tornar-se acessível, menos fechado, mais claro,
menos difícil, mais simples, não pode ser simplista. Ninguém que lê, que estuda,
tem o direito de abandonar a leitura de um texto como difícil porque não entendeu
o que significa, por exemplo, a palavra epistemologia.

Assim como um pedreiro não pode prescindir de um conjunto de


instrumentos de trabalho, sem os quais não levanta as paredes da casa que está
sendo construída, assim também o leitor estudioso precisa de instrumentos
fundamentais, sem os quais não pode ler ou escrever com eficácia. Dicionários
(2), entre eles o etimológico, o de regimes de verbos, o de regimes de substantivos
e adjetivos, o filosófico, o de sinônimos e de antônimos, enciclopédias. A leitura
comparativa de texto, de outro autor que trate o mesmo tema cuja linguagem
seja menos complexa. Usar esses instrumentos de trabalho não é, como às vezes
se pensa, uma perda de tempo. O tempo que eu uso quando leio ou escrevo ou
escrevo e leio, na consulta de dicionários e enciclopédias, na leitura de capítulos,
ou trechos de livros que podem me ajudar na análise mais crítica de um tema – é
tempo fundamental de meu trabalho, de meu ofício gostoso de ler ou de escrever.

Enquanto leitores, não temos o direito de esperar, muito menos de exigir,


que os escritores façam sua tarefa, a de escrever, e quase a nossa, a de compreender
o escrito, explicando a cada passo, no texto ou numa nota ao pé da página, o que
quiseram dizer com isto ou aquilo. Seu dever, como escritores, é escrever simples,
escrever  leve, é facilitar e não dificultar a compreensão do leitor, mas não dar a
ele as coisas feitas e prontas. A compreensão do que se está lendo, estudando,
não estala assim, de repente, como se fosse um milagre. A compreensão é
trabalhada, é forjada, por quem lê, por quem estuda que, sendo sujeito dela, se
deve instrumentar para melhor fazê-la. Por isso mesmo, ler, estudar, é um trabalho
paciente, desafiador, persistente.

Não é tarefa para gente demasiado apressada ou pouco humilde que, em


lugar de assumir suas deficiências, as transfere para o autor ou autora do livro,
considerado como impossível de ser estudado. É preciso deixar claro, também,
que há uma relação necessária entre o nível do conteúdo do livro e o nível da
atual formação do leitor. Estes níveis envolvem a experiência intelectual do autor
e do leitor. A compreensão do que se lê tem que ver com essa relação. Quando a
distância entre aqueles níveis é demasiado grande, quanto um não tem nada que
ver com o outro, todo esforço em busca da compreensão é inútil. Não está havendo,
neste caso, uma consonância entre o indispensável tratamento dos temas pelo autor
do livro e a capacidade de apreensão por parte do leitor da linguagem necessária
àquele tratamento. Por isso mesmo é que estudar é uma preparação para conhecer,
é um exercício paciente e impaciente de quem, não pretendendo tudo de uma vez,
luta para fazer a vez de conhecer.

A questão do uso necessário de instrumentos indispensáveis à nossa

148
TÓPICO 1 | ANTROPOLOGIA E EDUCAÇÃO: TRABALHANDO A ANTROPOLOGIA NO ESPAÇO ESCOLAR

leitura e ao nosso trabalho de escrever levanta o problema do poder aquisitivo


do estudante e das professoras e professores em face dos custos elevados para
obter dicionários básicos da língua, dicionários filosóficos etc. Poder consultar
todo esse material é um direito que têm alunos e professores a que corresponde
o dever das escolas de fazer-lhes possível a consulta, equipando ou criando suas
bibliotecas, com horários realistas de estudo. Reivindicar esse material é um
direito e um dever de professores e estudantes. Gostaria de voltar a algo a que fiz
referência anteriormente: a relação entre ler e escrever, entendidos como processos
que não se podem separar. Como processos que se devem organizar de tal modo
que ler e escrever sejam percebidos como necessários para algo, como sendo alguma
coisa de que a criança, como salientou Vygotsky (3), necessita e nós também.

Em primeiro lugar, a oralidade precede a grafia, mas a traz em si desde


o primeiro momento em que os seres humanos se tornaram socialmente capazes
de ir exprimindo-se através de símbolos que diziam algo de seus sonhos, de seus
medos, de sua experiência social, de suas esperanças, de suas práticas. Quando
aprendemos a ler, o fazemos sobre a escrita de alguém que antes aprendeu a ler e
a escrever. Ao aprender a ler, nos preparamos para imediatamente escrever a fala
que socialmente construímos. Nas culturas letradas, sem ler e sem escrever, não se
pode estudar, buscar conhecer, apreender a substantividade do objeto, reconhecer
criticamente a razão de ser do objeto.

Um dos equívocos que cometemos está em dicotomizar  ler  de  escrever,


desde o começo da experiência em que as crianças ensaiam seus primeiros passos
na prática da leitura e da escrita, tomando esses processos como algo desligado
do processo geral de conhecer. Essa dicotomia entre ler e escrever nos acompanha
sempre, como estudantes e professores. "Tenho uma dificuldade enorme de fazer
minha dissertação. Não sei escrever", é a afirmação comum que se ouve nos cursos de
pós-graduação de que tenho participado. No fundo, isso lamentavelmente revela
o quanto nos achamos longe de uma compreensão crítica do que é estudar e do
que é ensinar. É preciso que nosso corpo, que socialmente vai se tornando atuante,
consciente, falante, leitor e "escritor", se aproprie criticamente de sua forma de vir
sendo que faz parte de sua natureza, histórica e socialmente constituindo-se. Quer
dizer, é necessário que não apenas nos demos conta de como estamos sendo, mas
nos assumamos plenamente com estes "seres programados, mas para aprender",
de que nos fala François Jacob (4). É necessário, então, que aprendamos a aprender,
vale dizer, que entre outras coisas, demos à linguagem oral e escrita, a seu uso, a
importância que lhe vem sendo cientificamente reconhecida.

Aos que estudamos, aos que ensinamos e, por isso, estudamos também, se
nos impõe, ao lado da necessária leitura de textos, a redação de notas, de fichas de
leitura, a redação de pequenos textos sobre as leituras que fazemos. A leitura de
bons escritores, de bons romancistas, de bons poetas, dos cientistas, dos filósofos
que não temem trabalhar sua linguagem à procura da boniteza, da simplicidade
e da clareza (5). Se nossas escolas, desde a mais tenra idade de seus alunos, se
entregassem ao trabalho de estimular neles o gosto da leitura e o da escrita, gosto
que continuasse a ser estimulado durante todo o tempo de sua escolaridade,

149
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

haveria possivelmente um número bastante menor de pós-graduandos falando


de sua insegurança ou de sua incapacidade de escrever. Se estudar, para nós, não
fosse quase sempre um fardo, se ler não fosse uma obrigação amarga a cumprir, se,
pelo contrário, estudar e ler fossem fontes de alegria e de prazer, de que resulta
também o indispensável conhecimento com que nos movemos melhor no mundo,
teríamos índices melhor reveladores da qualidade de nossa educação.

Este é um esforço que deve começar na pré-escola, intensificar-se no


período da alfabetização e continuar sem jamais parar. A leitura de Piaget, de
Vygotsky, de Emilia Ferreiro, de Madalena F. Weffort, entre outros, assim como
a leitura de especialistas que tratam não propriamente da alfabetização, mas do
processo de leitura, como Marisa Lajolo e Ezequiel T. da Silva, é de indiscutível
importância. Pensando na relação de intimidade entre pensar, ler e escrever e
na necessidade que temos de viver intensamente essa relação, sugeriria a quem
pretenda rigorosamente experimentá-la que, pelo menos, três vezes por semana, se
entregasse à tarefa de escrever algo. Uma nota sobre uma leitura, um comentário
em torno de um acontecimento de que tomou conhecimento pela imprensa, pela
televisão, não importa. Uma carta para destinatário inexistente. É interessante
datar os pequenos textos e guardá-los e dois ou três meses depois submetê-los a
uma avaliação crítica.

Ninguém escreve se não escrever, assim como ninguém nada se não nadar.
Ao deixar claro que o uso da linguagem escrita, portanto o da leitura, está em relação
com o desenvolvimento das condições materiais da sociedade, estou sublimando
que minha posição não é idealista. Recusando qualquer interpretação mecanicista
da História, recuso igualmente a  idealista. A primeira reduz a consciência à pura
cópia das estruturas materiais da sociedade; a segunda submete tudo ao todo
poderosismo da consciência. Minha posição é outra. Entendo que estas relações
entre consciência e mundo são dialéticas (6). O que não é correto, porém, é esperar
que as transformações materiais se processem para que depois comecemos a
encarar corretamente o problema da leitura e da escrita. A leitura crítica dos textos
e do mundo tem que ver com a sua mudança em processo.

Notas

1  Sobre codificação, leitura do mundo-leitura da palavra-senso comum-


conhecimento exato, aprender, ensinar, veja-se: Freire, Paulo:  Educação como
prática da liberdade – Educação e mudança – Ação cultural para a liberdade – Pedagogia
do oprimido – Pedagogia da esperança, Paz e Terra; Freire & Sérgio Guimarães, Sobre
educação, Paz e Terra; Freire & Ira Schor, Medo e ousadia, o cotidiano do educador, Paz
e Terra; Freire & Donaldo Macedo,  Alfabetização, leitura do mundo e leitura da
palavra,  Paz e Terra; Freire, Paulo,  A importância do ato de ler,  Cortez. Freire &
Márcio Campos; Leitura do mundo – Leitura da palavra, Courrier de L'Unesco, fev.
1991.
2  Ver Freire, Paulo.  Pedagogia da esperança — um reencontro com a Pedagogia do

150
TÓPICO 1 | ANTROPOLOGIA E EDUCAÇÃO: TRABALHANDO A ANTROPOLOGIA NO ESPAÇO ESCOLAR

oprimido, Paz e Terra, 1992.


3  Vygotsky and education. Instructional implications and applications of
sociohistorical psychology. Luis C. Moll (ed.), Cambridge University Press, First
paperback edition, 1992.
4 François Jacob, Nous sommes programmés mais pour aprendre. Le Courrier de
L'Unesco, Paris, fev. 1991.
5 Ver Freire, Paulo, Pedagogia da esperança, Paz e Terra, 1992.
6 Id., ibid.

Esta carta foi retirada do livro  Professora sim, tia não. Cartas a quem ousa
ensinar  (Editora Olho D'Água, 10. ed., p. 27-38), no qual Paulo Freire dialoga
sobre questões da construção de uma escola democrática e popular. Escreve
especialmente aos professores, convocando-os ao engajamento nesta mesma luta.
Este livro foi escrito durante dois meses do ano de 1993, pouco tempo depois de
sua experiência na condução da Secretaria de Educação de São Paulo.

FONTE: Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_


arttext&pid=S010340142001000200013&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 11 maio 2017.

151
RESUMO DO TÓPICO 1

Neste tópico você viu que:

• Existem inúmeras relações entre antropologia e educação.

• No espaço da sala de aula se trabalha a alteridade e se relativiza o etnocentrismo.

• O processo de ensino-aprendizagem ultrapassa a sala de aula e também a relação


entre aluno e professor.

• A escola é um local de construção contra-hegemônica operária e de mudança da


sociedade existente.

152
AUTOATIVIDADE

1 Tratando da temática da educação e antropologia, analise a


charge a seguir e argumente se é possível que todos tenham
acesso à educação da mesma maneira. Quais seriam os
desafios para uma educação democrática? Comente com suas
palavras.

FONTE: Disponível em: <https://www.corujinhaspedagogas.blogspot.com>. Acesso


em: 11 maio 2017.

2 Enfatiza-se que o docente deve ensinar os estudantes a terem criticidade


sobre as situações na sociedade, e assim, "não ficarem apáticos", "saírem de
cima do muro" e "se posicionarem" sobre o que ocorre no mundo. Logo,
explicite estratégias pedagógicas que você utilizaria para estimular a análise
crítica de seus estudantes.

153
154
UNIDADE 3
TÓPICO 2

DISCUSSÕES DE CONTEÚDOS

1 INTRODUÇÃO

A sociedade brasileira, ao longo do seu processo histórico, político,


social e cultural, apesar de toda a violência do racismo e da desigualdade racial,
construiu ideologicamente um discurso da existência de uma “harmonia racial”
entre negros e brancos, afirmando não existir racismo ou discriminação racial no
Brasil, conforme nos relata Gomes (2005). Assim é construído e mantido o mito da
democracia racial no Brasil.

Escamotear o real, produzir o ilusório, negar a história e transformá-


la em ‘natureza’. Instrumento formal da ideologia, um mito é um
efeito social que pode entender-se como resultante da convergência de
determinações econômico-político-ideológicas e psíquicas. Enquanto
produto econômico político-ideológico, o mito é um conjunto de
representações que expressa e oculta uma ordem de produção de bens
de dominação e doutrinação (SOUZA, 1983, p. 25).

O mito da democracia racial propõe que todas as raças e/ou etnias


existentes no Brasil estão em pé de igualdade sociorracial e que tiveram as mesmas
oportunidades desde o início da formação do Brasil. Desta forma, pensamos que as
desiguais posições hierárquicas existentes entre elas se devem a uma incapacidade
inerente aos grupos raciais que estão em desvantagem, como os negros e os
indígenas. Assim, o mito da democracia racial age como um campo produtivo
para a perpetuação de estereótipos sobre os negros e indígenas, negando o racismo
no Brasil, mas, simultaneamente, reforçando as discriminações e desigualdades
raciais.

155
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

FIGURA 32 - DEMOCRACIA RACIAL

FONTE: Disponível em: <https://www.google.com.br/search?q=democracia


+racial&espv=2&biw=1280&bih=894&site=webhp&source=lnms&tbm=isch&sa=X&sqi
=2&ved=0ahUKEwit5d6XhPzPAhUHLyYKHY2iDEwQ_AUIBigB#imgrc=_>. Acesso em: 30 out. 2016.

2 TEMAS DA EDUCAÇÃO E ANTROPOLOGIA

Caro acadêmico! Observaremos neste item algumas avaliações referentes


a discussões que são feitas nos conteúdos escolares que servem como forma de
desconstrução para os educandos e as educandas. As desigualdades de gênero,
educacional e de raça são temas que também podem ser trabalhados a partir da
perspectiva da antropologia.

156
TÓPICO 2 | DISCUSSÕES DE CONTEÚDOS

2.1 DESIGUALDADE ECONÔMICA ENTRE GÊNEROS

Conforme visualizamos no item sobre desigualdade educacional, houve


um aumento significativo no número de mulheres no mercado de trabalho no
Brasil, porém ainda há um grande abismo entre mulheres e homens. No próximo
ponto estudaremos as diferenças entre gênero, sexo e sexualidade. Por hora iremos
refletir sobre as desigualdades produzidas em sociedade relacionadas a homens e
mulheres. Iremos apresentar alguns dados para conhecermos algumas realidades
deste assunto, por exemplo, a presença feminina no mercado de trabalho.

Os estudos de gênero concretizaram-se no Brasil no final dos anos 1970,


simultaneamente ao fortalecimento do movimento feminista no país.

Segundo Marília Carvalho (1998), o uso ainda hoje mais frequente


do conceito é o proposto pelo feminismo da diferença. Este rejeitou
pressupostos do feminismo da igualdade, que afirmava que as únicas
diferenças efetivamente existentes entre homens e mulheres são
biológicas-sexuais, e que as demais diferenças observáveis são culturais,
derivadas de relações de opressão e, portanto, devem ser eliminadas
para dar lugar a relações entre seres ‘iguais’ (FARAH, 2004, p. 48).

O conceito de gênero, segundo relata Farah (2004), ao destacar as relações


sociais entre os sexos, permite a inquietação de desigualdades entre homens
e mulheres, que envolvem em um de seus pontos centrais as desigualdades de
poder. Nas sociedades ocidentais, marcada também por outros ‘sistemas de
desigualdade’, constata-se que o padrão dominante nas identidades de gênero
de adultos envolve uma situação de subordinação e de dominação das mulheres,
tanto na esfera pública como na privada.

No final dos anos 1970, sucederam importantes mudanças nas relações


entre Estado e sociedade no Brasil, devido a dois fatores: a democratização e a
crise fiscal. Após o final da ditadura, os anos 80 foram marcados pela crise do
nacional desenvolvimentismo, de origens mais antigas, assim como por mudanças
nas políticas públicas, estabelecidas nas décadas anteriores. Diversos setores
dos movimentos sociais uniram-se na luta pela democratização do regime e de
reivindicações ligadas ao acesso a serviços públicos e à melhoria da qualidade
de vida, especialmente nos centros urbanos. As mulheres e a problemática de
gênero estiveram presentes nesta construção, segundo o texto “Gênero e políticas
públicas”, de Farah.

A constituição das mulheres como sujeitos políticos iniciou no meio de sua


mobilização em torno da democratização do regime e de questões que atingiam os
trabalhadores urbanos pobres em seu conjunto, tais como baixos salários, elevado
custo de vida e questões relativas à inexistência de infraestrutura urbana e ao
acesso precário a serviços coletivos, manifestação ‘perversa’ no espaço urbano

157
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

do modelo de desenvolvimento capitalista adotado no país, caracterizado pela


articulação entre ‘crescimento e pobreza’ (FARAH, 2004). O movimento feminista
contribuiu para a inclusão da questão de gênero na agenda pública, como uma das
desigualdades a serem superadas por um regime democrático.

Ao mesmo tempo que denunciavam desigualdades de classe, os


movimentos de mulheres – ou as mulheres nos movimentos – passaram
também a levantar temas específicos à condição da mulher, como direito
a creche, saúde da mulher, sexualidade e contracepção e violência
contra a mulher. Nessa discriminação de temas ligados à problemática
da mulher, houve uma convergência com o movimento feminista. O
feminismo, diferentemente dos ‘movimentos sociais com participação
de mulheres’, tinha como objetivo central a transformação da situação
da mulher na sociedade, de forma a superar a desigualdade presente
nas relações entre homens e mulheres (FARAH, 2004, p. 51).

Retomando a respeito do mercado de trabalho, verifica-se, atualmente, o


crescimento da presença feminina no mercado de trabalho, recorte raça e sexo.
Vejamos o gráfico a seguir.

TABELA 2 - DADOS ESTATÍSTICOS MERCADO DE TRABALHO

FONTE: Disponível em: <http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp-content/


uploads/2012/10/Tab1_Text1_RRDH.png>. Acesso em: 30 out. 2016.

Os censos de 2000/2010 indicam que tanto as mulheres quanto os negros e


pardos ganham muito menos do que a população masculina e branca. Em relação
aos níveis educacionais, no Brasil existe um “recorte” bastante evidente em termos
de raça/cor da pele e gênero, no Ensino Superior os números apresentados na

158
TÓPICO 2 | DISCUSSÕES DE CONTEÚDOS

Tabela 8. Segundo Lais Abramo (2010), as desigualdades de gênero e raça são eixos
estruturantes da matriz da desigualdade social no Brasil que, por sua vez, está na
raiz da permanência e reprodução das situações de pobreza e exclusão social.

A discriminação por gênero e por raça no mercado de trabalho brasileiro


explica os diferenciais de rendimento médio, mesmo quando há o mesmo nível de
escolaridade (CACCIAMALI; HIRATA, 2005). As funções de chefia e supervisão
continuam sendo ocupadas predominantemente por homens, onde dificilmente
mulheres alcançam cargos de comando (COMIN, 2015). Contudo, convém destacar
que as mulheres estão por todos os extratos sociais, porém uma minoria de pessoas
com pele preta ou parda está presente nos estratos de maior renda, o que torna a
discriminação racial ainda mais grave (GARCIA, 2005).

2.2 AS RELAÇÕES ÉTNICAS RACIAIS NA EDUCAÇÃO

Ao longo das reformas na educação brasileira, muitos temas foram


inseridos, repensados, retirados, assim como também o perfil dos alunos se
modificou, à medida que as mudanças sociais, culturais, tecnológicas e políticas
foram acontecendo. Neste sentido, algumas discussões tornaram-se obrigatórias
dentro do espaço escolar, por exemplo, relações de gênero e étnico-raciais. Ora,
mas por que devemos debater estes assuntos nas escolas? E o que estes temas têm
a ver com o ensino da antropologia?

Como bem tratamos ao longo deste livro, a antropologia é o estudo do


homem, o estudo de sua cultura, das relações entre grupos, seus hábitos, suas
visões de mundo. Para tanto, a antropologia reflete outras formas de ver o mundo,
na educação ela auxilia no desenvolvimento da criticidade dos alunos, orienta os
educandos a visualizarem os conteúdos trabalhados de outras formas. Visto isso,
entende-se que as discussões a respeito da diversidade, gênero e relações étnico-
raciais estão cada vez mais dentro do espaço escolar, e neste sentido as aulas de
sociologia/antropologia auxiliam neste debate. Assim, veremos alguns pontos
a respeito destes temas para que possamos trabalhar futuramente com nossos
alunos.

159
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

FIGURA 33 – BAOBÁ – ÁRVORE DA VIDA

FONTE: Disponível em: <https://www.google.com.br/search?q=


baoba&tbm=isch&imgil=IjKle01ztD1_BM%253A%253BOBMrXEo0Wy4DVM%253Bhttp%2
5253A%25252F%25252Feducandoesemeando.blogspot.com%25252Fp%25252Fhistoria-do-bao
ba.html&source=iu&pf=m&fir=IjKle01ztD1_BM%253A%252COBMrXEo0Wy4DVM%252C_&usg=__
SfmFeyQ_zCjzJk_vKCsd8dn
iVaA%3D&biw=1366&bih=613&ved=0ahUKEwjhjfKZs_TPAhVLj5A
KHQ_iAD0QyjcIOw&ei=H38OWKGCF8uewgSPxIPoAw#imgrc=IjKle01ztD1_BM%3A>. Acesso em:
30 out. 2016.

Vamos iniciar, pensando a respeito das diferenças raciais em nossa


sociedade. Você já desenhou sua árvore genealógica, sabe quem são os pais de seus
avós? De onde vieram? Como vieram? Eram brancos, pretos, indígenas, asiáticos
ou de outras descendências?

160
TÓPICO 2 | DISCUSSÕES DE CONTEÚDOS

FIGURA 34 - ÍNDIOS TIKUNA

FONTE: https://www.google.com.br/search?q=tikuna&hl=pt-BR&biw=1280&bih=845&s
ite=webhp&tbm=isch&source=lnms&sa=X&ved=0ahUKEwi36bWxvPnPAhUEoD4KHSxk
A3cQ_AUIBygC#imgrc=6QivnBk6p3_50M%3A. Acesso em: 30 out. 2016.

O Brasil possui uma extensa árvore genealógica, somos uma sociedade


diversa, miscigenada, com inúmeras etnias, culturas, hábitos. De acordo com
Censo de 2010, a população brasileira está contabilizada em 190.732.694 pessoas.
Neste Censo pode-se observar as diversas composições de cor ou raça, a partir da
autodeclaração de cada entrevistado.

UNI

O Censo 2010 detectou mudanças na composição da cor ou raça declarada no


Brasil. Dos 191 milhões de brasileiros em 2010, 91 milhões se classificaram como brancos, 15
milhões como pretos, 82 milhões como pardos, 2 milhões como amarelos e 817 mil como
indígenas. Registrou-se uma redução da proporção de brancos, que em 2000 era 53,7% e em
2010 passou para 47,7%, e um crescimento de pretos (de 6,2% para 7,6%) e pardos (de 38,5% para
43,1%). Assim, a população preta e parda passou a ser considerada maioria no Brasil (50,7%).

Fonte: Disponível em: <http://dssbr.org/site/2012/01/a-nova-composicao-racial-brasileira-


segundo-o-censo-2010/>. Acesso em: 5 set. 2016.

161
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

Diante dos dados apresentados pelo último Censo, algumas dúvidas se


apresentam em nossas reflexões: afinal, quais as diferenças entre os conceitos raça
e etnia? Utiliza-se pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística o termo negro
para pessoas que se autodeclaram como pretas e pardas, unificam-se estas duas
categorias como uma, para discriminá-las diante de suas perspectivas:

Indicam que se justifica agregarmos pretos e pardos para formarmos,


tecnicamente, o grupo racial negro, visto que a situação destes dois
últimos grupos raciais é, de um lado, bem semelhante, e, de outro lado,
bem distante ou desigual quando comparada com a situação do grupo
racial branco. Assim sendo, ante a semelhança estatística entre pretos e
pardos em termos de obtenção de direitos legais e legítimos, pensamos
ser plausível agregarmos esses dois grupos raciais numa mesma
categoria, a de negros. [...] a diferença entre pretos e pardos no que diz
respeito à obtenção de vantagens sociais e outros importantes bens e
benefícios (ou mesmo em termos de exclusão dos seus direitos legais e
legítimos) é tão insignificante estatisticamente que podemos agregá-los
numa única categoria, a de negros, uma vez que o racismo no Brasil não
faz distinção significativa entre pretos e pardos, como se imagina no
senso comum (SANTOS, 2002, p. 13).

UNI

Baobás são símbolos da luta dos negros no Brasil

O baobá é muito mais do que simplesmente uma árvore de grande porte que pode atravessar
um milênio e carrega consigo a força da resistência africana, a história da devoção do povo
negro e o poder de transformar os preconceitos. Em Recife a árvore serviu de motivo para
introduzir a discussão sobre racismo no dia a dia dos alunos e ajudou a transformar a maneira
como uns enxergavam os outros. Dentre os estados do Brasil, Pernambuco é o que tem maior
quantidade de baobás, estima-se pelas pesquisas desenvolvidas na Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE) que são cerca de 150 árvores. O baobá é uma árvore que fascina povos de
todo o mundo, mas no Brasil ela tem uma forte relação com a religiosidade do povo, sobretudo
o de matriz africana.
Diz a lenda que antes de serem embarcados nos navios negreiros, os escravizados africanos,
sob chibatadas eram obrigados a dar dezenas de voltas em torno de um imenso baobá,
enquanto depositam suas crenças, suas origens, seu território, enfim sua essência, para em
seguida serem batizados com uma identidade cristã-ocidental e enviados para o cativeiro.
Por isso o baobá passou a ser chamado de árvore do esquecimento, pois os escravos teriam
deixado ali toda sua memória (sabedoria).

162
TÓPICO 2 | DISCUSSÕES DE CONTEÚDOS

FIGURA 35 - RAÇA HUMANA?

FONTE: Disponível em: <https://www.goo


gle.com.br/search?q=ra%
C3%A7a+humana&source=lnms&tbm=isch&sa=X&
ved=0ahUKEwjB6PPgtPTPAhXMfZAKHWQUDxUQ_A
UICCgB&biw=1366&bih=613#imgrc=
rfad4Mg1gdd49M%3ª>. Acesso em: 30 out. 2016.

Conforme lemos neste livro, a “diferença” é algo importante para a


antropologia. Este é um dos pontos que mobiliza as relações sociais e as reflexões
sobre viver em sociedade. Neste item, refletiremos sobre as relações raciais. Afinal,
existem raças? Neste item, não conseguiremos trabalhar sobre todos os grupos
étnicos raciais do Brasil, serão desenvolvidas aqui algumas reflexões a respeito das
terminologias raça e etnia, utilizando o exemplo da população negra e indígena.

A ideologia do racismo foi fundada pelo pensador francês Joseph-Arthur


de Gobineau (1816-1882), em seu Ensaio sobre a Desigualdade das Raças Humanas
(1853-1855). Essa doutrina baseava-se em três pontos principais: a existência de
várias raças humanas, a compreensão das diferenças entre as raças como fatores
essenciais do processo histórico-social e a afirmação de uma raça superior. Tal
perspectiva serviu de ponto de partida para que o britânico Houston Stewart
Chamberlain (1825-1927) difundisse, na Alemanha, o mito da superioridade da
raça ariana, no início dos anos 1920.

Nos EUA este tema vem sendo discutido com bastante afinco, desde a
chegada dos primeiros escravizados. O presidente Abraham Lincoln, em 1862,
convocou um grupo de negros para discutir tal tema. Colocando que os negros
não seriam aceitos pelos americanos, devido às “suas diferenças”, e sugeriria
que os negros retornassem para a África, mobilizando o congresso para que se
arrecadassem fundos para o retorno deles ao país de origem. As colocações de
Lincoln demonstram que “a crença de que há qualquer coisa nas relações entre
pessoas de diferentes raças que as diferencia nas relações entre pessoas da mesma
raça” (BANTON, 1977, p. 12).

163
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

No entanto, compreendemos, atualmente, que a subordinação dos negros


americanos em 1862 não se originava de diferenças biológicas de negros e brancos,
mas sim de causas políticas, econômicas, sociais e culturais. Assim, as relações
raciais são relações entre membros de categorias sociais que acontece de serem
identificadas com rótulos rácicos. (BANTON, 1977, p. 12).

Entende-se que as relações raciais são compreendidas não como o resultado


de qualidades biológicas, mas como o modo de os indivíduos em diferentes
situações alinharem com aqueles que percebem como aliados, e em oposições a
outros.

A maneira como alinham depende de muitos fatores, e não


exclusivamente de oposições políticas, interesses econômicos, crenças
a respeito da natureza dos grupos sociais e outras circunstâncias
gerais. Depende também das escolhas humanas, da liderança e da
responsabilidade em situações críticas que marcam os princípios de
novos períodos na história política (BANTON, 1977, p. 18).

A origem da concepção de raça é compreendida a partir do surgimento


entre brancos e negros na Europa, América, África e Ásia nos séculos XV e XVI,
porém esta compreensão é bastante equivocada e subestima o significado das
mudanças sociais na Europa. A raça é um conceito desenvolvido na Europa para
auxiliar na interpretação de novas relações sociais. É um modo de categorizar as
pessoas e coisas, à medida que cada vez mais europeus percebem a existência de
um grande número de pessoas ultramarinas que pareciam diferentes deles. Assim
como também os europeus impuseram as suas categorias sociais aos povos que em
sua maioria as adotaram como suas.

Oliver C. Cox (apud BANTON, 1977) apresenta os anos 1493 e 1494 como
marcos de influência de portugueses e espanhóis no novo mundo, causando assim
o princípio das modernas relações raciais. Marvin Harris (1964, apud BANTON,
1977) explica que o preconceito racial surge da ideologia do interesse das nações
europeias na exploração do trabalho negro. Arnold Rose (1951, apud BANTON,
1977) acredita que o surgimento das relações raciais data de 1793: com a invenção
da máquina de separar o algodão bruto das suas sementes, se renovou o interesse
dos plantadores em conservar escravizados. Inúmeras são as teorias que tentam
explicar o surgimento das diferenças raciais e suas relações.

Na França e Inglaterra, a palavra “raça” muda de significado por volta de


1800. Anteriormente, o termo é utilizado primeiramente no sentido de “linhagem”;
as diferenças entre raças derivam de circunstâncias da sua história e, embora se
mantivessem através das gerações, não eram fixas (BANTON, 1977). De acordo com
Banton (1977), no século XIX o termo “raça veio a significar uma qualidade física
inerente. Os outros povos passam a ser vistos como biologicamente diferentes.
Embora a definição continuasse incerta, as pessoas começaram a pensar que a
humanidade estava dividida em raças. A palavra racismo surge na Inglaterra ao
fim da década de 1930, identificando um tipo de doutrina que afirma que a raça
determina a cultura.
164
TÓPICO 2 | DISCUSSÕES DE CONTEÚDOS

O escritor negro J. J. Thomas Trindade (1889), na sua obra Froudacity (apud


BANTON, 1977, p. 74) questiona:

O que há na natureza das coisas que desapossa os africanos do direito


de participar, nos tempos futuros, nos altos destinos que, no passado,
foram atribuídos a tantas raças que não foram de modo algum
superiores a nós nas qualificações físicas, morais e intelectuais, que
marcam definitivamente uma raça para a proeminência entre outras
raças?

No Brasil, a discussão sobre as relações raciais é também bastante ampla,


porém ainda precisa avançar alguns pontos. O Brasil inicia seu comércio de
escravizados em meados do século XV. Em 1850, a Lei Eusébio de Queirós proíbe
o tráfico de escravizados. A escravidão após a abolição deixou cicatrizes profundas
na sociedade brasileira, a população negra, ao ser liberta, não obteve uma política
que se voltasse a recompensá-la pelos anos de servidão obrigatória. Não foram
desenvolvidos planos econômicos e sociais ao longo dos anos que se preocupassem
com a população negra, assim, a maioria se instalou nas “margens” das cidades,
formando as periferias, favelas, vilas ou comunidades.

[...] o histórico da escravidão ainda afeta negativamente a vida, a


trajetória e inserção social dos descendentes de africanos em nosso país.
Some-se a isso o fato de que, após a abolição, a sociedade, nos seus mais
diversos setores, bem como o Estado brasileiro não se posicionaram
política e ideologicamente de forma enfática contra o racismo. Pelo
contrário, optaram por construir práticas sociais e políticas públicas que
desconsideravam a discriminação contra os negros e a desigualdade
racial entre negros e brancos como resultante desses processos de
negação da cidadania aos negros brasileiros. Essa posição de “suposta
neutralidade” só contribuiu ainda mais para aumentar as desigualdades
e o racismo (GOMES, 2005, p. 46).

Algumas leis abolicionistas no Brasil

Lei do Ventre Livre

Aprovada em 1871, foi a primeira lei abolicionista da história do Brasil. De


acordo com esta lei, os filhos de escravizadas, nascidos após a promulgação da
lei, ganhariam a liberdade. Porém, o liberto deveria permanecer trabalhando na
propriedade do senhor até 21 anos de idade.
 
Foi uma lei paliativa e que recebeu muitas críticas negativas dos abolicionistas.
O principal argumento era de que estes “libertos” tinham que trabalhar para
seus “donos” durante a fase mais produtiva da vida, até os 21 anos. Logo, os
senhores iriam explorar ao máximo esta mão de obra até ela ganhar a liberdade.
 

165
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

Lei dos Sexagenários


 
Promulgada pelo governo brasileiro em 1885, esta lei dava liberdade aos
escravizados com mais de 65 anos de idade.
 
Esta lei também recebeu muitas críticas, pois dificilmente um escravizado
chegava a esta idade com as péssimas condições de trabalho que tinha durante
a vida. Vale lembrar que a expectativa de vida de um escravizado neste período
era em torno de 40 anos de idade.
 
Esta lei acabava por beneficiar os proprietários de escravizados, pois se livravam
de trabalhadores pouco produtivos, cansados e doentes, economizando assim
em alimentação e moradia.
 
Lei Áurea

Promulgada em 1888 pela Princesa Isabel, esta lei aboliu definitivamente a


escravidão no Brasil.
 
Porém, a liberdade não garantiu aos ex-escravizados melhorias significativas
em suas vidas. Como o governo não se preocupou em integrá-los à sociedade,
muitos enfrentaram diversas dificuldades para conseguir emprego, moradia,
educação e outras condições fundamentais de vida. Vale lembrar que muitos
fazendeiros preferiram importar mão de obra europeia a contratar os ex-
escravizados como assalariados.

FONTE: Disponível em: <http://www.historiadobrasil.net/brasil_monarquia/leis_abolicionistas.


htm>. Acesso em: 30 out. 2016.

Podemos pensar que a discussão das relações raciais, no caso da população


negra, pode ser percebida como vitimização, afinal, as discriminações raciais quase
não são percebidas segundo a democracia racial.

Em várias áreas de estudo, percebe-se a ausência da contribuição da


população negra no país, ou o silenciamento da discussão racial. Muitas vezes, a
reflexão sobre desigualdade fica sobreposta às discussões de classe. Compreende-
se que as desigualdades no Brasil são originadas pelas condições sociais. Ligadas
às lutas de classe, ricos e pobres, ou trabalhadores e patrões, esquecendo de inserir
a este debate a questão racial, já que existe claramente uma hierarquização racial
no Brasil.

Não apresentar os debates relacionados ao quesito racial é invisibilizar


50% da população do Brasil. No recorte de raça, podemos trabalhar em diversos
aspectos, como preenchimentos do requisito raça/cor nos questionários de pesquisa

166
TÓPICO 2 | DISCUSSÕES DE CONTEÚDOS

e inserção em políticas públicas (postos de saúde, escolas, pesquisas, segurança,


segurança alimentar, assistência social etc.). Pode-se trabalhar com as formas de
tratamento, ao ressignificar alguns termos, por exemplo, “escravizado”. Você deve
ter notado que ao longo do nosso texto utiliza-se o termo escravizado, mas qual é
a diferença entre escravo e escravizado? E qual é a importância de utilizar o termo
escravizado para a população negra e movimento negro?

O Dicionário Houaiss (2009, p. 803), da língua portuguesa, denomina


escravo “que ou aquele que, privado da liberdade, está submetido à vontade de
um senhor, a quem pertence como propriedade”. O mesmo dicionário (p. 803)
apresenta escravizar como “[...] submeter (alguém) à condição de escravo [...]. [...]
exercer dominação moral sobre; oprimir [...]. [...] tornar submisso, dependente”.
Conforme Taille e Santos (2012, p. 9), o termo “escravo”, privado de liberdade,
em estado de servidão, difere do “escravizado”, que entra em cena como quem
“sofreu escravização” e, portanto, foi forçado a essa situação.

Para o movimento negro, utilizar este termo denota uma nova forma de
conceituar os descendentes de escravizados como pessoas que foram colocadas
em tal situação. Compreende-se que os africanos escravizados não nasceram sob
esta condição, mas sim foram submetidos, transformados e tornados escravos
pelo sistema político-econômico e pela instituição sociojurídica implantada pelos
conquistadores (FONSECA, 2009, p. 30-31). Segundo Dagoberto Fonseca (2009),
o escravo nasce, cresce e morre irremediavelmente preso à sua natureza, não há
transformação social possível para ele, até seus descendentes serão tratados como
escravos, filhos de uma natureza intransponível. Esta compreensão e redução da
natureza do escravo mantém a escravidão no imaginário social das sociedades. Ao
afirmar que na África a escravidão já era um sistema instituído, parece demonstrar
que o europeu/colonizador não cometeu erros ao acionar este sistema também, já
que ele (colonizador) mantinha o africano em sua “natureza” de escravo.

Ao ressignificar e problematizar o conceito de escravo e operacionalizar o


termo escravizado, estabelece-se outra visão: a de que um sujeito livre, proprietário
de seu destino, dono de suas capacidades mentais e físicas, foi transformado e
submetido a uma condição social imposta pela escravidão, ou seja, a de “peça”, de
“ser animal de tração”, de “mercadoria”.

O conceito de escravizado se relaciona com o de empobrecido e de


marginalizado. Segundo Fonseca (2009), ao dizer que os indivíduos nascem,
crescem e morrem escravos, pobres e marginais, estamos desconsiderando a
existência de sistemas de espoliação, exploração, expropriação e marginalização,
correlacionando-se assim com áreas política, econômica, cultural, simbólica e

167
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

psicológica da sociedade. Deve-se prestar atenção nas categorias trabalhadas


para designar as pessoas a partir de suas condições, compreender que estados
de natureza não são fixos, e que as pessoas estão inseridas em contextos sócio-
históricos, econômicos e culturais que os “conduzem” a determinadas situações.

Não se trata de “libertar o pobre”, mas o empobrecido. Tratar o pobre


como categoria nativa é simplesmente remetê-lo ao estado de natureza.
Diante disso se mantém a lógica perversa de manter o escravo, o pobre
e o marginal em sua culpa pessoal e coletiva – imputa-lhe a impotência
de mudar sua história social. (FONSECA, 2009, p.14).

A palavra “raça”, no contexto da sociedade brasileira, nos remete ao


racismo, às memórias da escravidão e às imagens que construímos sobre “ser
negro” e “ser branco” em nosso país (GOMES, 2005). Raça ainda é o termo que
consegue dar a dimensão mais próxima da discriminação contra os negros, do que
é o racismo que afeta as pessoas negras no Brasil.

O Movimento Negro e alguns sociólogos, quando usam o termo raça,


não o fazem alicerçados na ideia de raças superiores e inferiores, como
originalmente era usada no século XIX. Pelo contrário, usam-no com
uma nova interpretação, que se baseia na dimensão social e política
do referido termo. E, ainda, usam-no porque a discriminação racial e o
racismo existentes na sociedade brasileira se dão não apenas devido aos
aspectos culturais dos representantes de diversos grupos étnico-raciais,
mas também devido à relação que se faz na nossa sociedade entre esses
e os aspectos físicos observáveis na estética corporal dos pertencentes às
mesmas (GOMES, 2005, p. 45).

Os militantes e intelectuais que utilizam o termo raça não o adotam no


sentido biológico, pelo contrário, todos sabem e concordam com os atuais estudos
da genética de que não existem raças humanas. Eles trabalham o termo raça
atribuindo-lhe um significado político construído a partir da análise do tipo de
racismo que existe no contexto brasileiro e considerando as dimensões históricas e
culturais que este nos remete.

168
TÓPICO 2 | DISCUSSÕES DE CONTEÚDOS

FIGURA 36 – SOMOS TODOS MASU

FONTE: Disponível em: <https://www.google.com.br/s


earch?q=democracia+racial&espv=2&biw=1280&bih=845&
site=webhp&source=lnms&tbm=isch&sa=X&sqi=2&ved=0a
hUKEwit5d6XhPzPAhUHLyYKHY2iDEwQ_AUIBigB&dpr=1#
imgdii=Xr2hzreDlqPfUM%3A%3BXr2hz
reDlqPfUM%3A%3B-O7bxG_cC4hGfM%3A&imgrc=Xr2hzre
DlqPfUM%3a>. Acesso em: 30 out. 2016.

O sociólogo Antônio Sérgio Guimarães (1999) trabalha com o conceito de


raça social:

‘Raça’ é um conceito que não corresponde a nenhuma realidade natural.


Trata-se, ao contrário, de um conceito que se denota tão-somente uma
forma de classificação social, baseada numa atitude negativa frente
a certos grupos sociais, e informada por uma noção específica de
natureza, como algo endodeterminado. A realidade das raças limita-
se, portanto, ao mundo social. Mas, por mais que nos repugne a
empulhação que o conceito de ‘raça’ permite, ou seja, fazer passar por
realidade natural preconceitos, interesses e valores sociais negativos e
nefastos, tal conceito tem uma realidade social plena, e o combate ao
comportamento social que ele enseja é impossível de ser travado sem
que se lhe reconheça a realidade social que só o ato de nomear permite
(GUIMARÃES, 1999, p. 9, (grifo nosso).

A raça no Brasil se dá através da simbologia de correlação, a sociedade

169
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

brasileira denota demarcadamente diferenças entre brancos, índios, negros,


ciganos etc. Assim, diferencia e confronta estas diferenças em hierarquias raciais,
sociais, culturais e econômicas. Mesmo o negro se identificando como não negro,
não é poupado pelo racismo, pois a sociedade brasileira impõe a racialização em
suas concepções cotidianas.

Não podemos negar que, na construção das sociedades, na forma


como negros e brancos são vistos e tratados no Brasil, a raça tem
uma operacionalidade na cultura e na vida social. Se ela não
tivesse esse peso, as particularidades e características físicas não
seriam usadas por nós, para identificar quem é negro e quem é
branco no Brasil. E mais, não seriam usadas para discriminar e
negar direitos e oportunidades aos negros em nosso país. É essa
mesma leitura sobre raça, de uma maneira positiva e política,
que os defensores das políticas de ações afirmativas no Brasil
têm trabalhado (GOMES, 2005, p. 48).

Alguns intelectuais utilizam o termo etnia compreendendo que o uso


do termo raça ficaria preso ao determinismo biológico, ao conceito de que a
humanidade se divide em raças superiores e inferiores, que já foi abolida pela
biologia e pela genética. A Alemanha nazista utilizou o conceito de raças humanas
para fortalecer sua tentativa de dominação política e cultural e mortificou vários
grupos sociais e étnicos que viviam na Alemanha e nos países aliados ao ditador
Hitler, durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

Segundo Nina Lino Gomes (2005), etnia é outro termo ou conceito usado
para se referir ao pertencimento ancestral e étnico/racial dos negros e outros
grupos em nossa sociedade.

Um grupo possuidor de algum grau de coerência e solidariedade


composto por pessoas conscientes, pelo menos em forma latente,
de terem origens e interesses comuns. Um grupo étnico não é mero
agrupamento de pessoas ou de um setor da população, mas uma
agregação consciente de pessoas unidas ou proximamente relacionadas
por experiências compartilhadas (CASHMORE, 2000, p. 196).

OU

[...] um grupo social cuja identidade se define pela comunidade


de língua, cultura, tradições, monumentos históricos e territórios
(BOBBIO,1992, p. 449).

As diferenças, mais do que dados da natureza são construções sociais,


culturais e políticas, de acordo com Gomes (2005). A diversidade humana, ou seja, as
nossas semelhanças e dessemelhanças, são ensinadas a partir das particularidades:
diferentes formas de corpo, diferentes cores da pele, tipos de cabelo, formatos dos
olhos, diferentes formas linguísticas etc. No entanto, estamos mergulhados em

170
TÓPICO 2 | DISCUSSÕES DE CONTEÚDOS

relações de poder e de dominação política e cultural, nem sempre percebemos


que aprendemos a ver as diferenças e as semelhanças de forma hierarquizada:
perfeições e imperfeições, beleza e feiura, inferioridade e superioridade (GOMES,
2005).

FIGURA 37 - NOVA GERAÇÃO DE INDÍGENAS

FONTE: Disponível em: <https://www.google.com.br/


search?q=indios&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwiq2Yz7r_
TPAhVBf5AKHYqwCL4Q_AUICCgB&biw=1366&bih=662#imgdii=Gd_e1S4jziImCM%3A%3BGd_
e1S4jziImCM%3A%3BetA7_hap_teoUM%3A&imgrc=Gd_e1S4jziImCM%3ª. Acesso em: 30 out.
2016.

Outro grupo étnico racial que apresenta grandes lutas na sociedade


brasileira é o indígena. No Brasil, a população indígena é de 896.9 mil, foram
identificadas 305 etnias com 274 línguas reconhecidas. A etnia Tikuna é o maior
grupo, localiza-se na fronteira do Brasil com o Peru, e no trapézio amazônico,
na Colômbia. Na região norte, 502.783 vivem em zona rural e 315.180 habitam
zonas urbanas. Na década de 1980, o movimento social indígena mobilizou-se em
todo o país em prol da mudança na legislação brasileira a respeito dos direitos
indígenas. A Constituição de 1988 garante os direitos à educação para a população
indígena, assim como a manutenção dos direitos culturais, valorização da cultura
e demarcação das terras indígenas. A Lei de Diretrizes e Bases, de 1996, reconhece
os saberes indígenas referindo-se à pluralidade cultural e garantindo aos povos
indígenas o acesso a informações e manutenção de sua cultura.

171
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

Gobbi (2006) relata que os livros didáticos, em sua maioria, ainda são
reproduzidos com pressupostos evolucionistas e valores etnocêntricos. Os povos
indígenas são mencionados como pertencentes ao passado, caracterizados como
primitivos e têm seus conhecimentos desconsiderados. As referências às culturas
não europeias são sempre em relação ou em comparação às culturas europeias,
dando a essas últimas uma valoração positiva, em detrimento das outras. O tom
evolucionista permeia a abordagem dos livros didáticos, onde a temática da
“evolução”, da história em “etapas” é bastante recorrente (TASSINARI; GOBI,
2008).

As leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008 estabelecem as diretrizes e bases


da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a
obrigatoriedade da temática “História e cultura afro-brasileira e indígena”.
Inúmeros trabalhos relatam que existem práticas discriminatórias dentro das
escolas e do sistema de ensino como um todo que influenciam uma autoimagem
negativa do aluno negro, o que resulta na internalização de perfis racistas que está
por toda sociedade e colabora com o baixo rendimento escolar deste aluno.

Por meio da discussão de textos literários ou jornalísticos, da exibição


de filmes e documentários ou da avaliação de situações do cotidiano,
podemos encaminhar, em sala de aula, uma reflexão sobre ações mais
efetivas da escola e da comunidade circundante, a favor da integração
racial e do respeito à diversidade (SANTOS, 2008, p. 54).

Ao estudar a história afro-brasileira e indígena, os estudantes abrem espaço


no currículo escolar para inclusão da temática das relações raciais e racismo no
espaço escolar.

DICAS

RAÍZES NEGRAS, de Alex Haley

O livro vai contar a história de Alex Haley, que decidiu estudar


a vida de seus antepassados. Em especial, o primeiro negro
de sua família a vir da África e que havia, desde pequeno,
ouvido histórias de tal homem. Esse negro era Kunta Kinte,
que foi sequestrado da África e vindo para os Estados Unidos
ser escravo e cuidar das plantações dos brancos. Kunta sofre
muito quando deixa a África e passa por momentos difíceis
até sua chegada à América. O navio em que é transportado
tem situações higiênicas precárias e vários morrem por
causa de tal sujeira, outros morrem por doenças, e outros
por serem espancados. As mulheres negras traficadas sofrem
muito também, sendo estupradas várias vezes.
FONTE: Disponível em: <http://escritaliteraria1.blogspot.com.
br/2015/05/resenha-negras-raizes-por-alex-haley_20.html>.
Acesso em: 30 out. 2016.

172
TÓPICO 2 | DISCUSSÕES DE CONTEÚDOS

3 GÊNERO E DIVERSIDADE NA ESCOLA SEGUNDO A


ANTROPOLOGIA

FIGURA 38 - GÊNERO E SEXUALIDADE

FONTE: Disponível em: <http://www.superpride.com.br/2016/01/identidades-genero-


e-diversidade-sexual.html>. Acesso em: 17 ago. 2016.

Caro acadêmico! Agora vamos tocar em um assunto muito relevante nos


dias atuais. O que é falar sobre estudos de gênero? Como se relaciona gênero e
sexualidade? Em que medida é natural ou social cada uma dessas categorias?
Como posso tratar essa temática em sala de aula? Enfim, são perguntas que os
professores colocam e que nem sempre sabem ou se sentem à vontade para debater
em sala de aula. Entretanto, é um tema pelo qual nossos alunos se interessam e
cada vez mais nos pedem para falar.

Vamos lá, então! Para compreender esse debate, temos de separar os


conceitos de três termos que se relacionam e definem em cada âmbito dessa
questão, que são: sexo, gênero e sexualidade. Muitas vezes confundimos sexo e
gênero, ou achamos que o gênero determina a sexualidade da pessoa. Por isso é
relevante separar e pensar que a pessoa pode acionar cada conceito de uma forma
diferente de outras pessoas.

Primeiro, quando nos preocupamos com o "sexo", estamos focados nas


características físicas do ser humano, ou seja, nos órgãos genitais e formas do
corpo. Nesse sentido há componentes biológicos através dos quais nascemos que
definem o fato de termos pênis ou vagina, entretanto, sabemos que há casos de
pessoas que nascem com a genitália ambígua e que não necessariamente vão se
identificar com o sexo escolhido pelos seus pais durante o processo de criação, por
173
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

isso há um movimento de pessoas que nasceram com a genitália ambígua e pedem


para essa decisão ser mais tardia, para que a própria pessoa possa escolher, e não os
pais e profissionais de saúde. Além disso, com o avanço da ciência e da tecnologia,
para quem não se reconhece ou não gosta do sexo com que nasceu, pode-se realizar
uma cirurgia de readequação genital e tomar hormônios, interferindo na questão
física e biológica também.

Nesse sentido, a ideia de que o sexo é natural vai ganhando cada vez mais
camadas que nos fazem repensar e estudar mais a questão. De alguma maneira
nascemos com certo sexo, mas isso não significa que ao longo dos anos vamos
nos identificar com ele, por isso temos de ter cuidado para respeitar as escolhas
das pessoas que se reconhecem com o sexo que nasceram ou não. Pois quem não
se reconhece sofre com isso, e a possibilidade da cirurgia de readequação genital
pode dar uma qualidade de vida melhor para essa pessoa.

Vamos entender do que se fala quando pensamos "gênero". A ideia de


gênero remete à função de classificar em masculino ou feminino a pessoa, e em
cada sociedade os atributos que definem essa classificação podem variar. Por
exemplo, cabelo curto para definir homens e comprido para definir mulheres,
gestos mais brutos para se reconhecer a masculinidade e gestos mais delicados
para definir feminilidade, homens usam calças e mulheres usam saia etc. O que
queremos dizer é que gênero é socialmente construído, não é natural, de modo que
em cada cultura em que se está certos atributos definem com qual gênero a pessoa
se identifica. Deste modo, não é o sexo que a pessoa tem que define o gênero com o
qual ela se identifica. Ou mesmo, a pessoa pode se identificar um pouco com cada
gênero, ou mesmo não se identificar nem com o masculino, nem com o feminino,
como são as pessoas "não binárias" que não se enquadram nesse binarismo.

Aqui já podemos complexificar nossa discussão, pois estamos vendo que


não necessariamente ter um sexo específico é definidor do gênero com que a pessoa
se identifica, por esta razão devemos estar atentos a isso. É possível que uma pessoa
tenha um pênis, mas se identifique com o gênero feminino, por exemplo. Inclusive,
com a ajuda da ciência e da medicina é possível que pessoas que nasceram com
vagina possam realizar um tratamento hormonal e ter barba, construindo essa
caracterização da masculinidade, de acordo com sua cultura.

DICAS

Indicamos o filme "Meu eu secreto", sobre crianças que nasceram com um sexo,
mas se reconhecem com outro gênero.

FONTE: Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=YU5NS4dHPUA>.

174
TÓPICO 2 | DISCUSSÕES DE CONTEÚDOS

Vamos falar sobre "sexualidade". Ter um sexo específico e ter um gênero


definido não significa que há correspondência direta em relação à sexualidade
da pessoa. Assim, sexualidade está vinculada à orientação do desejo sexual e
afetivo por outra pessoa. Quem gosta de pessoas do sexo oposto chamamos de
heterossexual (ou heteroafetivo), e chamamos quem gosta de pessoas do mesmo
sexo de homossexual (ou homoafetivo). O termo homoafetivo foi criado para
diminuir a conotação pejorativa que se dava aos relacionamentos homossexuais,
e tornou-se uma expressão jurídica para tratar do direito relacionado à união de
casais do mesmo sexo. Ainda há quem goste de pessoas do mesmo sexo e do sexo
oposto, essas pessoas são chamadas de bissexuais (ou biafetivas). E existem aqueles
que são assexuais (não se sentem atraídos por nenhum dos sexos) e os pansexuais
(atração emocional independente do gênero).

Nesse sentido, a identidade de gênero se refere ao aspecto cultural da


diferença entre homens e mulheres, e não às diferenças físicas. A identidade, por
sua vez, diz respeito ao processo de construção das diferenças e identificações
que cada ser humano desenvolve em suas relações sociais. Deve-se considerar o
conjunto de características que orienta nossa relação com o masculino e o feminino
e revela a diferença cultural entre os sexos em uma dada sociedade.

Assim, podemos relacionar as três categorias de acordo como cada pessoa


se reconhece, se entende e se sente atraída. Por exemplo, pode ter alguém que
nasceu com uma vagina, se reconhece como o gênero masculino e se relaciona com
mulheres. Ou pode ter alguém que tem pênis, se reconhece como o gênero feminino
e se relaciona com mulheres, enfim, as possibilidades de combinação variam e cabe
a cada pessoa fazer as escolhas com quem ela se sinta mais confortável e feliz.

Entretanto, sabe-se que há desigualdade e discriminação de gênero


que produz injustiças sociais e formas de violência que persistem na sociedade
brasileira. Também são classificados como questões de gênero os problemas
relativos ao preconceito contra homossexuais (homofobia) e transgêneros (quando
a identidade de gênero de uma pessoa é diferente daquela atribuída ao gênero
designado desde o nascimento).

Considerar uma pessoa diferente por ela ter um gênero ou outro, ou ela
se relacionar com quem quer que seja, é discriminação. Ainda hoje as mulheres
ganham menos que os homens e essa é uma luta de todos nós, pois se o trabalho é
o mesmo, nada mais justo que a pessoa, independente do sexo ou gênero, ganhar
a mesma coisa que o seu sexo ou gênero oposto. As questões sexuais ainda são
consideradas tabu em nossa sociedade, por isso a intransigência em aceitar/
reconhecer que outras pessoas difiram do padrão heteronormativo deve ser
combatida. Ninguém deve ser vítima de violência por querer se identificar com
um gênero ou se relacionar com uma pessoa ou outra.

As lutas feministas e LGBTTT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis,


Transexuais e Transgêneros) explicitam essas discriminações e realizam
mobilizações para sensibilizar pela e para igualdade de gênero. Nesse sentido,

175
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

punir criminalmente quem discrimina é uma medida para combater que novas
injustiças possam ocorrer, bem como trabalhar essas questões em sala de aula
pode permitir educar para a diversidade.

DICAS

Recomenda-se a leitura do livro "Educando para a diversidade",


que foi organizado por Eliane Pasini, onde há textos diversos
sobre questão de gênero e o processo educativo.

Fonte: Disponível em: <http://www.academia.edu/2393413/


Educando_para_a_diversidade>.

De acordo com Louro (2011), muitas estudiosas feministas demonstram a


especificidade da distinção entre gênero e sexualidade e também sua forte relação.

Entre essas estudiosas, o conceito de gênero surgiu pela necessidade


de acentuar o caráter eminentemente social das diferenças percebidas
entre os sexos. Apontava para a impossibilidade de se ancorar no sexo
(tomado de modo estreito como características físicas ou biológicas dos
corpos) as diferenças e desigualdades que as mulheres experimentavam
em relação aos homens. O conceito levava a afirmar que tornar-se
feminina supõe uma construção, uma fabricação ou um aprendizado
que acontece no âmbito da cultura, com especificidades de cada
cultura. Portanto, as marcas da feminilidade são sempre diferentes de
uma cultura para outra; essas marcas se transformam, são provisórias.
Inscrevê-las num corpo supõe, também, lidar com as marcas distintivas
do seu outro, a masculinidade. Percebe-se, então, que ao falar de gênero
estamos nos referindo a feminilidades e a masculinidades (sempre no
plural). A potencialidade do conceito talvez resida exatamente nesta
noção, a de que se trata de uma construção cultural contínua, sempre
inconclusa e relacional. (LOURO, 2011, p. 63-64).

A professora Guacira Louro (2011) explica que gênero e sexualidade são


construídos culturalmente. Ou seja, aprendemos a ser do gênero feminino ou
masculino, aprendemos a ser heterossexuais, homossexuais ou bissexuais, nossos
comportamentos são pautados pelo que Louro (2011) coloca como pedagogias
culturais, ou pedagogias de gênero e sexualidade, onde nossos comportamentos,
desejos, gestos são condicionados pelo determinado gênero e sexualidade. Os
176
TÓPICO 2 | DISCUSSÕES DE CONTEÚDOS

significados atribuídos aos gêneros e às sexualidades são permeados ou assinalados


por relações de poder e implicam hierarquias, subordinações, distinções. Estas
relações de poder demarcam “lugares”, que são “não normais”, ou vistos como
“normais”, apresentando assim uma relação de “diferença”. Na sociedade
brasileira, observa-se a construção de uma posição que se torna referência do que
pode ser “normal”. Deste modo, o que é dito “correto” provém do homem branco,
heterossexual, de classe média urbana e cristão, este é o perfil do que tomamos
como identidade de referência.

De acordo com Louro (2011), os educadores necessitariam retomar os


processos históricos, políticos, econômicos, culturais que possibilitaram que
fosse determinado que um “padrão identitário” fosse legitimado e tido como
critério normalizador, deixando o que não se encaixa, como “diferente” ou
“desviante”, para que assim possamos analisar como a escola está lidando
com estas questões. Compreendendo que a educação opera em uma lógica
disciplinadora e normalizadora. Neste sentido, a educação trabalha na perspectiva
da heteronormatividade, ou seja, trabalha no entendimento de que todos são,
ou deveriam ser heterossexuais, assumindo que esta seria a forma “natural” de
sexualidade.

Se a heterossexualidade fosse natural, por que se gastaria tanto esforço


para vigiar e garantir que meninas e meninos – muito especialmente
os meninos – se tornem heterossexuais? Afinal, se ela é mesmo algo
natural, deveríamos supor que não se precisasse cuidar tanto de sua
“aquisição”. Mas sabemos que essa é uma questão que preocupa pais,
mães, educadoras e educadores. Um ponto de tensão e, algumas vezes,
de atrito entre a escola e a família (LOURO, 2011, p. 67).

FIGURA 39 - ESCOLA EXCLUSIVAMENTE FEMININA EM PORTUGAL

FONTE: Disponível em: <https://ensaiosdegenero.files.wordpress.com/2014/01/


gc3aanero-e-educac3a7c3a3o-histc3b3ria-de-desigualdades-1.jpg>. Acesso em: 12
maio 2017.

177
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

Segundo o sociólogo francês Bernard Charlot (2009), a escola, inicialmente,


era um espaço exclusivamente masculino, onde as meninas não podiam participar,
ou o faziam em locais distintos. Os liceus femininos foram criados em 1880, com
forte resistência, havia o receio de que as meninas poderiam ser mais subversivas ao
estudarem. De acordo com os dados do censo escolar do INEP (Instituto Nacional
de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), as mulheres são maioria nos
índices de escolaridades, principalmente no Ensino Médio. Veja as composições de
sexo e raça/cor por grau de escolaridade no ano de 2016 no Brasil. Na sociedade
britânica, desde a década de noventa a comunidade escolar vem discutindo o baixo
desempenho escolar dos meninos. As meninas estão superando o desempenho em
todas as áreas e todos os níveis escolares do sistema educacional britânico, de acordo
com o sociólogo Anthony Giddens (2005). O mesmo ainda relata que o problema do
“fracasso dos meninos” é um tema que inquieta os educadores britânicos, a queda
no desempenho pode estar associada a diversas questões sociais, como a violência,
o desemprego, as drogas e a monoparentalidade. De que forma a antropologia
pode auxiliar na reflexão sobre estes temas? No próximo tópico trabalharemos a
temática da educação inclusiva a partir do olhar da antropologia, para que você
possa refletir sobre estas desigualdades de gênero, raça/cor, econômica e cultural.

DICAS

1) MINHA VIDA EM COR DE ROSA (1996) – Ludovic é uma garota transsexual que
está começando a assumir sua verdadeira identidade perante o mundo. Seu desejo é se casar
com o filho de sua vizinha, mas os novos rumos que Ludovic dá para sua vida surpreendem
sua própria família e os vizinhos, que não conseguem aceitar, de fato, a felicidade, os desejos
e a real identidade de Ludovic.
FONTE: Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-12213/>.

2) ELVIS & MADONNA (2010) – Simone Spoladore (Lavoura Arcaica) é Elvis, fotógrafa de
coração e entregadora de pizza por necessidade. Logo em sua primeira entrega ela conhece
Madona (Ígor Cotrim), um travesti que enfrenta problemas com o amante João Tripé (Sérgio
Bezerra). É o início de uma amizade que, pouco a pouco, se transforma em amor.
FONTE: Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-202462/>.

178
TÓPICO 2 | DISCUSSÕES DE CONTEÚDOS

LEITURA COMPLEMENTAR
Gênero e sexualidade: pedagogias contemporâneas

Guacira Lopes Louro *1

Há mais de cinquenta anos, Simone de Beauvoir sacudiu a poeira dos meios


intelectuais com a frase Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. A expressão
causou impacto e ganhou o mundo. Mulheres das mais diferentes posições,
militantes e estudiosas passaram a repeti-la para indicar que seu modo de ser e de
estar no mundo não resultava de um ato único, inaugural, mas que, em vez disso,
constituía-se numa construção. Fazer-se mulher dependia das marcas, dos gestos,
dos comportamentos, das preferências e dos desgostos que lhes eram ensinados
e reiterados, cotidianamente, conforme normas e valores de uma dada cultura.
Muita coisa mudou desde o final dos anos 1940 (quando Beauvoir publicou o seu
Segundo sexo) e o fazer-se mulher transformou-se, pluralizou-se, de um modo
tal que talvez nem mesmo a filósofa ousasse imaginar. Mas a frase ficou. De
certa forma, pode ser tomada como uma espécie de gatilho provocador de um
conjunto de reflexões e teorizações, exuberante e fértil, polêmico e disputado, não
só no campo do feminismo e dos estudos de gênero, como também no campo dos
estudos da sexualidade. A frase foi alargada, é claro, passando a ser compreendida
também no masculino. Sim, decididamente, fazer de alguém um homem requer,
de igual modo, investimentos continuados. Nada há de puramente natural
e dado em tudo isso: ser homem e ser mulher constituem-se em processos que
acontecem no âmbito da cultura. Ainda que teóricas e intelectuais disputem
quanto aos modos de compreender e atribuir sentido a esses processos, elas e
eles costumam concordar que não é o momento do nascimento e da nomeação
de um corpo como macho ou como fêmea que faz deste um sujeito masculino
ou feminino. A construção do gênero e da sexualidade dá-se ao longo de toda
a vida, continuamente, infindavelmente. Quem tem a primazia nesse processo?
Que instâncias e espaços sociais têm o poder de decidir e inscrever em nossos
corpos as marcas e as normas que devem ser seguidas? Qualquer resposta cabal e
definitiva a tais questões será ingênua e inadequada. A construção dos gêneros e
das sexualidades dá-se através de inúmeras aprendizagens e práticas, insinua-se
nas mais distintas situações, é empreendida de modo explícito ou dissimulado por
um conjunto inesgotável de instâncias sociais e culturais. É um processo minucioso,
sutil, sempre inacabado. Família, escola, igreja, instituições legais e médicas
mantêm-se, por certo, como instâncias importantes nesse processo constitutivo.
Por muito tempo, suas orientações e ensinamentos pareceram absolutos, quase
soberanos. Mas como esquecer, especialmente na contemporaneidade, a sedução
e o impacto da mídia, das novelas e da publicidade, das revistas e da internet,
dos sites de relacionamento e dos blogs? Como esquecer o cinema e a televisão, os
shopping centers ou a música popular? Como esquecer as pesquisas de opinião e
as de consumo? E, ainda, como escapar das câmeras e monitores de vídeo e das
1Professora Titular aposentada da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Brasil. Colaboradora
convidada da mesma universidade, no Programa de Pós-Graduação em Educação, Linha de Pesquisa Educação,
Sexualidade e Relações de Gênero, Fundadora do GEERGE (Grupo de Estudos de Educação e Relações de
Gênero). <guacira.louro@gmail.com>.

179
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

inúmeras máquinas que nos vigiam e nos atendem nos bancos, nos supermercados
e nos postos de gasolina? Vivemos mergulhados em seus conselhos e ordens,
somos controlados por seus mecanismos, sofremos suas censuras. As proposições
e os contornos delineados por essas múltiplas instâncias nem sempre são coerentes
ou igualmente autorizados, mas estão, inegavelmente, espalhados por toda a parte
e acabam por constituir-se como potentes pedagogias culturais. Especialistas das
mais diversas áreas dizem-nos o que vestir, como andar, o que comer (como e
quando e quanto comer), o que fazer para conquistar (e para manter) um parceiro
ou parceira amoroso/a, como se apresentar para conseguir um emprego (ou para
ir a uma festa), como ficar de bem com a vida, como se mostrar sensual, como
aparentar sucesso, como... ser.

Dieta S.O.S. Barriga chapada. Montamos um cardápio para você desfilar


no verão com abdômen sequinho. Confira e comece já. 1. Mude o visual
e ganhe atitude. Como conquistar a gata dos seus sonhos. Ensinamos
passo a passo as técnicas de aproximação e de conquista. Sabia que você
pode substituir a flacidez por músculos? Discipline-se, adquira novos
hábitos. Na festa mais descolada da temporada, aprenda com aqueles
que já sabem tudo o que vai rolar na nova estação.

Conselhos e palavras de ordem interpelam-nos constantemente, ensinam-


nos sobre saúde, comportamento, religião, amor, dizem-nos o que preferir e o que
recusar, ajudam-nos a produzir nossos corpos e estilos, nossos modos de ser e de
viver. Algumas orientações provêm de campos consagrados e tradicionalmente
reconhecidos por sua autoridade, como o da medicina ou da ciência, da família,
da justiça ou da religião. Outras parecem surgir dos novos espaços ou ali ecoar.
Não há uniformidade em suas diretrizes. Ainda que normas culturais de há muito
assentadas sejam reiteradas por várias instâncias, é indispensável observar que,
hoje, multiplicaram-se os modos de compreender, de dar sentido e de viver os
gêneros e a sexualidade. Transformações são inerentes à história e à cultura,
mas, nos últimos tempos, elas parecem ter se tornado mais visíveis ou ter se
acelerado. Proliferaram vozes e verdades. Novos saberes, novas técnicas, novos
comportamentos, novas formas de relacionamento e novos estilos de vida foram
postos em ação e tornaram evidente uma diversidade cultural que não parecia
existir. Cada vez mais perturbadoras, essas transformações passaram a intervir
em setores que haviam sido, por muito tempo, considerados imutáveis, trans-
históricos e universais. Em poucos anos, tornaram-se possíveis novas tecnologias
reprodutivas, a transgressão de categorias e de fronteiras sexuais e de gênero, além
de instigantes articulações corpo-máquina. Desestabilizaram-se antigas e sólidas
certezas, subverteram-se as formas de gerar, de nascer, de crescer, de amar ou de
morrer. Informações e pessoas até então inatingíveis tornaram-se acessíveis por
um simples toque de computador. Relações afetivas e amorosas passaram a ser
vividas virtualmente; relações que desprezam dimensões de espaço, de tempo,
de gênero, de sexualidade, de classe ou de raça; relações nas quais o anonimato e
a troca de identidade são parte do jogo. Impossível desprezar os efeitos de todas
essas transformações: elas constituem novas formas de existência para todos,
mesmo para aqueles que, num primeiro momento, não as experimentam de modo
direto.

180
TÓPICO 2 | DISCUSSÕES DE CONTEÚDOS

Como parte de tudo isso, vem se afirmando uma nova política cultural,
a política de identidades. Muito especialmente a partir dos anos 1960, jovens,
estudantes, negros, mulheres, as chamadas minorias sexuais e étnicas passaram a
falar mais alto, denunciando sua inconformidade e seu desencanto, questionando
teorias e conceitos, derrubando fórmulas, criando novas linguagens e construindo
novas práticas sociais. Uma série de lutas ou uma luta plural, protagonizada por
grupos sociais tradicionalmente subordinados, passava a privilegiar a cultura
como palco do embate.

Seu propósito consistia, pelo menos inicialmente, em tornar visíveis outros


modos de viver, os seus próprios modos: suas estéticas, suas éticas, suas histórias,
suas experiências e suas questões. Desencadeava-se uma luta que, mesmo com
distintas caras e expressões, poderia ser sintetizada como a luta pelo direito de
falar por si e de falar de si. Esses diferentes grupos, historicamente colocados
em segundo plano pelos grupos dominantes, estavam e estão empenhados,
fundamentalmente, em se autorrepresentar. A cultura, diz Stuart Hall, é agora
um dos elementos mais dinâmicos e mais imprevisíveis da mudança histórica do
novo milênio. Daí porque não deve nos surpreender que as lutas pelo poder sejam,
crescentemente, simbólicas e discursivas, ao invés de tomar, simplesmente, uma
forma física e compulsiva, e que as próprias políticas assumam progressivamente
a feição de uma ‘política cultural’ (HALL, 1997, p. 20). Esse tipo de luta requer
armas peculiares. Supõe estratégias mais sutis e engenhosas. Talvez por isso a
alguns escape a força dos embates culturais.

Mas os movimentos sociais organizados (dentre eles o movimento feminista


e os das minorias sexuais) compreenderam, desde logo, que o acesso e o controle
dos espaços culturais, como a mídia, o cinema, a televisão, os jornais, os currículos
das escolas e universidades, eram fundamentais. A voz que ali se fizera ouvir, até
então, havia sido a do homem branco heterossexual. Ao longo da história, essa
voz falara de um modo quase incontestável. Construíra representações sociais que
tiveram importantes efeitos de verdade sobre todos os demais. Passamos, assim,
a tomar como verdade que as mulheres se constituíam no segundo sexo ou que
gays, lésbicas, bissexuais eram sujeitos de sexualidades desviantes. Por tudo isso,
colocava-se, como uma meta urgente para os grupos submetidos, apropriar-se
dessas instâncias culturais e aí inscrever sua própria representação e sua história,
pôr em evidência as questões de seu interesse. A luta no terreno cultural mostrava-
se (e se mostra), fundamentalmente, como uma luta em torno da atribuição de
significados produzidos em meio a relações de poder. Esse embate, como
qualquer outro embate cultural, é complexo exatamente porque está em contínua
transformação. No terreno dos gêneros e da sexualidade, o grande desafio, hoje,
parece não ser apenas aceitar que as posições se tenham multiplicado, então, que
é impossível lidar com elas a partir de esquemas binários (masculino/feminino,
heterossexual/homossexual).

O desafio maior talvez seja admitir que as fronteiras sexuais e de gênero


vêm sendo constantemente atravessadas e, o que é ainda mais complicado admitir,
que o lugar social no qual alguns sujeitos vivem é exatamente a fronteira. A

181
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

posição de ambiguidade entre as identidades de gênero e/ou sexuais é o lugar


que alguns escolheram para viver (LOURO, 2004). A visibilidade que todos
esses novos grupos adquiriram pode ser, eventualmente, interpretada como um
atestado de sua progressiva aceitação. Contudo, nem mesmo a exuberância das
paradas da diversidade sexual, das feiras mix, dos festivais de filmes alternativos
permite ignorar a longa história de marginalização e de repressão que esses
grupos enfrentaram e ainda enfrentam. Não podemos tomar de modo ingênuo
essa visibilidade. Se, por um lado, alguns setores sociais passam a demonstrar
uma crescente aceitação da pluralidade sexual e, até mesmo, passam a consumir
alguns de seus produtos culturais, por outro lado, setores tradicionais renovam
(e recrudescem) seus ataques, realizando desde campanhas de retomada dos
valores tradicionais da família até manifestações de extrema agressão e violência
física. Hoje, tal como antes, a sexualidade permanece como alvo privilegiado da
vigilância e do controle das sociedades.

Ampliam-se e diversificam-se suas formas de regulação, multiplicam-


se as instâncias e as instituições que se autorizam a ditar-lhe normas. Foucault
certamente diria que proliferam cada vez mais os discursos sobre o sexo e que
as sociedades continuam produzindo, avidamente, um saber sobre o prazer, ao
mesmo tempo que experimentam o prazer de saber (FOUCAULT, 1988). A sutileza
do embate cultural requer um olhar igualmente sutil. Há que perceber os modos
como se constrói e se reconstrói a posição da normalidade e a posição da diferença,
porque, afinal, é disso que se trata. Em outras palavras, é preciso saber quem é
reconhecido como sujeito normal, adequado, sadio, e quem se diferencia desse
sujeito. As noções de norma e de diferença tornaram-se particularmente relevantes
na contemporaneidade. É preciso refletir sobre seus possíveis significados. A
norma, ensina-nos Foucault, está inscrita entre as artes de julgar, ela é um princípio
de comparação. Sabemos que tem relação com o poder, mas sua relação não se dá
pelo uso da força, e sim por meio de uma espécie de lógica que se poderia quase
dizer que é invisível, insidiosa (EWALD, 1993). A norma não emana de um único
lugar, não é enunciada por um soberano, mas, em vez disso, está em toda parte.

Expressa-se por meio de recomendações repetidas e observadas


cotidianamente, que servem de referência a todos. Daí porque a norma se
faz penetrante, daí porque ela é capaz de se naturalizar. Quanto à diferença, é
possível dizer que ela seja um atributo que só faz sentido ou só pode se constituir
em uma relação. A diferença não preexiste nos corpos dos indivíduos para ser
simplesmente reconhecida; em vez disso, ela é atribuída a um sujeito (ou a um
corpo, uma prática, ou seja lá o que for) quando relacionamos esse sujeito (ou esse
corpo ou essa prática) a um outro que é tomado como referência. Portanto, se a
posição do homem branco heterossexual de classe média urbana foi construída,
historicamente, como a posição de sujeito ou a identidade referência, segue-se que
serão diferentes todas as identidades que não correspondam a esta ou que desta
se afastem. A posição normal é, de algum modo, onipresente, sempre presumida,
e isso a torna, paradoxalmente, invisível. Não é preciso mencioná-la. Marcadas
serão as identidades que dela diferirem. Continuamente, as marcas da diferença
são inscritas e reinscritas pelas políticas e pelos saberes legitimados, reiteradas por

182
TÓPICO 2 | DISCUSSÕES DE CONTEÚDOS

variadas práticas sociais e pedagogias culturais. Se, hoje, as classificações binárias


dos gêneros e da sexualidade não mais dão conta das possibilidades de práticas
e de identidades, isso não significa que os sujeitos transitem livremente entre
esses territórios, isso não significa que eles e elas sejam igualmente considerados.
Portanto, antes de simplesmente assumir noções dadas de normalidade e de
diferença, parece produtivo refletir sobre os processos de inscrição dessas marcas.

Não se trata de negar a materialidade dos corpos, mas sim de assumir que
é no interior da cultura e de uma cultura específica que características materiais
adquirem significados. Como isso tudo aconteceu e acontece? Através de que
mecanismos? Se em tudo isso estão implicadas hierarquias e relações de poder, por
onde passam tais relações? Como se manifestam? Não, a diferença não é natural,
mas sim naturalizada. A diferença é produzida através de processos discursivos e
culturais.

A diferença é ensinada. Aprendemos a viver o gênero e a sexualidade na


cultura, através dos discursos repetidos da mídia, da igreja, da ciência e das leis e
também, contemporaneamente, através dos discursos dos movimentos sociais e dos
múltiplos dispositivos tecnológicos. As muitas formas de experimentar prazeres
e desejos, de dar e de receber afeto, de amar e de ser amada/o são ensaiadas e
ensinadas na cultura, são diferentes de uma cultura para outra, de uma época ou
de uma geração para outra. E hoje, mais do que nunca, essas formas são múltiplas.
As possibilidades de viver os gêneros e as sexualidades ampliaram-se. As certezas
acabaram. Tudo isso pode ser fascinante, rico e também desestabilizador. Mas não
há como escapar a esse desafio. O único modo de lidar com a contemporaneidade
é, precisamente, não se recusar a vivê-la.

Referências

BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

EWALD, François. Foucault: a norma e o direito. Lisboa: Vega, 1993.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1. A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções de nosso tempo. Educação &
Realidade. v. 22, n. 2, jul./dez. 1997. La Gandhi Argentina. Editorial, ano 2, n. 3, nov. 1998.

LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo
Horizonte: Autêntica, 2004.

FONTE: LOURO, Guacira Lopes. Gênero e sexualidade: pedagogias contemporâneas. Pro-


Posições [online]. 2008, vol.19, n.2, pp.17-23. ISSN 1980-6248.

183
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

LEITURA COMPLEMENTAR

KABENGELE MUNANGA: A DIFÍCIL TAREFA DE DEFINIR QUEM É


NEGRO NO BRASIL

Para o antropólogo Kabengele Munanga, professor-


titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da USP, não é fácil definir quem é negro no
Brasil. Em entrevista concedida a Estudos Avançados,
no último dia 13 de fevereiro, ele classifica a
questão como “problemática”, sobretudo quando
se discutem políticas de ação afirmativa, como cotas
para negros em universidades públicas. “Com os
estudos da genética, por meio da biologia molecular,
mostrando que muitos brasileiros aparentemente
brancos trazem marcadores genéticos africanos,
cada um pode se dizer um afrodescendente.
Trata-se de uma decisão política”, afirma.

Kabengele Munanga é atualmente vice-diretor do Centro de Estudos Africanos


e do Museu de Arte Contemporânea da USP. Nasceu em 19 de novembro de
1942 no antigo Zaire, onde recebeu sua educação primária e secundária. Sua
educação superior ocorreu em seu país natal, de 1964 a 1969. Foi o primeiro
antropólogo formado na então Université Officielle du Congo, em Ciências
Sociais (Antropologia Social e Cultural). No mesmo ano em que se graduou,
recebeu uma bolsa do governo belga, como pesquisador no Museu Real da
África Central, em Tervuren, e como aluno do programa de pós-graduação
na Universidade Católica de Louvain, na Bélgica. Essa bolsa foi interrompida
em 1971, por questões políticas, antes da conclusão de seu doutorado.

Em julho de 1975, veio ao Brasil com uma bolsa da USP, a fim de continuar seus
estudos. Defendeu sua tese em 1977. No mesmo ano, voltou a seu país, mas não
conseguiu permanecer lá por muito tempo. Regressou ao Brasil em 1979, para
trabalhar na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Em 1980, iniciou a
segunda fase de sua carreira na USP. Em 2002, o governo brasileiro concedeu a
Kabengele Munanga o diploma de sua admissão na Ordem do Mérito Cultural, na
classe de Comendador.

Participaram da entrevista com Kabengele Munanga o editor de Estudos


Avançados, professor Alfredo Bosi, e o editor assistente, jornalista Dario Luis Borelli.

ESTUDOS AVANÇADOS – Quem é negro no Brasil? É um problema de identidade


ou de denominação?

Kabengele Munanga – Parece simples definir quem é negro no Brasil. Mas, num
país que desenvolveu o desejo de branqueamento, não é fácil apresentar uma
definição de quem é negro ou não. Há pessoas negras que introjetaram o ideal de

184
TÓPICO 2 | DISCUSSÕES DE CONTEÚDOS

branqueamento e não se consideram como negras. Assim, a questão da identidade


do negro é um processo doloroso. Os conceitos de negro e de branco têm um
fundamento etnossemântico, político e ideológico, mas não um conteúdo biológico.
Politicamente, os que atuam nos movimentos negros organizados qualificam como
negra qualquer pessoa que tenha essa aparência. É uma qualificação política que
se aproxima da definição norte-americana. Nos EUA não existe pardo, mulato ou
mestiço e qualquer descendente de negro pode simplesmente se apresentar como
negro. Portanto, por mais que tenha uma aparência de branco, a pessoa pode se
declarar como negro. No contexto atual, no Brasil a questão é problemática, porque,
quando se colocam em foco políticas de ações afirmativas – cotas, por exemplo
–, o conceito de negro torna-se complexo. Entra em jogo também o conceito de
afrodescendente, forjado pelos próprios negros na busca da unidade com os
mestiços. Com os estudos da genética, por meio da biologia molecular, mostrando
que muitos brasileiros aparentemente brancos trazem marcadores genéticos
africanos, cada um pode se dizer um afrodescendente. Trata-se de uma decisão
política. Se um garoto, aparentemente branco, declara-se como negro e reivindicar
seus direitos, num caso relacionado com as cotas, não há como contestar. O único
jeito é submeter essa pessoa a um teste de DNA. Porém, isso não é aconselhável,
porque, seguindo por tal caminho, todos os brasileiros deverão fazer testes. E o
mesmo sucederia com afrodescendentes que têm marcadores genéticos europeus,
porque muitos de nossos mestiços são eurodescendentes.

ESTUDOS AVANÇADOS – Em face da concessão de cotas para negros, ou para


outros segmentos da população que não tiveram a mesma condição de cursar
escolas da classe média ou alta, qual é a sua posição?

Kabengele Munanga – Por ocasião dos 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares,
em 1995, começamos a discutir essa questão na USP, numa comissão criada pela
reitoria. Os movimentos negros, principalmente o Núcleo da Consciência Negra,
pleitearam o estabelecimento de cotas em nossa universidade. Contudo, afirmei
que não poderíamos discutir o sistema de cotas sem antes fazer uma pesquisa
preliminar em países que já têm experiência de cotas, como os EUA, o Canadá, a
Austrália ou a Índia. Naquela ocasião, apresentei essa proposta, mas ela não foi
levada adiante. No entanto, na base de um levantamento do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA), um órgão do governo federal, conclui-se que realmente
há uma grande defasagem na escolaridade dos negros nas universidades brasileiras.
Infelizmente, porém, começamos a enfrentar a questão pelas cotas, a partir da
decisão do governador Anthony Garotinho, do Rio de Janeiro, que provocou uma
confusão muito grande, quando estabeleceu cotas nas universidades estaduais. No
entanto, mesmo num país com tantas desigualdades, as políticas universalistas não
resolvem o problema do negro. Para isso precisamos formular políticas específicas
contra as desigualdades, mas o caminho não deve ser necessariamente por meio
de cotas. Essa discussão, todavia, é importante, porque antes nem se tocava no
assunto. Escutei outro dia algo muito positivo quando alguém dizia que deveria
haver cotas para pobres. Ora, antes ninguém apresentou esse ponto de vista. O
que mais me surpreende é que jamais o movimento negro se disse contrário a
cotas para brancos pobres. A questão ainda está mal discutida, sendo formulada
num tom passional, tanto pelos negros como pelos intelectuais. A questão não
185
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

é a existência ou não das cotas. O fundamental é aumentar o contingente negro


no ensino superior de boa qualidade, descobrindo os caminhos para que isso
aconteça. Para mim, as cotas são uma medida transitória, para acelerar o processo.
No entanto, julgo que não somente os negros, mas também os brancos pobres
têm o direito às cotas. Se as cotas forem adotadas, devem ser cruzados critérios
econômicos com critérios étnicos. Porque meus filhos não precisam de cotas, assim
como outros negros da classe média.

ESTUDOS AVANÇADOS – O sr. iniciou suas declarações dando uma opinião


contra as cotas, mas agora aponta para o problema da urgência. As cotas aparecem
como uma medida de urgência?

Kabengele Munanga – Sim. Ao menos que o país diga que tem hoje uma outra
proposta emergencial melhor, que não abra mão de uma política universalista com
vistas ao aperfeiçoamento do nível do ensino básico. É bom lembrar que a escola
pública já apresentou melhor qualidade, mas o negro e o pobre não entravam nela.

ESTUDOS AVANÇADOS  – O sr. acha que a médio prazo a alternativa seria


uma transformação mais profunda do ensino básico e secundário? Um número
considerável de alunos negros faz o segundo grau em escolas públicas. Não
falo deles como negros, mas sim como pobres. Será que as cotas não resolvem
o problema porque o enfrentam no fim da linha, em vez de atacá-lo no começo?

Kabengele Munanga  – Sim. Porém, vivo aqui há 28 anos e desde que cheguei
escuto esse discurso. Mas nunca vi luta política e social alguma para a melhoria
da escola pública. Só há o discurso. Mas o que fazer com a vítima? Esperar que
isso aconteça por milagre, ou pressionar a sociedade através de uma proposta:
como pelo menos cuidar da escola pública? A dúvida que tenho é a seguinte: num
país onde a privatização do ensino é cada vez maior e no qual o lobby das escolas
particulares é tão forte, só posso antever uma melhoria a longo prazo. Lembro-me
de que o primeiro processo contra as propostas de cotas no Rio de Janeiro veio do
sindicato das escolas privadas. Devido a essa tendência para a privatização das
escolas públicas, não acredito numa rápida melhoria delas. A desigualdade social
que existe há 400 anos não pode ser resolvida por meio de políticas universalistas.
É preciso, portanto, traçar políticas específicas para se encontrar uma solução. A
discriminação racial A palavra “social” incomoda-me muito. Quando dizem que a
questão do negro é uma questão social, o que quer dizer “social”? As relações de
gênero são uma questão social; a discriminação contra o portador de deficiência
é uma questão social; a discriminação contra o negro é uma questão social. Ora,
o social tem nome e endereço. Não podemos diluir, retirar o nome, a religião
e o sexo e aplicar uma solução química. O problema social tem de ser atacado
especificamente. A discriminação racial precisa ser urgentemente enfrentada. Nós,
negros, também temos problemas de alienação de nossa personalidade. Muitas
vezes trabalhamos o problema na ponta do iceberg que é visível. Mas a base
desse iceberg deixa de ser trabalhada. Estou aqui, como disse, há 28 anos. Vou a
restaurantes utilizados pela classe média e a centros de alimentação nos shoppings.
Encontro famílias brancas comendo (homem, mulher e filhos), mas dificilmente
estão ali famílias negras. Há uma classe média negra, mas que se autodiscrimina e
186
TÓPICO 2 | DISCUSSÕES DE CONTEÚDOS

que é também discriminada. Desafio vocês a me dizerem que encontraram quatro


famílias negras em cinco restaurantes de classe média em São Paulo. Vejamos o meu
caso: em meu segundo casamento (que é inter-racial) percebia aquelas “olhadas” –
mulher branca, filhos negros do primeiro casamento e filhos mestiços do segundo.
Ninguém me expulsava desses lugares, mas eu via as “olhadas”...

ESTUDOS AVANÇADOS – A USP está completando setenta anos e gostaria que o


sr. falasse sobre as principais linhas de pesquisa sobre gênero e raça na Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.

Kabengele Munanga  – Até onde eu saiba, não há uma linha de pesquisa sobre
gênero e raça. Há um núcleo de estudo da mulher, dirigido pela professora Eva
Blay. De vez em quando ela convida alguma jovem pesquisadora negra. Talvez
exista uma explicação histórica para isso, porque normalmente quem estuda
esse tema são as mulheres. Mas, não temos professoras negras de sociologia
ou de antropologia na Universidade de São Paulo. Entrei nela em 1980, como
professor, e nunca mais houve um outro professor negro no Departamento.
Lembro-me do dia em que Florestan Fernandes recebeu o título de professor
emérito e eu estava na fila para cumprimentá-lo. Eu não sabia que ele me
conhecia. Por isso assustei-me quando ele me disse que estava muito contente
com a minha presença naquela solenidade. Pois fora informado de que ali
estava um negro que nem era brasileiro. Um antropólogo em dois mundos.

ESTUDOS AVANÇADOS – O sr. poderia descrever um pouco sua trajetória até


chegar no Brasil?

Kabengele Munanga  – Nasci no antigo Zaire, que hoje se chama República


Democrática do Congo, numa aldeia no centro do país. Estudei num colégio interno
de jesuítas e fiz graduação em Antropologia. Aliás, fui o primeiro antropólogo
formado naquela universidade e o único aluno que teve aulas com professores
franceses, belgas e americanos convidados, pois não havia ainda professores
africanos na Universidade quando eu entrei. Lá, nós acabávamos a graduação com
um tipo de dissertação que se chamava Mémoire. O sistema belga dava o direito
de se entrar diretamente no doutorado. Em razão disso, comecei o doutorado
em Louvain, na Bélgica, em 1969. Dois anos depois, voltei para pesquisas de
campo. Mas houve complicações políticas. Cortaram a bolsa e não pude fazer
mais nada. Por coincidência, encontrei no Congo, em 1973, o professor Fernando
Mourão, que ali estava realizando palestras sobre as contribuições africanas para
a cultura brasileira. Conversamos e ele me disse que a USP possuía um projeto
de cooperação com as universidades africanas e que nela eu poderia completar o
doutorado. Cheguei aqui em 1975 e me inscrevi no doutorado, sob a orientação do
professor João Batista Borges Pereira. Como eu estava bastante adiantado, em dois
anos defendi minha tese. Trabalhei sobre o processo de mudanças socioeconômicas
numa comunidade no sul do Congo. Voltei correndo à militância para colocar meus
conhecimentos à disposição de meu país. Mas quando cheguei lá, tive de fugir
para o Brasil. Quando houve a independência do meu país, o antigo Zaire (em
30 de junho de 1960), eu estava com 18 anos. A Faculdade foi criada pela Bélgica,
seis anos  antes da independência, em consequência de pressões internacionais.
187
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

Fui alfabetizado na minha língua materna, mas no fim do primeiro grau começou
o ensino em francês. O resto do curso foi em francês. Isso porque, com mais de
duzentas línguas, não era possível escolher uma para ser a língua nacional. Todos
os alfabetizados falam francês.

ESTUDOS AVANÇADOS – Alguma dessas línguas africanas é hegemônica?

Kabengele Munanga  – O suahili, que é uma língua falada em muitos países


africanos, em parte do Zaire, Tanzânia, Burundi, Quênia e Uganda.

ESTUDOS AVANÇADOS – Suahili tem alguma coisa a ver com o árabe?

Kabengele Munanga – Cerca de vinte por cento do vocabulário, porque desde a


Antiguidade os árabes tiveram muita influência no continente, a partir do Oceano
Índico, além de terem sido responsáveis pelo tráfico oriental e transaariano (entre
os anos de 600-1600). Mas a estrutura da língua é totalmente bantu (africana).

FONTE: Disponível em: <http://umnegro.blogspot.com.br/2008/05/kabengele-munanga-difcil-


tarefa-de.html>. Acesso em: 5 set. 2016.

188
RESUMO DO TÓPICO 2

Neste tópico você viu:

• Joseph-Arthur de Gobineau (1816-1882), em seu Ensaio sobre a Desigualdade das


Raças Humanas, baseia sua doutrina em três pontos principais: a existência de
várias raças humanas, a compreensão das diferenças entre as raças como fatores
essenciais do processo histórico-social e a afirmação de uma raça superior.

• A raça é um conceito desenvolvido na Europa para auxiliar na interpretação de


novas relações sociais. É um modo de categorizar as pessoas e coisas, à medida
que cada vez mais europeus percebem a existência de um grande número de
pessoas ultramarinas que pareciam diferentes deles.

• Segundo Dagoberto Fonseca (2008), o escravo nasce, cresce e morre


irremediavelmente preso à sua natureza, não há transformação social possível
para ele, até seus descendentes serão tratados como escravos, filhos de uma
natureza intransponível.

• Conforme Taille e Santos (2012), o termo “escravo”, privado de liberdade, em


estado de servidão, difere do “escravizado”, que entra em cena como quem
“sofreu escravização” e, portanto, foi forçado a essa situação.

• A Constituição de 1988 garante o direito à educação para a população indígena,


assim como a manutenção dos direitos culturais, valorização da cultura e
demarcação das terras indígenas.

• A Lei de Diretrizes e Bases, de 1996, reconhece os saberes indígenas, referindo-se


à pluralidade cultural e garantindo aos povos indígenas o acesso a informações
e manutenção de sua cultura.

• O mito da democracia racial propõe que todas as raças e/ou etnias existentes
no Brasil estão em pé de igualdade sociorracial e que tiveram as mesmas
oportunidades desde o início da formação do Brasil.

• Southwell (2008, p. 121) relata que, na modernidade, “os sistemas de escolarização


foram estabelecidos em torno da ideia de que a sociedade era resultado da ação
educacional”.

• Para Bourdieu, capital cultural é um conjunto de códigos de linguagem, valores,


costumes, saberes e gostos próprios de uma cultura letrada e erudita que é
transmitida como herança cultural aos filhos dos indivíduos posicionados nos
grupos sociais mais favorecidos.

189
• A ideia de que o sexo é natural vai ganhando cada vez mais camadas que nos
fazem repensar e estudar mais a questão. De alguma maneira nascemos com
certo sexo, mas isso não significa que ao longo dos anos vamos nos identificar
com ele.

• A ideia de gênero remete à função de classificar em masculino ou feminino a


pessoa, e em cada sociedade os atributos que definem essa classificação podem
variar.

• Gênero é socialmente construído, não é natural, de modo que em cada cultura


em que se está certos atributos definem com qual gênero a pessoa se identifica.

• Sexualidade está vinculada à orientação do desejo sexual e afetivo a outra


pessoa. Quem gosta de pessoas do sexo oposto chamamos de heterossexual
(ou heteroafetivo), e chamamos quem gosta de pessoas do mesmo sexo de
homossexual (ou homoafetivo).

• Quem gosta de pessoas do mesmo sexo e do sexo oposto, essas pessoas são
chamadas de bissexuais (ou biafetivas). E existem aqueles que são assexuais (não
se sentem atraídos por nenhum dos sexos) e os pansexuais (atração emocional
independente do gênero).

• Louro (2011) define como pedagogias culturais, ou pedagogias de gênero e


sexualidade, onde nossos comportamentos, desejos, gestos são condicionados
pelo determinado gênero e sexualidade.

• Os liceus femininos foram criados em 1880, com forte resistência, pois havia o
receio de que as meninas pudessem ser mais subversivas ao estudarem.

190
AUTOATIVIDADE

1- De acordo com as informações do IBGE, apresentadas a seguir, disserte sobre


as desigualdades de gênero, observadas em sua cidade.
SIS 2015: desigualdades de gênero e racial diminuem em uma década, mas
ainda são marcantes no Brasil

Em dez anos, a situação das mulheres na sociedade brasileira melhorou,


entretanto, as desigualdades em relação aos homens permanecem significativas.
Apesar de a jornada semanal dedicada aos afazeres domésticos pelas mulheres
ter reduzido de 22,3 horas para 21,2 horas semanais, elas acumulam 5,0 horas
semanais a mais na jornada total de trabalho em relação aos homens. Essa
situação ocorre porque a jornada no mercado de trabalho das mulheres se
manteve em 35,5 horas semanais, enquanto essa jornada para os homens passou
de 44,0 para 41,6 horas semanais, sendo que eles mantiveram 10 horas semanais
dedicadas aos afazeres domésticos (menos da metade da feminina). Ainda
assim, pôde-se observar um aumento no percentual de homens ocupados que
realizaram afazeres domésticos e de cuidados, passando de 46,1% em 2004 para
51,3% de 2014 4. Esse percentual para mulheres ocupadas em 2014, era de 90,7%,
quadro semelhante ao de 2004 (91,3%). Embora tenha havido uma redução
de 10,9% na desocupação feminina entre 2004 e 2014, as mulheres continuam
sendo o segundo grupo populacional com a maior taxa de desocupação (8,7%),
abaixo apenas dos jovens (16,6%). As mulheres jovens que encontram maior
dificuldade de inserção no mercado de trabalho, sendo que uma em cada cinco
jovens está desocupada (20,8%).

É o que mostra a Síntese de Indicadores Sociais (SIS): uma análise das


condições de vida da população brasileira 2015, que sistematiza um conjunto
de informações sobre a realidade social do país, analisando os temas aspectos
demográficos, grupos sociodemográficos (crianças e adolescentes, jovens,
idosos e famílias), educação, trabalho, distribuição de renda e domicílios.

Em relação ao rendimento, o estudo revela que houve diminuição da


desigualdade de gênero na década. Em 2004, as mulheres ocupadas recebiam,
em média, 70,0% do rendimento dos homens. Em 2014, essa relação passou
para 74,0%. A maior diferença foi evidenciada entre mulheres em trabalhos
informais, que recebiam em média 50% do rendimento daquelas em trabalhos
formais. Entre os homens na mesma condição, a relação era de quase 60,0%.

Mesmo com a população preta ou parda ultrapassando a metade do total de


residentes no Brasil desde 2008 (50,6%), as desigualdades raciais também foram
evidenciadas pela SIS. No que tange à educação, por exemplo, a proporção dos
estudantes de 18 a 24 anos pretos ou pardos que cursavam o ensino superior
em 2014 era de 45,5%, contra 16,7% em 2004. Entre os brancos, essa relação
passou de 47,2% para 71,4%. Ou seja, o percentual de pretos e pardos no ensino

191
superior em 2014 ainda era menor do que o de brancos no ensino superior
dez anos antes. Já entre os jovens de 15 a 29 anos que não trabalhavam nem
estudavam, 62,9% eram pretos ou pardos.
FONTE: Disponível em: <http://saladeimprensa.ibge.gov.br/noticias.html?view=noticia&id=1
&idnoticia=3050&busca=1&t=sis-2015-desigualdades-genero-racial-diminuem-uma-decada-
ainda-sao-marcantes-brasil>. Acesso em: out. 2016.

A partir da perspectiva da construção das relações de gênero e sexualidade,


explique através de exemplos quem seriam os “outros”, “os diferentes” que
não estão representados dentro do perfil do que é considerado “normal” na
sociedade brasileira, conforme referências da professora Guacira Louro.

192
UNIDADE 3
TÓPICO 3

ANTROPOLOGIA: POR UMA EDUCAÇÃO


INCLUSIVA E REFLEXIVA

1 INTRODUÇÃO

De que forma os educadores e as educadoras conseguem pensar a


diferença? Neste tópico observaremos alguns autores que buscam refletir sobre
a possibilidade de um olhar mais inclusivo a partir da educação. A escola como
sabemos é a segunda instituição, depois da família, em que aprendemos a nos
socializar. E neste espaço vivemos a desconstrução e reconstrução de nossas
personalidade e formações. As crianças aprendem com o outro a se relacionar
e com isso, observam-se e colocam isso para o mundo. Através da prática do
“estranhamento” a antropologia auxilia na descolonização dos olhares dos alunos
e alunas.

FIGURA 40 - ENSINAR PARA A DIVERSIDADE

FONTE: Disponível em: <https://www.google.com.br/search?q=


%C3%A9+mais+facil+ensinar+do+que+educar&source=lnms&tb
m=isch&sa=X&ved=0ahUKEwjmy--AoILUAhXB7CYKHVWKBtUQ_
AUICygC&biw=1366&bih=662#imgrc=JAX6hNqZRdVAzM>. Acesso em: 14
maio 2017.

193
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

Na relação entre antropologia e educação, a questão é: a aventura de


se colocar no lugar do outro, de ver como o outro vê, de compreender um
conhecimento que não é o nosso (GUSMÃO,1997). Os não antropólogos procuram
"um olhar antropológico" pelo qual se guiarão nos enigmas da pesquisa de campo.
Já a antropologia e os antropólogos se veem em grandes dificuldades, ao serem
convocados a abordar esta realidade que é a educação, seja por não conhecerem,
ou ainda, por deslegitimarem um pouco do passado da antropologia.

Antropologia e educação parecem constituir, hoje, um campo


de confrontação, em que a compartimentação do saber atribui
à antropologia a condição de ciência e à educação, a condição
de prática. Dentro dessa divergência primordial, os profissionais
de ambos os lados se acusam e se defendem com base em
pré-noções, práticas reducionistas e muito desconhecimento
(GUSMÃO, 1997, p. 5).

Galli (1993) nos apresenta, no final do seculo XIX, que a antropologia


tentava compreender uma presumível cultura da infância e da adolescência.
Transformaram-se em temas das pesquisas e debates os processos interculturais
infantis e os sistemas educativos informais, inseridos em uma concepção alargada
de educação. Antropólogos participavam de revisão curricular e continuam
a participar. Entre os anos 1920 e 1950, muitos antropólogos envolvidos nesses
temas travaram discussões com as abordagens de Freud e Piaget. Nos anos 30
e 40, os antropólogos tiveram uma atuação no programa de reforma curricular
promovida nos EUA. Estes antropólogos eram discípulos de Boas, Margareth Mead
e Ruth Benedict. Nomes conhecidos da antropologia, mas nunca pronunciados na
Faculdade de Educação.

Os discípulos de Boas alertavam para o fato de que o modelo pedagógico


ocidental poderia conduzir a uma pedagogia da violência. Atualmente, ao
visualizarmos as dificuldades das escolas, em particular, das escolas públicas de
periferia, emergem questões como o fato de a escola como valor não fazer eco
entre os estudantes, a indisciplina violenta, a evasão escolar e sua face mais cruel,
a exclusão social (GUSMÃO,1997).

Qual a natureza dos riscos de hoje, que Boas trabalhava? Para ele,
a realidade de seu tempo apontava um risco para os povos do futuro e para o
futuro da própria civilização. A razão era que a nossa sociedade e a escola que
lhe é própria não desenvolvia – e não desenvolve – mecanismos democráticos,
perante as diversidades social e cultural, como relata Gusmão (1997) em seu artigo
Antropologia e a educação: origens de um diálogo.

O grande desafio do professor de Ciências Sociais, segundo Ianni (2011):


é o de se defrontar com o reconhecimento de que o aluno já dispõe, o que não
deixa de ser uma vantagem e, ao mesmo tempo, uma limitação. O professor de
sociologia/antropologia deve trabalhar com o senso comum e, ao mesmo tempo,
desenvolver uma visão crítica desse senso comum.

194
TÓPICO 3 | ANTROPOLOGIA: POR UMA EDUCAÇÂO INCLUSIVA

Depara-se com uma visão que parece “científica”, oficial,


sacramentada, mas na verdade é uma visão equívoca dos fatos
sociais. E isto ocorre na Sociologia, História ou Geografia e
outras Ciências Sociais. O trabalho do professor vai implicar
sempre e necessariamente uma crítica, submetendo a ela todo
o conhecimento prévio de que o aluno dispõe; inclusive as
interpretações consideradas sacramentais (IANNI 2011, p. 3).

Deve-se trabalhar fatos, dados e relações, sem pôr em questão as fontes


primárias do aluno, pai, mãe, meios de comunicação e outras instituições. O
professor necessita trabalhar a partir do conteúdo da matéria e não colocar em
questão essas autoridades, pois isso seria uma luta desigual, e também porque
não é aí que está a dificuldade. A questão está em revelar e desenvolver dados,
informações ou noções que os estudantes trazem para o espaço escolar e acrescentar
novas informações e interpretações, desenvolvendo uma compreensão nova,
original, científica e viva de fatos, por exemplo: o índio, Tiradentes, o escravizado,
o sindicato, a escola, a Igreja etc.

O professor não deve levar ao aluno uma interpretação fechada, mas sim
os relatos, os dados pertinentes para o conhecimento de uma situação de forma
tão flexível quanto possível (IANNI, 2011). Uma das atividades do professor seria
auxiliar o estudante a pensar livremente, criticar aquilo que está sendo apresentado.
Em qualquer disciplina, Política, Economia, Sociologia e nas outras Ciências
Sociais. Os professores, uns conscientemente e outros não tão conscientemente,
possuem uma posição política, mesmo aqueles que se dizem neutros. Ser neutro
é uma posição política também. Por isso é que o espírito crítico necessita estar
presente também na crítica do educador.

Conforme Giroux (1997), é preciso desenvolver em todos os níveis da


escolarização uma pedagogia radical preocupada com a alfabetização crítica e
cidadania ativa, porém o que verificamos no contexto atual da educação mundial
é que está se “construindo uma pedagogia conservadora que enfatiza a técnica e
a passividade” (GIROUX, p. 32). A grande questão é que se debate sobre como
as escolas poderiam ter mais eficácia na satisfação das demandas industriais
e contribuição para a produtividade econômica. O autor de Professores como
intelectuais (1997) se coloca na problemática de pensar como podemos tornar a
escolarização significativa de forma a torná-la crítica, e como podemos torná-la
crítica de forma a torná-la emancipadora (p. 34). Uma educação emancipadora
pode ser parte de um projeto de educação inclusiva, onde se insere e respeita todos
os alunos que acessam a escola, em suas mais variadas perspectivas.

Atualmente, devido ao crescente movimento mundial de educação para


todos, o Brasil tem feito importantes avanços no campo das políticas educacionais
voltadas para a garantia do acesso e da permanência na escola. A Política Nacional
da Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, elaborada pelo MEC
em 2008, define princípios e ações que devem ser implementados para garantir a

195
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

escolarização regular e o Atendimento Educacional Especializado para todos os


alunos.

O sociólogo Pierre Bourdieu (1999) analisa a educação escolarizada como


lugar de manutenção e de legitimação de privilégios. Para Bourdieu (1999), os
estudantes não são seres ideais que competem na escola em situação de igualdade;
são sujeitos socialmente constituídos com uma bagagem social e cultural, que têm
valor diferenciado, marcando significativamente a sua trajetória na instituição
escolar. A neutralidade da escola e do conhecimento escolar é questionada por
Bourdieu, mostrando como os gostos, as posturas, os valores da classe social
economicamente favorecida são dissimuladamente apresentados como cultura
universal. Neste sentido, o tratamento uniforme dado pela escola fortalece as
desigualdades e as injustiças sociais, uma vez que acaba favorecendo um tipo
específico de indivíduo cuja cultura familiar já é próxima desse fazer educativo:
“[...] todas as normas [...], tendem sempre a favorecer o sucesso (pelo menos no
interior da instituição) de um tipo modal de homem [...]” (BOURDIEU, 1999, p.
267).

A escola não consegue considerar as diferenças, ao trabalhar com um


modelo de educando, o tipo modal evidencia as desigualdades já existentes. A
escola brasileira tem sido muito mais um espaço de exclusão social do que de
inserção de oportunidades. O perfil sociocultural dos indivíduos que chegam
até a escola mudou consideravelmente a partir das décadas de 60 e 70 do século
XX, com a “democratização da escola pública”. Onde o alunado deixou de ser
exclusivamente das classes médias urbanas e passou a ser também de filhos de
pais iletrados, principalmente advindos das cidades interioranas. Surgindo o
fenômeno do fracasso escolar quando uma boa parte dos alunos passou a ser
sistematicamente “expulsa” das salas de aula. Ocorre que a escola exerce uma
violência simbólica: impondo um tipo de saber como único; legitimado como saber
único e irrefutável. Reforçando a discriminação a determinados grupos sociais.
Bernard Charlot (2009) expressa que a escola reproduz as desigualdades sociais à
medida que a população de baixa renda acessa as instituições de ensino. Charlot
(2009) coloca que é preciso conhecer a lógica da realidade do aluno e do professor/
escola para mudar a realidade da educação.

Falar para o professor de construtivismo é completamente fora da


realidade. Sabemos que, em muitas escolas, a dificuldade principal é
com o professor que não vai dar aula. Na Amazônia, por exemplo, há
todo o problema da chuva, alunos que andam duas horas até a escola
e não têm professor. Não estou criticando ninguém, sei que é difícil,
mais difícil aqui do que na França, mas essa é a realidade. Se quisermos
mudar a escola brasileira, teremos que trabalhar a realidade. Ela tem
que ser tomada como ponto de partida (CHARLOT, 2009, p. 150).

No âmbito de observar e construir uma pedagogia embasada na realidade


do aluno, voltamos nossa atenção para a discussão para a qualificação das crianças
e adolescentes com necessidades especiais. A escola inclusiva foi oficialmente
assumida por vários países, através da Declaração de Salamanca (1994). A

196
TÓPICO 3 | ANTROPOLOGIA: POR UMA EDUCAÇÂO INCLUSIVA

legislação brasileira se posiciona pelo atendimento aos alunos com necessidades


educacionais especiais preferencialmente em classes comuns da escola, em todos os
níveis, etapas e modalidades de educação e ensino (BRASIL, 1999). Em meados de
1960, a institucionalização das pessoas com deficiência começou a ser criticamente
examinada, analisando dados que revelavam sua ineficiência para favorecer a
preparação ou a recuperação delas para a vida em sociedade. Ocorrendo então
um confronto entre dois eixos conceituais em relação à educação da criança com
deficiência: a integração e a inclusão. Tanto a integração como a inclusão propõem
a inserção educacional da criança com deficiência, porém a inclusão o faz de forma
mais radical, completa e sistemática. Segundo Sampaio (2009), a concepção político-
pedagógica desloca a centralidade do processo para a escolarização de todos os
alunos nos mesmos espaços educativos. Para implementação do modelo inclusivo
na educação, faz-se necessária uma intensa reorganização escolar, que requer a
redução do número de alunos por turma, uma nova infraestrutura e a construção
de novas dinâmicas educativas. A complexidade envolvida neste processo reforça
a importância da formação dos professores, para propiciar as mudanças exigidas
pela educação inclusiva.

Alguns dos principais instrumentos nacionais que orientam a educação


para aplicação da prática pedagógica da educação inclusiva são:

- Constituição Federal, Título VIII, artigos 208 e 227.


- Lei nº 7.853/89 – Dispõe sobre o apoio às pessoas com deficiência, sua
integração social, assegurando o pleno exercício de seus direitos individuais e
sociais.
- Lei nº 10.098/00 – Estabelece normas gerais e critérios básicos para
promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com
mobilidade reduzida e dá outras providências.
- Lei nº 10.172/01 – Aprova o Plano Nacional de Educação e estabelece
os objetivos e metas para a educação de pessoas com necessidades educacionais
especiais.
- Decreto nº 5.296/04 – Regulamenta a Lei nº 10.048/00, que dá prioridade
de atendimento às pessoas com deficiência, e a Lei nº 10.098/00, que estabelece
normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas
portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, e dá outras providências.
- Lei nº 9.394/96 – Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
- Decreto nº 3.289/99 – Regulamenta a Lei nº 7.853/89, que dispõe sobre a
Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, consolida
as normas de proteção e dá outras providências.
- Portaria MEC nº 1.679/99 – Dispõe sobre os requisitos de acessibilidade
a pessoas portadoras de deficiência para instruir processos de autorização e de
reconhecimento de cursos e de credenciamento de instituições.
- Portaria nº 3.284/03 MEC/GM revoga a Portaria MEC nº 1.679/99, que
dispõe sobre os requisitos de acessibilidade a pessoas com deficiências para instruir
processos de autorização e de reconhecimento de cursos e de credenciamento de
instituições de Ensino Superior no país.

197
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

O professor deve partir da certeza de que as crianças sempre sabem


alguma coisa, de que todo educando pode aprender, mas no tempo e do jeito que
lhe são próprios, segundo Bordas e Zoboli (2009). Os autores ainda expressam
que é fundamental que o professor alimente uma elevada expectativa pelo aluno.
O sucesso da aprendizagem está em explorar talentos, atualizar possibilidades,
desenvolver predisposições naturais de cada aluno. As dificuldades, deficiências
e limitações são reconhecidas, mas não devem conduzir/restringir o processo de
ensino, como frequentemente acontece. O professor deve passar de um ensino
transmissivo para uma pedagogia ativa, dialógica, interativa, que se contrapõe a
toda e qualquer visão unidirecional, de transferência unitária, individualizada e
hierárquica do saber.

Um dos pontos cruciais do ensinar a turma toda são a consideração da


identidade sociocultural dos alunos e a valorização da capacidade de
entendimento que cada um deles tem do mundo e de si mesmos. Nesse
sentido, ensinar a turma toda reafirma a necessidade de se promover
situações de aprendizagem que formem um “tecido colorido” de
conhecimento, cujos fios expressam diferentes possibilidades de
interpretação e de entendimento de um grupo de pessoas que atua
cooperativamente. Sem estabelecer uma referência, sem buscar o
consenso, mas investindo nas diferenças e na riqueza de um ambiente
que confronta significados, desejos, experiências, o professor deve
garantir a liberdade e a diversidade das opiniões dos alunos. Nesse
sentido, ele deverá propiciar oportunidades para o aluno aprender
a partir do que sabe e chegar até onde é capaz de progredir. Afinal,
aprendemos quando resolvemos nossas dúvidas, superamos nossas
incertezas e satisfazemos nossa curiosidade (BORDAS; ZOBOLI, 2009,
p. 83).

As diferenças entre grupos, étnicos, religiosos, de gênero etc. não devem


se fundir em uma única identidade, mas ensejar um modo de interação entre eles,
que destaque as características de cada um harmonicamente. O professor deve
estar atento à singularidade das diversidades que compõem a turma, promovendo
o diálogo e interação entre elas, contrapondo-as, complementando-as. Para
melhorar e transformar a qualidade do ensino e para se conseguir trabalhar com
as diferenças nas salas de aula é preciso que enfrentemos os desafios da inclusão
escolar. Como a autora Bell Hooks relata em seu livro Ensinando a Transgredir – a
educação como prática da liberdade, o professor deve valorizar a presença de cada
aluno, também deve reconhecer constantemente que todos contribuem, e que estas
contribuições são recursos que serão utilizados de modo construtivo, promovendo
a capacidade de qualquer turma de criar uma comunidade aberta de aprendizado.
Para Bell Hooks, antes do processo de começar é preciso desconstruir um pouco a
noção tradicional de que o professor é o único responsável pela dinâmica da sala
de aula.

198
TÓPICO 3 | ANTROPOLOGIA: POR UMA EDUCAÇÂO INCLUSIVA

DICAS

O aluno Maruge lutou pela liberdade de seu país, foi preso e torturado. Em 2003,
após ouvir um comunicado do governo sobre um programa de "Educação para todos",
decidiu se matricular em uma escola primária. Na ocasião, Maruge tinha 84 anos. O filme "O
Aluno" é baseado na história real de Kimani Maruge Ng'ang'a, que, com o sonho de aprender
a ler e escrever, lutou para entrar e permanecer na escola acostumada a receber crianças
de aproximadamente seis anos. A história do idoso sendo alfabetizado ao lado de crianças
ganhou repercussão nacional e provocou a revolta de moradores da região.

FONTE: Disponível em: <http://www.pordentrodaafrica.com/cultura/o-aluno-filme-conta-a-


historia-de-queniano-que-se-matriculou-em-e>. Acesso em: 15 maio 2017.

LEITURA COMPLEMENTAR

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: REFLETINDO SOBRE 


AS DIFERENTES PRESENÇAS NA ESCOLA

Nilma Lino Gomes


 
Professora do Departamento de Administração Escolar da Faculdade de Educação/
UFMG

1- O IMPACTO DO DIFERENTE 

No momento em que escrevo esse artigo, contabilizo quantas vezes


fui abordada desde a semana passada por amigos, familiares e curiosos sobre

199
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

uma matéria da revista Veja a respeito dos negros de classe média. Algumas
pessoas ficaram satisfeitas pela visibilidade dada à população negra, outras pela
construção de uma imagem positiva do negro e houve até aquelas que afirmaram
que a matéria veio confirmar o fato de que, no Brasil, não existe racismo. 
Diante de tão diferentes e veementes afirmações, comecei a refletir a respeito das
representações sobre o negro subjacentes às diversas interpretações partilhadas por
essas pessoas tão ciosas em relação às diferenças e, mais precisamente, à diferença
racial. Sem querer entrar no mérito de cada julgamento, achei muito interessante
as diferentes reações e interpretações das pessoas sobre a matéria.

Tal fato demonstra o quanto a questão racial na sociedade brasileira ainda


consegue incomodar um grande número de pessoas, levando-as a opinarem sobre
as diferenças. Demonstra também o quanto o tema das diferentes presenças na
sociedade brasileira e, dentre estas, a do segmento negro, ainda consegue mexer
com a nossa tão propalada identidade nacional. Será que isso prova que o Brasil
é um país em que as diferenças são respeitadas e aceitas? Será que o fato de
apregoarmos que a constituição do povo brasileiro é marcada pela miscigenação,
pela pluralidade e pela diversidade cultural faz do nosso país uma nação inclusiva?
Penso que se realmente fôssemos uma sociedade inclusiva, a mídia não precisaria
enfatizar como algo inédito a suposta ascensão de um determinado segmento
étnico-racial à classe média. Ao destacar a possibilidade de melhoria de vida de
uma pequena fração dentro da população negra, não podemos deixar de considerar
os fatores que relegaram esse grupo (e outros) a ocupar, historicamente, os lugares
mais baixos na escala social.

E ainda, não podemos esquecer de que uma grande massa da população


negra continua fazendo parte do injusto processo de exclusão social. 

Em suma, a discussão em torno da reportagem da revista Veja pode ser um


exemplo de como a sociedade brasileira se relaciona com as diferenças sociais e étnicas.
Estas representam um dos aspectos da diversidade cultural presente em nosso país. 
Porém, a diversidade cultural é muito mais complexa e multifacetada do que
pensamos. Significa muito mais do que a apologia ao aspecto pluriétnico e
pluricultural da nossa sociedade. Pela sua própria heterogeneidade, a diversidade
cultural exige de nós um posicionamento crítico e político e um olhar mais ampliado
que consiga abarcar os múltiplos recortes dentro de uma realidade culturalmente
diversa. 

O reconhecimento dos diversos recortes dentro da ampla temática da


diversidade cultural (negros, índios, mulheres, portadores de necessidades
especiais, homossexuais, entre outros) coloca-nos frente a frente com a luta desses
e outros grupos em prol do respeito à diferença. Coloca-nos, também, diante do
desafio de implementar políticas públicas em que a história e a diferença de cada
grupo social e cultural sejam respeitadas dentro das suas especificidades sem
perder o rumo do diálogo, da troca de experiências e da garantia dos direitos
sociais.

200
TÓPICO 3 | ANTROPOLOGIA: POR UMA EDUCAÇÂO INCLUSIVA

A luta pelo direito e pelo reconhecimento das diferenças


não pode se dar de forma separada e isolada e nem resultar em
práticas culturais, políticas e pedagógicas solitárias e excludentes. 
Ao considerarmos as especificidades que compõem a diversidade cultural e os
caminhos que precisam ser trilhados para a construção do diálogo e para a garantia
da cidadania a todos, independentemente das diferenças, não podemos esquecer
de uma instituição muito importante em nossa sociedade: a escola. 

A escola cumpre a sua função social e política não somente na escolha


da metodologia eficaz para a transmissão dos conhecimentos historicamente
acumulados ou no preparo das novas gerações para serem inseridas no mercado
de trabalho e/ou serem aprovadas no vestibular. Quando a escola conseguir
superar essa visão, ela compreenderá que a racionalidade científica é importante
para os processos formativos e informativos, porém, ela não modifica por si só o
imaginário e as representações coletivas negativas que se construíram sobre os
ditos "diferentes" em nossa sociedade.

Nesse sentido, a educação escolar, embora não possa resolver sozinha


todas essas questões, ocupa um lugar de destaque (MUNANGA, 1999).

Se concordamos e até mesmo nos orgulhamos do aspecto pluricultural


da sociedade brasileira, o nosso projeto de democracia não pode se eximir da
responsabilidade de criar, de fato, condições em que a diversidade do nosso povo
seja respeitada. A escola é um espaço sociocultural em que as diferentes presenças
se encontram. Mas será que essas diferenças são tratadas de maneira adequada?
Será que a garantia da educação escolar como um direito social possibilita a
inclusão de todos os tipos de diferenças dentro desse espaço? Por isso, a reflexão
sobre as diferentes presenças na escola e na sociedade brasileira deve fazer parte
da formação e da prática de todos/as os/as educadores/as.

2 - MAS O QUE É A DIVERSIDADE? 

Ao consultarmos o dicionário à procura da definição da palavra


DIVERSIDADE, vamos encontrar diferença, dessemelhança. Isso pode nos levar
a pensar que a diversidade diz respeito somente aos sinais que podem ser vistos a
olho nu. Porém, se ampliarmos a nossa visão sobre as diferenças e dermos a elas
um trato cultural e político, poderemos entendê-las de duas formas:

1) as diferenças podem ser empiricamente observáveis.


2) as diferenças também são construídas ao longo do processo histórico, nas
relações sociais e nas relações de poder. Muitas vezes, os grupos humanos
tornam o outro diferente para fazê-lo inimigo, para dominá-lo.

Por isso, falar sobre a diversidade cultural não diz respeito apenas ao
reconhecimento do outro. Significa pensar a relação entre o eu e o outro.

201
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

Aí está o encantamento da discussão sobre a diversidade. Ao considerarmos


o outro, o diferente, não deixamos de focar a atenção sobre o nosso grupo, a
nossa história, o nosso povo. Ou seja, falamos o tempo inteiro em semelhanças e
diferenças.

Isso nos leva a pensar que ao considerarmos alguém ou alguma coisa


diferente, estamos sempre partindo de uma comparação. E não é qualquer
comparação. Geralmente, comparamos esse outro com algum tipo de padrão ou
de norma vigente no nosso grupo cultural ou que esteja próximo da nossa visão de
mundo.

Esse padrão pode ser de comportamento, de inteligência, de esperteza, de


beleza, de cultura, de linguagem, de classe social, de raça, de gênero, de idade...
Nesse sentido, a discussão a respeito da diversidade cultural não pode ficar restrita
à análise de um determinado comportamento ou de uma resposta individual. Ela
precisa incluir e abranger uma discussão política. Por quê? Por que ela diz respeito
às relações estabelecidas entre os grupos humanos e por isso mesmo não está fora
das relações de poder. Ela diz respeito aos padrões e aos valores que regulam essas
relações.

3 - DE ONDE VEM A DISCUSSÃO SOBRE A DIVERSIDADE? 

Essa é uma pergunta que tenho escutado de forma recorrente durante as


palestras e cursos que venho ministrando aos/às educadores/as. Algumas vezes,
os professores/as me dizem: – Pois é, Nilma... Agora que a diversidade cultural
chegou à escola, não sabemos o que vamos fazer com ela.

Essa afirmação já demonstra, por si só, o quanto o campo da educação ainda


precisa avançar e compreender melhor o que significa a diversidade cultural. É
verdade que a partir dos anos 90 a questão das diferenças vem ocupando um outro
lugar no discurso pedagógico. Cada vez mais, a escola é impelida a ressignificar
sua prática pedagógica de acordo com as profundas mudanças ocorridas nos
últimos anos.

A educação escolar está sendo chamada a superar uma visão psicologizante


estreita que ainda faz parte da cultura da escola e que acaba delineando perfis
idealizados de aluno/a e professor/a e a incorporar os avanços da própria psicologia
e de outras ciências. Temos entendido que o estabelecimento de padrões culturais,
cognitivos e sociais acaba contribuindo muito mais com a produção da exclusão do
que com a garantia de uma educação escolar democrática e de qualidade. 

Isso não quer dizer que é só a partir desse movimento no campo da educação
que a escola passou a conviver com a diversidade cultural. Esse é um dos perigos
de se pensar a diversidade cultural como um tema transversal (que hoje está na
moda). Muito mais do que um tema, a diversidade cultural é um componente do
humano.

202
TÓPICO 3 | ANTROPOLOGIA: POR UMA EDUCAÇÂO INCLUSIVA

Ela é constituinte da nossa formação humana. Somos sujeitos sociais,


históricos, culturais e, por isso mesmo, diferentes.
No caso da escola, a pergunta não deveria ser o que faremos com a
diversidade, mas, sim, o que temos feito com as diferentes presenças existentes
na escola e na sociedade. Qual é o trato pedagógico que a escola tem dado às
diferenças?

Um outro equívoco é pensar que a luta pelo reconhecimento da diferença é


algo próprio desse final de século. É fato que a globalização, as políticas neoliberais,
o ressurgimento dos nacionalismos recoloca a questão da diversidade. Contudo, é
importante ponderar que a luta pelo direito às diferenças sempre esteve presente
na história da humanidade e sempre esteve relacionada com a luta dos grupos e
movimentos que colocaram e continuam colocando em xeque um determinado
tipo de poder, um determinado padrão de homem, de política, de religião, de arte,
de cultura. Também sempre esteve próxima às diferentes respostas do poder em
relação às demandas dos ditos diferentes.

Respostas que, muitas vezes, resultaram em formas violentas e excludentes


de se tratar o outro: colonização, inquisição, cruzadas, escravidão, nazismo etc.

Assim, a diversidade está colocada para a educação como um dado social ao


longo de nossa história. Entendê-la é dialogar com outros tempos e com múltiplos
espaços em que nos humanizamos: a família, o trabalho, a escola, o lazer, os círculos
de amizade, a história de vida de cada um.

Refletir sobre a escola e a diversidade cultural significa reconhecer as


diferenças, respeitá-las, aceitá-las e colocá-las na pauta das nossas reivindicações,
no cerne do processo educativo. E o reconhecimento das diferenças não é algo
fácil e romântico. Nem sempre o diferente nos encanta. Muitas vezes ele nos
assusta, nos desafia, nos faz olhar para a nossa própria história, nos leva a passar
em revista as nossas ações, opções políticas e individuais e os nossos valores.
Reconhecer as diferenças implica romper com preconceitos, em superar as velhas
opiniões formadas sem reflexão, sem o menor contato com a realidade do outro.
Infelizmente, muitas vezes, encontramos entre os/as educadores/as opiniões do
tipo "não vi e não gostei". Será que essa postura cabe ao/à educador/a?

Essas afirmações não significam que estou defendendo uma total


desorganização e que não existe nada que nos assemelha.

Os homens e as mulheres, sem exceção, possuem aproximações e


distanciamentos. Aproximam-se no que se refere ao uso da linguagem, à adoção
de técnicas, à produção artística e criativa, à construção de crenças, à necessidade
de estabelecer uma organização social e política, à elaboração de regras e sanções.
Todavia, essas aproximações ou semelhanças se dão das maneiras mais diversas,
pois não são as mesmas para todo grupo social. A existência de semelhanças,
de valores universais e de pontos comuns que aproximam os diferentes grupos
humanos não pode conduzir a uma interpretação da experiência humana como

203
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

algo invariável. O acontecer humano se faz múltiplo, mutável, imprevisível,


fragmentado.
Essa é uma discussão sobre a diversidade
cultural que precisa estar presente na escola. 
Uma visão e uma prática pedagógica que enxergue o outro nas suas semelhanças
e diferenças não condiz com práticas discriminatórias e nem com a crença em um
padrão único de comportamento, de ritmo, de aprendizagem e de experiência. A
ideia de padronização dá margem ao entendimento das diferenças como desvio,
patologia, anormalidade, deficiência, defasagem, desigualdade. O trato desigual
das diferenças produz práticas intolerantes, arrogantes e autoritárias. E essa
postura está longe do tipo de educação que os profissionais de educação vêm
defendendo ao longo dos anos.

A escola possui a vantagem de ser uma das instituições sociais em que é


possível o encontro das diferentes presenças. Ela é também um espaço sociocultural
marcado por símbolos, rituais, crenças, culturas e valores diversos.

Essas possibilidades do espaço educativo escolar precisam ser vistas na sua


riqueza, no seu fascínio. Sendo assim, a questão da diversidade cultural na escola
deveria ser vista no que de mais fascinante ela proporciona às relações humanas.

Nós, profissionais da educação, somos profissionais da cultura e não de


um padrão único de aluno, de currículo, de conteúdo, de práticas pedagógicas,
de atividades escolares. Somos diferentes em raça/etnia, nacionalidade, sexo,
idade, gênero, crenças, classe. Tudo isso está presente na relação professor/
aluno/a e entre os próprios educadores/as. Nesse sentido, a reflexão sobre
a diversidade cultural nos conduz a um repensar do papel do professor/a. 
A originalidade de cada cultura reside na maneira particular como os grupos
sociais resolvem os seus problemas ao mesmo tempo em que se aproximam de
valores que são comuns a todos os homens e a todas as mulheres. Porém, o fato
de possuirmos valores comuns não nos torna idênticos, pois continuamos a ter
uma maneira própria de agrupar e excluir diferentes elementos culturais. Cada
construção cultural e social possui uma dinâmica própria, escolhas diferentes e
múltiplos caminhos a serem trilhados.

Descobrir os motivos dessas escolhas, entendê-los, analisá-los à luz de uma


reflexão colada aos processos históricos e sociais da humanidade deveria ser uma
das tarefas da escola e do educador/a.

O trato pedagógico da diversidade é algo complexo. Ele exige de nós o


reconhecimento da diferença e, ao mesmo tempo, o estabelecimento de padrões de
respeito, de ética e a garantia dos direitos sociais. Avançar na construção de práticas
educativas que contemplem o uno e o múltiplo significa romper com a ideia de
homogeneidade e de uniformização que ainda impera no campo educacional.
Representa entender a educação para além do seu aspecto institucional e
compreendê-la dentro do processo de desenvolvimento humano. Isso nos coloca
diante dos diversos espaços sociais em que o educativo acontece e nos convida a

204
TÓPICO 3 | ANTROPOLOGIA: POR UMA EDUCAÇÂO INCLUSIVA

extrapolar os muros da escola e a ressignificar a prática educativa, a relação com o


conhecimento, o currículo e a comunidade escolar.
Coloca-nos também diante do desafio da mudança de valores, de lógicas
e de representações sobre o outro, principalmente, aqueles que fazem parte dos
grupos historicamente excluídos da sociedade. 

Educar para a diversidade é fazer das diferenças um trunfo, explorá-


las na sua riqueza, possibilitar a troca, proceder como grupo, entender que
o acontecer humano é feito de avanços e limites. E que a busca do novo, do
diverso que impulsiona a nossa vida deve nos orientar para a adoção de práticas
pedagógicas, sociais e políticas em que as diferenças sejam entendidas como parte
de nossa vivência e não como algo exótico e nem como desvio ou desvantagem. 
Entretanto, a consciência da diversidade cultural não é acompanhada somente de
uma visão positiva sobre as particularidades culturais.

Por mais que ela se torne um fato cada vez mais presente da nossa vida
cotidiana devido à maior proximidade com os modos de ser, de ver e de existir
distintos, a consciência da diversidade nos coloca diante de impasses políticos,
morais e teóricos de difícil equacionamento. Por isso, assumir a diversidade
cultural significa muito mais do que um elogio às diferenças. Representa não
somente fazer uma reflexão mais densa sobre as particularidades dos grupos
sociais, mas, também, implementar políticas públicas, alterar relações de poder,
redefinir escolhas e questionar a nossa visão de democracia. Será que estamos
dispostos a aceitar esse desafio?
FONTE: Disponível em: <http://www.mulheresnegras.org/nilma.html>. Acesso em: 15 maio 2017.

LEITURA COMPLEMENTAR

LEIS 10.639/03 E 11.645/08: (RE)CONSTRUINDO A HISTÓRIA


AFROBRASILEIRA E INDÍGENA

Jaciara Maria de Medeiros Pessôa 1

O Brasil, da Colônia à República, sempre viveu historicamente, em seu


aspecto legal, uma postura permissiva diante da discriminação e do racismo que
ainda hoje cerca a população afrodescendente e indígena. O reconhecimento
dessa discriminação fez com que o Ministério da Educação, comprometido com
a pauta de políticas afirmativas do governo federal, implementasse um conjunto
de medidas com o objetivo de corrigir injustiças e promover a inclusão social e a
cidadania para todos no sistema educacional brasileiro, através de uma nova visão
da formação da sociedade nacional. É notório que ao longo de sua história nosso
país estabeleceu um modelo social excludente, com reflexos na área da educação e
cultura, impedindo que milhões de brasileiros tivessem o pleno conhecimento da
sua história.

1 Graduanda em Licenciatura Plena em História pela Universidade Católica de


Pernambuco. <pessoa_1967@hotmail.com>.
205
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

O governo federal, reconhecendo a pluralidade sociocultural de nosso país,


aprovou a Lei 10.639, de 09 de janeiro de 2003, bem como a Lei 11.645, de 20 de
janeiro de 2008, ambas complementando a Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996,
que estabeleceu as diretrizes e bases da educação nacional. A promulgação dessas
duas leis gerou no meio acadêmico um engajamento na luta pela 'falação' contra
uma “Verdade” que nos foi contada de forma muito torta.

1. OBRIGATORIEDADE OU RECONHECIMENTO?

Diante do atual contexto da obrigatoriedade do ensino da história e cultura


afro-brasileira e indígena nos estabelecimentos de Ensino Fundamental e de Ensino
Médio, públicos e privados, obrigatoriedade essa sancionada pelo Presidente da
República nas leis anteriormente citadas, seria relevante que as instituições de
Ensino Superior passassem a incluir na sua grade curricular, não mais como eletivas
(caso de algumas instituições de ensino no nosso país) e sim como disciplinas
obrigatórias, o estudo da história e cultura desses povos, haja vista a necessidade
de uniformizar o preparo dos professores para o enfrentamento em sala de aula de
tais temas. Vejamos agora as leis ora citadas à luz de sua interpretação.

Nos parágrafos 1º e 2º do Art 26-A da Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003,


consta a inclusão, dentro do conteúdo programático a ser oferecido nas escolas, do
estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura
negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, no âmbito de todo
o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e
História Brasileira.

A referida lei complementar institui, ainda, em seu Art. 79-B, o dia 20 de


novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra". Já no parágrafo 1º do Art
26-A da Lei nº 11.645, de 08 de março de 2008, encontramos a seguinte redação:

O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos


aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da
população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o
estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos
povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o
negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as
suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à
história do Brasil.

O texto em destaque, além de estender a inclusão do ensino aos povos


indígenas, amplia a participação do negro e do índio, corrigindo a redação anterior
desse mesmo artigo. Agora a cultura desses dois grupos étnicos não só resgata
a contribuição na formação da sociedade nacional, mas, reconhecidamente,
caracteriza a formação da população brasileira, dando uma nova coloração à
identidade nacional. Esse amparo legal tornou-se, dentro da concepção de uma
forma de ensino inclusiva, um instrumento de combate ao preconceito racial e à
influência etnocentrista e eurocentrista.

206
TÓPICO 3 | ANTROPOLOGIA: POR UMA EDUCAÇÂO INCLUSIVA

Contudo, a realidade vivida pelos professores não contribui para essa luta,
já que parte deles não apresenta conhecimento necessário da história e cultura
afro-brasileiras e indígena, nem experiência suficiente com questões étnico-raciais
para ministrar aulas. Além disso, o ensino público, tanto quanto o particular, tem
se mostrado omisso ante o dever de respeitar a diversidade racial, ora em razão
de uma má interpretação de como ensinar esse tema em sala de aula, ora pela falta
de conteúdo disponível nos livros didáticos ou, ainda, pela falta de interesse dos
diretores de escola em autorizar atividades extraclasse.

1.1. UMA HISTORICIDADE NEGADA

O conhecimento da história negra e indígena, no caso dos livros didáticos,


tem se restringido a informações já um tanto conhecidas. Neles os negros eram
vistos à época colonial como indisciplinados, inferiores, excelentes para o trabalho
braçal e objetos da exploração sexual dos seus senhores. Além disso, os temas
explorados em sala de aula continuam os mesmos (tráfico negreiro, Zumbi dos
Palmares, leis da abolição e cultura negra e indígena como mero folclore). Os
índios, por sua vez, eram vistos como sujeitos a doenças, frágeis e preguiçosos,
muitas vezes infantis no trato com a sua cultura, pensamento esse perpetuado no
Brasil por séculos. Essa preguiça ou indolência foi citada em muitas obras no meio
acadêmico.

Como exemplo, sem desmerecer sua importância, o livro Capítulos de


História Colonial, de Capistrano de Abreu (um dos marcos na historiografia
brasileira). Nela, deve-se reconhecer que, não obstante a grandiosidade da obra,
a figura do índio era bastante influenciada pela visão eurocêntrica predominante
até meados do século XX.

Indolente o indígena era, sem dúvida, mas também era capaz de grandes
esforços, podia dar muito de si [...] A mesma ausência de cooperação,
a mesma incapacidade de ação incorporada e inteligente, limitada,
apenas pela divisão do trabalho e suas consequências, parece terem os
indígenas legado a seus sucessores. 2

Também no tocante à infantilidade indígena, Gilberto Freyre, em Casa


Grande e Senzala, descreve-os como “Bandos de crianças grandes; uma cultura
verde e incipiente; ainda na primeira dentição; sem os ossos nem o desenvolvimento
das grandes semicivilizações americanas3”. Mais adiante, dentro da mesma obra,
somos contemplados com a seguinte observação:

Diz-se geralmente que a negra corrompeu a vida sexual da sociedade


brasileira, iniciando precocemente no amor físico os filhos-família. Mas
2 ABREU, João Capistrano de. Capítulos de História Colonial. Fundação Biblioteca
Nacional. <Disponível em: <http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/livros_
eletronicos/capitulos_de_historia_colonia.pdf>. Acesso em: 7 nov. 2010.
3 FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. 13ª edição. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1963. p. 150.

207
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

essa corrupção não foi pela negra que se realizou, mas pela escrava.
Onde não se realizou através da africana, realizou-se através da escrava
índia.

Aqui temos uma excelente definição a respeito da exploração sexual por


parte dos senhores de engenho citada anteriormente. Não era a negra ou a índia
fruto dessa depravação e sim a sua condição de escrava que lhes impunha tal
situação. Ainda dentro do conhecimento da história negra e indígena, observamos
uma repetição temática muito grande por parte de autores do passado e de nossa
contemporaneidade sobre o período colonial, monárquico e republicano. Mas o
que dizer da raiz africana e indígena anterior à formação da sociedade brasileira,
tão plural em sua história e tão pouco divulgada em nosso país?

A cultura desses povos muitas vezes é confundida com o folclore. Quantas


vezes a figura do “indiozinho” e do Saci-pererê nos remete a lembranças da nossa
infância, quando tais personagens se faziam presentes nas máscaras e fantasias
que confeccionávamos na escola no Dia do Folclore, enquanto nossos educadores
de história nem sequer abordavam o assunto, preferindo entregar o tema à tutela
do professor de Educação Artística. Não nos iludamos de que isso são ecos do
passado. Ainda hoje, na grande maioria das escolas, findo esse dia, a cultura afro-
indígena cai no seu esquecimento secular.

Não se pode negar, entretanto, que atualmente começa a se firmar uma


abordagem de valorização dos ritmos musicais e da religiosidade de tais culturas.
Palavras como maracatu, caboclinhos, coco, candomblé, umbanda ou jurema
são sempre veiculados pela mídia, entretanto, o conhecimento da história desses
povos, seus líderes, modos de produção, comércio e guerras territoriais é renegado
a segundo plano, pois diante da grandiosidade da redação das leis já abordadas,
o que vemos na maioria dos livros didáticos é uma apresentação esporádica da
figura do negro e do índio já inserida dentro do Brasil colônia, esquecendo-se
sua ancestralidade, quando não citando-a em poucas linhas. Devemos valorizar
a lembrança de que, muito antes da chegada dos negros escravizados no Brasil,
existiam no continente africano grandes reinos, como o do Congo, e civilizações
clássicas como a egípcia.

Os antigos impérios de Gana, Mali e Songhai, todos na África ocidental,


assim como outros povos negros, desenvolveram culturas ricas e poderosas, com
reis e cortes africanas, sem esquecer os faraós egípcios, que deveriam ser inseridos
dentro da história da África tanto quanto o são no período da antiguidade clássica.

2. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O atual Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio, em seu


livro de história, traz uma mensagem dirigida aos diretores, professores e alunos
do Ensino Médio da rede pública: “Todos os materiais devem ser utilizados até
2011 com as devidas reposições e complementações anuais.”6 Entretanto, nota-
se que o livro a ser usado, ressalta-se até 2011, aborda o tema em estudo a partir

208
TÓPICO 3 | ANTROPOLOGIA: POR UMA EDUCAÇÂO INCLUSIVA

do período colonial, com raras citações aos reinos africanos e, mesmo quando
presentes, interligadas ao tema da escravidão, pondo de lado o estudo da história
da África e dos africanos, como preconiza a Lei nº 11.645, de 10 março de 2008.

É preciso que nossos dirigentes e educadores entendam que tal lei nos faz
reconhecer que negros e índios não surgiram sob a face da Terra a partir de 22 de
abril de 1500 e que suas histórias antes de tal data se desenvolveram, à parte, na
história dos portugueses no Brasil. Também o ensino da religião e cultura afro-
indígenas poderia ser abordado de maneira um pouco mais contundente, sem se
limitar ao já tão explorado universo do sincretismo religioso e da musicalidade dos
ritmos. Diante do exposto, torna-se necessário:

1 – O preparo, por parte das entidades de Ensino Superior, de professores aptos


ao enfrentamento do tema em sala de aula, através de seminários, colóquios,
palestras com a participação das lideranças de movimentos negros e indígenas.
2 – A implementação, por parte das entidades de Ensino Superior, da obrigatoriedade
de disciplinas que abordem o tema em estudo.
3 – A produção de material didático de qualidade por parte do Ministério da
Educação e órgãos responsáveis, baseado na historiografia dos povos de
África, com enfoque na história do Continente Africano e na cultura dos povos
indígenas, baseado na interpretação da Lei nº 11.645, de 10 março de 2008.
4 – O ensino da religião e cultura afro-indígenas abordado de maneira contundente,
sem se limitar ao já tão explorado universo do sincretismo religioso e da riqueza
dos ritmos, adequando-se ao grau de maturidade do aluno.
5 – A promoção de ações pautadas no resgate da ancestralidade dos negros e índios
como participantes dessa imensa paleta de cores que é o Brasil. Por último,
deve-se admitir que a simples elaboração e promulgação de uma lei não cria
as condições necessárias ao seu cumprimento sem que haja o engajamento dos
setores que possibilitaram sua concretização.

FONTE: Disponível em: <http://www.unicap.br/coloquiodehistoria/wp-content/


uploads/2013/11/4Col-p.414.pdf>. Acesso em: 15 out. 2016.

209
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico você estudou que:

• Entre os anos 1920 e 1950, muitos antropólogos envolvidos com temas voltados
para a educação travaram discussões com as abordagens de Freud e Piaget.

• Os discípulos de Boas alertavam para o fato de que o modelo pedagógico


ocidental poderia conduzir a uma pedagogia da violência.

• Segundo Ianni (2011), o desafio do professor é o de se defrontar com o


reconhecimento de que o aluno já dispõe, o que não deixa de ser uma vantagem
e, ao mesmo tempo, uma limitação.

• O professor não deve levar ao aluno uma interpretação fechada, mas sim os
relatos, os dados pertinentes para o conhecimento de uma situação de forma tão
flexível quanto possível.

• Ser neutro é uma posição política também. Por isso é que o espírito crítico
necessita estar presente também na crítica do educador.

210
AUTOATIVIDADE
1) Será que, na escola, estamos atentos à questão racial, a partir da primeira
leitura do texto da professora Nilma Lino Gomes? Será que incorporamos essa
realidade de maneira séria e responsável quando discutimos, nos processos de
formação de professores, sobre a importância da diversidade cultural?

2) Como é que se supera a visão do senso comum e se atinge uma visão, um


tanto quanto possível, científica do conhecimento no espaço escolar?

211
212
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