Você está na página 1de 3

Kung-fu: a arte marcial

Por: Victor Mattiuzzo

Diferente das outras artes marciais de destaque em nosso século, o kung-fu distancia-se
do ambiente competitivo, razão pela qual parece estar caindo no esquecimento. Porém, este
distanciamento não se deve por uma aversão à competição, antes, muito mais por uma tendência
natural do kung-fu para aquilo que chamamos de arte marcial (wushu). Este aspecto tem sido
deixado de lado para que as lutas se tornem populares no mundo moderno – reduzindo a arte em
simples esporte e entretenimento. Os mestres e praticantes de kung-fu, no entanto, resistem a
este apelo da modernidade. Para que seja possível compreender bem as razões destes mestres é
importante, de início, que seja feita uma distinção fundamental entre esporte e arte – dois
conceitos que se mesclam naquilo que chamamos de “arte marcial”.

A finalidade da prática esportiva, em sua essência, consiste em levar o praticante a


alcançar a excelência no desempenho físico, a qual se manifesta concretamente na vitória das
competições desportivas. Tais competições remontam ao próprio surgimento da humanidade,
desde eras imemoriais – afinal quais foram os primeiros indivíduos a colocar em teste suas
habilidades em disputa amigável? Caçadores? Guerreiros? A resposta soaria tão longínqua
quanto a própria pergunta. Na historia da Grécia Antiga, por exemplo, se observa que estas
competições inicialmente serviam como treinamento para a guerra e/ou caça e acabaram se
transformando numa forma de entretenimento (ver: origem das olimpíadas). Dentro deste
contexto o atleta tem por finalidade ser o melhor de sua modalidade e alcançar a glória da
vitória. No entanto, esta glória, para o atleta grego, não consiste simplesmente em vencer, mas
em tentar imitar os deuses* ou semideuses (a origem das olímpiadas possui forte associação
com a lenda dos doze trabalhos de Héracles, ou Hércules – a própria expressão “trabalho
hercúleo” vem deste contexto, ou seja, de tarefa extraordinária ou impossível).

*Para compreender a inspiração do atleta, que é basicamente a inspiração dos grandes heróis gregos, é
necessário adentrar mais profundamente na cosmovisão greco-romana. Como veremos adiante, a
cosmovisão é decisiva para a compreensão da manifestação artística em cada civilização.

Por outro lado, diferente do esporte, a expressão artística não se dá em concursos ou


competições, mas principalmente em exposições. Atualmente o lócus da arte está nos museus,
galerias, teatros, enfim, em ambientes onde as obras podem ser contempladas pelo espírito
humano. Na Grécia Antiga já tínhamos, de um lado, as pistas de corrida para os atletas e, de
outro, os teatros e as praças públicas para os atores e poetas. Os atletas vencedores eram
louvados e recebiam suas coroas de louros com a vitória – os artistas, por sua vez, cantavam ou
esculpiam estas glórias, eternizando-as nas esculturas e poesias, ou seja, nas obras de arte.
Diferente do atleta, o artista é movido por algo um tanto mais profundo: a vontade de criar ou,
melhor dizendo, co-criar. O artista é alguém que enxerga beleza na realidade que observa e
tenta, de algum modo, participar desta beleza, co-criando através de determinada técnica. Assim
como o atleta deseja se assemelhar ou se aproximar dos deuses através de seus grandes feitos, a
arte busca fazer a mesma coisa através do processo criativo. Com isto, fica evidente que o
impulso artístico detém em si algo mais elevado que o impulso do herói*.
*Ambos os impulsos podem coexistir de maneira harmônica dentro de cada indivíduo – ou seja, “uma coisa
não anula a outra”, antes, “uma coisa complementa a outra”. Esta complementariedade, como se verá
adiante, adquiriu tal unidade dentro da arte marcial, que não se pode vista separadamente.

Assim, como teria surgido o conceito de “arte marcial”? Como as duas coisas, esporte e
arte, se relacionaram?

No ocidente não se pode definir como manifestações artísticas as modalidades como a


luta greco-romana, o pugilismo e, mais tardiamente, a esgrima ocidental e as justas; por isto não
é errôneo chamá-las de “esportes de guerra”. Por outro lado, no oriente, estes “esportes de
guerra” acabaram ganhando um sentido que transcendeu a mera esfera do treinamento e/ou
entretenimento. É claro que um lutador ou guerreiro do oriente poderia perfeitamente restringir
sua atividade pessoal na busca da glória através da superação dos constantes desafios; mas sua
prática esportiva não se encerra nisto.

Resumidamente pode-se definir a arte marcial como uma forma de “atuação” que tem
por objetivo simular a guerra – no treinamento do kung-fu, como no karatê, no tae-kwon-do e
em muitas outras – executam-se rotineiramente sequências ensaiadas de socos, pontapés e
manuseio de armas; e tais sequências recebem nomes que remetem à fonte de inspiração do
artista original. O mestre primitivo da arte marcial viu beleza nos movimentos de guerra, viu
harmonia na disciplina de combate, na maneira como os guerreiros atacavam e defendiam-se, e
relacionou isto com a beleza da própria natureza – criando a expressão artística marcial – eis aí
o impulso artístico*.

*Não é possível dizer que existe paralelo no mundo ocidental. Como dito anteriormente, ainda que os feitos
heroicos e o impulso artístico tenham uma fonte de inspiração em comum – que é aproximar-se do divino –
não houve, no ocidente uma manifestação artística que teve como base a expressão corporal do combate ou
da guerra.

O impulso artístico também carrega consigo outro aspecto: o folclórico.

O folclore se articula intimamente com aquilo que chamamos de cosmovisão. Por


cosmovisão, de maneira resumida, entende-se o conjunto de elementos simbólicos que compõe
a cultura e dentro do qual estão inseridos os indivíduos. A cosmovisão envolve tanto aspectos
linguísticos e étnicos quanto míticos e religiosos. Para compreender as fontes de inspiração dos
primeiros pais do kung-fu é necessário compreender um pouco desta cosmovisão. O próprio
significado da expressão “kung-fu” remete à “trabalhado duro”, “dedicação em busca de
habilidade” – o que, para os chineses, não se restringe ao âmbito das artes marciais, de tal modo
que é necessário, como se vê, ser mais específico quando se quer falar sobre as lutas (por isto se
usa a palavra wushu). O famoso estilo Shaolin, por exemplo, nasceu dentro de mosteiros
budistas da China tendo relação íntima com sua disciplina religiosa – a qual remonta ao lendário
patriarca Bodhidarma. O estilo Wudang, por sua vez, remete à prática nas Montanhas Wudang e
sofreu influência das tradições espirituais taoístas – daí também se deriva o Tai Chi Chuan e
suas muitas ramificações. Cada um dos estilos autênticos* de kung-fu (Como Hung-Gar, Wing
Chun, Choy Lay Fut, etc.) também possuem inúmeras influências culturais.

*O próprio conceito de “kung-fu autêntico” remete à questão do folclore e da cosmovisão – ou seja, para
que um estilo de kung-fu (wushu) possa ser considerado autêntico, este deve ter origem na China, como
ramo de algum estilo tradicional, desenvolvido por chineses, etc.
O kung-fu trás algo de místico em si, como se a prática levasse o praticante não somente
a adquirir determinada performance física, mas também como se o levasse a entrar em contato
com as forças sutis que regem a natureza e, por conseguinte, seu próprio corpo. O conceito de
chi, qi ou ki – a energia vital – é praticamente indissociável do ensino de kung-fu de tradição
taoísta. Privar o kung-fu destes aspectos culturais e artísticos seria, sem sombra de dúvida,
amputá-lo*.

*Estes aspectos folclóricos e artísticos estão presentes em praticamente todas as artes marciais do oriente,
ainda mais se considerarmos o kung-fu (wushu) como a raiz comum entre todas – tese aceita entre muitos
mestres, apesar de ser rejeitada entre os praticantes mais sectários. No entanto, muitas artes marciais
parecem estar desligando-se desta realidade, ao menos na medida em que se difundem no ocidente, para
que possam conquistar espaço dentro do show business – como é o caso do muay thai, que parece estar
restrito somente aos ambientes competitivos.

Por fim, resumindo, podemos compreender o kung-fu de três formas:

1- Como esporte: sendo, portanto, ligado à sua busca pela performance física e a
consequente vitória nas competições – tendo em vista sua utilidade.

2 - Como manifestação artística: tendo em vista um horizonte muito mais amplo que o
anterior, dentro do qual, arrisco dizer, está o interesse da maioria dos praticantes (ainda que seja
de maneira inconsciente);

3 - Como manifestação disciplinar intrinsecamente ligada às tradições religiosas do


oriente: ou seja, uma prática ligada intimamente com o divino, com a esfera espiritual e mística
– uma prática associada ao desenvolvimento da pessoa humana enquanto ser espiritual e não
somente material - sendo este o âmbito mais elevado dos três*.

*Não é necessário ser adepto do budismo ou taoísmo para praticar a arte marcial chinesa – mas é
necessário, ao menos, compreender esta influência cultural.

Assim, ficam claras as razões pelas quais os mestres e praticantes de kung-fu (wushu)
resistem tanto em ceder às pressões do mundo moderno. Todo praticante de arte marcial deve se
perguntar se quer ser: (a) um praticante fitness; (b) um vencedor de torneios; ou (c) um artista
marcial. O praticante do tipo fitness pode, com facilidade, se deixar seduzir por outros esportes e
abandonar o kung-fu, pois sua paixão não é a arte marcial, mas a boa saúde – coisa que não é
senão objeto de preocupação secundária do verdadeiro artista marcial. Por outro lado, o
praticante que busca a glória da vitória corre o risco de desligar-se da arte marcial após ser
derrotado, pois alguns ficam tão obcecados, que a derrota pode destruir suas convicções. Mas o
verdadeiro artista marcial não é alguém que gosta de vencer, pois a vitória, assim como a busca
pela boa saúde, não é mais que um produto secundário de uma paixão muito mais elevada. Tal
paixão provém de seu senso estético, de seu impulso criativo, enfim, do seu amor pela arte.

Amituofo!

Você também pode gostar