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Diferente das outras artes marciais de destaque em nosso século, o kung-fu distancia-se
do ambiente competitivo, razão pela qual parece estar caindo no esquecimento. Porém, este
distanciamento não se deve por uma aversão à competição, antes, muito mais por uma tendência
natural do kung-fu para aquilo que chamamos de arte marcial (wushu). Este aspecto tem sido
deixado de lado para que as lutas se tornem populares no mundo moderno – reduzindo a arte em
simples esporte e entretenimento. Os mestres e praticantes de kung-fu, no entanto, resistem a
este apelo da modernidade. Para que seja possível compreender bem as razões destes mestres é
importante, de início, que seja feita uma distinção fundamental entre esporte e arte – dois
conceitos que se mesclam naquilo que chamamos de “arte marcial”.
*Para compreender a inspiração do atleta, que é basicamente a inspiração dos grandes heróis gregos, é
necessário adentrar mais profundamente na cosmovisão greco-romana. Como veremos adiante, a
cosmovisão é decisiva para a compreensão da manifestação artística em cada civilização.
Assim, como teria surgido o conceito de “arte marcial”? Como as duas coisas, esporte e
arte, se relacionaram?
Resumidamente pode-se definir a arte marcial como uma forma de “atuação” que tem
por objetivo simular a guerra – no treinamento do kung-fu, como no karatê, no tae-kwon-do e
em muitas outras – executam-se rotineiramente sequências ensaiadas de socos, pontapés e
manuseio de armas; e tais sequências recebem nomes que remetem à fonte de inspiração do
artista original. O mestre primitivo da arte marcial viu beleza nos movimentos de guerra, viu
harmonia na disciplina de combate, na maneira como os guerreiros atacavam e defendiam-se, e
relacionou isto com a beleza da própria natureza – criando a expressão artística marcial – eis aí
o impulso artístico*.
*Não é possível dizer que existe paralelo no mundo ocidental. Como dito anteriormente, ainda que os feitos
heroicos e o impulso artístico tenham uma fonte de inspiração em comum – que é aproximar-se do divino –
não houve, no ocidente uma manifestação artística que teve como base a expressão corporal do combate ou
da guerra.
*O próprio conceito de “kung-fu autêntico” remete à questão do folclore e da cosmovisão – ou seja, para
que um estilo de kung-fu (wushu) possa ser considerado autêntico, este deve ter origem na China, como
ramo de algum estilo tradicional, desenvolvido por chineses, etc.
O kung-fu trás algo de místico em si, como se a prática levasse o praticante não somente
a adquirir determinada performance física, mas também como se o levasse a entrar em contato
com as forças sutis que regem a natureza e, por conseguinte, seu próprio corpo. O conceito de
chi, qi ou ki – a energia vital – é praticamente indissociável do ensino de kung-fu de tradição
taoísta. Privar o kung-fu destes aspectos culturais e artísticos seria, sem sombra de dúvida,
amputá-lo*.
*Estes aspectos folclóricos e artísticos estão presentes em praticamente todas as artes marciais do oriente,
ainda mais se considerarmos o kung-fu (wushu) como a raiz comum entre todas – tese aceita entre muitos
mestres, apesar de ser rejeitada entre os praticantes mais sectários. No entanto, muitas artes marciais
parecem estar desligando-se desta realidade, ao menos na medida em que se difundem no ocidente, para
que possam conquistar espaço dentro do show business – como é o caso do muay thai, que parece estar
restrito somente aos ambientes competitivos.
1- Como esporte: sendo, portanto, ligado à sua busca pela performance física e a
consequente vitória nas competições – tendo em vista sua utilidade.
2 - Como manifestação artística: tendo em vista um horizonte muito mais amplo que o
anterior, dentro do qual, arrisco dizer, está o interesse da maioria dos praticantes (ainda que seja
de maneira inconsciente);
*Não é necessário ser adepto do budismo ou taoísmo para praticar a arte marcial chinesa – mas é
necessário, ao menos, compreender esta influência cultural.
Assim, ficam claras as razões pelas quais os mestres e praticantes de kung-fu (wushu)
resistem tanto em ceder às pressões do mundo moderno. Todo praticante de arte marcial deve se
perguntar se quer ser: (a) um praticante fitness; (b) um vencedor de torneios; ou (c) um artista
marcial. O praticante do tipo fitness pode, com facilidade, se deixar seduzir por outros esportes e
abandonar o kung-fu, pois sua paixão não é a arte marcial, mas a boa saúde – coisa que não é
senão objeto de preocupação secundária do verdadeiro artista marcial. Por outro lado, o
praticante que busca a glória da vitória corre o risco de desligar-se da arte marcial após ser
derrotado, pois alguns ficam tão obcecados, que a derrota pode destruir suas convicções. Mas o
verdadeiro artista marcial não é alguém que gosta de vencer, pois a vitória, assim como a busca
pela boa saúde, não é mais que um produto secundário de uma paixão muito mais elevada. Tal
paixão provém de seu senso estético, de seu impulso criativo, enfim, do seu amor pela arte.
Amituofo!