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Trechos da obra “Morte e Vida Severina” de João Cabral de Melo Neto

DIRIGE-SE À MULHER NA JANELA QUE DEPOIS, DESCOBRE TRATAR-SE DE QUEM SE SABERÁ

—— Muito bom dia senhora, —— Isto aqui não é Vitória —— Agora se me permite
que nessa janela está minha vez de perguntar:
sabe dizer se é possível como senhora, comadre,
nem é Glória do Goitá
algum trabalho encontrar? pode manter o seu lar?
e além da terra, me diga,
que mais sabe trabalhar?
—— Trabalho aqui nunca falta —— Vou explicar rapidamente,
a quem sabe trabalhar logo compreenderá:
—— Sei também tratar de gado,
o que fazia o compadre
entre urtigas pastorear
na sua terra de lá?
gado de comer do chão como aqui a morte é tanta,
ou de comer ramas no ar. vivo de a morte ajudar.
—— Pois fui sempre lavrador,
lavrador de terra má
—— Aqui não é Surubim —— E ainda se me permite
não há espécie de terra
nem Limoeiro, oxalá! que volte a perguntar:
que eu não possa cultivar.
mas diga-me, retirante, é aqui uma profissão
que mais fazia por lá? trabalho tão singular?
—— Isso aqui de nada adianta,
poucos existe o que lavrar
—— Em qualquer das cinco tachas —— é, sim, uma profissão,
mas diga-me, retirante,
de um bangüê sei cozinhar e a melhor de quantas há:
o que mais fazia por lá?
sei cuidar de uma moenda, sou de toda a região
de uma casa de purgar. rezadora titular.
—— Também lá na minha terra
de terra mesmo pouco há
—— Com a vinda das usinas —— E ainda se me permite
mas até a calva da pedra
há poucos engenhos já mais outra vez indagar:
sinto-me capaz de arar.
nada mais o retirante é boa essa profissão
aprendeu a fazer lá? em que a comadre ora está?
—— Também de pouco adianta,
nem pedra há aqui que amassar
—— Ali ninguém aprendeu —— De um raio de muitas léguas
diga-me ainda, compadre,
outro ofício, ou aprenderá vem gente aqui me chamar
que mais fazias por lá?
mas o sol, de sol a sol, a verdade é que não pude
bem se aprende a suportar. queixar-me ainda de azar.
—— Conheço todas as roças
que nesta chã podem dar
—— Mas isso então será tudo —— E se pela última vez
o algodão, a mamona,
em que sabe trabalhar? me permite perguntar:
a pita, o milho, o caroá.
vamos, diga, retirante, não existe outro trabalho
outras coisas saberá. para mim nesse lugar?
—— Esses roçados o banco
já não quer financiar
—— Deseja mesmo saber —— Como aqui a morte é tanta,
mas diga-me, retirante,
o que eu fazia por lá? só é possível trabalhar
o que mais fazia lá?
comer quando havia o quê nessas profissões que fazem
e, havendo ou não, trabalhar. da morte ofício ou bazar.
—— Melhor do que eu ninguém Imagine que outra gente
sei combater, quiçá, de profissão similar,
—— Essa vida por aqui
tanta planta de rapina farmacêuticos, coveiros,
é coisa familiar
que tenho visto por cá. doutor de anel no anular,
mas diga-me retirante,
remando contra a corrente
sabe benditos rezar?
da gente que baixa ao mar,
—— Essas plantas de rapina sabe cantar excelências,
retirantes às avessas,
são tudo o que a terra dá defuntos encomendar?
sobem do mar para cá.
diga-me ainda, compadre sabe tirar ladainhas,
Só os roçados da morte
que mais fazia por lá? sabe mortos enterrar?
compensam aqui cultivar,
e cultivá-los é fácil:
—— Tirei mandioca de chãs —— Já velei muitos defuntos, simples questão de plantar
que o vento vive a esfolar na serra é coisa vulgar não se precisa de limpa,
e de outras escalavras mas nunca aprendi as rezas, as estiagens e as pragas
pela seca faca solar. sei somente acompanhar. fazemos mais prosperar
e dão lucro imediato
nem é preciso esperar
—— Pois se o compadre soubesse pela colheita: recebe-se
rezar ou mesmo cantar, na hora mesma de semear.
trabalhávamos a meias,
que a freguesia bem dá.
APROXIMA-SE DO RETIRANTE O MORADOR DE UM DOS MOCAMBOS QUE EXISTEM ENTRE O CAIS E A ÁGUA DO RIO

—— Severino, retirante, se nenhuma ponte mesmo


o meu amigo é bem moço é de vencê-lo capaz?
sei que a miséria é mar largo,
—— Seu José, mestre carpina,
não é como qualquer poço:
que habita este lamaçal, —— Seu José, mestre carpina,
mas sei que para cruzá-la
sabes me dizer se o rio que lhe pergunte permita:
vale bem qualquer esforço.
a esta altura dá vau? há muito no lamaçal
sabe me dizer se é funda apodrece a sua vida?
esta água grossa e carnal? —— Seu José, mestre carpina, e a vida que tem vivido
e quando é fundo o perau? foi sempre comprada à vista?
quando a força que morreu
—— Severino, retirante,
nem tem onde se enterrar,
jamais o cruzei a nado —— Severino, retirante,
por que ao puxão das águas
quando a maré está cheia sou de Nazaré da Mata,
não é melhor se entregar?
vejo passar muitos barcos, mas tanto lá como aqui
barcaças, alvarengas, jamais me fiaram nada:
muitas de grande calado. —— Severino, retirante, a vida de cada dia
o mar de nossa conversa cada dia hei de comprá-la.
precisa ser combatido,
—— Seu José, mestre carpina,
sempre, de qualquer maneira,
para cobrir corpo de homem —— Seu José, mestre carpina,
porque senão ele alarga
não é preciso muito água: e que interesse, me diga,
e devasta a terra inteira.
basta que chega o abdome, há nessa vida a retalho
basta que tenha fundura que é cada dia adquirida?
igual à de sua fome. —— Seu José, mestre carpina, espera poder um dia
e em que nos faz diferença comprá-la em grandes partidas?
que como frieira se alastre,
—— Severino, retirante
ou como rio na cheia,
pois não sei o que lhe conte —— Severino, retirante,
se acabamos naufragados
sempre que cruzo este rio não sei bem o que lhe diga:
num braço do mar miséria?
costumo tomar a ponte não é que espere comprar
quanto ao vazio do estômago, em grosso tais partidas,
se cruza quando se come. —— Severino, retirante, mas o que compro a retalho
muita diferença faz é, de qualquer forma, vida.
entre lutar com as mãos
—— Seu José, mestre carpina,
e abandoná-las para trás,
e quando ponte não há? —— Seu José, mestre carpina,
porque ao menos esse mar
quando os vazios da fome que diferença faria
não pode adiantar-se mais.
não se tem com que cruzar? se em vez de continuar
quando esses rios sem água tomasse a melhor saída:
são grandes braços de mar? —— Seu José, mestre carpina, a de saltar, numa noite,
e que diferença faz fora da ponte e da vida?
que esse oceano vazio
cresça ou não seus cabedais

O CARPINA FALA COM O RETIRANTE QUE ESTEVE DE FORA, SEM TOMAR PARTE DE NADA

—— Severino, retirante, com sua presença viva.


deixe agora que lhe diga: E não há melhor resposta
eu não sei bem a resposta que o espetáculo da vida:
da pergunta que fazia, vê-la desfiar seu fio,
se não vale mais saltar que também se chama vida,
fora da ponte e da vida ver a fábrica que ela mesma,
nem conheço essa resposta, teimosamente, se fabrica,
se quer mesmo que lhe diga vê-la brotar como há pouco
é difícil defender, em nova vida explodida
só com palavras, a vida, mesmo quando é assim pequena
ainda mais quando ela é a explosão, como a ocorrida
esta que vê, severina como a de há pouco, franzina
mas se responder não pude mesmo quando é a explosão
à pergunta que fazia, de uma vida severina.
ela, a vida, a respondeu

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