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Resumo: A poesia é mais do que externar o estado de espírito do poeta. A poesia encarrega-se
de mostrar a cultura e a história de um povo, a tradição poetizada do dito e do não dito dos
versos. O fazer poético, embora seja um trabalho solitário, não está dissociado das vivências
da sociedade, das singularidades do dia a dia de um povo. Nesse sentido, o poema é código que
transmite, através do poeta, emissor, aquilo que uma região, uma comunidade vivencia. A
poética missioneira dá conta de “narrar” as vivências do gaúcho: as lidas no campo, os
desafetos, os amores, a luta diária do gaúcho missioneiro. Isso é facilmente identificado nos
poemas de Jayme Caetano Braun, gaúcho, pajador que honrou a tradição dos Sete Povos e de
todo o Rio Grande do Sul e continua, através da poesia, disseminando a essência da cultura
desse povo. Assim, este trabalho objetiva mostrar, através da poética de Jayme, o resgate da
história dessa região; a identidade de um povo aguerrido, que aprendeu com seus ancestrais o
valor da luta por sua terra e tradição. A pesquisa trata-se de uma revisão bibliográfica, em que
analisará as marcas identitárias do gaúcho da região das missões, uma tentativa de resgatar a
cultura da região através da poesia.
Introdução
Analisar os poemas do poeta e payador3 Jayme Caetano Braun, pode ser, para alguns,
esclarecer o óbvio. Isso porque o poeta ao escrever não se distanciou das vivências do dia a dia
do gaúcho. Ao analisar as referências que poderia usar para embasar este trabalho, pouco
encontrei sobre a vida de Jayme de forma documental. Isso, talvez, pela velha máxima: “santo
de casa não faz milagre”, mas prefiro não acreditar nisso e pensar que o motivo é outro como,
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História e Patrimônio
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Professora de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira na URI - São Luiz Gonzaga, RS. Mestra em Educação
nas Ciências. rosiizaczorzo@hotmail.com
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Pajador é o repentista que canta seus versos de improviso com o acompanhamento de milonga, feito por guitarra.
No sul do Brasil, o pajador canta seus versos em Décima Espinela (ABBAACCDDC) no estilo recitado e não se
acompanha musicalmente como nos Países do Prata. Um músico de apoio executa a milonga para a pajada.
Pajador (ou payador em espanhol) quer dizer repentista. A origem da palavra não tem uma definição
convencionada. Há algumas hipóteses: alguns autores afirmam que venha de "payo" nome do primitivo habitante
de Castilla, outros que seria de "pago" ou "pagueador" e ainda há quem sugira que venha de "palla" nome dado
pelos Quichuas aos grupos de índios que sentavam nas praças a cantar. Há quem afirme que possa vir da palavra
"pajé", chefe espiritual dos índígenas, misto de sacerdote, médico e feiticeiro. Contudo ninguém sabe ao certo.
A grafia da palavra em espanhol é Payador e em português, convencionamos, Pajador, porém sua pronúncia é a
mesma: PAJADOR (www.paginadogaucho.com.br/poes/pajador.htm)
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por exemplo, o povo missioneiro sente Jayme como “gente” da terra, como se tivesse ao
alcance a qualquer momento. Na verdade, ele está. Jayme, em forma de estátua e com uma cuia
na mão, vigia a cidade de São Luiz Gonzaga, os que na cidade chegam e os que por aqui
passam.
A poesia de Jayme surgiu na minha vida de forma laboral, ao trabalhar os poemas dele
na escola, ensinando os alunos a escreverem poemas com temáticas gauchescas. Na ocasião,
era Semana Farroupilha do ano de 2012. Como não sou gaúcha, confesso que muito relutei na
leitura dos poemas, não relutei porque achei os poemas ruins, mas, pelo fato de não entender
metade das palavras que neles estavam escritos. Senti, então, a necessidade de aprender. Foi
quando peguei um dicionário gaúcho e comecei a estudar e, além disso, perguntar o significado
das palavras “estranhas” dos poemas para as pessoas que eu convivia. Amante de poesia e
acostumada com a leitura de poemas que precisam de uma análise subjetiva, vi na poética de
Jayme as palavras despidas dessa subjetividade. A poética de Jayme é o que é, ou seja, a vida
do gaúcho observada da janela da alma de um missioneiro. Ao analisar os poemas é possível
perceber que o autor refere-se ao gaúcho como verdadeiro herói, isto é, a idealização do
gaúcho: um homem destemido, valente, que luta pelos seus ideais e pela sua terra. Nesse
sentido, a subjetividade na poética do pajador, ao retratar cenas do cotidiano de forma
personificada, está na sensibilidade de enxergar o que os outros não veem.
Assim, esse artigo, fruto de pesquisas iniciais, busca evidenciar a identidade gaúcha nos
poemas de Jayme, uma tentativa de resgatar os valores culturais desta terra missioneira. Isso
será possível através das diversas leituras realizadas por pesquisadores que estudam a poética
missioneira e, especialmente, de Jayme Caetano Braun.
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abandonou os estudos antes de concluir o segundo grau e retornou a sua terra natal, onde passou
a viver como campeiro na fazenda de seu tio Danton Ramos (ABOTT, 2015). Desse período
sobrou inspiração para criar o poema “Sem Diploma” em que remete à importância dos estudos,
ao mesmo tempo deixa claro que o estudo não é capaz de mudar a essência, ele se coloca como
um verdadeiro representante do gaúcho, esse mito que o próprio poeta criou.
Na vida adulta, a genialidade do poeta permitiu que suas poesias fossem utilizadas na
propaganda política do candidato Getúlio Vargas, bem como nas dos demais candidatos do
PTB nas eleições de 3 de outubro de 1950, o poema que deu voz a campanha de Vargas foi “
A Penca de 3 de Outubro” (SCHMITZ, 2009). Além desse, o poema “Petiço de São Borja” fala
de Getúlio Vargas de forma a enaltecer o político. O poema foi publicado em diversas revistas
e jornais.
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Nesse sentido, é possível afirmar que a poesia de Jayme aborda diferentes temáticas,
assuntos que são capazes de denunciar suas ideologias e inseri-lo como pertencente da
sociedade, ou seja, atuando como pertencente dela. O poeta deu conta de retratar sua paixão
pela cultura gaúcha, uma das características que marcam a obra do autor na valorização do
homem que vive no Sul do país, além de retratar com maestria a natureza da região (SCHMITZ,
2009; GUIMARÃES, 2012; HERNANDEZ, 2014; ABOTT, 2015). O autor foi e continua
sendo um dos maiores representantes da poesia gaúcha, com relevante reconhecimento na
Argentina, Uruguai e Paraguai.
A poesia de Jayme foi influenciada, de acordo com Hernandez (2014, p. 17), por outros
poetas regionalistas gaúchos da década de 20 como, por exemplo, Simões Lopes Neto,
Clemenciano Barnasque, Roque Callage, Vieira Pires, João Maya, Darcy Azambuja, Alcides
Maya, autores que, assim como Jayme, descreviam as lidas do homem do campo, as lutas
diárias, sua conduta, valentia e lealdade, vestindo-o como verdadeiro herói.
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Alguns estudiosos defendem, todavia, que esse fazer poético não possui um propósito
para existir, ou seja, não tem como finalidade o outro. Conforme escreveu Benjamin, “nenhum
poema dirige-se ao leitor, nenhum quadro, ao espectador, nenhuma sinfonia aos ouvintes”
(BENJAMIN, 1923/2008, p. 66 [trad. Suzana Kampff Lages]). A partir dessa afirmação, o
autor nos permite pensar que a poesia é fruto de uma inquietação singular do poeta, contudo,
torna-se algo capaz de externar os sentimentos escondidos no âmago da sociedade. É
importante, entretanto, partir do pressuposto que os poetas não vivem em uma “redoma de
vidro”, alheios de qualquer influência externa, logo, o poeta, mesmo por meio de linguagem
metafórica, deixa transparecer a influência do momento histórico e do espaço em que está
inserido.
O poeta vale-se das metáforas que, muitas vezes, nem mesmo um especialista consegue
decifrar seus verdadeiros significados. No processo de criação literária, a linguagem metafórica
é capaz de dar vida a objetos e a seres inanimados. Um exemplo de poeticidade e imersão da
essência criadora é possível ser percebido na poética de Drummond, quando objetos do
cotidiano, paisagens, elementos inanimados de uma vida interiorana, propõem um ato
interpretativo do meio natural e do homem que habita o espaço. Isso acontece no poema “No
meio do caminho” em que o autor vê poesia na banalidade diária de uma paisagem e a
protagoniza em seu poema.
Da mesma forma, Jayme vê poeticidade em objetos representativos para o gaúcho como
a cuia, o chimarrão e outros elementos que fazem parte da cultura e viram protagonistas de seus
poemas. Essa genialidade do autor faz dos objetos, mágicos. Isso é possível de ser percebido
nos poemas “Chilenas”, “Amargo”, “Laço”, “Guitarra”, em que mostram a verdadeira
simbologia desses elementos para o gaúcho, isto é, quando Jayme atribui-lhes vida. O poeta,
ao observar o cenário que o cerca, protagoniza o pássaro joão-de-barro (Furnarius rufus)
intitulando-o como verdadeiro engenheiro conforme o fragmento do poema “João Barreiro”
(BRAUN, 1996, p. 9):
JOÃO BARREIRO
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E nem pediste licença
Pra mim que sou teu vizinho!
Nesse poema de Jayme Caetano Braun, o pássaro é personificado pelo poeta como um
verdadeiro gênio, dotado de sabedoria, um valente trabalhador. Na quarta estrofe, Jayme
declara o pássaro como engenheiro, sem ter condições de ser, a seguir, retoma a infância ao
lembrar das peraltices de guri e defende mais uma vez o pássaro construtor. Ao observar a
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morada do pássaro, analisa a posição de destaque que ele mesmo deu ao “engenheiro”,
comparando-o a mais elevada classe dentro da querência. Isso gera contradição com o último
verso em que compara a morada do pássaro com o coração do gaúcho, desprovido de requinte,
capaz de abrigar qualquer visitante. As ações do pássaro barreiro são capazes de provocar
inveja até mesmo no poeta pela perfeição de seu trabalho. Assim, o autor toma como metáfora
o fazer do João Barreiro como símbolo desta terra, uma construção imagética do gaúcho
trabalhador, imponente ao mesmo tempo que é simples e acolhedor. Além desse, o poema
“Umbu Solitário” e “Quero-Quero” ajudam a pintar a paisagem dos campos, habitat dessa
figura lendária que é o gaúcho descrito por Jayme.
Para Benjamin “ser privada de linguagem: este é o grande sofrimento da natureza ( e é
para redimi-la que a vida e a linguagem do homem está na natureza, e não apenas, como se
supõe, a vida e a linguagem do poeta” ( BENJAMIN [Escritos sobre mitos e linguagem] p. 70).
A poética de Jayme faz referência ao dia a dia do gaúcho, é uma narrativa da vida
campeira, dos personagens que habitam o campo, da natureza, dos feitos heroicos dos povos
que deram início a história do Rio Grande do Sul, assim como a bravura, a valentia e
honestidade dos descendentes desses heróis. O autor cria, dessa forma, a imagem de
verdadeiros mitos, na concepção do poeta, peças de destaque da história. Assim, é possível
inferir que a poética de Jayme se aproxima das Canções de Gesta, consideradas a primeira
manifestação literária na língua francesa entre os séculos XI e XIII, esse poema conforme Abott
(2015, p. 12)
O cantar de gesta é um poema épico extenso que teve origem na Idade Média, com
grande expressão na Europa, principalmente na França, Alemanha e Espanha. Esses
poemas eram feitos para difundirem, de maneira oral, os grandes feitos das guerras e
dos nobres, sendo passados de geração a geração através da cultura da oralidade. O
termo cantar mostra que está ligado diretamente à música, esses versos eram feitos
para serem acompanhados de instrumentos musicais.
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Seus temas versam sobre guerras, combates, proezas com as armas, esforços físicos
sobre-humanos, exaltam a total fidelidade ao senhor ou aos companheiros de luta e
enaltecem a fé cristã. Não temem chegar até ao elogio dos homicídios perpetrados
por seus heróis ou a morte gloriosa destes na defesa da sua honra pessoal e a da sua
linhagem. (ARIAS, 2012, p. 36).
Nesse sentido, é possível depreender que muitos poemas de Jayme fazem intertexto
com a Canção de Gesta, em que o autor narra as duras batalhas entre os nativos e os invasores
que aqui chegaram, verdadeiras narrativas épicas. Conforme retrata o poema “Sepé Tiaraju”
na perspectiva Hernandez (2014), em que o poeta narra a valentia do índio que lutou para
defender sua terra, um símbolo de resistência dos missioneiros. O poema narra o heroísmo do
indígena séculos depois do término do período de colonização e o longo período de resistência
dos povos das missões às ordens expressas pelo Rei da Espanha para que deixassem suas vilas
e entregassem a terra aos portugueses. O poema abaixo retrata essa valentia do índio ao lutar
pelo seu povo (BRAUN, 1958, p. 79):
SEPÉ TIARAJU
Legendário Tiaraju
Ídolo chucro da Taba,
Caudilho Morubixaba
Das extensões sem divisa,
Em nossas veias desliza
O mesmo sangue selvagem
Que deu força a padronagem
À Raça que se eterniza!
Antecessor do Gaúcho
Neste rincão que era teu;
Contigo o guasca nasceu,
Soberano por direito,
Num sincronismo perfeito
Pingo alçado, lança em riste,
E o Rio Grande que hoje existe
Já vivia no teu peito!
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E desse imortal arrojo
Que o sol da lenda debuxa
Surgiu a Estirpe Gaúcha
Que Deus tirou como apojo!
Esse poema coloca o índio Sepé como eminente figura do qual descenderia o povo
missioneiro: forte, aguerrido, isto é, a verdadeira interpretação do mito e herói gaúcho. Na
interpretação de Hernandez (2014), o poema “Sepé Tiaraju” não tem a intenção apenas de
relatar os feitos do herói, mas também de recontar a história dos indígenas, do processo de
catequização pelos jesuítas e, além disso, as lutas para defender sua terra dos invasores
espanhóis. Apesar da poética de Jayme estar contextualizada em um cenário da literatura
moderna, sua escrita, parece se aproximar da representatividade dos heróis românticos. A
forma como o pajador narra os feitos do Índio, coloca-o como símbolo de bravura para os filhos
desta terra pela qual ele lutou.
Considerações Finais
A poética de Jayme que retrata a vida do gaúcho, embora, muitas vezes, de maneira
idealizada, corrobora para entender a cultura desse povo e os elementos da natureza que
compõem o cenário sulista. Imagens e objetos misturam-se na composição da figura do gaúcho
tradicionalista. A idealização do gaúcho como herói é criado a partir das personagens que
habitaram essa terra, assim fundem-se história e fantasia. Jayme, em seus poemas, dá conta de
narrativas capazes de emocionar e, mais do que isso, fazer refletir: versos que orgulham
gaúchos de todos cantos deste país, versos que são responsáveis por manter nas veias de seus
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descendentes a vontade de lutar e de se orgulhar de suas origens. A veracidade da existência
de figuras protagonistas nos poemas do autor, como Sepé Tiaraju, é motivo de discussões para
alguns historiadores, isso pela falta de documentos que comprovem seus feitos, talvez, até pelo
mito criado entorno desse “herói missioneiro”, que continua alimentando a crença nessa figura
valente e representativa. Essa questão, todavia, não é objeto de discussão desse trabalho, uma
vez que a poesia é, na visão de Benjamin, já referenciado aqui nesse artigo, resultado de uma
criação, sem compromisso com o leitor. Nesse sentido, é importante ressaltar que poetas de
outras gerações, como é o caso de Gonçalves Dias, num plano romântico, já havia enxergado
poesia na natureza, além de personificação do índio I-Juca Pirama, como “bom selvagem”,
representação do guerreiro brasileiro, um verdadeiro modelo de brasilidade. A necessidade de
representação do povo brasileiro deu-se justamente pela ausência de um herói, tal como os
personagens medievais descritos nas Canções de Gesta, em que os poemas eram também uma
forma de homenagear os feitos dos cavaleiros medievais.
Assim, é possível concluir que a poética de Jayme contribui consideravelmente para
manter vivo o verdadeiro mito do gaúcho valente. Uma idealização necessária numa sociedade
repleta de heróis com superpoderes, todavia, carente de heróis como este gaúcho aqui
evidenciado.
REFERÊNCIAS
ABOTT, Milena de Oliveira. Payador, pampa e guitarra: tempo, espaço e ecos de uma
cultura. Pelotas: Universidade Federal de Pelotas, 2015. Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pelotas, 2015.
BENJAMIN, Walter. A tarefa do tradutor (1923). In: CASTELLO BRANCO, Lúcia (org).
A tarefa do tradutor em Walter Benjamin: quatro traduções para o português. Traduções de
Fernando Camacho; Karlheinz Barck e outros; Susana Kampff Lages; João Barrent. Belo
Horizonte: Cadernos Viva Voz – Fale: UFMG, 2008.
BRAUN, Jayme Caetano. De Fogão em Fogão. Porto Alegre. Ed. Sulina, 1958.
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_____________________. Galpão de Estância. 6ª Ed. Sulina, 1980.
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