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Aula 4

O Remontador

A princípio pode parecer sem propósito falarmos sobre o trabalho do remontador,


uma vez que remontar uma obra nada teria a ver com o processo de criação de um ballet.
Não é bem assim: obviamente, são atividades distintas mas que, de certo modo, caminham
paralelas.

Como já dissemos, a transmissão dos conhecimentos do ballet tem como tradição


a oralidade: apesar dos métodos de notação, poucos são os que os conhecem e utilizam,
limitando-se a fórmulas próprias de gravar para si mesmo a “escrita” da dança. É comum
em muitas companhias de ballet ex-bailarinos que atuaram como assistentes de
determinado coreógrafo e, a partir daí, dado o conhecimento que possuem da obra, tomar
para si a empreitada de remontar. As filmagens são também poderosos auxiliares, peças-
chave no momento de tirar dúvidas sobre uma ou outra posição de cabeça, a perna que
inicia um movimento etc. Mas, o vídeo, sozinho, não dá conta de uma remontagem como
deva ser.

É preciso que exista alguém que conheça o estilo desejado pelo coreógrafo, ou que
tenha dançado consideravelmente determinado ballet, ensaiado com vários coreógrafos ou
remontadores distintos, em diferentes versões da obra, para poder dar sua contribuição à
continuidade da obra. O vídeo é um recurso a mais para auxiliar àqueles que já conhecem
o que vão montar ou remontar.

Tradição e continuidade das grandes obras

Fui bailarina durante muitos anos. É óbvio que não conheci pessoalmente Petipa e
não fui ensaiada por ele! Mas fui ensaiada por alguém de notório saber que, por sua vez,
foi ensaiado por alguém com a mesma capacidade e assim por diante, até
chegarmos a quem conheceu Petipa. Tradição. É isto que devemos ter em mente na
ocasião de uma remontagem: a continuidade da obra como desejaria seu criador.

No ballet, somos duplamente desafiados, primeiro pela própria natureza “não-


escrita” dessa arte – a primazia da tradição oral que domina a transmissão de seus
ensinamentos. Segundo, o ballet, ele próprio, passou por muitas mudanças no curso de seu
desenvolvimento e daí o perigo de esquecermos sua história, ou inconscientemente nos
afastarmos dela, principalmente os jovens. Ser parte de uma inquebrável continuidade
estética, manter-se fiel às suas convicções é necessário aos artistas do ballet.

É então, de competência do remontador, zelar pela tradição. Para elucidar,


pensemos então nas variações de repertório apresentadas nos festivais de dança.

A imortalidade da dança

Pessoalmente, sou a favor de festivais, mostras competitivas etc. – mas isto é uma
outra história que não cabe aqui. Entretanto, é preciso manter-se a tradição e não
descaracterizar a obra, adaptando-a à técnica do estudante que irá apresentar-se – tanto
“facilitando” alguns movimentos quanto incluindo outros de mais difícil execução, quando o
bailarino dispõe de determinada habilidade, como hiperextensão ou facilidade para girar.

Neste ponto existe um aspecto ético a se considerar: de domínio público, os


clássicos de repertório estão mais sujeitos à falta de critério de um remontador.

Variações nunca devem ser modificadas para caber nas possibilidades do aluno ou
dissimular seus defeitos. Os mesmos passos executados por bailarinas como Lyubov
Egorova, Olga Prcobrajenska ou Anna Pavlova, estrelas que fizeram a mágica do ex- teatro
Mariinsky, esses mesmos passos devem ser trilhados pelas gerações que as sucederam.
Eis a imortalidade da dança.
Está claro que boa parte do trabalho de grandes maestros de dança e bailarinos do
passado inevitavelmente perdeu-se no tempo, mas é fundamental não permitirmos que as
coreografias originais se percam por falhas de memória (ou falta de pesquisa) ou ainda por
modificações desta ou de outra natureza.

Competência e ética

Fato é que remontar uma obra clássica envolve competência e ética.

Primeiramente, o professor/remontador, deve considerar sua responsabilidade em


relação aos que estão sob a sua orientação. Um professor é um formador de opinião,
alguém responsável pela construção dos valores que nortearão os alunos. É, sobretudo, da
primeira orientação recebida por eles que surgirão os professores, pedagogos e formadores
de opinião de amanhã; tanto professores quanto discípulos precisam estar conscientes do
respeito devido aos coreógrafos, às suas criações e reconhecer a necessidade de ter
preparo para exercer qualquer função na área da dança.

Assim, ao pretender remontar uma obra será necessário conhecê-la em


profundidade. Não basta aprender os passos, mas conhecer a idéia daquela obra, o
contexto em que está inserida. Por exemplo, considero totalmente inapropriado para
meninas, dançar "A Noite de Valpurgis”: a cena é formada por bacantes e representa todo
um ritual a Baco, onde os partícipes chegavam ao êxtase, entorpecidos, em estado de
embriaguez e semi-conscientes.

Ao remontar uma obra de repertório é necessário atentar aos mínimos detalhes,


desde uma colocação de braços ao estilo do penteado. Nada deve passar despercebido
aos olhos do remontador, pois são justamente os detalhes que farão a diferença. Permitir
um arabesque altíssimo em uma remontagem de Pas de Quatre 1845, por exemplo, é
descaracterizar a obra, ignorar o estilo, o período histórico em que foi criada, o grau de
dificuldade técnica. Todos esses são fatores a serem considerados.

Respeito aos personagens

Les Sylphides, por exemplo, é um ballet bastante difícil de ser remontado


corretamente, pelas dificuldades que apresenta quanto ao estilo e à atmosfera que o
envolve. Minha grande amiga Eliana Caminada, bailarina e uma das maiores autoridades
em História da Dança no país, costuma dizer que é comum às estudantes não se agradarem
desse ballet, principalmente o “Prelúdio” – o clímax do romantismo nesta obra.

É fácil identificar por quê: segundo ela diz “não tem pirueta, não tem grand jeté, não
tem developpés”!
Eliana menciona também que, freqüentemente, o remontador confunde as
personalidades de Swanilda (Coppelia) com Lise (La Fille Mal Gardée), personagens de
índoles opostas. Lise e Collas, alerta Eliana, são jovens seguros do que desejam e
defendem suas aspirações com inteligência e alegria.
Já o casal de Coppelia é um tanto inconseqüente, são jovens mal educados e
imaturos. Os primeiros usam o símbolo da fita cor de rosa como referência de que um está
pensando no outro e em como irão se encontrar, em lugar do ramo de trigo (em Coppelia)
que a insegura Swanilda e suas amigas usam para tentar adivinhar o sentimento do
parceiro. Collas é puro e apaixonado, enquanto o inconseqüente Franz não consegue
decidir-se entre sua noiva ou Coppelia.

Citei apenas esses detalhes observados por Caminada, para mostrar que o
remontador não pode ignorar as peculiaridades dos ballets, a observação à época, o estilo
e demais componentes que já mencionamos como as características psicológicas dos
personagens – nos ballets que têm enredo – por serem determinantes ao entendimento da
obra. Deixar isto de lado seria torná-los mero conjunto de passos e gestos aleatórios –
mesmo que bem executados.
As possibilidades de adaptação visando apenas adequar a obra a um grupo menor
de bailarinos, do que o da versão original, por exemplo, é totalmente válido, assim como
um ajuste nos desA enhos ou nos tempos musicais que “sobraram” em vista de menor
número de participantes.

Você conhece ...

... o ballet “Fall River Legend”?

De Agnes de Mille, com música de Morton Gould,


o ballet estreou em Nova Iorque, em 22/04/1948, com o
American Ballet Theatre.

De Mille baseou seu trabalho coreográfico na


história de Lizzie Borden (Elizabeth Andrew Borden)
que, em 1892, foi acusada de ter assassinado seu pai e sua
madrasta, a vários golpes de machado, na pequena cidade
de Fall River, Massachusetts.

O caso ganhou impacto e notoriedade nos jornais


da época, entrando na história dos crimes cujo assassino
não foi descoberto. Apesar de a jovem ter sido absolvida,
as evidências e o senso comum apontam-na como
culpada.

Arthur Mitchell foi um dos que remontou o ballet


para a renomada companhia Dance Theatre of Harlem. Vale
a pena conferir!

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