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24/11/2021 08:57 Nietzsche - Psicologia do Ressentimento • Razão Inadequada

Nietzsche – Psicologia do
Ressentimento
O ressentimento é uma das condições mais perigosas ao homem e, infelizmente, esta parece ser sua
condição moderna. Para Nietzsche, o ser humano declina, seu grande medo é que o ressentimento se
torne de tal forma contagioso e perigoso que consiga operar uma inversão dos valores. Aqui o
pesadelo se torna realidade: os fracos triunfam sobre os fortes.

Mas antes precisamos entender a gênese do ressentimento, e Nietzsche nos dá as ferramentas


corretas de dissecação, é preciso ter estômago forte para abrir este corpo podre exalando vingança e
impotência, com certeza não é tarefa para qualquer um. Onde se esconde a moléstia? Como lidar
com esta enfermidade?

Para entender melhor, precisamos analisar a famosa oposição “moral de senhores  versus moral de
escravos”. Por trás destas morais encontra-se a  Vontade de Potência  como força de afirmação e
criação que opera uma hierarquização das forças, uma valoração dos valores, uma estrutura onde as
forças de conservação servem às forças de criação e expansão. Estes tipos psicológicos são definidos
por Nietzsche:

Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma,


já de início a moral escrava diz  Não  a um ‘fora’, um ‘outro’, um
‘não-eu’ – este Não é seu ato criador”

– Nietzsche, Genealogia da Moral, 1a. parte, §10

A ação do senhor, em sua própria força e vigor, afirma sua vontade: sua lei é a afirmação de si.
Fluxos em um campo de forças buscando cada uma sua própria ampliação e afirmação. O tipo
Aristocrático é predominantemente ativo, suas ações são espontâneas, quase inocentes, fruto de um
excesso que transborda. Sua saúde necessita de um mínimo de estímulos para explodir em atos, para
extravasar e criar, sua capacidade de agir no mundo com esta leveza o faz dizer Sim para seus
próprios atos, ele legisla através de sua própria afirmação, se diferencia no processo e todo o resto é
uma consequência de si.

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O tipo escravo, por um desequilíbrio das forças, não tem vigor o bastante em sua ação, seu ato é
sobrepujado pelas forças externas. A fraqueza do escravo impede que sua força se afirme
plenamente, ele não é dono de si, é constrangido, desviado, impedido constantemente em razão de
forças externas que o ultrapassam. Em face de um mundo ameaçador e perigoso, o escravo diz Não,
ele sente o Não como uma entidade ontológica e totalizadora. Tudo é complicado demais, pesado
demais, a vida exige demasiado esforço. Ao escravo, levando em conta sua desordem fisiológica,
sua debilidade, pusilanimidade, está vedada a ação. Nele, a Vontade de Potência não pode afirmar-se
plenamente, o escravo não pode devir, ele não está à altura do mundo.

Se desconhece a essência da vida, a sua vontade de poder; como isto


não se percebe a primazia fundamental das forças espontâneas,
agressivas, expansivas, criadoras de novas formas, interpretações e
direções, forças cuja ação necessariamente precede a ‘adaptação'”

– Nietzsche, Genealogia da Moral, 1a. parte, §11

“Homem desconfiado da vida útil de seu próprio coração” Susano


Correia

oposição Senhor/Escravo, Nobre/Plebeu, remete à Vontade de Potência porque é nela onde as forças

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de diferenciação e expansão organizam o corpo do homem. Ao nobre, por sorte, cuidado, condições
adequadas, é possível o livre fluxo de sua força; ao escravo, por azar, descuido, condições
desfavoráveis, sua ação está vedada, quase completamente obstruída, sua potência de diferenciação
é debilitada.

O nobre confunde sua valoração com o mundo, porque o mundo mesmo parece estar em suas mãos,
ele demonstra um controle de si e de sua relação com o que lhe é exterior, os dois movem-se em
harmonia, uma dança onde os dois crescem em potência; já o escravo de imediato cria uma
separação entre ele e o mundo, negando o exterior em busca de afirmar-se com seus parcos recursos.

Nietzsche analisa do ressentimento através de uma fisiopsicologia: de que forma o ressentimento


nasce da impotência e contamina o organismo? Analisando o Nobre e o Plebeu podemos ver como
no primeiro, a ação toma corpo e mesmo a reação é forte o bastante para encontrar caminhos novos
e inesperados. O nobre dispõe de uma plasticidade que o faz ativo no processo, ele é capaz de agir
de múltiplas maneiras e afirmar-se sempre com o máximo de potência e espontaneidade; não há
hesitação em pôr-se à prova! Já o escravo, acovardado pelos estímulos que vêm de fora, cegado pelo
medo, não encontra saídas, fica paralisado, consegue apenas esboçar reações mecânicas, reflexos
prosaicos, toscos e infrutíferos; não se sente digno de lutar.

A cama está armada para o nascimento do ressentimento. Como diz Nietzsche: “O ressentimento,
a ninguém é mais prejudicial que ao próprio ressentido” (Nietzsche, Ecce Homo, §6). Em
sua incapacidade de agir, o tipo escravo tende a se tornar cada vez mais doente e incapaz, cada vez
mais extenuado e incapacitado. Em sua busca por afirmação, ele recorre a táticas desesperadas: a
confundindo com o alívio de energias represadas, tomando excêntricas atitudes que descarregam de
uma vez toda sua força, mas que o torna, por fim, ainda mais frágil frente aos estímulos externos.

A descarga de afeto é para o sofredor a maior tentativa de alívio, de


entorpecimento, seu involuntariamente ansiado narcótico para
tormentos de qualquer espécie”

– Nietzsche, Genealogia da Moral, 3a. parte, §15

O ressentido busca o alívio de sua dor, seu desconforto, a Vontade de Potência busca caminhos para
afirmar-se, mas encontra apenas becos sem saída. Então, já incapaz de afirmar, até mesmo a reação
torna-se inautêntica, incapaz de criar e diferenciar-se, inapta para dar conta da relação entre as
forças interiores com as exteriores. Chega o momento para o qual Nietzsche nos alertou: a dor se
contamina de ressentimento. Mágoa, raiva, ira, ódio tomam a consciência. Ao fraco, abre-se o
assustador destino de ressentido, a incapacidade de esquecer aqueles que o ofenderam, a raiva
contida, dissimulada, daqueles que o superaram, a dor persistente e atrofiadora, a sede de vingança.

Sofrimento de obstrução fisiológica”

– Nietzsche, Genealogia da moral, 3a. parte, §17

O ressentido afunda lenta e invariavelmente em seu ressentimento, alimentando retaliações


imaginárias, planos de redenção e julgamentos finais. Sujando-se em sua própria imundície, o
ressentido deixa-se levar pela imaginação, torna-se profundo, procura por sinais, interpretando

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24/11/2021 08:57 Nietzsche - Psicologia do Ressentimento • Razão Inadequada

signos que possam levá-lo a redimir-se frente sua plateia imaginária. O caminho rancoroso que o
ressentido segue o afasta da saúde, ele se fecha cada vez mais, cria mundos, e, eventualmente, torna-
se inacessível.

Onde ainda se encontra a saúde do homem moderno contaminado pelo verme do ressentimento? Ele
acredita demasiadamente na identidade para se deixar levar pelo devir; ele se encontra
exageradamente afundado em si mesmo para realizar os encontros que só acontecem na superfície;
ele acredita excessivamente em quem é para dar um chance à espontaneidade em si mesmo.

É preciso ter ainda o caos dentro de si, para poder dar à luz uma
estrela dançante. Eu vos digo, tendes ainda o caos dentro de vós”

– Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, p. 18

Do caos emergem as forças! Na criação, o homem do ressentimento se desfaz, desmonta. O


ressentimento é o primeiro degrau que Nietzsche encontra ao seguir escada abaixo em direção à má
consciência  e aos  valores ascéticos. Ao psicólogo cabe estudar a fundo seus sentidos e seus
sintomas, buscando neutralizá-los, ou (por que não?) conduzi-lo por seu deserto até atravessá-lo e
encontrar terras novas (transvaloração dos valores).

Texto da Série:
Ressentimento

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