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Paulo Ferreira da Cunha

TEORIA GERAL DO DIREITO


Uma Síntese Crítica

A Causa das Regras

2018
Ficha técnica:
Teoria Geral do Direito: Uma síntese crítica
Autor: Paulo Ferreira da Cunha
Edição: Causa das Regras
Capa: Composição da editora com base numa estampa
recolhida da Wikiwand - Reunião de doutores na
Universidade de Paris - iblioth ue ationale, Paris. éculo
XVI.
Oeiras, Outubro 2018
ISBN: 978-989-8754-52-3

Depósito Legal: 447697/18

Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida sem a


autorização expressa do autor e da editora.

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Outros Livros do Autor
1987

(1) O Procedimento Administrativo, Coimbra, Almedina, 1987 (esgotado);

(2) Quadros Institucionais – do social ao jurídico, Porto, Rés, 1987 (esgotado);


refundido e aumentado no volume

(2 a) Sociedade e Direito. Quadros Institucionais, Porto, Rés, 1990 (esgotado);

1988

(3) Introdução à Teoria do Direito, Porto, Rés, 1988 (esgotado);

(4) Noções Gerais de Direito, Porto, Rés, 1.ª ed., 1988, 2.ª ed. 1991, outras
eds. ulteriores (em colaboração). Edição bilingue português-chinês, revista,
adaptada e muito aumentada: Noções Gerais de Direito Civil, I, trad. de Vasco
Fong Man Chong, Macau, Publicações O Direito, ed. subsidiada pelo Instituto
Português do Oriente e Associação dos Advogados de Macau, 1993); nova
edição pela Calendário das Letras, Vila Nova de Gaia, 2015.

(5) Problemas Fundamentais de Direito, Porto, Rés, 1988 (esgotado);

1990

(6) Direito, Porto, Edições Asa, 1990; 2.ª ed. 1991; 3.ª ed., 1994 (esgotado);

(7) Mito e Constitucionalismo. Perspectiva conceitual e histórica, Coimbra,


1988, Separata do “Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito de
Coimbra”, vol. III, Coimbra, 1990 (esgotado);

(8) Pensar o Direito I. Do realismo clássico à análise mítica, Coimbra,


Almedina, 1990 (esgotado);

(9) Direito. Guia Universitário, em colaboração, Porto, Rés, 1990 (esgotado);

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Paulo Ferreira da Cunha

1991

(8 b) Pensar o Direito II. Da Modernidade à Postmodernidade, Coimbra,


Almedina, 1991 (esgotado);

(10) História da Faculdade de Direito de Coimbra, Porto, Rés, 1991, 5 vols.


(com colaboração de Reinaldo de Carvalho, Prefácio de Orlando de
Carvalho);

1992

Mythe et Constitutionnalisme au Portugal (1777-1826). Originalité ou influence


française?, Paris, Université Paris II, 1992 (tese policopiada e editada
parcialmente pela revista “Cultura”)

1993

(11) Princípios de Direito. Introdução à Filosofia e Metodologia Jurídicas,


Porto, Rés, 1993 (esgotado);

1995

(12) Para uma História Constitucional do Direito Português, Coimbra,


Almedina, 1995 (esgotado);

(13) Tópicos Jurídicos, Porto, Edições Asa, 1.ª e 2.ª ed., 1995 (esgotado);

(14) “Peço Justiça!”, Porto, Edições Asa, 1995 (esgotado) – há edição em


Braille, Porto, Centro Prof. Albuquerque e Castro, n.º 1176, 8 volumes;

(15) Amor Iuris, Filosofia Contemporânea do Direito e da Política, Lisboa,


Cosmos, 1995 (esgotado);

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Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

1996

(16) Constituição, Direito e Utopia. Do Jurídico-Constitucional nas


Utopias Políticas , Coimbra, Faculdade de Direito de Coimbra, Studia
Iuridica, Coimbra Editora, 1996;

(17) Peccata Iuris. Do Direito nos Livros ao Direito em Acção, Lisboa, Edições
Universitárias Lusófonas, 1996;

(18) Arqueologias Jurídicas. Ensaios jurídico-humanísticos e jurídico-políticos,


Porto, Lello, 1996;

1998

(19) Lições Preliminares de Filosofia do Direito, Coimbra, Almedina, 1998,


esgotado, há 2.ª ed. e 3.ª ed.;

(20) A Constituição do Crime. Da substancial constitucionalidade do Direito


Penal, Coimbra, Coimbra Editora, 1998;

(21) Instituições de Direito. I. Filosofia e Metodologia do Direito, Coimbra,


Almedina, 1998 (organizador e coautor), Prefácio de Vítor Manuel Aguiar e
Silva;

(22) Res Publica. Ensaios Constitucionais, Coimbra, Almedina, 1998;

1999

(23) Lições de Filosofia Jurídica. Natureza & Arte do Direito, Coimbra,


Almedina, 1999;

(24) Mysteria Ivris. Raízes Mitosóficas do Pensamento Jurídico-Político


Português, Porto, Legis, 1999;

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Paulo Ferreira da Cunha

2000

(25) Le Droit et les Sens, Paris, L’Archer, dif. P.U.F., 2000;

(26) Teoria da Constituição, vol. II. Direitos Humanos, Direitos


Fundamentais, Lisboa, Verbo, 2000;

(27) Temas e Perfis da Filosofia do Direito Luso-Brasileira, Lisboa, Imprensa


Nacional-Casa da Moeda, 2000;

(20 a) Instituições de Direito. vol. II. Enciclopédia Jurídica, (organizador e


coautor), Coimbra, Almedina, 2000;

(28) Responsabilité et culpabilité. Abrégé juridique pour médecins, Paris,


P.U.F., 2000 (esgotado);

2001

(29) O Ponto de Arquimedes. Natureza Humana, Direito Natural,


Direitos Humanos, Coimbra, Almedina, 2001 (esgotado);

(30) Propedêutica Jurídica. Uma perspectiva jusnaturalista, Campinas, São Paulo,


Millennium, 2001 (em colaboração com Ricardo Dip);

2002

(31) Lições Preliminares de Filosofia do Direito, 2.ª edição revista e atualizada,


Coimbra, Almedina, 2002;

(25 a) Teoria da Constituição, vol. I. Mitos, Memórias, Conceitos, Lisboa,


Verbo, 2002;

(32) Faces da Justiça, Coimbra, Almedina, 2002 (esgotado);

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Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

2003

(33) Direitos Humanos. Teorias e Práticas, Coimbra, Almedina, 2003 (org.),


com Prefácio de Jorge Miranda;

(34) O Século de Antígona, Coimbra, Almedina, 2003;

(35) Teoria do Estado Contemporâneo (org.), Lisboa / São Paulo, Verbo,


2003;

(36) Política Mínima, Coimbra, Almedina, 2003 (esgotada a 2.ª ed.);

(37) Miragens do Direito. O Direito, as Instituições e o Politicamente Correto,


Campinas, SP, Millennium, 2003;

(38) Droit et Récit, Québec, Presses de l’Université Laval, 2003;

2004

(39) Memória, Método e Direito, Coimbra, Almedina, 2004 (esgotada a 2.ª


ed.);

(40) O Tímpano das Virtudes, Coimbra, Almedina, 2004;

(41) Filosofia do Direito – Primeira Síntese, Coimbra, Almedina, 2004


(esgotado);

(42) Direito Natural, Religiões e Culturas, org., Coimbra, Coimbra Editora,


2004;

2005

(43) Anti-Leviatã, Porto Alegre, Sérgio Fabris, 2005;

(44) Repensar a Política. Ciência & Ideologia, Coimbra, Almedina, 2005


(esgotado; há 2.ªed., com uma Apresentação de J. J. Gomes Canotilho);

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Paulo Ferreira da Cunha

(45) Lusofilias. Identidade Portuguesa e Relações Internacionais, Porto,


Caixotim, 2005 (Menção Honrosa da SHIP);

(46) Escola a Arder, Lisboa, O Espírito das Leis, 2005;

(35 a) Política Mínima, 2.ª ed., corrigida e atualizada, Coimbra, Almedina,


2005 (esgotado);

(47) Novo Direito Constitucional Europeu, Coimbra, Almedina, 2005;

(48) História do Direito. Do Direito Romano à Constituição Europeia,


Coimbra, Almedina,

2005 (em colaboração com Joana de Aguiar e Silva e António Lemos Soares),
esgotado, há reimpressão;

(49) Direito Natural, Justiça e Política, org., Coimbra, Coimbra Editora, vol. I,
2005;

(50) O Essencial sobre Filosofia Política Medieval, Lisboa, Imprensa Nacional-


Casa da Moeda, 2005;

2006

(51) O Essencial sobre Filosofia Política Moderna, Lisboa, INCM, 2006;

(52) Per-Curso Constitucional. Pensar o Direito Constitucional e o seu Ensino,


Prefácio de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, São Paulo, CEMOROC-
EDF-FEUSP, Escola Superior de Direito Constitucional, Editora Mandruvá,
2006 (esgotado);

(53) O Essencial sobre Filosofia Política da Antiguidade Clássica, Lisboa,


Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2006;

(54) Pensamento Jurídico Luso-Brasileiro, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da


Moeda, 2006;

(55) Raízes da República. Introdução Histórica ao Direito Constitucional,


8
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

Coimbra, Almedina, 2006 (esgotado);

(56) Direito Constitucional Geral, Lisboa, Quid Juris, 2006 (esgotado; há


nova edição);

(57) Filosofia do Direito, Coimbra, Almedina, 2006 (esgotado; há 2.ª


edição);

(56 a) Direito Constitucional Geral. Uma Perspectiva Luso-Brasileira, São


Paulo, Método,

2006, Prefácio de André Ramos Tavares (Prémio Jabuti para o melhor


livro de Direito);

(58) Constituição da República da Lísia, Porto, Ordem dos Advogados,


2006;

2007

(59) A Constituição Viva. Cidadania e Direitos Humanos, Porto Alegre,


Editora do Advogado, 2007, Prefácio de Ingo Sarlet;

(45 a) Repensar a Política. Ciência & Ideologia, 2.ª ed., revista e atualizada,
Coimbra, Almedina, 2007, com uma Apresentação de J. J. Gomes Canotilho;

(60) Direito Constitucional Aplicado, Lisboa, Quid Juris, 2007;

(61) O Essencial sobre Filosofia Política Liberal e Social, Lisboa, INCM,


2007;

(62) O Essencial sobre Filosofia Política Romântica, Lisboa, INCM, 2007;

(63) Manual de Retórica & Direito, Lisboa, Quid Juris, 2007, colaboração
com Maria Luísa Malato (esgotado; 2.ª ed. em preparação);

(64) Constituição, Crise e Cidadania, Porto Alegre, Livraria do Advogado


Editora, 2007, com Prefácio de Paulo Bonavides;

9
Paulo Ferreira da Cunha

2008

(65) Direito Constitucional e Fundamentos do Direito, Rio de Janeiro / São


Paulo / Recife, Renovar, 2008, com um texto de J. J. Gomes Canotilho;

(66) Comunicação e Direito, Porto Alegre, Livraria do Advogado


Editora, 2008;

(67) Tratado da (In)Justiça, Lisboa, Quid Juris, 2008;

(68) Direito Constitucional Anotado, Lisboa, Quid Juris, 2008 (esgotado);

(69) Fundamentos da República e dos Direitos Fundamentais, Belo


Horizonte, Forum, 2008, Apresentação de André Ramos Tavares;

(70) O Essencial sobre Filosofia Política Contemporânea (1887-1939),


Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2008;

(71) O Essencial sobre Filosofia Política do séc. XX (depois de 1940),


Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2008;

2009

(72) Filosofia Jurídica Prática, Lisboa, Quid Juris, 2009;

(73) Direito Constitucional & Filosofia do Direito, Porto, Cadernos


Interdisciplinares Luso- Brasileiros (coord.), 2009 (esgotado);

(72 a) Filosofia Jurídica Prática, Belo Horizonte, Forum, 2009, Prefácio de


Willis Santiago Guerra Filho, Apresentação de Regina Quaresma;

(74) Da Declaração Universal dos Direitos do Homem, Osasco, São Paulo,


Edifieo, 2008 (2009);

(75) Geografia Constitucional. Sistemas Juspolíticos e Globalização, Lisboa,


Quid Juris, 2009;

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Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

(76) Direito & Literatura, coord., Porto / São Paulo, Cadernos


Interdisciplinares Luso-Brasileiros 2009 (esgotado);

(77) Síntese de Filosofia do Direito, Coimbra, Almedina, 2009;

(67 a) Breve Tratado da (In)Justiça, São Paulo, Quartier Latin, 2009;

(31 a) Lições Preliminares de Filosofia do Direito, 3.ª ed., Coimbra, Almedina,


2009;

(39 a) Iniciação à Metodologia Jurídica. Memória, Método e Direito,


Coimbra, Almedina, 2009 (esgotada a 2.ª ed.; 3.ª ed. em preparação);

(78) Pensar o Estado, Lisboa, Quid Juris, 2009;

2010

(79) Presidencialismo e Parlamentarismo, Belo Horizonte, Forum, 2010,


Prefácio de Marcelo Figueiredo, Apresentação de Maria Elizabeth Guimarães
Teixeira Rocha;

(80) Traité de Droit Constitutionnel. Constitution universelle et


mondialisation des valeurs fondamentales, Paris, Buenos Books International,
2010 (também com edição em ebook);

(81) Justiça & Direito. Viagens à Tribo dos Juristas, Lisboa, Quid Juris, 2010;

(82) Para uma Ética Republicana. Virtude(s) e Valor(es) da Republica, Lisboa,


Coisas de Ler, 2010, Prefácio de Eduardo Bittar;

(83) Filosofia Política. Da Antiguidade ao Século XXI, Lisboa, Imprensa


Nacional-Casa da Moeda, 2010;

11
Paulo Ferreira da Cunha

2011

(84) O Essencial sobre a I República e a Constituição de 1911, Lisboa,


Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2011;

2012

(85) Droit naturel et méthodologie juridique, Paris, Buenos Books


International, 2012, Prefácio de Stamatios Tzitzis;

(86) Avessos do Direito. Ensaios de Crítica da Razão Jurídica, Curitiba, Juruá,


2012, Prefácio de Lênio Streck, Apresentação de Maria Francisca Carneiro;

(87) Constituição & Política. Poder Constituinte, Constituição Material e


Cultura Constitucional, Lisboa, Quid Juris, 2012;

2013

(88) Rethinking Natural Law, Berlin / Heidelberg, Springer, 2013, Prefácio de


Virginia Black;

(57 a) Filosofia do Direito. Fundamentos, Metodologia e Teoria Geral do


Direito, 2.ª edição

revista atualizada e desenvolvida, Coimbra, Almedina, 2013;

(89) Filosofia do Direito e do Estado, Prefácio de Tercio Sampaio Ferraz


Junior, Apresentação de Fernando Dias Menezes de Almeida, Belo
Horizonte, Forum, 2013;

(90) Repensar o Direito. Um Manual de Filosofia Jurídica, Prefácio de Mário


Bigotte Chorão, Posfácio de José Adelino Maltez, Lisboa, Imprensa Nacional-
Casa da Moeda, 2013;

(56 b) Direito Constitucional Geral, Nova Edição (2.ª): Aumentada, Revista


e Atualizada, Lisboa, Quid Juris, 2013;
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Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

(57 b) Filosofia do Direito. Fundamentos das Instituições Jurídicas, Rio de


Janeiro, G/Z, 2013;

(91) Nova Teoria do Estado. Estado, República, Constituição, São Paulo,


Malheiros, 2013, Prefácio de Paulo Bonavides, Apresentação de Carmela
Gruene.

2014

(92) O Contrato Constitucional, Lisboa, Quid Juris, 2014;

(93) La Constitution naturelle, Paris, Buenos Books International, 2014;

(94) Direitos Fundamentais. Fundamentos e Direitos Sociais, Lisboa,


Quid Juris, 2014;

(95) Desvendar o Direito. Iniciação ao Saber Jurídico, Lisboa, Quid


Juris, 2014;

(96) Republic: Law & Culture, Saarbruecken, Lambert Academic Publishing,


2014.

(35 b) Política Mínima, nova edição (3.ª), com Prefácio de Adriano Moreira,
Lisboa, Quid Juris, 2014.

(39 b) Iniciação à Metodologia Jurídica, 3.ª ed., Coimbra, Almedina, 2014.

(97) Constitution et Mythe, com prefácio de François Vallançon, Quebeque,


Presses de l'Université Laval, 2014.

2015

(98) Fundamentos del Derecho. Iniciación Filosófica, Prólogo de Francisco Puy


Muñoz. Estudio Introductorio de Milagros Otero Parga, Epílogo de Santiago
Botero Gómez, Biblioteca Jurídica Americana, México, Editorial Porrúa y Red
Internacional de Juristas para la integración Americana, 2015.
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Paulo Ferreira da Cunha

(4 a) Noções Gerais de Direito, Vila Nova de Gaia, Calendário das Letras (nova
edição, em colaboração).

(86 a) Avessos do Direito. Ensaios de Crítica da Razão Jurídica, edição


portuguesa, Lisboa, Juruá, 2015, Prefácio de Lênio Streck, Apresentação de
Maria Francisca Carneiro, Posfácio de António Braz Teixeira.

(99) Political Ethics and European Constitution, Heidelberg, Springer, 2015,


Prefácio de Paulo Archer de Carvalho.

2016

(100) Palimpsesto: A Democracia. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2016 (org. em


colab. com Sérgio Aquino).

2017

(101) Direito Internacional. Raízes & Asas, Belo Horizonte, Forum, 2017,
Prefácio de Marcílio Franca e Posfácio de Sérgio Aquino.

(102) Pour une Cour Constitutionnelle Internationale, em colaboração com


Yadh Ben Achour, Oeiras, A Causa das Regras, 2017.

(103) Direito Fraterno Humanista. Novo Paradigma Jurídico, Rio de Janeiro,


G/Z, 2017.

(104) Tributo a César. Arte, Literatura & Direito. Florianópolis, Empório do


Direito, 2017.

2018

(105) Síntese de Justiça Constitucional, Oeiras, A Causa das Regras, 2018.

(106) Teoria Geral do Estado e Ciência Política, São Paulo, Saraiva, 2018.

14
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

(57 b) (57 a) Filosofia do Direito. Fundamentos, Metodologia e Teoria Geral


do Direito, 3.ª edição revista atualizada e aprofundada, Coimbra, Almedina,
2018.

Ficção e Poesia

(1) Tratado das Coisas não Fungíveis, Porto, Campo das


Letras, 2000;

(2) E Foram Muito Felizes, Porto, Caixotim, 2002;

(3) Escadas do Liceu, São Paulo, Mandruvá, 2004, Apresentação de Gilda


Naécia Maciel de Barros;

(4) Livro de Horas Vagas, São Paulo, Mandruvá, 2005, Prefácio de Jean
Lauand;

(5) Linhas Imaginárias, Dover, Buenos Books America, 2013, com um Prólogo
de José Calvo;

(6) Caderno Permitido, Lisboa, A Causa das Regras, 2014.

(7) Relatório sem Contas, Oeiras, A Causa das Regras, 2017.

(8) Estado das Cidades, A Causa das Regras, 2018.

15
A quem, pelo Mundo fora,
estuda e trabalha pela Ética, pelo Direito,
pela Justiça, e pelos Direitos Humanos.

Ou, por outras palavras, luta pela Liberdade,


pela Igualdade e pela Fraternidade.

17
“Não se lhe pede que deixe
de ser jurista; apenas que, sendo-o,
vá acreditar que a sua missão é mais
ampla e mais digna que a de prestar
homenagem passiva a tudo aquilo
que se fornece como sendo direito.”

Rogério Guilherme Ehrhardt


Soares – Direito Público e
Sociedade Técnica, p. 186.

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Plano Geral
Introdução
Reflexão sobre uma Teoria Geral do Direito
Livro I
Em Demanda do Direito: Iniciação ao Saber Jurídico
Parte I. Desvendar o Direito: Crítica do(s) Dogmatismo(s), Senso
Comum e Preconceito(s).
Parte II. Fenomenologia: Imagens e perspetivas do Direito.
Parte III. Epistemologia Geral: O Direito como realidade
científica, cultural e espiritual. Interdisciplinaridades e Pós-
Disciplinaridade. Paradigmas Jurídicos. Novos Paradigmas.

Livro II
Vetores Fundamentais para uma Teoria Geral do Direito
Parte I. Filosofia: De uma noção descritiva de Direito às tópicas
axiológica e sociológica. A Justiça e o Direito.
Parte II. Semiótica: Signos jurídicos
Parte III. Dinâmica: Dimensões e Funções, Valores, Princípios e
Fins do Direito
Parte IV. Axiologia: Fundamento(s), Fim(ns), e Princípios
(fundamentais) do Direito
Parte V. Linguística: Aceções do termo 'Direito'
Parte VI. Metodologia: Fontes de Direito

21
Parte VII. Epistemologia especial: Ramos de Direito e Disciplinas
afins. As Ciências Jurídicas Humanísticas.
Parte VIII. Geografia: Pluralidade de Ordens Jurídicas e
Comparação de Direitos
Parte IX. Sociologia: O Direito e a sua Circunstância: História,
Ordens Sociais Normativas, Política, Estado

Livro III
Teoria Geral da Norma Jurídica
Parte I. A Norma e o Direito
Parte II. Classificação das Normas Jurídicas

Livro IV
Hermenêutica: da interpretação /integração à perspetivação
holística
Parte I. Aplicação do Direito e Hermenêutica
Parte II. Para uma Hermenêutica: entre o passado e o futuro
Parte III. Hierarquias hermenêuticas
Parte IV. Conceitos Basilares
Final
Bibliografia
Índice geral

22
Introdução
Reflexão sobre uma Teoria Geral do Direito

Este livro pretende dar uma panorâmica geral e introdutória


do Direito, adotando como ponto de mira uma das formas de o
abordar e entender, a sua Teoria Geral (outras haveria, claro). E
assume-se propositadamente como sintético e crítico.
Ao contrário de muitas obras jurídicas, ele declara desde já
que não é um trabalho (mais ou menos alienada ou
hipocritamente) inócuo, que não pretende fazer crer que existiria
uma pura Ciência do Direito, pronta e acabada, a ditar de cátedra.
Essas pretensas empresas dogmáticas são, em geral, positivistas,
normativistas, legalistas, sistemáticas, logicistas, monistas (tudo
conceitos que referiremos a seu tempo), adeptas do
ensimesmamento jurídico contra a interdisciplinaridade (nem
sonhando sequer com a pós-disciplinaridade), etc.. São assim
perspetivas muito localizadas. Até ideologicamente localizadas,
muitas vezes.
Na verdade, muitos não dizem quais as conceções
profundas que determinam a sua doutrina, determinante, por seu
turno, da sua exposição. Pelo contrário, declaramo-nos desde já
como um neojusnaturalista crítico (pluralista, portanto, na ontologia
jurídica), adepto do pensamento tópico-problemático, buscando a
Justiça no caso concreto, desconfiando de sistemas e lógicas
abstratas e de uma conceção dogmática. E em tese adepto do
judicialismo, mas muito de prevenção contra a subjetividade de um
23
Paulo Ferreira da Cunha

novo “direito livre”, e entusiasta do diálogo do Direito com outras


realidades, disciplinas e artes, nessa já aludida nova visão do
diálogo das “ciências”, a pós-disciplinaridade. Adepto, finalmente,
de uma mudança de paradigma jurídico, pelos Direitos Humanos e
para um Direito Fraterno Humanista.
Evidentemente, todos ou quase todos serão conceitos novos
para quem se inicia nestas lides; mas esta obra fornecerá, espera-se,
material suficiente, e suficientemente imparcial (sem prescindir da
posição que declaramos já) para que se aquilate do que está em
jogo.
Os tempos que vivemos não são nada de molde a
promover o pensamento crítico, a criatividade, mesmo a liberdade
de expressão. Por toda a parte assistimos a preconceitos, volta de
obscurantismos e mesmo manifestações de ódio e agressão. O
Direito é encarado por muitos como um empecilho aos seus
projetos e desejos, ou então um instrumento do seu poder. Pura e
simplesmente. A educação (que hoje se faz – ou não – nos media,
na escola e em casa) que se desenvolveu em muitos países não foi
de molde a estimular algumas atitudes de amor à democracia e de
respeito pelas Constituições, pelas Declarações Internacionais de
Direitos, e de dedicação ao estudo e ao trabalho. Há uma grande
onda de alienação a pairar pelos Estado de Direito democráticos, o
que é um perigo para a liberdade, a dignidade e a segurança de
todos.
Neste contexto, ensinar Direito bem e com noção do
essencial não é também um dever cívico e um imperativo ético.
Por isso, se procurará aqui falar de coisas que reputamos
importantes: dotando o leitor de um arcaboiço técnico
indispensável, mas não ficando por uma técnica insípida, não
discutida, e, assim, alienante.

24
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

Explicitando: o conhecimento que aqui se visa não é ainda


o mais profundo, o filosófico, o do frontão do templo grego que
mandava, como depois Sócrates, "conhecer-se a si mesmo".
Procura-se conhecer o Direito, mas em grande medida pelas suas
manifestações, sobretudo pelo seu modo-de-ser, só um pouco se
adentrando esta obra no ser-em-si e no seu dever-ser, que são
questões mais profundas. Mas não prescindindo, como muitos
fazem, de colocar alguns problemas mais sérios e muito para além
do simples decorar (sem sentido e contexto) de saberes de pronto-
a-consumir. Não será uma obra facilitista: tentamos o máximo de
simplicidade possível, sem vulgarização, o que seria incompatível
com o público universitário a que principalmente se destina este
texto. Fazê-lo mais curto era impossível, porque as questões
precisam de ser explicadas, não meramente apresentadas prontas e
indiscutíveis para memorização.
Embora não se trate de um livro de Filosofia do Direito,
matéria que visa aprofundar mais o ser e o dever-ser desta área
(nomeadamente na sua complexa relação com a Justiça), visa-se, na
verdade, conhecer não pela aplicação superficial de um verniz,
demão efémera de conhecimentos fugazes, logo caídos no
esquecimento, mas através da compreensão dos problemas básicos,
por um processo de incorporação, que implica adesão e interesse,
jamais simples adição de adjacências, de próteses. "Não se deve
justapor o saber à alma, é preciso que ela o incorpore", anotou
Montaigne, nos seus Ensaios.
Não é, contudo, ainda da busca de essências que se trata,
mas é algo mais que o saber puramente memorizado, acrítico, de
um "conhecedor" ausente e abúlico.
Não se trata aqui, portanto, de um processo de descida às
profundezas da alma do Direito, mas procura-se mais que o
desconjuntado e imprestável decorar de uns quantos artigos que
podem ser revogados já amanhã. Não é saber conhecer dados
25
Paulo Ferreira da Cunha

simplesmente exteriores e estatísticos, superficiais, sobre o Direito1.


Não é também escavar arqueologicamente nos escaninhos mais
longínquos do seu psiquismo ou da sua alma — tarefa psiquiátrica
ou metafísica que se não compadece com a brevidade e tipo de
aproximação do nosso estudo.
Há um meio termo. Nem só saber o nome do Direito e
que a sua cor é vermelha, que mora em tribunais e cátedras,
cartórios e repartições, assembleias e gabinetes, que se pesa em
balanças, e não se lhe sabe a cor dos olhos porque a Justiça, se não
é cega, por vezes usaria uma venda (hoje praticamente se sabe que
tal não ocorreu originalmente) ou dirigia o olhar aos Céus. É esse
meio termo que procurámos, com concisão e simplicidade.
A primeira tarefa a empreender no estudo do Direito é o
de desfazermos as ideias-feitas que muitas vezes erroneamente
vamos alimentando a seu propósito. E de algumas coisas que
rodeiam este saber e atividade. Quantos o confundem com
burocracia, polícia, política, moral, religião, ou outras coisas ainda!
Quantas distorções para a compreensão global do mesmo podem
produzir os conhecimentos dispersos de regulamentações
parcelares de certas condutas ou atividades, ou a memória deste ou
daquele contacto (normalmente traumatizante) com as instituições
jurídicas ou judiciárias! Portanto, há que considerar, no primeiro
momento, a desilusão ou, de todo o modo, o choque da
apresentação:" Ah, é isto o 'Direito'?" — pode ser a nossa imediata
exclamação interior.

1
As pessoas crescidas gostam de números. Quando lhes falais de um novo
amigo nunca perguntam o essencial. Nunca vos dizem: 'Como é a fala dele?
Quais os seus jogos prediletos? Coleciona borboletas?' Perguntam: 'Que idade
tem? Quantos irmãos são? Quanto pesa? Quanto é que o pai ganha?' E só
julgam que o conhecem depois disto (...) São assim. Não se deve querer-lhes
mal. As crianças devem ser indulgentes para com as pessoas crescidas. Mas
claro, nós que compreendemos a vida não ligamos importância aos números."
SAINT-EXUPÉRY, Antoine de — O Principezinho, 6.ª ed., trad. port., de Alice
Gomes, Lisboa, Editorial Aster, s/d, pp. 19-20.
26
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

Os alemães cunharam para certo tipo de indivíduos,


criminosos incorrigíveis, relapsos e impenitentes, uma palavra
esclarecedora: a Rechtsfeindschaft — "a inimizade pelo Direito",
qualidade de que seriam portadores, ou que essencialmente os
definiria. Mas também decerto a haverá entre aqueles que, sendo
obrigados a estudá-lo, não ganham o gosto de o fazerem. Livremo-
nos disso, porém. Vamos a princípio ter dificuldades, vamos
deparar com palavras e conceitos novos, um tipo diverso de forma
mentis ("forma mental"), vamos decerto ler este livro e precisar de
voltar ao princípio para, então cabalmente o entendermos. Mas só
se gosta do que se conhece, e só se ama o que se conhece bem. É
esse aviso que precisa de ser feito: só no fim estamos preparados
para começar. É em tudo assim, quiçá com a própria vida. "Se eu
soubesse o que sei hoje..." — ouve-se tão repetidamente. Não
tenhamos, pois, receio de abrir as portas do templo arcano do
Direito. Há salas obscuras, decorações estranhas, a princípio.
Quando o tivermos visitado, então, já será fácil encontrar a saída e
entender o significado do que à primeira vista não
compreendêramos. Há fios (e plurais, não um único) para
encontrar a saída do labirinto da juridicidade.
Vamos, pois, fazer uma visita guiada ao Direito, mas os
guias são de desconfiar: já sabem a história de cor. O trabalho
pessoal do visitante é indispensável. Vamos entrar na casa do
Direito, para depois sair — não nos prenderemos ao mobiliário,
nem nos transformaremos em peças dele: daí o distanciamento a
manter. Mas quando regressarmos ao puro ar não jurídico da nossa
vida normal, não olvidaremos essa visita fantástica, e saberemos
reconhecer Direito no "proibido pisar a relva", que vai
desaparecendo, e no imposto sobre o consumo de ar ou de espaço,
que poderá vir a surgir.
Acima de tudo, porém, porque reconhecemos o nosso
velho conhecido, estaremos aptos a encarar as suas metamorfoses,

27
Paulo Ferreira da Cunha

a entendê-lo e, eventualmente a melhorá-lo, tornando-o mais igual


a si, isto é, ao seu ideal de Justiça. Não é isso que fazemos com os
amigos, aqueles que realmente conhecemos? E aí teremos a
Rechtsfreundschaft, a amizade pelo Direito.
Visa-se, pois, que o conhecimento do mundo jurídico dele
aproxime e não afaste. E visa-se que essa amizade seja como as
boas amizades da vida: não concordância sistemática, mas
capacidade de crítica, mesmo dizendo umas verdades incómodas,
por vezes, mas tudo para que o nosso amigo ou amiga se possa
melhorar. Não pode haver amizades acríticas. O gosto pelo Direito
também tem de ser assim: a própria ideia da existência do Direito e
não da lei do mais forte, é uma tranquilidade e uma segurança, é
um adquirido civilizacional. Mas isso não significa que não
tenhamos que trabalhar por um Direito cada vez mais Justo.
Temos sempre muito caminho à nossa frente. A Justiça, como
veremos, é uma “constante e perpétua vontade”. Nunca estará
completa, nunca será inteiramente alcançada. Porém, há que
percorrer mais caminho, persegui-la sempre. E nunca retroceder...

Porto, 15 outubro de 2018

28
Fontes e Agradecimentos

Este livro recorda, em palimpsesto, os esgotadíssimos


Introdução à Teoria do Direito e Princípios de Direito
(principalmente o primeiro, que começa por seguir), editados pela
Rés há uns trinta anos, assim como partes dos nossos Tópicos
Jurídicos, com a chancela da Asa, de alguns anos depois, e
igualmente esgotado. Apresenta também intertextualidades com
um dicionário de metodologia jurídica que projetamos editar no
Brasil futuramente. Retoma um artigo publicado aí na revista
“Opinião Jurídica”, de Fortaleza, sobre fontes de Direito, que por
seu turno já tinha fontes portuguesas. E é “primo” mental, embora
não tenha coincidências literais, com Desvendar o Direito, da Quid
Juris, para que nos permitimos remeter para desenvolvimento de
alguns temas mais teóricos. Certamente que a grande obra que
melhor complementará a parte mais filosófica, metodológica e
teórica será a recente terceira edição da nossa Filosofia do Direito,
publicada pela Almedina. Para este livro também se fazem algumas
remissões.
Esta é, pois, uma obra nova e autónoma, apesar das
muitas “intertextualidades” daqui e dali como pano de fundo: tudo
totalmente se repensou, atualizou, refundiu, e aditou. Tem ela um
projeto diverso dos anteriores (e sobretudo por vezes muda de
perspetiva ou opinião em matérias importantes), e a sua lição é,
tudo resumido, muito mais moderna que a dos referidos livros.
Estamos perante uma síntese crítica (e estes dois vocábulos, quer
separada quer conjuntamente, têm um denso significado) de uma
Teoria Geral do Direito vista em termos muito abrangentes. Em
todo o caso, recordámos Paul Valéry: le lion est fait de mouton
assimilé.
29
Paulo Ferreira da Cunha

A todos os editores dos referidos estudos se agradece.


À editora desta obra, Dr.ª Alexandra Martins, o nosso
muito obrigado por todo o esforço, cuidado e eficiência na edição
deste trabalho.
À Senhora Prof. Doutora Flávia Leite, da Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e ao Prof. Doutor Álvaro
Oxley Rocha, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul, pelas sugestões que deram no processo de elaboração da
dedicatória, cujo resultado acabou por ser bastante eclético, e
obviamente apenas da minha responsabilidade.
Ao Dr. Rodrigo Rocha Andrade, Assistente da Faculdade
de Direito da Universidade do Porto, um bem-haja pela ajuda na
confirmação de algumas referências legislativas, que num par de
horas de trabalho conjunto fez adiantar muito o nosso trabalho.
Last but not the least, um agradecimento ao Senhor Prof.
Doutor João Relvão Caetano, Pró-Reitor da Universidade Aberta,
sem cujo incitamento à publicação desta obra ela certamente iria
demorar anos a concretizar-se.

30
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

Abreviaturas:

C.A. — Código Administrativo


C.C. — Código Civil
C. Com. — Código Comercial
CP – Código Penal
CRP — Constituição da República Portuguesa
D — Digesto
ETIJ — Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça

31
Livro I
EM DEMANDA DO DIREITO:
INICIAÇÃO AO SABER JURÍDICO

Sumário:
Parte I
Desvendar o Direito:
Crítica do(s) Dogmatismo(s), Senso Comum e Preconceito(s).
Parte II
Fenomenologia:
Imagens e perspetivas do Direito
Parte III
Epistemologia Geral
O Direito como realidade científica, cultural e espiritual.
Interdisciplinaridades e Pós-Disciplinaridade. Paradigmas
Jurídicos. Novos Paradigmas.

33
Parte I
Desvendar o Direito:
Crítica do(s) Dogmatismo(s),
Senso Comum e Preconceito(s).

Sumário:

1.Crítica do Dogmatismo e Senso Comum

2.Bom Senso: Uma Apologia

3.Preconceitos
4.Introduções ao Direito e Alienação

35
1.Crítica do Dogmatismo e Senso Comum

Saber Direito não é ter decorado uma descrição do


funcionamento das instituições, um conjunto de leis, e pouco mais
– o que já é muito. Para se ser jurista é preciso ter adquirido um
espírito, que é feito de cultura, subtileza, finura, argúcia, bom
senso, equilíbrio, moderação, flexibilidade... E sensibilidade social.

Bom jurista nunca é um armazém ambulante de normas,


sentenças ou teorias, um ingénuo com boas intenções, mas alheio à
realidade do mundo. O Direito existe para regular coisas que, pelo
seu contributo, devem funcionar bem (embora nem sempre tal
ocorra), mas existe muito, também, pelo facto de existirem
violações das regras, perpetradas por pessoas menos honestas,
menos sociais, menos conformes com os valores. Não vivemos
num mundo de anjos, e por isso é necessário redobradamente que
o Direito arbitre conflitos e, no limite, puna os infratores. Com
inteligência e conhecimento da alma humana e do funcionamento
da sociedade, não com a sanha punitivista de alguns,
profundamente afetados pelo medo ou pela sede de vingança. Não,
o Direito não é retaliação, não é máquina de punir. É uma
“medicina da cultura”, e antes de mais uma medicina preventiva.

De qualquer forma, o Direito não é para amadores, nem


um jogo de polícias e ladrões, e muito menos um sistema ou
estrutura abstrato para puro deleite do espírito. É algo de muito
prático e real, num mundo complexo, agressivo, mutável, e em
grande medida enganador, pelos processos de ideologização,
discurso legitimador (em que o próprio Direito, muitas vezes, se
integra), alienação. Nem tudo o que no mundo parece, é

37
Paulo Ferreira da Cunha

(demasiadas fake news! Mas não só). E o Direito precisa de não se


deixar iludir. Ele pressupõe verdade, não “pós-verdade”.

O jurista, ou aprendiz de jurista, tem de treinar a sua


desconfiança nas aparências. E as aparências sociais são muito
convincentes, e adormecedoras do espírito crítico. Como as
pessoas, mesmo cultas, mesmo inteligentes, se não tiverem um
pouco de esperteza e subtileza, são completamente manipuladas!...
É sempre tempo de dizer, como no poema de José Régio, "Sei que
não vou por aí!".

O aprendiz de jurista não pode ser nunca "Maria vai com


as outras... Ou Manel vai com os outros..." Tem de desconfiar das
facilidades e dos lugares comuns. Do próprio senso comum, que
não é o mesmo que bom senso.

Deve submeter toda a banalidade quotidiana, mesmo a


jurídica, aos ácidos crítico e cínico. Como grandes juristas
recomendavam2.

É curioso que, sob o impacto certamente do complexo do


(pós)modernismo e do politicamente correto, neste caminho de
descaminho educativo confluem muitos inteligentes e bem-
intencionados, tanto das esquerdas como das direitas. Dir-se-ia que
há, entre os clercs, uma grande sintonia, para além da ideologia. O
que é mau, muito mau sinal, dado que noutros aspetos o agonismo
é total, e aparentemente cada vez maior. Apesar de que “velhas
direitas” e “velhas esquerdas” (se democráticas), porque
comungando de algum legado “clássico”, possam ser ainda reduto
de qualidade, e de algum bom senso… mas as engenharias sociais
educativas não são de velhas esquerdas nem direitas, são dos que
nasceram ontem, repudiaram os legados das suas próprias famílias
2
Desenvolvemos estas questões no nosso livro Desvendar o Direito, Lisboa,
Quid Juris, 2014.
38
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

políticas, e cuidam que vão erigir o novo templo em dois dias (três
era muito)… Ignorância muito perigosa.
O elitismo (mas um elitismo muitas vezes oligárquico:
curioso, mas poderá dizer-se que as verdadeiras elites não são
elitistas) é a regra real, por detrás de uma apregoada
democratização, para Inglês ver: como os melhores sobrevivem até
a este sistema (felizmente: na verdade os melhores são capazes de
muita adaptabilidade…), alguns deles julgam que o sistema é em si
bom. Aliás, pintam-lhe as alternativas de cores tenebrosas...
Há prioridades educativas. Deve haver essas prioridades.
Por exemplo: mesmo na simples alfabetização se pode e deve
ensinar Cidadania e a Constituição (veja-se o papel do jovem
advogado por um tempo mestre escola – James Stewart – no
“Oeste selvagem” no filme The man who shot Liberty Valance3).
Seria preciso pensar bem programas mobilizadores das sociedades
(não apenas descarregar sobre os professores) contra a falta de
informação fundamental (cultura geral, orientação no mundo,
coisas básicas e úteis, no sentido mais profundo de utilidade...) e
contra a falta de sentido crítico, além de falta de formação ética.
Este laxismo, este absentismo educativo, são também
elitistas. Nem todas as crianças e adolescentes têm a sorte de ter
exemplos claros e próximos de grande informação, de grande
discernimento contra a propaganda e a consequente alienação. E
nem sequer abundam oportunidades (em famílias onde, cada vez
mais, os seus membros mal se veem entre si, pela premência de
trabalho cada vez mais absorvente dos pais), de se poder aprender
com óbvios e marcantes exemplos familiares de rigor e coerência
éticas. Nem sequer um mínimo de boas maneiras, um mínimo de
convivência social se está a passar aos mais novos. O desprezo pela

3
John Ford, EUA, 1962 (filme cujo título tem sido deficientemente traduzido,
por vezes).
39
Paulo Ferreira da Cunha

dignidade, liberdade, vida e pela propriedade alheias está a crescer


em muitas sociedades. Isso repercute no Direito, claro.
Com a Internet, facilmente se propalam erros, inverdades,
confusões, ódios verrinosos, manipulações, ingenuidades, e se
confisca tempo e disponibilidade para coisas que interessariam.
Obviamente tem este Brave new world muitas coisas positivas, mas
só para quem já sabe, como lembrou não muito antes de nos
deixar o grande intelectual italiano Umberto Eco.
Cremos que é necessária uma desperta preocupação das
forças vivas, nos vários Países, com o futuro da Civilização "as we
know it", como diriam os Ingleses. Há conhecimentos, valores,
princípios, regras básicas que não estamos a passar de forma
alguma às novas gerações. E não se acredite que eles vão poder
inventar tudo de novo. Somos anões aos ombros de gigantes, como
dizia o filósofo francês Bernardo de Chartres. O problema grave é
quando não conseguimos saltar-lhes para os ombros...

2.Bom Senso: Uma Apologia


Boa parte das discussões que tanto inflamam alguns nos
tempos que correm não seriam imagináveis sequer em tempos de
maior realismo, de mais pés no chão, menor imprudência e
fantasia tresloucada e vontade de inventar, de ser original, de ficar
na História (sem capacidade e valor para tanto, porém).
Alguns juristas foram tomados pelo vírus da “modernice”
(não da Modernidade) e afanam-se a cogitar e propalar surpresas
para épater le bourgeois, que normalmente estão cobertas de muita
ingenuidade. Ainda que algumas não seja ao burguês que
espantem, e outras possam parecer um pouco simplórias (e nem
sequer sê-lo: há novidades rebuscadas, tortuosas). Não se pode

40
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

dizer que isso sejam tendências contemporâneas do Direito (ou da


Política).
A colocação em prática de algumas novidades inicialmente
entusiasmantes e generosas (como o próprio ativismo judicial e o
neoconstitucionalismo, ao menos nas suas versões moderadas mais
iniciais) não se está a revelar nem simples nem unívoca nos
resultados. E em certas situações pode fazer lembrar esses tempos
do Ancien Régime, em que se pedia a Deus que livrasse as pessoas
da “équité des parlements”. E mais exemplos haveria...
Recordemos as palavras de François Vallançon, remetendo
aliás para Michel Villey: “(..) é menos juiz quem diz o Direito que a
Justiça da sua sentença que faz dele um juiz. O judex latino remete-
se ao jus, à juridictio, à condição expressa de relacionar o jus e a
jurisdictio à Justiça. Uma faca que não corta não é uma faca, diz
São Tomás, frequentemente citado por Michel Villey. Da mesma
forma, uma lei injusta não é uma lei. Igualmente, um juiz que não
atribui a cada um dos seus concidadãos a sua parte, suum cuique
tribuere, não é um juiz.”4
No fundo, há muita razão no adágio que diz, na prática, a
teoria é outra...
Participar em muitas dessas discussões hodiernas sobre
Direito, Política e Religião (tudo mesclado, para mais) seria em
muitos casos colaborar com o desvio das questões realmente
importantes, e correr-se-ia sempre o risco de provar que a
insensatez por vezes anda de mãos dadas com a má educação e
mesmo com a violência. Nestes nossos tempos agitados, há
movimentos que parecem ser resgastes de causas mas que na
verdade as tomam como pretexto para exprimir ódios, e ódios
generalizados, assim como mera e pura vontade de poder.
4
VALLANÇON, François — Philosophie juridique, Paris, Studyrama, 2012, p.
386.
41
Paulo Ferreira da Cunha

Entretanto, os sonhos no Direito não se esgotaram, nem


morreram.
Pela democratização, por uma melhor Estado de Direito,
por um sistema universal de Direito, pela Constitucionalização,
continuamos a considerar que faria falta um Tribunal
Constitucional Internacional, em geral após esgotados os recursos
internos e regionais, quando os haja5. É uma das bandeiras
concretas em que se traduz o novo Direito Fraterno Humanista.
E ao nível de todo o Direito, desde logo o nacional, faz
realmente falta um novo paradigma, que se suceda ao objetivista
dos Romanos e ao subjetivista tardo-medieval e moderno, que
imperou até que os Direitos Humanos começariam a justamente
perturbar a dogmática tradicional da teoria geral da relação jurídica.
O ideal seria um novo Direito mais humano em si mesmo, mais
humanista, mais fraterno, e não, como dizia o jurista que se tornou
poeta Teixeira de Pascoaes, “do aço frio das espadas”.
São projetos confluentes: o Direito Fraterno Humanista ao
nível macro-, constitucional universal, terá a sua concretização no
Tribunal Constitucional Internacional. Mas ao nível micro- há um
sem-número de mudanças a empreender. Não com o desejo de
posar para a História, mas com muita prudência e conhecimento
da realidade, dessa mesma História, das verdadeiras e poderosas
leis sociais... sondando a natureza humana…
Tempos como os que correm estão maduros para
efabulações sem os pés na terra e, ao mesmo tempo, regressos ao
passado desesperados, dos que se sentem, precisamente, a perder
o pé nesta hora, tais as fantasias que lhes são vendidas. É o
pendular movimento entre excessiva mudança, mudança sem

5
V. BEN ACHOUR, Yadh / FERREIRA DA CUNHA, Paulo — Pour une
Cour constitutionnelle internationale. Oeiras, A Causa das Regras 2018.
42
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

prudência, de um lado, e excessiva cristalização e passadismo


saudosista, do outro.
A Prudência, grande virtude dos juristas, que é irmã do
Bom Senso, exige imaginação e tradição, “raízes e asas”.
E a Universidade tem aí um enorme papel. Não pode ser
um mero museu cristalizado de velharias mortas, nem um comité
borbulhante de reivindicações inconsequentes. Mas não pode
deixar de contribuir, dentro das suas formas próprias, para
preservar legados e fazer fermentar futuros. Um são equilíbrio
entre as diversas dimensões, os diferentes tempos, as várias
propostas, servido pelo pluralismo e pelo respeito e ordem
democráticas e académicas, parece ser essencial para, em tempos
agitados, se encontrar na Universidade um local de convivência
elevada e mutuamente respeitadora, em que o diálogo
fundamentado em scientia, permita que se faça mais luz nos
debates. Mas tal, evidentemente, se se conseguir imunizar a
academia a tendências banalizadoras e ideologizantes primárias
(algumas encobertas de tanta coisa, mas que o são) que como força
da gravidade empurram todas as realidades em que tocam para
baixo. Já Adorno, na Minima Moralia6, advertia que basta uma
pessoa para que uma conversa baixe de nível sem apelo nem
agravo. E as consequências disso? Terríveis, na Universidade…
A manutenção do espírito universitário não é fácil, e a
permeabilidade do Direito a outras propostas hoje cada vez mais
sedutoras e que falam muito alto nas ágoras e calam muito fundo
nos corações não ajuda à separação das águas.
Pode-se até falar em colonização do jurídico pelo político, o
religioso, e o simplesmente sentimental, anímico, subjetivo,
passional. Só se recuperará da anomia ao menos latente (mas que

6
ADORNO, Th. W. — Minima Moralia. Reflexionen aus dem beschaedigten
Leben, Berlim / Francoforte, Suhrkamp, ed. 2001 (1.ª ed.1951).
43
Paulo Ferreira da Cunha

vai pontualmente ao menos emergindo) se se reencontrar o


necessário isolamento (Isolierung) que, na verdade, significa
autonomia do Direito. Mas agora tendo compreendido tudo o que
se passou entretanto. Não uma fuga para um deserto isolado, mas
uma redefinição do seu papel, que continua, uma coisa é certa, a
ser de intérprete, de tradutor, de pontífice (construtor de pontes,
de diálogos, de entendimentos)... que para todos compreender e
entre todos mediar necessita de se encontrar a si mesmo.
O Direito não pode isolar-se, de forma alguma, em tempos
de pós-disciplinaridade (Gonçal Mayos7). Mas a sua abertura deve
ser aduaneira. Tudo pode passar desde que obtenha passaporte e
tenha visto de entrada. Há que submeter ao menos à razão jurídica
outras propostas que seriam mero diletantismo ou sublevação…
O Direito tem um valor intrínseco. Infelizmente, há
graduados em Direito, que não gostaram nada de Direito, mas
agora parece poderem aproveitar tempos de carnavalização do
jurídico. É preciso um especial discernimento para apartar as águas
da mistificação da genialidade de desafios pós-disciplinares…

3.Preconceitos
É verdadeiramente assustador o peso que o senso comum
tem na vida das pessoas, e para mais um senso comum que não é
common sense, não é bom senso, é apenas corrente, muito
difundido, e bastante alienado.
Que o homem da rua dite os seus pensamentos e
sentimentos pelo que lhe debita a comunicação social popular e
quantas vezes manipuladora (ainda que não necessariamente
partidária, mas alinhando pelo mainstream do consumismo,

7
MAYOS SOLSONA, Gonçal — Empoderamiento y Desarollo Humano.
Actuar Local y pensar Postdisciplinarmente. In Postdisciplinariedad y Desarrollo
Humano. Entre
Pensamiento y Política, Ed. de Yanko Moyano Díaz / Saulo de Oliveira Pinto
Coelho /Gonçal Mayos Solsona, Barcelona, Red, 2014.
44
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

materialismo, hedonismo, demagogia, etc.) deplora-se muito, sabe-


se que pode vir a causar problemas a prazo (nomeadamente de
perigo para a democracia) e já está a matar a cultura, a
espiritualidade, o suplemento de alma da maioria das pessoas,
verdadeiramente formatadas. Mas, deplorando-se, sabe-se que
assim tem de ser e será enquanto as forças vivas da sociedade não
fizerem um combate cultural e espiritual, e os governos
democráticos e dos Estados de Direito (ao menos esses) não
deitarem mãos à tarefa de uma verdadeira e sistemática educação
cívica. E na verdade (não tenhamos medo das palavras) ética (ou
moral) e cívica. Não para moralismo e doutrinações, mas para
robustecer a compleição republicana das pátrias. Sem isso, cultos
simbólicos a hino e bandeira, discursos pomposos, e coisas
análogas arriscam-se, essas sim, a ser superficialidade sem contexto
e sem conteúdo, banalização ritualística comemorativista, se não
mesmo museológica e fúnebre.
Essa questão está esclarecida. Mas o que dizer dos jovens
estudantes, que passaram toda a vida nas escolas, e que, chegados à
Universidade, e mesmo estando a meio dela ou tendo-a já
frequentado (até Direito, e por quatro ou cinco anos,
eventualmente mais para mestrados, etc.), reproduzem alegremente
as coisas que todo o mundo pensa, sem verdadeiramente sobre elas
ter refletido minimente?
A colonização mental e a falta de sentido crítico são
gritantes. E assim as massas, em que se inclui essa que deveria ser
uma elite ou pré-elite (no bom sentido, não no sentido de
oligarquia) dos estudantes (e dos professores, tantas vezes –
obviamente num e noutro caso com nobres exceções), vão vogando
ao sabor dos opinion makers, e do bricolage mental que é a
autoformação num pântano de poluição comunicativa e
desinformação, tantas vezes.
Pensa-se muito por lugares-comuns, por chapas, por
clichés, que não correspondem realmente à complexidade e
matizes da realidade. Para os docentes que não leram pela cartilha
de todo o mundo, que sabem um pouco mais, chega a ser
45
Paulo Ferreira da Cunha

desalentador verem-se como anões e de espada de pau (bem mais


frágil que a de António Sérgio) perante uma montanha de
preconceitos, de falsas ou truncadas informações, todas elas
eriçadas dos espinhos do sentimentalismo à flor da pele…
Um dia pusemo-nos a pensar quais seriam os principais
preconceitos da nossa sociedade. E demos connosco (deformação
de constitucionalista) a ir direto à Constituição da República
Portuguesa, e ao artigo que fala nas discriminações proscritas
constitucionalmente: “Artigo 13.º (Princípio da igualdade) 1. Todos
os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado,
privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão
de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião,
convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica,
condição social ou orientação sexual.”
Embora sejam apenas exemplificativas, elas explicam muitas
das razões que, sem razão, se plantam na cabeça e nos corações de
pessoas (de uma forma ou de outra) vulneráveis mental e
espiritualmente, dando por vezes lugar até à prática de crimes, no
limite. No geral, são obstáculos de monta a uma cabeça
desnublada. Embora haja também que ter muito cuidado com o
inquisitorialismo da correção política, que gosta de arranjar novas
bandeiras de luta, de uma nova ideologia, totalitária em grande
medida, encontrando novos bodes expiatórios: os que fumam, os
gordos, os omnívoros, e sabe-se lá que mais… Possuídos de um
novo puritanismo sanitarista, higienista, securitário, e com clara
predileção de uns grupos frente a outros, perdendo a ideia de
República e de comunidade em geral (desde logo de Nação, Pátria,
Cultura, Civilização, Humanidade…), jogam em todo o tipo de
proibições, interditos e novos “pecados” laicos (e laicistas por
vezes) para uns, e discriminações positivas para outros.
Não se nega que não tenham razão em certas denúncias de
iniquidades passadas e atuais. E há casos e casos. A sensibilidade e
a circunstância de cada um reagem diversamente à luta contra os

46
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

casacos de peles de animais, ou à proibição das toiradas ou de


fumar. Ou a pressão para se falar e escrever de forma nova.
Há graus, há perspetivas, há dimensões diferentes,
naturalmente. Mas deve registar-se é que estes movimentos
modernos, ou pós-modernos, melhor dizendo, as mais das vezes
desenraizados cultural e historicamente (não se defende que a
tortura a animais ou excisões e afins sejam admissíveis por tradição:
de modo algum se trata disso), contribuem para a criação de uma
mentalidade militante nova, desamparada de outras dimensões, o
que é terreno úbere para extremismos. Do mesmo modo, mas
noutra clave, não se pode lutar consequentemente pela vida
colocando bombas em clínicas abortistas. E sabemos que um
radicalismo leva ao seu contrário.
O concurso de todos esses clamores, que agem com a
indignação dos escandalizados prontos a rasgar biblicamente as
vestes, e com a sanha das inquisições, num discurso agressivo e
culpabilizador, que intimida todos e apavora os mais timoratos, cria
um clima de guerra civil sui generis em que a parte visada não
consegue sequer defender-se, pois isso equivaleria a confissão de
uma culpa sem remissão...
Os preconceitos mantêm as pessoas dentro de pesados e
sombrios casulos. Imagine-se o que será um jurista (por exemplo,
um juiz que tem de julgar imparcialmente) enredado numa teia de
ideias feitas e falsas sobre grupos, pessoas, atitudes. É muito
importante distinguir valores, princípios (que devem nortear a vida
das pessoas) de meros antolhos, que prejudicam uns e favorecem
outros, ilegitimamente. E acresce que o jurista, e muito em especial
o juiz, também nem sequer pode, na melhor das intenções, julgar
de acordo “com a sua consciência”. A sua consciência é
frequentemente posicionada. Há que fazer um trabalho hercúleo
de, obviamente sem renegar as suas convicções, todo o julgador,
todo o decisor (por exemplo no governo, na administração pública,
no mundo dos negócios…), ser capaz de alguma visão panorâmica,
conversável e convivencial, pluralista.

47
Paulo Ferreira da Cunha

Não se trata de um simples ecletismo ou irenismo e muito


menos de tibieza. Trata-se de ser capaz de decidir, e no limite de
julgar, desde logo com os parâmetros objetivos da lei, do direito
vigente, etc. Mas de fazê-lo também com atenção à pluralidade de
formas de vida, de convivência, de enquadramento. Pode haver
várias vias de legalidade e de se ser justo, tal como na Casa do Pai
há várias Moradas8. Em todo o caso, em nenhuma delas reside o
ódio, o sectarismo, o dogmatismo, a violência, a exclusão, o
favoritismo, o mal que as pessoas se fazem umas às outras “por
pensamentos, palavras, atos e omissões”, por causa, afinal,
simplesmente, das suas diferenças.
Preconceito ou prejuízo, como se dizia antes, é um conceito
apressado ou um juízo prévio, antes de se dar a voz a quem vai ser
apreciado. Ora um dos principais princípios jurídicos é o de ouvir
as partes, e mais especificamente o interessado, antes de se decidir.

4.Introduções ao Direito e alienação


O estudo do Direito é uma das formas de desvendamento
da realidade institucional em que vivemos. Compreender bem o
Direito, o seu sentido, o seu papel, é um caminho importante para
não se viver na alienação, que hoje tanto nos aflige e que poderá
perder a nossa própria Civilização, que tem dificuldades em
defender a sua excelência face a cantos de sereia de barbárie. O
Direito é uma enorme razão de orgulho para a Humanidade.
Prescindir dele, ou do seu mais alto expoente até hoje, os Direitos
Humanos (como diz Francisco Puy, eles são a linguagem moderna
do Direito Natural) seria um recuo para tempos de barbárie. Amar
o Direito e defendê-lo obriga, assim, a que se conheça bem.
Reflitamos de seguida um pouco sobre o que estamos aqui
mesmo a fazer, com este livro. Pensemos sobre a diversidade dos
estudos de introdução ao Direito.

8
ÁVILA, Santa Teresa de — Moradas, trad., introd. e notas de Manuel de
Lucena, Lisboa, Assírio & Alvim, 1988.
48
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

Há muitas formas de começar a estudar o Direito. Sob a


designação genérica de "Introduções ao Direito”, mas podendo
comportar um sem número de variantes (Noções gerais de Direito,
Propedêutica Jurídica, Instituições de Direito, etc.), se abriga uma
multidão imensa e multímoda de trabalhos, cuja similitude única
parece ser andarem em torno dessa entidade chamada "Direito" e
poderem ser incluídas em tão desconexo "género literário"9 .
O grande problema é que uma introdução ao Direito tanto
pode ser alienante como contribuir para o desvendamento e a
compreensão das realidades. O Direito é, como bem referiu João
Baptista Machado, um discurso legitimador. E pode passar a ser
um discurso alienante. Cumpre desde logo às Introduções ao
Direito não dar a quem as lê ou as cursa falsas expetativas ou
ilusões sobre a realidade do Mundo e do Direito.
A nossa própria experiência docente também nos
confrontou já com semelhante disparidade, comprovadora do
carácter proteiforme da matéria em apreço. Por circunstâncias
várias solicitado a lecionar em três diferentes escolas de Ensino
Superior, com estudos dirigidos todos a alunos de formação básica
idêntica e com perspetivas profissionais não muito distanciadas,
fomos deparando com a singular situação de estar perante cadeiras
introdutórias aos estudos jurídicos que não comungavam sequer no
nome, e muito menos no conteúdo programático... Todas elas
estavam bem pensadas, assentes nos respetivos fundamentos e
possuíam indesmentível interesse e grande utilidade para os alunos.
Simplesmente eram absolutamente diversas. Como quem faz um
programa de docência ou um livro de iniciação jurídica nele
espelha a sua formação, a sua experiência, o que pensa ser o mais
9
Cf., por todos, MOULY, Christian — Crise des introductions au droit, in
"Droits - Revue Française de Théorie Juridique", n.º 4, 1986, p. 99 et sq. Neste
livro temos pressuposta a distinção Jurisprudence (ciência do direito – mas que
por vezes pode ser Filosofia do Direito também) da Legal theory (teoria do
direito}, tratando grosso modo aquela das instituições particulares da ordem
jurídica, e debruçando-se esta sobre a malha conceitual básica que define o
Direito face a outros fenómenos sociais e institucionais.
49
Paulo Ferreira da Cunha

importante para essa iniciação, vão ser necessariamente diversos os


livros e as disciplinas.
Introduzir ao Direito ou "o Direito" é tarefa deveras árdua,
ingrata, sujeita a mil escolhos e apta a suscitar um rol de maçadas
senão mesmo desgostos e desilusões. O que superiores, colegas de
docência e alunos esperam de uma tal tarefa de Hércules é muito
diferente, e se a cada cabeça não corresponderá uma sentença, daí
andaremos muito perto.
Uns acham que o ABC do Direito é a sua filosofia sem a
qual nada fará sentido; outros, que tal necessariamente passa pela
Política inspiradora ou mestra do jurídico, ou pelo Direito
Público, a começar pelo Constitucional, o primeiro da pirâmide
normativa; outros, ao contrário, querem o Direito Privado, o
primeiro a constituir-se, o mais tecnicamente apurado, o que seria
mais útil no dia-a-dia (mas outros ainda creem que já não é o
Direito Privado o mais corrente, antes sê-lo-ia o Direito
Administrativo); outros ainda, defendem o Direito Penal, o qual
faz vibrar os corações e mais sublinha os grandes problemas
éticos; outros mais desejam sobretudo metodologia jurídica geral;
outros estudo de legislação concreta; e mais outros querem uma
mescla de tudo isto, ou até algo de novo... Há para todos os
gostos.
Impossível contentar toda a gente. Fútil procurar
compatibilizar os frutos de correntes já secularmente desavindas.
Cada um apresenta o que conhece, ou julga conhecer, e
disso dá a sua imagem pessoal — a menos que plagie. As
justificações existem: cada um vê numa faceta do Direito, ou no
ângulo que dele a sua visão pode ou quer abarcar, o mais relevante
e o mais útil de tal disciplina. Por isso, depois se apressa a enaltecer
a sua própria opção.
Qual é a nossa? Nada melhor, seria para responder, que
iniciar já a leitura das laudas seguintes. Mas à guisa de cardápio,
50
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

diremos desde já que preferimos o que consideramos mais sólido e


substancial aos paladares efémeros, em que só se saboreia e nada
se digere.
Este livro é, pois, a síntese de um conjunto de reflexões
destinadas sobretudo a alunos, e a quantos, interessados pelo
Direito, dele não queiram ficar com a caricatural visão de uma lista
de características das normas jurídicas ou um catálogo de artigos
de leis que mudarão já a seguir (se não se encontram mesmo
revogadas no entretanto).
Pretende assim este volume ir desvendando o que no
Direito poderá existir de mais essencial e estável, sem esquecer,
evidentemente (mas sobretudo na perspetiva técnica — de treino —
e exemplificativa), alguns aspetos do mesmo datados e atuais,
vigentes, que se revelem de particular relevo para quem se inicia no
Direito.
Pensamos especialmente numa obra de Direito distanciada
de preconceitos etnocêntricos da disciplina (e de outros
preconceitos), embora, como será natural, não tivéssemos de
certeza escapado à deformação própria da espécie. Também
concebemos estes escritos especialmente para quem não tenha
formação jurídica prévia. Contudo, suspeitamos que não fizemos
mero exercício de repetição do consabido, havendo espalhadas
pelo texto decerto algumas coisas relativamente novas, tanto quanto
podem ser novos textos de anões, embora se pretendam aos
ombros de gigantes.

51
Parte II
Fenomenologia:
Imagens e perspetivas do Direito

Sumário:
Capítulo I
O Direito: Imagem profana e omnipresença quotidiana
Capítulo II
O Direito: imagens e visões intelectualizadas
Capítulo III
O Direito: perspetivas intra-jurídicas

53
Capítulo I
O Direito: Imagem profana e omnipresença quotidiana

1.Imagem profana: imperatividade e coercibilidade


Se perguntarmos a um leigo em matéria jurídica o que entende
por Direito, que resposta obteremos?
Cremos que, ao procurar satisfazer a nossa curiosidade, irá
acentuar sobretudo aspetos ligados inegavelmente ao problema, tais
como os de ordem, comando e também, como reverso da
medalha, os de coercibilidade (suscetibilidade de sanção a aplicar
caso os comandos ou ordens não tenham obtido o devido respeito
ou acatamento, caso sejam violadas as regras de conduta impostas).
Assim, se procurássemos caracterizar o Direito pelas suas
normas, e, nestas, estabelecer as principais características que as
definam, obteríamos desde logo, na sua apreensão pelo homem
comum, uma visão distorcida da realidade do jurídico. As
características da imperatividade e da coercibilidade seriam decerto
as mais notadas. Vê-se o Direito sobretudo como um ordenar e um
ordenar "armado", cujo incumprimento em princípio não fica
impune.

2.Ponto de consciencialização jurídica:


a violação do Direito
É na altura em que surgem violações da ordem jurídica,
perturbações na vida dos indivíduos causadas por outros
indivíduos, enfim, questões de "patologia jurídica'', que (tal como

55
Paulo Ferreira da Cunha

sucede com Santa Bárbara, padroeira das trovoadas) nos


lembramos do Direito, consciencializamos uma existência até aí
surda, pressuposta, e o chamamos a resolver a questão que nos
atormenta, ou procuramos furtar-nos às suas consequências, se
formos os responsáveis (ou como tal tidos) pela rutura com a
ordem estabelecida. Quando alguém sente que foi violado um seu
direito, ou quando se vê obrigado a cumprir determinadas regras
específicas, com obrigações muito concretamente a si dirigidas,
num dado tempo e lugar (por exemplo, declarar os seus
rendimentos, pagar os impostos que lhe incumbem), vive
agudamente a presença do Jurídico. Não que este se não manifeste
(ao menos como pano de fundo, ou entidade tutelar) noutras
ocasiões; mas será naquelas que é positivado, que incarna,
impondo uma regra.

3.O Direito protetor: a ordem jurídica


O Direito não existe apenas com esse lado, por assim dizer
menos simpático, de exigência, proibição ou imposição. Também
age como malha protetora. De facto, o mesmo cidadão que pode
protestar contra a subida dos impostos clamará decerto indignado
com o estado das estradas, e mais ainda se insurgirá caso a Polícia
lhe não proteja a propriedade por que é tributado.
O Direito, qual deus Jano de duas faces, só existe com essa
dupla faceta: onde está a comodidade, aí também o incómodo (ubi
commoda, ibi incomoda). Por outro lado, além deste aspeto
agridoce do jurídico, e até por essa característica dúplice, ele
encontra-se quase por toda a parte, e por isso muitas vezes só se vê
quando é procurado, quando se sente a sua falta. Alguém disse que
mais de metade dos argumentos dos filmes são jurídicos. E,
pensando bem, pergunta-se até se essas contas não estarão
depreciadas para o lado do Direito.

56
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

4.lnfração, Ação e Direito


Antes do direito de propriedade de Abel ter sido violado
por Beltrão, já o primeiro tinha a propriedade do seu bem — já
lhe estava o Direito atribuindo (ou reconhecendo) a propriedade,
e só por este facto é que ele, uma vez dada a dita violação, tem uma
palavra a dizer quanto ao ressarcimento do seu dano, ou à
reivindicação do seu bem. O Direito não estaria cumprindo a sua
função — suum cuique tribuere, atribuir a cada um o que é seu — se
não munisse o titular de um direito de mecanismos para o tutelar
ou proteger. Tal era o que sucedia já em Roma: quem tem um
Direito, tem possibilidade de interpor uma ação; quem pode
propor esta possui necessariamente um Direito (actio vale jus, e
vice- versa)10.
Estes dois exemplos têm algo em comum: o daquele que
só vê o lado positivo e protetor do jurídico quando este falta, e do
outro que ignora o Direito salvo quando o seu direito é violado,
assemelham-se a quantos só prezam o valor da saúde em tempo de
doença. A ordem, a justiça, e todos os sacrifícios, limitações e
incómodos que lhes são inerentes, acabam por ser um preço bem
razoável comparado com a situação inversa, da sua violação.

5.Imperatividade, infração e sanção


Voltemos a Abel e Beltrão. É claro que se o relógio de
Abel foi destruído por Beltrão e aquele interpõe uma ação contra
este, é porque a aquisição do direito de propriedade por Abel
implica para todos os demais um dever (geral) de abstenção — a
chamada ''obrigação passiva universal" (que será um elemento

Cf., todavia, as obrigações naturais (como as dívidas de jogo) - art.º 402 et sq.
10

C.C., que são uma exceção à regra.


57
Paulo Ferreira da Cunha

importante do paradigma jurídico em que ainda vivemos, o do


direito subjetivo).
No fundo, Abel, mesmo que tudo desconheça da Ciência
Jurídica, sabe isso, sabe que pode exigir um tal respeito pela sua
propriedade. Porventura não pensa nesse direito, nem nos poderes
que ele implica, muito menos nos seus fundamentos, e menos
ainda nas formas de sua garantia até ao momento preciso em que
Beltrão resolveu danificar-lhe o seu bem. Também com toda a
probabilidade não pensara em Direito aquando da compra do
mesmo: não pensara que ao comprar o seu relógio celebrava um
contrato, também ele protegido juridicamente. Bastava não ter
pago o preço, ou que o ourives (pressuponhamos que o comprou
num ourives...) lho não tivesse entregue, e aí de novo estaria a
violação, e a representação da sua existência. Sempre, nestes casos,
ou o problema da imperatividade (pagarás o imposto), ou o da
sanção (se danificares, indemnizarás).

6.Omnipresença quotidiana do Direito


Por aqui já vemos como o Direito se encontra no nosso dia-
a-dia, nos atos mais simples (e até rotineiros). Quando entramos no
autocarro e obliteramos o bilhete, quando cumprimos os sinais de
trânsito (como peões ou automobilistas...), quando, no bar da
Universidade, pedimos um café, ou na secretaria (ou pela Internet)
pagamos as propinas...
Mas quem é que, ao pedir o café do costume, pensa estar a
fazer uma proposta contratual, e ao lhe entregarem a chávena bem
quentinha, mediante o pagamento de uns cêntimos, reconhece ter-
se assim cumprido o contrato? Quem nesse momento reflete sobre
o facto de a aceitação da proposta ter sido tácita (com a entrega do

58
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

café, sem que o empregado previamente declare aceitar), e


coincidir com o cumprimento da prestação devida?
Por outro lado, quem é que, cantarolando no quarto de
banho uma bela ária de ópera, cuida estar também protegido e
tocado por questões jurídicas? E, todavia, está-o. Protegido na
sua privacidade, na sua liberdade de expressão (artística?), e
realizando uma atividade só possível pela prévia conclusão de
variadíssimos contratos : com as companhias das águas, de gaz
e/ou eletricidade, e o contrato de arrendamento ou compra e
venda da sua residência, para não falar em contratos de
menor vulto, como os de sabonete, champô, ou sais de banho.
Nem no mais escondido recanto de sua casa, "do seu Castelo",
escapa o Homem a tão omnipresente realidade.
Em todos estes casos, eis o Direito: protegendo,
organizando, instituindo regras de conduta de acordo com
princípios mais gerais (no limite, a ideia de Justiça). Nestes casos,
mais especificamente, a liberdade contratual e a necessidade de
contrapartida nos contratos sinalagmáticos (bilaterais, de mútuas
prestações). Porém, se bem virmos, já por daqui resulta como
podem os princípios ter exceções. Se ninguém é obrigado a
consumir café, nem (no limite, certamente) sequer a instalar água
ou luz em sua casa, há, contudo, uma grande diferença entre estes
contratos. Se não gostarmos do café do bar da universidade, vamos
ao estabelecimento mais próximo. Mas se a composição química
da água da companhia que nos fornece a casa nos provocar
alergias, não temos muito por onde escolher. Por outro lado, no
dito café ao lado da Universidade se formos fregueses assíduos e
simpáticos, talvez nos venham a fazer desconto; mas os contratos
de adesão, feitos com as mesmas cláusulas e para toda a gente pelas
companhias públicas ou monopolistas, não se comovem com os
nossos lindos olhos. Embora, em casos de fidelização de contratos
de telecomunicações, haja por vezes pacotes de serviços mais ou

59
Paulo Ferreira da Cunha

menos negociáveis, com o intuito de ganhar da concorrência...


Felizmente em alguns casos há-a.

7. O Direito "discreto": reconhecimento de direitos, bom


senso, natureza das coisas
O Direito tem uma importante dimensão de fisiologia,
normal funcionamento, para além da patologia, perturbação no
corpo social. Por isso é que consegue, numa omnipresença
discreta, comandar, e até impor, sem excessivamente incomodar.
Mais ainda: porque é sensato, porque se guia pelo bom senso, e
não pretende fazer das pessoas heróis, nem santos, nem sábios,
limita-se muitas vezes a estabelecer o que o comum das pessoas
aceita como natural, e naturalmente pratica já.
Não sendo um simples batismo jurídico das práticas
sociais (o que poderia levar a que condutas injustas, mas muito
expandidas socialmente, fossem tidas como Direito), o Direito,
essencialmente cumprido, numa boa medida efetivo e eficaz, está
basicamente de acordo com a natureza das coisas e a prática
quotidiana das pessoas. Por isso o seu cumprimento é mais comum
que o incumprimento, apesar de a comunicação social alarmista
enfatizar, naturalmente, as violações, os crimes, etc.

8.O Direito reconhecendo direitos e o Direito


estabelecendo papéis
Se, no caso de Abel e Beltrão e no do cantor de chuveiro,
estavam em causa direitos reais (das coisas, de propriedade), e
obrigacionais (de prestações), e ainda a tutela geral de liberdades,
direitos, garantias, há casos em que ressalta uma outra faceta do
Direito: este, para além de reconhecer ou impor direitos e deveres,

60
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

define papéis, estatutos: professor (ou aluno), pai, mãe (filho ou


filha). etc. O que de novo reconduz, é claro, a direitos e deveres,
mas tem uma dimensão mais institucional que cria uma nova
“personalidade” para as concretas pessoas envolvidas, e especifica
os seus vínculos ou relações jurídicas. O Direito determina
estatutos pessoais, por relações de família, laborais, políticas, etc.,
os quais são essenciais nos papéis desempenhados por essas
pessoas nessas circunstâncias ou facetas das suas vidas. O
comportamento de Ana como ao mesmo tempo mãe, filha, irmã,
cônjuge, é um, tem contornos determinados, o da mesma Ana
como advogada tem outros, o dela como membro da Assembleia
municipal da sua terra, outros ainda... É a mesma pessoa, mas tem
estatutos diversos, que possuem todos maior ou menor pormenor
jurídico determinado pela ordem jurídica em que se insere.
Nos nossos dias, com múltiplos estatutos que cada um de
nós tem, cada vez mais exigentes, com cada vez mais obrigações, é
complicado, desgastante, extenuante, em alguns casos
verdadeiramente impossível, desempenhar bem todos os eles, e
conseguir não estar pelo menos em falta em nenhum dos papéis
que se têm de desempenhar. Sobretudo se torna
civilizacionalmente grave esta situação, porque o Direito não está a
conseguir proteger as pessoas na sua privacidade e nos seus
estatutos de pessoa não apenas laboral das intromissões
omnipresentes da sociedade da informação e as suas tentaculares
formas de contacto e convocação. Ana é permanentemente
acordada a altas horas da noite por clientes aflitos que querem
saber novidades do seu processo... Mas há trabalhadores que são
levantados da cama pela voz omnipresente do patrão (ou do
capataz ou afim) no telemóvel quando ele acha que há trabalho
urgentíssimo na fábrica a fazer “para ontem”.
Assim, a dimensão simplesmente laboral da pessoa está a
sobrepor-se (perante um Direito agora tímido nessas matérias) a

61
Paulo Ferreira da Cunha

todas as outras, com perdas significativas no plano da família, dos


afetos, da cidadania, da cultura, e obviamente do puro lazer... Tal
acaba por criar pessoas unidimensionais, empobrecidas,
funcionalizadas, robotizadas... o que é um risco para a própria
humanidade. E quando chega o momento de votar, é natural que
não haja informação e sentido crítico para o fazer bem. O perigo
dos populismos, demagogias, e afins é real, porque é a massa que
vota, não o cidadão consciente e com uma existência individual,
com cultivo do espírito e da mente, com capacidade crítica e não
meramente laboral e, no máximo, para alguns, consumista.

9.O Direito: Facetas e Representações


Em conclusão: Imperatividade e coercibilidade são as
características do jurídico mais notadas pelo homem comum.
(Veremos ainda adiante quanto tal visão tem de limitador e até
erróneo). O Direito, porém, com múltiplas facetas, impregna o
quotidiano de todos, não só impondo e proibindo ou sancionando.
Reconhece e atribui Direitos, previne conflitos, estrutura o todo
social. Este aspeto preventivo do Direito (disciplina a que Delfim
Santos chamou a "Medicina da Cultura") é, de facto, bem menos
apercebido que esse outro, da violação e da prescrição, isto é, do
diagnóstico e da terapêutica, quando se entra numa situação "
patológica" .

10.Visões profanas do Direito e características da norma


jurídica
Como veremos aquando do tratamento das características
da norma jurídica, costumam assinalar-se-lhe as de
imperatividade, coercibilidade, generalidade (e abstração),

62
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

violabilidade, hipoteticidade, e ainda, em alguns casos, algumas


outras.
Veremos como se encontram em crise diversos destes
caracteres. Para já, importa compreender as razões que deverão ter
levado às ideias correntes que sublinhámos, para as quais o mais
impressivo nas normas jurídicas, e portanto no Direito, são
os momentos imperativo e o coercitivo.
Cada destinatário concreto de uma norma, dela tem, antes
de mais, a perceção sobretudo no momento de a violar, ou quando
outros infringem uma norma que o protegia a si. Por outro lado, os
advogados e quiçá sobretudo os juízes e procuradores conhecem
bem essa autêntica situação de cegueira de cada um dos atores da
Justiça vendo apenas o seu lado, a sua versão dos acontecimentos,
os seus interesses. De facto, de uma maneira geral, ante a violação
de um nosso direito, temos tendência a nada mais ter diante dos
olhos senão esse mesmo direito, pouco ou nada nos importando as
atenuantes ou até a falta de culpa de quem objetivamente nos
prejudicou. Veja-se, apenas como exemplo, o que sucede em quase
todos os acidentes de viação: parece que muitas vezes ninguém
reconhece ter culpa. Ora, com esta perspetiva pessoalista dos
direitos e do Direito — o que nos deve individualmente defender,
ou então o que a nós diretamente ataca ou visa (no caso de sermos
nós os demandados, quer se trate de uma obrigação fiscal, quer
sejamos réus de Direito Penal) — vê-se, como se disse, o
imperativo e a sanção. Não se tem o distanciamento necessário
para pensar nas demais características do jurídico.
Deste modo, se a norma visa todos os casos com uma dada
configuração factual (abstração), ou se se destina a todas as pessoas
que sejam protagonistas de determinados factos, ou se encontrem
em certa situação (generalidade), assim se desenhando não um
comando individual e concreto, mas de algum modo ficcionado
(hipoteticidade), tal não é em primeira análise captado ou
63
Paulo Ferreira da Cunha

apreendido por quem se vê no concreto e pessoalmente tocado


pela norma e pela sua sanção. Igualmente, ante a necessidade de
não infringir, ou de se punir o infrator, não passa muito pelo
espírito do sujeito de Direito concretamente tocado por este,
que as normas jurídicas não sejam forças irreprimíveis, ante as
quais a nossa vontade se paralisasse, sem qualquer poder de
resistência e opção. Se, muito pelo contrário, a liberdade da
Pessoa (que em certos casos classicamente assumia a forma de
“livre arbítrio”) é um dos principais fundamentos do Direito, e sem
ela seria injusto ou absurdo, por exemplo, responsabilizar ou punir
(pelo menos numa visão retributiva), tal não é desde logo visto. E
de facto, a norma jurídica é violável — cabendo aos seus
destinatários a opção pelo cumprimento, com o eventual
desprazer de não fazerem o que pretendiam (ou fazerem o que
não desejavam), ou a escolha do incumprimento, sob pena de
virem a sofrer a sanção cominada para a sua infração. Ora este
aspeto é (inconscientemente) sabido, mas muitas vezes — as mais
das vezes — não consciencializado enquanto elemento de
caracterização do Direito.

64
Capítulo II
O Direito: imagens e visões intelectualizadas

1.Da imagem profana do Direito às visões intelectualizadas


exógenas
Como vimos, na maioria dos casos, o grau de
permeabilidade à realidade "Direito" não é muito elevado. Quando
se deteta, é sobretudo sob certos aspetos mais interpelantes. Mas,
nos casos até aqui considerados, era sobretudo a realidade jurídica
como facto a estar em causa. E que dizer do jurídico enquanto
disciplina, "ciência", arte, técnica, forma de pensamento, ou valor?
Isto é: que se pensa do Direito não já ao nível da sua presença
através de individuais normas jurídicas, da sua imediatidade, mas
enquanto sistema, método, complexo normativo? Enfim, que se
pensa do Direito ao nível intelectual e do espírito, e quais as visões
mais intelectualizadas do jurídico? Ainda aqui há regras e exceções.
Porém, uma análise simplesmente "sociológica" não andaria muito
longe de ainda profundas incompreensões.
Não comecemos pelo que pensam os teóricos do Direito
acerca deste, mas pelas pessoas que o vivem e aplicam e pensam
um pouco mais. Se as grandes massas não veem o Direito senão
em casos limite, limitando-se a pressupô-lo talvez, o grupo ainda
assim vasto dos que com ele têm ou tiveram não simplesmente
esporádicas relações nem por isso o encara muito melhor. É uma
demanda complexa, esta...

65
Paulo Ferreira da Cunha

2.Saber e não-saber Direito


O carácter, ou a "imagem" do Direito para a generalidade
das pessoas, comunga de uma ambiguidade fundamental, que
perturba o seu profundo conhecimento e chega a provocar um
sentimento estranho de saber-e-não-saber, de aderir e não aderir.
Se, por um lado, nos aparece como coisa límpida e até
transparente, todos sabendo (ou julgando saber) o que é justo e
injusto, que um contrato se deve cumprir, que um homicídio é um
crime, etc., por outro, sentimo-nos inseguros ante a prepotência
da burocracia, sempre armada de esotéricos regulamentos,
desconhecemos os prazos, tememos as multas e, quando abrimos
um livro jurídico ou entramos numa conversa com um causídico,
não podemos deixar de sentir uma certa frustração ante tanta
palavra, que obviamente mais aparenta ali estar para confundir do
que para ajudar à solução dos problemas. A fama da falta de
escrúpulos dos advogados (que se começou a transmitir a outras
profissões jurídicas, anteriormente acima de toda a suspeita) é já
velha, e não raro mesmo pessoas comummente tidas por cultas
(até porque o conceito de cultura, desde a literária, clássica, à
televisiva e internética, atual, parece nunca ter englobado o saber
do Direito) repetem esse lugar-comum absurdo (mas
compreensível na boca de profanos) segundo o qual as leis foram
feitas obscuras para ajudar ao ganha-pão dos profissionais do foro.
E acrescentam: tudo ficaria resolvido se fossem feitas poucas leis,
claras, em linguagem acessível a qualquer cidadão. Dir-se-ia
que as tábuas de Moisés só têm dez mandamentos e, contudo, já
são tão difíceis de cumprir... Por maioria de razão (a fortiori, como
se diz no Direito...) assim deveria ser para o Direito. Mas que santa
ingenuidade!... Miguel Reale mostrou que não há como fugir à
linguagem técnica, e sem ela seria o caos.

66
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

3.Noção empírica e Definição positivista legalista de Direito


Em suma, a abordagem empírica que o comum das
pessoas faz do Direito seria no fundo esta: trata-se de uma
disciplina da conduta humana imposta, normal, exigível pela
comunidade, visando a harmonia, ou ao menos a convivência
social e a Justiça, coisa no fundo simples e intuitiva, mas que
historicamente sofreu a corrupção de uma casta hereditária e/ ou
cooptativa de "especialistas", "teólogos" da "ciência jurídica", que,
como outrora os sacerdotes e os oráculos tornaram obscuro o
patente para manobrarem a seu gosto, e, afinal, explorarem o
paciente… Eis uma narrativa sedutora para alguns.
É interessante que esta noção empírica tem alguns traços
comuns (que deveremos meditar) com a definição positivista
legalista-padrão, ensinada repetidamente e de forma muitas vezes
acrítica pelo mundo fora. Para tal cliché, interiorizado por juristas
(e quiçá passada para o mundo não jurídico – e isso é ainda mais
interessante), o Direito seria um conjunto de normas e regras,
impostas coativamente pelo Estado para organização da sociedade
ou algo similar. Esta definição está plena de imperfeições,
generalização excessiva, etc.
O Direito não são só normas ou regras, nem todo ele deriva
do Estado (até porque o Direito lhe é anterior: o Estado é obra da
Modernidade), e é a sua única forma de legitimação; nem sempre o
Direito está imposto pela coação, e muitas outras ordens sociais
normativas concorrem para a ordem social... Para apenas resumir
algumas objeções a este modelo de definição positivista11.

Para maiores desenvolvimentos, cf. o nosso livro O Ponto de Arquimedes.


11

Natureza Humana, Direito Natural, Direitos Humanos, Coimbra, Almedina,


2001.
67
Paulo Ferreira da Cunha

4.Dura lex sed lex burocrático e novo Direito livre


Em todas estas ideias, empíricas ou positivistas, há algum
fundo de verdade, embora, no geral, estejam erradas. E, também
será bom dizer, existe ainda uma espécie em decadência (ou
extinção?) de indivíduos, sobretudo frequente nas repartições, para
a qual o Direito é o alfa e ómega da existência, melhor: a lei e o
regulamento esgotam a sua experiência mística, sendo veneradas
com fervor, até ao absurdo. É o tipo do homo normativus aquele
que, desconhecedor do sentido profundo do justo, talha a direito
obtusos caminhos pela via estreita da estrita previsão normativa.
Esse, porém, se crê na santidade do texto e das ordens, também
não venera os causídicos, porque podem defender diferentes
versões e interpretações do que julga ser uno, temendo ainda os
juízes, que lhes podem eventualmente dar razão.
O Direito na sua versão burocrática é um pesadelo, é o
“palácio da loucura” de Astérix. E contudo, perante tendências
dissolventes, de total informalidade (onde aliás pode nascer e
florescer corrupção), por vezes têm-se saudades desses burocratas
rigoristas, que não deixavam passar uma vírgula.
Obviamente, nem tanto ao mar, nem tanto à terra: interessa
é uma aplicação rigorosa e inteligente do Direito, com legalidade,
bom senso e sentido de Justiça. Não é fácil, e por isso uns agarram-
se à dura lex, sed lex, e outros ao amiguismo, ao compadrio, à
aplicação do Direito ad hominem. Uma espécie nova de “direito
livre”... Há ambientes em que esta cultura de favores está tão
enraizada que acham antes de mais obtusos os poucos que lhes
negam facilidades. Ora essa “bizarria” é a normalidade de quem
cultiva na prática a chamada ética republicana.

68
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

5.O 'Direito' dos outros


Para além das reações, primárias e, como vimos, profanas12
há ainda os que, de uma ótica filosófica, epistemológica ou da
banda de outras ciências, procuram julgar o Direito, e dar-lhe um
lugar no panorama dos estudos, na Enciclopédia dos saberes.
Cumpre dizer quanto a estes que, as mais das vezes, mesmo em
veste filosófico-epistemológica, não passam normalmente de
profanos, desconhecedores do Direito por dentro, e, portanto,
produzirão afirmações exógenas sobre o mesmo, mais ou menos
doiradas por expressões vagas e de importação (das suas próprias
disciplinas), repetindo-se assim confusa e pomposamente os mal-
entendidos das posições vulgares.
O entendimento que as mais das vezes alguns "cientistas
sociais" têm do Direito, sob o impacto das modas ideológicas
dominantes, é geralmente já maçador de tão monocórdico:
mais ou menos todos dizem que se trata de um conjunto de
normas impostas pelo Poder, portanto uma forma de dominação
da classe que ocupa o poder, ou, numa visão vizinha desta, mas
mais "culturalista", afirmam tratar-se como que de comandos morais
cristalizados em condutas sancionáveis, isto é, dotados de
coercibilidade (que lhes é conferida pelo Poder – voltamos à

12
Embora quer o homem comum, quer o burocrata se considerem por vezes
muito versados em Direito — aí residindo uma curiosa diferença face a outras
ciências. Quem discute as equações do matemático, ou os átomos do Físico?
Contudo, qualquer um pode pretender dar a última palavra em fins das penas
e política criminal, fórmulas de partilha da herança ou cumprimento de
contratos. Uma das características do Direito é ter o flanco aberto a uma
discussão excessivamente profana e profanadora. E hoje mais do que nunca
todos querem opinar ideologicamente sobre como deverá ser, sendo de registar
uma agressividade punitivista por parte de alguns, que gostariam de mandar
prender, torturar, decepar, alguns outros, nem sempre infratores, nem sempre
criminosos, pelo menos à luz das leis atuais. O Direito tem de se defender
contra os “achismos” de pessoas feridas, magoadas, pretensos doutrinadores e
gurus sociais, visionários, profetas que agora se pretendem armados contra os
impuros, infiéis, etc. Estão a revelar-se muitos elementos anti-pluralistas e
totalitários nas nossas sociedades ainda macro-democráticas, mas em risco.
69
Paulo Ferreira da Cunha

conceção anterior), tudo isso derivando de uma infraestrutura


económica que segrega tal superestrutura como o fígado faz à bílis.
Na verdade, acaba por ser uma outra versão da definição
positivista legalista, tingida de uma aproximação ideológica, com
remissões sociológicas, antropológicas, politológicas ou afins.
Acaba por ser uma perspetiva mais enriquecedora que a
olímpica serenidade da definição legalista, porque mais
desvendadora. Porém, corre o risco de se bastar a si mesma, como
chavão, e acabar por não ter o efeito que poderia alcançar.

6. Do “Direito dos Juristas” a uma visão compreensiva


Todas as visões parcelares se encontram inquinadas,
embora seja também de meditar sobre esta questão que
imediatamente surge, depois de as afastarmos: como pode o
jurista ele próprio pensar a sua área sem cair em argumentos pro
domo sua, sem se alienar, sem fazer inevitável etnocentrismo
disciplinar? E sem se deixar fascinar pelas seduções de outras
áreas, desde logo as que estiverem na moda. Havendo modas de
todo um bloco epistemológico (como foi o caso da História, ou da
Economia), ou modas de certos preconceitos pontuais (destas e
doutras disciplinas, sobretudo Ciências Sociais), que normalmente
execram e estigmatizam as posições contrárias como sendo erros,
obscurantismos, preconceitos, e afins, em nada contribuindo para a
cientificidade das respetivas áreas. E engendrando o ódio que às
próprias ciências têm alguns ideólogos que elas (ou os seus
cultores) contrariam: quer com rigor, quer com ideologia. E neste
ódio vai a Filosofia e a Cultura toda...
Mas voltemos à condição epistemológica do jurista face aos
demais.

70
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

O problema é uma espécie de círculo vicioso. Os outros


não podem perceber o Direito, porque estão fora dele (dele não
possuem a experiência), os juristas também não, porque dentro (e a
sua experiência condiciona a respetiva perceção). Há, porém,
quem esteja dentro e fora.
Julgamos serem os juristas com preocupações culturais e
filosóficas (lato sensu), e os que, não sendo juristas de profissão,
tenham podido penetrar no âmago do conhecer, agir e viver
jurídicos, tendo também outros conhecimentos laterais que os
ajudem a entender (e enquadrar no mundo do saber e do ser) a
realidade jurídica, os mais aptos para dela se aperceberem
cabalmente.
Ora tal nem sequer é muito difícil de encontrar. O Direito,
apesar de um tanto esquecido pelas culturas oficiais e de massas,
possui mesmo assim um lugar de eleição no âmbito das realidades
científicas, culturais e espirituais, estabelecendo com as demais
relações e diálogos deveras interessantes, e até arrebatadores. Já de
seguida, porém, cumpre encetar uma rápida abordagem das
principais visões jurídicas do Direito.

71
Capítulo III
O Direito: perspetivas intra-jurídicas

1.Autognose Jurídica
Enquanto o homem comum, o burocrata, o intelectual, o
militante político, o sociólogo ou o antropólogo encaram o Direito
vendo nele um aspeto obsidiante (imperatividade-sanção, ordem,
incómodo-repressão-polícia, ou imposição da “lei e ordem”
(conforme os estereótipos ideológicos), poder, facto social,
artefacto cultural), exigir-se-ia que o Direito se visse a si mesmo na
sua pluridimensionalidade, compreensivamente. Enquanto os
cultores de outras disciplinas (v.g. o nosso sociólogo ou
antropólogo) o olham com as lunetas próprias dos seus objeto e
método, reduzindo-o a quid entre vários, parte da sociedade ou do
sistema social, ou das instituições, ou uma resposta entre outras à
limitação do meio natural e da constituição psicossomática do
bicho-homem, ao olhar-se ao espelho o Direito deveria ver o seu
retrato de corpo inteiro, radiografar-se e assim conhecer -se.
Nesta tentativa para o Direito se conhecer, múltiplos têm
sido os caminhos propostos ao longo da sua história, já longa, a
cada qual correspondendo uma corrente jurídica (ou filosófico-
jurídica). Não cabe aqui esse tipo de levantamento13.
Apenas se deverá realçar que as teorias andam
normalmente na oscilação entre diversos reducionismos (vistas

Para mais desenvolvimentos, cf. o nosso Filosofia do Direito. Fundamentos,


13

Metodologia e Teoria Geral do Direito, 3.ª edição, revista atualizada e


aprofundada, Coimbra, Almedina, 2018.
72
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

parciais do espelho em que o jurídico se pretende mirar),


além de que sempre mais ou menos se vão mesclando
com perspetivas provenientes de zonas não jurídicas como pano
de fundo do novo retrato do Direito. Por vezes, procura-se arredar
deste o que a ele não pertença, como na Teoria Pura do
Direito de Kelsen14, mas tais purificações deixam normalmente
entrar pela janela o que se haviam obstinado a fazer sair pela porta:
novas contaminações, lógicas, políticas, metodológicas, etc. No caso
de Kelsen, muito execrado no plano jurisfilosófico e olvidado no
plano constitucional (em que foi um pioneiro, criador da solução –
excelente – dos tribunais constitucionais), a sua teoria acabou por
confundir Direito e Estado, contradizendo assim a pretendida
purificação do jurídico.
É, portanto, deveras difícil encontrar o ótimo do Direito
apenas enquanto tal. E daí o sempre renovado contributo de mais
teorizações — não só com outras perspetivas do que seja a Justiça,
como eventualmente recusando-a como fim do Direito. Em teoria,
tudo se pode dizer e desdizer — parece.

2.Visões jurídicas do Direito. Monismos e Pluralismos


Seja como for, ao longo dos tempos, sob diversos matizes,
duas posições essenciais se têm mantido na forma de encarar o
Direito: a monista, dita frequentemente positivista, e a pluralista,
que durante muito tempo se confundiu com o pensamento
jusnaturalista, mas que o transcende. Estas duas famílias de juristas,
entre si rivais, dividem os sufrágios da doutrina no mais profundo
do seu ser, e a opção por uma ou por outra é a principal distinção
ontem como hoje, para lá de divergências de pormenor.

14
KELSEN, Hans — Reine Rechtslehre, trad. port. e prefácio de João Baptista
Machado, Teoria Pura do Direito, 4.ª ed. port., Coimbra, Arménio Amado,
1976.
73
Paulo Ferreira da Cunha

A clássica oposição jusnaturalismo/positivismo é visível até


em algumas críticas correntes e comuns ao "Direito". Comecemos
por aí.
Quando, pontual ou sistematicamente, se faz a crítica do
Direito, por vezes visa-se, numa posição sempre mais ou menos
ideológica ou religiosa, atacá-lo "em si", como realidade humana
opressora ou diabólica. Porém, na maior parte das ocasiões, tem-se
na mira não o Direito em geral, mas uma experiência concreta e
localizada dele, aquela que, no dia-a-dia ou na memória (sempre
seletiva) do crítico em causa, mais impressivamente se faz sentir.
Para a maioria esmagadora dos (leigos) críticos do Direito,
este confunde-se, ao ser criticado, com os seus concretos
legisladores e aplicadores. Tal obviamente envolve uma conceção
positivista do Direito, se se operar uma total identificação do
mesmo com a sua concreta normação e aplicação. Já se o Direito
hic et nunc é julgado em nome do que ele deveria ser, por vezes tal
julgamento tem como parâmetro superior realidades a ele não
idênticas, como princípios religiosos, morais, ou ideológicos que A
ou B pensam deverem ter sido acolhidos pelo Direito (e assim não
haverá jusnaturalismo — desde que a distinção entre aquelas três
realidades e este último se consiga estabelecer), mas noutras
ocasiões o parâmetro em causa serão os princípios jurídicos de
justiça, i.e., o próprio Direito Natural (pelo menos numa sua
versão).
Para este último, é claro que ainda haveria Direito mesmo
que um devastador incêndio consumisse todos os códigos do
mundo, e reduzisse a cinzas até a mais ínfima das leis extravagantes.
As críticas em causa são muitas vezes ambíguas. Critica-se
este Direito ou o Direito? Nesta aparente subtileza reside a
distinção entre ser-se pluralista ou monista (mas, é claro, quer um
quer outro nem só críticas tecem ao jurídico ...).

74
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

3.Direito positivo, Direito vigente, Direito natural


Há, assim, independentemente de variantes definitórias e
correntes doutrinais, que reter três conceitos básicos a ter
presentes em toda a presente problemática.
Direito positivo — é o Direito que (independentemente da
sua apreciação como justo ou até como Direito, proprio sensu) tem
(ou teve) efetividade, existe em ação (ou já alguma vez a possuiu –
sendo nesse caso Direito "histórico") . Claro que pode haver partes
desse Direito que estejam em desuso, ou que “não tenham
pegado”, como se diz no Brasil de algumas leis sem aplicação
prática. Mas, em geral, o direito positivo é também vigente. O
problema que por vezes se põe é o da efetividade15.
O direito positivo engloba portanto essa zona que é objeto
da História do Direito e ainda o Direito vigente. Este último, é
apenas o que, em dado tempo e lugar, se encontra em vigor, tem
eficácia e " obriga" na época e local considerados. Já o Direito
natural não necessitaria, em tese, de concreta vigência ou
positivação. Como que paira por sobre as realidades jurídicas,
inspirando-as, julgando-as, e com elas coincidindo em boa parte,
como que nelas encarnando.
Outras correntes pluralistas (para além do jusnaturalismo)
não se baseiam propriamente num outro direito superior ao
positivo, como é o caso das teorias da justiça, da natureza das
coisas, etc..
Estabelecidos estes conceitos básicos, podemos retomar
mais esclarecidamente o fio da exposição.

15
CARBONNIER, Jean — Effectivité et ineffectivité de la règle de droit, in
“L'Année Sociologique“, 3.ª série, Paris, P.U.F., 1957-1958, p. 3 et sq..
75
Paulo Ferreira da Cunha

4. Críticas e Polémicas
Há jusnaturalistas de muitos (demasiados?) matizes16 (alguns
bem próximos do positivismo — hélas! –, outros, a resvalar para
fora do Direito, para um terreno de moral, teologia, eventualmente
política...) desde os que veem no Direito (como Hegel via no
Estado) uma espécie de divindade, ou uma forma do Homem
descobrir a sua essência (racional, por exemplo), os princípios
fundantes e ordenadores da Humanidade, até aos que falam antes
em " Direito divino", isto é, no (ou em) Direito como derivado da
vontade de Deus. Nuns, a divindade é imanente, noutros,
transcende-o, mas a absolutização permanece.
Mesmo não indo tão longe, muitos outros jusnaturalistas
pensam que falar em Direito é falar em Justiça, mas restringem-na
às forças do humano. Aliás, por exemplo, a época iluminista foi
também jusnaturalista, mas, ao contrário de muitas outras, de um
jusnaturalismo racionalista, de identificação entre natureza e razão.
Ainda no campo dos que restringem o Direito natural e a
Justiça a aspetos terrenos, não há unanimidade. Pode-se, assim,
distinguir entre uma conceção de Justiça como consciência comum
(consciência jurídica geral) de um certo tempo e lugar sobre o justo
e o injusto, e uma outra que acredite num corpus (este também
variável) de princípios constantes, imutáveis, ou fixando a tais
conceitos limites superiores, ou um conteúdo mínimo.
De todo o modo, para o Jusnaturalismo o Direito é sempre
Justiça, e não, como para os positivistas, algo de alheio ou lateral a
ela, nem, como para os "anarquistas" (hoc sensu), a própria anti-
Justiça (se para eles tal valor / conceito fizer algum sentido).

16
Cf., por todos, além da desaparecida revista “Vera Lex” da Universidade de
Columbia, dirigida por Virginia Black, ainda a síntese de TUCK, Richard —
Natural Rights Theories. Their origin and deevelopment, Cambridge,
Cambridge Univ. Press, 1979.

76
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

Os positivistas criticam frequentemente os jusnaturalistas


como ilógicos, eivados de preconceitos e pressupostos alheios ao
Direito, sobretudo de índole religiosa, moral, mas, eventualmente,
também política. A crítica, na sua versão simétrica, poderia ser
reenviada ao positivismo. Há, porém, que reconhecer que a
proximidade entre o Justo em diversas ordens normativas (moral,
Direito, religião ...) se presta, por vezes, a confusões. Mas o ponto
distintivo será sempre o mesmo: o valor do Direito é a Justiça
particular, a especificamente jurídica (como veremos). Os valores
de outras ordens normativas nem sempre nem só o serão...
Seja como for, há situações em que os extremos se tocam, e
em que os embaraçados positivistas terão, para se justificar, de
operar diversos contornos teóricos. Há situações históricas (e nem
sequer distantes no tempo) em que o positivismo se viu obrigado
a contaminar-se de pressupostos políticos ou religiosos para salvar
nuns casos uma réstia de "Justiça" que, no fundo, jamais abandona
qualquer ser humano , e, noutros, por se agarrar ao cego dura
lex, sed lex.
O Julgamento de Nuremberga é um desses casos. Como,
senão em nome de princípios extra-positivos, se poderia condenar
quem cumpria ordens, quem obedecia à lei positiva (e seria punido
se o não fizesse)? O Tribunal positivo (e fez bem) condenou em
nome daquilo a que chamamos Direito Natural, por muito que
possa custar: não havia lei que o permitisse, e se se não tratou
apenas de política, da lei do mais forte, aí esteve presente uma certa
conceção de jusnaturalismo. Mesmo princípios gerais penais como
do nullum crimen sine legge, nulla poena sine previa legge poenale,
claramente jusnaturais (mas também juspositivos) foram
postergados em homenagem ao que então se julgou ser Justiça.
A chamada "lei seca", nos EUA, também nos põe curiosos
problemas — talvez até mais impressivos para o presente assunto.
As proibições atinentes ao consumo de álcool fundam-se mais
77
Paulo Ferreira da Cunha

longinquamente no imaginário próprio de uma sociedade puritana,


de uma América que, desde a primeira colonização, se quis
querida por Deus, uma Nova Jerusalém pura, depois da corrupção
da velha. Os primeiros colonos, de acentuado pendor utopista, não
foram levianamente chamados "Pais Peregrinos". Isto significa que,
para uma visão não puramente religiosa ou moral do
jusnaturalismo, uma visão que pretenda dar a César o que é de
César (Mc. XII, 13-17; Mt. XXII, 15-22, Lc. XX, 20-26), que,
portanto, não mistura os valores das diversas instâncias
ordenadoras do social, e defenda a especificidade do jurídico, uma
tal visão terá de considerar a "lei seca" não como intrinsecamente
jurídica, mas moral, e com larga influência religiosa. Um tal
jusnaturalismo não vê na proibição total que impõe um inequívoco
e fundamental fim de Justiça, mas de pureza de costumes. O
homem, o ideal de Homem que ela visa não parece ser o homo
juridicus mediano, comedido, sem dúvida, antes talvez o homo
moralis ou religiosus, que se não conspurca com uma gota que seja.
Ora o Direito não aspira à santidade nem à pureza moral…
E a contraprova tivemo-la na prática: o crime organizado
nos EUA nasceu aí, e Al Capone considerou-se sempre um
benfeitor público — contra uma lei iníqua. Uma disposição
utópica acaba por gerar sempre formas viciosas de incumprimento,
e, se o bom senso prevalecer (como veio a suceder no caso)
acabará naturalmente por ser revogada.
Ora, este caso permite-nos com agudeza detetar uma séria
contradição do positivismo. Aqui, ele nem sequer se pode respeitar
a si mesmo. Porque, na rigidez de obedecer à lei — toda a lei —
acabará por vezes (como é o caso) por fazer o papel que criticara
aos jusnaturalistas: o de advogar o que não é jurídico, mas
meramente moral ou religioso.
Ora tal seria o que um jusnaturalista poderia não fazer
(como vimos), rejeitando carácter jurídico à norma: lex iniusta non
78
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

est lex, pensamento de Santo Agostinho retomado por São Tomás


de Aquino.
Evidentemente que, na prática, todas estas questões se irão
reverter em problemas políticos, disciplinares e de deontologia
profissional. Pode ou deve um juiz ou um funcionário público não
aplicar uma lei por a achar injusta, ou não jurídica (em si)? E um
advogado deverá ser ouvido não como mero rábula quando apele
para tais valores?
Questões que dão muito que pensar e podem trazer
agudíssimos problemas — para quem com eles se confronte, para a
Justiça em geral —, mas que obviamente não podemos senão
enunciar.
Em síntese, destas duas formações e opções — positivista ou
jusnaturalista, monista ou dualista — tudo o demais decorre. Desde
um estilo de estudo do Direito (ou lecionação), a um estilo de
escrita, a uma eleição de problemas (ou causas) a investigar (ou
defender), até mesmo ao mais importante, a um estilo de vida.
Não quer dizer que os jusnaturalistas sejam santos e
idealistas e os positivistas o cúmulo do calculismo e do
materialismo. A hipocrisia também existe, e o ceticismo por vezes
apodera-se das melhores das almas. Se o pluralismo se
consubstanciar num simples subjetivismo, certamente muitos nos
acompanharão pedindo o corretivo de rigor no cumprimento das
leis. As leis são, na verdade, o grau zero das garantias.
Sem pretender fazer uma síntese das duas posições, há
contudo pontos de contacto a reter, e nem só nas situações-limite,
como as que acabámos de ver. Independentemente do caminho
que se tome, há um legado híbrido a ter em conta, sempre: não
pode haver bom jurista sem uma mínima base técnica e científica,
sem o conhecimento básico do Direito tal como ele é (ou do que

79
Paulo Ferreira da Cunha

dizem ser Direito em dado tempo e lugar – se se preferir). E ainda


a aplicação rigorosamente objetiva das normas contribui para a
segurança jurídica – Tal é um grande legado do positivismo. Mas
também não pode o jurista, ou quem quer que com o Direito lide,
confinar-se ao estrito articulado dos textos legais, sem uma
dimensão de Justiça (ainda que assim lhe não chame, e ela seja
designada por ratio legis – razão da lei – ou algo semelhante) – e eis
um importante contributo das posições pluralistas, a começar pelo
jusnaturalismo, que delas é a mais clássica, como vimos.

80
Parte III
Epistemologia Geral
O Direito como realidade científica, cultural e espiritual.
Interdisciplinaridades e Pós-Disciplinaridade. Paradigmas
Jurídicos. Novos Paradigmas

Sumário:
Capítulo I
O Direito como fenómeno e como ciência
Capítulo II
O Direito no mundo da Cultura
Capítulo III
Especificidade espiritual do Pensamento Jurídico
Capítulo IV
Margens do Direito.
Ciências Jurídicas Humanísticas e Disciplinas Complementares
Capítulo V
Interdisciplinaridades e Pós-Disciplinaridade.
Paradigmas Jurídicos. Novos Paradigmas.

81
Capítulo I
O Direito como Fenómeno e como Ciência

1.Complexidade do fenómeno jurídico


Antes de mais, é de afastar a ideia corrente nos nossos dias
que aponta para a mera identificação entre Direito e lei: as leis
passam, o Direito fica (por isso é que saber leis não é o mesmo que
conhecer o Direito). Além de que, como veremos, a lei não é a
única fonte de Direito, nem mesmo nos nossos dias.
Apesar da necessidade de grande e profunda cultura geral
dos juristas, o Direito, em si mesmo, não é um sorvedoiro do real,
um enorme gavetão em que tudo caiba, mas, apesar de tudo,
uma dimensão localizada da vida e da cultura que, invadindo
muita coisa, não se mistura com tudo, nem sequer é o supremo
valor, conquanto seja valor, e importantíssimo17.
Além disso, pode ocorrer que o Direito seja colocado de
parte, violado até, em nome da honra, da amizade, do amor,
da moral, da religião, ou da ideologia — o que corresponde, para
quem o faça, à assunção do risco da punibilidade pela coerência na
defesa de uma própria ordem de valores.
Finalmente, é importante ter claro o lugar do Direito no
concílio das ciências e dos saberes, recusando o reducionismo (tão
ao gosto dos positivistas de diversos matizes) que o confunde com
uma mera técnica, mas igualmente pondo de sobreaviso para as

17
Cf., por todos, EHRHARDT SOARES, Rogério — Interesse Público,
Legalidade e Mérito, Coimbra, Atlântida, 1959, p. 1 et sq.
83
Paulo Ferreira da Cunha

limitações intrínsecas do jurídico quantos pretendam ver nele a


pedra filosofal de resolução de todos os problemas, ou o óculo
omniscente por que se desvendaria toda a Máquina do Mundo.
O Direito é uma disciplina (episteme mais que ciência
pura) híbrida: artística, científica e técnica, mas com uma lógica
própria, não a formal, mas raciocinante, adaptável e simbólica,
uma mitológica, permeável a elementos não estritamente
racionais — tal como o Homem não é uma mera equação ou
um simples algoritmo18. No conjunto dos aspetos do jurídico, deve
imperar não a logia, o carácter lógico-científico (e menos ainda a
técnica), mas sobretudo e muito especialmente a teleologia, a
finalidade, o fim de Justiça (de atribuir a cada um o que é seu),
razão de ser de tudo o mais. E hoje está cada vez mais apercebido
quão importantes são os diálogos do Direito com a Arte.

2.O Direito como disciplina (episteme) social e normativa


Dada a complexidade do Direito, que acabámos de
brevemente sintetizar supra, deduz-se facilmente a dificuldade com
que depara quem pretenda encerrá-lo na jaula amputadora, no
círculo restrito e sufocante de uma teia de classificações no âmbito
das ciências.
Enquanto trata, sem dúvida, dos problemas de pessoas em
situação, em interação social (excetuando o Direito que Robinson
Crusoe para si mesmo cria), parece integrar-se o Direito, sem
dúvida, no âmbito das ciências sociais ou humanas. Isto, se
desejarmos tratá-lo como ciência — pois também será mito, arte,
técnica, poder... Mais rigorosamente se dirá que é uma disciplina,

Cf. Mito e Constitucionalismo, Coimbra, Faculdade de Direito, “Separata” do


18

BFDUC, dist. Almedina, 1988, máxime, pp. 43-70. Hoje integrado e repensado
na nossa obra Teoria da Constituição, vol. I, Lisboa / São Paulo, 2001.

84
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

ou episteme, que verdadeira ciência, expressão com conotações


cientistas, em geral...
Mas, ainda sem sairmos da sua vertente “científica”,
deparamos com agudos problemas de classificação. É que,
enquanto as ciências sociais normais, se não quiserem transformar-
se na "feitiçaria dos tempos modernos"19 hão de normalmente
sobretudo descrever o Homem em sociedade, no plano histórico,
demográfico, sociológico, económico, etc., deixando para a
política, neles baseada (se tivermos sorte), a prescrição das
medidas de transformação social, o Direito é diferente.
Não diz apenas o que é — não se ocupa simplesmente com
um estudo descritivo ou informativo das instituições e institutos
jurídicos e das concretas leis vigentes. Não se contenta com isso.
Além de disciplina social, é episteme normativa: face ao que é,
indica também o que deve ser. E, ao contrário da religião ou da
moral, que não raro se têm de limitar a serem vox clamantis in
deserto, pregando o que deveria fazer-se, mas se não pratica, o
Direito não só estabelece o que entende correto, justo, "direito",
como endireita o " torto" , como autêntico dever-ser-que-é.
Por isso mesmo é que o Direito tem de ter o maior cuidado
em não pretender mais do que as pessoas podem fazer, ou dar
(nemo datur quod non habet). Tem o Direito que exigir das
pessoas apenas comportamentos razoáveis, sob pena de ser ele
próprio um fomentador da sua violação. O Rei do Principezinho,
sabendo do desejo deste de deixar o seu planeta, sabe como agir:
nomeia-o embaixador… Tivessem todos essa sabedoria.

ANDRESKI, Stanislav — Social sciences as sorcery, Londres, André Deutsch,


19

1972.
85
Paulo Ferreira da Cunha

3.Normatividade, vocação prática


De novo se põe aqui o problema do carácter cientifico do
Direito: ele existe no mundo do espírito, e da cultura, mas não
prescinde de uma extraordinariamente vívida existência real,
quotidiana. É uma disciplina em ação. Sendo técnica, é mais que
isso: é, como com agudeza se apercebe o leigo, também imperativo
e coerção. E sendo-o no bom sentido, tem uma repercussão social
e mesmo ética muito importantes. Há mesmo uma mensagem
moral nas imposições justas do Direito. E se não forem justas, a
mensagem será imoral... Mesmo sendo importante separar as águas
do Direito, da Moral, da Religião, da Política, etc. Há em geral um
pressuposto da justeza e eticidade do Direito.
Essa aplicação do Direito no real não descobre
cientificamente o Justo, antes gera a sua cientificidade para a
concretização na prática da Justiça, seu pressuposto, fundamento,
fim (que se filia, afinal, no Direito Natural — pouco "científico" em
si, como tudo o que é natural). Neste percurso, serve-se de
métodos e técnicas de um tipo de estudos particulares, que não são
tanto a escavação arqueológica, a estatística, ou a sondagem
sociológica, ou o modelo económico... Todos esses métodos e
todos os conhecimentos de tais matérias sem dúvida importam ao
jurista, mas para fundar conhecimentos prévios sobre o meio em
que se vai manifestar. Mas os seus utensílios próprios são
normalmente de outra índole.
Como ciência de rigor que é, o Direito usa métodos que se
aproximam tantas vezes da lógica, da própria matemática. Como
arte, vemo-lo ornado da retórica, do estilo literário burilado, e até
belo, na doutrina mais requintada, e, em especial, no discurso
forense de maior brilho. Mas, antes disso, que faz o jurista? Antes
de compor belas frases ou de engrenar na mecânica dos silogismos,
que pretende? Conhecer o Justo, e aplicá-lo. Aplicá-lo através da
interpretação — de leis, de sentenças, de costumes, etc. Ora, o
86
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

trabalho hermenêutico, essencial e próprio ao jurista, aproxima a


arte jurídica das disciplinas que fazem exegese, análise textual,
hermenêutica, no limite das filologias, das linguísticas e das
semióticas, que procuram desvendar textos, sinais.
Como não será demais repeti-lo, a hermenêutica jurídica
não é inócua, é interessada. E procura ler Justiça em cada linha.
Mesmo quando a norma não é clara ou não pareça tão justa assim.
Um grande causídico americano, que também foi um grande
político, definiu da forma seguinte as tarefas de um e de outro: "o
político deve fazer boas leis, e o jurista transformar as más em
boas.". Pela prática, evidentemente. Aliás, uma velha tradição
britânica considera que uma lei só realmente entra na ordem
jurídica depois que aplicada por um tribunal. Esta prática, esta
descida ao real é que lhe determina o alcance. Não deixa de ser
uma perspetiva interessante.

87
Capítulo II
O Direito no mundo da Cultura

1.Uma disciplina omnipresente


A especificidade do trabalho dos juristas, e o facto de a sua
tarefa (pela qual se joga a vida, a honra, a liberdade, ou a fazenda
de quem caia nas malhas da Justiça) ser complexa, estranha,
como que uma magia (conseguir provar o " improvável" , salvar
como inocente um criminoso — na versão pessimista; devolver o
que lhe pertencia ao seu legítimo dono, resgatar a honra de um
nome injustamente manchado, etc.) levam, como vimos, a uma
ideia estranha sobre a realidade social do jurídico. E também lhe
conferem um lugar particular no mundo da Cultura.
O lugar do Direito na "cultura geral" das pessoas é mínimo.
Chegou a ser introduzido nos curricula do Ensino Secundário, mas
como disciplina de opção, durante apenas um ano, e muitas vezes
prelecionado por não-juristas. A par desta iniciativa, as únicas
outras que visam o conhecimento pelo grande público de uma
matéria imprescindível à sua vida corrente (cada dia mais
juridicizada) foram alguns espaços de consultas jurídicas
concretas nos media, mas que sobretudo prendem a atenção dos
interessados diretos, e um programa televisivo em que se
encenavam alguns casos. Tudo isso parece estar já muito longe. E
não terá tido grande sucesso. Seria importante estudar Cidadania,
Direitos Humanos, e a Constituição. Mas não são matérias
consensuais, evidentemente.
A grande informação desinteressa-se por esta área (salvo no
caso de processos sangrentos ou de grande corrupção), e cremos
88
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

ainda ser " bem-pensante" e "intelectual" em muitos círculos


abominar o Direito, com um trejeito de enfado pelo menos. As
próprias crónicas dos tribunais se banalizaram e tornaram meio
invisíveis (salvo os escândalos), quando ainda não há muito haviam
tido cultores de nível, como Albert Camus, no século passado. A
cultura literária em voga não se cansa, quando pode, de ironizar ou
zurzir o jurídico. Os juristas não têm grande crédito social real
(têm-no superficialmente, sim), e o que ainda lhes vai valendo (mas
partilham com muitos mais: políticos, ativistas, jornalistas, etc.) são
os Direitos Humanos, que realmente forçaram o repensar do
paradigma tardo-medieval do direito subjetivo, em que ainda
vivemos, mas tudo indica poderemos sair para um horizonte mais
benévolo, solidário, humanista e fraterno – embora tal implique
ainda muitas e significativas mudanças.
Em geral, esquece-se que o jurídico é um campo de eleição
do exercício da lógica, de afinidade geométrica e matemática
em geral, de aplicação e teste prático da filosofia, e um
conhecimento imprescindível às ciências económicas, da gestão e
da contabilidade, essencial à política, e com insuspeitados mas
não despiciendos pontos de contacto com a Medicina, e até
a Física... Para não falar nas Letras e nas Artes.

2.Oficiais do ofício jurídico e sua presença na cultura


Os que, sem defesas, foram formados e formatados pela
sociedade de consumo, ávidos de poder, sucesso e dinheiro,
naturalmente acorreram também aos cursos jurídicos quando não
gostavam de matemática, mas desejavam, sem embargo, fazer
fortuna, para usar uma boutade de um professor brasileiro,
Inocêncio Coelho.
Esses para quem o curso de Direito seria um mero
trampolim enviaram para o caixote do lixo das velharias a clássica
frase de Ulpiano segundo a qual os juristas são sacerdotes que
89
Paulo Ferreira da Cunha

prestam culto à Justiça. Eivados de estrito positivismo — a lei é a lei


— dura lex sed lex (frase da decadência do mundo jurídico
romano), importa é a técnica de a aplicar ou tornear, consoante
sirva o nosso interesse —, não têm tempo nem disposição, nem
feitio para questionar o papel social do jurista, e muito menos
desenvolver qualquer função cultural do jurídico. E mais ainda que
uma estrita fidelidade à lei está a sua fidelidade ao seu próprio
projeto egotista, sendo o legalismo apenas uma via, facilmente
fungível por outra teoria pro domo.
Felizmente ainda não morreram todos aqueles homens
probos (muitos têm contudo partido nos últimos anos, e são
insubstituíveis, pelo menos ainda se não vieram substitutos) que, se
não usavam o computador jurídico (hoje obviamente uma
necessidade, mas instrumental), eram capazes de se orientar na
selva dos mais diversos ramos de Direito, perseguindo a solução
justa, e, simultaneamente, conseguiam ainda ter ócios, e ocupá-los
não apenas na apreensão e ponderação das artes, das letras e até
das ciências do seu tempo, como mesmo na criação e na
investigação. Mostramos já noutra ocasião20 o número prodigioso
de juristas (ou personalidades de formação jurídica) que se
notabilizaram não só na política — o que é sabido, e constitui
motivo de acusação para alguns observadores –, mas também nas
Letras, e também há muitos nomes de relevo nas Artes.
Não será só por acaso que o Direito chamou e continua a
chamar grandes espíritos. Filósofos como Leibniz ou Montesquieu,
economistas, embora não só como Adam Smith, Marx, ou Hayek,
sociólogos como Max Weber ou Tocqueville, dramaturgos como
Corneille ou Racine, poetas como Novalis ou Goethe todos tinham
cursado Direito, e alguns destes ensinaram-no mesmo nas
Universidades. Muitos, começaram pelo Direito, sem chegarem a
concluir os seus estudos, mas dele colhendo boa parte da sua

Cf. O nosso História da Faculdade de Direito de Coimbra, 5 vols., I vol.,


20

Porto, Rés, 1990.


90
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

formação (até por reação): tais os casos de Voltaire e Rousseau.


Outros grandes nomes, não tendo formação especificamente
jurídica, sentiram-se atraídos por estes problemas, e vieram a
produzir obras basilares para o pensamento jurídico: desde os
filósofos Platão e Aristóteles a Locke, Kant e Hegel, ou aos
modernos, como Foucault. Entre nós, tiveram formação jurídica (e
bastantes chegaram a concluir os cursos e a exercer profissões
jurídicas) nada menos que Francisco Rodrigues Lobo, Correia
Garção, Gonçalves Crespo, Antero de Quental, Almeida Garrett,
Eça de Queiroz, Guerra Junqueiro, António Nobre, Teixeira de
Pascoaes, e até Mário Sá-Carneiro, e Vitorino Nemésio, entre
muitos outros. Assim como diversos pensadores não juristas se
preocupavam com o Direito, a começar por Luís António Verney,
sendo de citar, mais contemporaneamente, Delfim Santos, Álvaro
Ribeiro, Augusto Saraiva e Orlando Vitorino.
Nas Belas Artes, é inegável que algumas das maiores
criações têm como motivo o Direito. E, se a maioria são alusivas ao
Direito Constitucional ou Político (na pintura — desde o célebre
Juramento da Sala do Jogo da Pela, e boa parte da produção de
Jacques-Louis David), ou obras do poder (na arquitetura — tantos
e tantos palácios e castelos), há igualmente muitas obras que
especificamente retratam ou se destinam ao jurídico — desde as
caricaturas de Daumier à arquitetura judicial, de que destacamos,
por exemplo, o Supremo Tribunal de Chandigarh, na índia, com a
assinatura inconfundível de Le Corbusier.
Na escultura, como veremos, nem sempre os atributos da
deusa da Justiça, praticamente obrigatória em na sua "Casa"
(Domus Iustitiae), são muito fiéis aos originais gregos e romanos.
Todavia, sente-se (por exemplo) o Direito, enquanto respeito pela
palavra dada, enquanto resgate ou compensação jurídica, quando,
contornando em Londres as Houses of Parliament, deparamos
com esses homens que pagam promessas que são Les bourgeois de
Callais saídos do cinzel de Rodin.

91
Paulo Ferreira da Cunha

E na música? Não são só hinos que simbolizam países, e


lembram o Direito Internacional. Muito mais que isso. A ópera
anda cheia de questões jurídicas. Já se disse que na Carmen, de
Bizet, haveria, pelo menos, rixa, insulto à autoridade, sedução,
negligência, deserção, contrabando e homicídio. Na Flauta Mágica,
de Mozart, qualquer coisa como um "divórcio" pressuposto (ou
separação de facto), um aparente rapto, uma efetiva deslealdade no
cumprimento de um contrato de trabalho, e uma tentativa de
assalto e arrombamento à mão armada. E se Os Palhaços de
Leoncavallo já serviram para um exame de Direito Penal, o
ciumento Otello, que é também título de uma ópera de Verdi, já
foi hipoteticamente defendido pelo grande jurista Maurice Garçon.
E que dizer do Teatro? Logo no Édipo-Rei de Sófocles é o
protagonista a investigar o próprio crime; as Euménides, de
Eurípides, explicam afinal a origem mitológica do principal tribunal
criminal de Atenas; Shakespeare é um manancial inesgotável:
Romeu e Julieta além de duelo e homicídio tem decerto problemas
de menoridade e poder paternal, casamento canónico com
celebração secreta, e duas mortes aparentes que vão redundar
tragicamente em outros tantos suicídios; Hamlet é especialista em
homicídios qualificados em razão do parentesco, e de juízes e
fraudes estão recheadas outras peças. Molière — não fosse ele
jurista de formação — ensina-nos mesmo, num entremez de M. de
Pourceaugnac, os nomes dos maiores jurisconsultos romanos, e
pelos seus trabalhos perpassa o roçagar das togas e das becas.
Modernamente, a literatura conta títulos sobre o Direito de entre
os seus melhores: A Queda e Os Justos de Camus, O Processo, de
Kafka, A lei, de Roger Vaillant, A morte do cavalinho, de Hervé
Bazin. E não olvidemos toda a literatura policial, com o célebre
Perry Mason, criação de um jurista, ou um M. Poirot, da
inconfundível Agatha Christie. Entre nós, Gil Vicente julga juízes e
justiça pelo menos no Auto da Barca do Inferno, no Juiz da Beira,
no Auto da Feira, nas Cortes de Júpiter, na Fragoa do Amor e na
Floresta de Enganos. E os grandes problemas do Frei Luís de
92
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

Sousa de Garrett não são a morte presumida, a paternidade


ilegítima, e o adultério, inconscientes e não "culposos"? O romance
a Tragédia da Rua das Flores (antecessor da obra-prima Os Maias)
de Eça, está também eivado de reflexões sobre o Direito, com um
protagonista que é estagiário de advocacia.
O cinema cedo se serviu da profusa temática jurídica.
Desde alusões no próprio título ao jurídico, do filme mudo Ladrão
de Bagdad, com Rudolfo Valentino, ao neo-realista Ladrões de
Bicicletas de De Sicca, passando pelos confrontos vários de Charlot
com a lei, v.g. nos Tempos Modernos. A emoção das audiências
judiciais criou, ao longo dos tempos, dos mais altos momentos de
emoção e suspense. O Julgamento de Nuremberga com Marlene
Dietrich é inolvidável e fonte de múltiplas questões jurídicas
fundamentais. Não se pode esquecer Justice for all com Al Pacino.
O Veredicto, com Paul Newman, ou a Câmara secreta, pela
impressividade como retratam a realidade presente do Direito
positivo e em ação na sua vertente mais crítica. Um dos últimos
filmes de grande clareza nas aporias e dramas do julgamento é The
Children Act, que estreou em 2018.
Até a poesia (aparentemente avessa a códigos e arestos) tem
vibrado a sua lira pelo Direito: Ronsard tem um Hino à Justiça. E a
Banda Desenhada também o celebra, nos hilariantes álbuns de
Morris O Juiz e Os Daltons regeneram-se, com o conhecido Lucky
Luke. Asterix imortaliza-se neste domínio no álbum em que
consegue “dar a volta” aos burocratas do “palácio da loucura”, uma
espécie de enorme loja do cidadão (é em Os XII Trabalhos de
Astérix).
Muitos mais títulos se poderiam apontar…

93
Capítulo III
Especificidade espiritual do Pensamento Jurídico

1.Direito e Arte: dois reinos da liberdade


Depois de termos sucintamente apontado, ao correr da
pena, uma meia-dúzia de exemplos da íntima ligação das Artes e
das Letras, dos artistas e dos literatos com o mundo do Direito,
cabe perguntar como se pode ainda confundir este com uma
realidade bafienta, desinteressante e burocrática, alheia ao belo,
inimiga jurada dos valores estéticos.
E vejamos que não exclusivamente pelo facto de a arte se
ter exercido sobre motivos jurídicos e de muitos juristas terem
cortejado as musas, e de vários artistas terem estudado Direito. A
tudo isto acresce que o Direito se relaciona também com as artes
enquanto forma reguladora das cada vez mais vastas e portentosas
instituições artísticas, estatais e associativas (ou corporativas em
geral) – academias, teatros, escolas, museus, galerias de arte ...
Finalmente, sendo o Direito orientado para a justiça, e sendo esta
impensável, inconcebível, sem a liberdade de expressão, e a
liberdade em geral, clara analogia tem o jurídico com o artístico,
que só floresce completamente (ou só se pode observar
florescendo) num tal clima de descompressão, tolerância e
pluralismo. A liberdade, condição do Direito, é também condição
da Arte. Mas convém distinguir-lhe dois sentidos: uma é a radical
liberdade individual, que um ser livre pode ter mesmo no mais
negro dos cárceres; outra a liberdade social e política, geral, à qual
o Direito não pode deixar de estar ligado — não por exigência

94
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

política, mas por decorrência do seu próprio modo de ser. Dar a


cada um o que é seu, é também permitir o livre desenvolvimento
de cada personalidade, e bem assim da artística — a suprema
individualidade, a subjetividade feita universalidade. Por isso,
normalmente não passa de lugar comum repetido mecanicamente
ou de mera propaganda ideológica a afirmação de que o Direito e
os juristas procuram sufocar a Arte, manietando, regulamentando-a
silenciando-a. Os pseudoartistas precisam de um bode expiatório: a
norma é um. Outro é a falta de subsídios do Estado. Camões foi
Camões com censura e sem um tostão da Coroa (a famosa tensa
não vinha, como Sophia de Mello Breyner Anderson cantou em
simbólico poema). A arte, por definição, é superação do real.
Absurdo querer-se a mais ampla das liberdades (não a normal) e
um ordenado de burocrata! Nalguns casos justificar-se-á, claro. Mas
não pode ser regra…
Direito é liberdade do Homem comum. A Arte a
Liberdade do Homem excecional.
Nos tempos que correm, uma onda de puritanismo veio
responder (algo tardiamente) a uma vaga de eventos e produtos
mais ou menos “chocantes” para alguns, apresentados em locais
artísticos, aparentemente para épater le bourgeois. Os mais
radicais, extremistas, fundamentalistas morderam a isca e levantam
cruzadas inquisitoriais contra manifestações menos académicas ou
abstratas, sobretudo nus e afins. É uma polémica que está na
ordem do dia, e coloca o dedo na ferida do problema de saber se o
Direito e o Estado terão o direito de interferir na liberdade de
expressão dos criadores, independentemente do gosto, do talento,
do génio e dos conceitos e preconceitos de certos grupos sociais de
espetadores, mais ou menos militantes. Não é um problema fácil,
embora os princípios gerais pareçam ser claros e aparentemente
enraizados...

95
Paulo Ferreira da Cunha

2.Cultura não Artística


Além das Artes e das Letras (outra forma de arte) o mundo
cultural atual é partilhado por dois outros grandes setores de
ciências — as económicas e as sociológicas, surgindo no horizonte
ainda um outro grupo de disciplinas, hoje muito mitificadas e em
flagrante ascensão, as áreas informáticas (com esse nome ou afins).
No campo das "Letras" ou "Humanidades", mesmo o pensamento
filosófico é hoje tributário (pela via da importação disciplinar, do
estruturalismo e da ideologia), seja daquelas duas primeiras
preocupações (v.g. História "social", "económica", etc.), seja da
linguística, espécie de gramática geral e resíduo inspirador destas
disciplinas.
A Sociologia, como já tivemos oportunidade de referir21 é
sempre uma preciosa auxiliar e uma gravíssima tentação e risco
para o Direito. Auxiliar, porquanto, fornecendo-lhe dados sobre a
realidade social, permite a este o conhecimento do seu campo de
aplicação, das reações e aplicações dos seus comandos, etc.
Tentação, porque o aparente rigor da Sociologia e a sua óbvia
ligação ao social podem captar o jurista para preocupações mais
cognoscitivas que verdadeiramente normativas — pode ficar
seduzido mais por conhecer a sociedade do que por organizá-la.
Finalmente, risco — e este é o aspeto mais importante e mais
perigoso — na medida em que não a Sociologia, mas a sua
perversão, o sociologismo, pode infetar o campo do jurídico, que é
o do dever-ser, não meramente o do ser. Diga-se o que se disser,
não se podem e extrair valores de factos, normas de regularidades.
É em grande medida o problema da chamada falácia naturalística.
As estatísticas parece que já deram cifras elevadas de furtos nos
supermercados. É um facto sociológico, que até nem preocupa
muito a Economia, porque quanto mais se furta mais se compra
também (compare-se o furto numa mercearia com o de um

96
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

hipermercado e veja-se também o seu volume diferencial de


negócios). Mas daqui não se pode extrair a regra absurda e
contrária à justiça (suum Cuique, sempre) de que seria lícita tal
prática. Há, contudo, uns caos em que a regularidade social ajuda o
Direito, e foi o que ocorreu na própria criação jurídica em Roma:
no ius redigere in artem. De práticas justas habituais se cunhou a
regra. Mas isso foi uma sociologia avant la lettre, mas passada pelo
crivo da eticidade: um juízo axiológico teve que ser feito sobre
dados sociais.
Quanto às ciências económicas, já a ligação é de outra
ordem. Desde sempre os juristas se interessaram por Economia e
vice-versa. Em muitos países (na França, na Alemanha, por
exemplo) as ciências económicas e as jurídicas são muitas vezes
ensinadas nas mesmas Faculdades oficiais, e entre nós foi até há
pouco tempo muito comum homens de Direito ocuparem cargos
de destaque na Administração e no Governo na área económica e
financeira. Os cursos de Direito englobavam até há pouco uma
bateria considerável de cadeiras económicas, e os Cursos de
Economia, Gestão de empresas, Contabilidade e afins procuravam
também acompanhar os conhecimentos jurídicos. Tem havido
decréscimo de estudo do Direito, mas sempre resta uma ou outra
cadeira... E ao nível especializado e pós-graduado há muitos
diálogos e tem que havê-los. No Direito conservam-se, pelo menos,
alguns rudimentos de Análise Económica ou da clássica Economia
Política. Eventualmente também Moeda e Crédito, Finanças
Públicas, etc..
É um pouco difícil dizer o que é a Economia, para depois a
comparar com o Direito, e relembramos aqui as nossas próprias
lições de Economia, redigidas por um Economista, que acabavam
— com graça — por dizer (citando um clássico economista) ser
aquela aquilo que estes fazem. De qualquer modo, parece ligar-se
ela à raridade e à necessidade de fazer escolhas acerca de bens

97
Paulo Ferreira da Cunha

escassos. Assim sendo, desde logo tal se liga ao Direito que, numa
das suas mais afamadas aproximações, se diz ter surgido para
regular os conflitos por causa da escassez de bens. Não poderia
haver geminação teórica mais perfeita.
A Economia, a Gestão, a Contabilidade ... acabam, pois,
por movimentar-se nos quadros que lhes são impostos pelos dados
naturais (terra, clima, etc.), pelos dados psicológicos e sociológicos
(finalidades sociais dominantes — obtenção de lucros, satisfação de
necessidades, etc.) e pelos dados políticos e jurídicos (a estrutura de
enquadramento institucional, os quadros institucionais da vida
económica). Daí, um largo espectro de ligações, que obviamente
vão no sentido da dialética interdependência, ultrapassada que está
(mesmo no pensamento marxiano – veja-se a célebre carta de
Engels a Bloch) a tese de uma mecânica e absoluta supremacia
infraestrutural, e portanto económica.
Não olvidemos que, na estrutura mental do profundíssimo
e fundante imaginário indo-europeu de que todos nós somos
tributários, há três funções “sociais” — a jurídico-política, mágica e
religiosa (simbolizada pelos deuses Odin, Júpiter), a guerreira
(Thor, Marte), e a económica, da prosperidade, fecundidade
(Freyr, Quirino). A sociedade depende da harmonização entre os
seus três pilares, cada um promovendo o seu tipo de funções
sociais, sem sair da sua competência — o que é uma lição a reter
quer por juristas, quer por economistas, gestores, e outros.
No que respeita à Informática, ela é sobretudo, ainda, tanto
quanto um leigo pode julgar, uma utilíssima e poderosíssima
ciência de técnicas, de que o jurista deverá colher muito ao nível
auxiliar (rapidez de acesso a fontes, ficheiro, etc.) e eventualmente
no plano da importação de modelos formais de raciocínio, mas,
neste caso, sob caução. A lógica que aí necessariamente tem de
imperar, como toda a lógica, pode conduzir às mais injustas
soluções. E, por muito que se efabule, o Direito jamais poderá ser,
98
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

como na ficção de Papini, ditado pelas luzes verde e rubra de um


computador-juiz22.
Há ainda uma outra ligação do Direito de índole cultural, a
qual se prende com a cultura em ação, enquanto propiciadora de
utilidades, confortos, enfim no seu lado instrumental, paredes
meias com a técnica. Aí se enquadram disciplinas como a
Medicina, a Engenharia, a Arquitetura, o Design, a Psicologia, etc.,
etc. Em relação a todas estas áreas o Direito faz sentir a sua
influência, sobretudo de enquadramento institucional.
O arquiteto e o engenheiro sabem que há normas jurídicas
que regulam as suas empreitadas ou outros contratos pelos quais
realizam as suas obras, e o Direito do Urbanismo já se
autonomizou como ramo a se. O aviador e o próprio astronauta
conhecem convenções e acordos sobre espaço aéreo que balizam a
sua atividade, aparentemente livre como os pássaros. No mar,
regem Direito Marítimo e Internacional Público, e os comandantes
de navios servem mesmo de funcionários da Justiça (a diversos
níveis) para casos públicos e privados: vejam-se as questões penais e
testamentos a bordo. Coisa idêntica se passa nas aeronaves. O mar
é, aliás, um grande motivo polarizador de questões jurídicas, já para
ele havendo um grande tribunal internacional.
O médico, além da sua deontologia profissional e dos
deveres jurídicos impostos pela lei ou pelas normas corporativas da
Ordem, lida a cada passo com o Direito. Não é só a analogia
científica, teórica apenas, entre a cura médica e a cura jurídica (em
que o Tribunal seria a sala de operações). A cada passo, os
médicos são chamados a tribunal como peritos — para avaliarem
da doença, do tipo de incapacidade, por exemplo em acidentes de
viação ou de trabalho; para certificarem da sanidade mental do réu
em ações penais, ou de restrições à plena capacidade jurídica, etc.,
etc. Nos dias de hoje, além disso, problemas jurídicos (mas

Giovanni PAPINI — O Livro Negro. Novo Diário de Gog., trad. port., Lisboa,
22

Livros do Brasil, s/d, p.15 et sq., sob o título “O Tribunal electrónico”.


99
Paulo Ferreira da Cunha

também morais) se põem mais agudamente que nunca aos práticos


e teóricos da Medicina: inseminação artificial e engenharia genética
nas suas mais sofisticadas formas, além de velhos problemas
ganharem maior amplitude no âmbito de uma sociedade cada vez
menos sancionatória em alguns temas anteriormente tabu e mesmo
crime (consumo de drogas, orientações sexuais não maioritárias,
aborto, eutanásia, etc.). Cada vez é mais relevante, por seu turno,
para o Direito, saber-se cientificamente quando começa a vida (se é
desde o momento da "conceção" o aborto seria um atentado
àquela) e quando termina (se há vida post mortem, i.e., depois de
morte cardíaca, ou cerebral, então a colheita de tecidos é feita em
alguém ainda vivo, e, portanto, um atentado à integridade física,
pondo em risco mesmo eventuais recuperações de último
momento — que alguns consideram cada vez mais plausíveis com o
vertiginoso progresso da Medicina). Mas estes são apenas alguns
dos mais antigos elementares problemas nesta área. A realidade já
coloca reptos muito mais complexos e elaborados.
O cientista natural não ignora o Direito do ambiente, tal
como o ecologista. O Farmacêutico e o Químico têm também
legislação própria — e nada descurável, não apenas por os tocarem
diretamente, como pela sua importância geral, para todos os
“consumidores" dos produtos por que são responsáveis.
O psicólogo, esse, encontra no Direito largo campo de
observação das "paixões humanas". A psicologia do criminoso, do
simples réu, o comportamento de alguém sujeito à pressão do
interrogatório em tribunal, são questões que interessam tanto
àquele como ao próprio jurista. E no campo psiquiátrico há
mesmo uma disciplina híbrida e específica da ligação de "psique"
com o Direito: a Psiquiatria Forense. Assim como nas Faculdades
de Medicina e Direito continua a haver uma cadeira gigantesca que
dá pelo nome de Medicina Legal, e onde se estudam desde
minudências anatómicas aos tipos de sangue, e de venenos, e as
cores dos enforcados e afogados.
E muitas mais conexões se podem encontrar...
100
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

Se a integração do Direito no contexto dos saberes é tão


variegada, tão rica, e também tão problemática, mais ainda se
revelará a tarefa de dele dar uma intocável e sacrossanta definição.
Cada livro de Direito, se se mete a pensar o problema, dá
uma nova definição. Se não o faz, copia uma de entre as
abundantíssimas já existentes. Não sabemos qual o método menos
nocivo. Na verdade, o Direito não pode definir-se, balizar-se,
impor-se limites. O mais que podemos fazer é, tentar descrevê-lo, e
mesmo assim a própria descrição tem problemas e debilidades.
Pode, na verdade, não passar de uma definição mais longa…

101
Capítulo IV
Margens do Direito.
Ciências Jurídicas Humanísticas e Disciplinas Complementares

1.Sentido da metáfora "margens do Direito"


Falávamos no capítulo precedente das disciplinas ou ramos
da Ciência Jurídica, isto é, de componentes internas do Direito
enquanto Ciência normativa. Vamos agora, utilizando uma nova
metáfora, abordar situações próximas de tal realidade. Se o fluir
jurídico-científico se pudesse comparar a um rio (com as suas
fontes ou nascentes, como vimos já), a sua mais imediata
vizinhança, os seus limites, o seu já-não-ser todavia chegado,
próximo, seriam as suas margens. Assim designaremos realidades
que, não sendo já Ciência Jurídica proprio sensu são, porém,
banhadas, pelas suas águas, que no seu terreno próprio se infiltram,
transformadas em seiva de outras árvores do saber, com seus ramos
próprios.
Mas não insistamos demasiado nas metáforas, que já vimos
servirem à maravilha para iluminar o que pretendemos. Vejamos o
que são tais margens do Direito — que deuses são venerados por
confrades estudiosos da realidade Direito, solenes nas suas
máscaras rituais de especialistas. Em alguns casos, menos solenes
que os juristas, de facto.

102
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

2.Ciências Jurídicas Humanísticas


Há no grande domínio epistémico do Direito disciplinas
não jurídico-positivas: tendo ainda como objeto o Direito, mas sob
um ângulo não normativo, não se dedicando estritamente à
aplicação do Direito vigente num dado tempo e lugar, não visando
resolver concretas questões jurídicas, antes apreciando mais
distanciadamente a juridicidade.
Trata-se de disciplinas que jogam com a imanência (social)
e a transcendência (ideal) do jurídico, como a Sociologia do Direito
e a Filosofia do Direito. Ou que se perspetivam na mira da
sincronia ou da diacronia jurídicas, como o Direito Comparado (ou
Comparação de Direitos, ou Geografia Jurídica) e a História do
Direito.
Sabemos empiricamente de que versam. A Sociologia
jurídica, olha o Direito como facto social, na sua realidade
fenoménica, no que ele é e faz realmente. A Filosofia jurídica põe
em causa esse ser e procura pensar o dever-ser do Direito, sendo
particularmente tocada pelo problema da Justiça. O Direito
Comparado olha a realidade normativo-jurídica nas diferentes
ordens jurídicas espalhadas sobre o planisfério. Já a História do
Direito se preocupa com a evolução deste ao longo dos tempos.
Por seu turno, a Etnologia jurídica (ou Antropologia
jurídica) estuda o Direito como manifestação cultural do Homem,
havendo, porém, quem pense, tratar-se tão-só de uma variante da
Sociologia jurídica. Também numa perspetiva de transcendência
do Direito dado, mas mais voltada para agir que para teorizar, está
a Política Legislativa, a qual é uma disciplina dirigida ao
aperfeiçoamento do Direito através de reformas. O seu carácter
científico pode questionar-se, aliás.

103
Paulo Ferreira da Cunha

A estas disciplinas (ou ciências – epistemai na verdade)


jurídicas humanísticas também se dá, por vezes, o nome de ciências
jurídicas gerais.

3.Disciplinas Complementares
Além destas margens próximas, outras há, cujo contacto é
mais parcelar ou mediato.
Durante muito tempo se falou (e ainda se vai falando) em
ciências afins e auxiliares. A lógica desta classificação bipartida seria
decerto esta: umas ciências seriam aparentadas das jurídicas, outras
servir-lhes-iam de apoio. Ora tal não pode ser concebido sem erro
ou confusão. É que não se trata de um problema de hierarquia,
mas apenas de perspetiva. Uma ciência tanto pode ser auxiliar
como afim. Depende, por exemplo, do ramo de Direito em
questão. E, sendo auxiliar, será afim. E, se afim, auxiliar. Além
disso, visto do lado dessa outra ciência, será por hipótese o Direito
afim dela (o que não seria problemático em si) ou mesmo auxiliar.
E a expressão “auxiliar” por vezes tem conotações menos
simpáticas.
Será preferível, então, falar de disciplinas complementares
do Direito. Falámos já de ciências e saberes com conexões de vulto
com o Direito. Vamos, por isso, apenas relacionar algumas ciências
com concretos ramos jurídicos.
O Direito Constitucional relaciona-se com a Ciência
Política (ou Politologia) e ainda com a História Política, a Filosofia
Política e a Sociologia Política, a Teoria Geral do Estado, etc. Se é
que esta última não faz parte dele... O Direito Administrativo
relaciona-se, inter alia, com as Ciências da Administração (e até da
Gestão), e mesmo a Sociologia e Psicologia das Organizações, etc.
O Direito Fiscal com as Finanças Públicas, a Política Fiscal, a
104
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

Economia Política, a Contabilidade, etc. O Direito Processual


relaciona-se com as mesmas ciências complementares do Direito
Administrativo, e, com a progressiva informatização procedimental,
vão-se ambos aproximando da Informática. O Direito Penal
prende-se com a Criminologia (sociologia criminal, psicologia
criminal, biologia criminal, etc.), a Criminalística (investigação
criminal — mais detectivesca), a Medicina Legal, etc. O Direito
Internacional Público tem laços com a História, a Teoria e a
Sociologia das relações internacionais, a Diplomacia (enquanto
ciência), a História Diplomática, a Ciência Política (na vertente
internacional), e as chamadas Relações Internacionais. O Direito
Económico, o Comercial e o do Trabalho são tributários de dados
da Ciência Económica e da Gestão, sendo para o primeiro
sobretudo útil a macroeconomia e para o segundo a
microeconomia. O Direito laboral é ainda aparentado com as
Sociologias do Trabalho e da Empresa e os estudos do
Sindicalismo. O Direito Civil também tem atinências económicas
sociais e políticas de vulto, sendo o Direito das obrigações e os
Direitos das Coisas ou Reais muito sensíveis a tais questões,
enquanto problemas psicológicos e sociológicos (e em cada vez
maior grau ideológicos e políticos) da Família se põem
naturalmente mais no Direito da Família. O Direito das Sucessões
é também pedra de toque de um sistema político-económico,
combinado com o sistema fiscal de tributação sucessória.
Como vemos, é tal a teia de relações que seria temerário
estabelecer hierarquização nos contactos e interinfluências, tão
vários e ricos eles são.

105
Capítulo V
Interdisciplinaridades e Pós-Disciplinaridade.
Paradigmas Jurídicos. Novos Paradigmas.

1.Evolução dos Diálogos:


Transdisciplinaridade, Interdisciplinaridade
e Pós-disciplinaridade23
Primeiro, os juristas (infelizmente só alguns, porque outros
se mantêm atidos ao que julgam ser a pureza da sua arte, que aliás
acreditam ser uma ciência) descobriram a transdisciplinaridade,
que os fez ver um pouco mais além, mas ainda da janela da sua
casa do Direito. Depois, começaram a juntar-se com outros
especialistas nas ruas e nas praças epistemológicas, numa
interdisciplinaridade, que foi, aliás, um colocar coisas em comum e
dialogar muito inspirador.
Mas hoje em dia, sobretudo graças aos estudos
desvendadores de Gonçal Mayos, compreende-se que o passo
seguinte é não carregar o peso ancestral de tantas barreiras
científicas, que comportam também, aliás, não poucos preconceitos
e até soberbas. Vivemos pelo menos esperanças pós-disciplinares.
Interessa menos se determinado saber pertence a este ou aquele
quintal, desde que se saiba esse saber. Vai ser ainda, contudo, um
longo caminho a percorrer. Até pelo facto de que já a
interdisciplinaridade deu lugar a desvios, aproveitamentos, descidas
23
Mais desenvolvimentos no nosso livro Desvendar o Direito. Iniciação ao Saber
Jurídico, Lisboa, Quid Juris, 2014, p. 93 et sq..
106
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

de nível com trabalhos vagos e que jogavam com o


desconhecimento de uns públicos de certas metodologias e
conceitos de outros. O caso Sokal é revelador de redescrições de
matérias de umas áreas com linguagem de outras, mas ao que
parece com pouco critério. Mesmo alguns, economicistas,
procuraram fazer poupanças em algumas universidades trocando
áreas cheias de tradição e pergaminhos por áreas transversais, que
permitiram economizar disciplinas e professores.
A pós-disciplinaridade alerta-nos para que o Mundo é
grande e é uno, mas, como todas as ideias novas, está à mercê de
aproveitamentos, deturpações, usos pro domo. Estejamos, pois,
atentos. Continuamos juristas (ou, pelo menos, sabemos que
estudamos Direito), e isso é já um escudo protetor.

2.Paradigmas Jurídicos. Novos Paradigmas Jurídicos24


Hoje não mais faz sentido ensinar juristas com mãos puras
porque sem mãos, como dizia Péguy a propósito de Kant
(certamente uma consideração impiedosa). Os juristas de hoje
precisam sê-lo de corpo inteiro. E a Justiça, em todas as suas
dimensões (mesmo a justiça política e social), tem de entrar em
linha de conta (e muito) nas suas considerações. Com rigor, mas
sem a hipocrisia ou a alienação de um Direito “puro” hoc sensu.
Cada vez mais os nossos dias estão a colocar desafios aos juristas
que interpelam a sua deontologia e a sua ética: será possível a um
jurista digno desse nome ficar impávido perante violações gritantes
dos Direitos do Homem? Até onde poderá ir a passividade, o
cálculo, a hipocrisia? Para que serve, afinal, ser Jurista? Não se
deveria fazer os Juristas jurarem uma espécie de juramento

24
Mais desenvolvimentos no nosso livro Desvendar o Direito, cit., p. 103 et sq..
107
Paulo Ferreira da Cunha

hipocrático de defesa das Leis, da Justiça, da Pessoa e dos Direitos


Humanos?
A primeira fase, o primeiro choque para alguns, será
admitir uma razão jurídica não obcecada com a pureza e a
purificação, ou seja, o isolamento (Isolierung), mas, pelo contrário,
uma razão jurídica aberta a outros contributos, que supera mesmo
o interdisciplinar no pós-disciplinar. E depois, já nem sequer o
binómio dicotómico (oposição binária como tantas outras que nos
formatam e deformam o pensamento) e estigmatizador
puro/impuro estará presente. Trata-se de pensar e fazer Direito
com Justiça, na Justiça. E para isso tem-se desenvolvido e
continuar-se-á a desenvolver um novo paradigma, não do aço frio
das espadas, como dizia Teixeira de Pascoaes (jurista feito poeta,
rectius: poeta que passou pelo foro), mas em Fraternidade e
Humanismo.
Aliás, só a fraternidade humanista dá um sentido profundo,
sólido e duradouro ao elemento social. Do mesmo modo que as
tentativas de fundar uma ordem só de "liberdade" redundaram em
libertinagem (como o "neoliberalismo" ou “ultraliberalismo” da
economia de casino) e as que se alimentaram de retóricas de
exclusiva "igualdade" nem sequer fundaram verdadeiros
igualitarismos, mas criaram burocracias privilegiadas e sufocaram as
liberdades. Faltou à tríade atribuída à Revolução Francesa,
Liberdade, Igualdade, Fraternidade, o último elemento. Foi como
se à Santíssima Trindade tivessem roubado o Espírito Santo. E
ficaram em causa as outras duas Pessoas...
Depois do paradigma do direito objetivo romanista (da
plena in re potestas) e do direito subjetivo idealista e burguês (do
direito subjetivo que se aprende nas Teorias Gerais do Direito Civil
desde logo), está a nascer, ainda com manifestações não totalmente
coordenadas, mas está a ganhar terreno, o paradigma do Direito
Fraterno Humanista, que é ou que se procura que venha a ser a
108
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

nova tradução das exigências de Justiça no Direito, para o nosso


tempo e para o futuro, pelo menos não muito distante (para o
distante surgirão outras novidades, espera-se)25.
Manifestação evidente dessa aspiração universal é o
movimento pela criação de um Tribunal Constitucional
Internacional. Em vez de se apelar para o céu, como acabariam por
recomendar aos injustiçados os filósofos britânicos Locke e Hume,
achamos que "o céu pode esperar", e queremos Justiça em todo o
Mundo, aqui e agora26.
Para que essa Justiça triunfe não é indiferente, muito pelo
contrário, que exista um instrumento teórico realista e lúcido, uma
teorização clara e desmitificada e desmitificadora. Na luta pela
Justiça uma arma essencial é a teoria no/ do Direito, uma
metodologia bem calibrada, e um crítico ensino do Direito.

Para mais desenvolvimentos, v. o nosso livro Direito Fraterno Humanista. Um


25

Novo Paradigma Jurídico, Rio de Janeiro, G/Z, 2017.


26
Para mais desenvolvimentos, v. o nosso livro Direito Internacional. Raízes &
Asas, Belo Horizonte, Forum, 2017, Prefácio de Marcílio Franca e Posfácio de
Sérgio Aquino, e Pour une Cour Constitutionnelle Internationale, em
colaboração com Yadh Ben Achour, Oeiras, A Causa das Regras, 2017.
109

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