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A CRIAÇÃO DO ENSINO DE ENFERMAGEM NO BRASIL


[The creation of the nursing teaching in Brazil]

Denise Faucz Kletemberg*


Márcia T. A. Dalledone Siqueira**

RESUMO: A retrospectiva histórica permite a pois não há mais espaço exclusivo apenas para a
análise dos fatos ocorridos de maneira crítica e puericultura e a higiene, que outrora compunham
reflexiva, procurando respostas a questionamentos o contexto dos cuidados a serem desenvolvidos
que permeiam a prática contemporânea da pelos profissionais dessa área. Seu campo de
Enfermagem. A imposição do mercado de trabalho, trabalho aumenta cada vez mais, indo da
a dicotomia teoria-prática, o cuidado centrado orientação nas escolas e postos de saúde aos
apenas no saber-fazer, a submissão da categoria estudos nas diversas especificidades do cuidado.
e sua conseqüente falta de autonomia possuem Os saberes próprios da Enfermagem foram
raízes históricas na construção profissional da forjados na prática e na observação atenta, no
categoria, tanto na prática como no ensino. Assim, somatório de experiências, nas respostas certas
apresenta-se uma análise histórica do Decreto n° para os inúmeros desafios e na permanente
791, de 27 de setembro de 1890, assinado pelo construção de novos conhecimentos. Esse
então presidente da República, Marechal Deodoro processo dialético levou a muitos caminhos, o que
da Fonseca, momento em que se criou a primeira pode ser resgatado ao privilegiar-se a perspectiva
escola de Enfermagem no Brasil. A análise e da análise histórica.
contextualização histórica do documento permitem As variações conjunturais no modelo político-
vislumbrar que a ênfase no tecnicismo, a criação econômico brasileiro, ao longo do século XIX,
de mão-de-obra barata e a subserviência, já eram tiveram implicações diretas no setor de saúde. A
questões presentes no ensino da Enfermagem no presença constante de doenças epidêmicas no
país desde seus primórdios. país dificultava as negociações dos produtos
brasileiros, destinados a exportação. Esta situação
PALAVRAS-CHAVE: História da Enfermagem; levou a uma política de controle de doenças
Educação em Enfermagem; Legislação. epidêmicas, a necessidade de profissionais
capacitados e treinados para a prestação dos
1 INTRODUÇÃO serviços, a vigilância sanitária dos portos, e ao
cuidado com os dentes. E neste contexto que
A Enfermagem vem progredindo
ocorre a institucionalização da educação de
expressivamente, buscando firmar-se como
Enfermagem no Brasil.
detentora de saber científico, sem deixar de lado
Assim, este estudo tem por objetivo fazer
o aspecto humanitário de sua profissão. De
análise histórica do Decreto n° 791, de 1890, que
Florence Nightingale ao mundo contemporâneo,
instituiu a primeira escola de Enfermagem no
seu trabalho tem-se especializado cada vez mais,
Brasil. Esta análise é pautada no método histórico,
com base em dados documentais e bibliográficos.
*Enfermeira. Mestranda do Programa de Pós-graduação em
Busca não só o Decreto em si, mas as
Enfermagem da Universidade Federal do Paraná. Bolsista de Pós- características do curso criado, refletindo a prática
graduação da CAPES. Membro do Grupo de Estudos Multiprofissional
em Saúde do Adulto - GEMSA
do cuidado dos profissionais da área.
**Historiadora. Doutora em História. Professora do Departamento de
História da Universidade Federal do Paraná.
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2 A SAÚDE NO BRASIL NO SÉCULO XIX urbano às novas exigências políticas, econômicas


e sociais diante do perigo epidêmico, o qual era
No Brasil, desde a colonização, as epidemias identificado com a desordem urbana.
grassaram livremente, atingindo principalmente os Reconhecendo também a necessidade de maior
centros urbanos. Os recursos destinados à saúde número de profissionais na área da saúde, o
eram precários ou quase inexistentes. A medicina governo da colônia criou através de Carta Régia
no Brasil era em grande parte exercida por em 1808, a Escola de Cirurgia de Salvador – na
barbeiros, cirurgiões barbeiros e físicos. “Extensas Bahia, e depois a do Rio de Janeiro.
regiões do país, povoadas sem conta não tinham Fundamentado nos compêndios franceses, o
sequer um barbeiro para as sangrias e primeiros ensino deveria constar de aulas teóricas e
socorros. O povo tomava qualquer viajante demonstrações práticas nas enfermarias das
estrangeiro como médico e logo acorria implorando Santas Casas e do Hospital Real Militar (LUZ,
um exame” (SANTOS FILHO, 1947). Se no caso 1982).
da Medicina a situação era dramática, o que se Entretanto, a prática da saúde continuou ao
poderia dizer então, dos serviços de atendimento longo do século XIX, muito semelhante à dos
e cuidados aos doentes. Esses, em sua maioria, séculos anteriores. Alguns ramos pouco se
ficavam ao encargo das próprias famílias, na figura desenvolveram, entre eles, a patologia, a
da “mãe”; ou de iniciativas caritativas, como as terapêutica, a cirurgia e a obstetrícia. A assistência
Santas Casas de Misericórdia e as ordens hospitalar era deficiente. Doenças como a varíola,
religiosas, seguindo o modelo português. que reinou de forma epidêmica, mataram um
A chegada de profissionais de saúde contingente significativo da população. A febre
estrangeiros, a partir de 1808, foi impulsionada pela amarela apresentou vários surtos epidêmicos. A
vinda da Corte portuguesa que se instalou no Brasil malária, o cólera e o tifo também estiveram
fugindo das tropas napoleônicas. A família real, presentes. Enfim, predominavam as chamadas
contando com a ajuda inglesa, transferiu-se com “doenças tropicais”.
cerca de 20 mil pessoas, trazendo consigo várias A prevalência das doenças infecto-
instituições metropolitanas, reproduzindo no Brasil contagiosas e a falta de higiene nos portos
o aparelho administrativo do Estado português. acarretavam resistência à chegada de navios,
As cidades brasileiras não estavam aparelhadas contrapondo-se aos interesses da economia
para receber o contingente de nobres e burgueses exportadora cafeeira.
que vieram junto com D. João VI. Assim, o espaço Assim, na primeira metade do século XIX,
urbano precisava ser reestruturado para evitar os iniciou-se a organização da higiene pública,
perigos das epidemias. Havia a necessidade de segundo Germano (1983), impulsionada pela
cuidados de saúde para atender às elites, bem epidemia de febre amarela em meados de 1850,
como os portos precisavam ser mantidos em boas que ceifara a vida de quatro mil pessoas. Em
condições sanitárias para garantir os interesses resposta ao pedido do Ministro do Império à
econômicos do Estado (LUZ, 1982). Academia Imperial de Medicina, da elaboração de
um plano para combater essa epidemia, algumas
Foi, sobretudo com a transferência da Corte para a
cidade do Rio de Janeiro, que teve início a história
medidas sanitárias foram reativadas, como: a
institucional da ciência no país. Com a criação de existência de um órgão dirigente da saúde pública,
Escolas profissionais de medicina e engenharia a divisão da cidade em paróquias e distritos para
militar, um horto, uma casa de História Natural. Além maior organização sanitária, o serviço de
de outras instituições culturais: uma biblioteca e uma assistência gratuita aos pobres e a inspeção
escola de belas artes, entre outras. Eram modelos
institucionais tradicionalmente reconhecidos nos
sanitária em navios, mercados, prisões, hospitais
países europeus e que, além de seu valor cultural, e colégios. Essas providências porém, tiveram
eram vistos pela Coroa, como essenciais para uma pouco impacto em relação às precárias condições
exploração mais sistemática das riquezas coloniais de vida da maioria da população, persistindo ainda
(DANTES, 1995). o grave problema das epidemias, contrastando
Portanto, era necessário adequar o espaço com os avanços científicos alcançados pela
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medicina e a biologia de então. fundada em 1923, como a primeira escola de


Só no final do século, as alterações foram Enfermagem do Brasil. Isso é justificado por ter
sentidas na prática dos serviços de saúde, que sido esta a primeira a funcionar genuinamente sob
passaram, cada vez mais, a se ocupar do corpo a orientação e organização de enfermeiras, como
social. Conforme se refere Luz (1982): “Com a esclarece Germano (1983), diferentemente da
Escola de Enfermeiros e Enfermeiras, cujo quadro
criação das escolas médicas, criou-se um espaço
docente era composto por médicos e supervisores
institucional indispensável à reprodução do saber do Hospital a ela filiado.
médico, que busca criar uma consciência higiênica A escola surgiu diante da necessidade de
do povo e excluir os charlatões das práticas formar pessoal qualificado para o atendimento aos
curativas”. enfermos do Hospital Nacional de Alienados do
A persistência do problema das epidemias Rio de Janeiro, instituição que havia sido
se arrastou pelo país até as primeiras décadas do abandonada pelas irmãs de caridade.
século XX, constituindo-se em um entrave às O atendimento à pacientes psiquiátricos
relações comerciais e econômicas, tanto nacionais sempre despertou a atenção das autoridades, tanto
como internacionais. Neste contexto, segundo dos médicos como dos religiosos e leigos. Assim,
Germano (1983), o sanitarista Oswaldo Cruz foi a necessidade de uma instituição para o abrigo
específico de doentes mentais se fazia presente,
convidado pelo governo a empreender uma
pois todos aqueles que apresentassem problemas
campanha para controlar a febre amarela no Rio de loucura eram confinados em prisões, como
de Janeiro, combatendo paralelamente a varíola criminosos, ou confinados a celas em instituições
e a peste. de saúde, tratados inadequadamente e por vezes
Ainda segundo Germano (1983), “é nesse sob torturas físicas. Segundo Moreira (2002), para
quadro que emerge o ensino sistematizado da a sociedade era conveniente a restrição destes do
Enfermagem, com o propósito de formar convívio social, devendo ser construídos para eles
profissionais que contribuíssem para o asilos e abrigos afastados dos centros urbanos.
saneamento dos portos”, como a criação da escola Assim, em 1841, D. Pedro II criou no Rio de Janeiro
Anna Nery, em 1923. Imprime-se assim no discurso o Hospício Pedro II, localizado na Chácara do
oficial, a caracterização histórica dos primórdios Vigário Geral, de propriedade da Santa Casa de
Misericórdia. As obras tiveram início em 1842,
do ensino de Enfermagem no Brasil, na área de
vindo a funcionar dez anos depois, com 144
saúde pública, a fim de garantir o saneamento dos pacientes hospitalizados.
portos.
No entanto, sabe-se historicamente que a Havia grades, celas de isolamento, quartos fortes,
primeira escola voltada para a assistência mas existia um esboço de tratamento ocupacional,
hospitalar foi criada no final do século XIX, junto com instrumentos de música, oficinas para trabalhos
ao Hospital de Alienados no Rio de Janeiro. manuais e, sobretudo, claridade e pátios arborizados.
Após a construção do novo prédio, o Ministro do
2.1 A PRIMEIRA ESCOLA DE ENFERMAGEM NO Governo Provisório, Aristides Lobo, pelo Decreto
BRASIL 162-A, de 11 de janeiro de 1890, determinava a
desanexação do hospício e suas colônias da Santa
O ensino de Enfermagem foi oficialmente Casa de Misericórdia. Passou então a denominar-
instituído no Brasil com a criação da Escola se Hospital Nacional de Alienados (MOREIRA, 2002).
Profissional de Enfermeiros e Enfermeiras,
conforme o Decreto Federal n° 791, de 27 de Foi então designado, como Diretor Geral, o
Dr. João Carlos Teixeira Brandão, que implementou
setembro de 1890, do Governo Provisório da
mudanças na instituição, dentre elas a destituição
República dos Estados Unidos do Brasil do poder das irmãs de caridade que prestavam
(RESENDE, 1961). Posteriormente, esta escola assistência aos hospitalizados. Desprestigiadas,
passou a ser denominada Escola de Enfermagem essas abandonaram o hospital gerando
Alfredo Pinto. descontinuidade na assistência aos hospitalizados.
Na literatura de Enfermagem, contudo, vários A solução foi a contratação de enfermeiras leigas,
documentos apresentam a Escola Anna Nery, européias, para substituí-las.
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Apesar da crise econômica enfrentada pela gerações infelizes, que voltam mais tarde aos pontos
República, gerando drástica redução orçamentária de agazalho dos seus progenitores.
A escola de enfermeiras, pois, que o decreto que
no governo de Campos Sales, a solicitação do vos offereço tende a crear, abre, me parece, um
diretor do Hospital de Alienados foi atendida. Ele campo vastíssimo á actividade da mulher, onde, por
propunha a contratação de enfermeiras de sua delicadeza de sentimentos e apuro de carinhos,
Salpêtrière (França), cujo contrato foi firmado entre não terá competidores, quer junto aos leitos dos
o Ministro da França e o do Brasil, com vigência enfermos hospitalares, quer nas casas particulares
onde serão o complemento do médico (BRASIL,
de dois anos, de fevereiro de 1893 a fevereiro de 1890).
1895. Esse episódio expôs o confronto entre o
poder laico e o poder clerical, demonstrando a Esse processo culminou em um decreto
supremacia do Estado no controle assistencial. federal, que definiu a formação e as qualificações
Diante da situação, Moreira (2002) esclarece próprias para o profissional de enfermagem.
que:
2.2 LEGALIZANDO O OFÍCIO
Com um discurso psiquiátrico de melhoria da
assistência, a situação em que ficou o serviço do O Decreto Federal n° 791 de 27 de setembro
hospício, com a saída das religiosas e a falta de mão-
de-obra para assumir os trabalhos – foi vislumbrada
de 1890, criou oficialmente a primeira escola de
a possibilidade de se solucionar o problema. Tendo enfermagem no Brasil. Apresentado em oito
em vista a deficiência de infra-estrutura no artigos, dispunha sobre o ensino e a prática da
funcionamento hospitalar e na assistência exercida assistência no país.
pelo pessoal não qualificado, apesar das medidas No seu primeiro artigo, instituiu no Hospício
tomadas, frutificou a idéia da criação de uma escola
para preparar o pessoal de Enfermagem para o
Nacional de Alienados uma escola destinada a
Hospital Nacional de Alienados e os hospitais civis e preparar enfermeiros e enfermeiras para atuar nos
militares do Rio de Janeiro (MOREIRA, 2002). hospícios e hospitais civis e militares. Assim, trouxe
para a alçada do Estado a responsabilidade de
Fica evidente o paradoxo, num contexto formar mão-de-obra qualificada para prestar
social de epidemias atingindo parte significativa assistência aos enfermos em diferentes serviços
da população, a primeira escola para formação de e instituições. Contrariando desta forma a prática
profissionais em enfermagem surgiu em usual, que até então consistia no recrutamento de
decorrência da mobilização política da classe pessoas abnegadas, de boa-vontade e imbuídas
médica e da elite burocrática. Confrontavam-se de espírito caritativo, a exemplo das ordens e
assim, o poder eclesiástico representado pelas instituições religiosas, que eram responsáveis pelo
irmãs de caridade, que detinham a autoridade treinamento de pessoal e pela supervisão da
dentro da instituição hospitalar, e o próprio Estado. prestação dos cuidados aos enfermos.
A justificativa da criação da escola para o O segundo artigo dispunha sobre as
preparo de pessoal qualificado às funções de disciplinas a serem ministradas:
enfermagem também foi sugerida como solução
para a inserção do contingente feminino, mantido Art. 2° O curso constará:
em orfanatos públicos e filantrópicos, no mercado 1°, de noções práticas de propedêutica clínica;
2°, de noções geraes de anatomia, physiologia,
de trabalho. Esse aspecto é referendado por José hygiene hospitalar, curativos, pequena cirurgia,
Cesário de Faria Alvin, ao apontar novos horizontes cuidados especiaes a certas categorias de enfermos
à mão-de-obra feminina: e applicaçoes balneotherapicas;
3°, de administração interna e escripturação do
Em regra, não encontrando applicação immediata e serviço sanitário e econômico das enfermarias.
remunerada para sua actividade educada, ou
conservam-se nos estabelecimentos que as Observa-se que as disciplinas elencadas apontam
preparam e que as não despedem, perdendo assim prioritariamente para a formação de uma visão
tempo e impedindo o recebimento de outras
necessitadas, ou se unem por casamentos
hospitalar, em virtude da carência de profissionais
desiguaes que quase nunca a mutua affeição qualificados no país. Entre os profissionais
determina, pelo que se constituem novas fontes de atuantes, o destaque era para as congregações
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religiosas, proporcionando um espaço de poder e seguintes aspectos: o candidato deveria ser maior
hegemonia eclesiástica, muitas vezes rivalizando de 18 anos; saber ler e escrever corretamente,
com as determinações e gerenciamentos oficiais. conhecer aritmética elementar e apresentar
O currículo do curso era exclusivamente atestado de “bons costumes”.
voltado para a assistência hospitalar, o que O pré-requisito de alfabetizado transparecia
evidenciava uma contradição, pois apesar da no nível de desempenho esperado deste
preocupação governamental com as políticas de profissional. Um trabalhador voltado para o saber
saúde pública para a contenção das epidemias, a fazer, para prestar assistência aos alienados de
formação profissional foi forjada pelas maneira simples e sem questionamentos. O pedido
necessidades de atendimento ao paciente do atestado de “bons costumes” remete à
psiquiátrico. Isso se deveu às articulações políticas, reminiscência histórica, presente desde o final da
às recomendações médicas, bem como ao apoio Idade Média. Tratava-se de uma certidão, emitida
da população, que pressionava pela retirada dos pelas autoridades locais, informando sobre o
alienados e mendigos dos centros urbanos. comportamento de determinada pessoa.
O terceiro artigo dispunha sobre a O mesmo artigo fazia alusão à “bolsa-
metodologia pedagógica. trabalho”, podendo admitir alunos internos e
externos, sendo que os primeiros não poderiam
Art. 3° os cursos theóricos se effectuarão tres vezes exceder o número de 30. Além de aposento e
por semana, em seguida a visita as enfermarias, e
serão dirigidos pelos internos e inspectoras, sob
alimentação, tinham direito à gratificação no
fiscalização do médico e superintendência do director primeiro ano, expressos na quantia de vinte mil
geral. reis (20$) mensais; no segundo ano, depois da
primeira aprendizagem, de 25$. Deveriam ainda,
Aqui se percebe a lógica positivista, trabalhar em conjunto com os empregados do
compreendida na nacionalidade do ensino teórico estabelecimento no serviço que lhes fosse
e a posterior aplicação na prática assistencial, designado. Asseguravam-se assim, trabalhadores
seguindo o modelo francês que orientava também para o Hospital de Alienados, desde o segundo
as escolas de medicina. Encontram-se, desde os ano de implementação da escola.
primórdios do ensino da Enfermagem no Brasil, Este artigo, que trata das matrículas,
evidências da divisão entre teoria e prática, cuja curiosamente não estabelece o número de vagas
permanência e questionada e sentida até hoje, existentes, porém fixa o número de alunos internos,
pelos profissionais da área. o que demonstra que já havia esta possibilidade
O conteúdo teórico era ensinado pelos desde a turma inaugural, demonstrando a intenção
próprios médicos, os quais forneciam noções da criação da escola, ou seja, preparo e
elementares para o bom desempenho profissional. treinamento de pessoal que prestasse serviços ao
Cabia a tarefa prática de supervisão às inspetoras, Hospital de Alienados.
neste caso, as enfermeiras francesas contratadas, Em seu quinto artigo, o Decreto conferia
pela instituição: prêmios de 50$ (mil reis) aos alunos que se
destacassem nos exames. O estímulo financeiro
[...], tendo sido a escola criada em 1890, beneficiou-
se dos préstimos e orientações das enfermeiras
em premiar os melhores alunos seria um incentivo
francesas, uma vez que, do ponto de vista da ao estudo ou a preocupação dos dirigentes do
autonomia administrativa e econômica, era mantida Hospital com a qualidade da formação? São, sem
a sombra das injunções do Hospital Nacional de dúvida, aspectos instigantes que merecem
Alienados, o qual funcionava em condições precárias reflexões futuras, pois não se conhecem registros
(MOREIRA, 2002).
sobre esse fato.
O mesmo artigo prossegue:
Portanto, havia uma divisão de tarefas, bem
como uma rígida hierarquia de controle, sob a [...] aos enfermeiros diplomados e alumnos que em
fiscalização do direito hospitalar. qualquer tempo se invalidarem no exercício da
O quarto artigo determinava as condições profissão em hospitais mantidos pelo Estado, por
para as matrículas. Elas deveriam respeitar os effeito dos deveres a ella inherentes, se abonará uma
pensão proporcional ao ordenado que perceberem.
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Esta é uma preocupação nova para o Estado, institucionais na sociedade brasileira do século
pois ao remunerar o trabalhador na área de saúde, XIX, apresenta-se como uma forma do Estado
deveria prever pensões quando estes estivessem intervir diretamente nas ações do cuidar. Portanto,
impossibilitados de exercer o ofício; preocupação não pode ser desligada do contexto histórico em
esta inexistente, quando o cuidado de enfermagem que foi produzida, face às condições de saúde da
estava sob responsabilidade das congregações população e aos movimentos sociais que se
religiosas. Denota-se assim, uma política organizaram em torno da questão da saúde no
trabalhista, que visava a manutenção do serviço e Brasil.
assegurava as condições do profissional. Embora o processo histórico apresente
Moreira (2002) considera que embutido nos diversas conjunturas, e no momento das crises
aspectos trabalhistas está o controle social do epidêmicas que eles se manifestaram plenamente.
profissional da enfermagem, ao afirmar que: Nestes momentos, novos mecanismos de controle
são pensados e postos em prática.
Podemos dizer que a Enfermagem, no Brasil, teve A institucionalização do ensino da
como pano de fundo do processo de
institucionalização de seu ensino as funções de
enfermagem representou não só a ampliação do
preservação, manutenção e conservação da força campo de atuação da enfermagem, como também,
de trabalho, constituindo-se simultaneamente, o reconhecimento da profissão pelo Estado, ao
também, em força de trabalho barata, mas nível formal. Esse processo de normalização,
imprescindível a implementação do projeto de embora de interesse do Estado, encontrou
controle social, que se estabelecia com a participação
da psiquiatria (MOREIRA, 2002)
resistências na prática, por parte das antigas
instituições responsáveis pelos serviços.
O artigo sexto dispunha sobre a duração do Assim ocorreu com a Escola Profissional de
curso, que poderia ser realizado, no mínimo, em Enfermeiros e Enfermeiras do Rio de Janeiro, que
dois; cabendo ao diretor geral da Assistência Legal oficialmente veiculou, num primeiro momento, os
dos Alienados conferir o diploma. Isso sugere modelos de saber da enfermagem, a serem
indiretamente a carência de profissionais na área difundidos no país. Entretanto, não fica evidente
e a necessidade da rápida habilitação, dentro da categoria profissional um projeto de
minimizando desta forma, a precária situação de afirmação de poder ou de formação, uma vez que
atendimento aos doentes nos serviços de saúde. se traduziu numa imposição medica da alçada do
Em seu sétimo artigo, o diploma estabelecia governo, portanto externa aos profissionais da
a preferência para os empregos em hospitais enfermagem. Contudo, fica clara a intenção do
mantidos pelo Estado e previa aposentadoria aos Estado em excluir a Igreja da formação e execução
25 anos de exercício profissional, de acordo com das práticas do cuidado.
as leis vigentes então. Com a carência de Apesar do Decreto n° 791/1890 representar
profissionais capacitados no mercado, o Decreto um avanço para a regulamentação e valorização
parece mascarar a verdadeira intenção dos da prática da Enfermagem no Brasil, fica claro o
criadores da escola a serviço do Estado, qual seja, seu enfoque prioritariamente biologicista. Fato este
direcionar os egressos para os serviços públicos, determinado pela lógica do mercado de trabalho
oferecendo reserva de vagas para estes, da época, ou seja, formar profissionais voltados
garantindo o retorno do profissional. para prestar a assistência, o cuidado com o doente
Os aspectos disciplinares são tratados no hospitalizado e a integração no serviço,
oitavo artigo, ficando os alunos sujeitos às penas respeitando-se a hierarquia institucional.
disciplinares impostas nas instruções do serviço O Decreto também traz impresso o
interno do Hospital de Alienados aos seus pensamento dos detentores do poder, quanto à
empregados. formação da categoria, colocando a ênfase no
saber-fazer, sob o controle de uma hierarquia,
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS subalterna aos demais profissionais e serviços.
Esta visão do profissional da enfermagem ainda
A enfermagem, desde suas origens permanece cristalizada em determinados centros
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e serviços, subjugando a enfermagem à medicina cuidado como manifestação do ser e fazer na


e às instituições empregadoras. Enfermagem. Vidya. Santa Maria, v. 1, n. 1, jul/
A ruptura desse processo, do saber-fazer dez. 1996.
para o saber-ser enfermeiro, a busca da
cientificidade, traduz-se hoje em verdadeiro LUZ, M. T. Medicina e ordem política brasileira.
anacronismo, a proplada dicotomia teoria-prática, Rio de Janeiro: Graal, 1982.
dado aos avanços científicos obtidos na área e na
maneira holística de se abordar o paciente. Sem MOREIRA, A. A primeira escola de enfermagem.
dúvida, a quebra desse modelo demandou uma In: GEOVANINI, T. et al. História da Enfermagem:
tomada de consciência e de valorização do versões e interpretações. 2. ed. Rio de Janeiro:
profissional da Enfermagem, que no mundo Revinter, 2002.
contemporâneo busca estabelecer uma identidade
própria no contexto social e histórico em que se RESENDE, M. A. Ensino de Enfermagem. Revista
desenvolve a profissão, no âmbito dos cuidados Brasileira de Enfermagem. Rio de Janeiro, v. 15,
da área de saúde no país. n. 2, p. 110-158, abr. 1961.

ABSTRACT: The historical retrospective allows the SANTOS FILHO, L. História da Medicina no
analysis of the facts in a critical and reflexive way, Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1947.
looking for answers to questions that arise in the
comtemporary Nursing prctice. The theory-practice SILVA, G. B. A Enfermagem profissional: análise
dichotomy, the care centered only in know-how-to- crítica. São Paulo: Cortez, 1986.
make, the submission of the category and its
consequent lack of autonomy have historical roots SORDI, M. R. L.; BAGNATO, M. H. S. Subsídios
in the professional construction of Nursing, in its para uma formação profissional crítico-reflexiva na
practice as well as in the teaching process. We área de saúde: o desafio na virada do século.
present an analysis of the n° 791 Decree signed Revista Latino-americana de enfermagem,
by Marechal Deodoro da Fonseca, president of the Ribeirão Preto, v. 6, n. 2, p. 83-88, 1998.
Brazilian Republic at the time, which isntitued the
fisrt school of Nursing in Brazil. The analysis of
such decue in its historical context allow us to infer
ENDEREÇO DAS AUTORAS:
that teaching of Nursing in Brazil emphasizes the Rua Pedro Collere, 684
technical aspects since then. Curitiba/PR
80320-320

KEY WORDS: Nursing History; Nursing Education;


Legislation.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Decretos do governo Provisório da


República dos Estados Unidos do Brasil. 9°
fascículo. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1890.

DANTES, M. A. Relações científicas e tradições


locais. In: GOLDFARD, A. M.; MAIA, C. História
da Ciência. São Paulo: Edusp, 1995. p. do capítulo.

GERMANO, R. M. Educação e ideologia da


Enfermagem no Brasil. São Paulo: Cortez, 1983.

LACERDA, M. R.; COSTENARO, R. G. S. O

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