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próxima

1
realização Centro de
Comunicação e Letras

apoio Mack
Pesquisa

universidade

sumário

próxima

anterior

2
Ficha catalográfica: PMStudium Comunicação e Design.

II Seminário Histórias de roteiristas: Artes e Comunicação na


Era dos Roteiristas | organização: Glaucia Davino e Fernanda
Bellicieri. São Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie,
2010.

capa
ISBN: 978-85-62814-06-8

364 p. ; 56 il

universidade

sumário

9 788562 814068

1. Audiovisual. 2. Roteiro. 3. Comunicação. I. Núcleo Audiovisual


próxima – UPM. II. Centro de Comunicação e Letras - UPM. III. DAVINO, G.
IV. BELLICIERI, F. - IV MACKPESQUISA

CDD – 791.043

anterior

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CORPO DIRETIVO DA UNIVERSIDADE CORPO DIRETIVO DO CENTRO DE
PRESBITERIANA MACKENZIE COMUNICAÇÃO E LETRAS

DIRETORA
CHANCELER Profª. Drª. Esmeralda Rizzo
Prof. Dr. Augustus Nicodemus Gomes Lopes

capa COORDENAÇÃO DE JORNALISMO


REITOR Prof. Ms. Osvaldo Takaoki Hattori
Prof. Dr. Pedro Ronzelli Júnior

COORDENAÇÃO DE LETRAS
DECANATO ACADEMICO Prof. Dr. Alexandre Huady Torres Guimarães
Prof. Dr. Ademar Pereira

universidade COORDENAÇÃO DE PUBLICIDADE E PROPAGANDA


DECANATO DE PESQUISA e PÓS-GRADUAÇÃO Prof. Ms. Marcos Nepomuceno Duarte
Profª. Drª. Sandra Maria Dotto Stump

COORDENAÇÃO DE EXTENSÃO
sumário DECANATO DE EXTENSÃO Profª. Drª. Ana Lucia Trevisan
Prof. Dr. Cleverson Pereira de Almeida

COORDENAÇÃO DE PESQUISA
PRESIDENTE DO MACKPESQUISA Profª. Drª. Angela Schaun
Josimar Henrique da Silva

próxima COORDENAÇÃO DA POS GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO ARTE E HISTORIA DA


CULTURA
Profª Drª. Maria Aparecida de Aquino

COORDENAÇÃO DA POS GRADUAÇÃO EM LETRAS


anterior Profª. Drª. Diana Luz Pessoa de Barros

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Comitê Técnico Científico e Pareceristas ad hoc
COMITÊ EDITORIAL
Dr. Alfredo Caminos
Universidad Nacional de Córdoba, AR, RED INAV
Dr. Celso Figueiredo
Assessor da Reitoria e Prof CCL/ UPM
Drª Flávia Seligman
UNISINOS
Editores Drª Helena B. C. Pereira
Decano Extensao UPM
Glaucia Davino Dr. José Carlos Marques
Fernanda Bellicieri
capa
Depto. Ciências Humanas, UNESP
Dr. José da Silva Ribeiro
Editor Executivo
PPG Universidade Aberta de Lisboa, PT
Drª Letícia Passos Affini
Paulo Cezar Barbosa Mello
Rádio e TV, UNESP
Conselho Editorial Drª Maria Ignês Carlos Magno

universidade
PPG Anhembi Morumbi
Drª Ana Lucia T. Pelegrino Coordenadora de Extensão Drª Maria Aparecida Baccega
do CCL UPM PPG USP – PPG ESPM
Drª Angela Schaun Coordenador Temático do Seminário Drª Maria do Céu Marques
Drª Esmeralda Rizzo Diretora do CCL UPM PPG, Universidade Aberta de Lisboa, PT
sumário Drª Glaucia Davino Presidente do Seminário Drª Maria Fátima Nunes
Dr. Maurício Gonçalves Coordenador Temático do Seminário Instituto Superior da Maia, ISMAI Portugal

Dr. Pel Cypriano Coordenador Temático do Seminário Drª Marília Silva Franco
ECA USP
Dr. Vicente Gosciola Coordenador Temático do Seminário
Dr. Nuno Cesar P. de Abreu

próxima PPG Unicamp – Cineasta


Dr. Pedro Hellín Ortuño
Universidad Murcia, ES - RED INAV
Drª Regina Giora
PPG Educação Arte e História da Cultura – UPM

anterior Drª Roseli Fígaro


ECA – USP

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Pareceristas Ad Hoc

Dr. André Nobrega Dias Ferreira


CCL UPM
Dr. Aryovaldo de Castro Azevedo Junior
UFRN
Drª Elen Cristina Souza Koch Vaz Döppenschmitt
UFMG
Dr. Denis Porto Renó
UNICOC; RED INAV
Drª Isabel Orestes Silveira
capa CCL UPM
Jerónimo León Rivera Betancur
UDEM, CO; RED INAV
Drª Josette Maria Alves de Souza Monzani
UFSCar
Drª Luiza Lusvarghi
universidade Universidade Nove de Julho.
Marcos Rizzoli
Coordenador Geral PPG UPM
Drª Maria Goretti Pedroso
sumário Centro Universitário Belas Artes de São Paulo
Drª Mariza Reis
CCL UPM
Drª Míriam Cristina Carlos Silva
PPG/ UNISO
próxima Dr. Ricardo Bruscagin Morelatto
CCL UPM
Dr. Rogério Ferraraz
Anhembi Morumbi
Drª Rosana Schwartz
anterior CCL UPM

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CREDITOS DOS EVENTOS

REALIZAÇÃO

Núcleo Audiovisual – Nav (Grupo de pesquisa CNPq)


Centro de Comunicação e Letras da Universidade
capa Presbiteriana Mackenzie

APOIO APOIO AO I WORKSHOP TECNOLOGIAS DO VIDEO DIGITAL

Mackpesquisa AD Studio
(http://www.adstudio.com.br/)

universidade
PARCERIAS, CHANCELAS E APOIOS Assimilate Brasil
(http://www.assimilateinc.com/index.html )
Associação dos Roteiristas (AR)
Merlin
Autores de Cinema (AC)
(http://www.merlin.com.br/)
Grupo de Pesquisa Artemídia Videoclip (CNPq)
sumário
Seegma
(http://bit.ly/Grupo_de_pesquisa_artemidia)
(http://www.seegma.com.br/)
Martinelli Films
(http://www.martinelli-films.com.br/) CONCEPÇÃO E APLICAÇÃO DA IDENTIDADE: LOGOTIPO, CARTAZES
Rede Iberoamericana de Narrativas Audiovisuais (RED INAV) E BANNERS

próxima
(http://webapps.udem.edu.co/redINAV/links.htm)
Flávio Duarte Cavalcanti de Albuquerque

anterior

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Secretária Executiva
COMITÊ EXECUTIVO
Ana Lúcia de Souza Lopes

Apoio Técnico

Janaína Santiago
Karoline Ceconi Alvino

Monitoria
II SEMINARIO HISTORIAS DE ROTEIRISTAS
Agência Júnior de Comunicação
Dra. Ana Lúcia T. Pelegrino
capa Dra. Angela Schaun
Lucas Silveira
aluno de Publicidade e Propaganda, CCL, UPM
Edson Capoano

Dra. Elaine C. dos Santos
Marília Fecchio
Dra. Esmeralda Rizzo
aluna de Publicidade e Propaganda, CCL, UPM
Ms. Fernanda Bellicieri

universidade
Dra. Glaucia Davino Comissão de Trabalho das Mesas Temáticas
Ms. Marcos N. Duarte
Ms. Paulo Cezar Barbosa Mello Francisco Tupy UNESP
José Estevão Favaro UPM
Letícia P. Affini UNESP RTV
sumário I WORKSHOP DE TECNOLOGIAS DO VÍDEO DIGITAL Luisa Lusvarghi UNINOVE
Márcio Ribeiro UPM
Ms. Flávio D. C. de Albuquerque
Mª– Elisa Albuquerque UPM
Dra. Glaucia Davino
Rosana Schwartz UPM
Esp.Márcio Ribeiro

próxima
Sabina Anzuategui Cásper Líbero
Ms Marcos N. Duarte

anterior

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3) CICLO DE WORKSHOPS VIVÊNCIAS E EXPERIÊNCIAS
CONVIDADOS Bráulio Mantovani
Roteirista de Cidade de Deus e Tropa de Elite 1 e 2.
Tema: Criação do personagem central “Capitao
Nascimento” presente no Tropa de Elite 1 e 2.
Júlio Meloni (Roteirista da Série);
Edu Felistoque (Diretor da Série) e
Sérgio Martinelli (Produtor da Série e docente no Mackenzie)
II SEMINARIO HISTORIAS DE ROTEIRISTAS
Mediador do Workshop “Experiência da Criação da
1) PALESTRA DE ABERTURA série Bipolar”
Newton Cannito Tema: Experiência da Criação da série policial
capa DD Secretário do Audiovisual (SAV) do Ministério Televisiva “Bipolar”
da Cultura
Tema: A Era dos Roteiristas 4) CURSOS
Master Class: Roteiro e Performance Pianística
2) CICLO DE PALESTRAS Dr. André Rangel (PhD, musicista e docente IA-UNESP)

universidade
Carolina Kotscho Dra. Glória Machado (PhD, musicista e docente
Roteirista e produtora, membro da Autores de Cinema IA-UNESP)
Tema: Legislação, o Estado do Trabalho dos Roteiristas
no Novo Contexto e a Ação das Associações na Implantação Roteiro Básico
de Políticas e Editais de Roteiros Di Moretti (roteirista e membro da AC)
sumário Juliana Reis Direção de Atores
roteirista, diretora e produtora, membro da Autores Estudio Fátima Toledo (preparação de atores)
de Cinema Roteiro Institucional
Tema: o trabalho de Script Doctor. Marcelo Dias (roteirista da TV Mackenzie)

próxima
Roberto Moreira Roteiro de Cineclube
PhD em Cinema, Graduação em Cinema, roteirista, Pel Cypriano (cineasta, PhD e docente IA-UNESP)
diretor e professor de roteiro da ECA /USP Adaptação
Tema: Roteiro no ensino de Cinema E Audiovisual Sabina Anzuategui (roteirista e escritora)
Rodrigo Castilho (roteirista, dramaturgo e
membro da AR)
anterior

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I WORKSHOP DE TECNOLOGIAS DO VIDEO DIGITAL treinamento para clientes Latino Americanos.
Temas: Demonstração de Correção de Cores e Efeitos
Especiais; Pós Produção de Televisão de Alta
1) Palestra e apresentação das principais Câmeras Definição em 3D; Video Digital do U2 em 3D;
Digitais de Cinema e Televisão, Tecnologia 3D na TV
Fernando Rozzo
Escola de Cinema e Projeção Digital 6) Palestra
Tema: Princípios de Captura, Tecnologia Presente Kalled Adib
e Futura. HDTV 2K e 4K. Superintendente Rede TV
Tema: REDE TV – pioneira na exibição de programas em
2) ANIMAÇÃO DIGITAL 3D estereocopia 3d no brasil
capa Tomas Egger
Diretor de Cinema e Comerciais 7) Mesa redonda
TEMA: Comerciais, os Efeitos Especiais em 3D Tema: “Tendência atual e futura do Mercado de
Tecnologias do Vídeo Digital”
3) Estereoscopia S3D Mediação
Prof. Flávio Albuquerque
universidade
Prof. Flavio Albuquerque (Mackenzie – CCL)
Docente e Pesquisador do Mackenzie Composição da Mesa
Temas: - Produção e PósProdução em video digital Fernando Rozzo (Escola de Cinema e Projeção Digital)
com softwares através de anaglífos; Kalled Adib ( Superintendente Rede TV )
- Apresentação da Camera Estereoscópica com Luis Carlos Merluzzi ( Sony e Merlin )
sumário 2 lentes S3D Panasonic AG3DA1 com Monitoração em Luiz Fernando Tasselli ( Sony e Merlin )
Televisão 3D. Marcos Oliveira ( Seegma )
Tomas Egger ( Eletric Image e AD Studio )
4) Demonstração do Lançamentos de Câmeras
Robóticas da Sony (linhas PMW-320, PMW-350 e PMW-500)
próxima Luis Carlos Merluzzi
Luiz Fernando Tasselli
Engenherios Sony e Merlin
5) SCRATCH (ASSIMILATE)
Vlade Lisboa
anterior Desenvolvedor de Negócios da Assimilate para America
Latina. Responsável por vendas, suporte técnico e

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PROGRAMAÇÃO DOS EVENTOS
Eng. Luis Carlos Merluzzi
Demonstração do Lançamentos de
Luiz Fernando Tasselli
17h00 Câmeras Robóticas da Sony (linhas
Sony e Merlin
PMW-320, PMW-350 e PMW-500)

18h00 coffee break

Dia 16 de novembro de 2010 - terça

PROGRAMAÇÃO SCRATCH (ASSIMILATE) Vlade Lisboa


Demonstração de Correção de Desenvolvedor de Negócios
PRE EVENTO: I WORKSHOP TECNOLOGIA DO VIDEO DIGITAL
capa
Cores e Efeitos Especiais Vendas, suporte técnico
18h30
Pós Produção de Televisão de Alta e treinamento
Coordenação: Prof. Ms. Flávio Albuquerque e Definição em 3D Video Digital do Assimilate America Latina
U2 em 3D Tecnologia 3D na TV
Prof. Ms. Marcos Nepomuceno

Horário Evento Responsável

13h00 Credenciamento

universidade Abertura;
Câmeras Digitais de
Cinema e Televisão; Prof. Fernando Rozzo
14h00 REDE TV
Princípios de Captura Escola de Cinema e Projeção Digital Sr. Kalled Adib
Tecnologia Presente e Futura 20h15 Pioneira na exibição em
Superintendente Rede TV
HDTV 2K e 4K. estereoscopia 3D no Brasil

sumário
Sr. Tomas Egger
Animação Digital 3D
Diretor de Cinema e Comerciais
Comerciais - Efeitos
15h00 EIAS Eletric Image
Especiais em 3D
AD STUDIO
Antonio Correia Jr.(Seegma)

próxima
Fernando Rozzo (Escola de
Cinema e Projeção Digital)
Flavio Albuquerque
15h45 coffee break (Mackenzie - CCL)
Mesa Redonda Kalled Adib (Superintendente
Tendências atual e Rede TV)
Estereoscopia S3D: 21h00
futura do Mercado Luis Carlos Merluzzi
Produção e Pós Produção de Tecnologias do Vídeo Digital (Sony e Merlin)
Prof. Flávio Albuquerque
Cinema e Video Digital em S3D com Luiz Fernando Tasselli
Professor/ Pesquisador
16h00 Softwares através de anaglifos; (Sony e Merlin)
CCL - Mackenzie
anterior Camera Estereoscópica com 2 lentes
S3D Panasonic AG3DA1
Marcos Oliveira (Seegma)
Tomas Egger (Eletric
Monitoração em Televisão 3D. Image e AD Studio)

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PROGRAMAÇÃO: II Seminário Histórias de Roteiristas

Dia 17 de novembro de 2010 - quarta Dia 18 de novembro de 2010 - quinta

MANHÃ MANHÃ

8h00 — 10h00 Credenciamento/ Cofee break 8h00 — 13h00 Cursos


10h00 Abertura
Abertura do II Seminário TARDE
Palestra A Era dos Roteiristas
Newton Cannito - Secretario do Audiovisual 14h00 — 15h00 Ciclo Palestras [2]

capa (MinC) O lugar do roteirista na mudanqa de cenário:


Conquistas, Criatividode e Trabalhos
TARDE Karolina Kotscho (AC, Dama Filmes, roteirista,
produtora)
14h00 — 15h00 Ciclo Palestras [1]
Roteiro no ensino de cinema e audiovisual 15h15 Coffee Break
universidade Roberto Moreira (roteirista, diretor e professor
de roteiro na ECA USP) 15h30 — 18h30 Mesas Temáticas [2]
Apresentação de trabalhos e debates
15h15 Coffee Break
sumário NOITE
15h30 — 18h30 Mesas Temáticas [1]
Apresentação de trabalhos e debates 18h45 Cofee break

NOITE 19h00 — 21h30 Ciclo Workshop Vivências e Experiências 2


próxima A Construção do Personagem “Nascimento” nos roteiros
18h45 Cofee break do Tropa de Elite 1 e do Tropa de Elite 2
19h — 21h30 Ciclo de Workshop Vivências e Experiências 1 Bráulio Mantovani (AC, roteirista, produtor)
Série de TV, o caso BIPOLAR
Júlio Meloni (roteirista da série) e Edu Felistoque
anterior (diretor da série)

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Dia 19 de novembro de 2010 - sexta Cursos Oferecidos

MANHÃ Cursos - II Seminário Histórias de Roteiristas


A segunda edição dos Seminários Histórias de Roteiristas

8h00 — 13h00 Cursos manteve em sua programação a oferta de cursos de curta dura-
ção, relacionados ao tema.

TARDE Esses cursos ocorreram no período da manhã dos dias 18 e


19 de novembro de 2010.

14h00 ­
— 15h00 Ciclo Palestras [3] É um espaço com a finalidade de inserção e atualização de

Script Doctor, encontre um ... experiências, além do contato com os profissionais do mercado

Juliana Reis (AC, roteir ista, diretora, produtora) que ministram os cursos.
capa • Adaptação (10hs) - Sabina Anzuategui e Rodrigo Castilho

15h15 Coffee Break • Roteiro de Animação (10hs) – Rodolfo Oliveira


• Roteiro Básico (10hs) - Di Moretti

15h30 — 18h30 Mesas Temáticas [3] • Roteiro Institucional (10hs) - Marcelo Dias

Apresentação de trabalhos e debates • Direção de Atores (10hs) - Estudio Fátima Toledo


• Master Class: Roteiro e Performance Pianística (5hs)
universidade NOITE Grupo Artemídia Videoclip
• Roteiro de Cineclube (5hs) - Grupo Artemídia Videoclip

18h45 Cofee break


19h00 — 21h30 Workshop Vivências e Experiências 3
sumário Encerramento do Evento: A Presença da
Teledramaturgia
Marcílio Moraes (presidente da AR)

próxima

anterior

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mento, uma paisagem, deixa de ser um rito de participação para
PREFÁCIO se tornar quase que exclusivamente momento de registro para
comunicação e/ou expressão midiatizada. E a contemplação do
que foi fotografado/registrado poderá ser consumida em outro
momento, através de dispositivo digital e/ou mesmo impresso.
No âmbito social, a alternância entre real e virtual,
que parecia afastar os seres humanos, fornece um novo cami-
nho, amplia as oportunidades de compartilhamento, encontros,
A Era da Expansão
reencontros, novas amizades e trocas, globalmente. As redes
A aura binária, assistida depois da Era Industrial, am- sociais foram criadas e apenas crescem porque são alimentadas
pliou ainda mais a importância do papel tecnológico na exis- por essa dinâmica social, caso contrário, sucumbiriam.
capa tência humana. No entanto, não se pode qualificar o cotidiano E a promessa do mundo digital abarca muito mais: capaci-
binário - regido por bases comunicacionais, artísticas, digi- dade de acessar conhecimentos dos mais diversos, de compar-
tais, midiáticas - como cenário positivo ou negativo. tilhar material, de produzir arte, de disseminar idéias, de
Por exemplo, a fotografia eterniza lembranças de lugares, resolver problemas...
objetos e acontecimentos. Em tempos primordiais era necessá- A promessa da Era Industrial significou a extensão das ha-

universidade
rio o processo químico para a visualização da imagem e os apa- bilidades físicas do ser humano, substituindo-as por máquinas
relhos eram dotados de recursos limitados pela “modernidade” (mecânicas). As tecnologias digitais atuam como extensões da
da época. A expansão permitida pela digitalização mudou as forma de pensar, de organizar informações, de comunicar, de
relações de quem capta as imagens (qualquer pessoa com um ce- criar, de entender e entreter. Por isso, quanto mais tecno-
lular ou outro aparelho) e daqueles que são fotografados. As logia integrada à vida, os mais impensáveis desejos humanos
sumário câmeras costumam disparar continua e rapidamente e o autor/ parecem alcançáveis.
espectador capta as informações visuais mesmo sem noção de No entanto, a posição superlativa das novidades é efêmera.
quantidade e/ou qualidade. A intenção se concentra em regis- Aparelhos, aplicativos, softwares, plugs, métodos, práticas e
trar o máximo de frames que podem ser armazenados no chip da etc. que surgem como as mais avançadas amostras de alta tec-

próxima
câmera: quase que inúmeras e imponderáveis apropriações cegas nologia, depois de breve período passam a ser incorporadas ao
daqueles momentos, pessoas ou objetos. cotidiano, reforçando a sensação de velocidade das inovações.
Passado aquele momento, é possível rever e armazenar a se- Na Era Digital se enfatiza o repertório, a velocidade e o
qüência dos registros que testemunham a presença do fotógrafo fluxo de informações, dando destaque às atividades nas áreas
in loco, mas simultaneamente indicam que, ao fotógrafo, não das comunicações e das artes midiatizadas, potencializando o
crescimento imponderável da demanda de diversidade de produ-
anterior
houve oportunidade/tempo de contemplação e apreciação, pelos
sentidos. Todos podem fotografar, não é mais exclusividade ção de conteúdos audiovisuais e da capacitação profissional.
técnico-profissional. Estar presente diante de um aconteci- Sem pedir licença, pesquisadores, estudiosos e profissio-

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nais das artes e comunicações foram atirados e sugados para tecnologia e formas de produção com roteiro. No I Worksho de
dentro desse universo, pois as adaptações e/ou hibridizações Tecnologias do Vídeo Digital se foram discutidas e demonstra-
das linguagens já consagradas, e as novas relações advindas das relações das tecnologias do vídeo digital, com enfoque no
delas, alargaram a atuação, a influência e a necessidade de que há de mais inédito.
pessoas preparadas para refletir e agir nesta área. Como resultado deste Seminário, podemos oferecer, enquan-
Nesse fluxo de mudanças o roteiro/guião audiovisual foi to produto material, a publicação deste livro.
igualmente tragado e passou a ocupar um lugar de destaque na O projeto que alimenta os seminários se mantém em sintonia
criação e os escritores audiovisuais se projetam sob uma nova com transformações técnicas, estéticas e mudanças de valores
óptica. O que testemunhamos na trajetória temporal da his- no trabalho da indústria audiovisual. Por isso, para fina-
toria do audiovisual foi a reorganização dos roteiristas em lizarmos este prefácio, consideramos oferecer as vozes dos
nível internacional, para lidarem com as perspectivas dessas roteiristas do mundo, transcrevendo completa e literalmente
capa mudanças, e garantirem o espaço do processo criativo audio- a cópia da DECLARAÇÃO INTERNACIONAL DA 1ª CONFERÊNCIA INTER-
visual. NACIONAL DE ROTEIRISTAS, de 2009, assinada pela presidente
O projeto de pesquisa sobre roteiro, inédito, iniciado da Federation des Scenaristes d`Europe e a chair da Interna-
pelo grupo NAv (Núcleo Audiovisual) em 2004, em harmonia com tional Affiliation of Writers Guilds, que foi distribuída e
este cenário, foi a inspiração para os Seminários Histórias publicada em várias partes do mundo.

universidade
de Roteiristas. Pesquisadores do grupo continuam a desenvol- Nossa fonte foi o site da International Affiliation
ver as pesquisas pertinentes ao tema e oferecem os seminários, of Writers Guilds (IAWG), URL: http://iawg.org/News/En-
como eventos acadêmicos e publicações como ação propagativa tries/2009/11/7_Writers_commit_to_increased_cooperation_and_
de lançar sementes. solidarity_at_1st_World_Conference_of_Screenwriters.html
O Iº Seminário Histórias de Roteiristas; Novo Paradigma
sumário Audiovisual ocorreu em Outubro de 2009 no Mackenzie, São Pau-
lo, Brasil; precedido, Semanas antes, por outro evento, em Athens declaration

escala internacional: a 1ª Conferência Mundial de Roteiris-


tas, em Atenas, na Grécia, com o intuito de partilhar expe-
Writers commit to increased coopera-

próxima
riências, de refletir sobre o trabalho ontológico do rotei-
tion
rista, de assegurar as relações financeiras e criativas já
and solidarity at the 1st World Confe-
conquistadas.
rence of Screenwriters
Em 2010, foi realizada a segunda edição do evento, o II
Saturday, November 7, 2009
Seminário Histórias de Roteiristas: Artes e Comunicação na Era
In the new digitized and globalized
dos Roteiristas, que proporcionou oportunidades de aprendiza-
anterior do, compartilhamento, discussões e da edificação de conheci-
world, we screenwriters have today come
together in Athens, Greece, to discuss our
mentos. Este seminário contou com um pré-evento, aproximando
central role in the creation of the stories

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that are carried with such impact to the world’s myriad scre- Michael Winship, Chair, International Affiliation of Wri-
ens and to people’s minds and hearts. ters Guilds
Stories influence our behaviour and shape our culture.
They help us understand. Stories can conquer fear. Stories
have power. As screenwriters, the storytellers of our time, List of Proposed Joint Actions
we are conscious of our role and our responsibility and we
Building on the relationships formed through collective
have met to make sure that we can continue our work in the
actions taken during the 2007-2008 writers’ strike in the Uni-
new environment.
ted States and further cemented during the first World Confe-
The creative and financial challenges that we face can
rence of Screenwriters in Athens in November 2009, the Board
only be met if we join forces and work together. We insist on
of the FSE and Policy and Research Group of the IAWG have
the individual capacity of every one of the twenty-five thou-
capa
discussed the strengthening of working relationships between
sand screenwriters whose representatives are gathered here to
the two organizations. In the interest of writers everywhere,
see and understand the world in their own way and to reflect
we have agreed that we will:
that unique perspective in their stories. We exult in the kno-
1. Establish an information system on the FSE and IAWG
wledge that individual creativity is what brings us together
websites to keep member guilds of each organization in-
to defend and assert our common rights and goals.
formed of the activities of the other;

universidade
We endorse the ambitions and intentions of the Charter of
2. Agree to a system of exchange of information between
the FSE, the Charter of the IAWG and the Manifesto of European
guilds about topics of collective interest, establish
Screenwriters.
and circulate a contact list of all the world’s writers’
We demand the right of screenwriters everywhere to be
guilds and publish and distribute an occasional global
acknowledged as an author of the audiovisual work that they
sumário
e-newsletter;
have written and to be fairly compensated for each and every
3. Arrange to have observers at one another’s meetings;
use made of their work. In pursuit of these objectives we
4. Set up a group to work together virtually to agree to
will engage in active collaboration on campaigns that seek to
a glossary of basic terms related to writers, writing
achieve our common goals.
and remuneration that could be agreed to globally;

próxima
We pledge to work together to defend and extend the rights
5. Set up a group to work together virtually that would
of writers for the screen.
agree to basic terms in respect of writers’ credits that
Agreed and signed on Saturday, 7th November 2009 in Athens
could be agreed to globally;
at the conclusion of the first World Conference of Screenwri-
6. Establish a joint campaign on the right to collec-
ters.
tive bargaining, beginning with an analysis of common
anterior Christina Kallas, President, Federation des Scenaristes
problems;
7. Establish a joint campaign on the future of collec-
en Europe/Federation of Screenwriters in Europe
ting societies in the digital world, starting with an

16
analysis of the relationship of writers’ guilds to col-
lecting societies worldwide.;
8. Stand ready to support one another with appropriate
solidarity activities in the event of any crisis situ-
ation;
9. Take note of the debates and conclusions of the first
World Conference of Screenwriters;
10. Initiate a discussion about the desirability and
practicality of establishing a global organisation for
screenwriters.

capa Glaucia Davino e Fernanda Bellicieri


Coordenação Geral II Seminário Historias de Roteiristas
Artes e Comunicação na Era dos Roteiristas

universidade

sumário

próxima

anterior

17
profissionais do cinema e audiovisual passou a se exigir um
APRESENTAÇÃO novo posicionamento que, sem rupturas nem manifestos radicais
e como que brotado e crescendo espontânea e organicamente na
demanda do próprio contexto, passou a valorizar o escritor
audiovisual. Os roteiristas passaram a se ver e a serem vis-
tos como profissionais preparados para executar a “primeira
realização” criativa - o roteiro escrito e/ou desenhado.
II Seminário Histórias de Roteiristas - Arte e Comunica-
Tomamos emprestado o maior dom dos escritores de, num ri-
ção na Era dos Roteiristas
tualístico jogo solitário de letras e desenhos imaginários,
Se, é costume organizar a história da humanidade por perí-
profetizar histórias que serão vistas e testemunhadas pelo
odos e / ou ciclos, a abordagem histórica do cinema / audiovi-
olhar do público. Ao nos apropriarmos deste dom de vislum-
capa sual nacional não fugiu deste modelo em suas faces políticas,
brar o futuro, como que vendo numa bola de cristal destinos,
culturais, produtivas, nas suas manifestações teóricas e cria-
acontecimentos e histórias, afirmamos que se fará confirmada
tivas. E, como bem analisou Paulo Emílio Salles Gomes sobre
cada vez mais a necessidade deste personagem criativo, o ro-
o cinema brasileiro, esses ciclos foram marcados por períodos
teirista ou escritor audiovisual, como o queiram chamar. Por
alternados de tentativas, sucessos e fracassos. Rever fatos
isso, com os devidos e mais que merecidos créditos, eles são
de um passado distante e fitar atentamente aos acontecimentos

universidade
os protagonistas deste II Seminário Histórias de Roteiristas.
contemporâneos expõe e nos faz reconhecer no tecido históri-
O crescente prestígio do roteirista no audiovisual marca
co do cinema e audiovisual o entrelaçamento de fibras tradi-
e define uma “nova era” incondicionalmente distinta de outras
cionais com fibras, fios e fitas forjadas nas mãos de novas
no Brasil. Validar a Era dos Roteiristas é trazê-los parte
sensibilidades humana e tecnológica. Sinais reveladores dos
integrante da História e de suas histórias. É de alguma for-
sumário vestígios e ritos que testemunham espaços, momentos sociais,
ma fazer com que assinem a punho autoral a independência das
culturais e políticos rastreadas numa linha do tempo. A luz
letras cinematograficamente elaboradas, sem tirar do diretor,
do recente final do séc.XX projeta a nítida imagem do audio-
de forma alguma, a primazia da utoria audiovisual. Ao contrá-
visual brasileiro premente por renovação através de movimen-
rio, é perceber que juntos compõem uma parceria indissociá-
tos simultâneos e incessantes de profissionais na idealização
próxima
vel. Uma parceria que mistura Caminhos prováveis, devaneios,
de novas formas de revigorá-lo e perpetuá-lo e no movimento
verossimilhanças, sintaxes, gramáticas e estruturas traçadas
que ressoa as inovações tecnológicas digitais e absorção dos
em letras pelo roteirista, com a tradução do imaginário das
hibridismos das mídias. Naquele momento, o cinema já passara
figuras, cores, fundos, ações, cenários, tempo e espaço cor-
dos 100 anos, o resgate das raízes da linguagem, a reiteração
porificados pelo diretor. O ponto de chegada é uma obra au-
das matrizes cinematográficas (narrativas ou não), a louvação
diovisual acabada, que contém o roteiro a ser vivenciado pelo
anterior das vanguardas e o veredicto sobre a expansão audiovisual ao
espectador nas formas oculta e cristalizada.
longo dos anos futuros já estavam consolidadas. A classe dos
Proposto sob o alicerce de quatro Temas e da diversidade

18
de treze Abordagens (e/ou Linguagens) o “II Seminário Histó- Audio Visual.
rias de Roteiristas”: Considerando o crescente desenvolvimento das tecnologias
(a) promove intercâmbio acadêmico, cultural e profissio- que envolve Produção Digital, confirmamos que “ela veio para
nal na área a partir de apresentações, discussões, reflexões ficar, de forma irreversível” nas formas de trabalho com ima-
sobre Roteiros e Roteiristas e as diversas relações com a gens e sons, desde a captação de imagens via câmeras digi-
criação, produção, exibição e a história; (b) reitera a im- tais de alta definição, agora com preços mais acessíveis, e
portância e dar prosseguimento aos conteúdos abordados no os sistemas de edição e de armazenamento de dados da era dos
“Primeiro Seminário Histórias de Roteiristas” em 2009, cuja Terabites.
temática trouxe à tona o fato concreto do novo paradigma au- Com o fácil acesso aos softwares de edição não linear, de
diovisual: representado pela inclusão e a representação dos composição, correção de cores e efeitos especiais digitais em
roteiristas na história o cinema e audiovisual; (c) compar- 2D e 3D, nos faz acreditar que agora nada é impossível de se
capa tilha e expande o repertório de conhecimentos; (d) contribui criar e produzir com a mesma qualidade de Hollywood. O mercado
com a difusão da produção dos diversos Pesquisadores e estu- do Audio Visual entrou de vez se equiparando às produções de
diosos neste vasto campo e (e) mantêm estreita relação com as Televisão de Alta Definição com as produções de Vídeo e Cinema
tecnologias contemporâneas. Digital, em termos de tecnologia e mão de obra especializada.
O desenvolvimento das pesquisas nas áreas de tecnologias Trouxemos, à comunidade do audiovisual, acadêmica e pro-

universidade
do audiovisual, no Núcleo Audiovisual (NAV), gerou a oportu- fissional, o que há de mais moderno em termos de equipamentos,
nidade de abrigamos, no âmbito das atividades do Seminário know how e novos conhecimentos com os seguintes temas:
Histórias de Roteiristas, o I Workshop de Tecnologias do Ví- Cameras Especiais Estereoscopia 3D; Efeitos Especiais Ci-
deo Digital concebido, organizado e coordenado pelos profes- nema e TV; Correção de Cores 2K e 4K
sores Flávio Albuquerque (NAV) e Marcos Nepomuceno, preceden-
sumário do o Seminário. Concepção, Organização e Coordenação
Na certeza de que estaremos juntos escrevendo parte des- Prof. MS. Flavio Duarte Cavalcanti de Albuquerque, e
sas histórias. Prof. MS. Marcos Nepomuceno Duarte
Glaucia Davino e Fernanda Bellicieri

próxima Apresentação do I Workshop de Tecnologias do Vídeo Digital

O I WORKSHOP DE TECNOLOGIAS DO VIDEO DIGITAL, realizado


em 16 de novembro de 2010, no CCL - Centro de Comunicação e
Letras – da UPM Universidade Presbiteriana Mackenzie, visa
anterior informar e estimular reflexões, discussões, apresentações e
debates sobre a presença das novas tecnologias do Vídeo e Ci-
nema Digital, e sua importância nos Meios de Comunicação do

19
Roteiro e história - abordagens diversas
SUMÁRIO
ROTEIRIZAÇÃO EM SUSO CECCHI D’AMICO: DO NEO-REALISMO
ITALIANO A CONTEMPORANEIDADE........................... 63
DENISE CAMILLO DUARTE

A EVOLUÇÃO DO CINEMA BRASILEIRO ATRAVÉS DA SAGA DO


PREFÁCIO............................................... 14 CINEASTA VÍTOR LIMA BARRETO............................ 72
APRESENTAÇÃO........................................... 18 JÚLIO CÉSAR RICCÓ PLÁCIDO DA SILVA | SIMONE PRISCILA MELZ | PELÓPIDAS CYPRIANO PEL

Processo Criativo: Adaptação; Relações entre Linguagens UMA PONTE PARA O CINEMA DOS ANOS 1980: A HISTÓRIA DOS

capa
FILMES PARA A JUVENTUDE................................ 81
QUINCAS BERRO D´ÁGUA - JORGE AMADO NO CINEMA, MAIS UMA LUCIANO VAZ FERREIRA RAMOS

VEZ.................................................... 24
ROTEIRO E HISTÓRIA: FILME DOCUMENTO OU MONUMENTO....... 91
HELENA B. C. PEREIRA
ROSANA SCHWARTZ

O CINE-ROMANCE E O ROTEIRO LITERÁRIO: UM ESTUDO


SANGUE NEGRO E O ESPÍRITO DO CAPITALISMO............... 95

universidade
INTERARTES............................................. 31
ANDRÉ LUÍS GOMES TEIXEIRA COSTA MENEZES
MARIA ANGÉLICA AMÂNCIO SANTOS

LITERATURA ROTEIRIZADA PARA TEATRO: DIALOGIAS - AUTOR,


Processo Criativo: Métodos; Estilos; Elementos narrativos
ATOR, DIRETOR E PLATÉIA................................ 38

sumário
MARLENE FORTUNA
A QUESTÃO FONÉTICA DO DIÁLOGO NO CINEMA............... 104
ANA CRISTINA PAUL
CHAPEUZINHO NO VERMELHO - DA TRADIÇÃO ORAL, LITERÁRIA E
CINEMATOGRÁFICA AOS ROTEIROS DA VIDA................... 49 O PENSAMENTO FILOSÓFICO COMO RECURSO PARA A CRIAÇÃO
ISABEL ORESTES SILVEIRA | MIRTES DE MORAES | NORA ROSA RABINOVICH
DE ROTEIROS: CONCEITO E CONFLITO NA ROTEIRIZAÇÃO

próxima ASPECTOS DO ROTEIRO DE ADAPTAÇÃO DE OS SERTÕES PARA


AUDIOVISUAL........................................... 108
ANDREA CACHEL | CYNTHIA SCHNEIDER
TELENOVELA............................................. 57
MÔNICA DE MORAES OLIVEIRA | PELÓPIDAS CYPRIANO PEL
TEMPO E ESPAÇO: UM ESTUDO FILOSÓFICO SOBRE O FILME BRILHO
ETERNO DE UMA MENTE SEM LEMBRANÇAS.................... 114
ANDREA CACHEL | CYNTHIA SCHNEIDER
anterior

20
A RELEVÂNCIA DO CENÁRIO NA NARRATIVA GRÁFICA “Y, O ÚLTIMO roteiro e mercado: analálise, prática e experiências
HOMEM”................................................ 119
LUIZ GUILHERME COUTO PEREIRA PLANO 8: UMA EXPERIÊNCIA EM CINEMA.................... 191
ANITA CAVALEIRO DE MACEDO CABRERA | PELÓPIDAS CYPRIANO DE OLIVEIRA
A REALIDADE DA FICÇÃO CINEMATOGRÁFICA: O ROTEIRO...... 124
ANA CLÁUDIA DE FREITAS RESENDE PAPEL DE ROTEIRISTA................................... 197
GISELE BADENES
O AUTÔMATO DE MAELZEL E O NARRADOR INVISÍVEL.......... 131
CRISTIANE LAGE DE MATOS ROTEIRO COLETIVO: UM MÉTODO CRIATIVO PARA UM PRIMEIRO
CONTATO DE ADOLESCENTES E JOVENS DE PERIFERIA COM A
O ENSINO DE ROTEIRO................................... 137 PRODUÇÃO AUDIOVISUAL.................................. 208
ROBERTO MOREIRA
JOÃO RODRIGO COSTA DE SOUZA | VALQUÍRIA APARECIDA PASSOS KNEIPP

capa A ORIENTAÇÃO PARA PRODUÇÃO DE ROTEIROS CINEMATOGRÁFICOS QUAL O SEGREDO DE HOLLYWOOD NO SUCESSO DA PRODUÇÃO DO
PARA ALUNOS DE PUBLICIDADE............................ 142 FILME AVATAR?......................................... 215
ROGÉRIO DOS SANTOS OTA
PATRÍCIA MARGARIDA FARIAS COELHO | MARCELO SANTOS | VANDERSON FERNANDES DOS SANTOS

ARTEMÍDIA: O ROTEIRO E SEUS ROTEIROS.................. 229


Processo Criativo: Poéticas; Autor(ia); Gêneros.
universidade
RUBENS EDUARDO MONTEIRO DE TOLEDO

AUDIOVISUAL AUTORAL E O ROTEIRO MULTIDIMENSIONAL NA


PRODUÇÃO DO DOCUMENTÁRIO.............................. 148 Processo criação e Roteirização: novas mídias; áudio
ARIANE DANIELA COLE

sumário ZÉZERO: OZUALDO CANDEIAS E SUA MISTURA DE ESTILOS


A NARRATIVA TRANSMIDIÁTICA COMO COMPLEMENTO DE
ENREDO DO SERIADO LOST................................ 235
NARRATIVOS ........................................... 158 ANDRÉ LUIZ SALATA VENANCIO
RODRIGO CAZES COSTA
ROTEIRIZAÇÃO DA PERFORMANCE PIANÍSTICA................ 243
O ROTEIRO E A IMAGEM POÉTICA DO FILME O ESPELHO DE ANDREI
próxima
GLÓRIA MARIA MACHADO | ANDRÉ RANGEL | ANNA CLÁUDIA AGAZZI | PELÓPIDAS CYPRIANO PEL
TARKOVSKY ............................................ 166
YASKA ANTUNES (FÁTIMA ANTUNES) ROTEIRO MAQUÍNICO: A CONSTRUÇÃO DA NARRATIVA DO JOGO QUE
VIROU CINEMA ......................................... 252
APROXIMAÇÕES METODOLÓGICAS E REPRESENTAÇÕES NO CINEMA E GUILHERME WEFFORT RODOLFO
NA ANTROPOLOGIA....................................... 173
anterior JOSÉ DA SILVA RIBEIRO NARRATIVA AUDIOVISUAL COMPLEXA E MODULAR: FORKING PATH
NARRATIVES E PUZZLE FILMS ............................ 256
LETÍCIA PASSOS AFFINI | LUIS ENRIQUE CAZANI JUNIOR

21
A INTERFACE DO FILME INTERATIVO E SUA USABILIDADE roteiro e produção (abordagens diversas)
NARRATIVA............................................. 267
NATHAN NASCIMENTO CIRINO DESLOCADOS: DESENVOLVIMENTO DE UMA SITCOM MACKENZISTA.339
FERNANDO LUIS CAZAROTTO BERLEZZI | EZEQUIEL DE SOUZA GARRIDO PORDEUS
A NARRATIVA MIDIÁTICA DA CAMPANHA PUBLICITÁRIA: “TRÊS
TRAJETÓRIAS EXCEPCIONAIS, UM JOGO HISTÓRICO” DA LOUIS APLICAÇÃO DO MÉTODO DE PAISAGEM NA INTERPRETAÇÃO E
VUITTON .............................................. 277 CRIAÇÃO DE CENÁRIOS/PERSONAGENS....................... 346
ANA CLAUDIA DE OLIVEIRA | JÔ SOUZA FRANCISCO TUPY | PELÓPYDAS CYPRIANO PEL

UMA ANIMADA SINFONIA BRASILEIRA....................... 283 ESTEREÓTIPOS E CINEMA: HIPÓTESES SOBRE A VISÃO DO NORTE
DANIEL MOREIRA DE SOUSA PINNA AMERICANO ACERCA DO BRASIL............................ 350
ÉRICA GROSSO | ISABEL ORESTES SILVEIRA

capa UMA ADAPTAÇÃO BEM SUCEDIDA............................ 293


GÉRSON TRAJANO PROCESSOS E PROCEDIMENTOS NO ATELIER-LABORATÓRIO DO
ARTISTA-CINEASTA ROTEIRO DE CRIAÇÃO DE MÁQUINAS....... 356
O ROTEIRO DE O GRITO, TELENOVELA DE JORGE ANDRADE..... 300 CÉLIO MARTINS DA MATTA
SABINA ANZUATEGUI
DESENVOLVIMENTO DE UM EPISÓDIO DE SITUATION COMEDY.... 361

universidade
O QUADRINHO “Z, A CIVILIZAÇÃO PERDIDA”: A INVERSÃO DA EZEQUIEL DE SOUZA GARRIDO PORDEUS | FERNANDO LUIS CAZAROTTO BERLEZZI
ADAPTAÇÃO CINEMATOGRÁFICA............................. 308
JÚLIO CÉSAR RICCÓ PLÁCIDO DA SILVA | SIMONE PRISCILA MELZ

DE KING A KUBRICK, A SIGNIFICAÇÃO: QUESTÕES SOBRE

sumário A FIDELIDADE, A ADAPTAÇÃO, E O SEMISSIMBOLISMO EM O


ILUMINADO............................................. 317
ODAIR JOSÉ MOREIRA DA SILVA

SPIDER EM PRIMEIRA PESSOA............................. 327

próxima
GUILHERME SARMIENTO DA SILVA

anterior

22
capa
PROCESSO
CRIATIVO:
universidade
ADAPTAÇÃO;
sumário
RELAÇÕES
próxima
ENTRE
anterior
LINGUAGENS
23
outro lado, não deixa de se recobrir de ironia e de um leve
QUINCAS BERRO D´ÁGUA - JORGE desencanto com o mundo.
AMADO NO CINEMA, MAIS UMA VEZ A recente produção do filme Quincas Berro d’Água demons-
tra, todavia, a presença ainda marcante do autor no repertó-
rio cultural deste início de século 21, tornando oportuna uma
reflexão sobre a adaptação de textos literários para outras
mídias e, em especial, para o cinema. Torna oportuno também
retomar o número extraordinário de seus romances que foram
H elena B. C. P ereira convertidos para outras modalidades, não só filmes, como no-
Professora Doutora na Universidade Presbiteriana Mackenzie
velas e minisséries para tevê, e ainda peças de teatro. Nem
tudo se compõe de material reprodutível, o que é, em especial,
capa Dentre os escritores brasileiros com obras adaptadas para a característica das encenações teatrais que deixam vestí-
o cinema, Jorge Amado seguramente se destaca pelo número, mas gios, como fotos, reportagens e, muito eventualmente, rotei-
também pelas diferenças de qualidade entre as adaptações. As ros. Muito do que se adaptou para a tevê pode ser recuperado,
versões de livros para outras mídias costumam despertar con- graças ao quase milagre contemporâneo do youtube, apesar das
trovérsias, não sendo, portanto, de surpreender que as obras deficiências em som, imagem ou conservação dos materiais.

universidade
de Amado tenham encontrado condições de aceitação bastante Pode-se visualizar o quadro de adaptações, ainda que in-
variadas, por parte do público e da crítica. completo e restrito ao cinema e à tevê, com base em levanta-
Apresentar Jorge Amado torna-se ação dispensável, dado mento publicado por Andrade e Reimão (2007):
o alcance de sua obra, escrita ao longo de mais de sessenta
anos, e de sua popularidade em amplos segmentos da literatu- Título 1ª Ed. Adaptado para
sumário ra e da cultura, no Brasil e no exterior. Escritor inserido
Jubiabá 1935 Filme
na nossa história literária no grupo que teria configurado a
era do romance brasileiro moderno (e não mais modernista) a Capitães da areia 1937 Filme
partir da década de 30 do século passado, Amado transpôs para Terras do Sem-Fim (1943) 1943 Novela

próxima
a literatura relatos orais e manifestações populares, acen- Filme
Gabriela, cravo e canela (1958) 1958
tuadamente folclorizadas, de Salvador e da região cacaueira Novela
A morte e a morte de Quincas Berro
da Bahia. Frequentemente suas personagens movimentam-se em 1961 Filme
d’Água (1961)
espaços semidegradados, em algum período na primeira metade Os pastores da noite (1964) 1964 Minissérie
do século passado. Uma leitura mais rigorosa evidenciaria que
Dona Flor e Seus Dois Maridos 1966 Filme
estão quase sempre entre o estereótipo e a improvisação, po-
anterior rém a serviço de uma visão de mundo que, se peca por recorrer Tenda dos milagres (1969) 1969 Minissérie
ao expediente fácil de acentuar os aspectos folclóricos, por

24
de expressão diferentes: imagens visuais, a linguagem verbal oral
Teresa Batista cansada de guerra 1972 Minissérie (diálogos, narração..), sons não verbais (ruídos e efeitos sonoros),
música e a própria linguagem escrita (letreiros..). (2003, p. 42)
Tieta do Agreste (1977) 1977 Novela
Nos pressupostos sobre adaptação, contribui também o já
Tocaia grande (1984) 1984 Novela
mencionado Xavier, para quem o cineasta deve buscar uma tona-
O sumiço da santa (1988) 1988 Novela lidade, uma atmosfera, um ritmo que seja equivalente ao que
se encontra no romance por meio da palavra (2003, p. 62).
Levando em conta apenas alguns filmes mais relevantes, A equivalência entre palavras e imagens mantém o estilo, ou
vale a pena cotejar a data da obra original com a de sua adap- seja, entre livro e filme não há fidelidade, mas há equiva-
tação, já que, como observa Ismail Xavier (2003, p. 62), cada lência estilística. E ao se tratar de pressupostos teóricos
obra dialoga com seu tempo e cada adaptação atualiza a pauta da roteirização para adaptar uma obra, é quase obrigatória a
capa da obra. Assim, contemplando apenas alguns filmes, observa- menção a Syd Field, talvez o mais famoso criador de roteiros
-se: em nosso tempo. Para ele, adaptar significa transpor de um
meio para outro.
Título Publicação Adaptação Um romance geralmente lida com a vida interior de alguém, os pen-
samentos, sentimentos, emoções e memórias do personagem que ocorrem
(...). Um
dentro do cenário mental da ação dramática roteiro lida
Quincas Berro d’Água 1961 2010
universidade
com exterioridades, com detalhes(...). Um roteiro é uma história

Jubiabá 1935 1987 contada em imagens. (1995, p. 174-175)

Gabriela, cravo e canela 1958 1983


Quincas Berro d’Água
Dona Flor e Seus Dois Maridos 1966 1976
sumário Quase exceção, essa novela contrasta com o padrão “cente-
nas de páginas” dos romances de Jorge Amado. Os longos roman-
Antes de comentar a versão mais recente de Quincas Ber-
ces podem converter-se facilmente em novelas ou minisséries
ro d’Água, é necessário retomar brevemente os pressupostos
porque têm enredo cheio de detalhes, movimentam um grande
teóricos da adaptação e da roteirização. Livro e filme são
elenco, com personagens que atuam em diversas locações, sendo
próxima
produtos culturais diferentes, embora um seja “derivado” do
muitas delas exóticas, ou folclóricas, em cidades como Sal-
outro. Está superada a antiga obrigatoriedade de fidelidade
vador ou na região do cacau. Tudo isso torna tais narrativas
do filme em relação ao livro, pois cada um deles é um produto
atraentes para mídia televisiva. Para transformar um romance
cultural e assim deve ser apreciado e usufruído. Além disso,
em filme, todavia, torna-se imperioso executar um esforço de
como ressalta Randal Johnson:
síntese, em que tudo deve condensar-se em 90 a 120 minutos,
A ‘fidelidade’ é um falso problema porque ignora dife-
anterior
insistência na
renças essenciais entre os dois meios (...). Enquanto um romancista exigindo uma roteirização rigorosa, que exclua personagens ou
tem a sua disposição a linguagem verbal, com toda a sua riqueza me- eventos sem interferência direta no conflito central.
tafórica e figurativa, um cineasta lida com pelo menos cinco materiais

25
Nesse sentido, escrito em menos de cem páginas, Quincas narrador, é o primeiro impasse a ser resolvido na roteiriza-
Berro d’Água oferece pouca resistência para que seu conteú- ção. O enredo, ou conteúdo narrado, não oferece resistência,
do seja transposto para o cinema. Se há aí uma vantagem, por pois trata-se da morte repentina de um indivíduo que havia
outro lado, uma única ação monopoliza o conflito central, o sido um chefe de família exemplar e funcionário público de
que leva à inserção de episódios secundários, apenas mencio- carreira, e que, em um dia qualquer, decidiu abandonar tudo
nados em duas ou três linhas, ou leva ao desenvolvimento de para tornar-se um legendário malandro nas ladeiras e no cais
peripécias sem vinculação direta com a trama, ou até mesmo de Salvador. Para o filme, Sérgio Machado criou um narrador
estranhas ao conteúdo do livro. Obriga-se a roteirização a onisciente, dono de uma linguagem muito peculiar, irônica,
suprimir personagens ou eventos que não tenham interferência capaz de comentar o que acontece e fazer julgamentos de va-
direta no conflito central. Fora do conjunto de romances ex- lor, que é o próprio protagonista. Como narrador, ele relata
tensos e quase exceção na obra de Amado, Quincas Berro d’Água as controvérsias relativas aos fatos narrados, a começar pelo
capa é uma novela estruturada praticamente em formato de conto, ou episódio principal, que consiste na definição de quando e
seja, em torno de um único evento: a morte do boêmio Quincas, como teria ocorrido sua morte. Inicia-se desta forma o livro:
com as reações dos amigos de quem se aproximara em anos re- Até hoje permanece certa confusão em torno da morte de Quincas Berro
d’Água. Dúvidas por explicar, detalhes absurdos, contradições no de-
centes, por um lado, e da família que havia abandonado, por
poimento das testemunhas, lacunas diversas. Não há clareza sobre hora,
ter se cansado de ser o esposo modelar, a quem todos tiravam local e frase derradeira. A família, apoiada por vizinhos e conhe-

universidade
o chapéu e apertavam a mão. (Amado, 1984, p. 27) cidos, mantém-se intransigente na versão da tranqüila morte matinal,
sem testemunhas, sem aparato, sem frase, ocorrida quase vinte horas
Quando uma única ação monopoliza o conflito central, duas
antes daquela outra propalada e comentada morte na agonia da noite,
opções parecem mais evidentes para a roteirização: ou se man- quando a lua se desfez sobre o mar e aconteceram os mistérios na orla
tém um ritmo lento, em que cada recordação evocada, cada fala da Bahia. (AMADO, 1984, p. 15)
pode ser inserida com tempo para adquirir completo signifi-
No livro, o narrador costuma desempenhar um papel funda-
sumário cado, ou se passa à inserção de episódios secundários, apenas
mental, porém espera-se que ocorra no filme o seu desapareci-
mencionados em duas ou três linhas no livro, peripécias sem
mento, sendo sua função atribuída às movimentações da câmera.
vinculação direta com a trama. Parece ter sido esta última
A opção narrativa encontrada neste filme, ao dar voz ao pro-
a opção de Jorge Machado, pelas razões comentadas adiante. A
tagonista que morre nas cenas iniciais, parece bem adequada

próxima
estruturação em um único evento não foi o único aspecto pro-
para manter essa figura e, com ela, a “literariedade” do pro-
blemático para a roteirização. Quincas Berro D’Água reúne ou-
duto.
tros componentes narrativos de certa complexidade, como é o
Além da criação de uma voz narrativa encarnada no pró-
caso da voz narrativa, do estilo, e ainda de recursos como a
prio protagonista, a roteirização soube valer-se corretamente
ironia e a paródia.
da autonomia, tomando liberdades, em relação ao livro, que

anterior Confluência estética entre livro e filme


contribuem para a atualização de pauta referida por Xavier.
Nessa atualização, acrescenta-se algo da visão de mundo, da
Quanto à voz narrativa, foco narrativo ou simplesmente cultura, dos costumes do tempo presente. É o que ocorre em

26
relação à comunicação da notícia da morte aos familiares de roteirizar, já que a interioridade, com pensamentos e recor-
Quincas, em que alterações na caracterização de personagens dações das personagens, expressas no texto escrito, converte-
e na diegese permitiram que se mantivesse o alinhamento com a -se em exterioridade. Episódio bem feliz, nesse sentido, é o
obra-fonte. Um recorte de pouco mais de um minuto, no filme, que apresenta Vanda ao lado do caixão de Quincas, no que se
demonstra esse fato, quando a família de Quincas recebe a no- refere a suas recordações do passado:
tícia de sua morte. No livro, um santeiro – profissão antiga e Penteado, barbeado, vestido de negro, camisa alva e gravata, sapatos
lustrosos, era realmente Joaquim Soares da Cunha quem descansava no
praticamente sem referências para o leitor/espectador urbano
caixão funerário.
de hoje – se dirige à casa de Vanda, a filha do falecido. Esse
santeiro, caracterizado como velho magro de carapinha branca, Um suspiro de satisfação escapou-se-lhe do peito. (…) Era como se
houvesse finalmente domado Quincas, era como se lhe houvesse de novo
foi recebido na casa e fez questão de contar tudo em detalhes
posto as rédeas, aquelas que ele arrancara um dia das mãos fortes de
que ocupam três páginas da narrativa. Otília, rindo-lhe cara. (…) Sentia-se
capa
na vingada de tudo quanto

Filha e genro ouviam sem prazer aqueles detalhes com negra e er- Quincas fizera a família sofrer, aquela humilhação de anos e anos.

vas, apalpadelas e candomblé. Balançavam a cabeça, quase apressavam


Pena que ele estivesse morto e não pudesse ver-se ao espelho, não
o santeiro, homem calmo, amigo de narrar uma história com todos os
pudesse constatar a vitória da filha, da digna família ultrajada.
detalhes. Só ele sabia dos parentes de Quincas, revelados em noite
de grande bebedeira, e por isso viera. (id., p. 21-23) Quisera Vanda nessa hora de íntima satisfação, de pura vitória, ser
generosa e boa. (…) Para recordar-se apenas da infância, da adoles-
O filme “atualiza” o santeiro, convertendo-o em jovem ma-
cência, o noivado, o casamento, e a figura mansa de Joaquim Soares

universidade
landro que sabe dirigir-se a uma casa de classe média, tra- da Cunha meio escondido numa cadeira de lona, a ler os jornais, es-
jando terno branco e gravata, e que é atendido na porta por tremecendo quando a voz de Otacília o chamava, repreensiva:

uma Vanda hostil e incisiva. O ágil diálogo entre ambos dife- - Quincas!
re totalmente da longa conversa com o santeiro, já que Van-
Assim o apreciava, sentia ternura por ele, desse pai tinha saudades.
da tenta dispensá-lo rapidamente, imaginando tratar-se de um
sumário vendedor de seguros ou pregador evangélico, porém basta para
(id., p. 46-47)

No filme, Vanda observa o pai, agora bem composto e bem


desencadear o mote da diferença de classes que será a tôni-
vestido no caixão, vê uma foto sua de muitos anos atrás, de-
ca nos capítulos e nas cenas seguintes. O episódio do livro
pois vai até uma porta e, ao abri-la, entra na sala da casa
foi recriado com ironia e acrescido de humor, revelando que

próxima
de sua infância, com o pai e a mãe em atividades cotidianas.
o roteirista confiou na possibilidade de manter a coerência
Na cena, a menina presencia as atitudes autoritárias da mãe,
ou equivalência estilística, mesmo em meio a suas alterações.
exatamente como no livro, porém são recordações positivas de
Merecem destaque diversos momentos em que a palavra se
uma vida em família, evocadas perfeitamente por meio de flash
transpõe com perfeição para as imagens. Trata-se das inser-
back. Não se dá o mesmo, todavia, com sensações mais sombrias
ções de cenas em flashback, com a transição entre passado e
e menos conversíveis à visualização, como as de vingança ou
anterior presente sem nenhuma marca de cor, nenhum indicador, para
de vitória para o que sentira como humilhações e sofrimentos
corresponder ao modo da narrativa escrita. Resolve-se com
passados.
esse recurso parte das situações apontadas como difíceis de

27
O texto relativamente curto, em torno de um único núcleo xistente no livro. Possivelmente as cenas na polícia atendam
dramático, acabou conduzindo a roteirização a opções bastante ao intuito de mostrar o exercício da prepotência e da injus-
discutíveis. Não se pode perder de vista que tiça a que estão expostos os mais humildes, em contraste com
Toda transposição semiótica envolve um processo de interpretação, é a atitude respeitosa das “autoridades” ante pessoas de outros
resultado de uma específica leitura, que se manifesta no conjunto de
segmentos sociais, como a filha e o genro de Quincas. De todo
opções tomadas pelo realizador. (...) Porém, é necessário sublinhar
que embora a adaptação dependa de um processo de leitura, ultrapassa-
modo, a ampliação cria um episódio secundário, em que o ca-
-o, na medida em que dá forma a um novo objeto artístico. (Bello, dáver é retirado da delegacia pela janela do andar superior e
2003, p. 29-30) contribui para a aceleração do ritmo da narrativa.
Se a primeira parte do filme mantém relação mais direta
Proximidade e distanciamento entre livro e filme com o entrecho literário, diferente é o que se passa a partir
dos 40 minutos de projeção. Situações inexistentes no livro
capa
Assim, a leitura fílmica de Quincas Berro D’Água come-
são inventadas, no filme, porém não adquirem consistência,
ça a distanciar-se do livro, em componentes estéticos, com a
permanecendo como meros acréscimos destinados a fazer trans-
inserção de alguns episódios entrelaçados superficialmente à
correr o tempo, já que estabelecem laços muito tênues com o
trama. Ora se optou pela ampliação de fragmentos estritamente
conflito central. Depreende-se que podem ter o objetivo de
pontuais, sem nenhuma importância, ora foram inventadas situ-
acentuar a “cor local”, folclorizando mais ainda o cenário e
ações que pouca relação teriam com a narrativa romanesca. No

universidade
as personagens secundárias. Quando uma mãe de santo solici-
primeiro caso destaca-se um episódio em que, segundo o livro,
ta aos quatro amigos uma galinha de angola como oferenda aos
Quincas, verdadeiro “pai” para essa comunidade marginalizada,
orixás, o episódio mostra-os pateticamente incompetentes, até
era capaz de gestos solidários impensáveis, como na ocasião
mesmo como ladrões de galinha. Mais uma vez se reitera a sim-
evocada durante o velório:
patia pelos marginalizados, cujas boas intenções não os livram
sumário Relembraram fatos, detalhes e frases capazes de dar
de Quincas. Fora ele quem cuidara, durante mais de
a justa medida
vinte dias, do
de entrar em péssimas situações. Nessa e em outras sequências
filho de três meses da Benedita, quando esta teve de internar-se no em que a narrativa adquire ritmo mais veloz, parece haver uma
hospital. (Amado, 1984, p. 60)
tentativa de substituir, pela via do humor quase “pastelão”,
No filme, essas três linhas são desenvolvidas, sem acres- as ironias do narrador, sempre presentes no discurso literá-

próxima
centar nenhuma substância, seja ao enredo, seja ao crescendo rio porém difíceis de transpor para um meio audiovisual.
dramático que se espera à medida que os minutos de projeção Talvez com o intuito de tornar mais cerrada a trama, a
se sucedem. Vemos Quincas em ação, assumindo os cuidados com roteirização acentuou algo que se apresenta, no livro, como
o filho de uma prostituta quando esta é abordada e levada por hipótese não desmentida: que nesse dia se comemorava o ani-
policiais, episódio que tem por função, adiante, mostrar a versário de Quincas. Assim, desde o início do filme mostram-
-se os preparativos de uma festa e a expectativa, não rea-
anterior
mesma prostituta novamente envolvida com a polícia e disposta
a colaborar com os quatro amigos de Quincas, quando são presos lizada, do comparecimento de Quincas. A festa se organiza no
por terem levado à rua o cadáver do amigo, cena também ine- bordel da espanhola Manuela, que corresponde a uma ampliação,

28
quase metamorfose, da personagem Quitéria do Olho Arregalado. ródica que retomasse as cenas de saloon, evocando o faroeste.
No livro, Quitéria é a prostituta com quem Quincas mantém um Se esse gênero não estiver presente no imaginário do especta-
relacionamento apaixonado, o que dá ensejo a que o filme tenha dor, pode ser enfeixado no conjunto de recursos que situam a
longas cenas ambientadas no bordel dirigido por Manuela, in- narrativa em um período indefinido, possivelmente na década
clusive a de uma briga com agressões e reações absolutamente de 50, como revelam os bem resolvidos aparatos cenográficos,
previsíveis, o que lhes subtrai a possível intenção humorís- a que não faltou sequer o sofá com pés de palito, e o figu-
tica. rino, com os vestidos de cintura fina e grandes estampas da
Maior distanciamento é tomado pelo roteirista nos capí- época. De todo modo, aimposição de um ritmo acelerado aponta
tulos finais, em franca dissonância com o final do livro, em para a tentativa de adequar-se Quincas Berro D’Água a um pa-
duas frentes: no ritmo narrativo, cada vez mais veloz, e na drão fílmico que pareceria mais “atual” aos espectadores, de
mudança, inesperada e radical, da personagem Vanda. Essa par- olhos condicionados pela velocidade, pelo corte nas cenas,
capa te talvez seja melhor compreendida à luz do que Xavier obser- por uma agilidade que é em tudo estranha ao texto de Amado.
va, quanto ao fato de que cada nova obra ilumina seu tempo, e Como em toda adaptação, ocorre exclusão, condensação de
cada recriação também faz o mesmo. personagens ou ampliação. Este último recurso é o que marca a
Uma sucessão de cenas distancia cada vez mais o filme do verdadeira metamorfose da personagem Quitéria do Olho Arregala-
livro. Conduzir Quincas ao cais e ao saveiro, para saborear do, transformada na espanhola Manuela e vivida por Marieta Se-

universidade
uma moqueca, é ação empreendida pelos quatro amigos no ca- vero no filme. No livro, Quitéria é a prostituta com quem Quin-
pítulo final. No filme, enquanto os quatro conduzem o morto, cas mantém um relacionamento constante, o que dá ensejo a que
envolvem-se em peripécias como o roubo à galinha, a entrada o filme tenha longas cenas ambientadas no bordel – nesse caso,
e fuga da cadeia, a briga no bordel, o saque a um caminhão, Manuela é a proprietária. Algumas das personagens desse bordel
cujo motorista imaginou ter atropelado Quincas. O roubo da ganham maior vulto, comparecendo ao velório de Quincas e dei-
sumário galinha, para atender ao apelo de Iemanjá (que não permitiria xando a família estupefata com seu aspecto. Outras cenas de bor-
o sepultamento de Quincas), permite a inserção do espaço do del se acrescentam, de modo totalmente desvinculado da narra-
candomblé, com direito aos rituais, à dança e ao canto, acen- tiva original, desencadeadas pelo sumiço do cadáver de Quincas.
tuando o viés folclorizante que marca as adaptações das obras Esse fato desencadeia cenas de corrida desenfreada, com Vanda e

próxima
de Amado. Leonardo em um táxi à procura do cadáver com direito a passagens
Por outro lado, os doze minutos que decorrem entre as pelo terreiro, pela delegacia e pelo bordel de Manuela, con-
cenas da delegacia e as da briga no bordel, culminando com o duzindo a um desfecho totalmente inesperado. Vanda e Leonardo
saque ao caminhão, fazem pensar na opção do cineasta por dar entram em uma briga no bordel; ele se fere ligeiramente, desa-
movimentação ao filme, porém a solução aparenta ser uma con- parece de cena e adiante Vanda, exausta, dá uma guinada em sua
cessão ao gosto do público contemporâneo, com o olhar “edu- vida: deixa ali o marido e sai, seguida pelo motorista do táxi,
anterior cado” para preferir filmes com esse tipo de movimento. Não se jovem negro com quem acaba por embebedar-se, dançar e ir para
pode excluir a briga no bordel, todavia, de uma intenção pa- um hotel/prostíbulo. A intencionalidade de tais acréscimos pode

29
ser associada ao desejo de compor o filme de modo mais sensual, na crueza das roupas sujas ou esmolambentas, no calçamento
justificando, por aí, a opção do protagonista pelo abandono de irregular da Baixa ou do Pelourinho, nas paredes descascadas
uma vida insípida e em tudo conforme com a moral pequeno-burgue- do cubículo de Quincas, na pobreza do bar, no mau-gosto da
sa. Talvez seja ainda mais plausível a intenção de propiciar a decoração do bordel.
Vanda, pela “libertação”, um reencontro com aquele pai que fora Funciona de outra maneira a transformação que se opera em
perdido na infância, ou a compreensão do que o teria levado a Vanda, sem nenhum vínculo com a narrativa literária, e aqui
trocar um modo de vida por outro. o filme abandona o contexto dos anos 50 para prestar um tri-
A libertação de Vanda, abandonando subitamente uma supos- buto ao seu próprio tempo. Pode-se interpretar a atitude da
ta auto-repressão, não deixa de ser uma opção bastante dis- personagem como libertária, consequência de ter ela finalmen-
cutível. Com essa alteração perde-se um grande recurso, o da te compreendido o sabor de liberdade de uma vida ao arrepio
sátira, visto que seu alvo preferencial é a vida mesquinha das convenções. Pode-se, entretanto, ir adiante e considerar
capa e sem perspectivas, personificada justamente na esposa e na que, sem o “patrulhamento” com que a classe média vigiava seus
filha de Quincas. Uma vida sem sobressaltos nem aventuras, iguais, a busca da felicidade passa pela rendição à sensuali-
em função das reações que devem ser provocadas nos outros, ou dade e ao prazer, sem a menor preocupação com bens materiais
da busca de status social, questão até hoje mal resolvida em ou status social... Uma visão intensamente lírica, porém com
certos setores da classe média ascendente. alto grau de distorção em termos de valores, com um manique-

universidade
ísmo simplista e redutor, praticamente anula qualquer possi-
Considerações finais
bilidade, para o filme, de suscitar ou aprofundar reflexões.

As opções dos roteiristas, diretores na adaptação, a seu Referências


gosto, das peripécias do livro em que se inspiram, têm por
• AMADO, Jorge. A morte e a morte de Quincas Berro D’Água. 54ª ed. Rio de
sumário
limite, como aqui se postula, a confluência estética. Mas a Janeiro: Record, 1984.
folclorização e a agitação, com tantos episódios secundários • ANDRADE, Antônio; REIMÃO, Sandra L. (Orgs.) Fusões. Cinema, televisão,
livro e jornal. São Bernardo do Campo (SP): Universidade Metodista de São
inseridos em uma narrativa que, a rigor, poderia deixar o Paulo, 2007.
espectador saborear lentamente a partida de Quincas rumo ao • BELLO, Maria do Rosário L. L. Narrativa literária e narrativa fílmica. O
saveiro, desejo que ele havia afirmado enfaticamente em vida. caso Amor de perdição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian; Fundação para

próxima
a Ciência e Tecnologia, 2005.
Ao contrário, tudo se marca pela agitação, com alternância de • FIELD, Syd. Manual do roteiro. Os fundamentos do texto cinematográfico. 5ª
luzes e cores sombrias, em episódios que parecem querer levar ed.Rio de Janeiro: Objetiva, 1995.
• JOHNSON, Randal. “Literatura e cinema, diálogo e recriação: o caso Vidas
a uma única conclusão: a de que vale mais viver uma vida di-
secas” in PELLEGRINI, T. (Org.) Literatura, cinema e televisão. São Paulo:
vertida à margem da sociedade, do que uma vida aborrecida no SENAC; Itaú Cultural, 2003.

cotidiano de classe média baixa, sem alegrias nem sentimentos • XAVIER, Ismail. “Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar
no cinema” in PELLEGRINI, T. (Org.) Literatura, cinema e televisão. São
anterior verdadeiros. Tão explícita é a mensagem ideológica do cineas- Paulo: SENAC; Itaú Cultural, 2003.
ta, na esteira do posicionamento do escritor que, paradoxal-
mente, essa apologia à transgressão mostra-se poética mesmo

30
Key-words: cine-novel – literary script – interarts
O CINE-ROMANCE E O ROTEIRO
LITERÁRIO: UM ESTUDO INTERARTES A proposta neste ensaio é refletir sobre as relações entre
literatura e roteiro de cinema, buscando-se verificar a pos-
sibilidade de fornecer, aos chamados “roteiros literários”,
o estatuto de gênero, bem como pensar a relevância das ex-
periências de hibridização e transgressão, especialmente ve-
rificáveis pela mescla de romance e roteiro, para os estudos
interartes.
The cine-novel and the literary
Para isso, parte-se da experiência de hibridização de ro-
script: a research interarts
mances e roteiros, realizada a partir da segunda metade da
capa década de 1950 por escritores como Alain Robbe-Grillet e Mar-
M aria A ngélica A mâncio S antos
guerite Duras – considerando-se também a produção, por esses
UFMG - Doutoranda em Literatura Comparada pela Faculdade de Letras da UFMG,
mestre em Teoria da Literatura pela mesma instituição, com formação comple- mesmos autores, de roteiros propriamente ditos –, para se
mentar em Cinema, autora do blog literário fragellytee.blogspot.com - e-mail:
gellyamancio@yahoo.com.br
chegar a práticas contemporâneas, como as de Ingmar Bergman
e Guillermo Arriaga, que perpetuam o diálogo entre literatura

universidade
e cinema, quer por publicarem seus roteiros – em seu formato
A proposta neste ensaio é refletir sobre as relações
original ou na forma de romances –, quer por produzirem os
entre literatura e roteiro de cinema, buscando-se verificar
chamados “roteiros literários”, quer por preferirem a alcu-
a possibilidade de fornecer, aos chamados “roteiros literá-
nha de “escritores” à de “roteiristas de cinema”. Por fim,
rios”, o estatuto de gênero, bem como pensar a relevância das
e entremeando as análises de obras dos autores mencionados,
sumário experiências de hibridização e transgressão, especialmente
espera-se refletir sobre o papel do roteiro publicado por seu
verificáveis pela mescla de romance e roteiro, para os estu-
“valor de uso” e/ou “de culto” em um momento sócio-histórico
dos interartes.
em que a “aura” da obra de arte (Benjamin) é considerada há
Palavras-chave: cine-romance – roteiro literário – inte-
muito já perdida.
rartes

próxima
Antes de nos referirmos a qualquer tipo de transgressão,
de mesclagem, realizada no espaço literário em junção com ou-
The purpose in this essay is to reflect about the relations
tras artes, é fundamental remeter à literatura em si, e a sua
between literature and movie scripts, trying to show how the
capacidade de ajustar-se às constantes modificações da socie-
“literary scripts” can be considered as a literary genre, and
dade, do pensamento, da arte.
think about how the experiences of subversion, specially seen
A literários,
anterior
tradição literária é o sistema sincrônico dos textos
in the mixture of novel and scripts, can be important for the sistema sempre em movimento, recompondo-se à medida que surgem novas
studies that relates the different kinds of arts. obras. Cada obra nova provoca um rearranjo da tradição como totali-
dade (e modifica, ao mesmo tempo, o sentido e o valor de cada obra

31
pertencente à tradição). (COMPAGNON, 2006:34) em uma prática extremamente natural e adequada à configuração

Como se espera estabelecer um sistema, procura-se uma or- fragmentária da pós-modernidade, época marcada por entrecru-

ganização que, no caso da literatura, baseia-se na categoria zamentos culturais diversos – o que assinala a forte relação

do gênero literário. Tzvetan Todorov, em Os Gêneros do Dis- entre conteúdo e forma de expressão, preponderante para a es-

curso, considera a literatura como um sistema, uma linguagem colha dos gêneros a configurarem uma obra.

estruturada e que chama a atenção para si mesma, autotéli- (...) o gênero, ao situar-se em uma zona intermediária entre a obra
individual e a literatura toda como instituição, nos permite indagar
ca. Os gêneros seriam as peças fundamentais desse sistema, as relações entre estrutura e temática, forma (do conteúdo e da ex-
constituindo-se em protagonistas dos estudos literários: “O pressão) e história. Quais são as realidades sociais que em um dado
momento sugerem algumas formas e proíbem outras? Quais os temas que
gênero é o lugar de encontro da poética geral e da história
podem ser tratados em uma determinada estrutura e quais são aqueles que
literária fatual; ele é, por isso mesmo, um objeto privile- não se experimentaram ou cujas experiências falharam? Além disso, se

capa
giado, o que lhe poderia valer a honra de se tornar personagem a obra é colaboração do homem com a linguagem, que possibilidades e
que limites oferece esta a julgar pelos gêneros em que se manifesta?
principal dos estudos literários.” (TODOROV, 1980: 50)
(GALLARDO,1988:26)
Porém, muitas das tentativas de classificação realizadas
através do gênero não se mantêm fixas o tempo todo. Buscando Em determinados espaços e tempos, essa transgressão dos

explicitar a falibilidade da rigidez nas categorizações li- gêneros alcança outras esferas de expressão, atingindo aquilo

terárias, bem como a fim de utilizar-se do espaço gerado por que hoje entendemos como o vasto campo das relações interse-

universidade
essa maleabilidade para efetuar experimentações literárias mióticas, cujo estudo, embora remonte a pelo menos dois sé-

diversas, muitos são os escritores que, nas últimas décadas, culos atrás, com o Laocoonte, de Lessing – podendo muito bem

têm radicalizado a mistura de gêneros em suas obras, propi- ser estendido até o século I, com Horácio, em sua Epístola aos

ciando um tipo de texto que poderia ser caracterizado de “es- Pisãos – apenas recentemente foi aceito como parte integrante

crita híbrida”: obras que se caracterizam por incorporar dos estudos interartes.
sumário ostensivamente modalidades discursivas as mais distintas, incluindo
A comparação que se realiza nesta pesquisa é a da inter-
listas, verbetes enciclopédicos, manuais, bulas de remédio, classi- penetração – muito mais no sentido de mesclagem do que de
ficados de jornais, além das novas formas de texto surgidas com o
transposição ou de tradução propriamente – de uma arte em ou-
incremento das tecnologias digitais e outras invenções. O que não quer
dizer, entretanto, que os gêneros literários deixaram de existir.
tra, a saber: o cinema e a literatura. Esta reflexão se faz

próxima
Eles estão aí, muito vivos e determinantes, norteando inclusive toda possível, uma vez que “(...), sendo o hibridismo de gêneros
a lógica taxonômica do mercado. (MACIEL, 2007: 156) uma dominante na literatura contemporânea, é frequente que a
Ou seja: tal hibridez dos gêneros já se faz presente em própria dissolução das características formais de um texto
diversas obras anteriores, em diferentes tempos e lugares, por oposição ao modelo clássico seja marcada por essa inter-
tendo sido, por exemplo, comentada e defendida pelos românti- penetração artística.” (CARVALHAL, 1991:15)

anterior
cos alemães e franceses, tais como Schlegel e Hugo – nos sé- Tal interpenetração artística tende a ser mais profícua
culos XVIII e XIX, respectivamente. É recente, entretanto, o em espaços naturalmente mais maleáveis, mais favoráveis a
emprego desse recurso de maneira mais ostensiva, que resulta diálogos e incorporações. O gênero romance, definido por Mi-

32
khail Bakhtin, em Questões de Literatura e Estética, como “o mance, forma impura por natureza, como observa Guy Scarpetta,
mais maleável”, encaixa-se nessa descrição. em L´Impureté, depois de ter incorporado o teatro (pela in-
A teoria da literatura revela a sua total incapacidade em relação ao trodução do diálogo), a poesia (na prosa poética de um Blaise
romance. (...) Os trabalhos sobre o romance levavam, na grande maio- Cendrars), o ensaio ou a meditação filosófica abstrata (em
ria dos casos, ao registro e à descrição tão completos quanto possíveis
sobre as variedades romanescas, mas, no conjunto, tais registros nunca
um Dostoievski) absorveu, mais recentemente, procedimentos da
conseguiram dar qualquer fórmula que sintetizasse o romance como um técnica cinematográfica (como em John dos Passos ou Manuel
gênero. Além do mais, os pesquisadores não conseguiram apontar nem um
Puig).
só traço característico do romance, invariável e fixo, sem qualquer
reserva que o anulasse por completo. (BAKHTIN, 1993: 401) Desde o surgimento do cinema, constituiu-se um intercâm-
bio rico e recíproco entre romance e filme, capaz de superar
Em sua análise do gênero, Bakhtin mostra que, embora sua
polêmicas sobre fidelidade ou rivalidades entre a habilidade
presença possa ser sentida na Antiguidade Clássica, o romance
de uma ou de outra linguagem para se contar uma história. Du-
capa não logrou integrar a entidade orgânica e harmoniosa de que
rante muito tempo, a relação cinema-literatura só era estuda-
tratam as grandes poéticas do passado – a de Aristóteles, Ho-
da pelas vias da comparação de uma adaptação unidirecional –
rácio e de Boileau. Ao contrário, o romance deflagra um certo
ou seja, sempre do literário para o fílmico. O discurso sobre
“criticismo de gêneros”, cujo ápice acontece na segunda meta-
adaptação começa a mudar apenas por volta do ano de 1999, com
de do século XVIII. Têm lugar, então, as estilizações paró-
as obras de Timothy Corrigan e James Naremore, que propõem que
dicas dos gêneros e dos estilos, a alteração das linguagens

universidade
as adaptações fílmicas “estariam situadas num redemoinho de
convencionais dos gêneros canônicos, o questionamento, pela
referências e transformações intertextuais, de textos que ge-
forma, das ossaturas calcificadas que sustentam as catego-
ram outros textos, num processo infinito de reciclagem, trans-
rizações literárias da época: à parodização dos demais gêne-
mutação, transformação” (DINIZ, 2005:17). Hoje, reconhece-se
ros, que os reinterpreta, elimina alguns e reintegra outros,
que são duas linguagens diferentes que se imbricam, já que o
sumário segue-se um processo de romancização das formas: o drama, o
filme tem sua narratividade como a literatura, e o romance do
poema, a lírica.
século XX se utiliza de muitos procedimentos fílmicos.
Como se exprime a ‘romancização’ dos outros gêneros? Eles se tor-
Essa espécie de “novo romance”, com tal recorrência à lin-
nam mais livres e mais soltos, sua linguagem se renova por conta do
plurilinguismo extraliterário e por conta dos estratos ‘romanescos’ da guagem do cinema, parece já estar delineado no ensaio Pour
literária; dialogizam-se e, mais,

próxima
língua eles ainda são largamente un nouveau roman, de Alain Robbe-Grillet. Para o autor, essa
penetrados pelo riso, pela ironia, pelo humor, pelos elementos de au-
forma nova na literatura se assemelharia mais ou menos a uma
toparodização; finalmente – e isto é o mais importante –, o romance
introduz uma problemática, um inacabamento semântico específico e o ausência de forma. Nesse sentido, Robbe-Grillet questiona uma
contato vivo com o inacabado, com a sua época que está se fazendo (o certa tradição do pensamento (seja ele no campo da psicologia,
presente ainda não acabado). (BAKHTIN, 1993: 400)
da moral, da metafísica...) que reveste todas as coisas de
Esse processo de “parodização” ou de “romancização” não supostas familiaridades, explicações, conceitos. Entretanto,
anterior se interrompeu até os dias de hoje – uma vez que persiste “o o mundo não seria significativo como se espera; ele apenas é;
contato vivo com o inacabado” a que se refere Bakhtin. O ro- encontra-se nos gestos e nos objetos a verdadeira representa-

33
ção da autenticidade, da sobriedade do mundo. Na literatura, Na introdução de L´année dernière à Marienbad, o autor
porém, os objetos e os gestos só existem como significação, revela buscar, pelo cine-romance e pelo roteiro de cinema, uma
não têm consistência nem formato. Por outro lado, no cinema, “realidade com formas”. Nesse sentido, ele questiona os ditos
as coisas são vistas, ocupam um lugar no espaço concreto, têm “roteiros técnicos”, que se contentam em fornecer apenas as
caráter de realidade. Enfim, para esse “novo romance”, ganham palavras pronunciadas no diálogo e algumas poucas indicações
destaque as coisas, simplesmente porque elas são. Esse mundo do cenário, argumentando que, em qualquer obra de arte, como
sólido e imediato, como coloca o autor, é tudo o que se pode – ele exemplifica – no romance, as escolhas da forma são in-
obter de efetivamente real.1 Nisso, os objetos e os gestos separáveis das do conteúdo.
superariam os homens e toda a sua racionalidade abstrata, in- (...) a concepção de uma história para ser filmada deveria corres-
ponder à sua concepção já em imagens, com tudo o que isso comporta
suficiente, absurda.
de detalhes, não só quanto aos gestos e ambientes, mas também quanto
A escrita de Robbe-Grillet apresenta-se como se molda-
capa
à posição e movimentação do equipamento, e à sucessão dos planos de
da por esse pensamento, no encalço desse itinerário visual. montagem. (ROBBE-GRILLET, 1961:06).
Barthes atribui a esse nouveau roman a alcunha de “escola do
Ou seja, para a realização do filme – empreendida em par-
olhar”. Romances como La Jalousie (1957), ou novelas como as
ceria com o cineasta Alain Resnais –, Robbe-Grillet nega-se
que foram reunidas em Instantanés (1962) trazem a marca desse
a ser apenas um “diretor de frases”, optando por ver o filme
olho preciso que somente descreve os seres e os objetos, as
na palavra, escrevendo imagem por imagem, em interdependência

universidade
ruas e os cômodos, e até mesmo a passagem do tempo através
com os diálogos e os efeitos sonoros correspondentes. Além
apenas daquilo que se vê: a sombra de uma árvore que se mo-
disso, a temática de L´année dernière à Marienbad ampara-se
vimenta ao longo do dia, indicando que ele está chegando ao
na mesma preocupação do autor acerca do “estar lá”, da prepon-
fim, ou os gestos percebidos por alguém que espia atrás da
derância do objeto enquanto manifestação do tempo presente,
persiana, como se fosse a visão o principal e talvez o mais
que é também um tempo interior, o qual, seja como lembrança ou
sumário verdadeiro sentido com o qual pudéssemos ler o mundo.
imaginação, presentifica-se para aquele que o reproduz men-
É exatamente esse o efeito das descrições de Robbe-Grillet: elas se
talmente. Na trama, um homem quer convencer uma jovem de que
deslocam espacialmente, o objeto se solta sem perder o traço de suas
primeiras posições, ele se torna profundo sem deixar de ser plano.
se encontraram um ano antes, em Marienbad, se amaram e depois
Reconhecemos aqui a própria revolução que o cinema operou nos reflexos se separaram. Ela, a princípio, entende tudo aquilo como um

próxima
da visão. (BARTHES, 298, 1993)
jogo, uma brincadeira; mas o homem insiste, apresenta provas,
Essa relação entre literatura e cinema, entre a escri- vai delineando pouco a pouco toda uma história, cada vez mais
ta e o olhar, manifesta-se essencialmente em seu roteiro coerente, misturando presente e passado, confundindo tanto a
L´année dernière à Marienbad (1961) e em seus ciné-romans: heroína quanto o espectador, em sua eterna experiência com o
L´Immortelle (1963) Glissements progressifs du plaisir (1974) presente na tela de cinema.

anterior e C´est Gradiva qui vous appelle (2002). Quanto ao passado, que o herói introduz à força nesse mundo fechado
e vazio, tem-se a sensação de que ele o inventa à medida que fala,
1 Na verdade, a obra de Robbe-Grillet apresenta dois momentos distintos: no primeiro, sobre o qual recai o
interesse desta pesquisa, tem-se um escritor chosiste, como coloca Roland Barthes; no segundo, um humaniste.
aqui e agora. Não existe ano passado, e Marienbad não se encontra
(Cf. BARTHES, “Le point sur Robbe-Grillet?”, In: Ouevres Complètes. Tomo II, p.452-459)

34
mais em nenhum mapa. Esse passado tampouco tem qualquer realidade fora to, auto-reflexividade, diluição das fronteiras genéricas e
do instante em que é evocado com tanta força; e quando enfim triun-
conseqüente hibridização serão elementos recorrentes de uma
fa, torna-se simplesmente o presente, como se jamais tivesse deixado
de ser. O cinema é, certamente, um meio de expressão predestinado a
escritura híbrida por natureza.” (VIEIRA, 2007: 116).
esse gênero de narrativa.
A característica essencial da imagem é sua A experiência de Duras e Robbe-Grillet encontra ecos na
presença. (ROBBE-GRILLET, 1961:11).
contemporaneidade, em trabalhos como os de Guillermo Arriaga
Antes de Alain Robbe-Grillet, entretanto, uma outra par- e Ingmar Bergman. Como os autores do Nouveau Roman, também o
ceria com o diretor Alain Resnais já se firmara: trata-se de mexicano Guillermo Arriaga iniciou sua carreira como roman-
Hiroshima, mon amour (1959), de Marguerite Duras, que explo- cista, porém, tornou-se mais conhecido por seu premiado tra-
ra a mesma temática, da memória e do tempo, agora em relação balho como roteirista de cinema. Por Babel (2006), recebeu
com Hiroshima e os efeitos da bomba atômica. O longa-metragem uma indicação ao Oscar de melhor roteiro original e, por Três
alcançou grande sucesso, tendo seu roteiro publicado um ano Enterros de Melquíades Estrada (2005), o mexicano foi agra-
capa depois, numa versão “a mais fiel possível” (como escreve a ciado com um troféu no Festival de Cannes. Entretanto, ape-
autora, no Avant-propos da obra) do trabalho feito para Res- sar da celebridade rendida por sua atuação como roteirista,
nais, mas buscando ainda conservar certos elementos abando- o autor continua a escrever romances na mesma proporção com
nados quanto da realização do filme, e que a escritora consi- que atua no cinema – seja como roteirista ou, mais recente-
derava esclarecedores no projeto inicial. Mais uma vez, como mente, como diretor,2 e declara-se apenas como “escritor”,

universidade
ocorre com Robbe-Grillet, o roteiro transgride os limites de posto considerar depreciativa a palavra na língua espanhola:
mero indicador de falas, tomando para si o direito de deter- guionista. Para ele, seu trabalho não é um mero guia, mas “uma
minar os enquadramentos, as feições dos atores, os sons que obra completa por si só.” Sempre, em suas entrevistas, afirma
povoam as cenas... e o direito de ser, ao mesmo tempo, um produzir seus roteiros da mesma maneira com que escreve ro-
texto poético, preocupado com a visualidade das imagens ainda mances, com o mesmo cuidado com a estrutura, a linguagem, o
sumário enquanto palavras. desenvolvimento dos personagens. Além disso, é possível en-
Após o êxito de Hiroshima, mon amour, Duras passa a diri- contrar à venda alguns de seus roteiros originais mais impor-
gir seus próprios roteiros cinematográficos, como Détruire, tantes – como o de 21 gramas (2004) Três Enterros de Melquí-
dit-elle (1969), India Song (1973) e Le camion (1977). Nesses ades Estrada e Amores Brutos (2000).

próxima
roteiros, dá-se uma profunda mescla de gêneros literários, Contudo, o hábito de publicar roteiros é anterior à expe-
bem como a presença do híbrido literatura/cinema, chegando ao riência de Arriaga e de tantos outros diretores contemporâ-
ponto de, no prefácio de India Song, por exemplo, a autora neos. O cineasta sueco Ingmar Bergman, já na década de 1970,
classificar a obra como “texto, teatro e filme”. Segundo An- aderira a essa prática. Porém, grande parte de seus roteiros
dré Soares Vieira, os cine-romances de Duras representam uma foi lançada no formato de romances híbridos. É o caso tanto
categoria especial de questionamento sobre as formas adota- de A hora do amor (1971) quanto de Gritos e sussurros (1972),
anterior das pela literatura. Por exemplo, ”no caso específico de Le o qual mescla o romance ao diário íntimo, ao relato e, obvia-
camion (...), procedimentos tais como o relato sobre o rela- mente, ao cinema, abrindo-se, ainda, a interrupções do autor,
2 Referimo-nos a The burning plain (EUA, 2008).

35
que reflete sobre os personagens, seus sentimentos e dramas, é tão restrito, recebe o formato de um livro, é publicado,
ou conversa com o leitor, como se o conduzisse pela narrati- traduzido em diversos idiomas, e vendido como qualquer outra
va, ao mesmo tempo juntando-se a ele em uma reconfortante 1ª obra da literatura?
pessoa do plural: “Vamos agora realizar um filme juntos”, diz Tais indagações nos conduzem a pensar esses “roteiros li-
ele (BERGMAN, 1973:11). terários” enquanto publicações que transportam, do público
A experiência tanto de Duras e Robbe-Grillet, quanto, mais para o privado, a experiência de culto vivida no cinema – vi-
recentemente, de Bergman e Arriaga, cada uma dentro de suas venciada, obviamente, em uma esfera distinta, marcada talvez
especificidades, parece se opor a uma opinião comum acerca do por uma nova “aura” (Benjamin): a da intimidade.
roteiro de cinema: a de que ele, finda a filmagem, tem como
destino certo as cestas de lixo, o descarte, o esquecimento. BIBLIOGRAFIA
Para Jean-Claude Carrière, “o roteiro não é o último estágio • ALETRIA: Revista de Estudos da Literatura. Belo Horizonte: Programa de
capa de um percurso literário. É o primeiro estágio de um filme.”
Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, V.14, jul-dez.2006..
• ARBEX, Márcia (org.) Poéticas do Visível: ensaios sobre a escrita e a ima-
(CARRIÈRE, 1994: 146). Isso ocorre, é evidente, em casos em gem. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, Programa de Pós-Gradua-
ção em Letras: Estudos Literários, 2006.
que o roteiro é meramente um instrumento técnico, um guia,
• ARRIAGA, Guillermo. Amores perros. Território Arriaga (Spanish edition),
um manual de instruções. Nesse sentido, o que se destacaria 2007.
seria somente o seu “valor de uso”, sua utilidade mesma, sua • ARRIAGA, Guillermo. Um doce aroma de morte. Rio de Janeiro: Gryphus, 2007.

universidade
prestação de serviços. Entretanto, não é possível empregar • AUMONT, Jacques. Las teorias de los cineastas: La concepción del cine de
los grandes directores. Buenos Aires: Paidós, 1995.
o mesmo raciocínio em relação a todos os roteiros, posto que
• BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética: a teoria do romance.
existem aqueles que se propõem, desde o princípio, como obras São Paulo: Hucitec/UNESP, 1993.
literárias, intervalos entre a literatura e o cinema – en- • BARTHES, Roland. Ouevres Complètes. Tomo II. Paris: Éd. du Seuil, 1993.

tre o que Lessing considera uma “arte da audição” e o que • BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política. São

sumário
Paulo: Editora Brasiliense, 1996.
consideraria como sendo predominantemente “uma arte da vi- • BERGMAN, Ingmar. Gritos e sussurros/A hora do lobo/A hora do amor. 2ed.
são” –, e que merecem ser pensados, analisados e, quem sabe, Rio de Janeiro: Nórdica Editora, 1975.

“cultuados”como tal.3 • CAMPOS, Haroldo de. Ruptura dos gêneros na literatura latino-americana,
São Paulo: Perspectiva, 1977.
A publicação desses roteiros – quer em sua estrutura ori- • CARRIÈRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro: Edi-

próxima
ginal, quer em um novo formato – gera, portanto, uma nova tora Nova Fronteira. 1994.
• CHION, Michel. O roteiro de cinema. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
questão: por que, em uma era de predomínio dos meios visuais
• CLERC, Jeanne-Marie. “La littérature comparée devant les images modernes:
sobre os sonoros, táteis, olfativos e gustativos, o autor de cinéma, photographie, télévision.” In: BRUNEL, Pierre, CHEVREL, Yves. Pré-
cinema deseja ganhar o estatuto de escritor? Ou, por outra: cis de littérature comparée. Paris: PUF, 1989, p. 263-298.
• DAVINO, Gláucia Eneida. Roteiro, elemento oculto no filme. Filme, a cris-
por que o roteiro, cujo público-alvo, na maioria das vezes,
talização do roteiro. In: Teses, ECA-USP, 2000 (Orientadora: Profª Dra.
Mary Enice Ramalho de Mendonça.)
anterior 3 Ao se referir à idéia de culto, conhecidamente discutida em “A era da reprodutibilidade técnica”, vale
lembrar que Walter Benjamin se enganou quanto à destruição da aura pelo filme, mesmo porque hoje se fala no • DAVINO, Gláucia Eneida. O roteiro de filme de ficção, um estudo de caso em
“cinema cult” / cult-movie. Cabe investigar agora se a compra do roteiro, o contato com ele no formato de li-
vro, seria continuação da aura produzida pelo filme – pois Benjamin aponta o ilusório como parte do aurático
“A Hora da Estrela”. In: Dissertações, ECA-USP, 1993 (Orientadora: Profa
– ou se não seria (também) uma maneira de quebrar a barreira aurática, um “voyeurismo” que procura desmascarar Dra. Mary Enice Ramalho de Mendonça.)
as ilusões produzidas.

36
• DINIZ, Thaïs Flores Nogueira. Literatura e Cinema: tradução, hipertextua-
lidade, reciclagem. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, Programa
de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, 2005.
• DURAS, Marguerite. Romans, cinema, théâtre, un parcours 1943-1993. Paris:
Gallimard, 1997.
• GALLARDO, Miguel A. Garrido; TODOROV, Tzvetan; Miguel A. Teoría de los
géneros literarios. Madrid: Arco Libros, 1988.
• GLIKSOHN, Jean-Michel. «Littérature et arts ». In : BRUNEL, Pierre, CHE-
VREL, Yves. Précis de littérature comparée. Paris: PUF, 1989, p. 245-261.
• HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime. Tradução do “Prefácio de Cromwell”.
2ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002.
• JAMESON, Fredric. Espaço e imagem: teorias do pós-moderno e outros ensaios.
Trad. de Ana Lúcia Almeida Gazolla. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1995.
• LUKÁCS, Georg. A Teoria do Romance. São Paulo: Editora 34, 2002.

capa
• MACIEL, Maria Esther. “Poéticas do inclassificável”. Revista Aletria. Belo
Horizonte, Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da UFGM, v.15,
p.155-162, dez.2007.
• MACIEL, Maria Esther. A memória das coisas. Rio de Janeiro: Lamparina,
2004.
• MASCARELLO, Fernando (org.). História do cinema mundial. São Paulo: Papi-
rus, 2006.
• OTTE, Georg. Linha, choque e mônada - tempo e espaço na obra tardia de

universidade
Walter Benjamin. In: Teses 1994, UFMG-FALE, 1995. p.65-77 (Orientadora:
Maria Zilda Ferreira Cury)
• PERLOFF, Marjorie, Postmodern Genres. University of Oklahoma Press, 1989.
• ROBBE-GRILLET, Alain. Scénarios en rose et noir: 1966 – 1983. Textes et
photos réunis et présentés par Olivier Corpet et Emanuelle Lambert. Paris:
Fayard, 2005.

sumário
• ROBBE-GRILLET, Alain. Pour un nouveau roman. Paris: Gallimard, 1963.
• ROBBE-GRILLET, Alain. L´année dernière à Marienbad. Paris: Gallimard, 1961
• ROBBE-GRILLET, Alain. La Jalousie. Paris: Les Éditions de Minuit, 1957.
• SCARPETTA, Guy. L´Impureté. Paris: Grasset, 1985.
• STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Trad. De Fernando Mascarello.
Campinas: Papirus, 2000.

próxima • TODOROV, Tzvetan. Os Gêneros do Discurso. Trad.: Elisa Angotti Kossovitch.


São Paulo: Martins Fontes, 1980.
• VIEIRA, André Soares. Escrituras do visual. Santa Maria: Editora UFSM,
2007.
• XAVIER, Ismail (Org). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Edições
Graal: Embrafilme, 1983.

anterior

37
dê conta dos personagens nas duas propostas interpretativas.
LITERATURA ROTEIRIZADA PARA Surge, advindo das intertextualidades argumentadas acima: o
TEATRO: DIALOGIAS - AUTOR, espetáculo teatral, vivo, presente, contemplado pelo corpo,
ATOR, DIRETOR E PLATÉIA pela voz, pela gestualidade, pelo cinetismo e pelas emoções
do intérprete.
PALAVRAS-CHAVE: Dramaturgia; Literatura Adaptada; Rotei-
rista; Ator; Interpretação; Teatro; Performance.

Autor, Palavra “Silente” - Ator, Palavra “Insilente”


M arlene F ortuna
O texto que ora apresentamos, preconiza a discussão sobre
Pós-Doutoranda pela UNICAMP - Bolsa FAPESP

capa
os seguintes aspectos: estudo das manifestações, situações,
das posturas, semânticas, significações, das sintaxes, deco-
RESUMO
dificações, das inter- relações de inusitados códigos esté-
Este artigo nasceu de nossa pesquisa de Pós-Doutorado que ticos, construídos quando da passagem das escrituras “mortas”
abrange dois enfoques bastante definidos. O primeiro consiste de autores, adaptadores ou roteiristas, plasmadas em suporte
no estudo do texto, literalmente, para teatro - a dramatur- “inativo” (“descansada”, “silente” e “calada”), para a ora-

universidade gia. O segundo, no estudo da chamada “literatura para leitu- lidade viva do ator (ativa, “incansada”, insilente), ancora-
ra” sobre a qual deve ser feita uma adaptação suscetível à da em pulsações em movimento, emoções em ato, ações de fato,
interpretação teatral. Neste, incidem investigações sobre as presentidade pura. Os motores destas vibrações são: o corpo,
diferentes metodologias usadas por roteiristas, adequadores, a voz, os gestos, os movimentos, os olhares, os sentimentos,

sumário profissionais capacitados a criar diálogos sobre narrativas enfim, todos ativados de uma só vez, imbricados entre si, es-
consistentes e possivelmente lógicas, iridescentes de vida, tudados, preparados e estetizados para conduzirem a palavra
mantendo conflitos bem enovelados, que garantam o suspense “adormecida” no texto, a falar, a sorrir, a chorar, a calar e
imantado à atenção da platéia seduzida: comunicação perfei- a enfeitiçar a platéia. Ela veste uma nova roupagem ao passar
ta. Em ambas as modalidades textuais, encontramos como fonte de um para outro suporte e, conseqüentemente, o que até então

próxima de pesquisa adicional, a mesma matéria (enredo) plasmada em significava, metaforizava, simbolizava, passa a resignificar,
diferentes suportes: escritura de autor (fixidez, eternidade, remetaforizar e resimbolizar.
estabilidade), para oralidade de ator (infixidez, presenti- Estudar as transformações que ocorrem entre criadores
dade, liquidez). Tanto na dramaturgia pura, quanto na drama- (dramaturgos, atores, passando pelo intermediador de ambos
turgia gerada de romances, por exemplo, portanto adaptada, e o maestro da Cena: o diretor) e receptores quando se vêem
anterior ou roteirizada, o ator tem a obrigação de armazenar-se com frente a frente com uma transmutação de processos criativos:
instrumentais treinados, constituindo repertório farto que escritura para teatralização, não é tarefa fácil. Estamos
diante de uma nova sintaxe comunicacional, decorrente das

38
intertextualidades cênicas: a trilogia que não pode faltar de luz e, óbvio também, novos litígios entre os escritores te-
no idioma teatral - autor (dramaturgos, adaptadores e rotei- atrais ou os roteiristas e adaptadores que auspiciam por uma
ristas), ator e diretor. São demasiadamente pronunciados os interpretação absolutamente fidelizada a seus textos, ato-
problemas entre eles. O mote do autor que não escreve especi- res e diretores dos espetáculos que os contempla: meu Deus,
ficamente para teatro, mas para literatura (romances, contos, Nelsinho Rodrigues (o filho), não entende que ao ocuparmos o
crônicas, etc.) é um, a linguagem é costurada com o objetivo espaço sagrado de Baco, as coisas naturalmente, tendem a se
de leitura, não de interpretação. Quando acionada a figura do modificar, porque entre o móvel e o imóvel há um universo de
adaptador de texto ou do roteirista, aparece uma outra ideo- singularidades diferenciais.
logia, às vezes inusitada, outras vezes amorfa, a interagir Aos poucos, vai havendo gêneses de transformações suces-
no triângulo “desamoroso”, raramente harmonioso da ribalta. sivas, a tal ponto, que aquela narrativa aterrisada do es-
Desamoroso no sentido de relações conflitantes: dramaturgo critor começa a decolar e assim sendo, altera-se, desveste-
capa ou autor, querendo seu espaço poético preservado; adaptador -se, reveste-se, por conta de esbarrar em outros processos
(quando houver) também lutando pela manutenção de seus direi- de criação. É impossível exigir uma identidade de processos:
tos no código transmutado; ator e diretor então, terríveis os que escrevem, adaptam ou roteirizam de um lado, e os que
relações..., combates sem conta: o diretor, na condição do presentificam, com sangue correndo, as linguagens, em cena,
maestro do jogo, manda!, impera!; o ator, na condição de “re- de outro lado. E o diretor intermediando ambos, sob um urdi-

universidade
fém”, sente de maneira, por momentos, oposta à do comandante, mento também peculiar. São tessituras de estéticas próprias e
querendo ele mesmo comandar: afinal, sou eu quem está lá, de personalizadas, sem perder de vista a natureza intercambiante
frente para o público e dando a cara para bater... - inerente às artes do coletivo (teatro, dança, mímica, re-
Enfim, “entre tapas e beijos”, harmonias e conflitos, gência, etc.).
vão convivendo os envolvidos na Cena Dionisíaca. O trabalho Autores, adaptadores, roteiristas, carecem de vigilância
sumário é complexo e intercambiante. Não se lida apenas com os as- permanente quanto à administração do dilema: performatiza-
pectos mais etéreos, como a simpatia, a beleza, o carisma do das, suas palavras podem mudar completamente, para melhor,
intérprete, mas com os estudos de sua admirável arquitetura outorgando um enorme e coerente encantamento; ou para pior,
fisiológica que dê conta da magia representacional. Implica defasando a luz conquistada na escritura, eclipsando-se, gra-

próxima
em induzir o fruidor ao entendimento correto da história, do dativamente, até fenecer. Estudos sustentados por cientistas
enredo, dos conflitos tramáticos, tudo adicionado à gestação da área, como o gênio de Paul Zumthor (fr., medievalista, séc.
de um encanto! XX), por exemplo, demonstram que todos aqueles que escrevem
Somos provas testemunhais, na qualidade de atriz que, no no espaço privado, mas não para ele, são suscetíveis à requa-
caminho paralelo traçado por ambas (escritura/oralidade; dra- lificação ou à desqualificação de seus discursos, quando per-
maturgia/atuação): as mesmas letras plasmadas em apoio li- formatizados pelo ator. O escritor deve saber que seus regis-
anterior terário, quando libertas da “passividade” e mergulhadas na tros migrarão do papel para um corpo, para um organismo, para
atividade, angariam novos ares, novos sopros, novos recantos uma voz, para sentidos opositoramente reverberantes, assim

39
sendo, a produção literária estará sujeita a múltiplas meta- seu respectivo COMO, também repertorizado com riqueza técni-
morfoses, porque a tônica vital do performer é capaz de alte- ca, estética e sensível. Por outro ângulo, se o intérprete for
rar significados, rediscutir pensamentos, precipitar tempos desprovido do manancial que o COMO exige para enviar palavra e
lassos ou lacear tempos precipitados, propor idéias, modular ficção flamejantes, o O QUÊ é derrotado, e pode vir a desabar
expressões, criar adaptações, emoções e sensações outras. O uma personalidade poética do patamar de Shakespeare, Ibsen,
QUE É VIVO PULSA, SE MODIFICA E MODIFICA O MUNDO! São parti- Nelson Rodrigues, Eurípedes, Guimarães Rosa e outros tantos
cularidades de processos de criação desconhecidas talvez por maravilhosos. Sabe-se, é fato, que nada e ninguém escurece
dramaturgos ou mesmo, bastante conhecidas, mas propositalmen- o diamante. Ésquilo continuará Ésquilo, para sempre. Porém,
te esquecidas, por estarem a tal ponto mergulhados visceral- estamos falando de transporte de uma para outra linguagem. E
mente nas próprias produções. uma série de manifestações da platéia, entre justas e injus-
Diante destas contendas naturais, motivadas até pelo lus- tas, podem ocorrer, por exemplo: o gênio criador deste Édipo
capa tro dos egos, entre vizinhos que “moram no mesmo terreno”, o Rei que estamos assistindo, deve estar, nesta hora, se viran-
mais razoável e sensato seria: 1) aceitarem-se reciprocamente do no túmulo, salva assim o autor e pune, fazendo justiça,
cúmplices da criação, posicionando-se na condição de co-au- o ator. Mas ela poderá expressar o pior: que pecado!, o que
tores, co-atores, co-diretores, enfim, co-partícipes do efê- fizeram com o grande Ésquilo? Desta forma, as três instâncias
mero cênico; 2) frente aos direitos de contradição para com mais significativas do teatro saem penitenciadas, porém, com

universidade
o objeto poético, negociarem-no inteligentemente; 3) em caso prevalecimento da injustiça sobre o autor, que tão lindamente
de absoluta falta de compatibilidade, desprezarem-se mutua- arquitetou a idéia, erigiu a história para o ator destruí-la.
mente, esquecerem-se e seguirem cada um o seu rumo com outra Além disso, de nada adianta a empatia de uma oralidade
montagem. magnífica, se o receptor não entender, e com muita clareza, o
que está sendo transmitido. Portanto, quando falamos em ple-
sumário Entre o “o quê?” e o “como?” nitude de técnica para o oralizador, estamos nos referindo
a: relaxamento e massageamento apropriados; respiração dia-
É importante fundamentar que entre todas as problemáticas
fragmática treinada; articulação, colocação e projeção vocais
desses diálogos: “voz que cala - escreve” e “voz que fala -
disponíveis aos vários papéis e gêneros; repertorização de
fala o que se escreve”, ou seja, entre o O QUÊ e o COMO, há um

próxima
estilos - a expressão corpóreo-vocal-emocional para textos
aspecto muito importante que, além de estreitar as frontei-
populares é uma e para textos clássicos é outra, que por sua
ras, contribui para a beleza em totalidade: vaidades à parte,
vez é diferente para narrativas líricas, satíricas, cômicas,
quanto melhor for o performatizador da textualidade escrita,
dramáticas, trágicas. No âmago de cada perfil destes, ain-
mais esta se amplia, dirigindo-se a uma redimensão transcen-
da existem as misturas a ser consideradas: interpretar uma
dente, pelo menos é isto que vem demonstrando a história do
tragédia de Shakespeare é completamente diferente de inter-
anterior teatro. Uma interlocução harmoniosa que incide o foco para
pretar uma tragédia de Sófocles; uma comédia de Aristófanes
uma comunicação iluminada, inesquecível. Para tanto, o emis-
faz oposição total a uma comédia de Molière; sem falar nos
sor oral deve dominar com perfeição o O QUÊ do dramaturgo com

40
dois importantes dramaturgos brasileiros: não adianta levar a fadonho, rotineiro, cansativo. Um instrumento indispensável
“fórmula” da expressão de Nelson Rodrigues para Plínio Mar- na estrutura de configurações entre pensamento, sensibilidade
cos e muito menos de Plínio Marcos para Nelson Rodrigues, e e ação. Uma cumplicidade visceral entre ela e os objetos de
os gêneros podem ser os mesmos. A tão almejada luz sobre o sua construção. Assim considerada, a técnica deixa o assoalho
entrecruzamento de linguagens teatrais compreende unidades e do desagradável, para ocupar andares superiores de prazer, de
complexidades nas diversidades. São muitos os cânones a serem satisfação, na tentativa dos burilamentos estéticos. Só com
trabalhados quanto à dramaturgia perfeita e a califasia per- esta consciência, escritor e atores, podem transfigurar sig-
feita do ator para ela. nos convencionais em ícones palpitantes e pulsantes de vida.
A memória das rotundas, dos proscênios e dos tablados No caso mais específico do teatro, o ator co-cria com o
tem demonstrado, desde sua gênese com o deus Dioniso e com dramaturgo, uma possibilidade promissora: eloqüência poético-
a apresentação do primeiro ator do mundo, legitimamente con- -comunicacional para persuasão empática. O diretor maestriza
capa siderado: Téspis (gr.), que, um competente performer pode ambos no contexto geral. O espectador recebe uma energia ar-
transformar em ouro do mais alto quilate as narrativas mais rebatadora, vibrante e cinestésica. O conjunto harmonizado e
debilitadas, insignificantes e superficiais; pode também des- dosado contundentemente magnetiza, muito mais do que as vi-
truir, se incompetente, uma escritura de altíssimo primor. brações de cada uma destas personalidades da cena, em sepa-
O ideal é a beleza com a coerência caminhando holisticamente rado.

universidade
para a perfeição. O refino da articulação da literatura dra- O universo dos compromissados com o verbal escrito, é ex-
mática somado a impecável performatização dela, compreenden- tenso, contemplando todos aqueles que escrevem para alguém
do as ferramentas, os acessórios e repertórios necessários falar, porém, a responsabilidade qualitativa do ator, é uma
para o requinte de cada uma das linguagens, só pode provocar das maiores: a quem compete transformar em vida ativa as pa-
a conquista de elevação da cultura. A consciência do ser que lavras do autor de teatro, plasmadas em suporte imperecível?
sumário expressa - via corpo vivo e presente - frente à necessidade Ao senhor da ribalta! Quem tem nas mãos a habilidade de fazer
de treinamentos sucessivos, estudo, pesquisa e somatória de pulsar as vísceras do viver e do expor, de forma esculpida, o
bagagem, é imprescindível. enredo engendrado pelo autor? O intérprete! Há outros que se
A técnica (vocábulo rançoso, se preconceituosamente consi- encarregam de vitalizar textos escritos: locutores, oradores,

próxima
derado) deve estar a serviço do intérprete e dos escritores, e apresentadores que dependem de roteiros; professores, polí-
não eles seu escravo. Ela não pode ser tomada, aliás, o que é ticos, advogados, etc. Para nós, entretanto, o mais completo
muito comum no Brasil, como uma repetição alienada, uma frie- de todos é o prosélito de Dioniso. É ele quem vai à procura
za nos procedimentos, exercícios e posturas, uma maquinização de mil e um recursos para seduzir o público, através das pa-
do fazer. Falamos de persistência e sabor no treino lúcido e lavras, sons e onomatopéias, advindos da narrativa literária
lúdico. Vista por este ângulo, não somente os que roteirizam, teatral, sem perder de vista que a história deve ser contada
anterior mas, os que propalam esteticamente a roteirização, traduzem de forma clara e bela!
a técnica como uma necessidade ideológica e não como algo en- Tratamos de licenças poéticas que ocorrem na transposição

41
de suportes do mesmo objeto de criação (inerte para cinético, tir, resolvem tudo. Não resolvem mesmo! Junto a estes valores
passado para presente, eterno para efêmero, sólido para gaso- fáceis, anexam-se os menos fáceis e impreteríveis: leitura,
so, mediato para imediato, inflexível para flexível, estável pesquisa, observação aguçada da vida, percepção abrangente
para instável, impermeável para permeável). Sempre observan- do mundo, preparo técnico exaustivo, treinamento sucessivo,
do, se foram conquistados, de maneira competente, os para- caso contrário, a dramaturgia permanecerá calada e deitada,
digmas do bem escrever e do bem falar: retórica, eloqüência, eternamente, em seu jazigo de intocabilidade e o intérpre-
persuasão e empatia. O que é mais desafiante: para o ator, não te performatizando-se em fugacidades vazias, criando apenas
há reprise. Ou ele acerta de prima, ou só resta esperar pelo sopros sem pertinência e sentido. A tão antiga, generosa e
próximo espetáculo, mas aí, a ingratidão da vida se impõe: já sábia arte dramática vai minguando ao léu. São razões como
perdeu irremediavelmente a platéia precedente, que talvez lhe estas, que nos levam a insistir tanto no descongelamento, na
fosse a mais importante; ou, um cataclisma qualquer obstrui desfossilização, na relativização do excesso de auto-estima,
capa a continuidade da temporada; ou ainda, sendo mais trágico, o vaidade e egocentrismo.
intérprete vem a falecer de uma noite para a outra. Enfim, o Em artes móveis, parar é morrer, realmente morrer. Por-
ato do Poeta da Cena é inexoravelmente transitório e incaptu- tanto, que se prossiga a saga, paramentando-se e preparando-
rável. Já nasce morrendo, cada vez, portanto, é como se fosse -se para formas inusitadas de jogos de expressão que, se bem
a última. jogados, podem transformar a voz, o corpo, as emoções e tudo

universidade
mais, em proporções gigantescas, atuações plenas, estéticas
Dramaturgos, Adaptadores, Roteiristas, Intérpretes - Complexas Relações requintadas, lógicas poetizadas, induzindo a uma espécie de
“fusão pensada” entre teatro e vida. Algo assim: “É arte,
Neste fundo caldeirão das vaidades, envolvem-se todos,
mas... impressionante..., é minha avó me dizendo coisas que
abraçam-se quando saem no lucro, odeiam-se nas ocasiões de
me arrepiavam..., por outro lado, não é ela, é a representação
sumário
perda. A verdade é que não há como evitar equívocos, que pre-
estetizada dela. Estou emocionada entre a dialética de vê-la
cisam ser extirpados com problemas administrados: é autor
e me identificar (humanidade que o ator confere ao persona-
sobrepondo-se a ator; é ator sobrepondo-se a autor; é adapta-
gem) e de não vê-la exatamente igual, mas, senti-la ainda mais
dor sobrepondo-se ao autor original; é autor engolindo a si
(ator/personagem, uma construção perfeita)”.
próprio; é ator também em estado inconsciente de autofagia.

próxima
Relacionado ao contexto, daremos dois grandes exemplos de
Autores bem articulados. Autores mal articulados. Roteiristas
espetáculo teatral, em que o sentido das palavras do texto
competentes, respeitando os espaços estéticos de ator e de
original escrito em grego arcaico, é transmitido com uma pe-
diretor de teatro. Roteiristas incompetentes, que se esquecem
culiaridade de oralização, que substitui a compreensão lógica
de dividir as poéticas com os demais companheiros das artes
da história e o res-semantiza, contagiando a audiência como
do coletivo, impossibilitando, algumas vezes, a interpretação
que em um vórtice alucinante. E mais, ela acaba entendendo,
anterior cênica. Atores completamente preparados. Atores completamente
fascinada, a narrativa (pode até não compreender, mas o “re-
despreparados, achando que apenas a intuição, a criatividade,
cado” já está dado). A platéia de brasileiros, sem domínio da
“o jeitinho” e a crença em um talento que pode ou não exis-

42
língua em questão, foi envolvida pela beleza da performati- Nele, o objetivo era uma síntese de atuação, em que as pala-
zação que ganhou uma seleta forma de gestualidade expressiva, vras textuais - desnecessárias - nada precisavam explicar.
como se o diretor criasse uma partitura melódica, uma sonori- Zerar todos os significados da verbalidade autoral e defender
dade singular produzida pelos atores. Os que captaram os con- que o enredo pode ser encontrado por uma “outra língua” - vo-
flitos tramáticos por uma sensibilidade diferencial, ficaram calidade/musicalidade, inaugurada por ele com a denominação
extasiados; os que não o entenderam de forma alguma, ficaram de fonemol e, com isto, espaço aberto para demais elementos
também perplexos por um outro viés de percepção. Nestas mon- da teatralidade: atitudes, marcações, cinetismos, figurinos,
tagens havia uma espécie de estágio pré-verbal de ressonância emoções, gestualidades, sensações, sentimentos, exploração de
arquetípica, mas por propósito, não por incompetência. O pri- todas as possibilidades de comunicação não-verbal.
meiro exemplo: a trilogia antiga, dirigida por Andrei Serban, O diretor de teatro italiano Dario Fo chama esta língua
no Teatro Nacional de Bucareste (Romênia). O grupo apresentou inventada em que, sem nada significar de lógico, aparentemen-
capa em São Paulo, no ano de 1991, três peças: Medéia, adaptação te, imita-se o som de uma língua conhecida como o russo, o
da versão de Sêneca (original de Eurípedes); As Troianas, polonês, o lituano, o japonês, etc., de gromelô. Um conjunto
adaptação livre da obra de Eurípedes e Electra, adaptação da de sons articulados sem entendimento preciso. O que Antunes
obra de Sófocles. Interpretado em língua de origem, este es- fez com Nova Velha Estória foi investir em uma estética par-
petáculo pareceu revelar a incandescência noturna da tragédia ticular de espetáculo. Burnier (diretor do Grupo de Teatro

universidade
antiga, numa espécie de sistema arqueológico de senhas emo- Lume da UNICAMP), em decorrência das pesquisas com o clown
cionais, nas quais forças desconhecidas tomaram lugar. Con- e da procura de sistematização de um método próprio chamado
quistou, destituída da compreensão racional da sintaxe verbal dança pessoal, investia no gromelô e criava línguas pessoais
e somente com o acabrunhante universo sonoro da melodiosida- com seu ator Carlos Simioni. Confessava o estado de desespero
de da etimologia grega, uma significação de imensurável pro- e insegurança que provocava esta maneira de desarticulação da
sumário fundidade. Um espetáculo choque... Durante toda a “viagem”, escritura, de abandono do conhecido para um mergulho no des-
liberou energias de atores e receptores as mais violentas e conhecido gromelô:
abriu precipícios estéticos estranhos dos quais ninguém tinha ... A grande dificuldade que Carlos e eu tínhamos no início era
decorrente do fato de não estarmos substituindo uma língua por outra
certeza de que voltaria... Por isto afirmar-se que nesta não-
diferente, porém igualmente estruturada, mas sim por uma que ainda

próxima
-língua, reinado da plenipotência do som, o receptor tende a não existia. Era a troca de uma língua por uma ainda “não língua”.
ser, ao mesmo tempo, o observador e o observado. Esta era a sensação que tínhamos, mesmo porque sabíamos que ao criar

Outro trabalho dramático de semelhante natureza, em que (ou buscar criar) uma “nova língua”, não estávamos substituindo a
primeira por um “nada”, mas por algo que ainda não era. O partir de
o diretor optou por um discurso de grunhidos e onomatopéias, um “sabido” para um profundo e estranho vazio, um “não sabido”, ou
foi Nova Velha Estória (1991), roteiro e direção de Antunes um “esquecido” (BURNIER: 1997, 114-115).
Filho, baseado no conto Chapeuzinho Vermelho, com o antigo
anterior Grupo de Teatro Macunaíma, atual C.P.T. (Centro de Pesqui-
Se bem elaborada, a empatia com a platéia é garantida
nesta modalidade de encenação teatral, que dispensa o verbal
sa Teatral), com sede no SESC Consolação e Teatro Anchieta.
para ficar com o sonoro. Os condicionamentos à necessidade de

43
compreensão da logicidade escrita dão lugar a um pacto oní- Bentley proclamava que este tipo de teatro tornava impossível qualquer
crítica séria, pois “não há função para o crítico onde o intelecto
rico entre receptor e obra. Um entrelaçamento de sensibili-
não tem valor algum” (STAMBAUGH & GONZÁLEZ: 1996, 394).
dades, em que o público capta, inconscientemente, o poder de
uma força quase primitiva que impele o ator a exteriorizar Pois bem, esta é uma outra ladeira da mesma circunscri-

(artisticamente) o som (elaborado). É como defender, que uma ção geográfica: escritura como sedimentação e oralidade como

língua ficcional possa dar vazão à vibração dos eletrodos so- pulverização, autor, adaptador, roteirista e o dionisista

mada às pulsões psíquicas, alojadas no subterrâneo da sacra- dos palcos, frente a frente. Diante de textos propositalmen-

lidade logocêntrica. te gromelódicos ou fonemolódicos, é de se perguntar: como e

Não é qualquer fruidor que percepciona as sutilezas de de que forma o intérprete deve tratá-los e incorporá-los? Há

um espetáculo com tais propriedades especiais. Ele carece técnicas para representá-los? Se no contexto de um enuncia-

de preparação gestáltica. É necessário uma re-alfabetização do ficcional “normal”, ele, na qualidade de animador instan-
capa vocal-sonora-teatral, para a compreensão dos novos códigos, tâneo da trama, necessita de todo um aparato, trabalhado e

caso contrário, volta-se para trás e, novamente insistimos no construído passo a passo, com extremo esforço, como seria um

mesmismo de sempre: encontrar o significado real das pala- arcabouço levantado para dar conta da referida proposição? Há

vras, atitude própria de uma lógica pré-concebida de capta- autores para linguagens em gromelôs? Há roteiristas para lin-

ção de sentidos. É muito difícil libertarmo-nos de princípios guagens em fonemóis? Qual ou quais são os objetos semânticos
de adaptação para teatro, em linguagens desta natureza? Como
universidade
encalacrados e já em nós fossilizados. Abrir-se para o novo
implica ameaças, e ameaças implicam temores. Um dos grandes procede o diretor frente à tão desafiadora construção textu-

mestres do teatro moderno, Peter Brook, talvez tenha sido o al? Processos de Criação autorais e atorais, com textualida-

pioneiro a “destruir” o texto em prevalecimento de outros de gromelódica, mais sonora do que lingüística, são mais ou

elementos teatrais, para ele mais fortes ainda que a própria menos complexos, mais ou menos exóticos, mais ou menos peri-
sumário palavra: féricos, mais ou menos densos, surgindo daí uma questão com

Peter Brook vivia uma luta constante para reduzir a importância da


faca de dois gumes: de um lado, o artista a pensar: “já que
palavra, valorizando a situação em si, o espaço cênico e a expressão ninguém sabe o que é, nem nós mesmos, navegarmos para cima
corporal mais que o próprio texto. É o que Brook propõe inequivoca-
ou navegarmos para baixo, dá no mesmo, portanto, podemos,
mente ao descrever, por exemplo, as recordações que lhe ficaram de um
sem problemas, investir pouco, gastando a menor quantidade e
próxima
de seus primeiros trabalhos: “há muitos anos dirigi uma produção de
‘Entre Quatro Paredes’ de Sartre. Hoje não consigo lembrar uma só qualidade de energia possível”. Desta maneira, banaliza-se a
palavra do diálogo, nenhum detalhe da filosofia. Mas a imagem central
produção poética, seus entornos, seu mote e seus resultados.
da peça - o inferno constituído por três pessoas trancadas num eterno
quarto de hotel - continua dentro de mim”.
Por outro lado: “de uma vez se tratar de um teatro indizível,
inefável, inexplicável, principalmente ao senso comum, vamos
[...]
comprar a briga de um desafio intenso, ou seja, investirmos
anterior Haja vista sua ênfase no aspecto visual do espetáculo, que freqüen- o máximo para tentar revelar a proximidade de configurações
temente encobria os diálogos. Seu desprezo pela palavra chegou mesmo
racionais, com encanto, caminhando na direção de uma trans-
a provocar verdadeira cisão na crítica inglesa - tanto assim que Eric

44
missão de mensagens no mínimo críveis e impactantes”. bem mais forte, mas no final, muitas vezes eu notei, o resultado era
quase o mesmo, quer dizer, os africanos no final de uma performance
Segundo os citados teóricos, interessados nesta sintaxe
começavam a cantar; a dançar e eu tinha vontade de dançar. Então me
diferenciada, a harmonia das e nas compreensões platéia/ato- convenci de que na presença do corpo, da voz, da audição, do olhar,
res/espetáculo são de outra ordem e conectada a uma montagem dos hábitos sociais, há um fator considerável que dá um sentido ao
texto poético, e vou mais longe, eu diria que a diferença entre um
bem articulada à peculiaridade de tal dramaturgia onomatopei-
texto poético e um texto não poético é que o texto poético precisa do
zada. Quem sabe um “entender sem entender” é a melhor defi- corpo (in, RIBEIRO: 1998, 234).
nição? Um “não entender entendendo?” Ou uma fabulação cômica,
Quanto às relações aludidas por Zumthor entre voz, corpo,
dramática ou trágica que, por opção e estilo, deve ser con-
presença, palavra, movimento, ilusão e sonho, certos escri-
duzida gromelodicamente pelo intérprete que lhe dá sentido.
tores e atores têm posicionamentos convergentes aos do teóri-
Pergunta-se agora: os três patamares poéticos da encenação
co. Conversando com alguns deles sobre esta questão, defendem
teatral: autor, intérprete, diretor, reivindicam um desven-
capa damento da significação discursiva, ou esta é indiferente,
não ser nada pertinente a cisão Teatro - Corpo - Palavra, ou
seja, nós somos o que falamos. Nosso corpo é nossa fala e nos-
acordando-se para outros valores percepcionais?
sa fala é nosso corpo. Tudo está enovelado. Não há, não pode
Oportuno se faz pontuar, algumas das argumentações do
haver um esquartejamento artístico nas artes do coletivo. É
grande medievalista Paul Zumthor, que cuidou como ninguém, da
imprescindível relembrar que não somos departamentos separa-
poética da oralidade na Idade Média, além de priorizar a luz
dos, em que um braço fica pulando como se fosse um rabo de

universidade
do gesto, da voz e da emoção sobre a fixidez do texto escrito:
lagartixa e o outro paralisado como se estivesse engessado.
PESQUISADOR: Hoje em dia o senhor parece interessado fundamen-
talmente nas relações entre oralidade e escritura. Poderia nos falar
O corpo fala, a voz fala, a emoção fala e os sentidos falam,
deste interesse? intenções são corporificadas por movimentos que, por sua vez,
nascem da disposição de um sistema holisticamente harmonioso.
ZUMTHOR: São trabalhos mais recentes que fiz a partir de minha

sumário primeira permanência Brasil, no final de 1977. Eu descobri,


no
graças a amigos brasileiros, em particular etnólogos ou especialistas
O medievalista Paul Zumthor continua a advogar sobre o poder
cativante da voz em si:
em literatura oral, de maneira concreta, qual pode ser a influência da
voz, do corpo, do gesto sobre o texto. Depois desta primeira perma-
... através da voz, a palavra se torna algo exibido e doado. Em
casos extremos, o sentido das palavras deixa de ter importância, é a
nência no Brasil, pude aceitar, justamente porque me interessava por
voz em si mesma que nos cativa, devido ao autodomínio que manifesta...
este tipo de coisa, uma missão na África negra. Estive alguns meses
Assim Mito Sereias. As Sereias,
próxima
nos ensinaram os antigos com o das
na África Central, eu lecionava, havia um pretexto acadêmico. Esta-
em sua ilha, atraíam os navegantes pelo encantamento de suas vozes.
va procurando cantores, contadores africanos e me pus na situação de
escuta, de um ouvinte e tudo se passava em línguas que eu não sabia,
Ulisses conseguiu escapar pedindo que o amarrassem ao mastro de seu
navio e tapando com cera os ouvidos da tripulação. Na antigüidade, as
portanto eu não compreendia o texto, o que eu percebia, era unicamente
todo o aparelho corporal em funcionamento. O corpo, a voz, a emoção
Sereias costumavam ser representadas como figuras míticas, semipássa-
ros, semimulheres. A voz é o instrumento da profecia, no sentido em
e inclusive certo lado sociológico, o tipo de população que eu ouvia,
que ela a faz (ZUMTHOR: 1995, 34).
a posição dominante ou não do cantor etc., e então me dei conta de

anterior que estes elementos corporais, emocionais, sociais, desempenhavam um


Há estudos sérios em desenvolvimento sobre as fronteiras,
papel considerável, eu conseguia adivinhar o texto simplesmente a par-
tir destes elementos. A reação dos africanos que entendiam o texto era
às vezes estreitas, às vezes alargadas, entre as intertextua-

45
lidades: dramaturgia - performance e respectiva comunicação. É inegável estarmos frente a uma luta de titãs. O autor
Pesquisas dão conta de detectar os preconceitos de muitos, que se prepare, porque a força da voz/corpo/emoções em ato/
em defender o prevalecimento da escritura (para eles, mais expressão da presentidade (ator) sobre o “descanso” da pala-
segura, edificante, soberana, imperecível, relativamente mor- vra/pensamento/ “ausência” / “passividade” (dramaturgo, ro-
ta, “apolínea”) sobre a oralidade (insegura, pouco edificante teirista, adaptador), é enorme! Apesar de o intérprete ser
porque leviana - escapa facilmente - plebéia, perecível, efe- aquele que se expõe, que se desnuda, que dá “o rosto prá ba-
tivamente viva, “dionisíaca”). Fala-se de uma espécie de mé- ter”, é ele também quem primeiro recebe os louros, quando faz
dium que se incumbe de iluminar o texto escrito sem tirar dele por merecer!
sua posição hegemônica. Em contrapartida, defende-se que uma Autores precisam estar cientes, que ao concederem as pa-
mensagem não se reduz a seu conteúdo manifesto, e sim compor- lavras de sua propriedade ao ator, elas já não lhes pertencem
ta outro, latente, imanente, que emana da própria inspiração mais. Passam a ser do mundo, da vida, do outro, da humanida-
capa deste chamado médium que a transmite. Muitas são as posições de. Os episódios escritos sofrem tratamentos de mobilidade,
que se articulam neste contexto. Para alguns, a escritura, ao organicidade, emocionalidades singulares (nem sempre coinci-
invés de destruir a oralidade, garante-a e se efervesce com dentes com as da grafia). “Soltas”, portanto, estão sujeitas,
ela. Para outros, a “palavra repousada” parece esvaziar-se inclusive, a graus múltiplos de demência do intérprete e do
quando oralizada, obscurecer-se, perder sentidos; para outros diretor de teatro, no sentido de virar do avesso as linguagens

universidade
tantos, a “voz que esparge a escritura sublime” sublima-a e caminhar rumo ao maravilhoso da expressão. Tais diacronias,
ainda mais, havendo matrizes impressas que se rearticulam em sincronias, até mesmo anacronias, entre o ato solitário do
matizes voco-musicais: escrever e o cinetismo público do viver - volatilidade oral
... determinado texto destina-se ao consumo visual (em princípio so- - são tão saborosas e eternas, quanto eternos são os perigos
litário e silencioso) pela leitura; outro se destina à audição (e, e ameaças. Sensação constante de morte e vida nas mãos. De
sumário portanto
consumo
à percepção
coletivo). O
de efeitos
primeiro
sonoros e
apresenta-se
está
como
por
um
isto
objeto
aberto
-
ao
folha
um para outro, são impostos tempos, espaços, pesos, medidas
de papel, livro - materialidade tátil. O segundo, como uma imate- e conceitos de valor ora coadunantes, ora distoantes, mas
rialidade - esvoaçante. Se considerarmos - como a mim parece correto
sempre conflitantes. O que pode ser interessante, majestoso,
- que é no momento da comunicação que uma obra atinge sua plenitude,
o máximo de sua perfeição, admitimos ser a forma a que nos revela a
belo, sutil para o autor na pena cravada, pode não o ser para

próxima
natureza mais íntima do texto e a intenção original de seu autor. Se o mobilizador da gestualidade incravável.
for assim, temos então duas obras completamente diferentes, que só tem
Paul Zumthor outorga à oralidade valores sem conta, adje-
em comum a forma das palavras: quando lida, a obra é uma, a mesma,
quando teatralizada é completamente outra.
tivando-a como quem quer sentir seu vigor, sua violência, seu
poder de coerção, por dentro! Para o pesquisador, encontra-se
[...]
na expressão oral, conquistada com a volúpia da voz, algo em
Meio Dante,
“Divina Comédia”, obra feita torno de um fascínio epifânico; de uma pluralidade de senti-
anterior
século após a morte de a
para ser lida, era recitada pelo povo de Florença, que cantava suas
dos, responsável pela reoperacionalização de um mundo de sig-
“terzines” pelas ruas da cidade. Ora, seria a mesma obra? Claro que
não! (ZUMTHOR: 1995, 91). nificações; voz é sensualidade, eroticidade, «corpo de peixe

46
e cintura fina - o cantar prostituto das Sereias». Sem dúvida, «perdido» entre ilusão e realidade, é o desejo de todo grande
que um estudioso genial como era, não desqualificava o valor autor e de todo grande intérprete. Tais investidas conferem,
inquestionável da fixidez do registro escritural e do quanto principalmente a este último, a quem cabe vitalizar o objeto
ele trouxe de conhecimento às sociedades. do dramaturgo, a suprema importância em destrezar o corpo,
O discurso crítico conclusivo de Zumthor é de uma coerên- redescobrir o gesto, reproduzir o sopro da voz melódica na
cia fabulosa. Para o estudioso, a escritura tem caráter de proxêmica e na cinética sob sons, luzes, cores na sacralidade
permanência, tradição e conservação, enquanto a oralidade, de das ribaltas. Uma nova gravidade da palavra «no ar» se coloca
multiplicação, expansão e transformação. A primeira se basta, diferente dela mesma, na gravidade pesada “da terra”. A fase
a segunda apela. A escritura tende a preservar aquilo que a de construção genética - tempo de nascedouro da criação, é
oralidade, suportada pela voz, tende a dissipar. Esta é cines- paulatina tanto para um quanto para outro, exige persistência
tésica em plenitude; a escritura é cinestésica em sutileza. incessante, embora o processo do ator seja, por natureza, em
capa As palavras, escritas ou faladas, são passíveis de meta- suporte flutuante, descartável, caracterizado por presenti-
morfoses, rumo a espetáculos de sedução. No entanto, as trans- dade indiscutível e com ela, por evanescência e fluidez. Ca-
formações das primeiras, talvez sejam mais “travadas” por racteres específicos denunciam procedimentos de quem está em
conta do suporte sólido e as mudanças cabíveis às oralizadas fase de processamento estético: rasuras; rascunhos; sinaliza-
são incontáveis, afinal, seu suporte é líquido. Este escorre, ções; gestos de indiciar e apagar, trocar, mudar, com o foco

universidade
aquele gruda; este bamboleia, aquele paralisa (ou dança de na escolha pela melhor opção; assinalar e novamente apagar;
outra forma); a solidez é mediata, a liquidez é instantânea. marcar porque encontrou a expressão ideal “para aquele momen-
Palavra é hierofania. Palavra é sacramento. Palavra é to”; esquecer porque o que descobriu era ruim, etc. Faz parte,
símbolo. Palavra é criação. Palavra é restauradora de reali- por paradoxal que pareça, procurar metodologias de ciladas de
dades esquecidas. Palavra é instauradora de mundos. “esquecimento” ou de não apego excessivo, principalmente na
sumário Urge pronunciar a Palavra! condição de intérprete, isto impede a cristalização inconve-
niente, principalmente quando nada foi ainda definido. Quanto
Conclusão ao dramaturgo, às tentativas e rastros se dão sobre suporte
de grafias fixas. Os manuscritos do processo de criação para a
Estudiosos da linguagem escrita e da linguagem oralizada,

próxima
autoria são meta-textuais. Nas complexidades das respectivas
muito enriquecem a ciência e a arte, ao afirmar que um texto
gêneses, tão diferenciadas, as pegadas, os documentos manus-
no papel, existe por si, apenas quando literariamente: é um
critivos se esbarram e, às vezes, se entrelaçam: os do ator,
corpo morto. No teatro, este é um cadáver que dança. Assim
os do autor, adaptador, roteirista e os do diretor.
também, nas artes performáticas que contemplam a comunicação
Nossa pesquisa não se propõe a idealizações contemplati-
falada, o verbo sonorizado abdica de um «corpo parado» e se
vas, mas a posições dialéticas, por esta razão afirmar-se não
anterior deixa tomar por um corpo cinético. Rompe com as fossilizações
haver somente amores nas estradas dos três criadores desta
da vida para se re-inventar.
arte plural, o teatro. Há muitas brigas, muitos desentendi-
Na verdade, manter o receptor submerso na alma ficcional,

47
mentos, muitos egos em conflito no triádico, sendo bastante
difícil, uma harmonia completa, em que todos saiam felizes.
Sem contar com os trabalhos dos demais elementos da cena: o
do cenógrafo, do figurinista, do maquiador, do idealizador
do som, do idealizador da iluminação, etc. São muitos os que
se entremeiam, solidarizando-se ou obstacularizando-se, re-
ciprocamente, para a lógica e a beleza holística da montagem.
A lida teatral vai do peculiar de cada singularidade à inte-
gração coerente na pluralidade.

Bibliografia
capa • CARVALHO, Ênio. História e formação do ator. São Paulo, SP: Ática, 1989.
• CHEKHOV, M. Para o ator (Opus 86). São Paulo, SP: Martins Fontes, 1986.
• FERRACINI, Renato. A arte de não interpretar como poesia corpórea do ator.
Campinas/SP: Unicamp, Imprensa Oficial do Estado S.A. - IMESP, 2001.
• FERREIRA, Jerusa Pires. A palavra, ocupação de rivais. Texto inédito,
2000. Biblioteca PUC/SP.
• FORTUNA, Marlene. A performance da oralidade teatral. São Paulo, SP: An-

universidade
nablume, 2000.
• LAURENCE, Olivier. Ser ator. Rio de Janeiro, RJ: Globo, 1987, trad. Beth
Vieira.
• ROUBINE, Jean-Jacques. A arte do ator. Rio de Janeiro, RJ: Zahar, 1987,
trad. Yan Michalski e Rosyane Trotta. Coleção Cultura Contemporânea.
• SANTAELLA, Lúcia. Corpo e comunicação - sintoma da cultura. São Paulo, SP:
sumário Paulus, 2004.
• STAMBAUGH, Antonio Prieto e GONZÁLEZ, Yolanda Muñoz. El teatro como vehí-
culo de comunicación. México/México: Trillas, 1992.
• ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1993,
trad. Amálio Pinheiro e Jerusa Pires Ferreira.

próxima

anterior

48
Abstract
CHAPEUZINHO NO VERMELHO - DA
TRADIÇÃO ORAL, LITERÁRIA E In the mankind history, human behaviour related to sexua-

CINEMATOGRÁFICA AOS ROTEIROS DA VIDA lity has been, most of the times, subjected to moral codifi-
cations, and the popular “Little Red Riding Hood” story also
refers to gender questions with such bias. Therefore, our
intention is to recap the different languages (literal and
cinematographic) on which the story was based and reflect,
under the view of social and historic relationships, the re-
I sabel O restes S ilveira presentation of feminine and masculine.
Isabel Orestes Silveira é doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC – SP. keywords: Little Red Riding Hood, cinema, gender stereo-
capa
Professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM) e da Fapcom – Facul-
dade Paulus de Tecnologia e Comunicação.
types

M irtes de M oraes Introdução


Mirtes de Morais é doutora em História Social pela PUC - SP. Professora do
CCL da Univ. Presbiteriana Mackenzie e Professora no curso de Especialização:
História, Sociedade e Cultura – PUC - SP. Diante de uma tela de cinema, diferentes emoções nos aco-
metem, especialmente quando somos seduzidos pelo roteiro que
N ora R osa R abinovich
universidade
demonstra as experiências vividas pelos personagens, as quais
Nora Rosa Rabinovich é Mestre em Psicologia Clínica pelo Instituto de Pós gra-
duação em Psicologia pela PUC- de Campinas. Docente na Universidade Presbite- geram no espectador um sentimento de identificação com as si-
riana Mackenzie nos cursos de Propaganda, Publicidade e Criação e Comunicação
Social- Jornalismo, e no CCH na Universidade aberta do tempo útil. tuações vivenciadas por eles.
Os efeitos especiais de igual modo prendem a atenção de
Resumo adultos e crianças, especialmente as produções cuja comuni-
sumário cação audiovisual se faz mais rica em termos de construção
Na história da humanidade, o comportamento humano ligado imagética favorecida pela visualidade que a linguagem cinema-
à sexualidade na maioria das vezes esteve sujeito a codifica- tográfica proporciona e potencializa.
ções morais, e o conto popular Chapeuzinho Vermelho trata das Desde sua criação, em 1895, pelos irmãos Lumière, o cinema

próxima
questões de gênero com este viés. Por isso, nossa intenção é continua encantando os espectadores. “Não só o cinema seria a
resgatar as diferentes linguagens (literária e cinematográfi- reprodução da realidade, seria também a reprodução da própria
ca) em que o conto foi divulgado e refletir à luz da dimensão visão do homem” (BERNARDET, 1981:17).
das relações sociais e históricas, as representações do femi- Posicionando-se a favor e reconhecendo o valor do cinema
nino e do masculino. Duarte (2002:90 argumenta: “O cinema é um instrumento precio-

anterior
Palavras chave: chapeuzinho vermelho, cinema, estereóti- so, por exemplo, para ensinar o respeito aos valores, cren-
pos de gênero ças e visões de mundo que orientam as práticas dos diferentes
grupos sociais que integram as sociedades complexas”.

49
O cinema, riquíssima fonte do conhecimento e da expressão 1 - Chapeuzinho Vermelho: diferentes versões do conto
humana, também se abre como um vasto campo de investigação do
psiquismo: personagens e tramas são analisados num contexto Sabemos que as diferentes literaturas, os contos de fada

psicológico individual e social. Ótica apontada por Zuzman diversos ou mesmo as histórias de um modo geral, possuem a

(1994:10): capacidade de encantar as crianças em diferentes estágios de

O cinema é hoje um comunicador de mitos. É mais ágil e talvez, aquele


seu desenvolvimento. Ouvir histórias permite às crianças ima-
que em uma linguagem mais próxima das representações pictóricas de vida ginar e ir ocupando um lugar e um espaço na sua família e no
mental [...] Dificilmente um filme não veicula mitos, sejam coletivos
mundo. Os contos são heranças simbólicas que juntamente com
ou individuais. Por definição os mitos estão para a coletividade como
os sonhos para o indivíduo.
outros elementos vão construindo a sua singularidade, enri-
quecendo seu repertório e aprendizado, permitindo-lhe esco-
Então este produto da indústria cultural4, que é conside-
lhas e certamente apontando um leque de soluções. Variadas
capa
rado uma arte espetacular, nos permite estudá-lo sob muitas
são possibilidades de interpretação dos contos, as lógicas
óticas na medida em que amplia as possibilidades de articula-
diferentes são polissêmicas e admitem vários significados. As
ção com a cultura visual em suas múltiplas formas numa clara
crianças em geral se apegam a uma história e a utilizam para
contribuição para além do nosso desenvolvimento estético. O
elaborar questões internas, apropriando-se de trechos do con-
que estamos dizendo é que o cinema pode ser considerado uma
to impregnando-os de significados pessoais.
fonte de conhecimento, que nos possibilita discutir, debater,
Nos contos de fadas existem elementos assustadores, que
universidade
refletir e propagar as vertentes das suas inúmeras lingua-
ensinam a conhecer e enfrentar o medo, proporcionando sen-
gens.
sações mistas de curiosidade e excitação. Temores infantis
Este artigo propõe refletir ainda que não exausti-
freqüentes, como a separação de figura da mãe que nutre e
vamente o conto Chapeuzinho vermelho, que foi divulgado pri-
protege, correr perigos no mundo e o medo do desamparo são
meiramente na tradição oral, e posteriormente adaptado na
sumário literatura representada por Charles Perrault (1628-1703) e
temáticas que evidenciam reflexos do universo psíquico da
criança, mesmo na sua forma inconsciente.
pelos irmãos Wilhem e Jacob Grimm (entre 1785 e 1863). Por
As histórias possibilitam a identificação com um ou vá-
fim, mas não menos importante, abordaremos a versão adaptada
rios personagens, tanto aqueles que ilustram os temores in-
ao cinema, no filme de animação Deu a louca na Chapeuzinho
fantis como os que personificam curiosidades e desejos. Nem
próxima
(Hoodwinked) (2005), dirigido por Cory Edwards. O roteiro foi
sempre a identificação é clara e direta, mas o importante é
escrito por Cory Edwards, Todd Edwards e Tony Leech. Propomos
que reproduz questões inconscientes.
tecer algumas considerações presentes no enredo dessas dife-
Entendemos, então, que as histórias seduzem e prendem a
rentes linguagens, levando em conta os aspectos psicológicos,
atenção pelo enredo e uma vez despertada sua curiosidade en-
as questões de gênero, os estereótipos e os paradigmas exis-
riquece e estimula a imaginação do receptor a ponto de perma-
anterior tentes nos variados personagens.
necerem na memória coletiva por longos anos.
4 Para o leitor interessado em uma discussão mais aprofundada sobre o tema Industria Cultural remetemos o
leitor aos textos de Max Horkheimer e Theodor W. Adorno. A Industria Cultural- O Iluminismo como mistificação
O conto da Chapeuzinho Vermelho, compartilha algumas ca-
das massas. In: A Dialética do Esclarecimento. Tradução de César Bloom. Rio de Janeiro: Zahar, 1985 [1969].

50
racterísticas com outros contos de fadas: aponta um drama dois protagonista (masculino e feminino) marcada pela mescla
existencial, a personagem deve transpor sérios obstáculos até de curiosidade, medo e erotismo:
passar por um ritual iniciático. Se por momentos a criança é __ Oh, vovozinha, que braços longos você tem!
transportada para um universo mágico ao mesmo tempo os contos — São para abraçá-la melhor, minha querida menina!
— Oh, vovozinha, que olhos grandes você tem!
promovem uma explicação do mundo e das regras da existência — São para enxergar também no escuro, minha menina!
humana evidenciando uma forma de controle social. Tomando — Oh, vovozinha, que orelhas compridas você tem!
para si as lutas concretas e existenciais, a polarização do- — São para ouvir tudo, queridinha!
— Oh, vovozinha, que boca enorme você tem!
mina os contos como domina a mente infantil: os personagens — É para engolir você melhor! 5
são bons ou maus, é assim que a criança em torno dos três a
Originalmente a história de Chapeuzinho Vermelho era
cinco anos enxerga o mundo.
transmitida oralmente e centralizava-se no fato de que a me-
Essa valorização dos contos, ganha maior sentido quan-
capa do percebemos que estes vêm, estabelecendo interconexões com
nina iria visitar sua avó carregando um cesta de pão e man-
teiga. Um lobisomem come a avó colocando seu sangue numa gar-
outras áreas do saber e aparece revisitado na música, no te-
rafa e a carne numa arca. Quando a menina chega, encontra o
atro, nas artes plásticas, e também no cinema, alvo do nosso
lobo disfarçado (vestido como a avó), o lobo oferece a carne
interesse.
e o sangue da avó para a menina, mas ela o engana, dizendo
O aparecimento e o encantamento de novas formas de contar
que precisa sair para fazer xixi. O lobo consente, mas amarra

universidade
as histórias relacionam-se a novas necessidades subjetivas.
uma corda na perna da menina. Ela sai da casa e consegue se
Esta concepção é complementada na visão de Bettelheim:
livrar do nó e foge.
Para que uma estória realmente prenda a atenção da criança deve en-
tretê-la e despertar sua curiosidade. Mas para enriquecer sua vida
Os textos sobre a Chapeuzinho Vermelho foram surgindo e
deve estimular-lhe a imaginação: ajudá-la a desenvolver seu intelecto dentre os escritores que adaptaram esse conto popular, desta-
e a tornar claras suas emoções. Estar harmonizada com suas ansieda-
sumário des e aspirações, reconhecer plenamente suas dificuldades e ao mesmo
ca-se Perrault que o publicou em 1697. Perrault, retirou da

tempo, sugerir soluções para os problemas que a perturbam. (BETTE- historia original a passagem do sangue e do corpo da avó. Po-
LHEIM,1980, p.13). rém coloca que assim como a avó, Chapeuzinho Vermelho também

Destacamos o fato de que as histórias e em especial a da fora comida pelo lobo.

Chapeuzinho Vermelho também ganhou nas telas do cinema, di- Aos irmãos Grimm é atribuída à adaptação de muitos contos

próxima ferentes releituras. A versão mais conhecida nos nossos dias de Perrault ao público infantil. Chapeuzinho Vermelho é apre-

narra a história da menina de capuz vermelho que leva uma sentada em duas versões. Em uma delas, a avó e Chapeuzinho

cesta com bolo e frutas para sua vovó que está doente e lá na são salvas pelos caçadores, que as retiram com vida da barriga

casa da vovozinha, Chapeuzinho se depara com o lobo primeiro do lobo. Em outra versão, Chapeuzinho, que aprendeu a lição e

na floresta e mais tarde na casa da avó. não dá ouvidos às conversas sedutoras do lobo, caminha pela
anterior Vale lembrar um dos mais marcantes diálogos do conto que floresta seguindo o caminho correto, ainda que longo, porem

ocupou e ocupa o imaginário da cultura. Uma conversa entre nunca mais pegou atalhos e ouviu as conversas de estranhos.
5 *Trecho retirado do conto Chapeuzinho Vermelho na versão dos Irmãos Grimm

51
Perraut vai trabalhar na produção de um imaginário atre- ainda hoje na sociedade.
lando ao ato de desobediência o sentimento de culpa, trazendo
uma nova moral para a história: a menina não foi obediente às 2 - Discutindo Gênero: Texto no Contexto
ordens da mãe, que lhe dissera para não falar com ninguém no
A tradição oral do conto Chapeuzinho Vermelho abarca uma
caminho, porém, Chapeuzinho ao encontrar com o lobo na flo-
punição severa: morte da avó e a tentativa do lobo em devorar
resta fala com ele. Por meio dessa personagem pode-se colocar
de igual modo a menina. Talvez tão forte como a imagem agres-
a questão da culpa e consequentemente da punição.
siva contada de forma popular, estava a versão de Perrault,
Na versão cinematográfica do filme de animação Deu a louca
embora trabalhada por outro sentido, que é a interioridade
na Chapeuzinho, embora os personagens da história “clássica”
da culpa. Para compreendermos melhor essa abordagem é signi-
apareçam, traz uma abordagem completamente diferente. A vida
ficativo enveredarmos pelo contexto histórico em que o autor
na floresta é alterada quando um livro de receitas é roubado.
capa
estava envolvido.
Os suspeitos do crime passam a ser os personagens: Chapeuzi-
Charles Perrault vai escrever sua versão da história de
nho Vermelho, o Lobo Mau, o Lenhador e a Vovó. No roteiro,
Chapeuzinho Vermelho, no século XVII, na França, momento esse
cada um desses personagens contam uma história diferente so-
em que se estabelece uma forte alteração comportamental na
bre o ocorrido e então, inspetor Nick Pirueta fica incumbido
civilização ocidental, a época conhecida como Era Luís XIV, do
da investigar do caso.
Rei Sol, tempo representado pela força monumental do Palácio

universidade
A grande questão da animação é centrada no roubo de um
de Versalles e de seus suntuosos jardins, de filósofos como
livro de receitas e aí começa a investigação e cada um dos
Descartes e Pascal a escritores como Molière e La Fontaine.
suspeitos dá seu depoimento, estabelecendo múltiplas inter-
Esses pensadores foram divulgadores de tipo de civilização
pretações a respeito do mesmo fato, questionando desta manei-
ocidental onde tinha como centro irradiador o modelo de homem
ra uma única noção de verdade.
sumário
civilizado voltado para as boas maneiras. Juntamente com esse
Nossa intenção até aqui, foi ainda que de forma abrangen-
padrão de civilidade que estava sendo posto, um conjunto de
te, considerar a força que os personagens deste conto abarcam
normas educativas começaram a ganhar força e nesse sentido,
em termos de analogia, imaginário e gênero. É possível retomar
a regulação do sexo também era uma das questões presentes no
para a riqueza do conto Chapeuzinho Vermelho e indagar sobre
campo da civilidade.

próxima
a ambigüidade dos personagens e a atualidade que se apresenta
Michel Foucault (2006) mostra nos volumes da Historia da
em várias modalidades de reescritura.
Sexualidade como o comportamento sexual ganhou uma grande im-
Por isso, valemo-nos a seguir de uma investigação sobre
portância delimitando papéis muito demarcados para o mascu-
os personagens sob a ótica do contexto sócio-histórico em que
lino e para o feminino. Se para o masculino direcionavam-se
foram escritos os contos, trazendo sempre a luz, as questões
características como razão e ação, no caso feminino, desta-
de gênero e posteriormente os aspectos psicológicos que tais
anterior discussões favorecem. Desta forma podemos perceber o modo
cavam-se questões como o sensível e comedimento, que incluía
uma série de questões: do gesto às palavras. Esse controle
como a imagem da mulher aparece como modelo estereotipado
deveria ser regulado pela educação. Nesse momento começa tam-

52
bém a ser traçado toda uma preocupação com a criança, que de- que um novo personagem entra em cena: o caçador que mata o
veria ser bem orientada, melhor dizendo, ser educada dentro lobo e tira de sua barriga a avó e a criança.
dos princípios de civilidade. É interessante observar que os irmãos Grimm vieram de uma
Então Charles Perrault, se preocupava com a disseminação família de classe média e eram os mais velhos dos seis ir-
dos valores de civilidade regulando comportamentos e utiliza- mãos, tinham uma vida ligada ao campo e receberam princípios
-se do conto para apresentar de forma didática um ensino. de uma rigorosa educação na igreja calvinista. De um modo
Na história de Perrault, o personagem masculino é o lobo e geral, a obra dos irmãos Grimm estabelecia uma vida dos seus
as três personagens femininas são: a mãe da menina que orien- personagens atrelada às dificuldades, sejam elas financeiras
ta e lhe dá conselhos; a avó, figura materna que se apresenta ou de injustiças sociais. Quase sempre a vida das personagens
velha e doente e finalmente a Chapeuzinho Vermelho, objeto de estava ligada ao campo e com o decorrer da história, através
desejo do lobo após devorar a avó. de muita luta, conseguiam a vitória. Os princípios cristãos
capa Perrault apresenta um lobo que devora não somente a avó, eram sempre reforçados e junto a eles se enfatizava o padrão
como também a menina conhecida como Chapeuzinho Vermelho da hegemonia masculina.
(alusão à vestimenta vermelha de capa e capuz) usada freqüen- Assim como em Perrault, as mulheres deveriam ser dóceis e
temente pela garota. No conto, a intenção de Perrault, é re- frágeis. No caso dos Grimm, pode-se perceber a questão da in-
forçar a moral pela didática que a história traz. Pretende, genuidade da menina e da fragilidade da velha senhora, ambas

universidade
então, comunicar às mulheres que sendo frágeis e vulneráveis, engolidas pelo lobo, mas que foram salvas pelo protagonista
devem cuidar-se dos lobos devoradores. Perrault faz uma clara masculino. Através do homem, as mulheres da história puderam
analogia ao caráter sexual no conto transmitindo um ensino as entrar novamente na história.
mulheres para que estas se mantenham afastadas da conversa No final do século XX, com uma proposta nova de releitura
sedutora de homens que se mostram gentis, mas que não passam de Chapeuzinho Vermelho, surge o filme de animação intitulado
sumário de lobos. Deu a louca na Chapeuzinho. As opções dos cineastas apontam
Resumindo a moral de Perrault, Chapeuzinho Vermelho não para um roteiro que pode ser considerado de adaptação as mu-
escuta as palavras de sua mãe, então o autor está mostrando de danças de paradigmas assinaladas por um novo surto dramático
maneira didática o que deve ser feito e o que não deve, e nes- de transformações sociais que vem ao encontro de uma visão de

próxima
se sentido, uma menina deveria seguir sua própria “natureza”: mundo que vai se tornado cada vez mais imprevisível, irresis-
obediente, amável, passiva. Em outras palavras, a menina des- tível e incompreensível.
de cedo deveria ser domesticada e saber se controlar. Culpa e Nesta trama que aparece em tom de comédia, há uma des-
passividade torna-se características basicamente femininas. construção da imagem de mulher frágil, insegura e indefesa. O
Se a intenção de Perrault era comunicar através dos contos nonsense do filme é esvaziado do aspecto sexual em proveito
uma mensagem aos adultos, é atribuída uma nova versão para o de uma trama policial. A vovó que aparece como sendo uma das
anterior público infantil publicada pelos irmãos Grimm (século XIX). protagonistas principais, não é comida ou enganada pelo lobo
Nela o final da história encontra-se como “final feliz”, em e se destaca como praticante de esportes radicais. A Chapeu-

53
zinho Vermelho por sua vez, não sendo nada ingênua apresenta- é de uma ingenuidade extrema: não tenta nem fugir nem lutar.
-se com muita experiência do mundo e o Lobo Mau, de animal Este é o conteúdo manifesto do conto que atualiza os ide-
selvagem, símbolo da virilidade e da potência, se vê reduzido ais do amor romântico e da necessidade de cuidar da mulher. Na
e terrivelmente incompreendido. criança encontra os seus próprios significados: existe nela
Nesse sentido, a trama que vai sendo estabelecida pode uma descoberta intuitiva e espontânea dos significados laten-
ser feita e refeita a partir de visões de cada personagem, tes, ocultos. O conto aborda temas centrais como as ligações
ou seja, não há algo já estabelecido como processo verdadei- edípicas presentes no inconsciente; o perigo de expor-se a
ro: o lobo não é mau, a criança não é ingênua e a vovó não é possíveis seduções antes da maturidade, a casa da mãe e da
enferma. Toda essa alteração pode estar articulada à própria avó como suporte de segurança e da identidade infantil que se
História na qual podemos perceber através das outras versões encontra em pleno processo de formação.
que as narrativas acompanham os contextos aos quais eles per- Apesar de Chapeuzinho ter transgredido e desobedecido,
capa tencem, ou seja, o texto vai sendo produzido e adquire dife- aparece outra imagem do masculino na personificação do caça-
rentes sentidos conforme o contexto em que está inserido. dor que salva Chapeuzinho e a sua avó na versão dos irmãos
Pensar numa vovó radical é repensar numa outra terceira Grimm. Chapeuzinho não teme o mundo externo e “aí que mora o
idade, mais ativa, produtiva e ágil. Colocar Chapeuzinho Ver- perigo”: o mundo representa o princípio do prazer, ela quer
melho como esperta é sugerir formas de se repensar sobre a conhecê-lo, descobri-lo. Mas há um grande risco, abandonar a

universidade
infância que não é mais dominada e sim que domina relações, realidade e os ensinamentos familiares. Disto trata a ambi-
ganhando no mundo contemporâneo investimentos de poderes. E valência infantil. Na pré-puberdade a criança ainda não está
o lobo mau já não é mais tão mau, e desta forma nos faz re- preparada para lidar emocionalmente com outras relações senão
pensar que estamos num mundo “desencantado”, onde o poder da aquelas correspondentes ao conflito edípico.
imaginação perdeu sua força. Chapeuzinho pega o caminho conforme indicado pela mãe e
sumário quando perguntada sobre a tarefa que lhe foi incumbida, ofe-
3 - Discutindo Gênero no viés psicológico
rece ao lobo preciosas informações. Ao cumprir a sua tarefa
brincando, entre flores e borboletas, o caminho lhe mostra
O conto de Chapeuzinho vermelho de Perrault como já cita-
outros encantos: a natureza e a lábia sedutora do lobo. Mas
do anteriormente termina de uma forma trágica para a menina,

próxima
o lobo chega antes na casa da avó, onde ocorre o clássico e
ela é devorada. O texto que tem um claro conteúdo de fábula
segundo diálogo, na realidade, o clímax da narrativa: Avó,
moral reforça que transgredir regras expõe a criança ao pe-
que olhos tão grandes você tem... para te enxergar melhor...
rigo, ela é punida no final da história. É um alerta para as
que orelhas tão grandes... Dita enumeração dos sentidos é uma
meninas sobre os “lobos de fala mansa”: os homens sedutores e
forma que a criança utiliza para compreender o mundo: mesmos
perigosos. Psicologicamente falando a simplificação da histó-
assim, existe uma tonalidade erótica no diálogo entre Chau-
anterior ria limita o ouvinte impossibilitando um significado pessoal.
peuzinho e o Lobo enquanto a vítima faz perguntas num tom de
Nesta versão com conteúdo moral, abrem-se apenas duas possi-
desconfiança, entrega-se ao algoz.
bilidades: diante da fala do lobo ela deseja ser seduzida ou

54
Para Linchenstein e Corso (2006) a criança não sabe e ain- O lobo, jornalista disfarçado, ávido por noticias e novi-
da não suporta saber sobre o sexo. Representando a transição dades não poupa esforços para tornar público àquilo que acon-
entre a inocência infantil a prática da sexualidade adulta, tece na região. Apresenta-se ambíguo até que de fato decide
surgem na vida da criança tanto a sedução imaginada como em colaborar com o bem social.
outros casos a sedução traumática, vivenciada precocemente. O Coelho, personagem que dissimula humildade e colabora-
Aparecem duas figuras masculinas antagônicas: o sedutor ção é de fato uma personalidade invejosa, personagem capaz
animalesco e perverso, que usa a boca tanto para seduzir, de utilizar a inteligência para atingir objetivos narcísicos,
quanto para comer, e o salvador humano e bom, que usa um fuzil mesmo que para consegui-los tenha que ludibriar o resto do
tanto para caçar, quanto para salvar a vítima. Nesta versão mundo.
aparece a representação masculina dos homens confiáveis e que A Avó, figura matriarcal reclama sobre os estereótipos
protegem as mulheres (alusão à substituição da função pater- de gênero que engessam a sua individualidade: “Não sou como
capa na). Mensagem: “existem homens lobos, mas encontre para a sua outras avós, não costuro, não faço tricô nem jogo bingo.”.
vida um homem confiável”. Trata-se de uma avó competitiva e radical que gosta de vi-
O conto traz também desde outra perspectiva, a necessida- venciar os extremos. As novas identidades surgem relacionadas
de de compreender a natureza contraditória do homem: aspectos à quebra de paradigmas, à sobrevida dos idosos que comparada
da personalidade opostos ou ambíguos: por um lado o ser humano com outros tempos, exigem novos papeis neste novo tempo.

universidade
tem tendências egoístas, violentas, destrutivas e associais A figura do caçador, é substituída pela de um lenhador que
representadas pelo lobo; por outro: percepções altruístas e na realidade é um ator na busca de conquistar um papel para
protetoras, representadas pelo caçador. ganhar dinheiro em um anúncio publicitário. Sendo rejeitado
Na versão do conto adaptada ao cinema: Deu a louca na para o papel numa primeira ocasião diz: “eu preciso achar o
Chapeuzinho, o enredo subverte estereótipos tradicionais e lenhador que há dentro de mim”. Quantos homens buscam diante
sumário acrescenta elementos e conflitos psicológicos individuais e da fragilidade do eu, um ser forte, decidido, corajoso que
sociais da atualidade. Destacamos aqui apenas alguns trechos precisa nascer diante das demandas externas, mas que parece
e discursos dos personagens que relacionam crises individu- teimar adormecido no seu interior?
ais, geracionais e de papéis de gênero. Diante dos conflitos individuais das personagens, num

próxima
Chapeuzinho é crítica e questionadora, lutadora de ar- certo momento do filme parece que apenas o trabalho em equipe
tes marciais. Trata-se de uma verdadeira alusão à mudança dos trará algum resultado: o lobo, a vovó e o caçador unem-se num
papéis de gênero. Por alguns momentos entrega doces que a esforço coletivo para lutar contra o coelho e salvar a Chapeu-
avó fabrica de forma obediente e submissa, em outros, porem, zinho. A questão colocada pode ser entendida como confronto
desiste da capinha vermelha (alusão à tradição familiar). entre o individualismo extremo versus o coletivismo (um dos
Reclama da rotina e clama: “alguém me mostre o mundo. Mundo pontos de tensão da contemporaneidade).
anterior eu quero você!”. Coloca-se assim como ser desejante de novas Num comentário interessante ao perceber a passagem do
descobertas. tempo, a avó diz dirigindo-se à Chapeuzinho: “Eu estava tão

55
desligada que não vi você crescer tão rápido”. Toda geração tido mais lato do termo, ou seja, vermelho, significa urgên-
apresenta momentos de estranheza, conflitos e reconhecimento cia, um assunto que deve ser posto em pauta. Chapeuzinho no
das outras. vermelho, pode representar a cor da intensidade e do desejo
No fim do filme tudo acaba bem e a personagem que dá nome que se encontra potencialmente em todo ser humano ligados ao
ao filme afirma: “Sempre gostei de finais felizes”. E quem não devir. Um convite a trilhar novos caminhos para atingir o de-
gosta? Embora nem sempre a vida os traga, finais felizes nas senvolvimento individual. No vermelho, é também enfrentar a
histórias apontam a possibilidade preciosa do psiquismo e da tensão e desenvolver a ousadia necessária para ser ao mesmo
vida humana: errar e acertar, enganar-se e mudar de opinião, tempo parte do coletivo e não perder-se de si mesmo.
destruição e reconstrução, todos estes processos de reparação Deste modo, as reflexões devem ser pensadas como um campo
de danos psicológicos e vitais. de inquietações num processo transformativo entre narradores,
Sem nenhuma pretensão de esgotar as visões possíveis, ouvintes e leitores possibilitando novas conexões entre sig-
capa tentamos utilizar a obra literária e cinematográfica como nos, linguagem, comportamento e gênero.
pano de fundo para a intersecção de idéias e novos parâme-
tros do olhar. Como “Chapeuzinhos” ao sair do acomodamento Referências bibliográficas

dos universos conhecidos que promovem segurança, cada uma das • BERNARDET, Jean-Caude. O Que é Cinema? São Paulo: Brasiliense, 1981.
autoras partiu da sua própria concepção teórica para ousar • BETTELHEIM, Bruno. A Psicanálise dos contos de Fadas. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 2006.

universidade
abrir-se a outras possibilidades de compreensão da história.
• CORSO, M.e LINCHENSTEIN, D. Fadas no divã. Psicanálise nas histórias in-
Figurativamente quisemos nos perder na floresta para depois fantis. Porto Alegre: Artemed, 2006.

reencontrarmo-nos. A nossa idéia foi eco do pensamento de • CROMBERG, Renata. Prefácio (páginas 13 a 17). In: TELLES, Sérgio. O psi-
canalista vai ao cinema. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.
Cromberg (2004:15): “Perder-se da estrada que sai de um ponto
• DUARTE, Rosália. Cinema e Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
fixo já pressupondo seu ponto de chegada, para mergulhar na • FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. 11. ed. São Paulo: Graal, 2006.
sumário vertigem de outras dimensões de ser: finitude ilimitada que • MAX Horkheimer e Theodor W. ADORNO. A Industria Cultural- O Iluminismo
como mistificação das massas. In: A Dialética do Esclarecimento. Tradução
os processos de criação da arte e da vida propiciam”.
de César Bloom. Rio de Janeiro: Zahar, 1985 [1969].
• ZUZMAN, W. Os filmes que vi com Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1994.
Conclusão

próxima Podemos nos perguntar como este conto pode ter permanecido
através dos tempos e ainda ecoar em mentes e corações humanos.
Talvez a resposta aponte para o fato de que todos nós já fo-
mos alguma vez chapeuzinhos vermelhos, curiosos e ávidos por
decifrar e com sorte compreender o desconhecido mundo adulto.
anterior Assim, “Chapeuzinho no Vermelho” sinaliza um campo para
discussões e questionamentos acerca do processo constituído e
estereotipado. Aqui “No vermelho” deve ser entendido no sen-

56
Imagem: a escrita transformada
ASPECTOS DO ROTEIRO DE ADAPTAÇÃO
DE OS SERTÕES PARA TELENOVELA Para se fazer uma adaptação de obra literária para te-
lenovela, deve-se pensar que o traço fundamental desta está
na necessidade de manter o interesse do telespectador a cada
episódio. Cria-se a necessidade de se fazer um desdobramento
do texto do livro em uma história em que cenas inteiras sejam
integralmente criadas a partir de sugestões de trechos, fra-
M ônica de M oraes O liveira ses, palavras.
Mestre, Doutoranda do Programa de Ciências da Comunicação (ECA/USP), monica- No caso específico da obra Os Sertões, de Euclides da
moliveira@usp.br, monicavelame@gmail.com
Cunha, a grande dificuldade encontrada para a transposição
capa P elópidas C ypriano PEL
Professor Doutor (Livre Docente) do Instituto de Artes da UNESP
é que, no livro, não se tem tantas ações como se precisaria
em uma telenovela. Outros fatores a serem considerados são
relacionados à ausência de personagens convencionais e núme-
Resumo ro reduzido de episódios e de tramas. Não há, aparentemente,
conflitos suficientes para se movimentar o contexto de uma
A proposta deste texto é analisar as possibilidades e os
telenovela. É preciso fazer um alargamento do universo íntimo
universidade
problemas que podem surgir ao se adaptar a obra Os Sertões,
da obra original, inserindo-se episódios, personagens e tra-
de Euclides da Cunha, para a televisão, em forma de teleno-
mas e criando um espaço cenográfico típico que caracterize o
vela.
ambiente apresentado no texto verbal.
Palavras-chave: roteiro de adaptação; roteiro de teleno-
O filme Deus e o Diabo na Terra do Sol pode servir como uma
vela; adaptação literária para televisão; roteirista de te-
sumário lenovela
referência, pois apresenta um sertão que se assemelha ao do
livro Os Sertões, sendo criadas tramas e personagens com uma
dinâmica de leitura por meio da câmera. O enquadramento lite-
Abstract rário euclidiano não é igual ao enquadramento cinematográfico
de Glauber Rocha. A leitura que este faz está no contexto do
próxima The purpose of this paper is to analyse the possibilities cinema novo, que significa apresentar a versão simbólica e
and problems that can arise when the human beings to adapt metafórica do sertão com uma linguagem própria para a filmo-
the work of Euclides da Cunha, Os Sertões, for television, in grafia nacional criada nos anos 60. Essa linguagem, dinâmica
the form of soap opera. e expressiva, procura reproduzir a cultura nacional, rompendo
Key words: screenplay adaptation; telenovela script; li- com os padrões da linguagem certa e arrumada do tradicional
anterior teracy adaptation for television; soap opera scriptwriter cinema norte-americano vigente naquela época.
Nesse filme há um clima parecido com o de Os Sertões, no

57
qual a paisagem brasileira procura ser mostrada tanto no seu invariável do livro e organizou criativamente, ao redor dele,
aspecto físico quanto no humano. As personagens criadas para os elementos variáveis. A função das personagens é invariá-
atuar nesse contexto vinculam-se a um missionário, indicando vel, servem como elementos estáveis e constantes. No filme é
semelhanças com os seguidores de Antônio Conselheiro. Pode- dada ênfase aos aspectos econômicos e cômicos de Venceslau
-se perceber o cenário da grande guerra de Canudos envolto em Pietro Pietra, apresentado como um gigante da indústria e do
uma concepção mítica dos heróis, em um clima de alucinação, comércio (um capitalista burguês). O cineasta tentou fazer o
loucura, milagres, fanatismo e misticismo, no qual a religião filme relacionar-se diretamente com a realidade social, polí-
é usada para o trabalho e para a sobrevivência. O vaqueiro tica e econômica do Brasil. Essa é uma forma de adaptação que
Manoel torna-se beato para se proteger de ser punido por ter considera elementos básicos da obra original adequando-os a
assassinado o coronel Morais. Une-se ao deus negro, mostrando estruturas vinculadas aos objetivos do adaptador.
ser o beato um homem desprotegido e ignorante que se agarra Sendo Os Sertões uma obra que contém vários elementos des-
capa desesperadamente a qualquer promessa de salvação. critivos, sobretudo com relação ao cenário, estes poderiam
O mar é colocado pelo cineasta por ser um sonho do nor- ser considerados como os elementos básicos para a adaptação,
destino. O problema da seca no Nordeste se junta à fome, à deixando como elementos a serem ampliados os relacionados às
miséria e ao analfabetismo. O mar seria uma salvação, uma vez ações cotidianas das personagens centrais e das que precisa-
que é o oposto da vida que se tem no sertão. Seria a conquis- riam ser criadas para a telenovela.

universidade
ta de uma terra mais justa. A chegada simbólica do camponês
ao mar sugere uma ideia de conquista da liberdade, principal- Estrutura narrativa / personagens

mente porque o personagem é mostrado em uma ação contínua,


Uma questão discutida com relação a Os Sertões está no seu
correndo.
caráter híbrido. Ao mesmo tempo em que se trata de um relato
No livro, Euclides da Cunha mostra a seca como um elemento
sumário
jornalístico (mais no sentido do livro reportagem do que nas
integrante do todo, como se ela também fizesse parte da luta.
matérias periódicas), também pode ser encarado como um ensaio
A natureza é mostrada com seu aspecto duro, árido, depaupera-
histórico, mas que apresenta uma explosão narrativa de força
do, como se viver ali fosse algo incompreensível, espantoso,
tão grande e intensa que acaba por se impor sobre os demais
mas, ao chover, tudo se transforma, tornando-se o sertão ir-
aspectos. O autor narra fatos e dispensa um tratamento para a

próxima
reconhecível. Pode-se dizer que o texto tem um caráter “visu-
construção de suas personagens, o que revela a profunda ri-
al”, por ser bem descritivo. Ao descrever o sertão, o leitor
queza de suas idéias e a grandeza de seu texto.
é encaminhado como se estivesse com uma câmera na mão, junto
Na leitura da obra surge uma série de nomes que aparecem
com o autor, percebendo suas impressões sobre a viagem.
e somem (por exemplo, as figuras de Antônio Vicente Mendes
Ao ser feita uma adaptação, surgem os traços de semelhan-
Maciel, Antônio Conselheiro, Coronel Antônio Moreira César,
ças e diferenças entre a obra literária e a fílmica. No filme
anterior Macunaíma, por exemplo, como diz Randal Johnson (1982), o ci-
Coronel Pedro Nunes Tamarindo e o sertanejo João Abade). As
personagens são símbolos manuseados com o intuito de enfa-
neasta Joaquim Pedro de Andrade percebeu o eixo estrutural e
tizar outros elementos da narrativa. Percebe-se nesta obra

58
um relato jornalístico transmutando-se em ensaio histórico, de-se ter uma boa referência a seguir, ou seja, pode-se ter
ficando o registro literário ligado às imagens e ao estilo, um embasamento que poderá ajudar a dar elementos em termos
já que a argumentação cabe à perspectiva científica que ele do espaço e do tempo a serem transpostos. A realização de um
impõe ao trabalho. Há um compromisso com a objetividade que trabalho cenográfico poderá ser muito ajudada se for feita
impossibilita a construção de personagens que não estejam em uma análise do “conteúdo imagético” do livro.
sintonia com os outros elementos da obra, a personagem ganha Segundo Roberto Goto (1992), esta obra segue uma estraté-
uma dimensão quase que utilitária, sendo, prioritariamente, gia de construção que começa pela terra por ela representar
uma peça na engrenagem que forma o todo. Nada na montagem é o primeiro elemento da cadeia de determinações e descortinar
gratuito, todos os dados fornecidos têm função específica, o cenário do drama. A seguir são apresentados os personagens
não há excessos. dramáticos e por fim a luta onde se dará a atuação e o desdo-
Para uma telenovela, seria necessário ampliar-se a narra- bramento das ações dos personagens.
capa tiva colocando os personagens em tramas e inserindo-se outros Em uma telenovela esses elementos (terra, personagens e
que possam dar ao espectador a noção de um contexto, bem como luta) não poderiam ser apresentados um a um, independentemen-
produzir efeitos de “ganchos” para que este se sinta envol- te. Eles apareceriam intercalando-se, mesclando-se, durante
vido com o enredo. O caráter jornalístico (ou de ensaio his- todo o desenrolar das tramas. A terra e os personagens pode-
tórico) terá que desaparecer, dando lugar a uma outra forma riam ser apresentados de forma a encaminhar o telespectador a

universidade
de expressão, transformada, mas que carregará em si elementos esperar a luta, a preparar-se para ela, como no livro.
vindos das colocações e do posicionamento objetivo de Eucli-
des da Cunha. Espírito da obra — o ponto de vista de Euclides da Cunha
Com relação ao narrador, ele é preponderantemente em ter-
O espírito de Os Sertões está na reconstituição de Canudos
ceira pessoa, traduzindo um narrador independente que expres-
sumário
na época da Campanha. O ponto de vista que define o tom do
sa um juízo de valor. O texto é bem construído patenteando-se
livro, o conteúdo e a perspectiva são ditados pela visão de
nele uma evidente preocupação com a função poética da lingua-
mundo que condiciona a organização do material narrativo. Ao
gem. Essa narração, transportada para uma telenovela teria
ser mudado o ponto de vista, a estrutura e o sentido da obra
que ser transferida para as personagens. O juízo de valor se-
são alterados.

próxima
ria expresso através de ações e tramas criadas propositalmen-
Euclides da Cunha revelou a experiência obtida com sua
te para tal finalidade. A função poética existente no texto
viagem a Canudos. Sua reflexão sobre a luta leva o leitor a
deveria ser alvo de preocupação do adaptador, pois seus ele-
uma tomada de consciência sobre a revolta havida naquele ar-
mentos poderiam servir de base para uma criação de situações,
raial. Ele prepara o cenário, apresenta o povo, baseando-se
de contexto.
na noção de que no mestiço brigam a raça mais forte e a mais
anterior Tempo / espaço
fraca, para só então poder mostrar o massacre.
No livro tem-se o ponto de vista de um jornalista, enge-
Considerando-se o aspecto “cinematográfico” do livro, po- nheiro militar e estrategista que contou um fato histórico

59
de sua época, presenciado por ele. Ao se pensar em transpor Considerações finais
o livro, deve-se perceber que as características são outras,
tanto por conta da época em que ocorreu o fato quanto do ca- Procurou-se neste texto abordar alguns aspectos que en-

ráter da telenovela. caminhassem um roteirista de telenovela a pensar o que po-

A telenovela tem um caráter “otimista”, procura ser agra- deria ser feito para se transpor a obra de Euclides da Cunha

dável e amena, mesmo quando faz denúncias ou quando se propõe para esse outro gênero. A obra original é extremamente rica,

a tratar a realidade tal qual ela se apresenta. Nesse gênero fornece elementos muito fortes para se ter uma idéia sobre

procura-se colocar elementos de lazer para o público. Mesmo Canudos. O fato histórico tal como foi mencionado no livro,

que sejam apresentados conflitos, mistérios, segredos ater- adaptado para uma telenovela poderia trazer a um grande pú-

rorizantes, violentas chantagens, no final tudo se resolve, blico uma visão mais ampliada a respeito da reflexão do au-

o telespectador, que já espera pelo final, fica tranqüilo, tor.


capa as situações se revertem, resolvem-se os problemas, pode-se Como foi dito, seriam necessárias muitas alterações para

passar, então, para uma nova telenovela, com suas tramas e a adaptação para esse outro veículo, sobretudo para se manter

dúvidas. Muito se mudou em questão de estilo das telenove- o interesse do telespectador, o que é de fundamental impor-

las ao longo de sua existência, mas sua mola mestra continua tância quando se trabalha com esse gênero. Muitas tramas e

sendo o sucesso com os amores, as emoções, os sofrimentos e personagens deveriam ser criadas, as já existentes deveriam
ser ampliadas; algumas outras modificações quanto à estrutura
universidade
os mistérios. Sendo assim, nas tramas a serem criadas para se
transformar a obra euclidiana em uma telenovela deveria ser narrativa, tempo, ponto de vista do autor também deveriam ser

dada uma ênfase ao sofrimento do povo como um todo, colocando- feitas.

-se várias personagens em seu estilo de vida sofrida, prepa- Recriar Os Sertões numa outra linguagem, mantendo-se a

rando e convidando o telespectador a posicionar-se diante de espinha dorsal da obra original, o episódio do arraial de
sumário um fato histórico, vivenciando-se em pequenas doses todos os Canudos, mostrando os dois adversários da guerra: o inimi-

dias. go interno — Antônio Conselheiro — e o Exército. Passando-se

O público tem grande influência na realização de uma te- essa visão para uma telenovela seria mostrado o lamento da

lenovela, essa é uma de suas características. A opinião dos existência da chacina ocorrida no passado e, para que essa
temática pudesse servir como elemento motivador, poderia ser
próxima
telespectadores é observada, são levadas em consideração as
informações sobre a aceitação ou rejeição de personagens e feita alguma comparação com as chacinas atuais.

situações que estão sendo apresentadas. Muito de seu projeto


Referências
original pode ser mudado, diferente de uma minissérie (obra
com número menor de capítulos e totalmente filmada ao ser • CAMPEDELLI, Samira Youssef. A telenovela, São Paulo: Ática, 1985.
• CUNHA, Euclides da. Os Sertões. Campanha de Canudos. Rio de Janeiro: Fran-
apresentada para o público).
anterior cisco Alves, 1991.
• DANIEL FILHO. O circo eletrônico: fazendo TV no Brasil. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2001.

60
• GERBER, Raquel. O mito da civilização atlântica: Glauber Rocha, cinema,
política e a estética do inconsciente. Petrópolis: Ed. Vozes, 1982.
• GOTO, Roberto. A letra e a morte: Os Sertões e a imaginação de um leitor
deste final de século. In: GOTO, Roberto. A letra ou a vida. Campinas: Ed.
da Unicamp, 1992.
• JOHNSON, Randal. Literatura e cinema — Macunaíma: do modernismo na lite-
ratura ao cinema novo. São Paulo: T.A. Queiroz, 1982.
• MURCH, Walter. Num piscar de olhos: a edição de filmes sob a ótica de um
mestre. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

capa

universidade

sumário

próxima

anterior

61
capa

ROTEIRO E
universidade

HISTÓRIA -
sumário

ABORDAGENS
próxima

anterior
DIVERSAS
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Italian directors of the mid-40s of the twentieth century
ROTEIRIZAÇÃO EM SUSO CECCHI onward, including Luchino Visconti, Vittorio De Sica, Miche-
D’AMICO: DO NEO-REALISMO langelo Antonioni and Martin Scorsese. She also worked with
ITALIANO A CONTEMPORANEIDADE great screenwriters like Cesare Zavattini, Tonino Guerra and
Enrico Medioli. Her recent death, in July 2010, establishes
a milestone to revive his legacy and his contribution to
the history of world cinema heritage that translates into a
stylistic construction of the script, not tied to standards.
Key words: screenwriter, screenplay, Suso Cecchi D’Amico,
D enise C amillo D uarte Italian cinema.
Denise Camillo Duarte tem especialização em Roteiro para Cinema e é mestre

capa
em Teatro, Professora Assistente no curso de Comunicação Social, Habilitação
Multimídia, da Faculdade CCAA, Rio de Janeiro, RJ A morte em 31 de julho de 2010 de Suso Cecchi d’Amico,
talvez a mais importante roteirista que o cinema europeu co-
Resumo nheceu e um dos maiores nomes do cinema mundial, foi destaque
em jornais como The new yorker, Telegraph e Guardian, entre
Suso Cecchi D’Amico foi provavelmente a mais importante outras publicações que lhe renderam homenagens e longas re-
roteirista não só da Itália, como também da Europa. Uma das
universidade
trospectivas de sua carreira. No Brasil, entretanto, sua morte
pioneiras do roteiro neo-realista, trabalhou com vários dos mereceu pouca e inexpressiva menção na imprensa local. Faz-se
maiores diretores italianos de meados dos anos 40 do século necessário relembrar sua obra e sua inestimável contribuição
XX em diante, entre eles Luchino Visconti, Vittorio De Sica, para o cinema, sobretudo para o Neo-Realismo Italiano, movi-
Michelangelo Antonioni e Martin Scorsese. Trabalhou também mento que ajudou a construir.
sumário com grandes roteiristas como Cesare Zavattini, Enrico Medioli Suso dedicou a vida ao cinema. Entre 1946 e 2006, escreveu
e Tonino Guerra. Sua morte recente, em julho de 2010, esta- cerca de 118 obras, entre argumentos e roteiros para cinema
belece um marco para reviver seu legado e sua contribuição e televisão, e trabalhou com alguns dos principais roteiris-
para a história do cinema mundial, herança que se traduz em tas e diretores italianos e também estrangeiros. Com Luchi-
uma construção estilística de roteiro, não atrelado a normas.
próxima
no Visconti manteve parceria até a morte do diretor. Mario
Palavras-chave: roteirista, roteiro, Suso Cecchi D’Amico, Monicelli, Michelangelo Antonioni, Vittorio De Sica, Franco
cinema italiano. Zeffirelli, Federico Fellini e Martin Scorsese foram alguns
dos demais cineastas com os quais trabalhou. Escreveu filmes
Abstract
também com grandes roteiristas, entre eles Cesare Zavattini
(com o qual roteirizou Roma, città aperta, Ladri di biciclet-
anterior Suso Cecchi D’Amico was probably the most important scre-
te, È primavera, Miracolo a Milano, Belissima), Enrico Me-
enwriter not only of Italy but also in Europe. One of the
pioneers of neo-realistic screenplay, worked with many top dioli (Il gatopardo, Rocco e i suoi fratelli, Ludwig, Gruppo

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di famiglia in un interno, L’innocente) e Tonino Guerra (com Exterior. Durante a 2ª. Guerra Mundial, devido às ativida-
quem dividiu os créditos de Casanova ‘70). des anti-fascistas do pai, que o levaram a se esconder, Suso
Profunda conhecedora de literatura, Suso construiu um es- sustentou a família com suas traduções de inglês, incluindo
tilo próprio de estrutura para seus roteiros, fundado em só- textos shakespearianos e peças a serem encenadas por Luchino
lida pesquisa a partir da qual tecia uma narrativa consisten- Visconti. Em 1938, Suso casou-se com o famoso músico, crítico
te, muitas vezes de base histórica. Estilo este indiferente à musical e intelectual italiano Fidele d’Amico, ou simplesmen-
estrutura em três atos e não subjugado a cartilhas ou normas te Lele, passando então a assinar suas obras como Suso Cecchi
pré-concebidas de escrita de roteiro. d’Amico. Lele morreu em 1990 e juntos tiveram três filhos.
Com a morte de Cesare Zavattini, em 1989, e de Suso, um
dos últimos grandes roteiristas vivos do Neo-Realismo Italia- Gênese de um movimento cinematográfico

no é Enrico Medioli, hoje com 85 anos.


capa
Finda a 2ª Guerra Mundial, Suso e seus amigos percorriam

Biografia as ruas de Roma colhendo histórias junto à população. A idéia


era fazer filmes tendo por base tais depoimentos, no intui-
Nascida Giovanna Cecchi, em Roma, a 24 de julho de 1914, to maior de mostrar o sofrimento do povo italiano durante
cresceu em ambiente que priorizava as artes. A mãe, Leonetta aqueles anos difíceis. Inicialmente sem estúdios ou recursos
Pieraccini, era pintora e o pai, Emilio Cecchi, foi renomado para pagar atores, equipe e equipamentos, valeram-se quase

universidade crítico e escritor em seu país, sendo considerado por alguns sempre de atores não profissionais, das ruas da cidade e ou-
estudiosos a mais importante figura das letras italianas no tras locações naturais como cenário. Os jovens realizadores
século XX. Emilio também trabalhou em cinema principalmente eram Suso, Cesare Zavattini, Roberto Rossellini, Vittorio De
como argumentista e roteirista1, e ainda como diretor de dois Sica, Luchino Visconti, Federico Fellini e tantos mais que

sumário
filmes e produtor, vindo a administrar os estúdios Cinecittà desfrutavam da liberdade de fazer entre amigos os filmes que
no pós-guerra. Suso herdara, assim, bem mais que o apelido queriam. Se por um lado ressentiam-se das dificuldades que
carinhoso, diminutivo de Suzana, como o pai a chamava, mas envolvia fazer cinema sem financiamento, por outro desfruta-
igualmente seu pendor pelas artes literárias e cinematográ- vam de grande liberdade criativa ao não se filiarem a grandes
ficas. Fora o pai também quem a enviaria a estudar na Suíça estúdios. Segundo Suso, em entrevista a Mikael Colville-An-

próxima e depois em Cambridge nos anos 30, quando não era habitual dersen (1999), “foi só depois que alguém, em algum outro lugar
para jovens italianas completarem seus estudos no exterior. do mundo, decidiu colocar o nome de Neo-Realismo e escrever
Em seu retorno à Itália, trabalhou por oito anos como fun- muitos livros sobre o assunto” 2
. Na prática, roteiristas e
cionária pública, sendo intérprete no Ministério de Comércio diretores trabalhavam juntos no set de filmagem apenas fazen-
1 São de autoria de Emilio Cecchi os seguintes argumentos e roteiros, segundo dados do site IMDB: La ta-
vola dei poveri (1932, dirigido por Alessandro Blasetti); Acciaio (1933, dirigido por Walter Ruttman); 1860 do seus filmes, sem dimensionar que ali surgia um novo movi-
anterior
(1934, de Alessandro Blasetti); Sissignora (1942, de Ferdinando Maria Poggioli); Piccolo mondo antico (1941,
de Mario Soldati); Tragica notte (1943, dirigido por Mario Soldati); Giacomo l’idealista (1943, dirigido por mento cinematográfico.
Alberto Lattuada); Harlem (1943, dirigido por Carmine Gallone); Mio figlio professore (1946, co-roteirizado,
entre outros, com a filha Suso, e dirigido por Renato Castellani); Vida e morte degli etruschi (1947, dirigi-
do e roteirizado por Emilio Cecchi); Anatomia del colore (1948, dirigido por Emilio Cecchi, que também fez o
roteiro, e A. Riccio); Sotto il sole di Roma (1948, direção de Renato Castellani); Fabiola (1949, juntamente 2 Tradução minha da entrevista de Suso Cecchi D’Amico a Mikael Colville-Andersen, publicada no endereço
com Cesare Zavattini e outros, dirigido por Alessandro Blassetti). http://zakka.dk/euroscreenwriters/screenwriters/suso_cecchi_damico.htm.

64
“Roteiro é trabalho de um artesão, não de um poeta. Eu não sou po- ou normas para criação de roteiros a seus alunos. A intenção
etisa, sou artesã”. 3
era demonstrar que nessa área não há regras a serem seguidas.
A frase de Suso, quando da entrevista concedida a Colvil- Mantinha-se igualmente indiferente a cartilhas e manuais de
le-Andersen, transformou-se em marca registrada de seu pen- roteiro. A linguagem secreta do cinema, de Jean-Claude Car-
samento sobre o ofício do roteirista. Sua visão era bastante rière, foi o único livro a lhe causar impressão duradoura.
pragmática: o roteiro não é uma arte, já que se insere no tra- Suso também aprendia muito através da análise da estrutura de
balho de equipe que envolve a práxis do cinema. “A verdadeira certos filmes. The magnificent ambersons (Soberba, 1942), de
arte é uma criação individual” 4, completaria. Orson Welles, foi visto por ela inúmeras vezes, no intuito de
Por outro lado, considerando o roteiro a razão primeira aprender sua estrutura e utilizá-la em seu trabalho.
para a existência de um filme, Suso outorgava ao roteirista De acordo com o roteirista português João Nunes, a palavra
papel fundamental no processo. Ele seria o único a merecer ser escaleta seria tradução de scaletta, termo italiano adotado
capa chamado de autor. Sendo o filme uma obra coletiva, não consi- por Suso em uma palestra na Fundação Calouste Gulbenkian, em
derava inteligente a doutrina que perdura no cinema desde os Lisboa, há alguns anos. Segundo Nunes, ela a definia como “o
anos 20/30 que predispõe somente ao diretor os créditos pelo registro dos degraus que o pro­ta­go­n ista tem de subir para che­
filme. gar ao fim da his­
tó­
ria” 6.
A autora delimita fronteiras entre a escrita literária e Apesar do trabalho em diversos gêneros, como dramas his-

universidade
a escrita para a tela. Para ela, enquanto o escritor precisa tóricos, dramas psicológicos, filmes sobre máfia, a comédia
achar as palavras capazes de descrever o que imagina, o ro- era seu gênero preferido, para a qual tinha grande talento.
teirista é um inventor de imagens. No entanto, seu pendor foi pouco reconhecido, apesar do su-
Nesse processo, seguiu regras próprias na construção de cesso de I soliti ignoti (Os eternos Desconhecidos, 1958), de
seus roteiros. Uma delas determinava para cada cena três ele- Mario Monicelli, roteirizado por Suso. Ela ensina que comédia
sumário mentos: o momento crucial de uma situação (o que hoje conven- deve ser escrita e lida em conjunto, para se perceber o que
cionamos denominar clímax), seu final e o início de uma nova funciona. O drama, ao contrário, em sua opinião precisa ser
situação (gancho). Avessa às convenções narrativas hollywoo- escrito solitariamente.
dianas, a autora não seguia a tradicional estrutura em três Aficionada por literatura, suas grandes influências foram

próxima
atos. “Não sigo normas como a que determina que algo simples- os russos, Dostoievski e Tolstoi. Prince, de Rocco e i suoi
mente deva acontecer aos 12 minutos de filme. Deve-se escre- fratelli (Rocco e seus irmãos, 1960, Luchino Visconti), é ba-
ver com o instinto. Mas a estrutura em três atos tem existido seado em personagem de Dostoievski.
ao longo dos séculos, por isso deve ser uma coisa boa” 5. Desse Suso temia pelo futuro do cinema e não hesitou em consi-
modo, ao mesmo tempo em que demonstrava sua indiferença à con- derar medíocres os filmes de hoje. Ponderou que não se vive
venção, não fazia de seu modo pessoal de trabalhar uma norma uma época boa para o cinema. “Tornou-se uma indústria de mau
anterior para outros roteiristas. Ao contrário, evitava indicar livros gosto, em parte, porque a televisão tem jogado o nível de
3 Idem.
4 Idem. 6 Depoimento do roteirista português João Nunes a respeito de Suso Cecchi D’Amico disponível em http://
5 Idem. joaonunes.com/2010/guionismo/suso-cecchi-damico-e-a-origem-do-termo-escaleta/.

65
inteligência para muito baixo” 7. A solução prevista por ela os havíamos consultado. Fizemos isso por Fellini quando ele
seria encarar o cinema por prazer, como na época em que ela era jovem e não tinha dinheiro. Portanto, há filmes em que
e seus amigos saiam às ruas de Roma para fazer os filmes que Fellini é creditado como roteirista, mas ele nunca os escre-
queriam, sem pensar em lucros. Em verdade, os dizeres de Suso veu. Eu vi um velho filme há poucos dias atrás onde havia nove
nos trazem respingos do frescor de um tempo onde os realizado- roteiristas. Sei exatamente quem foram os escritores e não
res dispunham de liberdade não só criativa, mas de produção. foram certamente todos os nove. 9
Hoje, sua proposta soa como um sonho dolente e provavelmente Outra peculiaridade da produção neo-realista era a pre-
ingênuo frente à ótica do mercado contemporâneo de audiovisu- sença do roteirista no set.
al, onde quase não há espaço para a projeção de realizadores Sim, nos tempos antigos era muito importante. Especial-
fora dos grandes estúdios. mente no período do Neo-Realismo. Nós sempre mudávamos o di-
Suso também comentou sua relação com diferentes direto- álogo. Se a cena era escrita com sol e chovia, tínhamos de
capa res. Em comum, tais experiências lhe trouxeram uma certeza, a alterar o roteiro no local. E Visconti me queria lá. Ele era
de que é inútil escrever algo que não será sentido pelo di- muito fiel ao que eu tinha escrito. Eu estava sempre no set.10
retor. Nesse ponto da entrevista, cita o exemplo de Michelan- E foi justamente com Luchino Visconti que firmou a mais
gelo Antonioni. Em seu primeiro trabalho juntos, escreveram o constante e duradoura parceria, embasada em profunda amiza-
roteiro da comédia La signora senza Camelie8 (1953). Porém, o de e em forte afinidade, grande parte literária, mas também

universidade
filme foi um fracasso de público. Suso credita a péssima bi- ideológica e criativa. O diretor costumava contar-lhe a his-
lheteria à falta de talento de Antonioni para a comédia, ape- tória do filme que pretendia realizar, muitas vezes escreven-
sar do autor da trilogia da incomunicabilidade, segundo ela, do e assinando juntamente com ela o argumento e o roteiro. A
ter um ótimo senso de humor. partir do convite para escrever Belissima (Belíssima, 1951),
Sobre a realização de Roma, città aperta (Roma, cidade Suso trabalharia com Visconti ao longo de vinte e cinco anos
sumário aberta, 1946), de Roberto Rossellini, Suso afirmou não ter em onze filmes, parceria só interrompida pela morte do dire-
contado com outro apoio financeiro que não o dos amigos en- tor. Em seguida vieram Senso (Senso, sedução da carne, 1954),
volvidos em sua realização. Já Ladri di biciclette (Ladrões Le notti bianche (Noites Brancas, 1957), Rocco e i suoi fra-
de bicicletas, 1948), um filme mais caro, obteve financiamen- telli (1960), Boccaccio ‘70, episódio Il lavoro (1962), Il

próxima
to. Sobre a elaboração do roteiro, relembra que trabalharam gatopardo (O leopardo, 1963), Vaghe stelle dell’Orsa (Vagas
no roteiro por meses, coletando histórias aleatoriamente em estrelas da Ursa, 1965), Lo straniero (O estrangeiro, 1967),
Roma, na intenção de montar um retrato de época de Roma no Ludwig (1972), Gruppo di famiglia in un interno (Violência e
pós-guerra. Todos os envolvidos assinavam o crédito de rotei- paixão, 1974) e L’innocente (O inocente, 1976). A adaptação
ro. Em Ladri di biciclette há sete roteiristas creditados: de À la recherche du temps perdu (Em busca do tempo perdido),
Muitas vezes, colocamos nomes de nossos amigos para que de Marcel Proust, roteiro no qual Suso trabalhava já em pro-
anterior eles pudessem receber o pagamento. Dizíamos ao produtor que cesso adiantado, foi interrompida pela morte de Visconti em
7 Tradução minha, op. cit.. 9 Tradução minha, op. cit..
8 Em Portugal chamou-se A dama sem camélias. 10 Idem.

66
março de 1976. De acordo com a autora, o diretor queria lidar Filmografia
com apenas dois focos narrativos do romance original: a ator-
mentada história de amor entre o narrador (que seria desempe- Ao longo de mais de sessenta anos de carreira, Suso escre-

nhado por Delon) e Albertine, e entre o Barão de Charlus (um veu não apenas uma, como várias obras-primas, entre roteiros

personagem, segundo Suso, com grande identificação no próprio adaptados e originais. Seus personagens eram pessoas simples,

Visconti) e Morel (que seria interpretado por Helmut Berger). como em Bellissima e Rocco e i suoi fratelli, ou nobres ita-

Suso também realizou trabalhos de reparação em roteiros, lianos, como em Il gatopardo, Senso e Gruppo di famiglia in

o que hoje se denomina script doctor. Talvez o mais conhecido un interno, entre outros.

seja no roteiro do que viria a ser a comédia Roman holiday (A O primeiro roteiro foi para o filme Mio figlio professore

princesa e o plebeu, 1953), de William Wyler. Apesar do tra- (1946), juntamente com uma equipe de roteiristas, incluindo

balho, seu nome não foi incluído nos créditos do filme. seu pai, Emilio Cecchi, com produção de Carlo Ponti e dirigi-
capa Quando perguntada sobre qual filme gostaria de ter escri- do por Renato Castellani, com o qual faria ainda È primavera

to, era categórica ao apontar A slave of love (A escrava do (1949).

amor), 1976, de Nikita Mikhalkov. No mesmo ano surgiria o primeiro grande sucesso de sua

Suso foi vencedora de 19 prêmios de roteiro, entre eles o carreira, um dos mais importantes filmes do Neo-Realismo Ita-

Oscar de Melhor Roteiro no ano de 1966 pelo filme Casanova ‘70 liano, Roma, città aperta, de Roberto Rossellini.
Em seguida, vieram trabalhos com Luigi Zampa (L’onorevole
universidade
(Mario Monicelli, 1965), prêmio que dividiu com outros cinco
roteiristas, entre eles Tonino Guerra, e o Leão de Ouro pelo Angelina, 1947, Vivere in pace, 1947) e Alberto Lattuada (Il

conjunto de sua obra no Festival de Cinema de Veneza de 1994. delitto di Giovanni Episcopo, 1947).

Seu último trabalho de grande sucesso foi o roteiro do Com Vittorio De Sica faria, em 1948, o próximo filme mar-

documentário Il mio viaggio in Italia (Minha viagem à Itália, co em sua carreira, Ladri di biciclette. De acordo com Suso,
sumário 1999), dirigido por Martin Scorsese. Com o título provisório Cesare Zavattini, um dos co-roteiristas, provavelmente teria

Il doce cinema, o filme alcançaria cerca de quatro horas de terminado o filme do mesmo modo que o livro, com o pai e o

duração. O projeto começara muitos anos antes, quando, em com- filho voltando para casa derrotados. Ela propôs, então, um

panhia de Federico Fellini Scorsese estivera em casa de Suso, final climático, o que tornou o filme inesquecível. O pai em
desespero rouba uma bicicleta, é humilhado diante do filho e
próxima
narrando a ambos o modo como o cinema italiano o influenciara
em Nova York. A idéia do documentário foi então sugerida por isso estabelece um novo vínculo entre ambos. Outro sucesso

Fellini naquela ocasião. com De Sica foi Miracolo a Milano (Milagre em Milão, 1951).

Em 2006 realizou seus derradeiros roteiros, L’inchiesta Com Michelangelo Antonioni realizou I vinti (1952), La

(A investigação), dirigido por Giulio Base, e Le rose del de- signora senza camelie (1953) e Le amiche11 (1955).

serto (As rosas do deserto), co-roteirizado por ela e outros Trabalhou ainda com Francesco Rosi em Salvatore Giuliano
anterior autores e dirigido por Mario Monicelli. (1961), onde delineou um estudo único sobre o bandido sici-
liano do pós-guerra, trazendo um novo olhar sobre sua vida e
11 Recebeu o título no Brasil de As amigas.

67
morte e suas relações com a máfia e políticos corruptos. mente para a própria filha, do ingresso em um universo onde
Com Mario Monicelli faria Casanova ’70 (1965). os valores são outros. Restava-lhe encarar a realidade de sua
Trabalhou também com Franco Zeffirelli em Taming of the vida operária junto aos seus e abrir mão do sonho.
shrew (A megera domada, 1967) e Brother sun, sister moon (Ir- Em Rocco e i suoi fratelli se voltaria ao enfoque em pes-
mão sol, irmão lua; 1972). Luigi Comencini (Le avventure di soas comuns ao abordar-se a mudança de uma família humilde,
Pinocchio, 1972, La storia, 1985), Mauro Bolognini (Metello, os Parondi, liderada pela viúva Rosaria, de uma região rural
1970), Nikita Michalkov (Oci Ciornie, 1987). ao sul da Itália para uma metrópole, Milão. O choque com a
ética urbana ocasionaria degradação e corrupção entre os fi-
Com Visconti lhos. Somente Rocco (Alain Delon) procura preservar seus al-
tos padrões morais. A disputa com um de seus irmãos, Simone,
Suso escreveu alguns dos mais importantes filmes da his-
pela mesma mulher, Nadia, desequilibra a harmonia familiar.
capa
tória do cinema em parceria com Luchino Visconti, incluindo
Mas são o desespero e o desencanto frente a modernidade que
roteiros de cunho histórico, melodramas e dramas psicológi-
permeiam toda a narrativa.
cos, um cinema que não guardava espaço para finais felizes. A
Os personagens aos quais Suso se dedicava geralmente eram
intenção era outra. O questionamento de seu lugar num mundo em
seres em conflito com uma nova ética ou com uma nova con-
transição, sentimentos de decadência, fracasso e desesperan-
fluência de forças alheias a sua vontade. Não raro revelavam
ça compunham uma construção de personagens que primava pela

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espanto com os novos tempos e se resguardavam, muitas vezes
densidade e expressividade dos conflitos interiores. Tal de-
com desdém, diante da classe emergente, compondo em si mesmos
senho estabelecia contrastes entre personagens de diferentes
o retrato solitário de uma época que em breve não mais exis-
classes sociais e indicava que Suso possuía talento incomum
tiria, situados que estavam a beira do abismo histórico. É o
para construir tipos muito distintos. A decadência da nobre-
que se observa em Il gatopardo e dez anos depois em Gruppo di
sumário
za, à qual o próprio Visconti pertencia, e de seus valores
famiglia in un interno, mas muito mais no primeiro. Il gato-
ante o surgimento de uma nova classe, tanto quanto a vida de
pardo, considerado por muitos observadores como a obra-prima
pessoas comuns, eram temas que permeavam grande parte da obra
de Suso, esplendidamente dirigida por Visconti, é uma adap-
da autora.
tação do livro homônimo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, o
As breves análises fílmicas a seguir não estão necessa-

próxima
príncipe de Lampedusa. Enfocando um momento de transição para
riamente em ordem cronológica. Foram agrupadas seguindo uma
a aristocracia siciliana, em 1860, o filme de três horas de
afinidade que prioriza, antes, a tipologia dos personagens em
duração exibe o declínio do príncipe de Salina, o Leopardo,
Suso e Visconti.
interpretado por Burt Lancaster, que permanece como observa-
Em Belissima, protagonizado por Anna Magnani, uma mãe de
dor autômato do apogeu da classe comerciante. Seu sobrinho
classe operária sonha para sua filha uma carreira no cinema no
Tancredi (Alain Delon), ao contrário, não hesita em aderir aos
anterior intuito de que a criança possa ter uma vida melhor que a sua.
novos tempos e casa-se com a filha de um comerciante (Claudia
O processo de seleção e o conhecimento dos bastidores fazem-
Cardinale). A narrativa vai gradativamente mergulhando nas
-na redimensionar o custo pessoal para a família, principal-

68
reflexões do protagonista sobre os contrastes entre as duas alcançando, assim, maior identificação com o público. Houve
classes, até chegar ao ápice, a sequência final do baile. Ali, ainda a colaboração do dramaturgo norte-americano Tennessee
Salina atravessa cômodos observando também seus iguais com Williams nos diálogos. Senso retrata o romance extraconjugal
um misto de sentimentos, sendo o desdém e a amargura os mais entre Lívia e o tenente austríaco Franz Mahler (Farley Gran-
freqüentes. Questiona as atitudes e a estética desfavorável ger). Enquanto ela é verdadeira no sentimento, mesmo já não
de seus descendentes, fruto de casamentos entre primos, com a conseguindo ocultar socialmente o caso, Mahler, por sua vez,
beleza da noiva de seu sobrinho, representante da nova clas- é dissimulado e a utiliza para obter recursos financeiros.
se. Suas lágrimas diante do espelho são também por um mundo Após conseguir seus intentos, o tenente a ignora e a humilha,
que se modifica. E o passeio solitário pela rua, que encerra o que leva Lívia a buscar vingança. Na sequência final a pro-
o filme, revela-se como metáfora para o caminho sem volta para tagonista vagueia sozinha em desespero pelas sarjetas enlame-
si e para os seus. adas da cidade, indicando que a decadência da nobreza também
capa Em Gruppo di famiglia in un interno, o jogo de contrastes pode se dar por outros meios.
dá-se de forma mais intimista. O protagonista, também inter- Ludwig, interpretado por Helmut Berger, compõe a vida do
pretado por Lancaster, é um solitário e culto colecionador de rei da Bavaria em sua gradativa demência. A decadência é sim-
arte, que vive recluso em uma luxuosa residência em Roma. Ao bolicamente demarcada pela degradação de sua arcada dentária,
alugar o andar de cima para uma família conflituosa (Helmut que aos poucos vai apodrecendo em paralelo ao aumento de sua

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Berger, Silvana Mangano), fica nítida a diferença que o se- loucura. A companhia de Sissi (Romy Schneider), por quem Lu-
para dos novos inquilinos. Assim como o fora em Il gatopardo, dwig nutre uma paixão silenciosa apesar do homossexualismo
aqui também o protagonista é um observador surpreso, passivo latente ao qual dará vazão mais adiante, compõe o quadro de
e nostálgico. desencanto que o filme procura expressar. Em Suso e Visconti,
Senso e Ludwig seguem a tendência ao romance histórico. a imperatriz da Áustria é agora uma mulher madura e frustrada,
sumário Foi com Senso que se solidificou a parceria com Visconti, distante de seus tempos de glamour, separada forçosamente dos
após terem trabalhado em Belissima. Ele estava interessado na filhos e ignorada pelo marido. O roteiro é estruturado perme-
obra homônima de Camillo Boito sobre o período histórico da ando entrevistas com diversos personagens ligados ao rei, que
unificação da Itália, no século XIX, relativo à luta contra julgam seus exageros e prejuízo ao erário, causados tanto por

próxima
a dominação austríaca. Primeira criação a romper com o es- sua admiração e amizade cega ao compositor Richard Wagner,
tilo realista, um divisor de águas na carreira de Visconti, que lhe explora, quanto pelos três castelos luxuosos que ou-
Senso enquadra-se no gênero melodrama e se assemelha a uma torga construir. Por fim, constatada sua loucura e incapaci-
grande ópera romântica que começa na cena inicial, no palco, dade de gerenciar os recursos do reino, é afastado do poder.
de onde desce para tomar a cena até o final do filme. Com a Antes, Ludwig já entrara em ruína física e mental.
habilidade de Suso, o filme transformou-se em obra-prima. A Provavelmente nenhuma outra obra pensada por Suso e Vis-
anterior protagonista, a condessa Livia Serpieri (Alida Valli) ganhou conti tenha alcançado maior grau de densidade dramática do
mais simpatia e vulnerabilidade que na história de Boito, que Vaghe stelle dell’Orsa. A ambientação escolhida para a

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trama insere os personagens em um local condenado ao fim. Vol- televisão e o cinema. Outros papéis estão se delineando para
terra, na Toscana, é uma cidade parcialmente soterrada pelas a escrita audiovisual a partir da reconfiguração da dinâmi-
montanhas, que continuam a desmoronar sobre casas e edifícios ca dos meios. O texto hipermidiático apresenta-se como uma
da cidade. Nas palavras do personagem Gianni a Andrew, marido das novas possibilidades para o roteiro. A tendência é que
de Sandra, “Volterra é a única cidade na Toscana condenada a seja pensado para multiplataformas. Qual será o impacto de
morrer de doença, como a maior parte dos seres humanos”. Aqui tais mudanças sobre o ofício do roteirista? À primeira vis-
estava lançada a premissa para o que ocorreria com Gianni ao ta, o processo de construção do roteiro tenderá a uma maior
final da trama. O tema é a relação incestuosa ocorrida no pas- complexidade quando pensado para a interatividade, ambientes
sado entre os irmãos Sandra (Claudia Cardinale) e Gianni (Jean virtuais e deslinearização narrativa. Porém, nenhuma inova-
Sorel). A tensão entre esse passado e presente é a base para ção técnica será capaz de sozinha comportar um bom roteiro.
se estabelecer o conflito interior dos personagens. Constrói- É preciso que o roteirista alie técnica a talento, ou seja,
capa -se uma atmosfera de culpa, nojo e vergonha em torno da pro- que domine principalmente a arte de escrever boas histórias.
tagonista, que tentou refazer sua vida casando-se com Andrew E é nesse ponto, o do talento, que o trabalho realizado
e deixando as lembranças para trás. No entanto, as homenagens com esmero e capricho (técnica) por Suso Cecchi d’Amico pre-
ao pai, morto em Auschwitz, fazem o casal voltar a sua cidade cisa ser dimensionado pelos profissionais de cinema contem-
natal, onde o passado ainda está presente na forma do segredo porâneos, principalmente roteiristas, justamente no momento

universidade
que abalou toda a família, principalmente a relação da mãe em que o roteiro passa por profundas transformações. Muito
com os dois filhos. Ela, perdida entre a insanidade e a lu- provavelmente, a figura e o papel que ela desempenhou enquan-
cidez, e o padrasto não se cansam de rememorar, com revolta to roteirista já não exista nos próximos anos. Suso, mesmo
e desgosto, aquilo que abalou a família e que Sandra sempre assim, permanecerá como o retrato da importância que teve o
lutou para esquecer. Gianni reaparece e reafirma sua paixão roteirista em dado momento da história do cinema. A reflexão
sumário pela irmã. Mais que isso, ele escrevera um livro, Vaghe stel- sobre sua obra é múltipla. Demanda o estudo das relações en-
le dell’Orsa, cujo tema é a relação entre ambos, o que enche tre diretor e roteirista, questões de co-autoria, o trabalho
Sandra de nojo e culpa. O marido está cada vez mais ciente de entre roteiristas numa mesma obra, o papel do roteiro para
que há um segredo oculto no passado dor irmãos. Ao descobri- a manutenção de um momento cinematográfico específico, como

próxima
-lo, Andrew parte, mas deixa a porta aberta para Sandra. Va- fora o Neo-Realismo Italiano, gêneros e roteiro, construção e
ghe stelle dell’Orsa talvez seja um dos poucos trabalhos de tipologia de personagens. Seja de que ponto partir a observa-
Suso com Visconti onde se vislumbre alguma possibilidade de ção, o fazer de Suso indica que muitas das inovações observa-
redenção final para o personagem central, não sem uma perda das em algumas das maiores obras do movimento foram propostas
marcante. por ela, do mesmo modo que faria posteriormente em outras re-
alizações de sua longa carreira. Uma indicação de que a his-
anterior Conclusão tória do cinema precisa ser repensada no sentido de incluir e
dimensionar a contribuição dos roteiristas, e não somente dos
O digital e a internet vieram impor novos caminhos para a

70
produtores, como o fora no Primeiro Cinema, e dos diretores, Suso Cecchi d’Amico. Disponível em: <http://zakka.dk/euroscreenwriters/
screenwriters/suso_cecchi_damico.htm>. Acesso em: 01 set. 2010.
como tradicionalmente costumamos estudá-la desde então. Se
• HUDSON, David. Suso Cecchi d’Amico, 1914 - 2010. In: Mubi: your onli-
é inegável a grande contribuição prestada pelo roteiro des- ne cinema, anytime, anywhere. Disponível em: <http://mubi.com/notebook/
posts/2110>. Acesso em: 5 set. 2010.
de o cinema narrativo clássico, seja, por exemplo, no modelo
• IMDB, The Internet Movie Database. Emilio Cecchi. Disponível em: <http://
hollywoodiano ou nas vanguardas dos anos 20 do século pas- www.imdb.com/name/nm0147609/>. Acesso em: 16 set. 2010.
sado, neste caso quando assume papel inovador em movimentos • _____. Suso Cecchi d’Amico. Disponível em: <http://www.imdb.com/name/
nm0147599/>. Acesso em: 31 ago. 2010.
como o Impressionismo Francês e o Expressionismo Alemão, por
• LANE, John Francis. Suso Cecchi d’Amico obituary. In: The guardian. Dispo-
que até hoje não se esboçou uma história do cinema incluindo nível em: <http://www.guardian.co.uk/film/2010/aug/01/suso-cecchi-damico-
-obituary>. Acesso em: 15 ago. 2010.
seus grandes roteiristas?
• NUNES, João. Suso Cecchi d’Amico e a origem do termo ‘escaleta’. In: jo-
O legado de Suso permanece como um lugar para se pensar aonunes.com: guionismo, cinema & outras coisas da vida. Disponível em:
<http://joaonunes.com/2010/guionismo/suso-cecchi-damico-e-a-origem-do-
essas questões e para indicar que é preciso reservar, sim, um
capa
-termo-escaleta/>. Acesso em: 12 set. 2010.
lugar de destaque para o roteirista nos estudos históricos de • TELEGRAPH. Suso Cecchi d’Amico. Disponível em: <http://www.telegraph.
cinema e audiovisual. co.uk/news/obituaries/culture-obituaries/film-obituaries/7931200/Suso-
-Cecchi-DAmico.html>. Acesso em: 15 set. 2010.

Referências
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universidade
Bibliografia:
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• BORDWELL, David. O cinema clássico hollywoodiano: normas e princípios nar- • GRUPPO DI FAMIGLIA IN UN INTERNO. Luchino Visconti. Itália, 1974.
rativos. In: Teoria contemporânea do cinema: documentário e narratividade
• IL GATTOPARDO. Luchino Visconti. Itália, 1963.
ficcional. Volume II. Fernão Pessoa Ramos, organizador. São Paulo: Senac
São Paulo, 2005. p. 278 a 301. • IL MIO VIAGGIO IN ITALIA. Luchino Visconti. Itália, 1972.
• BORDWELL, David; THOMPSON, Kristin. Film art. United States of America: • L’INNOCENTE. Luchino Visconti. Itália, 1976.
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• GOSCIOLA, Vicente. Roteiro para as novas mídias: do game à tv interativa.
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São Paulo: Senac, 2003.
• LUDWIG. Luchino Visconti. Itália, 1972.
• LAMPEDUSA, Giuseppe Tomasi di. O leopardo. São Paulo: Abril Cultural,
1979. • ROCCO E I SUOI FRATELLI. Luchino Visconti. Itália, 1960.
• MUSBURGER, Robert B. Roteiro para mídia eletrônica: tv, rádio, animação e • ROMA, CITTÀ APERTA. Roberto Rossellini. Itália, 1946.

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• SENSO. Luchino Visconti. Itália, 1954.
• ROHDIE, Sam. Rocco e seus irmãos. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.
• VAGHE STELLE DELL’ORSA. Luchino Visconti. Itália, 1965.

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ponível em: <http://www.newyorker.com/online/blogs/movies/2010/08/in-me-
anterior moriam-suso-cecchi-damico.html#ixzz0yCmPFnkO>. Acesso em: 30 ago. 2010.
• COLVILLE-ANDERSEN, Mikael. The storytellers: interview with Suso Cecchi
d’Amico. In: EuroScreenwriters: interviews with famous screenwriters -

71
Key words: Artemidia, Vítor Lima Barreto, The Bandit
A EVOLUÇÃO DO CINEMA BRASILEIRO
ATRAVÉS DA SAGA DO CINEASTA 1 – Introdução
VÍTOR LIMA BARRETO A configuração do cinema brasileiro atual vem sendo cons-
truída na relação sistemática da política x novas tecnolo-
gias, que gerou maiores probabilidades do cinema brasileiro
existir no circuito cinematográfico internacional.
No processo da criação de um novo filme, a necessidade de
diversas ferramentas para um bom desenvolvimento é um fato.
J úlio C ésar R iccó P lácido da S ilva
E o permanente desenvolvimento das novas tecnologias impõe
Mestrando em Artes Visuais – Instituto de Artes - UNESP – São Paulo / julio-

capa
ricco@uol.com.br ao profissional da área a busca pela atualização constante.
Assim sendo, os novos processos cinematográficos afugentaram
S imone P riscila M elz
Graduação em Design – UNESP – Bauru / simone.melz@gmail.com diversos profissionais.
Mesmo com os avanços tecnológicos, por muito tempo o úni-
P elópidas C ypriano P el
co cartão de visita internacional do cinema brasileiro foi um
Livre Docente – Instituto de Artes – UNESP – São Paulo / pel@ia.unesp.br
faroeste produzido pela Vera Cruz, O cangaceiro de Vítor Lima

universidade Resumo Barreto. Mesmo que marcadamente influenciado por John Ford e
Akira Kurosawa, Lima Barreto conseguiu realizar um esquema
O artigo tem por objetivo demonstrar a importância do narrativo moldado no western americano.
cineasta Vítor Lima Barreto no processo cinematográfico bra- O artigo tem por objetivo demonstrar a importância do

sumário sileiro. Para tanto, se faz necessário um panorama geral da cineasta Vítor Lima Barreto no processo cinematográfico bra-
história do cinema brasileiro, para verificar a evolução des- sileiro. Para tanto, se faz necessário um panorama geral da
te através de sua saga, embalada por toadas e baiões. história do cinema brasileiro, para verificar a evolução des-
Palavras chave: Artemidia, Vitor Lima Barreto, O Canga- te através de sua saga, embalada por toadas e baiões.
ceiro

próxima
2 - Revisão bibliográfica

Abstract
2.1 – A história do cinema brasileiro
This article aims to demonstrate the importance of film-
maker Vítor Lima Barreto in Brazilian cinematographic pro-
Um panorama geral sobre a história do cinema brasileiro
cess. For this, it is necessary a panoramic overview of Brazi-
anterior lian cinema history, to verify the evolution of this through
no presente momento se torna abrangente e remete a um estudo
histórico do mesmo, o que não é a intenção desse estudo; no
its saga, packed for toadas and baiões.
entanto, entender seu significado, em seus diversos ciclos,

72
torna-se importante. Este ciclo teve início na década de 30, deixando de ser
um cinema silencioso e fazendo com que o custo de produção
2.1.1 – Ciclo da Belle Époque e Ciclos Regionais ficasse muito mais oneroso. Com tal avanço tecnológico e o
encarecimento do custo de produção, só algumas empresas so-
No início do cinema brasileiro sua classificação tornou-
breviveram a esse novo modelo de produção como a Cinédia e a
-se conhecida como ciclo da Belle Époque ou ciclo da Bela
Brasil Vita, que seguiam os moldes do modelo americano.
Época, e se concentrava na cidade do Rio de Janeiro, onde di-
As produções começaram a ser feitas às pressas, utilizan-
versos filmes curtos foram produzidos entre os anos de 1896
do cantores de rádio e evidenciando músicas carnavalescas que
a 1912. Dentre os produzidos, a grande maioria foi feita por
obteram ótimos resultados. Esse movimento aconteceu em di-
proprietários de salas de espetáculos ou por “ambulantes” do-
versas regiões do país, apenas em São Paulo continuou com os
nos de equipamentos de exibição.
produtores “cavadores” em documentários sonoros sob encomenda
capa
Esse período pode ser dividido em duas partes, uma de
(GIANNASI, 2001).
1896 a 1907 e outra de 1908 a 1912. Na primeira parte foram
Em 1941 foi fundada a companhia cinematográfica Atlânti-
produzidos filmes de imagens cotidianas, em seções esparsas
da, uma produtora com pretensões bem mais modestas que a Ci-
e descontinuadas, chamados “vistas animadas”. Na sequência,
nédia e que buscava produzir filmes populares; foi criada nos
o desenvolvimento de novas tecnologias de exibição permitiu
moldes das companhias norte-americanas.
que novos filmes fossem projetados com qualidade e reprodução

universidade
Por se tratar de uma produção popular, a produção era
sonora. Assim, diversos filmes musicais, baseados em óperas,
muito rápida e barata, pois havia a necessidade da abordagem
começaram a ser produzidos.
de temas e situações contemporâneas. Os cenários e figurinos
Desta forma, nos anos de 1912 a 1932, surgiram grandes
eram de baixa qualidade e mal acabados, mas acabaram sendo
manifestações restritas aos limites geográficos de cada re-
incorporados como paródia e o público, que até ria do cinema
sumário
gião, fatos surgidos pela produção de iniciativas pessoais,
brasileiro, passou a rir com ele (SOUZA, 1998). No final da
de aventureiros ou apaixonados por cinema; esse período foi
década de 50, a chanchada começa a perder o fôlego.
nomeado, segundo Giannasi (2007), de ciclos regionais. Nesse
período, a produção limitou-se a filmes curtos, que poderiam 2.1.3 – Ciclo Vera Cruz e Cinema Novo
ser cine jornais, clipes musicais, festas familiares, inaugu-

próxima rações, enfim, todo um apanhado que se tornou rentável ao pro- Enquanto no Rio de Janeiro a produção é garantida pelas
dutor. Porém, o ciclo que começou por iniciativas pessoais, chanchadas, São Paulo que havia quebrado com a bolsa de Nova
sem estabilidade financeira que propiciasse o estabelecimento Iorque, por conta da desvalorização do café, começa a mudar
de uma indústria, acabou sendo soterrado pelo cinema sonoro o perfil econômico, montando um importante parque industrial.
industrial norte-americano. Nessa mudança, a cidade é saudada com a companhia cinema-
anterior tográfica Vera Cruz (figura 01 e 02) entrando no circuito de
2.1.2 – Ciclo das chanchadas
cinema.
Segundo Giannasi (2007), a Vera Cruz produziu 18 longas

73
metragens em seus primeiros três anos de existência, de 1950 a foi se endividando, o que a levou ao desmoronamento, pois não
1953, e chamou atenção com a produção do filme “O cangaceiro” planejou a circulação e distribuição de seus filmes (BERNAR-
de Vítor Lima Barreto de 1953, que conquistou dois prêmios DET, 2004).
internacionais sendo eles o Palma de Ouro no festival de Can- Ainda na década de 50, diversos jovens cineastas, influen-
nes de 1953, como melhor filme de aventura e menção honrosa ciados pelo cinema europeu, propõem a construção de um novo
à trilha sonora. cinema chamado, segundo Giannasi (2007), “cinema de autor”,
que leva a câmera para fora dos estúdios, filmando o povo nas
Figura 01 – Ins- ruas; contribuindo para que a câmera ficasse mais livre para
talações do estú- filmar.
dio cinematográ- Os filmes criados nesse ciclo ganharam diversos prêmios,
fico Vera Cruz mas com grandes dificuldades, tanto em sua distribuição como
capa para a exibição, pois eram produzidos pelos próprios cineas-
Fonte: http://www. tas ou em associações, com recursos próprios ou contribuição
milenio.com.br/ pelos componentes da equipe ou, ainda, através de emprésti-
ogersepol/prin- mos, de forma aventureira.
cipal/brasil/ Mais uma vez, no final da década de 60, o cinema passa por

universidade
mais uma transformação tecnológica que encarece novamente a
produção de filmes, devido a utilização constante das novas
Figura 02 – tecnologias em cores o que tornaram a câmera mais pesada.
Foto do estúdio
cinematográfico 2.1.4 – Ciclo educativo e cinema marginal

sumário Vera Cruz


Com a interferência do Estado, a produção de cinema tem
Fonte: http://www. um aumento intenso a partir da década de 60, e essa influên-
cinemabrasileiro. cia começa a constituir o ciclo do cinema educativo. De 1936
net/images/vera_ a 1966, o INCE (Instituto Nacional de Cinema Educativo), sob

próxima cruz_estudio_de_ o comando do cineasta Humberto Mauro, foi responsável pela


filmagem.jpg realização de 357 filmes.
Ainda na década de 60, na contramão do movimento encabeça-
Foi o filme de maior número de espectadores até o momen- do por cineastas do cinema novo e pelos chamados universalis-
to e teve sua exibição mundial garantida por um contrato de tas, um grupo de jovens artistas começou a produzir uma série
anterior distribuição com a Columbia Pictures. Como os investimentos de filmes sem qualquer preocupação com o modelo de produção e
da Vera Cruz nos orçamentos para produção de filmes eram de mercado a eles intrínseco.
qualidade comparada às produções estrangeiras, a Companhia O marco desse movimento, também conhecido como “Udigru-

74
di”, movimento do ciclo marginal ou ainda cinema do lixo, foi Embrafilme, que chegou a estrear uma média de 80 filmes por
o lançamento dos filmes A Margem (1967), de Azualdo Candeias e ano no circuito exibidor (ALMEIDA & BUTCHER, 2003).
O Bandido da Luz Vermelha (1968), de Rogério Sganzerla. Essas Em 1990, com a eleição de Fernando Collor, a Embrafilme,
produções se caracterizaram pela falta de um modelo de produ- produtora e distribuidora, e a CONCINE foram extintas sem que
ção, com baixo orçamento, sem produtor e realizadores, sendo as políticas para a área cinematográfica fossem repensadas. O
originados à custa de favores de amigos; a atitude de seus mercado tornou-se regulador da produção e da livre iniciativa
realizadores era manter a produção à margem de qualquer meca- de todos os setores industriais.
nismo de produção mercadológica. Devido ao contexto geral, o Com a parada quase que total da produção de filmes, sendo
ciclo não teve fôlego e durou apenas três anos. que de 1991 a 1993 nenhum longa brasileiro de ficção foi pro-
Em meados de 1966, com a ditadura militar instaurada no duzido, só três títulos que ainda estavam inéditos foram lan-
país, o INC (Instituto Nacional de Cinema) é criado, absor- çados em 1992 no mercado exibidor (ALMEIDA & BUTCHER, 2003).
capa vendo o INCE, e finalmente um governo impõe ao país uma polí-
tica cinematográfica. 2.1.6. Ciclo das Pornochanchadas
No ano de 1976, o INC é extinto e suas atribuições pas-
Nesse ciclo importante, que ocorreu nos anos de 75 a 80,
sam para a Embrafilme que também comanda a política do cinema
também chamado de cinema da boca do lixo, os longas eram pro-
educacional até sua extinção. A partir de 1990, a produção
duzidos com baixíssimo orçamento, de forma rápida e voltados

universidade
de filmes e programas educacionais passa a ser produzida pela
para o público da região. Não tinham, assumidamente, nenhum
Fundação Roquette Pinto (Rede das TV`s educativas, criada
cuidado técnico, porque o tempo de produção era o parâmetro
durante o período militar) e atualmente se resume ao atual
que contava, e também não se preocupavam com a elaboração de
Projeto Escola.
enredos sofisticados.

sumário 2.1.5 – Ciclo Embrafilme Houve uma associação com as chanchadas da Atlântida, po-
rém os cantores populares com suas marchinhas de carnaval fo-
Com o surgimento da Embrafilme, voltou-se a procurar o ram substituídos por cenas de nudez e sexo.
diálogo com o público através de filmes que conseguissem com- Quando os filmes da Boca foram beneficiados de forma mais
petir no mercado exibidor, buscando uma equiparação com a sistêmica pelo Prêmio Adicional de Bilheteria, o ciclo apre-

próxima produção norte-americana. sentou o seu melhor momento, crescendo consideravelmente o


Assim nasceu um novo projeto político com o objetivo de número de filmes produzidos, já com uma qualidade técnica e
controlar todas as etapas da realização cinematográfica. Em artística bem melhor.
1975, é lançado, pelo governo, a PNC (Política Nacional da Com a entrada em operação da Embrafilme Distribuidora,
Cultura) atendendo a reivindicações feitas durante o I Con- analisada anteriormente, o dinheiro do Prêmio Adicional de
anterior gresso da Indústria Cinematográfica, em 1972. Em 1976 o cinema Bilheteria foi absorvido, desestruturando, assim, a indústria
brasileiro alcança melhores resultados numéricos, sendo estes implantada pela Boca.
os responsáveis pela grande maioria dos títulos lançados pela Esse golpe sofrido pelo cinema da Boca, segundo seus pro-

75
dutores, foi determinante para o seu declínio. Além desse 3 – “O cangaceiro” de Victor Lima Barreto
problema e da queda já relatados, ainda surge um agravante:
a indústria pornográfica mundial cresce em ritmo acelerado, O projeto do filme foi apresentado para Franco Zapari e

onde filmes com cenas de sexo explícito são produzidos em não foi aceito inicialmente; mas depois de muitas negocia-

larga escala. ções, foi aprovado e custou aproximadamente 19 milhões de

As grandes distribuidoras internacionais, que são as úni- reis na época.

cas em operação no país além da Embrafilme Distribuidora, Filme que inaugurou o gênero do cangaço no cinema brasi-

lançam os títulos estrangeiros, que se transformam em um ne- leiro, um gênero dos diversos ciclos do cinema brasileiro.

gócio mais rentável e vantajoso para exibidores e distribui- Após seu surgimento, outros de mesmo gênero foram produzi-

dores, muito mais que os investimentos na produção de simi- dos nos anos sessenta como Lampião, Rei do Cangaço; Corisco,

lares nacionais. o Diabo Louro e Os Três Cabras de Lambião, produzidos por


capa Oswaldo Massaini e Deus e o Diabo na Terra do Sol e O dragão
2.1.7 - Ciclo da retomada da Maldade contra o Santo Guerreiro, dirigidos por Glauber
Rocha, um ícone do cinema novo.
Só a partir de 1992 o cinema se reorganiza com um novo
Ainda temos nos anos noventa uma retomada desse gênero
ciclo denominado, por Giannasi (2007), de “retomada” ou ciclo
através dos fimes O Cangaceiro de Aníbal Massaini Neto (re-
do renascimento, o que encontramos na atual produção.
make do filme homônimo de 1953), Corisco e Dadá de Rosemberg
universidade O impeachment de Fernando Collor possibilitou a formula-
Cariry e Baile Perfumado de Paulo Caldas e Lírio Ferreira.
ção de uma nova política para o setor cinematográfico, que é
O filme O Cangaceiro foi inspirado na saga de Lampião e
obrigado a buscar novos moldes de produção.
sua história apropria-se do western americano, narrando uma
Almeida & Butcher (2003) acrescentam que a nova filosofia
saga de bandidos sociais que viveram no nordeste brasileiro
sumário
do mercado brasileiro traz um impacto imediato que se traduz
quase por um século.
em altos níveis de desemprego e um crescente empobrecimento
Há uma afinidade entre o western e a temática nacional,
da classe média brasileira, provocando o fechamento de 1/3
podendo-se assim dizer que é um típico northeastern, pois o
das salas de cinema no período de 1990 a 1995.
western é construído em um universo totalmente polarizado
Através da livre iniciativa privada, a indústria bra-
onde existem forças de permanência e forças do progresso que
próxima sileira tentou fazer com que o cinema retomasse a ser algo
são responsáveis pela imposição e estabilização de uma ordem.
rentável, porém, para o cinema que foi fortemente subsidiado
O filme é marcado por uma visão estereotipada do sertane-
durante os últimos vinte anos, o tornou pouco plausível. Mes-
jo que contrapõe o presente civilizador ao passado pitoresco,
mo após todas as tentativas da indústria para que a produção
já extinto, nos remetendo a uma fórmula muito conhecida, mas
voltasse a existir, era necessária a intervenção do Estado e
comprometida com a realidade. Desta maneira, ocorre a inven-
anterior ela foi realizada através de políticas de incentivos fiscais.
ção do cangaceiro, que como o cowboy andava a cavalo, em um
Essa nova política é vigente até os dias atuais e baseia-se
sertão estilizado e no nível de verossimilhança histórica.
na renúncia fiscal.

76
No filme observamos duelos e céus majestosos (figura 03 Vítor Lima Barreto nasceu em 23 de junho de 1906 na cidade
e 04) englobando as ações, como nos filmes de western norte- de Casa Branca - São Paulo. Começou no cinema como assistente
-americanos, e o comportamento antissocial dos personagens. O de Del Picchia, depois tomou emprestada uma câmera e começou
cangaceiro transforma-se em arquétipo, isto é, a face adulte- a fazer algumas gravações, descobrindo, deste modo, o mundo
rada do sertanejo de boa índole. do cinema.
Sua primeira tentativa de filme com o nome “Como se faz um
jornal”, para o Estado de S. Paulo. Nos anos 40, fez fotogra-
fias de reportagem, foi redator da Rádio Tupi e trabalho para
o DEIP (Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda) de

Figura 03 – São Paulo, realizando cine jornais e documentários, “Fazenda


Velha” (1944). “Seu Bilhete, por Favor” e “A Carta de 46” -
capa
Cena do Filme
ambos de 1946 e “Caçador de Bromélias” (1946), feito para o
Fonte: http:// Serviço Nacional da Malária.
orbita.starmedia. Ingressou na Companhia Cinematográfica Vera Cruz em 1950 a
com/cinema_net/ convite de Alberto Cavalcanti. Seu primeiro filme para a pro-
Cangaceiro.jpg dutora foi o documentário de curta-metragem “Painel” (1950),

universidade
tendo como tema o painel sobre Tiradentes pintado por Cândi-
do Portinari, lançado junto com o primeiro longa-metragem da
Vera Cruz, “Caiçara”.
No ano seguinte, dirigiu “Santuário” (1951), sobre os
profetas de Aleijadinho em Congonhas do Campo - MG. A premia-
sumário ção do filme no II Festival de Veneza de Filmes Científicos e
Documentários, em agosto de 1951, abria-lhe a possibilidade
de realização de um primeiro longa-metragem. A Companhia Vera
Figura 04 –
Cruz, porém, relutava em aprovar o projeto de “O Canganceiro”
Cena do Filme

próxima
(1953), no qual se empenhava o realizador desde a sua entrada

Fonte: http://www. na Companhia.

filmreference.com/ Em setembro de 1951 é anunciado que a realização do filme

images/sjff_01_ foi aprovada, mas sua produção só se iniciaria no ano seguin-

img0089.jpg te. Lima Barreto visita a Bahia, pesquisando o cangaço, mas as


locações são realizadas em Vargem Grande do Sul, no interior
anterior de São Paulo.
4 – Vida de Vítor Lima Barreto A filmagem é lenta e se arrasta por nove meses, e é de

77
longe a mais cara que o cinema brasileiro conheceu até então. Lima Barreto em setembro de 1953 viaja pelo Nordeste, da
Finalmente concluído no final do ano, o filme é lançado em Bahia ao Ceará, em busca de locações para o seu novo projeto:
janeiro de 1953, encabeçando um circuito de 24 salas em São “O Sertanejo”, abordando temas ligados à figura de Antônio
Paulo, e pouco mais tarde em circuito nacional. Conselheiro. Ao contrário de “O Cangaceiro”, o filme desta
Em cartaz durante seis semanas consecutivas, em dezenas vez seria rodado no interior baiano. Previstas para o final
de cinemas com casas lotadas, “O Cangaceiro” (figura 05) al- do ano de 1953, as filmagens vão sendo sucessivamente prote-
cança o maior número de espectadores que já tivera o cinema ladas e sequer se iniciam: mais complexo, mais ambicioso e
brasileiro em toda a sua história, e logo em seguida bate o muito mais caro que o anterior, a Vera Cruz não tem condições
recorde absoluto de rendimento de quaisquer filmes, nacionais de produzir o filme.
ou estrangeiros, até então exibidos no mercado brasileiro. Em guerra aberta contra o que considera um boicote da
Apresentado em abril no Festival de Cannes, o filme chama a Companhia, o diretor busca outros produtores, faz campanhas
capa atenção da crítica internacional e conquista dois prêmios: pelos jornais, anuncia novos projetos, mas não desiste de “O
melhor filme de aventura e menção especial para a música. Sertanejo”. Uma leitura pública do roteiro, feita por ele
próprio, causa enorme e duradoura impressão.
Em junho de 1954, já nos estertores, a Vera Cruz produz
“São Paulo em Festa”, documentário de longa metragem sobre

universidade
os festejos do IV Centenário de São Paulo, dirigido por Lima
Figura 05 - Cartaz do filme Barreto. É o último filme da companhia e será o único longa-
Fonte: http://filmescopio.50webs. -metragem do diretor nos próximos seis anos.
com/fotos/lbarreto.jpg Falida a Vera Cruz, Lima Barreto realiza três documentá-
rios: “Arte Cabocla” (1955), premiado com um Saci, “O Livro”
sumário (1957) e “O Café” (1959); os últimos e eventuais outros que
não deixaram rastros são filmes institucionais de encomenda.
Inicia uma coluna para o jornal O Dia, escreve contos, nove-
Ganha ainda o prêmio de melhor las, argumentos e roteiros, ensaia uma história do cinema em

próxima
filme no Festival de Edimburgo. Era São Paulo - e continua procurando produção para “O Sertanejo”.
a consagração, para Lima Barreto e Em dezembro 1957, anuncia a realização de “A Primeira
para a Vera Cruz, que, no entanto, Missa” - que se inicia em março de 1960. Fartamente divulga-
chegava muito tarde para a produto- do pela imprensa, e ansiosamente aguardado, o novo filme de
ra: afogada em dívidas. Meses depois, a Vera Cruz vende os Lima Barreto decepciona. Apresentado no Festival de Cannes
direitos do filme à Columbia Pictures, que o distribuiu du- de 1961, o filme é praticamente ignorado, quando não tratado
anterior rante anos por todo o mercado internacional, obtendo enormes com frieza ou ironia. No Brasil, não faz boa carreira. Mesmo
rendimentos. exaltado pelas associações católicas de cultura cinematográ-

78
fica e recebido com simpatia pela crítica, não era o que se ser de extrema importância para entender o cenário em que foi
esperava do famoso diretor de “O Cangaceiro”. realizado e como seria se as novas tecnologias já existissem
Nos anos 60, Lima Barreto filma um documentário de média na época.
metragem, “Psicodiagnóstico Miocinético” (1962). Publica dois É inexplicável, segundo Rocha (2003), o fato do cinema
livros, “Lima Barreto Conta Histórias” (1961) e “Quelé do Pa- brasileiro, através do filme de Lima Barreto, chegar à temá-
jeú” (1965). Continua a anunciar novos projetos, cada vez mais tica do cangaço apenas em 1953, quando a literatura, através
caros e mais ambiciosos, e periodicamente retoma os antigos, de diversos autores, já formavam um ciclo sobre o cangaceiro,
acalentados desde os tempos da Vera Cruz. São na maior parte personagem indispensável no romanceiro popular do Nordeste,
adaptações de romances brasileiros famosos, ou grandes temas e que criou um drama de aventuras convencionais, psicologi-
épicos ligados à história do Brasil: “A Retirada da Laguna”, camente primário, ilustrado pelas místicas figuras de chapéus
“Plácido de Castro”, “O Alienista”, “Nos Idos de Sorocaba”, de couro, estrelas de prata e crueldades cômicas.
capa “Cântico da Terra”, “Pau Brasil” - entre muitos outros. Os O cangaço é retratado como um fenômeno de rebeldia mís-
preferidos, aos quais volta sempre, são “Quelé do Pajeú” e “O tico-anárquico, surgido do sistema latifundiário nordestino,
Sertanejo”, que deveriam compor, junto com “O Cangaceiro”, a agravado pelas secas, não bem situado. É uma estória da época
sua “trilogia do Nordeste”. que havia cangaceiros, uma fábula romântica de exaltação à
No final dos anos 60, dois de seus roteiros - “Inocência” terra.

universidade
e “Um Certo Capitão Rodrigo” recebem o prêmio do Instituto A paisagem falsa e os planos não permitem ao espectador
Nacional do Livro de melhor adaptação cinematográfica de obra perceber que aquele Nordeste é paulista, sem macabira, xique-
literária, respectivamente em 1968 e 1969. Oito anos depois, -xique, favela e mandacaru; empolado na fotografia de nuvens
pobre e doente, morando numa casa de cômodos semi destruída de Chick Fowle e cheio da violência original dos cangaceiros
no bairro Bela Vista em São Paulo. Lima Barreto ainda tinha (ROCHA, 2003).
sumário forças para mais uma vez anunciar a filmagem de “Inocência”. O Cangaceiro, de Lima Barreto, foi o filme que mudou todo
Embora não por ele, “Quelé do Pajeú” e “Inocência” foram afi- o rumo do cinema brasileiro, entorpecendo o público e pro-
nal filmados, o primeiro por Anselmo Duarte e o segundo por vocando na burguesia paulista uma euforia. Entretanto, todo
Walter Lima Jr (MIRANDA, 2000). Faleceu em 24 de novembro de o sucesso e a fama alcançados, mesmo determinando a conti-

próxima
1982 em Campinas em um asilo de velhos, aos 72 anos de idade. nuidade de seu trabalho, fez com que Lima Barreto terminasse
enlouquecendo.
5 - Considerações Finais
6 - Referências Bibliográficas
O cinema tem um papel muito significativo na cultura mun-
• ALMEIDA, P. S.; BUTCHER, P. Cinema: desenvolvimento e mercado. Rio de Ja-
dial, entretanto faz-se necessária uma constante atualização neiro: Aeroplano, 2003.
anterior de todos os profissionais que trabalham nesse meio. Assim, o • BERNARDET, J. C. Historiografia clássica do cinema brasileiro. São Paulo:
Annablume, 2004.
estudo tanto da história do cinema brasileiro como de cineas-
• GIANNASI, A. M. O produtor e o processo de produção dos filmes de longa
tas como Lima Barreto, proporciona essa atualização, além se

79
metragem brasileiros. 2007. 112 f. Dissertação (Mestrado em Ciências da
Comunicação) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.
• GOMES, P. E. S. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. 2ª ed. São Pau-
lo: Paz e Terra, 2001.
• MIRANDA, Luiz Felipe & RAMOS, Fernão (orgs.). Enciclopédia do Cinema Bra-
sileiro. São Paulo: Senac, 2000.
• ROCHA, G. Revisão Crítica do Cinema Brasileiro. São Paulo: Cosac & Naify,
2003.
• SOUZA, C. R. Nossa aventura na tela. São Paulo: Cultura Editores, 1998.

capa

universidade

sumário

próxima

anterior

80
stood out by the impressive the box office rates and differed
UMA PONTE PARA O CINEMA DOS themselves from the adult movies − that was the mainstream
ANOS 1980: A HISTÓRIA DOS in the period. From “Menino do Rio, (1982) to the recent “As
FILMES PARA A JUVENTUDE Melhores Coisas do Mundo “, what the titles of both seasons
have, or don’t have in common? How the younger people and the
films that speak of changed from that time to the present?
Key words: cinema, teenagers, box offices, mainstream,
audience niche, television

L uciano V az F erreira R amos Introdução


Mestrando em Multimeios, no Instituto de Artes da Unicamp,

capa
Com direção de Rosane Svartman (“Como ser Solteiro no Rio
Resumo: Depois de longa ausência, o cinema brasileiro de Janeiro” – 1998) o lançamento de “Desenrola” 12 se mostra
volta a produzir espetáculos que trazem os adolescentes como historicamente diferenciado. Sua produtora Clélia Bessa é uma
tema e, ao mesmo tempo, como público-alvo. Nos anos 1980, das poucas empresárias a se beneficiar com um novo guichê de
quando a televisão resolveu fazer dessa linha um nicho em que aporte financeiro aberto em 2009 para a produção. Trata-se do
iriam se aninhar séries como “Armação Ilimitada” e “Malha- Fundo Setorial do Audiovisual (Linha C), destinado a apoiar

universidade
ção”, foi buscar inspiração, temas, atores e roteiristas nos distribuidoras que, por sua vez, tenham firmado contrato com
filmes brasileiros que se faziam na época. Aqueles títulos empresas produtoras para a futura distribuição de títulos
destacavam-se pelos expressivos índices de bilheteria e se ainda em estágio de produção.
diferenciavam dos filmes para adultos – esta a corrente prin- Trocando em miúdos, o estado começa a destinar recursos
cipal do período. De “Menino do Rio” (1982) ao recente “As
sumário
para reforçar a distribuição de filmes – atividade que, ao
Melhores Coisas do Mundo”, o que têm e o que não têm em comum lado da exibição, permanecia a reboque de uma política fede-
os títulos de ambas as safras? Como os jovens e os filmes que ral que vem priorizando a produção. Desde a sua extinção pelo
falam deles se transformaram de lá para cá? governo Collor, aliás, nenhuma distribuidora privada conse-
Palavras-chave: cinema, adolescentes, bilheteria, corren- guiu alcançar a abrangência da Embrafilme.

próxima
te principal, nicho de audiência, televisão Outra novidade: esses recursos não são a “fundo perdido”,
Abstract: After a long absence, the Brazilian cinema re- porque o FSA 13 tem participação nos direitos de comerciali-
turns nowadays to produce shows that bring teenage people zação das obras, dividindo riscos e resultados com produtores
as the theme and, at the same time, as the audience. In the e distribuidores. Portanto, entre centenas de proponentes,
1980s, when television decided to open a new audience niche, escolheram-se os projetos de melhor perspectiva de rentabili-
anterior where they would nest series like “Armação Ilimitada” and
12 Ver o site oficial do filme em http://www.desenrolaofilme.com.br
“Malhação”, was inspired by themes, actors and writers from 13 Conforme o Informativo n° 26/09, da ANCINE a entidade responsável por essas linhas de crédito é a Finep – Fi-
the Brazilian films that were made at the time. Those titles nancadora de Estudos e Projetos -- empresa pública vinculada ao Ministério da Ciência e da Tecnologia. Os demais
contemplados desta primeira etapa se encontram em: www.finep.gov.br/dcom/audiovisualC.pdf

81
dade. Numa ousada demonstração de marketing, “Desenrola” foi da década anterior, temperando-as com doses de psicanálise,
pré-lançado na internet, sob a forma de “web-série”. Produzi- sofisticação visual e ironia. Gerava-se assim o erotismo es-
dos por diferentes empresários, os oito projetos escolhidos clarecido de, por exemplo, “Mulher Objeto” (Silvio de Abreu,
serão distribuídos pelas empresas: Europa, Riofilme, Imagem 1981) e “Eu Te Amo” (Arnaldo Jabor, 1980). Era o que José Má-
e Downtown, que cuida de “Desenrola”. É uma comédia sobre a rio Ortiz Ramos 14 chamava de “fusão da herança ‘culta’ da dé-
iniciação sexual de uma menina de 16 anos: tema, aliás, que cada de 1960 com o espetáculo e o planejado jogo de mercado”.
viria a calhar para Ody Fraga e David Cardoso, ou até para um Na área do cinema erótico − só para adultos, portanto − a
Antonio Calmon em princípio de carreira. Daí a idéia de uma oferta de títulos se diversificava, criando oportunidade para
“ponte” para outra época. novos diretores. Entre eles Antonio Calmon (Manaus, 1945),
A proposta deste artigo é identificar cada um dos títulos que impressionava o acima mencionado historiador por ter se
do gênero nessas duas décadas a serem comparadas e estudar o iniciado num espaço de mediação entre o cinema novo e o cine-
capa seu desempenho no mercado. Além disso, trata-se de verificar ma marginal (“O Capitão Bandeira contra o Dr. Moura Brasil”,
suas condições de produção e analisá-los do ponto de vista es- 1971) e, mais tarde, ter se lançado “na voracidade do cinema
tético e comunicacional, procurando estabelecer relações com comercial, mantendo traços de autoria”.
a sociedade e a cultura das duas épocas. Esse desbravador pioneiro se aproximaria do universo teen
num filme em que o contexto social ainda era dominante na
Seria o começo de um novo “ciclo”, como foi o do cangaço?

universidade
narrativa − o drama “Nos Embalos de Ipanema” (1978), prota-
gonizado por André de Biase, no papel de surfista envolvido
Este ano de 2010 será lembrando como a primeira safra sig-
em prostituição. Entre este seu primeiro trabalho focalizan-
nificativa de produções que, neste século, adotam como tema
do o mundo do adolescente e uma espécie de continuação bem
e, ao mesmo tempo, como público-alvo aquela faixa da popula-
mais adocicada (“Menino do Rio”, 1982) ele filmaria quatro
sumário
ção que em inglês é designada pela palavra teenager, ou seja,
títulos, entre os quais o perturbador “Eu Matei Lúcio Flávio”
aqueles que têm entre 13 e 19 anos de idade. Filmes assim eram
(1979) – rompendo com a ideologia de seus tempos de cinema
bem mais comuns na década de 1980, a partir de “Menino do Rio”
novo. Como analisa Ortiz Ramos:
(Antonio Calmon, 1982). Os cinéfilos e puristas da época até
São obras que possuem uma força estranha, com uma carga crítica que as
se escandalizaram – quase tanto quanto com a canção homônima
diferencia das pornochanchadas, e principalmente revelam por trás das

próxima de Caetano Veloso – ao deparar com aquele roteiro romântico, câmeras um diretor com forte personalidade. Calmon leva a extremos o

totalmente decalcado dos congêneres americanos, voltado para confronto com um cinema mais apegado a tradições culturais e, expondo
uma formação repleta de ingredientes urbanos e internacionalizados,
as peripécias amorosas de um surfista e, ainda por cima, fa-
e provocativamente realiza um contraponto com o filme de Babenco 15
zendo apologia da alienação juvenil. (ORTIZ RAMOS, José Mário, 1987, pg 430)
Naquele começo de década, o mercado audiovisual crescia,
Depois disso, a controvertida carreira de Calmon começa-
anterior enquanto a sociedade tornava-se mais complexa, oferecendo no-
14 RAMOS, José Mario Ortiz, O Cinema Brasileiro Contemporâneo, in Fernão Ramos (org). História do Cinema
vas opções para o cinema. Produtores de peso como os Massaini Brasileiro – São Paulo: Art Editora, 1987
15 De Hector Babenco é “Lucio Flávio, o Passageiro da Agonia” (1977), um triunfo de 5 milhões de espectadores
e Walter Clark incorporavam as linhas gerais do filme popular que bradava contra a ditadura.

82
va a ser carimbada como reacionária, principalmente por ter daquele nicho no qual, mais tarde, iria inserir a eterna série
enaltecido a detestada figura do policial corrupto Mariel Ma- “Malhação”, que se estende de 1995 até agora.
riscot, um dos líderes do assustador Esquadrão da Morte. No Enquanto isso, na outra ponta da Via Dutra, Hector Baben-
entanto, com “Menino do Rio”, uma realização de Luis Carlos co, Roberto Freire e Francisco Ramalho Junior trabalhavam num
Barreto, em que seu filho Bruno trabalhou como produtor exe- roteiro sobre a mesma faixa etária, mas com intenções diame-
cutivo, a trajetória de Calmon tomaria um novo rumo. Quando tralmente opostas. “Filhos e Amantes” procurava falar seria-
chegou ao mercado, era difícil imaginar o resultado comer- mente, procurando...
cial daquele filme aparentemente insignificante. A crítica ... desvendar os meandros do comportamento de toda uma geração de
brasileiros que permanece uma verdadeira incógnita para quem possui
de jornais como a Folha de São Paulo desprezou-o cabalmente,
mais de 30 anos: as atitudes, hábitos e idéias dos jovens constituem
apontando suas ligações umbilicais com a comédia erótica dos uma espécie de cultura estranha que só tem chegado ao cinema através
anos 1960-1970, num cruzamento espúrio com o cinema juvenil lugares-comuns.” (RAMOS, Folha São Paulo,
capa
de estereótipos e de

americano, que tivera Elvis Presley, Sandra Dee e Bobby Darin 15 de abril de 1982)

como ícones: Apesar da dramaticidade do texto, do esmero na produção e


O filme já foi feito um milhão de vezes, só no ciclo americano dos do elenco em que se destacavam Lúcia Veríssimo, Denise Dumont
“filmes de praia” que, vez por outra, ainda são incluídos na progra-
e (o quase obrigatório) André de Biase, o retorno de bilhete-
mação vespertina das estações menores de televisão.... Não se pode
condenar um filme só porque se propõe a falar da juventude dourada
ria foi modesto, mesmo exibindo cenas de sexo, drogas e rock

universidade
das praias cariocas.
Condenável é mostrar apenas o lugar-comum, a and roll. A diferença estava no ponto de vista: “Filhos e
futilidade, o estereótipo, as características mais genéricas e su-
Amantes” não era um espetáculo para adolescentes e sim sobre
perficiais daquele tipo de gente... O argumento consiste no esquema
“garoto encontra garota”: se apaixonam, brigam por um motivo besta e eles. Era um contraste parecido com o que vemos atualmente,
voltam a se encontrar... As tentativas de fazer humor não ultrapassam entre os jovens vampiros de “Deixa Ela Entrar” (Let the Right
a grossura e a mentalidade prosaica para a qual o sexo não passa de
One In, Suécia , 2008) e os da série “Crepúsculo” (The Twili-
sumário uma função fisiológica. (RAMOS, 1982)
ght Saga: Eclipse, EUA, 2008).
Afinal, aquele era um período no qual somente os filmes Vale lembrar o texto referente aquele período que Ody Fra-
eróticos e sensacionalistas costumavam empolgar as bilhete- ga publicou em 1984 na revista Filme e Cultura: “O momento é
rias. Mas o surpreendente sucesso de público de “Menino do de reflexão crítica, pois a verdade é que em todos os setores
Rio” − em que André de Biase vivia um surfista pobre e apai-
próxima
do cinema brasileiro, desde o cultural ao comercial, estamos
xonado por uma modelo famosa (a saudosa Cláudia Magno) − deu entrando no amanhã com idéias de ontem” (ABREU, 2006, p 135)
origem à série de televisão “Armação Ilimitada”, transmitida Era um tempo em que o sonho ainda não tinha acabado
pela Rede Globo entre 1985 e 1988 que, assim, pode diminuir Naquela época, ainda se notava uma tardia, porém marcan-
a importação de “filmes de praia” americanos para a sua gra- te influência hippie, confrontando idealismos, sexo, drogas,
de vespertina. Com isso ficou provado que existia, de fato,
anterior
rock e política. “O Sonho Não Acabou” (1982), o segundo fil-
um público para aquele tipo de história. Ou seja, diante do me do diretor Sérgio Rezende (“Salve Geral”, 2010) funcionou
queixo caído da turma do cinema, a televisão se apropriava como plataforma para uma nova linhagem dramática de intérpre-

83
tes novatos (Miguel Falabella, Lauro Corona, Lucélia Santos, séries na televisão.
Daniel Dantas e Louise Cardoso), retratando a primeira gera- Tratava-se de uma geração que marca a passagem de um pe-
ção nascida em Brasília. Ao lado destes, uma Fernanda Torres ríodo de politização da juventude urbana de classe média
ainda em flor interpretava a jornalista iniciante Eliane Ma- para outro em que a palavra de ordem era o escapismo. 17 Com
ciel, que tinha estourado com sua precoce autobiografia, em música de Caetano Veloso, esse filme foi uma das primeiras
“Com Licença, Eu Vou à Luta” (Lui Farias, 1986). produções independentes em relação à Embrafilme, uma vez que
A Boca do Lixo de São Paulo também surfava nessa mesma foi produzido inteiramente com recursos captados por meio da
onda, apresentando Carla Camurati no papel de uma estudante Lei Sarney. Tudo muito emblemático, para alguém que 15 anos
de 17 anos que ia trabalhar como secretária num escritório depois gastaria mais de R$10 milhões num filme que nunca foi
do centro da cidade, de onde passava a observar, fascinada, o terminado. No começo de 2008, a propósito, a Controladoria-
cotidiano de uma prostituta. “O Olho Mágico do Amor” (Ícaro -Geral da União refêz as contas e determinou que Guilherme
capa Martins e José Antonio Garcia, 1981) também introduzia a ju- Fontes devolva algo como R$ 36,5 milhões aos cofres públicos.
ventude do compositor Arrigo Barnabé, que fazia ligação com Malu Mader também aparece como namorada do protagonista
a vanguarda musical e uma faixa mais intelectualizada do pú- em “Feliz Ano Velho” (Roberto Gervitz, 1987), adaptação do
blico paulista. 16 best-seller igualmente autobiográfico do jovem escritor Mar-
Por sua vez, o mais tarde controvertido produtor e dire- celo Rubens Paiva − papel que seria de Marcos Breda e que foi

universidade
tor do inacabado “Chatô, O Rei do Brasil”, Guilherme Fontes considerado um exemplo gritante dos males que a ditadura fez
era “Dedé Mamata” (Rodolfo Brandão, 1988). Ele contracenava a toda uma geração. Acidentado nos anos 1980, o personagem
com Malu Mader, Luis Fernando Guimarães e Marcos Palmeira, central rememora a sua trajetória durante a década anterior,
na pele de um personagem que se tornaria símbolo da juventu- quando era militante de esquerda. Já em tempo de “abertura
de da época ao trocar o marxismo pela droga e outras formas lenta e gradativa” do regime militar, a Embrafilme participou
sumário de evasão do mundo concreto: filho de comunistas e neto de com apenas 20% do orçamento. Apesar do sucesso quase certeiro
anarquistas, ele nem percebia que o país vivia sob regime de do filme, a carreira do diretor não decolou e ele retornou à
exceção, nem quando o pai foi preso e desapareceu. Seu des- atividade somente em 2005, com “Jogo Subterrâneo”.
tino se resumia a vender e consumir cocaína. O filme contava Como Malu Mader observou numa entrevista durante o Fes-

próxima
com a participação de Antonio Calmon no roteiro, baseado em tival de Gramado, onde “Feliz Ano Velho” foi sete vezes pre-
livro autobiográfico de Vinicius Vianna, neto do dramaturgo miado, os dois filmes se diferenciam em seus pontos de vista,
e ator Oduvaldo Viana (1892-1972) e filho do célebre Vianinha apesar de se mostrarem semelhantes em termos de forma e te-
(1936-1974). Com 25 anos, Vinicius estreava com uma histó- mática: jovens que viveram a pré-adolescência nos anos 1970
ria, mirabolante para a época, sobre as peripécias de quatro e que agora se acham em busca de novos valores, caminhos e
jovens nos anos 1970. De lá para cá, assim como seu parceiro opções. Em termos de conteúdo, destacam-se uma crítica à es-
anterior Antonio Calmon, ele vem trabalhando como redator de novelas e querda tradicional, a liberalidade quanto ao uso de drogas
17 Outros filmes da época, igualmente por mim analisados na FSP, como “Paula” (Francisco Ramalho Junior,
16 A crítica que publiquei na época na Folha de São Paulo destacava o fato dos diretores terem aprendido 1980); “Vera” (Sergio Toledo, 1986) e “Nunca Fomos tão Felizes” (Murilo Salles, 1983) eram sobre e não para
cinema na universidade e, por sua ousadia, tratava-os como “jovens dando bons exemplos aos mais velhos”. teenagers.

84
em cena e uma visão mais natural e espontânea do sexo. Ambos tros de “Armação Ilimitada”) e Cláudia Magno, além dos músi-
tentam se expressar por meio de uma linguagem visual contem- cos Guilherme Arantes, Ritchie e Marina Lima. No filme, dois
porânea, principalmente porque as equipes de criação e produ- surfistas disputavam a preferência da beldade Bianca Bying-
ção se achavam na faixa etária dos 20/30 anos. 18 ton.
Só que a dupla central não era Oscarito & Grande Otelo e
O intervalo musical que deixou saudade
nem os cantores Ângela Maria & Cauby Peixoto. E, portanto, o
modesto resultado desse projeto praticamente levou Calmon a
Ao lado de sexo, drogas e rock – em lugar das antigas
encerrar a carreira de cineasta e se concentrar na de reda-
passeatas, da esvaziada agitação estudantil e das esquecidas
tor de televisão. Garota Dourada, por outro lado, agora é uma
canções de protesto − a nova juventude foi se interessando
griffe de roupas de praia e ninguém mais se lembra da canção
cada vez mais por diversão e arte. Assim, Débora Bloch deu
que Pepeu Gomes compôs para servir de tema. Tomado, porém,
capa
vida à encantadora “Bete Balanço” (Lael Rodrigues, 1984),
como documento de uma época, foi um dos vários filmes que re-
que veio de Minas Gerais para o Rio de Janeiro sonhando em
forçam a seguinte constatação: boa parte dos moços só queria
se tornar cantora, enquanto destruía corações ao som do Ba-
aproveitar o melhor do “aqui e agora”, de preferência levando
rão Vermelho e de Cazuza – este, aliás, um ícone completo da
alguma vantagem em relação aos demais.
cultura jovem daquele tempo. Depois, o diretor paulista Lael
Rodrigues (1951 - 1989) faria mais dois filmes com temática Agora chegou a hora de falar sério sobre isso.

universidade e músicas pop: “Rock Estrela” (1986) e “Rádio Pirata” (1987),


que foi seu último trabalho, antes de falecer em 1989, aos 38 Na década de 1980, a adolescência começava a se prolongar
anos, de insuficiência cardíaca. assustadoramente e muita gente ultrapassava a marca da maio-
Para alguns analistas, essa perda foi determinante para ridade se acomodando na dependência familiar, para preservar

sumário
o enfraquecimento dessa linha de produções no Brasil. Graças o estilo teenager de vida. Nos anos 1960, a rapaziada fugia
a ele, a narrativa dos filmes para adolescentes oxigenou-se de casa e punha o pé na estrada sem ao menos dizer “mamãe não
ao sair um pouco das areias cariocas e acrescentar música aos chore”. Um quarto de século depois, esse rompimento tão radi-
espetáculos. O musical, aliás, tornara-se uma tendência em cal não seria mais necessário: aquecido desde o final da 2ª
termos mundiais, após o triunfo comercial de “Fama” (1980), Guerra, o conflito de gerações se esfriava rapidamente. Bem

próxima de Alan Parker, em que os protagonistas se entregavam às artes mais permissivos, os pais já deixavam as garotas passarem a
cênicas, com o mesmo ardor que outros se lançavam às drogas noite na casa dos namorados, onde era até possível fumar o
e à ação política. que bem entendessem.
Até Antonio Calmon se mostrou sensível a essa marola so- Bastava, portanto, reduzir o impulso de autonomia e a am-
nora dentro da onda e fez uma continuação mais pop e musical plitude dos sonhos para se acostumar com a baixa mesada e man-
anterior de “Menino do Rio” − “Garota Dourada” (1984) que tinha Andrea ter o ritmo de vida mansa, e o mais descompromissada possível.
Beltrão dividindo a tela com André de Biase (os dois dos as- Evandro Mesquita, por exemplo, encarnava um rapaz que queria
18 MILLARCH, Aramis. “Dedé Mamata”: finalmente um filme sem Embrafilme” – in www.millarch.org ser escritor, mas acabava como traficante em “Não Quero Falar

85
sobre isso Agora” (Mauro Farias, 1991), filme que veio para bach, 1999) ou o rapaz interpretado por Rodrigo Santoro em
fechar a década para este gênero de espetáculo sobre e para “Bicho de Sete Cabeças”, que foi parar num hospício por fumar
jovens. O personagem teve que ir à luta ao ser abandonado um baseado (Laís Bodanzky, 2001), não foram capazes de des-
pela namorada, mas preferiu o anonimato da marginalidade, se pertar o interesse dos espectadores da sua própria idade. Es-
dissolvendo como pequeno fornecedor no caos urbano do baixo ses filmes visavam, na verdade, o público adulto e, por meios
Leblon. dos dramas vividos por seus protagonistas, discutiam os mais
De modo análogo, a Embrafilme e a Lei Sarney aguardavam o diversos problemas políticos, sociais e educacionais do pe-
golpe final a ser desferido por Fernando Collor, que levaria ríodo. 19
o cinema brasileiro a implodir em irreversível entropia. Mes- O mesmo acontecia com a “Uma Vida em Segredo” (Suzana Ama-
mo premiado com cinco kikitos em Gramado, o filme permaneceu ral, 2002) e “Vida de Menina” (Helena Solberg, 2003), dois
anos na prateleira aguardando exibição, ao lado de outros 20 filmes regionais e de época, ou “Cazuza – O Tempo Não Para”
capa títulos que quase se perderam na paralisia do mercado, como (Sandra Werneck, 2004), a biografia de um ídolo pop, e “An-
“Sampaku, O Olho da Ambição”, (José Joffily, 1991), “O Cor- jos do Sol” (Rudi Lagemann, 2006) sobre o drama de meninas do
po” (José Antônio Garcia, 1991) e “O Fio da Memória” (Eduardo nordeste vendidas como escravas pelos próprios pais.
Coutinho, 1991). Daquele período, apenas duas ou três exceções se mostra-
A realização de filmes voltou a acontecer depois de 1995, ram divertidas ou cômicas o suficiente para interessar às

universidade
com a Lei do Audiovisual, que demorou alguns anos para engatar platéias mais jovens. Nessa categoria incluem-se os filmes
e, desde o seu início, atrelava a captação de recursos aos iniciais (e de co-produção gaúcha) de Jorge Furtado: “Hou-
incentivos fiscais que garantiam a produção, mas mantinham- ve uma Vez Dois Verões” (2002), sobre um adolescente que se
-na relativamente apartada da competição no mercado exibidor. apaixona na “maior e pior praia do mundo”, e “Meu Tio Matou um
Nesse período que se convencionou chamar de “retomada”, fil- Cara” (2004), saborosa comédia narrada e protagonizada pelo
sumário mes que falassem da adolescência e também se preocupassem em menino Darlan Cunha, ainda que em seu primeiro plano a cena
se comunicar com aquela faixa de idade tornaram-se raridades. tenha sido ocupada por Lázaro Ramos 20.
De maneira geral, nessa nova fase só aparecia nas telas Já o musical “Antônia – O filme” (Tata Amaral, 2006) não
o jovem de um modo ou de outro situado à margem da corrente conseguiu cumprir as expectativas imaginadas em função do su-

próxima
principal. Como Luis Fernando Ramos, o já falecido menino de cesso que obteve enquanto série de TV na Rede Globo. Prota-
rua que foi transformado em ator para o filme de Hector Ba- gonistas do espetáculo, quatro meninas carentes se esforçam
benco e foi tema de “Quem Matou Pixote” (José Joffily, 1996), para se profissionalizar como cantoras. Só que, em função de
ou a garota que vivia isolada do mundo numa ilha, encarnada um tratamento realista, elas se mostram iguais a milhares de
por Leandra Leal no poético “A Ostra e o Vento” (Walter Lima outras e até nem cantam muito bem. Na TV, a estréia do progra-
Jr, 1997). ma alcançara 32 pontos no Ibope e o filme teve boa divulgação
anterior Tanto essas figuras quanto as burguesinhas deslumbradas na mídia, inclusive na própria Rede Globo, além de críticas
19 Neste artigo todos os dados de bilheteria são obtidos nos sites da ANCINE e do FilmeB.
com um ex-guerrilheiro em “Dois Córregos” (Carlos Reichen- 20 Segundo o Filme B, “Meu Tio Matou um Cara” arrecadou mais de R$ 4 milhões de bilheteria, mas “Houve uma
Vez Dois Verões” só faturou metade dos incentivos captados para a sua produção.

86
elogiosas e ruidosos aplausos nos festivais onde esteve. Ga- destina. Até porque questões concretas, como o elevado preço
nhou o prêmio de público na Mostra de São Paulo e foi até se- dos ingressos e a atual ausência de cinemas de rua interferem
lecionado para o Festival de Berlim. fortemente nas decisões do público. Mas não há dúvida que os
Lançado com 125 cópias, “Antônia” esperava fazer 500 mil adolescentes de periferia não possuem recursos financeiros e
ingressos, mas ficou limitado a algo em torno de 90 mil. O nem motivação para assistir a si mesmos no cinema. Já para
que não é de todo ruim, se o resultado for cotejado com títu- ver vampiros e lobisomens apaixonados por colegiais, ou ga-
los que também tratam de jovens da periferia paulistana, como rotos de óculos munidos de varinhas mágicas a coisa toda muda
“De Passagem” (Ricardo Elias, 2003) com 11.400 espectadores, de figura.
e “Garotas do ABC” (Carlos Reichenbach, 2003) que estacionou O fato é que nessa fase mais recente − refletindo o es-
em 10.700. Experimentemos, porém compará-lo com “2 Filhos de forço atual pela seriedade no discurso desta cinematografia
Francisco” (Breno Silveira, 2005) – igualmente musical e cen- de patrocinadores e, portanto, necessariamente “bem intencio-
capa trado em jovens pobres que também se esforçam para fazer su- nada”, ainda que distante do grande público que visa o lazer
cesso – que contabilizou 5,3 milhões de ingressos. Ou com “O − personagens centrais menores de idade praticamente só têm
Passageiro, Segredo de Adultos” (Flavio Tambellini, 2006) que feito parte de produções dedicadas à discussão de problemáti-
só atraiu 9 mil pessoas. Entre as variadas opiniões a respeito cas sociais: “De Passagem” e “Os 12 Trabalhos” (Ricardo Elias,
levantadas junto aos principais negociantes do nosso mercado, 2003 e 2006) “Querô” (Carlos Cortez, 2007), “Última Parada

universidade
destacamos a de Marco Aurélio Marcondes, do Consórcio Europa- 174” (Bruno Barreto, 2008) e, claro, o emblemático “Cidade de
-MAM, que focaliza a estrutura brasileira da distribuição de Deus” (Fernando Meirelles, 2002) – todos sem emprego ou re-
filmes: cursos, mas com muito sexo, drogas e baile funk.
Os multiplex atendem, em parte, a uma demanda dos empreendedores de Até que um rapaz de 20 anos, percebendo a sua geração e
shopping que, por sua vez estão atrás do consumidor de maior renda.
os seus iguais ausentes das telas, conseguiu estrear como
sumário E este, em geral, historicamente é mais preconceituoso com o
e o nosso cinema vai junto. Por
Brasil,
sua vez, o cinema brasileiro não é
roteirista e diretor de cinema. O resultado, “Apenas o Fim”
melhor que o Brasil... Parte da nova onda de shoppings já vem ou (2009), do iniciante Matheus Souza, tornou-se um destaque do
vai surgir (a concorrência e as leis de mercado estarão impondo isto)
último Festival do Rio. Estudante de cinema, Matheus mesclou
para atender, também, parte da população que não tenha cinema ao seu
redor. Não dá para culpar o formato multiplex. Seria simplista e re-
os elementos mais característicos da cultura pop da última

próxima
ducionista. O que falta é colocá-los onde o povo está, e este tem que década, numa espécie de filme-manifesto de sua faixa etária
ter excedente de renda, para também se divertir, ter acesso à cultura.
em seu tempo, abrindo caminho para uma espécie de “retomada
(CAETANO, Revista do Cinema Brasileiro, 2007)
dentro da Retomada”.
Mais alto falam os números da “Saga Crepúsculo”, iniciada
Uma ponte, para ser atravessada ou para marcar uma separação
há dois anos. “Eclipse”, o seu exemplar mais recente, ultra-
passou 2 milhões de ingressos, apenas nos primeiros cinco de
anterior Ou seja, nos últimos cinco anos, a audiência dos filmes
exibição no país, ou seja, obteve aqui a maior performance da
não tem servido como indicador confiável para se deduzir cer-
tezas e constantes a respeito dos desejos do público a que se América Latina. Nos últimos anos, portanto, após ter ficado

87
evidente que o nicho estava novamente vago, vários produtores no interior do Rio Grande do Sul atual. Narra o encontro entre
brasileiros resolveram investir no cinema sobre e para ado- um garoto em crise amorosa e o pai que nunca conhecera. Para
lescentes. Não valem como exemplos os filmes para adultos que justificar o fato de que a comunicação entre eles acontece por
usam a garotada como tema, como foi o caso do competente “À meio do correio, esse pai foi colocado de cama num convento
Deriva” de Heitor Dhalia (2009). da Tailândia, onde se recupera de malária.
O mercado atual vem se ressentindo de produções brasi- O roteiro de “Antes que o Mundo Acabe” é fluente e enge-
leiras capazes de arrancar a mocidade dos videogames e com- nhoso, ainda que um tanto forçado. Nessa correspondência com
putadores e atraí-la para as salas de cinema. Filmes em que o pai, por exemplo, o herói aprende o significado da palavra
adolescentes funcionam simultaneamente como tema e público- “poliandria”, apenas para concluir que não deseja participar
-alvo. Afinal, essa faixa etária representa uma valiosa fa- de uma experiência nesse sentido: para seu desespero, sua na-
tia do público, como outras franquias americanas de sucesso, morada começa a se envolver também com o melhor amigo dele e
capa além de “Crepúsculo” (“Harry Potter” e “High School Musical”, lhe propõe uma relação a três.
por exemplo), podem comprovar. Em função dessa onda, em 2010 As questões aí envolvidas são importantes: os primeiros
chegam ao mercado praticamente juntos, separados por poucas afetos; a diferenciação entre a amizade e o amor; a busca de
semanas, quatro longas importantes − “Os Famosos e os Duendes uma identidade própria e de valores e serem seguidos; o po-
da Morte” (Esmir Filho), “Antes que o Mundo Acabe” (Ana Luiza sicionamento pessoal dentro dos novos arranjos familiares. O

universidade
Azevedo), “Sonhos Roubados” (Sandra Werneck) e “As Melhores conflito mais forte, porém, se localiza no interior do per-
coisas do Mundo” (Laís Bodanzky). sonagem e tem a ver com aquilo que o teórico Tzvetan Todorov
Com roteiro de Luiz Bolognesi e produção dos irmãos Caio chamava de “presença insignificante” em confronto com a “au-
e Fabiano Gullane, o filme de Laís Bodanzky é melhor e mais sência significante”. Ou seja, os pais de carne e osso podem
importante que todos os demais. Não que os outros sejam ruins. até se mostrar amigos e solidários, mas o que deflagra no ga-
sumário Ao contrário, mostram-se competitivos. O filme de Esmir Fi- roto uma decisiva tomada de consciência a respeito dele mesmo
lho (“Tapa na Pantera” – 2006) é uma viajem metafísica, cheia − inclusive do ponto de vista ideológico e vocacional − é o
de mistério e impressionante do ponto de vista visual: um relacionamento com o pai longínquo e inacessível, com o qual
inquietante percurso pela subjetividade do personagem. Numa ele só se relaciona pelo correio.

próxima
cidadezinha no interior da região Sul, um rapaz se acha obce- Já em “Sonhos Roubados”, Sandra Werneck se limita a des-
cado pelo suicídio da irmã de um colega que amava em segredo. crever de modo linear e naturalista a trajetória de três me-
Em plena depressão, ele questiona a própria sexualidade e os ninas numa favela carioca – todas se iniciando na chamada mais
motivos para continuar existindo. antiga das profissões, como se isso fosse um karma inevitável
Contando com um dedo de Jorge Furtado no roteiro (que, para toda uma geração de moças carentes. No entanto, como ar-
como informamos acima, estreou em longa com o adolescente gumentamos a seguir, com “As Melhores coisas do Mundo” Laís
anterior “Houve uma Vez Dois Verões”, 2002), por sua vez, o filme da Bodanzky foge do reducionismo e se coloca acima dos concor-
gaúcha Ana Luiza Azevedo é quase um conto de fadas ambientado rentes.

88
Em primeiro lugar, porque ela não se acanha diante das seu esforço para o aprendizado emocional. E percebemos ainda
complexidades do mundo real e nem resvala para a sisudez do que, para a adolescência, a participação política – mesmo não
denuncismo. Enquanto desenvolvia uma exaustiva investigação partidária e nem ideológica – é fundamental para a promoção
junto ao universo jovem de São Paulo, Luis Bolognesi foi depu- de seu amadurecimento. Somente quando os personagens princi-
rando o roteiro baseado em livro de Gilberto Dimenstein que, pais se posicionam ativamente ao lado do professor injustiça-
por sua vez, já partia de uma observação muito próxima daque- do, eles começam a enxergar as coisas mais claramente e a ter
le mundo. E, assim, o roteirista de “Bicho de Sete Cabeças” condições de comandar seus próprios destinos.
conseguiu elaborar uma trama emocionante e bem humorada sobre Pelo conteúdo desses exemplos, pode-se concluir que agora
as questões de fato relevantes para a juventude atual. Entre o substrato cultural a orientar as tramas dos filmes vem se
elas o chamado bullying – variadas agressões e humilhações transformando. A garotada volta a se afastar de casa, não mais
que os estudantes infligem uns aos outros – um processo agora porque os pais continuem tirânicos, mas porque “casas” quase
capa muitas vezes amplificado por meio do celular e da internet. já não existem – pelo menos no sentido tradicional do termo.
Segundo uma pesquisa recente do IBGE 21 10% dos alunos No drama social “Sonhos Roubados”, as mães que costumavam as-
sofrem esse tipo de violência que, no filme, vemos se espa- sumir a função de principal esteio dos lares desaparecem do
lhar em todos os níveis da atividade escolar: desde um blog horizonte dramático, por terem morrido drogadas, ou terem fu-
de fofocas pseudojornalísticas até as conversas de corredor e gido para sempre com um bandido. Na comédia romântica “Antes

universidade
reuniões de pais e mestres. O protagonista é um garoto que se que o Mundo Acabe”, o pai adotivo é tão permissivo quanto ino-
vê gravemente atingido pela separação dos pais, pela calúnia perante, atuando mais como um cozinheiro do que como conse-
lançada contra o professor mais admirado da escola e por ter lheiro. Pior é no drama quase político “As Melhores coisas do
se apaixonado justamente por sua melhor amiga. Aliás, a dire- Mundo”, na qual é o pai quem sai de casa (e do armário) para
ção de Laís Bodanzky é muito feliz em harmonizar a atuação de viver com um aluno. Já em “Os Famosos e os Duendes da Morte”,
sumário atores tão experimentados como Denise Fraga e Caio Blat, com o pai vive internado, ou preso em algum lugar fora do filme,
uma maioria de jovens iniciantes. enquanto a mãe passa a noite alcoolizada, tomando remédios de
Para completar o quadro dramático do personagem central, tarja preta e conversando com a cachorrinha de estimação.
presenciamos a sua cômica tentativa de iniciação sexual num Em todos esses exemplos, amigos, vizinhos e professores

próxima
prostíbulo e a dolorosa depressão sofrida pelo irmão mais ve- representam os elementos mais próximos ao que seria uma famí-
lho. Veremos também que, apesar de intelectuais consagrados, lia. E para fugir desse universo carente de sentido, muitos
o pai e a mãe do garoto não se mostram competentes para o enxergam uma ponte − não para ser atravessada, mas para se
exercício da paternidade. E que, no mundo de hoje, um profes- jogar dela, num rio que passa por baixo. A idéia de suicídio
sor de violão pode desempenhar o papel que os gurus e eremitas é um tema recorrente nestes filmes. Além da própria sobrevi-
cumpriam nas antigas fábulas. vência física e mental, como vemos, os principais problemas
anterior A longa escadaria que o personagem central precisa subir enfrentados pelos personagens do novo “cinema teen” brasilei-
para chegar à casa do mestre é o símbolo cinematográfico de ro são a convivência com as pessoas da mesma idade e o rela-
21 www.observatoriodainfancia.com.br/IMG/pdf/doc-100.pdf

89
cionamento com o ambiente social. Isso envolve a busca de uma Contexto, 1988.

identidade e de uma compreensão mínima acerca das condições • ______________ Cinema Brasileiro – Propostas para uma História. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009.
sociais em que se movimentam. • CAETANO, Maria do Rosário. O Martírio das bilheterias. Revista do Cinema
As meninas de “Sonhos Roubados” se sentem atraídas pela Brasileiro n. 77, 2007

prostituição, sem que ninguém as seduza explicitamente para • JOHNSON, Randal & STAM, Robert (orgs). Brazilian Cinema. Nova York: Colum-
bia University Press, 1995
essa atividade, mas essa é uma opção quase única que se mani- • MIRANDA, Luiz F.A. Dicionário de Cineastas Brasileiros. São Paulo: Art
festa em tudo e em todos, no meio em que vivem. Por sua vez, Editora, 1990
• NAGIB, Lucia. O Cinema da Retomada. São Paulo: Editora 34, 2002.
o pequeno herói de “Antes que o mundo Acabe” faz de tudo para
• RAMOS, Fernão (org) Enciclopédia do Cinema Brasileiro. São Paulo: Senac,
refutar os argumentos da namorada que defende um relaciona- 2003.
mento aberto, o que é frontalmente contrário à sua própria • _____________ (org) História do Cinema Brasileiro. São Paulo: Art, 1987
índole. • RAMOS, José Mario Ortiz. O Cinema Brasileiro Contemporâneo, in Fernão Ra-
capa Ou seja, num movimento duplo, em todos esses filmes vemos,
mos (org) História do Cinema Brasileiro. São Paulo: Art, 1987
• RAMOS, Luciano. Os melhores Filmes Novos. São Paulo: Editora Contexto,
de um lado, o esforço pela individuação e, de outro, a cons- 2009.
tatação sartreana de que “o inferno são os outros”. Só em “As • ______________ Um Filme Sério sobre a juventude atual. in Folha de São
Paulo, 15 de abril de 1982
Melhores coisas do Mundo” aparece com mais força a questão da
• ______________ Subvertendo a onda das pornochanchadas. in Folha de São
solidariedade e a consciência de que, mesmo que não haja mais Paulo, 12 de março de 1982

universidade
uma ditadura para combater, os jovens fazem parte de uma co- • _______________ Menino do Rio, apenas uma bobagem colorida. In Folha de
São Paulo, 14 de janeiro de 1982
letividade e também são responsáveis pelos rumos que ela pode
• _______________ Paula, história interrompida. In Folha de São Paulo, 15
tomar. “As Melhores Coisas do Mundo” arrecadou mais de R$ 500 de novembro de 1980
mil em seu primeiro fim de semana. 22 Isso pode significar • SALLES GOMES, Paulo Emílio. Um intelectual na linha de frente. São Paulo:
Brasiliense, 1986.
que o público se ache interessado no que esses personagens
sumário
• ____________ Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. Rio: Paz e Terra,
representam e no que eles têm a dizer. Questionamentos com- 1996

portamentais inéditos, tecnologias (celular, internet) que • SILVA NETO, Antonio Leão. Dicionário de filmes brasileiros. São Paulo:
Edição do autor 2009
revolucionam as relações humanas e obstáculos inesperados
• SOARES, Marisa de Carvalho A História vai ao cinema. Rio de Janeiro: Re-
para a realização pessoal. Os jovens que voltam agora ao ci- cord, 2001.

próxima
nema brasileiro não são os mesmos que sumiram dele nos anos • TODOROV, Svetan. As Estruturas Narrativas. São Paulo: Perspectiva, 1969
• ZANIN, Luiz Orichio. Cinema de Novo: um balanço crítico da retomada. São
90 – e ainda bem...
Paulo. Estação Liberdade, 2003.

REFERÊNCIAS
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Editora da UNICAMP, 2006.
anterior • BERNADET, Jean-Claude. Cinema e História do Brasil. São Paulo: Editora
22 Até julho de 2010, o filme lançado em abril ocupa o segundo lugar nas bilheterias brasileiras, logo abaixo de
“Chico Xavier” (3.409.476 espectadores); “As Melhores Coisas do Mundo” (251.347); “Quincas Berro d’ Água”
(216.008).

90
decifrar vestígios em imagens figurativas, conhecer técnicas
ROTEIRO E HISTÓRIA: FILME de artes, mitos, utopias, alegorias, expressões lingüísticas,
DOCUMENTO OU MONUMENTO abordagens filosóficas, sociológicas, avaliações estéticas.
Enfim, discussões sobre os tipos de mensagem que as iconogra-
fias transmitem, segundo a abordagem da comunicação, métodos
quantitativos, e a perspectiva de que, como a história está
em constante movimento e transformação, as elas também estão
sempre se construindo e reconstruíndo sem perder, o contexto
R osana S chwartz histórico, político, social e mental de sua produção. Roger
A partir da década de trinta do século XX, uma nova con- Chartier (2000), Michel Vovelle (1987) e Baudelaire (2005)
cepção de história cresceu e se concretizou ocupada com al- enfatizam ainda que elas tem papel de instrumento de uma me-
capa gumas especificidades não privilegiadas pela história tradi- mória documental de uma época e trás olhares geracionais. Já
cional. Relatos sobre protagonistas dos grandes fatos e datas Georges Duby (1974) e Carlo Ginzburg (1992) –, que as fontes
perderam importância e qualquer vestígio que retratasse uma visuais, sobretudo as artísticas, apresentam indício legí-
época ou um acontecimento, como o cinema, pintura, fotogra- timo de um tempo, uam mémoria e um espaço histórico, social,
fia, depoimentos e testemunhos passaram a ser considerado político e mental, territorialidades nos quais se percebem
‘fontes’ para historiadores (LE GOFF, 1985). A necessidade
universidade
não só os ditos e não-ditos, como também as permanências e
de problematizar temas pouco trabalhados pela historiografia transformações de um determinado período.
tradicional levou-os a ampliar o universo das fontes. A vida Esses documentos/ imagens são capazes, se analisadas com
privada, o cotidiano, as relações interpessoais, as sensibi- o devido cuidado, de mostrar fatos que a própria sociedade
lidades, experiências, identidades tornaram-se temas da his- queira perenizar. Imagem é uma mensagem não só como imagem/
sumário tória criando uma micro-história, sem perder a dimensão macro monumento ou imagem/documento, mas também como testemunho
e a dimensão social relações sociais. direto ou indireto do passado e do presente. Barthes (2000)
Assim, discutir o uso desses documentos na composição do destaca que a imagem/documento deve ser encarada como docu-
conhecimento histórico e apresentar as principais questões mento, um instrumento de fixação da memória que expressam
teóricas que envolvem a sua compreensão histórica passou a ser
próxima
representações emoção, sensibilidade e ideologia. Além das
uma das principais problemáticas para os historiadores. (BLO- imagens produzidas de forma consciente, existem as de conte-
CH, 1997). Antigas fronteiras e os limites tradicionais foram údo inconsciente, compostas por elementos que ultrapassam as
questionados com a finalidade de superação. (CHARTIER, 2000) intenções de quem realizou e produziu o filme. Essas imagens
e exigiu-se do historiador que ele fosse também antropólogo, podem ser, tanto elementos de ordem individual, quanto ideo-
sociólogo, psicólogo, semiólogo para aprender a desvendar re- logias da sociedade como um todo: contexto social, econômi-
anterior des sociais, compreender linguagens imaginárias, percepções co, político, cultural e religioso de uma época. Tais imagens
mentais, decodificar sistemas de signos e de representações, constituem um aspecto complexo de ser analisado pelos histo-

91
riadores. Marc Ferro (1989) denomina tais imagens de “zonas” de poder, atitudes e mentalidades de um período do passado/
ideológicas não visíveis da sociedade – juízos de valores e presente .
de moral expressos pelas culturas, forma de alimentação, de
vestir, de pensar e de comportamentos –, principalmente quan- Fonte cinematográfica como documento

do contrastado com outros povos ou culturas.


O filme é ideológico e suas significações não são apenas
Diante desse quadro de possibilidades de sentidos, a
de natureza cinematográfica, como foi destacado anteriormen-
História Cultural das Imagens, desdobramento da História So-
te, apresentam testemunho de uma mentalidade, geração, épo-
cial da Arte, emergiu à busca do diálogo entre o olhar de um
ca, cultura e intervenção do aolhar do diretor e roteirista.
passado repleto de presente, abrindo espaço à questão imagem-
Ferro atenta que não são feitos apenas de código cinético
documento para o que realmente importa: a abertura das portas
(imagens em movimento), códigos lingüístico – escrito (le-
para o interdisciplinar (CHARTIER, 2000).
capa
genda), códigos da fala (diálogos dos personagens), código
Entretanto, trabalhar com imagens tornou-se um de-
musical (trilha sonora) e, mas da percepção de um roteiris-
safio ao historiador no sentido de chegar próximo do olhar
ta. (FERRO,1989). Cristiane Nova (2001:37) comenta que o do-
e das subjetividades de quem produziu a imagem, pois assume
cumento filme “apresenta tanto quanto for questionado”. O
funções sígnicas diferenciadas, de acordo tanto com o con-
recorte específico de um momento da História pelos enredos
texto no qual a mensagem é veiculada, quanto de acordo com o
cinematográficos permite ao historiador detectar ideologias,

universidade
local que ocupa no interior da própria mensagem. Estabelecem-
tanto do público-alvo, quanto dos produtores e roteiristas,
-se relações sintagmática, na medida em que veicula um sig-
por isso pode-se classificar todos os filmes como documentos
nificado organizado segundo as regras da produção de senti-
históricos. Entretanto, são categorizados como tais, os co-
do nas linguagens não-verbais, e uma relação paradigmática,
nhecidos como produções que narrativizam grandes acontecimen-
pois a representação final é sempre uma escolha realizada num
sumário
tos da história, como (Reds – Revolução Russa, Rainha Margot
conjunto de preferências possíveis privilegiadas pelo autor.
– Noite de São Bartolomeu, Spartacus – revolta dos escravos
As imagens são históricas e dependem das variáveis técnicas
romanos, Batismo de Sangue – ditadura militar no Brasil). Os
e estéticas do contexto histórico que as produzem e, também,
biográficos ou documentários versam sobre um momento da his-
das diferentes visões, mentalidades e representações de mundo
tória ou a vida de um personagem de destaque (O Velho – Luis

próxima
que concorrem no jogo das relações sociais. Todas essas refle-
Carlos Prestes, Oliver Cromwell – Lamarca, Che Guevara) e os
xões inspiram a uma elaboração analítica de cunho Histórico
de adaptações literárias visibilizam as referencias culturais
em que, sem a pretensão de ser definitiva, vem sendo adotada
que se deseja problematizar ou destacar, (O Guarani, O Cor-
pelos historiadores. Não obstante, Peter Burke (1990) lembra
tiço, Os miseráveis), assim como os de mentalidades de épocas
que o uso da imagem como documento ou monumento histórico deve
(O Nome da Rosa, A Missão). A transposição passado-presente é
ser analisada a partir das circunstâncias da sua elaboração
anterior eresponder: como, quando e por quem foi produzido; pois é fru-
algo recorrente em todos eles, pois quando se vai ao passado
se faz com os olhos do presente e a visão de quem produziu e
to de um contexto histórico, político, cultural e de relações
organizou a ordem, seqüência e importância dos acontecimentos

92
dentro da narrativa também. Vale observar que o filme Alexan- diversos filme recriando a civilização ocidental branca como
dre Nevsky (dirigido por Eisenstein), cujo tema é a invasão superior, legitimando o processo de conquista e a necessi-
da Rússia pelos teutônicos durante o século XIII, apresenta dade de colonizar e civilizar terras distantes e selvagens.
na realidade, as relações e questões históricas da década de Em o Segredo dos incas, Manhunt in the jungle, os habitantes
1930, quando alemães ameaçaram invadir o território russo. do Estado do Mato Grosso aparecem falando espanhol e usando
Invasores de Corpos, que versa sobre o planeta terra sendo trajes semelhantes aos dos peruanos, em Anaconda, a Floresta
invadido por extraterrestres e a tomada do corpo dos humanos Amazônica com inúmeros perigos a serem vencidos pelos heróis
por esses seres, fazendo-os agir como ‘zumbis’ faz alusão im- americanos. Destacam-se também na filmografia norte-americana
plícita ao receio dos norte-americanos para como o comunismo os roteiros sobre os judeus, com enredos sobre o Holocausto
no período da guerra fria. O filme Erik, o Viking, retrata nazista da Segunda Guerra Mundial. Nesses filmes os judeus
acontecimentos da Idade Média dentro das tensões do contexto são apresentados vitimizados, omitindo alguns episódios nos
capa mundial dos anos oitenta do século XX, apresentando o pro- quais foram também algozes – a questão da Palestina moderna
blema da corrida armamentista entre EUA e Rússia e o medo da encontra-se presente.
destruição da hegemonia das duas grandes potencias. A imagem O historiador compara os conteúdos do filme/documento/mo-
dos guerreiros vikings, aparecem corriqueiramente, seguindo numento com o conhecimento histórico, cultural e sociológico
o imaginário social criado e recriado pelas narrativas dis- da sociedade em que o filme foi produzido, geração, percep-

universidade
cursivas e imagéticas sobre a existência de homens enormes ções de temporalidades, roteiro, direção e contexto histórico
usando chifres – o Filme Príncipe Valente, por exemplo, é uma no momento da produção com o tema histórico que ele retrata,
adaptação de História em Quadrinhos homônima e representa a além de outras produções com mesma temática. Os elementos es-
simbologia que se faz dos escandinavos. Já As Bruxas de Sa- téticos – estilo artístico da obra; o caráter subjetivo dos
lem, apresentam a intolerância religiosa do século XVII em modelos estéticos; a linguagem cinematográfica – movimentos
sumário uma alusão metafórica política do presente. (SCHWARTZ, 2010). da câmara, planos, enquadramentos, iluminação, sonoplastia,
Isto posto, conclui-se que o imaginário social deve ser pro- ângulos de análise também são e considerados. Assim, a lei-
blematizado na produção dos filmes, da mesma forma o olhar tura de um filme como documento deve encontrar similitudes e
do roteirista, do diretor e dos artistas de uma determinada representações com os fatos históricos e com a historiografia

próxima
época e geração. Ainda sobre essa questão, vale lembrar que escrita. Isto posto, deixa-se uma reflexão para futuros tra-
nas décadas de quarenta a setenta os filmes apresentavam os balhos sobre a temática: Qual versão da História que se deseja
continentes sul-americano, africano e asiático como um local perenizar?
misterioso, idílico, selvagem, com habitantes exóticos e mui-
to mais atrasados que os europeus, realçando teorias do século Referências Bibliográficas:
XIX enraizadas na cultura norte-americana e européia, de que
anterior
• BARTHES, R. A Câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
os habitantes desses locais eram inferiores culturalmente. O • _____. Retórica da Imagem. São Paulo: Cultrix, 2000.

imaginário social norte-americano sobre o Brasil aparece em • BAUDELAIRE. Le Jeune enchanteur, histoire tirée d’un palimpseste de Pom-
peia. Paris: Édition T.U.L.I.P.E, 2005 .

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São Paul: Brasiliense, 1987.
• WILLIANS, Raymond. Cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

anterior

94
fits with the “calling” and “predestination” preaches of the
SANGUE NEGRO E O ESPÍRITO Reform. The movie There Will Be Blood gives body to Weber’s
DO CAPITALISMO research. Asceticism to work came with Protestantism to fit
the capitalism effort of Daniel Plainview, who is driven not
by religion but Narcissism as described by Richard Sennet and
Christopher Lasch.
Key words: capitalism, Protestantism narcissism, petro-
leum
A ndré L uís G omes T eixeira C osta M enezes Em Sangue Negro (There Will Be Blood – Direção de Paul
Universidade Estadual de Campinas - Aluno de Graduação em Comunicação Social
– Midialogia - algtcm@gmail.com
Thomas Anderson, 2007), Daniel Day-Lewis interpreta Daniel
Plainview, uma personagem forte, que qualquer espectador po-
capa Resumo: deria caracterizar como ambicioso, um trabalhador cheio de
ganância e competitivo; uma personalidade forjada pela cultu-
O capitalismo, desde sua formulação moderna na Revolução ra capitalista. O capitalismo, desde sua formulação moderna
Industrial, vem moldando a sociedade e criando indivíduos que na Revolução Industrial, vem moldando a sociedade e criando
agem naturalmente a seu favor. O “espírito do capitalismo” indivíduos que agem naturalmente a seu favor. Indivíduos que,

universidade
– conforme descrito na obra de Max Weber – se beneficiou da ao nascerem imersos em tal cultura, e sem um questionamento
Reforma, aproveitando-se da pregação na “vocação” e na “pre- básico, podem chegar a crer que muitas crenças e aspirações
destinação”. Em Sangue Negro, protagonista e antagonista es- são naturais, intrínsecas, ao ser humano, quando na verdade
pelham e corporificam o estudo de Weber. A ascese pelo traba- são convencionadas historicamente por uma seleção de costumes
lho do protestantismo que religiosamente transforma em pecado que age sobre a cultura. O capitalismo, que também usa dessa
sumário a perda de tempo fora do trabalho se encaixa perfeitamente no seleção, criou personalidades como a de Plainview, mas, do
fazer capitalista de alguém como Daniel Plainview, movido, no mesmo modo, criou cada uma de nossas personalidades pessoais
entanto, não pela religião, mas pela vaidade narcisista des- e por estarmos imersos na mesma cultura capitalista, é mais
crita por Sennett e Lasch. fácil enxergarmos diferenças entre Plainview e qualquer homem

próxima
Palavras Chave: capitalismo, protestantismo, narcisismo, do século XXI do que semelhanças. Mas elas existem, maqui-
petróleo ladas pelos métodos de dominação que, no entanto, mantêm o
mesmo objetivo desde o início. A questão não é somente colo-
Abstract: car à prova o sistema capitalista, mas entender como a ação
evolutiva do método de incentivo ao trabalho possibilitou,
Capitalism, since its modern acceptation during the Indus-
promoveu e mantém o sistema.
anterior trial Revolution, transforms societies creating individuals
A idéia de “espírito” é abstrata, e por isso mais fácil de
that naturally behave for the good of capitalism. The “spirit
ser manipulada no conceito, aqui posto, de condição metódica
of Capitalism” – as described in Max Weber’s writing – pro-

95
da vida de todo dia – de cultura. Espírito é incorpóreo, porém função do trabalho, e não o contrário, numa inversão da ordem
agente ativo ou inspirador no mundo corporificado. Imersos causal, é apontado, por Weber, como o Leitmotiv do capitalis-
no sistema capitalista, os sujeitos são inocentados de seus mo. Apesar dos reformadores da religião não intencionarem uma
atos, na medida em que a culpa é do espírito, tornando mais reforma ética, ela acabou se plantando imprevistamente, e não
cômoda a discussão genérica dos aspectos da vida, em detri- raro, passivamente pelo indivíduo não religioso.
mento do que das ações históricas pontuais. Max Weber se vale O espírito do capitalismo se beneficiou da Reforma, prin-
dessa facilidade e escreve A Ética Protestante e o Espírito cipalmente, aproveitando-se da pregação da “vocação” e da
do Capitalismo no início do século XX, mesma época dos acon- “predestinação”. O conceito de vocação de Lutero – pelo qual
tecimentos de Sangue Negro. Weber parte da constatação de que ele ensina o cristão a cumprir os deveres do mundo como sendo
é predominante, em sua época, entre operários e empresários os deveres propostos por Deus –, apesar de ainda atrelado ao
capitalistas, o caráter protestante. Como a ganância (ou, em tradicionalismo sendo avesso à ostentação e ao acumulo de ri-
capa seu tratamento teológico, a auri sacra fames, emprestada de queza, cria a doutrina da ascese para o trabalho. Ascese é, em
um verso de Virgílio) é tão velha e presente na história da sentido puro, o controle austero e metódico do próprio corpo
humanidade não é possível acusá-la de “tomar partido” numa com a evitação do sono, da comida, da fala, do sexo e outros
doutrina religiosa. É fato que certas minorias que se vêem prazeres mundanos. Enquanto a ascese católica estava liga-
dominadas tendem a ser impelidas para as atividades aquisi- da a vida monacal, uma vida extramundo de produção puramente

universidade
tivas, mas de forma específica, como conta Weber, os protes- teológica, a luterana estava presente no mundo e em função
tantes têm agido dessa forma mesmo enquanto dominados ou do- do trabalho. O cristão devia aceitar seu trabalho e nele se
minantes, o que faz com que sua pesquisa seja voltada para as esforçar, garantindo assim sua salvação na boa-aventurança,
razões intrínsecas e duradouras de cada religião protestante, a felicidade eterna no céu. Para Weber, a obra religiosa de
e não por sua situação histórico-política. Lutero não teria perdurado senão pelo calvinismo, e o capita-
sumário A gênese do protestantismo parte da Reforma de Lutero na lismo só teve a ganhar com a pregação da “predestinação” por
religião católica, até então dominante sobre os modos de agir Calvino: o estado de graça é imutável, todo homem nasce já
do ocidente. Passa pelos tratamentos de Calvino, e uma conse- salvo ou condenado. Antes de causar conformação – como seria
qüente diáspora de sua doutrina em muitas novas igrejas, que de se esperar diante de uma situação divinamente imutável – o

próxima
pregavam formas de agir muito mais condizentes com o viver cristão passa a agir numa constante avaliação de seus atos,
capitalista. Weber conta que os indivíduos do pré-capitalismo não em favor de sua salvação, mas para dissipar a dúvida de es-
preferiam trabalhar menos e ganhar o mesmo abono de sempre ao tar condenado ou salvo. As obras do homem, incluindo o sucesso
invés de aumentar seu salário trabalhando mais. Esse é o cha- no trabalho, são os meios de comprovar a boa-aventurança e
mado “tradicionalismo econômico”. O que o capitalismo busca- cumprir a tarefa dogmática do cristão eleito: fazer crescer,
va – e hoje já possuí – eram indivíduos que tivessem o ganho no mundo, a “glória de Deus”. O calvinismo só teme a riqueza
anterior como finalidade de vida, o ganho com fim em si mesmo e não no que concerne ao deixar-se tomar pelo ócio e pelo prazer
em função das necessidades de sobrevivência. O indivíduo em carnal, pois tais atitudes não fazem crescer Sua glória. Mas,

96
uma vez não associada a esses “pecados anti-ascéticos”, a ri- avidamente contra o gozo descontraído das posses (o luxo, a
queza é sinal de que o cristão responde à sua vocação e está ostentação, o esporte, a arte, etc.), o protestantismo teve
predestinado a boa-aventurança. o efeito psicológico de desprender o enriquecimento dos en-
Retornando ao filme, lembremos de Eli Sunday, personagem traves da ética tradicional, liberando o lucro como sendo
interpretada por Paul Danno. Eli é um pastor de sua própria diretamente querido por Deus. De certa forma, agora, o agir
“Igreja da Terceira Revelação”, uma igreja genérica, de dog- mundano do indivíduo protestante assemelha-se à apoteose de
mas difusos e superabundante em teatrismos. Podemos usufruir Adam Smith sobre a divisão do trabalho: especializar-se numa
um pouco de sua pregação nos momentos em que Eli se dirige profissão (vocação), leva ao incremento quantitativo e qua-
ao pai: “You’re lazy, and you’re stupid. Do you think God is litativo (sinais de boa predestinação) do rendimento do tra-
going to save you for being stupid? He doesn’t save stupid balho e serve, portanto ao bem comum (ou seja, à glória de
people, Abel”. E em seu sermão: “The doctrine of Universal Deus). A ascese pelo trabalho começa sua trajetória pelo fa-
capa Salvation is a lie, is it not? It’s a lie”. Apesar de fictí- zer religioso, transformando em pecado a perda de tempo fora
cia, a igreja pode ser caracterizada utilizando-se da acep- do trabalho, mas continua mesmo sem a religião, em prol do
ção inquestionável de um dogma. A salvação, pela pregação de próprio sistema econômico.
Eli, está ligada aos atos de aceitar o “sangue” e “não ser Fica mais claro entender, agora, que durante a coloniza-
tolo”, não sendo mencionado nada sobre o trabalho ascético. ção estadunidense, o espírito capitalista esteve muito menos

universidade
Mesmo com a adaptação do título para o português, o “sangue” desenvolvido nas colônias sulistas, de caráter mercantil e
mantém uma importância crucial. O sangue é o que há de comum, exploratório, do que na Nova Inglaterra, fundada por razões
no filme, entre trabalho e religião; é o vocábulo comum para religiosas. O sul, apesar das motivações mercantis estava
petróleo e batismo, mas é também um conceito em comum para o preso ao tradicionalismo econômico, e ao sistema patriarcal
sacrifício. Aceitar o sangue é viver em favor do sacrifício, de conduta. Mas o espírito libertário do norte, no entanto,
sumário como o qual se submete Plainview diante de Eli, em favor de não estava livre de um paradoxo: a pregação na ascese pro-
seus objetivos, e se submete Eli diante de Plainview, em fa- testante do trabalho substituía a dominação cômoda de um Deus
vor dos objetivos (supostamente) de Deus. A disputa entre os indulgente (que até na mendicância via a oportunidade se ser
dois, afinal, é para descobrirmos qual sangue deve prevalecer agradado) – pregada pelo catolicismo do velho mundo – pela

próxima
(num conflito onde “Haverá Sangue” – do título original). Se regulamentação séria dos fazeres, penetrando em todas as es-
se trata de uma alegoria não é a questão, mas o filme sugere e feras da vida pública e íntima, na incessante comprovação da
Weber profecia, nas últimas páginas d’A Ética, que o estilo de predestinação. Enquanto o sistema capitalista canalizava o
vida dos indivíduos que nascem na engrenagem capitalista não esforço protestante para o trabalho, o indivíduo se sentia
mudará até que cesse de queimar a última porção de combustível cada vez mais só, pensando somente em sua própria salvação,
fóssil, e assim vem sendo (WEBER, 2005, p. 165). sem a ajuda de ninguém além de si mesmo. Nenhum pregador, sa-
anterior Os modos protestantes de conduta em relação ao trabalho cramento, igreja, ou mesmo Deus, poderia mudar seu destino.
foram transferidos para a conduta ética geral. Mesmo sendo O sistema de crédito católico (pecado, arrependimento, peni-

97
tência, alívio, pecado) apostava que o ser humano não era um Uma complexa rede de interdependência de acontecimentos
todo unitário, mas sujeito a motivos conflitantes, refletidos aparece em O Declínio Do Homem Público, de Sennett, culmi-
em comportamentos contraditórios. A nova crença, posta pelo nando na cultura narcisista. Sennett parte sua narrativa do
protestantismo, deixou o homem involuntariamente exposto, sem século XVIII, com a Revolução Industrial e aumento constante
refúgio nem mesmo em sua própria mente. da população urbana. A cidade, enquanto meio de inevitável
Daniel Plainview por certo não é motivado por religião encontro com o estranho, e no esforço de evitar a espontanei-
alguma; na época em que se passa o filme, o capitalismo já dade desse encontro, cria códigos de conduta que sinalizavam
havia se livrado da dependência do protestantismo, sendo as facilmente o posicionamento social do indivíduo, ao mesmo
estatísticas que problematizaram o estudo de Weber, conforme tempo em que permitiam que todos pudessem se comunicar com
aponta ele mesmo, conseqüências de um tempo anterior (WEBER, distanciamento. Durante o século XIX, o êxodo para a cidade
2005, p. 30). O tipo ideal de empreendedor capitalista – Weber foi muito mais traumático, assim como a industrialização. Ao
capa caracteriza eventualmente – é audaz e ponderado, sobretudo mesmo tempo em que mais coisas grandiosas aconteciam na cida-
sóbrio e constante, sagaz e inteiramente devotado a causa. de, mais passiva passava por elas a população. Os indivíduos
A boa manutenção do ascetismo na devoção ao trabalho acaba, reprimiam a expressão de sentimentos, pois os códigos agora
pois, relevando a segundo plano a devoção à religião. O que estavam diretamente ligados a personalidade íntima. O século
faz o empreendedor mais ideal agir, se não diretamente hos- XX só veio consagrar esse secularismo intimamente ligado à

universidade
til à igreja, com certeza indiferente a ela. Sem surpresa, personalidade. Com suas revoluções em prol da livre expres-
Plainview assemelha-se à descrição, mas ainda, ela é insu- são e do livre amor, prendeu seus indivíduos no fato de que
ficiente somente à partir de Weber. É interessante pensar o necessitam estar sempre se expressando sinceramente e emo-
quanto A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo de We- cionalmente, mesmo quando agem em favor do que é público. O
ber ilustra o filme Sangue Negro, pelas abordagens teológicas narcisismo, em Sennett, é o oposto do amor-próprio, pois se
sumário e trabalhistas presente em ambos e pela época histórica em origina não no culto à personalidade, mas em seu colapso: a
comum. Mas, ainda mais atraente é perceber o quanto o filme dissolução dos códigos de expressão em público – a crescente
é ilustrativo do mundo atual, por recriar também o espírito crença de que a formalidade e a polidez são sinais de impesso-
do capitalismo como sentimos hoje. O que há em comum entre alidade e apatia – deixa nua a personalidade individual para

próxima
Daniel Plainview e o homem contemporâneo, já vinha sugerido ser, involuntariamente, julgada pelo outro. Os indivíduos só
religiosamente, n’A Ética, como “solidão” e “falta de refú- conseguem se expressar por meio de impressões e sentimentos
gio”. Em teoria mais recente, é apresentado como um aspecto pessoais, ou preferem não fazê-lo. O homem que age em público,
predominante de formação psicológica de personalidade do in- o artista, o político, fica suscetível a assumir o papel de
dividuo contemporâneo. É o “narcisismo”. Investigar como o “personalidade ideal” que pode ser imitada ou admirada, como
capitalismo se apropriou do narcisismo, explica também como um modelo de personalidade. E a busca pela definição de uma
anterior este chegou a se tornar “a ética protestante dos tempos mo- personalidade própria passa então a ser formulada e testada a
dernos” num aforismo de Richard Sennett. todo o momento, da mesma maneira em que a fé calvinista tes-

98
tava o predestinado. de outros narcisistas.
Em seu discurso público, Daniel Plainview utiliza-se de Em A Cultura do Narcisismo de Christopher Lasch, a proble-
certa polidez, mas não está dissociado da cultura do narci- matização centra a falta de interesse pelo passado e pelo fu-
sismo. “I dare say some of you might have heard some of the turo criando uma “sociedade terapêutica”, onde cada indivíduo
more extravagant rumors about what my plans are. I just thou- só busca pela paz em sua própria vida no presente, desconside-
ght you’d like to hear it from me... This is the face, it’s rando os outros indivíduos tanto quanto as gerações futuras.
no great mystery... As an oil man I’d hope that you’ll for- Ligar, por exemplo, as intenções de Plainview ao bem social
give just good old-fashioned plain speaking”. O caráter de é um equívoco, depois de já termos descoberto seu ódio pelos
Plainview é julgado, pelos cidadãos, através de sua conduta homens e seu desejo de clausura. O que se dá é que Plainview
íntima, sua aspiração pessoal; a qual Plainview expõe sem he- age incitando o desejo de conforto terapêutico, e age de forma
sitar, pois sabe exatamente o que a população deseja ouvir populista sem o desejo de admiração ou apelo popular. Lasch
capa para que lhe dê crédito, e se esforça para ligar sua persona- chama isso de “paternalismo sem pai”. O capitalismo, enquan-
lidade àquela que se preocupa com o bem social – a educação to aparentemente igualitário e antiautoritário, rejeita a
e a vitualha – conseguindo aprovação pela exploração do solo. hegemonia da sociedade patriarcal – como os sacerdotes e os
Quando Plainview acolhe seu desconhecido irmão sua fala monarcas – mas a substitui pela corporação comercial, que é,
é “Having you here gives me a second breath”; é o único mo- por sua vez, operada por uma classe, que, por não possuir (ou

universidade
mento do filme em que Plainview se apóia em outrem, como que talvez por omitir) as características básicas uma classe do-
saindo um pouco de sua profunda solidão. É nesse momento que minante – os muitos hábitos de comando – não é notada enquanto
podemos confirmar algumas impressões quanto a sua personali- classe. Os dominantes do capitalismo atual oferecem os meios,
dade, pois somente nesse momento, intimamente, é que ele se a educação, a saúde, a infra-estrutura, mas não acreditam na
abre para acabar revelando seu mais forte narcisismo em “I manutenção dos mesmos: incentivam o povo a trabalhar e correr
sumário see the worst in people” e ascetismo em “I have a competition atrás de seu próprio sucesso, para não “perder tempo” recla-
in me”; ou então, numa única sentença: “I want to earn enough mando do status quo.
money I can get away from everyone”. Enquanto Weber creditava Os indivíduos narcisistas, como na fábula grega, tomam o
a criação do ascetismo para o trabalho à ética do protestan- mundo por espelho, e só se identificam com o outro, se en-

próxima
tismo, Sennett aponta que o narcisismo age em favor do mes- contrar nele algo de si. Nada mais exemplar do que pensar a
mo ascetismo, pois ambos funcionam da mesma forma: adiam a conquista do Oeste americano: a região, ainda selvagem, cau-
gratidão tendo impulsos voltados para o interior, e sujeita sava ou medo de um retorno ao passado e a selvageria – e vale
o indivíduo à constante auto-inspeção. O asceta protestante lembrar que Lasch mostra que o sujeito narcisista despreza o
aguarda a boa-aventurança, o asceta narcisista prefere acu- passado – ou a promessa de uma terra ainda virgem para ser
mular riqueza. O protestante para testar sua predestinação, o modelada. O resultado foi ódio e violência extravasada contra
anterior narcisista para testar seus interesses e formular sua perso- os nativos das terras. Sujeitos responsáveis por esse tipo
nalidade. O protestante diante de Deus e o narcisista diante de resposta – escassa alternativa para modificação do status

99
quo – são pessoas que ergueram tantas barreiras psicológi- lação de consumo mantém a si mesma, na medida em que deixa o
cas contra emoções fortes e impulsos proibidos que deixaram consumidor perpetuamente insatisfeito, ansioso e entediado. O
de se permitirem ao desejo. Criam em si ódio como conseqüên- tipo ascético de indivíduo, no entanto, não altera sua posi-
cia desse esforço contra o desejo e, numa armadilha precisam ção narcisista, pois os frutos do consumo são objetos idéias
criar mais barreiras para conter o ódio. Violência contida é para manutenção da constante expressão do eu. A mudança da
uma evidência da personalidade narcisista que Lasch aponta em ênfase da produção para o consumo, aliada ao surgimento de
nosso tempo: apesar de aparentemente tranqüilo e tolerante, grandes corporações, e o crescimento da hostilidade da vida
considera a todos, primeiramente, como rivais. A necessida- social, transformam o mito do “sucesso”: se muito anterior-
de de uma conceituação teórica do narcisismo é que, apontá- mente, o que desejava o asceta era a boa-aventurança, o capi-
-lo simplesmente como o que é egoísta e desagradável, não é talismo já havia a muito canalizado os esforços para o acu-
condizente a sua especificidade histórica atual. Para Lasch, mulo de capital e a ostentação; a nova idéia de sucesso, no
capa não se tratou de modificar termos ou descobrir um novo adje- entanto, está menos preza ao capital e mais ligada à imagem.
tivo, mas perceber que as mudanças de atitudes derivam e fa- É necessário portar-se como um vencedor, criar uma reputação
zem derivar aspectos variados da cultura como a burocracia, e um ímpeto de vencedor. Afinal, condizendo com a sociedade
o uso da imagem, o culto ao consumismo, a inflação das dou- narcisista, o julgamento estava colocado nos olhos do outro.
trinas terapêuticas, a estrutura familiar, o envelhecimento, Se lembrarmos agora de Weber comentando as orientações para

universidade
o sentir individual e o agir público. Em todas essas formas tornar-se rico de Benjamim Franklin, lembraremos que ele nota
modificadas da cultura, agora age também o espírito do capi- que todas as suas advertências morais são de cunho utilitá-
talismo, pois elas estão ligadas intimamente ao narcisismo. rio, e “se uma aparência de honestidade faz o mesmo serviço
Com transposição da ascese para a ética do trabalho, e com [que as próprias ações de honestidade], é o quanto basta” e
os esforços de destruir as convenções de conduta em público, seria um “desperdício improdutivo” o “excesso desnecessário
sumário as estruturas de dominação permanecem, mas agora sob termos de virtude” em realmente ser honesto (WEBER, 2005, p.43-66).
psicológicos. Tal interpretação funcionou na época do início do século XX
Vimos com Sennett que o narcisismo cria uma ascese no tra- baseando-se na diferenciação entre o agir público e privado,
balho livre de restringimentos culturais. Agora com Lasch, mas funciona ainda hoje se apoiando na mudança sobre a idéia

próxima
entendemos um acréscimo nesse agir: o narcisista não só está de sucesso, e a formação de uma sociedade de imagens.
disposto ao trabalho como pronto para ser transformado num, Sangue Negro em si é um fruto dessa sociedade. A forma do
além de produtor, ávido consumidor. Uma vez que a economia filme de Thomas Anderson é executada com muita pompa; música
desenvolveu tecnologia suficiente para a satisfação das ne- e fotografia construindo sentido tanto quanto as falas e as
cessidades básicas, o espírito capitalista passou a educar as atuações. O protagonista é quem leva a narrativa (na chamada
massas trabalhadoras, através da publicidade, criando assim character driven story), e seu estado de espírito é refle-
anterior a sociedade do espetáculo – com o empréstimo do termo de Guy tido na fotografia do filme: taciturna, de muitas silhuetas
Debord –, onde o consumo é subordinado à aparência. Essa re- e sombras. Mesmo nos momentos em que a luminosidade concebe

100
maior definição à imagem e ao protagonista, a música perma- trando formas cada vez mais brandas de manter seu domínio. A
nece tensa suscitando o mau pressentimento, tornando Sangue operação dessas forças, quase invisíveis, é exeqüível devi-
Negro um filme “desconfortável” por excelência (desconforto do, atualmente, ao narcisismo, como expressão psicológica de
que é transformado em “suspense” e “drama” pela indústria ci- uma dependência. Pessoas com personalidades narcisistas, não
nematográfica, fazendo do filme um sucesso). Muito se falou mais numerosas que antes, agem num papel proeminente da vida
do “mal-estar moderno”, uma onda de pessimismo e de descrença contemporânea, enquanto celebridades que inspiram a vida das
na política e no engajamento social. Na sociedade do narci- massas, tanto a vida pública como a privada – devido mesmo
sismo, as relações de trabalho, assim como as relações pes- a confusão dessas esferas. Outras pessoas, também narcisis-
soais, também passam a ser manipuladas emocionalmente, pela tas, só fazem se preocupar com a caracterização de sua pró-
busca de vantagens competitivas que orientam ao sucesso. Como pria personalidade, ou com o medo de caracterizá-la. Estando
tudo na vida passa a depender da manipulação psicológica, as imerso na constante dúvida, insatisfação e constante promessa
capa relações pessoais tornam-se um jogo de intimidação e sedução. de melhoria, o sujeito adota para si um conflito psicológico
Nesse jogo, Plainview constantemente manipula suas ações, que cria o mal-estar moderno. A imprecisão do posicionamen-
como quando convence sua platéia e quando intimida seus con- to pessoal em público, a imprecisão da estratificação social
correntes. O infortúnio desse tipo de relacionamento é que e da classe dominante nesse paternalismo sem pai, a cultura
ele tende intrujar o próximo, não poupando nem mesmo a ins- do consumismo, a idealização de uma personalidade perfeita e

universidade
tituição familiar. O indivíduo que não mais crê no gozo da a impossibilidade de fechamento na própria personalidade, a
pós-vida, tende a almejar a eterna juventude na terra. Lasch violência contida, e o incessante jogo de sedução e intimi-
completa que esse indivíduo cuida de não mais se reproduzir, dação são, todos, pontos fracos da personalidade narcisista
temendo a perspectiva de ser substituído. O que nos faz lem- de hoje.
brar a seqüência de Sangue Negro em que Plainview, afloran- Na mesma época em que Sennett e Lasch escreviam sobre os
sumário do novamente seus impulsos mais agressivos, devido à contida perigos do narcisismo que agia hegemonicamente, outros pen-
raiva, revela esse tipo de ação anti-familiar narcisista na sadores davam boas-vindas à nova era. Tom Wolfe – citado por
rejeição de H.W. como filho. A questão não é se as persona- Lasch – chegou a chamar o novo narcisismo de “Terceiro Grande
gens possuem laços ou não, mas antes que, a paternidade em si Despertar”, o que ativa a imaginação para pensar numa ale-

próxima
é como uma autodestruição, pois a seguinte geração substitui goria. Lembremos da seqüência final de Sangue Negro, quando,
a anterior. Para Plainview, enquanto asceta, então, ver H.W. passando-se anos, Eli visita o velho Daniel em sua mansão. “I
como concorrente profissional, é tão pior quanto. am the Third Revelation”, brada Daniel, antes do sacrifício
O sistema que tem o ganho como um fim por si só nunca de Eli. Afinal quem se apossou da revelação – no sentido de
existiu, tudo que o capitalismo mais deseja é crescer, mas, descobrir, mostrar e expor – foi o capitalismo, enquanto do-
para o homem, tal atitude não é natural, só sendo executada minador do narcisismo: a personalidade exposta. O capitalismo
anterior ainda hoje por sucessivos toques desse espírito em motivações acaba com a dominação religiosa, mas surge outra muito mais
cada vez menos ocultas. O espírito capitalista vem encon- oculta e, não raramente, mais voluntária, enquanto enganosa-

101
mente arbitrária. Assistir Sangue Negro não é uma experiên-
cia de transporte onírico, mas de enfrentamento, de continua
exposição de feridas escondidas da sociedade ocidental. (Não
é a toa que a igreja do filme é puramente fictícia, sem pro-
fundidade doutrinaria, pois, como fica claro na seqüência fi-
nal, inclusive Eli possuí motivações puramente narcisistas.)
Sangue Negro se distancia em alguns modos de agir da atua-
lidade, porém para manter escondido, na mesma proporção, a
mesma motivação narcisista que está atualmente permitindo os
indivíduos serem consumidos pelo espírito capitalista.

capa Referências bibliográficas:

• DARGIS, Manohla. An American Primitive, Forged in a Crucible of Blood and


Oil. Disponível em < http://movies.nytimes.com/2007/12/26/movies/26bloo.
html> Acesso em: 18 jun. 2008.
• LASCH, Christopher. A Cultura do Narcisismo: A Vida Americana Numa Era de
Esperanças em Declínio. Imago Ltda: Rio de Janeiro, 1983.
• SANGUE Negro. Direção: Paul Thomas Anderson. Produção: Paul Thomas Ander-

universidade
son, Daniel Lupi, JoAnne Sellar. Roteiro: Paul Thomas Anderson. São Paulo:
Buena Vista, 2008. 1DVD (158 min).
• SENNETT, Richard. O Declínio do Homem Público: As Tiranias da Intimidade.
Schwarcz Ltda: São Paulo, 1994.
• WEBER, Max. A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo. Companhia
das Letras: São Paulo, 2005.

sumário • WERNECK, Alexandre. Sangue Negro. Disponível em <http://www.contracampo


.com.br/90/critsanguenegro1.htm> Acesso em: 18 jun. 2008.

próxima

anterior

102
capa
PROCESSO
CRIATIVO:
MÉTODOS;
universidade

ESTILOS;
sumário

próxima
ELEMENTOS
anterior
NARRATIVOS
103
se detenha sobre a questão de maneira mais elaborada. Para o
A QUESTÃO FONÉTICA DO presente artigo, proponho-me a fazer algumas observações en-
DIÁLOGO NO CINEMA volvendo apenas a questão fonética na criação dos diálogos.
Só para focar num exemplo inicial, o ritmo não é algo na-
turalmente intuído pelo escritor. Analisando os estudantes
de música, por exemplo, mesmo aqueles que tocam instrumentos
melódicos e harmônicos, é comum notar que ele iniciam seus
estudos com a questão do ritmo musical, geralmente fazendo os
A na C ristina P aul exercícios propostos pelo método Pozzoli no seu famoso cader-
Roteirista, Associação dos Roteiristas
ninho laranja.
Há alguma maneira de se transferir musicalidade para a
capa Resumo escritura de diálogos? Primeiramente, é necessário fazer uma
observação que norteia esse artigo. Muitas das teorias aqui
Introdução sobre a questão fonética para a elaboração de
presentes se aplicam exclusivamente à língua portuguesa e po-
diálogos em roteiros de audiovisual, atentando para as ques-
dem não se adaptar perfeitamente a outros idiomas. O portu-
tões psicológicas e dramáticas que cada tipo de som pode cau-
guês é uma língua tônica, ou seja, as palavras são divididas
sar, além de analizar o trabalho vocal do ator, evitando con-

universidade
em sílabas com diferentes intensidades. Toda palavra gramati-
juntos de sons que tornem complicada a pronúncia.
cal em português tem uma sílaba pronunciada de maneira mais
Palavras – chave: Diálogo; Som e questões dramatúrgicas;
forte. Há algumas palavras, geralmente mais longas, que têm
Ator e fala
também sílabas subtônicas, como é o caso do “fe” de cafezinho.
Muito criticada e pouco estudada, a elaboração de diá-
As demais sílabas são átonas, de pronúncia mais tímida. Além
logos com ritmo e fluidez tem sido uma questão muito cara à
sumário confecção de roteiros de cinema. Os próprios livros e manu-
disso, algumas palavras não gramaticais monossilábicas, como
artigos e preposições, costumam ser átonas.
ais voltados à escrita de roteiro não sabem como tratar dessa
Em qualquer frase falada se pode fazer um desenho musical,
questão e reproduzem conceitos sem nenhum grau de aprofun-
transferindo numa espécie de partitura a melodia sugerida pe-
damento, como por exemplo: “o diálogo deve levar a ação para

próxima
las tônicas, subtônicas e átonas. A tônica da palavra pode ser
frente”, “o diálogo deve ter ritmo e ser curto e direto”.
naturalmente prolongada, dando ênfase à palavra. As subtôni-
Muitas vezes, inclusive, é possível encontrar afirmações sem
cas e as átonas só podem ser prolongadas se todas as sílabas
nenhuma explicação mais coerente, como “não faça diálogo com
forem enfatizadas. Podemos dizer “Marceeeeeeeelo” ou “Maaaar-
mais de três linhas”.
ceeeeloooo”, porém, ao dizer “Maaaaaarcelo”, estamos tornando
Muitos desses autores consideram a questão da escrita de
a palavra proparoxítona e dificultando até a sua compreensão.
anterior diálogos como um talento natural e espontâneo, ou, numa vi-
As tônicas são altas e chamam a atenção do ouvinte. Num
são um pouco mais flexível, como o reflexo de uma aguçada
diálogo que se queira justamente esse efeito, a presença de-
observação do cotidiano. Porém, é muito raro encontrar quem

104
las é indispensável. Por conta disso, é muito mais plausível seria totalmente impossível gritar “pppppppppai”. Com o som
encontrar um diálogo em voz alta de uma frase como “cê taí?” do “p” é impossível ocorrer uma maior extensão.
do que um com características mais átonas e fracas como “se Contudo, é necessário fazer alguma diferenciação entre as
escondeu?”. Por outro lado, frases com abundância de átonas consoantes. Peguemos como exemplo o “p” e o “b” em palavras
podem colaborar para esse efeito de pessoa que fala para si como “papá” e “babá”. O “p”, como acabamos de ver, não pode
mesma, como um comentário interior. ser prolongado, mas é possível segurar o “b” vibrando um tempo
Apenas as vogais podem ser prolongadas numa frase ou pa- maior entre os lábios. O “p” é, portanto, um som seco e direto
lavra. Foneticamente, a vogal se caracteriza como um som e o “b” um som de característica um pouco mais grave. Às con-
proferido sem qualquer obstáculo de algum dos componentes soantes secas se dá o nome de surdas e aquelas que podem ser
do aparelho fonador. A consoante, por outro lado, necessi- prolongadas se chamam sonoras. Se a proposta do roteirista é
ta de interrupções envolvendo as partes bucais, palatais ou criar um diálogo lento, a adoção dessas consoantes sonoras
capa da garganta. Como a vogal não sugere dificuldades para a sua pode ser um bom caminho. Por outro lado, diálogos incisivos
execução, pode ser pronunciada com uma duração bastante de- e cortantes ficam bem favorecidos com a adoção das consoantes
morada, se for o caso. As músicas cantadas, particularmente, surdas. De qualquer maneira, a adoção maciça de consoantes de
exploram muito bem essas possibilidades. Além disso, a vogal um único tipo gera cacofonia, estranheza ao ouvido e até mes-
é o som mais imediato que se pode produzir em qualquer situa- mo grande dificuldade ao ator para pronunciá-las. Um diálogo

universidade
ção, já que não necessita de muita articulação. Não por outro como, por exemplo, “passa a faca, Teca” parece, à primeira
motivo gritamos “ai” e não “que dor” quando somos vítimas de vista, simples, espontâneo e coloquial, mas tem uma sonori-
algum acidente. Pela mesma questão, é muito mais fácil gri- dade extremamente desagradável por ser constituído única e
tar um “ei” longo e alto para chamar a atenção de alguém que exclusivamente de consoantes surdas.
está longe, e não o próprio nome da pessoa. Em português, a Ainda na questão das consoantes existem outras classifi-
sumário grande maioria das interjeições é vocálica e servem como uma cações que podem ser feitas, de acordo com o pitch de cada
tentativa de câmbio e estabelecimento de contato. Gritar “ei, uma delas. Cada consoante atinge uma altura diferente, o que
Marcelo!” é bem mais eficiente do que simplesmente “Marcelo!” pode ajudar muito na criação de climas psicológicos para os
numa proposta de estabelecer comunicação. Contudo, se a pro- diálogos.

próxima
posta da cena é justamente a contrária, de criar diálogos en- De maneira em geral, o som mais neutro e mediano que pode
tre personagens que tem dificuldades porque não se comunicam existir é o som do “l”, conhecido como líquido ou lateral.
direito, o trabalho com menos sons vocálicos e mais sílabas Trata-se de um som bastante espontâneo e independente, sem
átonas pode ser uma boa saída. características mais fortes ou marcantes. Não por outro moti-
As consoantes, ao contrário das vogais, demandam alguma vo, foi adotado como refrão de músicas em “lá-lá-lá”.
obstrução e não podem ser prolongadas por muito tempo, já que Um estudo mais particularizado deve ser feito sobre a
anterior demandam de maiores recursos no aparelho fonador, que fica questão do “r”, até mesmo por envolver variantes regionais
estressado nessas tentativas. Podemos gritar “paaaaaaai”, mas e geográficas. Extremamente flexível, o “r” costuma ser um

105
forte indicador de origem da pessoa. Além disso, algumas pro- palavras existentes e conhecidas) e a questão fonética (efei-
núncias do “r” podem sugerir afetação e esnobismo, como uma tos psicológicos que o som pode produzir).
tentativa de reproduzir o “h” aspirado de outros idiomas como Nelson Rodrigues escreveu várias de suas peças em um pe-
o inglês. Dada a versatilidade de pronúncias, não cabe aqui ríodo que o uso de palavrões não era bem aceito, mas os subs-
nesse breve estudo apontar todas as diferenças existentes. tituiu em seus diálogos por palavras constituídas por conso-
Para tornar esse artigo mais compreensível para pessoas antes plosivas. Desse modo, um palavrão mais espontâneo era
que não dominam o alfabeto fonético, tomo a liberdade de ado- substituído por “batata”, palavra como três plosivas usada
tar, na medida da possível, as representações ortográficas como interjeição com o mesmo efeito.
normais do alfabeto utilizado para a escrita da língua por- Os sons nasais são compostos pelos sons de “m” e “n” e
tuguesa. apresentam sensações de dúvida e indecisão. Além disso, ca-
As consoantes plosivas são aquelas que atingem um pitch racterizam também os momentos em que o personagem pode estar
capa extremamente alto. São os sons das consoantes “p”, “b”, “t”, pensando antes de dar uma resposta mais refletida e defini-
“d”, além dos fonemas [k] e [g], o que compreenderia os sons tiva. É um som mais grave e menos alto, pode ressoar também
de ca, que, qui, co, cu e ga, gue, gui, go, gu. “P”, “t” e como uma voz interior, aquele diálogo que não pretende ser ou-
[k] são as possibilidades surdas e as demais são sonoras. As vido. Algumas palavras, como “murmúrio” e “melancolia” estão
consoantes plosivas passam uma impressão psicológica de ner- totalmente imbuídas desse clima. Alguns sons como “hmmmmm” ou

universidade
vosismo, rispidez, podendo ser usadas também em momentos de “mmmmm” seguem o mesmo princípio.
descontrole, violência, xingamentos ou atitudes mais autori- Por último, temos todo o conjunto das consoantes fricati-
tárias. Não vou reproduzir aqui os palavrões mais famosos do vas e africadas, constituídas por sons de “f”, “v”, “s”, “z”,
nosso idioma, mas todos eles contêm uma ou mais consoantes “ja”, “ge”, “gi”, “jo”, “ju, “x”, além de algumas pronúncias
plosivas na sua composição. Por ser extremamente alto, o som regionais de “t” reproduzidos pelo fonema [tS]. Esse conjun-
sumário plosivo é agressivo e fere o ouvido. to de sons é mais arrastado, praticamente chiado, produzindo
Cabe fazer um aparte aqui no texto para discorrer um pouco alguma espécie de ruído. São sons mais sensuais, delicados,
como a Fonética e a Fonologia desmontaram a teoria saussuria- suaves, sedutores, ganhando grande efeito psicológico em di-
na que o significante não tem relação com o seu significado. álogos amorosos, carinhosos ou mesmo conversações que operam

próxima
A sonoridade das palavras pode não trazer muitas informações com um processo de convencimento.
sobre seu significado, mas é importantíssima para a condi- Naturalmente, como já foi explicado no caso das consoan-
ção da sua recepção, que pode ser de maneira suave, agressi- tes surdas e sonoras, a adoção maciça de um mesmo grupo de
va, indecisa, enfática, tímida, etc. São elementos que estão consoantes produz o mesmo efeito cacofônico e cansativo, além
além do mero trabalho de interpretação do ator, mas que aju- de prejudicar o trabalho do ator. Qualquer língua opera com a
dam positivamente na sua atuação. Quando ouvimos uma palavra distribuição natural e espontânea dos seus fonemas como es-
anterior que não conhecemos, procuramos deduzir o significado dela por tratégia de permitir um uso variado do aparelho fonador na
dois caminhos: a inferência de mundo (semelhança com outras maioria das conversas.

106
Contudo, a escolha de determinadas sonoridades em pala- GLIARI, L.C. Acento em português. Campinas: Edição do Autor, 1999.

vras, expressões, frases ou mesmo diálogos inteiros, tem um • CÂMARA Jr., J.M. Para o estudo da fonêmica portuguesa. Rio de Janeiro:
Padrão, 1977.
efeito psicológico interior bastante interessante quando bem • CÂMARA Jr., J.M. A segunda articulação ou fonologia IN: ---. Estrutura da
aplicado. Língua Portuguesa. Petrópolis: Vozes, 1979.

A consciência dessas questões fonéticas por parte de ro- • COUTINHO, I.L. Pontos de gramática histórica. Rio de Janeiro: Ao Livro
Técnico, 1981.
teiristas é bastante salutar na composição de diálogos. Um • FERREIRA NETTO, W. Introdução à fonologia da língua portuguesa. São Paulo:
roteirista pode, entre as várias opções sinônimas de uma mes- Hedra, 2001.
• MARTINS, M.R.D. Ouvir falar: introdução à fonética do português. Lisboa:
ma palavra, escolher aquela que foneticamente se adéqua às
Caminho, 1988.
intenções dramáticas que esse texto pretende produzir. Além • MASSINI-CAGLIARI, G. Acento e ritmo. São Paulo: Contexto, 1992.
disso, ele pode operar também com mais eficiência o subtex- • MATEUS, M.H.M. Fonologia. IN: Faria, I.H. e outros. Introdução à lingüís-
tica geral e portuguesa. Lisboa: Caminho, 1996.
to, mais especificamente aquele diálogo que o personagem fala
capa exatamente o contrário do que ele gostaria de dizer ou está
sentindo. A questão fonética pode dar maiores pistas dessa
contradição.
Além disso, o conhecimento fonético é extremamente útil
também na prevenção de cacofonias e dificuldades por parte

universidade
dos atores na interpretação dos textos, colaborando para a
criação de diálogos mais fluidos e orgânicos.
A questão fonética, entretanto, é apenas uma das facetas
para a criação dos diálogos e jamais deve ser considerada uma
ferramenta única. Qualquer roteirista deve também compreender
sumário profundamente a sintaxe da sua língua e, principalmente, as
marcas de oralidade praticadas no cotidiano de uma cultura e
que podem ser absorvidas pelos personagens.

Bibliografia
próxima • ANDRADE, A. e VIANA, M.C. Fonética. IN: FARIA, I.H. e outros. Introdução
à lingüística geral e portuguesa. Lisboa: Caminho, 1996.
• ARAUJO, G.A. (org.) O acento em português. Abordagens fonológicas. São
Paulo: Parábola, 2007.
• BISOL, L. (org.). Introdução a estudos de fonologia do português brasilei-
ro. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996.
anterior • CAGLIARI, L.C. Elementos de fonética do português brasileiro. São Paulo:
Paulistana, 2007.
• CAGLIARI, L.C. Análise fonológica. Campinas: Mercado de Letras, 2002.CA-

107
Tanto na vida como no roteiro é o conflito que gera a ação,
O PENSAMENTO FILOSÓFICO COMO que motiva os personagens, que dá o tom da história e contri-
RECURSO PARA A CRIAÇÃO DE bui para o envolvimento do espectador criando a expectativa.
ROTEIROS: CONCEITO E CONFLITO Para McKEE (2006), o conflito é o responsável por deixar a
NA ROTEIRIZAÇÃO AUDIOVISUAL vida dos personagens difícil e uma das estratégias do rotei-
rista para fazer isto é utilizar complicações progressivas,
em geral potencializando as forças do antagonista e “crian-
do uma sucessão de eventos que passe por pontos sem volta”.
(McKEE, 2006, p.200).
Uma fórmula para explicar didaticamente a natureza do
A ndrea C achel conflito na personagem dos roteiros foi desenvolvida por COM-
capa Profª Drª do IFPR - andreacachel@gmail.com PARATO (2009). Sua tipologia mostra uma possibilidade de ca-

C ynthia S chneider tegorização de acordo com a natureza do conflito. No primeiro


Profª Ms do IFPR - cynthia.schneider@ifpr.edu.br caso um conflito pode ser causado por forças humanas, mate-
rializado por outra pessoa ou um grupo delas. Desta categoria
Já não se pode considerar a atividade de produção de ro-
fazem parte os roteiros de filmes de guerra, os dramas sobre
teiros audiovisuais algo desconhecido no Brasil. É visível a

universidade
família, casamentos desfeitos, tráfico de drogas e também se-
expansão da quantidade de escolas, cursos, blogs dedicados ao
riados de TV como CSI ou Law and Order. Uma segunda classi-
tema, entre outros elementos que evidenciam que a criação de
ficação de conflito engloba os que têm origem em causas não
roteiros é hoje uma área de grande interesse no país. Isso
humanas como os filmes sobre catástrofes naturais ou paranor-
tem evidentemente impulsionado as discussões mais teóricas
mais. É o caso dos filmes da série Crepúsculo ou do seriado
sumário
acerca dos vários elementos de um roteiro. Embora que ainda
televisivo Medium. Uma terceira categoria é a dos conflitos
em sua maioria produzida por autores estrangeiros, é bastante
internos, perceptíveis em filmes como Chegadas e partidas
vasta a literatura disponível no Brasil referente sobretudo
(2001), dirigido pelo cineasta sueco Lasse Hallstrom, ou mesmo
às técnicas de roteirização. E, mesmo apresentando uma série
o filme francês Betty Blue, de Jean-Jacques Beineix, de 1986.
de divergências a respeito de alguns elementos centrais nesse

próxima
Comparato destaca ainda que a presença destes tipos acontece
processo, há quase uma unanimidade quanto a um dos itens in-
de forma intercalada nos roteiros, pois mesmo na vida real é
dispensáveis de uma boa estória, a saber, o conflito.
comum a mistura entre conflitos de natureza diferente. O que
COMPARATO (2009), McKEE 2006) e RABIGER (2007) são unâni-
esse autor evidencia é que “um conflito audiovisual pode con-
mes ao reconhecer a importância do conflito para uma narrati-
ter todos os conflitos: home versus homem, homem versus for-
va fílmica, especialmente no gênero dramático. Em síntese, os
ças da natureza e homem versus ele próprio”(COMPARATO, 2009,
anterior autores concordam que é o conflito que move a narrativa e que
p.58). Mas a sistematização deste pesquisador e roteirista
a sua construção no roteiro compreende ainda outras funções.
fica clara uma hierarquização de conflitos: independente de

108
sua natureza, sempre haverá um único conflito principal na cludente das demais, tampouco como suficiente em si mesma. A
trama, o que ele denomina de conflito matriz. E esta idéia intenção é apontar certas perspectivas que se abrem a partir
pode ser facilmente compreendida na elaboração da story line de algumas questões formuladas pelos filósofos, ao longo de
de um filme, que é a síntese da história, contada em cinco ou quase três mil anos de discussões.
seis linhas. Uma story line evidencia a relevância do confli- Em primeiro lugar, é preciso perceber que não são todas
to: apresenta um conflito, desenvolve-o e soluciona-o. Re- as espécies de conflitos analisados pela literatura especia-
sumindo: uma narrativa cinematográfica será, inevitavelmente lizada em roteirização audiovisual que pareceriam poder se
estrutura sobre um alicerce de conflito, de modo a retomar o apropriar da linguagem filosófica. Não se trata de estabe-
discurso da narrativa clássica em 3 atos: exposição, crise e lecer uma diferença radical entre conflito externo e inter-
clímax. no, porém há que se considerar que o pensamento filosófico
Assim, ainda que a abordagem a respeito da noção de con- se insere em um âmbito inicialmente não diretamente externo
capa flito possa ser diversificada, bem como que possa ser criada de conflito. A conflituosidade, na perspectiva da filosofia,
toda uma tipologia e sub-tipologia de conflitos, a centrali- é sempre inicialmente a de uma racionalidade, portanto, algo
dade desse elemento no processo de criação parece ser quase bem mais condizente com a idéia de conflito interno. Como BA-
ponto pacífico entre os autores. É dele que se desencadeiam CHELARD (1990, p. 26) destaca, “a intimidade é menos um es-
vários os elementos do roteiro. Evidentemente essa centra- tojo com muitas jóias do que um poder misterioso e contínuo,

universidade
lidade insere a idéia de conflito no cerne das abordagens a que desce, como um processo sem limite, ao infinitamente pe-
respeito da produção dramatúrgica, em especial da referente queno da substância”. A partir de uma designação alquímica
à produção de roteiros audiovisuais. Tal tema é, portanto, para esta agitação interna, Bachelard contribui para o estudo
discutido de forma apropriada pela literatura mais especiali- da narrativa cinematográfica unindo conceitos da filosofia
zada na roteirização. Contudo, parece interessante perceber à psicologia do personagem. A alquimia salienta as relações
sumário que o conflito é em si mesmo um conceito interdisciplinar. As contraditórias, mas interdependentes, entre as afinidades e
várias questões implicadas no estabelecimento de um conflito as hostilidades, entre os conceitos e formas que combinam e
no campo da linguagem dramatúrgica não são em si mesmas pro- os que não combinam. Por isso ele destaca uma criação imagé-
venientes apenas dessa mesma linguagem. A forma pela qual o tica para compreender o tema: a aflição é a imagem de um lobo

próxima
conflito é apresentado é sem dúvida um ponto central da in- voraz. Isto fica bastante claro quando o autor refere-se às
teligibilidade e densidade do mesmo. Contudo, a sua matéria mágoas corrosivas: não ser compreendido, não ser amado, ser
parece não poder ser exaurida por essa forma. E, nesse con- abandonado. Até mesmo a inveja pode ser incluída neste grupo
texto, exige uma multiplicidade de enfoques confluindo para de afeições corrosivas.
o seu estabelecimento. O que se pretende abordar neste artigo Um exemplo cinematográfico desta relação alquímica com o
são as possibilidades apresentadas pelo pensamento filosófico conflito interno está no filme Chocolate, de Lasse Hallstrom,
anterior para a constituição da densidade material da noção de con- de 2000. Neste roteiro, o conflito é legitimado pelo espelha-
flito. Não se trata de compreender essa ferramenta como ex- mento social dos conflitos internos da personagem protagonis-

109
ta, que se vê na obrigação de promover uma reforma coletiva dizer que a filosofia não é uma simples arte de formar, de inventar
ou de fabricar conceitos, pois os conceitos não são necessariamente
por meio de chocolates personalizados. Ao mesmo tempo, o que
formas, achados ou produtos. A filosofia, mais rigorosamente, é a
se compreende é que a aflição interna desta personagem não se disciplina que consiste em criar conceitos. O amigo seria o amigo
resolve até que ela perceba que os conflitos dos outros não de suas próprias criações? Ou então é o ato do conceito que remete
à potência do amigo, na unidade do criador e de seu duplo? Criar
são mais do que um reflexo do que ela mesma vivencia.
conceitos sempre novos é o objeto da filosofia. É porque o conceito
Assim, a abordagem filosófica tem nessa espécie de con- deve ser criado que ele remete ao filósofo como àquele que o tem em
flito um espaço privilegiado, sem deixar de ser interessante potência, ou que tem sua potência e sua competência. Não se pode
objetar que a criação se diz antes do sensível e das artes, já que a
também quando a externalidade do conflito significa apenas a
arte faz existir entidades espirituais, e já que os conceitos filo-
externalização de um conflito interno, cujo antagonista sim- sóficos são também sensibilia. Para falar a verdade, as ciências, as
boliza apenas um novo viés do próprio eu. E quanto às possi- artes, as filosofias são igualmente criadoras, mesmo se compete apenas
à filosofia criar conceitos no sentido estrito. Os conceitos não nos
bilidades propiciadas pelas discussões filosóficas, a aborda-
capa
esperam inteiramente feitos, como corpos celestes. Não há céu para os
gem, tendo em vista as limitações de tempo e espaço inerentes conceitos. Eles devem ser inventados, fabricados ou antes criados,
a este trabalho, centrar-se á nos conceitos de essência, e não seriam nada sem a assinatura daqueles que os criam. Nietzsche
determinou a tarefa da filosofia quando escreveu: “os filósofos não
consciência e racionalidade. Por meio deles pretende-se ini-
devem mais contentar-se em aceitar os conceitos que lhes são dados,
ciar uma discussão a ser futuramente aprofundada. O modo como para somente limpá-los e fazê-los reluzir, mas é necessário que eles
a filosofia os abordou ao longo de suas história, bem como comecem por fabricá-los, criá-los, afirmá-los, persuadindo”.

universidade
algumas perspectivas de utilização na linguagem dramatúrgica, Tal atividade, indicada por Deleuze como a essência do
serão esboçados, a fim de se pensar a própria relação entre fazer filosófico, é em si mesma a explicitação de um conflito
filosofia e roteirização e, em discussões mais completas, ma- entre pólos opostos. Toda positividade exige uma contrarieda-
neiras pontuais de se traduzir tais conflitos apresentados de com um seu antagônico e, nesse sentido, a atividade cons-
discursivamente em linguagem imagética. trutiva da filosofia é sempre um conflito, uma ambiguidade
sumário Antes da análise quanto aos modos pelos quais esses temas entre dois itens, que, ou bem tentam se sintetizar, ou bem
podem se integrar na criação de roteiros, é preciso aqui fa- procuram prevalecer sobre o seu oposto. E é essa sua caracte-
zer uma pequena reflexão acerca da própria natureza do pensar rística essencial, tão bem indicada por Deleuze, que permite
filosófico. Isso é necessário porque o âmago desse pensar já à filosofia ser considerada um instrumental interessante na

próxima
está envolvido na noção mesma de conflituosidade. E, novamen- criação do conflito em um roteiro. O rigor do pensamento fi-
te, deve-se perceber que não há apenas uma forma de se qua- losófico, bem como toda uma tradição de comentários especia-
lificar esse pensamento. Outros filósofos enfocariam outros lizados gerados pelo pensamento de um autor, de certa forma
elementos, mas o olhar deleuzeano sobre a filosofia parece garante uma certa densidade para o conflito e, portanto, pode
extrair grande parte daquilo que é essencial na linguagem fi- permitir ao criador múltiplas possibilidades de abordagem. A
losófica. DELEUZE (1993, p.13-14) destaca que a filosofia é a
anterior atividade que produz conceitos:
radicalidade filosófica, se apropriada adequadamente, confere
uma riqueza na materialidade do conflito, a ser, evidentemen-
O filósofo é o amigo do conceito, ele é conceito em potência. Quer te, transmitida a partir daquilo que é próprio da linguagem

110
dramatúrgica. Matéria e forma devem constituir o conflito humano. É por isso, que, enquanto ferramenta de criação de
como um todo, do qual emergirá toda a trama a ser desenvolvi- roteiros, esse conflito pode transcender a particularidade
da. Vários são os conceitos criados pela reflexão filosófica da narrativa e do percurso dos personagens e se constituir
ao longo de toda a sua história. Como foi dito, este artigo como universal. Ele pode determinar conflitos internos reve-
pretende explorar apenas três deles. Essa discussão, vale re- lados no olhar dos personagens, assim como conflitos a serem
tomar, tem como função apenas exemplicar as possibilidades no superados por esses mesmos personagens. A luta humana de se
pensamento filosófico na constituição da matéria do conceito. definir e ao mesmo tempo de viver a sua existência sem fixi-
Assim, essas indicações não conseguirão exaurir o tema, mas dez pode determinar a matéria de um conflito a ser expresso
sim mostrar em que medida as oposições são forças dinâmicas dramaturgicamente no roteiro audiovisual.
às quais o trabalho do filósofo procura sintetizar. Outro conceito que parece ser imbuído de características
Nessa perspectiva, um primeiro conceito filosófico a ser e perspectivas de mobilização dramatúrgica semelhantes ao
capa vislumbrado é a noção de essência. Grande parte da noção de primeiro é o de consciência. O conceito de consciência é for-
essência tem como fundamento a oposição entre aquilo que per- mulado especialmente na Modernidade, a partir das reflexões
manece e aquilo que se transfigura. É no limite entre flui- de Descartes. Dele decorre uma série de dualidades, tais como
dez e permanência que se revela a necessidade de se colocar objetividade e subjetividade. O conflito entre os limites en-
a questão quanto à essencialidade do ser. Dessa forma, é no tre o olhar subjetivo e o mundo objetivo, por exemplo, só pode

universidade
conflito entre aparência (enquanto diversidade) e permanência surgir por meio de uma delimitação mais precisa da própria
que se revela o conceito filosófico de essência. É a própria idéia de individualidade e, mais especificamente, da percep-
diversidade que permite o tema da essencialidade e da clas- ção de um eu penso. A própria configuração da consciência já
sificação. Sem o deparar-se com a diversidade não há como se é resultado do conflito formulado pela possibilidade de que
entender como espécie. Em decorrência, enquanto conflito hu- a percepção externa seja errônea. Foi só por meio desse con-
sumário mano, a importância para o ser humano de sair de si mesmo e flito que o domínio da consciência pode ganhar positividade
deparar-se com o outro para, enfim, compreender a sua essen- na história da filosofia.
cialidade parece ser um grande mote narrativo. Como aponta a Configurado esse domínio, vários outros conflitos são
filosofia contemporânea, a tentativa filosófica de enclausu- postos, tais como o da objetividade ou relatividade do espaço

próxima
ramento é já o conflito universal do homem com sua própria e do tempo. Vários filósofos do período moderno colocaram o
existência. A particularidade da existência faz o homem se problema da existência ou não de um tempo e espaço reais. Se
deparar com a angústia. A criação da idéia de essência, por- a percepção confere a tudo um caráter de fragmentação, como
tanto, revela a dialética exploração da possibilidade de se sustentar um tempo e espaço absolutos? Kant qualificou essas
encontrar um sentido naquilo que é fundamentalmente um cami- noções como formas da intuição e, de certa forma, abriu espaço
nhar para a morte. O conflito revelado na criação do concei- para uma rediscussão que culminaria na idéia de espaço e tempo
anterior to de essência, ainda que expresse também a busca humana de fenomenológicos. Do ponto de vista da narrativa dramatúrgica,
classificação dos objetos à sua volta, é sempre um conflito uma oposição entre tempo e espaço absolutos e tempo e espaço

111
fenomenológicos permite a configuração de uma série de con- Nossa humanidade é revelada pela tragicidade e pela posterior
flitos e a própria subversão da linearidade dessa narrativa. superação (ainda que como conceito ideal) via racionalidade,
Além disso, sempre os pólos conflitantes da subjetividade e autonomia ou construção linguística de um sentido. Dessa for-
da objetividade podem estar expressos em conflitos externos e ma, se entendidos como matérias de um conflito a ser criado em
internos, bem como na composição dos personagens. A necessi- um roteiro, esses elementos permitem, ainda, uma linha edi-
dade de um voltar-se para dentro, da exclusão de dados supos- ficante na narrativa. A progressividade é incluída a medida
tamente objetivos, da síntese entre esses dois elementos, é em que cada índice aproveita o anterior. Na dialética entre
sempre em si mesma um conflito universal. Ademais, o próprio tragicidade e autonomia, a identificação e mobilização do ex-
olhar do expectador e o seu diálogo com o filme revelam esse pectador podem se constituir. E isso torna o conflito imbuído
conflito, que, se expressos no roteiro criam uma interação de uma universalidade que ser explorada pelo roteirista.
bastante interessante. Muitos outros conceitos formados pelo pensamento filosó-
capa Por fim, é interessante apontar o conceito de racionali- fico poderiam ser aqui expostos, assim como seria possível se
dade como um elemento que também pode contribuir na produção ter apontado alguns exemplos concretos em que esses três con-
da materialidade do conflito em um roteiro. Esse conceito de ceitos elencados foram os mobilizadores da trama. Entretanto,
forma muito clara revela a oposição entre razão e emoção. Essa a intenção maior era a do delineamento das possibilidades de
oposição, já explorada algumas vezes, pode estar contida no se entender a filosofia como uma área interessante de diálogo

universidade
caráter dominante dos personagens, por exemplo. Mas o que o com as discussões sobre produção de roteiros para os meios au-
conceito de racionalidade parece trazer de interessante é o diovisuais. Ela certamente não é a única disciplina com a qual
conflito externo entre possibilidades opostas de uma ação. Os se deve dialogar, mas parece um espaço privilegiado quando se
filósofos discutem desde a Antiguidade o critério de conduta tem em mente a centralidade da noção de conflito na roteiriza-
dos seres humanos. E a prevalência da racionalidade é sempre ção. Isso indica, além disso, que na criação de roteiros e na
sumário uma luta com a tendência de adesão ao páthos. Essa última produção audiovisual, áreas das ciências humanas (das quais
idéia é aquela que lança o próprio tema da racionalidade como a filosofia faz parte) são parceiras na constituição da ma-
possibilidade de transcendência do trágico. Assim, a exposi- terialidade de um discurso. Assim, mesmo que a autonomia das
ção de elementos trágicos da vida e da tentativa de superação análises dos elementos do roteiro seja evidente e necessária,

próxima
da exposição humana aos mesmos é também um conflito por ex- parece ser interessante perceber que o roteiro enquanto tal
celência. Por outro lado, a necessidade humana de submissão não possui essa mesma autonomia. Toda questão humana a ser
ao trágico a fim de se perceber como humano é um grande tema exposta na linguagem dramatúrgica é já em si mesma interdis-
para a produção de um conflito a ser narrado dramaturgica- ciplinar por excelência.
mente. O interessante de toda a idéia de racionalidade, e de
autonomia, é que ela revela a dicotomia entre transcendência Referências Bibliográficas
anterior e imanência. Toda transcendência só se põe como questão inte- • BACHELARD, Gaston. A terra e os devaneios do repouso. São Paulo: Martins
Fontes, 1990.
ressante se ela é o nosso conflito existencial com o trágico.

112
• COMPARATO, Doc. Da criação ao roteiro. Teoria e prática. São Paulo: Sum-
mus, 2009.
• DELEUZE, Gilles. Cinema, a imagem – movimento. Traduzido por Stella Senra.
Editora Brasiliense: 1983
• DELUZE, Gilles e GUATTARI Félix. Que é a filosofia? O. Edição 1. Traduzido
por Bento Prado Jr e Alonso Muno. . São Paulo Editora 34: 1993
• DESCARTES, Rene. Meditações Metafísicas. São Paulo.Nova Cultural (Coleção
Os Pensadores): 2000
• HEIDEGER. Ser e Tempo. Rio de Janeiro. Editora Vozes.: 1993.
• MERLEAU-PONTY, Maurice. Einstein e a crise da razão. in Signos. 1ª edição.
. São Paulo. Editora Martins: 1991.
• McKEE, Robert. Story. Substância, estrutura, estilo e os princípios da
escrita do roteiro. Curitiba: Arte & Letra, 2006.
• RABIGER, Michael. Direção de cinema.Técnicas e estética. Rio de Janeiro.

capa
Elsevier, 2007.

universidade

sumário

próxima

anterior

113
compreender espaço e tempo do mesmo modo.
TEMPO E ESPAÇO: UM ESTUDO FILOSÓFICO Toda a tradição fenomenológica posterior irá sustentar a
SOBRE O FILME BRILHO ETERNO DE necessidade de se reconhecer a dimensão do tempo e do espaço
UMA MENTE SEM LEMBRANÇAS. vividos. Independentemente da existência ou não do tempo e do
espaço ontológicos, a serem postulados pelo discurso cientí-
fico, emerge como questão filosófica por excelência a vivên-
cia para a consciência dessas noções, como destaca MERLEAU-
-PONTY (2004, p. 10-11):
Gostaria de encontrar hoje um exemplo desse obscurecimento das noções

A ndrea C achel mais simples, dessa revisão dos conceitos clássicos, que o pensamento
moderno persegue em nome da experiência, na ideia que parece, a prin-
Profª Drª do IFPR - andreacachel@gmail.com

capa
cípio, a mais clara de todas: a ideia de espaço. A ciência clássica
C ynthia S chneider baseia-se numa distinção clara entre espaço e mundo físico. O espaço
o e o meio homogêneo onde as coisas estão distribuídas segundo três
Profª Ms do IFPR - cynthia.schneider@ifpr.edu.br
dimensões e onde elas conservam sua identidade, a despeito de todas as
A discussão acerca das noções de espaço e tempo possui mudanças de lugar. Existem muitos casos em que se observam as pro-
priedades de um objeto mudarem com o seu deslocamento, por exemplo,
uma longa tradição na história da filosofia. Desde a filoso-
o peso, se transportamos o objeto do pólo ao equador, ou mesmo a
fia antiga, filósofos pontuam uma série de questões envol- forma, quando o aumento de temperatura deforma o sólido. (...) As

universidade
vendo esses conceitos. Particularmente, desde a constituição propriedades geométricas do objeto permaneceriam as mesmas durante seu
deslocamento, não fossem as condições físicas variáveis as quais ele
da idéia de consciência, a filosofia tem se interessado di-
e submetido. Este era o pressuposto da ciência clássica. Tudo muda
retamente pela oposição acerca da relatividade ou objetivi- quando, com as geometrias ditas não euclidianas, chega-se a conceber
dade do espaço e do tempo. É a partir da percepção do âmbito como que uma curva gira própria do espaço, uma alteração das coisas
devida apenas ao seu deslocamento, uma heterogeneidade das partes do
próprio do eu penso que irá se configurar a ambivalência en-
sumário tre realidade e subjetividade e, nesse sentido, é só a partir
espaço e de suas dimensões que não são intercambiáveis e afetam os
corpos que nele se deslocam, com algumas transformações. No lugar de
do estabelecimento da positividade da noção de consciência um mundo em que a parte do idêntico e a parte da mudança estão es-
tritamente delimitadas e se referem a princípios diferentes, temos um
que a filosofia irá analisar mais detidamente a questão da
mundo em que os objetos não conseguiriam estar em identidade absoluta
existência ou não de espaço e tempo absolutos. E, refletindo com eles mesmos, onde forma e conteúdo estão como que baralhados e

próxima
acerca da limitação de uma aceitação pura e simples de uma mesclados, e que, por fim, não oferece mais essa estrutura rígida que

ontologização dessas idéias, filósofos como Locke, Berkeley, lhe era fonecida pelo espaço homogêneo de Euelides. Toma-se impassível
distinguir rigorosamente o espaço das coisas no espaço, a ideia pura
Kant, entre outros, procuraram mostrar em que medida uma du- do espaço do espetáculo concreto que nossos sentidos nos oferecem.
alidade entre percepção e realidade revela a dificuldade de
Por meio da discussão da noção de espaço, o que Merleau-
se desconsiderar um âmbito de intervenção da consciência na
-Ponty evidencia é a impossibilidade de se exaurir as idéias
anterior produção mesma das noções de espaço e tempo. A abordagem, em
de espaço e tempo na forma pela qual o discurso científico as
Kant, do espaço e tempo como formas puras da intuição sensí-
aborda. E, nesse contexto, o que emerge como essencial como
vel apresenta um novo rumo, a partir do qual não se pode mais

114
questão humana é a apreensão do espaço e tempo pela consci- sobre o promontório de uma casa. Mas logo ficamos sabendo que a casa
é habitada e a luneta é utilizada por pessoas que integram plenamente
ência. A relatividade, o espaço e tempo vividos surgem como
o conjunto considerado — a praia, o ponto que atrai os grupos, o
elementos que subvertem a unicidade da perspectiva linear acontecimento que aí se desenrola, as pessoas nele envolvidas... A
espaço-temporal. A constituição de uma unidade na multipli- imagem não se tornou subjetiva, como no exemplo de Lubitsch? E não
é este o destino constante da imagem-percepção no cinema — fazer-nos
cidade exige um trabalho da consciência e esse trabalho não é
passar de um dos pólos ao outro, isto é, de uma percepção objetiva a
unidimensional. Assim, tempos e espaços em vivências distin- uma percepção subjetiva e vice-versa?
tas devem ser também distintas, não podendo ser matematizados
Dessa forma, uma dupla perspectiva das noções de espaço e
e resumidos em conceitos que aprisionam a vivência em uma fi-
tempo pode ser explorada, porquanto é inerente à própria rela-
xidez que não é própria da consciência.
ção de estabelecimento de significados pelo expectador. Além
Essa discussão acaba por se refletir diretamente no campo
disso, o esclarecimento quanto à possibilidade de se perceber
da produção da linguagem imagética. Isso porque, como eviden-
capa cia DELEUZE (1983, p.95-96), no cinema também há uma dupla
uma dupla dimensão das noções de espaço e tempo (tempo-espaço
objetivos e tempo-espaço vividos) permite novas formas de ex-
referência à percepção:
ploração da narrativa no roteiro cinematográfico. Isso irá se
Vimos que a percepção era dupla, ou melhor, tinha uma dupla refe-
rência. Ela pode ser objetiva ou subjetiva. Mas o difícil é sa-
refletir por meio de uma série de “desconstruções” na forma
ber como se apresentam no cinema uma imagem-percepção objetiva e uma tradicional de se configurar uma narrativa. Assim, deve-se
imagem-percepção subjetiva. O que as distingue?
Poder-se-ia dizer reconhecer o potencial criativo da ruptura de paradigmas an-

universidade
que a imagem subjetiva é a coisa vista por alguém “qualificado”, ou
o conjunto tal como é visto por alguém que faz parte desse conjunto.
tes postulados, tais como a bi-implicação entre modificação
Diversos fatores marcam essa referência da imagem aquele que vê. Fator temporal e mudança espacial e a linearidade espaço-temporal
sensorial, no exemplo célebre de A Roda, de Gance, onde o personagem
imagéticos e discursivos.
cujos olhos são feridos vê seu cachimbo em flou. Fator ativo, quando
a dança ou a festa são vistas por alguém que delas participa, como num
Pretende-se neste artigo apresentar alguns elementos de

sumário filme de Epstein ou de L’Herbier. Fator afetivo, que faz com que o
herói do Cheique Branco, de Felinni, seja visto por sua admiradora
análises quanto à utilização da noção de tempo e espaço vi-
vidos no filme O Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças.
como se se balançasse no alto de uma árvore prodigiosa, quando vai e
vem quase no chão. Se é fácil, porém, verificar o caráter subjetivo
Mais especificamente, a intenção é discutir a estratégia de
da imagem, é porque a comparamos à imagem modificada, restituída, roteiro desse filme, a partir da ruptura da linearidade e da
que se supõe objetiva. Veremos o cheique branco descer do seu balanço
interconexão espaço-temporal. A divisão de três dimensões

próxima
grotesco; tínhamos visto o cachimbo e o ferido antes de ver o cachimbo
visto pelo ferido. Ora, é aqui que a dificuldade começa. Com efeito,
distintas da percepção – a da vivência da realidade física, a
seria necessário poder afirmar que a imagem é objetiva quando a coisa da vivência da consciência e de uma possível vivência do in-
ou o conjunto são vistos do ponto de vista de alguém que permanece
consciente – serão ponderadas. Isso para que se possa indicar
exterior a esse conjunto. Trata-se de uma definição possível, mas
exclusivamente nominal, negativa e provisória. Pois o que nos garante
em que medida a perspectiva fenomenológica pode ser instru-
que o que inicialmente tomávamos como exterior ao conjunto não vai se mento de criação de novos roteiros.
anterior revelar como lhe pertencendo? Pandora, de Lewin,
de conjunto de uma praia, onde grupos correm em direção a um ponto
começa por um plano
Brilho eterno de uma mente sem lembranças (Eternal sunshi-

— a praia é vista de longe e do alto, através de uma luneta situada


ne of a spotless mind, Michel Goundry, 2004) é um filme sobre

115
a perda. No sentido mais preciso, é uma narrativa que fala a montagem terá uma função central no estabelecimento de um
sobre a perda da identidade, da tentativa desesperada de res- diálogo entre esses três níveis. No cinema, a montagem não
gatar o amor-próprio perdido, da perda da memória individual. acontece somente quando há um corte. São várias as etapas em
Mais do que isso: é uma história sobre uma perda desejada, que se pode tomar decisões importantes sobre a montagem do
que se pode julgar necessária e buscada de forma voluntária, filme: na própria realização de roteiro, quando são pensados
mas que, na eminência de ser atingida, pode revelar muito mais os deslocamentos temporais e espaciais do filme; na decupagem
sobre a mente humana do que se imagin a. Este é um dos raros técnica preparatória para as filmagens quando são decididos
filmes onde o roteirista é apresentado junto aos primeiros enquadramentos e movimentações de câmera; durante a direção
créditos, devido à reconhecida e premiada inventividade de no set quando são feitas as escolhas da mise-en-scène e da mo-
Charlie Kaufman. vimentação dos atores, na produção, em decorrência, por exem-
O roteiro de Brilho eterno discute a relação conturbada plo, de algum tipo de limitação de uma locação; e, finalmente,
capa dos protagonistas Joel (Jim Carrey) e Clementine (Kate Wins- na pós-produção. Todos esses itens concorrem para a explora-
let). O grande mérito do filme é utilizar a estrutura narra- ção da tripla possibilidade da percepção espaço-temporal no
tiva fragmentada para intensificar o quebra-cabeças no qual filme O Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças.
se configura a relação do casal. As ruptura do roteiro inten- Para estabelecer as noções de função da montagem, Aumont
tam confundir o espectador da mesma forma que os protagonis- (AUMONT, 1995, p.63) apresenta uma abordagem empírica, vin-

universidade
tas tentam apagar as suas memórias mútuas. Os deslocamentos culada às idéias de Martin, e uma mais sistemática que ele
espaço-temporais do filme se intensificam na medida em que julga com mais possibilidades para ampliar esta formaliza-
os personagens se envolvem a trama fragmenta, apaga e resgata ção. A abordagem empírica revê, na história do fazer fìlmico,
essas mesmas memórias. E este é o forte do roteiro: desmon- que a origem da sequenciação das imagens no cinema já tinha
tar a percepção linear da história, numa narrativa complexa finalidades narrativas, e que foi a autonomia da câmera, em
sumário e ainda por cima, no gênero de comédia. Tem-se no filme uma função da descoberta das possibilidades de movimentação de
tripla perspectiva das noções de tempo e espaço, como comen- câmera, que constituiu o efeito estético principal do surgi-
tado, concebidas pelo tempo e espaço “reais”, tempo e espaço mento da montagem. Daí decorre que a montagem teria, desde
da consciência via informações mnemônica e, por fim, de uma cedo, como principal função, o estabelecimento da narrativa,

próxima
representação de uma possível percepção fenomenológica de um sendo a responsável pelo encadeamento das ações numa relação
espaço e tempo para o inconsciente. O roteiro estabelece uma global de causalidade ou temporalidade diegéticas. (AUMONT,
discussão entre essas três perspectivas e, nesse sentido, é 1995, p. 64) Em oposição a esta montagem narrativa, o autor
também uma forma bastante interessante de se expor imageti- considera ainda uma outra, de função expressiva, que como ca-
camente a própria oposição entre realidade e vivência espaço- racterística tende a “exprimir por si mesma, pelo choque de
temporal. duas imagens, um sentimento ou uma idéia”. Na sua descrição
anterior É importante destacar, antes de se apontar os elementos mais sistemática, uma noção clara para Aumont é a de montagem
presentes no filme para representar essa tripla dimensão, que produtiva, que cria ou produz coisas que não podem ser vistas

116
só nas imagens. É, portanto, uma associação de duas imagens ordem do tempo.
que constroem um novo sentido, que não é inerente a nenhuma Porém certamente o mais interessante no filme são as re-
delas sozinha. No filme em análise, a montagem estabelece a presentações do tempo e espaço para a consciência e para um
dialética entre tempo e espaço reais e tempo e espaço da cons- possível âmbito do inconsciente. No tempo e espaço da cons-
ciência, de modo que também produz a própria percepção. Uma ciência, representada pela percepção mnemônica, é pontuado o
linearidade na montagem inviabilizaria a reflexão e, nesse debate entre os dois outros âmbitos espaço-temporais. A memó-
caso, um diálogo entre a tripla dimensão espaço-temporal de- ria supostamente “representa” um espaço e tempo reais. Porém,
pende do estabelecimento do diálogo também na montagem. isso só ocorre desse modo em uma análise não aprofundada do
No filme, o espaço e tempo “reais” são representados pela tema. Enquanto dado da consciência, a percepção mnemônica é
vida fora da consciência. Em grande medida, a suposta vida sempre tempo e espaço vividos. Na representação do tempo e
“fora da consciência” é também uma lembrança a ser apagada espaço vividos os episódios ganham contornos bem diferentes
capa e, portanto, também uma vida “para a consciência”. Mas há re- dos episódios “reais”. Os personagens dialogam, por exemplo,
presentações no filme que trazem elementos de objetividade. quanto ao próprio sentido dos fatos vividos por cada um. Co-
Assim, restituída uma certa linearidade no filme (restitui- res são percebidas diferentemente, em relação ao modo como
ção essa que só pode ser feita a posteriori pelo expectador), eram percebidas no tempo e espaço “reais”. Ademais, os even-
pode-se supor o início do encontro entre os personagens, uma tos ganham dados emocionais distintos daqueles do âmbito on-

universidade
história vivida pelos mesmos em cerca de dois anos, a crise tológico. É isso que faz o expectador perceber, por exemplo,
instituída no fim desse tempo, a escolha da personagem fe- a tentativa de resistência do inconsciente diante da possi-
minina de apagar suas lembranças, a reprodução no personagem bilidade do apagamento das lembranças. No tempo e espaço da
masculino dessa escolha, o reencontro e, por fim, a aposta em consciência não há uma obrigatoriedade de linearidade, nem
um futuro. Nesse plano, há (ainda que a posteriori, ressalte- de interconexão de mudanças de tempo e espaço. Cada fato tem
sumário mos) uma linearidade do tempo, a ser descoberta e construída sua duração e localização pesada pelo sentido emocional dado
pelo expectador. Tempo e espaço, em sua perspectiva linear, pelo personagem.
têm também uma conexão, de forma que mudanças de tempo são O que parece uma representação do inconsciente do protago-
sempre também pontuadas por mudanças no espaço. É o jogo com nista é imbuído de total liberdade. Isso porque esse domínio

próxima
o espaço que dá pistas para o expectador quanto ao sentido do só pode se colocar enquanto criação artística. Como se sabe,
tempo. Cada ponto do tempo se dá também em um ponto específico os dados do inconsciente só podem ser supostos. A vivência
do espaço e determinar o sentido do tempo passa a ser também do inconsciente só se abre para a consciência enquanto lin-
descobrir a ordem do espaço. Não por outro motivo, em sua co- guagem simbólica indireta. Assim, no roteiro pode haver uma
nexão com o tempo da consciência, a presença final da lembran- total ruptura com toda e qualquer convenção para representa-
ça do envolvimento dos personagens se dará como a destruição ções de tempo e espaço advindas normalmente da sua apreensão
anterior de um ambiente, a de uma casa na praia, permeada também pela ontológica ou “científica”. Nem a linguagem lógica é exigida
combinação de um encontro em um espaço também específico na e, por isso, no roteiro em questão pode haver uma “mistura”

117
entre sujeito adulto e seus pais, bem como uma identificação
entre a mãe e a protagonista. É a emergência da representação
simbólica do tempo e espaço desse suposto inconsciente que dá
sentido á própria relação entre tempo e espaço reais e tempo
e espaço vividos. Isso porque ela libera o roteirista para
estabelecer as pontes entre ambos e para garantir uma liber-
dade de análise do expectador.

Referências Bibliográficas
• AUMONT, Jaques. A estética do filme. Campinas, São Paulo: Ed. Papirus,
2004.

capa
• DELEUZE, Gilles. Cinema, a imagem – movimento. Traduzido por Stella Senra.
Editora Brasiliense: 1983
• MERLEAU-PONTY, Maurice. Einstein e a crise da razão. in Signos. 1ª edição.
Editora Martins. São Paulo: 1991. pp. 213-219
• MERLEAU-PONTY, Maurice. Conversas. Martins Fontes. São Paulo: 2004.

universidade

sumário

próxima

anterior

118
no dia 17 de julho de 2002, alguma coisa (normalmente refe-
A RELEVÂNCIA DO CENÁRIO NA NARRATIVA rida como “a praga”), exterminou todos os mamíferos do sexo
GRÁFICA “Y, O ÚLTIMO HOMEM” masculino no mundo. Homens, animais, embriões e até mesmo es-
perma, tudo o que possuía um cromossomo Y. As únicas exceções
foram um artista de fugas amador chamado Yorick Brown e seu
animal de estimação, um macaco chamado Ampersand. A narrativa
abrange um período em torno de cinco anos, com as mulheres do
mundo tendo que reorganizar a sociedade, depois de perderem
L uiz G uilherme C outo P ereira todos os homens (e, consequentemente, 40% da população mun-
Universidade de São Paulo, graduação em Letras. luiz.guilherme.pereira@usp.br
dial). Uma última edição mostra o panorama mundial 60 anos
depois, no futuro.
capa Resumo Dividido entre sua busca para reencontrar sua namorada,
que está na Austrália quando a praga ocorre, e o plano menos
Analisa-se o uso do cenário na narrativa gráfica distópi-
romântico de ter seu DNA estudado para descobrir as razões por
ca “Y: The Last Man”, valendo-se das observações de Mikhail
trás de sua sobrevivência, e ajudar a repovoar o mundo através
Bakhtin sobre o romance de viagem e o romance de provação.
da clonagem, Yorick e suas companheiras de viagem atravessam
Palavras-chave: Bakhtin, narrativa gráfica, cenário, “Y:

universidade
os Estados Unidos de costa a costa, e de lá seguem ainda para
The Last Man”
muitos outros países ao redor do mundo como Austrália, Japão,
Rússia e França, atrás dos recursos para dar sequência ao pro-
Abstract jeto de cloná-lo em meio a um mundo que luta para sair de uma
nova idade das trevas.
sumário On which we analyze the use of landscape in the graphic A série é bastante centrada em Yorick e seus companhei-
narrative “Y: The Last Man”, based on the studies of Mikhail ros – o macaco Ampersand, Dra. Mann, a cientista que deve ser
Bakhtin about the travelling novel and the probational novel. capaz de produzir um clone dele, e 355, a agente secreta que
Key-words: Bakhtin, graphic narrative, landscape, “Y: The é responsável pela segurança de Yorick – e à medida que eles
Last Man”
próxima
vagam de um lugar para outro podemos tem vislumbres de como o
mundo está lidando com a morte de todos os homens. Este ponto
Y: The Last Man é uma série em quadrinhos escrita pro específico – a importância da paisagem na narrativa Y: The
Brian K. Vaughan e ilustrada por Pia Guerra, publicada entre Last Man – será o foco deste ensaio.
setembro de 2002 e janeiro de 2008 pela Vertigo, o selo da Em A Estética da Criação Verbal, Mikhail Bakhtin discute o
DC Comics para “leitores maduros”. Teve 60 números, reunidos princípio da construção da imagem do personagem e identifica
anterior posteriormente em 10 edições encadernadas. quatro espécies diferentes de romance: o romance de viagem,
A história é basicamente uma narrativa pós-apocalíptica: o romance de provação, o romance biográfico e o romance de

119
educação. Entre eles, vamos nos concentrar nas duas primeiras
classes:
O romance de viagem basicamente tem o personagem como um
ponto que se move através do espaço, com características não
essenciais. Suas viagens são um recurso para mostrar a di-
versidade territorial e social e a história é contada em uma
espécie de “tempo em suspensão”, onde normalmente ninguém en-
velhece. A passagem do tempo só é percebida através de conec-
Duas
tivos como “e depois” e “então”.
ocorrências
O romance de provação, por sua vez, é baseado no teste da
de “agora”
qualidade-chave do personagem principal (seja virtude, ou co-
capa ragem, ou nobreza, ou fidelidade, etc). Mostra o protagonista
como uma pessoa única e complexa, e geralmente começa com uma
mudança radical no curso da vida do protagonista, seja social
ou biologicamente falando, e termina com a vida retornando ao Por outro lado, logo que o protagonista percebe sua con-
seu curso natural. Há um tempo “da aventura”, conectado com o dição de único sobrevivente do sexo masculino, ele começa uma

universidade
tempo histórico, mas auto-suficiente. jornada atrás de sua namorada, com o objetivo de repovoar o
O próprio Bahktin faz a ressalva de que nenhum romance mundo, o que emula a sequência de aventuras típica dos roman-
representa a forma pura, sem elementos dos demais gêneros. ces de viagem, uma vez que suas viagens são um recurso para
Ainda assim, é válido classificar Y: The Last Man como algo mostrar o que acontece com o mundo diante de uma catástrofe
no exato meio-termo entre essas duas categorias. E é fácil dessas proporções. A passagem do tempo, que começa rigorosa-
sumário concluir isso depois de analisar como o tempo e o espaço tra- mente marcada, passa a ser apresentada com informações vagas
balham ao longo da série. como “vinte e cinco minutos antes” e “agora”.
No primeiro número da série, todos os homens morrem. De É um recurso comum em narrativas apocalípticas e distó-
repente. Todos no mesmo momento. O que dá uma forte noção de picas ter como enredo principal a evolução pessoal do prota-

próxima
data - a narrativa apresenta o dia exato que isso aconteceu gonista e, em paralelo, com algumas digressões, a situação
(17 de julho de 2002) e uma forte noção de espaço - a mesma maior, muitas vezes global. Em “Ensaio sobre a cegueira”, de
coisa é representada acontecendo simultaneamente em todo o José Saramago, apesar de toda a ação acontecer dentro de um
globo. Assim, a história é bem localizada desde o início, como asilo superlotado, há a vinda tangencial de informações so-
costumam ser os romances de provação. E apesar de no primeiro bre o mundo exterior, trazidas pelos recém-chegados. Da mes-
momento o Yorick não saber disso, todos nós estamos conscien- ma forma, juntamente com as aventuras de Yorick, temos a su-
anterior tes de que ele é o único sobrevivente. gestão do que acontece no mundo depois da extinção do gênero
masculino.

120
O primeiro arco, cujo subtítulo é Unmanned, é bastante designado para ser seu guarda-costas) seguem rumo ao labo-
centrado no momento do generocídio e em todas as consequên- ratório da Dra. Mann, em São Francisco, passando por muitos
cias dele. As mudanças geográficas são reflexos diretos da lugares estranhos e situações, podemos ver como a sociedade
morte de todos os homens. Então, enquanto nós seguimos Yorick está começando a lidar com a perda do homem. Eles param, por
de Nova York (onde mora) para Washington (onde ele vai ver exemplo, em Marrisville, uma cidade idílica no interior de
sua mãe, que é senadora por Ohio) para Boston (onde ele irá se Ohio, cheia de recursos como eletricidade e uma enfermaria
encontrar com a Dra. Alison Mann, uma cientista que deve ser (“a primeira unidade médica de depois da praga que não parece
capaz de cloná-lo), veremos que o Robert F. Kennedy Stadium pertencer à merda de um barbeiro medieval”, como diz a Dra.
tornou-se um crematório coletivo, o obelisco de Washington Mann), apenas para descobrir que o lugar é todo povoado por
se tornou um memorial para todos os homens e algumas rodo- ex-presidiárias de uma cadeia feminina das proximidades. Pa-
vias interestaduais ficaram bloqueadas devido à ocorrência ram também, para citar outro exemplo, em uma base secreta da
capa da praga durante a hora do rush. Cada uma dessas situações é NASA em Oldenbrook, Kansas, onde ajudam a aterrissagem de uma
apresentada com uma certa ênfase, tanto no roteiro (com uma nave com três astronautas (dois homens e uma mulher grávida),
certa introdução e explicação, acompanhada as interjeições que estavam fora do planeta quando a praga ocorreu. E em Que-
de surpresa do protagonista) quanto na arte (com desenhos de ensbrook, Arizona, onde uma milícia local decidiu bloquear as
página inteira, às vezes até sem bordas). estradas interestaduais, certa de que a praga foi planejada

universidade
É interessante notar que quando os primeiros números fo- pelo próprio governo norte-americano.
ram lançados, houve algumas críticas de cunho feminista, di- Dois anos já se passaram quando os protagonistas final-
zendo que a história era intensamente misógina, como se sem mente chegam a São Francisco e a Dra. Mann pode estudar a si-
os homens as mulheres seria jogadas de volta à Idade das Tre- tuação de Yorick. Assim que ela decifra a relação entre Yorick
vas, incapazes de produzir eletricidade ou pilotar aviões. e Ampersand, e a razão da sobrevivência dos dois, o macaco
sumário Quando questionado sobre o assunto em uma entrevista, Vaughan é roubado por uma ninja. Ao longo dos arcos que seguem, co-
respondeu: “Eu penso que é extremamente complexo, algo ex- meçamos a ver mais e mais mulheres assumindo papéis que eram
tremamente difícil de tratar. Quando três bilhões de pessoas originalmente masculinos, como os de xerife ou capitão de um
morrem, eu não me importo com qual era o sexo delas, que é navio. Tais situações são mostradas com cada vez mais fre-

próxima
uma coisa extremamente difícil de se superar. Posso dizer que quência e menos impacto. Depois de ir para a Austrália (onde
o mundo estaria melhor do que se só os homens tivessem sobre- Yorick tenta encontrar sua ex-namorada, Beth, e descobre que
vivido. Penso que seria uma situação ainda mais terrível. Eu ela está agora em Paris) e para o Japão, já se passaram três
acho que há esperança para o planeta.” Seja sexista ou não, anos. A sociedade está quase reestruturada, com serviços como
o cenário é terrível. telégrafo e ferrovias funcionando quase normalmente. Mesmo as
Ao longo dos arcos seguinte (Cycles, One Small Step, Pa- ocorrências mais catastróficas, estão mais relacionadas com
anterior perdolls), a estrutura do romance de viagem se torna mais in- a necessidade das mulheres de lidar com a ausência dos homens
tensa. Enquanto a Dra. Mann, Yorkick e 355 (a agente secreta do que com a morte de todos os homens em si. A casa de ópe-

121
ra de Sidney se tornou um ponto de encontro para as mulheres Dito isto, há ainda alguns aspectos peculiares no tocante
viciadas em drogas, por exemplo. Pela primeira vez uma mulher ao cenário em Y: The Last Man. Sendo uma narrativa gráfica,
será enterrada na Rotunda, no Capitólio em Washington. Apare- há de se considerar a influência de cada paisagem desenha-
ce até mesmo um substituto para o homem: o “actroid” japonês da na relevância da história. Mais do que apenas ilustrar a
(um androide de parque de diversões, reprogramado para falar história, a arte dá sugestões interessantes do mundo em que
com as mulheres). É no Japão que a história alcança seu clí- eles estão vivendo, e que seriam impossíveis de se retratar
max, quando os protagonistas enfrentam o outro único macho em texto. Durante os primeiros arcos, as cidades no caminho
sobrevivente, o pai da Dra. Mann, que alega ser responsável apresentam todas algum grau de vandalismo. Através da passa-
pela praga. gem do tempo, a paisagem torna-se mais limpa e civilizada.
O arco final, Whys and wherefores, intensifica gradual-
mente a idéia de que o mundo está começando a se reestrutu-
capa rar sem os homens. Mas isso só é confirmado no último número, Página “sangrando”
Alas, com um avanço para sessenta anos no futuro, onde as
coisas finalmente voltaram ao normal e pode-se ver um mundo
de mulheres que resolveram a situação... há eletricidade e Há páginas em que o cenário é mui-

até mesmo energia nuclear. Mais uma vez, há intriga política to mais relevante do que os personagens.
Frequentemente a arte “sangra” da página,
universidade
entre os países. A clonagem de mulheres impediu a extinção
da humanidade, enquanto ainda não haviam os primeiros homens. com uma cena-chave, geralmente uma paisa-

Mas não é válido dizer simplesmente que as coisas voltaram gem. Essa escolha não deve ser vista como

ao seu normal, uma vez que ainda é uma sociedade constituí- uma coincidência. Em seu “Desvendando os

da quase exclusivamente de mulheres. O cenário volta a ter Quadrinhos”, Scott McCloud já havia ob-

sumário uma relevância única, mostrando uma Paris que beira a ficção servado que o uso de “sangramento” nas

científica, ao mesmo tempo que continua parecendo a cidade ilustrações (muito mais comum em mangás

que sempre foi. Não por acidente, as cenas de página inteira do que em quadrinhos ocidentais) cria uma impressão muito

são mais frequentes do que nunca. mais forte de “imersão” do leitor na história, uma vez que as
bordas de cada ilustração dá uma impressão de que a arte é um
próxima
Assim, dizer que o fim da história é aquele tradicional
dos “romances de viagem”, onde o personagem principal termina quadro emoldurada. A página que “sangra” dá a impressão con-

sem nenhuma mudança relevante, também está incorreto. Yorick trária, de que o leitor olha através de uma janela, enfiando

termina a história velho, louco e preso em um asilo pesso- sua cabeça através dela e deixando seus limites para trás.

al; e não é nem de longe a mesma pessoa que era no início da A utilização desse recurso, especialmente quando se trata da

história. Assim, se inicialmente Y: The Last Man funde duas representação de um mundo fictício e pós-apocalíptico, traz o
anterior espécies diferentes de narrativa, no final ela nega ambas, leitor para muito mais próximo da história.

terminando em uma maneira que se desvia das duas fórmulas. Não apenas a paisagem é expressa na arte, mas também pe-

122
quenos detalhes da condição das mulheres nesse cenário. Mu- do-se em consideração a relevância do cenário no romance, é
çulmanas são retratadas ainda usando burca. Há uma versão necessário torná-lo especialmente convincente numa narrati-
feminina da Guarda do Vaticano. Surgem as primeiras “cros- va gráfica, onde ele estará sempre presente na arte, que in-
sdressers”, mulheres se vestindo como homens. Há a extinção fluenciará toda a recepção do texto pelo leitor. Mais do que
de alguns animais, que também não podem mais se reproduzir e mostrar o lugar onde a história acontece, a arte deve mostrar
têm uma expectativa de vida menor do que a humana. A própria a história acontecendo.
passagem do tempo (seguindo os princípios do romance de pro-
vação) é muito mais representada através da arte do que do BIBLIOGRAFIA
texto. O cabelo da 355 cresce gradualmente ao longo dos anos.
Yorick, por sua vez, começa a ficar calvo. Livros e capítulos de livros
Como último exemplo do bom trabalho da ilustradora Pia
capa
• EISNER, W – Quadrinhos e arte sequencial. Tradução de Luís Carlos Borges
Guerra na série, há a frequente sugestão da letra “Y” na cena. e Alexandre Boide Martins Fontes, São Paulo, 1999.
Não como uma informação relevante, mas apenas como um lembre- • MCCLOUD, S – Desvendando os quadrinhos. Tradução de Roger Maioli dos San-
tos. M. Books do Brasil, São Paulo, 2005.
te, uma associação indireta da história com o seu título. O “Y”
• MCCLOUD, S – Desenhando quadrinhos. Tradução de Roger Maioli dos Santos.
do título é um elemento-chave. Representa tanto o cromossomo M. Books do Brasil, São Paulo, 2008.
eliminado quanto a inicial do protagonista. A sobrevivência • RAMOS, P – A leitura dos quadrinhos. Contexto, São Paulo, 2009.
• WOLK, D – Reading comics. Da Capo Press, Cambridge, 2007.

universidade
dele se confunde coma sobrevivência de todo o gênero masculi-
• BOURNEUF, R & OUELLET, R – O universo do romance. Tradução de Sandra Vas-
no. E a singularidade desse “Y” é alegoricamente sugerida na concelos. Almedina, Coimbra,1976.
arte, como para lembrar a todos do seu papel. O ilustrador das • BHAKHTIN, M – Estética da Criação Verbal. Tradução de Maria Ermantina Gal-
vão G. Pereira. Martins Fontes, São Paulo, 2003.
capas, Massimo Carnevale, seguiu a mesma composição.
• GENETTE, G – Seulis. Éditions du Seuil, Paris, 1987.

sumário
Sites

• SCHEDEEN, J - Y: The Last Man - The End of an Era. <http://www.comics.ign.


com>. Acesso em 08 de fevereiro de 2010.
• BROWN, L - Yorick, Don’t Be A Hero: Productive Motion in Y: The Last Man.

próxima
• <http://www.english.ufl.edu/imagetext/>. Acesso em 08 de fevereiro de
2010.

Sugestão de
“y”s na arte
anterior
Assim, levan-

123
Palavras-chave: Roteiro, Cinema, linguagem.
A REALIDADE DA FICÇÃO
CINEMATOGRÁFICA: O ROTEIRO Introdução

O cinema surgiu documental. Os filmes dos irmãos Lumière


são os primeiros exemplos dessa estética. Essas obras cinema-
tográficas são o registro puro e simples da realidade, de si-
tuações e personagens cotidianos da vida humana. A imagem em
movimento já era suficiente para encantar o público! A tradi-
A na C láudia de F reitas R esende
Instituição de vínculo: Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)- Douto-
cional saída dos operários de uma fábrica tornava-se um gran-
randa em Cinema pela EBA/UFMG, Mestre em Cinema pela EBA/UFMG, especialização de acontecimento no cinema. A rotineira chegada de um trem à
em Cinema pela PUC/MG, graduada em Comunicação Social/Jornalismo pela PUC/

capa
MG.Atual coordenadora e docente dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Pro- estação levava os espectadores à loucura quando vista sob os
paganda do Unileste/MG. E-mail: aclaudiaresende@yahoo.com Twitter: @cacaucine
olhos da sétima arte. A câmera parada filmando a aproximação
do trem tornou-se a expressão máxima do que se chamou impres-
Resumo: são de realidade, uma das características do cinema, entre os
modos de representação. Fala-se que a projeção da chegada do
Este artigo é resultado de conhecimentos em Roteiro Ci-
trem teria causado pavor aos primeiros espectadores do filme,
nematográfico adquiridos por meio de cursos de curta duração
universidade no Brasil e no exterior, bem como pós-graduação em Cinema.
que saíram correndo com medo da máquina que ia em direção a
eles.
Trata-se, portanto, de uma compilação de aulas ministradas
Os próprios inventores do cinema, os irmãos Lumière, não
por profissionais de renome. A convergência desses saberes
viam outra função para o cinematógrafo, senão o mero registro
culmina neste trabalho que reúne vários aspectos acerca do
sumário
da realidade. O pai, Antoine Lumière, acreditava que o equi-
tema. Leva-se em consideração a história de uma linguagem e
pamento serviria, no máximo, a pesquisas científicas. Jamais
etapas para a elaboração de um roteiro.
pensou-se em utilizá-lo para contar histórias.
Abstract: Goerges Méliès, um mágico francês, viu no equipamento um
meio de filmar seus shows. A câmera continuava parada fil-

próxima
This article is the result from knowledge acquired throu- mando o que se passava em sua frente, até que um belo dia o
gh short classes in Brazil and abroad, as well as a post- filme acabou. Sob o mesmo enquadramento, Méliès colocou outra
-graduation course in Filmmaking and Screenplay Writing. It película e, ao projetar, descobriu o truque por substitui-
is, therefore, a compilation of lectures given by renowned ção. Numa rua de Paris, um ônibus havia se transformado em
professionals. The convergence of knowledge culminates in um carro fúnebre. É que durante a interrupção da filmagem, o
anterior bringing together various aspects on the topic. It takes into ônibus havia saído e o carro fúnebre estacionou em seu lugar.
account the history of a method and steps to writing a scre- Iniciava-se a trucagem no cinema!
enplay. No início, os filmes eram curtos e contentavam-se em exi-

124
bir imagens em movimento, ou seja, praticamente não se conta- resumida em uma frase síntese! Se a história principal couber
vam histórias. Colocava-se a câmera em um determinado local e em uma frase, será possível acrescentar a ela os dispositivos
registrava-se o que estava na frente.O filme era uma sucessão narrativos.
de quadros entrecortados por legendas que faziam o papel dos Concluída a frase síntese, elabora-se a sinopse – toman-
diálogos. do-se o cuidado de instigar o espectador a assistir ao filme
Aos poucos a linguagem se desenvolveu a ponto do cinema se e, principalmente, não resumindo toda a história a ponto de
tornar apto a contar histórias. As descobertas narrativas fo- revelar seu final. Ninguém assiste a um filme sabendo como
ram decorrentes de casualidades ou observações de cineastas, ele irá terminar!
estudiosos. Em Veneza, 1896, a câmera se deslocou involunta- Por fim, esboce uma sugestão de título.
riamente quando ficou ligada em um trem, barco ou gôndola em
movimento. Surgiu o travelling1. Com o tempo, descobriram-se
capa mais movimentos, planos, recortes, ângulos e demais disposi- Exemplo
tivos de uma estrutura narrativa.
Em 2001, foi concluído o curta-metragem Bodas de Campeo-
Agora, precisava-se pensar nos elementos cinematográficos
nato, 35mm, como resultado de uma especialização em Cinema na
que tornavam a história mais interessante. Surgiu o roteiro!
PUCMinas.
No entanto, a mesma história, contada por pessoas dife-
Título: Bodas de Campeonato

universidade
rentes, produz efeitos distintos. A grande questão é: como
Frase síntese: Desavenças entre casal é como disputa de
converter um relato em algo interessante? Há histórias que se
final do Campeonato Brasileiro de Futebol.
limitam a contos, outras a reportagens, e dentre a diversi-
Tema: Guerra dos sexos
dade de narrativas, há o cinema: “Somos contadores de histó-
Tonalidade emocional: Comédia
rias. Temos que fascinar o espectador!”2 Mas como conquistar
sumário
Sinopse: As bodas de um casal coincidem com a final do
o público de cinema com nossas histórias? A base é o roteiro!
Campeonato Brasileiro de Futebol. A romântica esposa espe-

Antes do roteiro
ra pela comemoração e o marido, fanático pelo esporte, torce
para seu time que disputa o clássico. A narração do jogo é o
Quero fazer um filme! Sobre o quê? Há que se escolher um conflito do casal. Em campo: marido x esposa!

próxima tema. Qual tonalidade emocional? Drama? Comédia? Suspense?


O roteiro
Antes de começar a escrever, é preciso ter uma idéia mui-
to clara de toda a história que se quer contar: como começa
Para elaborar um roteiro, toda a história deve ser descri-
e como termina. É necessário saber o final do filme para se
ta em ações. Ou seja: todas as sensações devem ser transmiti-
iniciar a escrita!
das em ações. EX: Não se escreve, em roteiro, que fulano está
anterior Desafio: uma história só é possível virar filme se for
triste. Como o cameraman vai mostrar isso? É o roteiro que
1 Movimento em que a câmera se desloca, geralmente sobre um carrinho.
2 MADRID, Juan. Oficina ministrada em 19/01/2010, na Escola internacional de Cine e TV/Cuba. Espanhol. Es-
deve detalhar a cena em ações de forma que o público perceba
critor de novela, consagrado pela crítica.

125
que fulano está triste. Então, o roteiro prevê: fulano chora! a vida do personagem.
A estrutura básica de um relato é: situação inicial, con- A função do conflito é tornar a história instigante e,
flito e situação final. Além de já se saber, de antemão, o assim, prender a atenção do público.
final do filme que irá se escrever, é preciso contar uma his- Há três classes de conflitos:
tória verossímil. Por mais efeitos especiais e ficção que um Conflito interior (ex: um homem que se apaixona pela irmã
filme tenha, é necessário que ele tenha a lógica da verdade. da noiva)
O final da história deve estar bem claro para que, a par- Conflito externo (ideais religiosos, políticos, racis-
tir dele, possa ser estruturado o início. tas...)
Todo relato surge a partir de um personagem que deseja ou A natureza (terremoto, enchente, avalanche...)
deve fazer algo, porém outra(s) pessoa(s) ou a natureza e até
. 1º Ato: início
ele mesmo o impede de fazê-lo. Daí, surgem as conseqüências.
capa Estrutura-se assim:
Seguindo a forma aristotélica de se contar uma história
Alguém ou algo
verbo impedimento consegue? com início, meio e fim, passemos ao primeiro ato, ou seja,
mais de um alguém
o começo da história. Seguem algumas maneiras de iniciar um
ama ele mesmo sim
relato:
mulher deseja outra pessoa não
- Metáfora: Muito usual. Uso de cenas que se equivalem a

universidade
soldado teme a natureza
uma situação. Ex: um passarinho preso em uma gaiola. Ex: El
velho quer os parentes
Valle de Elah (Paul Haggis) - 2007
ladrão foge de Consequências
- Começo circular: Quando a história inicia-se pelo fi-
nal, ou seja, narrada em flash back. Ex: To be or not to be
. O conflito

sumário
(Ernes Lubitch) - 1942
O conflito é resultado de duas forças que se contrapõem. - voz em off
A base de um relato está na profundidade das emoções. - Direto: mostra-se o meio da ação. Ex: o homem em seu
Um roteiro deve conter um numero razoável de conflitos, sem trabalho no filme “O apartamento” ( Billy Wilder)
pecar pelo excesso: nem poucos, nem muitos! Uma história, Enfim, como se inicia um roteiro? O mais perto possível

próxima portanto, é construída com vários conflitos, porém existe do final!


um principal. Sabe-se qual é o conflito principal pelo tempo
. 2º Ato: desenvolvimento
dedicado a ele, bem como pela indicação de solução de maior
intensidade emocional, deixada para o final. É a parte mais longa. É neste segundo ato que se desen-
As tramas devem ter avanços (eu quero comprar frutas) e volvem os conflitos das tramas. Cada trama tem seu próprio
anterior retrocessos (há obstáculos que me impendem). conflito, ou seja, seu “ponto de giro”, que acelera a ação. O
O conflito deve ser: verossímil, forte, humano e que afete chamado “ponto de giro” é uma informação, uma situação ines-

126
perada. mina com o roubo da bicicleta do personagem Ricci.
Em todo relato, deve-se ocorrer algo interessante, ou O “ponto médio” de um roteiro é uma situação, no meio do
seja, um conflito. Ex: O personagem entra em crise. filme, que é intensa, porém não é o clímax (ponto máximo de
intensidade), pois durante toda a trama, há variações de in-
. 3º Ato: final
tensidade emocional. O “ponto médio” em Ladrões de Bicicleta
é o momento do encontro de Ricci com o velho.
É o mais curto de todos os atos. Neste momento, resolvem-
Há um “nó de trama”4 que deve ser desfeito na solução do
-se todas as incógnitas apresentadas no primeiro ato: o pro-
conflito: inicia-se com as cenas na sala da vidente até quando
tagonista conseguirá seus objetivos? Que conseqüências trarão
fica claro para Ricci que ele não tem outra saída senão rou-
suas ações?
bar a bicicleta.
É no terceiro ato que se resolvem todas as expectativas,
Clímax principal: Ricci consegue ou não consegue a bici-
capa
em ordem de prioridade!
cleta?
Análise de Filme Epílogo: o filho é a esperança do pai que se torna igual
a todos os miseráveis.
- Ladrões de bicicleta - Vittorio de Sica (1948)- um exem- - Os incompreendidos (Les Quatre Cents Coups) – 1959 –
plo de excelência em roteiro cinematográfico. François Truffaut
Sinopse: (...) um desempregado, Antonio Ricci, consegue
universidade
Sinopse: Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud) é o filho ne-
uma vaga de emprego como colador de cartazes. Mas a exigên- gligenciado de Gilberte Doinel (Claire Maurier), que parece
cia para a obtenção da vaga é possuir uma bicicleta. Ricci ter tempo para tudo menos o bem-estar da criança. Julien Doi-
a possui, mas ela está empenhada. Maria, sua mulher, decide nel (Albert Rémy) não é o pai biológico, mas cria o menino
empenhar os lençóis da cama e retira, na mesma loja de penho- como se fosse seu filho. Gilberte está tendo um caso e não se
sumário res, a bicicleta. Antonio Ricci consegue o emprego e começa surpreende quando, por acaso, Julien fica sabendo que Antoine
a trabalhar numa manhã de sábado. Entretanto, enquanto colava não está indo à aula, pois ela sabia que na hora do colégio
cartazes, Ricci tem a sua bicicleta roubada. Desesperado, ele o filho a tinha visto com seu amante. A situação se agra-
tenta encontrá-la com a ajuda do filho Bruno. Ele busca apoio va quando Antoine, para justificar sua ausência no colégio,
da polícia e dos amigos. Mas é procurando por conta própria,
próxima
“mata” a mãe. Quando seus pais aparecem na escola, a verdade
ao lado de Bruno, que Antonio Ricci se encontrará imerso numa é descoberta e Julien o esbofeteia na frente de seus colegas.
experiência de dor e angústia (...). 3
Após isto ele foge de casa e arruma um lugar para dormir. Pa-
O início do filme está diretamente ligado ao final. Mos- ralelamente seus pais culpam um ao outro pelo comportamento
tra-se um personagem honesto, pai de família para que, ao fi- dele, após lerem a carta na qual ele se despede. No outro dia
nal, o roubo da bicicleta testemunhado pelo filho torne-se um Antoine vai à escola normalmente. Lá sua mãe o encontra e se
anterior contraste que causa impacto. mostra preocupada por ele ter passado a noite em uma gráfica.
O primeiro “ponto de giro”, ao final do primeiro ato, cul- Ela alegremente o aceita de volta, mas os problemas não aca-
3 http://www.telacritica.org/LadroesDeBicicleta.htm 4 O chamado “nó de trama” trata de elementos que fazem a trama avançar(um ato) e retroceder (impedimentos)

127
bam. Antoine se desentende com um professor, que o acusa de da personagem protagonista.
plagiar Balzac. Como ele odeia a escola, sai de casa de novo - Antagonista: Deve ser mais forte que o protagonista. O
e para viver é obrigado a fazer pequenos roubos. 5 Antagonista é um tipo de oponente: além de colocar obstácu-
los à concretização dos desejos e objetivos da protagonista,
Análise do roteiro:
ainda disputa o mesmo objeto pretendido por ela. Esse objeto
pode ser literalmente um objeto, uma idéia, uma pessoa.
Prólogo: Imagens da cidade
- Secundários: ajudam o protagonista a conseguir seus ob-
Ponto de giro 1: O menino vê sua mãe beijando um homem
jetivos.
Ponto médio: O menino deixa uma carta para seus pais.
- Informantes: Dão informações sobre a vida dos persona-
Quando lhe perguntam sobre sua mãe, ele diz que ela está mor-
gens ou sobre o tema.
ta. Na verdade, ela está morta para ele.

capa
Ponto de giro 2: O menino rouba a máquina e desestrutura- A construção dos personagens
-se.
Clímax: O menino está jogando futebol, foge e chega ao É necessário conhecer muito o protagonista. Precisa-se
mar. pensar, de antemão, seus aspectos físicos e psicológicos:
estatura, idade, cor, aparência, vestuário, sua conduta, es-
Os personagens
tado civil, profissão e demais características que forem im-

universidade Em um relato, os personagens cumprem a função principal de


portantes para a história. Os elementos que caracterizam o
protagonista e o antagonista devem ficar evidentes. Porém, o
levar a cabo as ações que desenvolvem as tramas.
caráter do protagonista não deve ser explicitado imediatamen-
Todos os personagens são importantes porque geram confli-
te, apenas os fatores mais importantes. As informações sobre
tos e subconflitos. Os personagens podem exercer as funções
sumário
o caráter e conduta do protagonista devem surgir ao longo da
de:
história.
- Protagonista: Possui desejos e busca seus destino, seu
Os personagens principais devem ser perfeitos! O compor-
futuro. Merece um estudo complexo e detalhado de seu caráter
tamento de cada um deve estar de acordo com o próprio caráter.
e personalidade. Os conflitos desenvolvem-se em torno deste
personagem.
próxima
Os diálogos
Uma das maneiras para determinar a forma de caráter de
protagonista se efetuará mediante um contraste. Exemplo: se a 1)Verdadeiros: as falas dos personagens são coerentes com
intenção é ressaltar o caráter tímido de um personagem, cons- suas personalidades, psicologia ou classe social.
trói-se um personagem secundário que não para de falar. Para 2) Vazios: Não expressam nada. Muito longos.
se destacar o caráter de um policial, ele deverá ser cercado 3) Longos: Os diálogos não devem ter mais que três linhas.
anterior de personagens corruptos. 4) Reiterativo: O que se disse uma vez, não se repete. A
- Oponente: Oponente é aquele que coloca obstáculos à ação não ser que seja muito importante!
5 http://www.adorocinema.com/filmes/incompreendidos/

128
5) Muito curto: Deve ser usado quando for extremamente Em caixa alta e negrito, registra-se o número da cena, lo-
necessário. cação e turno. Em caixa baixa, sem negrito, descreve-se a cena
6) Poético: Aproxima-se do diálogo vazio. Somente deve e diálogos (se houver). Segue exemplo de um trecho do filme
ser usado quando está relacionado à construção do personagem. Felicidade é.... estrada, Jorge Furtado, 1995.
7) Inadequados: Os personagens são confusos, pouco cla-
ros. CENA 1- BANHEIRO/INTERIOR, DIA
A água morna de uma banheira que se enche cobre lentamente
A construção dos diálogos
o corpo de Maria.
LUÍS (OFF)
- A informação mais importante que se deseja transmitir
Você acredita no destino? Ah, o destino, sequência impre-
por meio do diálogo deve estar sempre no final.
visível de fatos que fazem a vida do homem, independente de
capa
- O diálogo entre personagens pode ser utilizado para re-
sua vontade. Alguns o chamam de sorte, fado, fortuna, sina.
forçar idéias que se deseja transmitir.
Seja com que nome for, destino é aquilo que acontecerá com
- As contestações devem ser acompanhadas de gestos e ati-
você no futuro.
tudes que as reforcem.
- É conveniente marcar as pausas. Ex: CONCLUSÃO

universidade PABLO Fazer um filme não é simplesmente ligar uma câmera. Para
(muito alegre) se desenvolver uma história, é necessário estruturá-la. Aris-
COMO SE CHAMA? tóteles apresenta a fórmula: apresentação/conflito/desenla-
(pausa, observando Elisa) ce. No primeiro ato, é importante definir e apresentar os

sumário
QUERO DIZER, QUANTAS HORAS SÃO? personagens principais. No entanto, os conflitos (tendo um
Esse diálogo demonstra que o personagem não quer simples- principal) é que vão manter o interesse do público na história
mente saber a hora e sim conhecer Elisa. narrada. E o final corresponde ao início do filme. Por isso,
- A construção do silêncio: Deve ser utilizado sempre que antes mesmo da escrita, é preciso saber como será o desenlace
possível. No entanto, saber usá-lo na hora certa é um grande da história.

próxima desafio para os roteiristas. Na maior parte das vezes, signi- Se, no começo, a protagonista mostra-se romântica, no fim
fica “atenção” e reflete tensão dramática. do filme ela não pode se posicionar de forma oposta. Também
- Contrastar diálogos e ações. Ex: se desejo mostrar uma não pode haver um fator externo ou personagem que apareça no
mulher alegre, contrasto-a com uma amiga triste. final somente para resolver o conflito. Se um casal românti-
co briga por algo ao longo do filme, o conflito deve ser re-
anterior solvido entre eles. Não se pode, por exemplo, criar a visita
inesperada de um amigo (que não apareceu em momento algum do
O ROTEIRO filme) para ajudar a resolver o problema.

129
Não existe relato sem conflito, sem tramas. Um filme de
cerca de 90 minutos, por exemplo, tem muito mais que uma tra-
ma. Ao contrário, um curta-metragem se restringe a uma trama
apenas. E o documentário? Ah! O Roteiro de Documentário é as-
sunto para o III Seminário Histórias de Roteiristas.
Independente do gênero, o roteiro nada mais é que a orga-
nização dramática do filme.

Referências
• MACDOWELL, Cláudio. Ex-diretor do departamento de roteiro da EICTV e de-
dica-se a lecionar técnicas de roteiro em cursos especializados no Brasil

capa
e em outros países da América Latina.Oficina de roteiro ministrada na 5ª
Mostra de Cinema de Tiradentes/MG, 2002.
• MADRID, Juan. Espanhol, escritor de novela consagrado pela crítica. Curso
ministrado na Escuela Internacional de Cine y Televisión (EICTV), em Cuba,
janeiro/2009.
• POMMER, Mauro. Professor da Universidade Federal de Santa Catarina. Aulas
ministradas na 1ª Pos-Graduação em Cinema da PUCMinas, em janeiro de 2001.

universidade

sumário

próxima

anterior

130
tomada como intercessão o conto O jogador de xadrez de Mael-
O AUTÔMATO DE MAELZEL E O zel de Edgar Allan Poe (Poe,1981). Este conto ficcional narra
NARRADOR INVISÍVEL6 algumas suposições sobre o funcionamento de um autômato, uma
máquina rústica, inventada na Hungria no século XVIII.
O autômato, uma máquina que imitava o ser humano, se-
ria convidado a jogar xadrez com espectadores voluntários
em apresentações públicas em Paris, Viena e outras cidades
do continente Europeu. A apresentação provocava uma espécie
C ristiane L age de M atos de “encantamento” no público pelo fato do autômato jogar com
Mestre em artes visuais pela UFMG - Professora da Faculdade Estácio de Sá -
BH - cristianelagem@gmail.com
maestria o xadrez. O caráter ilusório das apresentações pú-
blicas do autômato se dava pelo fato de que o jogo de xadrez
capa Resumo seria complicado o suficiente para um ser humano, mais ainda
para uma máquina tão arcaica como o autômato de Maelzel.
O conceito de narrador invisível no cinema é analisado a Para “garantir” ao público a não intervenção humana nas
partir do conto “O autômato de Maelzel” de Edgar Allan Poe, jogadas do autômato, o Senhor Maelzel, seu proprietário, o
enquanto forma de intercessão entre diferentes conceitos re- movimentava ao redor do palco e garantia, pela estrutura da

universidade
lacionados à construção da narrativa fílmica. caixa em sua frente e do interior do autômato, a impossibili-
Palavras-chave: narrativa, roteiro, cinema, narratologia, dade de manipulá-lo ou através do subsolo ou no interior da
dramaturgia. “máquina”. A exibição incluía a exposição do interior do au-
tômato: abrem-se em determinada ordem compartimentos e gave-
Abstract tas: à frente do corpo do mecanismo abre-se um armário, depois
sumário The concept of invisible narrator in the film is analyzed
algumas gavetas embaixo deste armário. O autômato era vira-
do e suas costas e estas exibidas para o público onde seriam
from the story “The automaton Maelzel” by Edgar Allan Poe, as
abertas outras gavetas e portas na altura dos rins. Esse exame
a form of mediation between different concepts related to the
certificava a inexistência de pessoas operando os gestos do
construction of film narrative.

próxima
autômato em seu interior. A idéia seria dissimular qualquer
Keywords: narrative, screenplay, film, narratives, dra-
intervenção humana:
maturgy.
Em geral, cada espectador fica desde então convencido de que viu e
Escolher uma base para a compreensão da narrativa fílmica
examinou completamente, simultaneamente, todas as partes constitutivas do
não é tarefa fácil: existem diferentes abordagens, algumas autômato, e a idéia de que uma pessoa possa, durante uma exibição tão

relacionando cinema e literatura e outras aprofundando em as- completa do interior, ter ficado lá escondida é imediatamente rejeitada
por todos, como excessivamente absurda...(POE, 1981,p. 409).
anterior pectos específicos da linguagem do cinema. Nesse sentido, para
facilitar o trânsito por diversas linhas metodológicas, foi Dada a simplicidade do mecanismo e a “provada” ausência
6 Pesquisa desenvolvida para o Mestrado em artes visuais – Escola de Belas Artes - UFMG de truques, era espetacular observar que o autômato jogaria

131
independente da intervenção humana. No século XVIII, época autômato e suas jogadas sagazes contra um adversário da pla-
deste “famoso” autômato, alguns cientistas tentaram explicar téia. Embora saibamos seguramente que uma máquina tal qual
seu funcionamento. No contexto deste conto fantástico, são o autômato do senhor Maelzel não podia jogar xadrez. Para o
enumeradas algumas possíveis explicações científicas para o espectador seria preferível a aceitação de um fenômeno “má-
fenômeno. O “óbvio” a ser provado pelos cientistas e pesqui- gico”, ilusionista.
sadores sobre a apresentação do Sr. Maelzel era que existia Assim acontece com alguns filmes e sua forma narrativa
realmente a intervenção humana no processo e a dificuldade que corresponde ao que Vanoye chama de cinema clássico, onde
maior era explicitar a maneira como isso acontecia. Muitos se esconde a intervenção do narrador. Isso se assemelharia
dos estudos eram bizarros, outros, entretanto, continham su- às estruturas romanescas aplicadas ao cinema e promoveriam o
posições que poderiam ser tomadas como “verdade”. “grau zero” da escrita cinematográfica”, ou seja, oculta-se
Neste contexto e no desenrolar da explicação do mecanismo qualquer intervenção que remeta aos procedimentos típicos da
capa dado pelo conto fantástico de Poe, pode-se compreender que a construção de um filme, de um texto audiovisual (BURCH, 1977.
lógica do funcionamento do autômato de Maezel era uma ques- p.19).
tão de narrativa, ou seja, tudo dependeria da ordem como são Surge então o problema da definição de quem narra o fil-
expostos os mecanismos da máquina, e em como se esconderia me “clássico” em que se esconde o narrador, se nele não se
aquela pessoa que manipulava as jogadas. A melhor explicação manifestam claramente os dêiticos, termo designado por Metz

universidade
estava em um homem que se escondia conforme a alternância do para definir as marcas do narrador num texto literário (METZ,
“abrir e fechar“ de portas e gavetas antes da exibição e que 1991, p.187). Sabe-se que há um manipulador humano por trás
permaneceria dentro do autômato durante as jogadas, manipu- de toda narrativa, mesmo que ele se esconda. Este procedimen-
lando-as. Este homem veria o tabuleiro a partir do peito da to em que se desconhece a existência de um “manipulador” da
máquina coberto de um tecido translúcido, semelhante a uma narrativa vai de encontro aos conceitos fundamentais de di-
sumário espécie de gaze. A presença de velas em tamanhos diferentes e ferentes teóricos que correspondem ao “manipulador do autôma-
expostas próximas ao mecanismo serviria para criar uma profu- to” seriam eles: instância da enunciação (Metz), meganarrador
são de raios de luz que ao mesmo tempo iluminavam o tabuleiro (André Gaudreault) ou grande Imaginador/ mestre de cerimônias
para o manipulador e distraíam o público a partir do cruza- (Albert Laffay).

próxima
mento de raios de luz gerados pelos diferentes tamanhos e pela Os filmes do cinema clássico, chamados por Ismail Xavier
disposição das velas. de filmes de “decupagem clássica”, são aqueles onde se encon-
Independente da veracidade da história de Poe, o que nos tra a mesma estrutura do espetáculo do autômato de Maelzel.
interessa aqui é a analogia com o funcionamento da narrati- Onde há uma estrutura manipulada e o ocultamento do narrador
va: alguma “coisa” acontece, com um princípio e um fim, e na “escrita” cinematográfica. Esta seria uma forma de enten-
como espectadores, não percebemos o seu mecanismo de ilusão. der através da alegoria as possibilidades e a amplidão de uma
anterior O espectador aqui não ousaria defender a idéia de que existe abordagem sobre esse tema tão vasto e amplo.
a intervenção humana durante a seqüência da apresentação do Afinal, neste contexto, como se define a narrativa clás-

132
sica, ou a decupagem clássica? O conceito de Albert Laffay se processam as articulações dos raccords e do roteiro. Como
(LAFFAY, 1964) de “mostrador de imagens” ou “grande imagina- o primeiro determina o segundo e vice-versa. Existem ainda
dor”, como aquele que ordena o relato, seria uma forma de nar- alguns conceitos e linhas de análise levantadas por teóricos
rar em que se elimina completamente o narrador do processo de tais como Etienne Souriau e Ismail Xavier. Nestes autores
comunicação, seria o equivalente a determinado narrador lite- será possível encontrar “algumas verdades” assim como fez Poe
rário. Algumas marcas deste narrador podem aparecer ao longo (embora numa situação ficcional) diante dos trabalhos cien-
do relato mas neste caso, elas não são comuns. Esta definição tíficos sobre o jogador de xadrez, no conto citado acima, de
“a encontramos com nomes distintos, por trás da pesquisa de forma a solucionar o “problema” do ilusionismo.
diversos teóricos do cinema, preocupados com os problemas do Aqui, “nosso” autômato, ponto de partida deste trabalho,
relato fílmico que determinam a responsabilidade por tal ou será o cinema, e trataremos dos meios pelos quais decifrare-
qual relato cinematográfico ao narrador invisível” (GAUDRE- mos seu jogo que é a narrativa. Segundo Albert Laffay (LA-
capa AULT,1995. p.22). FFAY, 1964), que define a narrativa em oposição ao mundo, uma
O conceito de “narrador invisível” pode vir a somar aos narrativa é tudo aquilo que : é finito; tem uma trama lógica,
demais conceitos já citados sendo também análogo ao autômato um discurso; é algo que narra e representa, contrariamente ao
de Maelzel criado por Poe. Ainda com relação ao conto e bus- mundo que simplesmente é. Partindo dos pressupostos de La-
cando uma analogia sob um outro enfoque, Poe relata as buscas ffay, Metz vai mais longe ao definir uma narrativa: é aqui-

universidade
de explicações que na verdade não esgotam o assunto sobre o lo que tem um ínício e um final; é uma seqüência duplamente
manipulador do espetáculo do autômato. Da mesma maneira po- temporal, pois transforma um tempo em outro tempo; Metz diz
demos comparar os estudos sobre narrativa (embora sejam mais ainda que toda narração é um discurso e que a percepção da
complexos que aqueles citados por Poe sobre o autômato) que narração irrealiza a coisa narrada (que é o que aconteceria
aprofundam questões e conceitos que poderão ser tomados como com o autômato de Maelzel); e por fim, um relato é um conjunto
sumário verdadeiros em alguns aspectos relacionados ao objeto dessa de acontecimentos (LAFFAY, 1964).
pesquisa. A princípio, alguns estudiosos pensaram a narrativa de
Neste sentido, não existe uma teoria específica da narra- uma maneira mais genérica, como é o caso de Goethe, Gozzi e
tiva e sim, estudos importantes que trazem linhas de análise Polti (GOETHE et Al. s/erd.), que definiram a disponibilidade

próxima
interessantes para o filme objeto desta dissertação. Talvez a de 36 situações dramáticas e que estas, estariam contempladas
mais interessante delas seja a abordagem que Noel Burch apre- em “todas” as histórias ficcionais. O por quê do número trin-
senta sobre o raccord no cinema e que mais tarde é retomada ta e seis não seria claramente explicitado, mas para estes
por Deleuze. E ainda, os estudos de Gaudreault e Jost sobre autores, a força motivadora da narrativa seria conduzida por
o relato cinematográfico que integra as teorias do relato às essas “situações”.
teorias da montagem. Retomaremos estes autores mais detalha- Vejamos algumas delas, como por exemplo a de número 15:
anterior damente ao longo deste trabalho. adultério mortal; a de número 25: adultério; 26: crimes de
O objetivo no que concerne à narrativa é analisar como amor; 27: Ser informado da desonra de um ser amado; 28: Amores

133
proibidos. Souriau classifica como confusa a lista e ques- uns ao outros e à ação. “Este personagem é como que “signado”
tiona o paradoxo da separação entre por exemplo adultério e ou marcado a cada momento deste destino pelo fator que ele
adultério mortal, pois seriam do mesmo gênero e poderiam en- representa neste sistema de forças.”
globar uma mesma função. É questionada ainda a razão da se- Para Propp, as funções são: O mau, o doador, o ajudante, a
paração de crimes de amor e adultério, sendo que estes pode- princesa, o mandante, o herói e o falso herói. A articulação
riam, de alguma forma estarem inter-relacionados. A respeito destas funções pontua a história. Infelizmente pouco conhecida
das 36 situações dramáticas, Renata Palottini comenta que as nos anos em que foi publicada, a obra de Propp vai ser retoma-
“situações” seriam mais gêneros de acontecimentos ou assuntos da só mais tarde, por estudiosos da narrativa nos anos 1960,
para o desenvolvimento da história. Entretanto este estudo principalmente na França. Um interessante estudo de Etienne
foi fundamental para a delimitação das primeiras estruturas Souriau vem contradizer e até mesmo ironizar as trinta e seis
da narrativa que seriam mais tarde reformuladas por autores situações dramáticas de Gozzi-Goethe-Polti, considerando-as
capa tais como Vladimir Propp e Etienne Souriau (PALLOTINI, 1989, mera especulação matemática sem validade científica :
p.129). Acreditamos que a análise exaustiva do que é uma situação revele aí
uma combinação, muito delicada e variável, de certo número de fato-
Interessante e pouco utilizada nos estudos sobre narrati-
res simples, poderosos e essenciais. Procuramos estes fatores sim-
va cinematográfica é a obra Morfologia do conto maravilhoso ples, essas “funções dramatúrgicas” essenciais, e não as encontramos
de Vladimir Propp (PROPP, 1984), um formalista russo 7II que em grande número : só existem seis ou sete merecedoras de apreciação
(SOURIAU, 1993,p.12).
universidade
prepara o caminho para os estruturalistas. Os estruturalis-
tas permitiram que as ciências humanas e as artes inclusive Etienne Souriau, filósofo francês, propõe a partir de uma
criassem métodos específicos, livrando-se das leis mecânicas análise estrutural, estabelecer funções que se repetiriam
de causa e efeito e sem por isso terem que deixar de ser cien- dentro da narrativa teatral (assim como já teria feito Propp
tífica: ”A concepção estruturalista veio mostrar que os fatos com relação às fábulas populares da Rússia). Sua obra mais
sumário humanos assumem a forma de estruturas, isto é, de sistemas famosa, As Duzentas mil situações dramáticas, relaciona seis
que criam seus próprios elementos, dando a estes sentido pela funções dramáticas encarnadas em grande parte pelos persona-
posição e pela função que ocupam no todo” (CHAUI, 2002). gens, que vivenciam, por sua vez, uma diversidade de relações
Na obra de Propp são analisadas fábulas populares da Rús- não quantificadas, em maior número que duzentas mil, compara-

próxima
sia e delas retirados alguns padrões: funções de personagem, das pelo autor ao número das constelações celestes. “As si-
que são os condutores da ação. A função está diretamente li- tuações são limitadas, embora as maneiras de narrá-las sejam
gada ao funcionamento da situação dramática, ou seja, aquilo infinitas” 8. Para Souriau, o conceito de situação dramática
que impulsiona a ação. A situação dramática está esboçada num pode modificar-se:
sistema de forças diretamente ligado, em nosso caso, aos sig- É uma forma, mas uma forma-potência: é a forma intrínseca do sistema

nos específicos da expressão cinematográfica. Este sistema de de forças encarnada pelos personagens, num dado momento, ficando bem
anterior forças é experimentado pelos principais personagens num certo
claro que essas forças residem nos personagens, e estão neles ; mas
que, por outro lado, transcendem-nos, ultrapassam-nos, prevalecem ou
momento da ação. Os personagens estão ao mesmo tempo ligados
7 2 Que contava com o estudo da forma e não do conteúdo. 8

134
pairam sobre eles, já que seu sistema morfológico, que os cinge e tre Sol e Marte. Ele é quem faz pender a balança, quem decide
por assim dizer está enovelado neles, preside progressivamente todo o
se o que se deseja, se o bem desejado, é atribuído ou não. E
universo teatral do qual esse centro vivo é o coração pulsante (SEN-
NA, 1993, P.58). por fim a sexta função, representada pelo símbolo astrológico
Lua: o espelho de força ou o adjutor que exerce o papel de
O que leva o personagem a agir pode ser o motivo, a inten-
co-interessado, cúmplice, ou auxílio e salvador. Ele age no
ção ou o objetivo e não a situação. As funções por outro lado
mesmo sentido de uma das forças dramáticas já apresentadas e
não significam designação ou caracterização dos personagens,
que a reforça no enredo.
que são para eles como que marcas provisórias dentro de um
A obra de Souriau foi elaborada para a narrativa teatral,
dado momento na ação.
mas como se percebe no exemplo de sua aplicação a um filme,
Seriam seis as funções relacionadas por Souriau aos sím-
demonstra-se útil para a construção de roteiros em cinema,
bolos da astrologia: a primeira delas sob a marca do signo
sendo hoje bastante utilizada por dramaturgos e roteiristas.
capa astrológico de Leão, seria a força temática. Ela pode ser re-
Neste sentido, comenta Orlando Senna a respeito dos paradigmas
presentada por um sentimento, como por exemplo, uma paixão, e
que existem no universo dramatúrgico com relação ao roteiro:
neste caso seriam apenas duas as grandes paixões: quando se
Certas estruturas podem funcionar de maneira genérica em
tem algo que não se quer ou quando se quer algo que não se tem
determinadas épocas, culturas ou momentos psicossociais dos
(o temor e o desejo). Ou uma segunda possibilidade é o perso-
povos. Isto é ainda mais certo se nos referirmos à linguagem
nagem marcado (signado) por esse sentimento e que neste caso

universidade
audiovisual, a isto que alguns analistas chamam superdrama-
representa também a força temática.O personagem sob a influ-
turgia (SENNA, 1993, p.57).
ência da Força temática ou Leão é aquele que possui a força
As Duzentas mil situações dramáticas apresenta-se, mes-
que gera todo o restante da situação (SOURIAU, 1993, p.61).
mo depois de mais de trinta anos de sua primeira publicação,
A segunda função é representada pelo símbolo astrólogico
atual, pois pensa a construção da história enquanto “enunci-
sumário Sol: o Bem cobiçado ou o representante do bem. Pode ser mani-
ável”, ou seja, conta os personagens e as coisas, concebendo
festado através de um sentimento ou materializado em um obje-
a narrativa enquanto função.
to. A terceira função é representada pelo símbolo astrológico
Tomando como princípio a narrativa que precisa de uma
Terra, o astro receptor, ou o obtentor. A função em que seu
história mais os meios para transmiti-la, sabendo que esses
representante deseja o bem para si mesmo ou para alguém. A

próxima
meios podem ser os signos lingüísticos e aqueles especifica-
quarta função é representada pelo símbolo astrológico: Marte:
mente cinematográficos, recorremos mais uma vez à alegoria do
o oponente representa o obstáculo, o opositor. Pode surgir
autômato de Maelzel. Tem-se um espetáculo, no nosso caso o
não exatamente como um personagem opositor, mas como forças
cinematográfico; um narrador que se dissimula, que correspon-
tais como a “opinião pública” ou uma característica física ou
de à “narrativa clássica”; um tabuleiro de xadrez onde cada
emocional do personagem. A quinta função é representada pelo
personagem é uma peça análoga às funções de Souriau e ainda,
anterior signo astrológico Balança: o árbitro ou atribuidor do bem que
uma forma de articulação deste jogo através dos signos pró-
não implica necessariamente no árbitro entre dois rivais, en-
prios ao cinema: a narrativa a partir da montagem e o sentido

135
produzido pelos raccords.

Referências Bibliográficas
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• CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 12.ed. São Paulo: Ática, 2002.
Cap.3. p.314-333.
• DELEUZE, Gilles. A Imagem-Tempo: cinema 2. São Paulo:Brasiliense, 1990.
338p.
• FIELD, Syd. Manual do roteiro. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995.

capa • GAUDREAULT, André; JOST, François. El relato Cinematográfico: Cine y Nar-


ratologia. Barcelona: Paidós, 1995. 172p.
• GOETHE, J. W. et al. As 36 situações dramáticas. São Paulo: Ática, s/d.
• GUIMARÃES, César. Imagens da Memória : Entre o legível e o visível. Belo
Horizonte : Editora UFMG, 1997. 249 p.
• LAFFAY, Albert. Logique du cinema. Paris: Masson, 1964.
• METZ, C. L’enunciation impersonelle ou le site du film. Paris: Méridiens

universidade
Klincksieck, 1991. p.187.
• PALLOTINI, Renata. A construção da personagem. São Paulo:Ática, 1989.
• POE, Edgar Allan. Histórias Extraordinárias. São Paulo : Abril cultural,
1981. p.399-430.
• PROPP, Vladimir. Morfologia do Conto Maravilhoso. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1984.

sumário • SENNA, Orlando. Existen más misterios entre la palabra y la imagem de los
que suele suponer nuestra vana filosofia. Así de simple 1. San Antonio de
los Baños, jul.1993.
• SOURIAU, Etienne. As 200.000 situações dramáticas. São Paulo : Ática,
1993. 229p.
• VANOYE, Francis; GOLIOT-LÉTÉ, Anne. Ensaio sobre a Análise Fílmica. Cam-

próxima
pinas : Papirus, 1994. 152 p.
• XAVIER, Ismail. O Discurso Cinematográfico: A Opacidade e a Transparência.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. 151p.

anterior

136
perspectivas mais amplas sobre nossa cultural.
O ENSINO DE ROTEIRO Mas o que são essas “perspectivas amplas”?
Desconfio desses cursos de Sociologia da Comunicação,
porque desconfio das grandes teorias. Muitas vezes vejo alu-
nos perseguindo aquilo que eles acham que nós queremos que
eles façam, ou seja, eles querem conformar seu trabalho às
expectativas criadas pela leitura dos textos teóricos que
R oberto M oreira
entregamos. Isso é terrível porque os condena ao passado. A
Professor, doutor, roteirista e diretor - Umiversidade de São Paulo
beleza da arte é propor leituras inesperadas do mundo, e, por
A decisão de prosseguir a carreira acadêmica em paralelo à definição, deve procurar o que não foi dito. Sobrecarregar o
minha atividade de cineasta, nasceu da necessidade de escla- jovem artista com grandes narrativas da cultura, faz com que
capa recer as técnicas artísticas ligadas à direção e ao roteiro. ele se veja como mais um evento nessa tradição e dificulta o
No meu curso de graduação, apesar do esforço de meus professo- surgimento do novo. Eles estão muito angustiados procurando
res, apenas resvalamos num universo que me fascina até hoje. respostas para tudo. É melhor deixar que eles mesmos construam
Tratar a produção artística como um objeto de estudo e ensi- suas respostas e não se contentar com a repetição de respos-
no me parece imprescindível para o audiovisual brasileiro se tas que julgamos correta. Condenar essa atitude não significa
confrontar com outras cinematografias cuja formação artística
universidade
que os alunos não devam ser ilustrados, mas sim que deve-se
conta já com uma longa história. refletir em como essas leituras devem acontecer articulada à
Na academia ainda vige uma concepção escolar e romântica atividade poética.
do ensino das artes: trata-se de apreender a história da dis- O pressuposto mais perverso dessa visão acadêmica do co-
ciplina e seus grandes teóricos, ou seja, de ilustrar o futu- nhecimento é que a prática artística não se ensina, porque
sumário ro artista. Essa visão teve sua expressão mais caricatural no ela é um dom. Até hoje, na Faculdade de Filosofia, Letras e
curriculum dos cursos de comunicação e artes que surgiram nos Ciências Humanas da USP o ensino da literatura como ativida-
anos 60 e 70. Para “ilustrar” o artista/comunicador, estu- de criativa não é praticado. Me parece que o Curso Superior
dava-se Sociologia da Comunicação, Filosofia da Comunicação, do Audiovisual, a partir do trabalho pioneiro de Jean-Claude
Psicologia da Comunicação, História das Artes, etc. Eu mesmo
próxima
Bernardet nos anos 90, foi o primeiro a desenvolver de modo
senti na pele a inutilidade desses cursos Readers Digest de sistemático a escrita criativa no Brasil. A título de con-
humanidades. traste, nos Estados Unidos, em 1905 George Pierce Baker já
O melhor caminho é o inverso, do particular para o geral, possuía um workshop de escrita para teatro em Harvard, do
porque aí sim o aluno percebe o conceito no próprio material qual participou Eugene O’Neill, e em 1925 fundou o primeiro
com o qual está trabalhando. Os alunos de audiovisual querem curso com diploma em dramaturgia na Yale University. Em 1930
anterior colocar a mão na massa e temos que partir dessa necessida- foi criado por Norman Foerster o primeiro curso de creative
de autêntica, afinal eles são artistas, para daí então abrir writting, o The Iowa Writers Workshop. De lá para cá muitos

137
autores são formados em escrita criativa. Para citar os mais ficilmente reconhecem a matéria que faz a dramaturgia. Todo
conhecidos: Michael Chabon, Kazuo Ishiguro e Ian McEwan. o esforço da disciplina Dramaturgia Audiovisual é encontrar
Transformar a escrita numa atividade acadêmica não “seca” estratégias que coloquem em evidência esta estrutura difícil
a criatividade, pelo contrário, revitaliza a crítica e a his- de ser percebida.
tória da literatura. No nosso departamento, Ismail Xavier Primeiro, tentei estudar textos clássicos do teatro (Édi-
sempre defendeu que era importante para o crítico de cinema po Rei, As Troianas, Macbeth, Casa de Bonecas, A Gaivota e Os
realizar o exercício de fazer um filme. Só assim ele poderia Ossos do Barão), com a expectativa de chamar a atenção para
entender a dificuldade da empreitada e romper com uma visão o desenvolvimento histórico de diferentes estratégias drama-
ingênua e transparente do meio que estuda. Isso também vale túrgicas. É claro que o contato com tais textos é de grande
para o estudante de literatura. Quem já tentou escrever um valia para os alunos, mas infelizmente a dificuldade deles em
soneto e enfrentou os rigores da metrificação, lê Camões com dominar os conceitos básicos de dramaturgia persistiu. Eles
capa mais cuidado. Estes dois movimentos, análise e composição, se perdiam em meio a tantas referências.
já estão interligados no texto fundador da crítica literária Resolvi então concentrar todo o semestre no estudo da
ocidental, a Poética de Aristóteles. Nele Aristóteles chega forma do curta-metragem de ficção: partindo do surgimento do
a dar conselhos ao dramaturgo. Recomenda, por exemplo, que o conto e de sua consolidação nas teorias de Edgar Allan Poe,
autor visualize a cena que está descrevendo, ou que, antes de passando pelo problema da transposição da literatura para o

universidade
escrever a peça, faça uma escaleta da história. cinema e chegando na análise de vários curta-metragens. O
Portanto, teoria e exercício devem andar juntos e este tem curso pretendia, assim, esgotar um formato que para os alu-
sido o grande desafio que enfrentamos nas disciplinas de dra- nos é fundamental, pois será aquele usado nos seus trabalhos
maturgia do Curso Superior do Audiovisual. O curriculum prevê de conclusão do curso. Também a forma curta parece mais sin-
quatro matérias: duas obrigatórias, Dramaturgia Audiovisual e tética, mais possível de ser apreendida e, importante, mais
sumário Roteiro 1, e duas optativas: Roteiro 2 e Roteiro 3. fácil de ser exibida em sala de aula, abrindo a possibilidade
Desde que o curso foi criado dez anos atrás, tenho minis- de apresentar vários exemplos. Ao final do semestre foi no-
trado Dramaturgia Audiovisual e como este é o primeiro con- vamente surpreendente a dificuldade dos alunos em absorver
tato dos alunos com a matéria ensaiei várias estratégias de conceitos fundamentais.

próxima
ensino. Confesso que ainda não encontrei uma boa solução. Na Resolvi então estabelecer um sistema muito gradual, em
verdade, como veremos adiante, a solução pressupõe uma alte- que cada conceito é introduzido lentamente e só seriam estu-
ração curricular. dados aspectos mais complexos de dramaturgia conforme o aluno
A principal dificuldade dos alunos no primeiro ano do consolida o conteúdo anterior. A referência inicial passou
curso é desenvolver a sensibilidade para conceitos básicos a ser o cinema de longa-metragem clássico, cujas estratégias
como conflito, motivação, exposição, caracterização etc. Ao narrativas descrevia com minúcia. Como o filme clássico pa-
anterior contrário da fotografia ou da direção, aspectos visíveis de rece “natural” aos olhos dos alunos, em seguida analisava um
uma peça audiovisual, o roteiro é intangível. Os alunos di- filme com problemas de dramaturgia justamente para mostrar

138
como o efeito de transparência é difícil de ser construído. Escolher uma cena clichê e subvertê-la.
Retomava então as aulas sobre filmes de curta-metragem. Uma Contar uma mesma história de dois pontos de vista dife-
outra abordagem que ser revelou muito produtiva foi analisar rentes.
cenas isoladas. Decompunha a cena em bits e procurava res- Escrever um diálogo sem pé nem cabeça, como se dois loucos
saltar como toda cena tem uma estrutura semelhante, começando estivessem conversando.
com um gancho, uma progressão dramática até o clímax e um novo Escrever uma cena cômica entre duas pessoas reunidas con-
gancho para a próxima cena. A análise de cenas é interessante tra a vontade.
porque permite diferenciar com clareza o estilo e a dramatur- Escrever uma cena que contenha um homem nú no balcão de
gia. O estilo sempre varia, mas os procedimentos dramatúrgi- um prédio.
cos são constantes. Apesar de alguns exercícios serem bem abertos, todos en-
Simultaneamente, buscava articular o conhecimento da dra- fatizam aspectos técnicos da escrita. A questão da busca
capa maturgia à atividade de escrita. No início, a abordagem era criativa do autor só é resvalada no primeiro exercício.
excessivamente escolar: ensinava a teoria, na esperança que Nessa mesma linha trabalha o professor da New York Uni-
os alunos “aplicassem” esse conhecimento em seus textos, ao versity Ken Dancyger, cuja ênfase é desenvolver uma escrita
mesmo tempo que desenvolvia várias atividades práticas. adequada do roteiro, despojada dos vícios literários carac-
Os primeiros exercícios práticos enfatizaram a criativi- terísticos dos estreantes. Os exercícios enfatizavam a ob-

universidade
dade e a habilidade de escrita. Minha referência principal servação da realidade e sua descrição. Por exemplo, primeiro
referência foi um workshop do qual participei com Jean-Clau- descrevia-se separadamente, uma pessoa que o estudante conhe-
de Carrière e Marie-Geneviève Ripeau, professora na escola ce, depois uma locação e, num terceiro momento , o estudante
de audiovisual francesa FEMIS, em Quito no ano de 1992. Os tinha que imaginar esse personagem adentrando a locação e a
exercícios de Ripeau não seguiam uma progressão previsível e situação que seria criada. Em seguida se retornava à locação
sumário pretendiam justamente colocar os alunos frente a situações e observava-se os sons. Aí eles eram somados à cena. E assim
inesperadas. Eram no total dez exercícios: por diante.
Escreva um argumento no qual você se projeta no personagem Estes exercícios tem como resultado uma melhora na quali-
principal. Em outras palavras, se apresente através de uma dade da escrita dramática, mas não atacam o ponto central da

próxima
ficção curta na qual o personagem principal é uma projeção de criatividade. O resultado são roteiros corretos e desinteres-
você mesmo. santes, incapazes de tocar aspectos significativos da experi-
Escrever uma história a partir de uma foto. ência humana. Este problema, identificado em várias escolas
Escrever o início de um filme. de cinema de todo o mundo, levou à metodologia desenvolvida
A partir de uma foto, escrever um diálogo sem indicação por Michael Rabiger na Universidade de Chicago e descrita no
de cena. livro Developing Story Ideas. Como encontrar boas idéias?
anterior Quatro personagens estão sentados em volta de uma mesa em Como o aluno pode desenvolver uma disciplina criativa? Como
frente a um bolo. pode encontrar o seu universo de temas e inquietações? Como

139
simular em sala de aula uma pequena audiência capaz de colo- No entanto, atividades desse tipo exigem classes pequenas
car em contexto a idéia do aluno? O autor propõe três tipos e um tratamento individualizado do aluno. O que é impossível
de exercícios. na atual estrutura curricular, onde Dramaturgia Audiovisual
Identidade criativa, onde trata-se de esquadrinhar os te- tem de 36 a 40 alunos. O resultado é que limitamos esses exer-
mas e influências do aluno, suas questões, anseios e vontade cícios aos 12 alunos de Roteiro 3.
expressiva. Outra experiência importante desses anos foi a difícil
Improvisações, onde trata-se de exercitar o “músculo” da tarefa de integrar as atividades de dramaturgia com as demais
criatividade, como dizia Bunuel, através da invenção de his- disciplinas do departamento. No desenho original do curso, as
tórias em sala de aula num prazo máximo de dez minutos. disciplinas de roteiro eram pensadas sem relação com as de-
Tarefas, onde são apresentadas dez diferentes estratégias mais; acreditava-se que a dramaturgia poderia ser objeto de
ficcionais, como o conto da infância, a história a partir de estudo por si só, sem estar diretamente vinculada a uma ati-
capa notícia de jornal ou a descrição de um sonho. vidade prática.
Este conjunto de atividades deve levar o aluno no final do No entanto, esta escolha revelou-se problemática. O resul-
semestre a apresentar um caderno que reúne todos estes mate- tado apresentado nos roteiros estava muito aquém do esperado.
riais, compondo um retrato de seu momento como escritor. Mesmo com uma ênfase maior em vários exercícios de escrita
Os resultados foram excelentes, muito superiores às ten- criativa, o aprendizado se revelava apenas uma elaboração

universidade
tativas anteriores. As aulas passaram a ser um fórum dinâmi- discursiva, com os alunos discorrendo longamente sobre drama-
co de discussão dos projetos e anseios criativos dos alunos. turgia, e não um conhecimento capaz de ser usado em seus ro-
Seus exercícios traziam experiências e questões profundamente teiros. Percebemos que encaravam as várias tarefas de escrita
vivenciadas. Também o nível de invenção aumentou muito com o sem compromisso e que se interessavam apenas pelos roteiros
uso das improvisações. Foram adotadas diversas atividades em dos exercícios que seriam realizados no semestre seguinte. O
sumário sala de aula para incentivar o trabalho em colaboração e res- que motiva os alunos são trabalhos que serão filmados.
saltar o caráter lúdico de toda atividade criativa. A visão Decidimos então colocar a elaboração desses roteiros como
romântica do artista que cria sozinho obras geniais que sur- atividade central dos cursos. No início de cada semestre eram
gem da pura atividade de sua imaginação é colocada radical- exibidos os exercícios realizados pelos alunos do ano ante-

próxima
mente em xeque. Trata-se, ao contrário, de procurar estímulos rior. Os problemas narrativos apareciam com extrema contun-
externos capazes de desafiar os alunos. O roteirista de cine- dência e eram rapidamente assinalados. Ficava claro, por meio
ma e televisão é obrigado a lidar com limitações financeiras dos trabalhos dos colegas, o descompasso entre intenção e
e artísticas, que devem ser encaradas de modo positivo, como capacidade de realização. A partir dessa análise organizava-
problemas a serem solucionados. Também o trabalho em equipe -se uma série de atividades durante o semestre para suprir as
é a norma nessa área. Portanto, o aluno precisa estar aberto carências mais agudas da classe. Textos teóricos eram lidos,
anterior a provocações do exterior e aprender a reagir de modo rápido, filmes analisados, exercícios criativos experimentados - sem-
preciso e inventivo. pre articulados com o processo de roteirização dos exercí-

140
cios. Esta experiência foi estendida a todos os semestres e obras refereciais da nossa cultural. Mas a abordagem sempre
os alunos passaram a escrever projetos que a serem realizados enfatiza uma poética da dramaturgia. Como essas obras foram
nos semestres seguintes em outras disciplinas. Como no pro- escritas e quais os procedimentos que utilizaram. É uma lei-
cesso de produção audiovisual, nossos alunos primeiro escre- tura especializada e voltada para a escrita.
viam e depois realizavam. Os roteiros apresentados na conclu- Agora vamos ter a oportunidade de consolidar essa expe-
são das disciplinas passaram a atender a um padrão mínimo de riência numa nova estrutura curricular. Depois de 10 anos da
dramaturgia, compatível com um curso universitário. criação do Curso Superior do Audiovisual chegou a hora de
No entanto, fomos percebendo dois problemas. O primeiro é rever seu curriculum. Para o eixo de roteiro, a proposta é
que os alunos tendem a transformar o menor exercício em pro- começar no primeiro semestre com o curso Escrita Criativa,
jeto de filme, com todas as implicações de produção e inves- cujo conteúdo é basicamente o livro de Rabiger, com a classe
timento emocional que isso acarreta. O curso, ao articular dividida em 3 turmas de 12 alunos. Em seguida, temos o curso
capa várias disciplinas em torno de uma única atividade, reforçou Dramaturgia Audiovisual, cujo conteúdo será mais histórico e
essa tendência. Assim, o que era para ser um simples exercí- teórico. E os alunos da especialização estudarão em Roteiro,
cio, vira um esforço titânico de produção que anula quaisquer os vários gêneros dramáticos e, em Roteiro 2, o desenvolvi-
outras atividades pedagógicas. Ler e estudar desaparece do mento de projetos.
horizonte dos alunos. Apesar de tantas idas e vindas, de tantas dúvidas, posso

universidade
Mas, pior do que isso, o curso se amesquinhou, se colocou assegurar que os resultados obtidos nos últimos anos tem sido
a serviço de um objetivo muito pequeno: um semestre inteiro muito animadores. Nossos alunos tem obtido boas oportunidades
de curso universitário para chegar no roteiro de um exercício profissionais como roteiristas e ganhado vários prêmios em
de 3 minutos! É pouco e muito frustrante para os professores concursos de produção. Sem dúvida, hoje essa é a maior carên-
e alunos. cia do audiovisual brasileiro. Temos nível técnico e excelen-
sumário Por isso retomei a carga teórica no curso Dramaturgia Au- tes realizadores. Mas faltam roteiristas. Faltam boas histó-
diovisual e o desvinculei das outras atividades departamen- rias bem contadas. Nosso desafio como professores é encontrar
tais. Hoje fazemos exercícios práticos, em especial mante- e nutrir esses talentos.
nho alguns exercícios de Rabiger, mas a pergunta questão que
Referência bibliográficas

próxima
procuro responder é: Qual o repertório mínimo de um aluno de
dramaturgia? Elaborei então um programa onde lemos Sófocles, • BÍRÓ, Yvette; RIPEAU, Marie-Geneviève. To dress a nude: exercises in ima-
gination. Dubuque, Iowa: Kendall/Hunt. 1998. ISBN 0787242195
Shakespeare, Ibsen, Aristóteles, Hegel, Diderot, Poe, Chklo-
• COOPER, Pat; DANCYGER, Ken. Writing the Short Film. Boston: Focal Press.
vsky, Brecht, McKee e Bordwell. Também vemos filmes recorren- 2000.
tes em manuais e textos teóricos como Chinatown, Crepúsculo • RABIGER, Michael. Developing story ideas. Boston: Butterworth-Heinemann.
2005.
dos Deuses, A Malvada e Blow-up. Ainda que os alunos não con-
anterior sigam apreender todos os problemas tratados na sala de aula,
pelo menos portas foram abertas e eles entraram em contato com

141
Abstract
A ORIENTAÇÃO PARA PRODUÇÃO
DE ROTEIROS CINEMATOGRÁFICOS As co-advisor of the TCCs of Advertising courses of Uni-

PARA ALUNOS DE PUBLICIDADE versidade São Judas Tadeu, responsible for discipline of Ad-
vertising Production RTVC, have the responsibility to monitor
the audiovisual production of experimental groups or agencies
that have as part of their TCCs creating pieces for the media
radio, television and film. Interestingly, even after atten-
ding technical disciplines such as audio and video and pho-
R ogério dos S antos O ta tography, the processes of visual perception, cutting times,
Professor dos cursos de Publicidade e Propaganda e Radio e TV da Universidade angles, among others, are still primary. So besides the whole
capa
São Judas Tadeu - rogerio_ota@uol.com.br - Mestrando em Artes Visuais pela
Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” – Instituto de Artes
creative process of screenwriting, it is necessary to revive
these concepts in students. All these steps will be discussed

Resumo in the following article, in order to parameterize the prac-


tice of teaching this course for students of advertising.
Como co-orientador dos TCCs do curso de Publicidade e Key words: TCC, advertising, screenwriting, ad movie, te-
Propaganda, responsável pela disciplina de Produção Publici- aching
universidade tária de RTVC, tenho a incumbência de acompanhar a produção
audiovisual dos grupos ou agências experimentais, que têm Introdução
como parte de seu TCC a criação de peças para as mídias rá-
A criação publicitária é, aos olhos do leigo, cercada de
dio, TV e cinema. É interessante observar que, mesmo após cur-
pré-conceitos e fantasias, geradas talvez até pela própria
sumário sar disciplinas como técnicas de som e imagem e fotografia,
vontade dos publicitários.
os processos de percepção visual, tempos de corte, ângulos e
Lecionar a criação de roteiros e posteriormente a produção
enquadramento, entre outros, ainda são primários. Portanto,
de filmes publicitários foi, logo no início da minha carreira
além de todo o processo criativo dos roteiros, é necessário
docente, um desafio lançado que me proporcionou elaborar uma
reavivar esses conceitos nos alunos. Todas estas etapas serão
próxima
metodologia para o desenvolvimento deste conteúdo, agregando
discutidas no artigo a seguir, com o intuito de parametrizar
tanto elementos da minha experiência profissional quanto um
a prática da docência desta disciplina para os alunos de pu-
vasto material bibliográfico.
blicidade e propaganda.
Essa metodologia, na verdade, está em constante evolução,
Palavras chave: TCC, publicidade, roteiro, filme publici-
pois, como veremos a seguir, a cada ano surgem novos desafios,
tário, docência
anterior novos erros e acertos, tanto dos alunos quanto do docente.
Tanto para os profissionais que trabalham a criação de
filmes publicitários, quanto para os professores de discipli-

142
nas semelhantes, a metodologia descrita a seguir, embora não portais como Youtube e Vimeo.
tenha a pretensão de servir como um guia fechado, apresenta Ao receber o briefing, os profissionais de criação passam
a maneira até agora mais eficiente de ministrar o conteúdo, a analisar todos estes dados, procurando adequar ao máximo a
detectando pontos fracos do conhecimento dos alunos e procu- mensagem desejada ao seu público. Esta tarefa, ao contrário
rando estimular o aprendizado de maneira leve e eficiente. do que é difundido pela mídia, é por muitas vezes mais estra-
tégica que criativa, propriamente dita.
Capítulo 1 – A criação publicitária
Obviamente, a criatividade e inovação são elementos ne-
cessários e eficazes no momento de se desenvolver uma mensagem
Para entender como funciona o processo de criação publi-
publicitária. Entretanto, uma simples criação “genial” muitas
citária, desmistificando o que comumente é apresentado pela
vezes simplesmente perde sua funcionalidade ao desprezar todo
mídia, é necessário compreender que este processo é científi-
o levantamento prévio de dados, que servirão para tornar a
capa
co, racional e, cada vez mais, metodológico.
mensagem adequada ao target.
Todo processo de criação publicitária inicia-se pelo brie-
fing. Este documento é elaborado pela agência de propaganda Capítulo 2 – Estrutura do filme publicitário
ou pelo próprio cliente contratante.
O briefing consiste em todas as diretrizes, policies, da- É inegável que, em grande parte dos casos, o filme publi-
dos de mercado macro e microambiental, perfil dos públicos- citário é o carro chefe de uma campanha publicitária, pois

universidade -alvos, perfil dos concorrentes diretos e indiretos, retros- além de estar sendo veiculado na mídia de maior alcance e
pectiva de campanhas já realizadas, linha de criação desejada, penetração, consome maior verba de inserção e produção, além
entre muitas outras informações. de contar com a mensagem até certo ponto mais “completa”, por
A criação publicitária deve basear-se nestes elementos, ter apelo audiovisual e cinético.

sumário
pois não existe comunicação eficiente sem o direcionamento Embora possa ser considerada, em sua essência, como uma
de linguagem ao consumidor final. Por direcionamento de lin- produção cinematográfica convencional, existem algumas par-
guagem podemos entender desde maneirismos, vícios e figuras ticularidades da obra audiovisual publicitária que devem ser
de linguagem específicos a determinada região ou faixa etária destacadas:
até em qual emissora de TV, por exemplo, nossa mensagem pu- O filme publicitário, por vezes, deve contar uma história

próxima blicitária será veiculada. ficcional ou não em trinta ou sessenta segundos, quando mui-
Com a evolução tanto das técnicas publicitárias quanto to.
das tecnologias envolvidas nos processos de criação, pro- Existem uma série de diretrizes a serem seguidas, deter-
dução e veiculação de peças audiovisuais, faz-se necessário minadas pelo briefing.
aprimorar a segmentação da mensagem publicitária; a mídia de As informações devem ser sucintas e ainda assim repetiti-
anterior massa perde cada vez mais espaço para canais específicos de vas, para auxiliar na fixação da mensagem - mas sem tornar-se
comunicação – podemos citar exemplos de filmes publicitários cansativa.
produzidos especificamente para a veiculação na internet, em A linguagem deve adequar-se ao público alvo, nunca o con-

143
trário. mas; músicas e ruídos; ritmo e musicalidade na fala
Por conta desses fatores, o filme publicitário, tanto Leitura e compreensão do roteiro técnico e / ou script,
academicamente quanto nas agências, recebe grande atenção storyboard.
durante o processo criativo. Na graduação em publicidade, o Enquadramentos e movimentos: Linguagem Visual - o timing
aluno deverá incorporar e assimilar todas essas característi- Iluminação: conceitos básicos de Luz, Sombra e composição
cas, além dos próprios elementos da linguagem fílmica, em um Som direto, diejético e sonoplastia: BGM e ambientação
curto período de tempo, necessitando para tanto de uma abor- Linguagem visual: cor e movimento das informações
dagem prática e dinâmica sobre os elementos pertinentes à sua Recursos visuais, sonoros e efeitos especiais.
criação específica. Ritmo: brilho e ênfase na linguagem televisiva
Ainda sobre a criação das peças audiovisuais, é importan- A pós-produção
te ressaltar a necessidade do alinhamento visual e/ou textual Fases de produção em Televisão
capa desta com as demais peças gráficas da campanha. A unidade de Pré-produção (pesquisa, bancos de imagem e som, locações,
estilo, ou seja, a integração de todas as peças publicitárias casting, crew, direitos autorais, cessão de imagem)
é fundamental para uma campanha com alto recall. Portanto, a Produção (dinâmica de gravações, planejamento, execução
criação também está sujeita aos elementos presentes nas de- não-linear)
mais mídias envolvidas no processo. Pós-produção (Edição, aplicação de efeitos, finalização)

universidade
Levantamento de necessidades técnicas, operacionais e ar-
Capítulo 3 – Transmitindo a linguagem cinematográfica para os alunos.
tísticas
Como referências, exibo em sala de aula trechos de filmes,
Obviamente, falar de linguagem cinematográfica de uma
incitando-os a analisar as sequências, como forma de esti-
maneira geral seria vago e abrangente demais. Entretanto, é
mular a percepção. Todo esse processo antecede a criação dos
sumário
fundamental ao docente de uma disciplina de produção de RTVC,
roteiros, propriamente ditos.
no que tange ao audiovisual, buscar referências que se torna-
Exemplos de alguns filmes exibidos: O Encouraçado Pote-
rão a pedra-base para o desenvolvimento dos filmes publicitá-
mkin, Os Intocáveis, O Pagador de Promessas, Hulk, O Efeito
rios autorais, por parte dos alunos.
Borboleta, Matrix, À Espera de um Milagre.
Conforme dito anteriormente, em sua grande maioria perce-

próxima
Além desses filmes, é imprescindível exibir filmes publi-
be-se no corpo discente uma dificuldade natural na percepção
citários, fazendo com que os alunos encontrem convergências
dos elementos plásticos e estéticos que compõem as obras ci-
e divergências entre a linguagem de cinema e a linguagem pu-
nematográficas. No intuito de fomentar o background cultural
blicitária. Justifico utilizar mais filmes comerciais e menos
necessário para que os alunos desenvolvam um TCC satisfató-
artísticos pelo fato do cinema publicitário aproveitar-se, em
rio, optei por criar a metodologia descrita a seguir, onde
grande parte, das linguagens dos “filmes-produto” hollywoo-
anterior também cito exemplos de referências cinematográficas, desde
dianos. Em sua maioria, exibo filmes publicitários premiados,
clássicos de referência até obras hollywoodianas atuais.
como do Leão de Ouro de Cannes, entre outros.
Roteiro Básico: codificação do imaginário; cores e for-

144
Em um segundo momento, ministro uma atividade de decupa- elementos marcantes que devem estar presentes por questões
gem de uma peça publicitária, para que os mesmos percebam a citadas no briefing são preservados.
velocidade dos cortes, mudanças de planos, ângulos de câme- É claro que, a princípio, os roteiros produzidos apresen-
ras, variação de colorização, trilha sonora, etc. tam incoerências técnicas, tempo acima ou abaixo do planeja-
do, falhas de desfecho, isso para mencionar meramente aspec-
Capítulo 4 – A produção do roteiro
tos técnicos.
No que tange à mensagem, tanto no estilo quanto na parte
Após quatro ou cinco aulas expositórias e a atividade de
textual, a orientação normalmente é feita em parceria com o
decupagem, os alunos são estimulados a redigir seus próprios
professor responsável por direção de arte, pois é imprescin-
roteiros. No caso do roteiro publicitário, para tornar a ta-
dível, a todo momento, verificar a congruência do filme com
refa mais simples, não exijo o roteiro técnico, e sim um mode-
as demais peças da campanha.
capa
lo mais “aberto”, retirado do livro de Tiago Barreto “Vende-
Normalmente, os roteiros levam algumas aulas para ser de-
-se em 30 Segundos”. Um exemplo segue abaixo.
vidamente finalizados. Durante este período, as aulas deixam
Agência: Almap/BBDO
de ser expositivas e passam a adquirir o caráter de atendi-
Cliente: São Paulo Alpargatas
mento aos grupos. Dessa forma, podemos lapidar os roteiros
Produto: Havaianas
caso a caso, pois como os temas dos TCCs são definidos pelos
Título: Modelo

universidade
próprios alunos, seria impraticável realizar esta atividade
Praia. Um rapaz vê uma linda mulher escolhendo Havaianas
de outra forma.
e começa a paquerá-la.
RAPAZ: Você é modelo? Capítulo 5 – A produção dos Filmes
MULHER: Sou.

sumário
Ele fica meio confuso. Após os roteiros terem sido finalizados e devidamente
RAPAZ: Como assim? aprovados tanto pelo grupo quanto pelos professores orienta-
MULHER: Ué? Eu sou a Fernanda Lima, modelo. dores, têm o início do processo de produção dos filmes. Vale
Ele fica desconcertado. ressaltar que as produções são executadas pelos próprios alu-
RAPAZ: Pô, acabou com minha melhor cantada... nos do curso.

próxima O rapaz vai embora, desiludido. A modelo fica sem enten- Nesta etapa, eles são orientados a, primeiramente, le-
der aquilo. vantar necessidades técnicas. Locação, casting, equipamento
Entra packshot. necessário, figurino, locução off, necessidade de efeitos
LOC. OFF: Havaianas. Todo mundo usa. (chroma key, por exemplo), entre outros.
A produção, obviamente, encontra por muitas vezes difi-
anterior Como podemos perceber, este modelo de roteiro é mais simples, culdades técnicas de execução. Como a criação é livre, (pois
e ao mesmo tempo mais fechado. Dessa forma, os publicitários de outra forma a criatividade dos alunos seria limitada pelos
podem criar de maneira menos técnica, mas os diálogos e outros recursos técnicos, o que não podemos deixar acontecer) even-

145
tualmente técnicas como stop-motion e animatic com fotos ou Bibliografia
ilustrações são aceitas para a produção dos filmes publici-
• GAGE, Leighton D. e MEYER, Claudio. O Filme Publicitário. Ed. Atlas, 1991
tários. • ELIN, Larry e LAPIDES, Alan. O comercial de Televisão – Planejamento e
Durante a filmagem, sempre que possível o professor acom- Produção. São Paulo, 2006

panha os alunos. Após a captação das imagens, a edição e • BERTOMEU, João Vicente Cegato. Criação na Redação Publicitária. São Paulo,
Mercado de Idéias
pós-produção também é realizada pelos próprios alunos, sob • BARRETO, Tiago, Vende-se em 30 Segundos - Manual do Roteiro para Filme
orientação do professor. Publicitário. São Paulo, Ed SENAC.
• VANOYE, Francis. Ensaio sobre a Análise Fílmica. São Paulo, Ed. Papirus.
Conclusão

Todo o processo de criação do filme publicitário, durante

capa
a graduação dos alunos de publicidade e propaganda, segue uma
metodologia pré-estabelecida, desenvolvida após a busca de
referências acadêmicas anteriores e agregada pelas experiên-
cias vividas pelo próprio professor em sala de aula.
Atualmente, pude chegar a um parâmetro satisfatório que,
obviamente, depende também do interesse e participação dos

universidade discentes durante todo o quarto ano do curso.


A metodologia empregada, é claro, depende de uma série de
recursos técnicos e do comprometimento tanto do corpo docente
quanto discente, para que chegue ao resultado proposto.

sumário
É necessário enfatizar, ainda, que esta metodologia está
em constante evolução, pois a cada ano surgem novos desafios
e novas tecnologias, que vão moldando a maneira pela qual a
relação professor/aluno se dá. É uma premissa básica do pro-
fessor desta disciplina estar em constante processo de estudo

próxima e reciclagem de conhecimentos, para que os conceitos não fi-


quem defasados.
Concluindo, a metodologia aqui descrita vem construindo
resultados muito satisfatórios, tanto para os alunos quanto
para a Instituição. Os processos de aprendizagem desta disci-
anterior plina para o curso vêm agregando, ano após ano, conhecimento
prático e acadêmico.

146
capa

PROCESSO
CRIATIVO:
universidade

POÉTICAS;
sumário

próxima
AUTOR(IA);
anterior
GÊNEROS.
147
Abstract
AUDIOVISUAL AUTORAL E O We look forward to develop an analysis in the process of
ROTEIRO MULTIDIMENSIONAL NA completing the documentary Evandro Carlos Jardim, Over the
PRODUÇÃO DO DOCUMENTÁRIO1 Margins of Time, about the work of Evandro Carlos Jardim, ar-
tist and engraver Brazilian, who now has 50 years of full and
uninterrupted production, both as artist and as a teacher.
Besides striving in this universe as extent, as profound,
other complexities surge as great challenges, like for ins-
tance to approach his work and the questions originated from
A riane D aniela C ole his work, made of images through audiovisual language; the
Doutora em Design e Arquitetura. Universidade Presbiteriana Mackenzie. aria- record of space and time; of beings and objects that live in
capa
necole@gmail.com .
it; the narrative; the gesture; the text; the orality; the mu-
sic and the poetry. Our aim is to reflect over his objectives,
Resumo
choices and their deployments, formal, ethics and aesthetic.
Buscamos desenvolver uma análise sobre o processo de rea- Key words: documentary, art, visual language, script.
lização, sobretudo no que diz respeito ao processo de rotei-
Introdução
universidade
rização, do documentário Evandro Carlos Jardim, Nas Margens
do Tempo. Este apresenta a obra de Evandro Carlos Jardim, ar- Analisar o processo de realização do documentário Evandro
tista plástico e gravador brasileiro, que hoje conta com 50 Carlos Jardim, Nas Margens do Tempo, sobre a obra de Evandro
anos de produção íntegra e ininterrupta, tanto como artista Carlos Jardim, que hoje conta com 50 anos de produção, tanto
quanto como professor. Além de lidar com este universo, tão
sumário
como artista quanto como professor, nos levou a refletir so-
extenso quanto profundo, outras complexidades se apresentaram bre a produção de documentários de um modo mais abrangente.
como grandes desafios, como por exemplo, abordar seu trabalho Além de lidar com este universo, tão extenso quanto profun-
e as questões provenientes de sua obra, constituída de ima- do, outras complexidades se apresentaram como grandes desa-
gens, através da linguagem audiovisual; o registro do espaço fios, como por exemplo, abordar seu trabalho e as questões

próxima
e do tempo, dos seres e objetos que o habitam; a narrativa; o provenientes de sua obra, constituída de imagens, através da
gesto; o texto; a oralidade; a música e a poesia. Objetivamos linguagem audiovisual; o registro do espaço e do tempo, dos
refletir sobre os seus objetivos, escolhas e seus desdobra- seres e objetos que o habitam; a narrativa; o gesto; o texto;
mentos formais, éticos e estéticos. a oralidade; a música e a poesia.
Palavras chave: documentário, arte, linguagem audiovisu- A obra de Evandro Carlos Jardim se constrói de modo inte-
anterior al, roteiro. grado, ao longo do tempo, desde a década de 1960, coletando
imagens em sua vivência da cidade, a partir do interior de seu
1 O documentário Evandro Carlos Jardim. Figuras: seres, tempos e lugares, que deu origem ao documentário em
questão, recebeu apoio do Mackpesquisa do Instituto Presbiteriano Mackenzie. atelier, ponto de partida e de chegada. Os seres e objetos que

148
habitam estes espaços constituem uma espécie de dicionário diferentes técnicas como o desenho, o recorte, a gravura, a
visual imaginário, sensível, carregado de história, de memó- pintura e a escultura, entre outros procedimentos; faz uso de
ria, nos estimulando à reflexão sobre a técnica, a cultura e recursos como inclusões de novas imagens, alteração do dese-
a história, nos conduzindo ao centro de sua obra. nho em uma mesma matriz de cobre, gerando diferentes gravuras.
Estas poucas imagens, sempre recorrentes, foram inicial- Evandro Carlos Jardim recupera imagens, cenas e persona-
mente recolhidas entre as décadas de 60 e 70 e constituíram gens do dia a dia da cidade de São Paulo. Resgata e conduz
um conjunto de 20 imagens elaboradas no processo de criação da nosso olhar para nossa própria história, aqui simbolizada
série: `A noite no quarto de cima, o Cruzeiro do Sul, latitude pelo que é comum a todos, a cidade. Um espaço carregado de
23º32´36”, longitude W Gr. 46º37´59, coordenadas geográficas marcas/os testemunhos da história do homem. Seu objetivo não
que situam a localização de seu antigo atelier. Por volta de é retratar a paisagem real, mas recompô-la e transfigurá-la
1963, Jardim passou a organizar suas gravuras em séries, es- para promover e aprofundar o entendimento da realidade (Fig.
capa tas foram a partir de então desenvolvidas simultaneamente. 1).
Não há um começo e fim definidos e hoje este acervo conta com
aproximadamente 60 imagens.
Seu ateliê como centro de um círculo imaginário, espaço
real, e ao mesmo tempo espaço ilimitado do imaginário do ar-

universidade
tista, veio a ser desde então, a fonte visual que alimenta
seu repertório poético. Caminhar pelos lugares, desenhando em Fig. 1 – Gravura
seus cadernos e matrizes impressões e sensações, no seu ate- da série
liê registrá-las em desenhos e gravuras. Ao buscarmos refa- Tamanduateí.
zer o percurso de Jardim, descobrimos que, justamente por ser 1980.
sumário imaginário, o diâmetro desse círculo é insondável.
Assim, podemos observar em sua poética a importância fun- Água-forte, água

damental da memória e do tempo. Esta trajetória confere à sua tinta e buril

obra um caráter que abriga componentes narrativos, densidade sobre papel.


29,5 x 50 cm
próxima
conceitual e identidade formal, o que favorece uma aproximação
com sua obra como um todo através da linguagem audiovisual.
As figuras recorrentes não são apenas estratégias esté-
­­­
Meu trabalho tem muito de registro, é um trabalho de guardar, de
ticas, sintetizam sua poética. Quando Jardim nos reapresenta
registrar. É um trabalho que acontece no tempo. Você pode abordá-lo
de muitas maneiras, mas o que mais me fascina é poder estabelecer suas imagens, está nos convidando à refletir sobre a perma-
relações entre o tempo pessoal e o tempo. Porque nós temos um tempo nência das coisas, suas relações com o contexto, suas múlti-
que é nosso, um tempo do entendimento, da percepção, da observação.
anterior (JARDIM, apud MACAMBIRA, 1998, p. 113)
plas e sutis transformações de suas aparências, as questões
sobre a representação e suas construções simbólicas, abrindo
Na composição de suas séries, o artista transita entre
inúmeras possibilidades de interpretação.

149
Ao aprofundarmos nosso contato com o artista Evandro Car- modos de construção de filmes sejam artísticos, de ficção,
los Jardim e o conhecimento sobre sua obra pudemos observar documentários ou filmes científicos, cada qual, ao seu modo,
seu entendimento, da técnica, da construção do conhecimento, portadores de uma concepção de realidade.
da constituição da cultura, sua noção de história, a impor- Sabemos que um roteiro, cristalizado afinal no filme (Da-
tância da arte nestes processos. Para Evandro Carlos Jardim o vino, 2000), sobretudo na produção de documentários, se cons-
conceito de técnica não deve ser reduzido, ou confundido com trói a cada etapa do processo, adquirindo diversas faces ao
seus procedimentos, necessários. Técnica ao seu ver é fruto longo de todo o processo, da pesquisa à finalização.
de processos de criação, pressupõem conhecimento, história, Eu monto quando escolho um tema (ao escolher um dentre os milhares
de temas possíveis, eu monto quando faço observações para o meu tema
cultura.
(realizar a escolha útil dentre as mil observações sobre o tema), eu
Junto aos seus ex-alunos e interlocutores pudemos obser- monto quando estabeleço a ordem de sucessão do material filmado sobre o
var o quanto sua poética se desdobra para além de sua obra, (fixar-se, entre as mil associações de imagens possíveis, sobre
capa
tema
a mais racional, levando em conta tanto as propriedades dos documentos
nas sua atuação como educador, formador de toda uma geração
filmados, quanto os imperativos do tema a tratar) (VERTOV, 1929,
de artistas brasileiros e em suas ações como ser. in XAVIER 1983, p. 264).
A obra de Evandro apresenta, enfim, dimensões sobrepostas
Em nossa experiência vimos o roteiro adquirir materiali-
a partir da qual o observador pode se aprofundar e desvendar
dade diversas a cada momento, sendo que o primeiro roteiro
sua densidade. A sua obra exige um esforço, sobretudo uma
já se apresentava na própria obra de Evandro Carlos Jardim.

universidade
disponibilidade, para a sua apreciação estética onde a imagem
Partimos inicialmente de um conjunto de palavras pinçadas no
não quer apenas mostrar sua aparência, nos fala de estética,
processo de pesquisa e análise de sua obra. Neste momento o
de técnica, nos fala da percepção, da imaginação, da nature-
roteiro, uma composição de palavras associadas, se apresenta-
za, do tempo/ espaço e dos seres que os habitam.
va como um mapa que possibilitava inúmeros percursos.
Partimos assim da idéia de produzir uma homenagem a este
sumário grande mestre, de um desejo de expressão, da intenção de pro-
A partir das palavras chave, do conhecimento da obra de
Evandro e de sua relação com o artista idealizamos uma primei-
duzir reflexões, emoções, proporcionar experiências estéti-
ra estrutura de roteiro. Desta estrutura inicial, mantivemos
cas, da importância de difundir o conhecimento sobre sua obra
muitas das temáticas, mas o único elemento que se manteve, em
e ao mesmo tempo agregar seus ensinamentos na constituição do
sua integridade, foi o plano final do vídeo.

próxima
próprio documentário.
Consideramos então a possibilidade de abordar sua obra em
Roteiro em movimento seu processo de constituição e então estabelecemos uma se-
qüência de blocos de abordagem, que nos serviu de guia para o
De modo geral, sobretudo em filmes de ficção, um filme se cronograma de captações.
constitui a partir da elaboração de um roteiro. Entretanto Neste estágio o roteiro já assumia a forma de uma estru-
anterior este procedimento varia bastante sobretudo no que se refere tura. No primeiro bloco abordaríamos as origens de sua poé-
à produção de documentários. Vimos ao longo da história e ao tica, tendo como centro o seu atelier antigo e seus elementos
longo do desenvolvimento das técnicas a adoção de diversos

150
orbitantes. O segundo bloco se dedicaria ao seu trabalho e o plano e a montagem. Considerando o planos em suas possi-
seu atelier atual. O terceiro bloco abordaria a sua ação como bilidades perceptivas, afetivas e conceituais, assim como a
professor e encerraríamos com uma visita à nascente do Rio construção do discurso através das relações que pudemos esta-
Tamanduateí, referência importante em sua obra. belecer entre as imagens, entre as imagens e seus sujeitos e
Entretanto, ao aprofundarmos o contato com sua obra per- objetos e as suas abordagens.
cebemos que tanto o espaço como o tempo, em sua obra, são
insondáveis, não se permitem delimitar e se interpenetram em Do Plano
camadas de adensamento.
“Tudo o que mexe com os instintos naturais, tudo o que
A experiência da filmagem, bem como o contato com o universo aborda-
provoca esperança, medo, entusiasmo, indignação, ou qualquer
do, pode subverter as noções preliminares, esboçadas na pré-produção,
criando novos focos de interesse para o filme, o que obriga, ao re- outra emoção forte assume o controle da atenção”(MUNSTEMBERG,

capa
alizador, pensar nova organização do material, que incorpore estas 1916, p.28). Neste sentido o enquadramento é elemento funda-
mudanças (Puccini, pg. 101).
mental na constituição do plano. No cinema basta a eloqüência
Deste modo optamos por realizar um documentário de na- de um close e não são mais necessários gestos ou palavras.
tureza exploratória, partindo de dois princípios básicos da Griffith (1875-1948) foi o primeiro cineasta a perceber
linguagem audiovisual, o plano e a montagem, estes nos servi- as potencialidades do close. “Mostram a face das coisas e
ram de parâmetro, no sentido de indagar sobre alguns procedi- também as expressões que, nelas, são significantes porque são

universidade
mentos, e as opções metodológicas adotadas. expressões de nosso próprio sentimento subconsciente“ (Ba-
Deleuze (2007) identifica a importância tanto do plano lázs,1945, apud XAVIER, 1983, p. 91)..
quanto da montagem desenvolvendo uma análise mais aprofundada Para Balázs (1945), o bom close nos faz ver com o coração,
de cada um destes elementos tão fundamentais na constitui- não com os olhos; a câmera cinematográfica nos apresentou um
ção de um filme. Para o autor, podemos distinguir entre as
sumário
novo mundo, um mundo onde se revela a face humana, a alma dos
imagens-movimento, três categorias de imagens, imagens-per- objetos, o ritmo dos eventos. Mesmo que sentados em uma pol-
cepção, imagens-afecção e imagens-ação, sua integração compõe trona, não é de lá que assistimos aos eventos, a câmera nos
o que ele chama de imagem-relação, que se funda nas relações carrega para dentro do filme, os nossos olhos se encontram
seja entre a percepção, a afecção, e a ação, seja em relação na objetiva da câmera. Neste sentido o enquadramento é um dos

próxima
ao tempo da imagem, ao sujeito ou objeto com o qual ela se elementos primordiais na construção de um filme.
relaciona. Podemos observar no processo de aproximação com Evandro
A imagem-movimento tem duas faces, uma em relação a objetos cuja po- Carlos Jardim que o vídeo se constrói também utilizando muito
sição relativa ela faz variar, a outra em relação ao todo cuja mudança
da expressividade dos planos, utilizando planos mais abertos
absoluta ela exprime. As posições estão no espaço, mas o todo que
muda está no tempo. (Deleuze, 2007, p. 48). para expressões verbais mais objetivas e planos mais fecha-
anterior Na experiência de estabelecer uma relação entre a câmera
dos para expressividades que implicam de modo mais intenso a
subjetividade, a abstração e a emoção.
e um artista, operamos a princípio com estas suas duas faces:
Béla Balázs (1923) reafirma a importância da subjetivida-

151
de desvendada pela câmera. Segundo ele, o gesto, a expressão nossos afetos, esta é uma das razões de sua universalidade.
facial é a “língua mãe aborígene da raça humana”. Ele defende Esta era para Balázs uma das grandes contribuições do cine-
que a palavra não pode traduzir a imagem, o gesto, a feição. ma para o desenvolvimento do homem universal. O filme carre-
Os gestos do homem visual não são feitos para transmitir conceitos que ga esta capacidade de engendrar imagens-percepção capazes de
possam ser expressos por palavras, mas sim as experiências interiores,
agregar tanto a percepção do cineasta como a do espectador,
emoções não racionais que ficariam ainda sem expressão quando tudo o
que poderia ser dito fosse dito.(Balázs, 1923, p. 78). imagens-afetivas e afetantes, imagens-ação seja ele executado
pelo ator, pelo cineasta, ou ainda pelo espectador que hoje
Deleuze (2007), ao se referir sobre as distinções entre
tem acesso aos meios de produção e difusão.
objetividade e subjetividade de uma câmera, observa que é
De acordo com a psicologia e a filologia, os sentimentos
justamente a impossibilidade de fazer estas distinções que a
se definem na medida em que podemos expressá-los, assim como
torna instigante, questionante, capaz de nos despertar tanto
acontece com as palavras que favorecem a criação de conceitos
capa a emoção quanto nosso intelecto ou nossa psique.
e sentimentos, também a expressão do corpo favorece o desen-
Esta capacidade do cinema, de revelar o indizíve, permi-
volvimento sensível e a capacidade de comunicar potencializa-
te a apreensão do gesto do olhar, das palavras nas mãos, das
-se. O acréscimo do som agrega novas dimensões comunicativas
paisagens nos rostos, das narrativas que se desenvolvem no
através da palavra, da música ou dos ruídos. Se por um lado
entrecruzamento das várias linguagens que habitam o audiovi-
estas novas dimensões podem diluir a força da expressão fa-
sual. A produção de um documentário que registra pessoas, que

universidade
cial elas podem torná-la, por outro lado, ainda mais complexa
depõem sobre suas experiências, através de longas exposições
desvendando estratos mais profundos e intrincados da emoção
nos leva à noção do retrato. A longa exposição necessária
humana, e ao invés de promover um nivelamento, promove uma
para a realização de retratos em pintura, ou nos primórdios
multiplicidade de expressões e um entendimento mais aprofun-
da fotografia, revelam a importância do tempo como princípio
dado de uma gama mais ampla de manifestações culturais e emo-
sumário de sua constituição pois fazer emergir os traços essenciais
cionais.
de um rosto. Este tempo alargado possibilita ao retratado que
Nas gravações buscamos registrar um encontro, uma conver-
exponha sua expressão mais eloqüente, para que o espectador
sa, o depoimento no lugar da entrevista, sempre no sentido de
possa captar sua dimensão densa, sagrada, trata-se de bus-
aprofundar os conceitos, idéias e emoções que se apresenta-
car uma ética do olhar (Brissac Peixoto, 1992). “É preciso

próxima
vam, deixando o espaço aberto para que cada um se manifestasse
ter tempo para ver rostos e paisagens. Para se evidenciarem
à sua maneira, deixando o pensamento correr livre, esperando
a força e a atmosfera que deles emanam. O drama interior das
a pausa acontecer para sugerir novas abordagens, suscitando
pessoas, a serenidade dos lugares. Tudo aquilo que não se es-
maiores reflexões, para depois selecionar.
tampa de imediato” (Brissac Peixoto, 1992, p.304)
Como, ou sobretudo porque, éramos uma equipe de pesquisa-
A comunicação através da expressão corporal não obedece a
dores, adotamos a posição dos interlocutores atrás das câme-
anterior regras rígidas tal qual a gramática ou a filologia, ela não
ras o que gerou, mesmo que de modo indireto, uma câmera sub-
se aprende em escolas, entretanto é capaz de se dirigir aos
jetiva para o espectador, no sentido de valorizar a presença

152
do artista, colocando o espectador na posição de um dos inter- nora, os dos movimentos visuais e pelos “ritmos plásticos”
locutores, convidando-o a participar daquele momento, daquele definidos pela organização da imagem.
contexto, espaço/tempo e do desenrolar das reflexões. Para a realização deste documentário buscamos adotar a
montagem criativa descrita acima por Aumont (1984). Podemos
Imagem relação
identificar esta intenção nas inserções de imagens que atu-
am como elementos que integram os planos, enriquecendo-os e
Segundo Aumont (1994) podemos apreender dois elementos da
aprofundando nossa percepção, afeto, nosso intelecto e assim
montagem: o objeto sobre o qual a montagem opera, ou seja, os
apresentam uma função imprescindível na montagem.
planos, cenas e seqüências e as modalidades de ação da monta-
Assim como Eisenstein (1925), Deleuze (2007) propõe que
gem que determinam as sucessões destes objetos de acordo com
o todo alcançado pela montagem não é resultado de uma mera
critérios vinculados à ordem e à duração. Sobre estes dois
justaposição ou sucessão de presentes, ela deve operar pela
capa
elementos da montagem incidem três modalidades operação de
alternância de conflitos, ressonâncias, pela coexistência de
justaposição que irá determinar como um plano se liga a outro.
tempos, passado e futuro incorporados ao presente, que por
Com estes três tipos de operação - justaposição (de ele-
sua vez, é resultado de toda uma atividade de seleção e co-
mentos homogêneos ou heterogêneos), organização (na conti-
ordenação, “para dar tanto ao tempo sua verdadeira dimensão,
güidade ou sucessibilidade), fixação da duração - mostramos
quanto ao todo sua consistência” (Deleuze, 2007, p. 48).
todas as eventualidades que encontraremos (e, o que é mais

universidade importante, todos os casos concretos praticamente imagináveis Roteiro multidimensional e montagem
e atestáveis) (Aumont, 1994, p.62).
Desdobradas as operações que constituem a montagem, de- Sabemos que a realidade, no caso da produção de um docu-
vemos agora considerar os resultados expressivos que podemos mentário, nos escapa o tempo todo, não se deixa abarcar, nem

sumário
obter com estas operações, quais as funções que a montagem moldar, apresenta as suas fissuras, falhas, oscilações, sur-
pode assumir na construção de um filme. presas, exigindo do realizador uma atitude criativa ininter-
Numa análise mais sistemática, Aumont (1984) nos apresen- rupta, já que, sabemos, não é possível representar a realidade
ta a noção de “montagem produtiva ou criativa” cuja função sem a intervenção de nosso olhar. Ao inserir o ato criativo na
primordial é criar uma significação a partir da justaposição abordagem de nosso assunto e na montagem, agregamos as postu-

próxima dos planos que isoladamente não possuem este significado. ras da investigação, da experimentação e da invenção.
Desdobrando a montagem criativa podemos identificar fun- Optamos assim pelo desenvolvimento de um trabalho da cap-
ções de naturezas diferentes. As “funções sintáticas” que tação de caráter exploratório, por uma montagem criativa.
pontuam, ligando ou separando os planos, criando efeitos de Assim, evitamos encontros prévios com os artistas que parti-
alternância, paralelismos, simultaneidades. As “funções se- cipariam do vídeo, interrupções nos processos de captação de
anterior mânticas” responsáveis pela criação de significados a partir imagens, priorizamos uma movimentação discreta da câmera no
da justaposição dos planos e as “funções rítmicas” que podem sentido de garantir a espontaneidade do momento, momento este
ser definidas pelos “ritmos temporais” através da trilha so- que, sabemos, nunca se repetirá. Assim, trabalhamos na medida

153
do possível com mais de uma câmera. Também buscamos colher cai em uma expressão, que por sua vez introduz outro assunto,
imagens dos espaços onde estivemos, agora com uma movimen- observar possíveis associações com imagens e os discursos de
tação mais livre da câmera, antes e depois dos depoimentos, outros interlocutores, classificar a tomada em sua qualida-
buscando colher imagens eloqüentes que pudessem revelar novas de gráfica, sonora e conceitual. Para isto é necessário, na
dimensões significativas na construção do vídeo. maior parte do tempo, ver e rever o material, inúmeras vezes.
Se em um filme de ficção o controle da realização está, de Ao finalizarmos as gravações e o processo de decupagem,
saída, estabelecida pelo roteiro elaborado antes do processo outra forma de roteiro se apresentava. Decidimos estabelecer
de captação das imagens, em um documentário este controle se um método de classificação dos planos, para organizar o ma-
dá de modo gradual e apenas se estabelece na sala de montagem, terial bruto. O método de cartelas coloridas, muito utilizado
com, ao menos, grande parte do material coletado. Permitindo pelos roteiristas (Field 1975, Rewald 2005 e Puccini, 2009),
ao diretor a coleta de imagens complementares para a sua fi- foi adaptado para a realização deste trabalho. A partir das
capa nalização. Assim, é recorrente o fato do processo do roteiri- temáticas abordadas pelos artistas identificamos as mais im-
zação de documentários, baseados em coleta de depoimentos, se portantes e as classificamos tendo em vista a construção do
dar no momento da montagem, pois é neste momento que podemos discurso. Estas temáticas já se aproximavam do que seria a
ter uma visão mais panorâmica do que foi dito e o recorte, ou forma final do roteiro (Fig. 2).
a decupagem, pode ser elaborada tendo em vista, sobretudo, a
1 linha/rio/poética

universidade
construção de conteúdos. Sabemos que a montagem permeia todo
o processo de produção de um filme, que roteirizamos quando 2 Flaneur/ Evandro/ Do seu fazer/
escolhemos nossos interlocutores, quando definimos as loca- Anotações/apontamentos
ções das tomadas, os planos, as sonoridades, quando intera-
3 Pensar/fazer/técnica/ Das obras/recepção/ Rio S
gimos estabelecendo uma interlocução, entre tantas ações que
sumário
Fsco/ Figs Jacentes/ Quarto/Pinturas
envolvem a realização audiovisual.
4 Política/Cultura (democracia/polis/ação política)
Projeto e Realização
5 Ensino/ética/liberdade/ Histórico encontros
Fig.2 –
A densidade dos depoimentos coletados demandaram um tra- 6 Inserts

próxima
Classificação
balho minucioso de decupagem e registro de informações que

 dos planos
dizem respeito ao conteúdo, localização e duração do frag-
mento, apreciações quanto à qualidade das imagens e sons, A apresentação das obras tiveram a função, em primeiro
observações de outra natureza necessárias à pré-visualização lugar, de apresentar a obra de Evandro e também para comple-
do fragmento. Este é um momento que requer um esforço de con- mentar o que se estava dizendo, nestes casos buscamos sempre,
anterior centração pois é necessário estar atento para as escolhas que na medida do possível, realizar esta apresentação de modo a
se faz, por exemplo: como descrever na ficha de decupagem o proporcionar ao espectador uma experiência estética.
que está sendo dito, onde incidirá o corte, que às vezes re-

154
A seqüência que apresenta uma das gravuras: Figuras I.S. ca à história, da história à cultura, da cultura à política,
Km 23, sobre o vôo dos pássaros comuns, 1980/1981, busca jus- para ao final retornarmos ao rio em sua origem.
tamente realizar esta aproximação com a obra de Evandro a
partir de uma experiência estética. Seja pela suave e lenta Considerações finais

movimentação da movimentação da imagem em plano de detalhe,


Talvez um trabalho desta natureza nos permita resgatar a
seja pelo cuidado dispensado à elaboração da música, onde um
presença do narrador, segundo Benjamin (1985) esquecido, seja
piano remete à própria árvore em sua generosidade e serenida-
o narrador viajante que partilha de sua experiência, seja do
de, e os violinos remetem ao farfalhar das asas dos pássaros,
narrador que conhece profundamente o espaço que habita, alcan-
do frêmito das linhas traçadas em luz (Fig. 3).
çando uma profundidade quase mística, expressando-se através
das linguagens, da imagem, do gesto, da oralidade. “Não seria

capa
sua tarefa trabalhar sobre a matéria prima da experiência – a
sua e a dos outros – transformando-a num produto sólido, útil
e único?” (Benjamin, 1985, p. 221)
Assim definido, o narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele
sabe dar conselhos: não para alguns casos, como o provérbio, mas para
Fig. 3 – Figuras I.S. muitos casos, como o sábio. Pois pode recorrer ao acervo de toda uma
vida... Seu dom é poder contar a sua vida; sua dignidade é contá-la

universidade
Km 23, sobre o vôo
inteira. (BENJAMIN, 1985, p. 221)
dos pássaros comuns,
1980/1981, Água forte Assim, de modo diverso de uma ficção, o encadeamento do

e água tinta sobre vídeo se deu, não pelas relações espaço temporais mas pela

papel, 45 x 54,9 cm. construção do discurso. Buscamos explorar a riqueza da ex-


sumário pressão verbal e corporal extraída a partir da proposição de
No final das gravações com todo o material decupado, ana- refletir sobre a obra de Evandro Carlos Jardim e seu papel
lisado, classificado e encadeado, realizamos mais uma última como professor e formador desta geração de artistas.
tomada no atelier do artista para recolher imagens complemen- O conjunto da obra do artista Evandro Carlos Jardim é mui-
tares de sua obra. Nesta ocasião Evandro Carlos Jardim fez um to extenso e ainda não é bem conhecido pela sociedade, que
próxima depoimento que iria alterar toda a estrutura do roteiro que se ainda está descobrindo a complexidade da sua poética. É visí-
beneficiou destas novas inclusões. A forma final do roteiro, vel no discurso de seus ex-alunos e interlocutores o afeto que
estabelecido na ilha de edição, desenvolve associações entre o mestre Evandro suscita, o professor sente o reconhecimento
idéias importantes que permeiam a sua obra. Este se desloca do dos seus alunos que se tornaram pares, artistas que hoje são
rio à linha, da linha ao movimento, do movimento à percepção, mestres formados e ampliam a cultura dos valores apreendidos.
anterior da percepção à experiência estética, da experiência estética Estes conteúdos que buscamos apresentar, colaboraram para
ao desenho, do desenho à forma, da forma à técnica, da técni- que o vídeo adquirisse um caráter mais abstrato. Entretan-

155
to estabelecemos alguns elementos narrativos, compostos pela grande responsabilidade e todas as escolhas realizadas no ca-
estrutura básica de roteiros de ficção: apresentação, desen- lor da hora, afinal, ficam permanentemente impressas no pro-
volvimento e desfecho, para criar um vínculo com o especta- duto final. Seja em suas presenças ou ausências.
dor. Para atender a este objetivo e para conferir uma certa
dinâmica ao discurso contínuo, lançamos mão da alternância Referências Bilbiográficas
dos tempos, espaços, pessoas, com a apresentação de obras do • AUMONT, Jacques. A Imagem. Trad. Estela dos Santos Abreu e Cláudio C. San-
toro. 2° ed. Campinas. SP. Papirus. Col. Ofício Arte e Forma. 1995.
Evandro, experiências vividas, e apresentação dos espaços que
• _________________. A estética do filme . Papirus. Col. Ofício Arte e For-
visitamos, preservando uma unidade sustentada pelo encadea- ma. 1995.
mento do discurso. • _________________. O Olho interminável {Cinema e Pintura} Cosac&Naify.
2004.
A partir destas considerações, observamos que seqüências
• BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, magia e técnica, arte e política. Vol
podem cumprir funções diferenciadas, seja para introduzir um
capa
1. São Paulo. Ed. Brasiliense. 1985.
filme, ou finalizá-lo; para expressar uma idéia, conceito ou • BRISSAC PEIXOTO,Nelson. Ver o invisível. In: NOVAES , Adauto. Ética São
Paulo. Companhia das Letras. 1992.
pensamento; para apresentar um personagem, um ambiente; para
• ________________________. Paisagens Urbanas. São Paulo.SENAC. Ed. Marca
criar uma experiência sensível; para problematizar; para dar d’Água. 1996.
tempo para a reflexão; para criar surpresas; para fisgar a • BRAGANÇA, Felipe (org). Eduardo Coutinho. Ed. Beco do Azougue. 2008.

atenção do espectador; para cobrir uma imagem. “O projeto de • COLE, Ariane. A arte do documentário: notas sobre o audiovisual, a an-
tropologia visual e o processo de criação. In: RIBEIRO, José da Silva e

universidade
documentário se forja a cada passo, se debate frente a mil re- BAIRON,Sérgio. Antropologia Visual e Hipermídia. Porto. Portugal. Ed.
Afrontamento. 2007.
alidades que, na verdade, ele não pode nem negligenciar, nem
• DAVINO, Gláucia. Roteiro, elemento oculto no Filme, a cristalização do
dominar (Puccini, p.127).” roteiro. Tese (doutorado - ciência da comunicação) Escola de Comunicação
e Artes da Universidade de São Paulo. São Paulo. 2000.
Frente à disponibilidade daquele que se expõe em um docu-
• DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico. São Paulo. Papirus. 1999.
mentário, o realizador deve assumir um compromisso ético com
sumário
• ______________. Cinema, Vídeo e Godard. Trad. Mateus Araújo Silva. São
o universo abordado, a questão ética deve prevalecer às ques- Paulo, Cosac&Naify. 2004.
tões estilísticas. Mesmo que autorizada, a utilização da ima-
• MACAMBIRA, Ivoty. Evandro Carlos Jardim. São Paulo. Edusp. 1998.
gem de alguém, como já dissemos, apresenta suas fragilidades, • MUBARAC, Cláudio. O desenho estampado: a obra gráfica de Evandro Carlos
assim como sua força expressiva, trata-se de algo delicado Jardim. São Paulo. Pinacoteca do Estado de São Paulo. 2005.
• NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Trad. Mônica Saddy Martins.

próxima
que deve sempre ser considerado.
Campinas. Papirus. 2005.
Coutinho (Bragança, 2008) aponta para uma relação de po- • OSTROWER, Fayga. Acasos e criação artística. Rio de Janeiro. Ed. Campus.
der que se investe o portador da câmera. De fato a câmera tem 1990.
• Puccini, Sérgio. Roteiro de documentário. Da pré-produção à pós-produção.
o poder de registrar como dissemos as falhas e as fissuras da Campinas. SP. Papirus. Col. Campo Imagético. 2009.
realidade, onde estamos todos incluídos. Deste modo o reali- • RIBEIRO, José da Silva. Antropologia Visual: da minúcia ao olhar distan-
zador deve estar consciente de seu papel ético.
anterior Por todas as considerações aqui colocadas, concluímos que
ciado. Biblioteca das Ciências Sociais. Edições Afrontamento. Porto. 2004.
• ___________________. Antropologia visual – tecnologias da representação
em antropologia. Porto. CEMRI – Laboratório de Antropologia Visual, Uni-
o documentário, longe de fácil, é muito exigente, implica em versidade Aberta. 2006 .

156
• SALLES, Cecília Almeida. O Gesto Inacabado; processo de criação artística.
São Paulo. FAPESP. Annablume. 1998.
• Xavier, Ismail (Org). A experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro.
Edições Graal. Embrafilme. 1983.

capa

universidade

sumário

próxima

anterior

157
styles from “art cinema” and “popular cinema”, specially the
ZÉZERO: OZUALDO CANDEIAS E SUA one that was made in Boca do Lixo, IN São Paulo, at the decade
MISTURA DE ESTILOS NARRATIVOS of 1970. The theoretical basis used in this paper is the Da-
vid Bordwell´s study of narration about the classical cinema
of Hollywood. I intend to show how the choices on the style
of narration made in Zézero, together with its story, works
in the criticism of the film about the economical conditions
of Brazilian military dictatorship.
R odrigo C azes C osta Brasília cinema- narrative studies – Boca do Lixo- Brazi-
mestre em Letras, doutorando em Letras pela PUC-Rio, rcazesc@ccard.com.br
lian militar dictatorship- Ozualdo Candeias

capa Resumo 1- Antes de chegar à metrópole

este artigo busca, através da análise de alguns planos No média-metragem Zézero, Ozualdo Candeias repete alguns
e cenas do filme Zézero, entender suas estratégias narra- dos procedimentos que já vinha utilizando em seus filmes de
tivas. Zézero utiliza um repertório de estilos narrativos ficção anteriores. O local no qual se passa a grande maio-
que combinam estratégias do “cinema de arte” e do cine- ria das cenas é bastante semelhante àquele visto em A margem

universidade
ma popular, ou popularesco, existente na Boca do Lixo pau- (1967), seu primeiro longa-metragem: a periferia de uma gran-
listana nos anos 1970. A base teórica utilizada é a aná- de cidade. É em tal cenário, muito explorado na história do
lise da narração cinematográfica realizada por David cinema, principalmente no cinema noir hollywoodiano dos anos
Bordwell a respeito do cinema clássico narrativo hollywoodia- 1940-1950, a metrópole que chama as pessoas para o sonho da
no. Pretendo, assim, ilustrar como as opções estilísticas da
sumário
riqueza e no tempo histórico do milagre econômico produzi-
narração em Zézero funcionam, em conjunto com sua história, do na ditadura militar, que Candeias articulará seu pequeno
para a crítica do filme ao sistema econômico imposto pela di- conto sobre um caipira que, seduzido pelas possibilidades de
tadura militar brasileira. vida na cidade grande, abandona seu refúgio rural e vem tentar
Cinema brasileiro- estudos da narração- Boca do Lixo- Di- a sorte numa megalópole. Na primeira cena de Zézero, vê-se

próxima tadura militar- Ozualdo Candeias algo que parece saído de um filme de ficção científica: uma
mulher, uma espécie de ser místico, adornada com um chapéu e
rolos de filme na cabeça, que segura um radinho de pilha em
Abstract uma das mãos, conversa com o protagonista do filme. Seu obje-
tivo é convencê-lo a ir para a cidade grande, tentar a sorte.
this paper searchs, analyzing some plans and scenes from
anterior the movie Zézero, understand its strategies of narration.
Seus argumentos são os diversos recortes de jornais e revistas
que ela lhe mostra. São fotos de artistas de massa do perío-
Zézero uses a repertoire of narrative styles that combines
do, como Sílvio Santos e Roberto Carlos, sempre a aparecer na

158
televisão vendendo sonhos ao público. São anúncios de lojas rio, deixa liberdade para que os corpos inteiros dos atores
que vendem produtos a perder de vista, iludindo o consumidor sejam vistos e está menos preocupada em construir sentidos
incauto para a tentação do crédito fácil. São anúncios de em- determinados do que em construir uma experiência na qual o es-
pregos, que muitas vezes não cumprem suas promessas, deixando pectador seja mais livre para acompanhar o andamento da tra-
o trabalhador sem a mínima condição de sobrevivência em uma ma. A cena depois evolui para uma construção na qual o que se
cidade grande e cara, como São Paulo. São as propagandas da observa é o uso de campo e contracampo dos dois personagens,
Loteria Esportiva, que promete riqueza fácil para quem fizer já enquadrados mais de perto, sem que se obedeça à regra dos
uma “fezinha” semanal na loteria do governo. Ao fundo, ouve- 180 graus, ou seja, causando certa desorientação espacial no
-se uma música, em forma de moda de viola, que funciona como espectador.
um comentário da cena que ocorre: “O que tem lá na cidade e Na sequência da cena, a “criatura mística” começa a reti-
que não tem no meu sertão/Que mexeu com seu juízo pra perder rar de sua bolsa uma série de revistas e jornais, para mos-
capa toda razão/ Largando mulher e filho por aqui sem proteção”. trar ao camponês. É aí que a cena ganha um interesse especial,
A música funciona como comentário da cena e também como uma tanto pela inteligência de integrar o uso das manchetes de
espécie de reclame comercial. A função dramática da trilha jornais e revistas à cena de uma maneira orgânica com os jor-
sonora no filme é essencial, já que este não possui diálogos. nais e revistas sendo filmados e aparecendo em plano-detalhe
O conjunto de atrações que o pobre camponês não pode encontrar quanto pelo conteúdo das manchetes, que esclarecem a falsida-

universidade
em sua terra natal o seduzem a partir para a cidade grande, em de do sonho prometido pelo milagre brasileiro. Ao mesmo tem-
busca de um sonho que poucos conseguirão realizar com êxito. po, ela liga o rádio e dele sai o som da música já mencionada,
A maneira como o filme narra o processo de sedução do cam- funcionando tal parte da cena como se fosse um comercial de
ponês pela “garota propaganda” é típica do cinema de Ozualdo televisão. Como contraponto aos jornais que são mostrados, o
Candeias, misturando elementos do chamado “cinema de arte” filme exibe alguns planos que possuem efeito somente estéti-
sumário com outros vindos do cinema popularesco, de sua vivência nos co. Como exemplo, um close no qual a “criatura mística” morde
filmes da Boca do Lixo. um pedaço de filme. É um plano que nada acrescenta à ordem de
Nos primeiros planos do filme, Zézero opta por mostrar a causalidade da trama, estando ali por mero efeito decorativo,
“criatura mística” e o camponês, cada um vindo por um lado, artístico. O curioso é que, enquanto a figura da “criatura

próxima
através de uma panície, enquadrados em planos-gerais, sem mística” está sempre com o rosto sorridente, como se fosse
que se possa ver maiores detalhes de seus corpos ou de suas uma dessas moças que aparecem em anúncios de sabonete na te-
expressões. Quando os dois se encontram, prossegue o mesmo levisão, a exibir seus produtos, o camponês permanece sempre
enquadramento em plano geral. Ambos estão cara a cara, mas na mesma pose e com o mesmo rosto, sem parecer entender muito
distantes, como se estivessem se preparando para um duelo. do que a Criatura lhe mostra. Mas, em um determinado momento,
Percebe-se, sem que se veja a expressão do rosto do caipira, ele dá um sorriso, num plano no qual há um enorme close de seu
anterior que ele tem medo da estranha criatura que vê pela frente. A sorriso, que ocupa quase a tela inteira. O camponês já está
câmera não conduz o espectador através da trama, ao contrá- se deixando seduzir. Até que chega um momento, após ouvir a

159
moda de viola, em que ele larga a madeira que levava no om- em meio ao cenário da grande megalópole. O recurso é mais uma
bro e se aproxima, finalmente, da criatura, indo ler mais de intervenção de Ozualdo Candeias no sentido de quebrar com a
perto as notícias tentadoras da cidade grande que ela mostra construção espacial e temporal objetiva da cena. A interven-
em um jornal. ção das montagens funciona como uma espécie de flash-foward na
O destaque especial para as reportagens exibidas pela trama, mas sem que o espectador, de imediato, consiga compre-
Criatura vai para aquela na qual ela exibe uma reportagem na ender tal informação. Fábio Radi Uchôa assim analisa a cena:
qual é narrada a história de um homem que ficou milionário A (...) aproximação em relação ao imaginário, suscitado pela cidade
no personagem representada por meio de um clip, constituído, em sua
ao vencer a Loteria Esportiva. Paulo Emílio Salles Gomes, em
maioria, por closes de fotomontagens e recortes. Nele, a violência dos
chave diferente da minha, comenta assim a cena de Zezéro: prédios e construções já desponta de forma gritante. A cidade é mos-
A moça acena para o jovem caipira com as facilidades e prazeres da trada de maneira grandiosa, imponente, por meio de imagens das regiões
grande cidade. Ele se despede dos amigos e da família e parte. Na centrais, cujas paisagens desaparecerão depois da primeira passagem do

capa cidade brutal tudo é enlameado e sórdido: o trabalho, a morada, a


comida e o sexo. Logo não terá como mandar dinheiro para a família. A
personagem pela Boca do Lixo. Nestas imagens, uma primeira modali-
dade de relação violenta entre o corpo do protagonista e o espaço é
única esperança é a loteria esportiva. A sorte o favorece mas quando construída. A grafia, ou rima, existente entre corpos e espaço urbano
volta para casa a família está na cova. Pergunta o que vai fazer com representado, identificada nas fotografias do cineasta, feitas na Boca
todo aquele dinheiro e a garota propaganda da civilização lhe dá uma do Lixo, é neste trecho reafirmada: os corpos dialogam com o espaço,
resposta chula./ No início do filme a garota propaganda é uma sereia a partir de tensões maiores ou menores, tendendo a rimas. (RADDI
irrisória – louquinha enfeitada com fitas de celulóide – cujo canto UCHÔA, 2008, p.110).
consiste num arsenal de periódicos: os jornais mais importantes do Rio
universidade de Janeiro
cidade, os
e de São Paulo, as revistas sérias e as outras. A publi-
empregos, os crediários e as mulheres nuas. ... A noção
2- Na grande cidade

de que o dinheiro não traz felicidade se insinua e também a idéia de


que a miséria rústica é afinal de contas preferível à ilusão urbana. Ao chegar à metrópole, o caipira encontra-se perdido em
Esses arquétipos tradicionais de certo anarquismo, de certa literatura meio à quantidade de pessoas, a multidão que o cerca, o tama-
Zézero pela mais crua
sumário
e de um certo cinema são porém sufocados em
desesperança. (apud CALIL e MACHADO (orgs)., 1986, p. 300). nho dos edifícios, o movimento dos carros. A encenação muda
de figura nos primeiros planos do filme que mostram o caipira
A questão da Loteria Esportiva terá importância fundamen-
na cidade. A câmera passa a adotar uma postura mais distante,
tal na história. Apesar do tema tratado na cena ser de extrema
como em um filme documentário. A perspectiva é alternada com
seriedade e suas conseqüências na trama do filme funestas, os
planos nos quais a câmera é utilizada com intenção dramáti-
próxima
corpos dos atores seguem uma encenação de comédia burlesca,
ca bastante semelhante a do cinema clássico narrativo2, como
como se o que estivesse a ser encenado fizesse parte de uma
no momento em que o camponês é abordado por um homem, armado
trama cômica.
com um canivete, rouba o camponês. Candeias alterna, todo o
Seduzido pelas promessas mirabolantes de vida maravilhosa
tempo, a construção entre a filmagem com estilo de documentá-
na cidade grande, o camponês parte para lá, deixando sua fa-
rio, como no plano em que o camponês anda por uma rua da Boca
anterior mília na sua cidadezinha, esperando que ele retorne. Ocorre
do Lixo e as pessoas riem de sua figura ridícula com outros
aí uma sequência do filme no qual ele se transforma em anima-
2 Utilizo aqui o termo cinema clássico narrativo conforme o denomina David Bordwell em seu artigo: “O cinema
ção, com a utilização de montagens fotográficas do camponês clássico hollywoodiano: normas e princípios narrativos”.

160
planos nos quais ele adota a câmera com uma imagem subjeti- um distanciamento próprio a determinados filmes documentários
va. Nestes planos o caipira observa uma série de anúncios, e uma proximidade da câmera com os personagens que revela o
expostos em imensos outdoors da grande metrópole. A câmera que há de mais escondido neles. Mas a situação de incômodo do
sempre coloca o espectador em situação de confusão a respei- camponês com o espaço da metrópole que o circunda está prestes
to das estratégias narrativas empregadas no filme. A crítica a se esgotar. Um homem arregimenta um grupo de trabalhadores,
ao sonho capitalista de enriquecimento na grande metrópole é perdidos na grande cidade como o caipira, para a atividade
feita, portanto, com elementos que são contrários ao de um ci- que lhes é destinada: trabalhar na construção civil, erguendo
nema clássico narrativo, ou seja, do cinema hollywoodiano que enormes e disformes prédios e estruturas para que a cidade
utilizou com excelência tal método narrativo, em uma extensa cresça cada vez mais, os ricos fiquem mais ricos e os pobres
linha de montagem destinada a maximizar o lucro e reduzir o mais pobres.
risco. Zezéro, então, contará com um conjunto de planos bastante
capa Ele então vaga pela cidade, não conseguindo encontrar um raros de serem vistos em uma produção cinematográfica fic-
lugar no qual sinta-se bem. É uma forte característica do ci- cional brasileira: pessoas trabalhando, realizando seu ofício
nema de Candeias, a deambulação, o percurso dos personagens de trabalhadores braçais. A sequência de planos que traz os
rumo a algum ponto, que a trama não deixa clara, ou seja, a trabalhadores realizando as várias tarefas existentes dentro
deambulação não possui um propósito objetivo na trama: de uma obra é reveladora de uma abordagem de uma situação,

universidade
a deambulação aqui relaciona-se não apenas ao impacto causado pela efetuada por Candeias, de uma maneira bastante incomum no pa-
cidade sobre o protagonista, mas também ao rendimento do migrante à
norama do cinema brasileiro de ficção:
engrenagem física e humana da cidade. À falta de rumos do corpo físi-
co, corresponde a ausência de poder do migrante sobre si, seu trabalho
Num piscar de olhos, sem tempo para um suspiro sequer diante da rude
metrópole, o caboclo agrega-se ao operariado urbano (...) O traba-
e até mesmo sua sorte, logo mais entregues à exploração pela constru-
lho com pás na terra, os momentos de almoço, a imersão no mundo da
ção civil e aos sorteios da loteria esportiva. Para o mesmo efeito,
(radinho/carnê do baú) a opressão do chefe no dia
sumário
cultura de massas
contribuem outras configurações assumidas pelas relações corpo- espaço
do pagamento. Todos estes elementos contribuem para a constituição de
urbano (...) (RADDI UCHÔA, 2008, p. 116).
uma atmosfera repetitiva e visceral (...) (RADDI UCHÔA, 2008,
O caipira chega ao ponto de pedir dinheiro a um estranho p. 117/118).
na rua, enquanto busca alguma possibilidade de inserção na Mas o camponês não está interessado em refletir sobre as
grande cidade. O curioso desta cena é que ela é filmada em questões sociais que lhe assolam e ao país, em tempos de di-
próxima um plano aberto no qual o caipira e quem lhe dá esmola são tadura militar. É mais cômodo ouvir as transmissões da rodada
enquadrados a grande distância, lembrando o procedimento da do futebol, de olho nos resultados dos jogos que envolvem a
câmera escondida, tão comum em alguns programas contemporâneo Loteria Esportiva. A cena novamente é filmada em estilo de
de televisão.3 É que a posição da câmera em relação aos dois cinema documentário, com um grupo de trabalhadores ouvindo os
personagens faz com que ela esteja num lugar no qual eles não resultados dos jogos de futebol que fazem parte do concurso
anterior podem percebê-la. É mais um expediente utilizado por Candeias da Loteria, enquanto almoçam. O uso do som na cena é extra-
na construção dramática do filme, que sempre se alterna entre ordinário, resultando dele a maior parte do efeito dramático,
3 Sobre a câmera escondida, ver entrevista de Eduardo Coutinho em: http://www.escrevercinema.com/Couti-
nho_vazio_do_quintal.htm.

161
obtido com o uso da locução radiofônica, na qual se escuta de uma maneira que ressalta sua condição de “cidadãos de uma
os locutores de rádio anunciando os resultados da Loteria e classe superior”, autoridades. Eles entram na pequena favela
comentando os jogos da rodada. Tal uso dos programas de rádio como se estivesse marchando (o som que se ouve na cena é um
populares, somado aos trabalhadores comendo e conferindo seus rufar de tambores ao estilo militar) enquanto são observados
cartões da Loteria, é uma mostra de como Zézero insere recur- pelos que lá residem. Também se escuta na cena o som do choro
sos da cultura popularesca brasileira em meio a uma narrativa de uma criança. Quando encontram o grupo de operários, per-
elaborada segundo padrões narrativos aproximados daqueles do filado junto a uma casa, a encenação muda e o distanciamen-
cinema de arte. to da câmera em relação aos personagens, existente no início
O filme segue em seu exame da miséria na megalópole, exa- da cena, acaba. A câmera passa a se aproximar do capataz da
minando as condições de habitação dos trabalhadores da obra. obra, filmando seu rosto em um super-close em que se destacam
São as piores possíveis, com todos vivendo naquilo que se cha- seus olhos ameaçadores. Ouve-se um grunhido na trilha sono-
capa ma no Brasil de favela, com vários deles dividindo um pequeno ra. O capataz é um ser grotesco, animalesco, cujo meio para
espaço, numa espécie de acampamento militar. Como o caipira é controlar os trabalhadores é um revólver que leva na cintura.
analfabeto, pede a um colega que escreva uma carta para seus Eles colocam suas digitais em papéis trazidos pelos homens de
familiares. É um dos poucos momentos no filme em que há uma terno, provavelmente um contrato de trabalho.
troca de afetos entre os personagens, em que não há apenas um Na próxima cena surgem novos símbolos da opressão do di-

universidade
funcionamento baseado nos princípios da máquina de dinheiro nheiro sobre os operários. A câmera volta a assumir uma postu-
instalada na grande metrópole. Na carta, mostrada em um pla- ra de distância em relação aos personagens, enquanto retrata
no-detalhe, o camponês diz que está gostando da idade e que vendedores do famoso carnê de prêmios Baú da Felicidade. Um
já conseguiu um trabalho remunerado. Nesta cena da carta o narrador de rádio faz a propaganda do produto, quando se ouve
procedimento é o de uma filmagem mais aproximada a do cinema na cena, ao fundo ele declamar: “confira as quarenta e seis
sumário narrativo clássico, com a sequência de imagens mostrada con- lojas do Baú da Felicidade”. A crítica aqui assume um ponto
duzindo até aquela em que é exibida a carta. No cabeçalho da impressionantemente direto, sem recorrer a metáforas, como a
carta está escrito São Paulo, dando caráter concreto à loca- criação de algum produto com um nome fictício, semelhante ao
lização geográfica da grande cidade. O som dos programas de Baú.

próxima
rádio populares continua a ser ouvindo como trilha sonora da Em meio à cena dos vendedores de carnês do Baú da Felici-
cena, saindo de um radinho dos operários. dade surge um plano que mostra os rostos de duas moças, sor-
O período de repouso dos operários, no entanto, dura rindo, na favela onde vivem os trabalhadores. Sua aparição não
pouco. Na próxima cena a engrenagem da máquina de dinheiro precede nenhuma apresentação, apenas se pode ver seus rostos
da grande cidade já volta a funcionar. Três homens se diri- em meio ao espaço vazio. Em um plano seguinte elas são vistas
gem para a habitação dos operários. Vestem ternos e causam de corpo inteiro, juntas a um barraco de madeira. Elas são
anterior um enorme contraste com o local, semelhante a um lixão. São duas prostitutas, partes integrantes da máquina de dinheiro
filmados, ao entrar na área em que vivem os trabalhadores, da grande metrópole, mas uma parte que está num lado diferen-

162
te em relação aos patrões dos operários, a Loteria Esportiva territórios marginais.
e o Baú da Felicidade. Elas estão na parte explorada, junto O interessante em Zézero é a maneira como a “prisão” na
aos operários, mas acabam servindo também como um fator que qual o personagem está imerso é utilizada como um cenário com
contribui para que eles se empobreçam, gastando parte de seu forte carga dramática e simbólica:
reduzido salário com elas. É uma contradição que está sempre A função do terreno baldio em Zézero não pode ser pensada sem a re-
ferência à função de escape, exercida pela baixada santista em filmes
presente na engrenagem do entretenimento na grande cidade. Ao
da mesma época. Não só A mulher de todos (1969), como também O
mesmo tempo em que serve para aliviar as dores e dar entre- bandido da luz vermelha (1968), dois filmes de Sganzerla, contribuem
tenimento a quem lá vive, também acaba, em vários casos, por para a caracterização da praia como espaço de fuga, ou realização se-
xual. Na fita de Candeias, em contraposição ao litoral dos referidos
diminuir ainda mais a qualidade de vida do morador da mega-
filmes, o espaço do terreno baldio assume traços de violência, em
lópole. sintonia com o matagal de Gamal. Trata-se de uma violência da cida-
O caipira já está adaptado à engrenagem da grande cida- de, a partir de sua configuração associada aos meios de comunicação em

capa de. Joga na Loteria Esportiva, compra seus carnês do Baú da massa e à exploração do trabalho não qualificado sobre o personagem.
(RADDI UCHÔA, 2008, p.123).
Felicidade e agora vai ao encontro das prostitutas para con-
seguir um pouco de sexo. A narração agora adota procedimento A utilização do espaço filmado com efeitos dramáticos e
mais próximo ao do modelo clássico narrativo, com o caipira simbólicos é algo que costuma ser recorrente no cinema, quan-
aproximando-se das duas moças e então falando ao ouvido de do ele tem a possibilidade de realizar suas filmagens em lo-
cações ao invés de estúdios e aposta no “efeito de realidade”
universidade
uma delas. A câmera, nesta cena, abandona um pouco o distan-
ciamento, no estilo de filmagem de documentário, presente ao proveniente de tal operação, em contrapartida a algo que po-
longo do filme, buscando algo próximo a uma sensualidade no deria ser chamado de “efeito de artificialidade” que geral-
enquadramento dos corpos e rostos, mesmo que seja uma sensu- mente ocorre quando a filmagem é realizada em estúdios.
alidade abalada pela máquina de consumo da megalópole.
sumário A vida prossegue para o operário dentro do espaço da obra,
3- O sexo reificado pelo dinheiro

que para ele vira como que uma prisão. Apesar de ambientado na Após encontrar a prostituta, o caipira vai tomar banho no
cidade grande o filme tem, em boa parte de sua duração, a obra banheiro coletivo da obra, em uma cena na qual é surpreenden-
e seu entorno varzeano como cenário. Ou seja, o caipira vai te o plano que mostra o caipira nu, de costas, no chuveiro, a

próxima
para a cidade grande, mas, na verdade, pouco aproveitará do tomar banho, sendo filmado de cima. É um plano que se prolonga
que ela pode oferecer, ficando preso em um território dela no por bastante tempo, ouvindo-se ao fundo o som da narração de
qual ela irá trabalhar e consumir alguns produtos, ajudando a uma partida de futebol. O caipira sai do banheiro coletivo e
movimentar uma máquina muito maior do que ele pode compreen- cumprimenta seus colegas que estão na fila. Após, vai comprar
der. A várzea paulistana é, assim, o único espaço no qual é algumas roupas com uma senhora que vende para os trabalha-
permitido ao caipira circular, enquanto trabalha na obra. Os
anterior outros espaços são interditados para aqueles que, como ele,
dores da obra. Ele já está bem adaptado à rotina da vida na
várzea, encarando sua rotina com naturalidade. A câmera segue
não possuem recursos financeiros para circular fora de seus alternando entre um estilo mais próximo ao do documentário e

163
outro mais próximo ao do estilo da ficção. O caipira e seu A cena da cópula evolui para um anti-erotismo cada vez
amigo, enquadrados a certa distância, vão ao encontro de duas maior, com o caipira rasgando as roupas da prostituta enquanto
prostitutas que estão sentadas junto a uma casa na favela. Uma se ouve o barulho opressivo da percussão ao fundo, entremeado
sai junto ao amigo do caipira enquanto ele começa a conversar por um plano no qual o jogo erótico aparentemente inocente é
com a outra. Como o filme não é falado, apenas se pode ima- retomado. Daí para o final da cena, a filmagem da cópula obe-
ginar o que ele diz, ouvindo ao fundo o som de uma percussão dece a um registro que pode ser pensado como o exato oposto
monocórdia, ouvida em quase todas as cenas do filme passadas do registro erótico que era comum para o cinema nacional da
na várzea. Após uma rápida conversa, o caipira e a prostituta época, em especial nas pornochanchadas, muitas realizadas na
saem de perto da casa e vão correndo pela várzea, em um plano Boca do Lixo, local sempre freqüentado por Candeias e onde
no qual há um nítido choque entre o que se vê na tela e o que ele realizou vários trabalhos em cinema. O erotismo da por-
se ouve na trilha sonora. Os planos do caipira e da prostitua nochanchada, em que pese seu valor como veículo libertário
capa correndo pela várzea evocam uma cena típica de filmes do gê- nos tempos de sufocamento das liberdades individuais imposto
nero romântico, nos quais é comum se ver o casal de amantes pela ditadura, era apenas, no fundo, uma manifestação inocen-
correndo por algum campo, praia, jardim, etc. Geralmente tal te, uma visão pueril do sexo. Em Zézero o sexo reificado não
cena é combinada ou com uma música romântica ao fundo ou com serve como mera distração para as classes populares ávidas
o som ambiente do local. Em Zézero a combinação é com o som por ver mulheres nuas no cinema. A partir do momento em que

universidade
monocórdio da percussão, acabando com qualquer clima erótico o som da percussão é substituído pelo barulho de um motor, o
que pudesse ser vir a ser estabelecido na cena. erotismo (ou anti-erotismo) da cena ganha uma encenação bas-
Quando eles param de correr e a câmera se aproxima do ca- tante diferente em relação ao cinema brasileiro da época. O
sal é quebrado o mínimo clima romântico que poderia ser espe- caipira e a prostituta iniciam o coito deitados na grama da
rado pelo espectador para a cena, instaurando-se um clima de várzea, filmados ainda como se fossem animais no cio. A câmera
sumário brutalidade entre o caipira e a prostituta. Ele a agarra e ela acompanha os movimentos dos corpos dos atores, estes são en-
põe a mão em seu bolso, retirando o dinheiro que ele lá leva- quadrados de perto, mas não há uma coreografia de seus corpos
va. A narração passa a ser semelhante ao modelo clássico nar- junto à câmera que tenha como objetivo tornar o ato do coito
rativo, instaurando o drama da relação reificada no dinheiro. algo poético ou belo.

próxima
Vendo que o caipira possuía dinheiro para a realização do ato Uma transição estranha entre os planos que mostram o de-
sexual, a prostituta retoma a brincadeira erótica de antes, correr do coito e aquele que mostra seu final é utilizada em
correndo pela várzea, até que o caipira a agarra e ambos co- Zézero: um plano do céu, com a fotografia bastante “estou-
meçam a rolar. A música que se ouve ao fundo segue sendo a rada”, que aparece por alguns segundos. Tal recurso também é
percussão. A maneira como o casal é filmado quando iniciam o utilizado no início da cena de “sedução” entre o caipira e a
ato sexual remete ao estilo de reportagem-documentário, com a prostituta. Indica, juntamente com a trilha sonora, momentos
anterior câmera observando o ato de maneira semelhante a que se observa chave no desenrolar da longa cena que envolve o caipira e a
uma cópula de animais em documentários do gênero. prostituta, ao mesmo tempo em que indica elipses de tempo no

164
desenvolvimento da narrativa. A elipse é um recurso comum no dição para exibi-lo em festivais ou em algum circuito comer-
cinema narrativo clássico, trazendo para a seqüência de pla- cial, Ozualdo Candeias realizou Zézero.6 Sua crítica ao regime
nos e cenas uma objetividade narrativa que evita os tempos militar e seus embustes, principalmente a Loteria Esportiva,
mortos, dando ao filme um nexo de causalidade e objetividade é feita por meio de uma narração que não se pauta pelo mo-
bastante eficiente. delo narrativo hegemônico, de recepção mais simples para os
O final da cena de sexo entre o caipira e a prostituta é, talvez, espectadores, o cinema narrativo clássico hollywoodiano. Com
onde Zézero mais articule sua dimensão de coexistência entre as técni-
sua mistura de estilos narrativos, Ozualdo Candeias pode ter
cas narrativas do cinema de arte e os procedimentos de incorporação de
valores da maior vulgaridade, do mais popularesco4 que possa existir,
complicado, em tese, a recepção do espectador mais acostumado
quando a moça se limpa, após o ato sexual: ao cinema clássico. Mas, sem dúvida, ampliou a força política
de seu filme, através deste estranhamento, fazendo-o ir muito
o caboclo, de alguma maneira realizado, deu as costas e
além de um simples filme de denúncia de uma época.
capa
foi embora, desaparecendo por uma das trilhas demarcadas no
terreno baldio. A personagem está sozinha (....) de cabelos
Referências bibliográficas:
em pé. Num pequeno momento de suspiro, seguindo-se ao sórdido
• CALIL, C.A e MACHADO, M.T (orgs). Paulo Emílio, um intelectual na linha de
ato de asseio, ela olha para a câmera, corre em seu sentido
frente. São Paulo, Brasiliense, 1986.
e joga o pano utilizado. O corpo da moça e o tecido espir- • RADDI UCHÔA, Fábio. Cinema e deambulação nos filmes de Ozualdo Candeias,
ram para fora de campo, rente à câmera. (RADDI UCHÔA, 2008, São Paulo, ECA/USP, 2008. (dissertação de mestrado).

universidade
• BORDWELL, David. “O cinema clássico hollywoodiano: normas e princípios
p.125). narrativos”. in: Ramos, Fernão Pessoa (org). Teoria contemporânea do ci-
O filme prosseguirá com a narrativa da saga do caipira nema, volume II. São Paulo, SENAC, 2005.

na grande cidade, até o momento em que ele ganha na Loteria


Esportiva e regressa para seu vilarejo, onde encontrará sua
família morta.
sumário
4- Conclusão

Em sua narração, Zézero utiliza a mistura de estilos


narrativos para construir uma crítica impiedosa do regime mi-
próxima litar brasileiro nos anos 1970. Na época, o cinema brasileiro
recebeu bastante apoio dos militares, com a criação de leis
que ampararam a produção nacional.5 Mas, claro, determinados
temas não poderiam ser abordados. Atuando com um modo de pro-
dução marginal, sem submeter o filme à censura oficial, con-
anterior 4 Não há, aqui, nenhum juízo de valor a respeito da diferença entre uma arte popular, com raízes em costumes
antigos de um grupo populacional e uma arte popular que é resultado dos veículos de comunicação de massa.
5 No regime militar a cota de tela para filmes nacionais (período no qual uma sala de cinema é obrigada a
exibir filmes brasileiros) chegava a 112 dias. Em 2010 a cota de tela é de 28 dias. A alta cota de tela para
o cinema brasileiro à época do regime militar criou espaço para a exibição de filmes brasileiros, fomentando, 6 O filme foi exibido basicamente em universidades, muitas vezes em salas de aula, principalmente na USP,
em conseqüência, a produção. onde Jean-Claude Bernardet e Paulo Emílio Salles Gomes eram entusiastas do filme.

165
“Ninguém que traiu seus princípios alguma vez pode voltar a manter uma
O ROTEIRO E A IMAGEM POÉTICA DO relação pura com a vida”. - Andrei Tarkovsky
FILME O ESPELHO DE ANDREI TARKOVSKY De 1960 a 1986 Andrei Arsenevich Tarkovsky (1932-1986)
dirigiu nove filmes: O rolo compressor e o violino (1960), A
infância de Ivan (1962), Andrei Rublev (1966), Solaris (1972),
O Espelho (1974), Stalker (1979), Nostalgia (1983), Tempo de
viagem (1983) e O Sacrifício (1986) – ou seja, um filme a
cada dois, três ou quatro anos. Destes, apenas dois ele não
Y aska A ntunes (F átima A ntunes)
assina o roteiro (A infância de Ivan e Stalker); em todos os
Universidade Federal de Uberlândia - yaskaantunes@fafcs.ufu.br
demais, Tarkovsky o assina em parceria com alguém. Na maioria
A versão final do roteiro do filme O Espelho (TARKOVSKY,
capa
deles, porém, além da direção e roteiro, o cineasta russo as-
1974) foi resultado de um processo de elaboração em três eta-
sina também o argumento: O rolo compressor..., Andrei Rublev,
pas em que o autor conseguiu harmonizar de forma orgânica em
O Espelho, Nostalgia e O sacrifício. Tarkovski se inscreve na
sua estrutura a combinação entre o cine-jornal e a ficção ba-
categoria dos grandes diretores de cinema que produziam o que
seada na representação da memória. O presente artigo é apenas
se pode chamar de “filme de autor”7, numa fase em que o pro-
um relato desse processo de transformação do roteiro associa-
cesso de especialização das funções dos profissionais da área

universidade
do a uma reflexão sobre a imagem poética a partir do regis-
do áudio-visual estava ainda num estágio inicial. Esta era a
tro feito pelo próprio autor em seu livro Esculpir o tempo. É
forma que os diretores encontravam para imprimir uma deter-
também uma forma de prestar uma homenagem a esse cineasta tão
minada unidade na obra, já que é raro ter a sorte de encon-
pouco prestigiado em nossos dias no Brasil.
trar alguém com quem se tem afinidade com relação a concepção
PALAVRAS-CHAVE: roteiro, imagem poética, cinema russo,
estética. Direção, argumentação e roteiro são funções que se
sumário Andrei Tarkovsky
imbricam de uma forma quase simbiótica, estão inextricavel-
The final version plot of The Mirror (TARKOVSKY,1974)
mente ligadas, de modo que, para respeitar a criação daquela
came from a three stages process that results on a work where
unidade orgânica da obra, Tarkovsky não via como ser possível
the film-maker has got an organic shape that could harmonize
a não ser assumindo para si estas funções.

próxima
structurally the cine-journal and memory based representation
Ao inquirir sobre o processo de construção do roteiro nos
fiction. This article is just a report of that plot transfor-
filmes de Tarkovsky, o que se deseja na verdade é criar uma
mation process associated to an poetic image reflection that
oportunidade para rever, retomar e recuperar a obra de um
came from the author’s register in his book Sculpting in Time.
cineasta, cuja peculiaridade se evidencia em cada plano, em
It’s also an way to paying tribute to this film-maker so lit-
cada seqüência e diálogo. Seus filmes continuam resistindo à
tle recognized by nowadays in Brazil.
anterior KEYWORDS: plot, poetic image, Russian cinema, Andrei Ta-
passagem do tempo. A superfície de suas imagens permanecem im-
pregnadas de inequívoca sensibilidade poética, transbordante
rkovsky 7 Em oposição aos filmes comerciais, cuja exigência é a da eficácia que atende exclusivamente aos pressu-
postos do mercado consumidor.

166
na forma e no conteúdo. Sendo assim, a escritura deste artigo de justapor duas formas paralelas de percepção do passado: a
não é resultado de uma pesquisa propriamente dita no campo da mãe e a do narrador. Para o público, esse jogo iria adqui-
da estética do áudio-visual, antes, trata-se de um pretexto rir forma por meio da interação de “duas projeções diferentes
para revisitar, partilhar e chamar a atenção sobre a obra e a desse passado nas lembranças de duas pessoas muito próximas
importância das reflexões daquele que foi considerado um dos uma da outra, mas de gerações diferentes” (2002, p.154). No
mais importantes diretores de sua época, Andrei A. Tarkovsky. final, essa segunda estrutura também foi abandonada pelo di-
O estudo da construção do roteiro dos filmes de Tarkovsky retor em virtude de continuar sendo “excessivamente direta e
pode dar origem a pesquisas de desdobramentos conseqüentes, pouco sutil”.
tendo em vista o revigoramento porque passa o cinema brasi- De que modo surgiu então a terceira e definitiva versão
leiro da retomada. No caso deste artigo, deter-se-á no pro- do roteiro que deu origem a um dos filmes mais tocantes de
cesso de confecção do roteiro do filme O Espelho, produzido em Tarkovsky? Obviamente entre uma versão e outra passaram-se
capa 1974, pautando-nos no relato detalhado que o cineasta faz em anos. Finalmente, embora reticente ainda com a possibilida-
seu livro, Esculpir o tempo (Martins Fontes, 2002). Ele conta de de conseguir harmonizar documentário e ficção, a terceira
que o roteiro passou por três versões diferentes: a primeira versão surge a partir de uma bem sucedida tentativa de com-
surgiu a partir de anotações de lembranças da infância que o binar o cine-jornal com representações ficcionais, de modo
atormentavam. Eram imagens relacionadas à “evacuação durante que “as transições entre o tempo subjetivo (da memória) e o

universidade
a guerra” e ao “instrutor militar” de sua escola. A idéia era tempo verdadeiro das reportagens do exército russo da segunda
escrever uma novela, mas logo depois achou o tema muito frágil guerra mundial puderam se combinar de forma harmônica, quase,
e a novela nunca saiu. como diz o autor, como um milagre. Tarkovsky relata que depois
Sobre essa primeira versão do roteiro, intitulado origi- de “examinar exaustivamente milhares de metros de película”
nalmente como Um dia branco, branco, Tarkovsky faz o seguinte encontrou a “seqüência do Exército Soviético atravessando o
sumário comentário: lago Sivash”. Deixemo-nos guiar por essa impressionante nar-
...minha concepção estava longe de ser clara; um simples fragmento rativa:
de minhas lembranças, cheio de uma tristeza elegíaca e de nostalgia
Fiquei perplexo, (...) ali estava um registro de um dos momentos
pela infância, não era o que eu queria. Era óbvio que faltava alguma
mais dramáticos da história do avanço soviético de 1943. Era um
coisa ao roteiro, e o que faltava era crucial. Portanto, mesmo quando material único, e eu mal podia acreditar que se tivesse gasto tanto

próxima
o roteiro estava sendo apreciado pela primeira vez, a alma do filme
filme para registrar um só acontecimento em observação contínua. Sem
ainda não viera habitar-lhe o corpo. Eu tinha plena consciência de
dúvida, a cena fora filmada por um camera-man de extraordinário ta-
que precisava encontrar uma idéia chave que o elevasse acima do nível
lento. Quando, na tela à minha frente, e como que saídas do nada,
de uma reminiscência lírica (p.153-154). surgiram aquelas pessoas devastadas pelo esforço terrível e desumano
daquele trágico momento histórico, tive certeza de que aquele episó-
A partir dessa percepção, o cineasta escreveu uma segunda
dio tinha que se tornar o centro, a própria essência, o coração e
versão do roteiro, em que “...pretendia intercalar os episó- o sistema nervoso desse filme que tivera início simplesmente como uma
anterior dios da infância contidos na novela com fragmentos de uma en- reminiscência lírica íntima (p.155).
trevista franca com minha mãe” (2002, p.154). A tentativa era

167
Desse modo, o cineasta conseguiu encontrar uma pista que para a formulação do roteiro diz muito sobre sua forma de tra-
poderia levar à “idéia chave” que faltara na primeira versão, balho, sua concepção da função da arte e do papel do artista.
que poderia levá-lo à “alma do filme”. Encontrara finalmen- Muita coisa veio a ser pensada, formulada e realizada ao longo
te o elo entre suas reminiscências infantis – que ficaria no do próprio processo de filmagem. Obviamente O Espelho mar-
plano da memória e, portanto, no plano do tempo subjetivo – ca uma guinada na prática fílmica do autor, “os roteiros dos
e o relato histórico do cine-jornal – que ficaria no plano meus filmes anteriores foram mais claramente estruturados”
objetivo do documentário e, portanto, no tempo verdadeiro da (2002, p.157). No caso deste, os princípios foram outros: ele
reportagem. Assim, um episódio da infância do cineasta sobre não seria “elaborado e planejado antecipadamente”; “veríamos
a evacuação durante a guerra, aparentemente apenas “uma re- primeiro sob quais condições o filme adquiriria forma por si
miniscência lírica íntima”, ao cravar-se em suas lembranças próprio: dependendo das tomadas, do contato com os atores,
como um tormento, tornou-se mais tarde o ponto de impulso que da construção dos sets etc” (2002, p.157). O principal nesta
capa iria resolver esteticamente toda a proposta inicialmente con- experiência, segundo o relato do autor, foi “desenvolver uma
fusa do roteiro. Na estrutura do filme, embora essa reporta- clara percepção da atmosfera”, bem como uma visão do “estado
gem componha um episódio menor, ela constitui-se no centro de interior, a tensão interior específica das cenas a serem fil-
irradiação que ilumina e faz compreender o sofrimento por que madas e da psicologia dos personagens” (2002, p.157).
passaram os integrantes da família do narrador. Esse aconte-
O filme

universidade
cimento histórico, o evento da segunda grande guerra, e seus
desdobramentos – que afetaram tragicamente o modo de vida das
O Espelho é um filme de cerca de 200 tomadas de seqüências
pessoas em todos os níveis – determinaria para o resto da vida
longas. Durante o processo de montagem, conta o autor, che-
os dramas vividos pelo cineasta, sua família e por toda uma
garam a pensar que o filme não se sustentaria e não ficaria
geração de famílias da população da Rússia. Sobre essa se-
sumário
de pé. Não conseguiam imprimir unidade, nem conexões internas
qüência dos soldados soviéticos, o autor escreve:
e nem lógica nenhuma até que num “belo dia, quando, de certa
A cena era sobre aquele sofrimento que é o preço do chamado progresso
forma, tentávamos fazer uma última e desesperada recomposição
histórico, e sobre as incontáveis vítimas que, desde tempos imemo-
riais, o mesmo exige. (...) uma vez impressa na película, a verdade – ali estava o filme” (2002, p.138). A sensação narrada por
registrada nessa crônica de uma autenticidade absoluta deixava de ser Tarkovsky é do acontecimento de um milagre, de repente, “o

próxima
simplesmente semelhante à vida. Tornava-se, de repente, uma imagem de
material adquiriu vida, as partes começaram a funcionar orga-
sacrifício heróico e do preço desse sacrifício: a imagem de um momento
histórico decisivo, obtida a um custo incalculável. (...) Quase não nicamente, como se unidas por uma corrente sangüínea, (...)
houve sobreviventes (p.156). o próprio tempo, fluindo através das tomadas, acabara por
Esse ponto de vista crítico do progresso perpassa quase harmonizar-se e articular-se” (2002, p.138). Sobre o filme,
todos os seus filmes e se torna tema do discurso em cenas de Tarkovsky afirma que:
anterior Nostalgia e O Sacrifício. O Espelho é também a história da velha casa onde o narrador passou
sua infância, da fazenda onde ele nasceu e onde viveram seu pai e sua
O relato sucinto dos caminhos percorridos por Tarkovsky
mãe. Esta casa, que com o passar dos anos se transformara em ruínas,

168
foi reconstruída, “ressuscitada” a partir de fotografias da época e Natalia, a esposa do narrador, questiona seu marido sobre as razões de
dos alicerces que ainda sobreviviam. Assim, acabou ficando exatamente o casamento deles terem se rompido. Aqui, a conversação é conduzida
como fora quarenta anos antes. Quando mais tarde levamos até lá minha enquanto ela se olha num espelho e, a certa altura, ela sopra sobre
mãe, que passara a infância naquele lugar e naquela casa, sua reação ele e apaga a umidade com seus dedos8 (LE FANU, 1987, p.72).
superou todas as minhas expectativas. O que ela experimentou foi uma
volta ao seu passado, e isso me deu a certeza de que estávamos no
Um terceiro flashback ocorre mais tarde no filme, durante
caminho certo. A casa despertou nela os sentimentos que o filme pre- a guerra, quando o garoto de pés descalços e sua mãe chegam
tendia expressar...” (2002, p.158).
à casa de um vizinho. Enquanto a mãe vai para outro quarto
Grande parte da matéria prima do filme O Espelho vem da barganhar com a dona da casa a venda de seus brincos, o jovem
experiência auto-biográfica do autor. Entretanto, o modo como Alexei é deixado sozinho. “É hora do crepúsculo; a chama no
Tarkovski o faz, imprime “a autoridade da terceira pessoa da lampião se agita e se extingue. A face do garoto reflete-se
arte da narrativa” (LE FANU, 1987, p.69). Mark Le Fanu em sua intensamente no espelho pendurado sobre uma lareira. É um mo-

capa obra The Cinema of Andrei Tarkovsky (1987) analisa os princi- mento de memória e mistério” (LE FANU, 1987, p.72).
pais aspectos da poética deste filme que podem revelar a sen-
sibilidade refinada do cineasta. Há recorrências por exemplo Poética da imagem

de imagens dos elementos da natureza: o fogo (casa pega fogo


Nas seqüências de rememoração da infância evocadas aci-
em O Espelho e em O sacrifício, em Nostalgia, um homem põe
ma, algo nos afeta de forma poderosa. Algo faz com que al-
em seu corpo), água – em suas diversas possibilidades, poças

universidade
guma coisa interna se agite cambaleante até nos deixar meio
d’água, copos d’água, chuvas, rios e lagoas, cisternas etc,
extasiados ou meio transtornados. Compreendemos tudo que se
a terra e o ar nas paisagens e nos ventos que fazem vibrar
passa ali, mas não de forma racional. A compreensão se dá
árvores e folhas. Imagens de espelhos e demais superfícies
mais como uma espécie de insight. Dependendo da intensidade
refletoras, da presença de sonhos, de rememorações do passado
daquilo que nos afeta, pode-se ter uma correspondência físi-
sumário (flashback).
ca mesmo: nossa respiração fica alterada (mais acelerada), o
Há uma seqüência que mostra uma espécie de “recordação
coração começa a bater mais rápido, os olhos ficam marejados.
mística” (p.72): “o pai do narrador volta para casa depois de
Perguntamo-nos interiormente como ele teve coragem de fazer
uma longa ausência, quando a mãe do narrador lava seus cabelos
aquilo, porque sentimo-nos tão expostos. Essas cenas parecem
numa bacia”. Neste momento, água começa a escorrer do telha-

próxima
querer revelar-nos nossa própria fragilidade de uma forma tão
do e pelas paredes, pedaços de blocos de construção caem do
sincera e honesta, que nos comove: nem sempre uma revelação
teto, ela anda alegremente através de uma “tempestade dentro
que queremos ou que nos sintamos preparados para ter sobre a
de casa”. Nós a vemos rapidamente num espelho comprido: então
vida e a existência humanas, devido a dores profundas que ela
num outro espelho no outro lado do quarto, sua imagem é trans-
enseja.
formada na de uma mulher envelhecida (LE FANU, 1987, p.72).
O que se encontra nessas composições visuais é a forma
anterior Num segundo momento de recordação do passado, o espelho
8 Tradução feita pela autora. Cf. citação no original em inglês: “...when Natalia, the narrator’s wife
aparece novamente: ocorre quando (Margarita Terekhova de novo, em seu papel “no presente”), questions her husband about the reasons for their
marriage breaking up. Here the conversation is conducted as she glanced at herself in the looking glass, at
one stage breathing on it and rubbing out the moisture with her fingers (p.72).

169
de Tarkovsky de dar realidade a sentimentos ou a percepções uma ilusão: a imagem (2002, p.42). A concepção de imagem ar-
tão subjetivas (dele), que ao se aproximar de uma Verdade, tística de Tarkovsky passa por um processo profundo de auto-
tornam-se também nossos sentimentos e nossas percepções. Para -conhecimento e de auto-percepção do sujeito e do mundo, e da
isso ele rompe com o realismo da utilização do tempo “real relação entre o sujeito e o mundo, da verdade da existência e
e objetivo” que costuma marcar as obras cinematográficas em da vida. Sua percepção é de que todo o nosso passado encerra
geral. Ele faz um uso muito particular do tempo, criando ou- uma verdade singular: “a singularidade dos acontecimentos de
tros ritmos e espaços que nos fazem transitar do interno ao que participamos, com a individualidade absoluta dos perso-
externo de forma transparente e obscura ao mesmo tempo: es- nagens com os quais nos relacionamos” (2002, p.122), só essa
tamos nos deparando enfim com o que estamos tentando definir experiência do mundo da vida, particular e singularmente vi-
como imagem poética. vida, pode se tornar matéria bruta para o artista, porque ela
O poema é tanto a parte material da poesia, quando seu é a nota dominante de cada momento da existência. Na leitura
capa modus operandi, ou seja, é aquilo que faz suscitar no sujeito que Le Fanu faz da obra de Tarkovsky, ele enfatiza essa re-
a poesia. Do mesmo jeito, a imagem poética é o suporte mate- lação do cineasta com o passado e como ele valoriza a tradi-
rial e o modus operandi da poesia no cinema, aquilo que faz ção: “nosso passado é nossa fortuna. Nós existimos como seres
suscitar no sujeito um estado poético. morais até o ponto em que possuímos, amamos e imitamos como
De acordo com a teoria da poética da imagem de Tarkovsky, ancestrais9” (1987, p. 73).

universidade
a imagem artística tem que ser capaz de “avança[r] para o in- O princípio vital é único em si mesmo e o artista deve
finito, e leva[r] ao absoluto” (p.122). O autor, em suas re- tentar apreender esse princípio e torná-lo concreto. A cada
flexões sobre a obra de arte, assevera que embora se trate de vez, busca renová-lo, a cada nova tentativa de renovação,
um conceito sintagmático difícil de ser formulado e compre- mesmo que frustrada, tenta-se “obter uma imagem completa da
endido – “não dá para ser expresso por meio de uma tese pre- Verdade da existência humana”. Para o cineasta russo, a qua-
sumário cisa” – a idéia de imagem artística pode ser entendida apenas lidade da beleza “encontra-se na verdade da vida, que o ar-
por meio da arte: tista assimila e dá a conhecer de acordo com sua visão pes-
quando o pensamento é expressado numa imagem artística, isso signi- soal” (2002, p.122). De acordo com uma observação precisa da
fica que se encontrou uma forma exata para ele, a forma que mais se
lógica da vida pode-se descobrir a “pulsação da verdade” e
aproxima da expressão do mundo do autor, capaz de concretizar o seu

próxima
anseio pelo ideal (2002, p.122).
“seguir os caprichosos desvios da vida”. Tentando determinar
a definição de imagem, o autor prossegue afirmando que imagem
Em sua meditação sobre a arte, o autor nos ensina que “a
“é uma impressão da verdade, um vislumbre da verdade que nos
imagem artística é sempre uma metonímia em que uma coisa é
é permitido em nossa cegueira” (2002, p.123). Assim, ela é
substituída por outra”, o menor no lugar do maior: para re-
indivisível e inapreensível e depende da nossa consciência e
ferir-se ao que está vivo, o artista lança mão de algo morto;
do mundo real que tenta corporificar. “Se o mundo for impene-
anterior para falar do infinito, mostra o finito. Substituição [...]
trável, a imagem também o será” (2002,p.123).
não se pode materializar o infinito, mas é possível criar dele
9 Cf. LE FANU, M. (1987, p.73). “Our past is our fortune. We exist as moral beings in so far as we possess,
love and imitate ascestors”.

170
Ao falar da imagem que reproduz em sua estrutura a obser- apenas refletir, mas transcender; seu papel é fazer com que a
vação precisa da vida, Tarkovsky evoca como modelo a poesia visão espiritual influencie a realidade” (2002, p.114).
japonesa, o haicai: “nesta, o que me fascina é a recusa em até Nesse ponto, deparamos com um aspecto fundamental para se
mesmo sugerir a espécie de significado final da imagem, que compreender a arte de Tarkovsky, por que ela, em última análi-
pode ser gradualmente decifrado como uma charada”. No haicai, se, está diretamente ligada a espiritualidade. Numa entrevis-
as imagens nada significam para além de si mesmas, por expres- ta, perguntado sobre o que significa arte, Tarkovski responde
sarem tanto, “torna-se quase impossível apreender seu signi- que “antes de definir arte ou qualquer conceito, devemos res-
ficado final” (2002, p.124). Tarkovski conseguiu imprimir em ponder a uma questão anterior: o que significa a vida do homem
suas obras, essa mesma lógica das imagens da poesia haicai, na Terra?” E é a resposta a esta questão primordial mostra de
a mesma simplicidade e exatidão com relação à observação da que modo a espiritualidade está na base da concepção de obra
vida, a mesma estrutura plena de sentido, que não se deixa de arte para Tarkovsky:
capa por causa desta mesma plenitude, agarrar por um significado Talvez estejamos aqui para melhorar a nós mesmos espiritualmente. Se
nossa vida tende para este crescimento espiritual, então arte é algo
único.
que se toma de lá. Isto, é claro, de acordo com minha definição de
Essa lógica da imagem poética está refletida nas cenas ao arte. A arte poderia ajudar o homem neste processo. (...) A arte
longo do filme todo. Apenas para citar algumas, além das já enriquece as próprias capacidades espirituais do homem e ele pode então
despertar sobre si mesmo, para isso que nós chamamos de vontade livre
evocadas acima, podemos falar das seqüências que tratam das
(free will).

universidade
reminiscências da infância do cineasta em que Alexi, ainda
criança, depara-se com o leite derramado; com a ventania ex- Nesse sentido, para Tarkovsky, “o artista nunca vai em
terna (ao tentar entrar em casa para fugir da ventania, encon- busca de um método pelo método, ou apenas em nome da estética;
tra suas portas trancadas); às cenas dos sonhos, das seqüên- ele é dolorosamente forçado a desenvolver o método como um
cias de reportagens e cine-jornais etc. Diante disso, pode-se meio de transmitir com fidelidade a sua visão de autor acerca
sumário afirmar que, para Tarkovsky, “uma verdadeira imagem artística da realidade” (2002, p.120). Por fim,
oferece ao espectador uma experiência simultânea dos senti- pode-se dizer que o artista enriquece o seu próprio ar-
mentos mais complexos, contraditórios e, por vezes, mutuamen- senal com o objetivo de fomentar a comunicação e levar as
te exclusivos” (2002, p.128). Com essa concepção, Tarkovsky pessoas a se compreenderem melhor, nos níveis intelectuais,
emocionais, psicológicos e filosóficos mais elevados. Assim,
próxima
confronta diretamente a vertente que considera a imagem como
significado único, “mensagem” expressa pelo diretor; contra- também se pode dizer que os esforços do artista têm por obje-
riamente, o cineasta russo afirma que imagem é “um mundo in- tivo melhorar e aperfeiçoar a vida das pessoas, de facilitar
teiro refletido como que numa gota d’água” (p.130). Com esse a sua compreensão mútua (2002, p.120).
poder de síntese, a imagem artística é portanto única e sin- Semelhante experiência está na base do filme “O Espelho”.
gular em contraposição aos fenômenos da vida real que costu- A sensibilidade das imagens presentes no filme instaura ins-
anterior mam ser destituídos de complexidades e grosseiramente banais tantaneamente um estado poético em seus espectadores. A capa-
(2002, p.132). Nesse sentido, a arte para o autor “não deve cidade de comunicação emocional da obra foi, sem dúvida, uma

171
árdua “vitória sobre o silêncio” não apenas de Tarkovsky, mas
de uma geração inteira de pessoas e famílias que viveram e
presenciaram os horrores causados pela irracionalidade de um
gesto como foi o da Segunda Guerra mundial.

Referência Bibliográfica
• ANTUNES, Y. “Imagem poética” in A imagem poética do nuevo teatro latino-
-americano: os casos do TEC e LA CANDELÁRIA da Colômbia. Tese de doutorado
defendida na USP, em 2007, Orientador: Prof. Dr. Sedi Hirano.
• LE FANU, M. The cinema of Andrei Tarkovsky. Londres: Instituto do Filme
Britânico, 1987.
• TARKOVSKY, A. Esculpir o tempo. Trad. de Jefferson Luiz Camargo. São Pau-

capa
lo: Martins Fontes, 2ª. edi.,2002.

Entrevistas dadas por Tarkovsky:

• http://www.youtube.com/watch?v=7Me--xHG-mQ&feature=related, captado em 10
de outubro de 2010.
• http://www.youtube.com/watch?v=V27XlEDLdtE,captado em outubro de 2010.

universidade
• Seqüência do filme “O Espelho”: http://www.youtube.com/watch?v=-
-pu49SYGRnk&feature=related

sumário

próxima

anterior

172
época e num mesmo processo social e cultural não se aproximam
APROXIMAÇÕES METODOLÓGICAS apenas pela história comum, como referem Piault (1992) e Pin-
E REPRESENTAÇÕES NO CINEMA ney (1992) mas também pela política, epistemologia da repre-
E NA ANTROPOLOGIA sentação e pelo metodologia de investigação/ produção.
A história paralela entre a antropologia e as tecnologias
da representação e comunicação não é apenas constituída por
uma simultaneidade de factos, mas pela forma de apreensão da
realidade, pelas metodologias exploratórias baseadas no olhar,
na construção do olhar (a observação) e no ouvir (as palavras)
J osé da S ilva R ibeiro e na poética das construções discursivas e narrativas em an-
CEMRI – Laboratório de antropologia visual - Universidade Aberta tropologia e no cinema, sobretudo no cinema documentário. Não
capa Desde seu aparecimento, no século XIX, cinema e antropo- basta porém analisar as propriedades dos sistemas visuais e
logia, desenvolveram uma história paralela e múltiplas apro- suas estratégias discursivas mas também as condições da sua
ximações. As mais relevantes são metodológicas e sobre a na- interpretação, relacionando esses sistemas particulares com
tureza das representações, isto é, a compreensão das relações as complexidades dos processos políticos e sociais dos quais
entre a produção cinematográfica de uma sociedade e a vida são parte, mas também reduzir as teorias antropológicas da

universidade
social. Destacaremos a proximidade metodológica entre Flaher- cultura para as teorias do cinema (Ruby, 1989; Chiozzi, 1989;
ty e Malinowski, entre a montagem segundo Vertov e as fases Canevacci, 2001). A antropologia evoluiu e desenvolveu-se pa-
da investigação antropológica, entre três planos na produção ralelamente à fotografia, ao cinema e mais recentemente aos
cinematográfica e na investigação antropológica, as consequ- novos media digitais revelando as mudanças dos processos his-
ências epistemológicas do advento do som direto no cinema e na tóricos, sociais e políticos que os formatam.
sumário antropologia, o advento das narrativas complexas multi-situa- A antropologia visual surgiu na segunda metade do século
das e as formas exploratórias e experimentais do pós-cinema. XIX quando a fotografia e o cinema surgem como inventos (in-
Abordaremos as perspetivas das lições de cinema para a nossa venções técnicas) importantes, mas também como contributos
época de Laplantine e posição e posicionalidade epistemológi- relevantes para as ciências, para as artes e para o prees-

próxima
ca, ética e política do antropólogo e do cineasta. tabelecimento de novas relações entre as ciências, as artes
Palavras Chave: antropologia, cinema, história paralela, e os contextos históricos, ideológicos e culturais no âmbito
metodologia, representações. dos quais surgem estes inventos e a sua utilização. A par-
tir da segunda década do século XX quando no cinema surge a
Introdução valorização montagem e da linguagem cinematográfica a antro-
pologia visual ganha novos recursos. Paralelamente o docu-
anterior A relação entre antropologia e cinema ou entre antropolo-
mentário ganha relevo (Flaherty e Vertov) e solidifica-se a
gia e imagens tem uma longa história comum. Nascidos na mesma
antropologia de terreno com o trabalho de campo realizado por

173
antropólogos, Bronislaw Malinowski - Argonauts of the Western grafia – investigação, museologia, escrita, sonora, visual,
Pacific (1922), ensaiando quase simultaneamente metodologias audiovisual, caminham numa perspectiva de integração. Assim
semelhantes às do documentário (Flaherty e Malinowski) na os métodos de investigação são cada vez mais metodologias e
abordagem da realidade social, dos factos sociais e cultu- das tecnologias de investigação, de disseminação de saberes,
rais. A partir anos 60 a observação como actividade visual, de criação e desenvolvimento de uma sociedade de conhecimen-
saber ver, é acompanhada de palavras e sonoridades localmente to, de reflexividade e de “inteligência colectiva”.
produzidas, saber ouvir, saber escutar. Junta-se assim o som
directo às imagens no cinema, no documentário e na antropo- Detenhamo-nos no car-
logia. taz na conferência An-
A partir dos anos 70 surgem as tecnologias vídeo e os thropology & Cinema, re-
computadores. Estes tornaram-se sucessivamente mais baratos, alizada na Universidade
capa acessívies, rápidos, potentes, interconectados e capazes de de Sussex no Reino Unido.
reunir num único media as tecnologias de comunicação e de Ao centro uma longa his-
representação. Estes constituem pois uma continuidade e um tória marcada pela justa-
potencial avanço na medida em que incorporam potencialmente posição de duas imagens,
todos os media anteriores, diluem as especificidades de cada duas épocas, duas formas

universidade
um, facilitam a intertextualidade e mestiçagem das linguagens de representação e meto-
anteriores (Shohat e Stam, 2002). Assim as novas tecnologias dologias de investigação
digitais e o hipertexto/hipermédia constituem uma forma, por- e produção. O texto, co-
ventura mais eficaz, de integração da antropologia visual com locado debaixo da ima-
a antropologia e da antropologia com a antropologia visual; gem completa a informação
sumário das imagens, sons e audiovisuais com a escrita; dos filmes com icónica, a Expedição An-
a reflexão teórica – todo o aparelho crítico do filme (produ- tropológico de Cambridge
ção, utilização, reflexão teórica). à produção Media Indíge-
Os novos media (tecnologias digitais) abrem novas pers- nas, os mundos da antro-

próxima
pectivas da antropologia visual como a fotografia, vídeo e pologia e do cinema estão profundamente entrelaçado. A confe-
cinema digitais e com edição multimédia/hipermédia e tornam- rência propõe-se “explorar a relação dinâmica entre a imagem
-na possível pela maior acessibilidade dos meios, mas sobre- em movimento e da prática etnográfica” a partir de quatro
tudo diluem fronteiras e desconfianças. Ao integrar os me- temáticas centrais, quatro investigadores e Universidades de
dia anteriores (áudio-scripto-visuais) diluiu as fronteiras, referência: Faye Ginsburg, programa Media Culture da Univer-
alargou seus utilizadores, solidificou bases teóricas e epis- sidade de New York - Media Mundo: Antropologia um novo terre-
anterior temológicas, dissolveu as desconfianças entre as representa- no, Catherine Russell, programa Film Studies da Universidade
ções escrita e imagética. As práticas tradicionais da etno- de Concordia em Montreal, Etnografia Experimental, o trabalho

174
de Cinema na era do vídeo, Marcus Banks, ISCA – Institute of gumas bases de dados que se me afiguram relevantes e próximas
Social and Cultural Anthropology da Universidade de Oxford, dos trabalho que vimos realizando neste campo – Ethnodoc11, O
Repensando a Antropologia Visual e o cineasta Anand Patwar- lugar do real12, Interculturalidade Afro-Atlântica13 e Ima-
dhan realizador do filme Guerra e paz / jang Aman Aur, filmado gens e sonoridades das Migrações14.
ao longo de três anos tumultuados na Índia, Paquistão, Japão e Parece-nos pois pertinente e necessário o debate e a con-
EUA, representa uma viagem épica de documentário sobre o ati- textualização desta produção no âmbito das conferências sobre
vismo pela paz face o militarismo e à guerra global. Os quatro o cinema. Em primeiro lugar porque poderemos divisar entre
investigadores e Universidades de referência, colocados nos cinema e antropologia uma história paralela (Piault, 2000),
quatro ângulos do cartaz enquadram a problemática da relação mas também uma metodologia paralela (Vertov, Flaherty, Mali-
entre antropologia e cinema a partir de uma perspetiva dinâ- nowski, Piault, Tomas, Ribeiro) e um ponto de partida comum
mica, da evolução da antropologia Visual nas últimas décadas (Laplantine, 2007). A posicionalidade (ponto de vista) do in-
capa como também é abordado por Jay Ruby em The last 20 years of vestigador e do realizador é também um aspeto em que poderiam
visual anthropology - a critical review (2005). também divisar formas aproximadas de intervenção. É sobre
Em 2001 a American Anthropological Association definiu uma estas três questões que nos debruçaremos nesta comunicação.
série de produções audiovisuais frequentemente integrados na Faremos também algumas considerações sobre a quarta questão
investigação antropológica e publica uma proposta elaborada acima referida.

universidade
SVA - Society for Visual Anthropology para o estabelecimen-
to de critérios de avaliação e integração desta produção nos Cinema e antropologia uma história paralela

curricula académicos dos antropólogos e considera que “os me-


Marc Piault afirma que a ligação se estabelece entre a
dia visuais etnográficos (principalmente o filme, o vídeo, a
origem do cinema e da antropologia não é fortuita e merece
fotografia e os meios multimédia digitais) desempenham um pa-
sumário
que nos debrucemos sobre ela “Assistimos, com efeito, ao de-
pel significativo na produção e na aplicação do conhecimento
senvolvimento simultâneo do que podemos considerar duas ins-
antropológico, constituindo também uma parte integrante das
trumentações dos tempos culturais e dos espaços sociais: o
ofertas de cursos desta disciplina. Os antropólogos envolvi- públicas para responder à falta de visibilidade da antropologia audiovisual na Europa e em África.
11 www.ethnodoc.org/ organização cultural para a organização de base de dados de filmes etnográficos e dis-
dos na produção de trabalhos visuais produzem contribuições tribuição de filmes.
12 http://lugardoreal.com/ Sítio de visionamento do documentário, de filmes e vídeos escolares e da fo-

próxima
académicas valiosas para a disciplina. Os antropólogos in- tografia documental criado e gerido pela Ao Norte – Associação de Produção e Animação Audiovisual que pre-
tende a valorização do documentário, alargando o visionamento a obras condenadas a uma divulgação residual,
disponibilizando-as para fins pedagógicos, de investigação e culturais. Uma base de dados que facilite aos
cluem também, cada vez mais, produções de media visuais como programadores a selecção de documentários e de outras obras audiovisuais para projecção em sala; um encontro
com “outros olhares” - registos na área da antropologia visual, depoimentos, memórias, entrevistas, imagens de
parte dos seus curricula vitae” (AAA, 20001) arquivo, etc.; uma janela das obras realizadas pelos alunos das escolas de cinema e de audiovisuais; um ponto
de encontro dos projectos levados a cabo pelas escolas do ensino básico e secundário e por outras entidades
A presença na Internet do filme etnográfico e antropológi- interessadas na literacia audiovisual; uma plataforma de divulgação da fotografia documental, entendida como
memória do séc.XX.
13 http://afro.itacaproject.com/ neste projecto pretende-se divulgar e actualizar a produção escrita e audio-
co e da formação oferecida pelas Universidades neste domínio, visual realizada e proceder à montagem, produção teórica, organização de base de dados da informação recolhida
sobre a culturalidade afro-atlântica.
hoje indispensável à visibilidade de qualquer área científi-
anterior
14 http://ism.itacaproject.com/ o projecto visa a recolha, organização e a disponibilização online de in-
formação fílmica, sonora e documental sobre as migrações em Portugal e na diáspora. A base de dados pretende
articular e potenciar conteúdos em linguagens e suportes diversificados como importantes fontes de conhecimen-
ca, é notável. Refiro apenas o sítio oficial na Web do “Comite to e a sua utilização em contextos educativos, científicos, ou de actividades de dinamização cultural, social
e cívica. O dispositivo e disponibilização de uma grelha de leitura e análise de filmes elaborada de forma
pour la diffusion du film ethnographique en Afrique10” e al- interactiva têm como objectivos facilitar a aquisição de competências de utilização da informação bem como
10 http://cinema.anthropologie.free.fr/ sítio da associação para a apresentação de projectos às instâncias promover a construção colaborativa de conhecimento por um universo alargado de utilizadores.

175
cinema como a etnologia (antropologia para os britânicos) vão apoia-se, no seu projeto de captação etnocêntrica do mundo,
para o terreno dos horizontes mais longínquos, aí onde são na afinação das técnicas instrumentais produzidas, nomeada-
percetíveis as maiores distâncias físicas, mentais e compor- mente, graças ao progresso da química, da ótica e da mecânica.
tamentais em relação ao que parece um lugar central de refe- O Ocidente do séc. XIX conhece como uma capacidade evidente e,
rência e que poder-se-ia, sem muito erro, qualificar de “mun- pensa-se, sem limite na expansão, na exploração do mundo e na
do branco”. Esta grande partida situa-se numa época em que a definição do seu sentido. Esta capacidade é tão sentida que
Europa e a América procuravam assegurar os mercados necessá- se exprime em termos de necessidade: o famoso “fardo do homem
rios à sua industrialização e às exigências do seu expansio- branco”, responsabilidade que se outorga de conduzir nos ca-
nismo económico, manifestas, nomeadamente, pelas diferentes minhos da sua própria civilização todas as sociedades do pla-
invasões coloniais”. neta. Encontramo-nos, por isso, num período de multiplicação
É a partir de meados do Sec XIX que “a ciência desenvolve e de sofisticação dos instrumentos de medida e de observação
capa as suas práticas analíticas, cumulativas e quase compulsivas: em todos os domínios, triunfo do método experimental, confir-
estabelecimento da nova ideologia científica de que o posi- mando a um mesmo tempo a validade da démarche, a qualidade da
tivismo será uma das mais fortes expressões. Convergências sua instrumentação e a realidade dos seus objetos. O caráter
notáveis neste século entre, por um lado, formulações filosó- objetivo da ciência é fundado sobre instrumentos de medida,
ficas que, para além das contradições entre os seus autores, cuja materialidade se supõe dispensar as incertezas da subje-

universidade
traduzem todas uma mesma preocupação de captar a totalidade e tividade da observação humana, pela imprecisão dos seus sen-
compreender o mundo a partir ou no interior dessa totalida- tidos: justifica-se, assim, não só a necessidade da descober-
de e, por outro, a consolidação política dos Estados-Nações, ta, mas a finalidade “civilizadora” se não da conquista, da
ocupando, sem deixar nenhum vazio, os antigos espaços mistu- exploração do mundo. A constituição progressivamente acabada
rados da geografia dos povos: as fronteiras delimitam espaços dos Estados europeus modernos implica, por seu lado, a passa-
sumário homogéneos, cujos detalhes poderão ser ainda contestados, mas gem para uma verdadeira experimentação das formações sociais
cujo princípio está doravante estabelecido e feito coincidir que eles representam e, por isso, a confrontação real, his-
o povo com o território quase sempre identificado a uma cul- tórica, com espaços exteriores, cuja ocupação, se fosse con-
tura, para os mais importantes de entre eles, a uma língua” seguida, daria prova de eficácia e de pertinência: a expansão

próxima
(Piault, 1993). política pode validar, de alguma maneira, a objetiva neces-
É neste contexto que surge a tentativa desenfreada de co- sidade da expansão económica, do crescimento da produção, do
lecionar e de apreender o mundo e a sua diversidade (Albert alargamento dos mercados, da venda e da apropriação sistemá-
Khan - Archives de la Planète) ou para reduzir o que seria tica das fontes de matéria-prima de energia (Piault, 1993).
apenas uma aparente diversidade à ordem única de classifi- A antropologia, considerada num sentido mais lato, ante-
cações mais ou menos dominadas pela ideia-força do evolucio- cedeu o cinema e a fotografia no entanto como refere Shohat
anterior nismo ou de implantação da ideologia do progesso. A obsessão e Stam “As tendências visualizantes do discurso antropológico
classificatória, articulada no modelo das ciências naturais, ocidental abriram o caminho para a representação cinematográ-

176
fica de outros territórios e culturas. O estatuto “ontologi- às costas dos “nativos” que levavam o cineasta e o seu equipa-
camente” cinético da imagem em movimento favoreceu o cinema mento. No contexto colonial o tropo (figura) da “câmara como
dando-lhe um estatuto semelhante ao da palavra escrita e ao uma arma” (espingarda cinematográfica de Marey) ressoava como
da fotografia. Era mostra da antropologia ao armá-la com a o uso agressivo da câmara (ver First Contact. 1984) pelos re-
evidência visual não só da existência de “outros” mas também presentantes dos poderes coloniais (tb. cinema americano). Os
da alteridade. O cinema neste sentido prolonga o projeto mu- povos primitivos tornaram-se objectos de representação quase
seológico de reunir na metrópole objetos zoológicos, botâni- sádica (Shohat e Stam, 2002:121-122).
cos, etnográficos e arqueológicos tridimensionais. A diferen- Cinema e etnografia revelam e acompanham de forma para-
ça das mais reputadas e “inacessíveis” ciências e artes das lela o contexto histórico e cultural construído como que um
elites, o cinema popularizador podia trazer aos espetadores, olhar comum. Não apenas uma história paralela de factos.
desejando ver e sentir civilizações “estranhas”, mundos não 2. Cinema e antropologia: montagem e desenvolvimento de
capa europeus. Podia transformar o obscuro mapa-múndi num mundo um projeto de investigação em antropologia.
conhecível e familiar”. Entre o fim da Primeira Guerra Mundial e a Revolução Rus-
Como vimos Ella Shohat e Robert Stam incluem o conhecimen- sa, o antropólogo britânico W.H.R. Rivers (1864-1922), a quem
to ou o espetáculo da ciência numa perspetiva mais ampla que a se deve a matriz da Escola Britânica de Antropologia Social
do conhecimento antropológico. Tratava-se das práticas desen- [Galileu da etnologia (Lévi-Strauss), iniciador da pesquisa

universidade
volvidas pelas expedições científicas multidisciplinares que britânica sobre a família e o parentesco, participante na Ex-
acompanham o processo colonial e que inserem os nativos mais pedição ao estreito de Torres organizada por A. C. Haddon],
num processo de identificação com a natureza (selvagem, bom apresentados como field-anthropologists, seguindo o modelo
selvagem, etc.) de que com a cultura e a sociedade mas também dos field-naturalists (L’ Estoile, 1999), contactou com os
identificam a semiótica da câmara de filmar e da encenação cineastas D. W. Griffith e D. Vertov transmitindo a neces-
sumário colonial das expedições científicas ou coloniais (exploração sidade de encontrar novas formas de documentar a realidade
de matérias primas) evidentes em alguns filmes (First Con- (Grimshaw, 1997). Pouco se sabe destes contactos e se a ideia
tact, 1984). Afirmam assim que “Operando num contínuo com o do antropólogo britânico era simplesmente de documentar, de
zoológico, o antropológico, o botânico, o etológico, o bioló- uma aproximação mais direta do cineasta ao seu objecto de

próxima
gico e o médico. A câmara – como o microscópio anatomizava o estudo, de produzir testemunhos de exceção dos encontros de
“outro”. Os novos aparatos (aparelhos) visuais demonstravam o terreno ou se já estava presente a ideia de montagem que Gri-
poder da ciência para mostrar e decifrar culturas alteradas, ffith e Vertov trazem para o cinema na segunda década do sé-
a dissecação e a montagem construíram juntos um retrato pre- culo XX. Para Vertov a câmara de filmar, o olho fílmico, era
sumivelmente holístico do colonizado. As invenções tecnoló- mais perfeito que o próprio olhar humano para explorar o caos
gicas traçavam o mapa do mundo como um espaço de conhecimento dos fenómenos visuais e suscetível sempre de ser melhorado.
anterior das disciplinas. As topografias estavam documentadas para o À perceção caótica do olhar humano e às limitações impostas
controlo militar e económico, frequentemente, e literalmente, pela imobilidade, contrapõe as possibilidades do olhar mecâ-

177
nico e móvel da câmara: nova concepção de montagem.
A câmara, para Vertov, é um olho mecânico em perpétuo mo- O filme O Homem da Câmara de Filmar tem, para os antro-
vimento, que liberta o homem da sua imobilidade, aproximando- pólogos, um duplo valor etnográfico. O de produto documental
-se e afastando-se das coisas, penetrando nelas, deslocando- da construção de uma nova sociedade e o de resultado de um
-se, atravessando multidões, caindo e levantando-se ao ritmo novo modo de olhar (cinema) e apresentar (teorização, cons-
dos movimentos. trução discursiva, montagem). Constitui também um ritual de
O olhar mecânico organiza a perceção: “se fotografarmos passagem (Tomas em Taylor, 1994: 272). Porque produzido na
o que o homem viu, obter-se-á naturalmente uma grande con- fase liminar da revolução soviética, que acima referimos, mas
fusão. Se montarmos habilmente tudo quanto se filmou, o re- também porque o próprio desenvolvimento do filme apresenta
sultado será um pouco mais claro. Se eliminarmos as escórias claramente três momentos (como nos rituais de iniciação ou
que perturbam, ainda será melhor. Obteremos deste modo uma de passagem): separação ou rutura, passagem ou liminar e,
capa memória organizada das impressões de um olhar vulgar [...] O finalmente, de agregação ou reintegração. Mais duas caracte-
olho mecânico procura às apalpadelas no caos dos acontecimen- rísticas importantes na cinematografia vertoviana: cada plano
tos visuais um caminho para o seu movimento ou para as suas nada valia por si, isoladamente, como as palavras no texto ou
hesitações e experimenta, alongando o tempo, desmembrando os na poesia, mas em função das conexões, da articulação com os
movimentos ou absorvendo o tempo em si próprio, engolindo os outros planos, “não é nada, em si, fora de qualquer contexto,

universidade
anos, esquematizando assim os processos inacessíveis ao olhar mas, na relação estabelecida entre ele e os outros, torna-se
humano” (Vertov em Granja, 1981:45). A observação da câmara, expressivo do conjunto. Um pouco como um indivíduo isolado
resultado das experiências e da confiança dos operadores, de todo o universo seria reduzido ao insignificante social e
contribui assim para desvendar o real e para educar ou orga- cultural e não se conceberia fora de determinações puramente
nizar o olhar do espectador. biológicas, tornar-se-ia pelo contrário representativo, ex-
sumário O cinema de Vertov, um cinema olhar (cine-olho) e sobre- primiria à sua maneira, original, irredutível, um ou vários
tudo o filme O Homem da Câmara de Filmar marca incontestavel- conjuntos se a observação fosse suscetível de o ligar a eles.
mente uma época na história do cinema de vanguarda e uma das Enfim, a sua própria existência só se situaria necessariamen-
últimas manifestações de agitação de efervescência criativa te e ganharia sentido na relação constantemente estabelecida

próxima
que se seguiu à revolução bolchevique abruptamente estanca- com este ambiente no qual só pode agir sendo a expressão agi-
da com o advento do realismo socialista, da coletivização e da. A construção de um filme poderia ser considerada como um
da industrialização, do estalinismo. Este assenta em três empreendimento metafórico da produção do sentido pelo homem
princípios fundamentais: o cinema como processo de desvelar na dinâmica da sociedade que exprime e sobre a qual exerce a
o real, a atualidade, a vida quotidiana; utilizando todas as sua ação” (Piault, 2000:XX).
técnicas de rodagem, todas as potencialidades das imagens em A montagem constituir uma centralidade do filme desde a
anterior movimento, todas as invenções e métodos suscetíveis de o fa- fase prévia de abordagem do tema ou do assunto até, a montagem
zer; a superioridade da câmara em relação ao olhar humano; uma final e a apresentação pública. Múltiplos são pois os para-

178
lelismos entre a investigação em antropologia ou em ciências ou como outra semelhante e paralela ao desenvolvimento de um
sociais e a teoria da montagem de Vertov. itinerário de pesquisa em ciências sociais:
Em primeiro lugar o que Vertov chama em três planos de
produção:
Teoria da Montagem de Vertov Itinerário de pesqui-
Na produção cinematográfica Na investigação sa em Antropologia
1. Montagem durante a observação 1ª Fase
O plano temático – inventário de
Orientação do olho desarmado para Escolha do tema e definição das
todos os dados documentais que
A consulta documental. Fase pré- qualquer lugar ou momento. unidades de análise.
tenham uma relação directa ou in-
via de abordagem da temática e do
directa com o tema tratado. Com
terreno. 2ª fase
eles se cristaliza o plano de ro-
dagem: 2. Montagem depois da observação Relação com a primeira observa-
Organização mental do que foi ção,
visto em função das caracterís- Formulação de hipóteses tendo

capa
Plano da rodagem – resumo das ticas futuras. em conta a realidade que nos vai
observações realizadas. É o re- Trabalho de campo e adaptação dos permitir a verificação.
sultado das directrizes do plano métodos (tecnologias de repre-
temático e as propriedades parti- sentação – Bob White) ao terreno.
3. Montagem durante a rodagem
culares do “olho-máquina”.
orientação do olho armado com a
câmara para o lugar analisado em 3ª fase
Montagem central – resumo das ob- 1, Concretização do trabalho de ter-
servações inscritas na celulóide adaptação da rodagem às condições reno,
pelo cine-olho. Cálculo cifrado da situação que possam ter sido Adaptação do dispositivo de ob-
universidade
dos agrupamentos de montagem. As- alteradas entre o momento da ob- servação.
sociação (soma, subtração, multi- servação inicial e o momento da
plicação divisão e colocar entre rodagem.
parêntesis) dos fragmentos (blo-
cos) filmados de idêntica nature- 4ª fase
za. Permutação incessante destes Retorno ao terreno,
blocos-imagens até que todos eles 4. Montagem depois da rodagem
sumário
Classificação dos dados,
estejam colocados numa ordem rít- (pós produção)
Escrita final, edição. Montagem Ajustamento das hipóteses ini-
mica e no qual os encadeamentos Primeira organização (grosso
do filme do hipermedia ou de ou- ciais em relação aos dados,
de sentidos coincidirão com os modo) do que foi filmado em fun-
tras formas de aoresentação final Primeira avaliação da relação das
encadeamentos visuais. Como re- ção das características futuras,
dos resultados da investigação. hipóteses com o que aconteceu,
sultado final de toda estas mes- Procura de fragmentos que faltam
Avaliação e procura no terreno
clas (misturas), deslocamentos, na montagem (retorno ao terreno).
do que ainda falta e se considera

próxima
cortes, obtemos uma espécie de necessário.
equação visual, uma espécie de
forma visual. Esta fórmula, esta
equação, obtida como resultado da
montagem geral dos cine documen-
tos fixados na película, é o fil-
me cem por cento, o extrato, o
concentrado do eu vejo, o cinema-
anterior -eu vejo.

Em segundo lugar, uma teoria da montagem que muitos auto-


res consideram um primeiro programa de Antropologia Visual,

179
que plano de rodagem se pode assimilar à “descrição densa” de
5ª fase Geertz. 3) A fase da montagem, da exploração da tensão entre
Organização dos elementos e se-
5. Golpe de vista — procura dos planos, a relação, o racord, entre um e outro plano na cons-
quências de elementos de modo a
fragmentos indispensáveis à mon-
desenvolver um discurso organi- trução final da obra (discurso audio-visual) – pós-produção.
tagem
zado,
Orientação instantânea para qual- Na sequência das etapas preconizadas por Vertov e Piault po-
Para que os elementos e sequên-
quer meio visual para captar as
cias possam funcionar entre si dem redesenhar-se frequentes percursos mais curtos de ida e
imagens de ligação necessárias,
é necessário determinar um certo
Excecional atenção,
número de relações entre os di- volta entre etapas sucessivas antes de passar à seguinte. O
Regra de ouro: golpe de vista (in-
ferentes momentos e lugares de
tuição), velocidade, precisão, som e as vozes dos actores introduzem nesta esquematização
pesquisa,
Procura dos planos de corte e de
Relacionar os elementos, as arti- novas complexidades. Este instrumento poderoso constitui um
estabelecimento de ligações.
culações e integrar o que não foi
guia de percurso, uma gramática a praticar até que, parecendo
previsto no plano inicial.
esquecida, se revele como algo que continua a estruturar o
capa processo de investigação e de produção audiovisual em antro-
6. Montagem final 6ª fase pologia.
Pôr em evidência pormenores, te- Construção geral do sentido prin-
mas (núcleos) fechados situando- cipal,
Na relação com o trabalho de campo cinema e antropologia
-os no mesmo plano que os gran- Colocar à volta do sentido prin- também se encontraram e desenvolveram de forma paralela. Na
des, cipal, toda a série de temas se-
Reorganização de todos os mate- cundários que poderão permitir antropologia, foi Malinowski que iniciou o trabalho de campo

universidade
riais na melhor sucessão, toda uma série de pesquisas de- e elaborou a sua “carta fundamental” que se viria a tornar
Acentuar a linha principal do rivadas,
filme, o centro do filme, Organização e hierarquização do “norma” e “preceito” em antropologia. Caracterizava a situa-
Reagrupar situações da mesma na- tema de pesquisa, ção de trabalho de campo um investigador só, de modo a apren-
tureza, cálculo métrico (ritmo) Elaboração da síntese,
do reagrupamento da montagem. Apresentação final. der a comportar-se segundo os códigos sociais do grupo com
quem conviveu, a aprender a sua língua e a tomar parte da sua
sumário vida; separado da companhia de brancos (rutura com a sociedade
Esquema sugerido por Marc Piault (2000) e baseado em Marc
europeia); procurando viver na sociedade nativa, com os nati-
Piault em Vertov e David Tomas (1994).
vos, com o objetivo de aprender a conhecê-la e a conhecê-los;
Este parece um esquema demasiado rígido que, tanto no do-
observando a vida social e participando nela tão intimamente
cumentário como na antropologia, é necessário tornar flexível

próxima
quanto possível e tanto tempo quanto o necessário; estudá-los
na adaptação ao terreno e no qual são nítidos 3 momentos: 1)
sobre todos os seus aspetos; apreendendo o ponto de vista dos
uma fase prévia de abordagem ao terreno – olhar desarmado de
nativos e compreendendo a sua visão do seu mundo.
vertov, a observação flutuante dos antropólogos, o flaneur de
Semelhantes a estes são os princípios que orientaram o
Baudelaire, Simmel, Benjamin; 2) a fase do trabalho de cam-
trabalho de Flaherty assentes em três princípios fundamentais:
po, da relação entre cineasta ou antropólogo (sua culturas
1) Longa duração da experiência no local: o tempo do contac-
anterior e seu projecto) com as pessoas filmadas (sua cultura e seu
to prévio, do conhecimento do objeto a filmar, da criação de
projeto), da rodagem, de produção de informação a partir do
laços de amizade ou confiança que permitam a participação das
local (“do minúsculo, do efémero, do extremamente frágil”) em

180
pessoas filmadas, enfim a rodagem, o visionamento e o feed- isso Flaherty instala, sempre que possível, laboratórios e
back. Assim o filme constitui uma experiência interminável, a equipamentos de projeção do original dos filmes, rushes, no
que só uma “violência” exterior pode pôr termo (compromissos local chegando ao limiar de um germe de “criação coletiva” (os
de distribuição, pressões relativas à encomenda...). “Todos esquimós, Itiumuits, corrigem o filme depois do seu visiona-
os meus filmes são apenas esboços – aproximações ao que espero mento) o que postula o princípio determinante da descoberta
vir a fazer um dia, ou que será feito por outros [...] Fazer de elementos a partir das próprias revelações operadas pela
um filme é como procurar uma pepita de ouro [...] um filme é câmara: a câmara vê mais que o olho. Tanto o filme como a me-
a maior distância entre dois pontos” (Flaherty in Romaguerra, todologia nele utilizada tiveram admiradores e detratores. É
1980:145). Flaherty, para a realização de Nanook, conhecido de certa maneira irónico que Flaherty tenha sido atacado por
Allakariallak (Nannok no filme) e a família e tendo decidido fazer o que os antropólogos fazem com virtual impunidade “o
filmá-la, instala-se na sua ilha, baía de Hudson, hoje ilha objetivo final que o etnólogo não pode perder de vista é, em
capa Flaherty, durante 15 meses em condições climatéricas difí- suma, compreender o ponto de vista do nativo, a sua relação
ceis, temperaturas que rondavam os 55º negativos, improvisa com a vida, a sua visão do mundo” (Malinovski, 1922).
aí um laboratório e uma câmara escura para tratamento do fil- O tempo constitui a essência do método de Flaherty. O
me, utilizando a luz do sol para inverter o filme, utiliza exercício do cinema consiste na reunião progressiva de condi-
uma câmara leve, uma Akeley de 35 mm. O processo envolvia um ções. Recordem-se os três princípios, acima referidos, para

universidade
intenso processo de cooperação entre o protagonista Nanook e a revelação dos acontecimentos através da objetiva. Trata-se
o realizador Flaherty. 2) Subordinação da filmagem aos dados não de um ato passivo da parte do realizador, mas de um dei-
dessa experiência e a uma ideia emergente do local, que mais xar acontecer para saber descobrir através do filme em que o
tarde Jean Vigo chamaria “ponto de vista defendido inequivo- objetivo prioritário é a captação do real pela imagem, como
camente pelo autor”. Os filmes obedecem a projetos, a ideias. o fizeram antes Muybridge, Janssen ou Lumière, mas em que se
sumário Em Nanook, “filmar a majestade inicial dos povos”. Nenhuma procura a profundidade através das condições em que o real é
ideia é viável, se poderá vir a tornar filme, sem que seja registado. A montagem, inicialmente, limita-se a delimitar o
ratificada pelos factos passados ou presentes. A grande maio- fim da sucessão de um acontecimento, ou a escolha dos planos
ria das ideias nasce do conhecimento directo da comunidade, dentro do muito material repetidamente filmado, analisado e

próxima
emerge do “real” desafiando-o, “o documentário, como a an- por vezes discutido com os próprios filmados, caso de Nanook.
tropologia é a exploração criativa da realidade” (Crawford e Não há metáforas, a sucessão dos planos acumula e desenvolve
Simonsen). 3) Efeito de feedback entre a própria condução da a tónica principal de comunicar o tempo: o ritmo interno dos
experiência, o que a câmara dela vai revelando e a observa- gestos, o valor do instante, a noção exata da espera, a dura-
ção diferida das pessoas filmadas e com as pessoas filmadas. ção como forma dramática (Nanook of the North, 1923).
O filme desenvolve-se a partir do olhar do realizador, das Flaherty foi na opinião de Jean Rouch “um etnólogo sem o
anterior análises partilhadas das imagens, das conversas com os ha- saber e sem o querer, dando talvez a maior lição de paciên-
bitantes, da sucessiva repetição das tomadas de vista. Para cia e de tenacidade aos que se dedicam ao estudo dos outros

181
homens. A sua pesquisa maníaca da autenticidade obrigava a te, podemos seguir uma ténue tradição para partilhar o poder
contactos prévios prolongados precedendo uma observação mi- criativo, a partir dos primeiros esforços de Flaherty (Ruby,
nuciosa, uma tentativa de compreensão mútua de que poucos et- 1991). No entanto, a ideologia de Flaherty estava lá, a jus-
nógrafos profissionais se podem gabar” (1966:453). Descobre taposição de pontos de vista era-lhe favorável. Paolo Chiozzi
as potencialidades da observação participante (para Heusch, afirma que “o filme Nanook assinala a passagem de uma relação
também «câmara participante») que etnólogos e sociólogos uti- vertical observador observado, para uma que exprime o encon-
lizarão mais tarde, a sua atitude com Allakariallak resume a tro entre dois sujeitos em situação de igual dignidade, de
deontologia da pesquisa etnográfica: além do rigor do traba- modo que as imagens filmadas se revelam como produto de uma
lho de observação e de integração, da existência do projeto interação entre o cineasta e os sujeitos filmados (Chiozzi,
e do conhecimento minucioso e aprofundado dos meios técnicos, 1992:227) e Jean Rouch refere que “Robert Flaherty inventou
Flaherty não atua como mero caçador de imagens, adotado por toda a nossa ética: como filmar as pessoas sem lhes mostrar
capa Allakariallak e sua família, observa-os minuciosamente, pro- as imagens? A sua câmara tornou-se «participante»: metamorfo-
cura a sua colaboração estreita, trata-os como seres humanos, seada em projetor das imagens tiradas e reveladas na véspera,
o que nem sempre aconteceu com os etnólogos cineastas. foi o pretexto fantástico de um diálogo permanente entre os
Flaherty ao abandonar o ponto de vista objetivista, o Esquimós e aquele contador de histórias” (Rouch, 1995:12)
olhar ou a observação exterior – tratava-se de seres humanos Foram tecidas críticas às opções de Flaherty, o “roman-

universidade
não de insetos, colocou-se, ele próprio dentro do processo tismo” e a obsessão pelos países longínquos e pelos povos
de observação. O filme Nanook of the North resultou de uma primitivos (Grierson) ou atualmente a sua perspetiva etnocên-
construção conjunta com Alakialak (Nannok no filme), de uma trica – na medida em a personagem principal encarna os valo-
relação colaborativa baseada em visionamentos e repetições res protestantes do patriarcado, o centralismo do trabalho, a
conjuntas. Eram pedidos a Allakariallak comentários à corre- independência e a coragem (Solís).
sumário ção das imagens, o que ajudava Flaherty a planear as filma- Após estes atos e anos fundadores, os anos 60 do século
gens do dia seguinte. Alguns Inuits colaboraram como técnicos vinte trouxeram novos desenvolvimentos ao cinema e à antro-
de manutenção do equipamento de Flaherty (Ruby 1979). Estes pologia marcados sobretudo pela presença destacada de Jean
filmes para Flaherty rodavam-se “no mesmo lugar que se quer Rouch como antropólogo “de pensamento fértil” (Piault, 1996)

próxima
reproduzir e com os indivíduos desse lugar”; deveriam tentar e como cineasta inovador. Os filmes Moi, un Noir (1958), La
reproduzir uma visão do mundo daqueles que filmava preocupan- Pyramide Humaine (1959) e Chronique D’un Été (1960) de Jean
do-se com as suas opiniões; ser possível “projetá-lo para os Rouch constituem e acompanham (ou antecedem) mudanças radi-
esquimós, de forma a que estes pudessem aceitar e compreender cais na antropologia e no cinema. A abordagem do exótico e do
o que eu estava a fazer e trabalharem comigo como parceiros” longínquo é agora posta a par (em situação de igualdade) com
(Flaherty 1950: 13-14); a apresentação ao público adquiria um o endótico, o próximo, o familiar, o quotidiano das nossas
anterior “valor incalculável no efeito da mútua compreensão dos povos” sociedades (Chronique D’un Été) ou com a interacção entre os
(Flaherty, 1998:114). A partir dos anos 20 até ao presen- mundos tradicionalmente dos observadores com o dos tradicio-

182
nalmente observados (La Pyramide Humaine). A observação como paços e espaços e tempos diversificados numa era pós-colonial
atividade visual, saber ver, é agora acompanhada de pala- e sobretudo a publicação Writing Culture: the poetics and
vras e sonoridades localmente produzidas, saber ouvir, saber politics of ethnography, James Clifford, George E. Marcus em
escutar. A relação entre observados e observadores (quem é 1986 problematizam a representação a escrita e audiovisual em
quem neste processo?) transforma-se. A antropologia também é antropologia e abrem caminho a narrativas complexas.
o saber estar com, com outros e consigo mesmo quando nos en- Finalmente o advento da era digital poderá produziu novos
contramos com os outros. Finalmente, é ainda uma atividade desafios e novas representações cinematográficas e antropoló-
de construção do discurso escrito, mas também cinematográfico gicas reformatam e reconfiguram as novas narrativas multime-
integrando as possibilidades técnicas de registo do som sín- diáticas e hipermediáticas “os novos media digitais colocam à
crono, audiovisual. Isto tem marcas profundas de afinidade nossa disposição uma provável linha de continuidade, uma vez
com novas formas emergentes no cinema – cinema direto, novo que estes incorporam potencialmente todos os media anterio-
capa cinema verdade (Morin, 1960), cinema observação, cinema inte- res, diluem as especificidades de cada um, facilitam a inter-
ração (antropologia partilhada). textualidade e sua mestiçagem (Shohat e Stam, 2002).
Este período e a influência de Jean Rouch prolongaram-se Neste sentido vão surgindo experiências que apontam para
até à atualidade. Influenciaram as práticas da antropologia a exploração de novas formas e questionamentos. Em primeiro
visual debatidas no primeiro Congresso de Antropologia Visual lugar, porque o acesso aos media digitais se generalizou (ao

universidade
(1973). No entanto, a influência dos filmes de Jean Rouch, mesmo tempo que criou novos excluídos) e contribuiu para o
torna-se referência paradigmática (Ginsburg, 1999) e escola, desenvolvimento de novas práticas sociais de utilização da
continuada em múltiplos lugares. Na Universidade de Nanter- imagem. Estas levaram a que, por vezes, indivíduos, “grupos
re com os cursos de Cinéma, Audiovisuel, Culture et Société, locais” (ou profissionais) adotassem os meios tecnológicos de
actualmente com duas vertentes Cinéma anthropologique et do- modo alternativo como instrumento de memória, de expressão,
sumário cumentaire e Cinéma, littérature et société, na EHESS – École de reivindicação, ou de mediação. Às imagens históricas cada
des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris, Marselha) e vez mais acessíveis juntam-se as imagens produzidas pelos
noutras instituições Ateliers Varan, etc. Neste contexto, a atores sociais locais agora disponíveis aos investigadores de
publicação de Cinéma et Anthropologie de Claudine de France terreno. Ao mesmo tempo que se questionam as representações

próxima
no início dos anos oitenta (1982) como a primeira obra sis- clássicas da antropologia, o trabalho do antropólogo confron-
temática, que aborda as questões da antropologia visual ou da ta-se frequentemente com outras representações, tornando-se
antropologia fílmica, como prefere chamar-lhe, marcou profun- cada vez mais trabalho de terreno e trabalho em arquivos pes-
damente não só muitas gerações de antropólogos-cineastas mas soais, familiares, institucionais.
também o texto que agora apresentamos. Eram também questionadas as representações clássicas, de
A utilização sistemática de imagens de arquivo pelo cine- natureza descritiva objetivista (Marcus e Fisher, 1986 Cane-
anterior ma e da inclusão de estudos coloniais permitindo o desenvol- vacci, 2001), na antropologia e apresentadas como alternati-
vimento de etnografias longitudinais a a justaposição e es- vas representações críticas (crítica cultural) e a justapo-

183
sição como forma de comparação. Esta foi uma técnica central
das vanguardas ocidentais pelo uso de colagens, de montagem Documentário Antropologia
e junção, pela criação de factos visando surpreender ou des-
familiarizar, técnicas que até certo ponto foram partilhadas
de maneira mais prosaica pela antropologia crítica e pela
O primeiro momento é, obviamen- No início, também a antro-
reflexividade (Kilani, 1994, Ulrich et all, 2000, Ghasarian,
te, o relato da viagem... (os pologia se baseava no relato
2002 nas ciências sociais, Shohat e Stam, 2002, Nichols, no
operadores Lumière espalharam-se de viagens dos exploradores,
cinema, Jay Ruby, Marc-Henri Piault, 2000 na Antropologia Vi-
pelo mundo, como os operadores viajantes, funcionários das
sual). Remetemos para a experiência da escrita como processo
de Albert Kahm, ou os explorado- administrações coloniais,
de investigação (Richardson, 1994, Ribeiro, 2003), para as
res entre os quais se encontrava missionários, comerciantes.
novas concepções de terreno (lugar de colaboração e de des-
capa
Flaherty, Thomaz Reis e muitos Só em 1913 aparece a refe-
crição densa) (Marcus, 19 2003), para a ideia de “descolo-
outros, alguns desconhecidos es- rência ao trabalho de campo
nização pela imagem” desenvolvida por Piault (2000: 235-240)
tão associados a outras ativi- realizado por um «trabalha-
e para os filmes Trobriand Cricket: An Ingenious Reponse to
dades; exploração de minerais, dor privado», realizado por
Colonialisme (1975) de Jerry Leach e First Contact (1984) de
construção de linhas de caminho- um especialista da etnogra-
Bob Connoly e Robin Anderson - uma reflexão consciente, de-
-de-ferro. fia (W.H.R.Rivers).

universidade
liberada e de um povo sobre si próprio, de um habitante da
Papua Nova Guiné confrontando-se com as imagens do primeiro
encontro com o homem branco e com o ato de tornar o passado
presente através da voz das pessoas que testemunham este pri-
meiro encontro. Malinowski, na mesma épo-
sumário Esquematizamos assim, baseados na entrevista de Elizabeth O segundo é o da descoberta de ca, desenvolve uma atitude
Sussex a John Grierson de Sussex 1973: 29-30) a relação do Flaherty de que se pode fazer um semelhante, ou seja, de um
documentário e da antropologia como a exploração criativa da filme sobre as pessoas no lo- investigador isolado empre-
realidade, como real imaginado. cal, isto é, que se consegue uma ender o trabalho de campo

próxima
compreensão dramática, um padrão junto de povos longínquos,
dramático, no local, com as pes- captando o ponto de vista
soas. Mas é claro que ele fez do nativo. Também foi cri-
isso com povos longínquos e nes- ticado sobretudo a partir da
se sentido foi um romântico. publicação de Um diário no

anterior sentido estrito do termo.

184
A antropologia em casa ou No entanto, o capítulo seguinte,
O terceiro é o nosso capítulo, o de regresso a casa depois o de fazer filmes com indivíduos
que descobre o drama vivido à so- da fase colonial. Manteve- para isso treinados, tem o pro-
leira da nossa porta, o drama do -se porém objectivista e blema de se estar a fazer fil-
quotidiano (ver Grierson). orientada para as margens mes com pessoas e depois partir
sociais. de novo. Ora, eu vejo o próximo
capítulo como o de fazer filmes
Também na antropologia se
de facto no terreno, e aqui sigo
Há um quarto capítulo, o que é desenvolvem experiências
A partir do final dos anos as ideias de Zavantini. Uma vez
capa
muito interessante, e esse seria desta natureza, uma antro-
60 do séc. XX, com a inde- Zavantini fez um discurso muito
aquele no qual as pessoas come- pologia cada vez mais co-
pendência dos países colo- engraçado em que dizia que se-
çam a falar, não sobre como fa- laborativa, sobretudo na
nizados, os povos adquirem ria óptimo se todas as aldeias
zer filmes sobre as pessoas, mas antropologia pós-colonial.
voz e participam na investi- italianas fossem equipadas com
com as pessoas... [a partir dos Justaposição de pontos de
gação. É, no entanto, a par- câmaras para que pudessem fazer
anos 60 desenvolveram-se múlti- vista: Writing Culture (Cli-
filmes sobre elas próprias e es-
universidade
tir dos anos 80, que a re- fford e Marcus), Anthropo-
plas experiência de participação crever cartas em cinema umas às
lação entre os antropólogos logy as Cultural Critique
que pretendiam ir além das ini- outras, e isto era para ter uma
e os sujeitos do inquérito (Marcus e Fisher),
ciada por Flaherty] (Sol Worth grande piada. Eu fui a única que
é concebida como um instru- (Appadurai).... texto sobre
e Adair, Chaffen Rouch, Macdou- não se riu, porque me parece que
mento heurístico. os aborígenes... Marcus e
sumário gall) . o próximo passo é – não os alde-
Fisher
ões a mandaram cartas de cinema
uns aos outros, mas eles próprios
a fazerem filmes, onde coloquem
questões políticas ou de outra
próxima natureza e até a expressarem-se
em termos jornalísticos ou nou-
tros. (Sussex 1973: 29-30)

anterior

185
Cinema e antropologia segundo Lpalantine – lições de cinema para a nossa enquadramento e pela duração. A criação cinematográfica é as-
época sim a tensão entre o plano e a relação, o racord, com outro
plano. No plano é mostrada a relação do realizador com sujeito
Finalmente, para o antropólogo Laplantine, quando fala- (as pessoas e as suas circunstâncias) filmado, na montagem a
mos de cinema e antropologia algumas considerações (breves) relação do material filmado, com a ideia e o projecto do mon-
me parecem relevantes. Em primeiro lugar tanto a etnografia tador ou do realizador e deste e com o público. Muitos destes
como o cinema se interrogam sobre o que é a realidade e como processos resultam da planificação e controlo mas também e
se relacionam com a realidade e com o imaginário (interrogam- sobretudo do que lhe escapa a essa planificação e controlo – a
-se sobre o real imaginado) ou como o cinema e a antropologia espontaneidade, imprevisibilidade, o acaso. Também neste caso
modela a realidade. Cinema e antropologia partem ou prestam antropologia e cinema se encontram como poderemos verificar
particular atenção ao detalhe (ver etnografia como atenção ao na metodologia de montagem preconizada por Vertov e que em
capa detalhe) a partir do qual e com o qual se constrói o argumen- tudo se assemelha ao processo de investigação.
to ou a narrativa. Poderemos tanto no cinema como na antropo- As questões éticas e políticas no filme implicam assim a
logia encontrar duas polaridades – 1) uma representação mais presença e as relações com as pessoas, acontecimentos, cir-
instrumental, didática, demonstrativo ou resolutivo, organi- cunstâncias e documentos filmados e o espaço-tempo da sua re-
zado a partir de um sentido unívoco, deixando uma limitada alização, mas também as escolhas no tratamento da tensão, da
liberdade de interpretação ao espetador, criando um espetador
universidade
relação entre planos – a montagem. Ocultos a teoria, os fluxos
mais recetivo que ativo; 2) outra representação mais estética de informação, a sensibilidade que informam o processo.
cinematográfica ou literária que deixa mais espaço ao espeta- No que diz respeito à relação de política e cinema Laplan-
dor para a procura e construção de sentido como experiência tine refere ambos se podem colocar do lado do poder (ou da
do sensível (visual e o sonoro mais que isso). Cinema poder- ideologia), do espetáculo (o cinema ou o outro exibido como
sumário -se-á dizer que é um produto da indústria cultural mas com espetáculo) ou do lado da resistência ou seja “ao contrário
uma forte componente artística como a antropologia se define de um mundo hoje saturado de imagens obscenas e de seus sons
frequentemente como arte – mais artística das ciências (arte ensurdecedores convergindo tudo no mesmo sentido” (Laplan-
de realização trabalho de campo, da escrita e da produção au- tine, 2007:22) e interroga-se: como resistir, subverter ou
diovisual, mas também porque baseada na observação, no olhar/
próxima
contrapor ao “bulldozer comercial que visa parecer, lisonje-
ver e no escutar/ouvir) ar, seduzir, convencer, adormecer do espetador tornado numa
Singularidade do cinema é ter à sua disposição imagens e relação de clientelismo”? (Laplantine, 2007:22). A história
sons juntos no que denominamos por plano ou o que poderemos do cinema aponta três formas de resistência – o cinema de
denominar em antropologia o ver e o escutar (a observação autor, transformação geográfica (geopolítica) pela multipli-
visual e auditiva), meios de expressão, artes do tempo e do cidade das cinematografias a partir de múltiplos continentes
anterior movimento. No plano como se concentra uma forma de “descrição e a desideologização sobretudo do documentário. A reflexão
densa”, fragmento tirado da realidade e da representação pelo sobre estas formas de resistência levar-nos-ia muito longe.

186
A jovem realizadora iraniana Samira Makhmalbaf afirma: “três extra-territorialidade moral? Deverá contentar-se em olhar do
métodos de controlo externos reprimiram o processo criativo exterior ou poderá permitir-se criticar, como se fosse mem-
dos cineastas do passado: o político, o financeiro e o tecno- bro da sociedade? Fixando conservadorismos como se dá conta
lógico. Hoje, com a revolução digital, a câmara pode ignorar dos processos de mudança, do não habitual, dos comportamentos
essas formas de controlo e ficar à disposição do realizador”. fora das normas, dos contestatários, dos que mexem com o sis-
Seremos assim tão otimistas? tema existente da sua sociedade?
Tentamos explorar algumas relações entre a antropologia e São muito diversificadas as respostas a estas perguntas e
cinema. O amplo campo de análise e reflexão esta densamente múltiplos os percursos intelectuais e morais dos investiga-
povoada de práticas cinematográficas desenvolvidas por antro- dores. Uns centrados nos percursos académicos ou artísticos,
pólogos e pela prática da antropologia, ainda que por vezes outros comprometidos com interesses económicos e políticos,
implícita, dos cineastas. Não deixa mesmo assim de ser m amplo outros ainda implicados nas problemáticas sociais das pesso-
capa campo de trabalho que urge explorar em paralelo à realização as, povos e sociedades estudadas. Propomos a reflexão sobre
do trabalho de campo em antropologia e cinema. Na verdade como a responsabilidade do etnólogo a partir de duas referências.
refere Aumont “os cineastas e os teóricos do cinema entendem A construção da avaliação da investigação faz-se fre-
não ser possível o estudo do cinema sem o recurso às ciências quentemente pelo produto imediato (e sua encenação) suscetí-
sociais e à antropologia” (Aumont,1989). vel de ser avaliado na academia ou pela moda, performance do

universidade
investigador ou projeção mediática. Estas, parafraseando o
Posição ou posicionalidade do investigador e do cineasta
economista Ernâni Lopes referindo-se à insustentabilidade de
Estado Social e que nos parece adequado à investigação cien-
Se as questões epistemológicas são importantes na cons-
tífica e à produção audiovisual, são formas superficiais de
trução do conhecimento, os valores na investigação é onde tudo
produção que visam o imediato e nele se esgotam, ou como a
sumário
se joga. Vivemos, tomamos partido, cremos numa multiplicidade
bolha financeira só se não esgotam por ser o sistema institu-
de valores éticos, estéticos e políticos que hierarquizamos
ído. A investigação e a produção audiovisual em antropologia,
e que definem o sentido da nossa existência mediante opções
assim como a formação, dever-se-iam centrar mais num horizon-
que ultrapassam incessantemente as fronteiras do conhecimento
te temporal mais alagartado que ultrapasse a circunstância ou
efetivo e da sua utilização. Refletir sobre estas questões

próxima
“o presente etnográfico” e num espaço em que se desenvolve
e prolongar o conhecimento e desenvolver um esforço crítico
apenas o mero acontecimento, a curiosidade no espaço limi-
para melhor conhecer as suas fronteiras e legitimar a hierar-
tado em que acontece mas o espaço estratégico da ação. Não
quização dos valores que o ultrapassam.
é possível abordara os rituais e a cultura negra na América
Será a etnologia ou o cinema um luxo das nossas socieda-
Latina – a interculturalidade afro atlântica, sem a localizar
des ricas, devoradora de recursos naturais limitados? O et-
num espaço mais amplo que o Brasil ou cada uma dos países da
anterior nólogo ou o cineasta, direta ou indiretamente um assalariado
América Latina mas a triangulação Europa, África, América La-
do Estado, que pretende ultrapassar as contingências e gozar
tina e um contextualização temporal que vai muito para além do
de uma neutralidade científica ou política, de uma espécie de

187
processo de escravatura iniciada com os primeiros contactos 13-20, Lausanne: Editions Payot.

dos “descobridores” ou da expansão europeia (portuguesa em • FLAHERTY, Robert (1923), Nanook, of The North, Cinemateca Portuguesa.
• GEERTZ, Clifford (1989) El antropólogo como autor, Barcelona: Paidos.
particular). Mais que isto a investigação assenta em teoria
• GEERTZ, Clifford (2001), Nova Luz sobre a Antropologia, Rio de Janeiro:
e fluxos informativos subjacente à pesquisa e à produção au- Jorge Zahar Editor.
diovisual nem sempre percetíveis pelo espetador e pelo leitor • GINSBURG, Faye (1995), «Mediating Culture: Indigenous media, ethnographic
film, and the production of identity» in Leslie Devereaux, Roger Hillman
mas assenta sobretudo em valores, atitudes, padrões de com- (eds.), Fields of Vision, essays in film studies, visual anthropology, and
portamento que a marcam (ou deveriam marcar) e credibilizam. photography: 256-291.
• GRANJA, Vasco (1981), Dziga Vertov, Lisboa: Livros Horizonte.
Valores que são o das pessoas que fazem, das sociedade e das
• GRIMSHAW, Anna (2001), The Etnhographer’s Eye, ways of seeing in modern
instituições e não no mero jogo mediático ou imediatista de anthropology, Cambridge: University Press.
ascensão ou carreira académica. O caso de Pierre Centlivres é • HACKING, Ian (2001), Entre Science et Réalité, la construction sociale de
quoi ?, Paris : Éditions de la Découverte.
paradigmático nesta consideração sobre a honestidade e modés-
capa tia na investigação, do etnólogo responsável, sobre as ques-
• JIMÉNEZ, Jesus Garcia (20039, Narrativa Audiovisual, Madrid: Catedra.
• LAPLANTINE, François (2007) Leçons de cinéma pour notre époque, Condé-sur-
tões de exigência, seriedade, trabalho, honra e honestidade -Noire: Téraédre.
na investigação mas também das ambiguidades que as situações • LEACH, Jerry W. e KILDEA, Garry (1976), Trobriand Cricket: An ingenious
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mediáticas acarretam.
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universidade
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universidade

sumário

próxima

anterior

189
capa

ROTEIRO E
universidade
MERCADO:
sumário
ANALÁLISE,
próxima
PRÁTICA E
anterior
EXPERIÊNCIAS
190
of critical assays in fanzines, organization of regular and
PLANO 8: UMA EXPERIÊNCIA EM CINEMA special events and the audiovisual production and research
fomentation must be cautiously planned, therefore, there is a
necessity of scripting.
Keywords: Visual arts, film club, cinema

Em seu “Manual do Roteiro”, Syd Field propõe um paradig-


A nita C avaleiro de M acedo C abrera
ma de um roteiro, decompondo-o em três partes principais e
IA – UNESP, graduação em Bacharelado e Licenciatura em Artes Visuais. anita-
cavaleiro@gmail.com dois momentos intermediários em que há uma mudança na dire-
ção da história. O início de um roteiro é chamado de Ato I,
P elópidas C ypriano de O liveira
ou apresentação, e é o momento em que o leitor é introduzido
capa
Professor Doutor Livre-Docente, Departamento de Artes Plásticas, IA – UNESP
pelopidascypriano@gmail.com aos personagens e à trama. Ao seu final, há um “ponto de vi-
rada”, momento no qual acontece “um incidente, ou evento, que
Resumo ‘engancha’ na ação e a reverte noutra direção” (Field, 1995,
p. 97). O primeiro ponto de virada leva o leitor ao Ato II,
O trabalho relata a idealização, organização e implantação
ou confrontação - período de conflitos e obstáculos no qual a
de um cineclube em ambiente universitário, contando a experi-

universidade
história, de fato, se desenvolve. Porém, é o segundo ponto de
ência do Plano 8 – Clube de Cinema do IA, desde sua criação
virada que estimula a resolução da trama, ou Ato III.
até hoje. Todas essas atividades têm necessidade de planeja-
Durante a idealização, organização e implementação de
mento, portanto, de roteirização, desde escolha dos temas e
um cineclube no Instituto de Artes da UNESP, foi possível
dos filmes, elaboração de cartazes, diagramação, editoração
notar semelhanças com a esquematização conceitual que Syd
sumário e publicação de textos críticos em periódico, eventos regula-
Field utiliza para descrever um roteiro. A idéia e a vontade
res, eventos especiais, até o estímulo à produção audiovisual
de criar novos estímulos relacionados à área de audiovisual
e à pesquisa na área.
seriam o Ato I dessa trama. O Ato II consistiria nas diver-
Palavras-chave: Artes visuais, cineclube, cinema
sas dificuldades enfrentadas para alcançar um formato ideal

próxima
e vinculá-lo à Universidade com êxito. E, finalmente, o Ato
Abstract
III, está relacionado à existência e perpetuação do “Plano 8
Bringing the idealization and further organization and – Clube de Cinema do IA” e ao legado de incentivo à produção
implantation of a film club in an University environment, e pesquisa acadêmica.
“Plano 8 – Uma experiência em Cinema” describes how “Plano 8 –
Clube de Cinema do IA” has been functioning since its concep-
Ato I - Idealização
anterior tion until nowadays. Every activity the film club has, such
O cinema como linguagem tem grande importância no cenário
as the theme and movie selection, poster design, publication
artístico desde o princípio do século XX, quando começou a ser

191
reconhecido como arte. Na medida em que articula elementos de conhecimento em contato íntimo com as áreas de estudo do IA
diversas manifestações artísticas, seu estudo se faz impres- UNESP.
cindível em um ambiente no qual o pensar sobre as artes e suas Assim que o conceito tomou forma, as reuniões seguiram
linguagens é o foco da produção de conhecimento. com um novo objetivo: tornar o Cineclube real e vinculado à
No Instituto de Artes da Universidade Estadual de São Universidade. O primeiro passo seria nomeá-lo e, em seguida
Paulo – IA -UNESP, o ensino das artes contempla as áreas de torná-lo parte da rotina do IA – UNESP, com o intuito de criar
Música, Artes Visuais e Teatro. Porém, há certa carência em um legado de cinema dentro do Instituto de Artes.
relação ao estudo do cinema, tanto no currículo dos cursos Após algumas discussões, o grupo decidiu-se por “Plano
quanto em atividades extra-acadêmicas. Tendo em vista essa 8”, em homenagem ao vocabulário usado na indústria cinemato-
ausência, um grupo formado por alunos de graduação e mestrado gráfica, no qual “plano” significa um trecho de filme rodado
que tinham em comum a vontade de aprofundar seus conhecimen- ininterruptamente, ou que parece ter sido rodado sem inter-
capa tos, promover discussões e incentivar a produção audiovisual, rupção; à bitola 8 mm, usada nos anos 1960, principalmente por
se reuniu e propôs a criação de um Cineclube. cineastas amadores ou experimentais; e ao “Plano 9 do Espaço
Durante o primeiro semestre de 2009, o grupo em questão Sideral”, uma produção de baixo orçamento que se tornou um
– formado por Anita Cavaleiro de Macedo Cabrera (aluna do se- ícone Cult.
gundo ano de Bacharelado e Licenciatura em Artes Visuais), O logotipo e a identidade visual dos cartazes e folhetos

universidade
Carolina Ferreira Rozin (aluna do segundo ano de Bacharela- de divulgação – concebidos inicialmente por José Osmar – fo-
do e Licenciatura em Artes Visuais), Frederico Fonseca Leal ram frutos das reuniões seguintes e, ao final de Maio, o Ci-
(aluno de mestrado em Artes) e José Osmar Rodrigues de Arau- neclube tinha um formato definido e estava pronto para ser
jo Jr (aluno do quarto ano de Bacharelado e Licenciatura em posto em prática.
Artes Visuais) – se reunia semanalmente durante as aulas da Desdobrando-se em três momentos: O Plano 8 – Grupo de
sumário disciplina de “Empreendedorismo em Artes”, ministradas pelo Discussão, o Plano 8 – Clube de Cinema e o Plano 8 – Anexo
Prof. Dr. Pelópidas Cypriano de Oliveira – que, também cine- (periódico), mês a mês um novo tema seria proposto, quinze-
asta, abraçou o projeto como orientador. A cada reunião, no- nalmente seriam exibidos filmes relacionados àquele tema e,
vas questões surgiam e a principal era: “Qual é o papel de um entre cada exibição, o grupo de discussão se reuniria para

próxima
cineclube dentro de uma faculdade de artes?” analisar criticamente o tema em questão, com a possibilidade
A idéia inicial era que o Cineclube contasse com ativida- da veiculação de textos críticos em uma revista semestral.
des diversas, além da exibição de filmes, visando à ampliação
do repertório crítico da comunidade do Instituto de Artes, Ato II – Implantação
fomentando debates, a publicação de artigos e a produção ar-
Após sua estréia, que aconteceu em junho de 2009, com o
tística dos alunos envolvidos. Desta forma, incentivaria no-
anterior vas estéticas e o desenvolvimento de um trabalho criativo e
tema “Metalinguagem no Cinema”, escolhido como uma introdução
ao Cineclube e, por conseqüência, uma introdução ao Cinema
interdisciplinar, uma vez que o cinema consiste numa área de
em si, o “Plano 8 – Clube de Cinema do IA” enfrentou diversos

192
obstáculos de implantação até se consolidar como um cineclube “Metalinguagem no Cinema” – Junho/09
universitário condizente com as expectativas tanto dos orga- “(Ctrl+C Ctrl+V)Remakes” – Agosto/09
nizadores quanto dos espectadores. Hoje, o “Plano 8”é o Clube “Surrealismo e Dadaísmo no Cinema” – Setembro/09
de Cinema do IA, além de um projeto de extensão da UNESP, e “Trash” – Outubro/09
conta com a participação de alunos de todos os cursos do Ins- “Adaptações Literárias” – Novembro/09
tituto de Artes, interessados no que o Cineclube do IA ofe- “Animações Européias Contemporâneas” – Dezembro/09
rece. “Adaptações Inusitadas” – Março/10
“Fotografia no Cinema Oriental” – Abril/10
Plano 8 – Clube de Cinema “Universo Existencial” – Maio/10
“Relações em Família” – Agosto/10
As exibições são norteadas por um tema mensal previamente
“Música e Cinema” – Setembro/10
capa
escolhido pela equipe do projeto. Para a elaboração do tema e
“Docs e Mocks” – Outubro/10
a escolha dos filmes, há um trabalho similar ao da curadoria
“Cinema sob a Cortina de Ferro” – Novembro/10
de arte, pois seleciona criticamente a obra a ser apresen-
tada, levando em conta não só o que é tido como “clássico”, Material Gráfico
mas procurando oferecer ao público visões variadas a cerca
da produção fílmica mundial, seja por um contexto imagético, O material gráfico do “Plano 8 – Clube de Cinema do IA”

universidade político, histórico, social ou simplesmente por se apresentar é tido como uma peça de extrema importância para o desenvol-
como uma alternativa ao modelo consolidado nos dias de hoje. vimento do projeto. Os cartazes – elaborados por Anita Ca-
Dessa forma, após um trabalho de pesquisa, a organização valeiro e José Osmar – são, assim como a seleção dos temas e
do “Plano 8” exibe filmes que dialoguem com o tema proposto, filmes, frutos de intensa pesquisa. A partir do momento em

sumário
sejam pela perfeita exemplificação ou pelo absoluto contras- que o tema e os filmes a serem exibidos são decididos, o car-
te. De todo modo, os filmes, independentemente de serem tidos taz é elaborado com o intuito não apenas de informar, mas de
como “clássicos” ou “Cults”, são exibidos de acordo com sua despertar interesse no futuro espectador, para que este com-
potencialidade de trazer aspectos interessantes à discussão. pareça às sessões.
Iniciando em 09 de junho, as exibições do “Plano 8” co- As imagens, criadas para cada cartaz, são baseadas em

próxima meçaram como atividades quinzenais, entremeadas por reuni- cenas marcantes de um dos filmes que serão exibidos ou são
ões para a discussão dos temas propostos, porém, pouco tempo influenciadas pelo tema em questão. Os tipos, assim como a
depois, alunos que acompanhavam as sessões vieram aos orga- disposição dos elementos, são similares aos utilizados nos
nizadores com o pedido de que as exibições fossem semanais. cartazes dos filmes e na elaboração do material promocional
Atendendo a solicitação dos espectadores, o “Plano 8 – Clube da película.
anterior de Cinema” remodelou seu formato e criou uma rotina semanal. O esquema de alto contraste com tarjas pretas foi desen-
Hoje são exibidas de quatro a cinco filmes por mês. volvido para que a leitura fosse facilitada, já que era dispo-
Os temas já abordados pelo “Plano 8” em exibições foram: nível para o uso do projeto apenas impressora monocromática.

193
Porém, a programação visual se perpetuou, sendo utilizada em de Freddy Leal (aluno de mestrado em Artes), “Condenados a
diversos outros materiais gráficos referentes ao “Plano 8”, portas abertas”, escrito por Carolina Rozin (aluna do segundo
como foi o caso dos flyers da campanha para a divulgação do ano de Bacharelado e Licenciatura em Artes Visuais).
cineclube “Você Gosta de Cinema?” e do folheto informativo da Já, no segundo número, o Anexo teve três textos bastante
participação do Clube de Cinema durante o 20º Festival UNESP distintos. Em “Mas... qual será o futuro do cinema”, Freddy
Ritmo e Som. Leal (mestrando em Artes) comenta os rumos da indústria cine-
Plano 8 – Grupo de Discussão matográfica, já em “Ensaio sobre “Onde os Fracos não tem vez”
O Grupo de Discussão, como foi idealizado pelos organiza- ou nem deus, nem a razão”, Enio de Freitas (mestrando em En-
dores do projeto inicialmente, nunca foi concretizado. Havia sino e Aprendizagem) discute a forma de ver e interpretar um
falta de interesse e as reuniões para discutir os temas pro- filme e, em “O Que é Sound Design?”, Ricardo Aquino (aluno do
postos estavam sempre vazias. Por mais que os organizadores sexto ano de Composição e Regência) explica a trilha sonora e
capa se preparassem para debater um tema, ao se depararem com a seus elementos constituintes.
ausência de público, as sessões eram canceladas.
Visto o fracasso do Grupo de Discussão, mas a constante Plano 8 – Cinebixo
procura por incentivo à pesquisa e produção audiovisual, o
O Plano 8 – Cinebixo teve sua estréia no ano de 2010 e
orientador do projeto, Prof. Dr. Pelópidas Cypriano de Oli-
ocorreu durante a Semana dos Bixos do IA – semana de recep-

universidade
veira, criou uma linha de pesquisa “Clube de Cinema Plano 8”
ção aos calouros. O objetivo, ao apresentar o projeto com uma
dentro do Grupo de Pesquisa Artemídia e Videoclipe, já exis-
programação exclusiva para novos alunos é, além de formar re-
tente junto ao Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq.
pertório, que o ingressante se conscientize da força do cine-

Plano 8 – Anexo ma como canal de expressão para este futuro artista, seja ele

sumário
vindo da área de artes visuais, música ou teatro.
O Anexo é o periódico do “Plano 8”. É uma publicação se- O Cinebixo teve programação com temas diários, escolhidos
mestral gratuita em forma de fanzine, na qual alunos e ex- especialmente com o propósito de introduzir o novo aluno do
-alunos da UNESP mandam seus artigos e textos críticos sobre Instituto de Artes ao cinema como possível área de atuação
cinema. O ANEXO tem como objetivo solidificar a cultura ci- profissional. Durante cinco dias, selecionamos os seguintes

próxima nematográfica dentro do IA - UNESP e funciona exclusivamente temas: “Juventude”, “Animação”, “O Papel do Artista”, “Cinema
com contribuições. Experimental” e “À moda da casa”.
Em seu primeiro número, o Anexo contou com quatro tex- Em “À moda da casa”, foram exibidos 22 curtas-metragens
tos, sendo eles: “Sasha Grey – A experiência da divulgação”, produzidos por alunos e ex-alunos do curso de Artes Visuais da
escrito por Clarissa Monteiro (ex-aluna do IA, formada em UNESP. Entre as exibições aconteceu uma palestra com Freddy
anterior Bacharelado em Artes Visuais), “Rosa, Rosa, Plu”, por Lucas Leal, cineasta formado em Artes Visuais e mestrando em Artes
Oliveira (aluno do quarto ano de Bacharelado e Licenciatura pela UNESP, contando sua experiência com o fazer cinema.
em Artes Visuais), “Sobre certa xenofobia de si mesmo”, texto Sendo um evento independente das sessões mensais promovi-

194
do pelo Plano 8, um logotipo foi desenvolvido especialmente Festival Ritmo e Som – Apresentação do grupo “Basavizi”
para o Cinebixo, assim como sua própria programação visual tocando a trilha sonora ao vivo do filme “A Carne e o Diabo”.
que, apesar de coerente com os moldes da visualidade do Plano Recital de Composição e Regência – Filmagem e edição do
8 – Clube de Cinema do IA, é autônoma e característica. vídeo do recital de formatura.

Plano 8 – Blog Produção da videoperformance “Livro de Artista”

O “Plano 8 – Clube de Cinema do IA” mantém um blog sempre


atualizado no qual são divulgadas as atividades do cineclube, Ato III - Resultados
assim como novidades, notícias, textos informais, trailers,
O Plano 8 – Clube de Cinema do IA, atualmente funciona de
cartazes, cursos e programações de festivais de cinema que
maneira orgânica dentro da Universidade, promovendo cursos,
capa
acontecem ou acontecerão na cidade de São Paulo.
palestras, exibições e fazendo diversas participações em fes-

Workshop de Produção Audiovisual tivais e semanas temáticas. Sua criação promoveu a criação de
uma tradição de fazer cinema e, acima de tudo, pensar criti-
O primeiro curso de extensão do “Plano 8 - Clube de Cinema camente sobre a sétima arte.
do IA” será ministrado entre os meses de Outubro e Novembro de O cineclube se tornou uma ferramenta de ensino de Artes
2010 e visa apresentar aos jovens de escolas públicas o mundo Visuais e incentivo à produção audiovisual, assim como meca-
universidade da produção audiovisual. O curso tem o seu foco voltado para nismo de integração entre as áreas do Instituto de Artes da
o campo das Artes Visuais e pretende mostrar aos alunos em UNESP. Entre os exemplos do sucesso da implantação do cine-
idade (ou próximos) de prestar vestibular um novo horizonte clube estão o I Workshop de Produção Audiovisual e a produção
profissional. da videoperformance “Livro de Artista”.
sumário Dividido em cinco encontros, o curso oferece uma base ge- O I Workshop de Produção Audiovisual - ministrado entre os
ral das principais áreas de atuação no mercado audiovisual, dias 16 de outubro e 27 de novembro, por alunos de graduação
seja em pré-produção (roteiro, direção de produção), produ- em Bacharelado e Licenciatura em Artes Visuais, Licenciatura
ção (direção, direção de fotografia, atuação) ou pós-produção em Artes – Teatro e mestrado em Artes - teve grande procura e
(edição). Os participantes do curso irão passar por todas as ao final do curso, foram editadas 10 versões de dois curtas-
próxima etapas de uma produção e no final terão realizado um curta- -metragens de 3 minutos produzidos inteiramente pelos alunos
-metragem de até três minutos. do curso. A procura do curso superou o número de vagas dis-
poníveis e, juntamente com o sucesso das produções, levou o
Outras Participações Plano 8 a elaborar uma segunda edição do Workshop para 2011.
A videoperformance “Livro de Artista” teve a captação de
anterior Semana Conhecendo-nos – Exibição do bloco “À moda da casa”
imagem, de som, direção de arte e edição assistida pelos in-
– seleção de curtas-metragens feitos por alunos e ex-alunos
tegrantes do Plano 8 – Clube de Cinema do IA, pertencentes aos
do IA – UNESP.

195
cursos de graduação em Bacharelado e Licenciatura em Artes
Visuais, Bacharelado em Composição e Regência e mestrado em
Artes, inserindo, mais uma vez, diversos cursos do Instituto
em uma só produção.

Bibliografia
• FIELD, S. Manual do Roteiro.Tradução de Álvaro Ramos. 3ª edição. Rio de
Janeiro, RJ: Editora Objetiva, 1995.
• VANOYE, F; GOLIOT-LÉTÉ, A. Ensaio Sobre a Análise Fílmica. Tradução de Ma-
rina Appenzeller. 6ª edição. Campinas, SP: Papirus, 2009 (Coleção Ofício
de Artes e Forma).
• ZAMBONI, S. A Pesquisa em Arte: Um Paralelo entre Arte e Ciência. 3ª edi-

capa
ção revista. Campinas, SP: Autores Associados, 2006 (Coleção Polêmicas do
Nosso Tempo).

universidade

sumário

próxima

anterior

196
life itself. Since Joe Gillis in Sunset Boulevard to Joseph in
PAPEL DE ROTEIRISTA State and Main, created 50 years later, what we see on scre-
en are men in crisis: creativity, financial, emotional. What
would be real or fiction? How is the process of creation? Who
is the real author of a film? It’s time to demystify “the role
of the screenwriter.”
Key words: cinema, screenplay, screenwriter
G isele B adenes
Autor-Roterista, gisele.badenes@gmail.com Para ser um roteirista...aprendendo com “Barton Fink”

Resumo No filme de Joel Cohen, John Torturro é “Barton Fink”, um

capa
roteirista que desembarca na Hollywood de 1941, após o suces-
“Sou roteirista”. Ao fazer a afirmação, não é raro que o so de sua última peça na Broadway. Sem experiência alguma em
profissional escute comentários elogiosos. No imaginário po- linguagem cinematográfica o personagem fica tímido e inseguro
pular, a atividade é envolta numa aura de status e sofisti- na primeira entrevista com o dono do estúdio que o contratou:
cação. Mas, qual a verdadeira função do roteirista? Ironica- Jack Lipnick: Que tipo de filme gosta?
mente, o roteirista que a indústria cinematográfica retrata
Barton Fink: Para ser sincero, não assisto a muito filmes

universidade
é alguém que não sabe “roteirizar” a própria vida. Desde Joe
Gillis, de Sunset Boulevard ao inseguro Joseph de State and Jack Lipnick: Pode achar que está em desvantagem aqui, que só que-
remos
Main, criado 50 anos depois, o que vemos nas telas são homens
em crise: de criatividade, financeira, afetiva. O que seria gente do meio que conheça detalhes técnicos. Errado!
real ou ficção? Como é o processo de criação? Quem é o ver-
sumário dadeiro autor de um filme? É hora de desmitificar “o papel do
Só nos interessa uma coisa: sabe contar uma história?

Sabe fazer a gente rir, chorar ou ter vontade de cantar?


roteirista”.
Palavras-chave: cinema, roteiro, roteirista. Quer mais?? Mando nisso e não conheço detalhes técnicos. Como faço?

Tenho sensibilidade para montar espetáculos!


Abstract
próxima Barton Fink permaneceu mudo, mas Jean-Claude Carrière te-
“I’m a screenwriter.” In making the assertion the profes- ria discordado. Para o roteirista europeu, autor de mais de
sional could listen to complimentary comments. In the popular sessenta roteiros filmados por Luis Buñuel, Jean-Luc Godard,
imagination, the activity is involved by an aura of status Milos Forman e Andrzej Wadja, entre outros, saber como se faz
and sophistication. But what the true function of the scre- um filme é fundamental para que o roteirista exerça suas ati-
anterior enwriter? Ironically, the film industry uses to portrait the vidades.
screenwriter as someone who does not know “Scripting” his Não basta saber narrar ou gostar de histórias; antes de tudo, o ro-

197
teirista deve saber narrar e amar imagens. Ordenar imagens em seqüên- tra, promete ajudar o roteirista estreante, mas pouco faz a
cias, como num quebra cabeça, de forma a seduzir, provocar emoções
respeito. A secretária/namorada do romancista tenta animar
nos corações e mentes do espectador. Este é, com certeza, o melhor
“efeito especial” que um filme pode conter.
Barton Fink: “Basta seguir uma fórmula... Você não tem que
colocar sua alma no trabalho”, ela ensina. “Vou ajudá-lo,
A própria história do cinema confirma a tese. Na época
fiz isso por Bill tantas vezes” Barton fica chocado ao saber
de ouro de Hollywood (do começo do cinema falado aos meados
que a secretária, na realidade, era quem escrevia os rotei-
dos anos 50), executivos dos estúdios costumavam contratar
ros do escritor. Difícil não lembrar de F. Scott Fitzgerald.
grandes escritores para escrever roteiros. No filme Barton
Ele já era um nome consagrado na literatura quando foi parar
Fink isto fica claro na cena na qual o roteirista, inseguro,
em Hollywood. Trabalhou por uns meses em 1927 e depois entre
sente-se “travado” e pede orientação ao produtor para começar
1931 e 1932. Escreveu dois roteiros: Lipstick, que não chegou
o trabalho. Os dois estão num restaurante lotado e o produ-
a ser produzido e Red-Headed Woman, neste caso o roteiro de
capa tor não poupa ironia ao responder:”Fale com outro escritor,
Fitzgerald foi rejeitado. Mais tarde, em 1937, foi contratado
se jogar uma pedra aqui, acerta um. E, faça-me o favor: jogue
por seis meses pela Metro-Goldwyn-Mayer ganhando 1000 dólares
com força!”
por semana. Finalmente seu nome foi incluído nos créditos de
Com o advento do cinema falado era preciso escrever diálo-
um filme como roteirista: Three Comrades, adaptação do roman-
gos e, ingenuamente, pensou-se que ninguém faria isto melhor
ce de Erich Maria Remarque, com direção de Frank Borzage. O
do que aqueles que sabiam mais do que ninguém usar as pala-

universidade
contrato com a MGM foi renovado por um ano: 1250 dólares por
vras. Grandes escritores passaram pelos estúdio de Hollywood:
semana.. nada mau para quem estava vivendo a época da grande
Scott Fitzgerald, Dorothy Parker, William Faulkner, Raymond
depressão nos Estados Unidos, quando um novo Chevrolet coupe
Chandler, Bertold Brecht, Edgar Wallace, Aldous Huxley, Tho-
custava 619 dólares. Mas depois de alguns roteiros rejeitados
mas Mann e até Saint-Exupéry, entre outros, escreveram ro-
e outros que não chegaram a ser produzidos, acabou sendo de-
sumário teiros algumas vezes nem um pouco nobres, como faroestes ou
mitido no final de 1938. Depois disso, trabalhou para outros
melodramas. Normalmente, esses roteiros eram reescritos por
estúdios como free-lance : além da colaboração no roteiro de
roteiristas profissionais como Charles Brackett, Donald Ogden
Sidney Howard em Gone with the wind (E o vento levou), (que
Stewart, Daniel Faradash e os irmãos Epstein. O livro A cidade
contou com a colaboração de mais 4 roteiristas) nada foi feito
das Redes, de Otto Friedrich conta que John Huston, em vez de

próxima
a não ser poucos roteiros novamente rejeitados.
entregar O Falcão Maltês a escritores, apenas passou o roman-
Quanto a Barton Fink, bem, o final não foi muito feliz.
ce de Hammett à sua secretária. Pediu-lhe que o datilografas-
Trancado num quarto de hotel de quinta categoria, o escri-
se colocando cenas, seqüências e diálogos. No dia seguinte, o
tor/roteirista suou literalmente para executar sua tarefa: um
trabalho estava pronto. Foi o “roteiro” que resultou em Relí-
filme de luta. Após dias e dias diante do papel em branco na
quia Macabra, e sua autora, a secretária anônima.
máquina de escrever, acabou se envolvendo numa tragédia, e,
anterior No banheiro do restaurante, Barton Fink surpreende-se
quando finalmente concluiu o trabalho teve o roteiro rejei-
ao encontrar um famoso escritor. O personagem, um alcóola-
tado.

198
Existem alguns escritores, no entanto, privilegiados. nós de volta à mansão para testemunhar o desfecho da histó-
Fenômenos na literatura com talento também para escrever ro- ria. A primeira cena mostra um cadáver na piscina. Quem? Ele
teiros. É o caso de Gabriel Garcia Márquez. O consagrado es- mesmo, o roteirista! Tão mágico que narra, em off, sua própria
critor colombiano é um apaixonado por cinema, tanto que criou história mesmo depois de morto. Vamos pegar carona na máquina
a Escola de Cinema e Televisão de San Antonio de los Baños, do tempo de Joe Gillis e pesquisar como o roteiro entrou em
em Cuba, famosa por sua Oficina de Roteiros. cena na história do cinema... Yes, this is Sunset Boulevard,
O roteiro é diferente, portanto, de uma obra literária. Los Angeles, California…
Escrever bem nunca é demais , mas ainda mais importante é O personagem interpretado por William Holden é um rotei-
escrever dentro das possibilidades do cinema, saber quais as rista que passa por séria crise financeira e há tempos não
soluções técnicas para tornar uma cena viável. Ter conheci- consegue vender um roteiro. Desesperado, ele procura um pro-
mento da montagem não significa que o roteirista deva apre- dutor da Paramount, mas nada consegue. Ao dirigir de volta
capa sentar uma decupagem precisa, com indicações técnicas em re- para casa, fugindo de credores, vai parar acidentalmente na
lação ao uso das lentes, à duração dos planos, aos movimentos mansão de Norma Desmond.
da câmera etc. Este é o papel do diretor. Ao roteirista cabe Se Joe Gillis pudesse prever o futuro, teria saído cor-
dividir o filme em seqüências, numerá-las, colocando como in- rendo desde que colocou os olhos pela primeira vez naquela
dicações se a cena se passa no interior ou exterior, dia ou mulher. Mas acabou ficando na casa, para ajudá-la a escrever

universidade
noite, e o lugar onde ocorre a ação. De maneira simples, clara Salomé, filme com o qual ela pretendia marcar seu grande re-
e objetiva descreve-se a cena: os fatos, cenários, figurinos, torno às telas após 20 anos. “This is fascinating... what it
movimentos dos personagens, diálogos. Ele deve trabalhar den- needs is.. uh... maybe a little more dialogue...”, mentiu ele.
tro de limites: o tempo de duração do filme e, principalmente, Criar diálogos: assim começa a aventura de Joe Gillis,
o orçamento. assim começa a história do roteiro no cinema.
sumário
Roteiro: máquina do tempo. Roteiro: máquina do tempo através dos tempos

O cinema nos transporta através dos tempos e muito mais do


que situar uma história numa determinada época e lugar, o ro- Buscando origens em “Sunset Boulevard”

próxima teiro pode brincar e jogar com o tempo de maneira fascinante.


No início, o espectador de cinema ficava mais que in-
Quem sabe o filme Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard),
trigado: o que seriam aquelas imagens, sem sons, nem cores,
de Billy Wilder não presta sua homenagem ao dom especial que o
sucedendo-se umas às outras, como mágica?
roteirista tem em manipular o tempo? Nele, Joe Gillis, rotei-
No livro A linguagem secreta do cinema, Jean-Claude Car-
rista vivido por William Holden, é o narrador de sua própria
rière conta que Luís Buñuel recordava-se que em sua infância
anterior história usando o recurso do flashback. O filme começa com uma
na Espanha, em torno do ano de 1910, havia a figura do expli-
cena na mansão de Norma Desmond (Gloria Swanson), volta seis
cador. De pé, com um longo bastão, um homem apontava as ima-
meses no tempo e 1 hora e cinquenta minutos depois lá estamos

199
gens na tela e explicava o que estava acontecendo. história, chamava um escritor para escrevê-la, contratava um
Uma nova linguagem nasceu mesmo quando os cineastas co- ou mais roteiristas para os ajustes finais e um diretor para
meçaram a cortar o filme em cenas, inventando a montagem, comandar as filmagens. Na verdade, muitos roteiristas eram
criação atribuída a D.W. Griffith. Nascia, assim, a gramática vistos como uma categoria inferior do cinema, geralmente se-
cinematográfica e seus elementos básicos que a diferencia- gregados dos diretores.
va de todas as outras: o close-up, o movimento da câmera e a Vejamos a construção do personagem Joe Gillis: um homem
edição de imagens. A partir daí, fazer um filme começou a ser cínico, afundado em dívidas, desacreditado profissionalmen-
uma coisa mais complexa, não era mais possível tanta impro- te. Mora num pequeno apartamento conjugado, totalmente de-
visação. sarrumado, veste-se de maneira simples e sem estilo, camisa
O cinema falado entrou para a história trazendo um novo pólo, um blazer que não cai muito bem, não usa chapéu como a
desafio: agora era preciso criar os diálogos... o roteiro maioria dos homens bem sucedidos da época. A própria postura
capa passou a ser, então, imprescindível. ao sentar-se diante da máquina, papéis espalhados por todo
Sunset Boulevard fascina pela magia de misturar tão bem canto, fumando sem parar, boca segurando lápis demonstra a
ficção e realidade. Durante a história, nos surpreendemos com falta de classe do personagem, pobre coitado, tão necessitado
diversos elementos, links que conectam personagens e mundo de sorte que até o chaveiro é um pé de coelho. É tratado com
real, que nos levam à fronteira entre imaginação e realidade, desdém pelo produtor que rejeita seu roteiro, o homem chega a

universidade
passado e presente, lucidez e loucura... Cecil B. De Mille, um deitar num sofá para ouví-lo e até solta um indelicado arroto
dos pioneiros do cinema, diretor que descobriu Gloria Swan- enquanto ele tenta vender sua história. Quando Norma Desmond
son, interpreta a si mesmo e pode ser visto no estúdio da Pa- procura por Cecil B. DeMille nos estúdios da Paramount, ele
ramount dirigindo uma cena de Sansão e Dalila. Outros grandes permanece no carro esperando por ela. Enquanto ela joga brid-
nomes do cinema mudo estão na obra representando a si mesmos: ge com os amigos dos tempos gloriosos, a Joe resta a tarefa
sumário a jornalista Hedda Hopper e os atores Buster Keaton, Anna Q. de limpar o cinzeiro.
Nilsson e H. B. Warner que aparecem numa cena jogando bridge Antes de se tornar diretor Billy Wilder foi roteirista e,
com Norma Desmond. assim que chegou a Hollywood formou uma parceria que duraria
Se o cinema falado transformou o roteirista numa “figura anos. Formado em Harvard, Charles Brackett foi vice-cônsul na

próxima
viva” e importante nas produções, por outro lado, a partir de França, escreveu dois romances e trabalhou como crítico de
seu primeiro filme O cantor de jazz, de 1927, começou a varrer teatro na revista The New Yorker antes de ir para Hollywood.
deuses e deusas para a obscuridade. É o Crepúsculo dos Deuses, Cordial, reservado, elegante e refinado, desde 1938 formou
título do filme em português. com Billy Wilder uma dupla de sucesso. O último filme que es-
Mas ainda demoraria um pouco para o roteirista ganhar creveram juntos foi justamente Sunset Boulevard, premiado com
lugar de destaque nas produções. Os “donos” dos filmes eram o Oscar de melhor roteiro.
anterior os produtores, o foco principal era o retorno financeiro e a Um dos ingredientes para o sucesso da dupla foi a fusão
coisa funcionava mais ou menos assim: o estúdio comprava uma de duas personalidades quase opostas. O austríaco Billy Wil-

200
der era irreverente, rebelde e sarcástico. Estudou direito na feita a parceria perfeita. De um lado, a experiência de Joe,
Universidade de Viena e depois tornou-se repórter. Em 1933, do outro o entusiasmo da principiante. Em comum, o principal
Hitler chega ao poder. Wilder vai para Paris e em 1934 para ingrediente para que uma história dê certo: motivação.
Hollywood. Pouco sabia do idioma e por isso precisava de um
co-autor para seus filme Cinema europeu

Sobre a importância do roteiro feito a quatro ou mais


Além da crise econômica, agravada com o aparecimento da
mãos, Billy Wilder afirmou no prefácio do livro Eu, Fellini,
televisão, na década de 50 o cinema americano vive uma crise
de Charlotte Chandler:
política: o mccarthismo. O terror se instala em Hollywood com
Trabalhei 15 anos com Brackett e 25 I.A. L. Diamond.
anos com
as investigações do HUAC (Comissão de Inquérito sobre Ativi-
Devemos estar em condições de ouvir outras pessoas e refletir so-
bre suas opiniões, mesmo que não venhamos a fazer uso delas. É dades Antiamericanas). A busca aos comunistas infiltrados no

capa
importante ter um parceiro por quem se tenha respeito, mas , se cinema baniu para a Europa nomes como Charles Chaplin, Orson
possível, ele não deve ser muito parecido conosco. Afinal de con-
Welles, Ingrid Bergman, entre outros. O cinema europeu sofre
tas, queremos ser estimulados pelas idéias do outro, pois, caso
contrário, é melhor conversarmos sozinhos. É preciso tentar o mútuo uma revolução quando os críticos da revista Cahier du Cinéma
convencimento ,liderados por François Truffaut e Jean-Luc Godard tornaram-
Em Sunset Boulevard vemos Joe Gillis envolvido em duas -se diretores, criando a Nouvelle Vague. Se até o final dos
situações diferentes de parceria. Com Norma Desmond, ele es- anos 50 o cinema, embora já chamado de “sétima arte”, era

universidade creve Salomé. Com Betty Shaeffer, a jovem analista de rotei- tido por 99% de seus usuários como mera distração, a Nouvel-
ros da Paramount, ele desenvolve uma história de sua autoria. le Vague inaugurava uma nova fase na história cinematográfi-
No primeiro caso, o roteirista vê no trabalho apenas um meio ca. Acontece uma profunda transformação na forma narrativa e
fácil de ganhar dinheiro e resolver seus problemas. Este foi no conteúdo, o que menos importa é transformar o cinema numa

sumário o início de uma relação de mútua dependência, nada favorável máquina de fazer dinheiro, mas fazer dele um instrumento de
ao trabalho do roteirista. Norma Desmond detém o poder, ela transmitir idéias, mensagens.
acredita que tem um produto de qualidade, capaz de lhe devol- Mas qual a influência disso no papel do roteirista? Pela
ver o sucesso. Joe Gillis sabe que esta pretensão não passa de primeira vez, têm-se consciência do potencial da imagem em
um delírio. Um ghostwriter bem pago... você toparia este tipo movimento como forma de expressar o mundo no qual vivemos;

próxima de trabalho? Reflita bem antes de responder. o preço pode ser escritor e diretor juntam seus talentos neste sentido. Como
alto... Imagine você, um profissional experiente e competente resultado, o status assim como a função do roteirista muda
cedendo aos caprichos de uma mulher egocêntrica e prepotente. radicalmente. A idéia sobre um filme já não saía dos estúdios
Nas horas de tédio, Joe Gillis ousa sonhar... e pensa em e seus produtores. O roteirista é finalmente reconhecido como
Betty Schaeffer. Sente-se fascinado pelo jeito da jovem, tí- membro vital da equipe.
anterior pico dos escritores iniciantes de Hollywood: ambiciosa, em-
Trabalho em equipe - as relações do roteirista
penhada em ver seu nome nos créditos de uma produção. Está

201
Uma vez que fazer cinema é atividade de grupo, as relações dirigir Odisseia, Jerry justifica: “Eu precisava de um dire-
são cruciais para um trabalho eficaz, especialmente entre o tor alemão, foi um alemão que descobriu Tróia”. Uma questão
roteirista, o diretor e o produtor. Um bom entrosamento entre de marketing.
esses três profissionais é fundamental. Em entrevista à Folha de São Paulo, o jornalista Sérgio
O filme O Desprezo (Le Mepris, 1963), de Jean-Luc Godard, Augusto perguntou a Fritz Lang: “Hollywood o induziu a acre-
é um bom exemplo do quanto o assunto pode ser complexo. Tra- ditar que o produtor é o pior inimigo do diretor?” A resposta
ta-se da história de uma equipe de cinema tentando filmar A confirma as situações vividas no filme de Godard:
Odisséia: um produtor americano, um diretor alemão e um ro- Os produtores podem ser, e muitos foram, grandes amigos dos dire-

teirista francês. O tempo inteiro eles precisam de uma intér- tores – mesmo em Hollywood. Mas esta não é a regra – mesmo fora
de Hollywood. O produtor típico é um cão de guarda de dinheiro que
prete, mesmo assim as relações são conflituosas. O roteirista nada cria. Eu costumo comparar o diretor de um filme ao capitão de
Paul Javal (Michel Piccoli) integra-se à equipe a convite do um navio e o produtor, ao armador. De modo geral, os produtores são

capa produtor Jerry Prokosh, um neurótico prepotente. A missão de mais espertos que inteligentes.

Paul é dar um outro tratamento ao roteiro, já que Prokosh não Farpas e críticas à parte, é inegável a importância do
está satisfeito com os resultados das filmagens “Lang gosta trabalho do produtor (e de sua “esperteza”) num filme. É ele
do roteiro que tem”, diz a assistente/intérprete, “O dinheiro o encarregado do lado “comercial” da obra. Desde os estágios
é meu!”, rebate o produtor. O personagem do diretor, ninguém iniciais até o lançamento e distribuição, sua visão está vol-

universidade
menos que Fritz Lang representando a si próprio, (apesar de tada para a parte prática: orçamento, prazo, locações. São
ser austríaco e não alemão), afirma: “Cada filme tem seu pró- muitos os questionamentos do produtor e o roteirista deve es-
prio ponto de vista”. O mesmo podemos dizer a respeito dos tar trabalhando junto com ele para tornar viável a realização
profissionais envolvidos num trabalho: cada especialista tem do filme.
seu ponto de vista. Isto fica bem evidenciado quando os três
sumário assistem juntos a algumas cenas já rodadas. Filosófico, Lang O filme de autor

explica as tomadas: “Aqui está a luta do indivíduo contra as


A “teoria do autor”, criada por André Bazin, tentava
circunstâncias. O eterno problema dos antigos gregos”. Diante
transformar certos cineastas em criadores únicos dos filmes.
do ar de desdém do produtor, a intérprete avisa ao roteirista:
A nova concepção jogou o roteirista no esquecimento.

próxima
“A interpretação do Sr. Lang sempre aborrece Jerry”. Este,
Oito e meio (Otto e mezzo), obra-prima de Fellini, conta a
por sua vez, pela primeira vez sorri satisfeito: na tela, uma
história de Guido Anselmi, um diretor stressado que se inter-
mulher nua nada nas águas transparentes do Mediterrâneo.
na num spa para recuperar o equilíbrio e, principalmente, a
Diretor e roteirista olham para o filme quase de maneira
inspiração. Mas não consegue escapar de seus “fantasmas”. Por
idêntica: vêem a totalidade da história, de que forma ela pode
lá aparecem o roteirista, o produtor, atrizes... todos pres-
ser contada e que tipo de reações poderá provocar no espec-
anterior tador. Já o produtor tem outra visão. No filme de Godard, por
sionando o diretor, exigindo a definição da história. Para
aumentar sua angústia chegam a amante e a esposa. Realidade e
exemplo, ao ser questionado por quê escolheu Fritz Lang para

202
fantasia se fundem. Sonhos e memórias vêm à mente do diretor, racterizadas desde o início. Enquanto o roteirista sofre a
o retrato de um homem angustiado, oscilando entre o carnal e falta de sua máquina de escrever manual que se extraviou na
o espiritual, o artístico e o comercial. Apático, ele escuta viagem, o diretor Walt Price (William H. Macy) fica feliz
as críticas do escritor ao roteiro original. ao rever seu travesseirinho de estimação onde lê-se: Shoot
O personagem é a mais ferina sátira à figura do roteiris- first – ask questions afterward. O ator principal Bob Bar-
ta. Em contraste com Marcello Mastroianni (é necessário des- renger (Alec Baldwin) confessa seu fraco por meninas de 14
crever o ator no auge de sua fama – o filme é de 1963 – lin- anos: “Todo mundo precisa de um hobby”, justifica o galã. A
do, elegante e sedutor?), o roteirista é um homem mais velho, protagonista recusa-se a fazer a cena em que aparece de seios
feio, meio careca, deselegante, arrogante. nus, como tudo tem seu preço, ela estipula o cachê: 800 mil
Não é segredo que o personagem de Marcello Mastroianni é dólares. O problema é que o orçamento do filme está estoura-
o alter ego de Fellini que a respeito do roteiro já disse: do, o produtor Marty Rossen (David Paymer) está à procura de
capa Antes de ser diretor de cinema, trabalhei em muitos roteiros. Era patrocinadores e tenta convencer o diretor a aceitar o mer-
um trabalho que muitas vezes me deixava melancólico ou com raiva. As
chandising de uma empresa ligada à informática. A questão é:
palavras, a expressão literária, o diálogo são sedutores, mas ofuscam
aquele espaço preciso, aquela necessidade visual que é um filme. Tenho como inserir um computador num filme que se passa no século
medo do roteiro. Odiosamente indispensável. (Fellini, 2000: 205) XIX? Aliás a cidade foi escolhida para as filmagens de The Old
Mill (O Velho moinho) por manter intactas características do

universidade
De volta a Hollywood via State and Main passado e, principalmente por supostamente ter um velho moi-
nho, o que reduziria os custos evitando a construção de ce-
Ninguém melhor do que um brilhante roteirista para cons- nários. O problema é que o moinho foi destruído num incêndio
truir um personagem roteirista. Antes de se tornar diretor, em 1960. Apesar do seu jeito tímido e desajeitado, do estilo
David Mamet já havia assinado roteiros; sucessos como O des- nada sedutor na maneira de vestir, dos óculos e do cabelo fora
sumário tino bate à sua porta (1981), O Veredicto(1982) e Os Intocá- de moda, aos poucos Joe White vai conseguindo solucionar os
veis (1987). No filme State and Main(Deu a louca nos astros), problemas. Para isso conta com a ajuda de Ann Black (Rebecca
ele é diretor e roteirista de uma comédia na qual, o rotei- Pidgeon) diretora do grupo de teatro local que também é dona
rista Joe White (Philipp Seymour Hoffman) é a peça chave para da livraria da cidade. (Está formada mais uma dupla comple-
resolver os inúmeros obstáculos que uma equipe de filmagem
próxima
mentar White & Black).
está enfrentando para realizar uma história de época. Com a vida afetiva em dia, Joe se empenha nas suas ta-
As relações do roteirista com outros profissionais também refas, a primeira providência é mudar o título da história,
estão retratadas nesta produção: o ingênuo e tímido escri- já que não há moinho algum no lugar, o filme para a chamar-se
tor, em sua estréia no cinema, está no meio de um verdadeiro Cidade em Chamas. Quanto à cena de nudez, foi fácil: a atriz
ninho de cobras. A chegada da equipe muda a rotina da pacata apareceria de costas, não seria preciso mostrar os seios “Eles
anterior e conservadora cidade de Waterfront, Vermont. As diferenças simbolizam a maternidade”, explica Joe. “É tudo uma questão
de personalidades e funções de cada profissional ficam ca- de pureza”. Quando tudo parecia entrar nos eixos, o ator/galã

203
alcoolizado bate com o carro num sinal de trânsito, ferindo traçar um bom “roteiro”. Primeiro envolve-se com uma modelo
a menor que estava no banco do carona. As ordens do diretor famosa, linda e sensual, talvez um pouco mais liberal do que
são claras: “diga que estava sozinho no carro”. O problema é Simon gostaria. Enquanto isso, a rejeitada ex-esposa, sem am-
que o investigador sabe que havia uma testemunha: Joe White. bições e nenhuma auto-estima, envolve-se com o bem sucedido
Agora, o roteirista vacila: deve salvar a pele do ator e de produtor de TV (Joe Montegna), proprietário de um elegante
toda a equipe ou a ética deve falar mais alto? Que história Audi preto. Eles se casam e ela se torna uma apresentadora de
contar no Tribunal, ficção ou realidade? O final é feliz. Al- sucesso num programa da emissora.
guém poderia ter mais sorte do que Joe White em seu primeiro Simon continua sua luta para vender o roteiro. Numa hi-
texto para o cinema? lariante cena, ele tenta conversar sobre o assunto com a ce-
lebridade Brandon Darrow (Leonardo di Caprio). Brandon, com-
Do primeiro roteiro ninguém esquece...
pletamente drogado está no meio de uma violenta briga com a
capa Já aconteceu. Quando, em 1991, Callie Khouri escreveu seu
namorada, a polícia chega, a confusão é total e mesmo assim
Simon sempre tenta uma brecha para falar sobre o roteiro.
primeiro roteiro para cinema estava presenteando o espectador
Quando tudo fica mais calmo, o novato roteirista é arrastado
com um filme fantástico: Thelma e Louise. Syd Field, o mais
a uma viagem com a turma do ator. Dentro da limousine do as-
requisitado professor de roteiro do mundo, surpreendeu-se com
tro, ele continua tentando expor suas idéias sem sucesso e,
a obra: “um roteiro brilhante, escrito por uma brilhante ro-

universidade
ninguém lhe dá atenção quando ele diz que tem pânico de avião,
teirista novata, cuja abordagem do roteiro não foi limitada
assim, de repente, lá está ele num cassino apostando tudo o
pelos antigos conceitos de outros filmes de Estrada”. Antes
que tem e não tem. Desta vez Brando faz um comentário: “Quero
de escrever, Callie trabalhava na produção de vídeos musi-
falar sobre o início. Está meio corrido. É o desenvolvimento
cais; insatisfeita, desejava fazer algo mais criativo. Foi
do personagem... Quem é Sonnyboy? Por que precisa roubar?”
sumário
por acaso que começou a escrever programas para a televisão
“Vocês escritores são muito sensíveis. Deviam escrever car-
com um amigo e não demorou muito para criar Thelma e Louise,
tões de natal, não roteiros”
vencedor do Oscar de melhor roteiro.
O filme termina com Simon relembrando a cena inicial da
Mas não são muitas as chances de que o primeiro roteiro
história: uma filmagem na qual um avião escreve no céu: HELP.
projete o seu autor para o mundo da fama. É o que mostra o

próxima
Como socorrer Lee Simon? Na minha opinião, ele deveria
filme Celebridades (Celebrity), produção de 1998 de Woody Al-
aprender algumas lições básicas:
len. Nas telas, Lee Simon (Kenneth Branagh) é um jornalista,
escritor fracassado, que acaba de terminar um casamento de a – Não temer críticas
16 anos com a professora escolar Robin (Judy Davis). “Quero
mudar de vida. Odeio meu trabalho, meus artigos. Eu não estou Um dos momentos mais temidos pelo roteirista talvez seja a
anterior feliz!!”, desabafa o repórter. Assim, passa o filme tentando hora da avaliação do roteiro, mas o feedback é fundamental. E
vender seu primeiro roteiro de cinema tenha certeza: se várias pessoas apontam para os mesmos pro-
Para alcançar seus objetivos, no entanto, Simon não sabe blemas, aceite e volte ao computador.

204
b – Reescrever também faz parte classe social a que pertence, histórico familiar, onde mora,
como é sua rotina, casado? Desorganizado? Metódico? Tímido ou
. Como já disse Aristóteles “O efeito dramático vem da- seguro? Dirige? Tem algum vício? Como ele se veste? Isto tudo
quilo que é provável, não do que é possível”. Brandon não pode ser “dito” através de imagens. Como diria Tchekov: “O me-
“comprou o peixe” de Simon. E o processo natural seria sim lhor é evitar qualquer descrição de um estado de alma. É pre-
reescrever. A revisão do roteiro acontece em todas as etapas ciso tentar torná-la compreensível pelas ações dos heróis”.
de uma produção. O roteirista pode ser solicitado, inclusi- Fellini gostava de desenhar os personagens. “É uma forma
ve, a reescrever cenas ou detalhes que durante as filmagens. de começar a olhar a cara do filme”, dizia ele.
Pode ser chamado também durante a fase de montagem, seja para Uma coisa deve ficar clara para o espectador: quais os objetivos e
escrever novos diálogos ou narrações em off , que, na visão desejos do protagonista? Drama é conflito. A necessidade do persona-
gem deve ficar clara, de forma que você possa criar obstáculos a essa
do diretor, enriqueceriam o produto final. O roteiro não ter-

capa
necessidade. Isso empresta à sua história uma ‘tensão dramática’ que
mina nem mesmo quando o filme está pronto para ser exibido. freqüentemente falta ao roteiro de um novato. (Field, 1995: 92)
Sunset Boulevard, por exemplo, originalmente começava de ou-
Não há nada mais angustiante para quem escreve do que se
tra forma. Ao invés da piscina, o cadáver do roteirista Joe
ver diante de um papel (ou tela) em branco por muito tempo.
Gillis estava no necrotério. Com uma etiqueta identificadora
Não se sabe como o bloqueio se instala, a verdade é que volta
no dedão do pé, ele conversava com os outros mortos, cada um
e meia ele aparece sem ser convidado. Jean-Claude Carrière
explicando como havia parado alí. Os espectadores das pré-
universidade
faz o seguinte comentário sobre a questão: “É como se fosse
-estréias rejeitaram o humor negro de Wilder e a cena teve
uma dupla de insetos procurando o caminho para sair de uma
que ser refeita.
jarra. Existe uma saída secreta em algum lugar, um caminho que
Gabriel García Marquez diz que, apesar de dolorosa, uma
leva a vastos espaços abertos”.
dose de insegurança quanto ao trabalho é indispensável. Eu
O diretor Federico Fellini garantia jamais ter passado
sumário nunca torno a ler meus livros depois de editados, com medo de
por uma situação parecida: “. Seria como a impotência sexu-
encontrar defeitos que tenham passado despercebidos, confes-
al”. (Chandler, 1994:89)
sa. Para ele, revisar um texto, ler, reler, reescrever é uma
parte inseparável do processo de criação e afirma: Os arro- De onde nasce a inspiração?
gantes, que sabem tudo, que nunca têm dúvidas, acabam dando
próxima tanta cabeçada que morrem disso... A Musa, de Albert Brooks, é mais uma comédia que satiriza
Hollywood. No início do filme, o roteirista Steven Phillips
c – Definir o perfil do protagonista desde o início da trama . (Albert Brooks) recebe um prêmio numa festa de gala e volta
para sua bela casa em sua bela Mercedez com sua bela esposa e
“Quem é Sonnyboy? Por que precisa roubar?” Ao fazer es-
belas filhas. Um belo início que acaba virando pesadelo. No
anterior tas indagações, Brandon Darrow demonstra que o roteirista não
dia seguinte, ele vai a Paramount e conversar com um produtor:
traçou o perfil do protagonista da história de forma eficien-
PRODUTOR: Por que ganhou o prêmio?
te. É preciso conhecer a fundo o personagem: seus hábitos,

205
STEVEN: Pela minha carreira. rias, de uma foto, uma imagem, uma frase ou uma simples pala-
vra. Todas as manhãs, o escritor Marcel Proust costumava ler
PRODUTOR: Foi muito bom. Teve uma carreira brilhante...
o jornal e imaginar que por trás de cada notícia existe uma
STEVEN: O que quer dizer com “teve”? Ainda estou tendo
história, um romance inteiro
PRODUTOR: Li seu roteiro Jean-Claude Carrière conta que Buñuel tinha o hábito de

STEVEN: E daí?
ler o jornal todos os dias: Ele lia por causa das notícias do
mundo, que o interessavam; e lia para se identificar a res-
PRODUTOR: Tentarei dizer sem insultá-lo, pois dizem que sou di-
peito do nosso trabalho. Ler e fazer comentários sobre a im-
reto demais, o roteiro é ruim(...) Já parou para pensar que está
num mometo da vida em que deve mudar de rumo? Li que há pessoas que prensa era parte essencial de nossa pesquisa para a feitura
passam pelo menos por três carreiras. Talvez deva parar de escrever, do roteiro. Outra coisa que fazia parte da rotina da dupla era
falta imaginação.. está ficando velho.
contar os sonhos. Quando os esquecíamos, nós – ou pelo menos
capa STEVEN: Picasso pintou até os 90 anos. eu – os inventávamos. Eu tinha em mente as palavras de André

PRODUTOR: Mas nunca escreveu um roteiro de cinema.


Breton sobre um homem de quem ele não gostava: - ‘É um suíno.
Nunca sonha’.
Steven não pode aceitar a sugestão de abandonar a profis-
O escritor Gianni Rodari lembra que, às vezes, basta uma
são, assim, contrata os serviços de uma “musa”. Sarah (Sha-
palavra para acionar a imaginação, como uma pedra lançada em
ron Stone) seria uma musa real, filha de Zeus. Mais difícil

universidade
um pântano que provoca ondas na superfície da água e movimen-
do que resgatar a criatividade, foi cumprir as exigências da
tos invisíveis em todas as direções, agitando algas e assus-
musa: presentes caros, uma suíte no Hotel Four Seasons, uma
tando peixes.
limousine à disposição. O casamento dele entra em crise e a
Fellini buscava inspiração nas memórias de infância e
filha comenta: “Os escritores piram.. por isso se matam..
adolescência, em personagens reais.
sumário como Ernest Hemingway”. Steven não chega a este ponto, antes
disso, Sarah propõe um passeio a Long Beach para visitar um Conclusão
novo aquário. O roteirista acaba mesmo se inspirando e cria
uma comédia na qual Jim Carrey seria o ator principal. No fi- Quando resolvi escrever esse trabalho, o primeiro filme
nal do filme, uma revelação: na verdade Sarah fugiu de um sa- que me ocorreu foi A noite americana, de Truffaut. Ao revê-

próxima natório, é uma paciente que sofre de personalidade múltipla. -lo, depois de tantos anos, fiquei surpresa com a ausência
Antes de ser musa, tinha sido filha de Picasso. O psiquiatra do personagem/roteirista na trama, detalhe que havia me esca-
tranqüiliza o roteirista, perplexo por ter sido enganado tão pado da memória. Na história, o diretor Ferrand, vivido pelo
facilmente: Sr. Philips, está em Hollywood. Não se culpe por próprio François Truffaut, vê-se diante de vários desafios:
acreditar nela. Aqui todos acreditam em tudo! uma atriz veterana que não consegue decorar o texto, as cri-
anterior Criar, imaginar, exige também uma dose de loucura? ses do galã geradas por seu envolvimento com uma integrante
Uma história pode surgir a partir de um sonho, de memó- da equipe de produção, e, por fim, a morte acidental do ator
principal, fato que implica em mudanças radicais no roteiro.

206
As referências ao roteirista ausente e anônimo são poucas: o No livro Seis propostas para o próximo milênio, Ítalo
diretor explica que ele mesmo tem que fazer as modificações Calvino fala sobre os valores literários que merecem ser pre-
no texto pois o roteirista está no Japão trabalhando em outro servados neste milênio: leveza, rapidez, exatidão, visibili-
projeto. O galã responde à continuista quando esta lhe avi- dade, multiplicidade. Acredito que estas devam ser qualidades
sa sobre a cena que será rodada em seguida: “Como vou saber? indispensáveis ao roteirista: rapidez de estilo e de pensa-
Nunca leio os roteiros!” mento, que inclui concisão, mobilidade, agilidade; um toque
Mesmo sem um rosto ou nome ali estava retratado o rotei- de leveza sem que o conteúdo perca a intensidade; exatidão:
rista: dispensável. cada frase, cada elemento deve ser insubstituível; diálogos
Em seguida, assisti a Oito e Meio, onde o protagonista, o e imagens precisas, distantes do lugar comum e dos clichês;
diretor Guido, sonha em ver o escritor enforcado, com a ca- visibilidade, a arte de descobrir uma história, uma cena ou
beça coberta por um capuz. A mais completa imagem de idéias um filme inteiro atrás de uma notícia, uma frase, uma pala-
capa aprisionadas em contraste com o chapéu usado pelo diretor. A vra, uma imagem; a multiplicidade que faz do filme uma rede de
respeito da composição do personagem, Fellini disse: Os cha- conexões, entre os fatos, personagens, signos, sons, ruídos.
péus podem ser um bom indício de caráter. Em ‘Otto e Mezzo’, Escrever roteiros é uma atividade única que se transforma
Mastroianni torna-se diretor de cinema porque usa o mesmo constantemente, espelhando as necessidades e preocupações do
chapéu que eu. Eu uso chapéu. nosso tempo. Como conseqüência disso, cada geração traz um

universidade
Críticas de dois representantes do “cinema de autor” à novo olhar e uma nova perspectiva para o “Papel de Roteirista”
função do roteirista? Acredito que sim.
Nos anos 80 que os roteiristas, criados com a TV, esco- BIBLIOGRAFIA
las de cinema e computadores, começaram a explorar e elevar a • BETTON, Gérard. Estética do Cinema. São Paulo: Martins Fontes, 1987
linguagem do roteiro. • BONITZER, Pascal, CARRIÈRE, Jean-Claude. Prática do Roteiro Cinematográ-

sumário Os avanços tecnólogicos e a expansão dos meios de comu-


fico. São Paulo: JSN Editora, 1996
• CARRIÈRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro: Nova
nicação como a tv a cabo e a internet ampliaram o campo de Fronteira, 1995

trabalho, abrindo novas perspectivas para o profissional e • CHION, Michel O roteiro de cinema São Paulo: Martins Fontes, 1989

facilitando a divulgação de eventos e concursos nacionais e • COMPARATO, Doc Da criação ao roteiro Rio de Janeiro: Rocco, 1995
• FIELD, Syd. Manual do Roteiro. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995

próxima
internacionais. Muitos filmes estreiam nas telas quase si-
• FIELD, Syd 4 Roteiros: Uma análise de quatro inovadores clássicos contem-
multaneamente aos lançamentos de seus roteiros nas livrarias. porâneos. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997
Hoje, o roteirista brasileiro tem acesso a inúmeros cursos • MÁRQUEZ, Gabriel Garcia. Como contar um conto. Niterói: Casa Jorge Edito-
rial, 1995
de roteiros (inclusive online) e workshops importantes como
• REY, Marcos. O roteirista profissional. São Paulo: Editora Ática, 1989
o Laboratório de Sundance nos Estados Unidos ou a oficina
• VOGLER, Christopher. A jornada do escritor. Rio de Janeiro: Ampersand Ed.
criada por Gabriel Garcia Marquez Como se cuenta un cuento,
anterior
, 1997

na Escola de San Antonio, em Cuba, destinada a escritores e


roteiristas de língua portuguesa e espanhola.

207
ROTEIRO COLETIVO: UM MÉTODO CRIATIVO
PARA UM PRIMEIRO CONTATO DE
ADOLESCENTES E JOVENS DE PERIFERIA
COM A PRODUÇÃO AUDIOVISUAL.

J oão R odrigo C osta S ouza


capa
de

Universidade Federal do Rio Grande do Norte – graduação em Comunicação Social


– Radialismo – joaorodrigocs@yahoo.com.br

V alquíria A parecida P assos K neipp


Professora Drª. da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – valquiriak-
neipp@yahoo.com.br

universidade
Resumo

Este trabalho relata a experiência vivenciada por estu-


dantes de comunicação, na realização de oficinas pela ONG
Canto Jovem, em Natal no Rio Grande do Norte. A metodologia
sumário empregada por estes jovens ao ministrar oficinas de produção
de vídeo em comunidades do estado contou com experiência do
roteiro coletivo – um método de elaboração de roteiro desen-
volvido para suplantar as limitações impostas pela realidade

próxima
no processo das oficinas. O método apresentou possibilidades
pedagógicas alternativas e condizentes com as necessidades
apresentadas pela proposta.
Palavras-chave: roteiro; comunicação; comunicação popular

Abstract
anterior
This article reports experience of communication students,

208
in conducting workshops by the NGO Canto Jovem, at Natal in com o apoio do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA),
Rio Grande do Norte. The methodology used by these young pe- um grupo de profissionais e adolescentes envolvidos fundou a
ople to give workshops of video production in communities in ONG Canto Jovem.
the state experienced the screenplay collective - a method of De 1999 a 2005, a ONG realizara muitas atividades sócio-
preparing a screenplay developed to overcome the limitations -educativas junto a profissionais e adolescentes, lançando
imposed by reality on the workshop process. The method had mão de diversos meios pedagógicos, especialmente com o uso
presented pedagogical possibilities and alternatives consis- das expressões artísticas, mas sempre com o foco principal de
tent with the needs presented by the proposal. atuação voltado para a Saúde Sexual e Reprodutiva. Esse pe-
Key words: screenplay; communication; popular communica- ríodo é visto pela equipe como um momento repleto de ativida-
tion des externas, onde a sede da organização esteve sempre cheia,
contudo, um período de puro ativismo, muitas vezes sem a plena
capa 1. Canto Jovem1: um breve histórico.
consciência necessária para atividades de efetiva transforma-
ção social, como nos revela um dos diretores do Canto Jovem,
O Canto Jovem é uma associação civil, sem fins lucrativos,
André Sobrinho: “nós tivemos, assim, muito ativismo. Nós fo-
localizada em Natal – Rio Grande do Norte, que objetiva, no
mos, de fato, um grupo de pessoas, sonhadores e sonhadoras.
que diz sua missão, “contribuir para a participação de ado-
‘Sonhalistas’.” (JOVEM, 2009), arremata.
lescentes e jovens do RN, através do desenvolvimento de uma

universidade
A partir de 2006, a ONG decide lançar esforços para o
cultura de direitos”. Surgiu em 1999, num contexto de discus-
fortalecimento interno, sistematizando as experiências adqui-
são nacional e internacional acerca dos direitos da população
ridas para se reestruturar. É quando se elabora um plano de
jovem. Era final do século XX, quando aconteceram a Conferên-
ação em longo prazo e se pensa um projeto político-pedagógico
cia Internacional de População e Desenvolvimento; a institui-
(PPP). Desse processo, surge a necessidade de dividir suas
sumário
ção do Estatuto da Criança e do Adolescente; dos Parâmetros
ações em programas temáticos, para qualificar sua interven-
Curriculares Nacionais; e do Sistema Único de Saúde.
ção social. São três: Saúde Sexual e Reprodutiva; Juventudes,
Na capital potiguar, após as experiências de um curso de
Participação e Democracia; e Arte-educação.
especialização em sexualidade humana, o grupo de profissio-
Para efeito deste artigo, nos interessa apenas o progra-
nais/educandos participantes do curso, teria que realizar

próxima
ma Juventudes, Participação e Democracia (JPD). Este tem por
intervenções sociais, além de desenvolver suas monografias,
seus objetivos: “assegurar condições para o exercício da par-
para conclusão do curso. Esta intervenção foi o I Encontro Po-
ticipação juvenil na dimensão social, política e cultural”
tiguar de Adolescentes (EPA), onde se pôde reunir cerca de 400
e “favorecer na participação juvenil das políticas públicas:
adolescentes e jovens para discutir politicamente suas ques-
estudos e pesquisas, avaliação e monitoramento de serviços, e
tões sociais específicas. Ao cabo do encontro, constatou-se
representações nas instâncias de controle social” (http://www.
anterior a necessidade da criação de um espaço que pudesse abrigar a
cantojovem.org.br/programas_projetos_juventude.php). Dentro
continuidade daquelas vivências experimentadas no EPA. Então,
1 As informações sobre a ONG Canto Jovem foram retiradas de JOVEM, Canto. Disponível em: <http://www.can- destas possibilidades de atuação o JPD desenvolveu e executou
tojovem.org.br/canto_jovem_sobre_o_canto.php>. Data de acesso: 12 de setembro de 2010.

209
um projeto chamado Diálogos de Juventudes (DJ), que pleite- vídeo, na formação política, a pesquisa que se realizaria nas
ava “contribuir para a mobilização social em torno das prin- comunidades para levantar as questões pertinentes converteu-se
cipais preocupações das juventudes da cidade do Natal/ RN, em entrevistas videográficas e a primeira Roda de Diálogos,
com vistas a fortalecer e articular grupos de juventudes para devido o processo eleitoral eminente, transformou-se numa en-
a participação política na defesa e promoção de seus direi- trevista televisiva, entre os/as jovens e os/a candidatos/a à
tos” (http://www.cantojovem.org.br/programas_projetos_juven- prefeitura do Natal, transmitida através de uma parceria com
tude_dialogos.php). Estes grupos foram mapeados a partir de a TV Câmara local, onde, para abrir os debates, foram exibi-
uma grande pesquisa realizada pelo próprio DJ no ano de 2007 dos os vídeos realizados pelos/as jovens acima mencionados.
e foram realizadas estratégias de mobilização para alcançar Depois desta experiência televisiva e a parceria que iniciara
os objetivos do projeto. Com os grupos mobilizados, o passo com a emissora local, as outras Rodas de Diálogos não mais se-
seguinte foi o de proporcionar um intercâmbio de experiên- riam simples espaços de conversas, mas uma série de programas
capa cias entre eles e, conseqüentemente, um aprendizado coletivo, televisivos, para debater aqueles temas, com a presença de
através de encontros de formação e convivência. O primeiro outros atores, como especialistas nos assuntos, parlamentares
momento destes foi o VI EPA, em 2007, que serviu para o forta- e gestores públicos interessados, ou diretamente ligados, às
lecimento, formação e valorização da atuação comunitária dos/ temáticas abordadas.
das jovens. Em seguida, realizou-se uma formação política,
2. A formação em comunicação.

universidade
já em 2008, junto a essas juventudes de toda a cidade, onde
se desenvolveu um embasamento teórico e os instrumentos que
Desde o período de reestruturação do Canto Jovem, a co-
resultariam em pesquisas dos/das jovens nas suas comunidades
municação passou a ser encarada de forma mais ampla. Além de
com intuito de levantar os problemas hiperlocais2 para serem
instrumento organizacional, percebeu-se que era um tema de
discutidos nas Rodas de Diálogos, que seriam espaços de con-
sumário
necessária discussão política, pois sua característica mas-
versas entre os/as adolescentes e jovens e suas comunidades,
siva está constantemente presente no processo de informação
dentro das comunidades, para o debate das questões suscitadas
e desinformação desses/as jovens e sua característica ins-
na pesquisa e suas relações com a situação político-social da
trumental pode ser uma potencial ferramenta para capacitação
cidade. As temáticas da formação giraram em torno dos temas de
juvenil de expressão e luta social. Neste sentido, a comuni-

próxima
expertise do Canto Jovem, como movimentos sociais, políticas
cação se tornou um tema presente em todas as formações que o
públicas, participação e, ainda, comunicação.
Canto Jovem realizara, a partir destas duas perspectivas: de
O assunto da comunicação ganhou tanto espaço na organi-
uma leitura crítica dos meios de comunicação de massas e uma
zação que, dentro de um processo de replanejamento das ações
ferramenta de expressão e enfrentamento, especialmente atra-
do projeto, devido a diversos fatores, inclusive as eleições
vés do vídeo.
municipais de 2008, desencadeou transformações importantes
anterior em sua atuação. Depois da primeira experiência de oficina de
A comunicação vem sendo amplamente utilizada, através dos

2 Termo desenvolvido pelo autor, que tenta expressar um conceito de específico ao extremo. No texto, en-
meios de comunicação como parte do processo educativo, tan-
tendido como uma realidade muito inerente àquela comunidade específica. Já que a comunidade já é um recorte
diferenciado do que entendemos por “local”, no caso, a cidade onde ela está inserida. to formal, quanto não formal (Bordenave, 1995, p. 33). Essa

210
constatação sobre a importância didático-pedagógica da comu- zados pelos/as jovens. Esta experiência os/as municiou para
nicação influenciou a ONG Canto Jovem, a investir cada vez realizarem as entrevistas em vídeo nas suas comunidades para
nela como parte fundamental para o processo e desenvolvimento serem exibidas durante a entrevista com os/a candidatos/a à
comunitário. prefeitura naquele ano.
Entre 2008 e 2009, aconteceram três momentos específicos A segunda experiência de oficina de vídeo foi dentro do
de formação em vídeo, que se desdobraram em mais alguns ou- projeto Gerações Políticas também dentro do programa JPD. O
tros, onde foram feitas essas duas abordagens da comunicação projeto fazia intervenções especificamente na comunidade da
vídeográfica: a crítica e instrumental. Estes desdobramentos África, no bairro da Redinha, situado no litoral norte de
são exatamente os momentos posteriores às formações e pri- Natal. Era uma aposta do Canto Jovem numa estratégia de ter-
meiras realizações experimentais em vídeo dos/as adolescentes ritorialização de suas intervenções. A ideia agora era con-
e jovens, assim como continuidades formativas, muitas vezes centrar o trabalho formativo em uma só comunidade, para ter
capa inevitáveis dentro de uma dinâmica tão imprevisível como a das condições de aprofundar mais as questões abordadas. Agora,
organizações sociais e dos aprendizados da equipe em relação com mais tempo, realizou-se três encontros com os/as adoles-
a essa nova, para a organização que era oportunizar formação centes e jovens, divididos em: questões críticas sobre a co-
em comunicação – vídeo. municação nas relações interpessoais e de massas; questões
O primeiro momento foi dentro do primeiro encontro de for- técnicas para a produção de vídeo; e a produção de um vídeo.

universidade
mação política, no final de abril e inicio de maio de 2008, Foi uma experiência de aprendizado por ambas as partes e de
onde dois estudantes de comunicação social da UFRN, eu (João muita criatividade.
Rodrigo) e uma colega, ministramos, em uma tarde, uma ofici- A última foi uma parceria do Canto Jovem com a ONG AMJUS
na de comunicação. O primeiro deveria abordar temas gerais (Associação de Meio Ambiente, Cultura e Justiça Social) de
e uma introdução à produção de vídeo e a segunda, acerca de São Miguel do Gostoso – RN. Em 2009, a AMJUS realizaria o
sumário elaboração de roteiro. Foi uma experiência piloto, onde não III Encontro Municipal de Adolescentes (EMA) daquela cidade
foi cumprida toda a carta de conteúdos devido o tempo exíguo e o Canto Jovem, com sua experiência, naquela altura, de 10
e a pouca experiência dos facilitadores. Não foi abordada a anos, em fazer esse tipo de encontro, firmou uma parceria para
introdução ao vídeo e os/as jovens não elaboraram nenhum ro- assessorar o evento. Dentre os apoios oferecidos pelo Canto

próxima
teiro, apenas ouviram sobre o processo. Avaliando a ativi- Jovem, estava formação para produção de vídeos, em dois âm-
dade, notou-se a necessidade de uma continuidade da oficina bitos. O primeiro, para a equipe do encontro, com intuito de
e da elaboração de outra metodologia para desenvolvê-la, já ela mesma registrar o evento e o segundo, dentro do próprio
que era o primeiro contato deles com o assunto e aquelas fa- EMA, uma oficina de vídeos para os/as adolescentes e jovens
las demasiadas não estavam funcionando – nem mesmo para serem partícipes. Aconteceu a formação anterior à equipe do encon-
ouvidas. A nova oficina aconteceu em junho de 2008, quando tro e este foi devidamente registrado. Assim como a oficina
anterior foi finalmente oportunizado o contato com a produção audio- para os participantes do EMA, da qual resultou na produção e
visual e realmente resultou em dois curtas-metragens reali- exibição, no final do evento, de quatro curtas-metragens de

211
ficção. seria comunicação? Para isso era utilizada a conhecida brin-
A comunicação abordada neste trabalho refere-se há um cadeira popular do “telefone sem fio”, onde mesmo falando aos
subcampo da comunicação, como diria Bourdieu (1997), ou ao ouvidos das pessoas ao lado, a informação não é comunicada;
que Peruzzo (2006) considera como comunicação popular porque Depois eram exibidos vídeos que ilustrassem as questões deba-
[...] ela se não caracteriza como um tipo qualquer de mídia. Mas tidas, além de oferecer elementos para uma análise posterior
como um processo de comunicação que emerge dos grupos populares. Essa
na oficina de uma produção audiovisual; logo após era hora
ação de caráter mobilizador coletivo na figura dos movimentos e orga-
nizações populares, que perpassa por canais próprios de comunicação.
de entrar nas questões técnicas da produção de vídeos, pro-
priamente ditas. Eram explanadas as fases de uma produção,

3. O processo de criação nas oficinas.


noções básicas da linguagem audiovisual e o contato com os
equipamentos; em seguida era elaborado um ou vários roteiros
Logicamente as três oficinas foram completamente diferen- de ficção, dependendo da quantidade de participantes, pois
capa tes, tanto pelo progressivo aperfeiçoamento, a cada atividade num número grande, a turma era dividida em mais de um grupo de
desenvolvida, do oficineiro, quanto pelas realidades diferen- produção. Cada grupo elaborava seu roteiro de forma coletiva
tes que cada processo educativo apresenta ontologicamente. onde todos/as contribuíam na sua escritura; e finalmente, o
Especialmente dentro de uma perspectiva de educação popular grupo dividia suas funções na produção e realizava o roteiro,
em que se alicerça a metodologia desenvolvida. No entanto, nas dependências do espaço onde acontecia a oficina, também

universidade
pode-se observar dialogicamente, pelos mesmos motivos acima de forma coletiva; a edição, pela falta de tempo, pois seriam
postos, algumas permanências no tocante ao método utiliza- necessárias oficinas específicas, era realizado pelo ofici-
do – o esqueleto é basicamente o mesmo, o que muda é o modus neiro; e, no caso do EMA, ocorreu a exibição dos curtas no
operandi. Neste sentido, o que dava certo persistia para as final do encontro.
oficinas seguintes e o que dava errado era retirado. O que Pode-se caracterizar este processo de produção em uma das
sumário não impedia de se executar o que havia sido retirado do ro- classificações que Santoro (1989) descreve o vídeo popular,
teiro da aula, ou descartar o que havia persistido devido às como sendo a “produção de programas de vídeo, com a partici-
exigências imediatas do processo. pação direta de grupos populares em sua concepção, elaboração
Contudo, para efeitos acadêmicos, sistematizo a estrutura e distribuição, inclusive apropriando-se dos equipamentos de

próxima
básica das oficinas: Primeiro era realizada a apresentação vídeo”.
dos presentes, com nomes, origens e expectativas em relação
à oficina; em seguida, acontecia uma breve fala sobre a co- 4. A elaboração do roteiro coletivo.

municação, em suas concepções mais amplas, principalmente


O método de elaboração dos roteiros desenvolvido nas ofi-
através de questionamentos, com intuito de analisar o perfil
cinas de vídeo ministradas pelo Canto Jovem foi criado a par-
e conhecimentos do grupo; após isso, utilizando os elementos
anterior extraídos das noções de comunicação, era iniciada uma des-
tir de suas especificidades. Foi uma soma de fatores conexos.
Primeiro, observou-se que tratar do tema “roteiro”, com seus
construção destes conceitos indagando até que ponto aquilo
termos, conteúdos, conceitos, todos acadêmicos, para uma pla-

212
téia de adolescentes e jovens, em seu primeiro contato com o tão, finalmente, era mãos-a-obra e produzir.
universo audiovisual, com todo o deslumbre que os equipamen- A experiência do roteiro coletivo, onde a construção de
tos ocasionam, em um único encontro, onde deve ser tratado uma narrativa dramática é feita por vários autores vem ca-
sobre todo o processo de produção de vídeo, não resulta numa racterizar a comunicação popular, que acordo com Oliveira
apreensão satisfatória do conteúdo. Talvez para outros momen- (2003) “são experimentos que objetivam exercitar a liberdade
tos, quando estivessem mais familiarizados com a temática. O de expressão”, ou, ainda, como complementa o autor “em casos
primeiro encontro é de magia, os/as jovens escutam, ou não, específicos, objetivam democratizar técnicas de produção e
tudo sobre roteiro, mas estão interessados mesmo em pegar a/ transmissão televisiva junto a grupos populares”. Também co-
na câmera e fazer seus filmes com os/as colegas. O segundo nhecida como vídeo popular, a produção de conteúdos por co-
motivo foi o tempo. Às vezes, se tem que realizar a oficina munidades, segundo Oliveira (2003) continua a ser um enigma
em uma tarde. Não dá para perder tempo com elaboração de per- para a ciência da comunicação na América Latina desde o final
capa sonagens, clímax, pontos de virada, formatação textual, etc. do século XX. Pois segundo ele, “estamos diante de um fenô-
O importante é termos uma história para gravar. Outro motivo meno da apropriação das linguagens técnicas de audiovisual
era a quantidade de jovens na oficina. Não dava para detalhar e adaptações destas técnicas à oralidade latina, recuperando
estes pontos, numa curta oficina, para 30 jovens, muitas vezes processos de comunicação fortalecedores do sentido público do
desatentos, ou melhor, ansiosos para produzir. Era necessária espaço local”.

universidade
uma maneira dinâmica de criar uma história para ser filmada.
Para tanto, foi lançado mão de uma dinâmica de grupo já 8. Análise do método

utilizada para outros fins. Eis o método: após uma breve ex-
O método do roteiro coletivo, desenvolvido para as ofi-
planação sobre o que era um roteiro, sua função e, mais ou
cinas de vídeo da ONG Canto Jovem, além de suplantar as di-
menos, sua formatação, eles eram informados que iriam elabo-
sumário
ficuldades acima apontadas, nos apresenta possibilidades pe-
rar o roteiro do/s curta/s que seria/m realizado/s; se a turma
dagógicas. Mesmo com suas limitações, o roteiro coletivo se
fosse grande, era dividia em grupos de 10 a 15 pessoas; ele/s
mostra uma interessante ferramenta para elaboração de his-
deveriam estar disposto/s em roda; era entregue a uma pessoa
tórias criativas e plenamente possíveis de serem filmadas.
do/s grupo/s uma folha de papel em branco e uma caneta; ela
Quando o/a jovem se depara com uma folha contendo uma história

próxima
seria motivada a pensar numa historia que acontecesse dentro
incompleta, sua capacidade inventiva é desafiada, resultando
do local onde era realizada a oficina e, em seguida, escrever
inevitavelmente em boas histórias. O senso de coletivo, extre-
no papel a primeira frase textual desta história; ao terminar
mamente necessário numa produção audiovisual, é desenvolvido
de escrever, deveria passar o papel e a caneta ao colega do
pelo grupo já no primeiro momento. Além de conquistar, de uma
lado; este deveria ler a frase escrita e completar a história
forma dinâmica, através de uma brincadeira, as vontades dos
com outra frase; até que todos/as escrevessem sua contribui-
anterior ção e, enfim, concluíssem a história; como ela se passava no
aprendizes em realizar o proposto, pois é desenvolvido o sen-
timento de pertença e co-responsabilidade (Henriques, 2004,
espaço da oficina, não haveria dificuldades com locações, en-
p. 43) para com o projeto, que é de todos/as desde princípio.

213
Destas brincadeiras saíram histórias de diversos gêneros pessoas conseguem elaborar uma história coerente, possível de
e conteúdos. Teve terror, quando contava a história de uma ser filmada e contendo esses elementos que compõem um rotei-
casa, onde ocorriam as oficinas do Canto Jovem, assombrada ro. Obviamente, fora do padrão off screen, porém bons rotei-
pela alma de uma velha que era sua antiga proprietária; es- ros – vide os vídeos produzidos.
porte, mostrando a superação, a partir de suas habilidades Por fim, é preciso lembrar que o roteiro coletivo se tra-
futebolísticas, de um jovem para vencer uma partida na esco- ta de um método em desenvolvimento, aberto às inovações que
la; dramas sociais, com a realidade discriminante para com os ajudem a ampliar suas potencialidades. Além de não pretender
artistas de hip-hop que fazem do break, do rap, do grafite e indicar novos rumos para elaborações de roteiros direcionados
da discotecagem, sua forma de expressão e são confundidos com ao mercado videográfico. Ele é, tão somente, uma alternativa
marginais; e o sofrimento dos amigos e familiares, ao verem inventiva, para um processo pedagógico de formação introdu-
um dos seus, do bairro, cair no mundo das drogas e causar pro- tória ao vídeo para pessoas, especialmente, adolescentes e
capa blemas para ele e para outros. jovens, em seu primeiro contato com este universo.
Oliveira (2003) ressalta o valor destas criações, pois o É importante registrar que a experiência do roteiro cole-
cotidiano é trazido para a produção de vídeo e devolvido ao tivo, conforme Oliveira (2003) promove a comunicação, usando
sujeito “para que perceba o mundo coletivo que cria e recria o mesmo instrumental dos meios de comunicação de massa, neste
nos becos, ruelas, bares, casas, praças, jogos e nas tantas caso específico, a TV, mas com princípios diferenciados, que

universidade
práticas que os prendem ao seu dia a dia”. Estas criações re- promovem o que é dito e ouvido na comunidade, dando sentido
velam como a própria comunidade se vê e se conhece. à organização comunitária a partir de vivências e culturas
Como podemos constatar, são variadas as possibilidades que locais. Trata-se de pensar a comunicação no sentido freireano
surgem a partir do roteiro coletivo. Muitas vezes, observamos onde ela é
com surpresa o teor e qualidade das pequenas histórias. Nem [...] a co-participação dos sujeitos no ato de pensar [...]. Im-
sumário sempre eles/as escrevem o que achamos que vão escrever. Eles/ plica numa reciprocidade que não pode ser rompida. O que caracteriza
a comunicação enquanto este comunicar comunicando-se, é que ela é
as escrevem o que querem não o que achamos que querem. Sem- diálogo, assim como o diálogo é comunicativo. A educação é comunica-
pre a partir de suas realidades, mas as realidades dos seres ção, e diálogo, na medida em que não é transferência de saber, mas
um encontro de sujeitos interlocutores que buscam a significação dos
humanos são múltiplas. Passam por vivências sociais, políti-
significados. (FREIRE, 1973 apud LIMA, 1981).

próxima
cas, econômicas, culturais, por concretudes, sonhos, desejos,
frustrações, enfim, por um universo de possibilidades.
Referências bibliográficas:
Ademais, sobre as qualidades técnicas dos roteiros ela-
borados, percebemos que hoje, vive-se num mundo audiovisu- • AMJUS. http://www.amjus.org.br/institucional/sobre-a-amjus. Data de aces-
so: 14 de setembro de 2010.
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estão inculcados nos inconscientes das pessoas em sua forma -do-iii-encontro-municipal-de-adolescentes-de-sao-miguel-do-gostoso-ou-
anterior primitiva. Os pensamentos das novas gerações estão formatados
tubro-de-2009. Data de acesso: 14 de setembro de 2010.
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pela televisão e internet. Por isso, ao serem desafiadas, as 1995.

214
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SUCESSO DA PRODUÇÃO DO FILME AVATAR?
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php (relatório do projeto Diálogos de Juventudes). Data de acesso: 13 de
setembro de 2010. Possui graduação em Letras e especialização em Didática da Língua Portuguesa.
É Mestra em Letras pelo Mackenzie e Doutora em Comunicação e Semiótica pela
• LIMA, Venício Artur de. Comunicação e cultura: as idéias de Paulo Freire. PUC-SP. Atualmente faz Pós-Doutorado no Programa do TIDD - Tecnologias da

capa
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. Inteligência e Design Digital na PUC-SP e é bolsista FAPESP. E-mail: patri-
• OLIVEIRA, Antonio Francisco Maia de. (2003). Comunicação popular e novas ciafariascoelho@gmail.com
tecnologias de edição: contribuição para a democratização e experimen-
tação audiovisual. Disponível em: http://www.iar.unicamp.br/disciplinas/ M arcelo S antos
am625_2003/Antonio_Maia_artigo.html. Data de acesso: 15 de setembro de
Possui graduação em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, pela
2010.
Universidade Católica de Pernambuco (2004), e graduação em Tecnologia em
• PERUZZO, Cicília Maria Krohling. Revisitando os conceitos de comunicação Design Gráfico, pelo Centro Federal de Educação Tecnológica de Pernambuco
popular, alternativa e comunitária. Artigo apresentado no XXIX Congres- (2002). É mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP e atualmente faz dou-
so Brasileiro de Ciências da Comunicação – UnB – 6 a 9 de setembro de torado no mesmo Programa sendo bolsista FAPESP. E-mail: para_marcelo@yahoo.

universidade
2006. Disponível em: http://galaxy.intercom.org.br:8180/dspace/bitstre- com.br
am/1904/19806/1/Cicilia+Peruzzo+.pdf. Data de acesso: 29 de setembro de
2010.
• SANTORO, Luiz Fernando. A imagem nas mãos: o vídeo popular no Brasil. São V anderson F ernandes dos S antos
Paulo: Summus, 1989.
Professor de Língua Portuguesa e Literatura, formado em Letras pela Univer-
sidade Presbiteriana Mackenzie e especialista em Linguagem e sentido: gêne-

sumário ros discursivos pela mesma instituição. E-mail: vandersonfernandesdossantos@


yahoo.com.br

Resumo:

próxima
Hollywood é para o mundo o maior modelo de sucesso em pro-
dução de filmes. Suas produções alcançam às telas de pratica-
mente todo o mundo e são assistidas por milhares de pessoas de
diferentes culturas e classes sociais, além de render bilhões
de dólares. A indústria americana está em continua produção
e desenvolvimento e movimenta o mercado do entretenimento no
anterior mundo todo.
O grande sucesso dos filmes produzidos em Hollywood vem

215
principalmente dos roteiros escolhidos para suas produções. during Avatar’s creative process.
Syd Field, um dos estudiosos mais respeitados nos EUA, obser- Avatar was chosen as the corpus of this article because
vou a similaridade que há entre os filmes de maior sucesso e, is a kind of movie idealized more than 14 years ago, although
a partir de suas pesquisas escreveu livros que direcionam os the necessary resources didn’t existed on that time to the
profissionais do roteiro para o caminho a ser trilhado para creation of the movie.
criar “um bom filme”. Keywords: cinema; screenplay; narrative; writing strate-
A partir das observações feitas por Syd Field, este artigo gies; art.
busca compreender quais são as estratégias de sucesso usadas
em Hollywood no processo de criação do filme Avatar.
1. Introdução
Avatar foi escolhido para formar o corpus deste artigo
“O roteiro não é o último estágio de um percurso literário. É o pri-
porse tratar de um tipo de filme que já tinha sido idealizado
capa
meiro estágio de um filme.” (Jean-Claude Carrière, em A linguagem

há mais de 14 anos, porém na época não existiam recursos para secreta do cinema)

que ele fosse criado. Qual é o segredo para o sucesso de um filme? Em Hollywood,
Palavras-chave: cinema; roteiro; narrativa; estratégias a Meca do cinema mundial, muito do sucesso dos longas-me-
de escrita; arte. tragens produzidos fora creditado aos astros e estrelas que
estampavam os cartazes dos filmes. Com o desenvolvimento da
Abstract:
universidade
tecnologia, os efeitos especiais passaram a atrair cada vez

Hollywood is to the world the biggest model of success in mais pessoas às salas escuras, permitindo que recordes de bi-

movies production.Their productions achieve the screens of lheterias fossem quebrados a cada temporada, graças a filmes

almost the whole globe and are watched by thousands of peo- que aliavam primor técnico e histórias divertidas.A combina-
ção de boas histórias aos bons efeitos resulta na criação de
sumário ple of different cultures and social classes, besides making
uma realidade fílmica, que leva a audiência a envolver-se de
billions of dollars in box offices. The American industry ke-
eps producing and developing and it moves the entertainment maneira plena a tudo que se passa na telona. Uma vez que es-

market around the globe. ses efeitos não são bem realizados ou, quando bem realizados,

The big success of Hollywood’s movies results mainly from deixam a história para segundo plano, o público não aceita

próxima the scripts chosen for the productions. Syd Field, one of the como real o que se passa na tela e não compra a ideia vendida

most respected script students of the USA, observed the si- pela produção, levando a realização fílmica ao fracasso. Em

milarity among the most successful movies and, based on his sua obra O discurso cinematográfico: a opacidade e a transpa-

researches, wrote books that guide the screenwriters through rência (Paz e Terra, 2005), Ismail Xavier coloca o que deve

the path of the creation of a “good movie”. ser um filme diante dos olhos de seu espectador: “Em todos os

anterior Based on Syd Field’s observations, this article expects níveis, a palavra de ordem é ‘parecer verdadeiro’; montar um

to understand witch success strategies are used in Hollywood sistema de representação que procura anular a sua presença
como trabalho de representação” (Xavier, 2005, 41). Nas últi-

216
mas duas décadas, o sucesso das produções norte-americanas ao comportamento do público diante dos recentes lançamentos,
redor do mundo continuou a subir, porém de maneira oscilante observa-se que roteiros essencialmente criativos, embora mui-
e não da forma contínua como vinha ocorrendo até a década de to bem recebidos, não tem resultado filmes tão bem sucedidos
1980. Observou-se que em anos nos quais a falta de criativi- financeiramente, uma vez que os espectadores têm optado por
dade era perceptível nos filmes,as bilheterias superavam em filmes que, embora não apresente conflitos originais, são
muito pouco a temporada anterior ou, ainda pior, apresentavam corretos em sua estrutura e cumprem a função de entregar aqui-
um resultado inferior ao observado no ano passado. Esta úl- lo que se espera: um bom entretenimento. Uma produção recente
tima, uma possibilidade inaceitável para Hollywood que, como que melhor exemplifica isso é Avatar, de James Cameron.
indústria, visa apenas resultados positivos. Assim, mais do Tendo levado multidões às salas de cinema tornando-se
que a presença de um astro e/ou efeitos de primeira, estava assim a maior bilheteria de todos os tempos, Avatar faz bom
no bom roteiro, com uma boa história, o responsável por tirar uso da tríade elenco/efeitos/roteiro: encabeçado por Sam Wor-
capa as pessoas de casa para que elas desfrutassem de um bom filme thington, Zoe Saldana e Sigourney Weaver, o elenco da milio-
na sala escura do cinema. nária produção de Cameron é uma mescla de novos e talentosos
Nos últimos anos, a comunidade cinéfila e jornalistas es- nomes com outros já consagrados; os efeitos são resultados
pecializados têm questionado a alternância na qualidade da de uma pesquisa que durou mais de 10 anos, a partir da qual
safra hollywoodiana. A cada ano, grandes realizações fílmicas foi criada a tecnologia utilizada com exclusividade para esta

universidade
dividem espaço com produções medíocres que, mesmo com atribu- produção; por fim, o roteiro que, se não é original, é correto
tos questionáveis, levam uma quantidade considerável de es- ao apostar numa temática atual e urgente (meio-ambiente), que
pectadores às salas de exibição, para depois serem esquecidas impulsiona a jornada do herói na eterna procura pelo auto-
nas prateleiras das locadoras. A culpa para enxurrada de pro- descobrimento, jornada esta recorrente na narrativa ficcional
duções tão carente de propriedades se dá pela falta de equi- desde quanto o homem desenvolveu a capacidade de contar his-
sumário líbrio na tríade estrelas/efeitos/roteiro, a força do cinema tórias. A jornada de JakeSully, protagonista de Avatar, e a
norte-americano, na qual Hollywood é referência para mundo descoberta de seu verdadeiro eu será ponto de observância na
inteiro. Ter um rosto marcante no cartaz e um nome poderoso analise do roteiro de Avatar, corpus deste artigo.
nos créditos não é mais o bastante, assim, como os efeitos de

próxima
ponta não são o suficiente sem um roteiro de primeira linha Focar a análise do roteiro de Avatar na jornada de seu
que, sem os dois elementos anteriores, também não é plenamen- protagonista deve-se ao fato de a busca por si mesmo ser pro-
te forte para atrair o grande público. Assim, um bom começo vavelmente a mais forte característica da jornada dos maiores
para que um filme tenha a possibilidade de sucesso é ter um heróis da ficção contemporânea. Em Hollywood, muitos são os
bom elenco, efeitos bem realizados (criados em função da his- filmes cujos personagens partem numa epopeia na qual a recom-
tória e não ao contrário) e um roteiro bem resolvido. Agora, pensa vai além da vitória sobre o vilão ou do beijo da moci-
anterior o que vem a ser um roteiro bem resolvido? nha: o grande prêmio é a descoberta de quem ele é.
Acompanhando as opiniões da crítica cinematográfica e o

217
Desde a criação do cinema, inúmeros filmes foram produzi- neasta James Cameron há mais de 15 anos. Na ocasião, o homem
dos a partir de roteiros que, em sua essência, traziam como por trás deste projeto estava envolvido com as complicadas
premissa a autodescoberta do protagonista. A explicação para filmagens de Titanic, um filme que pelos problemas enfrenta-
tal fenômeno está na fonte para muitas dessas histórias con- dos nos bastidores estava fadado ao fracasso. Passado alguns
tadas em celuloide. Joseph Campbell (1904-1987), um dos mais meses, Titanic é finalizado, lançado e, após arrecadação re-
importantes estudiosos de mitos e religiões, afirma que mui- corde de 1.8 bilhão de dólares ao redor do mundo e onze prê-
to do que vivemos deve-se aos mitos passados de geração para mios Oscar, James Cameron pode se autoproclamar o “Rei do
geração, ao longo da história da humanidade. Portanto, mui- Mundo”, tornando-se um nome forte em Hollywood. Com tamanho
tas das explicações para perguntas como “quem somos?” ou “de poder, Cameron poderia fazer o que quisesse. O cineasta, en-
onde viemos?” encontram-se na mitologia. O mesmo se aplica na tão, optou por retirar-se de cena e investir todo o tempo (e
ficção que, para criar seus heróis, bebe na fonte de antigos dinheiro) disponível num novo e misterioso projeto. Após mais
capa mitos e histórias narradas em séculos de existência. de dez anos de silêncio, Cameron voltou à cena em 2009 para
Em Avatar, o espectador é apresentado a Jack Sully, ex- lançar a sua mais nova obra, Avatar. A história ainda perma-
-fuzileiro naval paraplégico que em missão de exploração do necia um mistério, mas a curiosidade tomava conta dos cinéfi-
planeta Pandora assume o lugar de seu irmão, cientista morto los. Afinal de contas, o responsável pelo maior filme da his-
antes de partir para a missão no recém-descoberto planeta. tória do cinema estava prestes a revelar o que fizera em seus

universidade
Infiltrado entre os cientistas, Sully trabalha secretamente anos de reclusão. Como se isso não fosse o bastante, Cameron
para os militares, auxiliando-os a descobrir o local onde se prometeu entregar mais do que um filme: ele estava prestes a
encontra um valiosíssimo material. Para explorar o planeta, o revolucionar a maneira de fazer e de ver cinema, a partir de
ex-fuzileiro tem sua mente ligada a um avatar, cuja aparência uma tecnologia criada exclusivamente para a realização de seu
é a mesma dos Na’vi, os nativos de Pandora. Uma vez em conta- mais ambicioso projeto.
sumário to com aquela sociedade tão diferente da sua, Sullysente-se Lançado em dezembro de 2009, Avatar teve uma carreira me-
dividido entre auxiliar os militares na exploração do planeta teórica: foram mais de 2 bilhões de dólares arrecadados no
e lutar ao lado dos Na’Vi pela preservação e sobrevivência mundo inteiro (superando o recorde sustentado por Titanic
de Pandora. Avatarfoi escrito e dirigido por James Cameron. desde 1997), além de nove indicações ao Oscar e o Blu-Ray mais

próxima
A análise do roteiro terá como base a teoria dos três atos vendido desde o surgimento da nova tecnologia de home enter-
apresentada por Syd Field em suas obras Manual do roteiro: tainment.Cameron cumpriu a promessa: os 500 milhões de dóla-
os fundamentos do texto cinematográfico (Objetiva, 2001) e 4 res investidos, somados aos 12 anos dedicados exclusivamente
roteiros: uma análise de quatro inovadores clássicos contem- para o desenvolvimento da tecnologia usada nas filmagens de
porâneos (Objetiva, 1997). Avatar, permitiram ao espectador uma nova maneira de ver ci-
nema, graças à imersão proporcionada pelo IMAX 3D, explora-
anterior 2. Bem-vindo à Pandora: o roteiro de Avatar do plenamente como nunca ocorrera na história deste formato,
levando outros cineastas e demais estúdios hollywoodianos a
A história de Avatar começou a ganhar vida na mente do ci-

218
fazer uso dos mesmos recursos. este chega ao seu “novo lar”, Pandora, motivado apenas em hon-
Entretanto, não é apenas a tecnologia a razão pelo sucesso rar a memória do irmão assumindo seu lugar no Projeto Avatar,
de Avatar O roteiro escrito por Cameron também exerce funda- passando pelo deslumbramento com o novo mundo e as pessoas
mental importância para a campanha bem sucedida do longa-me- que ali vivem, até a descoberta da sua verdadeira missão e de
tragem. Numa interessante estratégia, o roteiro de Avatar foi quem ele realmente é.
guardado a sete chaves e sua história foi desvendada apenas
nas primeiras exibições do filme para a imprensa. As primei- 2.1. Avatar: o primeiro ato

ras reações à trama foram frias e, de certa forma, decepcio-


O roteiro de Avatar segue uma estrutura linear. Ele acom-
nantes. Para um filme revolucionário, a história mostrou-se
panha a caminhada de JakeSully e seu ponto de vista é predo-
um tanto simples e previsível. Toda revolução tecnológica não
minante. Desde o momento que o personagem chega à Pandora sem
encontrou par na narrativa, linear e ordinária. Porém, quan-
capa
saber o que realmente o espera até o momento da descoberta do
do o filme foi lançado comercialmente, a resposta do público
verdadeiro “eu”, é com o protagonista que a plateia inicia o
foi positiva, permitindo uma nova reflexão quanto ao roteiro
filme e é com ele que a história termina.
escrito por James Cameron: embora simples e linear, o texto é
JakeSully é apresentado ao espectador como um homem dono
correto e de fácil compreensão, permitindo o envolvimento de
de uma incrível força interior. Pela narração em primeira
um maior número de pessoas, independente da faixa etária ou
pessoa, o público descobre que o protagonista é alguém fisi-

universidade
de qualquer outra classificação, se envolver com a narrativa
camente fragilizado, pois ele narra um sonho que teve quan-
e mergulhar com maior facilidade no mar de tecnologia apre-
do estava internado no hospital dos soldados veteranos. Jake
sentado por Cameron e sua equipe.
afirma que sonhava que podia voar e, enquanto voava, sentia-
Limitar-se a ser correto é a grande força do roteiro de
-se livre. O sonho de Jake é o primeiro take do filme, onde
Avatar. No entanto, o texto de Cameron está longe de ser raso.
sumário
um plano em travelling sobrevoa uma floresta, de maneira que
Muito pelo contrário: o subtexto, uma das principais caracte-
fica claro que se trata do ponto de vista de Jake em seu so-
rísticas do cinema norte-americano, é poderoso e condizente
nho. O sonho é interrompido quando o protagonista acorda den-
com os tempos atuais. Por trás da jornada do autodescobrimen-
tro de um compartimento. A narração mais uma vez exerce a fun-
to de JakeSully encontra-se uma feroz crítica à maneira como
ção de situar o espectador e fica-se sabendo que Jake acaba de

próxima
os Estados Unidos da América impõem seus valores às nações
despertar de um estado criogênico, pois acabara de realizar
estrangeiras e como o ser humano é capaz de destruir o meio
uma viagem pelo espaço que durou seis anos. Assim que o com-
ambiente visando apenas à riqueza material. Tudo isso amarra-
partimento onde o personagem se encontra é aberto, a narração
do por uma visão xamanística de respeito por tudo àquilo que
situa o espectador sobre o porquê de Jake estar em tal situ-
vive, representada pelo modo de vida dos Na’vi, nativos do
ação. Descobre-se então que Jake está no lugar de seu irmão
planeta Pandora, onde se passa a trama de Avatar.
anterior Dividido em três atos, o roteiro de Avatar acompanha a
gêmeo Tommy, cientista que estava escalado para participar da
viagem espacial. Em montagem paralela, volta-se para o momen-
jornada de seu protagonista, JakeSully, desde o momento que
to em que Jake vê-se forçado a aceitar ocupar o lugar de seu

219
irmão. Morto em uma tentativa de assalto, Tommy deixa um lugar e diferentes pontos de vista em relação à Pandora.
vago num projeto científico caríssimo. Os investidores insis- O início do primeiro ato de Avatar é dedicado exclusi-
tem para que Jake assuma o lugar de seu irmão, mesmo que não vamente à apresentação dos personagens humanos presentes em
seja cientista, já que o protagonista possui o mesmo DNA de Pandora. Um deles é Parker Selfridge, uma espécie de re-
Tommy. Visando honrar a memória de seu irmão e partir para uma presentante dos investidores do programa Avatar cujo único
nova vida em novo ambiente, Jake aceita a tarefa. Chegando à objetivo é extrair do planeta uma pedra chamadaUnobtanium,
Pandora, Jake é apresentado entre soldados, todos fuzileiros mineral capaz de gerar uma riqueza de 20 milhões de dólares
navais. Quando a nave pousa e os homens são orientados a sair, por quilo. Selfridge não só representa os investidores como
a gravidade da situação física de Jake é apresentada: ele é também justifica a presença humana em Pandora: extração da
paralítico e move-se sobre uma cadeira de rodas. Interessante riqueza natural de um ambiente selvagem, algo muito parecido
observar como a fragilidade física do personagem intensifica com o que aconteceu na época das grandes navegações e aconte-
capa a força interior do mesmo: o roteiro abre com a cena do voo ce atualmente na busca por riquezas naturais como o petróleo,
a partir da perspectiva de um sonhador Jake, como maneira de por exemplo.
expor a força interior do personagem. Tal força interior é Uma vez apresentados os personagens humanos, surge a pri-
intensificada quando o fisicamente fragilizado Jake senta-se meira pinça (elemento que mantém a história andando): o pri-
numa cadeira de rodas e, mantendo a atitude de um fuzileiro meiro contato de Jake com o seu avatar. Durante a permanência

universidade
naval, tenta acompanhar seus irmãos de armas no desembarque em Pandora, os cientistas da equipe de Grace cultivam o habito
em Pandora. A narração que se segue sintetiza a essência da de registrar num videolog as experiências vividas durante o
história de Avatar: “Uma vida termina. Outra começa.”. programa. Numa das gravações, Jake explica o que é um avatar.
A chegada a Pandora “é o gancho dramático, ou o incidente Trata-se de um corpo gerado “com a mistura de DNA humano e
incitador do roteiro” (Field, 1997, 316), pois é lá que Jake dos nativos”. Visando uma aproximação com os nativos para o
sumário revela sua necessidade dramática: uma nova vida, num mundo estudo de seus hábitos e de seu habitat, os cientistas criaram
novo. Para ter a sua necessidade dramática realizada, Jake é os avatares, que são controlados por eles a partir de seus
apresentado a três personagens que, a princípio, vão guia-los sistemas nervosos. A primeira conexão de Jake com seu avatar
em sua jornada: o CoronelQuaritch é responsável pelas “boas- é um momento de renascimento: a luz branca, o ambiente de um

próxima
-vindas” aos recém-chegados a Pandora, um lugar que, segundo hospital e a presença de médicos lembra muito o nascimento de
ele, é pior que o próprio inferno, habitados por selvagens uma criança. Quando se vê dentro de seu avatar, podendo fazer
dispostos a matar a qualquer custo. O discurso com o forte tom tudo aquilo que seu estado de paralisia te impede de fazer
militar faz com que Jake sinta-se em casa, sinta-se um sol- em seu corpo humano, Jake não contém a emoção e ignorando os
dado novamente. Em seguida, Jake é apresentado a Norm Spell- procedimentos, sai do laboratório e corre. A sensação de li-
man, colega de Tommy no programa Avatar, e a GraceAugustine, berdade apresentada no início do roteiro com o sonho de voar
anterior cientista responsável pelo programa. Tanto o Coronel quanto volta quando Jake corre pela superfície de Pandora. Seus pés
os cientistas serão responsáveis por atribuir a Jake missões descalços sentem a textura do solo, seus pulmões se enchem

220
com o ar da floresta e Grace, dentro de seu avatar, fornece a conhecido, Jake é acompanhado de longe por uma das nativas.
Jake um fruto que o protagonista come maravilhado. Tato, ol- Ciente de que aquele que caminha por sua terra é um humano no
fato e paladar são os três sentidos que ligam Jake a Pandora corpo de um avatar, a Na’vi decide mata-lo com sua flecha.
pela primeira vez e tal deslumbramento dá uma ideia do quanto Porém, a nativa recebe uma espécie de sinal, que faz com que
o personagem ainda se apegará ao seu novo ambiente. Passadas o assassinato seja adiado.
algumas horas, a primeira experiência de Jake com seu avatar Quando anoitece, Jake é atacado por uma espécie de matilha
chega ao fim e, como se tivesse despertado de seu sonho voa- de cães selvagens. Embora com muita bravura, o fuzileiro não
dor, Jake volta a seu corpo humano e limitado, um tanto de- consegue deter todas as criaturas. Em seu socorro, surge uma
cepcionado por retornar a sua realidade. personagem-chave para a trajetória de Jake, Neytiri, a nativa
Um novo personagem humano que auxiliará Jake em sua jor- que estava a acompanhar Jake pela floresta. Após ter sido sal-
nada é apresentado: trata-se daCapitã Trudy, piloto das mis- vo pela Na’vi, Jake tenta agradecer, porém é severamente re-
capa sões científicas. No primeiro encontro com Jake, ela o leva preendido por Neytiri que diz não ser correto agradecer pela
ao encontro do CoronelQuaritch que, ao saber que Jake é um morte de seres que não precisavam morrer e coloca a culpa da
fuzileiro naval que estará entre os cientistas pilotos de tragédia em Jake, que é visto por ela como “uma criança que
avatar, decide dar-lhe uma missão: observar os Na’vi de perto só sabe fazer barulho”. Este é o primeiro dos vários elementos
e fornecer informações de como derrota-los. Em troca, o Coro- xamanísticos pertencente ao subtexto de Avatar: nenhum ser

universidade
nel promete consertar a espinha de Jake no retorno a Terra. vivo deve ser morto a não ser que haja uma nobre necessida-
Jake aceita a missão e passa a agir como uma espécie de agente de por trás disso. A partir desta observação, compreende-se
duplo, trabalhando para os militares, infiltrado no grupo de o pesar de Neytiri por ter matado aquelas criaturas perten-
cientistas. centes à Pandora apenas para salvar um invasor. Percebendo o
Eis que surge a primeira missão de Jake com o grupo de pesar de Neytiri, Jake questiona o porquê de a nativa tê-lo
sumário cientistas: no corpo de seus respectivos avatares, Grace e salvado. Ela responde que o fato de Jake possuir um coração
Norm vão a campo para estudar a vegetação de Pandora, enquan- forte motivou-a a salvá-lo. Subentende-se que a conclusão de
to Jake cumpre o papel de guarda-costas dos dois estudiosos. Neytiri veio do sinal que a mesma recebeu ao tentar matar Jake
Durante a expedição, aparece a segunda pinça do roteiro, du- na primeira vez que o viu. Isso se confirma quando o mesmo

próxima
rante o primeiro ato: enquanto anda pelo local, saciando sua sinal surge novamente, com maior intensidade: a plateia é in-
curiosidade, Jake dá de cara com os perigos da fauna pando- formada de que o elemento que serviu como sinal para Neytiri
riana. Enquanto foge para garantir sua sobrevivência, Jake se e que surge sobre Jake em maior número durante a discussão dos
perde de seu grupo. Abordo da nave pilotada pela Capitã Trudy, dois após o ataque dos cães selvagens é uma semente da Árvo-
Grace e Norm procuram por Jake, porém a busca é interrompida, re Sagrada, espíritos puros e uma das manifestações de Eywa,
pois, de acordo com a piloto, missões noturnas são proibidas divindade dos Na’vi. Ciente da importância do fenômeno teste-
anterior pelo Coronel. Cabe, portanto, a Jake sobreviver aos perigos munhado, Neytiri insiste para que Jake a siga, pois pretende
noturnos de Pandora. Ao caminhar sozinho pelo ambiente des- apresenta-lo à Mo’at, sua mãe, uma Tsahik, espécie de xamã do

221
clã dos Omaticaya, ao qual Neytiri pertence. Praticamente incluído no grupo, embora visto com muita
Durante o caminho, Jake é atacado por um grupo de guer- desconfiança pelos membros da tribo, Jake é apresentado ao
reiros Na’vi, estando entre eles Tsu’tey, noivo de Neytiri lugar onde os Omaticaya dormem e, ao adormecer, regressa ao
e futuro líder dos Omaticaya. A nativa intercede por Jake e seu corpo humano, recepcionado por Grace e Norm. Exausto pela
afirmando que um sinal fora dado e que o humano precisava ser longa conexão, porém empolgado com a recente experiência, Jake
levado à Tsahik para que fosse avaliado. Relutante, Tsu’tey dá olha para Grace e diz: “Vocês não vão acreditar onde estou.”.
ordem para que Jake seja levado conforme a vontade de Neytiri, Assim, a líder da equipe de cientistas que tanto desprezou
porém o transporta como se fosse um prisioneiro. Jake passa a admirá-lo e a orientá-lo sobre como se comportar
Chegando ao lar dos Omaticaya, Jake é recebido com certa entre os Na’vi. A admiração Nsabendo da inserção de Jake entre
repugnância por Eytucan, pai de Neytirie líder do clã. Refe- os nativos. É então que o Quaritch e Parker Selfridge reve-
rindo-se a Jake como um “caminhante dos sonhos”, o líder diz lam a Jake a verdadeira intenção por trás da necessidade de
capa que nenhum desses humanos invasores deveria ter acesso àquele ter Jake entre os Na’vi: a retirada dos nativos de suaaldeia
lugar. Neytiri relata que iria mata-lo, porém um sinal vindo para a extração do Unobtanium. O Coronel dá um prazo de três
de Eywa a impediu de fazê-lo. Surge então a mãe de Neytiri, meses para a retirada pacífica dos nativos e, dividido entre
Mo’at, a Tsahik, conhecida também como “Aquela que interpreta os cientistas e os militares, Jake reafirma seu compromisso
a vontade de Eywa”. Durante o exame, Mo’at pergunta a Jake com o CoronelQuaritch. Com o conflito estabelecido, chega ao

universidade
o que ele estava fazendo ali. Jake afirma que está lá para fim o primeiro ato.
aprender, porém a mãe rebate a resposta dizendo que o “Povo À primeira vista, a função de “agente duplo” exercida por
do Céu”, outra maneira como os Na’vi se referem aos humanos, JakeSully neste primeiro ato causa uma certa repulsa ao es-
não aprendem, uma vez que “seus copos estão cheios”. Jake se pectador e indica, num primeiro momento, uma falha de cará-
diz diferente e disposto a aprender, visto que se encontra com ter do personagem. Mesmo deslumbrado pela beleza de Pandora,
sumário o “copo vazio”. Perguntado sobre o que ele era,Jake responde Sully cumpre fielmente a ordem de manter o Coronel Quaritch,
que era um “guerreiro do clã milico”. Tal revelação chama a claramente visto pela plateia como o grande vilão da trama,
atenção deEytucan, uma vez que Jake é o primeiro caminhante devidamente informado sobre os hábitos dos Na’Vi, seus pontos
guerreiro. Assim, tendo Jake ao seu lado, os Na’vi poderiam fortes e suas vulnerabilidades. Entretanto, nem por isso o

próxima
aprender mais sobre os soldados humanos, invasores e inimi- público deixa de se identificar com Jake, uma vez que perma-
gos de Pandora. Desta forma, Mo’at atribui à Neytiri a tarefa nece a esperança de que será ele quem, no final, salvará Pan-
de ensinar os costumes dos Na’vi a Jake, o que é recebido de dora do iminente e devastador ataque do exército de Quaritch.
malgrado pela nativa. O momento da acolhida de Jake é que Syd Na obra Teoria e Prática do Roteiro (Globo, 1996), David
Field, em sua teoria sobre roteiro, chama de Ponto de Virada, Howard e Edward Mabley comentam que nem sempre os heróis ple-
momento-chave que marca a transição de um ato para o outro. namente bons cativam o publico. Há aqueles personagens que,
anterior Neste caso específico, do primeiro para o segundo ato da his- mesmo donos de caráteres duvidosos, levam o espectador a tor-
tória. cer por eles (Michael Corleone em “O Poderoso Chefão” é um

222
exemplo) e há outros que ficam a meio caminho, não são bons um herói” (1997, 329). O treinamento pelo qual Jake passa sob
em plenitude, porém conquistam o público a partir da empatia orientação de Neytiri é uma provação ao heroísmo do protago-
mínima estabelecida entra protagonista e plateia, a partir da nista. Sobreviver ao treinamento é provar-se digno da condi-
decisão do personagem por fazer algo. Howard e Mabley afir- ção de herói. Entretanto, o treinamento coloca à prova o físi-
mam: co de Jake, enquanto a moral é testada em seu aspecto humano:
Portanto, não precisa haver uma empatia – e simpatia, que é seu enquanto reportava-se a Quaritch, Jake é visto por Billy, um
fruto – total entre público e personagem; mas alguma empatia, ainda
dos cientistas da equipe de Grace. Na cena seguinte, o espec-
que mínima, é preciso. Além do mais, o personagem precisa tentar fa-
zer alguma coisa: tentar não fazer alguma coisa ou tentar impedir que
tador testemunha grande movimentação entre os cientistas. Tão
algo aconteça também significa fazer algo. Tentar salvar uma vida, surpreso quanto a plateia está Jake que, simultaneamente ao
ganhar uma corrida, pintar um quadro, evitarde ser convocado para o
público, descobre o porquê de tamanha agitação: os cientis-
exército, escapar de ser tocado ou tocada, todas essas atividades são
tas estão de partida para um outro laboratório, localizado no
capa
‘desejos’ que podem funcionar com o personagem correto. (Howard e
Mabley, 1996, 50) posto 26, nas Montanhas Aleluia, tudo para fugir do controle
de Selfridge e Quaritch. Fica subentendido que Billy informa-
2.2. Avatar: o segundo ato ra Grace do encontro entre Jake e o Coronel.
A atitude discreta de Grace revela a simpatia que a cien-
Em todo roteiro, o segundo ato começa quando o conflito tista cultiva por Jake. Ao invés da repreensão, sua atitude de
enfrentado pelo protagonista está devidamente estabelecido.
universidade
afastar-se dos exploradores faz com que o fuzileiro reflita
Em Avatar, não é diferente: dividido entre os cientistas e os sobre sua própria atitude e lealdade à mulher.
militares, Jake deve aprender e adquirir a visão xamanística A transferência para as Montanhas Aleluia apresenta uma
de respeito à vida e à natureza dos Na’vi e, ao mesmo tempo, importante informação que será de extrema relevância durante
fornecer aos militares as diretrizes de como derrotar os na- o terceiro ato: os instrumentos de voo da nave da Capitã Trudy
sumário tivos e assim explorar as riquezas naturais de Pandora. falham quando se aproximam das montanhas, exigindo da piloto
O treinamento de Jake para o aprendizado dos costumes dos um voo visual, onde a visibilidade é mínima. Esta estratégia
Na’vi tem início. Outro elemento xamanístico é apresentado: na composição de um roteiro é muito valiosa, pois permite que
tsaheylu, a ligação entre o Na’vi e a natureza. Todos os ele- o contexto da ação e a ambientação tenham uma razão para exis-
mentos estão ligados entre si e esta é a força de Pandora.
próxima
tir e sirvam de solução para o protagonista para a resolução
Jake aprende isso na sua primeira aula de cavalgada sobre uma do conflito no ato final. Como James Cameron foi bem-sucedido
espécie de cavalo. Durante o treinamento, Tsu’tey aparece e nessa estratégia será visto mais adiante, durante a análise
sugere a Jake que ele vá embora e, dirige-se à Neytiri dizen- do último ato.
do que o humano não tem condições de aprender. Neytiri não dá Quando os cientistas chegam a seu destino, a plateia é
ouvidos a seu noivo e segue com o treinamento. apresentada ao novo laboratório, muito mais simples e precá-
anterior De acordo com Syd Field, “as provações do herói são sem- rio àquele onde Grace, Norm e Jake estavam instalados. Não
pre destinadas a ver se o herói potencial deve ser realmente muito maior do que um contêiner,é a partir deste novo local

223
que o trio se conectará a seus avatares. próprio ikran. A tarefa não é das mais fáceis, pois não só o
Outro elemento importante para a trama e que também terá caçador escolhe o ikran como o próprio ikran escolhe o seu
relevância para o desfecho da história é o contato de Jake caçador. Uma vez que a escolha mutua é feita, trava-se uma
com o Ikran de Neytiri. O Ikran é algo parecido com um dra- batalha entre o caçador e o animal, até que a ligação é rea-
gão utilizado pelos Na’vi para explorar os céus de Pandora e lizada. Uma vez ligados, o tsaheylu é selado após o primeiro
caçar. Entretanto, o Ikran é diferente de um cavalo, pois uma voo. A cena criada por Cameron transita do intenso conflito
vez que a conexão é estabelecida, o animal voa com apenas um entre Jake e seu ikran para uma bela e emocionante cena de
único caçador por toda a vida. Perguntado quando teria o seu voo, ligando o momento vivido por Jake com o sonho de voar que
próprio Ikran, Neytiri responde que apenas quando Sully es- abre o roteiro. Isso se intensifica quando, em narração, Jake
tiver pronto. diz: “Posso não me dar bem com cavalos, mas nasci para isso
O treinamento segue e Jake começa a sentir uma confusão (voar)”. Trata-se da necessidade dramática do protagonista
capa entre as realidades. Tem início o conflito interno do pro- sendo, aos poucos, concretizada: o sonho de voar torna-se re-
tagonista, que se intensificará ao longo do segundo ato. O alidade e a confusão entre quem ele realmente é são indícios
treino de Jake é apresentado no roteiro com muito humor. Afi- de que JakeSully está ingressando numa nova vida.
nal de contas, a adaptação ao modo de vida dos Na’vi não é Montado em seu ikran, Jake realiza caças coletivas e voos
fácil. No entanto, conforme Jake se aprimora mais envolvido ao lado de Neytiri que, em uma das oportunidades, sobrevoa com

universidade
no cotidiano dos nativos ele se sente. Inevitavelmente, a li- o humano aA Árvore das Almas, o lugar mais sagrado de toda a
gação com Neytiri também se fortalece. O fuzileiro aprofunda Pandora. De acordo com Grace, há algo biologicamente curioso
seu aprendizado sobre a ligação entre todas as formas de vida acontecendo no local onde se encontra a Árvore, o que desper-
de Pandora, a necessidade de devolver a energia que pegamos ta sua curiosidade e, além disso, maior vontade de proteger
emprestada da natureza para sobreviver e a reverência ao ser o local.
sumário vivo que deixa de viver para tornar-se elemento e parte do O ato de voar faz de JakeSully um homem entre os Omati-
corpo que consumirá sua carne. Todas estas crenças fazem par- caya. Em um desses voos ao lado de Neytiri, o fuzileiro é
te do xamanismo, um dos subtextos do roteiro de Avatar. Após atacado por um enorme animal conhecido pelo nome Toruk, A Úl-
uma caçada bem sucedida e de acordo com o costume dos Na’vi, tima Sombra. Jake e Neytiri sobrevivem ao ataque e a nativa

próxima
Neytiri afirma que Jake está pronto para o seu último e mais decide contar a história do Toruk a seu discípulo. De acordo
perigoso desafio antes de se tornar um Omaticaya: a escolha com Neytiri, quem monta num Toruk torna-se um TorukMacto, al-
do Ikran. guém tão poderoso que é capaz de reunir todos os clãs em épo-
O lugar onde ficam os ikrans não é de fácil acesso e che- ca de grande sofrimento. Essa é mais uma informação lançada
gar até lá já é um teste. Este é o momento onde o espectador por Cameron em seu texto, que terá grande importância para o
testemunhará se o protagonista é de fato digno da condição desfecho da história.
anterior de herói. Em Avatar, trata-se do momento de amadurecimento A metade do segundo ato é marcada pela intensificação do
dos homens que, para serem aceitos no clã, devem dominar seu conflito interno de JakeSully. Ele afirma não saber mais o

224
que é sonho ou realidade, e a confusão sobre a qual mundo ele Ciente da traição de Jake, o Coronel decide, então, investir
pertence fica maior. Neste momento, Sully se reporta ao Co- com violência contra os nativos.
ronel Quaritch que, neste encontro, diz a Jake que a partir Ciente do ataque dos invasores, Eytukan decide contra-
das informações recebidas, está pronto para atacar a aldeia -atacar, colocando Tsu’tey no comando dos guerreiros. Em seu
dos Na’vi. Jake diz que ele ainda é capaz de retirar os nati- avatar, Grace decide intervir e tenta convencer os Omaticaya
vos de sua morada de maneira pacífica, em especial porque ele a não investir contra o poderoso exército humano. Tsu’tey re-
está prestes a passar pelo ritual que o torna oficialmente um preende a cientista, dizendo que ela não dá opiniões na al-
Omaticaya. Desgostoso, Quaritch se retira da sala e diz para deia. Jake e Neytiri chegam ao local onde os Omaticaya estão
Jake ser rápido. reunidos e o humano em seu avatar tenta convencer Tsu’tey a
A cena do ritual e a intensificação da relação entre Jake recuar. Entretanto, o guerreiro percebe que sua noiva acasa-
com Neytiri resolvem um dos conflitos do protagonista: de que lou com Jake e, por isso, decide atacar com extrema violên-
capa lado ficar. Após a cerimônia de inclusão entre os Omaticaya, cia o mais novo membro da tribo. Depois de uma furiosa briga,
Jake a Neytiri se afastam do clã e, sob umadas Árvores das Jake se diz um Omaticaya e, por isso, tem direito de falar.
Vozes, local onde as preces são feitas e atendidas, consumam Enquanto Jake discursa, o Coronel Quaritch chega ao novo la-
o amor que um sente pelo outro. É neste momento que Jake passa boratório dos cientistas, onde Grace e Jake estão conectados.
a sentir-se muito mais um Na’vi do que um humano, decidindo O Coronel desconecta os pilotos de seus avatares e prende Jake

universidade
assim, tomar partido dos nativos na batalha por Pandora. e Grace. Os dois tentam convencer o Coronel da importância de
Na manhã seguinte, Quaritch e Selfridge iniciam sua vio- preservar o ambiente dos Omaticaya, sem sucesso. Quando são
lenta investida sobre a aldeia dos Omaticaya. A criação desta informados por Trudy que Quaritch planeja um intenso ataque
cena por Cameron é de uma competência exemplar: Neytiri acor- à aldeia, Grace convence Selfridge a deixar que ela e Jake
da com o barulho das máquinas se aproximando do local onde ela convençam os nativos a saírem do local em segurança. Ele dá
sumário e o avatar de Jakedormem. Desesperada, a nativa tenta a todo aos dois um prazo de uma hora, não mais que isso e permite a
custo acordar Jake, porém o homem não desperta, pois o Jake conexão dos pilotos a seus avatares. Já entre os Na’vi, Jake
humano não está conectado ao seu corpo Na’vi. A montagem pa- revela a verdade por trás de sua presença na aldeia, o que faz
ralela, alternando cena de destruição e de perigo iminente na com que os Omaticaya, em especial Neytiri, percam a confiança

próxima
floresta, e o café da manhã agradável, porém apressado de Jake nele e em Grace. Ambos são feitos prisioneiros ao mesmo tempo
no laboratório, acompanhado de Grace e Norm, despertam tensão em que Quaritch e seu exército se preparam para o ataque. O
no espectador que só volta a respirar com certo alívio quando conflito transforma-se num massacre: muitos Omaticayamorrem,
Jake desperta em seu avatar, salvando a própria pele e a de entre eles Eytucan, líder do clã, e a aldeia é destruída.
Neytiri. O ímpeto com o qual Jake investe contra a máquina de Grace e Jake são desconectados de seus avatares e presos por
destruição de Selfridge é a concretização da posição assumi- ordens do Coronel. O avatar da cientista é carregado pelos Oa-
anterior da por Sully na guerra. De acordo com Syd Field, personagem mticaya sobreviventes para o novo refúgio, enquanto o avatar
é ação, e a ação de Jake concretiza sua posição no conflito. de Jake é abandonado na aldeia destruída.

225
Durante a segunda metade do ato dois, a história sofre avanço de um Toruk sobre eles. Todos se desesperam até obser-
uma reviravolta e um novo desafio é imposto ao protagonista: varem que, sobre o animal, está montado Jake. Quando o mesmo
JakeSully perdeu a confiança daqueles a quem ele aprendeu a sai de cima do Toruk, é recebido com admiração e espanto por
amar no momento de maior fragilidade daquele grupo. Cabe a todos que sussurram “TorukMacto”, reconhecendo em Jake al-
ele, portanto, realizar um grande ato para recuperar a con- guém poderoso e capaz de salvá-los do momento sombrio vivido
fiança dos Na’vi e o amor de Neytiri. Assim, um novo desafio pelos nativos. O sentimento coletivo é expresso por Neytiri,
é imposto ao herói que, mais uma vez, deve mostrar-se digno que se dirige a Jake dizendo “Eu estava com medo, Jake. Temia
desta condição. Para tanto, ele contará com o auxilio dos per- pelo meu povo. Não temo mais.”. Em seguida, Jake dirige-se à
sonagens secundários que, mais uma vez, entram em cena para Tsu-tey e, humildemente, pede a ajuda do novo líder dos Oma-
cumprir sua função: auxiliar o protagonista em sua missão. ticaya, que diz estar disposto a voar ao lado de TorukMacto.
Presos após serem considerados traidores pelo Coronel Tendo reconquistado a confiança de seu novo povo, Jake co-
capa Quaritch, Jake, Grace e Norm recebem o auxílio de Trudy e munica que Grace está morrendo e implora pela ajuda de Eywa.
Max para fugir. Alertado sobre a decolagem não-autorizada de Sob a Árvore das Almas, os Omaticaya realizam um ritual, co-
uma de suas naves, o Coronel abre fogo contra os fugitivos, mandado por Mo’at, visando transferir a alma de Grace para
atingindo Grace. O grupo consegue fugir e, durante a escapa- o seu avatar. Presente no lugar sagrado dos Na’vi, Grace se
da, transferem o laboratório localizado nas montanhas para um encanta. Por estar muito fraca, Grace não consegue completar

universidade
local próximo da Árvore das Almas, de maneira a evitar serem o ritual e morre. A morte de Grace indica que ela cumpriu com
localizados por Quaritch. seu papel de personagem secundária: auxiliar o protagonista
Conectado a seuavatar, Jake desperta onde antes era a al- em sua jornada.
deia dos Omaticaya. Lá, é recebido por seu ikan. Ciente de O segundo ato termina quando JakeSully discursa e convoca
que precisa fazer algo grandioso para recuperar a confiança os Omaticaya a reunir todos os clãs no combate aos invasores.
sumário dos Na’vi, Jake monta no animal e, num movimento insano, voa Devidamente decidido por qual lado lutar na batalha por Pan-
sobre um Toruk, com a intenção de domá-lo. Quando salta sobre dora, o protagonista está pronto para o confronto final.
o temido animal alado, Cameron lança sobre a plateia a dúvida
sobre o sucesso de Jake em sua empreitada. Observa-se que não 2.3. Avatar: o terceiro ato

próxima
é apenas a realização do protagonista que está em jogo como
O terceiro e último ato surge como aquele que visa apre-
também a sua condição de herói aos olhos do público: trata-se
sentar a resolução do maior e principal conflito da histó-
de um novo desafio a JakeSully que definirá o rumo do perso-
ria. Em Avatar, o espectador é levado a acompanhar a busca
nagem e, consequentemente, da história.
de JakeSully por uma nova vida, uma vez que a perda de seu
Eis o ponto de virada, que marca o fim do segundo ato: na
irmão significou a perda de vínculo com a Terra. Ir à Pandora
cena seguinte, o espectador é levado a Árvore das Almas, re-
anterior fúgio dos Omaticaya após a destruição de sua aldeia. Enquanto
oportunizou ao protagonista a chance de um novo começo, de
uma nova vida. Preso à cadeira de rodas por consequência de
o grupo entoa uma oração, uma sombra os cobre: trata-se do
um ferimento de guerra, Jake sonhava constantemente que voava

226
e tal ação proporcionava-lhe a sensação de estar livre. O ato sequencia imaginada por Cameron e realizada com o primor ha-
final do roteiro de James Cameron sela a jornada de Jake e as bitual do roteirista/diretor.
ações ocorridas neste terço derradeiro definem se o protago- São muitas as perdas sofridas por ambos os lados. Perso-
nista conquista ou não o seu graal, sua recompensa. nagens importantes, que colaboraram para a realização da jor-
Para tanto, há um teste final; o maior e mais difícil en- nada de JakeSully, caem: Trudy e Tsu-tey, após cumprirem seus
frentado pelo herói. Ao convocar os Omaticaya e demais clãs papeis na narrativa, morrem. Quando tudo parece perdido para
dos Na’vi para o combate contra os invasores, JakeSully diz: os nativos, eis que Eywa atende à prece de Jake e, por meio de
“E mostraremos ao Povo do Céu que não podem tomar o que qui- todas as criaturas de Pandora, manifesta seu apoio aos Na’vi,
serem e que esta é a nossa terra!”. O discurso de Jake reflete dando aos nativos um novo ânimo no combate aos invasores.
a condição alcançada pelo personagem ao final do segundo ato: Tendo alvo principal a Árvore das Almas, o Coronel Qua-
ele não se coloca mais como um humano e sim como um humanoide, ritch prepara a munição para destruição do solo sagrado de
capa um dos Omaticaya. Trata-se de um novo ser, disposto a lutar Pandora. JakeSully impede a destruição da Árvore das Almas
contra aqueles que antes eram seus aliados pela causa do povo ao derrubar a nave onde Quaritch comandava o ataque. Durante
que aprendeu a amar. Ser um Na’vi é a nova vida de Jake, obje- a queda do veículo, o Coronel entra em um dos robôs utili-
tivo este que se concretizará após a violenta batalha contra zados para o ataque em terra e sobrevive à queda. No meio da
o exercito de Quaritch. floresta, Quaritch e Sully partem para o embate decisivo. A

universidade
Em sua base, o Coronel prepara a ofensiva. Alimentado briga violenta chega ao fim quando Neytiri acerta o Coronel
pelo desejo de vingança contra JakeSully e pela disposição de com duas flechas, salvando Sully da morte certa. Entretanto,
exterminar os nativos, Quaritch mobiliza todo seu arsenal e matar Quaritch não é o suficiente, uma vez que o corpo humano
parte para o combate. Informado por Max sobre a mobilização de Jake encontra-se perto de sucumbir pela falta de oxigênio
de Quaritch, Jake organiza com Trudy e Norm uma estratégia provocada por um defeito na máquina que conecta Jake ao seu
sumário de defesa. Mas isso não é o bastante: em seu avatar, Jake se avatar, por consequência da briga contra o Coronel. Neytiri
dirige a Árvore das Almas e lá, ora à Eywa pedindo sua ajuda percebe o perigo que corre Sully e parte em seu socorro, co-
na batalha. locando uma mascara sobre o rosto humano de seu amado. Eis
O exercito de Quaritch avança até alcançar as Montanhas Neytiri vê pela primeira vez o verdadeiro rosto do humano por

próxima
Aleluia. Uma informação apresentada no início do segundo ato quem se apaixonou.
ganha aqui importante relevância: os instrumentos não funcio- Os invasores foram expulsos e derrotados. Os nativos ven-
nam neste local, o que obriga os pilotos a usarem os comandos cem a batalha, com a liderança de JakeSully e Pandora está a
manualmente e fazerem um voo visual. Isso se torna uma van- salvo. O herói passa vitorioso pelo teste final e, como recom-
tagem estratégica para o ataque dos Na’vi que, por conhecerem pensa, seu objetivo é concretizado quando, sob a Árvore das
melhor a área, iniciam uma poderosa investida. O mesmo ocorre Almas, num ritual comandado por Mo’at, a alma de Jake passa
anterior por terra, com os nativos montados em seus poderosos cavalos. de seu corpo humano para o seu avatar, e assim, uma nova vida
Assim, tem início a violenta batalha final por Pandora, uma tem início.

227
3. Considerações finais 4. Referências bibliográficas

• CARRIÈRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. Nova Fronteira: Rio


Avatar é um dos raros filmes onde os efeitos especiais são de Janeiro, 2006.
utilizados de maneira a ajudar a contar a história. O bom uso • FIELD, Syd. Quatro roteiros: uma análise de quatro inovadores clássicos
contemporâneos. Objetiva: Rio de Janeiro, 1997.
dos efeitos permite criar uma eficiente realidade cinemato-
• _______. Manual do Roteiro: os fundamentos do texto cinematográfico. Ob-
gráfica, isto é, aquilo que se passa na tela é facilmente as- jetiva: Rio de Janeiro, 2001.
similado como real e possível pelo espectador. Pandora existe • HOWARD, David e MABLEY, Edward. Teoria e prática do roteiro. São Paulo:
Globo, 1996.
e o publico é transportado para aquele mundo, permanecendo lá
• XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência.
por mais de 150 minutos. Paz e Terra: São Paulo, 2005.
O texto de James Cameron, embora dentro do padrão dos ro-
teiros mais comuns de Hollywood, com sua divisão correta em 5. Referências audiovisuais

capa atos e a divisão maniqueísta entre bem e mal, está longe de


• Avatar (EUA, 2009, 161 minutos). Roteiro e direção: James Cameron.
ser simples ou ingênuo: o roteirista sabe muito bem para onde
• www.sydfield.com (Acesso: setembro/2010)
quer ir com o seu texto e o enriquece com uma temática atual
e urgente, abordada a partir de uma perspectiva xamanística,
algo raramente visto no cinema comercial norte-americano.
A transição entre os atos por meio dos pontos de virada
universidade não estão visíveis para o espectador, que embarca na aventura
sem se dar conta da divisão em atos. Essa é uma das regras de
ouro de Syd Field, para quem a divisão entre os atos não pode
ficar perceptível para o público, cuja única preocupação deve
sumário ser acompanhar a jornada do herói até a sua conclusão.
Envolvente e dinâmico, o roteiro de Avatar é bem-sucedido
ao cumprir outro papel fundamental: trata-se de um texto que
inspira outros departamentos responsáveis pela produção a re-
alizar uma bela contribuição na construção do mundo imaginado
próxima por James Cameron. Assim, tem-se um filme rico não apenas em
seu conteúdo, como também em seu visual, graças aos já cita-
dos efeitos visuais, bem como aos efeitos sonoros, figurinos,
maquiagem, interpretações, entre outros. Tamanho sucesso, já
garantiu a Avatar uma continuação que começa a ser produzida
anterior em 2011 para possível lançamento nos cinemas em 2012 ou 2013.

228
ARTEMÍDIA: O ROTEIRO E SEUS ROTEIROS

R ubens E duardo M onteiro de T oledo


Professor, Doutor - Fundação Armando Álvares Penteado – FAAP - rubens_toledo@
yahoo.com.br

Resumo
capa
Este artigo busca desenvolver – partindo de uma observa-
ção de Marcelo Rubens Paiva - considerações sobre o fazer nar-
rativo do roteirista, realçando a importância que recai sobre
o escritor em conhecer e explorar as múltiplas possibilida-
des do fazer cinematográfico para a elaboração de um roteiro
universidade atrelado a baixo orçamento.
Palavras chave: Importancia do escritor; o fazer narrati-
vo; o fazer cinematográfico; a expressão cinematografica

sumário Abstract

This article seeks to develop – starting from a Mar-


celo Rubens Paiva´s Observation – some insights about the
screenwriter’s narrative craft in the digital technology era,

próxima
highlighting the importance that falls in the writer’s shoul-
ders in knowing and explore the cinematography’s multiple
possibilities to create a low budget movie.
Key words: Writer importance; do narrative, the film-
making, the cinematic expression

anterior

229
Em 22 de julho de 2010, no portal IG Ultimo Segundo/Cul- encaixava em um programa de exibição. Somado a um documentá-
tura3, um texto do escritor, autor de teatro e roteirista rio institucional ou de notícias, servia de complemento para
de cinema Marcelo Rubens Paiva nos fala sobre seu interesse um filme mainstream, cujas estrelas proporcionavam bilhete-
como roteirista, de escrever roteiros tendo em mente, já no rias lucrativas. Ser um filme de baixo orçamento significava
processo da escrita, o orçamento do filme potencial do ro- ser filmado rapidamente, com estrelas de segunda linha ou em
teiro. O autor estava em Paulínia para acompanhar a filmagem início de carreira, diretores iniciantes e equipes de pouca
de um filme de baixo orçamento – na cidade existe um centro experiência, que ainda não gozavam do prestígio de trabalhar
de produção de cinema ligado à Prefeitura da cidade – a fim nos grandes filmes. Todos os envolvidos recebiam salários,
de perceber seus diferenciais e, a partir daí, aplicá-los em eram contratados à disposição dos estúdios para o que desse
seus trabalhos. e viesse. Os estúdios tinham todos os equipamentos necessá-
Em sua última colocação na entrevista: rios. Aproveitava-se cenários, que se deslocavam de produção
capa “Acompanhar as filmagens do Malu não te fez mudar de ideia? em produção. Havia departamentos de figurinos e objetos de
Não, nem um pouco (risos), tanto que eu chegava às dez. É cena. A Rede Globo, Brasil, se utiliza deste sistema de pro-
muito cedo, muito trampo. Acompanhei muito mais as filmagens dução. Os americanos produziam faroestes, policiais, comédias
do Malu porque agora no Brasil é preciso aprender a fazer ro- e seriados de vários gêneros. Entretanto, o conceito de baixo
teiros de baixo orçamento. Então, como autor, queria saber o orçamento dos estúdios não contemplava o fazer desleixado, o

universidade
que era barato e o que era caro. Por exemplo, eu achava que resultado sofrível. Todos os grandes diretores, atores e ro-
era caro ter muito personagem, e não é, isso é baratíssimo, teiristas de cinema que trabalharam em Hollywood trabalharam
porque todo ator quer fazer cinema e a gente tem muitos ami- em filmes B. Quando as grandes estrelas precisavam ser adver-
gos. Comecei a ver na prática o que no roteiro ajudava e atra- tidas – para dizer o mínimo – recebiam um papel em um filme
palhava, para já escrever com isso em mente.” barato.
sumário Palavras mágicas. Baixo orçamento. Conceito ligado a uma Neste processo é importante ressaltar que os roteiristas
realidade tangível, na qual os filmes brasileiros não conse- desempenhavam um papel fundamental. A produção não podia pa-
guem emplacar uma bilheteria que lhes possibilite ao menos rar e, neste contexto, não havia a visão do roteirista como
cobrir seus custos. O número de espectadores é muito menor do um artista, um autor de obras primas literárias. Eram equipes

próxima
que o necessário – um cálculo aceito nos diz que o custo de que escreviam, com tarefas específicas, supervisão e prazos.
produção precisa de três vezes seu valor para ser amortizado No sistema de estúdio os filmes sempre se financiaram com re-
e a partir daí se começar a ter renda – embora alguns filmes cursos particulares, vindos dos próprios estúdios ou de in-
tenham inegável qualidade. vestidores. O cinema de mercado é uma atividade de risco e
Quais seriam as qualidades que definiriam um filme de bai- necessita de uma produção extensa, onde um filme de alta bi-
xo orçamento? Só seu valor de produção? Na história da indús- lheteria, às vezes um sucesso inesperado, cobre os eventuais
anterior tria cinematográfica americana um filme de baixo orçamento se fracassos de tantos outros filmes.
3 http://ultimosegundo.ig.com.br/cultura/gosto+mais+de+dirigir+do+que+escrever+diz+marcelo+rubens+paiva/ Em um filme de grande orçamento, a parte substancial é
n1237725583808.html

230
gasta pelo que se convencionou chamar de “above the line”, mercado de distribuição e exibição, o roteirista precisa ne-
constituída pela equipe responsável pelo design do projeto: cessariamente conhecer o fazer cinematográfico, as simbioses
diretor, produtores, designers de produção, o fotógrafo e os existentes entre as pessoas que colaboram na construção do
atores. Outra parte importante do orçamento vai para a pós- projeto de um filme. Perceber (e intuitivamente utilizar) a
-produção do filme, que envolve toda a parte de edição, mani- interação entre os vários projetos das áreas envolvidas, di-
pulação de imagens, sonorização e música, que são construídas reção, arte, fotografia e a pós-produção, que é a etapa onde
em inúmeras camadas que se fundem em um produto único e final, se potencializam as qualidades do roteiro.
transferido em várias cópias distribuídas para exibição. Cada componente desta amálgama de processos que se cons-
No fluxo contemporâneo de produção de um filme, a pós- titui em um filme segue um roteiro, no sentido de percurso,
-produção se transferiu quase que totalmente para o mundo onde muitas vezes as descobertas se fazem no caminho. A peça
digital. As possibilidades de realização desta etapa pelo fechada entregue ao planejamento da produção torna-se uma
capa método analógico ainda existem, porém são cada vez mais di- obra múltipla, a possibilitar entendimentos interdisciplina-
fíceis, graças à decadência dos equipamentos analógicos, que res. Destes, a pós-produção digital, trabalhando as imagens e
enfrentam falta de peças e manutenção adequada. Os processos sons, é a que multiplicou possibilidades, ao substituir apa-
digitais de trabalho são, como as técnicas que substituíram, ratos e processos muito caros por equipamentos que hoje são
apenas instrumentos para a criatividade dos profissionais en- acessíveis a produtoras menores e profissionais autônomos.

universidade
volvidos, desde o roteirista até o músico. Todos os processos digitais são emulados e realizados rapida-
Neste enfoque profissional, colocado de forma espontânea mente, o que possibilita uma variação grande de experiências
por Marcelo Rubens Paiva, um roteiro pode ser construído em e correções. As possíveis alterações da imagem captada em pe-
função de um orçamento, de um projeto com perfil de mercado, lícula ou mídia digital são impressionantes, possibilitando
que busca seu público se pautando em gêneros, mercados de dis- o reforço ou a modificação de climas e sensações, a coloca-
sumário tribuição e de um portfólio de lançamentos. ção de luzes, a interação entre várias camadas de imagens, o
Não é demérito. É sobrevivência, é continuidade de traba- acréscimo de efeitos digitais de animação ou cenários. Isto
lho. É buscar não o elogio dos críticos de jornais e revistas vale também para a sonorização. Este ambiente criativo, an-
ou o prestígio junto ao meio encastelado da academia, sempre tes só possível para as grandes produções, está disponível

próxima
à procura de cineastas que se ombreiem com os aclamados eu- hoje, para produções mais baratas. Conhecê-las é obrigação de
ropeus e americanos, novos Godards, Hitchcocks e Glaubers, a todos os profissionais envolvidos e o roteirista não pode se
construírem experiências cinematográficas extremas. É buscar, esquivar dela. A materialização de seu trabalho, principal-
sim, a possibilidade de construir trabalhos de qualidade que mente em cinematografias pobres – quase todas são – depende
se encaixem em um esquema viável de produção e adequado ás da aplicação de seus conhecimentos dos processos do fazer ci-
necessidades de consumo da indústria cultural.. nematográfico.
anterior Para se aventurar neste modo de trabalho, ou seja, cons- Como é do conhecimento geral, um bom roteiro é o primei-
truir roteiros que se encaixem em uma determinada visão de ro e principal requisito para um bom filme ou qualquer outro

231
trabalho audiovisual. Nesta busca do roteirista pela qualida- • Mckee, Robert: Story - Substancia, Estrutura, Estilo e os Principios da
Escrita de Roteiro, Curitiba, Arte e Letra, 2006.
de e originalidade, a preocupação da formatação do roteiro a
• Manuais em pdf dos softwares Scratch e Lustre, de Color Grading.
um orçamento reduzido pode ser um fator de limitação cruel. • Schatz, Thomaz. O Gênio do Sistema, São Paulo, Cia das Letras, 1991.
Em uma atividade onde existe o consenso de que ninguém sabe
o que faz um bom filme e, mais, quais os fatores que levam
um filme a ser um sucesso, por mais que se tente controlar
e replicar os procedimentos que fizeram de outros filmes um
sucesso de público e crítica, a postura de escrever antevendo
um orçamento de produção controlado nos parece mais um nó em
um processo já bastante difícil.
A Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura tem
capa uma licitação para filmes de baixo orçamento (R$1.500.000,00,
com contrapartida de R$300.000,00, na licitação de 2010). Tal-
vez os filmes saídos destes editais nos mostrem a validade,
ou não, deste raciocínio econômico aplicado à peculiar arte
cinematográfica. Outros filmes já realizados no Brasil nos

universidade
últimos anos, que custaram pouco, não tiveram público. Alguns
tinham grandes qualidades. Não sabemos se foram escritos com
esta visão de baixo orçamento ou se foram produzidos na raça,
com o possível. Então não nos é possível relacionar o rotei-
ro, os custos e a qualidade final. Podemos culpar a distri-
sumário buição pelo número pequeno de espectadores. Sabemos que ela
é um grande entrave na produção cinematográfica brasileira.
Entretanto, não podemos exigir do roteirista que escreva
pensando também nos esquemas de distribuição. Já seria pedir

próxima
um pouco demais..

BIBLIOGRAFIA
• Field, Syd: Roteiro, os fundamentos do roteirismo, Curitiba: Arte e Letra,
2009.
• James, Henry: A arte da ficção, São Paulo: Imaginário, 1995.

anterior • King, Stephen: On writing, Toronto, Pocket Books, 2002.


• Marques, Gabriel Garcia: Oficina de Roteiro de Gabriel Garcia Marques:
Como contar um conto, Niterói, Casa Jorge Editorial, 1996.

232
capa

universidade

sumário

próxima

anterior

233
capa

PROCESSO
universidade
CRIAÇÃO E
sumário
ROTEIRIZAÇÃO:
próxima
NOVAS MÍDIAS;
anterior
ÁUDIO
234
practice of media and content convergence.
A NARRATIVA TRANSMIDIÁTICA COMO Keywords: Lost; tv shows; transmedia storytelling; col-
COMPLEMENTO DE ENREDO DO SERIADO LOST lective intelligence; ARG.

Introdução

Em uma era onde vivenciamos a cada dia a convergência das


mídias e de conteúdos, o que vem a ser Narrativa Transmidiáti-
ca? Como convivemos com ela, muitas vezes sem saber, enquanto
A ndré L uiz S alata V enancio
Universidade Anhembi Morumbi - Mestrando em Comunicação Contemporânea - sa-
acompanhamos seriados televisivos, filmes ou até mesmo jogos
lata@gmail.com de videogame?

capa
A narrativa transmidiática foi algo introduzido e diri-
Resumo: gido à parte do público no final da década passada, em um
momento em que uma parcela dos consumidores migravam de uma
Este texto estuda o fenômeno Lost, série da rede tele-
postura de espectador passivo, para uma postura de espectador
visiva americana ABC, utilizando a narrativa transmidiática
ativo, que interage com uma programação, sugere, critica, faz
como ferramenta para complementar a história que é exibida na
sua voz ter peso no desenvolvimento de um enredo, e tem sede

universidade
TV. Serão explorados alguns conceitos por trás das narrativas
por mistérios, e no desvendar do quebra-cabeça que esses re-
transmidiáticas, discutindo as teorias sobre o que é ou não
presentam.
é transmedia, obersando exemplos criados pelos produtores do
A série televisual Lost, fenômeno de audiência, põe em
seriado americano, além de outras citações importantes para
prática essas teorias, ao ver uma grande comunidade virtual
cunhar essa moderna prática de convergência de mídias e de
sumário
ser formada, juntando diversos conhecimentos de fãs espalha-
conteúdos.
dos ao redor do mundo, com uma única pretensão: compreender,
Palavras-chave: Lost; seriados; narrativa transmidiática;
o mais próximo da totalidade possível, o que a história do
inteligência coletiva; ARG.
seriado propõe.

Abstract: Analisaremos aqui como essa inteligência coletiva é uti-

próxima lizada pelos produtores, em parceria com ações midiáticas


This paper examines the phenomenon Lost, a TV show from inovadoras. Exploraremos alguns exemplos já conhecidos no
american television ABC network, using transmedia storytelling mercado, para fortalecer a teoria apresentada. E então tere-
as a tool to complement the story that appears on TV. It will mos base inicial para refletir sobre a seguinte questão: a
be explored some concepts behind transmedia storytelling, narrativa transmidiática é uma ferramenta para dar conta da
anterior discussing theories about what is or is not transmedia, ob- complexidade do enredo de uma série?
serving examples created by american producers of the show,
besides other important quotations for coining the modern

235
Lost? da terceira temporada mostrava as histórias de cada persona-
gem através de flashbacks, intercalando cenas que se passavam
Lost foi uma série televisual americana que tratou sobre na ilha e também fora dela, em algum ponto da vida de alguma
sobreviventes de um voo que se acidenta e cai em uma miste- das personagens. Dessa forma, os espectadores tinham a chance
riosa ilha tropical no pacífico sul, quando fazia o trajeto de conhecer um pouco sobre a história daqueles sobreviven-
de Sydney (Austrália) a Los Angeles (Estados Unidos). Eles tes. Nesse modo de narrativa apresentado pelos produtores da
tentam, sempre em vão, serem resgatados, e ao longo dessas série Lost, não era raro encontrar, direta ou indiretamente,
tentativas são surpreendidos por mistérios que a ilha possui. ligações entre algumas daquelas pessoas, que, a princípio,
Transmitida pela American Broadcasting Company (ABC) nos só se conheceram pela coincidência de estar no mesmo aciden-
Estados Unidos e pela AXN no Brasil, o piloto da série foi te aéreo. Contudo, isso gerou muitos mistérios por trás da
exibido na feira ComicCon, em julho de 2004 e teve seu início história que a série nos traz, causando momentos de suspense
capa na televisão americana apenas em setembro de 2004. a cada fim de episódio, ocasião em que sempre alguma grande
Lost foi uma série reconhecida pelos críticos da televi- revelação era feita ou alguma grande dúvida era lançada, for-
são como um sucesso, onde, em seu primeiro ano de transmissão, mando assim uma continuidade a ser seguida pelos episódios.
conseguiu alcançar uma média de 16 milhões de novos telespec- No último episódio da terceira temporada, o modo de nar-
tadores a cada episódio, além de ganhar diversas premiações rativa sofreu uma alteração: ao invés de vermos os famosos
reconhecidas na indústria televisiva. Devido ao grande elen-
universidade
flashbacks, tivemos a primeira experiência com flashforwards,
co e às filmagens na cidade de Oahu, no Havaí, a série é uma onde o que era mostrado fora da ilha, centrado em uma per-
das mais caras na história da televisão. Foi criada por Damon sonagem específica, estava ocorrendo em uma época posterior
Lindelof, Jeffrey Lieber e J. J. Abrams e é produzida pela àquela. Isso gerou ainda mais mistérios, pois era então pos-
ABC Studios e pela Bad Robot Productions. A série contou com sível concluir que alguns dos sobreviventes tiveram êxito nas
sumário seis temporadas e a transmissão do último capítulo ocorreu em tentativas de conseguir resgate para sair da ilha. Essa forma
maio de 2010. de narrativa continuou por toda a quarta temporada, onde al-
O formato de cada episódio foi geralmente o mesmo: duas gumas vezes tínhamos ainda o uso dos flashbacks, todavia os
histórias eram seguidas em paralelo. Na primeira delas foi flashforwards se mantiveram bastantes presentes no enredo.
mostrado o que estava acontecendo na ilha; já na segunda, tí-
próxima
Além da história de cada personagem, Benson (2005) relata
nhamos uma espécie de história da vida de uma personagem prin- que Lost inseriu uma mitologia, envolvendo números, um mons-
cipal, onde eram mostrados, inicialmente, fatos vividos por tro de fumaça, pessoas que já habitavam o local antes da queda
ela, nos revelando traços de personalidade, experiências de do avião, uma organização que construiu diversas estações de
vida, frustrações, conquistas, segredos, fragilidades, entre pesquisas sobre as propriedades naturais da ilha e a conexão
outras coisas. Na grande maioria das vezes, cada episódio era pessoal entre algumas personagens, mesmo que, como já men-
anterior centrado em um único personagem. cionado, não tivessem consciência de tal fato. Segundo Jensen
A narrativa adotada pelos produtores da série até o final (2006), os produtores Damon Lindelof e J. J. Abrams criaram

236
espécies de bíblias da série, contendo todas as ideias mito- continuidade seria em um segundo filme?
lógicas concebidas. A base para os mistérios da ilha foi uma Não necessariamente. Henry Jenkins (2006, p.97) diz que
mistura de ficção científica com acontecimentos sobrenatu- “uma história transmidiática se desdobra através de múltiplas
rais, tudo isso em conjunto com a mitologia já mencionada. plataformas de mídia, onde cada novo texto constrói uma dis-
Toda essa misteriosa atmosfera e a continuidade entre os tinta e valiosa contribuição para o todo”.
episódios, em conjunto com o enorme sucesso de Lost, criaram Jenkins ainda diz que:
uma grande comunidade internacional de fãs, que tentam até os os irmãos Wachowski trabalharam muito bem com o jogo de transmedia,
colocando primeiro o filme original para estimular o interesse, ofe-
dias de hoje descobrir os mistérios que não foram explicados
recendo alguns webcomics2 para suprir os fãs famintos por mais infor-
durante as temporadas, juntando peças do enredo, criando te- mação, lançando o anime3 para antecipar o segundo filme, lançando o
orias, compartilhando informações mútuas entre eles, e assim jogo de computador em conjunto para auxiliar na publicidade, trazendo

gerando o que Jenkins (2008) nos apresenta como Inteligência todo o ciclo a uma conclusão com o filme The Matrix Revolutions, e

capa Coletiva, um conceito discutido inicialmente por Pierre Lévy,


então transferindo toda a mitologia para os jogadores do jogo multi-
player online. Cada passo ao longo desse caminho construiu o que já
no início dos anos 90. tinha sido apresentado antes, enquanto oferecia novos pontos de entra-
da. (JENKINS, 2006, p.97)
Isso permitiu que, para manter o público que acompanha a
série (principalmente no período entre temporadas), a rede Daí temos o conceito de narrativa transmidiática mais
televisiva ABC utilizasse diferentes mídias que auxiliassem claro. Uma história pode ser contada inicialmente através de

universidade
os fãs a decifrar Lost, como websites especiais, fóruns ofi- um filme, e, posteriormente, pode ser estendida para um jogo,
ciais, podcasts com os produtores, jogos de realidade alter- onde possíveis novos personagens surgem e uma outra história
nativa (ARGs1), entre outros canais e formas midiáticas. é contada, complementando a história inicial apresentada. No
No Brasil, a comunidade de fãs teve um grande êxito, in- caso desse exemplo, no primeiro filme, mistérios são lança-
clusive recebendo auxílio da Rede Globo de Televisão na cria- dos, entre tantas outras coisas.
sumário ção do blog LostInLost. Nessas comunidades diversas teorias Jenkins, em um artigo de 2007, discorre sobre isso:
sobre a série foram compartilhadas, criando podcasts não ofi- Frequentemente, narrativas transmidiáticas não são baseadas em perso-

ciais, promovendo encontros virtuais e presenciais entre fãs, nagens individuais ou um roteiro específico, mas em mundos ficcionais
complexos que podem sustentar múltiplos personagens interrelacionados
além do suporte com informações online sobre tudo o que acon-
e suas respectivas histórias. Esse processo de construção de um mun-

próxima
tece ou poderá acontecer em Lost. do encoraja um impulso enciclopédico em ambos os leitores e autores.
Somos induzidos a o que pode ser conhecido de um mundo que sempre se

O que é narrativa transmidiática? expande além do nosso entendimento. Isso é um prazer muito diferente
do que aquele que associamos com o fechamento de uma história, en-
contrada na maioria das construções clássicas de narrativa, onde nós
Em 1999, os irmãos Wachowski apresentaram ao mundo o filme
esperamos sair do cinema conhecendo tudo o que é necessário para uma
Matrix. Um longa-metragem com uma complexa história, que, ao história fazer sentido.

anterior final do primeiro filme, nos trouxe uma série de questões e


2 Webcomics são tiras (quadrinhos) em formato especial para publicação em websites.
também a certeza de que aquilo tudo teria continuidade. Mas a 3 Anime é um estilo de animação originalmente criada no Japão, fortemente influenciada pelo Mangá, onde
1 David Edery e Ethan Mollick (2008, p.88) definem ARG como “narrativas interativas que borram as linhas os personagens geralmente apresentam olhos e cabelos grandes, além de lábios alongados e expressões faciais
entre a realidade e o jogo”. exageradas.

237
Se compararmos isso ao filme dos irmãos Wachowski, sabe- a migração crossmedia em mente. Normalmente, os meios de comunicação
de baixo custo, tais como livros, bancam uma transferência posterior
remos então porque o filme Matrix não foi completamente com-
para mídias de custo elevado (filmes) que muitas vezes depende, e é
preendido por alguns espectadores. A história não estava com- iniciada por, o sucesso do produto inicial, enquanto os produtos de
pleta nas telas. Uma mitologia era apresentada ali e os fãs mídias de alto custo pagam transferências simultâneas para mídias de

do filme tiveram que buscar, em outras mídias, soluções aos baixo custo (por exemplo versões em quadrinhos). Deve-se salientar
que as produções crossmedia não devem necessariamente ser entretenimen-
mistérios apresentados pelo longa. O mesmo ocorre com Lost, to, mas poderiam ser documental, jornalístico ou didático, contudo a
aonde a mitologia da ilha e dos personagens vai além do que é perspectiva presente será limitada a produções de entretenimento cros-
smedia e propriedades que envolvam um jogo em sua cadeia de produção.
exibido na televisão. Posteriormente será explicado como os
(Aarseth, 2006. p.3)
produtores lidaram com isso.
Contudo, devemos tomar cuidado ao trabalhar com narrativa Isso pode servir de base para explicar os dois eventos

transmidiática, onde a intenção não é recontar uma história apresentado aqui: o filme Matrix, que foi uma produção de alto
capa de uma mídia para outra. Long (2007, p.22) diz que “recontar custo, e, posteriormente e de forma paralela, foi levado a uma

uma história através de um tipo diferente de mídia é denomina- produção de baixo custo, com os webcomics e animes; enquanto

do ‘adaptação’, enquanto usando múltiplos tipos de mídia para o filme Código DaVinci seguiu o caminho oposto, transformando

criar uma única história é denominado ‘transmidiatização’”. a história de uma mídia de baixo custo (livro) em uma mídia

Por exemplo, o filme “O Código DaVinci” é uma adaptação de alto custo (filme). Todavia nosso último exemplo não se
passa de uma mera adaptação, uma vez que, conforme discorreu
universidade
do livro de Dan Brown. Não existe a criação de novos pontos
da história, novos personagens ou simplesmente a introdução Aarseth, Dan Brown não imaginou que sua obra se tornaria um

de algo que já não existisse na peça literária. “Isso difere filme, e por que não – se analisarmos a narrativa transmidi-

de narrativa transmidiática, devido à falta de um dos compo- ática - outras formas de mídia, complementando algum buraco

nentes-chave na definição de Jenkins: distinção” (Long, 2007, na história ou então fazendo um gancho para uma eventual con-
sumário p.22). tinuidade.

O pesquisador Espen Aarseth, em um artigo publicado em Nos dias de hoje, os produtores não tratam esses tipos de

2006, intitulado “The culture and business of crossmedia pro- obra apenas como um livro, ou um filme, ou então um jogo de

ductions”, diz que: videogame. A história é tratada como um produto, onde dife-
rentes mídias são utilizadas para formar um todo. Além disso,
próxima
O que é uma produção crossmedia? Existem duas formas, síncronas e
assíncronas, que também pode ver vistas como versão “forte” e “fra- esse produto é criado por um conglomerado de empresas, cada
ca”: produções crossmedia que produzem as versões da mídia em parale-
uma com sua especialidade específica. Jenkins (2007) apresen-
lo, e as produções que acontecem em seqüência, como a migração entre
as mídias, e onde a primeira instância, normalmente é vista como o
ta esse conceito ao dizer que:
conteúdo original. Em algum ponto esta se torna apenas uma adapta- narrativa transmidiática reflete a economia da consolidação de mídias
ção, quando uma obra é traduzida de um meio para outro, sem qualquer ou o que os observadores da indústria chamam de “sinergia”. Empresas
anterior plano para a referida transferência, no momento da primeira criação.
A distinção entre adaptação e produção crossmedia pode ser difícil
modernas de comunicação são horizontalmente integradas - ou seja, pos-
suem interesses através de uma série de fatores que antes eram empresas
de manter, no entanto, como muitas obras podem ter sido feitas com distintas de mídia. Um conglomerado de mídia tem um incentivo para

238
espalhar a sua marca ou expandir suas franquias através de diversas balham juntos para resolver problemas. Lévy afirma que a arte na era
plataformas de mídia que seja possível. da inteligência coletiva funciona como um atrativo cultural, reunindo
indivíduos com pensamentos em comum para formar novas comunidades de
Porém, devemos tomar alguns cuidados ao estender um pro- conhecimento. Narrativas transmidiáticas também funcionam como ati-
duto entre diferentes mídias. Jenkins (2003) nos alerta que: vadores textuais - a criação em movimento na produção, avaliação e
arquivamento de informações.
Redundância entre mídia queima os interesses de fãs e leva as franquias
a falharem. Oferecer novos níveis de conhecimento e experiência atua-
Os produtores da série Lost, nascida no leito da narrativa
lizam a franquia e sustentam a lealdade do consumidor. Essa abordagem
multifacetada para contar histórias permitirá uma mais complexa, mais
transmidiática, alimentam a comunidade dos fãs famintos. Nos
sofisticada, o modo mais gratificante da narrativa a surgir dentro das podcasts oficiais da rede televisiva ABC, Damon Lindelof e
limitações de entretenimento comercial.
Carlton Cuse podem corroborar as teorias que os espectadores
Além disso, a narrativa transmidiática gera interação en- criam, ou colocá-las por terra, impedindo assim que a comuni-
tre pessoas, principalmente utilizando a Internet. Lost é um dade ativa saia do eixo que a história tenta propor. Contudo,
capa importante exemplo disso, onde, ao final de cada episódio exi- é muito comum que os produtores deixem sempre o ar da dúvida e
bido, espectadores começam a procurar por detalhes mínimos, mistério pairando nas mentes mais assíduas do seriado ameri-
conversar entre si, relacionar ideias de uns com conceitos de cano, reforçando aí a proliferação da inteligência coletiva.
outros, e então formar diversas teorias sobre o seriado. Esse Lost praticou a narrativa transmidiática principalmente
fenômeno é explicado por Jenkins, em seu livro Convergence nos períodos entre temporadas. Alguns mistérios da série não

universidade
Culture (2006): eram resolvidos nos episódios vistos em tela. Outros deles,
narrativa transmidiática é a arte do mundo que faz. Para experimentar que surgiram em início de temporadas, foram introduzidos pri-
qualquer mundo ficcional, os consumidores deve assumir o papel de ca- meiramente através do uso de jogos de realidade alternada – do
çadores e coletores, perseguindo bits da história através de canais de
termo em inglês ARG (Alternate Reality Game).
mídia, comparando as notas com os outros através de grupos de discussão
online, e colaborando para assegurar que todos que investem tempo e
sumário esforço virá com uma rica experiência de entretenimento. O que é um ARG (alternate reality game)?

Podemos chamar essa colaboração de inteligência coletiva. David Edery e Ethan Mollick, no livro intitulado “Chan-
O pesquisador Pierre Lévy (1998, p.28) a define como “uma in- ging the game: how video games are transforming the future of
teligência distribuída por toda parte, incessantemente valo- business” definem os jogos de realidade alternativa:

próxima
rizada, coordenada em tempo real, que resulta em uma mobili-
ARGs, como os mundos virtuais, não são jogos no sentido tradicional
zação efetiva das competências”. Segundo o teórico, “ninguém da palavra. ARGs são melhor descritos como colaboração, narrativas

sabe tudo, todos sabem alguma coisa”. interativas que borram as linhas entre a realidade Eles
e o jogo.
empregam uma ampla gama de mídias eletrônicas e físicas para se en-
Jenkins (2007) reforça as palavras de Lévy:
volver com os jogadores, como websites, mensagens de texto, e-mail,
narrativa transmidiática é a forma estética ideal para uma era da inte- outdoors do mundo real, histórias em quadrinhos, e palcos de publici-
ligência coletiva. Pierre Lévy cunhou o termo, inteligência coletiva, dade. O resultado final é uma experiência narrativa que atrai centenas
anterior para se referir a novas estruturas sociais que permitam a produção e de milhares de pessoas em um quebra-cabeça incrivelmente envolvente,
circulação do conhecimento dentro de uma sociedade em rede. Os par- exercício de resolução que persiste por dias, semanas ou meses a fio.
ticipantes juntam informações e conectam suas expertises enquanto tra- (EDERY et al., 2008, p.88)

239
Jogos de realidade alternativa intercalam o mundo dos jo- privado” (Delgado, 2007).
gos com o mundo real, onde inicialmente não é possível dis- Essa campanha era um ARG intitulado Zona Incerta, baseado
tinguir um de outro. em um videoblog que também lançou mão do uso das mais diversas
Num livro intitulado “Pervasive Games: theory and de- mídias em que cada uma possuia narrativas próprias, mas que se
sign”, os autores dizem que jogos de realidade alternativa complementavam. Os autores: Rafael Kenski e André Sirangelo.
são uma subcategoria do que eles chamam de pervasive games,
“normalmente envolvendo a colaboração ao invés de concorrên- Como a série Lost trabalha com ARGs para complementar a história que é

exibida na televisão?
cia, as grandes comunidades auto-organizadas de jogadores,
jogabilidade baseada na Internet e os estilos de produção
Os produtores de Lost exploraram a utilização de ARGs para
secreta” (Montola et al., 2009, p.38). Os pesquisadores vão
complementar a história da série. Durante o intervalo entre
além, dizendo que:
capa
temporadas, eles apresentaram diversas ações que envolviam
ARGs também têm um sofisticado jogo baseado num quebra-cabeça, ba-
narrativas transmidiáticas, como jogos virtuais, websites de
sicamente dando aos jogadores tarefas extremamente difíceis para serem
concluídas. O primeiro passo é geralmente para dar uma olhada em algo empresas que posteriormente surgiriam na série, outdoors em
equipados com óculos lúdicos, para perceber que é um quebra-cabeça, algumas cidades e até mesmo campanha publicitária na rede de
e só então começar a resolver o problema. Este reconhecimento de uma
televisão.
tarefa é muitas vezes a parte mais difícil de resolver o problema.
Um único jogador normalmente não é capaz de resolver um enigma. E, Cada uma dessas ações trazia novos personagens e também

universidade
portanto, ARGs bebem da inteligência coletiva, trazendo um grande uma nova história, que de alguma forma, os fãs, unindo conhe-
número de jogadores em conjunto através da Internet para quebrar um
cimento, conseguiriam interligar com a mitologia do seriado,
mistério que seria quase impossível para um único jogador desvendar
sozinho. (Montola et al, 2009, p.38) apresentado na tela.
De acordo com a Lostpedia, maior comunidade virtual de
Um fato curioso envolvendo jogos de realidade alternativa
sumário
colaboração entre fãs para reunir todas as informações da sé-
ocorreu no Brasil. Segundo reportagem de Malu Delgado (2007),
rie, foram cinco os ARGs criados pelos produtores de Lost:
o senador Arthur Virgílio ficou furioso ao saber que um la-
1. The Lost Experience: introduzido entre a segunda e a
boratório americano defendia internacionalizar a Amazônia. O
terceira temporada; este ARG revelou a história por
senador então propôs uma audiência na tribuna com os direto-
trás da Hanso Fundation, sombria organização que criou
res da empresa Arkhos Biotech. Contudo, toda a história não
próxima passava de um grande equívoco.
a Iniciativa Dharma. Uma combinação de comerciais tele-
visivos, websites falsos, call-centers, blogs, barras
Em uma campanha de marketing inovadora e diferenciada,
de chocolate, etc, traziam a história de uma ex-fun-
uma empresa brasileira de refrigerantes, em parceria com
cionária da empresa, tentando descobrir as verdades por
uma editora, criou um jogo de realidade alternativa que “tem
trás das atividades sinistras da organização;
como eixo uma misteriosa história envolvendo o biólogo Miro
anterior Bittencourt, que teria descoberto segredos da fabricação do
2. Find 815: introduzido no meio da quarta temporada4; um

guaraná. A Arkhos é a vilã que quer a Amazônia sob controle 4 Devido a uma greve geral dos roteiristas americanos, entre final de 2007 e o início de 2008, a série Lost
– e também outras séries dos Estados Unidos – sofreu uma pausa na exibição de sua quarta temporada.

240
técnico de TI5, intencionado a encontrar seu amor, uma servamos a presença de tal recurso na série televisual Lost.
aeromoça que estava a bordo do voo que se acidentou na Os produtores do seriado tiveram êxito em entreter os es-
ilha, lidera uma campanha contra a Oceanic Airlines, pectadores em períodos “entre-temporadas”, contribuindo para
que havia decidido interromper a busca pelo avião. Os enriquecer a história contada não somente na TV, conforme vi-
jogadores desse ARG tinham como base um vídeo publicado mos, mas também na internet e comunidade de fãs, fomentando o
por um hacker no website da companhia aérea; que classificamos como inteligência coletiva.
3. Dharma Initiative Recruiting Project: introduzido en- Tornar o espectador ativo o faz sentir, de alguma manei-
tre a quarta e a quinta temporada; esse projeto foi ra, proprietário da série. Além disso, o feedback colhido nas
inicialmente referenciado durante um comercial de te- diversas comunidades espalhadas pelo mundo é uma espécie de
levisão exibido na transmissão da terceira temporada, termômetro de sucesso do trabalhado que é desenvolvido por
anunciando a empresa Octagon Global Recruiting. Os jo- uma equipe, tornando-se assim um ótimo guia.
capa gadores participariam então de uma série de testes de As narrativas transmidíaticas demonstram-se ferramentas
aptidão para integrarem a organização; eficazes para distribuir a complexidade de um enredo em dife-
4. Lost University: introduzido entre a quinta e sexta rentes meios, gerando para nós a possibilidade de direcionar
temporada; lançado na edição de 2009 da Comic-Con, os diferentes pontos de uma história para diferentes públicos,
produtores apresentaram uma universidade fictícia, onde com disposições distintas. No caso de Lost, a soma desses con-

universidade
os fãs poderiam cursar disciplinas que envolveriam con- teúdos gerou a totalidade e riqueza do seriado.
teúdos relacionados com a série;
5. Damon, Carlton and a Polar Bear: introduzido entre a Referências bibliográficas

quinta e sexta temporada; este é um ARG criado pelos • AARSETH, E. The culture and business of crossmedia productions. Tradução
de André Luiz Salata Venancio. Disponível em <http://mediekom2008.files.
produtores da série, Damon Lindelof e Carlton Cuse, em wordpress.com/2008/02/aarseth_crossmedia.pdf>. Acesso em: 17 Ago. 2010.
sumário conjunto com a ABC Studios, mostrando detalhes impor- • BENSON, J. The ‘Lost’ Generation: Networks Go Eerie. Tradução de André
Luiz Salata Venancio. Disponível em: <http://www.broadcastingcable.com/
tantes da sexta e última temporada.
article/157152-The_Lost_Generation_Networks_Go_Eerie.php>. Acesso em: 17
Ago. 2010.
Considerações finais • DELGADO, M. Senador propõe audiência com diretores de empresa que é parte
de jogo virtual. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/bra-

próxima
sil/ult96u90804.shtml>. Acesso em: 18 Fev. 2010.
A fragmentação de um enredo em conteúdos diferenciados,
• EDERY, D.; MOLLICK, E. Changing the game: how video games are transforming
distribuídos em diferentes mídias, ganhou força na última dé- the future of business. Tradução de André Luiz Salata Venancio. New Jer-
sey: Pearson Education, 2008.
cada. É possível inclusive atribuir essa guinada ao avanço
• JENKINS, H. Convergence Culture: where old and new media collide. Tradução
das tecnologias de comunicação, que a cada ano atinge mais de André Luiz Salata Venancio. New York: New York University Press, 2008.
pessoas a um ritmo cada vez mais rápido. • JENKINS, H. Transmedia Storytelling 101. Tradução de André Luiz Salata

anterior
Venancio. Disponível em <http://www.henryjenkins.org/2007/03/transmedia_
De forma sucinta, foi possível demonstrar os aspectos do storytelling_101.html>. Acesso em: 17 Ago. 2010.
que denominam narrativas transmidiáticas. Do mesmo modo, ob- • JENKINS, H. Transmedia Storytelling: Moving characters from books to fil-
ms to video games can make them stronger and more compelling. Tradução de
5 Tecnologia da Informação.

241
André Luiz Salata Venancio. Disponível em <http://www.technologyreview.
com/Biotech/13052/page1/>. Acesso em: 17 Ago. 2010.
• JENSEN, J. When Stephen King met the ‘Lost’ boys. Tradução de André Luiz Sa-
lata Venancio. Disponível em: <http://www.ew.com/ew/article/0,,1562722,00.
html>. Acesso em: 17 Ago. 2010.
• LÉVY, P. A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. São
Paulo: Loyola, 1998.
• LONG, G. A. Transmedia Storytelling: Business, Aesthetics and Production
at the Jim Henson Company. Tradução de André Luiz Salata Venancio. Massa-
chusetts: Massachusetts Institute Of Technology, 2007.
• MONTOLA, M.; STENROS, J.; WAERN, A. Pervasive Games: Theory and Design.
Tradução de André Luiz Salata Venancio. Massachusetts: Morgan Kaufmann,
2009.

capa

universidade

sumário

próxima

anterior

242
tion to be presented at the II Congress Script Writers His-
ROTEIRIZAÇÃO DA PERFORMANCE tory. Therefore, this article is a script of our history as
PIANÍSTICA piano performance script writers. The Robert Schumann Fanta-
sie op. 17 was preset as the theme for the event. The presen-
tation was planned as a masterclass which for script writers
has a different meaning of that used by the piano performance
professionals.
Art & media; script for piano performance, score and te-
G lória M aria M achado chnical file
Professora Doutora6, Departamento de Música do Instituto de Artes da Univer-
sidade Estadual Paulista, gloriafm2010@gmail.com
INTRODUÇÃO
capa A ndré R angel
Professor Doutor, Departamento de Música do Instituto de Artes da Universidade A preparação de uma performance pianística é uma etapa de
Estadual Paulista, rangel906@gmail.com
planejamento e execução que envolve muito trabalho artístico-
A nna C láudia A gazzi -científico. No caso de preparação de uma peça audiovisual,
Professora Mestre, Departamento de Música do Instituto de Artes da Universi- usualmente essa operação de planejamento denomina-se roteiro.
dade Estadual Paulista, annaclaudi@farearte.com.br
A roteirização da performance pianística engloba as ativida-

universidade
P elópidas C ypriano PEL
des de preparação do concerto ou recital.
Professor Doutor (Livre-Docente), Departamento de Artes Plásticas do Institu-
to de Artes da Universidade Estadual Paulista, pel@ia.unesp.br O presente artigo teve origem na preparação de um master-
class para apresentar as relações entre “roteiro” e “prepa-
O presente artigo teve origem na preparação de um mas-
ração da performance pianística” no II Congresso Histórias
terclass para apresentar as relações entre “roteiro” e “pre-
sumário
de Roteiristas. Portanto, este artigo é a roteirização de
paração da performance pianística” no II Congresso Histórias
nossa história como roteiristas de performances pianísti-
de Roteiristas. Portanto, este artigo é roteirização de nossa
cas.
história como roteiristas de performances pianísticas. Esco-
A história como roteiristas iniciou-se no ano de 2006
lhemos como tema para nosso roteiro a Fantasia Op. 17 de Ro-
em Oficinas Pedagógicas oferecidas pela UNESP, na cidade de

próxima
bert Schumann. Nossa apresentação foi planejada em forma de
Águas de Lindóia, como atualização em didática e uso de ferra-
masterclass, que para atendimento às expectativas dos profis-
mentas pedagógicas como a plataforma de educação a distância
sionais de roteiro, tem um sentido diferente daquele utiliza-
TelEduc. A aproximação entre dois dos autores deste trabalho,
do pelos profissionais da performance pianística.
o cineasta Pelópidas Cypriano, que possui formação musical,
Artemídia; roteiros para performance pianística, partitu-
e a pianista Glória Machado, durante essas oficinas, resultou
ra e ficha técnica
anterior The present article was prepared for a masterclass as a
em projeto de pesquisa musical formando-se um duo de piano e
acordeão.
connection between a script and a piano performance prepara-
6 Apoio financeiro Grupo de Pesquisa ARTEMÍDIA E VIDEOCLIP do Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq Para iniciar aquela pesquisa foi selecionada uma peça

243
(Tardes em Lindóia, de Zequinha de Abreu) relacionada ao nome ROTEIRO E PERFORMANCE
da cidade do evento que nos motivou. A partir deste, nossas
escolhas incluíram compositores como Astor Piazzolla e Ernes- Há uma pergunta recorrente que o leigo, o iniciante, o

to Nazareth e os estudos para a interpretação de suas obras profissional e o professor fazem: o que é roteiro? Cada um,

foram documentados através do plano modelo de Alfred Cortot a seu modo, busca um tipo de resposta. O leigo procura enten-

(THIEFFRY,1986, p.20) usado como referencial teórico para der o mistério que está por trás da realização audiovisual.

execução de obras musicais. O iniciante busca adquirir técnicas e procedimentos para a

Na sequência deste trabalho, surgiu em 2008 o grupo UNES- execução de roteiros. O profissional tenta definir roteiro

PPIANO que conta com os cinco docentes da área de piano do a partir de sua prática. O professor deseja a generalização

Departamento de Música do Instituto de Artes da UNESP, Profa. para poder ensinar.

Dra. Glória Machado, Prof. Dr. André Rangel, Prof. Dr. Nahim Da literatura sobre roteiro difundida nas escolas e cur-
capa Marun, Prof. Dr. Claudio Richerme, Prof. MS. Anna Claudia Aga- sos de audiovisual no Brasil, podemos lembrar Doc Comparato

zzi tendo como colaborador para difusão artístico-científica (1983) que inicia seu livro tentando responder a essa pergun-

o Prof. Dr. Livre Docente Pelópidas Cypriano do Departamento ta:

de Artes Visuais do mesmo Instituto. O QUE É UM ROTEIRO


Este grupo elaborou o projeto de pesquisa “Documentação Podemos definir um roteiro de diversas maneiras. A mais simples e
direta: Roteiro é a forma escrita de qualquer espetáculo áudio e/ou

universidade
do Repertório Musical Desenvolvido pelo Corpo Docente e Dis-
visual.
cente do Curso de Bacharelado em Instrumento Piano do Ins-
tituto de Artes da UNESP” . O projeto se insere na linha de Isto se aplica a espetáculos de teatro, cinema, televisão, rádio etc.

pesquisa “Processos e Procedimentos em Arte” do grupo ARTE- (COMPARATO, 1983, p.15).

MÍDIA E VIDEOCLIP do Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq Podemos aplicar essa definição para a performance pia-
sumário que atende ao tipo de trabalho desenvolvido, direcionado à nística, entendendo que a partitura é a forma escrita de uma
performance musical. determinada música, ou seja, uma seqüência de previsões dos
Dentre as atividades realizadas em 2010 pelos participan- elementos sonoros. Então a partitura é um tipo de roteiro,
tes desse grupo destacamos as filmagens feitas por Pelópidas isto é, uma coleção de informações dos elementos sonoros que

próxima
Cypriano de três masterclasses sobre o Álbum para a Juventu- deverá ser cumprida no momento da performance pelo agente in-
de Op. 68 de Robert Schumann ministradas por professores da térprete.
área, em comemoração aos 200 anos de nascimento de Schumann Se tivermos de forma escrita os elementos do espetáculo
e Chopin. áudio-visual (por exemplo, um recital ou concerto) então te-
Como parte desta comemoração selecionamos a Fantasia Op. remos um roteiro da performance de interpretação da peça mu-
17 de Robert Schumann como objeto de nossa masterclass sobre sical. Esse roteiro do espetáculo pode conter a sequência de
anterior roteirização da performance pianistica. músicas que serão apresentadas, constituindo o repertório da
apresentação. Pode conter as falas de dados históricos sobre

244
a música, o compositor, os intérpretes célebres, o contexto mais mal compreendidas de toda a literatura. O resultado da labuta
do roteirista, o filme, é muito mais imediato e instintivo do que a
cultural onde foi criada.
prosa ficcional, entretanto o processo que transforma as palavras, as
Por expressarem seus elementos fundamentais na forma es- idéias e os desejos do escritor naquele produto final é menos direto
crita, tanto a partitura quanto o roteiro de performance po- e implica muito mais intermediários entre escritor e público do que
outras formas literárias. Isso significa que o roteirista encontra
dem ser considerados tipos de roteiro de espetáculos áudio e/
pelo caminho armadilhas e problemas que não aparecem na criação de um
ou visuais, conforme a definição acima. ensaio, romance ou poema.
O livro de Syd Field (1995) também inicia com a mesma per-
O roteirista precisa se comunicar com um diretor, com atores, figuri-
gunta:
nistas, fotógrafo, técnicos de som, cenógrafos, montadores e mais uma
O que é um roteiro? infinidade de profissionais do cinema. Ao mesmo tempo, precisa estar
atento à psicologia do público e às convenções da narrativa fílmica.
Um guia, um projeto para um filme? Uma planta baixa ou diagrama? Uma E, por fim, tem que estar sintonizado com as vontades, paixões e
série de imagens, cenas e seqüências enfeixadas com diálogo e descri-

capa
limitações de todos os personagens da história. Essas exigências, por
ções, como uma penca de peras? O cenário de um sonho? Uma coleção
vezes conflitantes, são tamanhas que acaba sendo bem rara a criação de
de idéias?
um roteiro de primeira. (HOWARD, 1996, p. 29).
O que é um roteiro? Num livro bem voltado ao início das práticas audiovisuais,
Bem, não é um romance e certamente não é uma peça de teatro. Watts (1990) aplica o conceito de roteiro como algo trivial
(FIELD, 1995, p.1, grifo do autor). a situações bem definidas de produção em televisão e vídeo:

universidade
Essa definição está mais ligada ao filme de cinema. Faz, Agora você está pronto para fazer o roteiro. Consiste em relacionar,
num pedaço de papel tudo aquilo que você pretende colocar na produção.
por um lado, distinção entre outras peças literárias, como o
Sob a forma de anotações, com as imagens à esquerda e a indicação do
romance e o teatro. Por outro lado, compara roteiro de audio- respectivo som à direita. (WATTS, 1990, p. 43).
visual com outras formas de expressão de planejamento, como
Segundo Brenes (1987, p. 44): “[...] habrá que delimitar
por exemplo, planta baixa de um edifício ou diagrama de algum
sumário fluxo de ações.
previamente a qué tipo de guión se está haciendo referencia,
porque una cosa es el guión técnico y otra el guión dramáti-
Aplicando essa definição ao nosso caso, temos que a par-
co”. Nesse sentido, Chion (1989) apresenta um espectro maior
titura também não é um romance nem uma peça de teatro, mas
para diferenciar a forma de apresentação do próprio conteúdo
assemelha-se a um guia, uma planta baixa, um diagrama, uma
do roteiro:
próxima
série de imagens sonoras, uma coleção de ideias musicais. Da
Chamamos a atenção do leitor para uma confusão freqüente: a forma
mesma forma, o roteiro de performance também abriga um guia, de apresentação do roteiro não tem nada a ver com seu conteúdo, nem
uma série de eventos sonoros a serem atingidos com determina- com sua estrutura dramática. Ela é apenas um estágio de descrição e
redação do roteiro mais ou menos detalhado, comportando ou não cer-
das qualidades técnicas e estéticas.
tos tipos de definições, conforme sua função – apresentar o roteiro
Howard (1996) posiciona bem a questão da diferença entre a uma comissão, um produtor, um diretor, ou a atores que se tenham

anterior roteiro de audiovisual e literatura e a necessidade de comu- em vista; servir para a realização do roteiro pela equipe técnica;
servir para que o próprio diretor, se for autor ou co-autor, prepare
nicação com outros participantes da produção audiovisual:
sua filmagem e, inclusive, conceba seu filme. (CHION, 1989, p.
O roteiro é sem sombra de dúvida uma das formas mais difíceis e 263, grifo do autor).

245
A visão de Chion é mais ampla que a de Watts, então vamos line, sinopse, argumento).
exemplificar nosso entendimento de roteiro com a síntese de
Rodrigues (2002): ROTEIRO 1: PARTITURA DA FANTASIA OP. 17
Na elaboração de um roteiro, o roteirista tipicamente o desenvolve da
De certa forma, a primeira comparação de roteiro como for-
seguinte forma:
ma escrita é a partitura. Ela tem aspectos gráficos registra-
Story line – Idéia sucinta do roteiro, com cerca de cinco linhas.
dos conforme códigos pré-estabelecidos e do conhecimento dos
Sinopse – É uma breve idéia geral da história e de seus personagens, intérpretes.
normalmente não ultrapassando uma ou duas páginas.

Argumento – É o conjunto de idéias que formarão o roteiro. Com as


ações definidas em seqüências, com as locações, personagens e situações
dramáticas com pouca narração e sem os diálogos. Normalmente 45
capa
entre
e 65 páginas.

Roteiro literário – Finalizado com as descrições necessárias e os


diálogos. Este roteiro, sem indicações de planos, servirá como base
para o orçamento inicial e os projetos de captação. Tem normalmente
entre 90 e 120 páginas.

Roteiro técnico – Roteiro decupado pelo diretor com indicações de

universidade
planos, movimentos de câmera, e que servirá para o 1º assistente de
fazer a análise técnica, o
direção diretor de produção o orçamento
final.Será o guia de trabalho da equipe técnica. (RODRIGUES,
2002, p. 52, grifo do autor).

Consoante essa definição podemos associar a partitura ao


sumário roteiro literário e a ficha técnica ao roteiro técnico. Ou
seja, a partitura contém a previsão final das seqüências de
idéias sonoro-musicais enquanto a ficha técnica contém a de-
cupagem da performance pianística. Em geral, a partitura é

próxima
o resultado final do trabalho de um músico que se denomina
compositor (o roteirista de audiovisual). A ficha técnica é o
resultado final de um músico chamado intérprete (um trabalho
Figura 1 – Trecho da partitura da Fantasia Op. 17.
híbrido entre ator e diretor, dependendo da complexidade da
peça musical).
Um exemplo é o da Figura 1 que mostra um trecho da par-
A análise musical feita na ficha técnica (roteiro técni-
anterior co) permite identificar na partitura (roteiro literário) as
titura da Fantasia Op. 17. É possível observarmos várias in-
dicações técnicas e estéticas, por exemplo, as ligaduras, as
partes equivalentes ao início do roteiro audiovisual (story
indicações de dinâmica forte e piano, marcação metronômica,

246
andamento. tica e apaixonada), tema principal da primeira seção
Esse tipo de roteiro é suficiente para peças musicais de da obra, domina o primeiro movimento contrastando com
baixa complexidade, como por exemplo, nas canções populares. Im Legendenton (como uma lenda) que substitui o desen-
Entretanto, no caso da Fantasia Op. 17 de maior complexidade, volvimento.
esse roteiro serve de base para a decupagem musical num ro- Metrônomo: mínima 80
teiro técnico mais elaborado, que se traduz na elaboração da Tonalidade: Do maior
ficha técnica. Compasso: 4/4
Número de compassos: 309
ROTEIRO 2: FICHA TÉCNICA FANTASIA OP. 17 PARA PREPARAÇÃO 2º movimento: Mäßig Durchaus energisch (enérgico me-
DA PERFORMANCE PIANÍSTICA dido)
Metrônomo: mínima 66
capa Os pianistas utilizam, para o preparo de suas interpreta-
Tonalidade: Mi b maior
Compasso: 4/4
ções de peças musicais, um elenco de informações que podem ser
Numero de Compassos: 260
reunidas num formato escrito denominado ficha técnica. Essa
3º movimento:Langsam getragen (lento)
forma escrita assemelha-se a vários formatos de roteiros de
Metrônomo: semínima 66
peças audiovisuais. Abaixo um exemplo de ficha técnica:

universidade
Tonalidade: Do maior
Compasso: 12/8
FICHA TÉCNICA PARA A FANTASIA OP. 17 DE ROBERT SCHUMANN
Numero de compassos: 142
Nome do Autor: Robert Schumann.
Discorrer com relação aos tópicos abaixo:
Local e data de nascimento e morte: Zwickau (Alemanha)
1) Comparação entre gravações
sumário
em 8 de junho de 1810,
Nome de cada um dos pianistas: Vladimir Sofronitzky;
Endenich em 29 de julho de 1856.
Alicia De Larrocha
Nome da Obra: Fantasia Op. 17
Nacionalidade: russo; espanhola
Data de composição: 1835/1836
Formação ou escola Pianística: Leonid Nicolaiev; Frank
Publicação: 1839

próxima
Marshall
Dedicada a Franz Liszt
Selo/Gravadora
Local de composição: Leipzig
Observações comparativas
Tonalidade: Do Maior
Sofronitzky apresenta performance impetuosa, apaixo-
Edição utilizada: G. Henle Verlag, München
nada, com visão jovem das indicações de Schumann. O
Revisor: Wolfgang Boetticher
fraseado empregado soa, ainda hoje, sofisticado e re-
anterior Dedilhado: Hans-Martin Theopold
frescante (faleceu em 1961 aos 59 anos).
1º movimento: Durchaus phantastisch und leidenschaf-
Larrocha em sua gravação dos anos 70 (30 anos antes
tlich vorzutragen (para ser tocada de maneira fantás-

247
de sua morte) traz uma visão adulta das indicações ro-musicais. A partitura da Fantasia de Schumann bem como sua
de Schumann. A qualidade de toques impressionam pela interpretação pelo pianista chileno Claudio Arrau encontra-se
diversidade de volume e velocidade (principalmente a disponível em http://www.youtube.com/watch?v=bGJ-g7j4ao0 .
lenta). A partir desse ponto, o compositor assemelha-se mais ao
2) Comparação entre edições: roteirista de cinema e o intérprete ao diretor ou ator. Essa
Nome das edições: G. Henle Verlag, München; F. Peters, ficha teve como modelo o plano de estudos originalmente pro-
Leipzig posto pelo pianista e educador francês, Alfred Cortot (THIE-
Data: 1983; sem data, como sempre FFRY,1986, p. 20) plano este atualizado pelos docentes pes-
Revisor: Wolfgang Boetticher; Emil Von Sauer quisadores.
Dedilhador: Hans-Martin Theopold; Emil Von Sauer
Observações comparativas (dinâmica, articulação, anda-
capa mentos, pedalização, fraseado, dedilhado, ornamenta-
ção, etc...)
A edição Henle apresenta o texto original contando com
o revisor técnico para algumas falhas óbvias. A edição
Peters conta com poucos acréscimos interpretativos de

universidade
Sauer. Alguns deles mudam muito a fraseologia o que
condiciona a interpretação à uma ótica das décadas de
1940-50. Ambas mantêm paginação idêntica disputando
assim o mercado das boas edições.
3) Mapeamento das dificuldades técnicas
sumário Local: compassos 232 a 257
Tipo de dificuldade: saltos simultâneos em movimentos
contrários
Observação quanto a forma de estudo: mãos separadas;

próxima
fraseologia das notas extremas; fraseologia das díades
e tríades; memorizar gestos e toques.

A ficha técnica é um roteiro preparado pelo pianista para


a performance que abriga aspectos históricos, culturais e Figura 2 – Informações para Ficha Técnica.
técnicos da peça em preparação. O documento fundamental para
anterior a ficha é a partitura, ou seja, o roteiro escrito organizado Este plano de estudos propõe ao intérprete um guia que
pelo compositor, que é um tipo de roteirista das idéias sono- inclui os seguintes aspectos: informações históricas sobre o

248
autor e a obra; locais, datas de nascimento e morte, naciona- ta para Beethoven e foi dedicada a Franz Liszt por seu com-
lidade; título da obra, data de composição, dedicatória; cir- promisso em erigir um memorial a Beethoven. Schumann cita o
cunstâncias que presidiram sua composição; informações técni- ciclo de canções An die ferne Geliebte, Op. 98, de Beethoven
cas e teóricas que supõe análise harmônica e formal; conselhos em vários momentos de sua Fantasia (http://www.youtube.com/
para estudo e interpretação. watch?v=VFuNofnUxt0).
Considerações sobre as circunstâncias que antecedem a
composição e as indicações fornecidas pelo autor, encontram-
-se detalhadamente descritas em artigo de Alan Walker http://
ml.oxfordjournals.org/content/60/2/156.extract bem como no
prefácio da obra na edição Henle.

capa

universidade

sumário

Figura 4 – Performance da Fantasia Op. 17.

próxima Em carta a sua noiva Clara Wieck o compositor escreveu:


“o primeiro movimento desta obra é talvez o mais apaixonado
de tudo que já compus, um profundo chamado por você” (BOETTI-

Figura 3 – Lista de performers da Fantasia Op. 17. CHER, 1987, p. iii). O vídeo acima citado nos mostra o para-
lelo entre os sentimentos de Schumann e Beethoven sobre suas
anterior A Fantasia Op.17 é uma das maiores composição em larga amadas.
escala de Schumann. A obra teve como título original Sona-

249
ROTEIRO 3: PREPARAÇÃO DA MASTERCLASS SOBRE A FANTASIA OP. Para musicistas a masterclass é uma aula em grupo minis-
17 trada por um especialista em performance. Tradicionalmente,
na formação de um músico intérprete, a masterclass funciona
Nossa apresentação foi planejada em forma de masterclass como um filtro à libertação das dificuldades técnicas propor-
que, para atendimento às expectativas dos profissionais de cionando o espaço necessário à vivência emocional do discur-
roteiro, tem um sentido diferente daquele utilizado pelos so musical. Podemos constatar isso na masterclass de Alfred
profissionais da performance pianística. Essa masterclass é Cortot disponível em http://www.youtube.com/watch?v=o8E_0glY
constituída por um tipo de mesa redonda: a Prof. Dra. Gloria 3nI&feature=related.
Machado executa trechos da Fantasia que serão intermediados
por meio de perguntas formuladas pelos professores de per- CONCLUSÃO
formance pianística André Rangel e Anna Cláudia Agazzi, com
capa
Roteiro é uma palavra bastante ampla na cadeia de produção
mediação do professor de roteiro Pelópidas Cypriano.
audiovisual, podendo significar vários estágios e distintos
modos de expressão de ideias estéticas e indicações técnicas.
A palavra roteiro pode ser ampliada em significado se aplica-
da a atividades semelhantes na cadeia de produção da perfor-
mance pianística. Embora os nomes sejam diferentes, a ações e

universidade utilidades do roteiro são aplicáveis.


A tradução da partitura em sons bem como do roteiro em
imagens depende de sua fiel interpretação. Por esta razão
elaboramos e preenchemos fichas técnicas ao prepararmos nos-

sumário
sas interpretações musicais, da mesma forma que os cineastas
baseiam-se nos diversos tipos de roteiros (literário, técni-
co, de produção, de gravação, de edição). Como afirma Alfred
Cortot “a linguagem musical dispõe para os iniciados, de uma
eloqüência bastante precisa para evitar que um contra-senso

próxima possa se estabelecer” (THIEFFRY, 1986, p. 19). As fichas téc-


nicas proporcionam ferramentas para compreensão dessa lingua-
gem, assim como os roteiros para a linguagem audiovisual.
Tanto no cinema como na música encontramos desafios co-
muns como as relações entre espaço/respirações proporcionais,
anterior Figura 5 – Masterclass de Alfred Cortot.
mudanças de andamento/ritmo e relações de dinâmica/cores.
A tradução da partitura em sons necessita de conhecimen-
tos específicos quais sejam técnicos, históricos, estéticos,

250
teóricos aliados aos elementos subjetivos da sensibilidade,
maturidade e espiritualidade. O mesmo processo se aplica a
roteiros cinematográficos e teatrais.

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próxima
Monica Jakuc Leverett, fortepiano ; Arcadia Players All-Beethoven Con-
cert, Oct. 11, 2008). Youtube. Disponível em: <http://www.youtube.com/
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• ROBERT Alexander Schumann - Composer Fantasy in C, Op.17. Classical Archi-
ves. Disponível em: <http://www.classicalarchives.com/work/25373.html>.
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• SCHUMANN - Fantasy in C major, op.17. Pianopedia. Disponível em: <http://

anterior
www.pianopedia.com/w_328_schumann.aspx>. Acesso em: 22 dezembro 2010.
• SCHUMANN Fantasy in C, Op. 17, 3rd mvt. Youtube. Disponível em: <http://
www.youtube.com/watch?v=SeklYqmH7tQ>. Acesso em: 22 dezembro 2010.

251
ready provided in other media, but now finds a strong vehicle
ROTEIRO MAQUÍNICO: A CONSTRUÇÃO DA and structure in the arts and the market. The called Machinima
NARRATIVA DO JOGO QUE VIROU CINEMA has already produced films, music videos and advertisements
that are displayed at festivals and, of course, on the Inter-
net. This paper tries to find its dialect, its narrative and
its screenplay by observing the spectrum of productions made
so far.
Keyword: Machinima, script, screenplay, narrative, ready-
G uilherme W effort R odolfo -made.
WEFFORT-RODOLFO, Guilherme. Mestrando no Programa de Pós-Graduação Interuni-
dades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo – PGEHA/USP
– Aluno da matéria “Artemídia e Videoclipe & Cinema, o Legado Audiovisual & A descoberta de que nossos cérebros atualizam as infor-
capa
Seminários da Pesquisa em Artes” no Instituto de Arte da UNESP - SP
mações de imagens formando seqüências compreensivas gerou um
grande salto na concepção estética artística, e posterior-
Introdução:
mente, na comunicação. Em nossa breve história das imagens em
Existe um novo meio de expressão vinculado à nossa era movimento, ou produções fílmicas, procura-se tirar proveito
informacional produzindo arte e protesto. O formato é seme- da tecnologia, ou ainda, da técnica apropriada para a capta-

universidade
lhante ao cinema mas com uma tipologia própria e com um dis- ção e produção dessas imagens. Técnica ou prática, o fato é
curso só possível dentro de seu nicho específico. Sua forma que a evolução das tecnologias e auxílios em produções fíl-
narrativa já é consagrada em outros meios, mas agora encontra micas mudam constantemente nossas observações, e com isso,
um veículo forte e com estrutura no campo das artes e do mer- nosso habitus perceptivo7 diante do produto finalizado. Temos
cado. A chamada Machinima já produziu filmes, clipes e propa- a memória do antigo e a perspectiva do novo caminhando lado
sumário gandas que estão expostas em festivais e, é claro, na inter- a lado.
net. Este trabalho tenta encontrar seu dialeto, sua narrativa Dentre as formas possíveis de atividade fílmica, uma sur-
e seu roteiro observando o espectro de produções feitas até ge utilizando a produção fílmica de outro. Tal qual um DJ que
então. envolve seu conteúdo e produz composições utilizando os com-

próxima
Palavra-chave: Machinima, roteiro, narrativa, ready-made. ponentes de outros artistas. Essa possibilidade de arte uti-
lizando os meios de outro produto, já consagrada em nossa arte
Abstract: contemporânea e fixada nas gerações de artistas que retiraram
a importância da autoria e da originalidade, transformou, e
There is a new medium of expression was linked to our in-
ainda transforma, o conceito artístico, a composição, a pro-
formational producing art and protest. The format is similar
dução e os processos ligados à arte8. Um desdobramento dos
anterior to the movies film but with a typology and a speech only pos-
elementos que aprendemos nessa breve história da arte contem-
sible within your particular niche. Yor narrative form is al- 7 COUCHOT, Edmond. A tecnologia na arte: da fotografia à realidade virtual. Porto Alegre: UFRGS, 2003.
8 BOURRIAUD, Nicolas – Pós-Produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes,
2009. p. 26

252
porânea é mais uma vez observado no processo fílmico chamado para computadores e consoles já trazem a opção e os recursos
Machinima. da escolha das cenas e suas edições. Algumas empresas fo-
A Machinima pode ter seu início dentro de certa informa- ram mais participativas ainda e desenvolveram softwares mais
lidade. Parece claro visto que o seu acesso fácil a qualquer completos para a manipulação dos “personagens”, ambientes e
usuário de computador que comporte um software de jogo. Mas posições de câmeras. Alguns trazem as vozes prontas e algu-
tornou-se visível em um evento de Paul Marino em uma insta- mas trilhas sonoras para escolha na edição. Todo esse apoio
lação artística de 19969, em Nova York. O nome do neologismo das empresas surgiu como apoio e também como marketing diante
agrega “máquina” e “cinema”, ou ainda, “anima” (alma). Essa da evolução do meio. Uma estratégia de aliar-se à maioria ao
alma da máquina, ou cinema maquinado, fez parte da instalação invés de combatê-la ficou clara, ainda mais no que tange o
de Marino quando três jogadores interagiam em um jogo e, ao direito autoral das obras sendo, por exemplo, um “personagem”
mesmo tempo, locutores davam vida aos personagens do jogo. de um filme em Machinima o exato criado pelo mesmo jogo. Esse
capa Nesse momento o jogo deixou de ser uma seqüência com o fim impasse criativo teve sua solução rápida com a produção de
participativo de seus interessados e passa a ter um conteúdo softwares de edição para o próprio jogo, desde que não se fale
fílmico, com discurso e narrativa interferindo na estética do do próprio produto. Sendo permanente o design do jogo, a res-
cinema. Um produto de consumo passava a gerar estesia em um trição tem sido usada como benefício usando a mesma estética.
meio de expressão. A arte ganhara mais um campo pronto a ser Bem compreensível se visto do lado comercial. Uma empresa que

universidade
semeado. Sua proliferação foi imediata, logo surgiram seus vincula certas filosofias nas produções de jogos, inclusive
festivais, críticos e principalmente público, e uma certa a pesquisa do design como forma de conteúdo fiel à marca do
“vida própria” teve seu desenvolvimento. jogo, não dará a possibilidade da alteração de seu conteúdo
Dentro do que chamamos de composição, a de produção fíl- gráfico. E ai está a maior guia de narrativa, e ao mesmo tem-
mica é a que envolve o maior número de profissionais, a maior po, a maior restrição de um roteiro fílmico de uma produção em
sumário quantidade de especialistas e variações de estilos. Sua cap- Machinima. Uma narrativa descrita em um roteiro pode “quase”
tação de imagens interfere nos conceitos estéticos e pode tudo o que for possível dentro das limitações do software, ou
consagrar um diálogo, ou ainda, prejudicar consideravelmente da empresa responsável por este. Tal qual um instrumento que
uma boa narrativa. Com isso, é fácil imaginar a rápida ascen- não alcança todas as notas tal qual o compositor gostaria de

próxima
são do estilo da Machinima. Uma produção em que não é neces- escrever. A melodia pode ficar sem sentido.
sária a captação de imagens nem a sua custosa pós-produção. Usando a analogia do compositor musical, sabe-se que o
Qualquer pessoa interessada em produzir Machinima necessita bom uso da caneta trará bons resultados em sua composição. Um
de poucos equipamentos. Mas será possível qualquer produção compositor deve saber a tessitura de cada instrumento para
com este recurso? Qual discurso essa modalidade de cinema não causar equívocos no primeiro dia de ensaio de sua or-
permite? Qual é o seu roteiro? questra. Assim como o possível roteirista de uma seqüência de
anterior Sabendo o que é possível em uma produção de Machinima, de- Machinima, sabendo de suas possibilidades e restrições, este
ve-se observar o sistema e o software escolhido. Alguns jogos compositor de narrativas poderá usar sua criatividade sobre o
9 ARVERS, Isabelle. Mostra de Filmes Machinimas. 2009, São Paulo, Palestra, Itaú Cultural, 2009.

253
possível e o “quase” possível. Estamos praticamente utilizando um produto para gerar
arte. Como Duchamp temos a consciência de que este material
1 - Roteiros com temas do mesmo nicho
escolhido terá, à nossa escolha, uma nova face. Partindo do
mesmo processo, o ready-made de Duchamp teve seu desdobramen-
Os recursos utilizados para descrever a seqüência de uma
to a partir da ruptura do pensamento artístico da época. E de
produção na linguagem visual da Machinima, além da superação
alguns manifestos dos futuristas.
das restrições técnica, terão seu vínculo com o produto a qual
O manifesto contemporâneo está presente nas produções ar-
é derivada. Ou seja, por mais que este conjunto seja trans-
tísticas e gerando novas ideologias contrariando os que re-
mitido em ambientes físicos e digitais diversos, sua estética
clamaram a falta delas10. A ruptura está “no ar”, na rede e na
será sempre de um jogo, mais do que um ludus qualquer, será
nova forma de comunicação. O hibrido de cinema e jogo nasceu
de um vídeo jogo (vídeo-game) e carregará toda a sua estética
assim como nasce a arte da pós-produção descrita por Bour-
capa
visual. A construção de caracteres referenciados ao jogo de-
riaud, da mescla, da possibilidade de leituras e releituras.
verão ser apoiadores dos personagens disponíveis. Este leit-
A produção de filmes de gêneros variados e constatados como
motiv conduzirá a criação que poderá utilizar elementos de
produções livres, pode ser observado como formação de lingua-
afirmação, negação e hipérbole, sendo cada construção um vetor
gem. Mas o de maior clareza em manifestação do novo meio e que
de observação. No caso da afirmação do conteúdo, o discurso
o define como possível linguagem é o aparecimento, mesmo que
do roteiro passará dentro de um jogo, dentro de sua montagem

universidade
tímido, dos filmes com discurso de protesto. Esse gênero tem o
estética. Em contra partida, a negação tentará afastar-se do
seu lugar como ruptura e dele sai a necessidade da construção
jogo, possível em descrição de paisagens onde não fica claro
artística. No momento do protesto, estes artistas encontraram
qual momento do jogo foi retirado.
uma ferramenta que os possibilitasse a comunicação em canais
A hipérbole parece ser o recurso mais utilizado por pro-
abertos. Ai está o maneirismo com possibilidade de ocupar a
sumário
fissionais e amadores. Talvez por gerar uma face humorada, e
vaga de vanguarda. O que Marino definiu como sendo “um filme
de fácil aderência ao público dos ambientes eletrônicos, mais
concebido em tempo real no interior de um ambiente de sínte-
do que isso, geralmente jovens e conhecedores dos persona-
se” participa hoje de festivais internacionais e ganha cada
gens, torna fácil a narrativa do humor aumentando-se carac-
dia mais adeptos. Bem pode ser o surgimento de uma linguagem
terística, ou explodindo desnecessariamente algo ou alguém.

próxima
expressiva e ideológica, digna de construção vanguardista e
Retornamos ao princípio do humor dos primórdios do cinema, o
sólida11.
chamado “pastelão”, quando filmado o movimento rápido, pare-
cia uma novidade, e este movimento gerava tortas nas faces dos Referências Bibliográficas
atores. São traços bem definidos nas narrativas que geraram
• ARVERS, Isabelle. Mostra de Filmes Machinimas. 2009, São Paulo, Palestra,
símbolos de fácil compreensão. A eloqüência das seqüências Itaú Cultural, 2009.
anterior passa por uma re-significação de um pastelão contemporâneo. •
• BARTHES, Roland. Introdução à Análise Estrutural da Narrativa. In: Análise
2 - O novo Ready-Made 10
11
SUBIRATS, Eduardo. Da Vanguarda ao Pós-Moderno. São Paulo: Nobel, 1991.
SEVCENKO, Nicolau. O Enigma Pós Moderno. Campinas: Unicamp, 1990.

254
Estrutural da Narrativa. Petrópolis: Vozes, 1971. Título original em Fran-
cês: L’Analyse Structurale du Récit, tradução: Maria Zélia Barbosa Pinto.
• BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica.
São Paulo: Brasiliense, 1993.
• BOURRIAUD.Nicolas – Pós-Produção: como a arte reprograma o mundo contem-
porâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 26
• CASTELLS, Manuel. A Galáxia da Internet: Reflexões sobre a internet, os
negócios e a sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
• COUCHOT, Edmond. A tecnologia na arte: da fotografia à realidade virtual.
Porto Alegre: UFRGS, 2003.
• ECO, Umberto. James Bond: Uma Combinatória Narrativa. In: Análise Estru-
tural da Narrativa. Petrópolis: Vozes, 1971. Título original em Francês:
L’Analyse Structurale du Récit, tradução: Maria Zélia Barbosa Pinto.
• SEVCENKO, Nicolau. O Enigma Pós Moderno. Campinas: Unicamp, 1990.

capa
• SUBIRATS, Eduardo. Da Vanguarda ao Pós-Moderno. São Paulo: Nobel, 1991.

universidade

sumário

próxima

anterior

255
Macky Gruber. It is proposed a narratological discussion with
NARRATIVA AUDIOVISUAL COMPLEXA Propp (1970) and Bremond (1977), pointing also an interactive
E MODULAR: FORKING PATH structure classified as closed, according to Manovich (2000),
NARRATIVES E PUZZLE FILMS . to the cyberspace and Digital TV.
Key words: Audiovisual; Interactivity; Complexity, Modu-
larity.

Introdução

A narrativa audiovisual, como produto da descrição de


L etícia P assos A ffini
ações que se desenrolam dentro de um espaço sobre pressu-
doutora12 em Comunicação e Cultura pela UFRJ, Faculdade de Arquitetura Artes e

capa
Comunicação, UNESP, affini@faac.unesp.br posição lógica, utilizando-se de uma linguagem sincrética,
composta por recurso audíveis e visuais, complexificou-se,
L uis E nrique C azani J unior
graduando em Comunicação Social - Radialismo, Faculdade de Arquitetura Artes principalmente, pelo intenso processo de hibridização13 de
e Comunicação, UNESP cazani.unesp@hotmail.com paradigmas tecnológicos, como a interatividade, a portabi-
O presente trabalho tem como objetivo apresentar a com- lidade e a mobilidade, advindo das constantes inter-relações
plexificação das narrativas audiovisuais contemporâneas com entre as plataformas de comunicação pelo qual passou; e pela

universidade Simons (2008) e Gosciola (2009), nas categorias denominadas convergência midiática14 com o fluxo de conteúdos entre mí-
forking path narratives e puzzle films, a partir do estudo de dias que acabam por carregar esses mesmos paradigmas insti-
caso proposto por Yin (2005) aplicado ao filme The Butterfly tuidos em sua estrutura. Como implicação, a busca pela sua
Effect (2004), de Erci Bress e J. Mackye Gruber. Propõe-se uma integração junto ao expectador, através de mecanismos que

sumário discussão narratológica com Propp (1970) e Bremond (1977), forneceriam um maior sentido de realimentação, destituindo-o
apontando também uma estrutura interativa classificada como do comportamento passivo amplamente promovido pela indústria
fechada, segundo Manovich (2000), para o ciberespaço e TV Di- cultural15, para a consolidação de estruturas narrativas in-
gital. terativas e participativas16.
Palavras chaves: Audiovisual; Interatividade; Complexida- Nesse contexto evolutivo, a partir da diferenciação es-

próxima de; Modularidade. trutural, pode-se classificar um seleto grupo de narrativas


audiovisuais complexas segundo Simons (2008) e discutidas
This paper aims to present the complexity of contemporary por Gosciola (2009) em: forking path narratives, puzzle fil-
audiovisual narratives with Simons (2008) and Gosciola (2009), ms, mind-game films, modular narratives, database narratives,
in categories called “forking path narratives” and “puzzle multiple-draft films, subjective stories e network narrati-
anterior films” from the case study proposed by Yin (2005) applied to 13 Termo proposto por Marshall McLuhan em “Os Meios de comunicação como extensões do homem”. São Paulo: Cul-
trix, 2005.
the film “The Butterfly Effect” (2004), by Erci Bress and J. 14 Termo proposto por Henry Jenkis em “Cultura da Convergência”. São Paulo: Aleph, 2009.
15 Termo cunhado por Theodor Adorno em Dialética do Esclarecimento, 1947.
12 Projeto com fomento do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Cientifica do CNPq. 16 Divisão proposta por Henry Jenkis em “Cultura da Convergência”. São Paulo: Aleph, 2009.

256
ves. Diversos autores estudam tais estruturas, como também presented as normal. The films thus once more “play games” with the
audience’s (and the characters’) perception of reality: they oblige one
divergem em suas definições.
to choose between seemingly equally valid, but ultimately incompatible
O presente projeto apresentou uma breve definição dessas “realities” or “multiverses”. (ELSAESSER, 2009, p.14-15)20
categorias, selecionando forking path narratives e puzzle
Marsha Kinder define database narratives como uma “refers to
films para análises, com o estudo de caso do filme The Butter-
narratives whose structure exposes or thematizes the dual pro-
fly Effect (2004), de Erci Bress e J. Mackye Gruber. Discutiu-
cesses of selection and combination that lie at the heart of all
-se a narrativa audiovisual complexa desnudando sua essência
stories” (2002, p.6), ou seja, seleção de determinada informação
clássica, extraindo uma estrutura de interação fechada, se-
e a sua combinação com outros elementos para gerar a trama.
gundo Manovich, questionada quanto ao seu envolvimento e via-
Com o estabelecimento de várias possibilidades de relei-
bilidade para produção de conteúdo para mídia digitais.
turas e sincronização de sentidos na historia, Cameron define

capa Estruturas narrativas forking path narratives como:


Some modular narratives create disjunctive leaps, not just between

Bordwell17 define network narrative como um tipo de filme present, past and future, but between alternative temporalities. Com-
monly, these different versions are introduced via a ‘forking paths’
que
conceit. Forking-path narratives juxtapose alternative versions of
Opens up a social structure of acquaintance, kinship and friendship a story, showing the possible outcomes that might result from small
beyond any one character’s ken. The narration gradually reveals the changes in a single event or group of events. The forking-path narra-

universidade
array to us, attaching us to one character, then another. And the tive, on the other hand, introduces a number of plotlines that usually
actions springing from this social structure aren’t based on tight cau- contradict one another. (CAMERON, 2008, p.10)21
sality. The characters, however they’re knit together, have diverging
purposes and projects, and these intersect only occasionally – often Bordwell define multiple drafts narrative como um caso
accidentally. (BORDWELL, 2009, p.190)18 de forking path narratives no qual, ao invés de bifurcações,
A hibridização de formatos que unem a teoria matemática ocorrem combinações de tramas.
sumário dos jogos com audiovisual é definida por Thomas Elsaesser19 As diferentes formas de apresentação e construção tempo-
como mind games films. ral são definidas por Cameron como modular narrative.
It comprises movies that are “playing games,” and this at two levels: These films, which I am calling ‘modular narratives’, articulate a

there are films in which a character is being played games with, without sense of time as divisible and subject to manipulation. They suggest

(often both the pleasures and the threats offered by a modular conception of

próxima
knowing it or without knowing who it is that is playing these
very cruel and even deadly) games with him (or her): Other films of time (...) offering a series of disarticulated narrative pieces, of-

the mind-game tendency put the emphasis on “mind”: they feature central ten arranged in radically achronological ways via flashforwards, overt

characters whose mental condition is extreme, unstable, or pathological; repetition or a destabilization of the relationship between present and

yet instead of being examples of case studies, their ways of seeing, past. (CAMERON, 2008, p.1)22
20 Constituem-se de filmes construídos segundo duas perspectivas: o personagem está num jogo e não sabe ou
interaction with other characters, and their “being in the world” are não sabe quem é que projetando o jogo para si; ou o telespectador é convidado a vislumbrar cenas ambíguas e a
partir dessas, desvendas mistérios. Os filmes desse modo jogam com a percepção de realidade do público e das
17 David Bordwell em “Poetics of Cinema”. New York: McGraw-Hill, 2009. personagens, obrigando-o a escolher entre realidades. Livre tradução do autor.

anterior
18 Cria uma estrutura social de relacionamento, parentesco e amizade além das características da personagem. 21 Algumas narrativas modulares criam transições disjuntivas não apenas entre o passado, presente e futuro,
A narrativa nos revela gradualmente um grande número de diferentes tramas, amarrando-nos a uma personagem, e mas entre temporalidades alternativas. Em geral essas diferentes versões são introduzidas por caminhos bifur-
depois a outra. E as ações provindas dessa estrutura social não são baseadas em uma justa causalidade. Contu- cados, justapondo versões alternativas de uma história, mostrando os possíveis resultados que podem surgir de
do, as tramas estão ligadas em rede, apesar de apresentarem projetos distintos, cruzados ocasionalmente. Livre pequenas alterações em um único evento ou grupo de eventos. As narrativas introduzem um número de tramas que
tradução do autor. geralmente contradiz alguma outra. Livre tradução do autor
19 The Mind Games Films in “Puzzle Film: Complex Storytelling in Contemporary Cinema” Wyley Blackwell, Oxford, 22 Esses filmes articulam uma sensação de tempo como divisível e objeto de manipulação. Elas surgem tanto os pra-
2009. zeres como as ameaças oferecidas por uma concepção de tempo modular oferecendo uma série de peças narrativas desar-

257
Nesse trabalho, aplica-se categorização de modular a to- belece que a organização dos sistemas complexos, transposta
das as narrativas, visto que a modularidade é característica nesse trabalho para a narrativa, fundamenta-se nos seguintes
das plataformas onde são submetidas como também ao audiovisual, binômios: ordem/desordem e organização/interação.
construído a partir de um processo de montagem, associação e sin- Nada dispõe de uma ordem única e nada é completamente desordenado:
ordem e desordem são recursivas e a percepção sobre elas depende,
cronização de sentido. Com a conversão digital, ou seja, a con-
necessariamente, da concep­
ção de organização de quem as constitui –
versão do analógico ao código binário, a mídia digital tornou- organização que se dá por meio de interações entre as pessoas. Inte-
-se programável, articulada e formatada, através de expressões ragindo entre si, tecem-se diferentes relações que se afiguram enquanto
organizações às vezes ordenadas e outras vezes desordenadas para um
numéricas. Estabelece-se, portanto, o principio de modularidade
observador externo. Para compreender a ordem de uma organização qual-
com relações de interdependência do objeto em relação ao con- quer, é preciso compreender os significados da desordem que favorecem
junto formado. Entretanto, o resultado obtido tem sido maior do as interações entre os sujeitos. (LACERDA, 2010, p.238)

que a soma das partes, ao apresentar e construir novos jogos de


capa
Na narrativa audiovisual estudada, a questão temporal é
sentidos oriundos da associação imagética, concomitante a novos
o que torna a sua estrutura complexa. O tempo, instituído
tempos e/ou espaços, dentro da esfera actancial da narrativa.
como irreversível, equivale dentro dos binômios, a “ordem”. A
Filmes com manipulações e controle do fornecimento das
“desordem” se dá por um fator externo, um elemento que causa
informações ao expectador na construção de enigmas na histó-
a instabilidade e mudança no sistema, instituindo uma nova
ria, são classificados como puzzle films. Por fim, define-se
“organização”, com a transformação do tempo em reversível. A

universidade
subjective stories, como a manifestação subjetiva do persona-
partir dessa reversibilidade, surge a recursividade, opção de
gem através de historias com descrição de estados psíquicos.
voltar ou não no tempo, de mudar ou não as situações apresen-
tadas. Gera-se, portanto, a “interação” no sistema como de-
Storyline
monstrado no quadrado lógico de oposições abaixo.

sumário
The Butterfly Effect traduzido como Efeito Borboleta, de
Erci Bress e J. Mackye Gruber, produzida pela New Line Cinema,
é uma produção cinematografica estadunidense de 2004 estrelada
por Ashton Kutcher como Evan Treborn. Diante da redescoberta
de momentos da sua infância ocultados por problemas em sua me-

próxima mória e da possibilidade de alterá-la, Evan passará a buscar a


felicidade dos seus amigos, mesmo desconhecendo as conseqüên-
cias e as novas situações que tal atitude desencadeará.

Complexificação narrativa

anterior O pensamento complexo na concepção de Edgar Morin esta-

ticuladas, frequentemente arranjadas por uma série de direções não cronológicas através de avanços e retrocessos na
linha temporal da narrativa, causando uma desestabilização entre o passado e o presente. Livre tradução do autor

258
FIGURA 1 – Complexidade em Efeito Borboleta, a se dá pelas alterações proporcionadas nas retomadas temporais
partir de um quadrado lógico de oposições. possibilitadas pelos diários, nas seguintes situações: abuso
sexual de Kayleigh por Evan instigado por George; a briga de
Em The Butterfly Effect, a desordem se dá com a possibi- Tommy e Evan no ferro velho e as conseqüências da explosão da
lidade de retornar as situações vividas através da releitura bomba pelos amigos em uma caixa de correio.
dos diários, construídos durante a infância pelo protagonista As bifurcações se revelam nas condutas de Evan até que,
Evan. Este é o fator externo que gera a desordem, com a cria- através dessas, o fim seja atingido e a atualização seja al-
ção de uma nova organização no tempo da narrativa. cançada. Bremond divide em processos, a obtenção dessa atua-
lização denominada de melhoramento. Após a desestabilização
Efeito Borboleta na categoria forking path narratives
da narrativa, o melhoramento busca resgatar o equilíbrio da
narrativa.
capa
Apresentando-se desdobramentos ou multifurcações de ce-
nas, as estruturas denominadas de forking path narratives,
são construídas a partir de diferentes seqüências para uma
mesma cena na trama. O sentido empregado nessa narrativa já
podia ser vislumbrado na obra “O jardim de veredas que se bi-
furcam” de Jorge Luis Borges, de 1941, no qual se muda o des-

universidade
tino da personagem, a partir de cada novo direcionamento em
um jardim em forma de labirinto.
O jardim de veredas que se bifurcam é uma imagem incompleta, mas não
falsa, do universo tal como o concebia. Diferentemente de Newton e
de Schopenhauer, seu antepassado não acreditava num tempo uniforme,

sumário
absoluto. Acreditava em infinitas séries de tempos, numa rede cres-
cente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos.
Essa trama de tempos que se aproximam, se bifurcam, se cortam ou que
secularmente se ignoram, abrange todas as possibilidades. Não exis-
timos na maioria desses tempos; em alguns existe o senhor e não eu;
em outros, eu, não o senhor; em outros, os dois. Neste, em que me

próxima
deparo com favorável acaso, o senhor chegou à minha moradia; em ou-
tro, o senhor, ao atravessar o jardim, encontrou-me morto; em outro,
FIGURA 2 – Mapa das ações de Efeito Borboleta.
digo estas mesmas palavras, mas sou um erro, um fantasma. (BORGES,
1941, p.50)
O primeiro processo se dá com o impedimento do abuso se-
Estabelecendo o mapa de possibilidades lógicas da narra- xual de Kayleigh por Evan. Com o obstáculo eliminado, há uma
tiva, a partir dos estudos propostos pelo semiólogo Claude degradação: Tommy passa ameaçar Evan pelo seu relacionamento
anterior Bremond (1977), aponta-se como a atualidade, ou seja, o fim com sua irmã, Kayleigh. Há o confronto entre eles, culminando
a se atingir na obra, a felicidade de Tommy, Evan, Kayleigh com a morte de Tommy e a prisão de Evan. O melhoramento não
e Lênin. A atualização ou conduta para se atingir este fim

259
é obtido. degradação que eles nunca se conheceriam. Como resultado, os
O segundo processo de melhoramento tenta privar Evan de quatro personagens atingem a felicidade dos contos de fadas e
permanecer na prisão, como também de evitar a morte de Tommy. o melhoramento é obtido, na narrativa.
Dá-se na retomada na cena do confronto de Tommy e Evan no
ferro velho, também através dos diários e com auxilio de um Efeito Borboleta na categoria puzzle films

metal. A organização e obtenção do primeiro se realizam atra-


Seguindo a proposição dos estudiosos Mary Beth Haralovich
vés de um acordo com outro presidiário para resgatar os di-
e Michael W Trosset, “o prazer da narrativa advém do desejo
ários anteriormente perdidos. Retoma-se o passado, impedin-
de saber o que acontecerá em seguida, de ter a lacuna aberta e
do o confronto. Embora o obstáculo esteja eliminado, há uma
fechada, continuamente, até a solução da história” (JENKINS,
nova degradação: Lênin ataca Tommy com o metal, matando-o.
2009, p.58). Utilizando como recurso, a ocultação e o contro-
Apontam-se como conseqüências: a prostituição de Kayleigh e
capa
le do fornecimento das informações para se manter a atenção
a prisão de Lênin em um centro psiquiátrico. O melhoramento
do expectador, caracteriza-se um grupo de narrativas audio-
não é obtido.
visuais com a denominação de puzzle films, em livre tradução,
O terceiro processo de melhoramento tenta evitar a morte
produções audiovisuais que criam enigmas pela supressão de
de Tommy, a prostituição de Kayleigh e a prisão de Lênin. O
informações ou cenas que abrem a narrativa para um proces-
obstáculo retomado é a explosão da caixa de correio que re-
so de investigação pelo expectador, desafiado a vislumbrar e

universidade
sultou na morte de uma mulher e de um bebê. Há uma degradação
questionar do porque desse mecanismo, naquele momento. Geor-
quando Evan tenta avisá-la, atingido pela explosão. Sofre am-
ge Gilder afirma que “perguntas não respondidas criam tensão
putações não obtendo o melhoramento.
[...] indicando regiões onde é preciso inventar e inovar”
O quarto processo de melhoramento se dá na tentativa de
(JENKINS, 2009, p.57), atentando-as pela sua significação.
evitar as amputações de Evan, como o câncer de sua mãe, desen-
sumário
Na teledramaturgia brasileira, tem-se como exemplo: quem
cadeado por esse incidente. Com a ajuda de Lênin, Evan retoma
matou Saulo Gouveia (Werner Schünemann) em Passione (2009),
o passado, confrontando-se com o George, na cena em que ocor-
escrita por Silvio de Abreu; Odete Roitman (Beatriz Segall)
re o abuso sexual. Há uma degradação com a morte de Kayleigh,
em “Vale Tudo”, de Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leo-
atingida pela bomba que seria utilizada na cena trasncrita
nor Basseres. (1988/1989); Lineu Vasconcelos (Hugo Carvana)

próxima
acima. Evan é internado em uma clinica psiquiatrica e o me-
em “Celebridade” (2003/2004) de Gilberto Braga; ou Salomão
lhoramento não é obtido.
Hayalla (Dionísio Azevedo) em “O astro” (1977/1978) de Janete
O quinto processo de melhoramento se dá na tentativa de
Clair, novelas da Rede Globo, como marcos desse tipo de ocul-
impedir a morte de Kayleigh. Depois de retornar todas as op-
tação, recurso articulatório que desafiaram e que continuarão
ções, Evan precisa impedir seu encontro com amada. Só assim,
a desafiar a audiência, enquanto houver sendo utilizada.
a felicidade de todos poderá ser alcançada. Com a ajuda da
anterior sua mãe, consegue resgatar um filme, que apresenta esse mo-
Em programas de realidade como Survivor23 deu-se a origem
a um fenômeno denominado de spoilers, revelações sobre deter-
mento. Evan obtém sucesso no impedimento do encontro, com a
23 No Brasil, conhecido e exibido pela Rede Globo como “No Limite”

260
minadas partes do enredo ou do roteiro do programas oriundos Evan?
“do desencontro entre as temporalidades e geografias das ve- Há uma quebra na linearidade temporal, passando a mostrar
lhas e novas meios de comunicação” (JENKINS, 2009, p.57) e do um período de treze anos antes ao remetido a essa situação,
jogo de informações para se manter o interesse da audiência que sucede a vinheta, marco de inicio e separação dessas duas
no produto audiovisual. situações. Não se considera, portanto, essa exposição como
Na obra analisada, ao ocultar as ações principais e suas situação inicial da narrativa.
conseqüências, o autor extrai do contexto da narrativa, de- A situação inicial é considerada um elemento morfológico
terminadas cenas para serem incansavelmente vislumbradas, a importante visto que apresenta o herói e a estrutura que será
posteriori, impedindo repetições desnecessárias e a perda da modificada durante toda produção. Em Efeito Borboleta, Evan
informação no decorrer da trama, uma vez que essas cenas são aparece brincando com o cachorro, sucedido por um com sua
exibidas logo no inicio. São elas: abuso sexual de Kaylei- mãe. Toda a produção cinematográfica girará sobre os sujei-
capa gh por Evan, instigado por George; a briga de Tommy e Evan tos e elementos expostos como demonstra o dialogo a seguir:
no ferro velho e as conseqüências da explosão da bomba pelos o cachorro, a ausência do pai de Evan (afastamento), em con-
amigos, em uma caixa de correio. Como a trama gira em torno traponto a presença dos pais dos amigos e actantes: Kayleigh,
dessas ações e de suas conseqüências, torna-se recurso essa Tommy e Lênin.
sua utilização. EVAN: A gente vai se atrasar de novo!

universidade
Há outras ocultações e enigmas que são vislumbradas com ANDREA: Desde quando se preocupa com o horário da aula?
aplicação das 31 funções dos personagens de Vladimir Propp EVAN Tem as fotos da noite dos pais!
24, na construção do seu percurso nesse tipo de narrativa au- ANDREA Não se preocupe, chegará a tempo.
diovisual complexa. A ocultação das informações essenciais se EVAN: E o papai vai?
dá pela aplicação da função “interdição”, no qual é proposto ANDREA: Você já sabe a resposta.
sumário ao protagonista viver sem saber o aconteceu em determinadas EVAN: Não pode sair só por um dia?
passagens de sua infância por um problema de memória, compar- ANDREA: Eu já falei mil vezes, é perigoso demais para
tilhado com o publico a não informação do ocorrido. ele.
Logo no inicio da trama, o protagonista Evan surge em meio EVAN: Mas o Lênin falou que o pai dele vai. E o pai do

próxima
a uma tensão criada por uma perseguição, seguida de um ar- Tommy e da Kayleigh também.
rombamento e de justificativas para uma determinada atitude ANDREA: Tudo bem, eu já entendi. Mas eu não sou tão ruim
não demonstrada, que culminará com o salvamento de alguém: assim, sou?
“Se alguém achar isto significa que meu plano não deu certo EVAN: Não!
e eu já estou morto, mas se eu puder voltar de alguma maneira A mãe de Evan deixa-o na escola para ir trabalhar (afas-
para o inicio de tudo isso talvez eu seja capaz de salva-la”. tamento). Na escola, aos alunos, é imposto que desenhem a
anterior Cria-se aqui mais um enigma na narrativa: quem será salvo por profissão que desejam exercer (interdição). Evan desenha uma
24 Vladimir Propp foi um semiólogo que analisou, estruturou e nomeou os componentes básicos narrativos dos
contos populares russos, de acordo com sua funcionalidade. No texto corrente, apresenta a definição da função cena de violência (transgressão). A professora mostra o dese-
entre parênteses, como consta em Morfologia do Conto Maravilhoso.

261
nho à sua mãe comentando o fato dele não se lembrar do desenho memória. O médico afirma que ele pode não estar sabendo lidar
(mediação). Tal fato se dá por uma interdição ou ocultamente com o fato de não ter pai (mediação). É, então, conduzido até
de informações, fruto do desenrolar da narrativa. o instituto psiquiátrico para conhecê-lo (viagem). Após uma
Diante disso, resolve levar Evan para fazer exames (pro- interdição, é mostrado o ataque de Jason contra seu filho,
va), que reage negativamente (reação do herói). É indicado a Evan. (prova). Nessa interdição, o pai proíbe Evan de alterar
Evan, que passe a relatar seu cotidiano em diários para o mo- o passado (interdição). Com a sua recusa, Jason ataca-o. Os
nitoramento da memória. Tal situação é posto pelo médico a mãe enfermeiros tentam salvá-lo, culminando com a morte de Jason
e ela ao filho, podendo ser considerado como uma interdição. (afastamento intensificado).
Contudo, classifica-se como “o meio mágico que passa as mãos Com uma passagem de tempo de seis anos, Tommy, Kaylei-
do herói”, já que os diários possibilitarão a Evan interferir gh, Evan e Lênin são reapresentados na casa de George (afas-
em situações passadas (presente). A mãe de Evan é surpreendi- tamento). Tommy mexe nas coisas do pai e encontra uma bomba
capa da ao vê-lo com uma faca nas mãos. Ele, por sua vez, não se (presente). Juntamente com Evan, convence Lênin de explodi-
recorda do porque estar com ela, interdição ou ocultação de -la em uma caixa de correio (engano, cumplicidade). Com a sua
informações fruto da narrativa. Evan sofre com a falta do pai explosão, ocorre a morte de uma mulher e um bebê, revelados,
(carência) buscando um exemplo de paternidade, na historia. posteriormente, fruto de mais uma interdição.
Sua mãe deixa-o na casa de George, demonstrando estar apre- Lênin entra em estado de choque e a mãe de Evan, inter-

universidade
ensiva com o filho pela cena anterior (conhecimento). Deixa roga-os. (mediação). Ela decide, então, levar Evan para uma
seu telefone (informação) e orientações para ele se compor- sessão de hipnose, a fim de obter respostas, o que não acon-
tar. (interdição). Tal situação não é considerada aqui como tece (prova).
um simples “afastamento”, visto que, o herói, Evan busca e No cinema, Tommy obriga Evan a não perguntar mais sobre
aceita George como referência paterna (viagem). o incidente, (interdição), enquanto a mãe de Evan acaba por
sumário O antagonista George persuade Evan para que ele faça um descobrir sobre o evento, pela televisão (mediação). Com a
filme com sua filha Kayleigh. Alega que ele será o ”astro” e revelação, ela decide mudar de cidade, considerando como uma
solicita sigilo sobre isso (engano, interdição e cumplici- interdição, visto que, não queria mais o relacionamento do
dade). Evan não se recorda, posteriormente, do porque estar filho com os amigos, após esse fato trágico.

próxima
sem roupa, ocultamente fruto da narrativa. Diante da ausência Lênin sai do hospital. Evan e Kayleigh vão visitá-lo em
dessa informação, questiona George, que chantageado, ordena sua casa (viagem). Posteriormente, vão a um ferro velho se
que pare de fazer perguntas (aceitação e interdição). Evan deparando com Tommy tentando matar o cachorro de Evan, o que
persiste com Kayleigh, sem êxito. desencadeia uma briga (luta). Após uma nova interdição, Evan
Com a produção do filme há a ocorrência do abuso sexual acorda e encontra o cachorro carbonizado. Durante esse pro-
de Kayleigh por Evan, gerando danos psicologicos para eles e cesso, Lênin é ameaçado por Tommy, o que o impede de auxiliar
anterior para Tommy, que assistia a cena. Evan, que é agredido juntamente com Kayleigh (dano). Em sua
Os exames de Evan não demonstram qualquer problema com sua despedida, Evan escreve num papel que voltará para buscar

262
Kayleigh (reação). caso continue a filmá-los. (luta). Propõe-se, então, ao he-
Sete anos se passam, com uma nova apresentação de Evan em rói uma tarefa difícil: conviver com a nova realidade que se
uma universidade. Como um estudante de psicologia, comemora originou dessa modificação (tarefa difícil). Posteriormente,
sete anos sem “apagões” de memória. há novo confronto entre Evan e Tommy (luta) que culmina com a
Após uma saída, Evan lê um dos diários encontrados pela e morte do ultimo e a prisão de Evan, numa posição antagônica
para sua acompanhante. (presente). Recorda o episódio do con- (castigo). A pedido de Evan, sua mãe se encarrega de levar
fronto com Tommy (transgressão). Confuso, decide voltar para os diários para a prisão. (presente e reação do herói). Na
sua antiga cidade, para confirmar se tal situação realmente prisão, esse se defronta com alguns prisioneiros, perdendo-
aconteceu (reação e viagem). É proposto um encontro com Lênin -os (luta). Em seu poder, ficam apenas algumas das páginas.
(tarefa difícil) que comprova a situação vislumbrada (cum- Evan precisa convencer seu companheiro de cela a ajudá-lo a
primento). Evan relembra outra situação: a explosão da bomba recuperá-los (tarefa difícil). Para isso, se utiliza das pou-
capa (transgressão). Queima-se com um cigarro (marca) enquanto re- cas paginas que sobraram para uma demonstração das suas ha-
torna a essa situação. bilidades (transgressão). Na nova retomada do passado, Evan
Evan procura Kayleigh para mais respostas diante das ou- se machuca, buscando uma marca de convencimento, na cena da
tras interdições (viagem, tarefa difícil). Apresentam-se os produção do desenho já exposta. Convence, então, o seu com-
seguintes fatos: Tommy ficou preso por alguns anos, enquanto panheiro de cela a ajudá-lo num defronte com os outros presos

universidade
George perdeu a guarda dos filhos. Sem mais, Evan volta para (luta), resgatando, assim, os diários (presente). Retoma mais
casa e se depara com uma ameaça de Tommy, ao telefone, (me- uma vez ao passado (transgressão), agora, na situação da mor-
diação) e a noticia do suicídio de Kayleigh (castigo), após te de seu cachorro.
esse encontro. Já sabendo o que iria acontecer, procura um objeto para
A partir dessa exposição, pode-se afirmar que a narrativa auxiliar Lênin, na ruptura do saco onde o cachorro estava pre-
sumário foi construída através de lacunas ou interdições que estabe- so. Evan convence Tommy a não matar o cachorro (luta), enquan-
lecerão as releituras, sem finalizar a obra ou com a proposi- to Lênin acaba por atacá-lo. Tommy morre e Lênin enlouquece,
ção de um novo começo. Com as lacunas, Efeito Borboleta não penalizado nessa função também pelas mortes do bebê e da mu-
tem a preocupação com o tempo da ação. A mudança na esfera lher com a explosão da caixa de correio que causou (castigo).

próxima
actancial passa a ser também constantemente atentada, reen- Diante de uma nova realidade, Evan convulsiona e a sua mãe
quadrando os actantes ou personagens, a partir de suas ações resolve levá-lo para refazer seus exames (prova). Enquanto
e conseqüências. sua mãe conversa com o médico, Evan rouba algumas chaves (pre-
Diante do conhecimento e da sua possibilidade de retornar sente). Procura Lênin (reação do herói, viagem) pelo sanató-
e mudar as situações do passado, Evan reage diante da noticia rio. Em um confronto, Lênin acusa Evan pelo ocorrido (luta).
do suicido de Kayleigh (reação do herói), voltando à cena que Evan retoma mais uma vez ao passado (transgressão) de-
anterior culminou com seu abuso sexual (Presente, viagem, transgres- frontando-se mais uma vez com George (luta e reação do herói).
são). Interfere na situação afirmando que denunciará George Com uma nova realidade, Evan vai até um motel (viagem) atrás

263
de Kayleigh, encontrando-a como uma prostituta (mediação). Em sim, o direito de amar Kayleigh. (castigo) No fim da historia,
resposta aos acontecimentos, Kayleigh propõe a Evan que salve os diários são queimados.
a mulher e o bebe da explosão da morte (tarefa difícil).
Na nova retomada, Evan tenta avisar a moça da exis- Estrutura interativa narrativa

tência da bomba na caixa de correio (reação do herói, trans-


gressão, cumprimento), sendo atingido pela explosão, enquan-
to Tommy acaba por salva-los (marca). É proposta ao herói
uma nova tarefa: conviver com as deficiências oriundas desse
acontecimento, e com o amor entre Lênin e Kayleigh (dano).
Sem sucesso, Evan tenta o suicídio (prova). Descobre-se tam-
bém que a mãe está com câncer de pulmão, fato que se deu como
capa reflexo desse acontecimento (mediação).
Evan decide mais uma vez mudar o passado (transgressão)
para destruir a bomba que incitou todos esses acontecimentos,
novamente, a partir da cena do abuso sexual. Procura a bom-
ba no local, enquanto George gravava-os. De posse desta, se

universidade
defronta com ele (presente, luta) ascendendo-a. A explosão
atinge Kayleigh. (reação do herói) que morre. Evan é preso em
um sanatório, condenado por esse ato. (castigo).
FIGURA 3 – Mapa de interatividade do protótipo desenvolvido.
Numa nova tentativa de mudar o passado, Evan suplica pelos
diários. O médico afirma desconhecer da sua existência e o in- Através de um programa de edição de vídeo, fragmentou-se a
sumário forma dos graves danos cerebrais que ele possui. (mediação). obra instituindo as seqüências em uma interface. Produziu-se
Um vídeo caseiro com o encontro de Kayleigh e Evan entra em uma estrutura de interatividade fechada de acordo com Manovi-
cena. (presente), trazido pela sua mãe. Com ele em mãos, Evan ch (2000), apresentando ao Grupo de Pesquisa e Experimentação
é perseguido pelos médicos (perseguição) enquanto procura um em Audiovisual e Jornalismo Corporativo para questionamentos.

próxima
lugar seguro para uma nova tentativa de retomar ao passado, Coube aos envolvidos nesse processo atentar pela necessida-
cena inicialmente exposta nesse tópico. Há, portanto, mais de de assistir as releituras, como também a sua ordenação. A
uma releitura do passado, impossibilitando que a amizade de priori, a interatividade passa a ser buscada através da cons-
Kayleigh e Evan aconteça e que o amor floresça (reação do he- tituição de um sistema de projeção, centrado na ambivalência,
rói, transgressão). na imersão e na identificação para a promoção do sujeito ati-
O dano inicial é reparado e Evan é reconhecido como herói,
anterior por atentar a felicidade dos quatro amigos (reconhecimento)
vo, através de recursos narrativos ou dispositivos tecnológi-
cos introduzidos na narrativa como o 3D, ARGs, que tornam o
e penalizado, pelas suas interdições no passado perdendo, as- expectador responsável pela sincronização de seu sentido, num

264
processo similar ao ocorrido no ciberespaço com a linguagem Considerações finais
hipertextual, transformando a narrativa linear em multiline-
ar. Embora complexa, a estrutura da narrativa audiovisual se-

Na demonstração do filme, 100% dos envolvidos assistiram gue os cânones propostos por Bremond e Propp, atentadas nas

todas as opções fornecidas, enquanto buscavam a felicidade os análises que foram realizadas. Com Propp, as interdições são

personagens, não atingida em algumas delas. Tal característi- livremente exploradas para as possíveis releituras, recur-

ca se dá através da diminuição do tempo das ações, em contra- so narrativo utilizado no controle da informação como pu-

ponto a um maior número de releituras e opções para as ações. zzle film. Já com Bremond, são as diversas tentativas de se

Procurou-se, em seguida, a satisfação quanto ao tipo de obter o melhoramento, através das remoções dos obstáculos e

interatividade proposta, denominada de fechada. Do total, 70% conseqüentemente, na instituição das degradações, que estão

dos envolvidos apontaram como opção viável, alegando a inca- estabelecidas as multifurcações da obra como forking path
capa pacidade de produção do audiovisual em interatividade aberta, narratives. Com estas análises pode-se projetar um tipo de

com o modo de produção audiovisual estabelecido que invia- estrutura narrativa de interação viável para a TV Digital,

biliza a prática em curto prazo. Foi ainda apontada a multi- seguindo a linguagem hipertextual do ciberespaço.

programação e as multiplataformas, como opções de exibição e No centro das discussões sobre o audiovisual, a busca por

disponibilização para as seqüências que não forem exibidas, mecanismos de interação com a audiência seguindo paradigmas
das mídias digitais, como a portabilidade e mobilidade que
universidade
evitando a perda de investimento financeiro; aos dispositivos
móveis, a recepção somente das opções desejadas; e o canal de viabilizam e possibilitam esse retorno fundamental para as

retorno da TV Digital como mecanismo definidor nas escolhas. plataformas de comunicação.

Quando perguntados se prefeririam assistir a obra frag-


Referências
mentada como exposta através do protótipo, ou como inicial-
sumário mente construída, houve equivalência nas proposições. Isso • BORDWELL, David:
12.jul.2010.
disponível em: <http://www.davidbordwell.net> Acesso

equivale dizer que, por mais que as plataformas de comunica- • BORGES, Jorge Luis: Ficções, Tradução Maria Kodama, São Paulo: Editora
ção instituam a interatividade, a portabilidade e a mobili- Globo, 1998.

dade, o comportamento passivo promovido pelas mídias massivas • BREMOND, Claude in Análise estrutural da narrativa: Roland Barthes; Tra-
dução de Maria Zélia Barbosa Pinto; Petrópolis: Vozes, 2008.

próxima
ainda persiste, pela sua continua imposição e resiste uma vez • BRANIGAN, Edward: Puzzle Film: Complex Storytelling in Contemporary Cine-
que já estamos acostumados com o processo instituído. ma, Wyley Blackwell, Oxford, 2009.
• CAMERON, Allan: Modular Narratives in Contemporary, Palgrave Macmillan,
Esse tipo de narrativa instiga ao receptor ser o mediador
2008.
do processo estudado, limitando a apreciação do espetáculo do • ESTRADA, A. A. Os fundamentos da teoria da complexidade em Edgar Morin.
audiovisual, ao mesmo tempo em que, a produção de sentido da Akrópolis Umuarama, v. 17, n. 2, p. 85-90, abr./jun. 2009.
• GOSCIOLA, Vicente: Narrativas complexas para a TV Digital: Do cinema de
narrativa esta sob o seu controle, como também, a sua mani-
anterior pulação.
atrações à interatividade in Televisão Digital; Desafios para a comunica-
ção. Porto Alegre: Sulina, 2009.
• JENKINS, Henry: Cultura da Convergência, Tradução Susana Alexandria São
Paulo, Aleph, 2009.

265
• LACERDA, Mitsi Pinheiro: disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S0104-40602010000100015&lng=pt&nrm=iso&tlng=
pt>, Acesso: 12.jul.2010.
• MANOVICH, Lev: The Language of New Media, The MIT Press, 2000.
• MCLUHAN, Marshall: Os meios de comunicação como extensões do homem. Tra-
dução de Décio Pignatari São Paulo: Cultrix, 2005.
• NEW LINE CINEMA, disponível em: <http://www.newline.com/properties/but-
terflyeffectthe.html>, Acesso 12.jul.2010.
• PROPP, Vladimir: Morfologia do Conto Maravilhoso, Tradução do russo de
Jasna Paravich Sarkan Rio de Janeiro, 2006.
• RENÓ, Denis Porto: Narrativa audiovisual: uma possibilidade de interati-
vidade na Internet. UMESP, Intercom. Disponível em: <http://www.intercom.
org.br/papers/nacionais/2007/resumos/R0183-1.pdf> Acesso: 12.07.2010
• SIMONS, Jan: Complex narratives. In New review of Film and Television Stu-
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capa • SYNOPTIQUE, disponível em:<http://www.synoptique.ca/core/articles/priva-
te_fears_in_public_places/> Acesso 12.jul.2010.
• THE BUTTERFLY EFFECT: Eric Bress e J. Mackye: New Line Cinema, Eua, 2004,
DVD, 113Min.
• YIN, Robert: Estudo de Caso: Planejamento e Métodos. Tradução: Ana Tho-
rell; consultoria, supervisão e revisão técnica desta edição: Cláudio Da-
macena Bookman. 2001.

universidade

sumário

próxima

anterior

266
which can be reviewed for their narrative efficiency through
A INTERFACE DO FILME INTERATIVO concepts of semiotics.
E SUA USABILIDADE NARRATIVA Key words: Interactive Movies, Interface, Storytelling

Cinema, novas mídias e interatividade

Desde seu surgimento, quando se apossou da linguagem tí-


pica do teatro (COSTA; 2006, p. 29), o cinema consistia em uma
apropriação dos meios tecnológicos vigentes em prol da cons-
N athan N ascimento C irino
Mestrando do Curso Comunicação Social da UFPE. Email: nathancirino@yahoo.com.
trução narrativa. Atualmente, o Cinema tem sido fruído atra-
br vés de novas plataformas e tem deixado as salas de projeção

capa
para se assumir como uma nova mídia diante de possibilidades
Resumo diversas apresentadas pelas novas tecnologias, dentre elas a
interatividade.
A construção narrativa por meio do cinema vem sofrendo
Termos o cinema como uma nova mídia está muito além do
algumas modificações significativas diante das possibilidades
fato de podermos assistir filmes em nossos celulares ou ter-
das mídias digitais, dentre elas a variabilidade, ou permuta-
mos acesso a eles via internet. Se quisermos compreender o

universidade
ção de unidades modulares, e a interatividade. Essas novas ca-
cinema neste novo panorama digital precisamos atentar para
racterísticas construíram, ao longo das duas últimas décadas
as características que modificam sua linguagem e trazem novos
um cinema interativo que possibilita a imersão do espectador
caminhos de fruição do gênero. Como características identi-
no universo narrativo da trama. Os recursos que proporcionam
ficadoras das novas mídias, Manovich (2001; p. 27-45) define
esta interatividade são dispostos em interfaces, que podem
sumário
cinco princípios: representação numérica; automação; modula-
ser analisadas quanto à sua eficiência narrativa através de
ridade; variabilidade e transcodificação.
conceitos da semiótica.
De acordo com estes princípios, as novas mídias tais como
Palavras-Chave: Filme Interativo, Interface, Narrativa.
compreendidas popularmente estariam alcançando apenas uma das

Abstract características, a da representação numérica, que se dá quan-

próxima do a mídia utiliza números para codificar e decodificar a in-


The construction of storytelling through cinema has su- formação.
ffered some significant changes with the possibilities of A automação é um princípio que caracteriza a nova mídia
digital media, among them the variability, or swapping of como detentora da capacidade técnica de se auto-regular ou
modular units, and interactivity. These new features built construir, o que é totalmente viável através de softwares e
anterior over the past two decades interactive movies that allow the outros aplicativos disponíveis em computadores ou celulares,
viewer’s immersion in the narrative universe. The resources por exemplo. Os princípios de Manovich que chamam mais aten-
that provide this interactivity are arranged in interfaces, ção no estudo do cinema, no entanto, são os da modularidade e

267
variabilidade. O primeiro diz respeito à informação disposta Rafaeli, citado em Primo (2008, p. 28) já era bastante uti-
em blocos, ou seja, a capacidade das novas mídias de organizar lizado nas mídias desde 1988, mesmo não sendo até então pro-
o conteúdo em partes bem delimitadas. Já o segundo se refere priamente definido.
à possibilidade de permutação entre essas partes, já que são Alguns autores ressaltam que a interatividade, quando
de fácil manuseio devido às características de trabalharem classificando a simples escolha de opções pré-estabelecidas,
com módulos de informação digital. deve ser classificada como uma interação reativa, pois não
Todos os quatro princípios se somam para a construção do existe real liberdade de escolha. Primo (2008, p. 149,150)
princípio da transcodificação. Nele Manovich ressalta que as destaca:
novas mídias possuem duas camadas, uma cultural, que traz Uma interação reativa pode repetir-se infinitamente numa mesma troca:
sempre os mesmos outputs para os mesmos inputs. E tal troca pode até
consigo um significado intrínseco à velha mídia – por exemplo
ser testada antes mesmo da interação ocorrer, isto é, todos os botões
uma fotografia e suas correlações de espaço-tempo, seus sig-
capa
e menus de um software podem ter seu funcionamento aferido pelo próprio
nificados –, e uma camada computacional, definida por dados programa de autoria que o gera antes de ser usado pelos consumidores.

técnicos que representam a imagem dentro da lógica do sistema


Poderíamos, assim, englobar o filme interativo diante de
do computador – formato de arquivo, estilo de compressão e
uma interação meramente reativa, já que as possibilidades de
outros. A transcodificação, portanto, diz respeito às carac-
intervenção são dispostas por um programador que ordena os
terísticas que são fruto da transição de uma mídia tradicio-
módulos narrativos a serem selecionados a partir da ação do

universidade
nal para um ambiente digital, levando-nos a observar a velha
usuário. Entretanto, há também autores que defendem o concei-
mídia sob a ótica do computador, inclusive utilizando termos
to de interatividade como a possibilidade de interação entre
característicos da computação, tais como “interface” e “data-
o homem e a máquina, mesmo que diante de escolhas limitadas,
base” (MANOVICH; 2001, p. 48).
a exemplo de Domingues (2002, p. 41), que afirma:
Um dos maiores exemplos do cinema diante destes princí-
Em todas as situações, a interatividade ocorre por situações comparti-
sumário pios é o filme interativo. As possibilidades das novas mídias lhadas do corpo com a linguagem abstrata de softwares e seus cálculos

permitem-nos tratar o filme como um conjunto de blocos nar- com funções que transformam e devolvem sinais enviados do ecossistema
(corpo e ambiente) para o tecnoecossistema (hardware, software e in-
rativos (modularidade) manuseáveis (variabilidade), que po-
terfaces). Isto se verifica pelo acoplamento do corpo com o sistema
dem ser vistos tanto no computador como em quaisquer outras artificial com o qual interage, provocando, em tempo real, uma ação
compartilhada, em que algo acontece pelas conexões humano/máquina.

próxima
mídias digitais (representação numérica). Esses blocos podem
inclusive serem gerados aleatoriamente por softwares como o É tomando por base este conceito de interatividade, que
Korsakow System25 (automação) e podem apresentar interfa- se considera aqui o filme passível de intervenções de um usu-
ces para que o usuário escolha que parte deseja ver do filme ário como interativo. O filme interativo consiste, portanto,
(transcodificação). em uma nova mídia que tem atingido o público consumidor de
Este novo estilo de cinema, dito interativo, faz-nos re-
anterior cair sobre o conceito de interatividade, que de acordo com
mídias digitais, principalmente na internet e videogames, por
atender a exigências de uma nova cultura oriunda da conver-
25 Software gratuito de autoração de vídeo interativo desenvolvido por Florian Talhoffer no ano 2000, segundo gência dos meios. A demanda de narrativas interativas na cha-
Gomes (2009, p. 9).

268
mada Cultura da Convergência tem tornado o ambiente bastante Por projeção, compreende-se aqui a definição de Morin
propício para a produção, exibição e distribuição de filmes (1983, p. 145) que diz ser esta “um processo universal e mul-
interativos na web, embora este novo estilo de produção au- tiforme. As nossas necessidades, aspirações, desejos, obses-
diovisual venha a exigir novos estudos e reestruturações do sões, receios, projetam-se, não só no vácuo em sonhos e ima-
próprio conceito de cinema. ginação, mas também sobre todas as coisas e todos os seres”.
Desta forma, o cinema clássico tem como objetivo criar a pro-
Um novo cinema para a cultura da convergência
jeção do público para o ambiente do filme, conforme destaca
Balázs (1983, p. 85)
Quando o francês Alain Resnais, em 1993, lançou seus fil-
No cinema, a câmera carrega o espectador para dentro mesmo do filme.
mes Smoking e No Smoking, em um de seus experimentos esté-
Vemos tudo como se fosse do interior, e estamos rodeados pelos perso-
ticos debruçados sobre questionamentos do tempo e da memória nagens. Estes não precisam nos contar o que sentem, uma vez que nós

capa
– assim como o fez em seu filme Ano Passado em Marienbad, de vemos o que eles vêem e da forma em que vêem. Embora nos encontremos
sentados nas poltronas, pelas quais pagamos, não é de lá que vemos
1961 – todas as atenções mundiais se voltaram para o grau de
Romeu e Julieta. Nós olhamos para cima, para o balcão de Julieta
interatividade exibido na obra. com os olhos de Romeu e, para baixo, para Romeu, com os olhos de

Os dois filmes apresentavam o mesmo início, mas divergiam Julieta. Nosso olho, e com ele nossa consciência, identifica-se com
os personagens no filme; olhamos para o mundo com os olhos deles e,
em um dado momento onde a personagem principal deveria esco-
por isso, não temos nenhum ângulo de visão próprio.
lher fumar ou não fumar. A partir desta decisão a história se

universidade
Entretanto, no filme interativo a proposta passa a ser
desenvolvia de forma diferente. Baio (2008) explica
outra, haja vista que o público não deve ser anulado na sala
Diferentemente de outros filmes que são levados a público como “Parte
I” e “Parte II” ou mais recentemente ”Volume 1” e “Volume 2” escura, projetando-se para a tela ao assumir afetivamente o
(Kill Bill), a obra de Resnais é composta por dois filmes que, papel dos personagens. Neste novo contexto o público é de-
além de terem sido lançados juntos, tinham sua exibição condicionada
mandado como agente interator e precisa se posicionar dentro
sumário
à simultaneidade das projeções. Os dois filmes eram exibidos em sa-
las diferentes e suas sessões deviam necessariamente ser iniciadas ao da história não como algum dos personagens, mas como mem-
mesmo tempo. bros atuantes da narrativa. Esta é, portanto, a passagem do
O grande diferencial é que esta escolha era feita pelo conceito de projeção para outro diametralmente oposto: o da
público, que escolhia em que sala de cinema entrar: Smoking imersão. Segundo Murray (2003, p. 102)

próxima
ou No Smoking. O próprio nome da obra como um todo remete à A experiência de ser transportado para um lugar primorosamente simulado
é prazerosa em si mesma, independentemente do conteúdo da fantasia.
fala clássica de Hamlet, de Shakespeare, “ser ou não ser”,
Referimo-nos a essa experiência como imersão. “Imersão” é um termo
manifestando a dúvida e a urgência de uma tomada de decisão. metafórico derivado da experiência física de estar submerso na água.

Mesmo sendo considerada por alguns como uma das primeiras


Ainda segundo a autora, todas as formas de arte narrativa
manifestações do cinema interativo, Smoking/No Smoking ainda
desenvolveram convenções para sustentar o frágil transe que
anterior limitava a sua “interatividade” até o momento anterior à exi-
envolve a audiência e, “para conseguir isso, uma das maneiras
bição, sendo o filme em si ainda uma experiência de projeção
mais importantes foi proibir a participação” (MURRAY; 2003,
e não imersiva.

269
p. 103). É desta maneira que o cinema interativo vem mudar a risco de minar a experiência narrativa”.
fruição do filme, criando um ambiente onde o especador-usu- Onde estaria, portanto, o limite da interatividade sadia,
ário, ou interator (MURRAY; 2003, p. 69), esteja imerso no que permita o fluxo narrativo e a permanência do já mencionado
universo da trama e venha a participar dos eventos narrados transe oriundo da projeção, comum às mídias narrativas clás-
e não mais apenas se projete no filme em um ato de anulação sicas? Uma provável resposta está no texto de Braga (2005, p.
individual. 126) ao definir interatividade
Essa mudança é reflexo de toda uma cultura que usufrui A interatividade, ou o diálogo entre homem e máquina, deve ser in-
termediada por processos de comunicação, codificados em signos de di-
das mídias digitais e de suas possibilidades de manuseamento
ferentes naturezas. A organização desses signos em um todo lógico e
e não-linearidade. Vivemos atualmente a cultura da convergên- comunicativo é o trabalho de interface.
cia, que foi definida por Jenkins (2009, p. 29)
Se a interface é o lugar comum da interatividade entre
Por convergência, refiro-me ao fluxo de conteúdos através de múltiplas

capa plataformas de mídia, à cooperação entre múltiplos mercados midiáticos


homem e máquina, faz-se necessário estudá-la como o veícu-
e ao comportamento migratório dos públicos dos meios de comunicação, lo para a fruição das narrativas interativas de maneira que
que vão a quase qualquer parte em busca das experiências de entrete-
não tenhamos nessa nova possibilidade o mesmo deslumbramento
nimento que desejam. Convergência é uma palavra que consegue definir
transformações tecnológicas, mercadológicas, culturais e sociais, de-
tecnológico em detrimento da história, a exemplo do cinema
pendendo de quem está falando e do que imaginam estar falando. de atrações do início do século XX. A interatividade não de-

A cultura da convergência, portanto, não está limitada à veria, portanto, ser abordada pelo simples fato de tornar o

universidade convergência tecnológica, mas é um reflexo cultural, compor- filme interativo, mas sim como fator de contribuição estética

tamental e econômico da acessibilidade do conteúdo midiático e narrativa para a obra.

através de múltiplas plataformas.


Interatividade mediada pela interface
A narrativa audiovisual interativa, por questões de pra-
sumário ticidade e econômicas, não são de fácil exibição em salas de Edward Sapir e Benjamin Whorf, na metade do século XX,
cinema, uma vez que exigem controles remotos para interações, formularam uma teoria da linguística que colocava o pensamen-
além do quê a fruição em conjunto de um filme interativo irá to humano como fruto da sua linguagem, ou seja, “a percepção
privilegiar a escolha de apenas um interator ou de um grupo e da experiência e a categorização semântica são conformadas
nunca será satisfatória como experiência individual.
próxima
pela língua internalizada pelos indivíduos” (SCLIAR-CABRAL;
É desta forma que o ambiente propício para o filme intera- 2002, p. 61). A teoria também chamada de hipótese de Whorf-Sa-
tivo está totalmente em consonância com o ambiente midiático pir, é ressaltada por Manovich (2001, p. 64) para relacionar a
da convergência, onde a experiência de cinema se torna cada construção da interface com a idéia de “não-transparência do
vez mais individual através da internet, computador e dispo- código”, ou seja, a interface como um meio pelo qual o compu-
sitivos móveis. O grande problema deste estilo de narrativa é tador é concebido pela mente humana. “A interface impõe sua
anterior descrito por Murray (2003, p. 51) quando diz que “fornecer ao própria lógica” às mídias fruídas pelo computador, conforme
público o acesso à matéria-prima da criação implica correr o ressalta (MANOVICH; 2001, p. 64)

270
Em termos semióticos, a interface do computador atua como um código que poderíamos chamar de um sistema de montagem interativo.
que carrega mensagens culturais em uma variedade de mídias.
Quando Sobre a relação entre links e edição, Miles (2005, p. 158)
você usa a internet, tudo que você acessa – textos, música, vídeo,
espaços navegáveis – passa pela interface do seu Browser e assim, por
afirma
sua vez, na interface do seu sistema operacional. Na comunicação cul- Está claro que os links e as edições possuem força retórica; eles
tural, um código raramente é um simples mecanismo neutro de transpor- realmente fazem conexões entre as partes, eles geram, demonstram, até
te; normalmente ele afeta a mensagem que é transmitida com sua ajuda. executam argumentos e estes realmente envolvem conjuntos de relações
Por exemplo, ele pode fazer algumas mensagens fáceis de compreender e entre fonte, destino e contexto de leitura.
tornar outras incompreensíveis.
Se a atual configuração das interfaces nos filmes inte-
Desta maneira, a interface “atua como uma espécie de tra- rativos é semelhante ao de hipertextos nos computadores, que
dutor, mediando entre as duas partes, tornando uma sensível por sua vez obedece à lei de “não-transparência do código”
para a outra. Em outras palavras, a relação governada pela defendida por Manovich, podemos dizer que estamos diante de

capa
interface é uma relação semântica, caracterizada por signifi- um problema em relação ao uso deste código. Como manter a pro-
cado e expressão” (JOHNSON; 2001, p. 19). jeção necessária à fruição fílmica em uma mídia que constan-
Nos filmes interativos, a interface constitui um dos gran- temente lembra ao usuário que ele está imerso em um ambiente
des diferenciais na fruição da narrativa, pois constrói um virtual e precisa tomar decisões?
ambiente muito próximo ao desenvolvido nos hipertextos advin- De acordo com Canônico, em reportagem da Folha Online de
dos do computador. Para hipertexto consideramos a definição outubro de 2008, o primeiro filme interativo disponibilizado

universidade
de Braga (2005, p. 127) na internet data de 1998, com o título de Hypnosis26. O filme
A estrutura do hipertexto é constituída por lexias (nós) e links. é desenvolvido até pontos determinados onde três escolhas são
As lexias são unidades de informação que contém vários tipos de da-
dos [...]. Essas lexias, obrigatoriamente, estão conectadas com uma
disponibilizadas para o usuário. A interface remete à ques-
série de outras estruturas compostas também por lexias [...]. Já tões de múltipla escolha, com opçãos 1, 2 e 3.
o link (ligação), em realidade, é o conceito e a experiência mais
sumário importante do ciberespaço. Eles são responsáveis pelas conexões entre
O esquema de pergunta e opções poderá remeter, para boa

as lexias.
parte dos brasileiros, ao experimento interativo da Rede Glo-
bo, o programa Você Decide (1992-2000)27. Desde a década de
As lexias no filme interativo estão dispostas em interfa-
1990 a visão de interface para filme interativo não tem saído
ces que fazem com que a continuidade da história seja aciona-
muito deste modelo, a exemplo do primeiro filme interativo

próxima
da pelo usuário, que por sua vez é apresentado a links cujo
brasileiro, de 2008, A Gruta28, de Filipe Gontijo. A este so-
conteúdo guia a trama para caminhos diferentes. A presença
mam-se outros exemplos como The OutBreak29, do mesmo ano, da
destes links faz com que a experiência do usuário seja muito
empresa desenvolvedora de aplicativos interativos Silktricky.
semelhante à de um editor, embora este tenha conhecimento da
Principalmente a partir de ferramentas como o site youtu-
obra como um todo enquanto o interator do filme interativo
be30, que atualmente permite o encaixe de botões que funcionam
anterior
é posicionado como agente diante de situações das quais não
26 http://www.my-interactive.tv/
tem conhecimento futuro. Desta maneira, o espectador passa a 27 http://memoriaglobo.globo.com/Memoriaglobo/0,27723,GYC0-5267-238304,00.html
28 http://www.youtube.com/user/FilmeJogo
tomar decisões no filme, orientando os personagens através do 29 http://www.survivetheoutbreak.com
30 http://www.youtube.com

271
como hiperlinks nos vídeos, os filmes interativos têm seguido pertexto. Podemos enxergar, portanto, uma proximidade das
esta linha de interface mais direta. Isto ocorre, provavel- primeiras interfaces gráficas de filmes interativos com a
mente, pela facilidade de execução, haja vista que a dificul- orientação de conteúdo, enquanto podemos também perceber cla-
dade para se obter o filme interativo passaria a ser unica- ramente a transição para essa leitura “em deriva” nas novas
mente as gravações dos módulos narrativos em vídeo, enquanto construções de GUI.
a programação de uma interface complexa seria desnecessária. A definição de uma interpretação em deriva, no entanto,
Assim, estes vídeos seguem uma máxima de desenvolvimento de também foi defendida por Eco (1990, p. 278) sob o nome de “de-
blocos narrativos com uma média de cinco minutos até que uma riva hermética”. Sua análise estava centrada na interpreta-
interrupção faça surgir na tela o menu com a interface de in- ção do texto, que poderia ser em busca de uma única evidência
teratividade, o que faz com que o espectador saiba a sua hora enunciativa ou de várias (deriva). A explanação de Eco (1990,
de agir. p. 279) apresenta-nos a um conceito de deriva que remete aos
capa Existem, no entanto, alguns exemplos desenvolvidos nos múltiplos caminhos interpretativos e a uma não-orientação do
últimos anos que elevam a questão da interface nesse gênero sentido, o que nos permite repensar a compreensão ordenada ou
narrativo a um novo patamar, baseado na busca de uma interati- desordenada da interface através do prisma da semiose
vidade mais próxima de um gênero que há algumas décadas já de- A principal característica de deriva hermética pareceu-nos ser a ha-
bilidade incontrolada de deslizar de significado para significado, de
senvolvia a proposta de narrativas interativas: o videogame.
semelhança para semelhança, de uma conexão para outra. Contrariamente

universidade
ao que fazem as teorias contemporâneas da deriva, a semiose hermética
Interface e fantasmagoria
não assevera a ausência de um significado universal unívoco e trans-
cendental. Assume que qualquer coisa [...] pode remeter a qualquer
Em seu livro Cutura da Interface, Johnson (2001, p. 163) outra coisa.

afirma que “o prazer estético proporcionado por Myst31 está


Faz parte de exemplos dessas novas interfaces, mais pau-
sumário
mais próximo da animação de certos projetos arquitetônicos,
tadas na desorientação ou deriva, o filme-jogo CDX32, desen-
em que acaso e desorientação são parte explícita do pacote”.
volvido pela BBC no ano de 2006. O filme interativo foi parte
Desta forma, o autor prevê certa desorientação para as in-
de um programa desta rede de televisão, que propunha através
terfaces gráficas do usuário (GUI), obedecendo à lógica dos
dele explicar como um personagem entregou uma espada roma-
videogames onde à primeira vista a disposição visual leva ao
na antiga à produção da BBC History. Tudo fazia parte de uma
próxima estranhamento, conforme explica (2001, p. 168)
narrativa transmídia com recursos de interatividade para pro-
Assim como subculturas musicais confundem nossas expectativas melódi-
mover uma atração do canal.
cas com dissonâncias e esquemas de harmonização inusitados, as novas
interfaces vão perseguir a desorientação — se não isso, então pelo O produto chama a atenção devido ao layout da interfa-
menos novos meios de orientar, tão novos que confundirão no primeiro ce utilizada. Muito próxima das telas de videogames, CDX nos
encontro.
apresenta a um personagem que acaba de sofrer um acidente de
anterior Da mesma forma, Silva Jr. (2000, p. 27) menciona as “pos- moto e se encontra desmemoriado, sozinho, em um quarto. Per-
sibilidades de orientação e deriva” dentro da leitura do hi- manecem na tela apenas o personagem e o seu quarto, sem qual-
31 Myst é um jogo de computador desenvolvido pela Cyan em 1993. 32 http://cdx-thegame.com/

272
quer opção orientada de interação, a exemplo dos menus basea- também aos conceitos de fantasmagoria e visibilidade apresen-
dos em opções A, B e C disponíveis nos filmes já mencionados. tados por Crary (1992; 2001).
Assim, CDX em um primeiro momento pode deixar o espectador Paul Souriau, no seu livro La suggestion dans l’art, de
sem atitude, mas logo se percebe que algumas áreas do cená- 1893, é o responsável, segundo Crary (2001, p. 254) pela clas-
rio são clicáveis. Ao clicá-las, o personagem se desloca até sificação “fantasmagoria” para uma nova arte que estava sur-
elas e interage com computador, câmera fotográfica, secretá- gindo no final do século XVIII. Esta arte dizia respeito às
ria eletrônica e até telefone. Assim, por meio das pistas que projeções de imagens através de feixes de luz, também comuns
vão, aos poucos, sendo reveladas pelo próprio interator, a às já conhecidas lanternas mágicas. Souriau considerava como
narrativa se desenvolve. fantasmagoria a arte na qual o dispositivo não era percebido
A estética de jogo aplicada ao filme interativo também e o espectador era apresentado a fenômenos dos quais não tinha
está presente no jogo Bank Run33, lançado em fevereiro de conhecimentos técnicos.
capa 2010, da empresa Silktricky, que em 2008 lançou na internet o Esse mesmo conceito já foi descrito também por Mannoni,
filme interativo The Outbreak já mencionado. que explica sua origem (2003, p. 151)
Bank Run é um passo em direção à aproximação de interfa- No final do século XVIII, cientistas e mágicos conceberam um novo
gênero de espetáculo luminoso, a que derem o nome de fantasmagoria ou
ces de videogame e filmes interativos, também obedecendo ao
phantasmagoria. A técnica da fantasmagoria dependia de alguns princí-
conceito de desorientação de Johnson, embora ainda preserve pios constantes. Os espectadores jamais deviam ver o equipamento de

universidade
momentos de escolhas mais orientadas. Em alguns momentos, por projeção, que ficava escondido atrás da tela. Quando a luz da sala
se apagava, um fantasma aparecia na tela, bem pequeno a princípio;
exemplo, o interator é levado a pressionar teclas do teclado
aumentaria de tamanho rapidamente, e assim pareceria se mover em di-
do computador o mais rápido possível para que o personagem reção à platéia.
fuja de um carro ou se livre de cordas amarradas no punho. Du-
Crary classifica como fantasmagoria a capacidade ilusó-
rante a narrativa algumas teclas também saltam no vídeo para
sumário que o interator a pressione em uma fração de segundo, com o
ria de imersão de determinada arte. Tendo sido “o nome dado
a um tipo de lanterna mágica” (CRARY; 1992, p. 132), o termo
objetivo de acertar um soco ou uma tacada de golfe, de forma
fantasmagoria reflete, portanto, esta capacidade “mágica” de
que, caso o usuário não consiga pressionar a tecla a tempo, a
trazer o observador para um ambiente mais livre de aparatos
trama continue normalmente, porém com outro desfecho. A rapi-
tecnológicos, deixando-o imerso de acordo em sua imaginação

próxima
dez da reação exigida coloca o espectador em estado de alerta
e sensibilidade. É a partir daí que os conceitos de visibili-
para o vídeo, de maneira que a resposta do personagem dependa
dade e fantasmagoria são adotados por Crary para retratar o
da reação do interator, gerando um estado de dependência do
novo observador nascido no século XIX.
personagem, capaz de capturar a atenção do interator e ativar
Podemos considerar, tomando por base as classificações de
a capacidade de imersão na narrativa.
Crary, que o interator também pode estar diante de dois modos
Estes dois estilos de fruição do filme interativo, base-
anterior ados na orientação e na desorientação da interface, remetem
de fruir o filme interativo: através da visibilidade ou da
fantasmagoria. Por visibilidade considera-se aqui a partici-
33 http://www.bankrungame.com/

273
pação orientada, aquela que quebra a projeção e evidencia a É desta forma que podemos considerar o desmascaramento da
imersão, típica dos primeiros filmes interativos da década de enunciação como uma estratégia onde marcas da construção do
1990. Já por fantasmagoria, compreendem-se os filmes que uti- discurso são apresentadas na própria enunciação. Fiorin (2009,
lizam a desorientação ou deriva em suas interfaces, não evi- p. 78) afirma que “com as marcas da enunciação deixadas no
denciando escolhas, mas permitindo que a narrativa mantenha enunciado pode-se reconstruir o ato enunciativo”, levando-nos
sua fluidez sem quebras para reorientação do fluxo dramático. à sobreposição dos conceitos de estratégia de desmascaramento
Ao classificarmos, no entanto, a enunciação do filme in- da enunciação e o conceito de orientação ou visibilidade na
terativo como viabilizadas por meio da visibilidade ou da construção das interfaces. A partir do momento, no entanto,
fantasmagoria, recaímos no estudo da semiótica, que também em que há um mascaramento da enunciação, ou seja, as marcas
poderia analisar a diferença entre essas duas classes através que remetem à construção do discurso não são perceptíveis,
do mascaramento e do desmascaramento da enunciação. temos o mesmo conceito de fantasmagoria ou deriva defendidos
capa por Crary, Eco e Silva Jr.
A forma da enunciação no filme

Conclusão
De acordo com Barros (1988, p. 74), “a enunciação produz
o discurso e, ao mesmo tempo, instaura o sujeito da enuncia- O filme interativo em suas primeiras décadas, assim como
ção”. Portanto, analisando-se o filme, seja ele interativo ou o primeiro cinema, preocupou-se mais em chamar as atenções em

universidade não, segundo a semiótica, poderíamos afirmar que este gênero direção à nova tecnologia e suas possibilidades, em detrimento
atua também como uma enunciação, na medida em que constrói um da construção narrativa. Atualmente, no entanto, a construção
discurso e traduz uma mensagem oriunda de autor(es), ou seja, de interfaces aliada às possibilidades das novas mídias têm
os enunciadores. A mensagem nos é transmitida através do dis- caminhado para uma imersão menos consciente da tecnologia e

sumário
curso, fazendo com que os espectadores do filme possam ser mais fluida dramaticamente.
vistos como os enunciatários desse processo comunicacional. Percebe-se em análise das interfaces elaboradas nos úl-
Fechine (1997, p. 20) classifica a enunciação em meios au- timos anos que a quebra da narrativa em prol de imposições
diovisuais em dois planos enunciativos: aqueles que se utili- de escolhas tem sido cada vez menor através da linguagem de
zam de estratégias de mascaramento e aqueles que se utilizam fantasmagoria ou deriva utilizada na apresentação de momentos

próxima do desmascaramento da mediação. Fechine (1997, p. 21) define interativos na narrativa, apropriando-se de elementos da lin-
que guagem dos videogames. É desta forma que a presença da inter-
Nos textos narrativos do cinema e da TV, o “desmascaramento” dos face e como ela deve ser ativada deve, necessariamente, ser
mecanismos de mediação é, a um só tempo, causa e conseqüência da
planejada junto da elaboração da narrativa, a começar do ro-
existência de“marcas” do sujeito da enunciação no enunciado-discurso.
O “mascaramento” dos mecanismos de mediação é, ao contrário, causa
teiro. Assim como Gosciola (2003; p.79-84) assume o link como
anterior e conseqüência da inexistência de “marcas” (ocultamento) do sujeito um novo elemento na construção de roteiros para mídias inte-
da enunciação.
rativas, levanta-se aqui a necessidade do estudo da interface
nos roteiros para filmes interativos, sendo este um novo ele-

274
mento imprescindível para a construção narrativa desta ordem. berespaço. In: LEÃO, Lúcia. O chip e o caleidoscópio: reflexões sobre as
novas mídias. São Paulo: Editora SENAC, 2005.
A respeito deste modo de apresentação da tecnologia na
• COSTA, Flávia Cesarino. In História mundial do cinema. Org. Fernando Mas-
construção narrativa mediada pelas mídias digitais, Murray carello. Campinas: Papirus, 2006.
(2003, p. 40) afirma • CRARY, Jonathan. Suspentions of perception: attention, spectacle and mo-
dern culture. Cambridge: The MIT Press, 2001.
Finalmente, toda tecnologia bem-sucedida para contar histórias torna-
• _____. Techniques of the observer: on vision and modernity in the ninete-
-se “transparente”: deixamos de ter consciência do meio e não en- enth century. Cambridge: The MIT Press, 1992.
xergamos mais a impressão ou o filme, mas apenas o poder da própria
• DOMINGUES, Diana. Criação e interatividade na ciberarte. São Paulo: Expe-
história. Se a arte digital alcançar o mesmo nível de expressividade rimento, 2002.
desses meios mais antigos, não mais nos preocuparemos com o modo pelo
• ECO, Umberto. Os limites da interpretação. São Paulo: Perspectiva, 1990.
qual estaremos recebendo as informações. Apenas refletiremos sobre as
• FECHINE, Yvana. A enunciação no discurso videográfico: um estudo explora-
verdades que ela nos contar sobre nossas vidas.
tório em vídeos do Festival Mundial do Minuto. Programa de Pós-Graduação
em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Pau-
A idéia aqui desenvolvida vê nesta “transparência” o se- lo, São Paulo, 1997. 141 f. Dissertação.
capa gundo passo a ser tomado no instante pós-deslumbramento, o • FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. 14 ed. São Paulo:
Contexto, 2009.
qual já tem sido iniciado a partir do estudo e do trabalho
• GOMES, Leonardo Castro. Narrativas interativas no audiovisual: a lógica
sobre as interfaces deste gênero narrativo. Mesmo tendo em do banco de dados no documentário. 2009. 112f. Dissertação (Mestrado em
vista que o filme interativo atual remete apenas a uma monta- Comunicação Social) – Centro de Artes e Comunicação, Universidade Federal
de Pernambuco, Recife. 2009.
gem auxiliada pelo interator, ou seja, uma série de escolhas • GOSCIOLA, Vicente. Roteiro para as novas mídias. 2 ed. São Paulo: Editora
de caminhos pré-definidos, cabe aos estudiosos e produtores Senac São Paulo, 2003.

universidade compartilharem conhecimento e idéias para que a experiência • JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. 2 ed. Trad Susana Alexandria. São
Paulo: Aleph, 2009.
de imersão seja cada vez mais absorvida como uma real par- • JOHNSON, Steven. Cultura da interface: como o computador transforma nos-
ticipação do usuário. Talvez não caiba aos idealizadores do sa maneira de criar e comunicar. Trad Maria Luísa X. de A. Borges. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
filme interativo gerar novas formas de imersão e interati-
• MANNONI, Laurent. A grande arte da luz e da sombra: Arquelogia do Cinema.
sumário vidade, mas sim trabalhar as formas já disponíveis de forma Trad Assef Kfouri. São Paulo: SENAC, UNESP, 2003.

que se tornem menos óbvias e mais imersivas, seja através do • MANOVICH, Lev. The language of new media. Cambridge: The MIT Press, 2001.
• MILES, Adrian. Paradigmas cinemáticos para o hipertexto. In: LEÃO, Lúcia.
mascaramento ou não. O chip e o caleidoscópio: reflexões sobre as novas mídias. São Paulo: Edi-
tora SENAC, 2005.
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próxima
do Cinema. Trad António-Pedro Vasconcelos. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
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Comunicação, 5., Braga, 2007. Comunicação e Cidadania - Actas do 5º Con- 2003.
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• BALÁZS, Béla. Nós estamos no filme. In: Xavier, Ismail (Org.) A experiên-
cia do Cinema. Trad João Luiz Vieira. Rio de Janeiro: Graal, 1983. • SILVA JR., José Afonso. Jornalismo 1.2: características e usos da hipermí-
anterior • BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria do discurso: fundamentos semióticos.
dia no jornalismo, com estudo de caso do Grupo Estado de São Paulo. Progra-
ma de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporânea da Universidade
São Paulo: Atual, 1988. Federal da Bahia, Salvador, 2000. 195 f. Dissertação.
• BRAGA, Eduardo Cardoso. A interatividade e a construção do sentido no ci-

275
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t90u458305.shtml>. Acesso em: 18 jul. 2010.
• CDX. CDX – The game. Disponível em: <http://cdx-thegame.com>. Acesso em:
19 jul. 2008.
• Hypnosis. Interactive TV. Disponível em: <http://www.my-interactive.tv/
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• SCLIAR-CABRAL, Leonor. Referência: qual a referência e como evocá-la?.
DELTA, São Paulo, v. 18, n. spe, 2002 . Disponível em <http://www.scielo.
br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-44502002000300005&lng=en&nrm=
iso> Acesso em 18 jul. 2010. doi: 10.1590/S0102-44502002000300005.

capa • STERN, Zack. Free CDX adventure game released with BBC tie-in. Disponível
em: <http://www.joystiq.com/2006/09/23/free-cdx-adventure-game-released-
-with-bbc-tie-in/> . Acesso em: 20 jul. 2010.

universidade

sumário

próxima

anterior

276
estratégias dos profissionais envolvidos em sua criação.
A NARRATIVA MIDIÁTICA DA Palavras-chave: Louis Vuitton, semiótica, audiovisual
CAMPANHA PUBLICITÁRIA: “TRÊS
TRAJETÓRIAS EXCEPCIONAIS, UM JOGO
Abstract
HISTÓRICO” DA LOUIS VUITTON
This article examines a Louis Vuitton advertising film
that was widely publicized in 2010, during the last football
World Cup, bringing together three great sports stars as ac-
tors: Pelé, Maradona and Zidane. Using as theoretical basis
some concepts and tools of semiotics and discursive, in a
A na C laudia O liveira
capa
de
dialogue with texts by Greimas, Oliveira, Bertrand and Flo-
professora titular da PUC-SP e atua no Programa de Pós Graduação em Comunica-
ção e Semiótica e coordena Centro de Pesquisas Sociossemióticas (CPS). e-mail: ch, the authors highlight the level of discourse, narrative
anaclaudiamei@hotmail.com
and the fundamental generative trajectory of meaning. Thus,
deconstruct the filmic narrative, revealing its structure and
J ô S ouza its mode of organizing the audiovisual raw material. There-
mestranda da PUC-SP em Comunicação e Semiótica, pesquisadora do Centro de fore, they realize by reverse the scriptwriter’s work and ex-

universidade
Pesquisas Sociossemióticas (CPS), leciona no curso de Moda da FMU. e-mail:
zizizaza@gmail.com plain the professionals strategies involved in its creation.
Key-words: Louis Vuitton, semiotics, audiovisual

Resumo34 Annie Leibovitz dirige a fotografia do novo filme publi-

sumário
citário da marca Louis Vuitton de 201035. Uma campanha te-
Este artigo analisa um filme publicitário da Louis Vuit- mática que teve início em 2007, com atuações nos anúncios de
ton que foi amplamente divulgado em 2010 por ocasião da última Sean Connery, Catherine Deneuve e Mikhail Gorbachev nos anún-
Copa do Mundo de futebol, reunindo como atores três grandes cios. A partir de 17 de maio de 2010, às vésperas do mundial
astros do esporte: Pelé, Maradona e Zidane. Utilizando como de futebol na África do Sul, Pelé, Maradona e Zidane são os

próxima
base teórica conceitos e ferramentas da semiótica discursi- três ídolos das massas aficionadas desse esporte que figuram
va e dialogando com textos de Greimas, Oliveira, Bertrand e na propaganda audiovisual e impressa de escala mundial.
Floch, as autoras destacam os níveis discursivo, narrativo e A primeira cena do filme intitulado “Três trajetórias ex-
fundamental do percurso gerativo de sentido. Assim, descons- cepcionais, um jogo histórico”, começa sem foco, com a ima-
troem a narrativa fílmica, desvendando a sua estrutura e seu gem granulada e turva. Silhuetas masculinas movem-se passando
anterior modo de organizar a matéria-prima audiovisual. Realizam, por- por uma porta. A imagem remete a outros filmes nos quais os
tanto, um trabalho inverso ao do roteirista e explicitam as atletas podem ser vistos saindo de um vestiário e entrando
34 O artigo foi publicado na Revista Dobras, volume 4, número 10, São Paulo, outubro de 2010. 35 Disponível: http://www.louisvuittonjourneys.com/legends/

277
em campo. Um conjunto de cenas de aberturas de acontecimen- teirizada, filmada e fotografada anteciparia o resultado do
tos esportivos que transladaram esses jogadores à categoria campeonato? Com esses astros de futebol de três diferentes
dos consagrados. Nós somos envoltos no presente por essas nacionalidades (Brasil, Argentina e França), todos campeões
imagens-lembranças de suas atuações inesquecíveis do passa- mundiais no esporte, não é a marca que se apresenta de partida
do. Trilha sonora, percussão e acordes acentuam um clima de para as partidas? Como essa marca do segmento do luxo estaria
suspense nessa trajetória memorialista. A música é uma refe- se posicionando por meio do esporte das massas?
rência à batucada e ao ritmo do berimbau que acompanham os Em um tabuleiro de “pebolim” ou “totó” com uma tomada de
jogos de capoeira. Um jogo vai se entrelaçando a outro pelo cima, o mundo vendo e ouvindo, nós reconhecemos que o jogo
que ambos têm de poder de comover nossa vida. Corte seco para mencionado não é de futebol, mas aquele jogo social de salão
a cena que apanha, em detalhe, uma bola pequena que entra no que sociabiliza ao colocar pessoas interagindo. No entanto,
gol. No plano seguinte, em close, o argentino Diego Maradona o roteiro e o ritmo das tomadas mantêm a empolgação de um
capa olha para câmera e explica: “É uma partida épica entre Pelé jogo de campo em que se encontram frente a frente o jogador
e Zidane”. A vedete da Argentina, como jogador de renome e, Diego Maradona, vencedor da Copa do Mundo de 1986; Pelé e o
nesta copa de 2010, técnico esportivo, atua como uma espécie seu eterno reinado iniciado em 1958 e Zidane, capitão do time
de “apresentador” do que assistimos. Assumindo uma postura responsável pela vitória francesa sobre a Seleção Brasileira,
de rei, ele enverga correntes e símbolos de cruzes no pesco- por duas vezes no Mundial (1998 e 2006). Três mitos do fute-

universidade
ço, que caracterizam as suas crenças, mas também os símbolos bol, cada um de seu tempo figuram no discurso publicitário,
do poder com os quais ele se veste. Com a sua narração dessa um campo em que atuarão juntos.
partida surpreendente, o mundo todo é chamado a acompanhar o
Mundial de futebol. Outro estranhamento mar-
Desse trio, somente Maradona entraria em campo na cena ca esse encontro midiático. Com
sumário africana do campeonato mundial. Assim, ao reconhecermos os uma observação mais detalhada,
astros, passamos a nos perguntar que jogo seria esse no qual apreendemos que os seus olhares
Maradona assume uma posição de narrador de uma situação inte- nem se cruzam, o que nos leva a
rativa do jogo, direto de Madri para o mundo. nos indagar se, de fato, os três

próxima
Meses antes da Copa do Mundo, a marca Louis Vuitton elege ídolos estão em presença um do
o tema do futebol para a sua campanha, desfrutando do con- outro no aqui e agora da filma-
texto esportivo que dominará o contexto mediático. A escolha gem?
do Café Maravillas, em Madri, para locação do primeiro jogo
da marca pode ser vista como uma decisão profética que tanto Figura 1: O “jogo histórico”
está apoiada nos resultados da equipe espanhola na taça euro- dos três astros inesquecíveis
anterior péia, na paixão que o futebol desencadeia nesse país ibérico, do futebol mundial no Café
quanto na rota de viagem até a África do Sul. A situação ro- Maravillas, em Madri.

278
Percebemos que em nenhum momento, os três gladiadores se visualmente inseridos na espacialidade madrilena. Mas, outra
encontram no plano da tomada cinematográfica. Essa condição vez, eles serão reunidos discursivamente enquando a trilha
torna-se ainda mais evidente na publicidade impressa da cam- sonora vai sendo mixada com vozes de diferentes torcidas em
panha, que teve ampla circulação global em jornais e revis- diversas línguas festejando um gol que ecoa na cena em que
tas. Nessa manifestação acabamos tendo a impressão de que os os três mitos com as suas nacionalidades se encontram em um
jogadores foram reunidos em uma montagem, mesmo que o verbal território neutro do globo para jogar uma partida de pebolim.
acrescente, a informação de que esse encontro dos três acon- Será que a especificidade desse lugar construído no anúncio
tece no Café Maravillas, em Madri. A fotografia é feita de traz algo novo a ser depreendido? O que esses mitos vivos do
camadas de sobreposições e a dúvida persistente ganha ainda futebol têm em comum?
mais reforço quando associarmos o que vemos aos avanços das Os três saíram de comunidades pobres de seus países de
ferramentas de manipulação fotográfica, o que nos faz pensar origem e se tornaram estrelas do futebol. Usaram a camisa 10
capa se o encontro de fato aconteceu ou não. em seus times e marcaram milhares de gols encantando uma mul-
Pouco relevo tem a nossa resposta em termos da veracida- tidão sem fronteiras de torcedores. São esses gols que ecoam
de ou não do acontecimento, pois a veiculação do anúncio nas ainda quando assistimos ao amistoso jogo de pebolim e consta-
várias mídias faz com que essa partida se insira como um dos tamos que eles ainda são os jogadores em campo e nós a torci-
eventos de nossa vida social. Nesses termos, o anúncio se ali- da. Como os deuses no Olimpio, eles decidem o destino eufórico

universidade
cerça sobre a idéia de que os acontecimentos que a mídia nos da partida e o estado de alegria do torcedor. Aqui e agora, as
apresenta resultam de uma construção de sentido da sua ocor- pernas habilidosas dão espaço para a articulação das mãos. Os
rência que ganha significados pelos seus modos de presença três olham de uma posição superior para o destino da partida.
discursiva. Muito além do que ocorre no mundo, é essa encena- Entre os planos fechados nos detalhes dos rostos sorridentes
ção do anúncio televisual e da mídia impressa que converte a e na gestualidade das mãos, eles vão vivenciando outro jogo,
sumário imagética do jogo em efeito de realidade que se sobrepõe ao distinto do que jogavam.
nosso saber de que esses astros nunca se encontraram em um Com essa jogada, a Louis Vuitton reúne décadas de futebol
campo de futebol. Pelé, Maradona e Zidane pertencem a tempo- em uma única sala e promove o discurso da atemporalidade da
ralidades distintas. Cada um deles foi um mito em seu tempo marca, do multiculturalismo e da desfronteirização. Atraves-

próxima
e ídolo de toda uma geração, e só se encontram em uma partida sando o século XX, tem a sua temporalidade estendida na moda,
quando escalados pelo destinador Louis Vuitton, no agora do do mesmo modo como o futebol se cristalizou no esporte. Fun-
jogo da marca. dada há 150 anos, a marca tem praticamente a mesma idade do
Na peça publicitária audiovisual, cada olhar revela algo futebol.
de cada jogador; os gestos e as expressões fisionômicas e O cenário da campanha (Figura 1), de cor terrosa e verde,
corporais marcam as suas particularidades que apreendemos, e remete a um gramado de futebol. No primeiro plano, à esquer-
anterior confirmamos que eles sejam assim mesmo como estão sendo pos- da, Pelé olha com um sorriso largo para alguém que se encon-
tos a ser vistos. Eles não se fitam, apesar de os três estarem tra fora do enquadramento. No segundo plano, à direita, Diego

279
Maradona se concentra na partida. Com o dedo esquerdo aponta consonância presencial que afirma que é o esportista francês,
para um dos “jogadores” com uma postura de preocupação com a então, quem legitimamente “carrega” a marca francesa.
partida e com o destino do resultado. Parece que ele comenta Os corpos dos jogadores estão cortados e separados hori-
algo para alguém, que não é nem Pelé, nem Zidane. Seria para zontalmente do baixo ventre para baixo, o que deixa escon-
nós, os observadores? dido a mobilidade das pernas no jogo de futebol e visível,
No terceiro plano, compondo a tríade, Zidane sorri, en- dos quadris para o alto, o cinetismo do tronco e dos membros
quanto manipula o time de jogadores pintados de vermelho e superiores. Essa geografia corpórea entre corpo alto e corpo
azul − cores da bandeira francesa −, olhando para alguém que baixo, que distingue bem as modalidades de jogo e os estilos
não vemos, portanto também fora do enquadramento da partida desses jogares, montando a descontinuidade dessa “partida”.
e que estaria posicionado atrás de Pelé. Seu sorriso remete à Os jogadores estão bem próximos, posicionados lado a lado,
certeza da vitória com o domínio da partida. formando um triangulo em que são os ângulos da interligação.
capa Da cena narrada, o mais importante dos três é, sem dúvida,
Pelé. Tanto que, na imagem, ele se posiciona em primeiro pla-
no e à esquerda. No mundo ocidental lemos os textos sempre da
esquerda para a direita. E assim, quem nos convida a entrar na
cena é o Rei do futebol. Ainda que situado no terceiro plano

universidade
da imagem, Zidane aparece no centro da composição, emoldura-
do pela luz que vem da janela e forma uma espécie de auréola
cuja forma é retangular, como os campos futebolísticos. Coin-
cidentemente, conforme os cânones oficiais da escultura e da
pintura clássicas, as figuras mais significativas ocupam tra-
sumário dicionalmente a posição central. O posicionamento central do
francês, portanto, pode revelar uma posição na interação que
lhe é dada pelo destinador do anúncio, a marca Louis Vuitton?
Por trás dele, compondo o cenário, vemos as malas da Lou-

próxima
is Vuitton em cima de uma cadeira: um modelo da linha keepall
e outro com rodas, com as iniciais “Z Z”. Reconhecemos, de
imediato, que essas são de Zinedine Zidane. A faixa vermelha
na verticalidade da mala reitera a cor da blusa dos bonecos Figura 2: Outra angulação da partida dos três ídolos
da equipe que Zidane no pebolim. O time francês e as malas de na campanha publicitária da marca Louis Vuitton.
viagem sublinham aí o fato de que o jogador está, de passa-
anterior gem, no Café Maravillas para esse encontro memorável. Está em Os corpos masculinos que são visualizados nas campanhas

uma parada da viagem e está aí por e com Luis Vuitton, em uma das marcas internacionais – como na última campanha masculina

280
da Dolce&Gabana, 2010, por exemplo – aparecem sempre despi- rá na África do Sul transportado por essa marca que se coloca
dos, sedutores, definidos e musculosos. Na campanha da Louis assim em uma posição exclusiva, ou seja, a serviço de um só
Vuitton, porém, os corpos se acham cobertos e curvados, ocul- campeão. Essa caracterização reafirma o valor de algo precio-
tando as partes geralmente expostas em outras campanhas do so que a marca cultiva como atributo dos que a escolhem. Como
segmento de luxo. Estamos então diante de um “novo homem” – as três celebridades com as suas trajetórias excepcionais, é
para além dos atributos físicos, o discurso agora é acrescido Louis Vuitton que se auto nomeia particular, destacada para
de elementos sociais e culturais figurando um homem maduro e ser vista como sujeito especialíssimo da arte de viajar. A
articulador, que é observado e observa, por meio de pontos de função prática de suas valises, baús é recoberta pelo culto da
vista que se situam além do campo de futebol. Nesse momento função estética de suas formas e cores com formatos em busca
“raro” de um jogo de mesa que quebra a rotina do cotidiano, os de construir a sua trajetória que a reveste de uma almeja-
três ídolos despertam no outro que os observa sensações ines- da função mística, como explicação dos tão poucos partícipes
capa peradas de simpatia, solidariedade e compartilhamento praze- possuidores de uma Louis Vuitton. Neste âmbito é a marca que
roso de partidas que aconteceram de “verdade”. se confere um valor de troféu para os que a portam.
Em outra foto, usada no site e na mídia impressa (Figu- Como ocorrência midiática, a marca promoveu por meio des-
ra 2), apanhamos a tríade em uma nova posição. Agora é Pelé se acontecimento noticioso a sua individuação e a do seu pú-
que está posicionado na mediação do jogo, enquanto Maradona blico. A partir do contexto da agenda de eventos, a publi-

universidade
e Zidane jogam a partida de pebolim e é Zidane que olha para cidade, assim como a moda, pode ser tomada como instauradora
fora da cena. Maradona se concentra no jogo, enquanto Pelé de uma experiência significante dos que dela participam e são
direciona seu olhar para as mãos de Zidane. Todos estão com por ela afetados ao viver os seus sentidos. Com essa dimen-
as mãos e punhos tensionados. A bola está no campo do time de são, a experiência do construir o sentido do anúncio também é
Zidane enquanto, Maradona prepara uma defesa. Nesse caso, as um acontecimento que se constitui pelas ações do discurso que
sumário malas da Louis Vuitton continuam ao lado de seu dono viajante. nos afetam, transformando os que estão em interação na situ-
Como essa angulação muitas outras poderiam ser recortadas ação vivida. O acontecimento singular que essas trajetórias
para evidenciar que as celebridades estão juntas na divulgação excepcionais nos fazem viver, não é só a ocorrência no Café
da marca Louis Vuitton. Nada mais nada menos, essa é a marca Maravillas, mas as que podem vir a nos acontecer na instau-

próxima
que confeccionou o baú, peça única, que terá a função especí- ração de descontinuidades em nosso viver que se tornam assim
fica de transportar o troféu do vencedor do torneio mundial possibilidades de outras narrativas que podem acontecer tam-
de futebol para onde os três astros dirigem suas órbitas. Como bém a outros sujeitos que se ponham nesta trajetória de mútua
eles, quantos outros torcedores também se deslocariam portan- afetação com abertura para novas experiências.
do valises Louis Vuitton em sua viagem rumo à África do Sul? Desse modo as trajetórias das narrativas midiáticas con-
A marca é mostrada por meio do seu aspecto artesanal em tinuam como “novas” experiências de vida, como acontecimentos
anterior aliança à celebração do seleto campeão do torneio. Não impor- que rompem a cotidianidade anestesiante do dia a dia. Esse
ta quem será esse ganhador, o símbolo de ouro da vitória esta- “jogo histórico” das três “trajetórias excepcionais” pode ad-

281
vir também para os torcedores comuns que carregam em seu ima-
ginário de marcas a Louis Vuitton como uma das celebridades
da era do consumo que faz ser o sujeito consumidor, aficionado
ou não de futebol.

Referências Bibliográficas
• BERTRAND, Denis. Caminhos da Semiótica Literária. Trad. Grupo Casa, São
São Paulo: EDUSC, 2003.
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de estudo do CPS, 1, Trad. Analice Dutra Pillar São Paulo: CPS editora,
2002.

capa • GREIMAS, A.J. E COURTÉS, J. Dicionário de Semiótica. São Paulo: Contexto,


2008.
• LANDOWSKI, Eric, O Olhar Comprometido. Trad. Ana Claudia de Oliveira e
Marcia Vinci. São Paulo: Revista Galaxia, n.2, 2001,
• OLIVEIRA, Ana Claudia de (org.) Semiótica plástica, São Paulo: CPS-Hacker
editores, 2004.

universidade

sumário

próxima

anterior

282
producing all by himself more than 500 thousand drawings.
UMA ANIMADA SINFONIA BRASILEIRA Forgotten by decades, the animated film was presented to a
new audience by Tela Brasilis cineclub in 2008 and is actually
in the process of restoration. This brief article relates the
history of the movie and its creator, as well as analyzes its
importance to Animation Cinema in the country as well as for
the consolidation of Brazilian’s national identity.
D aniel M oreira de S ousa P inna
Keywords: Brazilian animation; Amazon folklore; animation
MSc Design, Universidade Federal Fluminense dinnaps@gmail.com
history.

Resumo36
De tempos em tempos, em todas as áreas do saber humano,
capa Após seis anos de intensa dedicação, o artista Anélio surgem obras que se tornam marcos referenciais para o desen-

Latini Filho (1925-1986) lançou, em 1953, Sinfonia amazôni- volvimento de seu campo. São descobertas, conceitos, pesqui-

ca, primeiro longa-metragem brasileiro realizado em Animação. sas, tratados e invenções que revolucionam a maneira de se

Pioneiro no país, o cineasta trabalhou como roteirista, dire- pensar e de se trabalhar determinada prática, resultando, por

tor, artista conceitual a animador, produzindo sozinho mais vezes, em profundas mudanças não apenas de atuação profissio-

universidade
de 500 mil desenhos. Esquecido por décadas, o filme animado nal, mas também de caráter social. Seus autores — por vezes

foi apresentado a uma nova audiência pelo Cineclube Tela Bra- pioneiros, com atuação desbravadora que, não é raro, abre

silis em 2008 e está, atualmente, em processo de restauração. diante de si todo um novo ramo de atuação humana — tornam-se

O breve artigo relata a história do filme e do criador, e referências obrigatórias e celebrados ícones dos campos de

analisa a importância da obra para a Animação no país e para estudos nos quais foram atuantes.
sumário a consolidação da identidade nacional brasileira. A história, nesse sentido, talvez tenha sido um tanto

Palavras-chave: Animação brasileira, lendas amazônicas, quanto injusta com o artista plástico brasileiro e cineasta

História da Animação. de Animação Anélio Latini Filho. Artista prodigioso e visio-


nário, Anélio foi um dos primeiros brasileiros a se enveredar
Abstract
próxima
pelos caminhos do Cinema de Animação, tendo sido o realizador
do primeiro longa-metragem animado brasileiro. Autor também
After six years of hard work, Brazilian artist Anélio
de curta-metragens animados e de muitas peças publicitárias,
Latini Filho (1925-1986) released in 1953 Sinfonia amazôni-
Latini trabalhou de maneira autodidata, inventiva e intui-
ca [Amazon symphony], Brazil’s first animated feature-leng-
tiva neste que foi um marco do audiovisual brasileiro, mas
th movie. A pioneer in the country, the filmmaker worked as
que poucos hoje conhecem: o filme Sinfonia amazônica (1953).
anterior screenwriter, director, concept artist and cartoon animator,
Fruto das experimentações do artista com a técnica cinemato-
36 O texto não foi publicado, porém faz parte de uma pesquisa maior, que já teve uma parte apresentada (co-
municação oral) em Portugal, durante o IAMCR 2010 e terá outra comunicação oral (sem publicação) no encontro gráfica desde sua juventude, o mérito de Sinfonia amazônica
da Socine, em outubro deste ano.

283
não é unicamente o de ser o primeiro longa-metragem animado Em uma época que antecedeu a popularização da televisão
do Brasil (país que, mesmo hoje, conta com menos de trinta e (em seguida) as séries de desenhos animados infantis, a
filmes animados de longas durações em sua cinematografia). produção de obras animadas era voltada majoritariamente para
Trata-se de uma obra de valor inestimável pela riqueza de de- curta-metragens, que eram exibidos nos programas das salas
talhes e qualidade do trabalho realizado — mesmo diante das de cinema. A produção dos estúdios da época era basicamente
adversidades encontradas —, além de ter divulgado e alavan- constituída por filmes cômicos de duração de cerca de seis
cado o Cinema de Animação no país. É também uma obra de ca- minutos. Não se acreditava, especialmente da parte dos inves-
ráter nacionalista, que exalta as belezas naturais de fauna tidores, na possibilidade de realização de um longa-metragem
e flora e a riqueza cultural da região amazônica brasileira produzido inteiramente em Animação. Felizmente, realizadores
ao cozer, em sua trama, sete lendas dos povos indígenas da visionários provaram ao mundo que tais investidores estavam
floresta tropical. Graças ao sucesso da obra (principalmente equivocados.
capa no exterior) os olhos do Brasil e do mundo voltaram-se para a Erroneamente confundido por alguns como o realizador do
região na década de 1950. Hoje, obra e criador estão relega- primeiro longa-metragem animado da história, Walt Disney
dos ao esquecimento. (1901-1966) foi, sem dúvida, o artista visionário que provou
O trabalho a seguir pretende resgatar a memória de um a viabilidade comercial do gênero. O primeiro longa-metragem
dos mais importantes cineastas de Animação brasileiros e de dos estúdios Disney — Branca de neve e os sete anões (1937)

universidade
sua mais conhecida obra. Trata-se de um levantamento histó- — provou-se um lucrativo investimento, um sucesso de público
rico preliminar de uma pesquisa mais ampla, que visa ainda o e de crítica, ganhando inclusive um prêmio Oscar especial da
levantamento completo da filmografia do artista e a análise Academia de Artes e Ciências Cinematográficas norte-america-
posterior de suas obras animadas. na. Da mistura de um conto popular bastante conhecido, per-
sonagens cativantes e trilha sonora marcante com a longeva
sumário Cinema de Animação de longas metragens
técnica da animação de desenhos — minuciosamente trabalhada
em cores e movimentos — surgiu a obra que até hoje é sucesso
O Cinema de Animação teve seu desenvolvimento em parale-
com públicos de todas as idades, continuamente relançada em
lo ao do Cinema de atores, de ação ao vivo. Apesar de ter em
cinemas ao redor do mundo e sucesso de vendas em home video.
sua história obras e artistas de valor inestimável, que in-

próxima
No Brasil, entretanto, o Cinema de Animação de longas
fluenciaram (e continuam a influenciar) o Cinema ao vivo, por
metragens é ainda bastante recente. Até o momento, a cinema-
muitos anos foi considerado uma “obra menor”, sendo relegado
tografia brasileira conta com menos de trinta longas, tendo
ao caráter de “coisa de criança”, “subproduto do cinema” (do
sido a primeira obra no formato lançada apenas em 1953.
qual, na realidade, é antecessor) ou de filmes de efeitos es-
O Cinema de Animação brasileiro no século XX
peciais (como os trickfilms de Georges Méliès, James Stuart
A história do Cinema de Animação no Brasil até a o início
anterior Blackton e tantos outros), rapidamente ultrapassados. Deste
do século XXI é uma história de tentativas isoladas, de ex-
modo, recebeu menor atenção de realizadores, investidores e
perimentação e necessidade de expressão autoral de cineastas
da própria imprensa.

284
e artistas que se “aventuraram” pelas searas dessa arte. Por seu realizador a não ter mais nenhuma investida no campo, e se
décadas, o gênero sobreviveu no país devido às iniciativas resignando somente à publicidade” (idem, 58), afirma Moreno,
e esforços de tais artistas, e do desejo dos mesmos de verem em sua obra.
seus filmes veiculados, sendo assistidos pelo grande público.
Mas a grande verdade é que a população em geral teve pouco Anélio Latini Filho: maestro e orquestra

acesso a essas produções, que acabavam sendo apreciadas tão


Dificilmente encontramos qualquer texto a respeito do
somente por outros profissionais da área, iniciados e pesqui-
artista plástico, cineasta e animador Anélio Latini Filho
sadores. Tratava-se de um círculo vicioso de que ainda hoje
(1926-1986) que não empregue os termos “pioneirismo” e “ide-
sentimos reflexos. O professor da Universidade Federal Flumi-
alismo” logo no primeiro parágrafo. De fato, não é pequena a
nense Antônio Moreno — autor do livro A experiência brasileira
dívida do Cinema brasileiro com este pioneiro do Cinema de
no Cinema de Animação (1978) e de muitos textos a respeito da
capa
Animação no pais. Anélio Latini Filho não apenas foi o criador
cinematografia brasileira — afirma que “a sua pouca exibição,
do primeiro filme longa-metragem inteiramente produzido com
a falta de um maior financiamento, o faz [Cinema de Animação]
a técnica da Animação, mas também o fez de maneira autoral e
viver à margem, como uma arte menor, quando, na realidade, é
artesanal, realizando sozinho praticamente todas as etapas de
uma das mais apreciadas” (MORENO, 1978, p. 57). Tal afirmação
produção do filme. Sem o conhecimento aprofundado na técnica,
é demonstrada verídica pelo sucesso alcançado no Brasil pe-
e sem recursos para investir em equipamentos e profissionais,

universidade
las produções norte-americanas (mesmo as mais antigas, como
Sinfonia Amazônica teria tudo para ser apenas mais uma obra da
é o caso de Branca de Neve e os sete anões) e todos os seus
história do audiovisual brasileiro, lembrada nas enciclopé-
subprodutos derivados (sequências e adaptações, brinquedos,
dias cinematográficas pelo ineditismo no país de se trabalhar
licenciamento de marcas etc.). Nesse panorama, foram poucas
com Animação no formato de longas durações. É, entretanto,
as produções animadas brasileiras exibidas em circuito, tendo
sumário
uma obra de qualidade técnica e estética primorosa, minucio-
algumas permanecido em exibição por pouquíssimo tempo — como
samente planejada, visualmente rica em detalhes. Um belíssimo
foi o caso da Sinfonia amazônica, em cartaz por pouco tempo
registro visual da diversidade de belezas de fauna e flora
nos cinemas brasileiros, mas chamando a atenção do país (e os
amazônicas. Uma poética referência para a posteridade de len-
olhos do resto do mundo) para uma obra de Animação genuina-
das dos povos indígenas da região, passadas de geração para

próxima
mente nacional. Tal falta de perspectiva fez com que a maior
geração pela tradição oral. Uma obra de caráter nacionalista,
parte dos realizadores de Cinema de Animação no Brasil se en-
que valoriza aspectos culturais brasileiros e os apresenta ao
veredasse pela propaganda, realizando vinhetas para anúncios
mundo e às demais regiões do país, integrando-os a identidade
de televisão e, eventualmente, se expressando mais livremente
cultural do Brasil.
ao produzir seus curta-metragens autorais, de maneira quase
Nascido em Nova Friburgo, região serrana do estado do Rio
artesanal. O próprio Latini se viu obrigado a trilhar esse ca-
anterior minho, anos após o lançamento de sua sinfonia animada. “(...)
de Janeiro, Anélio Filho estudou pintura desde jovem. Ingres-
sou na carreira de artista gráfico desenhando quadrinhos para
Também este filme foi condenado na distribuição, obrigando o
suplementos de periódicos e para revistas. Apaixonado pela

285
arte da animação, aos 14 anos de idade realizou com o irmão contava com o ator Milton Vilar no elenco e Na mira do assas-
Mário Latini (1924-1992) — na época, com 16 anos — o curta- sino (1965), com Agildo Ribeiro em um dos papéis principais
-metragem Azares de Lulu (1940). Em 1940, Mário havia come- (FONSECA, 2009, p. 1).
çado a trabalhar no setor de cinema do DIP (Departamento de Os Latini enfrentaram uma série de desafios para por em
Imprensa e Propaganda, órgão do Estado Novo). Dirigido por prática a realização do longa. A falta de recursos e know-
Mário e animado por Anélio Filho, o filme foi realizado em -how técnicos desenvolvidos em outros países, a ausência de
acetato, tentando seguir, de maneira autodidata, experimen- ensino da técnica de Animação no Brasil e de uma bibliografia
tal e intuitiva, a maneira de trabalhar dos estúdios norte- que tratasse do assunto fazia com que os profissionais que
-americanos. Lulu, o protagonista, é um gato aventureiro que atuavam na área guardassem para si os “segredos” por trás da
alça vôo em um avião improvisado com caixotes de madeira e se arte e de suas descobertas. O difícil acesso a esses conheci-
envolve em brigas com outra personagem. O filme foi realizado mentos impossibilitava a organização no país de equipes com
capa em preto e branco e não possui som. A obra marcou o início da a quantidade de profissionais com domínio técnico e artístico
parceria entre os irmãos Latini e serviu como laboratório de necessários para a realização de um filme animado de longa du-
testes para a técnica com a qual realizariam Sinfonia ama- ração. Soma-se a esse problema a falta de incentivos estatais
zônica, cuja produção começaria sete anos depois. Fascinado à produção nacional de obras de Animação e o desinteresse por
com as possibilidades criativas oferecidas pela linguagem do parte de possíveis investidores.

universidade
Cinema de Animação, Anélio Filho demonstrou pretensões ainda Márcia recordou que a falta de recursos se fez presente no
maiores para o seu trabalho. Em 1946, realizou sua primeira projeto dos irmãos Latini desde o início. As películas em que
exposição coletiva de pinturas, com a qual levantou fundos o filme foi registrado, por exemplo, eram de diversos tipos
para iniciar os trabalhos no filme. diferentes, preto e branco e de baixa qualidade.
É comum encontrarmos referências ao trabalho solitário de A arte original de Sinfonia amazônica foi toda colorida, mas o filme

sumário Anélio Filho na realização do longa-metragem. Mas é impor- foi fotografado em preto e branco porque não havia condições para que
papai arcasse com um negativo em cor. Para poupar recursos, ele ia
tante frisar o papel fundamental e o apoio de toda a família até um hospital, comprava radiografias usadas e usava o material como
do artista na realização de sua obra de maior destaque. A acetato para que o tio Nelinho fizesse os desenhos (ibid.).
advogada Márcia Latini — filha de Mário, sobrinha de Anélio,
Em entrevista ao programa semanal Animania (2008) da TV

próxima
hoje detentora dos direitos autorais de toda a produção dos
Brasil, Márcia lembrou ainda que toda a família Latini, de al-
dois irmãos — contou em entrevista ao jornal O Globo que seu
guma maneira, se envolveu na realização do filme. Como exem-
pai foi responsável pela abertura da empresa da dupla (Latini
plo, citou uma tia, irmã caçula dos realizadores, que passava
Studio Ltda.), por buscar recursos para a realização e também
madrugadas acordada ajudando a colorir os acetatos. Lembrou
pela fotografia do filme, utilizando uma câmera Ernemann Kru-
ainda que o choro tocado pelo Jabuti Malandro em uma das cenas
pp. Mário Latini foi também diretor de cinema de atores, ten-
anterior do realizado dois marcos do cinema policial brasileiro também
mais importantes do filme (executado magistralmente na flauta
do músico Altamiro Carrilho) foi composto especialmente para
com pouquíssimos recursos: Traficantes do crime (1957), que
o filme por Hélio Latini, seu tio que, além de maestro, tra-

286
balhava como fiscal alfandegário. Também graças a Hélio, os bem-humorado documentário (realizado em formato de making-of)
Latini conseguiram um dos raros apoios dados ao filme, justa- que antecede a narrativa do filme como prólogo, o artista co-
mente da Alfândega do Rio de Janeiro. meçava sua jornada de trabalho às 8h da manhã e a encerrava
Mas não foi só nos familiares que Latini encontrou auxílio às 4h da manhã do dia seguinte. Pessoas próximas a ele atestam
para a produção. Em depoimento ao livro de Antônio Moreno, o a veracidade da informação e apontam essa rotina desgastante,
animador conta ter sido sempre “muito apaixonado pelo Amazo- mantida por anos para a conclusão do longa-metragem, como a
nas, com sua riqueza folclórica inexplorada e o fascínio mís- causadora do problema pulmonar que o artista desenvolvera. O
tico da floresta” (MORENO, 1978, p. 77). Para transpor essa documentário ilustra cada etapa do trabalho do artista: o de-
paixão para o filme, recorreu à ajuda do professor e folclo- senvolvimento do design das personagens e cenários, os estu-
rista Joaquim Ribeiro (1907-1964), para que este selecionasse dos de cena, a montagem do storyboard, a escolha das músicas
para o filme algumas lendas interessantes da região. O fol- e a marcação do tempo, o desenho da animação, a pintura dos
capa clorista escreveu então o primeiro argumento do filme. Latini acetatos e fotografia dos mesmos... Latini desenvolveu ainda
então dividiu com o professor Ribeiro os créditos do roteiro uma técnica própria de sincronismo entre a trilha sonora e as
da obra. imagens animadas, para dar o ritmo da música ao movimento de
Os auxílios encontrados por Anélio Latini Filho para a suas personagens. Segundo Márcia Latini, há registros dos anos
realização da obra também reforçam nitidamente aquela que se 1950 que documentam a surpresa de representantes dos estúdios

universidade
tornou uma das características mais marcantes do longa: a Disney diante do trabalho desempenhado por Anélio Latini Fi-
falta de uma equipe. Para compor sua sinfonia, Latini reali- lho para a realização do filme. Em entrevista, Márcia afirmou
zou sozinho por quase seis anos o trabalho árduo de produzir que “houve um convite da Disney para eles, que insistiram em
todas as etapas referentes à pré-produção e todas as anima- tentar desenvolver a animação no país” (FONSECA, 2009, p. 1).
ções do filme. Sua maior limitação era humana. Enquanto em Os irmãos recusaram o convite de ir trabalhar na Califórnia,
sumário grandes animações estrangeiras eram empregados cerca de 400 mas jamais conseguiram realizar outra obra de mesmo porte. Em
animadores, Anélio contou apenas com suas duas mãos e sua entrevista, Márcia lembrou ainda que seu tio deixara inacaba-
criatividade. O artista trabalhou sozinho na concepção, pre- do um segundo projeto de longa-metragem animado — O Kitan da
paração e elaboração dos personagens e dos cenários. Para que Amazônia, filme de aventura ambientado no coração da flores-

próxima
o filme ganhasse vida, realizou diversos esboços e mais de ta. O novo filme, que seria realizado em cores, chegou a ter
500 mil desenhos além de todo o processo de animação e a cópia sua produção iniciada em 1968. Novamente, a falta de recur-
dos desenhos para lâminas de celulóide. Para criar a noção de sos e de incentivos à Animação se interpuseram no caminho do
profundidade, pintou o cenário em diversas cores que foram, artista. “Ele começou um filme chamado “Kitan”, mas não teve
em seguida, filtradas (PECH, 2008, p. 2-7). condições de concluí-lo” (ibid.), conta Márcia, que hoje luta
Com pouquíssimos recursos, trabalhando em um estúdio im- pela preservação e restauração das obras e para manter viva a
anterior provisado em sua casa, na Tijuca, Latini desenvolveu seu memória do trabalho pioneiro do tio e do pai.
próprio método de trabalho com Animação. Segundo um breve e Nos anos que seguiram o lançamento de Sinfonia amazônica,

287
Anélio Latini Filho acabou optando por trabalhar com propa- sonagens e cenários (arte conceitual), a marcação do som, o
ganda. Chegou a realizar pequenas animações de desenhos e al- desenho de animação, a técnica de pintura no acetato e a com-
guns comerciais para a televisão (como os pinguins da cerveja posição de multiplanos na truca. A produção durou seis anos
Antártica). Na década de 1970, voltou a se dedicar à pintura, (entre 1947 e 1953), e foi inteiramente realizado por Anélio
registrando em telas as belezas naturais do Brasil. O ar- Latini Filho, representado um enorme esforço de animação de
tista veio a falecer no anonimato, em 1986, vitimado por um personagens, criação de cenários e finalização. Este “making-
câncer de pulmão muito provavelmente causado pela exposição -of” conta com narração em voz over do famoso radialista,
prolongada em ambiente fechado às tintas e materiais tóxicos cantor e compositor Henrique Foreis Domingues (1908-1980) — o
empregados na criação de sua maior obra, deixando-a como le- Almirante— que, com muito humor, explica as dificuldades de
gado para os animadores brasileiros. O Cinema brasileiro como se realizar um longa animado sem os recursos das grandes pro-
um todo deve respeitoso reconhecimento a esse artista, e sua duções norte-americanas.
capa obra merece ser preservada e sempre revisitada pelas novas Se a narração do prólogo e os percalços enfrentados pelo
gerações. animador na realização do filme já dão o tom de brasilidade
ao filme, o que dizer então da narrativa, especificamente?
Sinfonia amazônica
Concebido dentro do espírito nacionalista do período getulista e
voltado para a formação pedagógica da criança brasileira. Sinfonia
Comemorando o aniversário de cinco anos, o Cineclube Tela Amazônica aborda certo conjunto de lendas indígenas da região norte,

universidade Brasilis realizou na sala de exibição da Cinemateca do Museu caracterizando um olhar nacional sobre o tema. A obra apresenta trilha
que inclui gêneros como choro, em magistral interpretação de
Altamiro
de Arte Moderna do Rio de Janeiro, no dia 28 de agosto de
Carrilho (PROJETO DE RESTAURAÇÃO DA OBRA AUDIOVISUAL
2008, uma sessão especial em homenagem aos irmãos Latini, com SINFONIA AMAZÔNICA, [s/d], p. 1).
exibição dos filmes Azares de Lulu e Sinfonia amazônica, se-
O argumento escrito por Joaquim Ribeiro articula sete
sumário
guida de debate com Márcia Latini e com animadores presentes
lendas de tribos indígenas da região amazônica, a saber: a
no local. Haviam se passado muitos anos desde que essas ani-
lenda da noite, a lenda da formação do rio Amazonas, a lenda
mações foram exibidas pela última vez em território nacional
do fogo, a lenda do Caapora, a lenda do jabuti e da onça, a
sendo, portanto, inéditas para as novas gerações de animado-
lenda da Iara e a lenda do arco-íris, todas interligadas pelas
res brasileiros ali presentes.
travessuras do indiozinho Curumim (palavra de origem tupi que
próxima Marco histórico do Cinema brasileiro, Sinfonia amazônica
designa, de modo geral, as crianças indígenas) e de seu com-
é apontado por pesquisadores como um grande estimulador da
panheiro, o Boto — animal da região que é também protagonista
produção do Cinema de Animação brasileiro nos anos que segui-
de diversas histórias do folclore local.
ram a sua exibição. O prólogo do filme é um precioso registro
Para adaptar o folclore amazonense para as telas, Anélio
da Animação brasileira das décadas de 1940 e 1950. Inicia o
Filho estudou textos e histórias sobre a região, registros
anterior processo de popularização e assimilação das técnicas empre-
visuais da fauna e da flora nativas e dos habitantes. Em se-
gadas na realização de uma obra de animação no Brasil, como
guida, realizou uma série de estudos, aquarelas e desenhos
a realização de um storyboard, os estudos de criação de per-

288
conceituais para a sua pesquisa de arte — registram-se 500 Curumim, realizando travessuras. O indiozinho é apresentado
mil desenhos de próprio punho, entre croquis, artes conceitu- ao Boto, e a amizade entre as duas personagens torna-se o elo
ais, esboços, centenas de cenários e milhares de desenhos de narrativo entre as demais lendas, apresentadas ao espectador
animação no papel e em acetato. O artista desenvolveu dezoito uma a uma.
personagens principais para a obra, além de um sem-número de A história termina com a lenda do surgimento do arco-íris.
adjuvantes e animais que povoam as cenas. Além do Curumim e do Vemos os animais surgindo para contemplar a obra da nature-
Boto, é importante destacar personagens como o Jabuti Malan- za nos céus, enquanto o Curumim se despede dos novos amigos,
dro (exímio tocador de flauta); a Cobra Grande, mãe de todas navegando à deriva sobre uma vitória-régia no rio Amazonas,
as águas; o Urutáu, pássaro apaixonado pela lua; o Curupira, em direção ao horizonte. Nas palavras de Daniel Pech, em sua
ser protetor das florestas; o Caapora, senhor da luz e a Iara, resenha para o folheto de programação da sessão 65 do Cine-
deusa das águas que encanta os homens. clube Tela Brasilis:
capa A trama tem início em uma Floresta amazônica inabitada, É ao final, quando todos os animais saem para contemplar o surgimento do
arco-íris, que o lirismo presente nessas lendas e no filme em si chega
onde a natureza exuberante se impõe majestosamente. A narra-
ao seu ponto culminante. O ápice é atingido e a sinfonia está comple-
ção — extremamente poética, neste ponto da obra — exalta as ta. Em planos semelhantes àqueles iniciais, temos agora uma floresta
belezas da região. Eis que, aos poucos, a vida começa a surgir transformada. Em seu relato mítico, vê-se a criação da noite, da lua,
dos animais. A música cresce, a paisagem antes vazia agora impera em
e a dar movimento ao lugar, em um encantador balé da nature-
sua diversidade. A completude se dá com esse novo balé de uma natureza

universidade
za. Após alguns minutos de contemplação visual, a história se agora mais ampla e harmoniosa, o ciclo está fechado, o sol reflete no
inicia pela lenda da origem da noite. O tom poético da nar- Amazonas e o arco-íris majestosamente toma conta do céu (PECH, 2008,
p. 7).
ração é então substituído por um tom jocoso e bem-humorado,
típico de comentaristas de rádio (e não tão comum no cinema). Não era segredo a admiração de Anélio Latini Filho pelas
O narrador passa a empregar linguagem informal, gírias e até produções de Walt Disney, nem tampouco a inspiração no longa-
sumário a comentar as ações das personagens, por vezes lhes oferecen- -metragem Fantasia (1940) como referência para sua própria
do conselhos e tentando lhes incutir algum juízo. No segmento sinfonia. Fantasia é composto por oito segmentos animados in-
sobre a lenda da noite, por exemplo, o narrador faz o seguinte dependentes, inspirados e animados sobre peças clássicas de
comentário, em tom irônico: “Dizem que as mulheres são mui- grandes mestres como Bach, Beethoven, Stravinsky e Tchaiko-

próxima
to curiosas. Entretanto, certos pequenos guerreiros valentes vsky. Do mesmo modo, o brasileiro optou pela música clássica
gostam de imitar as mulheres nesse sentido”. Em outro trecho, internacional, sem esconder, no entanto, sua preferência por
o narrador tenta, insistentemente, convencer o Curumim a não utilizar peças nacionais como a ópera O guarani.
tentar caçar o animal que deixou um rastro de pegadas enormes, A música também foi outro aspecto limitador. Sem autorização para

dado o risco de ser muito perigoso. Mais tarde, quando o mesmo utilizar as músicas brasileiras que desejava, como as obras de Carlos
Gomes e Lorenzo Fernandes, Anélio teve de recorrer a compositores
Curumim consegue correr para longe da onça, podemos ouvi-lo
anterior rindo e comemorando o feito da personagem.
internacionais que já haviam caído em domínio público com Schubert,
Wagner e Liszt. (FONSECA, 2009, p. 1).
Terminada a primeira lenda, entra em cena a personagem
O próprio Anélio Filho afirmava ter tido grande trabalho

289
em adaptar as músicas estrangeiras, para que as mesmas com- Tamanho zelo e cuidado foram características de todo o
pusessem com as lendas sem alterá-las. “Então, muitas vezes processo de realização do filme. Aliados ao talento do artis-
tive que ampliar algumas cenas para justificar o espaço da ta, resultaram em um enorme sucesso de crítica e de público
música” (MORENO, 1978, p. 77). Apesar da forte influência do na época de seu lançamento, em 1953. O crítico de cinema Ely
estilo das animações de Disney e do uso de composições inter- Azeredo lembra que Sinfonia amazônica surpreendera o públi-
nacionais na trilha sonora, o filme não deixa de ser uma obra co e a crítica da época. “Anélio fez todo o trabalho que uma
tipicamente brasileira. Há ainda músicas compostas especial- enorme equipe de animação fazia nos desenhos de Walt Disney.
mente para o filme, com ritmos tipicamente cariocas como o Comercialmente, seu resultado não foi animador, mas o filme
choro e o samba. Em um dos pontos altos do filme — na lenda do teve muita divulgação na imprensa” (FONSECA, 2009, p. 1). Mas
jabuti e da onça, quando o Jabuti Malandro começa a tocar sua Antônio Moreno, no entanto, afirma que o animador não encon-
flauta de osso — ouvimos o choro composto por Hélio Latini, trou dificuldades para a distribuição e exibição do filme,
capa executado na flauta do músico Altamiro Carrilho. Hélio ainda que foi um sucesso comercial na época — menos para Latini,
compôs outras duas músicas especialmente para a sinfonia. “de quem se descontou todas as despesas com publicidade, car-
Anélio Filho desenvolveu ainda um método próprio de sin- tazes, fotos e traillers” (MORENO, 1978, p. 79). Para piorar,
cronizar as músicas e a ação das personagens. Criou “fichas o artista também teve sérios problemas com a arrecadação das
de sincronização”, que empregou para marcar o ritmo da tri- salas de exibição, como contara na época:

universidade
lha sonora antes de animar as personagens. Ouvia as músicas Além de todos descontos com publicidade e promoção do filme, ainda
existia o roubo. Eu fui tremendamente roubado. Só não fui roubado no
no toca-discos, comparava os intervalos entre as notas nas
Rio, porque eu estava aqui. Vinhas relatórios incríveis, inclusive
partituras e, com cálculos meticulosos, dividia o tempo da “macetes” para tapear o produtor. Eles me mostraram uma carta forjada
ação das personagens em quadros, seguindo a cadência da músi- da exibição no Paraná, dizendo que o filme era uma bomba, logo, isso
seria a pseudo-razão da baixa renda naquele estado. O interessante é
ca. “Sincronização dos movimentos dos bonecos com a música,
sumário a divisão do compasso, com o auxílio da bachita, diálogos e
que eu recebi, na época, várias cartas de pessoas que haviam assistido
ao filme dizendo que estava sendo um sucesso tremendo (ibid.).
ruídos, que caíam inevitavelmente na técnica cinematográfica
Mas se Latini não obteve o retorno financeiro esperado, o
altamente profissional” (MORENO, 1978, p. 78). É comum ouvir
filme, por outro lado, foi destaque no exterior, incluindo o
de animadores mais experientes, inclusive, que o cineasta re-
nome de Latini em diversas obras internacionais especializadas

próxima
alizou uma proeza que os animadores de Disney não conseguiram
em Animação e em cinema, de maneira geral. Sinfonia amazônica
na obra Aquarela do Brasil (1942): animar com perfeição os
recebeu inúmeros prêmios nacionais e internacionais, como o
movimentos de dança do choro e do samba na lenda do jabuti e
prêmio oficial do jornal O Estado de São Paulo, o prêmio da
da onça. Para executar os passos à perfeição, o animador com-
Comissão Nacional de Folclore da UNESCO, prêmio do Instituto
parou a marcação do tempo da música com filmagens de passis-
Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura (IBECC), estatueta
tas e músicos, empregando para a realização da cena a técnica
anterior de rotoscopia (desenho de animação a partir da referência de
O Índio (1953), da revista Jornal de Cinema, a estatueta Saci
de cinema (1954) e o prêmio do Festival Nacional Cinemato-
fotogramas de um filme com atores).

290
gráfico do Rio de Janeiro. Infelizmente, todos esses prêmios originais do filme, começando pela telecinagem das matrizes
não foram o suficiente para que o animador desse continuidade em película, sem tratamento digital, seguido da remasteri-
a novas produções. Latini chegou a tentar relançar Sinfonia zação digital em película e em home video (DVD) para, fi-
amazônica nos cinemas em 1977. Mas uma lei brasileira da épo- nalmente, reconduzi-lo à circulação pública, a fim de que a
ca o impediu de seguir adiante com o projeto. Segundo explica obra possa ser conhecida por novos espectadores (PROJETO DE
Moreno em seu livro, depois do prazo de cinco anos da primeira RESTAURAÇÃO DA OBRA AUDIOVISUAL SINFONIA AMAZÔNICA, [s/d], p.
passagem pela censura, o realizador poderia requerer revali- 1). As sessões contariam também com o curta-metragem Azares
dação da censura por mais cinco anos. Contudo, para a sala de de Lulu na abertura, que estaria igualmente presente no home
cinema, essa obra deixa de se enquadrar na reserva legal a vídeo, como um extra. Infelizmente, mais uma vez a falta de
produções nacionais que existia, não entrando mais nos moldes recursos se faz presente na história de Sinfonia amazônica.
da lei de obrigatoriedade de exibição de filme brasileiro. Sem patrocínio, o processo de restauração do filme atualmente
capa Com isso, o filme passava a competir por espaço de exibição encontra-se inacabado.
com as superproduções vindas do exterior. Esperamos que, por meio de iniciativas como as de Márcia
Nos últimos anos, Márcia Latini vem realizando um esfor- Latini, da Associação Cultural Tela Brasilis, de animadores,
ço para restaurar uma das poucas cópias de Sinfonia amazôni- pesquisadores e de tantas pessoas empenhadas em resgatar este
ca existentes no mundo, a fim de trazer de volta ao grande tesouro da cinematografia brasileira, muito em breve a im-

universidade
público esta obra que, durante muitos anos, ficou esquecida portância de Anélio Latini Filho e de sua sinfonia sejam de-
nos corredores da Cinemateca Brasileira. O descaso com a obra vidamente reconhecidas. E que as futuras gerações tenham a
teve, por consequência, o desgaste na imagem e no som do fil- oportunidade rara de conhecer na íntegra, com toda a riqueza
me. Márcia alerta que de detalhes visuais e sonoros planejados pelo animador, esse
“Sinfonia amazônica” hoje tem arranhões graves em sua imagem e precisa registro importante da história brasileira.
sumário de uma melhoria de som. O longa tem Altamiro Carrilho na flauta em
sua trilha sonora. Em 1992, logo que papai morreu, um laudo nada Referências
otimista da Cinemateca Brasileira, onde o filme estava depositado,
apontava que dois rolos do original haviam sido perdidos. Em 2003, • ANIMANIA. Brasil: TV Brasil, 2008.
nós os recuperamos. Mas “Sinfonia...” ainda precisa de cuidados — • AZARES DE LULU. Dirigido por Mário Latini. Produzido por Anélio Latini
diz. — O custo do projeto é de R$ 378 mil. Mas parece que ninguém Filho e Mário Latini. Roteiro de Mário Latini. Animação de Anélio Latini

próxima
faz ideia do valor da obra de Mário e Anélio, porque ninguém quer Filho. Animação, sil., pb. Duração: 10 min. Brasil: Departamento de Im-
prensa e Propaganda, 1940.
patrocinar o custo do restauro. E olha que achar algo mais brasileiro
do que uma história sobre o folclore amazônico é impossível (FONSE- • FONSECA, Rodrigo. Curumim sai da toca. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 9
jul. 2009. Segundo Caderno, p. 1.
CA, 2009, p. 1).
• MORENO, Antônio. A experiência brasileira no Cinema de Animação. Prefácio
Márcia criou a produtora Arwel Art especialmente para ad- de Leandro Tocantins. Prefácio de Stil. Rio de Janeiro: Artenova/Embra-
filme, 1978.
ministrar as obras dos irmãos Latini e para levantar recursos
anterior para a restauração do longa-metragem. O projeto tem duração
• PECH, Daniel. Um homem e sua sinfonia. In: Cineclube Tela Brasilis 65 (fo-
lheto). Rio de Janeiro: Cineclube Tela Brasilis, 2008, 8 p.

de um ano e prevê a restauração completa do som e da imagem • PROJETO DE RESTAURAÇÃO DA OBRA AUDIOVISUAL SINFONIA AMAZÔNICA. Rio de Ja-
neiro: Arwel Art, [s/d]. Disponível em <http://www.arwelart.com.br/> Aces-

291
so em: 8 abr. 2010.
• SINFONIA AMAZÔNICA. Dirigido por Anélio Latini Filho. Produzido por Ané-
lio Latini Filho e Mário Latini. Roteiro de Anélio Latini Filho, Joaquim
Ribeiro e Wilson Rodrigues. Animação e Direção de arte de Anélio Latini
Filho. Fotografia de Mário Latini. Animação, son., pb. Estrelando (vozes):
Henrique Foreis Domingues (Almirante), Jaime Barcellos, Sadi Cabral, Es-
telinha Egg, Bartolomeu Fernandes, Pascoal Longo, Matinhos, Estevão Matos,
Nero Morales, Antônio Nobre, Paulo Roberto, Abelardo Santos, José Vascon-
cel. Músicas de Altamiro Carrilho, Homero Dornellas, Hélio Latini, Alfredo
Passidomo, Scarambone. Duração: 63 min. Brasil: Latini Studio Ltda., 1953.

capa

universidade

sumário

próxima

anterior

292
Introdução
UMA ADAPTAÇÃO BEM SUCEDIDA
A história das relações entre literatura e cinema é longa.
Os cineastas, desde cedo, viram na literatura um universo de
temas e de estruturas narrativas que poderiam constituir uma
verdadeira fonte de inspiração e de trabalho. Na aurora da sé-
tima arte, Griffith não hesitou em reconhecer que colhera em
G érson T rajano Charles Dickens modelos narrativos, técnicas, e uma concepção
mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-São Paulo, jornalista profissional
de ritmo e de suspense, articulando duas ações simultâneas e
(Jornal da Cultura) e roteirista (e-mail:gtrajano@uol.com.br)
paralelas. É inegável que atualmente há importantes roteiros
originais, mas muitas produções cinematográficas ainda recor-
RESUMO
capa rem a uma velha e sólida base: o romance.
Este artigo é o resultado de estudos sobre a passagem de Mas, enquanto um romancista tem à sua disposição a lingua-
uma obra literária para o meio audiovisual. De modo mais es- gem verbal, com toda a sua riqueza metafórica e figurativa, um
pecífico, para a televisão. Trata-se de um estudo da elabora- cineasta ou um diretor de televisão lida com pelo menos cinco
ção do roteiro e da transposição da obra Auto da Compadecida, materiais de expressão diferentes: imagens visuais, a lingua-
do paraibano Ariano Suassuna, para uma minissérie em quatro gem verbal oral (diálogo, narração e letras de música), sons
universidade capítulos dirigida por Guel Arraes para a Rede Globo de Te- não verbais (ruídos e efeitos sonoros), música e a própria
levisão, em 1999. língua escrita (créditos, títulos e outras escritas).
Palavras-chave: Comunicação – Adaptação – Minissérie – Em geral, quando se faz uma transposição de uma obra li-
Roteiro – Tradução Intersemiótica terária para a televisão, a história original recebe acrésci-
sumário mos de novos programas narrativos, personagens e de espaços
ABSTRACT e tempos.
De acordo com Haroldo de Campos (1987: 56-59), quando
This article is the result of studies on the passage of
ocorre uma tradução, o caráter concluso da obra original fica
a literary work for the audiovisual medium. So more spe-
provisoriamente suspenso e o fazer reabre o seu processo,
próxima
cific, to television. This is a study of implementing the
refazendo-se na dimensão nova da língua do tradutor.
script and the implementation of the work Auto da Compade-
Contudo, segundo Campos, “original e tradução, autônomos
cida, of Ariano Suassuna, for a miniseries in four chapters
enquanto informação estética, estarão ligados entre si por
directed by Guel Arraes for the Globo Television Network,
uma relação de isomorfia. Serão diferentes enquanto lingua-
in 1999.
gem, mas, como os corpos isomorfos, cristalizar-se-ão dentro
anterior Keywords: Communication - Adaptation - Miniseries - Script
de um mesmo sistema.”
- Intersemiotic Translation
No que diz respeito a adaptação de Guel Arraes, o mesmo

293
material, captado em película para a produção da minissérie, trama importante desenvolvida ao longo da história, e não a
gerou também um filme para o cinema e, alguns anos depois, mutiplicidade de tramas que caracteriza a telenovela.
dois DVDs (disco digital versátil), um da minissérie e o ou-
tro com a versão para o cinema. A análise feita aqui enfoca, A ideia de se fazer a minissérie O Auto da Compadecida
exclusivamente, a adaptação da obra literária para uma minis-
Com O Auto da Compadecida todas as regras para se fazer
série de televisão.
uma minissérie foram seguidas. Inicialmente, o diretor Guel
Reservada, em geral, para o horário das 22 horas, a minis-
Arraes havia pensado em uma versão para o “Brasil Especial”,
série pressupõe um público mais exigente, não cativo da TV,
um programa de adaptações literárias levado ao ar em um úni-
geralmente com outras opções de divertimento e lazer. Num es-
co dia e uma vez por mês. Mas resolveu que a história rende-
tudo sobre dramaturgia de televisão, Renata Pallottini (1998:
ria mais que um dia no ar. Foi então que desenvolveu melhor
28) aponta a minissérie como uma espécie de telenovela curta.
capa
o roteiro e apresentou um novo projeto a Daniel Filho, então
Seria uma obra fechada, definida em sua história, peripécias
diretor de produção da TV Globo. “Propus uma minissérie que
e final, no momento em que se vai para a gravação. Não compor-
cobrisse a semana”, explica Arraes. (entrevista a Dafne Sam-
ta, em geral, modificações – como a telenovela brasileira – a
paio para o site www.somlivre.com - 23/11/2001).
serem feitas no decurso do processo e do trabalho.
A proposta era ousada. Naquela época não se produzia sé-
A minissérie desenvolve uma trama básica à qual se acrescentam inci-
ries muito curtas para a televisão. A ideia era considerada
dentes menores. Se biográfica, gira em torno de uma vida humana; se

universidade ficcional por inteiro, a minissérie procura se conter num plot, num
conflito básico, numa linha central de ação bem-definida, não compor-
um tabu, porque quando se trata de um programa todo os dias
é preciso algum tempo para a história se fixar na mente do
tando a diversidade de linhas de ação.
telespectador. Geralmente, só a partir do oitavo capítulo é
Em relação à personagem, nas minisséries ela tem a mesma que as pessoas começam a se acostumar com a história. Mesmo
característica pessoal do início ao final da história. Sua
sumário
assim, Guel Arraes apostou numa produção em quatro capítulos.
personalidade não muda. Não varia. Suas ações finais são con- A minissérie O Auto da Compadecia é um texto ampliado do
seqüência dos comportamentos iniciais; ele é coerente e con- texto de partida, ou seja, foram utilizadas outras peças cul-
forme. turais na elaboração e na construção do seu roteiro.
A minissérie é um trabalho totalmente fechado, pronto em Numa entrevista ao Grupo de Pesquisa em Mídia e Cultura

próxima
sua escrita antes da gravação, que tem continuidade absolu- Contemporânea da Universidade Católica de Pernambuco, publi-
ta – a mesma de uma telenovela –, cuja unidade se completa na cada no Documento Nº 1, o próprio Arraes (2003: 15-16) diz
visão da totalidade dos capítulos e é garantida pelo conjunto que ler as outras obras do autor foi uma estratégia muito boa
do assunto, e cujos capítulos possuem a mesma unidade relati- para se fazer a adaptação.
va de um capítulo de telenovela. Quando você conhece a obra como um todo, você percebe que os per-

anterior Pareceria, mesmo, que a minissérie nada mais é que uma sonagens, ou as características de um determinado personagem, acabam
se repetindo um pouco com outros e em outras situações em mais de um
telenovela pequena. No entanto, em sua técnica de escrita,
texto. Se você observar a obra de Ariano Suassuna, por exemplo, vai
ela se assemelha mais a um filme de cinema. Supõe apenas uma ver em vários outros textos situações que poderiam ter sido prota-

294
gonizadas perfeitamente por João Grilo. O que eu faço é aproveitar exemplo, na seqüência em que Nossa Senhora se compadece dos
essas situações, esses mesmos universos, num mesmo texto. Foi isso o
pecados dos que estão sendo julgados e transfere o drama
que fiz na adaptação O Auto da Compadecida, que reúne, na verdade,
vários textos de Suassuna.
ficcional para o drama real, são mostradas fotos em preto e
branco, imagens documentais de autoria do repórter fotográfi-
Desta forma, se o texto de partida era composto em três
co Walter Firmo, que tratam do flagelo vivido por milhões de
atos: O Enterro do Cachorro (1986: 25-71), A História do Gato
nordestinos no Brasil, em decorrência da seca.
que Defecava Dinheiro (1986: 71-134) e O Julgamento das Almas
Mais já no primeiro capítulo, o diretor recorreu ao cine-
(1986: 134-203), a adaptação ficou com quatro capítulos: O
ma, com a apresentação de parte do filme A Paixão de Cristo
Testamento da Cachorra, O Gato que Descome Dinheiro, A Peleja
para os moradores de Taperoá. O filme recebeu um tratamento
de Chico Contra os Dois Ferrabrás e O Dia em que João Grilo
gráfico (colorização) e a imagem do Cristo passou a ter tons
se Encontrou com o Diabo.
pasteis que se assemelham as tonalidades do sertão brasilei-
capa Segundo o diretor da minissérie, a adaptação precisava
ro. O filme também é utilizado na vinheta de abertura da mi-
ser maior, até pelo fato de se levar um texto de um veículo
nissérie.
para outro totalmente diferente, e que, uma das coisas que
Ainda no primeiro capítulo, Chicó e João Grilo aparecem
mais atraem o interesse do telespectador é uma história de
em plano geral carregando uma placa pirulito e conclamando as
amor. Cria-se então uma personagem feminina, Rosinha, que não
pessoas a irem assistir ao filme que será exibido na igreja
consta do texto original, mas faz referências aos contos de

universidade
local. Essa cena nos remete a antiga prática de chamamento por
fadas, reforçando a busca por um nordeste medieval.
parte de circos e teatros mambembes, quando se apresentavam
Era uma idéia arriscada porque a característica dos personagens pica-
em cidades do interior.
rescos, como João Grilo e Chicó, é não ter preocupação sentimental.
A busca deles é por comida e comida. Quase que a gente dividiu o Um pouco mais adiante na história, quando Chicó começa
Chicó em dois, conta Guel Arraes, em uma entrevista feita por Dafne a contar suas mentiras, são utilizados recursos de animação
sumário Sampaio para o site www.somlivre.com, em 23/11/2001.
gráfica para dar vida à imaginação do sujeito. Ele começa a
Anna Maria Balogh (1996: 141) afirma que, por serem se- contar uma de suas aventuras ao amigo João Grilo, neste caso,
rializados, os programas televisuais, são muito mais extensos que já teve um cavalo bento, e que o levou da ribeira do Ta-
do que as obras fílmicas e a maioria das obras literárias. peroá, na Paraíba, até Propriá, em Sergipe, tangendo um boi
Ela aponta também para a descontinuidade dos programas, visto
próxima
e uma garrota. A cena é captada em externa. Quando começa a
que se fragmentam inúmeras vezes, não apenas nos capítulos ou contar sua proeza, Chicó geralmente está fumando. Uma bafora-
episódios das séries, mas também nos vários intervalos comer- da, é o suficiente para que a anedota se transforme numa his-
ciais, como um fator de prolongamento de histórias ficcionais tória gráfica animada. A imagem que segue é a de Chicó sobre
de televisão. “Por isso a adaptação televisual exige, em ge- um cavalo a galope, perseguindo um boi e uma garrota. No fundo
ral, uma estratégia de expansão narrativa e discursiva”. do quadro, o desenho de um renque de árvores. Os animais e as
anterior Para compor sua minissérie Guel Arraes recorre ainda ao árvores são figuras de animação gráfica.
uso de diversos sistemas semióticos, além da literatura. Por Em seu modo de compor o roteiro da minissérie, o diretor

295
faz também referência ao dramaturgo francês Molière, e sua A cena da minissérie: A cena em Moliere.

peça O Marido da Fidalga (2005), escrita no século XVII, para


Mulher do padeiro Angélica
caracterizar a astúcia e a perspicácia da mulher do padeiro, Abre essa porta Eurico. Aí, rogo-vos abrir-me a porta!

que engana seu marido quando é impedida de entrar em casa após


Padeiro (entreabrindo a porta, gritando João Dandim
regressar de um passeio noturno. e atirando coisas na mulher) É cedo ainda;
Isso é hora de chegar em casa de respeito? Dos que mandei chamar, devo
Aqui você não entra nem com a moléstia aguardar a vinda;
Vejamos: do cachorro doido. Vai dormir é na rua, E com gosto imagino o acharem seu rebento
pra todo mundo conhecer a qualidade Perambulando a sós, a tal hora, ao relento
de mulher traidora que você é.
Angélica
Mulher do padeiro Abri-me!
Eu só fui dar uma voltinha para refrescar. Outorgai-me essa graça.

capa
Padeiro João Dandim
Pra refrescar esse fogo que É inútil.
você tem ai dentro.
Angélica
João Grilo, Chicó. Por mercê! Salvai-me da desgraça!
Senhor. Da fúria de meus pais!

Padeiro João Dandim


Vão chamar o padre João. Eu quero que São fúteis as cantadas.

universidade
ele testemunhe essa safadeza, e condene
essa adúltera aos quintos dos inferno. Angélica
Mostrai-vos generoso.
Mulher do padeiro
Riquinho, vamos resolver esse assunto João Dandim
entre nós. Abra, por favor. Ide plantar batatas.

sumário Padeiro Angélica


Abrir, só se for sua cabeça, infeliz. Perdão ainda esta vez.
Eu fui muito besta em casar com você, viu.
Mulher bonita só serve pra por chifre. João Dandim
Não sou nenhum molenga.
Mulher do padeiro

próxima
Se você não abrir, eu me atiro na cacimba. Angélica
Por Deus!
Padeiro
E eu tenho essa sorte. João Dandim
Não, não, e não. Basta de lengalenga.
O que eu quero é que seja o
escândalo de arromba,
E que vossa vergonha estale que nem bomba.

anterior

296
Mulher do padeiro Angélica Padre João Angélica (na janela)
Você vai morrer de remorso por Sem que trema, Minha filha, perdoe, que ele Como é, és tu enfim? E de
essas suas acusações falsas. Minha alma adotará uma atitude extrema, não sabe o que diz. onde vens, tratante?
Tremenda. São modos, isso, então? tornares à morada
Padeiro Mulher do padeiro Quando está prestes quase
Eu vou mais é soltar foguete. João Dandim Perdôo não padre (com ar de choro). a surgir a alvorada?
Ah, muito bem! E que mais? Não aquento mais sentir bafo de cachaça. Será decente, andar fora a
Mulher do padeiro esta hora indevida,
Vai todo mundo pensar que Angélica Padeiro E de um marido honesto é modo isso de vida?
você me matou por ciúme. Deus me valha! Mas padre.
Eu vou sem hesitar, aqui, com esta navalha, João Da dim
Padeiro Matar-me à vossa vista. Padre João O quê?!...
E tu és besta de morre só por isso. Seu Eurico desse ao respeito,
João Dandim o senhor é presidente da Sr. de Cascogrosso (pai de Angélica)
Mulher do padeiro Há-há! Que boa piada. Irmandade das Almas. Como, que significa essa nova artimanha?
Adeus Eurico, meu único amor (jogando uma

capa
pedra no poço e gritando aaaahhhhhhh). Angélica Padeiro João Dandim
Padeiro (correndo desesperado e Então, já que é preciso, Mas padre João. Senhor meu sogro, implo...
abrindo a porta, enquanto a mulher Eis o que há de findar em
sorrateiramente entra em casa) vosso e meu prejuízo; Padre João Sr. De Cascogrosso
Dorinha, minha filha. Não faça uma Veremos se eu estava a Peça desculpa a sua esposa, O quê! Ainda respinga?
coisa dessas que eu sou doido por ti. escarnecer! Que teime eu estou mandando. Para longe, eu vos digo,
O déspota em se rir, tanto faz. estais fedendo a pinga
Padeiro (finge matar-se) Padeiro À boca cheia.
Abre essa porta Dora. Ah! Matei-me! Mas padre João.

universidade
Só com um desejo morro, e João Dandim
Mulher do padeiro no último estertor Padre João Ouve-me...
Isso é hora de chegar numa casa de Imploro ao Céu fazer com Peça!
respeito? Aqui você não entra nem com a que o bárbaro autor Sr. De Cascogrosso
moléstia do cachorro doido. Vai dormir De meu trespasse encontre Padeiro Basta de quebrar a todos a cabeça,
é na rua, que é pra todo mundo conhecer o seu justo castigo, Desculpe. E, se não tencionais que a
a qualidade de homem que você é. Da malvadez sem-par que mostrou pra comigo! bílis se me aqueça,
sumário Tratai já de pedir perdão dessa disputa
Padre João João Dandim À vossa esposa.
O que é isso? Irá dessa patife a malícia a tal ponto?
Angélica, eh, responde; onde João Dandim
Padeiro estás? eh, lá! pronto! Quem, eu?...
Era eu que estava lá dentro, Mas não foi a marota esticar a canela

próxima
padre João, hem Dora? Só para me enforcar? Não vejo da janela. Sr. de Cascogrosso
Vou descer com uma luz. Sem que se discuta!
Mulher do padeiro
Ta bebinho, padre. João Dandim
Não fala coisa com coisa. Eu rogo a Vossa Graça...
E juro proceder com juízo no futuro.

anterior

297
Além disso, o diretor foi buscar referências na litera- confusa e misteriosa de influências, mas o trabalho de trans-
tura medieval, sobretudo em Lazarillo de Tormes, em Decame- formação e assimilação de vários textos, operado por um texto
ron, de Boccaccio, e em Cervantes, para criar a sua história centralizador, que detém o comando do sentido. É uma prática
e estruturar seus personagens principais. Ele forneceu, não social e, portanto, locus de diálogo, circulação e tradução
apenas aos seus colegas roteiristas (Adriana e João Falcão) de conteúdos e formas culturais do amplo espectro histórico
mas a toda a equipe, elementos desses e de outros autores da da vida social.
Idade Média a fim de montar sua adaptação. Para Iuri Lotman (1979: 33-34), semioticista russo, há um
Foi assim que “aquele começo, com os dois (João Grillo e relacionamento dinâmico entre os sistemas da cultura – defi-
Chicó) procurando emprego, nada daquilo tinha no original, nido por ele como um processo de modelização –, e que no qual
diz Adriana Falcão, uma das roteiristas (apud – Maria Isabel a cultura é entendida como texto e a comunicação como processo
Orofino 2001: 206), mas dá a introdução do que é um personagem semiótico.
capa picaresco, como o Lazarillo de Tormes e João Grilo”. Qualquer texto cultural (no sentido de tipo da cultura) pode ser
examinado tanto como uma espécie de texto único, com um código único,
A minissérie dialoga também com nos figurinos de épocas
quanto um conjunto de textos, com um determinado conjunto de códigos,
passadas. Cao Albuquerque (apud – Maria Isabel Orofino, 2001: a eles correspondente. Este pode ser mecânico – constituir-se de um
222), responsável pelo vestuário dos atores de O Auto, conta determinado conjunto de textos os quais, em princípio, são decifráveis

que : por meio do código geral –, ou incluir textos que exigem diversos có-
digos apenas num certo nível, mas que em outros níveis são decifráveis

universidade
Eu vi Decameron de Pasolini várias vezes e fiquei pensando naqueles
por meio de um único sistema de signos.
dentes estragados, naquelas bocas emendadas, naquele lado do Pasolini
(Decameron, o filme) que faz uma Idade Média sem idade nenhuma. Até Assim, dentro dos padrões concebidos por Lotman, conside-
mesmo o vestido da Rosinha é totalmenteIdade Média. ramos a cultura como memória longeva da coletividade.
Em relação à musicalidade da minissérie, toda a sua concep- Visto desta maneira, a cultura relaciona-se necessaria-

sumário ção resgata temas musicais com ritmos do folclore de Pernam- mente com a experiência histórica passada. Assim, o que um
buco, apresentando o maracatu, banda de pífaros, caboclinhos, emissor ou um receptor forem capazes de organizar, relacio-
maxixe, embolada e ciranda. Todos estes estão entrelaçados, nar, criar ou perceber enquanto novas formas de combinação e
hibridizados e intercalados com escalas da música armorial. de sentido diz respeito à noção de repertório. Neste caso, a
Mesmo que haja vários ritmos em jogo, todos dialogam entre noção de repertório torna-se fundamental, porque determinará,

próxima si, dentro de uma unidade própria do folclore nordestino. E os em função do receptor, uma postura face ao objeto artístico.
ritmos são introduzidos apenas para pontuar a ação dramática O adaptador – roteirista e diretor – entra em cena com o
de modo que a trilha sonora nunca se sobrepõe, fica leve, ao propósito de levar, um texto conhecido por alguns, a outro
fundo. público, que não conhece, necessariamente, a língua do autor
e sim a do adaptador, com outros envolvimentos culturais.
anterior Conclusão Poderíamos dizer então, que uma adaptação é uma trans-
crição de linguagem: muda-se o suporte usado para contar uma
A intertextualidade da minissérie designa não uma soma

298
história. Isto equivale ao ato de transubstanciar, de trans- • Janeiro-RJ. Editora. José Olympio.

formar a substância, já que uma obra é a expressão de uma • SUASSUNA, Ariano. 2004 – 6ª Edição. O Santo e a Porca. Rio de Janeiro-
• RJ. Editora. José Olympio.
linguagem.
A questão de ampliar ou afastar o público também persegue
o diretor de televisão Guel Arraes. “Há anos, eu e um grupo
de pessoas ligadas com produção de televisão vivemos nessa
tensão que é conquistar o público e inquietá-lo. Às vezes o
inquietamos demais, e ele nos abandona. Às vezes o conquis-
tamos demais, e a crítica nos abandona” (Folha de S. Paulo,
11/08/2003: P. E1).
Mas, no que se refere ao O Auto da Compadecida, Arraes
capa consegue estabelecer um rico e denso diálogo que arrasta pú-
blico e crítica para frente da televisão.
A minissérie O Auto da Compadecida é o exemplo de que co-
municação é manipulação de gêneros, de linguagens, de textos
que dialogam entre si produzindo novos sentidos.

universidade Bibliografia
• BALOGH, Anna Maria. 1996. Conjunções, Disjunções, Transmutações – da
• literatura ao cinema e à TV, São Paulo-SP. Editora. Annablume.
• CAMPOS, Haroldo. 1987. Da tradução: poética e semiótica da operação

sumário • tradutora (pp. 53-74). in. Oliveira, A. C e Santaella, L (orgs.). Semió-


tica e Literatura. São Paulo-SP. Editora. Educ. Cadernos-PUC-SP.
• LOTMAN, Iuri. 1979. Sobre o Problema da Tipologia da Cultura. In Semiótica
• Russa. São Paulo-SP. Editora. Perspectiva.
• MOLIÈRE. 2005. A Escola dos Maridos; O Marido da Fidalga. São Paulo-SP.

próxima
• Editora. Martins Fontes.
• OROFINO, Maria Isabel. 2001. Tese de Doutorado. Mediações na Produção
• de Teleficção – Videotecnologia e Reflexividade na Microssérie O Auto da
Compadecida. Departamento de Ciências da Comunicação da Escola de Comuni-
cação e Artes da Universidade de São Paulo.
• PALLOTTINI, Renata. 1998. Dramaturgia de Televisão. São Paulo-SP.
• Editora.Moderna.

anterior • SUASSUNA, Ariano. 2001 – 22ª Edição. Auto da Compadecida. São Paulo-
• SP. Editora. Agir.
• SUASSUNA, Ariano. 2002 – 2ª Edição. O Casamento Suspeitoso. Rio de

299
tuais, todo mundo estuda essa novela” (BRITTO, 2005, p. 205).
O ROTEIRO DE O GRITO, O comentário é gracioso mas impreciso: não é fácil encontrar
TELENOVELA DE JORGE ANDRADE estudos sobre essa obra.
Em reportagens da época, encontram-se poucos elogios e
muitas críticas. O jornalista Artur da Távola foi um dos
maiores defensores da novela. Em artigo da revista Amiga TV
escreveu:
O grito gerou um dos mais estranhos fenômenos de audiência dos últimos
S abina A nzuategui tempos. Normalmente a novela das dez tem uma média de audiência mais

Faculdade Cásper Líbero, doutoranda em Meios e Processos Audiovisuais na ECA- ou menos fixa. Esta tinha dias de piques mais altos que as demais do
-USP, sabina.anz@usp.br horário e dias de acentuadas quedas durante o período em que estava
ar, (como piques). Esse
capa
no quedas estas igualmente recordistas os
comportamento irregular da audiência mostra a estranheza do público
RESUMO37 frente a um estilo de telenovela que discrepou do habitual, pois em
vez de simplesmente distrair o púbico com muita ação e acontecimentos,
O artigo analisa trechos da telenovela O grito, de Jorge preferiu fazê-lo pensar, entrar em si mesmo, meditar. (TÁVOLA, 28
Andrade, exibida pela TV Globo entre 1975 e 1976, buscando abr. 1976)

encontrar semelhanças entre as peças teatrais do autor, e seu Távola considerava a obra uma das “propostas mais sérias

universidade
trabalho na televisão. jamais colocadas numa novela de TV”, que teria “alguns equí-
PALAVRAS-CHAVE: Telenovela, teledramaturgia, Jorge Andra- vocos tanto na direção como do autor no tocante ao ritmo e aos
de, O grito tempos dramáticos”.
O grito estreou em outubro de 1975, depois do término de
ABSTRACT
Gabriela, de Walter Durst. A sequência não deve ter ajudado a
sumário This article examines extracts from the scripts of O gri-
recepção da obra. Depois da sensualidade de Sônia Braga, quem
estaria aberto a uma novela tão sombria? No primeiro andar do
to, a Brazilian telenovela written by Jorge Andrade and pro-
edifício Paraíso, em frente ao elevado Costa e Silva (o Minho-
duced by TV Globo in 1975-1976, comparing the author’s work
cão), mora uma ex-freira, viúva, mãe de um menino excepcional
in theatre and television.

próxima
que grita desesperadamente durante a noite. O grito incomoda
KEY WORDS: Brazilian telenovela, screenwriting, Jorge An-
vários moradores, que convocam uma reunião de condomínio para
drade, O grito
expulsá-la do prédio.
Aos andares do edifício Paraíso corresponde certa hierar-
O ator Ney Latorraca, em depoimento sobre Walter Avancini
quia: na cobertura fica a família do proprietário original,
(diretor dos primeiros capítulos de O grito), assim se refere
anterior
um “industrial” que fez construir o edifício no terreno her-
à novela de Jorge Andrade: “Engraçado, na época, O grito não
dado pela esposa, de família tradicional paulista. No térreo
fez sucesso nenhum e hoje é uma das queridinhas dos intelec-
37 Artigo desenvolvido durante pesquisa de doutorado, orientada por Esther Hamburger, no curso de Meios e moram o zelador e as empregadas. Nos andares intermediários
Processos Audiovisuais da ECA-USP.

300
há figuras recorrentes na dramaturgia de Jorge Andrade - um à custa do Sacrifício.
intelectual, um velho fazendeiro, um casal sustentado pela Entre 1958 e 1964, Jorge Andrade teve quatro peças en-
mãe - além de outros personagens urbanos: secretária, aero- cenadas pelo Teatro Brasileiro de Comédia. Dessas, A escada
moça, médico, atriz decadente e adolescentes enamorados. Es- (1961) e Os ossos do barão (1962) tiveram grande sucesso de
tão envolvidos em seus problemas particulares, mas têm dois público. Mas seu último texto montado pelo TBC - Vereda da
problemas em comum: o grito insuportável do menino, que não salvação, em 1964 – teve recepção desastrosa: pouco público,
deixa ninguém dormir, e um interceptador que foi roubado da e críticas agressivas. Por seu retrato de camponeses mise-
companhia telefônica – alguém está ouvindo as conversas dos ráveis, num movimento autodestrutivo de fanatismo religioso,
outros apartamentos. Há também um criminoso desconhecido. Do foi acusado de comunista pela direita, e de reacionário pela
outro lado da rua, escondido num apartamento, um delegado vi- esquerda. (STEEN, p. 134-135). O texto “foi, praticamente, o
gia o prédio obsessivamente, fotografando os moradores. Em O réquiem com o qual se fechou para sempre o pano daquele teatro
capa grito, os principais eixos narrativos se baseiam no segredo: paulistano” (AZEVEDO, 2001, p. 123-124).
o roubo do interceptador telefônico assombra quem tem algo a Ao final da década de 1960, Jorge sentia-se frustrado e
esconder. E o delegado vigia os moradores porque há um con- falava em abandonar o teatro (AMÂNCIO, 16 jun. 1978). Foi
trabandista entre eles, cujo rosto desconhece. professor durante alguns anos, e procurou outras alternati-
Jorge Andrade escreveu O grito aos cinqüenta e três anos. vas como autor: o jornalismo e a teledramaturgia. Da década

universidade
Sua carreira como dramaturgo tivera momentos de grande reco- de 1970 até sua morte, em 1984, escreveu telenovelas e casos
nhecimento, e fracassos que o traumatizaram. Ele foi consi- especiais em várias emissoras. Alguns títulos: Os Ossos do
derado um grande autor em sua segunda peça encenada, A mora- Barão (Globo, 1973/74), O Grito (Globo, 1975/1976), As Gaivo-
tória, em 1955. Dirigida por Gianni Ratto para a companhia de tas (Tupi, 1979), O Fiel e a Pedra (TV Cultura, 1981) e Ninho
Maria Della Costa, a peça teve grande repercussão por seu tema da Serpente (Bandeirantes, 1982). A sensação de fracasso ou
sumário (uma família tradicional de fazendeiros que perde as terras ressentimento marcou seus últimos anos (Folha da tarde, 14
durante a crise cafeeira de 1929) e sua construção dramática mar. 1984). Suas peças deficitárias eram justamente as mais
(o palco é dividido em dois planos, mostrando paralelamente elogiadas pelos críticos. Jorge enfrentava talvez uma situa-
o momento da falência, em 1929, e as expectativas frustradas ção esquizofrênica, dividido entre quem agradar, ou a quem se

próxima
de recuperar a fazenda, alguns anos depois). Jorge trabalhou dirigir. O processo ocorrido no teatro se repetiu na televi-
muito para relacionar suas angústias individuais a problemas são. Em seu sacrifício em busca do novo homem, o dramaturgo
mais amplos da sociedade brasileira, e fez um tremendo esforço muitas vezes falou sozinho.
para se reconstruir formalmente a cada obra. Suas peças mos- O grito foi a segunda telenovela escrita por Jorge Andrade
tram exercícios esmerados em vários modos da tradição teatral para a TV Globo, depois de uma adaptação de Os ossos do ba-
– tragédia clássica, comédia, teatro realista, expressionis- rão, exibida em 1973-74. O horário das 22h, extinto no final
anterior mo, recursos épicos. Há uma constante em seu pensamento: para da década de 1970, era dedicado às novelas “experimentais”
ele, a Arte seria uma maneira de entender o Homem, mesmo que (CAMPEDELLI, 1985, p. 34). Nesse horário quatro dramaturgos

301
assinaram como autores: Dias Gomes, Jorge Andrade, Walter Ge- peradas, num flashback representando o incêndio do Edifício
orge Durst e Bráulio Pedroso. Joelma 38.
As informações aqui apresentadas sobre a obra foram reu- O roteiro de O grito tem poucas indicações de enquadra-
nidas para meu projeto de doutorado, orientado pela profa. mento e efeitos de montagem, como é habitual em telenovelas.
Esther Hamburger. Consultei os roteiros digitalizados no Cen- Estas só aparecem para ressaltar cenas que o dramaturgo con-
tro de Documentação da Rede Globo; e assisti, em vídeo, ao siderava mais importantes – quase sempre, destacando preocu-
primeiro e último capítulos, que constam no acervo do curso pações existenciais de Jorge Andrade. O significado imediato
de Audiovisual da ECA-USP. dessas questões é explicado nos diálogos ou em rubricas.
A novela teve 125 capítulos, e o conjunto dos roteiros Como exemplo, menciono o delegado Sérgio, que investiga
tem cerca de 2.000 páginas. A leitura é muito proveitosa para os moradores. De seu posto de observação, o roteiro descreve
entender o trabalho do autor, mas não permite saber como a cenas de solidão na cidade: “A teleobjetiva para em um homem
capa novela foi gravada e exibida. Por exemplo, os roteiros digi- encostado ao muro: ele está com a mão no bolso e fala sozinho
talizados não mostram as cenas cortadas pela censura. Jorge – é a imagem viva do abandono e da solidão humana” (capítulo
Andrade, em entrevista à Folha de São Paulo (AMÂNCIO, 16 jun. 19). E também:
1978), diz que a obra não foi censurada. Ainda assim, a capa Ele vê, em stop motion, uma negra sentada no chão, abraçada ao filho

dos capítulos indica que “os cortes assinalados neste script jovem e soltando um grito de dessepero (sic). Em volta da negra, um
bando de filhos menores. O investigador espanta o pensamento, fecha

universidade
pela divisão de censura de diversões públicas do DPF devem ser a janela e volta para a cama. (capítulo 6)
rigorosamente obedecidos”.
Em muitas cenas, os personagens discutem sobre a vida, a
O grito estava muito distante das expectativas da época
cidade, o ser humano. Isso incomodou alguns críticos na épo-
para uma telenovela, mesmo considerando as obras mais provo-
ca. Na revista Veja, a jornalista Maria Helena Dutra reclama:
cativas. A distância é percebida já na primeira cena dialo-
sumário gada: aos três minutos do primeiro capítulo, a câmera per-
O Edifício Paraíso é quase uma academia filosófica.
localizado no centro da cidade de São Paulo (...)
Apesar de estar
não é atingido
corre o corpo de uma mulher seminua em sessão de massagem. por problemas práticos, mas serve de cenário para discussões teóricas

A massagista pergunta: “Dona Dorotéia... estava dormindo?”. sobre as angústias do ser humano e as neuroses das cidades grandes.
(DUTRA, 12 nov. 1975)
Dorotéia responde mal-humorada: “Dormi mal esta noite. No meu

próxima
prédio há uma criança débil mental que não deixa ninguém dor- Há muitos exemplos dessas digressões. Assim fala Edgard,
mir. Um horror.” Nada lembra a televisão “tão doméstica, tão morador da cobertura, proprietário da vários apartamentos:
familiar, tão íntima em nossos lares” (KEHL, 1986, p. 278), Antes... os moradores de um prédio eram geralmente pessoas do mesmo
nível social. Havia uma seleção natural determinada pelo poder aqui-
descrita em muitos estudos. Os personagens são apresentados
sitivo. – Mas agora! Minha mulher tem razão – quando afirma que o
em cenas breves, algumas sem diálogo. Planos gerais com tele- crediário esfacela tudo! (capítulo 26)
objetiva, mostrando um cotidiano nada acolhedor: uma enorme e
anterior escura estação de metrô; ruas lotadas por carros barulhentos;
E Marta, a mãe do menino doente, reflete sobre si mesma:
38 Tragédia ocorrida na cidade de São Paulo, em fevereiro de 1974, em que morreram 187 pessoas (CAVERSAN,
crianças chorando num posto de saúde; chamas e pessoas deses- 2003). O flashback não mostra imagens documentais. São planos de chamas (fogo) sobrepostos a imagens dos atores
correndo desesperados (num espaço neutro, provavelmente estúdio)

302
Trinta anos de meditação num convento... leva-nos a um raciocínio nada que atormente a consciência... Só as crianças e os inconscientes
que pode ser quase perfeito. E como se isso não bastasse, tenho mais não acordam fácil.
treze anos ao lado de uma cama, esperando a morte de um ser humano
que eu mesma coloquei no mundo! Ninguém sabe o que isso pode fazer Marina – Que quer dizer, mamãe?

a uma mente! (20)


Lúcia – Um grito como este deve lembrar a cada um... alguma coisa

Marta é uma mulher solitária, mas se sente à vontade para capaz de fazer acordar! (cap. 6)
conversar com Gilberto, “professor universitário, um antro- Outra conversa entre as mesmas personagens, no último ca-
pólogo social”, que escreve um livro sobre a cidade de São pítulo:
Paulo. Eis um exemplo do tom de seus diálogos: Lúcia – (pensativa) E de certa maneira... os gritos do filho de

Marta – É preciso que alguma coisa nos torne impotentes, para sen- Dona Marta fizeram com que cada um ouvisse seus próprios gritos! Isto
tirmos quanto somos prisioneiros da nossa condição humana! é o mais importante!

capa
Gilberto – A senhora disse que nosso edifício é uma pirâmide que Marina – Por quê?

esmaga uns para sustentar outros, lembra-se?


Lúcia – Porque suportam tudo: os uivos da cachorra do síndico, o

Marta – A reunião não provou isto? barulho infernal da motocicleta, do carro, da vitrola, do trânsito,
do rádio, da serra elétrica, da sirena da ambulância... de tudo! Mas
Gilberto – Provou. A pirâmide está se organizando para esmagar suas não queriam suportar os gritos de uma criança doente! (cap. 125)
bases: Osvaldo e Francisco.
Pode-se relacionar tais crises de consciência com a situ-
Marta – (olha a mesa) Nela... estão
universidade
representadas todas as classes
ação do Brasil no período. Heloisa Buarque de Holanda, anali-
sociais, todo tipo de mentalidade. Do poderoso Edgard, ao indefeso
Francisco. sando a criação poética nessa década, usa a expressão “sufoco”:
um cotidiano “denso e tenso”, a “necessidade de alegorizar
Gilberto – (mordaz) Passando por Dona Carmen, subúrbio em ascensão!
(capítulo 26) um estado de coisas como problema não apenas subjetivo, mas
conscientemente assumido como coletivo” (HOLLANDA, 2004, p.
sumário A mãe e o filho “débil mental” são pouco mencionados nos
117). O artigo de Sirley Oliveira, sobre As confrarias, peça
primeiros capítulos. Na trama, são figuras com função cata-
de Jorge Andrade escrita em 1969, traz essa interpretação. A
lisadora e simbólica, mobilizando pelo incômodo os outros mo-
autora discute a relação entre dramaturgia e política, mos-
radores. A intenção simbólica é explicitada em várias cenas,
trando na peça alusões ao regime militar.
através do diálogo: o grito do menino ecoa gritos internos
próxima
A análise de algumas cenas do último capítulo de O grito
de cada morador do edifício e, por extensão, de cada pessoa
deve demonstrar como essas questões (o estado de vigilância
na cidade. A tentativa de expulsão seria a recusa de ouvir os
policial, o clima de desconfiança e delações) se relacionam
próprios gritos.
com temas constantes na dramaturgia do autor.
É o que explicita o diálogo da jovem Marina e sua mãe Lú-
O último capítulo concentra-se em dois eventos: a revela-
cia, referindo-se a Bento, o irmão mais novo 39:
anterior Marina – Será que ele acordou? Ele costuma ter medo à noite.
ção do responsável pelo roubo do interceptador telefônico, e
a morte do menino doente. Os eventos levam a duas cenas que
Lúcia – As crianças têm sono profundo. (meio amarga) Ainda não têm destacam Marta, a mãe do garoto. Ela é a culpada: roubou o
39 São a família do intelectual Gilberto

303
interceptador, e tem ouvido as conversas dos moradores. Na “Aqui é o meu lugar, depois que o meu filho morrer. Mas antes
reunião do condomínio, confessa diante de todos. Mas dois mo- disso, eu quero deixá-lo um pouco dentro de cada um, como uma
radores tentam protegê-la assumindo a culpa, e o delegado, semente quando se joga na terra. Um dia ela germina, brota,
que sabe a verdade, não a delata. Aos telespectadores, a re- cresce, dá flores e frutos”.
velação surge num longo flashback, em que Marta explica seus Este projeto leva à conclusão da narrativa. O menino é
motivos: “Insinuando que eu sabia o segredo de cada um, es- cremado e Marta espalha suas cinzas pela cidade. A cena no
tava tentando fazer com que ouvissem os seus próprios gritos, crematório dura onze minutos (o capítulo inteiro tem 34’30’’);
e esquecessem os do meu filho”. Justifica-se assim o furto e nela convergem os dramas fundamentais de cada personagem.
a espionagem: ela queria proteger um inocente. Numa contração Anatol Rosenfeld aponta a importância das imagens de ca-
ambígua, a vítima é também culpada. dáver exposto na obra teatral de Jorge Andrade:
A proteção do delegado encerra o problema legal, isen- Das (...) depre-

capa
cenas terríveis que giram em torno da decomposição
ende-se sutilmente um significado simbólico maior em função do ciclo.
tando Marta da responsabilidade pelo crime. A investigação
O teatro de Jorge Andrade afigura-se como um grande julgamento que
é abandonada. Justamente nesse momento, a criança morre dor- recorre à exumação para compreender, defender e acusar; é um constan-
mindo, em seu quarto. A testemunha é Socorro, esposa do zela- te prestar de contas, é libertação e redenção do passado em prol do
porvir. (ANDRADE, 1986, p. 607)
dor. Ele entra na reunião e Marta adivinha a mensagem em seu
olhar sofrido. No apartamento, todas as mulheres se reúnem Em O grito, os restos mortais começam a ser discutidos

universidade
para rezar. Marta é conduzida a uma cadeira e fica sentada, durante o velório da criança:
imóvel, ao som da oração coletiva. Outro longo flashback a Mário - Eu disse que Dona Marta não vai enterrar o filho, vai cre-

mostra no convento, ajoelhada diante de uma freira. Ela conta mar.

sua história: quando vivia reclusa, ouvia os barulhos da ci- Carmem - Cremar?
dade através dos muros. Decidiu sair e conhecer o mundo, pois
sumário não poderia compreender o sofrimento se não o tivesse expe-
Mário - É, isto mesmo.

rimentado. “Eu não podia sentir Deus, sem me sentir uma pes- Carmem - Isso é horrível!

soa humana. Como não podia compreender, sem sentir na carne o Laís - Horrível por quê?

sofrimento, a dor. Agora eu sinto. Como espinhos, circulando


Carmem - Por que os mortos a gente enterra, não queima.

próxima
no meu sangue.”
O monólogo é recitado em tom sóbrio, com melancólico fun- Laís - Que diferença faz?

do musical. O cenário usa recursos expressionistas: um cristo Carmem - A diferença é que a gente sabe onde vai no dia de finados.

crucificado sobre a parede branca, a freira em hábito negro, e


Laís - Os mortos ficam na nossa lembrança, não num cemitério qual-
a atriz ajoelhada, com foco de luz em seu rosto. Não há margem quer. (Cap. 125, transcrito a partir do vídeo)

para leviandades: Marta colheu o sofrimento do mundo, esta é


anterior sua missão. Com a morte do filho, ela se considera pronta para
E também:
Lúcia - O que as pessoas fazem com as cinzas?
voltar ao convento e ser uma “verdadeira religiosa”. Diz:

304
Gilberto - Eu também pensei nisso. Perguntei lá no crematório. Diz maça, numa sequência de planos aéreos em movimento, sob ten-
que muitos deixam as cinzas lá mesmo. Outros espalham no gramado, no
sos acordes musicais. A mesma cidade mostrada nos capítulos
canteiro das flores. E alguns jogam sobre as montanhas, ou sobre o
mar. Usam helicóptero.
iniciais, quando o grito é ouvido pela primeira vez. Jorge
Andrade a descreve assim no roteiro:
A longa cena da cremação alterna, através de fusões, uma
19 – A CIDADE ADORMECIDA – NOITE – EXT
sequência de rostos: Marta em hábito de freira, o menino do-
ente, o padre recitando o evangelho, e os principais persona- Numa sequência de takes em fusão, aparece a cidade adormecida. Ruas
escuras e vazias, prédios sem nenhuma janela iluminada. Vemos ca-
gens. Os atores foram gravados em estúdio, e os closes sobre-
minhões de lixo recolhendo latas nas ruas; uma mangueira esguichando
postos a imagens do crematório de vila Alpina, que através de água, ligada a um caminhão, passa lavando o asfalto. Mendigos, co-

amplas janelas mostra o horizonte da cidade. A certo momento, bertos por jornais ou trapos, dormem em calçadas, embaixo de viadutos.
A câmarafocaliza a forma estranha do Minhocão, indo parar diante
o crematório é invadido por crianças que dançam e brincam pelo
do Edifício Paraíso. Oswaldo [o faxineiro] dorme debruçado sobre a

capa local. Cada criança representa a infância de um personagem: mesa. Outra sequência de takes mostra corredores,
tudo adormecido.
saguões, livings,

longos olhares conduzem o adulto à imagem de seu passado. Ao


final, Marta recebe a caixa de cinzas e as espalha pelo ar, DE REPENTE, OUVE-SE UM GRITO TERRÍVEL, APAVORANTE,
no gramado externo do crematório. INUMANO.(Cap. 5, grifo do autor)
O roteiro previa cenas num helicóptero, em que Marta subi- Uma cidade escura, de lixo, asfalto, viadutos e mendigos.
ria para lançar de fato as cinzas sobre a cidade. Porém essas Depois de encerrada a trajetória do menino doente, a cida-
universidade imagens não fazem parte do capítulo, talvez por questão de de continua ali. E ressurgem sobre ela os gritos já ouvidos
custos. A versão exibida sugere a ação através de fusões: pla- tantas vezes, apavorantes e inumanos. Os gritos se prolongam
nos de Marta no gramado do crematório, espalhando as cinzas por trinta e cinco segundos até que, sobreposta à ultima ima-
pelo ar, são alternados com planos aéreos da cidade, através gem (o lago do parque Ibirapuera), surge a mensagem bíblica:

sumário de fusão circular partindo do centro do quadro. Marta reali- “E a semente vai germinar, brotar, crescer, florescer e dará
za sorrindo, nesse gesto, sua vontade de deixar o filho como frutos”.
semente. A expressão pacífica da atriz Glória Menezes tenta A metáfora evangélica traz uma ambiguidade de origem: os
transmitir conciliação e esperança à imagem, mas é desmentida frutos são uma compensação pela morte da semente, assim como
nas últimas cenas 40. a disseminação da palavra de Cristo recompensa seu sacrifí-
próxima Segundo a fala de Marta, as cinzas da criança são espa- cio. Desse modo, o renascimento na vida eterna compensaria os
lhadas sobre São Paulo como uma semente. Mas que semente se- sacrifícios terrenos do cristão.
ria essa? A novela termina logo após a cremação do menino. A redenção pressupõe a morte ou a perda. Mas o texto de
Gilberto, o arquiteto intelectual, aparece sozinho em seu Jorge Andrade desfaz esse frágil equilíbrio: ao apresentar
apartamento. Ele caminha pensativo até a janela e observa a o sacrifício, ele não oferece consolo. Numa cidade poluída
anterior paisagem. São imagens de São Paulo: prédios, viadutos e fu- e imensa, ao som de gritos apavorantes, que frutos poderiam
40 O nome Marta é usado por Jorge Andrade em várias peças, e está no título da coletânea Marta, a árvore e o nascer? A morte do menino parece lançar uma maldição sobre a
relógio. Mais que personagens individuais, Marta é um símbolo. Essa questão é analisada por Catarina Sant’Anna
em seu livro Metalinguagem e teatro.

305
cidade: mesmo morto, mesmo incinerado, seu grito não desapa- liares. Essas lembranças são narradas em seu tempo histórico
recerá. (crise de 1929, a infância do autor) e recriadas também em
Além da crítica já mencionada na revista Veja, outros outros momentos da história do país.
jornalistas fizeram julgamentos cruéis da novela. Paulo Maia Na visão de Jorge Andrade, a existência humana – em qual-
escreveu no Jornal do Brasil, em abril de 1976: quer época – traz um ferimento sem cura, uma dor que força o
O grito, como Os ossos do barão, é simplesmente uma telenovela chata grito. Em 1975, pela situação política, esse sentimento tinha
e chatice não dá status cultural a texto nenhum. Por não ter ritmo,
uma ressonância particular no Brasil. Mas a cidade retratada
por submeter atores (...) [a] textos escabrosamente pretensiosos
(...) essa novela (....) chega até mesmo a comprometer o autor,
na obra é, em seus traços principais, a mesma cidade em que
na sua dimensão de artista e autor num contexto de cultura brasileira. vivemos hoje.
(MAIA, 4 abr. 1976)
Referências bibliográficas
Se a obra foi mal recebida por jornalistas dedicados à te-
capa levisão, a crítica de teatro não lhe deu importância. A única • AMÂNCIO, Moacir; PUCCI, Claudio.O Labirinto Jorge e os Outros. Folha de
São Paulo, 16 jun. 1978.
referência de Sábato Magaldi, em artigo de 1984 (ano da mor-
• Morre Jorge Andrade fiel a seus princípios. Folha da tarde, São Paulo, 14
te do dramaturgo), menciona a TV como obstáculo, o preço do mar. 1984.
próprio sustento: “Pena que o jornalismo, em certo momento o • ANDRADE, J. Marta, a árvore e o relógio. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva,
1986.
serviço público e depois a televisão, necessários à sobrevi-
• ANDRADE, J. O grito. Roteiro microfilmado. Acervo Centro de documentação

universidade
vência financeira, tenham impedido que Jorge Andrade levasse da TV Globo, Rio de Janeiro, 1976.
a termo todas as idéias teatrais que lhe passaram pela cabe- • AZEVEDO, Elizabeth. Recursos estilísticos na dramaturgia de Jorge Andrade.
Tese de doutoramento. São Paulo, ECA-USP, 2001.
ça”. (MAGALDI, 1998, p. 56)
• BRITTO, Ângela. O último artesão: Walter Avancini. Rio de Janeiro: Gryphus,
Mas O grito é uma obra de Jorge Andrade, escrita a partir 2005.

das mesmas referências, com a mesma persistência temática de • CAMPEDELLI, S.Y. A telenovela. São Paulo: Ática, 1985.

sumário sua obra teatral. Ele tenta repetidamente se libertar de seus • CAVERSAN, L. Tragédia do Joelma foi a pior da cidade. Folha Online, São
Paulo, 7 out. 2003. Disponível em: <http://www.folha.com.br>. Acesso em:
mortos, mas não consegue. Como diz o personagem Vicente, que 26 fev. 2010.

representa o dramaturgo na peça O sumidouro: “Depois de aca- • DUTRA, M. H. Um grito absurdo. Veja, São Paulo, 12 nov. 1975.
• KEHL, M.R. Três ensaios sobre a telenovela. In: COSTA, A.H.; SIMÕES, I.F.;
bar com os demônios familiares, é preciso exterminar os cul-
KEHL, M.R. Um país no ar. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 277-323.

próxima
turais. Aprendi que estão, todos, mexendo o mesmo caldeirão. • HOLLANDA, H.B. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde: 1960 /
E lá dentro, quem é cozido, são pessoas como eu.” (ANDRADE, 1970. 4ª ed. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004.
• MACHADO, A. Pode-se amar a televisão? À guisa de prefácio. In: A televisão
1986, p. 534) levada a sério. São Paulo: Editora Senac, 2000, p. 9-13.
Expondo-se como criador, Jorge Andrade manifesta inúme- • MAGALDI, S. Um painel histórico. In: Moderna dramaturgia brasileira. São
ras vezes o desejo de esquecer e recomeçar. Mas seus gritos Paulo: Perspectiva, 1998, p. 43-56.
• MAIA, P. Um rótulo diferente para o mesmo produto. Jornal do Brasil, Rio de
anterior
não o abandonam. Seria possível interpretar a ferida aberta Janeiro, 4 abr. 1976. Fonte: Banco de dados TV-Pesquisa, PUC-Rio. Disponí-
a partir da experiência individual – pois o autor menciona em vel em: <http://www.tv-pesquisa.com.puc-rio.br>. Acesso em: 5 mar. 2010.
• OLIVEIRA, Sirley. As confrarias: a presença de Jorge Andrade nos debates
inúmeros textos a memória do pai, dos avós e das perdas fami-
políticos e estéticos da década de 1960. Fênix: revista de história e es-

306
tudos culturais, vol. 2, ano II, n. 4, out-dez 2005. Disponível em: <www.
revistafenix.pro.br>
• SANT’ANNA, Catarina. Metalinguagem e teatro: a obra de Jorge Andrade.
Cuiabá: EdUFMT, 1997.
• STEEN, Edla van. Viver & escrever: volume 3. 2º ed. Porto Alegre: L&PM,
2008.
• TAVOLA, Artur. O grito, uma novela polêmica. Amiga TV. 28 abr. 1976. Fon-
te: Banco de dados TV-Pesquisa, PUC-Rio. Documento 1730. Disponível em:
<http://www.tv-pesquisa.com.puc-rio.br>. Acesso em: 28 set. 2010.

capa

universidade

sumário

próxima

anterior

307
Os quadrinhos e o cinema possuem uma ligação intrínseca,
O QUADRINHO “Z, A CIVILIZAÇÃO pois possuem um ritmo visual, enquadramentos, planos e ilumi-
PERDIDA”: A INVERSÃO DA nação semelhantes em sua sequência. Essa conexão entre estes
ADAPTAÇÃO CINEMATOGRÁFICA. dois tipos de mídia é mais identificada e presente nas produ-
ções cinematográficas atuais, com uma diversidade de adapta-
ções de HQ`s (histórias em quadrinhos), “X-Men” (2000), “Ho-
mem-Aranha” (2002), “Hellboy” (2004), “Quarteto Fantástico”
(2005), “Batman Begins” (2005), “Iron Man” (2008), “Watchmen”
(2009) entre outros.
J úlio C ésar R iccó P lácido da S ilva Com o avanço das novas tecnologias o cinema atual desen-
Mestrando em Artes Visuais – Instituto de Artes - UNESP – São Paulo / julio- volveu uma grande capacidade de tradução fiel das HQ`s para
capa
ricco@uol.com.br
as telas do cinema, criando técnicas para tal processo .
S imone P riscila M elz De tal modo, o artigo tem por objetivo demonstrar a pos-
Graduação em Design – UNESP – Bauru / simone.melz@gmail.com
sibilidade da adaptação do quadrinho “Z, a Civilização Perdi-
O artigo tem por objetivo demonstrar a possibilidade da da” para o cinema. Para tanto, se faz necessário um panorama
adaptação do quadrinho “Z, a Civilização Perdida” para o ci- geral das adaptações já realizadas e os processos utilizados
nema. Para tanto, se faz necessário um panorama geral das
universidade
para tal.
adaptações já realizadas e os processos utilizados para tal.
Palavras-chave: Artemídia, Quadrinhos, Cinema, Adaptação 2. Revisão bibliográfica

The article aims to demonstrate the possibility of adap- 2.1 A história das adaptações
sumário ting the comic “Z, the Lost Civilization” to the cinema. Thus,
it is necessary an overview of the adaptations already made As adaptações de histórias em quadrinhos para o cinema da-
and the processes used for that. tam da década de 30, com o filme “Flash Gordon” (Flash Gordon
Key-words: Artemídia, Comics, Cinema, Adaptation Conquers the Universe, Universal, 1936) e logo após, Buck Ro-
gers (Universal, 1941). Porém, essas eram produções que des-
próxima 1. Introdução pertavam pouco interesse nos telespectadores que, na maioria
das vezes, assistia uma interpretação caricata ou cartunesca
Com a diversidade criativa elevada dos quadrinhos e com a
do herói. Poucas vezes, neste processo de transição dos qua-
grande variedade de personagens, cotidianos ou super-heróis,
drinhos para as telas do cinema, havia uma inovação do perso-
geralmente providos de forte personalidade, aos poucos foram
nagem, causando frustração no público. As adaptações sempre
anterior identificadas pela indústria do cinema como uma fonte de ins-
foram um grande desafio para a indústria do cinema, como ex-
piração e de grande potencial mercadológico, devido à grande
plica Seger:
identificação do indivíduo com os personagens.

308
“Por sua própria natureza, a adaptação é um processo de transição ou com som e a ilusão do movimento real. Os quadrinhos precisam
conversão de uma mídia para outra. Assim, o material original sempre fazer uma alusão a tudo isso a partir de uma plataforma es-
oferecerá certa resistência à adaptação, como se dissesse: “aceite-me
do jeito que sou.” (SEGER, 2007, p. 18).
tática impressa. O cinema usa a fotografia e uma tecnologia
sofisticada a fim de transmitir imagens realistas. Mais uma
Porém, a adaptação implica mudanças, em um processo que
vez, os quadrinhos estão limitados à impressão. O cinema pre-
exige que tudo seja repensado, reconceituado. Além disso,
tende transmitir uma experiência real, enquanto os quadrinhos
exige a compreensão de que a natureza do drama é algo ine-
a narram. Essas singularidades, claro, afetam as tentativas
rentemente diferente da natureza de qualquer outra forma de
de aproximação do cineasta e do cartunista.” (EISNER, 2005,
literatura. Exemplo disto, foram os vários fracassos ocor-
p. 75).
ridos com “Superman” 3 e 4, “Batman Eternamente” (1995) e
Essa aproximação do cineasta e do cartunista é mais iden-
“Batman e Robin” (1997), provocando uma notável queda nas
tificada em algumas obras cinematográficas. A exemplo, cito
capa adaptações. O interesse em adaptar HQ’s de boa qualidade,
as obras “Sin City” (2005), “300” (2007), “Watchmen” (2009),
renasceu apenas em 2000, com o lançamento de “X-Men”, di-
“Estrada para Perdição” (2002) e “V de Vingança” (2006).
rigido por Bryan Singer e baseado na série criada por Stan
O longa “Sin City: A cidade do pecado” (2005) (Figura 01),
Lee. Este foi apenas o início de uma série de adaptações de
Baseada na Graphic Novel (estilo criado pelo quadrinista ame-
sucesso para o cinema americano. “Homem Aranha” (2002), “X-
ricano Will Eisner no final dos anos 70, do qual a narrativa
-Men 2” (2003), “Homem Aranha 2” (2004), “Hellboy” (2004),

universidade
se apresenta por completa em uma mesma edição) de Frank Mil-
“O Quarteto Fantástico” (2005), “Homem de Ferro” (2008),
ler, foi o marco da nova estética das adaptações de quadrinhos
“X-Men Origins: Wolverine” (2009), dentre outros, são só
para o cinema, tornando o longa não apenas uma adaptação, mas
alguns dos maiores exemplos. Mesmo os heróis que, na última
uma transposição da obra para as telas. O diretor Robert Ro-
década haviam sido alvo de lastimáveis adaptações, sofreram
driguez se preocupou meticulosamente com os detalhes, como a
sumário nos últimos anos reformulações, como “Batman Begins” (2005)
ambientação sombria e seus contrastes, iluminação, cortes de
e “Batman o Cavaleiro das Trevas” (2008). O orçamento do
cena e a caracterização dos personagens, lembrando com rigor
longa de 185 milhões de dólares, arrecadou mais de 1 bilhão
os encontrados nas páginas dos quadrinhos, conseguiram com
de dólares nas bilheterias.
satisfação traçar novos rumos para as adaptações posteriores,

próxima
2.2 O processo de adaptação
que seguiriam com mais rigidez o estilo das HQ’s incorpora-
das.
Com a crescente produção das adaptações cinematográficas,
surgiram alguns padrões de transposições que romperam as bar-
reiras dos elementos da linguagem, tanto na adaptação da his-
tória, como nos empréstimos das temáticas e na provisão dos
anterior personagens dos quadrinhos.
”Ambos lidam com palavras e imagens. O cinema reforça isso

309
Figura 01 - Adaptação
Figura 02 -
do Quadrinho “Sin City”
Adaptação do
(2005)
Quadrinho

capa
Fonte: http:// “300” (2007)
jairoaugusto.zip.net/
Fonte:
images/sincity2.jpg -
http://
Acesso em 10/11/2010
jovemnerd.
Após o sucesso de ig.com.br/v4/

universidade
“Sin City”, outra Gra-
phic Novel escrita e desenhada por Frank Miller seguiria os especiais/2007/cinema/300/HQ/01.jpg - Acesso em 10/11/2010
mesmos passos. “300” (2007) (Figura 02) relata em cinco capí-
A semelhança da HQ com o longa é impressionante, a ponto
tulos: honra, dever, glória, combate e vitória, a sangrenta
de comparamos o filme à própria HQ em movimento. Houve uma im-
batalha das Termópilas, ocorrida por volta de 480 a.C., da
sumário qual 300 espartanos, liderados pelo rei Leônidas, lutaram co-
portante preocupação em reproduzir no filme o mesmo universo
visual sombrio e contrastante, com cores intensas, explorado
rajosamente contra Xerxes e seu numeroso exército persa.
nesta e em outras obras de Miller. Mas o filme não se cons-
titui apenas em uma cópia perfeita da HQ. Outro aspecto do
cinema é incorporar ao longa características próprias e ele-
próxima mentos da mídia cinematográfica, de forma a valorizar ainda
mais a história adaptada.
Outra característica presente no filme é uma maior par-
ticipação de personagens secundários, como mulheres e outros
elementos. Algumas cenas que na história original se apresen-
anterior tam como uma passagem simbólica, utilizadas apenas para esbo-
çar as doutrinas da sociedade espartana, como por exemplo, os

310
difíceis desafios do jovem Leônidas em treinamento frente a pareça absurdo ou improvável. Outro fato presente é a carac-
um enorme lobo raivoso tomam forma e se transfiguram em cenas terística dos personagens, que vivem repletos de problemas
riquíssimas, capazes de transmitir todo o temor e coragem do psicológicos e sexuais: depressivos, vingativos e acima de
personagem ao telespectador. Portanto, dentre estas e outras tudo temerosos com o futuro da sociedade frente à ameaça de
passagens marcantes desta obra cinematográfica, faz-se “300” uma guerra nuclear.
uma das mais fiéis adaptações de História em Quadrinhos dos Allan Moore ainda faz intervenções inteligentes que modi-
últimos tempos. ficam a real história dos EUA que, em contrapartida, inter-
O filme “Watchmen” (2009) (Figura 03) é uma das últimas ferem nos rumos históricos da sociedade americana. Um exemplo
e mais aclamadas adaptações de HQ’s para o cinema. Refere-se consiste na inversão de fatos, como a ameaça de uma invasão
a uma Graphic Novel com um roteiro incomum, por explorar a da União Soviética ao Afeganistão em 1979, mas que na HQ ocor-
ficção e acontecimentos reais com naturalidade, ­
uma mistura reria apenas em 1985. Estas modificações na história foram
capa muito diferente da qual os fãs estão acostumados a ver. feitas estrategicamente, uma vez que um dos personagens prin-
cipais da trama, Doutor Manhattan, seria o causador destas
transformações.
Com relação à estética, a HQ foi ambientada em uma Nova
York futurista de 1985. Essa conclusão se dá ao percebermos

universidade
o grande avanço tecnológico da sociedade em questão. A dis-
Figura 03 posição dos quadros e o ritmo narrativo desta obra também se
- Adaptação diferencia das demais pela disposição simétrica de quadros
do Quadrinho espelhados em diversas escalas, recorrentes da utilização de
“Watchmen” planos e enquadramentos em sequências pouco utilizadas nas
sumário (2009) HQ`s. A adaptação para os cinemas contou com o talento de Zack
Snyder, que também dirigiu o filme 300.
Fonte: Para que a obra seguisse com fidelidade os quadrinhos, O
Watchmen: The roteirista David Hayter utilizou-se de cada quadro presen-
art of the
próxima
te na HQ, para que sua adaptação não perdesse nenhum detalhe
film, 2009. da obra impressa. David utiliza-se de referências clássicas
para sua narrativa, diferenciando um pouco do ritmo utilizado
Allan Moore consegue transportar seus personagens fic-
em outras adaptações recentes como as citadas anteriormente,
tícios, providos de superpoderes para nosso contexto socio-
indo do caos à tranquilidade e alternando de forma sutil o
cultural, em meio a eventos históricos importantes, como a
ritmo do longa.
anterior Guerra Fria e do Vietnã. O roteirista consegue envolver os
Essa precisão em traduzir a HQ com perfeição conseguiu
personagens de forma criativa, inserindo-os no contexto so-
extrair elogios da crítica, dos expectadores e, principalmen-
cial, político e cultural dos EUA no ano de 1985, sem que isto

311
te, do rigoroso criador da HQ, Allan Moore, o que consagrou da HQ. Este clima funesto e melancólico se estende por todo
a obra que provavelmente será um referencial para as próximas o longa.
adaptações cinematográficas. Ao contrário de muitos filmes hollywoodianos que abordam
Outras duas Graphic Novels também incorporadas para o o mesmo tema, este não apresenta cenas bárbaras de luta e di-
cinema não fizeram o mesmo sucesso como as citadas anterior- álogos extensos. Mendes arriscou um filme silencioso, em que
mente, porém, isto não desmerece nem eximem estes excelentes a troca de olhares intensos diz muito mais a respeito do per-
trabalhos de ocupar um espaço significativo dentro do campo sonagem e suas intenções do que as próprias palavras.
de adaptações bem reproduzidas.
“Estrada para Perdição” (2002) (Figura 4), com um gran-
de elenco (Tom Hanks, Paul Newman e Jude Law) e excelente
direção (Sam Mendes de “Beleza Americana”), o filme de gân-
capa gsteres, ambientada nos anos de 1930, mostra um país em De-
pressão, dominado pela máfia. Tom Hanks interpreta o papel
de Michael Sullivan, um perigoso assassino de cognome Anjo Figura 04
da Morte, que vê sua vida e de sua família em risco quando - Adaptação
seu filho mais velho testemunha a morte de um dos integran- e Quadrinho

universidade
tes do bando do qual Sullivan pertence. Por isto, a família “Estrada para
de Sullivan, sua mulher e seu filho caçula, são exterminados perdição”
pelos gângsteres Rooney (Paul Newman) e seu filho Connor (2002)
(Daniel Craig). Deste modo, Sullivan segue para uma pequena
cidade no interior dos EUA (Perdição), um refúgio perfeito Fonte:

sumário para arquitetar seu plano de vingança contra aqueles que http://www.dccomics.com/media/product/2/3/2395_400x600.jpg

destruíram sua vida.


http://media.somewhereinblog.net/images/
A narrativa do filme se diferencia um pouco presente na
thumbs/major_fuad_1246611998_14-road_to_
HQ. O escritor Max Allan Collins, reconhecido por sua carac-
perdition.jpg - Acesso em 10/11/2010

próxima
terística peculiar em combinar em suas obras, ficção e fa-
tos verídicos com um perfeccionismo admirável, explora na HQ “V de Vingança” (2006) é mais uma obra do roteirista Allan
o contexto histórico do surgimento da quadrilha de Rooney, Moore e desenhada por David Lloyd. A história é inspirada em
através de documentos e relatos pertinentes à obra, valori- fatos históricos reais, o que oferece mais consistência ao
zando o conteúdo policial-investigativo, ao contrário do fil- roteiro: trata-se de um personagem de codinome V (Figura05)
me de Mendes, que se apega a valores familiares e emocionais,
anterior e a questões de reputação e caráter que atrelam os personagens
que, indignado com a ditadura empresarial militar fascista,
luta contra a impunidade do grupo que tornou a situação vi-
da trama, tornando assim, o ritmo do filme, mais lento que o gente no país através de eleições que privilegiavam a burgue-

312
sia, em detrimento da sociedade menos abastada. Assim como o do suporte. Apesar do clima “pesado” a que os dois personagens
personagem de Guy Fawkes que, em 1605, em uma tentativa frus- estão expostos, pode-se afirmar que ambos tornam o filme in-
trada, tentou explodir o parlamento britânico, no episódio tenso e envolvente ao transmitir a mensagem de esperança que
conhecido como “Conspiração da Pólvora”, V também tenta, com os aviva.
sucesso, alcançar o mesmo objetivo. Apesar dos motivos que
cativaram os dois personagens serem díspares, o personagem
principal do longa cita o evento diversas vezes, encontrando
apenas na destruição do maior símbolo do Governo, uma solução
para a derrocada do totalitarismo e uma transformação social.
O personagem de V busca justiça e vingança, pois no pas-
sado havia sido alvo de experiências mal sucedidas da indús-
capa tria farmacêutica, da qual os membros do partido vigente par-
ticiparam anos atrás, em um campo de readaptação denominado
Larkhill. Para este local, os membros excluídos da sociedade,
dentre eles: imigrantes, homossexuais, ativistas políticos,
dentre outros, eram levados e sujeitos a experimentações que Figura 05 - Adaptação e Quadrinho “V de Vingança” (2006)

universidade
iam contra a natureza humana. V é fruto do desafeto e do ódio
contra aqueles que o tornaram uma aberração. Fonte: http://www.revistacontemporaneos.com.br/

Como muitas adaptações baseadas em quadrinhos, esta apre- n2/pdf/vdeviganca.pdf - Acesso em 10/11/2010

senta algumas disparidades em relação à Graphic Novel, porém,


Desta forma, o que mais nos desperta a atenção nas novas
alguns trechos muito importantes na narrativa foram mantidos,
sumário
produções cinematográficas, é o fato de inovarem e surpreen-
principalmente a cena em que Evey, uma das personagens da tra-
derem o público a cada nova produção. Não há mais limites para
ma é aprisionada e durante esse período, se comunica com outra
o cinema contemporâneo explorar a criatividade e a tecnologia
prisioneira detida por homossexualidade. Nasce então uma ami-
capazes de produzir verdadeiras obras primas, conquistarem e
zade que ultrapassa os muros da prisão, contudo, Evey desco-
levarem cada vez mais apreciadores da sétima arte ao cinema.

próxima
nhece a natureza ilusória de toda a situação, meticulosamente
Nos dias atuais, grande parte dessa massa que movimenta a eco-
planejada por V, que estimula a jovem a um amadurecimento e
nomia das grandes produtoras de cinema se concentra no Mercado
reflexões profundas sobre sua vida, a situação de seu país e
das adaptações de histórias em quadrinhos, com uma quantidade
a proposta de revolução visada por ele.
inumerável de produtos baseados nos longas adaptados, sejam
A maior parte da história ocorre sob cenários noturnos,
estes: roupas, jogos para vídeo game, bonecos, etc.
assim como na Graphic Novel. Outro ponto a se destacar é a
anterior valorização da arte, da poesia e da música que também é explo-
Com o avanço das novas tecnologias e a boa aceitação do
público frente às mudanças ocorridas, as adaptações de HQ’s
rada no impresso de forma menos magistral, devido a limitação
ganharam um espaço significativo dentro do meio cinematográ-

313
fico. Isto se deve não só à identificação dos leitores com os provas que evidenciassem suas suspeitas. Suas viagens foram
personagens das HQ’s, mas também à fidelidade que há nas novas financiadas pela Royal Geographical Society, uma sociedade
produções de reproduzir uma obra com grande capacidade e pre- erudita inglesa, que reunia os mais reconhecidos explorado-
cisão nos detalhes, os quais se assemelham muito aos da obra res, que se interessava pelas riquezas do nosso país.
impressa e prezam não só em caracterizar perfeitamente o he- Apesar de duas tentativas de exploração sem sucesso, fos-
rói, mas também em inseri-lo em um contexto histórico-social se pela falta de ajudantes que o acompanhassem em suas lon-
e cultural parecido com o que vivemos nos dias atuais, o que gas e perigosas jornadas, como pela falta de empreendimento
não termina por levar apenas os fãs aos cinemas, mas também para seguir suas expedições, uma vez que a Royal Geographical
o público leigo. Society começou a duvidar da existência da cidade perdida,
Fawcett conseguiu aquela que ele acreditava ser sua última
3. O Quadrinho “Z, a Civilização Perdida” esperança. A terceira e última viagem foi financiada pela
capa A criação da HQ “Z, a Civilização Perdida”, foi idealizada
imprensa que auxiliou na captação de recursos para a expedi-
ção, uma vez que, ao desembarcarem em Nova York para apanhar
após a leitura do livro, “O verdadeiro Indiana Jones: O Enigma
os recursos de alguns colegas, com quem contavam com a ajuda
do Coronel Fawcett” (2007). O livro é uma biografia do Coronel
para elaborar a terceira expedição, descobriram que boa parte
Percy Harrison Fawcett, um explorador inglês que desapareceu
do dinheiro havia sido gasta por um amigo de confiança que
no Brasil no ano de 1925, juntamente com seu filho e amigo

universidade
prometera guardar suas economias.
que o acompanhavam na expedição. PHF, como era conhecido por
Com a divulgação de seus feitos e aventuras, Fawcett,
seus familiares e amigos, por muito tempo explorou as regiões
Jack Fawcett (seu filho mais velho) e Raleigh Rimell (amigo
do Mato Grosso e Amazonas, se embrenhando na Amazônia e por
de Jack), começaram uma viagem de grande repercussão, pois,
locais hostis, extremamente perigosos dos quais poucos homens
em 1925, quando desembarcaram no Brasil, quarenta milhões de
sumário
sonharam pisar.
pessoas no mundo ficaram sabendo do fato (LEAL, 2007, p.135).
Fawcett procurava insistentemente por uma cidade, da qual
Após o desembarque, Fawcett viajou por São Paulo, Corumbá, e
por motivos desconhecidos nomeou “Z” e tinha convicção de sua
de lá seguiram para Cuiabá. Seu destino era penetrar a Amazô-
existência. Dizia ser uma colônia da legendária Atlântida,
nia e continuar o trajeto que havia sido interrompido durante
uma sociedade muito rica e poderosa. Sua obsessão em encon-

próxima
sua última expedição.
trar “Z” começou quando:
Fawcett e sua expedição desaparecem misteriosamente no
“... ganhou de seu amigo H. Rider Haggard, o escritor do
ano de 1925. Desde então, mais de 100 expedições foram rea-
famoso livro As Minas Do Rei Salomão, em Londres, uma estranha
lizadas em sua busca, porém nenhuma delas obteve êxito. Seu
estatueta de basalto com cerca de 25 cm. A pequena peça pos-
destino e de sua expedição continuam desconhecidos, nutrindo
suía letras de um alfabeto desconhecido, e sua tradução pode-
a imaginação de exploradores e aficionados por aventura até
anterior ria desvendar o mistério de sua origem.” (LEAL, 2007, p. 80).
os dias de hoje.
Além disso, Haggard dizia que a peça possuía poderes fora
do comum. Fawcett visitou o Brasil diversas vezes em busca de

314
3.1 O processo inverso: do Storyboard para a adaptação

A relação quadrinhos x cinema pode ser identificada pela


utilização do Storyboard, que é uma sequência de quadros,
muito parecida com as histórias em quadrinhos que posterior-
mente será transformada em audiovisual. No Storyboard essa
semelhança é identificada pela utilização de recursos como
ângulos e técnicas de composição de uma cena. Eisner expli- Figura 07: Exemplo de ritmo impresso na impressão (quadrinhos)
ca que a diferença substancial entre quadrinhos e Storyboard
está no enfoque da cena, pois no Storyboard (Figura 06) se Fonte: Narrativas Gráficas, 2005.
assemelha com a rapidez da câmera, como se esta “corresse de
capa
Os enquadramentos e planos utilizados apenas para o ci-
uma imagem para a outra” sem se preocupar com um detalhamento
nema são cada vez mais identificados nos quadrinhos atuais,
maior de cada sequência, enquanto que na mídia impressa para
mesmo ignorando a portabilidade do suporte papel. Isto acon-
leitura (Figura 07), pelo contrário, o ritmo da leitura “exi-
tece devido à grande exposição do público em massa ao cine-
ge que as imagens estejam realmente conectadas para que a ação
ma contemporâneo, que com recursos sofisticados, transportam
fique mais clara” (EISNER, 2005, p.74), ou seja, os quadri-
para as telas imagens reais carregadas de ação e emoção que,
nhos utilizam-se de vários requadros, o que diminui o tama-
universidade nho da imagem, dificultando a visualização dos enquadramentos
indubitavelmente, prendem o expectador e exigem desta menos
participação, uma vez que não há um contato íntimo com a mí-
possíveis na adaptação cinematográfica, pois no quadrinho o
dia, como ocorre nas mídias impressas, das quais o leitor
mais importante é transmitir a sequência e clima de uma cena,
pode folhear despretensiosamente a revista, pulando cenas e
diferentemente do Storyboard desenvolvido para o audiovisual.
sumário
páginas como quiser.
Porém, como explica Eisner, não podemos ignorar os efeitos
que a sétima arte produz em seus admiradores, principalmen-
te naqueles que também se simpatizam com os quadrinhos. Como
explicado anteriormente, o universo das adaptações aumentam

próxima demasiadamente, exigindo do artista quadrinista uma adaptação


à esta nova exigência do mercado.
Como explica Eisner:
”Nos quadrinhos tenta-se assimilar os clichês cinematográficos que o
Figura 06: Exemplo de ritmo cinematográfico
espectador de filmes aceita visualmente. Os filmes geralmente usam a
na impressão (Storyboard) visão do espectador como a câmera. Dentro desse recurso, os atores
anterior permanecem em posição enquanto a câmera se move sobre suas faces e
Fonte: Narrativas Gráficas, 2005. corpos. Outro clichê é a apresentação do que um ator vê depois de ele
ser mostrado vendo alguma coisa. Os quadrinhos, geralmente, são mal

315
sucedidos nas narrativas de simular esse efeito porque eles subestimam 4. Considerações Finais
a quantidade de espaço que isso requer na mídia impressa.” (EISNER,
2005, p. 76). Este artigo congrega as primeiras reflexões sobre os pos-
O quadrinho “Z, a Civilização Perdida” ainda em desen- síveis processos de adaptações utilizados no quadrinho em de-
volvimento pela co-autora do artigo (Simone Priscila Melz), senvolvimento pela co-autora do artigo.
apresenta influências desse processo inverso da adaptação O quadrinho é influenciado pelo processo inverso da adap-
(Figura 08 e 09), do qual se utiliza de conceitos cinemato- tação, o qual utiliza-se de conceitos cinematográficos em-
gráficos empregados em adaptações aqui analisadas. pregados em adaptações realizadas recentemente nas produções
atuais. Tal processo possivelmente contribuirá para uma futu-
Figura 08 – Rascunho para ra adequação da obra aqui analisada para o cinema, utilizando
a colorização do quadrinho das novas tecnologias para que atinja a verossimilhança do
capa “Z, a Civilização Perdida” quadrinho produzido.

5. Bibliografia

• APERLO, P. Watchmen: The art of the film. USA: Titan Books, 2009.
• BYRNE, C. The Dark Knight: Featuring Production Art and Full Shooting

universidade
Script. New York: Universe, 2008.
• EISNER, Will. Quadrinhos e arte sequencial. São Paulo: Martins Fontes,
1999.
• EISNER, Will. Narrativas Gráficas. São Paulo: Devir Livraria, 2005.
• LEAL, H. O Enigma Do Coronel Fawcett: O Verdadeiro Indiana Jones. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2007.
sumário • SEGER, Linda. A arte da adaptação: como transformar fatos e ficção em fil-
me. Tradução Andrea Netto Mariz. São Paulo: Bossa Nova, 2007.

Figura 09 - Detalhe de uma

próxima das paginas do quadrinho


“Z, a Civilização Perdida”

Essa inversão está presente em diversos requadros do qua-


drinho ainda em desenvolvimento para apresentação como térmi-

anterior no de curso em graduação em Design pela UNESP – Campus Bauru


– São Paulo, contribuindo para seu processo de adaptação para
o cinema.

316
A work literary and a film are virtually different ob-
DE KING A KUBRICK, A jects, but with common creating category. Each is a semiotic
SIGNIFICAÇÃO: QUESTÕES SOBRE A with its own means of creating meaning. When one interacts
FIDELIDADE, A ADAPTAÇÃO, E O with others, appear a new object of semiotics. However, the
SEMISSIMBOLISMO EM O ILUMINADO new material brings with it the problem of disagreement, it
was the result, under a critical gaze, standing to the ori-
ginal work, a process grounded in “infidelity.” By the some
concepts of discourse analysis, and especially the French
semiotics, with respect to semi symbolism, what is intended
here is to show how a film adapted from a book can, instead
O dair J osé M oreira S ilva of infidelity, adding a new direction that makes original.
capa
da

Doutorando em Semiótica e Linguística Geral pelo Departamento de Linguística KEYWORDS: Adaptation; Semi symbolism; French Semiotics;
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo. Email: odairjmsilva@yahoo.com.br Film analyses.

Introdução
RESUMO41
Uma obra literária e um filme são objetos praticamen-
Uma obra literária e um filme são objetos praticamen-
universidade te diferentes, mas com categorias criadoras comuns. Cada um
te diferentes, mas com instâncias criadoras comuns. Cada um
deles é uma semiótica com seus próprios meios de criação de
deles é uma semiótica com seus próprios meios de criação de
sentido. Quando estes objetos semióticos interagem entre si
sentido. Quando um deles interage com o outro, surge um novo
e, a partir dessa interação, produzem outro objeto semiótico
objeto semiótico. No entanto, o novo material traz em si o
sumário
(a adaptação de um livro em um filme, por exemplo), temos uma
problema do desacordo, pois foi o resultado, sob um crítico
tradução intersemiótica. No entanto, esse novo objeto traz em
olhar, permanente à obra original, de um processo originado
si o fato, às vezes exagerado, de ser o ponto da discórdia,
na “infidelidade”. Por meio de alguns conceitos da análise do
pois foi o resultado de um processo originado na “infideli-
discurso e, principalmente da semiótica francesa, no que tan-
dade”: no nosso exemplo, sempre é comum ouvir que tal filme

próxima
ge ao semissimbolismo, o que se pretende aqui é mostrar como
foi infiel à obra adaptada, que deixou de lado o momento mais
um filme adaptado de um livro pode, ao invés da infidelidade,
crítico e fundamental que a obra literária queria transmitir.
agregar um novo sentido que o torna original.
A crítica conservadora reitera sempre termos que parecem
PALAVRAS-CHAVE: Adaptação; Semissimbolismo; Semiótica
querer afugentar o espectador das salas de cinema: “infideli-
francesa; Análise de filme.
dade”, “traição”, “deformação”, “violação”, “vulgarização”,
anterior ABSTRACT “adulteração”, “profanação”, só para ficarmos em alguns apon-
tados por Robert Stam (2008). Todos parecem conduzir a um mes-
41 Trabalho produzido com apoio do CNPq. mo lugar: leia o livro, não veja o filme. Diante desse fato,

317
não devemos nos deixar levar pelo equívoco de achar sempre que livro foram “suprimidas” em favor da obra fílmica. Tais po-
um filme é a transposição literal da obra escrita para a re- lêmicas podem ser atenuadas quando entendermos que a inter-
presentação visual das imagens em movimento. Um filme baseado textualidade presente no filme revigora a obra literária e,
em uma obra literária faz uma leitura dela. Essa leitura pode de certa forma, coloca-a em um panteão sagrado das grandes
privilegiar certos aspectos em detrimento a outros, mas nunca obras do gênero horror. O filme, o enunciado transformador,
pode ser encarada como um livro “colocado em movimento”. ao invés de provocar a reação negativa calcada na “infideli-
A adaptação fílmica de um romance qualquer somente pa- dade” do enunciado fonte, opera com recursos no engendramento
recerá “infiel”, de um ponto de vista do leitor/espectador, de seu sentido que tem por mérito valorizar ainda mais a obra
quando o propósito for criticar os lugares-comuns de um gê- literária que lhe serviu de base para a tradução intersemió-
nero, por exemplo, o horror, e, dessa forma, fundamentar uma tica.
nova leitura ou uma nova avaliação do texto que serviu de fon- Tomando como base algumas proposições de Jean-Marie Flo-
capa te. Um bom exemplo é observarmos que o gênero paródia tem por ch, acerca do semissimbolismo, o que se pretende aqui é ve-
mérito uma reavaliação do romance-fonte. Se nos atentarmos a rificar o filme como um enunciado voltado a uma leitura da
uma explicação básica sobre a tradução, encontrada em Grei- obra literária e observar quais os aspectos que diferenciam
mas e Courtés (2008), de que ela é uma atividade “cognitiva” as duas obras e que as tornam, ao mesmo tempo, complementa-
que fará a passagem de um “enunciado dado em outro enunciado res. Além disso, será importante mostrar como o visual e o

universidade
considerado como equivalente”, essas dúvidas acerca da “fi- sonoro transformam o texto-fonte por meio das relações semis-
delidade” podem ser dirimidas. O filme é outro enunciado em simbólicas entre a forma da expressão e a forma do conteúdo,
relação àquele que é a obra literária. A obra fílmica é o hi- produzindo, desse modo, uma nova visão de mundo contemplada
pertexto, nos dizeres de Genette (1982), e a obra literária pelo filme.
adaptada é o hipotexto, o texto-fonte, ou seja, ela pode ser
sumário transformada, modificada, elaborada ou ampliada por aquele. O 1 – Adaptação e fidelidade: caminhos polêmicos

hipertexto fílmico é formado pelos seus intertextos. Cada um


Em que se fundamenta uma adaptação de uma fonte literária
deles, seja verbal, sonoro, musical ou visual, transforma o
para uma obra fílmica? Uma adaptação fílmica, qualquer que
texto-fonte, atribui-lhe outra “roupagem”, levando o leitor/
seja, terá como variante uma possibilidade de leitura, visto

próxima
espectador a ter outra experiência além daquela proporcionada
que um texto literário manifesta e comporta várias leituras.
pelo verbal do texto literário.
Tais leituras sempre serão aceitas desde que se perceba que o
As obras, cinematográfica e literária, utilizadas para
produto final é o resultado de uma variante.
os propósitos de análises empreendidas neste trabalho serão,
Se compreendermos que um discurso qualquer é constituído
respectivamente, O iluminado, de Stephen King, publicado ori-
por outros discursos, pelas referências que traz de outros
ginalmente em 1977, e O iluminado (1980), de Stanley Kubrick.
anterior A adaptação de Kubrick feita ao livro de King gerou contro-
enunciados em sua própria composição, a ideia de uma “fideli-
dade” que está embrenhada no cerne de uma obra desfaz-se por
vérsias: elementos foram acrescentados, mudados e partes do
completo. Robert Stam, na introdução de seu livro A literatura

318
através do cinema pontua essa questão acerca da “fidelidade” irá movimentar a análise empreendida aqui para nos afastarmos
de uma obra e a “infidelidade” que uma adaptação fílmica pode de vez dos termos “fidelidade” ou “infidelidade”. As relações
acarretar. Algumas obras fílmicas, quando não compreendem o semissimbólicas, no âmbito da semiótica greimasiana e, por
significado temático da obra literária a que se reporta e pro- extensão, da semiótica visual, irão ajudar a perceber que o
duzem, desse modo, algo totalmente avesso ao que foi proposto texto fílmico está além do simples processo redutor desses
no discurso fonte, podem ser a causa do termo “fidelidade” termos.
ganhar contornos fortemente incisivos (STAM, 2008, p.20). De
acordo com Stam (2008, p.20) 2 – A semiótica visual e o semissimbolismo

[...] A noção de fidelidade ganha força persuasiva a partir de nosso


Jean-Marie Floch, em “Les langages planaires”, mostra que
entendimento de que: ( a) algumas adaptações de fato não conseguem cap-
tar o que mais apreciamos nos romances-fonte; ( b) algumas adaptações as linguagens que empregam um significante bidimensional se-

capa
são realmente melhores do que outras; ( c) algumas adaptações perdem rão denominadas “linguagens planares” (1982, p. 199). Para o
pelo menos algumas das características manifestas em suas fontes. Mas
autor, o estudo das formas, da expressão e do conteúdo, terá
a mediocridade de algumas adaptações e a parcial persuasão da “fideli-
dade” não deveriam levar-nos a endossar a fidelidade como um princípio fundamental importância nas pesquisas da semiótica visual. A
metodológico. Na realidade, podemos questionar até mesmo se a fide- investigação desse sistema planar consistirá em estabelecer,
lidade escrita é possível. Uma adaptação é automaticamente diferente
de acordo com Floch, o inventário das categorias elementares
e original devido à mudança do meio de comunicação. A passagem de um
meio unicamente verbal como o romance para um meio multifacetado como da expressão. A combinação dessas categorias produzirá as fi-

universidade
o filme, que pode jogar não somente com palavras (escritas e fala- guras que, por trás da aparência visual que é a superfície
das), mas ainda com música, efeitos sonoros e imagens fotográficas
plana da imagem, tornarão possível esta articulação neces-
animadas, explica a pouca probabilidade de uma fidelidade literal, que
eu sugeriria qualificar até mesmo de indesejável. sária à produção e a manifestação de um sentido. É o esta-
belecimento e articulação desses dois níveis, profundo (das
Tais explicações de Stam parecem por um ponto final a essa
sumário
categorias) e superficial (das figuras), que permitirão falar
questão sobre a fidelidade. Para o autor, a adaptação vista
de uma linguagem planar. O objeto de estudo será, então, uma
como uma “leitura” do romance que serve de fonte para a obra
forma e não mais uma substância (FLOCH, 1982, p. 200).
fílmica é inevitavelmente “[...] parcial, pessoal, conjuntu-
Na semiótica visual o interesse está em estabelecer as ca-
ral”. Desse modo, sugere o autor, assim como “[...] qualquer
tegorias da forma da expressão e suas correlações com a forma
texto literário pode gerar uma infinidade de leituras, assim
próxima também qualquer romance pode gerar uma série de adaptações”
do conteúdo. Surgirá, dessa maneira, um sistema semissimbó-
lico, ou seja, sistemas significantes que são caracterizados
(STAM, 2008, p. 21). Voltando ainda à questão, Stam (2008,
não pela conformidade entre as unidades do plano da expressão
p.21) salienta que
e do plano do conteúdo, mas pela correlação entre as catego-
[...] Dessa forma, uma adaptação não é tanto a ressuscitação de uma
palavra original, mas uma volta num processo dialógico em andamento. rias relevantes desses dois planos (THÜLERMAN, 1986, p. 203).
anterior O dialogismo intertextual, portanto, auxilia-nos a transcender as Tais categorias são denominadas plásticas. Estas designam
aporias da “fidelidade”.
um conjunto de categorias da expressão próprias aos discur-
A proposta de que um texto dialoga com outros textos é que sos plásticos. Há, no cerne dessas categorias, uma distinção

319
fundamental entre categorias constitucionais (constituintes Em suma, as correlações entre as formas da expressão e do
– cromáticas – e constituídas – eidéticas) e categorias não- conteúdo produzem, no cerne dos estudos da semiótica visual,
-constitucionais (topológicas). As categorias cromáticas di- o semissimbolismo. O cinema, além de ter sua especificidade
zem respeito às cores (vermelho vs. azul, por exemplo), as fundamentada na imagem em movimento e nas correlações entre
eidéticas à forma (reto vs. curvilíneo, por exemplo), e as suas formas (expressão e conteúdo), pode também ser conside-
topológicas indicam a disposição espacial na superfície plás- rado como uma linguagem que opera com o intricado processo do
tica (inferior vs. superior, por exemplo). A oposição cons- semissimbolismo.
titucional vs. não-constitucional apresenta uma classifica-
ção fundamental das categorias plásticas da expressão em uma 3 – Relações semissimbólicas no processo de construção do filme O Iluminado
perspectiva gerativa. Em suma, as categorias constitucionais
Com base nesse aporte teórico, convém olhar de perto como
permitem a escolha de uma configuração plástica (categoria
capa
essa operação envolvendo o semissimbolismo torna o filme um
cromática e categoria eidética), ao passo que, as não-cons-
derivado de uma leitura do livro operada pelo olhar de Kubri-
titucionais (categorias topológicas) são não-constitucionais
ck. Para isso, faremos um caminho contrário, ou seja, reve-
na medida em que regulam a disposição das configurações já
lando o final do processo narrativo de ambos enunciados para
constituídas no espaço planar (THÜLERMAN, 1986, p. 53).
construir o processo da significação subjacente de ambos,
No complemento dessas noções, surge uma nova ideia, o con-
desde o seu início.

universidade
traste, postulada por Jean-Marie Floch. Este autor dirá que o
No livro, o olhar mais próximo da constituição do espaço,
contraste plástico se define pela copresença, sobre uma mesma
o hotel Overlock, e da construção da personagem catalisadora
superfície, de dois termos contrários de uma mesma categoria,
de todo o processo da evidenciação do horror, Jack Torrance,
ou de unidades mais vastas organizadas da mesma maneira (apud
revela uma vertente maniqueísta cujo desenlace é a purgação
THÜLERMAN, 1986, p. 54). Por exemplo, em uma fotografia, po-
sumário
operada pela destruição do mal (o corpo “possuído” de Jack e
derá haver um contraste cromático, entre vermelho e azul, no
o hotel Overlock) em detrimento do bem (Danny e Haloram). O
plano da expressão, indicando, no plano do conteúdo, um con-
mesmo não acontece na visão proporcionada por Kubrick ao di-
traste entre paixão e frieza. Essa relação entre o plano da
lema e ao desespero de Danny. Vejamos um fragmento do fim de
expressão e o plano do conteúdo produzirá o semissimbolismo.
Jack e do Overlock, em que ambos, em uma simbiose, desaparecem

próxima
No cinema, a característica fundamental é a imagem em mo-
no meio das chamas que consomem todas as entidades presentes,
vimento (a composição total do que isso acarreta na substância
destruindo para sempre o hotel assombrado e seus “hóspedes”:
da expressão). As correlações entre suas formas (do plano da
[...] As janelas do Overlock se despedaçaram. [...] (Não! Não
expressão e do plano do conteúdo) também será matéria de uma pode! Não pode! NÃO PODE!) [...] A coisa berrava; gritava, mas
análise semissimbólica. É preciso deixar claro que o cinema agora estava sem voz e só gritava pânico, condenação e desgraça em seu
próprio ouvido, dissolvendo, perdendo o pensamento e a força, a trama
é uma linguagem sincrética, cujo plano de expressão comporta
anterior várias substâncias, como é o caso da substância verbal, sono-
se desintegrando, buscando sem encontrar caminho, saindo, saindo, vo-
ando, saindo para o vazio, o nada, esfarelando-se. A festa acabou.
ra, musical ou visual. Daremos ênfase à análise desta última. (KING, 2005, p. 304)

320
Em Kubrick, a “festa” nunca acaba, mas se cristaliza no -se muito para comentar que Stephen King detestou esse final
tempo. No filme, o fim de Jack é, aparentemente, um enigma. (mais tarde, em entrevistas, o autor de Carrie, disse que, na
Se o livro mostra o próprio corpo possuído de Jack rejeitando- realidade, ele próprio é que gostaria de ter tido a ideia do
-se e autodestruindo-se como a purgação do mal que desenca- final do filme em seu livro). Com Kubrick, não foi muito dife-
deou, o mesmo não acontece na diegese fílmica produzida por rente. O filme O iluminado não deixou King satisfeito em nada.
Kubrick. Aparentemente, após perseguir Danny pelo labirinto Tanto é que depois de alguns anos, precisamente no final dos
“vivo” e não conseguir realizar seu intento de matá-lo, Jack anos 1990, ele mesmo escreveu o roteiro e supervisionou uma
morre congelado. O que parece ser um final para alguém em um versão de O iluminado para a televisão americana. Adorando o
processo completamente destinado à loucura, ganha outros con- processo, fez o mesmo com a refilmagem de Carrie, mantendo a
tornos quando a câmera, após um corte rápido, caminha em um narrativa fragmentada da menina com poderes telecinéticos do
travelling para frente, pelo corredor do hall do Overlock. mesmo modo como foi desenvolvida em livro.
capa Ao som da música do baile dos fantasmas do hotel, a câmera Voltemos ao O iluminado, o filme de Kubrick. O diretor
vai em direção a uma parede repleta de fotografias do passado não apresenta uma solução de fácil digestão ao emaranhado de
glorioso do hotel. O “olhar” da câmera fixa uma foto e, cada loucura que dominou, transformou e eliminou Jack Torrance.
vez mais se aproximando, pára em frente a um grupo de pessoas Jack, no filme, não serve como a apoteótica derrocada do mal,
que participa do baile em comemoração ao dia 4 de julho de não é um elemento que produz o efeito catártico, no sentido

universidade
1921. No centro da foto, há um homem, em trajes de anfitrião, estético da “purificação do espírito do espectador através
sorridente e de olhar penetrante. Para nosso espanto, as fei- da purgação de suas paixões, especialmente dos sentimentos
ções desse suposto anfitrião são as mesmas de Jack Torrance. de terror ou de piedade vivenciados na contemplação do es-
Há um fade in e a tela escurece, para logo após surgirem os petáculo trágico” (Houaiss), efeito este que tanto espera o
créditos finais do filme. público dos filmes de horror. A “morte” de Jack Torrance, em-
sumário Qual é a justificativa de se comentar, em um primeiro mo- bora aconteça no plano físico, é, na verdade, uma espécie de
mento, os finais do livro e do filme? King é um escritor que, ilusão, um truque que revela que a essência do mal ainda per-
como já é notório em sua biografia, não assimilou muito bem manece, ainda resvala pelas paredes do hotel. O simples fato
o que fizeram Brian de Palma, em Carrie, a estranha (1976), e de o hotel não ser destruído, como acontece no livro de King,

próxima
Kubrick, em O iluminado, nos dois livros que deram título aos ajuda a corroborar essa afirmação em relação à permanência
filmes desses diretores. De Palma, ao costurar a narrativa de da essência maligna que brota das paredes do Overlock. Pelo
Carrie, a adolescente com poderes paranormais, de modo linear viés do semissimbolismo, vejamos como a construção do filme,
– que no livro era fragmentada e desenvolvida por meio de pon- em comparação ao livro, foi orquestrada.
tos de vista diferentes da situação que levou a garota a fazer Ao basear-se no livro como um exemplar da literatura de
o que fez no baile de formatura –, acrescenta um novo fôlego horror, Kubrick desestrutura por completo as características
anterior à história e produz um dos finais mais copiados pelos fil- do gênero. O diretor cria seu filme como um exemplar do horror
mes de horror das décadas seguintes. Não é preciso estender- e, no entanto, ao mesmo tempo, estabelece novos paradigmas

321
para o gênero. Alguns desses elementos característicos podem chados, próximos, em grandes closes do personagem em apuros;
ser “visualizados” na forma do plano de expressão do filme, tais planos recobrem detalhes de seu medo e, alguns casos, de
sintetizados no quadro que segue: suas feridas provocadas pela agressão do “monstro” malfeitor.
Ao trabalhar com planos longos, sem que haja a necessidade de
representar uma espécie de sufocamento das personagens, ope-
rada pelos planos próximos, Kubrick dá uma amplitude espacial
Forma da expressão Substância da expressão
no filme, sem que o espaço seja percebido, em uma primeira
Planos longos versus instância, como o palco em que as tensões afloram. Na verdade,
Planos próximos o espaço só é ameaçador enquanto uma “corporificação” orgâ-
Aberto versus Fechado nica do hotel como o regente da sinfonia de horror perpetrada
Claro versus Escuro em suas entranhas. Como exemplo, basta ver a chegada da fa-
capa Iluminação forte versus
Visual
mília Torrance ao Overlock em que os planos longos e abertos
Iluminação fraca acompanham a família no reconhecimento de seu novo local de
Sonora
Câmera fixa versus moradia pelos próximos meses, sem entrar em planos detalhados
Câmera em movimento do lugar. Essa relação contrastiva entre os planos terá muita
Música em tons graves versus importância quanto ao espaço, no item que segue.
Música em tons suaves
universidade
Aberto versus fechado: o espaço torna-se outro elemento
Cores fortes versus Cores fracas que faz com que o filme de Kubrick quebre os paradigmas do
Quadro: alguns elementos do plano da horror clássico. O espaço representado no filme não é sufo-
expressão do filme O iluminado cante e tenso, mas é opressor devido à pequenez de seus per-
sonagens enquanto sujeitos instalados nas dependências do
sumário Como visto anteriormente, o semissimbolismo só poderá ter
hotel Overlock. A partir de longos planos abertos, Kubrick
sentido se a forma do plano da expressão estabelecer uma cor-
enfatiza que aquilo que está no interior do hotel, ou seja, a
relação com a forma do plano do conteúdo. O que se vê no campo
presença inequívoca do mal, é maior do que as personagens que,
da forma da expressão é um grupo de contrastes que, de certa
de certa forma, “invadem” o Overlock. Uma cena interessante,
maneira, podem ser entendidos como os significantes da imagem

próxima
dentre várias outras, que enfatiza muito bem a grandiosidade
do filme de Kubrick. Tais contrastes, quando figurativizados
do Overlock em contraste com a pequenez de seus “parasitas”,
na forma do plano do conteúdo, estabelecerão uma relação que
é aquela em que Jack Torrance observa uma maquete do labi-
criará o estatuto semissimbólico da narrativa fílmica. Ve-
rinto no jardim do hotel. O olhar de Jack, já indicador de
jamos como cada contraste na forma da expressão relaciona-se
um suspeito processo de enlouquecimento, observa atentamente
com a forma do conteúdo.
a suntuosidade da maquete. A câmera vê o que o olhar de Jack
anterior Planos longos versus Planos próximos: uma das caracterís-
aponta. Uma tomada de cima retrata a magnitude e a opressão
ticas mais inerentes no cinema de horror são os planos fe-
espacial do labirinto, como parte da magnificência do Overlo-

322
ck. A câmera vai, aos poucos, em um travelling para frente, ressante que Kubrick preserva do livro de Stephen King diz
aproximando-se do centro do labirinto para, aos poucos, em respeito à presença do hotel enquanto o agente observador e
um plano mais fechado, revelar Wendy e Danny incrustados no catalisador do processo de possessão de Jack Torrance. No li-
espaço central, retratados como duas formigas perdidas em um vro, em algumas passagens, a “voz” do hotel invade a mente de
mundo inexplorado. Jack e esta voz é revelada ao leitor pelo recurso do discurso
Claro versus Escuro e Iluminação forte versus Iluminação indireto livre:
fraca: o espaço do hotel, embora grandioso e opressor, não [...] Ficou parado olhando oSkidoo, aspirando fumaça branca. Que-
ria que fosse como tinha sido. Quando chegou, ele não tinha dúvidas.
apresenta penumbras, cantos escuros ou quartos em trevas to-
Descer seria a decisão errada. Wendy estava apenas com medo do lobi-
tais; ao contrário, a iluminação forte e excessiva da luz do somem criado por um simples menininho histérico. Agora, de repente,
sol, refletida pela neve que adorna o espaço externo do hotel, ele via seu outro lado. Era como a sua peça, maldita peça. Não sabia
mais de que lado estava ou como as coisas ficariam. Uma vez que você
quebra com o paradigma essencial do gênero horror ao retra-
capa tar um espaço iluminado ao extremo, tanto pelas luzes do sol
viu o rosto de um deus naquela mistura de preto e branco, era o fim
da brincadeira... não poderia nunca deixar de vê-lo. Pode ser que
quanto pelas das lâmpadas do hotel. A ocorrência e a presen- alguns riam e digam que não é nada, simplesmente uma porção de borrões
sem significado, uma figura formada pela ligação de pontos numerados,
ça do mal não se manifestam na escuridão ameaçadora, mas na
mas sempre veria o rosto de Nosso Senhor Jesus Cristo olhando para
incandescência das luzes. A relação contrastiva entre claro você. Você o vira numa transição súbita de gestaltismo, o consciente
versus escuro e, por sua vez, entre iluminação forte versus e o inconsciente se unindo naquele momento do choque do conhecimento.
Você sempre o veria. Tinha sido condenado a vê-lo sempre.
universidade
iluminação fraca, pode ser observada no “baile dos fantasmas”
que Jack visita. No salão de bailes, a luz excessiva perde (Voltei a ser sonâmbula, querido...)

um pouco sua intensidade para dar espaço a uma luz mais difu-
Tudo estava bem, até que viu Danny brincando na neve. Foi culpa de
sa, amena, confortável. Embora a ênfase da iluminação seja o Danny. Era tudo culpa de Danny. Era ele o iluminado ou coisa que o
abrandamento do excesso da luz fora do salão de bailes, essa valha. Não era uma luz, era uma praga. Se ele e Wendy estivessem ali

sumário iluminação mais fraca não traz, como poderia sugerir, tons
sozinhos, passariam o inverno muito bem. Sem dor, sem peso na cabeça.

ameaçadores, muito pelo contrário, ela vem realçar o conforto (Não quero ir? Não posso?)

e a tranquilidade de um baile típico de réveillon, de con-


O Overlock não queria que fossem, e ele também não queria que fossem.
fraternização, de humanização entre as pessoas desconhecidas. Nem Danny. Talvez ele fosse parte do hotel agora. Talvez o Overlo-
ck, o grande e errante Samuel Johnson que ele era, o escolheria para

próxima
Tal contraste estabelece uma dúvida, pois não sabemos se as
ser seu Boswell. Você me diz que o novo zelador escreve? Muito bem,
pessoas que estão no salão de bailes são realmente presenças
contrate-o. Está na hora de divulgar nossa história. No entanto,
fantasmagóricas que habitam eternamente o hotel, ou se tudo vamos nos livrar da mulher e do filho mimado em primeiro lugar. Não

não passa de delírios de Jack. A atitude deste ao falar com queremos que ele seja perturbado. Nós não... [...] Estava parado
ao lado do snowmobile, a cabeça começando a doer novamente. O que
um barman misterioso e imaginário expressa, mais uma vez, o
resolveu? Ir ou ficar? Muito simples. Não complique. Devemos ir ou
processo lento de seu enlouquecimento. A presença do hotel é
anterior
ficar? [...] (KING, 2005, p. 203).

contrastiva com o delírio, a fantasia insana de Jack.


A intromissão da voz do hotel na mente de Jack nesta pas-
Câmera fixa versus Câmera em movimento: um detalhe inte-
sagem, por exemplo, revela o poder que o Overlock detém sobre

323
ele. Essa polifonia de vozes na mente de Jack também é o in- Por fim, o contraste entre Música em tons graves versus
dício mais do que evidente do processo de enlouquecimento e Música em tons suaves pode ser notado como indicador de ameaça
possessão. O narrador não tem a onisciência do que pensa Jack e acolhimento, respectivamente. Um exemplo, logo na abertu-
e também não tem acesso ao que o Overlock diz ao escritor- ra, é a profusão, na trilha sonora do filme, de tons graves,
-zelador. O discurso indireto livre presente nessa passagem e soturnos, gerando um efeito de suspense e, por consequência,
em boa parte do livro, principalmente no desenrolar da trama, de ameaça, que logo se concretiza na possessão de Jack e nas
é a marca presencial do Overlock que se sobrepõe ao narrador visões de Danny; por outro lado, a possessão de Jack se dá em
do enunciado. tons suaves, como é o caso da música do já citado baile dos
Um recurso interessante foi utilizado por Kubrick para fantasmas do hotel. A música, uma canção branda e receptiva,
marcar essa presença do hotel Overlock na diegese do filme: cantada por uma voz masculina suave e sedutora, é, de certo
a utilização de longos planos regidos por travellings opondo- modo, o Overlock seduzindo o zelador-escritor para os seus
capa -se à câmera fixa. O contraste entre a câmera fixa e a câmera domínios. Nessa sequência importante, Jack encontra-se com o
em movimento, esta notadamente representada pelos travellings antigo zelador do Overlock que, como foi notificado no momen-
constantes, irá suscitar, em uma relação com a forma do con- to da contratação de Jack, havia enlouquecido e assassinado
teúdo do filme, a presença do hotel Overlock como um observa- violentamente a mulher e as duas filhas. Esse é o momento de
dor próximo ao seio familiar, ou seja, como possuidor de um redenção de Jack aos domínios do Overlock.

universidade
ponto de vista que também conduz a narrativa fílmica. O filme Já o contraste entre Cores fortes versus Cores fracas é
ganha, por sua vez, relevos figurativos e temáticos quando o também um detalhe enriquecedor quando percebemos que a opo-
espectador consegue perceber que os movimentos da câmera são sição entre o Overlock e a família Torrance também se opera
os movimentos do hotel, são a prova irrefutável da presença no cromatismo. Iluminado pelo excesso de luzes tanto diurnas
maligna do Overlock agindo sobre Jack no intuito de acabar quanto noturnas, as cores do hotel revelam-se mais vibrantes,
sumário com a ameaça representada por Danny. Um bom exemplo está na mais brilhantes em oposição à opacidade das vestes da famí-
cena em que Danny, brincando com seu triciclo, percorre os lia Torrance. O vermelho, bem forte, está presente em todos
corredores do Overlock. Atrás do menino está a câmera em mo- os cantos do hotel, em todas as paredes. As cores vivas do
vimento, o travelling que é indicador da presença do hotel Overlock impõem-se sobre aquelas que retratam as pessoas que

próxima
enquanto força antagônica. Quando Danny vira seu triciclo em passaram ou estão no Overlock, como é o caso do gerente Ul-
uma encruzilhada de corredores, no final do caminho, ele tem mann, do cozinheiro Halloram e da própria família Torrance.
uma visão assustadora: duas irmãs idênticas o convidam para Mesmo as vestes dos convidados do baile dos fantasmas, em tons
brincar “eternamente”. Danny, congelado pelo medo, visualiza escuros, possuem mais brilho do que a roupa de Jack quando
em pequenos flashes as irmãs mortas e estraçalhadas no chão “penetra” no salão sem ser convidado. O vermelho profuso e
do corredor, cobertas por uma enxurrada de sangue. O Overlock exagerado, ganha contornos realmente significativos quando é
anterior quer atingir Danny, que abalá-lo pelo medo, pela opressão que figurativizado, na forma do conteúdo, nas diversas passagens
transpira em suas paredes. ameaçadoras do filme: as meninas mortas e mergulhadas em poças

324
de sangue; o sangue que jorra do peito de Halloran quando Jack Colorado. Danny restabelece sua confiança e força como “ilu-
atinge-o em cheio com uma picareta e, na cena mais emblemática minado” com a ajuda de Halloran, outro iluminado. A ordem é
do filme, o momento em que Wendy, ao olhar para o elevador do estabelecida e o mal é, aparentemente, exterminado com a des-
hotel, para seu desespero, vê algo surreal, quando as portas truição do Overlock e de seus fantasmas.
do elevador se abrem e o sangue jorra em abundância, como se A visão de Kubrick é realmente oposta. Assim como no li-
estivesse represado e a barreira não existisse mais. vro, Jack é fadado ao fracasso por não ter certeza realmen-
Como se viu, o resultado operado com o semissimbolismo dá te do que ele é, já que não define um objetivo prático a ser
ao filme um estatuto de obra que promoveu uma releitura de alcançado. É frustrado enquanto escritor e, ao aceitar o em-
outra obra, sob um ponto de vista criativo e, ao mesmo tempo, prego, este acaba sendo mais uma válvula de escape para, ao
inventivo e desafiador. mesmo tempo, cuidar da família e da vida de escritor. Assim
Retomando ainda a ideia de que ao invés de King, Kubrick como no livro, Jack é possuído, é manipulado pelas forças so-
capa cristaliza o mal e, a priori, não apresenta nenhuma solução brenaturais e malignas do Overlock. Não há mais volta. Jack
aparente, mas lança desafios interpretativos, o que vemos no tenta matar Danny e Wendy sob o comando do hotel. Não há re-
livro, como resultado de um processo maniqueísta com um final denção. Jack mata Halloran, o elo externo de Danny, necessá-
positivo, difere totalmente daquilo que o diretor apresenta rio para que o menino entenda seu poder. Jack, ao perseguir
em seu filme, ou seja, um final totalmente inverso. Danny, morre congelado, ao contrário do livro, em que ele

universidade
No livro, Jack é um sujeito indeciso com a vida de escri- mesmo desfere golpes violentos em sua própria cabeça com um
tor e, desapontado, aceita o emprego como zelador do hotel taco de beisebol. Danny escapa com a mãe, mas não sabemos o
para sustentar sua família. A fraqueza e a baixa autoestima que será dali em diante. A câmera, preocupada com o hotel,
de Jack são a abertura ideal para que a presença maligna in- que permanece intacto, reforça a ideia de que o travelling é,
crustada no Overlock tome conta de seu corpo. Como resultado, na verdade, aquilo que marca a presença do Overlock, enquanto
sumário Jack torna-se a personificação do hotel e surge como agente observador e regente da orquestra de horror. Se Jack morre
causal físico do Overlock e, como servo subserviente, é mani- congelado, no entanto, ele permanece cristalizado no tempo
pulado para acabar de vez com Wendy e Danny. Jack rejeita o quando o travelling/Overlock insiste em mostrar a foto em que
dom que possui; afinal, ele também é um “iluminado”, mas não um homem, semelhante a Jack na constituição física, é o mestre

próxima
aceita essa situação e não revela a ninguém o que sente e o de cerimônias eternizado nas lembranças dos anos dourados do
que vê nas entranhas do hotel. Torna-se, desse modo, egoísta hotel. Aparentemente, a ordem parece ser reiterada, mas não
em não dividir com a esposa realmente o que está acontecendo estabelecida. A ironia é que, embora Danny e Wendy tenham es-
e, como resultado, prefere deixar-se possuir pelas forças so- capado dos domínios do hotel, o Overlock estaria pronto para
brenaturais do hotel. King conclui sua história punindo Jack/ desestruturar a ordem e restabelecer o caos novamente.
Overlock – já que não há como distinguir o zelador da presença
anterior maligna que toma seu corpo – ao explodir, de maneira catárti- Conclusão
ca, o hotel, que arde em chamas e desaparece das montanhas do
O princípio analítico do semissimbolismo trabalhado aqui

325
ajudou a corroborar a ideia de que uma leitura proposta por um Referências
filme a um romance-fonte não tem por mérito ser infiel, muito
• FLOCH, Jean-Marie. Les langages planaires. In: COQUET, J.C. (org.). Sémio-
pelo contrário, já que o quê o texto fílmico propõe é uma nova tique: L’École de Paris. Paris: Hachette, 1982, pp. 199-207.

visão dos fatos narrativos apresentados pela obra literária. • _______________.


­­­­­ Petites mythologies de l’oeil e d’esprit. Pour une sémio-
tique plastique. Paris: Editions Hadès-Benjamins, 1985.
Em muitos casos, há o enriquecimento do romance-fonte ocasio-
• GENETTE, Gerárd. Palimpsestes: La littérature au second degré. Paris: Seu-
nado pela leitura que o texto fílmico faz de sua base temá- il, 1982.

tica. Ao tomarmos como premissa orientadora em nossa análise • GREIMAS, Algirdas J.; COURTÈS, Joseph. Dicionário de semiótica. Tradução
de Alceu Dias Lima e outros. São Paulo: Contexto, 2008.
o afastamento redutor do termo fidelidade à obra literária,
• KING, Stephen. O iluminado. Tradução de Betty Ramos de Albuquerque. Rio
o que podemos acrescentar é que, como dito anteriormente, o de Janeiro: 2005.

texto fílmico, em muitos casos, não reduz o livro-fonte a um • STAM, Robert. A literatura através do cinema: Realismo, magia e a arte da
adaptação. Tradução de Marie-Anne Kremer e Gláucia Renate Gonçalves. Belo
mero artefato de base, mas engrandece ainda mais a possibi- Horizonte: Editora UFMG, 2008.
capa lidade de efetuarmos a compreensão das variantes de leituras • THE SHINING [O Iluminado]. Direção: Stanley Kubrick. Produção: Stanley
Kubrick. Roteiro: Stanley Kubrick e Diane Johnson, baseado na obra de Ste-
que ele comporta em sua manifestação. Se um filme macula o phen King. São Paulo: Warner Home Vídeo. Colorido, 2007, 119 min. 1 DVD.
romance-fonte, fere a sua substância e transgride seu conte- • THÜRLEMANN, Felix. In: GREIMAS, Algirdas J.; COURTÈS, Joseph (org.). Sé-
miotique. Dictionnaire raisonné de la theórie du langage. Tome 2. Paris:
údo temático, tal feito irá proporcionar uma reavaliação e um Hachette, 1986.
retorno a essa fonte, no intuito de repensar certos valores

universidade
e, dessa forma, compreender ainda mais o gênero que lhe ser-
viu de base. Não há a “infidelidade”, mas um processo que nos
obriga a reavaliar e a restaurar a ordem sob a conduta de nos-
sa interpretação embasada, diga-se de passagem, no princípio
do dialogismo bakhtiniano que nos obriga a ver o “discurso de
sumário outrem” como processo criativo e constitutivo dos enunciados
em geral, sejam eles literários, sejam eles fílmicos.
No processo das relações semissimbólicas, no âmbito da
semiótica greimasiana, foi visto que o semissimbolismo busca

próxima
mostrar como se constrói a significação dos textos figurati-
vos e, desse modo, revelar como o significante fílmico está
estritamente ligado ao significado, no sentido de seu engen-
dramento. Operar com as relações semissimbólicas foi de imen-
so valor para perceber e corroborar o conceito de que, no caso
de nossa análise, o filme apresenta uma leitura que nos obriga
anterior a refletir sobre o romance-fonte como grande catalisador de
ideias e produtor de várias possibilidades de leituras.

326
Palavras chave: Adaptação - cinema - primeira pessoa
SPIDER EM PRIMEIRA PESSOA
Introdução

Sempre achei curioso conseguir recordar incidentes da meninice com


clareza e precisão, enquanto eventos ocorridos ontem parecem obscuros,
e não sinto confiança alguma em minha capacidade de recordá-los com
exatidão.43

G uilherme S armiento da S ilva


É assim que se inicia Spider: em primeira pessoa, como em
Professor de Dramaturgia no curso de cinema da UFRB. Realizou inúmeros ro-
teiros de curtas-metragens, foi co-roteirista e co-diretor do primeiro longa um diário. O narrador dispõe a memória para abrigar um as-
universitário Conceição ou autor bom é autor morto.
sassinato interdito: o de sua mãe, vítima do desejo carnal de
seu pai por uma prostituta. O processo que culminará com o
capa Resumo 42
assassinato é acompanhado pelo olhar do pequeno Spider desde
as arrastadas e insuportáveis crises conjugais, em torno da
Como adaptar um livro escrito em primeira pessoa para lin-
mesa posta, até o momento em que sua mãe confirma suas des-
guagem do cinema? O cinema permite uma passagem integral de
confianças, flagrando o adultério. O olhar do protagonista é
um narrador autobiográfico para o interior de seu processo
passivo, oblíquo, aficionado. Presencia o homicídio sumário e
criativo? Estas questões vieram à tona ao assistir ao filme

universidade
o enterro improvisado sob o terreno em que brotavam as legumi-
Spider, de David Cronenberg, após ter lido o romance homônimo
nosas servidas naquelas amargas refeições. Sem os preâmbulos
de Patrick McGrath. Na adaptação cinematográfica, o roteiris-
necessários, seu pai permite que a amante tome o lugar da sua
ta – o escritor do romance –, produziu uma série de modifica-
mãe na modesta casa da Kitchener Street.
ções estruturais que, na verdade, evidenciaram as limitações
Passei a vigiá-la, lembro-me, pois provocava em mim uma espécie

sumário
da sétima arte em mimetizar de forma cabal os recursos lin-
de fascínio aterrorizado. É difícil falar nisso, mas ver vestidos,
güísticos afirmativos do “eu”, pronome fundador da literatura aventais e malhas que para mim ainda carregavam a aura de minha mãe

moderna. A partir de uma comparação entre o filme e o roman- no corpo de Hilda , em sua fala, no modo como andava e balançava o
traseiro – isso me afetava profundamente.44
ce, a apresentação mostrará as soluções criativas encontradas
pelos roteiristas de cinema para adaptar a primeira pessoa em O narrador chama-se Dennis Cleg. Spider é um apelido. Vai

próxima um meio onde o olhar distanciado, descolado, impera. Neste rememorando seu passado obscuro, tecendo suas teias em torno
trabalho de transposição, aproveitam-se da matéria plástica do leitor mergulhado, cada vez mais imerso, em sua estranha
das sombras, transformam as limitações próprias ao formato, autobiografia. A verdadeira condição do protagonista só será
tornando-o capaz de representar as tortuosas afirmações do revelada do meio para o final do livro, enquanto, paulati-
sujeito. namente, vamos nos dando conta da impossibilidade narrativa,

anterior 42 Este artigo previamente publicado na Revista Contracampo no ano de 2004, foi revisto e atualizado mediante
das lacunas, dos fragmentos desconexos de uma memória precá-
aos novos conhecimentos adquiridos nestes seis anos de estudos transdisciplinares entre cinema e literatura, ria e doentia. A pensão onde Spider mantém um quarto vai se
para o Seminário Histórias de Roteiristas, de 2010. Por abordar a adaptação cinematográfica, o artigo mostra
os desafios que os roteiristas enfrentam ao transpor histórias de romances para as telas, especialmente no 43 McGRATH, Patrick. Spider. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p.9.
momento de traduzir a voz narrativa em primeira pessoa. 44 MCGRATH, op. cit., p124

327
metamorfoseando em uma casa de repouso; seus habitantes sem quando a esquizofrenia irrompe no discurso de modo a reorga-
voz, em pacientes alienados; sua dona, a Sra Wilkison, numa nizar a trama, fornecendo-lhe um sentido. Portanto, a questão
espécie de enfermeira condicional. O autor, através de uma principal da adaptação cinematográfica de uma obra com estas
engenhosa trama, no livro, estende a sanidade de sua perso- características seria o ponto de vista comprometido da nar-
nagem até o máximo limite do crédito, quando, já não havendo rativa revelado a posteriori. Como Cronenberg, o diretor do
mais a possibilidade do leitor sustentá-la, acena com o arre- filme Spider, iria manter incólume dos espectadores a loucura
mate de um desfecho surpreendente: a esquizofrenia da personagem principal em primeira pessoa, quando a matéria
Sim, foi tudo obra minha, sim senhor. Eu me afastei da cerca ; o prima do cinema é a imagem e, neste caso específico, a imagem
pânico diminui e senti-me estranhamente calmo (embora o verme do pulmão
do rosto de um homem perturbado por visões, convulsionado por
tenha acordado com aquela animação toda). 45
visões que lhe fogem do controle? A resposta dada pelo dire-
Foi o próprio Spider, projetando sobre ela a figura de uma tor, com o auxílio do próprio Patrick McGrath na realização
capa prostituta, que matara sua mãe. Abriu a saída de gás e esperou do roteiro, além de satisfazer plenamente as expectativas do
em seu quarto a queda do corpo impuro. texto, fornecendo uma adaptação exemplar, apontou os desafios
*** implícitos neste tipo de empreitada artística.
Deixando o livro Spider e partindo para o filme Spider, No filme, optou-se por assumir a loucura do personagem
poderemos expor já no caminho até o cinema algumas questões desde o início. Não temos dúvidas de que Ralph Fines inter-
preliminares. Tal jogo narrativo encontraria sérios obstácu-
universidade
preta um louco assim que ele desce na estação, logo que a câ-
los ao ser pensado como linguagem audiovisual. O maior deles, mera focaliza seu rosto, desde o primeiro fotograma. Da mesma
sem dúvida, o de adequar a voz desta personagem, cuja insa- forma que a escolha de Miranda Richardson para os papéis de
nidade encontrava-se protegida pelos artifícios literários. mãe e prostituta, respectivamente, deita por terra as ini-
O próprio McGrath admitiu em entrevista dada a Kevin Conroy ciais intenções do escritor, muito claras, de mantê-las dis-
sumário Scott que, em sua primeira tentativa, havia fracassado em tintas através do olhar de Spider. Os simulacros utilizados
transpor a narração de seu romance The grotesque para as te- pela narrativa escrita, possibilitados por uma narração em
las. Contava com esta experiência mal sucedida para, enfim, primeira pessoa, são substituídos pela crueza do olhar ci-
superar os problemas e transpor de forma orgânica “uma narra- nematográfico. Na maior parte do tempo, a câmera permanece
ção em primeira pessoa e na qual não se pode confiar”. 46

próxima
distanciada de seu objeto, como por exemplo, no momento em
No romance não estamos diante de um indivíduo de carne e que Spider revisita o seu passado e o vemos emoldurado pela
osso, mas de suas impressões. Sob a máscara que lhe confere a janela, no lado externo de sua própria casa, assistindo uma
narrativa escrita, Spider pode se fazer de são. Toda escritu- das cenas de sua vida. Esta adaptação, aparentemente simples,
ra passa através da perspectiva deste olhar inconsciente da exemplifica a complexa relação entre o cinema e a literatura,
própria loucura e dos próprios delírios. O que possibilita sobretudo, a problemática da integralidade de uma narrativa
anterior também a inconsciência dos leitores até o momento oportuno, homodiegética 47 no discurso cinematográfico.
47 Em literatura, narrador homodiegético seria aquele em que a narração é construída a partir do ponto de
45 MCGRATH, op. cit., p. 224 vista de uma personagem em primeira pessoa. REUTER, Yves. A análise da narrativa – o texto, a ficção e a nar-
46 SCOTT, Kevin Conroy. Lições de roteiristas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 158. ração. Rio de Janeiro: Difel, 2007, pp. 81-84.

328
A grande dificuldade em tal afirmação reside em saber se literária para uma audiovisual reside no fato de ser uma lei-
esta problemática expressa pelo confronto do livro Spider com tura aditivada pela autoridade de outro artista, o que trans-
o filme Spider não é um fenômeno localizado, decorrente das forma as interações subjetivas existentes em um simples ato
opções particulares dos autores do filme, ao invés de um fe- de leitura num evento cujas conseqüências influenciarão nas
nômeno abrangente, cujas causas partiriam da natureza própria futuras apreciações da obra inspiradora. Ao pôr em prática a
da linguagem cinematográfica. Em outros termos, saber se esta série de opções deflagradas já na construção do roteiro, as
substituição de uma voz narrativa por outra é resultado de escolhas das locações, dos atores, etc, o filme está cris-
escolhas nada arbitrárias, que resultaram em uma adaptação o talizando a leitura, fornecendo para futuros leitores refe-
mais fidedigna ao espírito da obra matricial, ou a mera conse- rências visuais, interferindo em sua atividade participativa
qüência de uma dificuldade inerente aos recursos cinematográ- de maneira sutil, mas efetiva. Depois de assistir o filme de
ficos, obrigando os autores a adaptarem esta primeira pessoa, Cronenberg, como imaginar outro Dennis Creg que não o inter-
capa aprioristicamente problemática. Eis a questão que pretendo pretado por Ralph Finnes?
esclarecer neste trabalho. André Bazin observou que, para se adaptar uma obra li-
terária, exige-se do cineasta, antes de tudo, talento cria-
Os problemas de uma adaptação fiel
dor. Ele terá que reconstruir o equilíbrio narrativo através
de recursos diversos, sabendo selecionar e adaptar elementos
Quando um roteirista parte de idéias próprias, tem um in-

universidade
conformados em um sintagma, para em seguida raciociná-los so-
finito a dispor. Ao partir de um livro, um infinito disposto.
bre um meio de expressão mais fluido e direto, com prioridades
As escolhas, tanto para o que se depara com dilemas cotidianos
que muitas vezes distendem o tema, sintetizam o tempo, privi-
como para o que se depara com o desafio de uma adaptação são
legiam o gesto. “Justamente as diferenças de estruturas esté-
muito próximas, na medida em que o livre arbítrio, inferno dos
ticas tornam ainda mais delicada a procura das equivalências,
sumário
homens, pode desvirtuar tanto a vida como as obras livremente
elas requerem ainda mais a invenção e imaginação por parte do
inspiradas.
cineasta que almeja realmente a semelhança ”49, conclui Ba-
Apesar de já ter um drama delimitado, com personagens e
zin. A mesma conclusão chega Joaquim Pedro de Andrade, após a
paisagens fornecidas pelo livro, uma adaptação enfrentará, a
realização de muitas adaptações antológicas:
princípio, os mesmos percalços que um leitor comum enfrenta

próxima
Freqüentemente quando a forma literária parece insusceptível de gerar
ao iniciar um processo de leitura. Segundo Umberto Eco:
uma forma cinematográfica, é porque ela pode gerar uma forma nova.
Num texto narrativo, o leitor é obrigado a optar o tempo todo.(...) Mas isso implica num processo de criação, nunca numa transposição
E essa liberdade é possível precisamente porque – graças a uma tradi- mecânica.50
ção milenar, que abrange narrativas que vão desde os mitos primitivos
até o moderno romance policial –os leitores se dispõem a fazer suas Desta forma, quando o diretor e o roteirista de Spider
escolhas no bosque da narrativa acreditando que algumas delas serão “optam” pela terceirização do olhar do filme, ao invés de se-
anterior mais razoáveis que outras. 48
guir à risca a voz narrativa do livro, em primeira pessoa do
A diferença quando se remete a transposição de uma obra 49 BAZIN, André. Ensaios. SP: Bertrand Brasil, 1990. P.12.
50 Joaquim Pedro: matrizes literárias. Entrevista a Geraldo Carneiro. Filme e Cultura N 43: Rio de Janeiro,
48 ECO, Umberto. Seis Passeios Pelo Bosque da Ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p.12. 1984.

329
singular, pode-se dizer que a motivação principal foi a de 2-Eu
não trair o “espírito” da obra matriz e, ao final do proces-
so, apresentar ao público um filme ressentido desta traição. A afirmação de que a primeira pessoa encontra na litera-

A escolha do ponto de vista onipresente de um narrador esqui- tura um meio privilegiado para desenvolver toda a sua poten-

zofrênico acarretaria o uso de recursos extremamente subjeti- cialidade expressiva pode ser facilmente constatada. Antônio

vos, tornando as imagens distorcidas ou por demais barrocas, Cândido foi um dos que percebeu que, “do ponto de vista do

sem com isso resultar em um produto que satisfizesse plena- leitor, a importância está na possibilidade de ser ele (o au-

mente ao “espírito” realista da obra. Mas, tirando os ganhos tor) conhecido muito mais cabalmente, pois enquanto só conhe-

espirituais de uma adaptação que fugiu ao literal, o cinema, cemos o nosso próximo do exterior, o romancista nos leva para

em si mesmo, comportaria os recursos estruturais mantenedores dentro do personagem ‘porque seu criador e personagem são a

do “eu”? mesma pessoa’(Foster)”.52


capa Se traçarmos uma linha desde O Gabinete do Doutor Caliga- Muitos foram os críticos e teóricos que reconheceram a li-

ri até chegarmos a Spider, perceberemos que para a primeira teratura como a arte do intelecto e que apontaram no desenvol-

pessoa valer-se dentro de uma narrativa cinematográfica será vimento do romance moderno fases bem marcadas, nas quais se

necessário que o protagonista do filme esteja sofrendo as vê a emergência do individualismo, da consciência de um “eu”

conseqüências de um impacto, sem o qual ela não adquire uma contingente, trágico e urbano. Por outro lado, encontro certa
dificuldade em não poder dizer o mesmo do cinema, justamente
universidade
identidade perceptível com a do personagem afim. Pasolini já
o havia detectado quando observou que a utilização da subje- por ser uma arte desenvolvida dentro deste contexto histórico

tiva livre indireta (câmera subjetiva) usada pela tradição de afirmação da subjetividade e, sob determinados aspectos,

técnico-estilística “baseia-se no conjunto daqueles stilema51 um dos colaboradores da fundação da subjetividade.53

cinematográficos que se formaram quase naturalmente, em fun- O cinema e o teatro apresentam muitos aspectos concretos, mas não po-

sumário ção dos acessos psicológicos anômalos dos protagonistas es-


dem, como a obra literária, apresentar diretamente aspectos psíquicos,
sem recurso à mediação física do corpo, da fisionomia e da voz. 54
colhidos pré-textualmente; ou melhor, em função de uma visão
Lembra ainda Antônio Cândido, sem, entretanto, aprofun-
substancialmente formalista do mundo do autor.”
dar-se demais nas diferenças entre as duas linguagens. Mais
A dificuldade inerente de uma primeira pessoa crível no
adiante, no mesmo livro, Paulo Emílio Salles Gomes pede a pa-
próxima
cinema, entretanto, será mimetizada em um pano de fundo fugi-
lavra e introduz a discussão da personagem de ficção no cine-
dio, como o lúmen projetado de um olhar anormal, vitimado por
ma, chamando a atenção para as formas de situá-lo no romance,
um princípio perturbador. Este princípio, que pode ou não ser
nas quais
alheio ao espectador, impregna toda a narrativa, construindo
verificaremos que são todas válidas para o filme, seja narração obje-
as seqüências a partir de uma perspectiva comprometida. Seria
52 CÂNDIDO, Antônio. Personagem de ficção. Editora Perspectiva, São paulo, 1992, p 14
algo mais próximo de um conjunto de procedimentos estilísti-
anterior
53 Jonathan Crary observou, em seu livro Techniques of the observer, que muitos dos objetos ópticos inven-
tados e depois comercializados no século XIX, como o phenakidiscope, o stereoscope, que de uma certa forma
prepararam a invenção do cinema no ocidente, ajudaram na criação da subjetividade moderna. O teórico americano
cos – como mesmo lembrou Pasolini – do que estruturantes. acompanha todo o pensamento desenvolvido a partir de experiências com a câmera escura, e percebe uma constante
valorização do indivíduo na recepção e interpretação das imagens. CRARY, Jonathan. Techniques of the observer.
51 “Poesia do novo cinema”. PASOLINI, Jean Paolo. Revista Civilização Brasileira. Numero 7. Rio de Janeiro, Massachusets: October Book, 1993.
1966, p.271. 54 CÂNDIDO, op. cit., p 15

330
tiva de acontecimentos, a adoção pelo narrador dos pontos de vista de Depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei pensando...
uma ou mais personagens, ou mesmo a narração em primeira pessoa.55
Humildemente pensando na vida das mulheres que amei.56
Aqui, o grande crítico de cinema brasileiro chega a tocar
Anos depois, por ocasião de minha pesquisa de doutorado,
no assunto da primeira pessoa cinematográfica. Para ele, os
estive na Casa de Rui Barbosa para ler alguns livros perten-
mesmos princípios que valem para sua construção na literatura
centes ao político baiano e, qual não foi minha surpresa ao
serão válidos também para o cinema.
encontrar, entre os muitos objetos de escritores guardados
A literatura é a arte em primeira pessoa por excelência.
ali, a humilde mesa do poeta. Sentei ali por alguns instantes
Os motivos são óbvios e podemos encontrá-los nas duas pontas
e compreendi imediatamente tudo o que ele queria dizer. En-
extremas de seu processo criativo. O trabalho do escritor é
trei em contato íntimo com sua pessoa e sua casa modesta, sua
solitário, tanto quanto o trabalho do leitor. A imaginação
xícara de quarentena, pequena, inanimada receptora de suas
deste pode facilmente conduzi-lo até a mesa de seu autor pre-
capa ferido, envolto por inúmeros tomos de livros, enquanto sorve
hemoptises. Segundo Maurice Blanchot:
O escritor escreve um livro mas o livro ainda não é a obra, a obra
uma providencial xícara de café nos intervalos da redação de
só é obra quando através dela se pronuncia, na violência de um começo
sua mais nova obra. O lugar do escritor é fixo e seu ambiente que lhe é próprio, a palavra ser, evento que se concretiza quando a

poderá, sem grandes esforços, tornar-se um fetiche para os obra é a intimidade de alguém que a escreve e de alguém que a lê.57

admiradores mais chegados. Ilustro este vínculo afetivo com A poesia de Manuel Bandeira, neste sentido, aproxima-

universidade
uma pequena nota autobiográfica. -se desta conduta que procurei entre os autores dos romances
Quando cursava a oitava série primária, minha professo- modernos, ao se assumirem dentro do texto, proporcionando a
ra de literatura mencionou, como se fosse uma triste viúva, sensação de intimidade com os leitores. Como bem comparou An-
o legado do poeta do Castelo: uma única xícara perfeitamente dré Bazin:
disposta sobre a geladeira impassível. Todo este ambiente mo- O romance tem, sem dúvida, seus próprios meios, sua matéria é a
sumário nacal pôde ser visualizado quando li posteriormente a poesia linguagem, não a imagem. Sua ação confidencial sobre o leitor isolado
não é a mesma que a do filme sobre a multidão das salas escuras.58
de Manuel Bandeira, que, ironicamente, considerava-se um po-
eta menor: No cinema antes é assim: o objeto fetichizado do diretor
Quando hoje acordei, ainda fazia escuro é uma cadeira dodrável, disposta defronte de uma paisagem em

próxima
movimento. Mais que entrar em contato com o que ele pensa,
(Embora a manhã já estivesse avançada).
iremos entrar em contato com o que ele vê. E o que ele vê é o
Chovia. mundo em transformação, uma paisagem que nunca será a mesma
Chovia uma triste chuva de resignação fora do filme em que ela está eternizada. “A imagem se recebe,
a escrita se visita. A imagem é dada, a escrita se adquire.”,
Como contraste e consolo ao calor tempestuoso da noite.
escreve Claude Imbert sobre as diferenças de recepção entre o
anterior Então me levantei.
cinema e a literatura. E conclui:
56 BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro. Rio de janeiro: José Olympio, 1966, p.166.
Bebi o café que eu mesmo preparei, 57 BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1987, p.10.
55 CÂNDIDO, op. cit., p. 107 58 BAZIN, op. cit., p.94.

331
De forma que a imagem transmite mais facilmente a impressão e a emo- da criatura ficcional.
ção, enquanto a escrita privilegia o campo de um espírito em ativida-
Souriau ainda observa que a câmera não pode fazer a com-
de: a idéia, o pensamento formal, a definição, a precisão, a crítica.
pleta identificação com uma personagem da trama, tal como faz
O diretor de cinema nunca estará só na realização de seu o romance, dizendo que “tudo o que pode fazer é sugerir de
filme. Cercado de técnicos, atores, assistentes, sua função maneira intermitente o que se vê e o que se pensa sobre ele”,
será exercida à parte da introspeção de uma possível primei- e argumenta que salvo as exposições verbais de tipo geral e
ra pessoa narrativa. Como conseqüência, quando a adaptação diversas declarações que afetam somente a intriga, na pelícu-
exige do cinema a fluência desta voz, todo um aparato técnico la não há nada que confirme que o protagonista, seu herói, é
e humano deverá ficar escondido atrás dela, e só encontrará a mesma pessoa que o narrador. Em seguida, conclui:
credibilidade caso alguns artifícios pouco sutis, como, por Ao protagonista o vemos desde fora, como ao resto do elenco; e as
exemplo, a câmera subjetiva ou uma voz em off conduzam momen- imagens tampouco chegam até nós como uma projeção de seus estados men-

capa taneamente a atenção do espectador. Tais artifícios não con- tais interiores. Aqui, como em outras partes, o papel da câmera é o
testemunho independente, secreto.60
seguirão se sustentar durante muito tempo, constituindo-se em
pequenos desvios estilísticos sem maiores conseqüências sobre Logo em seguida, Kracauer desmonta uma a uma as argumenta-

a estrutura da narração. Tão logo se exaurem no plano, a pers- ções do teórico francês e, de quebra, minha ambição de encon-

pectiva em terceira pessoa assume seu lugar e cumpre, então, trar matérias indubitáveis. Ele acha que Souriou menospreza

seu papel de mantenedora do discurso, mesmo quando este exige as potencialidades do cinema.

universidade a presença fixa de um “eu”.59 Ainda concedendo que o diretor de cinema é muito menos livre que o
romancista para se identificar com algum personagem de sua eleição,
Em pesquisa na biblioteca do CCBB – Centro Cultural Banco
pode fazer muito para dar a impressão de tais transformações miméticas.
do Brasil –, no Rio de Janeiro, abri o livro Teoria del Cine
Na verdade, o teórico americano minimiza as diferenças
– La Redención de La Realidad Física, de Siegfrild Kracauer,
lingüísticas entre o cinema e a literatura. Para ele as di-
sumário e percebi as pertinentes diferenças entre ele e o teórico
ferenças entre as propriedades formais do cinema e do romance
francês Etienne Souriau sobre questões relativas à adaptação
são só de grau, sem grandes impactos sobre as estruturas nar-
cinematográfica. Em seu livro, Filmologie et Esthetique Com-
rativas mais elementares.61
parée, Souriau percebeu a resistência obstinada do cinema em
As refutações de Kracauer refletiam os acalorados debates
traduzir para sua linguagem as quatro propriedades formais e
próxima estruturais da literatura, que seriam: duração, tempo, espaço
semióticos que eu, com meus poucos recursos, certamente não
poria fim. Deixei o livro na biblioteca, passei pelo imponen-
e ponto de vista. Para ele, antes o romancista que o cineasta
te e refrigerado saguão do CCBB e saí para as ruas engarra-
será livre de se situar no interior de qualquer de suas per-
fadas, apinhadas de trabalhadores. Nas barcas, atravessando
sonagens e, por conseguinte, contemplar o mundo exterior, o
a baía de Guanabara, refleti com mais calma sobre a situação
que então aparece dele, desde a perspectiva da interioridade
anterior 59 Interessante apontar que a teoria moderna em semiótica divide o processo de criação literária em dois
estágios complementares: debreagem e embreagem. No primeiro, o autor distancia-se de suas criaturas, proje-
a que havia chegado.
tando fora de si as categorias simbólicas do “não eu”, do “não aqui”, do “não agora”. Só depois de instalado
esta perspectiva panorâmica em terceira pessoa é que os elementos próprios a embreagem estabilizarão as vozes
narrativas, as impressões temporais e espaciais de uma ilusão de presença. BERTRAND, Denis. Caminhos da semi- 60 KRACAUER, Siegfried. La Redencion de la realidad física. Barcelona: Paidos Estética, 1989, p.293.
ótica. São Paulo. Edusc, 2003, p.417. 61 KRAKAUER, op. cit., p.295.

332
3-Ainda estou aqui o ponto de vista de onde tudo será mostrado aos leitores.
No cinema, os resultados desses conflitos são efetivos,
Seymour Chatman, em seu livro History and Discourse, tra- muito embora, como mesmo observou Chatman, o ponto de vista
ta das muitas faces de um texto literário. Seu discurso é seja limitado a terceira pessoa. O olho da câmera sempre será
herdeiro da crítica pós-estruturalista, surgida nas universi- externo, o que inibe a expressão de uma primeira pessoa que,
dades americanas na década de setenta. Muito se poderia dizer por força destas limitações, será recriada para caber n. Nes-
sobre o livro e sobre a vertente de pensamento que, de certa te sentido, no cinema é necessário distinguir somente entre
forma, deu origem às colocações de Chatman, mas o que destaca- um olhar em terceira pessoa narrado por um autor oculto na
rei aqui é o trecho que interessa mais diretamente a pesquisa: trama ou um olhar em terceira pessoa, cujo narrador esteja
das diferenças existentes entre a voz narrativa e o ponto de perceptível dentro dela. A voz narrativa em off é que indicará
vista em um romance ficcional. Segundo o teórico americano, ou realçará .
capa o ponto de vista é o lugar da situação ideológica ou prática Mas foi em outro gênero literário que não o romance de
da narrativa, enquanto a voz, ao contrário, refere-se ao dis- ficção, onde pude melhor embasar minhas afirmações. Depois de
curso através do qual os eventos e existências são comunica- encontrar um teórico do porte de Chatman que salvasse com seus
dos aos leitores. Neste sentido, “ponto de vista não é meio argumentos mais que embasados minhas palavras de mim mesmo,
de expressão; é somente a perspectiva nos termos a partir dos deparei-me com a questão das autobiografias. Este gênero, que
quais a expressão é feita”.62
universidade
só há trinta anos conseguiu se alçado à condição de alta li-
Chatman observa que nem sempre quem detém o ponto de vis- teratura, tem características que o colocam em lugar privile-
ta da história detém a sua voz narrativa. Ele cita como exem- giado na afirmação da primeira pessoa.
plo O Retrato do Artista Quando Jovem, de James Joyce, onde o Um dos maiores especialistas nos estudo autobiográficos
ponto de vista pertence ao Stephen, protagonista, mas a voz chama-se Philippe Lejeune. Seu interesse pelo Gênero delimi-
sumário narrativa pertence ao narrador da história, que se encontra tou e inaugurou uma área de estudo que enfrentava preconceitos
fora do texto. Neste caso, o narrador, apesar de acompanhar por partes dos estudiosos, cuja atenção voltava-se para ou-
a vida de uma personagem eleita, sabe mais do que ela, pois, tros estilos mais complexos. Para defini-la, o teórico fran-
supostamente, é quem detém o poder da narrativa. Também exis- cês foi seco: “autobiografia é uma narrativa retrospectiva em
tem livros em que o ponto de vista e a voz narrativa coin-
próxima
prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quan-
cidem. São os romances narrados em primeira pessoa como, por do acentua sua vida individual e particular com a estória da
exemplo, Lord Jim, que tem em Marlow aquele que irá narrar os personalidade”. Ao escrever O Pacto Autobiográfico63, Lejeune
fatos dentro do romance e o que detém o olhar através do qual parte deste conceito, que para os seus maiores críticos, pe-
serão vistos o desenrolar dos eventos. Posso acrescentar aos cava pela rigidez. Em cada artigo escrito posteriormente ao
exemplos fornecidos por Chatman, o esquecido Spider de Patri- seu livro de estréia, o vemos reavaliar muito dos conceitos
anterior ck McGrath. Dennis Cleg é o narrador da história e o que detém originais, fazendo uma analise cada vez mais detalhada de seu
62 CHATMAN, Seymour. Story and Discourse: Narrative, structure in ficcion and film. Unites States off Ame- objeto. Diante de tantas ressalvas e buscas, sua pouca menção
rica: Cornel University Press, 1993, p. 154. 63 LEJEUNE, Philippe. Le pacte autobiogrphique. Paris: Seuil, 1975.

333
ao gênero dentro do cinema, não deixou de me chamar atenção. remete aos anseios e buscas de um cineasta sobrevivente, e no
Para confirmar minhas desconfianças, Elisabeth W. Bruss, de Paulo Sacramento à vida de homens num presídio.
dando continuidade as observações de Lejeune, toca no assunto Nos tantos filmes que lembrei ou me lembraram, a figura
muito brevemente. Em um artigo intitulado “A Autobiografia de um diretor sempre se impõe com seu olhar exterior, recons-
Considerada Como Arte Literária”, ela dedica algumas poucas truindo a vida do biografado, tirando sua autonomia narrati-
linhas de sua longa exposição ao cinema. Bruss admite em par- va. São biografias, não autobiografias. Também existem filmes
te a dificuldade do cinema em se tornar autobiográfico, es- como os de Woody Allen, nos quais existem personagens que dão
pecialmente por ser um processo artístico coletivo, mas não indícios de sua relação com o autor, mas que não se assumem
deixa de vislumbrar a possibilidade da linguagem em assimilar como tal.
o gênero.64 Alguém já viu algum diretor filmar a própria vida e con-
Depois de toda essa longa exposição, aonde chegarei? O tar sua própria história, desde o seu nascimento, assim como
capa certo é que tanto Leujane quanto Elizabeth W. Bruss não citam várias personalidades o fizeram ao escreverem, de punho, suas
exemplos de autobiografias cinematográficas. O que eu posso autobiografias? Será a autobiografia no cinema interdita por
adiantar é que, independente das lacunas deixadas pela falta ser extremamente pretensiosa, por fazer da vida de seu pró-
de leituras mais substanciais, no cinema não há possibilidade prio realizador uma história, de seu rosto objeto narcísico
de autobiografia. Não existem autobiografias cinematográfi- insuportável? A modéstia seria um bom motivo para a inexpres-

universidade
cas. E isso sou eu quem diz agora, assumindo todas as con- sividade do gênero no cinema, se os cineastas não fossem tão
seqüências que a afirmação, feita em um momento de fraqueza megalômanos. Muitos foram os que se mostraram para outrem,
confessa, poderá acarretar em minha carreira acadêmica. mas não para si próprios.
Vasculho minha memória, faço uma viagem retrospectiva, A autobiografia, como gênero literário, radicaliza a ex-
busco referências através de amigos e só encontro no cine- periência de uma primeira pessoa narrativa. Esta dificuldade
sumário ma exemplos de biografias ou autobiografias ficcionalizadas. em fornecer exemplos cabais de autobiografia no cinema, en-
Luiz Alberto Rocha Melo foi um dos amigos que se prestou a de- tão, pode ser a prova que, com tanto afinco, vinha procuran-
sencavar títulos que adiaram, em algumas linhas, este meu afã do durante estas poucas, mas penosas páginas. Sua realização
por um final conclusivo. Em alguns momentos forneceu exemplos hoje, apesar de possível, tornou-se um tanto obsoleta. De

próxima
pertinentes, dados em eventuais conversas pelo telefone, como certa forma, a imagem conjugada a novas mídias, pôde servir
o do filme de Godard, JLG por JLG, ou de documentários de na- ao apelo da razão autobiográfica, o que para o aparato cine-
tureza antropológica como o filme de Paulo Sacramento, onde matográfico secularizado tornou-se impertinente. A internet e
os presidiários do antigo Carandiru mostram seu cotidiano. seus blogs cada vez mais elaborados, respondem perfeitamente
Mas, se levarmos em conta o conceito de autobiografia como uma às necessidades íntimas de uma primeira pessoa crível, ao se
narrativa retrospectiva, veremos que ambos se aproximam mais comunicar com os usuários a partir da construção de uma inti-
anterior de um depoimento, de um “recorte”, que, no filme de Godard midade possível. As câmeras digitais cada vez menores e mais
64 BRUSS, Elizabeth. Auobiographical acts – the changing of situation of a literary genre. Baltimore: Johns funcionais registram vários momentos do biografado, e com o
Hopkins University Press, 1994.

334
arquivo de toda uma vida, filmada e montada por ele mesmo, há trajeto para o qual contou uma série de fatores, sem dúvida,
a construção de uma história autônoma, coisa até então impen- mas nenhum deles com maior influência do que a evolução tec-
sável no cinema. nológica, que possibilitou interações cada vez mais próximas
E, antes que eu possa me lembrar de um filme legitimamente das realizadas pelo olhar humano.
autobiográfico (Godard, este artista enigmático não me sai da Neste sentido, notar a dificuldade do cinema em abrigar
cabeça) termino este capítulo... um discurso narrativo em primeira pessoa não indica que hou-
ve uma tentativa de desmerecê-lo diante de outras artes. São
4-Conclusão inúmeros os exemplos de filmes que supriram esta aparente
fragilidade lírica com a elaboração de soluções criativas,
Antes de partirmos definitivamente, será necessário domi-
capazes de adequar o olho-câmera aos percursos de um olhar
narmos um pouco nosso espírito, para que ainda possamos retor-
subjetivado. Na adaptação de Spider, de David Cronenberg, ve-
capa
nar ao filme Spider e fornecer um fecho que condiga com nossas
mos o quanto a linguagem cinematográfica apropriou-se de for-
intenções iniciais. Na verdade, mesmo que não encontremos um
ma positiva, assimilou recursos alheios, para construir uma
exemplo de autobiografia ortodoxa dentro do cinema, isto não
narração crível e coerente com o seu tempo.
impedirá o achado de primeiras pessoas que possuam outra or-
Atualmente, Spider não está sozinho em seu projeto de de-
dem de expressão e se validem na linguagem cinematográfica,
sintegração do foco narrativo. A ele junta uma lista cada vez
ainda que de maneira problemática. O filme de Cronenberg foi

universidade
maior de filmes como Estorvo de Rui Guerra, Muholand drive,
o exemplo a partir do qual evidenciamos a questão.
de David Lynch, Embriagado de Amor, de Paul Thomas Anderson,
Num segundo momento, ilustramos nossas inquietações com
todos filmes que partem de um protagonista alterado por um
toda uma discussão teórica, cuja finalidade foi de demonstrar
choque ou por uma patologia psíquica que adere, voluntaria-
que esta dificuldade em adaptar uma primeira pessoa não é ex-
mente, na superfície das lentes e no movimento das câmeras,
sumário
clusiva do filme Spider, mas inerente à linguagem cinemato-
tornando-as cúmplices, mas nunca detentoras, elas mesmas, da
gráfica como um todo. Chegamos então às autobiografias, onde
responsabilidade de uma primeira pessoa. O cinema, então,
pudemos evidenciar com mais contundência esta dificuldade, já
vale de artifícios próprios de sua linguagem para legitimá-
que um exemplo desse gênero literário não encontra paralelo,
-la, de modo a não comprometer o pacto existente entre o es-
pelo menos dentro do suporte teórico utilizado, na linguagem

próxima
pectador e o filme.
cinematográfica.
O mais intrigante, no entanto, é que esta fissão profunda
Apresentaríamos um trabalho inconcluso se excluíssemos
que inviabiliza o pensamento de uma primeira pessoa íntegra
desta mesma linguagem características que tornam todas as ou-
no cinema, é a origem mesmo da expressividade de sua voz na
tras uma estrutura dinâmica, permeável, dialógica. O cinema
literatura. O “eu” só pôde ser notado em um momento de cri-
não é uma exceção e, mediante a criatividade de seus autores
se. Seria inútil negar a primazia desta crise dentro da li-
anterior e as qualidades técnicas de seu aparato, utilizou recursos na
teratura, já que foi em meio às palavras que se forjou toda a
resolução da mímese da primeira pessoa em seu interior, mesmo
individualidade assumida pelo cinema, dois séculos depois. O
que, a princípio, isto fugisse ao seu ponto de vista. Foi um

335
romantismo, com seus contos fantásticos onde proliferam es- perceber nele mesmo o que ele vê nos outros. Neste sentido,
pelhos, duplos, protagonistas delirantes, foi o primeiro a aquele que se refletir infinitamente, aquele que se exaurir
demonstrar a inviabilidade desta primeira pessoa inicialmente no próprio reflexo, no final das contas, não precisará mais
jogada em universos sobrenaturais.65 de livros, não precisará mais de filmes; não precisará mais
Desde o início, a literatura conseguiu mimetizar melhor do mundo real. Enquanto isso, o olhar em terceira pessoa, no
seus conceitos, de modo a apresentar um “eu” formalmente ín- cinema, indubitavelmente, continua sendo mais um capítulo da
tegro a partir de experiências fragmentárias, enquanto que o construção desta pergunta obtusa: quem sou?
cinema é a consolidação da fragmentação no interior da lin-
guagem, onde a primeira pessoa narrativa tende a se tornar BIBLIOGRAFIA
cada vez mais postiça quanto mais se aproxima de uma forma- • AVELLAR, José Carlos. Deus e o Diabo na Terra do Sol: A Linha Reta, O mela-
ço de Cana e o Retrato do Artista Quando Jovem. Rio de Janeiro: Roco, 1995.
lização lingüística. Quanto mais frenéticos os movimentos da
capa
• BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro. Rio de janeiro:
câmera, quanto mais virtuoso o ângulo colocado sobre a ação, José Olympio, 1966.
mais artificial torna-se o filme. A MTV não nos deixa mentir. • BAZIN, André. Ensaios. SP: Bertrand Brasil, 1990.

Neste sentido, o filme Spider tem um tratamento realista. • BERTRAND, Denis. Caminhos da semiótica. São Paulo. Edusc, 2003

Para o cinema, isto implica na assunção de uma abordagem docu- • BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Editora Rocco,
1987.
mental, de um olhar distanciado: o olhar em terceira pessoa. • BRUSS, Elizabeth. Auobiographical acts – the changing of situation of a

universidade
Por outro lado, no livro Spider, este realismo é parte de uma literary genre. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1994.
• CHATMAN, Seymour. Story and Discourse: Narrative, structure in ficcion and
intimidade arquitetada: a primeira pessoa na literatura será
film. Unites States off America: Cornel University Press, 1993.
a melhor forma de tornar uma vida inexistente, ficcionaliza- • CHNAIDERMAN, Mirian. “Falas Tornadas Imagens faladas: psicanálise, Godard
da, em um documento íntimo verossímil para os leitores. Desta e Tarkovsky” in BARTUCCI, Giovanna (org). Psicanálise, Cinema e Estéticas
de Subjetivação, Rio de Janeiro: Imago, 2000.
arte, podemos inferir que o filme Spider tornou-se uma adap- • COSTA LIMA, Luiz. Pensando nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.
sumário tação possível ao realismo do livro, ainda que prá isso tenha • ECO, Umberto. Seis Passeios Pelo Bosque da Ficção. São Paulo: Companhia
tido de abrir mão da narrativa em primeira pessoa, fundamen- das Letras, 1994.
• KRACAUER, Siegfried. La Redencion de la realidad física. Barcelona: Paidos
tal para a construção da trama literária, mas extremamente Estética, 1989.
estetizante para o cinema. • LEJEUNE, Philippe. Le pacte autobiogrphique. Paris: Seuil, 1975.

próxima
Analisando a questão sob um ângulo menos óbvio, quando • McGRATH, Patrick. Spider. SP: Companhia das Letras, 2002.
atentarmos para a dificuldade do cinema, a partir de um filme • METZ, Christian. Linguagem e Cinema, São Paulo: editora Perspectiva, 1980.

particular, em sumariar uma primeira pessoa, poderemos tê-lo, • REUTER, Yves. A análise da narrativa – o texto, a ficção e a narração. Rio
de Janeiro: Difel, 2007
paradoxalmente, como a expressão máxima do olhar que mais • SCOTT, Kevin Conroy. Lições de roteiristas. Rio de Janeiro: Civilização
colaborou para sua constituição. Pois a um homem só é dado Brasileira, 2008
• XAVIER, Ismail. O Discurso Cinematográfico: A Opacidade e Transparência,
anterior
65 Tzevetan Todorov, em seu livro Introdução à Literatura Fantástica, observa algo que pode ser aplicado ao
livro Spider. Ao dizer que “a psicanálise substituiu( e por isso mesmo tornou inútil) a literatura fantásti- Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1984.
ca(...)Os temas da literatura fantástica se tornaram, literalmente, os mesmos das investigações psicológicas
dos últimos cinqüenta anos.”, podemos inferir que o livro enquadra-se dentro desta linha. Eu não sei exatamente •
porque coloquei esta nota aqui, mas, espero que, de alguma forma, ela tenha ajudado nas conclusões a respeito
do tema desenvolvido por Spider.TODOROV, Tzevetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva,
1975, p.91.

336
Revistas

• Joaquim Pedro: matrizes literárias. Entrevista a Geraldo Carneiro. Filme


e Cultura N 43: Rio de Janeiro, 1984.
• “Poesia do novo cinema”. PASOLINI, Jean Paolo. Revista Civilização Brasi-
leira. Numero 7. Rio de Janeiro, 1966, p.271.

capa

universidade

sumário

próxima

anterior

337
capa

ROTEIRO E
universidade

PRODUÇÃO
sumário

próxima
(ABORDAGENS
anterior
DIVERSAS)
338
ative, the story of everyday students who are trying to find
DESLOCADOS: DESENVOLVIMENTO its place in life is love, student, financial, vocational,
DE UMA SITCOM MACKENZISTA residential or spiritual. With references to romantic come-
dies and sitcoms, this program shows students Mackenzistas
republic in which Christians live and non-Christians. The va-
lues and issues of Christianity and how these kids deal with
it in their day to day, not even sharing that same faith. Our
production design is based on meeting technical partnerships,
F ernando L uis C azarotto B erlezzi artistic and financial.
Graduando em Propaganda, Publicidade e Criação pela Universidade Presbiteria-
na Mackenzie - berlezzi@hotmail.com
Key words: Sitcom, Christianity, mackenzista
Você já se sentiu deslocado? Deslocados conta, de forma
capa E zequiel de S ouza G arrido P ordeus
Graduando em Audiovisual pela Universidade de São Paulo - ezequielsgp@gmail.
bem humorada e criativa, a história cotidiana de estudantes
com que estão tentando achar seu lugar, seja na vida amorosa, es-
tudantil, financeira, profissional, residencial ou espiritu-
Resumo al.
Com referências em comédias românticas e sitcoms, esse
O presente artigo apresenta uma proposta de produção de
universidade
programa mostra uma república de alunos mackenzistas, deno-
uma sitcom mackenzista. Deslocados conta, de forma bem humo- minada “Pensão Coruja”, na qual convivem cristãos e não cris-
rada e criativa, a história cotidiana de estudantes que estão tãos. São apresentados os valores e questões do Cristianismo
tentando achar seu lugar, seja na vida amorosa, estudantil, e como esses jovens lidam com isso em seu dia-a-dia, mesmo não
financeira, profissional, residencial ou espiritual. Com re- compartilhando dessa mesma fé.
sumário ferências em comédias românticas e sitcoms, esse programa Pretende-se que a série seja divertida, sendo que o humor
mostra uma república de alunos mackenzistas, na qual convivem tem a capacidade histórica de convidar à reflexão.
cristãos e não-cristãos. São apresentados os valores e ques- Vislumbrou-se a oportunidade quando soubemos da concessão
tões do Cristianismo e como esses jovens lidam com isso em temporária do canal digital de alta definição para a univer-
seu dia-a-dia, mesmo não compartilhando dessa mesma fé. Nosso
próxima
sidade. A Universidade Presbiteriana Mackenzie se caracteriza
projeto de produção se baseia no encontro de parcerias técni- como primeira instituição de ensino superior a atingir tal
cas, artísticas e financeiras. feito. O período de concessão experimental é de dois anos,
Palavras chave: Sitcom, Cristianismo, mackenzista onde a universidade terá que produzir certa carga horária,
para então ficar definitivamente com o canal, sendo que cada
Abstract
unidade universitária deverá produzir quatro horas de progra-
anterior mação.
This article presents a proposal to produce a sitcom to
Mackenzie University. Displaced account so humorous and cre- O Mackenzie foi eleito a instituição mais admirada na

339
área de educação, por empresários, executivos e economistas interessante. Tais personagens tendem a ser fixas, embora es-
ouvidos pelo jornal Diário Comércio e Indústria, ao longo de tratégias como participações especiais sejam utilizadas. Sua
2009. O resultado disso é o espírito mackenzista desenvolvi- narrativa é circular, sendo cada episódio uma história inde-
do pelos que passam pelo campus, exemplo disso é que tudo o pendente que pode ou não se relacionar com as demais, podendo
que faz praticamente vende, e o fruto mais recente é a cria- ser assistido individualmente.
ção da grife Mackenzie em parceria com a Lotto, responsável As sitcoms são um gênero televisivo dentro da categoria
pelo design. Deslocados além de servir como mais um produto Entretenimento. São histórias curtas centradas na vida e nas
mackenzista, teria utilidade até mesmo como recurso auxiliar atividades de uma determinada família ou grupo, em locações
dos professores da disciplina de ética e Cidadania uma vez que pré-estabelecidas: a casa, o trabalho ou aquelas que gerem as
poderiam abordar temas relacionados aos valores da confessio- tensões e relações que servem de base para o programa (FUR-
nalidade defendidos pela Universidade. Poderiam ser exibidos QUIM: 1999, p. 08; CASEY ET AL, 2002).
capa eventualmente alguns episódios em sala de aula e contar com Nos Estados Unidos, até o final dos anos 90, grande parte
discussões em grupo sobre o tema abordado. das sitcoms era encenada em estúdio, incorporando as risadas
Como mackenzista assumido, já tinha uma idéia de criar do público ao programa final que ia ao ar. Atualmente, isso
algo relatando a vida cotidiana de estudantes, então essa no- não é mais uma prerrogativa do gênero, podendo haver, inclu-
tícia veio de encontro com a possibilidade de desenvolvermos sive, tomadas externas. As sitcoms Friends e Will & Grace

universidade
uma sitcom que seria responsável por 30” dos 240 minutos de são remanescentes da tradição das “risadas” as fundo, quando
responsabilidade do CCL- Centro de comunicação e letras. estas tinham como função “fornecer uma sensação mítica de um
engajamento do público em uma experiência coletiva” (CASEY ET
Definição de Situation comedy
AL., 2002).
Segundo reportagem da revista veja de 2 de maio de 2007,
sumário
O termo sitcom é uma abreviação da expressão situation
o roteiro passou a ser mais importante que o elenco, pois sé-
comedy (comédia de situação/costumes). Na definição de Grimm
ries como C.S.I., Lost, Heroes, Desperate Housewives e Grey’s
(1997) sitcom é um estilo de drama tipicamente norte-ameri-
Anatomy tornaram-se grandes sucessos sem ter um grande nome
cano, no qual a exposição, o conflito, o clímax e o desfecho
no elenco.
acontecem em um episódio de meia hora. O episódio ilustra,

próxima
Nos Estados Unidos, a teledramaturgia tem características
geralmente, uma situação engraçada na vida dos personagens
um pouco diferentes em comparação com o contexto brasilei-
principais, dando aos telespectadores uma ideia geral dos
ro. A diferença entre a telenovela brasileira e a série ou
personagens e das relações entre eles. As personagens são
a sitcom norte-americana é que a primeira tem seis capítulos
estereotipadas, pois, devido a sua duração, a identifica-
transmitidos diariamente, e duração de nove meses em média,
ção do espectador precisa ser imediata. De acordo com Casey
enquanto as segundas são divididas em episódios, que não são
anterior (2002), outra característica apontada é que algumas perso-
transmitidos todos os dias, e podem durar anos, chamados de
nagens têm certos rituais recorrentes como, por exemplo, o
temporadas. No Brasil, segundo José Carlos Aronchi de Souza
“How you doin’?”, de Joey, em Friends, quando este vê alguém

340
(2004), a sitcom é também considerada um gênero televisivo sas de opinião pública junto ao público-alvo, para definir os
por mesclar humor com teledramaturgia. O Dicionário da Rede personagens e o roteiro da série.
Globo (2003), apesar de considerar programas como A Grande A pesquisa está dividida em duas partes. Na primeira eta-
Família e Os Normais como “comédias de situação”, as classi- pa, utilizando pesquisa quantitativa aplicamos 200 questioná-
ficam na categoria Entretenimento e Gênero Humor. rios quantitativos e após análise de clusters definiu-se os 6
Pode-se afirmar que a televisão constitui um fator de personagens. Os questionários eram compostos de questões com-
identidade cultural e de integração social. Ela é assistida portamentais, hábitos e atitudes de situações do cotidiano do
por milhões de pessoas e é considerada uma valiosa fonte de estudante mackenzista. O método quantitativo caracteriza-se
informação – em alguns casos a única. A análise da produção pelo emprego da quantificação, seja na coleta de dados, seja
televisa está diretamente relacionada aos questionamentos so- no tratamento desses através de técnicas estatísticas, com o
bre a função social da televisão na sociedade contemporânea. objetivo de garantir a precisão dos resultados. Por pratici-
capa A televisão contribui para incentivar a variável capacidade dade (custo e tempo) foi escolhido o método de amostragem não
dos homens de compreenderem o mundo, de produzirem e parti- probabilístico, cujos resultados, saliente-se, valem apenas
lharem significados, porque sua onipresença e complexidade, para o grupo pesquisado, pois não há sorteio do elemento amos-
seguramente, abrem e estendem à sociedade determinadas vi- tral (RICHARDSON et al., 1999).
sões/valores que dialogam tanto com as instituições sociais
Personagens
universidade
como com a sociedade em geral. (SILVERSTONE, 2003).
Em DESLOCADOS recorremos ao humor como ferramenta para a
JOÃO, 23 anos. É muito dedicado em seu curso de Economia,
reflexão, esse estilo de seriado permite que uma determinada
tendo que trabalhar para mantê-lo. Sorte que mora perto da
sociedade ria dela mesma devido aos exageros das situações,
faculdade e pode alugar sua casa. É organizado e evita des-
fazendo com que, através do riso, reflita sobre seus anseios,
sumário
perdícios. É um animado recém-convertido. Sempre de camisa
modos de vida, preconceitos, etc. Uma vez que o assunto dis-
social e investidor da bolsa, é chamado de pingüim. Tem medo
põe de pouca bibliografia a respeito, assim como carece de um
de compromissos, prefere ficar sozinho.
estudo dentro do contexto da televisão brasileira, as sitcoms
MILLA, 18 anos. Pequena notável. Veio do interior de Minas
norte-americanas são nossos referenciais aqui.
fazer seu curso de Biologia. Baixinha que, à primeira vista,

próxima DESLOCADOS - a proposta de produção


parece sensível e frágil. Mas quem a conhece sabe que ela é
firme em seus ideais espirituais, tendo uma visão muito lega-
lista do que é ser cristã. Não come certas coisas e pratica
- Roteiro obras sociais. Gosta de João.
RAMÓN, 24 anos, alto. Fortão atrapalhado. Já está na Pen-
Atualmente é impensável uma empresa lançar um produto novo
anterior no mercado, sem antes realizar uma pesquisa com consumidores.
são Coruja há anos, pois é muito amigo de João. Como vive em
barzinhos, não vai às aulas de Jornalismo. Vive com preguiça,
De forma semelhante, aproveitamos de ferramentas de pesqui-
sempre querendo tirar proveito dos outros. Tenta conquistar

341
Milla a todo custo, mas só piora as coisas com seu jeito bru- conteúdo e começou-se a escrever o roteiro da 1ª temporada.
to. Trabalha em um jornal de TV. O formato sugerido segue os padrões internacionais de sé-
CAROL, 20 anos, gaúcha. Estudante de Psicologia que gosta rie televisiva, uma temporada contendo 13 capítulos, cada um
de ajudar as pessoas. É uma menina prodígio, fissurada em vi- com 30 minutos (incluindo intervalos). Para aprovação da tem-
deogame e futebol. Apesar de não ter religião, é muito curiosa porada, é comum as redes de TV produzirem e exibirem o EPISÓ-
sobre isso, levando os outros a refletir com suas perguntas DIO PILOTO. Nas próximas páginas, criamos um roteiro ficcio-
sinceras. Interessa-se por João, por ver que ele é franco nal que apresenta essa finalidade.
quanto ao que acredita. PRIMEIRO EPISÓDIO — MUDANÇA — 30 minutos com intervalos.
CADU, 19 anos, ateu, estudante de Publicidade. Novo no pe- SINOPSE.: Clima de festa para os vestibulandos do Macken-
daço, acaba se identificando com Ramón por terem gostos pare- zie: sai a lista de convocados. Novos estudantes, como Milla
cidos em música: ele toca violão, e em Comunicação: tenta ser e Carol, vêm de longe fazer sua matrícula. A Pensão Coruja
capa efetivado como redator no mesmo canal de TV que o outro está. precisa desse tipo de pessoa para alugar lá, mas o preguiço-
Começa a sair com Diana após fazerem alguns trabalhos juntos. so Ramon se “esquece” de colocar o anúncio e João, dono do
DIANA, 21 anos, magra. Cristã liberal, porém assídua nos lugar, sai às pressas para fazer isso a tempo. Cadu e Diana
cultos, curte uma prancha estilizada e arte de rua. Caloura notam que essas vagas são limitadas e tentam disputar qual dos
de Design no Mackenzie, é simplesmente apaixonada por seu es- dois ficará no lugar. Graças a uma confusão de Ramon, ambos

universidade
tágio. Às vezes, trabalha até demais (workaholic), pondo sua agendam sua mudança para hoje, ao mesmo tempo em que Carol
saúde em risco. É ansiosa e apressada. Tem bastante habili- e Milla já estão se instalando. O desafio está lançado: quem
dade em dançar. fica na Pensão Coruja?
A segunda parte da pesquisa diz respeito a uma pesquisa INT. REPÚBLICA. DIA.
qualitativa, composta de entrevistas e relatos de situações João acorda Ramon e pergunta-lhe se mais alguém decidiu
sumário engraçadas vividas por estudantes, tendo como base a pergun- se mudar para a Pensão Coruja. Ramon diz que os últimos de-
ta: “Você já se sentiu deslocado?” Onde o pesquisado relatava sistiram porque acharam a sala muito bagunçada. João concorda
situações fora do comum ou consideradas absurdas, preconcei- com eles: Ramón deixa tudo jogado. Ramón diz que vai arrumar,
tos sofrido por questão de etnia, classe social, crença, etc. mas João lhe pede que o ajude a colocar mais anúncios. Ramón

próxima
O método qualitativo se difere do método quantitativo, pede que deixe metade dos cartazes. João olha a hora e sai
pois não utiliza dados estatísticos para a análise dos dados apressado, com os papéis na mão.
obtidos e não tem interesse em numerar ou quantificar unida- INT. SALA MILLA. DIA.
des homogêneas, este método não emprega um instrumento esta- Milla entra em casa com o mochilão nas costas, roupa cheia
tístico como base do processo de análise, pois não se propõe de lama. Quando liga a luz muitas pessoas gritam “surpresa”.
a realizar medidas, propõe-se a entender a natureza de um dado Ela fica confusa, mas vê que a parabenizam por sua aprovação
anterior fenômeno (RICHARDSON et al., 1999). no Mackenzie.
Após a análise das entrevistas, realizou-se análise de EXT. ENTRADA MACK. DIA.

342
Alunos do colégio Mackenzie olham listas de aprovados no INTERVALO.
mural e comemoram. João cola um anúncio. Quando sai, vemos que INT. REPUBLICA. DIA.
ele colocou um convite para uma conversa sobre a Bíblia, ao Ramon não rejeita a presença das belas garotas e apresen-
lado do cartaz sobre sua pensão, com vagas limitadas. ta a republica a elas. A campainha soa novamente. Chega Diana
INT. SALA CAROL. DIA. com duas malas, sorridente. Ramon quase fecha a porta na cara
Carol chega em casa com uma roupa de caminhada e fone de de Cadu, que também acaba de chegar, apenas com poucas baga-
ouvido, abre sua agenda e fica animada com a data. Entra na gens. Milla e Carol perguntam se não eram apenas duas vagas.
Internet e vê seu nome na lista de transferências para Psico- O telefone de Diana toca.
logia no Mackenzie. Pula de felicidade e liga para sua amiga INT. TRABALHO JOAO. DIA.
Milla (tela dividida) — precisam achar logo a república. João está diante de um papel quadriculado cheio de gráfi-
EXT. ENTRADA MACK. DIA. cos. Ele liga para Diana sobre o grupo de conversa da Bíblia.
capa No mural, Cadu confere a relação de convocados e comemora. Diana diz que não é uma boa hora para falarem sobre isso. João
Ao seu lado, Diana grita de alegria ao ver que está na lista. ouve uma discussão ao fundo e reconhece a voz de Ramon e de
Em sua empolgação, ela esbarra em Cadu, que estranha. duas meninas. João diz ao amigo do escritório que volta logo.
Eles findam indo na mesma direção. Diana anota o telefone INT. REPUBLICA. DIA.
da roda de conversa sobre a Bíblia e Cadu meneia a cabeça. Carol e Milla dizem que falaram com João e que a vaga era

universidade
Eles reparam no mesmo anúncio da pensão de João. Resta delas. Cadu diz que Ramon já fechou com ele. Diana diz que a
apenas uma lingueta. Como as vagas são limitadas, decidem li- vaga não é de ninguém, mas sim dela. Como Carol e Milla são
gar e disputar quem será o escolhido. Cadu concorda. duas, Ramon tende a ficar do lado delas. Cadu se une a Diana
Depois da saída dos dois, Milla e Carol chegam ao mesmo e diz que eles também estão juntos. A confusão só aumenta.
cartaz. Milla comenta que aquela é a república para onde se João chega de repente e propõe um desafio: quem se comportar
sumário mudarão hoje. melhor até o fim do dia (dá uma olhadinha pra Carol) fica
INT. REPUBLICA. DIA. com a vaga.
João diz a Ramon que já alugou para duas meninas. Não há INT. CORREDOR DE MERCADINHO. DIA.
mais vagas. Ele sai. O telefone toca e Ramon atende. É Cadu. Milla e Carol selecionam materiais de limpeza. Carol pega

próxima
Ele pergunta se ainda tem lugar na república. Ramon diz que um chocolate e Milla pergunta o motivo. Carol dá de ombros,
sim, que pode vir e marcam daqui a meia hora. misteriosa. Milla a segue para outro lugar.
O celular de Ramon toca e ele pede que Cadu espere. Dia- Cadu chega e pega alguns pães de hot-dog.
na quer se mudar para a pensão e chegará daqui a 30 minutos. INT. REPUBLICA. DIA.
Ramon confirma. Cadu ouve tudo. Diana cozinha o almoço, mas acaba queimando a comida.
A campainha soa. Chega Milla, com o mochilão cheio de João, que estava aproveitando o cheiro, estranha a fumaça e
anterior lama, e Carol, com seu fone. Ramón fica surpreso com a visita joga água no fogão, que acaba pegando em Diana.
inesperada. Carol e Milla voltam do supermercado e entram na cozinha.

343
Milla aproveita para limpar a água. O CCL convida para sua nova série no Canal Digital Ma-
João fica aliviado e Carol se aproxima. Ela lhe dá o cho- ckenzie.
colate e ele volta feliz para o trabalho. DESLOCADOS.
INT. COZINHA. DIA. O programa narra a vida de jovens universitários que pro-
Diana está triste porque queimou a comida. Cadu chega com curam seu lugar, etc. Buscamos uma parceria criativa com os
os pães e prepara hot-dog. Diana reluta, mas acaba gostando participantes da equipe e do elenco.
de ajudá-lo. CADU, 19 anos, interpreta um estudante de Publicidade
Carol e Milla organizam a sala em clima de vitória. Depois ateu. Toca violão e se interessa por uma surfista que faz De-
sentam para descansar, famintas. sign. Tenta ser efetivado em um disputado cargo de redator de
INT. REPUBLICA. NOITE. um canal de televisão.
Ramon chega e fica impressionado com a limpeza. Pergunta DIRETOR DE FOTOGRAFIA. O seriado tem referências em co-
capa onde está a comida da outra equipe. Carol e Milla dizem que médias românticas e sitcoms. O interessado deverá gostar de
foi queimada. trabalhar com esse estilo de imagem e mostrar interesse e co-
João chega do serviço e reúne todos no sofá. Milla e Carol nhecimento técnico na área.
já comemoram. Ele pergunta onde estão Cadu e Diana. Ramon diz Se você considera que tem o perfil para assumir uma des-
que eles devem ter desistido. sas funções ou interpretar algum papel, entre em contato com

universidade
Diana e Cadu chegam e fazem uma surpresa com o lanche. a gente para agendarmos uma conversa.
Todos exigem um veredicto, mas João pede que antes orem com Pensamos na possibilidades de criar um grupo de teatro
ele para agradecer o lanche. Alguns estranham. com enfoque em dramaturgia especialmente para selecionar os
João dá sua resposta: hoje, todos ficarão lá e sua deci- atores para esta série. O casting seria coordenado por algum
são final ficará para amanhã. Eles comem felizes. Cadu abraça professor da área, em parceria com o DAC — Departamento de
sumário Diana, ela retribui, estranhando. Artes e Cultura da Universidade.
Nossa proposta incluiria a criação de uma atividade com-
- Produção plementar, onde a participação do aluno nesse projeto resul-
taria em créditos-hora, além de enriquecer seu currículo,
Nosso projeto de produção se baseia no encontro de par-

próxima
praticando o que tem aprendido dentro da sala de aula.
cerias técnicas, artísticas e financeiras. Sendo assim, gos-
taríamos de continuar contando com a ajuda da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, em seus canais e estúdios de tele- LOCAÇÕES
visão, bem como de alunos, professores e funcionários envol-
vidos. Sala-cozinha / República (INT.) (ver Figura 1) - Casa/aparta-
anterior Como uma das ideias iniciais, elaboramos um tipo de cartaz mento do personagem João, que abriga nossos estudantes, cha-
que serviria para atrair os talentos para a participação no mada de Pensão Coruja. É um espaço frontal com sala de es-
seriado. Abaixo, exemplos desse anúncio. tar, mesa e copa. Será o principal “set” de filmagens.

344
tária ou de concessão de TV digital, respectivamente), que já
manifestou interesse para incluir em sua programação através
de uma carta de garantia de veiculação, além do apoio da Chan-
celaria e Capelania pela proposta do seriado.

Considerações finais

Acreditamos na viabilidade de realização da sitcom DES-


LOCADOS tanto do ponto de vista de entretenimento, de envol-
ver os estudantes na realização e audiência da trama, pos-
sibilitar um espaço para prática de ferramentas apreendidas

capa
dentro de sala de aula. Além disso, a série proposta servi-
ria como propaganda institucional do poderia ser distribuída
como brinde em feiras de estudante aos futuros mackenzistas e
utilizada como recurso audiovisual para a matéria de Ética e
Figura 1 — Planta baixa da Sala-cozinha /
Cidadania, já que o humor tem a capacidade histórica de con-
República - Elaborado pelos autores.
vidar à reflexão.

universidade Eventualmente serão utilizados cenas em outros lugares.


1) Canal de TV / Jornal (INT.) - Local em que trabalha Ramón
Bibliografia
e onde Cadu tentará ser efetivado. 2) Corredor de entrada do
Mackenzie / Banquinhos (EXT.) — Conversas/fixação de anún- • CASEY, B. et al. Television Studies: The Key Concepts. London/New York.
2002
sumário cios. 3) Capela (INT./EXT.) — No jardim poderia acontecer a
• FURQUIM, Fernanda. Sitcom — Definição e história. 1ª ed. Porto Alegre:
Roda de conversa sobre a Bíblia: grupo que o personagem João FCF, 1999.

criou como uma alternativa mais informal para quem se sente • GRIMM, E.L. Humor and Equivalence at level of words, expressions, and
grammar in an episode of “The Nanny”. Cadernos de tradução. Florianópolis:
deslocado em relação à Sagrada Escritura ou ao Cristianismo. UFSC, v.2, p. 379-399, 1997.
4) Academia / Quadra (INT./EXT.) – Cenas desportivas com os • REDE GLOBO DE TELEVISÃO. 2003. Dicionário da TV Globo, vol. 1: Programas

próxima
de Dramaturgia & Entretenimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
atores. 5) Diretório Acadêmico / Corredor entre salas (INT.)
• RICHARDSON, R. et al. Pesquisa social: métodos e técnicas. 3. ed.. São
– Encontros entre personagens. Paulo: Atlas, 1999.
• SILVERSTONE, Roger. Porque estudar a mídia? São Paulo: Loyola, 2003.
- Pós-produção / Distribuição • SOUZA, J.C.A. 2004. Gêneros e formatos na televisão brasileira. São Paulo:
Summus

A veiculação desse conteúdo audiovisual já se daria por


anterior meio da TV Mackenzie ou do Canal Digital Mackenzie, respei-
tando a legislação específica vigente (de televisão universi-

345
Abstract
APLICAÇÃO DO MÉTODO DE PAISAGEM
NA INTERPRETAÇÃO E CRIAÇÃO This paper aims to show the application of Landscape Theory

DE CENÁRIOS/PERSONAGENS. in the development of script study , especially on games develop-


ment. The study question, sought the geographic science applied
to understanding human-space, which proved to be relevant to
creating scripts and details of scripts about the binomial
scenario /character. Through this interactions we can obtain
a systematization of all the factors that need to be descri-
F rancisco T upy bed as the level of detail in relation to the factors listed.
Aluno especial do programa de mestrado da Universidade Estadual Julio de Mes- With this we can obtain better results as the intended goals
capa
quita Filho. Instituto de Artes. franciscotupy@yahoo.com.br
as demonstrated in research as occasions witch this method
P elópydas C ypriano was applied in creative workshops.
Professor Doutor - professor adjunto (livre-docente) da Universidade Estadual Key words: script, games, characters, scenaries, lands-
Paulista Júlio de Mesquita Filho. Instituto de Artes. pel@ia.unesp.br
capes.

Resumo 1. Introdução
universidade O presente texto tem por objetivo mostrar a aplicação A idéia para desenvolver este trabalho surgiu de um con-
da Teoria de Paisagem no desenvolvimento de um estudo sobre vite do Professor Pelópidas Cypriano, uma vez que no segundo
roteirizarão, principalmente de games. O estudo em questão, semestre do ano passado ele estava desenvolvendo uma ativida-
buscou a luz da ciência geográfica aplicada a compreensão ho- de com seus alunos da disciplina Mídia 3 (Bacharelado em Ar-
sumário mem/espaço, que mostrou-se pertinente na criação de roteiros tes Visuais, Instituto de Artes, Unesp). Perante a atividade
e detalhes de roteiros no entendimento e criação do binômio proposta, os discentes apresentavam grande dificuldade, pois
cenário/personagem. A partir desta relação pode-se obter uma sendo proposto o exercício de criação de um personagem em seu
sistematização tanto de fatores que precisam ser levantados, cenário, a ambientação estava insipiente, sem profundidade.

próxima
quanto ao nível de profundidade em relação dos fatores lista- Precisava haver uma explicação que mostrasse um caminho de
dos, de modo que se possam obter melhores resultados conforme criação aos alunos, resultando dessa maneira um melhor re-
os objetivos almejados, conforme demonstrado nas pesquisas sultado em suas criações, que essa atividade epistemológica
mediante as ocasiões que fora aplicado tal método em oficinas resolvesse o problema de sala de aula, mas também contribuís-
de criação. se dentro da questão da formatividade (PARYESON, 1993) dando
Palavras chave: roteiro, games, personagens, cenários,
anterior paisagem.
suporte a questões ligadas a criação de uma maneira geral e
para futuras situações semelhantes que os alunos estivessem
envolvidos.

346
Esta foi à possibilidade de colocar em teste, algo havia ligado à interatividade e alteridade.
sido feito em algumas outras situações, tais como: palestras Por fim a última referência foi o Método da Teoria de Pai-
e alguns projetos. Porém, o desafio de ensinar tal aspecto de sagem da Geografia, em linhas gerais, trata-se de um método de
criação frente uma jovem turma, foi um teste impar para medir decompor o espaço em suas características de interesse (Água,
o grau de assimilação, bem como a utilidade do modelo. Solo, Relevo, Ocupação Humana, Questões Culturais, etc) de
Esta situação denota algo que se faz presente frente a: modo que após ser feita as distinções de componentes, também
- a dificuldade sobre encontrar materiais, ou sistemas seja feito os níveis de relação entre esses componentes, algo
para elaborar tal catálogo para fins de compreensão ou mesmo interessantíssimo desse método é poder utiliza-lo de acordo
referência; com suas necessidade, com elementos que cabem a sua análise.
- a dificuldade de criação que evolve criar um personagem Em Monteiro (2000), ele discorre sobre a origem, evolução
ou um cenário. e aplicações próprias que ele utilizou para entender, expli-
capa Desta maneira, existe um mercado crescente, ligado à in- car e abstrair as relações espaciais, Em Monteiro (2003), o
dústria do games e isso cada vez mais carecerá de mão de obra autor aplica a TGP, para fazer uma leitura dos textos canô-
qualificada, ou seja, criativa, capaz de criar bons projetos. nicos da literatura brasileira em função do espaço/cenário.

2. Método 3. Desenvolvimento da Pesquisa

universidade Para embasar tal idéia, o primeiro sistema de criação Após leitura sistemática dos textos, fora feita uma com-
abordado foi o livro, qual dispõe de uma tabela matricial e pilação das informações necessárias, de modo que tal conteúdo
cartesiana, que se combinam características a fim de gerar pudesse atingir o que nossos objetivos preconizaram.
personagens diferentes, havendo diversos tipos de categorias Por haver uma necessidade epistemológica, onde fosse de-

sumário
que ocupam (abscissas e ordenadas), cada categoria dispõe de monstrado o passo a passo da análise, bem como da criação e
diversas subdivisões, chegando a possibilidades de cruzamento em função do caráter sistêmico da teoria de paisagem, fora
de dados de 20 linhas por colunas, ou seja, mais de 400 tipos elaborado dois gráficos, porém organizados como esquemas de
de idéias diferentes, com apenas uma única tabela. organograma, evidenciando as partes levantadas bem como o ní-
Porém o caráter criativo de criação é apenas morfológico, vel de associação entre cada elemento. .Os dois esquemas são:

próxima muito insipiente as questões ligadas à construção emocional e - Sistema Trinomial da criação/interpretação Personagem e
as relações baseadas com o cenário e o personagem. Ambiente
Para tal idéia ser focada nos games, o embasamento se deu - Binômio de intersecção criação/interpretação Personagem
com SHELDON (2004), quando ele descreve a idéia dos três cam- Ambiente
pos edificação do personagem, social, físico e psicológico. E O primeiro esquema foi baseado no trinômio de Bertrand
anterior também nos itens que formam o jogo, de acordo com JULL (2003), e o segundo como uma análise geográfica integrada, conforme
pois desta maneira a criação contempla não apenas a história proposto em Monteiro (2000).
como seria em um filme, livro ou quadrinho, e sim coloca algo Posteriormente foram feitas aplicações diretas com diver-

347
sos exemplos, nas seguintes condições:
- para os alunos da disciplina referida a acima (Unesp);
- em palestras e workshops para estudantes de game design
(FATEC/FECAP), educadores (RPGCON), entusiastas em geral (SP-
GAMESHOW).
Em todos os casos, a idéia foi facilmente assimilada e
mostrava que o sistema proposto facilitava estabelecer rela-
ções que não haviam visto anteriormente.
Posteriormente, ao fim das atividades, ao conversarmos
com os participantes, vemos um sentimento de aceitação de mé-
todos como esse, pois acaba sendo uma maneira melhor de cons-
capa truir idéia.
Além disso, em alguns projetos próprios de diversas na-
turezas (games, jogos corporativos, jogos de tabuleiros e Figura 02 - Sistema Trinomial da criação/
quadrinhos). Em todos os casos foi algo que se mostrou extre- interpretação Personagem e Ambiente
mamente eficaz, ajudando estabelecer maior profundidade nas
Fonte: Desenvolvido pelo autor
universidade
criações em função da relação personagem e cenário.

Figura 01 –
4. Conclusão
Binômio de
intersecção Trata-se de um modo válido tanto para criar quanto para
sumário criação/ explicar algo específico, não apenas para games, ou seja,
interpretação tais modelos têm um lado de aplicação teórica epistemológica
Personagem como um lado de construção de narrativas comprovado.
Deve ficar claro que tal proposta não é estanque e sim
Fonte:

próxima
dinâmica. Uma vez que cada situação, problema, ou necessida-
Desenvolvido
de varia, os elementos também variam, inclusive em relação a
pelo autor
história personagens e tudo mais, logo para uma melhor uti-
lização e aplicação é necessário adequar e alterar o modelo.

5 Bibliografia
anterior • PAREYSON, L. Estética – Teoria da formatividade. Tradução de Ephraim Fer-
reira Alves. Petrópolis: Vozes, 1993.
• TSUKAMOTO, H. Manga Matrix Create Unique Characters Using the Japanese

348
Matrix System. New York:HarperCollins Publishers. 2008.
• SHELDON, L. Character development and Storytelling for Games. Boston:
Thomson Course Technology, 2004.
• JUUL, Jesper. The game, the player, the world: looking for a heart of
gameness. In: Level up: digital games research conference proceedings.
Utrecht University, 2003. (http://www.jesperjuul.net/text/gameplayworld/)
(consultado em: 1.9.2010)
• MONTEIRO, C. A. F. Geossistemas, A história de uma procura. São Paulo:
Contexto, 2001.
• MONTEIRO, C. A. F. O mapa e a trama: ensaios sobre o conteúdo geográfico
em criações romancescas. Florianópolis: UFSC, 2007.

capa

universidade

sumário

próxima

anterior

349
Introdução
ESTEREÓTIPOS E CINEMA: HIPÓTESES
SOBRE A VISÃO DO NORTE Podemos considerar o fato de que o cinema surge em seus

AMERICANO ACERCA DO BRASIL primórdios, a partir das experiências com a imagem fixa, como
a fotografia, ou se levarmos em conta um passado ainda mais
remoto, com as tentativas de captar a imagem e animá-la em
forma de movimento, como se faziam com os teatros de sombra
chineses. Mas embora pesquisadores tenham tentado com grande
esforço tal iniciativa, é atribuída aos irmãos Lumiére no fim
É rica G rosso do século XIX o sucesso desta empreitada.
Érica Grosso é aluna do 6º. Semestre de Rádio e TV da Fapcom - Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicação. O impacto das imagens possui uma força visual que nos im-
capa pressiona, pois estas têm um poder de sedução, que seqüestra
o nosso olhar além de despertar nosso imaginário, ao ponto de
I sabel O restes S ilveira
Isabel Orestes Silveira é professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie nos projetarmos para dentro de uma determinada cena, por exem-
nos cursos de Propaganda, Publicidade e Criação e da Fapcom – Faculdade Paulus plo, quando nós nos colocamos no lugar de um ator ou atriz.
de Tecnologia e Comunicação, para os cursos de Jornalismo, Rádio e TV, Publi-
cidade e Propaganda e Relações Públicas. É Pesquisadora do grupo Linguagem, Sabemos que a palavra imagem possui múltiplas significações especial-
sociedade e identidade: estudos sobre a mídia. (UPM) e do grupo de pesquisa em mente devido à subjetividade associada a ela. Flusser (2002:7)

universidade
Processos de Criação do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica
da PUC/SP.
define imagens “como superfícies que pretendem representar algo” e
destaca que as primeiras imagens produzidas pelo homem pertencem ao que
Este artigo foi desenvolvido na disciplina Linguagem Áu- ele chama de imagens tradicionais: registro gráfico produzidos pela mão
humana desde a pré-história como as pinturas e os desenhos, dentre
dio Visual, do 6º semestre do curso de RTV da FAPCOM, sob a
outros, que mediam as relações entre os homens e o mundo. (SILVEI-
orientação da profª Drª Isabel Orestes Silveira. RA, 2010, p.87)

sumário Mesmo nos idos do cinema mudo, a imagem causava tamanho


Resumo
impacto que mesmo sem o recurso do áudio, às pessoas se es-
O objetivo deste artigo é investigar as hipóteses que forçavam por entender as mensagens que eram transmitidas. Com
podemos formular acerca da visão que o norte americano pode o passar do tempo e com os avanços tecnológicos, o áudio no

próxima
criar sobre a cultura brasileira a luz do filme “Turistas” do cinema e os efeitos especiais, tornam esta arte ainda mais
diretor John Stockwell (2006). Nosso argumento se constrói a emocionante do que já era.
partir do fato de que alguns estereótipos são construídos no As superproduções cinematográficas somadas a outras mí-
imaginário coletivo norte americano, acerca das imagens di- dias endossam o discurso ‘do espetáculo’, não foi à toa que
vulgadas no referido filme que mostra um Brasil extremamente Novaes (1997, p.09) classifica a época atual, como “a socie-

anterior violento, sem lei e permissivo em relação a questões tão sé- dade do espetáculo”. O autor no texto “A Imagem e o Espetácu-
rias como é o tráfico de órgãos. lo”, cita que o espetáculo vai muito além de imagens. Se por
um lado a imagem possui uma força que pode manipular os te-

350
lespectadores e influenciar a vida cotidiana, por outro, pode que o homem realiza o que está no mundo.
levar ao entretenimento. Tomando como certa tal afirmação, podemos considerar que
Silveira (2010, p.87) reforça tal pensamento quando diz: é a partir daí que algumas pessoas criam os estereótipos, pois
É notória a presença maciça e múltipla das imagens que nos cercam, de forma equivocada, criam imagens sobre determinados indiví-
elas cobrem cada esquina de rua, praças, jardins públicos e estão
duos, grupos sociais etc.
presentes nos diferentes apelos publicitários. As imagens invadem os
meios de comunicação: jornais, revistas e a televisão, dentre outros,
No cinema é muito comum que alguns filmes sejam interpre-
tados de maneira particular, pois cada um reage de uma forma
Vinculando um conjunto de signos cujas representações vão se proces-
diferente, mas é óbvio se o filme criar um estereótipo sobre
sando no individuo a ponto de influenciar seu cotidiano.
algo que esteja acontecendo, reforça o conceito que se tem
Para exemplificarmos este raciocino no cinema, podemos
do assunto abordado. Toda imagem estereotipada chama muita a
perceber claramente que há filmes cujo romance provoca o
nossa atenção, pois causa um impacto e nos faz parar para pen-
capa choro. Em outros gêneros, o riso, e ainda há alguns que são
sarmos a respeito daquele assunto. É o caso do filme: Turistas
do gênero de terror que acabam amedrontando e levando o es-
do diretor John Stockwell (2006) que foi alvo de inúmeras cri-
pectador ao pânico. As emoções sejam negativas ou positivas
ticas, uma das críticas foi à revista americana ‘’Variety’’,
podem surgir no cinema em diferentes momentos da narrativa e
revista sobre cinema que criticou muito o filme, alegando um
despertar sentimentos variados que vão do repúdio, êxtase,
longa violento, além de outras críticas como o de Lucas Sal-
tristeza, tédio ou a paixão, contentamento ou mesmo ao gozo

universidade
gado e o do jornalista Vinícius Vieira. O crítico de cinema
hedonista.
Lucas Salgado cita que estereótipos buscam atingir o Brasil.
Novaes (1997, p.11) cita os estudos de Jean Starobinski,
O Brasil abordado no filme carrega no seu escopo, o es-
o qual relata que às imagens fascinam ao ponto de levar ao
tereótipo de um país em que o paraíso idealizado na memória
cúmulo da distração, quando um sujeito determinado, passa a
coletiva, pode ser representado por jovens livres que jogam
sumário estar desatento ao mundo tal como ele é, e atribui a imagem
futebol, que dançam com mulatas e que bebem muita caipirinha.
vista, sua referência e sentido de vida.
Neste cenário, se coloca a visão de espetáculo que o Brasil
Então a imagem se transformou em mercadoria por excelên-
representa mundo a fora, ou seja, o país torna-se um modelo de
cia, objeto de produção, circulação e consumo, ou seja, a
uma realidade, em que a palavra de ordem é o gozo e o prazer.
imagem vende e nesse sentido o cinema é marketing e obtêm com
próxima
No decorrer do filme a narrativa é encaminhada para o fato
lucros seu investimento no mercado mundial.
dos estrangeiros serem expostos a drogas e como vítimas de
É através da percepção que o sujeito tem das imagens, que
abusos e violência como o tráfico de órgãos. De novo o este-
surgem varias interpretações das mesmas. Cada pessoa tem um
reótipo de país atrasado e violento volta à tona. Assim, o
olhar ou uma forma de decifrar os significados e novamente po-
reforço do que se acredita ser o Brasil, do ponto de vista do
demos recorrer aos pressupostos de Novaes (1997, p.12), quan-
olhar Norte Americano, passa a ser uma realidade a partir dos
anterior do ele cita que o olhar se realiza em nós com o que nos vem de
elementos que o roteirista, diretor e responsáveis colocam no
fora, da mesma maneira que é através das imagens do espírito
filme.

351
1 - O filme: Turistas seguinte, acordam a beira do mar e descobrem que suas roupas,
passaportes e dinheiro foram roubados.
O filme Turistas do diretor John Stockwell1 de 2006, é um Esse caos gera briga e indignação por parte dos turistas
exemplo de estereótipo que conta a história de seis jovens com os moradores do lugar. Aí conhecem um homem chamado Kiko
que vieram passar férias no Brasil e acabam sendo assaltados, que os abriga permitindo que os turistas passarem uma noite
drogados e vítimas de tráfico de órgãos. em sua casa.
O filme tem um dos atores principais que é o Josh Duhamel Com a ajuda de Kiko, os turistas cruzam uma vasta floresta
que já atuou em filmes como “O Retrato de Dorian Gray”, “Um fechada, e conhecerão algumas cavernas subterrâneas. Chegam
Encontro com o seu Ídolo”, um dos seus mais recentes filmes é a uma residência estranha escondida na mata. Sem acesso via
o “Transformers”, e também atuava na série americana “All my carro, a casa é uma verdadeira clínica médica, com aparatos
Children”. As filmagens de ‘’Turistas’’ aconteceram em Uba- cirúrgicos e macas. Os inocentes turistas não imaginam onde
capa tuba na cidade de São Paulo, no Rio de Janeiro e na Chapada estão e o que irá acontecer com eles. Ali, encontram passa-
Diamantina em Minas Gerais. portes de vários turistas, instrumentos cirúrgicos e muitas
Uma das primeiras cenas do filme se passa ao som do samba câmeras. Com a chegada do doutor Zamora que veio ao local de
“Do Jeito que o Rei Mandou”, de João Nogueira e Zé Catimba, helicóptero, os turistas descobrem que ali funciona um comér-
música do ano de 1975. Em 2003, Marcelo D2 sampleou um tre- cio ilegal de órgãos.
cho dessa música que ganhou uma nova versão com o rapper. A
universidade
O filme é puro clichê estereotipado do terror, mas usando
cenografia mostra uma nota de dez reais, mulatas, a bandeira o Brasil como cenário e principal alvo de sugestões estereo-
brasileira, favelas, mulheres esculturais e até mesmo o Cris- tipadas acerca do país. Durante o filme vários turistas são
to Redentor também aparece. mortos, alguns conseguem escapar, e última cena dá-se a en-
O seis turistas estão viajando para o nordeste e durante tender que haverá continuação do longa.
sumário essa viagem contratam um motorista louco, que acaba entrando No final do filme a palavra Turista, é escrita com sangue.
em discussão com um americano mais alterado e por isso perde Atores brasileiros também participaram desse filme, como
o controle do veículo e quase cai na ribanceira. o ator Miguel Lunardi que interpreta o médico Zamora e des-
Com o ônibus quebrado, os americanos resolvem descer até taca-se ao explicar que tira órgãos dos ianques para doá–los
a praia mais próxima e ali, resolvem passar a noite. Todos se
próxima
para um hospital no Rio de Janeiro.
unem e se tornam amigos de uma australiana fluente em portu-
guês. 2 – Estereótipos acerca do Brasil no interior do filme.

Tempo depois, à noite todos se envolvem em uma festa ser-


Neste artigo a palavra estereótipos estará embasada na
vida com muita caipirinha, só que envenenada. Logo na manhã
conceituação de que se trata de uma imagem preconcebida de
anterior
1 * Além do filme Turistas, o ator, diretor e produtor John Stockwell, nasceu no Texas, no dia 25 de março
em 1961, também dirigiu filmes como ‘’Mergulho Radical’’ em 2005, mas atuou nos filmes como ‘’Top Gun – Ases uma determinada pessoa, coisa ou situação. Entendemos que os
Indomáveis’’ (1986), ‘’Christine – O Carro Assassino’’ (1983) e ‘’Eddie – O Ídolo Pop’’ (1983), ou seja, ele
mais atuou no cinema do que dirigiu. Mas quem é o roteirista do filme é o Michael Arlen Ross. O gênero do
filme é de terror, o público alvo que ele atinge é de 18 anos para cima, tem um tempo estimado de 94 minutos
estereótipos definem preconceituosamente as pessoas em deter-
de duração. Vale destacar que Josh Duhamel que interpreta o Alex no filme, participa do recente filme: Trans-
formers e atuava na série americana All my Children. minadas sociedades.

352
Em relação ao filme Turistas, o diretor estereotipou o meno múltiplo, plural e sincrético no sentido mais alargado
Brasil de varias formas. Primeiramente ressaltamos a idéia do termo. Em linhas gerais, isso teve início com a invasão
concebida no filme acerca da imagem da mulher brasileira. dos povos europeus, no século XVI, com a população indígena
Esta aparece sendo associada ao desejo sensual quando o cor- local, como também com os africanos, trazidos como escravos
po se torna objeto do olhar e do desejo do outro, quando se a partir do século XVII, e posteriormente no século XIX até
mostra vestida com poucas roupas. a metade do século XX, com a forte entrada de imigrantes no
Outro estereótipo apontado no filme é o que vincula o país país, intensificando assim o caráter plural da sociedade bra-
a violência, deixando a nossa imagem marcada negativamente sileira. Segundo Darcy Ribeiro (1995, p.179) a configuração
como um país que convive com o tráfico de órgãos. A idéia que cultural do Brasil formou-se “destribalizando os índios, de-
se tem do Brasil é a da ignorância, da brutalidade da força safricanizado os negros e deseuropeizando os brancos”.
física, mas que em contrapartida é povoado por mulheres sen- O país então, se faz, sendo mestiço, a partir da comple-
capa suais. xidade e da multiplicidade de características que são resul-
Como o Brasil é estereotipado de tal forma, corre-se o tado da convivência, num mesmo espaço, de culturas e etnias
risco de se divulgar uma visão míope de que somente coisas tão distintas. Pinheiro (1991, p.28) vem ao encontro desse
ruins acontecem por aqui. Vale destacar a considerações de pensamento ao afirmar: “nada mais autoritário, como forma de
Pinheiro (2008), acerca da América Latina e de um modo especí- conhecimento, do que a idéia, eurocêntrica de que haja uma

universidade
fico acerca do Brasil: “a América Latina tem por um lado esse origem perdurável, invariante, superior ao que se mescla e
turbilhão barroco mestiço, de outro ela sofreu três invasões traduz. Não há nada “branco” ou “negro” no Brasil, mas uma
muito problemáticas e que são invasões que até agora atuam na tessitura, um texto móvel em contínua transformação, esperan-
cabeça do brasileiro e do latino-americano”. do outras misturas”.
Sofreu uma invasão clássica, aquela formulada pelas ciên- O Brasil não tem, por isso, uma unidade que o caracte-
sumário cias clássicas; sofreu uma invasão clerical-eclesiástica, que rize. Esse aspecto pode causar repúdio para os que procuram
tem que ver com formas de ensino e conhecimento elaboradas legitimar uma identidade brasileira. Nas palavras de Pinheiro
na Idade Média pelo mundo católico; e desde o começo de 1900 (2008) “a questão é a seguinte: a palavra identidade não serve
sofreu essa nova invasão tecno-capitalista ou publicitário- mais para o que nós somos, porque não somos um ser em estado

próxima
-capitalista. Essas três invasões combinadas - algumas pesso- puro, nós não cabemos dentro da ontologia ocidental, já que
as estão mais próximas de uma ou de outra - tornam, às vezes, somos um território móvel, que acumula elementos vindos de
difícil da gente conseguir ver o que é o Brasil e a América diversas partes”.
Latina ou aproveitando-se e devorando isso também. Às vezes, O modo de pensar clássico, que perpetua os princípios uni-
elas são transformadas, assimiladas. Outras são postiças. tários e totalizantes, não aceita a oposição, as ambigüidades
(PINHEIRO, 2008) e ambivalências. Ao contrário, é ávido pela essência, pela
anterior O que Pinheiro (2008) evidencia é o fato de que no Brasil, pureza, pela identificação do igual, por isso exclui o dife-
a constante convivência entre povos distintos gerou um fenô- rente, rejeita o provisório, o efêmero, o superficial e nesse

353
caso exclui o Brasil, cenário fluído e dinâmico de natureza fortemente o indivíduo aos olhos dos outros. Segundo Goffman
tropical, de palmas, frutas e praias, cujo povo é conhecido (1978, p. 13) os estigmas podem ser observados como “atribu-
e feito de atividades criativas, como: festas, músicas, dan- tos profundamente depreciativos”. Nesse sentido os estigmas
ças, esportes, literaturas, espetáculos, riqueza culinária, podem ser entendidos como marcas ou sinais visíveis tanto fí-
religiões, pesquisas cientificas e outras tantas gamas de ca- sica quanto psicologicamente de um indivíduo ou de um grupo
racteres. que evidenciam as características de descrédito em relação a
Os modelos preestabelecidos de pensamento dos países cen- outro indivíduo ou grupo.
trais mais industrializados disseminam modos de comportamen- Então, um grupo consegue estigmatizar outro quando sua
to, modos de consumo e se impõe como modelos de excelência a situação de poder se sobrepõe a de outro grupo. Surge então o
serem seguidos em todas as esferas sociais. Em outras pala- estigmatizado que é o excluído.
vras, tais modelos rejeitam o espírito lúdico, o carnavales- No contexto deste artigo, entendemos que as conseqüências
capa co, o que é festivo, o sacro e o profano. Opõem-se ao contexto dos preconceitos exaustos no filme “os turistas”, revelam as-
Barroco brasileiro com seus excessos, estranhezas, exuberân- pectos sociais negativos transmitindo atitudes e idéias rígi-
cias e desmesuras. São avessas as ingenuidades, as utopias, das quanto ao Brasil. Esse conteúdo negativo e injusto do qual
o riso, o erótico, o tolerante, a cultura popular, as drama- deriva inúmeros estereótipos reforçam o preconceito que pode
ticidades das paisagens e toda efervescência e contradição ser entendido como uma opinião prévia, que se problematiza

universidade
implícita no texto da cultura brasileira. Segundo Gruziski por um julgamento antecipado, sem base de juízos de valor, a
(2001, p.61) “é a presença do aleatório e da incerteza que respeito do Brasil de forma discriminatória.
confere às mestiçagens seu caráter impalpável e paralisa nos- O discurso cinematográfico deste filme infelizmente pos-
sos esforços de compreensão”. sibilita e auxilia na (des)construção da realidade socio-
Toda indeterminação, toda a imprevisibilidade, toda essa cultural do Brasil, ao dar visibilidade apenas a questão da
sumário multiplicidade criativa cujo ambiente trasborda energia, foi violência exacerbada. A contribuição negativa do filme está
ou ainda é, incompreendido e visto pelos racionalistas euro- no fato deste divulgar crenças e atitudes preconceituosas que
peus e norte-americanos como efeito de atraso e essa incom- vão sendo pouco a pouco fixadas e perpetuadas na memória im-
preensão acerca do Brasil gera preconceitos e estereótipos de plícita e explícita dos indivíduos.

próxima
toda ordem.
Conclusão
3 – Conseqüências da estigmatização
Em uma perspectiva genérica tentou-se apresentar neste
O termo estigma provém do latim stígma, que deriva do trabalho algumas formas de estereótipos que o filme “os tu-
grego stígma, e que significa cicatrizou marca. O termo este- ristas” divulgaram acerca do povo brasileiro. Tal visão pode
anterior reótipo é formado por duas palavras gregas, stereos, que sig- despertar no receptor da imagem, diferenciadas percepções,
nifica rígido, e túpos, que significa traço. Estigma pode ser associações, interpretações, posicionamentos e atitudes em
então, qualquer atributo ou característica que desclassifica relação ao país. Diante desta análise pretendemos criticar

354
toda forma de preconceito. Nacional de Bellas Artes, Habana, Cuba, 26-28 de jun de 1991

Nossa intenção foi trazer ao diálogo tais assuntos na ten- • RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. Com-
panhia das Letras: São Paulo, 1995.
tativa também de conhecermos melhor o Brasil e sua gama de • SILVEIRA. Isabel Orestes. A Força da Imagem Televisiva: Representação Grá-
diversidade. Entendemos que retratar em diferentes linguagens fica da Criança (pág. 87 a 102). In: FERREIRA Dina Maria Machado Andréa
Martins (Org). Imagens o que fazem e significam. São Paulo: Annablume,
nossa elástica, frágil, desarticulada, controversa, dinâmica 2010.
e conflitante sociedade que se encontra ainda hoje recheadas •

de contrastes e fragilidades, não é tarefa fácil.


Em virtude de o nosso contexto sociocultural ser diverso,
múltiplo e plural, pode gerar discriminação que impede para
muitos, a compreensão da cultura brasileira. O país pode ser
percebido como espaço contraditório em que participam a de-
capa sordem, as tensões, os conflitos, as carências, o subversivo
e os problemas sociais; mas também os elementos lúdicos, as
efervescências culturais, as heterogeneidades, os processos
dinâmicos que se renovam, mesclam e se envolvem.
Dessa forma a imagem do brasileiro no exterior se dá num

universidade
caminho complexo envolto na pratica social da cultura, que
não possui uma configuração definida.
Portanto, nosso diálogo sobre os estereótipos e cinema e
acerca das hipóteses sobre a visão do norte americano sobre o
Brasil, não se esgotam, ao contrário, abrem-se, projetam-se,
sumário desdobram-se para que possam ser retomados em novos e criati-
vos sentidos, em outros saberes e contágios.

Referências Bibliográficas

próxima
• GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. Trad. Rosa Freire d’Aguiar. São
Paulo: Companhia das Letras, 2001.
• GOFFMAN. Erving. Estigma e Identidade Social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1978.
• NOVAES. Adauto. A Imagem e o Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
• PINHEIRO, Amálio. Mestiçagem latino-americana. Entrevista para o Jor-
nal do povo. (10/05/2008 16:57). Disponível em: http://barroco-mestico.

anterior
blogspot.com/2008/05/entrevista-do-amlio-para-o-jornal-o.html. Acesso em:
01/06/2008.
• __________________________________. Paraíso: Paisagem, Ciência, Erotismo.
Primeiro Colóquio Internacional. Paradiso: treinta años de um mito. Museo

355
possibilitando a captura de imagens estáticas e cinéticas
PROCESSOS E PROCEDIMENTOS NO ATELIER- para posterior trabalho em softwares já existentes de acordo
LABORATÓRIO DO ARTISTA-CINEASTA com os insights criativos do artista. (Softwares de análise
ROTEIRO DE CRIAÇÃO DE MÁQUINAS. e manipulação de imagens para imagens estáticas e softwares
de composição de vídeo para imagens capturadas de forma ci-
nética).
Após as pesquisas tentarei a produção e proteção da pro-
priedade intelectual dos protótipos.
Palavras chave: 1. Design 2. Artes Visuais. 3. Atelier-
C élio M artins da M atta -Laboratório
Aluno do programa de Pós-Graduação do Mestrado do Instituto de Artes. Unesp.

capa
- www.celiomatta.com - zcelio@yahoo.com.br
Abstract:

Resumo The research aims to demonstrate the importance of an en-


vironment in which the artist can do research and experimen-
A pesquisa visa demonstrar a importância de um ambiente tation, through more empirical, can reach some conclusions or
no qual o artista pesquisador possa fazer experimentações e, thought or feeling that he is seeking, sensing or analyzing.

universidade
pela via mais empírica, possa chegar a conclusões de algum I’m leaving early, thinking that would require an environment
ou pensamento ou sentimento a que ele esteja procurando, sen- where artists could work their creative concepts of visual
tindo ou analisando. Estou partindo antecipadamente, do pen- art in two and three dimensions for use in film arts.
samento de que seria necessário um ambiente onde o artista In my research, I seek also to promote and create an envi-
pudesse trabalhar seus conceitos criativos de artes visuais
sumário
ronment that promotes better quality and capacity studies for
em duas e três dimensões para utilização de artes em cinema. artists, filmmakers, organized and being used as a laboratory
Em minha pesquisa, procuro ainda promover e criar esse for artists to experiment with their studies to capture the
ambiente que promova melhor qualidade e capacidade de estudos images as much kinetic as static.
para artistas-cineastas, sendo utilizado e organizado como um To do this, try the design, implementation and evaluation

próxima
laboratório de experimentação de artistas para seus estudos of prototypes (machines) for capturing images.
na captura das imagens tanto cinéticas como estáticas. So I can make the development of a collection machine, I
Para tal, procuro a elaboração, aplicação e avaliação de must clarify at the outset that this machinery does not pri-
protótipos (máquinas) para captura de imagens. marily function to replace manual labor, but possibly reduce
Para que eu possa fazer o desenvolvimento de uma coleção it (one of the concepts of machinery), enabling the capture
anterior máquinas, devo esclarecer de início, que essa maquinaria não of still images and kinetics for further work on existing sof-
tem como principal função substituir o trabalho manual, mas tware according to the artist’s creative insights. (Software
possivelmente reduzi-lo (um dos conceitos de maquinismo), for analysis and manipulation of images for still images and

356
video compositing software for captured images kinetics). A intenção deste trabalho é propiciar as bases práticas
After the polls and try to produce intellectual property e teórico-metodológicas para a criação de um ambiente propí-
protection of the prototypes. cio para pesquisas científicas, mesmo que este ainda seja um
projeto de ateliê-laboratório não finalizado. Todo o roteiro
Key words 1. Design 2.Visual Arts. 3. Atelier-Lab-Film- desta pesquisa continua válida para que possa ser seguida ou
maker para que sirva de base a montagem e/ou planejamento na cria-
ção de espaços como esse, bem como a construção de itens que
INTRODUÇÃO facilite a captura de imagens estáticas e cinéticas.

Ao meu entender, todo artista pesquisador necessita de um Método:


ambiente para que possa criar, representar e elaborar a sua

capa
arte. Ao mesmo tempo em que ele deve fazer experimentações A maneira que acredito ser a mais específica para se con-
desta arte e para testar, pela via mais empírica, seus meca- seguir criar um espaço ou adaptar um espaço existente para
nismos de trabalho e que possa chegar a conclusões de algum realizar essas experiências seria me embasar nas experiências
ou pensamento ou sentimento a que ele esteja procurando, sen- de fato; experiências estas que serão realizadas mediante a
tindo ou analisando. utilização dos conhecimentos advindos a formação pretérita,
Partindo do pensamento de que seria necessário um ambien- bem como a que venho adquirindo; além disso, agrego os dias

universidade te onde o artista pudesse trabalhar seus conceitos criativos testes e simulações de ambientes, que me permitiram (e ainda
de artes visuais em duas e três dimensões para utilização de permitem) estudar formas de se capturar as imagens de diver-
artes em cinema, meu presente trabalho estuda um ambiente que sas maneiras possíveis dentro de um atelier-laboratório em
promova melhor qualidade e capacidade de estudos para artis- construção no Instituto de Artes da Unesp (Universidade Júlio

sumário
tas-cineastas, sendo utilizado e organizado como um laborató- de Mesquita Filho).
rio de experimentação do artista para seus estudos na captura Para estudar este fato, a maneira proposta segue a idéia
das imagens tanto cinéticas como estáticas. de inventividade contínua segundo Pareyson (1993).
Para tal exercício, é necessário a elaboração, aplicação, Procurando desenvolver equipamentos (máquinas) para aten-
desenvolvimento e avaliação de uma coleção de máquinas para der a necessidade de artistas em busca de capturar suas ima-

próxima captura de imagens – Figuras 01 e 02. gens e realizar suas experimentações em um atelier-laborató-
Essas imagens estáticas e cinéticas serão utilizadas para rio.
parte posterior do trabalho em softwares já existentes. (Sof- É de extrema importância salientar que o principal não é
twares de análise e manipulação de imagens para imagens está- a construção em si de um ateliê laboratório, ou de um equi-
ticas e softwares de composição de vídeo para imagens captu- pamento específico, mas sim expor o conhecimento dos testes
anterior radas de forma cinética). acessíveis para todos aqueles que desejem construir seu pró-
prio ateliê laboratório e ter acesso a aplicação da rotina de
Objetivo: criação envolvida no assunto de uma maneira geral.

357
Este trabalho contará também com as seguintes obras que Poderia se entender por isso certa falta de critérios para
forneceram o arcabouço teórico-metodológico para o desenvol- se criar, testar e promover um ambiente que promova melhor
vimento e estruturação da pesquisa: Zamboni (2001, .Aumont qualidade e capacidade de estudos para artistas-cineastas.
(1993), Williams (2009) e Neufert (1987) Mas agregar quaisquer conhecimentos sobre o assunto ainda
pouco discutido irá estimular a experimentação dos artistas
Desenvolvimento da Pesquisa: para seus estudos tanto captura das imagens tanto cinéticas
como estáticas (neste exemplo), como em outras áreas.
Antes de qualquer conclusão precipitada que se possa le-
Para se conseguir um desenvolvimento satisfatório de um
var essa experiência como tentativa de erro e acerto, salien-
roteiro para apresentação de objetos novos, a utilização de
to que todo projeto tem uma metodologia e a essa metodologia
diversos conhecimentos acadêmicos se faz essencial. Veja o
é agregado o valor das disciplinas já estudas. Mas também é
exemplo:
capa
verdade que o mesmo poderá ter conhecimentos agregados por
Ao se projetar ou desenvolver algo que será utilizado para
Serendipidade, (também conhecido como Serendipismo, Serendip-
atender a necessidade de outro artista, o artista criador
tismo ou ainda Serendipitia, que é um neologismo que se refere
deve no mínimo ter os conhecimentos de disciplinas que envol-
às descobertas afortunadas feitas, aparentemente, por acaso),
vem essa criação. Na minha pesquisa, por exemplo, poderia se
é que é interessante se entender que história da ciência está
acreditar que conhecendo as disciplinas de arte e de cinema,
repleta de casos que podem ser classificados como serendipis-

universidade
eu conseguiria desenvolver os artefatos deste atelier-labora-
mo, então caso ocorra, o fato será também considerado e não
tório para a solução de captura de imagem, porque preciso de
descartado. Qualquer trabalho de roteiro para a apresentação
um objeto artístico que atenda ao cineasta. Isso é um engano.
de objetos em criação também agrega valores por serendipismo.
Para se projetar um artefato para um artista-cineasta, ao
O conceito original de serendipismo foi muito usado, em
se avaliar suas necessidades, somente com uma gama variada de
sumário
sua origem. Nos dias de hoje, é considerado como uma forma
conhecimento em disciplinas, o artista que promove a solução
especial de criatividade, ou uma das muitas técnicas de de-
pode resolver à problemática. Pois, acredito que o pesqui-
senvolvimento do potencial criativo de uma pessoa adulta, que
sador dever procurar ter os conhecimentos mais aprofundados
alia perseverança, inteligência e senso de observação.
possíveis de disciplinas de Design (como desenho técnico,
O cientista francês Louis Pasteur dizia: “O acaso só fa-

próxima
representação gráfica, projeto de produto, ergonomia, entre
vorece a mente preparada”. Artistas criados, avaliados e
outras), de Engenharia (como materiais, resistência dos ma-
questionados em um atelier-laboratório à medida que as aulas
teriais, entre outras) e Arquitetura (como projeto, instala-
e experiências forem sendo ministradas poderão contribuir me-
ções, ambientação, entre outras) e outras grandes áreas.
todologicamente para a própria causa, ou seja, para a criação
No caso de minha pesquisa, como eu poderia realizar um
de um método de descoberta.
desenho de uma máquina, sem conhecimento em desenho técnico?
anterior Assim como na já citada “Teoria da Formatividade” de Luigi
E mesmo conhecendo desenho técnico, de nada me valeria se não
Pareyson que defendia o fazer, inventando o modo de fazer e
tivesse aplicação de ergonomia e ainda aliar ao modelo os cor-
que fora do fazer, nada há a se fazer.

358
retos tipos e especificações dos diversos materiais. Pensando criado, a máquina CM2303 (figuras 01 e 02). Mas somente obtive
inversamente, ainda teria que ajustar os desenhos após ana- o roteiro a partir da problemática criada no ato do desenvol-
lisar a anatomia e ergonomia. A análise e aplicação de todos vimento do artefato.
esses conhecimentos não ocorrem mediante a um roteiro prévio
conhecido, o mesmo é construído à medida que os processos e
procedimentos caminham.
Algo que considero imprescindível é o conhecimento em vi-
sualização de objetos em duas e três dimensões, além de téc-
nicas tradicionais, a utilização de softwares para a repre-
sentação dos insights artísticos. Qual seria a função de um
artista contemporâneo que não consegue explicitar suas cria-
capa ções? Que não consegue se expressar apresentando aos inte-
ressados seus conhecimentos? Somente um roteiro escrito sem a Figura 1 -
composição e detalhamento artístico e técnico de um referido Modelo de
objeto (artefato) dificulta o entendimento. Artefato
Tenho a sensação de que o verdadeiro artista contemporâ- Criado

universidade
neo, tem dentro de suas obrigações a resolução de problemas
diversos e mesmo conhecendo diversas disciplinas acadêmicas
(sabendo que disciplinas escolares utilizam muito daquilo que
é produzido pelas disciplinas cientificas e que tem suas di-
ferenças), o que é produzido pelo homem em termos de conhe-
sumário cimento e estudos ainda pode não ser satisfatório para o de-
senvolvimento de um ou outro projeto porque esse conhecimento
para o artista não é linear ou não é facilmente interpretado,
daí a dificuldade da utilização de roteiros previamente esta-

próxima
belecidos para novas criações.
Para se exibir uma idéia, se busca um roteiro, mas não
necessariamente prévio, ele é criado juntamente com a cria-
ção. Para o estudo de um novo artefato, roteirizei uma série
Figura 2-
de problemáticas que envolviam um tema de captura de objeto
Modelo de
tridimensional estático. Para a criação deste artefato, se-
anterior gui um roteiro extenso, que exibirei em outra oportunidade,
Artefato
Criado
me deterei em explicitar o roteiro para a animação do objeto

359
CONSIDERAÇÕES FINAIS: mente com a criação.
Acredito firmemente que não existe roteiro pronto, padrão
Para realizar a apresentação de um objeto que não existe e ideal para exibição de estudos de novos objetos (como as
fisicamente, julguei mais conveniente apresentar uma animação máquinas do exemplo), penso que roteirizei essa exibição em
após a modelagem desse objeto em três dimensões em software animação com base nos processos e procedimentos que deveriam
específico (já se inicia o roteiro). Em seguida, procurei ve- ser apresentados para resolver uma série de problemáticas que
rificar o que deveria ser mostrado do objeto (máquina) cria- envolviam um tema de captura de objeto tridimensional estáti-
do. Para tal, pensei como se quem contemplasse o objeto fos- co e que foram surgindo à medida que o trabalho foi avançando.
se um cliente de produto, um indivíduo que pudesse com essa
animação ter a condição de perceber o seu funcionamento e se BIBLIOGRAFIA:
possível construir um. • ZAMBONI, Silvio. A pesquisa em arte: um paralelo entre a arte e a ciência.
capa Então ao perceber essa necessidade roteirizei de início: São Paulo: Editores Associados, 2001.
• NEUFERT. A Arte de projetar em Arquitetura. Tradução da 21.ª Edição Alemã
mostrar o objeto em planos gerais, depois mudaria a câmera
– 1987
(virtual) para uma visão que pudesse me mostrar os movimentos • WILLIAMS, Richard. The Animator´s Survival Kit. Faber and Faber. New York
do objeto que já dariam a real percepção de seus movimentos 2009.
• AUMONT, Jacques. A Imagem. Campinas: Papirus, 1993.
e segui com um roteiro de memória. Ajustei a câmera para mos-
• PAREYSON, L. Estética – Teoria da Formatividade. Petrópolis: Vozes, 1993
trar outros movimentos e percebi que ainda precisaria mostrar
universidade
(Trad. Ephraim Ferreira Alves).
a câmera do artefato.
Percebi que teria que ajustar o roteiro e ao invés de ape-
nas uma, mais animações deveriam ser realizadas para iniciar
a exibição desse artefato.
sumário Seguindo a linha de raciocínio que surgiu a partir da pri-
meira, elaborei outra animação com uma câmera fixa no objeto
criado para que se se percebe como esse artefato novo captu-
raria as imagens.
Do roteiro inicial, já havia modificado muito. Já utili-
próxima zava mais de uma animação e diversas câmeras diferentes da
única pensada inicialmente.
Ainda com testes, percebi que a melhor maneira seria uti-
lizar duas câmeras animadas simultaneamente para conseguir
passar a sensação do funcionamento do artefato mostrado.
anterior Assim, percebo que na minha visão, exibir uma idéia, não
necessariamente exige um roteiro prévio, ele é criado junta-

360
gether six actors-writers for a “collaborative process”. This
DESENVOLVIMENTO DE UM EPISÓDIO is aterm borrowed from the theater, to say the creation of
DE SITUATION COMEDY. “situations of the sitcom” (sic) would be, basically, through
improvisation. The scenes created are diagrammed in order to
enhance the comedy throughout the episode. The material re-
corded andorganized will serve as demonstration (demo) part
of any larger project.
Key words: situation comedy, Screenplay, production
E zequiel de S ouza G arrido P ordeus A situation comedy (sitcom) é um gênero audiovisual muito
Graduando em Audiovisual pela Universidade de São Paulo - ezequielsgp@gmail.
com
difundido e prestigiado na televisão contemporânea. A gran-
de maioria das produções deste tipo se concentra nos Estados
capa F ernando L uis C azarotto B erlezzi
Administrador e estudante de Publicidade, Propaganda e Criação do Mackenzie.
Unidos, onde também se centralizam os estudos acadêmicos so-
Possui trabalhos desenvolvidos ná área de roteiro de ficção e poesia além de bre elas. No Brasil essas séries importadas são geralmente
artigos científicos na área de marketing. Editor de periódico e blog. - ber-
lezzi@hotmai.com
transmitidas por canais pagos (não acessados pela maioria da
população) e, para se ter uma ideia, não existe um livro ou

RESUMO tese sobre o assunto na Biblioteca da Escola de Comunicações

universidade
e Artes da USP, onde a graduação para profissionais de tele-
A proposta deste artigo diz respeito às etapas do desen- visão tem existido há muitas décadas.
volvimento de um episódio de situation comedy. Partindo de As características da sitcom são: apoio principal no diá-
uma ideia inicial e coordenação que pretendemos desempenhar, logo cotidiano e nonsense (as falas tomam o primeiro plano, as
a sugestão é reunir seis roteiristas-atores para um “processo ações físicas apenas as redundam; o espectador conhece todas
sumário colaborativo”. Este é um termo, emprestado do teatro, para as intenções), seis personagens fixos, intercalação de três
dizer que a criação das “situações da sitcom” (sic) se dará, histórias, maioria das gravações em estúdios (repetição de
basicamente, por meio da improvisação. As cenas criadas serão locações, foco em uma delas: a sala de estar), cenas curtas
diagramadas de forma a intensificar a comédia ao longo do epi- (2min.) e cada vez mais engraçadas ao longo do episódio (per-

próxima
sódio. O material gravado e organizado servirá como demons- sonagem vai entrando mais fundo no beco sem saída), em torno
tração (demo) parcial de um eventual projeto maior. de um tema e problema específicos.
Palavras chave: situation comedy, roteiro, produção. Exemplos de sitcoms são: Friends, Todo mundo odeia o Chris
(Everybody hates Chris), Sienfeld, Two and a half men, The big
Abstract bang theory, Scrubs, Drake e Josh, Eu, a patroa e as crianças
(Wife and kids), Três é demais (Full House), etc. No nosso
anterior This article concerns the development stages of an episo-
país, as realizações que se aproximaram desse estilo foram
de of situation comedy. Starting from an initial idea that we
“Comédia da vida privada”, “Sai de baixo”, “Toma lá, dá cá”,
want to play and coordination, the suggestion is to bring to-

361
“Os normais” e a atual “A grande família” da Rede Globo. lidade, ambições e desejos, frustrações, complexos, tempera-
Em Hollywood costuma-se trabalhar com uma equipe de mento, atitude, superstições, imaginação.
roteiro, especializada em seriados. O conjunto segue algumas Etapa 2. Criação de objetos.
diretrizes e é coordenado de forma a gerar uma criação orga- Cada ator-roteirista fará uma ficha com elementos que po-
nizada, que atenda umas e subverta outras conhecidas fórmu- dem interagir com o personagem ou ser objeto de disputa entre
las do que chamamos Cinema Clássico (BORDWEL et al., 1985): dois deles.
reversão de expectativas, traçado de pares românticos, su- Etapa 3. Criação de locações.
perioridade do espectador em relação aos personagens e seus Considerando que uma das locações é a sala de estar e com
fracassos, comédia de costumes, paródia de situações sérias, base nos personagens criados, o grupo fará uma “tempestade de
disposição de cenas de forma a chegar a um clímax, etc. idéias” (brainstorming) sobre os possíveis espaços em que a
sitcom poderá ser encenada.
capa Recriando Etapa 4. Definição do tema.
Citando alguns modelos, em Friends o assunto principal
A proposta deste artigo diz respeito às etapas do desen-
são as relações amorosas dos personagens, em Seinfeld se dis-
volvimento de um episódio de situation comedy. Partindo de
cutem os encontros sexuais deles e em Três é demais são os
uma ideia inicial e coordenação que pretendemos desempenhar,
conflitos familiares que tomam a cena. É muito importante que
a sugestão é reunir seis roteiristas-atores para um “processo

universidade
o grupo defina uma questão, pois a sitcom explora as diversas
colaborativo”. Este é um termo, emprestado do teatro, para
variações de uma problemática, disputada conforme o ponto de
dizer que a criação das “situações da sitcom” (sic) se dará,
vista de cada um dos protagonistas.
basicamente, por meio da improvisação. As cenas criadas serão
Nosso parecer é que a sitcom explore o cotidiano de um
diagramadas de forma a intensificar a comédia ao longo do epi-
grupo de universitários que residem na mesma república (mo-
sódio. O material gravado e organizado servirá como demons-
sumário tração (demo) parcial de um eventual projeto maior.
radia de estudantes). Assim, a temática poderá variar, indo
de dificuldades de ser empregado a problemas de convivência,
Etapa 1. Criação dos seis personagens, seus objetivos e
passando pela vida sentimental.
limitações.
Etapa 5. Improvisação.
Utilizando-nos do modelo de ficha biográfica de Lajos

próxima
Cada roteirista-ator escolhe interpretar um dos perso-
Egri (2007), cada ator-roteirista criará um personagem com os
nagens criados. Escolhe-se um recorte da abordagem e há uma
dados abaixo que forem úteis para a trama:
conversa sobre ela (ex. dia-a-dia dos estudantes durante a
FISIOLOGIA — Sexo, idade, altura, peso, cor do cabelo e
greve: têm que cozinhar pra si mesmos, ficarem cansados de an-
dos olhos, pele, postura, aparência, estilo, saúde, marcas,
dar a pé, usar internet em casa, etc.). Depois, cada interação
anormalidade, hereditariedade, pertences.
dura dois minutos e vai trocando os atores e seu número, isto
anterior SOCIOLOGIA — Origem e sotaque, classe social, ocupação,
é, há vezes em que dois personagens conversam e há momentos
educação, vida familiar, vida sexual, religião, comunidade
em que os seis personagens estão em cena. As primeiras impro-
(tribo), Q.I., filiações políticas, diversão, leituras, mora-

362
visações dizem qual o caminho que as outras devem seguir. [As interações (A, B e C) intercalam entre si, isto é, não
Etapa 6. Diagramação. há duas cenas do mesmo núcleo juntas].
As situações geradas a partir das interações serão regis- INTERVALO.
tradas por uma câmera, principalmente os insights de diálogos Ato 2 — O ato “Ó meu Deus” é aquele no qual o personagem
engraçados. provavelmente não vai conseguir alcançar o objetivo, ou, ao
Cada cena será reduzida a uma frase, uma sinopse e, se menos o espectador pensa em como ele vai conseguir escapar. É
considerada boa, será reinterpretada para eventuais melho- a parte mais importante, porque se for bem feito o espectador
rias. As falas serão escritas, discutidas e ensaiadas para vai querer ir até o fim.
uma nova gravação. O grupo B usualmente apresenta personagens envolvidos em
As sinopses das sequencias serão organizadas no quadro uma questão pessoal (2 cenas).
anexo, em que, a cada três espaços na vertical, apenas um será O núcleo C é geralmente mais leve e usada como um alívio
capa preenchido com uma das cenas. A lista é autoexplicativa quan- cômico. É o mais engraçado (2 cenas).
to à estrutura que o episódio deve seguir, mas, transcreverei A história A é o tema predominante (um problema que afeta
aqui, para esclarecer melhor ainda (FIELD, S., 1995; THOMP- toda a pensão): Obrigatoriamente na primeira e na última cena
SON, K., 2003; DANIELS, F., 2005). de cada bloco (3 cenas).
“Teaser” — mostra qual é o problema do personagem, o que [Momento crucial da história: é quando o protagonista da

universidade
ele quer: uma das cenas improvisadas introduzirá a questão de narrativa A se acha no ponto mais crítico da sua problemáti-
um dos atores. ca. Frequentemente, ele tem que fazer uma decisão que levará
Créditos. a história a uma nova direção. A angústia deverá ser tal que
Ato 1 — Aqui a complicação começa, é o momento “ops”. Um o público queira ver o que vai acontecer] — A improvisação do
evento dramático ocorre que se interpõe ao objetivo do per- processo criativo não é totalmente livre, tendo em vista que
sumário sonagem. tem que levar o personagem a uma situação-limite, inevitável,
A história A é o tema predominante (um problema que afeta da qual ele não pode escapar. Ou seja, a ideia proposta no co-
toda a pensão): Obrigatoriamente na primeira e na última cena meço tem que ser levada às últimas consequências dramáticas,
de cada bloco (3 cenas). isto é, cômicas.

próxima
[Já nas primeiras cenas é preciso dizer ao espectador so- INTERVALO.
bre o que e quem as histórias serão, qual é o conflito e os Ato 3 — As coisas começam a melhorar e a possibilidade de
objetivos. Todas as narrativas do episódio precisam começar a uma resolução é introduzida. Continuar a escalar é perigoso
se desenrolar logo no começo dele]. porque a resolução pode parecer precipitada se deixada para
O grupo B usualmente apresenta personagens envolvidos em mais tarde.
uma questão pessoal (2 cenas). [Ponto mediano: Logo depois do intervalo, a história terá
anterior O núcleo C é geralmente mais leve e usada como um alívio sua maior virada. A primeira cena dirá sobre o que o segundo
cômico. É o mais engraçado (2 cenas). ato será (da perspectiva do personagem principal, do grupo

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A). Cada cena depois desta lançará mais um obstáculo no ca- Deste modo, o processo colaborativo completa seu ciclo,
minho dos personagens em cada uma das histórias, fazendo com seis roteiristas-atores criam e interpretam seis personagens.
que tudo se torne mais engraçado a cada momento]. As improvisações de dois minutos são gravadas, melhoradas e
A história A é o tema predominante (um problema que afeta dispostas de forma a aumentar o impacto cômico das falas. O
toda a pensão): Obrigatoriamente na primeira e na última cena resultado é um episódio de sitcom.
de cada bloco (3 cenas).
O grupo B usualmente apresenta personagens envolvidos em Bibliografia
uma questão pessoal (2 cenas). • BORDWELL, D. The Classical Style, 1917-60. In: STAIGER, J.; THOMPSON, K.;
BORDWELL, D. The Classical Hollywood Cinema: Film Style & Mode of Produc-
O núcleo C é geralmente mais leve e usada como um alívio tion to 1960. New York: Columbia University Press, 1985.
cômico. É o mais engraçado (2 cenas). • EGRI, L. Character’s biography table [1942] In: The Art of Dramatic Wri-
ting. Londres: Sir Issac Pitman & Sons, 1950, 52-57. Tradução e apresen-
INTERVALO.
capa
tação: MOREIRA, Roberto Franco, 2007.
Ato 4 – Uau! A crise se resolveu. • FIELD, S. Manual Do Roteiro: Os Fundamentos do Texto Cinematográfico. São
A história A é o tema predominante (um problema que afeta Paulo: Objetiva, 1995;
• THOMPSON, K. Storytelling in Film and Television. Cambridge, Mass.: Har-
toda a pensão): Obrigatoriamente na primeira e na última cena vard University Press, 2003;
de cada bloco (3 cenas). • DANIELS, Frank. Structural narration in Movie and TV. Los Angeles: USC,
O grupo B usualmente apresenta personagens envolvidos em 2005.

universidade
uma questão pessoal (2 cenas).
O núcleo C é geralmente mais leve e usada como um alívio
cômico. É o mais engraçado (2 cenas).
[Clímax: Tudo está “enrolado” nesta cena. Faça-a tão cho-
cante, engraçada e imprevisível quanto você possa ou não terá
sumário audiência na próxima semana].
[Final: Está é a parte que finaliza e traz todas as coisas
a uma conclusão. Às vezes, esta cena passa enquanto os crédi-
tos finais estão rolando].

próxima Últimas palavras

Com o auxílio da estrutura proposta, o episódio será mais


bem visualizado pelo grupo desde o princípio da encenação e
as cenas gravadas serão colocadas (editadas) na ordem em que
anterior aparecerem na tabela, pois sua disposição segue a formatação
dos padrões internacionais de série televisiva, um episódio
tendo 1h de duração (incluindo intervalos).

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