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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

Escola de Belas Artes

ESTUDOS PARA

INTEGRAÇÃO VOZ–MOVIMENTO CORPORAL

NO TRABALHO DO ATOR CONTEMPORÂNEO

Sandra Parra Furlanete

Belo Horizonte

2007
Sandra Parra Furlanete

ESTUDOS PARA INTEGRAÇÃO VOZ–MOVIMENTO

CORPORAL NO TRABALHO DO ATOR CONTEMPORÂNEO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Artes da Escola de Belas Artes da
Universidade Federal de Minas Gerais, como
exigência parcial para obtenção do título de Mestre
em Artes

Área de Concentração: Arte e Tecnologia da Imagem

Orientador: Prof. Dr. Maurílio Andrade Rocha


Co-Orientadora: Profª Dra. Rosa Maria Hercoles
Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo

Belo Horizonte
Escola de Belas Artes da UFMG
2007
Furlanete, Sandra Parra, 1974-
Estudos para integração voz–movimento corporal no trabalho
do ator contemporâneo / Sandra Parra Furlanete. – 2007.
135 f. : il. -

Orientador: Maurílio Andrade Rocha


Co-orientadora: Rosa Maria Hercoles

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Minas


Gerais, Escola de Belas Artes.
1. Expressão corporal – Teses 2. Grotowski, Jerzy, 1933-
1999 - Crítica e interpretação – Teses 3. Representação teatral –
Teses 4. Expressão Vocal (encenação) – Teses 5. Ciência
cognitiva – Teses I. Rocha, Maurílio Andrade, 1963- II.
Hercoles, Rosa Maria III. Universidade Federal de Minas Gerais.
Escola de Belas Artes IV. Título.

CDD: 792.028
Sandra Parra Furlanete
Estudos para Integração Voz–Movimento Corporal no Trabalho do Ator
Contemporâneo

Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Artes da


Universidade Federal de Minas Gerais, área de concentração Arte e
Tecnologia da Imagem, linha de pesquisa Criação e Crítica da Imagem em
Movimento, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em
Artes.
Belo Horizonte, 2007.

______________________________________
prof. dr. Maurílio Andrade Rocha (orientador) – UFMG

______________________________________
profª. drª. Rosa Maria Hercoles (co-orientadora)– PUC-SP

______________________________________
prof. dr. Ernani de Castro Maletta – UFMG

______________________________________
prof. dr. Sérgio Dias Cirino – FAE/ UFMG
AGRADECIMENTOS

a Maurílio Rocha, meu orientador, que me recebeu, me guiou e me apoiou


nesta pós-graduação;
a Rosa Hercoles, minha orientadora, pelas conversas fundamentais e pelas
aulas de pirataria;
a Ernani Maletta, cujas intervenções sempre instigantes me forneceram
vários dos insights que impulsionaram este trabalho;
a Fernando Mencarelli, por sua escuta atenta e observações sempre
generosas e pertinentes;
à profa. Lucia Pimentel, pelo seu apoio e atenção;
a Tarcísio dos Santos Ramos, pela primeira dica e incentivo a que eu
entrasse neste mestrado;
a Luís Carlos Garrocho, pelo apoio, pela troca e pelas provocações;
aos meus colegas de mestrado, que me apóiam, incentivam, me dão
ouvidos, ombro, colo e me fazem rir das angústias desse percurso;
a Madalena Bernardes, pela generosidade e genialidade que iluminaram
meu trabalho em tantos sentidos;
a Cleide Campelo, pela amizade valiosa e apoio constante;
à minha família, pelo apoio constante, segurando todas as minhas barras;
ao Zé (José Renato Fonseca de Almeida), meu amigo, pela dica an passant
que se tornou central nesse trabalho (valeu, fio!);
aos meus colegas da Ufop, pela troca de idéias, apoio, amizade, boas
risadas, esclarecimentos, tudo;
aos meus alunos, que fazem todo esse trabalho ter sentido.
já que sentir é primeiro
quem presta alguma atenção
à sintaxe das coisas
nunca há-de beijar-te por inteiro;

por inteiro ensandecer


enquanto a Primavera está no mundo
o meu sangue aprova,
e beijos são melhor fado
que sabedoria
senhora eu juro por toda flor. Não
chores
–o melhor movimento do meu cérebro
vale menos que
o teu palpitar de pálpebras que diz

somos um para o outro: então


ri, reclinada nos meus braços
que a vida não é um parágrafo

E a morte julgo nenhum parêntesis

e.e. cummings
RESUMO

Esta dissertação tem como objetivo propor uma nova abordagem à

relação voz-movimento corporal, diversa do modo como esta vem sendo

tratada no âmbito da criação teatral. Essa abordagem diferenciada diz

respeito ao reconhecimento do padrão de pensamento dualista embutido

no modo como tratamos essa questão em nossa prática teatral, e a busca

da superação desse modelo. Para tanto, trazemos as perspectivas da

filosofia, das ciências cognitivas – principalmente nos ramos da filosofia da

mente, neurociências e lingüística cognitiva – da fisiologia do movimento e

da física do som; tais campos do conhecimento são postos em diálogo com

o trabalho de Jerzy Grotowski, e sua busca pela integralidade do ator em

criação. Esse diálogo conduz esta pesquisa a investigar o papel da

imaginação e da metáfora na produção da voz e do movimento corporal,

mostrando caminhos para um entendimento da integralidade de ambos.

palavras-chave: integração voz-movimento corporal; Grotowski; ciências

cognitivas.
ABSTRACT

This work proposes a new approach to voice-body movement

connection, regarding the way it has been treated in theatrical creation

level. This different looking is about recognition of a dualistic thinking

standard fitted in how we deal with this issue in our theatrical practice,

and the search of overcoming this model. To do so, we bring the

perspectives from philosophy, cognitive sciences – mind philosophy,

neurosciences and cognitive linguistics – movement physiology and sound

physics; that knowledge fields dialogues with Jerzy Grotowski’s work and

his search for actor’s integrality in creation. That dialogue leads this

research to examine the role of imagination and metaphor in voice and

movement production, showing ways to construct an understanding the

entirety of both.

key words: voice-body movement connection; Grotowski; cognitive

sciences.
SUMÁRIO

Apresentação ..............................................................................08

Capítulo I – Embasamento Teórico-Filosófico .....................13


1.1 – A Filosofia do Resgate do Corpo .................................13
1.2 – As Ciências Cognitivas ...............................................24

Capítulo II – Grotowski ............................................................38


2.1 – Encontro, Ato e Corpo-Vida ...........................................38
2.2 – Integridade como Caminho para o Ato: movimento
corporal e voz ...............................................................60

Capítulo III – Conexões ............................................................77


3.1 – Vibração, Imaginação e Metáfora ...................................77

Considerações Finais ..............................................................114

Referências ...............................................................................129
Apresentação

Em nosso trabalho artístico, vimos buscando, já há vários anos,

uma poética cênica de comunhão entre ator e espectador – uma cena que

possa se construir na relação entre ator e espectador. E percebemos, a

uma determinada altura de nosso trabalho, que o modo como entendemos

a relação entre movimento corporal e voz são determinantes no modo como

concebemos a nossa criação. Essa conclusão advém da percepção de que

nossos movimentos e nossa voz são não apenas meio de expressão

material de uma idéia, mas geradores de idéia em si – e assim o

entendimento e a relação prática que o criador tenha com esses elementos

irão definir grande parte da sua criação artística.

Em nossas pesquisas sobre a relação intrínseca entre voz e

movimento corporal, percebemos que, antes de discutirmos modos,

formas, exercícios – ou seja, o como – fazia-se necessário discutir o quê é

essa relação voz x movimento corporal – ou seja, como se operam as

relações entre ambos, como essa operação tem sido vista por nós até hoje e

como podemos passar a abordá-la para que ela se potencialize – pois,

como sabemos, não é raro, em nenhuma das ciências conhecidas, que a

técnica necessite de um aporte filosófico-científico para que haja evolução.


Assim, esta pesquisa parte da seguinte pergunta: em que instância

do corpo se dá a integração movimento corporal-voz no trabalho do ator?

Neste trabalho propomos que, para responder a essa pergunta, será

necessário antes de tudo buscar a superação do modelo dualista de

oposição entre corpo e mente, no qual o pensamento ocidental, em geral,

esteve mergulhado nos últimos séculos, e que por sua vez acabou por

determinar também nossa relação com a arte, com o fazer artístico e com a

preparação do ator sobre si mesmo. Isso porque notamos que o esquema

dualista se reproduz, como microcosmo, na relação entre voz e movimento

corporal – não só na abordagem analítica que recebem nos trabalhos de

preparação de ator como também no esquema de hierarquização, de

valoração de um em relação ao outro.

Nosso objetivo, neste trabalho, é o de propor uma nova abordagem

ao problema da relação voz-movimento corporal, em relação ao modo como

esta vem sendo tratada no âmbito da criação teatral. Partimos da premissa

de que voz e movimento corporal são fenômenos inseparáveis e, portanto,

podem ser trabalhados de maneira integrada, em uma “terceira via”

alternativa àquelas que propõem ou o trabalho analítico (“em separado”) de

voz e movimento corporal ou o trabalho simplesmente simultâneo de

ambos; e que, para tanto, é necessário que o artista conheça não apenas

seu meio físico de expressão, mas os elementos que constroem o seu

próprio pensamento e o seu meio cultural – interdependentes e

determinantes, ambos, de sua relação com a criação.


Para o cumprimento deste objetivo, realizamos uma pesquisa

interdisciplinar de cunho teórico, relacionando campos de conhecimento

como o teatro, as ciências cognitivas (principalmente em seus ramos da

filosofia da mente, das neurociências e da lingüística cognitiva), a fisiologia

do movimento e a física do som. Os temas abordados e conseqüentes

discussões foram organizados da seguinte forma:

No Capítulo I, introduzimos as referências científico-filosóficas que

nos servem como marco teórico; aqui, nos propomos a apresentar o

pensamento dualista e alternativas a ele, tanto de uma perspectiva

filosófica quanto científica. Ele está dividido em duas partes: “A Filosofia

de Resgate do Corpo” e “As Ciências Cognitivas”. Na primeira,

apresentamos o pensamento dualista e alguns de seus reflexos na

construção da cultura ocidental, a partir do ponto de vista de René

Descartes e Platão; em seguida, apresentamos uma linha de pensamento

filosófico alternativa a essa, chamada atualmente de “filosofia de resgate

do corpo”, a partir das proposições de Espinosa, Nietzsche e Thomas

Hanna.

Na segunda parte, apresentamos as ciências cognitivas e um breve

panorama das teorias da natureza da mente (em sua relação mente-corpo),

dentro do campo de discussões da filosofia da mente, a partir do recorte

proposto por Paul Churchland. Apresentamos também os estudos

neurocientíficos de António Damásio sobre a relação de co-dependência

entre corpo e mente, baseando-nos fundamentalmente na sua definição de


estados corporais, sua relação com os processo mentais e seu papel na

configuração da consciência. A partir das idéias apresentadas, propomos a

idéia de superação da dicotomia voz x movimento corporal no trabalho do

ator.

No Capítulo II, apresentamos as idéias e a prática de Jerzy

Grotowski, um dos principais realizadores de teatro do século XX, no que

concerne à sua busca pela integridade do ator em sua criação – voz, corpo,

pensamento, sentimentos, ideais. Este capítulo divide-se em duas partes:

na primeira, “Encontro, Ato e Corpo-Vida”, apresentamos a busca de

Grotowski pela superação dos dualismos no teatro, tomando como eixo

norteador principalmente suas definições de teatro como encontro, Ato e

corpo-vida, chegando à integração pela entrega de si à realização da ação.

Na segunda parte, “Integridade como Caminho para o Ato: movimento

corporal e voz”, mostramos como Grotowski buscou a integração entre

movimento corporal e voz no trabalho do ator; após uma explanação sobre

a questão da função e eficácia (ou não) do treinamento dentro das

propostas de Grotowski, direcionamos nosso foco para seus escritos sobre

o trabalho com ênfase na voz do ator.

No Capítulo III, discutimos a relação entre ressonância e vibração

vocal, e a propriedade do uso desses termos. A partir daí, colocamos o

papel fundamental da imaginação na produção da voz e sua conexão com

o movimento corporal, dentro do trabalho de Grotowski. Além de

relacionarmos a imaginação à produção de alterações na organização do


corpo, relacionamo-la à alteração sistêmica da musculatura do corpo, e

por conseqüência da produção da voz. Na seqüência, apresentamos a

noção de metáfora como um operador cognitivo do pensamento,

relacionando então o modo como estruturamos o pensamento ao modo

como vivemos, agimos e concebemos arte – o que ganha novo peso ao

compreendermos, a partir das colocações de George Lakoff e Mark

Johnson, que nossas metáforas são sempre construídas a partir das

nossas experiências perceptivas, da nossa vivência como seres corporais

no mundo.

Na Conclusão, procuramos fazer uma imbricação das questões

levantadas durante o trabalho, a fim de apontar caminhos para a

construção de um novo entendimento sobre a integração voz-movimento

corporal e para o estabelecimento de protocolos que reconheçam e

favoreçam esta integração.


Capítulo I – Embasamento Teórico-Filosófico

1.1 – A Filosofia do Resgate do Corpo

O corpo funciona ao mesmo tempo como


algo demasiadamente precioso e como
uma espécie de inimigo íntimo. (...)
Encarnados, corpóreos – os atores não
estão seguros. Encarnados, corpóreos –
os atores estão em muito maior perigo.
Grotowski, 1993a:35c.

As proposições filosóficas dualistas são aquelas que afirmam que

a mente e o corpo são instâncias diferentes e independentes; a mente

seria uma substância não-física, sem massa, forma ou localização no

espaço, cuja identidade independeria de qualquer corpo físico ao qual

ela possa estar “conectada” (CHURCHLAND, 1998:26). A linha de

pensamento dualista mais conhecida é aquela postulada por René

Descartes (1596-1650) – o dualismo cartesiano.

René Descartes postula que o ser humano é formado por duas

substâncias: a res extensa ou corpo físico, sede e gerador de todos os

desejos físicos e carnais (fome, sede, desejo sexual etc.), cujo

funcionamento seria equiparado ao de uma máquina, e sujeito portanto


a todas as leis da física (peso, movimento, aceleração, inércia etc.). A

segunda substância seria a res cogitans, ou pensamento, ou alma

pensante, geradora de todo raciocínio e todo pensamento científico,

filosófico etc.; não estaria sujeita às leis da física e existiria

independentemente desta. Ambas as substâncias estariam ligadas, no

corpo humano, pela glândula pineal.

Para Descartes “o você real não é seu corpo material, mas sim

uma substância pensante e não-espacial, (...) totalmente distinta do seu

corpo material” (CHURCHLAND, 1998:27). O corpo se comportaria

movido por propósitos ditados pela sua própria fisicalidade (fome, sono,

desejo sexual etc.), mas também por desejos e decisões dessa mente

não-física, sendo as conexões causais com (ou, em outras palavras, a

“obediência a”) sua mente o que faz esse corpo ser seu, e não o de outra

pessoa.

O ponto que nos interessa primordialmente, na discussão em

relação ao dualismo, é o que ela tem ensejado, ao longo de séculos, na

construção da cultura ocidental, de desvalorização do corpo em função

do pensamento. Essa questão da desvalorização do corpo em relação à

mente, na cultura ocidental, tem raízes muito profundas, que podem ser

traçadas desde os primórdios da filosofia grega. Mas será em Sócrates,

conforme vemos nos diálogos transcritos por Platão, que teremos mais

sistematizada e aprofundada uma defesa da superioridade do raciocínio

em relação ao corpo. Isso porque, segundo ele, através da razão o


homem poderia superar a cosmovisão trágica que dominava o

pensamento grego – poderia ser artífice do seu destino, deixando de ser

um joguete nas mãos dos deuses, obrigado a curvar-se ao destino, à

“Moira fatal”.

Um dos exemplos mais flagrantes dessa proposição é o Fédon

(PLATÃO, 1987), transcrição feita por Platão do último diálogo de

Sócrates com seus discípulos, quando este, já condenado à morte,

aguarda o momento em que beberá a cicuta. Nesse livro1, Sócrates

afirma que o raciocínio do filósofo será tanto melhor, mais claro e mais

reto quanto mais se afastar dos desejos do corpo:

durante todo o tempo em que tivermos o corpo, e nossa alma


estiver misturada com essa coisa má, jamais possuiremos
completamente o objeto de nossos desejos! Ora, esse objeto é,
como dizíamos, a verdade. (...) eis-nos às voltas com novos
entraves em nossa caça ao verdadeiro real! O corpo de tal modo
nos inunda de amores, paixões, temores, imaginações de toda
sorte, enfim, uma infinidade de bagatelas, que por seu intermédio
(...) não recebemos na verdade nenhum pensamento sensato (...).
(PLATÃO, 1987:67-68.)

Esse entendimento de Sócrates encontra-se em perfeita

consonância com o idealismo de Platão (cf. principalmente PLATÃO,

1983), que afirma que todas as coisas existentes no mundo existem, em

primeiro lugar, no plano das idéias. O plano das idéias seria o modelo

imaterial, eterno e perfeito do qual são copiadas todas as coisas deste

1
Ver especialmente “A morte como libertação do pensamento” e “A purificação”, PLATÃO, 1987:65-72.
mundo – materiais, transitórias e imperfeitas (porque cópias). O mundo,

pela sua característica plural (cópias diversas do modelo ideal único),

induz ao engano e à formação da doxa – opinião – e não à sophia –

sabedoria; assim, aproximar-se do plano das idéias e afastar-se do

mundo material é aproximar-se do Sumo Bem (criador de todas as

idéias) e da fonte primeira de todo o conhecimento, de toda a verdade,

sendo esta a aspiração máxima do filósofo (philosophos = amigo da

sabedoria).

A força dessas idéias em nossa cultura deve-se, em muito, pela

releitura do platonismo feita no séc. IV de nossa era por Santo

Agostinho. Ele relacionou a idéia platônica à alma – nossa porção ligada

ao eterno, ao divino, à perfeição – e a matéria ao corpo – perecível,

imperfeito, lugar do pecado e da corrupção. Embora no séc. XIII São

Tomás de Aquino vá fazer uma releitura de Aristóteles, propondo assim

uma outra abordagem para a relação corpo/alma, a àquela altura a

idéia platônica já estava por demais arraigada nos comportamentos da

vida cotidiana das pessoas. Além disso, o dualismo é um eficientíssimo

instrumento de dominação das massas: se você não é seu corpo, e seu

corpo é lugar de pecado, logo todos os seus desejos de ter uma boa vida,

sem fome, com roupas e casa e terras produtivas e um companheiro

com quem desfrutar os prazeres do sexo devem ser combatidos e

reduzidos a nada; apenas aqueles que sofrem as privações do mundo

sem murmurar é que ganharão o reino dos céus. As distorções


ideológicas dos Evangelhos e das cartas paulinas, nesse sentido, são

absolutamente flagrantes (cf. STRIEDER, 1992).

Aristóteles (que foi contemporâneo de Platão, tendo sido mesmo,

durante muitos anos, discípulo deste), também distinguia entre matéria e

forma, o que, a rigor, o coloca dentro do âmbito da filosofia dualista – já

que, em sua formulação, a forma (aparência) seria determinada pela

matéria (essência das coisas, imutável e transcendente). No entanto, ao

contrário de Platão, acreditava que uma não pode existir sem a outra, pois

é através da forma que a matéria torna-se real (processo chamado por ele

de enteléquia, autocompletude).

A filosofia aristotélica dominará o pensamento Ocidental por dois mil

anos, sendo a base do pensamento medieval (homem e Deus/Natureza

integrados). O idealismo platônico será resgatado pelo neoclassicismo

renascentista, pela sua afinidade com os propósitos renascentistas: o

homem como centro, motivador e medida do mundo; o mundo não mais

governado por Deus, mas pelo homem; destacado das coisas, do mundo à

sua volta, o homem poderá analisá-lo, conhecê-lo e, finalmente, dominá-lo.

A partir do séc. XIX surge na cultura ocidental uma corrente de

pensamento que se poderia chamar de filosofia do resgate do corpo. Um de

seus principais expoentes foi o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (sobre o

qual falaremos mais adiante, neste capítulo), cujos escritos foram


fortemente influenciados pelos do filósofo holandês Baruch de Espinosa

(1632-1677).

Para Espinosa, diferentemente de Descartes (que considera a

existência de duas substâncias diversas, a res extensa e a res cogitans), o

Universo é uma Substância – que é tudo, engloba tudo, e pode também ser

chamada de Natureza ou de Deus. Pensamento e extensão (ou matéria)

seriam dois atributos a partir dos quais essa Substância expressaria a si

mesma; assim, ambos seriam não coisas opostas entre si, mas como

“línguas” diferentes, que dizem a mesma coisa. Espinosa propõe, assim, a

tese do paralelismo, que nega não apenas uma relação causal entre

pensamento e matéria, como nega também qualquer superioridade de um

sobre o outro.

Na formulação de Espinosa, uma pessoa é um indivíduo, mas

também um grupo de pessoas é um indivíduo. Todos os indivíduos são

modos diversos – combinações únicas de pensamento e extensão – da

Substância. Assim, um indivíduo não é simplesmente parte do todo, mas

um grau de potência da Natureza; ela se expressa através de um indivíduo

de um certo modo, e através de outro indivíduo, de outro modo. Isso

porque, para ele, os indivíduos (ou expressões da Natureza) não se definem

pelo seu gênero ou espécie, pelos seus órgãos ou funções, mas por aquilo

que podem: por sua potência de afecção.


Potência de afecção é o poder que um indivíduo tem de afetar outro

indivíduo, ou de ser afetado por ele; todo corpo tem os órgãos ou funções

que correspondem à capacidade dos seus afetos, do seu poder de afetar e

de ser afetado. E embora a potência de afecção de um indivíduo seja

sempre finita, porque limitada pela própria sua própria composição (só a

Natureza tem potência infinita, pois tem todas as possibilidades de

composição de corpos em si mesma), ninguém sabe, nunca, até onde essa

potência pode se estender:

não se sabe o que pode um corpo. (…) nós falamos da consciência


e dos seus decretos, da vontade e dos seus efeitos, dos mil meios
de mover o corpo, de dominar o corpo e as paixões - mas não
sabemos realmente o que pode um corpo. (DELEUZE, 1980:26.)

Em suas obras, Espinosa denuncia a moral transcendente, que vem

“de cima”, “de fora”, colocando-se além do próprio homem – sendo disso

mesmo que deriva o seu poder. Segundo Espinosa (a partir de DELEUZE,

1980), as leis, regras, normas institucionalizadas são um modelo ideal do

“Deve Ser”; as instituições em geral nos ensinam a “domar” nossa força, a

humilhá-la, a rebaixá-la, impondo valores como a humildade, a

servilidade, a disciplina; mesmo a esperança é utilizada para o

rebaixamento das forças do homem, na medida em que faz projetar para o

futuro a felicidade ou a completude que se poderia ter hoje. A alegria é, em

geral, tratada como uma superficialidade, uma infantilidade, uma

futilidade.
Espinosa propõe então a construção de uma moral imanente: Deus

não está acima de nós, “mandando”; Deus é o próprio mundo – Universo,

Substância, Natureza, nós mesmos, que somos expressões dessa

Substância. Não há nada “acima” do mundo, nada acima de nós. Mas, da

mesma forma, ninguém é o centro do Universo pois, se tudo parte da

Substância, todos fazem parte de um indivíduo maior, compondo-se com

outros indivíduos, aumentando e preenchendo suas potências.

Para Friedrich Nietzsche (1844-1900)2, os gregos pré-socráticos

viviam tanto a dimensão apolínea da vida – seu aspecto solar, aberto,

ligado à noção do Belo, da Harmonia, do Equilíbrio – quanto sua dimensão

dionisíaca: o lado sombrio e escuro da existência, ligado à morte, ao

grotesco, à obnublação da razão (NIETZSCHE, 1999a). No entanto, a partir

de Sócrates e da instituição do dualismo platônico, nossa cultura passou a

viver um reforço constante apenas das características apolíneas da vida: o

Belo, o civilizado, o limpo, o racional – o que tira a potência da nossa vida,

cuja força nasce principalmente dos aspectos dionisíacos da existência.

Nietzsche irá se insurgir contra essa leitura “socrático-católico-positivista”

do mundo, reforçando a idéia do filósofo trágico – aquele que se opõe ao

filósofo pessimista, vivendo o prazer em todos os aspectos da vida, mesmo

os mais duros ou difíceis.

2
As idéias expostas aqui sobre o pensamento de Nietzsche foram retiradas, principalmente, de PELBART,
2001a.
Com a concepção dionisíaca, Nietzsche procura opor-se a uma

crença excessiva na razão, de que ela possa entrar no âmago do homem,

da arte etc. “Por que todos têm tanta fé na razão? Quem acredita na

ciência, no racionalismo, faz um ato de fé (acredita-se na sorte, em

Deus...)” (PELBART, 2001a). A crença na Verdade, de fato, não tem mais

valor do que qualquer outra crença; usar a verdade para combater a ilusão

é, na realidade, combater uma ilusão com outra: a Verdade é uma ilusão

compartilhada.

Por baixo desse ideal de verdade existem seres com corpos, paixões,

interesses, sensibilidades, perspectivas. A vida é uma fabricação

incessante de ilusões – necessárias – que às vezes são tomadas como

verdade – o que, em si, não é inocente: a supervalorização do racionalismo

tem um efeito de massacre sobre a sensibilidade.

Platão desqualifica, desvaloriza o mundo sensível; Nietzsche vai dizer

que talvez o mundo ideal seja uma ilusão – ao contrário de Platão, que diz

que o mundo sensível é que é ilusório. (O que não é uma inversão, em

absoluto: o ideal seria tão ilusório quanto o sensível; assim, a linha

divisória entre ambos é apagada.)

Em Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral (1873), Nietzsche

(1999b) discorre sobre o fato de o intelecto humano limitar-se temporal,

espacial e idealmente aos interesses humanos. O Conhecimento humano,

frente ao do Universo, é insignificante – a não ser para quem o “inventou”.


Dá assim a idéia do quanto ele é parcial – não Humano, mas apenas

humanos: há uma grande desproporção entre a sua insignificância e a sua

arrogância.

Para Nietzsche, o intelecto é um meio auxiliar de sobrevivência, de

conservação do indivíduo – uma espécie de prótese para seres frágeis que

não têm chifres ou garras, como os outros animais, para sobreviverem e

conquistarem seu lugar no mundo. Assim, o intelecto e o conhecimento

são partes da vida, estão em função dela e não desconectados dela, como

queria Platão – há entre eles uma conexão intrínseca.

“O que sabe o homem sobre si mesmo?” Praticamente nada,

prisioneiro que está de sua própria consciência. O homem desliza pela

vida, adormecido em meio a um mundo de sensações; como pode

pretender possuir a verdade, se ignoramos mesmo como nossas vísceras e

circunvoluções determinam o nosso pensamento? (NIETZSCHE,

1999b:54). Mas note-se que o intelecto, em si, não é “mau” – só não é

independente da percepção do corpo. Para Nietzsche, todo conhecimento

passa pelo corpo – por isso, ele propõe um resgate do corpo, daquilo para o

qual não conseguimos olhar.

Nietzsche faz uma crítica dos valores dominantes, em nome da

possibilidade de se criar novos valores. Os valores hegemônicos estão em

favor de uma vida empobrecida, fragilizada, triste, e esses valores que

foram nos esculpindo nos tornaram tristes, pobres, fracos, impotentes –


são sintomas de uma doença. O que ele quer saber não é se um valor é

“verdadeiro” ou “falso”, mas a que tipo de vida ele interessa: que tipo de

força está falando, ou que tipo de fraqueza está falando? Que tipo de força

o habita e o fazer sentir, dizer, fazer o que está fazendo? São essas forças

subjacentes que nos habitam e engendram as nossas idéias.

Nossa civilização desvalorizou não só o corpo como a própria terra.

Como habitar a terra novamente? Como habitar o corpo novamente? Como

desdobrar a nossa potência de criar novos sentidos para a nossa vida?

Nietzsche nos diz: basta de desprezar o corpo; ele é mais

determinante do que se acredita, e criar para além de si é o seu maior

desejo. E quem não consegue criar, ir para além de si, passa a desprezar o

corpo – quem despreza a vida, o corpo e a terra é porque não conseguiu ir

além: é sempre uma espécie de impotência o que despreza o corpo

(NIETZSCHE, 1999c). A questão que Nietzsche se propõe, e nos propõe, é a

de como resgatar a potência criadora do corpo, da vida e da terra e, a

partir daí, inventar uma nova relação entre corpo e pensamento, entre vida

e razão.

Uma das questões principais que a filosofia de Nietzsche nos propõe

é que pensar não é fazer considerações sobre alguma coisa, ou construir

para si mesmo um retrato do mundo: o pensamento é, em si, uma

potencialização da vida. Eu me pergunto não o que eu sou, mas o que eu

posso. Potência não é algo que eu almejo, mas algo que já existe – e que
está atuando agora, nesse momento, em mim. Através do pensamento –

filosófico ou dançante ou científico, um não é melhor que o outro, apenas

diferente – encontra-se uma maneira de explorar essa potência vital.

Já na segunda metade do século XX, o filósofo americano Thomas

Hanna (1972), considerando que não existe uma palavra nas línguas

modernas européias que designe o ser humano como “corpo + mente”, irá

se apropriar da palavra grega soma para designar o corpo não somente no

sentido de “invólucro físico”, mas como designador do todo da pessoa

humana (ver tb. STRIEDER, 1992:98-105). Nas palavras do próprio

Hanna, “Soma não que dizer ‘corpo’; significa ‘Eu, o ser corporal. (...) Os

somas são os seres vivos e orgânicos que você é nesse momento, nesse

lugar onde você está” (HANNA, 1972:28; grifos do original). Dessa maneira,

vemos o quanto o conceito de soma opõe-se radicalmente ao dualismo

cartesiano – já que uma de suas premissas é o fato de o “eu incorpóreo”,

ou mente, ser algo fora do espaço-tempo do mundo material.

Sem nos atermos a uma fidelização estrita ao pensamento de

Thomas Hanna, será no entanto sempre nessa acepção de soma que

utilizaremos, ao longo desse trabalho, a palavra corpo: o eu que sente,

pensa, age, existe.


1.2 – As Ciências Cognitivas

No que concerne à questão corpo/mente, devemos muito do que já

pudemos elaborar a esse respeito nas artes cênicas aos pesquisadores da

área de Dança, que introduziram essa problemática em nosso âmbito de

pesquisa e foram, pouco a pouco, contaminando suas artes-irmãs (teatro,

performance etc.).

A partir de suas pesquisas no campo das ciências cognitivas,

podemos afirmar que o corpo pensa: ele efetivamente produz conhecimento.

Uma das proposições das ciências cognitivas é que a mente é produto do

corpo, e apenas uma pequena parte dela é consciente; ainda assim, sabe-

se hoje que mesmo o que se chama de “pensamento racional” é, em grande

parte, determinado pelas nossas emoções e sentimentos (cf. DAMÁSIO,

1996).

As ciências cognitivas constituem um campo de saber

interdisciplinar, surgido no século XX, a partir do diálogo dos trabalhos de

pensadores e pesquisadores de diversas áreas, cujo intuito é, basicamente,

o estudo dos processos de aquisição do conhecimento, em suas diversas

ordens, pelo ser humano.

Em outras palavras, as ciências cognitivas têm seu escopo voltado

principalmente para questões como a origem e a formação dos processos


mentais, e suas relações com o conhecimento, a percepção, a volição, a

interação entre a mente e o seu ambiente ou entre uma mente e outra, por

exemplo. Elas surgem na segunda metade do século XX como uma espécie

de “terceiro gênero epistemológico” (cf. DINIS, 2007), já que fundem em si

questões pertencentes tanto às ciências naturais quanto às sociais. As

principais áreas de conhecimento que a compõem são as neurociências, a

filosofia da mente, a psicologia cognitiva, a inteligência artificial e a

lingüística.

Considerando a multiplicidade de saberes envolvidos nas ciências

cognitivas, aliado ao fato de ser um campo de conhecimento recente, é

preciso notar que o consenso entre os pesquisadores dessa área sobre as

questões centrais que a constituem ainda está em construção. Nosso

recorte metodológico, nesta dissertação, abordará as questões da filosofia

da mente a partir de Churchland (2004) e dos estudos de neurociências de

António Damásio (1996); no Capítulo III, abordaremos questões da

lingüística cognitiva a partir do trabalho de George Lakoff e Mark Johnson

(2002).

A filosofia da mente procura responder questões acerca da natureza

dos processos mentais e suas relações com o mundo físico. Paul

Churchland, em Matéria e Consciência (2004), discute, dentre outras


coisas, o chamado “problema ontológico” da mente: a questão da relação

mente-corpo.3

Para Churchland, o problema corpo-mente é tradicionalmente

separado em duas abordagens distintas – às vezes mesmo antagônicas: o

dualismo e o materialismo. O dualismo afirma que a natureza essencial da

inteligência consciente está em algo não-físico; não é a concepção mais

aceita nas comunidades científica e filosófica, mas é a mais arraigada

dentre as pessoas em geral, sendo a que tem predominado pela maior

parte da História no Ocidente.

O dualismo pode ser dividido em duas concepções: o dualismo de

substância, que afirma que corpo e mente seriam duas substâncias

distintas, embora conectadas, funcionando independentemente uma da

outra (é o dualismo cartesiano, já apresentado no início deste capítulo); e o

dualismo de propriedade, que não considera a mente como uma outra

substância, diversa da do corpo físico, mas considera, no entanto, que o

cérebro tenha propriedades específicas (como as de sentir, pensar, desejar)

que nenhum outro órgão físico dispõe, e que essas propriedades seriam de

natureza não-física, no sentido de não poderem ser explicadas

inteiramente em termos das ciências físicas.

Não temos a intenção, neste trabalho, de discutir detalhadamente os

fundamentos ou a superioridade de uma ou outra das concepções sobre as

3
A partir deste ponto, as questões dos dualismos e materialismos serão tratadas, principalmente, a partir de
paráfrases do texto de Churchland, a não ser quando em indicação contrária.
teorias da mente. Mas não podemos ignorar, neste ponto, as implicações

negativas advindas da adoção ou manipulação de um modelo dualista,

como explicitado na seção 1 deste capítulo – o que faz com que nos

voltemos em busca de alternativas para a construção de um outro

entendimento sobre o trabalho do ator e sua relação com a técnica, liberto

das formulações dualistas – produtoras das separações entre natureza/

cultura, teoria/ prática, técnica/ criação etc. – e seus desdobramentos.

Ainda segundo Churchland, dentre as linhas ditas materialistas da

mente as mais fortes são o materialismo reducionista (ou teoria da

identidade), o funcionalismo e o materialismo eliminacionista. Na teoria da

identidade, considera-se que os estados mentais são estados físicos do

cérebro, correspondentes entre si: haveria um estado ou função cerebral

para cada estado mental, e vice-versa. Assim, a teoria da identidade realiza

uma redução interteórica: caso em que uma nova teoria implica em

proposições e princípios que espelham as proposições e princípios de uma

teoria mais antiga; ou seja, da mesma forma que dizemos hoje que “a luz é

idêntica a ondas eletromagnéticas” ou que “a temperatura é energia

cinética”, ela propõe que estados mentais são estados físicos do cérebro ou

do sistema nervoso em geral.

O funcionalismo vai além dessa proposição ao afirmar que o que

define os estados mentais, mais do que uma simples relação com um

estado físico do próprio cérebro, são as relações de co-determinância que

ele mantém com a ação do meio ambiente sobre o corpo, com o


comportamento corporal em si e com outros estados mentais. Ou seja: não

existe um único tipo de estado físico a que um determinado estado mental

deveria corresponder – tratam-se de processamentos não-causais; as

variáveis que constroem a mente são inúmeras, e mais do que a matéria

em si, o que determina a mente é o modo como se estruturam

internamente as atividades mantidas por essa matéria.

O materialismo eliminacionista também se contrapõe à redução

proposta pela teoria da identidade, não por entender que esta deva ser

ampliada (como propõe, de certa forma, o funcionalismo), mas por

discordar do espelhamento que a teoria da identidade faz com o arcabouço

do senso comum ao estudar a mente. Nesta formulação, postula-se que os

antigos paradigmas sobre a mente devam ser abandonados, e não

reduzidos, a partir da evolução das neurociências. Assim, da mesma forma

como a noção de “calor como substância” (e não como movimento cinético),

ou a idéia do céu como uma abóbada que girava em torno da Terra

simplesmente desapareceram do nosso arcabouço ontológico, o mesmo

acontecerá com nossos conceitos sobre o que sejam estados mentais (como

medo, desejo, sensação, dor, alegria etc.) – revisão que já se processa,

devido aos avanços constantes das neurociências.

Segundo Churchland (2004:70-71), a concepção mais aceita entre os

filósofos e estudiosos das ciências cognitivas é o funcionalismo – que,

fundamentalmente, entende a mente como algo que se constrói sempre em

relação: do sujeito consigo mesmo, do sujeito com o ambiente, do sujeito


com outro sujeito. Podemos encontrar uma conexão entre essa proposição

e as pesquisas de António Damásio,4 no campo das neurociências, sobre

os substratos biológicos da mente.

Em O Erro de Descartes (1996), Damásio postula que a mente é

resultado de uma série de interações: do cérebro com o corpo,5 do

organismo com o ambiente, do organismo com sua própria história

evolutiva, sua regulação biológica, seu contexto cultural etc. “A mente

existe dentro de um organismo integrado e para ele; as nossas mentes não

seriam o que são se não existisse uma interação entre o corpo e o cérebro

durante o processo evolutivo, o desenvolvimento individual e o momento

atual” (DAMÁSIO, 1996:17).

Uma de suas contribuições para a discussão sobre a natureza da

mente é a noção do papel do corpo na formação da mente; de fato, as

formulações tradicionais tendem a não considerar os fenômenos mentais

como fruto de atividades neuronais, como se seu funcionamento pudesse

ser desconectado ou independente do resto do corpo. “Em relação ao

cérebro, o corpo em sentido estrito não se limita a fornecer sustento e

modulação: fornece, também, um tema básico para as representações

4
António Damásio, pesquisador várias vezes premiado por seu trabalho, chefe do Departamento de
Neurologia da Universidade de Iowa, tem contribuído enormemente para o campo de conhecimento das
neurociências e das ciências cognitivas com suas pesquisas e suas publicações na área, como O Erro de
Descartes, O Mistério da Consciência, Em Busca de Espinosa (Cia. das Letras).
5
É preciso ter em mente aqui que, por questões metodológicas, para efeito de melhor desenvolver sua
proposta, Damásio separa “cérebro” (sistemas nervosos) de “corpo” (conjunto de todos os outros órgãos e
estruturas que geram / recebem informações, que por sua vez são lidas / processadas / devolvidas pelo
“cérebro”). No entanto, ele mesmo afirma que, convencionalmente, o sistema nervoso faz parte do corpo
como um todo – o qual ele chama de organismo. (DAMÁSIO, 1996:112.)
cerebrais” (DAMÁSIO, 1996:17). Ou seja, o corpo fornece, constantemente,

informações que constroem a mente; esta, por sua vez, modifica o corpo,

devolvendo-lhe outras informações;6 o corpo relaciona-se com o ambiente e

o modifica, e da mesma forma é modificado por ele; as informações

provenientes do ambiente modificam o corpo e, conseqüentemente, a

mente; e assim, sucessiva e simultaneamente, ambiente e corpo-mente

estão em constante construção mútua, em um fluxo ininterrupto de

processamento de informações, constantemente atualizadas.

Nossos estados mentais estão, assim, em simbiose contínua com os

estados corporais, determinando-os e modificando-os, e ao mesmo tempo

sendo determinados e modificados por eles. Para compreendermos o que

são esses estados corporais e sua relação de co-determinância com os

estados mentais, buscaremos uma definição do primeiro a partir da

metáfora proposta por Damásio da paisagem corporal:

Se imaginarmos a vista [de uma janela que se abre diretamente


para uma imagem continuamente atualizada da estrutura e do
estado do nosso corpo] como uma paisagem, a “estrutura” do
corpo é o análogo das formas dos objetos espacialmente
dispostos, enquanto o “estado” do corpo se assemelha à luz, às
sombras, ao movimento e ao som dos objetos nesse espaço [ou
seja, elementos que podem variar ao longo do tempo]. Na
paisagem do seu corpo, os objetos são as vísceras (coração,
pulmões, intestinos, músculos), enquanto a luz e a sombra, o
movimento e o som representam um ponto na gama de operações
possíveis desse órgão num determinado momento. (DAMÁSIO,
1996:14.)

6
Utilizamos aqui o termo informação no sentido de “informação como diferença que gera diferenças” de
qualidade ou de quantidade (cf. VIEIRA, 2006:77).
Os estados corporais se atualizam constantemente, em altos níveis

de complexidade – como o próprio nome indica, um estado corporal nunca

é, ele está. Mas, imaginando que fosse possível congelar um estado

corporal em uma fotografia, teríamos as informações disponíveis de uma

determinada paisagem corporal em um determinado instante no tempo, de

forma que pudéssemos perceber qual o estado em questão naquele

momento. No entanto, esses estados se modificam constantemente,

“assumindo uma sucessão de ‘estados’ definidos por padrões variados de

atividades em curso em cada um dos seus componentes” (DAMÁSIO,

1996:113). Ou seja, os estados corporais não só se sucedem

continuamente, como há vários “estados” convivendo simultaneamente

dentro de um organismo complexo, e há uma adequação entre vários

deles: “conforme a escala de análise, os estados dos organismos podem

apresentar-se como unidades discretas ou em transformação contínua de

uns para outros” (DAMÁSIO, 1996:113).

Segundo Damásio, os estados corporais e estados mentais são

inseparáveis e simultâneos. Ele sumariza essa relação da seguinte forma:

1) Praticamente todas as partes do corpo – cada músculo,


articulação ou órgão interno – podem enviar sinais para o
cérebro através dos nervos periféricos. (...)
2) As substâncias químicas que surgem da atividade do corpo
podem alcançar o cérebro por meio da corrente sangüínea e
influenciar seu funcionamento. (...)
3) Na direção oposta, o cérebro pode atuar, por intermédio dos
nervos, em todas as partes do corpo, [por meio do] sistema
nervoso autônomo (ou visceral) e [do] sistema nervoso
músculo-esquelético (ou voluntário). (...)
(...)
[Além disso,] o organismo constituído pela parceria cérebro-corpo
interage com o ambiente como um conjunto (...). Porém,
organismos complexos como os nossos fazem mais do que
interagir, fazem mais do que gerar respostas externas
espontâneas ou reativas (...). Eles geram também respostas
internas, algumas das quais constituem imagens (visuais,
auditivas, somatossensoriais), [postuladas] como a base para a
mente. (DAMÁSIO, 1996:114-115.)

Assim, as representações mentais que nosso cérebro cria para

descrever uma situação e as respostas formuladas a essa situação

dependem de interações mútuas cérebro-corpo. O cérebro cria

representações do corpo a cada alteração que ele sofra, sejam elas de tipo

químico ou neural. Ao mesmo tempo, os sinais do cérebro continuam a

fluir até o corpo, a partir de zonas do cérebro cujas atividades nunca são

representadas diretamente na consciência. Em resultado, o corpo volta a

alterar-se e a imagem que dele se recebe altera-se em conformidade

(DAMÁSIO, 1996:259). Além disso, devemos levar em consideração

também todas as influências que o ambiente gera no corpo, que afeta o

cérebro, que devolve/gera informações e alterações no corpo, que

devolve/gera alterações no ambiente, e então teremos um pequeno

panorama da complexidade do papel do corpo na formação da mente.

O entendimento dos estados corporais também pode nos ajudar a

compreender a formação da consciência. Segundo Damásio, nossa

consciência se origina a partir do que ele denomina de proto-self, nome que


ele dá à imagem que o cérebro tem do corpo; ele é composto pelos mapas

mais básicos que representam o corpo, em todos os seus detalhes, no

cérebro. Quando o corpo se altera ou é alterado pela sua interação com o

mundo, altera-se também a imagem do corpo no cérebro. Essas mudanças

criam re-representações do corpo no cérebro, ou “mapas de segunda

ordem” – pois os mapas básicos se mantêm, ao mesmo tempo em que o

cérebro cria a imagem das alterações ocorridas. Quando essas re-

representações são relacionadas à representação no cérebro do objeto que

causou a mudança, “nasce o self central, a noção de indivíduo situado no

aqui-agora, e com ele a consciência central” (HERCULANO-HOUZEL,

2002:143).

Sem tentarmos destrinçar a complexidade dessas relações, podemos

depreender daí que toda vez que um organismo produz voz ele altera todo

o seu estado corporal e suas representações neurais, já que produz

alterações na musculatura da laringe, provocando por sua vez alterações

em cadeia na musculatura de todo o corpo (ver Souchard, 1989a); e

também no sistema respiratório, que afeta por sua vez o sistema

circulatório e conseqüentemente a produção e distribuição de hormônios

etc. Sem contar ainda com o efeito da vibração da voz sobre o próprio

corpo e a própria audição de quem está falando, que irão gerar outras

informações, reações, imagens que comporão e alterarão ativamente esses


estados corporais – que por sua vez alterarão a produção da voz, com seus

componentes físicos, emocionais, mentais (como memória, p. ex.) etc.7

Assim, produzir voz, mais do gerar ação ou movimento, também

altera os estados do corpo. E, conseqüentemente, altera também as

representações neurais constitutivas da consciência.

Percebemos que os entendimentos dualistas que permeiam as

concepções da relação corpo-mente também estão presentes na relação

corpo-voz. A voz é, de maneira geral, entendida como algo imaterial,

impalpável; no âmbito teatral, é tradicionalmente trabalhada como algo em

separado do corpo – repetindo em muitos pontos o padrão do dualismo

cartesiano: duas substâncias diferentes, uma material (o corpo) e outra

imaterial (a voz), com um ponto de conexão (a glote).

Também as relações de hierarquização entre corpo e mente

presentes no dualismo cartesiano se repetem no trabalho do ator. Durante

muitos anos (de fato, alguns séculos), no teatro ocidental, o texto verbal foi

hipervalorizado, em detrimento de todos os outros. O movimento de reação

a esse estado de coisas, ocorrido no início do século XX na Europa, que

pretendia resgatar e valorizar o trabalho do ator, reagiu retirando de cena

todo texto verbal – e, com isso também o texto vocal. Ou seja, junto com a

palavra, desapareceu a voz. Acreditamos que isso possa ter sido motivado

pelo fato de a voz, na nossa sociedade, ter sido sempre percebida

principalmente como meio de difusão da palavra, e por extensão de todas


7
Esse assunto será discutido mais detidamente no Capítulo III desta dissertação.
as idéias significadas pelas palavras, às quais toda a criação cênica

deveria, no teatro tradicional, se submeter.

Como nos diz Paul Zumthor, “a voz é uma coisa: descrevem-se suas

qualidades materiais, o tom, o timbre, o alcance, a altura, o registro...”

(ZUMTHOR, 1997:11; grifo do original). Ela é uma emanação corporal que

possui espessura e tatilidade próprias, e ocupa um campo de significados

bastante diversos dos da palavra, caracterizando-se como entidade

independente desta – ainda que a voz seja o próprio substrato da palavra:

“a voz não traz a linguagem: a linguagem nela transita” (ZUMTHOR,

1997:13). A partir daí, a primeira dicotomia que precisamos desmanchar é

a de “corpo x voz” – pois se a voz é produto do corpo, não pode opor-se a

ele; é impossível trabalhar-se ou o corpo ou a voz.8 Sempre que se

trabalhar com a voz, o corpo estará trabalhando; sempre que se trabalhar

com o corpo, a voz estará presente no trabalho, ainda que potencialmente.

Propomos substituir então neste ponto, para melhor compreensão

das idéias, o termo genérico “corpo” por “movimento corporal”, já que este

também é produzido pelo corpo, e tão parte constituinte dele quanto a voz.

Ambos podem ser trabalhados de maneira analítica: o enfoque no

movimento corporal, com a voz silenciada, ou o enfoque na voz, com o

corpo sem movimento aparente – que é a forma como o trabalho de

preparação de atores se estrutura, tradicionalmente. Mas propomos que

também aqui essa linha demarcatória entre ambos seja desmanchada – já

8
Também essa questão será tratada mais de perto no Capítulo III desta dissertação.
porque o movimento corporal está obrigatoriamente presente na produção

da voz, não só especificamente no aparelho vocal e respiratório, mas muito

além deles, já porque a vibração das cordas vocais causada pela

respiração, que dá origem ao som da voz, acontece a cada inspiração e

expiração, e portanto a voz acontece, durante nossos movimentos, mesmo

quando não a podemos ainda ouvir.

Acreditamos que o ator pode trabalhar sobre si mesmo de maneira a

ampliar sua percepção a ponto de poder perceber as afecções da voz sobre

o movimento corporal e do movimento corporal sobre a voz – estando aí,

nesse substrato onde a percepção pode captar as sutilezas das afecções de

um sobre o outro e das alterações que elas disparam em todo o corpo, o

lugar do que chamamos de integração entre voz e movimento corporal. A

fim de desenvolver essa autopercepção, entendemos ser necessário não só

um trabalho técnico corpóreo-vocal, mas principalmente a busca de uma

abordagem diferenciada, de um outro entendimento sobre o trabalho de

voz e movimento corporal desde os seus princípios fundantes – pois será

principalmente o modo como o ator engaja sua atenção nos exercícios

executados o que criará essa diferença perceptiva, desenvolvendo

procedimentos libertos de modelos pré-estabelecidos, por mais

privilegiados culturalmente que estes possam ser.


Capítulo II – Grotowski

2.1 – Encontro, Ato e Corpo-Vida

Houve um período em minha carreira


em que (...) fiz fórmulas abstratas para
abranger dois processos divergentes.
(...) Fiz belas frases, que davam a
impressão que tudo era lógico. Mas isso
era trapaça.
Grotowski, 1992:204.

A questão da superação do dualismo, no teatro, foi tratada muito de

perto por Jerzy Grotowski, um dos mais proeminentes diretores do teatro

ocidental do século XX. Embora ele nunca tenha tocado no assunto com

essas palavras – superação do dualismo – Grotowski sempre buscou, no

trabalho com seus atores, aquilo que, no senso comum, costumamos

chamar de “integridade entre corpo e mente” – reconhecendo, portanto, a

inseparabilidade desses fenômenos.

Para explorarmos sua busca nesse sentido, tomaremos como ponto

de partida seus escritos publicados no livro Em Busca de um Teatro Pobre,

para então acompanharmos a evolução de suas reflexões e proposições em

seus escritos-palestras posteriores.


Antes de mais nada, no entanto, cabe aqui uma breve descrição da

trajetória de Grotowski, que foi, além de extensa, muito rica e

diversificada. Dessa forma, esperamos poder criar uma melhor

compreensão da discussão que propomos neste trabalho de seus conceitos

e práticas, a partir de sua contextualização.9

Jerzy Grotowski nasceu na Polônia, em 1933. Tendo começado sua

carreira como diretor no final da década de 1950, dez anos depois já era

reconhecido internacionalmente como um dos teóricos teatrais mais

influentes do século XX (SCHECHNER; WOLFORD, 1997:1). Graduou-se

na escola dramática estatal de Cracóvia (1951-1955) e, em seguida, foi

estudar direção no Instituto de Artes Dramáticas Lunacharsky, o GITIS,

em Moscou (1955-1956), onde aprendeu técnicas de atuação e direção de

grandes nomes do teatro soviético como Stanislavski, Vakhtangov,

Meyerhold e Tairov. Em diversos textos e palestras, ao longo de sua

carreira, Grotowski salientou a importância do seu estudo do Sistema

Stanislavski, declarando mesmo que todas as suas pesquisas eram uma

continuação, um aprofundamento do trabalho de Stanislavski.

Neste primeiro período, antes ainda do chamado Teatro de

Produções, durante o qual ele desenvolverá a idéia do teatro pobre,

Grotowski monta seus espetáculos dentro de um grande ecletismo

dramático e estético: Stanislavski e Meyerhold são dois pólos que estarão

9
As informações referentes às fases do trabalho de Grotowski contidas neste resumo biográfico foram
retiradas e parafraseadas principalmente de TOLENTINO, 2007; CAMPBELL, 2005 e http://wikipedia.com
constantemente em seu trabalho; o conhecimento de distintas formas do

teatro oriental – Katakali, Nô e Ópera de Pequim; os seminários em

Avignon, com Jean Vilar, e em Praga, com Emil Burian; a participação

como espectador em algumas adaptações do Berliner Ensemble, a

companhia de Brecht; a filosofia de Sartre; a chamada dramaturgia do

absurdo; a história das religiões; a filosofia oriental (TOLENTINO,

2007:02). Esses elementos estarão, a partir deste início, sempre presentes

nas investigações posteriores de Grotowski, sendo verticalizados, em

medidas diversas, ao longo das várias fases pelas quais seu trabalho

passou, durante sua vida.

A trajetória artística de Grotowski, interrompida apenas pelo seu

falecimento em 1999, tem sido tradicionalmente dividida pela crítica

teatral em quatro fases (a partir principalmente de SCHECHNER;

WOLFORD, 1997): o Teatro de Produções (1959-1969), o Parateatro (1969-

1978), o Teatro das Fontes (ou Teatro das Origens – 1976-1982) e o Arte

Como Veículo (1986-1999); há também um curto período (1983-1986),

conhecido como Drama Objetivo, referente ao período em que Grotowski

lecionou na Universidade da Califórnia, EUA. Cada uma dessas fases

possui características próprias, que podem ser descritas como segue:

• O Teatro das Produções refere-se ao período em que Grotowski produzia

espetáculos teatrais, e sua pesquisa focalizava o trabalho do ator

voltado para o palco, para a realização de espetáculos frente a uma

platéia. Foi das experiências realizadas nesta fase que se retirou o


material utilizado como referência para a publicação de Em Busca de

um Teatro Pobre.

Por teatro pobre Grotowski entendia um teatro no qual o foco principal

fosse a relação do ator com a platéia, e não os cenários, figurinos, luzes

ou efeitos especiais. “Pobre”, neste contexto, significa o despojamento

de todos os adornos e acessórios da encenação, deixando em cena

apenas um ator despido de suas máscaras, de seus truques. Ele

opunha essa abordagem à daquele que ele chamava de “teatro rico”,

que seria não só o teatro de entretenimento, mas também aquele que

assimilara a estética televisiva e cinematográfica, ao invés de buscar

aquilo que seria “essencial” ao teatro. Grotowski sempre sustentou que

a experiência teatral é única, totalmente diversa daquela oferecida pelo

cinema e pela televisão; ele buscava apresentar aos espectadores um

teatro que fosse confrontador, desafiador e experiencial.

• A fase conhecida como Parateatro tem início quando, no outono de

1970, após uma longa estadia na Índia, Grotowski anuncia sua

intenção de não voltar a preparar novos espetáculos, passando a

centrar suas investigações na intercomunicação e no “encontro” entre

indivíduos. O nome Parateatro deriva da busca de se transcender a

separação entre o ator e o espectador; aqui, Grotowski deu menos

importância à parte estrutural e técnica do trabalho do ator,

focalizando-se em atividades improvisadas a partir de contato

espontâneo entre um grupo mais experiente e um grupo de


participantes externos. Esse trabalho surgiu a partir da percepção de

Grotowski de que ele teria de ultrapassar as barreiras do teatro

convencional para poder criar uma situação “em que as pessoas

pudessem se encontrar como iguais e se livrar do comportamento rígido

e restritivo da vida cotidiana ocidental” (CAMPBELL, 2005: 28).

• O Teatro das Fontes é o retorno a uma forma de teatro mais

estruturada, pois Grotowski percebeu que a dificuldade dos atores em

transcender seus clichês culturais e pessoais fazia com que eles

banalizassem o trabalho realizado em uma estrutura improvisada tanto

quanto o fizeram em um trabalho de estrutura mais formalizada. Ele

propõe então que esses clichês só poderiam ser superados através de

um trabalho sistemático e formalmente estruturado. Nessa fase,

Grotowski realiza “uma pesquisa sistemática de várias formas de

manifestações ritualísticas, tentando desvendar elementos ritualísticos

universais nestes rituais, como gestos, movimentos e cantos que

pudessem ter um objetivo efetivo no participante” (CAMPBELL, 2005:

29). Aqui ele recupera, dentro de uma nova ótica, os interesses

antropológicos e histórico-religiosos que desenvolvera desde sua

juventude e as influências de suas viagens ao Oriente.

Reunindo as pessoas ligadas a antigas criações, religiões e


línguas diferentes, tratei de encontrar entre elas uma
comunicação, um Teatro das Fontes. Uma espécie de Yoga teatral
onde se pudesse descobrir coisas muito simples. Desde o Monte
Athos até China ou Japão, existem muitas escolas de respiração,
porém diferentes na exalação. O elemento comum que precede
estas diferenças é a atenção sobre a respiração. (...) O Teatro das
Fontes se concentra mais na área de investigação do que na ação.
(GROTOWSKI in SCHECHNER; WOLFORD, 1997:262.)

O Drama Objetivo foi, de certa maneira, uma continuação do Teatro das

Fontes, realizada com estudantes de teatro da Universidade da

Califórnia, após a saída de Grotowski da Polônia, em 1982, depois de

um golpe de Estado. Mas ele próprio considerou esta fase muito mais

como “aulas de teatro”, pelo modo como foram conduzidas, do que

como parte efetiva de sua pesquisa.

• O Arte Como Veículo tem como objetivo e linha condutora a ação –

tanto que Grotowski chama seus atores desta fase de doers

(literalmente “fazedores”, em inglês). Nesta fase, Grotowski centrou seu

trabalho no sutil processo de transformação de energia que pode ser

ativado em um atuante (ou fazedor) que esteja apropriadamente

preparado e especializado no seu mister, a partir do trabalho com

“canções vibratórias”, ligadas a tradições rituais (ou seja, canções com

potencial centrado nas suas qualidades vibratórias, mais que na

melodia; falaremos mais a esse respeito na segunda parte deste

capítulo); esse trabalho era realizado dentro de uma estrutura artística

precisa e repetível.

Uma das questões que Grotowski persegue no Arte como Veículo é

aquilo que ele nomeia como “verticalidade”: a conexão entre as raízes

culturais do atuante e um nível mais “elevado”, mais sutil de percepção.


Esta fase final também indica uma síntese entre sua insistência na

especialização técnica do ator e ênfase em um processo de atuação

baseado no método das Ações Físicas de Stanislavski, presentes

principalmente na sua primeira fase, do Teatro de Produções, com os

resultados de sua extensiva investigação em técnicas corporais –

ligadas sempre às questões espirituais – conduzidas ao longo de sua

vida.

Grotowski afirmava que o trabalho conduzido em Pontedera, nesta

última fase, embora fosse centrado sobre o rigor, os detalhes, a

precisão, de maneira comparável ao dos espetáculos do Teatro

Laboratório, não era um retorno ao teatro como representação. Sua

idéia tinha dois pólos precisos: a formação, no sentido de educação

permanente dos atores, e a Arte como Veículo propriamente dita, ou

Objetividade do Ritual, ou Artes Rituais (como ele também denominava

essa pesquisa). No entanto, ele pontua:

Quando falo do ritual, não me refiro a uma cerimônia nem a uma


festa; tampouco à improvisação com participação do exterior
(como no Teatro das Fontes). Não falo de uma síntese de diferentes
formas rituais de diferentes lugares. Quando me refiro ao ritual,
falo de sua objetividade – digo que os elementos da ação são os
instrumentos de trabalho sobre o corpo, o coração e sobre a
cabeça dos atuantes. Trabalhamos sobre o canto, os impulsos, as
formas do movimento e ainda podem surgir motivos narrativos. E
tudo reduzido ao estritamente necessário, até criar uma estrutura
precisa e acabada como um espetáculo: ação. (GROTOWSKI, apud
Tolentino, 2007.)
Cabe ainda ressaltar, na biografia de Grotowski, o fato de a Polônia

ser um país cuja cultura é, fundamental e constitutivamente, católica.

A Polônia é um país situado, geograficamente, entre duas nações

extremamente beligerantes: a Alemanha e a Rússia; em sua História, ela

inclusive deixou de ser um país, um estado político, durante muitos anos.

No entanto, os poloneses nunca deixaram de ser uma nação, graças à

fortíssima identidade cultural que os unia: o catolicismo de linha ortodoxa

– que segue uma interpretação mais literal da doutrina católica, e não

aceitou muito dos concílios vaticanos que modificaram os ritos,

dessacralizando-os e aproximando-os mais do entendimento leigo. Para

que um povo possa sobreviver como nação é necessário que eles tenham

uma identidade muito forte e, no caso dos poloneses, o fator de identidade

cultural que os distingue como um povo, como uma nação, é o

catolicismo.

Assim, dizer que Grotowski é polonês implica em dizer que seu

arcabouço cultural é fundamentalmente católico – ainda que ele,

pessoalmente, se declare como ateu. Não é uma questão de professar uma

fé religiosa, mas de um modo de pensar e estar no mundo; ser católico,

neste caso, é algo imanente a ele, pelo próprio fato de ser parte do povo

polonês.

Grotowski teve uma infância muito ligada ao rito católico, por ter se

refugiado na fazenda de um tio que atuava como bispo em Cracóvia,


durante a Segunda Grande Guerra. A importância dessa informação vem

do fato de Grotowski, apesar de ter se tornado ateu em sua maioridade,

afirmar que, durante esta época, tivera suas primeiras experiências

espirituais (as quais serão transformadas e aprofundadas, anos mais

tarde, em suas viagens ao Oriente, principalmente à Índia).

Nos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial (período da

formação e produção teatral de Grotowski), a Polônia se torna um país

comunista, sob a tutela da União Soviética, passando a integrar o Pacto de

Varsóvia em 1955. Sob o regime stalinista, vigente nos países comunista

àquela época, o qual impunha a esses países o ateísmo, retirar do

imaginário católico as metáforas para um trabalho de criação artística não

só reforçava sua ligação, sua conexão com seu passado histórico, com a

identidade independente do povo polonês, como também era uma afronta

ao sistema político instituído. No clima de repressão e patrulhamento

violentos vivido durante esse período, professar a idéia do ator santo não

deixava de ser, também, uma forma de guerrilha ideológica.

Ao conceito de teatro pobre, na sua fase do Teatro de Produções,

Grotowski adicionou o conceito de “sacerdócio” ou sacralidade do ator.

Quando o ator entrasse na santidade do espaço performático, um evento

de uma ordem especial ocorreria, em um nível muito semelhante à da

missa da Igreja Católica. Seria nesse espaço, nessa relação sagrada entre

o ator e os espectadores, que estes seriam desafiados a pensar e serem

transformados pelo teatro. Grotowski acreditava que cabia ao teatro um


lugar ritualístico na sociedade que a religião não conseguia mais

preencher.

Traçado esse breve panorama, há que se notar que, ao longo de sua

carreira, um pensamento fundamental percorre o seu trabalho, norteando,

de uma maneira ou de outra, todas as suas buscas: para Jerzy Grotowski,

a essência do teatro é um encontro (GROTOWSKI, 1992:48).

Desde o início de suas pesquisas, Grotowski, partindo do trabalho

de Stanislavski, vai procurar, com seu grupo, encontrar aquilo que é

fundante, “essencial” para a cena teatral, aquilo sem o qual o teatro não

existe, ou não pode sobreviver.

A conclusão a que eles chegam é a seguinte:

poderá existir o teatro sem atores? Não conheço nenhum exemplo


disso. (…) Pode o teatro existir sem uma platéia? Pelo menos um
espectador é necessário para que se faça uma representação.
Assim, ficamos com o ator e o espectador. Podemos então definir o
teatro como “o que ocorre entre o espectador e o ator”. Todas as
outras coisas são suplementares – talvez necessárias, mas ainda
assim suplementares. (GROTOWSKI, 1992:28; grifo nosso.)

Segundo Grotowski, o verdadeiro texto teatral não é aquele escrito

pelo dramaturgo, mas sim aquele que é formado pela tessitura de práticas

que se realizam tendo por base (ou não) o texto literário. O texto escrito,

considerado pela tradição ocidental durante muitos séculos como o pilar

central de toda a arte teatral, só será válido se se prestar como elemento

disparador de um processo de busca que ocasione um confronto do ator


não só com sua racionalidade, mas com todo o seu ser – seus instintos,

sentimentos, pensamentos, sua relação com a vida.

E é isso o que, para Grotowski, é encontro: aquilo que nasce da auto-

revelação que surge quando o homem entra em contato consigo mesmo,

dessa confrontação do homem consigo mesmo levada ao extremo, de

maneira sincera e radical.

Esse encontro é uma auto-superação – ou, nas palavras de

Grotowski, uma “autotranscendência” – uma abertura que permite

encontrar dentro de nós o que está escondido e realizar o ato de encontrar

os outros. Ou seja, aquilo que se transmuta (ou “transcende”) é a solidão

inerente a cada ser humano, possibilitando então o encontro entre as

pessoas.

O encontro, no entendimento de Grotowski, só será possível a partir

do desnudamento do ator, da libertação por parte dele de todas as

máscaras, amarras, artifícios, o que fará com que sua própria “alma” seja

exposta no momento de confronto com o espectador; o teatro será o lugar

do encontro para que as pessoas possam se abrir umas para as outras,

onde o espectador virá a conhecer a si mesmo através do ato de

autoconhecimento e “transcendência” apresentado (jamais representado)

pelo ator.
O trabalho de Grotowski surge de um contexto que incluía, dentre

outras coisas, um grande “mal-entendido” sobre o trabalho corporal no

teatro, tal como nos aponta Peter Brook:

(...) o corpo, por anos e séculos, havia sido mal desenvolvido pelo
ator; de maneira que toda a atenção, nos anos sessenta, se focou
no desenvolvimento do corpo. Mas houve uma triste decepção
entre atores e grupos que haviam trabalhado de maneira
maravilhosa o seu corpo; ainda que fazendo exercícios acrobáticos
muito difíceis, não chegavam a um trabalho que mudasse a
qualidade da percepção do espectador, e a partir disso se começou
a ver que o desafio era muito maior e a obrigação era dar-se conta
que um corpo animado por sentimentos banais expressava
banalidade, e um corpo animado por uma emoção muito intensa,
muito brilhante, mas com um pensamento rígido, esquemático,
doutrinário, não podia dar uma expressão que tocasse
profundamente ao espectador. (BROOK, 1993:124b.)10

Brook, ao falar da delicadíssima noção de qualidade no trabalho

teatral, aponta essa íntima relação entre a qualidade do gesto, ou

resultado visível, e a do sentimento ou postura ética de quem realiza o

gesto – deixando bastante claro que essa relação não pode ser

compreendida unicamente a partir de uma análise objetivista ou

racionalista do trabalho: “ninguém tem dúvida alguma [sobre a presença

da qualidade], reconhece-se imediatamente” (BROOK, 1993:124a).

Podemos supor então, pelos seus escritos, que a partir desse cenário

(e como continuador de Stanislavski) Grotowski tenha percebido a

necessidade de se lidar não apenas com o aspecto estético, mas também o

10
Todas as citações de textos em espanhol e em inglês feitas neste capítulo foram traduzidas por nós para o
português.
aspecto ético do trabalho do ator, no sentido de uma total implicação

pessoal na ação cênica, envolvendo aí seus valores de vida, sua concepção

moral, seus relacionamentos humanos, além de uma total dedicação para

o domínio da técnica. 11

Percebe-se latente, todo o tempo, nos escritos de Grotowski, a busca

por uma “essência”, por essa “boa qualidade” que é aparentemente

impalpável mas, ao mesmo tempo, toca o espectador – impalpável por ser

algo que não se possa tomar nas mãos, manipular, mas ainda assim

corpóreo, concreto, sensível: um paradoxo para a nossa mente dualista.

Este paradoxo percorre todos os escritos de Grotowski. Ao lermos

suas palestras, proferidas nos períodos posteriores à publicação do

...Teatro Pobre (1992), vemos que ele chegou, com seus atores, a esse

ponto em que mente, corpo, intenção, realização, desejo, forma estão

implicados, um determinando o outro, com eventuais preponderâncias,

mas sem estabelecimento de uma hierarquia entre um e outro – ou seja,

estabelecendo relações de co-dependência.

No entanto, ao falar de suas buscas, vemos como a linguagem o trai

– não nos esquecendo que a linguagem, o modo de se abordar a questão,

reflete sempre uma visão de mundo: há em seu discurso sempre uma

oposição tensa entre técnica e espontaneidade, entre impulso criador e

11
Em sua entrevista a Schechner (GROTOWSKI, 1992:200-201), Grotowski rejeita a palavra “ética”, mas
por atribuir-lhe um valor de “moral” (que denota julgamento de valor); nós aqui tratamos “ética” no seu
sentido filosófico de regulador das ações humanas em relação ao seu coletivo.
forma, entre desejo “interior” e realização “exterior”, como se esses

elementos pudessem, concretamente, ter existência isolada, em separado

uns dos outros. Não podem. Foi pelo trabalho prático que Grotowski

conseguiu superar o dualismo entre precisão e espontaneidade de uma

forma que o discurso falado ou escrito de seu tempo jamais daria conta de

descrever, pelas próprias limitações da terminologia por ele utilizada. Ou

seja: no que concerne à superação da dicotomia entre técnica e

espontaneidade, a única resposta possível está na ação.

Na palestra Lo que Fue (GROTOWSKI, 1993b:39-40), Grotowski

afirma que o treinamento corporal do ator pode ter muitos aspectos úteis

ou interessantes, como criar precisão, concentração, confiança. No

entanto, o treinamento em si não leva à realização do ato humano, e

qualquer um que o busque a partir disso, de um caminho técnico, só

poderá encontrar ilusão e frustração.

Nenhum treinamento está em nível de se transformar em ato. (...)


Os exercícios, de qualquer forma, não têm sentido se, ao lado
deles, e indo adiante deles, de certa forma, não se cumpre a única
coisa que conta: o ato humano. (GROTOWSKI, 1993b:39a-b.)

E o que Grotowski chama de “ato humano” numa criação cênica?

Para podermos entender o significado dessa expressão, assim como de

muitos dos postulados de Grotowski, é preciso, antes de tudo, não perder


a perspectiva de sua ascendência stanislavskiana12, nem tampouco seu

desejo artístico, conectado ao seu próprio universo de referências. Como

nos diz Peter Brook,

para Grotowski a representação é um veículo. (...) Um sistema de


atuação é um caminho para a vida. Parecerá isso um slogan
religioso? Deveria parecer. (...) Sua tradição é católica ou anti-
católica; neste caso, os dois extremos se tocam. Ele está criando
uma forma de culto. (BROOK, 1992:11.)

Grotowski utiliza-se de uma infinidade de metáforas e conceitos

católicos para falar do seu trabalho: epifania, transcendência, ator santo,

confissão, oferenda, êxtase, amar ao outro como a si mesmo; ele as utiliza

sempre no sentido de dar nome a essa integração, a essa inteireza de

presença do ator e sua comunhão com o público – o encontro. Ele beira

com muito cuidado o campo do místico, de onde tira os termos que darão

nome àquilo que, no trabalho do ator, abarca um campo mais amplo do

que a razão ou os termos técnicos por ele conhecidos podem nomear

(embora tenha sempre deixado muito clara a diferença entre aquilo que é

espetáculo e aquilo que é ritual, colocando seu trabalho sempre dentro dos

limites do primeiro – vide principalmente GROTOWSKI, 1993d).

12
A quem interessava, sobretudo, “reproduzir as impalpáveis nuanças e profundezas da vida [a fim de]
absorver inteiramente o espectador, fazendo-o, a um só tempo, entender e experimentar intimamente os
acontecimentos do palco, enriquecendo a sua vida interior e deixando impressões que não se desvanecerão
com o tempo” (STANISLAVSKI, 1991:45).
Essa terminologia será sempre utilizada para criar um contexto que

mantenha o ator na busca da plenitude pois, para Grotowski, o teatro

como arte só será indispensável à vida se servir como lugar onde “não se

mente”, ou seja, onde a pessoa não está dividida; para tanto, é necessário

“cumprir o ato com o verdadeiro amor”: “que é esta plenitude? começa por

aqui: não ser morno. (...) Não esconder-se e não estar dividido nunca

foram mais que a mesma coisa” (GROTOWSKI, 1993b:46c).

Ao longo dos anos, o trabalho de Grotowski vai encontrando

maneiras diversas de empreender sua busca, até chegar a afastar-se dos

palcos, na fase conhecida como Arte Como Veículo. E, se nos escritos da

época do Teatro Pobre (cujo livro teve sua primeira edição lançada em

1968), conectado ao princípio da transcendência, ele afirma que “[o corpo

do ator] deve ser treinado para obedecer, para ser flexível, para responder

passivamente aos impulsos psíquicos, como se não existisse no momento

da criação” (GROTOWSKI, 1992:216) – o que indica uma postura bastante

dualista do trabalho do ator – vemos um posicionamento bastante diverso

nos seus escritos posteriores.

Em suas palestras da década de 70, Grotowski apresenta a busca de

um trabalho em que todo o ser do ator está integrado, sem distinção entre

impulso e ação, entre raciocínio e movimento, de uma forma que seja

impossível discernir o que é um, onde está o outro. Essa proposição nos é

apresentada, primeiro, pela idéia de corpo-memória.


“Não é que o corpo tenha memória. Ele é memória” (GROTOWSKI,

1993a:34c). Esta concepção de memória seria não simplesmente a

recordação de fatos, mas sim os sintomas de vida que surgem sempre que

o corpo se põe em ação. Se se trabalha com o máximo de precisão, em

todos os detalhes, mas sem o controle racional e a premeditação (“devo

fazer isto, depois isto, agora aquilo”), os ritmos, os fluxos, os impulsos

surgem organizados por este algo que não se reduz ao raciocínio, que é o

corpo-memória – fazendo com que se mantenham, simultaneamente, no

trabalho, a precisão e a espontaneidade por ele almejadas.

Segundo Grotowski, se o ator ordena a si mesmo – ainda que entre

ordem e execução haja menos que imperceptíveis frações de segundo –

aquilo que ele deve fazer em determinados momentos, é o pensamento

racional que está no comando: o ator está dividido, não há mais

integralidade. No entanto, se se permite que o corpo (no sentido do corpo-

memória), sem perder a precisão dos detalhes, faça por si mesmo as

adaptações, modificações, composições que o momento criativo pede,

então aí sim essa ação estará conectada à vida.

Para Grotowski, atuar só lhe serve dentro do sentido estrito de

cumprir o Ato: de entregar-se todo, inteiro na ação, e com isso tocar, afetar,

modificar o outro. Para isso, o ator deverá criar uma relação de confiança e

aceitação de si mesmo, através do trabalho com o corpo; aqui, a idéia de

treinamento como aperfeiçoamento é completamente descartada:


Quem pressupõe aperfeiçoar-se, na verdade retarda o Ato. Quem
diz: “estou me aperfeiçoando eticamente – a cada dia vou mentir
menos”, afirma na verdade que vai mentir. Se pensamos em
categorias de aperfeiçoamento, de desenvolvimento de si mesmo e
coisas parecidas, confirmamos nossa fraqueza de hoje. De fato isso
significa o desejo de evitar o Ato, de evitar o que deve ser cumprido
agora, hoje. (GROTOWSKI, 1993a:38b.)

O Ato não surge a partir do domínio ou do uso de procedimentos

técnicos previamente estabelecidos; o que ocorre é que quando se cumpre

o Ato, é como se a técnica passasse a existir por si mesma – pois ela

emergiria da vivência, da presença do ator como corpo-memória em cena.

Assim, Grotowski inverte a relação tradicional que se tem com a questão

da técnica (na qual se prega que apenas o domínio perfeito do artesanato

do ator poderá se transformar em arte), afirmando que se não há técnica, é

porque não há arte – e não o contrário .“A falta de técnica é então sintoma

de falta de honestidade. Só existem experiências, não o seu

aperfeiçoamento. O cumprimento é hic et nunc [aqui e agora]”

(GROTOWSKI, 1993a:38b).

A idéia de corpo-memória evolui, nos textos de Grotowski, para a de

corpo-vida, já que a memória do corpo é, para Grotowski, a totalidade de

nossa vida – e também pelo perigo de o termo memória induzir a uma

nostalgia letárgica, ao invés do mergulho na potência que é o corpo

(GROTOWSKI, 1993a:35b). Este termo é cunhado para tentar trazer para a


experiência de criação proposta por ele uma maior concretude, já que “a

loucura da criação” –

exige ter pontos de orientação palpáveis, concretos, que permitam


distinguir de maneira muito simples o real do irreal. Esse campo
do palpável está constituído pela nossa vida. Se digo nossa vida,
no entanto, esse é um termo muito abstrato. Mas existe um
âmbito que é a nossa vida de um modo evidentemente nada
abstrato – esse âmbito é o corpo.
Precisamos dar-nos conta de que nosso corpo é nossa vida. Em
nosso corpo, todo ele, estão inscritas todas as nossas experiências.
Estão inscritas na pele e debaixo da pele, desde a infância até a
idade madura, e ainda talvez desde antes da infância e desde o
nascimento da nossa geração. O corpo-vida é algo palpável.
(GROTOWSKI, 1993:43a.)

Aqui, Grotowski parece cair numa tautologia: para descrever seu

trabalho, afirma que ele é a própria vida; essa vida é, concretamente, o

corpo; e o corpo é a própria vida, a pessoa inteira. Nota-se então o

abandono de suas concepções iniciais, conectadas ao princípio de controle

do corpo.

É preciso não perder de vista que o próprio Grotowski afirmou ter

conduzido seus trabalhos de forma pragmática – ou seja, as descobertas,

definições, caminhos vinham do exercício do fazer. Assim, não podemos

esperar encontrar em seus escritos conceituações definitivas, estritas,

delimitadas. Está implícito no discurso de Grotowski, e ele mesmo o indica

várias vezes, que apenas na ação é que esses termos, essas idéias todas

sobre as quais ele discorre poderão ser compreendidas.


Isso nos leva a um importante aspecto a ser considerado: o fato de

que, para se compreender adequadamente o fazer proposto por Grotowski,

seria necessário, antes de tudo, passar concretamente pela experiência que

ele propõe, vivenciar essas experiências com a intensidade e dedicação

requeridas pelo próprio Grotowski. É preciso tomar muito cuidado para se

discutir em termos estritamente intelectuais sobre assuntos e conceitos

que só podem emergir no fazer criativo, estando suas existências

condicionadas à ação. O próprio Peter Brook, tendo convivido tão de perto

com o trabalho de Grotowski, se coloca da seguinte forma:

Não vou descrever seu trabalho [de Grotowski com os atores da


cia. de Brook]. (...) o trabalho é essencialmente não-verbal.
Verbalizar seria complicar e até destruir exercícios tão claros e
simples quando assinalados pelo gesto e executados pelo espírito e
corpo como um todo. (BROOK, 1992:10.)

O que podemos depreender com clareza de seus textos é que o termo

corpo-vida remete à postura ética anteriormente citada, à implicação total

do ator com todo o seu ser, em um ato de comprometimento com aquilo

que está fazendo. Com isso Grotowski demarca muito claramente seu

território de trabalho, longe do teatro de entretenimento e do show

business (e, sobretudo, rompendo com a tradição do teatro baseado no

texto literário). Coerente com sua origem stanislavskiana, Grotowski

acredita que o teatro é um lugar privilegiado para se explorar o que há de


mais profundo na alma humana, em suas relações com o próximo, com o

divino, consigo mesmo.

Na palestra Los Ejercicios, quando questionado sobre como

encontrar a sinceridade no trabalho do ator, Grotowski fala em coragem:

coragem, confiança, amor e aceitação de si mesmo. Na sua opinião, a

maior parte dos bloqueios que os atores têm não se apresenta

simplesmente no comportamento muscular, mas principalmente em sua

atitude em relação ao próprio corpo – o que não tem a ver necessariamente

com vergonha ou timidez: também o exibicionismo, o narcisismo são

formas de não-aceitação.

É como se todos os nossos fracassos e nossa falta de perfeição na


vida fossem projetados no corpo. Quer-se aceitar o próprio corpo,
mas ao mesmo tempo não se o aceita. (...) Todo o tempo o ser está
dividido em “eu” e “meu corpo” como duas coisas distintas.
(GROTOWSKI, 1993a:35c.)

Para que o ator possa viver e criar, ele precisa aceitar-se: aceitar sua

condição atual é o “sintoma” ou resultado último de não estar dividido.

Grotowski é enfático ao afirmar que essa é a semente para a criação, para

a vida, para possível integralidade.

Alguns atores durante os exercícios chamados físicos se torturam,


se martirizam. Isto não é superar-se a si mesmo, mas sim é uma
manipulação com base na repressão e no sentimento de culpa. O
superar-se a si mesmo é “passivo”; é: não defender-se diante do
superar-se a si mesmo. Isso é tudo. (GROTOWSKI, 1993a:36a.)
Assim, pela análise de seus escritos, vemos que Grotowski, em sua

prática, supera os dualismos que se imiscuem o tempo todo em nosso

discurso e nas nossas condutas a partir (embora ele não o diga

exatamente com essas palavras) da entrega. Desconstruir entendimentos

dualistas foi a única maneira de solucionar os problemas causados pelas

dicotomias entre corpo e mente, ou seja, eliminar a separação que impede

a criação do Ato, sem manipulação da racionalidade sobre o movimento,

sem que o contato com as informações que emergem do corpo gerem um

trabalho disforme. É preciso que o ator esteja ali experienciando o

presente imediato, sabendo o que faz e o que quer, mas sem medir as

conseqüências, sem se perguntar de antemão qual o ganho advindo do que

faz, sem se poupar na ação para evitar a crítica do outro ou do próprio

alter ego. Ele o faz porque, com prazer ou com angústia, ele sabe que é

isso o que ele tem de fazer; ele sabe que esse é o trabalho do ator: agir,

criar o Ato.

E essa, paradoxalmente, é uma coisa impossível de se explicar: se

uma pessoa nunca sentiu o prazer da entrega, tudo o que se diga a

respeito irá parecer vago, metafísico, histérico, banal. Isto porque,

cognitivamente, somos incapazes de acessar um conhecimento que o corpo

não tenha experienciado. Mas se ela o tiver sentido na carne, ainda que

uma única vez, por um momento fugaz, ela sabe o que é – e que não há
caminho de volta possível: ou você escolhe ignorá-lo, ou passa o resto de

sua vida buscando por ele de novo.

2.2 – Integridade como Caminho para o Ato: movimento corporal e

voz

O que é imperceptível exige precisão.


Grotowski, 1992:93.

Em sua pesquisa sobre o trabalho do ator, Grotowski sempre se

norteou pela busca de uma conexão mais intensa entre a intencionalidade

e materialidade do corpo do ator: “o resultado [da educação do ator] é a

eliminação do lapso de tempo entre impulso interior e reação exterior (...).

Impulso e ação são concomitantes: o corpo se desvanece, queima, e o

espectador assiste a uma série de impulsos visíveis” (GROTOWSKI, 1992:

14-15).

No livro Em Busca de um Teatro Pobre, o artigo O Treinamento do

Ator é iniciado com a seguinte declaração: “o contato entre a platéia e o

ator é vital no teatro” (GROTOWSKI, 1992:145). Assim, vemos que, mesmo

em sua proposição de treinamento físico-vocal, a primeira preocupação de

Grotowski é deixar claro que todo o treinamento do ator deve ser norteado

pela busca dessa comunhão, nunca pelo virtuosismo ou autoconhecimento


descontextualizados. Ou seja, o treinamento é visto como um caminho

para o acontecimento do encontro:

Por meio de um processo de treinamento físico e vocal exigente,


Grotowski encorajava seus atores a realizarem um ato total, a se
sacrificarem diante do público por meio de uma partitura
corpóreo-vocal que revelava experiências significativas de sua
própria vida e que servia como o catalisador para um processo de
transformação interna, tanto no ator como no espectador.
(CAMPBELL, 2005:27.)

Ao estudarmos o trabalho do ator em Grotowski, seja em

treinamento, seja em processo de criação, notamos que isso está sempre,

de alguma maneira, colocado em relação ao espectador (ou, mais

especificamente, ao outro, seja ele o espectador ou seu companheiro de

cena); acreditamos que perder isso de vista é perder profundidade, perder

a perspectiva do trabalho de ator em Grotowski. Isso pode parecer um

paradoxo, se pensarmos na evolução do seu trabalho até chegar no “Arte

Como Veículo”; no entanto é preciso lembrar que “colocar-se em relação ao

outro” é muito diferente do “colocar-se à venda” que ele renega já na fase

do Teatro Pobre. Ele próprio considerava a si mesmo, como diretor, como

“o primeiro público” de seus atores;13 e, a partir disso, guiava a

estruturação das partituras:

13
A esse respeito, ver principalmente GROTOWSKI, “El Director como Espectador de Profesión”, 1993c e
“El Montaje en el Trabajo del Director”, 1993d.
Neste momento [do trabalho, o ator] está procurando (...) a
eliminação do supérfluo, bem como os sinais necessários para a
expressão. Então pensa: “o que eu estou fazendo é
compreensível?” A pergunta implica na presença do espectador. Eu
também estou ali, guiando o trabalho, e digo ao ator: “Não
compreendo”, “Compreendo”, “Compreendo mas não acredito”...
(GROTOWSKI, 1992:183; grifo nosso.)

Em sua busca pelo encontro, pelo desnudamento, pelo ato humano,

uma das principais questões com que Grotowski se depara é a de como

trabalhar a oposição entre estrutura e espontaneidade, fazendo com que

ambos deixem de ser uma oposição e se tornem – precisão e

espontaneidade – um todo íntegro na criação do ator. Porque a entrega

absoluta às emoções e memórias gerará um trabalho cuja força se perde

numa estrutura amorfa; ao mesmo tempo, uma técnica manipulativa mata

o sentido de verdade da ação, e então não se realiza o Ato.

Como apontamos na seção anterior, o treinamento, para Grotowski,

só terá sentido se conduzir ao cumprimento do Ato – e o Ato sempre nos

coloca em relação com o outro: “O ato do corpo-vida implica na presença

de outro ser humano, a comunhão de gente. (...) E se com seu corpo-vida

você toca alguém, esse alguém aparecerá naquilo que você faz”

(GROTOWSKI, 1993b:43c).

Quando o ator se coloca nesse estado de disponibilidade ou de

espontaneidade, como preconizado por Grotowski, esse “outro” ao qual o

ator se dirige e de quem ele recebe seus estímulos passa a ser não apenas

uma outra pessoa (companheiro de cena ou espectador), mas também o


próprio ambiente. Assim, o Ato do corpo-vida não se limita a uma relação

dialógica com outra pessoa – o que, acreditamos, poderia degenerar em

uma relação psicologizada ou narcisística – mas abre-se no sentido de uma

relação sistêmica com o todo que o cerca: “podem ser os seres, o espaço, a

paisagem que nos habita, o sol, a luz, a falta de luz, o espaço aberto, ou

fechado – sem cálculos. Tudo começa a ser corpo-vida” (GROTOWSKI,

1993a :37a).

Thomas Richards (1995), em seus comentários sobre seu período de

treinamento com Grotowski, diz ter percebido muito claramente a

diferença entre algo que é (apenas) “movimento” e algo que é “ação” (com

um significado cênico): em uma ação, aquilo que se faz não tem um

sentido apenas “em si”, ou para o próprio ator; é algo que deve ser feito

com “um porque, um para quem ou um contra quem” (RICHARDS,

1995:74; grifos do original). Grotowski separa como “atividades,

movimentos, gestos, sintomas” o primeiro, e “ações físicas; ações, reações,

pontos de contato” o segundo;14 assim vemos que, para Grotowski, uma

ação cênica é sempre algo que está em relação com o outro.

Acreditamos vir daí a diferença entre o que Grotowski nomeia como

aquilo que vem “do interno” do ator e aquilo que é “externo” (no sentido de

superficial): “interno” ou “profundo” seria aquilo que tem uma

14
“Muito freqüentemente um gesto é um movimento periférico do corpo, um gesto não nasce do interior do
corpo, mas de sua periferia (as mãos e o rosto)” (RICHARDS, 1995:75; grifo do original). Esse “interior”
Grotowski irá relacionar, fisicamente, à coluna vertebral, de onde nasceriam todas as ações e reações
verdadeiras (não-superficiais), ponto de vista que será compartilhado por Eugênio Barba e Luis Otávio
Burnier.
intencionalidade (seja ela considerada racional ou emocional) da parte do

ator, no sentido de tocar ou comunicar-se com o outro – colega de cena ou

espectador.

Uma linha de ações físicas, por exemplo, pode “morrer” (tornar-se

mecânica, ou superficial) pela perda de contato com o parceiro; esse

contato mantém a linha de ações viva porque o parceiro oferece sempre

novas informações (já que é uma pessoa viva, a todo instante diferente) às

quais o ator deve se ajustar. Isso o obriga a ficar “vivo”, a manter-se

atento, com todo o seu corpo disponível, reagindo organicamente – isso é o

que Grotowski (assim como Stanislavski, antes dele), considera como

“verdadeira espontaneidade” (RICHARDS, 1995:81). E essa

“espontaneidade de alto nível” só poderá surgir em algo estruturado: a

liberdade criativa do ator está não na possibilidade de mudar as ações ,

mas nos ajustes constantes que se faz em reação ao outro e ao ambiente

em redor. “Espontaneidade é impossível sem estrutura. Rigor é necessário

à espontaneidade. ‘O que fazer agora?’ – essa é pergunta que torna toda a

espontaneidade impossível” (GROTOWSKI apud RICHARDS, 1995:82).

Richards relata ter encontrado no trabalho com Grotowski os dois

pólos fundamentais do trabalho teatral: “precisão, ou forma, de um lado, e

o fluxo da vida, de outro” (1995:21) – como se vê, ele coloca ambos os

elementos como dois aspectos opostos (literalmente, “forças opostas”, no

original), ainda que inseparáveis. Grotowski relata em Los Ejercicios

(1993a) ter buscado uma solução para essa dicotomia de como ter o
máximo de precisão nos exercícios e, ao mesmo tempo, deixar que a vida,

a espontaneidade do ator pudesse afluir e afetar esses exercícios. Aqui,

pode-se aferir que Grotowski pensava os produtos cênicos não como finais,

mas sim, como processuais, onde o espaço para a novidade estivesse

preservado, condição para a evolução de toda e qualquer proposição.

De uma coisa ele se diz certo: não será através de um treinamento

puramente mecânico, ginástico, que se chegará a esse lugar. Através de

um treinamento assim os atores podem se tornar hábeis, mesmo

virtuosos, mas em movimentos específicos. No que diz respeito à expressão

vital, aos “pequenos movimentos, sintomas da vida”, eles estarão

bloqueados. No treinamento virtuoso “o corpo não está liberto; o corpo está

amestrado. A diferença é enorme” (GROTOWSKI, 1993a:31c).

Não se deve “treinar”. A própria palavra “treinamento” não é


correta. (...) Nesse tipo de trabalho, que é diferente dos ensaios,
deve-se confrontar o ator com aquilo que é o gérmen criativo. (...)
Acredita-se que um certo tipo de treinamento preparatório, sob a
condição de submetermo-nos a ele por um tempo suficientemente
longo, possa nos conduzir ao Ato. Mas aquilo que uma pessoa que
se exercita recebe dessa espera não é mais do que uma perfeita
ilusão. (GROTOWSKI, 1993b:32c; 39b.)

Para um ator, comandar seus movimentos com agilidade é

interessante – mas não é o que realmente interessa. Porque, como

Grotowski e seu grupo perceberam com clareza, quando o ator está no

comando do movimento, ele está dividido: racionalidade de um lado, corpo


de outro; a inteireza do ator já não existe mais. Assim, não é tanto de

savoir faire que um ator precisa, mas sim de “não hesitar diante do

chamado, quando se trata de realizar o desconhecido” (GROTOWSKI,

1993b:40b).

Grotowski relaciona o “estar íntegro na ação” com o risco: quando

um ator domina inteiramente um movimento, uma ação, quando já não há

mais a necessidade de “mobilizar toda a sua energia e adaptar toda a sua

natureza” para realizar a ação, naturalmente o ator continua realizando-a

bem, e mesmo com perfeição técnica, “mas novamente como um ser

dividido em consciência de um lado e corpo do outro” (GROTOWSKI,

1993b:40a). Se o ator mantém sempre a noção de sobrepujar a si mesmo,

aos seus limites no trabalho; para realizar aquilo que lhe é desconhecido,

será preciso que ele “evoque todos os elementos do seu ser, o seu ser

inteiro” (GROTOWSKI, 1993b:41a).

Toda essa noção de integridade e entrega, de corpo-vida e Ato, será

de fundamental importância para a compreensão do trabalho vocal em

Grotowski. Como ele afirma, “se vivemos inteiramente, a palavra nasce da

reação do corpo. A reação do corpo engendra a voz, a voz engendra a

palavra” (GROTOWSKI, 1993b:42b).

Já na preparação de ator proposta por Grotowski em Em Busca de

um Teatro Pobre (1992) movimento corporal e voz estão sempre

interligados, e sempre ao mesmo tempo preenchidos e guiados tanto por


imagens sensíveis que estimulam a expressão, quanto pela busca da

precisão e da consciência de cada ação – vocal e/ou de movimento. Mas se

nos artigos ali publicados as informações sobre o trabalho vocal dizem

respeito principalmente a descrições objetivas de exercícios práticos,

encontramos, por outro lado, no texto La Voce (GROTOWSKI, 1969) uma

reflexão bastante aprofundada de Grotowski sobre o papel da produção da

voz e da ação vocal para a preparação e a criação do ator.

Nesse texto Grotowski documenta, a partir de suas experiências,

uma série de fatos sobre o trabalho de voz para atores, com suas

especificidades e matizes que se diferenciam daquilo que a fonoaudiologia

e o estudo da voz cantada podem nos dizer, e ao mesmo tempo derruba

uma série de mitos e mal-entendidos presentes ainda hoje na formação

tradicional da voz no teatro.

Antes de detalhar as pesquisas feitas com seu grupo, Grotowski

discorre sobre os maiores problemas encontrados por ele na formação

vocal dos atores: a interferência premeditada no processo respiratório,

principalmente por exercícios de voz que acentuam excessivamente a

expiração controlada (para dar mais “tempo de fala” em falas longas), e o

bloqueio da laringe causado por exercícios de dicção baseados na

pronúncia das consoantes.

Sobre a respiração, ele é absolutamente enfático ao declarar que a

única e melhor coisa que se pode fazer por ela é deixá-la livre, o mais
natural e ampla possível. Exercícios de controle respiratório de qualquer

tipo resultarão sempre em tensões no tronco e na garganta que levarão ao

bloqueio da glote (ainda que imperceptível, esse bloqueio poderá, ao longo

do tempo, gerar patologias vocais sérias) e, principalmente, à perda da

naturalidade do movimento do corpo e da produção da voz, seja no

treinamento, seja nos processos de criação cênica. Ele critica inclusive a

prática (muito comum e estimulada entre os atores) da natação (ou

atletismo em geral) e do yoga15 para o desenvolvimento da respiração, já

que essas atividades utilizam a respiração de maneira muito específica e

dirigida para fins muito diversos daqueles que interessam aos atores; elas

possuem aquilo que Grotowski chama de “defeitos profissionais” – o que

poderíamos descrever como um modo específico do desenvolvimento e

utilização da respiração, que serve eficientemente apenas àquela atividade

em questão, seja a natação, o atletismo ou a meditação.

Falando sobre a respiração e, logo depois, sobre a produção da voz o

ponto mais enfatizado por Grotowski será sempre o fato de que o ator não

deve atuar racionalmente sobre si mesmo, corrigir-se, manipular sua

respiração ou sua voz, ao contrário, deve sempre encontrar os caminhos

para que ambos fluam naturalmente, organicamente. Interferir

15
Especificamente sobre o yoga Grotowski declara que o hatha-yoga induz a uma diminuição da freqüência
corporal, e o treinamento e o trabalho do ator pedem o contrário; assim, o uso dessa técnica pode criar erros e
bloqueios no corpo do ator. “Todos sabem que, para usar a voz, é necessária uma respiração ampla, aberta,
natural. Eles (os professores que se apropriam dos exercícios de yoga) se servem de uma terminologia
diversa. E, além disso, acreditam que já estão em condições de fazer esses exercícios. Mas não dominam a
proposta exata, e então tomam da proposta mais conveniente, aquelas fornecidas pela técnica psicofísica
fornecida por uma outra cultura, com objetivos completamente diversos. Isto é irresponsabilidade. Estes
exercícios vocais são somente um mito” (GROTOWSKI, 1969:170).
racionalmente nos processos que o corpo implementa irá desfavorecer as

soluções que, em primeira instância, seriam mais naturais – aquilo que ele

chamará de vida, ou corpo-vida na criação do ator.

A espontaneidade também é outro ponto em que Grotowski insiste

particularmente. A voz só será livre e espontânea (entendendo

espontaneidade, aqui, no sentido que Grotowski lhe dá, de adaptações que

o corpo opera a partir de relações estabelecidas) se o ator – tal como

qualquer pessoa comum, ao cantar enquanto trabalha ou se diverte –

deixá-la fluir naturalmente, acompanhando o trabalho físico, com prazer.

Assim, não só a relação entre movimento corporal e produção da voz será

sempre orgânica (orgânico aqui se opondo a mecânico, portanto,

artisticamente limitado) como evitará qualquer problema vocal, já que não

haverá bloqueio da laringe, pois o corpo está integralmente envolvido em

toda a ação, e seus impulsos fluem naturalmente.

Não exagerem com aquilo que se chama de “treinamento da


vontade”. O desenvolvimento de si mesmo não é alcançado por
uma vontade rígida, como a morte, mas por um meio que leve em
conta a totalidade da vida, uma atitude que concentra todos os
nossos esforços em um único ponto. (GROTOWSKI, 1969:163.)

Grotowski relata, em seu texto, que ao longo dos anos observou e

conversou com diversos especialistas e atores de países diversos. Ele

afirma que o fato de observar o modo de falar de diversos povos, diversas

culturas, foi o que lhe fez ver a possibilidade extensa, quase infinita, do
uso dos vibradores da voz, muito além da tradicional “máscara” do teatro

europeu. Suas observações o levaram a concluir que cada povo fala

ressonando a voz em um ponto diferente: os chineses no topo da cabeça,

vários povos africanos na laringe, alguns povos eslavos no abdômen, os

alemães fazem soar as palavras principalmente nos dentes (essa é, pelo

menos, a sua impressão). E a cada um desses vibradores ele associou a

imagem de um animal: tigre, vaca, lobo etc. (no caso do gato, por exemplo,

é a espinha dorsal que fala).

Parece-nos que associar cada um dos vibradores a um animal é

uma forma de aproximar o uso deles da experiência comum dos atores –

talvez nenhum deles tenha visto um chinês falar, e se o vir, talvez fique

confuso e não consiga identificar o vibrador em ação; mas um animal é

uma imagem capturável, manipulável, de fácil compreensão e já de

antemão digerida pela imaginação – além do quê, quem não brincou de

imitar animais quando era criança? Assim, é muito mais simples, mais

factível e efetivo pedir a um ator que imite uma vaca ou um tigre – o que

também faz com que ele desarme um controle totalmente racional sobre a

execução vocal e motora do exercício, pelo lúdico que a proposta traz – do

que pedir a ele que fale como um chinês, um africano, ou que faça a voz

ressoar aqui ou ali, o que traria uma carga muito grande de controle, de

manipulação racional, o que Grotowski quer evitar a todo custo.

Grotowski cita que, ao pesquisar com os vibradores, a voz dos

atores, apesar de ter tido um ganho expressivo, ainda assim soava


mecânica, um tanto artificial. Perguntando-se o porquê disso, deu-se conta

de que haviam caído no mesmo erro cometido com os exercícios vocais

tradicionais: o autocontrole – embora o controle não mais se dirigisse ao

aparelho fonador, interferiam ativamente nos vibradores, e isso destruía os

seus propósitos de implementar um trabalho orgânico.

Notei que, no trabalho, os atores podiam usar – se pesquisavam


certas formas vocais – cores premeditadas da voz. Mas se
começavam a agir com a totalidade do seu ser, era totalmente uma
outra coisa, então não eram mais os vibradores conscientemente;
ou talvez os vibradores, que os atores queriam usar
conscientemente, bloqueavam o processo orgânico. (...) Primeiro
observávamos o instrumento vocal; agora observávamos todo o
corpo ou certas regiões do corpo e, por esse motivo, a voz era
muito mais forte – não era simplesmente que os vibradores haviam
posto em movimento os diversos tipos de voz, era inclusive o fato
de que havíamos deixado de observar, de controlar o instrumento
vocal. Controlar o corpo é mais natural, mas ainda assim é auto-
observação. (GROTOWSKI, 1969:174; 175.)

Ele notou que, quando tentavam pôr em ação o vibrador da laringe

de modo controlado, os atores ficavam roucos. A coisa só funcionava

quando eles buscavam liberar o animal selvagem neles mesmos – tigre,

etc. – em forma de jogo ou luta ou ação “em relação a”, ou seja, em relação

ao outro, ao externo, no “vis-a-vis”. Outra solução encontrada foram os

exercícios de eco, em que a voz era direcionada em vários sentidos (para o

teto, para trás, para frente, para o chão), e a cada vez vibradores diferentes

eram acionados. Também o fato de se estar direcionando a voz para o

espaço faz com que o ator não ouça somente a si mesmo, mas também ao

eco que ele produz na sala, evitando-se os prejuízos causados pelo auto-
controle. “A voz não é automática, não é dura nem pesada, ela é viva. A

sua atenção está dirigida para o externo, você produz um eco – o fenômeno

é externo e, ao mesmo tempo, você ouve o eco, o fenômeno externo – isso é

que é natural” (GROTOWSKI, 1969:176).

Ainda assim, mesmo com todos esses exercícios e cuidados, ainda é

muito fácil cair no mecanicismo; e ele se pergunta: “essa tentação, esse

pecado original, como se pode evitá-lo? Buscando associações, dizendo ‘o

teu amigo está lá em baixo – no abismo –, no fundo, no fundo...”

(GROTOWSKI, 1969:177). A partir de nossas leituras, nos parece que

aquilo que Grotowski busca é construir entendimentos não-dicotômicos e,

para tanto, estabelece procedimentos criativos que desfavoreçam a

supremacia da racionalidade sobre o corpo. Por isso o enfoque em

imagens, no espaço, ou o próprio trabalho de exaustão.

(...) não se deve fazer exercícios vocais, mas sim deve-se usar a voz
em exercícios que empenhem todo o nosso ser e nos quais a voz se
liberará por si mesma. Talvez se deva trabalhar falando, cantando,
mas não se deve trabalhar sobre a voz, deve-se trabalhar com todo
o seu ser, com todo o corpo. Sei também que não se deve trabalhar
em posições fixas, rígidas; que todas as posições-chave dos atores
que trabalham a voz bloqueiam a voz e basta. Todas essas
posições simétricas, geométricas, posições sem movimento ou com
movimentos automáticos – tudo isso é estéril. (GROTOWSKI,
1969:179.)

É interessante notar-se que, quando Grotowski diz que combinar os

diversos vibradores é como “fazer uma brincadeira de criança” e que “pode-

se encontrar as vibrações bastante rapidamente [no corpo]” (GROTOWSKI,


1969:174), ele está falando isso dentro de um determinado contexto, onde

seus atores treinam diariamente, exaustivamente, e sempre num sentido

de entrega total – onde todas as instâncias corporais estão envolvidas, na

mesma medida. Aí sim, pode-se entender que as brincadeiras com os

vibradores possam surtir efeito muito rapidamente. Acreditamos que muito

do mito que se construiu em torno desses vibradores – principalmente no

que se refere ao fato de eles serem apenas “sugestivos”,16 e não

eminentemente corporais, se deve ao fato de muitos atores tentarem obter

o resultado visto ou descrito por Grotowski sem passar pelo mesmo tipo de

processo de treinamento, de entrega e desbloqueio de todo tipo (físico –

principalmente da coluna vertebral –, emocional, imagético etc.).

Considerando o corpo todo como um vibrador e a íntima relação

entre produção da voz e a realização do Ato, uma das pesquisas mais

significativas de Grotowski, na fase do “Arte como Veículo”, foi o trabalho

com “canções tradicionais”, ou canções rituais de antigas tradições.

Essas canções aproximam-se bastante dos mantras hindus, no

sentido de serem “uma forma sonora bastante elaborada, cuja execução

engloba a posição do corpo e a respiração, fazendo surgir uma

determinada vibração em um tempo-ritmo tão preciso que influencia o

tempo-ritmo da mente” (GROTOWSKI, 1995:127). Grotowski, no entanto,

se distancia do mantra em favor das canções tradicionais porque estas são

mais “disponíveis” para interagir com os impulsos e micro-ações

16
Esta questão será discutida mais detalhadamente no próximo capítulo desta dissertação.
espontâneas do corpo. Segundo Grotowski, “os impulsos que percorrem o

corpo são os mesmos que carreiam a voz” (GROTOWSKI, 1995:127);

impulsos corporais e vibração vocal, portanto, afetam e induzem um ao

outro, reciprocamente.

Um dos aspectos principais do trabalho com as canções é o fato de o

foco estar não na melodia, mas nas qualidades vibratórias do som,

inerentes à melodia. Essas qualidades vibratórias, particulares e

específicas a cada canção, segundo Grotowski, são tão tangíveis que

chegam a se tornar o próprio sentido da canção: “mesmo que uma pessoa

não entenda as palavras, a própria percepção da vibração em si já é o

suficiente” (GROTOWSKI, 1995:126).

Grotowski considera fundamental estabelecer a diferença entre

melodia e qualidade vibratória nas canções, principalmente em culturas

em que a tradição oral se perdeu, para que o trabalho possa ser realizado.

Isso porque, segundo Grotowski, o homem moderno, concentrando sua

atenção principalmente na linha melódica das canções, perdeu sua

capacidade de perceber as variações de ressonância de uma canção

(GROTOWSKI, 1995:127).

Se uma pessoa entende a canção simplesmente como melodia, e

começa a improvisar sobre essa melodia, torna-se impossível trabalhar

suas qualidades vibratórias – para tanto, é necessário que a melodia esteja

dominada, e seja executada de maneira precisa.


Vemos aqui, de certa forma, uma reedição das questões desde longa

data propostas por Grotowski sobre a integração, no trabalho do ator, de

forma e organicidade, precisão e espontaneidade. E, de fato, ele relaciona o

trabalho com as qualidades vibratórias com o da espontaneidade que

constrói o corpo-vida, ao afirmar que quando fala do “sentido” da canção,

ele está falando dos impulsos do corpo, “ou seja, a sonoridade e os

impulsos são o sentido, diretamente” (GROTOWSKI, 1995:126).

Com a diferença fundamental, neste ponto, de que ele percebe que,

quando um ator realmente mergulha nas qualidades vibratórias da

canção, esta se enraíza nos impulsos e ações, “e então, repentinamente, a

canção começa a nos cantar” (GROTOWSKI, 1995:127; grifo do original).

Há aqui, pelo que podemos depreender dos textos de Grotowski e Richards

sobre esse assunto, uma mudança na percepção do ator, sobre si mesmo e

sobre a ação realizada.

O que nos remete ao seguinte ponto: Richards, ao narrar o seu

trabalho com as canções tradicionais, afirma que, a princípio, “era minha

mente que cantava, e não o fluxo do meu corpo” (RICHARDS, 1995:61). No

entanto, como já foi visto no Capítulo I desta dissertação, os estudos

contemporâneos das ciências cognitivas nos mostram que mente e corpo

são manifestações indissociáveis daquilo a que chamamos eu, e estão em

constante intercâmbio, se co-determinando continuamente. Assim, se

“meu corpo” é eu (ou self, como preferem alguns autores) tanto quanto

“minha mente”, “minha alma”, “minha vida”, talvez a questão esteja em


saber não como ou por que se canta, mas – quem canta. Ou então, ao se

trabalhar a partir dos postulados e exercícios propostos por Grotowski,

talvez a pergunta que falte sempre ser feita é não se o racional estava no

comando ou não, se os vibradores funcionaram ou não, se a voz ressoou

aqui ou ali ou não, mas: houve o encontro?


Capítulo III – Conexões

3.1 – Vibração, Imaginação e Metáfora

Todo método que não se abre


no sentido do desconhecido é
um mau método.
Grotowski, 1992:105.

Em seus textos de Em Busca de um Teatro Pobre (1992), Grotowski

afirma poderem ser desenvolvidos um número praticamente infinito de

ressonadores pelo corpo do ator, dependendo do controle que este tenha

capacidade de exercer sobre seu corpo. No artigo “O Treinamento do Ator

(1962-1968)”, ele enuncia de maneira mais pontual aqueles que poderiam

ser considerados os principais ressonadores:

- a voz de cabeça (dirigida para o teto);


- a voz da boca (como se falando para o ar defronte do ator);
- a voz occipital (dirigida para o teto atrás do ator);
- a voz do peito (projetada para a frente do ator);
- a voz da barriga (dirigida para o chão);
- a voz elaborando-se:
a) nas omoplatas (dirigida para o teto, atrás do ator);
b) nas costas (dirigida para a parede atrás do ator);
- na região lombar (dirigida para o chão, a parede e a sala que
ficam por trás). (GROTOWSKI, 1992:147.)
Essa colocação tem gerado, ao longo dos anos, uma série de

suposições equivocadas a respeito do trabalho vocal de Grotowski, já que,

em termos científicos estritos, os ressonadores da voz humana limitam-se

às cavidades supraglotais (boca, faringe, cavidades nasais). Acreditamos

que essa contradição (entre a afirmação de Grotowski e as propriedades

anatômicas) tenha dado ensejo à seguinte afirmação de Jean-Jacques

Roubine, importante crítico e historiador do teatro ocidental que, em seu

livro A Arte do Ator, refere-se ao trabalho vocal de Grotowski nos seguintes

termos:

A teoria grotowskiana dos ressonadores não tem nenhuma


validade científica. Ela traduz, de modo metafórico, uma realidade
de experiência: o ator tem a sensação de que, de acordo com o
impulso dado à coluna de ar que ele inspira ou expira, a sua voz
passa por uma determinada parte do seu corpo, que age como um
amplificador e como um fator de colorido. (ROUBINE, 2002:23.)

Tomaremos essa afirmação de Roubine como ponto de partida para

uma discussão mais ampla sobre os ressonadores de Grotowski, por

acreditarmos que ela sintetiza bastante bem a opinião dos críticos desse

trabalho. E, para discutir essa colocação, começaremos por analisar os

relatos de trabalho do próprio Grotowski.

No livro Em Busca de um Teatro Pobre, ao se descrever o trabalho de

pesquisa com os infinitos ressonadores possíveis de se descobrir no corpo

do ator, encontramos, no subcapítulo “Caixas de ressonância”, do artigo O

Treinamento do Ator (1959-1962), a seguinte nota:


O termo “caixa de ressonância” é puramente convencional. Do
ponto de vista científico, não está provado que a pressão subjetiva
da inspiração de ar para uma determinada parte do corpo
(criando assim uma vibração externa no local) faça com que essa
área funcione objetivamente como uma caixa de ressonância.
Contudo, é inegável que essa pressão subjetiva, juntamente com
seu sintoma óbvio (a vibração), modifica a voz e seu poder de
emissão. (GROTOWSKI, 1992:126.)

Nesse sentido, o próprio Grotowski, em textos posteriores, corrigiu

essa distorção. Em seu texto La Voce ele afirma que “a grande aventura”

da sua pesquisa foi a descoberta dos ressonadores; e então pontua que, de

fato, “a palavra vibrador é mais exata porque, do ponto de vista da

precisão científica, não existe esse tipo de ressonadores [distribuídos pelo

corpo]” (GROTOWSKI, 1969:171. tradução nossa). Mais adiante, ele afirma

de forma categórica que

Muito freqüentemente as pessoas que já ouviram falar de vibração


– a partir de algumas histórias contadas por outros – pensam que
se trata de um fenômeno sugestivo. Não. É, de fato, uma vibração
física. Mesmo no abdômen – e é por isso que não falamos de
“ressonadores”, porque no abdômen, cientificamente falando, um
ressonador é impossível. Não há ossos. Ainda assim, há uma
vibração. Se se usa o vibrador do abdômen, a carne vibra naquele
ponto. (GROTOWSKI, 1969:173. tradução nossa; grifo nosso.)

Podemos notar nessa questão uma certa confusão – aliás muito

comum no trato com a voz humana – entre vibração e ressonância vocal.


Embora não tenhamos encontrado, na bibliografia consultada,17

definições precisas sobre a diferença entre vibração e ressonância na voz,

podemos afirmar, baseando-nos em estudos sobre a produção do som em

geral (principalmente JOURDAIN, 1998 e ROSSING, 1990), que vibração é

aquilo que surge a partir de algo que se move, ou que é movido: aquilo que

se move é o vibrador; ressonância é o aumento ou amplificação dada a

essa vibração: aquilo que a amplifica é o ressonador. Estendendo esses

critérios para a voz, podemos afirmar, de maneira esquemática, que

vibração diz respeito ao fenômeno físico da produção da voz em si e sua

conseqüente agitação das moléculas do ar atmosférico – o que faz com que

a percebamos como som; o vibrador da voz são as cordas vocais. A

ressonância, por sua vez, pode ser entendida como a intensificação do tom

fundamental ou de alguns harmônicos da voz, que ocorre nos seus

ressonadores, as cavidades supraglotais – pavilhão faringobucal, fossas

nasais e seios da face.

Dessa forma, podemos dizer que, ainda que ambos – vibração e

ressonância – sejam indissociáveis no ato da produção da voz humana,

são ainda assim fenômenos distintos. A ressonância, de fato, só pode

ocorrer em regiões muito específicas do corpo humano; já a vibração pode

atingir, por encadeamento de impulsos mecânicos (ou seja, uma partícula

é movimentada e transmite seu movimento para a próxima, e para a

próxima, e para a próxima, e assim sucessivamente), tanto um largo


17
CAMPBELL, 2005; GROTOWSKI, 1971; JOURDAIN, 1998; LE HUCHE, ALLALI, 2005; ROSSING,
1990; VALENTE, 1999; WISNIK, 2004; ZEMLIN, 2000.
círculo do ar atmosférico à nossa volta (atingindo assim os ouvidos

daqueles que nos cercam) como todas as partículas do nosso corpo – ou

seja: nosso corpo inteiro. Isso é o que se chama de vibração por simpatia.

Segundo Rossing (1990:60), para entender a vibração por simpatia,

podemos tomar como exemplo um diapasão18: quando batemos uma das

pontas do seu U em uma mesa, ele movimenta uma quantidade de ar

muito pequena com a sua vibração e, conseqüentemente, emite uma

quantidade pequena de som. No entanto, se nós pressionarmos a

extremidade do seu cabo contra o tampo da mesa, o diapasão vai fazer

essa larga área de madeira vibrar – essa é a vibração por simpatia; essa

vibração pode não ocorrer na freqüência de ressonância do tampo de

madeira, mas com certeza ela irá amplificar o som do diapasão devido à

grande superfície que foi posta em vibração, e que então faz uma

quantidade muito maior de ar se mover. Instrumentos de corda em geral,

por exemplo, como violinos, violões etc., dependem em muito da vibração

por simpatia para se fazerem ouvir, pois a maior parte do som que

propagam vem da vibração por simpatia de suas caixas de madeira,

causada pela vibração das cordas quando tocadas.

Acreditamos que o mesmo se aplica à produção da voz humana:

quando as cordas vocais vibram, todo o resto do corpo vibra também, por

18
Pequeno instrumento metálico em forma de U montado sobre um cabo que, posto em vibração, produz um
som de altura determinada – geralmente, em lá; é usado principalmente na afinação de instrumentos ou vozes
(cf. HOUAISS, 2001:vb. Diapasão).
simpatia – o que se encontra em conformidade com a própria experiência

relatada por Grotowski:

Quando pesquisei, eu mesmo, os diversos tipos de vibradores,


encontrei em mim vinte e quatro diferentes deles. E, para cada
vibrador há, ao mesmo tempo, a vibração de todo o corpo, com uma
maior vibração no ponto central da vibração: a vibração máxima é
onde se encontra o vibrador, o seu ponto de aplicação, onde se
põe em ação o vibrador. Mas, para dizer a verdade, o corpo inteiro
deveria ser um grande vibrador. O ator empenhado em uma ação
de modo total, sem pensar, é um grande vibrador. (GROTOWSKI,
1969:174. tradução nossa; grifo nosso.)

As afirmações de Grotowski são em si bastante expressivas: os

vibradores são, sim, uma força física, mas não serão nunca compreendidos

enquanto forem confundidos como sendo algo semelhante aos

ressonadores da máscara facial: a voz ressoa na face, mas vibra no corpo

inteiro – essa é a diferença. O trabalho de Grotowski foi o de, a partir de

estímulos imagéticos, do trabalho com o espaço etc., procurar maneiras de

dirigir ou concentrar essa vibração em determinadas regiões do corpo.

A pergunta a ser feita, neste ponto, é: como isso é possível? Como

um ator pode, a partir de estímulos imagéticos, conduzir e concentrar a

vibração simpática da sua voz em pontos específicos do seu corpo, a partir

de onde ela irradiaria com qualidades e timbres completamente diversos

daqueles de sua voz cotidiana?

Para responder essa pergunta é preciso, antes de tudo, entendermos

o que é a imaginação.
Imaginação é, basicamente, a capacidade que temos de criar

imagens. No senso comum (aquele traduzido, em geral, pelas gramáticas e

dicionários, e que permeia nosso entendimento das coisas), entende-se que

ela é “a faculdade que possui o espírito de representar imagens” (HOUAISS,

2001:vb. Imaginação – grifo nosso). Para espírito encontramos, dentre suas

muitas acepções: “a parte imaterial do ser humano; alma”; “substância

imaterial, incorpórea, inteligente, consciente de si, onde se situam os

processos psíquicos, a vontade, os princípios morais”; “mente,

pensamento, cabeça”. Para mente, encontramos como acepções principais

“sistema organizado no ser humano referente ao conjunto de seus

processos cognitivos e atividades psicológicas”; “parte incorpórea,

inteligente ou sensível do ser humano; espírito, pensamento,

entendimento” (HOUAISS, 2001:vb. Espírito; Mente). A imbricação desses

significados nos indica que a imaginação é considerada, comumente, como

algo impalpável (embora não imperceptível), da ordem do não-material, do

não-físico – ou seja, incorpóreo.

No entanto, os estudos contemporâneos de neurociência atestam

que a imaginação é sim um processo físico, totalmente co-dependente e

interligado ao corpo. Para entender essa questão, é preciso primeiro

procurarmos entender alguns aspectos dos processos mentais de onde se

origina a imaginação.

O que caracteriza uma mente é “a capacidade de exibir imagens

internamente e ordenar essas imagens em um processo chamado


pensamento” (DAMÁSIO, 1996:115-116) – imagens essas que podem ser

não somente visuais, mas também sonoras, olfativas, somatossensoriais

etc. É importante salientarmos que essas imagens não se formam como se

fossem fotografias, ou uma imagem cinematográfica “projetada” – elas são

construções do cérebro. Damásio propõe que a mente, ou nossas imagens

mentais, não se formam em um único ponto do nosso cérebro, em uma

única estrutura cerebral ou em um lugar específico do córtex: elas são

formadas por aspectos sensoriais diversos (som, odor, movimento etc.) que

ocorrem em regiões separadas, no cérebro, e são captadas

simultaneamente; nós as percebemos como “uma imagem” pelo fato de elas

surgirem de uma sincronia das atividades neurais, nessas regiões

cerebrais separadas (DAMÁSIO, 1996:121).

Segundo Damásio (1996:115), mesmo organismos unicelulares sem

cérebro produzem comportamento – ou seja, reagem a estímulos do

ambiente, seja de maneira visível a um observador externo ou não. Em

organismos mais complexos, a ação de resposta-comportamento pode

estar contida no próprio organismo (como uma contração em um órgão

interior ou a movimentação de um membro) ou se dirigir ao ambiente

(como deslocar-se ou agarrar um objeto). Quanto mais complexo o

organismo, mais neurônios surgem no caminho entre a recepção, a

transdução e o processamento das informações. E, embora todos esses

elementos sejam indiciais, nada disso ainda – comportamento, ação,

cérebro – significa que esse organismo tenha uma mente.


Isso porque, embora a mente se constitua como sistemas de

processamento de informações, é condição essencial a ser satisfeita, para

que se considere que um organismo dotado de sistema nervoso possui

uma mente, que esse organismo tenha a capacidade de formar

representações neurais que possam se tornar imagens manipuláveis no

processo a que se denomina pensamento, o qual acaba por influenciar

então o comportamento.

Nossos pensamentos são formados por imagens – um tecido de

imagens perceptivas: visuais, sonoras, olfativas, gustativas,

somatossensoriais etc., sendo o pensamento a capacidade que um

organismo vivo tem de representar essas imagens. Até as palavras ou

símbolos abstratos que passam pela nossa mente são, antes de tudo,

imagens visuais ou auditivas; mesmo os símbolos matemáticos,

representantes do máximo de abstração de que o pensamento humano é

capaz, se não fossem imagináveis – ou seja, passíveis de serem

representados mentalmente em forma de imagem – não poderiam ser

conhecidos e manipulados por nós conscientemente. Assim, podemos

afirmar que só conhecemos aquilo que podemos imaginar (DAMÁSIO,

1996:116; 135).

E como se formam as imagens em nossa mente?


Na proposição de Damásio, o corpo e o cérebro interagem

intensamente entre si,19 e o organismo formado por eles também interage

de maneira muito intensa com o ambiente, agindo sobre ele a partir de

movimentos do organismo e recebendo informações pelos aparelhos

sensoriais: olhos (retina), ouvidos (que incluem tanto a cóclea, sensível ao

som, quanto o vestíbulo, ligado ao sentido do equilíbrio), papilas

gustativas, mucosa nasal, terminações nervosas de sensação na pele e do

sistema motor. O sistema nervoso envia os sinais vindos dos aparelhos

sensoriais (que captaram as informações do ambiente) para pontos de

entrada no cérebro específicos para cada um dos sentidos: são os

chamados córtices sensoriais iniciais.

Estes são setores de “entrada” da informação para o cérebro; desses

“portos de entrada”, a informação é enviada aos córtices de associação de

alto nível e também aos gânglios basais e estruturas límbicas (estes dois

mais ligados à regulação da sobrevivência que à formação de

imagens/pensamentos). Nos córtices de associação de alto nível, as

informações serão elaboradas e armazenadas, ficando disponíveis para

futuras construções ou reconstruções de imagens mentais.

As conexões entre estes vários níveis de processamento

proporcionam o entendimento da inseparabilidade entre corpo-mente-

ambiente.
19
Lembrando mais uma vez que Damásio, para efeitos de maior clareza na exposição da sua tese, considera
em separado “cérebro” (sistema nervoso) e “corpo” (conjunto dos órgãos sensoriais, vísceras etc.), embora
admitindo que essa separação não existe na realidade – já que ambos, corpo e cérebro, são inseparáveis, pois
são instâncias de processamento de um mesmo fenômeno.
Damásio descreve as imagens mentais como sendo de dois tipos:

perceptivas ou evocadas (DAMÁSIO, 1996:123-124). As imagens

perceptivas são imagens oriundas de diferentes “modalidades sensoriais”,

ou seja, são aquelas formadas por nossas experiências no mundo: ouvir

música, tocar uma superfície, ler um livro etc. Qualquer um dos

pensamentos formados a partir dessas informações sensoriais é

constituído por imagens, sejam elas cores, formas, movimentos, sons,

palavras etc. Quando essas imagens surgem a partir da evocação de cenas

do passado, ou então da construção de projeções do futuro, são chamadas

de imagens evocadas.

Assim, vemos que as construções imagéticas que formam o

pensamento, no tipo perceptivo, são reguladas pelo corpo e pelo ambiente

que o cerca; nas evocações e imaginações, são dirigidas pelo interior do

cérebro – sendo que, em algum momento, elas se constituíram como

imagens perceptivas, já que toda evocação é a reconstrução de uma

experiência anterior. O que nos leva a mais um ponto de extrema

importância na discussão das imagens utilizadas por Grotowski:

imaginação e percepção são dois aspectos totalmente interligados.

Para elucidar essa informação, tomemos como exemplo o caso da

acromatopsia – doença neurológica que consiste na perda da capacidade

de enxergar as cores (ver, a respeito, principalmente SACKS, 2003:21-57),

causada por lesão nos córtices visuais iniciais (o “ponto de entrada” no

cérebro das sensações da visão captadas pela retina, tal como citamos
anteriormente). Depois de um certo tempo sem conseguirem ver as cores,

pacientes acromatópsicos perdem também a capacidade de imaginar as

cores. “Se o ‘conhecimento da cor’ fosse armazenado em outro lugar, num

sistema separado daquele que sustenta a ‘percepção da cor’, os doentes

acromatópsicos imaginariam as cores, mesmo sendo incapazes de se

aperceberem da sua existência num objeto externo. Mas não é isso o que

acontece” (DAMÁSIO, 1996:129). Ou seja: nossa capacidade de imaginar

está completamente conectada à nossa capacidade perceptiva; assim, para

ampliar nosso mundo imagético – base de toda criação – é fundamental

trabalharmos a ampliação e refinamento do nosso sistema perceptivo, já

que nossas representações mentais são constantemente atualizadas pela

percepção.

Além disso, Damásio atesta que diversos cientistas já comprovaram

que a recordação de imagens visuais ativa os córtices visuais iniciais

(dentre outras áreas do cérebro) (DAMÁSIO, 1996:129); podemos inferir, a

partir disso, que a ativação não pare aí, nos córtices visuais do cérebro, e

cause modificações também nos órgãos de captação de informações

visuais: os olhos. Também há dados que indicam que as representações

dispositivas cerebrais, com base nas quais o movimento ocorre, ativam

tanto os movimentos do corpo como as imagens internas do movimento

executado – nós só não notamos essas imagens, de maneira geral, devido

nosso estado de atenção diante da própria execução do movimento

(DAMÁSIO, 1996:133).
Chegamos, assim, ao ponto principal da nossa discussão sobre

imaginação: já há comprovações científicas que atestam que, ao

imaginarmos algo, essa imaginação afeta concretamente o corpo. Se: 1) ao

imaginarmos uma imagem visual, os córtices iniciais visuais se ativam; 2)

os movimentos geram a produção de imagens somatossensoriais desses

movimentos; podemos, a partir disso, concluir que, sempre que

imaginamos algo, essa imaginação cria alterações concretas no estado

corporal. (O que nos faz pensar, por exemplo, naqueles momentos em que

nos lembramos de algum fato, sozinhos em casa, ou planejamos algo que

queremos fazer ou dizer para alguém, e todo o nosso corpo se modifica e

acompanha a nossa imaginação – quem nunca se pegou falando na rua

sozinho?...)

Dessa forma, quando Grotowski propõe aos seus atores que se

movam e vocalizem como um tigre, ou como uma vaca, ou que imaginem

uma boca no topo da cabeça etc., essas imagens evocadas criam alterações

concretas nos estados corporais dos atores, modificando encaixes ósseos,

apoios, a respiração, e principalmente causando alterações no tônus

muscular – substrato de todo e qualquer comportamento. Sabemos que a

vibração do som – e também a da voz – altera-se dependendo da densidade

do meio em que esta se propaga; propomos então que se a atividade da

musculatura onde a vibração acontece muda, muda também a qualidade

da vibração – e isso faz com que a voz soe diferente, alterada em seu

timbre e registro.
Ligado de maneira fundamental a essa questão está o fato de que

toda a musculatura do nosso corpo funciona de maneira sistêmica20 –

qualquer mínimo movimento executado em um determinado grupo

muscular afeta e altera por encadeamento toda a organização do sistema

muscular, seja para manutenção do estado de relaxamento ou do

equilíbrio estático, seja para movimentação global ou localizada.

Béziers e Hunsinger (1994:22; 41-42), por exemplo, nos falam do

encadeamento muscular de enrolamento (princípio do movimento para a

verticalização do corpo) que, nos bebês, nasce nos lábios, coordena todos

os músculos de deglutição no centro motor hioideano (região em torno ao

osso hióide, logo abaixo da base da cabeça, no alto da garganta),

permitindo a báscula da cabeça parta a frente, abrindo atrás o espaço das

duas primeiras vértebras cervicais; esse primeiro movimento se propaga

para o tórax, fazendo com que as duas primeiras costelas se elevem, para

trás, e as duas últimas costelas se abram. Em contrapartida, ao mesmo

tempo, a bacia se enrola para se aproximar da cabeça, a partir da

contração dos abdominais, que se inicia no músculo do períneo

(aproximando os ísquios e o cóccix); esse movimento propaga-se até as

últimas costelas, que se abrem para trás, reunindo-se, assim, ao

enrolamento da cabeça.

20
A esse respeito, ver também principalmente LIMA, 1994:“Características Embriológicas” e BÉZIERS;
PIRET, 1992.
Esta é apenas uma descrição esquemática do ponto de partida de

um movimento muito simples (embora fundamental) do corpo humano, o

enrolamento-endireitamento para a posição em pé. O que nos interessa

salientar, a partir dessa descrição, é o envolvimento do centro motor

hioideano no encadeamento da movimentação do corpo.

O centro motor hioideano, ou região hioideana, corresponde à área

em torno do osso hióideo, na região da garganta (logo acima do “pomo de

Adão”), próximo à base da cabeça. A partir dessa região se interligam e se

cruzam os músculos que vão à faringe, à laringe, à língua, à mandíbula

inferior (formando o assoalho bucal), ao esterno e às escápulas. Na laringe,

encontramos os principais músculos que comandam e desenham a

produção da voz: os tireoaritenóideos, os cricotireóideos e os

cricoaritenóideos (sendo que seus nomes indicam a quais cartilagens eles

estão ligados). Seu funcionamento e influência sobre a produção da voz

ocorrem, esquematicamente, da seguinte maneira:21

(...) Os músculos cricoaritenóideos [considerados


tradicionalmente como dilatadores da glote] põem em
funcionamento as cartilagens aritenóides, às quais as
extremidades posteriores das cordas vocais ou pregas vocais
estão ligadas [e que conduzem a abertura e o fechamento das
pregas vocais, pelo seu deslizamento horizontal].

21
O texto de Rossing (1990) é bastante conciso e preciso e, como não foi ainda traduzido para o português,
houvemos por bem transcrever uma tradução na íntegra deste trecho, ao invés de simplesmente parafraseá-lo.
Foram excluídas dessa tradução as referências a gráficos e ilustrações do texto original.
Os cricotireóideos [também definidos como tensores
das pregas vocais] conectam as duas grandes cartilagens da
laringe, a tireóide e a cricóide. Eles podem puxar a tireóide
para frente, em relação à cricóide, e também para baixo, em
relação a ela. Ambas as ações estiram as cordas vocais
longitudinalmente, o que é uma maneira de aumentar sua
taxa de vibração. A ação dos músculos cricotireóideos pode
ser observada de duas formas: uma é pressionar para dentro
o pomo de Adão enquanto se canta uma nota média da
extensão vocal. Uma soltura repentina dessa pressão fará
com que a altura da voz suba. Um segundo experimento
consiste em colocar um dedo no pequeno espaço entre as
cartilagens tireóide e cricóide enquanto se canta. Subir o tom
em uma oitava irá forçar o dedo para fora enquanto a
tireóide é puxada para baixo, aproximando-se da cricóide.
Os tireoaritenóideos, também chamados de vocalis ou
músculos da voz [e definidos como constritores da glote],
formam o corpo das cordas vocais em si. Elas se estendem
do ângulo interno da cartilagem tireóide até as aritenóides,
na parte de trás da garganta, e são cobertas por uma
membrana que é contínua em relação ao revestimento da
laringe. A tensão das cordas vocais é resultado de um
complexo equilíbrio de forças entre esses três músculos, e a
coordenação entre eles é necessária para uma transição
suave de uma altura para outra. Para que se possa manter
um tom constante em um crescendo ou diminuendo, esses
músculos deverão compensar a tendência do tom em subir à
medida que o fluxo de ar aumenta.
(...)
O traço de distinção [entre a voz de cabeça e a voz de
peito] parece estar no estado dos músculos tireoaritenóideos.
Na voz pesada, ou de peito, estes músculos estão ativos; na
voz leve, ou de cabeça, eles estão virtualmente passivos. (...)
Na voz de peito, os tireoaritenóideos estão ativos e portanto
encurtados. Nos tons mais baixos, os músculos estão
relaxados e as pregas vocais estão espessas. Devido ao seu
espessamento, a glote se fecha firmemente e se mantém
fechada durante uma boa parte de cada ciclo de vibração
[abertura e fechamento das pregas vocais que controlam a
passagem do ar para a execução do som da voz].
À medida que a altura do tom sobe na voz de peito, os
músculos cricotireóideos se contraem e aplicam uma tensão
nas cordas vocais. No entanto, elas não se alongam
rapidamente, pois os músculos tireoaritenóideos entram em
ação, e de fato espessam as cordas vocais ao agirem. Nas
notas mais altas da voz de peito, os tireoaritenóideos dos
cantores inexperientes muitas vezes cedem diante da força
excessiva dos cricotireóideos, e a voz se “quebra” em uma
involuntária voz de cabeça (Venard, 1967).
No mecanismo leve, ou voz de cabeça, os
tireoaritenóideos oferecem pequena resistência aos
cricotireóideos, os quais podem então aplicar uma tensão
longitudinal substancial às cordas vocais, fazendo com que
elas se alonguem e fiquem mais finas. Os músculos vocalis
descem lateralmente, e a vibração acontece quase
inteiramente nos ligamentos, com muito menos amplitude de
movimento que na voz de peito. A glote se fecha apenas
brevemente ou nem chega a fazê-lo, e o som resultante
possui muito menos harmônicos que a voz de peito. (...)
Quando está vibrando no mecanismo leve, as cordas
vocais estão pelo menos 30% mais longas, consideravelmente
mais finas e têm uma massa efetiva menor. As cordas, em
geral, não estão completamente fechadas em nenhum
momento do ciclo [de movimentação]. Isso resulta em um
menor número de harmônicos da fundamental e em uma
conversão menos eficiente da potência respiratória em
potência sonora. (...)
[Assim, o autor define os registros de voz da seguinte
forma:]
! voz (registro) de peito: maneira de se cantar
associada com o mecanismo pesado ou
músculos vocalis ativos.
! voz (registro) de cabeça: maneira de se cantar
associada com o mecanismo leve, músculos
vocalis passivos, e cordas vocais alongadas e
finas.
(ROSSING, 1990:357-365. Ilustrações de LE HUCHE;
ALLALI, 2005:77, 75, 80.)

Como vemos, nesta definição concisa Rossing nos dá uma chave

para pensarmos os registros de voz não simplesmente a partir da

localização da vibração da voz, mas sim do comportamento muscular da

laringe, que irá então direcionar essa vibração.

Propomos, então, a extensão desta lógica operacional para todo o

corpo, considerando então que relações diversas de ativação e desativação

irão direcionar e concentrar a vibração por simpatia da voz que, como

vimos, acontecem por todo o corpo.


Assim, quando um ator imagina que é um animal (por exemplo),

quanto mais precisa, quanto mais vívida for a imagem evocada por ele,

tanto mais informações serão carreadas dos córtices sensoriais de alto

nível para os córtices sensoriais iniciais, e daí para os órgãos dos sentidos:

pele, olhos, ouvidos (que incluem os sensores de equilíbrio), terminações

nervosas dos músculos e articulações (responsáveis pela propriocepção)

etc.; de fato, ainda que a imagem formada seja vaga, mesmo que o ator

permaneça sobre os dois pés, sem imitar o animal, o simples fato de o

apoio dos pés no chão ser modificado, a partir da evocação/imaginação, já

irá alterar a configuração de tônus de toda a sua cadeia posterior. Isso irá

afetar diretamente o centro motor hioideano que, como vimos, além de

estar envolvido no reflexo de verticalização do corpo, inclui os músculos da

laringe, responsáveis por configurar os registros, altura, timbre etc. da voz.

Teremos então, a partir de uma imaginação, várias ativações

musculares em ação, atuando diretamente sobre a produção da voz: a

alteração direta dos músculos da laringe, produtores da voz; a alteração

das pressões supra e subglóticas, determinantes, respectivamente, na

intensidade e na altura do som (LE HUCHE; ALLALI, 2005:102-104);

alteração do volume das cavidades de ressonância, o que afeta diretamente

o timbre da voz (LE HUCHE; ALLALI, 2005:106); alteração das

configurações do tônus muscular, alterando portanto a propagação da

vibração pelo corpo.


Esse rápido panorama, embora incompleto, já que deixa de lado uma

série de outros fatores físicos envolvidos na produção da voz, permite-nos

no entanto afirmar com segurança que a imaginação exerce sim um papel

determinante – e absolutamente material – na produção, desenho e

alteração da voz do ator.

Além da questão da imaginação no trabalho do ator, o texto de

Roubine, citado no início deste capítulo, nos instiga também a uma

reflexão sobre o papel da metáfora no trabalho de criação atoral e, mais

especificamente, no trabalho desenvolvido e sistematizado por Grotowski.

Entrando mais uma vez na questão do senso comum, temos que

metáfora é uma figura de linguagem – mais especificamente, uma figura de

palavra – que estabelece uma comparação por meio de similitude; consiste

em designar um objeto ou uma qualidade mediante uma palavra que

designa outro objeto ou qualidade (NICOLA; INFANTE, 1990:440-441).

Estabelece-se aí uma relação de semelhança, de transposição das

características de uma coisa para outra, dentro do emprego figurado,

simbólico da palavra. Por exemplo: “João é de ferro!”, querendo dizer que

“João é forte como o ferro” – e não que ele seja realmente feito desse

material. Ou, como afirma Mattoso Câmara, “é a transferência de um

termo para um âmbito de significação que não é o seu; não se fundamenta

numa relação objetiva, mas, sim, numa relação toda subjetiva” (apud

NICOLA; INFANTE, 1990:442).


A definição da metáfora como figura de linguagem está inserida em

uma tradição retórica iniciada com Aristóteles:

Na tradição retórica, a metáfora era (e ainda é) considerada um


fenômeno de linguagem apenas, ou seja, um ornamento
lingüístico, sem nenhum valor cognitivo. Era considerada um
desvio da linguagem usual e própria de linguagens especiais,
como a poética e a persuasiva. Além disso, o uso da metáfora era
indesejável no discurso científico, que deveria se utilizar da
linguagem literal, considerada, então, clara, precisa e
determinada. Nessa visão, portanto, a ciência se fazia com a razão
e o literal, enquanto a poesia se fazia com a imaginação e a
metáfora. (ZANOTTO ET AL., 2002:11.)

A essa proposição, iremos contrapor a do lingüista George Lakoff e

do filósofo da mente Mark Johnson, cujos trabalhos conjuntos sobre

metáfora, que tomaremos como referência nesse ponto do nosso trabalho,

inserem-se dentro do campo da lingüística cognitiva22, e surgem num

contexto de ruptura paradigmática que põe em crise o enfoque tradicional

da metáfora:

A metáfora é, para a maioria das pessoas, um recurso de


imaginação poética e um ornamento retórico (...), é usualmente
vista como uma característica restrita à linguagem, uma questão
mais de palavras do que de pensamento e ação. (...) Nós
descobrimos, ao contrário, que a metáfora está infiltrada na vida
cotidiana, não somente na linguagem, mas também no

22
Uma das áreas de conhecimento das ciências cognitivas (cf. descrito no Capítulo I desta dissertação),
surgida na década de setenta; estuda as formas e regulações da produção lingüística, partindo do ponto de
vista de que os processos de percepção, de memorização ou de aprendizagem dependem fundamentalmente da
linguagem. “Os estatutos das operações lingüísticas em nível cognitivo são definidos como transcendendo as
operações de conformação sintático-semântica, já que as motivam, e manifestando sobretudo a ‘ativação’ da
linguagem como vetor e meio de intervenção no mundo e de relações subjetivas e objetivas desse mesmo
mundo” [www.citi.pt/educacao_final/linguistica.html].
pensamento e na ação. Nosso sistema conceptual ordinário, em
termos do qual não só pensamos, mas também agimos, é
fundamentalmente metafórico por natureza. (LAKOFF; JOHNSON,
2002:45-46.)

Assim, como vemos, os autores colaboram na consolidação dessa

ruptura de paradigmas opondo, à teoria da comparação (modo tradicional

de se entender as metáforas), a idéia de que as metáforas são, de fato,

operadores cognitivos do pensamento, no sentido de que elas traduzem

nossa forma de pensar e de agir sobre determinado assunto; vivemos

imersos nelas, sem nos darmos conta disso, e guiamos nossos

pensamentos de acordo com um determinado universo de referências, os

quais elas traduzem em palavras.

Um exemplo marcante disso, trazido à tona por Lakoff e Johnson

(2002), é o enunciado Discussão é Guerra – o modo como nos referimos a

uma discussão, as palavras que utilizamos para nos referirmos a ela,

traduzem isso da seguinte forma:

• Suas afirmações são indefensáveis.


• Suas críticas foram direto ao alvo.
• Eu nunca venci numa discussão.
(...) Se nós a concebemos assim, agiremos de forma coerente com
essa concepção, ou seja, na discussão haverá uma disputa pelo
poder e haverá vencedores e vencidos. (ZANOTTO ET AL.,
2002:20.)

Se, por exemplo, observarmos uma outra cultura, onde uma

discussão não implique em atacar ou defender, em ganhar território ou


não, em que não haja ganhadores ou perdedores, provavelmente não

conseguiríamos perceber isso como uma discussão, realmente, mas como

uma “outra coisa”, à qual talvez não conseguíssemos nomear. “A metáfora

não está meramente nas palavras que usamos (...). Falamos sobre

discussão dessa maneira porque a concebemos assim – e agimos de acordo

com o modo como concebemos as coisas” (LAKOFF; JOHNSON, 2002:48).

É nesse sentido que os autores afirmam que “a metáfora não é

somente uma questão de linguagem, isto é, de meras palavras. (...) os

processos de pensamento são em grande parte metafóricos. Isto é o que

queremos dizer quando afirmamos que o sistema conceptual humano é

metaforicamente estruturado e definido” (LAKOFF; JOHNSON, 2002:48).

Ou seja, no sentido em que as metáforas são realmente um modo de

compreender e experienciar uma coisa em termos de outra, os conceitos

sob os quais vivemos, agimos, criamos são regidos por metáforas

fundamentais das quais, em geral, temos pouca consciência, devido ao

hábito pela convivência, ou pela imposição ideológica que sofremos, muitas

vezes, sob a forma do “é assim que as coisas são/ devem ser”.

A metáfora é um conceito ou um sistema de conceitos; a linguagem é

o modo como se dá o mapeamento desses conceitos. E se as metáforas

conceptuais nos mostram como uma determinada cultura pensa e age,

elas também nos indicam como os artistas podem fazer uso criativo delas.

Entender essa questão nos chama a atenção para o fato de que o modo

como vemos/nCAra Jolandaos referimos às coisas já estão tão


convencionalizados “que fica difícil imaginar que esse modo de pensar

possa não corresponder à realidade” (LAKOFF; JOHNSON, 2002:55).

De todo o universo de aspectos e implicações referentes à metáfora,

trazido por Lakoff e Johnson, interessa-nos fundamentalmente, para a

nossa discussão, o fato de que todas as metáforas que conceptualizam o

nosso mundo são construídas a partir das nossas experiências corporais,

a partir da nossa vivência como seres corporais no mundo. E nossa

necessidade de mediarmos nossa relação com o mundo a partir da

construção de metáforas conceptuais acontece porque, segundo esses

autores:

Uma vez que podemos identificar nossas experiências como


entidades ou substâncias, podemos referir-nos a elas, categorizá-
las, agrupá-las e quantificá-las – e, dessa forma, raciocinar sobre
elas. (...) Os homens têm necessidade, para apreender o mundo,
de impor aos fenômenos físicos limites artificiais que os tornem
tão discretos como nós, quer dizer, fazer deles entidades
demarcadas por uma superfície. (...) as nossas experiências com
objetos físicos (especialmente com nossos corpos) fornecem a base
para uma variedade extremamente ampla de metáforas
ontológicas, isto é, formas de se conceber eventos, atividades,
emoções, idéias etc. como entidades e substâncias. (LAKOFF;
JOHNSON, 2002:75-76.)

Ou seja: criamos nossas metáforas conceptuais a partir da tendência

que temos de entender o menos concreto pelo mais concreto; como muitos

dos conceitos fundamentais na nossa vida são abstratos ou relativamente

pouco delineados pela nossa experiência (como emoções, idéias, o tempo

etc.), criamos as metáforas como forma de apreendê-los por meio de outros


conceitos que entendemos em termos mais claros, e que já tenhamos

vivenciado de maneira concreta, ou seja, através das percepções: as

orientações espaciais, os objetos etc. Essas gestalts experienciais (formas

reconhecíveis de experiências que vivenciamos) são estruturadas a partir

de experiências humanas recorrentes, e essas experiências são

consideradas, pelos autores, como sendo naturais, no sentido de surgirem

sempre a partir de:

Nossos corpos (aparato perceptual e motor, capacidades mentais,


aparato emocional etc.);
Nossas interações com o ambiente físico (mover-se, manipular
objetos, comer etc.);
Nossas interações com outras pessoas em nossa cultura (em
termos de instituições sociais, políticas, econômicas e religiosas).
Em outras palavras, esses tipos naturais de experiência são
produtos da natureza humana. (LAKOFF; JOHNSON, 2002:208.)

Assim, como nos apontam ZANOTTO ET ALLI (2002)23, o enfoque

proposto pelos autores também derruba a dicotomia entre corpo e mente,

já que todas as metáforas conceptuais tomam como referências as

experiências corporais.

O que nos remete ao caso especifico do trabalho de Grotowski: se,

segundo os autores, “tendemos a estruturar os conceitos menos concretos

e inerentemente mais vagos (como aqueles para expressar emoções) em

termos de conceitos mais concretos, os quais são delineados claramente

23
A “Apresentação à Edição Brasileira” de Metáforas da Vida Cotidiana (LAKOFF; JOHNSON, 2002) foi
escrita por Mara Sophia Zanotto, Heronildes M. M. de Moura, Maria Isabel A. Nardi e Solange Coelho
Vereza, integrantes do Grupo de Estudos da Indeterminação da Metáfora (GEIM), coordenado por Zanotto.
em nossa experiência” (LAKOFF; JOHNSON, 2002:201), podemos dizer que

o mesmo se aplica à criação artística. Esta pode ser uma entrada para

tentarmos compreender por que Grotowski cria determinados termos para

o seu trabalho, como “corpo-vida”, “corpo-memória”, “Ato”, “encontro”,

“Arte Como Veículo” etc. – não porque esses nomes signifiquem algo per si,

mas porque remetem, metaforicamente, a algo que vivenciamos; assim

criamos uma compreensão imediata sobre aquilo que foi metaforizado, e

podemos ao mesmo tempo discuti-lo, categorizá-lo, criar idéias sobre ele.

O modo como se estrutura uma metáfora salienta os aspectos que

nos favorecem mais, e escondem aspectos que não nos interessam – é o

caráter de parcialidade da metáfora. Assim, podemos deduzir que, quando

Grotowski se utilizava da imagem de animais para trabalhar a voz, estava

tentando conduzir seus atores para um trabalho não manipulado

racionalmente; ou então, quando usava uma imagem como “seu amigo

está no fundo de um poço, fundo, muito fundo”, estava salientando a

relação entre os atores; ao usar imagens como “há uma boca no topo de

sua cabeça, fale com o teto”, estava tentando salientar a espacialização da

voz.

Naturalmente isso são conjecturas nossas, mas mais do que

tentarmos classificar o trabalho de Grotowski, queremos chamar a atenção

aqui para o fato de que nós, artistas, devemos encontrar em nosso

trabalho as metáforas que mais interessem ao trabalho que estejamos

realizando em determinado momento. O trabalho conduzido por Grotowski


com os vibradores foi efetivo porque ele foi ao encontro das necessidades

que seu trabalho apresentava naquele momento; dificilmente apresentará

a mesma eficácia e o mesmo vigor se aplicados como um método que

funcione por si mesmo, destacado do seu contexto e sem adaptar-se ao

novo contexto configurado por um outro grupo de trabalho, com outra

criação em andamento. O que precisamos será, antes de mais nada,

estudarmos as metáforas criadas por Grotowski não para aplicá-las à

revelia, mas para aprendermos a construir as nossas próprias, de acordo

com as nossas necessidades criativas.

Como notamos no capítulo anterior desta dissertação, uma das

maiores dificuldades de Grotowski foi a de tentar discorrer sobre o seu

trabalho de integração entre corpo/mente no trabalho do ator, tendo de

lidar com uma linguagem como a nossa (do ramo indo-europeu), que é

estruturada dualisticamente – na qual sempre há um sujeito agindo sobre

um objeto, ou seja, uma mente legitimando a experiência (como já

dissemos no Capítulo I desta dissertação, não temos, por exemplo, uma

palavra consensual que indique a inseparabilidade “corpo/mente”).

Podemos então entender que os termos criados por ele, mais do que

“recursos poéticos” destinados a inspirar a ação dos atores, são metáforas

conceptuais que procuram dar conta de traduzir para a experiência

concreta algo sobre o qual ainda não temos palavras específicas para

descrever. Evidentemente, mais uma vez, impõe-se aqui a questão: talvez

algumas dessas metáforas tenham perdido seu sentido com o passar do


tempo, ou tenham ficado obsoletas; ou talvez só possam ser

compreendidas quando o ator está inserido em um trabalho de intensidade

e entrega semelhantes àquele proposto por Grotowski. Cada metáfora

serve à cultura – ou, mais especificamente, à subcultura24 (cf. LAKOFF;

JOHNSON, 2002:73-74) – de onde ela nasce e na qual se insere.

Pela leitura de Lakoff e Johnson, podemos ver que todo sistema

metafórico deriva da experiência do corpo no ambiente cultural em que

está inserido. Nossas metáforas são coerentes com nosso sistema cultural

– ou seja, tendem a não contradizê-lo, a se afinar com ele, e de certa forma

a reforçá-lo.25 Ora, sabemos que, na passagem do séc. XIX para o XX e

durante toda a sua primeira metade, houve mudanças importantes e

significativas no que diz respeito às estruturas sociais, políticas,

tecnológicas no mundo inteiro, e muito marcadamente na Europa. No

âmbito da arte, as necessidades estéticas e criativas precisavam encontrar

caminhos que correspondessem, ou dessem vazão às angústias e

questionamentos do seu tempo.

Assim, quando Roubine nos dá a entender, em seu texto, que o

trabalho de Grotowski com os ditos ressonadores é (“simplesmente”)

metafórico, argumentamos que não haveria outra maneira de ele

desenvolver o seu trabalho, a não ser a partir da criação de novas

24
O termo subcultura é utilizado aqui na acepção de “grupo, minoria, segmento, caracterizado por uma
combinação de situações sociais diversas (....) cujo padrão de comportamento é suficientemente uniforme para
distingui-lo, como uma subdivisão, dentro de uma cultura mais geral” (HOUAISS, 2001:vb. Subcultura).
25
Mesmo grupos marginais, que desenvolvem conceitos em conflito com a cultura dominante, em
determinado nível também partilham e preservam outros valores da cultura dominante (cf. LAKOFF;
JOHNSON, 2002:73-74).
metáforas. Utilizando-nos do exemplo citado anteriormente, se quisermos

algum dia entender discussão de uma maneira diferente que não como

guerra, teremos de criar outras metáforas conceptuais para ela, tal como

dança, onde os discutidores evoluem juntos, alternando suas conduções,

aos pares ou aos grupos, sem vencedores; ou como cozinhar, onde os

discutidores incluem seus elementos dentro de um mesmo recipiente e os

elaboram, para que sejam divididos mais tarde pelo próprio grupo ou pela

comunidade. Em outras palavras: se o sistema metafórico existente não

auxiliava Grotowski a evoluir no seu trabalho com seus atores, não havia

alternativa a não ser criar um novo sistema de metáforas que pudesse

conduzi-los. Dessa forma, não diremos que Roubine “errou” ao dizer que o

trabalho de Grotowski fosse metafórico; o que defendemos é que nós,

leitores contemporâneos dos escritos de Grotowski e de Roubine,

precisamos modificar nosso próprio entendimento do que seja uma

metáfora, compreendendo seu papel fundamental não só em nossas vidas

cotidianas, mas principalmente no âmbito da criação artística cênica.

Na análise dessa questão, é preciso nunca perder de vista que

metáforas são parciais: elas iluminam determinados aspectos de uma

questão, enquanto mantêm outros na sombra. Quando optamos por uma

metáfora, ou concordamos com ela, os aspectos que ela ilumina são

aqueles que nos interessam, por algum motivo: porque concorda com o

sistema social vigente (em qualquer escala: pessoal, familiar, política etc.) e

nos integra a ele; ou porque discorda dele, deixando então claro que
tomaremos caminhos diferentes, ou que teremos de fazê-lo, em algum

momento.

Sabemos que o ser humano é um ser grupal, social por natureza;

desde os primórdios da civilização, o homem se organiza em grupos para

otimizar sua segurança, sua sobrevivência, sua continuidade – esta é a

herança genética dos mais bem adaptados, que trazemos conosco até hoje.

E sabemos também que, para sobrevivermos em sociedade, foi necessário

criarmos regras comuns, seguidas por toda a comunidade. Com o passar

do tempo, as comunidades foram crescendo, as relações foram se tornando

mais complexas, e conseqüentemente as regras foram se complexificando

também.

Muitas dessas regras sociais, tácitas ou expressas, são enunciadas

de forma metafórica – da forma como vimos descrevendo até aqui. E, tal

como colocam Lakoff e Johnson (2002:257 e ss.), “as pessoas que detêm o

poder, seja na política doméstica, seja na interação do dia-a-a-dia,

conseguem impor suas metáforas”. E isso tem implicações bastante

consideráveis, se levarmos em consideração que as metáforas sob as

quais/com as quais vivemos determinam nossas ações: se, em nossa

cultura, entendemos que “Discussão é Guerra”, sabemos de antemão que,

quando uma pessoa se propõe a discutir um assunto com outra, terá de

haver um “ganhador” e um “perdedor”, ou então um impasse; que as

posições se alternarão em ataques e defesas; que nossos argumentos serão

sempre colocados de maneira a favorecer a defesa de nossa própria


opinião, para “não darmos munição ao outro”; que, no final da discussão,

o outro será ou um aliado, ou um inimigo.

Dentro dessa perspectiva, justifica-se plenamente que Grotowski

tenha criado metáforas específicas para um trabalho que propunha novas

abordagens estéticas, técnicas, criativas – pois também podemos criar

novas metáforas, fora do padrão conceptual comum da nossa cultura.

Dada a parcialidade inerente à construção de uma metáfora, criar novas

metáforas (tal como teatro é encontro) não só implica num posicionamento

conceitual e político em relação a um sistema vigente, como também nos

obriga a enxergar um assunto que se considere bem conhecido por outros

ângulos, e nos faz ver aspectos que o hábito com as estruturas antigas nos

escondia. Assim, um artista pode criar metáforas novas para novos

trabalhos, sempre que se veja sem saída, bloqueado pelos próprios

elementos que tenha em mãos.

Não podemos nos esquecer, no entanto, do fato de o sentido que

uma metáfora terá para uma pessoa será, por um lado, determinado por

fatores culturais e, por outro, determinado por suas experiências passadas

– ou seja, o sentido de uma metáfora pode variar radicalmente dentro de

uma mesma cultura, de uma pessoa para outra. Em Metáforas da Vida

Cotidiana Lakoff e Johnson (2002) dão como exemplo de uma metáfora

conceitual tradicional o modo como entendemos o amor:


AMOR É UMA FORÇA FÍSICA:
• Houve uma atração magnética entre nós.
• Toda a sua vida gira em torno dela.
• A atmosfera entre eles é sempre carregada.
(LAKOFF; JOHNSON, 2002:113, selecionado.)

Mas uma pessoa poderia lançar uma nova metáfora para se falar de

amor, que nos levaria a formular novas implicações, conclusões e

entendimentos sobre o amor e o modo como nos relacionamos com ele e a

partir dele. No exemplo dos autores:

AMOR É UMA OBRA DE ARTE COLABORATIVA


[O que implica em:]
• O amor exige cooperação.
• O amor exige dedicação.
• O amor exige disciplina.
• O amor não é obtido por meio de fórmulas.
• O amor envolve criatividade.
(LAKOFF; JOHNSON, 2002:236, selecionado.)

No entanto, uma pessoa que tenha uma concepção diferente de arte,

que não compreenda talvez as implicações do que seja “obra de arte

colaborativa”, poderá dar um sentido diferente a essa metáfora, como por

exemplo:

• O amor é um objeto a ser colocado em exposição.


• O amor existe para ser julgado e admirado pelos outros.
• O amor cria uma ilusão.
• O amor exige que se esconda a verdade.
[Ou seja,] Porque a visão de arte dessa pessoa é diferente da
nossa, a metáfora terá sentido diferente para ela. Se sua
experiência amorosa for bem parecida com a nossa, então a
metáfora lhe parecerá inadequada. De fato, ela será totalmente
inadequada. Desse modo, a mesma metáfora que dá sentido novo
às nossas experiências, não dará novo sentido às dele. (LAKOFF;
JOHNSON, 2002:240.)

Frente ao exposto, entendemos que seja esse o caso na questão dos

equívocos surgidos a partir das proposições de trabalho de Grotowski, que

sintetizamos através da fala de Roubine, no início deste capítulo: equívocos

surgidos não necessariamente de um simples “desconhecimento de causa”

mas, muitas vezes, do julgamento oriundo de um sistema conceptual

diverso, em que a noção de trabalho técnico de ator, criação e talvez

mesmo de teatro e criação artística têm sentidos diferentes para um e para

outro, Roubine e Grotowski.

Um outro aspecto bastante relevante da questão da metáfora (e

fundamental no âmbito da nossa discussão, neste trabalho), levantado por

Lakoff e Johnson (2002:293 e ss.) é a de que tanto a metáfora quanto o

raciocínio lógico desempenham um papel importante na atividade

científica. Em primeiro lugar, porque muitos conceitos básicos como

tempo, quantidade, estado, ação etc. são compreendidos metaforicamente;

mas também porque a metáfora une razão e imaginação, e uma

racionalidade imaginativa é imprescindível tanto para a ciência quanto

para a poesia. “Como conseqüência, as idéias objetivistas de que a ciência

se faz com a razão e o literal; e a poesia, com a imaginação e a metáfora

perdeu a validade” (ZANOTTO ET AL., 2002:22).


Como vimos, os estudos contemporâneos das ciências cognitivas nos

permitem entender que imaginar é uma forma de fazer ciência. Talvez não

no seu sentido de “conhecimento adquirido através de formulação

metódica e racional”, mas certamente no seu sentido primeiro de

“conhecimento atento e aprofundado de alguma coisa, noção precisa desse

algo”, e no sentido filosófico de “conhecimento que, em constante

interrogação de seu método, suas origens e seus fins, procura obedecer a

princípios válidos e rigorosos, almejando especialmente coerência interna e

sistematicidade” (cf. HOUAISS, 2001:vb. Ciência).

Jorge A. Vieira,26 em seus artigos sobre Filosofia da Ciência e Teoria

do Conhecimento, considera tanto o artista quanto o cientista como

criadores – na medida em que ambos trabalham com o cerne do ato da

criação e ambos, inclusive, passam pelas mesmas fases de

desenvolvimento de trabalho, tanto nas descobertas quanto nas criações.27

O que os diferencia fundamentalmente, segundo Vieira, é o fato de os

cientistas, em geral, adotarem a hipótese gnosiológica do objetivismo

realista crítico, que afirma que a realidade pode ser independente do

sujeito que a observa, sendo papel do controle, ou da crítica, minorar a

subjetividade da observação (VIEIRA, 2006:48). Já os artistas podem

explorar não só o real, mas as possibilidades do real – ou seja, o artista

26
O Dr. Jorge de Albuquerque Vieira é cientista pesquisador, ligado ao Departamento de Astronomia e
Observatório do Valongo – UFRJ, ao Departamento de Linguagens do Corpo da PUC-SP, e coordena o
NESC – Núcleo de Estudos em Semiótica e Complexidade da PUC-SP.
27
A esse respeito ver, principalmente VIEIRA, 2006:“Formas de Conhecimento:Arte e Ciência” e VIEIRA,
2006:“Ciência, Arte e o Conceito de Umwelt”.
não tem compromisso com uma realidade, e pode portanto trabalhar

alternativas quanto às realidades possíveis.

Assim, considerando-se que toda e qualquer forma de conhecimento

tem por base a sobrevivência de um dado sistema cognitivo (por exemplo

um ser humano, ou um conjunto determinado de seres humanos), a arte

tem, tanto quanto a ciência, ampla atuação e valor, já que trabalha não só

com a elaboração do real como também no sentido de propor outras

realidades possíveis. A arte é matéria complexa, por seu caráter

transdisciplinar e por envolver em sua produção diferentes formas de

conhecimento: discursivo, intuitivo, compreensivo, tácito etc. –

complexidade que compartilha com a ciência, com a diferença de a

atividade artística assumir mais seu teor de conhecimento tácito (aquele

que não pode ser reduzido ao discurso) que a ciência (VIEIRA, 2006:52-

53). Sendo matéria complexa, ao trabalharmos com ela a arte também se

torna criadora de complexidade, nos estimulando e nos habilitando a lidar

com níveis cada vez maiores de complexidade; habilitando-nos, portanto, a

nos adaptarmos e sobrevivermos, sempre mais e melhor, no universo

máximo de complexidade, que é a realidade.

Assim, como nos afirma Vieira, embora seja, muitas vezes, encarada

como algo supérfluo, a arte é fundamental para a sobrevivência da espécie

humana, pelo fato de gerar complexidade sígnica e simbólica e, ao mesmo

tempo, nos habilitar a lidar com essa complexidade; gerando complexidade

ao mesmo tempo em que nos ensina a lidar com ela, nos instiga à busca
de mais complexidade – sendo portanto fundamental no próprio processo

de evolução humana. Como nos diz Vieira,

Consideremos os trabalhos e a evolução dos mesmos em artistas


como Dali, Picasso, Miró, Van Gogh, Mondrian e tantos outros. O
que eles pintavam? Inutilidades do ponto de vista da tecnologia,
com um certo valor muito subjetivo do que chamamos estética?
Não. Sabemos que eles faziam qualidade, e que essa qualidade
permite explorar e entender códigos visuais, básicos para nosso
entendimento da objetividade e que, muitas vezes, tornam-se
“descobertas” científicas. (...) os bailarinos exploram, até hoje,
configurações de espaço-tempo, processo que deve ter sido
iniciado desde nossa fase como bichinhos simples e vivendo em
um meio aquoso... todos os tipos de artistas continuam
explorando a realidade, o Universo.
Bem, com algo a mais: com qualidade. Da mesma forma, a boa
ciência envolve a qualidade do ato criativo científico. O belo
modelo. A equação elegante. O modelo sofisticado. (VIEIRA,
2006:83-84.)

Os mecanismos de desvalorização da arte como área de produção de

conhecimento servem sempre a sistemas de manipulação e dominação que

não nos cabe discutir aqui. Mas não podemos deixar de notar que, se a

afirmação de Roubine de que “a teoria grotowskiana dos ressonadores não

tem nenhuma validade científica” nos incomoda pelo teor de

desqualificação que lhe notamos implícito, talvez devêssemos responder a

isso, simplesmente: não. Não é científica, no sentido clássico de ciência. É

como forma de fazer artístico, como ciência da descoberta que ela nos

serve. Mas somos homens do nosso tempo; vivemos ainda sob a égide da

cientifização, da tecnologização que se iniciou nos primórdios da

Renascença e teve seu auge no século XIX – como nos diz Damásio
(1996:276), “temos uma paixão pela razão”. E, fazendo um paralelo com

seu trabalho, da mesma forma que conhecer a relevância das emoções

para os processos racionais não diminui em nada a importância do

raciocínio, tampouco adotar procedimentos criativos que se valem da

imaginação e da construção de metáforas não faz com que a criação seja

menos precisa, menos metódica, menos eficaz.

O próprio Grotowski, logo no início do seu livro Em Busca de um

Teatro Pobre (1992:23), afirma que o termo “pesquisa”, em relação ao

Teatro Laboratório, não deveria ser entendido como “pesquisa científica”,

já que não é esse o enfoque que lhe interessa. No entanto, Grotowski tem a

noção de que, nos tempos em que vivemos, o conhecimento de um artista

só poderá ser transmitido e compreendido pelos outros através de uma

linguagem técnica. A esse respeito, ele nos conta a seguinte história:

[Charles Duits] se apresentava como uma espécie de grande


instrutor, quase um guru ocidental, dizendo que sabia ensinar às
pessoas como levitar. Mas seu objetivo, de fato, era ensinar-lhes a
atravessar a rua na hora do rush. Era a belle epoque [e,] naquela
época, para se ensinar as pessoas a atravessar a rua na hora do
rush era necessário ensinar-lhes a levitação. Se não, não
haveriam de querer trabalhar com você: “mas o que é isso que
você está ensinando? A atravessar a rua, que ridículo...” Nesses
novos tempos, se vocês quiserem ensinar alguém a levitar, devem
trabalhar com ele ensinando-lhe como atravessar a rua na hora
do rush.
Hoje há uma tal ruptura, uma tal sensação de insegurança, que
as pessoas querem aprender apenas as coisas que se podem dizer
concretas e precisas. (GROTOWSKI, 1993c:48a-b.)
Arte é uma forma de conhecimento que se consolida pela pesquisa

de linguagem e sua ação efetiva sobre o real, gerando desestabilização dos

universos de conhecimento já estratificados, aos quais nos apegamos em

busca de estabilidade. Caberá talvez a nós, artistas (antenas da raça, como

diria Ezra Pound), a função de, percebendo os limites dos sistemas

estabelecidos, elaborar as novas possibilidades do real, brincar com elas,

expandi-las, explorá-las, preparando-nos para um porvir que, como

sempre, se inicia hoje.


Considerações Finais

As pontes construídas em meio à turbulência


dos saberes podem e devem representar uma
chave que não ameaça, mas, ao contrário, é
capaz de nos aproximar daquilo que nos
vincula a outros sistemas inteligentes da
natureza, apostando na negação da
hegemonia epistemológica e dos dualismos
corpo/mente e natureza/cultura.
Greiner, 2005:12

Como nos lembra Heloísa Valente (1999:134, nota 90), “a

virtuosidade vocal é paralela ao aperfeiçoamento dos instrumentos

musicais, em geral”. Na contemporaneidade, a quantidade de informação a

que estamos submetidos, a par com as inúmeras inovações e evoluções

técnicas que influenciam não só nossa vida como nossa forma de vivê-la,

nos impõe uma nova forma de entendermos nossa vocalidade. Já não é

mais possível entendermos e estudarmos a voz cênica como se fazia

cinqüenta, cem anos atrás, embora, a despeito de todas as pesquisas e

progressos feitos nessa área, isso ainda seja comum na prática teatral.

Nosso contexto social, tecnológico e artístico tem demandas e exigências

muito particulares, às quais os artistas precisam estar abertos para

compreender e preparados para estabelecer um diálogo que esteja, no

mínimo, à altura do seu tempo.

Como vimos no Capítulo I desta dissertação, o modelo de

pensamento dualista, hegemônico na cultura ocidental durante séculos, já


não oferece respostas suficientes que dêem conta da evolução da arte

teatral. Outras linhas de pensamento, como a de Espinosa e a de

Nietzsche, nos indicam caminhos para desmitificarmos a hipervalorização

do pensamento racional, em favor do pensamento do corpo, do

conhecimento tácito, imprescindível para a criação.

O estudo das ciências cognitivas, por sua vez, nos permite

compreender a inseparabilidade de mente-corpo-ambiente; partir daí,

podemos compreender também a relação entre a percepção corporal e a

formação da consciência. Como vimos, a autoconsciência surge do proto-

self, que é composto pelos mapas básicos que o cérebro tem do corpo, em

todos os seus detalhes. A partir da relação entre esses mapas básicos e os

mapas secundários, criados a partir da relação com o mundo, surge a

consciência central, a noção do indivíduo presente no aqui-agora.

Muito tem se falado, nas artes cênicas contemporâneas, da

importância da presentidade (essa própria “percepção do aqui-agora”) do

ator em cena; todos os treinamentos de ator criados no século XX, seja na

linha interpretativa, seja na linha representativa, buscam maneiras de

fazer com que o ator viva esse estado de presença em cena. Partindo dos

estudos de Damásio, podemos afirmar que essa presentidade só poderá ser

alcançada pelo desenvolvimento e ampliação da autopercepção.

Em nossa experiência docente, temos visto que, quando explanamos

aos alunos sobre as relações entre o pensamento dualista e a formação da


cultura ocidental, eles ficam muito fascinados em perceberem que o

pensamento dualista é apenas uma perspectiva de mundo (e não “o modo

como o mundo é”). Notamos também que a discussão desses assuntos

potencializa em muito o aprendizado e a descoberta desses alunos no

desenvolvimento de processos de criação. Eles percebem, antes de tudo,

que a sociedade em que vivemos é um ambiente complexo, e que há opções

de conexão, de maneira que podemos construir nossa realidade.

Ao compreenderem as implicações da vivência de um modelo

dualista – de desvalorização do corpo, da intuição, do universo sensível –

eles começam a buscar novos caminhos e novas possibilidades de relação

com a criação. Essa busca de cunho pessoal (e não advinda de um sistema

de trabalho a ser executado por imposição) os fortalece, e toda conquista e

todo aprendizado, mesmo que ainda em um nível mais simples, de baixa

complexidade, incorpora-se à sua prática e os torna mais seguros – a

ponto inclusive de se disponibilizarem com maior entrega para as crises da

criação.

Isso porque, segundo relato dos próprios alunos, eles desenvolvem

maior entrega à sua intuição, maior confiança em seguir as informações

advindas de processos corporais. Essa entrega é sempre consciente –

embora não necessariamente racional – e não acontece nunca em um

sentido ritualístico, de transe (o qual, como Grotowski observou, muito

apropriadamente, tem o seu devido lugar e uma clara diferença com os

mecanismos do fazer artístico).


No âmbito da criação cênica, podemos passar a pensar a voz não

apenas como “produto do corpo”, mas como potencialização do corpo (a

partir do que nos propõe Nietzsche). Aí a voz deixa de ser um aparato

técnico da criação, e vira material de criação – não “massa de modelar”,

mas provocador da criação. Ela não simplesmente “porta a palavra”, ou o

significado; deixa de ser simplesmente canal para a expressão da criação,

pois existe junto com ela, engendra-se com ela, é ela – tanto quanto eu sou

a minha própria vida, à medida que ela acontece.

No Capítulo II, vimos como Jerzy Grotowski, durante a segunda

metade do século XX, desenvolveu sua pesquisa artística em direção a um

trabalho não-dualista. Nesse sentido, acreditamos que uma de suas

formulações mais interessantes foi a de teatro como encontro, pois o

cumprimento desta exige a realização das outras, como o corpo-vida, o

Ato; da mesma forma, para que estas outras formulações possam ganhar

concretude, faz-se necessário um trabalho ético, de entrega e também de

integralidade, sem o quê toda a preparação do ator redundará em uma

ação mecânica.

Ou seja: é como se as propostas de treinamento de ator de

Grotowski viessem da sua observação sobre o que era efetivo para que a

execução da criação que já estava em andamento acontecesse; o

treinamento não era todo planejado em antecipação, de maneira

sistemática, em detalhes. O próprio trabalho, e os atores nesse trabalho,

apresentavam suas dificuldades específicas, para as quais eram


encontradas soluções específicas. Ao longo dos anos, vemos que Grotowski

percebeu necessidades recorrentes no atores que se propunham fazer

aquele tipo de trabalho; isso levou a uma certa sistematização, ao

enunciado de algumas regras, à abstração de algumas práticas em

conceitos intelectuais.

O próprio Grotowski, no entanto, sempre foi muito claro ao afirmar

que suas propostas e seus interesses modificaram-se com o correr do

tempo; que nem tudo o que havia lhe interessado ou servido em uma

determinada época poderia ser usado como método em outra. Cada

criação, cada obra tem uma necessidade técnica específica. E se isso vale

para obras diversas de um mesmo criador, muito mais para as de

criadores diversos.

O que nos leva a um ponto fundamental: um modo de trabalhar, de

treinar, de criar serve sempre a um desejo de criação. Todas as práticas de

um treinamento conduzem à construção de uma determinada linguagem.

Assim, da mesma forma que as metáforas criadas por Grotowski dizem

respeito a uma época, a um determinado ambiente cultural, também suas

práticas dizem respeito àquele ambiente de criação em que ele estava

inserido. O que, evidentemente, não impede que nos identifiquemos com

essas práticas – o ponto em que queremos chegar é que o treinamento

proposto por Grotowski não pode ser usado à revelia, como exercícios

genéricos, nem tampouco como um sistema fechado que, se executado,

chegará a algum resultado pré-determinado.


A construção do corpo do ator leva sempre à construção do corpo da

criação – que se manifesta em linguagem. Como os corpos dos atores são

sempre únicos, compostos pelas suas próprias histórias pessoais, um

mesmo exercício sempre terá resultados diversos em cada um deles; da

mesma forma, dificuldades semelhantes em atores diversos serão

superadas, muito provavelmente, por caminhos também diversos. Aí uma

das questões que faz com que o estado de disponibilidade total

(espontaneidade) requerido por Grotowski seja fundamental: no estado de

disponibilidade, o ator está apto a fazer as adaptações necessárias das

práticas propostas a vários atores para as suas próprias necessidades (o

que inclui tanto suas superações quanto seus desejos pessoais de criação).

O que reforça o papel fundamental do diretor, no sentido não só de

perceber os encaminhamentos específicos de um ator, mas também no

sentido de mantê-lo no caminho da criação, sem que suas adaptações

divirjam para caminhos não-coerentes com o conjunto da criação, nem

para a autocomplacência.

Vemos que, no trabalho de Grotowski, tal como na proposta de

Damásio sobre a natureza da mente, a criação é algo que sempre existe, ou

sempre surge, quando colocada em relação a: em relação ao outro, ao

espaço, a voz e o movimento colocados em relação um ao outro, mas

também em relação aos outros e ao espaço (no que o trabalho com a

imaginação vai ter um papel fundamental, como vimos no Capítulo III).

Acreditamos que seja esse outro ponto fundamental na questão de cada


ator ter um caminho próprio para a criação: uma relação é sempre única e,

como o próprio Grotowski apontou, a cada momento diferente.

Em nossa experiência docente, temos notado que sempre que os

alunos são colocados em relação com o outro (mesmo que essa relação não

implique em diálogo verbal ou mesmo em contato visual), seus movimentos

e ações ficam muito mais precisos, e também se evita em muito o

fechamento do aluno/ator em si mesmo. Eles, em geral, declaram ser

“muito mais difícil” criar partituras de movimento levando em conta a

relação com o outro, com o espaço; de fato, a princípio, suas ações ficam

sempre entrecortadas, curtas, com poucas variações. Mas, à medida que

aquilo (levar o outro em conta) passa a ser um hábito, eles próprios

reconhecem o ganho de atenção, concentração, precisão de movimentos,

timming, e o fato de o vocabulário (corporal ou verbal) surgir com muito

mais fluidez em situações de improvisação. Não que esses elementos “não

estivessem lá antes”, como notam os alunos, mas quando em uma relação

com o outro ou com o espaço esses elementos ganham

tridimensionalidade, projeção, dilatação.

Estudar as idéias de Grotowski nos permitiria fazer uma redução

interteórica (nos termos já apresentados no cap. I, p. 27) pois, como vimos,

as ciências cognitivas já nos fornecem elementos e vocabulário para que

possamos descrever com maior precisão e maior amplitude as questões

propostas por Grotowski em relação ao treinamento, ao trabalho vocal, ao

“encontro” público/ator, a questão da “auto-observação”, da


“espontaneidade”, da “manipulação racional” (que Grotowski chama, na

verdade, de “manipulação consciente”).

Essa redução não foi feita aqui, por não ser este o escopo deste

trabalho. No entanto, alguns poderão questionar se essa redução

interteórica não seria uma nova metaforização, só que, desta vez, em

termos neurocientíficos. Talvez sim, dado os limites de compreensão e

interesse dos fenômenos da mente que qualquer pessoa que se propusesse

fazer essa redução apresentaria (tornando essas reduções interteóricas

parciais, como qualquer metáfora), e pelas limitações inerentes ao próprio

arcabouço de conhecimentos das ciências cognitivas. Mas ainda assim,

mesmo que a redução interteórica dos termos cunhados por Grotowski

para os conceitos das ciências cognitivas fosse uma nova metaforização,

temos de levar em conta que, se nem todos nós, nos tempos e na sociedade

em que vivemos, podemos compreender o significado metafórico, aplicado

ao teatro, de termos como “transcendência”, “epifania”, “ator santo”, todos

nós, sem exceção, somos seres corporais. Falar em termos de “sistema

nervoso”, “impulsos eletroquímicos”, “autopercepção”, “vibração e

ressonância da voz” é algo que alguns podem achar indigesto, ou

desinteressante, mas nunca incompreensível ou inalcançável.

Ou talvez devêssemos pensar em termos eliminacionistas, e começar

toda uma nova busca, um novo entendimento da conexão mente-corpo,

voz-movimento corporal no teatro, a partir de parâmetros completamente

diversos (o que nunca invalidaria o trabalho de Grotowski, tal como suas


propostas não invalidaram o trabalho de Stanislavski). Isso porque vemos

que os caminhos escolhidos por Grotowski para a integralidade chocam-

se, muitas vezes, em contradições, e acabam reforçando pelo discurso o

dualismo que eles superam na prática – já que a proposta de Grotowski

procura sempre uma maneira de integrar corpo e mente como se se fosse

juntar duas coisas que, a rigor, estivessem separadas

No Capítulo III, vimos que Grotowski nos aponta um caminho muito

eficaz para a superação do dualismo no trabalho do ator: a imaginação. A

partir da compreensão de seu funcionamento neurológico, suas

implicações na formação da mente, as alterações que sofre no/pelo corpo e

por conseqüência no ambiente, a linha divisória entre uma imaterialidade

mental e uma materialidade corporal se desmancha, fica sem lugar em

qualquer esquema que possamos elaborar para a compreensão dessas

questões.

Em nosso trabalho de formação de atores, sempre tivemos a ciência

de que o trabalho com a imaginação é fundamental; no entanto,

entendermos a conexão intrínseca entre imaginação e movimento fez com

que passássemos a salientar esse aspecto no trabalho dos alunos, fazendo

com que sua percepção desse fato ficasse mais aguçada.

Assim, estimulamos a imaginação dos alunos, dentro do universo

imagético que nos interesse, dado um determinado trabalho a ser

realizado. A partir das imagens surgidas, incentivamos a percepção


consciente de componentes dessa imagem, que não apenas os visuais:

quais os cheiros daquela imagem? A textura dos objetos? a temperatura? o

peso do ar, a sensação da massa do chão debaixo dos pés? os contornos,

as distâncias, os sons? Ao final da sessão de trabalho, salientamos junto

com os alunos o fato de, do próprio universo de imagens evocadas,

surgirem emoções e sentimentos que podem vir a ser utilizados em uma

cena.

Esse modo de se trabalhar dá a eles uma alternativa ao mecanismo

de “memória das emoções” que se usa tradicionalmente como apoio para a

construção de uma cena (muitas vezes, mesmo em criações não-realistas).

Eles podem fazer com que as intenções dadas surjam a partir de relações

estabelecidas com os cheiros de uma cena (em um jardim, em uma

cozinha, no quarto de um casal), ou com a textura ou peso de um dado

objeto de cena etc. Imaginar o ambiente que o corpo habita provoca

alterações no corpo; há uma modificação no tônus muscular e,

conseqüentemente, na qualidade da ação (mecanismos de adequação

corpo-ambiente). Assim, mesmo que as imagens sejam evocadas, e não

perceptivas (quer dizer, que sejam propostas pelo ator apenas em sua

imaginação, não vindo objetivamente do espaço cênico), isso faz com que

eles criem um ambiente no qual sua criação pode transitar livremente,

estabelecendo novas relações a cada vez que eles realizem o trabalho, e

não os deixa à mercê de uma possível “inspiração” criativa, ou da

dependência do colega de cena ou dos comandos do diretor. E, o mais


importante: todo o seu corpo – e portanto todo o seu ser (como nas

palavras de Grotowski) estará implicado na execução da ação cênica.

Muitos professores argumentam que o trabalho com a imaginação

induz a uma inação física por parte dos atores – eles ficariam parados, ou

com movimentos muito vagos, enquanto tudo aconteceria “na cabeça

deles”. É em contraposição a isso que defendemos o fato do

desenvolvimento da autopercepção para que o trabalho com a imaginação

possa acontecer. Como já apontamos no Capítulo III, quanto mais vívida

for, quanto mais detalhes tiver a imagem formada na mente do ator/aluno,

mais o corpo estará implicado na ação, pela própria característica da

formação das imagens na mente e sua conexão com os córtices sensoriais

iniciais. Além disso, é imperioso que o ator/aluno esteja com os olhos

abertos, para que ele possa manter-se sempre em relação com o espaço e

com o outro. Como Grotowski apontou, é sempre na relação que a ação

cênica ganha sua força maior.

Da mesma forma que o trabalho com a imaginação, a compreensão

do modo como organizamos nossos sistemas metafóricos nos auxilia a

derrubar a separação entre corpo e mente, na medida em que entendemos

que esses próprios sistemas metafóricos, que traduzem nossa relação com

o mundo, são construídos a partir da experiência corporal que temos nele.

Também a exploração dessas relações se mostra muito profícua tanto nos

processos criativos quanto na formação de atores, já que nos auxilia a

compreender que todo sistema de trabalho está inserido em um


determinado ambiente cultural e existe em co-determinância com este:

toda estética é construída a partir de seu ambiente cultural, e ao mesmo

tempo constrói esse ambiente, seja reforçando paradigmas já

estabelecidos, seja contestando-os e criando novos paradigmas.

Assim, os atores (em formação ou não) devem sempre ter em vista

que qualquer linguagem teatral carrega uma dimensão política, ainda que

não explícita em seu discurso. Eles precisam estar atentos a isso, ou

serem advertidos disso, ou correrão o risco de, por exemplo, ter a

montagem de um texto esvaziada de seu conteúdo contestatório, se a

maneira como for encenado for conivente com o sistema estabelecido (o

que não estaria ligado simplesmente ao esquema de produção executiva da

peça, mas às próprias escolhas estéticas realizadas pelos criadores).

Todo esse panorama estende-se, evidentemente, ao modo como

trabalhamos os movimentos corporais e a voz em cena. No Capítulo III,

vimos também o importante papel da co-determinação corpo-mente na

produção da voz, já que, pela imaginação (e, por extensão, pela própria

produção de pensamentos), todo o corpo é modificado, o que altera os

modos de vibração, produção de timbre, altura, registros etc. Assim, o

modo como construímos nossas metáforas (lembrando que elas são

construídas a partir de nossas vivências sensoriais), com toda a sua

conseqüente implicação de relação com o mundo, a sociedade, a cultura

em que estamos inseridos, irá determinar o modo como nos relacionamos

com nossa voz.


Temos visto que para atores em formação, por exemplo, é bastante

difícil não pensar na voz como algo imaterial, ou pensá-la desconectada do

sentido lógico do texto ou mesmo do aspecto semântico das palavras. Voz

sem palavras, para eles, está em geral ligada a ruído (num sentido

pejorativo), “som sujo”, sons animalescos, portanto grotescos, portanto

não-belos, portanto fora do espectro de elementos aceitáveis para a

criação. Podemos colocar que essa questão se estrutura, por exemplo, do

mesmo modo como Nietzsche descreve a hipervalorização do apolíneo, em

detrimento do dionisíaco (ver cap. I, p. 19-20).

Fala-se muito, atualmente, do “império do corpo perfeito”, da

imposição de um modelo de tipo físico ao qual todos sofrem para se

adaptar. Poucas pessoas se dão conta de que a mesma imposição acontece

sobre a nossa voz: talvez não tanto na vida cotidiana, mas certamente no

ensino tradicional de teatro, hipervaloriza-se a produção de uma voz

dentro de determinados padrões de timbre, por exemplo, tanto para

homens quanto para mulheres. A busca pela adaptação a esses padrões,

como temos visto em nossos alunos, faz com que eles deixem de conhecer

campos riquíssimos de possibilidades da voz. Quando trabalhamos com

eles a reconquista desses campos (que todos possuíamos quando éramos

crianças), ainda que essas sonoridades fora do padrão estético não

apareçam em cena, suas falas ficam muito mais ricas, há um enorme

ganho de projeção com manutenção de variações sutis de intenção – o que


é uma das principais dificuldades a ser superada no aprendizado dos

atores, em sua relação com o texto verbal.

Nessa reconquista, a ação produzida pela imaginação é

indispensável. No teatro, geralmente, trabalha-se mais a partir das

imagens evocadas que das imagens perceptivas (para a construção de

atmosferas de cena, de biografias de personagens ou relações entre eles,

por exemplo); e, como já foi dito no cap. III (p 78-79), a imaginação evocada

será sempre mais rica quanto mais nossa percepção sensorial for

desenvolvida, no sentido de estarmos atentos a ela. Então, uma das

maneiras como trabalhamos o desenvolvimento de exercícios vocais em

sala de aula é a de pedir aos alunos que fiquem atentos às diversas

sensações a que estão expostos constantemente, em sua própria vida

cotidiana: o peso de um sabonete, a textura dos lençóis da cama, a

temperatura do ar, que se modifica com o passar do dia e também de

acordo com o lugar onde eles estejam, cheiros, sabores, luz e sombra,

cores etc., bem como as alterações que se produzem no corpo. Essas

sensações são exploradas nos exercícios, em forma de imagens evocadas

que alteram as configurações musculares do corpo e a produção da voz.

Depois, essas alterações de voz são exploradas com o uso de palavras, e

começamos a tecer, aos poucos, as sensações das imagens evocadas com

as do sentido semântico da palavra.

Todas as questões levantadas e conexões estabelecidas ao longo

desta pesquisa nos levam a concluir que só através do desenvolvimento da


autopercepção é que o ator poderá vivenciar a integração voz-movimento

corporal. A sensação de que o corpo e a mente, ou a voz e o movimento

corporal sejam separados é uma ilusão; a questão é que não temos, em

geral, a autopercepção aguçada o suficiente para perceber, para sentir as

zonas de conexão, as simultaneidades integradas de movimento e voz, de

mente e corpo.

Nossas experiências nesse sentido estão ainda em seu início, tanto

no âmbito da criação quanto no de formação de atores. No entanto, os

caminhos apontados pelos fatos expostos nesta dissertação implicam na

necessidade da revisão de antigos pressupostos aristotélicos de que o

corpo possa, a determinada altura da vida, ficar “pronto”, como “coisa

acabada”; ao contrário, ele se encontra em constante processo de

aprontamento. Assim, podemos afirmar que a integralidade voz-movimento

corporal, tal como a integralidade corpo-mente, não poderá nunca ser

“alcançada”, mas somente percebida ou vivenciada, pois nunca se poderá

encontrar um caminho efetivo para unir duas coisas que nunca estiveram

separadas.
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