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Revista Patrimonio37
Revista Patrimonio37
Nº 37 Nº 37 Nº 37
2018 2018 2018
Neste número
Alfredo Wagner Berno de Almeida
Ana Pizarro
Fernando Mesquita
Milton Hatoum
O Norte do Brasil:
Identificação e Reconhecimento
do Patrimônio Cultural
Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico
Nacional
O Norte do Brasil:
Identificação e Reconhecimento
do Patrimônio Cultural
Organização: Maria Dorotéa de Lima
Presidente da República do Brasil Revista do Patrimônio n° 37 Fotos
Michel Temer Capa: Alto Xingu, 2016. Foto: Renato
Organização Soares.
Ministro de Estado da Cultura Maria Dorotéa de Lima Folha de rosto: Flora brasileira. Aquarela
de José Joaquim Freire. Expedição
Sérgio Sá Leitão
Científica Alexandre Rodrigues Ferreira.
Coordenação Editorial Acervo: Fundação Biblioteca Nacional,
Presidente do Instituto do Patrimônio André Vilaron Brasil.
Histórico e Artístico Nacional 2ª folha de rosto: Boneca karajá. Coleção
Kátia Bogéa Pesquisa Iconográfica Maria Heloisa Fénelon Costa/Acervo:
André Lippmann Museu Nacional/ UFRJ. Foto: Chico da
Diretores do Iphan Mádia do Prado Pereira Costa/Acervo Iphan. Caú-a-uá (Maguari).
Aquarela. Expedição Científica Alexandre
Andrey Rosenthal Schlee Márcio Vianna
Rodrigues Ferreira (1783 a 1792).
Hermano Queiroz Oscar Liberal Acervo: Fundação Biblioteca Nacional,
Marcelo Brito Brasil.
Marcos José Silva Rego Edição e Copidesque Página de créditos: Pirarucu (Arapaima
Robson Antônio de Almeida Caroline Soudant gigas). Gravura de W. H. Lizars a partir
de desenho. In: Ichtyology, fishes of
Superintendente do Iphan no Acre Revisão e Preparação dos Textos British Guiana, de R. H. Schomburgk.
Coleção de João Meirelles Filho.
Jorge Mardini Sobrinho Gilka Lemos
A equipe da Revista do Patrimônio
Superintendente do Iphan no Amapá Direção de Arte e Diagramação agradece aos servidores do Iphan
Haroldo da Silva Oliveira Cristiane Dias (a partir do projeto que se empenharam para que a
gráfico de Victor Burton) nossa publicação fosse produzida da
Superintendente do Iphan no Amazonas melhor forma possível. Bem como às
Karla Bitar Produção Editorial parcerias estabelecidas com fotógrafos
e instituições, públicas e privadas, às
Isabella Atayde Henrique
respectivas equipes e todas as pessoas
Superintendente do Iphan no Pará que com dedicação contribuíram para a
Cyro Holando de Almeida Lins Edição de Imagens realização deste número da Revista do
André Lippmann Patrimônio.
Superintendente do Iphan em Rondônia André Vilaron
Delma Batista do Carmo Siqueira Cristiane Dias A Revista do Patrimônio é publicada
Márcio Vianna pelo Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional, do Ministério da
Superintendente do Iphan em Roraima Oscar Liberal
Cultura, desde 1937. Os artigos são
Katyanne Bermeo Mutran autorais e não refletem necessariamente
Apoio - Divisão de Editoração e a posição do Iphan e da organizadora
Superintendente do Iphan no Tocantins Publicações - Iphan deste número, Maria Dorotéa de Lima.
Marcos Zimmermann Amarildo Machado Martins
Luciano Barbosa da Silva Amorim Instituto do Patrimônio Histórico e
Silvana Lobato Silva Marra Artístico Nacional
SEPS 713/913, Bloco D, Edifício Iphan.
70.390-135 - Brasília (DF)
Revista do patrimônio 37/2018
Milton Hatoum Larissa Maria de Almeida Guimarães
Belém é Bíblica? 07 Do barro ao patrimônio cultural 151
imaterial em Roraima
Kátia Bogéa
Apresentação 09 Fernando Mesquita
Pilotis são palafitas: sobre ecologia da 169
Apresentação da Vale 13 arquitetura e saberes que resistem na
Amazônia marajoara
Maria Dorotéa de Lima
Introdução 21 EIXO II
NOVOS OLHARES PARA O
EIXO I RECONHECIMENTO
OS DESAFIOS PARA A IDENTIFICAÇÃO
Milton Hatoum
Milton Hatoum Vocês não viram Iracema? 195
Margens secas da cidade 33
Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses
AlfredoWagner Berno de Almeida O patrimônio cultural e a 199
Museus indígenas e quilombolas: 39 guinada da Constituição de 1988:
os novos significados do conceito de a casa de Chico Mendes
processo de patrimonialização
Luciana Gonçalves de Carvalho
João de Jesus Paes Loureiro Aporias da proteção do patrimônio 211
Meditação devaneante entre o rio e a 59 cultural e natural de uma comunidade
floresta. Cultura amazônica produtora de remanescente de quilombo na Amazônia
conhecimento
Juvêncio da Silva Cardoso
João Meirelles Filho e Fernanda de O. Martins A cuia e a formação do universo: uma 233
A Amazônia viajante “até dizer chega”. 73 abordagem baniwa no contexto da física
A contribuição dos viajantes ao porvir intercultural
amazônico – do século 16 ao fim do ciclo
da borracha Ana Léa Nassar Matos
O voo da fênix de José Sidrim 249
Ana Pizarro
O trânsito da oralidade para a escrita 99 Eduardo Góes Neves
amazônica latino-americana Encontro das águas dos rios Negro e 271
Solimões
Manuel Ferreira Lima Filho
Cidadania patrimonial – da inclusão à 115 Jussara Silveira Derenji
negação do mito da nação Os teatros do Norte: a entrada triunfal 285
das musas no Equador
William César Lopes Domingues
Patrimônio cultural indígena no médio 135 José Guilherme Cantor Magnani
Xingu: entre a falta de identificação e a Patrimônio cultural urbano, 307
necessidade de reconhecimento “de perto e de dentro”:
uma aproximação etnográfica
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
6
O N o r t e d o B r a s i l : I d e n t i f i c a ç ã o e R e c o n h e c i m e n t o d o Pa t r i m ô n i o C u l t u r a l
M i l t o n H at o um
O N o r t e d o B r a s i l : I d e n t i f i c a ç ã o e R e c o n h e c i m e n t o d o Pa t r i m ô n i o C u l t u r a l
a c i o n a l
B elém é bíblica?
N
r t í s t i c o
Alguém que passou por aqui
A
Sentiu o calmo andamento do tempo
e
E vislumbrou vestígios da paisagem
i s t ó r i c o
Do paraíso da infância
H
a t r i m ô n i o
Em alguma noite distante
Serei esse andarilho que sonhou contigo.
P
A insensatez e a ganância
d o
Vão dissipar teus cheiros misturados
e v i s t a
Da floresta com o oceano?
R
Apagar o riso de moças vestidas para o olhar?
Destruir teus bosques praças casarios
Teus templos de Landi e teu céu de telhas?
Tua altivez belle époque
Ou bela simplesmente?
Assim espero.
8
O N o r t e d o B r a s i l : I d e n t i f i c a ç ã o e R e c o n h e c i m e n t o d o Pa t r i m ô n i o C u l t u r a l
Káti a Bogéa
Ap r es en t aç ão
Baixo Amazonas é mais recente, de 2015. ora apresento tratam da cultura do Norte
Mercado e cuias; o mungunzá do Mário, e refletem sua diversidade regional.
K á t i a B og é a
decidi que o ano de 2018 seria dedicado Iphan que, em tempos tão difíceis,
à promoção do Norte do país. Do atuam diretamente na preservação ou
P
bens tombados e onze bens registrados, Iphan cabe no Brasil, que nem mão
sem contar o expressivo número de dentro da luva.
sítios arqueológicos cadastrados. Gosto
de imaginar o gozo de Mário frente
à simplicidade vernacular da Casa
de Chico Mendes, à complexidade
10 simbólica da pintura corporal dos Wajãpi
e da escala territorial dos geóglifos.
Coisas do Norte...
Dourado.
Aquarela.
Expedição Científica
Alexandre Rodrigues
Ferreira (1783 a 1792)
Acervo: Fundação Biblioteca
Nacional, Brasil.
Mário de Andrade no
Mercado Ver-o-Peso,
Belém (PA), em 23 de
maio de 1927
Foto: Coleção MA-IEB/USP.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
11
K á t i a B og é a Apresentação
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
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O N o r t e d o B r a s i l : I d e n t i f i c a ç ã o e R e c o n h e c i m e n t o d o Pa t r i m ô n i o C u l t u r a l
2015
Foto: AC Junior.
do Tapajós, Santarém (PA),
Seringueira. Floresta Nacional
O N o r t e d o B r a s i l : I d e n t i f i c a ç ã o e R e c o n h e c i m e n t o d o Pa t r i m ô n i o C u l t u r a l
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
Apresent ação da V ale
H
a t r i m ô n i o
P
d o
e v i s t a
R
O patrimônio cultural é a identidade de
um povo, é sua memória, é sua evolução.
14
O N o r t e d o B r a s i l : I d e n t i f i c a ç ã o e R e c o n h e c i m e n t o d o Pa t r i m ô n i o C u l t u r a l
O N o r t e d o B r a s i l : I d e n t i f i c a ç ã o e R e c o n h e c i m e n t o d o Pa t r i m ô n i o C u l t u r a l
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O N o r t e d o B r a s i l : I d e n t i f i c a ç ã o e R e c o n h e c i m e n t o d o Pa t r i m ô n i o C u l t u r a l
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O N o r t e d o B r a s i l : I d e n t i f i c a ç ã o e R e c o n h e c i m e n t o d o Pa t r i m ô n i o C u l t u r a l
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
20
Maria Dorotéa de Lima Introdução
Mar i a Do ro téa de L i m a
a c i o n a l
In t r o du çã o
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
De que falamos quando nos referimos ao conjunto do patrimônio cultural brasileiro
patrimônio cultural da Região Norte? eleito pelo Iphan ao longo de seus 81 anos,
Esse foi o tema definido pelo Iphan para completados em 2018. Sabemos que esse
P
d o
os n 37 e 38 da Revista do Patrimônio,
os
desafio de identificação, reconhecimento,
e v i s t a
mais precisamente, sob o mote dos desafios promoção e gestão do patrimônio não é uma
da preservação e da gestão do patrimônio tarefa fácil, sobretudo quando falamos em
R
cultural do Norte brasileiro. Distribuídos Amazônia, onde o tempo em muitos lugares é
em dois volumes, os artigos se organizam outro, marcado pelos ciclos da natureza, pelas
em quatro eixos: 1) os desafios para a águas, viagens de barco, grandes distâncias,
identificação, 2) novos olhares para o dificuldades de comunicação, entre outras
reconhecimento, 3) estratégias de promoção coisas. Embora organizados dessa forma, os
para valorização e difusão, 4) dilemas para o temas tratados nos artigos transitam pelos
fortalecimento da gestão. diversos eixos. 21
Diante dessa definição prévia e Por todas essas razões, seria impossível
considerando ser o Norte a região com contemplar, apenas com artigos, todos
menor número de bens reconhecidos os estados e todas as categorias de bens
como patrimônio cultural brasileiro pelo culturais patrimonializáveis da região.
tombamento , optou-se por privilegiar,
1
Para enfrentar esse desafio, convidamos
sobretudo nos dois primeiros eixos, o não apenas pesquisadores e especialistas,
patrimônio não consagrado, partindo da nacionais e internacionais, mas também
premissa de que há muito mais por fazer do talentosos e importantes fotógrafos e poetas/
que aquilo que já foi realizado em termos prosadores brasileiros. Juntos eles nos
Pajé, figura simbólica
de representação dos estados no Norte no trouxeram diferentes olhares e abordagens nas apresentações de
boibumbá, boi Corre
para o tema, oferecendo um rico panorama Campo, no Flor do
Maracujá, tradicional
1. Segundo informado pelo Depam/Iphan (agosto/2018), há na arraial que apresenta
do patrimônio cultural do Norte do Brasil, competições de bois-
Região Norte um total de 46 bens tombados distribuídos por sete
bumbás e quadrilhas
estados, correspondendo a 4% do total, seguida do Centro-Oeste, não necessariamente aquele já identificado e juninas, Porto Velho (RO),
com 5%, Sul (12%), Nordeste (33%) e Sudeste (46%). São onze 2011
os bens imateriais lá registrados. reconhecido como tal pelo Iphan. Foto: Ronaldo Nina.
O poema “Belém é Bíblica”, de Milton Vários dos autores dialogam com o
Hatoum, abre o nº 37 da Revista do Pa- cronista. João de Jesus Paes Loureiro, por
trimônio e, marcando o início de cada um exemplo, ao tratar do imaginário e da poética
dos eixos, temos crônicas suas convidando da vida amazônica. Fernando Mesquita
o leitor para uma viagem. Amazonense e do e William Domingues, ao constatarem
mundo, a obra de Hatoum desperta o inte- a inaplicabilidade do instrumento do
resse pela região, dialoga com aqueles que tombamento para a proteção da arquitetura
vivenciam ou vivenciaram de alguma forma vernacular das cidades ribeirinhas e
as cidades da Amazônia, principalmente da arquitetura tradicional indígena,
Manaus, Belém e imediações. O autor está respectivamente.
sempre a lembrar quem somos e de onde Durante séculos perdurou como
viemos, aciona memórias e afetos, referên- imaginário predominante em relação ao
22 cias ancestrais que ainda permanecem em
Norte aquele construído a partir dos relatos
nós, mesmo que ignoradas e até negadas.
de viajantes que por ali passaram desde
Denuncia que marcas, vestígios, rastros dessa
o século 16. Assimilado como verdade
ancestralidade estão sendo apagados de nos-
pelos discursos políticos, institucionais e
sas cidades, de nossa arquitetura, seja pelas
acadêmicos, foi responsável pela consolidação
pressões do mercado e tendência mundial
de uma imagem deturpada da região
de padronização das cidades nos moldes
e de sua gente2. Da mesma maneira, a
globais, seja pela negação do que somos, ou
reiterada informação a respeito da baixa
pelo descaso, omissão e “ganância” do mer-
densidade populacional da Amazônia
cado imobiliário. A crônica às vezes é ácida,
levou ao entendimento equivocado de
incomoda, instiga. A Transamazônica e o
que se trata de área vazia a ser ocupada,
descaso. A arquitetura de Severiano Mário
invisibilizando ainda mais os povos
Porto, com influências da arquitetura ver-
nacular da região, premiada nacionalmente,
2. A esse respeito, ver Almeida (2008), Pizarro (2012) e Meirelles
mas ainda não reconhecida pelo Iphan. Filho (2009 e 2011).
indígenas, as comunidades tradicionais3 a essas informações é objeto das reflexões
e os pequenos agricultores que habitam e de Ana Pizarro, que discute o trânsito
ocupam esse território. Nos últimos anos, dessas narrativas orais para a forma escrita
esse imaginário vem passando por um e a apropriação dos discursos e da cultura
processo de desconstrução e decolonização4 indígena pelo Ocidente, com as perdas e
como referido por Alfredo Wagner, João ganhos que esses caminhos implicam.
Meirelles & Fernanda Martins e Eduardo Esse patrimônio de menor visibilidade,
Neves. Para aqueles que querem conhecer não reconhecido por nenhuma esfera
o Norte, é indispensável compreender seus governamental, vem assumindo importante
processos históricos e sociais a contrapelo5. papel transformador e de autoafirmação no
A cosmologia e cosmogonia dos povos contexto das comunidades tradicionais da
indígenas constituem outra importante fonte Amazônia. Destaca-se nesse contexto, em
de conhecimento do Norte brasileiro e de 23
interação com as universidades por meio de
seu meio ambiente, mas a grande dificuldade
projetos de pesquisa e extensão, o projeto
é que são tradicionalmente transmitidas por
Nova Cartografia Social da Amazônia6 e seus
via oral. A possibilidade de ampliar o acesso
desdobramentos nos Centros de Ciência e
Vista geral do porto de
Saberes, apresentados por Alfredo Wagner. Manaus (AM). In: Álbum
3. Decreto Federal nº 6.040/2007, que instituiu a Política Vistas de Manaus, 1890
Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e A implementação das políticas do (ca.).
Comunidades Tradicionais – PNPCT. Foto: George Huebner/Coleção
Mestres do Séc. XIX/Acervo
patrimônio cultural de natureza imaterial pelo Instituto Moreira Salles.
4. A expressão é utilizada conforme apresentado em: Walsh
(2009): “Suprimir o ‘s’ e nomear ‘decolonial’ não é promover
um anglicismo. Pelo contrário, é marcar uma distinção com o
significado em castelhano do ‘des’. Não pretende-se simplesmente 6. Tem por objetivo oportunizar a autocartografia social dos
desarmar, desfazer ou reverter o colonial; quer dizer, passar de povos e comunidades tradicionais na Amazônia como forma
um momento colonial a um não colonial (...). A intenção é de produção de conhecimento a partir do saber local, sobre
sinalizar e provocar um posicionamento – uma atitude e postura o processo de ocupação da região. A ênfase desse processo é
contínua – de transgredir, intervir, insurgir e incidir. O decolonial no fortalecimento dos movimentos sociais existentes, os quais
denota, então, um caminho de luta contínuo no qual podemos consistem em manifestação de memórias e identidades sociais
identificar, visibilizar e incentivar ‘lugares’ de exterioridade que referenciam situações peculiares e territorializadas. A
e construções alternativas” (tradução nossa). Disponível em produção coletiva das cartografias são momentos que favorecem a
<http://www.flacsoandes.edu.ec/interculturalidad/wp-content/ autoafirmação social e fortalecem os movimentos em consonância
uploads/2012/01/Interculturalidad-estado-y-sociedad.pdf >. com a as expressões culturais diversas, conforme Apresentação
do projeto. Disponível em <http://novacartografiasocial.com.br/
5. Cf. Benjamin (1987). apresentacao/>.
Iphan7 possibilitou contemplar manifestações das águas dos rios Negro e Solimões, em
Introdução
e expressões culturais de povos indígenas e de Manaus, Iranduba e Careiro da Várzea, no
a c i o n a l
influência africana, estabelecendo um diálogo Amazonas (2010)8, respectivamente, o que
N
votos traduzem, de forma contundente, a
r t í s t i c o
e se reconhecer nessas representações. Isso diversidade e complexidade que se pode
contribuiu para a difusão e apropriação enfrentar nos procedimentos de identificação
A
dessa categoria de pensamento de forma e reconhecimento do patrimônio dessa região,
e
associada ao dia a dia das comunidades, cuja área corresponde a 80% da Amazônia
i s t ó r i c o
incentivando o surgimento de uma série de brasileira, 70% da internacional e cerca de
iniciativas de mobilização, autoafirmação 45% do território brasileiro, fazendo fronteira
H
e reconhecimento de direitos sobre o
a t r i m ô n i o
internacional com Bolívia, Colômbia,
território, a cultura e o meio ambiente. Venezuela, Peru, Guiana, Suriname e Guiana
Outro desdobramento interessante são as Francesa. Refletem, também, a iniciativa
P
polêmicas e conflitos decorrentes da aplicação institucional, ainda tímida, de dar conta dessa
d o
da política, das práticas e da atuação dos árdua tarefa.
e v i s t a
agentes públicos, o que vem contribuindo Ambos os pareceres são emblemáticos por
R
para a reflexão dos grupos envolvidos, novas mostrarem que novas formas de abordagem
posturas, posicionamento crítico e até são possíveis e por compreenderem alguns dos
mesmo recusa ao reconhecimento oficial. grandes dilemas enfrentados pelas populações
É disso que trata Manuel Ferreira Lima tradicionais, das quais muitas se identificam
Filho ao falar do efetivo exercício de uma como “povos da floresta”, referenciados e
cidadania patrimonial, bem como Larissa de reconhecidos como sujeitos dos chamados
Almeida Guimarães e Cristian Pio Ávila, com “empates”, estratégia de luta adotada contra a
25
diferentes abordagens e questionamentos. derrubada dos seringais no Acre, que resultou
No que tange às formas e possibilidades na criação das reservas extrativistas pelo
de reconhecimento, ainda há muito que Decreto no 98.897, de 30 de janeiro de 1990.
avançar, mas proposições inovadoras se
Essas populações tradicionais constituídas Porto, Belém (PA), 1948
destacam em dois pareceres do Conselho Foto: Pierre Verger.
por povos indígenas, quilombolas e A Fundação Pierre Verger foi
Consultivo do Patrimônio Cultural, criada pelo fotógrafo e etnólogo
ribeirinhos, às quais se juntaram muitos Pierre Verger, em 1988. Tem
como objetivo divulgar o
correspondentes aos votos dos relatores trabalho – fotográfico e escrito
imigrantes nordestinos no auge da exploração – de seu fundador, bem como
Ulpiano Bezerra de Meneses e Eduardo reforçar a ligação histórica entre
da borracha, estão presentes em toda a África e Brasil. É uma instituição
privada, sem fins lucrativos,
Neves, emitidos nos processos de que funciona na casa em que
Amazônia. Como, por exemplo, nas margens Pierre Verger viveu em Salvador,
tombamento de dois bens culturais do Bahia. Detentora dos direitos
dos rios Negro e Solimões que constituem o autorais, organiza exposições,
publicações da obra de Pierre
Norte: a Casa de Chico Mendes e seu acervo, Verger, libera uso de fotografias
encontro das águas, onde há séculos “vivem para diversos trabalhos de
em Xapuri, Acre, em 2008, e o Encontro terceiros, organiza atividades e
oficinas gratuitas para o público
em geral e, principalmente,
para a comunidade do bairro
8. Recomenda-se a leitura dos respectivos processos, pois a Engenho Velho de Brotas, onde
7. A partir do Decreto nº 3.551, de 4 de agosto de 2000, que instrução destes reúne importantes informações concernentes aos fica sua sede.
www.pierreverger.org
instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial e respectivos bens e aos contextos, circunstâncias e significados que Facebook:/FundacaoPierreVerger
criou o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial. os envolvem. Instagram:/fundacaopierreverger
plantas, animais, pessoas, e repousam, parte Jussara Derenji, por sua vez, apresenta
Introdução
trazidos por Luciana Carvalho: o pedido teatros Amazonas e da Paz foram tombados
de tombamento da Floresta Amazônica individualmente, mas indicados pelo Iphan
A
fundiária. As leis que deveriam garantir de três articulistas. Roseane Norat tratou
proteção e assegurar direitos acabam das estratégias de promoção e difusão,
P
por constituir obstáculos para que isso traçando um quadro geral em que analisa
d o
Introdução
fatos da vida e obra do arquiteto José Sidrim, se de pequenos museus comunitários ou
a c i o n a l
procedente de Fortaleza, mas radicado em ecomuseus, articulados em rede e integrantes
N
r t í s t i c o
sionalmente, forma-se em arquitetura e deixa Museu do Marajó, o Ecomuseu da Amazônia
significativo legado arquitetônico (igrejas, e outras experiências brasileiras são citadas
A
residências, palacetes), com alguns exemplares como exemplos pelo autor.
e
protegidos por tombamento estadual, ainda Na mesma linha, mas em outro campo
i s t ó r i c o
pouco conhecidos do Brasil, mas cuja impor- de atuação, os Protocolos Comunitários
tância para os moradores da cidade ultrapassa analisados por Eliane Moreira & Luciano
H
seu valor como patrimônio material. Maciel também vêm desempenhando
a t r i m ô n i o
Nesse sentido é que a etnografia urbana importante papel no que concerne ao
constitui um importante instrumento a ser fortalecimento dos povos indígenas,
P
explorado na identificação e mapeamento comunidades tradicionais e agricultores
d o
do patrimônio imaterial nas cidades e pode, familiares na defesa de seus direitos
e v i s t a
também, se revelar uma excelente alternativa relacionados à diversidade biológica, à
R
para os estudos de sítios e conjuntos preservação e à proteção dos conhecimentos
tombados e seus respectivos entornos, dos povos e comunidades tradicionais.
como sugerido por Bezerra de Meneses Assegurados pelo protocolo de Nagoya, não
(2017). Exemplos de mobilização social seriam reconhecidos no Brasil, que não é
em São Paulo e experiências de aplicação signatário desse documento, porém, o texto
de metodologia etnográfica em outras da Lei nº 13.123, de 20 de maio de 2015, os
cidades do Sul são o tema abordado por legitima. Entretanto, esse mesmo arcabouço
27
José Guilherme Cantor Magnani. Podem a legal, que pretende proteger tais direitos no
princípio parecer deslocados do conjunto país, causa enorme prejuízo às comunidades
de textos, mas mobilizações sociais pela envolvidas, ao isentar o segmento industrial
preservação do patrimônio ou metodologias da obrigação de dirigir-lhes consulta
que ajudam a identificar de que modo a prévia, pedir consentimento informado na
população se apropria, marca, usa e atribui exploração de recursos, repartir os benefícios
significados para o espaço urbano podem obtidos etc.
servir de referência para qualquer cidade no A área de arqueologia traz preciosidades,
Brasil e no mundo. demonstra preocupação de aumentar os
Hugues de Varine, antigo e ferrenho vínculos com a sociedade nas pesquisas de
defensor do patrimônio cultural como campo e no gerenciamento e socialização
fator de desenvolvimento local, retoma das coleções. Marcia Bezerra sinaliza que
essa questão a partir de experiências de é preciso repensar e buscar alternativas
construção coletiva de lugares de memória, para as pequenas coleções domésticas de
que se assemelham em alguns aspectos com fragmentos e pequenos objetos, que se
Introdução
a c i o n a l
28
Introdução
últimos 20 anos (1997–2017) na Região experiência promissora que colabora para
a c i o n a l
Norte, cruzando informações, apresentando a identificação e promoção do artesanato
N
r t í s t i c o
Em outra escala, o Museu Paraense Emílio Fernando Canto comenta as referências
Goeldi, fundado em 1866, vem investindo culturais da população do Amapá,
A
nos últimos anos na abertura de seu acervo especialmente de Macapá e municípios
e
para distintos públicos e se reinventando. O vizinhos, incluindo o patrimônio cultural,
i s t ó r i c o
projeto Replicando o Passado, apresentado reconhecido oficialmente ou não, e
por Helena Pinto Lima, Cristiana Barreto, abrangendo diferentes formas de expressão.
H
Camila Fernandes e Leonardo Machado, é Interessa observar como as influências das
a t r i m ô n i o
um exemplo disso. diversas etnias e processos migratórios
Ana Vilacy Galucio, Denny Moore e contribuíram para a formação da população
P
Hein van der Voort, do Museu Goeldi, daquele estado.
d o
estão realizando, por meio de parceria com Registrado como patrimônio cultural
e v i s t a
o Iphan, o inventário das línguas indígenas brasileiro pelo Iphan, em 2004, e como
R
de Roraima. Traçam em seu artigo uma patrimônio da humanidade pela Unesco,
panorâmica da situação atual das línguas em 2013, a celebração do Círio de Nossa
indígenas no Brasil. Observam o avanço Senhora de Nazaré, que ocorre em Belém
obtido com as garantias constitucionais e há mais de duzentos anos, ainda não possui
a legislação específica, que asseguram aos plano e nem comitê de salvaguarda. Márcio
indígenas direito à terra e cultura, bem como Couto Henrique analisa em seu artigo a
a proteção de suas línguas, reconhecidas como trajetória da participação popular na gestão
29
patrimônio cultural brasileiro. Destacam a da celebração, concluindo que esta se acha
preocupante ausência de dados oficiais acerca bastante restrita atualmente, contrariamente
do número de línguas indígenas faladas no às infinitas possibilidades nesse sentido.
Brasil e oferecem uma análise das perspectivas O autor sugere alternativas para reverter
de planejamento e proposições de gestão para esse quadro, como, por exemplo, fazer um
proteger nossa diversidade linguística. concurso público para a escolha do desenho
A trajetória exemplar do Centro Nacional do manto da santa, em que a decisão seria
de Folclore e Cultura Popular – CNFCP, feita em consulta aos devotos. Fica a deixa
com relação à atuação institucional na para o plano de salvaguarda. Alternativas
Região Norte, aparece relatada por Elisabeth são identificadas para os sítios tombados,
Costa. O centro, ressalte-se, já atuava com voltadas para uma gestão mais eficaz dessas
excelência mesmo antes de sua incorporação áreas, hoje com alto grau de deterioração
ao Iphan, onde passou a contribuir de e com muitos imóveis desocupados e em
maneira primordial com os planos de estado de abandono. A elaboração de normas
salvaguarda dos bens registrados, com várias coletivamente construídas e pactuadas com
as diferentes esferas de governo e sociedade A Milton Hatoum, pela gentileza de
Introdução
civil certamente permitirá tornar esses sítios autorizar o uso do poema e das crônicas que
a c i o n a l
mais atrativos para novos e sustentáveis usos. introduziram e guiaram o leitor nesse passeio.
Maria Dorotéa de Lima
À presidente Kátia Bogéa, pelo convite PIZARRO, Ana. Amazônia. As vozes do rio:
imaginário e modernização. Tradução de Rômulo
e oportunidade. Aos diretores Andrey Monte alto. Belo horizonte: Ed. da UFMG, 2012.
Rosenthal Schlee, Marcelo Brito e Hermano
WALSH, Catherine. Interculturalidad, estado,
Queiroz, pela colaboração e disponibilização sociedad: luchas (de)coloniales de nuestra época.
de informações e dados. Aos colegas do Universidad Andina Simón Bolivar. Quito:
Ediciones Abya-Yala, 2009.
Iphan que encaminharam valiosas sugestões.
À Divisão de Editoração e Publicações do
Iphan, cujo apoio viabilizou a elaboração e
lançamento das revistas, a despeito de todas
as dificuldades encontradas.
E especialmente:
Pinturas rupestres no sítio
Filadélfia II, Filadélfia (TO)
Foto: Acervo Iphan.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
32
Milton Hatoum Margens secas da cidade
Milton Hatoum
a c i o n a l
M argens secas da cidade
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
Era um canto matinal, não sei se antes ou ao armazém de secos e molhados Renascença,
depois dos galos, já nem sei quando, porque a nossos vizinhos portugueses, e avistava o
infância é um mundo distante, transformado arbusto humano carregado de frutas e ouvia
P
pelo tempo. as palavras taperebá, ingá, sorva, tucumã,
d o
e v i s t a
O homem era uma surpresa na luz da graviola, jatobá, cupuaçu, bacaba: palavras
manhã, e a manhã, sim, era infância: terra (sons) que nunca mais deixei de ouvir por
R
nua, rio de horizonte sem fim. Carregava um onde andei e morei. Lembro que certa vez em
tabuleiro pesado, o rosto dele mal aparecia no Lima ele apareceu com o pomar no tabuleiro,
meio de frutas e galhos, frutas arrancadas das e pensei nas voltas que havia dado para chegar
árvores de algum quintal ou terreno baldio, à capital do Peru, talvez por lquitos, e quando
ou da floresta que nos cercava. Um homem estendi a mão para apanhar uma fruta ele
árvore, um ser da floresta. riu ou deve ter rido e curvou o corpo e me
Como era distante e tão próxima de nós, ofereceu o pomar inteiro. Então acordei. 33
a floresta. Na minha memória, esse vendedor Fiquei pensando no homem-floresta em
ambulante era um fauno de Manaus. Hoje eu Lima. Vá saber o significado de um sonho.
o imagino como uma das figuras fantásticas Na realidade, na vida que chamamos
de Arcimboldo: um caboclo equilibrando- realidade, o homem sempre aparecia quando
se na rua de pedras, um pomar suspenso eu regressava para Manaus, não sei se mais
oscilando sobre a cabeça invisível, a voz velho, mais acabado, ou mais corcunda,
trinando sons tremidos pelo vento que sei que a voz flauteava nomes de frutas e a
vinha do rio Negro. Os sons das palavras mesma voz dizia “E aí, mano”, me oferecendo
encantavam, me atraíam como a serpente que cachos de pitombas, sem mesmo receber
ergue a cabeça ao som de uma flauta. Na voz, dinheiro, como se eu ainda fosse aquela
nenhum travo de raiva ou desespero, apenas criança na janela da casa da avenida Joaquim
a melodia de um homem humilde que deseja Nabuco 457, e ele um avô da natureza.
Vendedor de frutas em
viver e depende da voz para sobreviver. Eu ia “Obrigado, seu...” Não sabia o nome dele, Belém (PA), 2018
Foto: André Vilaron/
até a sacada do sobrado da infância, vizinho nada. A árvore móvel atravessava a cidade e Acervo Iphan.
creio que atravessou minha vida e o tempo, plantou no Amazonas. E, sem querer, um
Margens secas da cidade
teimando em sobreviver com a cabeça vegetal ato involuntário nos conduz ao coração da
a c i o n a l
e os pés de raízes aéreas, o corpo invisível, a realidade. Fui me despedir do igarapé agora
cabeça escondida, as frutas caindo dos galhos aterrado, as palafitas pobres substituídas por
e das folhas verdes, frutas que cheiravam a casas feias, fechadas, sem varanda, janelas
N
r t í s t i c o
léguas de distância e davam água na boca aos pequenas. Andava por vielas de terra quando vi
Milton Hatoum
estivesse ali, concentrado com a força da espalhadas na madeira desgastada. Ele estava
e
umidade, a alegria solar e a beleza das formas sentado ao lado de sua árvore desfolhada. O
i s t ó r i c o
e cores, passando, passeando entre carros, homem era só tronco, esquálido, sem voz,
caminhões e ônibus até o dia em que ele, o com um olhar resignado voltado para o chão.
H
homem-árvore, era a única natureza viva na Escolhi uns tucumãs, peguei dois cachos de
a t r i m ô n i o
Como é possível perder a razão de ser? Recebeu o dinheiro, dobrou as notas e pôs
e v i s t a
Você não ouve mais o som flauteado, no bolso da camisa. Esperei um aceno, um
não vê mais a árvore da vida, não encontra cumprimento qualquer, mas no olhar dele
R
o desejo nem os indícios da primeira não havia nada. Triste e sem voz, parado no
manhã. Aquela árvore e seu tronco foram mormaço, sobrevivente que a morte espreita
se atrofiando, a aspereza da cidade usurpou nas margens secas da minha cidade.
o indivíduo do nosso convívio, tudo se
tornou enorme e disforme. O tempo nos
consome com lentidão. O homem-árvore
34 foi desfolhando, perdendo galhos, sua força
vegetal arrefeceu, as frutas, antes polidas,
perderam o brilho, alguma praga roeu o
arbusto aéreo. O sol incendiou as manhãs
frescas, ruas e calçadas, a floresta que nos
cercava tornou-se um caos de casebres e
palafitas, os pequenos caminhos de água
secaram. Há dois anos vi o homem-árvore e
agora o perdi de vista.
Por onde andam seus pés descalços, seu
turbante de pano barato, sua voz de flauta
doce? É inútil procurá-lo, pensei. Já não
Passiflora quadrangularis sinto o cheiro perfumado do sapoti, o sabor
(Maracujá). Aquarela.
In: Álbum de desenhos do jambo arroxeado, cuja semente algum
originais, 1840 (ca.)
Acervo: Fundação Biblioteca
Nacional, Brasil.
português do Algarve trouxe da Índia e
Rua Joaquim Nabuco 457,
Manaus (AM), 2018
Foto: Márcio Vianna/
Acervo Iphan.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
36
Milton Hatoum Margens secas da cidade
Casarão
Acervo Iphan.
Foto: Márcio Vianna/
Manaus (AM), 2018
na Rua Joaquim Nabuco,
em frente ao número 457,
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
37
38
A l f re d o Wag n e r B e r n o d e A l m e i d a Museus indígenas e quilombolas:
o s n ovo s s i g n i f i c a d o s d o c o n c e i t o d e p r o c e s s o d e p a t r i m o n i a l i z a ç ã o
Alfredo Wagner Ber no de Almeida
a c i o n a l
M useus indígenas e quilombolas :
N
os novos significados do conceito de
r t í s t i c o
processo de patrimonialização
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
Ao delimitar o objeto de reflexão do àqueles cujos artefatos eram musealizados,
trabalho de pesquisa1 sobre o surgimento tanto quanto eles próprios, num lento
dos chamados “museus vivos” ou “pequenos extermínio simbólico.
P
museus” em territórios étnicos, em aldeias, Os museus consistiam, então, numa
d o
e v i s t a
em povoados, em projetos de assentamento paradoxal historicidade da morte, razão pela
e em bairros periféricos das metrópoles, qual o conceito de musealização nos remete
R
verificamos que, tal como os mapas, esses diretamente a Baudrillard2. Por outro lado,
pequenos museus são acionados hoje as recentes práticas de pesquisa, relativas
nas mobilizações pelo reconhecimento à denominada nova cartografia social3,
identitário de povos e comunidades que antecedem e são coetâneas do Projeto
tradicionais, tornando-se um fator dinâmico Centro de Ciências e Saberes, nos facultaram
de conhecimentos específicos e um vigoroso condições para detectar o estado nascente
instrumento político. Semelhante ao que foi de pequenos museus ou museus vivos e o 39
suscitado pelos mapas, verifica-se que a ideia potencial de mobilização política de povos
de museu também está sendo apropriada por que reverteram a sua propalada condenação
aqueles que eram ou ainda são designados
como os “outros”. Isso quer dizer que o mapa 2. O conceito de museificação, como historicidade da morte, Tapiukaw se pinta para
participar de protestos
é trabalhado por Baudrillard (1991:18-19), senão vejamos:
de seu povo contra a
nos levou ao museu. A “nova cartografia” nos “Estamos fascinados com Ramsés como os cristãos da Renascença
presença de mineradora
o estavam com os índios da América, que nunca tinham conhe- nos arredores das terras
impeliu aos novos significados de “processo cido a palavra de Cristo (...). Deste modo terá bastado exumar aikewara, sudeste do
Ramsés para o exterminar ao museificar: é que as múmias não Pará, 2011
de patrimonialização”, de “coleção” e de apodrecem com os vermes: elas morrem por transumarem de Foto: Orlando Calheiros.
1. Projeto Centro de Ciências e Saberes: experiência de criação 3. Referência ao Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia,
de “museus vivos” na afirmação de saberes e fazeres representa- instituído a partir de 2005 por uma rede de pesquisadores de
tivos de povos e comunidades tradicionais, realizado entre 2015 universidades públicas da Amazônia e tendo inicialmente como
e 2018, financiado pelo MCTI/CNPq, cujas atividades foram laboratório principal a unidade sediada na Ufam e, depois de
executadas na Amazônia. 2009, na UEA.
ao extermínio, rompendo com os estigmas ameaçados por conflitos sociais provocados
Museus indígenas e quilombolas:
o s n ovo s s i g n i f i c a d o s d o c o n c e i t o d e p r o c e s s o d e p a t r i m o n i a l i z a ç ã o
de morte. Ambos, mapa e museu, são devastadores tanto sobre o modo de vida
i s t ó r i c o
nacionais e à morte que paira sobre os que, inclusive, não demandam necessaria-
d o
grandes museus das antigas metrópoles, que mente uma institucionalização, pode ser
e v i s t a
a c i o n a l
de seringueiros, museu de castanheiros, ao tempo linear, recolocando de modo
museu de pantaneiros, museu de pescadores inovador artefatos da vida cotidiana, símbolos
religiosos, narrativas míticas, cosmogonias
N
artesanais, museu de caiçaras, museu de
r t í s t i c o
geraizeiros, museu de comunidades de fundos e instrumentos de caça, coleta, pesca e de
cultivo agrícola os mais rotineiros. Verifica-
e fechos de pasto e museu de faxinais?
A l f re d o Wag n e r B e r n o d e A l m e i d a
A
se um esforço crítico de repensar o museu
Antes de tudo cabe dizer que a nomeação
e
como uma ferramenta analítica do presente
i s t ó r i c o
explícita dos sujeitos envolvidos na criação
contra a ilusão biográfica dos artefatos que, de
desses museus vivos implode o significado de
portadores de conhecimentos sobre os povos e
H
“outros”. Fica evidente, portanto, que omitir
comunidades que os elaboraram, se tornaram
a t r i m ô n i o
ou ocultar deliberadamente o nome de tais autônomos. São objetos que, mesmo isolados,
sujeitos, usando uma designação genérica, têm vida própria e são capazes de representar
inviabilizava qualquer possibilidade concreta
P
por si mesmos (Fayad, 2016:179).
d o
de autodefinição. No momento atual, ao Levando em conta as identidades coletivas
e v i s t a
contrário, as autodefinições é que nomeiam emergentes e suas recentes iniciativas de
os museus, demonstrando não somente suas museus, seja na Ásia, na África e nas Américas
R
especificidades, mas também que os museus Central e do Sul, retomo indagações
vivos são indissociáveis da consciência de si elementares: por que museus? Por que
mesmos ou do processo de autodefinição dos pequenos museus? Por que museus vivos? Por
agentes sociais correspondentes às identidades que tantos pequenos museus?
coletivas explicitamente mencionadas. A proliferação aludida se mostra caracte-
rizada por uma larga dispersão e por particu-
Essa disseminação pode ser pensada
laridades e descentramentos peculiares que 41
como uma forma de atualização e renovação
desestimulam uma análise através de possíveis
do legado político da resistência de povos
invariantes ou do que seria comum a todas
e comunidades outrora dominados ou
essas iniciativas. A afirmação de que constitui
submetidos ao jugo das metrópoles coloniais?
um dos derradeiros capítulos do processo de
Caso a resposta seja positiva, pode-se dizer descolonização deflagrado após a II Guerra
que o florescimento de múltiplas identidades, Mundial está igualmente colocada em ques-
desde o final do século 20 e primeira década tão. Há uma descontinuidade histórica que se
do século 21, refletindo existências coletivas contrapõe a uma ação política sequencialmen-
fortalecidas, impõe uma presencialidade te traçada. Há interpretações que sublinham
do passado, sem tê-lo como determinante.
Assiste-se a um desdobramento do processo 4. “O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com ‘o
novo’, que não seja parte do continuum de passado e presente.
de descolonização em que há uma dura luta Ele cria uma ideia do novo como ato insurgente de tradução
cultural. Essa arte não apenas retoma o passado como causa social
de classificações e um conflito permanente em ou precedente estético; ela renova o passado, refigurando-o como
um ‘entre-lugar’ contingente, que inova e irrompe a atuação do
torno da apropriação da memória histórica presente” (Bhabha, 2010:27).
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
42
A l f re d o Wag n e r B e r n o d e A l m e i d a Museus indígenas e quilombolas:
o s n ovo s s i g n i f i c a d o s d o c o n c e i t o d e p r o c e s s o d e p a t r i m o n i a l i z a ç ã o
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
43
sentido inverso, que enfatizam um expressivo abre e fecha. Eles se fecham em si mesmos,
a c i o n a l
registros de massacres, os seus efeitos variam, çam a dar lugar ao simbólico e ao imaterial,
assim como a consciência dos agentes sociais levando em conta os conhecimentos tradicio-
A l f re d o Wag n e r B e r n o d e A l m e i d a
A
sobre o resultado dos antagonismos aos quais nais e as classificações que lhes são inerentes.
e
estão referidos. Cada experiência de museu As lutas travadas pelos povos e comunidades
i s t ó r i c o
vivo ou dos Centros de Ciências e Saberes tradicionais passam a ocorrer também por
reflete as condições características e peculiares entre os meandros da “economia do conheci-
H
à situação social de referência. Cada unidade mento” de que nos fala André Gorz.
a t r i m ô n i o
pautas sindicais e partidárias aponta, assim, encontram-se sob ameaça, senão vejamos:
R
a c i o n a l
saques, roubos, atos de vandalismo e contrabando de bens culturais em situações
pilhagem de museus, de ruínas, de tumbas, de conflito armado, mas pouco esclarece
de esculturas e de templos e também de
N
a respeito dos autores de tais práticas
r t í s t i c o
lugares institucionais de pesquisas vinculadas ilícitas ou de medidas a serem tomadas
ao propósito da conservação, como contra eles, limitando-se a caracterizá-los
A l f re d o Wag n e r B e r n o d e A l m e i d a
A
laboratórios de antropologia e arqueologia6, como extremistas. Não há muita novidade
e
demonstram o menosprezo pela memória
i s t ó r i c o
nessa resolução. Em termos históricos,
histórica, pelos referidos lugares e respectivos são frequentes os exemplos de guerras
artefatos, enquanto documentos similares acompanhadas do saque de bens culturais.
H
aos materiais escritos, que contribuem
a t r i m ô n i o
O hábito do colecionismo concerne a um
para a análise da formação de diferentes capítulo de conquistas e pilhagens de coleções
povos. Esses atos ilícitos e os danos que têm científicas e artísticas usurpadas como butins
P
provocado atingiram tal dimensão que o
d o
de campanhas militares. Há inúmeros livros
Conselho de Segurança da ONU foi levado
e v i s t a
e filmes recentes que tratam dessa questão.
a adotar recentemente pelo menos duas
Recorde-se que as tropas de Napoleão no
R
medidas contundentes. A primeira, em
Egito, em Portugal, na Espanha, na Rússia
fevereiro de 2015, aprovando a Resolução
e demais países conquistados se faziam
no 2.199, que proíbe o comércio de bens
acompanhar de cientistas que, uma vez
culturais oriundos do Iraque e da Síria. A
consolidada a vitória militar, selecionavam
segunda, em 24 de março de 2017, quando
nos museus dos derrotados o que deveria
aprovou por unanimidade a Resolução no
ser pilhado (ver Almeida, 2008:45-56). Os
2.347, relativa à proteção do patrimônio
artefatos funcionavam como troféus que, 45
cultural face às guerras e conflitos localizados,
uma vez exibidos publicamente nos museus
asseverando que a sua defesa é imperativa
dos vencedores, combinavam sobremaneira
para a segurança dos povos e para a proteção
com a arquitetura dos arcos, monumentos
da memória da humanidade. Embora
pomposos, obeliscos e esculturas gigantescas
não tenham o peso de uma resolução
que, numa indisfarçável inspiração romana,
da Assembléia Geral, as do Conselho de
simbolizavam as grandes vitórias militares. O
Segurança têm valor jurídico vinculativo.
Museu do Louvre foi fundado por Napoleão
para expor suas conquistas: múmias, estátuas,
6. Eis algumas informações a respeito: i) “Durante as primeiras pinturas, esculturas, bustos e esfinges, todas
semanas da invasão americana no Iraque, em 2003, a Universi-
dade de Basra foi invadida e seus laboratórios foram saqueados” prisioneiras do silêncio do museu. As tropas
(Gomes, 2011:112); ii) Uma lista de obras roubadas, elaborada
pelo International Council of Museums, em 2011, levou à
nazistas, quando ocuparam Paris, procederam
apreensão de 1,5 mil peças traficadas do Afeganistão para Lon- ao desmonte das coleções artísticas do Museu
dres; iii) As ruínas do Templo de Bel, em Palmyra, na Síria, foram
devastadas, em 2016, pela força armada fundamentalista do do Louvre e demais museus, transportando-
denominado Estado Islâmico – EI (Isis ou Daesh), que destruiu
edificações, esculturas, quadros e pinturas imemoriais. as por via férrea para minas abandonadas
no interior da Alemanha7. O fogo da e ácidas controvérsias públicas acerca dos
Museus indígenas e quilombolas:
o s n ovo s s i g n i f i c a d o s d o c o n c e i t o d e p r o c e s s o d e p a t r i m o n i a l i z a ç ã o
museu Hermitage durante o longo cerco de de pessoas nas sociedades. Em suma, pode-
Leningrado e, em atos de rapina, devastou se dizer que as propostas de museus não
museus e bibliotecas da França, Bélgica, são necessariamente consensuais e, se são
N
r t í s t i c o
Polônia, Holanda, Sérvia e Grécia. Todos os apontadas como fator de agregação, também
bens saqueados compuseram listas que, no podem intensificar cisões e atritos entre
A l f re d o Wag n e r B e r n o d e A l m e i d a
A
pós-guerra, serviram para resgatar parte das facções. É o caso do Museu do Quai Branly,
e
Sem se restringir a conflitos armados, em torno dos museus e das “reservas” criadas
d o
também há registros de que políticas oficiais pelas mineradoras, petroleiras e empresas que
e v i s t a
têm conspirado contra a memória histórica barragens, que, a seu modo, reconstituem
e levado países africanos a divisões políticas pictoricamente a paisagem das antigas
quedas d’água, montanhas e campos e criam
7. A propósito, indicamos dois filmes que narram documen- um lugar para abrigar a pequena fauna
talmente a pilhagem nazista de museus franceses e belgas: The
monuments men (que foi traduzido como “Caçadores de obras- remanescente. São produtos do que designam
-primas”), dirigido por George Clooney, e Francofonia: Louvre sob
ocupação, de 2015, dirigido por Alexander Sokurov. Este diretor como ações de “salvamento”, com “coleções”
recupera a imagem do Conde Wolff Metternich, “o curador” para dos objetos “resgatados” por arqueólogos
toda a Europa ocupada pelos nazistas, que aparece abrigando ou
46
escondendo coleções artísticas do Louvre num castelo medieval, e ecologistas, facultando uma visão
assim como discursando e citando a Convenção de Haia, de
1899, dando destaque ao princípio da imunidade e da proteção edulcorada da extensão dos extermínios e da
do patrimônio cultural em tempos de guerra.
profundidade da desagregação das unidades
8. Registram-se outros dispositivos de proteção do patrimônio
cultural em casos de guerras que antecedem a este. O mais sociais atingidas.
recuado temporalmente, que consegui levantar, diz respeito ao
Acordo Internacional sobre as “Leis e Costumes da Guerra”, cujo Parafraseando Mbembe, pode-se ampliar
art. 8º, da Declaração de Bruxelas, de 1874, estipulou o seguinte:
“Todo confisco ou destruição de, ou dano intencional a, (...)
a abrangência de seus argumentos, ressaltando
monumentos históricos, obras de arte e ciência, serão submetidos que nas Américas do Sul e Central também
a procedimentos legais pelas autoridades competentes”. Vinte
e cinco anos depois, em 1899, a Convenção de Haia declarou são muitos os povos e comunidades que hoje
o princípio da imunidade dos bens culturais. Somente 36 anos
após, em 1935, foi aprovado pelos países europeus o Pacto de vivem o temor da perda de seus direitos étni-
Roerich, que concerne ao Tratado sobre a Proteção de Instituições
Artísticas e Científicas e Monumentos Históricos, enunciando cos e territoriais. Eles se encontram acuados
que os bens culturais “formam o tesouro cultural dos povos” e
“devem ser protegidos em tempos de guerra e de paz”.
– mesmo que não submetidos a uma situação
9. No Benin, desde 2017, iniciativas oficiais de criação de dois de guerra declarada –, temendo a intrusão em
museus sobre a escravidão, em parceria com o Smithsonian seus domínios por antagonistas circunstan-
Institute, em Uidá e Allada, têm gerado protestos em torno de
proeminentes famílias de ex-mercadores de escravos que integram cialmente mais poderosos ou a contingência
a elite dirigente e se recusam a associar o nome de seus antepassa-
dos à escravidão. de deslocamentos compulsórios e a destruição
de seu modo de vida. Entretanto, o que ve- conflitivas na Panamazônia, o temor não tem
a c i o n a l
vez do esgotamento dos recursos para manter de esgotamento de seus meios para reivindicar
sua identidade, é a reiterada mobilização po- territórios e reforçar o reconhecimento de sua
lítica de povos e comunidades tradicionais, identidade, nem tampouco ao fechamento
N
r t í s t i c o
para reinventar criativamente os meios de radical de suas fronteiras. Em sentido inverso,
defesa de seus direitos étnicos e territoriais, registram-se mobilizações intensas, numa
A l f re d o Wag n e r B e r n o d e A l m e i d a
A
não obstante as condições adversas. Fazem-no conjunção entre as reivindicações econômicas
e
apesar da força desagregadora exercida sobre e aquelas relativas à identidade. O simbólico
i s t ó r i c o
eles por grandes empreendimentos, tais como: não se mostra dissociado do processo de mo-
empresas de mineração, petroleiras e de gás, bilização política. A própria proposta de cria-
H
agropecuárias e plantações destinadas ao ção de lugares sociais para afirmar a memória
a t r i m ô n i o
mercado de commodities (soja, cana-de-açú- de luta, designados pelos agentes sociais, seus
car, milho, dendê e também pínus, eucalipto artífices, como museus vivos ou pequenos
P
e acácia mangia) e empresas de energia, de museus, expressa essa convergência entre o
d o
óleos vegetais e carvoarias. Distinguindo-se, econômico e o simbólico, entre as reivindica-
e v i s t a
pois, dos efeitos da ação devastadora e catas- ções pelos direitos territoriais e aquelas pelo
R
trófica, delineada por Mbembe, verifica-se reconhecimento identitário, todas autônomas
que nesses casos os povos e comunidades afe- e independentes dos atos de Estado.
tados não estariam recorrendo à multiplicação Nas atividades de pesquisa do projeto,
de cercas e de checkpoints para fechar o acesso como já foi sublinhado, fomos levados a
a seus territórios. Os povos e comunidades produzir uma distinção, designando tais
atingidos não têm se fechado em guetos, nem lugares sociais como Centros de Ciências
promovem o fechamento de fronteiras para e Saberes, mediante a verificação de que se
47
tentar assegurar a reprodução de seu modo de constituem em pontos de convergência de
vida. Ao contrário, parece que quanto menos conhecimentos e práticas, de saberes e de
se voltam para si e mais se expõem, lançan- ações coletivas e, enfim, de listas de artefatos
do-se em lutas reivindicatórias e mobilizações tornadas coleções. Com a adoção dessa
e transcendendo seus domínios, mais logram designação abrangente, num acordo tácito
conquistas. Constata-se que as mobilizações com as organizações representativas dos povos
étnicas, ao pressionarem diretamente os cen- e comunidades estudadas, foram evitadas
tros de poder, mostram-se profícuas. É certo as implicações burocráticas das medidas
que essas mobilizações sofrem abalos com cadastrais características das políticas museais,
divisões internas que fraturam movimentos e que os museus devem necessariamente
comunidades, acirradas pela proximidade das incorporar, submetendo-se à rigidez e
ações diretas dos antagonistas e por demons- uniformidade de seus regulamentos e das
trações continuadas de seu imensurável poder normas oficiais.
de destruição. “Assusta”, como nos adverte Nesse sentido, os Centros de Ciências
Mbembe, mas, em se tratando de situações e Saberes – CCSs não correspondem a
iniciativas passíveis de serem inseridas no notadamente à degradação das condições de
Museus indígenas e quilombolas:
o s n ovo s s i g n i f i c a d o s d o c o n c e i t o d e p r o c e s s o d e p a t r i m o n i a l i z a ç ã o
Cadastro Nacional de Museus, criado e trabalho e aos recentes dispositivos legais para
a c i o n a l
cabo por integrantes dos próprios povos ainda que tenham parte de sua fabricação
e comunidades, e constituem iniciativas concebida nos Estados Unidos ou na Europa,
A l f re d o Wag n e r B e r n o d e A l m e i d a
A
Num outro plano analítico, é possível França, tais zonas se tornam objeto da ação
e v i s t a
sobre seus critérios de composição e sua que gravita em torno dos CCSs, localizados
a c i o n a l
finalidade. Eles tanto podem se referir no próprio território dos povos, a equipe
a expressões político-organizativas, às do projeto tomou como referência básica a
mobilizações rotineiras em torno da memória preexistência das iniciativas de museus vivos,
N
r t í s t i c o
criação sucessiva dos pequenos museus, como ao próprio projeto, cujos participantes,
a t r i m ô n i o
de mobilização, independentes entre si, e a partir dela que os trabalhos de pesquisa foram
d o
a c i o n a l
modelos anacrônicos de museus, com suas afirmação identitária. A ideia de museu
classificações bizarras dos artefatos que nada vivo é vivida aqui como um meio de
mais têm de contemporaneidade, revelando reconhecimento pleno. Com apoio nesse
N
r t í s t i c o
nítidos sinais de esgotamento e exaustão. pressuposto, alcançamos através do projeto,
Os pesquisadores se limitaram, portanto, de maneira efetiva, treze situações sociais
A l f re d o Wag n e r B e r n o d e A l m e i d a
A
a captar uma tendência museográfica em que as iniciativas de museus vivos
e
nascente, embrionária, nos desdobramentos preexistentes foram discutidas e passaram
i s t ó r i c o
do processo de lutas e de mobilizações a se concretizar como uma expressão dos
de povos e comunidades tradicionais, Centros de Ciências e Saberes: sete delas
H
contribuindo para dar vida e visibilidade se referem a comunidades quilombolas,
a t r i m ô n i o
a ela, ajudando a afastar as sombras quatro a povos indígenas, uma concerne
de poderes políticos, que disciplinam a ribeirinhos, cognominados “artesãos”,
P
a memória pela história oficialmente outra aos “assentados” de um Projeto de
d o
imposta e registrada nas pinturas, nos Assentamento de órgão fundiário oficial.
e v i s t a
murais, nas esculturas, nas estátuas Desses, apenas seis se acham consolidados,
equestres e monumentos em exposição com edificações levantadas, coleções em
R
nos museus oficiais e nos centros culturais exposição permanente e diferentes cursos
e turísticos. Esses tais “centros turísticos” (de língua materna, de legislação ambiental
folclorizam, inclusive, a resistência daquelas e sobre a Convenção nº 169 da Organização
comunidades em processo de desagregação, Internacional do Trabalho – OIT), enquanto
ressaltando as vantagens dos deslocamentos quatro estão em avançado estágio de
compulsórios de populações em nome instalação e outros três estão discutindo um
do “progresso”, do “desenvolvimento” e calendário de implantação. A questão do 51
que lhes atribui o Estado, “assentados”, Bem demonstram isso os retratos em sépia,
o que demonstra sua relutância em que não foram envelhecidos artificialmente
reconhecê-los de maneira plena, fazendo-o e estão pendurados nas paredes daquele
N
r t í s t i c o
só parcialmente com o manto da tutela. museu vivo, criado numa gleba denominada
Através desse CCS as quebradeiras de de “Criminosa”. São muitos os estigmas
A l f re d o Wag n e r B e r n o d e A l m e i d a
A
unidades sociais à sua volta. Na sua forma representados como elementos fundamentais
organizativa, explicitam a construção política da memória da conquista da terra e dos
H
a c i o n a l
mortes cultuadas. É isso que nos leva a deter de artefatos mumificados e empoeirados
o olhar sobre uma camisa de tecido esgarçado sob a pátina do tempo. Contrariamente, o
com manchas de um vermelho desbotado, museu vivo transforma o passado em atos do
N
r t í s t i c o
que nos permite inferir tratar-se do sangue presente, traduzindo uma historicidade da
de alguém que tombou para que aquela terra vida e um mundo que de nenhuma maneira
A l f re d o Wag n e r B e r n o d e A l m e i d a
A
fosse conquistada, ou que nos faz moderar o é o mundo dos “outros”. A iniciativa desses
e
passo diante da indumentária colorida de um pequenos museus pertence, portanto, ao que
i s t ó r i c o
pajé cultivando, num jirau, ervas medicinais, é vivido para si ou com a consciência de si,
cuja combinação com rezas e benzimentos integrando o processo de autodefinição da
H
a tantos curou dos males infligidos por um unidade social em que foram criados. No
a t r i m ô n i o
inverno rigoroso que vidas ceifou11. museu vivo os artefatos expostos são tornados
O que era mantido a sete chaves, guarda- bens culturais em que os agentes sociais se
P
do em cofos, bolsas de couro cru e sacos de percebem a si mesmos e a seus projetos, se
d o
aniagem ou juta, parece sair do esconderijo ao autodefinindo através deles, num lugar social
e v i s t a
ser exibido. As mudinhas das ervas cultivadas aberto e de interação com aqueles com os
nos jiraus, na área privada dos templos, tor- quais socialmente se relacionam. Distingue-
R
nam-se publicamente expostas. Línguas con- se, portanto, dos museus convencionais,
sideradas mortas ou em extinção passam a ser encerrados num ambiente silencioso e
ministradas nesses pequenos museus. A obje- sepulcral, que inibe gestos expansivos por
tivação do visível desfaz enigmas e desobedece inúmeras placas de advertência e proibição.
às velhas proibições, o que era clandestino Certamente que contribuem para essa
tornou-se componente identitário publica- distinção as edificações simples dos Centros
mente explicitado e materialmente exposto. de Ciências e Saberes, semiabertas, quase ao 53
Quem nos apresenta os artefatos exprime a ar livre, iluminadas por raios solares e varridas
alegria de repetir que mantém o museu vivo pelos ventos, graças às suas paredes de
com meios e conhecimentos próprios. madeiras trançadas, completamente vazadas,
mas que bem suportam a exposição ao tempo,
tal como sucede com o CCS Antônio Samias,
11. Quando discutimos, em Imperatriz, em que medida os montado pelos Kokama da Comunidade
Centros de Ciências e Saberes não deveriam enfatizar os atos de
violência, os assassinatos, as chacinas e outros atos de extermínio Boa Esperança, localizada no ramal do
ocorridos nos conflitos de terra, procuramos estabelecer uma
distinção entre iniciativas de movimentos e mediadores, como as Brasileirinho, na periferia de Manaus. A luz
que, por exemplo, resultaram no Monumento Eldorado Memória
(projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer), em lembrança do ressalta as cores, os artefatos circularmente
massacre de Eldorado dos Carajás, e aquelas encetadas voluntária exibidos num espaço diminuto deixam
e informalmente pelos próprios membros de unidades sociais
classificadas como “tradicionais”, os quais constroem e definem, entrever seu formato de maneira diáfana,
eles mesmos, a sede e a finalidade precípua de sua iniciativa. Os
CCSs concernem a estas últimas e não se colocam juntamente a despeito das sombras que acompanham
com aquelas dispostas em rede e inclusas num gênero museo-
lógico cujo exemplo significativo corresponde aos memoriais e o movimento da luz solar e facultam uma
aos museus do Holocausto instalados em Berlim, Washington,
Buenos Aires e Curitiba, dentre outros.
intimidade que convida à solidariedade.
Museus indígenas e quilombolas:
o s n ovo s s i g n i f i c a d o s d o c o n c e i t o d e p r o c e s s o d e p a t r i m o n i a l i z a ç ã o
a c i o n a l
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A l f re d o Wag n e r B e r n o d e A l m e i d a
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e
i s t ó r i c o
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a t r i m ô n i o
P
d o
e v i s t a
R
54
a c i o n a l
trabalho de campo, no decorrer da instalação tradicionais. São o produto de relações em
do CCS Antônio Machado, em Penalva. As que os agentes sociais se percebem a si mes-
indumentárias, o maracá junto às vestes do mos e a seus projetos, se expondo e agindo a
N
r t í s t i c o
pajé e o machado evocando o trabalho e o partir desse processo de autodefinição. Assim,
sonho compõem o conjunto mágico acionado os museus vivos são bem mais do que simples
A l f re d o Wag n e r B e r n o d e A l m e i d a
A
nas danças e cantos no decorrer dos rituais depósitos de conhecimentos, meros acervos
e
religiosos. Esse CCS evidencia outro atributo de um passado idealizado ou, ainda, modestos
i s t ó r i c o
dos pequenos museus – eles não precisam receptáculos de objetos, luzes, cores, fragrân-
restringir-se a uma única comunidade, a cias, sons e artefatos exóticos capazes de tor-
H
uma única etnia ou a um único povo. Ao ná-los local obrigatório de visitas, de turismo
a t r i m ô n i o
contrário daqueles dos Kokama, verifica-se e de folclore. Não representam, portanto,
em Enseada da Mata uma diversidade social, uma iniciativa resultante de uma imagem
P
já que no CCS dialogam e tomam decisões necessariamente construída para fora, mas
d o
conjuntas quilombolas, quebradeiras de coco consistem em um lugar social de produção
e v i s t a
babaçu e povos de terreiro. Na cerimônia de conhecimentos em luta. Numa projeção
R
de inauguração do CCS Antônio Machado, para o futuro, podem ser considerados como
que se estendeu por praticamente dois dias, laboratórios de saberes em luta, no campo
todos se fizeram representar, seja em sua da economia do conhecimento, que bem
língua e em seus rituais, seja em defesa de caracterizam as tendências atuais de desen-
suas reivindicações territoriais ou de uso dos volvimento do capitalismo hoje, conforme a
recursos naturais. As falas reivindicatórias interpretação de Gorz (2005:14), a saber:
se mesclavam com rituais de possessão, com
Nós atravessamos um período em que 55
cantos e sussurros, tudo na mesma grande
coexistem muitos modos de produção. O
reunião, em que havia lugar para o céu e a
capitalismo moderno, centrado sobre a valorização
terra, para o natural e o sobrenatural, como de grandes massas de capital fixo material, é
a nos advertir que os encantados também cada vez mais rapidamente substituído por um
são integrantes ativos do CCS. Nessa ordem, capitalismo pós-moderno centrado na valorização
os museus vivos consistem no lugar social de um capital dito imaterial, qualificado também
dos chamados conhecimentos tradicionais, de “capital humano”, “capital de conhecimento”
conjugando a materialidade dos artefatos com ou “capital de inteligência”. Essa mutação se faz
acompanhar de novas metamorfoses do trabalho. O
o imaterial das modalidades de percepção de
trabalho abstrato, simples, que, desde Adam Smith,
pessoas, objetos e coisas.
era considerado como a fonte do valor, é agora
A objetivação do mundo visível e dos
substituído por trabalho complexo. O trabalho de
projetos coletivos de povos e comunidades produção material, mensurável em unidades de
tradicionais faz parte dos pequenos museus produtos por unidades de tempo, é substituído por
criados por integrantes dessas unidades so- trabalho dito imaterial, ao qual os padrões clássicos
ciais. Tais iniciativas pertencem ao “para si” de medida não mais podem se aplicar.
Os anglo-saxões falam do nascimento de uma antagônicos. Não seriam termos sinônimos,
Museus indígenas e quilombolas:
o s n ovo s s i g n i f i c a d o s d o c o n c e i t o d e p r o c e s s o d e p a t r i m o n i a l i z a ç ã o
não podem ser reduzidos a um mero espaço emergem como resultantes de mobilizações
a t r i m ô n i o
munidade, tal como a escola, o posto de saú- podem levar a uma redefinição dos critérios
de e o local de reuniões. Em sua relação com usuais dos classificadores, tanto em torno de
R
a c i o n a l
das políticas culturais, tal como sucedeu no discutir e decidir sobre como implementar os
contato com apoiadores dos museus da Roci- seus próprios museus ou como materializar os
nha e da Maré, quando fomos impelidos a fa- efeitos da consciência de si mesmo.
Nr t í s t i c o
zê-las, levantando certas questões. Popularizar
a arte e a ciência não quer dizer levar sinfôni- Referências
A l f re d o Wag n e r B e r n o d e A l m e i d a
A
cas, executando Bach, Mozart ou óperas14, às
ALMEIDA, Alfredo Wagner B. de. Antropologia dos
e
aldeias, favelas, povoados e acampamentos,
i s t ó r i c o
Archivos da Amazônia. Rio de Janeiro: Casa 8, 2008, p.
transformando-os num imenso cenário ocu- 45-56.
pado com uma movimentada multidão de BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Tradução
H
figurantes; mas consolidar a coexistência de de Maria João da Costa Pereira. Lisboa: Relógio d’Água,
a t r i m ô n i o
1991.
uma diversidade social com atos de produção
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte:
de conhecimento. Cada unidade social deve
Editora UFMG, 2010.
P
poder projetar sua expressão museológica,
d o
BOLTANSKI, Luc; ESGUERRE, Arnaud. “La
segundo as categorias que lhe são específicas, collection”, une forme neuve du capitalisme. La mise
e v i s t a
sem tentar impô-la, uma vez que as diversas en valeur économique du passé et ses effets. Les Temps
Modernes, n. 679, p. 5-72, jul-set.2014.
culturas estão dispostas num mesmo plano de
R
direitos e de legitimidade. Em outras palavras, FAYAD, Verónica Montero. Estatuas de San Agustín
(Huila, Colombia) en el Museo Etnológico de Berlín:
parece-me que às políticas governamentais, itinerario de clasificaciones y exhibiciones. Revista
num gesto de busca de harmonia, caberia Colombiana de Antropologia, n. 2, v. 52, Bogotá, p.175-
198, jul-dez.2016.
14. Nesse caso das óperas, importa realizar cotejos históricos, GOMES, Helio. Arqueologia de guerra. Isto É, n. 2.160,
principalmente com a Alemanha. A relação entre a ópera e o p.112, 6 abr.2011.
exercício do poder absoluto caracteriza a história política da
Alemanha. Hitler idolatrava o compositor Richard Wagner, tanto GORZ, André. O imaterial. Conhecimento, valor 57
quanto seu mecenas, o rei Ludwig da Baviera, e partilhava com e capital. Tradução de Celso Azzan Jr. São Paulo:
ele de ideias ditatoriais, discriminatórias e racistas. Hitler era,
contudo, um frustrado autor de óperas. Tentou em vão escrever
Annablume. 2005.
várias delas e se encantou com a arquitetura monumentalista de
cenários como aqueles reproduzidos em seus castelos pelo “rei
MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Tradução de
louco” da Baviera. Mas, ao contrário de Ludwig, não se isolou no Marta Lança. Lisboa: Antígona Editores Refractários,
castelo real transformado em palco de óperas e fez das massas par- 2017.
te de suas manipulações políticas, ao mobilizá-las nos rituais do Flora brasileira. Aquarela
de autor desconhecido.
Partido Nacional-Socialista, o partido nazista. Mais de 2 milhões MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. Expedição Científica
de pessoas, desde 1933 e durante a II Grande Guerra, desfilaram Alexandre Rodrigues Ferreira
Tradução de Paulo Neves e Maria Ermantina G. G.
pelas ruas a passos cadenciados, portando bandeiras coloridas, (1783 a 1792)
meticulosamente desfraldadas, insígnias reluzentes e tochas Pereira. São Paulo: Cosac Naify, 2013. Acervo: Fundação Biblioteca
Nacional, Brasil.
acesas, clareando a noite, além de carros alegóricos divinizando
as artes da guerra. Uma coreografia rígida, espelho da disciplina
militar. Uma gestualidade cadenciada, palavras de ordem gritadas
com ritmo, fazendo do movimento das massas um “magnífico
coral” de apologia dos princípios nazistas. Para Hitler, o exercício
do poder transformava os recursos operísticos em instrumento
disciplinador das massas que compunham o coral e o exército de
figurantes das óperas políticas, endossando seus atos e reprodu-
zindo fielmente suas saudações e palavras de ordem, tendo como
pano de fundo os hinos patrióticos e gestos pantomímicos, como
se a realidade fosse igual à ópera. Para um exercício comparati-
vo, assistam ao épico dirigido por Luchino Visconti, intitulado
Ludwig (1972), bem como o filme de Peter Cohen, narrado por
Bruno Ganz, denominado Arquitetura da destruição (1992).
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
58
J o ã o d e J e s u s Pa e s L o u r e i r o Meditação devaneante entre o rio e a floresta.
Cultura amazônica produtora de conhecimento
João de Jesus Paes Loureiro
a c i o n a l
M editação devaneante entre o rio e a floresta .
C ultura amazônica produtora de conhecimento
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
A margem do rio, entre o rio e a floresta, instiga na busca do ilimitado. Uma busca
é o lugar privilegiado dos enigmas da não sistemática, mas impetuosa, assim como
Amazônia, transfigurados em enigmas do a periódica pororoca, as três ondas colossais
P
mundo. Oferece interrogações sobre origens e que avançam sobre rios afundando barcos e
d o
e v i s t a
destinos. É onde o rio deságua no imaginário. alagando as margens, que é a rebeldia cabana
Quando se pode ler a multiplicidade dos do rio contra as margens que o limitam,
R
ritmos da vida e do tempo, observar as a engolir as barreiras que o oprimem,
indecisões da fronteira entre o real e a devorando-as com inesperada sofreguidão.
surrealidade, o espontâneo maravilhamento Revelando afetividade cósmica, o homem
diante dos acasos. O sentido privilegiado da promove a conversão estetizante da realidade
contemplação conduz ao jogo estético, pela em signos, através dos labores do dia a dia, do
quimera de olhar as coisas ante o mistério diálogo com as marés, do companheirismo
que delas emana e pelo que nelas se exprime, com as estrelas, da solidariedade dos ventos 59
nesse vago e gratuito prazer da imaginação que impulsionam as velas, da paciente
que não busca um porto, embora numa amizade dos rios. É como se aquele mundo
viagem de vagos destinos. Uma viagem fosse uma só cosmogonia, uma imensa e
que não precisa levar a nenhuma parte. verde cosmo-alegoria. Um mundo único real-
A margem do rio não exige lógica para imaginário. Nele foi sendo constituída uma
ser coerente. Nela estão os mais preciosos poética do imaginário, cujo alcance intervém
arquivos culturais do mundo amazônico, os na complexidade das relações sociais.
manguezais simbólicos de nossa cultura, as O imaginário estetizante a tudo impregna
raízes submersas da alma cabocla. com sua viscosidade espermática e fecunda,
O ritmo das marés, em sua regularidade acentuando a passagem do banal para o
telúrica, estimula uma visão múltipla, embora poético. É gerador do novo, do recriado.
fatalista, como a moira dos gregos, isto é, Valoriza a dimensão autoexpressiva da
uma forma de destino. Tudo acontece no aparência e sua ambiguidade significante, nas
Rio Trombetas (PA), 1987
momento escrito. A consciência dos limites quais o interesse passa a se concentrar. Foto: Elza Lima.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
60
J o ã o d e J e s u s Pa e s L o u r e i r o Meditação devaneante entre o rio e a floresta.
Cultura amazônica produtora de conhecimento
e G. Moss.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
61
neste início de século, uma das mais raras aprender olhar. O olhar que experimenta a
a c i o n a l
e que persistirá enquanto as chamas das jogo estético evidencia-se, o prazer do olhar é
e
queimadas nas florestas, a poluição dos rios dominante e o partilhamento com a natureza
i s t ó r i c o
e a mudança das relações dos homens entre é o prêmio. Um modo de contemplação que
J o ã o d e J e s u s Pa e s L o u r e i r o
locus que possibilita essa atitude poético- que eu chamo de poética do imaginário na
a t r i m ô n i o
permanecer vivas e fecundas, na medida em é imperioso povoar essa realidade elevada com
e v i s t a
condições socioecológicas essenciais desse habitantes desses olimpos submersos nos rios
locus, no qual a presença humana, do índio e no mato a dentro, que são as encantarias.
ao caboclo atual, encontrou meios para uma As encantarias são a morada dos deuses da
produção poetizante da vida, até o ciclo de teogonia amazônica no fundo dos rios e nas
um terceiro milênio. brenhas da floresta. Cada praia encantada
Entre o rio e a floresta é preciso saber ver é uma ilha de Circe do imaginário a nos
para efetivamente ver. Um olhar sustentado chamar. O efeito do sublime é um modo de
62
pela pertença à emoção da terra, com a sentir. É a representação do real por meio
sensibilidade disponível ao raro, com a alma do irrepresentável. A boiúna, cobra grande
posta no olhar. A transfiguração do olhar mítica, por exemplo, é o efeito do sublime
acontece no momento em que se percebe representando o irrepresentável do rio.
a diversidade verde do verde; o corpo de Entre o rio e a floresta, a experiência
baile dos açaizeiros; a volúpia dos pássaros transcendente resulta de experiências
revoando; a vaga ela perdida no olhar do vividas. A serenidade que advém das águas
canoeiro; a moça na janela como a solitária tranquilas, a inquietação pressaga das
imagem de uma espera; a igarité balançando noites de tempestade, são experiências do
nas ondas entre as estrelas; a dupla realidade cotidiano e não de leituras romanescas ou
da beira do rio refletida nas águas, como filosóficas. A admiração, o maravilhamento
cartas de um baralho de sortilégios. nasce da contemplação das coisas. Dessas
Na linha da ribanceira, entre o rio e a particularidades que brotam das sensações,
floresta, estão os arquivos da vida amazônica. o espírito chega ao essencial. O efeito do
É uma verdadeira escola do olhar. Uma sublime decorre de um espanto diante
Meditação devaneante entre o rio e a floresta.
Cultura amazônica produtora de conhecimento
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
J o ã o d e J e s u s Pa e s L o u r e i r o
H
a t r i m ô n i o
P
d o
e v i s t a
R
das tempestades, das pororocas; dos intervenção humana, nem modificadora, nem
alumbramentos diante dos fenômenos moralizadora, os rios e a floresta se oferecem
63
da natureza e do cosmo, que se oferecem como um espaço aberto aos trabalhos e dias
como interrogações. A explicação-resposta do caboclo, à criação dessa teogonia cotidiana,
é metafórica, alegórica, numa poética no misticismo de sua vertigem do ilimitado.
iluminada pela liturgia dos mitos, forma de Para viver de uma forma ilimitada, convive
explicação através do irrepresentável com seres sobrenaturais, porque somente a
da representação. imaginação consegue ultrapassar os horizontes.
Esse primado do olhar não elimina Foi a boiúna, cobra grande mítica, que, ao
a posição do sujeito como espectador agitar-se, fez o barranco ruir; o curupira fez o
participante. Ator que também está na plateia caçador perder-se na mata; a Yara fez afogar-se
de si mesmo e dos outros. de sedução aquele que, aparentemente, não
Dessa meditação devaneante do caboclo tinha razões para morrer no rio; a tristeza não
explode o entusiasmo da imaginação, veio da alma, mas do canto do acauã, o pássaro
revolucionando as hierarquias lógicas entre dos maus presságios.
o real e o irreal. Numa paisagem que ainda Diante da imensidão do rio e da floresta, Pariçó,
Monte Alegre (PA), 1987
não guarda, em grande parte, vestígios da o homem, incapaz de franjar os seus vastos Foto: Elza Lima.
Ilha Mexiana, 1943 (ca.)
Foto: Marcel Gautherot/
Acervo Instituto Moreira Salles.
limites, insere-se nessa desmedida através pelo imaginário, numa “infinitização de
a c i o n a l
natureza: ele cria os encantados, os deuses Julia Kristeva). A encantaria não é um paraíso
de sua teogonia, mantendo a grandiosidade perdido. Não é um éden e nem um inferno.
esmagadora que o envolve sob seu controle. É um olimpo, um espaço de quimeras. Não é
N
r t í s t i c o
Ele passa a ser a razão primeira de tudo. O desejado, nem temido. É mundo criado pelo
caboclo: um ser criador das origens. Essa devaneio, que é a poesia da contemplação.
A
poética do imaginário não faz dele um poeta. Mergulho na profundidade das coisas
e
Mas o mantém envolvido em uma atmosfera por via das aparências, esse é o modo da
i s t ó r i c o
de poiesis que torna o imaginário a encantaria percepção, do reconhecimento e da criação
J o ã o d e J e s u s Pa e s L o u r e i r o
de sua alma. pelo veio do imaginário estético-poetizante
H
O espaço infinito põe a visão e o espírito da cultura amazônica. Modo singular de
a t r i m ô n i o
em repouso. A encantaria é a quebra dessa criação e recriação da vida cultural que se foi
regularidade do olhar pela diversidade da desenvolvendo emoldurado por essa espécie
P
imaginação. Além da aparente “monotonia do de sfumato que se instaura como uma zona
d o
sublime” provocada pela natureza magnífica indistinta entre o real e o surreal. Sfumato
e v i s t a
da geografia, há um mundo de encantarias, que, na pintura e na conhecida teoria de
R
numa etnodramaturgia imaginária de Leonardo da Vinci, é o contorno esfumado
boiúnas, botos, mães-d’água, yaras, curupiras, e difuso da figura para poetizar sua relação
porominas, caruanas, tupãs, anhangas, com o todo. Como elemento que estabelece
matintas etc. Enquanto o olhar contempla uma delimitação imprecisa entre as figuras,
em repouso, o espírito trabalha incansável nas à semelhança do que ocorre no encontro
minas subjacentes da imaginação. das águas de cores diferentes, de certos
O desejo de companhia sobrenatural é rios amazônicos, como as águas cremes do
65
uma resposta ao inevitável sentimento de Amazonas com as águas negras do rio Negro;
solidão a que o homem se expõe diante da ou as cremes do Amazonas com as águas
natureza magnífica. O equilíbrio inquieto verdes do rio Tapajós; e outros. O limite entre
da solidão o leva a buscar realidades além as águas cremes de alguns e negras, verdes ou
da superfície, transferindo a profundidade azuladas de outros, não está definido por uma
da alma para a natureza. A crença nos linha clara, distinta e precisa, mas, por águas
encantados o liberta e isola da trivialidade do misturadas, viscosamente interpenetradas,
dia a dia. que criam uma tonalidade verde-negro-
Talvez, à semelhança dos românticos, amarelada, como se essa forma de sfumato
os caboclos ribeirinhos, em face do rio e fosse estabelecendo uma realidade única,
da floresta, tenham tido e ainda têm lugar coincidência de opostos, na física distinção
privilegiado para a descoberta de si mesmos. que caracteriza o encontro de águas desses
Assim, também, como kantianos intuitivos, rios. E é num ambiente pleno de situações
compreenderam a dimensão estética do como essas que caminha o bachelardiano
sublime da natureza magnífica e a poetizaram “homem noturno” da Amazônia. Depara-
se esse homem noturno com situações de cidades, que parecem estar muito mais num
Meditação devaneante entre o rio e a floresta.
Cultura amazônica produtora de conhecimento
geográficas que vão motivando a criação de dias. O olhar que se dirige para a região está
uma surrealidade real, à semelhança do efeito impregnado desse próximo-distante que é
provocado pelo maravilhoso épico, que é todo próprio das situações auráticas, como
N
r t í s t i c o
real com a dos mitos. Uma surrealidade Benjamin caracteriza a aura na arte original,
e
cotidiana, instigadora do devaneio, na qual em seu já clássico texto, quando fala sobre
i s t ó r i c o
mas também os transfigura. Essa mesma Amazônia, essa é uma impressão constante,
d o
pela viscosidade espermática e fecunda da revestido pela atmosfera de uma coisa rara.
dimensão estética. Mesmo nos conflitos gerados pela devastação
Essa transfiguração do real pela crescente de sua celebrada natureza, os
viscosidade ou impregnação do imaginário fatores de sua auratização ficam evidentes:
poético acentua uma passagem entre o um bem único e universal, impossível de ser
cotidiano e sua estetização na cultura, através recuperado, se destruído; riqueza de fauna
66 da valorização das formas autoexpressivas e flora cujo desaparecimento representaria
da aparência, nas quais o interesse de quem uma perda insubstituível; acervo de formas
observa está concentrado. Interesse que de vida incalculáveis, como se ela fosse o
direciona o prazer da contemplação à forma fecundíssimo útero do universo (em pouco
das coisas marcadas pela ambiguidade mais de um hectare de floresta ainda não
significante, própria da dimensão estética. afetada pelo homem, encontram-se mais
Sob o olhar do natural, a região se torna espécies do que em todos os ecossistemas
um espaço conceptual único, mítico, vago, da Europa juntos); presença constitutiva
irrepetível (posto que cada parte desse de valores intransferíveis e intransportáveis.
espaço não é igual à outra), próximo e, ao Para o viajante comum ou o estudioso, esse
mesmo tempo, distante. Seja para os que constitui um princípio instaurador, princípio
habitam as margens desses rios que parecem segundo o qual a Amazônia é concebida
demarcar a mata e o sonho, seja para os que como um bem único e irrepetível, revelador
habitam a floresta, seja ainda para os que de um hic et nunc que é o resultado de
habitam os povoados, as vilas e as pequenas uma acumulação de signos do imaginário
Meditação devaneante entre o rio e a floresta.
Cultura amazônica produtora de conhecimento
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
J o ã o d e J e s u s Pa e s L o u r e i r o
H
a t r i m ô n i o
P
d o
e v i s t a
R
universal. Signo de uma natureza tida como força própria, criadora de uma realidade Primavera, Pará, 1983
Foto: Miguel Chikaoka.
aparência o que a faz mudar é a natureza da lugar das manhãs do mundo. A margem do
alma. Por essa via contemplativa a paisagem rio e da floresta é o sfumato entre o real e o
A
será sempre nova. Não de uma novidade não real, o espaço esfumado que contorna
e
linear decorrente dos espaços sucessivos. Mas as coisas, tornando-as vagas e misteriosas.
i s t ó r i c o
de uma novidade circular, penetrante, feito O irreal ou não real deixa de ser o que está
camadas superpostas no mesmo espaço. escondido, submerso no real. Ao contrário.
J o ã o d e J e s u s Pa e s L o u r e i r o
H
Navega em busca das origens pelo sfumato desse livre jogo entre imaginação e
devaneio. É de Paul Zumthor a afirmação entendimento, que é a poética do imaginário
P
de que a paisagem não existe em si mesma. na cultura amazônica. Mais do que para
d o
construído. Essa ficção, penso, é um efeito ficções mitopoéticas ribeirinhas são para
do olhar navegante pelo devaneio, renovando revelar a beleza; menos que estímulo à
R
a paisagem à sua frente com paisagens reflexão, breviário de certa moral a seguir,
superpostas, semelhante à contemplação estimulam mais o prazer de sentir e ver. O
sucessiva de paisagens, própria de quem caboclo, por sua mitopoética, não mente
viaja. Viajante imóvel, o caboclo cria planos ou falta com a verdade. Ele faz aquilo que
superpostos de paisagem, construindo Coleridge chama, em reconhecido conceito,
plasticamente a sua paisagem ideal. Pela de “suspensão da descrença”.
68 invenção de mitos, essa paisagem é um objeto Temos que aceitar um acordo ficcional,
representado que confere à cena o teatro da em princípio. O ouvinte aceita que o que se
cultura e a legitimação da crença. Com esses narra é uma história imaginária, mas, nem
componentes se constrói a paisagem ideal. por isso deve pensar que o narrador está
A beira do rio, as lendas, a ponte, a noite, contando mentiras. Esse “acordo ficcional” é
a casa, a família, a vida em comunidade, as o que Umberto Eco menciona no percurso
árvores em torno e o rumor do silêncio nos dos seis passeios pelos bosques da ficção. Por
lábios do vento. Ao inventar a sua paisagem, esse acordo ficcional demonstramos acreditar
o caboclo inventa-se a si mesmo para essa no relato ouvido. Liberamos o livre jogo entre
paisagem. Criando um mundo novo para imaginação e entendimento. Cremos como
ser, ele se cria como ser capaz de habitar esse numa verdade. Reconhecemos seu poder ser.
mundo poetizado. Tudo parece governado Sua verossimilhança. Sua lógica onírica.
por forças transcendentes. A natureza O caboclo, no curso de suas oralidades,
participa então do sagrado, uma paisagem procura fazer-nos crer que conta um fato
ideal que inclui o mundo alegórico dos mitos verdadeiro em que, como tal, acredita. Espera
uma espécie de simpatia da credibilidade. são como origens, um ponto zero, o lugar de
a c i o n a l
conceito formulado por Roland Barthes mundo, onde, em vez de um passado, busca-
para legitimar a ficção por suas referências se a profundidade das coisas. Consciente de
à realidade, vincula ações a situações ou a ser um ser para a morte, ele procura ser para a
N
r t í s t i c o
pessoas conhecidas, indica datas concretas, vida eterna da encantaria.
enfim, confeita de credibilidade seu relato Entende-se, nesta meditação devaneante,
A
com as referências ao real extraliterário. o “imaginário” como capital cultural.
e
Temos que entrar em seu jogo com nossa Seguindo Gilbert Durand, o conjunto
i s t ó r i c o
suspensão de descrença. Ora, se temos crença de imagens não gratuitas e das relações
espontânea no relato das experiências vividas de imagens que constituem o capital
J o ã o d e J e s u s Pa e s L o u r e i r o
H
na realidade real pelo caboclo, não seria inconsciente e pensado do ser humano. Não
a t r i m ô n i o
justo separar nele, ao entrar nessa idealizada serão fantasias, no sentido que o termo tem
realidade, duas faces: verdadeiro para umas como irrealidade, mas o substrato simbólico
P
coisas e mentiroso para outras. Até porque, ou conjunto psicocultural de ampla natureza
d o
muitas vezes, ele é um dedicado amigo leal (presente tanto no pensamento primitivo
e v i s t a
ou membro da família. Temos que viver com quanto no civilizado; no racional como
ele essa ambiguidade como duas faces da no poético; no normal e no patológico),
R
verdade. Uma de crença, outra de aceitação promovendo o equilíbrio psicossocial
pactual. A inverossimilhança vem legitimada ameaçado pela consciência da morte. Ainda
por semelhanças. A informação condizente na estrada de Durand, o imaginário é
com elementos da realidade atribui, ao entendido aqui como o conjunto de imagens
inverossímil, características do real. O mundo e de relações de imagens produzidas pelo
real é imprescindível para criar a irrealidade. homem a partir, por um lado, de formas
Temos que aceitar que o caboclo tem tanto quanto possíveis universais e invariantes 69
que contemplar, ele sonha a paisagem que na caosmose (Guattari) dos tempos no
e
o faz sonhar. Sonha buscando o infinito, mundo de hoje, que são também os tempos
i s t ó r i c o
caboclo segue, no incessante trabalho da Amazônia está no mundo atual. A arte, capaz
a t r i m ô n i o
das atuais e expropriatórias violentações da cultura (S. Langer), pode representar uma
d o
habitante da terra não tenha que alegorizar pela globalização e a entrada do consumismo
culturalmente a sua própria mitoagonia. e da exploração predatória. A arte pode
Não podemos esquecer que são rios estabelecer a revelação de uma estratégia
de água doce os rios da Amazônia. Fatal é relacional de transacionalidade, em que um
relembrar aqui Bachelard, quando diz que não se sobrepõe ao outro, revelando caminhos
“a água doce é a verdadeira água mítica”. às estratégias de desenvolvimento. Na relação
Podemos acrescentar, então, que a nossa com essa linguagem riocorrente a percorrer
70
mitopoética bebe o leite e o mel da água doce a geografia da cultura, a linguagem artística
de nossos rios. é um caminho. Mas, nunca um caminho
A linguagem líquida do rio de água doce imóvel. A linguagem artística é um caminho
revela a oralidade narrativa da natureza. A que caminha.
linguagem fluída de quem conta. Ela conta A região fluvio-florestal amazônica é
ao olhar devaneante do caboclo as narrativas um imenso tapete verde tecido com os fios
que ele traduzirá no contar de seus causos entrelaçados do maior novelo de rios de água
e legendas, na líquida e fluida corrente doce do planeta. A água é um silêncio visível.
oralizada passando nos lábios dos rios e que Ela se oferece à navegação livre do devaneio
é, enfim, como a fonte de toda linguagem. como navegação interior, em busca de uma
Uma maré de linguagens que vai contando profundidade e não de uma distância. A
de botos, boiúnas, porominas, macunaímas, lenda, nessa poética do imaginário amazônico,
tupãs, encantarias, expulsão de colonos e é como a formulação alegórica de uma utopia.
índios de sua terra de pertença, denunciando Os bloqueios da vida prática são retirados,
a contaminação fluvial pelas minas, a gratuidade economiza os esforços da
racionalidade. O ser, no repouso do devaneio, dolorosa destribalização da sociedade O Boto,
Ilha de Marajó (PA), 2018
libera a imaginação intuitiva e criadora, indígena promovida pelos projetos públicos Foto: Eveline Oliveira.
72
J o ã o M e i r e l l e s F i l h o e Fe r n a n d a d e O. M a r t i n s A Amazônia viajante “até dizer chega”.
A contribuição dos viajantes ao por vir amazônico – do século 16 ao fim do ciclo da borracha
João Meirelles Filho e Fer nanda de O. Mar tins
a c i o n a l
A A mazônia viajante “ até dizer chega ”.
A contribuição dos viajantes ao porvir amazônico
Nr t í s t i c o
– do século 16 ao fim do ciclo da borracha
A
He
i s t ó r i c o
a t r i m ô n i o
Introdução Seria plausível associar esse desinteresse ao
baixo envolvimento afetivo e ao pouco caso
Dicen que dieron con un rio llamado Marañon, perante o patrimônio – natural e cultural
P
– pelo próprio amazônida, por cidadãos
d o
tan ancho que sospecho es fabula.
e v i s t a
Pedro Martín Aguilera 1
brasileiros e dos demais oito
países amazônicos?
R
Patrimônio aqui entendido como
o conjunto de narrativas ou práticas,
Em que medida os viajantes poderiam
comportamentos, bens, objetos comuns a
contribuir para a formação do pensamento
sobre a Amazônia que queremos? E como nos um território, que assume a representação
ficção – esta foi forjada a partir do relato de ranhados perturbam os sentidos do peregri-
a c i o n a l
Em Quizá, una obra de ficción hispanica, por mais; é este tratamento da Amazônia
exemplo, há indígenas que, no melhor estilo abundante e inesgotável que a crônica
A
quixotesco, enxergamos como Las Amazonas: viajante, seja militar, religiosa, científica ou
e
diletante, dissemina.
i s t ó r i c o
J o ã o M e i r e l l e s F i l h o e Fe r n a n d a d e O. M a r t i n s
versão dos vencedores? Que patrimônios os em 1832 (Meirelles, 2009). Enquanto não
sensibilizam? O que querem nos transmitir? são encontradas as minas do Tawantinsuyu
A
Este breve ensaio revisita alguns desses (Império Inca), partem do Altiplano
e
J o ã o M e i r e l l e s F i l h o e Fe r n a n d a d e O. M a r t i n s
nos livros Grandes expedições à Amazônia a muitas partes, inclusive à floresta tropical.
brasileira. 1500-1930 e Grandes expedições Nestas incluem-se as de Alvarado (1535,
H
2009 e 2011).
Dorado, incentivando expedições como a
dos irmãos Pizzarro, iniciada em 1539, com
Os p i o n e i r o s q u i n h e n t i s ta s e a
P
f o rm a ç ã o d o m i t o
busca do país de La Canela.
e v i s t a
J o ã o M e i r e l l e s F i l h o e Fe r n a n d a d e O. M a r t i n s
H
a t r i m ô n i o
P
d o
e v i s t a
R
espanhóis devassarão o vale a partir dos Manoa é criação de Raleigh, assim como Las
Andes, como Maldonado, de 1567 a 1569 Amazonas é de Carvajal. Os registros meticu-
(Varese, 2006:9); Arbieto, em 1580 etc.; losos de ingleses em journals (diários) – Key-
78
mas, logo se concentram em proteger mis (1596), Harcourt (1608) e Leigh etc. –
suas minas e rotas para a Espanha. Os nos permitem compreender esse momento.
portugueses só encontrarão metais 150 anos
depois: Mariana (MG) em 1696, Cuiabá Franceses no Maranhão e Pará
(MT) em 1719 e Goiás Velho (GO) em Até a colonização francesa do Maranhão
1722. Para Holanda (1976): “(...) o que no apoiada pelos holandeses, em 1612, em que
Brasil se queria encontrar era o Peru, não era pese a tentativa de João de Barros em 1535,
o Brasil”. Portugal estará distante da Amazônia. É o
Importante mencionar os relatos do in- relato do aventureiro Vaux que convence a
glês Walter Raleigh, entre 1595 e 1596, de Corte francesa e o calvinista De La Touche
grande impacto na Europa – The discovery of (Senhor de La Ravardière) a se apossar
the large, rich and beautiful empire of Guiana, dessas terras. A crônica viajante agora é de
with a relation of the great and golden city of dois sábios, freis capuchinhos, Abbeville
Manoa, which the Spaniards call El Dorado. e Évreux.
A Amazônia viajante “até dizer chega”.
A contribuição dos viajantes ao por vir amazônico – do século 16 ao fim do ciclo da borracha
N
Aa c i o n a l
r t í s t i c o
e
i s t ó r i c o
J o ã o M e i r e l l e s F i l h o e Fe r n a n d a d e O. M a r t i n s
H
P
Ra t r i m ô n i o
d o
e v i s t a
Abbeville domina o tupi e reconhece movimento resulta a correnteza dos rios,
o saber indígena na História da missão dos a que chamam de artérias da Terra, e aos
Padres Capuchinhos na Ilha de São Luís do riachos as veias”. A obra de Évreux ficou 79
Maranhão e terras circunvizinhas onde se inédita por 250 anos, assim como a do frei
trata das singularidades admiráveis & dos Lisboa que acompanha os portugueses na
costumes maravilhosos dos índios habitan- tomada do Maranhão (1616), só publicada
tes deste país. Realiza o primeiro censo da em 1933.
França Equinocial: 12 mil nativos em 27
A posse portuguesa da Amazônia
aldeias. Observa que o tempo media-se a
Se a união das coroas ibéricas (1580-
partir das estrelas (Plêiades). Será pioneiro
1640) permite o enorme avanço de Portugal
ao reconhecer o patrimônio imaterial de
na Amazônia, também traz o ônus de
um povo originário. Porro (2007:8) recor-
combater “hereges” – franceses, holandeses,
da, a partir de documentos coloniais sobre alemães e irlandeses. O plantio de cana-de-
indígenas entre o Içá e o Japurá (AM), que açúcar e tabaco, o interesse pelo cravo, canela Prospecto da Fortalezza de
Gurupâ, com sua Povoçam.
estes: “(...) sabiam que o sol era fixo e que a etc. e o contrabando dos metais dos Andes Estampa de João André
Schwebel, 1756
Acervo: Fundação Biblioteca
Terra se movimentava ao redor dela. Desse movimentam os primeiros anos da ocupação. Nacional, Brasil.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
80
J o ã o M e i r e l l e s F i l h o e Fe r n a n d a d e O. M a r t i n s A Amazônia viajante “até dizer chega”.
A contribuição dos viajantes ao por vir amazônico – do século 16 ao fim do ciclo da borracha
Champney
Nacional, Brasil.
Aguada, guache e bico
J o ã o M e i r e l l e s F i l h o e Fe r n a n d a d e O. M a r t i n s
H
a t r i m ô n i o
P
d o
e v i s t a
R
82 Mas, a estabilidade advirá do extrativismo: (...) Notrato de las muchas minas de oro y plata
de que se tiene noticia en lo descubierto, y que se des-
(...) portugueses expandiram-se rapidamente
cubrirán, forçosamente en el adelante: que si mi juizio
pelo curso do Amazonas (...). A abundância de
no me engaña, han de ser más, y mas ricas que las de el
produtos naturais, em particular de especiarias, as
Perú, aunque entre en ellas las de el afamado Cerro de
chamadas drogas do sertão, (...) além de madeiras
Potosi (Silveira, 1624, in Almeida, 1874:94).
e produtos animais, levou o estabelecimento de
inúmeras feitorias, segundo a já velha experiência Para Mindlin trata-se de documento
mercantil portuguesa (Galvão, 1953:108). excepcional, endereçado ao rei da Espanha,
“A Relação Sumária das Cousas do e que propõe que se transporte a prata do
Maranhão”, do português Symão Silveira, Peru pelo Amazonas, em vez do Panamá
procurador-geral do Maranhão, apresenta (Mindlin, 2013).
Fazenda próxima ao o Amazonas como desaguadouro de rios A conquista portuguesa só alcança
Orinoco, família de
índios Amarizano. Alcide andinos; e, se ali há prata, igualmente seria dimensões continentais em 1637, com
d’Orbigny, 1836
Coleção João Meirelles Filho. encontrada rio abaixo: a epopeica viagem capitaneada pelo
militar Pedro Teixeira, à frente de sessenta No temporal2 também os pobres índios
a c i o n a l
à revelia da Coroa espanhola. Esta alcança
a forma das leis de sua Majestade manda-os
Quito e, no retorno, acompanhado do jesuíta
vender para fora da terra e das conquistas.
N
Acuña, finca um marco em Franciscana Outros oprimem os pobres com grande violência
r t í s t i c o
(próximo à fronteira atual em Tabatinga) e obrigando-os a serviços muito pesados, como é
Portugal toma posse de uma área superior fazer tabaco, em que se trabalha sete e oito meses
A
à Europa (40% do Brasil ou trinta vezes a contínuos, de dia e de noite; (...). E se faltam
e
i s t ó r i c o
nestes serviços os portugueses os metem no tronco
J o ã o M e i r e l l e s F i l h o e Fe r n a n d a d e O. M a r t i n s
superfície de Portugal).
e os açoutam algumas vezes. Por isso fogem para os
Para luso-brasileiros, a obra de Acuña
matos, despovoando suas aldeias: outros morrem
H
– Nuevo descubrimiento del gran rio de las
de desgosto no mesmo serviço sem remédio algum
a t r i m ô n i o
Amazonas... (Madri, 1641) – deveria ser de (...) (Leite, 1940:209).
amplo conhecimento. Para o historiador
Cortesão: “(...) até a data da viagem de Pedro Figueira conhecerá fim trágico no Marajó, na
P
d o
Teixeira os portugueses figuravam o Brasil década de 1640. É dele a frase: “Pobres brazis”.
e v i s t a
Uma década depois, a missão jesuíta
como uma ilha, limitada pelo rio da Prata e o
é restabelecida por Antônio Vieira, já um
Tocantins-Araguaia” (Cortesão, 1958:307).
R
dos maiores intelectuais portugueses, para
quem o delta do Amazonas é: “(...) de maior
O pa í s j e s u í ta (1624–1755)
comprimento e largueza que todo o reino de
A estratégia jesuíta de domínio das línguas
Portugal” (Vieira in Meirelles, 2009). Em
empregada na Ásia leva Luis Figueira, a partir
missiva a El-Rei Nosso Senhor, confessa a
do contato com grupos Tupi no litoral, a
escravidão indígena:
escrever a “A arte de grammatica da lingua
83
brasílica” (publicada em 1621, editada por (...) foi levando em sua companhia canoas, (...)
para o resgate dos escravos que se faz n’aquelles
Bettendorff ), base para disseminar a Língua
rios, e foi esta a primeira vez em que o resgate
Geral (Nheengatu, a Língua Boa). Para
se fez por esta ordem (n. a. dos jesuítas), para
Barbosa Rodrigues: “(...) o tupi, entre as que os interesses d’elle coubessem a todos, e
nações selvagens, fazia o papel de latim entre particularmente aos pobres, que sempre, como
as civilisada” (Rodrigues, 1892:39). Por pelo é costume, eram os menos lembrados (Vieira,
menos dois séculos esta prevalecerá: “(...) 1871:147).
todos os Tapuios semicivilizados das aldeias,
O maior orador da Língua Portuguesa
e de fato os habitantes dos lugares retirados
enfrentará os colonos e, no ano de 1654, em
falam geralmente a Língua Geral” (Bates apud São Luís, profere um dos mais conhecidos
Galvão, 1953:67). Ainda se fala o Nheengatu sermões – Sermão de Santo António aos Peixes:
no alto rio Negro. “(...) nunca o verbal foi tão importante e
Após quinze anos como pioneiro na
missão no Maranhão, Figueira escreve: 2. Temporal se refere ao governo temporal.
tão adequado, sendo ao mesmo tempo a Trata-se de escravização! Como as ordens
A Amazônia viajante “até dizer chega”.
A contribuição dos viajantes ao por vir amazônico – do século 16 ao fim do ciclo da borracha
via requerida pela propaganda ideológica não pagam impostos e não se subordinam à
a c i o n a l
e o recurso cabível nas condições locais” Coroa, formam feudos de produção (carne
(Holanda, 1982:93). bovina, cana-de-açúcar, estaleiros, olarias
Como nem Portugal nem Espanha etc.), fornecendo boa parte da cachaça para a
N
r t í s t i c o
possuem suficientes aparatos civis e militares submissão de índios: “(...) é necessário andar
para a ocupação, permitem às ordens sempre a acariciá-los como faz uma mãe a seus
A
Como expressa o jesuíta Bettendorff, era para os ter contentes” (Daniel, 2004:203, v. 2).
i s t ó r i c o
J o ã o M e i r e l l e s F i l h o e Fe r n a n d a d e O. M a r t i n s
preciso: “(...) levar a luz de Nossa Santa Além de “amansar os bravos” (sic), as
Fé aos sertões de muita gentilidade” reduções (aldeamentos) tornam-se essenciais
H
eram aldeias que se havia de descer com ficar na missão; a 2a para dela se tirarem
d o
os outros impedimentos que se acham na os que sobejavam desta 2a parte iam para a
transmigração” (ibid.:113).
R
a c i o n a l
à da Bolívia e do Peru juntos, de sul a Coutinho (19/11/1794): “(...) Esta gente
norte: Tape, Itatim e Guairá (RS ao PR); é preciso levá-la com muito jeito porque
Moxos e Chiquitos (Bolívia); Maina (Peru qualquer constrangimento os fará desconfiar,
Nr t í s t i c o
e Colômbia); e Solimões (Brasil). É o o que é preciso evitar, por que não tornem
Tratado de Madri (1750) que sela a sorte para o mato, aonde nada lhes falta a seu
A
dos religiosos quando os ibéricos decidem modo de viver” (Reis, 2006:237). É Almada
e
expulsá-los (1755). que encerra a dúvida sobre a existência de
i s t ó r i c o
J o ã o M e i r e l l e s F i l h o e Fe r n a n d a d e O. M a r t i n s
O governo temporal das vilas estimulará lagos míticos – Manoa (sinônimo de Lago
ainda mais as áreas de fuga – os mocambos Parime, ou Cerro Dorado): “(...) são cousas
H
indígenas. Sem os missionários, a crônica que só existem na imaginação” (Almada,
a t r i m ô n i o
religiosa limita-se principalmente a 1861:633).
visitadores, como Noronha (1768), Brandão No hiato entre os tratados de Utrecht
P
(1785–1787) e, mais tarde, Souza (1873). (1713) e Madri (1750), Portugal alarga
d o
ainda mais suas fronteiras. A aldeia jesuíta
e v i s t a
Os c r o n i s ta s o f i c i a i s d a Coroa de S. Antônio das Cachoeiras (1728) e a
R
portuguesa descoberta de ouro em Cuiabá (1722), Vila
A comunicação oficial na colônia oferece Bela (1734) e Corumbiara (1736) definem
panorama limitado sobre a sociedade, seus a fronteira oeste. O militar Palheta é quem
valores e patrimônio, especialmente sobre toma posse da margem direita do Guaporé
indígenas. A maioria dos administradores (1722) e, em bandeira ao Oiapoque (1727),
permanecia poucos anos, dedicando-se contrabandeia mudas de café de Caiena
ao essencial. Todavia, com todos os vícios (roubadas aos holandeses, que haviam
85
e achas inerentes ao seu tempo e cargos, subtraído mudas aos etíopes). Desse período
destacam-se – Berredo e Castro e Baena. há diversos relatos de como navegar entre
O primeiro é capitão-mor do Maranhão as províncias da Colônia, como a viagem
(1718–1722). São dele os Annais históricos de Couto (1731), descendo o Tocantins e
do Maranham... (1749) e a Cronologia do revelando as minas de Natividade.
Pará. Já Baena, escreve Compêndio das eras
da província do Pará (1838). Na leitura O T r ata d o de Madri (1750) e
levas – 1751 e 1754. A 1a contava mais de 692 páginas), memórias (em que tratou de
oitocentas pessoas em 23 canoas; a 2a, 1.025 cuias, louças, malocas dos Curutus, salvas
A
pessoas, 511 das quais índios (remeiros e de palhinha etc.) e coletou extensamente
e
J o ã o M e i r e l l e s F i l h o e Fe r n a n d a d e O. M a r t i n s
J o ã o M e i r e l l e s F i l h o e Fe r n a n d a d e O. M a r t i n s
H
P
Ra t r i m ô n i o
d o
e v i s t a
Viajantes estrangeiros do Nas outras Amazônias, Holanda,
século 16 à chegada da família Inglaterra e França apoiaram viajantes e
real ao Brasil (1808) mesmo a Espanha o fez, destacando-se
A viagem do cientista francês Condamine Humboldt (1800–1802). Holanda é crítico
e do cartógrafo equatoriano Maldonado é diante do desinteresse português: “(...) difícil
excepcional pelo contexto das proibições a será encontrar, digno de referência, qualquer 87
fronteiras a viajantes. Pela primeira vez, austríaco Natterer (1825–1835), que viverá
há pessoas desinteressadas que, a partir entre os índios do alto rio Negro e se casará
A
J o ã o M e i r e l l e s F i l h o e Fe r n a n d a d e O. M a r t i n s
obra-prima, Flora Brasiliensis, é a maior sobre vida das classes mais humildes de seus habi-
d o
40 volumes, concluindo-se apenas em 1906. com Darwin e assim Bates apresenta a biodi-
versidade dos arredores de Belém:
R
88
700 espécies são encontradas em uma hora de contestador de Darwin (criacionismo x
a c i o n a l
uma mulher, a norte-americana Elizabeth
não excede a 66, ou em toda a Europa não se
Agassiz, coautora do livro A Journey in
encontram mais de 321 espécies (ibid.:71).
Brazil, participando ativamente de uma
Nr t í s t i c o
Dos 14 mil insetos que Bates coleta, viagem. Para Raimundo Morais: “(...) o
metade é nova à ciência. Atento à situação poder crítico da ilustre matrona é tão vivo e
A
social, comenta sobre a Cabanagem e surtos penetrante que dificilmente um balaio, uma
e
esteira, uma cuia (...) lhe escapam” (Morais
i s t ó r i c o
de febre amarela, varíola e cólera: “(...)
J o ã o M e i r e l l e s F i l h o e Fe r n a n d a d e O. M a r t i n s
Como resultado das desordens, o numero de in Meirelles, 2009:147). Também desta
habitantes na cidade diminuiu de 24.500 em participaram o geólogo Hartt, que depois
H
permanece no Brasil, o ilustrador Burkhardt,
a t r i m ô n i o
1819 para 15.000 em 1848” (ibid.:42).
Wallace também faz sua crítica social o estudante William James (mais tarde um
referindo-se a Manaus: dos importantes filósofos da América) e
P
outros estudantes de Harvard. São coletados
d o
(...) os homens trajavam apenas um par 80 mil espécimes.
e v i s t a
de calças; as mulheres, apenas uma tanga; e as
Diferentes expedições se seguirão: do
crianças, nada absolutamente. Vivem da maneira
R
francês Denis (1816–1821); do paleontólogo
mais frugal possível. A princípio, fiquei deveras
francês Orbigny (1826), do canadense Orton
confundido com isso, procurando então descobrir
o que é que comem em suas refeições. Pela manhã
(1867) – expedição do William College/Smi-
muito cedo, cada um come uma cuia de mingau. thsonian; do francês Crevaux (1876–1882)
Ao meio-dia, comem um bolo de farinha seca etc. Entre 1826 e 1829, acontece a contur-
ou um inhame assado; e, à tarde, outra vez uma bada viagem comandada pelo alemão barão
cuia de mingau de farinha ou de banana. Eu de Langsdorff, sob patrocínio do Império
não podia imaginar que realmente nada mais do 89
russo, em que colaboram o desenhista francês
que isso tivessem para comer. Afinal de contas, Florence, o pintor francês Taunay, o botânico
fui obrigado a chegar à conclusão que as suas
Riedel, o astrônomo russo Rubzoff e o caça-
variadas preparações de mandioca e de água é que
dor-empalhador brasileiro Caetano. Essa foi
constituem, na verdade, o seu único alimento.
provavelmente a primeira expedição com pro-
Uma vez por semana, mais ou menos, arranjam
fissionais contratados de diversas partes. Mas,
um pouco de peixe ou uma ave. (2004:223).
em quase todos os casos, há grandes coletas
O inglês Spruce permanece 15 anos de amostras da flora, fauna, minerais, artefa-
(1849–1864) entre o Amazonas e os Andes; tos indígenas e caboclos, cedidos a museus, o
e, ao ouvir falar de Wallace e Bates, vai que permitiu que esses materiais chegassem
a Santarém. Foi o primeiro a descrever aos nossos dias. A quem pertence esse patri-
técnicas de coleta da borracha (Dean, mônio? Essa é uma das questões a discutir.
Trombetas (onça lutando
1989:33). Destacada foi a Expedição Thayer Mesmo que o inglês Wickham (1872– com tamanduá). Gravura
de autor desconhecido.
(1865–1866), que levava o nome de seu 1876) seja o mais conhecido, a busca pela In: The Illustrated London
News, 11 abr.1857, p. 330
financiador e era chefiada pelo suíço Agassiz, borracha é bem anterior. O inglês Gardner Coleção João Meirelles Filho.
(1836–1840), do Royal Botanical Gardens do sobre os povos originais. A vinda do suíço
A Amazônia viajante “até dizer chega”.
A contribuição dos viajantes ao por vir amazônico – do século 16 ao fim do ciclo da borracha
Ceilão, percorre a região. Para Dean: “(...) a Goeldi para dirigir o Museu Paraense é um
a c i o n a l
história da borracha brasileira precisa começar fato notório. Ele formará o primeiro grupo
com o mito, porque tal mito sobrevive, de profissionais da ciência – talentosos
conquistou a imaginação do mundo inteiro, jovens (todos de língua alemã): a zoóloga
N
r t í s t i c o
J o ã o M e i r e l l e s F i l h o e Fe r n a n d a d e O. M a r t i n s
e outros mitos
exército e da marinha” (Kidder, 1980:186). Mesmo no século 19, segue a procura pelo
Igualmente, assevera Wallace: “(...) Os índios Eldorado: o militar inglês Alexander (1830–
P
que desciam os rios para negociar os seus 1831), realiza duas expedições para o maciço
d o
e coagidos a servir como soldados. A isto Society; o inglês Hilhouse busca o legendário
R
é que chamavam alistamento voluntário” Lago Parime, conforme Raleigh (1831); nos
(2004:83). anos 1830, o francês Adam de Bauve diz ter
Viajantes prestam serviços ao governo encontrado o Eldorado na Serra de Pacaraima;
imperial ou de províncias. Entre eles, o e o célebre coronel inglês Fawcett, que realiza
naturalista francês Brunet, que coleta para cartografia na fronteira Bolívia-Brasil (1906),
o Museu Nacional (1860–1861); o francês regressa em busca da cidade perdida (“Z”) e
Baraquin recolhe materiais no Pará e recebe desaparece com seu filho em 1925. “(...) A
90
o título honorário de Adjunto Naturalista conexão de Atlântida com esta parte do Brasil
Viajante do Museu Nacional, pois este não deve ser descartada de pronto” (Fawcett
não tinha como pagá-lo; o alemão Dodt in Meirelles, 2011:70).
(1873) torna-se um folclorista e se naturaliza
brasileiro; e o botânico Schwake (1874– Os pioneiros brasileiros da
a c i o n a l
Provavelmente, o brasileiro pioneiro demarcações de fronteira
na ciência que visita a região por conta A pressão por uma saída dos Andes
própria seja o médico paraense Castro.
N
pelo Atlântico e os interesses da Inglaterra
r t í s t i c o
Escava no Marajó, incentivando Ferreira e Estados Unidos resultam em nova onda
Penna a se dedicar ao tema. Penna ocupa de viajantes: o naturalista Maw (1828),
A
papel capital na história da ciência, pois, a aprisionado como espião no Brasil; os
e
partir de 1863, comissionado pelo governo
i s t ó r i c o
oficiais da Marinha Britânica Smythe e Lowe
J o ã o M e i r e l l e s F i l h o e Fe r n a n d a d e O. M a r t i n s
do Pará, percorre o estuário e os principais
(1834); e os da marinha norte-americana,
tributários do Amazonas. Visitará diversos
H
Herndon e seu assistente Lard (1851):
sítios arqueológicos no Marajó, inclusive em
a t r i m ô n i o
companhia do diretor do Museu Nacional, (...) Este governo intenciona apoderar-se de
Ladislau Neto. Em 1866, estimulado por certas informações sobre o vale do rio Amazonas
P
Agassiz (Expedição Thayer), criará com (...). Este interesse estende-se não apenas às
d o
colegas uma associação que, a partir de 1871, presentes condições do vale, no que se refere
e v i s t a
se torna o Museu Paraense, hoje Museu à navegação de seus rios, como, igualmente, à
capacidade de cultivo agrícola e à natureza dos
R
Paraense Emílio Goeldi – MPEG.
recursos comercializáveis, sub-explorados, sejam
Imprescindível é o trabalho do botânico
estes agrícolas, florestais, fluviais ou minerais”
Rodrigues: “(...) Quando os seringaes desapa-
(Herndon, 1952).
recerem, o que restará para o Valle do Amazo-
nas?” (1890:51). Ele explora diversas regiões Sua missão estuda a venda de escravos
do vale e grupos indígenas. No Jauaperi dos Estados Unidos: “(...) o Sul pode vendê-
descreve o etnocídio pelos seringalistas sobre los à Amazônia” (Meirelles, 2009:124). 91
os Crichaná (Waimiri-Atroari): “(...) Eram
É, todavia, o crescente interesse pela
caçadores enthusiasmados ante um bando de
borracha que resulta em incontáveis
guaribas! Cada um quiz sua parte na caçada.
expedições para estudar a hidrografia
Apontavam a arma, descarregavam e o pobre
e possíveis ferrovias em trechos
índio cahia no meio de gargalhadas geraes”
encachoeirados: as dos engenheiros alemães,
(1885:17). Em Poranduba Amazonense preo-
os Keller (1867 e 1873); dos norte-
cupa-se em: “(...) registrar estes pequenos
americanos, o coronel Church (1869–1881)
contos do tempo antigo que se referem á na-
tureza do imenso valle do Amazonas, fructos e o arqueólogo Bingham, sendo que este
da observação selvícola” (1890). E se pergunta encontrará Machu-Pichu.
sobre os estudos das línguas: “(...) Onde estão O período da borracha desperta o
as grammaticas ou mesmo os vocabulários interesse dos países amazônicos por suas
destes dialectos que nos deixaram? O pou- fronteiras. Surgem conflitos, exigindo
co que há é feito por viajantes naturalistas” viagens de reconhecimento e expedições
(1892:38). demarcadoras. Muitos dos primeiros
viajantes são relidos. Estudos como os dos brasileira”) e o Peru. Após essa odisseia, seu
irmãos alemães Schömburgk (1835–1844), discurso florescerá como céu estrelado:
financiados pela Royal Geographical Society
(...) A Amazonia selvajem sempre teve o dom
durante expedições à fronteira com a
de impressionar a civilização distante. Desde os
Guiana, terão peso na decisão favorável à primeiros tempos da Colonia, as mais imponentes
Inglaterra na Questão do Pirahara. expedições e solenes visitas pastorais rumavam de
preferencia ás suas plagas desconhecidas. Para la os
O f i m d a b o rr a c h a e p o r mais veneraveis bispos, os mais garbozos capitães
um novo discurso generaes, os mais lucidos cientistas. (...) chegavam
aos rincões solitários, e armavam rapidamente
no altiplano das barreiras as tendas suntuozas da
Duas personalidades registram a sua
Civilização em viajem. Regulavam as culturas;
passagem pela Amazônia e, a partir daí,
puliam as gentes; aformozeavam a terra (Cunha,
nunca mais o discurso do viajante poderá ser
1909:19).
o mesmo: Euclides da Cunha (1909) e Mário
de Andrade (1927). É Cunha quem corta o cordão umbilical
Depois de insistir com o barão do Rio e denuncia a elite local (seringalistas): “(...)
“Nosso primeiro encontro
com os Caripuna (rio
Branco (ministro de Relações Exteriores), a mais poderosa organização de trabalho
Madeira)”. Xilogravura.
Franz Keller-Leuzinger, Cunha assume a chefia de uma partida que ainda engenhou o mais desaçamado
1874 (ca.)
Coleção João Meirelles Filho. demarcadora de limites entre o Acre (“Sibéria egoísmo.” (Cunha, 1986:16). Perceberá a
imensa trama que se forma para sugar da O Turista Aprendiz. Viagem pelo
a c i o n a l
ádvena (migrantes nordestinos): “É o homem Bolívia, por Marajó até dizer chega é um texto
que trabalha para escravizar-se” (Cunha, fundador e pouco estudado (Andrade, 2015).
1909:69). Em 1936, Mário discursa: “Faz-se
N
r t í s t i c o
Se Cunha corta o cordão, Mário necessário e cada vez mais que conheçamos
de Andrade é quem o cerze. Andrade, o Brasil. Que sobretudo conheçamos a gente
A
mesmo viajando luxuosamente à região, do Brasil” (Andrade in Meirelles, 2009:196).
e
no seu buliçoso etnoturismo, busca a E, conforme seu secretário, Bento: “(...) Nós
i s t ó r i c o
J o ã o M e i r e l l e s F i l h o e Fe r n a n d a d e O. M a r t i n s
voz do povo: “(...) Todos se propõem temos que dar ao Brasil o que ele não tem e
conhecedoríssimos das coisas desta pomposa que por isso até agora não viveu, nós temos
H
Amazônia de que tiram uma fantástica que dar uma alma ao Brasil e para isso todo
a t r i m ô n i o
vaidade improvável, terra do futuro (...). Só sacrifício é grandioso, é sublime” (Andrade,
quem sabe mesmo alguma coisa é a gente 1980:9).
P
ignorante da terceira classe3” (Andrade, Daqui pra frente, uma linhagem de
d o
1976:99). Em 1926, escrevera Macunaíma viajantes de nova estirpe, corajosos, proporá
e v i s t a
inspirado nas pesquisas no Monte Roraima uma nova abordagem sobre a Amazônia.
por Koch-Grünberg. Seu diário e notas Entre os quais Roquette-Pinto, os Villas-Boas,
R
publicados postumamente (1947) como Antonio Callado, Darcy Ribeiro e outros que
No furo de Barcarena
merecem um novo artigo... Bom. Era uma (Manaus) Atirando a
tarrafa, 1927
Foto: Mário de Andrade/
vez, quem quiser conte outra vez... Coleção MA-IEB/USP.
3. Referindo-se às embarcações que ofereciam diferentes
categorias de acomodação.
93
À guisa de conclusão e comentada. A maior parte dos documentos
recomendações de viajantes não está publicada ou o foi
em tiragem restrita, e a maioria dos textos
A partir dos viajantes e seus legados e nunca foi traduzida para o português, algo
que num mundo digital é inconcebível.
94 relações com o patrimônio, seria possível
O norte-americano H. Rice sugeriu ainda
destacar:
que houvesse uma cátedra na universidade
a) Em boa medida, ainda não nos
dedicada aos viajantes, que ele de fato
libertamos da visão eurocentrista lançada
constituiu, em Harvard, mas de forma
sobre a Amazônia – da selva ignota de seres
descontinuada (Meirelles, 2011:67).
perigosos, lugar de gente primitiva. Pior,
c) Os materiais coletados por
seguimos à procura do Eldorado redentor.
viajantes estão em centenas de coleções
b) O conhecimento gerado pelos públicas e privadas no Brasil e exterior. São
viajantes ainda é menosprezado e ignorado. patrimônio da nação brasileira e mereceriam
Poucos se dão conta de que, com todas as ser tombados em seu conjunto por uma
falhas, as expedições estão entre as poucas lei específica. Por experiência própria, são
fontes primárias sobre o período. Ademais, de acesso difícil e boa parte do acervo é
carecemos, por exemplo, de uma Biblioteca mesmo desconhecida. A maioria não está
dos Viajantes na Amazônia que apresente os disponível sequer para consulta digital – algo
principais registros de forma organizada e igualmente inaceitável na atualidade. Pior,
os povos originários, ainda que venham a encosto aos motoristas no estacionamento
reconhecer e eventualmente agradecer a do Itamaraty, em Brasília (DF); o segundo,
guarda desses materiais, merecem conhecê- no jardim da 1a Comissão Demarcadora de
los. Mesmo porque muitos foram surrupiados Limites, sem acesso ao público; e o terceiro,
de forma desonesta, como a máscara de abandonado na Praça Dom Pedro II, ambos
95
Jurupari (Macacaraua) pelo padre franciscano em Belém. Este último se transformou em
Coppi, afinal vendida ao Museu Nacional mictório público porque, mesmo diante do
Pré-histórico Etnográfico Luigi Pigorini, Instituto Histórico e Geográfico do Pará,
Roma, Itália (Stradelli, 2009:19). A sua nada explica sua importância e nem qualquer
disponibilidade por meio digital, réplicas, zelo o protege. Em tempo, à exceção do Mu-
exposições temporárias ou permanentes, seu Goeldi, raros são os museus e equipamen-
doações e repatriação de objetos precisa tos culturais dedicados aos povos originários,
ser tratada como política pública e com a quilombolas ou tradicionais e raros também
participação dos beneficiários – não é uma são os representantes desses povos como cura-
questão apenas de especialistas. dores ou “co-curadores”.
d) Ainda sobre a conservação ex situ, e) Em relação à conservação in situ,
comente-se sobre os três marcos instalados muitas descobertas de viajantes continuam
no século 18, na região do alto rio Negro, e ignoradas, como os sítios arqueológicos do Museu do Marajó, fundado
em 1972. Cachoeira do
retirados. O primeiro encontra-se constran- Marajó (tesos), conhecidos há mais de 150 Arari, Ilha de Marajó (PA),
2014
gido pelos luzentes carrões oficiais e serve de anos, sem que haja um único parque arqueo- Foto: Eric Royer Stoner.
lógico ou similar. A única coleção de visitação Referências
A Amazônia viajante “até dizer chega”.
A contribuição dos viajantes ao por vir amazônico – do século 16 ao fim do ciclo da borracha
estado crítico. Preferimos fazer currais para ALMADA, Manoel da G. Lobo de. Descripção relativa
ao Rio Branco e seu território. Revista do IHGB, t. 24, v.
búfalos sobre o solo sagrado e aprovar plan-
24, Rio de Janeiro, p. 617-683, abr.1861.
tios de arroz do tipo arrasa-quarteirão! No
N
litoral paraense (região do Salgado), nenhum Maranhão. Rio de Janeiro: 1874. Disponível em <http://
dos sambaquis e centenas de sítios arqueoló- www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/182849>. Acessado em
5/7/2018.
A
Cidades. 1976.
J o ã o M e i r e l l e s F i l h o e Fe r n a n d a d e O. M a r t i n s
f ) O patrimônio imaterial dos povos ______. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. 17
tradicionais amazônidas é insuficientemente ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Livraria Martins,
H
1980.
conhecido, valorizado, registrado, tombado e
a t r i m ô n i o
como sítio sagrado daqueles povos, S. Gabriel BATES, Henry W. The naturalist on the river Amazons).
d o
definitivas, é que, curiosamente, sustenta DANIEL, João. Tesouro descoberto no máximo rio Amazo-
nas. Rio de Janeiro: Contraponto; Belém: Prefeitura de
a pesquisa científica. E isso sem contar as Belém, 2004. 2 v.
mudanças climáticas, de impacto direto em DEAN, Warren. A luta pela borracha no Brasil. São
ecossistemas costeiros e seu patrimônio cul- Paulo: Nobel, 1989.
tural associado. Cite-se a recém-descoberta DEL PRIORE, Mary; GOMES, Flávio dos S. (org.). Os
senhores dos rios. Amazônia, margens e histórias. Rio de
Floresta Amazônica Atlântica, com seus sítios Janeiro: Elsevier, 2003.
arqueológicos, a partir de pesquisa do Museu GALVAO, Eduardo. Santos e visagens. Um estudo da vida
Goeldi e Instituto Peabiru (edital Petrobras religiosa de Itá, baixo Amazonas. São Paulo: Nacional,
1953.
socioambiental), que já nasce ameaçada. Tere-
FRANÇA, Jean M. C.; RAMINELLI, Ronald. Andanças
mos que “tombar” a chuva da tarde de Belém
pelo Brasil colonial. São Paulo: Unesp, 2008.
para garantir que as mudanças climáticas não HERNDON, W. L. Exploration of the valley of the Ama-
terminem por levá-la para sabe-se lá onde? zon. Nova York: Mcgraw-hill, 1952.
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R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
98
Ana Pizarro O trânsito da oralidade para a escrita amazônica latino-american
Ana Pizar ro
a c i o n a l
O trânsito da oralidade para a escrita
N
r t í s t i c o
Para Ottmar Ette
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
Essa reflexão surgiu há 25 anos, quando suas conexões culturais nos permitem, e por
estávamos pensando em uma história da vezes nos exigem, pensar a totalidade tal
literatura latino-americana. Como fazer uma como a desenvolvi em um trabalho anterior.
P
reflexão histórica sobre essa literatura sem Também me referi anteriormente a uma
d o
considerar que envolve, pelo menos, três
e v i s t a
das características constitutivas da chamada
sistemas literários paralelos, cada qual com “literatura” do continente como à de um
R
suas especificidades? Talvez fosse o caso de se conjunto de sistemas que expressa as fratu-
pensar em um livro com páginas divididas ras – econômicas, sociais, do imaginário –
em seções? Como nós ocidentais, ainda que próprias de uma história cultural periférica.
mestiços, poderíamos fazer uma história do É nessa base que desenvolverei a reflexão a
discurso indígena? E mais, que sentido de
seguir. Mas ela se constrói simultaneamente
história e de tempo têm os indígenas?
na consideração do entrelaçamento cultural
Decididamente não podemos e nem nos
latino-americano como se fosse uma tra- 99
compete fazê-lo. Mas, sim, o que podemos
ma. Tendo a pensar nessa trama como a de
historiar são os modos e os momentos
um cesto, do mesmo modo que os povos
em que o discurso, a cultura indígena são
indígenas muinane concebem aspectos da
apropriados pelo Ocidente. É sobre isso que
realidade complexa falando de “um cesto de
refletiremos no presente trabalho: sobre as
trevas” ou um “cesto de vida” para conter no
narrativas amazônicas.
trançado a complexidade de seus sentimen-
Quando penso na Amazônia, só posso
concebê-la no todo, ou seja, na denominada tos. Essa trama estaria constituída por fluxos
Pan-Amazônia. Quer dizer, embora meu externos, apropriações e movimentos entre
objeto de reflexão seja amplo, acredito que um e outro sistema literário.
Nesse caso, percebo, no processo literário
amazônico, algumas relações entre o sistema
1. Este texto foi publicado no IX Simpósio Linguagens e popular oral, o sistema indígena e o sistema
Identidades – Línguas e literaturas indígenas, 2015, Universidade Yanomami do rio
Cauaburi,
Federal do Acre – Ufac e também em BUSCHMANN, Albrecht et ilustrado. O que chamamos de literatura alto rio Negro (AM),
al. (orgs.) Literatur leben. Festschrift für Ottmar Ette. Madri: Ibero- 2018
americana; Frankfurt: Vervuert, 2016. amazônica implica a coexistência desses três Foto: Renato Soares.
Piauhy/O rigor do Amazonas, de 1916,
O trânsito da oralidade para a escrita amazônica latino-american
a c i o n a l
quadrilha. De todos, o cordel e a cantoria Assim, um segundo sistema próprio
são os gêneros nordestinos reconhecidos dessa área cultural é o das chamadas
como tais no Amazonas, cuja importância é “literaturas indígenas”. Atualmente se fala
N
r t í s t i c o
maior durante o período da borracha – nas em etnoliteratura e etnotexto. Na realidade,
primeiras décadas do século 20 -, a ponto de sabe-se que “literatura” indígena não é uma
A
existir uma editora em Belém e em outros denominação adequada, mas, na falta de
e
lugares, a famosa Guajarina, que difunde os outra terminologia melhor, a utilizamos.
i s t ó r i c o
saberes dos imigrantes vindos do Nordeste. Aqui, nesse sistema literário indígena, a
Como sabemos, esse gênero está vigente situação também é complexa: as línguas são
H
e atualmente é objeto de estudos acadêmicos. diferentes entre si, os gêneros são distintos
a t r i m ô n i o
Contudo, acredito que aqui se apresenta daqueles que aparecem no sistema popular
um primeiro problema: o que chamamos e no erudito, sua função também é outra –
Ana Pizarro
P
de “popular”? Como sabemos, o termo há cantos de trabalho, ritualísticos, canções
d o
se refere também às culturas midiáticas, de ninar, por exemplo -, trata-se de objetos
e v i s t a
no que se denomina de “música popular auditivos estéticos variados, que estão
R
brasileira”. Não entrarei nessa questão, mas destinados a um público não ocidental e,
a pergunta é: podemos falar do popular e do quando nos chegam, necessariamente mudam
indígena como um mesmo objeto? O certo de fisionomia.
é que quando o indígena entra no terreno Observemos tal situação. A mudança
da ilustração, o que socialmente realiza se dá, inicialmente, do oral para o escrito
na periferia das cidades, se incorpora em porque significa o congelamento de um
outros âmbitos que o subjugam, quer dizer, material que está em constante movimento e
101
quando é apropriado pela cultura erudita transformação, apesar da índole conservadora
toma distintos perfis. Referiremo-nos a isso da tradição. Nesse primeiro nível, é possível
mais adiante, porque hoje nos interessa pensar num texto dos Desana, publicado por
analisar como a literatura ocidental absorve integrantes desse povo, que nos abre para
literariamente as culturas indígenas. um novo saber sobre sua cosmogonia. Nela
Consideramos as culturas indígenas se aprende, por exemplo, que uma mulher
como um sistema à parte dentro daqueles deu origem à existência e percebe-se como
que constituem a voz literário-cultural da o mito cumpre sua função ordenadora do
Amazônia, no sentido de que se trata de universo, apesar de seus conflitos e tensões.
emissores diferentes: um poeta ou orador, Ordenadores de um mundo que possui
uma textualidade, objeto de análise oral uma lógica diferente da ocidental, na qual a
– raramente em suporte escrito e não oposição pode não ser contraditória e pode
necessariamente em escrituras alfabéticas conviver; na qual os tempos se sobrepõem
– em diversas línguas não europeias. e mostram um desenho variado; na qual a
Finalmente, envolve um receptor coletivo que relação entre os homens e a natureza, e entre
eles mesmos, possui uma vinculação fluida questão após os textos da Negritud, realizando
a c i o n a l
a seguir a voz desana: como Edouard Glissant, Patrick Chamoiseau
e sua tese sobre a créolité. Ou seja, trata-se de
No princípio, o mundo não existia. As trevas
uma discussão produtiva, que tem a ver com
N
cobriam tudo. Enquanto não havia nada, apareceu
r t í s t i c o
definições de sentido e função da literatura e
uma mulher por si mesma. Isso aconteceu no meio
das trevas. Ela apareceu sustentando-se sobre o que deu bons resultados.
A
seu banco de quartzo branco. Enquanto estava Mas o texto desana não é comum, por
e
tratar-se de um sistema literário. Em geral,
i s t ó r i c o
aparecendo, ela cobriu-se com seus enfeites e fez
como um quarto. (...) Ela se chamava Yebá Buró, a o texto indígena não chega à impressão, isto
“Avó do Mundo” ou também “Avó da Terra”. é, constitui um saber regido por códigos de
H
oralidade e não alcança a plenitude atribuída à
a t r i m ô n i o
O texto citado se encontra no livro
forma escrita. É, portanto, uma outra maneira
de Marcos Frederico Krüger Amazônia:
de se relacionar com os outros e com o mundo.
mito e literatura. Esse pensamento tem
Ana Pizarro
P
A oralidade chega excepcionalmente à escrita e
d o
início na segunda metade do século 20,
esta, necessariamente, a distorce. No entanto,
e v i s t a
quando começa a ser aceito o desafio
essa alteração é mais sentida quando há um
da escrita alfabética impressa para as
R
intermediário, seja sacerdote, informante,
produções indígenas, na medida em que escritor, antropólogo, sobretudo quando
esses povos foram tendo o contato com é necessário fazer a tradução. Penso, por
o mundo ocidental que a modernidade exemplo, no caso mexicano, nos informantes
lhes havia negado. Sua existência evolui de Sahagún, mas também na magnífica
até um princípio de reconhecimento, em obra de León-Portilla para o trabalho do
razão de uma luta histórica entre eles e a náhuatl ou das línguas maias, assim como
sociedade ocidental, mas em situação de 103
o de Roa Bastos para o guarani. São textos
subordinação. Evidentemente que isso que para chegar até nós – não ocidentais,
implica em importantes decisões: escrever mas ocidentalóides – necessitam passar
é aceitar a língua como alfabeto, umas das por uma mediação. Os temas têm ligações
mais recorrentes formas de exercer poder entre as diferentes literaturas na medida da
sobre eles. Mas, ao mesmo tempo, instalar relação do criador com o mundo natural, no
a memória indígena em toda a sociedade surgimento dos conteúdos cosmogônicos, às
constitui um modo de resistência efetivo. vezes na perspectiva histórica, às vezes mítica,
É o conflito que as literaturas enfrentaram como sabemos. Nessa literatura, conforme
após a descolonização na África dos anos observou o pesquisador colombiano Hugo
1960 e, assim, viram um desenvolvimento Niño no seu livro El etnotexto: las voces del
poderoso do romance, com autores asombro, para o caso dos Witoto, a capacidade
magníficos como Wole Soyinka, Pepetela, simbólica desse pensamento codifica a história Ritual de dança dos
Kayapó Kuben-Krân-Krên,
Mia Couto ou Ahmadou Kourouma. A em termos míticos. É o que escreve para a sul do Pará, 1957
Foto: José Medeiros/ Coleção
literatura do Caribe também confrontou a narração de Gitoma e a absorção mítica da Instituto Moreira Salles.
tragédia da borracha com o episódio da Casa Que na sua trajetória
O trânsito da oralidade para a escrita amazônica latino-american
da sociedade. Eles absorvem e transformam, existe desde o fim do século 20 uma nova
e v i s t a
a c i o n a l
O texto desana que mencionamos no não tiveram direito à palavra no universo oci-
começo, Antes o mundo não existia, parece dentalizado de suas nações. A escrita congela
ser a forma mais direta com a qual a escrita um movimento, mas simultaneamente permi-
N
r t í s t i c o
ocidental recorre ao imaginário cosmogônico te múltiplas leituras, ou seja, lhe proporciona
indígena. É o relato de um pai ao seu filho, outra dimensão de vida.
A
ou seja, trata-se de uma comunicação entre Além desse tipo de intermediação,
e
pares. Portanto, o pensamento original para conseguir uma autenticidade maior,
i s t ó r i c o
estaria quase inalterado pela presença só existem aqueles que incorporam o
do interlocutor e ambos aparecem como pensamento mítico, deslocados de sua
H
autores. É uma vinculação direta, antecedida expressão original, como os fragmentos
a t r i m ô n i o
pela oralidade. Evidentemente há um recolhidos por Priscila Faulhaber em O lago
trabalho de edição envolvido: alí não estão dos espelhos, na Amazônia brasileira. Trata-se
Ana Pizarro
P
as marcas explícitas da conversa: as dúvidas, nesse caso de um trabalho antropológico.
d o
os silêncios, as perguntas. O trabalho dos antropólogos tem sido o de
e v i s t a
Em um segundo nível entre a oralidade mediação, de caráter distinto e com diferente
R
e a ficção literária erudita está o relato oral sentido e, como sabemos, seu papel tem dado
intermediário feito por um interlocutor. lugar a importantes discussões durante o
Nesse caso, há um interlocutor de formação século 20.
ocidental ou profissionais, como o antropó- A ficção que incorpora as vozes indígenas,
logo, o professor, o pesquisador em geral. seu imaginário, ou inclusive o sujeito de seu
Nesse caso, encontra-se a publicação de Hugo enunciado, que é o mais comum, tem seu
Niño Literatura de Colombia aborigen: en pos antecedente em um poema épico amazônico
105
de la palabra. Ali, um grupo de profissionais chamado Muhuraida ou o triunfo da fé, de
recorre à voz e aos relatos de distintas etnias, autoria do militar português Henrique J.
incorporando grupos amazônicos dos Witoto. Wilkens, cujo manuscrito data de fins do
Para além da vontade, do cuidado e da valiosa século 18. Nele o autor narra a conversão
intenção de divulgar o imaginário do mundo religiosa da etnia Mura ao protestantismo.
indígena que está oculto, temos que consi- Nesse momento, se coloca um outro
derar que aqui sempre há a mediação, e toda problema: o da delimitação do objeto de
mediação, ainda que mínima, altera a postura análise. O que será considerado como
do narrador, imprime um selo de interlocu- literatura amazônica: aquela que se escreve
ção ao seu imaginário, além do trabalho de a partir do território amazônico e por quem
edição sobre o texto original falado. Ali não a ele pertence, ou também a literatura que,
estão os gestos, os deslocamentos, as inflexões com tema amazônico, se escreve fora do
de voz, tudo o que implica na performance da território? Porque, tal como salientávamos em
fala. No entanto, são textos que resgatam e uma publicação anterior, essa área, que possui
valorizam, na medida do possível, a oralidade excelentes escritores como Inglês de Souza,
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
106
Ana Pizarro O trânsito da oralidade para a escrita amazônica latino-american
ou Milton Hatoum, é fortemente mítica para mas, com sensibilidade paternalista, termina
a c i o n a l
fora de suas fronteiras, inclusive dos países propondo um simulacro, em que aparecem,
que a formam. Isso faz com que também sem perfil difinido, do mesmo modo como
exista uma literatura de tema amazônico faz com os seringueiros no Congo. Em alguns
N
r t í s t i c o
muito importante. É o caso de José Eustasio casos narrativos, a ficção atinge grande valor
Rivera, com a obra La Vorágine (1924), estético, como em La Vorágine, citada obra
A
que esteve na região em uma comissão de de Rivera, também a respeito do universo dos
e
fronteiras enviada pelo governo colombiano; seringueiros. Mas a perspectiva externa nem
i s t ó r i c o
como À margem da história. É o caso de Brasil, esse perfil pode ser atribuído ao grande
Macunaíma (1928), relato clássico de Mário escritor Márcio Souza, em Mad Maria, que
Ana Pizarro
P
de Andrade, que visitou a região e escreveu a relata a história da estrada de ferro Madeira-
d o
de Darcy Ribeiro e sua novela Maíra (1996), escritor boliviano Diómedes Pereyra. Trata-
R
entre tantos outros. Assim, apesar do bem se neste último da folclorização, que é uma
vasto campo que se observa, seria necessário forma de subjugação do indígena.
ampliar ainda mais o espectro e se reportar à A outra forma de integração e expressão
literatura de tema amazônico. da cultura indígena se encontra em um
Nesse ponto, a incorporação do sistema tipo de narrativa que rompe o esquema
popular, assim como a do sistema indígena, linear e sai da voz tradicional que se refere à
encontra um caminho similar. vida dos grupos, o indivíduo e sua cultura.
108
De um lado, existe uma narrativa Trata-se da narrativa que, como Macunaíma
que se apropria de temas e problemas do ou Maíra, busca expressar uma lógica
universo popular e indígena, mas não o alternativa. Parece-me que o resultado
incorpora como voz. Há, em alguns casos, a mostra uma coerência que o leitor percebe
ficcionalização da fala popular, a imitação sem como sendo de outra forma de vida, a qual
incorporação real. Grande parte da narrativa somente se acessa por intermédio de uma
sobre a borracha, observável principalmente transposição da linguagem e das estruturas
na Colômbia e na Bolívia, segue uma narrativas. Observo, como um caso especial,
construção linear tradicional, que se vale uma novela pouco conhecida, reimpressa
de uma visão externa. No Peru, o foco no há pouco no Peru, Las tres mitades de Ino
tema amazônico se verifica com Ciro Alegría Moxo y otros brujos de la Amazonía, de
em A serpente de ouro (1935), por exemplo. Cesar Calvo, autor nascido em Iquitos, em
Atualmente, é a percepção que Mario Vargas 1940, falecido em 2000. Desde o título,
Llosa oferece do mundo dos seringueiros em entramos em outra esfera de compreensão da
sua novela sobre Roger Casement, O sonho realidade. De fato, grande parte do livro foi
2015
Foto: Marcela Bonfim.
Parque Nacional dos
Entidade Samaúma, a
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
109
É uma composição fragmentada que são oferecidas pela vivência da selva em sua
a c i o n a l
mostra, já nos anos 1970, a fratura múltipla relação com a experiência indígena, nesse
de uma sociedade e uma cultura, assim caso em Ucayali. Ino Moxo é uma novela-
como uma compreensão da vida que se poema que também é entrevista e reflexão.
N
r t í s t i c o
fluida com os seres humanos. Calvo não experiência convencional ocidental. Dentro
e
pretende outra coisa senão colocar diante dos múltiplos relatos, como o da matança
i s t ó r i c o
relação do mundo indígena com a vida que nos introduz a esse mundo com a história
a t r i m ô n i o
os ocidentais não alcançam. Para tal, nos do menino Aroldo, que desapareceu quando
coloca diante das reflexões de quatro pagés um tigre rondava a casa e o viram convertido
Ana Pizarro
P
momentos distintos, dentre eles o das lutas com um pé defeituoso. Então, explica Don
e v i s t a
Ana Pizarro
P
Rd o
e v i s t a
solidários com a natureza, com o mundo, Referências
com o homem.
Quis me referir a esse texto porque AMARAL, Firmino Teixeira do. Despedida do Piauhy/O
rigor do Amazonas. Belém: Typ. Delta - Casa Editora,
creio que a única maneira que a experiência
1916.
ocidental possui para recupar literariamente
CALVO, Cesar. Las tres mitades de Ino Moxo y otros
os valores e cosmologia do mundo indígena brujos de la Amazonía. Iquitos: Proceso Editores y
amazônico é pela construção de uma Editorial Gráfica Labor, 1981. 111
linguagem e uma estrutura alternativas, FAULHABER, Priscila. O lago dos espelhos. Belém:
Museu Paraense Emílio Goeldi, 1998. Coleção Eduardo
como fez Guimarães Rosa com o sertão de
Galvão.
Minas Gerais ou José Maria Arguedas com a
HUGO, Niño. El etnotexto: las voces del asombro. Cinco
cosmovisão quéchua. Uma estrutura literária siglos de búsqueda y evitación. Havana: Casa de las
que respeite a existência da literatura Américas, 2008.
indígena como um sistema próprio do qual, HUGO, Niño. Literatura de Colombia aborigen: en pos
de la palabra. Bogotá: Instituto Colombiano de Cultura,
a partir de nós, só é possível entregar uma Índios Kobéua e Koróa...
1978.
In: Indianertypen aus
versão altamente simbólica. Além disso, KRÜGER, Marcos Frederico. Amazônia: mito e dem Amazonasgebiet:
nach eigenen aufnahmen
a oralidade necessita seguir seu caminho literatura. Manaus: EditoraValer, 2011. während seiner reise in
Brasilien, de Theodor
e eventualmente ser estimulada, como MELIS, Antonio. “Prólogo a la edición italiana”. In: Koch-Grünberg (1872-
1924), em que Mário
salienta José Bessa Freire, através das novas CALVO, Cesar. Las tres mitades de Ino Moxo y otros de Andrade encontrou
brujos de la Amazonía. Iquitos: Proceso Editores y o registro do mito de
tecnologias. São sistemas diferentes, cada Editorial Gráfica Labor, 1981.
Macunaíma, inspirador
de sua obra-prima
Macunaíma. O herói sem
um com sua vocação e sua função dentro de SALLES, Vicente. Repente e cordel: literatura popular em nenhum caráter, 1928
Acervo: Fundação Biblioteca
nossas sociedades. versos na Amazônia. Rio de Janeiro: Funarte, 1985. Nacional, Brasil.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
112
Ana Pizarro O trânsito da oralidade para a escrita amazônica latino-american
Acervo Iphan.
Mamoré (RO)
Foto: Dana Merrill/
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
114
M a n u e l Fe r r e i r a L i m a F i l h o Cidadania patrimonial – da inclusão à negação do mito da nação
Manuel Fer reira Lima Filho
a c i o n a l
C idadania patrimonial – da inclusão à negação
do mito da nação 1
N
A
H r t í s t i c o
e
i s t ó r i c o
a t r i m ô n i o
Do pat r i m ô n i o à e nos demais países da América Latina,
cidadania bem como da África, a temática da raça,
etnia, gênero, violência e subalternidade
P
vulcanizam um passado de concepções e
d o
Tenho pensado sobre o tema do
e v i s t a
patrimônio cultural, seja na sua dimensão práticas colonialistas. E a ação do antropólogo
acadêmica, por meio de aulas, orientação certamente não se esquiva do enfrentamento
R
de alunos, coordenação de pesquisas das questões políticas diretamente
institucionais e na constituição da rede relacionadas aos assuntos dos direitos
de antropólogos da Associação Brasileira humanos, da justiça social e da democracia.
de Antropologia – ABA, seja por meio de Com o patrimônio não pode ser diferente.
atuação extramuros acadêmicos, tais como Partindo dessa perspectiva, o conceito
na elaboração de relatórios técnicos de que tenho nominado cidadania patrimonial
consultoria, oficinas de educação patrimonial, merece agora, diante dessa minha trilha 115
ou na feitura de dossiê com a temática do profissional, uma narrativa por meio da
patrimônio imaterial. escrita, um dos vetores que compõem o ofício
Perspectivado a partir do lugar de fala do
do antropólogo (Cardoso de Oliveira, 2000).
saber fazer do antropólogo, produzi algumas
Ronaldo Rosaldo (1997), participando
reflexões a respeito da interação e fricção
de um grupo de estudos a respeito da
do conceito antropológico de cultura e do
situação dos latinos nos Estados Unidos em
patrimônio cultural2.
que se operacionalizaram conceitos como
Os anos de atuação profissional com o
identidade, multiculturalismo e cidadania
tema me incentivaram a buscar um diálogo
cultural, ponderou que, se por um lado a
entre o repertório teórico (conceito) e a
noção de cidadania é compreendida como
prática (técnica) da antropologia. No Brasil
um conceito universal, quando todos os
1. Esta é uma versão atualizada de um trabalho denominado cidadãos de um Estado-nação particular Mairaw acende o cigarro
Cidadania patrimonial (Lima Filho, 2015). petymahow durante o
são iguais perante a lei, por outro lado é Karuwara, o principal ritual
2. Cf. Lima Filho (2009, 2012, 2013, 2015) e Lima Filho & dos Aikewara, Pará, 2015
Silva (2012). preciso distinguir o nível formal de uma Foto: Orlando Calheiros.
teoria universal3 para um nível substantivo Aqui vale lembrar as ponderações de Ma-
Cidadania patrimonial – da inclusão à negação do mito da nação
necessariamente levar em conta o papel O desafio foi romper com a concepção histo-
que os movimentos sociais têm exercido ricamente construída em que o poder público,
A
no sentido de reclamar por direitos, tendo enquanto sujeito cultural e, portanto, produtor
e
em vista novas áreas de atuação como o de cultura, determinava “para a sociedade for-
i s t ó r i c o
feminismo, os movimentos negro e indígena, mas e conteúdos culturais definidos pelos gru-
a ecologia e as minorias vulneráveis como pos dirigentes, com a finalidade de reforçar a
H
cultural, para Rosaldo tal expansão é marcada ra oficial, exposta nacional e internacionalmen-
d o
pelo seu caráter qualitativo, porque a ideia te, sendo que a autoridade e o monumental
e v i s t a
cultura: “How we need to understand the way (Chauí, 2006:47). A hegemonia de tal tradição
citizenship is informed by culture, the way provocou em Marilena Chauí a indagação a
that claims to citinzenship are reinforced or seguir. “As políticas de patrimônio histórico,
subverted by cultural assumptions and practices” cultural e ambiental estariam condenadas à
(Rosaldo, 1997:35). forma mísera e pomposa da memória e da
Antonio Augusto Arantes (1996) celebração da história do vencedor?” (Chauí,
acrescenta mais uma dimensão que permeia o 2006:123). Vislumbrando outra concepção
116
tema contemporâneo da cidadania: o direito de política cultural, o patrimônio histórico,
à informação e o acesso aos bens simbólicos cultural e ambiental passou a ser assumido, na
substanciando o campo da comunicação condução de políticas públicas de São Paulo,
social, do mercado e da interpenetração das como prática social e cultural de múltiplos e
esferas pública e privada. O autor acrescenta diferentes agentes sociais e a memória, enquan-
que “cidadania não possui uma ‘essência’, mas to um direito do cidadão, como ação de todos
é artefato político-cultural móvel e mutável” os sujeitos sociais e não como produção oficial
Boneca karajá. Coleção
Maria Heloisa Fénelon (Arantes, 1996:10). da história.
Costa/Museu Nacional/UFRJ
Foto: Chico da Costa.
A experiência de gestão cultural de
Marilena Chauí elencou as seguintes
3. A maioria dos estudos na perspectiva sociológica a respeito proposições inerentes à prática da cidadania
do termo cidadania se refere a T. H. Marshall (1950), que
se referenciou na publicação de Hobhouse de 1916, quando cultural enquanto processo: o direito à
associou direitos e deveres do cidadão de um determinado informação, o direito à fruição cultural,
Estado. Marshall relacionou a cidadania com a noção de classe
social e apresentou uma descrição do desenvolvimento dos diretos o direito à produção cultural e o direito à
civis, políticos e sociais na Grã-Bretanha entre os séculos 18 e 20,
conforme esclarecem Morris (2010:41) e Svarlien (1987:177). participação (ibid.: 96-101).
Roberto DaMatta (1991) faz da cidadania, instalando, dessa maneira, um
a c i o n a l
interpretações sobre o Brasil, apresentando no horizonte a cidadania para todos, mas
as categorias “variação” e “perversão” da a própria construção da cidadania produz
cidadania, que no caso brasileiro se unem cidadãos de classes diferenciadas, mulheres,
N
r t í s t i c o
às práticas de poder, hierarquia e relações idosos, gestantes entre outros. Destaco
sociais. Por isso, o antropólogo desconfia duas ideias centrais do estudo de Holston
A
de uma cidadania universal (ibid.:85): “será que me parecem úteis para correlacionar
e
que podemos falar de uma só concepção com o tema do patrimônio cultural. Para
i s t ó r i c o
de cidadania como forma hegemônica ele a agência dos cidadãos investigados no
de participação política, ou temos que Brasil não é apenas a de resistência, ela
H
necessariamente discutir a hipótese de uma se soma àquela que produz engajamento,
a t r i m ô n i o
sociedade com múltiplas formas e fontes persistência e inércia. Assim, os cidadãos
de cidadania, tanto quanto são as esferas mantêm ativamente o regime engajado da
M a n u e l Fe r r e i r a L i m a F i l h o
P
existentes em seu meio?”. E conclui: cidadania, assim como resistem a ele. O
d o
outro conceito é o de “insurgência” aplicada
e v i s t a
(...) há uma forma de cidadania universalista,
à cidadania. Em suas palavras, “insurgence
construída a partir de papéis modernos que se
R
ligam à operação de uma burocracia e de um describes a process that is an acting counter, a
mercado; e também outras formas de filiação à counterpolitics, that destabilizes the present
sociedade brasileira – outras formas de cidadania – and renders it fragile, desfamiliarizing the
que se constroem através dos espaços tipicamente coerence with which it usually presents itself
relacionais, dados a partir do espaço da “casa”. (Holston, 2009:34), cunhando o termo
Em outros termos, há uma nação brasileira que insurgent citizenship (cidadania insurgente).
opera fundada nos seus cidadãos, e uma sociedade
Apesar de James Holston pensar a
brasileira que funciona calcada nas mediações 117
cidadania informada pela conjuntura de
tradicionais (ibid.:93). (grifos nossos)
uma antropologia urbana localizada
Avançando sobre o tema da cidadania, e comparativa, me interessa aqui a
recorro à etnografia que James Holston conotação do termo insurgência,
realizou no Brasil, incluindo uma que alia engajamento mas também
perspectiva histórica, de maneira particular inércia e que, de alguma
no contexto urbano da cidade de São forma, se aproxima
Paulo. Para ele, o caso brasileiro combina daquilo que Antonio
a noção formal de cidadania baseada nos Arantes nominou de
princípios do Estado-nação com um caráter “inflexão cultural” e
mais substantivo marcado pela distribuição Renato Rosaldo, de
de direitos, significados, instituições e reforço ou subversão
práticas para certos cidadãos, ou seja, para da cidadania pelas
certas categorias de cidadãos. Em outras práticas e assertivas
palavras, haveria uma produção social da culturais. Marilena
Carol, menina, apesar de
mulher (Carol Grumble),
série Amazônia Negra,
Porto Velho (RO), 2015
Foto: Marcela Bonfim.
Cidadania patrimonial – da inclusão à negação do mito da nação
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
M a n u e l Fe r r e i r a L i m a F i l h o
P
d o
e v i s t a
R
Chauí alinha a cidadania como processo aplicação desse conceito, sem levar em conta
que conecta informação, fruição, produção as concepções e trajetórias histórico-culturais
120 e participação dos atores sociais e Roberto dos grupos sociais e étnicos que a vivenciam e
DaMatta, por sua vez, se utiliza das
suas agências4.
categorias variação e perversão para informar
Transporto essas considerações de teor
sobre uma subcidadania no caso brasileiro.
antropológico e de gestão para a recepção
Tais ponderações são, de alguma maneira,
por parte dos coletivos sociais com relação às
concorrentes por vias diferentes: estudo
de bairros de São Paulo; mapeamento
4. Os conceitos de ação e agência são correlacionados e de
etnográfico dos latinos nos Estados Unidos; tradição na ciências sociais. O debate tem explorado a relação
entre a estrutura e o agente, em outras palavras, a tensão entre
a organização de um livro sobre cidadania sociedade e indivíduo, com teorias que enfatizam a ordem social,
a estrutura, ou as dinâmicas dos agentes. Assim, contribuem
editada pelo órgão patrimonial estatal para esse debate as reflexões do interacionismo simbólico, o
pragmatismo, a fenomenologia e a noção de redes. Emirbayer
brasileiro (Iphan); a experiência de gestão e Miche associam ao fenômeno da agência os elementos
“interacional”, “projetivo” e o “prático-avaliativo” (Stones,
cultural enquanto política estadual e, por 2010:13-17). Na antropologia os escritos de Marilyn Strathern
fim, as variações do tema da cidadania no têm tido grande impacto, pois, diferente das teorias anteriores
que associa estrutura e sujeito, Strathern perspectivada pelos seus
Ato Comemorativo do
Carimbó como Patrimônio Brasil na perspectiva relacional entre a casa e estudos na Melanésia chama atenção para as teorias nativas da
Cultural, Belém (PA), 2015 agência em que o princípio relacional do sujeito são operados por
Foto: Pierre Azevedo. a rua. Não se pode pensar em cidadania, e na um decodificador nativo (Strathern, 2006).
políticas patrimoniais do Estado idealizadas território, tradição, parentesco, identidade,
a c i o n a l
Unesco, principalmente condizente com a como tombamento, registro e inventário e,
política de tombamento5 e de registro do por fim, enfeixadas por categorias nativas
patrimônio imaterial ou intangível . Nesse 6
como nós e “não nós”, objetos, mitos,
N
r t í s t i c o
sentido, insurgência, inércia, engajamento ritos, humanos e não humanos, parentes,
ou modulação cultural dão o tom do consanguíneos e afins, os chefes, os xamãs,
A
enfrentamento de tais grupos com essas os artistas, o corpo, a pintura, os jovens e
e
políticas de Estado-nação, particularmente na os velhos, os que sabem fazer, entre outros
i s t ó r i c o
América Latina, onde todos os países foram indexados por um sistema linguístico e
signatários da convenção da Unesco para o cultural próprios. Ou seja, o patrimônio está
H
registro dos bens imateriais. inserido no mito da nação e, por meio dele,
a t r i m ô n i o
Enquadrado o tema que quero retratar, pode-se almejar a cidadania cultural através
considero como cidadania patrimonial de modulações interculturais. Todavia, o
M a n u e l Fe r r e i r a L i m a F i l h o
P
a capacidade operativa dotada de alto patrimônio pode igualmente estar fora do
d o
poder de elasticidade de ação social por mito (o não patrimônio) e não legitimar
e v i s t a
parte de grupos sociais e étnicos, em suas o discurso da cultura nacional replicado
R
dimensões coletivas ou individualizadas pela hegemonia da nação, de acordo com
de construir estratégias de interação algumas produções da antropologia brasileira
(de adesão à resistência/negação) com a respeito da cultura nacional, como bem
as políticas patrimoniais, nos âmbitos escreveu Mônica Pechincha (2006:35). Qual
internacional, nacional ou local, a fim de seria o lugar do subalterno na representação
marcar preponderantemente um campo do patrimônio brasileiro, aquele que não
constitutivo identitário, pelo alinhamento se encaixa na excepcionalidade ou na
121
dos iguais ou pela radicalidade da diferença. relevância/representatividade do patrimônio?
Essa capacidade cognitiva e de agência se O reverso do patrimônio tem lugar na
utiliza da exploração de categorias cunhadas cidadania patrimonial, potencializando
no devir da construção epistêmica da a cidadania insurgente. Essa última
antropologia, tais como cultura, natureza, possibilidade não tem sido contemplada
pelos autores quando escrevem sobre o
5. A instituição do regimentro jurídico do tombamento, tendo patrimônio. Ora, a análise do patrimônio
como referência a noção de excepcionalidade, se deu no Brasil
por meio do Decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937. distanciada do mito da nação só é possível
O decreto determina que os bens culturais devem ser inscritos
em quatro Livros do Tombo: Livro do Tombo Arqueológico, se consideramos o conflito ou a insurgência
Etnográfico e Paisagístico; Livro do Tombo Histórico; Livro do
Tombo das Belas Artes e Livro do Tombo das Artes Aplicadas. colada também ao conceito de cidadania.
6. O Decreto nº 3.551, de 4 de agosto de 2000, instituiu o Dessa forma, a ação patrimonial movida
registro de bens culturais de natureza imaterial como componente
do patrimônio cultural brasileiro, tendo como referência a noção pelos atores sociais desenha uma escala
de relevância. O decreto determina que os bens imateriais devem cuja mensuração vai do mito da nação à
ser inscritos nos seguintes livros: Livro de Registro de Saberes,
Livro de Registro de Celebrações, Livro de Registro de Formas sua resistência/negação assumida por atores
de Expresão e o Livro de Registro de lugares. O mesmo decreto
criou o programa nacional de patrimônio imaterial. sociais que politicamente se situam nas
margens, nas fraturas e clivagens, ou seja, em (...) “nativos” dos quatro cantos do planeta
Cidadania patrimonial – da inclusão à negação do mito da nação
direção a uma ideia de antimito da nação. 7 apropriam-se da categoria [cultura] para, em nome
do valor de sua própria “cultura”, defender seus
a c i o n a l
observador (...).
e v i s t a
Comunidade Wajãpi do
123
124
M a n u e l Fe r r e i r a L i m a F i l h o Cidadania patrimonial – da inclusão à negação do mito da nação
ciranda de refazendas culturais que demarcam (2006:62), Roberto DaMatta, em sua inter-
a c i o n a l
uma identidade narrativa mítica/histórica, deu lugar para a representação do Outro, não
intercultural. lhe deu voz, noto, contudo, que nos processos
Assim, de um lado encontra-se a patrimoniais de registro de referências cultu-
N
r t í s t i c o
cartografia weberiana da esfera econômica rais os grupos sociais de alguma maneira têm
alertando para uma dimensão ocidentalizada assumido um tópos na conjuntura relacional
A
totalizadora do patrimônio com uso com as políticas do Estado.
e
semântico/ideológico da categoria diversidade Daí porque a noção de insurgência
i s t ó r i c o
impregnada de colonialismos e aquilo que colada à cidadania poder ajudar a pensar o
José Jorge de Carvalho (2004:7) chamou de jogo do patrimônio ou a “arma da cultura”,
H
“impunidade estética“: ou “cultura com aspas”, como preferiu
a t r i m ô n i o
Manuela Carneiro da Cunha (2009) na práxis
Enquanto um coreógrafo do eixo Rio-São
intercultural. Então, temos a configuração de
Paulo pode “antropofagicamente” apropriar-se
M a n u e l Fe r r e i r a L i m a F i l h o
P
de um determinado saber performático de um
uma operacionalidade intercultural acionada
d o
tambor-de-crioula do Maranhão, por exemplo, por um habitus nativo, uma alteridade
e v i s t a
nenhum artista desse tambor-de-crioula pode mais ou menos próxima de nós, misturada
ou distanciada, mas em interação factual.
R
exercer esse mesmo canibalismo cultural sobre
um grupo de dança “erudita” que se apresenta no Dessa maneira, o patrimônio é útil para
Teatro Municipal do Rio de Janeiro. (...) O lema os indígenas tanto quanto o português, a
antropofágico funciona, na prática, como uma escola não indígena, os museus e a vereança,
espécie de código secreto da impunidade estética e
no jogo de poder intercultural ou não. A
da manutenção de privilégios da classe dominante
boneca karajá8 pode e deve ir para o museu
brasileira. Nessa antropofagia (obviamente de
e sua patrimonialização pode incrementar
mão única), duas classes interligadas celebram,
125
mediante símbolos por elas mesmas ditos o empoderamento das mulheres e arranjos
nacionais, seus privilégios diante dos artistas das domésticos num grupo étnico fortemente
comunidades indígenas e afro-brasileiras: a classe marcado pela dimensão do gênero, mas as
que se sentiu tão impune a ponto de poder realizar máscaras de Aruanã devem ser queimadas,
essa sempre celebrada síntese cultural modernista portanto, não é coleção nativa, é fabricação
(os tais empréstimos culturais que, com o passar para usos rituais circunstanciados pelo
do tempo, se tornam roubo) e a classe (que é sua princípio da cultura. Se estiverem nos
continuação histórica) que agora propõe e executa
museus, as máscaras de Aruanã tornam-se
os inventários do patrimônio cultural imaterial
exemplos da prática colonialista, antiética, Madona Negra (Carol
brasileiro (...)..(grifo nosso) Grumble), série Amazônia
violenta, qualquer que tenha sido o nível Negra, Porto Velho (RO),
2015
Mas penso também que o Outro, alvo da de interação entre os Karajá, os viajantes, Foto: Marcela Bonfim.
dispostos a jogar. Caso contrário, o fora e dentro das políticas oficias do registro
patrimônio será refratado pelos grupos do patrimônio imaterial brasileiro, a fim
sociais. Essa capacidade de refração ou de de tornar visível a conotação do que tenho
N
r t í s t i c o
opção até onde deve seguir o jogo patrimonial chamado modulação e a sua conexão com o
é mais uma característica da maleabilidade da conceito de cidadania patrimonial.
A
jogo identitário, no sentido de “(...) ativar dimensões racionais e irracionais (no campo
d o
M a n u e l Fe r r e i r a L i m a F i l h o
P
d o
e v i s t a
R
A noção de modulação que acoplo ao ser do Brasil, então estava tudo bem. Ora, a
conceito de cidadania patrimonial permite história dos Karajá, dessa aldeia em particular,
a resposta desse rompimento inercial de está diretamente relacionada com o plano 127
acordo com a biografia pessoal/coletiva do(s) governamental da Marcha para o Oeste, ten-
ator(es) alvo das políticas patrimoniais. do recebido as visitas dos presidentes Getúlio
Biografia atravessada pelas dimensões Vargas, em 1940, e Juscelino Kubitschek, em
históricas, econômicas, políticas, de gênero, 1960 (Lima Filho, 2001). A modulação, no
de raça, de classe e de identidade social. Daí caso das bonecas de cerâmica, foi o prestígio
a modulação. da nação; o passado deu sentido ao presente
Posso começar com dois exemplos distin- (Lima Filho, 2015). Mas, de modo diferente,
tos de modulação inerente à cidadania patri- quando algum tempo depois um jovem da
monial. Quando levei a proposta aos Karajá liderança da mesma aldeia viu no site do Mu-
da aldeia de Santa Isabel do Morro, na Casa seu Nacional uma fotografia de uma máscara
dos Homens, de se obter o registro das bone- de Aruanã, me avisou aborrecido que entraria
cas karajá (ritxòkò) como patrimônio cultural com uma representação no Ministério Públi-
brasileiro, um homem presente na reunião co Federal contra o Museu Nacional, pois as Carimbó, rio Tapajós,
Alter do Chão (PA), 2015
defendeu a ideia, alegando que, se era para máscaras não podem ser expostas às mulheres Foto: Pierre Azevedo.
por princípios culturais rígidos dos Karajá. Recorro agora aos primeiros passos do
Cidadania patrimonial – da inclusão à negação do mito da nação
Aqui o mesmo grupo usou o artifício da na- Estado brasileiro na instalação da política do
a c i o n a l
diferenciadas com as políticas patrimoniais, ritual dos povos indígenas do alto rio Xingu
via cidadania patrimonial. Seguindo o mesmo (Agostinho, 1974), que não aceitaram a
A
um jovem estudante tapirapé de uma aldeia aos Wajãpi do Amapá, que tiveram a sua
i s t ó r i c o
tupi do Mato Grosso, que cursava uma licen- Arte Kusiwa – Pintura Corporal e Arte
ciatura intercultural da Universidade Federal Gráfica inscrita no Livro de Registro das
H
de Goiás, de que ali estava para aprender Formas de Expressão, no ano de 2002
a t r i m ô n i o
apenas o que lhe interessava aplicar em sua e, no ano seguinte, recebeu da Unesco o
comunidade, o resto não lhe interessava. título de Patrimônio Cultural Imaterial da
M a n u e l Fe r r e i r a L i m a F i l h o
P
a c i o n a l
história das aldeias, à cosmologia, aos rituais (...) muito mais complexo de procedimentos.
(Gallois, 2006:69 e 70).
N
O exercício da cidadania patrimonial nos
r t í s t i c o
Nota-se que os primeiros movimentos primeiros casos de registro do patrimônio
das ações patrimoniais desenham uma imaterial no Brasil já apresenta a característica
A
trajetória que se move do polo da negação da modulação. Modulação que pode ser ob-
e
i s t ó r i c o
(povo do Xingu) para o polo a favor, servada de maneira apropriada quando apro-
protagonizado pelo Conselho das Aldeias ximamos a lente de aumento nas clivagens
Wajãpi/Apina. Contudo, mesmo com
H
dos grupos e suas particularidades diante das
a t r i m ô n i o
a adesão dos Wajãpi ao propósito das políticas públicas do patrimônio. Reporto-me
políticas do patrimônio brasileiro, e depois aos dois primeiros casos de registro do patri-
do patrimônio mundial da Unesco, cabe mônio imaterial brasileiro que tiveram em
M a n u e l Fe r r e i r a L i m a F i l h o
P
d o
prestar atenção na reflexão da antropóloga comum a questão do conflito no contexto da
e v i s t a
Dominique Gallois (ibid.:72) sobre a aplicação das políticas patrimoniais.
experiência do registro com povos indígenas: O primeiro registro foi o ofício das
R
A salvaguarda das tradições orais indígenas,
paneleiras de Goiabeiras (ES) no ano de
assim como das práticas que lhes são associadas, 2002. A Associação das Paneleiras, que já
é um campo novo para as políticas públicas, es- experimentava um grau de organização
pecialmente no Brasil. Em algumas comunidades particular caracterizada pelos arranjos
indígenas, estão sendo testadas estratégias que pro- familiares, tinha conseguido enfrentar
gramas supranacionais e órgãos nacionais procu- ameaças de perda do terreno de onde se
ram aprimorar com a colaboração de universidades 129
retirava o barro. As paneleiras acabaram
e de organizações não governamentais, formando
cedendo uma parte da área para a construção
um painel ainda frágil de experimentos muito
de uma estação de tratamento de água
diversos e, às vezes, contraditórios. As dificuldades
remetem, sobretudo, às condições disponibilizadas estadual. Também estavam vivendo tensões
para a proteção do patrimônio imaterial indígena, internas em sua organização política (Dias,
que flutuam em acordo com os contextos políticos 2006), quando tiveram a oportunidade de
e econômicos. Assim, a adequação das medidas de atuar no processo de obtenção do registro
proteção envolve, sempre, complexas negociações. de seu ofício como bem imaterial do
Quem são os agentes responsáveis pelo inventário patrimônio brasileiro e ocuparam a posição
dessas tradições culturais? Quem tem o poder de
de interlocutoras do Estado.
escolher entre uma ou outra tradição, entre uma
ou outra comunidade? O que se pretende preservar Durante o período em que Berenícia foi
numa tradição: as produções, o registro dessas pro- presidente da Associação das Paneleiras de
duções ou seus meios de expressão? Como engajar Goiabeiras – APG é que o grupo se consolidou
efetivamente uma comunidade na política de pre- no contexto político regional. Foi Berenícia,
servação? (...) os procedimentos de “conservação” como representante da Associação, que entregou
Cidadania patrimonial – da inclusão à negação do mito da nação
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
M a n u e l Fe r r e i r a L i m a F i l h o
P
d o
e v i s t a
R
a c i o n a l
Aquela que menos poderia representar o acarajé, prática, e que talvez possa ser extrapolado a outras
pelo fato de querer parecer loura, moderna e manifestações populares afrodescendentes. Na
N
pelo fato de ter uma crença contrária às raízes medida em que estas práticas há décadas vêm
r t í s t i c o
da iguaria, havia sido premiada justamente sendo apropriadas em discursos legitimadores
por causa do quitute, do qual sobrevivia e da identidade nacional e afro-brasileira
A
ao mesmo tempo se “desfazia”, na opinião simultaneamente, o impacto dos processos de
e
i s t ó r i c o
das outras baianas do acarajé. A maioria das registro deve ser sempre pensado e reavaliado. (...)
baianas, e outras pessoas (…) se lembravam da a complexidade se mostra quando percebemos que
indignação pelo fato de a loura ter arrebatado a formação da identidade nacional não pode mais
H
o prêmio. Depois deste episódio, a Abam, que ser vista como singular e estanque, de modo que
a t r i m ô n i o
estava em atividade desde 1992, inicialmente vem sendo percebida como múltipla e retomada
com objetivos relacionados aos benefícios da por novos atores de formas variadas, os quais vêm
se apropriando da cultura, a positivando, em busca
M a n u e l Fe r r e i r a L i m a F i l h o
previdência social para as vendedoras, reagiu
P
d o
institucionalmente à polêmica. Aliou-se a um de políticas de reparação e reconhecimento (Castro
e v i s t a
dos terreiros (…) tombados pelo Iphan, o Opô & Cid, 2016:197).
Afonjá, e ao CEAO (Centro de Estudos Afro-
Penso ter dado exemplos suficientes
R
Asiáticos) para fazer o pedido de registro do
acarajé, um produto representativo do ofício para demonstrar a elasticidade da atuação
das baianas de tabuleiro, no Livro de Registro dos grupos sociais e étnicos, quando
dos Saberes. O pedido foi realizado quase logo interagem com as políticas patrimoniais,
depois da instituição do registro, no ano de seja pela negação, como aconteceu com
2002, e parecia haver uma certa premência, não os Povos do Xingu, ou pela atuação em
só pela pontual indignação com o prêmio da disputas internas e em diálogo com os
loura evangélica, mas muito mais provavelmente 131
representantes do Estado-nação, como
por causa das constantes polêmicas cotidianas,
ocorreu com as paneleiras e baianas, seja
com os evangélicos abrindo precedência para
alargando a cidadania patrimonial para
outro tipo de comercialização do acarajé,
além das fronteiras da nação, como é o caso
desvinculada da tradição das mulheres (Martini,
da capoeira e dos Wajãpi. As experiências
2007:238-239).
patrimoniais já processadas e as em curso
Finalmente, relato um último exemplo de nos convidam a ter o cuidado epistêmico e
registro que diz respeito ao ofício dos mestres de prática, a fim de que possamos auscultar
de capoeira, tanto no âmbito do patrimônio as vozes da alteridade que imputam vários
brasileiro como na lista do patrimônio sentidos ao complexo jogo do patrimônio
mundial da Unesco, e a particularidade desse cultural. Tal como a noção de cultura, o
caso é que Angola passou a reivindicar essa patrimônio na perspectiva antropológica
referência cultural como igualmente do povo parece sempre escorregar entre nossas mãos.
angolano, ampliando desse modo a noção do Lidar com isso é o desafio permanente do
mito da nacionalidade. ofício do antropólogo.
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Cidadania patrimonial – da inclusão à negação do mito da nação
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133
Arte Kusiwa,
composição de Siro
Wajãpi, 2000
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
134
William César Lopes Domingues Patr imônio cultural indígena no médio Xingu:
entre a falta de identificação e a necessidade de reconhecimento
William César Lopes Domingues
a c i o n a l
P atrimônio cultural indígena no médio X ingu :
N
entre a falta de identificação e a necessidade de
r t í s t i c o
reconhecimento
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
Atualmente, vivem dez etnias indígenas pressupõe um partilhamento de concepções
na região do médio Xingu, com diferentes metafísicas, utilizo o conceito nativo da Ure
tempos de contato com os não indígenas. reka dos Asurini do Xingu para enfrentar um
P
São os Arara, Arara da Volta Grande do dos desafios da identificação de patrimônio.
d o
e v i s t a
Xingu, Araweté, Asurini do Xingu, Juruna, Clifford Geertz (1989) define cultura
Kayapó, Kuruaya, Parakanã, Xikrin do Bacajá como um sistema de concepções expressadas
R
e Xipaya, ocupando cerca de sessenta aldeias em formas simbólicas, por meio das quais
nas margens do rio Xingu e de seus afluentes os homens se comunicam e perpetuam
Iriri e Bacajá. Povos que, com línguas – desenvolvimentos, conhecimentos e atitudes
sejam nativas ou variações de uma língua que terão no decorrer de suas vidas. Para ele
de contato –, cosmogonias e cosmovisões a cultura não é algo que esteja apenas dentro
próprias, constituem intrincadas teias da cabeça de cada um, mas algo capaz de
internas, cheias de significados, a partir das criar uma rede de símbolos através dos quais 135
quais orientam suas vidas e dão sentido ao as pessoas de uma sociedade comunicam sua
mundo e a suas culturas. visão de mundo e orientam seus valores.
Para nós indígenas, nossas culturas são Dessa forma, é necessário pensar que cada
patrimônios imateriais vivos permeados de um desses dez povos possui as próprias teias
bens materiais delas oriundos, muitos dos de símbolos que, por sua vez, se entrelaçam
quais partilhados graças a uma complexa em redes maiores de sentidos, dando
rede de relacionamentos desenvolvida significado às interações historicamente
com outros povos indígenas, com quem mantidas – seja ocupando a mitologia e
também compartimos sentidos de vida. Daí as histórias dos outros, seja partilhando
nos reconhecermos e nos denominarmos territórios de caça e pesca, realizando trocas
como parentes nos novos campos de amigáveis ou fornecendo inimigos para o
interação que criamos, sobretudo no seio exercício da guerra. Como demonstrado
do movimento indígena. A partir dessa rede por Florestan Fernandes (2006) em relação Menina kayapó, aldeia
Mojkarakó, Pará, 2016
de relacionamentos no médio Xingu, que aos Tupinambá, cada interação possui Foto: Renato Soares.
uma função social definida dentro dessas tangível, sólido, de propriedade. A
Patr imônio cultural indígena no médio Xingu:
entre a falta de identificação e a necessidade de reconhecimento
esses povos, deles com os não indígenas e temos outras epistemologias, as dificuldades
e
também com o que os ocidentais chamam de são maiores. Além disso, ainda é preciso
i s t ó r i c o
meio ambiente. Para nós, o meio ambiente considerar que a materialidade, enquanto
também é essencialmente humano, pois com patrimônio, nem sempre é considerada para
William César Lopes Domingues
H
Essa conformação exige novos olhares que indígenas. É possível que, dada a sua não
considerem outras epistemologias para a perenidade, esse patrimônio, que é material,
P
identificação e reconhecimento dos bens que acabe tendo seu reconhecimento empurrado
d o
compõem seu patrimônio, a fim de que sejam para o campo da imaterialidade, do saber
e v i s t a
que se trate de outra tawiwe. Ela é e sempre nova dificuldade para o reconhecimento de
será a mesma. um patrimônio como sendo bem imaterial de
Embora a tawiwe, enquanto bem material, determinado povo.
possa se constituir num exemplo clássico de Inicialmente, as ações de mapeamento,
bem imaterial, por conta do domínio das identificação e reconhecimento do patrimô-
técnicas e materiais que sua construção e nio cultural estavam voltadas para as regiões
reconstrução periódica implicam, ela não é que foram ocupadas há mais tempo pela
exclusiva dessa etnia. Vários outros povos colonização europeia, sobretudo as regiões
indígenas possuem construções desse tipo Nordeste e Sudeste do país. Isso se explica
que ocupam funções semelhantes nas suas justamente porque as ações de identificação,
culturas, o que traz a questão de que as reconhecimento e tombamento de patrimô-
culturas dos povos indígenas, como quaisquer nio cultural eram preferencialmente voltadas Ritual Metora, com cantos
e simulação de luta entre
outras, não são estáticas e muito menos para o patrimônio material, oriundo da he- homens e mulheres. Aldeia
Mojkarakó, Pará, 2016
autênticas. São, antes, o fruto das interações rança cultural europeia. Foto: Renato Soares.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
138
William César Lopes Domingues Patr imônio cultural indígena no médio Xingu:
entre a falta de identificação e a necessidade de reconhecimento
William César Lopes Domingues Patr imônio cultural indígena no médio Xingu:
entre a falta de identificação e a necessidade de reconhecimento
Patr imônio cultural indígena no médio Xingu:
entre a falta de identificação e a necessidade de reconhecimento
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
a c i o n a l
O rito do Ieipari entre os Arara é marcado conhecimentos aos mais jovens, que têm
pela presença do poste cerimonial de mesmo preferido a televisão, as bebidas e os festejos
nome, que articula um universo de sentidos de seus vizinhos na região à realização das
N
r t í s t i c o
do seu povo a partir de uma diversidade festas de seu próprio povo. Antes mesmo de
de padrões éticos e morais encarnados pe- identificado, esse patrimônio corre o risco
A
los participantes do ritual. De acordo com de desaparecer, por isso, o reconhecimento
e
Teixeira-Pinto (1997), o Ieipari é um ritual como patrimônio pode ser fundamental para
i s t ó r i c o
de complexa organização, com etapas e mo- a sua manutenção.
mentos diversos que transcendem o rito em Os Parakanã possuem, entre tantas
a t r i m ô n i o
momentos diferentes. Juntos, no entanto, rituais –, a Festa das Tabocas, que, segundo
formam o complexo ritualístico em torno do Fausto (2001), tematiza fundamentalmente
P
poste cerimonial, onde o povo se ajunta para as relações entre homens e mulheres. As
d o
cantar, dançar, tocar flautas de bambu e par- tabocas são trazidas para a aldeia e com elas
e v i s t a
tilhar a comida oriunda das caçadas coletivas são confeccionadas flautas. Mas estas devem
R
realizadas para esse fim e a bebida fermentada ser feitas no mesmo dia em que são trazidas,
produzida em grande quantidade. senão isso pode causar febre nas crianças. As
As bebidas oferecidas na festa têm uma flautas são feitas e os homens que as tocam
função importante de acordo com sua passam a ensaiar durante vários dias. A flauta
origem, pois podem ser feitas a partir de maior e mais grave é chamada towohoa e
diversos vegetais. Para os Arara, todos os seres representa o grande pai. Ela marca o ritmo
do cosmo possuem um princípio vital e os das músicas, sendo seguida por flautas
141
vegetais, por estarem em contato mais direto menores e de som mais agudo, simbolizando
com a terra, absorvem dela o princípio vital suas esposas e filhos. Para a festa todos
dos animais mortos. Por esse motivo, a bebida devem fazer mingau de macaxeira, que será
fermentada feita com macaxeira, de nome misturado com mel. Quem faz o mingau
piktu, é a mais apreciada. É que o crescimento não deve consumir o seu produto, mas
desse tubérculo ocorre no interior da terra, oferecê-lo e consumir o que é ofertado pelos
permitindo-lhe, portanto, assimilar uma outros participantes.
maior quantidade de princípio vital. Após a primeira sessão musical, o mingau
O advento da televisão, a construção da é oferecido. Depois, retoma-se a música, com
hidrelétrica de Belo Monte e o grande fluxo todos formando um semicírculo ao redor
de pessoas nas aldeias, em decorrência dos do towohoa. Nesse momento, os homens
impactos dessa construção, têm colocado puxam as mulheres e lhes passam as mãos
em risco a continuidade da realização desse sobre os ombros para que dancem com
complexo ritualístico. Os mais velhos, que eles até o amanhecer, sendo interditado aos
detêm o conhecimento a respeito dessa maridos que escolham suas próprias esposas.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
142
William César Lopes Domingues Patr imônio cultural indígena no médio Xingu:
entre a falta de identificação e a necessidade de reconhecimento
As músicas têm temas relacionados a animais Os Xikrin, povo Jê que ocupa as margens
a c i o n a l
A festa ocorre sempre à noite e tem múl- ritualística. Entre seus muitos rituais, se
tiplos sentidos relacionados com a família destacam os de nominação e de iniciação.
nuclear, com a associação metafísica com os Nos rituais de nominação, as crianças
N
r t í s t i c o
animais caçados pelos homens e marca a coe- recebem os nomes que os acompanharão no
são de relações de afinidade com as mulheres decorrer de suas vidas. Entre os Xikrin, os
A
de outros núcleos familiares e a reciprocidade nomes são possessões e o direito de usar um
e
entre todos, a partir da distribuição do min- nome é determinado por herança e regulado
i s t ó r i c o
gau com mel feito para esse fim específico. pelos rituais de nominação. Já os rituais de
A afinidade dos homens com as mulheres de iniciação marcam a mudança de categorias
a t r i m ô n i o
sexual. Eles dirigem suas ações para as mulhe- os iniciados devem compor e em torno dos
res, que, mesmo tentando escapar, terminam quais se organiza toda a sociedade Xikrin. A
P
sempre pegas para dançar, sem que isso impli- realização desses rituais envolve o domínio
d o
que em confronto interno entre os homens. de músicas e histórias apenas compartilhadas
e v i s t a
Já a Festa do Cigarro, ou Opetymo, ocorre durante o período de realização das festas e
R
durante o dia e tematiza fundamentalmente envolve também o domínio de intrincados
as relações dos homens uns com os outros, sistemas de grafismo, que são pintados pelas
celebra as tradições da guerra e da caça. A mulheres sobre a pele de todos.
participação feminina é vedada, somente os A necessidade de estudos que viabilizem
homens partilham os cantos entoados na a identificação e o reconhecimento desses
preparação da festa e no dia do ritual. Saem importantes bens patrimoniais é realmente
de cena as flautas e entram as vozes masculi- considerável se levarmos em conta o
143
nas, sai o mingau com mel e entra o opetymo, desmonte pelo qual o serviço público
o cigarro confeccionado com tauari e tabaco, brasileiro tem passado nos últimos anos, com
que tem cerca de 7 centímetros de diâmetro, o encolhimento das ações sociais do Estado.
chegando até um metro de comprimento, a Mesmo que o risco de desaparecimento
ser compartilhado durante a festa não seja tão grande nesse caso específico, a
Em comum com o Ieipari dos Arara, importância e a centralidade dessas práticas
além da importância cultural, as festas para a sociedade Xikrin comprovam a
dos Parakanã também sofrem o risco de relevância de seu reconhecimento como
desaparecimento. As pressões do contato patrimônio imaterial.
com os não indígenas e todo o fetiche Entre os Araweté também existem
e atração que as “mercadorias brancas” inúmeros etnoconhecimentos que redundam
exercem têm ameaçado a continuidade em patrimônios importantes, ainda que essa
dessas manifestações culturais, antes mesmo noção seja desconhecida pelo próprio povo.
que sejam identificadas como patrimônio Podemos destacar, entre as muitas realizações Menina kayapó, aldeia
Mojkarakó, Pará, 2015
imaterial que são por excelência. culturais desse povo, a Festa do Kan, ou do Foto: Renato Soares.
Jabuti, uma grande cauinagem. Durante aldeias, funcionando como mecanismo de
Patr imônio cultural indígena no médio Xingu:
entre a falta de identificação e a necessidade de reconhecimento
vários dias as mulheres de determinado grupo facilitação das relações exteriores com os
a c i o n a l
dias o milho já fermentado é servido aos tante patrimônio que precisa ser identifica-
vizinhos e convidados, no final da tarde, e o do e reconhecido como tal pela sociedade
A
líquido é separado para continuar o processo não indígena, ensejando a proteção de suas
e
que haja uma quantidade considerada boa de caça e de plantio de roças de milho. Só
de mingau para oferecer durante a festa. assim será garantida a realização da festa,
William César Lopes Domingues
H
Só então o dia de sua realização pode ser uma vez que sem jabutis e sem milho não é
a t r i m ô n i o
escarificação servirá de pagamento pelo romper do dia eles devem se dirigir à mata
sangue dos inimigos derramado nas caçadas e para o encerramento do ritual, que envolve
nas guerras. Isso serve para mediar as relações técnicas próprias de sobrevivência e de serviço 145
Flautas entre os Asurini do Xingu é a espinha dentro das aldeias, para onde levam novos
a c i o n a l
dorsal a partir da qual a sua vida comunitária costumes, bebidas alcoólicas, música e
e cosmológica se molda. Funciona como distrações alheias ao cotidiano das aldeias.
fator aglutinador dos mundos físicos e Desse modo, cativam especialmente
N
r t í s t i c o
de tantos outros bens imateriais dos povos Isso tem provocado um esvaziamento em
e
indígenas da região, ainda não foi efetivado larga escala da participação dos jovens nas
i s t ó r i c o
nenhum esforço oficial para a identificação e realizações culturais de seus povos. Afinal, a
o reconhecimento desse patrimônio cultural partir da perspectiva desses agentes externos,
William César Lopes Domingues
H
O que intento ao relatar aqui realizações como feias, estranhas ou mera feitiçaria...
culturais de alguns dos povos indígenas da Essa é a barreira inicial a ser vencida
P
região do médio Xingu é demonstrar que para que os povos indígenas da região do
d o
bens do patrimônio imaterial que precisam que seja patrimônio. Depois, será preciso
de uma ação específica, somada a um romper a barreira linguística e cultural
R
a c i o n a l
em que esse patrimônio possa ser protegido, algo que certamente nos prejudicará depois.
contribuindo para a revitalização cultural Essa é uma dificuldade que terá de ser en-
e a emancipação social e política dos povos frentada por qualquer programa voltado para
Nr t í s t i c o
indígenas do médio Xingu. a identificação e reconhecimento do patrimô-
Propositalmente, não citei aqui nada nio entre nosso povo.
A
relacionado ao conhecimento detido pelos A associação da cultura das elites ao
e
pajés, os segredos e mistérios que conformam patrimônio material e das culturas dos povos
i s t ó r i c o
nossas vidas metafísicas, justamente porque, indígenas ao imaterial, por si só, merece uma
embora possam ser considerados como reflexão profunda. É evidente que tanto a
a t r i m ô n i o
por seres de outras esferas do universo que e populares possuem dimensões materiais e
se encontram em contato com os pajés e imateriais. A pressuposta pobreza material
P
outros detentores desses conhecimentos. que se atribui ao patrimônio dos povos
d o
Os pajés dominam tal conhecimento, mas, indígenas e das camadas populares evidencia
e v i s t a
não se consideram, e de fato não são, os um certo preconceito, alicerçado no uso
R
donos desses saberes. Eles são adquiridos de determinados tipos de material e na sua
nas relações que mantêm nas diversas durabilidade, como já disse anteriormente.
esferas metafísicas do cosmos e não podem Embora o Decreto no 3.551/2000
ser identificados por quem não tenha sido inove em relação ao reconhecimento da
escolhido para esse fim. importância da imaterialidade do patrimônio
As festas que elenquei, embora possuam cultural, ele não deve ser usado como
aspectos que pertencem a essas esferas, têm justificativa para o não reconhecimento
147
uma função e a participação social de todos dos bens patrimoniais materiais dos povos
os membros da comunidade é definida. São indígenas, a despeito das matérias-primas
fruto de conhecimentos partilhados entre utilizadas em sua confecção.
todos, indistintamente, ou com as interdições O patrimônio cultural dos povos
previstas para cada um, que no caso passa indígenas do médio Xingu não é só
a desenvolver um outro papel já previsto. imaterial. Assim como o de todos os povos
Esse, definitivamente, não é o caso dos indígenas do país, ele é também material e é
conhecimentos dos pajés, que são exclusivos preciso usar de sensibilidade para entender
deles ou de quem os seres metafísicos o que ousamos chamar de materialidade dos
indicam para guardá-los. trópicos úmidos. Ao mesmo tempo, deve
Por conta do processo de colonização ser intensificado o trabalho de educação
brutal a que nossos povos vêm sendo subme- patrimonial entre os povos indígenas. Esse Manihot. Aquarela de José
Joaquim Freire. Expedição
tidos desde a ocupação europeia, o interesse processo deve prover as condições necessárias Científica Alexandre
Rodrigues Ferreira
dos “brancos” pelos conhecimentos tradi- para que as comunidades indígenas exerçam (1783 a 1792)
Acervo: Fundação Biblioteca
cionais é geralmente visto com desconfiança o direito, que, aliás, é a espinha dorsal do Nacional, Brasil.
decreto, de eles próprios identificarem povo brasileiro, fomos relegados ao passado,
Patr imônio cultural indígena no médio Xingu:
entre a falta de identificação e a necessidade de reconhecimento
e reclamarem o reconhecimento de seu sem direito a futuro. Essa visão perdurou até
a c i o n a l
patrimônio material e imaterial, o que – meados do século 20, quiçá perdure ainda
com o que se tem hoje de informação – está hoje em muitos lugares.
vedado aos povos indígenas do A promulgação da Constituição Federal
N
r t í s t i c o
própria origem dos bens que temos hoje como o surgimento do multiculturalismo,
e
reconhecidos, todos eles frutos de uma que viabiliza a ideia de coexistência das
i s t ó r i c o
nacional. Talvez isso explique o atraso patrimônios culturais dos povos indígenas.
a t r i m ô n i o
do Brasil, como a de muitos outros países ou fadados a desaparecer para dar lugar
d o
a c i o n a l
qualidade e a cuidados sistemáticos de saúde, FAUSTO, Carlos. Inimigos fiéis. História, guerra e
xamanismo na Amazônia. São Paulo: Edusp, 2001.
tampouco os preparou para viver de forma
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. São
autônoma, prescindindo da intermediação
N
Paulo: LTC, 1989.
r t í s t i c o
tutelar. Os processos de educação escolar MÜLLER, Regina Polo. Os Asurini do Xingu. História e
bilíngues são relativamente recentes e apenas arte. Campinas: Editora da Unicamp. 1990.
A
há alguns anos os professores das aldeias SILVA, Fabíola Andréa; GORDON, Cesar (orgs.).
e
Xikrin. Uma coleção etnográfica. São Paulo: Edusp,
passaram a ser os próprios indígenas. É ainda
i s t ó r i c o
2011.
mais recente a oferta dos últimos anos da TEIXEIRA-PINTO, Márnio. Ieipari. Sacrifícios e vida
educação fundamental em regime modular. social entre os índios Arara. São Paulo: Editora Hucitec/
a t r i m ô n i o
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Araweté. Os deuses
deficitário de agentes indígenas conscientes
canibais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/Anpocs, 1986.
de seus direitos, capazes de fazer frente às
P
constantes pressões sobre seus territórios.
d o
A construção da usina hidrelétrica de
e v i s t a
Belo Monte, iniciada em 2010, é o ponto
culminante dessa pressão.
R
O baixo nível de escolarização, os
impactos do processo de construção da
hidrelétrica e toda a pressão territorial que
ela traz sobre os povos indígenas se somam
aos outros fatores que dificultam a esses
povos empreender ações de solicitação de
reconhecimento de bens de seu patrimônio 149
150
Larissa Maria de Almeida Guimarães Do barro ao patrimônio cultural imaterial em Roraima
Lar issa Mar ia de Almeida Guimarães
a c i o n a l
Do barro ao patrimônio cultural imaterial
R oraima
N
em
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
Falar de bem cultural, de patrimônio Constituem patrimônio cultural brasileiro os
imaterial, imediatamente nos remete tanto bens de natureza material e imaterial, tomados
a uma estrutura que define seus conceitos individualmente ou em conjunto, portadores
P
de referência à identidade, à ação, à memória
quanto aos atores e agentes que lhe atribuem
d o
dos diferentes grupos formadores da sociedade
e v i s t a
significação dentro de uma dimensão
brasileira, nos quais se incluem: I – as formas de
política e social. Pensar no patrimônio
expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III –
R
cultural imaterial quer dizer, portanto, as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV –
elencar critérios que, dentro de campos as obras, objetos, documentos, edificações e demais
específicos, possam construir narrativas para espaços destinados às manifestações artístico-
determinar os agentes, os atores sociais e os culturais; V – os conjuntos urbanos e sítios de
processos de seleção capazes de identificar valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico,
os bens culturais eleitos para carregar tais paleontológico, ecológico e científico.
elementos significativos. 151
Nesse sentido, o reconhecimento
Partindo de premissas institucionalizadas
incide em preservação e proteção. É que a
por organismos governamentais, em
preservação de certos elementos culturais
nível nacional e internacional, podemos
antecede à política preservacionista
dimensionar o recorte do patrimônio
estruturada por serviços governamentais. A
cultural e seus bens como:
arte de guardar e criar significações culturais
(...) tudo o que criamos, valorizamos e antecede mesmo a escrita, pois a tradição
queremos preservar: são os monumentos e obras oral já fazia o registro daquilo que deve e
de arte, e também festas, músicas e danças, os merece ser lembrado.
folguedos e as comidas, os saberes, fazeres e
O ato de proteção, enquanto
falares. Tudo enfim que produzimos com as
ordenamento jurídico e normativo, adveio no
mãos, as ideias e a fantasia (Fonseca, 2001b).
Brasil da Lei nº 378/1937 e do Decreto-lei nº
(grifo nosso) Comunidade indígena de
25/1937, em que a proteção significava a ação Manalai, etnia Ingarikó,
Terra Indígena Raposa
A Constituição Federal do Brasil de 1988 legítima do Estado em intervir no patrimônio Serra do Sol,
Uiramutã (RR), 2013
assim dispõe, em seu artigo 216: histórico e artístico (no caso, tombado), no Foto: Jorge Macedo.
sentido de preservar sua integridade física e ção dos atores diversos e a inserção de cada
Do barro ao patrimônio cultural imaterial em Roraima
forçoso reconhecer que essa imagem, produzida enfatizando que o autor reconhece “o caráter
pelos efeitos mais visíveis da política de patrimônio intencional ou consciente do comportamento
conduzida pelo Estado Brasileiro por mais de
P
a c i o n a l
estritas de dominação e subordinação, mas a a “força consagradora dos instrumentos legais
de proteção por parte dos Estados-Nações”
partir das noções de pessoas e potencialidades
N
(Abreu apud Barrio et al, 2010:65). Como
em frente às motivações e como os efeitos
r t í s t i c o
criar uma legislação que atenda aos interesses
sociais se apresentam.
coletivos de grupos e comunidades locais
Nesse sentido, como a construção
A
em processo de circulação? São questões que
e
de memórias e a preservação de um dito
i s t ó r i c o
permeiam o patrimônio, enquanto campo de
“patrimônio” podem ser desconectados interesses contraditórios.
das estruturas de poder que permeiam essa O foco principal deste artigo não são as
H
a t r i m ô n i o
políticas públicas em si, mas os meandros que
relação? As práticas discursivas da preservação
P
potencialidade da perda e do esquecimento
bre objetos e pessoas que se tornam “bens” e
d o
(Pollak, 1989), obliterando a possibilidade como esses bens se reconfiguram na constru-
e v i s t a
das práticas discursivas enquanto constructos ção de uma identidade cultural de base local,
R
de novas memórias e interpretações em representativa de uma “cultura roraimense”.
torno do vivido e do lembrado, “semeando Em Roraima, a lei2 que dispõe sobre
memórias e esquecimentos, preservações e a preservação e proteção do patrimônio
cultural do estado é recente. Publicada em 7
destruições” (Chagas, 2005:3).
de julho de 2009, reconhece, em seu artigo
O patrimônio pode e deve ser pensado
1º, como patrimônio cultural do estado,
como um espaço simbólico de construção entre outros bens: I - as formas de expressão, 153
de práticas sociais diversas, em que relações II – os modos de criar, fazer e viver; VI – a
complexas são estabelecidas pelos agentes cultura indígena tomada isoladamente e
envolvidos, que percebem os campos sociais em conjunto, e VII – as paisagens culturais.
enquanto “campos possíveis de práticas Entretanto, o texto da lei não chega a
154
Larissa Maria de Almeida Guimarães Do barro ao patrimônio cultural imaterial em Roraima
Foto: Renato Soares.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
e, no parágrafo único do artigo 3º, sintetiza a diferentes e uma característica peculiar que
consiste em ser o estado brasileiro com o maior
a c i o n a l
A legislação municipal de Boa Vista, Rio Branco e nos últimos 25 anos foram mais
por meio da Lei n° 1.427, de 15 de junho intensas ainda. A explicação para essa explosão no
A
de 2012, de iniciativa do Poder Executivo, crescimento foi dada por dois fatores:
e
organiza a proteção do Patrimônio Cultural e 174 ligando Manaus a Boa Vista e Boa Vista a
Museológico do município, regulamentando Pacaraima;
H
Um ano antes, a Prefeitura de Boa Vista, As etnias mais conhecidas são as Macuxi,
d o
as técnicas necessárias para alcançar os construção mais elaborada nos detalhes do artefato
é o contato com culturas distintas. É possível que
a c i o n a l
as artesãs macuxi (também referidas como etnia Macuxi e a sociedade regional não-índia
“índias” no decorrer do texto), tornam-se em Roraima. A partir do processo de assimilação
A
secundárias diante do efeito estético que entre as diferentes culturas, as índias passaram a
e
i s t ó r i c o
simples e não possuíam tampas. Hoje as artesãs Com o maior enfoque nas panelas de
e v i s t a
inovaram nas formas, elas estão reproduzindo e barro macuxi, torna-se perceptível, tanto em
também criando objetos diferentes e variados. reportagens como em documentos oficias
R
Uma das hipóteses imaginadas para as que elencam os bens culturais do município
158
A reportagem “Panela de barro produzi- 6. Neste artigo, não serão citados nomes, podendo os mesmos se-
rem consultados nas respectivas matérias jornalísticas disponíveis
da em Roraima vai parar na Europa e Esta- em sítios eletrônicos.
Era tempo de demarcação da Terra Indígena para representar a eleição de um emblema
a c i o n a l
do pós-guerra, e observar o “macuxi” ser
Praça das Águas. Falavam: ”ela é índia, ela é índia”. paulatinamente fragmentado do “indígena
macuxi” para se tornar um novo elemento
N
r t í s t i c o
A lista de bens culturais imateriais re- identitário de uma cultura com herança
gistrados pelo Iphan é composta por bens indígena, com o reconhecimento identitário
que, em sua grande maioria, foram alvo de
A
não étnico. A panela de barro pode ser
e
repressões de cunho moral institucionaliza- um dos poucos recursos materiais que se
i s t ó r i c o
das por longos anos ou subalternizados por tornam bem cultural, especialmente pela
certos setores sociais, que as classificam como sua materialidade. Nesse caso o “saber-
H
“cultura popular”. A questão do preconceito fazer” toma o lugar do “saber-fazendo”,
a t r i m ô n i o
P
via para questionar padrões hegemônicos e romantizado e singularizado em personagens
d o
eurocêntricos, isto é, são processos de revisão alegóricos, ao mesmo tempo em que os
e v i s t a
do conceito de “cultura”, em que se admite processos de resistência por parte de seus
a existência da diversidade cultural, abrindo
R
detentores são evidentes e se realizam através
portas para identificar narrativas de diferentes do agenciamento do “sabendo-fazer”.
sujeitos sociais e históricos, antes silenciados e Reconhecer esse movimento é de suma
relegados aos poucos espaços de representação importância para compreender as dinâmicas
a eles destinados por agentes externos. pelas quais os bens culturais passam, em que
a materialidade do bem imaterial pode muitas
Os dilemas da identificação residem
vezes ofuscar ou suplantar a imaterialidade
no fato de reconhecer os elementos que 161
de fato. A dinâmica da identificação, ao
constituem os processos de seleção de bens,
realizar a seleção, redimensiona os sujeitos em
quem os fornece e realiza, quais são os atores
torno dos fins, do bem cultural que pode ser
e agentes envolvidos e na maneira como
representado pela materialidade, enquanto
essas relações são intercambiáveis. Sobretudo
forma indubitável de comprovação desse
quando vemos que o campo de políticas
“sabendo-fazer”.
públicas está cada vez menos restrito às mãos
Desse modo, a monumentalização
do Estado e conta com a participação
não implicou apenas a eleição
direta da população, reconhecida
de marcos materiais que se
enquanto sociedade civil
tornariam símbolos de
organizada.
histórias politicamente
No caso da panela de
situadas do lado do
barro macuxi, situamos
dominador, mas
a discussão em torno
construções de
desse bem “iconizado” Cesto ye’kuana, Roraima
narrativas históricas Foto: Jorge Macedo.
Do barro ao patrimônio cultural imaterial em Roraima
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
a c i o n a l
o suficiente para ser sustentada na ponta barro até seu transporte depois de pronta,
do dedo, não é obviamente um utensílio de incluindo a realização de rituais para saber
uso doméstico, mas uma representação do quem pode produzi-la ou obter a permissão
N
r t í s t i c o
artefato. Transformada em objeto lúdico, para a retirada do barro7.
fica evidente que, na prática circunstanciada, A qualificação de “útil” ou “prática”
A
os valores se multiplicam, extravasando a não condiz com muitas das expectativas em
e
finalidade utilitária consciente para a qual a torno da panela, assim como as dinâmicas
i s t ó r i c o
panela foi fabricada, qual seja, a preparação pelas quais as artesãs da cerâmica macuxi
de alimentos. passaram a produzi-la, ultrapassando
H
Nesse ponto, vale trazer à discussão as seu uso tradicional, preestabelecido. Há
a t r i m ô n i o
P
de problemáticas persistentes nos campos mas de outros modelos como travessas,
d o
epistêmicos. Em seu artigo Patrimônio imate- petisqueira, potes, bem como a inserção da
e v i s t a
rial: problema mal-posto, o autor pontua que cerâmica para uso doméstico e decorativo,
bastante representativo de um modo de fazer
R
(...) os bens usados na cultura popular são,
roraimense e de um relevante traço cultural
primordialmente, utilitários; podem ser até de
grande beleza, mas a sua principal função é ser útil da região.
e prática, e os objetos não são feitos para durar Durante os preparativos das Olimpíadas
além do período em que serão usados. (...) os de 2016, a passagem da Tocha Olímpica
bens da elite são feitos para perdurar, para servir por Boa Vista representou um momento
de suporte de memória dessas próprias elites, de destaque da cultura local, com maior
enquanto as evidências materiais produzidas enfoque no artesanato (panela de barro) e na 163
pela população em geral não têm essa lógica de
gastronomia (paçoca). Para receber o Comitê
longevidade (Homero, 2006:106/7).
Olímpico Brasileiro – COB, a Prefeitura
Não nos interessa neste momento Municipal de Boa Vista encomendou cem
questionar o conceito de cultura popular,
mas sim contextualizá-lo ao nível da
7. “O barro que dá origem às panelas se chama ‘vovó barro’ e é
construção de um bem cultural, a partir de extraído das serras que circundam a aldeia, ao norte. Portanto,
não é qualquer barro. Para identificar a ‘vovó’, as mulheres
diferentes perspectivas êmicas que incidem extraem um pouco do mesmo e o amassam com as mãos para ver
em negociações de agenciamentos. Às ideias se ‘dá a liga’. No passado, somente as ’velhas’ faziam as panelas;
’trabalhar no barro’ era interdito às mulheres jovens, aos homens
de utilidade e praticidade, estão imbricados e às crianças. Era uma atividade perigosa que somente aquelas
que dominavam o conhecimento sobre a ’vovó’ podiam realizar.
conceitos de materialidade e temporalidade As mulheres faziam incursões às serras para extrair a ‘vovó’, obser-
vando rituais que começavam por colocar oferendas no lugar que
que mais dizem respeito às construções iria ser cavado para a extração do barro, como pedaços de tecido,
conceituais ocidentais e colonialistas. A tabaco ou pedaços de peixe assado. Em seguida, as mulheres
pediam permissão à ’vovó barro’, dizendo: ’Vovó, eu vim aqui te
qualidade da panela de barro se verifica buscar, para gente ir comer peixe, veado, pra nós tomar caxiri’
[bebida fermentada feita pelos Macuxi a partir da mandioca]”
efetivamente pela manutenção de sua (Cavalcante, 2008:11).
“panelinhas” de barro, tidas como “uma peça Na matéria jornalística “10 itens da
Do barro ao patrimônio cultural imaterial em Roraima
muito bonita, um dos símbolos do nosso CULTURA roraimense que te provam que
a c i o n a l
estado que será divulgado para o mundo aqui há CULTURA”10, a panela de barro
inteiro”8, conforme a reportagem “Comitê macuxi (inî) figura no terceiro item, com
Olímpico Brasileiro (COB) terá degustação destaque para suas potencialidades culinárias.
N
r t í s t i c o
de iguaria regional”, que registrou, ainda:. O texto enfatiza que apenas os mais velhos
“fazem com presteza a legítima panela de
A escolha da panela de barro e da paçoca foi
A
seguida são polidas e queimadas a céu aberto. e aos agentes envolvidos na produção das
a t r i m ô n i o
a c i o n a l
limitações e amplitudes de quem constrói a
narrativa e os acontecimentos em torno do ______. Patrimônio Imaterial. Tempo Brasileiro, n. 147,
Rio de Janeiro, out-dez.2001b.
bem cultural.
N
r t í s t i c o
FUNDAÇÃO DE EDUCAÇÃO, TURISMO,
ESPORTE E CULTURA DE BOA VISTA – FETEC.
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A
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i s t ó r i c o
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DECRETO PRESIDENCIAL Nº 3.551, de 4 de agosto Projeto: Difusão e Ampliação da Política de Salvaguarda
de 2000. do Patrimônio Cultural Imaterial, Boa Vista/RR, 2015.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
166
Larissa Maria de Almeida Guimarães Do barro ao patrimônio cultural imaterial em Roraima
Foto: Jorge Macedo.
Monte Roraima, 2011
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
167
168
Fe r n a n d o M e s q u i t a Pilotis são palafitas: sobre ecologia da arquitetura e saberes que resistem na Amazônia marajoara
Fer nando Mesquita
a c i o n a l
P ilotis são palafitas : sobre ecologia da
A mazônia
N
arquitetura e saberes que resistem na
r t í s t i c o
marajoara 1
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
O Marajó e as Amazônias Uma primeira aproximação ao problema
foi a aplicabilidade dos instrumentos
[O Marajó] tende a nos seduzir a falar de uma já adotados na valoração e proteção de
P
beleza e de uma pureza soberanas conjuntos monumentais das metrópoles na
d o
que podem vir a mascarar as inúmeras tensões
e v i s t a
Amazônia, para o caso da preservação de
existentes neste lugar de lugares –
sítios de cidades ribeirinhas. O tombamento,
tensões entre as pessoas e a dita natureza
R
por exemplo, é, em sua gênese, um ato
e tensões entre as próprias pessoas que ali vivem.
administrativo voltado para bens de natureza
(Razeira, 2008:5) material ou artefatos tangíveis dotados de
valor cultural e significados. A preservação
Em pesquisa desenvolvida durante o de bens dessa natureza, conforme leitura
Mestrado Profissional do Iphan, busquei olhar preliminar do entendimento trazido pelo
a cidade de Afuá, no norte da Ilha do Marajó, Decreto-lei no 25/1937, requer parâmetros 169
no Pará, sob o prisma da produção dos mais clássicos aos campos teóricos da
espaços habitados e de bens culturais, com o arquitetura, urbanismo e restauro,
intuito de compreender se os instrumentos voltados, sobretudo, a certo desempenho e
de preservação do patrimônio cultural excepcionalidade estética ou histórica daquilo
utilizados pelo Estado estariam adequados às que se almeja preservar, não se coadunando
características dos fenômenos culturais que ali a configurações espaciais transitórias, tais
se manifestavam. como as habitações ribeirinhas, para as quais
são adotados materiais construtivos mais
efêmeros, isto é, com pouca durabilidade.
Nesse ínterim, avaliei que, pelo viés do
regional em decorrência dos inúmeros ciclos cursos d’água em profusão e, em menor grau,
a c i o n a l
econômicos que têm caracterizado seu cidades”. Entretanto, os autores ressaltam que
processo de urbanização e, ainda, à lógica há múltiplas realidades presentes na Amazô-
nia, que são culturalmente diversas, politica-
N
as transformações espaciais e a cultura da região também representa alguns dos muitos olhares
d o
ou “Marajós”:
A Amazônia a que me refiro aqui é aquela
R
Pilotis são palafitas: sobre ecologia da arquitetura e saberes que resistem na Amazônia marajoara
que configuraram as diversas paisagens de produção espacial. Para o caso de cidades
a c i o n a l
a c i o n a l
na Amazônia, tais como as políticas ribeirinhas, as desmontagens, reconstruções
desenvolvimentistas de modernização e acréscimos de materiais são um processo
forçada, implementadas a partir da década de de tradução que ocorre frequentemente.
N
r t í s t i c o
r t í s t i c o
1960 e, mais recentemente, a intensificação Entretanto, o discurso que ressalta a perda
das redes de comunicação, têm concorrido de identidades tradicionais também tem
A
para a alteração das relações entre grandes justificado o que Gonçalves (2007b) chama
e
e pequenas cidades e, consequentemente, de “obsessão coletiva” para se possuir
i s t ó r i c o
i s t ó r i c o
modificado a maneira como os sujeitos patrimônios culturais, o que contribui para
constroem identidades e se apropriam a ocorrência de “falseamentos” na produção
H
Roberto Stanchi
do legado edificado. Essas alterações são do espaço urbano nas cidades. Os artefatos e
a t r i m ô n i o
a t r i m ô n i o
de ordem econômica, simbólica e de costumes locais passam então a ser valorizados
representação sobre a maneira como os e explorados de maneira espetacular
P
sujeitos apreendem o lugar onde vivem, para satisfazer as demandas da indústria
d o
d o
suas expectativas e como as objetivam na cultural do turismo (Arantes et al., 2000),
e v i s t a
e v i s t a
produção urbana e no seu modo de vida. tornando-se ocos de significado para a vida
R
Some-se a isso que as cidades ribeirinhas contemporânea da comunidade, e o espaço,
na Amazônia, tais como Afuá, têm passado ou a sua representação, torna-se objeto de
Fe r n a n d o M e s q u i t a
a assumir outro papel, além daquele de comercialização, competindo assim com as
produtoras de insumos, como, por exemplo, demais cidades na mesma condição.
o de espaço para trocas de produtos No caso de cidades sobre as águas,
extraídos da floresta e os importados dos conforme temos observado por meio da
grandes centros. prática profissional no âmbito do Iphan,
171 171
Esse novo cenário também tem a abordagem sanitarista das políticas
influenciado os saberes que norteiam as habitacionais, com o aterramento de áreas
práticas de produção espacial dos povos alagadas e a construção de conjuntos
da Amazônia. Um exemplo evidente é residenciais monótonos, muitas vezes
a substituição de sistemas construtivos implantados em áreas longínquas para
tradicionais por métodos industriais ações de remanejamento da população, vem
de reprodução em larga escala, hoje afastando os moradores do modo de vida
implantados inclusive nas políticas ribeirinho tradicional. Ao se negligenciar a
relacionadas à habitação indígena (Gallois, estreita relação dos indivíduos com o rio e
2002). Essas questões põem em risco certo suas estratégias de edificação sobre palafitas
modo de vida ribeirinho que depende do e ruas de estivas, conforme o modelo
acesso aos recursos e dos ciclos da natureza tradicional de ocupação, coloca-se em risco
(Silva & Tavares, 2006). tanto o modo de vida como também a
Não se pretende negar, com essa herança urbanística dos primeiros espaços
abordagem, as dinâmicas sociais habitados na Amazônia.
Alcântara, MA
Iphan.
Foto: Eder Furtado.
de Marajó (PA), 2013
Ribeirinhos, Afuá, Ilha
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
173
Fe r n a n d o M e s q u i t a Pilotis são palafitas: sobre ecologia da arquitetura e saberes que resistem na Amazônia marajoara
P at r i m ô n i o que se contrapõem à “noção de mudança ou
Pilotis são palafitas: sobre ecologia da arquitetura e saberes que resistem na Amazônia marajoara
c u lt u r a l
não consagrado: sobre transformação, e centrando a atenção mais
a c i o n a l
saberes não reificados no objeto e menos nos sentidos que lhe são
atribuídos ao longo do tempo” (Fonseca,
N
representar, da qual pretendem ser a expressão bens monumentais edificados, que resultou
autêntica” (Gonçalves, 2007a:141). em um processo de construção de uma
Além da expectativa de manutenção de identidade nacional que, para Andrade Júnior
H
a t r i m ô n i o
oficial dos valores culturais (Andrade Júnior, e decisiva ferramenta na construção de uma
2009), tanto do “bem-fenômeno” em si, versão da história da arquitetura brasileira que se
Fe r n a n d o M e s q u i t a
como da produção dos sujeitos, desde que consolidou, ao longo dos anos, como dominante
estejam alinhados àquelas narrativas que e hegemônica.
forjam memórias, tradições e identidades
e que constroem a ideia de patrimônios Segundo Fonseca (2006), somente a partir
culturais utilizadas pelos Estados nacionais de meados da década de 1970 os critérios ado-
174 tados pelo Iphan foram sendo reavaliados de
(Gonçalves, 2007a). Nessa abordagem,
entende-se, portanto, que sua preservação modo a culminarem em uma nova perspectiva
passa a ser de interesse público. para a preservação de bens culturais. A reo-
Um dos instrumentos de proteção rientação implementada durante esse período
adotados pelo Estado para adentrar nos absorveu a noção de “referência cultural” que
fenômenos culturais no Brasil, há oitenta “remetia primordialmente ao patrimônio cul-
anos, tem sido o tombamento, instituído pelo tural não consagrado” (ibid.:86). Essa noção
Decreto-lei no 25/1937. Este instrumento enfatiza que, apesar dos processos culturais
ainda não ampara a complexidade de serem apreendidos a partir de manifestações
manifestações espaciais que não sejam materiais, só se constituem como referências
perenes ou que, por seu dinamismo, ainda culturais “quando são consideradas e valori-
são reproduzidas no cotidiano. Como destaca zadas enquanto marca distintiva por sujeitos
Fonseca (2003), isso se dá, sobretudo, em definidos” (ibid.:89).
virtude de estar o tombamento associado às As novas perspectivas acerca da proteção
ideias de conservação e de imutabilidade, desse patrimônio no Brasil culminaram na
Constituição de 1988, que ampliou institu- Apesar das iniciativas e instrumentos
Pilotis são palafitas: sobre ecologia da arquitetura e saberes que resistem na Amazônia marajoara
cional e legalmente a noção de patrimônio descritos até aqui, no Norte do Brasil ainda
a c i o n a l
cultural, sobretudo pela nova abordagem de é possível observar inúmeras oportunidades
cunho antropológico, descrita anteriormen- para aplicação das novas abordagens para a
te, em que os objetos, assim como as práti- proteção do patrimônio cultural de natureza
N
r t í s t i c o
cas, são dotados também de uma dimensão material. Atualmente, nessa região, são 42
imaterial cuja referência é formada por bens tombados pela União2 (74% encontram-
A
grupos diversos dentro do território e que se nas capitais) e apenas um deles pode ser
e
contribuíram para a formação do Brasil. Há, destacado como desvinculado de correntes
i s t ó r i c o
dessa maneira, uma ampliação da valoração teóricas/estilísticas/tipológicas clássicas da
de bens tangíveis para se reconhecer arquitetura, urbanismo e arqueologia: a
H
a existência de sujeitos que atribuem casa de Chico Mendes, em Xapuri (AC)3.
a t r i m ô n i o
significados às coisas (Arantes, 2009). Isso demonstra, portanto, que ainda se deve
Mais do que preservar aspectos materiais avançar na concretização das novas ideias
P
ou artefatos, a experiência brasileira mais sobre a multidimensionalidade do fenômeno
d o
recente tem apontado para uma convergência cultural e sua expressão nas políticas de
e v i s t a
de categorias e uma noção de preservação a Estado.
R
partir do reconhecimento de processos, que
podem ou não se objetivar materialmente. Ecologia da
arquitetura: os pilotis
Fe r n a n d o M e s q u i t a
Exemplo disso é a chancela de paisagem
cultural brasileira (Portaria IPHAN nº s ã o pa l a f i ta s
127/ 2009), instrumento que amplia
a possibilidade de proteção a partir da A partir da premissa de que os fenômenos
valorização de aspectos da interação humana passíveis de reconhecimento enquanto
175
com o ambiente natural. Tem-se ainda a categoria de patrimônio cultural existem
flexibilização de critérios de preservação de para além do reconhecimento dos agentes
bens tombados, sobretudo a partir de um do Estado, a produção do espaço habitado
novo olhar para o instituto do tombamento também constitui um campo rico para
e do reconhecimento dos sujeitos (Meneses, o olhar da valoração cultural, tanto na
2007) como protagonistas da atribuição dimensão da objetivação das expressões
de valor aos artefatos; como exemplo, a
recente portaria do Iphan que trata da 2. Foram desconsiderados, nessa contagem, bens anexados e bens
em processo de tombamento.
preservação do patrimônio cultural dos
3. Segundo parecer de José Aguilera e, posteriormente, de
povos e comunidades tradicionais de matriz Ulpiano Bezerra de Meneses, trata-se de uma “casa histórica”,
representativa da “importância da figura de Chico Mendes
africana (Portaria IPHAN no 194/2016), que para a memória, identidade e a ação dos grupos formadores da
sociedade brasileira” (Meneses, 2008:7). Nesse viés, a casa é um
amplia o entendimento de que mais do que potencial para “mediação sensorial de ideias, significados, valores,
a matéria, o que se quer manter é o sentido ideologias, expectativas, representações” (ibid.:7). Não foram
considerados, portanto, os atributos tipológicos do artefato –
da existência do lugar, em suas práticas e casa ribeirinha-palafítica -, como representativos de um modo
específico de construção e modo de vida, mas como portadores
relações com o meio. de sentidos atribuídos ao legado de Chico Mendes.
socioculturais como na prática em si, na 1986) ou ainda, conforme já havia sido
Pilotis são palafitas: sobre ecologia da arquitetura e saberes que resistem na Amazônia marajoara
demandas, são ressignificados e reconstruídos afirmar que toda cultura pode ser considerada
pelos sujeitos. como um conjunto de sistemas que visam
Nesse contexto, a categoria “patrimônio exprimir certos aspectos da realidade física e
N
r t í s t i c o
material”, que trata, segundo Carter & está inserida no cotidiano dos grupos,
e
estabelecidos culturalmente”.
a t r i m ô n i o
sociedade mais democrática e justa e também ampliado ainda a dificuldade na transmissão 177
que o modelo atual de ensino, por exemplo, São disso exemplo a redução dos
Fe r n a n d o M e s q u i t a
Pilotis são palafitas: sobre ecologia da arquitetura e saberes que resistem na Amazônia marajoara
contrapõe a visão binária de produção de arquitetônica erudita, desde a adaptação dos
a c i o n a l
conhecimento posta por Portocarrero (2010), casarios portugueses à ventilação dos “porões
entre colonizador e povos colonizados, habitáveis” no ecletismo amazônida até a
na qual a interação entre culturas é um adoção de pilotis na arquitetura modernista,
N
r t í s t i c o
fenômeno que ocorre constantemente e que no início do século 20. Segundo Oliveira
forja novos conhecimentos. A questão trazida (2013)5, as palafitas, assim como os pilotis,
A
por Santos, no entanto, é a supressão de são maneiras de se liberar o uso do solo
e
formas de conhecimentos locais em nome de e ter a paisagem fluindo por baixo das
i s t ó r i c o
uma ciência ocidental reificada: habitações. Entretanto, o desconhecimento
e a marginalização do tipo vernacular têm
H
Diferentes formas de interação e compreensão
promovido resultados desastrosos ao modo
a t r i m ô n i o
da natureza irão produzir diferentes corpos de
saber sobre essa natureza. O mesmo se passa de habitar de populações tradicionais e em
com o conhecimento do mundo social e com cidades ribeirinhas, por exemplo.
P
os modos de conhecimento que não dividem o Para Gallois, as casas “neobrasileiras”
d o
mundo em natureza e sociedade. Os depósitos nos aldeamentos indígenas no Amapá,
e v i s t a
destes saberes estão continuamente a ser visitados construídas com apoio da Funai e prefeituras
num movimento de procura de adequação às
R
municipais, sob a alegação de construir “casas
novas condições ambientais, aos novos interesses
higiênicas”, promoveram a sedentarização e
sociais e aos recursos cognitivos que se ganham
Fe r n a n d o M e s q u i t a
perda de qualidade de vida nas comunidades,
no contato com outras culturas e seus sistemas de
que tradicionalmente são migratórias,
saber (ibid.:64).
“com o acúmulo de lixo, poluição dos
Desse modo, estudar a arquitetura rios, esgotamento dos recursos naturais
ribeirinha não diz respeito apenas ao e empobrecimento dos solos para roças”
179
reconhecimento da produção vernacular pelo (2002:69). Para esses povos, a ideia de casa
prisma do saber arquitetônico reificado, mas representada nessa tipologia não dialoga com
a entender a palafita, em si mesma, como um sua concepção de morar; a ideia de moradia
fenômeno arquitetônico, independentemente é coletiva e esse tipo de casa fechada serve
de quem a produziu ter o título acadêmico apenas como depósito.
para tal. Menezes & Perdigão (2013) também
Incorporo a essas ideias o entendimento destacam que, apesar do valor cultural
de que o saber arquitetônico popular das casas ribeirinhas na Amazônia, tem-se
produz materialidades já prenhes de observado o constante rompimento com o
simbolismos desde sua concepção – que modo de vida em que se insere essa produção
não se dá necessariamente por meio de material, causado por projetos habitacionais
projetos – e que, para esses fenômenos elaborados pelo poder público.
culturais, ainda há inúmeras oportunidades
de reconhecimento pelos agentes de Estado 5. Almir de Oliveira, ex-superintendente do Iphan no Amazonas,
em entrevista para a série “Habitar Habitat” do SescTV, em
e pela academia. O tipo vernacular há muito 2013.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
180
Fe r n a n d o M e s q u i t a Pilotis são palafitas: sobre ecologia da arquitetura e saberes que resistem na Amazônia marajoara
2018
Afuá,
Fe r n a n d o M e s q u i t a Pilotis são palafitas: sobre ecologia da arquitetura e saberes que resistem na Amazônia marajoara
Quando o arquiteto atua em ambientes de Esse é um sentimento comum em casos
Pilotis são palafitas: sobre ecologia da arquitetura e saberes que resistem na Amazônia marajoara
empreendida pelo poder público buscou Menezes et al. (2015) estudaram a Vila
retirar a população que residia sobre palafitas da Barca, em Belém, e concluíram que
P
de madeira na beira do rio Jari e transferi- somente a questão da salubridade nas áreas
d o
cidade, no ano de 2006, pude constatar aos moradores. Para as autoras, a Vila da
que muitas famílias já tinham a intenção
Fe r n a n d o M e s q u i t a
Pilotis são palafitas: sobre ecologia da arquitetura e saberes que resistem na Amazônia marajoara
mudanças na produção arquitetônica ou do art déco, ou do modernismo, por exemplo,
ainda que em algum momento se remetam a tais
a c i o n a l
na cidade. Passos Neto (2016), em seu
caracterizações, contribuem para a ampliação do
trabalho sobre o projeto institucional para
repertório (ainda a ser explorado) que compõe as
o Fórum Eleitoral em Afuá, informou que
N
estruturas físicas dessas cidades (Carvalho, 2013:4)
r t í s t i c o
a concepção do edifício procurou dialogar
com a cultura local da cidade e isso foi
Desafios, mudanças e
A
percebido como positivo pela população.
p e rm a n ê n c i a s . . .
e
Nesses casos, vê-se, como também
i s t ó r i c o
ressalta Sant’Anna (2014:3), que as técnicas
O exemplo de Afuá é um caso que aponta
construtivas, a arquitetura e assentamentos
H
para a ainda atual necessidade de se repensar
produzidos com base no saber popular
a t r i m ô n i o
a proteção do legado edificado no Brasil. Para
são “ao mesmo tempo, um recurso para
além do exposto até aqui, o historiador Adler
o desenvolvimento socioeconômico e
Castro reitera que o tombamento, enquanto ato
P
também um patrimônio cultural da maior
d o
administrativo, no âmbito do Iphan, apesar de
importância”. Dessa maneira, segundo
e v i s t a
proteger somente bens materiais, “trabalha com
Oliveira (2013), não há entraves na
os valores culturais, imateriais, desses bens”:
R
manutenção dessas populações com essa
mesma tipologia habitacional, uma vez que No trabalho normal de apreciação de valor
Fe r n a n d o M e s q u i t a
essas populações estão “há alguns séculos de um bem, visando a aplicação de uma possível
nos ensinando como dialogar com essa proteção legal, o Instituto sempre analisa uma
coisa não por características intrínsecas, mas
realidade amazônica».
sim pelo valor cultural que a mesma pode ter
Desse modo, o que procurei evidenciar
para a sociedade nacional como um todo, tanto
nesta pesquisa – assim como Sant’Anna
como um objeto de valor excepcional, único, ou 183
(2014), Carvalho (2013), Cardoso (2012)
como elemento contendo características que o
e, ainda, como já havia sido proposto no
transformem em um exemplo de uma categoria
projeto de Mário de Andrade para a criação cuja preservação seja considerada necessária
do Iphan – foi a relevância da diversidade (Castro, 2007:3).
da produção vernacular/popular como um
saber passível de reconhecimento como O tombamento de quilombos, por
patrimônio cultural: exemplo, conforme estabelecido no parágrafo
5º do art. 216 da Constituição Federal,
(...) constitui um patrimônio cultural
ensejou uma reformulação, segundo Castro,
estruturador nas cidades e está marcada por uma
dessa forma de agir. Ocorre que essas áreas
significância cultural primeiramente dada pela
ainda são vivas e ocupadas pela comunidade
experiência, por existirem e serem apropriadas por
um grupo social que edifica estruturas físicas e que está em constante transformação.
sentidos à sua existência. E por existirem também Assim, esse autor consegue problematizar o
de um modo particular, desprendido da arquitetura assunto apresentado também para o caso da
de influência exclusivamente lusitana, ou barroca, arquitetura ribeirinha:
Como tratar a questão das comunidades lugar. Desse modo, as mudanças ao longo
– entidades vivas, móveis, que estão do tempo deveriam ser apreciadas e
184 permanentemente produzindo objetos e outros entendidas como aspectos relevantes para o
elementos da cultura material –, levando em
entendimento do modo de vida dos sujeitos,
conta as limitações, que trabalha apenas com a
onde o patrimônio vernacular edificado
preservação de um dado momento, o da inscrição
“está relacionado não só com a forma física
nos livros do tombo? (ibid:4).
e dos materiais das construções, estrutura e
Conforme Takamatsu (2013:85), a espaços, mas com os meios pelos quais eles
arquitetura tal qual hoje se analisa, sobretudo são utilizados e entendidos, as tradições e
nas políticas de preservação, ainda é focada associações intangíveis intrínsecas a eles”
apenas nas edificações e não nos sujeitos. Para (Icomos, 1999:2).
a autora, o lugar da arquitetura vernacular O tombamento, no contexto aqui
poderia vir a ser o reflexo de funções sociais apresentado, enquanto instrumento e ato
que ainda sobrevivem e que dão sentido à administrativo do poder público, nos parece
paisagem urbana. O patrimônio vernacular adequado quando se refere a uma abordagem
Casa em Afuá,
Ilha de Marajó (PA), construído, enquanto fenômeno, é um ampliada para além do artefato que se quer
2016
Foto: Fernando Mesquita. “ambiente vivo” e acontece em qualquer preservar – abordagem essa comumente
atrelada à salvaguarda de bens de natureza patrimonialização pouco têm a oferecer, senão
Pilotis são palafitas: sobre ecologia da arquitetura e saberes que resistem na Amazônia marajoara
imaterial, em que a valoração cultural está uma chancela institucional aos fenômenos
a c i o n a l
também subsidiada na lógica dos processos sociais que já existem, mesmo fora das
constitutivos dos artefatos, na construção fronteiras do reconhecimento gerado pelos
N
das narrativas e nos olhares dos sujeitos sobre agentes do Estado.
r t í s t i c o
esses mesmos artefatos. A materialidade, portanto, deveria
Sobre essa questão, Fonseca (2003) ser entendida, nos processos de
A
traz um entendimento ampliado a respeito patrimonialização, para casos tais como o da
e
do que seja o patrimônio cultural. Para
i s t ó r i c o
cidade de Afuá, enquanto fato social total,
a autora, o patrimônio “não se constitui nos termos de Marcel Mauss6, no qual as
apenas de edificações e peças depositadas em realidades sociais não são representações
H
a t r i m ô n i o
museus, documentos escritos e audiovisuais, instantâneas, mas sujeitas a transformações,
guardados em bibliotecas e arquivos”. Para ela assim como a sua produção material (Arantes,
as manifestações contidas nos ritos, saberes 2009). Uma sociedade – e, portanto, seu
P
e técnicas também constituem patrimônio componente espacial – “é sempre dada no
d o
cultural e sua “manutenção depende, tempo e no espaço, sujeita assim à incidência
e v i s t a
sobretudo, da adoção de medidas de apoio de outras sociedades e de estados anteriores
R
aos seus produtores” (ibid.: 71). A autora do seu próprio desenvolvimento” (Lévi-
cita os casos do Santuário de Ise, no Japão, Strauss, 2003:19). Essa noção já está aplicada,
Fe r n a n d o M e s q u i t a
que é destruído e reconstruído no mesmo por exemplo, na própria definição do campo
local, e a arquitetura no norte da África, cujas disciplinar da arqueologia, conforme aponta
edificações são constantemente refeitas em Funari (2015:15): “(...) a Arqueologia estuda,
virtude da ação dos ventos: diretamente, a totalidade material apropriada
Vê-se, portanto, que esta é uma temática Bibas & Cardoso (2017), por uma visão de
e
R
se encontram integrados à cultura urbana, vida cultural é ativa. Não vivemos num mundo
ainda mantém valores, hábitos e costumes de puras significações transcendentes que nos
Fe r n a n d o M e s q u i t a
monitoram, mas conservamos, reciclamos e
que os ligam com a natureza e os tornam
criamos significações e valores que possam
dependentes do rio e da floresta”.
qualificar diferencialmente as instâncias e
Ora, se de um lado temos forças
circunstâncias de nossa existência, para lhes dar
homogeneizantes que operam na produção
sentido e força.
do espaço e nas práticas cotidianas, temos 187
também sujeitos, detentores de saberes, que Por fim, sem esgotar o tema do
se modificam e modificam seus hábitos, pois, patrimônio cultural não consagrado, mais
como posto por Arantes (2009), artistas uma vez recorro à fala ainda atual de Aloísio
e produtores desenvolvem novos estilos Magalhães (1997:65), para exemplificar as
de interpretação, repertório e habilidades inúmeras oportunidades de identificação e
técnicas através da prática contínua de sua reconhecimento de bens culturais no Brasil:
forma de expressão. Sobre essa questão, nesse
Uma coisa parece evidente: a certeza de que
momento final acredito ser válido retornar
a realidade brasileira contém riquezas que ainda
ao conceito de cultura presente na fala de
permanecem desconhecidas e como que protegidas
Meneses (2008:5):
por um imenso tapete que as encobre e abafa.
A cultura não é um espaço de simples fruição Para descobri-las e conhecê-las dispomos de um
passiva de significados e valores, mas um potencial admirável potencial humano, rico de invenção
Afuá,
de qualificação de todos e quaisquer segmentos e tolerância. Resta-nos trabalhar, mantendo-nos Ilha de Marajó (PA),
2016
de nossa existência. Ela inclui, portanto, a ação conscientes de nossa responsabilidade social. Foto: Fernando Mesquita.
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PASSOS NETO, Angelo P. O projeto como objeto
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Arquitetura e Urbanismo. Belém: UFPA, 2016. Paulo: Martins Fontes, 2005.
Cachoeira de Iauaretê (AM),
2008
Foto: Vincent Carelli/
Vídeo nas Aldeias.
Díptico: Fordlândia
(PA), 2015
Foto: Miguel Chikaoka.
Loja Paris N’América,
Rua Santo Antônio, 132,
Belém (PA), 1910 (ca.)
Foto: Marc Ferrez/
Coleção Gilberto Ferrez/
Acervo Instituto Moreira Salles.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
194
Milton Hatoum Vo c ê s n ã o v i r a m I r a c e m a ?
Milton Hatoum
a c i o n a l
V ocês não viram I racema ?
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a t r i m ô n i o
I região Norte. O olhar do fotógrafo talentoso
“Não”, disse um dos jovens cinéfilos. e tarimbado – sua atividade anterior e de
Então percebi que estava envelhecendo. sempre – está registrado em cada cena. Um
P
Quase ao mesmo tempo, percebi que os
d o
olhar em movimento, que capta a expressão
e v i s t a
jovens desinformados de uma metrópole dos personagens – o que há no íntimo de
podem envelhecer precocemente. Porque cada ser. E, num ângulo mais aberto ou em
R
quem gosta de cinema deveria ver Iracema, o panorâmica, capta os quadros calcinados
clássico de Jorge Bodanzky. e tristes de uma natureza destruída pela
O filme fez a cabeça da minha geração e ganância e ignorância. A violência da vida
sua atualidade é notável. É um documentário brasileira não está na denúncia política, e sim
que pode ser visto como uma ficção. Mas é onde interessa à arte: no drama particular de
também uma ficção arraigada no cotidiano uma personagem.
da Amazônia. Iracema dilui as fronteiras entre O subtítulo – Uma transa amazônica 195
ficção e documentário. É uma mescla muito – alude a uma das alucinações da ditadura
habilidosa de gêneros e, nesse sentido, foi militar: a estrada que rasga o coração da
um marco do cinema brasileiro. Há poucos e Amazônia e inaugura a devastação sistemática
bons atores profissionais, mas a personagem do meio ambiente.
principal é construída durante a filmagem: O filme começa no porto de Belém e
uma menina de quinze anos, atriz que se termina na estrada que fere a floresta, abrindo
forma na estrada, diante da câmera, nos caminho para madeireiras, queimadas,
descaminhos de uma vida inventada, mas trabalho escravo e prostituição. Iracema,
profundamente vivida. É como se o roteiro de carona pela transamazônica, simboliza
acompanhasse o imponderável e a própria o descaminho de uma pobre mulher numa
maleabilidade da vida. Essa espontaneidade região tão rica, comentada e debatida, mas Projeto Antônios
e Cândidas têm
apenas aparente foi pensada e construída quase desconhecida. Daí a dimensão humana sonhos de sorte.
Transamazônica,
com rigor. Além disso, no caso de Iracema ser tão ou mais importante do que o delírio Brasil Novo (PA),
2004
conta muito a experiência de Bodanzky na desenvolvimentista do regime militar. Foto: Paula Sampaio.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
196
Milton Hatoum Vo c ê s n ã o v i r a m I r a c e m a ?
II dos brasileiros, Suely e Iracema buscam
Vo c ê s n ã o v i r a m I r a c e m a ?
Há pouco tempo fui ver o belo filme de uma vida melhor. As andanças de Iracema
a c i o n a l
Karim Aïnouz: O céu de Suely. Entre Suely terminam na beira da estrada. Ou à margem
e Iracema há mais do que uma aliteração. de uma sociedade que empurra os pobres para
Há, acima de tudo, um diálogo de duas um beco sem saída.
N
r t í s t i c o
épocas num mesmo país dilacerado. Diálogo Suely deixa o filho com a tia e a avó e
Milton Hatoum
que passa por uma poética do olhar: uma parte em busca de um sonho, que pode ser
A
maneira singular de ver o mundo, um recorte um emprego ou uma nova paixão: um céu
e
dramático construído pelo olhar. diminuto que cabe numa janela. Aïnouz deixa
i s t ó r i c o
Mais de trinta anos separam os dois essa janela aberta como uma possibilidade
filmes, mas eles se encontram no interior de esperança.
H
do Brasil e nos sonhos e pesadelos de suas
a t r i m ô n i o
protagonistas. Apesar das diferenças formais III
entre os dois filmes, alguma coisa une a tra- No começo da década de 1970, a
P
jetória dessas duas mulheres tão brasileiras. esperança era uma quimera. Nesse sentido,
d o
Talvez sejam histórias que se complemen- a degradação física de Iracema mostra o
e v i s t a
tam, num movimento de continuidade que impasse de um tempo nublado, para não
significa também uma ruptura. O fim de dizer totalmente fechado. Mais de três
R
cada filme diz algo sobre o destino da perso- décadas depois, em plena democracia,
nagem principal. talvez haja alguma razão para sonhar. Não
Numa pequena cidade do sertão, Suely conhecemos o destino de Suely. E essa
rifa o próprio corpo, que será usado e dúvida ou interrogação dá ao espectador a
abusado uma única vez. O nome da rifa – possibilidade de imaginar vários desfechos,
Uma noite no Paraíso – podia ser o subtítulo inclusive o que há de imponderável na vida
do filme de Aïnouz. Como a imensa maioria de uma sonhadora. Na nossa própria vida. 197
Projeto Antônios e
Cândidas têm sonhos
de sorte.
Belém-Brasília,
Açailândia (MA), 1998
Foto: Paula Sampaio.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
198
U l p i a n o To l e d o B e z e r r a d e M e n e s e s O patrimônio cultural e a guinada da Constituição de 1988:
a casa de Chico Mendes
Ulpiano Toledo Bezer ra de Meneses
a c i o n a l
O patrimônio cultural e a guinada da
C onstituição de 1988: a casa de C hico M endes
N
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e
i s t ó r i c o
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a t r i m ô n i o
R e l at ó r i o devidamente registrada, de identificar com
precisão a titularidade do imóvel, existindo
A solicitação de tombamento, datada de apenas uma declaração da Prefeitura Muni-
P
cipal de Xapuri informando que o imóvel
d o
16 de agosto de 2006, foi encaminhada à 16ª
e v i s t a
SR (Rondônia/Acre) pela Fundação Chico encontra-se inscrito no Setor de Cadastro em
Mendes e pelo Comitê Chico Mendes. O nome da Fundação Chico Mendes. Na cir-
R
processo , aberto em 6 de novembro de 2007,
1 cunstância, foi publicado no Diário Oficial da
propõe o tombamento da casa situada à rua União, de 13 de fevereiro último, um Edital
Dr. Batista de Moraes, nº 10, em Xapuri de Notificação a respeito do tombamento
(AC), na qual morou e foi assassinado o líder da casa, de seu acervo e da área de entorno,
inconteste dos “povos da floresta” nas décadas facultando a eventuais proprietários apresen-
de 1970 e 1980. Propõe-se, igualmente, a tarem-se para anuir ou impugnar a iniciativa.
indispensável proteção do entorno, seja em A instrução do processo está completa 199
virtude da derrubada de árvores nos fundos e satisfatória.
do imóvel, atribuída à prefeitura, seja pela Vale distinguir os principais documentos
invasão urbana que já começou a alterar a e informações:
paisagem existente. Mais tarde, acrescenta- Parecer, rico de informação, do
ram-se os pertences da casa. arquiteto José Aguilera, do Depam/
Para a tramitação do presente processo, Iphan, que fornece um histórico do
que transcorreu com absoluta normalidade, processo, menciona a categoria de “casas
reporto-me ao cuidadoso parecer do procu-
históricas” e lista aquelas já tombadas pelo
rador-geral federal Antônio Fernando Alves
Iphan, apresenta dados históricos (com
Leal Neri, datado de 18 de janeiro de 2008.
referências ao processo de ocupação da
Cumpre apenas salientar a impossibilidade,
Amazônia e à formação do estado do Acre,
caracterização das comunidades indígenas e Extração do látex da
seringueira, BR-317,
1. Processo de Tombamento 1.549-T-07. Este parecer, por mim
Estrada do Pacífico,
apresentado ao Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, na de seringueiros e sua relação com a floresta, Acre, 2018
qualidade de relator, foi aprovado na reunião de 15 de maio de Foto: Oscar Liberal/
2008, realizada em Belo Horizonte (MG). dados biográficos e a trajetória de lutas de Acervo Iphan.
O patrimônio cultural e a guinada da Constituição de 1988:
a casa de Chico Mendes
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jornais sobre a atuação de Chico Mendes e dos diferentes grupos formadores da sociedade
a extraordinária repercussão de sua morte, brasileira nos quais se incluem... [segue listagem].
além de dois DVDs (contendo a citada
A referência à Constituição de 1988 como 201
entrevista à AGB, 1988, O sonho de Chico
premissa não deriva de uma retórica das
Mendes e o documentário da TV Acre
origens, mas do fato de que ela introduziu,
Borracha para a vitória).
na matéria, uma inflexão de 180º, o que
Está, pois, o processo, em condições
ainda não conseguimos, talvez, absorver
de se submeter à apreciação do Conselho
plenamente e, menos ainda, assimilar em
Consultivo do Patrimônio Cultural.
nossa sistemática operacional.
Voto Com efeito, como patenteia o art. 216, Chico Mendes (ao
centro, de casaco
a Carta de 1988 deslocou do poder público escuro) com a
delegação do
Premissas para a sociedade o papel instituinte do valor Acre, ao retornar
do Congresso
O art. 216 da Constituição federal estatui: cultural. Duas são as consequências radicais de Fundação da
Central Única dos
Trabalhadores – CUT,
dessa nova postura, que representa benéfico
Constituem patrimônio cultural brasileiro os em São Bernardo do
Campo (SP), 1983
bens de natureza material e imaterial, tomados avanço conceitual (e me limitarei aqui à Acervo: Comissão Pastoral
da Terra – CPT/Acervo
individualmente ou em conjunto, portadores consideração de bens materiais, pois se trata Digital: Departamento de
Patrimônio Histórico e
Cultural/Fundação
de referência à identidade, à ação, à memória de um pedido de tombamento): Elias Mansour.
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a casa de Chico Mendes
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Cumpre assim examinar se os bens aqui compartilhados de maneira a estabelecer Interior da casa de
Chico Mendes,
propostos ao tombamento – uma casa com vínculos afetivos de pertencimento, Xapuri (AC), 2018
Foto: Oscar Liberal/
Acervo Iphan.
seu entorno e seus pertences – têm sido solidariedade e inteligibilidade. Não se trata, 203
mas aos 25 já inicia a luta do resto de sua No final de 1977 já começava a receber
e
vida em prol dos seringueiros, inspirado pelo ameaças de morte por parte dos fazendeiros
i s t ó r i c o
sindicais (ajudou a fundar a CUT e o PT), quais as de sua morte anunciada, jamais
a t r i m ô n i o
organiza com os seringueiros e suas famílias dezembro de 1988 – há, portanto, quase
P
movimentos pacíficos (os “empates”) para duas décadas –, quando mal completara 44
d o
a c i o n a l
- seu nome tem sido dado a logradouros da predação econômica ao meio ambiente e
em várias cidades, a prêmios e honrarias às práticas de dominação que ela implica.
(como a Medalha Chico Mendes, do Grupo Inicialmente, pode-se dizer que o núcleo
N
r t í s t i c o
Tortura Nunca Mais), a instituições (como central dessa identidade era constituído pelas
o Instituto Internacional de Pesquisa e Res- comunidades extrativistas da Amazônia e,
A
ponsabilidade Socioambiental Chico Mendes, principalmente, do Acre. Passados vinte
e
do Paraná, ou o Instituto Chico Mendes de anos da morte do líder, porém, os círculos
i s t ó r i c o
Conservação e Biodiversidade, em que se se ampliaram, incluindo movimentos
desmembrou – não sei se convenientemente ambientalistas, religiosos, sociais e políticos.
H
– o Ibama). Em 1990 é criada a Reserva Ex- “O Acre não é outro país, o Acre é
a t r i m ô n i o
trativista que leva seu nome; Brasil”, já insistia o próprio Chico Mendes,
U l p i a n o To l e d o B e z e r r a d e M e n e s e s
- são incontáveis e diversificadas as instando a articulação de seringueiros,
P
homenagens que recebeu post mortem. Foi índios, estudantes, intelectuais, professores,
d o
tema de uma minissérie da acreana Glória enfim, todos os segmentos da sociedade
e v i s t a
Perez, apresentada pela Rede Globo em (entrevista à AGB). Em suma, tendo
R
janeiro de 2007 (Amazônia: de Galvez a Chico colocado a problemática da devastação da
Mendes), e de alguns títulos estrangeiros, floresta e opressão de muitas camadas de
entre eles o de autoria de Andrew Revkin. seus habitantes numa agenda nacional (e
Também foi objeto, entre nós, de muitos internacional), a figura de Chico Mendes
livros de autores como Márcio de Souza, pode contar entre aquelas com as quais a
Zuenir Ventura, Alex Criado, Edilson sociedade nacional é capaz de representar-se
Martins, um deles, inclusive, dedicado ao nacional e internacionalmente.
205
público infanto-juvenil;
- se os registros do Google nem sempre Ação
expressam qualidade, são, ao menos, índice A cultura não é um espaço de simples
de popularidade e há 1.020 mil deles relativos fruição passiva de significados e valores,
a Chico Mendes. mas um potencial de qualificação de todos
Não há dúvida, portanto, que a figura de e quaisquer segmentos de nossa existência.
Chico Mendes tem peso na constituição e Ela inclui, portanto, a ação como um de
operação da memória de parte considerável e seus frutos mais importantes. A vida cultural
diversificada da sociedade brasileira. é ativa. Não vivemos num mundo de
puras significações transcendentes que nos
Identidade monitoram, mas conservamos, reciclamos e
Também não há dúvida de que essa criamos significações e valores que possam
mesma parte considerável e diversificada da qualificar diferencialmente as instâncias e
sociedade brasileira consiga reconhecer-se circunstâncias de nossa existência, para lhes
na imagem de Chico Mendes, catalisando dar sentido e força.
O que se viu acima sobre a memória e a No campo normativo, a ação de Chico
O patrimônio cultural e a guinada da Constituição de 1988:
a casa de Chico Mendes
identidade facilita a compreensão de que não Mendes também deixou heranças: a Portaria
a c i o n a l
foi apenas por seu ideário, mas também por Incra nº 627, de 30 de julho de 1987
sua ação para concretizar esse ideário, que (que instituiu o modelo de ocupação dos
Chico Mendes deixou marca específica no Projetos de Assentamento Extrativista –
N
r t í s t i c o
conjugado com seu modo de luta e os de 1989 (que dispõe precisamente sobre as
e
que servem, em nossos dias, de parâmetro, de março de 2006 (que dispõe sobre a gestão
traduzidos como “ideias-força”. Sem dúvida, de florestas públicas para ação sustentável);
H
estamos ainda muito longe de uma relação e planos integrados, como o Plano da
a t r i m ô n i o
sustentável com a floresta, com a Amazônia e Amazônia Sustentável – PAS, que não pode
U l p i a n o To l e d o B e z e r r a d e M e n e s e s
com o meio ambiente em geral. Mas hoje não correr o risco de se desfigurar.
P
U l p i a n o To l e d o B e z e r r a d e M e n e s e s
P
d o
e v i s t a
R
mobilizados para expressar valores que não Pretender-se que está em causa uma
fossem simbólicos! A natureza de um bem memória descarnada, etérea, sem lugar,
cultural é, essencialmente, em todos os casos, sem balizas neste mundo concreto em que
uma questão de significação, sentido, visão de vivemos, simples fantasmagoria semiótica,
mundo – simbólica, portanto. flutuando num vácuo indiferente, seria
207
Também me parece insuficiente dispensar o conhecimento acumulado nos
considerar a valoração por simples contágio. últimos sessenta anos, sobre o tema, pela
Com efeito, a Constituição de 1988 permite psicologia social, antropologia, história,
ir-se além do critério de “vinculação a fatos estudos de cultura material (para não
memoráveis da história do Brasil”, como mencionar a neurofisiologia e as ciências
consta do art. 1º do Decreto-lei nº 25/1937 da cognição).
– critério às vezes transformado nesse Os lugares e as coisas, em sua
fenômeno virótico de contaminação cultural “materialidade”, constituem obrigatórios
automática –, para níveis mais profundos gatilhos, pautas, guias, ordenadores,
Seringueiros indo
e adequados. O Decreto-lei nº 25, norma condensadores e legitimadores de memória. para o trabalho,
ainda de madrugada,
fundadora, não merece derrogação, por sua Memórias, imagens de si, projetos de ação com a poronga,
lamparina que ajuda
solidez, consistência e impecável técnica que constituem meros fatos psíquicos ou a iluminar o caminho
na floresta e fazer o
legislativa; é necessário, porém, tomá-lo mentais engaiolados na subjetividade dos talho na casca da
seringueira.
agora à luz das novas diretrizes introduzidas indivíduos, enquanto não se socializarem, Seringal Pimenteira,
Xapuri (AC), 1994
pela Constituição. enquanto não passarem a atuar no mundo Foto: Carlos Carvalho.
social – socialização, atuação no mundo social com pequenos recuos na fachada principal,
O patrimônio cultural e a guinada da Constituição de 1988:
a casa de Chico Mendes
que só pode ocorrer por essa mediação do nas laterais; há um quintal ao fundo. Toda
a c i o n a l
Ora, uma casa e seu lugar podem depurado pela experiência. O telhado (em
apresentar potencial para tal mediação ângulo acentuado) e a ausência de forro, além
A
Acredito, aqui também, que a casa de Chico acrescentando-se que as inúmeras janelas, sem
Mendes com seus pertences (plantada em um vidraças, devem ficar abertas grande parte do
H
lugar específico de Xapuri e não no panteão tempo para iluminação; pode-se dizer que
a t r i m ô n i o
da memória) contenha esse potencial. é uma casa exposta, por dentro e de fora. A
U l p i a n o To l e d o B e z e r r a d e M e n e s e s
avaliar a casa e seu entorno são aquelas se resume à pintura (azul turquesa para o
d o
fornecidas pela breve descrição e pelas exterior, portas, janelas, cercaduras e tabeiras
e v i s t a
Preliminarmente, vale registrar que a casa, Para resumir, é uma casa despojada, quase
hoje sede da Fundação Chico Mendes, foi monástica – mas acolhedora e sobretudo
objeto de restauração pelo estado do Acre e digna, nessa simplicidade, justa medida das
também, em 2006, de tombamento estadual. necessidades: é cômoda sem desperdício.
A casa se situa numa rua de terra batida, O acervo dos pertences (com fotografias)
na ponta da cidade, que ocupa o espaço está em perfeita simbiose com os atributos
208 côncavo formado por uma curva do rio Acre, salientados: são móveis, equipamentos
logo depois de nele desaguar o rio Xapuri e utensílios do dia a dia, incluindo uma
(conforme planta urbana de 2006 da cidade pequena biblioteca, o conjunto expressando
de 5 mil habitantes), mas ela não está na beira as condições de vida que serviram de
d’água e sim a respectivamente uma e três plataforma para a luta pacífica, digna,
quadras, conforme o desenho sinuoso do rio. desinteressada e sem qualquer estrelismo,
A casa não destoa absolutamente das que movida ao longo da vida por seu morador.
lhe estão vizinhas, nem nas dimensões da Por fim, a casa foi palco do assassinato que
estrutura, configuração do lote e implantação condensou e cristalizou uma trajetória inteira
no terreno, nem na aparência externa e e a legitimou teatralmente para sempre. Por
materiais de construção – é uma como as assim dizer, esse episódio sangrento tornou
outras. Pequena, compõe-se de uma sala, sensível, prolongando a mediação das demais
dois quartos, cozinha e corredor, que não referências acima apontadas, a imagem, o
devem ultrapassar 52,5 m². O banheiro ideário e o curso das intenções e atos de
fica em edícula externa, contando o terreno Chico Mendes.
Nessas condições, não é de estranhar que faltam análise e justificativas e mesmo uma
a c i o n a l
romeiros cívicos e tenha sua imagem projeta- julgamento conclusivo.
da para outros e amplos setores da sociedade
Conclusão
N
nacional. Cumpre, portanto, reconhecer que
r t í s t i c o
ela e seus pertences são portadores das refe-
rências previstas na Constituição para declara- À luz do exposto, não hesito, pois,
A
ção de seu valor cultural e base para medidas em recomendar vivamente ao Conselho
e
i s t ó r i c o
de proteção pelo poder público. Consultivo a anuência ao pedido de
Quanto ao entorno, a proposta de tombamento da casa de Chico Mendes em
delimitação está claramente definida Xapuri e seus pertences, devendo a inscrição
H
a t r i m ô n i o
(encaminhada pelo arquiteto José Aguilera, proceder-se no Livro do Tombo Histórico. Sou
endossada pelo memorando da gerente favorável, em princípio, à delimitação proposta
U l p i a n o To l e d o B e z e r r a d e M e n e s e s
de Proteção Jurema Kopke Eis Arnaut e do entorno, mas não dispus, até aqui, de ele-
P
reproduzida, afirmativamente, no parecer mentos suficientes para avaliar a pertinência
d o
e v i s t a
do procurador-geral federal Antônio dos parâmetros sugeridos – que poderão ser
Fernando Neri). Reconheço que a proposta explicitados na reunião do Conselho Consulti-
R
me parece à primeira vista aceitável, mas vo ou pelos órgãos pertinentes do Iphan.
209
Escola do Projeto
Seringueiro.
Seringal Porongaba,
Brasiléia (AC), 1992
Foto: Carlos Carvalho.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
210
L u c i a n a G o n ç a l ve s d e C a r va l h o Aporias da proteção do patrimônio cultural e natural
de uma comunidade remanescente de quilombo na Amazônia
Luciana Gonçalves de Carvalho
a c i o n a l
A porias da proteção do patrimônio cultural e
N
natural de uma comunidade remanescente de
r t í s t i c o
quilombo na A mazônia
A
H e
i s t ó r i c o
a t r i m ô n i o
Introdução (PA), acerca das estratégias e táticas1
pertinentes para a defesa de direitos coletivos
O ano de 2018 foi escolhido pelo relativos ao ambiente (florestas, rios, lagos
P
e sedes comunitárias que correspondem a
d o
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
e v i s t a
Nacional – Iphan para a realização de áreas de uso e moradia) onde os quilombolas
uma série de ações com vistas à difusão e cultivam modos próprios de criar, fazer e
R
valorização do patrimônio cultural da Região viver. O fato de o TQ Alto Trombetas II ser,
Norte do Brasil, entre as quais se destacam atualmente, objeto de processos simultâneos
uma exposição, um seminário internacional de tombamento, titulação e licenciamento
e esta edição da Revista do Patrimônio. ambiental, que tramitam em órgãos federais
Diante da feliz oportunidade que essa distintos, assinala um contexto notoriamente
autarquia concedeu para a participação de complexo, no qual afloram paradoxos da
diversas frentes de pesquisa em seus arquivos preservação do patrimônio cultural e natural 211
em questão, mas até o momento não houve Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
desdobramentos desse estudo e o processo de Renováveis – Ibama e a Fundação Cultural
A
1995 também não chegou a termo3. Palmares – FCP estão envolvidos no processo
e
L u c i a n a G o n ç a l ve s d e C a r va l h o
pelas comunidades remanescentes de estão nos limites de uma das UCs geridas
quilombos em 2004, com vistas à titulação pelo ICMBio6. Esse projeto é de interesse
P
judicial, tem tido o desfecho postergado pelo década de 1970, simultaneamente à criação
R
fato de estar sobreposto por duas Unidades da primeira UC na região. Desde então,
de Conservação – UC federais, criadas nas a mineradora está envolvida em conflitos
décadas de 1970 e 1980 e geridas pelo
4 decorrentes de impactos socioambientais
Instituto Chico Mendes de Conservação da da atividade minerária que vêm afetando os
Biodiversidade – ICMBio. No choque entre modos de criar, fazer e viver das comunidades
direitos ambientais, territoriais e culturais, às remanescentes de quilombo.
No complexo contexto em que vivem
212
2. De acordo com o Manual de Aplicação do INRC, sítios e tais comunidades na região do Trombetas,
localidades são delimitados conforme diferentes critérios, não
necessariamente geográficos, e “correspondem à implantação de os três processos supracitados abordam,
modos de vida, à percepção de fronteiras, à elaboração de regras
de conduta e criação de valores” (Iphan, 2000:33). No caso em por diferentes vias, questões semelhantes
tela, considerou-se como sítio o município de Oriximiná e, como
localidades, os diversos TQs nele existentes, titulados ou não.
relativas à salvaguarda do direito de manter
3. No Dicionário Iphan de Patrimônio Cultural disponível no o próprio modo de vida no território que
portal eletrônico do Iphan, Vaz (2016) informa que dez processos
semelhantes tramitam no órgão, tendo por objeto o tombamento
dominam desde o século 19. Na medida
dos quilombos Ambrósio, Vão do Moleque e Flexal, do quilom- em que os três processos encontram
bo em Ivaporunduva, e das áreas conhecidas como Jamary dos
Pretos, Mocambo, Riacho de Sacutiaba e Sacutiaba, Castainho, restrições e têm sua tramitação postergada,
Porto Coris e Campinho da Independência, todas ocupadas
por comunidades remanescentes de quilombo. Deles, apenas o nota-se que as legislações voltadas para o
primeiro, relativo aos “Remanescentes do antigo Quilombo do
Ambrósio”, resultou em tombamento. Posteriormente ao ato, patrimônio cultural e para o patrimônio
em agosto de 2014, o Ministério Público Federal em Uberaba
instaurou Inquérito Civil Público para apurar irregularidades no
processo de tombamento. 5. Situação similar é vivenciada pelas comunidades integrantes do
TQ Alto Trombetas I.
4. Privilegiando o ponto de vista das comunidades remanescentes
de quilombos, que, em tese, têm garantido pela Constituição 6. O referido processo de licenciamento ambiental envolve, além
Federal o direito à propriedade definitiva da terra secularmente do Alto Trombetas II, os TQs Boa Vista e Alto Trombetas I, am-
ocupada, assume-se que foram as UCs “que foram colocadas em bos vizinhos do TQ ora estudado, estando o primeiro a jusante e
cima” (informação verbal), ou seja, que se superpuseram ao TQ. o segundo a montante do rio Trombetas.
natural apresentam, simultaneamente, discurso da requerente quanto à necessidade
a c i o n a l
levam à inação, sem dúvida contribuem assertivas amplamente difundidas desde
para ações estatais contraditórias no que a década de 1990, no Brasil e no mundo,
tange à proteção de direitos coletivos – tanto pela ciência quanto pela imprensa, que
N
r t í s t i c o
territoriais, socioambientais e culturais – das denunciam o crescente desmatamento na
comunidades em questão. Nas contradições Amazônia, suas consequências e causas, entre
A
alimentadas pela confrontação entre as as quais ações e decisões do próprio Estado
e
práticas jurídicas e administrativas do Estado (Fearnside, 2005; 2006).
i s t ó r i c o
com as expectativas de direito das próprias
A floresta amazônica está sendo derrubada
comunidades, emergem as aporias da razão
de forma acelerada porque tem pouco valor na
L u c i a n a G o n ç a l ve s d e C a r va l h o
ambiental e patrimonial em meio às quais elas
a t r i m ô n i o
percepção da sociedade brasileira atual, apesar de
devem operar tática e estrategicamente. uma parte dos formadores de opinião afirmarem
o contrário. Esta contradição entre o discurso e a
Da
P
r a z ã o pat r i m o n i a l e realidade sócio-político-econômica é comum no
d o
a m b i e n ta l mundo e ajuda a entender muito a respeito dos
e v i s t a
problemas de degradação ambiental que estão
minando a sustentabilidade do empreendimento
No processo nº 1725-T-14, protocolizado
R
humano (Clement & Higuchi, 2006:44).
no Iphan sob o nº 01450.009085/2010-36,
uma cidadã residente em Bragança Paulista Apesar da irrefutável realidade do
(SP) requereu expressamente o que se segue: desflorestamento da região amazônica7, após
(...) [o] tombamento da Floresta Amazônica, análise do requerimento de tombamento
em toda sua extensão, incluindo-se todos os da floresta, a recomendação técnica ao
Estados e Territórios da Região Norte, abrangendo Departamento de Patrimônio Material
213
as áreas de florestas nativas, as quais devem (Depam/Iphan) foi “o indeferimento do
permanecer tal e qual se encontram atualmente, pedido e posterior envio ao Arquivo Central
em fauna, flora e bio sistemas, não se podendo, do Iphan para que se proceda à abertura de
doravante, derrubar nenhuma árvore dessa
processo de tombamento, série ‘T’, seguido
Floresta, tendo em vista sua importância para
a preservação da vida no planeta TERRA, suas
7. Vide uma série de reportagens publicadas no primeiro semestre
riquezas científicas e tesouros arqueológicos. de 2018, sob títulos alarmantes: Desmatamento na Amazônia
está prestes a atingir limite irreversível, informa a Agência Fapesp,
Preservando-se a redação da autora, tal em 21 de fevereiro (http://agencia.fapesp.br/desmatamento-na-
-amazonia-esta-prestes-a-atingir-limite-irreversivel/27180/); Des-
como se extrai do processo supracitado, “a matamento na Amazônia em março é 243% maior do que mesmo
período do ano passado, anuncia o site Conexão Planeta, em 24 de
justificativa para o tombamento pretendido abril (http://conexaoplaneta.com.br/blog/desmatamento-na-ama-
zonia-em-marco-e-243-maior-do-que-mesmo-periodo-do-ano-
é a preservação da FLORESTA, suas -passado/); Pará é o estado com maior índice de desmatamento da
Amazônia Legal, aponta Imazon, em 20 de junho (https://g1.glo-
riquezas e sua função para a continuidade bo.com/pa/para/noticia/para-e-o-estado-com-maior-indice-de-
da vida no planeta Terra, pois o bio sistema -desmatamento-da-amazonia-legal-aponta-imazon.ghtml); Mais
de 10 mil hectares de floresta já foram destruídos na Terra Indígena
(sic) só continuará a existir se a floresta Karipuna, revela o site Amazônia: notícia e informação, em 27 de
julho (http://amazonia.org.br/2018/07/mais-de-10-mil-hectares-
permanecer intacta”. Nesse aspecto, o -de-floresta-ja-foram-destruidos-na-terra-indigena-karipuna/).
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
214
L u c i a n a G o n ç a l ve s d e C a r va l h o Aporias da proteção do patrimônio cultural e natural
de uma comunidade remanescente de quilombo na Amazônia
Foto: Margi Moss/
Igarapé de Fogo,
Coleção M. e G. Moss.
afluente do rio Acari
L u c i a n a G o n ç a l ve s d e C a r va l h o
a t r i m ô n i o
P
d o
e v i s t a
R
a c i o n a l
vida das populações que ocupam a floresta reconhecendo a importância do legado de
amazônica – entendendo-se por ocupação vários povos e comunidades da Amazônia.
a efetiva utilização, conforme propõem No mesmo sentido, há considerável literatura
N
r t í s t i c o
Acevedo & Castro (1993). Por exemplo, sobre a interconexão entre os direitos
como pretender que as florestas nativas – territoriais, ambientais e culturais desses
A
assim compreendidas a partir da concepção grupos (Benatti, 1999; 2011; Santilli, 2005;
e
de uma natureza intocada (Diegues, Granziera, 2009; Bensusan & Prates, 2014;
i s t ó r i c o
1993), ignorando as contribuições dos Little, 2014; Alves, 2016).
distintos grupos ocupantes para a presente Por outro lado, ao arrolar uma série de
L u c i a n a G o n ç a l ve s d e C a r va l h o
conformação da floresta (Cunha et. al., institutos que, em tese, garantem a pro-
a t r i m ô n i o
2001; Cunha, 2009; Scoles & Gribel, 2011)8 teção do patrimônio natural brasileiro, o
– permaneçam “tal e qual se encontram indeferimento do pedido encobre a efetiva
P
atualmente (...) não se podendo, doravante, incapacidade de cumprimento dessa missão
d o
derrubar nenhuma árvore”, se de uma pelos ditos institutos, o que implica, em larga
e v i s t a
variedade de recursos florestais inúmeros medida, o sistemático desrespeito a direitos
povos e comunidades fazem humanos que outrora se pretendeu assegurar,
R
uso regularmente? tanto com a Declaração Universal dos Direi-
O próprio Iphan, em número especial tos Humanos, de 1948, como com a Cons-
da Revista do Patrimônio organizado por tituição Federal de 1988. Assim, o Memo nº
Manuela Carneiro da Cunha (2005), 1028/2014-Depam, ao mesmo tempo em
discute alternativas para a salvaguarda do que reitera a competência dos órgãos ambien-
tais para a proteção do patrimônio natural,
oblitera a indissociabilidade deste com o pa- 217
8. Segundo Scoles & Gribel (2011), os castanhais na região de Vista panorâmica da
Trombetas costumam reunir de centenas até alguns milhares de cidade de Óbidos: à
indivíduos dessa espécie (de quinze a vinte indivíduos por hec- trimônio cultural. esquerda, teatro e
tare) e remontam, provavelmente, ao período pré-colombiano, Praça do Bom Jesus,
Essa indissociabilidade perpassa o texto à direita, Câmara
tendo sua ocorrência uma profunda relação com formas seculares
Municipal, ao fundo,
de ocupação humana na Amazônia. Para os autores, a proximida- constitucional de 1988, destacadamente em rio Amazonas, Forte
de física dos castanhais com áreas de terras pretas e sítios arqueo- de Óbidos e a Matriz
lógicos atesta a influência da ação dos povos ameríndios sobre seu Título VIII (Da Ordem Social), capítulos Foto: Coleção Thereza
Christina Maria/Acervo
o padrão de distribuição das árvores, o qual foi essencialmente
preservado pelas comunidades quilombolas, a partir dos contatos III (Da Educação, da Cultura e do Desporto) Fundação Biblioteca
Nacional, Brasil.
entre indígenas e negros na região.
e VI (Do Meio Ambiente). Privilegiando uma “os bens de natureza material e imaterial,
de uma comunidade remanescente de quilombo na Amazônia
Aporias da proteção do patrimônio cultural e natural
tação de Souza Filho (1997), que classifica os de criar, fazer e viver” (inciso II).
bens ambientais como um gênero do qual os Ora, considerando que os modos de
A
arte e os elementos subjetivos e evocativos, como simbólico e das populações nativas que
d o
inscrições, marcos ou sinais de fatos naturais ou a reprodução da floresta (Castro & Pinton:
da passagem de seres humanos. Dessa forma, para
R
a c i o n a l
administrativos que o atravessam e que, curso encachoeirado do rio Trombetas, no
em tese, deveriam proteger seu patrimônio século 19. Amocambados acima da primeira
natural e cultural, assim como garantir cachoeira do rio Trombetas, originalmente
N
r t í s t i c o
direitos territoriais, socioambientais e batizada em nome de São Miguel Arcanjo
culturais das comunidades remanescentes de pelo missionário Mazzarino, formaram os
A
quilombo que o integram. povoamentos Maravilha e Campiche, este
e
último nas margens do rio Turuna. Segundo
i s t ó r i c o
Breve caracterização do uma moradora da atual comunidade de
T e rr i t ó r i o Q u i l o m b o l a Cachoeira Porteira, com ajuda dos índios eles
L u c i a n a G o n ç a l ve s d e C a r va l h o
A l t o T r o m b e t a s II
a t r i m ô n i o
subiam no remo; e quem vinha na vela jamais
ia conseguir subir a cachoeira (...) Lá do alto do
O Território Quilombola Alto Trombetas Turuna a gente conseguia enxergar quem subia (...)
P
II, normalmente referido pelos próprios Justamente por isso, porque se tornou um portão,
d o
moradores como Alto II, fica na zona rural- taí a cachoeira batizada de Cachoeira Porteira
e v i s t a
ribeirinha do município de Oriximiná, (Iphan, 2014:F-11-5).
situado na porção oeste do estado do Pará,
R
Apesar de relativamente isolados
na mesorregião do baixo Amazonas. Nesse
geograficamente, os mocambeiros mantinham
que é um dos maiores municípios brasileiros
relações de troca com mascates e comerciantes
em extensão, com 107.603,292 km², vastas
sediados em Óbidos, Oriximiná e Santarém.
extensões de terra são delimitadas por
Basicamente, trocavam produtos extraídos
Unidades de Conservação ou correspondem a
da floresta (castanha, breu, óleos vegetais e
áreas indígenas9 e quilombolas, demarcadas e
animais) e itens produzidos nos mocambos 219
tituladas, ou em processo de titulação10.
(sobretudo farinha de mandioca) por
A formação histórica das comunidades
outros que lá não eram acessíveis. As trocas
Curuçá, Jamari, Juquiri Grande, Juquirizinho,
comerciais alimentavam uma espécie de
Moura, Nova Esperança, Palhal e Último
“cumplicidade dos contrários” (Bezerra Neto,
Quilombo, onde vivem cerca de trezentas
2001:97), estimulando laços de solidariedade
famílias que integram o TQ Alto Trombetas
em que aqueles forneciam informações
aos negros, prevenindo-os de eventuais
9. Hixkariyana, Inkarïnyana, Kahyana, Tunayana, Txikiyana,
Kamarayana, Karafawyana, Mawayana, Okomoyana, Pirixiyana,
Txarumayana, Xerewyana, Xowyana, Katuwena, Farukoto, Zo’é
são povos que vivem no território de Oriximiná (Disponível em
<https://www.quilombo.org.br/povos-indigenas>. Acessado em 11. Ao longo da história da região, o termo mocambo
9/8/2018). foi utilizado para designar os povoados ocupados
predominantemente por negros nas margens do rio Trombetas
10. São sete os territórios quilombolas oriximinaenses, além do e seus afluentes. Até poucas décadas atrás, a sociedade local
Alto Trombetas II: Boa Vista, Água Fria, Trombetas e Erepecuru, referia-se a seus habitantes como “pretos dos mocambos”
titulados entre 1995 e 1998 (por ordem de obtenção do título); ou “mocambeiros”. O termo quilombo foi incorporado no
Alto Trombetas I, parcialmente titulado (na área que pertencia ao vocabulário local depois que a Constituição Federal de 1988
estado do Pará) e em processo de titulação (na área pertencente fez menção a direitos das “comunidades remanescentes de
à União); Cachoeira Porteira, titulada em 2018; e Ariramba, em quilombo”. Para mais informações sobre o histórico de ocupação
vias de titulação (na porção de terra do estado do Pará). da área, ver Funes (2000) e Salles (2005).
expedições de recaptura e de outras medidas bravas” permaneceram sem identificação
de uma comunidade remanescente de quilombo na Amazônia
Aporias da proteção do patrimônio cultural e natural
punitivas tomadas pelos governos nas vilas. e delimitação formal como comunidade,
a c i o n a l
direto pra cachoeira, pra lá foi o pai a mãe da Grande (Iphan, 2014:F-11-7).
minha mãe, avó minha, todos se esconderam A consequente organização em prol do
A
pra lá. Eu ainda vi minha avó contar que, olha reconhecimento de sua presença na região
e
eles iam de lá dessa paragem que eu tô dizendo, foi uma estratégia acionada pelos grupos
i s t ó r i c o
da cachoeira, uma tal de Campiche, eles iam pra negros para enfrentamento dos prejuízos
Óbidos fazer compras. Eles iam de canoa, que não imputados pela implantação praticamente
H
L u c i a n a G o n ç a l ve s d e C a r va l h o
de Antônia Pereira).
esquerda, em 1979. Esses dois eventos
d o
L u c i a n a G o n ç a l ve s d e C a r va l h o
a t r i m ô n i o
P
d o
e v i s t a
R
uma pressão muito forte para a gente. Castanha, ocorreu com o lago mais piscoso do território, Extrativismo em
Comunidade
eles tomavam a castanha da gente, prendiam a o Erepecu, em cujo acesso foi instalado um Remanescente de
Quilombos do Alto
castanha da gente (...). A gente se humilhava para 221
posto flutuante de fiscalização da reserva13. Trombetas II, 2017
Foto: Débora Marcião.
eles, mas a gente não saiu. A gente se humilhava
Encurralados entre os impactos
para eles dizia: “dá a castanha para gente comer,
ambientais da mineração e a preservação
a gente não tem o que comer (Cumbuca Norte,
praticada pelo Estado, os quilombolas viram
2017:390).
diminuir progressivamente a disponibilidade
As restrições de acesso e uso do território de recursos naturais indispensáveis a sua
atingiram em cheio a economia local, sobrevivência, de tal forma que seus modos
baseada em formas tradicionais de exploração de vida tradicionais seriam profundamente
dos diversos hábitats que o integram,
principalmente por meio de atividades 13. Não há rotas regulares de barcos de linha para o TQ Alto
Trombetas II, mas grande parte dos moradores possui embarca-
extrativistas, agrícolas e pesqueiras. Dentre os ção própria para deslocamento nos limites do território e entre ele
e as áreas quilombolas vizinhas. Contudo, o trânsito dos próprios
recursos explorados, o mais importante para moradores é fiscalizado pelo ICMBio, que mantém duas bases de
a renda familiar é a castanha, mas os maiores fiscalização, a primeira na altura do Lago do Erepecu (TQ Alto
Trombetas II) e a segunda no Tabuleiro, no território Alto Trom-
castanhais do TQ Alto Trombetas II ficaram betas I. Logo, rio acima e rio abaixo, as embarcações devem parar
nessas bases, onde estão sujeitas a revistas. O acesso de visitantes e
delimitados no interior da Rebio. O mesmo convidados deve ser previamente autorizado pelo ICMBio.
alterados, aproximando-os de uma nova filho de um parente meu (...) ele estava lá perto de
forma de escravidão como mão de obra na Trombetas pescando, uma linha só para sobreviver,
MRN14: “A mineração oferece os piores estava puxando aracu. Ele estava só com uma
linha e pirão, aí uma tal [agente do ICMBio]
trabalhos que tem para essa comunidade
passou lá. Levaram ele lá para feira, tomaram
(...). O trabalho do povo é só lavar banheiro
rabeta, tomaram a canoa dele, as linhas e ainda
e roçar mato, ficar subindo essas serras da botaram uma multa para ele pagar (...). Muitos
mina... Isso é uma coisa de escravidão” – funcionários do ICMBio estão mais acostumados
resumiu um quilombola. A percepção da nas comunidades, a conhecerem a realidade, eles
escravidão é reforçada pela obrigação de têm a visão diferente. Mas tem uns que têm a visão
se apresentar nos postos de fiscalização do de onde eles vieram e querem fazer a lei do jeito
ICMBio – “uma vergonha para andar na que eles pensam que tem que fazer, aí, fica difícil
de ter uma relação boa com a pessoa. (Cumbuca
terra que os nossos antepassados deixaram pra
Norte, 2017:351).
gente” –, assim como pelas ações de revista e
apreensão de pescados e apetrechos de pesca. Com a promulgação da Constituição
Proíbe muito, tudo é proibido. Se você pegar
Federal de 1988, especialmente com o art. nº
até um peixe para você comer com a sua família, 68 do Ato das Disposições Constitucionais
se estiver passando ali e agarrar você com uma Transitórias – ADCT, conferindo “aos
quantia de 20 peixes para você levar para sua remanescentes das comunidades dos
família, o ICMBio pega, toma, ainda bota processo quilombos que estejam ocupando suas
em cima de você para você pagar multa. Tem um terras” o direito à propriedade definitiva
sobre elas e incumbindo o Estado da emissão
14. De modo geral, “as experiências da escravidão vividas pelos
antepassados dos remanescentes de quilombos de Oriximiná
dos respectivos títulos, os agrupamentos
persistem em gestos, memórias, pesadelos e histórias passadas negros do Trombetas começariam a
de pais para filhos. Conformam um material simbólico denso
para a elaboração de representações de um passado comum, as mobilização em prol da identificação e
quais reforçam o sentimento de pertença étnica e alimentam a
continuidade das comunidades” (Carvalho, 2015:73). delimitação das terras ocupadas.
Em 1989, durante uma visita do então reservas técnicas na área da Flona, ora criada, não Campo de extração
de bauxita,
presidente da República José Sarney, os sofrerão solução de continuidade (...). Porto Trombetas,
Oriximiná (PA), 2016
quilombolas assistiram à criação da Floresta Art. 4º Fica excluída do presente Decreto a Foto: Alexandre Rocha.
Nacional – Flona de Saracá-Taquera – FNST, área de 1.884 ha, denominada Almeidas, de pro-
englobando uma extensa área na margem priedade da Mineração Rio do Norte, conforme
direita do rio Trombetas onde a MRN já escritura pública de compra e venda e cessão de
Direitos Hereditários e Meação lavrada no Car-
atuava. A criação dessa UC em área ocupada
tório do 24º Ofício de Notas do Rio de Janeiro,
por comunidades do Alto Trombetas II,
Livro nº 2.809 - fls. 72, D 20, em 25-3-83.
providenciada antes mesmo que o governo
Art. 5º Fica o Instituto Brasileiro do Meio
procedesse à titulação do território conforme
Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
o mandamento legal, acirrou a luta pela
– Ibama autorizado a celebrar convênio com a
terra. Embora menos proibitiva que a Rebio,
Mineração do Rio Norte S.A., objetivando obter
a Floresta Nacional também significou apoio na implantação da Floresta Nacional Saracá-
restrições de acesso e uso de recursos naturais Taquera e proteção de sua área.
para a população local, mas, paradoxalmente, Art. 6º A área da Floresta Nacional, ora
assegurou a presença continuada da criada, fica declarada de interesse social, conforme
mineração no próprio documento legal preconiza o art. 5º, letra “b”, da Lei nº 4.771/65,
de criação da Unidade , o Decreto nº
15 ficando as desapropriações que se façam necessárias
98.704/1989: a cargo do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e
dos Recursos Naturais Renováveis.
Art. 2º As atividades de pesquisa e lavra
minerais autorizadas, já em curso ou consideradas Por um lado, a criação da Flona restringiu
a disponibilidade de terras para agricultura
15. A legislação sobre mineração em Unidades de Conservação e o acesso a palhas, cipós e madeiras para
no Brasil é, conforme mostram Lima (2006) e Ricardo & Rolla
(2006), permeada por imprecisões e contradições. Uma delas é a a construção de casas, barcos e cercas, por
autorização de atividades minerárias nas Flonas criadas antes da
Lei nº 9.985/2000 e onde houvesse previsão de mineração. exemplo. Por outro, o desflorestamento dos
Campo de extração platôs para exploração de bauxita extinguiu, áreas ocupadas pelas famílias negras,
de bauxita,
Porto Trombetas, em grandes extensões da floresta, árvores que então passavam a se autodefinir
Oriximiná (PA), 2016
Foto: Alexandre Rocha.
das quais se extrai óleo de copaíba, segundo como “remanescentes de quilombo” e
recurso em importância na composição “quilombolas”. Nesse movimento, os líderes
da renda monetária das famílias locais. Ao negros contaram com o apoio essencial da
mesmo tempo, afastou a caça que faz parte de Igreja católica e de organizações da sociedade
sua dieta alimentar. civil para a constituição de comunidades.
Em reação às perdas sofridas, líderes A grupalização era uma vertente
negros de diversas localidades fundaram, fundamental de atuação da Igreja, por meio
em 1989, a Associação das Comunidades da formação de Comunidades Eclesiais de
Remanescentes de Quilombo do Município Base – CEB, ou seja, de grupos comunitários
de Oriximiná – Arqmo. Por intermédio aos quais párocos e leigos prestavam
dessa entidade, incentivariam a politização acompanhamento sistemático e assessoria
e a formação de organizações locais nas para organização política (Carvalho, 2011).
Esperava-se, nesses grupos, estimular o dos 2000. Com a edição do Decreto nº
a c i o n a l
numa visão crítica da realidade [e] contribuir direito previsto na CF-88, elas reivindicaram
na integração do homem do campo com sua perante o Estado a titulação do território
quilombola que ocupam, em um processo
N
comunidade, na perspectiva de transformação
r t í s t i c o
global, a partir de sua condição concreta, aberto no Incra em 2004.
cultural e histórica” (Azevedo & Apel, Desde então, a propriedade das terras
A
2004:18). ocupadas não lhes foi reconhecida e a
e
A adoção de práticas associativas conduziu titulação ainda é uma perspectiva distante,
i s t ó r i c o
a novas formas de apropriação do espaço em função da sobreposição de interesses do
em uma região ocupada por moradias Estado e da mineradora aos interesses dos
L u c i a n a G o n ç a l ve s d e C a r va l h o
quilombolas. Nesse ínterim, refletindo tal
a t r i m ô n i o
dispersas que, se ampliavam o domínio
territorial dos negros no TQ Trombetas, sobreposição de interesses, três processos
refletindo espacialmente uma ampla rede de administrativos se desenrolam em diferentes
P
parentesco e afinidade, também dificultavam instâncias do governo federal: o mais antigo
d o
a organização coletiva. Então, para além propõe o tombamento dos quilombos; outro
e v i s t a
das moradias e das vastas áreas de uso, que requer a titulação do território quilombola;
R
compreendem locais de trabalho e fruição, e o mais recente visa ao licenciamento
foram criadas sedes comunitárias com da mineração em áreas pleiteadas pelas
estruturas de uso comum: barracão para comunidades quilombolas do Alto II.
reuniões e festividades, capela e, em alguns Os três processos ensejaram estudos
casos, escola. multidisciplinares, inclusive de natureza
Essas edificações constituíram marcos físi- antropológica, capazes de fornecer um
cos da ocupação e da organização formal dos diagnóstico das comunidades. Juntos, o
225
agrupamentos enquanto comunidades. Mas, INRC-Quilombos, o Relatório Técnico
em paralelo, processos de reconstituição da de Identificação e Delimitação – RTID
memória coletiva forneceram os marcos sim- do território e o Estudo do Componente
bólicos do reconhecimento dessas comunida- Quilombola – ECQ das comunidades
des para além das bases territoriais, enquanto localizadas no entorno da Mineração Rio
do Norte são suficientemente indicativos da
(...) unidades sociopolíticas que se representam complexidade dos choques entre direitos que
para si e para a sociedade abrangente, a partir
elas vivenciam, não só porque conflitam seus
da assunção da identidade quilombola, num
direitos naturais e culturais (Benatti, 1999),
movimento de superação do histórico de
mas também porque o exercício de seus
preconceito e negação de direitos, e de valorização
direitos fundamentais enquanto grupo colide
de tradições comuns (Carvalho, 2015:65).
com o exercício de direitos de outros. Sem
No Alto Trombetas II, as comunidades solução vislumbrada em curto e médio prazo,
se organizaram formalmente entre a segunda o caso possivelmente demanda formas de
metade dos anos 1980 e a primeira metade reconhecimento e proteção sui generis.
O Aporia é, então, o “beco sem saída”
de uma comunidade remanescente de quilombo na Amazônia
Aporias da proteção do patrimônio cultural e natural
quilombo e a aporia da
p r o t e ç ã o d o pat r i m ô n i o ou a “sinuca de bico”17 que a linguagem
a c i o n a l
pequena, lhe obstruía a passagem. Conforme que vale mais? O direito do quilombola, da
Hércules tentava esmagá-la com os pés, mineradora ou do ICMBio?”.
H
L u c i a n a G o n ç a l ve s d e C a r va l h o
Athena, que o aconselhou a não a combater, locamentos feitos em pequenas rabetas18 pelo
d o
Na filosofia, o termo aporia é utilizado tantes de órgãos federais que atuam na região,
ele reitera a pergunta até que seja respondida.
R
a c i o n a l
reivindicadas, seja à proibição da mineração, interesses públicos tão ou mais relevantes”.
seja ao tombamento dos quilombos. Entendendo o interesse nacional como
Por um lado, há o argumento de que,
N
interesse público, essas teses justificam
r t í s t i c o
como o art. 225 da CF-88 reconhece a todos a prevalência do interesse de minerar o
o direito ao meio ambiente ecologicamente subsolo sobre o direito de propriedade do
A
equilibrado, é dever do Estado garanti-lo, solo. Já as teses ambientalistas, baseando-se
e
inclusive por meio da criação de Unidades
i s t ó r i c o
na concepção das UCs como bens de uso
de Conservação, que não podem ser extintas comum e de interesse social difuso, sustentam
por mera decisão do órgão competente, que sobre elas se exerça “proteção jurídica
L u c i a n a G o n ç a l ve s d e C a r va l h o
senão por lei. Assim, um conflito de
a t r i m ô n i o
excepcional, indisponível, que se sobrepõe
interesses é instaurado dentro do próprio a todo e qualquer interesse patrimonial,
Estado, personificado no ICMBio e no mesmo que seja interesse econômico estatal
P
Incra, que integram o Executivo, mas a (portanto, mesmo que o interesse econômico
d o
resolução da contenda só pode advir de seja público)”, conforme Lima (2006:10).
e v i s t a
uma decisão do Legislativo. De tal modo, o Enfim, mais uma vez, a legislação não ajuda a
R
ADCT nº 68 torna-se praticamente inócuo, resolver os impasses vividos pelos quilombolas
já que a regularização fundiária não pode do Trombetas.
ser completada. Por último, considerando a tardia
Por outro lado, considera-se que,
regulamentação do ADCT nº 68, combinada
pertencendo os recursos minerais, inclusive
à determinação do art. 216 da CF-88 de que
os do subsolo, ao patrimônio da União,
“ficam tombados todos os documentos e os
conforme determina o art. 20 da CF-88,
sítios detentores de reminiscências históricas 227
cabe à própria União dispor dos direitos
dos antigos quilombos”, atores sociais ligados
de pesquisa e exploração minerária; e que,
ao movimento quilombola protocolizaram
sendo a mineradora legalmente constituída
no Iphan, em 1995, o processo nº 1353-T-
detentora desses direitos, deles pode fazer
95, em que requereram o “tombamento dos
uso. Porém, em se tratando de uma Flona,
quilombos de Oriximiná”. Ele permanece
a legislação dá margem a interpretações e
sem desfecho até o presente, mas deverá
decisões que se contradizem.
ter destino semelhante ao do processo de
Segundo Lima (2006:9), lacunas e
tombamento da floresta amazônica, pois, em
imprecisões das leis colocam na arena de
parecer técnico de 1995, o Departamento de
debates sobre a mineração em UCs teses
Proteção –Deprot, do Iphan, recomendou seu
dos ambientalistas e dos mineradores, estas
arquivamento. Um dos motivos apontados no
últimas promovendo uma “deliberada
parecer foi:
confusão entre os conceitos de interesse
nacional, utilidade pública e interesse social (...) o fato de que, nos autos do processo e na
promovida pelo setor da mineração com bibliografia por nós consultada, não conseguimos
relacionar os espaços atualmente ocupados pelas dos antigos quilombos”, examinamos então
de uma comunidade remanescente de quilombo na Amazônia
Aporias da proteção do patrimônio cultural e natural
L u c i a n a G o n ç a l ve s d e C a r va l h o
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R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
232
L u c i a n a G o n ç a l ve s d e C a r va l h o Aporias da proteção do patrimônio cultural e natural
de uma comunidade remanescente de quilombo na Amazônia
Juvêncio da Silva Cardoso
a c i o n a l
A cuia e a formação do universo :
N
uma abordagem baniwa no contexto
r t í s t i c o
da física intercultural
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
Introdução Baniwa é o nome da língua1 dos povos
indígenas que habitam a bacia do rio
P
d o
ou Medzeniako (André Fernando, 2006).
abordagem acerca da formação e constituição
e v i s t a
A tradução literal do termo Wakoenai é
do universo, partindo da cosmovisão do
“povos de nossa língua” ou “os falantes
R
povo baniwa do rio Aiari, com a escolha
da nossa língua” (wako= nossa língua,
da cuia como elemento de referência
nai= povos ou coletivos) e o termo
para descrever a formação do universo.
Medzeniako refere-se ao que “nasce falando
Apresentaremos a participação desse artefato a língua” (medzeni= nascer, ako= língua).
no conjunto de elementos que contribuíram Na estrutura social e sua classificação
para a constituição do mundo a partir das exogâmica, o povo baniwa se divide
233
etapas de sua transformação progressiva, em quatorze clãs, a saber: Adzaneeni,
designando por meio das narrativas do Awadzoro, Dzawinai, Dzoleemeni,
mito tal composição na perspectiva dos Hohoodeni, Kadaopoliro, Kañhetalieni,
Baniwa. Buscamos também compreender Koitsinai, Kotteeroeni, Maolieni,
e relacionar a importância da cuia quando Moliweni, Paraattana, Tomieni, Walipere
associada com a vitalidade invocada através Dakeenai. Todos estes grupos são hoje
Mingaus de açaí,
falantes da língua baniwa. Além dos quatro buriti, abacaxi,
dos benzimentos dos xamãs iñapakaita bacaba e farinha de
que falam a língua koripako, que vivem no mandioca, servidos
(benzedores), para proteger a vida e no centro comunitário
dos Koitsiliali, do
alto rio Içana: Kapittininanai, Komadeeni, médio rio Aiari (AM),
promover o crescimento das crianças. Por 2015
Komadaminanai e Padzowalieni. Esses Foto: João Vianna.
fim, pretendemos demonstrar, de forma
panorâmica, a utilidade da cuia como 1. Baniwa é uma das línguas que pertencem ao tronco linguístico
arawak. Na região do alto Rio Negro, existem quatro troncos
utensílio doméstico indispensável na vida linguísticos: arawak, tukano, maku e yanomami. A língua baniwa
é uma das línguas oficiais no município de São Gabriel da
cotidiana atual das comunidades do rio Aiari. Cachoeira (AM).
dezoito povos, falantes das duas línguas2, A
A cuia e a formação do universo: uma abordagem baniwa no contexto da física intercultural
f o rm a ç ã o d o u n i v e r s o
são habitantes originários da bacia do rio n a p e r s p e c t i va d o s Baniwa
a c i o n a l
Esses povos detêm e mantêm um rico do sítio Loiro Poço no rio Aiari, considerado
saber sobre a natureza e os fenômenos que um dos últimos pajés-onça3 baniwa, tal
A
dela se originam. Assim, esta abordagem como registrado pelo antropólogo Wright
e
especialistas xamânicos (Fontes, s/d): os primeira terra para ele, a “Criança-Universo”. Seu
R
maliri (pajés), os iñapakaita (benzedores), nome era a Criança Universo, Hekwapi ienipe.
os inoparotakaita e os yarokaita ooni
Na narrativa compreendemos que, no
(jogadores de água). O conhecimento que
princípio, não havia quase nada no universo
detêm não é um saber comum a todos, pois
“apenas uma bolinha de pedra no espaço”.
é fruto de uma formação que proporciona
Essa bolinha é a própria “Criança-Universo,
conhecimento e práticas especializadas para
Hekoapi ienipe”4. Os termos pedra e pomba
234
curar doenças e para oferecer conselhos e
devem ser entendidos como metáforas e
orientações. Esses especialistas são os que
quando Matteo Pereira exprime a ideia
mais sabem sobre a formação do cosmos
baniwa; por esse motivo, a presente pesquisa de que ele (Criança-Universo) “mandou
Este trabalho perseguirá o ponto de vista a ação gerada pela força da natureza cuja
etnográfico para sustentar o quão importante consequência foi agregar outras pequenas
é compreender a percepção dos Baniwa
3. Pajé-onça (dzawi maliri) é o que detém e reúne o “saber-
sobre o universo, suas etapas de formação e poder-fazer”, ou seja, possui o saber associado ao xamanismo
e com isso ele pode se transformar (antropomórfico) em outro
a importância da participação da cuia nesse mundo ou estado de visão possuindo outras visões sobre o
mundo e a partir daí fazer acontecer algo como, por exemplo,
processo ainda hoje sustentado no contexto curar doentes ou causar doenças (ataques) para outros seres. “São
da vida desse povo. eles os conhecedores das cerimônias de curas, das construções
das malocas, da criação e manutenção dos cosmos” (Gentil,
2007:214). Os pajés tinham as forças, movidas pela energia solar,
provam raios e trovão (ibid.:236).
2. As línguas baniwa e koripako são diferentes, mas os falantes
delas podem se entender com facilidade. Ramirez (2001), 4. Hekwapi ienipe e Hekoapi ienipe significam a mesma coisa. O
linguista que elaborou estudos sobre a língua baniwa, defende que muda é apenas grafia, devido à reformulação e evolução da
que o baniwa e o koripako são apenas variações dialetais. escrita na língua baniwa.
bolinhas, os átomos, para ir constituindo se referir ao poder de Heeko em atribuir,
a c i o n a l
expressões revelam-nos que os pajés propriedades, constituindo novas partículas.
inferem conceitos da física, tais como o Ele possui, portanto, “força”, ou melhor,
com essa força ele converge e gera
N
de que a própria força da natureza vai
r t í s t i c o
gerar o surgimento e a formação de outros outras propriedades.
componentes no universo. Podemos, então, tirar uma conclusão pre-
A
Outra narrativa interessante que diz liminar: no primeiro momento existia Heeko,
e
respeito a esse princípio do universo caracterizado como força existente e que
i s t ó r i c o
encontra-se registrada por Paula Brazão tem o poder de evoluir e agregar, alcançando
(2004:8) em seu trabalho de conclusão do outro estado, constituindo nova partícula: “a
H
bolinha de pedra no universo”, chamada de
a t r i m ô n i o
curso de ensino fundamental da Escola
Baniwa e Coripaco Pamáali, em que observa: Criança-Universo, representando o próprio
corpo do Sol que deveria procurar a Terra,
No princípio não existia quase nada, somente
P
como sugere a narrativa de Matteo Pereira.
d o
havia um homem chamado Heeko, o primeiro
As forças agiram em grande quantidade e
e v i s t a
criador de todas as coisas do mundo. Durante
R
mundo. O Heeko é homem invisível, somente
vivia no espaço, porém tem o seu conhecimento Pela natureza e conexão das narrativas, re-
enorme. E começou a criar todas as coisas que a corremos a outra, contada por Gabriel Gentil
gente encontrou no mundo (...). (2007:218), pajé da etnia tukano e que tam-
bém vive na região do alto Rio Negro:
Aqui podemos interpretar que antes de
A Maloca é construída semelhante à estrutura
existir a “bolinha de pedra no espaço” já
do corpo do ‘Criador Deus Pedra Ëhtã Õakhë’.
existia outra forma de propriedade chamada 235
Na Maloca existe estrutura, simbolicamente, do
Heeko. Esse termo é o início da expressão
Mundo e do Universo, é a cultura dos Arawak do
hekoapi em baniwa, portanto, diz respeito rio Içana e das tribos Baniwa, Tariano, Werekena,
ao próprio universo, ao mundo. Heeko “é Coripaco, que são culturas maiores.
homem invisível, somente vivia no espaço,
porém tem o seu conhecimento enorme”. Nessa narrativa de mitos notamos a
Invisível apenas do ponto de vista do humano coincidência quando ele menciona “Deus
a olho nu, posto que, do ponto de vista do Pedra”, como criador do universo, que é
próprio Heeko, ele existe, não é invisível e o próprio corpo do Sol. Matteo Pereira,
tem o seu enorme conhecimento. Sobre esse pajé baniwa, já vimos, também menciona
a existência de pequena “bola de pedra”,
conhecimento, é
chamada por ele de
fundamental
Criança-Universo,
explicar que,
que também é o Cerâmica baniwa (AM).
possivelmente, a Taças geminadas,
1959
próprio corpo do
autora pretendeu Acervo: Museu do Índio.
Sol. Gentil revela a Mulher, é a nossa mãe. É o Deus Pedra Quartzo
A cuia e a formação do universo: uma abordagem baniwa no contexto da física intercultural
forma: “Criador
os morros altos são os seios dela. Todos os tipos
do Mundo Deus
de seres vivos, animais e nós humanos somos os
Pedra Quartzo Branco,
N
fogo. É atual Avô do Mundo Ëmëkho Ñihkë” percepção baniwa do mundo, o universo
e
é que os povos arawak se consideram como como “Gentes-Astro”. Porque para outros
a t r i m ô n i o
Arawak são tribo Gente Pedra Ëhtã Mahsã, a considerados como hekoapinai6 ou gente-
d o
mesma Gente Jurupari” (2007:249). Porque universo (Cornelio, 1999). O Sol como sendo
e v i s t a
são ditos, e se consideram, filhos do Sol, a o marido e a Terra como mulher. A vida
Pedra Quartzo Branco. Gentil acrescenta “A
R
a c i o n a l
apontar que alguns astros e constelações
conhecidos pelos Baniwa são considerados sentido horizontal, somente três dessas
como avós, outros como instrumentos camadas se destacam:
N
r t í s t i c o
ou, ainda, como animais. As Plêiades, por Os espaços horizontais incluem centros-
exemplo, representam Walipere, o avô do clã mundo, onde tipicamente os valores e os
A
Walipere-dakeenai. Outras constelações são significados mais importantes da existência se
e
assim identificadas pelos Baniwa: Opitsinaa, o
i s t ó r i c o
juntam em símbolos-chave (...).
material de pesca chamado matapi; Omainai, Verticalmente, o Universo constitui-se de uma
a Piranha; Maalinai, a Garça; Dzaakanai, série de camadas, geralmente uma sobre a outra.
H
Cada camada é um “mundo” diferente, onde
a t r i m ô n i o
os Camarões; Dzoroonai, as Cigarras, entre
outras. Esses astros exercem influência na entes diferentes moram. As estruturas verticais do
universo variam enormemente de composição, de
Terra através de fenômenos climáticos
simples arranjos de três camadas (mundo superior,
P
provocados, funcionando como reguladores
d o
mundo intermediário e submundo) a composições
de variações climáticas.
e v i s t a
massivas de 25 camadas habitadas por uma grande
R
organização do
u n i v e r s o n a p e r s p e c t i va Esses mundos são ligados através de uma
baniwa espécie de tubo. Cada camada é conectada
às outras acima e abaixo por tubos passando
Na percepção baniwa do mundo, o através de seus centros. A ideia talvez se
universo não está isolado de outros mundos. aproxime à teoria de supercordas, como
André Fernando, liderança e pensador desse sugerido por Machado (2008:3):
237
povo, sintetizou isso da seguinte forma, Os mais recentes postulados da física sugerem
no Seminário Internacional de Gestão de que não haveria apenas um, mas vários universos
Áreas Protegidas na Amazônia, realizado em coexistindo paralelamente. Mais do que mera
Manaus (maio de 2015): “o mundo é grande especulação, essas teorias baseiam-se na mais
e é pequeno. A humanidade é o mundo, recente interpretação do universo, denominada
não outra coisa”. Na expressão “o mundo teoria das supercordas (...).
é grande”, deve ser considerada a escala
astronômica, o macrocosmo na teoria da A perspectiva do universo como
relatividade e, na expressão “é pequeno”, a sendo composto por várias camadas
escala do microcosmo da teoria quântica. (kuma), coerentes em si mesmas, tal como
Nesse sentido, segundo José Garcia, apresentado por Garcia a Wright, delineia
um dos últimos pajés-onça e um dos mais diferentes mundos coexistindo. O que
influentes dos Baniwa, conforme registrado se aproxima da sugestão de Machado
por Wright (2014:196), o universo é (ibid.) de que o “universo” poderia
constituído por 25 camadas em que “cada ser mais apropriadamente designado
disco é um ‘mundo’, kuma, habitado por uma de “multiverso”.
A o pai da humanidade. A Terra como a mãe.
A cuia e a formação do universo: uma abordagem baniwa no contexto da física intercultural
cuia como um
dos componentes na A mitologia do povo Arawak, em especial
a c i o n a l
muito forte para os diferentes povos indígenas avô do mundo9: “Tudo que ele possuía, sua
do alto rio Negro7. Ela está associada com casa, seus instrumentos e seus adornos eram
A
que é o Sol; e a Mãe Criadora, a Terra. Mitos Na mitologia de origem dos povos
d o
a c i o n a l
espécies estão dispostas naturalmente nas
A cuia é derivada da fruta de cuieira, margens desses rios. Quando o rio enche, os
seus frutos boiam descendo rio baixo, como
N
da família das Bignomiáceas, também
r t í s t i c o
conhecida como árvore-de-cuia, cabaceira, forma de dispersão” (Júlio Cardoso, entrevista
coité, cuité ou cuiteseira, de nome científico em 21 de novembro de 2015).
A
Crescentia cujete14. Abaixo apresentamos as
e
espécies que são manejadas pelos Baniwa nos Utilização do fruto da
i s t ó r i c o
rios Aiari e Içana: cuieira pelos Baniwa e
1) Kooya é da espécie de cuieira outros povos
H
a t r i m ô n i o
mencionada acima. É uma planta arbusto,
com ramificações bem alongadas. Seu plantio O fruto da cuieira, tanto do arbusto
e manejo ocorrem basicamente ao redor quanto da espécie rastejante, tem múltiplas
P
da comunidade, podendo ser encontrada utilidades. Até recentemente era comum,
d o
entre os Baniwa centrados na região de os maliirinai (pajés)15 usarem como instru-
e v i s t a
R
e bonita, é muito cultivada no Brasil, da
Amazônia até o Rio de Janeiro e Goiás e, da cuieira. Com os sons do kottiro e com os
possivelmente, em países vizinhos como a gestos que fazem com braços, estando sob o
Colômbia e Venezuela. efeito do paricá16, os pajés invocam os espíri-
2) Atthaipikhaa é uma espécie de tos para curar enfermo, proteger o corpo das
caule rastejante. Atthai é o fruto. Atta é a pessoas e manejar o mundo. Assim, com seu
cuia feita desse fruto. Essa espécie de cuieira saber-poder-fazer17, os maadzeronai – mestres
de dança da tradição – o usavam para dar 241
é planta rastejante e trepadeira. Plantada e
manejada ao redor da comunidade, raramente ritmo a certo tipos de dança, como a de dan-
tem cultivo na roça. Encontrada entre os ça-de-kottiro18. Algumas sociedades indígenas
Baniwa que vivem em terras de solo arenoso. na Amazônia o utilizam com a mesma finali-
A estrutura da casca da fruta é mais grossa do dade, inclusive adaptando-o para confeccio-
que a Kooya, mas não é muito resistente.
3) Maromaro é espécie que existia no 15. Atualmente no rio Aiari existem apenas quatro pajés vivos
rio Guaviare, mas não no rio Içana. É conside- e mais um morando na cidade de São Gabriel da Cachoeira
(AM). Dois dos quatros são relativamente jovens (do ponto de
rada como cuia d’água pelos benzedores. vista baniwa), um de cerca de 19 anos de idade e outro com 38
anos respectivamente. Outros dois já estão na idade dos 80 a 90
anos. Inclusive, o que mora na cidade está se aproximando dos
100 anos.
muito comum da cuia é servir como vasilha, como não sofreu substituição por outros
a c i o n a l
como remédio antiasmático, emoliente, ex- cuia atualmente, na região do rio Aiari, está
pectorante, laxante19. voltada principalmente para servir bebida
A
Na época do Brasil colônia, a cuia foi líquida como a água, o xibé e o mingau. Ela
e
alvo de comércio enquanto arte indígena está presente em todas as rotinas de refeições
i s t ó r i c o
vasos para beber e algumas vezes decorados com instrumento industrializado, o termo não é
d o
grafismos. A pintura decorativa é atribuída à mais utilizado, ou seja, tronou-se arcaico. Mas
e v i s t a
milenares para que seu sentido seja realmente Esse artigo deve ser uma contribuição
agregado aos valores sociais, culturais e à filosofia de educação e pedagogia
ambientais dos Baniwa. intercultural que deve ser cada vez mais
Assim como apresentamos de forma implementada e consolidada nas escolas
panorâmica e contextualizada as situações baniwa e coripaco de ensino fundamental e
atuais do uso cuia no cotidiano das médio. Essa atitude deve ser assumida pelos
sociedades indígenas e, sobretudo, do estudantes baniwa e coripaco, retomando o
povo Baniwa do rio Aiari, entendemos princípio da pedagogia de formação de pajés
esse artefato como um verdadeiro bem do fundamentada na experiência de “poder-
patrimônio material cultural. É, portanto, saber-fazer”.
fundamental manter vivo, preservar e utilizar No âmbito do movimento social baniwa
tanto o conhecimento tradicional como os e coripaco, a educação intercultural é vista Comunidade Baniwa
Awiñapamiana, do
conhecimentos técnicos e científicos, com a como oportunidade para construir o bem médio rio Aiari (AM),
2015
inclusão de novas tecnologias, no sentido de viver no mundo. A escola é apontada como Foto: João Vianna.
ferramenta importante para a construção Tiquié: conhecimentos tukano e tuyuka, ictiologia,
a c i o n a l
permitirão alcançar o objetivo de viver práticas dos povos indígenas do rio Negro, noroeste
e estar bem no mundo. Desse modo, a amazônico. São Paulo: Instituto Socioambiental; São
Gabriel da Cachoeira: Foirn, 2010.
N
formação acadêmica desses povos deve
r t í s t i c o
CABALZAR. A.; RICARDO. C. A. Povos indígenas do
respaldar as necessidades locais. A formação
alto e médio rio Negro: uma introdução à diversidade
não deve se limitar à prestação de serviços cultural e ambiental do noroeste da Amazônia brasileira.
A
nas comunidades, mas também buscar 2. ed. São Paulo: Instituto Socioambiental; São Gabriel
e
da Cachoeira: Foirn, 1998.
oportunidades para assumir e exercer funções
i s t ó r i c o
CABALZAR, Flora Dias. Educação escolar indígena do rio
em outras sociedades e em qualquer nível, Negro: relatos de experiências e lições aprendidas, 1998-
desde que seja voltado para o bem viver dos 2011. São Paulo: Instituto Socioambiental; São Gabriel
H
da Cachoeira: Foirn, 2012.
a t r i m ô n i o
seus povos.
CARDOSO, Juvêncio; SILVA, Adeilson Lopes da.
Com essa perspectiva, nos propusemos
Diálogos sobre manejo ambiental no Içana. Texto não
aqui a contribuir para o ensino da física publicado, jun.2011.
P
intercultural no ensino fundamental e no CASTRO, Eduardo Viveiros de. Os pronomes
d o
cosmológicos e o perspectivismo ameríndio. Mana, n. 2,
ensino médio, nas escolas baniwa e coripaco
e v i s t a
v. 2, p. 115-144, 1996.
R
A sabedoria dos nossos antepassados: histórias dos
Referências Hohodene e dos Walipere-Dakenai do rio Aiari. São
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gestão territorial e ambiental das terras indígenas do alto Bang. Brasília, 2008. Disponível em <http://www.
e médio rio Negro, v. 3. São Gabriel da Cachoeira: Foirn/ metaconsciencia.com>. Acessado em 15/6/2016.
Funai/ISA, out.2017. Disponível em <https://issuu. Rio Solimões (AM),
RAMIREZ, Henri. Dicionário baniwa-português. 2006
com/instituto-socioambiental/docs/governanca3_web>. Manaus: Ed. da Universidade do Amazonas, 2001. Foto: AC Junior.
246
Juvêncio da Silva Cardoso A cuia e a formação do universo: uma abordagem baniwa no contexto da física intercultural
Awiñapamiana, do médio
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
247
Juvêncio da Silva Cardoso A cuia e a formação do universo: uma abordagem baniwa no contexto da física intercultural
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
248
Ana Léa Nassar Matos O voo da fênix de José Sidr im
Ana Léa Nassar Matos
a c i o n a l
O voo da fênix de J osé S idrim
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
Poderíamos considerar que a bandeira da a ação criminosa, a notícia se propagou,
preservação do patrimônio histórico edificado chegando ao conhecimento daquele grupo
em Belém, no que consiste ao reconhecimen- de arquitetos. Estes, preocupados com a
P
to dos valores de sua arquitetura eclética, foi assiduidade com que essa prática vinha sendo
d o
e v i s t a
levantada em 1989, por um grupo liderado adotada, se articularam, buscando meios
por arquitetos, ao qual se agregaram fotó- para a sensibilização da opinião pública. A
R
grafos, artistas plásticos, poetas, jornalistas, cidade não dispunha de instrumentos legais
professores, estudantes, em repúdio à vora- para conter tais desmandos; a arquitetura
cidade com que estavam sendo substituídas eclética, em suas manifestações não
as antigas vestes arquitetônicas por figurinos monumentais, necessitava ser reconhecida,
modernos impostos pelo “progresso”. por parte dos órgãos responsáveis pela
A cidade ainda guardava quarteirões preservação do patrimônio histórico e pela
com edifícios dispostos em harmoniosa opinião pública, como possuidora de valores 249
volumetria, em um cenário sombreado pela artísticos e históricos para que os processos de
arborização com mangueiras e pomares dos tombamento fossem referendados.
quintais. Uma paisagem que gradualmente No Brasil o preconceito contra o
ia sendo desfeita. Belém, desprovida de Ecletismo foi propagado pelos adeptos
um plano diretor, começava a devorar suas do Novo Estilo, que o destituíram de
próprias entranhas, destruindo o antigo para qualquer criatividade, ignorando os avanços
por cima construir o novo. tecnológicos, a funcionalidade, a higiene
Um fato exemplar foi aquele ocorrido e o conforto buscados em sua arquitetura.
com duas casas ecléticas, no estilo dos Daí se cristalizou a ideia de que fora uma
villinos italianos, projetos do engenheiro manifestação arquitetônica que apenas
arquiteto José Sidrim, localizadas na Avenida reproduzia os estilos do passado. A partir da
Magalhães Barata, cuja destruição teve início década de 1930, os ideais nacionalistas que Palacete Passarinho,
Belém (PA), 1927
Foto: Photo Studio
de forma silenciosa, na calada da noite. definiram a criação do estilo Neocolonial Frazão. Reprodução:
Otávio Cardoso/Acervo
Apesar dos cuidados para manter em sigilo e os ideais progressistas propagados pelo Ana Léa Matos.
Modernismo eram predominantes nas memórias acabou proporcionando novas
O voo da fênix de José Sidr im
artes visuais. Foram os responsáveis pela Sidrim por outros segmentos da população,
demora em reconhecer a importância do evidenciando o seu papel na construção da
Belém do início do século 20.
N
testo contra a destruição da memória da cida- de outra maneira. Já não era absurda a
e
Réquiem para Belém, com um grande cortejo valores artísticos e históricos acabaram
fúnebre. Seus integrantes, vestidos de preto, reconhecidos, bem como os arquitetos e
H
parecidas. Em cada prédio era colocada uma patrimônio histórico e artístico na cidade.
e v i s t a
coroa de flores, ao som de A Missão de Ennio José Sidrim, original de Fortaleza, Ceará,
R
encontram-se registradas nos relatórios senhos delineados pelo sr. José Sidrim, que fez jus
a francos encômios pela sua competência technica
a c i o n a l
porte. Constituía uma espécie de vitrine Agosto; typo de estampilhas para o anno de 1905
a t r i m ô n i o
254
Ana Léa Nassar Matos O voo da fênix de José Sidr im
a c i o n a l
o patrimônio da municipalidade8, e aguardou
a delicada nitidez do desenho, a sua clareza
o equilíbrio orçamentário para dar início a
minuciosa, revelando um labor de mezes e uma
sua demarcação.
N
competência indiscutível.
r t í s t i c o
A participação de José Sidrim nesse
Foi o trabalho que obteve maior trabalho não se restringiu ao desenho da
e
ativamente na demarcação das vias, hoje
i s t ó r i c o
participação de Sidrim, enquanto funcionário
municipal, tanto no momento de sua correspondentes ao bairro da Pedreira. Era
execução quanto posteriormente, servindo uma área fisicamente separada do resto da
H
cidade por um igarapé que transformava
a t r i m ô n i o
de parâmetro para intervenções futuras na
cidade e subsidiando estudos e pesquisas cujas aquela região num grande pântano. O
bases teóricas influenciaram o traçado de novo desenho permitiu o contato entre
P
expansão de Belém, no início do século 20. os dois trechos por meio de vias; também
d o
No atual ambiente acadêmico, o professor propunha um traçado ortogonal e quadras
e v i s t a
Fábio Castro (2010:149) faz especulações com dimensões maiores e regulares. Talvez
R
sobre o papel dele nas intervenções urbanas uma influência do modelo executado na
da administração Lemos: urbanização americana, na transição do século
19 e início do século 20, ou ainda, inspirada
(...) o projeto urbanístico de Lemos para
no plano de Ildefons Cerdà, elaborado para
Belém teve um outro mentor, ou talvez uma
Barcelona, em 1859, que tinha como suporte
equipe deles: o desenhista municipal José Sidrim e
o emprego da quadrícula com as vias radiais.
seu ajudante José Moreira da Costa, que auxiliaram
o intendente a conceber um projeto de futuro para
O intendente Lemos procurou atribuir
255
o desenvolvimento urbano da cidade.
a Belém as necessárias condições para a mo-
bilidade urbana e a organização do espaço
As ações do gestor municipal não ficavam da cidade, de forma pragmática, com base
restritas ao centro da cidade, ele também se na razão, utilizando-se de tudo o que estava
preocupava com sua expansão territorial. As disponível na época: do conhecimento geo-
obras que desenvolveu no então subúrbio do gráfico, da topografia, dos valores estéticos e
Marco da Légua, na administração de 1897 a dos valores urbanos, por exemplo. O Roman-
1902, dão conta disso : 7
tismo já havia passado, já não se pensava em
adequar-se à natureza, mas em dominá-la,
É evidente a tendência da expansão urbana
para aquelle ponto. Apertada entre o litoral, de um colocá-la a serviço da existência humana. Esse
lado, e os terrenos alagados da parte oriental, entre período tinha como princípio o racionalismo
os limites urbanos e o rio Guamá, esta cidade só da Modernidade, herdado do Iluminismo.
tem como desafogo o Marco da Légua (...).
8. O Decreto nº 766, de 21 de setembro de 1899, trata da
solicitação ao governo do estado de mais uma légua de terras,
7. Cf. o relatório de 1897–1902, p. 294. aumentando o patrimônio da municipalidade (ibid.: 248)
A nova planta de Belém não tinha a não ser possível distrahir, com este trabalho, os
O voo da fênix de José Sidr im
pretensão de ser uma proposta de redesenho engenheiros auxiliares, então cumulados de grande
a c i o n a l
teorias contemporâneas, adequadas às novas O desenhista sr. José Sidrim, além da grande
expectativas geradas para as cidades do início copia de plantas de diversas obras fornecidas
H
do século 20.
occupou-se ainda do seguinte: - planta da
O jovem desenhista, com 24 anos de ida-
superestructura metallica da ponte da villa
de, conquistou a plena confiança de Antonio
Pinheiro; planta cadastral da avenida 15 de Agosto,
P
a c i o n a l
Desempenhava atividades que precisavam imprescindível, no entanto, nesse mesmo
ser executadas com urgência e precisão e para ano de 1908, entre os assuntos da Secção de
Obras, encontra-se a comunicação de sua
N
tal era dispensado de outras tarefas : 11
r t í s t i c o
dispensa13: “Em cumprimento ao disposto
O desenhista, sr. José Sidrim, além da grande
na Lei no 503, de 4 de junho, dispensei, em
copia de serviços de detalhes d’esta Secção, occu-
e
Sidrim que sempre prestou bons serviços à
i s t ó r i c o
sentando o exgôtto da cidade – serviço que, pela
necessidade palpitante de sua execução, absorveu Secção, (...)”.
considerável lapso de tempo áquelle profissional. A lei a que se refere o intendente lhe
H
autorizava restringir as despesas municipais
a t r i m ô n i o
Em 1907, no segmento “Diversos para fazer face à crise econômica14. O
assumptos”, ele é apresentando como autor tema da redução dos gastos públicos são
P
de um projeto arquitetônico, um novo uma constante nesse volume do relatório,
d o
hipódromo para Belém, aparentemente um merecendo comentários contundentes de
e v i s t a
trabalho particular. Deveria ser edificado Lemos: “Apezar das cotações da borracha
em um terreno de área devoluta, para a qual haverem experimentado uma promissora
R
um capitão da guarda nacional solicitava alta, as condições econômicas do Estado,
ao município a concessão de construir (...), mantêm-se cheias de embaraços,
e explorar12. (...)”, ou ainda, “O mal é profundo e
A exibição do projeto do “Hippódromo grave”, considerando que seria urgente o
Municipal de Belém”, com os desenhos estabelecimento de medidas “Garantidoras
da planta baixa, secção e fachada, se deu da perfeita regularidade do organismo
257
no relatório de 1908. Apesar de todo administrativo da Communa”15. E, como
empenho do intendente em viabilizar o consequência, a redução da receita destinada
empreendimento, não foi encontrado aos municípios foi a saída, atingindo com
nenhum registro de sua execução. Acredita- maior gravidade a cidade de Belém. Foram
se que a crise econômica que começava a suprimidas escolas e dispensados professores,
dar sinais na cidade repercutiu fortemente os quadros foram reduzidos em diversas
nas verbas municipais, inviabilizando o repartições, funções foram acumuladas e
projeto. A datação desse episódio indica que reduzidos os vencimentos de alguns cargos.
a qualificação do desenhista como arquiteto
13. Cf. p. 55 do relatório de 1908. No Almanak Laemmert, do
ocorreu entre 1904 e 1906. período de1891 a 1940, constam as relações dos funcionários
municipais que estão na ativa e elas dão conta que José Sidrim
Todas as menções anteriores, feitas a permaneceu como desenhista da Secção de Obras Municipais até
seu respeito, sugeriam uma estabilidade 1910. Disponível no site da Hemeroteca Digital Brasileira, na
página 501, referente ao estado do Pará, na Lista Geral do Corpo
Legislativo da Communa
com engenheiros e arquitetos da época. Tudo Justo Chermont, durante a festividade de N.S. de
e
Nazareth.
de Belém, em que pôde ser partícipe das (...)
profundas intervenções que ocorriam sob o DIA 21 – Dia á praça, major Thomaz Benigno
H
Ali estabeleceu relações que foram Baganha; ronda, capitão José Sidrim, 1º tenente
particularmente determinantes, aquelas que Francisco Ferreira Balthasar, 2º tenente Joaquim
P
do Instituto Lauro Sodré receberam ainda dez acervos de renomados museus de arte do país.
menções honrosas. José Sidrim fazia parte dessa constelação.
No ano seguinte, em 1918, o mesmo Na memória familiar, sua formação em
jornal anunciou a relação dos jurados que arquitetura, segundo sua nora, foi obtida por
participariam da nova Exposição Escolar meio de uma escola italiana e da ajuda de
de Desenho: João Palma Muniz, que teria sido o interme-
260
diador de sua inscrição em um curso de ar-
(...) O sr. secretário geral nomeou hontem quitetura por correspondência, não se saben-
para comporem o jury de admissão os srs. dr.
do ao certo que cidade sediava o programa, se
Theodoro Braga, João Affonso do Nascimento,
Gênova ou Turim. A avaliação dos alunos se
professor Irineu de Sousa, Antonietta Santos, e o
dava através do envio pelo consulado italiano
architecto José de Castro Figueiredo e para o jury
dos seus estudos e trabalhos.
de julgamento, os srs. dr. Theodoro Braga, João
O ensino por correspondência atendia
Affonso do Nascimento, Irineu de Souza, dona
Antonietta Santos, José Girard, Carlos de Azevedo,
àquele segmento da população que
José Sidrim, dona Clotilde Pereira e o architecto necessitava de uma preparação científica,
José de Castro Figueiredo. segura, mas sem sacrifício de seus labores,
situação em que se encontrava José Sidrim.
Os componentes do júri eram pintores, Mesmo carecendo de uma formação técnica
desenhistas e arquitetos, distinguidos por seus mais aprofundada, ele não podia se ausentar
Fachada do Santuário de
São Francisco de Assis, talentos e capacidade intelectual. Atualmente, do trabalho e nem do país, por causa de suas
Belém (PA), 2017
Foto: Mateus Nunes. alguns deles possuem obras compondo os responsabilidades familiares e financeiras.
As evidências indicam que o curso se quando já tinha seu escritório em pleno fun-
a c i o n a l
particular continha oito publicações da 18
Sua produção na década de 1920 foi
Editora C. Crudo & C., situada naquela tão grande que chegou a figurar em uma
cidade italiana. reportagem no jornal Estado do Pará20, no ano
N
r t í s t i c o
Turim é a quarta maior cidade da Itália, de 1925. A matéria responsabilizava Sidrim
ficando atrás apenas de Roma, Milão e pelo aspecto moderno dos edifícios da cidade.
e
educação, que remonta ao ano de 1859, com o seu objetivo:
i s t ó r i c o
a implantação da Escola de Aplicação para
Convém por fim ao tipo de construção archai-
Engenheiros (Regia Scuola di Applicazione
H
ca; Belém é uma grande cidade e não desejo que fi-
per gli Ingegneri), que veio a se transformar,
a t r i m ô n i o
que em plano inferior ao de outras cidades, contri-
em 1906, no Regio Politecnico di Torino19. buindo com todo o meu esforço, com todo o meu
Nesse período, o consulado italiano de carinho para o embelezamento da construção civil,
P
Belém incentivava a participação em eventos ousando em estilo architetonico moderno, como se
d o
realizados em Turim, inclusive apresentando faz no Rio e em outras capitais adeantadas.
e v i s t a
facilitações burocráticas para isso.
O ensino a distância apresentava-se como
R
O diploma italiano, referente ao curso
a novidade da virada do século 19 para o 20,
por correspondência, possibilitou a imediata
no Brasil. Embora os relatos históricos sobre
inserção de José Sidrim no campo da
educação não se refiram a essa modalidade
arquitetura e da construção civil no estado
de cursos, constando apenas o costume da
do Pará.
formação fora do país para os filhos das
Com o passar do tempo, as exigências
famílias abastadas.
para a prática profissional foram possivel-
Em termos estilísticos, que semelhanças 261
mente alteradas, tornando-se necessário o
podem ser encontradas entre a prática
reconhecimento formal de sua competência,
arquitetônica de José Sidrim, com formação
como engenheiro arquiteto, por uma insti-
a distância, e a dos profissionais que
tuição nacional. Fato que explicaria sua outra
puderam fazer cursos presenciais em alguma
diplomação, obtida pela Escola Livre de En-
cidade da Europa?
genharia do Rio de Janeiro, no ano de 1924,
Comparando alguns projetos do
arquiteto paulista Ramos de Azevedo
18. 1. BABINI, Luigi Federico. Le ville moderne in Itália: Ville
di Roma. C. Crudo; 2. BIANCHI, Carlo. Le ville moderne in (1851–1928), formado na Bélgica, com os
Itália: Ville del lago di Como e della Lombardia. C. Crudo; 3. Il
villino italiano (vol. 1). Progetti completi com pianti e sezioni en de Sidrim, de profunda influência italiana,
scala. Casa Editrice: L’artista Moderno; 4. Le construzioni moderne
in itália: Milano (2 volumes). C. Crudo; 5. Le construzione as muitas semelhanças surpreendem.
moderne in itália: Torino. C. Crudo; 6. SICHER, Giovanni. Le
ville moderne in itália: Ville del Lido a Venezia. C. Crudo; 7. VI-
Tanto na qualidade do desenho como
NACCIA, Gaetano. Cottages: 30 tavole. C. Crudo; 8. TIRELLI, nas soluções propostas, na escolha de
Guido. Palazzine e Ville Signorili, 50 projetti in 66 tavole. As pu-
blicações não apresentam os anos de suas respectivas impressões.
19. Disponível em <http://www.polito.it/ateneo/>. Acessado em 20. “A modernização da cidade”. Estado do Pará, Belém, 9
23/5/2014. set.1925.
partidos arquitetônicos, nas coberturas O fragmento preservado de sua biblioteca
O voo da fênix de José Sidr im
a c i o n a l
arquitetura religiosa, para as publicações de Aprendizes e Artífices do Estado do Pará,
dedicadas ao universo religioso, desde a atualmente propriedade da Universidade
Federal do Pará.
N
história, as construções e projetos até os
r t í s t i c o
objetos litúrgicos; f ) artes, para as publicações As suas obras arquitetônicas transitaram
assim identificadas em seus títulos. por várias funções, como a residencial, a
e
profissional conhecedor das ordens e dos
i s t ó r i c o
publicações francesas: Traité d’architecture,
de Léonce Reynaud24, volumes editados tratados arquitetônicos, refletidos no traço
em 1878, e pelo Almanach d´architecture elegante, nos volumes harmoniosos e nas
H
proporções adequadas de seus edifícios.
a t r i m ô n i o
moderne – Collection de l´esprit nouveau,
editado em 1925, em Paris, de autoria De grande representatividade são os
de Le Corbusier25, uma das figuras mais projetos de templos religiosos em sua
P
carreira. Esteve muito ligado à Ordem dos
importantes da arquitetura do século 20, no
d o
Franciscanos em Belém, sendo responsável
e v i s t a
âmbito da arquitetura moderna. O formato
pelo projeto de uma capela em honra
do Almanach... possibilitou ao autor divulgar
R
de Santa Clara e um santuário para São
a novidade tecnológica do uso do concreto
Francisco. Reformou a igreja da Trindade,
armado e de novos materiais construtivos.
projetou igrejas no interior do Pará (uma
Estes são apenas alguns títulos de sua
em Baião e outra em Cachoeira do Arari)27,
biblioteca, destacados com a finalidade de dar
existindo ainda a possibilidade de ter sido
uma noção da qualidade e variedade de seu
o autor do projeto do primeiro templo
acervo, que devem ter dado lastro a sua vida
protestante de Belém, a Assembleia de Deus.
profissional. Uma seleção que talvez a equipare 263
Nos projetos religiosos, demonstrou
as sugestões bibliográficas das academias e
um profundo conhecimento da arquitetura
escolas europeias do mesmo período26.
medieval, do Gótico e do Românico,
As orientações relativas à nova tecnologia
perceptível no formato das plantas baixas,
do concreto armado, presentes em várias
no sistema estrutural, na simbologia das
publicações, deram a Sidrim as bases para disposições espaciais e no emprego de uma
única ordem arquitetônica em cada templo.
24. Léonce Reynaud (1803–1880) era arquiteto e engenheiro
francês, ocupou o cargo de diretor da École Nationale des Ponts Os projetos residenciais são os mais
et Chaussées, na França. No final de 1837, foi eleito professor
de Arquitetura da École Polytechnique que originalmente ficava numerosos, aproximadamente dez com
sediada em Paris. Entre 1842 e 1847, projetou a primeira Gare comprovação de autoria. Ao confrontá-
du Nord, em Paris, cuja fachada foi desmontada e reinstalada em
Lille, em 1860. los é possível acompanhar suas diversas
25. Charles Edouard Jeanneret-Gris (1887-1965), de origem suí- fases. Desde quando os telhados ficavam
ça, naturalizado francês em 1930, conhecido como Le Corbusier,
pseudônimo utilizado tendo como inspiração o nome do avô
paterno “Lecorbesier”, foi arquiteto, urbanista, escultor e pintor.
27. Baião e Cachoeira do Arari, atualmente, são municípios do
26. A listagem de todos os quarenta títulos remanescente da bi- Pará localizados no baixo Tocantins e no arquipélago do Marajó,
blioteca de José Sidrim encontra-se disponível em Matos (2003). respectivamente.
O voo da fênix de José Sidr im
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
a c i o n a l
de uma reconstrução em substituição às novembro de 1907. Belém: Archivo da Intendencia
instalações anteriores, que haviam sofrido Municipal, 1907.
N
um incêndio. Para o lugar, José Sidrim
BELÉM. Intendente (1897–1911: Antonio Lemos).
r t í s t i c o
propôs um imponente e belo edifício O município de Belém: 1907. Relatório apresentado
eclético, com três andares, numa composição ao Conselho Municipal de Belém, na sessão de 15 de
e
Municipal, 1908.
i s t ó r i c o
mansarda na cobertura. A inauguração foi
um grande acontecimento na cidade. Foi BELÉM. Intendente (1897–1911: Antonio Lemos).
H
ao Conselho Municipal de Belém, na sessão de 15 de
a t r i m ô n i o
um grande vazio na memória da cidade e
novembro de 1909. Belém: Archivo da Intendencia
sobretudo apagando um traço da história Municipal, 1909.
criativa do engenheiro arquiteto.
P
CASTRO, Fábio Fonseca de. A Cidade Sebastiana: era
Também desenvolveu projetos de escola,
d o
da borracha, memória e melancolia numa capital da
e v i s t a
hospital, clube social, tipografia, mercado, periferia da modernidade. Belém: Edições do Autor,
todos prédios com funções vitais para a 2010.
R
rotina da cidade, em quantidade e densidade CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de
suficientes para deixar as marcas de sua fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.
importância no passado e no presente da
LEMOS, Carlos A. C. Ramos de Azevedo e seu escritório.
história de Belém e, de herança, um rico São Paulo: Pini, 1993.
patrimônio material de edificações e um
MACFARLANE, Waçterr & Co. Illustrated catalogue of
patrimônio imaterial na memória coletiva. Macfarlane’s castings. Glasgow, s/d.
265
MATOS, Ana Léa Nassar. Ecletismo na arquitetura
Referências
residencial de José Sidrim: uma análise da formação
intelectual deste engenheiro arquiteto e suas obras
BELÉM. Intendente (1897–1911: Antonio Lemos). O
residenciais. Dissertação de Mestrado. Rio de janeiro:
município de Belém: 1897-1902. Relatório apresentado
Escola de Belas Artes/UFRJ; Belém: Departamento de
ao Conselho Municipal de Belém na sessão de 15 de
Artes/UFPA, 2003.
novembro de1902. Belém: Typographia de Alfredo
Augusto Silva, 1902. OPPERMANN, Charles A. Nouvelles annales de la
BELÉM. Intendente (1897–1911: Antonio Lemos). construction, t. 4, série 3. Paris: Librairie Polytechnique
O município de Belém: 1904. Relatório apresentado Ch. J. Baudry Editeur, 1879.
ao Conselho Municipal de Belém, na sessão de 15 de
RIBEIRO, José Iran. Quando o serviço nos chama: os
novembro de 1905. Belém: Archivo da Intendencia
milicianos e os guardas nacionais gaúchos (1825-1845).
Municipal, 1905.
Dissertação de Mestrado. PPGH/PUC-RS. Porto Alegre:
BELÉM. Intendente (1897–1911: Antonio Lemos). PUC-RS, 2001.
O município de Belém: 1905. Relatório apresentado
ao Conselho Municipal de Belém, na sessão de 15 de SILVA, Francisco Liberato Telles de Castro e. A decoração
novembro de 1906. Belém: Archivo da Intendencia na construcção civil, t. 1. Lisboa: Typographia do Com-
Municipal, 1906. mercio, 1898.
R e v i s t a d o P a a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
266
Ana Léa Nassar Matos O voo da fênix de José Sidr im
268
Ana Léa Nassar Matos O voo da fênix de José Sidr im
Ensaio Delegacia
270
Eduardo Góes Neves Encontro das águas dos rios Negro e Solimões
Eduardo Góes Neves
a c i o n a l
E ncontro das águas dos rios N egro e S olimões 1
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
No início da colonização europeia, em negra como tinta, y por esto le pusimos el nombre dei
1542, uma pequena expedição exploradora Rio Negro, el cual corria tanto y con tanta ferocidad
partiu dos Andes Equatorianos e desceu que en más de veinte léguas hacía raya en el água sin
P
os rios Napo e Amazonas até a sua foz, no revolver Ia una con Ia otra.
d o
e v i s t a
Oceano Atlântico. A expedição, chefiada O relato de Carvajal é também importan-
por Francisco de Orellana, teve um cronista, te porque ele nos fala de uma Amazônia dife-
R
frei Gaspar de Carvajal, que nos deixou rente da qual o senso comum está acostuma-
o primeiro relato escrito sobre os povos do: há no texto referências a grandes aldeias
indígenas da bacia amazônica. Desde sua densamente ocupadas, a chefes supremos
redescoberta, no final do século 19, o relato capazes de liderar flotilhas com centenas de
de Carvajal tem servido como uma fonte guerreiros, a estradas permitindo o comércio
preciosa, embora às vezes vaga, sobre os de longa distância, à construção de paliçadas
modos de vida desses povos nos períodos que defensivas em torno de alguns assentamen- 271
antecederam a colonização europeia. O relato tos, a vasos cerâmicos tão belos como os de
de Carvajal nos traz também o primeiro Málaga. A Amazônia do senso comum, por
texto escrito sobre o encontro dos rios outro lado, é um grande vazio, um lugar da
Negro e Solimões, também conhecido como natureza por excelência, uma floresta pristina,
“encontro das águas”. De acordo às vezes inóspita, que espera pelo momento
com Carvajal: de sua ocupação racional.
(...) proseguiendo nuestro viaje, vimos una boca Durante boa parte do século 20, os relatos
de otro rio grande a Ia mano siniestra, que entraba de Carvajal e de outros cronistas europeus
en el que nosotros navegávamos, el água dei cual era dos séculos 16 e 17 foram rejeitados por
arqueólogos e antropólogos interessados em
1. Este foi o parecer que elaborei, em 3 de novembro de 2010, entender a história da ocupação da Amazônia.
sobre o tombamento da área de entorno do encontro das águas
dos rios Negro e Solimões, na qualidade de relator do Processo
Na raiz dessa rejeição estava a concepção de
Encontro das águas,
de Tombamento 1.599-T-10, o qual foi aprovado na reunião do que o meio ambiente da floresta equatorial 2011
Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural realizada em 4 de Foto: Fátima Macedo/
novembro de 2010, no Rio de Janeiro (RJ). teria uma série de limitações físicas – seja Acervo Iphan.
Encontro das águas dos rios Negro e Solimões
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
na baixa fertilidade dos solos, seja na pouca tido um papel importante: de toda a bacia
disponibilidade de proteína de origem animal amazônica, e não apenas nas áreas adjacentes
272
– para sustentar populações sedentárias aos grandes rios, têm surgido evidências
e grandes adensamentos demográficos. que mostram sinais claros de que a região
Consequentemente, tais relatos foram foi densamente ocupada nos milênios que
interpretados como construções fantasiosas, antecederam a chegada dos europeus ao
cujo objetivo era superestimar as riquezas Novo Mundo. Dentre esses sinais, há: a
amazônicas a fim de obter mais recursos que construção de aterros geométricos artificiais,
justificassem a colonização e a exploração conhecidos como geóglifos, no Acre,
da região. Amazonas e Rondônia; a formação de férteis
Pesquisas realizadas nos últimos anos solos antrópicos, conhecidos como terras
têm levado a uma revisão dessa perspectiva pretas, em diferentes locais no Amazonas,
e mostrado que os relatos dos primeiros Pará, Rondônia, Mato Grosso e Amapá; a
cronistas não estavam longe de trazer um construção de aterros artificiais, os “tesos”,
registro fiel dos modos de vida nativos da na ilha de Marajó, e de sambaquis no
Amazônia nos séculos 16 e 17 d.C. Nesse Maranhão, Pará e Rondônia; os alinhamentos
processo de revisão, a arqueologia tem de pedra no Amapá; a ocupação de
Encontro das águas dos rios Negro e Solimões
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
273
contextos, além do mais, tais estruturas são palavras, referir-se ao conceito de “paisagem”,
acompanhadas por objetos de cerâmica e porque: o que são paisagens se não o meio
pedra de alta qualidade estética. físico transformado continuamente pela ação
Esse movimento de redescoberta do humana, sempre culturalmente mediada, ao
passado amazônico, a par de possibilitar um longo dos tempos?
entendimento mais completo da história O uso do conceito de paisagem e suas
da região, traz também uma importante implicações para o estabelecimento de
contribuição conceitual. Ele nos mostra, a critérios de proteção ao patrimônio cultural
partir das evidências empíricas, que a noção amazônico serão retomados em breve. Antes
de natureza virgem ou intocada é incompleta de seguir adiante, gostaria de voltar ao relato
para o bom entendimento da Amazônia e de Carvajal e discutir brevemente outro
toda a sua complexidade ambiental. Em aspecto relevante para o embasamento deste
outras palavras, é cada vez mais claro que parecer. Esse aspecto diz respeito à aparente
o estudo da história natural dos biomas contradição entre o conteúdo de sua narrativa
amazônicos requer também o estudo de sua e o quadro sobre a ocupação humana
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
274
Eduardo Góes Neves Encontro das águas dos rios Negro e Solimões
Os Kalapalo,
alto Xingu, 2017
Foto: Renato Soares.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
275
Eduardo Góes Neves Encontro das águas dos rios Negro e Solimões
construído pela arqueologia e antropologia esvaziadas de seus ocupantes indígenas nos
Encontro das águas dos rios Negro e Solimões
do planeta, foi no final do século 19 que Warren Dean, em seu clássico A ferro e fogo:
i s t ó r i c o
esta foi também a época do apogeu do ciclo 16, como a vegetação dessa região parecia
a t r i m ô n i o
da borracha, ciclo esse, é sabido, baseado ser composta por áreas de capoeira ou mata
em um modo de exploração brutal de mão secundária no século 16. Resumindo o
P
de obra indígena, descrito por Sir Riger argumento, parece certo que áreas atualmente
d o
indígenas estudadas por esses pioneiros da em muitos casos remonta à história pré-
antropologia, como, por exemplo, Von den colonial da região. Tais florestas são, portanto,
Steinen, Koch-Grünberg, Nimuendaju e paisagens, pois sua história deve ser entendida
Roquete-Pinto, sofriam os efeitos diretos e a partir dos componentes naturais e culturais
indiretos do ciclo da borracha e, por isso, que as compõem. A essa constatação deve-se
tinham modos de vida bastante diferentes acrescentar que a presença de solos antrópicos
276 dos descritos pelos cronistas do início do e plantas economicamente ou culturalmente
período colonial. O ciclo da borracha, importantes confere hoje a esses locais
adicionalmente, foi o clímax de um processo relevância material e simbólica.
de diminuição demográfica iniciado já no O processo em questão propõe o
século 16, consequência da propagação de tombamento do local de confluência dos
doenças infecciosas, guerra e escravidão. rios Negro e Solimões, bem como parte de
Isso explica por que, embora muitas das seu entorno, nos municípios de Manaus,
principais terras indígenas na Amazônia Iranduba e Careiro da Várzea, no estado do
contemporânea se encontrem localizadas Amazonas. Esse local, doravante aqui referido
longe do rio Amazonas – no alto Xingu, como “encontro das águas”, reúne, por suas
alto Rio Negro, em Roraima, na fronteira características naturais e culturais, atributos
com as Guianas ou no Acre –, a arqueologia que o qualificam, por excelência, como uma
das margens desse rio seja riquíssima, com paisagem passível de reconhecimento como
vestígios que remontam até o início do patrimônio cultural de alta relevância, tanto
período colonial: tais áreas ribeirinhas foram de acordo com os conceitos previamente, e de
maneira breve, aqui alinhavados, como pela trói, destrói e reconstrói constantemente suas
a c i o n a l
para as sociedades manauara, amazonense e com uma carga sedimentar significativamente
brasileira contemporâneas. mais baixa. A coloração escura de suas águas é
Dentro do quadro de grande diversidade devido à diluição, na água da chuva, dos com-
N
r t í s t i c o
ecológica e geográfica da Amazônia, a região postos secundários das folhas e cascas das ár-
do encontro das águas pode ser vista como vores que ocupam suas áreas de captação. Esse
A
um microcosmo: o rio Solimões, na tipologia tipo de vegetação, que cresce sobre os solos
e
clássica dos rios amazônicos proposta por arenosos da bacia do rio Negro, é conhecido
i s t ó r i c o
Alfred Russel Wallace ainda no século 19, como campinarana, ou caatinga amazônica.
é um rio de águas brancas, barrento, cujas Apesar de ter sediado, em seu médio curso, a
a t r i m ô n i o
recentes de origem andina, antigos meandros Rio Negro, a cidade de Barcelos, ainda no iní-
abandonados que formam planícies de cio do século 18, o rio Negro é, com exceção
P
inundação de tamanho variável, restingas da cidade de Manaus, um rio hoje de ocupa-
d o
e praias, em complexos conhecidos como ção essencialmente cabocla e indígena. Para
e v i s t a
várzeas. A fertilização regular das várzeas muitos desses povos, o encontro das águas é
cria microambientes ricos em nutrientes, referido como uma das “casas de transforma-
R
o que favorece o desenvolvimento de uma ção” pelas quais passou a sucuri ancestral em
complexa cadeia alimentar composta por sua viagem de criação do mundo.
peixes, crustáceos, aves, répteis e mamíferos. No encontro das águas, o regime
Além disso, as planícies aluviais são também hídrico é semelhante para os rios Negro
compostas por um mosaico de tipos de e Solimões: dos meses de janeiro a julho,
vegetação que incluem igapós, aningais e áreas aproximadamente, os rios estão cheios,
de mata que abrigam grande biodiversidade. as praias e várzeas desaparecem e a pesca 277
tenham também sido ali registrados. pertencem à ordem dos Characiformes, são os
Mais que, portanto, o encontro de peixes mais populares da região de Manaus,
dois rios, o encontro das águas é um sendo considerados símbolos da cidade. Por
N
r t í s t i c o
outros notáveis encontros de rios, como é o vendidos aos centos nas épocas de safra (final
e
continentais na bacia amazônica, já que tem (sempre envolvendo um rio de água branca/
a t r i m ô n i o
suas nascentes na Colômbia e tangencia barrenta e outro de água clara ou preta) para
também a Venezuela, antes de entrar o desovar. Os ovos rapidamente eclodem e as
P
território brasileiro, em Cucuí, a montante larvas são carreadas pela enchente para os
d o
das águas é, desse modo, único, não havendo brancas, locais altamente produtivos, onde a
R
Atualmente, a visitação ao encontro das obra permanente que inclui guias, barqueiros,
águas é uma das atividades mais importantes além de pequenos restaurantes localizados Teatro Amazonas,
Manaus, 1950 (ca.)
no turismo em Manaus. Tais visitas são feitas em seu entorno. A cidade de Manaus Foto: Marcel Gautherot/
Acervo Instituto Moreira
em passeios diários e envolvem uma mão de tem crescido em um ritmo vertiginoso e Salles.
desordenado nos últimos anos e um dos modo exercer algum papel no ordenamento
eixos desse crescimento tem sido justamente desse processo de crescimento. A construção
a região do entorno do encontro das águas, de uma ponte sobre o rio Negro, já quase
nas margens esquerdas dos rios Negro e concluída, e o projeto de construção de outra
Amazonas. O tombamento proposto, além ponte atravessando o rio Solimões, próximo
de permitir a proteção física do entorno à cidade de Manacapuru, causarão sem
do encontro das águas, poderá de algum dúvida um imenso impacto ao patrimônio
exemplos de destruição de sítios são inúmeros
a c i o n a l
Cidade, Praça Dom Pedro e Japiim. É de se
esperar que o mesmo destino não aguarde
os sítios da área do encontro das águas, já
N
r t í s t i c o
parcialmente impactados pela construção do
Porto das Lages.
A
Em suma, espero ter brevemente
e
demonstrado as relevâncias histórica,
i s t ó r i c o
cultural, ecológica, econômica e geológica
do fenômeno do encontro das águas. Por
a t r i m ô n i o
repleta de fundamentais significados locais e
nacionais, o que justifica sua proteção pelo
P
Estado brasileiro.
d o
Antes de concluir, gostaria de fazer
e v i s t a
uma última observação, que diz respeito
ao objeto do tombamento. Parece-me mais
R
adequado que o tombamento proposto
seja o da “área de entorno do encontro
das águas” e não do próprio encontro,
dada a natureza dinâmica que tem esse
fenômeno hidrológico. Se realizado dessa
forma, o tombamento permitirá ao menos o
desenvolvimento de mecanismos de proteção 281
282
Eduardo Góes Neves Encontro das águas dos rios Negro e Solimões
Foto: Margi Moss/
Rio Negro (AM), 2004
e v i s t a d o a t r i m ô n i o i s t ó r i c o e r t í s t i c o a c i o n a l
Coleção M. e G. Moss.
R P H A N
283
Eduardo Góes Neves Encontro das águas dos rios Negro e Solimões
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
284
Jussara Silveira Derenji 0s teatros do Nor te: a entrada triunfal das musas no Equador
Jussara Silveira Derenji
a c i o n a l
0s teatros do N orte : a entrada triunfal das
E quador
N
musas no
r t í s t i c o
A
Para Jorge Derenji, a quem se deve a
e
implantação do Iphan na Região Norte.
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
Palcos da opulência, do luxo e da poder do período, erigindo um grande teatro.
ostentação de uma sociedade no auge de Vários presidentes da Província do Pará se
uma favorável conjuntura econômica, manifestaram a favor de sua construção, mas,
P
d o
repentinamente conquistada na segunda somente em 1868, José Bento da Cunha
e v i s t a
metade do século 19, os teatros de ópera da Figueiredo assinou o projeto de lei que
Amazônia desencadearam reformas que foram autorizaria as despesas para sua criação2.
R
muito além de consolidar o gosto pela música O teatro foi, então, erguido em pleno
na região. Um relato de José Coelho da Gama decorrer da Guerra do Paraguai, numa
e Abreu, barão de Marajó, refere-se ao ano demonstração de que a entrada de recursos
de 1847, dizendo: “O Pará inteiro concorria, na região independia das custosas medidas
naquela época ao teatro” , reafirmando o que
1
de sustentação do conflito. O nome
diziam os jornais regionais, que noticiavam escolhido quando do assentamento da pedra
espetáculos e audições como principal fundamental foi Teatro Nossa Senhora da Paz, 285
fazer, e melhor, o que fora feito por ele. Se a encontrados na concepção. Vale lembrar
i s t ó r i c o
tantos ataques. Afinal, o único rival à altura preceitos a serem rigorosamente cumpridos.
do teatro paraense naquele período era o de Supriam, assim se esperava, a ausência de
Recife, adequadamente projetado por um profissionais especializados em arquitetura.
Jussara Silveira Derenji
P
Talvez faltasse a Magalhães competência, mas estabilidade, fato que ajudaria a justificar
e v i s t a
o que por si só deveria ter pesado a seu favor. As críticas foram reunidas por Donato
No período Imperial poucas cidades Mello Júnior (1973) em torno de alguns
brasileiras podiam ostentar teatros recém- pontos principais: trocaram-se as seis colunas
construídos. O Teatro Santa Isabel em Recife, do pórtico para sete, ficando no centro da
projeto de Vauthier, erguido entre 1840 e composição uma coluna; além desse defeito
1846, seguira rigidamente os preceitos da perante as regras do Classicismo, as colunas
286
arquitetura neoclássica e, segundo Toledo coríntias foram afinadas e fugiam também
(1995:51), “adotando todo o refinamento aos cânones clássicos. Por um outro texto de
de linhas e linguagem característica do Donato, datado de 1984, tem-se ideia de que
período”. Após um incêndio devastador em ele consultou plantas originais ou textos fi-
1869, o teatro fora totalmente reconstruído dedignos que as descreviam5: “projetado com
exatamente por Tibúrcio Magalhães. O seis colunas jônicas, acabou, não sabemos por
projeto do teatro apresentado por ele em que com sete colunas de capitel coríntio”6.
Belém foi modificado ainda nas plantas, A colunata da fachada, onde estavam as sete
segundo se diz, pelo contratante João
Francisco Fernandes e pelo engenheiro 4. As plantas foram certamente modificadas antes do início das
obras. O contrato assinado com o empreiteiro português João
da Repartição de Obras Públicas que Francisco Fernandes dizia: “tendo sido alterado o plano primitivo
das obras, o arrematante fica sujeito absolutamente a observar as
acompanhou as obras, Antônio Calandrini alterações ordenadas e aprovadas pelo Exmo. Sr. Presidente da
Província e pelo engenheiro fiscal”.
antigas. O texto de Mello pode sugerir leitura do Neoclassicismo, da simetria, dos cânones
que indicaria a intervenção dos engenheiros clássicos, para a chamada arquitetura do
locais, principalmente o responsável pelas Império. A segunda e importante causa de
obras, como os autores das mudanças tão críticas deriva principalmente da campanha
criticadas. Nada comprova que Magalhães dos jornais de oposição ao presidente da
tenha acompanhado a obra, embora estivesse Província. Eles classificavam as obras como
presente no ato de lançamento da pedra fun- motivo da ruína das finanças públicas, só
damental. O refazer interminável dos cálculos levadas adiante por “vaidade” do governante e
de alturas, larguras, pedestais e colunas pode “tão desnecessárias como as obras do porto”7. As sete colunas
originais do Teatro
não ter sido, afinal, causado por supostos É fácil perceber, pelo menos com referência da Paz, Belém (PA),
1875 (ca.)
erros de responsabilidade do projetista. às obras do porto, a falta de procedência Foto: Felipe Augusto
Fidanza/Coleção Gilberto
Ferrez/Acervo Instituto
Duas questões mais amplas polarizam os da afirmação, pois a cidade, naquele Moreira Salles.
exportação do Norte, principal escoadouro da ser visto como teatro” (Segawa, 1988), ou
a c i o n a l
apego à tradição clássica, observa-se que a essa identificação podia ser atribuído por
arquitetura do Neoclassicismo, trazida pelo uma localização elevada para o edifício,
A
italiano Antônio Landi de 1753 em diante impossível de ser obtido numa cidade plana
e
i s t ó r i c o
e adotada em prédios mais recentes como como Belém, mas plenamente alcançado na
o Palacete Municipal, projeto de autoria de posterior construção do Teatro Amazonas.
Gama e Abreu (1860-1895), caracterizava O ponto mais importante de qualquer
H
a t r i m ô n i o
a cidade. Para seus habitantes, era sua análise do posicionamento do novo teatro de
monumentalidade que a conformava desde o Belém no tecido urbano é o entendimento
Jussara Silveira Derenji
período colonial, com suas igrejas, palácios e de que ele marcou a mudança do antigo
P
distinguia Belém, mostrava-a como capital do rio desde a fundação da cidade, em 1616,
e maior cidade da região, aquela que tinha com a clássica formação: igreja, forte, casa
R
a c i o n a l
condições higiênicas que o clima exige. Nas vestíbulo não há uma fonte, uma estátua,
ordens mais distintas haverá um camarote nada. Só aquela brancura de cal e aquelas
colunas de ferro, sem elegância nenhuma,
N
imperial” (Derenji, op. cit.:28) . 10
r t í s t i c o
Sem dúvida um teatro enorme para a dando-lhe o ar de uma estação de estrada de
cidade daquele período, trazendo despesas ferro. Nada menos. Nada mais”11. A escolha
A
que seriam motivo de preocupação e de do ferro para as colunas na entrada principal
e
ataques da oposição aos gastos do erário. do prédio foi motivo de escândalo, quando
i s t ó r i c o
O desconforto dos críticos paraenses, poderia, em vez disso, ser entendida como
além da motivação política e das rivalidades ousadia e modernidade. Por muitas décadas,
H
no Norte do Brasil, o ferro se esconderia, seja
a t r i m ô n i o
entre os jornais locais, tinha relação direta
com a alegada pobreza ornamental do Teatro em formas que imitavam as da arquitetura
da Paz, em sua fase inicial de funcionamento. clássica – colunas caneladas com capiteis
d o
similar no país, então, essa pobreza fica de arquitetura grega e romana –, seja
e v i s t a
evidente. Há muita diferença entre o lobby cobrindo-o com pinturas de falso mármore
R
com grandes espelhos, mobiliário decorado para esconder o seu aspecto original.
ao gosto de época e outros detalhes luxuosos A postura adotada por Veríssimo mostra
descritos no prédio pernambucano e o que a entrada de materiais industrializados,
cenário apresentado no Teatro da Paz. mesmo que rejeitada por alguns, já era
O gosto da época, mesmo não tendo sido usual e estava estabelecida como regra
alcançada a fase mais exuberante da chamada nas construções. Cobravam-se do teatro
Belle Époque regional, foi expresso em crônica requinte, qualidade nos materiais,
289
de José Veríssimo, ainda um jovem cronista ornamentos de luxo e beleza, que já fugiam
da imprensa local. Publicada dois dias após ao Classicismo e acomodavam-se nos
a inauguração do teatro, sua crônica mostra padrões próximos ao Ecletismo da chamada
que a região já se acostumara aos materiais Belle Époque tropical. Porém, o Ecletismo,
luxuosos e importados pelo intercâmbio com sua livre escolha de estilos, não
com a Europa. Veríssimo critica “o papel que chegara à província nortista, ainda incapaz
cobre os camarotes”, o mais “ordinário e feio de assimilar os princípios mais flexíveis
possível”, os balcões de madeira, as escadas que o engenheiro projetista ou o executor
sem verniz, a pintura de cal, o teto “de lona tinham provavelmente tentado implantar.
pintada”, a arcada “nua como um Cupido”, Assim, logo em seguida, o teatro teria de se
adaptar ao gosto da época, deixando a sua
sem figuras, florões ou outros ornatos. A
austeridade imperial, e se tornar o símbolo
10. O modelo de teatro é ainda o italiano, com forma interna da nova era.
de ferradura, a exemplo do Scala de Milão, que data da segunda
metade do século 18. O Teatro Scala tem capacidade muito
maior, para 2.004 pessoas. 11. O Liberal do Pará, 17 fev.1878.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
290
Jussara Silveira Derenji 0s teatros do Nor te: a entrada triunfal das musas no Equador
Acervo Iphan.
Teatro da Paz,
Jussara Silveira Derenji 0s teatros do Nor te: a entrada triunfal das musas no Equador
0s teatros do Nor te: a entrada triunfal das musas no Equador
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
a c i o n a l
desse gênero a ser apresentada foi Ernani, diversas. O crescimento do poder maçônico
de Verdi, em 7 de agosto de 1880, mas o no governo imperial, entre outras questões
relacionadas com a indiscutível hegemonia
N
acontecimento que realmente marcaria o
r t í s t i c o
domínio da ópera no Teatro da Paz foi a até então mantida pelo Catolicismo, motivou
première, em 9 de setembro do mesmo ano, a renovação completa da decoração do templo
A
de O Guarani, de Carlos Gomes, ainda que mais importante à época, a Catedral da Sé.
e
o autor não estivesse presente nessa ocasião. Nada mais adequado do que escolher, sem
i s t ó r i c o
Era a primeira apresentação de uma ópera concursos ou possibilidade de equívocos na
nacional no Pará, levada em cena pela mensagem a ser emitida, membros de uma
H
academia romana ligada ao papado. Entra
a t r i m ô n i o
companhia de Tomas Passini e com regência
do maestro Enrico Bernardi. Seguiram-se em cena um grupo de artistas italianos que
outras apresentações, apoiadas pela recém- dominaria o panorama das artes regionais de
d o
pelo Conservatório Dramático. No ano escultores, estucadores e aprendizes, liderados
e v i s t a
seguinte, a mesma companhia apresentou- por Domenico de Angelis, que se credenciam,
com as obras de renovação da Catedral,
R
se no Pará, realizando mais de cinquenta
espetáculos entre agosto e novembro, para realizar outros trabalhos artísticos,
inclusive a ópera Idália, do compositor não só em Belém como em toda a região.
paraense Henrique Eulálio Gurjão. Em Assumem assim, em 1887, a obra completa
1882, finalmente, foi a vez de Carlos Gomes, de transformação decorativa do Teatro da Paz,
apresentando com sucesso a sua obra mais ainda que existissem na cidade outros artistas
conhecida nacional e internacionalmente. egressos da Accademia Nazionale di San Luca,
a mesma a que pertenciam13. 293
Carlos Gomes recebeu as homenagens no
As críticas ao Teatro da Paz, porém,
Salão de Honra do teatro. Nessa temporada o
não cessaram com o início e sucesso das
autor de O Guarani regeu a sua sinfonia, com
atividades. Nove anos depois da inauguração
enorme entusiasmo da assistência.
Segundo Vicente Salles (1980:330),
12. Contratado através do bispo Dom Macedo Costa para
fazer um novo altar para a Catedral de Belém, em 1867, Luca
A primeira visita muito significou para esse Carimini era artista de prestígio na capital italiana, especializado
em construções religiosas. Concluído o encargo, em 1869, o altar
povo e para o próprio artista. As homenagens
foi enviado ao Brasil para ser montado, processo dificultado pela
partiam dos mais diferentes estratos sociais. No dia chamada Questão maçônica, atrasando em quase 10 anos, depois
da chegada das peças, a sua finalização. Através de indicação de
27 de julho de 1882, por exemplo, realizou-se uma Carimini, que nunca veio ao Brasil, foram contratados para a
grande manifestação popular, de que participaram decoração da Sé, inclusive o assentamento do altar, os artistas
Domenico de Angelis e Giovanni Capranesi, sendo que este
intelectuais e artistas, operários e estudantes último esteve uma única vez no Brasil.
(...) bandas se apresentaram houve foguetes e 13. É o caso de Constantino Chaves da Motta, o primeiro
paraense a ingressar nessa academia. Posteriormente, os artistas
girandolas para uma multidão. As 20 hs, desfilou a italianos se associariam a Crispim do Amaral, que passara pela
marche aux flambeaux, calculada em mais de duas academia e pela Comédie Française. Indicariam para cursar a
San Luca o artista paraense João Gomes Correa de Faria, a quem
mil pessoas. aceitaram como artista auxiliar.
0s teatros do Nor te: a entrada triunfal das musas no Equador
a c i o n a l
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A
e
i s t ó r i c o
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a t r i m ô n i o
a c i o n a l
ondulados e sua pele muito clara difere da dos o encargo das pinturas do Salão Nobre
demais índios de tez marrom avermelhada. ou de Honra, como compensação, pois o
N
Um deles tem o cabelo trançado como o de atraso no trabalho da sala de espetáculos
r t í s t i c o
certos indígenas da América do Norte. Aos foi reconhecido como prejudicial ao artista.
pés da figura central vemos o produto da Os estudos foram feitos em Roma e para
A
caça, que inclui um urubu-rei, ave não sujeita a execução veio, em sua única estada na
e
i s t ó r i c o
a ser abatida por ser considerada benfazeja. região, o artista Giovanni Capranesi. De
Em 1890, fora contratado para diversas Angelis trabalha nessa decoração durante seus
cenografias, incluindo-se dois panos de boca, últimos anos no Pará. Os outros trabalhos
H
a t r i m ô n i o
o artista pernambucano Crispim do Amaral, decorativos, de iluminação, cenografia e
credenciado por trabalhos executadas na acessórios de cena, foram dados a Vicente
P
permanência na Accademia di San Luca O Salão Nobre do teatro de Belém foi
d o
(1886-1890). Um dos panos de boca era
e v i s t a
decorado nas paredes com pinturas feitas com
uma alegoria da República pintada em Paris moldes, restauradas no início do século 21.
R
por Carpezat. Outras polêmicas surgiriam. O teto foi pintado com cenas clássicas que
O pano de boca trazia uma composição infelizmente se perderam em fase posterior.
inusitada para a região, com a presença de Resta da atuação de De Angelis a pintura
índios e “morenos”. Estranhamente parece de ilusão sobre as portas, que homenageia
não ter sido notada até então a já referida grandes figuras da literatura nacional.
representação de índios no teto da sala de
espetáculos, ou o fato de aparecerem em meio 295
à selva e caçando pareceu mais adequado para 14. Pontes de Oliveira trabalhara no antigo Teatro Providência.
Um prédio de localização central, mas construído em madeira,
a crítica local. com iluminação que era, ainda, a azeite da terra ou a andiroba.
Pintura no teto do
Teatro da Paz,
Belém (PA), 2018
Foto: André Vilaron/
Acervo Iphan.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
296
Jussara Silveira Derenji 0s teatros do Nor te: a entrada triunfal das musas no Equador
No fim do século 19, Manaus construiria governador do Amazonas consegue fazer do
a c i o n a l
República e o governante do Amazonas era novo centro administrativo. O imponente
Eduardo Ribeiro. Maranhense e militar, Ribei- Palácio da Justiça foi erguido em frente ao
ro se tornaria conhecido como “o Pensador”, teatro e todo o conjunto deveria culminar
N
r t í s t i c o
um homem à altura do momento no qual com um palácio de governo projetado pelo
dirigiu o estado. Recursos não faltavam para italiano Filinto Santoro. A configuração seria
A
transformar o panorama urbano, que era ainda a de uma larga avenida ligando o porto ao
e
acanhado se comparado ao avanço na econo- palácio, este localizado no ponto mais alto
i s t ó r i c o
mia, e o governador se pronunciava em discur- na área central. O projeto, não concluído,
sos oficiais com segurança: “Não se pode dese- previa um prédio horizontal com cúpula, a
H
jar que as condições financeiras do Amazonas exemplo dos palácios de governo europeus e
a t r i m ô n i o
sejam mais prósperas (...) sua riqueza aumenta dos já implantados nas cidades americanas de
progressivamente de modo notável” . Ribeiro
15 Washington e Buenos Aires.
d o
da capital, até então uma cidade de pequeno tentativas de construção do Teatro Amazonas
e v i s t a
porte com construções e prédios modestos para datavam de alguns anos antes do efetivo
início da obra. Desde 1881, falava-se de sua
R
seus órgãos públicos, criando um novo traçado
para a área central, integrada por pontes metá- construção, cuja concorrência, em 1882, foi
licas e amplas avenidas. Reformula também as vencida por Bernardo Braga, com projeto
áreas abertas centrais, ornamentadas com fon- “organizado” pelo Gabinete Português de
tes e coretos em ferro de aprimorado desenho e Engenharia e Arquitetura de Lisboa. Fato que
feitura europeia. chama a atenção é o da proposta portuguesa,
O prédio mais importante da cidade de ou organizada em Portugal, ter sido duas
297
Manaus era o do Paço Municipal, de 1874, vezes mais onerosa para o estado do que
contemporâneo, portanto, da construção do seria a do outro concorrente, C. Celeste
Teatro da Paz em Belém. Dentre as igrejas Saccardi16. Ernesto Mattoso, que passou pela
se destacava apenas a Matriz. Apesar da cidade em 1883, considerou muito alta a
reconhecida deficiência dos edifícios públicos, despesa prevista de duzentos contos de réis
inadequados face à prosperidade do estado, para a futura construção do novo teatro. Ele
Eduardo Ribeiro opta por executar, como a criticava por não ser uma das “primeiras
a primeira construção monumental de seu necessidades” da cidade, que sequer contava
governo, um prédio destinado à cultura, o naquele momento com iluminação a gás, Cúpula do Teatro
Amazonas,
Teatro Amazonas, concluído em 1896. serviço de água encanada ou sistema de Manaus (AM), 2009
Foto: Márcio Vianna/
Diferente de Belém, onde o teatro se esgoto (Otoni, 1999:210). Acervo Iphan.
obras estimularia mudanças nas plantas um acordo firmado pelos governos do Amazo-
a c i o n a l
e desenhos. E, como no caso do teatro nas e do Pará, para estabelecer uma linha direta
de Belém, tais mudanças não podem ser de comunicação entre o Mediterrâneo e o Nor-
totalmente avaliadas. A estrutura interna te do Brasil. Uma concessão nesse sentido foi
N
r t í s t i c o
foi conservada. O Teatro Amazonas foi político genovês Gustavo Gavotti, tinha inte-
e
projetado para abrigar um teatro lírico, resses comerciais nas duas capitais nortistas.
i s t ó r i c o
cenários e suas variações, suportar o peso de tanto as obras públicas como as privadas. Os
a t r i m ô n i o
a c i o n a l
-prima para suas indústrias, um vasto merca- marmoristas é contínua durante a construção
do para exportação de seus produtos, além de do Teatro Amazonas e a nova decoração
mais um ponto de desafogo para a corrente do Teatro da Paz. Na fase final das obras, a
N r t í s t i c o
imigratória de seu país. De fato, a atração de grande maioria deles vem da Calábria e da
estrangeiros para executar trabalhos artísticos Puglia, onde se concentrava a mão de obra
A
na Amazônia, interesse apenas secundário das especializada em construção civil na Itália
e
empresas italianas, acabou tornando-se mais naquele período. Ali as relações de trabalho já
i s t ó r i c o
eficaz para a entrada de seus conterrâneos no não se regiam por uma hierarquia acadêmica,
Norte do que a política oficial de imigração mas por contratos e salários.
H
brasileira que pretendia trazê-los para a ocu- A inauguração do Teatro Amazonas em
a t r i m ô n i o
pação agrícola. 1896 revela o auge do luxo e requinte nessas
Na mesma época, fim dos anos 1890, se construções no final do século 19. O artista
d o
o engenheiro italiano Filinto Santoro, que interferência dos acadêmicos da San Luca,
e v i s t a
domina o campo de construções do governo inverte os papéis ao trazê-los para o Amazo-
e as da alta burguesia. Reforçando a tese da nas. Juntos elaboram a decoração do teatro.
R
dificuldade em encontrar artistas, Santoro, na O contrato de Crispim tinha por objeto
sua única obra religiosa, a Igreja dos Milagres, “obras de decoração, pintura e ornamenta-
não coloca nenhuma imagem nos nichos18. ção e instalação de mobiliário”. Os desenhos
Manaus, com
apresentados, porém, incluem o tratamento destaque para o
Teatro Amazonas,
1896 (ca.)
18. A ausência de imagens tem outra explicação possível. Como os da fachada, do qual apenas alguns elementos Foto: George Huebner/
irmãos Januzzi, com quem trabalhara no Rio de Janeiro, Santoro Acervo Instituto Moreira
era presbiteriano e as imagens de santos iam de encontro aos pre- decorativos de grande porte não foram exe- Salles.
ceitos de seu credo. Os Januzzi introduziram essa Igreja no Brasil. 299
Cena de O Guarani em cutados, por temor ao excesso de peso. Não imagem alusiva da substituição do Império
pintura de Domenico
de Angelis para o consta do projeto de Amaral a cúpula. pela República. Aos Koch foi encomendada
Salão Nobre do Teatro
Amazonas
Foto: Márcio Vianna/
A responsabilidade pela execução a rosácea da sala de espetáculos e a cúpula
Acervo Iphan, 2018.
da fachada foi dada ao italiano Enrico de origem belga. Os trabalhos de decoração
Mazzolari. Crispim comandou, no entanto, interna e externa do teatro contaram com
as encomendas ao estrangeiro, como as a colaboração de vários artistas. A Crispim
feitas à firma francesa Koch, Frères & do Amaral, no entanto, é atribuída a da
Compagnie ou à Maison Carpezat, esta sala de espetáculos, bem como todos os
última encarregada dos dois panos de boca, demais elementos decorativos como relevos,
como em Belém. Nesse caso, optou-se por máscaras, escudos e os detalhes técnicos,
uma pintura mostrando o encontro das águas enquanto seria de responsabilidade dos
dos rios Solimões e Negro, ou o que seria italianos a decoração da Sala de Honra.
o nascimento de Vênus em águas tropicais A sala de espetáculos tem o teto com
e, para a segunda peça, recorreu-se a uma cenas clássicas e pintura de ilusão que faz o
espectador se sentir embaixo de uma torre, com panejamentos e franjas pintadas nos
a c i o n a l
Eiffel. A referência à torre mais famosa da reproduzindo infinitamente o espaço da sala.
época, emblemática da Exposição de 1889 em A finalização das obras do Teatro
Paris, evocaria a grande aspiração da socieda- Amazonas e a rivalidade ou disputa que se
N
r t í s t i c o
de local: estar em plena capital francesa . 19
estabelece são descritos pela jornalista italiana
O Salão Nobre do teatro foi decorado Gemma Ferruggia em 1901. A encomenda
A
por De Angelis, que usa desenhos clássicos a De Angelis, segundo ela, se destinava a dar
e
alternados com temáticas regionais. Parte ao teatro amazonense interiores ao menos
i s t ó r i c o
delas constitui imposição do governador iguais, senão mais belos do que os do Teatro
Eduardo Ribeiro, feita quando visitou o da Paz. O desejo era superar! Para ajudá-lo
H
estúdio do artista em Roma; e parte é uma em Manaus, o artista italiano trouxe Silvio
a t r i m ô n i o
contrapartida devida ao transportador dos Centofanti20, o pintor Adalberto de Andreis e
artistas, o Comendador Gavotti, que pôde o mestre pintor Francesco Alleggiani.
d o
navios, entre eles o famoso Re Umberto. posterior ao prédio inicial, de uma cúpula em
e v i s t a
A intenção de mostrar os avanços técnicos ardósia colorida. Ana Maria Daou (2014:186-
da época, entre eles a navegação a vapor,
R
7) analisa a instalação da cúpula com
justificaria a inclusão. pertinência e a insere na colcha de retalhos da
As telas que ornam o Salão de Honra composição do próprio edifício:
foram executadas em Roma e ali foram vistas
Já não se tratava de teatro lírico, conforme a
e avaliadas pelo presidente da Academia, pelo
tradição ‘luso-brasileira’, não era bem um teatro
governador do Amazonas e por uma comissão
clássico nos moldes ‘neoclássicos’, e não era apenas
de arquitetos e pintores italianos de destaque,
mais uma expressão do ‘ecletismo’ do final do
301
como Gaetano Koch, que deixaram o
século XIX.
certificado da qualidade das obras. O contrato
para as pinturas que ornam as paredes dessa A incorporação da cúpula, diz a autora,
sala merece uma apreciação mais detalhada. “resulta também num elemento alusivo à
Estipulava-se nele que as pinturas seriam nacionalidade, ao pertencimento à federação”.
em “falso gobelin”. Falsos também, os A cúpula, com suas vibrantes cores da
revestimentos em “mármores” das colunas em bandeira nacional, marca externamente a
ferro já existentes, das cimalhas, balaustradas fachada do teatro e é vista em toda a área
e pilastras e até dos bustos em gesso em que central. A ousadia do emprego do ferro em
os artistas imitaram mármore de Carrara. estrutura daquele porte foi uma vitória da
O jogo de ilusão ou trompe l´oeil continua, técnica que, anos antes, na inauguração do
19. Interpretações como essa são questionadas pelo conservador 20. Centofanti era escultor. Havia poucos escultores no grupo de
do teatro, Hélio Dantas, que considera pouco plausível a italianos, os mestres de fachada eram em geral encarregados da
homenagem ao hoje símbolo da capital da França. Dantas ornamentação das mesmas e usou-se muito a compra de conjuntos
também questiona a autoria dos panos de boca, que segundo ele ou elementos que chegavam prontos para serem apostos às
não estão assinados por Crispim do Amaral. fachadas, motivo da repetição de elementos na cidade e região.
Teatro da Paz em 1878, fora violentamente mais extensas. As portas principais foram
0s teatros do Nor te: a entrada triunfal das musas no Equador
apresentação, em delgadas colunas na entrada recebeu dois belos pedestais com estátuas
do edifício. em mármore de Carrara, “artisticamente
trabalhados em Paris”. A decoração do teto
N
inconcluso, o que estendeu a atuação de foi feita com aço (sic) estampado. O vestíbulo
artistas e artífices até os primeiros anos foi iluminado por um lustre central de
A
do século 20. A conclusão seria então cristal com sessenta lâmpadas e mais dois
e
Jussara Silveira Derenji 0s teatros do Nor te: a entrada triunfal das musas no Equador
0s teatros do Nor te: a entrada triunfal das musas no Equador
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
regional para a burguesia emergente graças foi considerado por Herkenhoff23 como,
e v i s t a
borracha, que ainda duraria mais alguns anos. público moderno brasileiro.
Em Belém também se havia pensado na No início do século 20, ocorrem mudan-
construção de um prédio administrativo, junto ças importantes tanto na política regional,
ao teatro. Seu projeto foi encomendado ao co- com a queda de lideranças longamente
nhecido arquiteto do ecletismo italiano Gino estabelecidas, quanto na economia, com a
Coppedè, mas as obras nunca chegaram sequer brusca baixa dos preços da borracha. Encer-
304 a ser iniciadas. Em seu lugar surgiria um hotel ra-se, assim, a fase das contratações por con-
de luxo, o Grande Hotel, ícone da vida mun- vite direto a artistas, bem como sua vinda
dana de Belém por um longo período. acompanhados de aprendizes e associados.
Em Manaus o teatro acabaria de costas Criam-se os concursos públicos, muitas
para a avenida que mais tarde seria designada vezes internacionais. A figura do operário
com o nome do governador Eduardo Ribeiro. assalariado se consolida e o enfraquecimento
O Teatro Amazonas se abre para a praça das ligações comerciais com a Europa elimi-
São Sebastião, que recebeu um conjunto na quase totalmente a chegada de materiais
escultórico com desenho de De Angelis e industrializados para as construções.
execução de Enrico Quatrini, celebrando a Tem-se, no entanto, uma ampla escolha
desse grande largo foi feito em mosaico decoração edilícia, presentes nas grandes
Busto de Carlos
cidades do Norte, e disponíveis pela carência
Gomes, esculpido por
Enrico Quattrini para o
português, formando ondas em branco e
Salão Nobre do Teatro
Amazonas
negro, numa alusão ao encontro das águas
Foto: Márcio Vianna/ 23. Conforme seu artigo “Design e selva, o caminho da
Acervo Iphan, 2018. dos rios Solimões e Negro. Seu desenho modernidade brasileira” (in: Johnson, 1995).
de obras governamentais. São escultores, Referências
a c i o n a l
decoradores, artífices que transformam a DAOU. Ana Maria. A cidade, o teatro e o “paiz das
seringueiras”. Rio de janeiro: Rio Books/Faperj, 2014, p.
cidade no seu novo palco e esculpem nas
186-187.
fachadas os arroubos decorativos do Alto
N
DERENJI, Jussara. Teatros da Amazônia. Belém:
r t í s t i c o
Ecletismo regional. Cariátides, cornucópias Prefeitura de Belém/Fumbel, 1996, p. 25.
e leões enchem as fachadas das residências e HERKENHOFF, Paulo. “Design e selva, o caminho da
modernidade brasileira”. In: JOHNSON, Pamela (ed.).
A
prédios públicos regionais, dando-lhes uma
The Journal of Decorative and Propaganda Arts – 21 Brazil
e
arquitetura de exuberante decoração, que
i s t ó r i c o
Theme Issue. Miami: Wolfson Foundation, 1995.
prima pelo acúmulo de ornatos. Permanece MATTOSO, Ernesto. O Dr. Augusto Montenegro: sua
essa configuração apenas em prédios vida e seu governo. Paris: Tony Dussieux, 1907.
H
MELLO JÚNIOR, Donato. O Teatro da Paz. Revista de
isolados, nos setores centrais, como símbolos
a t r i m ô n i o
Cultura do Pará, Belém, 1973.
da fase em que a região se despedia da
MESQUITA, Otoni Moreira de. Manaus: história e
euforia da exploração da borracha, o tempo arquitetura (1852-1910). Manaus: Ed. Valer, 1999, p.
d o
Os edifícios dos teatros de Belém MONTEIRO, Mário Ypiranga. Teatro Amazonas.
e v i s t a
Manaus: Edições Governo do Estado do Amazonas,
e Manaus tiveram várias reformas e 1965, p. 80.
restaurações, algumas delas de resultados
R
MONTENEGRO, Augusto. Álbum do estado do Pará.
discutíveis. Foram ambos tombados como Oito anos do governo (1901 a 1909). Paris: Chaponet,
1908.
patrimônio nacional, chegando aos dias
MOURA, José Coelho da Gama e Abreu. “1847-1897”.
atuais em surpreendente vitalidade. Íntegros, In: MOURA, Ignácio Baptista de. De Belém a S. João do
conservados, estudados, visitados e atuantes, Araguaya: Valle do rio Tocantins. Rio de Janeiro; Paris:
ambos mantêm orquestras próprias, com H. Garnier Livreiro-Editor, 1910, p. 2-9.
SALLES, Vicente. A música e o tempo no Grão-Pará.
músicos de origem nacional e estrangeira. Os
Belém: Conselho Estadual de Cultura, 1980, p. 330.
festivais de ópera relembram, em temporadas 305
Coleção Cultura Paraense.
bem menores, os grandes espetáculos antes SEGAWA, Hugo. Arquitetura de teatros: o século XIX
neles apresentados. O papel dos teatros e a Belle Époque no Brasil. Projeto, n. 112, São Paulo,
1988.
como formadores de público, de educação e
TOLEDO, Benedito Lima de. “Opera Houses”. In:
aprimoramento de artistas locais é facilmente JOHNSON, Pamela (ed.). The Journal of Decorative
constatável pelo número de profissionais de and Propaganda Arts – 21 Brazil Theme Issue. Miami:
Wolfson Foundation, 1995, p. 51.
canto e músicos que os animam, na plateia ou
no palco.
Criados com a aspiração de alcançar
ideais de civilização e de progresso, inspirados
em padrões que não nos pertenciam,
mantiveram-se intactos enquanto edificações
de seu tempo e atuais, como formadores de
uma prática cultural identificada com o meio
em que se implantou.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
306
José Guilher me Cantor Magnani Patr imônio cultural urbano, “de per to e de dentro”:
uma aproximação etnográfica
José Guilher me Cantor Magnani
a c i o n a l
P atrimônio cultural urbano ,
“de perto e de dentro”: uma aproximação etnográfica
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
Introdução foi das igrejas barrocas aos terreiros de
candomblé, das fazendas coloniais e fortalezas
É amplamente conhecido o processo de às vilas operárias, dos vetustos monumentos
P
e paisagens aos intangíveis modos de fazer
d o
mudanças nas siglas, definições e normas dos
e v i s t a
órgãos oficiais de preservação do patrimônio, – enfim, da perspectiva da “pedra e cal” ao
bem como sua abrangência, desde a pioneira plano do imaterial...
R
iniciativa de Mário de Andrade na década de
1930 até hoje – Sphan, depois Iphan; IBPC, A cidade como bem
torno de três eixos: a cidade é um artefato – discussão sobre aqueles problemas, e conclui
a c i o n a l
feita, fabricada – porém não num nível abs- o texto com o que denomina “uma palavra de
trato, mas no interior de um campo de forças, ordem”: cotidiano e trabalho, para reafirmar
o que supõe relações, trocas, conflitos entre a ideia da cidade como bem cultural e não
N
r t í s t i c o
os atores sociais nos planos econômico, polí- como conjunto de bens culturais ou como
tico, cultural. Esse artefato, assim construído, cenário apenas para ser contemplado. Essa
A
Com base nessa argumentação, Ulpiano além dos arquitetos e historiadores que são
analisa alguns equívocos no entendimento da tradicionalmente mais vinculados à questão
H
trabalho, como é o caso dos mercados, são por exemplo, já tinha me deparado com
transformados em museus, centros culturais, a questão do patrimônio cultural urbano:
como se essas destinações fossem mais nobres. por solicitação do então presidente do
Nessa mesma linha, que supõe determi- Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico,
nada visão de cultura como item à parte da Arqueológico, Artístico e Turístico do
vida cotidiana, aparece também a ideia de Estado de São Paulo – Condephaat, Antonio
contemplação, exemplificada, entre outros ca- Augusto Arantes, coordenei em 1987 uma
308
sos, pelo conceito de “cidades patrimônio da pesquisa na cidade de Santana de Parnaíba,
humanidade”, que muitas vezes as transforma região metropolitana da capital paulistana.
em espaços alheios a seus moradores. Ao
contrário, sugere Ulpiano, “[é o] município S a n ta n a de Parnaíba,
– e não o estado, a região, o país, o mundo – memória e cotidiano3
como o locus privilegiado da fruição concreta,
aprofundada e diversificada da cidade como Esse era o título do projeto que orientou
bem cultural” (in Mori et al, op. cit.:40). O a pesquisa naquela cidade surgida em 1580,
terceiro item que aponta, nessa sequência, é o no primeiro século de povoamento do
descompasso entre as medidas de proteção e território. Destacou-se como vila colonial por
as normas de zoneamento urbano, uso e ocu- volta de 1620, por tornar-se um dos pontos
pação do solo e dos planos diretores. mais importantes de partida das bandeiras,
Na continuação, propõe uma agenda em virtude de sua localização estratégica às
de temas – a questão do multiculturalismo,
o tombamento de bairros e o problema da 3. Cf. Magnani, 2007.
margens do rio Tietê e da antiga rota indígena religiosidade e consenso4. Nada mais
a c i o n a l
Grosso e Goiás. No ano em que tal estudo se viu em Santana de Parnaíba, a partir do
desenvolveu, era ainda uma cidade pequena olhar etnográfico de perto e de dentro da
N
antropologia urbana.
– possuía 15.995 habitantes, com casas e
r t í s t i c o
O estudo seguiu três momentos: uma
edificações tombadas, entre as quais a famosa
fase exploratória, com base em contatos
casa do Anhanguera, agora museu.
A
e entrevistas informais, principalmente
e
Sob a ótica de indicadores convencionais, com idosos, sempre dispostos a falar sobre
i s t ó r i c o
Santana do Parnaíba estava sujeita às normas suas famílias e os costumes de dantes. Em
de diferentes órgãos de preservação, estadual, seguida, os dados colhidos nessa fase foram
H
a t r i m ô n i o
organizados numa grade classificatória que
P
e funcionários.
d o
habitantes, que não poucas vezes entravam
Cada um desses grupos tinha um
e v i s t a
em confronto com os técnicos encarregados
discurso sobre si e sobre os demais e diferia
da fiscalização. Daí a solicitação da pesquisa,
R
com relação ao entendimento do que era o
de enfoque etnográfico, que terminou patrimônio dessa cidade histórica. Todos,
dirigindo o estudo para o cotidiano, as festas, porém, mencionavam um ponto focal para
a diversidade dos moradores e suas opiniões. onde convergiam as disputas: as festas.
O que a pesquisa revelou, entre outros Estas, então, foram escolhidas, na terceira
aspectos, é que, não obstante a aura etapa, como objeto de observação de campo
de comunidade – de cidadezinha onde mais intensiva, com especial atenção para a
309
comemoração de Corpus Christi e o trajeto
supostamente todos se conheciam e cuja vida
da procissão pelas ruas decoradas em forma
parecia transcorrer na calma das três ruas
de tapete, mas tomando seu ciclo completo,
tombadas que delimitam o centro histórico
que incluía a festa da padroeira da cidade,
–, havia conflitos e não só com os órgãos de
Sant’Ana; a de São Sebastião e São Benedito;
preservação, mas também entre os moradores, a romaria de Santo Antônio no distrito rural
entre membros das famílias tradicionais, do Suru; o Carnaval, com o tradicional Bloco
funcionários públicos recentemente dos fantasmas etc.
transferidos, migrantes, artesãos. Ou seja, Não se tratava de uma pacata cidade sete-
o quadro era muito diferente daquela visão centista. Encravada na região metropolitana
difundida a partir do continuum folk/urbano
4. Segundo a proposta do continuum folk/urbano (tribe - village
de Robert Redfield (1949), segundo a qual - town - city) desse autor, da conhecida Escola de Chicago, essas
características (isolamento, homogeneidade, forte religiosidade
comunidades tradicionais eram caracterizadas e consenso), próprias das comunidades mais tradicionais, iam-se
diluindo à medida que se caminhava para a outra ponta do
pelo isolamento, homogeneidade, forte continuum.
de São Paulo, está próxima a grandes rodovias que encerram a sua história biológica nos seus
Patr imônio cultural urbano, “de per to e de dentro”:
uma aproximação etnográfica
e cercada por uma imensa periferia. Chamou limites, modelando-a ao mesmo tempo com todas
as suas intenções de seres pensantes, a cidade
a c i o n a l
afirmavam ter “restaurado” suas casas de fim cultura; indivíduo e grupo; vivida e sonhada; a
de semana no centro histórico, à custa da coisa humana por excelência ([1955]1981:117).
A
nicípio para aproveitamento de materiais de Essa passagem faz parte do livro Tristes
i s t ó r i c o
de patrimônio, sendo necessário encarar os indígenas que tinham motivado sua vinda
a t r i m ô n i o
atores em sua diversidade de interesses. Por para o Brasil, na década de 1930, como
outro lado, a recorrência do tema das festas, professor na então Faculdade de Filosofia,
P
lócus e momento de encontro não só daquelas Ciências e Letras da USP, que acabava de
d o
diferentes categorias de moradores já citadas, ser fundada. Na quarta parte da obra, ele
e v i s t a
mas também de visitantes, evidenciou sua registra impressões sobre as cidades que
foi encontrando no decorrer da viagem,
R
de 1981, em que discute a arquitetura no tipo identificado por Wittgenstein como parte das estruturas e
edificações do centro
dos hábitos e da auto compreensão da prática histórico de Belém
contexto da polêmica modernismo versus (PA), em sua 22a
cotidiana: nosso conceito de cidade liga-se a uma edição, 2018
pós-modernismo, questiona “se o próprio Foto: Cláudio Ferreira.
funções sociais da vida urbana – nos seus tes e com todas as suas mazelas? Parece difícil
aspectos econômicos, políticos, culturais, seguir Lévi-Strauss... No entanto, ele próprio
de práticas religiosas, da vida cotidiana no deixava aberta uma alternativa:
âmbito do morar, da recreação, da festa –
Mas a vida urbana apresenta um estranho
podiam ser vivenciadas e percebidas num
contraste. Embora represente a forma mais
marco temporal e espacial claramente complexa e requintada da civilização, em virtude
312
configurado. Contudo, já “no século XIX da concentração humana excepcional que realiza
ao mais tardar, a cidade torna-se ponto de num espaço reduzido e da duração do seu ciclo,
intersecção de relações funcionais de outra precipita no seu cadinho atitudes inconscientes,
espécie”. A vida urbana é cada vez mais cada uma delas infinitesimal mas que, devido
mediatizada por “conexões sistêmicas não ao número de indivíduos que as manifestam do
configuráveis” e “as aglomerações urbanas mesmo modo e em grau idêntico, se tornam
capazes de engendrar grandes efeitos (Lévi-Strauss,
emanciparam-se do velho conceito de cidade
ao qual, no entanto, se apega nosso coração” op. cit.:116).
a c i o n a l
que caracterizo como o “olhar de perto da mera contemplação. Contudo, diante da
e de dentro”. Diante da escala da cidade afirmação de que “a cidade, hoje, só pode
contemporânea – com seu tamanho, ser abordada como um todo fragmentado.
N
r t í s t i c o
densidade e heterogeneidade, como já O território urbano se decompõe em pontos
havia adiantado Wirth (1987:98) e a partir múltiplos de apropriação desigual e é nesse
A
da advertência de Habermas – pareceria quadro que o próprio planejamento produziu
e
não haver alternativa senão resignar- a segregação” (in Mori et al., 2006:48). Por
i s t ó r i c o
se ao decantado caos, impessoalidade e isso, fiz uma ressalva a seu artigo, no meu
fragmentação tão apregoados pela mídia. comentário a seguir:
H
Contudo, ao seguir a dinâmica dos
a t r i m ô n i o
P
para o trabalho, para o lazer, para as formas pamentos urbanos que transcendem a contiguidade
d o
de devoção, compras, encontros, é possível espacial e simultaneidade temporal. É o caso, por
e v i s t a
identificar regularidades, compartilhamentos. exemplo, do que denominei circuito. Esta categoria
surgiu da necessidade de nomear uma modalidade
R
Mas, para flagrar tais práticas e, nesse caráter
infinitesimal, identificar sua relevância, de relação com a cidade que não se encaixava em
formas de co-presença entre ator e espaço. Se nos
consistência e inter-relações, é preciso contar
limites do pedaço e da mancha é possível visualizar
com as ferramentas adequadas: o olhar de
determinado recorte na paisagem juntamente com
perto e de dentro tem como instrumentos
seus usuários, o circuito apresenta outra dinâmica de
de observação algumas categorias que foram
interação entre ambos (ibid.:63).
elaboradas ao longo de pesquisas no Núcleo
313
de Antropologia Urbana: pedaço, trajetos, Aliás, o próprio Ulpiano em sua réplica
manchas, pórtico, circuitos. Tais categorias a meus comentários ressaltou a importância
permitem construir unidades de análise a dessa categoria: “(...) muitos caminhos
partir dos arranjos dos atores sociais nas incipientes já deveriam estar sendo testados
diferentes formas de uso e apropriação do nas práticas de preservação. Um deles é o
espaço urbano. Ainda que já sobejamente circuito, de que fala José Guilherme e que me
discutidas em publicações anteriores, serão a parece de grande fertilidade” (ibid.:71).
seguir apresentadas de forma sucinta. Para avaliar o alcance de sua aplicação,
contudo, é preciso situá-lo no conjunto
Etnografia urbana da “família” de categorias de que faz parte,
cuja particularidade se define a partir da
Retomo aqui a observação de Ulpiano, já experiência vivida pelos atores sociais
citada, de que o lócus privilegiado da fruição envolvidos. Em vez de ficarem presas a
não é o estado, a região, o país, o mundo, uma descrição particularista e circunscrita a
bem como sua “palavra de ordem”, que en- cada caso, elas apontam para regularidades
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
314
José Guilher me Cantor Magnani Patr imônio cultural urbano, “de per to e de dentro”:
uma aproximação etnográfica
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
sabe que nesses e em outros casos análogos como farmácias, clínicas particulares,
há recortes ou unidades cujas fronteiras consultórios, serviços radiológicos e
A
de seus integrantes, uma percepção imediata, ampla da cidade. No primeiro caso, em que
a t r i m ô n i o
etnógrafo, por sua vez, também percebe tal espaço como ponto de referência é restrito
e v i s t a
pois essa modalidade particular de encontro, facilidade, mas leva-se consigo o pedaço.
troca e sociabilidade supõe a presença de A mancha, ao contrário, sempre
elementos mínimos estruturantes que a aglutinada em torno de um ou mais
tornam reconhecível em outros contextos. estabelecimentos, apresenta uma implantação
O mesmo ocorre com as demais mais estável, tanto na paisagem quanto
categorias: cada uma, à sua maneira, permite no imaginário. As atividades que oferece
identificar um arranjo particular por parte e as práticas que propicia são resultado
316
de seus integrantes e revela um tipo especial da multiplicidade de relações entre
de consistência: se no pedaço não há lugar equipamentos, edificações e vias de acesso,
para estranhos, a “mancha”, com uma o que garante uma maior continuidade e
implantação mais estável na paisagem urbana, a transforma em um ponto de aglutinação
tem maior amplitude e acolhe mesmo quem físico, visível e público para uma rede
não se conhece pessoalmente, já que o que mais ampla de usuários. Diferentemente
a caracteriza é o compartilhamento de um do que ocorre com o pedaço, para onde
certo gosto musical, consumo, estilo de vida, um indivíduo se dirige na procura de seus
orientação sexual, religiosa. iguais, a mancha cede lugar a cruzamentos
Em uma mancha de lazer, por exemplo, os imprevistos, a encontros até certo ponto
equipamentos podem ser bares, restaurantes, inesperados, enfim, a combinações variadas.
parques, praças, cinemas, teatros, a cafeteria Em uma determinada mancha sabe-se que
da esquina etc., os quais, seja por competição tipo de serviços ou pessoas serão encontradas,
ou complementariedade, convergem para o mas não qual, e esta é uma das motivações
mesmo efeito: constituir pontos de referência para seus frequentadores.
Patr imônio cultural urbano, “de per to e de dentro”:
uma aproximação etnográfica
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
to que abre o pedaço para fora, para o âmbito apenas o circuito dos ilês africanizados ou
do público. E finalmente, os trajetos levam de estendê-los aos demais, incluindo ou não os
um ponto a outro através dos “pórticos”. terreiros de ascendência angolana e inclusive os
N
r t í s t i c o
Lugares que já não pertencem à mancha da- particular forma de aplicação do método et-
e
qui, mas que também não se situam na de lá. nográfico tem como suposto a ideia de que
i s t ó r i c o
“maldição dos vazios fronteiriços”, expres- sentido imediato para ele, pois é sua prática; a
a t r i m ô n i o
são que Santos & Vogel (1985:103) tomam outra é percebida pelo pesquisador, que reco-
emprestada do título de um dos capítulos do nhece esse sentido e o descreve em seus termos.
P
livro The death and life of great american cities, Em trabalhos anteriores (Magnani,
d o
de Jane Jacobs (1992). Terra de ninguém, 2012 e 2014), fiz uma aproximação com
e v i s t a
res que devem ser atravessados rapidamente, de Pierre Nora (1984), fala de “um lugar
sem olhar para os lados... Contudo, plenos de antropológico” que, segundo seus termos,
possibilidades e imprevistos. seria “simultaneamente princípio de sentido
Por último, a noção de “circuito”. Trata-se para aqueles que o habitam e princípio de
de uma categoria que descreve o exercício de inteligibilidade para quem o observa”. Do
uma prática ou a oferta de determinado serviço ponto de vista do agente, trata-se de um
318 ”arranjo”, resultado de escolhas frente a
em estabelecimentos, equipamentos e espaços
que não mantêm entre si uma relação de conti- um repertório de alternativas; o observador
guidade. Por exemplo, o circuito gay, o circuito o reconhece, segue-o e, no processo da
dos cinéfilos, o do povo de santo, dos coletivos investigação, o refere a outros recortes,
de ativistas, dos skaters, dos evangélicos e tan- quando, então, constitui uma “unidade de
tos outros, cujos pontos de encontro podem análise” num outro nível.
estar disseminados pela paisagem mais ampla Concluindo, uma unidade consistente
da cidade (inclusive fora dela), mas que consti- em termos de etnografia é aquela que,
tuem uma unidade significativa e reconhecida experimentada e reconhecida pelos atores
pelos usuários habituais. sociais, é identificada pelo investigador e
Por outro lado, o circuito comporta vários elaborada como categoria de maior alcance.
níveis de alcance e a delimitação de seu con- Para os primeiros, é o contexto da experiência
torno depende das perguntas elaboradas pelo e, para o segundo, um recurso descritivo e
pesquisador. O povo de santo na cidade tem chave de inteligibilidade. Uma vez que não
seu circuito e modo de vida correspondente, se pode contar com uma unidade dada a
priori, postula-se uma que será construída a A noção de circuito, principalmente, se de
a c i o n a l
de hipóteses de trabalho e escolhas teóricas – de, não a reifica. Tome-se como exemplo um
condição para que se possa dizer algo mais do tipo de prática cultural que supõe, para seu
N
que generalidades com respeito a tal ou qual exercício, determinados equipamentos e esta-
r t í s t i c o
objeto de estudo. belece vínculos duradouros entre seus aficio-
Desse modo, aqueles planos aos quais se nados, fundamentando uma comunidade de
A
fez alusão anteriormente – a cidade no seu interesses, a dos cinéfilos, que usei no comen-
e
conjunto e cada prática cultural específica, tário ao artigo já citado de Ulpiano (2006),
i s t ó r i c o
associada a este ou aquele grupo de atores – e que será retomado mais diante: mostra que
devem ser considerados como dois polos de está inserida num circuito em cujo interior
H
a t r i m ô n i o
P
necessário, por conseguinte, ajustar o foco: supõe uma rede construída com base na troca
d o
nem tão de perto que se confunda com a de informações, comentários, controvérsias,
e v i s t a
perspectiva particularista de cada usuário, busca e exibição de conhecimentos.
R
nem tão de longe a ponto de distinguir um A base territorial de sua prática pode
recorte amplo, mas genérico e sem maior formar uma mancha contínua, mas também
poder explicativo. instaura o circuito: está espalhada pela cidade e
Essas categorias, cada qual à sua maneira não é constituída apenas pelos chamados cine-
– desde os recortes mais localizados e de fron- mas de arte, mas por livrarias, debates e exibi-
teiras definidas como pedaço e mancha até a ções especiais em auditórios situados em insti-
de circuito, que independe de contiguidade tuições públicas e fundações privadas, eventos 319
espacial –, recuperam a ideia de unidade, como mostras, festivais, lançamentos etc.
apontam para uma ideia de totalidade, evi- A seguir são relatados três casos relacio-
tando-se assim o perigo da fragmentação: nados com patrimônio ambiental urbano a
partir da perspectiva da antropologia urbana
Não se trata, evidentemente, daquela
e de seu método etnográfico: a movimentação
totalidade que evoca um todo orgânico,
funcional, sem conflitos; tampouco se trata de em torno da preservação do Cine Belas Artes,
uma totalidade que coincide, no caso da cidade, na capital paulista, o tombamento do Parque
com os seus limites políticos-administrativos do Povo, também em São Paulo, e o registro
(...). No entanto, renunciar a esse tipo de como patrimônio cultural da Rua Sergipe, em
totalidade não significa embarcar no extremo Londrina, norte do Paraná6.
oposto: um mergulho na fragmentação. Se não
se pode delimitar uma única ordem, isso não
significa que não há nenhuma; há ordenamentos 6. Os casos que seguem têm como referência, com alterações, o
particularizados, setorizados; há ordenamentos, artigo “Anthropology between Heritage and Museums”, publica-
do apenas em inglês e on line, na revista Vibrant, da Associação
regularidades (Magnani, 2002:16). Brasileira de Antropologia (Magnani, 2013).
Três a medida. Voltou-se à carga com razões
Patr imônio cultural urbano, “de per to e de dentro”:
uma aproximação etnográfica
casos
de ordem cultural, o Ministério Público
a c i o n a l
Paulo. Considerado cult, suas salas de Municipal entrou na jogada, abrindo uma
e
projeção – com nomes tão sugestivos como CPI e convocando o diretor do Conpresp
i s t ó r i c o
bem ao lado do cinema – agora Cine Caixa apesar de ainda pouco comum. A inclusão de
a c i o n a l
Belas Artes – há uma entrada para a Estação itens como esses na lista oficial do patrimônio
Paulista da linha amarela do metrô. Se antes cultural já mostra a presença de outros valores
era local que se cruzava de forma pausada, em que ampliam os critérios tradicionais impe-
N
r t í s t i c o
Um bem isolado – tal ou qual sala, porém, de certa maneira se diferenciava dos
e
sentido quando incorporado a esse circuito 133.547 m², localizada em região nobre e das
ou no interior de uma mancha, que mais valorizadas da cidade7. Dividida em vá-
H
nesse caso poderia ser considerada como rios campos de futebol de terra, era usada por
a t r i m ô n i o
entorno, no jargão técnico dos órgãos de times conhecidos como “de várzea”: Marítimo
preservação. Num circuito consistente, cada Futebol Clube, Grêmio Esportivo Canto do
P
ponto contribui com sua especificidade Rio, Tintas Cirota, Sociedade Esportiva Flor
d o
para uma prática cujo denominador do Itaim e outros, que, de segunda a domin-
e v i s t a
P
permaneceu não como mero testemunho ou dros, aprazíveis recantos para o espairecimento
d o
vestígio de uma antiga modalidade de ocupa- das famílias. Nesse momento, os corpos, as
e v i s t a
ção, mas de forma ativa, só que cada vez mais cores, os odores, os uniformes, as expressões
R
destoante em relação à sofisticada ambiência verbais, a poeira dos campos conformavam um
do bairro que a circundou. E então começou a repertório que não combinava com a estética
saga desse processo, como a dos que habitual- dos prédios, com o comportamento dos tran-
mente tramitam nos órgãos de preservação. seuntes e moradores de classe média alta e até
Em primeiro lugar, tratava-se de espaço com os modelos de carros do seu entorno.
ligado a uma atividade de lazer – note-se que O Parque do Povo, para alguns – a come-
à época ainda não se falava em “patrimônio çar pelo nome –, certamente ficaria melhor
323
imaterial” – e não de moradia, trabalho ou de- na periferia. Claro, as regiões mais nobres da
voção, que eram os aspectos geralmente invo- cidade podem conviver com aquelas pessoas,
cados para justificar a preservação de lugares de desde que envergando os uniformes de traba-
culto, instalações e equipamentos de trabalho, lho, usando o linguajar adequado, nos horários
exemplares de sistemas construtivos peculiares. previstos. Mas, para divertir-se? Convenha-
Além dos campos de terra demarcados a cal e mos... O jogo de inversões e contrastes, porém,
de algumas benfeitorias sem nada de especial, o não parava por aí. Lazer não é no fim de sema-
parque não exibia qualquer suporte material de na? No Parque do Povo havia jogo de futebol
interesse arquitetônico ou artístico. durante os dias úteis. Afinal, quem são seus
Em segundo lugar, apesar da histórica e frequentadores? Gente honrada? De onde eles
comprovada ligação da prática atual com a vinham? Um dos achados da pesquisa foi que,
ocupação original do terreno, tratava-se de diante da suspeita com relação a “marmanjos”
uma forma de lazer popular que já não guar- jogando futebol justo numa segunda-feira, dia Projeto Circular,
23a edição,
dava relação com a imagem dos piqueniques de trabalho, descobriu-se que eram trabalha- Praça dos Estivadores,
Belém (PA), 2018
de outrora, quando os rios que margeiam São dores (e sindicalizados) da área de restaurantes, Foto: Otávio Henriques.
hotéis e afins, cujo dia de descanso é justamen- Pois entre esses “ocupantes irregulares” da
Patr imônio cultural urbano, “de per to e de dentro”:
uma aproximação etnográfica
Estava em pauta uma proposta de elimi- mente os atores sociais cuja prática motivara
nar aquela “ferida” no tecido urbano, como seu tombamento, medida a que, aliás, não se
chegou a ser denominada, e ocupar a área faz a mínima referência no tal site. Mas agora,
N
r t í s t i c o
bem ao gosto da recente ocupação da Marginal mento é o mecanismo que se pode acionar,
Pinheiros, mais adiante. Tudo, é claro, segundo com proveito e rapidez, para defesa de algum
H
as normas de um paisagismo “adequado”. No bem e garantir a devida proteção. Bens sem su-
a t r i m ô n i o
entanto, alguns usuários se movimentaram, porte material tangível e/ou duradouro, como
surgiu uma associação, buscaram-se parceiros o traçado com cal dos campos de futebol na
na imprensa, na Câmara Municipal, na univer-
P
sidade, e o Parque do Povo finalmente, depois relacionados a práticas de agentes sociais com
e v i s t a
de várias vicissitudes, foi tombado, garantindo- reduzido poder de negociação. Foi o que ocor-
-se o direito ao lazer de características popula-
reu no Parque do Povo, quando nem mesmo
R
a c i o n a l
outras manifestações de arte e cultura. a atenção para um desses recortes, apresen-
Para finalizar o tema do futebol de várzea, tado no capítulo “Sergipe, a rua de todas as
cabe assinalar que pesquisas mais recentes compras”, resultado de uma etnografia sob
N
r t í s t i c o
enfatizam, além do aspecto de mancha, seu coordenação de Ana Cleide Chiarotti Cesário
caráter de circuito: a pesquisa de Enrico Spa- (Cesário, 2012:75-102).
Há, como também se sabe, razões políticas
A
ggiari (2016) no bairro de Guaianazes, zona
e
sul da capital, mostra a circulação, por campos e ideológicas para essas escolhas; o mesmo se
i s t ó r i c o
de toda a cidade, tanto dos jogadores e de seus pode dizer da profundidade temporal, expressa
familiares em busca de oportunidades como de no “histórico”, que também delimita o alcance
H
técnicos e olheiros à cata de jovens e promis- de patrimônio e lhe impõe limites. Muitas
a t r i m ô n i o
P
andamento, sobre os campos de futebol locali- colonos, imigrantes, construções de madeira
d o
zados no Campo de Marte, zona norte de São – como é a experiência que se verá a seguir –
e v i s t a
Paulo, terreno em disputa entre a prefeitura e a ficam de fora…
Aeronáutica. Os membros dos diferentes tam- De certa forma, a coletânea segue o
R
bém times não se restringem a essa mancha. padrão convencional: são apresentados os
aspectos históricos, artísticos, arquitetônicos
Em Londrina (PR): “Sergipe, a do patrimônio de Londrina – nessa ordem. A
rua de todas as compras” novidade, contudo, está no fato de dialogarem
O terceiro caso escolhido para ampliar a com a última abordagem do texto, calcada na
discussão sobre o tema deste artigo tem como antropologia urbana: no capítulo assinado por
inspiração o convite que me foi feito para fazer Ana e equipe, faz-se uso criativo das categorias: 325
a apresentação de uma coletânea – Rua Sergipe: pedaço, trajeto, mancha, pórtico, circuito.
patrimônio cultural londrinense (Magalhães, Cabe, contudo, alguma informação sobre
2012), com contribuições de diversos mem- a cidade de Londrina, para que se possa avaliar
bros do Ipac/Londrina (PR)9. Cada um dos melhor a utilização dessas categorias no trato
autores – arquitetos, historiadores, cientistas com a questão do patrimônio. Sua fundação
remonta a 1929, por iniciativa da Companhia
de Terras Norte do Paraná, dada a expansão
9. “O Projeto de Extensão ‘Inventário e Proteção do Acervo Cul- do cultivo do café nessa região. É elevada à
tural de Londrina – IPAC/LDA’ nasceu em 1986 na Universidade
Estadual de Londrina – UEL por sugestão de José Guilherme condição de município em 1934. Sua estrutura
Cantor Magnani – então Coordenador do Patrimônio Cultural da
Secretaria de Estado da Cultura do Paraná. A proposta era desen- urbana foi alvo de registro de Lévi-Strauss,
volver uma política de conhecimento e intervenção no Patrimônio
Material e Imaterial na região Norte do Paraná. Ao escolher Lon- quando de sua passagem por lá, em direção a
drina para iniciar um trabalho de política pública voltada para o Goiás e Mato Grosso10.
Patrimônio Cultural, Magnani fazia uma escolha instigante, pois a
cidade e região eram partes de uma colonização nova, o que exigiria
uma abordagem teórico-metodológica atualizada e ampliada em
relação aos conceitos e práticas até então vigentes” (http://www.uel. 10. Ver o intertítulo deste artigo
br/projetos/ipaclda/). Acessado em 21/7/2018. chamado “A cidade dos antropólogos”.
De início, a paisagem urbana era e atividades datadas – e, por isso, fonte de
Patr imônio cultural urbano, “de per to e de dentro”:
uma aproximação etnográfica
cujo exemplar mais aclamado foi a estação trajetos, pórticos. As categorias permiti-
e
to de categorias já estabelecido.
nela desse museu, assim como do “Cadeião”,
Jane Jacobs, no livro em que descreve
além das moradias e de uma infinidade de
o cotidiano de uma cidade norte-ameri-
estabelecimentos de comércio e serviços,
cana em contraposição ao artificialismo
permite à arquiteta Elisa Roberta Zanon
do urbanismo modernista (op. cit.), usa
concluir que “a Sergipe é uma rua em que
uma interessante expressão – o “balé das
se encontra um pouco de tudo da cidade de
calçadas” – para se referir à vitalidade que
326 Londrina” (2012:7). “Pequena Tóquio” era
os múltiplos usos da rua proporcionam
outro epíteto seu, pela marcante presença dos
e asseguram à dinâmica urbana. Esse as-
imigrantes japoneses.
pecto, em termos de patrimônio, juntaria
Tantos nomes, referências... Lugar de vários outros, exatamente como propõe a
memória, certamente, na denominação de coletânea (Magalhães, op. cit.), desde o
Pierre Nora (1984), mas também “lugar arquitetônico até a mais recente forma de
antropológico”. É o que percebeu Ana Cleide, adjetivá-lo, patrimônio imaterial. No caso
na pesquisa que coordenou: tratava-se, nesse específico dessa rua, abrange um con-
caso, de recuperar a dinâmica atual dessa rua, junto de atributos e práticas – lugares de
mostrando sua vitalidade e diversidade por encontro, comportamentos, gestos, ditos,
meio da aplicação das já referidas categorias, receitas de boteco, brincadeiras, festas
acionadas para detectar regularidades e –, algumas efêmeras, outras com suporte
padrões. Há, certamente, uma continuidade material durável, outras, ainda, resultado
entre a velha Rua Sergipe, dos tempos idos da conjunção de uma multiplicidade de
da formação da cidade, com suas edificações elementos constitutivos.
Conclusão: Janeiro, pelo órgão estadual, seja adequada ao
a c i o n a l
registro do gênero em si, apesar de considera-
Como se viu acima, a propósito dos do pertinente pelo Iphan em 2015, ainda se
encontra em fase de instrução, o que implica
N
casos de Santana de Parnaíba, do Cine Belas
r t í s t i c o
Artes, do Parque do Povo, da Rua Sergipe levantamento de documentação e estudo, ne-
em Londrina, quando se está às voltas com cessários para constituir o dossiê de registro e
A
a questão do patrimônio a ser identificado, posterior deliberação do Conselho Consultivo.
e
A questão que quero pontuar, contudo,
i s t ó r i c o
protegido e preservado, a antropologia –
especialmente a antropologia urbana, com diz respeito a uma das premissas habitual-
seu método diferencial, a etnografia e as mente levadas em conta para decidir se tal
H
a t r i m ô n i o
ou qual bem imaterial – saberes, festas, ex-
P
cultiva de forma ancestral e/ou continuada.
d o
campos do patrimônio e da museologia.
A noção de comunidade, com longa
e v i s t a
Cada uma daquelas categorias
tradição nas ciências sociais desde os clássicos
apresentadas pode ser especialmente
R
na fórmula “comunidade versus sociedade”
proveitosa na análise do patrimônio urbano
(Durkheim, 1973, Tönnies 1963, Weber
para não se cair na perspectiva da inevitável
1999, Simmel, 1987) – não cabe aqui
fragmentação da cidade, nem na de uma
retomar essa discussão –, e supostamente do
totalidade indiferenciada. Isso ocorre por
lócus privilegiado da experiência etnográfica,
permitirem construir e/ou identificar
já passou por várias leituras, entre as quais a
unidades significativas, articulando espaços,
de George Marcus (1991).
equipamentos e a prática dos atores sociais 327
Para esse autor, é preciso repensar o
envolvidos, como se viu no caso do pedaço,
conceito tal como foi estabelecido e utilizado
da mancha, circuito. Ao concluir, retomo esta
em determinados contextos do que denomina
última, a de circuito – seguindo a sugestão de
a etnografia realista, em oposição a uma
Ulpiano –, para, como exercício, relacioná-la
etnografia modernista, que leva em conta a
à modalidade mais recente de patrimônio, o
mudança não apenas das condições atuais
imaterial e, especificamente, aplicada a um
dos povos estudados pela antropologia como
gênero musical, o choro11.
também as transformações no cenário mun-
Ainda que em determinados casos, isola-
dial onde se inserem. Assim, afirma Marcus,
dos, como a recente proposta de tombamento
de roda de choro numa praça, no Rio de 12. Cabe observar que o choro, em maio de 2012, foi inscrito
no Livro de Registro das Formas de Expressão do órgão de defesa
do Patrimônio do Estado do Rio de Janeiro. E está em curso
11. Os problemas involucrados na questão da salvaguarda desse uma proposta de tombamento de uma roda de choro (“Arruma
gênero musical, no Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, o Coreto”) na Praça São Salvador, em Laranjeiras, também no
foram levantados por Mônia Silvestrin, numa das aulas da dis- Rio. http://agenciabrasil.ebc.com.br/cultura/noticia/2018-01/
ciplina por mim ministrada no curso “A Dimensão Cultural das roda-de-choro-em-praca-publica-pode-se-tornar-patrimonio-i-
Práticas Urbanas”, PPGAS/FFLCH/USP, em 2017. material-no-rio.
é preciso romper com uma noção de comu- ainda o caso da Praça do Choro no Rio –, na
Patr imônio cultural urbano, “de per to e de dentro”:
uma aproximação etnográfica
nidade que, “no sentido clássico de valores, perspectiva mais geral dessa modalidade como
a c i o n a l
Mesmo no caso das chamadas comunida- terial. E se é preciso um grupo de suporte para
e v i s t a
des quilombolas, ribeirinhas, indígenas, por dar sustentação a essas diferentes manifestações
exemplo, invocadas como suporte para vários do patrimônio imaterial, principalmente nos
R
a c i o n a l
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R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
330
José Guilher me Cantor Magnani Patr imônio cultural urbano, “de per to e de dentro”:
uma aproximação etnográfica
2014
Candomblé,
Yaô de Ewa,
José Guilher me Cantor Magnani Patr imônio cultural urbano, “de per to e de dentro”:
uma aproximação etnográfica
N o ta s B i o g r á f i c a s
Notas Biográficas
a c i o n a l
N
em São Paulo, desde 2004 vive em Belém, História pela PUC-RS. Professora aposentada
r t í s t i c o
Pará. É autor de dezessete livros, entre contos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
e ensaios, destacando-se: O abridor de letras, da UFPA, dirige o Museu da UFPA desde
A
e
Record, 2017 (Prêmio Sesc de Literatura 2002. Faz parte do Comitê Memória do
i s t ó r i c o
– Contos); Grandes expedições à Amazônia Mundo da Unesco desde 2015, com a função
brasileira, Ed. Metalivros (2 volumes: 2009 e de representante dos arquivos privados,
H
2011); e Livro de ouro da Amazônia, Ediouro, e atualmente é presidente desse comitê
a t r i m ô n i o
2004. Como ativista socioambiental, atua há no Brasil (MOW Brasil), voltado para a
33 anos no terceiro setor, vinte dos quais no preservação de documentos relevantes para
a memória nacional. Eleita em dezembro
P
Instituto Peabiru, organização da sociedade
d o
civil que trabalha na Amazônia, com a missão de 2017, é a primeira mulher presidente do
e v i s t a
comitê e ficará no mandato por dois anos.
de facilitar processos de fortalecimento
R
da organização social e da valorização da
sociobiodiversidade. Juvêncio da S i lva C a r d o s o
Indígena do povo Baniwa, clã Awadoronai,
liderança e coordenador da Organização
J o s é G u i l h e rm e C a n t o r
Indígena Nadzoeri, antiga Coordenação das
Magnani
Associações Indígenas da Bacia do Içana –
Professor titular do Departamento de
CABC, ligada à Federação das Organizações
Antropologia da FFLCH/USP, é mestre em 333
Indígenas do Rio Negro – Foirn. Ex-professor
Sociologia pela Facultad Latinoamericana de
e ex-coordenador da Escola Indígena Baniwa
Ciencias Sociales – Flacso, Chile, e doutor em e Coripaco Pamáali (2007–2013). Professor
Ciências Humanas (Antropologia Social) pela de Física na Escola Estadual Indígena
USP (1982), onde defendeu tese de livre- Kariamã – Sala de extensão Canadá, rio Aiari.
docência (2010) e de professor titular (2012). Graduado em Licenciatura Intercultural de Tanga de miçanga tiriyó,
Atua na área de Antropologia, com ênfase em Física pelo Instituto Federal de Educação,
coletada por Frikel e Cortez,
1971. Coleção Etnográfica
Curt Nimuendajú/Acervo
Antropologia Urbana. Também atua como Ciência e Tecnologia do Amazonas/Campus Museu Paraense Emílio
Goeldi
pesquisador em Antropologia Urbana, com São Gabriel da Cachoeira – Ifam/CSGC. Foto: Fábio Jacob.
de
UFRR. Cientista Social com ênfase em An- UFPA. No Grupo de Pesquisa Diversidade
tropologia pela UFPA. Mestre em Ciências Cultural, Território e Novos Direitos na
A
L u c i a n a G o n ç a lv e s de M a n u e l F e rr e i r a L i m a F i l h o
Graduado em Geologia pela UFPA, mestrado
C a r va l h o
em Antropologia Social/UNB, doutorado
Bacharel em Ciências Sociais (UFRJ), mestre
em Antropologia Social e Cultural/UNB,
em Sociologia e doutora em Antropologia
estágio pós-doutoral em Antropologia no
pelo PPGSA/UFRJ. Professora na Ufopa
The College of William and Mary (EUA),
334 desde 2010, atuando nos cursos de graduação
Brinco yanomami
Foto: Renato Soares, 2008.
2007, estágio pós-doutoral Sênior em três ganhadores do Prêmio Jabuti de melhor
Notas Biográficas
Antropologia no Museu Nacional/UFRJ. romance e este último, do Prêmio Portugal
a c i o n a l
Professor da Faculdade de Ciências Sociais Telecom de Literatura em 2006. Em 2013,
da UFG, pesquisador do CNPq, diretor do teve suas crônicas reunidas em Um solitário à
Museu Antropológico da UFG, também é espreita. É colunista dos jornais O Estado de S.
N
r t í s t i c o
colaborador no Programa de Pós-graduação Paulo e O Globo.
em Ciências da Religião da PUC-GO. Atua
A
no Núcleo de Estudos de Antropologia, U l p i a n o T o l e d o B e z e rr a de
e
Patrimônio, Memória e Expressões Museais
i s t ó r i c o
Meneses
– Neap, da UFG. Atualmente é diretor do Licenciado em Letras Clássicas e doutor em
Museu Antropológico da UFG. Arqueologia Clássica. Professor emérito da
H
a t r i m ô n i o
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Maria Dorotéa de Lima Humanas da USP, titular aposentado de
Graduada em Arquitetura e Urbanismo História Antiga, docente do Programa de
P
pela UFPA (1980), onde cursou mestrado Pós-graduação em História Social. Dirigiu
d o
em Antropologia (2008). Trabalhou como o Museu Paulista/USP, organizou e dirigiu
e v i s t a
técnica de preservação no Iphan-PA (1989– o Museu de Arqueologia e Etnologia/USP
R
2005). Foi superintendente do Iphan (1963–1968) e foi membro da Missão
no Pará de 2005 a 2017. Atuou como Arqueológica Francesa na Grécia. Autor
arquiteta e urbanista na Secretaria de Obras de Para uma política arqueológica da Sphan
e Infraestrutura do Amapá (1981–1989). (1987) e Premissas para a formulação de
Tem experiência nas áreas de Antropologia, políticas públicas em arqueologia (2007).
com ênfase em inventários e instrução de Recebeu a Comenda da Ordem Nacional do
processos de registro; de Arquitetura, em que Mérito Científico e é membro do Conselho
335
realizou trabalhos de inventário, projetos de Consultivo do Patrimônio Cultural do Iphan.
restauração e fiscalização de obras; e também
na elaboração de estudos de tombamento William César Lopes
e entorno. Atua na área de consultoria
Domingues
relacionada a cultura e patrimônio cultural.
Indígena do povo Xakriabá radicado no
médio Xingu, professor do Curso de
M i lt o n H at o u m Etnodesenvolvimento do Campus de
Escritor, tradutor e professor. Nascido em Altamira (PA), da UFPA, e doutorando
Manaus (AM), é descendente de libaneses. em Antropologia pelo Programa de Pós-
Ensinou Literatura Francesa na UFAM e graduação em Antropologia da UFPA.
na Universidade da Califórnia, em Berkeley
(EUA). Doutor em Teoria Literária pela USP.
Entre os diversos romances que escreveu,
estão: Relato de um certo Oriente (1989), Dois
irmãos (2000), Cinzas do Norte (2005), todos
Mãos de açaí, 1999
Foto: Luiz Braga.
Rapaz e cão em
Carananduba,
Belém (PA), 1990
Foto: Luiz Braga.
Vendedor de
amendoim, 1990
Foto: Luiz Braga.
Encontro das águas dos rios Negro e Solimões
a c i o n a l
N
A publicação da Revista do Patrimônio não seria possível sem a inestimável colaboração das instituições
r t í s t i c o
representadas por seus dirigentes e servidores que, com dedicação e profissionalismo, nos permitem acessar
seus acervos e utilizar documentos e imagens para o enriquecimento das matérias veiculadas. Queremos
agradecer a esses profissionais e instituições que lidam diretamente com os acervos.
A
e
i s t ó r i c o