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ISSN 0102-2571

Nº 37 Nº 37 Nº 37
2018 2018 2018

Neste número
Alfredo Wagner Berno de Almeida

Ana Léa Nassar Matos

Ana Pizarro

Eduardo Góes Neves

Fernando Mesquita

João de Jesus Paes Loureiro

João Meirelles Filho e Fernanda de O. Martins

José Guilherme Cantor Magnani

Jussara Silveira Derenji

Juvêncio da Silva Cardoso

Larissa Maria de Almeida Guimarães

Luciana Gonçalves de Carvalho

Manuel Ferreira Lima Filho

Maria Dorotéa de Lima

Milton Hatoum

Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses

William César Lopes Domingues

O Norte do Brasil:
Identificação e Reconhecimento
do Patrimônio Cultural
Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico
Nacional

Iphan | Brasília | 2018


Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional nº 37 / 2018
ISSN 0102-2571

O Norte do Brasil:
Identificação e Reconhecimento
do Patrimônio Cultural
Organização: Maria Dorotéa de Lima
Presidente da República do Brasil Revista do Patrimônio n° 37 Fotos
Michel Temer Capa: Alto Xingu, 2016. Foto: Renato
Organização Soares.
Ministro de Estado da Cultura Maria Dorotéa de Lima Folha de rosto: Flora brasileira. Aquarela
de José Joaquim Freire. Expedição
Sérgio Sá Leitão
Científica Alexandre Rodrigues Ferreira.
Coordenação Editorial Acervo: Fundação Biblioteca Nacional,
Presidente do Instituto do Patrimônio André Vilaron Brasil.
Histórico e Artístico Nacional 2ª folha de rosto: Boneca karajá. Coleção
Kátia Bogéa Pesquisa Iconográfica Maria Heloisa Fénelon Costa/Acervo:
André Lippmann Museu Nacional/ UFRJ. Foto: Chico da
Diretores do Iphan Mádia do Prado Pereira Costa/Acervo Iphan. Caú-a-uá (Maguari).
Aquarela. Expedição Científica Alexandre
Andrey Rosenthal Schlee Márcio Vianna
Rodrigues Ferreira (1783 a 1792).
Hermano Queiroz Oscar Liberal Acervo: Fundação Biblioteca Nacional,
Marcelo Brito Brasil.
Marcos José Silva Rego Edição e Copidesque Página de créditos: Pirarucu (Arapaima
Robson Antônio de Almeida Caroline Soudant gigas). Gravura de W. H. Lizars a partir
de desenho. In: Ichtyology, fishes of
Superintendente do Iphan no Acre Revisão e Preparação dos Textos British Guiana, de R. H. Schomburgk.
Coleção de João Meirelles Filho.
Jorge Mardini Sobrinho Gilka Lemos
A equipe da Revista do Patrimônio
Superintendente do Iphan no Amapá Direção de Arte e Diagramação agradece aos servidores do Iphan
Haroldo da Silva Oliveira Cristiane Dias (a partir do projeto que se empenharam para que a
gráfico de Victor Burton) nossa publicação fosse produzida da
Superintendente do Iphan no Amazonas melhor forma possível. Bem como às
Karla Bitar Produção Editorial parcerias estabelecidas com fotógrafos
e instituições, públicas e privadas, às
Isabella Atayde Henrique
respectivas equipes e todas as pessoas
Superintendente do Iphan no Pará que com dedicação contribuíram para a
Cyro Holando de Almeida Lins Edição de Imagens realização deste número da Revista do
André Lippmann Patrimônio.
Superintendente do Iphan em Rondônia André Vilaron
Delma Batista do Carmo Siqueira Cristiane Dias A Revista do Patrimônio é publicada
Márcio Vianna pelo Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional, do Ministério da
Superintendente do Iphan em Roraima Oscar Liberal
Cultura, desde 1937. Os artigos são
Katyanne Bermeo Mutran autorais e não refletem necessariamente
Apoio - Divisão de Editoração e a posição do Iphan e da organizadora
Superintendente do Iphan no Tocantins Publicações - Iphan deste número, Maria Dorotéa de Lima.
Marcos Zimmermann Amarildo Machado Martins
Luciano Barbosa da Silva Amorim Instituto do Patrimônio Histórico e
Silvana Lobato Silva Marra Artístico Nacional
SEPS 713/913, Bloco D, Edifício Iphan.
70.390-135 - Brasília (DF)
Revista do patrimônio 37/2018
Milton Hatoum Larissa Maria de Almeida Guimarães
Belém é Bíblica? 07 Do barro ao patrimônio cultural 151
imaterial em Roraima
Kátia Bogéa
Apresentação 09 Fernando Mesquita
Pilotis são palafitas: sobre ecologia da 169
Apresentação da Vale 13 arquitetura e saberes que resistem na
Amazônia marajoara
Maria Dorotéa de Lima
Introdução 21 EIXO II
NOVOS OLHARES PARA O
EIXO I RECONHECIMENTO
OS DESAFIOS PARA A IDENTIFICAÇÃO
Milton Hatoum
Milton Hatoum Vocês não viram Iracema? 195
Margens secas da cidade 33
Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses
AlfredoWagner Berno de Almeida O patrimônio cultural e a 199
Museus indígenas e quilombolas: 39 guinada da Constituição de 1988:
os novos significados do conceito de a casa de Chico Mendes
processo de patrimonialização
Luciana Gonçalves de Carvalho
João de Jesus Paes Loureiro Aporias da proteção do patrimônio 211
Meditação devaneante entre o rio e a 59 cultural e natural de uma comunidade
floresta. Cultura amazônica produtora de remanescente de quilombo na Amazônia
conhecimento
Juvêncio da Silva Cardoso
João Meirelles Filho e Fernanda de O. Martins A cuia e a formação do universo: uma 233
A Amazônia viajante “até dizer chega”. 73 abordagem baniwa no contexto da física
A contribuição dos viajantes ao porvir intercultural
amazônico – do século 16 ao fim do ciclo
da borracha Ana Léa Nassar Matos
O voo da fênix de José Sidrim 249
Ana Pizarro
O trânsito da oralidade para a escrita 99 Eduardo Góes Neves
amazônica latino-americana Encontro das águas dos rios Negro e 271
Solimões
Manuel Ferreira Lima Filho
Cidadania patrimonial – da inclusão à 115 Jussara Silveira Derenji
negação do mito da nação Os teatros do Norte: a entrada triunfal 285
das musas no Equador
William César Lopes Domingues
Patrimônio cultural indígena no médio 135 José Guilherme Cantor Magnani
Xingu: entre a falta de identificação e a Patrimônio cultural urbano, 307
necessidade de reconhecimento “de perto e de dentro”:
uma aproximação etnográfica
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

6
O N o r t e d o B r a s i l : I d e n t i f i c a ç ã o e R e c o n h e c i m e n t o d o Pa t r i m ô n i o C u l t u r a l
M i l t o n H at o um

O N o r t e d o B r a s i l : I d e n t i f i c a ç ã o e R e c o n h e c i m e n t o d o Pa t r i m ô n i o C u l t u r a l
a c i o n a l
B elém é bíblica?

N
r t í s t i c o
Alguém que passou por aqui

A
Sentiu o calmo andamento do tempo

e
E vislumbrou vestígios da paisagem

i s t ó r i c o
Do paraíso da infância

H
a t r i m ô n i o
Em alguma noite distante
Serei esse andarilho que sonhou contigo.

P
A insensatez e a ganância

d o
Vão dissipar teus cheiros misturados

e v i s t a
Da floresta com o oceano?

R
Apagar o riso de moças vestidas para o olhar?
Destruir teus bosques praças casarios
Teus templos de Landi e teu céu de telhas?
Tua altivez belle époque
Ou bela simplesmente?

Temo o inferno do futuro


7
Que já se insinua no presente.

Será eterna a cidade do Círio?


Belém é bíblica?

Assim espero.

Palacete Pinho, Belém (PA), 1976


Foto: Luiz Braga.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

8
O N o r t e d o B r a s i l : I d e n t i f i c a ç ã o e R e c o n h e c i m e n t o d o Pa t r i m ô n i o C u l t u r a l
Káti a Bogéa
Ap r es en t aç ão

Belém me entusiasma cada vez mais. No dia 27 de maio de 1927, o sempre


O mercado hoje esteve fantástico de tão acolhedor. agitado e curioso Mário de Andrade,
Só aquela sensação do mungunzá!...
ainda impactado pela visita ao Museu
Sentada no chão, era uma blusa branca numa preta
Goeldi, com suas cerâmicas de Marajó,
preta que levantando pra nós os dentes os olhos e
as angélicas da trunfa, tudo branco, oferecia com o
parou frente à Sé de Belém do Pará. Com
braço estendido preto uma cuia envernizada preta traço forte de lápis preto, registrou cada
donde saía a fumaça branquinha do mungunzá detalhe do majestoso templo. A viagem
branco branco... Tenho gozado por demais. pelo norte continuaria naquele mesmo
Belém foi feita pra mim e caibo nela dia. Mais descobertas, muito mais Brasil
que nem mão dentro da luva. queria revelar...
Mário de Andrade1 Dez anos depois, com participação
decisiva do mesmo Mário de Andrade
e colaboração de inúmeros outros
intelectuais, foi criado o Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, o nosso atual Iphan. Logo
surgiram os tombamentos. Da Região
Norte, os dois primeiros bens protegidos
foram a Coleção Arqueológica e
Etnográfica do Museu Paraense Emílio
Goeldi (1938) e a Igreja da Sé (1940).
Curioso é perceber como a mão de Mário
Clúsia amazônica. Gravura
ajudou a escrever histórias não publicadas de Margaret Mee
Acervo: Centro Cultural Sítio
que, ao longo dos tempos, têm formado Roberto Burle Marx.

sensíveis leitores. Muitos deles servidores


Papel Quadriculado n° 2
do Iphan. O processo de tombamento do (Sé de Belém), 1927
1. Registro do dia 23 de maio de 1927, publicado no livro Desenho, lápis s/ papel: Mário
O turista aprendiz (Brasília: Iphan, 2015, p. 76). Conjunto Arquitetônico e Paisagístico de Andrade/Coleção MA-IEB/USP.
Ver-o-Peso é de 1969, enquanto o Como não poderia ser diferente, as
Apresentação

registro do Modo de Fazer Cuias do Revistas do Patrimônio nos 37 e 38 que


a c i o n a l

Baixo Amazonas é mais recente, de 2015. ora apresento tratam da cultura do Norte
Mercado e cuias; o mungunzá do Mário, e refletem sua diversidade regional.
K á t i a B og é a

o tucupi e o tacacá; e tantos outros Seguindo a tradição estabelecida pelo


N
r t í s t i c o

saberes, formas de expressão e lugares, próprio Iphan, estão compostas de


juntamente com celebrações como as artigos elaborados por especialistas
A

do Círio de Nossa Senhora de Nazaré nacionais e internacionais, cujas reflexões


e

(registrada em 2004), fazem parte do rico têm permitido avanços no campo


i s t ó r i c o

e diverso patrimônio cultural do Brasil. do patrimônio cultural. No entanto,


Na trilha de Mário, ao encerrar as quero destacar o significativo número
H

comemorações dos 80 anos do Iphan, de textos assinados por servidores do


a t r i m ô n i o

decidi que o ano de 2018 seria dedicado Iphan que, em tempos tão difíceis,
à promoção do Norte do país. Do atuam diretamente na preservação ou
P

patrimônio cultural dos sete estados salvaguarda dos bens protegidos da


d o

da região, do Acre, do Amapá, do Região Norte, construindo o dia a dia


e v i s t a

Amazonas, do Pará, de Rondônia, de da instituição. Estou feliz pelo que


Roraima e do Tocantins. Ao todo, são 46 conseguimos realizar. Acho até que o
R

bens tombados e onze bens registrados, Iphan cabe no Brasil, que nem mão
sem contar o expressivo número de dentro da luva.
sítios arqueológicos cadastrados. Gosto
de imaginar o gozo de Mário frente
à simplicidade vernacular da Casa
de Chico Mendes, à complexidade
10 simbólica da pintura corporal dos Wajãpi
e da escala territorial dos geóglifos.
Coisas do Norte...
Dourado.
Aquarela.
Expedição Científica
Alexandre Rodrigues
Ferreira (1783 a 1792)
Acervo: Fundação Biblioteca
Nacional, Brasil.

Mário de Andrade no
Mercado Ver-o-Peso,
Belém (PA), em 23 de
maio de 1927
Foto: Coleção MA-IEB/USP.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
11

K á t i a B og é a Apresentação
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2015
Foto: AC Junior.
do Tapajós, Santarém (PA),
Seringueira. Floresta Nacional
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a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
Apresent ação da V ale

H
a t r i m ô n i o
P
d o
e v i s t a
R
O patrimônio cultural é a identidade de
um povo, é sua memória, é sua evolução.

Pensando nisso, a Vale patrocina projetos


que valorizam o patrimônio material e
imaterial, com o objetivo de preservar a
13
história dos lugares e das pessoas. É uma
forma de manter vivos seus saberes e fazeres.

Estamos presentes no Norte do Brasil há


mais de 30 anos e nos orgulhamos de reforçar
a importância cultural dessa região.

Queremos compartilhar valor com a


sociedade por meio da divulgação da cultura
e do conhecimento. Por isso, convidamos
o leitor a conhecer um pouco mais sobre a
riqueza e a diversidade cultural da Região
Norte do Brasil.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

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Foto: Luiz Braga.


Bar Azul, 1996
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Foto: Luiz Braga.


Barcos iluminados, 2001
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Foto: Luiz Braga.


Janela rio Guamá, 1988
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20
Maria Dorotéa de Lima Introdução
Mar i a Do ro téa de L i m a

a c i o n a l
In t r o du çã o

N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
De que falamos quando nos referimos ao conjunto do patrimônio cultural brasileiro
patrimônio cultural da Região Norte? eleito pelo Iphan ao longo de seus 81 anos,
Esse foi o tema definido pelo Iphan para completados em 2018. Sabemos que esse

P
d o
os n 37 e 38 da Revista do Patrimônio,
os
desafio de identificação, reconhecimento,

e v i s t a
mais precisamente, sob o mote dos desafios promoção e gestão do patrimônio não é uma
da preservação e da gestão do patrimônio tarefa fácil, sobretudo quando falamos em

R
cultural do Norte brasileiro. Distribuídos Amazônia, onde o tempo em muitos lugares é
em dois volumes, os artigos se organizam outro, marcado pelos ciclos da natureza, pelas
em quatro eixos: 1) os desafios para a águas, viagens de barco, grandes distâncias,
identificação, 2) novos olhares para o dificuldades de comunicação, entre outras
reconhecimento, 3) estratégias de promoção coisas. Embora organizados dessa forma, os
para valorização e difusão, 4) dilemas para o temas tratados nos artigos transitam pelos
fortalecimento da gestão. diversos eixos. 21

Diante dessa definição prévia e Por todas essas razões, seria impossível
considerando ser o Norte a região com contemplar, apenas com artigos, todos
menor número de bens reconhecidos os estados e todas as categorias de bens
como patrimônio cultural brasileiro pelo culturais patrimonializáveis da região.
tombamento , optou-se por privilegiar,
1
Para enfrentar esse desafio, convidamos
sobretudo nos dois primeiros eixos, o não apenas pesquisadores e especialistas,
patrimônio não consagrado, partindo da nacionais e internacionais, mas também
premissa de que há muito mais por fazer do talentosos e importantes fotógrafos e poetas/
que aquilo que já foi realizado em termos prosadores brasileiros. Juntos eles nos
Pajé, figura simbólica
de representação dos estados no Norte no trouxeram diferentes olhares e abordagens nas apresentações de
boibumbá, boi Corre
para o tema, oferecendo um rico panorama Campo, no Flor do
Maracujá, tradicional
1. Segundo informado pelo Depam/Iphan (agosto/2018), há na arraial que apresenta
do patrimônio cultural do Norte do Brasil, competições de bois-
Região Norte um total de 46 bens tombados distribuídos por sete
bumbás e quadrilhas
estados, correspondendo a 4% do total, seguida do Centro-Oeste, não necessariamente aquele já identificado e juninas, Porto Velho (RO),
com 5%, Sul (12%), Nordeste (33%) e Sudeste (46%). São onze 2011
os bens imateriais lá registrados. reconhecido como tal pelo Iphan. Foto: Ronaldo Nina.
O poema “Belém é Bíblica”, de Milton Vários dos autores dialogam com o
Hatoum, abre o nº 37 da Revista do Pa- cronista. João de Jesus Paes Loureiro, por
trimônio e, marcando o início de cada um exemplo, ao tratar do imaginário e da poética
dos eixos, temos crônicas suas convidando da vida amazônica. Fernando Mesquita
o leitor para uma viagem. Amazonense e do e William Domingues, ao constatarem
mundo, a obra de Hatoum desperta o inte- a inaplicabilidade do instrumento do
resse pela região, dialoga com aqueles que tombamento para a proteção da arquitetura
vivenciam ou vivenciaram de alguma forma vernacular das cidades ribeirinhas e
as cidades da Amazônia, principalmente da arquitetura tradicional indígena,
Manaus, Belém e imediações. O autor está respectivamente.
sempre a lembrar quem somos e de onde Durante séculos perdurou como
viemos, aciona memórias e afetos, referên- imaginário predominante em relação ao
22 cias ancestrais que ainda permanecem em
Norte aquele construído a partir dos relatos
nós, mesmo que ignoradas e até negadas.
de viajantes que por ali passaram desde
Denuncia que marcas, vestígios, rastros dessa
o século 16. Assimilado como verdade
ancestralidade estão sendo apagados de nos-
pelos discursos políticos, institucionais e
sas cidades, de nossa arquitetura, seja pelas
acadêmicos, foi responsável pela consolidação
pressões do mercado e tendência mundial
de uma imagem deturpada da região
de padronização das cidades nos moldes
e de sua gente2. Da mesma maneira, a
globais, seja pela negação do que somos, ou
reiterada informação a respeito da baixa
pelo descaso, omissão e “ganância” do mer-
densidade populacional da Amazônia
cado imobiliário. A crônica às vezes é ácida,
levou ao entendimento equivocado de
incomoda, instiga. A Transamazônica e o
que se trata de área vazia a ser ocupada,
descaso. A arquitetura de Severiano Mário
invisibilizando ainda mais os povos
Porto, com influências da arquitetura ver-
nacular da região, premiada nacionalmente,
2. A esse respeito, ver Almeida (2008), Pizarro (2012) e Meirelles
mas ainda não reconhecida pelo Iphan. Filho (2009 e 2011).
indígenas, as comunidades tradicionais3 a essas informações é objeto das reflexões
e os pequenos agricultores que habitam e de Ana Pizarro, que discute o trânsito
ocupam esse território. Nos últimos anos, dessas narrativas orais para a forma escrita
esse imaginário vem passando por um e a apropriação dos discursos e da cultura
processo de desconstrução e decolonização4 indígena pelo Ocidente, com as perdas e
como referido por Alfredo Wagner, João ganhos que esses caminhos implicam.
Meirelles & Fernanda Martins e Eduardo Esse patrimônio de menor visibilidade,
Neves. Para aqueles que querem conhecer não reconhecido por nenhuma esfera
o Norte, é indispensável compreender seus governamental, vem assumindo importante
processos históricos e sociais a contrapelo5. papel transformador e de autoafirmação no
A cosmologia e cosmogonia dos povos contexto das comunidades tradicionais da
indígenas constituem outra importante fonte Amazônia. Destaca-se nesse contexto, em
de conhecimento do Norte brasileiro e de 23
interação com as universidades por meio de
seu meio ambiente, mas a grande dificuldade
projetos de pesquisa e extensão, o projeto
é que são tradicionalmente transmitidas por
Nova Cartografia Social da Amazônia6 e seus
via oral. A possibilidade de ampliar o acesso
desdobramentos nos Centros de Ciência e
Vista geral do porto de
Saberes, apresentados por Alfredo Wagner. Manaus (AM). In: Álbum
3. Decreto Federal nº 6.040/2007, que instituiu a Política Vistas de Manaus, 1890
Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e A implementação das políticas do (ca.).
Comunidades Tradicionais – PNPCT. Foto: George Huebner/Coleção
Mestres do Séc. XIX/Acervo
patrimônio cultural de natureza imaterial pelo Instituto Moreira Salles.
4. A expressão é utilizada conforme apresentado em: Walsh
(2009): “Suprimir o ‘s’ e nomear ‘decolonial’ não é promover
um anglicismo. Pelo contrário, é marcar uma distinção com o
significado em castelhano do ‘des’. Não pretende-se simplesmente 6. Tem por objetivo oportunizar a autocartografia social dos
desarmar, desfazer ou reverter o colonial; quer dizer, passar de povos e comunidades tradicionais na Amazônia como forma
um momento colonial a um não colonial (...). A intenção é de produção de conhecimento a partir do saber local, sobre
sinalizar e provocar um posicionamento – uma atitude e postura o processo de ocupação da região. A ênfase desse processo é
contínua – de transgredir, intervir, insurgir e incidir. O decolonial no fortalecimento dos movimentos sociais existentes, os quais
denota, então, um caminho de luta contínuo no qual podemos consistem em manifestação de memórias e identidades sociais
identificar, visibilizar e incentivar ‘lugares’ de exterioridade que referenciam situações peculiares e territorializadas. A
e construções alternativas” (tradução nossa). Disponível em produção coletiva das cartografias são momentos que favorecem a
<http://www.flacsoandes.edu.ec/interculturalidad/wp-content/ autoafirmação social e fortalecem os movimentos em consonância
uploads/2012/01/Interculturalidad-estado-y-sociedad.pdf >. com a as expressões culturais diversas, conforme Apresentação
do projeto. Disponível em <http://novacartografiasocial.com.br/
5. Cf. Benjamin (1987). apresentacao/>.
Iphan7 possibilitou contemplar manifestações das águas dos rios Negro e Solimões, em

Introdução
e expressões culturais de povos indígenas e de Manaus, Iranduba e Careiro da Várzea, no

a c i o n a l
influência africana, estabelecendo um diálogo Amazonas (2010)8, respectivamente, o que

Maria Dorotéa de Lima


até então inexistente com algumas populações tornou imperiosa a sua inclusão aqui. Esses
tradicionais, que passaram a se identificar

N
votos traduzem, de forma contundente, a

r t í s t i c o
e se reconhecer nessas representações. Isso diversidade e complexidade que se pode
contribuiu para a difusão e apropriação enfrentar nos procedimentos de identificação

A
dessa categoria de pensamento de forma e reconhecimento do patrimônio dessa região,

e
associada ao dia a dia das comunidades, cuja área corresponde a 80% da Amazônia

i s t ó r i c o
incentivando o surgimento de uma série de brasileira, 70% da internacional e cerca de
iniciativas de mobilização, autoafirmação 45% do território brasileiro, fazendo fronteira

H
e reconhecimento de direitos sobre o

a t r i m ô n i o
internacional com Bolívia, Colômbia,
território, a cultura e o meio ambiente. Venezuela, Peru, Guiana, Suriname e Guiana
Outro desdobramento interessante são as Francesa. Refletem, também, a iniciativa

P
polêmicas e conflitos decorrentes da aplicação institucional, ainda tímida, de dar conta dessa

d o
da política, das práticas e da atuação dos árdua tarefa.

e v i s t a
agentes públicos, o que vem contribuindo Ambos os pareceres são emblemáticos por

R
para a reflexão dos grupos envolvidos, novas mostrarem que novas formas de abordagem
posturas, posicionamento crítico e até são possíveis e por compreenderem alguns dos
mesmo recusa ao reconhecimento oficial. grandes dilemas enfrentados pelas populações
É disso que trata Manuel Ferreira Lima tradicionais, das quais muitas se identificam
Filho ao falar do efetivo exercício de uma como “povos da floresta”, referenciados e
cidadania patrimonial, bem como Larissa de reconhecidos como sujeitos dos chamados
Almeida Guimarães e Cristian Pio Ávila, com “empates”, estratégia de luta adotada contra a
25
diferentes abordagens e questionamentos. derrubada dos seringais no Acre, que resultou
No que tange às formas e possibilidades na criação das reservas extrativistas pelo
de reconhecimento, ainda há muito que Decreto no 98.897, de 30 de janeiro de 1990.
avançar, mas proposições inovadoras se
Essas populações tradicionais constituídas Porto, Belém (PA), 1948
destacam em dois pareceres do Conselho Foto: Pierre Verger.
por povos indígenas, quilombolas e A Fundação Pierre Verger foi
Consultivo do Patrimônio Cultural, criada pelo fotógrafo e etnólogo
ribeirinhos, às quais se juntaram muitos Pierre Verger, em 1988. Tem
como objetivo divulgar o
correspondentes aos votos dos relatores trabalho – fotográfico e escrito
imigrantes nordestinos no auge da exploração – de seu fundador, bem como
Ulpiano Bezerra de Meneses e Eduardo reforçar a ligação histórica entre
da borracha, estão presentes em toda a África e Brasil. É uma instituição
privada, sem fins lucrativos,
Neves, emitidos nos processos de que funciona na casa em que
Amazônia. Como, por exemplo, nas margens Pierre Verger viveu em Salvador,
tombamento de dois bens culturais do Bahia. Detentora dos direitos
dos rios Negro e Solimões que constituem o autorais, organiza exposições,
publicações da obra de Pierre
Norte: a Casa de Chico Mendes e seu acervo, Verger, libera uso de fotografias
encontro das águas, onde há séculos “vivem para diversos trabalhos de
em Xapuri, Acre, em 2008, e o Encontro terceiros, organiza atividades e
oficinas gratuitas para o público
em geral e, principalmente,
para a comunidade do bairro
8. Recomenda-se a leitura dos respectivos processos, pois a Engenho Velho de Brotas, onde
7. A partir do Decreto nº 3.551, de 4 de agosto de 2000, que instrução destes reúne importantes informações concernentes aos fica sua sede.
www.pierreverger.org
instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial e respectivos bens e aos contextos, circunstâncias e significados que Facebook:/FundacaoPierreVerger
criou o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial. os envolvem. Instagram:/fundacaopierreverger
plantas, animais, pessoas, e repousam, parte Jussara Derenji, por sua vez, apresenta
Introdução

ainda inexplorada, vestígios das civilizações os teatros da Amazônia. Erigidos em Belém


a c i o n a l

que povoaram essa parte da Amazônia”9. e Manaus durante o período da borracha,


Maria Dorotéa de Lima

A exemplaridade dessas duas ações testemunham o fausto que o Norte conheceu


contrasta com o grande impasse em dois casos na segunda metade do século 19. Os
N
r t í s t i c o

trazidos por Luciana Carvalho: o pedido teatros Amazonas e da Paz foram tombados
de tombamento da Floresta Amazônica individualmente, mas indicados pelo Iphan
A

e o dos Quilombos de Oriximiná. Nos para integrar a lista do patrimônio da


e

respectivos processos ficam evidentes as humanidade da Unesco como bens seriados.


i s t ó r i c o

lacunas, inconsistências e incongruências da Ainda na esfera do patrimônio


legislação nas áreas de proteção ambiental, histórico e arquitetônico, o conjunto das
H

do patrimônio cultural e de regularização fortificações da Amazônia mereceu a atenção


a t r i m ô n i o

fundiária. As leis que deveriam garantir de três articulistas. Roseane Norat tratou
proteção e assegurar direitos acabam das estratégias de promoção e difusão,
P

por constituir obstáculos para que isso traçando um quadro geral em que analisa
d o

aconteça, contrariando o que estabelece sistemas e materiais construtivos, estado


e v i s t a

a Constituição. O conflito entre elas cria de conservação, situação de gestão e uso


inúmeras dificuldades para o modo de vida
R

atual desses monumentos remanescentes.


dessas comunidades, para a manutenção Postula também a articulação entre os
de sua cultura e de sua relação com o meio entes federados envolvidos, sociedade
ambiente, que garante seu sustento por meio civil e iniciativa privada, para ampliar a
das atividades extrativistas de subsistência abrangência de uma política que articule
que desenvolvem. investimentos no patrimônio cultural
Os Modos de Fazer Cuias do Baixo com desenvolvimento associado a outras
26
Amazonas, no Pará, obtiveram registro potencialidades e particularidades da região.
como patrimônio cultural do Brasil em Desse modo, estabelece um diálogo com o
2015. O processo de produção da cuia segundo artigo a respeito do tema. Brito &
pelas comunidades e seus usos no cotidiano Magalhães, com enfoque no fortalecimento
são mencionados por Elizabeth Costa, da gestão, mostram a estratégia do Iphan
enquanto Juvêncio da Silva Cardoso vai nos de indicação a patrimônio mundial de uma
apresentar a cuia dentro de outros contextos série de dezenove fortificações brasileiras
e significados, como na formação do universo cobrindo todo o país, duas delas localizadas
segundo o povo Baniwa do rio Aiari, na Terra no Norte: Fortaleza de São José de Macapá,
Indígena Alto Rio Negro. no Amapá, e Real Forte Príncipe da Beira,
em Rondônia. Para tanto, tratam da
metodologia específica desenvolvida para
9. Catálogo da exposição “O que se encontra no encontro das traçar um importante perfil da situação
águas”, realizada pela Ufam e aberta na inauguração do Museu
da Amazônia, em Manaus, julho/2009. Disponível em <http:// e avaliar a potencialidade desses bens
museudaamazonia.org.br/wp-content/uploads/2015/11/
Cat%C3%A1logo_Expo_Encontros_WEB.pdf>. envolvendo diversos aspectos.
Já Ana Léa Nassar Matos discorre sobre os Centros de Ciência e Saberes. Trata-

Introdução
fatos da vida e obra do arquiteto José Sidrim, se de pequenos museus comunitários ou

a c i o n a l
procedente de Fortaleza, mas radicado em ecomuseus, articulados em rede e integrantes

Maria Dorotéa de Lima


Belém, onde, ainda usufruindo dos efeitos do Sistema de Museus implementado pelo
da economia gomífera, estabiliza-se profis- Instituto Brasileiro de Museus – Ibram. O

N
r t í s t i c o
sionalmente, forma-se em arquitetura e deixa Museu do Marajó, o Ecomuseu da Amazônia
significativo legado arquitetônico (igrejas, e outras experiências brasileiras são citadas

A
residências, palacetes), com alguns exemplares como exemplos pelo autor.

e
protegidos por tombamento estadual, ainda Na mesma linha, mas em outro campo

i s t ó r i c o
pouco conhecidos do Brasil, mas cuja impor- de atuação, os Protocolos Comunitários
tância para os moradores da cidade ultrapassa analisados por Eliane Moreira & Luciano

H
seu valor como patrimônio material. Maciel também vêm desempenhando

a t r i m ô n i o
Nesse sentido é que a etnografia urbana importante papel no que concerne ao
constitui um importante instrumento a ser fortalecimento dos povos indígenas,

P
explorado na identificação e mapeamento comunidades tradicionais e agricultores

d o
do patrimônio imaterial nas cidades e pode, familiares na defesa de seus direitos

e v i s t a
também, se revelar uma excelente alternativa relacionados à diversidade biológica, à

R
para os estudos de sítios e conjuntos preservação e à proteção dos conhecimentos
tombados e seus respectivos entornos, dos povos e comunidades tradicionais.
como sugerido por Bezerra de Meneses Assegurados pelo protocolo de Nagoya, não
(2017). Exemplos de mobilização social seriam reconhecidos no Brasil, que não é
em São Paulo e experiências de aplicação signatário desse documento, porém, o texto
de metodologia etnográfica em outras da Lei nº 13.123, de 20 de maio de 2015, os
cidades do Sul são o tema abordado por legitima. Entretanto, esse mesmo arcabouço
27
José Guilherme Cantor Magnani. Podem a legal, que pretende proteger tais direitos no
princípio parecer deslocados do conjunto país, causa enorme prejuízo às comunidades
de textos, mas mobilizações sociais pela envolvidas, ao isentar o segmento industrial
preservação do patrimônio ou metodologias da obrigação de dirigir-lhes consulta
que ajudam a identificar de que modo a prévia, pedir consentimento informado na
população se apropria, marca, usa e atribui exploração de recursos, repartir os benefícios
significados para o espaço urbano podem obtidos etc.
servir de referência para qualquer cidade no A área de arqueologia traz preciosidades,
Brasil e no mundo. demonstra preocupação de aumentar os
Hugues de Varine, antigo e ferrenho vínculos com a sociedade nas pesquisas de
defensor do patrimônio cultural como campo e no gerenciamento e socialização
fator de desenvolvimento local, retoma das coleções. Marcia Bezerra sinaliza que
essa questão a partir de experiências de é preciso repensar e buscar alternativas
construção coletiva de lugares de memória, para as pequenas coleções domésticas de
que se assemelham em alguns aspectos com fragmentos e pequenos objetos, que se
Introdução
a c i o n a l

Maria Dorotéa de Lima


N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
P
d o
e v i s t a
R

28

multiplicam na Amazônia. Muitos deles Já a análise dos dados disponibilizados


catados em superfície, podem potencializar pelo CNA/Depam/Iphan possibilitou às
Igreja Nossa Senhora do
junto aos moradores das imediações de sítios arqueólogas Mariana Cabral, Marcia Bezerra
Carmo, Boa Vista (RR),
2018
uma consciência patrimonial bem mais e Daiane Pereira desenvolverem um artigo
Foto: Márcio Vianna/
Acervo Iphan. positiva do que o simples e brutal confisco. em que configuram um perfil básico da
pesquisa e da gestão da arqueologia nos ações já realizadas nesse sentido. Trata-se de

Introdução
últimos 20 anos (1997–2017) na Região experiência promissora que colabora para

a c i o n a l
Norte, cruzando informações, apresentando a identificação e promoção do artesanato

Maria Dorotéa de Lima


números e produzindo reflexões sobre brasileiro de cunho tradicional e dos grupos
os resultados. sociais que os produzem.

N
r t í s t i c o
Em outra escala, o Museu Paraense Emílio Fernando Canto comenta as referências
Goeldi, fundado em 1866, vem investindo culturais da população do Amapá,

A
nos últimos anos na abertura de seu acervo especialmente de Macapá e municípios

e
para distintos públicos e se reinventando. O vizinhos, incluindo o patrimônio cultural,

i s t ó r i c o
projeto Replicando o Passado, apresentado reconhecido oficialmente ou não, e
por Helena Pinto Lima, Cristiana Barreto, abrangendo diferentes formas de expressão.

H
Camila Fernandes e Leonardo Machado, é Interessa observar como as influências das

a t r i m ô n i o
um exemplo disso. diversas etnias e processos migratórios
Ana Vilacy Galucio, Denny Moore e contribuíram para a formação da população

P
Hein van der Voort, do Museu Goeldi, daquele estado.

d o
estão realizando, por meio de parceria com Registrado como patrimônio cultural

e v i s t a
o Iphan, o inventário das línguas indígenas brasileiro pelo Iphan, em 2004, e como

R
de Roraima. Traçam em seu artigo uma patrimônio da humanidade pela Unesco,
panorâmica da situação atual das línguas em 2013, a celebração do Círio de Nossa
indígenas no Brasil. Observam o avanço Senhora de Nazaré, que ocorre em Belém
obtido com as garantias constitucionais e há mais de duzentos anos, ainda não possui
a legislação específica, que asseguram aos plano e nem comitê de salvaguarda. Márcio
indígenas direito à terra e cultura, bem como Couto Henrique analisa em seu artigo a
a proteção de suas línguas, reconhecidas como trajetória da participação popular na gestão
29
patrimônio cultural brasileiro. Destacam a da celebração, concluindo que esta se acha
preocupante ausência de dados oficiais acerca bastante restrita atualmente, contrariamente
do número de línguas indígenas faladas no às infinitas possibilidades nesse sentido.
Brasil e oferecem uma análise das perspectivas O autor sugere alternativas para reverter
de planejamento e proposições de gestão para esse quadro, como, por exemplo, fazer um
proteger nossa diversidade linguística. concurso público para a escolha do desenho
A trajetória exemplar do Centro Nacional do manto da santa, em que a decisão seria
de Folclore e Cultura Popular – CNFCP, feita em consulta aos devotos. Fica a deixa
com relação à atuação institucional na para o plano de salvaguarda. Alternativas
Região Norte, aparece relatada por Elisabeth são identificadas para os sítios tombados,
Costa. O centro, ressalte-se, já atuava com voltadas para uma gestão mais eficaz dessas
excelência mesmo antes de sua incorporação áreas, hoje com alto grau de deterioração
ao Iphan, onde passou a contribuir de e com muitos imóveis desocupados e em
maneira primordial com os planos de estado de abandono. A elaboração de normas
salvaguarda dos bens registrados, com várias coletivamente construídas e pactuadas com
as diferentes esferas de governo e sociedade A Milton Hatoum, pela gentileza de
Introdução

civil certamente permitirá tornar esses sítios autorizar o uso do poema e das crônicas que
a c i o n a l

mais atrativos para novos e sustentáveis usos. introduziram e guiaram o leitor nesse passeio.
Maria Dorotéa de Lima

Reintegrá-los à cidade, à vida urbana em sua Aos autores colaboradores, pesquisadores


plenitude, e conciliar a cidade que almejamos e fotógrafos, por seus diferentes olhares sobre
N
r t í s t i c o

com aquela que temos é a perspectiva adotada o patrimônio cultural do Norte.


por Miguel Sousa em busca de respostas e Aos colegas do Iphan, da área central
A

possíveis caminhos para o patrimônio na e superintendências, que também se


e

cidade de Belém. dispuseram a colaborar na pesquisa de


i s t ó r i c o

Trabalhar com o patrimônio e imagens e indicação de pesquisadores,


empreender esforços para sua proteção fotógrafos e temas caros aos seus estados.
H

significa enfrentar obstáculos e fazer escolhas. Foi um grande prazer!


a t r i m ô n i o

Para organizar uma publicação, também


é necessário fazê-las e compreender que Referências
P

algumas coisas ficarão de fora para que outras


d o

possam vir à luz. ALMEIDA, Alfredo Wagner B. de. Antropologia


e v i s t a

dos Archivos da Amazônia. Rio de Janeiro: Casa 8,


Escolhas difíceis, agravadas pelo
2008.
orçamento da cultura, já pequeno e, ainda
R

BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito da


assim, drasticamente reduzido. Sobretudo História”. In: ______. Magia e técnica, arte e
agora que assistimos, perplexos, a uma política. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1987, p. 225.
tragédia anunciada: o Museu Nacional do MEIRELLES FILHO, João C. S. Grandes
Rio de Janeiro arder, sem qualquer sistema expedições à Amazônia brasileira – 1500-1930. São
Paulo: Metalivros, 2009.
de proteção. Como diz Valter Hugo Mãe: “só
______. Grandes expedições à Amazônia brasileira –
em tempo de guerra, no grotesco que a guerra
Século XX. São Paulo: Metalivros, 2011.
30 pode ser, coisas assim acontecem”.
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Repovoar
É, portanto, tempo de agir. o patrimônio ambiental urbano. Revista do
Finalizo agradecendo a todos aqueles Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 36,
que contribuíram para esta publicação. Iphan, Brasília, p. 39-51, 2017.

À presidente Kátia Bogéa, pelo convite PIZARRO, Ana. Amazônia. As vozes do rio:
imaginário e modernização. Tradução de Rômulo
e oportunidade. Aos diretores Andrey Monte alto. Belo horizonte: Ed. da UFMG, 2012.
Rosenthal Schlee, Marcelo Brito e Hermano
WALSH, Catherine. Interculturalidad, estado,
Queiroz, pela colaboração e disponibilização sociedad: luchas (de)coloniales de nuestra época.
de informações e dados. Aos colegas do Universidad Andina Simón Bolivar. Quito:
Ediciones Abya-Yala, 2009.
Iphan que encaminharam valiosas sugestões.
À Divisão de Editoração e Publicações do
Iphan, cujo apoio viabilizou a elaboração e
lançamento das revistas, a despeito de todas
as dificuldades encontradas.
E especialmente:
Pinturas rupestres no sítio
Filadélfia II, Filadélfia (TO)
Foto: Acervo Iphan.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

32
Milton Hatoum Margens secas da cidade
Milton Hatoum

a c i o n a l
M argens secas da cidade

N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
Era um canto matinal, não sei se antes ou ao armazém de secos e molhados Renascença,
depois dos galos, já nem sei quando, porque a nossos vizinhos portugueses, e avistava o
infância é um mundo distante, transformado arbusto humano carregado de frutas e ouvia

P
pelo tempo. as palavras taperebá, ingá, sorva, tucumã,

d o
e v i s t a
O homem era uma surpresa na luz da graviola, jatobá, cupuaçu, bacaba: palavras
manhã, e a manhã, sim, era infância: terra (sons) que nunca mais deixei de ouvir por

R
nua, rio de horizonte sem fim. Carregava um onde andei e morei. Lembro que certa vez em
tabuleiro pesado, o rosto dele mal aparecia no Lima ele apareceu com o pomar no tabuleiro,
meio de frutas e galhos, frutas arrancadas das e pensei nas voltas que havia dado para chegar
árvores de algum quintal ou terreno baldio, à capital do Peru, talvez por lquitos, e quando
ou da floresta que nos cercava. Um homem­ estendi a mão para apanhar uma fruta ele
árvore, um ser da floresta. riu ou deve ter rido e curvou o corpo e me
Como era distante e tão próxima de nós, ofereceu o pomar inteiro. Então acordei. 33
a floresta. Na minha memória, esse vendedor Fiquei pensando no homem-floresta em
ambulante era um fauno de Manaus. Hoje eu Lima. Vá saber o significado de um sonho.
o imagino como uma das figuras fantásticas Na realidade, na vida que chamamos
de Arcimboldo: um caboclo equilibrando- realidade, o homem sempre aparecia quando
se na rua de pedras, um pomar suspenso eu regressava para Manaus, não sei se mais
oscilando sobre a cabeça invisível, a voz velho, mais acabado, ou mais corcunda,
trinando sons tremidos pelo vento que sei que a voz flauteava nomes de frutas e a
vinha do rio Negro. Os sons das palavras mesma voz dizia “E aí, mano”, me oferecendo
encantavam, me atraíam como a serpente que cachos de pitombas, sem mesmo receber
ergue a cabeça ao som de uma flauta. Na voz, dinheiro, como se eu ainda fosse aquela
nenhum travo de raiva ou desespero, apenas criança na janela da casa da avenida Joaquim
a melodia de um homem humilde que deseja Nabuco 457, e ele um avô da natureza.
Vendedor de frutas em
viver e depende da voz para sobreviver. Eu ia “Obrigado, seu...” Não sabia o nome dele, Belém (PA), 2018
Foto: André Vilaron/
até a sacada do sobrado da infância, vizinho nada. A árvore móvel atravessava a cidade e Acervo Iphan.
creio que atravessou minha vida e o tempo, plantou no Amazonas. E, sem querer, um
Margens secas da cidade

teimando em sobreviver com a cabeça vegetal ato involuntário nos conduz ao coração da
a c i o n a l

e os pés de raízes aéreas, o corpo invisível, a realidade. Fui me despedir do igarapé agora
cabeça escondida, as frutas caindo dos galhos aterrado, as palafitas pobres substituídas por
e das folhas verdes, frutas que cheiravam a casas feias, fechadas, sem varanda, janelas
N
r t í s t i c o

léguas de distância e davam água na boca aos pequenas. Andava por vielas de terra quando vi
Milton Hatoum

astros, como se um punhado da Amazônia um tabuleiro no chão. Frutas miúdas, pálidas,


A

estivesse ali, concentrado com a força da espalhadas na madeira desgastada. Ele estava
e

umidade, a alegria solar e a beleza das formas sentado ao lado de sua árvore desfolhada. O
i s t ó r i c o

e cores, passando, passeando entre carros, homem era só tronco, esquálido, sem voz,
caminhões e ônibus até o dia em que ele, o com um olhar resignado voltado para o chão.
H

homem-árvore, era a única natureza viva na Escolhi uns tucumãs, peguei dois cachos de
a t r i m ô n i o

cidade que se destruía ou se deixava destruir pitomba e dessa vez paguei.


pela sanha imobiliária, pelo progresso que é Ainda se lembrava do menino que
P

apenas caricatura sinistra do progresso. o olhava como quem olha um mágico?


d o

Como é possível perder a razão de ser? Recebeu o dinheiro, dobrou as notas e pôs
e v i s t a

Você não ouve mais o som flauteado, no bolso da camisa. Esperei um aceno, um
não vê mais a árvore da vida, não encontra cumprimento qualquer, mas no olhar dele
R

o desejo nem os indícios da primeira não havia nada. Triste e sem voz, parado no
manhã. Aquela árvore e seu tronco foram mormaço, sobrevivente que a morte espreita
se atrofiando, a aspereza da cidade usurpou nas margens secas da minha cidade.
o indivíduo do nosso convívio, tudo se
tornou enorme e disforme. O tempo nos
consome com lentidão. O homem-árvore
34 foi desfolhando, perdendo galhos, sua força
vegetal arrefeceu, as frutas, antes polidas,
perderam o brilho, alguma praga roeu o
arbusto aéreo. O sol incendiou as manhãs
frescas, ruas e calçadas, a floresta que nos
cercava tornou-se um caos de casebres e
palafitas, os pequenos caminhos de água
secaram. Há dois anos vi o homem-árvore e
agora o perdi de vista.
Por onde andam seus pés descalços, seu
turbante de pano barato, sua voz de flauta
doce? É inútil procurá-lo, pensei. Já não
Passiflora quadrangularis sinto o cheiro perfumado do sapoti, o sabor
(Maracujá). Aquarela.
In: Álbum de desenhos do jambo arroxeado, cuja semente algum
originais, 1840 (ca.)
Acervo: Fundação Biblioteca
Nacional, Brasil.
português do Algarve trouxe da Índia e
Rua Joaquim Nabuco 457,
Manaus (AM), 2018
Foto: Márcio Vianna/
Acervo Iphan.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

36
Milton Hatoum Margens secas da cidade

Casarão

Acervo Iphan.
Foto: Márcio Vianna/
Manaus (AM), 2018
na Rua Joaquim Nabuco,
em frente ao número 457,
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
37

Milton Hatoum Margens secas da cidade


R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

38
A l f re d o Wag n e r B e r n o d e A l m e i d a Museus indígenas e quilombolas:
o s n ovo s s i g n i f i c a d o s d o c o n c e i t o d e p r o c e s s o d e p a t r i m o n i a l i z a ç ã o
Alfredo Wagner Ber no de Almeida

a c i o n a l
M useus indígenas e quilombolas :

N
os novos significados do conceito de

r t í s t i c o
processo de patrimonialização

A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
Ao delimitar o objeto de reflexão do àqueles cujos artefatos eram musealizados,
trabalho de pesquisa1 sobre o surgimento tanto quanto eles próprios, num lento
dos chamados “museus vivos” ou “pequenos extermínio simbólico.

P
museus” em territórios étnicos, em aldeias, Os museus consistiam, então, numa

d o
e v i s t a
em povoados, em projetos de assentamento paradoxal historicidade da morte, razão pela
e em bairros periféricos das metrópoles, qual o conceito de musealização nos remete

R
verificamos que, tal como os mapas, esses diretamente a Baudrillard2. Por outro lado,
pequenos museus são acionados hoje as recentes práticas de pesquisa, relativas
nas mobilizações pelo reconhecimento à denominada nova cartografia social3,
identitário de povos e comunidades que antecedem e são coetâneas do Projeto
tradicionais, tornando-se um fator dinâmico Centro de Ciências e Saberes, nos facultaram
de conhecimentos específicos e um vigoroso condições para detectar o estado nascente
instrumento político. Semelhante ao que foi de pequenos museus ou museus vivos e o 39
suscitado pelos mapas, verifica-se que a ideia potencial de mobilização política de povos
de museu também está sendo apropriada por que reverteram a sua propalada condenação
aqueles que eram ou ainda são designados
como os “outros”. Isso quer dizer que o mapa 2. O conceito de museificação, como historicidade da morte, Tapiukaw se pinta para
participar de protestos
é trabalhado por Baudrillard (1991:18-19), senão vejamos:
de seu povo contra a
nos levou ao museu. A “nova cartografia” nos “Estamos fascinados com Ramsés como os cristãos da Renascença
presença de mineradora
o estavam com os índios da América, que nunca tinham conhe- nos arredores das terras
impeliu aos novos significados de “processo cido a palavra de Cristo (...). Deste modo terá bastado exumar aikewara, sudeste do
Ramsés para o exterminar ao museificar: é que as múmias não Pará, 2011
de patrimonialização”, de “coleção” e de apodrecem com os vermes: elas morrem por transumarem de Foto: Orlando Calheiros.

uma ordem lenta do simbólico, senhora da podridão e da morte,


“ficha museográfica”. Os outrora mapeados, para uma ordem da história, da ciência e do museu, a nossa,
que já não domina nada, que só sabe votar o que precedeu à
tais como os povos indígenas e quilombolas podridão e à morte e tentar em seguida ressuscitá-lo pela ciência.
que hoje se autocartografam, nos levaram Violência irreparável para com todos os segredos, violência de
uma civilização sem segredo, ódio de toda uma civilização contra
suas próprias bases”. (grifo nosso)

1. Projeto Centro de Ciências e Saberes: experiência de criação 3. Referência ao Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia,
de “museus vivos” na afirmação de saberes e fazeres representa- instituído a partir de 2005 por uma rede de pesquisadores de
tivos de povos e comunidades tradicionais, realizado entre 2015 universidades públicas da Amazônia e tendo inicialmente como
e 2018, financiado pelo MCTI/CNPq, cujas atividades foram laboratório principal a unidade sediada na Ufam e, depois de
executadas na Amazônia. 2009, na UEA.
ao extermínio, rompendo com os estigmas ameaçados por conflitos sociais provocados
Museus indígenas e quilombolas:
o s n ovo s s i g n i f i c a d o s d o c o n c e i t o d e p r o c e s s o d e p a t r i m o n i a l i z a ç ã o

de “primitivos” e “atrasados”, usualmente pela implantação de megaempreendimentos


a c i o n a l

atribuídos à categoria “outros”. A recorrência e obras de infraestrutura e de segurança.


com que os agentes sociais envolvidos Barragens, bases de lançamento de foguetes,
designam suas iniciativas museológicas como ferrovias, rodovias, portos, minerodutos,
N
r t í s t i c o

“museus vivos” possibilita compreender por gasodutos, oleodutos, linhas de transmissão


que atribuem tal ênfase à vida, no sentido de energia e hidrovias, implantados ao
A l f re d o Wag n e r B e r n o d e A l m e i d a
A

de desdizer os “históricos” prognósticos mesmo tempo, provocam danos e têm efeitos


e

de morte. Ambos, mapa e museu, são devastadores tanto sobre o modo de vida
i s t ó r i c o

coetâneos da emergência dessas identidades e sobrevivência dos povos e comunidades


coletivas objetivadas em diferentes formas de daquelas regiões quanto sobre o que eles
H

organização política e ações transformadoras consideram os lugares relevantes de sua


a t r i m ô n i o

que se contrapõem ao mofo dos museus memória histórica.


reais e imperiais, à soturnidade dos museus A emergência desses pequenos museus,
P

nacionais e à morte que paira sobre os que, inclusive, não demandam necessaria-
d o

grandes museus das antigas metrópoles, que mente uma institucionalização, pode ser
e v i s t a

agora buscam desesperadamente se renovar. articulada com a perda da estabilidade se-


O propósito da presente discussão é mântica de termos e conceitos como tradição,
R

problematizar teoricamente essa emergência patrimonialização e coleção e a complexidade


dos pequenos museus, relacionando-a com de seus usos sociais na vida cotidiana e nas
as mobilizações por direitos territoriais e pela mobilizações políticas por afirmação identi-
afirmação de uma identidade coletiva. Assim tária e direitos territoriais, como já disse. Elas
procedemos, verificando situações sociais de colocam na ordem do dia da vida intelectual
emergência autônoma de “pequenos museus”, e política e nos meandros dos mecanismos
40 independentemente dos atos de Estado e das burocráticos o propósito de repensar os signi-
políticas museais, tanto propondo perguntas ficados usuais de museu e suas variações. Essa
quanto buscando responder a uma sequência tarefa não é trivial nem tampouco fácil, uma
de interrogações dirigidas hoje à pesquisa vez que tais significados, além de historica-
etnográfica. O pano de fundo concerne às mente cristalizados, possuem uma ambiguida-
vicissitudes de processos reais e de realidades de conflituosa e deveras perturbadora.
empiricamente observáveis no decorrer Inicio, pois, pela pergunta: como
dos trabalhos de campo realizados em interpretar a atual disseminação das
regiões amazônicas. As reflexões enfatizam, iniciativas em torno de pequenos museus ou
sobretudo, o deslocamento dos significados museus vivos e das demais práticas designadas
de museu e de patrimonialização e sua por expressões similares, em que o termo
relação com agências e formas organizativas “museu” funciona como uma espécie de
dos denominados povos e comunidades prefixo, acompanhado da identidade social
tradicionais, cujos territórios e bens culturais que representa, como por exemplo: museu
se encontram submetidos a grandes riscos, indígena (Kokama, Tremembé, Ticuna),
museu quilombola, museu de quebradeiras e dos significados renovados de cultura4.

Museus indígenas e quilombolas:


o s n ovo s s i g n i f i c a d o s d o c o n c e i t o d e p r o c e s s o d e p a t r i m o n i a l i z a ç ã o
de coco babaçu, museu de ribeirinhos, museu Rompe-se, assim, com a continuidade adstrita

a c i o n a l
de seringueiros, museu de castanheiros, ao tempo linear, recolocando de modo
museu de pantaneiros, museu de pescadores inovador artefatos da vida cotidiana, símbolos
religiosos, narrativas míticas, cosmogonias

N
artesanais, museu de caiçaras, museu de

r t í s t i c o
geraizeiros, museu de comunidades de fundos e instrumentos de caça, coleta, pesca e de
cultivo agrícola os mais rotineiros. Verifica-
e fechos de pasto e museu de faxinais?

A l f re d o Wag n e r B e r n o d e A l m e i d a
A
se um esforço crítico de repensar o museu
Antes de tudo cabe dizer que a nomeação

e
como uma ferramenta analítica do presente

i s t ó r i c o
explícita dos sujeitos envolvidos na criação
contra a ilusão biográfica dos artefatos que, de
desses museus vivos implode o significado de
portadores de conhecimentos sobre os povos e

H
“outros”. Fica evidente, portanto, que omitir
comunidades que os elaboraram, se tornaram

a t r i m ô n i o
ou ocultar deliberadamente o nome de tais autônomos. São objetos que, mesmo isolados,
sujeitos, usando uma designação genérica, têm vida própria e são capazes de representar
inviabilizava qualquer possibilidade concreta

P
por si mesmos (Fayad, 2016:179).

d o
de autodefinição. No momento atual, ao Levando em conta as identidades coletivas

e v i s t a
contrário, as autodefinições é que nomeiam emergentes e suas recentes iniciativas de
os museus, demonstrando não somente suas museus, seja na Ásia, na África e nas Américas

R
especificidades, mas também que os museus Central e do Sul, retomo indagações
vivos são indissociáveis da consciência de si elementares: por que museus? Por que
mesmos ou do processo de autodefinição dos pequenos museus? Por que museus vivos? Por
agentes sociais correspondentes às identidades que tantos pequenos museus?
coletivas explicitamente mencionadas. A proliferação aludida se mostra caracte-
rizada por uma larga dispersão e por particu-
Essa disseminação pode ser pensada
laridades e descentramentos peculiares que 41
como uma forma de atualização e renovação
desestimulam uma análise através de possíveis
do legado político da resistência de povos
invariantes ou do que seria comum a todas
e comunidades outrora dominados ou
essas iniciativas. A afirmação de que constitui
submetidos ao jugo das metrópoles coloniais?
um dos derradeiros capítulos do processo de
Caso a resposta seja positiva, pode-se dizer descolonização deflagrado após a II Guerra
que o florescimento de múltiplas identidades, Mundial está igualmente colocada em ques-
desde o final do século 20 e primeira década tão. Há uma descontinuidade histórica que se
do século 21, refletindo existências coletivas contrapõe a uma ação política sequencialmen-
fortalecidas, impõe uma presencialidade te traçada. Há interpretações que sublinham
do passado, sem tê-lo como determinante.
Assiste-se a um desdobramento do processo 4. “O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com ‘o
novo’, que não seja parte do continuum de passado e presente.
de descolonização em que há uma dura luta Ele cria uma ideia do novo como ato insurgente de tradução
cultural. Essa arte não apenas retoma o passado como causa social
de classificações e um conflito permanente em ou precedente estético; ela renova o passado, refigurando-o como
um ‘entre-lugar’ contingente, que inova e irrompe a atuação do
torno da apropriação da memória histórica presente” (Bhabha, 2010:27).
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

42
A l f re d o Wag n e r B e r n o d e A l m e i d a Museus indígenas e quilombolas:
o s n ovo s s i g n i f i c a d o s d o c o n c e i t o d e p r o c e s s o d e p a t r i m o n i a l i z a ç ã o
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
43

A l f re d o Wag n e r B e r n o d e A l m e i d a Museus indígenas e quilombolas:

Foto: Marcela Bonfim.


Alta Floresta (RO), 2016
série Amazônia Negra,
Rezador,
o s n ovo s s i g n i f i c a d o s d o c o n c e i t o d e p r o c e s s o d e p a t r i m o n i a l i z a ç ã o
identidades coletivas em declínio e outras, no nesse sentido, um movimento constante de
Museus indígenas e quilombolas:
o s n ovo s s i g n i f i c a d o s d o c o n c e i t o d e p r o c e s s o d e p a t r i m o n i a l i z a ç ã o

sentido inverso, que enfatizam um expressivo abre e fecha. Eles se fecham em si mesmos,
a c i o n a l

fortalecimento dessas identidades objetivadas nos critérios de construção dos pequenos


em movimentos sociais. Embora em ambas as museus e de composição de suas coleções, e se
situações haja graves conflitos, inclusive com abrem nas pautas reivindicatórias que come-
N
r t í s t i c o

registros de massacres, os seus efeitos variam, çam a dar lugar ao simbólico e ao imaterial,
assim como a consciência dos agentes sociais levando em conta os conhecimentos tradicio-
A l f re d o Wag n e r B e r n o d e A l m e i d a
A

sobre o resultado dos antagonismos aos quais nais e as classificações que lhes são inerentes.
e

estão referidos. Cada experiência de museu As lutas travadas pelos povos e comunidades
i s t ó r i c o

vivo ou dos Centros de Ciências e Saberes tradicionais passam a ocorrer também por
reflete as condições características e peculiares entre os meandros da “economia do conheci-
H

à situação social de referência. Cada unidade mento” de que nos fala André Gorz.
a t r i m ô n i o

social, qual seja povo, comunidade ou grupo Consoante a interpretação de Mbembe,


étnico, produz ações que emergem e ganham que empreende uma releitura dos funda-
P

força. A conflagração de sujeitos e de temas mentos do fanonismo, os resultados desses


d o

e problemas que nunca haviam constado de diferentes processos de luta e de mobilização


e v i s t a

pautas sindicais e partidárias aponta, assim, encontram-se sob ameaça, senão vejamos:
R

para novos padrões de relação política. Povos


Muitos são efetivamente aqueles que hoje em
e comunidades tradicionais, atingidos pelos dia estão assustados. Receiam ter sido invadidos e
efeitos dos megaprojetos, são levados a politi- estar à beira da extinção. Povos inteiros sentem que
zar sua ação coletiva e isso aparece concomi- se esgotaram os recursos necessários para continuar
tantemente às iniciativas de se autocartografar a assumir sua identidade (Mbembe, 2017:9).
e de criação de pequenos museus, descre-
Mbembe, cujas referências empíricas
vendo trajetórias ascendentes expressas pelo
44 encontram-se notadamente em teatros de
quantum de força política que adquiriram
operações militares na África – Mali, Ruanda,
as autodefinições e as práticas autônomas de
República Centro-Africana, Chade, Sudão
preservação cultural, de afirmação identitária
do Sul, Somália e Etiópia –, na Ásia, mais
e de luta pela memória histórica.
precisamente no Afeganistão e no Paquistão,
Em resumo, erigir museus vivos, inserin-
e no Oriente Médio – Síria, Iraque, Líbano,
do neles somente o que os próprios povos ou
Palestina e Iêmen –, deixa entrever os efeitos
comunidades consideram relevante, tal como
das guerras5 e, implicitamente, da destruição
sucede com os mapas que produzem, con-
siste numa forma de interlocução mediadora
5. Um dos efeitos mais trágicos dessas guerras diz respeito aos
de uma situação conflitiva, em que persiste campos de refugiados sob supervisão do Alto Comissariado das
Nações Unidas para os Refugiados – Acnur. Os maiores se loca-
a visão estigmatizante de seus antagonistas lizam no Quênia – o de Dadaab, com cerca de 300 mil somalis,
que começam a ser repatriados; em Uganda – o de Bidi Bidi,
de representá-los como “sem história” e sem perto da cidade de Yumbe, com 250 mil refugiados entre Nuers
qualquer patrimônio merecedor de reconhe- e Dinkas; e ainda o de Kakuma, no noroeste do Quênia, com
99 mil sul-sudaneses, e o novo campo de Kalobeyei, no condado
cimento. Os Centros de Ciências e Saberes, de Turkana, a oeste do lago do mesmo nome. Mbembe parece
partilhar da interpretação segundo a qual esse tipo de isolamento
produzidos no âmbito do projeto, realizam, enfraquece a coesão em torno das identidades coletivas.
de lugares sagrados, de sítios arqueológicos e A Resolução no 2.347 condena a

Museus indígenas e quilombolas:


o s n ovo s s i g n i f i c a d o s d o c o n c e i t o d e p r o c e s s o d e p a t r i m o n i a l i z a ç ã o
outros patrimônios culturais. Bombardeios, destruição de monumentos, o roubo e o

a c i o n a l
saques, roubos, atos de vandalismo e contrabando de bens culturais em situações
pilhagem de museus, de ruínas, de tumbas, de conflito armado, mas pouco esclarece
de esculturas e de templos e também de

N
a respeito dos autores de tais práticas

r t í s t i c o
lugares institucionais de pesquisas vinculadas ilícitas ou de medidas a serem tomadas
ao propósito da conservação, como contra eles, limitando-se a caracterizá-los

A l f re d o Wag n e r B e r n o d e A l m e i d a
A
laboratórios de antropologia e arqueologia6, como extremistas. Não há muita novidade

e
demonstram o menosprezo pela memória

i s t ó r i c o
nessa resolução. Em termos históricos,
histórica, pelos referidos lugares e respectivos são frequentes os exemplos de guerras
artefatos, enquanto documentos similares acompanhadas do saque de bens culturais.

H
aos materiais escritos, que contribuem

a t r i m ô n i o
O hábito do colecionismo concerne a um
para a análise da formação de diferentes capítulo de conquistas e pilhagens de coleções
povos. Esses atos ilícitos e os danos que têm científicas e artísticas usurpadas como butins

P
provocado atingiram tal dimensão que o

d o
de campanhas militares. Há inúmeros livros
Conselho de Segurança da ONU foi levado

e v i s t a
e filmes recentes que tratam dessa questão.
a adotar recentemente pelo menos duas
Recorde-se que as tropas de Napoleão no

R
medidas contundentes. A primeira, em
Egito, em Portugal, na Espanha, na Rússia
fevereiro de 2015, aprovando a Resolução
e demais países conquistados se faziam
no 2.199, que proíbe o comércio de bens
acompanhar de cientistas que, uma vez
culturais oriundos do Iraque e da Síria. A
consolidada a vitória militar, selecionavam
segunda, em 24 de março de 2017, quando
nos museus dos derrotados o que deveria
aprovou por unanimidade a Resolução no
ser pilhado (ver Almeida, 2008:45-56). Os
2.347, relativa à proteção do patrimônio
artefatos funcionavam como troféus que, 45
cultural face às guerras e conflitos localizados,
uma vez exibidos publicamente nos museus
asseverando que a sua defesa é imperativa
dos vencedores, combinavam sobremaneira
para a segurança dos povos e para a proteção
com a arquitetura dos arcos, monumentos
da memória da humanidade. Embora
pomposos, obeliscos e esculturas gigantescas
não tenham o peso de uma resolução
que, numa indisfarçável inspiração romana,
da Assembléia Geral, as do Conselho de
simbolizavam as grandes vitórias militares. O
Segurança têm valor jurídico vinculativo.
Museu do Louvre foi fundado por Napoleão
para expor suas conquistas: múmias, estátuas,
6. Eis algumas informações a respeito: i) “Durante as primeiras pinturas, esculturas, bustos e esfinges, todas
semanas da invasão americana no Iraque, em 2003, a Universi-
dade de Basra foi invadida e seus laboratórios foram saqueados” prisioneiras do silêncio do museu. As tropas
(Gomes, 2011:112); ii) Uma lista de obras roubadas, elaborada
pelo International Council of Museums, em 2011, levou à
nazistas, quando ocuparam Paris, procederam
apreensão de 1,5 mil peças traficadas do Afeganistão para Lon- ao desmonte das coleções artísticas do Museu
dres; iii) As ruínas do Templo de Bel, em Palmyra, na Síria, foram
devastadas, em 2016, pela força armada fundamentalista do do Louvre e demais museus, transportando-
denominado Estado Islâmico – EI (Isis ou Daesh), que destruiu
edificações, esculturas, quadros e pinturas imemoriais. as por via férrea para minas abandonadas
no interior da Alemanha7. O fogo da e ácidas controvérsias públicas acerca dos
Museus indígenas e quilombolas:
o s n ovo s s i g n i f i c a d o s d o c o n c e i t o d e p r o c e s s o d e p a t r i m o n i a l i z a ç ã o

artilharia nazista castigou os habitantes e o efeitos das práticas de escravidão e do tráfico


a c i o n a l

museu Hermitage durante o longo cerco de de pessoas nas sociedades. Em suma, pode-
Leningrado e, em atos de rapina, devastou se dizer que as propostas de museus não
museus e bibliotecas da França, Bélgica, são necessariamente consensuais e, se são
N
r t í s t i c o

Polônia, Holanda, Sérvia e Grécia. Todos os apontadas como fator de agregação, também
bens saqueados compuseram listas que, no podem intensificar cisões e atritos entre
A l f re d o Wag n e r B e r n o d e A l m e i d a
A

pós-guerra, serviram para resgatar parte das facções. É o caso do Museu do Quai Branly,
e

coleções. A tragicidade desses episódios da em Paris, que divide as opiniões. Muitos o


i s t ó r i c o

II Guerra Mundial parece só ter merecido a qualificam como de inspiração colonialista.


atenção devida em 1954, com a Convenção Os desacordos sobre a memória histórica
H

refletem, portanto, as dissensões do presente,


a t r i m ô n i o

de Haia para a Proteção de Bens Culturais


em Caso de Conflito Armado e seus dois pois sua interpretação é todo o tempo diversa.
protocolos, o de 1954 e o de 19998. Divergências também foram identificadas
P

Sem se restringir a conflitos armados, em torno dos museus e das “reservas” criadas
d o

também há registros de que políticas oficiais pelas mineradoras, petroleiras e empresas que
e v i s t a

de museus , batendo na tecla colonialista,


9 comercializam a energia elétrica das grandes
R

têm conspirado contra a memória histórica barragens, que, a seu modo, reconstituem
e levado países africanos a divisões políticas pictoricamente a paisagem das antigas
quedas d’água, montanhas e campos e criam
7. A propósito, indicamos dois filmes que narram documen- um lugar para abrigar a pequena fauna
talmente a pilhagem nazista de museus franceses e belgas: The
monuments men (que foi traduzido como “Caçadores de obras- remanescente. São produtos do que designam
-primas”), dirigido por George Clooney, e Francofonia: Louvre sob
ocupação, de 2015, dirigido por Alexander Sokurov. Este diretor como ações de “salvamento”, com “coleções”
recupera a imagem do Conde Wolff Metternich, “o curador” para dos objetos “resgatados” por arqueólogos
toda a Europa ocupada pelos nazistas, que aparece abrigando ou
46
escondendo coleções artísticas do Louvre num castelo medieval, e ecologistas, facultando uma visão
assim como discursando e citando a Convenção de Haia, de
1899, dando destaque ao princípio da imunidade e da proteção edulcorada da extensão dos extermínios e da
do patrimônio cultural em tempos de guerra.
profundidade da desagregação das unidades
8. Registram-se outros dispositivos de proteção do patrimônio
cultural em casos de guerras que antecedem a este. O mais sociais atingidas.
recuado temporalmente, que consegui levantar, diz respeito ao
Acordo Internacional sobre as “Leis e Costumes da Guerra”, cujo Parafraseando Mbembe, pode-se ampliar
art. 8º, da Declaração de Bruxelas, de 1874, estipulou o seguinte:
“Todo confisco ou destruição de, ou dano intencional a, (...)
a abrangência de seus argumentos, ressaltando
monumentos históricos, obras de arte e ciência, serão submetidos que nas Américas do Sul e Central também
a procedimentos legais pelas autoridades competentes”. Vinte
e cinco anos depois, em 1899, a Convenção de Haia declarou são muitos os povos e comunidades que hoje
o princípio da imunidade dos bens culturais. Somente 36 anos
após, em 1935, foi aprovado pelos países europeus o Pacto de vivem o temor da perda de seus direitos étni-
Roerich, que concerne ao Tratado sobre a Proteção de Instituições
Artísticas e Científicas e Monumentos Históricos, enunciando cos e territoriais. Eles se encontram acuados
que os bens culturais “formam o tesouro cultural dos povos” e
“devem ser protegidos em tempos de guerra e de paz”.
– mesmo que não submetidos a uma situação
9. No Benin, desde 2017, iniciativas oficiais de criação de dois de guerra declarada –, temendo a intrusão em
museus sobre a escravidão, em parceria com o Smithsonian seus domínios por antagonistas circunstan-
Institute, em Uidá e Allada, têm gerado protestos em torno de
proeminentes famílias de ex-mercadores de escravos que integram cialmente mais poderosos ou a contingência
a elite dirigente e se recusam a associar o nome de seus antepassa-
dos à escravidão. de deslocamentos compulsórios e a destruição
de seu modo de vida. Entretanto, o que ve- conflitivas na Panamazônia, o temor não tem

Museus indígenas e quilombolas:


o s n ovo s s i g n i f i c a d o s d o c o n c e i t o d e p r o c e s s o d e p a t r i m o n i a l i z a ç ã o
mos em certas regiões da Panamazônia, em levado as comunidades envolvidas à sensação

a c i o n a l
vez do esgotamento dos recursos para manter de esgotamento de seus meios para reivindicar
sua identidade, é a reiterada mobilização po- territórios e reforçar o reconhecimento de sua
lítica de povos e comunidades tradicionais, identidade, nem tampouco ao fechamento

N
r t í s t i c o
para reinventar criativamente os meios de radical de suas fronteiras. Em sentido inverso,
defesa de seus direitos étnicos e territoriais, registram-se mobilizações intensas, numa

A l f re d o Wag n e r B e r n o d e A l m e i d a
A
não obstante as condições adversas. Fazem-no conjunção entre as reivindicações econômicas

e
apesar da força desagregadora exercida sobre e aquelas relativas à identidade. O simbólico

i s t ó r i c o
eles por grandes empreendimentos, tais como: não se mostra dissociado do processo de mo-
empresas de mineração, petroleiras e de gás, bilização política. A própria proposta de cria-

H
agropecuárias e plantações destinadas ao ção de lugares sociais para afirmar a memória

a t r i m ô n i o
mercado de commodities (soja, cana-de-açú- de luta, designados pelos agentes sociais, seus
car, milho, dendê e também pínus, eucalipto artífices, como museus vivos ou pequenos

P
e acácia mangia) e empresas de energia, de museus, expressa essa convergência entre o

d o
óleos vegetais e carvoarias. Distinguindo-se, econômico e o simbólico, entre as reivindica-

e v i s t a
pois, dos efeitos da ação devastadora e catas- ções pelos direitos territoriais e aquelas pelo

R
trófica, delineada por Mbembe, verifica-se reconhecimento identitário, todas autônomas
que nesses casos os povos e comunidades afe- e independentes dos atos de Estado.
tados não estariam recorrendo à multiplicação Nas atividades de pesquisa do projeto,
de cercas e de checkpoints para fechar o acesso como já foi sublinhado, fomos levados a
a seus territórios. Os povos e comunidades produzir uma distinção, designando tais
atingidos não têm se fechado em guetos, nem lugares sociais como Centros de Ciências
promovem o fechamento de fronteiras para e Saberes, mediante a verificação de que se
47
tentar assegurar a reprodução de seu modo de constituem em pontos de convergência de
vida. Ao contrário, parece que quanto menos conhecimentos e práticas, de saberes e de
se voltam para si e mais se expõem, lançan- ações coletivas e, enfim, de listas de artefatos
do-se em lutas reivindicatórias e mobilizações tornadas coleções. Com a adoção dessa
e transcendendo seus domínios, mais logram designação abrangente, num acordo tácito
conquistas. Constata-se que as mobilizações com as organizações representativas dos povos
étnicas, ao pressionarem diretamente os cen- e comunidades estudadas, foram evitadas
tros de poder, mostram-se profícuas. É certo as implicações burocráticas das medidas
que essas mobilizações sofrem abalos com cadastrais características das políticas museais,
divisões internas que fraturam movimentos e que os museus devem necessariamente
comunidades, acirradas pela proximidade das incorporar, submetendo-se à rigidez e
ações diretas dos antagonistas e por demons- uniformidade de seus regulamentos e das
trações continuadas de seu imensurável poder normas oficiais.
de destruição. “Assusta”, como nos adverte Nesse sentido, os Centros de Ciências
Mbembe, mas, em se tratando de situações e Saberes – CCSs não correspondem a
iniciativas passíveis de serem inseridas no notadamente à degradação das condições de
Museus indígenas e quilombolas:
o s n ovo s s i g n i f i c a d o s d o c o n c e i t o d e p r o c e s s o d e p a t r i m o n i a l i z a ç ã o

Cadastro Nacional de Museus, criado e trabalho e aos recentes dispositivos legais para
a c i o n a l

implementado pelo Instituto Brasileiro discipliná-las. Os autores, ao caracterizar a


de Museus. Eles funcionam com base desindustrialização, sublinham que a maior
num princípio de autogestão, levado a
N

parte dos objetos produzidos industrialmente,


r t í s t i c o

cabo por integrantes dos próprios povos ainda que tenham parte de sua fabricação
e comunidades, e constituem iniciativas concebida nos Estados Unidos ou na Europa,
A l f re d o Wag n e r B e r n o d e A l m e i d a
A

diversas, livres e autossustentáveis, porquanto recorrem à mão de obra de países onde é


e

mantidas por fundos de reserva de unidades


i s t ó r i c o

possível a prática de baixos salários.


familiares que se empenharam em sua criação Estratégias empresariais, consoante esse
e garantem a sua rotina cotidiana. modelo, têm levado ao desmantelamento de
H
a t r i m ô n i o

numerosos polos industriais, criando zonas


Os museus e a degradadas, com elevados índices de desem-
desindustrialização prego e com comunidades de trabalhadores
P

em estado de completa desagregação. Na


d o

Num outro plano analítico, é possível França, tais zonas se tornam objeto da ação
e v i s t a

constatar a articulação de políticas museais comercial de agências imobiliárias especia-


R

com as profundas transformações pelas quais lizadas no denominado “l’immobilier de col-


passa a lógica do desenvolvimento capitalista. lection”, concorrendo para reabilitar antigos
Através da interpretação de Boltanski e locais de produção industrial. Os efeitos
Esguerre (2014), assistimos aos efeitos de patrimoniais ocorrem nessas zonas degradadas
um tempo de “desindustrialização”, desde
com projetos arquitetônicos visando à im-
finais do século 20 e das primeiras décadas
plantação de novos empreendimentos, como
do século 21. Os autores chamam a atenção
48 centros culturais, museus do trabalho e do
para o fato de não se tratar de uma transição
trabalhador10, museus do futuro e a organi-
para uma sociedade pós-industrial, como
zação de festivais e eventos turísticos. Está-se
tem sido alardeado por muitos sociólogos
diante do que os autores definem como
desde os anos 1960. Grandes empresas
processo de patrimonialização, com a res-
globais e de inovações tecnológicas, devido
pectiva valorização monetária dos terrenos e
à rápida disseminação da informática, levam
edificações do entorno desses novos empreen-
muitíssimos setores a permanecerem às
margens do mundo industrial, tais como 10. Essa menção de Boltanski pode ser também exemplificada
pequenos comércios, educação, saúde com situações em curso aqui no Brasil. Assim, sobre o Museu do
Trabalho e do Trabalhador em São Bernardo do Campo (SP),
e serviços pessoais, mas a circulação de Nabil Bonduki publicou o artigo “Obras paralisadas de museu
precisam ser retomadas” na Folha de S.Paulo, de 19 de dezembro
produtos industriais se mantém sob outras de 2017, p. A2, de onde extraímos o seguinte excerto: “Dividida
em quatro módulos, a proposta recupera a memória industrial,
condições. Ao falar de “desindustrialização”, social e operária da região, como vem sendo feito em museus de
os sociólogos franceses estão se referindo antigos polos industriais em todo o mundo. Elas buscam cons-
truir um novo arranjo econômico local, indispensável nos tempos
às mudanças do capitalismo nas últimas pós-industriais, reforçando sua própria identidade. É o caso do
Pump House: People’s History Museum, implantado em Man-
décadas e suas implicações políticas e sociais, chester, centro fabril da Inglaterra na 1ª Revolução Industrial”.
dimentos. Em decorrência, tem-se a noção de emergentes, ou seja, aos CCSs, os quais não
“coleção” expressando as recentes transforma- são produtos de políticas museais, nem de
ções capitalistas, com os galpões abandonados sanções legais, sejam tributárias ou indeniza-
das antigas fábricas sendo transformados em tórias, referentes, por exemplo, a reparações
“mercadoria” turística. O “chão da fábrica”, por danos provocados ou por atos de tortura
com apoio do Estado, é redirecionado e ar- e extermínio. Em verdade, são concebidos
quitetonicamente reconfigurado; os velhos autonomamente face aos poderes do Estado e
galpões tornam-se, a partir de arrojados pro- de conglomerados econômicos, não se bene-
jetos arquitetônicos de vanguarda, um bem ficiando de leis de incentivos fiscais, nem de
cultural de exibição, com artefatos artesanais qualquer tipo de mecenato, consistindo em
e artísticos expostos à visitação de um público bens culturais produtos de uma ação voluntá-
pagante, amplo e difuso. ria e deliberada, propugnando relações asso-
Tais iniciativas museológicas, filtradas ciativas intrínsecas à diversidade dos povos e
pelos atos de Estado e pelas estratégias empre- comunidade tradicionais.
Passagem do Divino na
sariais, distinguem-se radicalmente da simpli- A amplitude das práticas, no âmbito do Comunidade Quilombola
Pedras Negras (RO), 2016
cidade daquelas alusivas aos pequenos museus projeto, indica, assim, prováveis respostas Foto: Marcela Bonfim.
àquelas indagações anteriormente feitas Ao focalizar o sistema de relações sociais
Museus indígenas e quilombolas:
o s n ovo s s i g n i f i c a d o s d o c o n c e i t o d e p r o c e s s o d e p a t r i m o n i a l i z a ç ã o

sobre seus critérios de composição e sua que gravita em torno dos CCSs, localizados
a c i o n a l

finalidade. Eles tanto podem se referir no próprio território dos povos, a equipe
a expressões político-organizativas, às do projeto tomou como referência básica a
mobilizações rotineiras em torno da memória preexistência das iniciativas de museus vivos,
N
r t í s t i c o

histórica, ao ensino de línguas indígenas, espontaneamente realizadas por formas


ao fortalecimento dos ofícios de artesãos, associativas intrínsecas a essas unidades
A l f re d o Wag n e r B e r n o d e A l m e i d a
A

responsáveis pela fabricação de instrumentos sociais que se autodefinem como tradicionais.


e

musicais, de utensílios domésticos, de Assim, pode-se adiantar que a ideia de


i s t ó r i c o

ferramentas de trabalho, quanto às pautas museu exerce uma fascinação espontânea e


reivindicatórias de direitos territoriais e à uma mobilização voluntária, preexistente
H

criação sucessiva dos pequenos museus, como ao próprio projeto, cujos participantes,
a t r i m ô n i o

recurso de congregação política e de coesão percebendo essa tendência, elegeram-na como


social. Essa pluralidade de fatores e recursos tema de reflexão e pesquisa. Foi justamente a
P

de mobilização, independentes entre si, e a partir dela que os trabalhos de pesquisa foram
d o

proeminência de um ou de outro em cada criteriosamente executados.


e v i s t a

situação examinada explicam a formação A adoção desse ponto de partida


dos pequenos museus, que buscam uma explicita ademais uma recusa deliberada de
R

reapropriação da memória histórica de um aplicação mecânica de modelos europeus e


povo ou comunidade e de suas condições de norte-americanos de museus, de coleções
existência, muitas vezes em disputa inclusive e de exposições, bem como uma crítica
com os poderes oficiais, que também contundente ao eurocentrismo e aos
pretendem delas se utilizar, mas de outra efeitos das prenoções museológicas que
maneira, como uma “mercadoria” folclórica e historicamente instituiu. Pensar o museu a
50 turística. A expressão oficialmente adotada no partir de especificidades, do preexistente e
léxico das políticas públicas para nomear os da ação de agentes sociais com consciência
pequenos museus é “museus comunitários”, de si mesmos em situação de antagonismos,
designação genérica que elide as identidades compreendendo territórios e identidades
coletivas específicas. Essa expressão, da coletivas. Esse é o lugar de observação que foi
mesma maneira que “saber local”, omite o privilegiado no decorrer da pesquisa.
sujeito da ação, suprimindo-o em favor de Qual o mistério dessa preexistência? Qual
um determinado lugar ou dos genericamente o segredo, impenetrável e difícil de explicar
referidos como comunitários. A força dessa ou compreender? Os mistérios aqui não con-
pressão social pretende impor termos e sistem em algo obscuro, nem numa imitação
expressões aparentemente neutros, envoltos das formas de exibição, baseadas no exotismo
no que a noção de “comunidade” idealmente e no colecionismo, próprias da dominação
transmite de segurança e de positivo, evitando colonial, nem tampouco num simulacro da
quaisquer menções a ocorrências de conflitos classificação como “nacional”, dita moder-
de interesses ou de antagonismos sociais. nizante e fundada no positivismo e nos atos
burocráticos de pretensão racional e legal. de autonomia, à reivindicação por direitos

Museus indígenas e quilombolas:


o s n ovo s s i g n i f i c a d o s d o c o n c e i t o d e p r o c e s s o d e p a t r i m o n i a l i z a ç ã o
As respostas dialogam criticamente com esses territoriais ou pelo reconhecimento e à

a c i o n a l
modelos anacrônicos de museus, com suas afirmação identitária. A ideia de museu
classificações bizarras dos artefatos que nada vivo é vivida aqui como um meio de
mais têm de contemporaneidade, revelando reconhecimento pleno. Com apoio nesse

N
r t í s t i c o
nítidos sinais de esgotamento e exaustão. pressuposto, alcançamos através do projeto,
Os pesquisadores se limitaram, portanto, de maneira efetiva, treze situações sociais

A l f re d o Wag n e r B e r n o d e A l m e i d a
A
a captar uma tendência museográfica em que as iniciativas de museus vivos

e
nascente, embrionária, nos desdobramentos preexistentes foram discutidas e passaram

i s t ó r i c o
do processo de lutas e de mobilizações a se concretizar como uma expressão dos
de povos e comunidades tradicionais, Centros de Ciências e Saberes: sete delas

H
contribuindo para dar vida e visibilidade se referem a comunidades quilombolas,

a t r i m ô n i o
a ela, ajudando a afastar as sombras quatro a povos indígenas, uma concerne
de poderes políticos, que disciplinam a ribeirinhos, cognominados “artesãos”,

P
a memória pela história oficialmente outra aos “assentados” de um Projeto de

d o
imposta e registrada nas pinturas, nos Assentamento de órgão fundiário oficial.

e v i s t a
murais, nas esculturas, nas estátuas Desses, apenas seis se acham consolidados,
equestres e monumentos em exposição com edificações levantadas, coleções em

R
nos museus oficiais e nos centros culturais exposição permanente e diferentes cursos
e turísticos. Esses tais “centros turísticos” (de língua materna, de legislação ambiental
folclorizam, inclusive, a resistência daquelas e sobre a Convenção nº 169 da Organização
comunidades em processo de desagregação, Internacional do Trabalho – OIT), enquanto
ressaltando as vantagens dos deslocamentos quatro estão em avançado estágio de
compulsórios de populações em nome instalação e outros três estão discutindo um
do “progresso”, do “desenvolvimento” e calendário de implantação. A questão do 51

da renovação das instituições. O fazem reconhecimento e dos direitos territoriais


impelidos pela legislação, em nome da destaca-se, aproximando as iniciativas, em
urgência de uma “ação de salvamento” virtude da indefinição dominial mostrar-se
cultural, urdida obrigatoriamente pelos um traço constante e apontar para situações
grandes empreendimentos, que dão ampla de conflito social, latentes ou manifestas.
publicidade a esses atos pretensamente Dona Maria Querobina Silva Neta,
filantrópicos, humanitários e solidários com a mais conhecida como Querubina, uma
preservação do patrimônio cultural. expressiva liderança do movimento das
Considerando a preexistência das quebradeiras de coco babaçu e dos sindicatos
iniciativas de “museus vivos”, o significado de trabalhadores rurais do Maranhão, ao falar
de museu atém-se aos processos diferenciados do Museu Casa Branca, isto é, do Centro
de autodefinição e seus artefatos despertam de Ciências e Saberes Casa Branca, em Vila
a memória, conduzem à completa satisfação Conceição, sublinha a existência coletiva
de um desejo explícito de visibilidade e das quebradeiras e dos trabalhadores rurais
do Projeto de Assentamento onde vive. Ela a laços de simpatia mediante a lógica dos
Museus indígenas e quilombolas:
o s n ovo s s i g n i f i c a d o s d o c o n c e i t o d e p r o c e s s o d e p a t r i m o n i a l i z a ç ã o

interpreta criticamente a denominação oficial enfrentamentos e dos ícones que a registram.


a c i o n a l

que lhes atribui o Estado, “assentados”, Bem demonstram isso os retratos em sépia,
o que demonstra sua relutância em que não foram envelhecidos artificialmente
reconhecê-los de maneira plena, fazendo-o e estão pendurados nas paredes daquele
N
r t í s t i c o

só parcialmente com o manto da tutela. museu vivo, criado numa gleba denominada
Através desse CCS as quebradeiras de de “Criminosa”. São muitos os estigmas
A l f re d o Wag n e r B e r n o d e A l m e i d a
A

coco babaçu e os trabalhadores rurais se a serem removidos a um só golpe. Os


e

agigantam e carregam consigo as demais sentidos contrários e os artefatos dispersos,


i s t ó r i c o

unidades sociais à sua volta. Na sua forma representados como elementos fundamentais
organizativa, explicitam a construção política da memória da conquista da terra e dos
H

manifesta pela autodefinição de “atingidos”; direitos, se concentram nesse CCS, sempre


a t r i m ô n i o

no plano jurídico, expressam os direitos aberto a novos artefatos, buscando reinventar


correspondentes aos dos “trabalhadores a tradição de resistência. Essa possibilidade
P

rurais”; face às políticas ambientais, reforçam permanente de receber novos artefatos e


d o

sua condição de “extrativistas” e, na esfera recriações renova sucessivamente os mistérios,


e v i s t a

administrativa, afirmam sua visão crítica do explicitando seus atributos de dinamismo e


R

que significa ser chamado temporariamente incompletude, ao mesmo tempo.


de assentado. A linguagem própria de todos esses CCSs
A multiplicidade dos componentes e seus múltiplos sentidos contém os limites às
identitários na vida social torna-se visível possíveis vias de acesso ao entendimento dessa
através dos artefatos que o museu vivo expõe. dinâmica sempre inconclusa ou inacabada. As
Nesse sentido, os agentes sociais, artífices de condições que tais vias de acesso caracterizam
sua criação, não separam a luta pela terra das podem ser aproximadas de uma explicação
52
lutas simbólicas e identitárias ou daquelas sublinhada com agudez por Merleau-Ponty
que consolidam uma memória vívida de (2013:63): “a cultura nunca nos oferece
reivindicações. Os artefatos reunidos e significações absolutamente transparentes, a
expostos numa edificação dentro do próprio gênese do sentido nunca está terminada”.
Projeto de Assentamento explicitam o Destarte, o museu vivo organiza
significado político da gênese social das lutas dinamicamente suas mostras, expondo tudo,
e reivindicações de uma categoria idealizada de modo autofigurativo, numa ruptura com
como temporária e idealmente beneficiada os museus oficialmente implementados.
pela ação governamental. O museu vivo se O ritual de apresentação dos artefatos a
torna, assim, o lugar social da concentração sucessivos visitantes – repetindo a narrativa de
da memória coletiva e um fator de agregação resistência, que pacientemente construíram
daquele universo de lutas sucessivas pela – fortalece a coesão dos agentes que integram
terra. É o próprio território que se avoluma, aquela unidade social, com um componente
incorporando a dimensão simbólica e a evidentemente político. A repetição e suas
memória coletiva, convidando os visitantes variações impedem a monotonia de uma
versão única e parecem refazer o ânimo do Desse modo, a morte não é propriamente

Museus indígenas e quilombolas:


o s n ovo s s i g n i f i c a d o s d o c o n c e i t o d e p r o c e s s o d e p a t r i m o n i a l i z a ç ã o
museu vivo. Ali nada há de morto, senão as glorificada e não exala o mofo e o bolor

a c i o n a l
mortes cultuadas. É isso que nos leva a deter de artefatos mumificados e empoeirados
o olhar sobre uma camisa de tecido esgarçado sob a pátina do tempo. Contrariamente, o
com manchas de um vermelho desbotado, museu vivo transforma o passado em atos do

N
r t í s t i c o
que nos permite inferir tratar-se do sangue presente, traduzindo uma historicidade da
de alguém que tombou para que aquela terra vida e um mundo que de nenhuma maneira

A l f re d o Wag n e r B e r n o d e A l m e i d a
A
fosse conquistada, ou que nos faz moderar o é o mundo dos “outros”. A iniciativa desses

e
passo diante da indumentária colorida de um pequenos museus pertence, portanto, ao que

i s t ó r i c o
pajé cultivando, num jirau, ervas medicinais, é vivido para si ou com a consciência de si,
cuja combinação com rezas e benzimentos integrando o processo de autodefinição da

H
a tantos curou dos males infligidos por um unidade social em que foram criados. No

a t r i m ô n i o
inverno rigoroso que vidas ceifou11. museu vivo os artefatos expostos são tornados
O que era mantido a sete chaves, guarda- bens culturais em que os agentes sociais se

P
do em cofos, bolsas de couro cru e sacos de percebem a si mesmos e a seus projetos, se

d o
aniagem ou juta, parece sair do esconderijo ao autodefinindo através deles, num lugar social

e v i s t a
ser exibido. As mudinhas das ervas cultivadas aberto e de interação com aqueles com os
nos jiraus, na área privada dos templos, tor- quais socialmente se relacionam. Distingue-

R
nam-se publicamente expostas. Línguas con- se, portanto, dos museus convencionais,
sideradas mortas ou em extinção passam a ser encerrados num ambiente silencioso e
ministradas nesses pequenos museus. A obje- sepulcral, que inibe gestos expansivos por
tivação do visível desfaz enigmas e desobedece inúmeras placas de advertência e proibição.
às velhas proibições, o que era clandestino Certamente que contribuem para essa
tornou-se componente identitário publica- distinção as edificações simples dos Centros
mente explicitado e materialmente exposto. de Ciências e Saberes, semiabertas, quase ao 53

Quem nos apresenta os artefatos exprime a ar livre, iluminadas por raios solares e varridas
alegria de repetir que mantém o museu vivo pelos ventos, graças às suas paredes de
com meios e conhecimentos próprios. madeiras trançadas, completamente vazadas,
mas que bem suportam a exposição ao tempo,
tal como sucede com o CCS Antônio Samias,
11. Quando discutimos, em Imperatriz, em que medida os montado pelos Kokama da Comunidade
Centros de Ciências e Saberes não deveriam enfatizar os atos de
violência, os assassinatos, as chacinas e outros atos de extermínio Boa Esperança, localizada no ramal do
ocorridos nos conflitos de terra, procuramos estabelecer uma
distinção entre iniciativas de movimentos e mediadores, como as Brasileirinho, na periferia de Manaus. A luz
que, por exemplo, resultaram no Monumento Eldorado Memória
(projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer), em lembrança do ressalta as cores, os artefatos circularmente
massacre de Eldorado dos Carajás, e aquelas encetadas voluntária exibidos num espaço diminuto deixam
e informalmente pelos próprios membros de unidades sociais
classificadas como “tradicionais”, os quais constroem e definem, entrever seu formato de maneira diáfana,
eles mesmos, a sede e a finalidade precípua de sua iniciativa. Os
CCSs concernem a estas últimas e não se colocam juntamente a despeito das sombras que acompanham
com aquelas dispostas em rede e inclusas num gênero museo-
lógico cujo exemplo significativo corresponde aos memoriais e o movimento da luz solar e facultam uma
aos museus do Holocausto instalados em Berlim, Washington,
Buenos Aires e Curitiba, dentre outros.
intimidade que convida à solidariedade.
Museus indígenas e quilombolas:
o s n ovo s s i g n i f i c a d o s d o c o n c e i t o d e p r o c e s s o d e p a t r i m o n i a l i z a ç ã o
a c i o n a l
N
r t í s t i c o

A l f re d o Wag n e r B e r n o d e A l m e i d a
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
P
d o
e v i s t a
R

54

Foto: Fernando Mesquita.


Castanha, 2016 No centro da aldeia, logo abaixo do barracão sem qualquer texto explicativo, porquanto
de festas, os Kokama expõem, assim, as consideram mais apropriado a apresentação
pinturas em tela nas paredes, bem como as oral da mostra. Existe sempre alguém
miniaturas das armadilhas e instrumentos de designado para receber os visitantes. Esse
caça, fabricados em madeira e com detalhes CCS está em íntima conexão, a despeito
e cores contrastantes pelos adolescentes que da distância geográfica, com outro criado
frequentam os cursos de língua Kokama e as pelos Kokama na Cidade de Deus, também
chamadas oficinas de arte. No CCS eles não em Manaus, e que, a molde de uma escola,
nos oferecem jamais o acabado. Vão sempre privilegia sobretudo o aprendizado da língua
expondo e modificando os artefatos em cada e o seu registro em forma escrita. Esses dois
nova oficina e produzindo cada vez mais CCSs foram erigidos concomitantemente.
na língua materna as fichas museográficas No caso dos artefatos utilizados em
que contêm apenas o nome de cada objeto, rituais de cura, eles fazem parte do mistério
que envolve a sequência cerimonial. A ou à consciência de si mesmos, integrando o

Museus indígenas e quilombolas:


o s n ovo s s i g n i f i c a d o s d o c o n c e i t o d e p r o c e s s o d e p a t r i m o n i a l i z a ç ã o
antropóloga Cynthia Martins viveu isso no processo de autodefinição das comunidades

a c i o n a l
trabalho de campo, no decorrer da instalação tradicionais. São o produto de relações em
do CCS Antônio Machado, em Penalva. As que os agentes sociais se percebem a si mes-
indumentárias, o maracá junto às vestes do mos e a seus projetos, se expondo e agindo a

N
r t í s t i c o
pajé e o machado evocando o trabalho e o partir desse processo de autodefinição. Assim,
sonho compõem o conjunto mágico acionado os museus vivos são bem mais do que simples

A l f re d o Wag n e r B e r n o d e A l m e i d a
A
nas danças e cantos no decorrer dos rituais depósitos de conhecimentos, meros acervos

e
religiosos. Esse CCS evidencia outro atributo de um passado idealizado ou, ainda, modestos

i s t ó r i c o
dos pequenos museus – eles não precisam receptáculos de objetos, luzes, cores, fragrân-
restringir-se a uma única comunidade, a cias, sons e artefatos exóticos capazes de tor-

H
uma única etnia ou a um único povo. Ao ná-los local obrigatório de visitas, de turismo

a t r i m ô n i o
contrário daqueles dos Kokama, verifica-se e de folclore. Não representam, portanto,
em Enseada da Mata uma diversidade social, uma iniciativa resultante de uma imagem

P
já que no CCS dialogam e tomam decisões necessariamente construída para fora, mas

d o
conjuntas quilombolas, quebradeiras de coco consistem em um lugar social de produção

e v i s t a
babaçu e povos de terreiro. Na cerimônia de conhecimentos em luta. Numa projeção

R
de inauguração do CCS Antônio Machado, para o futuro, podem ser considerados como
que se estendeu por praticamente dois dias, laboratórios de saberes em luta, no campo
todos se fizeram representar, seja em sua da economia do conhecimento, que bem
língua e em seus rituais, seja em defesa de caracterizam as tendências atuais de desen-
suas reivindicações territoriais ou de uso dos volvimento do capitalismo hoje, conforme a
recursos naturais. As falas reivindicatórias interpretação de Gorz (2005:14), a saber:
se mesclavam com rituais de possessão, com
Nós atravessamos um período em que 55
cantos e sussurros, tudo na mesma grande
coexistem muitos modos de produção. O
reunião, em que havia lugar para o céu e a
capitalismo moderno, centrado sobre a valorização
terra, para o natural e o sobrenatural, como de grandes massas de capital fixo material, é
a nos advertir que os encantados também cada vez mais rapidamente substituído por um
são integrantes ativos do CCS. Nessa ordem, capitalismo pós-moderno centrado na valorização
os museus vivos consistem no lugar social de um capital dito imaterial, qualificado também
dos chamados conhecimentos tradicionais, de “capital humano”, “capital de conhecimento”
conjugando a materialidade dos artefatos com ou “capital de inteligência”. Essa mutação se faz
acompanhar de novas metamorfoses do trabalho. O
o imaterial das modalidades de percepção de
trabalho abstrato, simples, que, desde Adam Smith,
pessoas, objetos e coisas.
era considerado como a fonte do valor, é agora
A objetivação do mundo visível e dos
substituído por trabalho complexo. O trabalho de
projetos coletivos de povos e comunidades produção material, mensurável em unidades de
tradicionais faz parte dos pequenos museus produtos por unidades de tempo, é substituído por
criados por integrantes dessas unidades so- trabalho dito imaterial, ao qual os padrões clássicos
ciais. Tais iniciativas pertencem ao “para si” de medida não mais podem se aplicar.
Os anglo-saxões falam do nascimento de uma antagônicos. Não seriam termos sinônimos,
Museus indígenas e quilombolas:
o s n ovo s s i g n i f i c a d o s d o c o n c e i t o d e p r o c e s s o d e p a t r i m o n i a l i z a ç ã o

Knowledge economy e de uma knowledge society; nem antônimos. Parecem-nos polissêmicos e


os alemães de uma Wissensgesellschaft; os autores
a c i o n a l

plurais, quanto às modalidades de iniciativas


franceses, de um “capitalismo cognitivo” e de uma
implementadas. Estabelecem um complexo
“sociedade do conhecimento”. O conhecimento
plano de relações entre povo, tradição e
N

(knowledge) é considerado como a “força produtiva


r t í s t i c o

cultura que requer novas abordagens ou


principal”. Marx mesmo já notava que ele se
tornaria “die grosste Productivkraft” e a principal formas renovadas de apreender os objetos
A l f re d o Wag n e r B e r n o d e A l m e i d a
A

fonte de riqueza. e novos procedimentos para classificá-los,


e

seja no quadro natural, seja na ação do


i s t ó r i c o

Nesse recém-instituído campo de lutas da conhecimento intrínseco, a cada unidade


economia do conhecimento, os museus vivos social selecionada. Os “museus vivos”
H

não podem ser reduzidos a um mero espaço emergem como resultantes de mobilizações
a t r i m ô n i o

físico que se é levado a visitar, mas constituem sociais e de formas político-organizativas,


fontes de saberes e de um processo de produ- distinguindo-se por fatores étnicos,
ção de conhecimentos em organização que se
P

linguísticos e de variações na produção de


d o

mostram integrados na vida cotidiana da co- conhecimentos tradicionais. Potencialmente,


e v i s t a

munidade, tal como a escola, o posto de saú- podem levar a uma redefinição dos critérios
de e o local de reuniões. Em sua relação com usuais dos classificadores, tanto em torno de
R

as comunidades vizinhas ou com aquelas com artefatos diversos (instrumentos, utensílios,


as quais mantém interlocução ativa12, eles máquinas), quanto em torno de venenos
funcionam como um laboratório de conhe- (como as mais de duas centenas de variações
cimentos, que indaga sobre o futuro a partir do chamado curare), de resinas e produtos
de saberes que movimentam usos específicos derivados de sua manipulação, de formas
de recursos naturais (resinas, venenos, ervas geométricas, de fragrâncias e odores, bem
56 medicinais, extratos), bem como de artefatos como de músicas, danças, cerâmicas,
diversos, de músicas, narrativas míticas, ri- tramas com palhas, teçumes, assim como
tuais religiosos e danças e de instrumentos de ervas medicinais. Diferem, portanto, dos
caça, pesca, coleta e tratos agrícolas. museus criados de maneira convencional
Parece-me, pois, que os significados de por políticas museais, em que podem ser
“museu” e de “Centro de Ciências e Saberes” incluídos os citados museus comunitários, e
não são idênticos, mas tampouco são daqueles mais recentes, com arrojadíssimos
projetos arquitetônicos, produtos de franchise
12. No decorrer da execução das atividades do Projeto Centro das políticas de inspiração neoliberal,
de Ciências e Saberes, através de contatos acadêmicos com as
professoras Lygia Segala, da UFF, e Pamella dos Santos Passos, do cognominados museus do futuro e suas
IFRJ, os pesquisadores realizaram oficinas de mapas no Museu conhecidas vertentes13.
da Rocinha e no Morro do Alemão, respectivamente, bem como
mantiveram interlocução com membros do Museu Vivo do São
Bento, do Museu Histórico de Duque de Caxias e do Museu da
Maré. Os resultados de tal interlocução permitem consolidar o
argumento de que a noção de povos e comunidades tradicionais 13. Incluam-se aqui os cinco museus da Fundação Guggenheim,
não se reduz a um lugar geográfico determinado, como se supõe distribuídos pelo mundo (Nova York, Bilbao etc.), assim como o
com respeito à área rural, nem a unidades sociais etnicamente Musée du Quai Branly, em Paris, e a reforma do Pergamonmu-
configuradas e referidas a situações pré-industriais. seum, em Berlim.
O peso dessas distinções nos leva a refletir criar condições para que cada povo, comuni-

Museus indígenas e quilombolas:


o s n ovo s s i g n i f i c a d o s d o c o n c e i t o d e p r o c e s s o d e p a t r i m o n i a l i z a ç ã o
mais detidamente sobre o fascínio objetivista dade ou grupo possa ter acesso aos meios de

a c i o n a l
das políticas culturais, tal como sucedeu no discutir e decidir sobre como implementar os
contato com apoiadores dos museus da Roci- seus próprios museus ou como materializar os
nha e da Maré, quando fomos impelidos a fa- efeitos da consciência de si mesmo.

Nr t í s t i c o
zê-las, levantando certas questões. Popularizar
a arte e a ciência não quer dizer levar sinfôni- Referências

A l f re d o Wag n e r B e r n o d e A l m e i d a
A
cas, executando Bach, Mozart ou óperas14, às
ALMEIDA, Alfredo Wagner B. de. Antropologia dos

e
aldeias, favelas, povoados e acampamentos,

i s t ó r i c o
Archivos da Amazônia. Rio de Janeiro: Casa 8, 2008, p.
transformando-os num imenso cenário ocu- 45-56.

pado com uma movimentada multidão de BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Tradução

H
figurantes; mas consolidar a coexistência de de Maria João da Costa Pereira. Lisboa: Relógio d’Água,

a t r i m ô n i o
1991.
uma diversidade social com atos de produção
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte:
de conhecimento. Cada unidade social deve
Editora UFMG, 2010.

P
poder projetar sua expressão museológica,

d o
BOLTANSKI, Luc; ESGUERRE, Arnaud. “La
segundo as categorias que lhe são específicas, collection”, une forme neuve du capitalisme. La mise

e v i s t a
sem tentar impô-la, uma vez que as diversas en valeur économique du passé et ses effets. Les Temps
Modernes, n. 679, p. 5-72, jul-set.2014.
culturas estão dispostas num mesmo plano de

R
direitos e de legitimidade. Em outras palavras, FAYAD, Verónica Montero. Estatuas de San Agustín
(Huila, Colombia) en el Museo Etnológico de Berlín:
parece-me que às políticas governamentais, itinerario de clasificaciones y exhibiciones. Revista
num gesto de busca de harmonia, caberia Colombiana de Antropologia, n. 2, v. 52, Bogotá, p.175-
198, jul-dez.2016.

14. Nesse caso das óperas, importa realizar cotejos históricos, GOMES, Helio. Arqueologia de guerra. Isto É, n. 2.160,
principalmente com a Alemanha. A relação entre a ópera e o p.112, 6 abr.2011.
exercício do poder absoluto caracteriza a história política da
Alemanha. Hitler idolatrava o compositor Richard Wagner, tanto GORZ, André. O imaterial. Conhecimento, valor 57
quanto seu mecenas, o rei Ludwig da Baviera, e partilhava com e capital. Tradução de Celso Azzan Jr. São Paulo:
ele de ideias ditatoriais, discriminatórias e racistas. Hitler era,
contudo, um frustrado autor de óperas. Tentou em vão escrever
Annablume. 2005.
várias delas e se encantou com a arquitetura monumentalista de
cenários como aqueles reproduzidos em seus castelos pelo “rei
MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Tradução de
louco” da Baviera. Mas, ao contrário de Ludwig, não se isolou no Marta Lança. Lisboa: Antígona Editores Refractários,
castelo real transformado em palco de óperas e fez das massas par- 2017.
te de suas manipulações políticas, ao mobilizá-las nos rituais do Flora brasileira. Aquarela
de autor desconhecido.
Partido Nacional-Socialista, o partido nazista. Mais de 2 milhões MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. Expedição Científica
de pessoas, desde 1933 e durante a II Grande Guerra, desfilaram Alexandre Rodrigues Ferreira
Tradução de Paulo Neves e Maria Ermantina G. G.
pelas ruas a passos cadenciados, portando bandeiras coloridas, (1783 a 1792)
meticulosamente desfraldadas, insígnias reluzentes e tochas Pereira. São Paulo: Cosac Naify, 2013. Acervo: Fundação Biblioteca
Nacional, Brasil.
acesas, clareando a noite, além de carros alegóricos divinizando
as artes da guerra. Uma coreografia rígida, espelho da disciplina
militar. Uma gestualidade cadenciada, palavras de ordem gritadas
com ritmo, fazendo do movimento das massas um “magnífico
coral” de apologia dos princípios nazistas. Para Hitler, o exercício
do poder transformava os recursos operísticos em instrumento
disciplinador das massas que compunham o coral e o exército de
figurantes das óperas políticas, endossando seus atos e reprodu-
zindo fielmente suas saudações e palavras de ordem, tendo como
pano de fundo os hinos patrióticos e gestos pantomímicos, como
se a realidade fosse igual à ópera. Para um exercício comparati-
vo, assistam ao épico dirigido por Luchino Visconti, intitulado
Ludwig (1972), bem como o filme de Peter Cohen, narrado por
Bruno Ganz, denominado Arquitetura da destruição (1992).
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

58
J o ã o d e J e s u s Pa e s L o u r e i r o Meditação devaneante entre o rio e a floresta.
Cultura amazônica produtora de conhecimento
João de Jesus Paes Loureiro

a c i o n a l
M editação devaneante entre o rio e a floresta .
C ultura amazônica produtora de conhecimento

N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
A margem do rio, entre o rio e a floresta, instiga na busca do ilimitado. Uma busca
é o lugar privilegiado dos enigmas da não sistemática, mas impetuosa, assim como
Amazônia, transfigurados em enigmas do a periódica pororoca, as três ondas colossais

P
mundo. Oferece interrogações sobre origens e que avançam sobre rios afundando barcos e

d o
e v i s t a
destinos. É onde o rio deságua no imaginário. alagando as margens, que é a rebeldia cabana
Quando se pode ler a multiplicidade dos do rio contra as margens que o limitam,

R
ritmos da vida e do tempo, observar as a engolir as barreiras que o oprimem,
indecisões da fronteira entre o real e a devorando-as com inesperada sofreguidão.
surrealidade, o espontâneo maravilhamento Revelando afetividade cósmica, o homem
diante dos acasos. O sentido privilegiado da promove a conversão estetizante da realidade
contemplação conduz ao jogo estético, pela em signos, através dos labores do dia a dia, do
quimera de olhar as coisas ante o mistério diálogo com as marés, do companheirismo
que delas emana e pelo que nelas se exprime, com as estrelas, da solidariedade dos ventos 59
nesse vago e gratuito prazer da imaginação que impulsionam as velas, da paciente
que não busca um porto, embora numa amizade dos rios. É como se aquele mundo
viagem de vagos destinos. Uma viagem fosse uma só cosmogonia, uma imensa e
que não precisa levar a nenhuma parte. verde cosmo-alegoria. Um mundo único real-
A margem do rio não exige lógica para imaginário. Nele foi sendo constituída uma
ser coerente. Nela estão os mais preciosos poética do imaginário, cujo alcance intervém
arquivos culturais do mundo amazônico, os na complexidade das relações sociais.
manguezais simbólicos de nossa cultura, as O imaginário estetizante a tudo impregna
raízes submersas da alma cabocla. com sua viscosidade espermática e fecunda,
O ritmo das marés, em sua regularidade acentuando a passagem do banal para o
telúrica, estimula uma visão múltipla, embora poético. É gerador do novo, do recriado.
fatalista, como a moira dos gregos, isto é, Valoriza a dimensão autoexpressiva da
uma forma de destino. Tudo acontece no aparência e sua ambiguidade significante, nas
Rio Trombetas (PA), 1987
momento escrito. A consciência dos limites quais o interesse passa a se concentrar. Foto: Elza Lima.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

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J o ã o d e J e s u s Pa e s L o u r e i r o Meditação devaneante entre o rio e a floresta.
Cultura amazônica produtora de conhecimento
e G. Moss.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
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Foto: Margi Moss/Coleção M.


Encontro das águas dos
J o ã o d e J e s u s Pa e s L o u r e i r o Meditação devaneante entre o rio e a floresta.

rios Tapajós e Amazonas


Cultura amazônica produtora de conhecimento
A cultura amazônica talvez represente, pedagogia da contemplação. Um aprender a
Meditação devaneante entre o rio e a floresta.
Cultura amazônica produtora de conhecimento

neste início de século, uma das mais raras aprender olhar. O olhar que experimenta a
a c i o n a l

permanências dessa atmosfera espiritual em vertigem de uma alma errante. Na margem


que o estético, resultante de uma singular do rio e da floresta irrompe a vida, em duplo.
relação entre o homem e a natureza, se reflete É o reino das ambiguidades e da semovência
N
r t í s t i c o

e ilumina miticamente a cultura. Cultura que de contornos. É o desenvolvimento de uma


continuará a ser uma luz de aura brilhando, ciência da libido em que o desejo brilha, o
A

e que persistirá enquanto as chamas das jogo estético evidencia-se, o prazer do olhar é
e

queimadas nas florestas, a poluição dos rios dominante e o partilhamento com a natureza
i s t ó r i c o

e a mudança das relações dos homens entre é o prêmio. Um modo de contemplação que
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si, não destruírem, irremediavelmente, o forma um verdadeiro sistema. O sistema


H

locus que possibilita essa atitude poético- que eu chamo de poética do imaginário na
a t r i m ô n i o

estetizante ainda presente nas vastidões cultura amazônica.


das terras-do-sem-fim amazônico. Formas Entre o rio e a floresta, experimenta-se o
P

de vivência e de reprodução que tendem a sentimento do sublime da natureza, tanto que


d o

permanecer vivas e fecundas, na medida em é imperioso povoar essa realidade elevada com
e v i s t a

que sobreviverem, no espaço amazônico, as seres da mesma estatura, isto é, divindades


R

condições socioecológicas essenciais desse habitantes desses olimpos submersos nos rios
locus, no qual a presença humana, do índio e no mato a dentro, que são as encantarias.
ao caboclo atual, encontrou meios para uma As encantarias são a morada dos deuses da
produção poetizante da vida, até o ciclo de teogonia amazônica no fundo dos rios e nas
um terceiro milênio. brenhas da floresta. Cada praia encantada
Entre o rio e a floresta é preciso saber ver é uma ilha de Circe do imaginário a nos
para efetivamente ver. Um olhar sustentado chamar. O efeito do sublime é um modo de
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pela pertença à emoção da terra, com a sentir. É a representação do real por meio
sensibilidade disponível ao raro, com a alma do irrepresentável. A boiúna, cobra grande
posta no olhar. A transfiguração do olhar mítica, por exemplo, é o efeito do sublime
acontece no momento em que se percebe representando o irrepresentável do rio.
a diversidade verde do verde; o corpo de Entre o rio e a floresta, a experiência
baile dos açaizeiros; a volúpia dos pássaros transcendente resulta de experiências
revoando; a vaga ela perdida no olhar do vividas. A serenidade que advém das águas
canoeiro; a moça na janela como a solitária tranquilas, a inquietação pressaga das
imagem de uma espera; a igarité balançando noites de tempestade, são experiências do
nas ondas entre as estrelas; a dupla realidade cotidiano e não de leituras romanescas ou
da beira do rio refletida nas águas, como filosóficas. A admiração, o maravilhamento
cartas de um baralho de sortilégios. nasce da contemplação das coisas. Dessas
Na linha da ribanceira, entre o rio e a particularidades que brotam das sensações,
floresta, estão os arquivos da vida amazônica. o espírito chega ao essencial. O efeito do
É uma verdadeira escola do olhar. Uma sublime decorre de um espanto diante
Meditação devaneante entre o rio e a floresta.
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e v i s t a
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das tempestades, das pororocas; dos intervenção humana, nem modificadora, nem
alumbramentos diante dos fenômenos moralizadora, os rios e a floresta se oferecem
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da natureza e do cosmo, que se oferecem como um espaço aberto aos trabalhos e dias
como interrogações. A explicação-resposta do caboclo, à criação dessa teogonia cotidiana,
é metafórica, alegórica, numa poética no misticismo de sua vertigem do ilimitado.
iluminada pela liturgia dos mitos, forma de Para viver de uma forma ilimitada, convive
explicação através do irrepresentável com seres sobrenaturais, porque somente a
da representação. imaginação consegue ultrapassar os horizontes.
Esse primado do olhar não elimina Foi a boiúna, cobra grande mítica, que, ao
a posição do sujeito como espectador agitar-se, fez o barranco ruir; o curupira fez o
participante. Ator que também está na plateia caçador perder-se na mata; a Yara fez afogar-se
de si mesmo e dos outros. de sedução aquele que, aparentemente, não
Dessa meditação devaneante do caboclo tinha razões para morrer no rio; a tristeza não
explode o entusiasmo da imaginação, veio da alma, mas do canto do acauã, o pássaro
revolucionando as hierarquias lógicas entre dos maus presságios.
o real e o irreal. Numa paisagem que ainda Diante da imensidão do rio e da floresta, Pariçó,
Monte Alegre (PA), 1987
não guarda, em grande parte, vestígios da o homem, incapaz de franjar os seus vastos Foto: Elza Lima.
Ilha Mexiana, 1943 (ca.)
Foto: Marcel Gautherot/
Acervo Instituto Moreira Salles.
limites, insere-se nessa desmedida através pelo imaginário, numa “infinitização de

Meditação devaneante entre o rio e a floresta.


Cultura amazônica produtora de conhecimento
de um gesto que o faz superior a essa sentidos” (que é próprio do poético, na voz de

a c i o n a l
natureza: ele cria os encantados, os deuses Julia Kristeva). A encantaria não é um paraíso
de sua teogonia, mantendo a grandiosidade perdido. Não é um éden e nem um inferno.
esmagadora que o envolve sob seu controle. É um olimpo, um espaço de quimeras. Não é

N
r t í s t i c o
Ele passa a ser a razão primeira de tudo. O desejado, nem temido. É mundo criado pelo
caboclo: um ser criador das origens. Essa devaneio, que é a poesia da contemplação.

A
poética do imaginário não faz dele um poeta. Mergulho na profundidade das coisas

e
Mas o mantém envolvido em uma atmosfera por via das aparências, esse é o modo da

i s t ó r i c o
de poiesis que torna o imaginário a encantaria percepção, do reconhecimento e da criação

J o ã o d e J e s u s Pa e s L o u r e i r o
de sua alma. pelo veio do imaginário estético-poetizante

H
O espaço infinito põe a visão e o espírito da cultura amazônica. Modo singular de

a t r i m ô n i o
em repouso. A encantaria é a quebra dessa criação e recriação da vida cultural que se foi
regularidade do olhar pela diversidade da desenvolvendo emoldurado por essa espécie

P
imaginação. Além da aparente “monotonia do de sfumato que se instaura como uma zona

d o
sublime” provocada pela natureza magnífica indistinta entre o real e o surreal. Sfumato

e v i s t a
da geografia, há um mundo de encantarias, que, na pintura e na conhecida teoria de

R
numa etnodramaturgia imaginária de Leonardo da Vinci, é o contorno esfumado
boiúnas, botos, mães-d’água, yaras, curupiras, e difuso da figura para poetizar sua relação
porominas, caruanas, tupãs, anhangas, com o todo. Como elemento que estabelece
matintas etc. Enquanto o olhar contempla uma delimitação imprecisa entre as figuras,
em repouso, o espírito trabalha incansável nas à semelhança do que ocorre no encontro
minas subjacentes da imaginação. das águas de cores diferentes, de certos
O desejo de companhia sobrenatural é rios amazônicos, como as águas cremes do
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uma resposta ao inevitável sentimento de Amazonas com as águas negras do rio Negro;
solidão a que o homem se expõe diante da ou as cremes do Amazonas com as águas
natureza magnífica. O equilíbrio inquieto verdes do rio Tapajós; e outros. O limite entre
da solidão o leva a buscar realidades além as águas cremes de alguns e negras, verdes ou
da superfície, transferindo a profundidade azuladas de outros, não está definido por uma
da alma para a natureza. A crença nos linha clara, distinta e precisa, mas, por águas
encantados o liberta e isola da trivialidade do misturadas, viscosamente interpenetradas,
dia a dia. que criam uma tonalidade verde-negro-
Talvez, à semelhança dos românticos, amarelada, como se essa forma de sfumato
os caboclos ribeirinhos, em face do rio e fosse estabelecendo uma realidade única,
da floresta, tenham tido e ainda têm lugar coincidência de opostos, na física distinção
privilegiado para a descoberta de si mesmos. que caracteriza o encontro de águas desses
Assim, também, como kantianos intuitivos, rios. E é num ambiente pleno de situações
compreenderam a dimensão estética do como essas que caminha o bachelardiano
sublime da natureza magnífica e a poetizaram “homem noturno” da Amazônia. Depara-
se esse homem noturno com situações de cidades, que parecem estar muito mais num
Meditação devaneante entre o rio e a floresta.
Cultura amazônica produtora de conhecimento

imprecisos limites, de variadas circunstâncias tempo resguardado no espaço dos nossos


a c i o n a l

geográficas que vão motivando a criação de dias. O olhar que se dirige para a região está
uma surrealidade real, à semelhança do efeito impregnado desse próximo-distante que é
provocado pelo maravilhoso épico, que é todo próprio das situações auráticas, como
N
r t í s t i c o

um recurso de poetização da história, nas põe em relevo Walter Benjamin, ao estudar a


epopeias, resultante da mistura da História multiplicação da obra de arte na época atual.
A

real com a dos mitos. Uma surrealidade Benjamin caracteriza a aura na arte original,
e

cotidiana, instigadora do devaneio, na qual em seu já clássico texto, quando fala sobre
i s t ó r i c o

os sentidos permanecem atentos e despertos, a obra de arte única, anterior à época de


porque é próprio desse estado manter a suas técnicas de reprodução, como a única
J o ã o d e J e s u s Pa e s L o u r e i r o
H

consciência atuante. aparição de uma realidade longínqua, por


a t r i m ô n i o

Dependendo do rio e da floresta para mais próxima que esteja.


quase tudo, o caboclo usufrui desses bens, Nas várias formas de contacto com a
P

mas também os transfigura. Essa mesma Amazônia, essa é uma impressão constante,
d o

dimensão transfiguradora preside as trocas isto é, esse próximo-distante, esse perto-


e v i s t a

e traduções simbólicas da cultura, sob a longe, esse tocável-intocável onde o homem


estimulação de um imaginário impregnado vive seu cotidiano, que se apresenta a ele
R

pela viscosidade espermática e fecunda da revestido pela atmosfera de uma coisa rara.
dimensão estética. Mesmo nos conflitos gerados pela devastação
Essa transfiguração do real pela crescente de sua celebrada natureza, os
viscosidade ou impregnação do imaginário fatores de sua auratização ficam evidentes:
poético acentua uma passagem entre o um bem único e universal, impossível de ser
cotidiano e sua estetização na cultura, através recuperado, se destruído; riqueza de fauna
66 da valorização das formas autoexpressivas e flora cujo desaparecimento representaria
da aparência, nas quais o interesse de quem uma perda insubstituível; acervo de formas
observa está concentrado. Interesse que de vida incalculáveis, como se ela fosse o
direciona o prazer da contemplação à forma fecundíssimo útero do universo (em pouco
das coisas marcadas pela ambiguidade mais de um hectare de floresta ainda não
significante, própria da dimensão estética. afetada pelo homem, encontram-se mais
Sob o olhar do natural, a região se torna espécies do que em todos os ecossistemas
um espaço conceptual único, mítico, vago, da Europa juntos); presença constitutiva
irrepetível (posto que cada parte desse de valores intransferíveis e intransportáveis.
espaço não é igual à outra), próximo e, ao Para o viajante comum ou o estudioso, esse
mesmo tempo, distante. Seja para os que constitui um princípio instaurador, princípio
habitam as margens desses rios que parecem segundo o qual a Amazônia é concebida
demarcar a mata e o sonho, seja para os que como um bem único e irrepetível, revelador
habitam a floresta, seja ainda para os que de um hic et nunc que é o resultado de
habitam os povoados, as vilas e as pequenas uma acumulação de signos do imaginário
Meditação devaneante entre o rio e a floresta.
Cultura amazônica produtora de conhecimento
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universal. Signo de uma natureza tida como força própria, criadora de uma realidade Primavera, Pará, 1983
Foto: Miguel Chikaoka.

única, original e irrepetível. instauradora de novos mundos, capaz de


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Para compreender-se a Amazônia e a ultrapassar o simples campo de escombros da
experiência humana nela acumulada, e seu memória. O amor, por exemplo, pode estar
humanismo surrealista, deve-se, portanto, revelado pelo tambatajá, planta que brotou
levar em conta, não as conquistas da ciência, no lugar onde um amoroso índio macuxi
da economia e das formas excludentes do enterrou-se com sua bem-amada; também
desenvolvimento, mas o imaginário social em é o amor um golfinho encantado, o Boto,
que o verdadeiro humanismo deve fundar-se. incorrigível sedutor, que ora aparece sob a
Pode-se dizer que o caboclo – espécie forma humana e vestido de branco, ora volta
de Hesíodo tropical –, no exercício de ao rio sob a forma de animal; pode ainda ser
sua teogonia cotidiana, ao valorizar a aparição fatal de um rosto feminino à flor
espontaneamente esse mundo imaginal das águas profundas do rio, a Uiara, entidade
cheio de representações, parece acreditar que atrai os jovens fascinados por ela para as
no realismo primordial das imagens. Para o águas profundas do amor e da morte. Quer
caboclo, plantador e pescador de símbolos, dizer, incontáveis imagens como as do amor,
a imagem parece estar constituída de uma por exemplo, vão se instalando no vasto
mundo em derredor, tornando-o paisagem no sagrado espaço das encantarias. Habitada
Meditação devaneante entre o rio e a floresta.
Cultura amazônica produtora de conhecimento

significante e sensível e aparente. por divindades, a natureza tem na encantaria


a c i o n a l

A paisagem é a natureza penetrada pelo a idealidade de seu lugar ameno.


olhar. Pelo olhar, a natureza é criada na O imaginário testemunha nossa
cultura. Diante de uma paisagem regular na liberdade de criar. Estamos colocados no
N
r t í s t i c o

aparência o que a faz mudar é a natureza da lugar das manhãs do mundo. A margem do
alma. Por essa via contemplativa a paisagem rio e da floresta é o sfumato entre o real e o
A

será sempre nova. Não de uma novidade não real, o espaço esfumado que contorna
e

linear decorrente dos espaços sucessivos. Mas as coisas, tornando-as vagas e misteriosas.
i s t ó r i c o

de uma novidade circular, penetrante, feito O irreal ou não real deixa de ser o que está
camadas superpostas no mesmo espaço. escondido, submerso no real. Ao contrário.
J o ã o d e J e s u s Pa e s L o u r e i r o
H

O caboclo ribeirinho é um viajante imóvel. Ele se revela ao trabalho dos sentidos no


a t r i m ô n i o

Navega em busca das origens pelo sfumato desse livre jogo entre imaginação e
devaneio. É de Paul Zumthor a afirmação entendimento, que é a poética do imaginário
P

de que a paisagem não existe em si mesma. na cultura amazônica. Mais do que para
d o

Ela é, acrescenta, uma ficção, um objeto dar lição, moralidades, ordenamentos, as


e v i s t a

construído. Essa ficção, penso, é um efeito ficções mitopoéticas ribeirinhas são para
do olhar navegante pelo devaneio, renovando revelar a beleza; menos que estímulo à
R

a paisagem à sua frente com paisagens reflexão, breviário de certa moral a seguir,
superpostas, semelhante à contemplação estimulam mais o prazer de sentir e ver. O
sucessiva de paisagens, própria de quem caboclo, por sua mitopoética, não mente
viaja. Viajante imóvel, o caboclo cria planos ou falta com a verdade. Ele faz aquilo que
superpostos de paisagem, construindo Coleridge chama, em reconhecido conceito,
plasticamente a sua paisagem ideal. Pela de “suspensão da descrença”.
68 invenção de mitos, essa paisagem é um objeto Temos que aceitar um acordo ficcional,
representado que confere à cena o teatro da em princípio. O ouvinte aceita que o que se
cultura e a legitimação da crença. Com esses narra é uma história imaginária, mas, nem
componentes se constrói a paisagem ideal. por isso deve pensar que o narrador está
A beira do rio, as lendas, a ponte, a noite, contando mentiras. Esse “acordo ficcional” é
a casa, a família, a vida em comunidade, as o que Umberto Eco menciona no percurso
árvores em torno e o rumor do silêncio nos dos seis passeios pelos bosques da ficção. Por
lábios do vento. Ao inventar a sua paisagem, esse acordo ficcional demonstramos acreditar
o caboclo inventa-se a si mesmo para essa no relato ouvido. Liberamos o livre jogo entre
paisagem. Criando um mundo novo para imaginação e entendimento. Cremos como
ser, ele se cria como ser capaz de habitar esse numa verdade. Reconhecemos seu poder ser.
mundo poetizado. Tudo parece governado Sua verossimilhança. Sua lógica onírica.
por forças transcendentes. A natureza O caboclo, no curso de suas oralidades,
participa então do sagrado, uma paisagem procura fazer-nos crer que conta um fato
ideal que inclui o mundo alegórico dos mitos verdadeiro em que, como tal, acredita. Espera
uma espécie de simpatia da credibilidade. são como origens, um ponto zero, o lugar de

Meditação devaneante entre o rio e a floresta.


Cultura amazônica produtora de conhecimento
Cita detalhes, é rico nos “efeitos do real”, todos os começos. O lugar das manhãs do

a c i o n a l
conceito formulado por Roland Barthes mundo, onde, em vez de um passado, busca-
para legitimar a ficção por suas referências se a profundidade das coisas. Consciente de
à realidade, vincula ações a situações ou a ser um ser para a morte, ele procura ser para a

N
r t í s t i c o
pessoas conhecidas, indica datas concretas, vida eterna da encantaria.
enfim, confeita de credibilidade seu relato Entende-se, nesta meditação devaneante,

A
com as referências ao real extraliterário. o “imaginário” como capital cultural.

e
Temos que entrar em seu jogo com nossa Seguindo Gilbert Durand, o conjunto

i s t ó r i c o
suspensão de descrença. Ora, se temos crença de imagens não gratuitas e das relações
espontânea no relato das experiências vividas de imagens que constituem o capital

J o ã o d e J e s u s Pa e s L o u r e i r o
H
na realidade real pelo caboclo, não seria inconsciente e pensado do ser humano. Não

a t r i m ô n i o
justo separar nele, ao entrar nessa idealizada serão fantasias, no sentido que o termo tem
realidade, duas faces: verdadeiro para umas como irrealidade, mas o substrato simbólico

P
coisas e mentiroso para outras. Até porque, ou conjunto psicocultural de ampla natureza

d o
muitas vezes, ele é um dedicado amigo leal (presente tanto no pensamento primitivo

e v i s t a
ou membro da família. Temos que viver com quanto no civilizado; no racional como
ele essa ambiguidade como duas faces da no poético; no normal e no patológico),

R
verdade. Uma de crença, outra de aceitação promovendo o equilíbrio psicossocial
pactual. A inverossimilhança vem legitimada ameaçado pela consciência da morte. Ainda
por semelhanças. A informação condizente na estrada de Durand, o imaginário é
com elementos da realidade atribui, ao entendido aqui como o conjunto de imagens
inverossímil, características do real. O mundo e de relações de imagens produzidas pelo
real é imprescindível para criar a irrealidade. homem a partir, por um lado, de formas
Temos que aceitar que o caboclo tem tanto quanto possíveis universais e invariantes 69

imaginação, mas não é um mentiroso. e, por outro, de formas geradas em contextos


Diante da praticidade da vida, é um particulares historicamente determináveis.
especial e discreto prazer inventar coisas A formação de sentido do imaginário
diferentes da realidade e que nos permitam ribeirinho/caboclo resulta de um “trajeto
ser ouvidos. E que, ouvindo-nos, prestem antropológico” de tensão e troca entre a
atenção em nós e não apenas no magnífico natureza e a cultura, tendo como síntese o
ambiente que nos cerca. O imaginário, com a homem. É a troca incessante entre o subjetivo
exuberante potência erótica do belo em nossas e o objetivo, integrando o universal e o
lendas é, para o caboclo, o testemunho de sua singular, o interior e o exterior, o indivíduo
liberdade de ser e criar. As lendas inventadas e os grupos. O imaginário amazônico é o
pelo caboclo, povoando as encantarias, revela pêndulo da resolução das questões entre
sua vontade (ou desejo) de participar de uma natureza e cultura em que ele se sustenta.
realidade superior que ele reconhece presente Por esse trajeto se vai formando o sentido
na natureza em que habita. O rio e a floresta das coisas, num conjunto de interações entre
opostos. A fantasia passa a ser acionada por testemunhando homens sem terra na terra
Meditação devaneante entre o rio e a floresta.
Cultura amazônica produtora de conhecimento

transcendência ou sublimação. do sem-fim. E de forma intercorrente entre


a c i o n a l

Diante da matéria fluente e corrente a vida local e a vida virtual da comunicação


da água do rio que passa, o caboclo libera eletrônica, já começa a contar os causos na
e abre sua imaginação, na liberdade de um oralidade popular que lhe narram as antenas
N
r t í s t i c o

temperamento devaneante que produz a sua palmeiras parabólicas e a internet.


passagem para o poético. Por isso, mais do A arte representa um papel fundamental
A

que contemplar, ele sonha a paisagem que na caosmose (Guattari) dos tempos no
e

o faz sonhar. Sonha buscando o infinito, mundo de hoje, que são também os tempos
i s t ó r i c o

mas não no espaço. Ele busca o infinito da complexidade Amazônica. O mundo


J o ã o d e J e s u s Pa e s L o u r e i r o

na profundidade. Aparentando inércia, o de hoje está na Amazônia, tanto quanto a


H

caboclo segue, no incessante trabalho da Amazônia está no mundo atual. A arte, capaz
a t r i m ô n i o

imaginação, inventando a sua teogonia. Ou de converter o local em universal e o universal


melhor, a sua mitogonia. E espero que, diante em local, como expressão simbólica de uma
P

das atuais e expropriatórias violentações da cultura (S. Langer), pode representar uma
d o

sociedade, natureza e cultura constitutivas forma performática de a região enfrentar,


e v i s t a

do que denomino de Amazônia profunda, o com sua diversidade, o nivelamento trazido


R

habitante da terra não tenha que alegorizar pela globalização e a entrada do consumismo
culturalmente a sua própria mitoagonia. e da exploração predatória. A arte pode
Não podemos esquecer que são rios estabelecer a revelação de uma estratégia
de água doce os rios da Amazônia. Fatal é relacional de transacionalidade, em que um
relembrar aqui Bachelard, quando diz que não se sobrepõe ao outro, revelando caminhos
“a água doce é a verdadeira água mítica”. às estratégias de desenvolvimento. Na relação
Podemos acrescentar, então, que a nossa com essa linguagem riocorrente a percorrer
70
mitopoética bebe o leite e o mel da água doce a geografia da cultura, a linguagem artística
de nossos rios. é um caminho. Mas, nunca um caminho
A linguagem líquida do rio de água doce imóvel. A linguagem artística é um caminho
revela a oralidade narrativa da natureza. A que caminha.
linguagem fluída de quem conta. Ela conta A região fluvio-florestal amazônica é
ao olhar devaneante do caboclo as narrativas um imenso tapete verde tecido com os fios
que ele traduzirá no contar de seus causos entrelaçados do maior novelo de rios de água
e legendas, na líquida e fluida corrente doce do planeta. A água é um silêncio visível.
oralizada passando nos lábios dos rios e que Ela se oferece à navegação livre do devaneio
é, enfim, como a fonte de toda linguagem. como navegação interior, em busca de uma
Uma maré de linguagens que vai contando profundidade e não de uma distância. A
de botos, boiúnas, porominas, macunaímas, lenda, nessa poética do imaginário amazônico,
tupãs, encantarias, expulsão de colonos e é como a formulação alegórica de uma utopia.
índios de sua terra de pertença, denunciando Os bloqueios da vida prática são retirados,
a contaminação fluvial pelas minas, a gratuidade economiza os esforços da
racionalidade. O ser, no repouso do devaneio, dolorosa destribalização da sociedade O Boto,
Ilha de Marajó (PA), 2018
libera a imaginação intuitiva e criadora, indígena promovida pelos projetos públicos Foto: Eveline Oliveira.

que é a fonte desse desejo de um mundo e privados, a fuga da miséria no campo


idealizado. Muito mais do que pelo fatalismo para a miséria das periferias urbanas, a
de uma vida governada pela determinação da perda irreparável de um éthos que fazia da
natureza, ou sob a regência dos ordenamentos identidade uma identificação continuada:
da racionalidade, a cultura amazônica, a relação do homem com milhares de rios
produzida historicamente sob a dominância de água doce, com a floresta fertilizada de
poética de seu imaginário, estrutura-se na símbolos, com a solidão compartilhada com
indeterminação labiríntica do sonho. o infinito, com a natureza convertida em
Ainda que vivendo a realidade cultura e a cultura em natureza, o homem
atual tantas vezes áspera do trabalho, ribeirinho e rural da Amazônia vive, mesmo
as adversidades e armadilhas da cobiça no campo operacional da realidade prática, a
predatória na exploração da terra, a lógica alegórica do mito.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

72
J o ã o M e i r e l l e s F i l h o e Fe r n a n d a d e O. M a r t i n s A Amazônia viajante “até dizer chega”.
A contribuição dos viajantes ao por vir amazônico – do século 16 ao fim do ciclo da borracha
João Meirelles Filho e Fer nanda de O. Mar tins

a c i o n a l
A A mazônia viajante “ até dizer chega ”.
A contribuição dos viajantes ao porvir amazônico

Nr t í s t i c o
– do século 16 ao fim do ciclo da borracha

A
He
i s t ó r i c o
a t r i m ô n i o
Introdução Seria plausível associar esse desinteresse ao
baixo envolvimento afetivo e ao pouco caso
Dicen que dieron con un rio llamado Marañon, perante o patrimônio – natural e cultural

P
– pelo próprio amazônida, por cidadãos

d o
tan ancho que sospecho es fabula.

e v i s t a
Pedro Martín Aguilera 1
brasileiros e dos demais oito
países amazônicos?

R
Patrimônio aqui entendido como
o conjunto de narrativas ou práticas,
Em que medida os viajantes poderiam
comportamentos, bens, objetos comuns a
contribuir para a formação do pensamento
sobre a Amazônia que queremos? E como nos um território, que assume a representação

auxiliariam no desmantelar a visão dominante de valores simbólicos e, por isso, permite a


– que legitima o genocídio dos povos criação de uma identidade compartilhada.
originários, a exclusão e anulação dos povos Se os antigos viajantes partem do olhar de 73

e comunidades tradicionais e da maioria estranhamento, os novos viajantes olham


da população, de seu patrimônio cultural, a partir do pertencimento e da inclusão.
e a destruição sistemática dos ecossistemas Este brevíssimo artigo acompanha alguns
naturais e seu patrimônio biótico, ou seja, seu dos viajantes que percorreram a Amazônia
patrimônio natural –, que reduz a Amazônia em pouco mais de quatro séculos,
a reles provedora periférica de commodities especialmente em sua porção brasileira,
baratas e enriquecimento para uma elite desde o achamento da região, por Pinzón
descompromissada com a maioria? e Lepe, até Mário de Andrade, que visitou
E, se a Amazônia é uma região tão a região no fim do período da borracha, na
especial, carregada de profusos significados década de 1920.
sempre que mencionada, por que é tão Pode-se propor alguns conceitos que Lago da Vitória-régia,
com “Castelinho”, no
desvalorizada (inclusive pelos amazônidas)? prevalecem no discurso sobre a Amazônia, Parque Zoobotânico do
Museu Paraense
muitos dos quais partem dos viajantes e, Emílio Goeldi, 1902
Foto: Arquivo Guilherme de La
Penha/ Coleção Fotográfica/
1. Cf. Del Priore & Gomes (2003:7). claro, criaram vida própria: MPEG.
1) A Amazônia é tratada como obra de com terríveis aguilhões, cipós laticíferos ema-
A Amazônia viajante “até dizer chega”.
A contribuição dos viajantes ao por vir amazônico – do século 16 ao fim do ciclo da borracha

ficção – esta foi forjada a partir do relato de ranhados perturbam os sentidos do peregri-
a c i o n a l

um frei dominicano espanhol. Surpreende no” (Martius in Kury, 2001:868).


que sigamos atrelados a mitos como o das 3) É colossal, “nunca irá acabar” – tem
água, madeira, ouro, prata que não acaba
N

Amazonas e o do Eldorado até os dias atuais.


r t í s t i c o

Em Quizá, una obra de ficción hispanica, por mais; é este tratamento da Amazônia
exemplo, há indígenas que, no melhor estilo abundante e inesgotável que a crônica
A

quixotesco, enxergamos como Las Amazonas: viajante, seja militar, religiosa, científica ou
e

diletante, dissemina.
i s t ó r i c o

J o ã o M e i r e l l e s F i l h o e Fe r n a n d a d e O. M a r t i n s

“(...) entre todas estas mujeres hay una señora


4) Os povos e comunidades tradicionais
que subjeta y tiene todas las demás debajo de
são meros provedores de informações – a
H

su mano y jurisdicción, la cual señora se llama


grande maioria dos viajantes tem visão
a t r i m ô n i o

Coñori. Dijo que hay muy grandíssima riqueza


eurocentrista e raramente trata os habitantes
de oro y plata y que todas las señoras principales
locais como pares: “(...) os povos do lugar
y de manera no es otro su servicio sino oro y
P

se prestam enquanto seres úteis, fonte de


d o

plata (...)” (Papavero, 2000:11).


informação para a sobrevivência (fornecer
e v i s t a

2) A narrativa é a do espetáculo e exótico


alimento, remar, guiar, guardar, carregar, atos
– “Escuro como o inferno, emaranhado como
R

quase animais etc.) ou como trampolim para


o caos, aqui se estende uma floresta impene- a glória” (Meirelles, 2009:17).
trável de troncos gigantescos (...) Arbustos 5) Os viajantes mentem por conveniência
com espinhos irritantes e malignos, palmeiras – querem agradar seus superiores, justificar
resultados esperados e não alcançados etc.
Mário de Andrade, em carta a Manuel
Bandeira, escracha os cronistas coloniais:
74
“contadores de monstros nas plagas nossas e
mentirosos a valer” (Andrade, 1976:42).
Pode-se considerar que nossa visão sobre
a Amazônia ainda se atrele às narrativas qui-
nhentistas e seiscentistas. De certa maneira,
os viajantes representariam uma janela fora da
história oficial, a nos permitir tanto sonhos
como reflexões sobre este período em que o
patrimônio natural e cultural é negado como
valor. Afinal, o que se busca é o enriqueci-
mento rápido e retornar à terra natal. Diante
disto, é urgente uma nova narrativa, contem-
Iuri. Litogravura. In:
Reise nach Brasilien,
porânea, própria, capaz de agregar, respeitar,
de Spix & Martius,
1823
ser patrimonialista, defensora dos saberes e
Acervo: Fundação
Biblioteca Nacional, Brasil. fazeres, sábia e amorosa.
O registro viajante Duas décadas depois, Bates (1864:38)
escreve sobre Belém:
Nos primeiros séculos raramente Diversos ofícios manuais eram exercidos por
dispomos de outros registros para relatar gente de cor – mulatos, mamelucos, negros libertos
75
o que sucedeu – como eram esses povos, e índios. O melhor tipo de Brasileiros não gostava
lugares, enfim, essa Amazônia que não de cuidar das miudezas de um balcão de uma loja,
mais existe. O viajante inicia críticas que e se eles não alcançavam comerciar no atacado,
precisamos considerar, pois, em geral, vem preferiam a vida de donos de fazenda no interior,
sem tantos compromissos com os da terra, por menos que fossem as propriedades e os ganhos.
afinal dificilmente se trata de alguém que
precisa prestar contas aos locais... Em boa Entre os mais ácidos juízos, está o do
medida, cumprirá um papel desinteressado militar norte-americano Herndon (1952):
de registrar, acrescido de visões próprias, (...) mas o principal charme do Pará, assim
como Langsdorff (1826): “Para uma pessoa como de todos os lugares tropicais, é o dolce
preocupada com o bem-estar comum e com far niente. Os homens, nestes países, não são
o progresso da civilização, assistir a tanto ambiciosos. Eles não se constrangem, como os seus
descaso é de cortar o coração. (...) Meu equivalentes masculinos dos climas frios, em ver Arbores ante Christum
natum enatae, in silva
Deus, como esta terra poderia ser rica, se os seus vizinhos progredirem mais que eles. Eles se juxta fluvium Amazonum.
Gravura de Martius. In:
não fosse tão mal administrada!” (Silva, contentam em viver e desfrutar, sem trabalho, os Flora Brasiliensis
Acervo: Fundação Biblioteca
1998:15). frutos que a terra, espontaneamente, lhes oferece. Nacional, Brasil.
A insuficiência de relatos fora do oficial de que a sua cidade se há de vir chamar o
A Amazônia viajante “até dizer chega”.
A contribuição dos viajantes ao por vir amazônico – do século 16 ao fim do ciclo da borracha

e religioso deve-se, no caso português, à Porto do Ouro” (Daniel, 2004:25)


proibição de visitantes estrangeiros, o que
a c i o n a l

Tudo se inicia em 1500, com a secreta


se encerrou com a chegada da família real
viagem de Pinzón e Lepe, escamoteada
ao Brasil em 1808. Quem seriam esses
pela Coroa espanhola e somente revelada
N

viajantes? O que nos oferecem além da


r t í s t i c o

versão dos vencedores? Que patrimônios os em 1832 (Meirelles, 2009). Enquanto não
sensibilizam? O que querem nos transmitir? são encontradas as minas do Tawantinsuyu
A

Este breve ensaio revisita alguns desses (Império Inca), partem do Altiplano
e

intérpretes, parcialmente apresentadas expedições militares espanholas em demanda


i s t ó r i c o

J o ã o M e i r e l l e s F i l h o e Fe r n a n d a d e O. M a r t i n s

nos livros Grandes expedições à Amazônia a muitas partes, inclusive à floresta tropical.
brasileira. 1500-1930 e Grandes expedições Nestas incluem-se as de Alvarado (1535,
H

à Amazônia brasileira. Século XX (Meirelles,


1536 e 1539), que alimenta a lenda de El
a t r i m ô n i o

2009 e 2011).
Dorado, incentivando expedições como a
dos irmãos Pizzarro, iniciada em 1539, com
Os p i o n e i r o s q u i n h e n t i s ta s e a
P

aparato de 340 espanhóis e 4 mil índios, em


d o

f o rm a ç ã o d o m i t o
busca do país de La Canela.
e v i s t a

É admirável que muito da visão sobre


Aí está Orellana, com o dominicano
a Amazônia, que cerziu e remendou
R

Carvajal e outros; desgarrado da expedição


o discurso oficial nesses mais de cinco original, descerá numa jangada por oito
séculos, ainda se assente nos desvarios dos meses o Napo, o Solimões-Amazonas, entre
primeiros navegadores – militares, religiosos, 1541 e 1542 (Papavero, 2000). A crônica de
mercenários, mercadores ou peregrinos Carvajal registra essas mulheres fantásticas
em busca do paraíso terreal. Igualmente – Las Amazonas: “(...) muito alvas e altas,
pasmante é como o discurso oficial com o cabelo muito comprido, entrançado e
76 manipulou essa literatura fantástica, seja enrolado na cabeça” (ibid.). De nome do rio
para atrair colonos, comerciantes ou resolver abarca a maior floresta tropical do planeta;
questões territoriais. ou seja, uma das poucas, quiçá a única região
Na Amazônia, o século 16 foi espanhol do mundo, com o nome de um mito que lhe
e, no megadelta do Amazonas e Tocantins, é completamente alheio. Para Del Priore &
plenamente europeu, com a presença de Gomes, “(...) um possível reino de mulheres
alemães, franceses, holandeses, ingleses na América exercia tamanho fascínio no
e irlandeses, com diferentes orientações imaginário dos conquistadores europeus que,
religiosas (Meirelles, 2009). O reinado salvo algumas exceções, sua existência será
português só alcançaria efetivamente o aceita sem reservas” (2003:19).
megadelta na década de 1680. Por que o fez? Em outra expedição (1559–1561), a de
A bravata do jesuíta João Daniel dá-nos uma Ursúa e Aguirre, este espanta-se com a dimen-
pista, quando discorre sobre o contrabando são das nações locais: “(...) mais de trezentas
de metais dos Andes alcançando Belém: canoas, e a que menos gente trazia eram dez e
“(...) já corre entre eles uma como profecia, outras doze índios” (Papavero, 2000:43).
Em 1538, Diogo Nunes, pioneiro Em 1541, menos de uma década de
português a percorrer o Amazonas, relata: Alvarado, aventureiros alemães (Speyer,
“(...) se podem povoar cinco ou seis vilas mui Federmann e Hutten) buscam o Eldorado.
ricas, pois sem dúvida há nela muito ouro. O mito prosseguirá até o século 18. Mesmo
E ao que ela me pareceu é tão abundosa de um cientista como Condamine (1750)
mantimentos e sã como a do Peru (...)”. acredita na lenda. Para Reis (1965:74):
Relata, ainda: “(...) caminhos muito abertos “(...) a voz que se elevou, nas páginas do
de muito seguidos porque corre muita gente cronista Frei Gaspar de Carvajal, criando,
por eles (...). Por este rio há de prover esta com o exotismo amazônico, a intensidade
Mapa com a localização
terra, porque podem ir navios por eles até louvaminheira que tanto mal fez à região”. do mítico lago Parime,
em cuja margem noroeste
estaria Manoa, a lendária
onde se poderá povoar uma vila que seja A descoberta e exploração do Cerro cidade inca de Eldorado.
Gravura de Willem Blaeu,
porto e escala de toda esta terra (...) porque o de Potosi, na Bolívia, selará o interesse 1635
Acervo: Instituto Histórico e
rio vai chão e muito bom” (ibid.:3). espanhol pela Amazônia. Por algum tempo, Geográfico Brasileiro.
A Amazônia viajante “até dizer chega”.
A contribuição dos viajantes ao por vir amazônico – do século 16 ao fim do ciclo da borracha
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o

J o ã o M e i r e l l e s F i l h o e Fe r n a n d a d e O. M a r t i n s
H
a t r i m ô n i o
P
d o
e v i s t a
R

espanhóis devassarão o vale a partir dos Manoa é criação de Raleigh, assim como Las
Andes, como Maldonado, de 1567 a 1569 Amazonas é de Carvajal. Os registros meticu-
(Varese, 2006:9); Arbieto, em 1580 etc.; losos de ingleses em journals (diários) – Key-
78
mas, logo se concentram em proteger mis (1596), Harcourt (1608) e Leigh etc. –
suas minas e rotas para a Espanha. Os nos permitem compreender esse momento.
portugueses só encontrarão metais 150 anos
depois: Mariana (MG) em 1696, Cuiabá Franceses no Maranhão e Pará
(MT) em 1719 e Goiás Velho (GO) em Até a colonização francesa do Maranhão
1722. Para Holanda (1976): “(...) o que no apoiada pelos holandeses, em 1612, em que
Brasil se queria encontrar era o Peru, não era pese a tentativa de João de Barros em 1535,
o Brasil”. Portugal estará distante da Amazônia. É o
Importante mencionar os relatos do in- relato do aventureiro Vaux que convence a
glês Walter Raleigh, entre 1595 e 1596, de Corte francesa e o calvinista De La Touche
grande impacto na Europa – The discovery of (Senhor de La Ravardière) a se apossar
the large, rich and beautiful empire of Guiana, dessas terras. A crônica viajante agora é de
with a relation of the great and golden city of dois sábios, freis capuchinhos, Abbeville
Manoa, which the Spaniards call El Dorado. e Évreux.
A Amazônia viajante “até dizer chega”.
A contribuição dos viajantes ao por vir amazônico – do século 16 ao fim do ciclo da borracha
N
Aa c i o n a l
r t í s t i c o
e
i s t ó r i c o

J o ã o M e i r e l l e s F i l h o e Fe r n a n d a d e O. M a r t i n s
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P
Ra t r i m ô n i o
d o
e v i s t a
Abbeville domina o tupi e reconhece movimento resulta a correnteza dos rios,
o saber indígena na História da missão dos a que chamam de artérias da Terra, e aos
Padres Capuchinhos na Ilha de São Luís do riachos as veias”. A obra de Évreux ficou 79
Maranhão e terras circunvizinhas onde se inédita por 250 anos, assim como a do frei
trata das singularidades admiráveis & dos Lisboa que acompanha os portugueses na
costumes maravilhosos dos índios habitan- tomada do Maranhão (1616), só publicada
tes deste país. Realiza o primeiro censo da em 1933.
França Equinocial: 12 mil nativos em 27
A posse portuguesa da Amazônia
aldeias. Observa que o tempo media-se a
Se a união das coroas ibéricas (1580-
partir das estrelas (Plêiades). Será pioneiro
1640) permite o enorme avanço de Portugal
ao reconhecer o patrimônio imaterial de
na Amazônia, também traz o ônus de
um povo originário. Porro (2007:8) recor-
combater “hereges” – franceses, holandeses,
da, a partir de documentos coloniais sobre alemães e irlandeses. O plantio de cana-de-
indígenas entre o Içá e o Japurá (AM), que açúcar e tabaco, o interesse pelo cravo, canela Prospecto da Fortalezza de
Gurupâ, com sua Povoçam.
estes: “(...) sabiam que o sol era fixo e que a etc. e o contrabando dos metais dos Andes Estampa de João André
Schwebel, 1756
Acervo: Fundação Biblioteca
Terra se movimentava ao redor dela. Desse movimentam os primeiros anos da ocupação. Nacional, Brasil.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

80
J o ã o M e i r e l l e s F i l h o e Fe r n a n d a d e O. M a r t i n s A Amazônia viajante “até dizer chega”.
A contribuição dos viajantes ao por vir amazônico – do século 16 ao fim do ciclo da borracha

Champney

Nacional, Brasil.
Aguada, guache e bico

Acervo: Fundação Biblioteca


Estreito de Breves (PA).

de pena de James Wells


R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
81

J o ã o M e i r e l l e s F i l h o e Fe r n a n d a d e O. M a r t i n s A Amazônia viajante “até dizer chega”.


A contribuição dos viajantes ao por vir amazônico – do século 16 ao fim do ciclo da borracha
A Amazônia viajante “até dizer chega”.
A contribuição dos viajantes ao por vir amazônico – do século 16 ao fim do ciclo da borracha
a c i o n a l
N
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A
e
i s t ó r i c o

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H
a t r i m ô n i o
P
d o
e v i s t a
R

82 Mas, a estabilidade advirá do extrativismo: (...) Notrato de las muchas minas de oro y plata
de que se tiene noticia en lo descubierto, y que se des-
(...) portugueses expandiram-se rapidamente
cubrirán, forçosamente en el adelante: que si mi juizio
pelo curso do Amazonas (...). A abundância de
no me engaña, han de ser más, y mas ricas que las de el
produtos naturais, em particular de especiarias, as
Perú, aunque entre en ellas las de el afamado Cerro de
chamadas drogas do sertão, (...) além de madeiras
Potosi (Silveira, 1624, in Almeida, 1874:94).
e produtos animais, levou o estabelecimento de
inúmeras feitorias, segundo a já velha experiência Para Mindlin trata-se de documento
mercantil portuguesa (Galvão, 1953:108). excepcional, endereçado ao rei da Espanha,
“A Relação Sumária das Cousas do e que propõe que se transporte a prata do
Maranhão”, do português Symão Silveira, Peru pelo Amazonas, em vez do Panamá
procurador-geral do Maranhão, apresenta (Mindlin, 2013).
Fazenda próxima ao o Amazonas como desaguadouro de rios A conquista portuguesa só alcança
Orinoco, família de
índios Amarizano. Alcide andinos; e, se ali há prata, igualmente seria dimensões continentais em 1637, com
d’Orbigny, 1836
Coleção João Meirelles Filho. encontrada rio abaixo: a epopeica viagem capitaneada pelo
militar Pedro Teixeira, à frente de sessenta No temporal2 também os pobres índios

A Amazônia viajante “até dizer chega”.


A contribuição dos viajantes ao por vir amazônico – do século 16 ao fim do ciclo da borracha
portugueses, 1.200 indígenas, em 45 canoas; padecem grandes injustiças dos portugueses
(...); como são muitos cativeiros injustos, contra

a c i o n a l
à revelia da Coroa espanhola. Esta alcança
a forma das leis de sua Majestade manda-os
Quito e, no retorno, acompanhado do jesuíta
vender para fora da terra e das conquistas.

N
Acuña, finca um marco em Franciscana Outros oprimem os pobres com grande violência

r t í s t i c o
(próximo à fronteira atual em Tabatinga) e obrigando-os a serviços muito pesados, como é
Portugal toma posse de uma área superior fazer tabaco, em que se trabalha sete e oito meses

A
à Europa (40% do Brasil ou trinta vezes a contínuos, de dia e de noite; (...). E se faltam

e
i s t ó r i c o
nestes serviços os portugueses os metem no tronco

J o ã o M e i r e l l e s F i l h o e Fe r n a n d a d e O. M a r t i n s
superfície de Portugal).
e os açoutam algumas vezes. Por isso fogem para os
Para luso-brasileiros, a obra de Acuña
matos, despovoando suas aldeias: outros morrem

H
– Nuevo descubrimiento del gran rio de las
de desgosto no mesmo serviço sem remédio algum

a t r i m ô n i o
Amazonas... (Madri, 1641) – deveria ser de (...) (Leite, 1940:209).
amplo conhecimento. Para o historiador
Cortesão: “(...) até a data da viagem de Pedro Figueira conhecerá fim trágico no Marajó, na

P
d o
Teixeira os portugueses figuravam o Brasil década de 1640. É dele a frase: “Pobres brazis”.

e v i s t a
Uma década depois, a missão jesuíta
como uma ilha, limitada pelo rio da Prata e o
é restabelecida por Antônio Vieira, já um
Tocantins-Araguaia” (Cortesão, 1958:307).

R
dos maiores intelectuais portugueses, para
quem o delta do Amazonas é: “(...) de maior
O pa í s j e s u í ta (1624–1755)
comprimento e largueza que todo o reino de
A estratégia jesuíta de domínio das línguas
Portugal” (Vieira in Meirelles, 2009). Em
empregada na Ásia leva Luis Figueira, a partir
missiva a El-Rei Nosso Senhor, confessa a
do contato com grupos Tupi no litoral, a
escravidão indígena:
escrever a “A arte de grammatica da lingua
83
brasílica” (publicada em 1621, editada por (...) foi levando em sua companhia canoas, (...)
para o resgate dos escravos que se faz n’aquelles
Bettendorff ), base para disseminar a Língua
rios, e foi esta a primeira vez em que o resgate
Geral (Nheengatu, a Língua Boa). Para
se fez por esta ordem (n. a. dos jesuítas), para
Barbosa Rodrigues: “(...) o tupi, entre as que os interesses d’elle coubessem a todos, e
nações selvagens, fazia o papel de latim entre particularmente aos pobres, que sempre, como
as civilisada” (Rodrigues, 1892:39). Por pelo é costume, eram os menos lembrados (Vieira,
menos dois séculos esta prevalecerá: “(...) 1871:147).
todos os Tapuios semicivilizados das aldeias,
O maior orador da Língua Portuguesa
e de fato os habitantes dos lugares retirados
enfrentará os colonos e, no ano de 1654, em
falam geralmente a Língua Geral” (Bates apud São Luís, profere um dos mais conhecidos
Galvão, 1953:67). Ainda se fala o Nheengatu sermões – Sermão de Santo António aos Peixes:
no alto rio Negro. “(...) nunca o verbal foi tão importante e
Após quinze anos como pioneiro na
missão no Maranhão, Figueira escreve: 2. Temporal se refere ao governo temporal.
tão adequado, sendo ao mesmo tempo a Trata-se de escravização! Como as ordens
A Amazônia viajante “até dizer chega”.
A contribuição dos viajantes ao por vir amazônico – do século 16 ao fim do ciclo da borracha

via requerida pela propaganda ideológica não pagam impostos e não se subordinam à
a c i o n a l

e o recurso cabível nas condições locais” Coroa, formam feudos de produção (carne
(Holanda, 1982:93). bovina, cana-de-açúcar, estaleiros, olarias
Como nem Portugal nem Espanha etc.), fornecendo boa parte da cachaça para a
N
r t í s t i c o

possuem suficientes aparatos civis e militares submissão de índios: “(...) é necessário andar
para a ocupação, permitem às ordens sempre a acariciá-los como faz uma mãe a seus
A

religiosas tomarem as remotas fronteiras. filhos dando-lhes aguardente, e outras coisas,


e

Como expressa o jesuíta Bettendorff, era para os ter contentes” (Daniel, 2004:203, v. 2).
i s t ó r i c o

J o ã o M e i r e l l e s F i l h o e Fe r n a n d a d e O. M a r t i n s

preciso: “(...) levar a luz de Nossa Santa Além de “amansar os bravos” (sic), as
Fé aos sertões de muita gentilidade” reduções (aldeamentos) tornam-se essenciais
H

(1990:427). Narrados com heroísmo, em


a t r i m ô n i o

como centros para provisão de remadores


verdade, os descimentos representaram e víveres. O jesuíta Daniel assim descreve
enormes sacrifícios aos indígenas: “(...) e a distribuição dos remeiros: “(...) a 1a para
P

eram aldeias que se havia de descer com ficar na missão; a 2a para dela se tirarem
d o

mulheres, meninos, crianças enfermas e todo 25 índios para o serviço do missionário, e


e v i s t a

os outros impedimentos que se acham na os que sobejavam desta 2a parte iam para a
transmigração” (ibid.:113).
R

repartição dos moradores, a 3a parte era para


repartir ao serviço real, isto é, dos ministros
régios, governadores etc.” (ibid.:309). Os
moradores são os comerciantes luso-brasileiros
organizados em “canoas do sertão”, que
no período de coleta de drogas formam as
“monções das canoas”.
84
Do lado espanhol, destaca-se o jesuíta
Fritz e seu magnífico mapa, confiscado pelos
portugueses, que o utilizarão largamente. Para
Renan Pinto (2005):

(...) sua obra constitui, portanto, o monumento


inaugural do pensamento social sobre a Amazônia
e, em particular, sobre o pensamento antropológico
(...) seu Diário deve ser considerado como uma das
expressões da literatura de revelação do vale amazô-
nico, já possuindo rigorosamente a maior parte dos
elementos que vão construir a mais forte tradição
narrativa sobre esta parte do Novo Mundo.

Em menos de um século os jesuítas


organizam, entre os domínios ibéricos,
verdadeiros estados que, se somados, da Província do Rio Negro (Amazonas).

A Amazônia viajante “até dizer chega”.


A contribuição dos viajantes ao por vir amazônico – do século 16 ao fim do ciclo da borracha
resultariam num país com área superior Sua visão sobre os índios está em carta a

a c i o n a l
à da Bolívia e do Peru juntos, de sul a Coutinho (19/11/1794): “(...) Esta gente
norte: Tape, Itatim e Guairá (RS ao PR); é preciso levá-la com muito jeito porque
Moxos e Chiquitos (Bolívia); Maina (Peru qualquer constrangimento os fará desconfiar,

Nr t í s t i c o
e Colômbia); e Solimões (Brasil). É o o que é preciso evitar, por que não tornem
Tratado de Madri (1750) que sela a sorte para o mato, aonde nada lhes falta a seu

A
dos religiosos quando os ibéricos decidem modo de viver” (Reis, 2006:237). É Almada

e
expulsá-los (1755). que encerra a dúvida sobre a existência de

i s t ó r i c o

J o ã o M e i r e l l e s F i l h o e Fe r n a n d a d e O. M a r t i n s
O governo temporal das vilas estimulará lagos míticos – Manoa (sinônimo de Lago
ainda mais as áreas de fuga – os mocambos Parime, ou Cerro Dorado): “(...) são cousas

H
indígenas. Sem os missionários, a crônica que só existem na imaginação” (Almada,

a t r i m ô n i o
religiosa limita-se principalmente a 1861:633).
visitadores, como Noronha (1768), Brandão No hiato entre os tratados de Utrecht

P
(1785–1787) e, mais tarde, Souza (1873). (1713) e Madri (1750), Portugal alarga

d o
ainda mais suas fronteiras. A aldeia jesuíta

e v i s t a
Os c r o n i s ta s o f i c i a i s d a Coroa de S. Antônio das Cachoeiras (1728) e a

R
portuguesa descoberta de ouro em Cuiabá (1722), Vila
A comunicação oficial na colônia oferece Bela (1734) e Corumbiara (1736) definem
panorama limitado sobre a sociedade, seus a fronteira oeste. O militar Palheta é quem
valores e patrimônio, especialmente sobre toma posse da margem direita do Guaporé
indígenas. A maioria dos administradores (1722) e, em bandeira ao Oiapoque (1727),
permanecia poucos anos, dedicando-se contrabandeia mudas de café de Caiena
ao essencial. Todavia, com todos os vícios (roubadas aos holandeses, que haviam
85
e achas inerentes ao seu tempo e cargos, subtraído mudas aos etíopes). Desse período
destacam-se – Berredo e Castro e Baena. há diversos relatos de como navegar entre
O primeiro é capitão-mor do Maranhão as províncias da Colônia, como a viagem
(1718–1722). São dele os Annais históricos de Couto (1731), descendo o Tocantins e
do Maranham... (1749) e a Cronologia do revelando as minas de Natividade.
Pará. Já Baena, escreve Compêndio das eras
da província do Pará (1838). Na leitura O T r ata d o de Madri (1750) e

dessas obras, encontram-se raríssimas as comissões demarcadoras

menções a mulheres, escravos, indígenas e, Para cumprir o Tratado de Madri e o de


quando ocorrem, limitam-se ao primeiro Santo Ildefonso (1777), formam-se poderosas
nome, quando não é referido apenas por comissões demarcadoras. A 1a Comissão,
sua tarefa. com Mendonça Furtado à frente, incluía Frontaria da nova Igreja
da Villa de Camutã
Destaquem-se, ainda, Lobo d’Almada alguns dos maiores cartógrafos europeus, (Belém). Nanquim, aguada
e aquarela de Antonio José
e Palheta. Almada, após contribuir nas como Grönfeld, o alemão Schwebel (autor Landi, século XVIII (ca.)
Acervo: Fundação Biblioteca
demarcações, será o primeiro governador de algumas das mais belas gravuras do século Nacional, Brasil.
18), o astrônomo italiano Brunelli, e seus os riscadores (desenhistas) Codina e Freire e
A Amazônia viajante “até dizer chega”.
A contribuição dos viajantes ao por vir amazônico – do século 16 ao fim do ciclo da borracha

ajudantes Breuning, Sturm e Galluzzi, o o preparador (jardineiro-botânico) Joaquim


a c i o n a l

riscador bolonhês Antonio Landi (que se do Cabo (que morre no Negro).


tornará importante arquiteto em Belém), Maravilhado, Ferreira registrou em
o jesuíta croata Szentmartoni etc. São duas cartas, diários (somente o do Negro contém
N
r t í s t i c o

levas – 1751 e 1754. A 1a contava mais de 692 páginas), memórias (em que tratou de
oitocentas pessoas em 23 canoas; a 2a, 1.025 cuias, louças, malocas dos Curutus, salvas
A

pessoas, 511 das quais índios (remeiros e de palhinha etc.) e coletou extensamente
e

pescadores). Dividem-se em partidas, ao artefatos, exsicatas, partes de animais,


i s t ó r i c o

J o ã o M e i r e l l e s F i l h o e Fe r n a n d a d e O. M a r t i n s

Oiapoque, Solimões (Franciscana, onde minerais etc., depositados em museus


Teixeira fincara a bandeira), Madeira- portugueses e, depois da invasão napoleônica
H

Guaporé (Palheta). Em 1780, por conta a Portugal, em 1808, também em museus


a t r i m ô n i o

de S. Ildefonso, muitos engenheiros já franceses; um patrimônio pouco conhecido


são formados em Coimbra, Portugal. Essa e divulgado. Ao regressar pouco se dedica
P

comissão é chefiada por Caldas e suas a organizar os aprendizados e publicar.


d o

equipes: Wilkens (autor de Muhuraida, Vanzolini observa: “(...) os objetivos das


e v i s t a

primeiro poema escrito na região), no viagens ao Negro e a Mato Grosso eram


R

Japurá; Almada, no Negro; e Ricardo Franco, antes administrativos e estratégicos, ligados


no Guaporé. a questões de fronteiras e de produção de
Notável o governador de Mato Grosso, ouro. O título de philosófica pode ter sido em
Pereira e Cáceres, que lá permanece 16 anos parte um disfarce” (2004:7). Para Cortesão
(1772–1788). Reunirá excepcional registro (1958), entretanto, Rodrigues Ferreira seria o
cartográfico e iconográfico, fundará fortalezas “Humboldt brasileiro”.
(Forte de Coimbra, no Paraguai; Príncipe As expedições interligando as bacias
86
da Beira, Guaporé), vilas (Albuquerque, (Prata, Amazonas e Tocantins) prosseguem.
atual Corumbá, e Ladário). Gilberto Freyre Entre essas, as seguintes: do ouvidor
o compara a um Maurício de Nassau, por Sampaio (1774–1775 e 1777); do militar
introduzir o teatro e fundar o primeiro Guillobel (1819–1825), autor de um mapa
gabinete de cartografia no Brasil. de Belém e do livro Usos e costumes dos
abitantes (sic) da cidade do Maranhão; dos
Os pioneiros entre brasileiros engenheiros Lago e Albuquerque (1820);
No fim do século 18, o declínio do ouro do brigadeiro Cunha Mattos (1824) e
no Brasil leva a Coroa a novos caminhos seu Itinerário do Rio de Janeiro ao Pará e
(pesquisa por outras plantas, minérios Maranhão, pela Província de Minas Gerais e
e povos a subjugar). O administrador Goiás; do militar Couto Magalhães (desde
português Melo e Castro incumbe o italiano 1861), que realiza estudos sobre indígenas;
Vandelli de enviar três expedições filosóficas do militar Silva Coutinho (1861–1863),
para a África, a Ásia e a Amazônia. Para a que descobre fósseis no Tapajós e guiará a
Amazônia virão o baiano Rodrigues Ferreira, Expedição Thayer.
A Amazônia viajante “até dizer chega”.
A contribuição dos viajantes ao por vir amazônico – do século 16 ao fim do ciclo da borracha
N
Aa c i o n a l
r t í s t i c o
e
i s t ó r i c o

J o ã o M e i r e l l e s F i l h o e Fe r n a n d a d e O. M a r t i n s
H
P
Ra t r i m ô n i o
d o
e v i s t a
Viajantes estrangeiros do Nas outras Amazônias, Holanda,
século 16 à chegada da família Inglaterra e França apoiaram viajantes e
real ao Brasil (1808) mesmo a Espanha o fez, destacando-se
A viagem do cientista francês Condamine Humboldt (1800–1802). Holanda é crítico
e do cartógrafo equatoriano Maldonado é diante do desinteresse português: “(...) difícil
excepcional pelo contexto das proibições a será encontrar, digno de referência, qualquer 87

viajantes estrangeiros. Condamine é pioneiro vestígio da participação do Brasil na batalha


ao descrever espécies da fauna (boto-cor-de- travada pelo homem, em seu esforço para Capela de Nazaré,
próximo ao Pará (Belém).
rosa, peixe-boi) e os conhecimentos indígenas afastar o véu sob o qual esconde a Natureza os Litografia. In: A narrative
of travels on the Amazon
sobre a borracha, o curare (revolucionará a seus segredos” (Holanda, 1982:161, t. 2). É and Rio Negro…, de Alfred
Russel Wallace, 1889
Coleção João Meirelles Filho.
anestesia), o tucupi e o urucum: corroborado por Vanzolini: “(...) com exceção

(...) Não se deve duvidar que a ignorância e o


do grande e completo J. V. B. de Bocage, Cará assú. Aquarela.
Expedição Científica
preconceito multiplicaram e exageraram de muito nenhum zoólogo português de relevo jamais Alexandre Rodrigues
Ferreira (1783 a 1792)
essas virtudes; mas a quinina, a ipecacuanha, a se ocupou da fauna das colônias” (2004:9). Acervo: Fundação Biblioteca
Nacional, Brasil.

simaruba, a salsaparrilha, o guaiáco, o cacau,


a baunilha etc. seriam as únicas plantas úteis
que a America encerra, e a sua grande utilidade
conhecida e comprovada não é de molde a
encorajar a novas rebuscas? (La Condamine,
1944:68).
Os 1808 línguas (e variantes), e propõe incluir o
A Amazônia viajante “até dizer chega”.
A contribuição dos viajantes ao por vir amazônico – do século 16 ao fim do ciclo da borracha
viajantes de ao ciclo

d a b o rr a c h a período pré-cabraliano na História do Brasil,


a c i o n a l

A partir do Congresso de Viena (1815) ao vencer concurso do Instituto Histórico


e de casamentos como o de Dom Pedro e Geográfico Brasileiro – IHGB. Fruto
do mesmo enlace será a vinda do zoólogo
N

I e Leopoldina da Áustria, abrem-se as


r t í s t i c o

fronteiras a viajantes. Pela primeira vez, austríaco Natterer (1825–1835), que viverá
há pessoas desinteressadas que, a partir entre os índios do alto rio Negro e se casará
A

de compromissos com outras partes, são com uma amazonense de Barcelos.


e

treinadas para observar e formar um rico Fundamentais os naturalistas ingleses


i s t ó r i c o

J o ã o M e i r e l l e s F i l h o e Fe r n a n d a d e O. M a r t i n s

patrimônio ainda pouco conhecido (e Bates (1848–1859) e Wallace (1848–1852).


valorizado) por brasileiros. Viajarão pelo vale e o alto Tocantins. “Eu já
H

aprendera por este tempo que a única manei-


a t r i m ô n i o

A “Expedição Literária ao Brasil”, dos


naturalistas bávaros Martius e Spix (1817– ra de alcançar o objetivo para o qual vim a
1820), alcançará espetacular resultado. Sua este país era me acostumar com os modos de
P

obra-prima, Flora Brasiliensis, é a maior sobre vida das classes mais humildes de seus habi-
d o

o tema no Brasil. Envolverá 65 botânicos, tantes” (Bates, 1864:95). Ambos colaboram


e v i s t a

40 volumes, concluindo-se apenas em 1906. com Darwin e assim Bates apresenta a biodi-
versidade dos arredores de Belém:
R

Martius publica o primeiro trabalho sobre


flora medicinal do Brasil (1844) e organiza (...) A diversidade de borboletas, por
o Glossário das línguas brasílicas, com 109 exemplo, quando eu menciono que cerca de

88
700 espécies são encontradas em uma hora de contestador de Darwin (criacionismo x

A Amazônia viajante “até dizer chega”.


A contribuição dos viajantes ao por vir amazônico – do século 16 ao fim do ciclo da borracha
caminhada ao redor desta cidade; enquanto o evolucionismo). Pela primeira vez, teremos
número total encontrado nas Ilhas Britânicas

a c i o n a l
uma mulher, a norte-americana Elizabeth
não excede a 66, ou em toda a Europa não se
Agassiz, coautora do livro A Journey in
encontram mais de 321 espécies (ibid.:71).
Brazil, participando ativamente de uma

Nr t í s t i c o
Dos 14 mil insetos que Bates coleta, viagem. Para Raimundo Morais: “(...) o
metade é nova à ciência. Atento à situação poder crítico da ilustre matrona é tão vivo e

A
social, comenta sobre a Cabanagem e surtos penetrante que dificilmente um balaio, uma

e
esteira, uma cuia (...) lhe escapam” (Morais

i s t ó r i c o
de febre amarela, varíola e cólera: “(...)

J o ã o M e i r e l l e s F i l h o e Fe r n a n d a d e O. M a r t i n s
Como resultado das desordens, o numero de in Meirelles, 2009:147). Também desta
habitantes na cidade diminuiu de 24.500 em participaram o geólogo Hartt, que depois

H
permanece no Brasil, o ilustrador Burkhardt,

a t r i m ô n i o
1819 para 15.000 em 1848” (ibid.:42).
Wallace também faz sua crítica social o estudante William James (mais tarde um
referindo-se a Manaus: dos importantes filósofos da América) e

P
outros estudantes de Harvard. São coletados

d o
(...) os homens trajavam apenas um par 80 mil espécimes.

e v i s t a
de calças; as mulheres, apenas uma tanga; e as
Diferentes expedições se seguirão: do
crianças, nada absolutamente. Vivem da maneira

R
francês Denis (1816–1821); do paleontólogo
mais frugal possível. A princípio, fiquei deveras
francês Orbigny (1826), do canadense Orton
confundido com isso, procurando então descobrir
o que é que comem em suas refeições. Pela manhã
(1867) – expedição do William College/Smi-
muito cedo, cada um come uma cuia de mingau. thsonian; do francês Crevaux (1876–1882)
Ao meio-dia, comem um bolo de farinha seca etc. Entre 1826 e 1829, acontece a contur-
ou um inhame assado; e, à tarde, outra vez uma bada viagem comandada pelo alemão barão
cuia de mingau de farinha ou de banana. Eu de Langsdorff, sob patrocínio do Império
não podia imaginar que realmente nada mais do 89
russo, em que colaboram o desenhista francês
que isso tivessem para comer. Afinal de contas, Florence, o pintor francês Taunay, o botânico
fui obrigado a chegar à conclusão que as suas
Riedel, o astrônomo russo Rubzoff e o caça-
variadas preparações de mandioca e de água é que
dor-empalhador brasileiro Caetano. Essa foi
constituem, na verdade, o seu único alimento.
provavelmente a primeira expedição com pro-
Uma vez por semana, mais ou menos, arranjam
fissionais contratados de diversas partes. Mas,
um pouco de peixe ou uma ave. (2004:223).
em quase todos os casos, há grandes coletas
O inglês Spruce permanece 15 anos de amostras da flora, fauna, minerais, artefa-
(1849–1864) entre o Amazonas e os Andes; tos indígenas e caboclos, cedidos a museus, o
e, ao ouvir falar de Wallace e Bates, vai que permitiu que esses materiais chegassem
a Santarém. Foi o primeiro a descrever aos nossos dias. A quem pertence esse patri-
técnicas de coleta da borracha (Dean, mônio? Essa é uma das questões a discutir.
Trombetas (onça lutando
1989:33). Destacada foi a Expedição Thayer Mesmo que o inglês Wickham (1872– com tamanduá). Gravura
de autor desconhecido.
(1865–1866), que levava o nome de seu 1876) seja o mais conhecido, a busca pela In: The Illustrated London
News, 11 abr.1857, p. 330
financiador e era chefiada pelo suíço Agassiz, borracha é bem anterior. O inglês Gardner Coleção João Meirelles Filho.
(1836–1840), do Royal Botanical Gardens do sobre os povos originais. A vinda do suíço
A Amazônia viajante “até dizer chega”.
A contribuição dos viajantes ao por vir amazônico – do século 16 ao fim do ciclo da borracha

Ceilão, percorre a região. Para Dean: “(...) a Goeldi para dirigir o Museu Paraense é um
a c i o n a l

história da borracha brasileira precisa começar fato notório. Ele formará o primeiro grupo
com o mito, porque tal mito sobrevive, de profissionais da ciência – talentosos
conquistou a imaginação do mundo inteiro, jovens (todos de língua alemã): a zoóloga
N
r t í s t i c o

e é poderoso e maligno. É o mito de Henry alemã Snethlage, primeira cientista mulher


Wickham, o herói inglês, o doador das residente; o botânico suíço botânico Huber;
A

sementes de seringueira” (1989:29). o entomólogo e botânico austro-húngaro


e

O pastor metodista Kidder (1840) Ducke e o geólogo austríaco Katzer.


i s t ó r i c o

J o ã o M e i r e l l e s F i l h o e Fe r n a n d a d e O. M a r t i n s

observa: “(...) Agora que o índio já não


mais pode ser ostensivamente reduzido à Ainda seguem em busca do
H

escravidão, é recrutado para o serviço do Eldorado


a t r i m ô n i o

e outros mitos

exército e da marinha” (Kidder, 1980:186). Mesmo no século 19, segue a procura pelo
Igualmente, assevera Wallace: “(...) Os índios Eldorado: o militar inglês Alexander (1830–
P

que desciam os rios para negociar os seus 1831), realiza duas expedições para o maciço
d o

produtos eram violentamente sequestrados da Guiana, apoiadas pela Royal Geographical


e v i s t a

e coagidos a servir como soldados. A isto Society; o inglês Hilhouse busca o legendário
R

é que chamavam alistamento voluntário” Lago Parime, conforme Raleigh (1831); nos
(2004:83). anos 1830, o francês Adam de Bauve diz ter
Viajantes prestam serviços ao governo encontrado o Eldorado na Serra de Pacaraima;
imperial ou de províncias. Entre eles, o e o célebre coronel inglês Fawcett, que realiza
naturalista francês Brunet, que coleta para cartografia na fronteira Bolívia-Brasil (1906),
o Museu Nacional (1860–1861); o francês regressa em busca da cidade perdida (“Z”) e
Baraquin recolhe materiais no Pará e recebe desaparece com seu filho em 1925. “(...) A
90
o título honorário de Adjunto Naturalista conexão de Atlântida com esta parte do Brasil
Viajante do Museu Nacional, pois este não deve ser descartada de pronto” (Fawcett
não tinha como pagá-lo; o alemão Dodt in Meirelles, 2011:70).
(1873) torna-se um folclorista e se naturaliza
brasileiro; e o botânico Schwake (1874– Os pioneiros brasileiros da

1891). Há, ainda, diletantes: o príncipe ciência

Adalbert da Prússia (1842), na Volta Grande Em 1856 o IHGB organiza a Comissão


do Xingu; o pintor francês Biard (1859); o Científica de Exploração, chefiada pelo
médico alemão Avé-Lallemant (1859). geólogo Silva, com Schüch (barão de
No fim do século 19, ocorrerá um Capanema) e outros. O maranhense
importante conjunto de visitas de etnógrafos Gonçalves Dias dela se destaca para explorar
alemães, iniciadas por Steinen, no Xingu o Amazonas e conviver com os Mawé, Mura
(1884–1888); Ehrenrich (1887–1888) e e Mundurucu: “(...) Precisamos estudar o
Koch-Grünberg (1898–1924). Estes traçam, Brasil nos autores estrangeiros, consultamos
pioneiramente, uma visão mais abrangente suas cartas marítimas até na nossa
navegação de cabotagem” (Dias in Meirelles, Abertura

A Amazônia viajante “até dizer chega”.


A contribuição dos viajantes ao por vir amazônico – do século 16 ao fim do ciclo da borracha
d a n av e g a ç ã o d o

2009:161). rio Amazonas, a b o rr a c h a e

a c i o n a l
Provavelmente, o brasileiro pioneiro demarcações de fronteira

na ciência que visita a região por conta A pressão por uma saída dos Andes
própria seja o médico paraense Castro.

N
pelo Atlântico e os interesses da Inglaterra

r t í s t i c o
Escava no Marajó, incentivando Ferreira e Estados Unidos resultam em nova onda
Penna a se dedicar ao tema. Penna ocupa de viajantes: o naturalista Maw (1828),

A
papel capital na história da ciência, pois, a aprisionado como espião no Brasil; os

e
partir de 1863, comissionado pelo governo

i s t ó r i c o
oficiais da Marinha Britânica Smythe e Lowe

J o ã o M e i r e l l e s F i l h o e Fe r n a n d a d e O. M a r t i n s
do Pará, percorre o estuário e os principais
(1834); e os da marinha norte-americana,
tributários do Amazonas. Visitará diversos

H
Herndon e seu assistente Lard (1851):
sítios arqueológicos no Marajó, inclusive em

a t r i m ô n i o
companhia do diretor do Museu Nacional, (...) Este governo intenciona apoderar-se de
Ladislau Neto. Em 1866, estimulado por certas informações sobre o vale do rio Amazonas

P
Agassiz (Expedição Thayer), criará com (...). Este interesse estende-se não apenas às

d o
colegas uma associação que, a partir de 1871, presentes condições do vale, no que se refere

e v i s t a
se torna o Museu Paraense, hoje Museu à navegação de seus rios, como, igualmente, à
capacidade de cultivo agrícola e à natureza dos

R
Paraense Emílio Goeldi – MPEG.
recursos comercializáveis, sub-explorados, sejam
Imprescindível é o trabalho do botânico
estes agrícolas, florestais, fluviais ou minerais”
Rodrigues: “(...) Quando os seringaes desapa-
(Herndon, 1952).
recerem, o que restará para o Valle do Amazo-
nas?” (1890:51). Ele explora diversas regiões Sua missão estuda a venda de escravos
do vale e grupos indígenas. No Jauaperi dos Estados Unidos: “(...) o Sul pode vendê-
descreve o etnocídio pelos seringalistas sobre los à Amazônia” (Meirelles, 2009:124). 91
os Crichaná (Waimiri-Atroari): “(...) Eram
É, todavia, o crescente interesse pela
caçadores enthusiasmados ante um bando de
borracha que resulta em incontáveis
guaribas! Cada um quiz sua parte na caçada.
expedições para estudar a hidrografia
Apontavam a arma, descarregavam e o pobre
e possíveis ferrovias em trechos
índio cahia no meio de gargalhadas geraes”
encachoeirados: as dos engenheiros alemães,
(1885:17). Em Poranduba Amazonense preo-
os Keller (1867 e 1873); dos norte-
cupa-se em: “(...) registrar estes pequenos
americanos, o coronel Church (1869–1881)
contos do tempo antigo que se referem á na-
tureza do imenso valle do Amazonas, fructos e o arqueólogo Bingham, sendo que este
da observação selvícola” (1890). E se pergunta encontrará Machu-Pichu.
sobre os estudos das línguas: “(...) Onde estão O período da borracha desperta o
as grammaticas ou mesmo os vocabulários interesse dos países amazônicos por suas
destes dialectos que nos deixaram? O pou- fronteiras. Surgem conflitos, exigindo
co que há é feito por viajantes naturalistas” viagens de reconhecimento e expedições
(1892:38). demarcadoras. Muitos dos primeiros
viajantes são relidos. Estudos como os dos brasileira”) e o Peru. Após essa odisseia, seu
irmãos alemães Schömburgk (1835–1844), discurso florescerá como céu estrelado:
financiados pela Royal Geographical Society
(...) A Amazonia selvajem sempre teve o dom
durante expedições à fronteira com a
de impressionar a civilização distante. Desde os
Guiana, terão peso na decisão favorável à primeiros tempos da Colonia, as mais imponentes
Inglaterra na Questão do Pirahara. expedições e solenes visitas pastorais rumavam de
preferencia ás suas plagas desconhecidas. Para la os
O f i m d a b o rr a c h a e p o r mais veneraveis bispos, os mais garbozos capitães
um novo discurso generaes, os mais lucidos cientistas. (...) chegavam
aos rincões solitários, e armavam rapidamente
no altiplano das barreiras as tendas suntuozas da
Duas personalidades registram a sua
Civilização em viajem. Regulavam as culturas;
passagem pela Amazônia e, a partir daí,
puliam as gentes; aformozeavam a terra (Cunha,
nunca mais o discurso do viajante poderá ser
1909:19).
o mesmo: Euclides da Cunha (1909) e Mário
de Andrade (1927). É Cunha quem corta o cordão umbilical
Depois de insistir com o barão do Rio e denuncia a elite local (seringalistas): “(...)
“Nosso primeiro encontro
com os Caripuna (rio
Branco (ministro de Relações Exteriores), a mais poderosa organização de trabalho
Madeira)”. Xilogravura.
Franz Keller-Leuzinger, Cunha assume a chefia de uma partida que ainda engenhou o mais desaçamado
1874 (ca.)
Coleção João Meirelles Filho. demarcadora de limites entre o Acre (“Sibéria egoísmo.” (Cunha, 1986:16). Perceberá a
imensa trama que se forma para sugar da O Turista Aprendiz. Viagem pelo

A Amazônia viajante “até dizer chega”.


A contribuição dos viajantes ao por vir amazônico – do século 16 ao fim do ciclo da borracha
floresta o látex, à custa do íncola (indígena) e Amazonas até o Peru, pelo Madeira até a

a c i o n a l
ádvena (migrantes nordestinos): “É o homem Bolívia, por Marajó até dizer chega é um texto
que trabalha para escravizar-se” (Cunha, fundador e pouco estudado (Andrade, 2015).
1909:69). Em 1936, Mário discursa: “Faz-se

N
r t í s t i c o
Se Cunha corta o cordão, Mário necessário e cada vez mais que conheçamos
de Andrade é quem o cerze. Andrade, o Brasil. Que sobretudo conheçamos a gente

A
mesmo viajando luxuosamente à região, do Brasil” (Andrade in Meirelles, 2009:196).

e
no seu buliçoso etnoturismo, busca a E, conforme seu secretário, Bento: “(...) Nós

i s t ó r i c o

J o ã o M e i r e l l e s F i l h o e Fe r n a n d a d e O. M a r t i n s
voz do povo: “(...) Todos se propõem temos que dar ao Brasil o que ele não tem e
conhecedoríssimos das coisas desta pomposa que por isso até agora não viveu, nós temos

H
Amazônia de que tiram uma fantástica que dar uma alma ao Brasil e para isso todo

a t r i m ô n i o
vaidade improvável, terra do futuro (...). Só sacrifício é grandioso, é sublime” (Andrade,
quem sabe mesmo alguma coisa é a gente 1980:9).

P
ignorante da terceira classe3” (Andrade, Daqui pra frente, uma linhagem de

d o
1976:99). Em 1926, escrevera Macunaíma viajantes de nova estirpe, corajosos, proporá

e v i s t a
inspirado nas pesquisas no Monte Roraima uma nova abordagem sobre a Amazônia.
por Koch-Grünberg. Seu diário e notas Entre os quais Roquette-Pinto, os Villas-Boas,

R
publicados postumamente (1947) como Antonio Callado, Darcy Ribeiro e outros que
No furo de Barcarena
merecem um novo artigo... Bom. Era uma (Manaus) Atirando a
tarrafa, 1927
Foto: Mário de Andrade/
vez, quem quiser conte outra vez... Coleção MA-IEB/USP.
3. Referindo-se às embarcações que ofereciam diferentes
categorias de acomodação.

93
À guisa de conclusão e comentada. A maior parte dos documentos
recomendações de viajantes não está publicada ou o foi
em tiragem restrita, e a maioria dos textos
A partir dos viajantes e seus legados e nunca foi traduzida para o português, algo
que num mundo digital é inconcebível.
94 relações com o patrimônio, seria possível
O norte-americano H. Rice sugeriu ainda
destacar:
que houvesse uma cátedra na universidade
a) Em boa medida, ainda não nos
dedicada aos viajantes, que ele de fato
libertamos da visão eurocentrista lançada
constituiu, em Harvard, mas de forma
sobre a Amazônia – da selva ignota de seres
descontinuada (Meirelles, 2011:67).
perigosos, lugar de gente primitiva. Pior,
c) Os materiais coletados por
seguimos à procura do Eldorado redentor.
viajantes estão em centenas de coleções
b) O conhecimento gerado pelos públicas e privadas no Brasil e exterior. São
viajantes ainda é menosprezado e ignorado. patrimônio da nação brasileira e mereceriam
Poucos se dão conta de que, com todas as ser tombados em seu conjunto por uma
falhas, as expedições estão entre as poucas lei específica. Por experiência própria, são
fontes primárias sobre o período. Ademais, de acesso difícil e boa parte do acervo é
carecemos, por exemplo, de uma Biblioteca mesmo desconhecida. A maioria não está
dos Viajantes na Amazônia que apresente os disponível sequer para consulta digital – algo
principais registros de forma organizada e igualmente inaceitável na atualidade. Pior,
os povos originários, ainda que venham a encosto aos motoristas no estacionamento
reconhecer e eventualmente agradecer a do Itamaraty, em Brasília (DF); o segundo,
guarda desses materiais, merecem conhecê- no jardim da 1a Comissão Demarcadora de
los. Mesmo porque muitos foram surrupiados Limites, sem acesso ao público; e o terceiro,
de forma desonesta, como a máscara de abandonado na Praça Dom Pedro II, ambos
95
Jurupari (Macacaraua) pelo padre franciscano em Belém. Este último se transformou em
Coppi, afinal vendida ao Museu Nacional mictório público porque, mesmo diante do
Pré-histórico Etnográfico Luigi Pigorini, Instituto Histórico e Geográfico do Pará,
Roma, Itália (Stradelli, 2009:19). A sua nada explica sua importância e nem qualquer
disponibilidade por meio digital, réplicas, zelo o protege. Em tempo, à exceção do Mu-
exposições temporárias ou permanentes, seu Goeldi, raros são os museus e equipamen-
doações e repatriação de objetos precisa tos culturais dedicados aos povos originários,
ser tratada como política pública e com a quilombolas ou tradicionais e raros também
participação dos beneficiários – não é uma são os representantes desses povos como cura-
questão apenas de especialistas. dores ou “co-curadores”.
d) Ainda sobre a conservação ex situ, e) Em relação à conservação in situ,
comente-se sobre os três marcos instalados muitas descobertas de viajantes continuam
no século 18, na região do alto rio Negro, e ignoradas, como os sítios arqueológicos do Museu do Marajó, fundado
em 1972. Cachoeira do
retirados. O primeiro encontra-se constran- Marajó (tesos), conhecidos há mais de 150 Arari, Ilha de Marajó (PA),
2014
gido pelos luzentes carrões oficiais e serve de anos, sem que haja um único parque arqueo- Foto: Eric Royer Stoner.
lógico ou similar. A única coleção de visitação Referências
A Amazônia viajante “até dizer chega”.
A contribuição dos viajantes ao por vir amazônico – do século 16 ao fim do ciclo da borracha

pública local, o Museu do Marajó, está em


a c i o n a l

estado crítico. Preferimos fazer currais para ALMADA, Manoel da G. Lobo de. Descripção relativa
ao Rio Branco e seu território. Revista do IHGB, t. 24, v.
búfalos sobre o solo sagrado e aprovar plan-
24, Rio de Janeiro, p. 617-683, abr.1861.
tios de arroz do tipo arrasa-quarteirão! No
N

ALMEIDA. Memória para a história do extincto estado do


r t í s t i c o

litoral paraense (região do Salgado), nenhum Maranhão. Rio de Janeiro: 1874. Disponível em <http://
dos sambaquis e centenas de sítios arqueoló- www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/182849>. Acessado em
5/7/2018.
A

gicos está protegido e, mesmo onde há unida-


ANDRADE, M. de. O turista aprendiz. São Paulo: Duas
e

des de conservação, a situação é precária.


i s t ó r i c o

Cidades. 1976.
J o ã o M e i r e l l e s F i l h o e Fe r n a n d a d e O. M a r t i n s

f ) O patrimônio imaterial dos povos ______. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. 17
tradicionais amazônidas é insuficientemente ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Livraria Martins,
H

1980.
conhecido, valorizado, registrado, tombado e
a t r i m ô n i o

______. O turista aprendiz. Brasília: Iphan, 2015. Dis-


salvaguardado. O tombamento da Cachoeira ponível em <http://portal.iphan.gov.br/uploads/publica-
Iauaretê (onça) nos rios Uaupés e Papuri cao/O_turista_aprendiz.pdf>. Acessado em 5/8/2018.
P

como sítio sagrado daqueles povos, S. Gabriel BATES, Henry W. The naturalist on the river Amazons).
d o

Londres: John Murray. 1864.


da Cachoeira (AM), abre enorme precedente
e v i s t a

BETTENDORFF, João F. Crônica da missão dos padres


e precisa ser replicado em relação aos milhares da Companhia de Jesus no estado do Maranhão. Belém:
R

de locais culturalmente relevantes. A partir Sec. de Estado da Cultura, 1990.


daí é possível estabelecer novas cartografias, CORTESÃO, Jaime. Raposo Tavares e a formação territo-
rial do Brasil. Rio de Janeiro: MEC, 1958.
representando os passados e presentes, e
CUNHA, Euclides da. Á marjem da historia. Porto: Lello
permitir novas leituras dessas Amazônias. & Irmão, 1909.
g) Por fim, comente-se que a forte ______. Um paraíso perdido. Ensaios, estudos e pronuncia-
expansão da Amazônia globalizada das gran- mentos sobre a Amazônia. Organização de L. Tocantins.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1986.
des obras (hidrelétricas, linhões, estradas,
96 D’ABEVILLE, C. História da missão dos padres capu-
ferrovias, aumento da agropecuária, expansão
chinhos na Ilha do Maranhão. Brasília: Senado, 2008.
urbana etc.), que exclui povos amazônidas Disponível em <http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/
tradicionais e promove mudanças ambientais id/221724>. Acessado em 5/7/2018.

definitivas, é que, curiosamente, sustenta DANIEL, João. Tesouro descoberto no máximo rio Amazo-
nas. Rio de Janeiro: Contraponto; Belém: Prefeitura de
a pesquisa científica. E isso sem contar as Belém, 2004. 2 v.
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tural associado. Cite-se a recém-descoberta DEL PRIORE, Mary; GOMES, Flávio dos S. (org.). Os
senhores dos rios. Amazônia, margens e histórias. Rio de
Floresta Amazônica Atlântica, com seus sítios Janeiro: Elsevier, 2003.
arqueológicos, a partir de pesquisa do Museu GALVAO, Eduardo. Santos e visagens. Um estudo da vida
Goeldi e Instituto Peabiru (edital Petrobras religiosa de Itá, baixo Amazonas. São Paulo: Nacional,
1953.
socioambiental), que já nasce ameaçada. Tere-
FRANÇA, Jean M. C.; RAMINELLI, Ronald. Andanças
mos que “tombar” a chuva da tarde de Belém
pelo Brasil colonial. São Paulo: Unesp, 2008.
para garantir que as mudanças climáticas não HERNDON, W. L. Exploration of the valley of the Ama-
terminem por levá-la para sabe-se lá onde? zon. Nova York: Mcgraw-hill, 1952.
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A Amazônia viajante “até dizer chega”.


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até o Tratado de Santo Idelfonso (1777). Belém: Museu

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R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

98
Ana Pizarro O trânsito da oralidade para a escrita amazônica latino-american
Ana Pizar ro

a c i o n a l
O trânsito da oralidade para a escrita

amazônica latino - americana 1

N
r t í s t i c o
Para Ottmar Ette

A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
Essa reflexão surgiu há 25 anos, quando suas conexões culturais nos permitem, e por
estávamos pensando em uma história da vezes nos exigem, pensar a totalidade tal
literatura latino-americana. Como fazer uma como a desenvolvi em um trabalho anterior.

P
reflexão histórica sobre essa literatura sem Também me referi anteriormente a uma

d o
considerar que envolve, pelo menos, três

e v i s t a
das características constitutivas da chamada
sistemas literários paralelos, cada qual com “literatura” do continente como à de um

R
suas especificidades? Talvez fosse o caso de se conjunto de sistemas que expressa as fratu-
pensar em um livro com páginas divididas ras – econômicas, sociais, do imaginário –
em seções? Como nós ocidentais, ainda que próprias de uma história cultural periférica.
mestiços, poderíamos fazer uma história do É nessa base que desenvolverei a reflexão a
discurso indígena? E mais, que sentido de
seguir. Mas ela se constrói simultaneamente
história e de tempo têm os indígenas?
na consideração do entrelaçamento cultural
Decididamente não podemos e nem nos
latino-americano como se fosse uma tra- 99
compete fazê-lo. Mas, sim, o que podemos
ma. Tendo a pensar nessa trama como a de
historiar são os modos e os momentos
um cesto, do mesmo modo que os povos
em que o discurso, a cultura indígena são
indígenas muinane concebem aspectos da
apropriados pelo Ocidente. É sobre isso que
realidade complexa falando de “um cesto de
refletiremos no presente trabalho: sobre as
trevas” ou um “cesto de vida” para conter no
narrativas amazônicas.
trançado a complexidade de seus sentimen-
Quando penso na Amazônia, só posso
concebê-la no todo, ou seja, na denominada tos. Essa trama estaria constituída por fluxos
Pan-Amazônia. Quer dizer, embora meu externos, apropriações e movimentos entre
objeto de reflexão seja amplo, acredito que um e outro sistema literário.
Nesse caso, percebo, no processo literário
amazônico, algumas relações entre o sistema
1. Este texto foi publicado no IX Simpósio Linguagens e popular oral, o sistema indígena e o sistema
Identidades – Línguas e literaturas indígenas, 2015, Universidade Yanomami do rio
Cauaburi,
Federal do Acre – Ufac e também em BUSCHMANN, Albrecht et ilustrado. O que chamamos de literatura alto rio Negro (AM),
al. (orgs.) Literatur leben. Festschrift für Ottmar Ette. Madri: Ibero- 2018
americana; Frankfurt: Vervuert, 2016. amazônica implica a coexistência desses três Foto: Renato Soares.
Piauhy/O rigor do Amazonas, de 1916,
O trânsito da oralidade para a escrita amazônica latino-american

escrito no momento da decadência do


a c i o n a l

período da borracha, quando o capital


inglês desloca-se da Amazônia em direção
às propriedades asiáticas, restando para os
N
r t í s t i c o

trabalhadores, espalhados em diferentes


sistemas, dessas três formas do discurso
ofícios, desempregados ou de regresso para o
que são paralelas, que se sobrepõem: umas
A

Nordeste, o gosto amargo ali experimentado:


hegemônicas, outras “invisibilizadas” por
e
i s t ó r i c o

situações históricas de inferiorização social. Vou manifestar ao público


Cada um dos sistemas (oral, indígena e Um pouquinho da história
Da vida do Amazonas
H

ilustrado) apresenta um receptor diferente,


a t r i m ô n i o

O que gravei na memória


individual ou coletivo: leitor(es), ouvinte(s)
Aonde estive seis anos;
ou expectador(es). Também um suporte
Fui feliz contar vitória.
distinto: livro, oralidade, performance. Isso
Ana Pizarro
P
d o

significa também um emissor diferente: Lá bebi gota de fel,


e v i s t a

escritor ou narrador oral, com toda a Daquele bem amargoso,


diferenciação que isso implica. Dei graças a Deus sair,
R

O sistema popular está representado por Me julgo bem venturoso;


vários gêneros, musicados ou não: o desafio 2 Hoje sei que o Amazonas
ou a literatura de cordel, entre outros. A É um sonho vil, enganoso!

literatura de cordel tem em grande parte


Trata-se, nesse caso, de uma poesia em
procedência na migração que ocorre na
heptassílabos. Existem diversos gêneros
segunda metade do século 19 e começo
na área das súcias ou dos pagodes, às vezes
100 do 20, assim como entre os anos 1940 e
cantadas e dançadas com tambores, em
1945 do século passado, provocada pelo
geral, depois das ladainhas cantadas ao lado
Ciclo da Borracha e pela chamada Batalha
de capelas e igrejas. Também encontramos
da Borracha, durante o segundo governo
rodas e muita poesia que se canta ao som
Vargas. Como sabemos, foram atraídos
dos pandeiros e violas, poesia memorizada
enganosamente, para a região amazônica,
ou criada. Com gêneros e temas de origem
trabalhadores procedentes do Nordeste do
nordestina, com ritmos portugueses e
Brasil que sofriam com a seca. Essa situação
africanos, o universo do sistema literário
de deslocamento dará a tônica da literatura
popular na Amazônia é complexo,
de cordel.
assim como no Nordeste, e também se
Como exemplo da produção inicial
observam figuras do panteão popular
desse gênero literário na Amazônia, leio
deste último, como é o caso da história
para vocês trecho do texto Despedida do
da Donzela Teodora, por exemplo. Com
seus componentes históricos, suas imagens
2. Nota do tradutor: como o dos repentistas do Nordeste
brasileiro. lendárias, sua dimensão nostálgica, essa poesia
musicada se mistura em suas origens com incorpora o texto visual e oralmente, visto

O trânsito da oralidade para a escrita amazônica latino-american


sons e danças de natureza europeia como a que sua exposição é performática.

a c i o n a l
quadrilha. De todos, o cordel e a cantoria Assim, um segundo sistema próprio
são os gêneros nordestinos reconhecidos dessa área cultural é o das chamadas
como tais no Amazonas, cuja importância é “literaturas indígenas”. Atualmente se fala

N
r t í s t i c o
maior durante o período da borracha – nas em etnoliteratura e etnotexto. Na realidade,
primeiras décadas do século 20 -, a ponto de sabe-se que “literatura” indígena não é uma

A
existir uma editora em Belém e em outros denominação adequada, mas, na falta de

e
lugares, a famosa Guajarina, que difunde os outra terminologia melhor, a utilizamos.

i s t ó r i c o
saberes dos imigrantes vindos do Nordeste. Aqui, nesse sistema literário indígena, a
Como sabemos, esse gênero está vigente situação também é complexa: as línguas são

H
e atualmente é objeto de estudos acadêmicos. diferentes entre si, os gêneros são distintos

a t r i m ô n i o
Contudo, acredito que aqui se apresenta daqueles que aparecem no sistema popular
um primeiro problema: o que chamamos e no erudito, sua função também é outra –

Ana Pizarro
P
de “popular”? Como sabemos, o termo há cantos de trabalho, ritualísticos, canções

d o
se refere também às culturas midiáticas, de ninar, por exemplo -, trata-se de objetos

e v i s t a
no que se denomina de “música popular auditivos estéticos variados, que estão

R
brasileira”. Não entrarei nessa questão, mas destinados a um público não ocidental e,
a pergunta é: podemos falar do popular e do quando nos chegam, necessariamente mudam
indígena como um mesmo objeto? O certo de fisionomia.
é que quando o indígena entra no terreno Observemos tal situação. A mudança
da ilustração, o que socialmente realiza se dá, inicialmente, do oral para o escrito
na periferia das cidades, se incorpora em porque significa o congelamento de um
outros âmbitos que o subjugam, quer dizer, material que está em constante movimento e
101
quando é apropriado pela cultura erudita transformação, apesar da índole conservadora
toma distintos perfis. Referiremo-nos a isso da tradição. Nesse primeiro nível, é possível
mais adiante, porque hoje nos interessa pensar num texto dos Desana, publicado por
analisar como a literatura ocidental absorve integrantes desse povo, que nos abre para
literariamente as culturas indígenas. um novo saber sobre sua cosmogonia. Nela
Consideramos as culturas indígenas se aprende, por exemplo, que uma mulher
como um sistema à parte dentro daqueles deu origem à existência e percebe-se como
que constituem a voz literário-cultural da o mito cumpre sua função ordenadora do
Amazônia, no sentido de que se trata de universo, apesar de seus conflitos e tensões.
emissores diferentes: um poeta ou orador, Ordenadores de um mundo que possui
uma textualidade, objeto de análise oral uma lógica diferente da ocidental, na qual a
– raramente em suporte escrito e não oposição pode não ser contraditória e pode
necessariamente em escrituras alfabéticas conviver; na qual os tempos se sobrepõem
– em diversas línguas não europeias. e mostram um desenho variado; na qual a
Finalmente, envolve um receptor coletivo que relação entre os homens e a natureza, e entre
eles mesmos, possui uma vinculação fluida questão após os textos da Negritud, realizando

O trânsito da oralidade para a escrita amazônica latino-american


que desconhecemos no Ocidente. Transcrevo grandes discussões e propostas com autores

a c i o n a l
a seguir a voz desana: como Edouard Glissant, Patrick Chamoiseau
e sua tese sobre a créolité. Ou seja, trata-se de
No princípio, o mundo não existia. As trevas
uma discussão produtiva, que tem a ver com

N
cobriam tudo. Enquanto não havia nada, apareceu

r t í s t i c o
definições de sentido e função da literatura e
uma mulher por si mesma. Isso aconteceu no meio
das trevas. Ela apareceu sustentando-se sobre o que deu bons resultados.

A
seu banco de quartzo branco. Enquanto estava Mas o texto desana não é comum, por

e
tratar-se de um sistema literário. Em geral,

i s t ó r i c o
aparecendo, ela cobriu-se com seus enfeites e fez
como um quarto. (...) Ela se chamava Yebá Buró, a o texto indígena não chega à impressão, isto
“Avó do Mundo” ou também “Avó da Terra”. é, constitui um saber regido por códigos de

H
oralidade e não alcança a plenitude atribuída à

a t r i m ô n i o
O texto citado se encontra no livro
forma escrita. É, portanto, uma outra maneira
de Marcos Frederico Krüger Amazônia:
de se relacionar com os outros e com o mundo.
mito e literatura. Esse pensamento tem

Ana Pizarro
P
A oralidade chega excepcionalmente à escrita e

d o
início na segunda metade do século 20,
esta, necessariamente, a distorce. No entanto,

e v i s t a
quando começa a ser aceito o desafio
essa alteração é mais sentida quando há um
da escrita alfabética impressa para as

R
intermediário, seja sacerdote, informante,
produções indígenas, na medida em que escritor, antropólogo, sobretudo quando
esses povos foram tendo o contato com é necessário fazer a tradução. Penso, por
o mundo ocidental que a modernidade exemplo, no caso mexicano, nos informantes
lhes havia negado. Sua existência evolui de Sahagún, mas também na magnífica
até um princípio de reconhecimento, em obra de León-Portilla para o trabalho do
razão de uma luta histórica entre eles e a náhuatl ou das línguas maias, assim como
sociedade ocidental, mas em situação de 103
o de Roa Bastos para o guarani. São textos
subordinação. Evidentemente que isso que para chegar até nós – não ocidentais,
implica em importantes decisões: escrever mas ocidentalóides – necessitam passar
é aceitar a língua como alfabeto, umas das por uma mediação. Os temas têm ligações
mais recorrentes formas de exercer poder entre as diferentes literaturas na medida da
sobre eles. Mas, ao mesmo tempo, instalar relação do criador com o mundo natural, no
a memória indígena em toda a sociedade surgimento dos conteúdos cosmogônicos, às
constitui um modo de resistência efetivo. vezes na perspectiva histórica, às vezes mítica,
É o conflito que as literaturas enfrentaram como sabemos. Nessa literatura, conforme
após a descolonização na África dos anos observou o pesquisador colombiano Hugo
1960 e, assim, viram um desenvolvimento Niño no seu livro El etnotexto: las voces del
poderoso do romance, com autores asombro, para o caso dos Witoto, a capacidade
magníficos como Wole Soyinka, Pepetela, simbólica desse pensamento codifica a história Ritual de dança dos
Kayapó Kuben-Krân-Krên,
Mia Couto ou Ahmadou Kourouma. A em termos míticos. É o que escreve para a sul do Pará, 1957
Foto: José Medeiros/ Coleção
literatura do Caribe também confrontou a narração de Gitoma e a absorção mítica da Instituto Moreira Salles.
tragédia da borracha com o episódio da Casa Que na sua trajetória
O trânsito da oralidade para a escrita amazônica latino-american

Arana, em Putumayo. Significa dizer que se De crimes, os mais horrendos,


Não há no mundo memória.
a c i o n a l

está falando de um sistema literário de grande


complexidade.
Nem a Calábria famosa
Contudo, conforme desenvolvemos
N

Na história de crimes tantos


r t í s t i c o

em outros trabalhos, esses sistemas, que


Deu bandoleiros famosos
possuem um perfil bastante definido, não E de tão rudes encantos
A

são fechados. Eles respondem a formas do Como o célebre bandido


e

imaginário da vida social e, em razão disso,


i s t ó r i c o

Que foi rei de quatro cantos.


expressam suas fraturas, suas tensões, suas
O sistema indígena é, em princípio,
transformações, seus movimentos, enfim...
H

menos permeável enquanto literatura


a t r i m ô n i o

Trata-se de sistemas com maior ou menor


propriamente dita. Em geral, não se apropria
grau de permeabilidades e isso permite a
existência de uma circulação entre eles, regida de elementos de outros sistemas. Apesar
Ana Pizarro

de atualmente começar a fazê-lo, dado que


P

geralmente pela dinâmica de poder dentro


d o

da sociedade. Eles absorvem e transformam, existe desde o fim do século 20 uma nova
e v i s t a

apropriando-se de elementos, temas e perspectiva por parte dos povos indígenas,


que já contam com profissionais que se
R

problemas de outros sistemas culturais. O


sistema popular, por exemplo, se apropria expressam a partir da escrita e através de
criativamente de conteúdos eruditos, bem recursos ocidentais. Porque, ainda que, a
como toma para si conteúdos do sistema princípio, isso se restrinja ao plano literário,
da cultura de massa, o midiático. Muitos os povos indígenas, como sabemos, sofrem
dos relatos da literatura de cordel atual se culturalmente um violento processo de
utilizam de histórias e problemas da televisão ocidentalização que só hoje parece estar sendo
104 discutido em larga escala, com a aparição dos
ou dos jornais, interpretando-os dentro de
uma perspectiva e linguagem populares. É o últimos grupos indígenas não contatados da
que assinala o pesquisador Vicente Salles, em Amazônia peruana.
Repente e cordel: literatura popular em versos O sistema ilustrado, ao contrário, com
na Amazônia, com relação às notícias sobre a escrita e o livro, bem como os meios
Lampião que já se publicava em 1926 no tecnológicos atuais, permite apropriações dos
jornal Folha do Norte. dois sistemas anteriores. Geralmente, ele não
se situa no campo do formal, mas aponta
Embora tratando-o como bandido violento para o terreno do enunciado, para os temas e
e sanguinário, o seu folheto (o de Arinos em
problemas que essas literaturas evidenciam,
Guajarina) já traduz o mito de suas façanhas
e é centralizado no sujeito e na sua relação
grandiosas e horrendas:
com o mundo. A questão que se coloca é: de
Eis aqui descrita a grande que modo a literatura ocidental se expressa
E mais completa história ao mundo indígena? A história dessa relação
Do maior dos bandoleiros é longa, conflitiva e está cheia de silêncios.
Além disso, existem muitas dificuldades para indígena e a congelam na escrita, como um

O trânsito da oralidade para a escrita amazônica latino-american


alcançar a autenticidade do objetivo proposto. legado do saber de povos que historicamente

a c i o n a l
O texto desana que mencionamos no não tiveram direito à palavra no universo oci-
começo, Antes o mundo não existia, parece dentalizado de suas nações. A escrita congela
ser a forma mais direta com a qual a escrita um movimento, mas simultaneamente permi-

N
r t í s t i c o
ocidental recorre ao imaginário cosmogônico te múltiplas leituras, ou seja, lhe proporciona
indígena. É o relato de um pai ao seu filho, outra dimensão de vida.

A
ou seja, trata-se de uma comunicação entre Além desse tipo de intermediação,

e
pares. Portanto, o pensamento original para conseguir uma autenticidade maior,

i s t ó r i c o
estaria quase inalterado pela presença só existem aqueles que incorporam o
do interlocutor e ambos aparecem como pensamento mítico, deslocados de sua

H
autores. É uma vinculação direta, antecedida expressão original, como os fragmentos

a t r i m ô n i o
pela oralidade. Evidentemente há um recolhidos por Priscila Faulhaber em O lago
trabalho de edição envolvido: alí não estão dos espelhos, na Amazônia brasileira. Trata-se

Ana Pizarro
P
as marcas explícitas da conversa: as dúvidas, nesse caso de um trabalho antropológico.

d o
os silêncios, as perguntas. O trabalho dos antropólogos tem sido o de

e v i s t a
Em um segundo nível entre a oralidade mediação, de caráter distinto e com diferente

R
e a ficção literária erudita está o relato oral sentido e, como sabemos, seu papel tem dado
intermediário feito por um interlocutor. lugar a importantes discussões durante o
Nesse caso, há um interlocutor de formação século 20.
ocidental ou profissionais, como o antropó- A ficção que incorpora as vozes indígenas,
logo, o professor, o pesquisador em geral. seu imaginário, ou inclusive o sujeito de seu
Nesse caso, encontra-se a publicação de Hugo enunciado, que é o mais comum, tem seu
Niño Literatura de Colombia aborigen: en pos antecedente em um poema épico amazônico
105
de la palabra. Ali, um grupo de profissionais chamado Muhuraida ou o triunfo da fé, de
recorre à voz e aos relatos de distintas etnias, autoria do militar português Henrique J.
incorporando grupos amazônicos dos Witoto. Wilkens, cujo manuscrito data de fins do
Para além da vontade, do cuidado e da valiosa século 18. Nele o autor narra a conversão
intenção de divulgar o imaginário do mundo religiosa da etnia Mura ao protestantismo.
indígena que está oculto, temos que consi- Nesse momento, se coloca um outro
derar que aqui sempre há a mediação, e toda problema: o da delimitação do objeto de
mediação, ainda que mínima, altera a postura análise. O que será considerado como
do narrador, imprime um selo de interlocu- literatura amazônica: aquela que se escreve
ção ao seu imaginário, além do trabalho de a partir do território amazônico e por quem
edição sobre o texto original falado. Ali não a ele pertence, ou também a literatura que,
estão os gestos, os deslocamentos, as inflexões com tema amazônico, se escreve fora do
de voz, tudo o que implica na performance da território? Porque, tal como salientávamos em
fala. No entanto, são textos que resgatam e uma publicação anterior, essa área, que possui
valorizam, na medida do possível, a oralidade excelentes escritores como Inglês de Souza,
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

106
Ana Pizarro O trânsito da oralidade para a escrita amazônica latino-american

Foto: Renato Soares.


Construção da canoa

Wayana, aldeia Bona


pelos Aparai (Apalai) e

(Karapaeukuru), Pará, 2015


R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
107

Ana Pizarro O trânsito da oralidade para a escrita amazônica latino-american


Dalcídio Jurandir, atualmente Márcio Souza do celta (2010). Ali ele tenta descrevê-los,
O trânsito da oralidade para a escrita amazônica latino-american

ou Milton Hatoum, é fortemente mítica para mas, com sensibilidade paternalista, termina
a c i o n a l

fora de suas fronteiras, inclusive dos países propondo um simulacro, em que aparecem,
que a formam. Isso faz com que também sem perfil difinido, do mesmo modo como
exista uma literatura de tema amazônico faz com os seringueiros no Congo. Em alguns
N
r t í s t i c o

muito importante. É o caso de José Eustasio casos narrativos, a ficção atinge grande valor
Rivera, com a obra La Vorágine (1924), estético, como em La Vorágine, citada obra
A

que esteve na região em uma comissão de de Rivera, também a respeito do universo dos
e

fronteiras enviada pelo governo colombiano; seringueiros. Mas a perspectiva externa nem
i s t ó r i c o

do mesmo modo Euclides da Cunha no sempre é feliz e é a que imprime um selo a


Brasil, que, com referência a isso, escreveu uma importante produção narrativa sobre
H

aqueles ensaios belíssimos que se conhecem o tema no Peru, Bolívia e Colômbia. No


a t r i m ô n i o

como À margem da história. É o caso de Brasil, esse perfil pode ser atribuído ao grande
Macunaíma (1928), relato clássico de Mário escritor Márcio Souza, em Mad Maria, que
Ana Pizarro
P

de Andrade, que visitou a região e escreveu a relata a história da estrada de ferro Madeira-
d o

partir de um estudo antropológico. É o caso Mamoré. Caso exatamente oposto é o do


e v i s t a

de Darcy Ribeiro e sua novela Maíra (1996), escritor boliviano Diómedes Pereyra. Trata-
R

entre tantos outros. Assim, apesar do bem se neste último da folclorização, que é uma
vasto campo que se observa, seria necessário forma de subjugação do indígena.
ampliar ainda mais o espectro e se reportar à A outra forma de integração e expressão
literatura de tema amazônico. da cultura indígena se encontra em um
Nesse ponto, a incorporação do sistema tipo de narrativa que rompe o esquema
popular, assim como a do sistema indígena, linear e sai da voz tradicional que se refere à
encontra um caminho similar. vida dos grupos, o indivíduo e sua cultura.
108
De um lado, existe uma narrativa Trata-se da narrativa que, como Macunaíma
que se apropria de temas e problemas do ou Maíra, busca expressar uma lógica
universo popular e indígena, mas não o alternativa. Parece-me que o resultado
incorpora como voz. Há, em alguns casos, a mostra uma coerência que o leitor percebe
ficcionalização da fala popular, a imitação sem como sendo de outra forma de vida, a qual
incorporação real. Grande parte da narrativa somente se acessa por intermédio de uma
sobre a borracha, observável principalmente transposição da linguagem e das estruturas
na Colômbia e na Bolívia, segue uma narrativas. Observo, como um caso especial,
construção linear tradicional, que se vale uma novela pouco conhecida, reimpressa
de uma visão externa. No Peru, o foco no há pouco no Peru, Las tres mitades de Ino
tema amazônico se verifica com Ciro Alegría Moxo y otros brujos de la Amazonía, de
em A serpente de ouro (1935), por exemplo. Cesar Calvo, autor nascido em Iquitos, em
Atualmente, é a percepção que Mario Vargas 1940, falecido em 2000. Desde o título,
Llosa oferece do mundo dos seringueiros em entramos em outra esfera de compreensão da
sua novela sobre Roger Casement, O sonho realidade. De fato, grande parte do livro foi
2015
Foto: Marcela Bonfim.
Parque Nacional dos
Entidade Samaúma, a
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
109

Campos Amazônicos (AM),


maior árvore da Amazônia.
Ana Pizarro O trânsito da oralidade para a escrita amazônica latino-american
escrita a partir de visões da ayahuasca. plurais da existência. Essas possibilidades
O trânsito da oralidade para a escrita amazônica latino-american

É uma composição fragmentada que são oferecidas pela vivência da selva em sua
a c i o n a l

mostra, já nos anos 1970, a fratura múltipla relação com a experiência indígena, nesse
de uma sociedade e uma cultura, assim caso em Ucayali. Ino Moxo é uma novela-
como uma compreensão da vida que se poema que também é entrevista e reflexão.
N
r t í s t i c o

situa em diferentes níveis de percepção e E é importante sua descaracterização como


em que a natureza entra em comunicação gênero literário, outra forma sua de alterar a
A

fluida com os seres humanos. Calvo não experiência convencional ocidental. Dentro
e

pretende outra coisa senão colocar diante dos múltiplos relatos, como o da matança
i s t ó r i c o

de nós, na medida de nossa capacidade de dos Ashaninka na Gran Pajonal, de Don


compreensão, espaços diversos e formas de Juan Tuesta e os outros pagés, Cesar Calvo
H

relação do mundo indígena com a vida que nos introduz a esse mundo com a história
a t r i m ô n i o

os ocidentais não alcançam. Para tal, nos do menino Aroldo, que desapareceu quando
coloca diante das reflexões de quatro pagés um tigre rondava a casa e o viram convertido
Ana Pizarro
P

amazônicos e nos situa no Peru histórico de em Chullachaqui, o personagem do bosque


d o

momentos distintos, dentre eles o das lutas com um pé defeituoso. Então, explica Don
e v i s t a

políticas dos anos 1970. O crítico literário Juan Tuesta:


Antonio Melis observa, no prefácio dessa
R

Un chullachaki es más, no el demonio del


obra (1981), que ali os guerrilheiros se
bosque, aquel espanto que las gentes creen, no.
enfrentam em duas formas de ver o mundo e Existen otras clases. Un chullachaki es idem que
duas concepções de tempo que lhes impede persona. Más es y menos es: apenas apariencia
a comunicação. de persona.¿Me estás entendiendo cuando digo
Em uma manobra poética de grande apariencia? El maestro Ino Moxo puede crear así
alcançe, Calvo é dois e um ao mesmo personas que no son y que sí son personas, demasiado
110 tempo, em um desdobramento que mostra y muy poco, siempre considerando lo bastante y
lo menos de las gentes dentro de su normal, en su
a complexidade do universo onde a unidade
costumbre ¿me estás entendiendo?
se revela na pluralidade social, o eu que
é ao mesmo tempo o grupo: o “yosotros” A novela de Cesar Calvo, como
que, diz ele, constrói uma cosmologia em relato da alteridade, não é somente a
movimento de passado, presente e futuro, introdução de termos do mundo indígena
diferente da ocidental. Inicia, assim, o ou a incorporação de seus mitos, é uma
leitor na aposta de que a utopia não é o construção em nível poético de uma
impossível, mas que existem possibilidades linguagem narrativa que incorpora outra
de construir um mundo no qual a viagem forma de ver o mundo, que nos descentraliza
para dentro de si mesmo encontra, em o equilíbrio do universo que acreditamos
seus desdobramentos, os outros. Relato de habitar, que nos coloca diante de uma
desdobramentos e metamorfoses, aponta estrutura estética absorvente, para nos
Antonio Melis. Um mundo no qual a situar na possibilidade de outra maneira de
experiência abre a entrada para universos experimentar a vida, submersos em valores
O trânsito da oralidade para a escrita amazônica latino-american
N
A
Ha c i o n a l
r t í s t i c o
e
i s t ó r i c o
a t r i m ô n i o

Ana Pizarro
P
Rd o
e v i s t a
solidários com a natureza, com o mundo, Referências
com o homem.
Quis me referir a esse texto porque AMARAL, Firmino Teixeira do. Despedida do Piauhy/O
rigor do Amazonas. Belém: Typ. Delta - Casa Editora,
creio que a única maneira que a experiência
1916.
ocidental possui para recupar literariamente
CALVO, Cesar. Las tres mitades de Ino Moxo y otros
os valores e cosmologia do mundo indígena brujos de la Amazonía. Iquitos: Proceso Editores y
amazônico é pela construção de uma Editorial Gráfica Labor, 1981. 111

linguagem e uma estrutura alternativas, FAULHABER, Priscila. O lago dos espelhos. Belém:
Museu Paraense Emílio Goeldi, 1998. Coleção Eduardo
como fez Guimarães Rosa com o sertão de
Galvão.
Minas Gerais ou José Maria Arguedas com a
HUGO, Niño. El etnotexto: las voces del asombro. Cinco
cosmovisão quéchua. Uma estrutura literária siglos de búsqueda y evitación. Havana: Casa de las
que respeite a existência da literatura Américas, 2008.

indígena como um sistema próprio do qual, HUGO, Niño. Literatura de Colombia aborigen: en pos
de la palabra. Bogotá: Instituto Colombiano de Cultura,
a partir de nós, só é possível entregar uma Índios Kobéua e Koróa...
1978.
In: Indianertypen aus
versão altamente simbólica. Além disso, KRÜGER, Marcos Frederico. Amazônia: mito e dem Amazonasgebiet:
nach eigenen aufnahmen
a oralidade necessita seguir seu caminho literatura. Manaus: EditoraValer, 2011. während seiner reise in
Brasilien, de Theodor
e eventualmente ser estimulada, como MELIS, Antonio. “Prólogo a la edición italiana”. In: Koch-Grünberg (1872-
1924), em que Mário
salienta José Bessa Freire, através das novas CALVO, Cesar. Las tres mitades de Ino Moxo y otros de Andrade encontrou
brujos de la Amazonía. Iquitos: Proceso Editores y o registro do mito de
tecnologias. São sistemas diferentes, cada Editorial Gráfica Labor, 1981.
Macunaíma, inspirador
de sua obra-prima
Macunaíma. O herói sem
um com sua vocação e sua função dentro de SALLES, Vicente. Repente e cordel: literatura popular em nenhum caráter, 1928
Acervo: Fundação Biblioteca
nossas sociedades. versos na Amazônia. Rio de Janeiro: Funarte, 1985. Nacional, Brasil.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

112
Ana Pizarro O trânsito da oralidade para a escrita amazônica latino-american
Acervo Iphan.
Mamoré (RO)
Foto: Dana Merrill/
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

Estrada de Ferro Madeira-


113

Ana Pizarro O trânsito da oralidade para a escrita amazônica latino-american


R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

114
M a n u e l Fe r r e i r a L i m a F i l h o Cidadania patrimonial – da inclusão à negação do mito da nação
Manuel Fer reira Lima Filho

a c i o n a l
C idadania patrimonial – da inclusão à negação

do mito da nação 1

N
A
H r t í s t i c o
e
i s t ó r i c o
a t r i m ô n i o
Do pat r i m ô n i o à e nos demais países da América Latina,
cidadania bem como da África, a temática da raça,
etnia, gênero, violência e subalternidade

P
vulcanizam um passado de concepções e

d o
Tenho pensado sobre o tema do

e v i s t a
patrimônio cultural, seja na sua dimensão práticas colonialistas. E a ação do antropólogo
acadêmica, por meio de aulas, orientação certamente não se esquiva do enfrentamento

R
de alunos, coordenação de pesquisas das questões políticas diretamente
institucionais e na constituição da rede relacionadas aos assuntos dos direitos
de antropólogos da Associação Brasileira humanos, da justiça social e da democracia.
de Antropologia – ABA, seja por meio de Com o patrimônio não pode ser diferente.
atuação extramuros acadêmicos, tais como Partindo dessa perspectiva, o conceito
na elaboração de relatórios técnicos de que tenho nominado cidadania patrimonial
consultoria, oficinas de educação patrimonial, merece agora, diante dessa minha trilha 115
ou na feitura de dossiê com a temática do profissional, uma narrativa por meio da
patrimônio imaterial. escrita, um dos vetores que compõem o ofício
Perspectivado a partir do lugar de fala do
do antropólogo (Cardoso de Oliveira, 2000).
saber fazer do antropólogo, produzi algumas
Ronaldo Rosaldo (1997), participando
reflexões a respeito da interação e fricção
de um grupo de estudos a respeito da
do conceito antropológico de cultura e do
situação dos latinos nos Estados Unidos em
patrimônio cultural2.
que se operacionalizaram conceitos como
Os anos de atuação profissional com o
identidade, multiculturalismo e cidadania
tema me incentivaram a buscar um diálogo
cultural, ponderou que, se por um lado a
entre o repertório teórico (conceito) e a
noção de cidadania é compreendida como
prática (técnica) da antropologia. No Brasil
um conceito universal, quando todos os
1. Esta é uma versão atualizada de um trabalho denominado cidadãos de um Estado-nação particular Mairaw acende o cigarro
Cidadania patrimonial (Lima Filho, 2015). petymahow durante o
são iguais perante a lei, por outro lado é Karuwara, o principal ritual
2. Cf. Lima Filho (2009, 2012, 2013, 2015) e Lima Filho & dos Aikewara, Pará, 2015
Silva (2012). preciso distinguir o nível formal de uma Foto: Orlando Calheiros.
teoria universal3 para um nível substantivo Aqui vale lembrar as ponderações de Ma-
Cidadania patrimonial – da inclusão à negação do mito da nação

de práticas de exclusão e marginalização rilena Chauí (2006) advindas da sua experiên-


a c i o n a l

diretamente relacionadas às questões de cia na Secretaria de Cultura de São Paulo como


raça, gênero e classe. Ele adianta que a gestora da política estadual relacionada aos
contemporânea política de cidadania deve suportes da memória e do patrimônio cultural.
N
r t í s t i c o

necessariamente levar em conta o papel O desafio foi romper com a concepção histo-
que os movimentos sociais têm exercido ricamente construída em que o poder público,
A

no sentido de reclamar por direitos, tendo enquanto sujeito cultural e, portanto, produtor
e

em vista novas áreas de atuação como o de cultura, determinava “para a sociedade for-
i s t ó r i c o

feminismo, os movimentos negro e indígena, mas e conteúdos culturais definidos pelos gru-
a ecologia e as minorias vulneráveis como pos dirigentes, com a finalidade de reforçar a
H

sua própria ideologia”. O uso de comunicação


a t r i m ô n i o

as crianças (Rosaldo, 1997:27). Enquanto


Hall & Hell (1990 apud Rosaldo) advertem de massa era utilizado pelos órgãos culturais
para um crescente quantitativo da cidadania com o intuito de operar e produzir uma cultu-
M a n u e l Fe r r e i r a L i m a F i l h o
P

cultural, para Rosaldo tal expansão é marcada ra oficial, exposta nacional e internacionalmen-
d o

pelo seu caráter qualitativo, porque a ideia te, sendo que a autoridade e o monumental
e v i s t a

de cidadania é atravessada pela noção de eram marcas de uma tradição autoritária


R

cultura: “How we need to understand the way (Chauí, 2006:47). A hegemonia de tal tradição
citizenship is informed by culture, the way provocou em Marilena Chauí a indagação a
that claims to citinzenship are reinforced or seguir. “As políticas de patrimônio histórico,
subverted by cultural assumptions and practices” cultural e ambiental estariam condenadas à
(Rosaldo, 1997:35). forma mísera e pomposa da memória e da
Antonio Augusto Arantes (1996) celebração da história do vencedor?” (Chauí,
acrescenta mais uma dimensão que permeia o 2006:123). Vislumbrando outra concepção
116
tema contemporâneo da cidadania: o direito de política cultural, o patrimônio histórico,
à informação e o acesso aos bens simbólicos cultural e ambiental passou a ser assumido, na
substanciando o campo da comunicação condução de políticas públicas de São Paulo,
social, do mercado e da interpenetração das como prática social e cultural de múltiplos e
esferas pública e privada. O autor acrescenta diferentes agentes sociais e a memória, enquan-
que “cidadania não possui uma ‘essência’, mas to um direito do cidadão, como ação de todos
é artefato político-cultural móvel e mutável” os sujeitos sociais e não como produção oficial
Boneca karajá. Coleção
Maria Heloisa Fénelon (Arantes, 1996:10). da história.
Costa/Museu Nacional/UFRJ
Foto: Chico da Costa.
A experiência de gestão cultural de
Marilena Chauí elencou as seguintes
3. A maioria dos estudos na perspectiva sociológica a respeito proposições inerentes à prática da cidadania
do termo cidadania se refere a T. H. Marshall (1950), que
se referenciou na publicação de Hobhouse de 1916, quando cultural enquanto processo: o direito à
associou direitos e deveres do cidadão de um determinado informação, o direito à fruição cultural,
Estado. Marshall relacionou a cidadania com a noção de classe
social e apresentou uma descrição do desenvolvimento dos diretos o direito à produção cultural e o direito à
civis, políticos e sociais na Grã-Bretanha entre os séculos 18 e 20,
conforme esclarecem Morris (2010:41) e Svarlien (1987:177). participação (ibid.: 96-101).
Roberto DaMatta (1991) faz da cidadania, instalando, dessa maneira, um

Cidadania patrimonial – da inclusão à negação do mito da nação


cidadania um tema central das suas paradoxo ou mesmo uma aporia: tem-se

a c i o n a l
interpretações sobre o Brasil, apresentando no horizonte a cidadania para todos, mas
as categorias “variação” e “perversão” da a própria construção da cidadania produz
cidadania, que no caso brasileiro se unem cidadãos de classes diferenciadas, mulheres,

N
r t í s t i c o
às práticas de poder, hierarquia e relações idosos, gestantes entre outros. Destaco
sociais. Por isso, o antropólogo desconfia duas ideias centrais do estudo de Holston

A
de uma cidadania universal (ibid.:85): “será que me parecem úteis para correlacionar

e
que podemos falar de uma só concepção com o tema do patrimônio cultural. Para

i s t ó r i c o
de cidadania como forma hegemônica ele a agência dos cidadãos investigados no
de participação política, ou temos que Brasil não é apenas a de resistência, ela

H
necessariamente discutir a hipótese de uma se soma àquela que produz engajamento,

a t r i m ô n i o
sociedade com múltiplas formas e fontes persistência e inércia. Assim, os cidadãos
de cidadania, tanto quanto são as esferas mantêm ativamente o regime engajado da

M a n u e l Fe r r e i r a L i m a F i l h o
P
existentes em seu meio?”. E conclui: cidadania, assim como resistem a ele. O

d o
outro conceito é o de “insurgência” aplicada

e v i s t a
(...) há uma forma de cidadania universalista,
à cidadania. Em suas palavras, “insurgence
construída a partir de papéis modernos que se

R
ligam à operação de uma burocracia e de um describes a process that is an acting counter, a
mercado; e também outras formas de filiação à counterpolitics, that destabilizes the present
sociedade brasileira – outras formas de cidadania – and renders it fragile, desfamiliarizing the
que se constroem através dos espaços tipicamente coerence with which it usually presents itself
relacionais, dados a partir do espaço da “casa”. (Holston, 2009:34), cunhando o termo
Em outros termos, há uma nação brasileira que insurgent citizenship (cidadania insurgente).
opera fundada nos seus cidadãos, e uma sociedade
Apesar de James Holston pensar a
brasileira que funciona calcada nas mediações 117
cidadania informada pela conjuntura de
tradicionais (ibid.:93). (grifos nossos)
uma antropologia urbana localizada
Avançando sobre o tema da cidadania, e comparativa, me interessa aqui a
recorro à etnografia que James Holston conotação do termo insurgência,
realizou no Brasil, incluindo uma que alia engajamento mas também
perspectiva histórica, de maneira particular inércia e que, de alguma
no contexto urbano da cidade de São forma, se aproxima
Paulo. Para ele, o caso brasileiro combina daquilo que Antonio
a noção formal de cidadania baseada nos Arantes nominou de
princípios do Estado-nação com um caráter “inflexão cultural” e
mais substantivo marcado pela distribuição Renato Rosaldo, de
de direitos, significados, instituições e reforço ou subversão
práticas para certos cidadãos, ou seja, para da cidadania pelas
certas categorias de cidadãos. Em outras práticas e assertivas
palavras, haveria uma produção social da culturais. Marilena
Carol, menina, apesar de
mulher (Carol Grumble),
série Amazônia Negra,
Porto Velho (RO), 2015
Foto: Marcela Bonfim.
Cidadania patrimonial – da inclusão à negação do mito da nação
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o

M a n u e l Fe r r e i r a L i m a F i l h o
P
d o
e v i s t a
R

Chauí alinha a cidadania como processo aplicação desse conceito, sem levar em conta
que conecta informação, fruição, produção as concepções e trajetórias histórico-culturais
120 e participação dos atores sociais e Roberto dos grupos sociais e étnicos que a vivenciam e
DaMatta, por sua vez, se utiliza das
suas agências4.
categorias variação e perversão para informar
Transporto essas considerações de teor
sobre uma subcidadania no caso brasileiro.
antropológico e de gestão para a recepção
Tais ponderações são, de alguma maneira,
por parte dos coletivos sociais com relação às
concorrentes por vias diferentes: estudo
de bairros de São Paulo; mapeamento
4. Os conceitos de ação e agência são  correlacionados e de
etnográfico dos latinos nos Estados Unidos; tradição na ciências sociais. O debate tem explorado a relação
entre a estrutura e o agente, em outras palavras, a tensão entre
a organização de um livro sobre cidadania sociedade e indivíduo, com teorias que enfatizam a ordem social,
a estrutura, ou as dinâmicas dos agentes. Assim, contribuem
editada pelo órgão patrimonial estatal para esse debate as reflexões do interacionismo simbólico, o
pragmatismo, a fenomenologia e a noção de redes. Emirbayer
brasileiro (Iphan); a experiência de gestão e Miche associam ao fenômeno da agência os elementos
“interacional”, “projetivo” e o “prático-avaliativo” (Stones,
cultural enquanto política estadual e, por 2010:13-17). Na antropologia os escritos de Marilyn Strathern
fim, as variações do tema da cidadania no têm tido grande impacto, pois, diferente das teorias anteriores
que associa estrutura e sujeito, Strathern perspectivada pelos seus
Ato Comemorativo do
Carimbó como Patrimônio Brasil na perspectiva relacional entre a casa e estudos na Melanésia chama atenção para as teorias nativas da
Cultural, Belém (PA), 2015 agência em que o princípio relacional do sujeito são operados por
Foto: Pierre Azevedo. a rua. Não se pode pensar em cidadania, e na um decodificador nativo (Strathern, 2006).
políticas patrimoniais do Estado idealizadas território, tradição, parentesco, identidade,

Cidadania patrimonial – da inclusão à negação do mito da nação


pela conjuntura internacional, por meio da em interação com as categorias patrimoniais

a c i o n a l
Unesco, principalmente condizente com a como tombamento, registro e inventário e,
política de tombamento5 e de registro do por fim, enfeixadas por categorias nativas
patrimônio imaterial ou intangível . Nesse 6
como nós e “não nós”, objetos, mitos,

N
r t í s t i c o
sentido, insurgência, inércia, engajamento ritos, humanos e não humanos, parentes,
ou modulação cultural dão o tom do consanguíneos e afins, os chefes, os xamãs,

A
enfrentamento de tais grupos com essas os artistas, o corpo, a pintura, os jovens e

e
políticas de Estado-nação, particularmente na os velhos, os que sabem fazer, entre outros

i s t ó r i c o
América Latina, onde todos os países foram indexados por um sistema linguístico e
signatários da convenção da Unesco para o cultural próprios. Ou seja, o patrimônio está

H
registro dos bens imateriais. inserido no mito da nação e, por meio dele,

a t r i m ô n i o
Enquadrado o tema que quero retratar, pode-se almejar a cidadania cultural através
considero como cidadania patrimonial de modulações interculturais. Todavia, o

M a n u e l Fe r r e i r a L i m a F i l h o
P
a capacidade operativa dotada de alto patrimônio pode igualmente estar fora do

d o
poder de elasticidade de ação social por mito (o não patrimônio) e não legitimar

e v i s t a
parte de grupos sociais e étnicos, em suas o discurso da cultura nacional replicado

R
dimensões coletivas ou individualizadas pela hegemonia da nação, de acordo com
de construir estratégias de interação algumas produções da antropologia brasileira
(de adesão à resistência/negação) com a respeito da cultura nacional, como bem
as políticas patrimoniais, nos âmbitos escreveu Mônica Pechincha (2006:35). Qual
internacional, nacional ou local, a fim de seria o lugar do subalterno na representação
marcar preponderantemente um campo do patrimônio brasileiro, aquele que não
constitutivo identitário, pelo alinhamento se encaixa na excepcionalidade ou na
121
dos iguais ou pela radicalidade da diferença. relevância/representatividade do patrimônio?
Essa capacidade cognitiva e de agência se O reverso do patrimônio tem lugar na
utiliza da exploração de categorias cunhadas cidadania patrimonial, potencializando
no devir da construção epistêmica da a cidadania insurgente. Essa última
antropologia, tais como cultura, natureza, possibilidade não tem sido contemplada
pelos autores quando escrevem sobre o
5. A instituição do regimentro jurídico do tombamento, tendo patrimônio. Ora, a análise do patrimônio
como referência a noção de excepcionalidade, se deu no Brasil
por meio do Decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937. distanciada do mito da nação só é possível
O decreto determina que os bens culturais devem ser inscritos
em quatro Livros do Tombo: Livro do Tombo Arqueológico, se consideramos o conflito ou a insurgência
Etnográfico e Paisagístico; Livro do Tombo Histórico; Livro do
Tombo das Belas Artes e Livro do Tombo das Artes Aplicadas. colada também ao conceito de cidadania.
6. O Decreto nº 3.551, de 4 de agosto de 2000, instituiu o Dessa forma, a ação patrimonial movida
registro de bens culturais de natureza imaterial como componente
do patrimônio cultural brasileiro, tendo como referência a noção pelos atores sociais desenha uma escala
de relevância. O decreto determina que os bens imateriais devem cuja mensuração vai do mito da nação à
ser inscritos nos seguintes livros: Livro de Registro de Saberes,
Livro de Registro de Celebrações, Livro de Registro de Formas sua resistência/negação assumida por atores
de Expresão e o Livro de Registro de lugares. O mesmo decreto
criou o programa nacional de patrimônio imaterial. sociais que politicamente se situam nas
margens, nas fraturas e clivagens, ou seja, em (...) “nativos” dos quatro cantos do planeta
Cidadania patrimonial – da inclusão à negação do mito da nação

direção a uma ideia de antimito da nação. 7 apropriam-se da categoria [cultura] para, em nome
do valor de sua própria “cultura”, defender seus
a c i o n a l

A elasticidade operativa que imputo à


modos de ser específicos em relação a alteridades
cidadania patrimonial permite aos sujeitos e
humanas e institucionais com diferentes pesos e
N

coletivos adentrar num campo marcadamente


medidas. Assiste-se, assim, a agenciamentos muitas
r t í s t i c o

assimétrico da produção de poder do Estado, vezes inusitados, constituindo redes e espaços de


instruído por uma prática colonialista e pela compartilhamento com horizontes que ampliam
A

manutenção de um modelo econômico liberal ou fecham (...) na metáfora da “cultura como


e
i s t ó r i c o

que se nutre da manutenção de hierarquias arma” está em relevo a capacidade de “objetifica-


fantasiadas por um multiculturalismo acrítico ção” do reconhecimento da cultura, algo que ocor-
re quando alguém de fora se dispõe a representar o
na esteira conceitual da indústria cultural já
H

que as comunidades vivem e experimentam. Mais


a t r i m ô n i o

denunciada pela Escola de Frankfurt, notada-


do que isto, temos a continuidade em reverso desse
mente por Adorno (2002). Encaixam-se nesse processo, como quando o sujeito “objetivado” se
viés as noções de tombamento e registro in- apropria da representação e dos pressupostos do
M a n u e l Fe r r e i r a L i m a F i l h o
P

dexadas juridicamente pelo Estado brasileiro


d o

observador (...).
e v i s t a

a partir de sua noção de excepcionalidade e de


A complexidade dessa tessitura de
relevância (Lima Filho, 2009).
interculturalidades caso a caso não se
R

Nesse jogo de poder, ora com o intuito


enquadra na armadilha de uma política
de restringir o alcance da rede das políticas
patrimonial totalizadora de tombamento
patrimoniais, ora como recurso ultimado
ou registro. Horizontaliza-se aqui uma
pela condição humana de sobrevivência
concepção mais extensa de patrimônio que
em contextos sociais de países como o
não equivale às coleções, embora isso possa
Brasil em que faltam as condições básicas
acontecer. O patrimônio não é, portanto,
122 de vida, como saúde, segurança, moradia
necessariamente uma categoria de recorrência
e educação, os atores sociais se assumem
universal como pensou Pomian (1997) e que
enquanto participantes do jogo da ação
seduziu Gonçalves (2009:26 e 2007:45).
política (Bourdieu, 1996), remetendo-nos
Patrimônio é uma categoria ocidental e aquilo
à ação racional instrumental de Weber ou que os não ocidentais fazem dela é modulação
subvertendo a ordem por dentro da própria do encontro da história com a cultura. É por
política, e fazem da cultura um recurso isso que as políticas patrimoniais ancoradas
da economia cultural, uma conveniência por representatividade, excepcionalidade,
(Yúdice, 2006) ou uma arma (Mafra, ou de relevância – como quer a Unesco e
2011:607): como ocorre no caso específico das políticas
patrimoniais brasileiras – são implodidas
7. A noção de antimito foi desenvolvida por Roberto DaMatta
(1970) quando analisou dois mitos: o da conquista do fogo numa inspiração já clássica de Marshal
e a origem do civilizado dos timbiras. Mas recorro aqui a Sahlins (1990, 2003) pelo pensar cultural de
interpretação de anti-mito associada a ideologia que nas palavras
de Julio Cesar Melatti: “um mito de caráter mais dinâmico, que alteridade: colada ou radicalmente distante
possibilita a criação de categorias novas e a passagem para uma
ordem mais complexa, a da ideologia política” (Melatti, 2016). de nós, mas em permanente ebulição numa
Amapá, 2009
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

Comunidade Wajãpi do
123

Foto: Heitor Reali/Acervo Iphan.


M a n u e l Fe r r e i r a L i m a F i l h o Cidadania patrimonial – da inclusão à negação do mito da nação
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

124
M a n u e l Fe r r e i r a L i m a F i l h o Cidadania patrimonial – da inclusão à negação do mito da nação
ciranda de refazendas culturais que demarcam (2006:62), Roberto DaMatta, em sua inter-

Cidadania patrimonial – da inclusão à negação do mito da nação


a construção de sujeitos sociais por via de pretação a respeito da cidadania no Brasil,

a c i o n a l
uma identidade narrativa mítica/histórica, deu lugar para a representação do Outro, não
intercultural. lhe deu voz, noto, contudo, que nos processos
Assim, de um lado encontra-se a patrimoniais de registro de referências cultu-

N
r t í s t i c o
cartografia weberiana da esfera econômica rais os grupos sociais de alguma maneira têm
alertando para uma dimensão ocidentalizada assumido um tópos na conjuntura relacional

A
totalizadora do patrimônio com uso com as políticas do Estado.

e
semântico/ideológico da categoria diversidade Daí porque a noção de insurgência

i s t ó r i c o
impregnada de colonialismos e aquilo que colada à cidadania poder ajudar a pensar o
José Jorge de Carvalho (2004:7) chamou de jogo do patrimônio ou a “arma da cultura”,

H
“impunidade estética“: ou “cultura com aspas”, como preferiu

a t r i m ô n i o
Manuela Carneiro da Cunha (2009) na práxis
Enquanto um coreógrafo do eixo Rio-São
intercultural. Então, temos a configuração de
Paulo pode “antropofagicamente” apropriar-se

M a n u e l Fe r r e i r a L i m a F i l h o
P
de um determinado saber performático de um
uma operacionalidade intercultural acionada

d o
tambor-de-crioula do Maranhão, por exemplo, por um habitus nativo, uma alteridade

e v i s t a
nenhum artista desse tambor-de-crioula pode mais ou menos próxima de nós, misturada
ou distanciada, mas em interação factual.

R
exercer esse mesmo canibalismo cultural sobre
um grupo de dança “erudita” que se apresenta no Dessa maneira, o patrimônio é útil para
Teatro Municipal do Rio de Janeiro. (...) O lema os indígenas tanto quanto o português, a
antropofágico funciona, na prática, como uma escola não indígena, os museus e a vereança,
espécie de código secreto da impunidade estética e
no jogo de poder intercultural ou não. A
da manutenção de privilégios da classe dominante
boneca karajá8 pode e deve ir para o museu
brasileira. Nessa antropofagia (obviamente de
e sua patrimonialização pode incrementar
mão única), duas classes interligadas celebram,
125
mediante símbolos por elas mesmas ditos o empoderamento das mulheres e arranjos
nacionais, seus privilégios diante dos artistas das domésticos num grupo étnico fortemente
comunidades indígenas e afro-brasileiras: a classe marcado pela dimensão do gênero, mas as
que se sentiu tão impune a ponto de poder realizar máscaras de Aruanã devem ser queimadas,
essa sempre celebrada síntese cultural modernista portanto, não é coleção nativa, é fabricação
(os tais empréstimos culturais que, com o passar para usos rituais circunstanciados pelo
do tempo, se tornam roubo) e a classe (que é sua princípio da cultura. Se estiverem nos
continuação histórica) que agora propõe e executa
museus, as máscaras de Aruanã tornam-se
os inventários do patrimônio cultural imaterial
exemplos da prática colonialista, antiética, Madona Negra (Carol
brasileiro (...)..(grifo nosso) Grumble), série Amazônia
violenta, qualquer que tenha sido o nível Negra, Porto Velho (RO),
2015
Mas penso também que o Outro, alvo da de interação entre os Karajá, os viajantes, Foto: Marcela Bonfim.

antropofagia de seus referenciais culturais,


não é passivo e, se posicionado apenas num 8. As bonecas karajá foram registradas como patrimônio imaterial
brasileiro no dia 25 de janeiro de 2012, no Livro dos Saberes
polo extremo de passividade, corre o risco de (Saberes e Práticas Associados aos Modos de Fazer Boneca Karajá)
e no Livro de Celebrações (Ritxoko: Expressão Artística e Cos-
ser essencializado. Se, para Mônica Pechincha mológicado Povo Karajá), conforme Silva, 2015.
os etnólogos e os sertanistas9. O patrimônio Visto isso, passarei a examinar alguns
Cidadania patrimonial – da inclusão à negação do mito da nação

é bom para jogar, se os atores estiverem processos de registro de bens patrimoniais


a c i o n a l

dispostos a jogar. Caso contrário, o fora e dentro das políticas oficias do registro
patrimônio será refratado pelos grupos do patrimônio imaterial brasileiro, a fim
sociais. Essa capacidade de refração ou de de tornar visível a conotação do que tenho
N
r t í s t i c o

opção até onde deve seguir o jogo patrimonial chamado modulação e a sua conexão com o
é mais uma característica da maleabilidade da conceito de cidadania patrimonial.
A

cidadania patrimonial. Ou seja, a refração/


e

opção rompe com a passividade da inércia. Modulações nas práticas


i s t ó r i c o

É, pois, na exploração dessas clivagens pat r i m o n i a i s


e fraturas sociais e étnicas que se move
H

e que se entranha a operacionalidade da


a t r i m ô n i o

A cidadania patrimonial está diretamente


cidadania patrimonial, a fim de retirar do relacionada com a noção sociológica de
patrimônio uma seiva de performance e ação social weberiana (Weber, 1979), cujas
M a n u e l Fe r r e i r a L i m a F i l h o
P

jogo identitário, no sentido de “(...) ativar dimensões racionais e irracionais (no campo
d o

saberes locais, descontínuos, desqualificados, da subjetividade) se apresentam enquanto


e v i s t a

não legitimados, contra a instância teórica estratégia metodológica com o fim de se


unitária que pretenderia depurá-los,
R

compreender/interpretar a movimentação dos


hierarquizá-los, ordená-los em nome de coletivos sociais e étnicos uma vez em contato
um conhecimento verdadeiro, em nome de com as políticas patrimoniais. Igualmente,
uma ciência detida por alguns” (Foucault, a noção de agência alarga/complementa
1979:171). Ter consciência do conceito a eficácia da estratégia weberiana, porque
bakhtiniano de onde e de quem fala ou não tem em vista a complexidade do mundo
fala, para lembrar Spivak (2010) do saber contemporâneo pautado por fluxos de
126
do subalterno: o indígena, o sertanejo, o informações e alta permeabilidade dos
camponês, o quilombola, o ribeirinho, o sujeitos sociais e das múltiplas filiações
favelado e as múltiplas formas de se fazerem identitárias (gênero, pertença religiosa,
presentes num mundo palmilhado pela classe, geração, raça e etnia) que, em
polifonia cultural e jogo de produção de permanente contato com um volume maior
poder permanente. de informações disponíveis, propicia aos
mesmos sujeitos sociais o rompimento com
9. Cito os exemplos de como as máscaras de Aruanã foram
negociadas entre os Karajá e o etnólogo Ehrenreich (1888) na
a inércia cultural/política/cidadã. A noção
constituição de coleções: “Foi graças à ajuda do chefe Pedro de agência proposta por Anthony Giddens
Manco que pude trazer felizmente algumas máscaras mais
interessantes. Sem a intercessão dele, dificilmente se teria (2009), que coloca lado a lado a capacidade
vencido a supersticiosa desconfiança dos membros da tribo, pois
uma série de viajantes, sobretudo o próprio Spinola, haviam das pessoas (agentes) de fazer algo (ação) e a
cometido a imprudência de profanar êsses objetos sagrados”
e “Não obstante, não nos permitiram levar sem mais nem noção de poder, exercidos de alguma maneira
menos as máscaras encontradas na mata, porque julgavam haver pelos sujeitos sociais, mesmo em caso de
mulheres na proximidade. Para transportar as máscaras ao nosso
acampamento, foi preciso que os nossos camaradas as trajassem subordinação (Long & Ploeg, 2011), sustenta
especialmente para êste fim (Ehrenreich, 1948: 72 e 77). Ver
Lima Filho (2017). a operacionalidade da cidadania patrimonial.
Cidadania patrimonial – da inclusão à negação do mito da nação
a c i o n a l
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d o
e v i s t a
R
A noção de modulação que acoplo ao ser do Brasil, então estava tudo bem. Ora, a
conceito de cidadania patrimonial permite história dos Karajá, dessa aldeia em particular,
a resposta desse rompimento inercial de está diretamente relacionada com o plano 127

acordo com a biografia pessoal/coletiva do(s) governamental da Marcha para o Oeste, ten-
ator(es) alvo das políticas patrimoniais. do recebido as visitas dos presidentes Getúlio
Biografia atravessada pelas dimensões Vargas, em 1940, e Juscelino Kubitschek, em
históricas, econômicas, políticas, de gênero, 1960 (Lima Filho, 2001). A modulação, no
de raça, de classe e de identidade social. Daí caso das bonecas de cerâmica, foi o prestígio
a modulação. da nação; o passado deu sentido ao presente
Posso começar com dois exemplos distin- (Lima Filho, 2015). Mas, de modo diferente,
tos de modulação inerente à cidadania patri- quando algum tempo depois um jovem da
monial. Quando levei a proposta aos Karajá liderança da mesma aldeia viu no site do Mu-
da aldeia de Santa Isabel do Morro, na Casa seu Nacional uma fotografia de uma máscara
dos Homens, de se obter o registro das bone- de Aruanã, me avisou aborrecido que entraria
cas karajá (ritxòkò) como patrimônio cultural com uma representação no Ministério Públi-
brasileiro, um homem presente na reunião co Federal contra o Museu Nacional, pois as Carimbó, rio Tapajós,
Alter do Chão (PA), 2015
defendeu a ideia, alegando que, se era para máscaras não podem ser expostas às mulheres Foto: Pierre Azevedo.
por princípios culturais rígidos dos Karajá. Recorro agora aos primeiros passos do
Cidadania patrimonial – da inclusão à negação do mito da nação

Aqui o mesmo grupo usou o artifício da na- Estado brasileiro na instalação da política do
a c i o n a l

ção (o Ministério Público Federal) contra a registro do patrimônio imaterial brasileiro.


própria nação, uma instituição federal de pes- O primeiro movimento foi em direção ao
quisa e ensino de pós-graduação. Modulações registro do Kuarup, complexo mitológico/
N
r t í s t i c o

diferenciadas com as políticas patrimoniais, ritual dos povos indígenas do alto rio Xingu
via cidadania patrimonial. Seguindo o mesmo (Agostinho, 1974), que não aceitaram a
A

raciocínio, ouvi a interessante declaração10 de proposta. O alvo então foi direcionado


e

um jovem estudante tapirapé de uma aldeia aos Wajãpi do Amapá, que tiveram a sua
i s t ó r i c o

tupi do Mato Grosso, que cursava uma licen- Arte Kusiwa – Pintura Corporal e Arte
ciatura intercultural da Universidade Federal Gráfica inscrita no Livro de Registro das
H

de Goiás, de que ali estava para aprender Formas de Expressão, no ano de 2002
a t r i m ô n i o

apenas o que lhe interessava aplicar em sua e, no ano seguinte, recebeu da Unesco o
comunidade, o resto não lhe interessava. título de Patrimônio Cultural Imaterial da
M a n u e l Fe r r e i r a L i m a F i l h o
P

Instigante caso de modulação intercultural. Humanidade por iniciativa do Conselho das


d o

Modulação que pode ainda ser exemplifica- Aldeias Wajãpi/Apina.


e v i s t a

da pelo controle exercido pela mãe de santo


Em novembro de 2003, a Unesco selecionou
Mãe Meninazinha D’Oxum em São João de
R

as “Expressões gráficas e oralidade entre os Wajãpi


Meriti, na Baixada Fluminense (RJ), durante
do Amapá” como obra-prima do Patrimônio
o processo de gravação de músicas do terreiro, Oral e Imaterial da Humanidade. Esse registro
ao determinar ao antropólogo Edmundo Pe- representou mais uma etapa do longo processo de
reira (2016) o que podia ou não ser gravado, reflexões dos Wajãpi em torno de sua “cultura”.
onde gravar e quais fotografias entrariam no Foi e continua sendo um estímulo para retomar
projeto do CD, ou seja, o que era restrito ao a discussão, nas aldeias, de todo um conjunto
128 campo do sagrado e aos membros do terreiro de problemas relacionados ao desinteresse das
jovens gerações e de muitos adultos pelos saberes
e aquilo que podia ser publicitado.
e práticas tradicionais, desvalorizados ou mesmo
A primeira decisão foi a de que as gravações colocados sob suspeita por força da convivência
seriam realizadas no próprio Ilê, para onde foi com os acirrados preconceitos da maior parte
levado um pequeno estúdio móvel. (...) Coube dos representantes da sociedade envolvente que
a Mãe Meninazinha, com sugestões de outros se relacionam com os Wajãpi. A expectativa dos
membros do terreiro, a escolha do repertório Wajãpi não é a de “eternizar” sua cultura, mas
a ser gravado. A capa foi escolhida de forma a de consolidar sua capacidade de se apropriar
representar, por meio de objetos, os dois orixás de objetos, técnicas e conhecimentos novos,
patronos da casa: o colar de contas de Oxum e de uma maneira que não prejudique – como
pipoca que serve de alimento a Omolu (Pereira & vem acontecendo até agora – suas próprias
Pacheco, 2004 e Pereira, 2016). práticas culturais. O “Plano integrado de
valorização dos conhecimentos tradicionais para
10. Tive acesso a essa informação numa palestra da antropóloga o desenvolvimento socioambiental sustentável da
Mônica Pechincha sobre a sua experiência com a Licenciatura comunidade Wajãpi do Amapá” apresentado à
Intercultural Indígena, da Universidade Federal de Goiás, em
2015. Unesco aposta na mobilização da comunidade em
torno de ações que valorizem, nas aldeias, tanto as habitualmente utilizados para a proteção do patri-

Cidadania patrimonial – da inclusão à negação do mito da nação


formas de transmissão oral como os conhecimentos mônio material não são adequados à preservação
relacionados ao manejo de recursos, à saúde, à do patrimônio imaterial, que exige um conjunto

a c i o n a l
história das aldeias, à cosmologia, aos rituais (...) muito mais complexo de procedimentos.
(Gallois, 2006:69 e 70).

N
O exercício da cidadania patrimonial nos

r t í s t i c o
Nota-se que os primeiros movimentos primeiros casos de registro do patrimônio
das ações patrimoniais desenham uma imaterial no Brasil já apresenta a característica

A
trajetória que se move do polo da negação da modulação. Modulação que pode ser ob-

e
i s t ó r i c o
(povo do Xingu) para o polo a favor, servada de maneira apropriada quando apro-
protagonizado pelo Conselho das Aldeias ximamos a lente de aumento nas clivagens
Wajãpi/Apina. Contudo, mesmo com

H
dos grupos e suas particularidades diante das

a t r i m ô n i o
a adesão dos Wajãpi ao propósito das políticas públicas do patrimônio. Reporto-me
políticas do patrimônio brasileiro, e depois aos dois primeiros casos de registro do patri-
do patrimônio mundial da Unesco, cabe mônio imaterial brasileiro que tiveram em

M a n u e l Fe r r e i r a L i m a F i l h o
P
d o
prestar atenção na reflexão da antropóloga comum a questão do conflito no contexto da

e v i s t a
Dominique Gallois (ibid.:72) sobre a aplicação das políticas patrimoniais.
experiência do registro com povos indígenas: O primeiro registro foi o ofício das

R
A salvaguarda das tradições orais indígenas,
paneleiras de Goiabeiras (ES) no ano de
assim como das práticas que lhes são associadas, 2002. A Associação das Paneleiras, que já
é um campo novo para as políticas públicas, es- experimentava um grau de organização
pecialmente no Brasil. Em algumas comunidades particular caracterizada pelos arranjos
indígenas, estão sendo testadas estratégias que pro- familiares, tinha conseguido enfrentar
gramas supranacionais e órgãos nacionais procu- ameaças de perda do terreno de onde se
ram aprimorar com a colaboração de universidades 129
retirava o barro. As paneleiras acabaram
e de organizações não governamentais, formando
cedendo uma parte da área para a construção
um painel ainda frágil de experimentos muito
de uma estação de tratamento de água
diversos e, às vezes, contraditórios. As dificuldades
remetem, sobretudo, às condições disponibilizadas estadual. Também estavam vivendo tensões
para a proteção do patrimônio imaterial indígena, internas em sua organização política (Dias,
que flutuam em acordo com os contextos políticos 2006), quando tiveram a oportunidade de
e econômicos. Assim, a adequação das medidas de atuar no processo de obtenção do registro
proteção envolve, sempre, complexas negociações. de seu ofício como bem imaterial do
Quem são os agentes responsáveis pelo inventário patrimônio brasileiro e ocuparam a posição
dessas tradições culturais? Quem tem o poder de
de interlocutoras do Estado.
escolher entre uma ou outra tradição, entre uma
ou outra comunidade? O que se pretende preservar Durante o período em que Berenícia foi
numa tradição: as produções, o registro dessas pro- presidente da Associação das Paneleiras de
duções ou seus meios de expressão? Como engajar Goiabeiras – APG é que o grupo se consolidou
efetivamente uma comunidade na política de pre- no contexto político regional. Foi Berenícia,
servação? (...) os procedimentos de “conservação” como representante da Associação, que entregou
Cidadania patrimonial – da inclusão à negação do mito da nação
a c i o n a l
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P
d o
e v i s t a
R

(por sugestão do Iphan local) ao ministro da outra dimensão do sagrado e em oposição à


Cultura, Francisco Weffort, quando este esteve em tradição afro-brasileira:
130 Goiabeiras, a carta/documento solicitando a sua
inscrição como patrimônio cultural pelo Instituto Quando, no ano de 2000, o registro de
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – patrimônio imaterial foi instituído, a atividade
Iphan/MinC. Em 2002, o saber fazer panela de do tabuleiro já se encontrava em meio à
barro, das paneleiras de Goiabeiras, foi o primeiro polêmica dos vendedores evangélicos (…).
registro inscrito no Livro dos Saberes (Dias, Em 2001, um episódio pitoresco, mas muito
marcante, visto que uma grande diversidade
2006:132).
de baianas do acarajé o mencionou em nossas
Tal como as paneleiras de Vitória (ES), conversas, parece ter precipitado as baianas
as baianas de Salvador tiveram o ofício das tradicionais e aqueles que as apoiavam para uma
atuação mais enérgica. A promoter Lícia Fábio
baianas de acarajé de Salvador (BA) inscrito
(…) instituiu o prêmio Acarajé de Ouro para
no Livro dos Saberes do Iphan em 2005. O
a melhor vendedora de Salvador, com votação
conflito já não se dava no interior de uma através da “internet”. Surpreendentemente, a
Chegada do batelão do
Divino Espírito Santo, associação específica, como o observado entre vencedora foi a chamada Loura do Acarajé (…),
Comunidade de Porto
Rolim, Alta Floresta (RO), as paneleiras. Tratava-se de uma tensão vivida uma praticante do ofício de cabelos tingidos,
2016
Foto: Marcela Bonfim. com outro grupo de baianas, que apresentava segundo algumas vendedoras, com um tabuleiro
pouco consagrado num bairro afastado e pouco O estudo do processo de patrimonialização

Cidadania patrimonial – da inclusão à negação do mito da nação


popular, que também era evangélica. Era o auge da capoeira trouxe novas questões para o lugar
da visibilidade da polêmica com os evangélicos. das múltiplas identidades no interior da sua

a c i o n a l
Aquela que menos poderia representar o acarajé, prática, e que talvez possa ser extrapolado a outras
pelo fato de querer parecer loura, moderna e manifestações populares afrodescendentes. Na

N
pelo fato de ter uma crença contrária às raízes medida em que estas práticas há décadas vêm

r t í s t i c o
da iguaria, havia sido premiada justamente sendo apropriadas em discursos legitimadores
por causa do quitute, do qual sobrevivia e da identidade nacional e afro-brasileira

A
ao mesmo tempo se “desfazia”, na opinião simultaneamente, o impacto dos processos de

e
i s t ó r i c o
das outras baianas do acarajé. A maioria das registro deve ser sempre pensado e reavaliado. (...)
baianas, e outras pessoas (…) se lembravam da a complexidade se mostra quando percebemos que
indignação pelo fato de a loura ter arrebatado a formação da identidade nacional não pode mais

H
o prêmio. Depois deste episódio, a Abam, que ser vista como singular e estanque, de modo que

a t r i m ô n i o
estava em atividade desde 1992, inicialmente vem sendo percebida como múltipla e retomada
com objetivos relacionados aos benefícios da por novos atores de formas variadas, os quais vêm
se apropriando da cultura, a positivando, em busca

M a n u e l Fe r r e i r a L i m a F i l h o
previdência social para as vendedoras, reagiu

P
d o
institucionalmente à polêmica. Aliou-se a um de políticas de reparação e reconhecimento (Castro

e v i s t a
dos terreiros (…) tombados pelo Iphan, o Opô & Cid, 2016:197).
Afonjá, e ao CEAO (Centro de Estudos Afro-
Penso ter dado exemplos suficientes

R
Asiáticos) para fazer o pedido de registro do
acarajé, um produto representativo do ofício para demonstrar a elasticidade da atuação
das baianas de tabuleiro, no Livro de Registro dos grupos sociais e étnicos, quando
dos Saberes. O pedido foi realizado quase logo interagem com as políticas patrimoniais,
depois da instituição do registro, no ano de seja pela negação, como aconteceu com
2002, e parecia haver uma certa premência, não os Povos do Xingu, ou pela atuação em
só pela pontual indignação com o prêmio da disputas internas e em diálogo com os
loura evangélica, mas muito mais provavelmente 131
representantes do Estado-nação, como
por causa das constantes polêmicas cotidianas,
ocorreu com as paneleiras e baianas, seja
com os evangélicos abrindo precedência para
alargando a cidadania patrimonial para
outro tipo de comercialização do acarajé,
além das fronteiras da nação, como é o caso
desvinculada da tradição das mulheres (Martini,
da capoeira e dos Wajãpi. As experiências
2007:238-239).
patrimoniais já processadas e as em curso
Finalmente, relato um último exemplo de nos convidam a ter o cuidado epistêmico e
registro que diz respeito ao ofício dos mestres de prática, a fim de que possamos auscultar
de capoeira, tanto no âmbito do patrimônio as vozes da alteridade que imputam vários
brasileiro como na lista do patrimônio sentidos ao complexo jogo do patrimônio
mundial da Unesco, e a particularidade desse cultural. Tal como a noção de cultura, o
caso é que Angola passou a reivindicar essa patrimônio na perspectiva antropológica
referência cultural como igualmente do povo parece sempre escorregar entre nossas mãos.
angolano, ampliando desse modo a noção do Lidar com isso é o desafio permanente do
mito da nacionalidade. ofício do antropólogo.
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133

Arte Kusiwa,
composição de Siro
Wajãpi, 2000
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

134
William César Lopes Domingues Patr imônio cultural indígena no médio Xingu:
entre a falta de identificação e a necessidade de reconhecimento
William César Lopes Domingues

a c i o n a l
P atrimônio cultural indígena no médio X ingu :

N
entre a falta de identificação e a necessidade de

r t í s t i c o
reconhecimento

A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
Atualmente, vivem dez etnias indígenas pressupõe um partilhamento de concepções
na região do médio Xingu, com diferentes metafísicas, utilizo o conceito nativo da Ure
tempos de contato com os não indígenas. reka dos Asurini do Xingu para enfrentar um

P
São os Arara, Arara da Volta Grande do dos desafios da identificação de patrimônio.

d o
e v i s t a
Xingu, Araweté, Asurini do Xingu, Juruna, Clifford Geertz (1989) define cultura
Kayapó, Kuruaya, Parakanã, Xikrin do Bacajá como um sistema de concepções expressadas

R
e Xipaya, ocupando cerca de sessenta aldeias em formas simbólicas, por meio das quais
nas margens do rio Xingu e de seus afluentes os homens se comunicam e perpetuam
Iriri e Bacajá. Povos que, com línguas – desenvolvimentos, conhecimentos e atitudes
sejam nativas ou variações de uma língua que terão no decorrer de suas vidas. Para ele
de contato –, cosmogonias e cosmovisões a cultura não é algo que esteja apenas dentro
próprias, constituem intrincadas teias da cabeça de cada um, mas algo capaz de
internas, cheias de significados, a partir das criar uma rede de símbolos através dos quais 135
quais orientam suas vidas e dão sentido ao as pessoas de uma sociedade comunicam sua
mundo e a suas culturas. visão de mundo e orientam seus valores.
Para nós indígenas, nossas culturas são Dessa forma, é necessário pensar que cada
patrimônios imateriais vivos permeados de um desses dez povos possui as próprias teias
bens materiais delas oriundos, muitos dos de símbolos que, por sua vez, se entrelaçam
quais partilhados graças a uma complexa em redes maiores de sentidos, dando
rede de relacionamentos desenvolvida significado às interações historicamente
com outros povos indígenas, com quem mantidas – seja ocupando a mitologia e
também compartimos sentidos de vida. Daí as histórias dos outros, seja partilhando
nos reconhecermos e nos denominarmos territórios de caça e pesca, realizando trocas
como parentes nos novos campos de amigáveis ou fornecendo inimigos para o
interação que criamos, sobretudo no seio exercício da guerra. Como demonstrado
do movimento indígena. A partir dessa rede por Florestan Fernandes (2006) em relação Menina kayapó, aldeia
Mojkarakó, Pará, 2016
de relacionamentos no médio Xingu, que aos Tupinambá, cada interação possui Foto: Renato Soares.
uma função social definida dentro dessas tangível, sólido, de propriedade. A
Patr imônio cultural indígena no médio Xingu:
entre a falta de identificação e a necessidade de reconhecimento

sociedades, caracterizando nesse sentido o imaterialidade parece contrária à noção


a c i o n a l

que chamo de uma sociedade indígena do de propriedade e indubitavelmente


médio Xingu, onde as teias de significados encontra barreiras para a identificação
se entrelaçam umas às outras formando e o reconhecimento desse patrimônio,
N
r t í s t i c o

redes de significados, que mediaram ao especialmente em nosso caso. Como povos


longo do último século as relações entre indígenas que falamos línguas diferentes e
A

esses povos, deles com os não indígenas e temos outras epistemologias, as dificuldades
e

também com o que os ocidentais chamam de são maiores. Além disso, ainda é preciso
i s t ó r i c o

meio ambiente. Para nós, o meio ambiente considerar que a materialidade, enquanto
também é essencialmente humano, pois com patrimônio, nem sempre é considerada para
William César Lopes Domingues
H

ele desenvolvemos relações políticas e sociais. as complexas construções de diversos povos


a t r i m ô n i o

Essa conformação exige novos olhares que indígenas. É possível que, dada a sua não
considerem outras epistemologias para a perenidade, esse patrimônio, que é material,
P

identificação e reconhecimento dos bens que acabe tendo seu reconhecimento empurrado
d o

compõem seu patrimônio, a fim de que sejam para o campo da imaterialidade, do saber
e v i s t a

protegidos, valorizados e difundidos. fazer, e não para as construções em si.


R

O Decreto n 3.551/2000 instituiu


o
Entre os Asurini do Xingu, um exemplo
o registro de bens culturais de natureza claro disso é a tawiwe, o imponente espaço
imaterial, criando o Programa Nacional comunal que ocupa lugar de destaque na
do Patrimônio Imaterial, uma extensão da paisagem da aldeia. O umbigo do mundo,
política de proteção do patrimônio cultural como dizem os velhos, lugar onde suas
brasileiro que propõe uma inovação ao rígidas regras de evitação do grupo podem
valorizar suas dimensões imateriais. Essas ser relaxadas, onde ocorrem seus principais
136
dimensões não são elitistas, justamente rituais e o onde os mortos são enterrados. A
por abordarem as diversas culturas do país, imponência da construção oval de cerca de
entre elas as indígenas e “populares”, por seis metros de largura por doze metros de
assim dizer. Assim, o Programa Nacional extensão contrasta com a pouca durabilidade
do Patrimônio Imaterial tira o foco central dos materiais utilizados em sua construção:
da concepção arquitetônica do patrimônio olhos de palha, madeira e envira de casca de
cultural, que privilegia a proteção de igrejas e árvores. Não se usam pregos ou quaisquer
palácios de acordo com os anseios das elites, outros materiais industrializados.
e abre a possibilidade de enriquecimento da A tawiwe, justamente por isso, se
noção de patrimônio para além do que seja deteriora e precisa ser reconstruída de tempos
tangível, uma vez que não é a materialidade em tempos, ela sempre existirá enquanto os
que o define. Awaeté, que é como os Asurini se referem a
Essa inovação, embora importante, si mesmos, existirem. E mesmo nos breves
impõe dificuldades à noção de patrimônio, momentos em que não está presente,
alicerçada, talvez, no conceito jurídico enquanto precisa ser reconstruída, não deixa
Patr imônio cultural indígena no médio Xingu:
entre a falta de identificação e a necessidade de reconhecimento
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o

William César Lopes Domingues


H
a t r i m ô n i o
P
d o
e v i s t a
R
de ser o lugar de conexão dos mundos físico e sociais desses povos com vários outros povos
metafísico, existindo literalmente, mesmo que com quem partilharam e partilham ainda
não esteja visível. A reconstrução não enseja hoje conhecimentos e técnicas, o que impõe 137

que se trate de outra tawiwe. Ela é e sempre nova dificuldade para o reconhecimento de
será a mesma. um patrimônio como sendo bem imaterial de
Embora a tawiwe, enquanto bem material, determinado povo.
possa se constituir num exemplo clássico de Inicialmente, as ações de mapeamento,
bem imaterial, por conta do domínio das identificação e reconhecimento do patrimô-
técnicas e materiais que sua construção e nio cultural estavam voltadas para as regiões
reconstrução periódica implicam, ela não é que foram ocupadas há mais tempo pela
exclusiva dessa etnia. Vários outros povos colonização europeia, sobretudo as regiões
indígenas possuem construções desse tipo Nordeste e Sudeste do país. Isso se explica
que ocupam funções semelhantes nas suas justamente porque as ações de identificação,
culturas, o que traz a questão de que as reconhecimento e tombamento de patrimô-
culturas dos povos indígenas, como quaisquer nio cultural eram preferencialmente voltadas Ritual Metora, com cantos
e simulação de luta entre
outras, não são estáticas e muito menos para o patrimônio material, oriundo da he- homens e mulheres. Aldeia
Mojkarakó, Pará, 2016
autênticas. São, antes, o fruto das interações rança cultural europeia. Foto: Renato Soares.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

138
William César Lopes Domingues Patr imônio cultural indígena no médio Xingu:
entre a falta de identificação e a necessidade de reconhecimento

Foto: Renato Soares.


à base de jenipapo e
tradicionalmente feita

Mojkarakó, Pará, 2015


cinza de madeira. Aldeia
pelas mulheres com tinta
A pintura corporal kayapó,
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
139

William César Lopes Domingues Patr imônio cultural indígena no médio Xingu:
entre a falta de identificação e a necessidade de reconhecimento
Patr imônio cultural indígena no médio Xingu:
entre a falta de identificação e a necessidade de reconhecimento
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o

William César Lopes Domingues


H
a t r i m ô n i o
P
d o
e v i s t a
R

A guinada em direção ao patrimônio (tupi), Kayapó (jê), Kuruaya (tupi), Parakanã


imaterial, promovida pela promulgação do (tupi), Xikrin do Bacajá (jê) e Xipaya
140
Decreto n 3.551/2000, também incentivou
o
(tupi), com diferentes histórias e tempo de
o redirecionamento dessas ações para o contato intermitente com a sociedade não
Centro-Oeste e o Norte. Sobretudo para a indígena, todos povos com língua própria e
Amazônia, região rica em bens do patrimônio culturas plenas de realizações extremamente
imaterial, extremamente importantes e importantes e dignas de serem alçadas à
relevantes em nível local, que são, no entanto, posição de bens do patrimônio cultural
desconhecidos do grande público e correm imaterial da humanidade. Para isso, é
sérios riscos com o impacto da globalização necessário um grande esforço no sentido
e o desaparecimento dos detentores dos de que esses povos sejam informados sobre
conhecimentos a eles ligados. o que significa e quais as implicações de
Esse é, especificamente, o caso das nove terem algumas de suas realizações culturais
Arara (índios Arara).
Litografia de Johann etnias indígenas que vivem na região do reconhecidas como patrimônio imaterial.
Baptist von Spix. In:
Reise nach Brasilien, de
Spix & Martius, 1823
médio Xingu, os Arara (karib), Araweté O Ieipari é um complexo ritualístico que
Acervo: Fundação Biblioteca
Nacional, Brasil. (tupi), Asurini do Xingu (tupi), Juruna marca a coesão dos Arara como povo e exter-
naliza sua concepção de mundo, sua noção tradição, estão desaparecendo sem ter as

Patr imônio cultural indígena no médio Xingu:


entre a falta de identificação e a necessidade de reconhecimento
de pessoa e seus princípios éticos e morais. condições necessárias de repassar esses

a c i o n a l
O rito do Ieipari entre os Arara é marcado conhecimentos aos mais jovens, que têm
pela presença do poste cerimonial de mesmo preferido a televisão, as bebidas e os festejos
nome, que articula um universo de sentidos de seus vizinhos na região à realização das

N
r t í s t i c o
do seu povo a partir de uma diversidade festas de seu próprio povo. Antes mesmo de
de padrões éticos e morais encarnados pe- identificado, esse patrimônio corre o risco

A
los participantes do ritual. De acordo com de desaparecer, por isso, o reconhecimento

e
Teixeira-Pinto (1997), o Ieipari é um ritual como patrimônio pode ser fundamental para

i s t ó r i c o
de complexa organização, com etapas e mo- a sua manutenção.
mentos diversos que transcendem o rito em Os Parakanã possuem, entre tantas

William César Lopes Domingues


H
si e podem ser realizados em separado e em outras festas – que é como chamam os

a t r i m ô n i o
momentos diferentes. Juntos, no entanto, rituais –, a Festa das Tabocas, que, segundo
formam o complexo ritualístico em torno do Fausto (2001), tematiza fundamentalmente

P
poste cerimonial, onde o povo se ajunta para as relações entre homens e mulheres. As

d o
cantar, dançar, tocar flautas de bambu e par- tabocas são trazidas para a aldeia e com elas

e v i s t a
tilhar a comida oriunda das caçadas coletivas são confeccionadas flautas. Mas estas devem

R
realizadas para esse fim e a bebida fermentada ser feitas no mesmo dia em que são trazidas,
produzida em grande quantidade. senão isso pode causar febre nas crianças. As
As bebidas oferecidas na festa têm uma flautas são feitas e os homens que as tocam
função importante de acordo com sua passam a ensaiar durante vários dias. A flauta
origem, pois podem ser feitas a partir de maior e mais grave é chamada towohoa e
diversos vegetais. Para os Arara, todos os seres representa o grande pai. Ela marca o ritmo
do cosmo possuem um princípio vital e os das músicas, sendo seguida por flautas
141
vegetais, por estarem em contato mais direto menores e de som mais agudo, simbolizando
com a terra, absorvem dela o princípio vital suas esposas e filhos. Para a festa todos
dos animais mortos. Por esse motivo, a bebida devem fazer mingau de macaxeira, que será
fermentada feita com macaxeira, de nome misturado com mel. Quem faz o mingau
piktu, é a mais apreciada. É que o crescimento não deve consumir o seu produto, mas
desse tubérculo ocorre no interior da terra, oferecê-lo e consumir o que é ofertado pelos
permitindo-lhe, portanto, assimilar uma outros participantes.
maior quantidade de princípio vital. Após a primeira sessão musical, o mingau
O advento da televisão, a construção da é oferecido. Depois, retoma-se a música, com
hidrelétrica de Belo Monte e o grande fluxo todos formando um semicírculo ao redor
de pessoas nas aldeias, em decorrência dos do towohoa. Nesse momento, os homens
impactos dessa construção, têm colocado puxam as mulheres e lhes passam as mãos
em risco a continuidade da realização desse sobre os ombros para que dancem com
complexo ritualístico. Os mais velhos, que eles até o amanhecer, sendo interditado aos
detêm o conhecimento a respeito dessa maridos que escolham suas próprias esposas.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

142
William César Lopes Domingues Patr imônio cultural indígena no médio Xingu:
entre a falta de identificação e a necessidade de reconhecimento
As músicas têm temas relacionados a animais Os Xikrin, povo Jê que ocupa as margens

Patr imônio cultural indígena no médio Xingu:


entre a falta de identificação e a necessidade de reconhecimento
que fazem parte da dieta alimentar do povo. do rio Bacajá, possuem intensa atividade

a c i o n a l
A festa ocorre sempre à noite e tem múl- ritualística. Entre seus muitos rituais, se
tiplos sentidos relacionados com a família destacam os de nominação e de iniciação.
nuclear, com a associação metafísica com os Nos rituais de nominação, as crianças

N
r t í s t i c o
animais caçados pelos homens e marca a coe- recebem os nomes que os acompanharão no
são de relações de afinidade com as mulheres decorrer de suas vidas. Entre os Xikrin, os

A
de outros núcleos familiares e a reciprocidade nomes são possessões e o direito de usar um

e
entre todos, a partir da distribuição do min- nome é determinado por herança e regulado

i s t ó r i c o
gau com mel feito para esse fim específico. pelos rituais de nominação. Já os rituais de
A afinidade dos homens com as mulheres de iniciação marcam a mudança de categorias

William César Lopes Domingues


H
outros núcleos familiares tem forte conotação de idade que regulam os grupos sociais que

a t r i m ô n i o
sexual. Eles dirigem suas ações para as mulhe- os iniciados devem compor e em torno dos
res, que, mesmo tentando escapar, terminam quais se organiza toda a sociedade Xikrin. A

P
sempre pegas para dançar, sem que isso impli- realização desses rituais envolve o domínio

d o
que em confronto interno entre os homens. de músicas e histórias apenas compartilhadas

e v i s t a
Já a Festa do Cigarro, ou Opetymo, ocorre durante o período de realização das festas e

R
durante o dia e tematiza fundamentalmente envolve também o domínio de intrincados
as relações dos homens uns com os outros, sistemas de grafismo, que são pintados pelas
celebra as tradições da guerra e da caça. A mulheres sobre a pele de todos.
participação feminina é vedada, somente os A necessidade de estudos que viabilizem
homens partilham os cantos entoados na a identificação e o reconhecimento desses
preparação da festa e no dia do ritual. Saem importantes bens patrimoniais é realmente
de cena as flautas e entram as vozes masculi- considerável se levarmos em conta o
143
nas, sai o mingau com mel e entra o opetymo, desmonte pelo qual o serviço público
o cigarro confeccionado com tauari e tabaco, brasileiro tem passado nos últimos anos, com
que tem cerca de 7 centímetros de diâmetro, o encolhimento das ações sociais do Estado.
chegando até um metro de comprimento, a Mesmo que o risco de desaparecimento
ser compartilhado durante a festa não seja tão grande nesse caso específico, a
Em comum com o Ieipari dos Arara, importância e a centralidade dessas práticas
além da importância cultural, as festas para a sociedade Xikrin comprovam a
dos Parakanã também sofrem o risco de relevância de seu reconhecimento como
desaparecimento. As pressões do contato patrimônio imaterial.
com os não indígenas e todo o fetiche Entre os Araweté também existem
e atração que as “mercadorias brancas” inúmeros etnoconhecimentos que redundam
exercem têm ameaçado a continuidade em patrimônios importantes, ainda que essa
dessas manifestações culturais, antes mesmo noção seja desconhecida pelo próprio povo.
que sejam identificadas como patrimônio Podemos destacar, entre as muitas realizações Menina kayapó, aldeia
Mojkarakó, Pará, 2015
imaterial que são por excelência. culturais desse povo, a Festa do Kan, ou do Foto: Renato Soares.
Jabuti, uma grande cauinagem. Durante aldeias, funcionando como mecanismo de
Patr imônio cultural indígena no médio Xingu:
entre a falta de identificação e a necessidade de reconhecimento

vários dias as mulheres de determinado grupo facilitação das relações exteriores com os
a c i o n a l

familiar, no período da colheita do milho, vizinhos da mesma etnia. Dada a importân-


começam a mastigar o produto e armazená- cia da sua realização para o povo Araweté, a
lo com água para que fermente. Todos os festa constitui indubitavelmente um impor-
N
r t í s t i c o

dias o milho já fermentado é servido aos tante patrimônio que precisa ser identifica-
vizinhos e convidados, no final da tarde, e o do e reconhecido como tal pela sociedade
A

líquido é separado para continuar o processo não indígena, ensejando a proteção de suas
e

de fermentação. Essa dinâmica se repete até terras e a manutenção de seus territórios


i s t ó r i c o

que haja uma quantidade considerada boa de caça e de plantio de roças de milho. Só
de mingau para oferecer durante a festa. assim será garantida a realização da festa,
William César Lopes Domingues
H

Só então o dia de sua realização pode ser uma vez que sem jabutis e sem milho não é
a t r i m ô n i o

anunciado. Em seguida, os homens da aldeia possível realizá-la.


vão para a mata caçar os jabutis a serem Os Asurini do Xingu, de quem tomo
P

partilhados na festa, em pagamento do cauim. emprestado o conceito de Ure reka utilizado


d o

Os homens se pintam com urucum no início do texto, ocupam três aldeias na


e v i s t a

e dançam em intervalos de cerca de 20 margem direita do rio Xingu, Kwatinemu,


R

minutos, depois se deitam em esteiras. O Ita’aka e Muiryna. Entre suas muitas


cauim é então servido para todos em uma realizações culturais, destaca-se o complexo
cuia, e deve ser ingerido até o fim. Nos ritualístico das flautas, ou Ture, composto por
intervalos é ofertado aos participantes o vários rituais menores. A realização da Festa
petym, cigarro feito com tabaco enrolado da Flautas, como é chamada pelos Asurini,
na entrecasca do tauari. Quando o cauim é condicionada aos sonhos dos pajés, que
acaba, o que normalmente só acontece ao determinam quando ela deve ocorrer. Em
144
amanhecer, as pessoas trazem as panelas com geral, acontece anual ou bianualmente.
os jabutis cozidos, separados nas panelas Os preparativos levam cerca de três meses.
dispostas em ordem decrescente. Cada uma São confeccionadas flautas de bambu de
delas com partes específicas, numas as patas tamanhos e diâmetros variados, que definem
dianteiras, em outras as traseiras, os fígados, o tom de cada uma delas. Os homens se
as vísceras etc. O alimento oferecido pelos reúnem para tocar e aprender as músicas
participantes é consumido pela família durante a noite por vários meses. Durante as
do dono da festa e servido a todos os tardes, os jovens – que serão iniciados na festa
participantes, geralmente acompanhado de recebendo as escarificações características –
farinha de milho torrado. treinam com um molde de cipós feito com
A festa é um importante marco regula- a mesma altura da panela grande, tauwa
tório das ações de reciprocidade e marca a rukaia, que deverão saltar durante a festa,
realização de alianças formais de caça e de marcando assim sua entrada no mundo
troca de esposas entre os homens, fortale- adulto, o mundo das mediações políticas e
ce os laços com os convidados de outras sociais com os demais seres que compõem
Patr imônio cultural indígena no médio Xingu:
entre a falta de identificação e a necessidade de reconhecimento
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o

William César Lopes Domingues


H
a t r i m ô n i o
P
d o
e v i s t a
R
o cosmo asurini. O sangue derramado na acompanhados de uma jovem solteira. Ao Urucum, 2010
Foto: Ronaldo Nina.

escarificação servirá de pagamento pelo romper do dia eles devem se dirigir à mata
sangue dos inimigos derramado nas caçadas e para o encerramento do ritual, que envolve
nas guerras. Isso serve para mediar as relações técnicas próprias de sobrevivência e de serviço 145

entre os seres humanos, apresentem-se eles aos mais velhos.


como humanos ou como animais, uma vez Há também um momento específico da
que todos são essencialmente humanos. festa que compete às mulheres: elas cantam e
O Ture marca o único período em que dançam durante todo o dia em forma circular
é possível se referir aos mortos enterrados ao redor da uirasime, figura feminina que
na Casa Grande, tawiwe, pelo seu nome. desempenha papel ritualístico similar ao do
Depois que os jovens iniciados pulam a pajé, que é sempre um homem. A uirasime,
grande panela posicionada no centro da Casa sempre mais velha, entoa os cânticos, que
Grande e ao lado do cemitério que fica em são respondidos pelo contracanto das jovens
seu interior, os velhos lhes contam as histórias que cantam ao seu redor. Cabe às mulheres a
de seus antepassados ali enterrados, contam confecção da tauwa rukaia, a Panela Grande
seus feitos e todos os presentes entoam um feita no centro da tawiwe, e dos adornos
choro ritualístico. Os jovens são, então, doados pelos iniciados àqueles que os
escarificados e dançam durante toda a noite, pegarem do outro lado da panela.
O complexo ritualístico da Festa das considerável de não indígenas atuando
Patr imônio cultural indígena no médio Xingu:
entre a falta de identificação e a necessidade de reconhecimento

Flautas entre os Asurini do Xingu é a espinha dentro das aldeias, para onde levam novos
a c i o n a l

dorsal a partir da qual a sua vida comunitária costumes, bebidas alcoólicas, música e
e cosmológica se molda. Funciona como distrações alheias ao cotidiano das aldeias.
fator aglutinador dos mundos físicos e Desse modo, cativam especialmente
N
r t í s t i c o

metafísicos, um ritual propiciatório com os jovens para um modo de viver em


aspectos políticos e sociais. Como no caso conformidade com os padrões regionais.
A

de tantos outros bens imateriais dos povos Isso tem provocado um esvaziamento em
e

indígenas da região, ainda não foi efetivado larga escala da participação dos jovens nas
i s t ó r i c o

nenhum esforço oficial para a identificação e realizações culturais de seus povos. Afinal, a
o reconhecimento desse patrimônio cultural partir da perspectiva desses agentes externos,
William César Lopes Domingues
H

do povo Asurini do Xingu. suas tradições passaram a ser consideradas


a t r i m ô n i o

O que intento ao relatar aqui realizações como feias, estranhas ou mera feitiçaria...
culturais de alguns dos povos indígenas da Essa é a barreira inicial a ser vencida
P

região do médio Xingu é demonstrar que para que os povos indígenas da região do
d o

há um vasto campo, cheio de significativos médio Xingu sejam informados sobre o


e v i s t a

bens do patrimônio imaterial que precisam que seja patrimônio. Depois, será preciso
de uma ação específica, somada a um romper a barreira linguística e cultural
R

esforço interinstitucional envolvendo a que separa o conceito de patrimônio das


Fundação Nacional do Índio – Funai e concepções culturais desses povos, cujas
as demais organizações governamentais e epistemologias e noções de patrimônio não
não governamentais afins, no sentido de são necessariamente idênticas às da sociedade
inicialmente esclarecer nossas comunidades não indígena que deram origem aos
a respeito do que seja patrimônio e sobre conceitos de patrimônio e de materialidade
146 as possibilidades que podem se abrir ao e imaterialidade. Com apoio de várias
ter algumas de suas realizações culturais instituições, é necessário criar e desenvolver
identificadas e reconhecidas como um programa de ações educativas para a
patrimônio imaterial. valorização dos patrimônios culturais das
A maioria absoluta, para não dizer a comunidades indígenas do médio Xingu,
totalidade dos povos indígenas da região, não informando-as sobre o que seja patrimônio e
tem qualquer informação sobre patrimônio. sobre a necessidade de sua manutenção.
Vive em locais isolados, sem acesso contínuo Promover o reconhecimento dos povos
a canais educativos de televisão, a telefonia ou indígenas do médio Xingu como detentores
internet. Em grande parte monolíngues, só se de formas de expressão cultural próprias e
expressam na língua materna. específicas, em permanente recriação, deve
As pressões sociais sobre seus territórios ser um dos pilares de qualquer ação no
e culturas são enormes, sobretudo a partir sentido de incentivar a valorização e a gestão
da construção da usina hidrelétrica de de seu patrimônio. Isso só pode ser feito com
Belo Monte, que colocou uma quantidade o apoio e a participação das organizações
governamentais e não governamentais que pelos parentes, que é como nos referimos uns

Patr imônio cultural indígena no médio Xingu:


entre a falta de identificação e a necessidade de reconhecimento
atuam junto a nosso povo, criando contextos aos outros. Seu interesse é percebido como

a c i o n a l
em que esse patrimônio possa ser protegido, algo que certamente nos prejudicará depois.
contribuindo para a revitalização cultural Essa é uma dificuldade que terá de ser en-
e a emancipação social e política dos povos frentada por qualquer programa voltado para

Nr t í s t i c o
indígenas do médio Xingu. a identificação e reconhecimento do patrimô-
Propositalmente, não citei aqui nada nio entre nosso povo.

A
relacionado ao conhecimento detido pelos A associação da cultura das elites ao

e
pajés, os segredos e mistérios que conformam patrimônio material e das culturas dos povos

i s t ó r i c o
nossas vidas metafísicas, justamente porque, indígenas ao imaterial, por si só, merece uma
embora possam ser considerados como reflexão profunda. É evidente que tanto a

William César Lopes Domingues


H
patrimônios imateriais, são bens controlados cultura das elites quanto as culturas indígenas

a t r i m ô n i o
por seres de outras esferas do universo que e populares possuem dimensões materiais e
se encontram em contato com os pajés e imateriais. A pressuposta pobreza material

P
outros detentores desses conhecimentos. que se atribui ao patrimônio dos povos

d o
Os pajés dominam tal conhecimento, mas, indígenas e das camadas populares evidencia

e v i s t a
não se consideram, e de fato não são, os um certo preconceito, alicerçado no uso

R
donos desses saberes. Eles são adquiridos de determinados tipos de material e na sua
nas relações que mantêm nas diversas durabilidade, como já disse anteriormente.
esferas metafísicas do cosmos e não podem Embora o Decreto no 3.551/2000
ser identificados por quem não tenha sido inove em relação ao reconhecimento da
escolhido para esse fim. importância da imaterialidade do patrimônio
As festas que elenquei, embora possuam cultural, ele não deve ser usado como
aspectos que pertencem a essas esferas, têm justificativa para o não reconhecimento
147
uma função e a participação social de todos dos bens patrimoniais materiais dos povos
os membros da comunidade é definida. São indígenas, a despeito das matérias-primas
fruto de conhecimentos partilhados entre utilizadas em sua confecção.
todos, indistintamente, ou com as interdições O patrimônio cultural dos povos
previstas para cada um, que no caso passa indígenas do médio Xingu não é só
a desenvolver um outro papel já previsto. imaterial. Assim como o de todos os povos
Esse, definitivamente, não é o caso dos indígenas do país, ele é também material e é
conhecimentos dos pajés, que são exclusivos preciso usar de sensibilidade para entender
deles ou de quem os seres metafísicos o que ousamos chamar de materialidade dos
indicam para guardá-los. trópicos úmidos. Ao mesmo tempo, deve
Por conta do processo de colonização ser intensificado o trabalho de educação
brutal a que nossos povos vêm sendo subme- patrimonial entre os povos indígenas. Esse Manihot. Aquarela de José
Joaquim Freire. Expedição
tidos desde a ocupação europeia, o interesse processo deve prover as condições necessárias Científica Alexandre
Rodrigues Ferreira
dos “brancos” pelos conhecimentos tradi- para que as comunidades indígenas exerçam (1783 a 1792)
Acervo: Fundação Biblioteca
cionais é geralmente visto com desconfiança o direito, que, aliás, é a espinha dorsal do Nacional, Brasil.
decreto, de eles próprios identificarem povo brasileiro, fomos relegados ao passado,
Patr imônio cultural indígena no médio Xingu:
entre a falta de identificação e a necessidade de reconhecimento

e reclamarem o reconhecimento de seu sem direito a futuro. Essa visão perdurou até
a c i o n a l

patrimônio material e imaterial, o que – meados do século 20, quiçá perdure ainda
com o que se tem hoje de informação – está hoje em muitos lugares.
vedado aos povos indígenas do A promulgação da Constituição Federal
N
r t í s t i c o

médio Xingu. de 1988, que nos garantiu o direito de


Outra questão relevante diz respeito à permanência enquanto povos indígenas, bem
A

própria origem dos bens que temos hoje como o surgimento do multiculturalismo,
e

reconhecidos, todos eles frutos de uma que viabiliza a ideia de coexistência das
i s t ó r i c o

política de patrimônio que resulta de múltiplas e diversas identidades nacionais,


projetos de afirmação de uma identidade possibilitou o reconhecimento dos
William César Lopes Domingues
H

nacional. Talvez isso explique o atraso patrimônios culturais dos povos indígenas.
a t r i m ô n i o

no reconhecimento e na identificação do Isso porque já não somos oficialmente


patrimônio dos povos indígenas. A história considerados como povos do passado
P

do Brasil, como a de muitos outros países ou fadados a desaparecer para dar lugar
d o

que surgiram a partir do processo de aos trabalhadores nacionais, como era


e v i s t a

colonização europeu iniciado no século preconizado pelo Serviço de Proteção aos


R

15, é marcada por um longo processo de Índios e Localização dos Trabalhadores


afirmação de uma identidade nacional, após Nacionais – SPILTN, paradoxalmente criado
as declarações de independência. Antes disso, para nos defender das frentes de expansão
as colônias não passavam de cópias mal feitas nacionais financiadas pelo mesmo Estado
das metrópoles. Com a independência, era que o criou.
necessário afirmar as diferenças surgidas, para No médio Xingu, os parentes tiveram
ressaltar uma identidade diversa daquela dos tempos de contato intermitente com as
148
países que os colonizaram. frentes de expansão colonialistas, em geral
O Brasil passou por diferentes etapas a partir da década de 1940. Apesar disso,
nesse processo em relação aos povos todos viviam, mesmo os de contato secular
indígenas. Inicialmente, como herança mais como os Xipaya e Kuruaya, em isolamento
direta do império português, a tônica estava relativo em relação à sociedade ocidental
na eliminação do elemento indígena. O representada pela cidade de Altamira, à
novo país deveria ser branco, culto, refinado, qual tinham pouco acesso por conta das
europeu nos trópicos... E os povos indígenas, distâncias e das condições geográficas da
considerados simplesmente selvagens, região. O regime tutelar mantido com
deveriam pertencer ao passado e desaparecer mão de ferro pelo escritório local da Funai
o mais rápido possível. Posteriormente, tinha como objetivo manter esses povos em
embora ainda apagados ideologicamente, os isolamento, sob o pretexto de os proteger das
nossos antepassados passaram a figurar no investidas das frentes de expansão, que não
mito nacional das três raças que formaram a eram novidade na região, desde a época da
nação brasileira. Mas, depois de “formar” o ocupação europeia.
Essa política tutelar manteve os povos Referências

Patr imônio cultural indígena no médio Xingu:


entre a falta de identificação e a necessidade de reconhecimento
indígenas sem acesso a uma educação de

a c i o n a l
qualidade e a cuidados sistemáticos de saúde, FAUSTO, Carlos. Inimigos fiéis. História, guerra e
xamanismo na Amazônia. São Paulo: Edusp, 2001.
tampouco os preparou para viver de forma
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. São
autônoma, prescindindo da intermediação

N
Paulo: LTC, 1989.

r t í s t i c o
tutelar. Os processos de educação escolar MÜLLER, Regina Polo. Os Asurini do Xingu. História e
bilíngues são relativamente recentes e apenas arte. Campinas: Editora da Unicamp. 1990.

A
há alguns anos os professores das aldeias SILVA, Fabíola Andréa; GORDON, Cesar (orgs.).

e
Xikrin. Uma coleção etnográfica. São Paulo: Edusp,
passaram a ser os próprios indígenas. É ainda

i s t ó r i c o
2011.
mais recente a oferta dos últimos anos da TEIXEIRA-PINTO, Márnio. Ieipari. Sacrifícios e vida
educação fundamental em regime modular. social entre os índios Arara. São Paulo: Editora Hucitec/

William César Lopes Domingues


H
Anpocs/Editora da UFRG, 1997.
Esse quadro criou um cenário extremamente

a t r i m ô n i o
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Araweté. Os deuses
deficitário de agentes indígenas conscientes
canibais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/Anpocs, 1986.
de seus direitos, capazes de fazer frente às

P
constantes pressões sobre seus territórios.

d o
A construção da usina hidrelétrica de

e v i s t a
Belo Monte, iniciada em 2010, é o ponto
culminante dessa pressão.

R
O baixo nível de escolarização, os
impactos do processo de construção da
hidrelétrica e toda a pressão territorial que
ela traz sobre os povos indígenas se somam
aos outros fatores que dificultam a esses
povos empreender ações de solicitação de
reconhecimento de bens de seu patrimônio 149

cultural. Talvez porque possivelmente essa


reflexão ainda não tenha sido feita, o que
exige o empreendimento de esforços para que
esses povos tenham condições de fazê-lo, se
assim desejarem. Entre a falta de identificação
e a necessidade de reconhecimento, os
patrimônios materiais e imateriais dos
povos indígenas do médio Xingu seguem
desaparecendo dia após dia, silenciosamente
esquecidos nas margens do rio Xingu e
de seus afluentes, até que sejam efetivadas
ações que possibilitem aos seus detentores
condições de reclamar a sua identificação e
reconhecimento. Coifa xikrin, Pará, 2005
Foto: Renato Soares.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

150
Larissa Maria de Almeida Guimarães Do barro ao patrimônio cultural imaterial em Roraima
Lar issa Mar ia de Almeida Guimarães

a c i o n a l
Do barro ao patrimônio cultural imaterial

R oraima

N
em

r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
Falar de bem cultural, de patrimônio Constituem patrimônio cultural brasileiro os
imaterial, imediatamente nos remete tanto bens de natureza material e imaterial, tomados
a uma estrutura que define seus conceitos individualmente ou em conjunto, portadores

P
de referência à identidade, à ação, à memória
quanto aos atores e agentes que lhe atribuem

d o
dos diferentes grupos formadores da sociedade

e v i s t a
significação dentro de uma dimensão
brasileira, nos quais se incluem: I – as formas de
política e social. Pensar no patrimônio
expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III –

R
cultural imaterial quer dizer, portanto, as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV –
elencar critérios que, dentro de campos as obras, objetos, documentos, edificações e demais
específicos, possam construir narrativas para espaços destinados às manifestações artístico-
determinar os agentes, os atores sociais e os culturais; V – os conjuntos urbanos e sítios de
processos de seleção capazes de identificar valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico,
os bens culturais eleitos para carregar tais paleontológico, ecológico e científico.
elementos significativos. 151
Nesse sentido, o reconhecimento
Partindo de premissas institucionalizadas
incide em preservação e proteção. É que a
por organismos governamentais, em
preservação de certos elementos culturais
nível nacional e internacional, podemos
antecede à política preservacionista
dimensionar o recorte do patrimônio
estruturada por serviços governamentais. A
cultural e seus bens como:
arte de guardar e criar significações culturais
(...) tudo o que criamos, valorizamos e antecede mesmo a escrita, pois a tradição
queremos preservar: são os monumentos e obras oral já fazia o registro daquilo que deve e
de arte, e também festas, músicas e danças, os merece ser lembrado.
folguedos e as comidas, os saberes, fazeres e
O ato de proteção, enquanto
falares. Tudo enfim que produzimos com as
ordenamento jurídico e normativo, adveio no
mãos, as ideias e a fantasia (Fonseca, 2001b).
Brasil da Lei nº 378/1937 e do Decreto-lei nº
(grifo nosso) Comunidade indígena de
25/1937, em que a proteção significava a ação Manalai, etnia Ingarikó,
Terra Indígena Raposa
A Constituição Federal do Brasil de 1988 legítima do Estado em intervir no patrimônio Serra do Sol,
Uiramutã (RR), 2013
assim dispõe, em seu artigo 216: histórico e artístico (no caso, tombado), no Foto: Jorge Macedo.
sentido de preservar sua integridade física e ção dos atores diversos e a inserção de cada
Do barro ao patrimônio cultural imaterial em Roraima

simbólica, cabendo ao governo a fiscalização bem em campos específicos. Assim, em uma


a c i o n a l

e penalização de qualquer ato que depredasse perspectiva de intencionalidade a partir de


ou descaracterizasse o bem. subjetividades que, ultrapassando um viés
Segundo Maria Cecília Londres Fonseca, individualista de um agente social autôno-
N
r t í s t i c o

mo, implique nas negociações necessárias


A imagem que a expressão “Patrimônio
para considerar os “desejos e motivações”
Histórico e Artístico” evoca para as pessoas é a
A

de um conjunto de monumentos antigos que


culturalmente construídos, de todos os atores
e

envolvidos, dado que as relações de poder são


i s t ó r i c o

devemos preservar, ou porque constituem obras


de arte excepcionais, ou por terem sido palco de muitas vezes assimétricas (Ortner, 2006, apud
eventos marcantes, referidos em documentos e Grossi et al., 2007).
H

em narrativas dos historiadores. Entretanto, é Ortner dialoga com Giddens (1979),


a t r i m ô n i o

Larissa Maria de Almeida Guimarães

forçoso reconhecer que essa imagem, produzida enfatizando que o autor reconhece “o caráter
pelos efeitos mais visíveis da política de patrimônio intencional ou consciente do comportamento
conduzida pelo Estado Brasileiro por mais de
P

humano, mas, ao mesmo tempo, enfatiza


d o

sessenta anos, está longe de refletir a diversidade,


a ‘intencionalidade’ como processo”
e v i s t a

assim como as tensões e os conflitos que


(Ortner, 2006:52). O processo que incide
caracterizam a dinâmica cultural do País, tanto
R

a mais recente, quanto a do passado (Fonseca,


no agenciamento e na intencionalidade
2001a:185).
dos atores sobre os resultados esperados
nem sempre condiz com a realidade, posto
Essas noções contextualizadas incorrem que a maioria das consequências constitui
em definições e critérios que envolvem resultados não intencionais da ação,
tanto a construção de memórias, enquanto acabando por problematizar o quanto a
trabalho de enquadramento formal (Pollak, intencionalidade pesa sobre os agentes e
152
1992), quanto o sentimento de identidade suas potencialidades de organização, fruição,
que nasce das práticas coletivas, dinâmicas coordenação e mesmo coerção, em projetos
sociais e performances que possam representar individuais ou coletivos. Incidem sobre o
as coletividades em questão, o que inclui o agenciamento questões de desigualdade
recorte dos elementos que possam legitimar as e relações de poder assimétricas que, de
escolhas dos bens que lhes são significativos. um mundo social para outro, variam e se
Não se trata apenas de reconhecer e estruturam a partir de demandas situadas
desenvolver políticas públicas que deem conta em campos constantes de negociação, que
das demandas que emergem com a legitimação têm muito a ver com a intencionalidade em
dessas narrativas em torno de um bem cultural. alcançar objetivos em meio a relações de
Seu reconhecimento como tal exige também poder desiguais, “sendo o poder (...) uma faca
que se reconheçam as potencialidades de de dois gumes, operando de cima para baixo
novos agenciamentos e que se reestruturem as como dominação, e de baixo para cima como
agências a partir dessa nova realidade. resistência” (Ortner, 2006:58).
A questão da agência envolve a participa- A noção de agency (Strathern, 1987) abor-
da as questões de poder e desigualdade enfo- tradicionais”1, versa sobre a preservação do

Do barro ao patrimônio cultural imaterial em Roraima


cando na autonomia, sem reduzi-la às relações diverso, do diferente, do singular, utilizando

a c i o n a l
estritas de dominação e subordinação, mas a a “força consagradora dos instrumentos legais
de proteção por parte dos Estados-Nações”
partir das noções de pessoas e potencialidades

N
(Abreu apud Barrio et al, 2010:65). Como
em frente às motivações e como os efeitos

r t í s t i c o
criar uma legislação que atenda aos interesses
sociais se apresentam.
coletivos de grupos e comunidades locais
Nesse sentido, como a construção

A
em processo de circulação? São questões que

e
de memórias e a preservação de um dito

i s t ó r i c o
permeiam o patrimônio, enquanto campo de
“patrimônio” podem ser desconectados interesses contraditórios.
das estruturas de poder que permeiam essa O foco principal deste artigo não são as

H
a t r i m ô n i o
políticas públicas em si, mas os meandros que
relação? As práticas discursivas da preservação

Larissa Maria de Almeida Guimarães


incidem no planejamento e execução de polí-
da memória acabam sendo justificadas pela
ticas, através da construção de narrativas so-

P
potencialidade da perda e do esquecimento
bre objetos e pessoas que se tornam “bens” e

d o
(Pollak, 1989), obliterando a possibilidade como esses bens se reconfiguram na constru-

e v i s t a
das práticas discursivas enquanto constructos ção de uma identidade cultural de base local,

R
de novas memórias e interpretações em representativa de uma “cultura roraimense”.
torno do vivido e do lembrado, “semeando Em Roraima, a lei2 que dispõe sobre
memórias e esquecimentos, preservações e a preservação e proteção do patrimônio
cultural do estado é recente. Publicada em 7
destruições” (Chagas, 2005:3).
de julho de 2009, reconhece, em seu artigo
O patrimônio pode e deve ser pensado
1º, como patrimônio cultural do estado,
como um espaço simbólico de construção entre outros bens: I - as formas de expressão, 153
de práticas sociais diversas, em que relações II – os modos de criar, fazer e viver; VI – a
complexas são estabelecidas pelos agentes cultura indígena tomada isoladamente e
envolvidos, que percebem os campos sociais em conjunto, e VII – as paisagens culturais.
enquanto “campos possíveis de práticas Entretanto, o texto da lei não chega a

sociais diversas” (Costa e Castro, 2008:126),


1 “Os povos e comunidades tradicionais são grupos cultural-
em constante fruição a partir das diferentes mente diferenciados, que possuem condições sociais, culturais e
econômicas próprias, mantendo relações específicas com o terri-
possibilidades de agenciamento construídas tório e com o meio ambiente no qual estão inseridos. Respeitam
também o princípio da sustentabilidade, buscando a sobrevi-
em torno e a partir de relações em que vência das gerações presentes sob os aspectos físicos, culturais e
econômicos, bem como assegurando as mesmas possibilidades
incidem poder, imaginação, legitimação, usos, para as próximas gerações.
São povos que ocupam ou reivindicam seus territórios tra-
dicionalmente ocupados, seja essa ocupação permanente ou
intencionalidade etc. temporária. Os membros de um povo ou comunidade tradicional
têm modos de ser, fazer e viver distintos dos da sociedade em
A ideia da “patrimonialização das geral, o que faz com que esses grupos se autorreconheçam como
portadores de identidades e direitos próprios”. (Cartilha Direitos
diferenças”, com a proteção da diversidade dos povos e comunidades tradicionais, p. 12)

cultural dos chamados “conhecimentos 2. Lei Estadual nº 718, de 6 de julho de 2009.


R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

154
Larissa Maria de Almeida Guimarães Do barro ao patrimônio cultural imaterial em Roraima
Foto: Renato Soares.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

Waimiri Atroari, Roraima


155

Larissa Maria de Almeida Guimarães Do barro ao patrimônio cultural imaterial em Roraima


esclarecer o que seria essa “cultura indígena” com aproximadamente 13 línguas indígenas
Do barro ao patrimônio cultural imaterial em Roraima

e, no parágrafo único do artigo 3º, sintetiza a diferentes e uma característica peculiar que
consiste em ser o estado brasileiro com o maior
a c i o n a l

legislação federal vigente3 para bens imateriais


número de áreas destinadas aos índios.
enquanto modus operandi do processo de
Na primeira metade do século XX, as
reconhecimento.
N

correntes migratórias se intensificaram para o


r t í s t i c o

A legislação municipal de Boa Vista, Rio Branco e nos últimos 25 anos foram mais
por meio da Lei n° 1.427, de 15 de junho intensas ainda. A explicação para essa explosão no
A

de 2012, de iniciativa do Poder Executivo, crescimento foi dada por dois fatores:
e

institui o tombamento e registro de bens e Primeiro: a abertura, em 1977, da BR-


i s t ó r i c o

organiza a proteção do Patrimônio Cultural e 174 ligando Manaus a Boa Vista e Boa Vista a
Museológico do município, regulamentando Pacaraima;
H

Segundo: a campanha desenvolvida pelo


em seu Capítulo IV o processo de registro de
a t r i m ô n i o

governo do então Território Federal de Roraima,


Larissa Maria de Almeida Guimarães

bens culturais. Tal legislação segue os moldes


que aliada à abertura dos garimpos, trouxe uma
do Decreto nº 3.551/2000.
enorme leva migratória para Roraima.
P

Um ano antes, a Prefeitura de Boa Vista, As etnias mais conhecidas são as Macuxi,
d o

através da sua Fundação de Educação, Ingarikó, Wapixana, Taurepang, Wai-wai,


e v i s t a

Turismo, Esporte e Cultura – Fetec, realizou Waimiri-atroari e Yanomami. Essas etnias se


R

o Inventário do Patrimônio Cultural dividem nas seguintes famílias lingüísticas:


de Boa Vista, elencando as principais Karib: Macuxi, Taurepang, Ingaricó, Y’ekuana,
referências culturais para o município a Patamona, Wai-wai e Wamiri/Atroari; Aruak:
Wapixana e Yanomami; Sapará e Atroarú: povos
partir do reconhecimento da materialidade
remanescentes que não constam nos censos.
e imaterialidade dos bens culturais que
No município de Boa Vista existem 15 comu-
integram o rol do patrimônio cultural. Trata- nidades indígenas pertencentes às terras indígenas,
se da primeira e única publicação, em nível a saber: terra indígena Truaru, terra indígena Serra
156
municipal em todo o estado de Roraima, que da Moça, terra indígena São Marcos (baixo São
se dedica à temática do patrimônio enquanto Marcos), esta última demarcada em 29-10-1991,
política institucionalizada. Voltando-nos em Decreto nº 312, com uma área de 654.111 ha. Vi-
especial para o Patrimônio Cultural Imaterial, vem nessa região aproximadamente 3.000 índios,
tendo como principais etnias Macuxi e Wapixana,
as Comunidades Indígenas de Boa Vista (p.
distribuídas nas comunidades: Serra da Moça,
50-1), são assim descritas no documento:
Truaru da Serra, Morce-
Roraima, que faz go, Campo Alegre,
fronteira com a República Vista Alegre,
Cooperativista da Guiana Darôra, Ilha, Vista
e Venezuela, conta com Nova, Mauixi,
Panela macuxi,
Boa Vista (RR), 2018 uma diversidade sócio- Milho, Lago Gran-
Foto: Márcio Vianna/
Acervo Iphan.­­ cultural e lingüística de, Bom Jesus, Três
Irmãos e Truaru da
3. Decreto nº 3.551,
Cabeceira. No ano
de 4 de agosto de de 2009 surgiu uma
2000.
nova comunidade, Aakan, a partir da dissidência se ancora na ancestralidade, no contato com Farinha macuxi
preparada na
da comunidade do Campo Alegre. a natureza, na oralidade e nas simbologias peneira,
Boa Vista (RR), 2018
Os povos indígenas desta região são conheci- interpretativas. Foto: Márcio Vianna/
Acervo Iphan.
dos historicamente como uma sociedade de agri-
cultores e caçadores. Essa região é formada tipica- No passado, as peças produzidas eram feitas
157
mente por lavrado, banhada pelos rios: Uraricuera, com o objetivo de suprir as necessidades de uso das
Tacutú, Surumu e Parimé. O solo é latossolo-ama- próprias famílias da comunidade. Com a difusão
relo, intemperizado e de baixa fertilidade. Ocorre e assimilação do objeto entre a sociedade regional
o aparecimento de áreas de ilha, onde se pratica a não-índia, a produção foi intensificada por
agricultura de subsistência, com o preparo de roças algumas famílias da comunidade, que encontraram
individuais e comunitárias, na cultura do milho, na atividade, além do prazer de cultivar uma
tradição ancestral, uma alternativa econômica
feijão, arroz, abóbora, mandioca, entre outros.
para complementar a renda familiar, sendo hoje
Tratando da cerâmica indígena em dia a produção voltada em maior parte para a
especificamente, e com enfoque na produção, comercialização (Canclini, 2003:55).
esse bem é reconhecido como importante
Reconhecendo o locus principal de
artesanato4, que reforça a identidade cultural
produção, as comunidades Raposa 1 e
da etnia Macuxi, assim como a tecnologia que
Raposa 2 no município de Normandia, na
Terra Indígena Raposa Serra do Sol – Tirss,
4. “O reino dos objetos que nunca poderiam dissociar-se do seu
sentido prático” (Canclini, 2003 p. 242). a ecologia cultural que envolve a produção,
a disponibilidade de recursos naturais e modificações no modo do fazer rústico para a
Do barro ao patrimônio cultural imaterial em Roraima

as técnicas necessárias para alcançar os construção mais elaborada nos detalhes do artefato
é o contato com culturas distintas. É possível que
a c i o n a l

resultados esperados, não há no texto


os novos designs tenham sido incorporados em
atenção dispensada às mãos que moldam
decorrência do diálogo e a troca de experiências
N

o barro. Despersonalizadas e figurativas,


culturais e entre as duas sociedades, no caso a
r t í s t i c o

as artesãs macuxi (também referidas como etnia Macuxi e a sociedade regional não-índia
“índias” no decorrer do texto), tornam-se em Roraima. A partir do processo de assimilação
A

secundárias diante do efeito estético que entre as diferentes culturas, as índias passaram a
e
i s t ó r i c o

a produção artesanal representa, efeito imitar e acompanhar as variações dos modelos


este que também circunscreve uma lógica industrializados. Indício dessa hipótese pode ser
o uso bastante difundido da panela de alumínio
H

etnocêntrica de cunho assimilacionista, sem


a t r i m ô n i o

nas diferentes aldeias indígenas da Raposa Serra


problematizar ou ao menos contextualizar o
Larissa Maria de Almeida Guimarães

do Sol que apresentam contato permanente ou


contato interétnico.
intermitente com não-índios (Canclini, 2003:57).
P

No passado os modelos construídos eram


d o

simples e não possuíam tampas. Hoje as artesãs Com o maior enfoque nas panelas de
e v i s t a

inovaram nas formas, elas estão reproduzindo e barro macuxi, torna-se perceptível, tanto em
também criando objetos diferentes e variados. reportagens como em documentos oficias
R

Uma das hipóteses imaginadas para as que elencam os bens culturais do município

158

Bolsa waiwai, Roraima


Foto: Jorge Macedo.
Do barro ao patrimônio cultural imaterial em Roraima
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o

Larissa Maria de Almeida Guimarães


P
d o
e v i s t a
R
de Boa Vista, as diferentes elucubrações filiação linguística karib; Yanomami, de
em torno da construção da ideia de “bem língua yanomami; e Wapixana, falantes da
cultural”. Essas narrativas enfocam padrões língua mapuere/arawak.
estéticos que são reflexo de um ideário local O conhecimento da feitura das panelas é
de singularidade cultural frente à identidade passado de geração em geração pela oralidade
nacional, bem como às particularidades locais e o “saber-fazendo”, que logo se tornará o “fa-
de outros estados, em especial do Amazonas, zer-sabendo”. Trata-se de um conhecimento 159
mais próximo simbólica e geograficamente. ancestral, que envolve desde o ponto de coleta
De acordo com Rodrigues (2015), as do barro, o reconhecimento de qual o melhor
panelas de barro são realizações de várias barro, até os tabus que especificam quais os
tribos indígenas, e as mulheres são as momentos em que a mulher não poderá reali-
responsáveis pelo conhecimento do modo zar a feitura da panela de barro, como duran-
de fazer, com registros fotográficos de te a menarca, por exemplo.
Koch-Grunberg (1911-1913) das makuxi Essa dupla troca, que envolve o saber que
confeccionando e trabalhando com a panela se constrói pelo próprio processo construtivo
de barro. Rodrigues também menciona o uso e se afirma com o resultado materializado,
de panelas de barro como urnas funerárias. atendendo às demandas que lhe competem,
A cultura indígena de Roraima é pode nos levar a um ponto de análise que
representada pelos povos etnolinguísticos: se verifica pelos resultados obtidos em Preparo da farinha
macuxi no tacho,
Makuxi, Ingarikó, Patamona, Taurepang, determinadas tarefas. Todas as práticas Boa Vista (RR), 2018
Foto: Márcio Vianna/
Ye’kuana, Wai-Wai e Waimiri-Atroari, de implicam em exigências mínimas para a Acervo Iphan.
Pintural corporal, manutenção não apenas da integridade física dos Unidos”, da Folha de Boa Vista Web5,
índios Xirixana,
Roraima, 2013 da panela, mas também de sua longevidade, enfoca tal artesanato como possibilidade de
Foto: Jorge Macedo.

o que nos remete à categoria consciente crescimento pessoal através do empreende-


de qualidade, contextualizada pelos novos dorismo de base cultural, devido a valores
espaços de inserção da panela de barro. que lhe são extrínsecos, tais como o alcance
160 Não se trata, entretanto, de uma tentativa do mercado global. É que turistas adquiri-
forçada de valorar a panela de barro a partir ram as peças e levaram para França, Suíça
de uma perspectiva desfocada do sistema e outros países da Europa, bem como para
produtivo macuxi. Trata-se antes de avaliar os Estados Unidos da América. Também aí
como os discursos e narrativas criados em percebe-se a valorização dos países situados
torno da panela e sua representação fora da no hemisfério norte, o que agregaria maior
cosmologia macuxi são possibilidades de valor ao produto e ao produtor.
referências culturais intercambiáveis com Um dos pontos menos mencionados foi a
a ideia de identidade local, que se constrói questão do preconceito, relatado na reporta-
em paralelo à identidade nacional brasileira, gem pela artesã macuxi6, da seguinte forma:
com marcadores iconográficos elegíveis como
“locais” a partir do referencial indígena, 5. Disponível em <http://www.folhabv.com.br/noticia/Panela-de-
-barro-produzida-em-Roraima-vai-parar-na-Europa-e-Estados-U-
especificamente o macuxi. nidos/24814>. Acessado em 6/6/2018.

A reportagem “Panela de barro produzi- 6. Neste artigo, não serão citados nomes, podendo os mesmos se-
rem consultados nas respectivas matérias jornalísticas disponíveis
da em Roraima vai parar na Europa e Esta- em sítios eletrônicos.
Era tempo de demarcação da Terra Indígena para representar a eleição de um emblema

Do barro ao patrimônio cultural imaterial em Roraima


Raposa Serra do Sol. Então, a sociedade local nos regional, tal como os monumentos franceses
via com preconceito. Cheguei a ser discriminada na

a c i o n a l
do pós-guerra, e observar o “macuxi” ser
Praça das Águas. Falavam: ”ela é índia, ela é índia”. paulatinamente fragmentado do “indígena
macuxi” para se tornar um novo elemento

N
r t í s t i c o
A lista de bens culturais imateriais re- identitário de uma cultura com herança
gistrados pelo Iphan é composta por bens indígena, com o reconhecimento identitário
que, em sua grande maioria, foram alvo de

A
não étnico. A panela de barro pode ser

e
repressões de cunho moral institucionaliza- um dos poucos recursos materiais que se

i s t ó r i c o
das por longos anos ou subalternizados por tornam bem cultural, especialmente pela
certos setores sociais, que as classificam como sua materialidade. Nesse caso o “saber-

H
“cultura popular”. A questão do preconceito fazer” toma o lugar do “saber-fazendo”,

a t r i m ô n i o

Larissa Maria de Almeida Guimarães


permeia os processos de reconhecimento e quando o bem materializado se sobrepõe e se
a identificação desses bens simboliza uma desvincula de seu detentor, ou quando este é

P
via para questionar padrões hegemônicos e romantizado e singularizado em personagens

d o
eurocêntricos, isto é, são processos de revisão alegóricos, ao mesmo tempo em que os

e v i s t a
do conceito de “cultura”, em que se admite processos de resistência por parte de seus
a existência da diversidade cultural, abrindo

R
detentores são evidentes e se realizam através
portas para identificar narrativas de diferentes do agenciamento do “sabendo-fazer”.
sujeitos sociais e históricos, antes silenciados e Reconhecer esse movimento é de suma
relegados aos poucos espaços de representação importância para compreender as dinâmicas
a eles destinados por agentes externos. pelas quais os bens culturais passam, em que
a materialidade do bem imaterial pode muitas
Os dilemas da identificação residem
vezes ofuscar ou suplantar a imaterialidade
no fato de reconhecer os elementos que 161
de fato. A dinâmica da identificação, ao
constituem os processos de seleção de bens,
realizar a seleção, redimensiona os sujeitos em
quem os fornece e realiza, quais são os atores
torno dos fins, do bem cultural que pode ser
e agentes envolvidos e na maneira como
representado pela materialidade, enquanto
essas relações são intercambiáveis. Sobretudo
forma indubitável de comprovação desse
quando vemos que o campo de políticas
“sabendo-fazer”.
públicas está cada vez menos restrito às mãos
Desse modo, a monumentalização
do Estado e conta com a participação
não implicou apenas a eleição
direta da população, reconhecida
de marcos materiais que se
enquanto sociedade civil
tornariam símbolos de
organizada.
histórias politicamente
No caso da panela de
situadas do lado do
barro macuxi, situamos
dominador, mas
a discussão em torno
construções de
desse bem “iconizado” Cesto ye’kuana, Roraima
narrativas históricas Foto: Jorge Macedo.
Do barro ao patrimônio cultural imaterial em Roraima
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o

Larissa Maria de Almeida Guimarães


P
d o
e v i s t a
R

Sítio arqueológico que (re)significassem aquela materialidade e Na reportagem “Comunidade indígena


Pedra Pintada, Terra
Indígena Reserva São a própria política, em processos de resistência de RR realiza a Festa da Panela de Barro Ko’
Marcos (RR), 2010
Foto: Jorge Macedo. que são materializados e consumidos nas ko Non” – a Festa da Panela de Barro, que
162
chamadas práticas circunstanciadas. Não é ocorre anualmente na comunidade Raposa I,
um discurso novo, mas insistir em recorrer a no município de Normandia –, os elementos
ele auxilia a desmistificar o campo de estudos culturais “tradicionalmente” indígenas são
do patrimônio e as práticas institucionais, citados: Panela de Barro e Parixara (dança),
em que o material e o imaterial estão ambos registrados por meio de fotografias na
conceitualmente separados – mas não matéria em questão. A programação da festa
epistemologicamente apartados. incluiu jogo de bingo e apresentações musi-
Conforme Nestor Garcia Canclini, cais. Um dos enfoques dados na reportagem
foi a arrecadação de dinheiro, por meio da
O patrimônio não inclui apenas a herança
comercialização dos artefatos, para ser entre-
de cada povo, as expressões “mortas” de sua
cultura (...), mas também os bens culturais gue aos artesãos e “também utilizado na cons-
visíveis e invisíveis: novos artesanatos, línguas, trução de um novo centro comunitário para
conhecimentos, documentação e comunicação do fabricação e exposição das panelas”.
que se considera apropriado através das indústrias Um concurso muito peculiar também fez
culturais (Canclini, 1994:91). parte do evento: o da confecção da menor
panela de barro, vencido por um aluno integridade física, que é garantida por todo

Do barro ao patrimônio cultural imaterial em Roraima


macuxi da comunidade. A panela, pequena o processo de confecção, desde a coleta do

a c i o n a l
o suficiente para ser sustentada na ponta barro até seu transporte depois de pronta,
do dedo, não é obviamente um utensílio de incluindo a realização de rituais para saber
uso doméstico, mas uma representação do quem pode produzi-la ou obter a permissão

N
r t í s t i c o
artefato. Transformada em objeto lúdico, para a retirada do barro7.
fica evidente que, na prática circunstanciada, A qualificação de “útil” ou “prática”

A
os valores se multiplicam, extravasando a não condiz com muitas das expectativas em

e
finalidade utilitária consciente para a qual a torno da panela, assim como as dinâmicas

i s t ó r i c o
panela foi fabricada, qual seja, a preparação pelas quais as artesãs da cerâmica macuxi
de alimentos. passaram a produzi-la, ultrapassando

H
Nesse ponto, vale trazer à discussão as seu uso tradicional, preestabelecido. Há

a t r i m ô n i o

Larissa Maria de Almeida Guimarães


ponderações realizadas por Adler Homero, demandas externas à população macuxi para
que em muito nos auxiliam a refletir acerca a produção, não apenas de panelas de barro,

P
de problemáticas persistentes nos campos mas de outros modelos como travessas,

d o
epistêmicos. Em seu artigo Patrimônio imate- petisqueira, potes, bem como a inserção da

e v i s t a
rial: problema mal-posto, o autor pontua que cerâmica para uso doméstico e decorativo,
bastante representativo de um modo de fazer

R
(...) os bens usados na cultura popular são,
roraimense e de um relevante traço cultural
primordialmente, utilitários; podem ser até de
grande beleza, mas a sua principal função é ser útil da região.
e prática, e os objetos não são feitos para durar Durante os preparativos das Olimpíadas
além do período em que serão usados. (...) os de 2016, a passagem da Tocha Olímpica
bens da elite são feitos para perdurar, para servir por Boa Vista representou um momento
de suporte de memória dessas próprias elites, de destaque da cultura local, com maior
enquanto as evidências materiais produzidas enfoque no artesanato (panela de barro) e na 163
pela população em geral não têm essa lógica de
gastronomia (paçoca). Para receber o Comitê
longevidade (Homero, 2006:106/7).
Olímpico Brasileiro – COB, a Prefeitura
Não nos interessa neste momento Municipal de Boa Vista encomendou cem
questionar o conceito de cultura popular,
mas sim contextualizá-lo ao nível da
7. “O barro que dá origem às panelas se chama ‘vovó barro’ e é
construção de um bem cultural, a partir de extraído das serras que circundam a aldeia, ao norte. Portanto,
não é qualquer barro. Para identificar a ‘vovó’, as mulheres
diferentes perspectivas êmicas que incidem extraem um pouco do mesmo e o amassam com as mãos para ver
em negociações de agenciamentos. Às ideias se ‘dá a liga’. No passado, somente as ’velhas’ faziam as panelas;
’trabalhar no barro’ era interdito às mulheres jovens, aos homens
de utilidade e praticidade, estão imbricados e às crianças. Era uma atividade perigosa que somente aquelas
que dominavam o conhecimento sobre a ’vovó’ podiam realizar.
conceitos de materialidade e temporalidade As mulheres faziam incursões às serras para extrair a ‘vovó’, obser-
vando rituais que começavam por colocar oferendas no lugar que
que mais dizem respeito às construções iria ser cavado para a extração do barro, como pedaços de tecido,
conceituais ocidentais e colonialistas. A tabaco ou pedaços de peixe assado. Em seguida, as mulheres
pediam permissão à ’vovó barro’, dizendo: ’Vovó, eu vim aqui te
qualidade da panela de barro se verifica buscar, para gente ir comer peixe, veado, pra nós tomar caxiri’
[bebida fermentada feita pelos Macuxi a partir da mandioca]”
efetivamente pela manutenção de sua (Cavalcante, 2008:11).
“panelinhas” de barro, tidas como “uma peça Na matéria jornalística “10 itens da
Do barro ao patrimônio cultural imaterial em Roraima

muito bonita, um dos símbolos do nosso CULTURA roraimense que te provam que
a c i o n a l

estado que será divulgado para o mundo aqui há CULTURA”10, a panela de barro
inteiro”8, conforme a reportagem “Comitê macuxi (inî) figura no terceiro item, com
Olímpico Brasileiro (COB) terá degustação destaque para suas potencialidades culinárias.
N
r t í s t i c o

de iguaria regional”, que registrou, ainda:. O texto enfatiza que apenas os mais velhos
“fazem com presteza a legítima panela de
A escolha da panela de barro e da paçoca foi
A

barro macuxi”, submetendo o indígena


feita porque reúnem forte influência indígena,
e

a um processo de fagocitose pela panela


i s t ó r i c o

como a técnica de sua fabricação que até hoje se-


gue a tradição das tribos indígenas. Elas são mode- que produz, quase um subproduto de seu
ladas com a utilização da argila e secam ao sol, em produto. A referência à organização social
H

seguida são polidas e queimadas a céu aberto. e aos agentes envolvidos na produção das
a t r i m ô n i o

Larissa Maria de Almeida Guimarães

panelas se perde no transporte da “maloca


Na edição de 2016 do Festival da Panela
para o urbano”.
de Barro, chamou a atenção o concurso
P

Cavalcante (2008:12) nos insere nessa


d o

da maior panela de barro9. Observa-se


transição da aldeia para a cidade, “quando
e v i s t a

que esses contrapontos, de maior e menor,


as panelas logo conquistaram a cidade sendo
personalizam a produção da panela,
vistas como objetos de decoração em lugares
R

reforçando outras possibilidades de práticas


públicos, além do uso doméstico”.
circunstanciadas, em que interessam não as
Trata-se, portanto, de ler o “bem cultural”
expectativas inerentes, mas a variabilidade
para além de expectativas imputadas por
delas. Consciente ou inconscientemente, a
meio de processos vários de documentação
agência propõe projetos que subvertem os
previamente situados, que antes atendem a
usos impostos e atendem a uma ordem de
uma ou mais demandas institucionalizadas.
164 ludicidade e interações outras com o bem.
Daí se iniciam outros movimentos de
Importante frisar que, no caso da menor
significação e dialogicidade nos quais os
panela, a mesma fora realizada por um
sentidos não se restringem às atribuições (r)
adolescente (homem) macuxi, enquanto
estritas, pois as pontes necessárias para a
a maior panela, por uma mulher macuxi.
prática circunstanciada se atualizam pela
Vemos o movimento da cidade para a aldeia,
própria dinamicidade em que os signos são
o retorno ao “original”, reflexo do potencial
construídos, evitando-se assim o duplo-
do agenciamento promovido especialmente
clique (Latour, 2004). A construção dessas
por mulheres indígenas.
pontes de reconhecimento talvez seja o
caminho para o estreitamento de cosmologias
8. Disponível no sítio eletrônico da Prefeitura de Boa Vista: institucionalizadas que se baseiam em
https://www.boavista.rr.gov.br/noticias/2016/06/comite-
olimpico-brasileiro-cob-tera-degustacao-de-iguaria-regional. mecanismos diversos, dando-se ênfase, de
9. Reportagem “Comunidade indígena de RR realiza a Festa da
Panela de Barro Ko’ ko Non”. Disponível no sítio eletrônico de
notícias G1: http://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2014/04/ 10. Disponível no sítio eletrônico Já Viajou: https://joviajou.
comunidade-indigena-de-rr-realiza-festa-da-panela-de-barro-ko- com/os-10/10-itens-da-cultura-roraimense-que-te-provam-que-
ko-non.html. aqui-ha-cultura/.
fato, à polifonia, tanto na ordem discursiva FONSECA, Maria Cecília Londres. Para além da “pedra

Do barro ao patrimônio cultural imaterial em Roraima


e cal”: por uma concepção ampla de patrimônio. Tempo
quanto na prática, e atentando para as
Brasileiro, n. 147, Rio de Janeiro, out-dez.2001a.

a c i o n a l
limitações e amplitudes de quem constrói a
narrativa e os acontecimentos em torno do ______. Patrimônio Imaterial. Tempo Brasileiro, n. 147,
Rio de Janeiro, out-dez.2001b.
bem cultural.

N
r t í s t i c o
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Larissa Maria de Almeida Guimarães


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construção imaginária do nacional. Revista do Patrimônio ou: Como não desentender o debate ciência- religião.

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Plano de Trabalho que contemple o detalhamento
COSTA FILHO, Aderval; MENDES, Ana Beatriz
Vianna. Direitos dos povos e comunidades tradicionais. das atividades a serem desenvolvidas ao longo do
Cartilha do Ministério Público de Minas Gerais. período de vigência do contrato para elaboração dos
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Acessado em 25/5/2018. Consultoria Prodoc Iphan/Unesco, 914BRZ4012,
DECRETO PRESIDENCIAL Nº 3.551, de 4 de agosto Projeto: Difusão e Ampliação da Política de Salvaguarda
de 2000. do Patrimônio Cultural Imaterial, Boa Vista/RR, 2015.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

166
Larissa Maria de Almeida Guimarães Do barro ao patrimônio cultural imaterial em Roraima
Foto: Jorge Macedo.
Monte Roraima, 2011
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
167

Larissa Maria de Almeida Guimarães Do barro ao patrimônio cultural imaterial em Roraima


R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

168
Fe r n a n d o M e s q u i t a Pilotis são palafitas: sobre ecologia da arquitetura e saberes que resistem na Amazônia marajoara
Fer nando Mesquita

a c i o n a l
P ilotis são palafitas : sobre ecologia da

A mazônia

N
arquitetura e saberes que resistem na

r t í s t i c o
marajoara 1

A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
O Marajó e as Amazônias Uma primeira aproximação ao problema
foi a aplicabilidade dos instrumentos
[O Marajó] tende a nos seduzir a falar de uma já adotados na valoração e proteção de

P
beleza e de uma pureza soberanas conjuntos monumentais das metrópoles na

d o
que podem vir a mascarar as inúmeras tensões

e v i s t a
Amazônia, para o caso da preservação de
existentes neste lugar de lugares –
sítios de cidades ribeirinhas. O tombamento,
tensões entre as pessoas e a dita natureza

R
por exemplo, é, em sua gênese, um ato
e tensões entre as próprias pessoas que ali vivem.
administrativo voltado para bens de natureza
(Razeira, 2008:5) material ou artefatos tangíveis dotados de
valor cultural e significados. A preservação
Em pesquisa desenvolvida durante o de bens dessa natureza, conforme leitura
Mestrado Profissional do Iphan, busquei olhar preliminar do entendimento trazido pelo
a cidade de Afuá, no norte da Ilha do Marajó, Decreto-lei no 25/1937, requer parâmetros 169

no Pará, sob o prisma da produção dos mais clássicos aos campos teóricos da
espaços habitados e de bens culturais, com o arquitetura, urbanismo e restauro,
intuito de compreender se os instrumentos voltados, sobretudo, a certo desempenho e
de preservação do patrimônio cultural excepcionalidade estética ou histórica daquilo
utilizados pelo Estado estariam adequados às que se almeja preservar, não se coadunando
características dos fenômenos culturais que ali a configurações espaciais transitórias, tais
se manifestavam. como as habitações ribeirinhas, para as quais
são adotados materiais construtivos mais
efêmeros, isto é, com pouca durabilidade.
Nesse ínterim, avaliei que, pelo viés do

1. Uma primeira versão deste artigo foi produzida no âmbito do


patrimônio cultural, a proteção de conjuntos
Cumeeira – Congresso da Arquitetura e Urbanismo na Cultura em pequenas cidades e vilas na Amazônia
Popular – Unicatólica de Quixadá (CE), em abril de 2018. Seu
título teve como inspiração a fala de Almir de Oliveira, ex- deveria ser pautada nas peculiaridades Casa em Afuá, Ilha de
superintendente do Iphan no Amazonas, em entrevista para a série Marajó (PA), 2016
“Habitar Habitat” do SescTV, em 2013. relativas à gênese dos seus assentamentos Foto: Fernando Mesquita.
humanos, à consolidação da ocupação ambiente onde se conjugam ecossistemas e
Pilotis são palafitas: sobre ecologia da arquitetura e saberes que resistem na Amazônia marajoara

regional em decorrência dos inúmeros ciclos cursos d’água em profusão e, em menor grau,
a c i o n a l

econômicos que têm caracterizado seu cidades”. Entretanto, os autores ressaltam que
processo de urbanização e, ainda, à lógica há múltiplas realidades presentes na Amazô-
nia, que são culturalmente diversas, politica-
N

social que produz o espaço habitado e lhe dá


r t í s t i c o

significado. Um estudo da situação urbana, mente complexas e ambientalmente instáveis.


e aí está incluída a valoração cultural de É válido destacar que a categoria
A

assentamentos humanos, “Amazônia marajoara” é adotada aqui para


e

situar geograficamente a cidade estudada.


i s t ó r i c o

(...) deve ser voltado ao entendimento da


Afuá é um dos dezesseis municípios que
realidade em transformação na região, onde
compõem o arquipélago do Marajó e,
H

uma nova ordem provinda de uma reinvenção


tomando como referência a perspectiva
a t r i m ô n i o

do campo e consequentemente do urbano na


Amazônia tem promovido uma reorganização adotada por Simões (2014) e Pacheco (2009)
urbana que não demonstra correspondência entre a partir da lógica dos sujeitos que ali habitam,
P

as transformações espaciais e a cultura da região também representa alguns dos muitos olhares
d o

(Cardoso & Lima, 2006:56). e lugares de fala das “Amazônias”


e v i s t a

ou “Marajós”:
A Amazônia a que me refiro aqui é aquela
R

representada por assentamentos humanos, O pluralizar de Marajó procura chamar a


com um certo modo de habitar característico atenção do leitor à complexidade de realidades
Fe r n a n d o M e s q u i t a

físicas, humanas, históricas e culturais existentes


em que prevalece a interação com os rios. As
entre os municípios conformadores das regiões
“cidades ribeirinhas” às quais me reportarei
de campos e florestas. Essa perspectiva ainda
são aqueles assentamentos onde há pouca questiona visões homogêneas e preconceituosas
terra firme, prevalecendo pontes, passarelas fabricadas pelos meios de comunicação, quando
170 ou estivas para conectar as suas partes e, visualizam imagens de um Marajó desenhado tão
sobretudo, onde há uma domesticação do rio somente por praias, búfalos e paisagens naturais
no cotidiano dos sujeitos. ou por seu ilhamento físico e social (Pacheco,
2009:438).
Assim, este vasto território é habitado por
caboclos, garimpeiros, posseiros, ribeirinhos, Razeira (2008) destaca que o INRC-
quilombolas, povos indígenas, pescadores, Marajó revelou uma grande variedade, ou
coletores, agricultores rurais, colonos, imigrantes, variação, nos modos de viver e nas visões
atingidos por barragens dentre outros povos de mundo nessa região. Segundo o autor,
que (re) constroem o espaço amazônico. Esta
características relacionadas ao “ambiente
diversidade de povos caracteriza a Amazônia como
extremo” de altas temperaturas e umidade,
um lugar heterogêneo, que é formado por um
com a presença constante de sol forte
universo cultural pluralizado (Almeida, 2009:3).
e os ciclos da “ditadura da água”, ficam
A predominância da vegetação na região, impressas no modo de ver e de viver de seus
segundo Tângari et al. (2016:2), nos dá a habitantes e são a base para as construções e a
ideia de uma paisagem uniforme e plana, “um reprodução de relações sociais.
As inúmeras sobreposições de tempos impulsionadas pelo advento de novas práticas

O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações

Pilotis são palafitas: sobre ecologia da arquitetura e saberes que resistem na Amazônia marajoara
que configuraram as diversas paisagens de produção espacial. Para o caso de cidades

a c i o n a l

a c i o n a l
na Amazônia, tais como as políticas ribeirinhas, as desmontagens, reconstruções
desenvolvimentistas de modernização e acréscimos de materiais são um processo
forçada, implementadas a partir da década de de tradução que ocorre frequentemente.

N
r t í s t i c o

r t í s t i c o
1960 e, mais recentemente, a intensificação Entretanto, o discurso que ressalta a perda
das redes de comunicação, têm concorrido de identidades tradicionais também tem

A
para a alteração das relações entre grandes justificado o que Gonçalves (2007b) chama

e
e pequenas cidades e, consequentemente, de “obsessão coletiva” para se possuir

i s t ó r i c o

i s t ó r i c o
modificado a maneira como os sujeitos patrimônios culturais, o que contribui para
constroem identidades e se apropriam a ocorrência de “falseamentos” na produção

H
Roberto Stanchi
do legado edificado. Essas alterações são do espaço urbano nas cidades. Os artefatos e

a t r i m ô n i o

a t r i m ô n i o
de ordem econômica, simbólica e de costumes locais passam então a ser valorizados
representação sobre a maneira como os e explorados de maneira espetacular

P
sujeitos apreendem o lugar onde vivem, para satisfazer as demandas da indústria

d o

d o
suas expectativas e como as objetivam na cultural do turismo (Arantes et al., 2000),

e v i s t a

e v i s t a
produção urbana e no seu modo de vida. tornando-se ocos de significado para a vida

R
Some-se a isso que as cidades ribeirinhas contemporânea da comunidade, e o espaço,
na Amazônia, tais como Afuá, têm passado ou a sua representação, torna-se objeto de

Fe r n a n d o M e s q u i t a
a assumir outro papel, além daquele de comercialização, competindo assim com as
produtoras de insumos, como, por exemplo, demais cidades na mesma condição.
o de espaço para trocas de produtos No caso de cidades sobre as águas,
extraídos da floresta e os importados dos conforme temos observado por meio da
grandes centros. prática profissional no âmbito do Iphan,
171 171
Esse novo cenário também tem a abordagem sanitarista das políticas
influenciado os saberes que norteiam as habitacionais, com o aterramento de áreas
práticas de produção espacial dos povos alagadas e a construção de conjuntos
da Amazônia. Um exemplo evidente é residenciais monótonos, muitas vezes
a substituição de sistemas construtivos implantados em áreas longínquas para
tradicionais por métodos industriais ações de remanejamento da população, vem
de reprodução em larga escala, hoje afastando os moradores do modo de vida
implantados inclusive nas políticas ribeirinho tradicional. Ao se negligenciar a
relacionadas à habitação indígena (Gallois, estreita relação dos indivíduos com o rio e
2002). Essas questões põem em risco certo suas estratégias de edificação sobre palafitas
modo de vida ribeirinho que depende do e ruas de estivas, conforme o modelo
acesso aos recursos e dos ciclos da natureza tradicional de ocupação, coloca-se em risco
(Silva & Tavares, 2006). tanto o modo de vida como também a
Não se pretende negar, com essa herança urbanística dos primeiros espaços
abordagem, as dinâmicas sociais habitados na Amazônia.
Alcântara, MA
Iphan.
Foto: Eder Furtado.
de Marajó (PA), 2013
Ribeirinhos, Afuá, Ilha
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
173

Fe r n a n d o M e s q u i t a Pilotis são palafitas: sobre ecologia da arquitetura e saberes que resistem na Amazônia marajoara
P at r i m ô n i o que se contrapõem à “noção de mudança ou
Pilotis são palafitas: sobre ecologia da arquitetura e saberes que resistem na Amazônia marajoara

c u lt u r a l
não consagrado: sobre transformação, e centrando a atenção mais
a c i o n a l

saberes não reificados no objeto e menos nos sentidos que lhe são
atribuídos ao longo do tempo” (Fonseca,
N

Preliminarmente, consideremos que 2003:66).


r t í s t i c o

os discursos do patrimônio cultural se O que se observou na prática de adoção


constituem em uma categoria institucional do Decreto-lei no 25/1937 como instrumento
A

e buscam “uma totalidade que pretendem da política de preservação foi a valorização de


e
i s t ó r i c o

representar, da qual pretendem ser a expressão bens monumentais edificados, que resultou
autêntica” (Gonçalves, 2007a:141). em um processo de construção de uma
Além da expectativa de manutenção de identidade nacional que, para Andrade Júnior
H
a t r i m ô n i o

certa integridade ou continuidade daqueles (2009:326), se consolidou desde a criação do


fenômenos, objetos e atos (Magalhães, Iphan em 1937:
1997) que já existem e são reproduzidos
(...) é inegável que a constituição do acervo
P

socialmente, ao chancelar-lhes a categoria


d o

dos bens tombados pelo IPHAN ao longo dos


de patrimônio, por meio de instrumentos
e v i s t a

seus primeiros 31 anos de existência – a chamada


do Estado, há, sobretudo, o reconhecimento fase heroica (...) – representou uma importante
R

oficial dos valores culturais (Andrade Júnior, e decisiva ferramenta na construção de uma
2009), tanto do “bem-fenômeno” em si, versão da história da arquitetura brasileira que se
Fe r n a n d o M e s q u i t a

como da produção dos sujeitos, desde que consolidou, ao longo dos anos, como dominante
estejam alinhados àquelas narrativas que e hegemônica.
forjam memórias, tradições e identidades
e que constroem a ideia de patrimônios Segundo Fonseca (2006), somente a partir
culturais utilizadas pelos Estados nacionais de meados da década de 1970 os critérios ado-
174 tados pelo Iphan foram sendo reavaliados de
(Gonçalves, 2007a). Nessa abordagem,
entende-se, portanto, que sua preservação modo a culminarem em uma nova perspectiva
passa a ser de interesse público. para a preservação de bens culturais. A reo-
Um dos instrumentos de proteção rientação implementada durante esse período
adotados pelo Estado para adentrar nos absorveu a noção de “referência cultural” que
fenômenos culturais no Brasil, há oitenta “remetia primordialmente ao patrimônio cul-
anos, tem sido o tombamento, instituído pelo tural não consagrado” (ibid.:86). Essa noção
Decreto-lei no 25/1937. Este instrumento enfatiza que, apesar dos processos culturais
ainda não ampara a complexidade de serem apreendidos a partir de manifestações
manifestações espaciais que não sejam materiais, só se constituem como referências
perenes ou que, por seu dinamismo, ainda culturais “quando são consideradas e valori-
são reproduzidas no cotidiano. Como destaca zadas enquanto marca distintiva por sujeitos
Fonseca (2003), isso se dá, sobretudo, em definidos” (ibid.:89).
virtude de estar o tombamento associado às As novas perspectivas acerca da proteção
ideias de conservação e de imutabilidade, desse patrimônio no Brasil culminaram na
Constituição de 1988, que ampliou institu- Apesar das iniciativas e instrumentos

Pilotis são palafitas: sobre ecologia da arquitetura e saberes que resistem na Amazônia marajoara
cional e legalmente a noção de patrimônio descritos até aqui, no Norte do Brasil ainda

a c i o n a l
cultural, sobretudo pela nova abordagem de é possível observar inúmeras oportunidades
cunho antropológico, descrita anteriormen- para aplicação das novas abordagens para a
te, em que os objetos, assim como as práti- proteção do patrimônio cultural de natureza

N
r t í s t i c o
cas, são dotados também de uma dimensão material. Atualmente, nessa região, são 42
imaterial cuja referência é formada por bens tombados pela União2 (74% encontram-

A
grupos diversos dentro do território e que se nas capitais) e apenas um deles pode ser

e
contribuíram para a formação do Brasil. Há, destacado como desvinculado de correntes

i s t ó r i c o
dessa maneira, uma ampliação da valoração teóricas/estilísticas/tipológicas clássicas da
de bens tangíveis para se reconhecer arquitetura, urbanismo e arqueologia: a

H
a existência de sujeitos que atribuem casa de Chico Mendes, em Xapuri (AC)3.

a t r i m ô n i o
significados às coisas (Arantes, 2009). Isso demonstra, portanto, que ainda se deve
Mais do que preservar aspectos materiais avançar na concretização das novas ideias

P
ou artefatos, a experiência brasileira mais sobre a multidimensionalidade do fenômeno

d o
recente tem apontado para uma convergência cultural e sua expressão nas políticas de

e v i s t a
de categorias e uma noção de preservação a Estado.

R
partir do reconhecimento de processos, que
podem ou não se objetivar materialmente. Ecologia da
arquitetura: os pilotis

Fe r n a n d o M e s q u i t a
Exemplo disso é a chancela de paisagem
cultural brasileira (Portaria IPHAN nº s ã o pa l a f i ta s
127/ 2009), instrumento que amplia
a possibilidade de proteção a partir da A partir da premissa de que os fenômenos
valorização de aspectos da interação humana passíveis de reconhecimento enquanto
175
com o ambiente natural. Tem-se ainda a categoria de patrimônio cultural existem
flexibilização de critérios de preservação de para além do reconhecimento dos agentes
bens tombados, sobretudo a partir de um do Estado, a produção do espaço habitado
novo olhar para o instituto do tombamento também constitui um campo rico para
e do reconhecimento dos sujeitos (Meneses, o olhar da valoração cultural, tanto na
2007) como protagonistas da atribuição dimensão da objetivação das expressões
de valor aos artefatos; como exemplo, a
recente portaria do Iphan que trata da 2. Foram desconsiderados, nessa contagem, bens anexados e bens
em processo de tombamento.
preservação do patrimônio cultural dos
3. Segundo parecer de José Aguilera e, posteriormente, de
povos e comunidades tradicionais de matriz Ulpiano Bezerra de Meneses, trata-se de uma “casa histórica”,
representativa da “importância da figura de Chico Mendes
africana (Portaria IPHAN no 194/2016), que para a memória, identidade e a ação dos grupos formadores da
sociedade brasileira” (Meneses, 2008:7). Nesse viés, a casa é um
amplia o entendimento de que mais do que potencial para “mediação sensorial de ideias, significados, valores,
a matéria, o que se quer manter é o sentido ideologias, expectativas, representações” (ibid.:7). Não foram
considerados, portanto, os atributos tipológicos do artefato –
da existência do lugar, em suas práticas e casa ribeirinha-palafítica -, como representativos de um modo
específico de construção e modo de vida, mas como portadores
relações com o meio. de sentidos atribuídos ao legado de Chico Mendes.
socioculturais como na prática em si, na 1986) ou ainda, conforme já havia sido
Pilotis são palafitas: sobre ecologia da arquitetura e saberes que resistem na Amazônia marajoara

produção de artefatos – que existem, suprem apontado por Lévi-Strauss (2003:19), ao


a c i o n a l

demandas, são ressignificados e reconstruídos afirmar que toda cultura pode ser considerada
pelos sujeitos. como um conjunto de sistemas que visam
Nesse contexto, a categoria “patrimônio exprimir certos aspectos da realidade física e
N
r t í s t i c o

cultural” também pode ser observada sob da realidade social.


o prisma do campo disciplinar da “cultura Considerando que a produção vernacular
A

material”, que trata, segundo Carter & está inserida no cotidiano dos grupos,
e

Cromley (2005:13), da “porção do ambiente reconheço que existem outras formas de


i s t ó r i c o

físico que é propositalmente conformada produção do espaço construído, fora dos


pelos sujeitos, de acordo com preceitos circuitos reificados do saber. A casa ribeirinha,
H

estabelecidos culturalmente”.
a t r i m ô n i o

a casa popular/vernacular, é a comprovação


A partir de uma perspectiva boasiana, disso, conforme aponta Silva (1994:129):
em que “quaisquer formas de vida social
Essa arquitetura, diferentemente da erudita,
P

e cultural implicam necessariamente


d o

deriva de um conhecimento essencialmente


a consideração de objetos materiais”
e v i s t a

empírico. Nessas circunstâncias, aprende-se


(Gonçalves, 2007a:15), não nos parece construir na prática de construir, pela reprodução
R

suficiente descrever os objetos, no caso, dos procedimentos conhecidos, pela imitação


arquitetônicos, nos termos de suas formas, de modelos concretos, sem que seja necessário
Fe r n a n d o M e s q u i t a

técnicas construtivas ou materiais, sem um processo complicado de nova elaboração


compreender, minimamente, seus usos, “qual mental. (...). Tal condição não inferioriza essa
o significado para as pessoas” (ibid.:18) e em arquitetura, pois o conhecimento empírico não é
como influenciam as relações sociais. necessariamente inferior ao teórico.
Nessa perspectiva, entendemos a
176 Segundo Perdigão (2016), a aproximação
arquitetura vernacular, enquanto fenômeno,
entre o conhecimento popular e o formal no
como aquele espaço habitado ou construído
campo disciplinar da arquitetura é um ca-
intencionalmente, uma manifestação
minho fértil para a resistência das produções
física, uma objetivação da lógica social
cotidianas e ordinárias, que cumprem funções
de determinado grupo, sendo, portanto,
sociais e não estão menos embebidas por re-
construções e artefatos comuns a determinado
presentações e significados sociais.
tempo e sujeitos, pois todos os objetos que
As abordagens sobre a arquitetura
nós vemos no dia a dia ao nosso redor são
vernacular também estão inseridas no
indicadores de nossos valores culturais (Carter
domínio das discussões sobre a valoração do
& Cromley, 2005).
saber popular, do que Boaventura Santos
Nessa abordagem, a “cultura” é imaterial,
chama de “ecologia dos saberes”4, no intuito
consiste em ideias, valores e crenças de
uma sociedade ou grupo particular, que 4. “(...) posição epistemológica a partir da qual é possível começar
estabelecem padrões, condutas de interação a pensar a descolonização da ciência e a criação de um novo
tipo de relacionamento entre o saber científico e outros saberes”
social (Carter & Cromley, 2005 e Laraia, (Santos, 2004:84).
de se maximizar a contribuição de diferentes “promovido o risco de desaparecimento de Afuá,
Ilha de Marajó (PA),
conhecimentos “na construção de uma modos e formas tradicionais de construir” e 2016
Foto: Eder Furtado.

sociedade mais democrática e justa e também ampliado ainda a dificuldade na transmissão 177

mais equilibrada na sua relação com a desses saberes.


natureza” (Santos, 2004:84). Para Portocarrero (2010), por exemplo,
Para Oliveira & Monios (2016), a investigação da arquitetura vernacular tem
os estudos da arquitetura brasileira apresentado possiblidades pouco exploradas
se concentram, em sua maioria, nas pela academia e pode ser capaz de produzir
manifestações eruditas. As expressões resultados inovadores. No caso da arquitetura
vernáculas, eminentemente vinculadas à e espacialidade ribeirinha, Perdigão (2016:4)
práxis, pouco constituíram interesse de entende que, apesar de ser uma relevante
estudos, pois, segundo os autores, para manifestação cultural amazônica, “não tem
muitos não eram consideradas “arquitetura” sido decodificada pelo conhecimento formal
e não se sustentavam como objeto de da arquitetura”. Acrescento que, além de não
pesquisa. Segundo Sant’Anna (2014:2), ter sido enxergada pelo conhecimento formal,
essa marginalização do saber popular, na sequer foi considerada como oriunda de um
produção da arquitetura e urbanismo, tem saber legítimo. Carvalho (2016:6) aponta
Pilotis são palafitas: sobre ecologia da arquitetura e saberes que resistem na Amazônia marajoara
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
P
d o
e v i s t a
R

que o modelo atual de ensino, por exemplo, São disso exemplo a redução dos
Fe r n a n d o M e s q u i t a

é caracterizado por uma visão eurocêntrica conhecimentos dos povos conquistados à


do saber, mesmo os saberes populares e condição de manifestações de irracionalidade,
de superstições ou, quando muito, de saberes
tradicionais são ensinados indiretamente
práticos e locais cuja relevância dependeria da
e “exclui aqueles que são considerados
sua subordinação à única fonte de conhecimento
178 pelas comunidades tradicionais como os verdadeiro, a ciência; (...) e ainda a conversão da
verdadeiros mestres desses saberes”. diversidade das suas culturas e cosmologias em
Para Santos (2004:21), há uma crise superstições sujeitas a processos de evangelização
epistemológica na ciência moderna que “não ou aculturação.
reside apenas no inescapável reconhecimento (...)
de que há conhecimento para além do Em nome da ciência moderna destruíram-
se muitas formas de conhecimento alternativas
conhecimento científico”, cuja resposta passa
e humilharam-se os grupos sociais que neles se
por um processo de debate onde possa-se
apoiavam para prosseguir as suas vias próprias e
dialogar com outras formas de saber. Essa
autônomas de desenvolvimento (ibid.:23 e 25).
crise é resultado do que Santos chama de
“epistemicídios”, perpetrados “em nome da Na era moderna, segundo o mesmo autor,
visão científica do mundo, contra outros a oposição entre o saber local/tradicional
Capoeira na
Associação Social modos de conhecimento, com o consequente está fundada na concepção “que defende o
Cultural Jussara, Afuá,
Ilha de Marajó (PA), desperdício e destruição de muita da conhecimento local como prático, coletivo e
2016
Foto: Fernando Mesquita. experiência cognitiva humana” (ibid.:22). fortemente implantado no local, refletindo
as experiências exóticas” (ibid:29). Santos tempo já tem sido absorvido na prática

Pilotis são palafitas: sobre ecologia da arquitetura e saberes que resistem na Amazônia marajoara
contrapõe a visão binária de produção de arquitetônica erudita, desde a adaptação dos

a c i o n a l
conhecimento posta por Portocarrero (2010), casarios portugueses à ventilação dos “porões
entre colonizador e povos colonizados, habitáveis” no ecletismo amazônida até a
na qual a interação entre culturas é um adoção de pilotis na arquitetura modernista,

N
r t í s t i c o
fenômeno que ocorre constantemente e que no início do século 20. Segundo Oliveira
forja novos conhecimentos. A questão trazida (2013)5, as palafitas, assim como os pilotis,

A
por Santos, no entanto, é a supressão de são maneiras de se liberar o uso do solo

e
formas de conhecimentos locais em nome de e ter a paisagem fluindo por baixo das

i s t ó r i c o
uma ciência ocidental reificada: habitações. Entretanto, o desconhecimento
e a marginalização do tipo vernacular têm

H
Diferentes formas de interação e compreensão
promovido resultados desastrosos ao modo

a t r i m ô n i o
da natureza irão produzir diferentes corpos de
saber sobre essa natureza. O mesmo se passa de habitar de populações tradicionais e em
com o conhecimento do mundo social e com cidades ribeirinhas, por exemplo.

P
os modos de conhecimento que não dividem o Para Gallois, as casas “neobrasileiras”

d o
mundo em natureza e sociedade. Os depósitos nos aldeamentos indígenas no Amapá,

e v i s t a
destes saberes estão continuamente a ser visitados construídas com apoio da Funai e prefeituras
num movimento de procura de adequação às

R
municipais, sob a alegação de construir “casas
novas condições ambientais, aos novos interesses
higiênicas”, promoveram a sedentarização e
sociais e aos recursos cognitivos que se ganham

Fe r n a n d o M e s q u i t a
perda de qualidade de vida nas comunidades,
no contato com outras culturas e seus sistemas de
que tradicionalmente são migratórias,
saber (ibid.:64).
“com o acúmulo de lixo, poluição dos
Desse modo, estudar a arquitetura rios, esgotamento dos recursos naturais
ribeirinha não diz respeito apenas ao e empobrecimento dos solos para roças”
179
reconhecimento da produção vernacular pelo (2002:69). Para esses povos, a ideia de casa
prisma do saber arquitetônico reificado, mas representada nessa tipologia não dialoga com
a entender a palafita, em si mesma, como um sua concepção de morar; a ideia de moradia
fenômeno arquitetônico, independentemente é coletiva e esse tipo de casa fechada serve
de quem a produziu ter o título acadêmico apenas como depósito.
para tal. Menezes & Perdigão (2013) também
Incorporo a essas ideias o entendimento destacam que, apesar do valor cultural
de que o saber arquitetônico popular das casas ribeirinhas na Amazônia, tem-se
produz materialidades já prenhes de observado o constante rompimento com o
simbolismos desde sua concepção – que modo de vida em que se insere essa produção
não se dá necessariamente por meio de material, causado por projetos habitacionais
projetos – e que, para esses fenômenos elaborados pelo poder público.
culturais, ainda há inúmeras oportunidades
de reconhecimento pelos agentes de Estado 5. Almir de Oliveira, ex-superintendente do Iphan no Amazonas,
em entrevista para a série “Habitar Habitat” do SescTV, em
e pela academia. O tipo vernacular há muito 2013.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

180
Fe r n a n d o M e s q u i t a Pilotis são palafitas: sobre ecologia da arquitetura e saberes que resistem na Amazônia marajoara
2018
Afuá,

Foto: Eder Furtado.


R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

Ilha de Marajó (PA),


181

Fe r n a n d o M e s q u i t a Pilotis são palafitas: sobre ecologia da arquitetura e saberes que resistem na Amazônia marajoara
Quando o arquiteto atua em ambientes de Esse é um sentimento comum em casos
Pilotis são palafitas: sobre ecologia da arquitetura e saberes que resistem na Amazônia marajoara

ocupação informal, confronta-se com inúmeras parecidos na Amazônia. Segundo Oliveira


variáveis, muitas ainda pouco associadas à
a c i o n a l

(2013), o anseio dessas populações é estar


natureza projetual e, na tentativa de processá-las,
próximo às facilidades dos centros urbanos,
via de regra, a prioridade vem sendo por aspectos
mas a palafita passou a ser representada
N

construtivos e econômicos, o que tem se mostrado


r t í s t i c o

como algo pejorativo. Para Oliveira (2013),


pouco adequado ao atendimento de necessidades
e expectativas do usuário final (Menezes & a questão que se coloca na permanência das
A

Perdigão, 2015:239). populações em áreas alagadas nas imediações


e

dos centros urbanos não é tecnológica, mas


i s t ó r i c o

No caso de Laranjal do Jari, no Amapá política e econômica, em função do mercado


– e tantos outros casos na Amazônia –, a imobiliário e de interesses que definem a
H

proposta de habitação de interesse social produção do espaço urbano.


a t r i m ô n i o

empreendida pelo poder público buscou Menezes et al. (2015) estudaram a Vila
retirar a população que residia sobre palafitas da Barca, em Belém, e concluíram que
P

de madeira na beira do rio Jari e transferi- somente a questão da salubridade nas áreas
d o

la para unidades distantes do rio e com informais tem intensificado a produção


e v i s t a

tipologias homogeneizadas de alvenaria. de projetos habitacionais padronizados e


Durante o período em que pesquisei a descontextualizados dos padrões familiares
R

cidade, no ano de 2006, pude constatar aos moradores. Para as autoras, a Vila da
que muitas famílias já tinham a intenção
Fe r n a n d o M e s q u i t a

Barca “apresenta uma identidade cultural


de retornar para regiões próximas às águas, persistente, com um tipo enraizado em
sobretudo em virtude das relações já relações espaciais fundamentais para sua
estabelecidas ali. convivência” (ibid.:249).
É inegável que existem saldos negativos Em Afuá, um outro tipo de desconti-
182 da desvalorização do saber popular na nuidade tem ganhado espaço na produção
construção das cidades e habitações. Além arquitetônica da cidade. Inicialmente percebi
das desconexões entre o saber popular e o que há uma negação ao tipo palafita, talvez
erudito, expressos na produção arquitetônica, em virtude da visão pejorativa descrita ante-
deve-se ainda considerar que a realidade da riormente. Vê-se que a execução dos projetos
Amazônia marajoara “é muitas vezes pouco ainda não dialoga com a paisagem do lugar.
conhecida inclusive para a totalidade dos O tipo característico da cidade vem sendo
habitantes da região” (Perdigão, 2016:3). A substituído por versões adaptadas de uma
palafita, segundo essa autora, tem sido vista arquitetura presente em não lugares metropo-
como uma solução menor e precária. Weimer litanos, que é assumida ali como uma concep-
(2005) considera o caso das áreas alagadas ção correta de produção espacial.
como uma construção histórica com forte Ao aprofundar a pesquisa, identifiquei
influência dos povos ancestrais, mas esse que essa visão renovadora era adotada
fato não é observado como oportunidade na sobretudo por arquitetos e engenheiros de
construção de políticas públicas. outras regiões que ali atuavam. De outro
lado, algumas pesquisas têm revelado ou do rococó, ou do revivalismo, ou do art nouveau,

Pilotis são palafitas: sobre ecologia da arquitetura e saberes que resistem na Amazônia marajoara
mudanças na produção arquitetônica ou do art déco, ou do modernismo, por exemplo,
ainda que em algum momento se remetam a tais

a c i o n a l
na cidade. Passos Neto (2016), em seu
caracterizações, contribuem para a ampliação do
trabalho sobre o projeto institucional para
repertório (ainda a ser explorado) que compõe as
o Fórum Eleitoral em Afuá, informou que

N
estruturas físicas dessas cidades (Carvalho, 2013:4)

r t í s t i c o
a concepção do edifício procurou dialogar
com a cultura local da cidade e isso foi
Desafios, mudanças e

A
percebido como positivo pela população.
p e rm a n ê n c i a s . . .

e
Nesses casos, vê-se, como também

i s t ó r i c o
ressalta Sant’Anna (2014:3), que as técnicas
O exemplo de Afuá é um caso que aponta
construtivas, a arquitetura e assentamentos

H
para a ainda atual necessidade de se repensar
produzidos com base no saber popular

a t r i m ô n i o
a proteção do legado edificado no Brasil. Para
são “ao mesmo tempo, um recurso para
além do exposto até aqui, o historiador Adler
o desenvolvimento socioeconômico e
Castro reitera que o tombamento, enquanto ato

P
também um patrimônio cultural da maior

d o
administrativo, no âmbito do Iphan, apesar de
importância”. Dessa maneira, segundo

e v i s t a
proteger somente bens materiais, “trabalha com
Oliveira (2013), não há entraves na
os valores culturais, imateriais, desses bens”:

R
manutenção dessas populações com essa
mesma tipologia habitacional, uma vez que No trabalho normal de apreciação de valor

Fe r n a n d o M e s q u i t a
essas populações estão “há alguns séculos de um bem, visando a aplicação de uma possível
nos ensinando como dialogar com essa proteção legal, o Instituto sempre analisa uma
coisa não por características intrínsecas, mas
realidade amazônica».
sim pelo valor cultural que a mesma pode ter
Desse modo, o que procurei evidenciar
para a sociedade nacional como um todo, tanto
nesta pesquisa – assim como Sant’Anna
como um objeto de valor excepcional, único, ou 183
(2014), Carvalho (2013), Cardoso (2012)
como elemento contendo características que o
e, ainda, como já havia sido proposto no
transformem em um exemplo de uma categoria
projeto de Mário de Andrade para a criação cuja preservação seja considerada necessária
do Iphan – foi a relevância da diversidade (Castro, 2007:3).
da produção vernacular/popular como um
saber passível de reconhecimento como O tombamento de quilombos, por
patrimônio cultural: exemplo, conforme estabelecido no parágrafo
5º do art. 216 da Constituição Federal,
(...) constitui um patrimônio cultural
ensejou uma reformulação, segundo Castro,
estruturador nas cidades e está marcada por uma
dessa forma de agir. Ocorre que essas áreas
significância cultural primeiramente dada pela
ainda são vivas e ocupadas pela comunidade
experiência, por existirem e serem apropriadas por
um grupo social que edifica estruturas físicas e que está em constante transformação.
sentidos à sua existência. E por existirem também Assim, esse autor consegue problematizar o
de um modo particular, desprendido da arquitetura assunto apresentado também para o caso da
de influência exclusivamente lusitana, ou barroca, arquitetura ribeirinha:
Como tratar a questão das comunidades lugar. Desse modo, as mudanças ao longo
– entidades vivas, móveis, que estão do tempo deveriam ser apreciadas e
184 permanentemente produzindo objetos e outros entendidas como aspectos relevantes para o
elementos da cultura material –, levando em
entendimento do modo de vida dos sujeitos,
conta as limitações, que trabalha apenas com a
onde o patrimônio vernacular edificado
preservação de um dado momento, o da inscrição
“está relacionado não só com a forma física
nos livros do tombo? (ibid:4).
e dos materiais das construções, estrutura e
Conforme Takamatsu (2013:85), a espaços, mas com os meios pelos quais eles
arquitetura tal qual hoje se analisa, sobretudo são utilizados e entendidos, as tradições e
nas políticas de preservação, ainda é focada associações intangíveis intrínsecas a eles”
apenas nas edificações e não nos sujeitos. Para (Icomos, 1999:2).
a autora, o lugar da arquitetura vernacular O tombamento, no contexto aqui
poderia vir a ser o reflexo de funções sociais apresentado, enquanto instrumento e ato
que ainda sobrevivem e que dão sentido à administrativo do poder público, nos parece
paisagem urbana. O patrimônio vernacular adequado quando se refere a uma abordagem
Casa em Afuá,
Ilha de Marajó (PA), construído, enquanto fenômeno, é um ampliada para além do artefato que se quer
2016
Foto: Fernando Mesquita. “ambiente vivo” e acontece em qualquer preservar – abordagem essa comumente
atrelada à salvaguarda de bens de natureza patrimonialização pouco têm a oferecer, senão

Pilotis são palafitas: sobre ecologia da arquitetura e saberes que resistem na Amazônia marajoara
imaterial, em que a valoração cultural está uma chancela institucional aos fenômenos

a c i o n a l
também subsidiada na lógica dos processos sociais que já existem, mesmo fora das
constitutivos dos artefatos, na construção fronteiras do reconhecimento gerado pelos

N
das narrativas e nos olhares dos sujeitos sobre agentes do Estado.

r t í s t i c o
esses mesmos artefatos. A materialidade, portanto, deveria
Sobre essa questão, Fonseca (2003) ser entendida, nos processos de

A
traz um entendimento ampliado a respeito patrimonialização, para casos tais como o da

e
do que seja o patrimônio cultural. Para

i s t ó r i c o
cidade de Afuá, enquanto fato social total,
a autora, o patrimônio “não se constitui nos termos de Marcel Mauss6, no qual as
apenas de edificações e peças depositadas em realidades sociais não são representações

H
a t r i m ô n i o
museus, documentos escritos e audiovisuais, instantâneas, mas sujeitas a transformações,
guardados em bibliotecas e arquivos”. Para ela assim como a sua produção material (Arantes,
as manifestações contidas nos ritos, saberes 2009). Uma sociedade – e, portanto, seu

P
e técnicas também constituem patrimônio componente espacial – “é sempre dada no

d o
cultural e sua “manutenção depende, tempo e no espaço, sujeita assim à incidência

e v i s t a
sobretudo, da adoção de medidas de apoio de outras sociedades e de estados anteriores

R
aos seus produtores” (ibid.: 71). A autora do seu próprio desenvolvimento” (Lévi-
cita os casos do Santuário de Ise, no Japão, Strauss, 2003:19). Essa noção já está aplicada,

Fe r n a n d o M e s q u i t a
que é destruído e reconstruído no mesmo por exemplo, na própria definição do campo
local, e a arquitetura no norte da África, cujas disciplinar da arqueologia, conforme aponta
edificações são constantemente refeitas em Funari (2015:15): “(...) a Arqueologia estuda,
virtude da ação dos ventos: diretamente, a totalidade material apropriada

O que importa para esses grupos sociais é


pelas sociedades humanas, como parte de 185
assegurar os modos de fazer e o respeito a valores uma cultura total, material e imaterial, sem
como o do ritual religioso, no caso do Templo limitações de caráter cronológico”.
de Ise, e o sentido de adequação da técnica Nesse contexto, Meneses (2008:3) afirma
construtiva às condições geológicas e climáticas, que, como o valor cultural não é intrínseco
no caso da arquitetura em terra do deserto norte- aos bens, “abriu-se caminho conceitual para
africano (ibid.:72). operar (estado e sociedade conjugados) o
campo do patrimônio como fato social”:
No caso de bens culturais materiais
cotidianamente reproduzidos, como o O valor cultural não é intrínseco aos
patrimônio vernacular, o que deveria se bens, nem pode ser aferido tão somente por
buscar resguardar, para além dos objetos, são técnicos que disponham de um rol objetivo de
as referências aos modos de vida impressos
neles. Pois, caso o foco da preservação seja a 6. Arantes (2009) traz a concepção de Lévi-Strauss na qual
aponta que os fatos sociais estão enraizados na experiência
matéria, descolada da visão de mundo dos concreta individual, portanto, não são “a simples reintegração de
aspectos descontínuos”, mas devem observar os indivíduos como
sujeitos que a produzem, os instrumentos de totalidades.
atributos cuja presença identificaria o caráter entre nos circuitos hegemônicos da atual
Pilotis são palafitas: sobre ecologia da arquitetura e saberes que resistem na Amazônia marajoara

cultural, mas depende do reconhecimento de reorganização global da economia capitalista


que grupos formadores da sociedade brasileira
a c i o n a l

(Santos, 2004) e se iguale a modelos


se apropriaram culturalmente de certos bens,
homogeneizados urbano-industriais de
mobilizando-os como portadores de um
N

outras regiões, sobretudo se a cidade se


potencial capaz de alimentar a memória social, a
r t í s t i c o

expandir para áreas de terra firme. Essa visão


ação e a identidade (ibid.).
é estabelecida, sobretudo, como destacam
A

Vê-se, portanto, que esta é uma temática Bibas & Cardoso (2017), por uma visão de
e

que abre diversas oportunidades de pesquisa. “progresso”, exógena ao lugar e consolidada


i s t ó r i c o

Até o momento, no entanto, a análise, nas ações da administração pública:


de forma isolada, de certo desempenho
H

Há uma dificuldade por parte do poder


estético ou físico em conjuntos de interesse à
a t r i m ô n i o

público em reconhecer as atividades que


preservação, não parece ser suficiente para fins
historicamente trazem prosperidade para a
de identificação e valoração de bens culturais região, pois a própria noção de prosperidade está
P

de natureza material, principalmente quando contaminada pela ideia de desenvolvimento,


d o

nos deparamos com casos como o de Afuá e modernização e progresso (ibid.:14).


e v i s t a

de outras cidades sobre as águas.


Como posto por Boaventura de Souza
R

Percebi ainda que Afuá é resistente


às mudanças forçadas por processos de Santos (2004:45), “estamos perante uma
luta cultural. A cultura cosmopolita e pós-
Fe r n a n d o M e s q u i t a

homogeneização cultural. Considerando


uma abordagem gramsciana de hegemonia, colonial aposta na reinvenção das culturas,
entendo que o urbano-industrial em Afuá para além da homogeneização imposta pela
é sempre reinterpretado e readequado pelos globalização econômica”, e esse processo não
sujeitos nas práticas cotidianas, como por reconhece a existência igualitária de outros
186 saberes, tendendo a “silenciamentos, exclusões
exemplo na cultura estético-formal que rege
a produção do espaço. Mesmo com a adoção ou liquidações” do que não se adequa à
de novos materiais, estes são rotineiramente conjuntura hegemônica.
ressignificados para se adequarem à Ocorre que, sobre essa questão, deve-
lógica local. Este fenômeno mostra que se considerar ainda que há uma dinâmica
“a capacidade de ação – de domínio, nos fenômenos culturais que permite sua
imposição e manipulação –, atributo da classe adequação às inúmeras conjunturas. Lomba
dominante, é atravessada pela capacidade & Nobre-Júnior (2013:1) identificaram
de ação, resistência e negação da classe que, em Afuá, mesmo com o advento da
dominada” (Paoli & Almeida, 1996). modernização nas relações econômicas e
Entretanto, com a intensa substituição sociais, não se desestruturaram o modo de
de tipologias e materiais de construção vida ou uma territorialidade ali construída
tradicionais por modelos industrializados, historicamente. Conclusão similar
há a preocupação de que a produção e teve Almeida (2009:33) a respeito dos
reprodução do espaço urbano de Afuá moradores da zona rural de Afuá: “Apesar da
Pilotis são palafitas: sobre ecologia da arquitetura e saberes que resistem na Amazônia marajoara
N
A
H
Pa c i o n a l
r t í s t i c o
e
i s t ó r i c o
a t r i m ô n i o
d o
e v i s t a
proximidade com a cidade, os ribeirinhos não como um de seus frutos mais importantes. A

R
se encontram integrados à cultura urbana, vida cultural é ativa. Não vivemos num mundo
ainda mantém valores, hábitos e costumes de puras significações transcendentes que nos

Fe r n a n d o M e s q u i t a
monitoram, mas conservamos, reciclamos e
que os ligam com a natureza e os tornam
criamos significações e valores que possam
dependentes do rio e da floresta”.
qualificar diferencialmente as instâncias e
Ora, se de um lado temos forças
circunstâncias de nossa existência, para lhes dar
homogeneizantes que operam na produção
sentido e força.
do espaço e nas práticas cotidianas, temos 187

também sujeitos, detentores de saberes, que Por fim, sem esgotar o tema do
se modificam e modificam seus hábitos, pois, patrimônio cultural não consagrado, mais
como posto por Arantes (2009), artistas uma vez recorro à fala ainda atual de Aloísio
e produtores desenvolvem novos estilos Magalhães (1997:65), para exemplificar as
de interpretação, repertório e habilidades inúmeras oportunidades de identificação e
técnicas através da prática contínua de sua reconhecimento de bens culturais no Brasil:
forma de expressão. Sobre essa questão, nesse
Uma coisa parece evidente: a certeza de que
momento final acredito ser válido retornar
a realidade brasileira contém riquezas que ainda
ao conceito de cultura presente na fala de
permanecem desconhecidas e como que protegidas
Meneses (2008:5):
por um imenso tapete que as encobre e abafa.
A cultura não é um espaço de simples fruição Para descobri-las e conhecê-las dispomos de um
passiva de significados e valores, mas um potencial admirável potencial humano, rico de invenção
Afuá,
de qualificação de todos e quaisquer segmentos e tolerância. Resta-nos trabalhar, mantendo-nos Ilha de Marajó (PA),
2016
de nossa existência. Ela inclui, portanto, a ação conscientes de nossa responsabilidade social. Foto: Fernando Mesquita.
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Cachoeira de Iauaretê (AM),
2008
Foto: Vincent Carelli/
Vídeo nas Aldeias.
Díptico: Fordlândia
(PA), 2015
Foto: Miguel Chikaoka.
Loja Paris N’América,
Rua Santo Antônio, 132,
Belém (PA), 1910 (ca.)
Foto: Marc Ferrez/
Coleção Gilberto Ferrez/
Acervo Instituto Moreira Salles.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

194
Milton Hatoum Vo c ê s n ã o v i r a m I r a c e m a ?
Milton Hatoum

a c i o n a l
V ocês não viram I racema ?

N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
I região Norte. O olhar do fotógrafo talentoso
“Não”, disse um dos jovens cinéfilos. e tarimbado – sua atividade anterior e de
Então percebi que estava envelhecendo. sempre – está registrado em cada cena. Um

P
Quase ao mesmo tempo, percebi que os

d o
olhar em movimento, que capta a expressão

e v i s t a
jovens desinformados de uma metrópole dos personagens – o que há no íntimo de
podem envelhecer precocemente. Porque cada ser. E, num ângulo mais aberto ou em

R
quem gosta de cinema deveria ver Iracema, o panorâmica, capta os quadros calcinados
clássico de Jorge Bodanzky. e tristes de uma natureza destruída pela
O filme fez a cabeça da minha geração e ganância e ignorância. A violência da vida
sua atualidade é notável. É um documentário brasileira não está na denúncia política, e sim
que pode ser visto como uma ficção. Mas é onde interessa à arte: no drama particular de
também uma ficção arraigada no cotidiano uma personagem.
da Amazônia. Iracema dilui as fronteiras entre O subtítulo – Uma transa amazônica 195
ficção e documentário. É uma mescla muito – alude a uma das alucinações da ditadura
habilidosa de gêneros e, nesse sentido, foi militar: a estrada que rasga o coração da
um marco do cinema brasileiro. Há poucos e Amazônia e inaugura a devastação sistemática
bons atores profissionais, mas a personagem do meio ambiente.
principal é construída durante a filmagem: O filme começa no porto de Belém e
uma menina de quinze anos, atriz que se termina na estrada que fere a floresta, abrindo
forma na estrada, diante da câmera, nos caminho para madeireiras, queimadas,
descaminhos de uma vida inventada, mas trabalho escravo e prostituição. Iracema,
profundamente vivida. É como se o roteiro de carona pela transamazônica, simboliza
acompanhasse o imponderável e a própria o descaminho de uma pobre mulher numa
maleabilidade da vida. Essa espontaneidade região tão rica, comentada e debatida, mas Projeto Antônios
e Cândidas têm
apenas aparente foi pensada e construída quase desconhecida. Daí a dimensão humana sonhos de sorte.
Transamazônica,
com rigor. Além disso, no caso de Iracema ser tão ou mais importante do que o delírio Brasil Novo (PA),
2004
conta muito a experiência de Bodanzky na desenvolvimentista do regime militar. Foto: Paula Sampaio.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

196
Milton Hatoum Vo c ê s n ã o v i r a m I r a c e m a ?
II dos brasileiros, Suely e Iracema buscam

Vo c ê s n ã o v i r a m I r a c e m a ?
Há pouco tempo fui ver o belo filme de uma vida melhor. As andanças de Iracema

a c i o n a l
Karim Aïnouz: O céu de Suely. Entre Suely terminam na beira da estrada. Ou à margem
e Iracema há mais do que uma aliteração. de uma sociedade que empurra os pobres para
Há, acima de tudo, um diálogo de duas um beco sem saída.

N
r t í s t i c o
épocas num mesmo país dilacerado. Diálogo Suely deixa o filho com a tia e a avó e

Milton Hatoum
que passa por uma poética do olhar: uma parte em busca de um sonho, que pode ser

A
maneira singular de ver o mundo, um recorte um emprego ou uma nova paixão: um céu

e
dramático construído pelo olhar. diminuto que cabe numa janela. Aïnouz deixa

i s t ó r i c o
Mais de trinta anos separam os dois essa janela aberta como uma possibilidade
filmes, mas eles se encontram no interior de esperança.

H
do Brasil e nos sonhos e pesadelos de suas

a t r i m ô n i o
protagonistas. Apesar das diferenças formais III
entre os dois filmes, alguma coisa une a tra- No começo da década de 1970, a

P
jetória dessas duas mulheres tão brasileiras. esperança era uma quimera. Nesse sentido,

d o
Talvez sejam histórias que se complemen- a degradação física de Iracema mostra o

e v i s t a
tam, num movimento de continuidade que impasse de um tempo nublado, para não
significa também uma ruptura. O fim de dizer totalmente fechado. Mais de três

R
cada filme diz algo sobre o destino da perso- décadas depois, em plena democracia,
nagem principal. talvez haja alguma razão para sonhar. Não
Numa pequena cidade do sertão, Suely conhecemos o destino de Suely. E essa
rifa o próprio corpo, que será usado e dúvida ou interrogação dá ao espectador a
abusado uma única vez. O nome da rifa – possibilidade de imaginar vários desfechos,
Uma noite no Paraíso – podia ser o subtítulo inclusive o que há de imponderável na vida
do filme de Aïnouz. Como a imensa maioria de uma sonhadora. Na nossa própria vida. 197

Projeto Antônios e
Cândidas têm sonhos
de sorte.
Belém-Brasília,
Açailândia (MA), 1998
Foto: Paula Sampaio.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

198
U l p i a n o To l e d o B e z e r r a d e M e n e s e s O patrimônio cultural e a guinada da Constituição de 1988:
a casa de Chico Mendes
Ulpiano Toledo Bezer ra de Meneses

a c i o n a l
O patrimônio cultural e a guinada da
C onstituição de 1988: a casa de C hico M endes

N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
R e l at ó r i o devidamente registrada, de identificar com
precisão a titularidade do imóvel, existindo
A solicitação de tombamento, datada de apenas uma declaração da Prefeitura Muni-

P
cipal de Xapuri informando que o imóvel

d o
16 de agosto de 2006, foi encaminhada à 16ª

e v i s t a
SR (Rondônia/Acre) pela Fundação Chico encontra-se inscrito no Setor de Cadastro em
Mendes e pelo Comitê Chico Mendes. O nome da Fundação Chico Mendes. Na cir-

R
processo , aberto em 6 de novembro de 2007,
1 cunstância, foi publicado no Diário Oficial da
propõe o tombamento da casa situada à rua União, de 13 de fevereiro último, um Edital
Dr. Batista de Moraes, nº 10, em Xapuri de Notificação a respeito do tombamento
(AC), na qual morou e foi assassinado o líder da casa, de seu acervo e da área de entorno,
inconteste dos “povos da floresta” nas décadas facultando a eventuais proprietários apresen-
de 1970 e 1980. Propõe-se, igualmente, a tarem-se para anuir ou impugnar a iniciativa.
indispensável proteção do entorno, seja em A instrução do processo está completa 199
virtude da derrubada de árvores nos fundos e satisfatória.
do imóvel, atribuída à prefeitura, seja pela Vale distinguir os principais documentos
invasão urbana que já começou a alterar a e informações:
paisagem existente. Mais tarde, acrescenta- Parecer, rico de informação, do
ram-se os pertences da casa. arquiteto José Aguilera, do Depam/
Para a tramitação do presente processo, Iphan, que fornece um histórico do
que transcorreu com absoluta normalidade, processo, menciona a categoria de “casas
reporto-me ao cuidadoso parecer do procu-
históricas” e lista aquelas já tombadas pelo
rador-geral federal Antônio Fernando Alves
Iphan, apresenta dados históricos (com
Leal Neri, datado de 18 de janeiro de 2008.
referências ao processo de ocupação da
Cumpre apenas salientar a impossibilidade,
Amazônia e à formação do estado do Acre,
caracterização das comunidades indígenas e Extração do látex da
seringueira, BR-317,
1. Processo de Tombamento 1.549-T-07. Este parecer, por mim
Estrada do Pacífico,
apresentado ao Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, na de seringueiros e sua relação com a floresta, Acre, 2018
qualidade de relator, foi aprovado na reunião de 15 de maio de Foto: Oscar Liberal/
2008, realizada em Belo Horizonte (MG). dados biográficos e a trajetória de lutas de Acervo Iphan.
O patrimônio cultural e a guinada da Constituição de 1988:
a casa de Chico Mendes
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o

U l p i a n o To l e d o B e z e r r a d e M e n e s e s
P
d o
e v i s t a
R

Chico Mendes). Apresenta, também, breve - Cartas de denúncias a autoridades.


notícia sobre a casa e o respectivo perímetro - Excertos de depoimentos no processo de
de ambientação. O parecer conta com julgamento dos assassinos de Chico Mendes.
200
significativa ilustração. - Parecer do procurador federal Antônio
- Memorando do diretor da 16ª SR, Fernando A. L. Neri.
Fernando Figali Moreira Júnior, com planta - Resoluções apresentadas no l Encontro
de situação, plantas da casa e seu entorno e a Nacional de Seringueiros da Amazônia,
lista dos bens a ela pertencentes. Brasília, 1985.
- Curriculum vitae de Chico Mendes. - Entrevista de Chico Mendes durante o
- Transcrição de depoimento III Congresso Nacional da CUT, 1988.
(importantíssimo) dado por Chico Mendes à - Matéria jornalística 18 anos sem
Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB, Chico Mendes.
Chico Mendes
na USP, em maio de 1968 (DVD juntado ao - Em volume anexo, textos de Elson
recebe o prêmio
Sociedade Para um
volume de anexos). Lima – Movimentos ambientalistas, de
Mundo Melhor, em
Washington, Estados
- Coleção de fotografias de Chico Mendes George Alex da Guia – Correntes ecológicas
Unidos, 1987
Acervo: Fundação Chico em diversos momentos e situações, incluindo e a construção de uma nova relação entre o
Mendes/Acervo Digital:
Departamento de
Patrimônio Histórico e
homenagens e honrarias recebidas (também post homem e a natureza: povos da floresta e Chico
Cultural/Fundação
Elias Mansour. mortem), imagens da casa e de seu entorno. Mendes e abundante coleção de recortes de
O patrimônio cultural e a guinada da Constituição de 1988:
a casa de Chico Mendes
a c i o n a l
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jornais sobre a atuação de Chico Mendes e dos diferentes grupos formadores da sociedade
a extraordinária repercussão de sua morte, brasileira nos quais se incluem... [segue listagem].
além de dois DVDs (contendo a citada
A referência à Constituição de 1988 como 201
entrevista à AGB, 1988, O sonho de Chico
premissa não deriva de uma retórica das
Mendes e o documentário da TV Acre
origens, mas do fato de que ela introduziu,
Borracha para a vitória).
na matéria, uma inflexão de 180º, o que
Está, pois, o processo, em condições
ainda não conseguimos, talvez, absorver
de se submeter à apreciação do Conselho
plenamente e, menos ainda, assimilar em
Consultivo do Patrimônio Cultural.
nossa sistemática operacional.
Voto Com efeito, como patenteia o art. 216, Chico Mendes (ao
centro, de casaco
a Carta de 1988 deslocou do poder público escuro) com a
delegação do
Premissas para a sociedade o papel instituinte do valor Acre, ao retornar
do Congresso
O art. 216 da Constituição federal estatui: cultural. Duas são as consequências radicais de Fundação da
Central Única dos
Trabalhadores – CUT,
dessa nova postura, que representa benéfico
Constituem patrimônio cultural brasileiro os em São Bernardo do
Campo (SP), 1983
bens de natureza material e imaterial, tomados avanço conceitual (e me limitarei aqui à Acervo: Comissão Pastoral
da Terra – CPT/Acervo

individualmente ou em conjunto, portadores consideração de bens materiais, pois se trata Digital: Departamento de
Patrimônio Histórico e
Cultural/Fundação
de referência à identidade, à ação, à memória de um pedido de tombamento): Elias Mansour.
O patrimônio cultural e a guinada da Constituição de 1988:
a casa de Chico Mendes
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Casa de - Agora, o poder público tem um papel da sociedade brasileira” se apropriaram


Chico Mendes,
Xapuri (AC), 2018
Foto: Oscar Liberal/
declaratório no reconhecimento dos valores culturalmente de certos bens, mobilizando-
Acervo Iphan.
202 gerados pelos diversos grupos formadores da os como portadores de um potencial capaz
sociedade brasileira. Assim, o tombamento de alimentar a memória social, a ação e
provê de proteção o que em princípio já a identidade.
pertencia ao patrimônio cultural. Por certo - O patrimônio é nacional, no sentido
o tombamento tem também uma função de que é do interesse de toda a “sociedade
constitutiva, quanto ao regime jurídico em brasileira”, mas já se vê que identidade
que ele intervém – mas não é matriz de nacional, memória nacional, história
valores e significados sociais: é nas práticas nacional deixam de contar como critérios
sociais que se encontra tal matriz. de integridade e homogeneidade: o todo,
- O valor cultural não é intrínseco aos agora, é a escala de referência para ressaltar a
bens, nem pode ser aferido tão somente por importância das partes.
técnicos que disponham de um rol objetivo Em suma, abriu-se caminho para
de atributos cuja presença identificaria conceituar e operar (estado e sociedade
o caráter cultural, mas depende do conjugados) o campo do patrimônio como
reconhecimento de que “grupos formadores “fato social”.
O patrimônio cultural e a guinada da Constituição de 1988:
a casa de Chico Mendes
a c i o n a l
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Cumpre assim examinar se os bens aqui compartilhados de maneira a estabelecer Interior da casa de
Chico Mendes,
propostos ao tombamento – uma casa com vínculos afetivos de pertencimento, Xapuri (AC), 2018
Foto: Oscar Liberal/
Acervo Iphan.
seu entorno e seus pertences – têm sido solidariedade e inteligibilidade. Não se trata, 203

mediadores sociais de memória, identidade para nós, de identificar um culto ao herói


e ação. – embora Chico Mendes mereça, com toda
Esses três aspectos devem ser considerados justiça, a qualificação de herói –, mas de
separadamente para maior clareza, mas, sem verificar se sua figura e trajetória, suas ações,
dúvida se imbricam de forma profunda. seus efeitos e seus rumos e, sobretudo, se as
transformações eventualmente produzidas na
vida de uma comunidade, de um segmento
Memória social e, mais largamente, de uma sociedade
A memória social (que não se confunde (ainda que fragmentária e heterogeneamente),
com a História, processo cognitivo, constituem uma referência que possa
pois é forma de produzir conhecimento estabelecer os aludidos vínculos. A meu ver,
controlado) não é uma simples rememoração as relações de memória, identidade e ação
coletiva de fatos passados, mas uma seleção que Chico Mendes tem suscitado preenchem
das representações de fatos passados, facilmente tais requisitos.
Vale a pena, brevemente, lembrar alguns medalha, no mesmo ano. Lança-se, então,
O patrimônio cultural e a guinada da Constituição de 1988:
a casa de Chico Mendes

dados de sua biografia. numa febril atividade de viagens, entrevistas,


a c i o n a l

Nascido em Xapuri, em 15 de dezembro participação em seminários, congressos,


de 1944, Francisco Alves Mendes Filho, conferências em universidades e outras
aos onze anos, inicia seu trabalho como instituições no país. Formula projetos de
N
r t í s t i c o

seringueiro, que se estenderia até 1976. educação para os seringueiros e concebe as


Somente aos 24 anos é que se alfabetizaria, “reservas extrativistas”.
A

mas aos 25 já inicia a luta do resto de sua No final de 1977 já começava a receber
e

vida em prol dos seringueiros, inspirado pelo ameaças de morte por parte dos fazendeiros
i s t ó r i c o

militante Euclides Távora. cujos interesses espúrios ele contrariava.


A partir daí, ingressa em movimentos Suas denúncias às autoridades, entre as
H

sindicais (ajudou a fundar a CUT e o PT), quais as de sua morte anunciada, jamais
a t r i m ô n i o

entra na política (foi vereador pelo MDB), obtiveram qualquer retorno. Em 22 de


U l p i a n o To l e d o B e z e r r a d e M e n e s e s

organiza com os seringueiros e suas famílias dezembro de 1988 – há, portanto, quase
P

movimentos pacíficos (os “empates”) para duas décadas –, quando mal completara 44
d o

ocupação de terras ameaçadas de devastação anos de idade, é assassinado em sua casa o


e v i s t a

pela derrubada crescente e irresponsável 97º trabalhador rural, em circunstâncias


R

da floresta e pelo aniquilamento da semelhantes, na Amazônia.


atividade extrativista. Combate não só a É sua morte trágica que vai, efetivamente,
política governamental de favorecimento torná-lo conhecido em amplíssima escala nos
a empresas voltadas para o “progresso” a diversos segmentos da sociedade nacional
qualquer preço, assimétrico e concentrador, e reforçar, internacionalmente, sua aura
beneficiado por financiamentos e facilidades de ícone na defesa dos extrativistas e da
nacionais e internacionais, mas também as proteção ambiental.
204
condições de trabalho semiescravo ainda O que precisamos, porém, é verificar
vigentes na Amazônia. se essa figura carismática deixou marcas
Ao mesmo tempo, promove a na memória de sua sociedade. Os indícios
reconciliação entre seringueiros, índios e são numerosos:
colonos, por intermédio de uma grande - na noite mesma de seu assassinato, cria-
frente, a União dos Povos da Floresta, em se o Comitê Chico Mendes, uma articulação
Brasília, em 1985, quando consegue realizar de entidades não governamentais,
o l Encontro Nacional dos Seringueiros da sindicais e de estudantes que, entre seus
Amazônia. Desse momento em diante, sua vários objetivos, propõe-se a colaborar na
atuação passa a ser conhecida no exterior e manutenção da memória de seu patrono e a
a ONU logo lhe confere o Prêmio Global debater suas ideias. A Semana Chico Mendes
500, em Londres, depois de visitá-lo tem sido realizada todos os anos, de 15 a 22
em Xapuri, para apurar suas denúncias. de dezembro;
Também a Sociedade para um Mundo - a casa, objeto do presente pedido de
Melhor, em Nova York, lhe concede uma tombamento, transformou-se num memorial
bastante visitado, hoje sede da Fundação sentimentos de resistência pacífica, porém

O patrimônio cultural e a guinada da Constituição de 1988:


a casa de Chico Mendes
Chico Mendes; contínua e intensa, na oposição à selvageria

a c i o n a l
- seu nome tem sido dado a logradouros da predação econômica ao meio ambiente e
em várias cidades, a prêmios e honrarias às práticas de dominação que ela implica.
(como a Medalha Chico Mendes, do Grupo Inicialmente, pode-se dizer que o núcleo

N
r t í s t i c o
Tortura Nunca Mais), a instituições (como central dessa identidade era constituído pelas
o Instituto Internacional de Pesquisa e Res- comunidades extrativistas da Amazônia e,

A
ponsabilidade Socioambiental Chico Mendes, principalmente, do Acre. Passados vinte

e
do Paraná, ou o Instituto Chico Mendes de anos da morte do líder, porém, os círculos

i s t ó r i c o
Conservação e Biodiversidade, em que se se ampliaram, incluindo movimentos
desmembrou – não sei se convenientemente ambientalistas, religiosos, sociais e políticos.

H
– o Ibama). Em 1990 é criada a Reserva Ex- “O Acre não é outro país, o Acre é

a t r i m ô n i o
trativista que leva seu nome; Brasil”, já insistia o próprio Chico Mendes,

U l p i a n o To l e d o B e z e r r a d e M e n e s e s
- são incontáveis e diversificadas as instando a articulação de seringueiros,

P
homenagens que recebeu post mortem. Foi índios, estudantes, intelectuais, professores,

d o
tema de uma minissérie da acreana Glória enfim, todos os segmentos da sociedade

e v i s t a
Perez, apresentada pela Rede Globo em (entrevista à AGB). Em suma, tendo

R
janeiro de 2007 (Amazônia: de Galvez a Chico colocado a problemática da devastação da
Mendes), e de alguns títulos estrangeiros, floresta e opressão de muitas camadas de
entre eles o de autoria de Andrew Revkin. seus habitantes numa agenda nacional (e
Também foi objeto, entre nós, de muitos internacional), a figura de Chico Mendes
livros de autores como Márcio de Souza, pode contar entre aquelas com as quais a
Zuenir Ventura, Alex Criado, Edilson sociedade nacional é capaz de representar-se
Martins, um deles, inclusive, dedicado ao nacional e internacionalmente.
205
público infanto-juvenil;
- se os registros do Google nem sempre Ação
expressam qualidade, são, ao menos, índice A cultura não é um espaço de simples
de popularidade e há 1.020 mil deles relativos fruição passiva de significados e valores,
a Chico Mendes. mas um potencial de qualificação de todos
Não há dúvida, portanto, que a figura de e quaisquer segmentos de nossa existência.
Chico Mendes tem peso na constituição e Ela inclui, portanto, a ação como um de
operação da memória de parte considerável e seus frutos mais importantes. A vida cultural
diversificada da sociedade brasileira. é ativa. Não vivemos num mundo de
puras significações transcendentes que nos
Identidade monitoram, mas conservamos, reciclamos e
Também não há dúvida de que essa criamos significações e valores que possam
mesma parte considerável e diversificada da qualificar diferencialmente as instâncias e
sociedade brasileira consiga reconhecer-se circunstâncias de nossa existência, para lhes
na imagem de Chico Mendes, catalisando dar sentido e força.
O que se viu acima sobre a memória e a No campo normativo, a ação de Chico
O patrimônio cultural e a guinada da Constituição de 1988:
a casa de Chico Mendes

identidade facilita a compreensão de que não Mendes também deixou heranças: a Portaria
a c i o n a l

foi apenas por seu ideário, mas também por Incra nº 627, de 30 de julho de 1987
sua ação para concretizar esse ideário, que (que instituiu o modelo de ocupação dos
Chico Mendes deixou marca específica no Projetos de Assentamento Extrativista –
N
r t í s t i c o

imaginário brasileiro. PAEs, respeitando a distribuição natural das


Enfim, são o seu modo de vida, espécies); a Lei nº 7.804, de 18 de julho
A

conjugado com seu modo de luta e os de 1989 (que dispõe precisamente sobre as
e

efeitos capitalizáveis para efetivas mudanças, reservas extrativistas); a Lei nº 11.284, de 2


i s t ó r i c o

que servem, em nossos dias, de parâmetro, de março de 2006 (que dispõe sobre a gestão
traduzidos como “ideias-força”. Sem dúvida, de florestas públicas para ação sustentável);
H

estamos ainda muito longe de uma relação e planos integrados, como o Plano da
a t r i m ô n i o

sustentável com a floresta, com a Amazônia e Amazônia Sustentável – PAS, que não pode
U l p i a n o To l e d o B e z e r r a d e M e n e s e s

com o meio ambiente em geral. Mas hoje não correr o risco de se desfigurar.
P

se pode mais ignorar tais questões. Para concluir, Chico Mendes


d o

Chico Mendes deu à problemática da transformou-se em bandeira de luta.


e v i s t a

Amazônia e à preservação do meio ambiente e


dos direitos de seus mais humildes habitantes A casa, seus pertences,
R

a visibilidade que muitos procuravam seu entorno


encobrir – ainda que persistam as distorções
fundiárias, o desmatamento continuado e, O que vem dito acima demonstra a
com total carência de responsabilidade social, importância da figura de Chico Mendes
a pistolagem e os assassinatos impiedosos para a memória, a identidade e a ação dos
(haja vista o caso da Irmã Dorothy Stang, em grupos formadores da sociedade brasileira,
206 2005), a impunidade e o comprometimento para reproduzir os termos da Constituição
do poder público etc. Infelizmente, a de 1988. No entanto, o que ainda resta por
atualidade do imaginário de Chico Mendes ver é se a casa e seus pertences são também
resulta de uma tremenda dificuldade do país reconhecidos pela sociedade como portadores
em mudar suas estruturas viciadas. de referência para as mencionadas funções.
Ao mesmo tempo, porém, a imagem de Afinal, não se tombam processos de memória,
Chico Mendes está associada a vários frutos de processos identitários ou trajetórias de vida,
sua ação, que inspiram, por sua vez, a ação da- mas se tombam casas e seus pertences, se os
queles que comungam com seus ideais, funda- diversos segmentos da sociedade brasileira
mentados na percepção de que, quando se age nisso reconhecerem valores de referência. Não
com reta intenção, alguma semente sempre há basta, portanto, substituir o indispensável
de brotar. Assim, as reservas extrativistas hoje exame da mediação desses bens materiais
são realidade: há 59 delas e outras quatorze em na alimentação e sustento da memória,
desenvolvimento, com 45 novas unidades em identidade e ação por uma cômoda declaração
processo de criação, em várias regiões do país. de “bens simbólicos”! Como se houvesse bens
O patrimônio cultural e a guinada da Constituição de 1988:
a casa de Chico Mendes
a c i o n a l
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A
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i s t ó r i c o
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a t r i m ô n i o

U l p i a n o To l e d o B e z e r r a d e M e n e s e s
P
d o
e v i s t a
R
mobilizados para expressar valores que não Pretender-se que está em causa uma
fossem simbólicos! A natureza de um bem memória descarnada, etérea, sem lugar,
cultural é, essencialmente, em todos os casos, sem balizas neste mundo concreto em que
uma questão de significação, sentido, visão de vivemos, simples fantasmagoria semiótica,
mundo – simbólica, portanto. flutuando num vácuo indiferente, seria
207
Também me parece insuficiente dispensar o conhecimento acumulado nos
considerar a valoração por simples contágio. últimos sessenta anos, sobre o tema, pela
Com efeito, a Constituição de 1988 permite psicologia social, antropologia, história,
ir-se além do critério de “vinculação a fatos estudos de cultura material (para não
memoráveis da história do Brasil”, como mencionar a neurofisiologia e as ciências
consta do art. 1º do Decreto-lei nº 25/1937 da cognição).
– critério às vezes transformado nesse Os lugares e as coisas, em sua
fenômeno virótico de contaminação cultural “materialidade”, constituem obrigatórios
automática –, para níveis mais profundos gatilhos, pautas, guias, ordenadores,
Seringueiros indo
e adequados. O Decreto-lei nº 25, norma condensadores e legitimadores de memória. para o trabalho,
ainda de madrugada,
fundadora, não merece derrogação, por sua Memórias, imagens de si, projetos de ação com a poronga,
lamparina que ajuda
solidez, consistência e impecável técnica que constituem meros fatos psíquicos ou a iluminar o caminho
na floresta e fazer o
legislativa; é necessário, porém, tomá-lo mentais engaiolados na subjetividade dos talho na casca da
seringueira.
agora à luz das novas diretrizes introduzidas indivíduos, enquanto não se socializarem, Seringal Pimenteira,
Xapuri (AC), 1994
pela Constituição. enquanto não passarem a atuar no mundo Foto: Carlos Carvalho.
social – socialização, atuação no mundo social com pequenos recuos na fachada principal,
O patrimônio cultural e a guinada da Constituição de 1988:
a casa de Chico Mendes

que só pode ocorrer por essa mediação do nas laterais; há um quintal ao fundo. Toda
a c i o n a l

universo físico, material, sensorial. Só assim feita de madeira, é fruto de um processo


estarão presentes as condições de “partilha” de construtivo simples, mas eficaz e econômico,
memórias, de identidades, de projetos e ações. testemunhando um “saber-fazer” longamente
N
r t í s t i c o

Ora, uma casa e seu lugar podem depurado pela experiência. O telhado (em
apresentar potencial para tal mediação ângulo acentuado) e a ausência de forro, além
A

sensorial de ideias, significados, valores, de propiciar melhor arejamento, de certa


e

ideologias, expectativas, representações. maneira relativizam as vedações internas;


i s t ó r i c o

Acredito, aqui também, que a casa de Chico acrescentando-se que as inúmeras janelas, sem
Mendes com seus pertences (plantada em um vidraças, devem ficar abertas grande parte do
H

lugar específico de Xapuri e não no panteão tempo para iluminação; pode-se dizer que
a t r i m ô n i o

da memória) contenha esse potencial. é uma casa exposta, por dentro e de fora. A
U l p i a n o To l e d o B e z e r r a d e M e n e s e s

As informações de que disponho para única decoração, além de discretas guarnições,


P

avaliar a casa e seu entorno são aquelas se resume à pintura (azul turquesa para o
d o

fornecidas pela breve descrição e pelas exterior, portas, janelas, cercaduras e tabeiras
e v i s t a

fotografias do parecer do arquiteto Aguilera em rosa, quarto do casal em azul, demais


e demais fotografias (incluem pertences). peças em bege).
R

Preliminarmente, vale registrar que a casa, Para resumir, é uma casa despojada, quase
hoje sede da Fundação Chico Mendes, foi monástica – mas acolhedora e sobretudo
objeto de restauração pelo estado do Acre e digna, nessa simplicidade, justa medida das
também, em 2006, de tombamento estadual. necessidades: é cômoda sem desperdício.
A casa se situa numa rua de terra batida, O acervo dos pertences (com fotografias)
na ponta da cidade, que ocupa o espaço está em perfeita simbiose com os atributos
208 côncavo formado por uma curva do rio Acre, salientados: são móveis, equipamentos
logo depois de nele desaguar o rio Xapuri e utensílios do dia a dia, incluindo uma
(conforme planta urbana de 2006 da cidade pequena biblioteca, o conjunto expressando
de 5 mil habitantes), mas ela não está na beira as condições de vida que serviram de
d’água e sim a respectivamente uma e três plataforma para a luta pacífica, digna,
quadras, conforme o desenho sinuoso do rio. desinteressada e sem qualquer estrelismo,
A casa não destoa absolutamente das que movida ao longo da vida por seu morador.
lhe estão vizinhas, nem nas dimensões da Por fim, a casa foi palco do assassinato que
estrutura, configuração do lote e implantação condensou e cristalizou uma trajetória inteira
no terreno, nem na aparência externa e e a legitimou teatralmente para sempre. Por
materiais de construção – é uma como as assim dizer, esse episódio sangrento tornou
outras. Pequena, compõe-se de uma sala, sensível, prolongando a mediação das demais
dois quartos, cozinha e corredor, que não referências acima apontadas, a imagem, o
devem ultrapassar 52,5 m². O banheiro ideário e o curso das intenções e atos de
fica em edícula externa, contando o terreno Chico Mendes.
Nessas condições, não é de estranhar que faltam análise e justificativas e mesmo uma

O patrimônio cultural e a guinada da Constituição de 1988:


a casa de Chico Mendes
a casa seja foco de visitação por verdadeiros breve caracterização paisagística, para um

a c i o n a l
romeiros cívicos e tenha sua imagem projeta- julgamento conclusivo.
da para outros e amplos setores da sociedade
Conclusão

N
nacional. Cumpre, portanto, reconhecer que

r t í s t i c o
ela e seus pertences são portadores das refe-
rências previstas na Constituição para declara- À luz do exposto, não hesito, pois,

A
ção de seu valor cultural e base para medidas em recomendar vivamente ao Conselho

e
i s t ó r i c o
de proteção pelo poder público. Consultivo a anuência ao pedido de
Quanto ao entorno, a proposta de tombamento da casa de Chico Mendes em
delimitação está claramente definida Xapuri e seus pertences, devendo a inscrição

H
a t r i m ô n i o
(encaminhada pelo arquiteto José Aguilera, proceder-se no Livro do Tombo Histórico. Sou
endossada pelo memorando da gerente favorável, em princípio, à delimitação proposta

U l p i a n o To l e d o B e z e r r a d e M e n e s e s
de Proteção Jurema Kopke Eis Arnaut e do entorno, mas não dispus, até aqui, de ele-

P
reproduzida, afirmativamente, no parecer mentos suficientes para avaliar a pertinência

d o
e v i s t a
do procurador-geral federal Antônio dos parâmetros sugeridos – que poderão ser
Fernando Neri). Reconheço que a proposta explicitados na reunião do Conselho Consulti-

R
me parece à primeira vista aceitável, mas vo ou pelos órgãos pertinentes do Iphan.

209

Escola do Projeto
Seringueiro.
Seringal Porongaba,
Brasiléia (AC), 1992
Foto: Carlos Carvalho.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

210
L u c i a n a G o n ç a l ve s d e C a r va l h o Aporias da proteção do patrimônio cultural e natural
de uma comunidade remanescente de quilombo na Amazônia
Luciana Gonçalves de Carvalho

a c i o n a l
A porias da proteção do patrimônio cultural e

N
natural de uma comunidade remanescente de

r t í s t i c o
quilombo na A mazônia

A
H e
i s t ó r i c o
a t r i m ô n i o
Introdução (PA), acerca das estratégias e táticas1
pertinentes para a defesa de direitos coletivos
O ano de 2018 foi escolhido pelo relativos ao ambiente (florestas, rios, lagos

P
e sedes comunitárias que correspondem a

d o
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico

e v i s t a
Nacional – Iphan para a realização de áreas de uso e moradia) onde os quilombolas
uma série de ações com vistas à difusão e cultivam modos próprios de criar, fazer e

R
valorização do patrimônio cultural da Região viver. O fato de o TQ Alto Trombetas II ser,
Norte do Brasil, entre as quais se destacam atualmente, objeto de processos simultâneos
uma exposição, um seminário internacional de tombamento, titulação e licenciamento
e esta edição da Revista do Patrimônio. ambiental, que tramitam em órgãos federais
Diante da feliz oportunidade que essa distintos, assinala um contexto notoriamente
autarquia concedeu para a participação de complexo, no qual afloram paradoxos da
diversas frentes de pesquisa em seus arquivos preservação do patrimônio cultural e natural 211

institucionais, visando à seleção e elaboração no Brasil.

de textos para integrar as referidas produções, De um lado, a Superintendência do Iphan


Maria do Carmo
um processo de tombamento aberto em 2010 no Pará – Iphan-PA lida com um processo fazendo cerâmica
na Comunidade de
aberto em 1995, relativo ao tombamento
e arquivado por motivo de indeferimento Moura, Território
Quilombola Alto
dos Quilombos de Oriximiná, entre os quais
em 2014 chamou atenção. Requeria ele o Trombetas II,
Oriximiná (PA), 2016
o Alto Trombetas II. Em 2013, o Iphan-PA Foto: Suellem Esquerdo.
“tombamento da floresta amazônica, em toda
sua extensão”, sob a justificativa de que se
1. A distinção entre estratégia e tática remete a Michel de
trata de um ambiente imprescindível para a Certeau (1994, p. 99-100), para quem a primeira é “cálculo
(ou a manipulação) das relações de forças que se torna possível
continuidade da vida na Terra. a partir do momento em que um sujeito de querer e poder (...)
pode ser isolado. A estratégia postula um lugar suscetível de ser
O processo de tombamento da floresta circunscrito como algo próprio e ser a base de onde se podem gerir
as relações com uma exterioridade de alvos ou ameaças (...)”. À
inspirou novas reflexões sobre debates tática, reconhecida pelo autor como a arte do fraco, corresponde
anteriormente travados com as comunidades “a ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio.
Então nenhuma delimitação de fora lhe fornece a condição de au-
do Território Quilombola (TQ) Alto tonomia. A tática não tem por lugar senão o do outro. E por isso
deve jogar com o terreno que lhe é imposto tal como o organiza a
Trombetas II, no município de Oriximiná lei de uma força estranha”.
realizou o Inventário Nacional de Referências comunidades tem restado a opção de negociar
de uma comunidade remanescente de quilombo na Amazônia
Aporias da proteção do patrimônio cultural e natural

Culturais dos Quilombos de Oriximiná, formas alternativas de regularização fundiária,


a c i o n a l

doravante chamado INRC-Quilombos ou enquanto lidam com restrições impostas pela


simplesmente INRC, a fim de aprofundar legislação ambiental5.
conhecimentos sobre o sítio e as localidades2 Por fim, o Instituto Brasileiro do
N
r t í s t i c o

em questão, mas até o momento não houve Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
desdobramentos desse estudo e o processo de Renováveis – Ibama e a Fundação Cultural
A

1995 também não chegou a termo3. Palmares – FCP estão envolvidos no processo
e

O Instituto de Colonização e Reforma de licenciamento ambiental, iniciado em


i s t ó r i c o

Agrária – Incra, por intermédio da 2012, para o projeto de exploração de


Superintendência em Santarém (SR-30/ bauxita no interior e no entorno do TQ Alto
H

L u c i a n a G o n ç a l ve s d e C a r va l h o

Incra), dá andamento ao processo aberto Trombetas II, em áreas que, atualmente,


a t r i m ô n i o

pelas comunidades remanescentes de estão nos limites de uma das UCs geridas
quilombos em 2004, com vistas à titulação pelo ICMBio6. Esse projeto é de interesse
P

definitiva do TQ Alto Trombetas II. O da Mineração Rio do Norte – MRN,


d o

processo, que se tornou objeto de ação que se implantou em Porto Trombetas na


e v i s t a

judicial, tem tido o desfecho postergado pelo década de 1970, simultaneamente à criação
R

fato de estar sobreposto por duas Unidades da primeira UC na região. Desde então,
de Conservação – UC federais, criadas nas a mineradora está envolvida em conflitos
décadas de 1970 e 1980 e geridas pelo
4 decorrentes de impactos socioambientais
Instituto Chico Mendes de Conservação da da atividade minerária que vêm afetando os
Biodiversidade – ICMBio. No choque entre modos de criar, fazer e viver das comunidades
direitos ambientais, territoriais e culturais, às remanescentes de quilombo.
No complexo contexto em que vivem
212
2. De acordo com o Manual de Aplicação do INRC, sítios e tais comunidades na região do Trombetas,
localidades são delimitados conforme diferentes critérios, não
necessariamente geográficos, e “correspondem à implantação de os três processos supracitados abordam,
modos de vida, à percepção de fronteiras, à elaboração de regras
de conduta e criação de valores” (Iphan, 2000:33). No caso em por diferentes vias, questões semelhantes
tela, considerou-se como sítio o município de Oriximiná e, como
localidades, os diversos TQs nele existentes, titulados ou não.
relativas à salvaguarda do direito de manter
3. No Dicionário Iphan de Patrimônio Cultural disponível no o próprio modo de vida no território que
portal eletrônico do Iphan, Vaz (2016) informa que dez processos
semelhantes tramitam no órgão, tendo por objeto o tombamento
dominam desde o século 19. Na medida
dos quilombos Ambrósio, Vão do Moleque e Flexal, do quilom- em que os três processos encontram
bo em Ivaporunduva, e das áreas conhecidas como Jamary dos
Pretos, Mocambo, Riacho de Sacutiaba e Sacutiaba, Castainho, restrições e têm sua tramitação postergada,
Porto Coris e Campinho da Independência, todas ocupadas
por comunidades remanescentes de quilombo. Deles, apenas o nota-se que as legislações voltadas para o
primeiro, relativo aos “Remanescentes do antigo Quilombo do
Ambrósio”, resultou em tombamento. Posteriormente ao ato, patrimônio cultural e para o patrimônio
em agosto de 2014, o Ministério Público Federal em Uberaba
instaurou Inquérito Civil Público para apurar irregularidades no
processo de tombamento. 5. Situação similar é vivenciada pelas comunidades integrantes do
TQ Alto Trombetas I.
4. Privilegiando o ponto de vista das comunidades remanescentes
de quilombos, que, em tese, têm garantido pela Constituição 6. O referido processo de licenciamento ambiental envolve, além
Federal o direito à propriedade definitiva da terra secularmente do Alto Trombetas II, os TQs Boa Vista e Alto Trombetas I, am-
ocupada, assume-se que foram as UCs “que foram colocadas em bos vizinhos do TQ ora estudado, estando o primeiro a jusante e
cima” (informação verbal), ou seja, que se superpuseram ao TQ. o segundo a montante do rio Trombetas.
natural apresentam, simultaneamente, discurso da requerente quanto à necessidade

de uma comunidade remanescente de quilombo na Amazônia


Aporias da proteção do patrimônio cultural e natural
zonas de superposição e lacunas que, se não de preservação da floresta não difere das

a c i o n a l
levam à inação, sem dúvida contribuem assertivas amplamente difundidas desde
para ações estatais contraditórias no que a década de 1990, no Brasil e no mundo,
tange à proteção de direitos coletivos – tanto pela ciência quanto pela imprensa, que

N
r t í s t i c o
territoriais, socioambientais e culturais – das denunciam o crescente desmatamento na
comunidades em questão. Nas contradições Amazônia, suas consequências e causas, entre

A
alimentadas pela confrontação entre as as quais ações e decisões do próprio Estado

e
práticas jurídicas e administrativas do Estado (Fearnside, 2005; 2006).

i s t ó r i c o
com as expectativas de direito das próprias
A floresta amazônica está sendo derrubada
comunidades, emergem as aporias da razão
de forma acelerada porque tem pouco valor na

L u c i a n a G o n ç a l ve s d e C a r va l h o
ambiental e patrimonial em meio às quais elas

a t r i m ô n i o
percepção da sociedade brasileira atual, apesar de
devem operar tática e estrategicamente. uma parte dos formadores de opinião afirmarem
o contrário. Esta contradição entre o discurso e a
Da

P
r a z ã o pat r i m o n i a l e realidade sócio-político-econômica é comum no

d o
a m b i e n ta l mundo e ajuda a entender muito a respeito dos

e v i s t a
problemas de degradação ambiental que estão
minando a sustentabilidade do empreendimento
No processo nº 1725-T-14, protocolizado

R
humano (Clement & Higuchi, 2006:44). 
no Iphan sob o nº 01450.009085/2010-36,
uma cidadã residente em Bragança Paulista Apesar da irrefutável realidade do
(SP) requereu expressamente o que se segue: desflorestamento da região amazônica7, após
(...) [o] tombamento da Floresta Amazônica, análise do requerimento de tombamento
em toda sua extensão, incluindo-se todos os da floresta, a recomendação técnica ao
Estados e Territórios da Região Norte, abrangendo Departamento de Patrimônio Material
213
as áreas de florestas nativas, as quais devem (Depam/Iphan) foi “o indeferimento do
permanecer tal e qual se encontram atualmente, pedido e posterior envio ao Arquivo Central
em fauna, flora e bio sistemas, não se podendo, do Iphan para que se proceda à abertura de
doravante, derrubar nenhuma árvore dessa
processo de tombamento, série ‘T’, seguido
Floresta, tendo em vista sua importância para
a preservação da vida no planeta TERRA, suas
7. Vide uma série de reportagens publicadas no primeiro semestre
riquezas científicas e tesouros arqueológicos. de 2018, sob títulos alarmantes: Desmatamento na Amazônia
está prestes a atingir limite irreversível, informa a Agência Fapesp,
Preservando-se a redação da autora, tal em 21 de fevereiro (http://agencia.fapesp.br/desmatamento-na-
-amazonia-esta-prestes-a-atingir-limite-irreversivel/27180/); Des-
como se extrai do processo supracitado, “a matamento na Amazônia em março é 243% maior do que mesmo
período do ano passado, anuncia o site Conexão Planeta, em 24 de
justificativa para o tombamento pretendido abril (http://conexaoplaneta.com.br/blog/desmatamento-na-ama-
zonia-em-marco-e-243-maior-do-que-mesmo-periodo-do-ano-
é a preservação da FLORESTA, suas -passado/); Pará é o estado com maior índice de desmatamento da
Amazônia Legal, aponta Imazon, em 20 de junho (https://g1.glo-
riquezas e sua função para a continuidade bo.com/pa/para/noticia/para-e-o-estado-com-maior-indice-de-
da vida no planeta Terra, pois o bio sistema -desmatamento-da-amazonia-legal-aponta-imazon.ghtml); Mais
de 10 mil hectares de floresta já foram destruídos na Terra Indígena
(sic) só continuará a existir se a floresta Karipuna, revela o site Amazônia: notícia e informação, em 27 de
julho (http://amazonia.org.br/2018/07/mais-de-10-mil-hectares-
permanecer intacta”. Nesse aspecto, o -de-floresta-ja-foram-destruidos-na-terra-indigena-karipuna/).
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

214
L u c i a n a G o n ç a l ve s d e C a r va l h o Aporias da proteção do patrimônio cultural e natural
de uma comunidade remanescente de quilombo na Amazônia
Foto: Margi Moss/
Igarapé de Fogo,

Coleção M. e G. Moss.
afluente do rio Acari

rio Negro (AM), 2004


na margem direita do
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
215

L u c i a n a G o n ç a l ve s d e C a r va l h o Aporias da proteção do patrimônio cultural e natural


de uma comunidade remanescente de quilombo na Amazônia
de uma comunidade remanescente de quilombo na Amazônia
Aporias da proteção do patrimônio cultural e natural
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H

L u c i a n a G o n ç a l ve s d e C a r va l h o
a t r i m ô n i o
P
d o
e v i s t a
R

de arquivamento do mesmo” (Memo nº Nacional do Meio Ambiente – Conama e o


1028/2014-Depam). Como justificativa Ibama, bem como as leis nº 9.605/1998, nº
216 para o indeferimento, considerou-se: i) que 9.795/1999 e nº 9.985/2000, a conclusão
o referido bioma ocupa “mais de 61% do é de que “o pedido em epígrafe trata de
território brasileiro, correspondente a nove tombamento de ampla área natural que já
estados que englobam a Amazônia Legal”; ii) conta com proteção por órgãos e legislação
que a Constituição Federal já dispõe sobre específica” (Memo nº 1028/2014-Depam).
a preservação da floresta amazônica no art. Sem equívoco, a recomendação de
225, parágrafo 4º, ao determinar que “sua indeferimento do pedido de tombamento
utilização far-se-á, na forma da lei, dentro da floresta amazônica encontra respaldo
de condições que assegurem a preservação na legislação, que, a partir da Constituição
do meio ambiente, inclusive quanto ao uso Federal de 1988 (CF-88), se erigiu com
dos recursos naturais”; e iii) que a outros vistas à proteção do patrimônio cultural e
Extração de recursos institutos jurídicos e administrativos cabe a do patrimônio natural no Brasil. Outrossim,
florestais, base
da economia das competência de proteção de áreas naturais. embora não as assinale, a recomendação
Comunidades
Remanescentes de
Quilombos do Alto
Após citar especificamente o Ministério enfrenta imprecisões científicas e
Trombetas II, 2017
Foto: Débora Marcião. do Meio Ambiente – MMA, o Conselho incongruências políticas de tal pedido,
que, entre outros aspectos omissos, deixa patrimônio cultural imaterial em sua relação

de uma comunidade remanescente de quilombo na Amazônia


Aporias da proteção do patrimônio cultural e natural
de reconhecer a diversidade dos modos de íntima com a conservação da biodiversidade,

a c i o n a l
vida das populações que ocupam a floresta reconhecendo a importância do legado de
amazônica – entendendo-se por ocupação vários povos e comunidades da Amazônia.
a efetiva utilização, conforme propõem No mesmo sentido, há considerável literatura

N
r t í s t i c o
Acevedo & Castro (1993). Por exemplo, sobre a interconexão entre os direitos
como pretender que as florestas nativas – territoriais, ambientais e culturais desses

A
assim compreendidas a partir da concepção grupos (Benatti, 1999; 2011; Santilli, 2005;

e
de uma natureza intocada (Diegues, Granziera, 2009; Bensusan & Prates, 2014;

i s t ó r i c o
1993), ignorando as contribuições dos Little, 2014; Alves, 2016).
distintos grupos ocupantes para a presente Por outro lado, ao arrolar uma série de

L u c i a n a G o n ç a l ve s d e C a r va l h o
conformação da floresta (Cunha et. al., institutos que, em tese, garantem a pro-

a t r i m ô n i o
2001; Cunha, 2009; Scoles & Gribel, 2011)8 teção do patrimônio natural brasileiro, o
– permaneçam “tal e qual se encontram indeferimento do pedido encobre a efetiva

P
atualmente (...) não se podendo, doravante, incapacidade de cumprimento dessa missão

d o
derrubar nenhuma árvore”, se de uma pelos ditos institutos, o que implica, em larga

e v i s t a
variedade de recursos florestais inúmeros medida, o sistemático desrespeito a direitos
povos e comunidades fazem humanos que outrora se pretendeu assegurar,

R
uso regularmente? tanto com a Declaração Universal dos Direi-
O próprio Iphan, em número especial tos Humanos, de 1948, como com a Cons-
da Revista do Patrimônio organizado por tituição Federal de 1988. Assim, o Memo nº
Manuela Carneiro da Cunha (2005), 1028/2014-Depam, ao mesmo tempo em
discute alternativas para a salvaguarda do que reitera a competência dos órgãos ambien-
tais para a proteção do patrimônio natural,
oblitera a indissociabilidade deste com o pa- 217
8. Segundo Scoles & Gribel (2011), os castanhais na região de Vista panorâmica da
Trombetas costumam reunir de centenas até alguns milhares de cidade de Óbidos: à
indivíduos dessa espécie (de quinze a vinte indivíduos por hec- trimônio cultural. esquerda, teatro e
tare) e remontam, provavelmente, ao período pré-colombiano, Praça do Bom Jesus,
Essa indissociabilidade perpassa o texto à direita, Câmara
tendo sua ocorrência uma profunda relação com formas seculares
Municipal, ao fundo,
de ocupação humana na Amazônia. Para os autores, a proximida- constitucional de 1988, destacadamente em rio Amazonas, Forte
de física dos castanhais com áreas de terras pretas e sítios arqueo- de Óbidos e a Matriz
lógicos atesta a influência da ação dos povos ameríndios sobre seu Título VIII (Da Ordem Social), capítulos Foto: Coleção Thereza
Christina Maria/Acervo
o padrão de distribuição das árvores, o qual foi essencialmente
preservado pelas comunidades quilombolas, a partir dos contatos III (Da Educação, da Cultura e do Desporto) Fundação Biblioteca
Nacional, Brasil.
entre indígenas e negros na região.
e VI (Do Meio Ambiente). Privilegiando uma “os bens de natureza material e imaterial,
de uma comunidade remanescente de quilombo na Amazônia
Aporias da proteção do patrimônio cultural e natural

representação unitária do meio ambiente, a tomados individualmente ou em conjunto,


a c i o n a l

Constituição o compreende como o conjunto portadores de referência à identidade, à ação, à


de bens naturais, tanto quanto de bens cultu- memória dos diferentes grupos formadores da
sociedade brasileira”, entre os quais “os modos
N

rais, derivando dessa perspectiva a interpre-


r t í s t i c o

tação de Souza Filho (1997), que classifica os de criar, fazer e viver” (inciso II).
bens ambientais como um gênero do qual os Ora, considerando que os modos de
A

bens culturais e naturais são espécies. vida de significativa parcela da população do


e

Norte do Brasil têm na floresta amazônica


i s t ó r i c o

O meio ambiente, entendido em toda a sua


seu substrato material, cosmológico e
plenitude e de um ponto de vista humanista,
cognitivo, subentende-se que a proteção do
H

compreende a natureza e as modificações que


L u c i a n a G o n ç a l ve s d e C a r va l h o

patrimônio cultural que aí se engendra não


a t r i m ô n i o

nela vem introduzindo o ser humano. Assim, o


meio ambiente é composto pela terra, a água, o pode ser dissociada da proteção do solo, da
ar, a flora e a fauna, as edificações, as obras de água, da fauna, da flora, do ar, do universo
P

arte e os elementos subjetivos e evocativos, como simbólico e das populações nativas que
d o

a beleza da paisagem ou a lembrança do passado, integram e, efetivamente, contribuem para


e v i s t a

inscrições, marcos ou sinais de fatos naturais ou a reprodução da floresta (Castro & Pinton:
da passagem de seres humanos. Dessa forma, para
R

1997). Logo, o art. 216 da CF-88 deve ser


compreender o meio ambiente é tão importante
lido em consonância com o art. 225, não só
a montanha como a evocação mística que dela
porque “todos têm direito ao meio ambiente
faça o povo. Alguns destes elementos existem
ecologicamente equilibrado, bem de uso
independentes da ação do homem: os chamamos
comum do povo e essencial à sadia qualidade
de meio ambiente natural; outros são frutos de
sua intervenção e os chamamos de meio ambiente de vida”, mas também porque deve o próprio
cultural (Souza Filho, 1997:9). Estado considerar a inseparabilidade de
218
cultura e ambiente ao usar a prerrogativa de
Depreende-se, portanto, que apenas po- “definir, em todas as unidades da Federação,
líticas ambientais transversais e estreitamente espaços territoriais e seus componentes a
relacionadas com o campo da cultura possam serem especialmente protegidos” (inciso III).
respeitar a integridade dos dispositivos cons- Porém, contrariando a indissociabilidade
titucionais, tal como eles foram propostos, de do meio ambiente natural e cultural postulada
forma sistêmica e integrada e ultrapassando a pela CF-88, a legislação infraconstitucional
concepção de meio ambiente como “o conjun- opera a disjunção entre essas duas dimensões,
to de condições, leis, influências e interações de fundamentando uma razão ambiental e patri-
ordem física, química e biológica, que permite, monial que se expressa em normas e práticas
abriga e rege a vida em todas as suas formas”, jurídico-administrativas contraditórias.
trazida pela Lei nº 6.938/81, que instituiu a À luz dessas reflexões provocadas
Política Nacional do Meio Ambiente. Ade- pelo processo de tombamento da floresta
mais, no que tange ao patrimônio cultural, o amazônica, o caso do Território Quilombola
art. 216 da Carta Magna é claro ao defini-lo: Alto Trombetas II passa a requerer especial
atenção, dada a complexidade gerada pela II, remonta aos mocambos11 instalados

de uma comunidade remanescente de quilombo na Amazônia


Aporias da proteção do patrimônio cultural e natural
simultaneidade de processos jurídico- por negros fugidos da escravidão no alto

a c i o n a l
administrativos que o atravessam e que, curso encachoeirado do rio Trombetas, no
em tese, deveriam proteger seu patrimônio século 19. Amocambados acima da primeira
natural e cultural, assim como garantir cachoeira do rio Trombetas, originalmente

N
r t í s t i c o
direitos territoriais, socioambientais e batizada em nome de São Miguel Arcanjo
culturais das comunidades remanescentes de pelo missionário Mazzarino, formaram os

A
quilombo que o integram. povoamentos Maravilha e Campiche, este

e
último nas margens do rio Turuna. Segundo

i s t ó r i c o
Breve caracterização do uma moradora da atual comunidade de
T e rr i t ó r i o Q u i l o m b o l a Cachoeira Porteira, com ajuda dos índios eles

L u c i a n a G o n ç a l ve s d e C a r va l h o
A l t o T r o m b e t a s II

a t r i m ô n i o
subiam no remo; e quem vinha na vela jamais
ia conseguir subir a cachoeira (...) Lá do alto do
O Território Quilombola Alto Trombetas Turuna a gente conseguia enxergar quem subia (...)

P
II, normalmente referido pelos próprios Justamente por isso, porque se tornou um portão,

d o
moradores como Alto II, fica na zona rural- taí a cachoeira batizada de Cachoeira Porteira

e v i s t a
ribeirinha do município de Oriximiná, (Iphan, 2014:F-11-5).
situado na porção oeste do estado do Pará,

R
Apesar de relativamente isolados
na mesorregião do baixo Amazonas. Nesse
geograficamente, os mocambeiros mantinham
que é um dos maiores municípios brasileiros
relações de troca com mascates e comerciantes
em extensão, com 107.603,292 km², vastas
sediados em Óbidos, Oriximiná e Santarém.
extensões de terra são delimitadas por
Basicamente, trocavam produtos extraídos
Unidades de Conservação ou correspondem a
da floresta (castanha, breu, óleos vegetais e
áreas indígenas9 e quilombolas, demarcadas e
animais) e itens produzidos nos mocambos 219
tituladas, ou em processo de titulação10.
(sobretudo farinha de mandioca) por
A formação histórica das comunidades
outros que lá não eram acessíveis. As trocas
Curuçá, Jamari, Juquiri Grande, Juquirizinho,
comerciais alimentavam uma espécie de
Moura, Nova Esperança, Palhal e Último
“cumplicidade dos contrários” (Bezerra Neto,
Quilombo, onde vivem cerca de trezentas
2001:97), estimulando laços de solidariedade
famílias que integram o TQ Alto Trombetas
em que aqueles forneciam informações
aos negros, prevenindo-os de eventuais
9. Hixkariyana, Inkarïnyana, Kahyana, Tunayana, Txikiyana,
Kamarayana, Karafawyana, Mawayana, Okomoyana, Pirixiyana,
Txarumayana, Xerewyana, Xowyana, Katuwena, Farukoto, Zo’é
são povos que vivem no território de Oriximiná (Disponível em
<https://www.quilombo.org.br/povos-indigenas>. Acessado em 11. Ao longo da história da região, o termo mocambo
9/8/2018). foi utilizado para designar os povoados ocupados
predominantemente por negros nas margens do rio Trombetas
10. São sete os territórios quilombolas oriximinaenses, além do e seus afluentes. Até poucas décadas atrás, a sociedade local
Alto Trombetas II: Boa Vista, Água Fria, Trombetas e Erepecuru, referia-se a seus habitantes como “pretos dos mocambos”
titulados entre 1995 e 1998 (por ordem de obtenção do título); ou “mocambeiros”. O termo quilombo foi incorporado no
Alto Trombetas I, parcialmente titulado (na área que pertencia ao vocabulário local depois que a Constituição Federal de 1988
estado do Pará) e em processo de titulação (na área pertencente fez menção a direitos das “comunidades remanescentes de
à União); Cachoeira Porteira, titulada em 2018; e Ariramba, em quilombo”. Para mais informações sobre o histórico de ocupação
vias de titulação (na porção de terra do estado do Pará). da área, ver Funes (2000) e Salles (2005).
expedições de recaptura e de outras medidas bravas” permaneceram sem identificação
de uma comunidade remanescente de quilombo na Amazônia
Aporias da proteção do patrimônio cultural e natural

punitivas tomadas pelos governos nas vilas. e delimitação formal como comunidade,
a c i o n a l

até a década de 1980: “tinha só um grupo


O meu pai contava que minha avó dizia que
e não era reconhecido como comunidade”,
eles vieram do Curuá de Alenquer. Eles vieram
como explica Sebastião Andrade, do Juquiri
N

corridos do tempo dá escravidão, aí eles passaram


r t í s t i c o

direto pra cachoeira, pra lá foi o pai a mãe da Grande (Iphan, 2014:F-11-7).
minha mãe, avó minha, todos se esconderam A consequente organização em prol do
A

pra lá. Eu ainda vi minha avó contar que, olha reconhecimento de sua presença na região
e

eles iam de lá dessa paragem que eu tô dizendo, foi uma estratégia acionada pelos grupos
i s t ó r i c o

da cachoeira, uma tal de Campiche, eles iam pra negros para enfrentamento dos prejuízos
Óbidos fazer compras. Eles iam de canoa, que não imputados pela implantação praticamente
H

L u c i a n a G o n ç a l ve s d e C a r va l h o

existia motor. Quando eles escutavam zoada de


simultânea dos projetos minerários da MRN,
a t r i m ô n i o

motor, eles se escondiam, assim eles iam. Andavam


em 1976, e da Reserva Biológica (Rebio)
mais de noite do que de dia. Eles iam assim,
do Rio Trombetas – RBRT, na sua margem
voltavam assim (Iphan, 2014:F-11-7 – Entrevista
P

de Antônia Pereira).
esquerda, em 1979. Esses dois eventos
d o

feriram violentamente os descendentes


e v i s t a

Com efeito, as redes de comércio dos mocambeiros. Além de promoverem a


e colaboração, mais do que a vencer as expulsão de famílias que viviam na região,
R

distâncias geográficas, ajudaram a consolidar ambos os projetos implicaram restrições de


as fronteiras físicas dos mocambos, acesso e uso do território ocupado.
“tornando-as mais viáveis porquanto acatadas
(...) foi em 1979 que chegou o Ibama12 para
pelos segmentos sociais com que passavam
cá. A gente vivia aqui uma vida mais tranquila.
a interagir” (Almeida, 2002:49). Tanto é
Meu pai nasceu aqui, mas eles sempre diziam:
que, para O’Dwyer & Carvalho (2002:205), “Nada é de vocês”, “não pode tocar aí”, “isso é
220
o isolamento dos mocambos “converte-se, nosso”. Mas a gente sempre insistiu em viver
assim, em isolamento consciente, fazendo porque a gente nasceu aqui, né? Aí a gente ia
deles uma comunidade de intercâmbio que sempre conversando com eles, eles não deixavam
age efetivamente na defesa de interesses e de a gente muito à vontade, mas a gente insistia (...).
Tratavam mal a gente aqui, aí a gente obedecia um
uma vida comuns”.
pouco a eles para não entrar muito no conflito,
Com as interações mais frequentes com
mas resistimos e a gente não saiu. Foi criada
a sociedade regional após a abolição da
a reserva em 1979 em cima de nós aqui (...)
escravatura, os mocambeiros passaram a humilharam muito a gente, oprimiram muito a
se estabelecer em zonas mais baixas do rio gente, que a gente chegava assim na casa da gente
Trombetas ao longo do século 20. Buscando e estava cozinhando tracajá ou uma caça, e eles
nas chamadas “águas mansas” melhores pegavam a panela e jogavam a comida fora. Era
meios de vida, ampliaram seu domínio
territorial na região. Mesmo assim, os 12. À época da delimitação da Rebio, sua gestão era responsa-
bilidade do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal
novos núcleos de povoamento criados pelos – IBDF, que fora criado em 1967. Quando este foi extinto, em
1989, a responsabilidade foi passada ao Ibama, até que, a partir
remanescentes dos mocambos das “águas de 2007, o recém-criado ICMBio assumiu a gestão da UC.
de uma comunidade remanescente de quilombo na Amazônia
Aporias da proteção do patrimônio cultural e natural
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H

L u c i a n a G o n ç a l ve s d e C a r va l h o
a t r i m ô n i o
P
d o
e v i s t a
R
uma pressão muito forte para a gente. Castanha, ocorreu com o lago mais piscoso do território, Extrativismo em
Comunidade
eles tomavam a castanha da gente, prendiam a o Erepecu, em cujo acesso foi instalado um Remanescente de
Quilombos do Alto
castanha da gente (...). A gente se humilhava para 221
posto flutuante de fiscalização da reserva13. Trombetas II, 2017
Foto: Débora Marcião.
eles, mas a gente não saiu. A gente se humilhava
Encurralados entre os impactos
para eles dizia: “dá a castanha para gente comer,
ambientais da mineração e a preservação
a gente não tem o que comer (Cumbuca Norte,
praticada pelo Estado, os quilombolas viram
2017:390).
diminuir progressivamente a disponibilidade
As restrições de acesso e uso do território de recursos naturais indispensáveis a sua
atingiram em cheio a economia local, sobrevivência, de tal forma que seus modos
baseada em formas tradicionais de exploração de vida tradicionais seriam profundamente
dos diversos hábitats que o integram,
principalmente por meio de atividades 13. Não há rotas regulares de barcos de linha para o TQ Alto
Trombetas II, mas grande parte dos moradores possui embarca-
extrativistas, agrícolas e pesqueiras. Dentre os ção própria para deslocamento nos limites do território e entre ele
e as áreas quilombolas vizinhas. Contudo, o trânsito dos próprios
recursos explorados, o mais importante para moradores é fiscalizado pelo ICMBio, que mantém duas bases de
a renda familiar é a castanha, mas os maiores fiscalização, a primeira na altura do Lago do Erepecu (TQ Alto
Trombetas II) e a segunda no Tabuleiro, no território Alto Trom-
castanhais do TQ Alto Trombetas II ficaram betas I. Logo, rio acima e rio abaixo, as embarcações devem parar
nessas bases, onde estão sujeitas a revistas. O acesso de visitantes e
delimitados no interior da Rebio. O mesmo convidados deve ser previamente autorizado pelo ICMBio.
alterados, aproximando-os de uma nova filho de um parente meu (...) ele estava lá perto de
forma de escravidão como mão de obra na Trombetas pescando, uma linha só para sobreviver,
MRN14: “A mineração oferece os piores estava puxando aracu. Ele estava só com uma
linha e pirão, aí uma tal [agente do ICMBio]
trabalhos que tem para essa comunidade
passou lá. Levaram ele lá para feira, tomaram
(...). O trabalho do povo é só lavar banheiro
rabeta, tomaram a canoa dele, as linhas e ainda
e roçar mato, ficar subindo essas serras da botaram uma multa para ele pagar (...). Muitos
mina... Isso é uma coisa de escravidão” – funcionários do ICMBio estão mais acostumados
resumiu um quilombola. A percepção da nas comunidades, a conhecerem a realidade, eles
escravidão é reforçada pela obrigação de têm a visão diferente. Mas tem uns que têm a visão
se apresentar nos postos de fiscalização do de onde eles vieram e querem fazer a lei do jeito
ICMBio – “uma vergonha para andar na que eles pensam que tem que fazer, aí, fica difícil
de ter uma relação boa com a pessoa. (Cumbuca
terra que os nossos antepassados deixaram pra
Norte, 2017:351).
gente” –, assim como pelas ações de revista e
apreensão de pescados e apetrechos de pesca. Com a promulgação da Constituição
Proíbe muito, tudo é proibido. Se você pegar
Federal de 1988, especialmente com o art. nº
até um peixe para você comer com a sua família, 68 do Ato das Disposições Constitucionais
se estiver passando ali e agarrar você com uma Transitórias – ADCT, conferindo “aos
quantia de 20 peixes para você levar para sua remanescentes das comunidades dos
família, o ICMBio pega, toma, ainda bota processo quilombos que estejam ocupando suas
em cima de você para você pagar multa. Tem um terras” o direito à propriedade definitiva
sobre elas e incumbindo o Estado da emissão
14. De modo geral, “as experiências da escravidão vividas pelos
antepassados dos remanescentes de quilombos de Oriximiná
dos respectivos títulos, os agrupamentos
persistem em gestos, memórias, pesadelos e histórias passadas negros do Trombetas começariam a
de pais para filhos. Conformam um material simbólico denso
para a elaboração de representações de um passado comum, as mobilização em prol da identificação e
quais reforçam o sentimento de pertença étnica e alimentam a
continuidade das comunidades” (Carvalho, 2015:73). delimitação das terras ocupadas.
Em 1989, durante uma visita do então reservas técnicas na área da Flona, ora criada, não Campo de extração
de bauxita,
presidente da República José Sarney, os sofrerão solução de continuidade (...). Porto Trombetas,
Oriximiná (PA), 2016
quilombolas assistiram à criação da Floresta Art. 4º Fica excluída do presente Decreto a Foto: Alexandre Rocha.

Nacional – Flona de Saracá-Taquera – FNST, área de 1.884 ha, denominada Almeidas, de pro-
englobando uma extensa área na margem priedade da Mineração Rio do Norte, conforme

direita do rio Trombetas onde a MRN já escritura pública de compra e venda e cessão de
Direitos Hereditários e Meação lavrada no Car-
atuava. A criação dessa UC em área ocupada
tório do 24º Ofício de Notas do Rio de Janeiro,
por comunidades do Alto Trombetas II,
Livro nº 2.809 - fls. 72, D 20, em 25-3-83.
providenciada antes mesmo que o governo
Art. 5º Fica o Instituto Brasileiro do Meio
procedesse à titulação do território conforme
Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
o mandamento legal, acirrou a luta pela
– Ibama autorizado a celebrar convênio com a
terra. Embora menos proibitiva que a Rebio,
Mineração do Rio Norte S.A., objetivando obter
a Floresta Nacional também significou apoio na implantação da Floresta Nacional Saracá-
restrições de acesso e uso de recursos naturais Taquera e proteção de sua área.
para a população local, mas, paradoxalmente, Art. 6º A área da Floresta Nacional, ora
assegurou a presença continuada da criada, fica declarada de interesse social, conforme
mineração no próprio documento legal preconiza o art. 5º, letra “b”, da Lei nº 4.771/65,
de criação da Unidade , o Decreto nº
15 ficando as desapropriações que se façam necessárias
98.704/1989: a cargo do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e
dos Recursos Naturais Renováveis.
Art. 2º As atividades de pesquisa e lavra
minerais autorizadas, já em curso ou consideradas Por um lado, a criação da Flona restringiu
a disponibilidade de terras para agricultura
15. A legislação sobre mineração em Unidades de Conservação e o acesso a palhas, cipós e madeiras para
no Brasil é, conforme mostram Lima (2006) e Ricardo & Rolla
(2006), permeada por imprecisões e contradições. Uma delas é a a construção de casas, barcos e cercas, por
autorização de atividades minerárias nas Flonas criadas antes da
Lei nº 9.985/2000 e onde houvesse previsão de mineração. exemplo. Por outro, o desflorestamento dos
Campo de extração platôs para exploração de bauxita extinguiu, áreas ocupadas pelas famílias negras,
de bauxita,
Porto Trombetas, em grandes extensões da floresta, árvores que então passavam a se autodefinir
Oriximiná (PA), 2016
Foto: Alexandre Rocha.
das quais se extrai óleo de copaíba, segundo como “remanescentes de quilombo” e
recurso em importância na composição “quilombolas”. Nesse movimento, os líderes
da renda monetária das famílias locais. Ao negros contaram com o apoio essencial da
mesmo tempo, afastou a caça que faz parte de Igreja católica e de organizações da sociedade
sua dieta alimentar. civil para a constituição de comunidades.
Em reação às perdas sofridas, líderes A grupalização era uma vertente
negros de diversas localidades fundaram, fundamental de atuação da Igreja, por meio
em 1989, a Associação das Comunidades da formação de Comunidades Eclesiais de
Remanescentes de Quilombo do Município Base – CEB, ou seja, de grupos comunitários
de Oriximiná – Arqmo. Por intermédio aos quais párocos e leigos prestavam
dessa entidade, incentivariam a politização acompanhamento sistemático e assessoria
e a formação de organizações locais nas para organização política (Carvalho, 2011).
Esperava-se, nesses grupos, estimular o dos 2000. Com a edição do Decreto nº

de uma comunidade remanescente de quilombo na Amazônia


Aporias da proteção do patrimônio cultural e natural
“espírito de coletividade e da solidariedade, 4.887/2003, que instruiu sobre a execução do

a c i o n a l
numa visão crítica da realidade [e] contribuir direito previsto na CF-88, elas reivindicaram
na integração do homem do campo com sua perante o Estado a titulação do território
quilombola que ocupam, em um processo

N
comunidade, na perspectiva de transformação

r t í s t i c o
global, a partir de sua condição concreta, aberto no Incra em 2004.
cultural e histórica” (Azevedo & Apel, Desde então, a propriedade das terras

A
2004:18). ocupadas não lhes foi reconhecida e a

e
A adoção de práticas associativas conduziu titulação ainda é uma perspectiva distante,

i s t ó r i c o
a novas formas de apropriação do espaço em função da sobreposição de interesses do
em uma região ocupada por moradias Estado e da mineradora aos interesses dos

L u c i a n a G o n ç a l ve s d e C a r va l h o
quilombolas. Nesse ínterim, refletindo tal

a t r i m ô n i o
dispersas que, se ampliavam o domínio
territorial dos negros no TQ Trombetas, sobreposição de interesses, três processos
refletindo espacialmente uma ampla rede de administrativos se desenrolam em diferentes

P
parentesco e afinidade, também dificultavam instâncias do governo federal: o mais antigo

d o
a organização coletiva. Então, para além propõe o tombamento dos quilombos; outro

e v i s t a
das moradias e das vastas áreas de uso, que requer a titulação do território quilombola;

R
compreendem locais de trabalho e fruição, e o mais recente visa ao licenciamento
foram criadas sedes comunitárias com da mineração em áreas pleiteadas pelas
estruturas de uso comum: barracão para comunidades quilombolas do Alto II.
reuniões e festividades, capela e, em alguns Os três processos ensejaram estudos
casos, escola. multidisciplinares, inclusive de natureza
Essas edificações constituíram marcos físi- antropológica, capazes de fornecer um
cos da ocupação e da organização formal dos diagnóstico das comunidades. Juntos, o
225
agrupamentos enquanto comunidades. Mas, INRC-Quilombos, o Relatório Técnico
em paralelo, processos de reconstituição da de Identificação e Delimitação – RTID
memória coletiva forneceram os marcos sim- do território e o Estudo do Componente
bólicos do reconhecimento dessas comunida- Quilombola – ECQ das comunidades
des para além das bases territoriais, enquanto localizadas no entorno da Mineração Rio
do Norte são suficientemente indicativos da
(...) unidades sociopolíticas que se representam complexidade dos choques entre direitos que
para si e para a sociedade abrangente, a partir
elas vivenciam, não só porque conflitam seus
da assunção da identidade quilombola, num
direitos naturais e culturais (Benatti, 1999),
movimento de superação do histórico de
mas também porque o exercício de seus
preconceito e negação de direitos, e de valorização
direitos fundamentais enquanto grupo colide
de tradições comuns (Carvalho, 2015:65).
com o exercício de direitos de outros. Sem
No Alto Trombetas II, as comunidades solução vislumbrada em curto e médio prazo,
se organizaram formalmente entre a segunda o caso possivelmente demanda formas de
metade dos anos 1980 e a primeira metade reconhecimento e proteção sui generis.
O Aporia é, então, o “beco sem saída”
de uma comunidade remanescente de quilombo na Amazônia
Aporias da proteção do patrimônio cultural e natural

quilombo e a aporia da
p r o t e ç ã o d o pat r i m ô n i o ou a “sinuca de bico”17 que a linguagem
a c i o n a l

c u lt u r a l e n at u r a l corrente popular consagrou para se referir


a situações insolúveis nas quais o sujeito
se descobre “entre a cruz e a espada”, pois
N

Na mitologia grega, Aporia é o daemon16


r t í s t i c o

da dificuldade, da impotência, do desamparo quaisquer tentativas de solução importarão


e da falta de meios. Conta o mito que, ao em falência de objetivos. É aporética,
A

percorrer um estreito caminho, Hércules portanto, a questão repetidamente colocada


e

encontrou Aporia, que, embora fosse por um quilombola de Trombetas: “O que é


i s t ó r i c o

pequena, lhe obstruía a passagem. Conforme que vale mais? O direito do quilombola, da
Hércules tentava esmagá-la com os pés, mineradora ou do ICMBio?”.
H

L u c i a n a G o n ç a l ve s d e C a r va l h o

Empunhando um exemplar da Constitui-


a t r i m ô n i o

Aporia crescia, alcançando tamanho tal que


bloqueou o caminho. Hércules, que não ção Federal que carrega consigo dentro de um
a conhecia, espantou-se e pediu socorro a saco plástico, para não molhar durante os des-
P

Athena, que o aconselhou a não a combater, locamentos feitos em pequenas rabetas18 pelo
d o

seguindo seu caminho. rio, em quase todas as reuniões com represen-


e v i s t a

Na filosofia, o termo aporia é utilizado tantes de órgãos federais que atuam na região,
ele reitera a pergunta até que seja respondida.
R

para designar dificuldade resultante da


incapacidade de se obter resposta a uma Invariavelmente, a interpelação desconcerta
determinada questão. É famosa, por exemplo, os servidores dos órgãos.
a meditação de Santo Agostinho sobre a Em regra, as respostas à questão
questão aporética e perturbadora sobre a evidenciam a importância do art. nº 68 do
essência do tempo: ADCT. Algumas, mais raramente, remetem
ao art. 216 da CF-88, segundo o qual “ficam
226 O que é, pois, o tempo? Se ninguém mo
tombados todos os documentos e os sítios
pergunta, sei o que é; mas se quero explicá-lo a
detentores de reminiscências históricas dos
quem mo pergunta, não sei: no entanto, digo
com segurança que sei que, se nada passasse, não
antigos quilombos”19. Porém, em comum,
existiria o tempo passado, e, se nada adviesse, não
existiria o tempo futuro, e, se nada existisse, não
17. Não por acaso, Lima (2006) intitula como “SiNUCa de
existiria o tempo presente. De que modo existem, bico...”, em referência ao Sistema Nacional de Unidades de
Conservação – Snuc, o artigo em que trata das incongruências da
pois, esses dois tempos, o passado e o futuro, uma legislação que rege atividades de mineração em UCs.
vez que, por um lado, o passado já não existe, por
18. Tipo de motor que se acopla a pequenas embarcações como
outro, o futuro ainda não existe? (Santo Agostinho, canoas, por exemplo. Tem uso amplamente difundido em comu-
nidades ribeirinhas, que usam o termo rabeta para se referir não
2008 [1864]:111-112). só ao motor, mas à própria embarcação por extensão.

19. Percebe-se que, na rara menção aos dispositivos constitucio-


nais relativos ao patrimônio cultural, essa dimensão é ignorada
ou desprezada por grande parte dos representantes dos órgãos
responsáveis por lidar com questões ambientais e territoriais.
Quando falam em cultura, normalmente se referem a festas,
danças, artesanato e outras expressões objetivas que compõem
16. Os daemones são entidades que personificam qualidades apenas uma faceta da noção de patrimônio cultural adotada na
da natureza humana como a ira, a força, o vício, a verdade, a CF-1988 e nos instrumentos internacionais que dispõe sobre o
humildade e a malícia, entre muitas outras. assunto (Dourado, 2013).
as respostas concluem pela impossibilidade objetivo velado de sobrepor o interesse

de uma comunidade remanescente de quilombo na Amazônia


Aporias da proteção do patrimônio cultural e natural
de se proceder seja à titulação das terras nacional pela mineração sobre outros

a c i o n a l
reivindicadas, seja à proibição da mineração, interesses públicos tão ou mais relevantes”.
seja ao tombamento dos quilombos. Entendendo o interesse nacional como
Por um lado, há o argumento de que,

N
interesse público, essas teses justificam

r t í s t i c o
como o art. 225 da CF-88 reconhece a todos a prevalência do interesse de minerar o
o direito ao meio ambiente ecologicamente subsolo sobre o direito de propriedade do

A
equilibrado, é dever do Estado garanti-lo, solo. Já as teses ambientalistas, baseando-se

e
inclusive por meio da criação de Unidades

i s t ó r i c o
na concepção das UCs como bens de uso
de Conservação, que não podem ser extintas comum e de interesse social difuso, sustentam
por mera decisão do órgão competente, que sobre elas se exerça “proteção jurídica

L u c i a n a G o n ç a l ve s d e C a r va l h o
senão por lei. Assim, um conflito de

a t r i m ô n i o
excepcional, indisponível, que se sobrepõe
interesses é instaurado dentro do próprio a todo e qualquer interesse patrimonial,
Estado, personificado no ICMBio e no mesmo que seja interesse econômico estatal

P
Incra, que integram o Executivo, mas a (portanto, mesmo que o interesse econômico

d o
resolução da contenda só pode advir de seja público)”, conforme Lima (2006:10).

e v i s t a
uma decisão do Legislativo. De tal modo, o Enfim, mais uma vez, a legislação não ajuda a

R
ADCT nº 68 torna-se praticamente inócuo, resolver os impasses vividos pelos quilombolas
já que a regularização fundiária não pode do Trombetas.
ser completada. Por último, considerando a tardia
Por outro lado, considera-se que,
regulamentação do ADCT nº 68, combinada
pertencendo os recursos minerais, inclusive
à determinação do art. 216 da CF-88 de que
os do subsolo, ao patrimônio da União,
“ficam tombados todos os documentos e os
conforme determina o art. 20 da CF-88,
sítios detentores de reminiscências históricas 227
cabe à própria União dispor dos direitos
dos antigos quilombos”, atores sociais ligados
de pesquisa e exploração minerária; e que,
ao movimento quilombola protocolizaram
sendo a mineradora legalmente constituída
no Iphan, em 1995, o processo nº 1353-T-
detentora desses direitos, deles pode fazer
95, em que requereram o “tombamento dos
uso. Porém, em se tratando de uma Flona,
quilombos de Oriximiná”. Ele permanece
a legislação dá margem a interpretações e
sem desfecho até o presente, mas deverá
decisões que se contradizem.
ter destino semelhante ao do processo de
Segundo Lima (2006:9), lacunas e
tombamento da floresta amazônica, pois, em
imprecisões das leis colocam na arena de
parecer técnico de 1995, o Departamento de
debates sobre a mineração em UCs teses
Proteção –Deprot, do Iphan, recomendou seu
dos ambientalistas e dos mineradores, estas
arquivamento. Um dos motivos apontados no
últimas promovendo uma “deliberada
parecer foi:
confusão entre os conceitos de interesse
nacional, utilidade pública e interesse social (...) o fato de que, nos autos do processo e na
promovida pelo setor da mineração com bibliografia por nós consultada, não conseguimos
relacionar os espaços atualmente ocupados pelas dos antigos quilombos”, examinamos então
de uma comunidade remanescente de quilombo na Amazônia
Aporias da proteção do patrimônio cultural e natural

Comunidades Negras do Município de Oriximiná a possibilidade do interesse vir a recair na


com aquelas onde anteriormente se assentaram os preservação de bens imateriais, identificados
a c i o n a l

quilombos (Vaz, 2014:84). nos modos de fazer e de viver das Comunidades


Remanescentes de Quilombos do Município de
N

De fato, como já exposto em relação Oriximiná, considerando-se então a possibilidade


r t í s t i c o

à trajetória de ocupação quilombola em de preservação de sua cultura peculiar, originada


Oriximiná, após a abolição da escravatura dos povos que ali se estabeleceram no século
A

os mocambeiros estabelecidos acima passado (Vaz, 2014:86).


e
i s t ó r i c o

das cachoeiras no século 19 passaram a


Conforme conclui Vaz (2016), no caso
ocupar zonas mais baixas e acessíveis do
dos quilombos de Oriximiná o Iphan aplicou
rio, em um movimento conhecido como
H

L u c i a n a G o n ç a l ve s d e C a r va l h o

o conceito colonial com que, em regra, vem


a t r i m ô n i o

descenso. Portanto, como aduz o próprio


tratando os processos de tombamento em
parecer, “diversas comunidades que hoje
comunidades remanescentes de quilombo.
se autoidentificam como quilombolas
P

Reconhecendo esforços do órgão de refletir


nessa região se formaram após a abolição”,
d o

sobre a questão, a fim de subsidiar a ação


mas apenas em um sentido restrito de
e v i s t a

comunidade enquanto base territorial institucional em relação a essa temática,


Vaz menciona trabalho do advogado
R

comum, que não condiz com a realidade


histórica e socioantropológica da ocupação Guilherme Cruz Mendonça, realizado no
negra no Trombetas. Também não condiz âmbito do Programa de Especialização em
com toda a discussão conceitual que embasou Patrimônio, no qual sugere a proposição
o ADCT nº 68 e os institutos jurídicos nele de uma lei específica para regulamentar
apoiados. A propósito, sobre o conceito de o tombamento de quilombos em termos
quilombo atualizado pela legislação posterior distintos do disposto pelo Decreto-lei nº
228
à CF-88, o parecer do Iphan mostra-se 25/1937. A pesquisadora menciona, também,
enfaticamente crítico: a elaboração do Dossiê Quilombos, em 2007,
e um texto do ex-diretor do Depam/Iphan
Além da questão do anacronismo, de se tentar
que propunha, para o caso do tombamento
uma violência conceitual, de se fazer retroagir uma
de quilombos, um tratamento diverso do
definição, tentando forçar um pensamento que
que fora proposto no parecer em análise.
não existia em um dado momento, a adoção do
conceito da ABA, de ressemantização de quilombo, No entanto, continua distante um desfecho
gera uma série de dificuldades operacionais que para a proteção do patrimônio cultural
são, em nossa opinião, insolúveis (Vaz, 2014:38). dos quilombos – entendido plenamente
como os modos de fazer, criar e viver
Por fim, o referido parecer sugere a das comunidades, e não como vestígios
possibilidade de avaliar a pertinência de arqueológicos ou manifestações puramente
preservar bens culturais de natureza imaterial:
objetivas de cultura.
Já que não foram encontrados “documentos Por um lado, não resta dúvida de que a
e sítios detentores de reminiscências históricas regulamentação dos processos de titulação de
territórios quilombolas afastou o tombamento lado, nem as normas relativas aos direitos Criança Aikewara
e sua preguiça
de estimação,
como alternativa viável à preservação patrimoniais nem aos direitos territoriais comunidade indígena
no sudeste do Pará,
de modos de vida das comunidades mantêm íntegros os modos de vida das 2009
Foto: Orlando Calheiros.
remanescentes de quilombo. Com efeito, comunidades remanescentes de quilombo do
quaisquer tentativas de fixar, no tempo e Alto Trombetas II.
no espaço, as configurações socioculturais Em suma, encontram-se as comunidades
encontradas, em determinado momento, nas quilombolas daquela região em um “beco”
comunidades remanescentes de quilombo, do qual lutam para sair, acionando formas
ferem a dinâmica e a autonomia de seus próprias de organização para a defesa do que
membros, atingindo igualmente o princípio consideram como seu patrimônio natural
constitucional de respeito à diversidade e cultural, de uma maneira que nem os
étnico-cultural dos diferentes grupos institutos do patrimônio nem do direito
formadores da sociedade brasileira. Por outro territorial têm alcançado fazer.
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R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

232
L u c i a n a G o n ç a l ve s d e C a r va l h o Aporias da proteção do patrimônio cultural e natural
de uma comunidade remanescente de quilombo na Amazônia
Juvêncio da Silva Cardoso

a c i o n a l
A cuia e a formação do universo :

N
uma abordagem baniwa no contexto

r t í s t i c o
da física intercultural

A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
Introdução Baniwa é o nome da língua1 dos povos
indígenas que habitam a bacia do rio

Neste artigo buscamos introduzir uma Içana. Eles se autodenominam Wakoenai

P
d o
ou Medzeniako (André Fernando, 2006).
abordagem acerca da formação e constituição

e v i s t a
A tradução literal do termo Wakoenai é
do universo, partindo da cosmovisão do
“povos de nossa língua” ou “os falantes

R
povo baniwa do rio Aiari, com a escolha
da nossa língua” (wako= nossa língua,
da cuia como elemento de referência
nai= povos ou coletivos) e o termo
para descrever a formação do universo.
Medzeniako refere-se ao que “nasce falando
Apresentaremos a participação desse artefato a língua” (medzeni= nascer, ako= língua).
no conjunto de elementos que contribuíram Na estrutura social e sua classificação
para a constituição do mundo a partir das exogâmica, o povo baniwa se divide
233
etapas de sua transformação progressiva, em quatorze clãs, a saber: Adzaneeni,
designando por meio das narrativas do Awadzoro, Dzawinai, Dzoleemeni,
mito tal composição na perspectiva dos Hohoodeni, Kadaopoliro, Kañhetalieni,
Baniwa. Buscamos também compreender Koitsinai, Kotteeroeni, Maolieni,
e relacionar a importância da cuia quando Moliweni, Paraattana, Tomieni, Walipere

associada com a vitalidade invocada através Dakeenai. Todos estes grupos são hoje
Mingaus de açaí,
falantes da língua baniwa. Além dos quatro buriti, abacaxi,
dos benzimentos dos xamãs iñapakaita bacaba e farinha de
que falam a língua koripako, que vivem no mandioca, servidos
(benzedores), para proteger a vida e no centro comunitário
dos Koitsiliali, do
alto rio Içana: Kapittininanai, Komadeeni, médio rio Aiari (AM),
promover o crescimento das crianças. Por 2015
Komadaminanai e Padzowalieni. Esses Foto: João Vianna.
fim, pretendemos demonstrar, de forma
panorâmica, a utilidade da cuia como 1. Baniwa é uma das línguas que pertencem ao tronco linguístico
arawak. Na região do alto Rio Negro, existem quatro troncos
utensílio doméstico indispensável na vida linguísticos: arawak, tukano, maku e yanomami. A língua baniwa
é uma das línguas oficiais no município de São Gabriel da
cotidiana atual das comunidades do rio Aiari. Cachoeira (AM).
dezoito povos, falantes das duas línguas2, A
A cuia e a formação do universo: uma abordagem baniwa no contexto da física intercultural

f o rm a ç ã o d o u n i v e r s o
são habitantes originários da bacia do rio n a p e r s p e c t i va d o s Baniwa
a c i o n a l

Içana, com 93 comunidades, e somam uma


população vivendo em Terra Indígena de O começo do universo, a partir da
N

4.411 pessoas (Foirn/Funai/ISA, 2017). narrativa e depoimento de Matteo Pereira,


r t í s t i c o

Esses povos detêm e mantêm um rico do sítio Loiro Poço no rio Aiari, considerado
saber sobre a natureza e os fenômenos que um dos últimos pajés-onça3 baniwa, tal
A

dela se originam. Assim, esta abordagem como registrado pelo antropólogo Wright
e

introdutória sobre a importância da cuia


i s t ó r i c o

(2014:194), foi assim:


vem contribuir na busca de compreender os
No início havia apenas uma bolinha de pedra
saberes envolvidos em seu preparo e usos no
H

no espaço. Nada mais havia ao redor. Uma vasta


a t r i m ô n i o

contexto da vida baniwa. A complexidade


imensidão de nada circundava a bolinha. Ele [a
dos conceitos e conhecimentos ligados aos
Criança-Universo, Hekwapi ienipe] então começou
benzimentos e à formação do cosmos, de que a procurar a terra. Assim, ele mandou procurar
P

os xamãs são os mestres, não é partilhada


d o

a terra. Enviou a grande pomba tsutsuwa para


por todos os Baniwa. Entre eles, há vários
e v i s t a

encontrar terra para ele, e a colocou na bolinha, a


Juvêncio da Silva Cardoso

especialistas xamânicos (Fontes, s/d): os primeira terra para ele, a “Criança-Universo”. Seu
R

maliri (pajés), os iñapakaita (benzedores), nome era a Criança Universo, Hekwapi ienipe.
os inoparotakaita e os yarokaita ooni
Na narrativa compreendemos que, no
(jogadores de água). O conhecimento que
princípio, não havia quase nada no universo
detêm não é um saber comum a todos, pois
“apenas uma bolinha de pedra no espaço”.
é fruto de uma formação que proporciona
Essa bolinha é a própria “Criança-Universo,
conhecimento e práticas especializadas para
Hekoapi ienipe”4. Os termos pedra e pomba
234
curar doenças e para oferecer conselhos e
devem ser entendidos como metáforas e
orientações. Esses especialistas são os que
quando Matteo Pereira exprime a ideia
mais sabem sobre a formação do cosmos
baniwa; por esse motivo, a presente pesquisa de que ele (Criança-Universo) “mandou

buscou o conhecimento deles. procurar a terra”, podemos interpretar como

Este trabalho perseguirá o ponto de vista a ação gerada pela força da natureza cuja

etnográfico para sustentar o quão importante consequência foi agregar outras pequenas
é compreender a percepção dos Baniwa
3. Pajé-onça (dzawi maliri) é o que detém e reúne o “saber-
sobre o universo, suas etapas de formação e poder-fazer”, ou seja, possui o saber associado ao xamanismo
e com isso ele pode se transformar (antropomórfico) em outro
a importância da participação da cuia nesse mundo ou estado de visão possuindo outras visões sobre o
mundo e a partir daí fazer acontecer algo como, por exemplo,
processo ainda hoje sustentado no contexto curar doentes ou causar doenças (ataques) para outros seres. “São
da vida desse povo. eles os conhecedores das cerimônias de curas, das construções
das malocas, da criação e manutenção dos cosmos” (Gentil,
2007:214). Os pajés tinham as forças, movidas pela energia solar,
provam raios e trovão (ibid.:236).
2. As línguas baniwa e koripako são diferentes, mas os falantes
delas podem se entender com facilidade. Ramirez (2001), 4. Hekwapi ienipe e Hekoapi ienipe significam a mesma coisa. O
linguista que elaborou estudos sobre a língua baniwa, defende que muda é apenas grafia, devido à reformulação e evolução da
que o baniwa e o koripako são apenas variações dialetais. escrita na língua baniwa.
bolinhas, os átomos, para ir constituindo se referir ao poder de Heeko em atribuir,

A cuia e a formação do universo: uma abordagem baniwa no contexto da física intercultural


a formação da “Criança-Universo”. Essas gerar e agregar propriedades às outras

a c i o n a l
expressões revelam-nos que os pajés propriedades, constituindo novas partículas.
inferem conceitos da física, tais como o Ele possui, portanto, “força”, ou melhor,
com essa força ele converge e gera

N
de que a própria força da natureza vai

r t í s t i c o
gerar o surgimento e a formação de outros outras propriedades.
componentes no universo. Podemos, então, tirar uma conclusão pre-

A
Outra narrativa interessante que diz liminar: no primeiro momento existia Heeko,

e
respeito a esse princípio do universo caracterizado como força existente e que

i s t ó r i c o
encontra-se registrada por Paula Brazão tem o poder de evoluir e agregar, alcançando
(2004:8) em seu trabalho de conclusão do outro estado, constituindo nova partícula: “a

H
bolinha de pedra no universo”, chamada de

a t r i m ô n i o
curso de ensino fundamental da Escola
Baniwa e Coripaco Pamáali, em que observa: Criança-Universo, representando o próprio
corpo do Sol que deveria procurar a Terra,
No princípio não existia quase nada, somente

P
como sugere a narrativa de Matteo Pereira.

d o
havia um homem chamado Heeko, o primeiro
As forças agiram em grande quantidade e

e v i s t a
criador de todas as coisas do mundo. Durante

Juvêncio da Silva Cardoso


possibilitaram a constituição e a formação de
muito tempo, começou a plantar, como seria o
outros planetas no nosso sistema solar.

R
mundo. O Heeko é homem invisível, somente
vivia no espaço, porém tem o seu conhecimento Pela natureza e conexão das narrativas, re-
enorme. E começou a criar todas as coisas que a corremos a outra, contada por Gabriel Gentil
gente encontrou no mundo (...). (2007:218), pajé da etnia tukano e que tam-
bém vive na região do alto Rio Negro:
Aqui podemos interpretar que antes de
A Maloca é construída semelhante à estrutura
existir a “bolinha de pedra no espaço” já
do corpo do ‘Criador Deus Pedra Ëhtã Õakhë’.
existia outra forma de propriedade chamada 235
Na Maloca existe estrutura, simbolicamente, do
Heeko. Esse termo é o início da expressão
Mundo e do Universo, é a cultura dos Arawak do
hekoapi em baniwa, portanto, diz respeito rio Içana e das tribos Baniwa, Tariano, Werekena,
ao próprio universo, ao mundo. Heeko “é Coripaco, que são culturas maiores.
homem invisível, somente vivia no espaço,
porém tem o seu conhecimento enorme”. Nessa narrativa de mitos notamos a
Invisível apenas do ponto de vista do humano coincidência quando ele menciona “Deus
a olho nu, posto que, do ponto de vista do Pedra”, como criador do universo, que é
próprio Heeko, ele existe, não é invisível e o próprio corpo do Sol. Matteo Pereira,
tem o seu enorme conhecimento. Sobre esse pajé baniwa, já vimos, também menciona
a existência de pequena “bola de pedra”,
conhecimento, é
chamada por ele de
fundamental
Criança-Universo,
explicar que,
que também é o Cerâmica baniwa (AM).
possivelmente, a Taças geminadas,
1959
próprio corpo do
autora pretendeu Acervo: Museu do Índio.
Sol. Gentil revela a Mulher, é a nossa mãe. É o Deus Pedra Quartzo
A cuia e a formação do universo: uma abordagem baniwa no contexto da física intercultural

isso da seguinte Branco o Sol, outros Deuses é que a engravidam.


Assim as árvores são cabelos da Criadora, (...),
a c i o n a l

forma: “Criador
os morros altos são os seios dela. Todos os tipos
do Mundo Deus
de seres vivos, animais e nós humanos somos os
Pedra Quartzo Branco,
N

micróbios, piolhos dela (ibid:230).


r t í s t i c o

que é o Deus Sol. Espírito


Invisível, imortal, eterno, poderoso calor, o Até aqui podemos entender que, na
A

fogo. É atual Avô do Mundo Ëmëkho Ñihkë” percepção baniwa do mundo, o universo
e

(ibid.:230). evoluiu a partir da existência de força que se


i s t ó r i c o

A partir dessa compreensão da narrativa moveu para surgimento de corpos na escala


de mito de origem e evolução5 do mundo astronômica, que poderíamos considerar
H

é que os povos arawak se consideram como como “Gentes-Astro”. Porque para outros
a t r i m ô n i o

sendo a tribo de “Gente pedra”. narradores “gente-universo” referia-se aos


Gentil afirma isso na sua narrativa: “Os três irmãos Ñapirikoli, Dzooli e Eeri que são
P

Arawak são tribo Gente Pedra Ëhtã Mahsã, a considerados como hekoapinai6 ou gente-
d o

mesma Gente Jurupari” (2007:249). Porque universo (Cornelio, 1999). O Sol como sendo
e v i s t a

Juvêncio da Silva Cardoso

são ditos, e se consideram, filhos do Sol, a o marido e a Terra como mulher. A vida
Pedra Quartzo Branco. Gentil acrescenta “A
R

surgiu na Terra e foi habitada de acordo com


Cultura de Mitos dos Arawak tem origem sua evolução. Gentil (2007:218) cita isso da
e referência muito antiga. Vieram de outro seguinte forma:
Mundo. Sabedorias foram criadas por Deus
(...) o Mundo originou-se sem habitantes e
Pedra Ëhtã Õakhë (...)” (ibid.). Assim sendo,
se tornou povoado. O Mundo uma parte, gente,
os povos Arawak consideram o Sol como
materiais, seres vivos aumentaram de tamanho
pai e a mãe é o planeta “Terra” – dentro do e com o tempo separaram-se. Explodiram em
236 nosso sistema solar. Ainda de acordo com o forma de grande fogo redemoinho. Para nós,
autor,(ibid.: 245), “a palavra Yepá quer dizer humanos de hoje, a explosão é fogo e morte, para
Deusa Terra, na primeira língua antiga dos eles era outra forma de surgir novas vidas e outros
Arawak, Gente tribo Pedra (...)”. novos Mundos. Como os primeiros humanos
Essa relação do Sol com a Terra é imortais se tornaram mortais, como apareceram
estações, para substituir um clima sem estações,
resumida por Gentil da seguinte forma:
a origem das primeiras humanidades da Terra,
O Sol que comanda engravidar a Terra. Do como eles se desenvolveram, tornando-se homens
corpo do Sol, ao lado dele é que faz surgir luz, cor e mulheres.
vermelho, violeta e branco. Que a luz são espermas
Trançados baniwa (AM).
Coleção vidas sangue do Sol, são substâncias espirituais, são
Marieta Alberto Torres
Acervo: Museu do Índio. ciências medicinais, (...) porque a Terra representa 6. Mas não se pode admitir que eram “verdadeiramente”
hekoapinai (Gente-Universo), pois, segundo os narradores
baniwa, eles já surgiram do osso de seres vivos que já existiam
na Terra. Mas pode ser interessante, do ponto de vista biológico,
5. Toda vez que a ideia de evolução for aqui mencionada, como nova etapa de evolução do ser humano para os Baniwa.
entendam-se não etapas predeterminadas em um sentido linear Isto é, os Hekoapinai (os irmãos Ñapirikoli, Dzooli e Eeri)
e previsível, mas transformações cósmicas complexas, sendo que constituem uma nova etapa de transformação do universo, de
descrevemos algumas de suas consequências neste artigo. Heeko e da Criança-Universo.
Nessa perspectiva de “gentes-astro” ou tribo diferente de gente. Os mundos estão

A cuia e a formação do universo: uma abordagem baniwa no contexto da física intercultural


“seres-astro”, na escala astronômica, é preciso empilhados um sobre o outro, com o formato
geral”, conformando um eixo vertical; no

a c i o n a l
apontar que alguns astros e constelações
conhecidos pelos Baniwa são considerados sentido horizontal, somente três dessas
como avós, outros como instrumentos camadas se destacam:

N
r t í s t i c o
ou, ainda, como animais. As Plêiades, por Os espaços horizontais incluem centros-
exemplo, representam Walipere, o avô do clã mundo, onde tipicamente os valores e os

A
Walipere-dakeenai. Outras constelações são significados mais importantes da existência se

e
assim identificadas pelos Baniwa: Opitsinaa, o

i s t ó r i c o
juntam em símbolos-chave (...).
material de pesca chamado matapi; Omainai, Verticalmente, o Universo constitui-se de uma
a Piranha; Maalinai, a Garça; Dzaakanai, série de camadas, geralmente uma sobre a outra.

H
Cada camada é um “mundo” diferente, onde

a t r i m ô n i o
os Camarões; Dzoroonai, as Cigarras, entre
outras. Esses astros exercem influência na entes diferentes moram. As estruturas verticais do
universo variam enormemente de composição, de
Terra através de fenômenos climáticos
simples arranjos de três camadas (mundo superior,

P
provocados, funcionando como reguladores

d o
mundo intermediário e submundo) a composições
de variações climáticas.

e v i s t a
massivas de 25 camadas habitadas por uma grande

Juvêncio da Silva Cardoso


variedade de seres (...).
A

R
organização do
u n i v e r s o n a p e r s p e c t i va Esses mundos são ligados através de uma
baniwa espécie de tubo. Cada camada é conectada
às outras acima e abaixo por tubos passando
Na percepção baniwa do mundo, o através de seus centros. A ideia talvez se
universo não está isolado de outros mundos. aproxime à teoria de supercordas, como
André Fernando, liderança e pensador desse sugerido por Machado (2008:3):
237
povo, sintetizou isso da seguinte forma, Os mais recentes postulados da física sugerem
no Seminário Internacional de Gestão de que não haveria apenas um, mas vários universos
Áreas Protegidas na Amazônia, realizado em coexistindo paralelamente. Mais do que mera
Manaus (maio de 2015): “o mundo é grande especulação, essas teorias baseiam-se na mais
e é pequeno. A humanidade é o mundo, recente interpretação do universo, denominada
não outra coisa”. Na expressão “o mundo teoria das supercordas (...).
é grande”, deve ser considerada a escala
astronômica, o macrocosmo na teoria da A perspectiva do universo como
relatividade e, na expressão “é pequeno”, a sendo composto por várias camadas
escala do microcosmo da teoria quântica. (kuma), coerentes em si mesmas, tal como
Nesse sentido, segundo José Garcia, apresentado por Garcia a Wright, delineia
um dos últimos pajés-onça e um dos mais diferentes mundos coexistindo. O que
influentes dos Baniwa, conforme registrado se aproxima da sugestão de Machado
por Wright (2014:196), o universo é (ibid.) de que o “universo” poderia
constituído por 25 camadas em que “cada ser mais apropriadamente designado
disco é um ‘mundo’, kuma, habitado por uma de “multiverso”.
A o pai da humanidade. A Terra como a mãe.
A cuia e a formação do universo: uma abordagem baniwa no contexto da física intercultural

cuia como um
dos componentes na A mitologia do povo Arawak, em especial
a c i o n a l

f o rm a ç ã o d o u n i v e r s o da etnia tariano, revela “o Trovão, Ennu


(Hipéweri Hekoapi )8”, possivelmente, tal
N

A cuia tem valor cultural e simbólico como considerado na mitologia tukano, o


r t í s t i c o

muito forte para os diferentes povos indígenas avô do mundo9: “Tudo que ele possuía, sua
do alto rio Negro7. Ela está associada com casa, seus instrumentos e seus adornos eram
A

a origem e evolução do mundo. Várias de pedra quartzo” (Aguiar, 2008:61). Esse


e

ser já possuía – entre os seus instrumentos


i s t ó r i c o

são as narrativas de mitos de origem que


tentam explicar a evolução do universo e o de construção e formação do universo dos
surgimento do homem na Terra. Mas todos primeiros seres humanos – sua cuia de pedra
H
a t r i m ô n i o

estão resumidos em um mesmo ponto de quartzo, que continha em seu conteúdo o


partida: da Criança-Universo em forma de Ipadú10 e bebidas doces de frutas (Fontoura,
bola de pedra, o próprio Sol, o Deus Pedra 2006:99).
P

que é o Sol; e a Mãe Criadora, a Terra. Mitos Na mitologia de origem dos povos
d o

Tukano, quando Yepá, a Deusa Terra, formou


e v i s t a

de origem concebidos sob o ponto de vista


Juvêncio da Silva Cardoso

astronômico e com o corpo constituído o primeiro homem, a cuia já aparece como


R

de “pedra”. Podemos relacionar isso com um dos instrumentos da formação do ser


o universo em formação, tendo como humano (Gentil, 2007:234-243):
componentes os próprios “corpos-astros”, (...) Existia a Cuia de pedra quartzo branco.
corpos constituídos de pedra. Dentro da cuia tinha pedras cristais de várias cores,
Nessa perspectiva da formação do eram as futuras pernas. Estas pedras eram células
mundo, em uma de suas etapas, havia apenas que surgiram vidas e reprodução.
pedra como componente de formação e (...) Do lado dela estavam duas cuias de apito
238
constituição do nosso universo. Todos os de pedras, que produziam as vozes e língua. Estas
cuias tinham luz ou brilhos ouro, lá existiam as
elementos cósmicos eram constituídos de
bebidas de imortais wayuko, onde estavam as
pedras ou “pedra quartzo”, como aparecem
forças e sabedorias vida da Criadora.
nas narrativas de mitos de origem dos povos (...) A cuia que fica em cima do suporte,
Arawak e Tukano. Nessa época, perto do esteio da entrada da maloca,
Cerâmica baniwa
os seres aparecem como sendo produz luz e voz ou idioma do criador.
(AM). Caçarola.
Coleção:
gigantescos, entes demiurgos,
Departamento As mesmas referências e valores
Geral de Estudos e
que aqui chamaremos de
Pesquisas – DGEP. são atribuídos pelos Tukano e
Acervo: Museu do Índio. “gentes-astro”. O Sol como
Tuyuka que vivem no rio Tiquié.
Mencionam a existência do avô
7. Habitam na região do alto rio Negro 22
povos indígenas, representantes das famílias
linguísticas tukano oriental (Cubeo, Desana,
Tukano, Miriti-Tapuia, Arapasso, Tuyuka, Makuna, 8. O mesmo chamado de Heeko pelos Baniwa.
Bará, Barasana, Siriano, Carapanã, Wanano e Pira-tapuia), 9. Chamado de avô do mundo pelos Tukano Emekho Nihke.
arawak (Tariano, Baniwa, Kuripako, Warekena e Baré) e maku
(Hupda, Yuhup, Nadeb e Dow). 10. Pó de folha de coca torrada.
A cuia e a formação do universo: uma abordagem baniwa no contexto da física intercultural
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
P
d o
e v i s t a

Juvêncio da Silva Cardoso


R
do mundo que criou o universo, possuindo A cuia no contexto
como um de seus instrumentos do ritual de das benzeduras 239
trabalho “a cuia de Ipadú”, para o processo de
preparo e constituição do universo (Cabalzar, A benzedura, Pañapaka, é uma viagem Igapós, 2014
Foto: Tamara Saré.
2005). Nessas narrativas podemos observar
evocativa que permite a conexão entre a
que desde o princípio a participação da cuia
origem, a evolução e a vida dos seres11 no
vem sendo elemento importante – enquanto
mundo. É o ritual realizado somente pelo
matéria em forma de pedra quartzo – para
sábio da tradição, os maliri, pajés, e os
a formação dos componentes no mundo.
iñapakaita, benzedores. As benzeduras são
Em todas as narrativas citadas a cuia aparece
feitas utilizando plantas e ervas medicinais.
como “recipiente” do “Ipadú” utilizado pelo
O elemento indispensável em sua realização
ser figurado, o Criador, para planejar a sua
ação de criação de elementos no mundo, tais 11. Na cosmovisão dos Baniwa, o mundo é habitado e
como o ser humano, os animais, as plantas, a coabitado por diferentes “gentes ou seres” visíveis e invisíveis.
Todos possuindo um mundo constituído segundo suas ordens
terra, as águas, o vento e até recursos minerais e tamanhos. Esses “seres e mundos” merecem estabelecer uma
relação harmoniosa para promover o conviver bem (Cardoso &
de caráter precioso (Aguiar, 2008:63-4). Silva, 2011:215).
é o tabaco, pois constitui o material mais
A cuia e a formação do universo: uma abordagem baniwa no contexto da física intercultural

importante para os “seres-astro”, no passado


a c i o n a l

remoto, para materializar elementos de


seus planos. O tabaco, Dzeema-wheri (Avô-
tabaco)12, representa o poder de transformar e
N
r t í s t i c o

purificar algo, qualquer corpo material visível


e invisível. Tanto tem o poder de proteger
contra malefícios como também de causar
A
e

danos por meio da feitiçaria.


i s t ó r i c o

Nessa perspectiva de conexão entre passa-


do, presente e futuro, através de benzeduras,
H

os sábios evocam os demiurgos: (1) em cone-


a t r i m ô n i o

xão com o princípio, narrando os processos


relata a presença de cuias de quartzo que
de surgimento e declarando a situação-posi-
ção-categórica13 do corpo neste contexto; (2) continham bebidas doces. É sob esse
P

princípio que os benzedores baniwa e


d o

situando e descrevendo o sentido e situação


de outros povos da região viajam através
e v i s t a

do corpo-material no tempo do presente;


Juvêncio da Silva Cardoso

e (3) a partir daí, invocando a proteção ou de pensamento, buscando conectar com


R

purificação do corpo. Com isso a benzedura o princípio de origem-corpo – lhitaka


recupera, fortalece e vigora o metabolismo limidzaka idakinaawa – e invocar o espírito
energético humano. para adoçar o alimento – lipottidzaaka
A percepção aqui é simultaneamente liñhawa –, purificando e transformando-o
no sentido macroscópico do universo na em alimento energético, com o qual a criança
temporalidade e no sentido microscópico do vai estabelecer a vitalidade e vigor para o
universo, pois se trata da comunicação entre seu bom crescimento, ficando protegido de
240
os mundos que coexistem em paralelo. Sobre diferentes enfermidades (lidanata limidzaka
isso, considera-se que a distinção aparente idakinaa idzaamikatti, ipoatti yoodza). “Por
entre humanos e não humanos acontece meio do ‘benzimento’ a criança é protegida e
apenas na forma/envelope corporal assumida aos poucos vai ganhando mais força, saúde e
por eles, mas sem que os seres da natureza se tornando mais resistente aos ataques que
deixem de manter uma relação privilegiada resultam nas doenças que podem causar a
Trançados baniwa
(AM). Amostra com outras figuras prototípicas da alteridade morte” (Fontoura, 2006:101).
de padrão
gráfico. Coleção: (Castro, 1996). Esse é um dos aspectos importantes da cuia
Museu do Índio/
Thiago Lopes da A narrativa do mito de origem do no âmbito das benzeduras na vida dos Baniwa,
Costa Oliveira
Acervo: Museu do Índio. mundo para os Arawak, da etnia tariana, pois, estando presente, como elemento ma-
terial, na formação do universo, é a partir daí
12. Ele se caracteriza como material energético, que atribui o que a ela esse povo atribui tão forte valor sim-
sentido para cura, proteção e causa.
bólico e cultural. E isso só é possível porque
13. Se é humano (criança, jovem ou adulto) vai situar ele na ordem
hierárquica de clã e sua posição no plano cósmico vertical e hori- ainda hoje há pessoas que detêm tal conheci-
zontal; se é material objeto, também vai classificá-lo pela categoria
(árvore, pedra, insetos, animais, espírito) e assim por diante. mento e o dom para realizar benzeduras.
As Essas três espécies são originárias nativas

A cuia e a formação do universo: uma abordagem baniwa no contexto da física intercultural


espécies de cuieira
manejadas pelos Baniwa dos rios Orinoco e Guaviare: “Lá, essas

a c i o n a l
espécies estão dispostas naturalmente nas
A cuia é derivada da fruta de cuieira, margens desses rios. Quando o rio enche, os
seus frutos boiam descendo rio baixo, como

N
da família das Bignomiáceas, também

r t í s t i c o
conhecida como árvore-de-cuia, cabaceira, forma de dispersão” (Júlio Cardoso, entrevista
coité, cuité ou cuiteseira, de nome científico em 21 de novembro de 2015).

A
Crescentia cujete14. Abaixo apresentamos as

e
espécies que são manejadas pelos Baniwa nos Utilização do fruto da

i s t ó r i c o
rios Aiari e Içana: cuieira pelos Baniwa e
1) Kooya é da espécie de cuieira outros povos

H
a t r i m ô n i o
mencionada acima. É uma planta arbusto,
com ramificações bem alongadas. Seu plantio O fruto da cuieira, tanto do arbusto
e manejo ocorrem basicamente ao redor quanto da espécie rastejante, tem múltiplas

P
da comunidade, podendo ser encontrada utilidades. Até recentemente era comum,

d o
entre os Baniwa centrados na região de os maliirinai (pajés)15 usarem como instru-

e v i s t a

Juvêncio da Silva Cardoso


solo argiloso. Considerada mais resistente mento, em seu trabalho xamânico, o kottiro
(maracá) confeccionado a partir do fruto

R
e bonita, é muito cultivada no Brasil, da
Amazônia até o Rio de Janeiro e Goiás e, da cuieira. Com os sons do kottiro e com os
possivelmente, em países vizinhos como a gestos que fazem com braços, estando sob o
Colômbia e Venezuela. efeito do paricá16, os pajés invocam os espíri-
2) Atthaipikhaa é uma espécie de tos para curar enfermo, proteger o corpo das
caule rastejante. Atthai é o fruto. Atta é a pessoas e manejar o mundo. Assim, com seu
cuia feita desse fruto. Essa espécie de cuieira saber-poder-fazer17, os maadzeronai – mestres
de dança da tradição – o usavam para dar 241
é planta rastejante e trepadeira. Plantada e
manejada ao redor da comunidade, raramente ritmo a certo tipos de dança, como a de dan-
tem cultivo na roça. Encontrada entre os ça-de-kottiro18. Algumas sociedades indígenas
Baniwa que vivem em terras de solo arenoso. na Amazônia o utilizam com a mesma finali-
A estrutura da casca da fruta é mais grossa do dade, inclusive adaptando-o para confeccio-
que a Kooya, mas não é muito resistente.
3) Maromaro é espécie que existia no 15. Atualmente no rio Aiari existem apenas quatro pajés vivos
rio Guaviare, mas não no rio Içana. É conside- e mais um morando na cidade de São Gabriel da Cachoeira
(AM). Dois dos quatros são relativamente jovens (do ponto de
rada como cuia d’água pelos benzedores. vista baniwa), um de cerca de 19 anos de idade e outro com 38
anos respectivamente. Outros dois já estão na idade dos 80 a 90
anos. Inclusive, o que mora na cidade está se aproximando dos
100 anos.

16. Extrato de casca de madeira alucinógeno “DMT,


dimethyltryptamina” (Wright, 2014:197).

17. O pajé tem essa habilidade de “possuir o ‘saber’ sobre as


14 . Disponível em <http://www.plantasquecuram.com.br/ervas/ coisas, assim tem domínio de ‘poder’ e ‘fazer’ acontecer as coisas”.
cuieira.html#.VnrH5uxViko> e <http://www.maniadeamazonia.
com.br/catalogo_ficha.asp?ArvoreID=111>. Acessado em 18. Atualmente, entre os Baniwa, já não se pratica mais dança
23/12/2015. de kottiro.
nar novos instrumentos musicais. Outro uso produção não sofreu alteração21. Assim
A cuia e a formação do universo: uma abordagem baniwa no contexto da física intercultural

muito comum da cuia é servir como vasilha, como não sofreu substituição por outros
a c i o n a l

utensílio de cozinha e outros objetos de uso utensílios industrializados destinados a


doméstico. Há também povos e alguns ramos servir bebidas e comidas líquidas, exceto
da medicina com fitoterápicos que a utilizam a concha de alumínio. A importância da
N
r t í s t i c o

como remédio antiasmático, emoliente, ex- cuia atualmente, na região do rio Aiari, está
pectorante, laxante19. voltada principalmente para servir bebida
A

Na época do Brasil colônia, a cuia foi líquida como a água, o xibé e o mingau. Ela
e

alvo de comércio enquanto arte indígena está presente em todas as rotinas de refeições
i s t ó r i c o

no exterior: diárias nas comunidades onde a pesquisa foi


desenvolvida. No passado recente, as nossas
H

As cabaças elaboradamente decoradas


avós utilizavam a cuia como “concha” e elas
a t r i m ô n i o

demonstram, inequivocamente, a fusão de técnicas


indígenas, com a decoração europeia. Cabaças a chamavam de tthiwatti. Atualmente, talvez
cortadas ao meio eram usadas pelos índios como por razão de substituição do material pelo
P

vasos para beber e algumas vezes decorados com instrumento industrializado, o termo não é
d o

grafismos. A pintura decorativa é atribuída à mais utilizado, ou seja, tronou-se arcaico. Mas
e v i s t a

influência dos jesuítas, nos séculos XVII e XVIII,


Juvêncio da Silva Cardoso

nada impede que possamos chamar concha de


que promoveram a arte em suas missões. Segundo tthiwatti, se quisermos valorizar os termos de
R

Johann Natterer, esses vasos também foram


nossa língua.
produzidos pelos “brancos”, supostamente porque
representavam uma mercadoria apreciada por
Portugal (Augustat, 2012).
Considerações finais

Na região do rio Aiari é tida como Com essa abordagem procuramos


patrimônio20 mais conservado e preservado. demonstrar a importância da compreensão
242 O processo padronizado e artesanal de de como se deu a formação do universo na
perspectiva baniwa. Na busca colaborativa
para valorizar saberes milenares que servem
para a compreensão do mundo. Quando
registramos a presença da cuia como
elemento fundamental na constituição do
19. Disponível em <http://www.plantasquecuram.com.br/ervas/
cuieira.html#.VnrH5uxViko>. Acessado em 20/12/2015. universo e sua relação com as benzeduras dos
20. O conceito de patrimônio material cultural não é
propriamente indígena, no entanto, os Baniwa, bem como outros
povos do alto rio Negro, estão se apropriando desses termos,
recorrendo a dispositivos em torno da patrimonialização cultural 21. Já foram 286 anos de contato dos Baniwa com a sociedade
como um modo de salvaguardar e ter por parte do Estado não indígena. Na linha do tempo, o povo Baniwa entrou em
reconhecidos os seus modos de vida, cultura, conhecimentos e cena de contato com o mundo não indígena por volta de 1730.
saberes. Nesse sentido, o Iphan conferiu, em 2010, o título de “Tempo de registro das primeiras explorações do Alto Rio
Patrimônio Cultural do Brasil para o Sistema Agrícola Tradicional Negro realizadas pelos portugueses e os espanhóis e o início do
do Rio Negro, do qual a cuia baniwa é um dos elementos que tráfico de índios escravizados. (...) Povos inteiros foram levados
constituem o aspecto da cultura material. Antes disso, em 2006, para se tornar escravos ou tombaram nas guerras provocadas pelo
concedeu o mesmo título para a Cachoeira de Iauaretê – Lugar comércio de pessoas. Estima-se que entre 1740-1755, cerca de
Sagrado dos Povos Indígenas dos Rios Uaupés e Papuri, localizada 20 mil índios, principalmente entre os Baniwa e os Tukano,
na macrorregião do alto rio Negro, inscrevendo-a no Livro de foram aprisionados para serem levados para Belém do Pará e São
Registro dos Lugares.       Luís do Maranhão” (Wright, 2005).
xamãs, queremos demonstrar a importância promover a gestão territorial, o manejo de
de conhecer e reconhecer as narrativas de recursos naturais em busca do “Bem Viver e
origem, bem como de valorizar saberes Viver Bem” em nosso território. 243

milenares para que seu sentido seja realmente Esse artigo deve ser uma contribuição
agregado aos valores sociais, culturais e à filosofia de educação e pedagogia
ambientais dos Baniwa. intercultural que deve ser cada vez mais
Assim como apresentamos de forma implementada e consolidada nas escolas
panorâmica e contextualizada as situações baniwa e coripaco de ensino fundamental e
atuais do uso cuia no cotidiano das médio. Essa atitude deve ser assumida pelos
sociedades indígenas e, sobretudo, do estudantes baniwa e coripaco, retomando o
povo Baniwa do rio Aiari, entendemos princípio da pedagogia de formação de pajés
esse artefato como um verdadeiro bem do fundamentada na experiência de “poder-
patrimônio material cultural. É, portanto, saber-fazer”.
fundamental manter vivo, preservar e utilizar No âmbito do movimento social baniwa
tanto o conhecimento tradicional como os e coripaco, a educação intercultural é vista Comunidade Baniwa
Awiñapamiana, do
conhecimentos técnicos e científicos, com a como oportunidade para construir o bem médio rio Aiari (AM),
2015
inclusão de novas tecnologias, no sentido de viver no mundo. A escola é apontada como Foto: João Vianna.
ferramenta importante para a construção Tiquié: conhecimentos tukano e tuyuka, ictiologia,

A cuia e a formação do universo: uma abordagem baniwa no contexto da física intercultural


etnologia. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2005.
de novos e necessários conhecimentos que
______ (org.). Manejo do mundo: conhecimentos e

a c i o n a l
permitirão alcançar o objetivo de viver práticas dos povos indígenas do rio Negro, noroeste
e estar bem no mundo. Desse modo, a amazônico. São Paulo: Instituto Socioambiental; São
Gabriel da Cachoeira: Foirn, 2010.

N
formação acadêmica desses povos deve

r t í s t i c o
CABALZAR. A.; RICARDO. C. A. Povos indígenas do
respaldar as necessidades locais. A formação
alto e médio rio Negro: uma introdução à diversidade
não deve se limitar à prestação de serviços cultural e ambiental do noroeste da Amazônia brasileira.

A
nas comunidades, mas também buscar 2. ed. São Paulo: Instituto Socioambiental; São Gabriel

e
da Cachoeira: Foirn, 1998.
oportunidades para assumir e exercer funções

i s t ó r i c o
CABALZAR, Flora Dias. Educação escolar indígena do rio
em outras sociedades e em qualquer nível, Negro: relatos de experiências e lições aprendidas, 1998-
desde que seja voltado para o bem viver dos 2011. São Paulo: Instituto Socioambiental; São Gabriel

H
da Cachoeira: Foirn, 2012.

a t r i m ô n i o
seus povos.
CARDOSO, Juvêncio; SILVA, Adeilson Lopes da.
Com essa perspectiva, nos propusemos
Diálogos sobre manejo ambiental no Içana. Texto não
aqui a contribuir para o ensino da física publicado, jun.2011.

P
intercultural no ensino fundamental e no CASTRO, Eduardo Viveiros de. Os pronomes

d o
cosmológicos e o perspectivismo ameríndio. Mana, n. 2,
ensino médio, nas escolas baniwa e coripaco

e v i s t a
v. 2, p. 115-144, 1996.

Juvêncio da Silva Cardoso


da bacia do rio Içana.
CORNELIO, José M. et al. Waferinaipe Ianheke.

R
A sabedoria dos nossos antepassados: histórias dos
Referências Hohodene e dos Walipere-Dakenai do rio Aiari. São
Gabriel da Cachoeira: Foirn, 1999. Coleção Narradores
Indígenas do Rio Negro.
AGUIAR. Luís Aguiar. “Roda de depoimentos 8”. In:
RICARDO. C. A.; ANTOGIOVANNI, M. Visões do rio FERNANDO, André. A história da língua baniwa uma
Negro: construindo uma rede socioambiental na maior das co-oficializadas. 2006. Disponível em <http://www.
bacia [cuenca] de águas pretas do mundo. São Paulo: alainet.org/pt/active/14681>. Acessado em 15/12/2015.
Instituto Socioambiental, 2008. FONTES, Afonso. Uma abordagem baniwa sobre os pajés
baniwa na modernidade. Não publicado. 245
ANDRELLO, Geraldo (org.). Rotas de criação e
transformação: narrativas de origem dos povos indígenas FONTOURA, Ivo F. Formas de transmissão de
do rio Negro. São Paulo: Instituto Socioambiental; São conhecimentos entre os Tariano da região do rio Uaupés.
Gabriel da Cachoeira: Foirn, 2012. Dissertação de Mestrado. Recife: UFPE, 2006.
AUGUSTAT, Claudia (org.). Além do Brasil: Johann GENTIL, Gabriel. Bahsariwii – a Casa de Danças.
Natterer e as coleções etnográficas da expedição austríaca Apresentação de Ana Carla Bruno. História, Ciências,
de 1817 a 1835 no Brasil. Viena: Kunsthistoriches Saúde – Manguinhos, v. 14, suplemento, Rio de Janeiro,
Museum, 2012. Catálogo da exposição. p. 213-255, dez.2007.
BOLETIM Governança e Bem Viver Indígena. Planos de MACHADO, Cesar de S. A ciência além do Big-
gestão territorial e ambiental das terras indígenas do alto Bang. Brasília, 2008. Disponível em <http://www.
e médio rio Negro, v. 3. São Gabriel da Cachoeira: Foirn/ metaconsciencia.com>. Acessado em 15/6/2016.
Funai/ISA, out.2017. Disponível em <https://issuu. Rio Solimões (AM),
RAMIREZ, Henri. Dicionário baniwa-português. 2006
com/instituto-socioambiental/docs/governanca3_web>. Manaus: Ed. da Universidade do Amazonas, 2001. Foto: AC Junior.

Acessado em 25/4/2018. WRIGHT, Robin M. História indígena e do indigenismo


BRAZÃO, Paula O. A arte que se faz com o arumã. no alto rio Negro. Campinas: Mercado de Letras; São Comunidade
ribeirinha Lauro
Monografia de conclusão do Curso de Ensino Paulo: ISA, 2005. Sodré, na margem
Fundamental da Escola Pamáali. São Gabriel da esquerda do rio
______. Os princípios metafísicos nos desdobramentos Solimões, Coari (AM),
Cachoeira: 2004. do universo Hohodene. Revista de Antropologia da 2007
Foto: AC Junior.
CABALZAR, Aloisio (org.). Peixe e gente no alto rio UFSCAR, n. 1, v. 6, São Carlos, jan-jun.2014.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

246
Juvêncio da Silva Cardoso A cuia e a formação do universo: uma abordagem baniwa no contexto da física intercultural

Foto: João Vianna.


entre os Baniwa

rio Aiari (AM), 2015


Trabalho comunitário

Awiñapamiana, do médio
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
247

Juvêncio da Silva Cardoso A cuia e a formação do universo: uma abordagem baniwa no contexto da física intercultural
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

248
Ana Léa Nassar Matos O voo da fênix de José Sidr im
Ana Léa Nassar Matos

a c i o n a l
O voo da fênix de J osé S idrim

N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
Poderíamos considerar que a bandeira da a ação criminosa, a notícia se propagou,
preservação do patrimônio histórico edificado chegando ao conhecimento daquele grupo
em Belém, no que consiste ao reconhecimen- de arquitetos. Estes, preocupados com a

P
to dos valores de sua arquitetura eclética, foi assiduidade com que essa prática vinha sendo

d o
e v i s t a
levantada em 1989, por um grupo liderado adotada, se articularam, buscando meios
por arquitetos, ao qual se agregaram fotó- para a sensibilização da opinião pública. A

R
grafos, artistas plásticos, poetas, jornalistas, cidade não dispunha de instrumentos legais
professores, estudantes, em repúdio à vora- para conter tais desmandos; a arquitetura
cidade com que estavam sendo substituídas eclética, em suas manifestações não
as antigas vestes arquitetônicas por figurinos monumentais, necessitava ser reconhecida,
modernos impostos pelo “progresso”. por parte dos órgãos responsáveis pela
A cidade ainda guardava quarteirões preservação do patrimônio histórico e pela
com edifícios dispostos em harmoniosa opinião pública, como possuidora de valores 249
volumetria, em um cenário sombreado pela artísticos e históricos para que os processos de
arborização com mangueiras e pomares dos tombamento fossem referendados.
quintais. Uma paisagem que gradualmente No Brasil o preconceito contra o
ia sendo desfeita. Belém, desprovida de Ecletismo foi propagado pelos adeptos
um plano diretor, começava a devorar suas do Novo Estilo, que o destituíram de
próprias entranhas, destruindo o antigo para qualquer criatividade, ignorando os avanços
por cima construir o novo. tecnológicos, a funcionalidade, a higiene
Um fato exemplar foi aquele ocorrido e o conforto buscados em sua arquitetura.
com duas casas ecléticas, no estilo dos Daí se cristalizou a ideia de que fora uma
villinos italianos, projetos do engenheiro manifestação arquitetônica que apenas
arquiteto José Sidrim, localizadas na Avenida reproduzia os estilos do passado. A partir da
Magalhães Barata, cuja destruição teve início década de 1930, os ideais nacionalistas que Palacete Passarinho,
Belém (PA), 1927
Foto: Photo Studio
de forma silenciosa, na calada da noite. definiram a criação do estilo Neocolonial Frazão. Reprodução:
Otávio Cardoso/Acervo
Apesar dos cuidados para manter em sigilo e os ideais progressistas propagados pelo Ana Léa Matos.
Modernismo eram predominantes nas memórias acabou proporcionando novas
O voo da fênix de José Sidr im

instituições de ensino da arquitetura e das descobertas, o (re)conhecimento de José


a c i o n a l

artes visuais. Foram os responsáveis pela Sidrim por outros segmentos da população,
demora em reconhecer a importância do evidenciando o seu papel na construção da
Belém do início do século 20.
N

Ecletismo dentro da arquitetura brasileira do


r t í s t i c o

final do século 19 e início do 20. A repercussão do ato possibilitou que


Em Belém foi organizado um ato de pro- os prédios ecléticos passassem a ser vistos
Ana Léa Nassar Matos
A

testo contra a destruição da memória da cida- de outra maneira. Já não era absurda a
e

de, realizado no Dia de Finados, em 1989, o solicitação de seu tombamento. Os seus


i s t ó r i c o

Réquiem para Belém, com um grande cortejo valores artísticos e históricos acabaram
fúnebre. Seus integrantes, vestidos de preto, reconhecidos, bem como os arquitetos e
H

engenheiros responsáveis por sua criação.


a t r i m ô n i o

roxo ou com roupas de época, seguiram um


percurso semelhante ao da via-sacra, com As demolições continuaram a existir, a
quatorze paradas, correspondentes às edifi- pressão imobiliária é constante. Porém,
P

cações ameaçadas de demolição ou já desa- havia aumentado o número de vigilantes do


d o

parecidas. Em cada prédio era colocada uma patrimônio histórico e artístico na cidade.
e v i s t a

coroa de flores, ao som de A Missão de Ennio José Sidrim, original de Fortaleza, Ceará,
R

Morricone e realizada a leituras de textos, em desembarcou no porto de Belém em um


exortação à preservação do patrimônio his- paquete do Lloyde Brasileiro em 1900, com
tórico da cidade. Um poeta considerou que 19 anos de idade; como desenhista, buscava
a cidade de “Santa Maria de Belém” estava oportunidades profissionais.
perdendo seu manto1: Era uma época em que a capital paraense
representava um grande polo de atração
Com os olhos que já não veem, teus algozes não
no cenário nacional e internacional, com
250 te sabem Santa. Seus ouvidos estão seduzidos pelo
possibilidades de negócios e empregos
fascínio das registradoras. Como estrangeiros já não
devido ao período em que o Norte do
falam o Tupinambá e não entendem o Nheengatú:
money is money é o que eles falam com sotaque Brasil usufruiu do monopólio extrativista
libanês e algumas variações do japonês. da borracha. A riqueza que ali circulava
proporcionou um inédito crescimento
“In Memoriam de José Sidrim” eram as comercial e demográfico à cidade, chegando
palavras escritas em um estandarte que abria a figurar como o maior centro de comércio
o cortejo. A figura do arquiteto simbolizava do país. À frente da Intendência Municipal
todas as perdas da cultura arquitetônica encontrava-se Antonio Lemos (1843–1913) e
da cidade. Esse episódio iniciado em no governo do estado Augusto Montenegro,
consequência de um ato de destruição de parceria que representou um novo ciclo
político e de desenvolvimento para ambas
1 Citação do trecho do poema Santa Maria de Belém sem manto, as esferas governamentais. Aos moldes
de autoria de Emanuel Matos, publicado na matéria “Mani-
festação pede a preservação dos prédios que são a memória da das intervenções do barão de Haussmann
cidade”, na p. 5 do Caderno Cidades, do jornal O Liberal, de 3
de novembro de 1989. (1809–1891) em Paris, Antonio Lemos
O voo da fênix de José Sidr im
a c i o n a l
N
r t í s t i c o

Ana Léa Nassar Matos


A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
P
d o
e v i s t a
R
251

idealizou e concretizou um plano de abertura Sidrim foi funcionário da Intendência


de boulevards, novas vias e novos bairros, Municipal, lotado na Secção de Obras, Família de José
Sidrim, registro feito
na perspectiva de estruturar Belém para seu permanecendo por lá em torno de 9 anos, provavelmente entre
1907 e 1908
crescimento futuro. trabalhando como desenhista e agrimensor. Acervo: Flávio Nassar.
Várias das atividades ali desempenhadas Grande foi o número de plantas e outros de-
O voo da fênix de José Sidr im

encontram-se registradas nos relatórios senhos delineados pelo sr. José Sidrim, que fez jus
a francos encômios pela sua competência technica
a c i o n a l

municipais redigidos por Antonio Lemos.


e dedicação ao trabalho. Comtudo, não é possível
O seu desempenho profissional pode ser
precisar o número exacto d’esses desenhos, em vir-
acompanhado nos volumes correspondentes
N

tude de terem muitos escapado ao registro devido,


r t í s t i c o

aos anos de 1904, 1905, 1906, 1907 e 1908.


por causa da urgência com que eram remettidos.
A Secção de Obras, para aqueles que Devo, todavia, salientar entre muitas outras, as
Ana Léa Nassar Matos
A

pretendiam se encaminhar pelos campos plantas projectadas pelos engenheiros municipaes


e

da arquitetura ou engenharia, era um lugar


i s t ó r i c o

para o gymnasio, torre, cocheira e detenção, na


privilegiado por onde tramitavam inúmeros sucursal do Corpo de Bombeiros; da avenida
projetos e que fiscalizava construções de todo Ferreira Penna; a cadastral da avenida Quinze de
H

porte. Constituía uma espécie de vitrine Agosto; typo de estampilhas para o anno de 1905
a t r i m ô n i o

e, recentemente terminada, a da fachada da cochei-


que permitia aos funcionários demonstrar
ra-modelo que projécto mandar construir.
suas competências e estabelecer importantes
Sobre a prancheta acham-se na presente data
P

contatos. A Belém de então era um verdadeiro


d o

os planos, córtes e a fachada lateral d’esse futuro


canteiro de obras, recebia profissionais do
e v i s t a

próprio [projeto] municipal.


mais alto prestígio, do porte de Domenico De
R

Angelis (1852–1900), Giovanni Capranesi Quanto às vias contidas na citação, con-


(1852–1936), Filinto Santoro (1903–1913), vém esclarecer que a Avenida Ferreira Penna
entre outros contratados na Europa para corresponde à atual Avenida Assis de Vascon-
execução de projetos locais. celos e a Avenida Quinze de Agosto à atual
Com José Sidrim aconteceu mais ou me- Avenida Presidente Vargas. Elas possuem tra-
nos assim. Era um desconhecido em terras es- çados paralelos que se prologam percorrendo
tranhas que, por meio do trabalho, estabeleceu ou estabelecendo os limites de vários bairros
252
importantes contatos e pavimentou sua forma- de Belém, como Campina, Reduto e Nazaré.
ção de engenheiro arquiteto. Também fez ami- Possivelmente, esses levantamentos visavam
zades para a vida inteira e ainda gozou da con- melhorar a articulação entre as vias da Cida-
vivência com o intendente Lemos, que, além de Velha com os bairros novos que vinham
de admirador de seu trabalho, teria lhe aberto sendo consolidados no período, a exemplo de
portas, recomendando-o para outros trabalhos. Nazaré e Batista Campos.
A acolhida foi tão amistosa que Sidrim se fixou No mesmo relatório, seu nome encontra-
permanentemente em solo paraense. se relacionado entre os profissionais
No relatório correspondente ao ano de envolvidos com a construção da “Rede geral
1904 , ele foi citado em vários momentos
2
de exgottos”3 para a cidade de Belém; era
e em segmentos distintos, como nas uma ação considerada como um “assumpto
apresentações de suas ações desenvolvidas pela magno” e seus efeitos seriam “de alta
“Secção de Obras”: relevância para a capital”. Os engenheiros

2. O município de Belém: 1904, p. 26 e 27. 3. Ibid.:168.


que ficariam responsáveis pela organização (...) como a verificação de vários pontos Residência Guilherme
Paiva. Desenho de
da carta cadastral que serviria de base para a em que no acto do desenho se notou existirem José Sidrim
Foto: Otávio Cardoso/
dúvidas. Vae ser iniciado, no escriptorio do mesmo Acervo Ana Léa Matos.
execução do referido projeto seriam Joaquim
engenheiro, em escala conveniente, o desenho de
Lalôr e Palma Muniz4. Pessoas da mais alta uma carta geral da parte já feita para o traçado da
confiança do intendente, que ficariam à frente topografia (curvas de nível e regimen de águas,
da ação considerada como estruturante para etc.). N’esses trabalhos todos, além do engenheiro
Joaquim Lalôr e Palma Muniz, fôram utilizados os
a cidade e cuja execução deveria ser rigorosa,
serviços technicos do engenheiro civil Maurice de
de acordo com um comunicado feito ao
Cocatri, agrimensor Sá Barreto e desenhistas José
Conselho Municipal5: Sidrim et José Moreira.

A Planta da Cidade de Belém e a Carta


4. João de Palma Muniz (Vigia, 5 de janeiro de 1873 – Belém, 26 do Município de Belém, de José Sidrim
de dezembro de 1927) era engenheiro civil, membro fundador
do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, escritor de livros e José Moreira da Costa, figuram entre
históricos e geográficos. Joaquim Lalôr era engenheiro civil, casa-
do com a filha de Antonio Lemos, Olívia Lemos Lalôr. Os dois as ilustrações do relatório de 1904, com
foram sócios na empresa de engenharia Lalôr & Muniz e pessoas
importantes na vida de José Sidrim. As relações entre os três se
Antonio Lemos ressaltando a qualidade e
estenderam para além do ambiente de trabalho e Lalôr e Muniz, competência de sua execução6:
juntamente com as esposas, se tornaram padrinhos e madrinhas
dos filhos dele.

5. Segundo o citado relatório de 1904, p. 180. 6. Ibid.:319.


R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

254
Ana Léa Nassar Matos O voo da fênix de José Sidr im

Acervo: Flávio Nassar.


desenhista municipal
Belém, de José Sidrim,
Planta da Cidade de
Permittireis que chame a vossa atenção para O intendente solicitou ao governo do

O voo da fênix de José Sidr im


esse magnifico trabalho, accentuando a segurança estado mais uma légua de terras, aumentando
e correção com que elle se acha executado,

a c i o n a l
o patrimônio da municipalidade8, e aguardou
a delicada nitidez do desenho, a sua clareza
o equilíbrio orçamentário para dar início a
minuciosa, revelando um labor de mezes e uma
sua demarcação.

N
competência indiscutível.

r t í s t i c o
A participação de José Sidrim nesse
Foi o trabalho que obteve maior trabalho não se restringiu ao desenho da

Ana Léa Nassar Matos


A
repercussão, dentre os que contaram com a planta; também como agrimensor, participou

e
ativamente na demarcação das vias, hoje

i s t ó r i c o
participação de Sidrim, enquanto funcionário
municipal, tanto no momento de sua correspondentes ao bairro da Pedreira. Era
execução quanto posteriormente, servindo uma área fisicamente separada do resto da

H
cidade por um igarapé que transformava

a t r i m ô n i o
de parâmetro para intervenções futuras na
cidade e subsidiando estudos e pesquisas cujas aquela região num grande pântano. O
bases teóricas influenciaram o traçado de novo desenho permitiu o contato entre

P
expansão de Belém, no início do século 20. os dois trechos por meio de vias; também

d o
No atual ambiente acadêmico, o professor propunha um traçado ortogonal e quadras

e v i s t a
Fábio Castro (2010:149) faz especulações com dimensões maiores e regulares. Talvez

R
sobre o papel dele nas intervenções urbanas uma influência do modelo executado na
da administração Lemos: urbanização americana, na transição do século
19 e início do século 20, ou ainda, inspirada
(...) o projeto urbanístico de Lemos para
no plano de Ildefons Cerdà, elaborado para
Belém teve um outro mentor, ou talvez uma
Barcelona, em 1859, que tinha como suporte
equipe deles: o desenhista municipal José Sidrim e
o emprego da quadrícula com as vias radiais.
seu ajudante José Moreira da Costa, que auxiliaram
o intendente a conceber um projeto de futuro para
O intendente Lemos procurou atribuir
255
o desenvolvimento urbano da cidade.
a Belém as necessárias condições para a mo-
bilidade urbana e a organização do espaço
As ações do gestor municipal não ficavam da cidade, de forma pragmática, com base
restritas ao centro da cidade, ele também se na razão, utilizando-se de tudo o que estava
preocupava com sua expansão territorial. As disponível na época: do conhecimento geo-
obras que desenvolveu no então subúrbio do gráfico, da topografia, dos valores estéticos e
Marco da Légua, na administração de 1897 a dos valores urbanos, por exemplo. O Roman-
1902, dão conta disso : 7
tismo já havia passado, já não se pensava em
adequar-se à natureza, mas em dominá-la,
É evidente a tendência da expansão urbana
para aquelle ponto. Apertada entre o litoral, de um colocá-la a serviço da existência humana. Esse
lado, e os terrenos alagados da parte oriental, entre período tinha como princípio o racionalismo
os limites urbanos e o rio Guamá, esta cidade só da Modernidade, herdado do Iluminismo.
tem como desafogo o Marco da Légua (...).
8. O Decreto nº 766, de 21 de setembro de 1899, trata da
solicitação ao governo do estado de mais uma légua de terras,
7. Cf. o relatório de 1897–1902, p. 294. aumentando o patrimônio da municipalidade (ibid.: 248)
A nova planta de Belém não tinha a não ser possível distrahir, com este trabalho, os
O voo da fênix de José Sidr im

pretensão de ser uma proposta de redesenho engenheiros auxiliares, então cumulados de grande
a c i o n a l

para a cidade e, sim, de estabelecer affluencia de serviços outros.


vetores para sua expansão, partindo do
Essa referência sugere que Sidrim
N

traçado existente e projetando-o para os


desempenhou algumas tarefas concernentes
r t í s t i c o

subúrbios, dando forma, particularmente,


aos engenheiros, entrevendo-se daí o seu
aos bairros de Canudos, Guamá, Pedreira
crescimento profissional. No relatório de
Ana Léa Nassar Matos
A

e Sacramenta. Lançando mão, assim,


1906, novamente tem seu nome destacado10:
e

dos modelos urbanísticos que seguiam as


i s t ó r i c o

teorias contemporâneas, adequadas às novas O desenhista sr. José Sidrim, além da grande
expectativas geradas para as cidades do início copia de plantas de diversas obras fornecidas
H

a empreiteiros e de outros detalhes da Secção,


a t r i m ô n i o

do século 20.
occupou-se ainda do seguinte: - planta da
O jovem desenhista, com 24 anos de ida-
superestructura metallica da ponte da villa
de, conquistou a plena confiança de Antonio
Pinheiro; planta cadastral da avenida 15 de Agosto,
P

Lemos, que reconhecia, nos relatórios muni-


d o

incluindo o necessário levantamento; projecto do


cipais, sua competência e desempenho, como
e v i s t a

alargamento, nivelamento e perfil da avenida São


se pode constatar no volume O município de João; levantamento dos exgottos de Cidade. Esta
R

Belém: 19059, com relação às ações executadas planta acha-se em andamento.


pela Secção de Obras:
Por muito tempo, Sidrim foi conhecido
Para o bom andamento dos trabalhos apenas como arquiteto, por suas obras
technicos d’esta Secção, muito tem contribuído a
arquitetônicas, contudo, os relatórios
assiduidade e competência do desenhista sr. José
de Lemos testemunham o quanto se
Sidrim, de cujos inúmeros serviços se destacam
envolveu com o trato urbano, por meio de
256
como de mais alta relevância os seguintes:
- Desenho completo da Cocheira modelo; seus desenhos, levantamentos, projetos e
- Levantamento e desenho de um trecho da execução do que seria a nova malha viária
avenida Serzedello Côrrea; de Belém.
- Typos de medalhas comemorativas; O arquiteto e historiador Carlos
- Modificação da praça S. José; Lemos (1925) esclarece que a atividade
- Organização da planta da Capital do Estado; de desenhista, no início do século 20, era
- Desenhos da ponte do Pinheiro e detalhes.
compreendida como “projetista”, como
Como se vê pela segunda ordem da
se o ato de desenhar também incluísse a
enumeração supra, além dos desenhos executados
participação no processo de criação, e o
na Secção, compreendendo numerosos detalhes
de obras confiadas aos diversos empreiteiros,
que atualmente se chama de desenhista era
foram ainda as habilitações do mesmo desenhista chamado de “copista”, ou seja, sua tarefa
aproveitadas no levantamento da planta de era aquela de reproduzir a ideia de outrem
um trêcho da avenida Serzedello Corrêa, por (1993:59). Dessa maneira, conclui-se que

9. Cf. p. 34 e 35 do relatório de 1905. 10. Ibid.:43.


Sidrim desempenhava na Intendência as de José Sidrim como funcionário

O voo da fênix de José Sidr im


duas funções: projetista e copista. municipal, parecendo que sua presença era

a c i o n a l
Desempenhava atividades que precisavam imprescindível, no entanto, nesse mesmo
ser executadas com urgência e precisão e para ano de 1908, entre os assuntos da Secção de
Obras, encontra-se a comunicação de sua

N
tal era dispensado de outras tarefas : 11

r t í s t i c o
dispensa13: “Em cumprimento ao disposto
O desenhista, sr. José Sidrim, além da grande
na Lei no 503, de 4 de junho, dispensei, em
copia de serviços de detalhes d’esta Secção, occu-

Ana Léa Nassar Matos


A
detalhe de 16 de julho, o Desenhista, José
pou-se mais da organização de uma planta, repre-

e
Sidrim que sempre prestou bons serviços à

i s t ó r i c o
sentando o exgôtto da cidade – serviço que, pela
necessidade palpitante de sua execução, absorveu Secção, (...)”.
considerável lapso de tempo áquelle profissional. A lei a que se refere o intendente lhe

H
autorizava restringir as despesas municipais

a t r i m ô n i o
Em 1907, no segmento “Diversos para fazer face à crise econômica14. O
assumptos”, ele é apresentando como autor tema da redução dos gastos públicos são

P
de um projeto arquitetônico, um novo uma constante nesse volume do relatório,

d o
hipódromo para Belém, aparentemente um merecendo comentários contundentes de

e v i s t a
trabalho particular. Deveria ser edificado Lemos: “Apezar das cotações da borracha
em um terreno de área devoluta, para a qual haverem experimentado uma promissora

R
um capitão da guarda nacional solicitava alta, as condições econômicas do Estado,
ao município a concessão de construir (...), mantêm-se cheias de embaraços,
e explorar12. (...)”, ou ainda, “O mal é profundo e
A exibição do projeto do “Hippódromo grave”, considerando que seria urgente o
Municipal de Belém”, com os desenhos estabelecimento de medidas “Garantidoras
da planta baixa, secção e fachada, se deu da perfeita regularidade do organismo
257
no relatório de 1908. Apesar de todo administrativo da Communa”15. E, como
empenho do intendente em viabilizar o consequência, a redução da receita destinada
empreendimento, não foi encontrado aos municípios foi a saída, atingindo com
nenhum registro de sua execução. Acredita- maior gravidade a cidade de Belém. Foram
se que a crise econômica que começava a suprimidas escolas e dispensados professores,
dar sinais na cidade repercutiu fortemente os quadros foram reduzidos em diversas
nas verbas municipais, inviabilizando o repartições, funções foram acumuladas e
projeto. A datação desse episódio indica que reduzidos os vencimentos de alguns cargos.
a qualificação do desenhista como arquiteto
13. Cf. p. 55 do relatório de 1908. No Almanak Laemmert, do
ocorreu entre 1904 e 1906. período de1891 a 1940, constam as relações dos funcionários
municipais que estão na ativa e elas dão conta que José Sidrim
Todas as menções anteriores, feitas a permaneceu como desenhista da Secção de Obras Municipais até
seu respeito, sugeriam uma estabilidade 1910. Disponível no site da Hemeroteca Digital Brasileira, na
página 501, referente ao estado do Pará, na Lista Geral do Corpo
Legislativo da Communa

11. Cf. p. 33 do relatório de 1907. 14. Ibid.:134.

12. Ibid.:200. 15. Ibid.:314-315.


O crescimento e amadurecimento Guarda Nacional
O voo da fênix de José Sidr im

profissional de José Sidrim foi fruto da O commando superior da Guarda Nacional


do Estado do Pará, em 15 de outubro de 1911,
a c i o n a l

experiência obtida na Secção de Obras.


Era um lugar privilegiado, uma espécie de baixou a seguinte
ORDEM DO DIA.
laboratório de experimentos e difusor de
N

De ordem do sr. coronel commandante


r t í s t i c o

conhecimentos práticos, além de possibilitar


superior, faço publico que designo os srs. officiaes
o estabelecimento de importantes relações
abaixo nomeados, para fazerem serviço na praça
Ana Léa Nassar Matos
A

com engenheiros e arquitetos da época. Tudo Justo Chermont, durante a festividade de N.S. de
e

isso vivido no momento áureo da cidade


i s t ó r i c o

Nazareth.
de Belém, em que pôde ser partícipe das (...)
profundas intervenções que ocorriam sob o DIA 21 – Dia á praça, major Thomaz Benigno
H

comando do intendente Antonio Lemos. Cerejo; estado-maior, capitão Thomaz Gonzaga


a t r i m ô n i o

Ali estabeleceu relações que foram Baganha; ronda, capitão José Sidrim, 1º tenente
particularmente determinantes, aquelas que Francisco Ferreira Balthasar, 2º tenente Joaquim
P

manteve com os engenheiros João Palma Nilo Dias de Mattos.


d o

Muniz e Joaquim Lalôr. A convivência Uniforme n. 4


e v i s t a

no escritório Lalôr & Muniz lhe abriu


Parte do período de sua permanência por
R

os olhos para outro mercado de trabalho


lá, seu Comandante Superior foi Antonio José
e para uma nova clientela. João Palma
de Lemos.
Muniz, reconhecendo suas aptidões, o teria
Sidrim era uma pessoa de muitos
incentivado a se formar em nível superior e,
saberes, deleitava-se com as artes; tinha o
quando Sidrim se graduou em arquitetura, o
gosto pela música, por óperas, tocava flauta
presenteou com o anel de formatura. Joaquim
e bandolim; no desenho ia além do fazer
Lalôr, por sua vez, doou-lhe livros essenciais
258 técnico, desempenhava com sensibilidade e
para a prática construtiva, colaborando com a
desenvoltura o talento artístico; na pintura
formação de sua biblioteca.
fazia uso da aquarela e do óleo. Destacou-se
José Sidrim também pertenceu
como educador e essa função foi exercida
aos quadros da Guarda Nacional, ali
em várias instâncias de ensino: em grupos
permanecendo de 1905 a 1918, quando
escolares, no Instituto Técnico Lauro Sodré e
entregou sua carta patente na “Delegacia
na Escola de Agronomia e Veterinária
da Comissão de organização das forças
da Amazônia16.
de 2ª linha do Exército Nacional”, com o
posto de capitão. Seus integrantes passavam
por qualificação para o desempenho do
16. A Escola de Agronomia e Veterinária do Pará, de Ensino
serviço ordinário ou para ficar na reserva Superior, teve seu processo de fundação realizado nos anos de
1917 e 1918, funcionou em amplo prédio na antiga Avenida
da instituição, no entanto, não exerciam Tito Franco, onde atualmente encontra-se a Escola Estadual de
profissionalmente a atividade militar (Ribeiro, Ensino Fundamental e Médio Visconde de Souza Franco, entre
as travessas Vileta e Timbó. Não possui nenhuma relação de
2001). A seguir, o trecho de uma ordem do continuidade com a Universidade Federal Rural da Amazônia
– UFRA, antigo Instituto Agronômico do Norte, localizada no
dia em que ele foi convocado (grifo nosso): bairro da Terra Firme.
O voo da fênix de José Sidr im
a c i o n a l
N
r t í s t i c o

Ana Léa Nassar Matos


A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
P
d o
e v i s t a
R
No Instituto Lauro Sodré, além Cêrca de 9 ½ horas da manhã, presentes os
259
da convivência com o brilhantismo de srs. drs. Eládio Lima, secretário geral do Estado,
senador Cypriano Santos, presidente do senado:
alguns professores, teve a possibilidade de
drs. Palma Muniz, Theodoro Braga, Arthur
participar de eventos que o aproximaram
Porto e Antonio Marçal, director do Instituto
da elite cultural de Belém. Por ocasião da
Lauro Sodré, deputado Heráclito Pinheiro, mme.
5ª Exposição Escolar de Desenho e Pintura, Theodora Sodré, mmes. Theodoro Braga e Luz
realizada no Salão Nobre do Theatro da Paz, Cuvillon, professores José Girard e José Sidrim,
em 1917, esteve presente no encerramento da major Alberto Mesquita, professores e alunos de
programação o governador do estado Lauro grupos, e diversas escolas da capital (...).
Sodré, para fazer a entrega das premiações.
Nessa plateia composta de autoridades e
O acontecimento foi noticiado no jornal
talentos, encontrava-se José Sidrim, assistindo
Estado do Pará17, com comentários ao evento
à premiação de seus alunos, que competiam
e divulgando algumas presenças:
em várias categorias: Desenho Geométrico, Palacete Passarinho,
Belém (PA), 1927
Desenho Industrial e Desenho Projetivo. Foto: Photo Studio
Frazão. Reprodução:
17. Estado do Pará, Belém, 13 jul.1917. Disponível em <http:// Otávio Cardoso/Acervo
memoria.bn.br>. Acessado em 6/6/2015. Além das premiações individuais, suas turmas Ana Léa Matos.
O voo da fênix de José Sidr im
a c i o n a l
N
r t í s t i c o

Ana Léa Nassar Matos


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e
i s t ó r i c o
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a t r i m ô n i o
P
d o
e v i s t a
R

do Instituto Lauro Sodré receberam ainda dez acervos de renomados museus de arte do país.
menções honrosas. José Sidrim fazia parte dessa constelação.
No ano seguinte, em 1918, o mesmo Na memória familiar, sua formação em
jornal anunciou a relação dos jurados que arquitetura, segundo sua nora, foi obtida por
participariam da nova Exposição Escolar meio de uma escola italiana e da ajuda de
de Desenho: João Palma Muniz, que teria sido o interme-
260
diador de sua inscrição em um curso de ar-
(...) O sr. secretário geral nomeou hontem quitetura por correspondência, não se saben-
para comporem o jury de admissão os srs. dr.
do ao certo que cidade sediava o programa, se
Theodoro Braga, João Affonso do Nascimento,
Gênova ou Turim. A avaliação dos alunos se
professor Irineu de Sousa, Antonietta Santos, e o
dava através do envio pelo consulado italiano
architecto José de Castro Figueiredo e para o jury
dos seus estudos e trabalhos.
de julgamento, os srs. dr. Theodoro Braga, João
O ensino por correspondência atendia
Affonso do Nascimento, Irineu de Souza, dona
Antonietta Santos, José Girard, Carlos de Azevedo,
àquele segmento da população que
José Sidrim, dona Clotilde Pereira e o architecto necessitava de uma preparação científica,
José de Castro Figueiredo. segura, mas sem sacrifício de seus labores,
situação em que se encontrava José Sidrim.
Os componentes do júri eram pintores, Mesmo carecendo de uma formação técnica
desenhistas e arquitetos, distinguidos por seus mais aprofundada, ele não podia se ausentar
Fachada do Santuário de
São Francisco de Assis, talentos e capacidade intelectual. Atualmente, do trabalho e nem do país, por causa de suas
Belém (PA), 2017
Foto: Mateus Nunes. alguns deles possuem obras compondo os responsabilidades familiares e financeiras.
As evidências indicam que o curso se quando já tinha seu escritório em pleno fun-

O voo da fênix de José Sidr im


baseava em Turim, pois em sua biblioteca cionamento, executando projetos e obras.

a c i o n a l
particular continha oito publicações da 18
Sua produção na década de 1920 foi
Editora C. Crudo & C., situada naquela tão grande que chegou a figurar em uma
cidade italiana. reportagem no jornal Estado do Pará20, no ano

N
r t í s t i c o
Turim é a quarta maior cidade da Itália, de 1925. A matéria responsabilizava Sidrim
ficando atrás apenas de Roma, Milão e pelo aspecto moderno dos edifícios da cidade.

Ana Léa Nassar Matos


A
Nápoles. De longa tradição no campo da Ao autor da matéria, o arquiteto confidenciou

e
educação, que remonta ao ano de 1859, com o seu objetivo:

i s t ó r i c o
a implantação da Escola de Aplicação para
Convém por fim ao tipo de construção archai-
Engenheiros (Regia Scuola di Applicazione

H
ca; Belém é uma grande cidade e não desejo que fi-
per gli Ingegneri), que veio a se transformar,

a t r i m ô n i o
que em plano inferior ao de outras cidades, contri-
em 1906, no Regio Politecnico di Torino19. buindo com todo o meu esforço, com todo o meu
Nesse período, o consulado italiano de carinho para o embelezamento da construção civil,

P
Belém incentivava a participação em eventos ousando em estilo architetonico moderno, como se

d o
realizados em Turim, inclusive apresentando faz no Rio e em outras capitais adeantadas.

e v i s t a
facilitações burocráticas para isso.
O ensino a distância apresentava-se como

R
O diploma italiano, referente ao curso
a novidade da virada do século 19 para o 20,
por correspondência, possibilitou a imediata
no Brasil. Embora os relatos históricos sobre
inserção de José Sidrim no campo da
educação não se refiram a essa modalidade
arquitetura e da construção civil no estado
de cursos, constando apenas o costume da
do Pará.
formação fora do país para os filhos das
Com o passar do tempo, as exigências
famílias abastadas.
para a prática profissional foram possivel-
Em termos estilísticos, que semelhanças 261
mente alteradas, tornando-se necessário o
podem ser encontradas entre a prática
reconhecimento formal de sua competência,
arquitetônica de José Sidrim, com formação
como engenheiro arquiteto, por uma insti-
a distância, e a dos profissionais que
tuição nacional. Fato que explicaria sua outra
puderam fazer cursos presenciais em alguma
diplomação, obtida pela Escola Livre de En-
cidade da Europa?
genharia do Rio de Janeiro, no ano de 1924,
Comparando alguns projetos do
arquiteto paulista Ramos de Azevedo
18. 1. BABINI, Luigi Federico. Le ville moderne in Itália: Ville
di Roma. C. Crudo; 2. BIANCHI, Carlo. Le ville moderne in (1851–1928), formado na Bélgica, com os
Itália: Ville del lago di Como e della Lombardia. C. Crudo; 3. Il
villino italiano (vol. 1). Progetti completi com pianti e sezioni en de Sidrim, de profunda influência italiana,
scala. Casa Editrice: L’artista Moderno; 4. Le construzioni moderne
in itália: Milano (2 volumes). C. Crudo; 5. Le construzione as muitas semelhanças surpreendem.
moderne in itália: Torino. C. Crudo; 6. SICHER, Giovanni. Le
ville moderne in itália: Ville del Lido a Venezia. C. Crudo; 7. VI-
Tanto na qualidade do desenho como
NACCIA, Gaetano. Cottages: 30 tavole. C. Crudo; 8. TIRELLI, nas soluções propostas, na escolha de
Guido. Palazzine e Ville Signorili, 50 projetti in 66 tavole. As pu-
blicações não apresentam os anos de suas respectivas impressões.

19. Disponível em <http://www.polito.it/ateneo/>. Acessado em 20. “A modernização da cidade”. Estado do Pará, Belém, 9
23/5/2014. set.1925.
partidos arquitetônicos, nas coberturas O fragmento preservado de sua biblioteca
O voo da fênix de José Sidr im

movimentadas, na dinâmica da volumetria era composto, na maioria, por livros de


a c i o n a l

das fachadas, tendendo para o predomínio procedência europeia, publicações ligadas


da verticalidade, por exemplo. Essa sintonia a temas técnicos, vinculados às práticas
com a Europa deve-se muito à qualidade
N

profissionais do engenheiro, arquiteto e


r t í s t i c o

de sua biblioteca, atualizada com o campo desenhista. Ficando no desconhecimento os


arquitetônico da época. outros assuntos que teriam preenchido o seu
Ana Léa Nassar Matos
A

A biblioteca de Sidrim vai se preenchen- universo literário.


e

do na razão direta de seus questionamentos


i s t ó r i c o

Algumas procedências foram


em confronto com o mundo, em busca de identificadas, como Nouvelles annales de la
posicionar-se, traçando seu próprio cami- construction21, três volumes da Encyclopédie
H

nho. Ele a forma ao mesmo tempo em que


a t r i m ô n i o

du siècle, L’ Exposition de Paris de 1900 e A


é formado por ela. O conjunto de temas decoração na construcção civil22, dedicados por
revela o perfil de seu criador. Uma fonte de João Palma Muniz (1873–1927). E ainda
P

pesquisa de múltiplas entradas, tal como “o


Illustrated catalogue of Macfarlane’s castings e
d o

espelho de cem faces” de Michel Certeau


e v i s t a

o quarto volume de Nouvelles annales de la


(1925–1986), em A invenção do cotidiano...
construction23, ofertado por Joaquim Lalôr.
R

(1994), quando apresenta o particular e suas


Na abordagem da biblioteca de José
diversas nuances.
Sidrim, dividiu-se o conteúdo em categorias,
Com esse objetivo, explorou-se a
agrupadas por sua temática, resultando nos
biblioteca de José Sidrim, na esperança
itens: a) tratados, para as publicações a
de captar nuances de sua personalidade
respeito dos cânones do fazer arquitetônico
e de suas escolhas. O acervo não estava
e suas adequações ao longo do tempo; b)
mais intacto e, sim, todo fragmentado,
262 catálogos, para as publicações de divulgação
correspondendo a um montante de quarenta
e venda de produtos referentes a construção;
livros e uma coleção de periódicos italianos,
c) teoria, projetos e detalhes arquitetônicos,
adquiridos no período de 1912 a 1927.
para as publicações que mesclam textos
O intervalo dos anos sinaliza que por 15
anos ininterruptos se manteve atento ao teóricos, projetos, detalhes arquitetônicos,
que se passava na Europa, no seu campo com notícias e propagandas afins; d) desenho
de trabalho. As publicações mensais, além
21. Recueil mensuel fondé en 1855 par Oppermann, Charles Alfred,
da apresentação de edifícios construídos Ingénieur des Ponts et Chaussées. Librairie Polytechnique Ch.
Béranger Editeur.
“recentemente” e seus arquitetos, continham
22. Silva (1898). A publicação contém rápidas notas sobre os
avisos de concursos públicos para projetos principais pintores, enumera as diversas escolas de pintura e faz
uma listagem de pintores portugueses, dando atributos aos bons
arquitetônicos e também tratavam de e aos nem tanto. Maior aprofundamento sobre essa publicação,
temas teóricos, sobre as tensões do fazer consultar: <https://almada-virtual-museum.blogspot.com.
br/2014/07/liberato-teles.html>. Acessado em 2/11/2016.
arquitetônico no período, quando o 23. Oppermann (1879). Publicação rápida e econômica dos
Ecletismo predominava e se avizinhava o documentos mais recentes e mais interessantes relativos à constru-
ção francesa e estrangeira, destinada aos engenheiros, arquitetos e
Movimento Moderno. alunos de escola.
técnico, para as publicações que tratam empregá-la e reivindicar para si a experiência

O voo da fênix de José Sidr im


exclusivamente dessa habilidade técnica; e) pioneira em Belém, na construção da Escola

a c i o n a l
arquitetura religiosa, para as publicações de Aprendizes e Artífices do Estado do Pará,
dedicadas ao universo religioso, desde a atualmente propriedade da Universidade
Federal do Pará.

N
história, as construções e projetos até os

r t í s t i c o
objetos litúrgicos; f ) artes, para as publicações As suas obras arquitetônicas transitaram
assim identificadas em seus títulos. por várias funções, como a residencial, a

Ana Léa Nassar Matos


A
O primeiro item é composto por religiosa, a industrial, e evidenciaram um

e
profissional conhecedor das ordens e dos

i s t ó r i c o
publicações francesas: Traité d’architecture,
de Léonce Reynaud24, volumes editados tratados arquitetônicos, refletidos no traço
em 1878, e pelo Almanach d´architecture elegante, nos volumes harmoniosos e nas

H
proporções adequadas de seus edifícios.

a t r i m ô n i o
moderne – Collection de l´esprit nouveau,
editado em 1925, em Paris, de autoria De grande representatividade são os
de Le Corbusier25, uma das figuras mais projetos de templos religiosos em sua

P
carreira. Esteve muito ligado à Ordem dos
importantes da arquitetura do século 20, no

d o
Franciscanos em Belém, sendo responsável

e v i s t a
âmbito da arquitetura moderna. O formato
pelo projeto de uma capela em honra
do Almanach... possibilitou ao autor divulgar

R
de Santa Clara e um santuário para São
a novidade tecnológica do uso do concreto
Francisco. Reformou a igreja da Trindade,
armado e de novos materiais construtivos.
projetou igrejas no interior do Pará (uma
Estes são apenas alguns títulos de sua
em Baião e outra em Cachoeira do Arari)27,
biblioteca, destacados com a finalidade de dar
existindo ainda a possibilidade de ter sido
uma noção da qualidade e variedade de seu
o autor do projeto do primeiro templo
acervo, que devem ter dado lastro a sua vida
protestante de Belém, a Assembleia de Deus.
profissional. Uma seleção que talvez a equipare 263
Nos projetos religiosos, demonstrou
as sugestões bibliográficas das academias e
um profundo conhecimento da arquitetura
escolas europeias do mesmo período26.
medieval, do Gótico e do Românico,
As orientações relativas à nova tecnologia
perceptível no formato das plantas baixas,
do concreto armado, presentes em várias
no sistema estrutural, na simbologia das
publicações, deram a Sidrim as bases para disposições espaciais e no emprego de uma
única ordem arquitetônica em cada templo.
24. Léonce Reynaud (1803–1880) era arquiteto e engenheiro
francês, ocupou o cargo de diretor da École Nationale des Ponts Os projetos residenciais são os mais
et Chaussées, na França. No final de 1837, foi eleito professor
de Arquitetura da École Polytechnique que originalmente ficava numerosos, aproximadamente dez com
sediada em Paris. Entre 1842 e 1847, projetou a primeira Gare comprovação de autoria. Ao confrontá-
du Nord, em Paris, cuja fachada foi desmontada e reinstalada em
Lille, em 1860. los é possível acompanhar suas diversas
25. Charles Edouard Jeanneret-Gris (1887-1965), de origem suí- fases. Desde quando os telhados ficavam
ça, naturalizado francês em 1930, conhecido como Le Corbusier,
pseudônimo utilizado tendo como inspiração o nome do avô
paterno “Lecorbesier”, foi arquiteto, urbanista, escultor e pintor.
27. Baião e Cachoeira do Arari, atualmente, são municípios do
26. A listagem de todos os quarenta títulos remanescente da bi- Pará localizados no baixo Tocantins e no arquipélago do Marajó,
blioteca de José Sidrim encontra-se disponível em Matos (2003). respectivamente.
O voo da fênix de José Sidr im
a c i o n a l
N
r t í s t i c o

Ana Léa Nassar Matos


A
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i s t ó r i c o
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P
d o
e v i s t a
R

encobertos por platibandas, ou sem a As escadas são pontos altos de suas


definição de mostrá-los ou encobri-los com criações residenciais, lançadas com
264
platibanda, concluindo com as coberturas confortáveis patamares ou no formato
totalmente expostas, em movimentada de caracol, economizando espaços. Eram
composição. Acompanhavam os partidos cuidadosamente detalhadas, calculadas
recortados das plantas baixas, com soluções e executadas. Externamente, elas se
em diversas águas.
apresentam em volume próprio, indicando
No interior dos edifícios, o processo
seu posicionamento e acrescentando a
de mudança fica por conta dos corredores.
verticalidade nos arranjos das fachadas.
Inicialmente longos, seguindo os padrões
Esses aspectos são marcas registradas em
da arquitetura colonial, depois suprimidos
suas obras residenciais, uma espécie de digital
e, em seu lugar, surgiram o hall, o vestíbulo
ou uma sala íntima, para a concentração do arquiteto encontrada nas casas e palacetes
e distribuição das circulações horizontais que construiu, conhecidos pelos nomes
e verticais. Um movimento de ideias que dos seus proprietários: Palacete Passarinho,
Ensaio Delegacia
de Casos Perdidos, acompanhavam as exigências das mudanças Palacete Guilherme Paiva, Residência
Belém, Pará, 2016
Foto: Paula Sampaio. históricas em curso. Orlando Lima, entre outros.
Nos desenhos industriais merece BELÉM. Intendente (1897–1911: Antonio Lemos).

O voo da fênix de José Sidr im


O município de Belém: 1906. Relatório apresentado
destaque a Fábrica Palmeira. Tratou-se
ao Conselho Municipal de Belém, na sessão de 15 de

a c i o n a l
de uma reconstrução em substituição às novembro de 1907. Belém: Archivo da Intendencia
instalações anteriores, que haviam sofrido Municipal, 1907.

N
um incêndio. Para o lugar, José Sidrim
BELÉM. Intendente (1897–1911: Antonio Lemos).

r t í s t i c o
propôs um imponente e belo edifício O município de Belém: 1907. Relatório apresentado
eclético, com três andares, numa composição ao Conselho Municipal de Belém, na sessão de 15 de

Ana Léa Nassar Matos


A
simétrica, modulada por pilastras e com novembro de 1908. Belém: Archivo da Intendencia

e
Municipal, 1908.

i s t ó r i c o
mansarda na cobertura. A inauguração foi
um grande acontecimento na cidade. Foi BELÉM. Intendente (1897–1911: Antonio Lemos).

demolida na década de 1960, deixando O município de Belém: 1908. Relatório apresentado

H
ao Conselho Municipal de Belém, na sessão de 15 de

a t r i m ô n i o
um grande vazio na memória da cidade e
novembro de 1909. Belém: Archivo da Intendencia
sobretudo apagando um traço da história Municipal, 1909.
criativa do engenheiro arquiteto.

P
CASTRO, Fábio Fonseca de. A Cidade Sebastiana: era
Também desenvolveu projetos de escola,

d o
da borracha, memória e melancolia numa capital da

e v i s t a
hospital, clube social, tipografia, mercado, periferia da modernidade. Belém: Edições do Autor,
todos prédios com funções vitais para a 2010.

R
rotina da cidade, em quantidade e densidade CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de
suficientes para deixar as marcas de sua fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.
importância no passado e no presente da
LEMOS, Carlos A. C. Ramos de Azevedo e seu escritório.
história de Belém e, de herança, um rico São Paulo: Pini, 1993.
patrimônio material de edificações e um
MACFARLANE, Waçterr & Co. Illustrated catalogue of
patrimônio imaterial na memória coletiva. Macfarlane’s castings. Glasgow, s/d.
265
MATOS, Ana Léa Nassar. Ecletismo na arquitetura
Referências
residencial de José Sidrim: uma análise da formação
intelectual deste engenheiro arquiteto e suas obras
BELÉM. Intendente (1897–1911: Antonio Lemos). O
residenciais. Dissertação de Mestrado. Rio de janeiro:
município de Belém: 1897-1902. Relatório apresentado
Escola de Belas Artes/UFRJ; Belém: Departamento de
ao Conselho Municipal de Belém na sessão de 15 de
Artes/UFPA, 2003.
novembro de1902. Belém: Typographia de Alfredo
Augusto Silva, 1902. OPPERMANN, Charles A. Nouvelles annales de la

BELÉM. Intendente (1897–1911: Antonio Lemos). construction, t. 4, série 3. Paris: Librairie Polytechnique
O município de Belém: 1904. Relatório apresentado Ch. J. Baudry Editeur, 1879.
ao Conselho Municipal de Belém, na sessão de 15 de
RIBEIRO, José Iran. Quando o serviço nos chama: os
novembro de 1905. Belém: Archivo da Intendencia
milicianos e os guardas nacionais gaúchos (1825-1845).
Municipal, 1905.
Dissertação de Mestrado. PPGH/PUC-RS. Porto Alegre:
BELÉM. Intendente (1897–1911: Antonio Lemos). PUC-RS, 2001.
O município de Belém: 1905. Relatório apresentado
ao Conselho Municipal de Belém, na sessão de 15 de SILVA, Francisco Liberato Telles de Castro e. A decoração
novembro de 1906. Belém: Archivo da Intendencia na construcção civil, t. 1. Lisboa: Typographia do Com-
Municipal, 1906. mercio, 1898.
R e v i s t a d o P a a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

266
Ana Léa Nassar Matos O voo da fênix de José Sidr im

Foto: Paula Sampaio.


Belém, Pará, 2016
de Casos Perdidos,
Ensaio Delegacia
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
267

Ana Léa Nassar Matos O voo da fênix de José Sidr im


R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

268
Ana Léa Nassar Matos O voo da fênix de José Sidr im
Ensaio Delegacia

Foto: Paula Sampaio.


Belém, Pará, 2016
de Casos Perdidos,
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
269

Ana Léa Nassar Matos O voo da fênix de José Sidr im


R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

270
Eduardo Góes Neves Encontro das águas dos rios Negro e Solimões
Eduardo Góes Neves

a c i o n a l
E ncontro das águas dos rios N egro e S olimões 1

N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
No início da colonização europeia, em negra como tinta, y por esto le pusimos el nombre dei
1542, uma pequena expedição exploradora Rio Negro, el cual corria tanto y con tanta ferocidad
partiu dos Andes Equatorianos e desceu que en más de veinte léguas hacía raya en el água sin

P
os rios Napo e Amazonas até a sua foz, no revolver Ia una con Ia otra.

d o
e v i s t a
Oceano Atlântico. A expedição, chefiada O relato de Carvajal é também importan-
por Francisco de Orellana, teve um cronista, te porque ele nos fala de uma Amazônia dife-

R
frei Gaspar de Carvajal, que nos deixou rente da qual o senso comum está acostuma-
o primeiro relato escrito sobre os povos do: há no texto referências a grandes aldeias
indígenas da bacia amazônica. Desde sua densamente ocupadas, a chefes supremos
redescoberta, no final do século 19, o relato capazes de liderar flotilhas com centenas de
de Carvajal tem servido como uma fonte guerreiros, a estradas permitindo o comércio
preciosa, embora às vezes vaga, sobre os de longa distância, à construção de paliçadas
modos de vida desses povos nos períodos que defensivas em torno de alguns assentamen- 271
antecederam a colonização europeia. O relato tos, a vasos cerâmicos tão belos como os de
de Carvajal nos traz também o primeiro Málaga. A Amazônia do senso comum, por
texto escrito sobre o encontro dos rios outro lado, é um grande vazio, um lugar da
Negro e Solimões, também conhecido como natureza por excelência, uma floresta pristina,
“encontro das águas”. De acordo às vezes inóspita, que espera pelo momento
com Carvajal: de sua ocupação racional.
(...) proseguiendo nuestro viaje, vimos una boca Durante boa parte do século 20, os relatos
de otro rio grande a Ia mano siniestra, que entraba de Carvajal e de outros cronistas europeus
en el que nosotros navegávamos, el água dei cual era dos séculos 16 e 17 foram rejeitados por
arqueólogos e antropólogos interessados em
1. Este foi o parecer que elaborei, em 3 de novembro de 2010, entender a história da ocupação da Amazônia.
sobre o tombamento da área de entorno do encontro das águas
dos rios Negro e Solimões, na qualidade de relator do Processo
Na raiz dessa rejeição estava a concepção de
Encontro das águas,
de Tombamento 1.599-T-10, o qual foi aprovado na reunião do que o meio ambiente da floresta equatorial 2011
Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural realizada em 4 de Foto: Fátima Macedo/
novembro de 2010, no Rio de Janeiro (RJ). teria uma série de limitações físicas – seja Acervo Iphan.
Encontro das águas dos rios Negro e Solimões
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H

Eduardo Góes Neves


a t r i m ô n i o
P
d o
e v i s t a
R

na baixa fertilidade dos solos, seja na pouca tido um papel importante: de toda a bacia
disponibilidade de proteína de origem animal amazônica, e não apenas nas áreas adjacentes
272
– para sustentar populações sedentárias aos grandes rios, têm surgido evidências
e grandes adensamentos demográficos. que mostram sinais claros de que a região
Consequentemente, tais relatos foram foi densamente ocupada nos milênios que
interpretados como construções fantasiosas, antecederam a chegada dos europeus ao
cujo objetivo era superestimar as riquezas Novo Mundo. Dentre esses sinais, há: a
amazônicas a fim de obter mais recursos que construção de aterros geométricos artificiais,
justificassem a colonização e a exploração conhecidos como geóglifos, no Acre,
da região. Amazonas e Rondônia; a formação de férteis
Pesquisas realizadas nos últimos anos solos antrópicos, conhecidos como terras
têm levado a uma revisão dessa perspectiva pretas, em diferentes locais no Amazonas,
e mostrado que os relatos dos primeiros Pará, Rondônia, Mato Grosso e Amapá; a
cronistas não estavam longe de trazer um construção de aterros artificiais, os “tesos”,
registro fiel dos modos de vida nativos da na ilha de Marajó, e de sambaquis no
Amazônia nos séculos 16 e 17 d.C. Nesse Maranhão, Pará e Rondônia; os alinhamentos
processo de revisão, a arqueologia tem de pedra no Amapá; a ocupação de
Encontro das águas dos rios Negro e Solimões
a c i o n a l
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r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H

Eduardo Góes Neves


a t r i m ô n i o
P
d o
e v i s t a
R
grandes aldeias conectadas por estradas história cultural. Fazer referência, no entanto, Geóglifos, Acre, 2018
Foto: Oscar Liberal/
lineares no alto Xingu. Em muitos desses à “história cultural de biomas” é, em outras Acervo Iphan.

273
contextos, além do mais, tais estruturas são palavras, referir-se ao conceito de “paisagem”,
acompanhadas por objetos de cerâmica e porque: o que são paisagens se não o meio
pedra de alta qualidade estética. físico transformado continuamente pela ação
Esse movimento de redescoberta do humana, sempre culturalmente mediada, ao
passado amazônico, a par de possibilitar um longo dos tempos?
entendimento mais completo da história O uso do conceito de paisagem e suas
da região, traz também uma importante implicações para o estabelecimento de
contribuição conceitual. Ele nos mostra, a critérios de proteção ao patrimônio cultural
partir das evidências empíricas, que a noção amazônico serão retomados em breve. Antes
de natureza virgem ou intocada é incompleta de seguir adiante, gostaria de voltar ao relato
para o bom entendimento da Amazônia e de Carvajal e discutir brevemente outro
toda a sua complexidade ambiental. Em aspecto relevante para o embasamento deste
outras palavras, é cada vez mais claro que parecer. Esse aspecto diz respeito à aparente
o estudo da história natural dos biomas contradição entre o conteúdo de sua narrativa
amazônicos requer também o estudo de sua e o quadro sobre a ocupação humana
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

274
Eduardo Góes Neves Encontro das águas dos rios Negro e Solimões

Os Kalapalo,
alto Xingu, 2017
Foto: Renato Soares.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
275

Eduardo Góes Neves Encontro das águas dos rios Negro e Solimões
construído pela arqueologia e antropologia esvaziadas de seus ocupantes indígenas nos
Encontro das águas dos rios Negro e Solimões

amazônicas, no século transcorrido desde o séculos 16 e 17.


a c i o n a l

final do século 19 ao final do século 20. A A diminuição demográfica que se


conciliação entre perspectivas tão díspares sucedeu ao início da colonização europeia da
deve ser feita à luz da história colonial da Amazônia pode, paradoxalmente, ter levado à
N
r t í s t i c o

Amazônia e do quadro histórico particular da expansão da floresta sobre áreas anteriormente


inserção das ciências nesse processo. ocupadas. Esse foi, aparentemente, o caso
A

Como em outras áreas “periféricas” da baía de Guanabara, onde o historiador


e

do planeta, foi no final do século 19 que Warren Dean, em seu clássico A ferro e fogo:
i s t ó r i c o

os primeiros antropólogos iniciaram suas a história e a devastação da Mata Atlântica


atividades de campo na Amazônia. Ora, brasileira, relata, a partir de fontes do século
H

Eduardo Góes Neves

esta foi também a época do apogeu do ciclo 16, como a vegetação dessa região parecia
a t r i m ô n i o

da borracha, ciclo esse, é sabido, baseado ser composta por áreas de capoeira ou mata
em um modo de exploração brutal de mão secundária no século 16. Resumindo o
P

de obra indígena, descrito por Sir Riger argumento, parece certo que áreas atualmente
d o

Casement, e apropriadamente denominado cobertas por florestas aparentemente


e v i s t a

de “economia do terror” pelo antropólogo primárias na Amazônia resultam também


inglês Michael Taussig. As sociedades de uma história de ocupação humana que
R

indígenas estudadas por esses pioneiros da em muitos casos remonta à história pré-
antropologia, como, por exemplo, Von den colonial da região. Tais florestas são, portanto,
Steinen, Koch-Grünberg, Nimuendaju e paisagens, pois sua história deve ser entendida
Roquete-Pinto, sofriam os efeitos diretos e a partir dos componentes naturais e culturais
indiretos do ciclo da borracha e, por isso, que as compõem. A essa constatação deve-se
tinham modos de vida bastante diferentes acrescentar que a presença de solos antrópicos
276 dos descritos pelos cronistas do início do e plantas economicamente ou culturalmente
período colonial. O ciclo da borracha, importantes confere hoje a esses locais
adicionalmente, foi o clímax de um processo relevância material e simbólica.
de diminuição demográfica iniciado já no O processo em questão propõe o
século 16, consequência da propagação de tombamento do local de confluência dos
doenças infecciosas, guerra e escravidão. rios Negro e Solimões, bem como parte de
Isso explica por que, embora muitas das seu entorno, nos municípios de Manaus,
principais terras indígenas na Amazônia Iranduba e Careiro da Várzea, no estado do
contemporânea se encontrem localizadas Amazonas. Esse local, doravante aqui referido
longe do rio Amazonas – no alto Xingu, como “encontro das águas”, reúne, por suas
alto Rio Negro, em Roraima, na fronteira características naturais e culturais, atributos
com as Guianas ou no Acre –, a arqueologia que o qualificam, por excelência, como uma
das margens desse rio seja riquíssima, com paisagem passível de reconhecimento como
vestígios que remontam até o início do patrimônio cultural de alta relevância, tanto
período colonial: tais áreas ribeirinhas foram de acordo com os conceitos previamente, e de
maneira breve, aqui alinhavados, como pela trói, destrói e reconstrói constantemente suas

Encontro das águas dos rios Negro e Solimões


importância simbólica e concreta que tem margens, o Negro é um rio menos dinâmico,

a c i o n a l
para as sociedades manauara, amazonense e com uma carga sedimentar significativamente
brasileira contemporâneas. mais baixa. A coloração escura de suas águas é
Dentro do quadro de grande diversidade devido à diluição, na água da chuva, dos com-

N
r t í s t i c o
ecológica e geográfica da Amazônia, a região postos secundários das folhas e cascas das ár-
do encontro das águas pode ser vista como vores que ocupam suas áreas de captação. Esse

A
um microcosmo: o rio Solimões, na tipologia tipo de vegetação, que cresce sobre os solos

e
clássica dos rios amazônicos proposta por arenosos da bacia do rio Negro, é conhecido

i s t ó r i c o
Alfred Russel Wallace ainda no século 19, como campinarana, ou caatinga amazônica.
é um rio de águas brancas, barrento, cujas Apesar de ter sediado, em seu médio curso, a

Eduardo Góes Neves


cheias anuais fertilizam, com sedimentos primeira capital da província de São José do

a t r i m ô n i o
recentes de origem andina, antigos meandros Rio Negro, a cidade de Barcelos, ainda no iní-
abandonados que formam planícies de cio do século 18, o rio Negro é, com exceção

P
inundação de tamanho variável, restingas da cidade de Manaus, um rio hoje de ocupa-

d o
e praias, em complexos conhecidos como ção essencialmente cabocla e indígena. Para

e v i s t a
várzeas. A fertilização regular das várzeas muitos desses povos, o encontro das águas é
cria microambientes ricos em nutrientes, referido como uma das “casas de transforma-

R
o que favorece o desenvolvimento de uma ção” pelas quais passou a sucuri ancestral em
complexa cadeia alimentar composta por sua viagem de criação do mundo.
peixes, crustáceos, aves, répteis e mamíferos. No encontro das águas, o regime
Além disso, as planícies aluviais são também hídrico é semelhante para os rios Negro
compostas por um mosaico de tipos de e Solimões: dos meses de janeiro a julho,
vegetação que incluem igapós, aningais e áreas aproximadamente, os rios estão cheios,
de mata que abrigam grande biodiversidade. as praias e várzeas desaparecem e a pesca 277

Desde os trabalhos do geógrafo brasileiro fica mais difícil. De agosto a dezembro,


Hilgard Sternberg, professor emérito da o verão, os rios vazam, praias e várzeas
Universidade da Califórnia em Berkeley, aparecem e a pesca torna-se abundante. É
sintetizados em seu clássico A água e o homem também durante esse período que afloram
na Várzea do Careiro, de 1956, sabe-se que os alguns dos pedrais, que permanecem
ambientes de água branca são extremamente submersos durante o inverno, tanto no
dinâmicos, devido à intensidade do fluxo Solimões como no Negro. O relevo é
das correntezas do rio Solimões. A ilha do variável: na margem esquerda do rio Negro
Careiro, por sinal, fica próxima aos polígonos e na margem esquerda do rio Amazonas,
propostos para o tombamento. ocorrem escarpas de altura variável, onde
O rio Negro, como o próprio nome diz, estão geralmente implantados sítios
é um rio de águas pretas, cujas cabeceiras arqueológicos; na margem direita do rio
drenam os terrenos antigos do planalto das Negro, em ambas as margens do Solimões
Guianas. Ao contrário do Solimões, que cons- e na margem direita do Amazonas, os
terrenos são mais baixos e sujeitos a em suas águas, de grande relevância econô-
Encontro das águas dos rios Negro e Solimões

alagações, embora sítios arqueológicos mica e cultural: o jaraqui. Os jaraquis, que


a c i o n a l

tenham também sido ali registrados. pertencem à ordem dos Characiformes, são os
Mais que, portanto, o encontro de peixes mais populares da região de Manaus,
dois rios, o encontro das águas é um sendo considerados símbolos da cidade. Por
N
r t í s t i c o

encontro de dois biomas distintos, síntese serem capturados em grandes cardumes,


da biodiversidade amazônica. Há na região são peixes baratos, de grande apelo popular,
A

outros notáveis encontros de rios, como é o vendidos aos centos nas épocas de safra (final
e

caso do encontro do Amazonas e do Tapajós da cheia e vazante/seca). No início da enchen-


i s t ó r i c o

em Santarém. O rio Negro, no entanto, é te, época de chuvas, os cardumes de jaraquis


o único rio de águas pretas de dimensões se reúnem em locais de encontros de águas
H

Eduardo Góes Neves

continentais na bacia amazônica, já que tem (sempre envolvendo um rio de água branca/
a t r i m ô n i o

suas nascentes na Colômbia e tangencia barrenta e outro de água clara ou preta) para
também a Venezuela, antes de entrar o desovar. Os ovos rapidamente eclodem e as
P

território brasileiro, em Cucuí, a montante larvas são carreadas pela enchente para os
d o

de São Gabriel da Cachoeira. O encontro lagos e planícies inundáveis de rios de águas


e v i s t a

das águas é, desse modo, único, não havendo brancas, locais altamente produtivos, onde a
R

equivalente algum em toda a Amazônia e em água invade extensos terrenos e disponibiliza


qualquer outro local do planeta, já que não há uma quantidade enorme de matéria orgânica
no mundo bacia hidrográfica comparável em e microrganismos que são consumidos pelos
escala à amazônica. peixes jovens. Quando os peixes crescem,
A importância simbólica do encontro após cerca de dois ou três meses, os cardu-
das águas é visível em alguns emblemas mes de jovens das duas espécies se reúnem e
contemporâneos da sociedade amazonense: migram rio acima para os afluentes de águas
278
com referências nos brasões do estado do pretas ou claras (no caso do encontro das
Amazonas, da Universidade Federal do águas de Manaus, das várzeas do rio Solimões
Amazonas, do Instituto Geográfico e Histórico para o rio Negro). Nesses afluentes os jaraquis
do Amazonas e do município de Manaus. No crescem se alimentando de algas e detritos
Largo de São Sebastião, em frente ao Teatro encontrados nas florestas alagadas. No segun-
Amazonas, a decoração do piso, feita em pedra do ano de vida, já adultos e prontos para se
portuguesa, imita o padrão de encontro das reproduzir, esses peixes retornam ao encontro
águas do Solimões e Negro, formando um das águas para a desova. Além da importância
mosaico em preto e branco, depois utilizado econômica, nutricional e cultural dos jaraquis
para decorar o piso da orla da praia de para a população de Manaus e da Amazônia
Copacabana, no Rio de Janeiro. Central, esses peixes são verdadeiros ícones do
A intersecção entre a importância material encontro das águas: o padrão de coloração da
e a simbólica do encontro das águas para a cauda, formado por faixas amareladas e escu-
sociedade manauara contemporânea pode ser ras alternadas, remete imediatamente às cores
exemplificada por um tipo de peixe comum dos rios Negro e Solimões.
Encontro das águas dos rios Negro e Solimões
N
A
H a c i o n a l
r t í s t i c o
e
i s t ó r i c o

Eduardo Góes Neves


P
R a t r i m ô n i o
d o
e v i s t a
279

Atualmente, a visitação ao encontro das obra permanente que inclui guias, barqueiros,
águas é uma das atividades mais importantes além de pequenos restaurantes localizados Teatro Amazonas,
Manaus, 1950 (ca.)
no turismo em Manaus. Tais visitas são feitas em seu entorno. A cidade de Manaus Foto: Marcel Gautherot/
Acervo Instituto Moreira
em passeios diários e envolvem uma mão de tem crescido em um ritmo vertiginoso e Salles.
desordenado nos últimos anos e um dos modo exercer algum papel no ordenamento
eixos desse crescimento tem sido justamente desse processo de crescimento. A construção
a região do entorno do encontro das águas, de uma ponte sobre o rio Negro, já quase
nas margens esquerdas dos rios Negro e concluída, e o projeto de construção de outra
Amazonas. O tombamento proposto, além ponte atravessando o rio Solimões, próximo
de permitir a proteção física do entorno à cidade de Manacapuru, causarão sem
do encontro das águas, poderá de algum dúvida um imenso impacto ao patrimônio
exemplos de destruição de sítios são inúmeros

Encontro das águas dos rios Negro e Solimões


e os casos recentes incluem os sítios Nova

a c i o n a l
Cidade, Praça Dom Pedro e Japiim. É de se
esperar que o mesmo destino não aguarde
os sítios da área do encontro das águas, já

N
r t í s t i c o
parcialmente impactados pela construção do
Porto das Lages.

A
Em suma, espero ter brevemente

e
demonstrado as relevâncias histórica,

i s t ó r i c o
cultural, ecológica, econômica e geológica
do fenômeno do encontro das águas. Por

Eduardo Góes Neves


todas essas razões, o considero paisagem

a t r i m ô n i o
repleta de fundamentais significados locais e
nacionais, o que justifica sua proteção pelo

P
Estado brasileiro.

d o
Antes de concluir, gostaria de fazer

e v i s t a
uma última observação, que diz respeito
ao objeto do tombamento. Parece-me mais

R
adequado que o tombamento proposto
seja o da “área de entorno do encontro
das águas” e não do próprio encontro,
dada a natureza dinâmica que tem esse
fenômeno hidrológico. Se realizado dessa
forma, o tombamento permitirá ao menos o
desenvolvimento de mecanismos de proteção 281

física da área do entorno, da vegetação e


dos sítios arqueológicos nela presentes. É
também importante a articulação, entre o
Iphan, prefeituras municipais de Iranduba,
Manaus e Careiro da Várzea, Suframa e
Superintendência da Região Metropolitana
de Manaus, para a boa gestão da área
arqueológico da área de confluência dos rios tombada. Assim, proponho que seja aceito o
Negro e Solimões, onde dezenas de sítios já polígono apresentado no processo
foram identificados, tendo sido objeto de de instrução.
estudos por brasileiros e estrangeiros, em, Por todas as razões acima citadas,
até o momento, quatro teses de doutorado emito parecer favorável ao tombamento
Encontro das águas,
e doze dissertações de mestrado, sem contar das áreas em questão no Livro do Tombo 2004
Foto: Margi Moss/
as em andamento. Na cidade de Manaus, os Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico. Coleção M. e G. Moss.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

282
Eduardo Góes Neves Encontro das águas dos rios Negro e Solimões
Foto: Margi Moss/
Rio Negro (AM), 2004
e v i s t a d o a t r i m ô n i o i s t ó r i c o e r t í s t i c o a c i o n a l

Coleção M. e G. Moss.
R P H A N
283

Eduardo Góes Neves Encontro das águas dos rios Negro e Solimões
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

284
Jussara Silveira Derenji 0s teatros do Nor te: a entrada triunfal das musas no Equador
Jussara Silveira Derenji

a c i o n a l
0s teatros do N orte : a entrada triunfal das

E quador

N
musas no

r t í s t i c o
A
Para Jorge Derenji, a quem se deve a

e
implantação do Iphan na Região Norte.

i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
Palcos da opulência, do luxo e da poder do período, erigindo um grande teatro.
ostentação de uma sociedade no auge de Vários presidentes da Província do Pará se
uma favorável conjuntura econômica, manifestaram a favor de sua construção, mas,

P
d o
repentinamente conquistada na segunda somente em 1868, José Bento da Cunha

e v i s t a
metade do século 19, os teatros de ópera da Figueiredo assinou o projeto de lei que
Amazônia desencadearam reformas que foram autorizaria as despesas para sua criação2.

R
muito além de consolidar o gosto pela música O teatro foi, então, erguido em pleno
na região. Um relato de José Coelho da Gama decorrer da Guerra do Paraguai, numa
e Abreu, barão de Marajó, refere-se ao ano demonstração de que a entrada de recursos
de 1847, dizendo: “O Pará inteiro concorria, na região independia das custosas medidas
naquela época ao teatro” , reafirmando o que
1
de sustentação do conflito. O nome
diziam os jornais regionais, que noticiavam escolhido quando do assentamento da pedra
espetáculos e audições como principal fundamental foi Teatro Nossa Senhora da Paz, 285

atividade de lazer da sociedade nortista. em expectativa do término da guerra, que


Seguindo uma tradição de aliás só aconteceria em 1870.
monumentalidade experimentada no século Com o nome logo abreviado para Teatro
anterior, quando recebera prédios de refinado da Paz, sua construção foi criticada, com
traço acadêmico, destinado principalmente os mais diversos pretextos, desde a fase de
a palácios, igrejas e a uns poucos edifícios projeto, mas o alvo principal da imprensa
residenciais, Belém se antecipa aos centros do era o seu autor, escolhido por ser “predileto
engenheiro da presidência”, dizia o O Liberal Teatro da Paz,
Belém (PA), 2018
1. Conforme artigo “1847-1897” (ver Moura, 1910), de José Foto: André Vilaron/
Coelho da Gama e Abreu, Barão de Marajó, político e intelectual, do Pará, em 11 de março de 1869 (Derenji, Acervo Iphan.

presidente das Províncias do Pará e do Amazonas no século 19.


Um autor que se dedicou ao registro e análise dos movimentos
musicais no Pará foi Vicente Salles, com vários títulos referentes à 2. Belém possuíra, no período colonial, uma Casa da Ópera,
criação de sociedades musicais, atuação de grupos e companhias. que se transformou em ruínas nos anos 1810-1820. Em 1848, o
No Amazonas, pode-se destacar Mário Ypiranga Monteiro, presidente da Província Jerônimo Coelho insistiu no abandono
com os registros dos teatros amazonenses. Na segunda metade das obras de recuperação do antigo prédio, argumento reforçado
do século 19, há farta documentação de espetáculos, audições e pelo Inspetor do Tesouro João Batista de Figueiredo Tenreiro
saraus nos muitos jornais do Pará e do Amazonas. Aranha, em 1855.
1996:25)3. Militar e brasileiro, o engenheiro Chermont, mas não se pode saber até que
0s teatros do Nor te: a entrada triunfal das musas no Equador

pernambucano José Tibúrcio Magalhães não ponto chegaram tais intervenções4.


a c i o n a l

teria capacidade de fazer uma obra dessa Os ataques ao projeto de Magalhães


envergadura e o projeto estava “repleto de continuam nos anos seguintes, em jornais
N

erros e defeitos”. e também em relatórios provinciais como


r t í s t i c o

Essa escolha também foi considerada o de 1875, do engenheiro Cristiano


desnecessária, pois os profissionais atuantes na Pereira Coutinho. O engenheiro cita as
A

Intendência seriam perfeitamente capazes de regras de Vignola para analisar os defeitos


e

fazer, e melhor, o que fora feito por ele. Se a encontrados na concepção. Vale lembrar
i s t ó r i c o

contratação tivesse sido a de um profissional que os tratados desse autor circulavam


estrangeiro, possivelmente não sofresse entre os construtores da época como
H
a t r i m ô n i o

tantos ataques. Afinal, o único rival à altura preceitos a serem rigorosamente cumpridos.
do teatro paraense naquele período era o de Supriam, assim se esperava, a ausência de
Recife, adequadamente projetado por um profissionais especializados em arquitetura.
Jussara Silveira Derenji
P

engenheiro francês, Louis Léger Vauthier. Outros relatórios investiam em questões de


d o

Talvez faltasse a Magalhães competência, mas estabilidade, fato que ajudaria a justificar
e v i s t a

não a experiência nesse campo da arquitetura, reformas posteriores.


R

o que por si só deveria ter pesado a seu favor. As críticas foram reunidas por Donato
No período Imperial poucas cidades Mello Júnior (1973) em torno de alguns
brasileiras podiam ostentar teatros recém- pontos principais: trocaram-se as seis colunas
construídos. O Teatro Santa Isabel em Recife, do pórtico para sete, ficando no centro da
projeto de Vauthier, erguido entre 1840 e composição uma coluna; além desse defeito
1846, seguira rigidamente os preceitos da perante as regras do Classicismo, as colunas

286
arquitetura neoclássica e, segundo Toledo coríntias foram afinadas e fugiam também
(1995:51), “adotando todo o refinamento aos cânones clássicos. Por um outro texto de
de linhas e linguagem característica do Donato, datado de 1984, tem-se ideia de que
período”. Após um incêndio devastador em ele consultou plantas originais ou textos fi-
1869, o teatro fora totalmente reconstruído dedignos que as descreviam5: “projetado com
exatamente por Tibúrcio Magalhães. O seis colunas jônicas, acabou, não sabemos por
projeto do teatro apresentado por ele em que com sete colunas de capitel coríntio”6.
Belém foi modificado ainda nas plantas, A colunata da fachada, onde estavam as sete
segundo se diz, pelo contratante João
Francisco Fernandes e pelo engenheiro 4. As plantas foram certamente modificadas antes do início das
obras. O contrato assinado com o empreiteiro português João
da Repartição de Obras Públicas que Francisco Fernandes dizia: “tendo sido alterado o plano primitivo
das obras, o arrematante fica sujeito absolutamente a observar as
acompanhou as obras, Antônio Calandrini alterações ordenadas e aprovadas pelo Exmo. Sr. Presidente da
Província e pelo engenheiro fiscal”.

5. Essas fontes não estão mais disponíveis.


3. Principal jornal da oposição no período, O Liberal do Pará
faria repetidos ataques ao presidente da Província e ao autor do 6. Conforme Mello Junior (1973). Também no jornal
projeto, não só por erros alegados no projeto, mas também pelo O Liberal, Belém, 26 fev.1978 e 15 fev.1984, entre outros textos
alto valor investido. do mesmo autor.
0s teatros do Nor te: a entrada triunfal das musas no Equador
N
A
Ha c i o n a l
r t í s t i c o
e
i s t ó r i c o
a t r i m ô n i o

Jussara Silveira Derenji


P
Rd o
e v i s t a
colunas, criava uma varanda encimada pelo do que pretendia ser um período de rígido
frontão triangular, como se pode ver em fotos acompanhamento das regras de construção 287

antigas. O texto de Mello pode sugerir leitura do Neoclassicismo, da simetria, dos cânones
que indicaria a intervenção dos engenheiros clássicos, para a chamada arquitetura do
locais, principalmente o responsável pelas Império. A segunda e importante causa de
obras, como os autores das mudanças tão críticas deriva principalmente da campanha
criticadas. Nada comprova que Magalhães dos jornais de oposição ao presidente da
tenha acompanhado a obra, embora estivesse Província. Eles classificavam as obras como
presente no ato de lançamento da pedra fun- motivo da ruína das finanças públicas, só
damental. O refazer interminável dos cálculos levadas adiante por “vaidade” do governante e
de alturas, larguras, pedestais e colunas pode “tão desnecessárias como as obras do porto”7. As sete colunas
originais do Teatro
não ter sido, afinal, causado por supostos É fácil perceber, pelo menos com referência da Paz, Belém (PA),
1875 (ca.)
erros de responsabilidade do projetista. às obras do porto, a falta de procedência Foto: Felipe Augusto
Fidanza/Coleção Gilberto
Ferrez/Acervo Instituto
Duas questões mais amplas polarizam os da afirmação, pois a cidade, naquele Moreira Salles.

debates a respeito da construção do teatro


de Belém. A primeira delas foi a mudança 7. Jornal A Tribuna, Manaus, 7 dez.1876.
período, se firmava como o maior ponto de Como dizia Schinkel8, “o teatro só poderia
0s teatros do Nor te: a entrada triunfal das musas no Equador

exportação do Norte, principal escoadouro da ser visto como teatro” (Segawa, 1988), ou
a c i o n a l

produção de borracha e entrada de produtos seja, suas características externas deveriam


importados da Europa na região. identificar sua função e o que continha
N

Analisando o primeiro ponto, o internamente. O destaque necessário a


r t í s t i c o

apego à tradição clássica, observa-se que a essa identificação podia ser atribuído por
arquitetura do Neoclassicismo, trazida pelo uma localização elevada para o edifício,
A

italiano Antônio Landi de 1753 em diante impossível de ser obtido numa cidade plana
e
i s t ó r i c o

e adotada em prédios mais recentes como como Belém, mas plenamente alcançado na
o Palacete Municipal, projeto de autoria de posterior construção do Teatro Amazonas.
Gama e Abreu (1860-1895), caracterizava O ponto mais importante de qualquer
H
a t r i m ô n i o

a cidade. Para seus habitantes, era sua análise do posicionamento do novo teatro de
monumentalidade que a conformava desde o Belém no tecido urbano é o entendimento
Jussara Silveira Derenji

período colonial, com suas igrejas, palácios e de que ele marcou a mudança do antigo
P

centro do poder, que se mantivera na orla


d o

casas senhoriais. Essa arquitetura, portanto,


e v i s t a

distinguia Belém, mostrava-a como capital do rio desde a fundação da cidade, em 1616,
e maior cidade da região, aquela que tinha com a clássica formação: igreja, forte, casa
R

ligação direta e constante com a Europa. de governo. O centro do poder burguês,


Numa cidade como essa, faltava, sem dúvida, da elite enriquecida pela borracha estava se
um teatro digno desse nome, porque, como deslocando e o teatro foi o marco inicial dessa
dizia em 1855 o influente Inspetor do nova situação.
Tesouro Provincial João Batista Tenreiro Esse movimento se esboçava desde 1863,
Aranha, “os teatros marcham sempre de par até obter-se a autorização para sua construção.
288 com a civilização” (Derenji, op. cit.: 12). Não se falava ainda em teatro de ópera9, mas
A aspiração era construir um grande, em “Teatro Público”, quando se definiu o
rico e talvez imponente prédio para o teatro terreno e o tratamento a ser dado ao entorno
lírico. O edifício do teatro, na cultura do como de “regularização e aformoseamento
final do século 19, se transformou num da praça”. As diretrizes gerais do projeto
tema complexo que envolvia uma série de também fixavam sua forma e capacidade:
questões técnicas e conceituais. O teatro, “art. 6 - O teatro terá ao menos três ordens
em nosso meio, devia abrigar o gênero de camarotes e uma galeria, assim como
musical e o teatro dramático, mas tinha
8. Karl Friedrich Schinkel (1781-1841) foi o arquiteto e
também de adaptar-se para acolher bailes urbanista responsável pela estruturação de Berlim como capital
e reuniões políticas. Tornara-se o centro de da Prússia. Teve influência decisiva sobre conceitos e práticas do
Neoclassicismo europeu.
interesse e local de visibilidade social. O seu 9. O prédio da Ópera de Paris, que seria o modelo de construção
posicionamento no tecido urbano envolvia dessa tipologia na Europa e no mundo, foi construído a partir
de um concurso feito em 1861 e inaugurado em 1875, com o
condições de destaque e de identificação projeto Charles Garnier. Ou seja, o primeiro grande teatro da
Amazônia surge concomitantemente com o projeto do mais
imediata dentre as demais construções. conhecido edifício de ópera do século 19.
capacidade para conter de 1.200 a 1.500 entrada é ainda pior, segundo o articulista,

0s teatros do Nor te: a entrada triunfal das musas no Equador


pessoas comodamente, tendo em atenção as por ser “feia, baixa, acachapada. Naquele

a c i o n a l
condições higiênicas que o clima exige. Nas vestíbulo não há uma fonte, uma estátua,
ordens mais distintas haverá um camarote nada. Só aquela brancura de cal e aquelas
colunas de ferro, sem elegância nenhuma,

N
imperial” (Derenji, op. cit.:28) . 10

r t í s t i c o
Sem dúvida um teatro enorme para a dando-lhe o ar de uma estação de estrada de
cidade daquele período, trazendo despesas ferro. Nada menos. Nada mais”11. A escolha

A
que seriam motivo de preocupação e de do ferro para as colunas na entrada principal

e
ataques da oposição aos gastos do erário. do prédio foi motivo de escândalo, quando

i s t ó r i c o
O desconforto dos críticos paraenses, poderia, em vez disso, ser entendida como
além da motivação política e das rivalidades ousadia e modernidade. Por muitas décadas,

H
no Norte do Brasil, o ferro se esconderia, seja

a t r i m ô n i o
entre os jornais locais, tinha relação direta
com a alegada pobreza ornamental do Teatro em formas que imitavam as da arquitetura
da Paz, em sua fase inicial de funcionamento. clássica – colunas caneladas com capiteis

Jussara Silveira Derenji


P
Se o compararmos com o de Recife, único decorados em conformidade com os tratados

d o
similar no país, então, essa pobreza fica de arquitetura grega e romana –, seja

e v i s t a
evidente. Há muita diferença entre o lobby cobrindo-o com pinturas de falso mármore

R
com grandes espelhos, mobiliário decorado para esconder o seu aspecto original.
ao gosto de época e outros detalhes luxuosos A postura adotada por Veríssimo mostra
descritos no prédio pernambucano e o que a entrada de materiais industrializados,
cenário apresentado no Teatro da Paz. mesmo que rejeitada por alguns, já era
O gosto da época, mesmo não tendo sido usual e estava estabelecida como regra
alcançada a fase mais exuberante da chamada nas construções. Cobravam-se do teatro
Belle Époque regional, foi expresso em crônica requinte, qualidade nos materiais,
289
de José Veríssimo, ainda um jovem cronista ornamentos de luxo e beleza, que já fugiam
da imprensa local. Publicada dois dias após ao Classicismo e acomodavam-se nos
a inauguração do teatro, sua crônica mostra padrões próximos ao Ecletismo da chamada
que a região já se acostumara aos materiais Belle Époque tropical. Porém, o Ecletismo,
luxuosos e importados pelo intercâmbio com sua livre escolha de estilos, não
com a Europa. Veríssimo critica “o papel que chegara à província nortista, ainda incapaz
cobre os camarotes”, o mais “ordinário e feio de assimilar os princípios mais flexíveis
possível”, os balcões de madeira, as escadas que o engenheiro projetista ou o executor
sem verniz, a pintura de cal, o teto “de lona tinham provavelmente tentado implantar.

pintada”, a arcada “nua como um Cupido”, Assim, logo em seguida, o teatro teria de se
adaptar ao gosto da época, deixando a sua
sem figuras, florões ou outros ornatos. A
austeridade imperial, e se tornar o símbolo
10. O modelo de teatro é ainda o italiano, com forma interna da nova era.
de ferradura, a exemplo do Scala de Milão, que data da segunda
metade do século 18. O Teatro Scala tem capacidade muito
maior, para 2.004 pessoas. 11. O Liberal do Pará, 17 fev.1878.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

290
Jussara Silveira Derenji 0s teatros do Nor te: a entrada triunfal das musas no Equador
Acervo Iphan.
Teatro da Paz,

Foto: André Vilaron/


Belém (PA), 2018
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
291

Jussara Silveira Derenji 0s teatros do Nor te: a entrada triunfal das musas no Equador
0s teatros do Nor te: a entrada triunfal das musas no Equador
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
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i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o

Jussara Silveira Derenji


P
d o
e v i s t a
R

O Ecletismo – entendido de forma com a configuração dos modernos teatros


mais ampla como uma abertura a conceitos europeus e com as ordens de camarotes
inovadores, a uma forma de vida urbana e a tribuna especial conforme solicitadas.
mais livre e mundana – caracterizava a nova Era destinado, ao menos incialmente, “ao
sociedade, os diferentes atores surgidos na canto e ao recitativo”, mas devia também
292
economia regional, possuidores das fortunas ser usado como salão para bailes, assim, as
espantosas que possibilitavam avanços cadeiras e poltronas podiam ser removidas. A
inéditos na escala social. Também traduzia iluminação era a gás, o que exigiu uma saída
uma atitude de transição entre a sobriedade de ar pelo telhado, removida posteriormente
do Império, o poder longamente estabelecido quando se instalou a eletricidade no prédio.
que rejeitava a modernidade – tida então Seu volume se erguia imponente no
como a negação de princípios clássicos, ou centro desse novo poder, o da burguesia da
supostamente clássicos, na arquitetura –, e borracha, cercado de terrenos abertos que
a nova elite, que exibia suas conquistas de depois se tornariam amplos jardins e passeios
forma ostensiva. públicos. No final do século 19, essa elite
Ainda que sofresse muitas críticas, era enriquecida gravitaria em torno da praça na
impossível ignorar o edifício do teatro. frente do teatro, em área onde havia cafés,
Praça da República.
Óleo sobre tela de
Grandioso e externamente impositivo, restaurantes e hotéis, local propício para
Antônio Parreiras,
1905
mesmo numa cidade possuidora de igrejas e tornar visível a sua apropriação de padrões
Acervo: Museu de Arte de
Belém – Mabe. palácios monumentais, tinha sido construído europeus de comportamento.
Nessa fase, a ópera já assumia no Teatro Também a Igreja passou por mudanças

0s teatros do Nor te: a entrada triunfal das musas no Equador


da Paz um papel importante. A primeira obra no mesmo período, ainda que por razões

a c i o n a l
desse gênero a ser apresentada foi Ernani, diversas. O crescimento do poder maçônico
de Verdi, em 7 de agosto de 1880, mas o no governo imperial, entre outras questões
relacionadas com a indiscutível hegemonia

N
acontecimento que realmente marcaria o

r t í s t i c o
domínio da ópera no Teatro da Paz foi a até então mantida pelo Catolicismo, motivou
première, em 9 de setembro do mesmo ano, a renovação completa da decoração do templo

A
de O Guarani, de Carlos Gomes, ainda que mais importante à época, a Catedral da Sé.

e
o autor não estivesse presente nessa ocasião. Nada mais adequado do que escolher, sem

i s t ó r i c o
Era a primeira apresentação de uma ópera concursos ou possibilidade de equívocos na
nacional no Pará, levada em cena pela mensagem a ser emitida, membros de uma

H
academia romana ligada ao papado. Entra

a t r i m ô n i o
companhia de Tomas Passini e com regência
do maestro Enrico Bernardi. Seguiram-se em cena um grupo de artistas italianos que
outras apresentações, apoiadas pela recém- dominaria o panorama das artes regionais de

Jussara Silveira Derenji


P
criada Associação Lírica Paraense e depois 1880 a 190012. São decoradores, pintores,

d o
pelo Conservatório Dramático. No ano escultores, estucadores e aprendizes, liderados

e v i s t a
seguinte, a mesma companhia apresentou- por Domenico de Angelis, que se credenciam,
com as obras de renovação da Catedral,

R
se no Pará, realizando mais de cinquenta
espetáculos entre agosto e novembro, para realizar outros trabalhos artísticos,
inclusive a ópera Idália, do compositor não só em Belém como em toda a região.
paraense Henrique Eulálio Gurjão. Em Assumem assim, em 1887, a obra completa
1882, finalmente, foi a vez de Carlos Gomes, de transformação decorativa do Teatro da Paz,
apresentando com sucesso a sua obra mais ainda que existissem na cidade outros artistas
conhecida nacional e internacionalmente. egressos da Accademia Nazionale di San Luca,
a mesma a que pertenciam13. 293
Carlos Gomes recebeu as homenagens no
As críticas ao Teatro da Paz, porém,
Salão de Honra do teatro. Nessa temporada o
não cessaram com o início e sucesso das
autor de O Guarani regeu a sua sinfonia, com
atividades. Nove anos depois da inauguração
enorme entusiasmo da assistência.
Segundo Vicente Salles (1980:330),
12. Contratado através do bispo Dom Macedo Costa para
fazer um novo altar para a Catedral de Belém, em 1867, Luca
A primeira visita muito significou para esse Carimini era artista de prestígio na capital italiana, especializado
em construções religiosas. Concluído o encargo, em 1869, o altar
povo e para o próprio artista. As homenagens
foi enviado ao Brasil para ser montado, processo dificultado pela
partiam dos mais diferentes estratos sociais. No dia chamada Questão maçônica, atrasando em quase 10 anos, depois
da chegada das peças, a sua finalização. Através de indicação de
27 de julho de 1882, por exemplo, realizou-se uma Carimini, que nunca veio ao Brasil, foram contratados para a
grande manifestação popular, de que participaram decoração da Sé, inclusive o assentamento do altar, os artistas
Domenico de Angelis e Giovanni Capranesi, sendo que este
intelectuais e artistas, operários e estudantes último esteve uma única vez no Brasil.
(...) bandas se apresentaram houve foguetes e 13. É o caso de Constantino Chaves da Motta, o primeiro
paraense a ingressar nessa academia. Posteriormente, os artistas
girandolas para uma multidão. As 20 hs, desfilou a italianos se associariam a Crispim do Amaral, que passara pela
marche aux flambeaux, calculada em mais de duas academia e pela Comédie Française. Indicariam para cursar a
San Luca o artista paraense João Gomes Correa de Faria, a quem
mil pessoas. aceitaram como artista auxiliar.
0s teatros do Nor te: a entrada triunfal das musas no Equador
a c i o n a l
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A
e
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Jussara Silveira Derenji


P
d o
e v i s t a
R

do teatro, contrataram-se as pinturas italianos com os trabalhos na Catedral, foram


decorativas, que deveriam mudar a aparência empregados outros cinco pintores, três deles
294
interna do edifício e começar a dotá-lo vindos especialmente da Europa.
da grandiosidade que se esperava numa O teto, estucado e com quatro grandes
construção desse tipo. cenas pintadas, tem no centro uma rosácea
Domenico de Angelis, o principal em metal trabalhado que sustenta o lustre em
articulador das mediações do grupo de cristal. Entre as cenas, vê-se a entrada triunfal
acadêmicos italianos com os contratantes do deus Apolo e das musas na Amazônia.
locais, assume, em 10 de maio de 1887, as Outra de grande importância é uma cena
pinturas da sala de espetáculos do Teatro local, muito emblemática dos equívocos
da Paz. Os trabalhos andaram em ritmo que podem ser atribuídos à concepção
excepcionalmente lento por causa dos europeia dos pintores decoradores em relação
A pintura de desentendimentos com a administração à realidade local. Nela se vê como figura
Domenico de Angelis
no teto da Sala do teatro, que insistia em pinturas a óleo, principal uma índia prestes a disparar uma
de Espetáculos
representa a
entrada de Apolo na
enquanto o pintor as queria, e acabariam sendo flecha visando atingir uma onça. A lua paira
Amazônia. Teatro da
Paz, Belém (PA), 2018
feitas, a têmpera. Nessa importante obra, que sobre sua cabeça, como um símbolo de poder.
Foto: André Vilaron/
Acervo Iphan. ampliava, e muito, a notoriedade obtida pelos A nudez do sexo foi “convenientemente”
coberta por panejamento clássico. Essa figura Em 1895, De Angelis obteve do

0s teatros do Nor te: a entrada triunfal das musas no Equador


feminina também tem uma tiara nos cabelos governador do período, Justo Chermont,

a c i o n a l
ondulados e sua pele muito clara difere da dos o encargo das pinturas do Salão Nobre
demais índios de tez marrom avermelhada. ou de Honra, como compensação, pois o

N
Um deles tem o cabelo trançado como o de atraso no trabalho da sala de espetáculos

r t í s t i c o
certos indígenas da América do Norte. Aos foi reconhecido como prejudicial ao artista.
pés da figura central vemos o produto da Os estudos foram feitos em Roma e para

A
caça, que inclui um urubu-rei, ave não sujeita a execução veio, em sua única estada na

e
i s t ó r i c o
a ser abatida por ser considerada benfazeja. região, o artista Giovanni Capranesi. De
Em 1890, fora contratado para diversas Angelis trabalha nessa decoração durante seus
cenografias, incluindo-se dois panos de boca, últimos anos no Pará. Os outros trabalhos

H
a t r i m ô n i o
o artista pernambucano Crispim do Amaral, decorativos, de iluminação, cenografia e
credenciado por trabalhos executadas na acessórios de cena, foram dados a Vicente

Jussara Silveira Derenji


Comédie Française e por um período de Pontes de Oliveira14.

P
permanência na Accademia di San Luca O Salão Nobre do teatro de Belém foi

d o
(1886-1890). Um dos panos de boca era

e v i s t a
decorado nas paredes com pinturas feitas com
uma alegoria da República pintada em Paris moldes, restauradas no início do século 21.

R
por Carpezat. Outras polêmicas surgiriam. O teto foi pintado com cenas clássicas que
O pano de boca trazia uma composição infelizmente se perderam em fase posterior.
inusitada para a região, com a presença de Resta da atuação de De Angelis a pintura
índios e “morenos”. Estranhamente parece de ilusão sobre as portas, que homenageia
não ter sido notada até então a já referida grandes figuras da literatura nacional.
representação de índios no teto da sala de
espetáculos, ou o fato de aparecerem em meio 295
à selva e caçando pareceu mais adequado para 14. Pontes de Oliveira trabalhara no antigo Teatro Providência.
Um prédio de localização central, mas construído em madeira,
a crítica local. com iluminação que era, ainda, a azeite da terra ou a andiroba.

Pintura no teto do
Teatro da Paz,
Belém (PA), 2018
Foto: André Vilaron/
Acervo Iphan.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

296
Jussara Silveira Derenji 0s teatros do Nor te: a entrada triunfal das musas no Equador
No fim do século 19, Manaus construiria governador do Amazonas consegue fazer do

0s teatros do Nor te: a entrada triunfal das musas no Equador


o seu teatro de ópera. Já fora proclamada a teatro o marco inicial do que deveria ser o

a c i o n a l
República e o governante do Amazonas era novo centro administrativo. O imponente
Eduardo Ribeiro. Maranhense e militar, Ribei- Palácio da Justiça foi erguido em frente ao
ro se tornaria conhecido como “o Pensador”, teatro e todo o conjunto deveria culminar

N
r t í s t i c o
um homem à altura do momento no qual com um palácio de governo projetado pelo
dirigiu o estado. Recursos não faltavam para italiano Filinto Santoro. A configuração seria

A
transformar o panorama urbano, que era ainda a de uma larga avenida ligando o porto ao

e
acanhado se comparado ao avanço na econo- palácio, este localizado no ponto mais alto

i s t ó r i c o
mia, e o governador se pronunciava em discur- na área central. O projeto, não concluído,
sos oficiais com segurança: “Não se pode dese- previa um prédio horizontal com cúpula, a

H
jar que as condições financeiras do Amazonas exemplo dos palácios de governo europeus e

a t r i m ô n i o
sejam mais prósperas (...) sua riqueza aumenta dos já implantados nas cidades americanas de
progressivamente de modo notável” . Ribeiro
15 Washington e Buenos Aires.

Jussara Silveira Derenji


P
modifica completamente o panorama urbano Como no caso do Teatro da Paz, as

d o
da capital, até então uma cidade de pequeno tentativas de construção do Teatro Amazonas

e v i s t a
porte com construções e prédios modestos para datavam de alguns anos antes do efetivo
início da obra. Desde 1881, falava-se de sua

R
seus órgãos públicos, criando um novo traçado
para a área central, integrada por pontes metá- construção, cuja concorrência, em 1882, foi
licas e amplas avenidas. Reformula também as vencida por Bernardo Braga, com projeto
áreas abertas centrais, ornamentadas com fon- “organizado” pelo Gabinete Português de
tes e coretos em ferro de aprimorado desenho e Engenharia e Arquitetura de Lisboa. Fato que
feitura europeia. chama a atenção é o da proposta portuguesa,
O prédio mais importante da cidade de ou organizada em Portugal, ter sido duas
297
Manaus era o do Paço Municipal, de 1874, vezes mais onerosa para o estado do que
contemporâneo, portanto, da construção do seria a do outro concorrente, C. Celeste
Teatro da Paz em Belém. Dentre as igrejas Saccardi16. Ernesto Mattoso, que passou pela
se destacava apenas a Matriz. Apesar da cidade em 1883, considerou muito alta a
reconhecida deficiência dos edifícios públicos, despesa prevista de duzentos contos de réis
inadequados face à prosperidade do estado, para a futura construção do novo teatro. Ele
Eduardo Ribeiro opta por executar, como a criticava por não ser uma das “primeiras
a primeira construção monumental de seu necessidades” da cidade, que sequer contava
governo, um prédio destinado à cultura, o naquele momento com iluminação a gás, Cúpula do Teatro
Amazonas,
Teatro Amazonas, concluído em 1896. serviço de água encanada ou sistema de Manaus (AM), 2009
Foto: Márcio Vianna/
Diferente de Belém, onde o teatro se esgoto (Otoni, 1999:210). Acervo Iphan.

localizava no centro da vida mundana,


16. A proposta é datada de 4 de outubro, em Lisboa. Constam
dos cafés, restaurantes e hotéis de luxo, o os nomes de Jorge dos Santos e Felipe Monteiro, construtores
do MO, sigla não identificada. Segundo Otoni Mesquita
(1999:207), isso poderia indicar o nome dos autores do projeto,
15. Cf. Derenji (op. cit.:55). mas não há elementos que confirmem a hipótese.
A ausência dos projetistas no local das Em 1897, a medida foi completada com
0s teatros do Nor te: a entrada triunfal das musas no Equador

obras estimularia mudanças nas plantas um acordo firmado pelos governos do Amazo-
a c i o n a l

e desenhos. E, como no caso do teatro nas e do Pará, para estabelecer uma linha direta
de Belém, tais mudanças não podem ser de comunicação entre o Mediterrâneo e o Nor-
totalmente avaliadas. A estrutura interna te do Brasil. Uma concessão nesse sentido foi
N
r t í s t i c o

vinculada ao teatro de caixa italiano, concedida à companhia de navegação italiana


com equivalência entre palco e plateia, Ligure Brasiliana, cujo titular, o comendador e
A

foi conservada. O Teatro Amazonas foi político genovês Gustavo Gavotti, tinha inte-
e

projetado para abrigar um teatro lírico, resses comerciais nas duas capitais nortistas.
i s t ó r i c o

nos moldes dos europeus daquele período. A chegada em massa de profissionais


Previsto, portanto, para comportar grandes especializados impulsiona consideravelmente
H

cenários e suas variações, suportar o peso de tanto as obras públicas como as privadas. Os
a t r i m ô n i o

grandes companhias e orquestras, possuía artistas se alternam entre Belém e Manaus


os mais modernos recursos de iluminação e e se ocupam de trabalhos muito diversos: a
Jussara Silveira Derenji
P

cenografia da época. construção de edifícios públicos, de prédios


d o

Já destinados a servir de paralelo entre da área comercial e até a decoração das


e v i s t a

as duas grandes capitais da fase áurea da residências da elite regional.


borracha brasileira, Belém e Manaus, seus A atração exercida pelo grupo de
R

teatros teriam suas histórias definitivamente acadêmicos liderados por De Angelis se


entrelaçadas a partir de 1896-1897. concentrava em artistas da mesma origem. É
Desde a década de 1880, o Pará dispunha uma relação entre acadêmicos que estabelece
do grupo de importantes artistas decoradores uma hierarquia rígida, mas em que há
trabalhando na área da capital. Os artistas espaço para mobilidade pelo mérito. Artistas
decoradores italianos estabelecidos em secundários e aprendizes podem, portanto,
298 Belém já não eram, no entanto, suficientes evoluir e se destacar. Essa forma de trabalho
para o volume de obras na região nos anos predominou por praticamente todo o período
1890. Para suprir essa deficiência, que de permanência do grupo de De Angelis,
atrasava consideravelmente as obras do sendo substituída na fase republicana.
Teatro Amazonas e outras no estado, o A presença da Itália nesse processo de
governador decide, em 1892, tomar medidas substituição da mão de obra acadêmica por
específicas. Em ato inédito promulga uma lei relações de trabalho assalariado pode ser ana-
que favorece a entrada na região de artistas lisada por meio das obras dos teatros, as mais
estrangeiros. O estado se comprometia importantes do período na região. O interesse
a fornecer passagens gratuitas a artistas da Itália no intercâmbio comercial com o
nacionais e estrangeiros que quisessem se fixar Brasil estava diretamente vinculado ao comér-
no Amazonas (Monteiro, 1965:80)17. cio da borracha. Dependendo da França e da
Inglaterra para seu desenvolvimento indus-
trial, um dos mais incipientes da Europa na-
17. Monteiro é um dos que analisam essa importante decisão,
responsável pela entrada de centenas de artistas.
quele período em que a Itália se unificava, os
italianos viam no contato direto com o Norte A vinda de artistas decoradores,

0s teatros do Nor te: a entrada triunfal das musas no Equador


brasileiro a oportunidade de obter matéria- mestres de fachada, estucadores, pintores e

a c i o n a l
-prima para suas indústrias, um vasto merca- marmoristas é contínua durante a construção
do para exportação de seus produtos, além de do Teatro Amazonas e a nova decoração
mais um ponto de desafogo para a corrente do Teatro da Paz. Na fase final das obras, a

N r t í s t i c o
imigratória de seu país. De fato, a atração de grande maioria deles vem da Calábria e da
estrangeiros para executar trabalhos artísticos Puglia, onde se concentrava a mão de obra

A
na Amazônia, interesse apenas secundário das especializada em construção civil na Itália

e
empresas italianas, acabou tornando-se mais naquele período. Ali as relações de trabalho já

i s t ó r i c o
eficaz para a entrada de seus conterrâneos no não se regiam por uma hierarquia acadêmica,
Norte do que a política oficial de imigração mas por contratos e salários.

H
brasileira que pretendia trazê-los para a ocu- A inauguração do Teatro Amazonas em

a t r i m ô n i o
pação agrícola. 1896 revela o auge do luxo e requinte nessas
Na mesma época, fim dos anos 1890, se construções no final do século 19. O artista

Jussara Silveira Derenji


P
estabelece, em Manaus e depois em Belém, Crispim do Amaral, que chegara ao Pará por

d o
o engenheiro italiano Filinto Santoro, que interferência dos acadêmicos da San Luca,

e v i s t a
domina o campo de construções do governo inverte os papéis ao trazê-los para o Amazo-
e as da alta burguesia. Reforçando a tese da nas. Juntos elaboram a decoração do teatro.

R
dificuldade em encontrar artistas, Santoro, na O contrato de Crispim tinha por objeto
sua única obra religiosa, a Igreja dos Milagres, “obras de decoração, pintura e ornamenta-
não coloca nenhuma imagem nos nichos18. ção e instalação de mobiliário”. Os desenhos
Manaus, com
apresentados, porém, incluem o tratamento destaque para o
Teatro Amazonas,
1896 (ca.)
18. A ausência de imagens tem outra explicação possível. Como os da fachada, do qual apenas alguns elementos Foto: George Huebner/
irmãos Januzzi, com quem trabalhara no Rio de Janeiro, Santoro Acervo Instituto Moreira
era presbiteriano e as imagens de santos iam de encontro aos pre- decorativos de grande porte não foram exe- Salles.
ceitos de seu credo. Os Januzzi introduziram essa Igreja no Brasil. 299
Cena de O Guarani em cutados, por temor ao excesso de peso. Não imagem alusiva da substituição do Império
pintura de Domenico
de Angelis para o consta do projeto de Amaral a cúpula. pela República. Aos Koch foi encomendada
Salão Nobre do Teatro
Amazonas
Foto: Márcio Vianna/
A responsabilidade pela execução a rosácea da sala de espetáculos e a cúpula
Acervo Iphan, 2018.
da fachada foi dada ao italiano Enrico de origem belga. Os trabalhos de decoração
Mazzolari. Crispim comandou, no entanto, interna e externa do teatro contaram com
as encomendas ao estrangeiro, como as a colaboração de vários artistas. A Crispim
feitas à firma francesa Koch, Frères & do Amaral, no entanto, é atribuída a da
Compagnie ou à Maison Carpezat, esta sala de espetáculos, bem como todos os
última encarregada dos dois panos de boca, demais elementos decorativos como relevos,
como em Belém. Nesse caso, optou-se por máscaras, escudos e os detalhes técnicos,
uma pintura mostrando o encontro das águas enquanto seria de responsabilidade dos
dos rios Solimões e Negro, ou o que seria italianos a decoração da Sala de Honra.
o nascimento de Vênus em águas tropicais A sala de espetáculos tem o teto com
e, para a segunda peça, recorreu-se a uma cenas clássicas e pintura de ilusão que faz o
espectador se sentir embaixo de uma torre, com panejamentos e franjas pintadas nos

0s teatros do Nor te: a entrada triunfal das musas no Equador


tradicionalmente vista como sendo a Torre falsos gobelins, e se completa com os espelhos

a c i o n a l
Eiffel. A referência à torre mais famosa da reproduzindo infinitamente o espaço da sala.
época, emblemática da Exposição de 1889 em A finalização das obras do Teatro
Paris, evocaria a grande aspiração da socieda- Amazonas e a rivalidade ou disputa que se

N
r t í s t i c o
de local: estar em plena capital francesa . 19
estabelece são descritos pela jornalista italiana
O Salão Nobre do teatro foi decorado Gemma Ferruggia em 1901. A encomenda

A
por De Angelis, que usa desenhos clássicos a De Angelis, segundo ela, se destinava a dar

e
alternados com temáticas regionais. Parte ao teatro amazonense interiores ao menos

i s t ó r i c o
delas constitui imposição do governador iguais, senão mais belos do que os do Teatro
Eduardo Ribeiro, feita quando visitou o da Paz. O desejo era superar! Para ajudá-lo

H
estúdio do artista em Roma; e parte é uma em Manaus, o artista italiano trouxe Silvio

a t r i m ô n i o
contrapartida devida ao transportador dos Centofanti20, o pintor Adalberto de Andreis e
artistas, o Comendador Gavotti, que pôde o mestre pintor Francesco Alleggiani.

Jussara Silveira Derenji


P
inserir, em duas telas, a imagem de seus Merece uma menção especial a colocação,

d o
navios, entre eles o famoso Re Umberto. posterior ao prédio inicial, de uma cúpula em

e v i s t a
A intenção de mostrar os avanços técnicos ardósia colorida. Ana Maria Daou (2014:186-
da época, entre eles a navegação a vapor,

R
7) analisa a instalação da cúpula com
justificaria a inclusão. pertinência e a insere na colcha de retalhos da
As telas que ornam o Salão de Honra composição do próprio edifício:
foram executadas em Roma e ali foram vistas
Já não se tratava de teatro lírico, conforme a
e avaliadas pelo presidente da Academia, pelo
tradição ‘luso-brasileira’, não era bem um teatro
governador do Amazonas e por uma comissão
clássico nos moldes ‘neoclássicos’, e não era apenas
de arquitetos e pintores italianos de destaque,
mais uma expressão do ‘ecletismo’ do final do
301
como Gaetano Koch, que deixaram o
século XIX.
certificado da qualidade das obras. O contrato
para as pinturas que ornam as paredes dessa A incorporação da cúpula, diz a autora,
sala merece uma apreciação mais detalhada. “resulta também num elemento alusivo à
Estipulava-se nele que as pinturas seriam nacionalidade, ao pertencimento à federação”.
em “falso gobelin”. Falsos também, os A cúpula, com suas vibrantes cores da
revestimentos em “mármores” das colunas em bandeira nacional, marca externamente a
ferro já existentes, das cimalhas, balaustradas fachada do teatro e é vista em toda a área
e pilastras e até dos bustos em gesso em que central. A ousadia do emprego do ferro em
os artistas imitaram mármore de Carrara. estrutura daquele porte foi uma vitória da
O jogo de ilusão ou trompe l´oeil continua, técnica que, anos antes, na inauguração do

19. Interpretações como essa são questionadas pelo conservador 20. Centofanti era escultor. Havia poucos escultores no grupo de
do teatro, Hélio Dantas, que considera pouco plausível a italianos, os mestres de fachada eram em geral encarregados da
homenagem ao hoje símbolo da capital da França. Dantas ornamentação das mesmas e usou-se muito a compra de conjuntos
também questiona a autoria dos panos de boca, que segundo ele ou elementos que chegavam prontos para serem apostos às
não estão assinados por Crispim do Amaral. fachadas, motivo da repetição de elementos na cidade e região.
Teatro da Paz em 1878, fora violentamente mais extensas. As portas principais foram
0s teatros do Nor te: a entrada triunfal das musas no Equador

atacada apesar da timidez da sua trabalhadas em madeira da terra, o vestíbulo


a c i o n a l

apresentação, em delgadas colunas na entrada recebeu dois belos pedestais com estátuas
do edifício. em mármore de Carrara, “artisticamente
trabalhados em Paris”. A decoração do teto
N

O teatro de Manaus foi entregue


r t í s t i c o

inconcluso, o que estendeu a atuação de foi feita com aço (sic) estampado. O vestíbulo
artistas e artífices até os primeiros anos foi iluminado por um lustre central de
A

do século 20. A conclusão seria então cristal com sessenta lâmpadas e mais dois
e

candelabros. No alto da escadaria de acesso ao


i s t ó r i c o

contemporânea das reformas feitas no Teatro


da Paz, na gestão do governador Augusto primeiro piso ficam duas cariátides em pedra
Montenegro, que dariam ao teatro de Belém e, atrás delas, outras duas, exatamente iguais,
H

que ladeiam um grande espelho de cristal


a t r i m ô n i o

a feição que ainda tem hoje.


A descrição das reformas foi feita por Saint-Gobain. Todo o mobiliário foi mudado,
Ernesto Mattoso (1907)21, biógrafo do assim como revestimentos – os da escada e
Jussara Silveira Derenji
P

governador, e cita a decoração interna dos camarotes em veludo “carmesim” –, pisos


d o

e externa. Externamente o prédio ficara e forros, exceto os da sala de espetáculos e do


e v i s t a

totalmente mudado. Além da redução da foyer. As escadarias ficaram com acabamento


R

altura do telhado, feita anteriormente, esmerado e foram completadas por placas de


em 1905 a fachada foi modificada com a metal amarelo. Recebeu especial atenção a
supressão da sétima e questionada coluna, tribuna do governador, chamada de tribuna
bustos alegóricos foram colocados na parte de honra. Há nela uma antessala cujo piso,
assim como o da tribuna, foi trabalhado com
fronteira do teatro e o alpendre, agora isolado
várias madeiras regionais. Na frente dela há
e sem a antiga cobertura, recebeu piso
“um custoso reposteiro fabricado em Paris,
302 ornamentado22. Lampadários ornamentais em
bordado e franjado a ouro e lateralmente
metal ficaram nas extremidades, exibindo a
duas laminas de cristal Saint-Gobain”. O
novidade da luz elétrica.
salão nobre teve a pintura das paredes refeita,
Pendentes em bronze foram colocados em
mantendo-se o forro pintado por De Angelis.
todos os vãos da fachada, que teve substituído
Foi ornado com espelhos de molduras
o letreiro em gesso por modernas letras de
trabalhadas e os vidros receberam tratamento
vidro “despolido, que produzem belo efeito,
decorativo com motivos alegóricos. Houve,
principalmente à noite quando eletricamente
ainda, a introdução de bustos em mármore
iluminadas”. Por fim, um medalhão central
de dois importantes compositores da época:
em lioz de Lisboa recebeu as armas do estado.
Carlos Gomes e Henrique Gurjão. Seu autor
No interior as modificações foram ainda
foi o artista genovês Achille Canessa.
As reformas “embelezadoras” do Teatro da
21. O texto descritivo foi ampliado no relatório do próprio
governador (Montenegro, 1908). Paz, no início do século 20, representavam,
22. Note-se que esta é exatamente a configuração do teatro Scala como também aconteceu em Manaus, a
de Milão, onde há uma varanda na fachada que correspondia, na
parte inferior, ao local de chegada das pessoas em carruagens. efetiva transferência do poder oligárquico
Foto: Márcio Vianna/Acervo Iphan, 2018.
do Salão Nobre do Teatro Amazonas
A glorificação das Belas-Artes na Amazônia,
alegoria de Domenico de Angelis para o teto
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
303

Jussara Silveira Derenji 0s teatros do Nor te: a entrada triunfal das musas no Equador
0s teatros do Nor te: a entrada triunfal das musas no Equador
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o

Jussara Silveira Derenji


P
d o

regional para a burguesia emergente graças foi considerado por Herkenhoff23 como,
e v i s t a

à prosperidade gerada pela produção da provavelmente, o primeiro monumento


R

borracha, que ainda duraria mais alguns anos. público moderno brasileiro.
Em Belém também se havia pensado na No início do século 20, ocorrem mudan-
construção de um prédio administrativo, junto ças importantes tanto na política regional,
ao teatro. Seu projeto foi encomendado ao co- com a queda de lideranças longamente
nhecido arquiteto do ecletismo italiano Gino estabelecidas, quanto na economia, com a
Coppedè, mas as obras nunca chegaram sequer brusca baixa dos preços da borracha. Encer-

304 a ser iniciadas. Em seu lugar surgiria um hotel ra-se, assim, a fase das contratações por con-
de luxo, o Grande Hotel, ícone da vida mun- vite direto a artistas, bem como sua vinda
dana de Belém por um longo período. acompanhados de aprendizes e associados.
Em Manaus o teatro acabaria de costas Criam-se os concursos públicos, muitas
para a avenida que mais tarde seria designada vezes internacionais. A figura do operário
com o nome do governador Eduardo Ribeiro. assalariado se consolida e o enfraquecimento
O Teatro Amazonas se abre para a praça das ligações comerciais com a Europa elimi-
São Sebastião, que recebeu um conjunto na quase totalmente a chegada de materiais
escultórico com desenho de De Angelis e industrializados para as construções.
execução de Enrico Quatrini, celebrando a Tem-se, no entanto, uma ampla escolha

abertura dos portos da Amazônia. O piso de profissionais altamente qualificados em

desse grande largo foi feito em mosaico decoração edilícia, presentes nas grandes
Busto de Carlos
cidades do Norte, e disponíveis pela carência
Gomes, esculpido por
Enrico Quattrini para o
português, formando ondas em branco e
Salão Nobre do Teatro
Amazonas
negro, numa alusão ao encontro das águas
Foto: Márcio Vianna/ 23. Conforme seu artigo “Design e selva, o caminho da
Acervo Iphan, 2018. dos rios Solimões e Negro. Seu desenho modernidade brasileira” (in: Johnson, 1995).
de obras governamentais. São escultores, Referências

0s teatros do Nor te: a entrada triunfal das musas no Equador


mestres de fachada, estucadores e artistas

a c i o n a l
decoradores, artífices que transformam a DAOU. Ana Maria. A cidade, o teatro e o “paiz das
seringueiras”. Rio de janeiro: Rio Books/Faperj, 2014, p.
cidade no seu novo palco e esculpem nas
186-187.
fachadas os arroubos decorativos do Alto

N
DERENJI, Jussara. Teatros da Amazônia. Belém:

r t í s t i c o
Ecletismo regional. Cariátides, cornucópias Prefeitura de Belém/Fumbel, 1996, p. 25.
e leões enchem as fachadas das residências e HERKENHOFF, Paulo. “Design e selva, o caminho da
modernidade brasileira”. In: JOHNSON, Pamela (ed.).

A
prédios públicos regionais, dando-lhes uma
The Journal of Decorative and Propaganda Arts – 21 Brazil

e
arquitetura de exuberante decoração, que

i s t ó r i c o
Theme Issue. Miami: Wolfson Foundation, 1995.
prima pelo acúmulo de ornatos. Permanece MATTOSO, Ernesto. O Dr. Augusto Montenegro: sua
essa configuração apenas em prédios vida e seu governo. Paris: Tony Dussieux, 1907.

H
MELLO JÚNIOR, Donato. O Teatro da Paz. Revista de
isolados, nos setores centrais, como símbolos

a t r i m ô n i o
Cultura do Pará, Belém, 1973.
da fase em que a região se despedia da
MESQUITA, Otoni Moreira de. Manaus: história e
euforia da exploração da borracha, o tempo arquitetura (1852-1910). Manaus: Ed. Valer, 1999, p.

Jussara Silveira Derenji


P
dos teatros. 210.

d o
Os edifícios dos teatros de Belém MONTEIRO, Mário Ypiranga. Teatro Amazonas.

e v i s t a
Manaus: Edições Governo do Estado do Amazonas,
e Manaus tiveram várias reformas e 1965, p. 80.
restaurações, algumas delas de resultados

R
MONTENEGRO, Augusto. Álbum do estado do Pará.
discutíveis. Foram ambos tombados como Oito anos do governo (1901 a 1909). Paris: Chaponet,
1908.
patrimônio nacional, chegando aos dias
MOURA, José Coelho da Gama e Abreu. “1847-1897”.
atuais em surpreendente vitalidade. Íntegros, In: MOURA, Ignácio Baptista de. De Belém a S. João do
conservados, estudados, visitados e atuantes, Araguaya: Valle do rio Tocantins. Rio de Janeiro; Paris:
ambos mantêm orquestras próprias, com H. Garnier Livreiro-Editor, 1910, p. 2-9.
SALLES, Vicente. A música e o tempo no Grão-Pará.
músicos de origem nacional e estrangeira. Os
Belém: Conselho Estadual de Cultura, 1980, p. 330.
festivais de ópera relembram, em temporadas 305
Coleção Cultura Paraense.
bem menores, os grandes espetáculos antes SEGAWA, Hugo. Arquitetura de teatros: o século XIX
neles apresentados. O papel dos teatros e a Belle Époque no Brasil. Projeto, n. 112, São Paulo,
1988.
como formadores de público, de educação e
TOLEDO, Benedito Lima de. “Opera Houses”. In:
aprimoramento de artistas locais é facilmente JOHNSON, Pamela (ed.). The Journal of Decorative
constatável pelo número de profissionais de and Propaganda Arts – 21 Brazil Theme Issue. Miami:
Wolfson Foundation, 1995, p. 51.
canto e músicos que os animam, na plateia ou
no palco.
Criados com a aspiração de alcançar
ideais de civilização e de progresso, inspirados
em padrões que não nos pertenciam,
mantiveram-se intactos enquanto edificações
de seu tempo e atuais, como formadores de
uma prática cultural identificada com o meio
em que se implantou.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

306
José Guilher me Cantor Magnani Patr imônio cultural urbano, “de per to e de dentro”:
uma aproximação etnográfica
José Guilher me Cantor Magnani

a c i o n a l
P atrimônio cultural urbano ,
“de perto e de dentro”: uma aproximação etnográfica

N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
Introdução foi das igrejas barrocas aos terreiros de
candomblé, das fazendas coloniais e fortalezas
É amplamente conhecido o processo de às vilas operárias, dos vetustos monumentos

P
e paisagens aos intangíveis modos de fazer

d o
mudanças nas siglas, definições e normas dos

e v i s t a
órgãos oficiais de preservação do patrimônio, – enfim, da perspectiva da “pedra e cal” ao
bem como sua abrangência, desde a pioneira plano do imaterial...

R
iniciativa de Mário de Andrade na década de
1930 até hoje – Sphan, depois Iphan; IBPC, A cidade como bem

INRC, SNPC, PAC, PNPI...; patrimônio c u lt u r a l

histórico e artístico, arqueológico, cultural,


Uma dessas mudanças (e controvérsias)
natural, ambiental, paisagístico, urbano,
pode ser exemplificada pela passagem do
intangível; inventário, registro, tombamento1.
conceito de “bens culturais na cidade”, ou 307
Inevitáveis (e bem-vindas) essas alterações,
ainda, de “usos culturais”, para o de “a cidade
dados os previsíveis descompassos entre a
como bem cultural”, conforme propõe
legislação que se pretende clara, precisa e
Ulpiano Bezerra de Meneses em artigo
até mensurável e os processos socioculturais.
publicado com esse título no livro Patrimônio:
Estes dinâmicos, sujeitos a controvérsias,
atualizando o debate (Mori et al., 2006:33-
negociações e experimentos que dependem,
76), objeto de comentários de especialistas
entre outros fatores, de conjunturas
convidados, devidamente respondidos pelo
históricas, movimentos de identidade
autor, o que comprova a relevância do tema e
nacional e regional, posições ideológicas –
a oportunidade da reflexão2.
além de situações de vulnerabilidade, com Festa de Zé Pelintra,
O ponto de partida de Bezerra de Mene- Tambor de Mina,
riscos de descaracterização e até destruição Belém (PA), 2015
ses é considerar o patrimônio cultural como Foto: Guy Veloso.
dos bens em pauta. Assim, o movimento
2. Antonio Augusto Arantes Neto, Edgard de Assis Carvalho, José
1. SNPC: Sistema Nacional do Patrimônio Cultural; PAC das Guilherme C. Magnani e Paulo Ormindo de Azevedo, todos com
Cidades Históricas; PNPI: Programa Nacional do Patrimônio algum tipo de experiência na área do patrimônio ou participação
Imaterial e assim por diante. em órgãos oficiais de preservação.
fato social, e seu argumento se constrói em mercantilização da cidade –, para ampliar a
Patr imônio cultural urbano, “de per to e de dentro”:
uma aproximação etnográfica

torno de três eixos: a cidade é um artefato – discussão sobre aqueles problemas, e conclui
a c i o n a l

feita, fabricada – porém não num nível abs- o texto com o que denomina “uma palavra de
trato, mas no interior de um campo de forças, ordem”: cotidiano e trabalho, para reafirmar
o que supõe relações, trocas, conflitos entre a ideia da cidade como bem cultural e não
N
r t í s t i c o

os atores sociais nos planos econômico, polí- como conjunto de bens culturais ou como
tico, cultural. Esse artefato, assim construído, cenário apenas para ser contemplado. Essa
A

apresenta sentido e inteligibilidade: é também perspectiva evidentemente convida para o


e

uma representação social. debate e contribuição de outros profissionais,


i s t ó r i c o

Com base nessa argumentação, Ulpiano além dos arquitetos e historiadores que são
analisa alguns equívocos no entendimento da tradicionalmente mais vinculados à questão
H

cidade, do ponto de vista da preservação do do patrimônio.


a t r i m ô n i o

José Guilher me Cantor Magnani

patrimônio: em primeiro lugar a perspectiva O texto de Ulpiano, aqui rapidamente


de atribuir usos culturais, para justificar referido, tem o mérito de sistematizar e
P

ou fundamentar medidas de proteção a ampliar aspectos que de uma forma ou


d o

determinados equipamentos. Muitos deles de outra tinham aparecido aqui e ali, em


e v i s t a

originalmente voltados para funções de diferentes textos e discussões. Em meu caso,


R

trabalho, como é o caso dos mercados, são por exemplo, já tinha me deparado com
transformados em museus, centros culturais, a questão do patrimônio cultural urbano:
como se essas destinações fossem mais nobres. por solicitação do então presidente do
Nessa mesma linha, que supõe determi- Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico,
nada visão de cultura como item à parte da Arqueológico, Artístico e Turístico do
vida cotidiana, aparece também a ideia de Estado de São Paulo – Condephaat, Antonio
contemplação, exemplificada, entre outros ca- Augusto Arantes, coordenei em 1987 uma
308
sos, pelo conceito de “cidades patrimônio da pesquisa na cidade de Santana de Parnaíba,
humanidade”, que muitas vezes as transforma região metropolitana da capital paulistana.
em espaços alheios a seus moradores. Ao
contrário, sugere Ulpiano, “[é o] município S a n ta n a de Parnaíba,
– e não o estado, a região, o país, o mundo – memória e cotidiano3
como o locus privilegiado da fruição concreta,
aprofundada e diversificada da cidade como Esse era o título do projeto que orientou
bem cultural” (in Mori et al, op. cit.:40). O a pesquisa naquela cidade surgida em 1580,
terceiro item que aponta, nessa sequência, é o no primeiro século de povoamento do
descompasso entre as medidas de proteção e território. Destacou-se como vila colonial por
as normas de zoneamento urbano, uso e ocu- volta de 1620, por tornar-se um dos pontos
pação do solo e dos planos diretores. mais importantes de partida das bandeiras,
Na continuação, propõe uma agenda em virtude de sua localização estratégica às
de temas – a questão do multiculturalismo,
o tombamento de bairros e o problema da 3. Cf. Magnani, 2007.
margens do rio Tietê e da antiga rota indígena religiosidade e consenso4. Nada mais

Patr imônio cultural urbano, “de per to e de dentro”:


uma aproximação etnográfica
de penetração para os sertões de Mato distante, contudo, do que aquilo que se

a c i o n a l
Grosso e Goiás. No ano em que tal estudo se viu em Santana de Parnaíba, a partir do

desenvolveu, era ainda uma cidade pequena olhar etnográfico de perto e de dentro da

N
antropologia urbana.
– possuía 15.995 habitantes, com casas e

r t í s t i c o
O estudo seguiu três momentos: uma
edificações tombadas, entre as quais a famosa
fase exploratória, com base em contatos
casa do Anhanguera, agora museu.

A
e entrevistas informais, principalmente

e
Sob a ótica de indicadores convencionais, com idosos, sempre dispostos a falar sobre

i s t ó r i c o
Santana do Parnaíba estava sujeita às normas suas famílias e os costumes de dantes. Em
de diferentes órgãos de preservação, estadual, seguida, os dados colhidos nessa fase foram

H
a t r i m ô n i o
organizados numa grade classificatória que

José Guilher me Cantor Magnani


federal e municipal. O objetivo da pesquisa,
contudo, tinha como questão central as dividia os moradores entre os de dentro e os
conflitantes concepções de patrimônio de seus de fora, e estes, em estrangeiros, artistas

P
e funcionários.

d o
habitantes, que não poucas vezes entravam
Cada um desses grupos tinha um

e v i s t a
em confronto com os técnicos encarregados
discurso sobre si e sobre os demais e diferia
da fiscalização. Daí a solicitação da pesquisa,

R
com relação ao entendimento do que era o
de enfoque etnográfico, que terminou patrimônio dessa cidade histórica. Todos,
dirigindo o estudo para o cotidiano, as festas, porém, mencionavam um ponto focal para
a diversidade dos moradores e suas opiniões. onde convergiam as disputas: as festas.
O que a pesquisa revelou, entre outros Estas, então, foram escolhidas, na terceira
aspectos, é que, não obstante a aura etapa, como objeto de observação de campo
de comunidade – de cidadezinha onde mais intensiva, com especial atenção para a
309
comemoração de Corpus Christi e o trajeto
supostamente todos se conheciam e cuja vida
da procissão pelas ruas decoradas em forma
parecia transcorrer na calma das três ruas
de tapete, mas tomando seu ciclo completo,
tombadas que delimitam o centro histórico
que incluía a festa da padroeira da cidade,
–, havia conflitos e não só com os órgãos de
Sant’Ana; a de São Sebastião e São Benedito;
preservação, mas também entre os moradores, a romaria de Santo Antônio no distrito rural
entre membros das famílias tradicionais, do Suru; o Carnaval, com o tradicional Bloco
funcionários públicos recentemente dos fantasmas etc.
transferidos, migrantes, artesãos. Ou seja, Não se tratava de uma pacata cidade sete-
o quadro era muito diferente daquela visão centista. Encravada na região metropolitana
difundida a partir do continuum folk/urbano
4. Segundo a proposta do continuum folk/urbano (tribe - village
de Robert Redfield (1949), segundo a qual - town - city) desse autor, da conhecida Escola de Chicago, essas
características (isolamento, homogeneidade, forte religiosidade
comunidades tradicionais eram caracterizadas e consenso), próprias das comunidades mais tradicionais, iam-se
diluindo à medida que se caminhava para a outra ponta do
pelo isolamento, homogeneidade, forte continuum.
de São Paulo, está próxima a grandes rodovias que encerram a sua história biológica nos seus
Patr imônio cultural urbano, “de per to e de dentro”:
uma aproximação etnográfica

e cercada por uma imensa periferia. Chamou limites, modelando-a ao mesmo tempo com todas
as suas intenções de seres pensantes, a cidade
a c i o n a l

a atenção, entre outros achados da pesquisa,


provém simultaneamente da procriação biológica,
o caso de alguns estrangeiros, supostamente
da evolução orgânica e da criação estética. É ao
mais sensíveis ao tema do patrimônio, que
N

mesmo tempo objecto de natureza e sujeito de


r t í s t i c o

afirmavam ter “restaurado” suas casas de fim cultura; indivíduo e grupo; vivida e sonhada; a
de semana no centro histórico, à custa da coisa humana por excelência ([1955]1981:117).
A

demolição de moradias no interior do mu-


e

nicípio para aproveitamento de materiais de Essa passagem faz parte do livro Tristes
i s t ó r i c o

construção genuínos. trópicos, em que o antropólogo relata sua


Dessa forma, variavam as concepções viagem para o sertão em busca das populações
H

de patrimônio, sendo necessário encarar os indígenas que tinham motivado sua vinda
a t r i m ô n i o

José Guilher me Cantor Magnani

atores em sua diversidade de interesses. Por para o Brasil, na década de 1930, como
outro lado, a recorrência do tema das festas, professor na então Faculdade de Filosofia,
P

lócus e momento de encontro não só daquelas Ciências e Letras da USP, que acabava de
d o

diferentes categorias de moradores já citadas, ser fundada. Na quarta parte da obra, ele
e v i s t a

mas também de visitantes, evidenciou sua registra impressões sobre as cidades que
foi encontrando no decorrer da viagem,
R

centralidade e importância para a cidade. Era


uma boa abordagem para colocar a questão principalmente as recém-formadas no norte
do patrimônio e sua valorização para além da do Paraná em virtude da expansão do ciclo
dinâmica do cotidiano dos moradores. do café. Chamara-lhe a atenção a similaridade
da estrutura urbana desses assentamentos
A cidade dos recentes com as de registros arqueológicos de
antropólogos algumas cidades com 5 mil anos, no outro
310 lado do mundo, na Índia:
A partir desse caso, é possível pensar Apraz-nos imaginar que no termo de 4 a
na contribuição específica da antropologia, 5 mil anos de história um ciclo foi concluído;
ponto de vista aqui escolhido para participar que a civilização urbana, industrial, burguesa,
do debate sobre patrimônio cultural urbano. inaugurada pelas cidades dos Indus, não diferia
Nada mais adequado, portanto, do que come- muito, na sua inspiração mais profunda, dessa que
çar com uma instigante, mas pouco conhe- estava destinada, após uma longa involução na
crisálida europeia, a atingir a plenitude do outro
cida, citação de Lévi-Strauss que qualifica a
lado do Atlântico. Quando ainda era jovem, o
cidade como a “coisa humana por excelência”:
mundo mais Antigo esboçava já o rosto do Novo
Não é, portanto, apenas de maneira metafórica (idem:124).
que é possível comparar – como se fez muitas
vezes – a cidade a uma sinfonia ou a um poema; Transpondo, contudo, essa apreciação
são objectos de natureza idêntica. A cidade, talvez para as cidades deste século, principalmente
mais preciosa ainda, situa-se na confluência da as de escala metropolitana, a pergunta é:
natureza e do artifício. Congregação de animais será possível manter aquelas metáforas
e a qualificação de “a coisa humana por em nossas cabeças até formarem um conceito Projeto Circular,
para melhorar
excelência”? Jürgen Habermas, num artigo difuso e multiestratificado. Este pertence ao a apropriação
e a utilização

de 1981, em que discute a arquitetura no tipo identificado por Wittgenstein como parte das estruturas e
edificações do centro
dos hábitos e da auto compreensão da prática histórico de Belém
contexto da polêmica modernismo versus (PA), em sua 22a
cotidiana: nosso conceito de cidade liga-se a uma edição, 2018
pós-modernismo, questiona “se o próprio Foto: Cláudio Ferreira.

forma de vida. Esta, contudo, se transformou a tal


conceito de cidade não está ultrapassado”:
ponto que o conceito dela derivado já não logra
As marcas da cidade ocidental, como Max alcançá-la (in Arantes et al.,1992:144).
Weber a descreveu, da cidade burguesa na alta
Idade Média europeia, da nobreza urbana na
O autor prossegue: “Enquanto um
Itália do Norte renascentista, da capital dos mundo abarcável, a cidade pôde ser
principados, reformada pelos arquitetos barrocos arquitetonicamente formada e representada
da casa real, estas marcas históricas confluíram para os sentidos”, o que quer dizer que as
Patr imônio cultural urbano, “de per to e de dentro”:
uma aproximação etnográfica
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o

José Guilher me Cantor Magnani


P
d o
e v i s t a
R

funções sociais da vida urbana – nos seus tes e com todas as suas mazelas? Parece difícil
aspectos econômicos, políticos, culturais, seguir Lévi-Strauss... No entanto, ele próprio
de práticas religiosas, da vida cotidiana no deixava aberta uma alternativa:
âmbito do morar, da recreação, da festa –
Mas a vida urbana apresenta um estranho
podiam ser vivenciadas e percebidas num
contraste. Embora represente a forma mais
marco temporal e espacial claramente complexa e requintada da civilização, em virtude
312
configurado. Contudo, já “no século XIX da concentração humana excepcional que realiza
ao mais tardar, a cidade torna-se ponto de num espaço reduzido e da duração do seu ciclo,
intersecção de relações funcionais de outra precipita no seu cadinho atitudes inconscientes,
espécie”. A vida urbana é cada vez mais cada uma delas infinitesimal mas que, devido
mediatizada por “conexões sistêmicas não ao número de indivíduos que as manifestam do
configuráveis” e “as aglomerações urbanas mesmo modo e em grau idêntico, se tornam
capazes de engendrar grandes efeitos (Lévi-Strauss,
emanciparam-se do velho conceito de cidade
ao qual, no entanto, se apega nosso coração” op. cit.:116).

(op. cit.:145)5. “Eis, em concisa enunciação, uma espécie


Residências do 2º Se o horizonte que o autor tem em mente de fórmula de cidade”, ressaltei, em artigo
Distrito de Rio Branco
durante enchente do rio são as cidades do século 19, o que dizer dos especial da Revista de Antropologia em que
Acre, Rio Branco (AC)
Acervo Digital:
mega-assentamentos urbanos contemporâ-
Departamento de Patrimônio
Histórico e Cultural/
apresento essa discussão com mais detalhes
Fundação Elias Mansour. neos, com seus 5, 10, 20 milhões de habitan-
(Magnani, 2012:283).
O termo infinitesimal, nesse contexto,
5. Essa referência a Habermas está mais desenvolvida em Magna-
ni (2012:314). abre uma boa pista para a etnografia tal
como a entendo no estudo desse complexo fatiza o cotidiano e o trabalho na valorização

Patr imônio cultural urbano, “de per to e de dentro”:


uma aproximação etnográfica
objeto que é a cidade. Trata-se da perspectiva do patrimônio ambiental urbano para além

a c i o n a l
que caracterizo como o “olhar de perto da mera contemplação. Contudo, diante da
e de dentro”. Diante da escala da cidade afirmação de que “a cidade, hoje, só pode
contemporânea – com seu tamanho, ser abordada como um todo fragmentado.

N
r t í s t i c o
densidade e heterogeneidade, como já O território urbano se decompõe em pontos
havia adiantado Wirth (1987:98) e a partir múltiplos de apropriação desigual e é nesse

A
da advertência de Habermas – pareceria quadro que o próprio planejamento produziu

e
não haver alternativa senão resignar- a segregação” (in Mori et al., 2006:48). Por

i s t ó r i c o
se ao decantado caos, impessoalidade e isso, fiz uma ressalva a seu artigo, no meu
fragmentação tão apregoados pela mídia. comentário a seguir:

H
Contudo, ao seguir a dinâmica dos

a t r i m ô n i o

José Guilher me Cantor Magnani


Penso que afirmações nessa linha não levam
atores sociais em suas práticas cotidianas,
suficientemente em conta certas formas coletivas de
suas escolhas no deslocamento periódico apropriação, inteligibilidade e uso do espaço e equi-

P
para o trabalho, para o lazer, para as formas pamentos urbanos que transcendem a contiguidade

d o
de devoção, compras, encontros, é possível espacial e simultaneidade temporal. É o caso, por

e v i s t a
identificar regularidades, compartilhamentos. exemplo, do que denominei circuito. Esta categoria
surgiu da necessidade de nomear uma modalidade

R
Mas, para flagrar tais práticas e, nesse caráter
infinitesimal, identificar sua relevância, de relação com a cidade que não se encaixava em
formas de co-presença entre ator e espaço. Se nos
consistência e inter-relações, é preciso contar
limites do pedaço e da mancha é possível visualizar
com as ferramentas adequadas: o olhar de
determinado recorte na paisagem juntamente com
perto e de dentro tem como instrumentos
seus usuários, o circuito apresenta outra dinâmica de
de observação algumas categorias que foram
interação entre ambos (ibid.:63).
elaboradas ao longo de pesquisas no Núcleo
313
de Antropologia Urbana: pedaço, trajetos, Aliás, o próprio Ulpiano em sua réplica
manchas, pórtico, circuitos. Tais categorias a meus comentários ressaltou a importância
permitem construir unidades de análise a dessa categoria: “(...) muitos caminhos
partir dos arranjos dos atores sociais nas incipientes já deveriam estar sendo testados
diferentes formas de uso e apropriação do nas práticas de preservação. Um deles é o
espaço urbano. Ainda que já sobejamente circuito, de que fala José Guilherme e que me
discutidas em publicações anteriores, serão a parece de grande fertilidade” (ibid.:71).
seguir apresentadas de forma sucinta. Para avaliar o alcance de sua aplicação,
contudo, é preciso situá-lo no conjunto
Etnografia urbana da “família” de categorias de que faz parte,
cuja particularidade se define a partir da
Retomo aqui a observação de Ulpiano, já experiência vivida pelos atores sociais
citada, de que o lócus privilegiado da fruição envolvidos. Em vez de ficarem presas a
não é o estado, a região, o país, o mundo, uma descrição particularista e circunscrita a
bem como sua “palavra de ordem”, que en- cada caso, elas apontam para regularidades
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

314
José Guilher me Cantor Magnani Patr imônio cultural urbano, “de per to e de dentro”:
uma aproximação etnográfica
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

Foto: Guy Veloso.


Tambor de Mina,
315

Belém (PA), 2017


José Guilher me Cantor Magnani Patr imônio cultural urbano, “de per to e de dentro”:
uma aproximação etnográfica
e arranjos compartilhados. Quem, por para a prática de determinadas atividades.
Patr imônio cultural urbano, “de per to e de dentro”:
uma aproximação etnográfica

exemplo, já frequentou ou estudou terreiros Já uma mancha caracterizada por atividades


a c i o n a l

de cultos afro-brasileiros, coletivos de vinculadas à saúde geralmente se constitui


jovens, escolas de samba, sedes de torcidas em torno de um hospital, instituição que
organizadas de futebol, bares LGBT etc. funciona como âncora, agrupando serviços
N
r t í s t i c o

sabe que nesses e em outros casos análogos como farmácias, clínicas particulares,
há recortes ou unidades cujas fronteiras consultórios, serviços radiológicos e
A

e graus de pertencimento são vivamente laboratórios. E assim sucessivamente.


e

experimentados pelos integrantes do grupo. As marcas dessas duas formas de


i s t ó r i c o

Assim, tomando como exemplo a apropriação e uso do espaço – pedaço e


categoria de “pedaço”, é evidente, por parte mancha – são diferentes na paisagem mais
H

de seus integrantes, uma percepção imediata, ampla da cidade. No primeiro caso, em que
a t r i m ô n i o

José Guilher me Cantor Magnani

sem nuanças ou ambiguidades, a respeito de o determinante é construído pelas relações


quem pertence ou não a ele: trata-se de uma estabelecidas entre seus membros e pelo
P

experiência concreta e compartilhada. O manejo de símbolos e códigos comuns, o


d o

etnógrafo, por sua vez, também percebe tal espaço como ponto de referência é restrito
e v i s t a

experiência e a descreve, em termos formais, a seus habitués. Troca-se de ponto com


R

pois essa modalidade particular de encontro, facilidade, mas leva-se consigo o pedaço.
troca e sociabilidade supõe a presença de A mancha, ao contrário, sempre
elementos mínimos estruturantes que a aglutinada em torno de um ou mais
tornam reconhecível em outros contextos. estabelecimentos, apresenta uma implantação
O mesmo ocorre com as demais mais estável, tanto na paisagem quanto
categorias: cada uma, à sua maneira, permite no imaginário. As atividades que oferece
identificar um arranjo particular por parte e as práticas que propicia são resultado
316
de seus integrantes e revela um tipo especial da multiplicidade de relações entre
de consistência: se no pedaço não há lugar equipamentos, edificações e vias de acesso,
para estranhos, a “mancha”, com uma o que garante uma maior continuidade e
implantação mais estável na paisagem urbana, a transforma em um ponto de aglutinação
tem maior amplitude e acolhe mesmo quem físico, visível e público para uma rede
não se conhece pessoalmente, já que o que mais ampla de usuários. Diferentemente
a caracteriza é o compartilhamento de um do que ocorre com o pedaço, para onde
certo gosto musical, consumo, estilo de vida, um indivíduo se dirige na procura de seus
orientação sexual, religiosa. iguais, a mancha cede lugar a cruzamentos
Em uma mancha de lazer, por exemplo, os imprevistos, a encontros até certo ponto
equipamentos podem ser bares, restaurantes, inesperados, enfim, a combinações variadas.
parques, praças, cinemas, teatros, a cafeteria Em uma determinada mancha sabe-se que
da esquina etc., os quais, seja por competição tipo de serviços ou pessoas serão encontradas,
ou complementariedade, convergem para o mas não qual, e esta é uma das motivações
mesmo efeito: constituir pontos de referência para seus frequentadores.
Patr imônio cultural urbano, “de per to e de dentro”:
uma aproximação etnográfica
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
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a t r i m ô n i o

José Guilher me Cantor Magnani


P
d o
e v i s t a
R
Mas a cidade não é um conglomerado A extensão e, principalmente, a Mercado Ver-o-Peso,
Belém (PA), 2004
Foto: Chico da Costa.
de pontos excludentes, sejam pedaços ou diversidade do espaço urbano além do bairro
317
manchas: as pessoas circulam, escolhem apresentam a necessidade de deslocamento
entre várias alternativas, de acordo com uma por regiões distantes e não contíguas. Essa
determinada lógica. E quando se dirigem é uma primeira aplicação da categoria: na
a seu pedaço habitual, no interior de uma paisagem mais ampla e diversificada da
determinada mancha, seguem caminhos cidade, os trajetos vinculam equipamentos,
que não são aleatórios. Está-se falando de pontos, manchas que se complementam ou
“trajetos”, um novo termo que surgiu da são alternativas. E não de foram aleatória,
necessidade de categorizar uma forma de uso individual, como uma simples estratégia de
do espaço que se diferencia, em primeiro deslocamento. Os trajetos são reconhecíveis e
lugar, daquela descrita pela categoria pedaço. identificáveis em suas regularidades.
Enquanto esta última remete a um ponto de Se o pedaço é aquele espaço intermédio
referência estável, trajeto se aplica aos fluxos entre a casa (o privado) e o público ou, para
recorrentes no espaço mais amplo da cidade utilizar um sistema de oposições já consagra-
e no interior das manchas urbanas. do, entre a casa e a rua, não é contudo um
espaço fechado e impermeável a uma e outra; mas é possível, por exemplo, dependendo dos
Patr imônio cultural urbano, “de per to e de dentro”:
uma aproximação etnográfica

pelo contrário, é justamente a noção de traje- objetivos da pesquisa, delimitar e considerar


a c i o n a l

to que abre o pedaço para fora, para o âmbito apenas o circuito dos ilês africanizados ou
do público. E finalmente, os trajetos levam de estendê-los aos demais, incluindo ou não os
um ponto a outro através dos “pórticos”. terreiros de ascendência angolana e inclusive os
N
r t í s t i c o

Trata-se de espaços, marcos ou vazios na da umbanda.


paisagem urbana que configuram passagens. Assim, o conhecimento que resulta dessa
A

Lugares que já não pertencem à mancha da- particular forma de aplicação do método et-
e

qui, mas que também não se situam na de lá. nográfico tem como suposto a ideia de que
i s t ó r i c o

Escapam às regras e sistemas de classificação o objeto de observação e estudo possui duas


de uma e outra e, como tais, apresentam a faces: uma relacionada com o agente, a que faz
H

“maldição dos vazios fronteiriços”, expres- sentido imediato para ele, pois é sua prática; a
a t r i m ô n i o

José Guilher me Cantor Magnani

são que Santos & Vogel (1985:103) tomam outra é percebida pelo pesquisador, que reco-
emprestada do título de um dos capítulos do nhece esse sentido e o descreve em seus termos.
P

livro The death and life of great american cities, Em trabalhos anteriores (Magnani,
d o

de Jane Jacobs (1992). Terra de ninguém, 2012 e 2014), fiz uma aproximação com
e v i s t a

lugar de perigo, preferido por personagens a formulação de Marc Augé (1994:51),


liminares e para realizar rituais mágicos, luga- que, evocando os “lugares de memória”
R

res que devem ser atravessados rapidamente, de Pierre Nora (1984), fala de “um lugar
sem olhar para os lados... Contudo, plenos de antropológico” que, segundo seus termos,
possibilidades e imprevistos. seria “simultaneamente princípio de sentido
Por último, a noção de “circuito”. Trata-se para aqueles que o habitam e princípio de
de uma categoria que descreve o exercício de inteligibilidade para quem o observa”. Do
uma prática ou a oferta de determinado serviço ponto de vista do agente, trata-se de um
318 ”arranjo”, resultado de escolhas frente a
em estabelecimentos, equipamentos e espaços
que não mantêm entre si uma relação de conti- um repertório de alternativas; o observador
guidade. Por exemplo, o circuito gay, o circuito o reconhece, segue-o e, no processo da
dos cinéfilos, o do povo de santo, dos coletivos investigação, o refere a outros recortes,
de ativistas, dos skaters, dos evangélicos e tan- quando, então, constitui uma “unidade de
tos outros, cujos pontos de encontro podem análise” num outro nível.
estar disseminados pela paisagem mais ampla Concluindo, uma unidade consistente
da cidade (inclusive fora dela), mas que consti- em termos de etnografia é aquela que,
tuem uma unidade significativa e reconhecida experimentada e reconhecida pelos atores
pelos usuários habituais. sociais, é identificada pelo investigador e
Por outro lado, o circuito comporta vários elaborada como categoria de maior alcance.
níveis de alcance e a delimitação de seu con- Para os primeiros, é o contexto da experiência
torno depende das perguntas elaboradas pelo e, para o segundo, um recurso descritivo e
pesquisador. O povo de santo na cidade tem chave de inteligibilidade. Uma vez que não
seu circuito e modo de vida correspondente, se pode contar com uma unidade dada a
priori, postula-se uma que será construída a A noção de circuito, principalmente, se de

Patr imônio cultural urbano, “de per to e de dentro”:


uma aproximação etnográfica
partir da experiência dos atores, com ajuda um lado aponta para a ideia de uma totalida-

a c i o n a l
de hipóteses de trabalho e escolhas teóricas – de, não a reifica. Tome-se como exemplo um
condição para que se possa dizer algo mais do tipo de prática cultural que supõe, para seu

N
que generalidades com respeito a tal ou qual exercício, determinados equipamentos e esta-

r t í s t i c o
objeto de estudo. belece vínculos duradouros entre seus aficio-
Desse modo, aqueles planos aos quais se nados, fundamentando uma comunidade de

A
fez alusão anteriormente – a cidade no seu interesses, a dos cinéfilos, que usei no comen-

e
conjunto e cada prática cultural específica, tário ao artigo já citado de Ulpiano (2006),

i s t ó r i c o
associada a este ou aquele grupo de atores – e que será retomado mais diante: mostra que
devem ser considerados como dois polos de está inserida num circuito em cujo interior

H
a t r i m ô n i o

José Guilher me Cantor Magnani


uma relação que circunscrevem, determinam adquire pleno significado, pois não se trata de
e possibilitam a dinâmica estudada. Para consumidores individualizados; a própria na-
captar os vários planos dessa dinâmica é tureza da atividade que os agrupa e caracteriza

P
necessário, por conseguinte, ajustar o foco: supõe uma rede construída com base na troca

d o
nem tão de perto que se confunda com a de informações, comentários, controvérsias,

e v i s t a
perspectiva particularista de cada usuário, busca e exibição de conhecimentos.

R
nem tão de longe a ponto de distinguir um A base territorial de sua prática pode
recorte amplo, mas genérico e sem maior formar uma mancha contínua, mas também
poder explicativo. instaura o circuito: está espalhada pela cidade e
Essas categorias, cada qual à sua maneira não é constituída apenas pelos chamados cine-
– desde os recortes mais localizados e de fron- mas de arte, mas por livrarias, debates e exibi-
teiras definidas como pedaço e mancha até a ções especiais em auditórios situados em insti-
de circuito, que independe de contiguidade tuições públicas e fundações privadas, eventos 319
espacial –, recuperam a ideia de unidade, como mostras, festivais, lançamentos etc.
apontam para uma ideia de totalidade, evi- A seguir são relatados três casos relacio-
tando-se assim o perigo da fragmentação: nados com patrimônio ambiental urbano a
partir da perspectiva da antropologia urbana
Não se trata, evidentemente, daquela
e de seu método etnográfico: a movimentação
totalidade que evoca um todo orgânico,
funcional, sem conflitos; tampouco se trata de em torno da preservação do Cine Belas Artes,
uma totalidade que coincide, no caso da cidade, na capital paulista, o tombamento do Parque
com os seus limites políticos-administrativos do Povo, também em São Paulo, e o registro
(...). No entanto, renunciar a esse tipo de como patrimônio cultural da Rua Sergipe, em
totalidade não significa embarcar no extremo Londrina, norte do Paraná6.
oposto: um mergulho na fragmentação. Se não
se pode delimitar uma única ordem, isso não
significa que não há nenhuma; há ordenamentos 6. Os casos que seguem têm como referência, com alterações, o
particularizados, setorizados; há ordenamentos, artigo “Anthropology between Heritage and Museums”, publica-
do apenas em inglês e on line, na revista Vibrant, da Associação
regularidades (Magnani, 2002:16). Brasileira de Antropologia (Magnani, 2013).
Três a medida. Voltou-se à carga com razões
Patr imônio cultural urbano, “de per to e de dentro”:
uma aproximação etnográfica
casos
de ordem cultural, o Ministério Público
a c i o n a l

Um cinema de arte interveio com ação que levou a uma liminar


Em março de 2010 o Banco HSBC concedida pela 13ª Vara da Fazenda Pública;
em seguida o Condephaat, órgão estadual
N

suspendeu seu patrocínio ao Cine Belas Artes,


r t í s t i c o

situado na esquina da Rua da Consolação de proteção ao patrimônio, aceitou novo


com a Avenida Paulista, na cidade de São pedido de tombamento e até a Câmara
A

Paulo. Considerado cult, suas salas de Municipal entrou na jogada, abrindo uma
e

projeção – com nomes tão sugestivos como CPI e convocando o diretor do Conpresp
i s t ó r i c o

Villa-Lobos, Candido Portinari, Oscar para depor.


Niemeyer, Aleijadinho e Carmen Miranda A situação do Cine Belas Artes, em
H

especial, constitui uma boa oportunidade


a t r i m ô n i o

– exibiam filmes fora do mainstream do


José Guilher me Cantor Magnani

circuito comercial. para essa reflexão, na medida em que


A decisão movimentou setores da cena está situado no interior de uma mancha
P

cultural paulistana e o Movimento pelo descrita e analisada pelo Núcleo de


d o

Cine Belas Artes – MBA, já em julho desse Antropologia Urbana – NAU/USP em


e v i s t a

ano, lançou campanha de arrecadação de 1991. Nessa época, o cinema formava um


dos polos estruturadores, juntamente com
R

recursos para garantir seu funcionamento.


E como precaução, em janeiro do ano o Bar Riviera, da dinâmica em torno do
seguinte, entrou com uma solicitação de cruzamento da Rua da Consolação com a
tombamento junto ao Conselho Municipal Avenida Paulista.
de Preservação do Patrimônio Histórico, Vale a pena também caracterizar esse bar,
Cultural e Ambiental da Cidade de São dado o papel que ocupava no interior da
Paulo – Conpresp. O proprietário respondeu mancha, fazendo uma espécie de dobradinha
320 com o Belas Artes: de longa trajetória –
com pedido de aumento de aluguel ou então
retomada do imóvel e, em 17 de março recebeu esse nome em 1949 –, era procurado
de 2011, o cinema fechou as portas, o que por famílias, juízes, médicos e servia lanches,
levou a uma intensa movimentação, com chá, sorvetes. No final dos anos 1950, passou
manifestações de rua, artigos em jornal a ser frequentado por estudantes da Faculdade
e blogs, denúncias sobre o descaso com a de Direito do Largo de São Francisco, do
cultura e as artes, debates sobre sua condição Mackenzie. Na década de 1960, serviu
de patrimônio histórico da cidade – afinal, como ponto de encontro para militantes de
com o nome de Cine Ritz Consolação, esse diversas tendências políticas (tendo sofrido
cinema existia desde 1943. invasões policiais) e para um público ligado a
O agito em sua defesa continuou, pois teatro, cinema, música. Foi cenário do filme
o Conpresp recusou o pedido – o que Besame mucho, sobre os anos da repressão,
tombar? Segundo suas normas, o valor da Blue riviera, de Sá e Guarabira, e fonte de
arquitetônico, único item que merecia ser inspiração para o cartunista Angeli, com seus
contemplado nesse prédio, não justificava personagens Rê Bordosa, Meia Oito e Juvenal
– este, um garçom que trabalhou mais de Caneca, com suas salas de projeção. Essa
trinta anos no bar (Torres, 2008:75). porção denominada Baixo Augusta, que desce
O Baguette Grelhados e Massas, o bar para o centro da cidade – por oposição ao
Chamego, a boite gay Nostromondo, a Livra- tramo “mais nobre” da rua, em direção aos
ria Belas Artes, o bar Metrópolis, a Livraria Jardins –, apresenta uma nova vitalidade.
Kairós e as diversas bancas de livros usados das Anteriormente conhecido como espaço de
321
calçadas adjacentes, entre outros equipamen- lazer erótico por suas saunas mistas, boates,
tos, completavam essa mancha de encontros, inferninhos, trottoir de garotas de programa
cultura e lazer, atravessada pelos diferentes e travestis postadas nas esquinas, ampliou
trajetos dos frequentadores em suas escolhas e o leque de formas de uso e desfrute, com a
preferências. Esse quadro, contudo, mudou: abertura de bares de frequência universitária,
o Bar Riviera fechou em 2006, assim como a cafés, lojas de discos, livros e CDs, casas de
maior parte dos estabelecimentos, que davam indie rock, com circulação de novos atores,
o tom particular ao espaço e atraíam o fluxo de como os grupos de straight edgers e o público
pessoas. Reabriu em 2013, sob o comando do sofisticado LGBT, além dos frequentadores
chef Alex Atala, mais sofisticado, porém sem o das diversas salas de cinema.
charme de sua trajetória anterior. A mancha anterior, ancorada na Em Parintins (AM), a
rivalidade centenária
Os frequentadores dessa mancha se esquina da Avenida Paulista com a Rua da entre os bois-
bumbás Garantido e
deslocaram em direção à Rua Augusta, em Consolação, outrora efervescente em termos Caprichoso é visível
e praticada também
torno do então Espaço Unibanco (atualmente de consumo e atividades culturais, atualmente nas ruas da cidade,
2001
Espaço Itaú de Cinema) e do Shopping Frei é local de passagem, com pontos e pistas Foto: Andreas Valentim.
exclusivas de ônibus, intenso fluxo carros e, renciados, já não causava muita estranheza,
Patr imônio cultural urbano, “de per to e de dentro”:
uma aproximação etnográfica

bem ao lado do cinema – agora Cine Caixa apesar de ainda pouco comum. A inclusão de
a c i o n a l

Belas Artes – há uma entrada para a Estação itens como esses na lista oficial do patrimônio
Paulista da linha amarela do metrô. Se antes cultural já mostra a presença de outros valores
era local que se cruzava de forma pausada, em que ampliam os critérios tradicionais impe-
N
r t í s t i c o

busca de lazer e encontro, agora é marcado rantes nos órgãos de preservação.


pela rapidez dos deslocamentos. O tombamento do Parque do Povo,
A

Um bem isolado – tal ou qual sala, porém, de certa maneira se diferenciava dos
e

acervo, equipamento – adquire pleno acima citados: tratava-se de uma área de


i s t ó r i c o

sentido quando incorporado a esse circuito 133.547 m², localizada em região nobre e das
ou no interior de uma mancha, que mais valorizadas da cidade7. Dividida em vá-
H

nesse caso poderia ser considerada como rios campos de futebol de terra, era usada por
a t r i m ô n i o

José Guilher me Cantor Magnani

entorno, no jargão técnico dos órgãos de times conhecidos como “de várzea”: Marítimo
preservação. Num circuito consistente, cada Futebol Clube, Grêmio Esportivo Canto do
P

ponto contribui com sua especificidade Rio, Tintas Cirota, Sociedade Esportiva Flor
d o

para uma prática cujo denominador do Itaim e outros, que, de segunda a domin-
e v i s t a

comum, no caso do desfrute do cinema, é go, organizavam ruidosas e concorridas dispu-


R

assegurado pela oferta de um sem-número tas de torneios e festivais, atraindo frequenta-


de serviços constituídos ao longo do tempo e dores dos mais diversos e longínquos bairros
distribuídos pelo espaço da cidade. de São Paulo. O parque abrigava também um
circo e um teatro, onde se realizavam bailes,
O Parque do Povo nos fins de semana.
O segundo caso a ser apresentado é o do Se o que inicialmente justificava o pedido
tombamento do Parque do Povo pelo Con- de tombamento tinha sido a necessidade de
322
dephaat, em 1994, cujo processo contou com manter uma área verde, com vistas à quali-
a participação do Núcleo de Antropologia dade ambiental da cidade, a comprovação da
Urbana, que, além das fundamentações de or- presença contínua de times de futebol var-
dem histórica e ambiental, incluiu o relatório ziano no local, desde ao menos a década de
de uma pesquisa de campo sobre uma prática 1930, fez com que este fosse o motivo central
ali realizada, o futebol de várzea. para a preservação do parque. A região, com
Destacando a novidade do caso, um arti- efeito, constituía uma das tantas áreas de
go na Revista do Patrimônio nº 24 (Magnani várzea – no caso, do rio Pinheiros – tradicio-
& Morgado, 1996) começava por lembrar nalmente ocupadas por atividades de entre-
que o tombamento de espaços como terreiros tenimento, nos fins de semana, e que foram
de candomblé, sítios remanescentes de qui- paulatinamente incorporadas em virtude do
lombos, vilas operárias, edificações típicas de processo de urbanização.
migrantes e outros dessa ordem, isto é, liga-
dos ao modo de vida (moradia, trabalho, reli- 7. Está situado no bairro Itaim Bibi, no perímetro compreendido
entre as avenidas Juscelino Kubistchek, Cidade Jardim, Brigadeiro
gião) de grupos social e/ou etnicamente dife- Haroldo Veloso e Marginal Pinheiros.
Patr imônio cultural urbano, “de per to e de dentro”:
uma aproximação etnográfica
N
A
H a c i o n a l
r t í s t i c o
e
i s t ó r i c o
a t r i m ô n i o

José Guilher me Cantor Magnani


A área do Parque do Povo, entretanto, Paulo ofereciam, com seus caprichosos mean-

P
permaneceu não como mero testemunho ou dros, aprazíveis recantos para o espairecimento

d o
vestígio de uma antiga modalidade de ocupa- das famílias. Nesse momento, os corpos, as

e v i s t a
ção, mas de forma ativa, só que cada vez mais cores, os odores, os uniformes, as expressões

R
destoante em relação à sofisticada ambiência verbais, a poeira dos campos conformavam um
do bairro que a circundou. E então começou a repertório que não combinava com a estética
saga desse processo, como a dos que habitual- dos prédios, com o comportamento dos tran-
mente tramitam nos órgãos de preservação. seuntes e moradores de classe média alta e até
Em primeiro lugar, tratava-se de espaço com os modelos de carros do seu entorno.
ligado a uma atividade de lazer – note-se que O Parque do Povo, para alguns – a come-
à época ainda não se falava em “patrimônio çar pelo nome –, certamente ficaria melhor
323
imaterial” – e não de moradia, trabalho ou de- na periferia. Claro, as regiões mais nobres da
voção, que eram os aspectos geralmente invo- cidade podem conviver com aquelas pessoas,
cados para justificar a preservação de lugares de desde que envergando os uniformes de traba-
culto, instalações e equipamentos de trabalho, lho, usando o linguajar adequado, nos horários
exemplares de sistemas construtivos peculiares. previstos. Mas, para divertir-se? Convenha-
Além dos campos de terra demarcados a cal e mos... O jogo de inversões e contrastes, porém,
de algumas benfeitorias sem nada de especial, o não parava por aí. Lazer não é no fim de sema-
parque não exibia qualquer suporte material de na? No Parque do Povo havia jogo de futebol
interesse arquitetônico ou artístico. durante os dias úteis. Afinal, quem são seus
Em segundo lugar, apesar da histórica e frequentadores? Gente honrada? De onde eles
comprovada ligação da prática atual com a vinham? Um dos achados da pesquisa foi que,
ocupação original do terreno, tratava-se de diante da suspeita com relação a “marmanjos”
uma forma de lazer popular que já não guar- jogando futebol justo numa segunda-feira, dia Projeto Circular,
23a edição,
dava relação com a imagem dos piqueniques de trabalho, descobriu-se que eram trabalha- Praça dos Estivadores,
Belém (PA), 2018
de outrora, quando os rios que margeiam São dores (e sindicalizados) da área de restaurantes, Foto: Otávio Henriques.
hotéis e afins, cujo dia de descanso é justamen- Pois entre esses “ocupantes irregulares” da
Patr imônio cultural urbano, “de per to e de dentro”:
uma aproximação etnográfica

te a segunda-feira... área (por mais de vinte anos!) estavam justa-


a c i o n a l

Estava em pauta uma proposta de elimi- mente os atores sociais cuja prática motivara
nar aquela “ferida” no tecido urbano, como seu tombamento, medida a que, aliás, não se
chegou a ser denominada, e ocupar a área faz a mínima referência no tal site. Mas agora,
N
r t í s t i c o

com algumas alternativas mais condizentes afastados os indesejáveis (e pouco asseados)


com o entorno: um glamoroso shopping center, frequentadores, é possível tocar, cheirar e mor-
um belo parque, ou mesmo um conjunto de
A

der as folhas das plantas aromáticas...


e

apartamentos em estilo algo pós-moderno, Como se percebe, nem sempre o tomba-


i s t ó r i c o

bem ao gosto da recente ocupação da Marginal mento é o mecanismo que se pode acionar,
Pinheiros, mais adiante. Tudo, é claro, segundo com proveito e rapidez, para defesa de algum
H

as normas de um paisagismo “adequado”. No bem e garantir a devida proteção. Bens sem su-
a t r i m ô n i o

José Guilher me Cantor Magnani

entanto, alguns usuários se movimentaram, porte material tangível e/ou duradouro, como
surgiu uma associação, buscaram-se parceiros o traçado com cal dos campos de futebol na
na imprensa, na Câmara Municipal, na univer-
P

terra, são mais vulneráveis, assim como aqueles


d o

sidade, e o Parque do Povo finalmente, depois relacionados a práticas de agentes sociais com
e v i s t a

de várias vicissitudes, foi tombado, garantindo- reduzido poder de negociação. Foi o que ocor-
-se o direito ao lazer de características popula-
reu no Parque do Povo, quando nem mesmo
R

res, num espaço de longa data assim ocupado.


instituições de prestígio envolvidas na disputa
Lamentavelmente, passados doze anos,
garantiram a eficácia do instrumento.
nada restou do propósito original. Veja-se o
Atualmente o conceito de bem imaterial é
que se diz no site atual da prefeitura8:
acionado para poder contemplar a especificida-
O Parque está instalado numa área que per- de desses casos. Mesmo assim, quando o bem
tencia à Caixa Econômica Federal e ao Instituto em disputa envolve interesses de outro tipo
324 que não o meramente cultural, dificilmente se
Nacional do Seguro Social. Durante mais de 20
anos, cerca de 11 agremiações esportivas exploraram consegue assegurar a devida proteção. O que
irregularmente o local. A Prefeitura conseguiu a ces- implica a necessidade de recorrer a outros ins-
são de uso do espaço em 2006. O projeto educativo trumentos para caracterizar um bem como dig-
e ambiental desenvolvido no local inclui sete trilhas no de proteção e implementar outras medidas,
auto-explicativas, nas quais estarão distribuídas as além das atualmente previstas na legislação.
plantas que formam parte das coleções botânicas do Uma delas, por exemplo, prevista na Lei
parque. Entre elas, está a coleção de plantas aromá- Municipal no 13.885/2004, é o Plano de
ticas e medicinais que compõem o Jardim Sensitivo. Bairro, que propõe, a partir da participação
As espécies do jardim despertam o tato, o olfato e o de moradores em fóruns e assembleias, solu-
paladar. As pessoas podem tocar, cheirar e até mor- ções para os problemas locais. Foi aplicado
der folhas de plantas e árvores para conhecê-las. em 2008 no distrito de Perus, zona norte da
capital e acionado, em 2012, por moradores
8. http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/meio_am- do bairro Vila Madalena, diante da ameaça de
biente/parques/regiao_centrooeste/index.php?p=22396. Acessado
em 6/9/2012,
construção de um shopping center, para evitar a
descaracterização do tradicional bairro, berço sociais – focou na parte do patrimônio que

Patr imônio cultural urbano, “de per to e de dentro”:


uma aproximação etnográfica
da contracultura, do cinema independente e de lhe foi atribuída, mas eu gostaria de chamar

a c i o n a l
outras manifestações de arte e cultura. a atenção para um desses recortes, apresen-
Para finalizar o tema do futebol de várzea, tado no capítulo “Sergipe, a rua de todas as
cabe assinalar que pesquisas mais recentes compras”, resultado de uma etnografia sob

N
r t í s t i c o
enfatizam, além do aspecto de mancha, seu coordenação de Ana Cleide Chiarotti Cesário
caráter de circuito: a pesquisa de Enrico Spa- (Cesário, 2012:75-102).
Há, como também se sabe, razões políticas

A
ggiari (2016) no bairro de Guaianazes, zona

e
sul da capital, mostra a circulação, por campos e ideológicas para essas escolhas; o mesmo se

i s t ó r i c o
de toda a cidade, tanto dos jogadores e de seus pode dizer da profundidade temporal, expressa
familiares em busca de oportunidades como de no “histórico”, que também delimita o alcance

H
técnicos e olheiros à cata de jovens e promis- de patrimônio e lhe impõe limites. Muitas

a t r i m ô n i o

José Guilher me Cantor Magnani


sores aspirantes. O mesmo foi verificado por vezes, com base numa visão conservadora,
Raphael Piva (2018) na sua pesquisa, ainda em cidades mais recentes, com seus pioneiros,

P
andamento, sobre os campos de futebol locali- colonos, imigrantes, construções de madeira

d o
zados no Campo de Marte, zona norte de São – como é a experiência que se verá a seguir –

e v i s t a
Paulo, terreno em disputa entre a prefeitura e a ficam de fora…
Aeronáutica. Os membros dos diferentes tam- De certa forma, a coletânea segue o

R
bém times não se restringem a essa mancha. padrão convencional: são apresentados os
aspectos históricos, artísticos, arquitetônicos
Em Londrina (PR): “Sergipe, a do patrimônio de Londrina – nessa ordem. A
rua de todas as compras” novidade, contudo, está no fato de dialogarem
O terceiro caso escolhido para ampliar a com a última abordagem do texto, calcada na
discussão sobre o tema deste artigo tem como antropologia urbana: no capítulo assinado por
inspiração o convite que me foi feito para fazer Ana e equipe, faz-se uso criativo das categorias: 325

a apresentação de uma coletânea – Rua Sergipe: pedaço, trajeto, mancha, pórtico, circuito.
patrimônio cultural londrinense (Magalhães, Cabe, contudo, alguma informação sobre
2012), com contribuições de diversos mem- a cidade de Londrina, para que se possa avaliar
bros do Ipac/Londrina (PR)9. Cada um dos melhor a utilização dessas categorias no trato
autores – arquitetos, historiadores, cientistas com a questão do patrimônio. Sua fundação
remonta a 1929, por iniciativa da Companhia
de Terras Norte do Paraná, dada a expansão
9. “O Projeto de Extensão ‘Inventário e Proteção do Acervo Cul- do cultivo do café nessa região. É elevada à
tural de Londrina – IPAC/LDA’ nasceu em 1986 na Universidade
Estadual de Londrina – UEL por sugestão de José Guilherme condição de município em 1934. Sua estrutura
Cantor Magnani – então Coordenador do Patrimônio Cultural da
Secretaria de Estado da Cultura do Paraná. A proposta era desen- urbana foi alvo de registro de Lévi-Strauss,
volver uma política de conhecimento e intervenção no Patrimônio
Material e Imaterial na região Norte do Paraná. Ao escolher Lon- quando de sua passagem por lá, em direção a
drina para iniciar um trabalho de política pública voltada para o Goiás e Mato Grosso10.
Patrimônio Cultural, Magnani fazia uma escolha instigante, pois a
cidade e região eram partes de uma colonização nova, o que exigiria
uma abordagem teórico-metodológica atualizada e ampliada em
relação aos conceitos e práticas até então vigentes” (http://www.uel. 10. Ver o intertítulo deste artigo
br/projetos/ipaclda/). Acessado em 21/7/2018. chamado “A cidade dos antropólogos”.
De início, a paisagem urbana era e atividades datadas – e, por isso, fonte de
Patr imônio cultural urbano, “de per to e de dentro”:
uma aproximação etnográfica

predominantemente de construções de representações – e os usos atuais.


a c i o n a l

madeira, mas um decreto de 26 março de A pesquisa considerou a rua como


1939 as proíbe nas principais ruas e a cidade, uma mancha; identificou nela inúmeros
pedaços – entre os quais o Bar Seleto com
N

já por volta da década de 1940, no auge da


r t í s t i c o

cafeicultura, ostenta edificações inspiradas suas vitaminas; o museu como âncora de


na Art Déco e na arquitetura moderna, diferentes circuitos de visitação, além de
A

cujo exemplar mais aclamado foi a estação trajetos, pórticos. As categorias permiti-
e

ram registrar, assim, em meio ao aparente


i s t ó r i c o

rodoviária – a quarta de uma série –, com


projeto de Vilanova Artigas. Inaugurada em caos, algumas regularidades que outorgam
1952, foi tombada pela Coordenadoria do uma particular feição a essa rua. Mais que
H

isso, o trabalho de campo realizado iden-


a t r i m ô n i o

José Guilher me Cantor Magnani

Patrimônio Cultural do Paraná em 1974 e,


depois de desativada, passou a sediar o Museu tificou, ainda, novas categorias nativas
– destaque para a interessante noção de
de Arte de Londrina, inaugurado em 1993.
P

“lugar de pausa”, atribuída ao Bar Seleto,


d o

Se a vocação comercial da Rua Sergipe,


entre outras – que enriqueceram e trouxe-
e v i s t a

tão antiga quando a cidade, justifica o título


ram significativas nuances àquele conjun-
de “A rua de todas as compras”, a presença
R

to de categorias já estabelecido.
nela desse museu, assim como do “Cadeião”,
Jane Jacobs, no livro em que descreve
além das moradias e de uma infinidade de
o cotidiano de uma cidade norte-ameri-
estabelecimentos de comércio e serviços,
cana em contraposição ao artificialismo
permite à arquiteta Elisa Roberta Zanon
do urbanismo modernista (op. cit.), usa
concluir que “a Sergipe é uma rua em que
uma interessante expressão – o “balé das
se encontra um pouco de tudo da cidade de
calçadas” – para se referir à vitalidade que
326 Londrina” (2012:7). “Pequena Tóquio” era
os múltiplos usos da rua proporcionam
outro epíteto seu, pela marcante presença dos
e asseguram à dinâmica urbana. Esse as-
imigrantes japoneses.
pecto, em termos de patrimônio, juntaria
Tantos nomes, referências... Lugar de vários outros, exatamente como propõe a
memória, certamente, na denominação de coletânea (Magalhães, op. cit.), desde o
Pierre Nora (1984), mas também “lugar arquitetônico até a mais recente forma de
antropológico”. É o que percebeu Ana Cleide, adjetivá-lo, patrimônio imaterial. No caso
na pesquisa que coordenou: tratava-se, nesse específico dessa rua, abrange um con-
caso, de recuperar a dinâmica atual dessa rua, junto de atributos e práticas – lugares de
mostrando sua vitalidade e diversidade por encontro, comportamentos, gestos, ditos,
meio da aplicação das já referidas categorias, receitas de boteco, brincadeiras, festas
acionadas para detectar regularidades e –, algumas efêmeras, outras com suporte
padrões. Há, certamente, uma continuidade material durável, outras, ainda, resultado
entre a velha Rua Sergipe, dos tempos idos da conjunção de uma multiplicidade de
da formação da cidade, com suas edificações elementos constitutivos.
Conclusão: Janeiro, pelo órgão estadual, seja adequada ao

Patr imônio cultural urbano, “de per to e de dentro”:


uma aproximação etnográfica
v o lta n d o a o
circuito uso da categoria de mancha12 – o pedido de

a c i o n a l
registro do gênero em si, apesar de considera-
Como se viu acima, a propósito dos do pertinente pelo Iphan em 2015, ainda se
encontra em fase de instrução, o que implica

N
casos de Santana de Parnaíba, do Cine Belas

r t í s t i c o
Artes, do Parque do Povo, da Rua Sergipe levantamento de documentação e estudo, ne-
em Londrina, quando se está às voltas com cessários para constituir o dossiê de registro e

A
a questão do patrimônio a ser identificado, posterior deliberação do Conselho Consultivo.

e
A questão que quero pontuar, contudo,

i s t ó r i c o
protegido e preservado, a antropologia –
especialmente a antropologia urbana, com diz respeito a uma das premissas habitual-
seu método diferencial, a etnografia e as mente levadas em conta para decidir se tal

H
a t r i m ô n i o
ou qual bem imaterial – saberes, festas, ex-

José Guilher me Cantor Magnani


suas categorias de análise – pode abrir um
pressões, modos de fazer etc. – está ancorado
fecundo diálogo com as outras disciplinas
numa comunidade que lhe deu origem ou o
tradicionalmente comprometidas com os

P
cultiva de forma ancestral e/ou continuada.

d o
campos do patrimônio e da museologia.
A noção de comunidade, com longa

e v i s t a
Cada uma daquelas categorias
tradição nas ciências sociais desde os clássicos
apresentadas pode ser especialmente

R
na fórmula “comunidade versus sociedade”
proveitosa na análise do patrimônio urbano
(Durkheim, 1973, Tönnies 1963, Weber
para não se cair na perspectiva da inevitável
1999, Simmel, 1987) – não cabe aqui
fragmentação da cidade, nem na de uma
retomar essa discussão –, e supostamente do
totalidade indiferenciada. Isso ocorre por
lócus privilegiado da experiência etnográfica,
permitirem construir e/ou identificar
já passou por várias leituras, entre as quais a
unidades significativas, articulando espaços,
de George Marcus (1991).
equipamentos e a prática dos atores sociais 327
Para esse autor, é preciso repensar o
envolvidos, como se viu no caso do pedaço,
conceito tal como foi estabelecido e utilizado
da mancha, circuito. Ao concluir, retomo esta
em determinados contextos do que denomina
última, a de circuito – seguindo a sugestão de
a etnografia realista, em oposição a uma
Ulpiano –, para, como exercício, relacioná-la
etnografia modernista, que leva em conta a
à modalidade mais recente de patrimônio, o
mudança não apenas das condições atuais
imaterial e, especificamente, aplicada a um
dos povos estudados pela antropologia como
gênero musical, o choro11.
também as transformações no cenário mun-
Ainda que em determinados casos, isola-
dial onde se inserem. Assim, afirma Marcus,
dos, como a recente proposta de tombamento
de roda de choro numa praça, no Rio de 12. Cabe observar que o choro, em maio de 2012, foi inscrito
no Livro de Registro das Formas de Expressão do órgão de defesa
do Patrimônio do Estado do Rio de Janeiro. E está em curso
11. Os problemas involucrados na questão da salvaguarda desse uma proposta de tombamento de uma roda de choro (“Arruma
gênero musical, no Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, o Coreto”) na Praça São Salvador, em Laranjeiras, também no
foram levantados por Mônia Silvestrin, numa das aulas da dis- Rio. http://agenciabrasil.ebc.com.br/cultura/noticia/2018-01/
ciplina por mim ministrada no curso “A Dimensão Cultural das roda-de-choro-em-praca-publica-pode-se-tornar-patrimonio-i-
Práticas Urbanas”, PPGAS/FFLCH/USP, em 2017. material-no-rio.
é preciso romper com uma noção de comu- ainda o caso da Praça do Choro no Rio –, na
Patr imônio cultural urbano, “de per to e de dentro”:
uma aproximação etnográfica

nidade que, “no sentido clássico de valores, perspectiva mais geral dessa modalidade como
a c i o n a l

identidade e, portanto, cultura compartilha- um gênero musical de relevância, específico


dos, foi baseado literalmente no conceito de e digno do registro, seria adequado acionar o
localidade” (ibid.:204). Prossegue o autor: conceito de circuito. Pois, como uma unidade
N
r t í s t i c o

de referência consistente, mas não necessaria-


As conotações de solidez e homogeneidade
mente contígua, pode envolver grupos tradi-
relacionadas com a noção de comunidade (seja esta
cionais de chorões, assim como jovens que se
A

concentrada num local ou dispersa) foram substi-


e

dedicam ao gênero com suas inovações, em


i s t ó r i c o

tuídas nos estudos das modernidades pela ideia de


contextos tão diferentes como apresentações
que a produção localizada de identidade de uma
em ambientes familiares ou vicinais, ou ainda
pessoa, de um grupo, ou até de uma sociedade
H

performances públicas, festivais, academias em


a t r i m ô n i o

José Guilher me Cantor Magnani

inteira não depende apenas e nem principalmente


diferentes cidades etc.
das atividades observáveis concentradas em uma
E assim por diante, para os outros casos
localidade específica, ou em uma diáspora.
classificados pelo Iphan como patrimônio ima-
P
d o

Mesmo no caso das chamadas comunida- terial. E se é preciso um grupo de suporte para
e v i s t a

des quilombolas, ribeirinhas, indígenas, por dar sustentação a essas diferentes manifestações
exemplo, invocadas como suporte para vários do patrimônio imaterial, principalmente nos
R

casos já registrados de patrimônio cultural, a contextos urbanos, vale a pena experimentar


ideia de uma comunidade isolada, homogê- principalmente essa categoria que, articulada
nea, autocontida (como postulava Redfield, às demais, identifica e relaciona equipamentos,
op. cit.) não se verifica: há circulação, há atores sociais, espaços e temporalidades em
trocas, influências, controvérsias. De todas as unidades significativas, recorrentes e consisten-
formas, nesses casos até fica mais claro vincu- tes no aparente caos da cidade contemporânea,
lar uma expressão cultural a um determinado em suas diversas escalas.
328
modo de vida. Mas, e na cidade? Como
estabelecer essas fronteiras? A menos que se
deixe cair na “tentação da aldeia”13, a ideia de
comunidade dificilmente constitui uma uni-
dade de referência no contexto heterogêneo e
multifacetado dos contextos urbanos.
A proposta, então, é pelo circuito. Se a
Eichhornia. Aquarela categoria de mancha pode ser invocada, com
de José Joaquim
Freire, 1785. Expedição proveito, na discussão sobre patrimônio urba-
Alexandre Rodrigues
Ferreira (1783 a 1792) no – vide a pesquisa na Rua Sergipe, o pro-
Acervo: Fundação Biblioteca
Nacional, Brasil. cesso de tombamento do Parque do Povo ou

13. Aqui uso essa expressão de forma diferente da empregada no


livro Da periferia ao centro... (Magnani, 2012:251), quando a
cidade seria considerada uma grande aldeia, para poder aplicar o
método etnográfico.
Referências e emergentes: requisitos para etnografias sobre a

Patr imônio cultural urbano, “de per to e de dentro”:


uma aproximação etnográfica
modernidade no final do século XX ao nível mundial.
Revista de Antropologia, FFLCH/USP, v. 34, São Paulo,

a c i o n a l
AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma
1991.
antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus,
1994. MENESES, Ulpiano Bezerra de. “A cidade como bem

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José Guilher me Cantor Magnani


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R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

330
José Guilher me Cantor Magnani Patr imônio cultural urbano, “de per to e de dentro”:
uma aproximação etnográfica
2014
Candomblé,
Yaô de Ewa,

Foto: Guy Veloso.


Ananindeua (PA),
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
331

José Guilher me Cantor Magnani Patr imônio cultural urbano, “de per to e de dentro”:
uma aproximação etnográfica
N o ta s B i o g r á f i c a s
Notas Biográficas
a c i o n a l

A L F R E D O WA G N E R B E R N O D E Eduardo Góes Neves


ALMEIDA Graduado em História pela USP, mestre e
N

Doutor em Antropologia Social pela UFRJ.


r t í s t i c o

doutor em Arqueologia pela Universidade de


Professor nos programas de pós-graduação Indiana e livre-docente pela USP. Professor
das seguintes universidades: UEMA, UFAM titular de Arqueologia Brasileira do Museu de
A

e UEA. Coordenador de Pesquisa do CNPq.


e

Arqueologia e Etnologia da USP, pesquisador


i s t ó r i c o

Trabalha principalmente com os seguintes do Centro de Estudos Ameríndios – Cesta/


temas: povos tradicionais, etnicidade, USP, e coordenador do Laboratório de
H

conflitos, movimentos sociais, processos Arqueologia dos Trópicos do Museu de


a t r i m ô n i o

de territorialização e cartografia social, Arqueologia e Etnologia. Entre 2010 e


Amazônia. 2011, foi membro colaborador do Conselho
Consultivo do Patrimônio Cultural, além de
P
d o

representante da Sociedade de Arqueologia


A n a L é a N a s s a r M at o s
e v i s t a

Brasileira junto a esse mesmo conselho.


Graduada em Arquitetura e Urbanismo
R

pela UFPA (1976), mestre em Artes Visuais


F e r n a n d o M e s q u i ta
pela UFRJ (2003) e doutora em História
Arquiteto e urbanista, especialista
pela UFPA (2017). É professora titular da
em Desenho Urbano, com mestrado
FAU/ UFPA. Tem experiência na área de
profissionalizante em Preservação do
Arquitetura e Urbanismo, com ênfase em
Patrimônio Cultural/Iphan. É técnico em
preservação de bens culturais e restauro de
preservação da Superintendência do Iphan
bens imóveis.
332 no Pará.

A n a P i z a rr o João de Jesus Paes Loureiro


Professora da Universidade de Santiago do Poeta, prosador e ensaísta. Professor de
Chile. Publicou os livros América Latina: Estética e Arte/UFPA, doutor em Sociologia
palavra, literatura e cultura (3 volumes: 1993, da Cultura pela Sorbonne, em Paris, com
1994 e 1995), Gabriela Mistral: el proyecto a tese Cultura amazônica: uma poética do
de Lucila (2005),O sul e os trópicos: ensaios de imaginário. A universalidade de sua obra
cultura latino-americana (2006), Amazônia. poética se constrói a partir de signos do
As vozes do rio (2012), entre outros. mundo amazônico – cultura, história,
imaginário –, propiciando uma cosmovisão
e uma leitura particular do mundo
contemporâneo.
Notas Biográficas
a c i o n a l
João Meirelles Filho Jussara Derenji
Escritor e ativista socioambiental. Nascido Arquiteta formada pela UFRS e mestre em

N
em São Paulo, desde 2004 vive em Belém, História pela PUC-RS. Professora aposentada

r t í s t i c o
Pará. É autor de dezessete livros, entre contos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
e ensaios, destacando-se: O abridor de letras, da UFPA, dirige o Museu da UFPA desde

A
e
Record, 2017 (Prêmio Sesc de Literatura 2002. Faz parte do Comitê Memória do

i s t ó r i c o
– Contos); Grandes expedições à Amazônia Mundo da Unesco desde 2015, com a função
brasileira, Ed. Metalivros (2 volumes: 2009 e de representante dos arquivos privados,

H
2011); e Livro de ouro da Amazônia, Ediouro, e atualmente é presidente desse comitê

a t r i m ô n i o
2004. Como ativista socioambiental, atua há no Brasil (MOW Brasil), voltado para a
33 anos no terceiro setor, vinte dos quais no preservação de documentos relevantes para
a memória nacional. Eleita em dezembro

P
Instituto Peabiru, organização da sociedade

d o
civil que trabalha na Amazônia, com a missão de 2017, é a primeira mulher presidente do

e v i s t a
comitê e ficará no mandato por dois anos.
de facilitar processos de fortalecimento

R
da organização social e da valorização da
sociobiodiversidade. Juvêncio da S i lva C a r d o s o
Indígena do povo Baniwa, clã Awadoronai,
liderança e coordenador da Organização
J o s é G u i l h e rm e C a n t o r
Indígena Nadzoeri, antiga Coordenação das
Magnani
Associações Indígenas da Bacia do Içana –
Professor titular do Departamento de
CABC, ligada à Federação das Organizações
Antropologia da FFLCH/USP, é mestre em 333
Indígenas do Rio Negro – Foirn. Ex-professor
Sociologia pela Facultad Latinoamericana de
e ex-coordenador da Escola Indígena Baniwa
Ciencias Sociales – Flacso, Chile, e doutor em e Coripaco Pamáali (2007–2013). Professor
Ciências Humanas (Antropologia Social) pela de Física na Escola Estadual Indígena
USP (1982), onde defendeu tese de livre- Kariamã – Sala de extensão Canadá, rio Aiari.
docência (2010) e de professor titular (2012). Graduado em Licenciatura Intercultural de Tanga de miçanga tiriyó,
Atua na área de Antropologia, com ênfase em Física pelo Instituto Federal de Educação,
coletada por Frikel e Cortez,
1971. Coleção Etnográfica
Curt Nimuendajú/Acervo
Antropologia Urbana. Também atua como Ciência e Tecnologia do Amazonas/Campus Museu Paraense Emílio
Goeldi
pesquisador em Antropologia Urbana, com São Gabriel da Cachoeira – Ifam/CSGC. Foto: Fábio Jacob.

ênfase em etnografia, sociabilidade, lazer e


religiosidade.
Larissa Maria Almeida em Antropologia, mestrado em Ciências
Notas Biográficas

de

Guimarães da Sociedade e doutorado em Sociedade,


a c i o n a l

Antropóloga do Instituto do Patrimônio His- Natureza e Desenvolvimento (Ciências


tórico e Artístico Nacional – Iphan, Lotada Ambientais). Professora do Programa de Pós-
Graduação em Sociologia e Antropologia da
N

em Roraima. Professora de Antropologia na


r t í s t i c o

UFRR. Cientista Social com ênfase em An- UFPA. No Grupo de Pesquisa Diversidade
tropologia pela UFPA. Mestre em Ciências Cultural, Território e Novos Direitos na
A

Sociais, com ênfase em Antropologia, pela Amazônia, tem trabalhos em andamento


e

sobre​memória, conhecimentos tradicionais,


i s t ó r i c o

mesma instituição. Antropóloga nas superin-


tendências do Iphan no Pará (2012–2016) e patrimônio cultural, direitos coletivos e
em Roraima (2016–atual). Realizou pesqui- conflitos socioambientais em comunidades
H

rurais, ribeirinhas e extrativistas afetadas por


a t r i m ô n i o

sas na área de identidade étnica, migrações


judaicas, hábitos e práticas alimentares ju- projetos de desenvolvimento e Unidades
daicos. Atualmente, se dedica aos estudos de de Conservação. Coordena o Programa de
P

memória coletiva, construções de identidade, Extensão Patrimônio Cultural na Amazônia


d o

patrimônio cultural de natureza imaterial e (Proext//MEC) desde 2010, com atuação na


e v i s t a

políticas públicas. região da Calha Norte.


R

L u c i a n a G o n ç a lv e s de M a n u e l F e rr e i r a L i m a F i l h o
Graduado em Geologia pela UFPA, mestrado
C a r va l h o
em Antropologia Social/UNB, doutorado
Bacharel em Ciências Sociais (UFRJ), mestre
em Antropologia Social e Cultural/UNB,
em Sociologia e doutora em Antropologia
estágio pós-doutoral em Antropologia no
pelo PPGSA/UFRJ. Professora na Ufopa
The College of William and Mary (EUA),
334 desde 2010, atuando nos cursos de graduação

Brinco yanomami
Foto: Renato Soares, 2008.
2007, estágio pós-doutoral Sênior em três ganhadores do Prêmio Jabuti de melhor

Notas Biográficas
Antropologia no Museu Nacional/UFRJ. romance e este último, do Prêmio Portugal

a c i o n a l
Professor da Faculdade de Ciências Sociais Telecom de Literatura em 2006. Em 2013,
da UFG, pesquisador do CNPq, diretor do teve suas crônicas reunidas em Um solitário à
Museu Antropológico da UFG, também é espreita. É colunista dos jornais O Estado de S.

N
r t í s t i c o
colaborador no Programa de Pós-graduação Paulo e O Globo.
em Ciências da Religião da PUC-GO. Atua

A
no Núcleo de Estudos de Antropologia, U l p i a n o T o l e d o B e z e rr a de

e
Patrimônio, Memória e Expressões Museais

i s t ó r i c o
Meneses
– Neap, da UFG. Atualmente é diretor do Licenciado em Letras Clássicas e doutor em
Museu Antropológico da UFG. Arqueologia Clássica. Professor emérito da

H
a t r i m ô n i o
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Maria Dorotéa de Lima Humanas da USP, titular aposentado de
Graduada em Arquitetura e Urbanismo História Antiga, docente do Programa de

P
pela UFPA (1980), onde cursou mestrado Pós-graduação em História Social. Dirigiu

d o
em Antropologia (2008). Trabalhou como o Museu Paulista/USP, organizou e dirigiu

e v i s t a
técnica de preservação no Iphan-PA (1989– o Museu de Arqueologia e Etnologia/USP

R
2005). Foi superintendente do Iphan (1963–1968) e foi membro da Missão
no Pará de 2005 a 2017. Atuou como Arqueológica Francesa na Grécia. Autor
arquiteta e urbanista na Secretaria de Obras de Para uma política arqueológica da Sphan
e Infraestrutura do Amapá (1981–1989). (1987) e Premissas para a formulação de
Tem experiência nas áreas de Antropologia, políticas públicas em arqueologia (2007).
com ênfase em inventários e instrução de Recebeu a Comenda da Ordem Nacional do
processos de registro; de Arquitetura, em que Mérito Científico e é membro do Conselho
335
realizou trabalhos de inventário, projetos de Consultivo do Patrimônio Cultural do Iphan.
restauração e fiscalização de obras; e também
na elaboração de estudos de tombamento William César Lopes
e entorno. Atua na área de consultoria
Domingues
relacionada a cultura e patrimônio cultural.
Indígena do povo Xakriabá radicado no
médio Xingu, professor do Curso de
M i lt o n H at o u m Etnodesenvolvimento do Campus de
Escritor, tradutor e professor. Nascido em Altamira (PA), da UFPA, e doutorando
Manaus (AM), é descendente de libaneses. em Antropologia pelo Programa de Pós-
Ensinou Literatura Francesa na UFAM e graduação em Antropologia da UFPA.
na Universidade da Califórnia, em Berkeley
(EUA). Doutor em Teoria Literária pela USP.
Entre os diversos romances que escreveu,
estão: Relato de um certo Oriente (1989), Dois
irmãos (2000), Cinzas do Norte (2005), todos
Mãos de açaí, 1999
Foto: Luiz Braga.
Rapaz e cão em
Carananduba,
Belém (PA), 1990
Foto: Luiz Braga.
Vendedor de
amendoim, 1990
Foto: Luiz Braga.
Encontro das águas dos rios Negro e Solimões
a c i o n a l
N

A publicação da Revista do Patrimônio não seria possível sem a inestimável colaboração das instituições
r t í s t i c o

representadas por seus dirigentes e servidores que, com dedicação e profissionalismo, nos permitem acessar
seus acervos e utilizar documentos e imagens para o enriquecimento das matérias veiculadas. Queremos
agradecer a esses profissionais e instituições que lidam diretamente com os acervos.
A
e
i s t ó r i c o

Associação dos Povos Indígenas da Terra São Marcos (RR)


Comissão Pastoral da Terra – CPT
Fundação Biblioteca Nacional (RJ)
H

Eduardo Góes Neves


a t r i m ô n i o

Fundação Chico Mendes (AC)


Fundação Elias Mansour (AC)
Fundação Municipal de Cultura Garibaldi Brasil (AC)
P

Fundação Pierre Verger (BA)


d o

Galeria Vermelho (SP)


e v i s t a

Instituto de Antropologia da Universidade Federal de Roraima – Inan/UFRR


Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo – IEB/USP
R

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB


Instituto Moreira Salles
Instituto Socioambiental – ISA
Kamara Kó Galeria (PA)
Museu da Universidade Federal do Pará – Mufpa (PA)
Museu de Arte de Belém – Mabe (PA)
Museu de Arte Sacra do Pará – MAS (PA)
340 Museu do Círio (PA)
Museu do Índio (RJ)
Museu do Forte do Presépio (PA)
Museu Nacional (RJ)
Museu Paraense Emílio Goeldi – MPEG (PA)
Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia, Turismo e Cultura do Estado do Tocantins
Sistema Integrado de Museus e Memoriais/Secretaria de Estado de Cultura do Pará
Teatro Amazonas/Secretaria de Estado de Cultura do Amazonas
Theatro da Paz / Secretaria de Estado de Cultura do Pará

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