Você está na página 1de 13

CAPÍTULO

O Mundo Globalizado e a Questão Ambiental


Marcelo Oliveira de Faria

É possível que seja impossível o homem ir à Lua.


Mas é impossível que isso não seja possível.
Astrônomo do século XVII

A realidade é, além disso, tudo aquilo que ainda não nos tornamos,
ou seja, tudo aquilo que a nós mesmos nos projetamos como seres humanos
por intermédio dos mitos, das escolhas, das decisões e das lutas.
A. Schmidt ( The concept of nature in Marx, 1971)

Nos últimos anos observou-se um crescimento muito grande da preo-


cupação social com relação aos danos que o processo de desenvolvimento
vem causando ao nosso meio ambiente.
A cada dia, diversos grupos se organizam para lutar por questões rela-
tivas à degradação ambiental. Só recentemente começou a se formar uma
crítica mais elaborada, mais ampla, que visa a compreender essa questão
corno um problema referente não apenas à natureza, mas ao nosso mode-
lo de desenvolvimento.
Os vários encontros realizados pelos grandes organismos interna-
cionais, como Banco Mundial, FMI etc., têm sofrido com o trabalho de
grupos de oposição ao modelo vigente, entre eles, os ambientalistas. É
claro que sob esse rótulo organizam-se os mais diversos grupos, tendências,
estratégias de lutas e causas. No entanto, todos parecem ter em comum a
oposição com relação ao atual modelo capitalista de desenvolvimento que
se convencionou chamar globalização.
Esse termo, apesar de usado com muita freqüência, carece de precisão
para definir o modelo hegemônico. Porém, é aceito por boa parte da mídia
mundial, pelos executivos e também por muitos cientistas, que o vêem
corno um processo natural e irreversível do desenvolvimento do mundo,
,}) M EIO AMBIEN TE, EDUCAÇÃO E EcoTURISMO J"'""'

o que faz com que esse termo sirva muitas vezes como legitimador da con-
tinuidade do processo de reprodução do capitalismo.
O capitalismo atual, sustentado progressivamente pelo desenvolvi-
mento da técnica e da ciência, é capaz de produzir mercadorias em quan-
tidades nunca antes vistas e de colocá-las em circulação numa velocidade
tão acelerada. É impossível à natureza acompanhar o ritmo desse modelo
de desenvolvimento sem se aproximar da possibilidade de uma catástrofe
ambiental que, em certo sentido, já se manifesta em diversos locais, e
mesmo em escala global 1.
O crescimento da utilização da ciência e da tecnologia na exploração
dos recursos naturais não pode, por si só, ser responsabilizado pel~ degra-
dação do meio ambiente, mas sem dúvida constitui um dado importante
na história recente da relação das sociedades com seus espaços.
O modelo atual de desenvolvimento do capitalismo, a globalização,
está sustentado por uma grande produção de conhecimentos científicos,
técnicos e tecnológicos, que o impulsionam no processo de produção e 1
circulação de mercadorias, mas no centro permanecem a remuneração do l
••.r.·.

grande capital e o lucro das grandes empresas. .. 1

A ciência, as técnicas e as tecnologias desempenham papéis impor-


tantes na reprodução do modelo de desenvolvimento não apenas como 1·
parte do processo de produção de mercadorias, mas como parte constitu-
tiva das relações sociais. Elas aparecem hoje como instâncias de mediação
das relações sociais locais e também na articulação entre os lugares e o
global 2.

1
Sobre a degradação e suas escalas, pode-se pensar na desertificação do Estado do Rio Grande do
Sul, no Brasil, como uma questão de caráter local e no processo de aquecimento do planeta a par-
tir da emissão de gases que aumentam o efeito estufa como um fenômeno de escala global.
2
O geógrafo Milton Santos chama a atenção para o crescimento da importância das técnicas como
elemento mediador das relações humanas e também para a inseparabilidade entre o fenômeno téc-
nico e o desenvolvimento da ciência. Para este autor seria correto pensarmos essa questão a partir
da idéia de tecnociência.

4
0 M UN DO G LO BA LI ZADO E A Q UESTÃO AMBIENT.I\L :j ;i

O fato novo da atual fase do capitalismo não é a centralidade do lucro


e do processo de acumulação, mas a escala de ação dessas empresas e o
crescimento de sua importância na determinação sobre os mais diversos
locais do mundo.
A ação dessas empresas é sentida direta ou indiretamente em todos os
lugares do mundo, reordenando as formas de organização dos espaços e
submetendo-os a uma lógica de acumulação mundial.
O retorno dos investimentos das grandes corporações é o objetivo
principal dos agentes hegemónicos para a continuidade da competitivi-
dade mundial. Assim, suas ações freqüentemente levam a uma desagre-
gação das sociedades, de sua cultura, e também, principalmente, a uma
desorganização de seus espaços.
As formas de apropriação da natureza nas mais diferentes localidades,
submetidas à lógica das grandes corporações, passam a não tomar o lugar
como referência da ação.
As riquezas naturais presentes nos diversos territórios são exploradas para
a produção de lucro. Ao transformar os elementos naturais em recursos, o
capital ignora os limites de exploração e gera grandes catástrofes ambientais.
A fluidez imposta pelo grande capital ao espaço faz com que os diver-
sos lugares estejam subordinados a uma lógica estranha às suas sociedades
e aos seus limites naturais de exploração de riquezas. Como tal movimen-
to raramente respeita as limitações sociais ou naturais dos lugares, ela se
impõe com violência às sociedades e ao meio sem que possa ser acompa-
nhada na sua demanda por velocidade.
A velocidade é um elemento central na competitividade mundial,
mas o ritmo de exploração que vem sendo imposto pelos agentes
hegemónicos deve ser visto como violência na medida em que ele não
pode ser acompanhado pela capacidade de reprodução dos sistemas na-
turais, nem pelas sociedades. Desse descompasso resulta uma crescente
degradação do meio ambiente.
Para chamar atenção a respeito da crise ambiental com a qual se
deparou no final do século XX, Michel Serres (1990), em seu livro O

5
--~ MEIO AMBIENTE, EDUCAÇÃO E EcoTURISMO

Contrato Natural, introduz suas reflexões a partir da descrição de um


quadro do pintor Goya. Nesse texto, Serres comenta a respeito dos dois
duelistas que lutam sem se preocupar com a lama que os envolve até os
joelhos e indaga:

Quem vai morrer, nos perguntamos? Quem vai ganhar, pensam eles e nos pergun-
tamos mais ainda? Apostemos. Vocês ficam com o da direita, nós jogamos no da
esquerda. A natureza dupla de ambos significa que o combate é duvidoso: há ape-
nas .dois combatentes que a vitória sem dúvida separará.

Mas, numa terceira posição, "exterior à contenda, percebe-se um ter-


ceiro lugar, o pântano, onde a luta se enterrà' (Serres, 1990).
A partir dessa constatação, Serres desenvolve uma análise tentando
demonstrar que ao longo da história, mais especificamente da história oci-
dental, a concepção dominante de natureza (representada pelo pântano)
sempre foi, e de certa forma permanece, uma concepção idealizada, sepa-
rada da história humana.
Quando separadas, natureza e sociedade perdem a sua materialidade e
também seus significados. A história passa a ser interpretada sem a materiali-
dade da ação, sem um espaço real. E a natureza transforma-se em uma
invenção do pensamento e um conceito abstrato. Ambos submetidos às con-
veniências do discurso do momento.
Resulta dessa separação entre a história social e a dinâmica natural uma
tradição de isolamento dos fatores. Isolamento que é fundador de um pensa-
mento e de uma cultura que, como diz Serres: "tem horror do mundo" (Serres,
1990).
Esse "horror" significa a negação do mundo tal como ele é. Produz-se
uma idealização da natureza e do espaço, distante da experiência concreta dos
seres humanos, mas adequada ao processo de reprodução do sistema capitalista
em escala mundial.
A natureza aparece cada vez mais como forma ideal de equilíbrio, uma
espécie de paraíso para o qual os seres humanos representam uma grande

6
Ü MUNDO GLOBALIZADO E A QUESTÃO AMBIENTAL ·i~l

ameaça, pois não fazendo parte de sua dinâmica, suas ações são sempre de
construção de desequilíbrios, de decomposição da ordem.
As sociedades também aparecem como conceito abstrato, desprovidas
de materialidade. O espaço produzido ao longo da história, sempre sujeito
às contradições sociais, mergulhado nas disputas do cotidiano, surge como
elemento dado e sem movimento, pronto para ser explorado na sua pleni-
tude, segundo a potencialidade do momento.
Essa oposição entre sociedade e natureza possibilitou a construção de
um modelo de desenvolvimento que imagina a natureza apenas como
fonte de recursos, mas não como limite de ação. O meio ambiente foi de-
composto como totalidade, incluindo aí as sociedades, e em seu lugar foi
construído um conceito de natureza ideal, que inspira uma série de movi-
mentos ambientalistas, mas que se limita a áreas de ocupação humana
restrita e, de outro lado, um mosaico fragmentado de elementos naturais
prontos a serem explorados pelos agentes hegemónicos.
O desenvolvimento das ciências da natureza, e mesmo das ciências
sociais, produzido a partir dessa oposição sociedade versus natureza, con-
tribuiu muito na construção de uma idéia equivocada sobre a relação das
sociedades com o meio onde vivem.
A partir do século XIX, pode-se observar um crescimento muito
grande das ciências na orientação das ações sociais sobre os espaços. No
entanto, a forma pela qual essa orientação se deu esteve sempre ligada ao
modelo capitalista de desenvolvimento em suas diversas fases, consolidan-
do um conceito de natureza que aparece sempre dividido. De um lado,
uma visão da natureza como fonte de recursos a serem utilizados pelos
agentes sociais hegemónicos em larga escala, e sem limites, para a pro-
moção do desenvolvimento econômico. De outro lado, como natureza
"natural, equilibrada e harmônica'' em oposição às sociedades, que deve
permanecer in tocada.
É a construção deste conceito de natureza que Serres denuncia como
uma cultura que possui "horror". Uma concepção que parece incapaz de
perceber as sociedades como parte da construção do mundo, incluindo o

7
·•~ MEIO AMBIENTE, EDUCAÇÃO E EcoTURISMO

meio como parte do processo social de desenvolvimento, e uma natureza


que, por não permitir a presença das sociedades como partes constitutivas
de sua realidade, não pôde se afirmar como parte do processo social.
A ciência, ou a tecnociência, como lembra Milton Santos (2000),
aparece no século XX como o grande paradigma que orienta as ações das
sociedades sobre o meio ambiente. Essa ciência, como foi dito anterior-
mente, deve ser analisada não apenas como forma de conhecimento, mas
como parte de um processo muito mais amplo de desenvolvimento do
capitalismo, como modelo de desenvolvimento.
Sendo parte do desenvolvimento do sistema, e de certa forma, hoje,
a base de seu desenvolvimento, a ciência é produzida majoritariamente
pelos agentes hegemónicos, que dispõem dos recursos necessários à sua
1 produção, e que desta forma determinam uma diminuição das possibili-
dades, pois desenvolvem linhas de pesquisas segundo seus interesses, quase
1
•~ sempre submetidas aos desígnios do mercado .
Essa pesquisa aumenta muito a capacidade de exploração dos recur-
sos naturais 3 , no que diz respeito tanto às quantidades como aos ritmos de
produção, cujos limites são estabelecidos quase exclusivamente pela
demanda de mercado, transformado nos últimos tempos, pela ação das
grandes empresas, em mercado mundial.
Quando o mercado é o centro das ações, o limite de exploração das
riquezas naturais não pode estar nas sociedades e nem no meio produzido
por elas. O grande regulador das ações passa a ser o apetite das grandes
empresas em atos que são progressivamente mundiais.
Neste sentido, considerando a acumulação das grandes empresas,
pode-se concluir que a produção do saber científico, das técnicas e das tec-
nologias pode ser um elemento importante na degradação do meio am-

3
A idéia de recurso natural nos parece muito importante, pois recurso quer dizer: meio para se atin-
gir um fim. Se o capitalismo tem por finalidad e a remuneração do capital, a conversão da natureza
em recurso implica em uma não finalidade própria, mas subentendida como parte do processo de
produção de lucro, sendo, portanto, ilimitada.

8
Ü MUNDO GLOBALIZADO E A QUESTÃO AMBIENTAL ;'}'

biente. No entanto, essa mesma produção científica depende de uma ação


política, o que nos leva a crer que esse processo de produção do mundo
pode ser diferente, e que isso implica em ações sociais e políticas por parte
das sociedades capazes de estabelecer um maior controle sobre essas ações.
Max Weber, em seu trabalho Ciência como Vocação ( 1971), expressa
suas idéias de forma bem interessante com relação à produção científica.
Para ele, a ciência é capaz de produzir explicações para as questões que
os cientistas colocam, buscando a elucidação dos fatos e a verdade. Assim
ela pode interferir na vida do ser humano diretamente, na medida em que
produz conhecimento e transforma a nossa forma de entender os proble-
mas que são apresentados.
Sobre essa interferência, o autor afirma que ela acontece de três for-
mas distintas: contribui para o· controle da vida porque calcula os objetos
com os quais nos relacionamos; cria métodos de pensamento e instrumen-
tos capazes de facilitar processos de compreensão e nos oferece uma maior
clareza sobre os elementos com os quais nos relacionamos e sobre os pro-
blemas que nós construímos.
Uma análise superficial sobre essa questão pode levar a enganos de
naturezas distintas: pensar a ciência pura e simplesmente como um instru-
mento de controle da sociedade, portanto reduzindo-a a instrumento de
poder, ou pensando na sua neutralidade como produtora de verdades.
i\mbas as alternativas são recusadas por Weber. O autor aponta que a ciên-
cia é incapaz de produzir valores, e que portanto ela não é capaz de atribuir
significado a si mesma. Neste trabalho ele levanta que Tolstoi deu uma
resposta simples a essa questão: ''A ciência não tem sentido porque não
responde a nossa pergunta, a única pergunta importante para nós: o que
devemos fazer e como devemos viver?". Não se quer aqui discutir se a ciên-
cia tem ou não utilidade, mas se ela é incapaz de produzir uma verdade que
dê sentido a ela mesma como conhecimento distante da realidade da
sociedade.
Assim, pode-se afirmar que a explicação dos fenômenos pela ciência,
com seus métodos e cânones, não é evidente por si mesma, mas depende

9
['J i M EIO A MBIENTE, EDUCAÇÃO E ECOTURISM O

sempre da construção que a sociedade faz desses problemas e que, uma


vez reconhecidos, têm importante papel nas determinações dos cami-
nhos da sociedade. Por exemplo: "O pensamento jurídico é válido quan-
do certas regras jurídicas e certos métodos de interpretação são reconhe-
cidos como obrigatórios. Se deve haver lei e se devemos estabelecer essas
regras - tais questões não são reconhecidas pela Jurisprudência. Ela só
pode afirmar: para quem quiser este resultado, segundo as normas de
nosso pensamento jurídico, esta norma jurídica é o meio adequado de
alcançá-lo".
Fica claro como essa questão do pensamento jurídico, que no nosso
entender pode ser estendido às outras formas de conhecimento, se define
na sociedade, mas que uma vez consolidado, ele desempenhará importante
papel político segundo suas regras.
Se hoje as técnicas e a ciência ocupam lugar de destaque na cons-
trução do mundo, embora quem defina os caminhos e seu papel neste
mundo seja a política, pensar a questão da globalização da forma pela qual
ela tem se produzido é essencial.
Por meio da ação dos agentes hegemónicos no processo de globaliza-
ção, pode-se verificar a redução da participação das sociedades na determi-
nação política e a concentração do poder nas mãos desses agentes. Assim,
ao enfrentar a questão de que o período técnico científico informacional
corresponde a um aumento da determinação das grandes empresas multi-
nacionais na delimitação dos espaços mundiais, a privatização desses
espaços nos parece elemento-chave na compreensão dos mesmos hoje.
Às grandes empresas é dada a possibilidade de se localizarem em
qualquer lugar do planeta e de gerarem, por meio de sua produção, a arti-
culação desse "lugar" com os demais <<lugares" a partir da formação de um
mercado mundial, que envolve todos esses "lugares" em uma dinâmica
mais ampla e estranha a eles, o global.
O global só se realiza em parte e sempre por meio da intervenção das
empresas globais, alterando a dinâmica e o funcionamento das sociedades
na relação com seus espaços.

10
Ü MUNDO G LOBALIZADO E A QU ESTÃO AMBIENTA L ,:.1,

Milton Santos (2000) nos chama a atenção para a questão das ações
verticais das grandes empresas em oposição às horizontalidades da pro-
dução d as relações sociais na produção de suas vidas, e portanto de seu
meio ambiente.
Para ele, a atuação dessas grandes empresas se dá de forma pontual em
lugares determinados e cuidadosamente selecionados a partir das possibili-
dades de exploração dos recursos e sem vínculos com a realidade local mais
ampla, com os demais elementos que compõem o lugar.
A intervenção das grandes empresas, dos agentes hegemónicos, está
sempre ligada aos desígnios do mercado global e, logo, se orienta a partir
dele. No entanto, ao atuar em determinada porção do espaço, essa inter-
venção redefine boa parte das relações sociais presentes anteriormente
neste espaço, mas não há preocupação com as conseqüências de sua inter-
venção.
Dessa forma essas empresas podem desorganizar a produção social do
espaço, uma vez que seus interesses são pontuais, levar grandes parcelas das
sociedades à miséria e causar a degradação do meio ambiente pela explo-
ração desmedida dos recursos. Quando isso acontece, elas simplesmente
procuram outros lugares para se instalar.
Como ensina Milton Santos:

Os sistemas técnicos de que se valem os atuais atores hegemônicos estão sendo uti-
lizados para reduzir o escopo da vida humana sobre o planeta. No entanto, jamais
houve na história sistemas tão propícios a facilitar a vida e proporcionar a felicidade
dos homens. A materialidade que o mundo da globalização está recriando permite
um uso radicalmente diferente daquele que era a base material da industrialização
e do imperialismo (Santos 2000: 164).

O argumento que parece sustentar esta posição de Milton Santos é


que o tipo de técnica que se desenvolve no atual período pode ser mais
facilmente adaptado às diversas localidades, e que, se houver o desejo de
que isso aconteça, pode-se pensar um novo modelo de desenvolvimento,

11
.,
~ M EIO AMBIENTE, EDUCAÇÃO E ECOTURISMO

que tome por princípio a diversidade da experiência em nosso planeta,


tanto no que diz respeito aos ambientes, como às sociedades. No entanto,
deve-se estar atento ao fato de que hoje ela se impõe freqüentemente com
violência, como determinação externa e desagregadora das ações.
Como pensar esta questão, sabendo-se que o desenvolvimento das
ciências e das técnicas está subordinado em sua maioria aos agentes
hegemónicos, cuja finalidade é o lucro, e que a exploração dos recursos
naturais hoje está vinculada à demanda do mercado mundial?
A resposta implica uma questão que comporta três dimensões princi-
pais: primeira dimensão refere-se à utilização dos recursos técnicos tendo
por finalidade o social; a segunda contempla um maior diálogo entre o saber
científico institucional e os demais saberes, especialmente aqueles associados
com as populações que lidam diretamente com o ambiente; e a terceira esta-
belece uma redefinição da relação das sociedades com a natureza, que incor-
pore os limites impostos por ela, respeitando a sua diversidade e os seus
ritmos, e que coloque o ser humano, e não o lucro, como centralidade.
Na primeira dimensão, é importante lembrar que a ciência, e mesmo
a produção de técnicas, não está plenamente dominada pelos agentes
hegemónicos e que o desenvolvimento do conhecimento produz as
condições e os instrumentos de dominação, mas também abre a possibili-
dade da produção de um saber que é a sua negação, um saber vinculado a
outras lógicas que não a do mercado internacional. Isso é possível porque
pode-se fazer diversos usos dos inventos, mesmo daqueles que parecem ter
utilidades restritas, dependendo de nossa orientação política e ideológica.
Tome-se como exemplo os satélites e os computadores.
Os satélites permitiram às grandes empresas e Estados desenvolvidos
uma grande possibilidade de reconhecimento do planeta. A partir do adven-
to do satélite puderam-se explorar grandes jazidas minerais, aumentando em
muito a quantidade de recursos oferecidos potencialmente ou mesmo colo-
cados em circulação nos diversos mercados nacionais e no mercado mundial.
Na agricultura, os satélites possibilitaram a previsão do comporta-
mento atmosférico, levando a uma nova organização da produção agríco-

12
0 MUNDO GLOBALIZADO E A QUESTÃO AMBIENTAL 2)

la e à distribuição das diversas culturas pelo planeta ao longo do ano. Isso


fez com que inúmeros produtos agrícolas, que tinham uma produção limi-
tada pela localização geográfica ou pela estação do ano, crescessem em
oferta no n1ercado mundial.
Se por um lado a tecnologia possibilita esse aumento na oferta de
diferentes produtos, o aumento da área de plantio acarreta a diminuição
da área de culturas menos valorizadas no mercado internacional. Isso leva
muitas vezes sociedades à fome por carência da oferta de alimentos, porque
vastas extensões de seus territórios são ocupadas com culturas cujo valor é
grande no mercado internacional.
En1 sentido contrário, os satélites possibilitaram também a medição
dos danos realizados ao meio ambiente e mesmo a extensão desses danos
para outros lugares, como, por exemplo: os efeitos do desmatamento da
Amazônia para o clima global ou os efeitos da urbanização crescente na
temperatura e na qualidade do ar das grandes cidades. Somente a partir
deles é que foram possíveis tais correlações, devido ao fato de eles ofere-
cerem maior possibilidade de visualização do conjunto do planeta.
No caso do computador, a difusão de seu uso possibilitou maior
velocidade da produção e articulação entre os diversos lugares, reorgani-
zando uma nova divisão do trabalho. Foi a partir da sua utilização em larga
escala que a administração à distância, a repartição das tarefas em áreas
muito mais amplas do planeta, a programação mais intensa das ações dos
operários mediante a utilização de programas de produtividade, a maior
comunicabilidade e mais pesquisa nos diferentes setores produtivos foram
possíveis, de tal forma que uma verdadeira revolução na organização da
produção mundial se processou nos últimos trinta anos.
Todos esses elementos em conjunto levaram a um processo de acelera-
ção de produção e à formação de um mercado mundial4.

1
É importante lembrar que as técnicas, como mostra o professor Milton Santos (1996), devem
sempre ser pensadas como conjunto técnico de um determinado período e não por técnicas ou
objetos técnicos isolados. Os dois exemplos trabalhados neste texto são apenas ilustrações para a
idéia e não têm a pretensão de serem trabalhados como paradigmas de nosso período.

13
,J) MEIO AMBIENTE, EDUCAÇÃO E ECOTURISMO

Em uma direção completamente oposta, o uso dos computadores


também possibilita maior acesso à informação, maior comunicabilidade
entre os grupos, trocas de informação, e mesmo piratarias nos sistemas das
grandes empresas, revelando situações que até há pouco tempo não seriam
colocadas a público:
A questão central deixa de ser as técnicas, ou mesmo os objetos técnicos,
para ser o uso que as diferentes sociedades fazem desses novos elementos.
Quanto à segunda dimensão, parece necessário um diálogo maior
entre a ciência institucional e os demais saberes. Essa questão é muito
importante, pois quando Serres (1990) denuncia que a cultura tem "hor-
ror" ao mundo, ele se refere a essa produção científica oficial, que não pre-
tende dialogar com os limites presentes no espaço.
Filha da Revolução Industrial, a ciência moderna opera com um con-
ceito de natureza ilimitada, cuja função principal é ser uma fornecedora de
matéria-prima para a produção e o consumo em larga escala.
Essa visão da ciência é hegemónica e poderosa, mas não é única. São
diversos os grupos sociais que detêm saberes sobre o funcionamento da
natureza em suas localidades concretas e que tentam dialogar com a ciên-
cia institucional sem muito sucesso.
Nos últimos anos, há uma série de trabalhos que procuram valorizar
um diálogo maior entre esses grupos e a ciência oficial, movimento este
que permanece ainda como pontual, mas que ganha força a cada dia. Na
Antropologia, tão importante na colonização dos países, na Geografia, na
Botânica etc., têm sido abertos espaços para que os diferentes saberes pos-
sam aparecer como mediação da relação das sociedades com a natureza.
O movimento do capital, no entanto, é muito poderoso e ainda tem
se imposto como forma hegemónica de apropriação da natureza, levando a
grandes problemas nas diversas localidades. O resgate de um diálogo maior
entre os saberes produzidos por essas populações nas suas localidades, quase
sempre mais adequados à realidade do ambiente, parece ser uma condição
importante na reversão do processo de degradação do meio ambiente.

14
Ü MUNDO G LOBA LIZA DO E A Q UESTÃO A MBIENTAL ,~,

A terceira e última dimensão trabalhada é a redefinição da relação da


sociedade com a natureza: que se retire o lucro como a centralidade desta
relação e se coloque o ser humano em seu lugar. É muito comum nos dis-
cursos de diversos grupos ambientalistas a condenação da espécie humana
como agente desequilibrador do sistema mundo.
Esses discursos normalmente desprezam o sistema social em que o ser
hurnano esteve inserido nos últimos séculos, especialmente a partir da
Revolução Industrial, quando se tornou possível a exploração da natureza
em larga escala para troca no mercado internacional. Eles pretendem uma
naturalização dos seres humanos por meio das relações criadas nesse perío-
do determinado.
A informação veiculada por boa parte da mídia, em quase todos os
lugares do mundo, produz esse modelo de desenvolvimento como a única
possibilidade histórica do período atual. No entanto, são diversas as orga-
nizações sociais, e, portanto, variadas as formas de significação e relação
com a natureza, de forma a não considerar o caminho do atual modelo de
desenvolvimento como inexorável. Ele talvez seja hoje o mais potente, mas
parece não ser capaz de se projetar para um futuro, pois exclui grande con-
tingente de população e degrada os ambientes no mundo em geral.

R,eferências Bibliográficas

SANTOS, M. Por uma outra globalização. Do pensamento único à cons-


ciência universal. Rio de Janeiro, Record, 2000.
____ . A natureza do espaço. Técnica e tempo. Razão e emoção. São
Paulo, Hucitec, 1996.
SERRES, M . O contrato natural. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1990.
\VEBER, M. "Ciência como Vocação". ln: Ensaios de Sociologia. Rio de
Janeiro, Zahar, 1971.

15

Você também pode gostar