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Enrique Dussel

Política da
Libertação
arquitetônica
volume 2
POLÍTICA DA LIBERTAÇÃO
ARQUITETÔNICA

Volume II
Enrique Dussel

POLÍTICA DA LIBERTAÇÃO
ARQUITETÔNICA

Volume II

Tradução
Bertilo Brod
Elias Fochesatto
José André da Costa
Paulo César Carbonari (Coord.)

Passo Fundo
IFIBE
2020
© 2020 Instituto Superior de Filosofia Berthier (IFIBE) – Tradução

Título original: Política de la Liberación. Volumen II: Arquitectónica


© 2009, Editorial Trotta, Madrid, España
ISBN 978-84-9879-034-4 (edição espanhola)

Instituto Superior de Filosofia Berthier – IFIBE


Mantido pelo Instituto da Sagrada Família

Diretor Geral: Itacir Bressiani


Diretor Pedagógico: Paulo César Carbonari
Diretor Administrativo: Moacir Filipin
Vice-Diretor Pedagógico: Ésio Francisco Salvetti
Vice-Diretor Administrativo: Iltomar Siviero

Edição: Editora Acadêmica do Brasil


Coordenação Editorial: Paulo César Carbonari e José André da Costa
Capa e Projeto gráfico: Diego Ecker
Diagramação: Wanduir R. Sausen
Revião: Paulo César Carbonari e Ana Paula Araújo Carbonari
Impressão e Acabamento: Meta Impressão e Soluções Digitais LTDA

Rua Senador Pinheiro, 350 – Rodrigues


99070-220 – Passo Fundo – RS

Dados Internacionais de Catalogação na Fonte

D974p Dussel, Enrique


Política da libertação 2 : arquitetônica / Enrique Dussel ; tradução de
Paulo César Carbonari (coord.) ... [et al.]. – Passo Fundo: Editora
Acadêmica do Brasil, 2020.
573 p. ; 25 x 17 cm.

ISBN: 978-65-88324-06-6

1. Filosofia política. 2. Ciência política. 3. Filosofia social. 4. História


da ciência política. 5. Ética. 6. Sistemas políticos. 7. Filosofia da libertação.
I. Carbonari, Paulo César (trad.). II. Título.

CDD: 320.01
CDU: 32:1

Catalogação: Marina Miranda Fagundes - CRB 10/2173


2020
Proibida reprodução total ou parcial nos termos da Lei.
Editora Acadêmica do Brasil
APRESENTAÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA

A tradução do segundo volume da Política da Libertação chega num momento


difícil, de situações profundamente paradoxais. A política está em questão. A
democracia sob ataque. As organizações populares de luta por libertação com
dificuldades. Mas, é também momento de construção de novas alternativas, de
renovar compromissos e de aliançar possibilidades.
A tradução que apresentamos é uma homenagem póstuma a um de seus maio-
res incentivadores, Roque Zimmermann, que nos deixou em fevereiro de 2019.
Ele nos ajudou no primeiro volume e nos incentivou neste. É também um dos
últimos atos do Instituto Superior de Filosofia Berthier (IFIBE), cujas atividades
acadêmicas foram encerradas.
Os esforços de tradução são sempre muito difíceis: o dizer não é único e nem
mesmo uniforme num idioma e noutro. Há que se lidar com o modo próprio do
autor dizer, nem sempre exprimível em língua distinta àquela da produção origi-
nal, ainda que se busque preservar no melhor a autoria.
A versão da obra política de Enrique Dussel para a língua portuguesa, como já
fizemos com o primeiro volume, o aproxima ainda mais a um universo mais amplo
de leitores e leitoras. Sua importante e necessária proposta abre a novas possibili-
dades de pesquisa.
Este volume, chamado de “Arquitetônica”, completa o primeiro, a “Histórica”.
Pretende indicar o que o sistema entende por política no seu sentido “ontológico e
normativo”. A exposição é “abstrata e introdutória”. Pretende dar conta da “ordem po-
lítica vigente” e que haverá de ser “sistematicamente desconstruído na parte Crítica”, a

5
terceira, já amplamente prometida, ainda não publicada. Busca, de modo amplo e
profundo, apresentar o que chama de “pretensão política de justiça”.
A filosofia da libertação encontra terreno fértil no Brasil e nele está presente
desde o final dos anos 1970. Várias obras referenciais já foram traduzidas, além
de haver com elaboração de autoria brasileira em vários campos da filosofia. Este
segundo volume da Política da Libertação vem para contribuir com a ampliação
do conhecimento da filosofia da libertação e, particularmente, do pensamento de
Enrique Dussel.
Agradecemos profundamente à equipe que se somou no exercício deste traba-
lho. Agradecemos aos colegas do Instituto Superior de Filosofia Berthier (IFIBE)
e da Associação Filosofia e Libertação Brasil (AFyL Brasil) pelo apoio. Agrade-
cemos particularmente a Enrique Dussel por nos ter confiado esta tarefa. Desde
já pedimos desculpas por imprecisões ou problemas sempre possíveis num em-
preendimento desta envergadura. Pedimos que, ao encontrarem algum proble-
ma, nos comuniquem para que providenciemos sua revisão em edições futuras.
Cumprimos e seguiremos cumprindo esta tarefa num mutirão de construção de
conhecimentos e de práticas políticas favoráveis aos processos de luta e de organi-
zação pela libertação.
Esperamos que, acima de tudo, leitores e leitoras, pesquisadores e pesquisa-
doras, lutadores e lutadoras populares, enfim, todos e todas quantos e quantas
tomarem conhecimento desta obra, encontrem nela inspiração e apoio para que
se engajem na realização do que ela propõe como a principal obra da política: a
realização da pretensão política de justiça para aqueles e aquelas para os e as
quais a justiça ainda sequer chegou como promessa.

Passo Fundo, RS, dezembro de 2020.

Paulo César Carbonari


Coordenador da Equipe de Tradução

6
SUMÁRIO

Prólogo.................................................................................................................... 11
Introdução - Desdobramento Arquitetônico do Poder Político.......... 21
§ 13. O poder político na modernidade. Momentos analíticos de
uma arquitetônica do político.................................................................... 21
1. O poder político como estratégia da dominação.............................................. 22
2. Interpretações redutivas do político.................................................................. 25
3. Complexidade arquitetônica necessária, mínima e suficiente........................ 39
§ 14. A vontade como fundamento. A potentia e a potestas................................. 49
1. Anterior à Vontade de Poder: Schopenhauer, Nietzsche, Heidegger........ 49
2. Da potentia à potestas: um conceito ontológico positivo de poder?............. 66
§ 15. O “acontecimento” fundacional.................................................................. 75
Capítulo 1 - A ação política no nível estratégico........................................ 91
§ 16. Definições prévias........................................................................................ 91
1. O “campo político”............................................................................................... 92
2. A intersubjetividade entre o “público” e o “privado”.
Do “sujeito” ao “ator”......................................................................................... 100

7
§ 17. A ação estratégico-política........................................................................... 112
1. Max Weber, Hannah Arendt e a ação estratégica......................................... 116
2. O conceito do político em Carl Schmitt............................................................ 122
3. A hegemonia em Ernesto Laclau...................................................................... 130
§ 18. O poder consensual político........................................................................ 147
§ 19. O “bloco histórico no poder” como estrutura
sociopolítica estratégica............................................................................. 168
Capítulo 2 - Nível político-institucional....................................................... 187
§ 20. Definições prévias........................................................................................ 187
1. “Eros” e “instituição”........................................................................................... 188
2. Disciplina e alienação em toda instituição....................................................... 197
3. O “civil” e o “político”. “Estado de natureza” e “estado civil”
ou “político”......................................................................................................... 207
4. A “diferenciação” institucional do poder.......................................................... 211
5. As “três esferas” de diversos tipos de instituições políticas.............................. 220
§ 21. A esfera material da política: os momentos ecológico, econômico
e cultural........................................................................................................ 223
1. A articulação dos campos................................................................................... 223
2. “O social” e “o político”....................................................................................... 230
3. A subesfera ecológica........................................................................................... 239
4. A subesfera econômica........................................................................................ 242
5. A subesfera cultural............................................................................................. 254
6. Os “movimentos sociais”..................................................................................... 260
§ 22. A esfera da factibilidade sistêmico-institucional (O macrossistema
institucional do poder político e as microestruturas
da sociedade civil)....................................................................................... 267
1. A “sociedade civil” e a “sociedade política”...................................................... 269
2. A instituição do Estado como “sociedade política”.......................................... 277
3. As estruturas da “sociedade civil” (o Estado em sentido ampliado)............. 298
4. Os partidos políticos............................................................................................ 302
§ 23. A esfera formal da legitimidade (O Estado de Direito e a
opinião pública política)............................................................................. 307
1. A discursividade da política. Soberania e legitimidade.................................. 308

8
2. Do poder indeterminado (potentia) à sua diferenciação
como legislativo................................................................................................... 316
3. O sistema do direito............................................................................................ 329
4. O poder judiciário: o “estado de direito”.......................................................... 341
5. A opinião pública e política: o consenso ativo. A manipulação
economicista da mediocracia............................................................................. 354
Capítulo 3 - Os princípios implícitos fundamentais:
a normatividade da política...................................................... 363
§ 24. Definições prévias........................................................................................ 366
1. Os princípios políticos operam implicitamente................................................ 366
2. Princípios, postulados, utopias e projetos políticos........................................... 374
3. Ética e princípios normativos da política......................................................... 377
4. Distinção entre fundamentação e justificação ou aplicação
dos princípios políticos........................................................................................ 401
5. Articulação arquitetônica dos princípios.......................................................... 406
6. Coerência ética do político. Permanência do ético no político....................... 415
§ 25. O princípio democrático: Igualdade........................................................... 422
1. A razão político-discursiva................................................................................. 422
2. A vontade que reconhece a igualdade.............................................................. 424
3. O Princípio Democrático................................................................................... 426
4. Os postulados políticos (positivos)...................................................................... 444
5. Phrónesis monológica e discursividade comunitária....................................... 449
6. Das “ formas de governo” aos “modelos de democracia”................................ 459
7. Os sistemas políticos democráticos concretos.................................................... 466
§ 26. O princípio material da política: Fraternidade......................................... 469
1. A razão político-material................................................................................... 470
2. Conatio vita conservandi: fraternidade e dikaiosyne..................................... 477
3. O Princípio Material da política...................................................................... 487
4. Os postulados político-materiais........................................................................ 504
§ 27. Princípio de factibilidade estratégico-político: Liberdade.......................... 506
1. A razão estratégico-política................................................................................ 506
2. A vontade temporalizada: como disciplina (sophrosyne)
e como fortaleza.................................................................................................. 510

9
3. O Princípio de Factibilidade Estratégica.......................................................... 511
4. Postulados políticos. Liberdade.......................................................................... 523
5. A aplicação do Princípio de Factibilidade Política:
a pretensão política de eficácia.......................................................................... 524
Conclusão da Arquitetônica A ordem ontológico-política..................... 533
§ 28. Pretensão política de justiça........................................................................ 535
1. Em que consiste a pretensão política de justiça?.............................................. 537
2. Permanência da ordem política........................................................................ 542
Bibliografia citada................................................................................................ 547
Índice alfabético de alguns temas e autores................................................ 565
Índice de esquemas.............................................................................................. 571

10
PRÓLOGO

Na Arquitetônica da Política da Libertação trataremos do momento ontológico


e normativo da política (como práxis realizada num campo específico estruturado
por instituições). A filosofia originária – desde a Mesopotâmia ou o Egito, desde
os fenícios, os gregos, os chineses ou hindus, ou os relatos míticos da Mesoamérica
aos Incas – sempre teve a política como seu ponto de partida. Pensavam de modo
cosmopolita e a realidade era observada como um imenso sistema político-astro-
nômico. Empreendamos, pois, nossa tarefa reconstrutiva.
Na Arquitetônica vamos expor de maneira abstrata e como introdução ao volume
da Crítica,1 de maior complexidade e mais concreta, uma descrição fundamental,
ontológica, dos momentos que têm relevância para uma política global, planetária,
mas observada de maneira especial desde a periferia, desde o Sul, e particularmen-
te desde a América Latina. Será uma exposição que fará o desdobramento do poder
político que ocupará o campo político até chegar ao final da Arquitetônica tendo
dado conta suficientemente, considerando os momentos necessários de uma “or-
dem política vigente”, o que se apresenta de uma maneira abstrata e ainda sem con-
tradições, sem conflitos, metodicamente postergados para a seção Crítica seguinte
(terceiro volume). O que viermos a ter escrito teoricamente nesta parte será siste-
maticamente desconstruído na parte Crítica, que, partindo, como já indicamos, de
uma maior complexidade, conflitiva, dará conta, assim, das estruturas mínimas de
uma Política da Libertação. Será uma “ascensão do abstrato ao concreto”.

1 Trata-se do volume III desta Política da Libertação [N.T.: ainda por sair em espanhol]. Foi
antecipado, de algum modo, nas Tesis 11 a 20 de 20 Tesis de Política (Dussel, 2006). [N.T.: Tesis
foram traduzidas no Brasil pela Expressão Popular em parceria com Clacso: Teses de Política].

11
Karl Marx, para sintetizar o trabalho que empreendeu no campo econômico,
escreveu que a tarefa que lhe cabia executar consistia “na crítica geral (allgemeine
Kritik) de todo o sistema (Gesamtsystems) das categorias econômicas [burguesas]”.2
Desenvolveu esta crítica por meio da construção de um novo sistema de categorias
econômicas cuja ordem era regida pelo método que partia da exterioridade do sis-
tema ou do excluído oculto (o trabalho vivo e, a partir deste, a mais-valia) para des-
crever as categorias fenomênicas fundadas mais superficiais (como as de valor de
troca ou ganho). O fundado é o que aparece. O fenômeno que se manifesta, se não é
fundado adequadamente, torna-se fetiche. O ganho que diz proceder do capital (e
não do trabalho vivo) vira fetiche. Quer dizer, pretende fundar-se em si mesmo (no
capital), cortando toda relação com seu fundamento (o trabalho vivo, que é a fonte
criadora da mais-valia). Na economia política burguesa as categorias usadas pelos
economistas estavam fetichizadas: passava-se desordenadamente de uma a outras,
dando saltos e cometendo contradições. Era um discurso puramente ideológico.3
Agora é possível realizar o mesmo processo na filosofia política, observando a
analogia epistêmica necessária. Poderíamos dizer, então, que neste volume e no que
a ele se segue, o que empreendemos é a construção crítica geral de todo o sistema das
categorias das filosofias políticas burguesas modernas. Na política, como é evidente, o
ponto de referência fundamental desde o qual irão sendo construídas as categorias
mais pertinentes já não será o mesmo daquele do campo econômico. De quais
categorias parte agora o discurso?
Assim como a crítica da economia política de Marx partia da “comunidade
de viventes”, dos que trabalham, e onde cada trabalhador era considerado como
“trabalho vivo”, o que permitia precisar a primeira disjunção: entre trabalho vivo e
trabalho objetivado (o qual, em seu desenvolvimento, funda a distinção entre valor
de uso e valor de troca, em cuja disjunção originária se estribaria toda possibilidade
de fetichismo ou exploração econômica), da mesma forma, a crítica da filosofia
política da libertação parte de uma categoria fundamental que organizará todo o
sistema das categorias restantes. Esta categoria é a do poder político, que se cinde
pela diferença ontológica originária entre o que denominaremos potentia4 (o poder
político ainda em si, na comunidade política ou no povo) e potestas5 (o exercício
delegado do poder político institucionalizado). A potestas, por sua vez, se cinde
novamente entre o exercício obediencial do poder delegado, exercício realizado pe-
las ações e no cumprimento das funções das instituições políticas que respondem

2 Manuscritos del 61-63 (Marx, 1975, II, 3, p. 1385; ed. esp., 1975, vol. 3, p. 226).
3 Estudamos este assunto em nossas obras de filosofia econômica (Dussel, 1988 e 1990).
4 Abordaremos esta questão nos §§ 14 e 30.
5 Ver os §§ 14, 20.4, 30 e 40.

12
às exigências da comunidade política, do povo.6 Seria o poder obediencial institu-
cionalizado. Este se cinde, por seu turno, na possibilidade do exercício do poder
que se afirma a si mesmo sem referência à potentia. A autorreferência, como última
instância da potestas, é o exercício fetichizado ou corrompido do poder político.
Quando o ator político, que exerce o poder institucionalizado (seja um rei, um re-
presentante, uma elite política), afirma-se a si mesmo como a sede da soberania, da
autoridade ou como última instância do exercício do poder para seu benefício, ou
do seu grupo, de sua classe ou de sua facção, isto é, quando se desliza do exercício
obediencial à autoafirmação do poder desde si, origina-se ontologicamente a fetichi-
zação, a corrupção, a desnaturalização, do poder que passa a ser dominação, despo-
tismo e tirania. A autonominação ou oposição da potestas (a aparência fenomênica)
da potentia (seu fundamento ontológico) é a dissolução da política enquanto tal.7
Pode-se entender, portanto, que nos países coloniais ou pós-coloniais, antes
da sua emancipação, suas elites políticas sempre exerceram o poder em benefício
das metrópoles estrangeiras, dos grupos dominantes, mas nunca como exercício
delegado do poder obediencial em relação à própria comunidade política ou do
povo do qual apareciam como governantes. A estrutura de corrupção política mo-
derna que reinou durante cinco séculos foi o colonialismo europeu, e recentemente
dos Estados Unidos, que ensinava e obrigava as elites políticas periféricas a trair
suas comunidades políticas, seus povos, para exercer o poder para outros (como
recentemente, numa situação de dependência neoliberal, Carlos Menem ou Car-
los Salinas de Gortari). A potestas (o Estado, em última instância) era um meca-
nismo fetichizado de poder despótico, contra sua própria comunidade política,
contra seu povo (contra a potentia).
Se devêssemos antecipar num só enunciado o que seria o político, diríamos
simplesmente que é o desdobramento do poder político8 (tal como o iremos descre-
vendo) em todas as suas dimensões, níveis, sistemas e esferas, basicamente como
potentia (o poder da comunidade política ou, criticamente, do povo), expressa como
potestas (como a determinação institucional da primeira), disjunção (Entzweiung
ou Diremtion) necessária, inevitável e ambígua por excelência de toda a política.
Trata-se de uma Arquitetônica. Com isso não propomos um sistema teórico
fechado. Ao contrário, trata-se de um marco teórico dos temas mais urgentes, mais
pertinentes, exigidos pela experiência global, planetária, no começo do século
XXI, organizados suficientemente dentro de uma certa lógica ad hoc, a fim de

6 Sobre o conceito crítico de povo ver o § 38 da Crítica (volume III desta Política da Libertação).
7 Ver as 20 Teses de Política (Dussel, 2006).
8 Hegel assinalaria que é “o desenvolvimento do conceito do poder”. Mas não se trata somente
de um conceito teórico, de uma definição e, sim, de uma realidade que vai ocupando todo o
campo político, em diversos níveis, esferas e sistemas, que entrarão em conflito e se trans-
cenderão historicamente. A palavra “desdobramento” (Entfaltung) quer expressar tudo isso.

13
poder ordenar a discussão argumentada (ante os especialistas), o debate e o ensino
(entre os militantes) e a leitura instrutiva (para o cidadão culto). É uma arquitetô-
nica aberta a novos temas, a uma nova possibilidade de construção de conceitos ou
categorias interpretativas, de acordo com a novidade que a história vai nos indi-
cando. Neste momento pensamos esta arquitetônica localizados na periferia mun-
dial, desde um “giro descolonizador” (recordando o “giro linguístico” estudado
por R. Rorty ou o “giro pragmático” de K.-O. Apel) que exige uma nova descrição
de todos os momentos da filosofia política pensada até o presente desde Europa e
Estados Unidos e, além disso, eurocentricamente, o que indica não somente o lugar
de onde é pensada, mas também o modo de pretender elevar a perspectiva europeia
como a interpretação universal válida para todos os outros lugares hermenêuticos.
Estaremos muito atentos para recordar sempre o lugar desconstrutivo que adota-
remos em nossa descrição político-categorial.
A esta Arquitetônica lhe seguirá uma Crítica (volume III). Esta divisão da ma-
téria de reflexão na construção das categorias políticas se nos foi impondo lenta-
mente na medida em que queríamos ordenar o material para a exposição, tarefa
que nos tomou vários anos. Na Arquitetônica, metodicamente abstrata e, portan-
to, descartando a complexidade requerida numa consideração mais concreta, se
constituirão as categorias fundamentais, desde um vocabulário ontológico básico,
para saber o que desconstruiremos na Crítica, metodicamente mais concreta, mais
complexa e, por isso, enfrentando contradições, conflitos e maior dificuldade na
descrição empírica. Não obstante, esta distinção metodológica nos poupará de en-
trar diretamente na Crítica sem antes ter estabelecido aquilo que se critica. É, en-
tão, pedagógica, metódica e eficazmente necessário ir do simples ao complexo, do
abstrato ao concreto. Karl Marx diz que o método consiste em “ascender do abs-
trato ao concreto”9 e tê-lo-emos estritamente em consideração. Na Arquitetônica
se evitará tratar as contradições, os conflitos e o exercício do poder como domina-
ção. Desdobraremos um sentido ontológico do poder político positivamente. Na
Crítica, com maior complexidade, a potestas se cindirá. Quando os “que mandam
mandarem mandando”, aparecerá o fetichismo da dominação. Ao passo que quan-
do os “que mandam mandarem obedecendo”, se tratará do pleno desdobramento da
potestas como exercício delegado legítimo em favor do fortalecimento da potentia,10
o que denominaremos exercício obediencial do poder.
Seguiremos uma arquitetônica semelhante à usada na Ética da Libertação
(Dussel, 1998) cujos primeiros capítulos tratavam da ordem ontológico-funda-
mental, enquanto que, a partir do Capítulo 4 (Segunda Parte), entrava-se na ex-
posição de uma ética crítica desde a exterioridade do Outro, desde os explorados

9 Grundrisse. Caderno M (Marx, 1974, p. 22).


10 Ver § 13-14, mais adiante, e Dussel, 2006.

14
e excluídos. De modo análogo, seguiremos os mesmos passos metodológicos no
campo político, na arquitetônica global da política da libertação. Remetemos, então,
à Ética, na qual se descrevem os princípios e as categorias necessárias básicas para
compreender esta Política, que não é senão o exercício da práxis e da organização
institucional num campo prático particular. De passagem, devemos indicar que
metodologicamente estamos mostrando como cada campo prático (econômico,
ecológico, cultural, racial, de gênero, familiar, esportivo, religioso, militar, etc.)
as regula para subsumir as categorias éticas em seu campo respectivo. Nossa Ética
(Dussel, 1998) seria o nível abstrato, o analogado principal, de todos os campos prá-
ticos. Nesta Política da Libertação desdobraremos um marco teórico mínimo para
poder pensar filosófica e radicalmente a problemática política (sob as ciências po-
líticas já que é possível pensar seu fundamento ou os princípios epistemológicos
primeiros). Uma vez concluída esta Arquitetônica e Crítica, o leitor, o estudioso
crítico desta obra, terá (este é, ao menos, meu propósito) este marco teórico míni-
mo para poder pensar qualquer problema político empírico e concreto, devendo,
é evidente, fazer uso das mediações necessárias, sejam elas epistêmicas, técnicas
específicas e bibliográficas, para poder articular o nível abstrato deste marco teó-
rico com o subcampo específico do tema singular sobre o qual pretende refletir.
Se, por exemplo, se intenciona estudar de maneira mais detalhada a questão da
democracia, não somente se deverá lançar mão nesta Política da Libertação dos
§§ 23, 25, 34 e 41, mas se deveria igualmente fazer referência ao tema tal como o
trata a ciência política, a teoria da comunicação eletrônica, a história institucional,
etc., para poder estudar melhor os modelos existentes de democracia, para poder
idealizar novos modelos, para investigar os sistemas concretos e as possibilidades
de transformação, tendo em conta os condicionamentos sociológicos, econômicos,
históricos, etc. A filosofia política permanece num nível fundamental e abstrato
(que nada tem a ver com o simplesmente irreal).
Esta Política da Libertação, portanto, ajudaria na classificação (e dando material
para o debate, a discussão) das categorias mais abstratas, primeiras, básicas, que
seria conveniente que o cidadão da rua, o militante dos partidos, os representantes
que exercem o poder delegado tenham problematizado ainda que inicialmente.
Nos sentiríamos plenamente recompensados de tantos sacrifícios suportados na
confecção desta obra que, de todo modo, nos agradou e que desenvolvemos entu-
siasticamente, se para alguns serviu no sentido indicado.
Ante a corrupção das burocracias políticas (continuamente tentadas pelas bu-
rocracias burguesas privadas econômicas no plano global ou no dos Estados parti-
culares) se faz mais necessário do que nunca recolocar de maneira nova a questão
dos princípios normativos da política. Desde já desejamos indicar a importância
dos capítulos 3 e 4 desta Arquitetônica e Crítica, onde abordaremos a questão. Toda

15
corrupção é fruto de uma “inversão” ontológica fundamental: tomar a potestas
(mero exercício delegado do poder de um representante por meio de uma insti-
tuição), como o lugar onde reside a autonomia, a autodeterminação, a soberania,
a autoridade como exercício do poder que pertence ao representante, em última
instância fetichizando-se, sem referência à potentia (o poder cuja sede é o povo,
do qual emana o poder institucional da potestas). Fetichizado o poder delegado
da representação, toda outra corrupção é possível (desde o prazer patológico por
seu exercício egolátrico ou despótico até o uso de dito exercício do poder para
o próprio benefício ou enriquecimento). Por isso, os princípios normativos são
necessários para clarificar, recordar e explicar esta originária “inversão” ou este
deslocamento da referência última do poder.
Um certo antifundacionalismo ou antiprincipialismo pós-moderno tem criti-
cado a possibilidade de que a política tenha princípios universalmente válidos. E
se houvesse princípios, estes somente poderiam ser particulares ou somente ser
regras estratégicas de validade regional. Isto leva os agentes, os cidadãos, e princi-
palmente os representantes, a não perceber o momento em que se cai na corrupção
e a não claramente discernir onde e quando se encontra a própria origem da cor-
rupção. Quando um político profissional tenta identificar (a) a mera legalidade do
não cometer um “erro técnico” (erro de quem rouba seria o ter-se deixado filmar
num vídeo e, por isso, ter permitido a existência de uma prova quando fosse acusa-
do; evitar o erro teria sido não ter se deixado filmar e, graças a isso, aparecer como
inocente diante da opinião pública, embora tenha roubado) com (b) o cumprimen-
to da exigência normativa (que o obriga como representante a exercer o poder
em favor da comunidade que representa e, por isso, não roubar nunca, seja ou não
seja filmado), significa que já foi corrompido o exercício do poder. É por isso que
a questão dos “princípios normativos” se transformou numa problemática central
da política atual. Contudo, frequentemente procura-se fazer a fundamentação de
tais princípios sobre “valores” incertos ou em exigências puramente externas, le-
gais ou formais – sem motivação profunda na subjetividade do ator – e, por isso,
não tem consequências reais. Por outro lado, não se pode confundir a incerteza
própria de cada ação estratégico-política inevitável – em virtude da finitude da
condição humana – com a existência de uma normatividade universal que legiti-
ma a ação ou a instituição política diante dos atores, diante das instituições legais
e diante da história e, por isso, como veremos no capítulo 3, constitui intrinseca-
mente a consistência do poder, a ação e as instituições políticas. Existem muitas
aporias mal colocadas.
Portanto, e repetindo, um certo ceticismo no campo político nega que a políti-
ca tenha princípios normativos (e não digo éticos) diante do perigo de cair numa po-
sição dogmática que defenderia, por outra parte, uma certeza impossível de toda

16
ação política. Princípios universais e incerteza na decisão política não se opõem.
Seria, porventura, possível a luta pela hegemonia se se assassinasse o “antagonista”
[opositor] (na terminologia de Ernesto Laclau)? Ou seria possível a permanência
do político se se impedisse toda liberdade física ao “inimigo” político (tal como o
entende Carl Schmitt)? Respeitar a vida do antagonista político, de quem não é
um inimigo total,11 permite que o campo estratégico-político fique aberto à ação
política. Se alguém assassinasse o antagonista (em referência ao primeiro prin-
cípio) ou se o privasse da sua liberdade e participação simétrica (com respeito ao
segundo princípio) ou se tentasse uma ação empiricamente impossível (como no
caso de um certo anarquismo extremo: temática do terceiro princípio), o campo
político ficaria anulado, se fecharia ou se transformaria num outro tipo de campo.
Seria um horizonte de ações totalitárias, autoritárias, manipuladoras, etc., que
deixaram de ser “políticas” no sentido estrito. O campo político pressupõe onto-
logicamente sempre a priori certas condições universais normativas, vale dizer,
necessárias para que a ação política e a instituição sejam políticas e não outra
coisa. Admitindo a importância de reconhecer a inevitabilidade da contingência,
da incerteza, diante de um Richard Rorty, Javier Muguerza ou Carlos Pereda, afir-
maremos, por isso mesmo, os princípios normativos como marcos da ação para
que, no nível da contingência (que denominaremos o nível A), dita incerteza seja
politicamente possível, isto é, razoável, coerente, no longo prazo (no sentido da vir-
tù12 que permite ao príncipe estabelecer na duração do tempo um estado de coisas
sustentável diante da pura fortuna, como propõe N. Maquiavel), e não puramente
caótica, contraditória ou destrutiva. Universalidade (no nível C) e incerteza (nos A
e B) não se excluem; e, sim, se articulam e se codeterminam em política.
Diante das dificuldades de fundamentação da filosofia política com conteúdo
material (como a da política tradicional do tò koinòn agathón de Aristóteles, do bo-
num commune de Tomás de Aquino, do Estado orgânico como Sittlichkeit de Hegel,
do utilitarismo, dos valores de um Max Scheler ou do “Estado de bem-estar”),
uma certa tradição neokantiana, seja a filosofia liberal (neocontratualista como
a de John Rawls ou anarquista conservadora como a de Robert Nozick) ou uma
procedimental discursiva (como a de Jürgen Habermas) se inclinaram a desfazer

11 O critério que diferencia o inimigo público ou político do inimigo total na guerra é jus-
tamente o não colocar em risco a vida ou certa liberdade do outro. Na política, o “Não
matarás o antagonista!” é constitutivo da política enquanto política: não é somente um
momento crítico extrínseco e, sim, é constitutivo do estratégico enquanto estratégico (caso
contrário, a ação estratégico-política se transformaria numa ação meramente técnico-mi-
litar da razão instrumental, como veremos mais adiante). Desde antanho, a tékhne militar
(razão instrumental) se diferencia da phrónesis política (razão prático-estratégica). Esta
última, incluía no antagonismo político certa fraternidade patriótica.
12 Seriam, no nosso caso, as instituições e princípios (níveis B e C), como se verá mais adiante.

17
toda política material (sustentada por K. Marx, por exemplo), seja por particula-
rista ou impraticável para o exercício de uma democracia pluralista e tolerante,
seja por confundir a necessária ação política com a pura determinação econômica
(distinção exigida, entre outros, por Max Weber e analisada por Ernesto Laclau
em favor da social-democracia). Ao se erradicar do campo político as determina-
ções ecológicas, econômicas ou culturais (que são campos materiais que cruzam o
campo político), se isola a política exclusivamente na esfera da legitimidade formal
democrática, das estruturas institucionais do direito, da mera participação con-
tratual (J. Rawls) ou discursiva (J. Habermas) do âmbito público.
Isto poderia ser aceitável, quiçá, em países do centro do capitalismo tardio,
com um “estado de direito” suficiente que, por serem altamente desenvolvidos,
garantem, por isso, a sobrevivência, ao menos suficientemente, da totalidade dos
cidadãos. Legítimo seria o que cumpre as exigências legais ou procedimentais do
sistema político, do exercício do poder comunicativo num “estado de direito”. Mas
isto parece ser insuficiente para uma filosofia política que reflita desde a situação
real do planeta Terra, dos países pobres e periféricos, subdesenvolvidos, que são a
grande maioria da humanidade atual. Na América Latina, África, Ásia e a Europa
oriental (desde 1989), o “estado de direito” é sumamente precário e a simples so-
brevivência não está garantida de nenhuma maneira para a maioria da população
nos limites territoriais de cada Estado. Neste contexto descobrimos a necessidade
de uma reflexão crítica dentro do horizonte da filosofia política atual.
No México, Emiliano Zapata defendia um princípio material político claro,
decisivo, que lhe permitia julgar normativamente as ações, os amigos e inimigos e
as instituições: “A terra para os que a trabalham com suas mãos!”. Este princípio,
ligado à vida nua e concreta dos camponeses de Morelos, que se originou com lutas
centenárias dos Tlauicas – etnia dos Zapata que já haviam lutado por suas terras
contra os Astecas –, em Anenecuilco (não distante de Oaxtepec, onde escrevo esta
Política), legitimado por códices ameríndios, cédulas reais e escrituras do tempo
dos liberais do século XIX, se fez eficaz, política e tecnicamente mediado, quando
E. Zapata, para ter uma honesta pretensão política de justiça, empunhou as armas
para defender este mesmo princípio. Com este princípio normativo tão simples, o
quase analfabeto E. Zapata pôde julgar clara e politicamente as ações e intenções
de três presidentes do México (Madero, Huerta e Carranza), de seus suplentes
e de seu povo. Os princípios normativos, sempre implícitos (embora, no caso de
Zapata fossem formulados explicitamente), eram luz normativo-política na ação
estratégica e na criação, estabilização ou transformação das instituições do Cau-
dilho do Sul. Dizem que seu irmão Eufêmio, ao chegar à cidade de México (a dos
antigos Nahuas) e ao entrar no palácio presidencial junto ao Zócalo, a praça maior,
não longe da grande Pirâmide dos Astecas, buscou com afã a cadeira presidencial

18
com a intenção de queimá-la e exclamando: “Esta cadeira está endemoninhada:
nela se senta gente honesta e se corrompe!”. Quem se sentou pela primeira vez nun-
ca havia exercido o poder. Uma vez sentado nela, iniciava o exercício delegado do
poder do povo. De tanto sentar-se nela, começava a se habituar em seu exercício e
esquecia que devia ser um exercício delegado. Neste momento, se fetichizava o poder
e a cadeira endemoninhada transformava o ator num político corrupto.
A política sem princípios normativos produz necessariamente esta alquimia
invertida, a potestas se transforma em dominação contra a potentia, debilitando-a
para dominá-la. Mas, ao eliminar a fonte da sua regeneração, a própria potestas se
corrompe, perde força e termina por desmoronar-se. A estátua, cuja cabeça e tron-
co são de ouro, de bronze e de ferro (a potestas), tem seus “pés de barro” (a potentia
corroída do povo se restabelecerá um dia e deixará ruir a estátua feita pedaços,
como o povo italiano destroçou o próprio corpo de Benito Mussolini).
Desejamos fazer um último esclarecimento. Na nossa leitura dos clássicos, no
volume I desta Política da Libertação, descobrimos problemas, temas, categorias.
Por exemplo, B. Spinoza sugeriu-nos a distinção entre potentia e potestas; o próprio
Rousseau, no caso da volonté générale, o tema do poder como vontade. Contudo,
sempre teremos em conta o estado real, atual e empírico da questão que tratamos
na América Latina ou no mundo contemporâneo, de modo que as palavras dos
clássicos ganham outro significado em nosso discurso. Assim, o conceito de poder,
além das sugestões de Spinoza ou Rousseau, inclui o conceito de Vontade-de-vida,
mas que não será idêntico ao de A. Schopenhauer e, ademais, inclui também a
razão discursiva e a factibilidade instrumental em sentido próprio. Não é a mera
expressão de uma correta leitura ou interpretação dos clássicos (própria do eru-
dito conhecedor da história), mas o desdobramento da sugestão no tratamento da
questão que se origina num clássico. Nenhuma categoria desta arquitetônica polí-
tica, por conseguinte, corresponderá com extrema exatidão a qualquer categoria
tal como a define algum clássico: no interior do discurso da Política da Libertação
todas as categorias adquirem novo significado. Nosso discurso terá produzido em
todas elas uma ressignificação semântica. O clássico nos sugere problemas, temas,
distinções, mas não nos obriga a tomar determinada categoria clássica no sentido
que teve no passado em seu discurso singular. Não deveríamos ser atacados por
termos realizado uma exegese incorreta de um clássico (porque tal exegese não é
nossa intenção, o que seria algo como ir cosendo muitas posições ecleticamente
reunidas num discurso incoerente), mas por não termos usado adequadamente a
sugestão do clássico ou por não ter aproveitado alguma das suas possibilidades
atuais, ainda que sempre tendo como ponto de referência a realidade política
presente latino-americana, periférica ou global contemporânea e não somente os
textos dos clássicos.

19
Recomendamos ter à mão minha pequena obra 20 Teses de Política (Dussel,
2006), livro que escrevi depois de realizar a investigação exposta nesta Arquitetônica.
Nas Teses 1 a 10 está o desenvolvimento da construção das categorias deste volume.
Faremos referência à tese correspondente na medida em que a exposição avance.

Enrique Dussel
Departamento de Filosofia
Universidade Autônoma Metropolitana Iztapalapa
Cidade do México (2002-2007)

20
INTRODUÇÃO
DESDOBRAMENTO ARQUITETÔNICO
DO PODER POLÍTICO

§ 13. O PODER POLÍTICO NA MODERNIDADE. MOMENTOS


ANALÍTICOS DE UMA ARQUITETÔNICA DO POLÍTICO
[242]13 Neste parágrafo inicial abordaremos três temas. Por um lado, o desdo-
bramento de um modo próprio do exercício do poder político da Modernidade que
se imporá como sua natureza desde Ginés de Sepúlveda ou Th. Hobbes, passando,
de alguma maneira, por Kant, até chegar a Max Weber. Deveremos desconstruir
esta conceptualização redutiva do poder e, portanto, do político enquanto tal. Por
outro lado, tentaremos descrever algumas interpretações do que seja o político
em alguns filósofos que, de maneira equívoca, caem no que nominarei uma falácia
redutiva; isto é, descrevem o político nalgumas de suas determinações que indicam
um aspecto do assunto, mesmo pretendendo que esta seja uma determinação es-
sencial, fundamental e única da definição. Perdem, assim, a complexidade do po-
lítico, impedindo de ver aspectos ante os quais mostram uma cegueira específica.
Nossa interpretação, inevitavelmente, poderá cair igualmente em unilateralismos,
mas tentaremos sempre nos abrir a uma complexidade necessária (mínima, então),
mas suficiente (considerando os momentos requeridos, ao menos para descobrir os

13 A numeração dos parágrafos entre colchetes é continuação da constante no volume I da


Política da Libertação (Dussel, 2007).

21
aspectos políticos que uma política pós-colonial, periférica, de autodeterminação
dos povos, quer dizer, que uma política da libertação exige). Por último, indica-
remos as categorias, os níveis, as esferas, os campos, os sistemas, etc., mínimos e
necessários para entender desde a origem a arquitetônica que pretendemos descrever
nesta Política da Libertação, obra que tenta desdobrar um marco teórico suficiente
para reflexões mais concretas e complexas no campo político.

1. O poder político como estratégia da dominação


A Modernidade, como observamos na descrição histórica,14 é o momento em
que a Cristandade latino-germânica, sitiada pelo mundo muçulmano, o Império
Otomano, encontra-se isolada do centro produtivo-populacional do antigo sistema
(o Estágio III do sistema asiático-afro-mediterrâneo). Por isso, deve abandonar o aco-
lhedor Mediterrâneo e se lançar ao inóspito Atlântico. A Europa latina, a do Sul,
é a que pode continuar a experiência de Veneza e Gênova – e dos chineses, cujos
mapas dos seus descobrimentos navais chegaram a Portugal por Istambul e Ve-
neza – e começar a conquista do oceano incógnito, o Atlântico. O “eu conquisto”15
poderá ser exercido somente sobre populações com um grau de defesa militar que
seja menor daquele da mais desenvolvida Europa – há milênios domesticadora do
cavalo e sabendo usar armas de ferro desde antigamente. A conquista, por isso, não
será fácil na África ou na Ásia, onde a arte militar estava tanto ou mais desenvolvi-
da do que na Europa latina. Mas, no continente cultural americano, a situação era
diferente. Foi então possível exercer sobre as populações ameríndias primeiro um
domínio militar e, depois, político, econômico, cultural e religioso.16 A expressão
ontológica cartesiana (ego cogito) do século XVII foi antecipada pelo ego conquiro
ou, ainda mais politicamente, pelo ego domino o Outro, o indígena. O europeu,
branco, macho, possuidor de riquezas obtidas pelo domínio sobre indígenas e es-
cravos africanos, culto nas “cidades letradas”, fez presente, primeiramente na peri-
feria colonial e posteriormente no interior da própria Europa, a autocompreensão
de ser o “senhor”: (dominus é o que manda na “casa”, domus). O mundo começou a
ser o lar dominado pelo europeu – que durará ainda três séculos, até a revolução
industrial em fins do século XVIII, para dobrar também a Ásia (com exceção
sempre da China, embora em algum momento do século XIX esta também esteve
a ponto de perder sua milenar autodeterminação).

14 Ver a parte histórica desta obra (vol. I, p. 68ss).


15 Em latim, conquiro significa cumprir a “comissão de buscar recrutas” para uma campanha
militar. “Conquistador” é aquele que formou um corpo expedicionário de soldados em função
de alguma tarefa militar concreta.
16 Descrevemos este processo ascendente de domínio em nossa obra 1492. O encobrimento do
Outro (Dussel, 1995).

22
É neste contexto de uma experiência existencial de não ter já nenhum senhor
sobre o ego eurocêntrico que irá se formulando uma concepção do poder exclusi-
vamente como dominação. O ego dominans passa a ser a definição de quem “pode”
fazer o que lhe apraz já que não tem limite em outra vontade que lhe ofereça tanta
resistência como para ter que acordar um pacto com simetria. As metrópoles eu-
ropeias organizam um mundo colonial assimétrico onde a relação político-metro-
politana se concretizava como uma relação social de domínio. A dominação do
sujeito poderoso diante do impotente era interpretada como a própria definição do
poder político. Em 1971 escrevemos e apresentamos as linhas que se seguem numa
exposição realizada no II Congresso Nacional de Filosofia na Argentina:

Quando na província de Yonne alguém se aproxima da antiga igreja romana de Vézelay,


uma cruz indica o sopé do monte onde, segundo a tradição, Bernardo de Claraval teria
pregado as Cruzadas. Quando alguém chega, nas explorações bolivianas de Comibol,
até os 600 metros de profundidade, e descobre homens, mineiros que, com instrumen-
tos primitivos perdem sua vida antes dos quinze anos do exercício de sua profissão, com
menos de um dólar de salário por dia, encontra o reverso – séculos depois – de um
amplo processo que devemos pensar filosoficamente [...]. O poderoso, ao universalizar
seu polo dominante, oculta ao que sofre seu poderio, a situação de oprimido, e, com isso,
o torna irreal [...]. A ontologia do sujeito – que pretende superar Heidegger – se con-
cretizou histórica, prática e politicamente (o político como capaz de existência ou modo
fundamental de ser-no-mundo) na dialética de dominação (Dussel, 1994, p. 315-317).17

Desde Hernán Cortés, o primeiro conquistador – se não contamos a conquista


acidentada de Panamá –, que se constituiu em 1523 como “o Senhor do México-
-Tenochtitlan”, até a guerra do Iraque, uma Vontade de Poder se estendeu sobre o
planeta Terra, definindo o poder político como dominação.18 Nada melhor do que
a descrição de M. Weber:

Poder significa probabilidade de impor a própria vontade dentro de uma relação social,
mesmo contra toda resistência e qualquer que seja o fundamento desta probabilidade.
Por dominação deve-se entender a probabilidade de encontrar obediência a um man-
dato de determinado conteúdo entre pessoas (Weber, 1994, p. 43).19

[243] A esta descrição negativa do poder político reagirá sempre o anarquismo,


negando então a necessidade de uma “tomada do poder”.20 O próprio Platão, pre-

17 “Metafísica del sujeto y liberación”.


18 Ver o tratamento do tema, inicialmente no § 14, mas, ademais, ao longo de toda esta Política
da Libertação.
19 Economía y sociedad. I. 1, § 15.
20 Ver, por exemplo, Holloway (2002).

23
tendendo expor um sentido positivo do poder, precisou introduzir-se num modelo
quase anarquista.21 A dificuldade do tema não nos evitará enfrentá-lo diretamente
nesta obra porque os movimentos sociais no presente (como os que constituem o
Fórum Social Mundial de Porto Alegre) necessitam de outra descrição do poder
que lhes permita exercê-lo com direito próprio e consciência normativa justa, reta
e responsável. O conceito moderno de poder como dominação não serve para uma
política normativa, de princípios, como veremos.
Vimos na parte histórica desta Política da Libertação que, em meados do século
XVI, quando surge, na obra de Bartolomeu de Las Casas, o primeiro antidiscurso
crítico da Modernidade, a potestas (como poder exercido por aquele que manda) se
funda no “consenso do povo” (consenso populi) que posteriormente será a doutrina
ensinada por F. Suárez, em Salamanca e Coimbra. O poder procede do povo. O
poder, ainda em mãos das instituições (o Rei, os nobres que representam “por
sangue” as “nações” hispânicas), não considera os cidadãos singulares como última
referência e, sim, a comunidade da nação que é considerada o povo (Castela,
Catalunha, Aragão, Vascongadas, Andaluzia, Estremadura, Galícia, o Estado das
Índias Ocidentais, etc.). De toda maneira, havia um sentido positivo de exercício
de uma vontade política.
Deveremos esperar até Amsterdã, província tornada independente da Espa-
nha, para chegar a uma posição positiva, mas partindo dos cidadãos singulares
de uma cidade protoburguesa, comercial, e o faremos, seguindo os passos de B.
Spinoza em algumas de suas descrições sobre a potentia que seguidamente enche-
remos de um novo conteúdo semântico para poder usá-lo no decorrer de toda a
obra. Uma indígena guatemalteca maia quiché nos recordava, em Porto Alegre,
onde discutimos este tema, aquela expressão popular latino-americana: “O povo
unido jamais será vencido!”. Nesta formulação se encontra já uma indicação positi-
va do poder a partir de baixo, da comunidade política (convertida em povo quando
adota uma posição crítica22), como potentia.
Os Zapatistas da EZLN nos dão claras indicações para saber pensar a essência
do poder político contra o modelo moderno do poder como dominação quando
expressam a diferença entre: a) “os que mandam mandam mandando” (que em
nossa terminologia será expressão da potestas negativa ou do poder instituciona-
lizado que, sendo delegação do exercício que vem da comunidade política, se feti-
chiza, independentizando-se e pretendendo soberania por si mesma); e b) “os que
mandam mandam obedecendo” (que significa que a potestas se funda na potentia).

21 Considere-se a descrição da problemática em Höffe (1991, p. 177): “Un monde de travail


sans domination”, enquanto comunidade primitiva. Já como comunidade desenvolvida (tal-
vez pensando na egípcia Mênfis), Platão propõe eliminar a causa da dominação pela virtude
dos governantes sábios. Uma utopia própria do século IV a.C.
22 Ver o § 38 desta Política da Libertação, vol. III [N.T. ainda por ser publicada].

24
É interessante observar que Weber inclui na sua descrição do poder como do-
minação o fato de “encontrar obediência a um mandato de determinado conteúdo
entre pessoas”. O “mandato” encontra “obedientes”, quer dizer, “manda mandan-
do”. Em contrapartida, o que “manda obedecendo” parte de um grupo de pessoas
que deram o conteúdo do mandato recebido pelo que manda. Quando manda,
cumpre o conteúdo do mandato recebido daquele que obedece a ele. É a inversão
completa, como veremos repetidas vezes, da descrição weberiana, muito mais
democrática, e, além disso, positiva: o poder já não é dominação e, sim, autorre-
ferência soberana.
Contra a Vontade de Poder da Modernidade, desde o tempo da conquista, deve-
remos descrever um modelo do poder político positivo que pode ser torcido (e que
de fato constantemente é torcido), mas cujo conceito negativo não deve entrar na
sua definição e, sim, em sua defecção. A questão é essencial para poder defender
“o nobre ofício da política” por parte dos movimentos sociais, dos partidos polí-
ticos críticos ou progressistas, dos cidadãos que desde a sociedade civil militam
em associações de bem comum. Se um certo economicismo de leis necessárias do
comunismo standard negou a necessidade da política (como demonstrou Ernesto
Laclau em suas primeiras obras), uma descrição exclusivamente negativa do poder
como dominação tira novamente a possibilidade da honestidade, da justiça e da
necessidade do compromisso político. Quem desejaria comprometer-se numa res-
ponsabilidade política se ela é intrinsecamente perversa e corrupta, um verdadeiro
pacto fáustico com o diabo – como chega a expressar Weber?

2. Interpretações redutivas do político

[244] Há muitas “falácias redutivas” do político como determinações ou mo-


mentos da arquitetônica complexa deste fenômeno. Em geral, os filósofos políticos
se empenham em descrever o “conceito” do político, considerando um momento
(frequentemente necessário e irrenunciável), mas que não pode de maneira unila-
teral explicar toda a complexidade do problema. Como na ética, o utilitarismo de
J. Bentham ou John Stuart Mill tentou descrever toda a fundamentação prático-
-moral contando com um único princípio. Certamente a dor e o prazer têm a ver
com o mal e o bem, mas nunca poderão limitar-se e definir de maneira direta, nem
fundamentar e nem deduzir estes daqueles. É uma “falácia redutiva” definir o todo
por uma parte; é “reduzir” o “conceito” do político a um aspecto, repito, frequente-
mente necessário, mas de nenhuma maneira suficiente. A “suficiência” do conceito
exige outras determinações que devem se articular simultânea e diacronicamente
sem fixar o processo descritivo afirmando um aspecto e sem manter em suspenso

25
a mútua determinação dos diversos momentos que se relacionam com os demais
momentos do “conceito”, constituindo uma complexa estrutura.23
Praticamente, há tantos filósofos políticos quanto são as descrições redutivas
da política porque cada um adverte para a importância de um aspecto da políti-
ca, mas, ao propô-lo como o momento essencial, cai numa falácia redutiva. Não
podemos, por isso, tomar nenhuma definição como exemplar. A todas devemos
colocar em movimento dialético, gerando um sistema aberto de determinações
que tem consciência de seu inevitável inacabamento. X. Zubiri observava correta-
mente que as notas essenciais do ser humano poderiam “fechar-se” num sistema
constructo substantivo ao final da história, quando saberíamos tudo o que o ser
humano é, quer dizer, pode fazer. Um tal observador destas notas finais não exis-
te, por definição, de maneira que a essência humana está sempre definitivamente
aberta em suas notas constitutivas. Da mesma forma o político. Um “conceito do
político” – à maneira de C. Schmitt – é uma tarefa impossível, mas a que ele levou
a cabo certamente cai numa redução voluntarista, exclusiva do nível estratégico,
sem advertir aos critérios e princípios que estão na base da constituição de alguns
como “amigos” e outros como “inimigos”. Na realidade, uma descrição que preten-
desse esgotar a essência do político com a dialética amigo-inimigo não é somente
inaceitável, como também inútil. Pelo contrário, se não se tem pretensão de nota
essencial única, mostra-se ser uma determinação necessária, mas não suficiente, de
um certo nível do conceito muito mais complexo do político. A suficiência se ad-
quire na codeterminação de outras instâncias com as quais é preciso saber articu-
lar os momentos necessários. Nosso método consiste, neste ponto, em repetir uma
e outra vez: que uma determinação pode ser necessária, mas nunca é suficiente. É
preciso integrar o abstrato no múltiplo concreto.
Vejamos algumas descrições unilaterais da política, isto é, análises que caíram
numa “falácia redutiva”, que toma a parte pelo todo. São somente alguns exemplos
que poderiam ser acrescidos com muitos outros, evidentemente. O que desejamos
sugerir é que uma definição simples de política é impossível e abarcar suas deter-
minações essenciais é sumamente complexo.

2.1. A política somente como ação estratégica

A tradição chinesa de filosofia política, se em algo se diferencia de outras cultu-


ras, esteve emoldurada, antes de sua origem, pela arte da estratégia, graças ao tratado

23 Pode ser considerada minha Ética da Libertação (Dussel, 1998), onde os aspectos material,
formal, de factibilidade e críticos do ato humano, as instituições, etc., sem reclamar para
nenhum deles uma “última instância” fetichizante, se codeterminam cada um de maneira
diferenciada. Agora, nesta Política da Libertação, a “arquitetônica” é muito mais complexa
porque nos encontramos num horizonte mais concreto.

26
da guerra, o Sunzi,24 que dará para sempre a este mundo cultural uma maneira
muito particular de enfrentar a política até o presente e totalmente diferenciável
da tradição ocidental. A política é a arte do engano, do ausentar-se quando se está
presente, e de aparentar presença quando se está ausente, de enfraquecer o forte
sem enfrentá-lo e de destruir o inimigo fraco quando se encontra desprevenido.
A ação estratégico-militar do nunca enfrentar o inimigo e, sim, de rodeá-lo, como
na “grande marcha”, é uma definição da política. A filosofia ético-confuciana se
levantou criticamente contra este cinismo de eficiência a curto prazo. A ordem do
império e os mandarins exigiram outra estratégia.
Na tradição clássica ocidental, pelo contrário, enquanto regida por um hábito
ou virtude (areté, em grego), a phrónesis25 preparava ao político para cumprir com
inteligência prática as ações estratégicas próprias da ágora, vale dizer, a adequada
discussão retórica dos argumentos para tomar as decisões públicas e, diante da
responsabilidade da própria ação, dava ao ator político capacidades particulares
(velocidade em formar uma ideia da complexa situação política que enfrentava, ade-
quado juízo das forças em jogo, juízo prático acertado do que havia para efetuar,
etc.). Era uma virtude do ator singular que ele podia compartilhar com outros que
também a tivessem. Não havia outro parâmetro objetivo que o feliz desenvolvi-
mento da ação realizada. Nascia assim a noção de ação estrategicamente cumprida.
Na antessala da Modernidade, graças a N. Maquiavel,26 a virtude política do Es-
tágio III do sistema inter-regional asiático-afro-mediterrâneo – cujo grande exemplo
será A cidade virtuosa de al-Farabi27 –, se modifica por outro tipo de virtude, que
se parece mais com a astúcia do que com a sabedoria prática dos gregos, latinos e
árabes. A débil Florença – entre o Império germânico, a República veneziana e o
Estado pontifício (ao qual pertencia territorialmente) – devia usar as artimanhas
de uma hábil política dos pactos, das alianças e de apoios calculados (que podiam
trocar de mãos de um momento a outro), etc. A política como inteligência da so-
brevivência, contudo, se distanciava muito da grande Política de Veneza, por exem-
plo, que, com instituições estáveis, havia sobrevivido setecentos anos, quase sem
revoltas sociais ou militares, demonstrando que a “estratégia” é parte da política,
mas que sem instituições de pouco servia a longo prazo.
A ação estratégica é certamente parte da definição da política, é um momento
necessário, mas está longe de ser suficiente.

24 Ver o que foi dito na História desta Política da Libertação, vol. I, § 13ss e § 69ss.
25 Ver mais adiante § 25.5. Cabe destacar que a “estratégia” era para os gregos uma arte (tékhne)
militar. Tomamos aqui a palavra no sentido atual prático-político (para distingui-la da mera
razão “instrumental”).
26 Ver o que foi exposto nos §§ 87ss do Vol. 1 da Política da Libertação.
27 Ver os §§ 46ss.

27
2.2. A política somente como teleologia instrumental meio-fim

A Escola de Frankfurt realizou uma crítica em regra contra as pretensões da


“razão instrumental”.28 Ao contrário, Max Weber definiu a ação racional como
aquela que formalmente controla meios em vista de fins.29 É verdade que a ação
política deve igualmente intencionar valores por meio dos quais preenche os fins
de conteúdo cultura da ordem vigente, que não pode ser colocada em questão (por-
que é o ponto de apoio do compromisso político como tal). A política é uma
ação estratégica que deve cumprir fins concretos do sistema existente aceito por
consentimento tradicional dos costumes, sendo, ao final, uma “questão de fé”.
A racionalidade da ação política se mede, então, no sentido de que os meios sejam
adequados aos fins; fins que são, por outra parte, inquestionáveis. Paradoxalmente, se
a racionalidade consiste na adequação do meio ao fim, mas os fins não têm funda-
mento racional, tudo se torna irracional (ou simplesmente aceito por uma atitude
tradicionalista, legal ou carismática que não questiona ou não pode questionar o
fundamento). A política irracional se torna uma aposta com Mefistófeles; estamos
num horizonte fáustico e trágico. A política sem princípios normativos naufraga
nas mãos de uma razão política formal meio-fim sem fundamento. Neste caso,
não somente temos uma definição parcial da política; temos também uma que é
destrutiva de sua essência normativa, sendo que, com uma tal descrição da política,
as elites políticas dos países periféricos podem servir aos interesses dos impérios
de turno sem contradição de princípios. O formalismo sem conteúdo não é somente
unilateral, mas também errado, enquanto deixa a política sem motivações fortes
para um compromisso a favor das comunidades políticas ou dos povos dominados
da periferia pós-colonial.

2.3. A política somente como competição amigo-inimigo

A mais famosa tentativa de definir a política talvez tenha sido realizada por C.
Schmitt, em sua conhecida obra O conceito do político (1963).30 Chama a atenção
que um especialista em direito constitucional (sendo a Constituição a carta magna
da institucionalidade do Estado) tenha pretendido dar uma definição suficiente
com um aspecto secundário da ação estratégico-política. O “amigo/inimigo” é, sem
dúvida, uma certa relação de força que se estabelece entre atores do campo político,
no nível das ações políticas (que chamaremos nível A), que estrutura dito campo
como indicando a agregação dos agentes em grupos de exercício do poder. Mas,

28 Ver minha Ética da Libertação, § 227ss (Dussel, 1998, p. 326ss).


29 Ver nesta obra o § 17.1.
30 Ver o que diremos no § 17.2.

28
antes e como critério da própria organização de associações ou agrupamentos de
“amigos” contra “inimigos”, seria preciso esclarecer os critérios da “amizade” ou
“inimizade” que são o fundamento deste tipo de relações. Como não se definiu o
que é campo político, nem poder político, nem as motivações fundamentais (os fins
que permitiriam perceber alguns atores como “amigos” ou “inimigos” para o fim
concreto intencionado), o de “amigo” e “inimigo” é uma trivialidade que não escla-
rece por seu grau “intensivo” de cumprimento. Numa partida de futebol há “ami-
gos” e “inimigos” no campo esportivo, e são de tanta intensidade que até podem
ocorrer mortes dos partidários de uma equipe contra os da outra, o que não define
o que de esportivo existe numa tal “amizade” ou “inimizade”.
É necessário reter a tentativa crítica do distânciamento frio da legalidade do
“estado de direito” liberal que esvaziou a política do seu conteúdo voluntarista. Por
isso, partiremos da “vontade”31 na descrição do poder político, ainda que, infeliz-
mente, nem se defina bem a vontade nem o poder em sua mínima complexidade e,
menos ainda, se articule a ação estratégica no nível institucional.
Novamente, é inevitável que haja uma “amizade” e uma “inimizade” política
(que não é a militar, nem a do boxe e nem outros tipos de “amizades” e “inimi-
zades”). Mas, para saber em que consiste a amizade ou inimizade políticas será
preciso antes descrever o que seja o político, o que Schmitt não faz adequadamente.

2.4. A política somente como hegemonia

O conceito de “hegemonia” adquiriu uma importância inevitável desde A.


Gramsci, o que evidentemente assumiremos como um momento de relevância
nesta Política da Libertação. Mas, como nas anotações anteriores, sendo o exercício
delegado do poder político realizado em ações hegemônicas a maneira mais politi-
camente adequada, sirva a expressão normativa: nelas se cumprem as exigências
complexas da “pretensão política de justiça”32 ou no que chamarei o “exercício obe-
diencial do poder”. Entretanto, toda a estrutura da proposta de uma reivindicação
(demand) equivalente ou que represente todas as demais reivindicações das iden-
tidades coletivas do povo (como plebs que tenta ser um populus)33 que preenchem o
campo vazio que se organiza inesperadamente desde o antagonismo político não
consegue cumprir a exigência de esgotar o sentido do político. Pense-se somente
num aspecto. Pode a política hegemônica ou o ato político hegemônico (ou popu-
lista) que é identificado com o ato político enquanto tal, sustentar-se sem institui-
ções pressupostas e sem organização de novas instituições que assegurem a longo

31 Ver o próximo § 14.


32 Ver mais adiante § 28.
33 Ver o que iremos expor nos §§ 17.3 e 18.

29
prazo a vitalidade histórica de um regime apoiado na hegemonia? Será preciso
reinventar em cada acontecimento hegemônico de novo toda a política? E, se são
necessárias as instituições, como se coloca a relação entre as instituições e as ações
hegemônicas? Ademais, descrevendo-se toda a problemática num nível narrativo,
linguístico, falta o momento sociológico, o momento material ou de conteúdo (já
que as reivindicações são insatisfações de necessidades feitas demandas sociais ou
políticas). Onde está uma teoria das necessidades para fundamentar o sentido das
reivindicações? O formalismo narrativo da política de E. Laclau, que realizou uma
tão adequada crítica do apoliticismo do economicismo marxista standard, cai, ao
final, num politicismo formalista (que tem em J. Lacan, evidentemente, a fonte de
seus acertos, certamente muitos, e de seus defeitos). Cai, por conseguinte, numa
falácia redutiva de tipo formalista, como num idealismo de narração: a política não
é um texto, como para Paul Ricoeur (outra redução, tão valiosa por outra parte) e,
sim, a narração política de ações, instituições e princípios.

2.5. A política somente como consenso discursivo


[245] A proposta habermasiana, de inspiração apeliana,34 mas amplamente de-
senvolvida em sua clássica obra Facticidade e Validade (Habermas, 1992),35 segue
em alguns aspectos o trabalho prévio de H. Arendt,36 sobretudo naquele do poder
comunicativo (que assumiremos em profundidade em nossa exposição, modifican-
do-a). Talvez seja a maior elaboração na filosofia política europeia da segunda me-
tade do século XX. No nível normativo dos princípios sua contribuição é insubs-
tituível e a teremos sempre em conta. Mas, como em todos os casos anteriores, a
falácia redutiva se faz massivamente presente num formalismo coerente e, por isso,
sumamente unilateral. E J. Habermas, que em sua juventude até 1970 aproxima-
damente se referia a Marx, Freud e Nietzsche na Escola de Frankfurt, dá o giro
pragmático (um giro linguístico de segundo grau), tão útil em política – porque a
política nunca deixa de ser retórica. Mas com isso tem dificuldade de reintegrar
a esfera material (em especial, a economia e a psicanálise). Na política, cairá num
novo reducionismo formalista, agora racional discursivo que observa as condições
formais ou procedimentais normativas da legitimidade política (aspecto que é ne-
cessário), mas não sabendo como integrá-las na esfera material (no meu entender,
principalmente econômica) e, por isso, de crítico do capitalismo em sua juventude
por ser membro da Escola de Frankfurt, passa a uma certa cegueira da questão

34 Ver meus trabalhos Apel-Dussel, 2005; Dussel, 1998, §§ 2.3 e 2.4. Nesta obra: §§ 18, 23.1,
24.3a e 25.3, e em muitos outros lugares.
35 Habermas aplica à política sua obra anterior (Habermas, 1981). Em português: “Direito e
Democracia: entre facticidade e validade” (1997).
36 Ver mais adiante §§ 17.1 e 18.

30
econômica. Sua tímida crítica ao liberalismo feita desde um republicanismo so-
cial-democrata, certamente mais relevante para uma filosofia política pós-colonial
do que a de J. Rawls, R. Nozick, etc., não deixa de se inclinar para um legitimismo
abstrato, que não considera os condicionamentos centro-periferia (o problema co-
lonial das metrópoles europeias), capital-trabalho (tendo abandonado definitiva-
mente as críticas ainda vigentes de K. Marx), a dominação cultural eurocêntrica
(e hoje americanocêntrica) – estudadas pela sociologia – sobre as culturas “primi-
tivas”, objeto da antropologia cultural. Tudo isso faz com que a política proposta
por Habermas consista somente numa filosofia do direito (porque seu formalismo
lhe impede de analisar outra dimensão do político); falta-lhe uma clara descrição
do poder político, do Estado, das instituições em geral e, quando fala dos princí-
pios normativos, somente pode fazê-lo do princípio de legitimidade ou do direito
– K.-O. Apel (1998) igualmente fica aprisionado em seu formalismo quando faz
algumas incursões na aplicação dos princípios democráticos ou do direito.37
Além disso, uma concepção estreita da argumentação, exclusiva e explicitamen-
te feita segundo uma rac\ionalidade de tipo standard (entendendo por ela aquela
que é própria da epistemologia, da lógica ou da filosofia), impede a política da pos-
sibilidade de dar razões nas teatralizações populares, música folclórica ou popular,
contos, narrativas míticas, expressões estéticas de todo tipo, o que suporia entrar
em outo horizonte argumentativo (Cf. Reygadas, 2005). O imaginário popular (refe-
rência necessária das propostas políticas, dos grupos, partidos ou elites e até líderes
políticos) sempre está vigente na opinião pública e na formação do juízo prático da
comunidade política (até dos Estados mais desenvolvidos tecnicamente, como os
Estados Unidos38). Por isso, a argumentação simbólica, mítica, continua mantendo
um papel fundamental na política. Certo racionalismo abstrato diminui a capaci-
dade de compreensão do que seja a argumentação política.

37 Nesta obra (Apel, 1998) ficam confirmadas minhas suspeitas sobre o formalismo apeliano.
Ao aplicar à economia seu princípio moral discursivo o faz sem nenhuma consciência crítica
do sistema no qual se aplicará o princípio que, de fato, se efetua no capitalismo, que não pode
pôr em questão por não ter critérios materiais. O mesmo acontece ao aplicar dito princípio
na política, o faz no sentido de aplicá-lo num sistema liberal (que novamente não pode criticar
pela mesma razão). Tendo somente critérios e princípios formais, aceita a realidade material
(os sistemas vigentes nos campos ecológico, econômico, cultural e também político), sem poder
reorientá-los ou transformá-los criticamente. Não podendo a ética orientar a discussão em seu
conteúdo (a não ser somente definindo condições formais), acontece o mesmo agora na política.
38 É sabido que a reeleição de George W. Bush se deveu a questões de ética tradicional na
família, contra a homossexualidade, o evolucionismo darwinista, as expressões cristãs nas
escolas e tudo orquestrado por seitas fundamentalistas. Este povo está imerso num imagi-
nário popular muito particular e, certamente, alheio ou até contrário à Ilustração do século
XVIII. Em outra vertente totalmente oposta, os maias de Chiapas igualmente contam com
um imaginário popular, onde relatos antigos justificam sua luta de libertação. A “argumen-
tação política”, então, está muito longe de ser uma pura abstrata e acadêmica argumentação
silogística aristotélica, ao menos os de seus tratados lógicos.

31
2.6. A política somente como espaço de negociação de acordos para resolver
conflitos

[245] Sendo o campo político algo muito diferente do campo estratégico-militar,


onde o inimigo absoluto deve ser derrotado, até fisicamente, onde certo horizonte
de “fraternidade” dá lugar à “inimizade” do antagonismo político (Cf. Derrida,
1994),39 a política seria exatamente o procedimento pelo qual os membros de uma
comunidade política conseguem acordos razoáveis sobre os conflitos que se esta-
belecem entre as partes.
O chamado realismo político, expressão certamente ambígua,40 se apresenta
como a essência do político diante de posições idealistas ou de princípios que su-
põem que a virtude ou a boa intenção deveriam regular a possibilidade dos acor-
dos. O “realista” é aquele que, tendo “as mãos livres dos princípios” – como se
expressava Rosa Luxemburgo –, pode com maior facilidade e amplitude chegar a
negociações positivas que deixem saldados, de alguma maneira, os interesses das
partes. O melhor político conseguiria consensos maiores, negociações exitosas de
conflitos políticos por vezes de grande importância.
Isto é um fato e ninguém pode negá-lo. É necessário que os conflitos cheguem
a negociações positivas para criar paz social e governabilidade política. Mas isto
não é suficiente, porque as perguntas que surgem imediatamente são como algu-
mas das seguintes: quais são os tipos de conflitos que podem se apresentar? São

39 Ver mais adiante, na Crítica, vol. III [a sair] desta Política da Libertação, no § 33, sobre a
superação da fraternidade na solidariedade. Não se esqueça que até um “bando de ladrões”
(para citar o exemplo de Platão) deve respeitar uma certa “fraternidade” fundamental ou
não seria possível como “bando” ou como uma certa comunidade eficaz. A fraternidade no
grupo não garante o cumprimento de princípios políticos normativos, somente enuncia
princípios de sobrevivência a curto prazo: o cumprimento imediato dos interesses comuns
(que devem ser distinguidos do bem comum).
40 O que significa, neste caso, “realista” que age, tendo como único horizonte a conjuntura
concreta sem ataduras que o liguem a princípios? Mas, neste caso, pode adotar decisões
contraditórias a médio e longo prazo. Se “realidade” é o do seu da própria coisa, é “realista”
o que se atém às exigências normativas (se a normatividade é definida desde as estruturas
constitutivas do político, intrinsecamente). Ver, mais adiante, § 24.3.b. Um ingênuo em
política é o que não enfrenta a realidade da conjuntura em toda a sua complexidade. Mas, o
chamado “realista”, que age sem princípios, exercerá necessariamente um poder fetichizado,
corrompido ou autorreferente e, portanto, não é “realista” – em seu sentido forte – e, sim,
muito pelo contrário, confunde a realidade com a qual se confronta com uma ilusão trans-
cendental ou um falso juízo do real, levado pelo próprio interesse ou pelo do seu grupo, de
sua classe ou de outras motivações destrutivas do político. Voltaremos a este tema no § 14 e
ao longo de toda esta obra. Inteligência prática estratégica, eficácia e princípios normativos
não se opõem. Pouca inteligência política e princípios não constituem um bom político (os
princípios não suprem a inteligência). Muita inteligência prática sem princípios, a longo
prazo, sempre afronta o precipício inescapável do fracasso.

32
somente conflitos políticos ou são conflitos sociais que penetram reivindicativos e
agressivos no campo político? Quais são os critérios da negociação dos conflitos?
Todos os conflitos são negociáveis ou há os que não o são? Como se confrontam os
conflitos inegociáveis numa política a longo prazo? Os conflitos inegociáveis não
são políticos?
Estas perguntas, e muitas outras, serão respondidas na parte Crítica desta Política
da Libertação. Nesta Arquitetônica iremos descrevendo as categorias, os níveis, as es-
feras, etc., que nos permitem compreender numa complexidade suficiente a ordem
política vigente, colocando entre parênteses a existência de conflitos. Esta parte, de
alguma maneira abstrata e propedêutica, aparecerá ao leitor como demasiadamente
pacífica, sem contradições e sem tensões. Será assim para seguir aquele enunciado
metódico de K. Marx: “ascender do abstrato ao concreto”. Quando tivermos descri-
to, mínima, mas suficientemente, a ordem política vigente, na Crítica (o volume III),
abordaremos, num nível mais concreto e complexo, as contradições fundamentais
que nos permitirão encontrar o fundamento ético-metafísico (mais que ontológi-
co41) de todos os conflitos parciais no campo político, nos sistemas políticos, nos
níveis políticos, nas esferas políticas, etc. Desde a “fonte metafísica” ou “ética” das
vítimas, oprimidas ou excluídas, teremos a razão fundamental de todos os conflitos
da ordem política vigente. Os conflitos não “aparecem” no horizonte fenomênico,
superficial, fenomenológico, como acontecimentos inexplicáveis, infundados. Exis-
tem conflitos inevitáveis, fundados e necessários; e, quanto mais estruturais e pro-
fundos forem, mais inegociáveis serão. Ou seja, os conflitos estruturais são aqueles
que exigem transformações da ordem institucional. Quando Miguel Hidalgo se
levantou, em 1810, com seu exército de indígenas, campesinos e crioulos decididos
a alcançar a independência dos espanhóis que ostentavam o poder no México criava
um conflito que, na ordem política vigente, era inegociável. A negociação ou a solu-
ção do conflito acontecerá de maneira ambígua em 1821. Derrotados Hidalgo e os
espanhóis, triunfará uma classe hegemônica, os crioulos mexicanos que, em 1810,
haviam sido vencidos e que venceram, por sua vez, Hidalgo e obtiveram um acordo
com os espanhóis conservadores contra os liberais das Cortes de Cádiz. A solução
do conflito teve uma negociação inesperada, sequer suspeitada em 1810, mas se
tratou de um conflito inegociável com o antigo regime colonial, já que supôs a inde-
pendência. Foi um conflito inegociável cuja solução requereu a passagem dialética a
outra ordem, porque querer resolvê-lo na ordem colonial teria continuado sendo um
conflito inegociável. A libertação foi a condição de possibilidade de superação do
conflito ao triunfar uma das partes e ser derrotada a outra.
O importante do caso não é tanto enunciar que a essência da política é a ne-
gociação ou a solução consensual dos conflitos e, sim, estudar suas causas, o tipo

41 Abordaremos em seguida, neste § 13.3.b, as duas primeiras categorias arquitetônicas:


Totalidade-Alteridade, o tema que estamos enunciando.

33
de conflitos, a maneira de solução dada a eles, tudo o que depende da análise que
realizaremos da complexa estrutura da existência política.
Mas, além disso, e de modo igualmente essencial, existem princípios normati-
vos que iluminam por dentro e que são as condições constitutivas das soluções dos
conflitos. Ditos princípios políticos normativos,42 implícitos, são os que permitem
discernir sobre as causas, os tipos de estrutura e de soluções dos conflitos. Sem
os ditos princípios normativos, o realista (como o cínico ou o que exerce o poder
fetichizado) pode solucionar alguns casos concretos, mas quando a complexidade
aumenta e no médio e longo prazo, comete necessariamente contradições – ou
deve exercer um poder cada vez mais despótico, cavando sua própria fossa.
O realismo crítico do político com capacidade estratégica, esta que lhe permi-
te também eficácia administrativa, deve alcançar grande profissionalismo em sua
ação tática (não disputada com a militância responsável e coerente), prudente ma-
nejo das instituições, atendo-se a princípios (tal como os descreveremos), sem estar
isento de obrigações que podem levá-lo a transformações parciais ou radicais (in-
clusive a revoluções políticas, quando as circunstâncias excepcionais o merecerem).
A política certamente negocia soluções de conflitos, mas, longe de ser a deter-
minação essencial da política, é uma mediação para cumprir com a racionalidade
da ação hegemônica, com as instituições políticas e os princípios, tudo o que terá
de desconstruir desde os conflitos, frequentemente inegociáveis, que o processo
histórico apresenta.

2.7. A política como superestrutura do econômico

Esta é uma das teses mais conhecidas e que Ernesto Laclau soube criticar
adequadamente. Um certo marxismo standard, que compreendeu mal as “leis da
economia” como “leis físico-naturais”, chegou a pensar que, de maneira necessária,
a história superaria o capitalismo e instauraria o socialismo. Para que, então, a
ação política, se o triunfo estava já garantido, tal como o sol sai a cada manhã?
Os social-democratas alemães, como o “traidor Berstein Bernstein”, por exemplo,
tentaram mostrar que o campo político não era o campo econômico e que não
era de nenhuma maneira inevitável o triunfo político do socialismo. Sem um tal
triunfo, a revolução anticapitalista era impossível. Esta posição foi rechaçada por
“revisionistas”, “reformistas”, etc.
O economicismo ingênuo e metafísico negou a possibilidade da política. A po-
lítica era uma instância superestrutural secundária. Era necessário usar a política
para aumentar as contradições do capitalismo, já que quanto mais rapidamente

42 Estes princípios serão apresentados nos próximos capítulos 3 e 4 da parte Crítica.

34
a “etapa” capitalista chegasse à sua culminância seria possível passar para o so-
cialismo. O economicista era antipolítico, e o era em tal grau que, quando foram
realizadas as revoluções socialistas, a partir de 1917, como era necessário instaurar
um planejamento o mais completo possível da economia (até eliminar o mercado) e
da sociedade (ideal moderno e cartesiano levado ao paroxismo do cômico), a política
se transformou na administração total da comunidade social. Não somente desa-
pareceram os partidos políticos, os projetos políticos antagônicos também foram
eliminados. A hegemonia foi substituída pelo pensamento único do comitê central
(cujo “centralismo democrático” tinha tudo de centralismo e nada de democráti-
co). O campo político foi aniquilado e, com isso, o político. Isto deu resultados
durante quarenta anos, mas, em 1960 aproximadamente, começou a se manifestar
o imobilismo, o atraso, a impossibilidade do avanço tecnológico. A falta de liber-
dade política e de democracia (não falamos da democracia liberal43) produziu um
burocratismo igualitarista que alienou inclusive a produção tecnológica, momento
determinante da produção econômica. O socialismo real é a prova em contrário
da necessidade da autonomia relativa do campo político e a exigência do respeito à
liberdade democrática para que a legitimidade tenha possibilidades de estabelecer
um regime com governabilidade a longo prazo.
O economicismo antipolítico é uma experiência que não deve ser esquecida. A
história é “mestra da vida” e setenta anos são poucos para aprender grandes verda-
des, se é que a esquerda pôde aprender.
A política não é superestrutura alguma. A política é jogada num campo de re-
lativa autonomia, próprio, insubstituível, sem última instância. A vida humana é a
única última instância de todas as instâncias ou campos. O campo econômico é
um campo material que é preciso articular, em mútua determinação, com o campo
político, campo formal (ao menos na esfera da legitimidade, mas tendo intervenção
igualmente nos campos materiais e de factibilidade, como veremos44). Propugnamos,
por isso, a articulação complexa na qual cada campo ou instância determina aos
outros a partir de sua própria natureza. A esfera material do campo e os sistemas
econômicos determinam o campo e os sistemas políticos, não como última instân-
cia e, sim, como instância material ou de conteúdo. O campo e os sistemas políticos,
por sua parte, determinam o campo e os sistemas econômicos, em sua formalidade,
outorgando-lhe legitimidade, em seu conteúdo, permitindo seu manejo governável
(na reprodução do capital, no curto prazo ou de um transcapitalismo, por exemplo)
e em sua factibilidade, fazendo possível o desenvolvimento econômico (e igualmente,
ecológico, cultural, etc.). Mútua determinação determinante determinada.

43 Ver mais adiante o capítulo 3, § 25.


44 Ver os §§ 21, 22, 26 e 27,

35
2.8. A política como completamente independente do campo econômico

A posição liberal, pelo contrário, poderia ser julgada como a de um politicismo


ingênuo em relação ao campo econômico. Decretando uma total independência de
um em relação ao outro, o liberalismo cai em outro economicismo antipolítico por
excesso. O campo e os sistemas econômicos têm suas leis, e “meter a mão” (fora
da mão smithiana do deus neoestoico ou cristão) no mercado é destruí-lo. Toda
intervenção política no campo econômico desarticula o complexo, sutil e frágil
equilíbrio espontâneo do mercado. Se no socialismo real existe um antipoliticismo
que assinala à política um papel administrativo (embora o Estado planificador
seja um “Estado máximo”, completamente antianarquista), no liberalismo, e mais
ainda no neoliberalismo, o antipoliticismo designa à política o papel de guardião
e protetor acessório e secundário do mercado, com a concepção de um “Estado
mínimo”, sendo, paradoxalmente, um anarquismo de direita.
Desde J. Locke, A. Smith, J. Rawls ou F. Hayek (mantidas as diferenças) se
reconhece extrema confiança, otimismo, nas virtudes naturais do mercado, que
tende ao equilíbrio e que evita as injustiças que a intervenção explícita da política
nele produz em maior medida do que deixando o mercado se mover por suas leis
próprias. No socialismo real, a política é administração do planejamento perfeito;
no liberalismo, a política é cuidado para permitir o funcionamento da relojoaria
do mercado econômico de competição perfeita. Ambos destroem a política; ambos
são economicistas.45
Não é que haja prioridade da liberdade (primeiro princípio rawlsiano) sobre a
justiça (o segundo princípio socioeconômico), ou vice-versa. A liberdade, a auto-
nomia, a participação simétrica do afetado é essencial para o campo político em
seu aspecto de legitimidade. A justiça econômica na reprodução da vida dos cida-
dãos é igualmente essencial. Não é questão nem de prioridades, nem de últimas
instâncias. É necessário articulá-las na distinção e na complexidade, sem deixar
nenhuma das instâncias na obscuridade.

45 F. Hinkelammert (1984) demonstrou o erro de ambas as posturas em sua obra Crítica da


razão utópica, analisando as posições de L.V. Kantorovich na URSS (capítulo IV) e de F.
Hayek e K. Popper no capitalismo europeu (capítulos II e V).

36
2.9. A política como a referência exclusiva ao Estado (como “tomada do
poder”) ou como luta pela dissolução do Estado

Identificar a política com o Estado foi a postura criticada por M. Foucault que
mostrou que se exerce o poder disseminadamente no corpo político em muitos
níveis, em microinstituições que disciplinam o corpo oprimido: o cárcere panóp-
tico, o psiquiátrico, a escola, etc. Paradoxalmente, concorda com a posição de A.
Gramsci, já que igualmente inclui no Estado ampliado ou sociedade civil todas
estas microinstituições políticas. A falácia redutiva se faria novamente presente
se se postulasse que o poder se exerce somente nestas microinstituições da domi-
nação e não no Estado. O marxismo standard (em especial, o francês) caía numa
concepção da política na qual o Estado era o centro da estratégia. Contra esta
posição nasceu a política anarquista:

O pensamento anarquista [...] é bipolar. Tem [...] como centro a realidade empírica,
mas esta não é já uma realidade precária e institucional no sentido conservador e, sim,
uma realidade material de trabalho para a satisfação das necessidades subjugada pelo sis-
tema institucional, em particular o sistema de propriedade e o Estado (Hinkelammert,
1984, p. 97).

Este tipo de reducionismo, a) da direita conservadora (que declara as institui-


ções vigentes intocáveis, perenes), b) da esquerda estatista (que foi, talvez, uma
veia leninista ambígua, que declara as instituições como inevitáveis instrumentos
políticos de dominação, como “dominação” justificada enquanto “ditadura do pro-
letariado”), ou c) da esquerda extrema ou do idealismo ético-anarquizante (que
concebe toda instituição como opressão, e a política consistiria em sua aniquilação),
ronda a uma teoria da instituição.
A política não é somente ação estratégica, é também constituição de estruturas
institucionais.46 É tão redutiva a concepção de política que declara não transformá-
veis as instituições como a que as concebe unicamente como instâncias de opres-
são. Uma visão mais complexa, necessária e suficiente da instituição nos permitirá
driblar as posições unilaterais de muitas teorias políticas.
Diante dos anarquistas, deveremos desenvolver o conceito de postulados (logi-
camente possíveis, embora empiricamente impossíveis) que permitem descobrir o
sentido de critérios de orientação. A dissolução do Estado é um postulado,47 útil e
necessário, mas não suficiente. Tomado ao pé da letra como um objetivo estratégi-
co, é irracional e politicamente impossível. Escreve Bakunin:

46 Ver os capítulos 2 da Arquitetônica e da Crítica e capítulo 6.


47 Ver o § 43 do capítulo 6.

37
Não vacilo em dizer que o Estado é o mal, um mal histórico necessário, tão necessário
no passado, como será, tarde ou cedo, sua extinção completa, tão necessário como foi
a bestialidade primitiva e as divagações teológicas dos homens. O Estado não é a so-
ciedade, não é mais do que uma de suas formas históricas, tão brutal quanto abstrata
(Bakunin, 1974, p. 66).48

Esta negação das instituições como o mal significa cair no que F. Hinkelam-
mert denomina uma “ilusão transcendental”: tentar realizar o empiricamente im-
possível pela razão de ser lógica, ética ou idealmente pensável e possível.
Antes os conservadores, admitiremos a necessidade das instituições (desde mo-
tivações materiais, formais ou de factibilidade), mas demonstraremos a necessi-
dade de sua transformação no momento do seu esgotamento entrópico (Cf. § 40).
Ante o marxismo standard que fala da “tomada do poder”, analisaremos uma
descrição do poder e do Estado que mostrará o sem-sentido da fórmula: o poder “não
se toma”. Numa política da libertação, o Estado deve ser reconstruído e não simples-
mente “usado” como um instrumento de dominação (também contra as classes e os
grupos do “antigo regime”). É uma visão instrumentalista que, embora antianarquis-
ta, guarda demasiadas semelhanças em sua concepção da instituição política.
Para os conservadores, esta Política da Libertação se assemelhará ao anarquis-
mo; para os anarquismos ao conservadorismo reformista. Não é nem uma nem
outra coisa e, sim, novamente, algo muito mais complexo e mutuamente determi-
nante em sua complementariedade dialética.

2.10. O comunitarismo do republicanismo conservador


Existe um certo republicanismo que exalta a importância da comunidade, dos
direitos do povo, que desconfia da representação, do Estado, das instituições in-
tervencionistas liberais na vida do grupo. Não obstante, contaminados por certos
pressupostos capitalistas, admite este sistema econômico como quase-natural.
Ademais, só se tem uma experiência metropolitana (não colonial ou periférica).
Um J.J. Rousseau pode inspirar este movimento que fala de “soberania popular”
(como J. Habermas). Outra vertente apoia um antiestatismo enquanto diminuição
do pagamento de impostos, de contribuições, para o fortalecimento do Estado
benfeitor, que é visto como a ampliação de uma superestrutura que debilita a vida
comunitária da base, que empobrece os cidadãos com tanta burocracia e progra-
mas sociais inúteis que produzem clientelismo. Pensam que se ajuda aos pobres
potencializando o capital de uma nação, criando novos empregos para todos. Tudo
isso se apresenta como um “conservadorismo compassivo”.
Este republicanismo se tornou francamente conservador, social-democrata ou
meramente eurocêntrico (americanocêntrico) e usa seus argumentos para desacre-

48 Diós y el Estado, Prólogo.

38
ditar movimentos políticos que também partem da comunidade. Mas, ao situar-se
na periferia pós-colonial adquirem tintas populares, indígenas, anticapitalistas, de
libertação e, então, são rechaçados por “populistas”, neonacionalistas, etc.

2.11. A política somente como afirmação ou como a absoluta negação de


princípios normativos

Outra falácia redutiva se manifesta em duas posições extremamente opostas.


Uma, como a de K.O. Apel, que dá exclusiva importância à questão dos princípios
normativos (morais, e sua aplicação na política), atacada por ser principialista ou
fundacionalista (por sua pretensão de tentar uma fundamentação dos princípios)
– posição, apesar de diferenças, também defendida por J. Habermas. Outra, pelo
contrário, como a de um R. Rorty ou um E. Laclau (há anos), nega que possa haver
princípios normativos na política ou que estes consistem em regras procedimentais
ao que a normatividade não agrega nenhuma qualidade de importância (Bobbio).
De fato, todos eles se inclinam de tal maneira para uma das teses extremas que
novamente afirmam uma certa falácia redutiva. É preciso dar importância aos
princípios sem exclusivismos: descobrir seu aspecto normativo sem descurar sua
procedimentalidade constitutiva.
Há muitas outras falácias redutivas, mas, com as indicadas, fica sugerida a
questão da busca de muitos pensadores para reduzir o político e a política a al-
guma de suas dimensões, caindo destarte em unilateralismos contraditórios. A
questão, uma vez mais, seria a de estudar a complexidade do político e as mútuas
relações co-constituintes. Assim, a necessidade dos princípios normativos pode se
articular à incerteza contingente da ação político-estratégica e à necessidade das
instituições (e também à necessidade de sua transformação no momento devido),
mostrando a estrutura complexa e a mútua determinação dos três níveis: ações,
instituições e princípios. Este será nossa pretensão: observar como os princípios
inspiram as ações e as instituições, sem tirar o contingentemente criativo das
ações e a permanência e governabilidade que permitem as instituições. Mútua
determinação sem última instância.

3. Complexidade arquitetônica necessária, mínima e suficiente

[246] Desejamos colocar sobre a mesa claramente as categorias para armar o


“quebra-cabeças” em que vai se constituir esta Arquitetônica. A Política da Libertação
tem a pretensão de tratar um número suficiente de temas, aqueles que sejam mais
pertinentes, para iluminar os políticos profissionais, aos cidadãos em suas lutas co-

39
tidianas e, em último termo, para entabular – se for possível consegui-lo – um deba-
te entre os colegas especializados em filosofia política. Para isso será preciso poder
efetuar um itinerário das categorias necessárias, as mínimas possíveis, mas, ao
mesmo tempo, as suficientes para poder completar, como um marco teórico míni-
mo, que dê uma ideia da complexidade da filosofia política. Muitos anos de estu-
dos, meditações distantes dos ruídos dos debates públicos filosóficos permitiram
que eu amadurecesse as seguintes linhas para a discussão, a mais ampla possível,
para poder melhorar, de agora em diante, as hipóteses de trabalho que exponho.

3.1. O horizonte ontológico: a “ordem política vigente”

Distinguirei abstratamente certas categorias que de fato sempre se encontram


integradas na complexidade concreta, desde um ponto de vista analítico e metódi-
co, em que a “lógica da exposição” não é idêntica à “lógica da explicação”.
Num sentido próximo ao heideggeriano, a descrição do que nos confronta (os
“entes”, os “fenômenos”) se encontram sempre formando parte de um todo, uma
totalidade, uma referência de conjunto.49 Por isso, na política deverei lançar mão
de categorias como campo, subcampo, sistema, subsistema, âmbito, etc., o que dá
ideia da totalidade dentro da qual se encontram os fenômenos que são analisados
em cada caso.
O político, a vida política, se dá sempre num mundo de sentido onde tudo re-
cebe significado e valor. As mediações que nos confrontam são possibilidades que
empunhamos desde um passado recordado (a história, a tradição, de um povo),
desde onde se abrem projetos futuros que permitem que nos enfrentem ditas
possibilidades políticas. O certo é que todos estes momentos constituem sempre
e inevitavelmente uma ordem política vigente dentro da qual nos encontramos e
da qual podemos contar para reproduzi-la, repeti-la ou inová-la (até a revolução
estrutural, inclusive, que, de todas as maneiras, é de uma ordem vigente que pode
variar de uma a outra, em grande parte distinta). A Rússia czarista se transformou
na União Soviética sem deixar de ser, em numerosos aspectos políticos tradicio-
nais, o que era antes, modo que renasce desde 1989. Até as maiores revoluções são
ordens novas implantadas sobre tradições populares que mudam pouco nos ciclos
grandes da história.

49 Desde os dois primeiros capítulos, mas especialmente no sexto, de Para uma Ética da Liber-
tação (Dussel, 1973, vols. I e II), o mesmo em Método para uma filosofia da libertação (Dussel,
1974c), ou em Filosofia da Libertação (Dussel, 1977, § 2.2), a “totalidade” foi a categoria on-
tológica que me permitiu começar a desenvolver todo meu pensamento filosófico. Em Ética
da Libertação (Dussel, 1998), a totalidade ocupa toda a Primeira parte e os três primeiros
princípios expostos.

40
A vida política transcorre, por conseguinte, em ordens políticas das quais par-
tem todos os agentes e instituições com as quais o filósofo deve sempre contar
como ponto de partida. O conceito de potentia indicará o novo nome de uma con-
cepção positiva, ontológica, e última referência da política (e do campo político
como tal). É o fundamento, o ser do político, o oculto por excelência.
O “acontecimento” fundacional50 quer sugerir o momento em que se origina uma
ordem política que virá a ser o vigente tempo depois. A nova ordem fenomênica.
Toda a Arquitetônica pretenderá mostrar os momentos estruturais mínimos,
mas suficientes, de toda ordem política possível e que aparecerá como todo no
âmbito da potestas.

3.2. A segunda categoria: da Arquitetônica à Crítica, da Totalidade à


Alteridade

Uma “ordem política vigente”, analisada metodicamente em abstrato como to-


talidade, observaremos de imediato que, como dada, na realidade, nunca pode ser
fechada por completo como totalidade. Toda totalidade é inacabada. Mas, além
disso, tem inevitáveis efeitos negativos, nos curto, médio e longo prazos. Partir
desde seus efeitos negativos, dos dominados e excluídos que não fazem parte da
“ordem vigente” lança todo um processo de luta pelo cumprimento das reivindica-
ções que os grupos excluídos exigem.
É desde a alteridade ou exterioridade do sistema, da “ordem vigente”, que se
origina um movimento crítico que inaugura propriamente a política da libertação,
que é o objeto desta obra. Na verdade, a Arquitetônica é como que uma parte prope-
dêutica. O tema que nos interessa inicia nos §§ 30 e seguintes do próximo volume.
O povo51 se transformará, mais que mera comunidade política, no autor do processo
crítico de uma política da libertação.
Este será o momento de explicar em que consiste o método analético desde
a lógica analógica. Subsume a dialética e a supera, não é totalizada (puramente
ontológica), nem equívoca (como Levinas) e, sim, se abre a um âmbito onde a
hiper-potentia relança o processo político até os atos políticos anti-hegemônicos que
transformam as instituições. O “acontecimento criador” supera a ordem vigente e
abre o caminho para uma nova ordem futura.

50 Ver o tema no § 15.


51 Ver § 38.

41
3.3. Os três níveis do político: a ação estratégica (A), as instituições (B) e os
princípios implícitos (C)

Tanto a ordem ontológica vigente (da Arquitetônica) quanto a nova ordem que
se abre desde a Alteridade (que será tratada na Crítica), tem níveis que desejamos
agora indicar.
O nosso debate com K.-O. Apel foi nos impondo certos níveis necessários
analiticamente para organizar a estrutura da política. Apel propõe em sua Ética
discursiva uma “parte A” e uma “parte B”. Na “parte A” (Teil A) está o princípio
discursivo, que trata da fundamentação no nível transcendental ou universal. A
“parte B” é o momento dos outros princípios subalternos, da aplicação dos prin-
cípios à economia, à política, etc.; é o momento hermenêutico, das mediações.
Se generalizarmos esta divisão de um “nível A” e outro “B”, pode-se rapidamente
compreender que todos os princípios se movem dentro do primeiro dos níveis (A)
e se aplicam no segundo (B).
Apel, contudo, não imaginou um “nível C” (porque lhe interessa somente a
“fundamentação” dos princípios ou sua primeira “aplicação”, mas não o desenvol-
vimento suficiente de uma ética completa e muito menos de uma política), que
deveria incluir o nível das ações e das instituições políticas concretas, empíricas, a
atualidade do processo estratégico da razão política. Por exemplo, o “ato político
que estabelece a hegemonia” não se situa num “nível B” da política, já que não se
trata das mediações “particulares” (a “particularidade” [Besonderheit] hegeliana) e,
sim, da “singularidade” (Einzelheit) – o fato de ser “único” ou com unidade numé-
rica –, tratando-se, assim, necessária e sistematicamente de outro nível (por isso,
exige outra denominação na política).
John Rawls52 assinala três níveis na mesma ordem que Apel (por se inspirar
igualmente em Kant): a) os princípios; b) as instituições e c) os fins da ação. Nós,
por razões de método, inverteremos a exposição e chamaremos “nível A” a “parte”
inexistente em Apel ou a terceira parte de Rawls; “nível B” a parte de igual nome;
e “nível C” a “parte A” de Apel e a primeira parte de Rawls. Não nos interessa
por motivos racionalistas apoiar as posições fundacionalistas, principialistas ou
neokantianas. Nos interessam os princípios por exigências políticas de luta contra
a corrupção e em razão da deterioração do “nobre ofício da política” – como diria
um político mexicano. Os princípios implícitos animam os níveis A e B, por isso,
são expostos ao final. Os novos movimentos sociais coordenados no Fórum Social
Mundial, por exemplo, se “entram” na política, o farão se captarem a honestidade
dos princípios normativos e se for redefinido o sentido do exercício do poder po-

52 Na conhecida obra Uma Teoria da Justiça (Rawls, 1978), divide o livro em três partes: na
primeira, se ocupa da problemática dos “princípios”; na segunda, das “instituições”, que são
estruturadas desde os princípios; na terceira, dos “fins” da ação.

42
lítico. Em caso contrário, a política “suja” seguirá contando com o concurso dos
corruptos, inescrupulosos, hipócritas, cínicos..., mas não com líderes sociais que
podem chegar a ser igualmente líderes políticos (como o dirigente dos cocaleros
bolivianos que chegou à presidência do Estado do seu país).
Os princípios dos quais falamos (nível C) são princípios políticos normativos
implícitos (como o explica R. Brandom, 1998), que de fato os políticos nunca expli-
citam, embora os políticos grandes e honestos (como Emiliano Zapata, por exem-
plo), os praticam de fato.
Nesta obra “ascenderemos do abstrato ao concreto” (como nos recomendava
Marx teórica ou dialeticamente), já que, de alguma maneira, a ação política é mais
abstrata e simples do que as instituições, que são mais complexas e que, ademais,
propõem a ação estratégica que as funda, as alenta ou as destrói por dentro.

3.4. As três esferas dos níveis B e C: o material, o formal e a factibilidade

[247] Temos dito que a política se desdobra num campo próprio, como todas as
demais atividades humanas. Os mais variados campos não são totalmente indepen-
dentes, mas se cruzam, se determinam mutuamente – a palavra inglesa overlapping
ajuda a entender bem o conceito. Existe, então, cruzamento de campos com cam-
pos; de campos com sistemas; de sistemas com sistemas, etc. A complexidade
deixa sempre aberta a aparição de novos campos ou sistemas, o desaparecimento
de algum, a mútua determinação (nunca absoluta) que muda num tempo e num
espaço. As esferas políticas são âmbitos de cruzamento entre campos. Isto explica
porque tanto as instituições quanto os princípios normativos da política devam
ser abordados tendo em consideração pelo menos três esferas dentro das quais se
entrecruzam com o campo e os sistemas políticos outros campos e sistemas que não
são intrinsecamente políticos, mas que determinam muitos aspectos da política e,
vice-versa, que a política influi na realidade das ações e instituições destes campos,
do ecológico, do econômico, do cultural, do direito, da administração, etc.
Hegel, em sua Rechtsphilosophie, quando trata do tema da “sociedade civil”,
divide sua matéria em três esferas53: a) o sistema das necessidades, que é a esfera
material; b) o sistema do direito, que é o nível da legitimidade, do formal da política;
e c) as corporações e a polícia, nas quais está a esfera da factibilidade estratégica.
Para superar o economicismo do socialismo real (antianarquista) e o econo-
micismo do liberalismo e do neoliberalismo (anarquismo de direita), mas igual-
mente o politicismo de alguns (E. Laclau, J. Rancière, etc.), é necessário, como
53 Ver mais adiante o tema no § 20.5 [313]. Estas três esferas foram lentamente se impondo
na elaboração da Ética da Libertação (Dussel, 1998; 2000) e os princípios éticos (agora
subsumidos nos políticos) respondem a estas três condições da “pretensão de bondade”
(agora “pretensões políticas de justiça”).

43
já o indicamos à exaustão, articular a complexidade da mútua determinação sem
última instância.
O formalismo legalista kantiano ou o legitimista neokantiano são outras redu-
ções que tentam definir a política desde a esfera do sistema, as instituições e ações
(como a atividade dos juízes) do direito e o monopólio legal da coação do Estado.
A essência da política seria instaurar um “estado de direito”. C. Schmitt se levanta,
com razão, contra este formalismo vazio.
Mais criticável é o puro procedimentalismo (que, p. ex., poderia ser enunciado
do seguinte modo: “A democracia é um conjunto de procedimentos para alcançar
acordos negociáveis”, que N. Bobbio tende a propor), mais vazio ainda que o pró-
prio neokantismo. O que se aprende deles é que, efetivamente, o momento proce-
dimental (e normativo) é uma determinação essencial por excelência do político,
esfera fundamental que teremos muito em conta sem cair em legalismos.
O cinismo do realismo político puramente factibilista, mal chamado “maquia-
vélico” (no qual, os meios do êxito justificam os fins) cujo único critério é a razão
instrumental (“O que pode tecnicamente ser feito é possível, por isso, é político”,
tão criticado por M. Horkheimer), da mesma maneira, é outro exemplo da impor-
tância da eficiência na política, mas dentro do horizonte possibilitado pelas esferas
material e de legitimação. A pura factibilidade não é politicamente eficaz, a longo
prazo, nem tampouco a pura governabilidade sem conteúdos.

3.5. Armando o quebra-cabeça

[248] Como se viu, pretende-se superar numerosas unilateralidades, falácias


redutivas, que afirmam um termo da relação dialética e negam os outros. É neces-
sário reter o quiasmo tão apreciado por Merleau-Ponty: o material e o formal, o
material-formal e a factibilidade; a ação e a instituição (o dilema anarquista e con-
servador), a ação-instituição e os princípios, afirmando a universalidade dos prin-
cípios e a contingência da incerteza das decisões, etc. Nossa Política da Libertação
deverá, como o artista do circo (em equilíbrio sobre uma fina corda) ou o andino
no cume das montanhas (sem cair em nenhuma das duas ladeiras), manter-se na
articulação dialética dos opostos para alcançar uma rica diversidade que supera
os falsos dilemas redutivos. Uma complexidade das determinações necessárias,
mínimas e suficientes para uma política desde a periferia mundial.

3.5.1. A Arquitetônica
Neste volume, que corresponde à categoria abstrata de “Totalidade”, tratare-
mos da estrutura mínima de uma ordem política vigente, esboçando os três níveis

44
da complexidade do político em sua positividade construtiva inicial, como o fez,
à sua maneira, John Rawls, na Teoria da Justiça. Para concretizar esta exposição,
divide-se a matéria em três partes, com uma breve introdução (fundamental para
todo o desenvolvimento posterior).
Na Introdução, analisamos o conceito de poder, que é o fio condutor de toda
a filosofia política. As categorias de potentia (o poder da comunidade em si) e a
potestas (o poder delegado exercido pelas ações ou nas instituições) expressam a
disjunção que se desdobrará em toda a política. Trata-se das categorias geradoras
primeiras, como as de trabalho vivo e trabalho objetivado na econômica de K. Marx
(ainda anterior ao valor de uso e valor de troca, segunda disjunção categorial).
No Capítulo 1, a partir do § 16, analisaremos o primeiro nível (A), já indicado,
dentro do campo político, que consiste nos diversos momentos da ação estratégico-
-política propriamente dita, em seu aspecto concreto, complexo. O poder político
começa seu desdobramento neste nível que, para a tradição e para muitos filósofos
contemporâneos, constitui o tema exclusivo da política.
No Capítulo 2, a partir do § 20, exporemos o segundo nível (B), o das institui-
ções políticas, limites ou marcos que delimitam funcionalmente a ação política
dentro do indicado campo político, constituindo as mediações sistêmico-funcio-
nais em suas diversas esferas. É aqui que deveremos abordar as três esferas ou tipos
de instituições: as materiais, as de legitimação e as de factibilidade ou eficiência
administrativa. É um capítulo maior, porque tanto a criação de novas instituições
como sua transformação (parcial ou revolucionária) incumbe muito mediatamente
ao que exerce delegadamente o poder. O tema da fetichização é central neste nível.
No Capítulo 3, a partir do § 24, trataremos do terceiro nível (C), o dos princí-
pios implícitos nos dois níveis antes enunciados, que consistem em ser os limites,
marcos ou fronteiras do campo político como tal, mas, e principalmente, são o
impulso intrínseco normativo da ação política e das instituições em suas esferas
codeterminantes, isto é, são princípios políticos implícitos e decisivos de toda po-
lítica porque motivam, asseguram e estabilizam o poder em seus componentes
essenciais, do mesmo modo que na ação política e nas instituições por dentro.
Contra a posição moralizante que fala de ética e política ou dos que ensinam que
a política é puramente procedimental, eficiente e sem princípios (nem normativos
e nem estratégicos), defenderemos uma posição sui generis: a subsunção dos prin-
cípios éticos no campo político os transforma em princípios normativos políticos
que, no caso de não se realizarem, destrói-se a ação política e as instituições, vale
dizer, se fetichiza o exercício do poder, o que contribui com a impossibilidade do
exercício obediencial da política, que é o único que cumpre com as exigências da
reprodução e desenvolvimento da vida dos cidadãos (material), com a legitimidade
(formal) e com a eficiência política, que tem em conta as duas exigências norma-

45
tivas anteriores (a razão estratégico-instrumental política se integra igualmente à
normatividade da “pretensão política de justiça”).
A reflexão sobre a “ordem política vigente” fecha esta Arquitetônica como fruto
da instituição de uma totalidade política legítima, verdadeira e governável.

Esquema 13.01. Articulação arquitetônica dos níveis A, B e C, com suas esferas


e princípios diferenciados. O silogismo político.

M L F C

M L F B

A
Esclarecimentos ao esquema. A: nível das ações estratégicas. B: nível das instituições ou mediações;
BM: esfera material; BL: esfera de legitimidade formal; BF: esfera de factibilidade estratégica. C:
nível dos princípios implícitos. CM: princípio material; CL: princípio formal democrático; CF:
princípio de factibilidade.

3.5.2. A Crítica
[249] No volume que se seguirá a este se estudará o tema para além da cate-
goria de totalidade. Ali se abrirá um novo discurso, crítico-desconstrutivo, gra-
ças à categoria de “alteridade”.54 Para além de toda totalidade constituída – pela
práxis política e as instituições estruturadas historicamente –, de toda “ordem
vigente”, se encontram sempre aqueles que sofrem na subjetividade corporal (ma-

54 Tudo o que escrevi durante os últimos trinta e cinco anos ronda esta categoria crítica, ética,
agora política. Esta categoria de alteridade define a Política que tento pensar como Política
da Libertação. Desde minhas obras dos anos setenta (Dussel, 1973, cap. 3ss; 1977, 2.5ss),
venho enriquecendo esta temática.

46
terial enquanto relacionada à vida) as injustiças, os “erros” da ordem vigente. Os
efeitos negativos de uma ordem política são inevitáveis pela finitude da ação e das
instituições, apesar das melhores “pretensões políticas de justiça”, porque toda
decisão, em qualquer nível (na práxis e nas instituições), é incerta, impossível de
ter clarividência absoluta e, desde sua finitude inevitável, os efeitos negativos são
igualmente inevitáveis. Os Provérbios dizem: “O justo peca sete vezes por dia” e,
como é justo, pode permanecer em “pretensão política de justiça”, corrigindo seus
erros. O injusto, ao contrário, não comete erro. Quer dizer, não tem consciência
nem está disposto a aceitar que se lhe atribua algum erro. Estriba sua injustiça
na irresponsabilidade para com os efeitos não intencionais negativos de sua ação.
Sendo inevitáveis os efeitos negativos da ordem política vigente, é apodítico
e universal que existem ditos efeitos. Chamaremos vítimas políticas aos que os
sofrem. Desde a subjetividade negada, singular ou comunitária, das vítimas, surge
o ponto de apoio da crítica. Será agora o povo (plebs) em sentido técnico: o bloco
social dos oprimidos (de A. Gramsci) e excluídos, massivo no atual processo de
globalização.
Desde a categoria de alteridade (levinasiana, redefinida), desde a exterioridade
do Outro, da outra (a mulher oprimida e excluída), desde a raça não branca, desde
os operários do capitalismo, as colônias do imperialismo, os indígenas, etc., desen-
volveremos o discurso crítico da Política da Libertação de maneira arquitetônica.
Na Introdução, desconstruiremos o conceito de poder (potentia/potestas) ex-
posto na Arquitetônica desde a categoria de híper-potentia que surge desde um povo
que emerge do seio da comunidade política – ou desde sua exterioridade analógica
– que são os novos movimentos sociais, identidades coletivas, com reivindicações
próprias, que lutam por viver, por participar, por construir eficazmente as dimen-
sões políticas de sua existência comunitária e histórica. O “acontecimento” que
cria uma nova ordem é mais que fundacional, é metafísico, transcendental. Paulo
de Tarso tem a ver com esta segunda maneira de interpretar o “acontecimento” no
Império romano – para além da interpretação de A. Badiou, S. Žižek, G. Vattimo
ou G. Agamben, entre outros.
No Capítulo 4, a partir do § 32, continuaremos o tema dos princípios implícitos,
mas agora críticos, a partir da hipótese de que o começo do processo de trans-
formação (parcial ou revolucionário, segundo as circunstâncias), de libertação,
depende em grande parte de uma clara consciência crítica normativa, quando o
sujeito se transforma em ator graças a princípios políticos que o obrigam a com-
prometer suas ações a favor do povo, dos excluídos, tornando-se ator coletivo na
conjuntura propícia. A práxis antidominadora faz entrar em crise a hegemonia
da ordem política vigente e desencadeia o processo de libertação política, na cons-
trução de nova hegemonia.

47
No Capítulo 5 da Crítica, a partir do § 36, que tem relação com o Capítulo 1 da
Arquitetônica, não trata da ação política estratégica em abstrato e, sim, da práxis
de libertação política sob outros parâmetros, os que constituem os oprimidos e
excluídos políticos como atores antidominadores que tendem a instaurar a nova
ordem. A práxis criativa, inovadora e transformadora (e, em momentos limites,
poucas vezes durante séculos, revolucionária) é o motor da história, de seu desen-
volvimento, do crescimento da humanidade. Estamos no momento do conflito.
No Capítulo 6, a partir do § 41, se passa ao segundo nível. Agora não se trata de
compreender o sentido das instituições, nem sua estruturação em sistemas mate-
riais, formais ou de factibilidade. Agora se trata da transformação das e dos siste-
mas que envelheceram por uma entropia inevitável a longo prazo. O que foi criado
para responder à reprodução e crescimento da vida se modificou em fósseis buro-
cráticos que preservam os interesses dos funcionários contra os cidadãos. Devem
ser mudadas as instituições em todos os sistemas e por isso aparece a pertinência
dos postulados políticos, para evitar falsas antinomias. É a questão da reforma ou
transformação.55
As conclusões tentam reabrir o debate para futuras obras, analisando o que
possa ser a “pretensão política crítica de justiça”, de uma justiça não desde a ordem,
as estruturas, o sistema do direito vigente. E, sim, uma justiça dos oprimidos e
excluídos; justiça popular, de cumprimento das reivindicações dos movimentos
populares; justiça com respeito à ordem futura: solidariedade para além da frater-
nidade presente.

55 A revolução é a transformação extrema. Uma transformação parcial não é necessariamente


reformista.

48
§ 14. A VONTADE COMO FUNDAMENTO. A POTENTIA E A
POTESTAS

[250] O político, que se abre a um campo próprio, tem um fundamento ontológico.


Trata-se, agora, de elucidar dito fundamento do político, isto é, desenvolver anali-
ticamente uma ontologia do político. Desde já, e por se tratar de uma Política da
Libertação, o que aqui se construir será desconstruído a partir do § 30 da Crítica.
Por isso, recomendamos que o leitor, após se deter neste § 14, passe ao § 30, para
ter uma visão de conjunto sobre o tema tal como o intencionamos nesta política
filosófica crítica, porque desde o mero horizonte ontológico se poderia formar pre-
maturamente uma impressão equivocada daquilo que pretendemos.56

1. Anterior à Vontade de Poder: Schopenhauer, Nietzsche, Heidegger

As filosofias políticas atuais – e estou me referindo preferencialmente às que


são elaboradas na Europa e nos Estados Unidos, embora também na periferia
– não abordam, em geral, este tema fundamental. Alguns autores, como Carl
Schmitt, sob a influência da S. Kierkegaard e posteriormente de M. Heidegger,
tocaram o tema parcialmente, mas, como veremos, evitaram aspectos de maior
profundidade que teriam dado à sua posição uma fundamentação ontológica mais
ampla. Ademais, como o pensamento moderno (mas também, o grego e o ociden-
tal, em geral) deu prioridade ao nível cognitivo, desejamos começar por mostrar
a importância, e maior pertinência do tema da vontade na política. A política é
tecida em torno da questão do “poder” (Macht, em alemão; pouvoir, em francês;
kratós, em grego; potestas, em latim). O “poder”, em última instância, como vere-
mos, tem a ver com a vontade. Já entre os egípcios, o deus originário Ptah tinha
uma dupla dimensão: Horus, que se manifesta como o coração, e indicava o poder,
a vontade, o afeto,57 e Thot que, sendo a língua, se referia ao momento linguístico,
racional, da sabedoria, das ciências, da matemática e da filosofia, mas também da

56 Veja-se a Tese 2 de 20 Teses de Política (Dussel, 2006, [2.1]).


57 É bem sabido que, na década de 1930, tanto Schmitt como Heidegger coincidiram com o
nazismo. Importante é o livro de Domenico Losurdo, Heidegger and the Ideology of War (Lo-
surdo, 2001). Ver a obra do filósofo chileno Víctor Farías (1998). De todas as maneiras, é
preciso situar a postura de Heidegger, sem aprová-la de maneira nenhuma, na circunstância
precária padecida pela Alemanha na Primeira Guerra denominada “mundial” e por um “re-
torno” às origens do país vencido: retorno às “fontes” histórico-populares (que tiveram grande
repercussão, por isso, na periferia, por exemplo, no pensamento de Carlos Astrada e Nimio de
Aquino, na Argentina) (Cf. Dussel, 2003, p. 15-19 [“Existential Ontology”]). Diferenciar-se
deste “retorno” fascista às fontes populares é tarefa crítica de uma filosofia da libertação.

49
produção artística e das técnicas (Cf. Dussel, 1998, § 5).58 É agora o momento de
Horus. Uma definição semita do divino diz também: “Deus é amor” (expressão
de 1 Carta de João 4, 8 e 1659). A outra definição se enunciava: “No começo era
a Palavra” (João 1, 1) (a dabar hebraica ou o lógos grego continuavam a tradição
do Thot egípcio). Os semitas a pensavam como a Sabedoria; também os cristãos
(como o Verbo) e este foi o ponto de partida e inspiração do Idealismo alemão, de
Fichte, Schelling e Hegel (e, em geral, de toda a filosofia moderna). Uma filosofia
política crítica deveria saber remontar à indicada primeira corrente ou estilo filo-
sófico até suas últimas consequências, numa tradição que poderíamos denominar
da vontade: Platão, Agostinho,60 Mu’tazilitas islâmicos,61 Boaventura, Escoto,62
Schopenhauer,63 Nietzsche e muitos outros, para depois integrá-la na corrente da
razão prática, o lógos praktikós, a língua: Thot, a tradição mais cognitiva, discursiva.
[251] A reflexão ontológica não se ocupa primeiramente dos entes, dos objetos,
das coisas (que é o meramente ôntico) e, sim, do fundamento ou daquilo que susten-
ta, que outorga o ser, que abarca a Totalidade dos entes como seu âmbito próprio.
A pergunta ontológica em nosso tema se enuncia assim: qual é o fundamento de
tudo que chamamos político? Qual é a última referência inultrapassável que expli-
ca a ação política, as instituições políticas e os princípios políticos implícitos? Esta
última instância pode ser alcançada ascendendo dialeticamente na Totalidade com-
plexa dos entes, das mediações e dos momentos políticos até o fundamento simples
que os abarca e os funda; para depois, pela via descendente epistêmica, explicar os
momentos ônticos da política.64
Necessitamos um fundamento positivo último que nos permita descrever a
vontade e o poder político num sentido forte, com pretensão de verdade e legiti-
midade, de onde seja possível criticar as descrições defectivas e redutivas do dito
poder. Sigamos o fio da questão, começando por Schopenhauer, levados pela mão
da reflexão de Michel Henry, quando escreve:

58 Ademais, se nos diz que “There is no doubt that the Egyptian (M3t). Ma’at (truth, accuracy,
justice) was central to both social and natural spheres in the same way as the Greek Moira
(generally translated Fate) wich derived from it etymologically” (Bernal, 2001, p. 272).
59 Neste mesmo texto, lemos: “A Vida se fez visível! (1 Carta de João 1, 2), se “revelou”, se
“manifestou”, se “encarnou”. A “vida” e a “vontade” são correlativas. Para Schopenhauer,
segundo iremos expor, o “corpo” é “manifestação” (Erscheinung) da Vontade, e esta da Vida.
60 H. Arendt mostrou a importância para a filosofia política do pensador de Hipona (Arendt,
1978, II, p. 84ss). Quer dizer, Arendt se ocupa da vontade em toda a “Segunda Parte” de
sua The Life of the Mind.
61 Ver o indicado na visão histórica desta política no § 47.
62 Já consideramos de maneira muito especial sua filosofia nos parágrafos [63-65], algo mais
que H. Arendt, que se detém no Doutor Sutil (Arendt, 1978, p. 125ss.).
63 Ver o já exposto em minha Ética da Libertação, §§ 3.3 [242-258].
64 Ver, entre minhas obras, 1973, II, 1973b, 1974c, etc.

50
Para Schopenhauer a Vontade [...] designa a Vida. Vontade quer dizer vontade da vida
para viver [...]. Que significa querer-viver? [...]. Na Vontade de Schopenhauer não é a
vontade o princípio, o naturante, não é ela que quer e, sim, a vida. A vida é o primeiro,
que constitui a realidade, que determina a ação [...]. O querer-viver se quer a si mesmo,
não enquanto querer e, sim enquanto viver, ele não deseja nada fora da autoafirmação
da vida [...]. No querer-viver schopenhaueriano, o que se quer é a vida, o que ela quer é
a vida (Henry, 1985, p. 164-165).65

A vontade é o “querer-viver” da vida, da vida humana. A política ronda sempre o


tema do poder. A essência do poder é a vontade, sendo que a essência da vontade é
a vida – como afirma M. Henry a partir de Schopenhauer. Neste ponto, o “primei-
ro” Schopenhauer, o mestre (que depois se contradisse) vai mais além do discípulo
(Nietzsche). Da nossa parte, queremos recuperar a ideia de que anterior à “Vonta-
de de Poder” nietzschiano se dá ainda uma primigênia “Vontade de Viver” – e de
que a “Vontade de Poder”, quando se fecha sobre si mesma ou domina o outro, é
uma determinação defectiva:

O que a Vontade (Wille) quer é sempre a Vida (Leben) [...]. Dizer Vontade de viver
(Wille zum Leben) é o mesmo que dizer franca e lhanamente Vontade, e somente por
pleonasmo utilizamos aquela frase [...]. Ali onde há Vontade, há também vida. Por
conseguinte, à Vontade de viver (Lebenswillen) está sempre assegurada a vida (das Leben
gewiss) e enquanto ela nos alenta não devemos nos preocupar pela nossa existência [...].
O nascer e o morrer são coisas que pertencem ao fenômeno da Vontade e, portanto, à
vida (Schopenhauer, 1960, I, p. 380; 2000, p. 218).66

Nietzsche pareceria negar aparentemente o querer-viver, ao escrever: “Não en-


controu certamente a verdade quem fala de querer-viver. Este querer não existe,
porque aquele que não é não pode querer e como poderia ainda desejar a vida o que
já está na vida? Onde se encontra a vida, ali somente se encontra o querer”.67 Nega-se
aqui um querer que quer ser vivente como futuro (desde o não-ser, mas o que não é
não pode querer) ou desde o já ser vivente (e isto sim é possível), quando se afirma ao
menos que quando existe vida pode “encontrar-se o querer”. Schopenhauer afirma
este querer que se encontra na vida, mas se encontra como querer permanecer na
vida, vida que, inevitável e continuamente, vai se perdendo e cujo querer a sustenta.
Ou, ao invés: somente o vivente pode querer (a realidade do querer não é possível
nos seres não-viventes), e tem este querer para sobre-viver. Quer dizer, se quer viver

65 Généalogie de la Psychanalyse, V.
66 El mundo como voluntad y representación (Livro IV, cap. 54). Tiraremos do conceito de Von-
tade em Schopenhauer o sentido trágico da necessidade de se impor sobre outros seres vivos.
67 Also sprach Zarathustra (Cf. Henry, 1985, p. 254); de Nietzsche, Oeuvres philosophiques
complètes, Gallimard, Paris (1971, p. 134).

51
seguir vivendo (no futuro) a vida que já se tem (desde o passado no presente); assim,
o querer une, liga a vida presente com a vida futura, com a sobre-vivência como
permanência da vida. Enquanto houver querer (enquanto existir esta ponte, esta
tensão), a vida estará “assegurada”.
[252] Esta Vontade de Viver será determinante para uma nova fundamentação
da política crítica. Momentaneamente, só podemos indicar que nesta Arquitetônica,
ou numa “ontologia política fundamental” (a ser desconstruída na parte Crítica), a
vontade se joga como Vontade de Vida e, defectivamente, como mera Vontade de
Poder (no sentido de Nietzsche e Heidegger). O “primeiro” Schopenhauer (que
ainda afirma a vida, já que o “segundo” Schopenhauer negará a vida para eliminar
o fundamento do principium individuationis e com ele a dor) e M. Henry, e muito
mais radicalmente E. Levinas,68 nos darão a possibilidade da superação do poder
meramente negativo, como dominação. Porque se o fundamento da política é a
vontade, o estado-de-resoluto, traduzido como a decisão schmittiana,69 somente se
poderá entender a política como um modo de dominação, como comando, como
controle, expressado naquele “os que mandam mandam mandando” do movimento
zapatista. Quer dizer, tem somente um sentido ontológico negativo (e ainda, como
veremos, não é sequer o fundamento primeiro do poder). Ademais, este funda-
mento como “Vontade de Viver”, se arrancasse desde a possibilidade da vontade de
viver do Outro, do que não pode viver porque é uma “vontade impotente”, por ser
vítima,70 seria já um mais além do fundamento, seria uma “fonte criadora” e esta-
ríamos assim em outro âmbito totalmente distinto. Mas não nos adiantemos e dei-
xemos estes temas para a parte Crítica. Portanto, retournont à notres moutons (NT:
“voltemos à vaca-fria”) – como gostava de escrever Marx em seus manuscritos.
Se a essência do poder é a vontade, a essência da vontade é, em última análise,
a vida. Leiamos outro texto de M. Henry:

[Mas] o conceito de Vida se cinde: a) à determinação primeira, ingênua ainda e em cer-


to sentido ôntico, segundo a qual a vida reside no querer-viver e se propõe como desejo

68 O conceito de Vontade deveria, na verdade, cindir-se. Se o “querer-viver” não pode ser para
Levinas senão o “querer” (o “desejo metafísico”) como “solidariedade” pelo “querer-viver-do-
-Outro”, não é então mera conatio autorreferente e, sim, “amor” que “ama-a-realização” do
Outro. Neste caso, a vontade voltada de cada um ao Outro constitui uma comunidade onde
cada um ama o Outro pelo Outro. Em sua essência, estamos “des-fundando” o sentido da
vontade em Spinoza, Schopenhauer, Nietzsche ou Freud. O tema será recolocado a partir
de Levinas no § 30 da parte Crítica desta obra (vol. III, a sair).
69 A Entscheidung heideggeriana adquirirá um sentido político em Schmitt e, por isso, usamos
uma outra palavra para traduzi-la (Cf. Krokow, 1990). Veremos que Schmitt comete uma
falácia redutivo-voluntarista (ao não saber articular o momento racional-prático, formal,
do consenso, da razão discursiva, que não é necessariamente liberal ou burguesa).
70 Se a essência da política é a “vontade de viver”, não será uma “vontade de guerra”, mas, uma
“vontade de paz” (postulado da razão política, como veremos mais adiante).

52
e desejo sem fim, b) se agrega a determinação essencial, ontológica, conforme a qual
a Vida designa agora o modo de doação a si mesmo deste querer, modo de doação no
qual se experimenta a si mesmo imediatamente e que o converte nesta experiência de si,
não como um simples querer-viver e, sim, como um querer-vivente (Henry, 1985, p. 167).

O ser humano como ser vivente,71 quer dizer, como corporeidade concreta que
é cada um, é a própria realidade da qual se parte. É preciso ter em conta que esta
corporeidade “é uma realidade constituída essencialmente pela falta de realidade
[...]. Sua realidade é uma realidade faminta, uma sede insaciável” (Henry, 1985,
p. 166). O ser vivente a quem se refere a vontade, por ser finito, vulnerável, neces-
sitado, tende à sua inalcançável realização – o petit point a de J. Lacan –. Este anelo,
este afeto, este sentimento, este desejo fundamental da vida que pretende, que quer
permanecer na vida, e na mais vida, inscrito na essência da corporeidade humana,
é a vontade. Schopenhauer captou adequadamente que a corporeidade humana é
o lugar da vontade:

A ação da corporeidade (Leibes) não é outra coisa do que o ato da Vontade objeti-
vado [...]. O objeto imediato será denominado aqui a objetividade da vontade (1960,
I, p. 158; 2000, p. 91). Além disso, a identidade da corporeidade e a vontade se mani-
festam também em que cada movimento vivo e pronunciado desta, quer dizer, cada
afeto comove imediatamente o corpo e seu mecanismo interior (1960, I, p. 159; 2000,
p. 92). A vontade que, considerada puramente em si é um impulso inconsciente (erkennt-
nisloss Drang), cego e irresistível, como a vemos também na natureza [...], assim como
na parte vegetativa da nossa própria vida, adquire, com a agregação do mundo da
representação que se desenvolveu para seu uso, consciência de seu querer e daquilo
que quer, que não é outra coisa que este mundo, a vida tal como se nos apresenta. Por
isso, ao mundo visível chamamos seu espelho, sua objetividade (Schopenhauer, 1960,
p. 380; 2000, p. 217-218).

A vida é o modo de realidade da corporeidade humana, o ser do ser humano.


“Com Schopenhauer e Nietzsche, o ser recebe [...], de maneira explícita, o sentido
de ser a vida” (Henry, 1985, p. 257). O ser corporal humano, enquanto vivente, põe
os entes como suas mediações, como sua objetivação no mundo, como momentos de
sua própria realização inalcançável. A vontade é exatamente o querer fundamental
que pode (como Potentia, Força ou Poder) unir como tendência os dois polos do
mesmo: a vida que se é e a vida por vir. O mundo se abre entre estes extremos da
temporalidade vivente e os entes povoam o mundo como possibilidades para a vida.

71 Ver o dito no cap. I da minha Ética da Libertação (Dussel, 1998; 2000). Este “ser-vivente”
não é solipsista, mas, comunitário, não vive num horizonte singular (que pode totalizar-se
egoisticamente), mas que tem pretensão universal, de abarcar toda a humanidade.

53
[253] Deixemo-nos levar como fio condutor da nossa reflexão por uma via
ambígua da filosofia política redutiva, defectiva, negativa, dominadora, a que foi
empreendida pela meditação da Modernidade e, em última instância, pelo pró-
prio Heidegger sobre Nietzsche (quando pretendia separar-se72 da interpretação
superficial de Nietzsche contida na ideologia em voga do nazismo), cujas lições
universitárias cobriam um amplo espaço de tempo desde 1934 a 1946 – época
certamente tormentosa na política na Alemanha.
Em primeiro lugar, há como um repasse, como um tratamento rápido, da “von-
tade na metafísica tradicional”.73 Mas, de imediato, se aproxima do tema central: “a
vontade enquanto Vontade de Poder”,74 enquanto é “o caráter fundamental (Grun-
dcharakter) de todos os entes” (Heidegger, 1961, I, p. 46ss). Para Heidegger, o tema
da vida sempre se liga com a vontade, ainda que estejam ambiguamente entrelaçadas.
Quando se refere a “de todos os entes” (Seienden), toca o aspecto que nos in-
teressa porque não se trata de entes “sabidos” e, sim, de entes “queridos”, práticos,
mediações que em nosso caso serão momentos do político, porque o campo po-
lítico já tem sempre a vontade como fundamento pressuposto. Não se trata da
“compreensão do ser”75 – como momento cognitivo em Ser e Tempo – e, sim, da
vontade como fundamento do mundo dos entes “queridos”, dos entes práticos (não
meramente conhecidos, interpretados ou compreendidos), dos entes políticos (para
sugerir o tema da nossa reflexão):

A pergunta decisiva é precisamente: como e sobre qual fundamento (Grund) o querido


(Gewollte) e o que quer (Wollende) pertencem implicitamente ao querer que quer (im
Wollen zum Wollen)? Resposta: sobre o fundamento do querer e pelo querer. O querer
quer o que quer (das Wollen will den Wollenden), enquanto tal, e o querer põe (setzt)
o querido enquanto tal. Querer é estado-de-resoluto (Entschlossenheit)76 por-si-mesmo,

72 “Separação” que nunca pôde esclarecer (porquanto era membro do partido nazista até
1945), por coincidir com os nazistas em muitos aspectos de seu próprio projeto conservador,
telúrico, populista e até reacionário. Isto, todavia, lhe permitiu, por outra parte, acertar em
outros aspectos em sua crítica à Modernidade, ao liberalismo, ao capitalismo americano e,
em parte, ao socialismo real.
73 Traduzirei diretamente do texto alemão, do qual citarei exclusivamente; neste caso: Hei-
degger, 1961, I, 44ss. Neste parágrafo, Heidegger se refere a Leibniz, Kant, Schopenhauer,
Schelling, Hegel, que serão também nossas referências obrigatórias.
74 Wille als Wille zur Macht é a fórmula nietzschiana em alemão. Ver a expressão, por exemplo,
em Nietzsche, Wille zur Macht, § 696 (Nietzsche, 1922, XIX, p. 145; em Nietzsche, 1962,
IV [§ 690], p. 264).
75 O ato de “compreender” é, de alguma maneira, sempre cognitivo. O “ser” é o abstrato. Agora
nos referiremos ao “querer do vivente”: o “querer” é prático, volitivo; a “vida” é não um modo
de ser, mas, ao invés, o vivente é o real concreto com respeito ao qual o ser é uma abstração
do dito vivente. Não nos referimos a um “penso logo (descubro que) sou”; mas, “quero logo
(descubro que) vivo”.
76 No sentido definido em Sein und Zeit, § 60 (Heidegger, 1963, p. 297-301; 1968, p. 323-328).

54
mas por-si-mesmo (zu sich), enquanto que o que quer põe o que quer enquanto que-
rido.77 A vontade agrega sempre desde si uma determinação contínua em seu querer.
Não se sabe o que se quer não somente no que se quer e não se saberia absolutamente
querer e, sim, que não haveria sequer querer em geral (Heidegger, I, 1963, p. 51).78

Aqui Heidegger cita Nietzsche: “Pois a vontade enquanto afeto do comando é a


marca decisiva do autodomínio (Selbsherrlichkeit) e da força”.79 Heidegger continua:

Estar em estado-de-resoluto por-si-mesmo é sempre querer ir mais além (über sich) de si


mesmo [...] Estado-de-resoluto por aquele que o querer institui (gestiftete) seu domínio
sobre o que quer e o querido e o exerce a título de decisão institucional, permanente,
definitiva [...]. Neste estado-de-resoluto, por aquele que o querer se põe mais além de si
mesmo, reside o fato de ser-senhor-sobre (Herrsein über)80 [...]. A Vontade é em si mesma
Poder (Macht). E o Poder é a permanência do querer em-si-mesmo. A Vontade é Po-
der e o Poder é Vontade (1961, I, p. 51-52). Porque o estado-de-resoluto por si mesmo
do ser-senhor da Vontade é um querer ir mais além de si mesmo, é pelo que a Vontade é
Potência (Mächtigkeit)81 que se potencia (ermächtigt) como Poder (Macht) (I, 1963, p. 52).

O “Poder” da “Vontade de Poder” não enuncia, então, uma consequência ou


um complemento e, sim, “a essência da vontade” (des Wesens des Willens) (1963,
p. 53). É a última instância do fundamento mesmo. Poderíamos ainda nos pergun-
tar com Heidegger pela “essência do Poder” (das Wesen der Macht) (1963, p. 76) e

Ver Bourdieu, 1975. Este estado-de-resoluto (Entschlossenheit) determina toda a política


de Heidegger. Recorde-se esta descrição: “A resolução (Entschluss) é exata e unicamente a
abertura do projetar e determinar a possibilidade fática do caso” (Heidegger, 1963, p. 298;
p. 324). Mas, este estado-de-resoluto se articula necessariamente com o estado-de-aberto (Ers-
chlossenheit) como âmbito da Verdade. Não é em Sein und Zeit primeira e nem exatamente
um momento da Vontade, mas, antes da “compreensão”; não assim em Nietzsche que es-
tamos comentando. Aqui se refere Heidegger igualmente ao conceito de “situação” sobre o
qual trabalha Badiou, como veremos no § 15.
77 Não enquanto “conhecido”.
78 Aqui se deixa entrever um certo “cognitivismo” em Heidegger. Tem medo de afirmar que
é o querer o que “fixa” o âmbito ou o círculo sobre o qual o “saber” se lança para apreender
ou captar analiticamente. Claro que há um prévio confuso aparecer de um objeto provável
(como quando a ovelha parece detectar um lobo e fica “paralisada”; sua estrutura afetiva
tem sido imobilizada e impede que continue sua tarefa “cognitiva)”. Da mesma maneira, o
sistema neocortical lança uns sinais aproximativos e o sistema límbico “avalia” a situação
afetivamente, o que permite um novo momento cognitivo mais analítico (Ver Dussel, 1998
[62]; também, Damásio, 2003). O querer deve ser articulado ao saber, mas não como segun-
da instância, mas, como instância originária codeterminante.
79 Die froehliche Wissenschaft, 5 (cit. Heidegger). Ver sobre Nietzsche (Dussel, 1998 [246-251]).
80 Ser dominus e Herrsein (ser-senhor) significa então “dominar”.
81 Em latim se denominaria potentia, pois é o termo que reteremos em toda nossa reflexão
posterior.

55
então chegamos ao tema da “força”: “A força é a capacidade de reunir nela mesma
e de efetuar o ser-em-estado-de (Imstande sein zu) [...], o que os gregos, antes de
tudo em Aristóteles, designavam por dynamis [...] por enérgeia [...], por entelékheia
[...]” (1963, p. 76-77).
Estamos então em plena ontologia. A vontade é a potentia primeira que institui
e abre o âmbito de todo o querido desde um por-si-mesmo com o que maneja e
controla o que põe e enquanto quer pô-lo desde sua soberania, seu ser-senhor, seu
Poder-pôr. A diferença se estribará entre duas maneiras de “Poder-pôr”: como me-
diação da permanência e aumento da vida (o “primeiro” Schopenhauer) ou como
“Poder-pôr” sobre a vontade do outro (como “ser-senhor” ou dominação). A esta
segunda maneira de exercer o poder político chamamos redutiva, defectiva, negati-
va, segunda e distorcida, e é a quase exclusiva descrição do poder político na quase
totalidade da história da Modernidade e até dos filósofos políticos mais recentes.
Mas isto exigiria ainda algumas distinções para ser claramente compreendido.
[254] O tema do “valor político” se abre desde este horizonte. Nietzsche ex-
pressava: “Os valores e suas transformações estão em relação ao aumento de Poder
(Macht-Wachstum) do que põe os valores”.82 Os entes do mundo têm valor. O
mundo se abre como o “espaço” que se desdobra entre a vida-dada ou a vida-per-
manência e a vida por dar-se. Os entes, enquanto são mediações para cumprir fins
fundados na vida; por isso, as mediações valem. Seu valor é posto pela potentia,
poder ou a capacidade de querer-viver: a vontade. A vontade quer e seu poder
se exerce colocando as mediações que, enquanto tais (enquanto mediações-para),
portam valor. É isso o pelo que “o ponto de vista do valor é o ponto de vista das con-
dições (Bedingungen) de Permanência, Aumento em referência à formação comple-
xa da duração relativa à Vida no interior do devir”.83 Como se pode ver, os entes
(o momento ôntico) têm valor enquanto são postos pelo poder da vontade (uma
vontade que não só quer84 e, sim, que pode. Que tem a capacidade ou força de pôr
as mediações como possibilidades). Mas são postos na temporalidade, a “duração
(Dauer) da vida (des Lebens)”. Duração que une as três instâncias da temporalidade:
da vida-dada no passado, da querida como permanência (Erhaltung) no presente
e do aumento (Steigerung) da vida (como sobre-vivência) no futuro. Estes “valores
são as condições com as quais o Poder (Macht) pode contar” (Heidegger, 1961, II,
p. 103). A vida sem vontade morreria, não tenderia à sua permanência: a vontade
sem seu poder não agiria, nada poderia fazer. O poder sem as possibilidades, os
entes-mediações queridos e postos na existência como “condição” de sua própria

82 Voluntad de Poder, nº 14 (Cit. Heidegger, 1961, II, p. 100).


83 Voluntad de Poder, nº 715 (Nietzsche, 1922, XIX, p. 158; Nietzsche, 1962, IV, p. 271; cit.
Heidegger, II, p. 101).
84 Sem o “querer” da vontade nada se “pode”. Mas a vontade que quer talvez não “possa” pôr
nada porque é Impotente. Vontade de poder é vontade que quer e que pode pôr.

56
realização, não poderia exercer-se. Seria um poder no vazio, sem poder contar
com nada para nada operar. Os entes-valiosos são as “condições” da realização da
própria vida, da vontade e do poder.
A vontade também pode destruir, superar o dado (neste sentido, é Vontade de
Nada [Wille zum Nichts]).85 Por outro lado, o poder que pode pôr entes-valiosos é
poderoso. Mas é mais poderoso ainda o poder que pode sobrepor-se:

A essência do Poder (das Wesen der Macht) é a Vontade que tem mais-Poder (Mehr-
-Macht), isto ocorre quando o Poder exerce o poder como Poder-que-se-sobrepõe
(Uebermächtigung) [...]. O que deve ser sobreposto é o que oferece resistência e que é
estável e sólido, que se mantém e permanece e se conserva. Ao contrário, o que sobre-
põe tem necessidade de poder sair de si até um grau mais elevado de Poder, o que, por
sua vez, exige uma possibilidade de aumento (Heidegger, 1961, II, p. 105).

Entende-se agora porque “a essência do poder” contém a necessidade de “so-


bre-por-se”, de ter a capacidade de “ir mais além de si mesmo”, simultaneamente
como permanência e como aumento de vida. Poder é poder-pôr as mediações deste
permanecer e crescer da vida. “O posto” desde a vontade que pode-pôr, “Vontade
de Poder”, está posto não somente como querido (desde o querer fundamental da
vontade, desde a vida que quer permanecer e aumentar) e, sim, como possível86
(como contingente).
Chegamos à nascente buscada de uma ontologia política (embora ainda não
de uma metafísica política). O mundo ou campo político se abre desde a realidade
como vivente, como corporeidade humana; se abre desde o fundamento da vida
humana como vontade, como querer ontológico da vida, que tem o poder (quando
o tem e não é impotente, que seria politicamente defectiva) de pôr os entes, as
mediações, as possibilidades como condições (Bedingungen) da permanência e au-
mento da vida. “Como vontade” significa poder sobre-por-se desde si mesma por
si mesma (como autonomia). Para Heidegger, seguindo Nietzsche, como “capaci-
dade de ser-Senhor (Herrsein) e poder dominar (Befehlen-können)”, como “centros
de dominação” (herrschaftliche Zentren) (Heidegger, 1961, II, p. 106). Por isso, “os
valores são essencialmente condições condicionadas” (bedingte Bedingungen) (1961,
II, p. 108) da vida e pela vida. Quer dizer, e aplicando ao campo político, todas as
mediações políticas (ações, estratégias hegemônicas, corpo de leis, microinstitui-
ções e macroinstituições, partidos políticos, opinião pública, sociedade civil, Esta-
do, princípios políticos, etc.; todas as categorias políticas que deveremos descrever

85 La voluntad de poder, § 401 (Nietzsche, 1922, XVIII, p. 281).


86 Recorde-se o que foi dito por Duns Escoto (§§ 63-65) sobre a Voluntas divina antes da cria-
ção que elege livremente entre as ideias criadas aquelas que serão reais e enquanto queridas
livremente por Deus não são somente possíveis, mas igualmente contingentes, por ser sua
causa livre, indeterminada.

57
com precisão) têm um valor (político) ou são entes (políticos) enquanto possibilidades
para o exercício ou operação da “Vontade de Poder”,87 dimensão que emana da
tendência à realização temporal da vida humana. Dito com palavras de Heidegger:

As estruturas de domínio (Herrschaftsgebilde) são figuras (Gestalten) da Vontade de


Poder. Frequentemente Nietzsche denomina não somente valores (Werte) as condições
destas estruturas de domínio e, sim, também a estas próprias estruturas [...] Ciência,
arte, Estado, religião, cultura, todos valem (gelten) como valores enquanto condições
pelas quais se cumpre a ordem (Ordnung) do devir do único real (des allein Wirkliche).
Estes valores, por seu turno, enquanto estruturas de Poder (Machtgebilde), pressupõem
certas condições que asseguram sua própria consistência e seu próprio desdobramento
(1961, II, p. 107).

Trata-se, então, da totalidade dos entes práticos (entre os quais nos interessam
os entes políticos). Enquanto totalidade, os entes não têm já valor, porque o valor é
levado por um ente enquanto ocupa um lugar no circuito das mediações, segundo
o que escreve Nietzsche no número 708 da Vontade de Poder: “O valor total
(Gesamtwert) do mundo não é avaliável (unabwertbar), por isso o pessimismo filo-
sófico é o nome do cômico” (apud Heidegger, 1961, II, p. 107).
[255] Cômico é o que se espanta diante do não-valor do fundamento. Por isso,
Heidegger indica que “a proposição: o ente (das Seiende) em sua totalidade não tem
nenhum valor, expressa, no sentido da metafísica da Vontade de Poder, a negação
mais clara da crença de que o valor valha em-si, sobre o ente em sua totalidade
como valioso” (1961, II, p. 107). Os entes valiosos valem como mediações da vida;
não valem em-si, e em sua totalidade têm a dignidade da vida. Já Marx indicava
com acerto que o trabalho e a terra não têm valor econômico algum (valor de troca)
porque são a fonte criadora do valor; têm, isso sim, dignidade. Da mesma maneira,
Nietzsche nos recorda agora que o valor é a posição prática da “mediação enquanto
mediação” (expressão de X. Zubiri) para a vida. A vida, como a liberdade (embora
doa a Agnes Heller), não têm valor, porque são o fundamento dos valores: têm
dignidade (o que é muito mais que o mero valor).88
O quanto de político tenha qualquer ente, coisa, objeto, sistema, possibilidade,
tem a ver com o fato de “portar” um valor político,89 que se adquire por estar inte-

87 Veremos no § 30 que, em realidade, se trata de uma “Vontade de Vida” como fonte criadora
da transformação de todos os entes políticos (em sua singularidade ou como sistemas).
88 Por isso, não tem tampouco direito à vida humana. É sobre a dignidade da vida humana,
não merecida nunca (por definição) por nenhum sujeito vivente, sobre o que o vivente hu-
mano tem direitos às mediações e também direito à “sobre-vivência” (o momento 1 não é o
momento 5 do próximo Esquema 14.01).
89 Devo indicar que não vimos o uso deste conceito: valor “político”. Fala-se de valores estéticos,
econômicos, etc., mas desejamos agora inaugurar o tema do valor “político” enquanto tal.
Quando se cruza o tema da mediação com o poder, situa-se o problema político, tal como

58
grado numa cadeia de condições condicionantes, no nível material,90 à vida huma-
na, enquanto querido (pela vontade) e posto (pelo poder) pelo Poder da Vontade
para o serviço da vida humana como sobre-vivência. A vontade, enquanto tal, quer
viver e, por isso, põe, como poder, ditas mediações sob o modo de exercer o contro-
le, de ser-Senhor ou de ter um comando no sobre-por-se da vida, que tem a mesma
vontade como uma dimensão própria que, por sua vez, pode se impor como poder.
O próprio do poder é “pôr-valor” (Wert-setzung), instituir o valor, produzir as
mediações para a permanência e aumento da vida:

A Vontade de Poder e o pôr-valor (Wert-setzung) são idênticos, na medida em que a


Vontade de Poder prospecta o ponto de vista da permanência e aumento [de vida].
Por isso, a instituição91 do valor não pode referir-se à Vontade de Poder como algo
diferente do primeiro (Heidegger, 1961, p. 108).

A totalidade das ações e das instituições políticas estão postas pelo e desde o
poder da vontade (a potestas, veremos seu significado posteriormente, por isso tem
valor). Na vontade, as mediações políticas ficam fundadas, religadas, referidas,
unificadas, num mundo (no campo político) enquanto mundo político. A totalida-
de dos entes políticos são estas mediações (4 do Esquema 14.01), condições neces-
sárias da permanência e aumento da vida humana. O poder-pôr na existência os
entes políticos é o ter poder (potentia) (3); quer dizer, o poder é o poder-pôr os entes
políticos: a potestas. O poder exercer o poder se origina no querer, no qual consiste a
vontade; isto é, sem vontade não existe poder, já que a vontade é a força, a potência,
o motor, a condição do poder (2), Ser-vontade é o querer por si da vida humana
em seu permanecer e aumentar. (1) O querer da vontade assegura a vida humana
em seu sobre-viver92 na duração do tempo (5). Se a vida perde o querer-viver, fica à
deriva, se encontra em situação de suicídio. As mediações que constituem o nível
ôntico da política (4) ou a totalidade dos entes políticos enquanto políticos, ficam

Nietzsche e M. Foucault o descrevem (nunca com extrema claridade). É esta “claridade”


que estamos intencionando.
90 “Material” tal como o definimos no cap. I da Ética da Libertação.
91 Setzen pode ser traduzido como “pôr” (e Hegel nos habituou a usar a fórmula: o ser põe
os entes). Mas este pôr é como instituição, como hábito ou permanência das ações que se
repetem e criam expectativas. Por isso, pode ser traduzido por instituir.
92 Queremos dar um significado forte ao componente “sobre”, da palavra “sobreviver” (em
alemão é o über tão usado por Nietzsche). “Sobre”-viver seria, dentro da narrativa deste
livro, algo assim como “vida-que-se-transcende”, que passa sobre seus limites. A “sobre”-
-vivência indicaria uma dimensão temporal da duração da vida, como “permanência”, mas
também como “aumento”. Em nossa Ética da Libertação, à mera permanência denominamos
“produção e reprodução” e ao aumento, “desenvolvimento” da vida humana. “Sobre”-viver
seria, assim, desenvolvimento da vida, maior realização, processo da vida para a felicidade
plena que sempre se desloca como a sombra do caminhante. Seria o inatingível, “o Real”, a
“Coisa real” de J. Lacan e S. Žižek.

59
assim fundados ontologicamente na Vontade de Poder, no Poder da Vontade –
numa primeira instância abstrata e geral.

Esquema 14.01. Diversos momentos de fundação do poder


1. Vida nua
5. A sobre-vivência
(Ueberleben)

2. O querer viver: 4. As medidas valiosas


Vontade das estruturas políticas
(potestas)

3. O poder-pôr as mediações:
Poder (potentia)

[256] Agora é possível entender o que Carl Schmitt tenta explicar. No “estado
de direito”, a vida política pareceria depender das leis que são “possibilidades valio-
sas” ou “entes políticos” (4) e estes aparecem como última instância do político, da
legalidade, da legitimidade das ações políticas. Schmitt, diante dos liberais, e com
uma intenção e vontade ontológicas, quer recuperar o fundamento material do po-
lítico (1 e 5). O “estado de exceção” deixa as leis em suspenso e o observador pode
dirigir-se a um momento anterior ou posterior ao “estado de direito”. Quando as
leis deixam de ser a última instância política, é necessário se perguntar pelo nível no
qual se deveria situar o fundamento último do político. Com Kierkegaard, e poste-
riormente com Heidegger, Schmitt entende que o “estado de exceção” remete, por
último, a uma “decisão” (Entscheidung, como já vimos), a um “estado-de-resulto”,
a uma vontade (2), como vontade originária, instituinte (para C. Castoriadis), em
referência a todas as instituições políticas e constituintes (para C. Schmitt), com
respeito à Constituição de um Estado (4), vontade anterior até à Assembleia Cons-
tituinte de um sistema político empírico.93 Assim, pretende chegar ao horizonte
último ontológico do político, que é a “vontade do povo”, que é exatamente o tema
que começamos a tratar.

93 Em sua Teoria da Constituição (Schmitt, 1996d), o autor toca nesse tema profusamente. Em
especial, nos capítulos sobre § 3, Poder constituinte (1996d, p. 93ss) e § 18, O Povo e a Consti-
tuição democrática (1996d, p. 234ss). “O poder constituinte é a vontade política cuja força ou
autoridade é capaz de adotar a concreta decisão sobre o modo e a forma da própria existência
política” (1996d, p. 94). A “forma da existência política” seriam as figuras institucionais con-
cretas que se adotam. É interessante que, aqui, Schmitt passa do poder constituinte divino
à da Assembleia da revolução francesa (1996d, p. 93ss), saltando a doutrina tradicional da
potestas populi (presente no pensamento latino-germânico chamado “medieval”) e explícito,
como vimos na parte histórica do volume I desta Política da Libertação, em Bartolomeu de
Las Casas, parágrafo [105] ou F. Suárez, parágrafos [116-119].

60
Com efeito, a “decisão” é um momento do exercício do poder de uma vontade.
É quando se inicia o exercício efetivo de dita vontade. Schmitt tem razão em bus-
car na vontade um fundamento ontológico material da política.94 Certamente não
o faz da maneira analiticamente adequada, mas sua intenção primeira é correta e
merece atenção. Seu erro estará em outros momentos de seu argumento antilibe-
ral, em seu irracionalismo, porque não consegue situar adequadamente o momen-
to formal da razão prática, que dará ao poder político seu sentido, sua direção, sua
unidade,95 já que, ao final, é a vontade do líder a que exerce o poder numa ambígua
relação com a vontade do povo, que deveria ser a fundante, e dita relação se insti-
tucionaliza por uma aclamação que de nenhuma maneira dá conta das mínimas
exigências de legitimidade.
O mesmo poderia ser dito da “vontade geral” de Rousseau, que não pode ade-
quadamente formular seu conteúdo, mas cuja referência à vontade originária, on-
tológica, indeterminada, intersubjetiva, indica igualmente, como em Schmitt, o
tema que nos ocupa. Esta “vontade geral” não é uma fórmula mítica ou metafórica
e, sim, é a indicação da vontade como o fundamento material de todo o político (po-
tentia) anterior à sua institucionalização (potestas). As mediações que este momento
ontológico exige não puderam ser articuladas explicitamente por Rousseau.96 Mas,
novamente, sua intuição é correta.
Adiantando-nos em muito ao exposto, queremos indicar num esquema o
obtido até agora e que deveremos ir analisando posteriormente.
Quando Hegel começa sua Filosofia do Direito desde a “vontade livre”97 (enquanto
vontade indeterminada ou ainda não inclinada ao mundo do “ente” [Dasein] prá-

94 Claro que não é, materialmente, a vontade o fundamento último e, sim, a vida humana.
95 A pura vontade sem consenso se anula, como bem o havia visto Hobbes e também Schmitt
(mas sem advertir explicitamente o tema). Mas, para que as vontades plurais de uma comu-
nidade tenham um mesmo objetivo, é necessário o consenso racional prático-político, chame-se
a ele de pacto, contrato, acordo tácito ou constituição. Sem o anuir das vontades, que se
pode conseguir pela argumentação política (na forma que possa adquirir), a vontade é cega,
contraditória e impotente, sem orientação que lhe evite o círculo vicioso.
96 Ver o exposto na História desta Política da Libertação (Vol. I) [165ss].
97 Quando Schopenhauer critica Hegel, ignora estes textos. Hegel, em sua Enciclopédia, depois
de ter percorrido o cosmo inorgânico e orgânico, e haver analisado a vida vegetal e animal,
chega ao ser humano. Em primeiro lugar, estuda o “Espírito subjetivo” que culmina no
“Espírito teórico” e no “Espírito prático”. Aqui, nos confrontamos não com o Espírito como
Razão, mas com o Espírito como Vontade: “O Espírito enquanto Vontade (Wille) se sabe
como fechado nele mesmo e como completando-se a si mesmo” (Enzyklopädie, § 469; Hegel,
1971, 288). O tema hegeliano da “Vontade livre” (freie Wille; § 481; p. 300) ou o “ponto
de partida [é] a vontade, que é livre” (Rechtsphilosophie, § 4; Hegel, 1971, VII, p. 46), quer
indicar a última instância ontológica do “Eu prático-político”, como indeterminado, como
ainda sem determinação prática alguma: é o “Ser” do “mundo” prático (é o início da ontologia
política). Refere-se à liberdade e à autonomia do sujeito prático em sua origem (seria o

61
tico, legal, político), está igualmente indicando não somente o sujeito singular que
aparece como o “ser-prático” sem determinação alguma (e, por isso, ainda o “nada
prático”). E, sim, igualmente, a “vontade” como o último horizonte ontológico in-
determinado do “mundo prático”, do mundo legal, político, histórico mundial.

Esquema 14.02. Diversos momentos da vontade e do poder político (potentia)


a. O soberano: a comunidade política.
Intersubjetividade corporal vivente livre e autônoma
(potentia)

b.1. Vontade geral b.2. Razão consensual


(o material) (o formal)

c. Poder consensual
(articulação do material e do formal)

Hegel se refere, então, a uma instância primeira, simples, abstrata ainda, ori-
gem de todas as demais mediações do “mundo político”. Quando esta vontade
livre – na reflexão hegeliana – se determinar diante de algo e se tornar proprietá-
ria e, portanto, “ente” (Dasein), perderá sua abstração indeterminada ontológica.
Podemos assim ver que Hegel também “começa” por uma ontologia do prático, do
direito, da política. A totalidade dos entes do mundo prático, político, se funda
na vontade indeterminada (“livre” de determinações). Mas Hegel não vê tanto
o poder da vontade e, sim, mais as delimitações disciplinares que a vontade se
impõe à própria vontade para que, “pondo” as instituições (o segundo momento
da dialética do sujeito prático, por meio do “contrato” (Rechtsphilosophie, §§ 72ss,
p. 155ss): a intersubjetividade dos contratantes pode intercambiar os bens apro-
priados previamente, leitura hegeliana de Adam Smith), vai-se estruturando a
Totalidade ôntico-política: a potestas. Com efeito, o “contrato” restringe a vontade,

momento 2 do Esquema 14.01). Quando o sujeito indeterminado (o ontológico) se deter-


mina, se “põe” (momento 4 do mesmo Esquema) no “Dasein” (o ente, o ôntico) passamos
ao direito abstrato. O direito (estrutura ôntica, momento 4 do Esquema) é uma construção
objetiva da vontade já determinada pelo mesmo Dasein “posto” (a coisa física agora possuída
é determinada como apropriada – nova determinação ôntica –, mas simultaneamente de-
termina a vontade como esta vontade apropriada, sendo a “propriedade privada” a primeira
determinação da vontade que deixou de ser indeterminada). A segunda determinação da
subjetividade prática será o “contrato”, como intersubjetivo e consensual. Para Hegel, de
maneira muito articulada e complexa (ainda que sempre desde a primazia do Pensar sobre
o Querer), “a real e livre vontade é a unidade do Espírito teórico e prático” (Enzyklopädie, §
481; p. 300) (momentos b.1 e b.2 do Esquema 14.02).

62
que de vontade ontológica fundamental se determina a si mesma como a vontade
finita, que “põe” instituições limitantes de sua infinitude primeira. É a nova “pas-
sagem” (Übergehen) dialética da ontologia da “vontade” indeterminada (potentia),
como no caso do “Ser” da Lógica, à “vontade ôntica” (potestas) que enfrenta os entes
ou mediações práticas, donde surge o horizonte dos entes satisfatores das necessi-
dades (economia), os entes legais (direito), quer dizer, a política (desde a Sittlichkeit,
não propriamente da família que se encontra numa ordem privada, mas desde o
horizonte público da “sociedade burguesa” e do “Estado”, momentos políticos por
excelência para Hegel).98
[257] O tema político do poder, desde sua esfera material, é a questão da von-
tade. Como já indicado, miticamente, o grande deus egípcio de Mênfis, o antigo
Ptah, não se esgotava em sua primeira manifestação, em Horus, a vontade. Era
ao mesmo tempo também Thot, o Verbo criador. Aplicada a metáfora ao nosso
tema do poder político como poder-pôr mediações, obtém sua força no querer, no
qual consiste a vontade, mas se enfraquece até extinguir-se se o poder cai em con-
tradição consigo mesmo. A vontade não-pode-pôr ou instituir as mediações se se
encontrasse com as forças contrárias de outras vontades que a anulam. A vontade
cindida se torna impotente.
O poder político não é atributo exclusivo de um indivíduo solipsista (como no
Leviatã de Hobbes, no soberano de J. Bodin, objeto de tanta nostalgia de Schmitt);
não é nunca uma vontade narcisista. O poder político é um momento de uma co-
munidade política, quando a pluralidade de vontades se liga intersubjetivamente
com os outros membros do mesmo grupo. A intersubjetividade constitui a priori
a subjetividade de cada membro. Ela cria uma rede constitutiva que possibilita a
unidade de muitas vontades. Se a vontade de cada membro luta contra as outras
vontades; se o querer-viver da vida das corporeidades de cada membro tende para
diversas direções contraditórias, o poder da comunidade se torna impotente. A po-
tentia de cada vontade se volta contra as outras vontades e se anulam mutuamente.
No Arqueossistema paleolítico99, a humanidade teve que superar a organização
esterilizante do macho dominante na organização da vida entre os primatas
(ordem hierárquica entre os membros que somente permitia um pequeno grupo
de primatas em muito pequeno número, porque não contavam com a possibilida-
de de “organizar” o querer-viver com a complexidade que exigia uma comunida-
de maior). É possível que a espécie homo, em sua origem, conseguisse “organizar”
entre os membros do grupo um sistema de caça muito mais complexo (com funções
heterogêneas, com armas, armadilhas, obstáculos, etc.), simplesmente para se ali-
mentar, para sobre-viver. Se não conseguisse o alimento, o grupo morria, se ex-
tinguia. “Organizar” as vontades dos múltiplos membros da comunidade daquela

98 Ver o exposto na História desta Política da Libertação [185ss].


99 Ver na História desta Política da Libertação, os §§ 2-3.

63
primitiva vida humana era condição de permanência e aumento da vida ou enfren-
tar a morte inevitável. A capacidade de inteligência prática da nova espécie, pela
qual se podia “dar razões”, o desenvolvimento da possibilidade linguística como
meio de comunicação, permitir chegar a “acordos” para dirigir todas as vontades,
com funções heterogêneas (um dirigia o grupo, outro cobria um campo de fuga da
presa, outro a atacava frontalmente, etc.) para um mesmo objetivo, sem contradi-
ções. O poder “pôr” se fez mais potente, poderoso, forte. Unificou as vontades, não
como simples soma de identidades, mas como organização funcional heterogênea,
disciplinada, hierarquizada.
O “poder discursivo” (J. Habermas) ou o “poder comunicativo” (H. Arendt)
indicam a dimensão não somente material, mas também formal, procedimental,
racional, normativa, prática, do poder e, por isso, é também um momento essencial
do político – sem última instância.100
A partir de agora se pode compreender o caráter redutivo da proposta de Hob-
bes,101 por exemplo. Para que o poder-pôr ou instituir mediações para a permanência
e o aumento da vida humana fosse possível, e não como negação da luta mútua
sem limites entre os membros da comunidade (no “estado de natureza”), Hobbes
imaginou uma solução desacertada, mas, ao final, uma solução, ainda que precá-
ria, para permitir o exercício do poder-pôr-meios-para-a-vida, já que a morte era o
resultado de vontades opostas em luta sem acordo algum. Se era permitido a uma
só vontade, a um só ator, ao soberano (o Rei nas monarquias absolutas), exercer sua
Vontade de Poder, decidindo-se todos os demais a anular suas vontades particula-
res em favor de dito soberano, o exercício do poder era possível, mas debilitando
o poder desde baixo – e, por isso, sua fundamentação devia vir desde cima: a auto-
ridade vinha de deus:102 um fetiche. Esta solução inadequada é, não obstante, uma
organização possível do exercício do poder, já que o poder despótico de um só ator,
ao não ter forças contrárias de outros poderes antagônicos, pode-instaurar meios
para a permanência e aumento da vida humana de toda a comunidade. O exercício
do poder do Rei é permitido passivamente pelas outras vontades, sem que o Rei
possa contar com sua participação ativa. É um poder débil, que debilita o poder da
comunidade. A potentia debilitada impede uma potestas efetivamente poderosa.
Quer dizer, o momento racional prático ou discursivo, intersubjetivo e argumen-
tativo da política se manifesta como uma determinação fundamental ontológica do
poder político, porque, que todos anulem sua vontade para permitir o exercício da

100 Como explicamos amplamente na Ética da Libertação, o momento material determina o


formal e este, aquele, sem ser nenhum dos dois última instância, mas codeterminações
originárias.
101 Ver o que foi dito em [131ss].
102 A questão mais extensa no Leviatã é tratada na Terceira parte e toca o tema da fundamen-
tação teológica da autoridade real. A debilidade do poder do Rei absoluto necessitava uma
teologia política muito poderosa para suprir sua falta de legitimidade desde baixo.

64
vontade do soberano, é uma possibilidade prática (a partir da aprendizagem do peri-
go do caos, efeito da contradição beligerante entre vontades opostas). Mas, para que
o poder possa efetivamente pôr ou instituir os meios políticos realmente fundados
na participação ativa dos cidadãos, é necessário o consenso racional (não pelo império
da mera força dominadora de uma vontade sobre a dos outros, isto é, do exercício do
poder de um sobre as vontades impotentes dos outros, quando não mera contradição
autoaniquilante de todos na luta sem quartel) a fim de unificar a força ou potência
efetiva numa certa direção. Quando lhe falta esta unidade, o poder da vontade se torna
impotente; o poder se autoaniquila; a vida humana, embora queira-viver, embora
queira ser uma vontade, se torna uma vontade sem vontade política.
[258] A política se ocupará exatamente do manejar a articulação das vontades
de todos os membros de uma comunidade política em seu mútuo exercício para
conseguir a institucionalização, a constituição e a efetivação do poder, vale dizer,
para que possa pôr-exercer as mediações práticas para a permanência e aumento da
vida humana desta comunidade, em última instância de toda a humanidade.
O poder da vontade é um momento material, de conteúdo; é a força do poder
político. A razão discursiva como acordo intersubjetivo é o momento formal; é a ma-
neira de dar realidade na coesão das vontades como força do poder. O primeiro as-
pecto é o poder da vontade, o segundo é o poder deliberativo da razão prático-política.
As duas determinações do poder são necessárias para fundamentar adequadamen-
te a essência do poder. As posições vitalistas caem frequentemente no irracionalis-
mo da mera vontade sem mediações racionais. As posições liberais ou racionalistas
caem igualmente na impotência da mera razão discursiva, sem a motivação forte da
vontade. Embora estes últimos falem frequentemente da necessidade da “formação
da vontade” (Habermas, por exemplo), não sabem situar a potentia motora da von-
tade e, por isso, não podem tampouco saber como se educa, como se “forma”, como
se disciplina (não digo, se reprime) e como se institucionaliza a vontade.
A vida humana, o modo da realidade da corporeidade intersubjetiva e co-
municativa, quer-viver; este “querer” é a vontade como “potência da vida”. Mas,
a vida humana deve também saber-viver, já que a razão prático-política é a “as-
túcia da vida”. Sem vontade, a vida se imobiliza, se aniquila, se esvazia, não
tem poder como força. Sem razão prático-política, a vida se desune, se contra-
diz, é cega, não sabe aonde vai, não tem poder como orientação, como direção.
Ptah (a vida)103 se manifesta harmonicamente como Horus (a Vontade) e como
Thot (a razão prático-política). Nesta Política da Libertação, nos cuidaremos para
não cair nos dois reducionismos extremos. Um consiste na posição meramente vi-
talista, fascista, darwinista. O outro defende a posição liberal, racionalista, funda-

103 Entre os astecas, o “deus velho”, Teotl, é o “dador da vida” e em torno deste princípio se
organiza toda a existência nahuatl.

65
cionalista, consensualista, procedimentalista, legalista ou positivista (kelseniana),
sem conteúdo material. As possibilidades de reducionismos ou unilateralismos
são numerosas, mas possuindo a bússola da complexidade mínima e suficiente se
pretenderá superar os exclusivismos, sob o lema de afirmar o que seja necessário,
mas coarticulando-o com outros momentos quando não seja suficiente.
Queremos resumir o exposto recordando que, desde a referência em última ins-
tância à vida humana em comunidade (com pretensão de abarcar toda a humani-
dade), surge o querer da vida como vontade, anterior a toda vontade de poder como
dominação (“dominação” que consideraremos uma queda numa fixação repressiva
que produz morte), que se desdobra como poder da vontade enquanto exercício do
poder-pôr as mediações queridas, os entes com valor político. Esta vontade de viver,
em seu momento (na Crítica, do próximo volume), moverá as vítimas (em seu início,
como vontades impotentes) contra a vontade de poder como dominação para o âmbito
que abrem os postulados da razão crítico-política, postulados que se formulam e
são permitidos em seu desdobramento desde e pela vontade de viver: o querer-viver
dos que enfrentam a morte na injustiça. A Política da Libertação, então, parte e se
funda nesta vontade de viver como o poder que põe as mediações para cumprir com
o princípio de justiça (com Hume, mais além de Hume),104 da paz (com Kant e mais
além de Kant),105 para a permanência e aumento da vida da comunidade política.
Nestas curtas páginas, temos já descrita a “essência da política” em seu fundamento,
em sua fonte, em sua nascente. Todo o restante será o desdobramento, a análise de
suas determinações, das categorias necessárias da filosofia política, das possíveis to-
talizações que produzem patologicamente formas de morte, e de libertação de ditas
estruturas injustas para construir novas ordens políticas que nos “acercam” na “di-
reção” dos postulados da razão e da vontade políticas, como veremos mais adiante.

2. Da potentia à potestas: um conceito ontológico positivo de poder?

[259] Pretendemos agora abordar o tema que norteará toda esta obra. De-
veremos distinguir entre potentia (o ser oculto, o poder da comunidade política
mesma) e potestas (o fenômeno, o poder delegado por representação, exercido por
ações políticas através de instituições).106
Trata-se de uma distinção inicial, da diferença ontológica do fundamento
mesmo do campo político como tal. Para Hegel, no começo de sua Lógica (Cf.
Dussel, 1974c), o “ser” é o absolutamente “in-determinado” e neste mesmo sen-
tido se explica no começo da Filosofia do Direito que a “vontade é livre” de toda

104 Ver o que foi explicado em [153ss].


105 Ver o indicado em [171ss].
106 Ver as Teses 2 e 3 de 20 Teses de Política (Dussel, 2006 [2.35-3.34]).

66
determinação (Rechtsphilosophie, § 34) – como indicamos mais acima. Neste sen-
tido, o “ser” é “nada” – sem conteúdo algum de ente (Da-sein) –; a “vontade” ainda
não é vontade concreta; é somente uma vontade abstratamente vazia (“nada” em
concreto). A “cisão” ontológica107 determina, “finitiza”, muda o “ser” num “ser-aí”
(Da-sein): um ente. Da mesma maneira, deve-se entender que a potentia (o poder
originário, in-cindido, in-determinado, referência última na construção de todas
as categorias, sob pena de cair no fetichismo) da comunidade política (origem e
lugar da regeneração da potestas) é como o “ser”, o fundamento abismal da política
(do político, do campo político como político). Tudo o que se chame “político” terá
que se fundar em última instância nesta potentia. Mas, enquanto tal e se não for
determinada de nenhuma maneira (quer dizer, heterogeneamente institucionali-
zada) permaneceria “vazia”, como um “nada” político: pura potentia sem realização
alguma, sem performatividade. A comunidade política, antes de todo agir político,
é pura potentia, que se manifesta, mais que no “estado de exceção” schmittiano, no
que denominaremos: “estado de rebelião” (que pode deixar o “estado de direito” e
o “estado de exceção” em suspenso).108
Dito em poucas palavras, a potentia é o poder da própria comunidade política;
é (a) a pluralidade de todas as vontades (momento material)109 ou da maioria he-
gemônica, (b) unida pelo consenso (momento formal discursivo), e que (c) conta
com meios instrumentais para exercer seu poder-pôr mediações (momento das
mediações, de factibilidade).110 São, então, por ora, três determinações essenciais
do poder como potentia.
Nas revoluções centro-americanas dos anos 1980, popularizou-se a expressão:
“O povo unido jamais será vencido!”. A unidade é o momento discursivo; o povo
mesmo indica a comunidade de vida; a luta nos fala dos instrumentos, da estra-

107 É a Entzweiung (“devir dois”), Diremption (intraduzível) ou Explicatio (termo usado por He-
gel de origem neoplatônica latina) primeira, pela qual o Absoluto se faz um “ente” (conceito
ambíguo de “criação”: “se determina a si mesma”). Ver os detalhes do assunto na obra citada
Dussel (1974c).
108 Na Argentina, quando o presidente Fernando de la Rúa declarou o “estado de exceção” para
deter a manifestação popular, o povo saiu às ruas em 20 de dezembro de 2001 em tal número
que impossibilitou o exercício do dito “estado de exceção”. Não somente isso, caiu o governo
e precisou se nomear um novo presidente. O “estado de rebelião” do povo é a última instância
desconhecida pela vontade schmittiana, mas manifestada de maneira efetiva, não a partir do
líder, mas desde o próprio poder da comunidade: a potentia que se manifestou como puro e
indeterminado poder político, mas ativo e indicando quem ostenta a auctoritas, o poder polí-
tico; é a “vontade geral” de Rousseau como presença, como exposição no sentido levinasiano.
109 Sobre o sentido preciso de “material”, ver Dussel (1998, caps. 1 e 4 e, mais adiante, § 21, 26,
33 e 42).
110 Este aspecto ganha hoje sempre maior importância. Ver Humberto Galimberti, “La po-
lítica nell’età contemporanea: lo Stato amministrativo e la política come organo esecutivo della
competenza técnica” (Galimberti, 2002, p. 446ss) e M. Castells, “La política informacional y
la crisis de la democracia” (Castells, 2000, cap. II, p. 345ss).

67
tégia; o grito expressa uma vontade. A força, o poder desde baixo, é potentia, é
positivo, é a vida de quem quer viver e se dá os meios para sobre-viver. O poder
não é dominação, não é somente opressão, não é somente o poder como o entende a
Modernidade colonialista. Os novos movimentos sociais e os antigos movimentos
classistas e populares necessitam teoricamente desta descrição positiva do poder.
Desde N. Maquiavel a M. Weber ou J. Habermas, cruzando com alguns textos
ambíguos de K. Marx e certamente por Lênin, o poder foi descrito como algum
modo de dominação. O poder político como potentia não é dominação; não é de-
terminação negativa e, sim, é positivo: é afirmação da vida da comunidade para
viver. Spinoza escreve:

Se dois indivíduos se põem de acordo para unir suas forças têm mais poder e, por-
tanto, mais direitos juntos do que tinha, no seio da natureza, cada um isoladamente.
Quanto maior for o número dos que se unem, maior será o direito de que gozam todos
unidos. Na medida em que os homens se veem [...] arrastados para direções diferentes
e, portanto, em pugna uns com os outros [perdem poder...]. São tanto mais temíveis
quanto mais poder tiverem e mais superem em habilidade e astúcia os demais [...]
(Spinoza, 1985, p. 151).111

Mas esta pura potentia imediata, o mero poder político da comunidade política
indiferenciado, sem mediações, sem funções, sem heterogeneidade, é anterior a toda
exteriorização. É o “ser em-si” da política; é o “poder em-si”. É a existência ainda
irrealizada; é uma impossibilidade empírica. Seria o caso de uma comunidade no
exercício de uma democracia direta que determinaria em cada instante todas as me-
diações para a vida e todos os procedimentos unânimes das tomadas de decisões.
Como isto é impossível, acontece a “cisão ontológica” originária, primeira. A potentia,
o poder político da comunidade, se constitui como vontade consensual instituinte: se
dá instituições para que, mediata, heterogênea e diferenciadamente possa exercer-se
o poder (a potestas dos que mandam) que desde baixo (a potentia) é o fundamento de
tal exercício (e, por isso, o poder legítimo é o exercido pelos que mandam obedecendo
à potentia): poder obediencial. Ao poder político segundo, como mediação, institucio-
nalizado, por meio de representantes, chamaremos potestas.
Spinoza distingue aproximadamente entre estas duas dimensões do poder po-
lítico, quando escreve:

O poder da República [que nós chamaremos potestas] fica definido pelo poder geral da
multidão [que denominaremos potentia]; é certo, igualmente, que o poder e o direito
da República diminuem na medida que esta impulsiona com sua atitude a um maior
número de súditos a conspirar contra ela (Spinoza, 1985, 9, p. 151).

111 Tratado político (II, § 13-14).

68
Quando a potestas se fetichiza, quer dizer, se “corta”, se “separa” do seu fun-
damento (a potentia), “diminui” seu poder, embora seu exercício despótico pareça
alcançar o paroxismo da força (como no caso de A. Hitler ou A. Pinochet).
O poder exercido por delegação institucional pelos representantes (seja um rei,
um senado oligárquico ou aristocrático, um governo democrático, etc.) é o “ente”, é
o “ser” político “determinado” (Da-sein: o poder político dado aí, diante dos olhos,
à mão), o momento político fundado no ser da política (a potentia). A in-determina-
ção vazia (potentia) passou a uma determinação plena (potestas). Nesta “passagem”
dialética, estribarão todas as possibilidades de acertos e atos de justiça política,
mas também de todos os desacertos, injustiças, fetichismos e dominações possí-
veis. O poder institucional e delegado faz sua aparição fenomênica: o poder ôntico
(a diferença do poder ontológico: a potentia).

Esquema 14.03. Da potentia à potestas


[Aparência fenomênica]
d Potestas b
(negativa) (positiva)
Poder (como exercício Poder
fetichizado delegado do poder) “delegado”
O ente determinado (Da-sein) ou obediência
Poder político institucional

e a c

Potentia
(como poder consensual auctoritas)
O ser in-determinado (Sein) em-si
[Fundamento]
Esclarecimentos ao Esquema. a. Disjunção ou desdobramento originário (ontológico)112 do poder
primeiro (potentia) da comunidade política que institui a delegação do exercício do poder por insti-
tuições e representantes (potestas) (“os que mandam”). b. Exercício positivo do poder como fortaleci-
mento da potentia. c. Os que “mandam obedecendo” (poder obedencial). d. Fetichização da potestas

112 Hegel teria chamado, como já sugerimos, a este distanciamento Diremption, Entzweiung ou
Explicatio do poder político. O poder originário (potentia) enquanto tal é indeterminado (ainda
não-algo) e, como tal, sem “falta” alguma, porém, também sem existência real nem empírica.
A simples passagem à mínima institucionalização, organização de alguma função heterogênea
de um membro com respeito a outro, produz já uma “determinação” (o “ser-aí”: o Da-sein) e
começa a possibilidade da existência real, mas, ao mesmo tempo, a possibilidade da “distância”
do representante ao representado, da instituição ao institucionalizante, do exercício delegado
do poder (potestas) que não é já simplesmente o poder consensual “de baixo” mesmo (potentia).

69
(se afirma a si mesma como origem soberana do poder sobre a potentia). e. O poder se exerce como
dominação ou debilitação da potentia: os que “mandam mandando”. a-b-c: circulação do poder como
regeneração. a-d-c: círculo corrupto do poder.

[260] Escreve Spinoza: “O direito [...] pelo poder da multidão [potentia] se de-
nomina geralmente autoridade política (imperium). É exercido por aquela pessoa
que foi designada por consentimento geral para cuidar da coisa pública [potestas]”
(Spinoza, 1985, p. 158).113
Evidencia-se que o poder institucional (potestas) exerce por designação um
poder (imperium) que, por sua natureza, é delegado. Se se pretende que a potestas é
soberana, comete-se uma inversão fetichista. Neste caso, se absolutizou a institui-
ção e, para que ela possa poder pretender exercer o poder desde si, deve “debilitar”
o poder da comunidade (potentia). Com isso, “diminui” realmente o poder institu-
cional (potestas), embora, ao exercer-se despoticamente, pode aparecer como uma
força política maior (por exemplo, nos casos de J. Stálin. B. Mussolini ou J. Videla).
Sua diminuição consiste na impossibilidade de unir todas as vontades a favor de
uma iniciativa; além disso, quando começar a entropia do poder, será impossível a
regeneração do poder desde baixo; o afastamento do fundamento do próprio poder
político (potentia) o debilita. Neste caso, “os que mandam” devem começar a “man-
dar mandando” (flecha e do Esquema 14.03) (Cf. Dussel, 2006, [5.1-5.3]), para nos
expressar como os maias de Chiapas e seu EZLN. Enquanto isso, quando o poder
institucional fortalece o poder da potentia, “os que mandam mandam obedecendo”
(flecha c) (Cf. Dussel, 2006, [4.1-4.3]). Nesta última possibilidade, o poder político
institucional cumpre com maior capacidade, fortaleza e força seus fins (como nos
tempos clássicos da República romana ou no primeiro século do sistema democrá-
tico norte-americano tão exaltado por A. Tocqueville ou H. Arendt).
Não se pense que esta cisão ontológica entre potentia e potestas se produz como
dois extremos nítidos, claros, perfeitamente diferenciados. M. Foucault nos diz:
“[O poder político] não é um aparato de Estado, nem da classe no poder e, sim,
um conjunto de pequenos poderes e instituições situadas num nível mais baixo”
(Foucault, 1995, p. 139).114 Com efeito, o poder está disseminado em todo o corpo
político, tanto nas diversas articulações comunitárias (na base) (a diversidade da
potentia) como das mais variadas instituições que exercem delegadamente o poder,
apoiando-se umas sobre as outras (a diversidade da potestas). Foucault continua:

Não quero dizer que o Estado não seja importante; o que quero dizer é que as relações
de poder e, por isso, a análise que deve ser feita delas, necessariamente ultrapassa o
Estado. E isto em dois sentidos: primeiro, porque o Estado, por mais que pareça ter
aparatos onipotentes, está longe de ser o que ocupa todo o campo das relações de poder

113 Tratado político (cap. III, § 7).


114 La verdad y las formas jurídicas.

70
atuais, e, em segundo lugar, porque o Estado somente poderá operar sobre a base de
todas as relações de poder preexistentes. O Estado é superestrutural em relação com
toda a série de redes de poder que dominam o corpo, a sexualidade, a família, a infân-
cia, o conhecimento, a tecnologia, etc., [...], mas, este meta-poder, com todas as suas
proibições, pode somente assegurar seu domínio quando tem suas raízes implantadas
na múltipla série indefinida de relações de poder que aportam a necessária base para
esta forma extrema negativa de poder (Foucault, 1980, p. 128).115

Com efeito, o poder político se encontra disperso em todo o campo político e


nos sistemas concretos, na comunidade política e em todas as comunidades, as-
sociações, organizações subalternas, como potentia, que se desdobra regenerando
continuamente todas as atividades, ideologias, saberes dos diversos grupos sociais
e da sociedade civil e também da sociedade política, como expressão da energia
de baixo para cima que emana da pluralidade das vontades unidas pelos diversos
tipos de consenso; e também como potestas, que se expande igualmente em todas
as instituições (de cima a baixo), enchendo-as de vontade de participação, de frater-
nidade com respeito ao serviço próprio do exercício delegado de poder em todos os
níveis (flechas b e c, do Esquema 14.03) ou, pelo contrário, desenvolvendo técnicas,
mecanismos, epistemologias, instituições de controle, de domínio, de debilitação
da potentia – nível no qual se situa M. Foucault, dando importância quase exclusiva
ao poder como dominação (flechas d e e).
Giorgio Agamben, comentando C. Schmitt, fala do estado de exceção (Agam-
ben, 2003), dentro de uma semântica própria do direito romano, onde auctoritas é
o momento do poder que pode colocar em suspensão a potestas (o poder instituí-
do). Nós pretendemos chamar a atenção sobre uma necessária atribuição diferen-
te da auctoritas. Deve-se passar de um ator individual que tem autoridade (como
momento do exercício institucional do poder, como potestas) a um ator coletivo: a
comunidade política ou o próprio povo. Neste caso, quando este passa a ser ator, e
se a autoriza a si mesmo o poder instituinte (a autoridade última), não como o que
declara o “estado de exceção” e, sim, o que declara a necessidade de uma transfor-
mação da potestas como totalidade se fosse necessário, sua vontade aparece com
maior clareza ainda que a “decisão” da autoridade do líder em Schmitt (líder ca-
rismático em M. Weber, que goza então de uma legitimidade aparente). Não existe
isso. A “decisão” é a de uma comunidade política, de um povo, de tomar novamente
de uma maneira direta o exercício do poder como potentia e se autoriza a transfor-
mar a potestas, nomeando novos representantes, ditando novas leis ou convocando
uma nova Assembleia constituinte. É o “estado de rebelião”, como veremos.116

115 “Truth and Power”. Ver a investigação de Honneth sobre Foucault, em Kritik der Macht
(Honneth, 1989, p. 121-123).
116 Ver mais adiante o § 31.

71
[261] Na América Latina, desde o direito de Castela na Cristandade hispânica,
o “estado de rebelião” (que neste 2006 está ocorrendo na Bolívia e no Equador), é
algo mais que um “estado de exceção”. O segundo é correlativo à ordem jurídica
estabelecida (potestas) e o decreta uma função do poder constituído (ao menos um
poder legitimado carismaticamente); o primeiro, ao invés, é a ação mesma origi-
nária da vontade consensual da comunidade política (potentia) e nos fala de um
momento ontológico, anterior à vontade que decreta o “estado de exceção” schmit-
tiano. O “estado de rebelião”117 do povo pode deixar sem efeito um “estado de exce-
ção” – como na Argentina, conforme já indicamos, onde a já referida mobilização
popular de 20 de dezembro de 2001 contra o presidente Fernando de la Rúa, o
destitui do fato de ter decretado um “estado de exceção”, emanado da auctoritas da
instituição do poder Executivo, que era visto como um novo ato repressivo da po-
testas. Desde a potentia o povo provoca a potestas. “Que saiam todos!” – quer dizer,
é-lhes recordado quem ostenta a última instância da auctoritas.
Neste começo do século XXI, definitivamente, a auctoritas,118 que no direito
romano correspondia ao pai de família (no direito privado) e no direito público
ao príncipe, ao senado ou ao imperador (e que depois passará aos reis e até ao
Führertum nazista), que era quem podia declarar o “estado de exceção” (a ditadura
como instituição jurídica ou extrajurídica),119 deve hoje se reatribuir à comunidade

117 “Todo o poder aos sovietes”, lema lançado por Lênin, não é exatamente o “estado de rebe-
lião”. Trata-se, antes, da tentativa de organizar uma instituição (potestas) de plena participa-
ção sem estruturas representativas. Uma proposta de modo de governo que, a longo prazo,
se transformaria num projeto anarquista que cairia inevitavelmente numa “ilusão transcen-
dental” (se tentasse empiricamente efetuar realmente um postulado; ver o tratamento desta
questão no § 35). O “estado de rebelião” se expressa adequadamente na frustrada revolução
de 1905, na Rússia czarista. A flecha a do esquema 14.03 indica esta proposição da questão
desde baixo, desde o fundamento da potestas.
118 Agamben, em especial no capítulo sobre “Auctoritas e Potestas” (2003, p. 95-113). H. Arendt
tratou o tema muito incialmente, mas lhe faltaram as distinções que Agamben ressalta com
precisão. Contudo, não nos explica que, numa sociedade oligárquica como a República ro-
mana, a auctoritas era uma dimensão do poder exercido em última instância pelo senatus e
posteriormente pelo próprio Augusto (nome que diz relação ao ser da auctoritas – do verbo
augere donde deriva atuar – que atribui o poder ao povo e ao senado). Enquanto que numa
sociedade democrática, participativa, crítica, descolonizada, a dita função do poder político
deve transferir-se ao povo.
119 O “estado de exceção” é ditado (a) por uma instituição governamental (o senatus, o rei, o
poder executivo, o parlamento, o líder, etc.) enquanto que (b) a rebelião, o levante popular
contra a ordem estabelecida (diante do “estado de direito” como totalidade) é o exercício
emanado desde a autoridade da comunidade política mesma. Não é uma “aclamação” (afir-
mativa, confirmativa) na irrupção de uma vontade consensual autoritativa; se faz presente
a autoridade em última instância. Há muita diferença entre ambos “estados” que C. Schmitt
ou G. Agamben não delimitam adequadamente por não estar numa situação de “giro des-
colonizador” desde a periferia; não são tão sensíveis como nós à necessidade de afirmar a
soberania da comunidade política pós-colonial (i. é, a que nunca exercitou tal soberania com
autoridade, já que esteve sempre fora da comunidade e do próprio território).

72
política (com instituições tais como o plebiscito, o referendo, a consulta, a revoga-
ção do mandato, o uso de meios eletrônicos para medir a opinião, a institucionali-
zação constitucional e legal da participação direta por assembleias de “corporações
abertas”), a organização de um poder cidadão efetivo, equivalente e distinto dos
três poderes habituais do Estado moderno ou, por último e de maneira limite, por
meio de rebeliões, revoluções, golpes de Estado dados pela própria comunidade
política, como autor anterior ao sistema do direito, para restringir, reordenar, fazer
crescer ou transformar radicalmente a potestas (as instituições da sociedade polí-
tica) desde a soberania da auctoritas vitae (“autoridade da vida”) do próprio povo,
última referência.
Assim, se pode dizer que haveria: a) uma anomia anterior à ordem jurídica (da
potestas) da própria comunidade política como poder originário (potentia como
poder instituinte e constituinte), que se darão as instituições (auctoritas ante fes-
tum); b) um nomos ou ordem onde a potestas possa ser posta em questão como
“estado de exceção” (auctoritas in festum120); e, por último e como veremos na Crítica
(próximo volume), c) uma auctoritas post festum do povo ou alguns dos seus setores
que põem em questão a ordem legítima vigente desde o consenso crítico da vida
das comunidades que lutam pelo reconhecimento de novos direitos (no melhor dos
casos ou simplesmente como rebelião121). Sempre a potentia, o poder da comuni-
dade política, do povo, que agora fica investida da auctoritas (e por isso autoriza o
governo, o Estado, todas as instituições delegadas dos representantes), é o poder
político em última instância, fundamento do exercício delegado da potestas (sua
aparição fenomênica), quer dizer, de todas as instituições sociais, da sociedade civil
e do Estado em sentido estrito – o mesmo que do governo, já que o representante
exerce poder por delegação como poder determinado, heterogêneo e parcial (fun-
cional ao officium, diria Cícero) cuja porção o designa por consenso a comunidade
política desde sua potentia: o poder político propriamente dito.
A tarefa da filosofia política arquitetônica, e em maior medida da crítica (ou de
libertação), consiste, como já apontamos, em expor o sistema completo de categorias

120 A autoridade de um poder executivo, por exemplo, que pode decretar o “estado de exceção”
é intrainstitucional (momento da potestas) e atua por representação (nunca motu próprio),
sempre em referência à potentia do próprio povo: é uma autoridade delegada.
121 Quando G. Washington ou M. Hidalgo conduzem a comunidade num processo de eman-
cipação anticolonial, que surge da auctoritas populi, não se trata de uma “luta pelo reconhe-
cimento” (A. Honneth) nem de um “estado de exceção” (C. Schmitt), mas de um “estado
de libertação” (que é anterior, a priori, e pode condenar a posteriori o “estado de direito
colonial”). Veremos a questão na parte Crítica desta Política da Libertação. O reconhecimento
(de Hegel ou Honneth) é um momento que se dirige à autoridade delegada da potestas. A
rebelião é a subjetividade comunitária do povo que se apresenta como última instância de
toda auctoritas e exige o cumprimento dos requerimentos que a potentia determina. “Rebe-
lião” é muito mais ativo metafísico e político do que mero pedido de “reconhecimento”.

73
fenomênicas da filosofia política burguesa,122 a fim de desenvolver teoricamente o
desdobramento real do poder político (potentia), o fundamento, no campo polí-
tico global, tendo em conta a ação política estratégica que se fixa, se objetiva e se
torna real na potestas ou poder delegado em todas as instituições. As categorias da
filosofia política burguesa foram fetichizadas. Passa-se de uma categoria superfi-
cial ou fenomênica (no nível da potestas) a outra, sem buscar seu fundamento. Do
que se trata para nós é de construir cada categoria por referência a seu fundamen-
to ontológico; isto é, fundá-las com coerência lógica para relançar desconstruti-
vamente dita crítica de todo o sistema de categorias desde a exterioridade dos
oprimidos ou excluídos (no volume Crítica). Isto nos levaria a expor o conceito de
hiper-potentia123 de uma comunidade de oprimidos ou excluídos (o povo em senti-
do redefinido) da ordem política vigente (a potestas dominante, diria A. Gramsci)
que lutariam para sua transformação (a nova potestas futura).

122 Seria a “Crítica da filosofia política” à maneira como Marx praticou na “Crítica da economia
política”.
123 Ver mais adiante os §§ 30ss.

74
§ 15. O “ACONTECIMENTO” FUNDACIONAL

[262] Trata-se de dar um passo decisivo. A “estrutura de domínio” (Herrscha-


ftsgebilde, como a denomina Heidegger) ou a ordem política dada, a potestas, se
originou numa experiência fundacional; a passagem do “ser” ao “fenômeno”. No
lugar mais sagrado do foro romano, se ocultava sob o piso (no fundamento) a pedra
negra; uma pedra negra que recordava a origem do pacto originário do populus ro-
manus, do próprio senado, como piso sobre o qual se edificava a auctoritas do povo
romano.124 Em Meca, de maneira semelhante, se venera, na sagrada mesquita, a
antiga pedra Ka’aba, em que o profeta renovou a aliança com Alá. No povo asteca,
igualmente, a existência política se referia a um fundamento último: “Por acaso são
verdade125 os seres humanos? Portanto, já não é verdade nosso canto?126 O quê está
de pé,127 porventura?”.128 Estar na verdade é estar fundado na pedra firme da terra.
Na origem. Mas esta origem cósmica é ao mesmo tempo cosmopolita: o império
asteca foi fundado num pacto com Huitzilopochtli, o pequeno deus colibri que
necessita o sangue dos jovens para poder viver. O império se funda sobre um pacto
cosmológico expressado por Tlacaelel; era uma verdadeira teologia política.129
Numa primeira tradição, a filosofia política moderna e especialmente a da
Ilustração e do liberalismo, desde Hobbes e Locke, se pergunta pelo seguinte
tema: como nasce o “estado civil” ou “estado político”, isto é, a ordem política? Para

124 É interessante que mundus (donde vem “mundo” em nossa língua românica) significava, em
latim, o lugar da conexão entre os deuses celestes e os do inframundo: era o lugar da “uni-
dade”. Entre os gregos, o “umbigo” (omphalos; Pausanias, X, 16.2), representado por uma
pedra, “protege os mortos (como os megalitos neolíticos, por exemplo), é o lugar temporário
da alma dos mortos e testemunho do pacto realizado entre os deuses e os humanos ou entre
os próprios humanos” (“Pedra sagrada”) (Eliade, 1959, p. 205); ver também Eliade, 1963.
125 Na língua náhuatl, Nelli (verdade) é “o fundado”, o que resiste às tormentas porque está
enraizado nas pedras e não no cambiante solo de barro do lago de Tezcoco. Perguntar pela
“verdade” é questionar-se pelo “fundamento”, pelo que é “firme”, pelo que “resiste”.
126 “Flor e canto” é a narrativa teórica dos tlanatinimes, os “filósofos” astecas: são as composi-
ções explicativas da omnitudo realitatis cosmopolita; do “império asteca” como sustentáculo
(fundamento, verdade) do universo celeste. O “Sol” (Huitzilopochtli) podia transmitir vida
(enquanto fonte do calor vivificante) graças ao império, já que por seus sacrifícios humanos
(na “teologia política” de Tlacaelel) se renovava a “vida” do astro. Tratava-se de uma funda-
mentação política do cosmo astronômico.
127 “Estar de pé” significa “estar fundado”, “estar na verdade” do Ometeotl (Cf. Dussel, 1995, § 7.2).
128 Manuscrito de los Cantares Mexicanos, fol. 19v (Cf. León Portilla, 1979, p. 61).
129 “O império ficava agora fundado como servidor da existência e da vida do Sol. Por isso,
o movimento (do Sol e de toda a realidade cósmica), a vida e o coração têm relação com o
sangue (chalchitlitl): a vida do Sol-Huitzilopochtli depende dos sacrifícios humanos [...].
Tlacaelel consegue assim fazer do império um colaborador da subsistência do universo”
(Dussel, 1996, § 7.2).

75
isso, imaginaram uma situação “contratualista”.130 O contratualismo tem o defeito
fundamental do seu formalismo.131 Imagina-se uma situação onde a consciência
(redução consensualista) estabelece uma aliança (que, na cultura ocidental, tem
seu longínquo início no caso de Abraão no povo judeu, e no cristão se fala de
uma nova Aliança, firmada pelo profeta fundador), simplificando assim a origem
de maneira unilateral. De maneira contrária, numa segunda tradição, a filosofia
política do marxismo standard imaginou a origem do sistema político como fruto
inevitável dos mecanismos necessários das leis econômicas – posição que E. Laclau
criticou com máxima clareza132 – e conceitualizou o Estado como lugar privilegia-
do da política, do exercício do poder da classe burguesa – redução contra a qual se
lançará criticamente o pensamento foucaultiano. Neste segundo caso, se cai num
materialismo unilateral.
Diante da crise do marxismo, especialmente na França, um grupo de filósofos
anthusserianos (como E. Balibar, A. Badiou, J. Rancière e outros), e também como
reação da anunciada “morte do sujeito” (de origem analítico-popperiano, mas
muito em voga no pensar de L. Althusser), devem repensar a questão do “sujeito
histórico” (a classe operária) convertido numa substância metafísica. A des-subs-
tancialização do sujeito, a necessidade de encontrar um ator político que pudesse
ser descoberto desde exigências filosóficas mais interdisciplinares, mais críticas,
e até pós-modernas em alguns aspectos, situam o problema da origem da ordem
política vigente desde uma complexidade muito maior.
A pergunta pelos “sujeitos” que originam a ordem política ou os “atores” do
campo político deverá ser respondida praticando uma descrição filosófica, ao que
deveríamos agregar o colapso do socialismo real e a derrota do liberalismo tradi-
cional infringido pelo pensamento neoconservador e fundamentalista (religioso
e de mercado), que se apresenta como se não tivesse diante de si nenhuma outra
alternativa (como o neoliberalismo do mercado total e global) que parta de novos
pressupostos. Surge assim a discussão atual sobre uma redefinição do “sujeito”
da política. E é dentro deste horizonte que tomaremos como ponto de partida a
posição de Alain Badiou.
A ordem política vigente se origina desde uma referência política primeira que
denominaremos o “acontecimento”,133 que por ser a última instância será por nós

130 Ver na parte histórica desta obra os parágrafos [131ss] e [145ss].


131 Para as categorias do formal (cap. 2) e do material (cap. 1), ver minha Ética da Libertação
(Dussel, 1998). O que ali foi enunciado para a ética aqui se aplica à política.
132 Ver em Laclau a interessante reivindicação política da social-democracia diante do marxis-
mo standard e o modo como fundamenta a necessidade da política diante do economicismo
das leis necessárias da história (Laclau, 1977 e 1985; Dussel, 2001, p. 188-205).
133 Em francês, événement (como o denomina Badiou); em alemão, Ereignis (para Heidegger).

76
descrita como “fundacional”. O próprio Rousseau134 – a partir de uma posição
contratualista, ainda que crítica – escreve o seguinte em referência a Grócio e ao
fato de que um povo pode “dar-se um rei”:

Este mesmo dom135 é um ato político; pressupõe uma deliberação pública. Antes de
examinar um ato pelo qual um povo elege um rei, seria bom examinar o ato pelo qual
um povo é um povo (un peuple est un peuple), pois este ato, sendo necessariamente an-
terior ao outro, é o verdadeiro fundamento (fondement) da sociedade (Rousseau, 1961,
p. 59-60).136

Para Rousseau, este fundamento é o “contrato social”, do qual se aceita que


“nunca foi formalmente enunciado [e, por isso,] são sempre os mesmos [em seu con-
teúdo], em todas as partes tacitamente admitidos e reconhecidos, até que o pacto
social seja violado” (Rousseau, 1961, p. 61). Com efeito, quando ele é negado ou
debilitado, aparece então explicitamente o contrato como sempre dado e que é pre-
ciso proteger. Esta posição, como vimos, pode derivar num tipo de visão formalista.
Tema semelhante será tratado por Alain Badiou, desde um ponto de vista on-
tológico (embora desde uma ontologia definida dentro do horizonte do saber em
último termo como matemática, no que não o seguimos), o que nos permitirá des-
cobrir a vontade como ponto de emergência, como um poder que “aparece” situado
(desde um “sitio” e em uma “situação”), como o momento ontológico concreto e
originário de toda “ordem política” estabelecida, seja qual for, que será considerada
como o dado (objeto desta Arquitetônica) que desconstruiremos posteriormente (na
Crítica, a partir do § 30). Metodologicamente, partiremos desde uma comunidade,
um grupo, uma estrutura intersubjetiva, que se encontra já sempre numa Totalida-
de política dada, sem julgá-la ainda de maneira crítica (e, por isso, nos serve a atitude
em parte ingênua, não-crítica, como a de Badiou,137 segundo podemos observar).
É toda a questão da “aparição” do ser (potentia) no mundo fenomênico (potestas).
No começo de toda ordem política está, de alguma maneira, o caos, o anterior
à ordem, no tempo primeiro em que se produziu o “acontecimento”, ao qual,

134 Recordar o que foi escrito acima, na História [165ss].


135 O próprio da “vontade” (o querer da vida), vimos no § 14, é o “poder-pôr” as mediações; vale
dizer, o “poder-dar-se” o modo de permanência e aumento da vida. Este “poder-dar-se” é o
“dom” do qual fala Rousseau neste texto.
136 Du Contrat Social (Livro I, cap. 6). Repete a posição de F. Suárez sobre a democracia como
fato originário anterior aos outros tipos de organização política.
137 Referimo-nos à obra L’être et l’événement (Badiou, 1988). Badiou expõe a postura de E. Levinas
(“La ética en el sentido de Levinas”) (Badiou, 1995, p. 33ss), mas está longe de extrair os re-
sultados políticos que pressupõe. Encontra-se “apanhado” dentro da categoria da Totalidade
e, ao não vislumbrar a Alteridade (em seu sentido real), lhe escapa o conteúdo último de sua
interpretação (em especial, em sua obra sobre Paulo de Tarso) (Badiou, 1999). Comparar com
o que escrevemos acima, em [33-37] e em [58-60]. Voltarei sobre esta questão frequentemente.

77
inevitavelmente, com “fidelidade” se remeterão todos os atores políticos de uma
certa comunidade como o dado obviamente, como o fundamento do consenso
tácito sempre presente, como a ausência que todos pressupõem e que, quando é
posta em questão, se debilita toda, “vem abaixo”.
[263] Para entender o sentido muito particular que outorgaremos ao termo
“acontecimento” (que, embora nos inspiremos em Badiou, não nos aprofundare-
mos estritamente no conteúdo que lhe dará este autor francês pós-althusseriano),
poderíamos iniciar nossa reflexão desde a descrição do “mundo” (Welt), tal como a
propõe para nós Heidegger em Ser e Tempo (1963, § 14, p. 63ss [trad. esp., p. 76ss]).
O ser-no-mundo cotidiano, fático, o de todos os dias, é o ponto de partida. É a
Totalidade dentro de cujo horizonte vivemos, enfrentamos os entes “à mão” e os
interpretamos primeiramente de maneira prática. Este mundo é sempre espacial
(não no sentido óbvio, enquanto tem ou está num lugar, num lugar geográfico
determinável e, sim, enquanto espacializa todos os entes que o enfrentam dentro
dele). Este mundo, ademais, é sempre temporal (não enquanto está determinado
por uma data, mas, enquanto temporaliza as possibilidades que se deve empunhar
cotidianamente). Nesse mundo, num certo lugar, num sítio com um determinado
sentido, pode dar-se uma situação.

O termo situação (Situation) [é] um conceito existencial (existenzialen) [...]. Ao ser-no-


-mundo lhe é inerente uma peculiar espacialidade [...]. O ser-aí espacializa [...]. Mas, a
espacialidade peculiar do ser-aí, na base da qual se assigna a existência em cada caso
seu lugar (Ort), se funda na constituição do ser-no-mundo. O ingrediente primário des-
ta constituição é o estado-de-aberto (Erschlossenheit). Assim como a espacialidade do aí
se funda no estado-de-aberto, assim tem a situação seu fundamento no estado-de-resolvido
(Entschlossenheit) (Heidegger, 1963, § 60, p. 299 [trad. esp., p. 325-326]).

Segundo vimos, no pensar heideggeriano, que se manifesta nos textos sobre


Nietzsche, este “estado-de-resolvido” é o modo como a vontade se põe sobre si mesma
e supera seus limites, no horizonte “aberto” do mundo. “Aparece” no mundo. Não
se trata de um mero estar perdido no impessoal “se diz” (o “se” como signo do
sub-jeito passivo que não é ator, e, por isso, não é o “sujeito” que se está buscando
depois da “morte do sujeito”). Para ser ator no estado-de-resolvido, o mero passivo
sub-jeito massivo, do “se”, aparece quando se convulsiona em algum lugar (um sítio)
um tal estado de coisas que o mundo entra em crise. No mundo, se configura
uma “situação” crítico-existencial, caótica; a estabilidade dá lugar ao “rio revolto,
ganância de pescadores”; os pescadores serão neste caso os “atores” no dito mundo.
Badiou pensa o tema do “acontecimento” desde este contexto heideggeriano –
mas, igualmente diante de Althusser, já que o horizonte ontológico de Badiou nos
fala do saber, que ocuparia o lugar da “ciência” em Althusser (reservando ante o

78
nível da “ideologia”, agora completamente redefinida, toda a problemática que se
denominará com a palavra “acontecimento”). Com efeito, o “ser” da obra O Ser e
o Acontecimento de Badiou é, por uma parte, o mundo heideggeriano repensado
desde a tradição althusseriana e, por outra parte, sua identificação com um saber
matemático, tal como o expressa o próprio Badiou.
O conceito de “acontecimento”, desta maneira, tem agora uma complexidade
desconcertante: “Na construção do conceito de acontecimento (événement), a per-
tença do acontecimento a si mesmo ou, quiçá, melhor, a pertença do significante do
acontecimento à sua significação desempenha um papel crucial” (Badiou, 1988,
p. 211 [trad. esp., 1999, p. 213]).138
Para chegar ao conceito de acontecimento, Badiou parte (como Heidegger) de
um lugar (sítio) que determina, por sua parte, uma complexa situação existencial. A
situação é a estruturação de maturação extrema e concreta, como uma conjuntura
crítica do mundo, num momento de transformação de sua história. Na lógica da
complexidade, o conceito de caos pode servir-nos. Por caos se entende o estado de
uma substância que entra num processo de “passagem” de um estado físico a outro.
Por exemplo, no caso da água, a passagem do estado sólido ao líquido e deste ao
gasoso. Ao chegar aos cem graus centígrados de temperatura, a água entra em
ebulição. Há uma mudança de parâmetros, uma desestruturação de uma certa
ordem que parece fazer saltar em pedaços o estado de coisas consolidado até este
momento. Antes ainda, quando o gelo começou desde menores temperaturas a
chegar ao grau zero, se iniciou a dissolução de cristais, a resistência mútua das
moléculas diminui sua recíproca dureza e lentamente começa a se filtrar por entre
seus interstícios gotas do líquido, o elemento novo e inesperado. O forte iglu do
esquimó, que resistia como uma pedra, começa a se derreter. Esta situação, que
antecipa uma mudança radical, não pode ser prevista no processo histórico. Nem
tampouco tem como sujeitos privilegiados os heróis. Trata-se de “atores” unidos
por uma rede intersubjetiva, que constitui algo assim como uma comunidade ge-
racional. Os participantes passivos da ordem, os sub-jeitos, se desorientam, não
captam, não podem interpretar o sentido da situação caótica. Somente alguns são
impulsionados a se comprometer como atores (somente a militância constitui a este
observador como “interior” da situação) no processo de transformação que produ-
zirá, em seu aquietamento momentâneo, uma nova ordem de coisas. Alguns podem
interpretar o novo sentido da “situação” do mundo como Totalidade. O “aconteci-
mento” será assim um tipo de estrutura dinâmica não prevista, na qual certos “sub-
-jeitos” (de alguma maneira objetos funcionais do sistema, meros membros passi-
vos) se tornam atores, no meio da refrega que, para os observadores objetivos, é o
próprio caos. Somente os que conseguem levantar a cabeça fora da corrente da água
que a todos arrasta na situação caótica são os que começam a se fazer experientes

138 Meditación, 18.

79
na natação graças à própria corrente. O “acontecimento” será certamente um fato,
mas um fato muito particular, um fato histórico, última referência da reorganização
do mundo, da fundação de um novo mundo. Este “acontecimento” se descobre cla-
ramente ao observador externo de modo retroativo, graças a uma mirada para trás,
para a origem, desde a perspectiva de estar habitando em outro mundo.
[264] Na Nova Espanha, por exemplo, em 1810 (um sítio num tempo), se pro-
duziu um fato que foi denominado o estado de rebelião de uma das colônias do
Império espanhol (Badiou obviamente está pensando em sua “revolução francesa”).
Este fato pode ser descrito pelo historiador narrando muitas possíveis determina-
ções concretas (a existência dos crioulos, dos mestiços, dos índios; a burocracia
bourbonesa, os vice-reis, as lojas maçônicas, os elevados tributos exigidos pelos in-
tendentes, etc.139), mas todos estes momentos isolados não tocam no que é o acon-
tecimento de uma tal revolução emancipadora das colônias ibéricas, nem permite
que se interprete (desde um observador externo imparcial) o sentido do vivido por
aqueles atores históricos, e o que para eles significou fazer memória retrospectiva
daquela situação:

O que marca um ponto de detenção para esta disseminação [de significados] é o modo
segundo o qual a Revolução constitui um termo axial da Revolução mesma, isto é, a
maneira na qual a consciência do tempo – e nossa intervenção retroativa – filtra todo o
sítio [e a situação] através do uno140 de sua qualificação de acontecimento (Badiou, 1988,
p. 201 [trad. esp., 1999, p. 203]).

Badiou, como Étienne Balibar ou Jacques Rancière, era discípulo de Althusser.141


O “ser”, temos dito, é a ordem ontológica do saber, da matemática (e não da filo-
sofia). Por sua vez, neste mundo ou ordem ontológica, se estrutura uma “multidão

139 Badiou nos falará dos “campesinos do Grande Medo, dos sans-coulotes das cidades, dos clubes
dos jacobinos, dos soldados do levantamento em massa, [...] da guilhotina” (Badiou, 1988,
p. 201 [trad. esp., 1999, p. 203]).
140 Aqui Badiou, desde sua compreensão ontológico-matemática, indica que a multiplicidade
não pode alcançar o conceito até não ser subsumida no “uno”.
141 Laclau foi igualmente dos que adotaram categorias althusserianas em sua juventude para
redefinir posteriormente o sujeito como “operador da hegemonia”. Ver Žižek (2001, p. 137-
259) sobre este e muitos outros termos relacionados a esta “escola” contemporânea francesa.
Sobre Badiou escreve Žižek que “a oposição que traça entre o saber (relacionado com a
ordem positiva do ser) e a verdade (relacionada com o acontecimento que surge do vazio
que há em meio ao ser) parece inverter a oposição althusseriana entre ciência e ideologia”
(2001, p. 138). É uma “inversão” já que, para Althusser, o saber era o tipo privilegiado da
racionalidade, enquanto ciência; enquanto que agora, para Badiou, a verdade propriamente
dita é prática, histórica, não-científica ou ontológica (matemática) e se assemelha à “inter-
pelação ideológica” de Althusser que é o que agora interessa realmente em último termo
para entender a problemática do “sujeito”.

80
consistente particular”, que Badiou categoriza como situação. Quando a situação é
captada como tal, numa “estrutura simbólica” (e aqui nos aproximaríamos de dois
dos três vértices do triângulo lacaniano, ante a “coisa real” e o “simbólico” – nos
faltaria o “imaginário”) se passa a um “estado de situação”. Žižek explica:

Esta é então a estrutura do ser. Contudo, de tempo em tempo, de um modo completa-


mente contingente, inefável, fora do alcance do saber sobre o ser, se produz um aconte-
cimento que pertence a uma dimensão totalmente distinta: é precisamente a dimensão
do não-ser (2001, p. 141).

Este novo tipo de racionalidade, este novo nível da existência emerge desde a
situação. Para compreender aproximadamente do que estamos falando, deveríamos
entender que não se trata de um sujeito que se situaria como um observador impar-
cial e, sim, que ocupa um lugar de ator do acontecimento como sujeito comprometido,
“interno” à situação no mundo e que se encontra “enredado” numa intersubjetividade
(e em referência a um inconsciente que frequentemente o impede de conceituar cla-
ramente a situação) que o determina. Alguém poderia, com justiça, criticar que se
teria perdido a antiga “objetividade” (do marxismo standard) de poder explicar o fato
desde estruturas “científicas” (como as categorias de classe, formação social, etc.). O
que ocorre é que esta “objetividade” das estruturas econômicas, jurídicas, políticas
(que, em qualquer caso, nos interessam de maneira muito especial) não exercem
sua eficácia social ou política como meramente categorias abstratas “objetivas”. As
instituições, as classes sociais, etc. (categorias sociológicas, econômicas, etc., que não
podemos e nem devemos abandonar), são, simultânea e geneticamente, constituin-
tes da própria subjetividade, da intersubjetividade de cada participante solidário do
acontecimento. Quer dizer, dito acontecimento tem evidentemente determinações
que poderíamos denominar “objetivas”, mas que são vividas, interpretadas e exerci-
das desde um ator comprometido no “interior” de um processo histórico que escapa
ao observador “externo”, por não ser um ator do acontecimento.
O acontecimento não fica necessariamente determinado pelo sítio físico e nem
por uma mera situação possível de ser narrada e, sim, se origina num significar a
situação, em primeiro lugar denominando-a, como ponto de referência dos múlti-
plos atores. Partindo de Pascal, Badiou diz que “decidir [ser participante no acon-
tecimento, uma vez que eclodiu] é uma aposta que não se assume desde a possi-
bilidade de que algum dia será reconhecida como legítima, na medida em que
a legitimidade remete à estrutura da situação” (Badiou, 1988, p. 223 [trad. esp.,
p. 225]).142 A decisão de participar é a origem da legitimidade e também da respon-
sabilidade e da fidelidade. O acontecimento, então, é a intersecção de uma situação

142 Meditación 20.

81
(não somente objetiva e, sim, de uma objetividade componente inevitável da inter-
subjetividade) com um modo muito especial de transformação pelo que um mero
observador passa de ser um passivo sub-jeito a ser um ator. A potentia se fenome-
naliza como potestas, ou, ao menos, está em sua “origem”. Estaríamos na origem
do ato de subjetivação – para usar agora a terminologia de Alain Touraine.143 E isto
é, estritamente, o “poder-pôr-se” (poder) da vontade em estado-de-resolvido como
possível participante. É um risco, é uma “aposta” (da qual é possível ser perdedor).
Quando a geração de Miguel Hidalgo, pároco de Dolores, decide fazer soar o sino
do templo do qual o pároco era responsável e graças ao qual convocava o povo
colonial para participar numa guerra de emancipação antimetropolitana, todos
arriscavam a vida na “aposta” que levaria certamente muitos deles a perdê-la por
fidelidade à causa (a causa aqui é a “Coisa real” impossível de Lacan, que Badiou
denominará: “regime de verdade”): a “verdade” como a liberdade de Anahuac, que
se instaurava desde o acontecimento que começava a desdobrar-se intersubjetiva-
mente, sem garantias objetivas de sua realização efetiva histórica, e que somente
existia nas vontades dos atores como possibilidade que se construirá na fidelidade
à “aposta”, que tinha como única garantia sua própria ação, que aparecia como
“loucura” diante do poderoso e armado mundo cordato hispânico. Os atores se
comprometem numa situação que eles mesmos, em sua decisão, em sua “aposta”
efetiva, constituem como acontecimento. Chamo intervenção – escreve Badiou – a
todo procedimento pelo qual uma multidão (um múltiplo) é reconhecido como
acontecimento (Badiou, 1988, p. 224 [trad. esp., p. 226]).
[265] Há, assim, certos aspectos que podemos ir discernindo naquilo que cha-
maremos acontecimento. Em primeiro lugar, há fatos que como tais não constituem
o acontecimento, mas que são suas condições. Os atores vão cobrando consciência
do acontecimento ao nominá-lo, já que a designação outorgada por eles simboliza
sua própria atividade. Em terceiro lugar, vão tentar uma meta, a coisa real impos-
sível (a liberdade de Anahuac, do México, que nem ainda no começo do século
XXI se conseguiu; assim como impossíveis foram os ideais da Revolução Francesa,
a igualdade, a fraternidade e a liberdade). Ademais, o processo do acontecimento
necessita um “operador”, uma geração de patriotas, um partido ou um movimen-
to político, etc.144 E, por último, o sujeito, o ator que, “em nome do acontecimen-
to-verdade, intervém no múltiplo histórico da situação e discerne/identifica nele
os signos/efeitos do acontecimento” (Žižek, 2001, p. 140). O acontecimento abre
um mundo futuro. Abre um regime de verdade (“verdade” seria aqui o devir do
acontecimento desde a lógica que se instaurou a partir da ruptura com o mun-
do-passado), que arranca desde o oculto e desconhecido (a potentia). A “verdade”
oculta se revela... como fato histórico, como acontecimento, posto que: “Sempre

143 Para Touraine, a subjetivação é o fato de se tornar sujeito ativo.


144 No exemplo preferido de Badiou, no caso de Paulo de Tarso, o operador é a Igreja Cristã.
Ver Badiou (1999); sobre este tema, voltará S. Žižek (2002).

82
seguirá sendo duvidoso que tenha havido um acontecimento, salvo que para o que
intervém, que decide sua pertença à situação” (Badiou, 1988, p. 229; 1999, p. 231).
São como os “milagres” de Pascal (Badiou, 1988, p. 237-248);145 é o ato contin-
gente que rompe a ordem estabelecida do ser, mas que igualmente se situa numa
mesma história:

O debate, filosoficamente reconstituído, aponta a três conceitos. A interrupção (o


que é que um acontecimento interrompe, o que é que preserva?). A fidelidade (o que
significa ser fiel a uma possível interrupção de um acontecimento?). A marcação (exis-
tem marcas ou signos visíveis da fidelidade?). Na intersecção destes três conceitos se
constrói a interrogação fundamental: quem é sujeito do processo de verdade? (Badiou,
1999, p. 25).

Sobre Badiou, mas também sobre J. Rancière e E. Balibar e, de certa forma,


sobre E. Laclau, se diz:

O problema consiste em quebrar o campo ontológico fechado em si mesmo como uma


descrição do universo positivo;146 a dimensão que solapa o fecho da ontologia tem um
caráter ético; concerne ao ato contingente de decisão contra o fundo da multiplicidade
indizível do ser; em consequência, [ditos] autores tentam conceituar um modo novo
de subjetividade, pós-cartesiano, que corte seus vínculos com a ontologia e gire em
torno dum ato contingente de decisão (Žižek, 2001, p. 185).147

E, referindo-se ao que de alguma maneira iniciou esta tradição francesa, Žižek


se reporta a Michel Foucault:

145 “O milagre – como o azar de Mallarmé – é o emblema do acontecimento puro enquanto


fonte de verdade [...] O milagre é símbolo de uma interrupção da lei na qual se indica a
capacidade de intervenção” (1988, p. 241). Badiou elege o acontecimento cristão, o mesmo
que Paulo de Tarso, porque sugere melhor que nenhum outro exemplo a instauração de um
mundo que, inserido militantemente numa comunidade histórica, irrompe desde um regime
de verdade que exige fidelidade ao acontecimento (como o “tempo messiânico” do Jetzt-zeit
de W. Benjamin), mais além da “sabedoria mundana”, para a qual é “loucura” – nas palavras
de Paulo de Tarso. Escreve Badiou: “O que Paulo se propõe não é, evidentemente, abolir a
particularidade judaica, a qual não cessa de reconhecer como o princípio de historicidade do
acontecimento, mas animá-la desde o interior com tudo aquilo do que ela é capaz em relação
ao novo discurso e, portanto, ao novo sujeito. Para Paulo, o ser-judeu, em geral, e o Livro,
em particular, podem e devem ser re-subjetivados” (Badiou, 1999, p. 112).
146 A “positividade” de Horkheimer ou Adorno (Cf. Dussel, 1998, § 4.2).
147 Evidentemente, também a ética no sentido de Levinas se situa como uma pós-ontologia (o
mesmo que na Ética da Libertação), mas não queremos já situar aqui a ruptura radical da
subjetividade de libertação, que trataremos na Crítica, §§ 30 ss., posteriormente. Por ora,
queremos tratar o ontológico como o caos, e a nova ordem instaurada pelo acontecimento
como a ordem política da qual podemos partir metodicamente.

83
Todos estes autores oscilam entre propor um marco formal neutro que descreva
o funcionamento do campo político sem tomar nenhum partido específico e sem dar
preeminência a uma particular prática política de esquerda [...]. Foucault apresenta sua
concepção de poder como uma ferramenta neutra que descreve o modo como funciona
todo campo das estruturas de poder existentes e das resistências a elas [...]. [Mas], por
outro lado, é inevitável a impressão de que Foucault estava de algum modo apaixona-
damente do lado dos oprimidos (Žižek, 2001, p. 186).

Aqui se poderia formular uma suspeita: Badiou, ao final, não estaria preso
num certo formalismo, num subjetivismo,148 já que o acontecimento não teria re-
ferência a uma estrutura propriamente real, porque “a indizibilidade do aconte-
cimento significa que este não tem nenhuma garantia ontológica, nem pode ser
reduzido a uma situação (prévia) nem deduzido dela, nem é tampouco gerado por
ela? Surge do nada (o nada que era a verdade ontológica desta situação anterior)”
(Žižek, 2001, p. 147). Este formalismo subjetivista se deixa entrever na expressão
seguinte: “A verdade [do acontecimento] é inteiramente subjetiva (é da ordem de
uma declaração que testifica uma convicção enquanto ao acontecimento)” (Badiou,
1999, p. 15). E, por isso, “a fidelidade [ao acontecimento], à declaração é crucial, já
que a verdade é um processo, e não uma iluminação” (Badiou, 1999, p. 16). Tomar
como exemplo Paulo de Tarso, como convertido religioso, sem saber situá-lo nas
estruturas de dominação econômica e política do Império romano, supõe um certo
subjetivismo. Se separou do objetivismo althusseriano para cair num subjetivismo
pós-marxista149. Dito subjetivismo se acentua depois:

148 E se entenda que, ao se opor geralmente ao “sujeito histórico” substancialista do proletariado


do marxismo standard, parece que cai no oposto: num sujeito que se debilita a tal ponto
que perde referência ao extra-intersubjetivo. Seria como um sujeito subjetivista no interior
de um campo construído desde um acontecimento sem nenhuma objetividade. Nem tanto,
nem tão pouco!
149 Veja-se a obra de Elsa Támez, Contra toda condena. La justificación por la fe desde los ex-
cluídos (1991), que mostra o sentido da mensagem de Paulo de Tarso dentro da exploração
escravista do Império romano, questão que Badiou e outros que falam de Paulo tendem
sistematicamente a esquecer. Paulo era um “artesão” (1991, p. 55ss), era um “prisioneiro”
(1991, p. 52ss). Depois de uma descrição desgarradora das injustiças no Império, de uma
elite escravista, sem misericórdia com os campesinos e as colônias, de exploração econômica
(através de tributos, juros nos empréstimos, etc.) conclui: “É possível ler a Carta aos Romanos
sem escutar a voz de um prisioneiro inocente ou sem sentir a dor e a raiva de milhares de
escravos crucificados injustamente por leis romanas que escondem a verdade na injustiça ou
sem ver os milhares de desfavorecidos pelo progresso da civilização ou sem ouvir os gritos de
uma etnia vencida pelas invasões romanas? Não, a Carta que tem sido objeto de discussões
abstratas, por vezes sem sentido, se nos apresenta agora com uma nova mensagem sobre a
revelação da injustiça [...] atualizada na justificação pela fé como afirmação de vida” (1991,
p. 75). Livro recomendável para situar a obra de Paulo no contexto econômico-político.

84
Para pensar [a fidelidade] são necessários três conceitos: o que nomeia o sujeito no
ponto da declaração [...] (convicção); o que nomeia o sujeito no ponto da direção mi-
litante de sua convicção [...] (amor); o que nomeia o sujeito na força do deslocamento
que lhe confere a suposição do caráter ultimado do processo de verdade [...] (certeza).
Uma verdade é por si mesma indiferente ao estado da situação (Badiou, 1999, p. 16).

Estas definições nos deixam profundamente confusos ou, por outro lado, nos
esclarecem sobre a posição do filósofo francês. Com efeito, o acontecimento de
Badiou não terá terminado por uma experiência meramente subjetiva de atores
políticos comprometidos com uma pura ilusão cuja referência à realidade (a situa-
ção) acaba por esfumar-se? O sujeito como ator acabaria por aparecer como um
produto imaginário, não real, na história. Quais podem ser os critérios de um
certo realismo crítico do acontecimento que, guardando muitos dos momentos bem
acumulados por Badiou, evitarão cair no formalismo vazio – no qual teriam caído
muitos filósofos pós-althusserianos, tendo sido discípulos desse mestre150?
Da nossa parte, queremos terminar de situar a questão a partir da nossa pró-
pria conceitualização. Quer dizer, o tema que quisemos começar a esboçar consiste
em mostrar que toda ordem política emerge desde um acontecimento fundador,
de uma comunidade de atores que têm consciência militante intersubjetiva, que
lhes coube na história, imprevisivelmente, o ter instaurado uma nova estrutura
epocal que tem sentido pleno somente na “objetividade” de alguma maneira já
sempre subsumida na própria intersubjetividade, mas que não pode deixar de ter
“referência” a uma realidade material, desde o critério último de verdade (a vida
humana) e o critério de validade formal, com referência a uma razão discursiva da
comunidade, em nosso caso, política.
Atenhamo-nos, então, a alguns elementos mínimos supostos em todas as in-
terpretações do que o acontecimento possa significar que nos permitam avançar na
discussão.

Esquema 15.01. Do caos ao acontecimento e à nova ordem

150 Este será o tema dos “princípios implícitos” do político que analisaremos no capítulo 3.

85
Nesta Política da Libertação, poderemos, então, distinguir os seguintes aspec-
tos. Num momento dado (a), o mundo entra em crise (o caos), ao menos para um
grupo de atores. Dito mundo tem sua tradição, a positividade de seu antigo tempo
de constituição, que agora é posta em questão. Numa consideração ontológica, é a
potentia, o poder da comunidade como pura possibilidade: o ser como nada. O acon-
tecimento (b), ao qual estamos nos referindo, surge deste caos que, de alguma manei-
ra, bifurca caoticamente diversas possíveis soluções. Metaforicamente, Th. Hobbes
expressa este fato com aquele famoso homo homini lupus, que agora não recordamos
como uma definição metafísica do ser humano, nem como uma situação hipotética
ou histórico contratualista e, sim, como a mera referência simbólica a uma desordem
primigênia: o “estado de natureza” como guerra. O acontecimento como eclosão,
como erupção, supõe um lugar, que abre uma situação crítica. O sub-jeito passivo
cai inevitavelmente num certo ceticismo, num niilismo, diante da antiga ordem
cujos valores sucumbem diante dos olhos; trata-se de uma ruptura. A isto segue,
quando há efetivamente um acontecimento que é criador: (“aparece” a potestas), um
“pôr novos valores” (usando a expressão de Zarathustra de Nietzsche), como o poder
de uma vontade que tem a capacidade de inaugurar intersubjetivamente, como ge-
ração originária, uma tradição distinta, uma ordem nova (c), para a qual os autores
tendem e em cujo processo deverão saber guardar fidelidade à verdade descoberta
no sendeiro de sua própria construção (da construção de sua própria subjetividade
política, na constituição da verdade da nova ordem: é uma mútua constituição ob-
jetivo-militante, já que, por uma parte, “a Coisa real” vai se realizando na própria
construção do sujeito prático-político e, por outra parte, nunca nenhum dos dois
chega de todo ao pleno cumprimento e se projeta como um postulado).
[266] Vejamos dois exemplos que nos ajudarão a refletir sobre o acontecimento
fundacional sob o nome de “revolução”. O primeiro parte da tradição chamada co-
munitarianista, que é representada por Michael Walzer em sua obra Êxodo e Revo-
lução (1985); e, o segundo, de Hannah Arendt que, em sua obra Sobre a Revolução,
tenta efetuar uma clara distinção entre o sentido da revolução francesa (da qual
partem tradicionalmente os filósofos franceses) e o da revolução norte-americana
(Arendt, 1965).151
Para Walzer, descreve-se o acontecimento fundacional mediante a releitura
de um texto que trata da questão que nos ocupa: o Êxodo, que trata da saída da
escravidão do Egito por Moisés e seu povo. Sua releitura, como judeu norte-ameri-
cano, se inspira na tradição de sua própria comunidade, mas também, entre outras
fontes, na teologia da libertação latino-americana (citando várias vezes o argentino
Severino Croatto) (Cf. Walzer, 1995, p. 5ss). A narrativa vai dirigida principal-
mente para esclarecer o significado da origem do sistema político norte-americano

151 Sobre Arendt, ver as obras de Benhabib (1996, p. 155ss); Courtine-Denamy (1994,
p. 338ss); Canovan (1994, p. 230ss); Passerin (1994); Sahuí (2002); Ettinger (1996); etc.

86
no século XVIII, para trás, e quando pensa o presente, se refere à fundação do
Estado de Israel. O Êxodo serve para compreender um acontecimento fundacional
passado (no sentido deste § 14 e no do § 31 da parte Crítica desta Política da Liberta-
ção) ou para fundar uma ordem dada – já que não se pensa numa revolução presente
ou por vir em vista de um futuro que pretenda negar as negatividades materiais152
dos oprimidos.153 É, por isso, necessariamente, uma interpretação conservadora. De
todas as maneiras, é uma obra cheia de sugestões, dividida em três capítulos154 que
puderam dar ao autor a sugestão de que se trata de momentos categoriais funda-
mentais (de fato, os da filosofia da libertação latino-americana).
Com efeito, em 1) se encontra o “povo” como escravo, no Egito. Walzer não
pretende constituir “Egito” como categoria filosófica, já que efetivamente pode
efetuar-se a partir da metáfora uma categoria interpretativa filosófica que deno-
minamos “Totalidade” (desde Aristóteles, Hegel, Marx, Lukács ou Levinas). Na
narrativa de Walzer, a rebelião dos escravos do Egito é referida alegoricamente e
com frequência à revolução inglesa,155 à fundação política dos Estados Unidos156 ou
à de Israel (Walzer, 1985, p. 6).157 Descobre corretamente os momentos materiais
da da opressão, como causa da revolução daqueles escravos, mas, como não tem
uma clara intenção “categorial”, nunca aplicará tais distinções em suas obras poste-
riores. Não se imagina aplicar a metáfora à “exploração capitalista” (ou o fará muito
de passagem e superficialmente) ou à situação dos palestinos, hoje, em Israel.
Em 2), “o sujeito da marcha, [que] é o povo de Israel” (Walzer, 1985, p. 12),
cumpre o acontecimento, rompe os “círculos fixos” (1985, p. 15),158 deixa para trás a
terra da opressão e se lança ao “deserto”.159 É a ampla estratégia da fundação da nova

152 “Material” no sentido da nossa Ética da Libertação (Dussel, 1998, cap. I).
153 Esta é a outra possível leitura do Êxodo, tal como a de Ernst Bloch ou a que realizamos desde
antes na América Latina (ver meu artigo “Exodus as a Paradigm”, em Beyond Philosophy
(Dussel, 2003b, p. 115-126). O uso na América Latina da releitura do Êxodo num sentido
político, comprometido com a luta contra as ditaduras militares impulsionadas pelos Es-
tados Unidos na segunda parte do século XX, pode ser observado em minha obra de 1972
Caminhos da Libertação Latino-americana (Dussel, 1972, IIss).
154 Há um quarto capítulo, entre o segundo e o quarto, “The Covenant: A free People” (p. 71ss)
que explicita um aspecto da “passagem pelo deserto” (no processo do acontecimento para
expressar-nos como Badiou).
155 Walzer, 1985, referências nas p. 3 (“Puritan revolution”), p. 77 (“The House of Commons
in 1642”), p. 78-79 (“English Puritans”) e p. 93, p. 127 e p. 146.
156 Ver (“American Great Seal”), p. 82 (John Winthrop), p. 84 (“Massachussets constitution
of 1780”), p. 89, p. 106, p. 127-128.
157 Diz: “from the Maccabean revolt to the Zionist movement” (1985, p. 137-145).
158 Serão as “esferas de justiça” fixadas pela tradição? Creio que a comparação não ocorreu a
Walzer.
159 Bamidhar (“no deserto”) pode ser construída como uma “categoria” filosófica, como demons-
tramos na obra publicada há mais de trinta anos (Dussel, 1973, vol. 2, caps. 4-5; também em
Dussel, 1977). “O ser humano da periferia foi neste caso o pobre beduíno do deserto arábico

87
ordem. Em meio ao “deserto” (quer dizer, do acontecimento), se produz a “aliança”,
o “contrato”, o “pacto” (onde se inspiram os contratualistas modernos). Por isso,
corretamente conclui: “O pacto (covenant) é a invenção política do livro do Êxodo,
(Walzer, 1986, p. 74). “Eles estão entre o Egito e a terra prometida”.160 É o momento
da “doação” da lei, da fidelidade (e infidelidade), do fetichismo, da estratégia...
Em 3) é a chegada à “Terra prometida”, a de Josué cruzando o Jordão e atacando
Jericó dos cananeus; a dos Pilgrims que recebem a comida dos indígenas (Thanks
giving day) ... que são depois massacrados; dos palestinos em toda a terra de Israel
(desde o Mediterrâneo até o Jordão). É a ambiguidade originária, é a morte do pai
de Freud,161 do irmão como “bode expiatório” de Girard (1982),162 o sangue sobre o
qual se constrói o “pacto”.163 Vemos, então, que, quando se trata de “ocupar a terra”,
organizar a nova ordem, a questão se torna ambígua.164

[...]. Este beduíno forma um dia os reinos de Acad, Assíria, Babilônia, Fenícia. Um grupo
deles era de escravos; chamados apiru. A libertação destes escravos, miticamente liderados
por um tal Moisés se converterá numa narração de frequentes releituras” (§ 1.1.7.1). A de
Walzer é uma nova releitura, muito apropriada.
160 Este “entre” (in betwenness) é o momento b, entre o a e o c do Esquema 15.1.
161 “Um acontecimento como a supressão do pai originário (Urvaters) tinha que deixar pegadas
imperecíveis na história da humanidade” (Totem y tabu, 4, vii, Freud, 1974, vol. IX, p. 438
[trad. esp., 1968, vol. II, p. 597]).
162 “O assassinato fundante é parte da constituição do poder. Através do assassinato fundante
se legitima o poder frente aos dominados, e também aos que exercem o poder. A vítima do
assassinato pode ser um herói inocente. Neste caso, o poder se percebe como reencarnação
do herói frente aos assassinos, inimigo do poder [...]. Como resultado do impacto do assas-
sinato sobre os assassinos, eles agora podem reconstituir a ordem” (Hinkelammert, 2003,
p. 188-189). Voltaremos na parte Crítica sobre este tema do imaginário político.
163 Walzer tem dificuldade em tratar o tema (1986, p. 137ss). A diferença entre “sionistas do
Estado” e “sionistas messiânicos” ou religiosos (ortodoxos) não evita a contradição; “the
conquest of the land” (1986, p. 141). É o mesmo problema “of the American Puritans con-
fronting the Indians of New England” (1986, p. 141-142), os Boers, na Áfrida do Sul, Cortés
diante dos astecas ou Pizarro ante os incas (agrego eu os dois últimos exemplos). E como
escusa, Walzer escreve: “Se o movimento do Egito para Canaã é tomado como uma trans-
formação política, sua atenção se centra na guerra interna e não é a externa, nas purgações
dos israelitas recalcitrantes e não nas destruições das nações cananeias. E não ponho minha
atenção igualmente – escreve Walzer – sobre este aspecto (interior) em meu livro” (1986,
p. 142). Vimos na exposição histórica da política que sempre foi assim na filosofia política
eurocêntrica. Desde Ginès de Sepúlveda, no século XVI (que partia do helenocentrismo de
Aristóteles), John Locke, no século XVII, Monroe, no século XIX, M. Walzer, H. Arendt
ou George Bush (guardando as distâncias, evidentemente), nos séculos XX e XXI. A aten-
ção se coloca ad intra, nunca ad extra. Mas, perguntaria um filósofo mundial, global, de fora
da Espanha, da Inglaterra ou dos Estados Unidos, não é um para dentro da humanidade?
(Marx explicava que o mercado externo de cada nação é um mercado interno mundial que
é o único mercado concreto). Os cananeus, os índios americanos, os palestinos e todas as
nações do Sul estão neste afora que trataremos a partir do § 30 da parte Crítica desta obra.
164 Perguntei a Walzer por ocasião de minha atuação docente em Harvard, em 2000, numa
conferência que ministrava sobre o sionismo em Israel, o que ele pensava sobre a situação

88
H. Arendt, em Sobre a Revolução, obra escrita em 1962 (posterior à sua na-
cionalização norte-americana), manifesta uma mudança na sua visão política. Se
na primeira parte da sua vida, como, por exemplo, em As Origens do Totalitarismo
(1974), especialmente na segunda parte sobre O Imperialismo, havia se inspirado
não somente em Marx ou em Rosa Luxemburgo, mas até em Lênin e se via um
ilustrado interesse pelo tecnológico e econômico, agora, ao invés, e de maneira
definitiva, manifesta uma certa cegueira pelo aspecto material do político, no fa-
moso capítulo segundo sobre A questão social (Arendt, 1965, p. 59-114),165 ao que
faremos referência em outros lugares desta obra. O certo é que Arendt, agora ins-
talada nos Estados Unidos, tenta mostrar a diferença de duas “revoluções”: uma, a
europeia revolução francesa; a outra, a revolução americana.166 Esta última, opina-
va Arendt, dado que na Confederação não havia tantos sinais de pobreza como na
França,167 pôde, em primeiro lugar, não ser uma revolução que tentava uma “luta
de libertação” (struggle for liberation) (Arendt, 1965, p. 142)168 da pobreza (como na
França), que teria usado a miséria das massas como mola política (manipulação
dessa negatividade) que terminará no terror.169 Em segundo lugar, a revolução
americana tenta a “fundação da liberdade” (foundation of freedom) (1965, p. 33),
mas, negativamente, contra a indivisibilidade do poder do Estado (nacional ou
confederado) ou “abolindo a soberania [absoluta] do corpo político da república
[confederada], entendendo que no reino dos assuntos humanos soberania e tirania
[do Estado] são o mesmo” (1965, p. 153, cap. 4.1), compartilhando a soberania dos
diversos Estados regionais com a União. É interessante notar, e creio que Arendt o
ignorava (ou, ao menos, não o vi mencionado por ela, e isto se vê pelo uso do pensa-
mento de Jefferson, mas não o de Franklin), que a inspiração da União confederada
de diversos Estados teve por origem a “Confederação das seis nações iroqueses”
(e não as Províncias Unidas da Holanda ou os cantões da Suíça), de cuja confe-

dos palestinos, e ele se negou a dar uma explicação. É conhecido o forte debate que drama-
ticamente entabulou com Edward Saïd.
165 “Nada, podemos afirmar no presente, pode ser mais obsoleto do que tentar libertar a hu-
manidade da pobreza por meios políticos” (1965, p. 114).
166 É evidente que o eurocentrismo de Arendt não suspeita que existe “outra” América, “nossa”
América de Martí ou Salazar Bondy, a América Latina.
167 Claro que a própria Arendt indica que havia, no século XVIII, nos USA, uns 400.000
escravos, mas não eram considerados pela filosofia entre os “pobres”, o que não é aceito,
como se pode supor, por S. Benhabib (1996, p. 160), o qual mostra que esta contradição
social (econômica, material, no sentido da nossa Ética da Libertação) produzirá o estalido
da Guerra Civil (1861-1865).
168 Sobre a Revolução, cap. 2, 1.
169 A diferença entre “libertação” (liberation) e “liberdade” (freedom) é essencial para Arendt
(cap.1,2; 1965, p. 29-35). “Mas a dificuldade de desenhar a linha que separa libertação de
liberdade em toda circunstância histórica não significa que libertação e liberdade sejam o
mesmo” (1965, p. 33).

89
deração ameríndia extraíram ademais o emblema da águia com as treze (seis nos
iroqueses, uma por cada nação) flechas do escudo nacional.170 Outra originalidade
foi a de opor o poder ao poder para obter um poder maior, se dividiu a “autoridade”
da Suprema Corte de Justiça, como um poder legal de julgar sobre a constitucio-
nalidade de todas as leis ou decisões dos outros dois poderes, do “poder” por eles
exercido. O “ser constitucional” (não contrário à Constituição) de um “aumento”
(uma nova lei ou decisão) como exercício da potestas dos outros poderes, permite
que o momento fundacional (perpetual foundation) descanse sobre a auctoritas da
Suprema Corte: “Esta noção de coincidência de fundação e preservação (foundation
and preservation) por força do aumento (augmentation) estava profundamente en-
raizada no espírito romano” (Arendt, 1965, p. 202, cap. 5.2).171
O critério de “fundar a liberdade” numa instituição política é o que permi-
te discernir o sentido das “revoluções”, não somente da revolução francesa, que
terminará para nossa autora no fracasso e, sim, e sobretudo, das “revoluções” do
século XX (em especial, a leninista), que entrarão em colapso por não “encontrar
sua instituição apropriada” (appropiate institution) (Arendt, 1965, p. 280, cap. 6.4).172
Vale dizer, o acontecimento fundacional termina por objetivar-se, instituciona-
lizar-se, realizar-se numa “ordem política” vigente, dada. Mas Arendt não pensou
no “estado de exceção” que poderia pôr em questão a Suprema Corte de Justiça,
e muito menos no “estado de rebelião”. O fetichismo institucional é difícil de ser
superado. Podemos agora começar nossa análise dos diversos níveis desta “ordem
política constituída”.

170 Este tema, geralmente não referido, tem a maior importância. Veja-se a obra de Wayne
Moquin e Charles van Doren sobre os iroqueses (Moquin, 1973), donde beberam o conceito
institucional de Confederação os fundadores do Estado norte-americano. Ver mais adiante
em [347].
171 Seguramente Arendt não sabe que uso as noções nietzscheanas e heideggerianas de “per-
manência” (ou “preservação”) e “aumento” que denominamos em nossa Ética da Libertação
o aspecto material de “produção, reprodução e desenvolvimento” da vida humana em co-
munidade.
172 Paradoxalmente, aqui Arendt coloca uma questão central, como veremos no capítulo 2 desta
Arquitetônica, e que é absolutamente necessária: a inclusão do problema das “instituições”
na definição do político, questão à qual Arendt prestou a devida atenção.

90
CAPÍTULO 1
A AÇÃO POLÍTICA NO NÍVEL ESTRATÉGICO

§ 16. DEFINIÇÕES PRÉVIAS

[267] Entremos, então, no primeiro nível de nossa descrição (o nível A). Deve-
mos elaborar uma descrição mínima de algumas categorias que usaremos frequen-
temente para contar com elas em nossa exposição. Estas noções, em último termo,
nunca são exatamente a dos autores nos quais nos inspiramos e, sim, que recebem,
sem dúvida alguma, um novo significado dentro do discurso próprio desta Política
da Libertação.
Neste capítulo nos situaremos no nível173 estratégico que, para muitos (desde o
Sunzi174 dos chineses até a obra de N. Maquiavel ou E. Laclau), é o nível que toca
a essência do político. Certamente é um componente necessário, mas não suficiente.
Com efeito, estratégico provém do grego175 e em alguns filósofos contemporâneos

173 Repetimos que haverão três níveis: o A (o estratégico), o B (o institucional) e o C (os princípios
implícitos), que são o conteúdo destes três capítulos desta Arquitetônica.
174 O primeiro capítulo do famoso texto trata do “Cálculo”, em chinês ji, que, “em espanhol,
entendemos por estratagema ou argúcia” (comentário ao Sunzi de Alberto Galvany, em
Sunzi, 2001, p. 110).
175 De stratós que significa “exército”, mas também “multidão”: e ágo indica “conduzir”, “levar”;
strategós é aquele que conduz um exército; strategía é simplesmente “estratégia”; stratégema,
estratagema.

91
(como Apel ou Habermas) o “estratégico” é o que segue fins instrumentais que
distorcem a relação comunicativa – que é propriamente intersubjetiva, normativa.
Outros, e com razão, fizeram uma crítica da razão instrumental – como Horkhei-
mer ou Adorno –, o que levou a um certo “desprezo” pela razão estratégica – que
devemos distinguir claramente da razão instrumental.176 Entendendo o que estes
filósofos buscaram, cremos que suas críticas são necessárias, e dou razão a este
ceticismo quando o estratégico ou instrumental se situa como a última instância
prática, e isto acontece frequentemente.177 Mas ditas críticas não são suficientes
para descartar a importância deste nível prático, componente impostergável do
“político”, da ação política enquanto tal.

1. O “campo político”
A categoria mundo (já presente em Hegel desde o ponto de vista fenomeno-
lógico e em Heidegger desde um nível existencial: Welt) aponta à Totalidade das
experiências da subjetividade fático-cotidiana do ser humano (o Dasein); é o ho-
rizonte omnicompreensivo, o mais amplo possível (embora ainda descrito desde a
prioridade do cognitivo). É um âmbito ontológico que sempre teremos em conta,
muito presente no que Paul Ricoeur denominou “a via curta” da hermenêutica. Por
sua vez, a noção de mundo da vida (Lebenswelt), que tem origem no último Husserl
(não sem influência de Heidegger de Ser e Tempo), trabalhada mais sociologica-
mente por Alfred Schutz (1967) e integrada a seu sistema social de base por Jürgen
Habermas (Dussel, 1998, § 2.4), tem um caráter preponderantemente intencional
no nível estrutural onde não se descobrem relações de poder. Da mesma maneira,
o conceito de sistema em Niklas Luhmann (Dussel, 1998, § 3.3) é demasiadamen-
te abstrato e, novamente, conceitualiza o poder desde uma posição comunicativa
unilateral, mas útil e que teremos em conta.
A proposta de Pierre Bourdieu sobre o campo (e também o campo político) é
menos ontológica e mais empírica, mais concretamente complexa que o mundo
heideggeriano, que a Lebenswelt husserliana ou que o sistema luhmanniano. Não
descartaremos a nenhuma destes, mas os situaremos dentro do mundo. Incluire-
mos, assim, diversos sistemas e subsistemas no campo político que os tornam muito
úteis para o nosso propósito. No vínculo com M. Foucault, o campo é entendido
como uma rede de relações de poder que se estruturam mutuamente dentro de
um mesmo horizonte.

176 Os gregos corretamente distinguiam poiesis (fabricar, fazer: relação do ser humano com a na-
tureza, âmbito da razão “instrumental”) de práxis (operar, práxis: relação do ser humano com
o ser humano, âmbito da razão “estratégica”). A razão política, em seu nível de meios a fins, é
então, em toda esta Política da Libertação, uma razão estratégica (Dussel, 1984, 1998, cap. 3).
177 No capítulo 4.5 da minha Ética da Libertação, mostrei como superar esta falácia redutiva.

92
Desta forma, usaremos nesta obra o conceito de campo somente num sentido
aproximado ao de Pierre Bourdieu178, na medida em que utilizaremos tal categoria
para situar os diversos níveis ou âmbitos possíveis das ações e instituições nas quais
o sujeito opera como ator de uma função, como participante de múltiplos horizon-
tes práticos dentro dos quais se encontram estruturados numerosos sistemas e sub-
sistemas – num sentido semelhante ao de N. Luhmann.179 Estes campos se recortam
dentro da totalidade do “mundo da vida cotidiana”.180 Há tantos campos quantos são
os tipos de atividades humanas. Interessam-nos especialmente os campos práticos.
O sujeito, então, atravessa ditos campos, situando-se em cada um deles funcional-
mente de maneira diversa. O sujeito é o S do Esquema 16.02 que se faz presente nos
campos A, B, C, D e N (no campo familiar, da vida do bairro ou aldeia, do horizonte
urbano ou dos estratos culturais, da existência econômica, esportiva, intelectual,
política, artística, filosófica, e assim indefinidamente). O mundo cotidiano não é a
soma de todos os campos, nem os campos são a soma dos sistemas e, sim, os primei-
ros (o mundo, o campo) englobam e sobreabundam sempre os segundos (os campos
ou sistemas), assim como a realidade sempre excede todos os possíveis mundos, cam-
pos ou sistemas; porque, ao final, os três se abrem e se constituem como dimensões
da intersubjetividade. Isto é assim porque os sujeitos estão imersos já desde sempre
em redes intersubjetivas, em múltiplas relações nas quais jogam a função de nós –
no sentido de M. Castells (2000, vol. 1) – viventes e materiais insubstituíveis;181
não existem campos nem sistemas sem sujeitos (ainda que se possa considerar um
sistema analítica e abstratamente como se não tivesse sujeito).

Esquema 16.01. Diversa extensão das categorias


Mundo > Campo182 > Sistemas183 e instituições > Ação estratégica
existencial. político. Factibilidade permanente. Factibilidade contingente.
Lógica Lógica Lógica da entropia Lógica do contingente
ontológica do poder (Nível B)184 (Nível A)

178 Ver de Pierre Bourdieu sobre o “campo” (1984; 1970; 1992).


179 Sobre Luhmann, ver Die Politik der Gesellschaft (2000) e Poder (1995).
180 A Lebenswelt não é o “onde” os sistemas colonizam e, sim, é o todo dentro do qual existem
sistemas componentes da própria “vida cotidiana”.
181 Vejam-se muitas definições sobre “subjetividade”, “intersubjetividade”, etc., em meu traba-
lho “Sobre o Sujeito e a Intersubjetividade” (Dussel, 2001, p. 319ss).
182 Há muitos campos em um mundo.
183 Há muitos sistemas e instituições no campo. Nesta obra, um sistema poderá incluir muitas
instituições. O sistema semanticamente tem maior amplitude que o institucional. Falare-
mos, por exemplo, de um sistema de instituições (por exemplo, o Estado). A instituição é
um micro- ou subsistema.
184 Em nossa terminologia, o “Nível C” será o dos “princípios implícitos” (capítulo 3 desta Seção
Primeira, que vigoram nos “níveis A” e “B”.

93
[268] Todo campo político é um âmbito atravessado por forças, por sujeitos sin-
gulares com vontade e com certo poder. Estas vontades se estruturam em universos
específicos. Não são um simples agregado de indivíduos e, sim, de sujeitos inter-
subjetivos, relacionados já desde sempre em estruturas de poder ou instituições de
maior ou menor permanência. Cada sujeito, como ator, é um agente que se define em
relação aos outros, isto é, exatamente, como pessoa. Pessoa não é a “substância indi-
vidual de natureza racional”, como a definia Boécio, mas a relação de um indivíduo
com outro: cada um é pessoa, rosto em relação ao Outro (Dussel, 1986). Não são
necessariamente relações de dominação (como opina Weber, embora possam sê-lo
e o são frequentemente). O mundo de cada um, ou o nosso, é composto de múltiplos
campos. Cada campo, por sua vez, pode estar atravessado por outros, assim como
o campo por diversos sistemas.185 O sujeito sabe como se comportar em todos eles;
tem mapas mentais para cada um deles; o que lhe valeu uma ampla aprendizagem
para mover-se dentro deles sem cometer erros práticos, do que não tem sentido desde
o horizonte hermenêutico de acordo com o que cada campo pressupõe.
Cada campo tem grupos de interesses, de hierarquização, de manobras, com
suas respectivas expressões linguísticas, simbólicas, imaginárias, explicativas. Po-
de-se fazer, então, uma topografia ou mapa das diversas forças nele localizadas em
relação às quais o sujeito deve atuar. Mas o campo não é somente um texto a ser
lido (como opinaria P. Ricoeur), nem símbolos a serem decodificados (S. Freud)
e nem imaginários a serem interpretados (Lacan, Žižek). São igualmente ações
postas com finalidades, repetidas em instituições e estruturadas em consensos,
alianças e inimizades. São estruturas práticas de poder das vontades e narrativas
a serem conhecidas pela razão prática intersubjetiva. O campo é este espaço polí-
tico de cooperação, de coincidências, de conflitos. Não é a estrutura passiva (do
estruturalismo) e, sim, um âmbito de interações, que não somente se distingue da
lógica mecânica cartesiana, newtoniana ou einsteiniana, mas se aproxima mais da
lógica da termodinâmica da teoria da complexidade, com relações bifurcadas (ou
plurifurcadas) de causa-efeito não lineares, sociais, políticas.
Embora tenha tensões, o campo mantém sempre certa unidade. Se a perdesse,
deixaria de ser um campo e se teria desgarrado em práticas meramente contradi-
tórias sem sentido. Nessa unidade existe certa agenda, certa atualidade de temas,
de questões e oposições mais urgentes, antagônicas. É preciso saber descobri-las
em cada caso. O conceito de shi na estratégia chinesa (traduzido por “potencial
estratégico”) recorta aproximadamente este tema.

185 Aceitamos em parte a crítica de Habermas contra Luhmann, no sentido de que este não é
suficientemente claro em definir o momento comunicativo ou discursivo do acordo político.
Mas a obra de Niklas Luhmann é sumamante útil para nosso tema, em especial Die Politik
der Gesellschaft (Luhmann, 2000) que deveria ser comparada com o conceito de estrutura
do poder em Michel Foucault.

94
Se no clamor e no tumulto conseguimos dirigir a desordem, não poderão confundir-
-nos; se no meio do estrépito e do caos conseguimos adotar uma disposição circular,
não poderão derrotar-nos. Da ordem nasce a desordem; do valor, a covardia; da for-
taleza, a debilidade. Ordem e desordem dependem da organização; valor e covardia,
das circunstâncias; fortaleza e debilidade, das disposições (xing) (Sunzi, 5, 2003, p. 138).

Todo campo está delimitado. O que fica fora do campo é o que não lhe compete.
O que fica dentro é o definido como componente pelas regras que estruturam as
práticas permitidas dentro do campo (que são os princípios, como veremos mais
adiante no capítulo 3 desta Arquitetônica). Os limites definem a superfície que fixa
a esfera do cumprimento normativo de seu conteúdo, diferenciando o possível do
impossível:186 “Estamos obrigados a dizer que o objetivo político da guerra está
situado realmente fora da esfera da guerra”,187 de maneira que, tanto o campo po-
lítico, como o da guerra, são diferentes e, não obstante, o ator pode cruzar de um
a outro num instante.
Seja-nos permitido um exemplo trivial. Se vinte e dois esportistas jogam uma
partida de futebol, trata-se de uma prática num campo esportivo e, portanto, devem
cumprir (normatividade do esporte), para serem tais, as regras deste esporte. Se
dois boxeadores, em outro campo esportivo: no quadrilátero, cumprem as regras do
boxe, triunfa o que acerta mais golpes contra o oponente, o “inimigo” esportivo,
que não é o “inimigo” total da guerra. De maneira sobressalente, triunfa o que
deixa sem consciência seu oponente de turno – não considerando aqui o lado an-
tiético deste esporte. Quer dizer, no boxe se deve vencer fisicamente o “oponente”
até deixá-lo “fora de jogo”. A intenção não é assassiná-lo (como os gladiadores no
circo romano). É, sim, deixá-lo indefeso, inerte e, portanto, vencido. Se, no caso
anterior, um jogador de futebol deixasse “fora do jogo” um “antagonista”, aplican-
do-lhe golpes, como no caso do boxeador, teria deixado de ser jogador de futebol
(ao ultrapassar o limite do “possível” dentro deste esporte, penetrando no que é já
“impossível” para ser um jogador de futebol), mas não seria, por isso, um boxeador,
mas receberia, segundo a regra do futebol, uma pena pela infração. Se insistisse
em golpear o adversário, então teria deixado de ser esportista, teria ultrapassado o
limite do campo esportivo, e desde o campo político da vida cívica, seria agora neces-
sário chamar a polícia para que fosse tratado como simples infrator da lei, já que
estaria agredindo outro cidadão. Teria ultrapassado o limite do campo do esporte
e se situado num campo político.

186 Se trataria, em outro sentido, do que se indica, por exemplo, quando “analisando a sociedade
burguesa em termos de possibilidade, Marx a declara impossível” (Hinkelammert, 1984,
p. 22). Por ora, o “impossível” é aquilo que supera o horizonte do campo e o transforma em
outra prática.
187 K. von Clausewitz, Da Guerra, L. 1, cap. 2 apud Clausewitz, 1999, p. 26.

95
[269] Repetindo: em que se diferenciaria o campo político dos outros campos
práticos? Em que consiste “o político” do campo político? Para isso, seria neces-
sário entrar no “círculo hermenêutico” por algum interstício, para ir clarificando
as determinações essenciais, sabendo que dito ponto de entrada pressupõe todas
as outras determinações não analisadas ainda e cuja exposição orienta toda esta
obra de Política da Libertação, porque nela, até o último capítulo diacronicamente,
analisaremos ditas determinações que definem “o político”. Mas, para poder captar
seu conceito, por exigência lógica, se deveria reunir todas as determinações neces-
sárias, num número mínimo possível, isto é, as suficientes. Não nos será tão fácil,
como os autores que nos propõem uma visão redutiva do político (expostas no §
13.2), pretender uma descrição com alguma determinação do que se quer expor
como essencial do político. O único que se consegue é cair em unilateralidades do
fenômeno do político que é muito mais complexo sincrônica (na Arquitetônica) e
diacronicamente (na Crítica).
O campo político, por um lado, a) encontra-se atravessado por forças, está
como que “cheio” de relações que o estruturam (como um “campo minado”, como
se fosse um “campo magnético”, ou como uma rede que tem inumeráveis nós, onde
as cordas que a formam se cruzam e se asseguram reciprocamente);188 mas, por
outro, b) se observa como que um “vazio” (como a rede do pescador que pela manhã
ainda não aprisionou o que pescará ao entardecer189). Os pontos onde se tocam as
relações da estrutura, os “nós” da rede (diria M. Castells) ou os “corpos” intersub-
jetivos dentro do campo de forças (como sugere Foucault), são os agentes funcio-
nais, os atores que representam seu papel no teatro, no campo político, na ágora ou
foro, onde os cidadãos participantes da assembleia, desde Tiro ou Sídon, no demos
egípcio, ou grego depois, em Atenas junto à Acrópole, cumpriam retoricamente as
ações daquele “vivente” que habita a cidade [helênica] (zóon politikón). Campo sem-
pre precário constituído pelas redes ou estruturas cambiantes de “poder”; relacio-
nado com outros campos, entre eles o campo econômico de relações de produção
e distribuição de bens, o campo social das classes que inevitavelmente intervêm
por seus efeitos próprios no campo político e, por isso, campo minado, já que em
qualquer momento cada ponto pode explodir em múltiplos conflitos de interesses
particulares. É um campo pragmático e retórico, linguístico, como “teatro”, onde
se “atua” – como faz o artista ou o ator diante de espectadores atuais ou virtuais.
“Campo” político que se amplia quando se dão as condições (vigência plena dos
princípios ou marcos referenciais adequados), onde a comunidade ganha maior

188 Tal é a ideia de Foucault.


189 Sobre o “vazio” do campo político considere-se a posição de Ernesto Laclau. Ver mais
adiante no § 17.1; no § 38, na Crítica sobre o povo; e no capítulo “Povo e hegemonia: uma
conversação com Ernesto Laclau” (Dussel, 2001, p. 183-220).

96
consciência da importância do político ou, pelo contrário, que se estreita até desa-
parecer (como nas ditaduras totalitárias, que são o exercício fetichizado do poder,
a corrupção do político, porque sua ação é meramente tecnocrática, repressiva,
militar, devastadora do político como político190).
Quando o “campo” político é atravessado pela dominação, muda progressiva-
mente de natureza, até se converter num campo de guerra ou do cálculo de uma
engenharia técnico-instrumental. Ter-se-ia passado a outro tipo de ação ou insti-
tuição que é politicamente “impossível” (como política). Ter-se-ia ultrapassado a
“linha” do politicamente “possível”. Esta ação, que já é resultado da corrupção da
política, pode ser certamente de outro tipo; pode ser uma ação puramente violenta,
dominadora e negadora extrema da autonomia, da liberdade ou simplesmente da
vida do Outro. A ação violenta que exclui o Outro é irracional e injusta; é a negação
da fraternidade e da racionalidade prática; é suicídio coletivo.
Quando nos referimos a este “campo” político, o fazemos tomando este espaço,
no qual os atores políticos atuam publicamente enquanto políticos – em primeiro
lugar, o sujeito político propriamente dito: os cidadãos (como potentia) e, em se-
gundo lugar, os representantes dos cidadãos nas instituições políticas (como potes-
tas). Isto supõe que os participantes do campo respeitem a disciplina mínima que
isto prevê. Nos clãs primitivos do neolítico, exterminavam-se outros clãs; era a
guerra. A sobrevivência ensinou a tolerar outros grupos para poder fazer alianças
e pactos. Nasceu um campo político, onde as relações se racionalizam praticamente,
graças à razão estratégica – para conseguir objetivos – e à razão discursiva – para
obter consensos. Se a vontade é o querer viver e o poder é o poder-pôr as mediações
para a permanência e o aumento da vida, graças à razão estratégico-discursiva o
campo político se constitui como um espaço do exercício delegado do poder disci-
plinado, racionalmente: humanizado.
Bourdieu (1970) utiliza a categoria hermenêutica de campo, em seu estudo
sobre a biografia intelectual de Martin Heidegger191. Isto lhe permite, metodologi-
camente, explicar a posição do grande filósofo alemão da primeira parte do século
XX, tomando como referência três campos: o político, o universitário e o filosófico.
Assim, pode mostrar, no campo político, a crise da República de Weimar e o cami-
nho para o nacional-socialismo; este último é um populismo do “centro” metropo-
litano (diríamos nós), conservador de direita, que se apoia na burguesia nacional
(antijudia). Igualmente, analisa, no campo universitário, como nesta instituição de
ensino se havia instalado uma rançosa e decadente oligarquia acadêmica, em boa
parte repetitiva e desprovida de alento renovador, ausente do que acontecia no
campo político, cultural e artístico. No campo filosófico, reinava um neokantismo

190 Ver a obra Origens do Totalitarismo (Arendt, 1974).


191 Na obra citada de Bourdieu (1970).

97
teórico, sustentado por professores reconhecidos, como no caso de um E. Cassirer
ou da Escola de Marburg, com Hermann Cohen, que mantinham a hegemonia do
discurso. Recorda-se que, no encontro de Davos, entre os respeitáveis acadêmicos,
entrou na sala um homem pequeno, vestido quase como um aldeão e com aspec-
to mais de empregado de hotel do que de participante. Era o jovem e já famoso
professor M. Heidegger. Bourdieu o chama, com um pouco de condescendência,
“revolucionário conservador” – enquanto que Michel Löwy (1997) poderia deno-
miná-lo um “romântico conservador” –, procedente de uma humilde família popu-
lar suábia, de um ambiente católico, que apreciava o popular camponês da Floresta
Negra, que, como os românticos, se opunha à Modernidade e, como conservador
“desde o passado” (como católico desde a chamada Idade Média e, quando univer-
sitariamente seculariza sua narrativa, se apresentará como “retorno” aos gregos),
rompe com o estilo e a língua das lições universitárias (que escreveu seriamente,
sempre, todas, com sua máquina de escrever Remington), que entusiasma os es-
tudantes e abre caminho criativamente numa posição ontologicamente sui generis.
Acreditou poder utilizar o partido nazista como instrumento para seu projeto
teórico de renovação no campo universitário, mas, ao final, ficou enredado no campo
político em posições com as quais simpatizava (e, por isso, nunca pôde negá-las) e
não conseguiu realizar nada de significativo no campo universitário, ainda que
tenha alcançado verdadeira notoriedade no campo filosófico (nível no qual conse-
guiu expressar de maneira apaixonada uma complexa construção textual do que
acontecia nos outros campos, e do qual o próprio Heidegger não podia dar conta
acabada do seu êxito). Magnífica demonstração metodológica, de Bourdieu, da
maneira como três campos se articulam e se cruzam em complexíssima estrutura.
[270] Para terminar de indicar ou, melhor, de sugerir o tema, é preciso acres-
centar que iremos preenchendo de conteúdo a categoria de campo ao longo da
exposição deste livro. Por ora, pretendemos simplesmente recordar uma nova de-
terminação apontada por um comentador da obra de Bourdieu e que é como uma
ponte para o próximo parágrafo:

Após ter estabelecido a exterioridade do campo como instância autônoma, Bourdieu


se esforçou por mostrar de que modo o campo se encontra apropriado, interiorizado
pelos agentes, e chega até a fazer sua a noção de inconsciente cultural que, considerada
como um aspecto do habitus,192 apresentava a vantagem de parecer conciliar os opostos,
o exterior e o interior, o coletivo e o individual (Pinto, 2002, p. 80).

192 Bourdieu chama habitus os comportamentos culturais e biográficos inscritos na persona-


lidade do agente de um campo em relação à função que cumpre nele. Cada função dentro
do campo exige certas práticas que se tornam habituais nos agentes. As instituições são, em
última instância, estes hábitos levados à prática cotidianamente.

98
Talvez, um neurólogo poderia observar que um campo de práticas, no qual in-
tervêm muitos atores, tem como referência no cérebro humano milhões de grupos
neuronais que constituem mapas. O campo é, cerebralmente falando, um mapa
de muitos mapas, que unifica o espaço (neuronal, intencional) de práticas, léxico,
memorização de comportamentos, avaliação de mediações, de comportamentos
em sistemas, etc., e que se ativa em sua totalidade quando, por exemplo, alguém
expressa a palavra política ou quando empreende uma ação política em qualquer
nível que seja ou ao entrar numa assembleia de representantes num parlamento.
Esta atualização neuronal, em vigília e com ressonâncias inconscientes, afetiva,
racional e linguística, em torno a tudo o que tenha relação ao poder da vontade
(como fraternidade, exercício, resistência, passividade, agressão, etc.), de cada um
e em relação às outras vontades acordadas, é o que denominaremos inicialmente
campo político.

Esquema 16.02. O sujeito (S) é ator em diversos campos (A, B, C, D, N)


S

Esclarecimento ao Esquema 16.02. Os campos representados aqui como círculos em perspectiva


deveriam ser imaginados melhor como esferas. Como superfície circular não são meramente pa-
ralelas umas às outras, mas, se entrecruzam em infinitas possibilidades de articulação orgânica,
vivente, não mecânica. A esta complexa articulação dos campos entre si seria preciso agregar que
os sistemas constituem (como, por exemplo, um sistema político liberal) ou atravessam (por exemplo,
um sistema econômico) os campos. No esquema, somente se está representando que os sujeitos (S)
não se esgotam num campo (por exemplo, em A), mas que guardam sempre certa Exterioridade em
relação a cada um e a todos em seu conjunto.

99
2. A intersubjetividade entre o “público” e o “privado”. Do “sujeito” ao
“ator”
[271] Para poder descrever o campo político como político, será necessário
analisar sucessivamente algumas de suas determinações fundamentais. Nenhu-
ma delas, exclusivamente, pode permitir captar o conceito do político, e a lista
se torna ilimitada (porque se descobrem novas dimensões do político histori-
camente). Uma delas – sem pretensão de poder ter, então, uma visão completa
ou sistemática, embora, sim, arquitetônica mínima, mas sem últimas instâncias
para não cair em reducionismos, ainda que articulando ditas determinações se-
gundo conveniência na análise de objetos construídos complexos, concretos – é a
bipolaridade privado-público,193 sendo este último momento uma determinação
do campo político.
Nas cidades gregas, eu mesmo o observava há pouco em Éfeso, existia o grande
teatro para a representação pública das tragédias; e sempre havia, como um teatro
menor, a ágora, onde os membros representativos da pólis decidiam em público e
retoricamente os destinos da comunidade. A ágora, no helenismo, e o fórum, no
romanismo, eram os espaços públicos por excelência, embora com muito menor pú-
blico do que no teatro. Ali podiam ser vistos aqueles cujas vontades e argumentos
práticos consensuais podiam ser reclamados pelos cidadãos.
Esta complexa organização do público tem sua história e depende também de
uma genealogia da subjetividade. Com efeito, é o que se percebe quando E. Hus-
serl se pergunta na famosa meditação V de suas Meditaciones Cartesianas ditadas
em Paris, em 1930:

Mas, o que são então os Outros egos? Não pareceria que sejam simples representa-
ção (Vorstellung) e objetos representados em mim (in mir), unidades sintéticas de um
processo de verificação que se desenvolve em mim mesmo e, sim, pelo contrário, [são]
Outros (Andere) (Husserl, 1963, p. 121; 1931, p. 75).194

Husserl não pôde solucionar o problema (tampouco chega à sua resolução


Heidegger com o neutro Mit-sein) e Levinas dedica toda a sua vida a clarificar e

193 “O público” vem do latim. Publica significa as “rendas do Estado”; publicare (como verbo), por
sua vez, é “confiscar adjudicando ao fisco um tesouro comum”; publicum significa o tributo, o
subsídio, e o lugar ou território onde se coloca o comum do Estado. Dali, a res publica (no geni-
tivo rei publicae) são os “bens da comunidade”, em primeiro lugar e, por extensão, todo o comum
à comunidade, os lugares das ações comunitárias. Havia uma res divina (as coisas dos deuses,
o culto), res familiaris (da família), res forensis (questões jurídicas), res romana (o exército), etc.
Em espanhol, o “público” é o “sabido e visto por todos” (Moliner, 1992, II, p. 876). Observe-se
a importância do visto (relativo ao “ante os olhos”); o não-visto, porém, não é o privado.
194 Cartesianische Meditationen, V.

100
desenvolver a questão.195 Mas o mesmo Levinas não entra na temática da intersub-
jetividade, embora abra o horizonte deste problema. A subjetividade se identifica
com a corporalidade humana; a experiência “da pele para dentro” (desde um ponto
de vista físico, neuronal, psíquico, intencional) é o âmbito da subjetividade.196

Esquema 16.03. A intersubjetividade sustenta a subjetividade diante da objeti-


vidade

a Comunidade e

Subjetividade Objetividade pública

b Intersubjetividade d

A subjetividade (o eu, o consciente, o inconsciente, etc.) tem sua constituição


intersubjetiva, já que se dá desde sempre entre relacionamentos humanos (o pai,
a mãe, a grande família, o bairro, a escola, etc.); determinações relativas expressas
pela flecha a. O sujeito é constitutivamente intersubjetivo (por exemplo, no com-
plexo de Édipo, momento fundante do imaginário singular, que condiciona em
parte suas pulsões e a constituição de sua própria mesmidade psíquica). Por sua
vez, os sujeitos como participantes na comunidade (flecha b) “põem” instituições
intersubjetivas que obrigam todos os seus membros no âmbito da objetividade
pública (d), independentes desde este momento, de certa maneira, da vontade
monológica dos agentes. Estas instituições objetivas (o sistema do direito, econô-
mico, administrativo, familiar, educativo, etc.) organizam e determinam históri-
ca e empiricamente todos os momentos da intersubjetividade (e); constituem, ao
mesmo tempo, a subjetividade social de cada um de seus membros (novamente a
flecha a, que se enrosca em outro círculo como uma espiral crescente). Uma família
autoritária, mostrava-o M. Horkheimer em seu conhecido estudo sobre o tema,
educa também o cidadão passivo, resignado, que se predispõe a aceitar um regime
totalitário. A objetividade das instituições (e também suas narrações mítico-sim-
bólicas) jogam uma função constituinte da subjetividade dos agentes: são como o
inconsciente social do inconsciente singular. Por isso, J. Lacan pôde dizer que “o
inconsciente é o Outro”. A subjetividade que estrutura seu imaginário e a ordem
pulsional concreta de cada um (em sua normalidade ou patologia) tem a função de

195 Ver discussão deste tema em Dussel (1973, I, cap. 3); Dussel (1977), na primeira parte: “Da
fenomenologia à libertação”; e em Dussel (1998, § 4.4).
196 Vejam-se ao final desta obra as teses incluídas no Apêndice I, “Sobre o sujeito e a intersub-
jetividade”, publicadas em Dussel (2001, p. 319-334).

101
constituir por sua parte os agentes objetivos, aos que disciplina pela educação para
poderem ser os que exercem como atores as instituições objetivas. Até que ponto a
intersubjetividade não é o horizonte mesmo da objetividade e vice-versa? Até que
ponto é real que a subjetividade seja o exterior à objetividade (como os sujeitos de
Luhmann) e a objetividade seja o interior à intersubjetividade (como o demonstra
Freud ou Lacan)? Por isso, aquilo que a ordem do direito é como “o exterior” em
Kant é somente em parte verdade. O exterior das instituições objetivas é interior
à cultura, à intersubjetividade, à comunidade (em cada caso de maneira diversa).
Agora, podemos tocar um dos temas centrais do político. A distinção entre o
privado e o público. O tema já é frequentemente tratado desde um campo político
historicamente determinado. Hannah Arendt parte da pólis grega para mostrar a
diferença entre o privado e o público. Efetivamente, a ágora dos gregos ou o fórum dos
romanos são, como temos afirmado, lugares “públicos” por excelência, mas isto não
mostra e, sim, oculta, desde a determinação do público já dado, o sentido da questão.
[272] O privado e o público são graus diversos da intersubjetividade. Têm algo
em comum, que são modos do sujeito de encarar os objetos e os outros membros
da comunidade. Ambos são intersubjetivos. Não se pode dizer, por exemplo, que
a dor seja privada – como o sugere H. Arendt197 –; a dor é o meramente íntimo,
incomensurável, incomunicável, mais além do privado e do público. O privado é
também uma experiência intersubjetiva porque, embora não-pública (algo que
acontece no interior do lar, por exemplo), se experimenta de alguma maneira entre
vários sujeitos ou por um só sujeito que não pode deixar de considerar-se como
outro, no dizer de Paul Ricoeur (1990).
Desta maneira, temos agora uma categoria de mediação entre o “privado” e o
“público”. Ambas as posições da subjetividade são modos diversos do exercício da
intersubjetividade. Existe um modo privado de exercer a intersubjetividade (que
nunca, como já indicamos, nem mesmo somente consigo mesmo no secreto de
um lugar isolado longe dos olhares dos outros, é meramente solipsista, mas, ao
menos, é um modo monológico de viver virtual e inevitavelmente a intersubjetivi-
dade, como diálogo consigo mesmo “como outro”) que deve distinguir-se do modo
público do manifestar-se do singular. Por isso, o “público” não será imediatamente
“político” – como pareceria exigi-lo H. Arendt –, mas, dentro do amplo espectro
de possíveis posições intersubjetivas e entre as práticas que se jogam nas “esferas
públicas”, poderemos distinguir algumas como não-políticas (por exemplo, os es-
portes de massas são públicos, mas não políticos), em relação às quais será necessá-
rio saber delimitar o campo mais restrito e preciso do público-político. De todos os
modos, pensamos, o público-político é o por excelência (kath’exokhén) público, como
veremos; o que não impede, conforme já assinalado, que haja âmbitos públicos que
não sejam políticos.

197 A Condição Humana, cap. 2 (Arendt, 1958, p. 22ss [ed. esp. 1998, p. 37ss]).

102
Em geral, quando se trata da questão, não se recorre à mediação categorial su-
gerida. A subjetividade humana (desde sujeito como consciência em vigília ou in-
consciente, até sua corporalidade visceral material mesma) está constituída, desde
sempre, já a priori como intersubjetiva. A intersubjetividade não é um momen-
to posterior e acrescida a uma mera subjetividade solipsista, singular e primeira,
desde a qual se parte na construção de uma engenharia do social. Pelo contrário, a
subjetividade monológica (não digo já solipsista, que seria seu defeito) é constituí-
da desde uma gênese passiva intersubjetiva. Com isto se quer indicar que o “eu”, o
“si mesmo”, a consciência na vigília, a “corporalidade”, e também o “ser-no-mundo”
como momento ontológico da subjetividade, já são sempre a priori e, como pressu-
posto constitutivamente, momentos de uma trama intersubjetiva dentro da qual
a própria subjetividade emerge. Desde um ponto de vista biológico, nascemos em
alguém (no útero materno: relação intersubjetiva primeira); somos alimentados
desde alguém e com alguém (mamamos do seio materno e em sua relação afetivo-
-corporal originária); somos acolhidos na estrutura sistêmica de uma língua como
lugar cultural da organização primeira do nosso cérebro, como membros de uma
comunidade linguística de comunicação; nosso inconsciente vai se povoando de
possibilidades com sentido, desde a presença memorizada da agência dos outros
que nos rodeiam num “nós” desde a primeira infância (a mãe, o pai, os familiares,
os próximos, etc.). Todos estes momentos não são meros conteúdos externos ma-
nipuláveis por uma subjetividade solipsista não comprometida, mas são os mo-
mentos mesmos constitutivos desde onde a subjetividade existe e opera como tal.
A intersubjetividade é, assim, a) um a priori da subjetividade (está como um
momento constitutivo anterior, gênese passiva); b) ao mesmo tempo, é o horizonte
da trama onde se desenrola a objetividade das instituições dentro das quais nos mo-
vemos (é o contexto da existência, a ação e o sentido); e, por último, c) outros sujeitos
nos enfrentam, aparecendo como Outras/Outros no nosso mundo, como outros
atores exigidos para cumprir as diversas funções sistêmicas nas quais estamos com-
prometidos, sendo que nossos atos são respostas a expectativas que, como veremos,
nos obrigam a atuar, de certa maneira, institucionalmente. Mas a intersubjetividade
não é reproduzida, nem somente nem principalmente, neste terceiro momento de
enfrentar os Outros/Outras em nosso mundo. Antes, este enfrentamento se torna
possível desde uma trama anterior que o antecipa e o torna possível: a subjetivida-
de humana, afetável em sua sensitividade e em posição hermenêutica dentro do
mundo, já intersubjetiva desde sua constituição passiva (quer dizer, sendo o Outro
parte da subjetividade constituída198), se faz ativa, se assume de uma e outra maneira,
quando o Outro/Outra aparece em sua posição comunitária objetiva.

198 Quero indicar uma e outra vez que o Outro (o pai, a mãe, os familiares, os atores sociais) é
já um momento da subjetividade.

103
Se pudéssemos exemplificar os dois polos mais opostos do privado e do públi-
co, indicaríamos dois casos exemplares muito precisos. No plano da corporalidade
humana erótica em que, como nos sugere Levinas, o privado é, por excelência, o
que acontece na obscuridade, sem a presença da luz do “ser-diante-dos-olhos”,199 o
que acontece no face-a-face da carícia, essência do erotismo,200 só os amantes, sem
presença alguma de estranhos, no segredo do “lar” – embora fosse uma caverna ou
um nicho sobre as árvores protetoras dos perigos noturnos primitivos –, no leito
silencioso – onde as palavras sobram –, junto ao calor do fogo – o “lar” do qual
estamos falando – se cumpre o “privado” prototípico. Esta intimidade do “Que me
beije com os beijos de sua boca” (do Shir ashirim) é o “privado”, em relação ao qual
todas as demais relações intersubjetivas vão lentamente se encaminhando para o
“público”. Contudo, poderia parecer que o estar só, o contemplar-se diante de um
espelho no “cuidado de si” – como diria Foucault –, pudesse ser o mais íntimo.
Mas, de certa forma, estar só não é estar na intimidade, mas no solipsismo. É ver-
dade que sempre se deve respeitar este direito à solidão solipsista. Mas a relação
erótica que descrevemos antes situaria os amantes na vergonha, em poder “ser
surpreendidos”, num certo ultraje à sua privacidade, ao serem postos em risco de
aparecer de improviso em alguma esfera pública (por exemplo, no caso de filmar
esta relação, espiando-a sem a permissão dos amantes, com o propósito de ser vista
por outros, que é a essência fenomenológica do público). Este ultraje se vive como
uma violação à privacidade, ao privado. Mas não é ainda o privado político.
Um segundo exemplo, o extremamente longínquo ao anterior e agora sim com
H. Arendt, seria o fato de estar se vendo mutuamente, numa assembleia política,
onde os representantes da comunidade argumentam, discutem, manobram numa
esfera do extremadamente exposto aos olhares, aos ouvidos, à consideração de
todos, não somente dos outros membros da assembleia, mas também dos repre-
sentados. Ali, o “público” é o momento que determina um tipo extremo de inter-
subjetividade: o ser ator (no duplo sentido de exercer uma “ação”, mas também
de “atuar”, cumprindo o papel de um personagem “diante-dos-olhos-dos-outros”,
num teatro não artístico e, sim, político, que não é já idêntico ao sujeito “consigo-
-mesmo”, mas exposto “diante dos outros”). No Senatus, Cícero não “atuava” da
mesma maneira que em seu lar doméstico. Que o público por excelência seja o
momento da discussão legislativa dentro das instituições políticas não significa
que o público seja o político; porque podem haver ações públicas (religiosas, espor-
tivas, etc.) que não são política. Mas, pelo contrário, não existe ação política que
não seja pública ou que não a seja virtualmente (ou que deva se fazer pública diante
de qualquer requerimento justificado).

199 Ver Doumcast Eyes (Jay, 1994).


200 Ver O Erotismo (Bataille, 1957).

104
Com efeito, entre ambos os extremos indicados (o fato dos amantes e a as-
sembleia política dos representantes) há uma infinita gama de posições intersub-
jetivas, entre as quais, algumas que são privadas começam a perder tal sentido
e, lentamente, vão se transformando em públicas. E vice-versa: algumas públicas
começam a se transformar em privadas. O limite não pode simplesmente se referir
ao direito (por exemplo, direito privado ou público) ou a instituições existentes (as
chamadas instituições públicas ou privadas), mas é necessário delimitá-las em suas
primeiras determinações fundamentais, desde seu sentido cotidiano, desde uma
descrição fenomenológica, e desde o sentido comum.
[273] Denominar-se-á privado o agir do sujeito numa posição intersubjetiva tal
que se encontre protegido da presença, do olhar, de ser ouvido, dos outros membros
dos múltiplos sistemas intersubjetivos dos quais faz parte. Seria uma prática externa
ao campo político, como ator de outros campos. Na relação privada, há sempre partici-
pantes (ao menos dois) que não fazem a relação perder seu caráter de privada. São os
participantes da esfera dos “próximos”, dos “nossos”, dos “próprios”, dos “habituais”,
dos “familiares”. Por isso, sistêmico-institucionalmente, com frequência, se fala da
família, dos que se encontram “para-dentro” das paredes do lar; paredes que nos
separam do “estranho”, do “alheio”, do “exterior”: dos “elementos”, do “perigoso”, que
deve haver aterrorizado o ser humano nos tempos primitivos (e a todos os viventes),
nas noites em que o “inimigo” rondava na escuridão como a morte devoradora e
castradora sempre possível. Entre a desejada escuridão dos amantes e a temida escu-
ridão dos inimigos possíveis, se estabelece certa cumplicidade no íntimo, no privado.
Porque a obscuridade do “perigo-externo” não é “público” e, sim, o perigoso visto
“desde dentro”: desde o privado posto em perigo, desde o temor de perder o gozo
libidinal, inconsciente, da corporalidade incomunicável. O inimigo possível noturno
é também o inconsciente culpável que ronda a privada escuridão do leito.
É evidente, de todo modo, que a subjetividade necessita do privado, da privaci-
dade para reproduzir e desenvolver sua vida em comunidade; para constituir sua
própria subjetividade; para viver uma intersubjetividade não patológica, sadia, aber-
ta à alteridade. O comer, o dormir, o amar, o pensar em sossego... são aspectos pri-
vados, reconstituintes, gozosos. Na pedagogia do lar privado, se geram os membros
da cidade; a pedagogia determina a política, e vice-versa.201
O autoritarismo na família é presságio de autoritarismo público na escola, na
prisão, na clínica psiquiátrica (como ensina M. Foucault), a violência no esporte,
na política totalitária (como a analisa H. Marcuse em Eros e Civilização). São graus
irracionais de intersubjetividade que passam imperceptivelmente de um campo
para o outro.

201 Em nossa Ética dos anos setenta (Dussel, 1973, vols. 3-5), mostrávamos este cruzamento da
pedagogia-política através da erótica: a criança do lar é o cidadão da assembleia e a criança
da escola pública é o futuro pai ou mãe da família erótica.

105
O público, então, se separa do privado, por um limite difícil de fixar e sempre
móvel. É a esfera na qual a subjetividade do sujeito “aparece”, se “manifesta” nos
complexos cenários dos teatros (também no sentido de “representar”: como quando
o “ator” representa um papel) intersubjetivos, nos diversos “campos”. O sujeito perde
algo de sua espontaneidade, de sua imediaticidade, perde a exposição simples do
que vive naturalmente sua existência, sem a responsabilidade de “desempenhar um
papel”. Por isso, o privado “descansa” da tensão constante, inevitável e, não obstan-
te, autêntica (pode ser também inautêntica) do “atuar” em ditos teatros. Esta perda
de espontaneidade investe o sujeito de certa e inevitável máscara que começa a esbo-
çar-se, por exemplo, desde o se pentear no espelho privado de um banheiro como
cuidado de si, quando se perguntar a si mesmo: “estou adequadamente penteado
para este encontro?”. Quer dizer, a subjetividade ainda em posição privada observa
sua própria corporalidade, reflete sobre si própria como “autora” de um possível
papel intersubjetivo em posição pública num certo “campo” (seu olhar judicativo
antecipa o juízo dos outros: dos possíveis participantes de uma esfera pública na qual
se integrará pouco depois). Este “olhar-se como sendo visto” é o modo natural da
subjetividade que, de certa maneira, nunca pode ser meramente uma pura e total
subjetividade solipsista: um ver-se no espelho como um mero si mesmo.
O sistema político egípcio (já no tempo das primeiras pirâmides, que nos falam
de um Juízo final para outorgar a vida eterna pela ressurreição dos mortos mediante
um veredito) inventou um “mito político” intersubjetivo exemplar, o mito de Osíris,
pelo qual introjetou a “esfera pública” na consciência normativo-subjetiva de cada
membro do campo político (até na do mais simples camponês do Nilo). Trata-se
de uma narrativa que define a função da consciência normativo-política em nume-
rosas culturas posteriores – as semitas, cristãs, muçulmanas, na medieval latina e
moderna, entre outras. Quiçá seja o mito político mais impressionante da história
mundial. Coloca à consciência política monológica do sujeito, até no caso de um ato
privado e secreto, um momento da racionalidade prática que recrimina o agente,
que está sempre sendo “observado pelo olhar perscrutador e inevitável do deus” e
desde o “ juízo final: de toda a humanidade”. Este “ver” na privacidade-pública é re-
presentado por um “olho”, que é o hieróglifo que significa Osíris nos textos egípcios
(e na nota de um dólar norte-americano no cume de uma pirâmide egípcia). O ator
político egípcio tem sempre virtualmente presente a balança que mede todas as suas
ações, neste juízo multitudinário da grande sala de Ma’at (a futura Moira grega)
onde, em público, se julgarão seus atos secretos como justos ou injustos. Este mito,
cujos testemunhos nos chegaram no Livro dos Mortos e nos Textos das Pirâmides,
que introjeta elementos na consciência normativa intersubjetiva (como um Über Ich
de Freud), impede o ator político de reter exclusivamente para si uma esfera privada
fechada, absoluta, por encontrar-se sempre ante a responsabilidade de justificar suas
ações, diante de si mesmo, como antecipação da defesa da retidão delas diante do

106
deus juiz, Osíris: o público perfeito, absoluto, divino, sempre virtualmente presente
em cada ato. Em torno a este mito, se organizava de tal maneira o cumprimento
das exigências do Estado egípcio (que Samir Amin assinala ser o primeiro na histó-
ria mundial), que é difícil imaginar um relato mítico de maior efetividade política.
A intersubjetividade do ato privado é sempre julgada desde a intersubjetividade
pública como horizonte último e, não obstante, cotidiano. O sistema faraônico in-
teriorizou o juiz do sistema dominante e público na consciência privada, o que lhe
permitiu poupar muitas ações policiais na perseguição das injustiças públicas. A
lei (pública) passa à esfera intersubjetiva (também dos atos privados), com o que o
público ganha em efetividade e participação (normativa) dos membros do sistema
político. Não havia escapatória para o ocultamento; tudo seria sabido; e era neces-
sário, em consequência, não agir de maneira contrária ao mandado pelos deuses,
pelas exigências da ordem política vigente. Era uma interiorização intersubjetiva (até
no foro privado) da objetividade público-política: a mera legalidade se transforma
na normatividade legítima comunitária (não se enche de conteúdo só pela moralidade
privada kantiana202), garantida pelos deuses.
[274] Será preciso, de qualquer modo, distinguir entre o privado solipsista
(e seria a mera moralidade) e o privado comunitário (e seria uma eticidade com
conteúdo material, que fundamenta a fraternidade – que é, em princípio, sempre
privada – e a solidariedade – que é crítico-alterativa e, por isso, começa também a
ser praticada na esfera privada).
O público é o modo ou determinação que transforma a mera intersubjetividade
privada numa subjetividade em posição de ocupar um lugar num “campo com ou-
tros”, investida de uma função de “autora” cujos “papéis” ou ações se “representam”
diante do olhar de todos os outros atuais ou virtuais atores; papéis definidos desde o
relato ou narrativa fundante (o livreto completo) de um certo sistema social (por
ora, completamente indeterminado). “Entrar” num “campo político” é “sair” de
uma esfera privada (privacidade onde deixa de se dar a cenografia do “teatro”, do
ser ator e do cumprir papéis; ainda que os tenha, de alguma maneira, na esfera
privada203). Da mesma maneira, se pode “sair” de uma esfera pública para “entrar”
em outra, ou novamente regressar à esfera privada. Logo, há “limites”, “linhas”

202 O desafio atual é não perder a normatividade do mito de Osíris, nem cair na mera legalidade
kantiana, desde uma posição que racionalize praticamente a normatividade intersubjetiva
do público também com conteúdo, que não devem ser somente os valores políticos (particu-
lares e culturais por definição).
203 O filho ou a filha sabem muito bem o “papel” que lhes corresponde na esfera privada da
família, e não o confundem com o do pai ou da mãe, dos avós ou vizinhos. A diferença es-
triba no grau de “grave teatralidade”, isto é, no peso, como mérito, castigo e objetividade da
coação, ao cumprir as práticas que as expectativas definem como papéis. Contudo, devemos
indicar que o público não deve ser confundido com o âmbito do institucionalizado e, muito
menos, com a “opinião pública”, por exemplo.

107
que continuamente estão sendo atravessadas, sobrepassadas, transplantadas, en-
trecruzadas, como cumprimento das regras ou como transgressões. A definição
destas “esferas” ou “campos” deve se diferenciar dos sistemas sociais – no sentido
de N. Luhmann –, já que, por ora, são os “lugares” (virtudes) destes sistemas. É
evidente que o menos sistêmico e institucionalizado de todos os âmbitos intersub-
jetivos é a esfera da vida privada – mas é, sempre e de todos os modos, sistêmico
e institucionalizado.
De fato, entre os dois extremos indicados da intersubjetividade (entre o leito
dos amantes, o pudor que os deuses deram aos humanos indicado em Platão, e a as-
sembleia dos representantes, a justiça), há campos com diferentes graus de institu-
cionalidade. O leito dos amantes é o menos institucionalizado (embora não faltem
regras culturais do erotismo, sem as quais não haveria o prazer da transgressão,
como nos diria Bataille), enquanto que a assembleia dos representantes políticos é
o institucionalizado kath’ exokhen (disso, por exemplo, a ritualidade do primeiro
parlamento moderno: o britânico, que, em certas cerimônias, até continua usando
as perucas). Efetivamente, o público-político joga um papel bem definido entre
todas as esferas ou campos públicos. Uma fábrica têxtil pode ser definida como
uma instituição de direito privado, mas, fenomenologicamente, é uma instituição
econômica que, de alguma maneira, se move na esfera pública. Um chefe ou uma
chefa deve saber guardar a “distância” idônea de seus empregados. O campo eco-
nômico tem uma especificidade própria, e o público dentro de uma empresa joga
o qualificativo de privado com respeito ao político. Em troca, o campo político, e
seus sistemas respectivos, tem uma metaespacialidade virtual: são metassistemas
práticos que se relacionam com os restantes campos desde uma esfera pública in-
vestida de seu caráter específico. O que de político tenha o campo público-político
(as ações estratégicas, as instituições e seus princípios implícitos) é objeto da Ar-
quitetônica desta obra. Por ora, deixemos anotado somente que este campo político
é aquele no qual o público alcança o máximo de “publicidade”, de “ostensibilidade”,
por jogar uma certa representação da comunidade como um todo. O representante
se faz presente em nome de outros (aos que re-presenta: se “presenta” por e em
nome de “outros”). Estes “outros” re-presentados observam o re-presentante como
o que fala em seu “lugar”. Se não o faz como o desejariam, repudiam-no como um
re-presentante (ator) não idôneo; por isso, o observam, o avaliam, o analisam e o
consideram desde diversos pontos de vista; interpretam seus mínimos gestos para
poder julgar praticamente se “ joga bem seu rôle” (a re-presentação, teatralização
de um “papel”, de certa maneira, alheio: o dos Outros). A ostensibilidade (o mostrar
na singularidade sincera e própria do re-presentante a universalidade consensual
dos interesses dos representados) é o saber ou a atitude política do re-presentante
que está sendo “observado” por intérpretes interessados, comprometidos, aos que
lhes importa o rôle, a re-presentação deles, do cidadão como o ator re-presentante

108
pelos outros. Quer dizer, a função dos atores (tanto dos cidadãos como os repre-
sentantes) no “teatro”, no “campo” do político, alcança a máxima institucionalida-
de, o grau maior de identificação do ator com seu papel (o rôle de “re-presentar” o
cidadão) e o papel de maior identificação e responsabilidade prático-real,204 já que
não é um mero jogo a-pragmático sem consequências, mas um no qual o que se
decide trata da sobrevivência de todos os membros da comunidade política. Re-
petidamente voltaremos a esta questão que irá se esclarecendo a seguir, como que
por uma espiral.
No todo, o público é político. Por isso, é preciso distinguir com clareza o públi-
co-político dos outros tipos do público em geral. Por outra parte, há ações públicas
que não são sistêmicas. Considere-se o caso de um encontro casual de um grupo
de cidadãos na rua. Não ser sistêmica indica não estar suficientemente institucio-
nalizada, embora seja uma ação pública. Este grupo de cidadãos na rua constitui
num fato que pode se realizar na esfera pública, mas que não tem consequências
futuras. Não obstante, se este encontro privado fosse realizado por atores públicos
(uma reunião secreta para tramar um complô), poderia ter efeitos públicos e, por
isso, se transformar em política.
Se este tipo de encontros se constituísse como uma associação, conseguiria
sistematicidade; haveria funções heterogêneas definidas nas regras aceitas consen-
sualmente. Dita sistematicidade conseguiria institucionalidade pública se fossem
aprovados estatutos e se estes fossem registrados convenientemente segundo a lei.
Seria uma comunidade pública sistêmico-institucional, fenomenologicamente fa-
lando (embora juridicamente pudesse estar dentro da vigência do direito privado).
Teria atingido maior grau de ostensibilidade, de “publicidade”.
[275] Numa de suas primeiras obras, Jürgen Habermas (1962) descreve a mu-
dança estrutural do público,205 mostrando a história da origem e desenvolvimento
da “esfera pública burguesa” (bürgerliche Oeffentlichkeit) (1962, p. 7; 1986, p. 37).
Escreve:

204 O ator artístico no teatro ou o jogador num jogo (o basquete) é homo ludens, exatamente
pelo fato de não jogar o papel do homo politicus ou homo realis; isto é, não pratica “a sério”
um rôle prático histórico; o pôr entre parênteses o “campo prático” real (entre eles, o “campo
político”), permite abrir o espaço do “campo esportivo” do jogo. Por isso, o homo ludens luta
contra o antagonista lúdico, mas sem a preocupação, a responsabilidade, daquele que arrisca
a vida, o prestígio, o poder. Somente arrisca perder o jogo.
205 É sabido que a palavra alemã Oeffentlichkeit é frequentemente traduzida por “publicidad”
ou “opinión pública”. Ambas as palavras em espanhol não significam o que indica a alemã.
Por isso, traduziremos por “lo público” ou a “esfera pública”; menos ainda significa “opinión
pública” que é um dos usos da esfera pública. Ver, no âmbito latino-americano Sabuí (2002)
e Bavaresco (2003). [NT: nesta versão traduzimos estes termos como, respectivamente:
“publicidade”; “opinião pública”; “o público” e “esfera pública”].

109
A utilização frequente da categoria no sentido de opinião pública (öffentlichen Meinung)
do público (Oeffentlichkeit) [...], implica significações que têm a ver com o público (Pu-
blikum), com a notoriedade pública206 (Publizität), com publicar (publizieren), mas que
não coincide em absoluto com estes. O sujeito do público é o público como portador
da opinião pública; a notoriedade pública está vinculada com a função crítica daquela e
com o caráter público das sessões de um tribunal (Habermas, 1962, p. 14; 1986, p. 42).

O notório público era, antes, parte da opinião pública; agora, atrai a opinião
pública. Pode-se, ademais, falar da publicidade (de um produto) ou da manipu-
lação da notoriedade pública (como os fatos públicos relevantes, objeto de notí-
cia: incremento informativo de representações da esfera pública que igualmente
constitui a opinião pública), temos uma síndrome complexa certamente central da
política contemporânea. Deixemos a “opinião pública” para o próximo capítulo.
Centremo-nos sobre a distinção do “âmbito” da “esfera pública” dentro do “campo
político”. É uma esfera dentro de outra, que tem mútuas relações. Todo o político
deve passar pela esfera pública – pelo requerimento kantiano –, mas o político da
esfera pública não é o público do campo político.
Nas cidades mercantis com regime de repúblicas do Mediterrâneo, cidades
fenícias, gregas ou romanas, o privado familiar se distinguia do público cidadão.
Na Idade Média europeia, o feudalismo não tinha distinção clara entre ambos os
aspectos. As grandes “feiras”, mercados-chaves, junto às grandes festas religiosas,
significavam o público por excelência. Veneza, com o Consiglio Maggiore, tinha um
espaço político (no enorme primeiro piso do Palácio do Doge), onde todos os patrí-
cios participavam nas decisões públicas, decisões que pressagiavam o futuro. Com
o surgimento da Modernidade atlântica, mercantil, e sob regimes representativos
(como em Amsterdam, Bruges, Gante e outras cidades das Províncias Unidas da
Holanda, em primeiro lugar), começa o público republicano moderno. Por sua vez,
o jardim barroco dos palácios nobres ou burgueses privatiza a festa pública e exclui
os plebeus. Estes passam a ser “o público” (das Publikum, the public, le public), como
espectadores, que, além disso, devem ter maneiras ou gestos educados, donde deriva
a intervenção disciplinar do público (o nascente Estado) sobre o público: a polícia
(polités, em francês, frequente nos documentos do século XVI colonial latino-ame-
ricano). Os burocratas do Estado nascente são os “servidores públicos”. O gentleman
é o participante da esfera pública que sabe se comportar nesta esfera. O ritual dos
confucianos era igualmente esta disciplina corporal, gestual, linguística da esfera
pública chinesa. Os comerciantes europeus souberam destes “modos” orientais, que
os distinguiam dos bárbaros, e os imitaram. Deste modo, “o público burguês pode

206 Não, por exemplo, no sentido da campanha de publicidade de uma firma comercial; mas
enquanto abstrato do público.

110
ser entendido, antes de tudo, como a esfera na qual as pessoas privadas se reúnem
na qualidade de público” (Habermas, 1962, p. 42; 1986, p. 65).
Este âmbito ontológico da ostensibilidade tinha como valor supremo a “hono-
rabilidade” – conceito sobre o qual se constrói a nova moral de um Mandeville –:
o essencial é o juízo que a comunidade, o público, tenha sobre a pessoa enquanto
sujeito com “credibilidade” (no duplo sentido de ser objeto de confiança, mas, so-
bretudo, de crédito207), o “bom homem” no mercado – onde o crédito, permitido a
juros por Calvino, lança o fenômeno do capitalismo. O burguês, contudo, defende-
rá o privado do mundo do comércio, da empresa, de modo que o mercado irá sendo
privatizado e o Estado nascente, com suas instituições e seus atores, reterá para si
o significado do público, tendo iniciado pelos clubes ou sociedades literárias mais
ou menos secretas, até que sejam apoiadas e ligadas entre si pelos primeiros perió-
dicos, como o Daily Intelligencer of Court, City and Country, de 1643, em Londres.
Veremos posteriormente a evolução deste fenômeno.208
Por ora, somente indicamos o lugar do “público” político, como caráter geral da
“esfera” chamada, por isso, “pública”, que constitui o público ativo participante
como observador (escrutinador, juiz, intérprete de um juízo e verdade práticos) no
campo político, caráter que tem a totalidade da ação social como tal.

207 “Tem crédito” uma pessoa honrada, enquanto se crê nela e, por isso, se lhe pode dar crédito
ou dinheiro adiantado, com a confiança de que será devolvido (com seus respectivos juros).
208 Ver capítulo 2, § 23.5 desta obra.

111
§ 17. A AÇÃO ESTRATÉGICO-POLÍTICA
[276] Entramos no tema que frequentemente é considerado a questão central
de “o político” como tal: a ação estratégica que, desde Maquiavel ao menos, tem sido
despojada de normatividade prática (no sentido clássico das virtudes, à maneira de
Aristóteles, Alfarabi ou Tomás de Aquino), conservando, na maioria dos casos, a
exigência de uma virtù, que tem somente um sentido técnico ou procedimental.
Encontramo-nos no nível A, segundo nossa distinção arquitetônica (reservando o
nível B institucional para o capítulo seguinte, e o C dos princípios implícitos para o
terceiro), que é o nível onde a factibilidade209 é estritamente contingente.

Esquema 17.01. Oposições conceituais de uma factibilidade político-contingente


Não contingente

Necessário b c Impossível

Possível Não-necessário
a

Contingente

A ação político-estratégica se encontra no nível do possível, e nisto é o contra-


ditório ao impossível (embora haja agentes que tentem o impossível, e isto indicaria
que a ação teria deixado de ser estratégica, transformando-se em antiestratégica ou
irrealizável, próprio de certo anarquismo extremo de direita ou de esquerda; con-
tradição indicada pela linha a do Esquema 17.01); igualmente, é o contingente que
tem como causa a indeterminação da vontade livre (diria Duns Scotus), contradi-
tório com o não-contingente (linha c; o não-contingente é, portanto, o permanente,
como, por exemplo, as instituições,210 segundo veremos no próximo capítulo); e é,
por último, o não-necessário (tem contradição com o necessário, que seria o caso de
um efeito de uma lei físico-natural, por exemplo). Como o factível de possibilidade
contingente (a operabilia dos latinos), a ação estratégica se situa no centro de uma
indefectível dificuldade no processo da decisão em sua operabilidade (trata-se da
inevitável incerteza da decisão estratégica do que fazer, enquanto imprevisível e

209 O princípio ético de factibilidade já expusemos em Dussel (1998, cap. 3). Aqui, ascendemos
ao nível da factibilidade política (política operabilia).
210 Embora “permanentes”, as instituições não são “necessárias”. São, então, possíveis (não
perfeitas, porque seriam impossíveis), não-contingentes (porque têm certa estabilidade) e
não-necessárias (porque são históricas, culturais e não efeitos de leis naturais).

112
que não tem como ser dito com exatidão matemática e nem sequer estatística, irre-
petível, indecidível com certeza, indizível com perfeita verdade e sempre singular).
Sua complexidade e concretude é máxima e é, igualmente, a que se apresenta (fe-
nômeno) primeiro (sendo, por isso, superficial,211 visível, e o imediatamente detec-
tável) na política, já que, substantivamente, “o político” terá sempre a ver com uma
ação estratégica. A ação estratégica é o objeto prático por excelência da política, mas
não o único. De certa maneira, a política é um tipo de ação. As normas, máximas
ou leis, as micro ou macroestruturas, sempre são momentos de uma ação ou estão
constituídas por suas relações.
Antes de entrar no tema, remontemo-nos no tempo e refiramo-nos na história
da Filosofia Política ao pensamento chinês, o mais antigo protótipo de reflexão es-
tratégica.212 Queremos somente recordar alguns aspectos da ação estratégica nas
guerras e a ampla reação crítico-filosófica, que constitui o conteúdo último da filo-
sofia chinesa, já que, antes dos gregos, que enfrentavam em primeiro lugar a physis
(natureza), ou antes dos semitas, que consideravam eticamente, em primeiro lugar,
o Outro no panim-el-panim (face-a-face), os chineses observam, em primeiro lugar,
a estrutura mesma de forças estratégicas enfrentadas de certos membros, grupos
ou exércitos. A ontologia chinesa, como já indicamos, é uma ontologia estratégica,
polêmico-política e até cósmica, porque a própria natureza é interpretada desde a
estratégia que, em último termo, seria militar. Quer dizer, desde o horizonte do
possível enfrentamento estratégico (estritamente guerreiro), se analisa no dado sua
potência contida, interpreta-se toda a sociedade, todo o ser humano e todo o cosmos,
como campos de força em tensão. É uma ontologia estratégica, dentro de uma exi-
gente lógica do contingente. Poderíamos indicar a categoria de shi (com pronuncia-
ção aproximada em espanhol a che) como categoria em torno da qual se constitui a
articulação vertebral desta política única em seu gênero. Detenhamo-nos um pouco
na lógica da estratégica chinesa:213

O hábil guerreiro busca a vitória no potencial estratégico (shi) [...]. A natureza de troncos
e pedras faz que resultem inofensivos quando estão em repouso e perigosos quando
estão em ladeira [...]. Assim, o potencial estratégico (shi) de um exército competente
é como o de uma avalanche de pedras rolando do alto de uma montanha (Sunzi, V;
2001, p. 139).

211 “Superficial”, não como avaliação ética, mas como situada fenomenologicamente no pri-
meiro lugar (assim como, para Marx, o mercado era o mais superficial e complexo, sendo a
produção o mais oculto e simples).
212 Ver volume 1 desta Política da Libertação, §§ 13-17 e §§ 69-80. [N.T.: tradução publicada
pela Editora IFIBE em 2014].
213 Abordamos o Sunzi (ou Sun-tzu) no § 15 do vol. 1. Agora, recorreremos à tradução espanhola
de Trotta (Sunzi, 2001).

113
Na estratégia chinesa, mais vale o conhecimento do que a força. O general
não é homem de espada, mas de sinais (tambores, bandeirolas, estandartes) pelos
quais orienta seu exército; não é o herói que arrisca a vida (como Ciro ou Alexan-
dre Magno à frente de sua cavalaria), mas um sábio reflexivo, astuto e distante.
A guerra como teatralização ritual da nobreza primitiva dá lugar ao silencioso e
secreto conhecedor da arte estratégica. A partir do período dos catorze Estados
Guerreiros (desde o século V a.C.), o grande guerreiro inverte os valores milita-
res, quando a guerra se universaliza. Triunfa na guerra quem é mais eficaz, o que
cumpre rigorosamente o princípio de factibilidade. Sendo os exércitos formados
por centenas de milhares de soldados, devia contar com simples campesinos como
combatentes que não possuíam qualquer disciplina militar prévia. A estrita obe-
diência aos mandos da parte da massa combatente evitava – segundo a expressão
da sabedoria chinesa – a tentativa de realizar, por meio da virtude masculina da
força, a violência desnecessária e o risco, cultivando-se, antes disso, a atitude femi-
nina da submissão, da obediência, a astuta sobrevivência.214
Por isso, em primeiro lugar, é necessário ser desconhecido pelo inimigo, mas
conhecê-lo muito claramente, rendendo-se à sua forma concreta, como a água
adota a forma da superfície pela qual escorre, ainda que seja muito rugosa, ás-
pera e irregular:

As disposições (xing) militares são como a água: da mesma forma que a disposição (xing)
da água evita o alto e se precipita para baixo, a disposição do exército evita o consistente
e ataca o oco. E do mesmo modo que ela adapta sua forma (yin) ao terreno, o exército
adapta sua estratégia de vitória ao inimigo. De fato, assim como a água carece de uma
forma permanente, na guerra tampouco há um potencial estratégico (shi) permanente.
Aquele que é capaz de obter vitória adaptando-se (yin) às variações e transformações
do adversário é designado como inescrutável (Sunzi, 2001, p. 150).

Para o pensamento político chinês, portanto, o indeterminado, o que “não tem


forma” (wu xing), tem vantagem estratégica sobre o que manifesta suas intenções
e permite ao inimigo refletir sobre seus “pontos fracos” (ocos). O hábil carniceiro
Ding corta um boi num instante, sem perder o fio do seu cutelo, porque corta
pelo “oco” (pelas articulações)215. O princípio organizativo (li) deve ser conhecido
de antemão para poder controlar o que enfrenta o estratego. E, por isso, o que se
manifesta pode ser descoberto em sua estrutura e, graças a isso, ser vencido. O
poder é exercido pelo desconhecido e exerce o poder sobre o conhecido. A domi-

214 Tudo isso numa sociedade profundamente machista, é evidente.


215 “Avança sem que possam oferecer-lhe resistência porque se lança contra o oco do inimigo; se
retira sem que possam persegui-lo porque graças à sua prontidão não pode ser pego” (Sunzi,
VI; p. 148).

114
nação é pan-ótica: vê sem ser visto. É preciso conhecer a natureza humana; e, em
especial, suas paixões e inclinações: o desejo de recompensas e o temor do castigo
move os homens, pensa o empirismo chinês. O general deve ser mais temido do
que os inimigos e mais admirado do que a vida. Cada batalhão era constituído de
cinco membros. Se matavam um inimigo e morria algum deles, não havia mérito
algum. Se eliminavam um inimigo, eram recompensados. Se perdiam homens sem
conseguir eliminar contrários, eles e suas famílias eram condenados à morte. Tudo
era regulado por um princípio de “economia de forças”:

Na guerra é preferível preservar um país do que destruí-lo, preservar um exército do


que destruí-lo, preservar um batalhão do que destruí-lo [...]. Obter cem vitórias sobre
cem combates não é o melhor. O mais desejável é submeter o inimigo sem travar bata-
lha alguma (Sunzi, III, 2001, p. 125). O bom estratego submete as forças inimigas sem
combatê-las, toma as fortificações inimigas sem atacá-las, desmembra os Estados rivais
sem permitir que as ações militares se prolonguem (Sunzi, 2001, p. 126).

Tudo isto leva a um jogo de espelhos no qual o exercício do poder se identifica


à manipulação, ao ocultamento dos atores e seus atos e a um autoritarismo sempre
oculto:

A guerra é a arte de enganar. Assim, se fores capaz, finge incapacidade; se estás preparado
para entrar em combate, finge não o estar; se te encontras perto, finge estar longe; se te
encontras longe, finge estar perto. Se o inimigo é ávido, seduza-o. Se é colérico, provoca-o.
Se é humilde, fá-lo arrogante. Se está quieto, obriga-o a agir. Se está unido, divida-o.
Ataca-o se não está preparado, lança-te quando não te espera (Sunzi, I, 2001, p. 109).

Não é estranho que toda a filosofia chinesa, começando por Confúcio, se levan-
tou contra este manejo da estratégia e elaborou uma ética na qual “o poder não é
um fim em si e o Tao da sabedoria é decididamente superior ao shi” (Jullien, 1996;
ed. esp. 2000, p. 48).216
Deixemos este exemplo prototípico de uma teoria da estratégia que nos recorda
a história, mas que “dá o que pensar” pela maneira como a China enfrenta, neste
momento, o Império norte-americano, e voltemos ao nosso presente.

216 “Mas, ainda que cheguem a se opor cada vez mais explicitamente, em termos de shi, es-
trategos e teóricos do despotismo, de um lado, e moralistas (filósofos), de outro, contudo,
coincidem na lógica em que se baseia sua argumentação rival. Pois todos estão de acordo em
reconhecer a superioridade da tendência que atua sponte sua, por propensão, como modo
de determinação do real” (Jullien, 2000, p. 48-49).

115
1. Max Weber, Hannah Arendt e a ação estratégica

[277] Continuemos com nossa reflexão sobre a contingência na política fazendo


referência a alguns dos autores de relevância no tema. De acordo com Aristóteles,
na Ética a Nicômaco, sabemos que haveriam ao menos três tipos fundamentais de
atividade humana: a do pensamento ou a inteligência (theoretikê dianóia); a ação
prática (práxis) e a ação produtiva (poiésis) (V, I, 1139a 27-30). Cada um destes
atos tem um componente afetivo, não-intelectual (álogos)217 (1139a 5), e diversos
tipos de racionalidade: o lógos theoretikós (razão218 teórica), o lógos praktikós (razão
prática)219 e o lógos poietikós (razão poiética). As virtudes próprias da primeira era
a epistême,220 da segunda a phrónesis e da terceira a tékhne. Por último, estes três
hábitos determinam a abertura a três tipos de verdade: a verdade teórica, a verdade
prática (política) e a verdade técnica (que incluía a arte). Era toda uma arquitetura
que determinaria a filosofia posterior das culturas do Mediterrâneo (helenística,
bizantina, árabe e latino-germânica).
Max Weber se pergunta pelo sentido da “ação social”, desde o horizonte neokan-
tiano. Nosso pensador é um grande mestre contemporâneo do “ato estratégico”
formal. Embora Weber trate frequentemente os tipos de racionalidade, há alguma
ambiguidade em seus esclarecimentos. Desde I. Kant, Max Weber introduz algu-
mas variantes na divisão tripartite tradicional (Dussel, 1994, p. 32-60). A “razão
pura” é diferenciada da “razão prática” (que se identifica frequentemente com a
vontade), transcendental e puramente formal na terceira época da obra kantiana,221
e ambas se distinguem, por sua vez, da “razão teleológica” (desde a Crítica do Juízo,

217 Diríamos, hoje: o cérebro tem um sistema cognitivo neocortical e frontal e um sistema
límbico (este último é o álogos). Não é irracional e, sim, o não-racional do órgão humano
cerebral, mas que Aristóteles, como a neurologia atual, sabia que se articulavam, consti-
tuindo desenvolvimentos cognitivo-afetivos (momentos das emoções do sistema límbico –
como a dikaiosine, em Aristóteles – que “passam” pelo sistema cognitivo neocortical, sendo
memorizados, denominados, conceitualizados; ou momentos cognitivos que “passam” pelo
sistema límbico: seria o caso da phrónesis aristotélica. Não é o mesmo a dor (sensação) que
o temor à dor (uma emoção) que o medo ao temor da dor (momento complexo neocortical
e límbico) (Cf. Damásio, 2003). Por sua vez, para Aristóteles, a sophrosine (temperança ou
domínio sobre as paixões) era a “guardiã” (hoje, diríamos: o inconsciente e o Super-ego
determinam a consciência política) da phrónesis. Um avarento ou um corrupto não podia
ter “sabedoria” política, tampouco o covarde que não tem “fortaleza”.
218 Poderia igualmente ser traduzido por “inteligência teórica”.
219 Que é o que tem a ver com a política, por meio da “eleição” (hypólepsis), onde se articula o
momento dianoético prudente (inteligência prática reta) e o querer com justiça (a vontade
reta): é um querer julgado e um juízo querido. Trata-se de um “querer deliberado” (ôrexis
bouleutiké) (V, 2, 1139a 23).
220 Também o nous, a sophia (1139b 16-17).
221 Isto é assim se a primeira época foi racionalista, a segunda empirista, a terceira crítico-trans-
cendental e a quarta a posterior à Crítica do Juízo (ver infra [172-173]).

116
de 1790). A “razão teleológica”, por sua parte, pode dar lugar a uma interpretação
da natureza segundo um princípio de finalidade transcendental a priori (o sujeito
põe o fim para compreender o acontecer físico); por outra parte, pode dar também
a uma estética (que é o que aborda diretamente na Crítica do Juízo); ou, em terceiro
lugar, pode abrir igualmente todo o campo de uma razão normativo-política, onde,
graças à faculdade de julgar, a aplicação da lei universal moral (formal) passa do
horizonte da mera vontade à vontade do arbítrio, a um nível material teleológico da
história, que opera com postulados da razão prática (horizontes que dão conteúdo,
direção e sentido à ação concreta regida pelos princípios da moralidade).222 Este
tipo de razão teleológico-política, como no caso do tratado sobre A paz perpétua
ou de A religião dentro dos limites da mera razão, situa o tema da “razão estratégica”,
que é um tipo de razão prática na construção da política, cuja normatividade não
fica claramente expressa na mera legalidade.
Inserido da tradição axiológica de Rickert, Weber se orientará por uma po-
sição neokantiana, conforme temos dito, e, portanto, será herdeiro de um certo
dualismo entre: a) o nível empírico dos fatos explicáveis pelo entendimento na
ciência, e b) o nível noumenal, que agora está ocupado pelo âmbito dos valores. Por
isso, nos diz com respeito aos tipos de racionalidade prática:

A ação social, como toda ação, pode ser 1) racional em ordem a fins [...], utilizando estas
expectativas como condições e meios para o alcance de fins próprios racionalmente
calculados e pretendidos; 2) racional em ordem a valores: determinada pela crença cons-
ciente no valor [...] (Weber, 1944, p. 20).223

Entre ambos os tipos de racionalidade, havia ainda um terceiro: 3) a “raciona-


lidade eletiva”, do cálculo de fins em vista de valores, quando se abrem alternativas
diante de oponentes racionais.224 Ademais, Weber distingue:

Chamamos racionalidade formal de uma gestão [...] o grau de cálculo que lhe é tecnica-
mente possível e que aplica realmente. Ao contrário, chamamos racionalmente material
o grau em que o abastecimento de bens dentro de um grupo de seres humanos [...]
tenha lugar por meio de uma ação social de caráter econômico orientada por determi-
nados postulados de valor (Weber, 1944, § 9, p. 64).

222 Ver o dito em [171-180].


223 M. Weber, Economia e Sociedade (I, 1, § 2).
224 Habermas denomina este nível como o da “racionalidade estratégica” (Habermas, 1981
[trad. esp., I, p. 233]). Luis Aguilar nos fala igualmente que, em Kant como em Weber, “a
política-moral procede em seu ordenamento prático dos fenômenos segundo um esquema
de explicação causal teleológico, segundo fins de valor incondicional” (Aguilar, 1988, I,
p. 35). Para Weber, “a política aparece no marco do pluralismo e a opcionalidade consubs-
tancial à liberdade de seleção de valores [...] Para os fins do poder, os meios são as condições
coletivamente responsáveis feitas leis e planos de governo” (Weber, 1944, II, p. 808).

117
Assim, o estratégico em Weber tem, por momento fundamental material, a
referência aos valores dados, sendo estes necessariamente particulares (os de um
grupo cultural concreto). Fora destes, não havia nenhuma possibilidade de um cri-
tério material intersubjetivo de maior consistência, nem universalidade. Tentamos
mostrar, em nossa Ética da Libertação (Dussel, 1998, capítulos 1 e 4), que os va-
lores se fundam sempre na necessidade da permanência (produção, reprodução) e
aumento (desenvolvimento) da vida humana. Da mesma forma, temos ali indicado
como redutiva toda filosofia prática fundada, em última instância, em valores. Por
isso, em Weber, a razão estratégica ficaria subsumida numa racionalidade formal
de meio-fim, a única que pode responder ao critério forte de racionalidade:

Deve chamar-se racional em sua forma a uma gestão econômica na medida em que a
procuração, essencial em toda economia racional, possa expressar-se e se expresse em
reflexões sujeitas a números e cálculo [...]. Pelo contrário, o conceito de racionalidade
material é completamente equívoco [...] em ordem a valores ou a fins materiais (Weber,
1944, § 9.2-3, p. 64-65).

Para Weber, a política se moveria neste nível material da estratégia de relacio-


nar fins a valores. Ao final, os valores não podem fundamentar-se e podem ser
muito variados entre as comunidades (inclusive quando formam um Estado par-
ticular). Diante da necessidade de aceitação dada dos valores, a razão estratégica
pode cair numa abstrata fidelidade “às convicções pessoais de cada um”:

O resultado final da atividade política (politischen Handels) dificilmente corresponde


à intenção original do autor. Pode ainda afirmar-se que, por regra geral, não responde
nunca [...]. Mas esta constatação não pode ser um pretexto para se abster de se colocar
a serviço de uma causa (Sache) [...]. Quanto à natureza mesma da causa em nome da
qual o político busca e utiliza o poder (Macht), é questão de fé (Glaubenssache). O polí-
tico pode buscar servir a fins nacionais ou da humanidade, sociais, éticos ou culturais,
profanos ou religiosos [...]. Em todos os casos, contudo, é necessária alguma fé (Glaube)
(Weber, 1956, p. 170).225

E é assim que, quando pretende relacionar a ética com a política – tema do ca-
pítulo 3 desta obra –, entendendo a primeira como a ética do Evangelho, Weber cai
em dilemas irresolúveis ao opor uma “ética da convicção” (Gesinnungsethik) a uma
“ética da responsabilidade” (Verantwortungsethik) (Weber, 1956, p. 175)226 – esta
última seria a que incluiria as exigências normativas da política.

225 M. Weber, A Política como Vocação.


226 Na obra Ética da Libertação, mostramos o redutivo formalista da “ética da convicção”
(capítulo 2) e aplicamos o princípio da ética da reponsabilidade dos efeitos da ação a uma

118
[278] A ação estratégica, como se pode ver, fundada redutivamente só em va-
lores (pessoais ou culturais) termina por ser, ao final, exclusivamente questão de
convicção, de fé, de fidelidade (em outro sentido que o assinalado ao termo por
Alain Badiou): é uma estratégia política puramente subjetiva, particular, sem uni-
versalidade alguma:

[O político] se compromete com forças diabólicas que estão à espreita com toda violência
– Weber nos situa num horizonte fáustico. Os grandes virtuosos do amor e da bondade
acósmica do ser humano, que nos vêm de Nazaré, Assis ou dos castelos reais da Índia,
não trabalharam com as mediações políticas da violência (Weber, 1956, p. 181).227

A ação estratégica fica completamente infundada; é a expressão subjetiva de


uma opção singular ou biográfica que responde a uma mera vocação sem maiores
razões universais, praticamente esteticista. Trata-se da radical separação entre a
ética e a normatividade política. Diante da miséria das maiorias do Sul do globo
terrestre, produto da razão instrumental e formal do cálculo capitalista, não penso
que as razões expostas por Weber possam ser motivo de nenhuma “vocação”
(Beruf) para algum jovem, cidadão ou movimento social, que quiçá devam colocar
suas vidas em risco na ação estratégico-política.228
Uma última observação. Para Weber, o exercício do poder é inevitavelmente
“dominação” (Herrschaft), estudado frequentemente desde a perspectiva dos três
tipos de dominação legítima:229

Deve-se entender por dominação (Herrschaft) [...] a probabilidade de encontrar obediên-


cia dentro de um grupo determinado para mandatos específicos [...]. Um determinado
mínimo de vontade de obediência, ou seja, de interesse (externo ou interno) em obedecer,
é essencial em toda relação autêntica230 de autoridade (Weber, 1944, § 16, p. 43).

ética crítica, impossível para Weber (capítulo 4 da citada Ética). Weber não indica que a
“ética do Evangelho” se encontra dentro da tradição semita de uma ética para uma comu-
nidade de ensino, instituição pedagógica ou Igreja, que não pode ser identificada com a
normatividade política.
227 Opino que, neste texto, se possa compreender a impossibilidade de tratar o tema com a
profundidade devida. Weber chega a repetir aqui uma vez mais a visão eurocêntrica do tema
(sem compreender a tradição semita). Ignora o sentido político da crítica do messianismo pro-
fético entre os povos semitas (Dussel, 2003c). Tratamos o tema desde outros pressupostos
na parte histórica, volume I desta Política da Libertação [33ss]; e voltaremos sobre a questão
mais adiante nesta obra, no capítulo 4 da Crítica, volume III (§ 31).
228 Veja-se o dito sobre a ação estratégica na obra Ética da Libertação (Dussel, 1998, § 6.1-6.2
[340-365]).
229 Por exemplo, em “Os três tipos de dominação legítima” (Weber, 1956, p. 151ss). Ver a obra
de Enrique Serrano (1994), Legitimación y razonalización.
230 Na soberania, como origem do “dar leis”, uma comunidade política e seus membros podem
obedecer a si mesmos por terem sido participantes simétricos no ditado da lei que os obriga.

119
Já mostramos que o poder é o ontológico “poder-pôr” da vontade como querer
da vida. O poder não é inicial e originariamente dominação sobre outros, mas
expansão de uma vontade realizadora da vida como sobre-vivência, ao colocar as
mediações para a permanência e o aumento de dita vida humana, do singular,
do grupo ou da comunidade política – num nível material.231 Então, em primeiro
lugar, se deveria descrever o poder desde determinações positivas, que, ademais,
são o critério do juízo normativo sobre os exercícios defectivos do poder (não so-
mente definido pela determinação negativa do dito “poder-pôr” sobre e contra a
vontade do outro, como obediência ou simplesmente impossibilidade de opor-lhe
resistência). Esta definição somente defectiva do poder é a mais frequente, mas,
por isso, não deixa de ser redutiva; o fato frequente passa a constituir a estrutura
fundamental do fenômeno. De igual maneira, para Weber, a “legitimação” sempre
encobre ou aceita esta dominação como única possibilidade do exercício do poder.
O que faz com que que a própria legitimação seja intrínseca e inevitavelmente dis-
torcida, já que oculta, como fundamento da obediência (em último sentido, contra
a permanência ou o aumento da vida do dominado), o fato da opressão, fetichizada
como a própria realidade das coisas – que define o conceito de “hegemonia” na teo-
ria gramsciana que trataremos oportunamente.
[279] A divisão tripartite aristotélica está presente também em Hannah Arendt,
que se inscreve decididamente na visão tradicional. Arendt se refere ao nosso tema
em suas duas obras fundamentais: A Condição Humana e A Vida do Espírito. Na
primeira delas, propõe a tese, desde a Modernidade e contra ela, de que se passou
de um equilibrado exercício da vita contemplativa e da vita activa ao predomínio do
homo faber, como fabricante por mero cálculo que, por último, será deglutido pelo
utilitarismo (também como cálculo, mas, agora, de uma felicidade como ausência
da dor). Para isso, Arendt propõe uma distinção inicial – que atravessa todo seu
livro – entre labor, trabalho e ação.232 Os dois primeiros momentos desta proposta
(labor e work) são sumamente ambíguos e denotam alguns problemas que se mani-
festarão mais claramente na concepção arendtiana do político (excluindo “o social”).
A distinção destes dois momentos mostra certo dualismo impossível de superar em
toda a sua obra: a) entre o processo meramente biológico das chamadas necessi-
dades vitais e o processo de sua reprodução (cujo âmbito é a labor), e b) o trabalho
como atividade “não natural” (unnaturalness) que produz “um artificial mundo de

Mas, neste caso, a “obediência” não é puramente negativa, nem é “dominação”. Weber tem
uma visão redutiva, puramente defectiva e negativa do poder político.
231 Num nível formal, modificado, o critério da pretensão de validade da participação simétrica
dos afetados. Que tampouco pode ser descoberto por Weber (e que Habermas indica com
toda razão). A ação estratégica e o exercício do poder em Weber estão dentro de um “para-
digma solipsista da consciência”, fundado em mediações materiais (como o valor) e desde
uma visão redutiva do conceito de poder.
232 A Condição Humana, cap. 1 (Arendt, 1958, p. 7; 1998, p. 21).

120
coisas” (work). Em nossa obra anterior, Ética da Libertação, insistimos repetida-
mente que a “vida humana” é unitária, corporal, cerebral e, por isso, o momento
biológico sempre é subsumido desde o momento da mente, espiritual, cultural, das
atividades superiores do cérebro. Nenhuma célula é meramente animal; todas são
humanas. Nenhum ato de comer é animal; todo comer é um ato subsumido na
cultura. Por isso, dita divisão é ambígua e expressa um dualismo de graves con-
sequências.233 A ação234 é pensada desde os gregos e romanos como bíos politikós
– e, por isso, tem dificuldade de subsumir o âmbito econômico da produção, entre
os gregos encarregada aos escravos. Com os cristãos – Arendt tem predileção por
Agostinho e Duns Escoto, como é sabido – a vita activa perdeu seu sentido político
e se definiu negativamente (como negação da vita contemplativa: nec-otium [o negócio
é o não-ócio do silêncio do monge afastado do mundo]).
Para a autora interessa a ação na “esfera pública” e como pública (1958, cap. 2),
na pólis, em especial, como exercício retórico do discurso na ágora, como “espaço de
aparição” (1958, cap. 5), que se modifica na Idade Feudal.235 Mas é na Modernidade
que o homo faber ocupa o lugar da antiga experiência contemplativa, mediante uma
prévia quantificação da realidade, por uma introspecção como perda do “sentido

233 Deixa entrever, ademais, e devo indicar minha grande simpatia pela obra desta magnífica
pensadora do exílio judeu nos Estados Unidos, uma crassa ignorância em temas de filosofia
econômica. As poucas páginas dedicadas ao valor de uso e o valor de troca são realmente
superficiais (e equivocadas, enquanto tenta uma crítica a Marx). Ver o § 22 (Arendt, 1958,
p. 164-165), onde escreve: “Os valores [...] nunca são produtos de uma atividade humana
específica e, sim, cobram existência (into being) sempre que qualquer de tais produtos se
leva à sempre modificada relatividade de câmbio entre os membros da sociedade” (1958, p.
164 e p. 182). É sabido que “o valor de uso” pode ser produzido pela natureza, mas, hoje,
em sua maioria, é fruto do trabalho humano (contra a explícita opinião de Arendt). Mas,
além disso, um produto sem valor de uso produzido pelo trabalho humano (ainda que
fosse o trabalho de obter da natureza e levá-lo ao mercado), não poderia nunca ter “valor
de troca” algum. Dito valor de troca efetivamente se atualiza na relação de mercado. Mas
sua quantidade intercambiável é o quantum de trabalho objetivado neste produto. Não há
valor de troca nenhum sem trabalho como seu fundamento. Arendt parece não ter nenhum
conhecimento do tema e isto explicaria sua ingenuidade diante da sua interpretação da
política “americana”. Toda sua reflexão parte de Locke, nem sequer de Hume, e, embora
cite A. Smith, não parece utilizá-lo. Por isso, tem uma particular cegueira pelo âmbito
econômico enquanto tal.
234 Escreve: “Única atividade que se dá entre os homens sem a mediação de coisa ou matéria”
(1958, p. 7; p. 21-22). O que é a relação prática (pessoa-pessoa) através da relação produ-
tiva (pessoa-técnica-natureza-produto) na qual consiste a relação econômica? Novamente,
Arendt não compreende que a atividade econômica tem uma mediação produtiva (se re-
lacionam duas pessoas por meio do intercâmbio de um produto do trabalho: uma coisa, a
matéria do intercâmbio). Ver Dussel (1985, 1988 e 1990), minhas obras dedicadas à relação
prática-produtiva numa filosofia da economia.
235 É aqui onde inclui o famoso parágrafo sobre a “Irreversibilidade e o poder de perdoar”
(1958, § 33).

121
comum” e mediante o utilitarismo, onde “a vida individual passou a ocupar o posto
que possuía em outro tempo a vida do corpo político” (1958, p. 314; 339).
De todas as maneiras e, ao final, a ação política fica demasiadamente reduzida a
um âmbito público-político retórico que, embora indique a importância da comu-
nicação, fica confinada numa esfera que ignora o material, o social.
Valha, o que foi dito, somente para situar a problemática da ação estratégica.236

2. O conceito do político em Carl Schmitt

[280] Agora, vejamos alguns autores que tratam o político no nível A da ação
política estratégica, reduzindo, em alguns casos, todo o campo político ao nível do
agir político concreto (esquecendo todo o nível das instituições, dos princípios,
do relançamento crítico da política). Comecemos pelo tão em voga Carl Schmitt.
Frequentemente se fala de Schmitt indicando algumas vantagens de sua leitura
atual, a fim de descobrir argumentos autorizados contra o liberalismo, o parla-
mentarismo ou a democracia formal, já que poucos autores se atreveriam a ser tão
claros neste tipo de críticas. A ciência política encontra, em Schmitt, propostas
interessantes: a esquerda, em sua desorientação, usa-o contra seus inimigos de
antanho. Contudo, pouco se diz do que Schmitt pretendeu teoricamente na sua
conjuntura política; quer dizer, sobre porque assumiu as posições filosóficas que
propôs desde a circunstância concreta que viveu, no começo do século XX, na
década dos anos vinte, principalmente. Carl nasceu em Plettenberg, na Westfália,
em 1888, e morreu em 1985. Viveu, então, a decadência do Kaiserreich (Império
alemão), a revolução alemã de 1918, a crise caótica da República de Weimar, o
nazismo com quem contribuiu na criação teórica, o holocausto judeu, o pós-guerra
da Alemanha dividida que criou o novo parlamentarismo desde 1945, a Guerra
Fria do muro de Berlim. Estudante em Berlim, Munique e Estrasburgo, habilitou-
-se como professor em 1914, ficou profundamente marcado por sua origem: ser um
católico, romântico, conservador que, por isso, enfrentou o liberalismo (que dá
prioridade ao indivíduo sobre a comunidade e ao mercado sobre o político), o ethos
burguês e a Modernidade em geral (que prioriza o cálculo técnico sobre a ação prá-
tica) e o marxismo. Aterrorizado diante do caos, da debilidade liberal-parlamentar
“charlatã” que não sabe tomar “decisões” diante da situação de uma Alemanha
vencida na guerra, humilhada nos tratados posteriores, prostrada economicamente,
Schmitt pretendeu fundar o político não na lei, nem na normatividade do “Estado
de Direito”, mas na decisão de uma vontade que se manifesta no “estado de ex-
ceção”, quando o sistema do direito deixa de ter vigência e é preciso remeter, de

236 Mais adiante, nos § 36ss do capítulo 5 da Crítica, volume III desta Política da Libertação,
retornaremos criticamente sobre o tema.

122
algum modo, ao próprio poder, imediatamente constituinte, à soberania originária
do “poder-pôr” da vontade como última instância do Estado.
Se Hobbes se opôs à guerra civil inglesa e clamou por um Leviatã, por um
soberano forte, numa época de caos, Carl Schmitt, nos anos vinte, foi impactado
por um mesmo pathos: exortou, por isso, ao exercício de um poder forte, como o
analisado no Leviatã: poder unificador, decidido, segundo a antiga tradição; não
temendo a secularização, recorda a origem dos conceitos do direito numa “Teolo-
gia política”; diante da débil República de Weimar, mostra as vantagens da dita-
dura; diante do esvaziamento da política, fundamenta uma estratégia política do
“amigo-inimigo”. Propiciou, assim, indiretamente, entre os anos vinte e trinta, o
advento de Hitler que, uma vez no poder e cometendo tantos excessos, Schmitt
já não pôde admitir sua irracionalidade e, ainda antes de Heidegger (com o qual
tinha muitas semelhanças de origem cultural, política e filosófica), tomou distância
em seus trabalhos posteriores, e até que, em 1963, escreve Teoria do “partisan”,237
questão que trataremos mais adiante no capítulo 5 (nível A, mas da parte Crítica da
Política da Libertação). Também iremos expor posteriormente o Schmitt constitu-
cionalista, que se ocupa da instituição fundamental do Estado moderno, questão
que consideraremos no capítulo 2, tema que se situa no nível B (segundo nossa
estratificação analítico-categorial). Agora, por outro lado, no nível A238 desta Ar-
quitetônica, queremos mostrar alguns aspectos da “ação estratégica” enquanto tal.
Em sua primeira temática,239 como romântico alemão, ainda que inspirando-se
em De Maistre, Bonald ou Donoso Cortés,240 Schmitt afirma que “entre as re-
voluções de 1789 e de 1848, o conceito de decisão (Entscheidung) se colocou no
centro do seu pensamento” (Schmitt, 1996, p. 25ss); e, como conservador católico,

237 Esta palavra francesa partisan fala do militante da resistência espanhola contra Napoleão,
ou, na França, contra o nazismo, ou contra Tido, na Iugoslávia. Schmitt chega a se referir
a Lênin e a Mao-Tse-Tung.
238 Da ação política estratégica, que tem certamente um sentido ético positivo e não meramente
pejorativo, como para Habermas, que identifica o “êxito” do estratégico com o ato fetichizado
da razão instrumental, e não de uma razão estratégica redefinida, como em nosso caso (ver
mais adiante 17.04).
239 Ver Nicoletti (1990, p. 18ss; Scheuermann, 1999, Iss). Em Schmitt, podemos distinguir
quatro etapas (de a a d), em nove momentos (de 1 a 9), que igualmente são temas, cronolo-
gicamente situados num contexto político preciso: a) Desde antes da guerra: 1. Sua origem
romântica desde 1919 (Cf. Schmitt, 1991, 1996e, 2000); b) Antes do caos do pós-guerra
antes do nazismo: 2. A ditadura desde 1921 (Schmitt. 1994); 3. A teologia política desde
1922 (Schmitt, 1996; 1996b); 4. Crítica do parlamentarismo desde 1923 (Schmitt, 1996c;
trataremos o tema no capítulo 2); 5. O conceito de o político em 1927 (Schmitt, 1993b); 6.
Estudos sobre a Constituição desde 1928 (Schmitt, 1996d; 1998); c) Durante o nazismo: 7.
Importância de Hobbes desde 1938 (Schmitt, 1995); 8. Estudos sobre o direito europeu
dos mares desde 1942 (Schmitt, 1993; 1979); d) Depois da segunda guerra: 9. Teoria do
partisan, em 1963 (Schmitt, 1992).
240 “A filosofia do Estado na contrarrevolução” (Schmitt, 1996, p. 25ss).

123
olhava para o passado: “A Igreja [Católica] é hoje o último e solitário exemplo da
capacidade medieval para formar figuras representativas (o Papa, o Imperador, o
Monge, o Cavaleiro, o Mercador)” (Schmitt, 2000, p. 23). Na obra Romanticismo
político, mostra que tudo começa com a admiração da Revolução Francesa, por
parte de F. Schlegel, Fichte ou Goethe, que abre um novo mundo político-cultural
(Schmitt, 1996c, p. 40ss).241 “A estrutura do Espírito romântico” (Schmitt, II,
1996c, p. 62ss) é narrada por Schmitt, em primeiro lugar, como um lançar-se à
realidade intuitivamente, superando no spinozismo os dualismos desde uma
“unidade vivente” (lebendige Einheit) que não se distorce na análise racionalista,
desde uma interpretação narrativa, mitológica e aparentemente irracionalista,
afirmando o segundo termo da cisão originária entre “pensar e ser, conceito e
realidade, espírito e natureza, objeto e sujeito”. Isto determina “a estrutura ocasio-
nalista do romanticismo” (Schmitt, II, 1996c, p. 88ss), que Novalis, contra Kant
e o último Schelling, expressou contra Hegel e a Ilustração, e que Malebranche
antecipou com suas causes occasionelles (Schmitt, 1996c, p. 94). É toda a questão
da causa da contingência (occasio, em latim, fortuna, em italiano renascentista). Os
românticos afirmam “o vivo” (Lebendig) contra “o mecânico”, o orgânico contra o
inorgânico, o que dura contra o perecível, o histórico ante o caprichoso, o firme
ante o caótico, o legítimo ante o revolucionário, o cristão ante o pagão, o corpora-
tivo ante o centralizado (Schmitt, 1996c, p. 108).242 De onde se pode compreender
agora que o “romanticismo político” (Schmitt, III, 1996c, p. 114ss), desde 1790,
com Burke, na Inglaterra, e desde 1796, com De Maistre e Bonald, na França, se
tornou contrarrevolucionário e conservador (havendo impactado através de Rou-
sseau até o velho Kant, que o chama “o Newton da moral”, e ao jovem Hegel). “O
núcleo do romanticismo político é, então: o Estado é uma obra de arte, o Estado
como realidade histórica política é occasio para produzir a obra de arte, como efeito
criador do sujeito romântico” (Schmitt, III, 1996c, p. 127).
[281] Na segunda temática, ante o caos do pós-guerra, enfrentando o vazio de
poder de uma Alemanha humilhada, Schmitt reclama refletir sobre uma institui-
ção romana em tempos de exceção, em momento em que o populus rumanus era
atacado por um inimigo total (como o Aníbal cartaginês). Todas as outras insti-
tuições da República eram suspensas e se instaurava, no extremo perigo, o dictator
(Schmitt, I, 1994; 1999, p. 33ss).243 Schmitt pensava que a Alemanha se achava
nesta situação-limite. Estamos em 1921. Schmitt mostra que, conforme Maquia-
vel, o ditador não devia “deliberar” com outros (“parlamentariamente”), mas, “con-

241 Na verdade, quem mais influenciou Schmitt foi Adam Müller.


242 Aqui coloca na primeira coluna dos primeiros conceitos como “positivos” (o romântico) e
na segunda coluna, o “negativo” (moderno, ilustrado, liberal).
243 Entre os Polinésios da Nova Zelândia e os Mapuches do Chile, o toquii era o guerreiro forte
eleito pelos clãs para lutar ad hoc contra os inimigos, contra os espanhóis invasores no Chile;
o mais forte deles foi Caupolicán.

124
sigo mesmo” (per se stesso) (Schmitt, I, 1994, p. 6; 1999, p. 37). Em Veneza, havia
uma tal instituição. O que interessa a Schmitt é que, sem deliberação parlamentar
alguma, o ditador decide de imediato, por sua própria vontade e com pleno poder,
sobre a vida e a morte. É um poder pleno sobre a lei (que, em sua opinião, era o que
a Alemanha necessitava nesse momento244). Bodin também estuda esta instituição.
São os “comissários régios” do século XIII. Depois, se passa à “ditadura sobera-
na”, na teoria do Estado, na segunda parte deste mesmo século (por exemplo, em
Mably e Rousseau245). A situação, no século XX, mudou. Na ditadura institucional:

A ação do datador deve criar uma situação na qual se possa realizar o direito [...]. A
ditadura soberana vê, agora, na ordem total existente (gesamten besteheden Ordnung), a
situação que quer eliminar mediante sua ação. Não suspende uma Constituição exis-
tente (bestehende Verfassung) valendo-se de um direito fundamental (begründeten) nela
constante e, portanto, constitucional, mas aspira a criar (zu schaffen) uma situação que
faça possível uma Constituição que considera como a Constituição verdadeira. Em
consequência, não apela a uma Constituição existente, mas a uma Constituição que
vai implantar (herbeizufürende) [...]. Este é o sentido do pouvoir constituant (Schmitt,
1994, p. 133-134; 1999, p. 182-183).

Este texto nos abre a todo o horizonte de uma Política da Libertação que Schmitt
indica, mas não tem categorias para poder explicar e, sobretudo, para fazer dela o
ponto de partida de toda uma política crítica (a Crítica desta Política). O que significa
a “ordem total vigente”? Que tipo de ordem seria aquela que dita a nova Consti-
tuição? Que tipo de fundamento jurídico (e fundamentação) pode ter a ação que
cria246 a nova Constituição? O novo poder constituinte, para além do originário
poder constituinte da Constituição vigente, é um poder trans-ontológico,247 meta-
físico, para além do acontecimento fundacional de A. Badiou. É por isso que, de
pronto, o conservador Schmitt se transforma num pensador quase-revolucionário:

O povo (Volk), como titular do poder constituinte, não pode se atar a si mesmo e está
sempre facultado para dar-se todas as Constituições que estime convenientes. A Cons-
tituição é a lei fundamental, não porque seja imutável ou independente da Vontade
(Willen) da nação, mas porque nenhum dos órgãos que atuam com poder estatal pode
modificá-la (Schmitt, 1994, p. 137; 1999, p. 186).

244 O teórico do “aprendiz de mago” não imaginava a que ponto o aprendiz chegaria a ser
esperto no uso do poder ditatorial (como o será no caso de Adolfo Hitler).
245 Neste último, no livro IV do Contrato Social.
246 Este “criar” (zu schaffen) romântico é o de Schelling de 1841, e o de Marx da teoria da mais-valia
sobre a qual tanto tenho insistido (Dussel, 1990, caps. 8-10).
247 Ver o § 30 da Introdução da Crítica (volume III) desta Política.

125
Aqui se entende, agora, que esta Vontade, como fundamento ontológico, tal como
expressamos no § 14, é não somente a referência que funda a ordem jurídica vigente
(e a própria Constituição), mas a referência que reaparece quando a ordem ou a
totalidade vigente é posta em questão (seria a passagem dialética da Arquitetônica à
Crítica desta Política da Libertação) como vontade criadora.248 Ademais, a distinção
entre a mera “vontade estatal” (macroinstitucional)249 e a “vontade constituinte” da
comunidade política (que funda ontologicamente aquela) é fundamental. Hegel
tendeu a confundir o Estado com dita vontade de um povo e até a consagrou como
vontade divina ou, ao menos, do Espírito de um povo. O Estado nunca deve ser
confundido com a comunidade política que o institui, legitima, organiza, reforma
e recria, se for necessário (prévia aniquilação, se fosse imprescindível).
Schmitt somente usa (para explicar seu voluntarismo) o caso extremo do “esta-
do de exceção”. Para ele, a Alemanha estava numa situação similar. Sua conclusão
redundará no nazismo, mas, se tivesse partido da problemática posterior expos-
ta na Teoria do “partisan”, poderia ter fundamentado uma revolução dos pobres,
explorados e excluídos, o que, no entanto, teria sido uma Política da Libertação
desde a narrativa de uma Teologia da Libertação e não desde uma Teologia Política
pressuposta por toda a teoria política moderna.250
[282] Em sua obra Teologia Política (1922), Schmitt efetivamente enfrenta um
tema de suma atualidade. O fecundo jovem intelectual de trinta e quatro anos mos-
tra que “todos os conceitos relevantes da teoria moderna do Estado são conceitos
teológicos secularizados” (Schmitt, 1996, p. 43; 1998, p. 46). Entre ditos conceitos,
se encontra o de soberania, que é a secularização do “Deus onipotente transforma-
do em legislador” (Schmitt, 1996, p. 43; 1998, p. 46). Com efeito, o Deus que dá
a lei no Sinai se transformará, na Modernidade, no soberano. Por sua parte, o que
tem soberania é definido, pelo decisionismo, da seguinte maneira: “Soberano é o
que decide sobre o estado de exceção” (Schmitt, 1996, p. 13; 1998, p. 15). Com isto,
se situa mais além do “Estado de Direito” e da própria Constituição e das leis, em
referência a uma vontade que pode decidir-se a suspender a ordem legal e retornar ao
mero poder constituinte, que é como um Deus sobre a terra. Como para os Mu’ta-
zilitas árabes ou Duns Scotus, analogicamente, tudo depende da vontade, como
decisão firme, forte, política (não meramente legal) do líder, do povo.
E, assim, passamos ao quarto momento, porque o parlamentarismo de Weimar
deu demasiadas provas de sua indecisão, flutuação, incapacidade e impotência. Em

248 Muito mais criadora do que poderia imaginar Hans Jonas (1992). Ver mais adiante § 36 da
Crítica.
249 Como veremos mais adiante no § 22.
250 O romântico conservador católico estava muito longe dos revolucionários progressistas, demo-
cráticos latino-americanos cristãos que tinham em conta a “segunda Ilustração” (a de Marx),
os anelos das massas populares, indígenas, afro-latino-americanos, pós-coloniais.

126
1923, é publicada a obra A situação histórico-espiritual do parlamentarismo atual
(Schmitt, 1966c [ed. esp. 1996]). Como todas as obras de Schmitt, esta deve ser
contextualizada, relacionando-a à conjuntura política e não a elevando rapidamen-
te a uma teoria para todos os tempos. Schmitt é um profundo pensador situado.
Sua crítica é dirigida à lamentável situação política alemã.
Por sua vez, na famosa obra de 1927, que Schmitt denominou O conceito do
político (Schmitt, 1993b),251 nosso autor pressupõe o sentido debilitado da política
liberal. Schmitt, pelo contrário, pensa um “campo” atravessado por forças: “O
campo de relações (Beziehungsfeld) do político se modifica incessantemente conforme
as forças e poderes se unam ou se separem com o fim de se afirmar” (Schmitt,
1993, p. 9; 1998, p. 39).
No Estado moderno, a partir do século XVIII, se consegue eliminar a guerra
dentro das fronteiras do Estado. Nasce, assim, a polícia, força coativa do soberano,
e a política, no início somente como política exterior, como diplomacia. Da guerra,
da “guerra das religiões”, se deve passar, para além desta luta até a morte, a uma
luta disciplinada, restringida, civilizada (disso o sentido antigo de polícia como
“educação”, “bons costumes”).
Schmitt não pretende encontrar uma determinação que possa delimitar o con-
ceito do político de maneira “intemporal”, mas uma determinação que fixe um
critério dentro da “situação” (Schmitt, 1993, p. 9; 1998, p. 39). Além disso, não
se deve partir do Estado, porque “o conceito de Estado pressupõe o do político”
(Schmitt, 1993, p. 20; 1998, p. 49). Se “Estado é o status político de um povo or-
ganizado (organisierten Volkes), no interior de fronteiras territoriais” (1993, p. 20;
1998, p. 49), se é “um modo-de-estar (gearteter Zustand) de um povo” (1993, p. 20;
1998, p. 49), deve-se entender primeiro qual é a “essência do político” para, depois,
compreender este “estado” (com minúscula: status).
O político não é algo meramente negativo (frequentemente se diz: o político
não é o econômico; não é o ético; não é o direito, etc.). Em seu sentido amplo,
positivamente, de alguma maneira, “tudo é, ao menos potencialmente, político”
(Schmitt, 1993, p. 24; 1998, p. 53). Mas, de maneira mais estrita, devemos ainda
nos perguntar: qual é esta “determinação conceitual” (Begriffsbestimmung) que
constitui este fenômeno?252

251 Considere-se Nicoletti (1990, p. 259-320); Serrano (1996, p. 15-59).


252 Desde já queremos indicar metodologicamente que, da nossa parte, está claro que o conceito
do político supõe muitas determinações e que não pretenderemos escrevê-las todas nesta
obra, porque estão em constante transformação e são progressivas na história. Ao final
da história humana, poderia se saber a plenitude do conceito do político, mas seria tarde
para tentar sabê-lo. Trata-se, por outro lado, de descobrir as determinações arquitetônicas
(mais pertinentes na atualidade), necessárias, mas suficientes para poder manejar teórica e
praticamente o político. Ao final desta obra, teremos realizado um primeiro percurso por
estas determinações. Por isso, de certo modo, o objetivo de Schmitt de descrever a essência

127
O fenômeno do político somente se deixa apreender por referência à possibilidade real
de agrupação por amigos e inimigos, com independência das consequências que podem
se derivar dele para a valoração religiosa, moral, estética ou econômica do político
(Schmitt, 1993, p. 3; 1998, p. 326; p. 65).

O político é “uma tensão” sempre retida, limitada e disciplinada entre os di-


versas agrupamentos que podem se organizar em torno do indicado critério de
convergência ou enfrentamento, é dizer, reunir-se como “amigos” ou opor-se como
“inimigos” políticos (hostis). A esta inimizade deve ser oposta aquela do “inimigo
total”, o inimigo na guerra. Trata-se também de um inimigo público (pólemos), e
não meramente “privado” (ekhthrós). Jacques Derrida (1994) lhe dedica boa parte
de suas reflexões, em Políticas de la amistad.253
A “inimizade” política seria, então, uma dimensão existencial de grande inten-
sidade. Mas que não deve ser confundida com o assassinato do Outro na guerra, já
que isto “vai mais além do político e degrada o inimigo [...], o inimigo já não é aque-
le que deve ser rechaçado ao interior de suas próprias fronteiras” (Schmitt, 1993,
p. 37; 1998, p. 66). Schmitt agrega, ainda, que “todo antagonismo (Gegensatz) [...]
se transforma em oposição política, enquanto ganha a força suficiente (stark genug)
para agrupar de um modo efetivo os homens em amigos e inimigos” (1993, p. 4;
1998, p. 35; p. 67). Pouco a pouco, vai mostrando ter caído numa trivialidade ou
numa total ambiguidade; como pode definir-se uma determinação propriamente
política somente pela força ou intensidade desta relação? Se, num estádio de futebol,
os espectadores de duas equipes diferentes se enfrentam até matar a um dos opo-
sitores, pode imaginar-se maior intensidade? E, não obstante, não é uma relação
política. A agrupação de amigos e inimigos políticos já supõe e não funda o conceito
do político (para recordar a formulação de Schmitt com relação ao Estado). Na
realidade, Schmitt não toca o fundo da questão, toma como determinação deter-
minante o que é uma determinação determinada. Tentando esclarecer sua posição
obscura, escreve:

O político pode extrair sua força (Kraft) dos âmbitos mais diversos da vida humana, de
antagonismos religiosos, econômicos, morais, etc. Por si mesmo, o político não esgota
um campo próprio da realidade, mas somente um certo grau de intensidade da associação
ou dissociação de seres humanos.254

do político de maneira direta, imediata, e a partir de uma determinação ou critério está des-
tinado ao fracasso. Contudo, será útil porque nos mostrará uma determinação ou critério
defectivo do político, mas necessária (se a articularmos arquitetonicamente a muitas outras)
para ter uma visão mínima, porém, ainda não-suficiente do assunto.
253 No § 33, volume III desta Política da Libertação.
254 Pode-se observar que retorna a este critério absolutamente ambíguo e de nenhuma maneira
exclusivo do político.

128
O que aqui chama atenção é a negação da existência (embora seja analítica ou
própria de um objeto de observação, de ação, “existencial”, em suas palavras) do
campo político. Penso que quis expressar que o político atravessa todos os demais
campos. O certo é que somente admite a nota de ser uma experiência muito intensa,
mas não descobre outras determinações mais essenciais. Schmitt não consegue
articular convenientemente o tema. Ataca Laski por não ter “uma definição clara do
político” (Schmitt, 1993, p. 44; 1998, p. 73), mas acaba caindo no mesmo defeito.
Não tendo obtido uma definição clara do político, embora tenha indicado que
o Estado supõe o político, Schmitt expõe agora que “o Estado, em sua condição
de unidade essencialmente política, tem atribuição inerente e ius belli” (Schmitt,
1993, p. 5; 1998, p. 45; p. 74). Contra o liberalismo que define o Estado somente
como “estado de direito”, Schmitt quer defini-lo como decisão, com vontade de
poder declarar a guerra, isto é, decidir sobre a vida e a morte e desde o critério
(mais além da moral ou de toda normatividade) do amigo-inimigo. Ao inimigo se
pode declarar a guerra:

O sentido da guerra não está em que seja feita por ideais ou segundo normas jurídicas,
mas que seja feita contra um inimigo real. Todo turvamento desta categoria de amigo-
-inimigo se explica unicamente como resultado de tê-lo confundido com abstrações ou
normas de algum outro tipo (Schmitt, 1993, p. 50; 1998, p. 79).

Se o critério amigo-inimigo (que não foi fundamentado e, sim, simplesmente


formulado) opera para além de toda normatividade, caímos no irracionalismo
político: o inimigo real255 pode ser atacado politicamente256; “se desaparece esta dis-
tinção (amigo-inimigo), desaparece a vida política em geral” (Schmitt, 1993, p. 52;
1998, p. 81), e, por isso, na irracionalidade do voluntarismo, o único que fica como
último fundamento é a “força”:

Um povo que tenha perdido a força (Kraft) ou a Vontade (Willen) de sustentar-se na


esfera do político não vai fazer desparecer o político no mundo. O único que desapa-
recerá neste caso é um povo débil257 (Schmitt, 1993, p. 54; 1998, p. 82).

255 Quem determina o como e porque este ser humano ou grupo “como” inimigo? Com toda
evidência, o próprio Estado desataria uma guerra contra aquele que o próprio Estado definiu
como “inimigo”. Estamos diante do “argumento de Locke” (ver no volume I desta Política da
Libertação [147]), tautológico e autorreferente, analítico; eu defino a quem odeio como inimi-
go; logo, lhe declaro guerra e esta guerra seria politicamente legítima porque correspondeu ao
critério absoluto da política schmittiana. Estamos diante de um irracionalismo voluntarista.
256 Não posso dizer “legítima” ou “ justamente”, mas, simplesmente, que tem sido um ataque que,
por expressar-se dentro da oposição amigo-inimigo, é politicamente sustentável, afirmável.
257 O mesmo argumento de Hegel sobre a guerra e a “valentia” de um povo que não teme
guerrear.

129
Com toda evidência, como já indicamos, Schmitt pensa na prostrada Alema-
nha do primeiro pós-guerra e, por isso, se defronta com duas opções que considera
inadequadas. A primeira, esperar que, por uma Confederação de Nações (como
uma Liga das Nações), se pudesse alcançar algum proveito. Isto seria uma “figura
retórica vazia” (Schmitt, 1993, p. 6; 1998, p. 58; p. 86), que despolitiza o Estado,
pois, ao não ter inimigo, tudo ficaria desativado sob o manto da Humanidade (que,
para Schmitt, é igualmente um conceito vazio).
Outra despolitização, ainda mais profunda, é a conquistada pelo liberalismo
que, opondo-se ao Estado, lhe adscreve como finalidade somente a proteção do
mercado, ao qual é preciso permitir a existência sem intervenção, e que vincula “o
político a uma ética submetida ao econômico”, em nome do indivíduo, que é “outra
maneira de dissolver o político” (Schmitt, 1993, p. 7; 1998, p. 61; p. 90).
Se tivéssemos de ser críticos, se poderia formular um simples argumento, entre
tantos outros.258 O critério amigo-inimigo não é último nem fundamental, porque
o critério de ter alguns como amigos é, “em último termo”, o poder comunitaria-
mente perpetuar e aumentar a vida de todos os membros; por outra parte, inimi-
gos são os que, em último termo, podem pôr em risco a vida de um grupo de ami-
gos. Em última instância, a vida humana e a morte são os critérios determinantes
da amizade ou inimizade. Assim, ficaria indicado que, no político, certamente, há
amigos e inimigos, mas não é o último critério e nem sequer o principal (e, sim,
secundário e negativo, já que, para Schmitt, os amigos são os que têm o mesmo ini-
migo). Novamente, a morte (já que o inimigo é tal enquanto é risco de morte para
o vivente), e não a vida, é a referência fundamental, como para Freud e Heidegger.

3. A hegemonia em Ernesto Laclau

[283] Para Laclau,259 o político se joga dentro de um horizonte onde se cumpre


a lógica da contingência, campo estratégico político, como “luta pela hegemonia”
concreta, histórica, situada (nível A deste capítulo). Para desembaraçar a possibili-
dade da estratégia, eram necessárias categorias mais amplas que as tradicionais a
fim de descrever a hegemonia política em toda a sua riqueza. Por isso, Laclau en-
frenta os dogmatismos essencialistas de esquerda, os fundacionalismos fixistas ou
o economicismo do marxismo standard, que afirmava leis econômico-históricas
como se fossem naturais. Lança-se contra o dogmatismo de esquerda, que afirma um
determinismo que se funda em leis universais e que, por isso, nega a importância
do político. Pareceria que o próprio Marx é objeto da crítica de Laclau. Contudo,

258 Ver a crítica de Mouffe (2000, p. 36-57).


259 Ver Tese 6 de 20 Teses de Política (Dussel, 2006 [6.2]).

130
Marx, por antecipação, se defendeu contra estes determinismos dogmáticos quan-
do, em novembro de 1877, escreveu ao populista russo Mijailovski:

A meu crítico, porém, lhe parece pouco. A todo custo quer converter meu esboço histórico
sobre as origens do capitalismo na Europa Ocidental a uma teoria filosófico-histórica
sobre a trajetória geral à qual se encontram submetidos fatalmente todos os povos, quais-
quer que sejam as circunstâncias que neles concorrem [...]. Isto é me fazer demasiada
honra e, ao mesmo tempo, demasiado escárnio [...]. Tenho, aqui, pois, duas classes de
acontecimentos que, embora apresentando clara analogia, se desenrolam em diferentes
meios históricos.260

Para Marx, neste ponto inspirando-se e corrigindo Adam Smith, os atores


da vida econômica e, em especial, o mercado, cumprem umas poucas regras com
consciência (respeitam a propriedade privada, os contratos, as obrigações da com-
petição, a herança, a moral burguesa em geral), mas depois acontecem “regularida-
des” – tais como aumento de preços na escassez ou sua diminuição na abundância,
a baixa da taxa de lucro, etc. – “pelas costas dos atores”. São tendências, fatos
que cumprem “regularidades” não-intencionais (unintentional) que se executam
“como” (por analogia) leis da natureza. Para Adam Smith, era a “mão providente
de Deus” a que ordenava o mercado e produzia o aumento nacional de riquezas
não-intencionalmente (unintentional), a partir de ações intencionalmente egoístas.
O dogmatismo que Laclau combate em Marx existiu no marxismo standard, mas
não em Marx. Franz Hinkelammert diz no capítulo “Determinismo e autocons-
tituição do sujeito”:

Para Marx, trata-se de uma ordem que aparece como efeito não-intencional da ação
intencional e que é dominada por leis que são efeitos não-intencionais da ação inten-
cional. Elas constituem a ordem autorregulada do mercado, resultado do automatismo
do mercado [...]. Marx se expressa da seguinte maneira: “A livre competição impõe ao
capitalista individual, como leis exteriores inexoráveis, as leis imanentes da produção capi-
talista” (Capital, 1946, I, p. 2012) [...]. Ao se comportarem de maneira atomística, isto é,
fragmentária, os atores criam a inevitabilidade [aparente] do mercado (Hinkelammert,
1996, p. 244).

As regularidades não-intencionais aparecem fetichizadas como se fossem leis ine-


xoráveis à maneira das leis naturais, mas sua determinabilidade está muito longe da
necessidade físico-natural: são leis sociais. Hinkelammert acrescenta:

260 Escritos sobre Rússia, II (Marx,1980, p. 64-65). Ver Th. Shanin (1983, p. 134ss) e Dussel
(1990, p. 254ss). Também em “Notas marginais ao Tratado de economia política, de A. Wagner”,
Marx escreve: “Eu não construí jamais um sistema socialista, trata-se de uma fantasia dos
Wagner, Schaeffle e tutti quanti” (Marx, 1956, MEW, XIX, p. 34).

131
Esta ordem, assegurada pelas leis que atuam às costas dos produtores, produz efeitos
não-intencionais que minavam as fontes de toda a riqueza e, por conseguinte, as fon-
tes da vida – tanto do ser humano como da natureza externa ao ser humano. E o faz
porque a ordem se orienta por critérios abstratos de eficiência que têm a tendência de
apagar todas as possibilidades de limitar seus efeitos (1996, p. 246).261

Na esfera econômica, existe este tipo de determinação social que, sem ser natu-
ral, não pode ser negada de nenhuma maneira alguma – como parece fazê-lo La-
clau.262 Contudo, no nível estratégico político, o tema se apresenta de outra forma.
Com efeito, a classe social (a classe operária) é um momento socioeconômico
(como todos os subsumidos no capital enquanto trabalhadores assalariados), mas
pode ser considerada também como ator político. Na análise do campo político
– no nível que denominei estratégico, onde se exerce a hegemonia – não deve ser
negada a incidência da esfera econômica – que lhe presta sua materialidade ou
conteúdo, como veremos. Denominei de “redução formalista da política” a negação
da lógica material da reprodução da vida, especificamente do econômico, em favor
exclusivo da lógica política do estratégico. É um esvaziamento antimaterialista. O
conteúdo material não nega, mas determina o horizonte quase-autônomo (porém
articulável) do político com respeito ao material, à vida humana, ao econômico. A
questão da necessidade/contingência263 adquire, assim, outra significação.
[284] Efetivamente, Laclau faz uma análise excelente das posições políticas
posteriores a Engels. Rosa Luxemburgo havia caído num reducionismo político
ao ter, de um lado, dado prioridade à necessidade das leis econômicas, o que, por
outro, limita o nível tão original do contingente, possível e não-necessário. A “greve
de massas” é um “instrumento político” (Laclau, 1985, p. 8). Na Rússia, as greves
de 1905 articularam a dimensão política e econômica sem coordenação de ne-
nhum partido político, sendo de todas as maneiras um movimento revolucionário.
Na Alemanha, reinava a fragmentação da classe operária, dado o grau de desen-
volvimento do capitalismo. Isto é postergado indefinidamente pela revolução no
Ocidente? Não, porque como explica Rosa, os social-democratas devem “acelerar
os acontecimentos” (1985, p. 10), ação que conduz o “inexorável advento deste
período revolucionário”. Por isso, o partido social-democrata deve intervir para

261 E cita um texto de Marx: “A produção capitalista somente sabe desenvolver a técnica e a
combinação do processo social de produção, solapando ao mesmo tempo as fontes originais
de toda a riqueza: a terra e o ser humano” (El Capital, 1946, II, p. 424). Voltaremos sobre
estes temas mais adiante.
262 “It is not the case that the field of the economy is a self regulated space subject to endogenous
laws” (Laclau, 1985, p. 85).
263 Laclau usa esta oposição, sendo que o contraditório a necessário é o não-necessário e do
contingente é o não-contingente.

132
conduzir o processo político. As “leis necessárias” garantem a priori o êxito da
empresa (o que faz da política algo acessório que, a longo prazo, já tem seu destino
fixado), e Rosa – na interpretação de Laclau – força a semelhança entre Rússia
e Alemanha. Laclau indica, neste momento, que Luxemburgo perdeu todas as
vantagens de sua análise “contingente” na Rússia – contra o dogmatismo – ao não
tirar todas as consequências possíveis de sua análise (e de sua teoria coerente), que
tinha em conta a “espontaneidade” das massas, que “numa luta mais global contra
o sistema” supera os fins de uma classe no “interesse histórico” de um povo que
atua com “unidade simbólica” (1985, p. 11).264 O dogmatismo fixista, essencialista
e até fundacionalista das “leis necessárias” (que temos mostrado não ser a posição
de Marx mesmo), estreitou o possível campo de sua reflexão política.
Em Kautsky, a unidade necessária das leis econômicas e da estratégia política é
ainda mais estreita e simplista. O âmbito da política estratégica quase desaparece
sob o necessário reinado das leis econômicas: um economicismo dogmático, que
será o do marxismo ortodoxo (contra Marx): “a luta política [...] é uma luta econô-
mica” (Kautsky apud Laclau, 1985, p. 15). Plekhanov e o marxismo standard da
III Internacional serão uma variante do mesmo. A “lógica da necessidade” negou
toda “lógica da contingência” estratégico-política.
O revisionismo de E. Bernstein, que não é simplesmente um reformismo (das
trade unions ou do partido social-democrata) – como inteligentemente argumenta
Laclau (1985, p. 29ss) –, não propõe um “quietismo político e a desmobilização
corporativista da classe operária” (1985, p. 30). Mas Bernstein opina que a supe-
ração do capitalismo se realizará “através de uma intervenção política autônoma”
(1985, p. 30). Trata-se da autonomia do campo político ante o campo econômico
(por desgraça, Bernstein cai, por sua vez, num politicismo antieconomicista – co-
mento eu). Evidentemente, Laclau encontra esta posição “mais clara que todas as
representadas pela ortodoxia” (1985, p. 31). Laclau propõe corretamente não utili-
zar mais a teoria da infra/superestrutura (que tampouco foi uma posição “teorica”
de Marx, como provamos num outro lugar).265

264 Veremos, depois, que Rosa tem em mente, ao mesmo tempo, outros problemas que Laclau
não considera, tais como os marcos que permitem diferenciar um movimento puramente
“contingente” (contingencionalista) ou espontaneista, de um processo revolucionário – com
critérios materiais precisos, que Laclau já não tem em seu formalismo narrativista.
265 Laclau crê que é uma teoria “de Marx” e para isso se apoia num “texto débil” de Marx.
Porque nas quase dez mil páginas que Marx escreveu entre 1857 e 1867, seu período cria-
tivo teórico por excelência, não se encontram duas páginas seguidas dedicadas ao tema
super-infraestrutura. O texto da Introdução do Zur Kritik, de 1859, que quiçá tenha sido
escrito para “alegrar” Engels, cuja posição expressa aí (não nos esqueçamos da dependência
econômica de Marx de seu amigo nesta época), não tem intenção de “construir” uma cate-
goria teórica. O “Marx definitivo” (desde 1857) já não fala de ideologia ou superestrutura
(Ueberbau) e, sim, esporadicamente, Marx fala, em troca, de “fetichismo” – esta sim, é

133
Laclau estuda Sorel, em seu momento mais criativo, como expoente do sindi-
calismo revolucionário – que tanto influenciará Carlos Mariátegui. Sorel se move
no horizonte da “lógica da contingência” (1985, p. 36). Em lugar das “leis neces-
sárias”, faz referência a uma “força dominante que impõe sua vontade ao resto da
sociedade” (1985, p. 38): os “blocos” (que “operam como elementos que congregam
e condensam a força histórica”) hegemonizados na luta pelo proletariado, cons-
tituem a “subjetividade revolucionária” (1985, p. 39). Em seu melhor momento,
Sorel abre um horizonte político estrategicamente flexível, que incorpora o pensa-
mento moral, simbólico e místico da cultura popular.
Laclau, tendo chegado ao nível do contingente da estratégia política (contra
os dogmáticos que sustentam as leis necessárias economicistas),266 com mão de
mestre se oporá a dois novos reducionismos: as pretendidas “tarefas” da classe
operária, na política de “alianças”, como a “recomposição” de uma unidade perdida
no campo econômico – visão externalista de um classismo reducionista –, que são
fruto de um dualismo próprio do determinismo estrutural, que não pode fundar
a “lógica política do contingente”. Na visão dos “estágios necessários” (stagist) – que
de nenhuma maneira é a do último Marx, posterior a 1867, mas a de Engels –, a
classe operária deveria hegemonizar o processo, para terminar de cumprir a “tarefa”
(task) que a burguesia russa não pôde efetuar, graças a uma ação “contingente po-
lítica” complementar. É uma ação hegemônico-política cujo happy end é necessário
e dogmaticamente sabido a priori: a inevitável instalação futura do socialismo. A
relação “hegemônica” (1985, p. 50), com respeito a outros da “vanguarda”, é externa
e instrumental. É uma manobra ou manipulação que usa a democracia e a aliança
de classes sem “crer” nelas. Neste nível, o campo político não possui densidade pró-
pria – não existe “lógica da contingência”, diria Laclau, e, eu acrescentaria, não há

uma categoria teórica de importância para Marx agrandar. Laclau tira demasiadas con-
clusões de um texto casual, débil; central, por desvio, no marxismo standard posterior.
Marx pensa dialeticamente em “círculo” (ou melhor, em “espiral” crescente): a produção (o
mais “infraestrutural” possível desde a vida) determina materialmente o consumo. Mas o
consumo determina subjetivamente a produção: uma “produção determinada (bestimmte
Produktion) [pelo consumo]; um consumo determinado (bestimmte Konsumption) [pela
produção]” (Grundrisse, Prólogo; Marx, 1974, p. 20). Por sua vez, a produção determina
materialmente a distribuição, mas a distribuição determina formalmente a produção (as-
sinalando ou distribuindo o lugar na divisão do trabalho dos produtores, na conquista da
América, por exemplo). Da mesma maneira, o capital determina materialmente o Estado,
mas o Estado determina praticamente, como estrutura de poder político, a reprodução do
capital. Neste caso, o Estado seria um momento “infra” da “infraestrutura”. Cada deter-
minação é uma condição condicionante condicionada, em espiral, e não na casual metáfora
de super e infraestrutura, sem intenção teórica.
266 A questão que fica pendente é: como rearticulará o econômico e o político posteriormente?
Laclau já não pode rearticulá-los: é toda a questão da esfera material ou do conteúdo da
política.

134
possibilidade de uma normatividade política, já que se trata de um instrumentalis-
mo estratégico cínico, como “concepção reducionista e manipuladora” (1985, p. 61).
[285] A teoria da “hegemonia” de Gramsci aparece neste momento da argu-
mentação. De uma concepção onde a classe operária deve liderar o processo de
luta contra o capitalismo através de alianças, passa, “mais além das alianças de
classe” (1985, p. 66), a uma concepção da hegemonia como a “mais alta síntese”
de uma vontade coletiva, a qual, através da ideologia, se transforma no unificado
cimento orgânico do “bloco histórico” (1985, p. 67). O sujeito político não é mais
uma classe para Laclau. A “vontade coletiva” é a articulação política de forças his-
tóricas, antes dispersas e fragmentadas267. A “cultura” deste bloco não é a ideologia
superestrutural de uma classe. Ainda, Lukács e Korsch afirmavam um reducio-
nismo da “ideologia de classe”. Mas, de todas as maneiras, o “nacional-popular”
não supera em Gramsci de todo o horizonte de uma classe privilegiada que tem a
universalidade em sua negatividade extrema. Gramsci, na interpretação de Laclau,
não pôde, então, superar o “dualismo do marxismo clássico” (1985, p. 69), porque
havia ainda estabelecido uma última referência ao “princípio unificante” de “uma
classe fundamental” (1985, p. 69), de uma “última fundação ontológica”, essen-
cialista, que torna ambígua a “guerra de posições” (1985, p. 69). E como relaciona
fortemente o político ao econômico, sua análise cai no “caráter necessário” (1985,
p. 70)268 do marxismo clássico. De todos os modos, reconhece que Gramsci abre
a possibilidade da “luta política”,269 mais além da mera luta de classes, e constrói
as “bases para uma prática política da democracia compatível com a pluralidade
histórica dos sujeitos” (1985, p. 71).
Para poder produzir definitivamente o esvaziamento do “economicismo essen-
cialista”, Laclau critica o marxismo standard (mas parece que critica o próprio
Marx, embora não cite nenhum texto de Marx [1985, p. 75-85]). Estas páginas
mereceriam uma análise detalhada. Diz, por exemplo, que Marx não distinguiu
entre “relações de produção e relações na produção” (1985, p. 85), esquecendo, tal-
vez, a diferença que Marx faz entre a subsunção formal do “processo de produção”
(que produz mais-valia) e a subsunção material pela transformação do “processo
na produção” (pela introdução de máquinas na revolução industrial). Depois de
críticas que poderiam ser reinterpretadas desde uma releitura não standard de Marx,

267 Haverá que se aplicar todas estas distinções ao “bloco social dos oprimidos”, como veremos
mais adiante – e que Laclau não diz aqui.
268 Veremos, mais adiante, que uma adequada articulação do econômico não é cair na neces-
sidade ontológico-essencialista e, sim, que se evade de um formalismo politicista que não
sabe integrar o nível dos conteúdos da política (o aspecto materialista da lógica contingente
da estratégia política com marcos de referência claros que são os “princípios” de Rosa
Luxemburgo).
269 Sobre Antônio Gramsci, ver mais adiante o § 19 e o § 39 do volume III.

135
Laclau conclui que, na política, é necessário abandonar definitivamente o “redu-
cionismo de classe” (1985, p. 85) – leia-se: a classe já não tem significação política.
Em segundo lugar, mostra a centralidade dos “novos movimentos sociais” (1985,
p. 87).270 Em terceiro lugar, indica a necessidade da superação de uma posição
“fixista” (fixity) que não permite maior capacidade de movimento “nas posições do
sujeito em operações descentradas”.
Para Laclau, a “hegemonia” e a “articulação” são as categorias medulares da
lógica do campo político, no nível estratégico, onde os “elementos” fragmentários
se sobredeterminam (overdeterminate) relacionalmente (1985, p. 93), sem nenhum
a priori, fundamento, essência, classe, determinações de última instância, nem leis
necessárias. No nível estratégico da “formação social”, aparecem novas categorias:
“bloco histórico”, “vontade coletiva”, “massas”, “setores populares”, que já não são
“sujeitos transcendentais” (1985, p. 105), o que permitirá analisar “formações dis-
cursivas” mais fluidas (no sentido foucaultiano). O “sujeito” reaparece, mas como
“sujeito de posições” na “estrutura discursiva” (discursive structure) (1985, p. 115)271,
tudo num nível “contingente”. São os “antagonismos” (antagonisms) concretos no
campo político os que definem as relações objetivas dos discursos (1985, p. 124),
como o limite “externo à sociedade” (external to society) (1985, p. 125). Assim,
chegamos ao tema central: “O campo geral da emergência da hegemonia é o que
permite articulação de práticas, isto é, um campo onde os elementos não se crista-
lizam como momentos” (1985, p. 134).
“Qual é o sujeito de articulação” da “hegemonia”? Para a tradição marxista, foi a
classe operária. Agora, por outro lado, num nível estratégico-político, a construção
das relações de hegemonia não necessita mais se referir à classe operária como
última instância. A tarefa não é já a revolução anticapitalista, mas a “democracia
radical” (1985, p. 149-final). A transformação de fundo moderna é a “revolução de-
mocrática” (1985, p. 152).272 Na luta democrática, aparecem agora “novos antagonis-
mos”: são os novos movimentos sociais273 (mas desaparecem, pareceria, os antigos

270 Para mim, como veremos, os “novos movimentos sociais”, junto às classes, as etnias, margi-
nais, etc., são os atores da luta anti-hegemônica do “bloco social dos oprimidos”.
271 Vislumbra-se, assim, a posição definitiva e atual de Laclau.
272 “Our central problem is to identify the discursive conditions for the emergence of a collective
action directed cowards strugglnig against inequalities and challenging relations of suvordi-
nation” (1985, p. 153). E falando da revolução francesa como a revolução moderna propria-
mente dita, escreve: “The Declaration of the Rights of Man, would provide the discursive
conditions which made it possible to propose the diferente forms of inequality as illegitimane
and anti-natural, and thus make them equivalente as forms of oppresison. Here lay the pro-
fond subversive power of the democratic discourse” (1985, p. 155). O economicismo negou
toda legitimidade a todas as desigualdades não econômicas e cai num politicismo.
273 É uma questão que, entre 1970 a 1975, tratei incoativamente na obra Para uma ética da li-
bertação latino-americana (Dussel, 1973), sob o título “Erótica latino-americana, Pedagógica

136
antagonismos socioeconômicos). Mas, para Laclau, esta democracia radical não
deve renunciar à “ideologia liberal-democrática” (1985, p. 176) e, sim, ao contrário,
aprofundá-la e transformá-la numa “democracia plural” (1985, p. 176).274 Não
se teria caído num “formalismo” politicista? O próprio Lefort indica muito bem
como Maquiavel não esqueceu o econômico.275
[286] O livro anterior de Laclau (1977), intitulado Política e Ideologia na teoria
marxista, talvez pode ser melhor entendido desde este horizonte categorial. A par-
tir da experiência argentina e desde o pensamento althusseriano de Poulantzas,
que Laclau critica, nosso pensador já superava o estreito classismo do marxismo
da época. Sua excelente análise do “fascismo” (1977, p. 81ss) mostra a fecundidade
da categoria “povo” – categoria política de toda formação social – sobre a mera
“classe”: “O povo ou os setores populares, como supõem certas concepções,276 não
são abstrações retóricas ou uma concepção liberal ou idealista mescladas com dis-
curso político marxista” (Laclau, 1977, p. 108). O fascismo é, numa crise do “bloco
histórico no poder” e da classe operária (que não consegue unificar os ideais demo-
cráticos e populares de toda a nação), um claro exemplo de uma “forma extrema,
na qual as interpretações populares em sua forma mais radicalizada – jacobinismo
– pôde ser transformada num discurso político da fração dominante da burguesia”
(1977, p. 142). É uma análise original e muito rica que, da minha parte, vinha se
construindo de outro modo no México.277
Em “Para uma teoria do populismo”, Laclau mostrou, para além do reducionis-
mo economicista, a fecundidade de novas categorias não-classistas:

As classes não podem alcançar sua hegemonia sem articular o povo em seu discurso; e
a forma específica desta articulação, no caso de uma classe que consegue conformar o
bloco histórico no poder como um todo, para alcançar sua hegemonia, é o populismo
(Laclau, 1977, p. 196).

latino-americana, Política latino-americana, Antifetichismo latino-americano”, contra o


classismo da época. Mas, hoje, preciso criticar o anti-economicismo que perde a materiali-
dade nas lutas democráticas. É a questão de fundo que tratamos nos capítulos 5 e 6 da nova
Ética da Libertação (Dussel, 1998, p. 411ss).
274 Pergunto-me: não estamos diante de um “etapismo” (stagism) político, não já economicista,
como quando se cumpriam as “tarefas” (tasks) da burguesia? Será que uma democracia
social, popular, que sabe articular a esfera “material”, não pode desconstruir a democracia
liberal e reconstruir uma democracia sobre novas bases, e, portanto, não a assume simples-
mente como “liberal”?
275 “Maquiavel: la dimension économique du politique” (Lefort, 1979, p. 127-140).
276 É a posição de Horácio Cerutti no debate sobre o populismo.
277 Ver o parágrafo sobre “Estatuto do discurso político populista” (nesta Política da Libertação,
vol. I, § 11.2).

137
Logo, por uma análise não dogmática ou redutivamente classista, é possível ver
que Laclau escreveu sua obra Hegemonia, em 1985. Da mesma maneira e radicali-
zando suas posições, em Novas reflexões sobre a revolução do nosso tempo, expressa
desde o começo que, contra toda “defesa da razão”, “nossa posição é exatamente a
oposta, longe de perceber na crise da razão um niilismo que conduz ao abandono
de todo projeto de emancipação, vemos dita crise como uma abertura de oportu-
nidades sem precedentes para uma crítica radical de toda forma de dominação”
(Laclau, 1990, p. 3-4).
Citando pela segunda vez o “texto débil”, de 1859,278 de Marx sobre a infra e
superestrutura, o opõe à proposta de “luta de classes” do Manifesto (de 1847) – de
antagonismo sem contradição (antagonism without contradiction) –, opinando que
desta luta já não se fala no texto de 1859, tomando isto como uma dogmatização
(a da afirmação de “leis necessárias”, de contradição sem antagonismo) da posição
do próprio Marx,279 que teria caído num “dogma arbitrário” (Laclau, 1990, p. 7).280
Quer dizer, “de Spinoza a Marx, [a] contingência foi eliminada e radicalmente
absorvida pelo necessário” (1990, p. 20), com o qual o campo econômico apagou

278 Já comentamos mais acima porque é um “texto débil”.


279 Pareceria ter esquecido que, quando Marx trata a) a estrutura abstrata do capital (no tomo I
de O Capital), não se pode confundir com b) a luta de classes, que se situa num nível concreto
(como em O 18 Brumário). No nível abstrato, a luta não pode estar presente explicitamente.
Para Marx, então, a) a contradição essencial (capital-trabalho em abstrato) se desenrola (ex-
plicitando-se) b) no antagonismo concreto ou sociopolítico (classe burguesa-classe operária).
A contradição “ forças produtivas-relações de produção” (que não deve confundir-se com a
contradição “capital-trabalho”) não é o momento abstrato das lutas concretas de classes.
Se alguém expressar que, em 1859 ou no tomo I de O Capital, Marx não fala de luta de
classes, é simplesmente ter esquecido ou negado a posição metodológica de Marx, que se
redescobriu desde Rosdolsky (Ver Dussel, 1985, 1988 e 1990, onde discuto em diversas
frentes o tema dos graus de abstração, níveis de profundidade e complexidade nos quais se
situam as “categorias” na estrutura do discurso de Marx, por certo uma questão bastante
desconhecida pelo marxismo standard).
280 Marx não funda a “história” sobre este “dogma”, mas, sabendo que estas crises podem trans-
bordar a contradição, funda a possibilidade das “crises” do capital, estabelecendo um novo
tipo de relações que se situam num grau mais elevado de complexidade, de contradição,
até o ponto em que dita contradição seria intransponível. Intransponibilidade na história
que não pode ser antecipada com precisão e menos ainda com a claridade que o pretendia
o marxismo standard. Marx escreve que o capital supera sempre suas fronteiras, já que sua
produção se move, constantemente, em meio a contradições ultrapassadas, porém colocadas
de novo constantemente (Grundrisse, IV, 1974, p. 313). Laclau não consegue diferenciar a
posição “aberta” de Marx com a mais dogmática de Engels. Na p. 46, reconhece que Marx,
numa dada questão russa, mostrou uma posição mais flexível (ver o amplo tratamento do
tema em minha obra (1990, p. 243ss): “A viragem: a questão russa 1868-1877), mas não
sabe donde vem essa maior flexibilidade de Marx, nem a obstinação dogmática de Engels
– que a social-democracia alemã herdará da Segunda Internacional e a Terceira soviética.
Trotsky, sem ser Stálin, não deixou de ser por isso um “ortodoxo” na questão.

138
do mapa o político. Para Laclau, são os antagonismos concretos, sem nenhum
conhecimento prévio nem necessário, os que permitem descobrir o horizonte pró-
prio da contingência e a luta política. Disso se deduz a “radical contingência de
toda objetividade” (Laclau, 1990, p. 26).281 Não há significantes fixos, mas “signi-

281 Numa resposta a Geras (Laclau, 1990, p. 103ss), se entrevê uma questão de fundo. Com
razão, argumenta que uma “coisa” (thing) não pode ter um “ser” (being) senão integrado a
um “ jogo de linguagem” (language game, ao modo Wittgenstein). Quer dizer, uma “pedra”
não leva inscrito em sua “realidade” (digo eu agora) o “ser” um projétil (1990, p. 104-105).
Do mesmo modo, seria absurdo perguntar-se se a estrutura atômica é “verdadeira”, se não
tivesse um marco teórico tal como a “teoria atômica” (questão amplamente debatida, por
exemplo, por Putnam). Disso se conclui: “A verdade, fática ou de outro tipo, sobre o ser
de um objeto se constitui dentro de um contexto teórico e discursivo” (1990, p. 105). Em
política, todo acontecimento político adquire um sentido dentro do contexto da luta pela
hegemonia, fundamentalmente desde os antagonismos concretos e imprevisíveis que se
constituem em dito horizonte estratégico. Mas o problema começa quando se opina que a
“verdade prático-estratégica” de um contexto concreto é o último marco de determinação da
verdade e da validade (legitimidade) da ação, negando, por exemplo e como veremos, outros
marcos anteriores, em dois níveis: o da vida humana como condição da própria hegemonia
(“Não se deve simplesmente assassinar o antagonista político!”, do contrário, a hegemonia
desaparece como tal) e o da aceitabilidade de dito antagonista como possível participante
num certo marco de simetria democrática como validade (“Deve-se aceitar, ao menos como
pretensão, o respeito a uma certa simetria na participação no campo político contingente dos
antagonistas”, que não se pode simplesmente eliminar por simples violência física). Vale
dizer, a hegemonia pressupõe “certas regras de jogo” sem as quais desaparece como tal.
Estas “regras” são normativas, como veremos mais adiante. O ser “projétil” da pedra não
está inscrito na “realidade” da pedra (não falaria de “ser” (being) da “pedra”, mas somente
em sua “função-sentido” dentro de um “sistema contingente”). Isto não quer dizer que
na “realidade” a pedra não seja pesada e dura, já que estas propriedades “reais” são as que
“permitem” poder ser usada como “projétil”. A um quilo de algodão não se pode constituir
como “projétil”. O “ser” do projétil, ao contrário, pode ser predicado da pedra “real” por
suas propriedades “reais” (ou teríamos caído num idealismo, frequente na Modernidade).
De todos os modos, para Berkeley, embora não o “perceba”, se uma pedra “real” o atingisse
na cabeça, de qualquer maneira faria nela um “galo” real. Desta maneira, Laclau hiposta-
siou, fetichizou, o mero horizonte funcional do sistema (a contingência política certamente
existente e autônoma), esquecendo os critérios de vida-morte como marco (marco normativo
que delimita também a ação contingente política, sem o qual não se poderia julgar como
autoritária a hegemonia nazista a diferença de uma hegemonia popular, e não meramente
populista). Há certas propriedades de “realidade” (nesse caso, “propriedade real”, não o
ser “projétil”, mas o ser “dura” e “pesada”, embora se aceda sempre e inevitavelmente a ditas
propriedades desde uma língua, um mundo, uma cultura, um campo contingente político,
etc.), cuja objetividade não discuto aqui em profundidade, mas que Laclau problematiza
redutivamente com não suficiente complexidade (ver minha Ética da Libertação, 1998, no
“Índice de temas”, as palavras: “verdade”, “vida”, na p. 643). A coincidência com Richard
Rorty não é casual. Quando um movimento popular exclama: “Não deves me matar” (que
é o mesmo que “Paz, pão e trabalho!”), para atribuir ao que o mata de fome sua responsabi-
lidade, não pode simplesmente esperar que o dominador se digne “conversar” com eles (ao
modo Rorty) e, sim, que o julgue desde o critério “vida-morte”, “referência” que emoldura

139
ficantes flutuantes” (1990, p. 28).282 Ademais, dada uma série de decisões, pode
seguir-se outra decisão inesperada. No nível estratégico, então, se dá a indecidi-
bilidade (undecidable), porque não pode “decidir-se” nem “dizer-se” o que há de
resolver-se a priori. Somente a estrutura imprevisível contingente, concreta, pode
situar a luta hegemônica política como “luta de posições” (Laclau, 1990, p. 38). O
“deslocamento” (dislocation) é o fenômeno da dependência do sentido dos aconte-
cimentos contingentes com respeito a um momento que sempre lhes é exterior, e
daí a “inequivalência” (unevenness) (1990, p. 40) das relações de poder numa estru-
tura “descentrada” (diríamos nós: policrática): “O mundo não está dado, mas deve
construir-se incessantemente” (1990, p. 40). Tudo isso – de importância no nível
da contingência política – leva Laclau a adotar, neste momento, um contingencia-
lismo quase-rortyano, no qual tinha suspeitas fundadas de que já não lhe permitiria
descobrir critérios que conduzissem à ação política estratégica a se encaminhar não
somente a um exercício da hegemonia pela hegemonia, mas em seu momento, a exer-
cer uma hegemonia em favor dos oprimidos283 nos sistemas históricos.
[287] Sua conclusão é que “Marx claramente permanece dentro do campo idea-
lista [...] pela afirmação da racionalidade do real” (Laclau, 1990, p. 108), porque
teria afirmado que “há uma lei última do movimento que pode ser conceitualmente
captada [como] leis inexoráveis” (1990, p. 108). Conforme já exposto, Marx, por sua
vez, afirma que a realidade não pode ser nunca completamente conceitualizada (não
pode dar-se transparentemente “na cabeça”), embora existam “regularidades” que
se dão “às costas” ou não-intencionalmente pelos atores e que podem ser chamadas
de leis sociais, também no nível das estruturas econômicas (com um certo grau de
abstração). No nível contingente político, entre a fortuna e a virtù de Maquiavel, se
dá a “lógica da contingência” na luta pela hegemonia, apresentada por Laclau fora
de todo dogmatismo. Este dogmatismo consistiria em mesclar indevidamente o
nível abstrato necessário do econômico, negando o nível contingente do político,
em cujo nível concreto o próprio Laclau não admite um “caos” irracional, mas busca
uma “lógica” como “regularidade” da razão estratégico-política. Porém, ao analisar
esta segunda questão, nega absolutamente a primeira: “ joga a água (o dogmatismo)

todo o horizonte teórico ou contingente político possível (Hinkelammert, 1996; Foucault,


1997): “Eis que, agora, aparece um poder, que chamaria de regularização, que consiste, ao
contrário [que na época clássica], em fazer viver e em deixar morrer” (1990, p. 220). Este
“fazer viver” desta maneira é um novo tipo de dominação, ainda nos anos setenta. Nos no-
venta (questão que Foucault não podia pensar), mudou a ordem: fazer possível o mercado é
a ocupação da política, deixando viver-morrer a população “descartável” dos vencidos pela
competição. A vida humana já não conta: somente conta o mercado. Por isso, agora, o marco
vida-morte é mais relevante que nunca.
282 “floating signifers”.
283 Questão que será tratada no volume III da Crítica. A própria noção de “oprimido” perde
totalmente sentido num contingencialismo radical e coerente.

140
com a criança (a racionalidade econômica) da bacia”. Isto o impedirá, depois, de ter
marcos para distinguir, entre outras categorias, o “popular” do “populista”.
Em Emancipação e Diferença – em inglês Emancipation(s) (Laclau, 1996),284 –
continua com a mesma temática em coerente desenvolvimento e aprofundamento.
A “lógica da contingência” de múltiplos e fragmentários movimentos sociais exige
opor-se firmemente à última etapa “transparente” da Ilustração (identidade sem
contradição), aos dualismos revolucionários (antigo/novo radical), ao “fundaciona-
lismo” fixista, ao racionalismo dialógico e abstrato que não sabe articular univer-
salismo e particularismo no tema da “representação”. A partir de Saussure, se pro-
põe um “significante vazio” (empty signifiers) (Laclau, 1996, p. 69ss [ing., p. 36ss]).
Sendo que todo sistema tem limites, “se a sistematicidade do sistema é resultado
direto do limite excludente, é somente esta exclusão a que funda (that grounds) o
sistema como tal” (1996, p. 73 [ing., p. 38]). Se isto fosse tomado materialmente,
não seria aceitável, já que os teóricos do sistema, como Niklas Luhmann, ficariam
desconcertados diante desta afirmação. É evidente que todo sistema tem um en-
torno e um limite, mas o sistema não se funda (grounds) “desde” o antagônico285
do sistema. Deste enunciado não se poderia deduzir materialmente que “o sistema
não pode ter um fundamento positivo”. Se o sistema “ jogo de xadrez” – recordan-
do o exemplo de Wittgenstein – não tivesse regras, se poderia dizer que não tem
“fundamento positivo”; mas, neste caso, não se poderia julgar o xadrez porque
ninguém sabia como mover as pedras de semelhante jogo. Todo sistema pressupõe,
materialmente, um fundamento positivo autorreferente ou não é sistema.286 Neste

284 O “s” de Emancipation(s) indica o plural das diferenças, o que eu denomino no plural “frentes
de libertação” ou atores específicos da luta política, a dos novos movimentos sociais que se
comprometem numa luta pelo reconhecimento de novos direitos.
285 Tem profundo sentido a proposta de Laclau, de que é o “antagonismo” que define as forças
no campo político. Entretanto, seria um “formalismo” se os “elementos” internos do siste-
ma não tivessem nenhum conteúdo. Seu “conteúdo” seria dado pela organização das forças
ante o antagônico. Por exemplo: a libertação feminina parte do conteúdo da corporalidade
da mulher objeto sexual e dominada no sistema machista, patriarcalista. O movimento de
mulheres se organiza como antagonismo ao machismo, mas desde seu conteúdo negado. Não
é a negatividade da “mulher-objeto” o que nega a mulher. Além disso, o “antagonismo” da
mulher excluída somente aparece como “novo movimento social” quando afirma seu con-
teúdo distinto, a Diferença, ante o sistema que anteriormente se afirmava positivamente
como falocracia. Não se pode dizer que o sistema se funda no antagonismo, já que se situa
alguém como antagonista “desde” uma positividade que tem sido previamente afirmada (ou
não haveria algo antagônico). Por isso, Levinas tem necessidade de descobrir uma Totali-
dade afirmada como negação do Outro, mas o Outro nunca pode fundar a Totalidade, mas
sim, ao contrário, de-fundá-la. O sistema é autorreferente, autofundado, ou não é sistema
– nisto, Niklas Luhmann tem toda razão.
286 É neste sentido “material” (de conteúdo) e sincrônico que Marx pode falar de um “fun-
damento” (Grund) do capital: “o valor que se valoriza” (Dussel, 1985; 1988; 1990). Mas,
Laclau deixou de lado esta “materialidade” em uma tentativa de generalizar uma posição

141
caso, não se vê, além disso, como o sistema possa se apresentar como uma “ameaça”
(1996, p. 74 [ing., p. 38]), se ele não é “ameaça” contra o fundamento do sistema
(contra sua conservação, contra o conatus esse conservandi, tão criticado por Max
Horkheimer).
Porém, Laclau está pensando em outra coisa, em outro nível, num nível estra-
tégico, político, formal, contingente, um nível no qual as “diferenças” funcionais
de um sistema de forças (à maneira de Foucault) se codeterminam reciprocamen-
te, sem que nada possa, por antecipação, pretender ter “captado” teoricamente o
significado positivo do momento dinâmico, o hic et nunc, por exemplo, de uma
situação concreta do campo político de um país. Neste caso, a aparição de um
“antagonismo” claro define e “enche” de significado a “situação concreta” que, antes,
permanecia como um “significante” potencial, porém ainda “vazio”. No caso de
uma ação estratégica dentro do campo político, o antagonista determina (não fa-
laria “funda”) o significado da complexa estrutura contingente e prática de forças
que agora “enchem” de “sentido” a “situação concreta”. Agora sim, a aparição do
“antagonista” ordena como “ameaça” todos os “elementos” do sistema na luta estra-
tégica. O “significado pleno” é impossível (porque se trata do que é preciso realizar
pela razão estratégica) e, por isso, é um “processo significante”: o “sentido” vai se
dando, principalmente desde os “antagonismos”.287
Por exemplo, a “unidade da classe operária” era, para Rosa Luxemburgo – na
excelente análise de Laclau – o efeito de lutas parciais e contínuas contra a repres-
são do sistema, o que dá unidade às lutas parciais. Quer dizer, “o que estabelece sua
unidade, conclui Laclau, não é, por conseguinte, algo positivo que elas comportam,
mas algo negativo: sua oposição ao sistema” (1996, p. 77 [ing., p. 40-41]).288 Neste
caso, o “sistema” dominante se apresenta cheio de significado desde as lutas diferen-
ciadas (como a luta operária é “anticapitalista”, como a luta feminista é “antipatriar-

antifundacionalista – que é perfeitamente explicável como desconstrucionismo antidogmá-


tico, ainda que já não seja válido quando é preciso “construir” novas alternativas políticas.
287 “O Outro”, a vítima, pode ser interpretado pelo bloco histórico no poder como o inimigo;
os judeus, para Hitler. Este seria o marco teórico de Carl Schmitt, a dialética do “amigo/
inimigo”.
288 Alguém poderia objetar, e será minha posição, que o “positivo” destas lutas, que unificava
por dentro o fragmentário de suas lutas, era o “desejo de reproduzir a vida” dos operários
sob contínua ameaça de extinção. A “negação” do inimigo é incompreensível sem a prévia
“afirmação” do que o inimigo “nega”. Neste ponto, Claude Lefort esquece igualmente que as
massas populares nas quais Maquiavel recomenda ao príncipe se apoiar, não pretenderam
somente “opor-se” como puro desejo “vazio” (Lefort, 1972), mas que desejam viver e viver
qualitativamente melhor (princípio material positivo que “move” os novos movimentos so-
ciais em suas maneiras “diferenciadas” de afirmar a vida: como gênero as feministas, como
raça os que lutam contra a discriminação racista, como economia os que mobilizam as
nações pobres ou as “classes” oprimidas, etc.).

142
cal”, como a luta ecológica é contrária aos que “destroem” a vida na Terra, etc.).
Se nos situarmos agora no nível concreto dos interesses da comunidade política
concreta, um interesse poderia exercer a função de unidade equivalencial de todas
as diferenças, sem conteúdo a priori para Laclau.289 Pode-se coincidir com Laclau
afirmando que uma diferença (por exemplo, o interesse do feminismo ou ecologis-
mo) pode ser “considerada como hegemônica, quando não se fecha numa estreita
perspectiva corporativista e, sim, que se apresenta a amplos setores da população
como o agente realizador de objetivos mais amplos, tais como a emancipação ou
restauração da ordem social” (1996, p. 82 [ing., p. 43]). Ainda de maneira mais
clara, volta, tempos depois, sobre o conceito de hegemonia quando escreve:

O poder que é total deixa de ser poder. Pelo contrário, se temos uma distribuição
desigual do poder, a possibilidade de assegurar a ordem social resulta desta desigual-
dade e não de um render-se ante o poder total do soberano. Neste caso, a pretensão do
setor dominante dependerá da habilidade de apresentar seus fins particulares como os
que são compatíveis com o funcionamento (total) da comunidade – no qual consiste,
precisamente, a operação de hegemonia (Laclau et al., 2000, p. 54).

[288] Contra certa visão fragmentária, adicta aos pequenos relatos parciais,
Laclau termina por indicar que “não existe futuro para a esquerda, se é incapaz de
criar um discurso expansivo universal, construído positivamente, e não um discur-
so meramente contra a proliferação dos particularismos das últimas décadas”290
– coincidindo no que vínhamos indicando contra o pensamento pós-moderno do
mesmo Laclau. A hegemonia seria a “particularidade”, um setor social ou político,
que chega a formular a “universalidade” que se torna hegemônica, ao responder aos
requerimentos da maioria dos atores políticos. Mas dita universalidade não signi-
fica que os conflitos são eliminados e, sim, que “na política democrática, conflitos e
confrontações, longe de serem um sinal de imperfeição, indicam que a democracia
está viva e habitada pelo pluralismo” (Mouffe, 2000, p. 34).
Detenhamo-nos um momento na interpretação que Slavoj Žižek (2001, p. 187-
207) desenvolve sobre o conceito de hegemonia em Laclau. Partindo de que “cada

289 De novo, esta “unidade equivalencial”, que é a “portadora” de sistemas particulares perfor-
mativos (e, de minha parte, interessaria acrescentar: de oprimidos ou excluídos diferen-
ciais), tem o significado de ser a “comunidade de vida e de legitimidade soberana” como
última referência de todo campo político estratégico, onde um nível particular sistêmico
pode ser “hegemônico” conjunturalmente com respeito aos outros elementos particulares
e suas diferenças funcionais (e exclusões diferenciais).
290 Laclau et al. (2000, p. 306), “Constructing universality”. Recordo o debate com Laclau na
Duke University, em 1998, na presença de Walter Mignolo e outros amigos. Na ocasião,
critiquei fortemente a aproximação ao pensamento fragmentário e cético pós-moderno de
Richard Rorty. Vejo uma mudança nesta intervenção de Laclau.

143
noção ideológica aparentemente universal está sempre hegemonizada por algum
conceito particular que colora sua universalidade e explica sua eficiência” (2001,
p. 188) e como este conteúdo universal é sempre no começo vazio, “a política é a luta
pelo conteúdo do que significa vazio que representa a impossibilidade da sociedade”
(2001, p. 190) enquanto plenamente realizada, como o “Real” de Lacan, pelo que
não há política fora da ordem do significante. Na Polônia, em certo momento, a
“solidariedade” contra a nomenclatura do Partido foi o significante vazio; posterior-
mente, foi a honestidade, quando o governo pós-socialista se encarregou do exercício
político. O saber “ler” (legibilidade) ou interpretar os acontecimentos, como “luta
pela interpretação” (hermenêutica política), determina o sentido da realidade po-
lítica. Por isso, a luta política é “entre a plenitude ausente do universal [hegemônico]
e um conteúdo particular contingente que atua como substituto desta plenitude au-
sente” (2001, p. 193). Na Nicarágua de fins dos anos noventa, igualmente, a hones-
tidade se transformou no objetivo hegemônico, no qual a Frente Sandinista já não
tinha a possibilidade de uma liderança sem disputa (dada sua própria corrupção).
Žižek se pergunta: “Como entra a subjetividade neste processo de universa-
lização hegemônica? Para Laclau – em resposta – é o agente que realiza a opera-
ção de hegemonia, o que costura o universal com um conteúdo particular” (2001,
p. 196); mas esta “operação” é puramente ideológica. “Quer dizer, a questão filosó-
fica fundamental que espreita por detrás de tudo isso é a do formalismo kantiano
(2001, p. 197). E, num sentido muito lacaniano, conclui terminantemente: “Não
encontramos aqui a lógica paradoxal do desejo como constitutivamente impossível,
sustentada por uma falta constitutiva (a plenitude ausente do significante vazio),
que nunca poderá ser remediada por um objetivo positivo?” (2001, p. 198). Efetiva-
mente, é preciso saber situar o impossível,291 que marca um limite ao político (que é
somente o possível), mas um impossível, como postulado político (que estudaremos
na parte Crítica mais adiante), que abre um espaço ao possível, onde poderá situar-se
a problemática de Laclau sobre o “universal vazio” que sempre se afasta, como na
sombra, mas que, ao invés, é necessário para a ação estratégica.
Como se pode observar, Laclau permanece fiel à sua intuição originária que lhe
vem ditada da sua experiência política da Argentina no começo dos anos setenta –
que é também minha experiência e coincidindo na mesma intuição antidogmática.292
Trata-se da originalidade fecunda do populismo que exige superar o reducio-

291 Ver o Esquema 17.01 no começo deste § 17.


292 Isso se encontra confirmada, até nos detalhes, no caso do Zapatismo atual no México, onde
cada movimento chama “toda sociedade civil” a cumprir com seus deveres diferenciados,
lutando por um projeto de “hegemonia” no qual os indígenas se comprometem a cumprir sua
tarefa específica, interpelando toda a sociedade civil desde uma instrução que aglutine o todo
social: “Para nós nada, para todos tudo”. É a interpelação de uma “diferença” que se afirma
como “diferença”, mas que interpela desde o “todo social” do campo estratégico político.

144
nismo dogmático, classista. Disto se desprendem muitos desenvolvimentos; tanto
a crítica ao “fundacionalismo” abstrato, a compreensão adequada do espectral da
hegemonia, a representação hegemônica como significante desde o horizonte de-
mocrático, a “democracia radical” (que terá de ser modificada) de Laclau: “Uma
sociedade democrática não é aquela na qual o melhor conteúdo domina de modo
inquestionável, mas aquela na qual nada está definitivamente adquirido, existindo
sempre a possibilidade do questionamento” (Laclau, 1985 [trad. Esp. p. 176]).
Situando-nos na Crítica desta obra, poderíamos fazer a Laclau algumas per-
guntas, já que se vislumbrariam algumas dificuldades que esta posição, tão cria-
tiva no nível da “lógica da contingência”, possa trazer junto quando se trata de
se perguntar por marcos de discernimento mais radicais, como, por exemplo, os
necessitados para motivar e explicar os novos movimentos sociais, tais como o
feminista, dos marginais e excluídos, das raças não-brancas discriminadas, das
classes oprimidas, das culturas indígenas, dos países pós-coloniais, etc. E, por úl-
timo, para responder à seguinte pergunta: qual é o objetivo prático das lutas destes
movimentos sociais? O que os move? Seria um desejo vazio em função do exercício
do poder desde a pura vontade de hegemonia autorreferencial?
Estas perguntam têm sentido porque a luta contra o dogmatismo de esquer-
da, no final da “guerra fria”, era essencial, já que despejava o horizonte para uma
revolução socialista com maiores possibilidades estratégicas de êxito e como cum-
primento das interpelações populares, especialmente no mundo periférico ou pós-
-colonial. Tudo isto muda de significado quando, desde 1989, o dogmatismo de
esquerda praticamente se desvanece (ao menos como pensamento hegemônico da
esquerda). Que discurso é o que deveria se desenhar para poder “desconstruir” a
política dominante universal, no tempo do capitalismo transnacional atual e ante o
império norte-americano em processo de globalização? O “dogmatismo de esquer-
da” já não é ideologia sustentável. Para que desconstruí-lo, então? Mas não estarão
também demolidos, no trabalho de “desconstrução” do fundacionalismo e do essen-
cialismo do dogmatismo de esquerda, os marcos necessários que podem permitir,
hoje: a) a possibilidade de uma desconstrução do neoliberalismo capitalista (o único
“dogma” realmente existente, a “Grande Narrativa” vigente – tarefa que há mais de
quinze anos vem efetuando Franz Hinkelammert e outros, junto à desconstrução
do dogmatismo do antigo socialismo real, desde o horizonte do próprio Marx –) e,
sobretudo, b) a construção de alternativas positivas que o povo empobrecido ne-
cessita? Não seria ambígua, se não reacionária, a tarefa de desconstrução de um
dogmatismo de esquerda inexistente, sem endereçar a potência desconstrutiva,
depois do final da “guerra fria”, contra os discursos do capitalismo transnacional
no processo de globalização? R. Rorty não tem marcos referenciais materiais para
variar sua ação demolidora, mas, o que é ainda pior, a ironia, a contingência e a soli-
dariedade do we americans, é um aterrador etnocentrismo, quando se trata de uma

145
nação armada até os dentes com uma vontade de total dominação militar mundial.
O que significa, depois de 1989, “hegemonia” sob a geopolítica norte-americana
manifestada na guerra do Golfo, de Iugoslávia e novamente no Iraque? Deixar fora
do horizonte contingente da política e da lógica o poder do Estado (a “sociedade
política” gramsciana), a economia, o militar, a luta anti-hegemônica do bloco social
dos oprimidos... ficou-se com muito pouco de político entre as mãos: “O único
que teríamos, escreve Laclau, é a sucessão descontínua dos blocos hegemônicos
que não estão governados por nenhuma lógica racionalmente apreensível” (Laclau,
1996, p. 203), sem nenhuma articulação de conteúdo em referência às exigências
da reprodução da vida das vítimas a ponto de morrer... de fome, de desprezo, de
exclusão, sendo alvo das bombas e de ações punitivas antiterroristas... num sistema
que se globaliza. Mas, deixando-nos levar pelo discurso, adentramos no que será
parte do desenvolvimento da Crítica desta obra.

146
§ 18. O PODER CONSENSUAL POLÍTICO

[289] O tema deste parágrafo tem a maior importância porque deve articular
uma vez mais um momento material (a vontade) e um momento formal (a razão
discursiva)293 sem última instância e, desde esta coimplicação (codeterminação),
tem-se que distinguir claramente entre uma ação instrumental (da razão técnica
meio-fins) e uma ação propriamente estratégica (como expusemos indicativamente
no § 17), que se apresenta como uma ação prático-política que inclui maior com-
plexidade e maior normatividade do que a meramente instrumental. De sua parte,
para que o ator da ação estratégica possa ter uma tal capacidade de ação, tem
que exercer o poder, fruto da unidade da pluralidade de vontades cujo consenso é
efeito da razão discursiva. Nem voluntarismo político à maneira de Carl Schmitt
e nem racionalismo formalista segundo Jürgen Habermas. Ambas são reduções
que desejamos subsumir em maior complexidade, o que nos permitirá começar a
distinguir entre o poder político em última instância como “poder consensual” da
comunidade política (potentia), do poder hegemônico, que é possibilidade empírica
de seu exercício possível (potestas), que posteriormente deveremos, por sua vez,
separar semanticamente do exercício da dominação política, à maneira de Weber,
da mera governabilidade das instituições políticas como técnica de controle e da
violência da tirania, ditadura, autoritarismo ou totalitarismo. Sem estas distinções
mínimas, uma política normativa é impossível. Se o exercício da força nestas cinco
dimensões não pode ser discernido com critérios normativos, cairemos inevitavel-
mente numa confusão na qual toda normatividade política cedeu o lugar à estra-
tégia cínica da dominação ou violência, que se confunde com um suposto caráter
“trágico” ou “fáustico” da política enquanto tal.
Vimos que o Querer-da-vida é a vontade. Quando a vontade “pode-pôr” os
meios para a permanência e o aumento da vida, dissemos que “tem” poder. Dito
poder é o mesmo “poder-pôr”, como faculdade ou capacidade. O mero poder da
vontade move até o querido, como mediação para a vida, sendo como tal somen-
te um querer “cego”, se não contar com o discernimento da razão. Neste caso, a
razão prática exerce o papel de ser uma mediação a fim de “unificar” a pluralidade
das vontades, já que a vontade é impotente quando o poder de outras vontades se
lhe opõe: neste caso, a contradição ou o mero conflito resulta em imobilidade.294

293 Na obra 20 Teses de Política (Dussel, 2006), ver Tese 2.2.


294 A essência da política não pode ser um mero solucionar de conflitos. O conflito dissolve o
poder enquanto impede o acordo das vontades. Mas a fonte de onde surgem os conflitos
(interesses particulares ou confrontados enquanto aos modos diversos da permanência e
desenvolvimento da vida comunitária) é o querer-viver como vontade. E este mesmo que-
rer-viver, não já como querer particular e, sim, universal, é a forma do poder-viver graças
à unidade mancomunada das vontades. O conflito é efeito e debilidade; não é causa nem

147
Por isso, é necessária a articulação do momento motor ou motivacional (material)
das vontades com o momento iluminativo ou unitivo (formal) da razão. Vontade e
razão, como Horus e Thot, são duas dimensões da vida humana e lhe estão subor-
dinadas no processo da evolução e da história para sua permanência e aumento,
como aspectos parciais do mítico deus Ptah dos egípcios. Temos indicado que
uma vontade que sempre se opõe a outras no seio de uma comunidade se negam
mutuamente. Cada uma se afirma por sua decisão particular e a unificação como
universalidade se torna impossível. Unificar as vontades a partir do consenso em
torno a uma decisão possível, é constituir uma vontade geral e uma razão comum.
Se na ética295 concluímos que o ato tem propensão de bondade somente quando cum-
pre os princípios práticos universais (ou, ao menos, busca honestamente aplicá-los),
entre os que se encontram os princípios materiais, formais e de factibilidade prática,
na política o ato meramente solipsista movido por uma vontade particular tende
somente a seu interesse próprio (é contraditório com o interesse dos outros e, por
isso, im-potente; está des-potenciado). Ao contrário, chamaremos bem comum o
querido pela pluralidade de vontades, pluralidade unificada de vontades, que tem
pretensão política de justiça,296 pretensão de cumprimento das exigências motiva-
cionais da vontade e do consenso racional comunitário que outorga a argumenta-
ção (implícita ou explícita) prático-racional (o aceitar-se as melhores razões dadas
na deliberação intersubjetiva). Esta pretensão de uma comunidade política, e de
cada membro, por cumprir a justiça (como indicamos, lhe damos um significado
integral, não como uma virtude particular, como analisava Platão na República)
deve buscar honestamente integrar os momentos materiais, formais e de factibilidade
prática da ação e instituição políticas.
Quando J.-J. Rousseau propõe a categoria política (que é também uma ideia
regulativa, um postulado) da “volonté générale”, se referia a um tema ambíguo que
desejamos discernir em seus diversos componentes semânticos. Com a maior
claridade possível, procurarei descrever o que significa dita vontade geral (com H.
Arendt e J. Habermas, mais além de Arendt e Habermas). Num conhecido texto,
Rousseau escreveu:

crescimento. O conflito é fragmentação; o consenso é afirmação intersubjetiva e comunitária


da comunidade, como fonte (ex quo) e horizonte futuro (ad quem). O negociar uma solução
dos conflitos não é tampouco fonte de poder e, sim, neutralização da inimizade (no sentido
schmittiano); ademais, para solucionar conflitos se deve pressupor uma sempre a priori
vontade de unidade (material) e uma discursividade que tende ao acordo (formal) que não
são componentes intrínsecos do conflito como tal. Deixamos, por ora, sem considerar os
conflitos inegociáveis em vista da transformação ou libertação.
295 Nos referimos à nossa Ética da Libertação (Dussel, 1998).
296 “Justiça” indica a plenitude complexa do ato político estratégico-institucional que cumpre
os princípios políticos implícitos. Ver § 28: “Pretensão política de justiça”.

148
A vontade geral (volonté générale) é a única que pode dirigir (diriger) as forças do Estado
segundo o fim de sua instituição, que é o bem comum (bien commun); pois, se a oposição
aos interesses particulares exigiu o estabelecer as sociedades, é o acordo (accord) dos mes-
mos interesses que formam a ligação social [...]. Digo, então, que a soberania (souveraine-
té) não é senão o exercício da vontade geral, e nunca pode alienar-se (aliéner) [...] sendo
um ser coletivo (être collective) [...]. O poder pode ser delegado, mas não a vontade (1963,
p. 69-70).297 A soberania é inalienável, indivisível, pois, a vontade é geral (1963, p. 71).

E explicitando que a “vontade geral não pode errar”, indica que o povo pode
deliberar mal e ser enganado, mas, neste caso, é somente uma “vontade de todos”
enquanto “mira o interesse privado” (Rousseau, 1963, p. 72); e somente é “vontade
geral” quando mira “o interesse comum” (1963, p. 72), e, neste caso, é o parâmetro
da vontade prático-política: não pode errar. Trata-se, evidentemente, de uma ideia
regulativa, de uma situação política ideal, o que, mais adiante, chamaremos de um
postulado político. Mas, embora a “vontade geral” (a potentia em si) seja impossível
de ser implementada empiricamente (a potestas) de maneira perfeita (a potestas),
contudo, é o horizonte desde o qual se pode conceituar o “poder consensual”. Ten-
temos captar este conceito.
Uma comunidade política é constituída por uma pluralidade de vontades, de
atores motivados por múltiplos interesses particulares,298 mas, enquanto comuni-
dade, tende, primeiramente, e em último termo, à mútua manutenção e aumento
da vida humana de todos. Sendo inalienável esta vontade (enquanto que o ator
político consiste em ter esta faculdade como o próprio querer-viver), ficam des-
cartadas duas possibilidades nas quais as vontades seriam alienadas: a) no caso
de Hobbes, cujo contrato originário exigia a todos a renunciar (quer dizer, alie-
nar) sua própria vontade, para permitir que só a vontade do soberano pudesse
exercer-se sem oposição ou alguma tendência contrária; ou b) simplesmente, que
algumas vontades dominassem outras (sendo assim, estas últimas teriam alienado
sua vontade pelo medo, pela obediência à dominação legítima weberiana, ou por
uma pretendida submissão às leis divinas, da natureza, ou por outros motivos).
Fica, ainda, uma maneira de unir a pluralidade de vontades, permitindo que cada
vontade permaneça, contudo, em sua afirmação, em sua autodeterminação, vale
dizer, sem perder sua autonomia nem liberdade; sustentando-se em sua soberania.
Vejamos esta possibilidade.

297 Do Contrato Social (t. II, cap. 1).


298 Não dizemos que este interesse particular seja o primeiro nem decisivo. De fato, é dema-
siado sabido, o próprio da espécie humana é ter sido gregária desde sua origem, desde os
hominídeos. A afirmação de que o amor próprio é o primeiro que move as vontades é tomar
o patológico como normal. Por sua vez, o normal não é ausência de conflitos e, sim, que é um
saber superá-los adequadamente. O que perde o controle das contradições cai na situação
patológica. Mas nenhuma paixão negativa, como ensinava Spinoza, pode ser a originária e,
sim, que é segunda e defectiva.

149
[290] Edgar Morin (1966) descreve de maneira muito plausível as condições
evolutivo-antropológicas da origem do que desejamos denominar “poder consen-
sual”.299 O ser humano é o resultado do expulso da selva “que sabe caçar na savana”
(1966, p. 63). Um primata superior (um eu-hominídeo) que, pela estiagem dos
bosques do terciário da África equatorial oriental, de “rebelde dos bosques”, onde
inquieto competia com primatas de maior porte, diante da falta de árvores e comi-
da vegetal (pela desertificação, pelo dessecamento), foi expulso e se transformou
no “mutante da savana” (1966, p. 67), era um primata frágil, que precisou se colo-
car de pé para vislumbrar o horizonte na savana subsaariana inóspita – habitada
por carnívoros maiores, velozes e de presas de todo tipo. Para compensar a falta
comida vegetal em abundância, deveu-se abrir à possibilidade de ser omnívoro que
devia também caçar animais dotados de maior velocidade e agressividade que o
desterrado primata. Mudando de ecossistema, pelo desaparecimento da selva pro-
tetora e abastecedora de alimentos abundantes, é desafiado pela dureza do novo
entorno a morrer ou a efetuar uma transmutação genética acelerada. Alimentar-se,
beber de poços comuns, proteger-se nas noites, deslocar-se pelo terreno raso com
somente pequenos arbustos entre os quais é impossível se esconder; tudo é peri-
goso, também a busca de alimentos; quer dizer, a instituição da caça, instrumento
da permanência da vida, coloca em risco a vida. A vigilância mútua, a atenção
concertada, a artimanha do grupo, a força do número, a oportunidade do ataque
previsto, o cortar o voo da presa, tudo supõe comunidade, comunicação, organi-
zação heterogênea de funções. É a “caça civilizadora” (Lee, 1968).300 Nasce a ação
estratégica: “Atenção, tenacidade, combatividade, audácia, astúcia, chamarisco,
armadilha, espreita” (Morin, 1966, p. 72).

Passa da caça de pequenas peças à caça média, da caça furtiva e temerosa à caça com
luta e perigo, da busca de presa ao azar à busca orientada por indícios, da simples des-
coberta ao rastreio perseverante, da tática improvisada à estratégia experimentada, das
precauções e ardis à engenhosidade da armadilha e da emboscada, das armas grosseiras
e polivalentes às armas delicadas e especializadas (1966, p. 73).

Isto significava uma enorme organização dentro do grupo; do clã. Os babuí-


nos da savana de Kalahari atacam em grandes grupos militarizados (vão com as
fêmeas e os infantes no centro; os machos dominantes à frente e atrás, os jovens
no meio). Parece que os humanos deixam as fêmeas e infantes desprotegidos em
lugares seguros, duplamente protegidos desde o descobrimento do fogo (há uns
oitocentos mil anos). Diferenciam o “lar” (do fogo) do campo de caça. As funções

299 Referimo-nos ao tema na História desta obra [2-4].


300 Ver El ser humano: el cazador.

150
de fêmeas e machos se organizam heterogeneamente. Entre os homens se dis-
tinguem diferentes funções para a estratégia da caça, para fazer as armas, para
atacar, mas, fundamentalmente, para distribuir as presas conseguidas. Tem que
haver hierarquia no mando; tem que haver fraternidade no grupo. A comunidade
feminina educa, recorda os costumes, busca os alimentos vegetais e medicinais,
alonga a juventude dos infantes. A comunidade masculina se especializa nas fun-
ções externas, da caça, da proteção de outros clãs:

A caça coletiva, a distribuição dos alimentos, o transporte de uma sempre crescente


variedade de objetos, são elementos que pressionam a aparição de uma organização
social mais complexa, que somente é possível com uma comunicação mais flexível.301

Da esfera da transformação do meio ecológico passamos à organização econô-


mica de subsistência e dela à institucionalização cultural, porque “para conseguir
a autoperpetuação e, ao mesmo tempo, assegurar a elevada complexidade social,
a cultura deve ser transmitida, ensinada e aprendida, isto é, reproduzida em cada
novo indivíduo durante seu período de aprendizagem” (Morin, 1966, p. 89). Pela
cultura se produz uma regressão dos instintos, uma progressão das capacidades
organizativas e, entre elas, todo o sistema comunicacional que, de simples gesto e
grito com alguma significação fonética (o call system), vai dando origem a toda uma
estrutura significativa de duplo sentido (o som articulado é acompanhado de um
conteúdo conceitual cultural, que os clássicos chamavam ad placitum). Por isso, “há
talvez cem mil anos aparece o homo sapiens neanderthalensis quando a integração
é um fato: o ser humano é um ser cultural por natureza porque é um ser natural
por cultura” (1966, p. 103).302
Pelas sepulturas e pinturas rupestres do homo neanderthalensis, podemos de-
rivar que o ser humano havia justaposto cada vez com maior complexidade e den-
sidade, entre a realidade do entorno e sua subjetividade cerebral, todo um mundo
simbólico, imaginário, interpretativo de extrema complexidade, onde o erro, a
mentira ou simulação, a entusiástica alegria e a tristeza abismal eram possíveis.
Da ordem natural surge, pela primeira vez, a possibilidade da desordem, a neurose,
o mal, a injustiça e a dominação.
O sistema oculto de signos que usam os animais superiores, o homo, por um
melhoramento da ressonância craniana (dada sua posição bípede), se tornam acús-

301 F. C. Hockert e R, Asher (1964), “The human revolution”: Current Anthropology 5 (p. 135-
147 apud Morin, 1966).
302 Neste sentido, poderíamos igualmente dizer que o cérebro humano é um órgão cultural,
porque o meio cultural dos últimos quatro milhões de anos permitiu passar de um cérebro
de uns 500 gramas do homo habilis ao atual de uns 1.500 gramas, fruto da incorporação
genética de avanços culturais de geração em geração.

151
ticos para a comunicação oral, permitindo informar uma enorme complexidade de
conteúdos claramente diferenciados. Pela língua, o clã primitivo pode organizar-se
de maneira muito mais heterogênea, veloz e complexa, como nenhum outro ani-
mal. Dadas as exigências da sobrevivência (o tabu do assassinato e do canibalismo
a um membro do grupo) e da caça (já que a aliança exogâmica do grupo exigia
mútuos dons, e não havendo senão os filhos e as filhas para intercambiar, estes se
conservam em sua exclusividade sacral pela proibição do incesto), as instituições
internas do clã se multiplicam, sendo asseguradas pela comunicação linguística.
Quando chegamos à revolução urbana (montada sobre a agricultura e o pastoreio),
um macrossistema institucional surge no planeta, composto por vários milhares
de homo sapiens. Neste alto grau de organização, explicitamente política, a or-
ganização institucional se tornou legal. Mas não é este o aspecto que queremos
destacar aqui.
Vimos, então, que a “vontade de viver” funda o “poder-pôr” os meios para a so-
brevivência. Impossível seria desenvolver estes meios, instrumentos institucionais,
sem comunicação entre os membros cada vez mais numerosos dos corpos sociais
crescentes. “A paleossociedade303 contava com algumas dezenas de indivíduos;
a arqueossociedade304 relacionava algumas centenas deles. A sociedade histórica
engloba no mínimo vários milhares de seres humanos, em alguns casos, vários
milhões” (1966, p. 208). O momento formal (a procedimentalidade, base de todos
os possíveis procedimentos) do acordo linguístico-racional (se por razão se entende
antes que nada a “astúcia da vida humana” pela qual se alcança a sobrevivência,
quer dizer: razão prático-pragmática) é condição de permanência da vida (desde a
caça, organização da sobrevivência familiar, etc.).
O querer-viver das vontades contraditórias se anula. O poder das vontades
acordadas “pode305-pôr” as mediações necessárias para a vida humana. Neste senti-
do, falamos de “poder consensual” comunicativo, discursivo.
[291] Hannah Arendt vislumbra o tema, no conhecido parágrafo “Verdade
e política” (1996, p. 239-277), no entanto, o faz de maneira negativa, por uma
compreensão puramente teórica da verdade e por um caminho que não podia
descobrir o que chamou de “o poder comunicativo”. De todo modo, para Arendt
o que Weber chamava “poder” é simplesmente “violência” (Gewalt), questão que,
por sua vez, deveremos matizar. Contudo, o texto central do que Arendt entende
por “poder comunicativo” não se encontra ali, mas nas belas páginas de A condição
humana. Seja dito de passagem, esta compreensão do poder esclarecerá muitos
aspectos do conceito arendtiano do político.

303 Os grupos dispersos desde o homo habilis do Leste da África equatorial.


304 Os clãs do Paleolítico, com língua, cultura e fogo.
305 O “poder” (como verbo ou substantivo) consiste neste “pode” como ação verbal. O “poder”
é também uma capacidade, uma faculdade que o sujeito possui, o ator.

152
Hannah Arendt nos ajuda com sua descrição afirmativa e normativa do poder
político. Comecemos por uma citação:

O espaço de aparição306 cobra existência sempre que os seres humanos se agrupam pelo
discurso e pela ação e, portanto, precede307 a toda constituição formal da esfera pública
e das várias formas de governo, ou seja, as várias maneiras nas quais pode organizar-se
a esfera pública (Arendt, 1958, V, § 28, p. 199 [ed. cast., p. 222]).

A pensadora política se refere ao suzên (viver-com) dos gregos, já que:

O poder é sempre um poder potencial e não uma intercambiável, mensurável e confiável


entidade como a força. Enquanto que esta é a qualidade natural de um indivíduo visto no
isolamento, o poder surge entre os seres humanos quando atuam juntos e desaparece no
momento em que se dispersam [...]. O poder é um grau assombroso independente dos fato-
res materiais, seja o número ou os meios (Arendt, 1958, V, § 28, p. 200 [ed. cast., p. 223]).

Por isso, “o que primeiro solapa e logo mata as comunidades políticas é a perda
do poder e a impotência final; e o poder, diferente dos instrumentos da violência,
não pode ser armazenado e mantido em reserva para fazer frente às emergências”
(Arendt, 1958, p. 200 [ed. cast., p. 223]). Isto é de extrema importância, porque o
que governa com violência (como os tiranos, as ditaduras, os impérios), a longo
prazo, como “se embasam no isolamento [...], contradizem a essencial condição hu-
mana da pluralidade, o agir e falar juntos, que é a condição de todas as formas de
organização política” (1958, p. 202 [ed. cast., p. 225]),308 se opõem à política em sen-
tido estrito, que é acumulação de poder como força das vontades unidas por um ob-
jetivo comum. O que exerce o poder (potestas) fetichizado, isto é, tendo outorgado
à instituição a faculdade do poder que reside na comunidade política (deslizamento
em que consiste o fetichismo político) e usa dito poder autorreferente para dominar
a comunidade, desvirtuou o sentido do exercício delegado do poder político. Ao
contrário, o uso obediencial do poder a favor da comunidade permite a instauração
de um círculo entre a potentia que alimenta a potestas, e esta que serve à primeira.
Assim, o poder recebe seu sentido pleno e é usado segundo sua própria natureza.
Saber criar esta unidade (entre comunidade e instituições políticas) é a ex-
pressão dos políticos que recebem o nome de tais, que são os que são julgados
na história como os que criaram novas instâncias estratégicas ou institucionais

306 Esta expressão é heideggeriana, é a “abertura” como “verdade ontológica”. Em nosso caso,
se trata de “abrir um espaço” ao exercício autêntico do poder.
307 É o pré-ontológico.
308 “A tirania impede o desenvolvimento do poder, não somente num segmento particular da
esfera pública, mas em sua totalidade. Dito com outras palavras, gera impotência” (Arendt,
1958, p. 202 [ed. cast., p. 225]).

153
(muitos outros passam à história como os que as destruíram, como o Faraó sobre
os escravos, Nabucodonosor sobre os israelitas, os romanos sobre Cartago, os Es-
tados europeus modernos metropolitanos sobre suas colônias; como Hitler sobre
os judeus, Stálin sobre o povo camponês russo ou George W. Bush sobre os ira-
quianos). Vale dizer:

O poder é o que mantém a existência da esfera pública, o potencial espaço de aparição


entre os seres humanos que agem e falam.309 A rebelião popular310 contra governantes
materialmente fortes pode engendrar um poder quase irresistível inclusive se renuncia
à violência frente a forças muito superiores em meios materiais. Chamar a isso resistên-
cia passiva é uma ironia (Arendt, 1958, p. 200 [ed. cast., p. 223]).311

Hannah Arendt indica muito pertinentemente que

[...] resulta bastante curioso que a violência possa destruir o poder mais facilmente que
a força, [já que] a tirania sempre se caracteriza pela impotência de seus súditos, que per-
dem sua capacidade humana de agir e falar juntos [...] Se a tirania pode ser descrita como
o objetivo sempre abortado de substituir o poder pela violência, a oclocracia ou governo
da plebe, que é sua exata contrapartida, pode caracterizar-se pelo objetivo muito mais
prometedor de substituir a força pelo poder (Arendt, 1958, p. 209 [ed. cast., p. 226]).

Pode observar-se que Arendt distingue entre a pura violência, a força e o poder.
A violência é a pura força contra o direito do Outro, não cria unidade sem con-
frontação; desune, torna impotente o exercício delegado do poder da instituição
(a potestas fetichizada) com respeito à comunidade; inimiza uns contra outros (na-
quilo de que o político se rege pela lógica da contradição “amigo/inimigo”, lógica
que debilita o poder da comunidade como um todo). Arendt se opõe aqui a Schmitt.
A simples força é coação, mas que se exerce contra Outros, ante Outros e não
com Outros; é indiferente à alteridade; é pura energia lançada contra a inércia
que destrói a resistência (que somente se detém quando a resistência é maior que
sua potência). O poder, em troca, se opõe à violência e subsume a força e a coação
(mesmo armada), é uma potentia inteligente; é uma vontade fortalecida pela capa-
cidade discursiva, ilustrada, que opera a favor da permanência e aumento da vida
na comunidade política. O poder não se cria nem aumenta na lógica “amigo/inimigo”
e, sim, no espaço aberto pela “fraternidade” (os amigos), na produção de um ho-
rizonte de abertura da esfera pública (diria Arendt), onde a vontade de unidade é

309 Para Arendt, “espaço de aparição” é o campo político (recorde-se o dito no § 16) como político.
310 Este tema será objeto de descrição na Crítica (volume III).
311 Antônio Negri escreve: “Jó não é paciente. É potente [...]. A potência se forma na dor, mas
se realiza na relação com o Ser” (Negri, 2002, p. 147).

154
anterior e onde se encontram recursos para superar os conflitos. Não se pode dis-
tinguir entre “inimigos políticos” (na política como competição, como no mercado
capitalista entre mercadorias) e “inimigos absolutos” (na fatalidade da guerra). E,
sim, entre “amigos próximos” e “amigos longínquos”, dentro do espaço da frater-
nidade cidadã. Não é a competição entre amizade-inimizade ou entre conflitos
encontrados, o momento de última instância do poder político. A “competição” é
luta, e a luta parte da pluralidade desunida para dobrar a vontade dos vencidos (já
que, em última análise, a negociação do conflito é a imposição da vontade do mais
forte, se, como ponto de partida e ao menos como postulado, não houve a aceita-
ção do outro como “amigo”, como “igual”, como membro da comunidade política
simétrica). A última instância é uma vontade geral plural unida discursivamente na
qual, todos juntos, constroem um ator político intersubjetivo, cujo poder consiste,
fundamentalmente, na potência de sua unitária articulação. O poder ad extra (ante
os Outros, as outras comunidades estrangeiras) se funda no poder ad intra (entre
os membros da comunidade política). O poder de uma comunidade é proporcional
ao grau de unidade de seus autônomos e plurais momentos heterogêneos, que são as
vontades de cada cidadão. O poder do grupo consiste na sinergia de todos:

A esfera pública surge de atuar juntos, de compartilhar palavras e atos. Assim, a ação –
segue escrevendo Arendt – não somente tem a mais íntima relação com a parte pública
do mundo comum a todos nós, senão que é a única atividade que a constitui. É como
se a muralha da pólis e as fronteiras da lei se traçassem ao redor de um espaço já exis-
tente que, não obstante, sem tal proteção estabilizadora não poderia perdurar, nem
sobreviver ao momento da ação e do discurso (Arendt, 1958, p. 198 [ed. cast., p. 221]).

O poder, então, como unidade de vontades nos atos, através da linguagem, da


retórica, das instituições, deve contar com o consenso de todos os membros. Para
alcançar o consenso prático, a pluralidade de membros deve saber “ver as coisas
não somente desde o ponto de vista pessoal, mas também segundo a perspectiva
de todos os que estão presentes”.312 Arendt se inspira no “quarto Kant”,313 desde a
Crítica do Juízo. Na Crítica da Razão Prática, quando nos fala do primeiro impera-
tivo categórico, indica que para que a máxima possa ser válida deve poder ser aceita
por todos os demais (isto é, ser uma lei universal). Desde esta época, Kant sabe que
é preciso colocar-se empiricamente no “lugar dos outros”.314 Escreve Arendt:

312 “A crise na cultura: seu significado político e social” (Arendt, 1996, p. 233).
313 Ver os parágrafos sobre Kant já citados na História desta Política da Libertação.
314 Indicamos em nossa Ética da Libertação (Dussel, 1998, § 2.1) que Kant encontra aqui uma
dificuldade, já que em cada caso empírico, como por indução, deve ser se a máxima é aplicável,
mas em cada caso não pode ser válida (porque não chegou ao fim da série para saber se é “lei
universal”) e, por isso, deve julgar se pode ser boa (o que é um juízo material que ainda não
pode efetuar, já que a bondade será fruto da construção do ato ético mediante o momento

155
O poder do juízo descansa num acordo potencial com os demais, e o processo de pen-
samento que se ativa ao julgar algo não é, como o meditado processo da razão pura,
um diálogo entre o sujeito e seu eu e, sim, que se encontra sempre e em primeiro lugar,
mesmo quando o sujeito está isolado enquanto organiza suas ideias, numa comunicação
antecipada com outros, com os quais sabe que, ao final, chegará a um acordo (Arendt,
1996, p. 232).

Isto nos leva ao nosso tema, o de que “a capacidade de juízo é uma habilidade
política específica no próprio sentido denotado por Kant, isto é, habilidade [...]
do ser humano como ser político, na medida em que lhe permite orientar-se no
âmbito público, no mundo comum” (Arendt, 1996, p. 232).
Se articularmos esta capacidade de julgar desde a posição do Outro como ati-
tude antecipável de um consenso possível, entendemos que, para Arendt, o poder
comunicativo é a unidade das vontades em atitude permanente de consenso (atual
ou possível), acordo que produz a unidade da pluralidade de vontades na qual con-
siste o poder, não somente do momento material da vontade, mas da articulação
formal da razão prática.
[292] Por sua vez, Jürgen Habermas perde algo da importância da vontade,
mas, por outra parte, vai discursivamente muito além de Arendt. Sua solução teó-
rica tem dois momentos. No primeiro, critica Arendt desde sua posição que esgri-
mia em seu primeiro momento (Dussel, 1998, [135]); na segunda, a partir de 1981,
a semelhança com Arendt é mais notória, embora agregue maior complexidade
quanto à descrição da razão discursiva. Vejamos estes dois momentos.
Num primeiro momento, Habermas (1987, p. 223ss; 1975, p. 200ss) reconhece
a força do argumento de Arendt, citando-a com aprovação. Em suas reflexões sobre
“Hannah Arendt” (a segunda seção de 1976) indica que:

O que presta poder às instituições e às leis de um país é o apoio do povo que, por sua
vez, é a continuação daquele consenso originário que deu vida às instituições e às leis
[que chamamos potentia...] todas as instituições políticas [a potestas] são manifestações
e materializações do poder; sofrem estagnação e caem tão logo o poder vivo do povo
deixa de estar atrás delas e deixa de apoiá-las (apud Habermas, 1987, p. 232).315

formal de validade e o material da paixão do respeito). Dificuldade, para não dizer, con-
tradição insolúvel da moral formalista kantiana em sua “terceira etapa” (a transcendental).
315 H. Arendt, Macht und Gewalt (1976, p. 42). Esta concepção de Arendt será da maior im-
portância na hora de fundar o sentido político do cumprimento de princípios normativos
implícitos. Alguém pode arguir que o “maquiavélico” pode usar meios não-normativos
para alcançar o objetivo exitoso político-estratégico. Mas, se considerarmos este sentido
do poder, o que não cumpre objetivamente certos princípios fundamentais de fraternidade,
igualdade e liberdade para com os outros membros (ver o volume III, na Crítica), diminui
o poder consensual e tira fundamento à sua própria estratégia a longo prazo. Sua ação é
exercício de violência ou dominação que debilita desde a potestas fetichizada até a potentia.

156
O poder comunicativo tem o fundamento da sua força na coerência e unidade
de seus membros. “Toda ordem estatal que isola entre si os cidadãos por meio da
desconfiança e que impede que intercambiem publicamente suas opiniões degene-
ra em tirania” (Habermas, 1987, p. 235). Contudo, Habermas encontra limites na
posição de Arendt:

O conceito do político tem que ser extensivo à competição estratégica pelo poder po-
lítico316 e à utilização do poder no sistema político. A política não pode identificar-se
exclusivamente [...] com a práxis daqueles que discutem e se concertam entre si para
agir em comum (1987, p. 245-246).

Habermas está requerendo incluir o nível estratégico (que denominei no capítulo


1 o nível A) na definição do político (que, de certa maneira, descartará nas obras
do segundo período ou da “pragmática universal”), como parte de uma “versão
realista da geração comunicativa do poder” (1987, p. 246),317 e, por isso, exigem que
se integrem poder e violência, num sentido aproximado ao de Max Weber:

Hannah Arendt consegue isso [sua descrição de poder comunicativo] ao preço de: 1)
suprimir do âmbito do político, a título de violência (Gewalt), todos os elementos estra-
tégicos;318 2) arrancar a política de suas relações com seu entorno econômico e social, no
qual fica inserida através do sistema administrativo,319 e 3) não ser capaz de apreender
os fenômenos de violência estrutural (Habermas, 1987, p. 240-241).320

Por isso, o assunto da guerra já não tem lugar no político, tampouco o social
ou o econômico, etc. Escreve Habermas: “Mas não podemos excluir o elemento da
ação estratégica do conceito do político. Entendemos a violência (Gewalt) exercida
através da ação estratégica como a capacidade de impedir a outros indivíduos ou

316 Habermas não distinguirá, como o proponho, diversos sentidos das palavras poder, poder
consensual, dominação, violência, etc.
317 Da minha parte, tomo as análises de Arendt em seu sentido mais abstrato e fundamental,
sabendo que deverei desenvolver este conceito de “poder comunicativo”, graças a muitas
mediações estratégico-institucionais, que Arendt não faz.
318 Da minha parte, como se pode observar na História, incluí o estratégico sem suprimir nem
o momento institucional (Arquitetônica) ou o dos princípios políticos (Crítica) desta Políti-
ca da Libertação. Aqui, Habermas inclui o estratégico, mas o eliminará na segunda etapa
discursiva.
319 Novamente, o Habermas definitivo eliminará de fato este nível material da política, ficando
somente com o nível formal do direito. Sua política será somente uma filosofia do direito
(Habermas, 1992).
320 É interessante observar até que ponto o Habermas deste momento era ainda expressão da
Escola de Frankfurt. Depois, perderá o nível material e estratégico que aqui aparece clara-
mente. De toda forma, não pode distinguir entre poder fetichizado (potestas autorreferente)
e “poder obediencial” (ver, mais adiante, no § 30, na Crítica desta Política da Libertação).

157
grupos a percepção de seus interesses” (1987, p. 242). Isso leva Habermas a aceitar
esta violência como plenamente política, como “meio de aquisição do poder político”
(1987, p. 243). É aqui onde as distinções de Arendt nos ajudariam a não ir tão rapi-
damente, como o faz Habermas. Se a violência é exercício de pura dominação sem
legitimidade, então, não está na origem do “poder político”, mas de sua debilitação.
O que falta para Arendt e Habermas é uma dupla distinção, onde ficam defi-
nidos três termos e não dois (consenso ou violência). Se a potentia é o poder da co-
munidade como poder comunicativo e a potestas sua institucionalização, é preciso
ainda discernir entre a) um uso obediencial do poder (a serviço da comunidade,
que não é somente poder consensual, mas o exercício delegado em concordância
com dito poder básico), e b) um uso do poder fetichizado autocentrado na institui-
ção como o lugar da soberania e sede do poder político. Que esta segunda opção
seja usada para glória pessoal do político (para cumprir com o apetite de se mostrar
como Senhor), para benefício de um grupo ou do singular, ou como exercício da
violência, já não importam as modalidades desta corrupção primeira, que se cum-
pre da passagem de a para b.
Decorre disso que, mesmo quando se consiga exercer a autoridade do gover-
no ou do Estado por coação, este exercício poderia não estar fundado no poder
da comunidade política (potentia). Como veremos, nisto reside toda a questão da
normatividade da política e que Habermas não esclarece suficientemente (en-
quanto Arendt simplifica o assunto, mas tem clareza em sua intenção normativa).
Habermas termina dizendo que “o poder legítimo somente surge entre aqueles
que formam suas convicções comuns numa comunicação livre de coações” (1987,
p. 243). O que denomina de poder “legítimo”321 é o poder como potentia, os outros
exercícios institucionalizados manifestam sua diferente maneira delegada de exer-
cício. Habermas acrescenta que “o domínio político pode durar somente quando
é reconhecido como legítimo” (1987, p. 246), não captando nunca a contradição
entre “dominação” e “legítimo” e entre exercício institucional (potestas) e a fonte de
seu exercício” (potentia), tendo que escrever: “o exercício delegado do poder políti-
co institucional somente pode durar quando surge de um consenso que o legitima”.
Entretanto, Habermas argui que o poder político é “a expressão de uma opinião
na qual muitos se colocaram de acordo” (1987, p. 246), o que seria “uma versão da

321 Como tem por referência Max Weber, Habermas comete contradições como, por exemplo,
“o poder legítimo permite aos ocupantes das posições de domínio (Herrschaftspositionen)
[...]”, sem advertir que aquilo de “dominação legítima” em Weber é já uma terminorum
contradictio, porque, como pode ser legítima uma dominação? O exercício do poder comu-
nicativo pode ser legítimo, mas nunca a dominação enquanto tal (ou seria pura aparência
ou fetichismo de legitimação). Por sua parte, T. Parsons tem um sentido administrativo
funcionalista do poder (Habermas, 1987, p. 244), como o exercício da autoridade do go-
verno, como influência do Estado sobre a vontade da população, “de cima”, que parte, em
Habermas, da “competição estratégica pelo poder político” (1987, p. 245).

158
geração comunicativa do poder” que, superando o conceito teórico e estático de
verdade, em Arendt, deveria ter um critério para discernir “entre as convicções
enganosas322 das não enganosas” (1987, p. 247), entre interpretações ideológicas
das críticas (mas, neste caso, esta Política da Libertação).
Como tem por referência a Max Weber, Habermas aceita que o poder pode ser
legítimo sendo dominação. Para esclarecer a situação, teria que ter um conceito po-
sitivo do poder (obediencial) ante outra noção fetichizada (como dominação), ambas
formas discerníveis de poder político que Habermas, a partir de Weber ou Parsons,
não tem.
De nossa parte, trataremos de integrar o conceito de poder comunicativo no
nível originário da faculdade ou capacidade possuída pela comunidade política,
fonte do exercício delegado do poder de todas as instituições políticas. Ademais,
será preciso integrar igualmente esta noção de poder comunicativo com as me-
diações estratégicas, institucionais e de princípios políticos, o que permitirá dis-
tinguir entre diversos exercícios delegados do poder consensual da comunidade
política, seja como poder obediencial (e a hegemonia com legitimidade é um deles),
ou como exercício fetichizado como dominação e, portanto, no médio prazo, com
perda do consenso (e da legitimidade), ou como mera violência. Denominando
cada conteúdo semântico com outros termos, poderíamos avançar no tema.
[293] Numa segunda época, seguindo as pistas abertas por K.-O. Apel,
Habermas trata o tema que nos ocupa em suas obras definitivas.323 Ao descobrir
a importância da “ação comunicativa”324, distingue-a taxativamente de a) “a ação
estratégica” ou a ação “orientada ao êxito” (Erfolg), e de b) a mera “ação instrumen-
tal” (não social). O tratamento da razão discursiva descarta, definitivamente, a
razão estratégica – caindo agora no que havia criticado em H. Arendt, anos antes:

Um acordo [...] não pode vir imposto [...], seja instrumentalmente, como benefício de
uma intervenção direta na situação de ação, seja estrategicamente, por meio de um in-
fluxo calculado sobre as decisões de um oponente [...]. O acordo se baseia em convicções
comuns (Habermas, 1981, p. 387).

Uma política arquitetonicamente complexa deverá saber articular estes di-


versos momentos (instrumental, estratégico e comunicativo), se pretende não cair
numa visão redutiva (formalista, como a do Habermas definitivo, que rechaça o
agora estratégico no sentido de Weber, ou instrumental, já criticado pela antiga Es-
cola de Frankfurt, sob a denominação de razão instrumental). Vejamos o tema

322 Por exemplo, de conceber como expressão do poder comunicativos o mero uso da violência.
323 Ver especialmente Habermas (1981; 1992).
324 Por exemplo, em Habermas (1981, I, p. 385ss [1987, I, p. 367ss]): a ação orientada “ao
acordo” (Verstaendigung).

159
introdutoriamente: “As ações sociais concretas podem distinguir-se segundo o que
os participantes adotem ou, então, uma atitude orientada ao êxito325 ou, ainda, uma
atitude orientada ao acordo” (1981, p. 386).
Em cada ato de fala, podemos distinguir um ato locucionário (que expressa
estados de coisa), um ato ilocucionário (no qual o agente realiza uma ação dizendo
algo, poderíamos dizer um acordo discursivo) ou um ato perlocucionário (o efeito
causado sobre o ouvinte, poderíamos dizer o êxito). Assim, a ação teleológica que
busca um fim tende a um efeito perlocucionário e, para Habermas, não teria a
mesma intensidade normativa que o efeito ilocucionário que se orienta a realizar
a unidade dos habitantes por motivos racionais: suas vontades coincidiriam pela
aceitação de uma decisão com pretensão de validade prática. O acordo na aceitação
das razões vertidas produz convergência das vontades. Esta unidade, esta sinergia,
esta vontade feita geral desde uma razão ou conclusão aceita como verdadeira (verdade
prática e discursiva), daria à comunidade um certo poder no assunto tratado. Para
H. Arendt, o poder comunicativo era justamente a força adquirida pela potentia,
pela unidade orgânica entre as vontades fundada em razões (a verdade em referên-
cia à realidade do acordado que, em última análise, é, na minha opinião, a perma-
nência e aumento da vida e que é igualmente válida em referência à aceitabilidade
intersubjetiva da comunidade política):

Os êxitos ilocucionários [...] são conseguidos no plano de relações intersubjetivas, no


qual os participantes na comunicação concordam entre si sobre algo no mundo;326 neste
sentido, não são nada intramundanos, mas extramundanos.327 Os êxitos ilocucionários
se produzem, em todo caso, no mundo da vida328 ao qual pertencem os participantes na
comunidade e onde se constitui o cenário de seus processos de acordo (1981, p. 394).

Isto nos recorda um pouco o postulado econômico de Marx, quando escreve que:
“imaginemo-nos finalmente [...] uma associação de seres humanos livres que traba-
lham com meios de produção comunitários (gemeinschaftlichen) e empregam cons-

325 Se “êxito” indica permanência e aumento de vida, este não é externo, secundário ou aci-
dental ao “acordo”, já que, em última análise, o acordo sempre trata de algum aspecto da
reprodução ou crescimento da vida humana da comunidade política. O formalismo debilita o
sentido do estratégico e, paradoxalmente, se afasta de uma política realista (o que não quer
dizer que o realismo crítico político possa sustentar princípios universais implícitos da
razão e da vontade políticas).
326 Em política, entram em acordo sobre algo acerca dos mesmos membros da comunidade
política, e não sobre o mundo.
327 No caso da política, novamente, estes acordos são sobre algo intramundano por excelência.
328 Em nossa política, o indicado “mundo da vida” deve ser substituído pelo “campo político” (e
seus sistemas e subsistemas respectivos). Habermas idealiza este “mundo da vida” que, por
outra parte, se transforma num conjunto de coisas diversas e desordenadas, onde cabem o
não-político e o não-econômico (seus únicos dois sistemas colonizadores).

160
cientemente suas muitas forças de trabalho individuais como uma força social” (1975,
p. 109).329 Vale dizer que, em primeiro lugar, os membros da comunidade atualizam
o fato de serem termos de uma relação imediata ou direta intersubjetiva; em segundo
lugar, empunham os instrumentos que se tornam “comunitários” por se originarem
numa comunidade atualizada como tal. Diríamos, relacionando o assunto econô-
mico ao nosso tema político, que a comunidade tem poder, porque está previamente
unida na coordenação direta e orgânica de suas vontades pelo acordo com as razões
dadas através de processos argumentativos (atuais ou implícitos): potentia.
Habermas, comentando a posição de Arendt na questão do poder comunica-
tivo, como momento que integra à política a razão discursiva (e não a estratégica),
escreve:

O fenômeno básico do poder não é para Hannah Arendt, como para Max Weber, a
oportunidade de impor, dentro de uma relação social, a própria vontade contra os que
resistem a ela e, sim, o potencial de uma vontade comum330 formada numa comunica-
ção isenta de coerção. Hannah Arendt contrapõe poder (power) e violência (violence),
quer dizer, a força geradora de consenso de uma comunidade endereçada ao acordo
(Habermas, 1992, p. 183).

De minha parte, devo indicar que pareceria que o poder não é, contudo, a
“força geradora do consenso” (paradoxalmente, seria um certo voluntarismo), mas
que, por ser uma codeterminação simultânea, o consenso consolida a potência
da pluralidade das vontades como unidade e, por isso, co-gera a potentia, o poder
acrescentado como vontade geral, já que “o poder brota da capacidade humana,
não de agir ou fazer algo, mas de se concertar com os demais para atuar de comum
acordo com eles”.331
O poder que, por outra parte, supõe a liberdade e a autonomia de cada um dos
membros do todo deliberativo (já que a deliberação é o processo prático-discursivo
para chegar a uma decisão ou uma norma comum), é gerado quando produz a uni-
dade dos membros desde a convergência das vontades, a partir das razões aceitas
mediante a expressão linguística. Não é estranho que a filosofia ateniense nascesse
diante da exigência da formação retórica dos membros da assembleia do demos
grego, que era justamente a arte para produzir o consenso (a retórica, a lógica) dos
membros da ágora e, neste caso, a argumentação se constituía numa instituição
política para alcançar a unidade das vontades.
Entretanto, a diferença entre “poder” e “violência”, que Habermas sugere no
texto anterior comentando Arendt, mostra até que ponto ambos não têm clareza

329 O Capital, t. 1, cap. 1, 4 (MEGA, II, 6).


330 Habermas nunca esclarece o que seja a vontade, a “formação da vontade” ou esta “vontade
comum”. Seu formalismo o limita.
331 H. Arendt, “Sobre a violência”, em sua obra Crises da República (1973, p. 146).

161
sobre a distinção que propusemos. Arendt chama “poder” ao que eu chamarei (e
com outras determinações que Arendt não pode apontar) o “poder obediencial”.
Ao passo que o que Arendt chama “violência” posso agora chamá-lo “poder feti-
chizado” ou poder como dominação, como exercício não-delegado do poder e, sim,
autorrefrente por parte do Estado, a autoridade ou o representante (que se arroga
o direito de ser a sede última do poder político). Esta corrupção ontológica do poder
é ainda poder político, mas como traição da potestas à potentia. Esta distinção se
transformou no fio condutor de toda esta Política da Libertação.
Cabe assinalar que Habermas expõe analiticamente a distinção entre o “poder
comunicativo” e o “poder político”, em sentido institucional ou estatal (potestas) e
em referência ao “poder administrativo” (que prefere denominar “autoridade do
governo”), o que indica que está suspeitando da distinção entre potentia e potestas,
mas não consegue tirar todo o proveito normativo possível. De todas as formas,
isto exige que nos ocupemos com temas que preferiria deixar exclusivamente para
o próximo capítulo, mas que resultarão importantes para entender melhor o signi-
ficado do poder comunicativo. Para Habermas:

Todo poder político (politische Macht) deriva do poder comunicativo (kommunikativen


Macht) dos cidadãos.332 O exercício da dominação política (politischer Herrschaft)333 se
rege e legitima pelas leis que os cidadãos se dão (geben)334 a si mesmos numa formação
discursivamente estruturada da opinião (pública) e da vontade (1992, p. 209).335

Está claro que, para Habermas, o poder comunicativo é a última instância, por
isso, “no sistema da administração pública se concentra um poder336 que, uma ou
outra vez, há de regenerar-se a partir do poder comunicativo” (1992, p. 208-209).
A expressão é realmente feliz. Todo exercício de poder, em qualquer nível insti-
tucional (potestas), deverá sempre “regenerar-se”, voltar a beber da fonte, do poder
consensual da comunidade (potentia). Todo exercício delegado de poder (admi-

332 Para mim, o “poder político”, em sentido estrito, é o poder comunicativo como potentia, o que
pareceria coincidir com Habermas, mas a continuação do texto nos mostra que não é assim.
333 A terminologia weberiana (o poder como “dominação”) contamina defectivamente o voca-
bulário habermasiano. Não adverte que a “dominação” é já não o poder originário (potentia),
mas a fetichização do poder delegado institucional (potestas).
334 É o “dar-se” da autodeterminação da soberania já indicado por Rousseau. Mas, se “se dão”,
não podem autodominar-se. O que acontece é que os que dão as leis como dominação (potes-
tas corrompida) tiveram antes que deixar de ser obedientes ao poder da comunidade (potentia).
335 Habermas sempre fala da “vontade” e da “formação da vontade”, porém mais como efeito
da razão discursiva (uma vontade tolerante, democrática, etc.), e não como a força material
do poder enquanto tal.
336 Falarei melhor de “autoridade de governo”, para reservar o “poder” ao poder consensual da
própria comunidade política.

162
nistrativo, autoridade de governo, poder diferenciado, etc.) deve referir-se a esta
fonte criadora. Todo exercício de dominação, coação ou violência não bebe neste
bebedouro e, por isso, é um “poder político” defectivo, corrompido.
[294] Toda a questão na diferenciação dos tipos de poder ou seu exercício con-
siste no tipo de relação ou referência ao poder consensual da comunidade política.
O poder político surge de uma escisão originária (Entzweiung ou Diremtion, diria
Hegel), na qual se cifra toda possível fetichização, fixação, desvio, corrupção ou
defeito do exercício delegado do poder consensual da comunidade política, em
suas mediações empíricas institucionalizadas. A escisão entre trabalho vivo e tra-
balho objetivado e, posteriormente, entre valor de uso e valor de troca na econo-
mia (antidiluviana, diria Marx) permitem todo tipo de iniquidade econômica; no
campo político, de maneira análoga, o desdobramento entre poder consensual
originário da comunidade política, dada em sua relação primeira como pura po-
tência comunitária indeterminada (potentia), e os tipos empíricos do exercício do
poder político institucional (potestas), ao desdobrarem-se heterogeneamente, ao
determinarem-se (recordando que omnia determinatio negatio est337) em funções
políticas, permitem “alheamentos” que podem terminar em definitiva negação de
sua fonte criadora, perdendo a possibilidade de sua regeneração. Por exemplo: as di-
taduras militares implantadas pelo Departamento de Estado Norte-americano, na
época de Henry Kissinger, na América Latina (entre 1964 a 1983, desde o golpe de
Golbery no Brasil até as eleições políticas formalmente sem fraudes dos governos
civis na Argentina e no Brasil), fundavam o exercício não-delegado (quer dizer, não
desde a potentia, mas desde o poder militar fetichizado) da coação do Estado como
repressão violenta da comunidade política, exercício que emanava da estrutura
militar e do apoio externo do Pentágono (potestas corrupta ontologicamente) e,
de nenhuma maneira, se regenerava no poder consensual da comunidade políti-
ca, poder que as ditaduras pretendiam debilitar, fracionar, destruir por meio das
mais irracionais coação, perseguição, “guerra suja”, tortura, desaparições, etc. A
violência do Estado militar (que deve ser chamada poder corrupto, mera domina-
ção sem nenhum visto de legitimidade), cuja fundamentação vinha “de cima” e “de
fora” (o poder corruptor dos Estados Unidos, de seus presidentes, departamento
de Estado, ou seja, “a elite no poder” do país democrático), intimidava e impedia a
expressão e a formação do “poder consensual da comunidade política” (potentia)
que era, “desde baixo”, o “inimigo a vencer” das ditaduras. O “inimigo total”, isto é,
quase-militar (não-político, no sentido de Carl Schmitt), era o “poder consensual

337 “Toda determinação é negação” (Dussel, 1974c), negação da indeterminação originária e


afirmação de um ente (Dasein: ser-aí) determinado. Em nosso caso, permitem a aparição
do “ente” (Dasein): o “poder do governo”, o “poder do Estado”, o “poder executivo”, etc., mas
classificados em dois tipos normativamente determinados: o poder obediencial e o poder
fetichizado ou autorreferente,

163
do povo”. Logo, é preciso efetuar numerosas distinções não habituais na filosofia
política europeia ou norte-americana, que observam somente governos liberais ou
social-democratas dos centros metropolitanos, num avançado “estado de direito”
que, na periferia pós-colonial, matam presidentes, organizam golpes de Estado
contra governos eleitos democraticamente: mestres de corrupção! (começando por
seus serviços de inteligência, como a CIA, organismo indefensável desde toda nor-
matividade possível). No mundo periférico pós-colonial, então, que vive as contra-
dições e complexidades criadas pelo estado atual de dependência e exploração por
parte dos Estados centrais (entre os quais devem ser incluídos, por exemplo, os
europeus, como Espanha ou Alemanha), com respeito aos quais não é que sejam
“atrasados”, mas que seguem sendo causa de uma extração sistêmica de riqueza e
que continuam sofrendo uma dominação exercida contra o poder consensual das
comunidades políticas oprimidas neocolonialmente por um exercício despótico
(no sentido de J. Locke) do poder.
O poder consensual da comunidade política não pode ser exercido de maneira
espontânea, sem mediações institucionais (por isso, é poder “em si”, em potência).
A Comuna de Paris ou os Sovietes organizados pela Revolução Russa de 1917
(potentia em si), são momentos originários do exercício espontâneo do poder con-
sensual de comunidades políticas parciais. Não pode tratar-se de modelos políticos
institucionalizados (o “em si” não pode ser simultaneamente “para si” ou reflexiva-
mente mediatizado) e, sim, são os acontecimentos históricos que devem indicar a
necessidade de não deixar de se orientar sempre em referência à comunidade po-
lítica, mas que, como tal, devem necessária e posteriormente passar da indetermi-
nação institucional à sua organização (deve-se passar da potentia à potestas), já que
é empiricamente impossível a vida política para populações de países de milhões
de habitantes permanecendo na indeterminação primeira. O postulado político
do exercício imediato e não cindido do poder político consensual da comunidade
(a democracia direta) deve indicar que é, desde baixo, a permanente fonte de rege-
neração de todo exercício delegado de poder, da autoridade ou administração de
toda instituição, Estado ou governo, e que, ainda, deveria ter um primeiro degrau
na institucionalização do Estado que fosse por democracia direta (os distritos de
Jefferson ou os “conselhos populares” na atual Venezuela). Mas que, como indeter-
minado, é impossível seu exercício e eficácia empírica. Isto produz simplesmente o
caos, a perda do consenso e o disparar-se a pluralidade para objetivos contraditó-
rios que exigem impor uma certa ordem. O NEP338, de 1921, na União Soviética
(que foi, então, o aparecimento de uma “sociedade política” institucionalizada e a
dissolução dos “sovietes”), indica a impossibilidade do exercício do poder consen-
sual sem mediações suficientes. As decididas em 1921 não eram as ideais, as únicas
possíveis, as “verdadeiras”, simplesmente foram as projetadas no momento a partir

338 [NT: Nova Política Econômica].

164
de certos critérios (que se tinham por socialistas) e que produziram em setenta
anos de exercício na Europa oriental (não assim na China, no Vietnã, Cuba, etc.)
efeitos negativos incontroláveis. Uma certa institucionalização do exercício delega-
do do poder consensual da classe operária urbana conduzida pelos bolcheviques,
dando as costas ao campesinato tradicional e a outras forças sociais, debilitou o
poder consensual popular sobre o qual a Revolução de Outubro deve ter rege-
nerado suas forças. Um Estado que exerceu a autoridade do governo de maneira
não democrática (não dizemos liberal) minou esta regeneração, debilitou o poder
consensual, até ao ponto em que dito poder consensual da comunidade pressio-
nou, em 1989, até destituir as estruturas do exercício que de dominação haviam
passado a ser um exercício de violência antipopular de parte de uma burocracia
fetichizada (potestas negativa). O bloco histórico no poder (poderia dizer-se mais
estritamente “no poder”) havia destruído as fontes de sua regeneração possível.
[295] Da mesma maneira, o “princípio da soberania popular,339 quando é lido
em termos de teoria do discurso, diz que todo poder político deriva do poder
comunicável dos cidadãos” (Habermas, 1992, p. 209). Vemos, novamente, como
o poder consensual é a última instância em todos os aspectos da política. Isto
não significa que dito poder consensual se exerça, como já indicamos, de maneira
institucionalmente imediata, por exemplo, como expressão de uma “força plebis-
citária de uma vontade popular empírica supostamente homogênea, como raiz da
qual brota a formação discursiva da opinião e vontade políticas” (1992, p. 227).
Não é assim. O poder consensual da comunidade política existe realmente quando
empiricamente se dá a união das vontades pelos acordos discursivos (implícitos
ou explícitos). As mediações, originadas na cisão entre a potentia da comunidade
e as instituições criadas para seu exercício delegado empírico (potestas), devem ser
suficientemente diferenciadas para permitir a permanência e o desenvolvimento
da vida comunitária dos cidadãos (embora o plebiscito possa ser excepcionalmente
uma dessas instituições,340 em referência a outras que não sejam excepcionais, mas
de exercício permanente).
Posteriormente, deverá ser esclarecida a diferença entre poder consensual e au-
toridade, esta última, atributo da comunidade política e não do governo. Como se
sabe, “governo” vem do grego (kybernéter é o piloto, e kybernáo é pilotar uma nave):
naós [nave] e significa o que conduz ou pilota; em nosso caso, o Estado. O governo

339 No próximo capítulo, abordaremos a institucionalização da esfera formal do direito, a le-


gislação e o exercício judicial, momento para tratar a questão da “soberania da comunidade
política”. Em sentido estrito, a soberania popular deverá ser analisada na Crítica, no capítulo
5, quando a “comunidade” deixe lugar a “povo” como ator ativo privilegiado da descrição da
filosofia política crítica ou da libertação. Por ora, citemos a expressão habermasiana.
340 Em casos graves, onde o exercício delegado do poder de um autêntico representante políti-
co é colocado em crise, este poderia recorrer à consulta direta justamente para “regenerar”
a fortaleza do poder que diz exercer. É sabido que os governos populistas (G. Vargas, L.

165
tem também um exercício delegado da autoridade (“poder administrativo”341 o de-
nomina Habermas), que deriva do exercício do poder delegado342 do Estado.
Como conclusão inicial, na questão do exercício do poder, que merecerá, nas
próximas páginas deste livro, novas descrições, queremos sustentar a necessidade
de diferenciar ao menos dois níveis, cujo segundo tem, por sua vez, diferenciações
internas, que são: 1) o “poder consensual político”, como o poder propriamente
dito e no sentido estrito da comunidade política (potentia), fonte de regeneração de
todo exercício estratégico ou como fundamento de todo exercício do poder delega-
do e diferenciado institucional (poder instituinte; potentia); 2) o “poder instituído”
(potestas), que pode ser exercido obediencialmente como a) “poder hegemônico”,
exercício empírico do poder delegado nas estruturas de governo, do Estado (poder
instituído) enquanto há consenso suficiente da comunidade política; por exemplo,
no Estado populista da periferia pós-colonial (aspecto sobre o qual Ernesto La-
clau deu valiosos elementos de análise, embora redutivos); como b) “poder como
dominação”, como o exercício da força por parte de minoria influente de um poder
aceito como legítimo, quando se conseguiu algum tipo de consenso nas maiorias
(que, por isso, são “obedientes”, no sentido weberiano), e onde o exercício da coação
de Estado é usado pela autoridade do governo ambiguamente com respeito aos
interesses da maioria da comunidade política, a qual, por sua vez, não tem cons-
ciência ilustrada de uma tal dominação, como no caso do Estado liberal (potestas
fetichizada); como c) mera “governabilidade”, como exercício tecnocrático de um
momento político neoliberal, num mundo pós-colonial que não pretende alcançar
nem consenso e nem legitimidade; é um procedimentalismo que impõe seus crité-
rios pela “mediocracia” e crê e produz a ideologia do não existe outra alternativa que
compita com ela, ante uma comunidade despolitizada e desencantada343; como d)

Cárdenas, J. D. Perón, etc.) que ganharam massivamente sem fraude suas eleições, convo-
cam “o povo” multitudinariamente em grandes espaços públicos para afirmar o exercício
delegado da autoridade do governo. Estas convocações massivas são ambíguas, já que po-
dem ser manipulação das massas urbanas marginais, e de mau gosto nos países centrais
metropolitanos, mas devem ser considerados também recursos legítimos de condutores
populares que necessitam regenerar a força da conexão entre seu exercício delegado do
poder (potestas) e o poder mesmo consensual da comunidade majoritariamente política que
frequentemente não tem sob sua propriedade os meios massivos de comunicação (como
no caso de Hugo Chaves, na Venezuela, ou Andrés Manuel López Obrador, no México).
341 Tudo isso deveremos analisar no § 22.
342 O “poder consensual” se organiza, se divide, se diferencia em Estado, sob condições insti-
tucionais (são os “pactos” do contratualismo). O soberano não é o governo nem o Estado e,
sim, a comunidade política.
343 A visão do “poder” em N. Luhmann se assemelha muito a este modo de exercício da força.
Escreve: “A causalidade do poder (Macht) consiste em neutralizar a vontade [do outro], não
necessariamente em dobrar a vontade inferior [...]. A função do poder consiste na regulação
da contingência. Como com qualquer outro código de meios, o código do poder se relaciona

166
pura violência, quando há somente exercício da força como pura coação do Estado,
definida como última instância soberana, enquanto não só desapareceu o con-
senso, mas se passou à repressão contra a possibilidade de certo renascimento do
poder consensual de um povo atemorizado: as ditaduras militares, por exemplo.
Como se vê, somente os dois primeiros tipos de presença da força são poder políti-
co em sentido pleno, positivo; o primeiro como presença do poder na comunidade
política e o segundo como poder obediencial hegemônico, única maneira (fora da
unanimidade que somente se pode pretender como postulado) de exercer de modo
delegado o poder com justiça e legitimidade.

com uma dissidência possível – não necessariamente real – entre as seleções de alter e ego:
acaba com a dissidência” (Poder, cap. 1; Luhmann, 1995, 18). Como o poder se exerce num
campo de grande “incerteza” (Unsicherheit) (ver Die Politik der Gesellschaft, cap. 2; Luhmann,
2000, p. 19ss), “o poder é uma oportunidade para aumentar a probabilidade de realização
de combinações improváveis de seleções” (Luhmann, 1995, p. 18-19).

167
§ 19. O “BLOCO HISTÓRICO NO PODER” COMO ESTRUTURA
SOCIOPOLÍTICA ESTRATÉGICA

[296] A vontade e a razão políticas devem convergir, então, para constituir orga-
nicamente o poder da comunidade. Contudo, devemos distinguir, com Habermas,
entre poder comunicativo ou consensual, como o denominamos, e poder político:
“O conceito de poder comunicativo (kommunikativen Macht) introduz uma neces-
sária diferenciação no conceito de poder político (politischen Macht)” (1991, p. 186).
O poder consensual da comunidade política, que reúne as vontades que movem
os cidadãos, não é imediatamente poder político institucionalizado. Para ser poder
político (potestas), deve institucionalizar-se num sistema político, fazer-se presente
no campo político, tendo uma articulação real com uma estrutura política, e isso
determina um desenvolvimento de funções internas heterogêneas, pluralidade que
enriquece a totalidade e complexidade da práxis dos atores políticos. A diferen-
ciação heterogênea das funções dos atores para esse fim é uma mediação necessá-
ria para a permanência e aumento da vida. Estas mediações (materiais e formais)
determinam estruturas práticas, grupos, subcomunidades, associações, partidos,
dentro dos quais amadurecem posições diferentes. Assim, inevitavelmente, nas-
cem setores ou movimentos que têm parte no exercício delegado do poder, em
proporções diferentes dentro da comunidade política, maiorias ou minorias de
cidadãos que se adscrevem a ditos movimentos que sustentam diversas concepções
da vida política e diferentes maneiras de solucionar os problemas que enfrentam.
O exercício delegado do poder produz uma diferenciação interna para se converter
em poder político.
O que Weber entende por poder, quer dizer, o exercício de uma dominação
com pretensão de legitimidade344 sobre sujeitos obedientes, deveria ser esclarecido
em seu conteúdo. Não seria propriamente o exercício delegado do poder consen-
sual da comunidade política e, sim, uma dominação (que não é, aqui, como para
Gramsci, como veremos, a pura coação monopólica do Estado contra os direitos da
comunidade), com uma legitimidade aparente (já que os três tipos de legitimidade
de Weber não são, senão, “aparência”) sobre cidadãos mais ou menos isolados,
debilitados na possibilidade de gerar poder desde baixo. Neste caso, a comunida-
de e as instituições políticas não poderiam exercer plenamente o poder, porque
este não surgiria de um consenso decidido na tal comunidade (enquanto não se
cumprem realmente seus interesses), não existindo, portanto, unidade consensual
que mobilize realmente as vontades da comunidade política desde baixo. Somente

344 Esta “aparência” (Schein) não pode nunca se realizar como “honesta e séria pretensão” no
caso de Weber. Porque dizer “dominação” é já excluir o exercício real do poder consensual
da comunidade política, constituída como “obediente” e não como ativamente participante,
origem própria do poder político.

168
seria assinalada à comunidade obediente uma função puramente passiva. Seria o
primeiro degrau, no dizer de Antônio Gramsci, de uma hegemonia com um débil
consenso (como a exercida pela burguesia do Norte industrial anterior ao fascismo
na Itália) ou, de Weber, de uma dominação com alguma legitimidade. A passagem
da hegemonia da burguesia à dominação estrita, no sentido gramsciano, será tratada
na Crítica desta Política da Libertação, desde o § 40.
O poder comunicativo (potentia) que se institucionaliza paulatinamente (potes-
tas) tem como poder político da comunidade sua fonte regeneradora (a potentia),
seu conteúdo e sua força estão no próprio poder comunicativo, como a unidade das
vontades consensualmente, como o querer comunitário da vida humana que pode
pôr os meios para sua sobrevivência autodeterminada.
Em primeira instância e por sua natureza, o poder não consiste, como temos
repetido com frequência, numa dominação sobre outros, mas, ao contrário, o poder,
no sentido estrito, é força unitiva da comunidade que acumula potentia (potência
como resistência diante de fatores externos e diante de dissidências internas de-
bilitantes e principalmente como fonte criadora da vida política). Esta potentia das
vontades organicamente unidas, quando se põe em ação como poder político, mesmo
sem necessidade de dominar, se manifesta como uma capacidade construtiva, tanto
material de permanência e incremento de vida, quanto formal de legitimidade pro-
cedimental e normativa na tomada de decisões, na organização de instituições ou na
formulação de leis. Educadas as vontades no consenso racional (a isto deve chamar-se
formação da vontade política, a fraterna tolerância democrática), sabem opor-se aos
elementos dissolventes que debilitam seu poder comunitário.
Quando o exercício da violência desmobiliza os cidadãos, quando os despoli-
tiza para poder melhor manejá-los, parece que o governo alcança mais poder sobre
eles (como no caso da tirania, o autoritarismo ou o totalitarismo). Mas, na reali-
dade, nestes casos, diminui o poder da comunidade, porque se isola345 os membros
do todo político, a comunidade perde poder e o governante também perde força
(na medida em que não pode exercer delegadamente dito poder para desenvolver a
vida da comunidade ou defender-se de ataques externos), dando passagem para o
uso da coação sem consenso: a pura dominação ou violência. Os cidadãos isolados,
em seu mero caráter abstrato, deixam de ter capacidade de exercício do poder po-
lítico como atores, ficam excluídos, impotentes, desconectados e desgarrados. Ao
mesmo tempo, porém, o corpo político experimenta o que se denomina um “vazio
de poder”, encontra-se desarmado diante de próprios e estranhos.

345 No “econômico” (não na “política”), Marx mostrava como o “caráter social do trabalho”
consistia na abstração isolada do trabalhador, sem comunidade, individualidade alienada
sem relação prática com os outros trabalhadores e que, desde sua isolada vida cotidiana,
era societarizado desde afora pela coordenação abstrata do capital, que não podia cumprir
a função de uma comunidade de seres humanos livres.

169
Veremos, no capítulo 5, a transformação desde um exercício do poder político
burguês hegemônico, poder de uma proposta que ainda move as maiorias com
algum consenso (com legitimidade relativa), até o mero exercício da dominação
(com algum consenso), à governabilidade tecnocrática que se pretende sem alter-
nativa (a cara política da economia neoliberal desde os anos noventa do século
passado), ou ao exercício da violência sem consenso, como nas ditaduras militares
impostas pelo Pentágono na América Latina (e, por isso, sem legitimidade real,
legitimidade puramente formal ou meramente aparente).346
Por tudo isso, deveremos distinguir entre o poder político consensual da comu-
nidade – o poder fundamentalmente político, que é a faculdade mesma do poder
da comunidade (que se exercitou, na origem, como democracia direta nas comu-
nidades pouco numerosas, mas que não por isso desaparece e, sim, permanece
sempre como a última instância do poder) – e o exercício por delegação através das
instituições políticas fundadas pelo dito poder consensual. O poder instituinte (de
C. Castoriadis) ou o poder constituinte (de C. Schmitt) – a potentia que se autode-
termina como potestas, como o poder exercido por uma comunidade que se propõe,
em primeiro lugar (instituinte), convocar uma assembleia (constituinte) que dita, em
segundo lugar, uma constituição – é o exercício de um poder político “delegado” pelo
poder consensual da comunidade política (potentia) para agir em seu nome. O real
poder pré-instituinte ou pré-constituinte é o poder consensual da comunidade po-
lítica que quer dar-se (como expressava Rousseau) uma lei fundamental: quer dizer,
é a fonte do poder instituinte e constituinte “originário” (potentia) e, como tal, não é
soberano per se. O soberano seguirá sendo sempre a comunidade política que tem
o poder consensual como próprio. Este “ já sempre a priori pressuposto” fundante
do poder consensual é a origem ontológica (ou transcendental) de toda a política,
a última instância soberana.
[297] Desde este horizonte, pode-se, agora, entender que o exercício do poder
delegado das instituições – até as do Estado347 ou da autoridade de um governo,
sendo um poder fundado (delegado) e tendo em conta a complexidade institu-
cional que se dá a comunidade política, que pode fracionar o exercício delegado
do seu poder ao não alcançar unanimidade (que não se pode esperar) –, deve-
rá ter que aceitar necessariamente que um grupo ou uma fração exerça o poder
político delegado (chamá-lo-emos com A. Gramsci um “bloco”) ante e até sobre
outros grupos, devendo respeitar sempre os direitos da minoria (não-hegemônica).

346 A equação weberiana de uma “dominação com legitimidade ante obedientes” é contradi-
tória; no exercício de uma força dominadora como violência, a legitimidade é aparente e
os obedientes são oprimidos, dominados, explorados. Este exercício da “dominação” não
podemos denominá-lo “poder”, mas meramente corrupção do poder enquanto “dominação”
fetichizada.
347 Ver, mais adiante, § 22.2.

170
Quando este exercício se cumpre com o consenso dos grupos que exercem atual-
mente o poder político delegado como o ator principal, o denominaremos o poder
político hegemônico, indicando, com esta última determinação, o poder exercer o
poder delegado num grau suficientemente aceitável acordado por parte de toda a
comunidade política. Ernesto Laclau – seguindo em parte Gramsci – propõe um
conceito de “hegemonia” que é aqui utilizável. O “bloco histórico no poder”, que
exerce dito poder político delegado nas instituições, é o que conseguiu propor ao
todo político um projeto que, embora particular, cumpre com os interesses míni-
mos (ao menos no momento) da universalidade concreta348, isto é, da maioria da
comunidade política. Os obedientes (de M. Weber), os oprimidos (de K. Marx), os
excluídos (de E. Levinas) ainda podem cumprir aceitavelmente seus interesses na
ordem hegemônica proposta ou, ao menos, não veem, no momento, com clareza,
ou com possibilidade de menores sofrimentos, outras alternativas. O poder con-
sensual institucionalizado como poder político exercido delegadamente por um
governo,349 enquanto poder político fundado na potentia, cobra, assim, a fisionomia
de poder político hegemônico.
Antônio Gramsci350 reflete sobre a situação de um país do “sul da Europa latina”
(excluída, em parte, da Modernidade ilustrada), a Itália, que tem certa semelhança
com a América Latina, distanciadas ambas da realidade observada pela filosofia
política do mundo germânico ou anglo-saxão. A débil burguesia de um país divi-
dido (com um Mezzogiorno empobrecido), anterior ao surgimento do fascismo,
exigiu que Gramsci desenvolvesse o conceito estratégico de hegemonia, já havia
sido empregado pelo próprio Lênin, para propor a categoria de “bloco histórico no
poder” (configuração estratégica de classes e frações que se configura em situações
contingentes e mutáveis do campo político). O que para Lênin significa ainda uma
tática de alianças se transforma lentamente, para Gramsci, numa estratégia do con-
senso intersubjetivo, não somente baseado em interesses econômicos e políticos,
mas justificado histórica, ideológica e culturalmente. A hegemonia se funda num
consentimento social e político, que não somente abarca a objetividade da ideolo-
gia (tradicional no já nascente marxismo standard), mas também a subjetividade
propriamente política.351 Não interessa tanto que o consenso funde a legitimidade

348 Veremos que se trata, na verdade, de um análogo hegemônico (reivindicação de um povo). Ver
na Crítica, § 37. Considere-se a Tese 11.16 da obra 20 Teses de Política (Dussel, 2006).
349 Chamamos “governo” a uma estrutura interna do Estado (como sociedade política) que
administra com autoridade, sempre delegada (e, por isso, é um “poder administrativo”) um
certo nível do exercício do poder político da comunidade.
350 Ver Gramsci (1970; 1971; 1975; 1977); Buci-Glucksmann (1978); Jean Cohen (1995,
p. 117ss; p. 142ss); Poulantzas (1972); Díaz-Salazar (1991). Ver a Tese 6.3 da obra 20 Teses
de Política (Dussel, 2006).
351 É verdade que, lamentavelmente, Gramsci usa ainda aquelas categorias sumamente débeis
(e que, para o Marx definitivo, não foram categorias de importância) aquela de “infra” – e

171
(na esfera formal), mas que o consenso constitua intrinsecamente o poder hegemô-
nico (que nunca é poder unânime, embora se deva tender a ele como um postulado
político).352 Vejamos a questão por partes.
Quando, em 17 de abril de 1917, Lênin escreve: “Todo o poder aos sovietes”,
Gramsci estava em Turim (onde estudou filosofia na Faculdade do mesmo nome,
na Avenida Pó, com Togliatti e outros), cidade com quase duzentos mil operários,
onde se encontrava o grupo operário italiano mais ativo e consciente politicamen-
te. De imediato, se pensa como imitar a existência dos sovietes russos. Existiam
algumas commissioni interne das fábricas, já organizadas desde 1906 pela patronal.
Por isso, a pergunta de Gramsci era: “Existe um germe, uma aspiração ao governo
de sovietes na Itália, em Turim?” (Gramsci, 1971b, p. 351).353 O movimento L’Ordi-
ne Nuovo se propunha partir do exemplo bolchevique, embora inspirando-se igual-
mente em Sorel, Barbusse, De Léon (o líder marxista norte-americano) e outros
teóricos do momento e, por isso, Lênin não podia deixar de ser a fonte principal
de inspiração político-estratégica.
Num primeiro sentido, hegemonia significa simplesmente um modo de exer-
cício do poder com primazia sobre outras forças.354 Mas, muito rapidamente, co-
meçou a significar a possibilidade de que, sob uma classe ou fração (por exemplo,

“superestrutura”, embora tenda a mostrar mútua codeterminação de a) o material econômi-


co, com b) a tomada de consciência e c) os momentos nos quais os “intelectuais” (orgânicos
ou não) exercem função própria.
352 Ao contrário, principalmente em Lênin, vai ligado ao ambíguo problema da “ditadura” do
proletariado. A ambiguidade consiste, em primeiro lugar, no equívoco que sugere a palavra
“ditadura”, que não é tomada como uma instituição romana temporária, mas como “anti-
democrática”; em segundo lugar, o fato de que um novo “bloco histórico” devia construir
uma ordem com disciplina, em especial em referência aos membros do antigo “bloco”, é
universal e claramente justificável, mas não teve que se chamar esta instância de “ditadura”;
em terceiro lugar, como veremos, a aceitação da palavra “ditadura” permitiu investir a
“vanguarda” (o Partido Comunista soviético) de uma autoridade que não emanava (nem
pretendia emanar) do poder consensual da maioria dos operários e camponeses, do povo
russo (e, sim, do Partido), o que permitiu institucionalizar uma burocracia autorreferente
no campo político. O erro estratégico (e de princípio) produzirá inegáveis efeitos negativos
táticos que desencadearão, a longo prazo, o colapso do socialismo da Europa oriental, por
não ter podido fundar nem regenerar a autoridade no Estado da URSS no “poder consensual
da comunidade política” como um todo. A chamada “ditadura” foi o exercício, no momento
pós-revolucionário, da dominação com algum consenso (em especial, da classe operária) e,
posteriormente, a violência sem consenso.
353 “As comissões internas são órgãos de democracia operária que devem ser libertadas das
limitações impostas pelos empresários” (Gramsci, 1971b, p. 207).
354 Escreve Lênin: “Para o imperialismo é substancial a rivalidade de várias grandes potências
em suas aspirações à hegemonia” (Lênin, O imperialismo, fase superior do capitalismo, 1961,
I, p. 767).

172
vanguarda operária), pudesse se lhe unir outra classe ou fração (por exemplo, o
campesinato russo) para um exercício conjunto do poder:

[...] Vimos claramente que nos aproximávamos do problema mais decisivo [...] ao pro-
blema do poder, ao problema de saber se o proletariado tem o poder em suas mãos,355 se
atrairá todos os pobres do campo, com os quais não tem divergência alguma, de saber
se poderá ser atraído pelos camponeses [...] e se agrupará toda esta massa, dispersa,
desunida, disseminada pelas aldeias [...] (Lênin, 1961, III, p. 31).356

Para Lênin, o exercício do poder tem por sede um certo grupo de atores e se
exerce sobre outros, com um certo domínio (e dali sua concepção do Estado, como
veremos). Portanto, a concepção da hegemonia é um tanto estática, unidirecional e
negativa: os campesinos são “atraídos”, se “unem”, de “dispersos” que se encontram
graças aos operários cobrarão unidade; são “aliados”.357 A “hegemonia do proletaria-
do” era, simultaneamente, a “ditadura” desta classe, sob a condução da vanguarda
do P. C. Soviético.358 Para Gramsci, esta hegemonia, a “ditadura do proletariado
é expansiva, não repressiva [como a da burguesia] Se verifica como um contínuo
movimento de de baixo para cima” (Gramsci, 1971c, p. 13).359
A classe operária, como hegemônica, cumpre uma função de “classe dominante
e dirigente”, quer dizer, “a ditadura do proletariado aparece [como] uma relação
não somente de domínio,360 mas também de aliança e de direção, de subordinação”

355 Mais que “se terá... o poder”, devia escrever: “se podia exercer o poder também em nome
dos campesinos”.
356 Discurso do dia 29 de julho de 1918 (Lênin, 1961, III, p. 31).
357 “A ideia da hegemonia do proletariado, dado que foi concebido histórica e concretamente,
leva em si a necessidade de um aliado da classe operária: o bolchevismo encontrou este
aliado na massa dos camponeses pobres” (L’Ordine Nuovo. 1º de março de 1924m apud
Buci-Glucksmann, 1978, p. 225). Gramsci pensa na aliança dos operários do Norte com
os camponeses do Sul da Itália.
358 “A organização integral do proletariado não pode exercê-la diretamente a ditadura deste.
Somente pode exercê-la a vanguarda que concentra em suas fileiras a energia revolucionária
da classe” (“Os sindicatos e momento atual”, em Lênin (1960, XXXII, p. 11)). Mas, “o
partido buscará realizar sua plena hegemonia nas organizações [operárias] do Estado: os
sovietes” (apud Buci-Glucksmann, 1978, p. 229). Esta “concentração” de poder vanguar-
dista é sumamente ambígua (quando não francamente equivocada).
359 Reteremos este movimento desde baixo para cima, mas, como se verá, terá, em nosso caso,
outro sentido, o da expressão do Poder consensual do povo que o delega nos grupos hegemô-
nicos (que será, numa primeira instância, o “bloco histórico no poder”), para seu exercício
nas instituições do Estado.
360 Observe-se que inevitavelmente o Poder é definido como “dominação” – em Gramsci e em
Lênin –, embora com importantes variações.

173
(apud Buci-Glucksmann, 1978, p. 233).361 Tudo isto na Rússia, onde passou a exer-
cer o poder. Resumindo: Gramsci, a partir de Lênin, chegou a uma conclusão clara:

A classe operária russa [...], mediante seu partido político, demonstra-se capaz de cons-
truir um Estado, isto é, na medida em que a classe operária consiga conter a maioria da
população, constituída por estratos informes da classe média, das classes intelectuais,
dos campesinos, de que seus interesses imediatos e futuros coincidam com os interesses
da maioria; sobre este convencimento em difusa consciência social, se funda o Estado,
se funda o consenso nacional frente às iniciativas e as ações do poder operário (Gramsci,
1954, p. 144).

[298] Gramsci, como se pode ver, alcançou uma expressão precisa. Na medida
em que exerça o poder, o Estado tem por fundamento o consenso da maioria da po-
pulação, cujos interesses são cumpridos (universalidade) pela proposta de um grupo
da comunidade política: a classe operária (particularidade). Este consenso é fruto
do “convencimento” e não de dominação ou violência. A pluralidade das vontades
foi reunida pelo consenso, convergência na qual consiste o poder que, por sua vez,
debaixo para cima funda o exercício delegado do poder das instituições do Estado.
Entretanto, Gramsci se encontra na Itália, onde o proletariado não fez a revo-
lução e, por isso, a situação é completamente diferente à de Lênin. Não é possível
pensar num “ataque frontal” (guerra de movimentos), mas preparar amplamente
o momento oportuno com a “guerra de posições também no campo político. Esta
parece ser a questão de teoria política mais importante do período do pós-guerra”
(Gramsci, 1971d, p. 103). Por isso, os militantes da Europa ocidental tiveram de
abrir caminho, desenvolvendo uma estratégia política própria, nova e diferente da
soviética. Para isso, será muito útil a categoria da hegemonia, que deve universa-
lizar-se para poder diagnosticar a situação política conjuntural da Itália do pós-
-guerra. Era preciso passar da hegemonia do proletariado (na Rússia) à hegemonia
da burguesia na Itália, ante a qual era preciso abrir toda a problemática da constru-
ção da hegemonia do proletariado como luta anti-hegemônica contra a burguesia.
O problema da burguesia italiana (como a latino-americana, guardando a dis-
tância pertinente362) era que não realizou uma revolução propriamente dita (como
na França); efetuou somente a “revolução passiva” do Risorgimento, que não con-
seguiu integrar o campesinato do Sul e, por isso, não foi uma revolução de caráter

361 L’Unità, 1º de setembro de 1925.


362 Já que a latino-americana não é somente dependente, mas pós-colonial, o que agrava sua
fragilidade, debilidade e exploração (não em relação “capital/trabalho” e, sim, “capital-de-
senvolvido/capital-subdesenvolvido” (Dussel, 1988, cap. 15), já que o segundo transfere
plus-valia estruturalmente ao “centro” do sistema-mundo. A Itália, embora semiperiférica
no tempo de Gramsci, era, em termos continentais, parte da Europa.

174
nacional (somente do norte industrial). Ademais, a burguesia não atrairá as mas-
sas urbanas dos trabalhadores a seu projeto e, por isso, não consegue exercer, desde
o Estado, funções hegemônicas, mas coercitivas:

Se a classe dominante (dominante) perdeu o consenso (consenso), não é mais dirigente


(dirigente), é unicamente dominante,363 detentora da pura força coercitiva (forza coerci-
tiva), o que indica que as grandes massas se afastaram da ideologia tradicional, já não
crendo mais naquilo em que acreditaram (Gramsci, 1975, I, p. 311).364

Logo, para Gramsci, uma classe é dirigente se exercer o poder com o consenso
das maiorias (se é hegemônica), mas, se perde dito consenso, passa a ser uma classe
dominante (sem hegemonia) e, portanto, exerce principalmente a coerção.365 Para
que haja hegemonia deve haver consenso, mas um consenso que não é o do tipo da
legitimidade weberiana, nem meramente ideológica (tal como a formulava o mar-
xismo standard ou o althusserianismo), nem puramente racional discursiva (como
em J. Habermas). É algo mais complexo. Trata-se de um sentido do consenso que
supõe uma teoria complexa da integração política da comunidade, onde o hori-
zonte crítico-revolucionário é seu horizonte de constituição, igual a uma análise
ampliada do campo institucional do Estado.366
Como as categorias são bipolares, a hegemonia é entendida desde sua crise;
a integração política, desde sua desintegração; quer dizer, é necessário incluir no
conceito de hegemonia a possibilidade de uma classe subalterna que possa conver-
ter-se em hegemônica. A burguesia italiana exerceu dominação sem hegemonia;
a classe operária italiana está em situação de dominação, mas pode, por sua luta,
chegar a ser classe dirigente para, posteriormente, por uma adequada estratégia
política, ser hegemônica, antes de exercer o poder do Estado – toda esta refle-
xão teórica, como vemos, se encontra no nível estratégico: uma teoria em função
prático-política:

O critério histórico-político sobre o qual é necessário fundar a própria análise é este:


uma classe é dominante367 de dois modos, como dirigente e como dominante. É dirigente

363 É a potestas que se fetichiza.


364 Cuaderni 3, § 34.
365 Entre os tipos do exercício do poder (esquema 18.01), seria o indicado com (b): a dominação
de tipo weberiano, dominação ante “obedientes” passivos ou reprimidos, não ante “partici-
pantes” ativos, que é o tipo (a).
366 Ao tema do Estado dedicaremos o § 22, do próximo capítulo 2. O aspecto do antidominador
(como ação estratégico-crítica) será exposto arquitetonicamente na Crítica desta obra (§ 39).
367 Observe-se que, para Gramsci, o exercício do Poder sempre é “dominação”. Neste aspecto,
pretenderemos sempre propor uma precisão semântica para diferenciar o “exercício do Po-
der” (propriamente dito) e a “dominação”, de maneira que o “poder hegemônico” da classe
ou fração, que é a que propõe desde sua particularidade o projeto universal ou majoritário,
não o denominarei nunca “dominação”.

175
em relação às classes aliadas,368 e dominante em relação às classes adversárias.369 Por
isso, uma classe, antes de exercer o poder (andare al potere), pode ser (e deve sê-lo) di-
rigente; e, quando o poder se tornar dominante, deverá continuar ainda sendo dirigente
(Gramsci, 1975, I, p. 41).370

Esta problemática política não deveu ser colocada por Lênin, desde 1917; era,
porém, essencial para Gramsci – e para toda Filosofia Política Crítica na América
Latina.371 Vejamos os aspectos da questão.
A simples ideologia dominante (da classe burguesa, por exemplo) não era já
considerada como mero ocultamento fetichista ou ilusão, mas, sim, era analisada a
partir de aspectos materializados numa cultura, em reações inconscientes, expres-
sada por uma tradição. Não era pura ideologia ocultante, inútil ou pura aparência.
As ideologias da classe hegemônica têm uma eficácia específica. Por um lado, são
uma concepção da vida e têm aparatos materiais (tais como escolas, universida-
des, meios de comunicação, professores, jornalistas) com os quais formam seus
quadros. Poder-se-ia denominá-los “aparatos de hegemonia” (Broccoli, 1972),372
que organizam a cultura dominante, formando um tipo de consciência. Politica-
mente, estes “aparatos” da sociedade civil (Estado ampliado) devem ser matéria de
discussão e exercício político, inevitavelmente. Neste caso, as escolas, os sindicatos,
as Igrejas, as instituições artísticas ou o teatro, os museus, os jornais, as revistas...
são momentos políticos da sociedade civil (Estado ampliado).
[299] É aqui onde deve ser situada a importância política dos “intelectuais”
criadores de explicações ad hoc, que têm grande eficácia quanto à integração social.
Para desconstruir esta cultura hegemônica, era necessário considerá-la detidamente e
com categorias adequadas. A filosofia política deveria criar estas categorias estra-
tégicas para iluminar a luta política. A criação de uma teoria tinha dupla frente:

368 Com as que constitui o que denominará “o bloco histórico no poder”.


369 Com as minorias e sobre as que exerceria (na concepção de Lênin ou Gramsci) a ambígua
“ditadura”, no caso de chegar ao poder o proletariado. Mas aqui se adverte uma vez mais
o inapropriado da denominação, porque embora se deva exigir o respeito da “nova” ordem
das minorias (que era a antiga classe dirigente e dominante), não por isso se deixará, por
exemplo, de respeitar seus direitos humanos. Uma ditadura, no sentido atual do termo,
não no romano, poderia não respeitá-los. Um poder hegemônico, mesmo pós-revolucioná-
rio, não pode deixar de ser “democrático” (no sentido que enunciaremos na Crítica desta
Política da Libertação).
370 Cuaderni I, § 44.
371 Tendo consciência de que não será, nem muito menos, a classe operária do capitalismo
dependente e pós-colonial latino-americano a que poderá hegemonizar dita luta política.
As conjunturas são profundamente diferentes, no começo do século XXI.
372 O tema deve, hoje, ser ampliado enormemente pelos “meios” de comunicação (televisão,
cinema, jornais, rádios, etc.), verdadeiros “aparatos” a serviço dos grupos dominantes, pri-
vados transnacionais.

176
lutar contra a argumentação da cultura dominante; e justificar a própria luta polí-
tica dos oprimidos. Assim, um Benedetto Crocce ou um Giovanni Gentile haviam
elaborado filosofias articuláveis a diversas frações da dominante burguesia. Eram
teorias e, também, ideologias historicamente orgânicas. Para V. Pareto, a elite in-
telectual era parte da camada dominante. Saint-Simon opinava que era necessário
um governo de sábios.
Para Gramsci, os intelectuais não formam uma classe política à parte; são os
intelectuais das diversas classes e partidos. A classe hegemônica ou dominante tem
os seus. Por isso, para Gramsci, o problema consistia na formação dos “intelectuais
orgânicos” das classes proletária e campesina, para poder ocupar os “aparatos de
hegemonia” da sociedade civil e criar uma nova cultura. Mas, existia um certo
“obreirismo anti-intelectual” que precisava ser vencido. Além disso, a pequena bur-
guesia (classe donde procede a maioria dos intelectuais) tende a se inclinar para
as classes dominantes. Era necessário criar uma nova concepção do “intelectual”
que, ademais, era em boa parte responsável pela formulação dos projetos hegemô-
nicos dos operários e dos campesinos. Os jacobinos tinham sido estes intelectuais
orgânicos na revolução francesa, que conseguiram expressar um “bloco ideológico”
(blocco ideologico) (Gramsci, 1975, I, p. 42).373 A burguesia italiana do Risorgimen-
to, com sua revolução pela metade ou “passiva”, os tinha, porém, não claramente
decisivos. O exemplo de intelectual orgânico que Gramsci tinha em mente era uma
articulação entre Marx, o teórico político com princípios econômicos, e Maquiavel,
o teórico da estratégia:

Marx e Maquiavel. Este argumento pode dar lugar a uma dupla tarefa: um estudo
das reações reais entre os dois, enquanto teóricos da prática militante e da ação, e um
livro que extraísse das teorias marxistas uma exposição coerente referida à atualidade
política [italiana], sobre o modelo do Príncipe (Gramsci, 1975, I, p. 432).374

Estas tarefas eram pensadas, então, num nível estratégico, não com intenção
puramente teórica, enquanto interessava dar à luz a um “partido [político] que
quer fundar um Estado” (1975, I, p. 432).375 Não é primeiramente uma teoria polí-
tica, mas uma teoria da estratégia e a partir desta intenção político-prática preten-
deram-se criar as categorias interpretativas necessárias para a ação. O intelectual
era concebido no encontro complexo de a) o militante de partido, b) o organizador
como dirigente político e c) o que tem capacidade de formular teórica ou articu-
ladamente os passos estratégicos no curto prazo (o prático) e, sobretudo, a longo
prazo (o estratégico). É por isso que as categorias e o tipo de discurso de Gramsci

373 Cuaderni I, § 44.


374 Cuaderni, 4, § 10.
375 Nesta reflexão, “o protagonista deste novo Príncipe” deveriam ser os socialmente oprimidos,
a classe operária e camponesa.

177
são sempre estratégicos (que devem situar-se num nível A da arquitetônica376 desta
Política da Libertação377).
Tudo começa quando Gramsci distingue entre a) os intelectuais tradicionais
do sul da Itália, orgânicos com o “bloco agrário” (fazendeiros e campesinos) do
Mezzogiorno, que compreende desde os grandes intelectuais como B. Crocce até os
pequenos intelectuais rurais, tais como o proprietário culto, o sacerdote, o médico,
o professor, o burocrata, em geral bons oradores; e b) os intelectuais do norte in-
dustrial e urbano, que não são já os grandes filósofos humanistas e, sim, os grandes
empresários de novas firmas, dirigentes de partidos, técnicos e engenheiros de fá-
bricas, importantes jornalistas de periódicos influentes, escritores populares, entre
os quais é preciso contar também os dirigentes operários dos sindicatos, de movi-
mentos de massas ou dos novos partidos dos trabalhadores, intelectuais que têm
um alto grau de elaboração de estratégia política, aprendida na prática de decênios
de anos de luta. Como é evidente a Gramsci, interessa-lhe o último tipo de intelec-
tuais, orgânicos com a classe operária, aos quais era preciso agregar membros da
pequena burguesia que aderissem (por origem ou posição) aos grupos subalternos.
Dado que a política tem relação com o Estado, é necessário ter uma geração
de “intelectuais orgânicos” da classe operária e camponesa, para que possa levar
a cabo a luta hegemônica nos aparatos políticos, porque o poder do Estado não é
somente força, mas também consenso e este último é fruto do trabalho consciente,

376 Suas propostas tão originais numa teoria do Estado não respondem às exigências puramente
teóricas, mas se deduzem da necessidade de certas categorias estratégicas, como a de hege-
monia. O Capital de Marx tem um propósito explicitamente teórico, porém concebido para
permitir uma estratégia operária ilustrada com intenção crítica. Daí se deduz que tampouco
interessa a Marx o conceito de capital por si mesmo; interessa para explicar seus efeitos ne-
gativos. Partir dos “efeitos negativos” do capital, transformando-os em ponto de partida de
uma estratégia política (para reverter ditos efeitos negativos pela ação política na realidade
histórica), é a tarefa de Gramsci.
377 Colocado o tema, poderíamos indicar o sentido desta obra (a Política da Libertação). É
uma obra teórica de filosofia política que pretende ser, ao mesmo tempo, uma “exposição
coerente referida à atualidade política” latino-americana. Não se trata de uma obra de um
“intelectual orgânico” de um partido político concreto. É uma obra (de um “intelectual or-
gânico” com alguns dos novos movimentos sociais) elaborada como expressão de múltiplos
diálogos com os “intelectuais orgânicos” da base, de ditos movimentos, para ser usada por
todos os partidos e movimentos sociais críticos, comprometidos com os interesses do “bloco
social dos oprimidos” (como veremos na Crítica, volume III). Não somente se situa no nível
A estratégico (como a teoria de Gramsci) e, sim, também no nível C dos princípios, das
categorias, dos pressupostos implícitos que é preciso manter claros para a ação e, por isso,
iluminam os níveis A e B, enquanto ações estratégicas anti-hegemônicas e para transformar
as instituições. Contudo, o estatuto estratégico desta obra (política) é principalmente ana-
lógico à obra O Capital de Marx (econômica), não tanto a O 18 Brumário de Luis Bonaparte,
que se toca com parte do projeto gramsciano (mas somente “em parte”, porque Gramsci
tem um propósito teórico da estratégia política, enquanto Marx não a teve, ao menos no nível
estratégico político tão concreto).

178
reflexivo, organizador e de explicação permanente do militante. É um novo tipo de
intelectual. Isto é necessário também hoje na América Latina.
Esta articulação da teoria com a práxis é muito diferente da proposta por Lukács,
Marcuse ou Sartre. Trata-se do “compromisso” do teórico na ação empírico-estra-
tégica, em cujo seio deve elaborar a teoria. Esta função do intelectual é analisada
por Gramsci em função da construção estratégica de um “bloco histórico”.
Gramsci denomina “bloco histórico” a uma articulação complexa de grupos
sociais, de classes e frações, de partidos políticos, associações religiosas, militares e
de muitos outros tipos que expressam interesses de diversas camadas da população
(em aliança sob a direção de um deles). O “bloco histórico” se origina (e regenera)
desde uma base social que manifesta as múltiplas vontades de uma maioria como
poder desde baixo, sob a direção de intelectuais orgânicos que possuem uma tra-
dição desde a qual recriam um consenso cultural, exercendo uma certa dominação
sobre grupos antagônicos minoritários (com respeito aos direitos humanos e, espe-
cificamente, das minorias). Por isso, um “bloco histórico” no poder é hegemônico.
Ao contrário, no fascismo não havia propriamente (embora, talvez, sim no come-
ço), para Gramsci, um “bloco histórico” no poder e, sim, a tirania de um partido
que, ao eliminar os outros partidos e a dissidência, debilitou e não aumentou o
possível poder que o “sustentava”; como no despotismo tende a aniquilar o campo
político como político e ao exercício da potestas negativa, fetichizada. Não há he-
gemonia; o que há é coação, mera força coercitiva, autoritarismo, dominação com
um aparente consenso imposto de cima.
[300] No nível estratégico, nível A, no qual nos encontramos, deste capítulo 1,
a ação política se propõe, no melhor dos casos, a exercer o poder hegemônico por
meio de um “bloco histórico”, que é o conglomerado (unido conjunturalmente,
mas sempre em estado de possível dissolução, por isso, a ideia de mero “bloco”, não
sujeito ou unidade intersubjetiva com maior intensidade estrutural de integração)
sociopolítico e cultural. Gramsci parte de uma posição clara:

[a] O Estado moderno substitui o bloco mecânico (bloco meccanico) dos grupos sociais378
por sua subordinação à hegemonia ativa (egemonia attiva) do grupo dirigente e domi-
nante; este acaba com certas formas de autonomia, mas estas renascem sob outras
formas, como partidos, sindicatos, associações culturais, etc. [b] A ditadura contem-
porânea – Gramsci está pensando no fascismo – suprime legalmente até estas novas
formas de autonomia e se esforça por incorporá-la na atividade estatal: a centralização
legal de toda a vida nacional nas mãos do grupo dominante que se torna totalitário
(Gramsci, 1975, III, p. 2286).379

378 Cabe advertir que está se referindo a gruppi sociali, não a partidos e nem sequer a classes sociais.
379 Cuaderni 24, § 4.

179
Concede-se ao “Estado moderno”, nascido da revolução francesa, o chamado
“bonapartismo”, uma certa capacidade hegemônica. Ao contrário, é negada ao fas-
cismo essa capacidade e é descrita como totalitária – coincidindo nisto, por exem-
plo, com Hannah Arendt, contra Carl Schmitt e tantos outros, incluindo Gentile,
na Itália, que é o grande intelectual do fascismo, o “Schmitt italiano”.
O “bloco histórico”, então, não é uma mera “aliança de classes”, nem “aliança de
partidos” numa Frente popular. Ambos são atos estratégicos pontuais, conjunturais,
externos, que não incluem uma integração social (expressão de um “poder social”
de grupos que surgem desde o nível material da reprodução da vida comunitária:
o ecológico e o econômico – como veremos no próximo capítulo 2, esfera material)
e menos cultural a longo prazo.
O “bloco histórico” necessita uma classe ou fração de classe dirigente que exer-
ça a hegemonia, quer dizer, “uma atividade de direção política e cultural sobre as
classes aliadas” (Buci-Glucksmann, 1987, p. 342), que é paradigmática na França
burguesa e que cumpriu de todas as maneiras defeituosamente a burguesia italiana
do Risorgimento. Além disso, porém, supõe igualmente uma ativa presença no Es-
tado no sentido ampliado, isto é, na “sociedade civil” com tudo o que sua evolução
histórica pressupõe a longo prazo. O futuro “bloco histórico” deve tornar-se forte
na sociedade civil antes, ou, pelo menos, ao mesmo tempo, do que no manejo da
sociedade política. Sem o primeiro, o segundo é puramente superficial, formal, não
propriamente exercício de poder político pleno. No Cuaderno 3 (§ 90), Gramsci
mostra que é necessário conhecer a história política para poder analisar a vigência
de um “bloco histórico”:

A unificação histórica das classes dirigentes e no Estado se explica em sua história


e, essencialmente, na história do Estado e dos grupos do Estado. Esta unidade deve
ser concreta, isto é, como resultado das relações entre Estado e sociedade civil [...]. A
burguesia, lutando contra forças determinadas sociais, chegou ao poder auxiliada por
outras forças determinadas; para unificar-se no Estado devia eliminar as primeiras e
ter o consenso ativo ou passivo das outras. O estudo do seu desenvolvimento quando
era classe subalterna deve então ser buscado através das fases pelas quais conquistou
sua autonomia (Gramsci, 1975, I, p. 373).

A hegemonia do “bloco histórico”, como se pode perceber, não se estabelece


somente num nível narrativo ou do discurso (o que significa um certo formalismo)
ante antagonistas de uma proposta que cumpre, dentro de uma lógica da equiva-
lência, com os interesses de outros grupos, pelo que se torna majoritário no campo
político, como parecia descrever E. Laclau, mas algo muito mais complexo, já que
articula o material (a permanência e aumento da vida da comunidade política como
um todo ecológico e econômico), o formal (desde o aparato legal do “sistema do
direito” até a justificação do projeto por parte dos “intelectuais orgânicos” ao bloco)

180
e o propriamente estratégico de factibilidade institucional (do Estado como exer-
cício de um Poder380 hegemônico, mas, por exigências de explicar em que consiste
dito “bloco”, é necessário “ampliar”381).
[301] Aqui valeria pensar em dois exemplos do mundo dependente do capita-
lismo colonial (até começos do século XIX) e industrial entre guerras (1914-1945).
O primeiro processo político no qual a teoria estratégica da hegemonia pode dar
bom resultado é o da emancipação nacional das colônias ibéricas na América.382
Quando Napoleão invade Portugal e passa pela Espanha, acontece um proces-
so de acefalia das colônias hispano-lusitanas. Em ambos os casos, a fração da classe
dirigente crioula (os “brancos”383 nascidos na América, mas de pais europeus)
hegemonizou o processo da emancipação contra os peninsulares europeus, fração
da classe dominante num regime colonial. San Martín no Rio da Prata; O’Higgins
no Chile; Bolíviar e Santander na Grande Colômbia; Hidalgo e Allende em Nova
Espanha; os que apoiaram Pedro em Petrópolis, e tantos outros, eram “crioulos”.384

380 Em geral, o tema do “poder” não é tratado frontal e analiticamente (nem por Habermas, nem
por Laclau, porque deveria estar articulado à problemática do Estado que evitam ou somente
incluem como “estado de direito”, o primeiro, ou hegemonia discursiva, o segundo). Ambos
deixaram de ser “intelectuais orgânicos” dos grupos subalternos e muito menos dos países
periféricos pós-coloniais, onde a dominação ou violência que pesa sobre ditos grupos é hoje
paradigmática, muito mais dolorosa do que nos tempos de Gramsci na Itália, afinal europeia.
381 “Ampliar” o Estado não é fruto de uma hipótese técnica, mas exigência de uma explicação
mais complexa do que significa o exercício do Poder por parte de um “bloco histórico”,
que inclui entre suas determinações um certo manejo de instituições tais como a escola, as
Igrejas, os sindicatos, os jornais, etc. que têm uma função política evidente, mas que não
formavam parte do Estado em seu sentido tradicional (tanto para a burguesia como para o
marxismo leninista).
382 Ver o já dito no § 11.1.b.
383 Como bem mostra Aníbal Quijano, em sua teoria da “colonialidade do poder”, a estratifica-
ção social e política nas colônias hispano-lusitanas era de caráter racial. O “exame de sangue
valia para declarar um membro da sociedade como “marrano” ou “ judaizante”, ou como
um branco puro ou mestiço, ou mulato (mistura de branco e afro) ou caboclo (mistura de
afro e índio), ou afro-americano ou indígena. Esta classificação (com até 32 caracterizações
diferentes) continha uma hierarquia nos juízos de valor em cuja escala os extremos eram:
no positivo, o branco; no negativo, o indígena das culturas originárias (depois do próprio
escravo africano). O “branco” da Península era superior ao “branco” nascido nas colônias.
Este último era o “crioulo”.
384 Ver a descrição dos acontecimentos históricos concretos em Dussel (1983, p. 681ss).

181
Esquema 19.01. Bloco histórico no poder colonial hispano-americano (fins do
século XVIII)

Monarquia espanhola
bourbônica e portuguesa

M
Burguesia hispano-lusitana Nobreza tradicional
(pombalina ou bourbônica) (fiel aos Habsburgos)

Burocracia
bourbônica Setores conservadores nas
colonial colônias (crioulos):
C
- Aristocracia agrária do
mercado interno
Setor liberal dependente - Aristocracia mineira
europeu livre-cambista: - Aristocracia monopolista
- Burguesia agrária do tempo dos Habsburgos
exportadora
- Burguesia mineira
Setor liberal crioulo
exportadora
protecionista:
- Burguesia comercial
- Artesãos e burgueses do
monopolista
mercado interno
- Burguesia comercial
do mercado interno

Pequena burguesa
liberal (crioulos)

Setores explorados:
- Comunidades indígenas
- Escravos e negros
- Mestiços, caboclos e mulatos
- Espanhóis e crioulos
empobrecidos

M: Metrópole Possíveis alianças Confrontação


C: Colônias Dependência

182
Eles foram a fração dirigente do processo emancipatório que se articulou com
os mestiços, os escravos, os indígenas, etc., que tiveram uma função de aliados
subalternos sob a classe dirigente crioula, dominantes do que restou do sistema
colonial ibérico.
O “setor liberal dependente do europeu livre-cambista” entrava em competição
com os “setores conservadores de mercado interno” e o “setor liberal crioulo pro-
tecionista”; mas, na conjuntura do “inimigo comum” (a “burocracia bourbonesa
colonial”, presença, na colônia, do poder ibérico na Europa), uniu suas forças e
se transformou nas classes hegemônicas do processo emancipador. A “pequena
burguesia liberal”, graduados de universidades na colônia ou na Península ibéri-
ca, se transformou, junto a muitos outros dirigentes, nos “intelectuais orgânicos”
da emancipação. Francisco Miranda na Capitania de Venezuela, até M. Moreno
ou B. Rivadavia, Primo Verdad ou Frei Servando de Mier, eram os criadores de
uma nova cultura política urbana, a das “cidades letradas”. As classes subalternas,
muitas vezes rurais (46% em fins do século XVIII – no século XVII haviam sido
80% – da população era indígena, e somente havia uns 20% de brancos – no século
anterior haviam sido 6% –, entre os que se encontravam os “crioulos”), aportaram
sua força e unificaram o poder desde baixo, produzindo um poder consensual que
destruiu a antiga dominação colonial, despótica, com legalidade (apoiada nas Leis
dos Reinos das Índias, recopilada em 1681), mas sem legitimidade. Os monárquicos
exerceram uma pura violência. De toda sorte, os patriotas “crioulos” passaram a
ser a nova classe dirigente hegemônica, mas amplos avatares históricos impossibi-
litaram organizar um Estado autônomo e dito processo pós-colonial não terminou
ainda de efetuar a tão aspirada independência política, econômica e cultural.
Outro exemplo de interesse é o caso dos chamados “populismos” entre-guerras
(1914-1945), que já abordamos na parte histórica desta Política da Libertação, a
fim de aplicar a categoria estratégica de “bloco histórico”, e muito mais próximo
da intenção de Gramsci.385 As frações de classe oligárquicas latino-americanas de-
cadentes do século XIX, chamadas “conservadoras” e “liberais”, arrastavam ainda
projetos neocoloniais pré-industriais de exploração latifundiária do campo ou de
um capitalismo mercantil (articulados, neste século, aos novos poderes metropo-
litanos: Inglaterra, França ou Estados Unidos). Entre as guerras, “mal chamadas”
mundiais, e, em especial, pela crise econômica de 1929, as nascentes burguesias
industriais (em Buenos Aires, São Paulo, México, etc.) começam a bosquejar um
projeto hegemônico que se constitui por alianças como um novo “bloco histórico”.
Diferentemente do nacionalismo nazista ou fascista, com pretensões de domi-
nação imperiais (ante Inglaterra e França), as pós-colônias latino-americanas
somente pretendiam a autodeterminação política nacional, a industrialização, a

385 Ver no volume I desta obra, § 11.2 [210-221] e Dussel (1983b, p. 261-299).

183
afirmação de uma cultura com identidade recuperada. A fração de classe indus-
trial, uma débil burguesia nacional periférica, procurou, ou melhor, sonhou com a
possibilidade de um projeto de desenvolvimento capitalista autônomo. As potên-
cias industriais e suas burguesias metropolitanas eram as “inimigas”, na compe-
tição livre-cambista mundial, das burguesias nascentes periféricas (Dussel, 1988,
cap. 14, p. 330ss). Por isso, a burguesia nacional se transformou na fração de classe
dirigente de um “bloco histórico”, cujos grupos aliados eram os operários (recen-
temente incorporados ao mundo da empresa industrial) e os camponeses (que
competiam pela introdução de seus produtos no mercado interior nacional). Esta
“aliança histórica” era muito diferente da estabelecida pela “ideologia de guerra”
desde 1920, donde se origina o nazismo de pós-guerra. Ambos nacionalismos bur-
gueses, o italiano (que Gramsci analisava) ou o alemão (cujos antecedentes sofreu
Rosa Luxemburgo), pretendiam a supremacia no mundo político, militar, econô-
mico e cultural europeu. Eram projetos de dominação. Ao contrário, o novo “bloco
histórico” latino-americano (desde Irigoyen, na Argentina, em 1918; Getúlio
Vargas, no Brasil, desde 1930, ou Lázaro Cárdenas, no México, desde 1934),
nacionalista (porque protegia um mercado nacional e à indústria nascente), an-
ti-imperialista (em competição burguesa contra o capital central, metropolitano,
muito mais desenvolvido), exerceu um poder hegemônico, desde um projeto que
foi assumido pelas grandes maiorias campesinas, operárias, pequeno-burguesas
(culturalmente afirmará a identidade histórica da cultura nacional, reivindicando
ou o hispânico ante o anglo-saxão, ou o indígena ante o estrangeirizante), que se
transformaram em “intelectuais orgânicos” do novo Estado – o Estado Novo de
Getúlio Vargas. Embora a fração hegemônica fosse a nascente burguesia indus-
trial, os aparatos do Estado foram dominados pela estrutura dos militares que ha-
viam participado em revoluções armadas nas quais se havia enfrentado a fração da
classe do antigo regime (os conservadores latifundiários). A revolução mexicana de
1910 antecipa todo o processo e estabiliza um “bloco histórico” que perdurará até a
queda do PRI [N.T.: Partido Revolucionário Institucional], nas eleições de 2000.
O “bloco histórico” tinha inimigos internos (a oligarquia latifundiária, em alguns
países parte da Igreja conservadora, intelectuais tradicionais, etc.) e externos (a bur-
guesia anglo-saxã, principalmente); por isso, exerceu um poder dominante sobre
os grupos que manifestavam seus interesses contrários. No tempo de sua crise,
quando os Estados Unidos havia terminado de organizar seu domínio sobre o ca-
pitalismo do “centro”386 e voltou seu olhar para o Sul, onde o primeiro golpe de Es-
tado organizado pela CIA [N.T.: Central Intelligence Agency] na América Latina
contra Jacobo Arbenz (1954) foi fruto amargo que inicia toda uma época que inclui
o tempo dentro do qual escrevo esta Política da Libertação – que, se é de libertação, é

386 Ver, mais adiante, o § 29 desta Política da Libertação (volume III).

184
porque não se alcançou a independência pela qual lutaram os “crioulos” e seus alia-
dos, no começo do século XIX –, se qualificará a todos estes regimes de hegemonia
como “ditaduras”. Com efeito, quando começa a aumentar a pressão da potência de
turno, os Estados Unidos, apoiando as frações de classe inimigas do “bloco históri-
co”, começa a perder hegemonia, sua força já não se apoia no consenso. Vai passando
lentamente, ao final destes regimes, de poder hegemônico a dominação com
pouca legitimidade, até que, em alguns casos, cruza o limite da violência sem con-
senso. Mas, os novos governos, dependentes da política norte-americana, nunca
conseguirão impor um novo “bloco histórico” hegemônico. Os governos chamados
“populismos radicais” ou “neopopulismos” pós-neoliberais (como N. Kirchner, na
Argentina; Luís Inácio “Lula” da Silva, no Brasil; ou H. Chávez, na Venezuela)
sofrem a investida do Império do Norte e, sem meios de comunicação a seu favor,
é-lhes quase impossível criar o consenso necessário para integrar a pluralidade de
vontades com a unidade necessária para poder, desde baixo, exercer um poder he-
gemônico, com alianças estratégicas, a longo prazo. A situação é dramática, devido
à falta de visão histórica da potência econômica, política e militar norte-americana
que, em vez de exercer um poder externo despótico sobre a América Latina, de-
veria, como Alemanha e França na União Europeia (onde os pobres Portugal e
Grécia são convidados a serem participantes iguais), ter a criatividade de imaginar
uma aliança continental de mútuo benefício. A história dirá qual será o destino
desta luta pela hegemonia no continente americano e no mundo! Mas, entenda-se,
quando uma potência lança uma guerra significa que não é hegemônica e, sim,
despótica, dominadora; quer dizer, ao não poder exercer um poder hegemônico
compartilhado, lança irracionalmente a força pura sem consenso, e isto tanto no
horizonte de um Estado particular (o seu próprio), como na relação global ante o
restante dos Estados deste pequeno planeta Terra... em caminho de sua autodes-
truição se não corrigir a irracionalidade política da pretensão do exercício de uma
força de dominação militar unilateral diante de subalternos vencidos, passivos,
explorados... Será este o destino que o Império do Norte assinalou para a Amé-
rica Latina e o mundo? Terá recursos, a longo prazo, para levar a cabo tal projeto
irracional? Esta Política da Libertação pretende mostrar que, a longo prazo, mani-
festará sua impossibilidade.

185
CAPÍTULO 2
NÍVEL POLÍTICO-INSTITUCIONAL

§ 20. DEFINIÇÕES PRÉVIAS


[302] O “campo político” fica, então, atravessado pelas ações estratégicas dos
atores políticos que se organizam em torno do exercício do poder político em
seu sentido estrito: como unidade das vontades de uma comunidade ligadas
pelo consenso legítimo acerca do decidido factível empiricamente (potentia).387
O poder político assim definido que, na mera ação estratégico-política, se move
dentro de uma contingência pontual inevitável e constitutiva, contudo, se depo-
sitará, se fixará, obterá certa permanência (não-contingência)388, dentro do possível
e não-necessário. Diante da fortuna indomesticável, sempre inesperada da ação
estratégico-política, a vida política foi criando degraus construídos no tempo,
estruturas que asseguram a comunidade no processo histórico das culturas sobre

387 Recordar o que foi dito no § 14.


388 Por analogia com a expressão de Marx de que o “capital fixo” (por exemplo, o valor de uma
máquina), ao final, “circula” (já que num certo tempo a máquina vai transferindo seu valor
aos produtos, até que fique inútil e, então, será preciso comprar outra obra em seu lugar);
quer dizer, o capital fixo circula (logo: não é tão fixo). Da mesma maneira, a “permanência”
das instituições (com respeito à “contingência” das ações estratégico-políticas que se “es-
gotam” ao serem “postas” in actu, com o tempo, deverão igualmente ser transformadas e,
portanto, se “esgotarão” também em seu “ser-postas”. Simplesmente, são somente menos
“contingentes”, ou sua “contingência” tem maior alcance no tempo.

187
os quais ascende, contando com as criações intersubjetivas, que são invenções
das gerações anteriores que permitem fazer-se tradição e efetuar um progresso
político, aprendendo das experiências pretéritas da humanidade. Trata-se de um
nível mais concreto, ascendente, assim, do abstrato, a ação contingente do nível A,
ao mais concreto e mais complexo: ao nível B das “instituições” políticas.389

1. “Eros” e “instituição”
Empiricamente, a vida instintiva animal da espécie, filogeneticamente, ganha,
com certeza, a existência do indivíduo e não havia campo possível (ou era muito
estreito, p. ex., nos primatas superiores) para uma aprendizagem ontogenética para
a política como tomada de decisão condicionadamente livre. Era a presença da
anánke, a necessidade do instinto390. Freud pretende dar um exemplo para intro-
duzir a questão do instinto (Trieb),391 tomando como exemplo a criança:

A criança nunca se cansa de pedir a repetição do jogo que o adulto lhe ensinou ou no
qual tomou parte [...]. Nada disto se opõe ao princípio do prazer; é indubitável que a
repetição, o reencontro da identidade, constitui uma fonte de prazer (Freud, 1974, III,
p. 245; 1967, I, p. 1111).

A “identidade” do repetido significa certa permanência, estabilidade, um bus-


car nas instituições a segurança do instinto perdido. Por isso, esta repetição pro-
duz prazer, do contrário a criança não se encantaria de voltar e voltar sobre o relato
do conto tantas vezes narrado. Mas, talvez, esta “obsessão de repetição” (Wiederho-
lungszwanges) se deva não simplesmente ao prazer que produz e, sim, a um funda-
mento que é o que provoca este prazer. A criança, um sujeito novo, que lentamente
penetra diferentes “campos” práticos com diversos “sistemas” (com seus “ jogos de
linguagem”, como os descreve Wittgenstein, seus gestos, seus ritos, seus códigos,
seus comportamentos específicos, etc.), como a família, a escola, o bairro, um clube
esportivo, uma comunidade religiosa e tantos outros, se encontra desorientada
sem saber como “manejar” estas totalidades funcionais das quais não pode escapar
em sua vida cotidiana. São tantas e tão complexas que a criança tem pânico ao
“não saber” como comportar-se em cada uma delas. Não sabe como “agir”, como
cumprir uma “função” que não desperte riso ou desprezo dos que ama; seus atos

389 Ver Tese 7.2 de 20 Teses de Política (Dussel, 2006).


390 Se entre os primatas o instinto havia começado a deixar certo espaço à aprendizagem do
indivíduo da espécie, e nessa medida havia nascido certo âmbito possível de futura liberdade
e, p. ex., o costume da aliança dos machos dominantes poderia ser considerado como uma
longínqua “protoinstituição”.
391 Expusemos alguns aspectos da posição de Freud em Dussel (1973, III, §§ 43-45, p. 57-92);
em Ética (1998, § 4.3c, p. 352-359) e em Tese 17 (2006, p. 625-630).

188
falhos se apresentam como causas de castigo e, por isso, como risco, como perigo.
O que a angustia é não saber o “sentido” de seu “lugar” num “todo funcional”. O
“instinto”, entre os animais, sabia o que era preciso ser feito; o mesmo acontece nas
sociedades tradicionais que hoje têm sido colocadas em questão na complexidade
da civilização pós-convencional. Por isso, Freud se pergunta:

De que maneira o instintivo está em conexão com a obsessão de repetição? [...]. Em que
um instinto seria, pois, uma tendência (Drang) própria do orgânico vivo à reprodução
(Wiederherstellung) de um estado anterior [...]. Todos os instintos orgânicos [no ser
humano] são conservadores (konservativ) e historicamente adquiridos e tendem a uma
regressão (Regression) ou a uma reprodução do passado (1974, III, p. 246-247; 1967,
I, p. 1111-1112).

Entre as espécies animais, entende-se, os instintos asseguram a ação do indiví-


duo dentro da espécie, filogeneticamente. Mas, no ser humano, o passar evolutivo
das centenas de milênios produz certa “regressão” da conduta instintiva que, de
fato, vai sendo subsumida em comportamentos sistêmico-culturais, em ações re-
guladas por “instituições”. Se o instinto assegurava quase com infalibilidade (ou
sua impossibilidade causava frequentemente a morte) a solução dos desafios do
meio, a humanidade irá depositando o acerto das respostas exitosas a ditos desa-
fios (da natureza e outros grupos humanos) em sua memória coletiva. Os acertos
exitosos são certas ações coordenadas intersubjetivas que será necessário “saber
repetir” e, por isso, serão transmitidas às gerações vindouras. O instinto, como ati-
vidade reprodutora ou conservadora da vida, vai dando lugar (sem jamais desapa-
recer) às “instituições” que cumprem a mesma função reprodutiva e conservadora
da vida humana coletiva.
[303] Mas, a hipótese de certo narcisismo constitutivo da subjetividade (na psi-
canálise e na psicologia social, assim como na filosofia moderna desde o empirismo
inglês392), situará a “consciência mimética” sempre como “competição” (seguindo,
de alguma maneira, o modelo do mercado capitalista). O filho imita o amor do
pai por sua mãe. Dita imitação não seria problemática se não fosse excludente. Ao
competir com o mesmo “objeto”, o filho deseja a morte do seu pai. Assim, se produz
o “complexo de Édipo”. O Édipo da tragédia grega é o filho de um pai que queria
matá-lo, e terminou matando seu pai e deitando-se com sua mãe. O desejo como
imitação do pai, através da morte do pai, culminou com a apropriação exclusiva

392 Como observamos na História desta Política da Libertação, desde Thomas Hobbes, se começa
a usar, de maneira quase unânime (ao menos, até Kant, e desde Smith até o liberalismo
e neoliberalismo de mercado), a hipótese do individualismo metafísico e da emotividade
autorreferencial egoísta ou, ao menos, “do amor próprio”, como ponto de partida emoti-
vo-pulsional da subjetividade). Empreendido este caminho narcisista, a solução será um
conceito de “poder” inevitavelmente defeituoso, negativo e unilateral.

189
do “objeto” (a mãe) que lhe foi negado primeiro. É uma dialética regulada pelo
“princípio de morte”.

A cultura humana [tem] dois aspectos distintos – escreve em O futuro de uma ilusão.
Por um lado, compreende o saber e o poder conquistados por seres humanos para
chegar a dominar as forças da natureza e extrair os bens naturais com os quais satis-
faz as necessidades humanas, e, por outro lado, todas as instituições necessárias para
regular as relações dos seres humanos entre si (Freud, 1974, I, p. 140; 1968, II, p. 73).

Freud, de qualquer modo, termina sempre num certo pessimismo, numa certa
visão que, por uma parte, é saudavelmente crítica e, por outra, psicologicamente
destrutiva. Esta interpretação negativa das instituições tem uma teoria da cul-
tura: “Cada indivíduo é virtualmente inimigo da cultura (ein Feind der Kultur)393
[leia-se: das instituições]. Parece que toda cultura há de se basear sobre a coerção
(Zwang) e a repressão dos instintos (Triebunterdrückung)” (Freud, 1974, I, p. 140;
1968, II, p. 73).394
Em O mal-estar da cultura, Freud continua no mesmo tom. Dado que estamos
numa contínua situação de sofrimento, é preciso descobrir alguma “técnica para
evitá-lo” (Freud, 1975, IX, p. 211; 1965, III, p. 13) e “a mais enérgica e radical é [...]
o que vê na realidade o único inimigo, a fonte de todo sofrimento (die Quelle alles
Leids), que torna a nossa existência intolerável e, por conseguinte, é preciso romper
toda relação [com o temível mundo exterior395] se se pretende ser feliz” (Freud,
1975, IX, p. 212; 1965, III, p. 14).396 Para Freud, fora dessa posição utópica, “o
desígnio de ser felizes que nos impõe o princípio do prazer é irrealizável (nicht zu
erfüllen)” (Freud, 1975, IX, p. 214-2151965, III, p. 16).397 Por isso, ao final, o tema

393 “O ser humano [...] sente como um peso intolerável os sacrifícios que a cultura lhe impõe”
(Freud, 1974, I, p. 141; 1968, II, p. 74).
394 As instituições são, então, “a imposição coercitiva do trabalho (Arbeitzwang) e a renúncia
dos instintos (Triebverzicht)” (Freud, 1974, I, p. 144; 1968, II, p. 75).
395 Expressão que se encontra algumas páginas antes: “[...] die gefürchtete Aussenwelt” (Freud,
1975, IX, p. 209; 1965, III, p. 11).
396 Seria o ermitão asceta que se retira do mundo à skholè do último Aristóteles (que tinha os
sábios egípcios de Mênfis como exemplo).
397 Aqui, porém, Freud toca o tema que exporemos na Seção segunda, no capítulo 4, sobre os
“postulados” da razão política: “[...] mas não por isso se deve – nem se pode – abandonar os
esforços para se aproximar (usa, aqui, a expressão de Kant e de Marx: näher] de qualquer
modo da sua realização” (ibid.). Que sentido tem buscar algo impossível? Já o veremos. Mas,
neste caso, o instinto de vida ou o instinto do prazer vai além do instinto de morte! H. Marcuse
não fala de ir além do “princípio do prazer” e, sim, “além do princípio da realidade” (Mar-
cuse, 1999, p. 127ss). Cabe advertir que, além do princípio “do prazer”, está o princípio “de
morte”, enquanto que, além do princípio “da realidade”, está a “fantasia criadora, artística”
(que é o contrário).

190
da instituição fica situado na dialética de “éros e anánke [que] se converteram nos
pais da cultura humana” (Freud, 1975, IX, p. 230; 1965, III, p. 29).
Com efeito, já no Mais além do princípio do prazer, Freud havia dado as bases do
desenvolvimento posterior. A dialética da liberdade da pulsão, do desejo ao gozo
(éros) e da instituição (anánke ou o “princípio da realidade”), dada a “tendência à
estabilidade” (1974, III, p. 219; 1968, I, p. 1098), significa uma “econômica” de
equilíbrio entre o prazer e o desprazer. A autoconservação da espécie exige certa
“postergação da satisfação” (Aufschub der Befriedigung),398 certa “renúncia” (Verzicht)
ou uma “desviação de uma possibilidade do prazer” (1974, III, p. 220; 1968, I,
p. 1099),399 que é um certo “desprazer”. A instituição (cultural ou política) será um
certo “repetir o desviado (das Verdrängte [...] zu wiederholen)” (1974, III, p. 228;
1968, I, p. 1102), ou o desprazer necessário para a reprodução segura da vida da
comunidade.400 Para que uma tal segurança se estabeleça, é necessário garantir sua
permanência no tempo e, por isso, a “obsessão de repetição” (Wiederholungszwang)
(1974, III, p. 232; 1968, I, p. 1005) fixa diacronicamente a instituição. Por sua
vez, a cultura fornece as regras para interiorizar estas exigências institucionais;
nasce, assim, o “Superego” – o Osíris egípcio que, como um “olho” pan-ótico, julga
desde o Juízo Final todos os atos. “Quanto maiores forem a intensidade do com-
plexo de Édipo e a rapidez de sua repressão (sob a influência da autoridade,401 da
religião, dos ensinamentos e das leituras), mais severamente reinará depois sobre
o Eu como consciência moral (Gewissen)” (Freud, 1974, III, p. 302; 1968, II,
p. 19).402 Desta maneira, a “instituição”, se subjetivou: a organização objetiva, fren-
te ao sujeito na sociedade (por exemplo, o casamento monádico e monogâmico)
fica subsumida na intersubjetividade (da consciência e do inconsciente) como o
próprio fundamento da própria subjetividade (não somente como exigência ética,
mas também como as referências empíricas da própria existência: o pai empírico e
a mãe empírica constituem a subjetividade do filho ou da filha desde sua inevitável
origem biográfica: como em círculo a objetividade institucional é o fundamento da
subjetividade do sujeito).

398 A agricultura exige postergar o prazer de colher todos os grãos para ter alguns para po-
der semear no próximo ano. O agricultor tem muitas exigências reguladoras que o coletor
nômade não observava, mas, certamente, recebe maiores benefícios (a segura e abundante
colheita).
399 Aqui, “Verdrängung einer Lustmöglichkeit” coloca já a questão da necessidade de distinguir
entre “disciplina” e “opressão”, como poderemos observar depois na distinção conceitual
que proponho.
400 “Nosso labor consiste em conseguir a admissão (Zulassung) de tal desprazer (Unlust), fa-
zendo uma chamada ao princípio da realidade” (1974, III, p. 230; 1968, I, p. 1103).
401 Aqui se faz referência às “instituições” políticas que certamente estão gravadas também no
“Superego”.
402 El Yo y el Ello.

191
[304] René Girard, por sua vez, volta ao começo do discurso freudiano e per-
gunta: se o filho imita o pai, por acaso não é na mímesis (imitação) onde tudo
começa? Freud não percebeu que o conflito entre o filho e o pai é o efeito de que
existe um único “objeto” desejado pelo pai e pelo filho, sendo narcisista, o proces-
so da mímesis tem que tender à exclusão do Outro, e esta é a causa do conflito.
Toda sociedade está sempre em conflito porque, pela lógica mimética, quer dizer,
na imitação de uns aos outros, todos aspiram aos mesmos bens escassos. A luta na
fratria é inevitável. Freud propôs uma hipótese sobre o modo como possivelmente
se solucionou originariamente tal conflito, situação pacificada por meio da insti-
tuição totêmica (ao passar do “estado de natureza” ao “estado institucional”). Em
Totem e Tabu imaginou, então, que a unidade reconquistada e pacífica do grupo se
deve a um sacrifício originário que, depois, é venerado como o totem de referência
ancestral: “Um acontecimento como a supressão do pai originário (Beseitigung des
Urvaters) pela horda fraterna tinha que deixar pegadas imperecíveis na história
da humanidade e manifestar-se em formações substitutivas” (Freud, 1974, IX,
p. 438; 1958, II, p. 596).
As instituições (também as políticas) deviam, pela obsessão de repetição e o
“retorno do oprimido” – o sacrifício do pai originário –, mirar para o passado para
perpetuá-lo, fundando-se nele e pactuando, assim, a ordem social vigente. Girard
radicaliza e generaliza a posição freudiana por outro caminho, encontrando um
fato de tanta ou maior universalidade e presença na história das religiões. Trata-se
do “bode expiatório” – que encontramos nos cultos do Ano Novo, na Mesopo-
tâmia, desde os acádios [o “cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”], mas
também pode ser encontrado no culto do Inti raimi do Império dos incas do Peru,
em Cusco, e em tantos outros povos. Voltemos, então, ao Édipo, mas desde a in-
terpretação de Girard:

O mimetismo do desejo infantil é universalmente reconhecido. O desejo do adulto não é


diferente em nada, salvo que o adulto, especialmente em nosso contexto cultural, quase
sempre sente vergonha de se modelar sobre outro [...]. Dois desejos que convergem so-
bre o mesmo objeto se obstaculizam mutuamente. Qualquer mímesis referida ao desejo
desemboca automaticamente no conflito. O mesmo, o semelhante, evoca uma ideia de
harmonia nas relações humanas (Girard, 1995, p. 153).403

Contra Freud, Girard não pensa que ocorreu o sacrifício do pai originário da
horda e, sim, algo mais presente em todas as religiões: o “bode expiatório”. Escreve:

403 A Violência e o Sagrado, cap. VI.

192
Enquanto morrem as instituições404 e as proibições que repousavam sobre a unanimi-
dade fundadora, a violência soberana405 vagueia entre os homens, mas ninguém conse-
gue apoderar-se duradouramente dela406 [...]. O círculo vicioso da violência, recíproca,
totalmente destruidora, é substituído, então, pelo círculo vicioso da violência ritual,
criadora e protetora (Girard, 1995, p. 153).

Girard descreve o retorno ao caos da tragédia grega As Bacantes, quando Dio-


nísio volta para destruir a ordem, engolindo-a na desordem originária (que tanto
entusiasmou Nietzsche). É o “estado de natureza” de todos, em luta violenta contra
todos, o clamor por restaurar a ordem. Girard mostra que a fratria escolhe um do
grupo ou um estranho e, atribuindo a ele (ou a ela, como no caso de Ifigênia407)
“todos os pecados do mundo” (o “cordeiro de deus”), e o “sacrifica”.408 Seu sacrifício
é pacificador, já que todos ficam purificados de suas faltas. No rito babilônico, o
“bode expiatório” era arremessado ao deserto, morrendo com todas as faltas da
comunidade, que podia iniciar o Ano Novo com pureza renovada: “Seu objeto era
manter as coisas no estado em que se encontram. Esta é a razão porque apelam
constantemente ao modelo de qualquer fixação e de qualquer estabilização cultu-
ral: a unanimidade violenta, ao contrário da vítima propiciatória e em torno dela”
(Girard, 1996, p. 292).409
A comunidade política tem, agora, unidade, até unanimidade. As vontades
plurais se uniram no consenso da aceitação da vítima que morreu por todos para
alcançar a paz. Mas, este consenso das vontades se funda, como vimos bem expres-
sado, na violência. É uma unanimidade sobre a morte do Outro, da vítima inocente
assassinada para unir a vontade dos assassinos. Haverá outra maneira de fundar
o consenso pulsional? Será possível encontrar outra narrativa mítica que pudesse
permitir nos evadir da lógica do “princípio de morte” e do narcisismo originário
da subjetividade política?
Na parte Histórica desta Política da Libertação410, já vimos certa maneira de
descobrir outra narrativa mítica na dialética da “lei” e da “transgressão” – que

404 Não esqueçamos que nosso tema é o sentido das “instituições” políticas.
405 De novo o “estado de natureza” hobbesiano.
406 A questão é como evadir-se da pura contingência da ação estratégico-política, a fortuna e
também a virtú maquiavélica.
407 Ver a magnífica interpretação de Franz Hinkelammert, em “A Ifigênia do Ocidente” (1991,
p. 9-53).
408 Para Girard, a política se opõe à ética, já que está fundada num sacrifício injusto: mata-se
um inocente (Girard, 1986, p. 150): “Que morra um homem”, “a razão política – escreve –
[é] a razão do bode expiatório” (1996, p. 151).
409 E repete: “Considerado isoladamente, nenhum texto mítico, ritual ou mesmo trágico pode
oferecer-nos o mecanismo da unanimidade violenta” (1996, p. 323).
410 No § 4.5 da História, vol. I [560].

193
certamente é uma hermenêutica diferente da de Freud e Girard. Desejo, agora,
tratar o tema para contrapô-lo à visão destes dois clássicos. A questão, por outro
lado, terminará por nos confrontar com Jacques Lacan, Alain Badiou e com Slavoj
Žižek, a respeito de um texto de Paulo de Tarso sobre a “lei”. Franz Hinkelam-
mert, em sua obra O grito do sujeito, se refere a um horizonte de narração simbó-
lica completamente diferente do mito edípico. Como o fizera Paul Ricoeur, em A
simbólica do mal (onde confrontou o mito de Prometeu com o mito de Adão), con-
fronta o mito de Édipo com o de Abraão – produzindo uma hermenêutica nova
da tradição semita na história da filosofia. Desde um ponto de vista filosófico,411 o
mito edípico é uma dialética de morte, enquanto que o mito abraâmico abre uma
dialética de vida (do instinto de vida [Lebenstrieb] ao qual se refere Freud, que não
pode manejá-lo, dada sua ontologia puramente negativa).
Quando o fundador do cristianismo se confronta com os membros do Si-
nédrio, antes de sua morte, acusa-os, dizendo: “Se são filhos de Abraão, devem
cumprir a práxis de Abraão. Mas, pretendem me matar [...]. Isto Abraão não fez”
(Jo 8, 39-49). Jeshua de Nazaré pertencia a uma escola judia que opinava que
Abraão não quis imolar seu filho Isaac, e “um anjo” (não o deus da lei da morte)
lhe permitiu cumprir sua vontade, colocando à disposição um cordeiro para sa-
crificá-lo no lugar do seu filho primogênito (que os semitas, até a Fenícia, tinham
por “lei” oferecer a seus deuses). Abraão não quis matar; os membros do Sinédrio
pretendem matá-lo; logo, não são da tradição abraâmica. Hinkelammert escreve:

Abraão se livrou da lei; deu-se conta que a lei lhe exigia um assassinato e descobre Deus
cuja lei é a lei da vida. Abraão se converte e se liberta. Não mata, porque se dá conta
que a liberdade está em não matar. Logo, sua fé consiste nisso: em não estar disposto
a matar, nem a seu filho e nem a outros. Abraão, livre pela lei, se libertou para ser um
Abraão livre da lei, sendo a raiz da sua liberdade a recusa de matar (1998, p. 52).

[305] Já não estamos nem diante do assassinato do pai originário da horda de


Freud, nem diante do “bode expiatório” da fratria de Girard. Saimos da lógica
do pai que mata o filho e do filho que mata o pai no conflito mimético do desejar
narcisisticamente o mesmo “objeto”. Na nova lógica, a do “instinto de vida”,412 o

411 Hinkelammert escreve com razão: “Nos acostumamos a tratar os textos clássicos gregos
como textos no sentido mais amplo, embora façam constantemente referência aos deuses
antigos [...]. Com os textos cristãos procedemos de maneira completamente diferente. Dei-
xamo-los fora da discussão das ciências – filosóficas, sociais, psicológicas –, pelo fato de
considerar que são teologia [...]. Ao declarar nossos textos fundantes como textos teológi-
cos, os rodeamos de um tabu impenetrável [...] e nossa história se transforma num grande
enigma” (Hinkelammert, 1998, p. 16-17).
412 Ver Dussel (1998, [404]), Tese 17.8-9 (2006, p. 627-628).

194
pai ama a vida do filho e salva o filho; o filho ama o pai e o protege, em especial
quando for velho (não imola o Urvater); não há mímesis por um único “objeto”
desejado por um instinto excludente e possessivo, mas há amor ao Outro como
outro, há respeito à Alteridade e, portanto, não há conflito nem necessidade de
sacrifício reparador, nem dívida, nem vingança, nem unanimidade violenta, nem o
“princípio de morte” é o primeiro princípio (é, ao contrário, o fundamento mesmo
de toda patologia).
Daqui derivam duas concepções do fundamento do poder político. a) Uma que
se formula assim: “É conveniente que morra um só pelo povo e não pereça toda a
nação” (Jo 3, 11-14) – do Sinédrio. É novamente o “bode expiatório”, a unanimi-
dade violenta de Girard. b) A outra recorda que não se deve proceder “como Caim
[...] que matou seu irmão [...]. Quem não ama413 permanece na morte (thanáton).
Todo aquele que detesta seu irmão é um assassino” (Jo 3,11-14). Neste caso, o
poder, no sentido que lhe damos no capítulo anterior, pode ser a unanimidade do
consenso factível na fraternidade414 (como ideal, como postulado), e, empiricamente,
como “poder hegemônico” das maiorias efetivas. Os outros três tipos de exercício
da força ou coerção – do Esquema 18.01 – (domínio à feição de Weber, governa-
bilidade da Comissão Trilateral ou diretamente a violência ditatorial ou tirânica)
ficam bem fundadas na narrativa hermenêutica de Freud e Girard.
Poderíamos, agora, voltar à experiência cotidiana da criança que repete uma
ou outra vez o relato de um conto (hoje, vê uma ou outra vez o vídeo de uma his-
tória infantil em sua televisão). O adulto tem prazer diante do novo: o filme que
atrai é o que apresenta uma solução “nunca vista”. A criança, menino ou menina,
se confunde e sente “desprazer” pela impossibilidade de compreender o sentido415
das funções que lhe toca cumprir nos mais variados sistemas (e seus respectivos
campos) de sua vida cotidiana. A pretendida “obsessão de repetição” (de Freud) e
o “desejo mimético” (de Girard) ficam explicados por um fato prévio facilmente
compreensível: de quem se inaugura na “gestão” (management) do mundo cultural,
que integra muitos campos práticos com seus respectivos sistemas e subsistemas,
é exigido, como a todos os seus membros ou atores, que conheça suas funções,
seus “papeis” (como o ator que conhece seu “script” na peça de teatro). A criança
comete continuamente “erros”: na festa, quer brincar solitariamente, no silêncio do
templo começa a cantar, na disciplina escolar quer sair para jogar futebol, na mesa

413 Usa-se a expressão agapôn, de ágape, que traduzi (Dussel, 1973) por “pulsão de alteridade”,
de abertura ao Outro como outro, não como pulsão narcisista.
414 Questão que abordaremos posteriormente, nos capítulos 3 e 4 da Crítica, como fraternidade
desde Derrida, e como desconstrução deste conceito desde a solidariedade (à qual daremos
um sentido estrito, ao menos no horizonte desta obra).
415 No sentido heideggeriano de “compreensão derivada” do sentido como “interpretação”
(Dussel, 1973, I, p. 33ss).

195
“com os grandes” grita “não educadamente”. Não sabe “comportar-se”. Este pâni-
co cênico lhe ensinou que cada sistema (em seu imenso número) de cada campo
(igualmente numeroso) exige que seus membros aprendam seus “papeis”. O pra-
zer da criança consiste não na novidade (tudo é novo!; há excesso de novidade;
a novidade aterroriza o novo ator) e, sim, em poder ir conhecendo lentamente a
sucessão lógica, compreensível, memorizada do fio da narração com “sentido”. Por
isso, indica Freud, a criança exige de quem relata o conto que o repita, corrigindo-o
se introduzir uma novidade (para a racionalidade lógica inicial da criança é um
“erro” insuportável e inconcebível). O prazer está no domínio antecipado, graças à
constante “repetição”, do “lugar” lógico (início do descobrimento do “sentido”) de
cada acontecimento no relato, de um sistema, de um campo prático, ao qual, ade-
mais, está disposto a submeter sua espontaneidade, sua liberdade, enfrentando um
“desprazer”, mas exigindo dos outros (daí o profundo sentido de justiça da criança)
que também, por sua vez, cumpram seus papeis marcados e definidos antecipada-
mente. O prazer não está na novidade e, sim, que o acontecimento corresponda
à sua prévia e memorizada atribuição. Trata-se do remembered present, de Gerald
Edelman (1989). O que mais lhe causa dor é um “castigo injusto”; o sentido lógico
da racionalidade nascente é implacável: a tal ato, tal mérito ou castigo (seu supere-
go vai se organizando). Por isso, diante de um castigo imerecido, ao qual não en-
contra “lógica”, a criança não sofre pela dor sensível e, sim, pelo “sem-sentido” (sem
fundamento: o injusto) da ação, que destrói a sequência descoberta nos sistemas. A
ação injusta a impede de “captar”, de “dominar”, a lógica dos sistemas, dos campos,
das totalidades de sentido (que neurologicamente vão constituindo “mapas” entre
os grupos de neurônios, “mapas” de “mapas” também fisicamente discerníveis).
Assim, podemos compreender que a criança está disposta a enfrentar um certo
desprazer, que chamaremos “disciplina”, desde o prazer de poder dirigir as “insti-
tuições” em benefício de todos – se não for educada narcisisticamente. Esta dire-
ção da lógica das instituições está motivado por um “instinto de vida”.
A “obsessão de repetição” e o “desejo mimético” nos estão simplesmente in-
dicando dois mecanismos no processo de subjetivação da objetividade das institui-
ções. Efetivamente, a única maneira que a criança tem para começar a conhecer a
“lógica” dos sistemas, campos ou “instituições” é por repetição (o relato do conto
repetido inúmeras vezes até que o memorize do início ao desenlace final, para
estar “seguro” de ter descoberto o “sentido”, pelo menos a “sucessão” no tempo da
trama) ou por imitação (imita o que faz o pai, a mãe, o vizinho, o professor... sem
maior reflexão, já que, imitando-os, descobre com prazer que passa despercebida;
já que ninguém a acusa de dissonância, de “estar fora de lugar”, evitando, assim,
o desprazer do ridículo, da repreensão, do castigo). A repetição mimética deixará
lugar à plena compreensão do sentido da função sistêmica, não descoberta por Freud
nem por Girard, nos temas da repetição e da mímesis.

196
Se, além disso, evitamos a unanimidade violenta como origem necessária da ins-
tituição e colocamos em seu lugar o reconhecimento da Alteridade como respeito
pelo Outro, narrado no mito abraâmico, poderemos entrar numa hermenêutica
política da “instituição” com possibilidade de novos resultados.

2. Disciplina e alienação em toda instituição

[306] Para que a instituição ou a liberdade (que somente cresce em referên-


cia à instituição416) fossem possíveis, o instinto devia deixar lugar à incerteza de
uma aprendizagem ontogenética, na qual a biografia do indivíduo pudesse agregar
novos elementos à vida social destes animais superiores. Somente na espécie homo,
graças ao desenvolvimento cerebral da memória, da categorização conceitual, da
hierarquização avaliativa, das capacidades linguísticas, do fenômeno da consciên-
cia e autoconsciência, o instinto certeiro, mas fixo, deixou lugar à aprendizagem
disciplinada e flexível. Agora, o desenvolvimento da espécie se libertava do mero
desenvolvimento anatômico-fisiológico ou físico do cérebro e da segurança do ins-
tinto e acelerava, geração após geração, uma gigantesca quantidade de novidades
próprias da espécie histórica humana. Os atos não somente instintivos (o instin-
to é “desviado” para objetivos culturalizados) dos costumes, das tradições, das
“instituições”, dos sistemas políticos, começaram sua longa história. O manejo do
instinto exige regras autoconscientes (como o tabu), embora implícitas, e isto abre
o âmbito da ética, o campo da política, das normas comunitárias, da organiza-
ção social, também nos mais primitivos clãs do Paleolítico. O grupo de famílias
deve organizar-se internamente, mas, também, deve organizar alianças para a caça
(como indica Edgar Morin), o que exige o pacto interfamílias que provavelmente
determina a instituição do incesto. O pai e a mãe não realizam relações sexuais
com seus filhos, que são reservados aos filhos das outras famílias para consolidar
este pacto. Nascem, assim, as instituições no campo aberto pela sublimação cul-
tural do instinto.

416 A liberdade, tanto de determinação (escolher ou não escolher) como de especificação (esco-
lher isso ou aquilo), não pode se dar na ação instintiva. A liberdade negativa (não dever fazer
algo: proibição) ou positiva (dever fazer algo: obrigação) tampouco tem lugar no instinto.

197
Esquema 20.01. Aumento proporcional de institucionalidade e de liberdade
com progressiva substituição dos instintos (subsumidos culturalmente)
100% a b’

Liberdade
Instintos Institucionalidade
(Y) Pulsão
(Z)

0% b a’

Transcurso do tempo civilizatório institucional

Esclarecimento do Esquema 20.01. Em a, o instinto (Y) rege toda a conduta. Em a’, o instinto so-
mente rege um número reduzido de atos; foi substituído institucionalmente; a-a’ se aproxima como
uma linha assimptótica que não chega nunca a “0”, porque nunca o instinto deixa de ter vigência.
Em b, a conduta institucionalizada, livre, ou a pulsão propriamente dita (Z), são mínimas; em b’, a
pulsão, a liberdade e a institucionalidade são máximas; é outra linha assimptótica: nunca poderão
chegar a 100%.

As relações sistêmico-intersubjetivas dentro dessas comunidades primitivas


vão sendo reguladas. Ditas regras, sempre implícitas, ao menos no início, são
aprendidas e respeitadas pela circularidade autorreferencial da “dupla contin-
gência” (como ensina Niklas Luhmann) (Cf. Dussel, 1998, § 3.3 [179-183]): cada
membro da comunidade cumpre uma função regulada, na expectativa de que os
outros membros cumpram as suas. A mãe tem uma relação materna com a filha;
a filha tem uma relação filial com a mãe. Cada uma sabe o que lhe toca fazer na
sua função sistêmica, tendo a “segurança” (certeza institucional) de que os outros
cumpram as suas. Surgem, assim, “instituições” que não são senão maneiras
múltiplas e complexas nas quais os agentes sociais (políticos) se transformam
em atores de papeis, de relações estáveis, pela repetição no tempo (tradição na
história) e na ocupação de lugares com sentido que vão se amplificando com o
passar dos milênios. O longo Paleolítico – se o homo habilis apareceu há qua-
tro milhões de anos – desemboca, ao final, na revolução urbana, o Neolítico,
no homo civilis (o habitante da cidade: animal urbano e, por isso, já político417).

417 Não no sentido de Aristóteles, evidentemente, para o qual era “humano” o “vivente” que
habitava a pólis helenística. Não eram “humanos” nem os asiáticos, nem os bárbaros euro-
peus. Agora, “político” significa um “vivente que habita a cidade”, desde aquelas primeiras
cidades, por agora descobertas, existentes há uns dez mil anos no norte da Síria e no sul da
Turquia, no Médio Oriente.

198
Nas primeiras cidades se amplificaram ao infinito as funções. Havia agricul-
tores (da recente revolução agrícola), pastores e ginetes (da recente revolução
pastoril), construtores e ourives de todas as categorias, especialistas nas artes
do fogo, curtidores, sapateiros, oleiros, fiandeiros, ferreiros, etc., comerciantes,
escribas (no começo, muito primitivos pintores), sábios sacerdotes (astrônomos,
protomatemáticos, hermeneutas dos mitos originários, etc.), guerreiros, grupos
dominantes, até chefes ou monarcas primitivos. O campo protopolítico estava já
arquitetonicamente esboçado.
A subjetividade de cada ator era constituída ontogeneticamente desde o berço
nas estruturas culturais de sua comunidade. Esta educação se depositava em seu
inconsciente (de um “Id” que se confundia, ao final, com a materialidade física
da corporeidade da organização neuronal de seu cérebro) e ia desenvolvendo, por
debaixo de sua consciência, um “Superego”, para nos expressar como Freud, uma
hierarquizada e memorizada categorização das mediações práticas que permitiam
a reprodução da vida comunitária e a participação em seus consensos válidos (não
necessariamente como unanimidade violenta). Esta presença das instituições só-
cio-históricas e lentamente políticas estava constituindo, na própria passividade
originária do “dado”, a subjetividade de cada membro. Subjetividade que, ao ser
constituída desde e dentro de uma família (a mãe, o pai, os irmãos, os avós, os tios,
os primos, os parentes...), de uma aldeia (com camponeses, pastores, guerreiros,
mestres, sábios, sacerdotes...), de uma confederação de aldeias, constituíam o fun-
damento objetivo-institucional e intersubjetivos anterior à própria subjetividade.
Repito: as instituições que enfrentavam a consciência em vigília como funções
objetivas, intersubjetivas, comunitárias, sócio históricas, construíam, ao mesmo
tempo, seu inconsciente desde baixo e desde antes (como relações das instituições
dentro das quais se havia nascido, havia sido educado e se havia crescido). Desta
maneira, as “instituições” objetivas eram também estruturas subjetivas na intersubje-
tividade dos agentes dos sistemas institucionais.
É por isso que será necessário nos distanciar de certas posições extremas. De
uma parte, da posição: a) de um certo anarquismo anti-institucional (de esquer-
da, como o de Bakunin, para o qual toda instituição é repressão); de outra, b) da
direita liberal, como a de R. Nozick, para o qual a única institucionalidade que
conta é a do mercado; em terceiro lugar, c) da psicanálise de Freud (desde um Erich
Fromm, que é mais institucionalista, a um Marcuse, que se inclina para um certo
anarquismo que, como vimos, ao final, interpreta a instituição desde o “instinto de
morte”); ou, por último, d) da posição pós-estruturalista (como a de M. Foucault
que, em sua crítica à “disciplina”, não a diferencia suficientemente da “repressão”).
Será necessário distinguir, ao menos conceitualmente, porque no nível empírico

199
é impossível saber quando se passa o limite de uma à outra, entre “disciplina” e
“repressão”. Uma instituição se torna repressiva quando os que a sofrem chegam a
um grau de consciência que a julgam como uma expressão de “desprazer” intole-
rável (embora haja muita flexibilidade nas margens da tolerabilidade). Aceitarei o
conceito de “disciplina” (neste ponto, para além de Foucault) como a ação regulada
do ator social (ou político) que exige também um certo controle sobre a corporei-
dade, situação na qual pode sentir frequentemente um certo “constrangimento”
e até dor, temor ou fobia. Certamente, ao agricultor que se levanta com o sol lhe
agradaria seguir dormindo no leito acolhedor, como num ninho originário. Mas,
o sofrimento de coletar raquíticas raízes e o terminar o dia com as mãos vazias
dos coletores, pescadores e caçadores (que arriscam sua vida diante dos afiados
dentes dos leões das estepes africanas primitivas), se apresenta aos olhos do agri-
cultor como desprazer menor o ter que levantar-se de madrugada do leito do éros
noturno. Certa “disciplina” é necessária, embora postergue por um certo tempo
o cumprimento do “desejo” (por exemplo, o seguir dormindo ou não ir trabalhar
no campo) e poder pôr o “trabalho”418 (que, junto às cerimônias rituais pelas quais
o cadáver é devolvido à ordem civilizatória, como o mostra E. Morin ou Bataille)
obter de maneira regular, segura, repetitiva, o abundante alimento à mão, o fruto
da instituição inaugurada com a revolução da agricultura – que inaugurava tam-
bém o desastre ecológico da destruição dos bosques. Todas as “instituições” exi-
gem disciplinar o éros prazeroso, a corporeidade gozosa, a subjetividade desejosa.
As instituições são, de algum modo, relações intersubjetivas que formam sistemas
necessários para a produção, reprodução e desenvolvimento da vida humana.419
[307] O problema que estamos expondo se apresenta quando se interpreta toda
“disciplina” como “repressão”. Esta posição confunde um postulado (“a felicidade
consiste em cumprir no gozo todos os desejos”) com sua impossibilidade empírica
(e, por isso, “para alcançar o desejo é preciso efetuar um rodeio civilizatório”).
Tenta-se, em nome de uma primitiva liberdade desejante sem limites (inexistente,
porque no pleno instinto não há libido nem liberdade, há necessidades sem imagi-
nário e, por isso, sem gozo intersubjetivo e cultural que constitui a libido), definir

418 “Trabalho” que pode igualmente ser interpretado como uma dor, já que é mais agradável
uma sesta na praia, aquecendo a pele num sol tropical do que ter que trabalhar a terra com
o cansaço do corpo e o endurecimento das mãos pelo uso dos utensílios que, de qualquer
sorte, amortecem a antiga dor de ter que rasgar com os dedos a terra para chegar às raízes
como era comum aos coletores.
419 Na História, se observa o aspecto positivo das instituições. Na Crítica, indicaremos o mo-
mento negativo, crítico, a necessidade de “transformar” as instituições, quando a “disciplina”
tenha dado lugar à “repressão”. Analítica e pedagogicamente, elegemos distinguir claramente
a exposição, neste como em todos os problemas teóricos da filosofia política.

200
como “repressiva” toda institucionalidade. Em nome da liberdade e do desejo, e da
própria vida, nega-se a possibilidade da reprodução da vida. As instituições não
podem existir se cada sujeito pretendesse atuar em cada ação como um agente ab-
solutamente livre de toda coação, como pura espontaneidade, como um perpétuo
inventor ex nihilo. Seria necessário cada dia de novo inventar a agricultura, o pas-
toreio, a organização das cidades, a estruturação de códigos legais, etc. Sempre se
estaria no Paleolítico dos coletores e caçadores furtivos. Os tais indivíduos “livres”
e “espontâneos” teriam se extinguido há muitas dezenas de milênios. Imaginar a
permanência (nem sequer o aumento) da vida sem instituições é “logicamente”
possível (não há contradição em seu conceito), mas “empiricamente” impossível e,
por isso, é irracional e contraditório tentá-lo de maneira imediata.
O problema, ao invés, se apresenta quando a necessária “instituição” discipli-
nar se torna repressiva, se torna antiquada ou deve ser transformada em outra
melhor, mais eficiente. Quando o sistema institucional pretende perpetuar-se au-
torreferentemente e perde seu critério (a reprodução válida da vida humana em
comunidade), o sistema se fetichiza (como expunha Marx); a disciplina é, então,
destruidora da vida, se torna “repressão”. Neste caso, o desprazer medido, efi-
ciente e legítimo da instituição necessária (para a vida comunitária) se torna um
sofrimento inútil, ineficiente e injusto. Esta é a “repressão” que Marcuse chama
surplus-repression na institucionalidade capitalista. Quer dizer, o mesmo tanto de
mais-valor produzido pelo operário para o capital equivale à dor repressiva injusta
causada no trabalhador assalariado que o cria. O “tempo necessário” para a repro-
dução do valor do salário se poderia dizer que é o tempo do exercício produtivo
de um éros “disciplinado”; mas o mais-tempo do mais-trabalho (não-pago, injusto)
seria o momento repressor; sofrimento injusto que o trabalhador padece. Mas, não
seria o caso de chamá-lo “mais-repressão” (surplus-repression) ou melhor, “mais-
-disciplinar” (surplus-disciplinarship ou algo assim) ou, simplesmente, “repressão”
destrutiva da subjetividade do operário e já não aceitável “disciplina” civilizatória.
As instituições (e, particularmente, as da política), então, exigem subjetiva-
mente a “disciplina” necessária, que emoldura e orienta objetivamente as ações
estratégicas, os atores políticos dentro de certos limites, como os “diques” que
restringem a fortuna de Maquiavel.420 O campo político se encontrará agora ocu-
pado, estruturado, organizado por uma rede de estruturas “institucionalizadas”
para o exercício delegado do poder (potestas), que fixam fronteiras do possível/
impossível às ações estratégicas e que indica o politicamente operável, factível. Se
um político cumpre uma ação anti-institucional, além de ilegítima (o que lhe tira
poder), causará um caos que impedirá a reprodução da vida comunitária, a longo

420 Embora aqui já não como virtù, que é uma determinação subjetiva do agente e, sim, como
uma determinação intersubjetiva, objetiva, pública.

201
prazo. Seria uma ação que exerce um poder fetichizado, ilegal, criminoso ou mero
exercício militar,421 mas não uma ação obediencialmente política.422
Os mais conhecidos sociólogos (Emile Durkheim (1968, 1974), Max Weber,423
Arnold Gehlen (1964, p. 33ss),424 Geoge H. Mead (1934),425 Talcott Parsons
(1952),426 Niklas Luhmann (1988),427 Anthony Giddens,428 Alain Touraine,429 etc.)
tratam o tema que surge no momento em que o sujeito se socializa; em que o ator
se incorpora num sistema social ou político, cumprindo nele determinadas fun-
ções. Isto abre o problema da articulação entre a evolução do sujeito que se educa,
socializando-se ontogeneticamente (como a subjetividade entra na trama intersub-
jetiva e funcional da sociedade) e o desenvolvimento da temporalidade filogenética
(como foram surgindo historicamente as instituições, em nosso caso, políticas,
que sempre foram já pressupostas pela subjetividade e a constituíram originaria-
mente). A descrição do “funcionalismo” de um T. Parsons é um caso paradigmá-
tico e, de qualquer forma, inevitável. Contudo, também a filosofia política ataca
igualmente a questão. Se tomamos como exemplo a clássica obra de John Rawls,
podemos observar que se ocupa do nosso problema em toda a Segunda parte, que
intitula: “Instituições” (1978, p. 225ss).430 Como neokantiano consequente, deve
tratar, depois dos princípios, as mediações; neste caso, as “instituições”, das quais
pressupõe, sem nenhuma descrição prévia, seu conteúdo ou definição:

Minha intenção é demonstrar que os princípios da justiça, que até agora foram discuti-
dos abstraindo-os de formas institucionais,431 definem uma concepção política operativa,
constituindo uma aproximação razoável e uma ampliação de nossos juízos mediados
(Rawls, 1978, p. 227).

421 Veremos na Crítica desta Política da Libertação, contudo, como, em certos casos, ações políticas
aparentemente ilegais ou ilegítimas podem ser autênticas ações políticas. Como as ações liber-
tadoras de um José de San Martín, na Argentina, de um Miguel Hidalgo, no México, de um
George Washington, nos Estados Unidos, de Lumumba, no Congo ou de Fidel Castro, em Cuba.
422 Na Crítica, exporemos a necessária transformação das instituições políticas, mas a “trans-
-formação” supõe a “formação” e tem critérios (de “trans-formação”) que se fundam nos
critérios da “formação” institucional de uma ordem. O caos da água que vai chegando a 100
graus pressupõe o estado líquido, estável, do contrário não se entende o caos da ebulição.
423 Para uma visão complexa e muito trabalhada da política de Weber ver em Rabonikof (1989).
424 “Arbeitsteilung, Institutionen”.
425 Ver “The social Self ” (Mead,1964, p. 142ss); Joas (1993, p. 238).
426 The Social System.
427 Desde o primeiro tema: “Sistema y función” (1988, p. 30ss; p. 35ss).
428 “Instituciones sociales” (Giddens, 1996, p. 425ss). Claro que o tema é tratado sob outros
títulos em diversos momentos de sua obra, como, por exemplo, “Institutions, reproduction,
socialisation” (Giddens, 1994, p. 96ss).
429 Entre outras obras, ver Touraine (1994), todo o tema de “Nascimiento del sujeto” (1994,
p. 201-365) e em Touraine, “II. El sujeto” (1997, p. 61ss).
430 Uma Teoria da Justiça.
431 Observe-se que estabelece um círculo: os princípios se abstraem das “formas institucionais”
e, depois, “se aplicam” a elas.

202
Para Rawls, o problema se concretiza de imediato num modo histórico da ins-
titucionalidade, o da “democracia institucional” (1978, p. 227), e a “instituição”
como tal não apresenta ingenuamente nenhuma dificuldade. Penso que é necessá-
rio nos deter, embora por um momento, nesta passagem.
A questão da “instituição”, desde um ponto de vista ontológico, é conhecida.
Hegel situou-a como ponto de partida anterior à “vontade livre”, no começo da Filo-
sofia do Direito,432 onde “livre de” significa que o sujeito prático (o agente de operação
possível) não foi ainda determinado por uma qualidade nem subsumido numa tota-
lidade, estando, neste primeiro momento, numa pura indeterminação. É o “em-si”
originário. É o “ser” prático como o indeterminado: o sujeito prático como a ma-
téria originária possível de receber infinitas determinações.433 É a ação estratégica
que não instituiu ainda nenhuma “função” para poder ser mimeticamente repetida
no futuro. É o sujeito potencial político ainda não incorporado em algum sistema
(ao menos como consideração primeira, lógica, se não empírica). Assim como, para
Marx, o “trabalho vivo”, no campo econômico, é a subjetividade corporal vivente
humana como possível sujeito de trabalho, abstrata ou logicamente indeterminado,
quando empiricamente o sistema-capital o subsume como “trabalho assalariado”, é
neste momento preciso determinado (e alienado,434 segundo o adágio de Spinoza já
citado: Omnia determinatio negatio est435). Da mesma maneira, e como veremos em
seguida, o sujeito potencialmente político (no campo político isto seria visto como
um “estado de natureza”), que ainda não foi incorporado num sistema político,
desde uma consideração ao menos abstrata ou lógica, é uma vontade indetermina-
da, não sistêmica e menos ainda institucional. Quando é subsumido ou incorporado
como parte funcional de uma totalidade, quando se torna parte de um sistema ou
instituição, empiricamente, fica “determinado-como” asteca ou mexicano, como chi-
nês ou alemão – em referência a um Estado, por exemplo –, como representante ou

432 Ver o que expusemos na parte histórica desta Política da Libertação [187]. Na Filosofia do
Direito, desde o § 22, lemos: “Ela [a vontade livre] é, então, uma pura possibilidade, disposi-
ção, potência, mas infinito atual porque é o ente (Dasein) do conceito ou seu objeto exterior
na interioridade mesma” (Hegel, 1971, VII, p. 74).
433 É a “matéria” como o “pó” originário (ápeiron) da argila com a qual se fabrica tudo da “fi-
losofia caldeia” (mãe da “filosofia grega”), segundo a autorizada demonstração erudita de
Semerano (2001).
434 Sem conotação ética, num primeiro momento: o puro sujeito indeterminado torna-se “ou-
tro” que antes, já que se torna algo (carpinteiro, pedreiro, etc. e não puro trabalhado em-si,
mas não concretamente em alguma função sistêmica).
435 O mero sujeito indeterminado não-é ainda algo (Etwas, diz Hegel), ente (Dasein). É posi-
tividade abstrata, pura potência. Mas, uma vez determinado (é “trabalho assalariado”), se
nega sua indeterminação e se torna algo: um operário com salário no capital. E, enquanto
tal, pode agora estar alienado. Ver as categorias de “Totalidade”, “Mediação”, “Alienação”
em minha Filosofia da Libertação (Dussel, 1977).

203
representado, como eleitor ou juiz, etc. Ser politicamente funcional é ter sido “ou-
trificado” (“alienado”, não num sentido ético), determinada desta e, por isso mesmo,
não daquela outra maneira. Toda determinação é negação, alienação, estreitamento
de possibilidades (as que já não se pode cumprir por ter adquirido uma determina-
da), mas, ao mesmo tempo, é possibilidade do exercício de novas possibilidades de
segundo grau (as que se abrem desde aquela que foi positivamente empunhada436).
[308] Cornelius Castoriadis, em sua obra A instituição imaginária da sociedade
(1975),437 nos propõe algumas teses que não convém esquecer. Em primeiro lugar:

Não se pode pensar [...] uma sociedade sem instituições, seja qual for o desenvolvimento
dos indivíduos, o progresso técnico ou a abundância econômica. Nenhum destes
fatores suprimirá os inumeráveis problemas que a existência coletiva da humanidade
constantemente apresenta (Castoriadis, 1975, p. 165).438

Sem instituições, no passado não pôde haver reprodução da vida, nem houve
possibilidade de transmissão de descobrimentos, nem se pôde sonhar no futuro com
uma sociedade sem instituições, porque isto suporia sujeitos perfeitos com inteli-
gência e vontade de capacidade e velocidade infinita, voltando ao exemplo de Karl
Popper contra o planejamento perfeito, mas, mesmo neste caso, tampouco a vida
seria possível.439 Sabendo da necessidade das instituições, Castoriadis nos recorda:

Não é possível tampouco uma sociedade que coincida integralmente com suas insti-
tuições, que estivesse exatamente coberta, sem excesso nem defeito, pelo tecido ins-
titucional e que, depois deste tecido, não tivesse carne; uma sociedade que fosse uma
rede de instituições infinitamente plana, sem profundidade. Haverá sempre distância
entre a sociedade instituinte e aquela que é, em cada momento, instituída (Castoriadis,
1975, p. 167).440

Uma institucionalidade perfeita que pudesse produzir uma sociedade sem


classes, sem contradições, sem dominações, totalmente espontânea e livre de

436 “Diferenciação e valorização das possibilidades” (Dussel, 1973, § 8, I, p. 70ss).


437 “Institutionalization as a creative process: The sociological importance of Cornelius Cas-
toriadis’s political phylosiphy” (Cf. Joas, 1993, p. 154ss).
438 “Não rejeitamos a visão funcionalista enquanto nos exige atender a um fato evidente, mas
capital, que as instituições cumprem funções vitais sem as quais a existência de uma socie-
dade é impossível” (1975, p. 173).
439 Como poderiam cem milhões de mexicanos se colocar de “acordo” naquilo que deveriam
fazer sobre um problema concreto, sem decidir nem o lugar nem a hora, nem a agenda, nem
as mediações organizativas a ter em conta para chegar a um tal “acordo”?
440 “Jamais uma sociedade será totalmente transparente, em primeiro lugar porque os indiví-
duos que a compõem nunca serão transparentes para si mesmos porque é impossível elimi-
nar o inconsciente” (1975, p. 166).

204
determinações (por exemplo, o comunismo ou o mercado perfeito) é impossível.
Mas, e em terceiro lugar:

A instituição uma vez instituída tende a autonomizar-se, tem inércia e sua lógica, que se
transforma, em sua sobrevivência e em seus efeitos, sua função, seus fins e suas razões
de ser. As evidências se invertem: o que pôde ser visto no início como um conjunto de
instituições a serviço da sociedade torna-se uma sociedade a serviço das instituições
(Castoriadis, 1975, p. 164).441

De certa maneira, esta reflexão de Castoriadis sobre a autorreferencialidade da


instituição sobre si mesma, como alienação da instituição, se torna “outra” que a
instituição a serviço da vida e se transforma numa instituição de morte.442

Esquema 20.02. Diacronia de proporcionalidade inversa entre “disciplina cria-


dora” e “repressão alienante” em toda instituição
100% a b’

Y X
Disciplina Repressão
(Y) (Z)

Z
0% b a’

Transcurso do tempo civilizatório

Esclarecimento do Esquema 20.02. Em a, a disciplina criadora (Y) é máxima. Em a’, diminuiu ao


mínimo. Na origem da instituição (b), a repressão (Z) é mínima,443 embora sempre existente. Em
b’, a repressão é máxima porque a instituição se totalizou autorreferentemente. No ponto x, onde
as linhas de criação disciplinar e alienação repressiva se cruzam, a instituição entra em crise; a
proporção de repressão alienante superará logo a disciplina criadora e será necessário transformar
ou substituir a instituição.

441 “A alienação se apresenta, primeiramente, como alienação da sociedade nas instituições,


como autonomização das instituições em referência à sociedade” (1975, p. 171).
442 Ver Dussel (1998, cap. 4; § 4.2 e 4.3).
443 Mas, porque a “alienação” se faz presente na instituição desde a origem, mesmo quando a
instituição responde plenamente à reprodução da vida e seja profundamente criadora de
uma ordem nova emancipatória, não deixa, por isso, de ter um componente inevitável de
alienação ainda não consciente nem intolerável, mas já está ali como um momento larvado e
cancerígeno da finitude humana. Nos postulados políticos não há negatividade, mas no nível
empírico (níveis A e B arquitetônicos) nunca pode deixar de se fazer presente a negatividade.

205
O anarquista observará somente e sempre a “alienação”, a “repressão”; o conser-
vador admirará somente e sempre a “disciplina” (tendo cegueira para a repressão
crescente). São dois extremos sincrônicos, mas que manifestam interesses radical-
mente contrapostos. O primeiro, desde o ponto de vista do oprimido, antecipa o
momento repressivo da instituição (e não considera a possibilidade de um momen-
to de disciplina criadora, tendo uma visão negativa, enquanto atento à dor do “dis-
ciplinado-alienado”). O segundo pretende não fazer visível o desgaste entrópico da
antiga ação criadora-disciplinar, confundindo-a com o mero sofrimento (que, para
o conservador, é inevitável e necessário), exigido pela existência da “ordem” que
permite reproduzir a vida do sistema – que confunde com a mera vida humana.
A instituição política é objetiva e, estruturalmente, a determinação do mero
sujeito social (ponto de partida) que o constitui como ator político quando executa
uma função, quando representa um papel no livreto próprio do campo político.
Esta ação de ator pode ser implícita ou explícita, sistêmica ou propriamente insti-
tucional. A ação institucional tem um sentido que se aprende e transmite, primei-
ramente, de maneira oral e, posteriormente, se objetiva por escrito. O fato de que
as instituições foram expressadas “por escrito” dará à sua institucionalidade um
caráter muito mais claro e objetivo de aparecer inequivocamente na esfera pública,
possuindo uma certa “universalidade”, que tanto o juiz como o julgado não podem
tergiversar ou “torcer” a seu capricho circunstancial. O Código de Hammurabi, es-
crito no sistema cuneiforme em pedra dura e que no século XVIII a.C. tinha
já mais de meio milênio de antecedentes de codificações legais na Mesopotâmia,
indica claramente o sentido do assunto: “Que o oprimido afetado num processo
venha diante de minha estátua de Rei de Justiça e se faça ler minha estela escrita
[...]. Para fazer justiça ao oprimido escrevi minhas preciosas palavras em minha
estela” (Código de Hammurabi citado por Lara Peinado, 1986, p. 43).
Se Jacques Derrida descobre a transformação que a escritura determina na
representação do mundo em todo sujeito cognoscente, muito mais – mas, neste
caso, positivamente – deverá atribuir-se à objetividade de grande equidade que
significará na história humana a expressão por escrito do alcance de cada institui-
ção – embora se deva aceitar que muitas delas nunca alcançaram o grau de explíci-
tas e, não obstante, tiveram vigência implicitamente. De qualquer forma, a imensa
complexidade das instituições exigirá defini-las por escrito, o que permitirá uma
crescente precisão do campo político.
Caberiam, ainda, muitas outras distinções. Por exemplo, se poderia mostrar
que é necessário distinguir entre as funções de um mero sistema (Luhmann) e
as instituições propriamente ditas (Gehlen) e entre os tabus e ordenanças míti-
cas (Freud) e a lenta expressão escrita, cuja autoridade de referência começou a
ser o poder político do monarca – como o indicamos na Mesopotâmia.444 Deve,

444 Ver o tema na parte histórica desta Política da Libertação.

206
ademais, distinguir-se as instituições em geral das “instituições políticas” propria-
mente ditas.
Para concluir, diremos que frequentemente se expressa o seguinte falso proble-
ma: o que é anterior, o sujeito ou a instituição? Para transformar a sociedade é pre-
ciso começar pela mudança de atitude dos sujeitos ou encarar primeiro a variação
das instituições? Na verdade, os sujeitos são atores constituídos pelas instituições;
instituições que os antecipam no tempo, fixando sua função. Mas, as instituições
estão constituídas por sujeitos que são os atores que conhecem o sentido da função
que devem cumprir e que constitui a instituição in actu. É um círculo, onde o sujei-
to é um momento determinado (pela instituição) e determinante (da permanência
ou transformação da instituição) e onde a instituição é também, por sua vez, um
momento determinado (pelos sujeitos conhecedores de sua função como atores) e
determinante (das ações futuras dos atores). Ambos os momentos são sincrônicos
e codeterminantes. Claro que a determinação de um (o sujeito) é subjetivo-funcio-
nal e a da outra (a instituição) é objetivo-sistêmico. Substancialmente, contudo,
tendo em conta a última determinação material (o cérebro de cada um dos nós da
rede de relações), o sujeito é condição absoluta material da existência da instituição,
como um campo de exercício de sua subjetividade. Em troca, intersubjetiva ou
racionalmente, como a rede que une funções heterogêneas, a instituição é condição
intersubjetiva da existência política do sujeito, constituído, assim, como ator polí-
tico. Por isso, em última instância, as instituições servem à reprodução legítima
e factível da vida dos sujeitos concretos, corporeidade vivente de carne e osso, da
comunidade política, e é esta vida o critério da “verdade” e “validade” de toda ins-
tituição política, como veremos nos capítulos seguintes desta Política da Libertação.

3. O “civil” e o “político”. “Estado de natureza” e “estado civil” ou


“político”

[309] Deveremos diferenciar, neste momento do discurso político, entre o


“civil” e o “político”. Vimos que o “privado” e o “público” são esferas definidas por
diversos graus de intersubjetividade. Esta diferença não era exclusivamente política,
porque o público podia se dar em campos diversos do político (§ 16.2 [271ss]).
O público político era um modo do público (como quando se diz que um policial
de trânsito é um servidor público). Agora, da mesma maneira, a diferença entre o
“civil” e o “político” se estabelece a partir de um duplo parâmetro. Num primeiro
sentido, o “civil” pode denominar-se ao situado em outro campo que o político;
num segundo sentido, o “civil” político é o que tem menores graus de sistematicidade
institucional (Dussel, 2006).445

445 Ver Tese 7.1 de 20 Teses de Política.

207
Quando o sujeito é ator em outro campo que não o político (a), é reconhecido
como um civil. Do mesmo modo, são-lhe reconhecidos direitos subjetivos, indi-
viduais ou civis, que são os direitos do ator em outros campos externos ao campo
político e que este deve reconhecer como preexistentes. Também se usa de maneira
semelhante no campo militar, eclesiástico e outros, nos quais podemos detectar
igualmente esta diferença entre o ator especializado do campo (o militar, o ecle-
siástico, etc.) e os atores que não pertencem propriamente ao campo e, por isso,
não têm a mesma capacidade funcional (o “civil” em relação ao militar, ou o laico
com respeito ao profissional nos diversos campos especializados).
Quando o sujeito é ator no campo político (b), porém, não exerce delegadamente
o poder político do Estado ou da sociedade política, quer dizer sua função ou papel
de ator tem sistematicamente uma institucionalidade de menor grau de comple-
xidade (menor grau de sistematicidade institucional) se comporta, então, como um
“civil”. O cidadão (o “civil”) deve cumprir a lei ditada pelos deputados (o “políti-
co”) no exercício delegado do poder político legislativo. De maneira semelhante, o
cidadão (o “civil”) deve obedecer ao policial (o “servidor público”) quando decide
multá-lo por ter cometido uma infração no trânsito.
O privado-civil, evidentemente, não se comporta como o público-político, que
seria, intersubjetivamente e por sua situação estrutural dentro de sistemas institucio-
nais de maior complexidade, o extremadamente diferenciado.

Esquema 20.03. O “civil” e o “político”


Campos Estado Oposto a
Não-políticos “civil” (a) nos campos econômico, militar (“estado de guerra” de J.
Locke), familiar, etc., e como oposto ao “político” do ator
no campo político
Político “civil” (b) membro da “sociedade civil” e como oposto ao “político”
como ator da “sociedade política” (Estado) (político em
segundo sentido)

O “civil” ao qual nos referimos nesta exposição é no segundo sentido (b), que se
distingue ou opõe ao representante ou funcionário do Estado, mais precisamente
do governo que, como profissional ou eleito, cumpre tarefas políticas do exercício
delegado do poder.
Na filosofia política moderna, por outro lado, se usou a distinção entre o “es-
tado de natureza” (outra maneira de chamar o “civil” em seu primeiro sentido) e o
“estado civil” (que não é o “civil” na segunda maneira446) ou político, que tem um

446 E não é o “civil” porque, no começo, o “estado civil” (ou “estado político”) para estes autores
eram, na verdade, as ações e instituições do campo político enquanto tal. Nada tinha a ver

208
critério de diferenciação distinto do que temos sugerido e não sempre claramente
explicitado. Esta distinção não somente é utilizada por Th. Hobbes ou D. Hume,
mas também, de alguma maneira, chega até John Rawls, com sua “situação originária”
ou J. Habermas, com a “situação ideal de fala”.447 É toda a questão metodológica e
expositiva do uso de modelos contrafáticos nas ciências sociais ou na filosofia.448
Não se sabe bem se a distinção indica um sentido: a) meramente “hipotético” ou
metódico, com um sentido quase pedagógico (e até de uma “ideia regulativa” ou
metódica); b) simplesmente “histórico” ou cronológico (um momento no tempo
primitivo da humanidade); ou c) claramente “voluntarista” na definição de poder
instituinte original (quando efetivamente os cidadãos se reúnem para firmar um
contrato de sociedade ou promulgar uma Constituição). Opino que a questão que
está indicando esta problemática é, nada menos, a passagem da indeterminação
da subjetividade (como participante anterior em qualquer dos possíveis campos
não-políticos ou o “civil” no primeiro sentido) com respeito à participação explí-
cita no campo ou num sistema político empírico. A subjetividade indeterminada
politicamente (a) torna um ator político (b): como cidadão ou membro de uma
comunidade política como política. Esta “passagem” não é somente hipotética,
nem propriamente histórica,449 e tampouco necessariamente cronológica (porque,
como veremos, o sujeito é desde sempre já um ator político, embora seja potencial,
e, portanto, não existe um antes da inserção num campo político450). Trata-se, em
último caso – e é um tema que ainda tem atualidade na filosofia política –, de uma
passagem lógica e necessária.
Efetivamente, o mero sujeito corporal vivente humano pode cumprir funções
em muitos campos e exercer ações sistêmicas em campos não-políticos. Esta par-

com o sentido posterior de Hegel e, sobretudo, de Gramsci, que é o sentido atual de “so-
ciedade civil”.
447 No caso de K.-O. Apel ou J. Habermas funcionam melhor como ideias regulativas. De
qualquer modo, maneja-se uma estrutura que supõe uma certa abstração do empírico, mo-
vimento metódico que nunca é descrito em detalhe.
448 Ver a questão em Hinkelammert (1984).
449 Em algum caso pode sê-lo, por exemplo, quando as colônias latino-americanas ou norte-a-
mericanas elaboram suas primeiras constituições (processos soberanos constitutivos que
se iniciam nos Estados Unidos desde 1776 e na América Latina desde 1810). H. Arendt, é
evidente, não analisa os latino-americanos, que foram de uma complexidade sui generis – já
que permanecerão semicoloniais ou periféricos, com uma auctoritas sempre limitada pelas
metrópoles de turno (incluindo Estados Unidos).
450 Alguém nos pode objetar, e com razão, que Hobbes poderia pensar no caos do feudalismo
inglês, quando cada Lorde lutava contra os outros. A necessidade de um Estado monárquico
que colocasse os senhores feudais sob sua autoridade era uma exigência histórica: era como
a passagem de um “estado de natureza” fora da lei do consenso (fora do campo político) a
um “estado político” onde reinaria a possibilidade da sobrevivência ordenada (no campo
político). E isto não deixa de ser um momento na origem do Estado moderno europeu.

209
ticipação da subjetividade em “outros campos” se observa desde o campo propria-
mente político como indeterminação política. Pode-se ser pai, professor, operário,
desportista, etc., mas não cidadão: sujeito funcional, no sentido estrito, de uma
comunidade política como política. Todos estes momentos “anteriores” (anterio-
ridade lógica e não meramente empírica) à determinação propriamente política
da subjetividade são, para o “campo político”, como um “estado de natureza” ou
não-político; é o “civil” (a).
Hegel, ao final da sua Filosofia do Direito, observa que, ao não ter um Estado
mundial nem uma lei positiva internacional, a relação externa entre os Estados
volta ao “estado de natureza”. O que quer significar aqui “natureza”? Simplesmen-
te, que cada Estado, ao não poder fazer parte de uma estrutura jurídico-mundial
com uma função própria no campo político com outros Estados e, portanto, estar
dentro de um “campo político” propriamente dito, volta ao estado de uma subjeti-
vidade ou comunidade não-determinada politicamente (quer dizer, sem institucio-
nalidade que tenha ditado normas em referência a um tribunal com legitimidade e,
por isso, sem institucionalidade normativa que o obrigue): seria uma comunidade
livre enquanto indeterminada de toda obrigação intencional de direito e, por isso,
parte de um “campo militar” em “estado de guerra” (para J. Locke ou Hegel). Por
isso, contra o ius gentium da Cristandade latino-germânica, de F. Vitoria no tempo
da fundação teórica do direito internacional no século XVI, ou do Kant de A
paz perpétua, a ação militar (a “guerra” como violência sem exigências normativas
políticas internacionais) suplanta a política, sai do campo político e permanece no
campo militar. Trata-se de um retorno a posições anteriores a Kant, onde a relação
entre Estados estava regida pela pura violência; um imperativo sem normatividade
alguma. Seria a negação completa da “política” internacional, simplesmente como
guerra entre nações. O “campo político” internacional havia se transformado num
mero “campo militar”; havia desaparecido o campo político entre as nações. Havia
retrocedido do “estado político” (ou “civil”) ao “estado de natureza”. O processo de
globalização atual tem, no nível político, o estatuto de “estado de natureza” não re-
gulado – e a negativa dos Estados Unidos de aceitar o Tribunal Penal Internacio-
nal mostra a negação de admitir uma determinação política que limite a autonomia
natural do Estado dominador, onde impera a lei do mais armado, do tecnicamente
mais violento (Cf. Hardt; Negri, 1999).
A distinção é aplicada ao campo econômico por Adam Smith, para quem o “es-
tado natural” em economia seria um sujeito de trabalho anterior ao ser subsumido
num sistema451 particular, por exemplo, o do capital. Num tal estado anterior, como
situação puramente lógica ou do “estado de natureza” (em termos capitalistas, in-
-determinado), o trabalhador seria proprietário de todo o fruto do seu trabalho.

451 Aqui, a exterioridade da “natureza” não seria do campo econômico e, sim, do sistema capitalista.

210
No “estado de stock” (leia-se: no sistema do capital, análogo ao “estado político” ou
“civil”452), o rico compra o trabalho do pobre, explica Smith. Este segundo “estado”
é o estado econômico propriamente dito (como o é para o filósofo político liberal
o “estado civil” liberal), isto é, o capitalismo. O sujeito do trabalho cumpre uma
função dentro do “campo econômico”, subsumido dentro de um “sistema” empí-
rico. Trata-se do mesmo tipo de “passagem” da in-determinação à determinação
por participação atual e explícita num tipo histórico de sistema, em nosso caso,
político, que opera num campo específico: o “campo político”, como cidadão liberal
(no “campo econômico”, como o participante no “sistema” capitalista, o trabalha-
dor assalariado).
Trata-se de uma distinção fundamental, válida, sustentável, se for situada con-
venientemente; quer dizer, como expressão analítica da “passagem” a) da in-deter-
minação do sujeito corporal vivente humano enquanto tal (e pertencente a outros
campos que o político ou que não tenha sido subsumido ainda por um sistema
político empírico) à b) determinação do “cidadão” como o ator de uma comunidade
política no “campo” e num “sistema” político.

4. A “diferenciação” institucional do poder

[310] A potentia se cinde e institucionaliza a potestas. Descrevemos minima-


mente o poder político, em seu conceito abstrato, indeterminado e imediato (isto é,
sem mediação), como a força que emana da pluralidade de vontades unidas no con-
senso discursivo-racional factível. Este conceito abstrato de poder, enquanto “in-
-mediado” (imediato ou sem mediações), não é factível. Factibilidade empírica ou o
exercício concreto do poder político exige, no nível no qual estamos nos situando,
mediações para sua atualização efetiva. O âmbito das mediações do poder é jus-
tamente o organizado pelas instituições políticas. As “instituições políticas” são
as que empírica e efetivamente tornam possível o exercício concreto delegado do
poder político. Sem as mediações, sem as instituições, o poder abstrato fica redu-
zido a uma pura possibilidade impraticável. As instituições políticas, então, são as
mediações do poder. Carl Schmitt cai numa falta de distinção entre a vontade in-
diferenciada, “in-mediada”, imediata como poder (abstrato) e o poder diferenciado
institucionalmente (que significa uma certa “divisão” do poder). Por isso, para que
o poder permaneça indiviso, necessita que um só líder exerça univocamente o poder
político e o povo, que é a origem do poder (nominalmente), deve igualmente con-

452 Para Adam Smith, porém, este “segundo” estado de natureza não era ainda o ser partici-
pante de um sistema de contrato entre dois produtores empíricos, questão que trata pos-
teriormente. Para nossos fins, este “segundo” estado de natureza é já um “primeiro” estado
sistêmico de salário, de ricos e pobres que supõe algum tipo de determinação sistêmica.

211
firmá-lo in-mediatamente, por sua presença massiva, cumprindo o único ato pos-
sível: a aclamação (que é a mais ambígua e indeterminada ação política possível).
Pretende-se que o conceito abstrato de poder, como vontade de decisão unânime
do povo, cumpra imediatamente (in-mediatamente) seu conteúdo ideal. Havia sido
produzido algo como a identidade do conceito abstrato e sua efetivação empírica.
Esta descrição impossível do poder político (anarquismo voluntarista de direita)
é a consequência de não ter compreendido a necessária “diferenciação” do poder.
Michel Foucault tem razão ao indicar que o poder não é unilateral (de cima a
baixo, como se o Estado fosse o único sujeito efetivo do exercício do poder políti-
co), mas que está disseminado em toda a estrutura organizativa social e política.
Onde há vontade, há poder. Cada membro da comunidade política é uma vonta-
de, portanto, é um momento do poder. Se um governante (gobernáo significa, em
grego, pilotar um barco453), se um chefe militar, lança suas forças contra o inimigo,
sob a ordem de: “Avante, valentes!”, exerce o poder de mando. Mas, se os soldados
permanecem quietos, imóveis, desafiando o poder do chefe sem obedecer a sua
ordem, o exército não avança e o pretendido poder do chefe fica reduzido a nada.
O poder do exército consiste na força de todo o corpo e de cada um de seus mem-
bros que exercem organicamente suas funções heterogêneas. Alexandre Magno ou
Napoleão foram grandes chefes militares, exerciam pronta e estrategicamente o
poder militar, mas contavam com tropas altamente experimentadas (os hoplitas
gregos e os soldados da revolução francesa de inúmeras batalhas) que constituíam
a força do todo.
Devemos distinguir entre sociedade política (ou Estado em sentido estrito454) e
governo. O poder (potentia) corresponde sempre, e em última instância, à comu-
nidade política; a sociedade política, como instituição instituída, exerce delega-
damente o poder diferenciado (potestas) pelo povo; mas é o governo que exerce,
também delegadamente, a autoridade (auctoritas), enquanto a comunidade política
se obrigou a si mesma a obedecer-”se”, mediante as exigências legítimas do governo,
a autoridade delegada. De certa maneira, a autoridade de um policial é a reflexão
do cidadão sobre si mesmo, enquanto que sua vontade se cindiu (a Entzweiung, de
Hegel), determinando-se como respeitosa de si mesma e da comunidade, enquanto
legítima origem da lei que o obriga. Em último caso, a autoridade do poder (potestas)
é o rosto do mesmo cidadão, o que se manda e o que se obedece, por ser a raiz do
mandato. É poder obediencial (aspecto passivo ao final do círculo reflexivo da poten-
tia sobre a própria potentia) (Dussel, 2006).455
Esta cisão é inevitável, porque a vontade deve institucionalizar-se, perpetuar-se,
mediar-se. Desta maneira, o poder político indiferenciado da comunidade política

453 Vem de kyberneter (piloto), de naús (barco) ou náos (nave).


454 Ver, mais adiante, no § 22.1-2.
455 Ver Tese 4 de 20 Teses de Política.

212
(como mera “vontade geral”, de Rousseau, que denominamos potentia) é um mo-
mento ontológico e que como tal não pode ser exercido. A “institucionalização” do
poder político “divide o poder” (como na economia o desenvolvimento técnico da
revolução industrial levou a uma complexa “divisão do trabalho”, mesmo antes da
diferença de “valor de uso” e “valor de troca”). O poder “instituinte” (como o ex-
pressa Castoriadis) é ainda indiferenciado; é a potência unificada da pluralidade de
vontades no consenso de ter consciência, primeiro, “de ser um povo” (como expres-
sava Rousseau), para depois cindir-se e “dar-se”, assim, as instituições, “aparecendo”
fenomenicamente como um poder “instituído” (potestas). E o poder “instituído”
(institucionalizado), ainda que pese a Carl Schmitt, deve ser um poder “dividi-
do”. Sem divisão, sem separação, sem aparição de partes funcionais heterogêneas
organicamente determinadas não se pode passar do conceito indeterminado em si
(potentia) do poder a seu exercício empírico (potestas).
Trata-se, então, não tanto de que o poder tenha que ser entregue, outorgado,
alienado, a uma autoridade, ao governo, ao Estado, mas que previamente é preciso
diferenciar o poder. O poder deve ser dividido funcionalmente; a identidade indi-
ferenciada, imediata, deve ser determinada como Di-ferença interna à totalidade
do poder político da comunidade como Identidade. Para poder delegar o exercício
empírico do poder é preciso diferenciá-lo. A diferenciação do poder obriga a de-
terminar funções distintas, heterogêneas. Para poder caçar é preciso diferenciar
no grupo as funções: um prepara e lança as flechas sobre a presa, outro prepara o
laço. Outro fabrica instrumentos de ruído para afugentar a presa... outro dá a voz
de comando; todos guardam silêncio e juntos se lançam sobre o objetivo da caça.
Sem diferenciação, não há caça; sem caça, não há alimento, sem alimento não há
reprodução da vida do grupo. Aquele que cumpre a atualização delegada do poder
de líder do grupo de caçadores exerce um certo poder; o flecheiro exerce outro poder
e o que enlaça, outro. Cada um dos membros exerce diferenciadamente parte do
poder do grupo, parte da força que todos possuem, porque suas vontades operam
mancomunadas por consenso racional (a racionalidade da espécie homo deu aos
caçadores das estepes africanas superioridade sobre todos os outros animais porque
seu querer plural estava mais unido por um consenso linguístico articulado e por
uma diferenciação funcional mais heterogênea em suas funções sociais); quer dizer,
exercia-se um poder empiricamente diferenciado. Diferenciação ou institucionalização
são graus da eficácia instrumental no exercício do poder da comunidade política.
O conceito do exercício delegado do poder construído pela filosofia política
moderna europeia é confuso. O problema de sua ambiguidade aparece na formu-
lação de J.-J. Rousseau:

Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja com toda a força comum
a pessoa e seus bens de cada associado e, pelo que cada um, unindo-se a todos, não

213
obedeça senão a si mesmo e permaneça livre como antes. [Ainda que isso supunha] a
alienação total456 de cada associado com todos os seus direitos à comunidade [...]. A
alienação se efetiva sem reservas (Rousseau, 1963, p. 61).457

Observe-se que, para nosso tão crítico filósofo político, esta “forma de associa-
ção” (uma instituição empírica) deve “defender” e “proteger” a pessoa e seus bens.
Quer dizer, existe como uma passividade dos membros, como se ficassem inermes
e impotentes (sem poder) ante o poder que eles mesmos criam como instituição.
Porque, embora devessem ficar tão livres “como antes” (o que é empiricamente
impossível e, ademais, desnecessário), “a alienação” é total à comunidade. Existe
um dilema não resolvido entre a existência individual como o que é preciso salvar,
a comunidade política que protege seus membros e os órgãos do exercício do poder
que se autonomizam. De outro modo, se imaginamos a comunidade política in-
diferenciada como ponto de partida (e não os indivíduos) com um poder imediato,
in-mediado (potentia), a questão poderia ser expressa de outra maneira: o poder
político é uma faculdade da comunidade política (potentia), de todos os seus membros e
como tal inalienável e permanente. Para o exercício delegado empírico deste poder, (po-
testas) é necessária sua diferenciação, que consiste na cisão institucional das diversas
funções requeridas para a sobrevivência legítima da comunidade, para sua factibilidade
empírica. Todo cidadão continua sendo comunitária e perpetuamente o referente
último do poder como potentia.
[311] Aquele a quem cabe “governar” (pilotar o barco) cumpre uma função ne-
cessária, como necessária é a função daquele a quem cabe “eleger” o governante
e manter desperta e ilustrada a comunidade política na qual a deliberação deve
dar-se empiricamente de maneira permanente, onde uma “opinião pública” infor-
mada exerce a vigilância por fiscalizações específicas institucionais que asseguram
o cumprimento das exigências de cada uma das funções do poder diferenciado de-
legado.458 O marinheiro que desdobra a vela do barco é tão necessário quanto o pi-
loto, porque o barco não avançaria sem velas estendidas, por mais golpes de timão
que lhe desse o piloto. O cérebro depende do estômago para sua alimentação; este
último não pode ser definido como um peso morto conduzido pelo cérebro (o re-
presentado passivo). Todos os membros da comunidade política exercem uma parte
funcional, um momento do poder diferenciado. Como postulado ou em princípio
não deveria haver qualquer privilégio no cumprimento de toda e qualquer função.
O abade do convento de monges cenobitas (desde os budistas até os de Bizâncio

456 Rousseau incorre certamente num erro porque esta alienação não deve ser nunca total. E,
sim, somente delegação com limites no tempo acordado.
457 O contrato social (Liv. I, cap. 6).
458 Desta maneira, não falarei já de poder “outorgado”, “concedido”, porque, neste caso, o cida-
dão fica desprovido daquele que entrega. Trata-se não de um poder “outorgado” e, sim, de um
poder “instituído, e nada mais.

214
ou os beneditinos no mundo latino) voltava a ser porteiro da comunidade após
tê-la conduzido. O reitor de uma universidade volta a ser mais um professor do
claustro, uma vez cumprido seu mandato. O ser “governo” é uma responsabilidade,
é um dever, uma tarefa: “os que mandam, mandam obedecendo” – ensinam os
zapatistas, seguindo a tradição política exemplar dos maias. É o poder obediencial.
A auctoritas do governo é outorgada delegadamente em benefício da comunidade;
qualquer uso em favor de um singular (idiotés, em grego) é corrupção e injustiça; é
fetichização459 do poder.
O poder instituído é um poder diferenciado e, nisto, Foucault tem razão (con-
tra suas razões), de que o poder é uma estrutura de forças entrelaçadas e mu-
tuamente constituídas. Estas mediações ou nós eficazes são instituições que pro-
duzem uma re-flexão da comunidade indiferenciada (com poder instituído). Sem
diferenciação não se pode atualizar o exercício do poder político. Exercer a força de
uma parte da sociedade contra a outra é neutralizar-se, debilitar-se, aniquilar-se.
Quando os momentos diferenciados se autonomizam, se fetichizam ou se utilizam
em favor do próprio interesse do que tem sido eleito para seu exercício delegado,
obediente, o poder se corrompe, dissolve seu fundamento, exclui da participação
do poder político os outros membros da comunidade: aniquila ao próprio poder
como despotismo. Passa ao exercício da força como dominação, como governabi-
lidade cínica ou como pura violência. É como o chefe militar persa, que tem mais
soldados mercenários estrangeiros do que de origem persa, aos quais o pequeno
exército de cidadãos gregos de Alexandre dispersava rapidamente. A força do exér-
cito mercenário estava minada pela falta de participação na unidade das vontades,
que lutavam pelo interesse legítimo dos seus e desde um consenso racional comu-
nitário no qual haviam participado simetricamente.
Cada membro da comunidade política, então, não entrega nunca o poder ao
governante. Somente lhe delega seu poder, devendo sempre, continuamente, fisca-
lizá-lo, julgá-lo e até recuperá-lo, quando for necessário pela renovação do man-
dato ou em caso extremo pela rebelião justa. A comunidade política se diferencia
internamente, se institucionaliza, reparte, divide as funções heterogêneas do poder
político, segundo as qualidades julgadas pelos cidadãos como mais aptas para o
cumprimento das diversas exigências da vida, somente como delegação. O “fun-

459 O poder se fetichiza quando o exercício delegado do poder (a potestas) se atribui a si mesmo
esta faculdade, separando o exercício de sua substância: o poder da comunidade (a potentia).
O deslocamento de um exercício estritamente por delegação, como poder obediencial a um
exercício autocentrado do representante que se afirma como sede última do poder, constitui
a origem do processo corruptivo originário que denominamos “fetichismo do poder” (Cf.
Dussel, 2006, Tese 5). A corrupção não consiste somente em roubar dinheiro público, antes
já se roubou a comunidade como a última instância do poder. Quando um representante
investe a sua própria vontade de uma pretendida soberania ou autoridade intrínseca já se
corrompeu. O que “manda, manda, mandando”, porque não exerce um “poder obediencial”.

215
cionário” (o que “funciona” nesta diferenciada instituição) cumpre com obediência
a um dever cidadão. Ninguém aliena o poder, nem o entrega; ninguém fica sem
poder ante o poderoso Leviatã. Este monstro nasce quando a comunidade per-
deu o poder político (quer dizer, quando a comunidade política foi dominada e o
poder tiver sido suplantado por um fetiche). O Leviatã domina obedientes, violenta
instrumentalmente a aterrorizados, mas não exerce o poder político autêntico e,
sobretudo, mina seu próprio fundamento: o poder da comunidade (que seria seu
único apoio quando recebesse o ataque de seus inimigos). Pelo contrário, quando
alguém exerce diferenciada e delegadamente o poder, indica simplesmente que lhe foi
assinalado, sob cumprimento da lei (a norma institucionalizante) ou do costume,
uma função como dever comunitário e em função do outro: a comunidade. Todos
podem reclamar-lhe seu cumprimento em nome do poder indiferenciado do ser
membros da comunidade política e por estar cumprindo, simultaneamente, outras
funções políticas, embora não seja mais do que a do implícito fiscalizador de todas as
instituições nas quais participou em sua institucionalização. A vontade e a aceita-
ção racional do acordado consensualmente de cada cidadão permanece na diacronia
política, sempre como o poder político atual (potentia), como a última instância
presente e fonte de regeneração do poder político (potestas) da comunidade em todo
futuro. Todas as instituições (desde as microinstituições, como a escola, o cárcere, a
clínica psiquiátrica, a prisão ou os sindicatos – estudadas por Foucault –, como as
macroinstituições, como o Estado) exercem parte do poder dividido, diferenciado,
da comunidade política, mas delegadamente, permanecendo sempre como único
poder soberano, como fundamento da autoridade do governante, a comunidade
política. O poder político circula como que por vasos comunicantes (como o capital
circulante ou o valor circula por todas as determinações do capital), como o sangue
de todo o organismo político: quando a comunidade perde força pela contradição
entre suas vontades já não consensualmente afirmadas (a comunidade instituinte),
todas as instituições se debilitam em seu poder e o corpo político institucionali-
zado fica à mercê de seus antagonistas de dentro e de fora. Os Estados coloniais
ou pós-coloniais são os melhores exemplos desta falta de poder político. As elites
governantes, que dominam uma população de obedientes inermes, desmobilizados,
oprimidos, têm a fonte de sua força não desde baixo, desde a comunidade política,
mas desde fora, desde o poder das metrópoles, do Império ou dos Estados hegemô-
nicos mundiais. Estes Estados pós-coloniais nunca exerceram pleno poder político,
mas sofreram dominação, ingovernabilidade ou violência. Suas elites governantes
cuidaram para que as massas, a comunidade política, nunca alcançassem a unidade
consensual de suas vontades em torno de seus próprios interesses. As instituições
têm sido repressivas (instrumentos de opressão), mas não diferenciação efetiva de
um poder obediencial político delegado pela comunidade.

216
[312] Isto nos levaria a repensar o conceito de representação. Diz-se que, ao
decidir, aceitar ou eleger as autoridades, se-lhes dá a representação da comuni-
dade que as elege, que, por sua vez, é a que é representada. Esta conceitualização
tradicional indica, contudo, um certo dualismo deficiente do poder político. Não
se deveria outorgar poder ao representante, deixando o representado impotente
até o momento em que julgue se o representante usou adequadamente, segundo
o juízo do representado, o poder político, no momento da eleição do próximo re-
presentante. Evidencia um certo dualismo porque, por um lado, o representante
aparece como o sujeito do poder e o representado como o que alienou seu poder,
tal como os clássicos colocavam a questão (Hobbes, Locke, Hume e até Rousseau).
Contudo, se aprofundarmos o conceito de diferenciação delegada do poder político,
podemos superar o dualismo do modelo representante/representado. O tal repre-
sentante é um ator político, um cidadão indeterminado que foi eleito (segundo
diversos procedimentos legítimos) para cumprir uma função política (por exem-
plo, juiz num julgamento, polícia municipal ou varredor460), transformando-se de
mero sujeito num ator político eleito ou nomeado, com responsabilidade em rela-
ção ao eleitor. Cada instituição ou função política recebe uma cota da alíquota do
poder político que lhe permita cumprir com seus fins. O ator desta função exerce
a indicada cota de poder diferenciado e delegado, mas não enquanto sujeito último
do exercício do poder e, sim, em nome da totalidade da comunidade política nesta
função determinada, delegada. Repetimos, é delegação e não transferência de poder.
Fica investido, enquanto cumpre com seus deveres para com o que delega, das
prerrogativas de seus direitos como “funcionário” (enquanto exerça as “funções”
de seu encargo, de sua “carga”). Aquele que o elegeu não é meramente um repre-
sentado (já que o mesmo eleitor tem sempre um duplo direito: eleger e ser eleito)
e, sim, segue sendo membro da comunidade política que cumpre a obrigação de
discernir se o representante realiza de maneira competente o exercício do poder
na função atribuída. O eleitor, então, pode ser “funcionário”, em outro momen-
to da estrutura institucionalizada da comunidade política (pode ser legislador ou
membro de um conselho municipal), ou pode igualmente ser dirigente em outro
campo (por exemplo, no campo econômico), necessário igualmente para a vida
política (no qual age como um campo diverso e que determina, de alguma maneira,
o campo político), sendo, por exemplo, empresário ou operário.461 O eleitor, desse

460 Alguém perguntará se este humilde e digno trabalho é “político” – mas veremos que o
Estado receberá uma descrição “ampliada”, graças a Antônio Gramsci, e um empregado
ou “servidor público” – por ser parte da estrutura administrativa do Estado (da sociedade
política), cumpre igualmente uma função política subsidiária.
461 Mas, também um trabalhador, institucionalmente falando, cumpre uma função insubsti-
tuível, de maneira que o cidadão eleitor (momento essencial da política) pode ser ao mesmo
tempo momento funcional essencial de um campo (como empresário ou operário produtor,

217
modo, não é simplesmente o representado passivo, e aquele que exerce diferencia-
damente parte da alíquota de poder assinalado por delegação, sua função não é
somente representante, mas o “funcionário” de uma complexa estrutura, na qual
todos são igualmente parte “funcional”. O eleito não deveria simplesmente prestar
contas a seus eleitores e, sim, deveria ser fiscalizado permanentemente por órgãos
públicos específicos (procuradorias e promotorias dos cidadãos, como no caso do
que prevê a Constituição Bolivariana da Venezuela). O procedimento eleitoral não
deve se confundir, quanto ao conteúdo, com o conceito de representação. Contudo,
um certo sistema representativo (como o norte-americano) foi concebido, segundo
alguns dos “Pais fundadores”, para que a elite escolhesse os candidatos e o povo
escolhesse entre eles. Neste caso, a representação (da potestas) ficava cindida do
poder efetivo do povo (a potentia), sendo esta privada do mais importante: escolher
os candidatos. A impossibilidade de uma democracia direta, não factível empirica-
mente em países com milhões de habitantes, não pode organizar um sistema sem
representação, o que exige a institucionalização diferenciada de funções delegadas do
poder político, cujo organograma fundamental se encontra expresso numa Consti-
tuição e no corpo complexo do sistema legal. O poder instituinte se torna constituin-
te, e a sociedade instituída promulga uma constituição, que estrutura a diferenciação
do poder político e assinala alíquotas de poder às diversas instituições políticas.
Isto é o que H. Arendt indica em Sobre a revolução, quando observa que tem-se
esquecido que existem dois pactos: a) um, estabelecendo consenso horizontal
dos membros da comunidade política na qualidade de iguais e livres (potentia)
e instituindo uma comunidade constituída de alguma maneira concreta (potes-
tas); e b) outro, fazendo acordo com a autoridade,462 que deverá ser respeitada
segundo o consentimento decidido previamente. O problema aparece quando
se institucionaliza o segundo pacto como obediência diante da autoridade, mas
não se tem consciência de que o primeiro pacto tem dois momentos: um, que
denominamos potentia, que é o poder que inclui sempre como um pressupos-
to o acordo fundamental das vontades (o primeiro pacto implícito); e, outro,
a institucionalização concreta do exercício do poder (potestas), mas que, para
Arendt, se incluem no primeiro momento de (a). A obediência da comunidade à
autoridade é interna à estrutura institucional do poder diferenciado, esquecen-
do-se que a mesma autoridade deve antes exercer um poder delegado e obediencial
em relação à própria comunidade. A fixação ou endurecimento fetichizado da

sem o qual a vida não pode se reproduzir). Ser hoplita do exército de Alexandre é permitir
que o exército grego tenha poder militar (justificável enquanto poder defensivo ante os
persas, e não enquanto força expansiva dos futuros impérios helenistas). Alexandre não era
o representante de seus soldados, era somente seu chefe estratégico.
462 A autoridade, além do que pensam Arendt e Agamben, é também uma determinação em
último termo da comunidade política. A autoridade do governo é igualmente delegada.

218
representação do representante é o maior perigo nesta questão, que se apresenta
inadequadamente neste texto:

A alternativa tradicional entre a representação como um simples substituto da ação


direta do povo [democracia direta] e a representação como um governo dos represen-
tantes do povo sobre o povo, controlado popularmente, constitui um dilema insolúvel
(Arendt, 1965, p. 237; 1988, p. 245).

Isto é assim quando se fetichiza a representação. Segundo Arendt, o que acon-


tece é que o sistema assim pensado da representação nasceu da negação de outro
modo de governo (que, penso, se deveria integrar ao primeiro) e que, desde Jef-
ferson a Gramsci, foi imaginado como a última fonte da regeneração do poder.
Arendt escreve, comentando uma carta de Jefferson a Samuel Kercheval, de 12
de julho de 1816, que é estranho que “nunca se referiu ao erro que supunha não
ter incorporado a ela [a Constituição] os distritos municipais, os quais constituíam,
sem dúvida, o modelo em que se inspiraram suas repúblicas elementares, onde a
opinião de todo o povo – escreve Jefferson – se expressasse, discutisse e decidisse livre,
completa e pacificamente pela razão comum de todos os cidadãos” (Arendt, 1965,
p. 250; 1988, p. 259).463
Para Arendt, estes “distritos” sob os “condados” eram o sistema de “conselhos”
ou comunidades de bairros sob os municípios, cujos exemplos empíricos foram os
clubes ou sociétés populaires (autênticas “fundações da liberdade”), de Robespierre,
os falanstérios do socialismo utópico, as “secções” da Comuna de Paris, de 1871, os
sovietes da Rússia, aos quais eu acrescentaria, por exemplo, os “comitês de defesa da
revolução” (na Nicarágua, com o sandinismo) ou os “grupos de vizinhança” (“cabildos
abiertos”) na Venezuela. Isto mostra a maneira como Arendt concebia o exercício do
poder comunicativo, que a representação de partidos não expressava plenamente.
Falta, ainda, definir mais claramente o conceito de “representação” a partir do
conteúdo semântico de “delegação”. No “poder delegado” ou obediencial, aparece
mais claro que o eleito como “servidor público” exerce um poder (potestas) não em
nome próprio, nem de sua soberania ou autoridade como governo ou Estado, mas
como mediação do poder da comunidade (potentia), última instância da soberania
ou autoridade. A comunidade, o povo, nunca toma o poder de outro. O poder é
uma faculdade ou capacidade própria e inalienável do povo. A autoridade (da po-
testas) nunca exerce o poder desde si: sempre é exercício delegado por outro, desde
o outro, para o outro (o povo).

463 “Jefferson sabia muito bem que o que propunha como salvação da república significava, na
verdade, a salvação do espírito revolucionário da república. Todas as suas explicações do
sistema de distritos começavam com uma lembrança do papel desempenhado pelas pequenas
repúblicas” (Arendt, 1965, p. 250-251; 1988, p. 259).

219
Oportunamente deveremos expor a maneira como a organização política de
comunidades políticas de base, nas quais o cidadão pode participar diretamente,
“onde a opinião de todo o povo se expressasse, discutisse e decidisse livremente” –
como expressava Jefferson, na referida carta –, deveria, por último, articular-se a
algum tipo de instância na sociedade política (algo assim como o “poder cidadão”
do qual falaremos mais adiante464), a fim de que se pudesse penetrar “de baixo
para cima” na instituição do Estado e que servisse de contrapeso ao processo de
“representação” (criticado, de alguma maneira, por Arendt) hegemonizado pelos
partidos políticos (burocratização frequente da representação fetichizada).

5. As “três esferas” de diversos tipos de instituições políticas


[313] Esta diferenciação do poder institucionalizado, desde a fonte do poder insti-
tuinte, tem, ao menos, três esferas ou tipos de instituições,465 que desejamos analisar
minimamente para estabelecer uma certa ordem na exposição.
Se Rawls, em Uma Teoria da justiça, sem ter demasiada consciência, divide em
três níveis o campo político (princípios, instituições e ação estratégica, ordem que
invertemos), Hegel, talvez tampouco sem ter consciência de que se tratava de uma
ordenação segundo um critério específico, divide a ordem institucional em três
esferas que, nesta Política da Libertação, terá um estatuto arquitetônico. Trata-se de
uma ordem material, formal e de factibilidade institucionais. Quer dizer, existem
instituições políticas (ou, ao menos, subsumidas nos sistemas políticos ou maneja-
das como instituições necessárias para o exercício delegado do poder diferenciado
de um sistema político) que se referem, por seu conteúdo, à reprodução e desenvol-
vimento da vida da comunidade política; ou por seu procedimento ou forma à nor-
matividade das tomadas consensuais de decisão; ou, por sua eficácia, à factibilidade
da ação e institucionalidade políticas. Nos parágrafos correspondentes à sociedade
civil ou burguesa, segunda parte do tratado da Sittlichkeit (a “eticidade concreta” ou
a “cultura política”), Hegel escreve:

Contém a sociedade civil os três momentos seguintes: A. A mediação da carência e


a satisfação dos indivíduos pelo seu trabalho e pelo trabalho e satisfação de todos os
outros: é o sistema das carências; B. A realidade do elemento universal de liberdade
implícito neste sistema é a defesa da propriedade pela justiça; C. A precaução contra
o resíduo de contingência destes sistemas e a defesa dos interesses particulares como
algo de administração e pela corporação (Hegel, 1971, VII, p. 346).466

464 Na Constituição Bolivariana da Venezuela, 1999, em seu cap. IV sobre “Do Poder Cida-
dão”. Trataremos a questão na Crítica, § 43.
465 Ver o já exposto no §13.3 [246].
466 Rechtsphilosophie, § 188.

220
Hegel propôs três esferas que, no meu caso, têm sentido arquitetônico:467 o
momento material (como conteúdo dos atos, instituições, etc.); o momento formal
(como forma ou procedimento de validade prática que, na política, é todo o tema da
legitimidade); e o momento de factibilidade, o que possibilita empiricamente os
outros dois momentos (a factibilidade propriamente dita).
Em geral, como no caso da H. Arendt, J. Habermas ou J. Rawls, o político ins-
titucional se situa na esfera formal, opinando que o social não é político (no caso da
primeira), que o econômico já deixa de ser pertinente para a razão discursivo-polí-
tica (no caso do segundo), e o primeiro princípio, que é o das liberdades e direi-
tos mais formais, que tem prioridade sobre o segundo, socioeconômico (no caso do
terceiro). Uma certa interpretação standard do marxismo opinou, ao contrário, que
o essencial era o econômico (momento material). E uma certa interpretação mera-
mente estratégica ou procedimental da política opinaria, em troca, que o essencial
na institucionalização do político é instrumental (nisto, poderia coincidir desde um
Lênin a um Bobbio, embora com grandes diferenças). Novamente, e como sempre,
nossa posição parte de que o necessário deve também ser suficiente. O material, o
formal e a factibilidade institucional são momentos necessários; nenhum é isolada-
mente suficiente; nenhum pode ser colocado como última instância. São três esferas
mutuamente codeterminantes, onde cada tipo de instituição é uma condição das
restantes com outro conteúdo de determinação. A determinação institucional eco-
lógica-econômica-cultural determina material ou por seu conteúdo as outras duas. A
determinação institucional do direito determina formal, procedimental ou por sua le-
gitimidade, as outras duas. A determinação institucional de factibilidade determina,
por sua eficiência ou possibilidade de realização empírica (performatividade), as outras
duas. Todas são necessárias, nenhuma é independentemente suficiente: a necessida-
de suficiente é constituída pelos três momentos mútua e sincronicamente atuantes.
Pensar que a) a última instância é constituída pelo momento institucional ma-
terial é cair numa análise economicista (erro fatal do marxismo standard que, ao
chegar ao poder, adota o burocratismo administrativo instrumentalista do “comitê
central”, aniquilando a política). Propor, em troca, como b) a última instância o mo-
mento institucional formal (desde a normatividade do direito), é o unilateralismo
de um certo liberalismo, do neokantismo contratualista ou da política como ação
dentro do “estado de direito” legítimo ou como coação monopólica de um J. Ha-
bermas – em Faticidade e Validade, por exemplo (Bohman; Relig, 1997). Sustentar
que c) a última instância é a mera instituição instrumental de eficácia (a política

467 Nos capítulos 1 e 4 da minha Ética da Libertação, exponho o momento “material” da ética
(momento a, aqui, em Hegel). Nos capítulos 2 e 5, o momento “formal” ou de validade (b.);
nos capítulos 3 e 6, o momento da “factibilidade (c.); este último na política é a possibili-
dade estratégica de uma realização empírica dos dois anteriores. Agora se trata de pensar
politicamente estas esferas diferenciadas das instituições em Hegel.

221
como exercício administrativo-burocrático ou puramente procedimental de ne-
gociação de conflitos) é reduzir a política a manejo da negociação, usando as ins-
tituições como mero exercício da força, do engano ou da dominação com técnicas
de eficiência e governabilidade a curto prazo (de alguma maneira, a posição de M.
Weber, no caso da legitimidade burocrática – mas, também, presente na legitima-
ção tradicional ou carismática que aponta à eficácia meio-fim, em vista da domina-
ção como exercício da razão instrumental-calculadora: formalidade instrumental).

222
§ 21. A ESFERA MATERIAL DA POLÍTICA:
OS MOMENTOS ECOLÓGICO, ECONÔMICO E CULTURAL

1. A articulação dos campos

[314] Trata-se de fazer agora uma mudança ontológica (não ainda “metafísica”).
Será preciso repassar certos pressupostos teóricos para empreender o árduo tema
deste parágrafo fundamental da política, que nos permitirá transitar, com certa
precisão – certamente possível objeto de discussões posteriores para melhorar as
análises –, na abundante selva de categorias políticas ambíguas, contraditórias e
redutivas que povoam o amplo mundo da filosofia política (Dussel, 2006).468
Já mostramos (Dussel, 1998, § 1.1)469 que, mais além do que pensava a tradição
filosófica (não somente desde Aristóteles, Avicena ou Tomás de Aquino, mas, tam-
bém, F. Suárez, R. Descartes ou I. Kant), não existem três termos: a) um sujeito
cognoscente que “conhece” b) uma “representação” (conceptus objectivum ou Ge-
genstand) de c) uma coisa real. Mas, que a subjetividade humana, que é central no
último termo, efetua a atividade cognoscente tendo como termos dois momentos:
a) um ato cognoscente propriamente dito, pelo qual atualiza neuronalmente em sua
própria subjetividade (no interior do cérebro) b) o que se lhe apresenta (a coisa real).
O cérebro humano “conhece” parcialmente a “coisa real” graças à atividade neuro-
nal de milhões de grupos neuronais – como ensina G. Edelman (1989; 1992). Os
grupos neuronais se ativam ao produzir uma categorização perceptiva (“mapas” ce-
rebrais que se dão em todos os seres com cérebro) ou uma categorização conceitual
(“mapas de mapas”, cuja complexidade máxima se dá na espécie homo). Cada neurô-
nio faz parte de grupos neuronais; estes se articulam, formando “mapas” ou o que
metaforicamente Hume denomina “ideias” simples ou complexas (ideias de ideias).
Com efeito, os “mapas” são categorizações que se articulam em outros “mapas”, que
Hume pensava se organizavam em associações por contiguidade, semelhança ou
causalidade. Na verdade, as categorizações vão se “ligando” a partir da experiên-
cia do sujeito cognoscente (de como cada ser humano vai organizando seu cérebro
ontogeneticamente). A escritura fonética não entra para organizar mapas. A escri-
tura ideográfica como ponto de partida, na escritura chinesa, por exemplo, retraça
“mapas” cerebrais (ao relacionar as categorizações conceituais entre si para escrever
ideogramas complexos de outros ideogramas); penetra, então, na organização cere-
bral dos mapas, reorganizando-os pedagogicamente dentro dos cânones culturais.

468 Ver a Tese 7.3 de 20 Teses de Política.


469 Ver também numa contribuição a uma publicação conjunta sobre Zubiri (“El acto cognitivo
en X. Zubiri”, inédito).

223
O ato cognitivo é a) a atualização cerebral de certos mapas b) de certas coisas
reais (ou imaginárias: mapas interiores memorizados no próprio cérebro, atuali-
zados reprodutivamente por outros mapas). O sujeito cognoscente é cognoscente
no ato de atualizar tais mapas: é um só ato o ser sujeito in actu e o conhecer o
“mapa” da coisa real. Realmente – na realidade física efetiva, onde somente há
neurônios e coisas reais – o cérebro se atualiza cognoscitivamente ao “conectar”
ou “ativar” certos mapas. Estes mapas, principalmente neocorticais e frontais, são
percepções ou conceitos abstratos (desde o critério avaliativo e, por isso, também
critério de verdade prática e teórica, cuja última referência é a vida-morte do sujeito
com cérebro). Assim como as coisas reais (ou as imaginário-culturais) são organi-
zadas (pela atividade subjetivo-cerebral) em grupos, sistemas ou campos (mapas
de mapas mapeados em muitos níveis e graus) e, assim como os próprios neurônios
formam fisicamente grupos neuronais que são subsumidos em sistemas catego-
rizados ou “mapas”, cumprindo cada neurônio,470 cada grupo neuronal ou cada
mapa, possíveis funções em outros grupos ou mapas, da mesma maneira o cérebro
pode mapear, produzindo novos mapas, passando como que um “rastelo” sobre o
conteúdo dos outros mapas memorizados para “reunir” ou atualizar num mapa
as conexões sistêmicas para que a árvore, a hortaliça, o fruto, a folha ... formem
parte do “mundo vegetal”. O mesmo com as as relações humanas intersubjetivas,
sociais, econômicas, políticas, familiares, pedagógicas, eróticas, estéticas, etc. As
“relações” humanas podem constituir mapas e os sistemas destas relações com sen-
tido formam um mapa de mapa (por exemplo, o “sistema” no sentido abstrato de
N. Luhmann). Estes mapas de mapas ou sistemas podem, por sua vez, adscrever-se
a “campos” práticos (ou de relações humanas intersubjetivas, existentes fisicamente
na realidade, no espaço-tempo reais). A um destes “campos práticos” temos deno-
minado “campo político”. Quando o cérebro “escuta” ou “detecta” a palavra (em
seus mapas lexicográficos) “político”, começa a mapear (“rastelar”) a totalidade dos
mapas de mapas e “ativa” ou “acende” (como quando as luzes de uma cidade se
“acendem” depois de um “apagão” ou pequeno defeito que a manteve por horas às
escuras: “apagada”471) aquilo que tem relação com esta questão (sistemicamente

470 Se um neurônio pode chegar a ter duzentas mil conexões físicas com outros neurônios,
imagine o leitor o que supõe em complexidade as conexões de catorze bilhões (catorze mil
milhões) de neurônios neocorticais. Uma “ideia” de Hume supõe centenas de milhares de
neurônios, milhares de mapas. Um sistema de conceitos (o conceito “mundo vegetal” supõe
milhões de mapas de grupos neuronais cuja complexidade apenas começamos a vislumbrar).
471 O cérebro mantém igualmente latente a totalidade de suas experiências memorizadas e a to-
talidade de sua organização neuronal. Esta “totalidade” da experiência seria neuronalmente
o que Heidegger expressa ontologicamente com o conceito filosófico de “mundo” (Welt)
cotidiano em sua quase infinita complexidade. Longe de ser uma leitura “edificante”, como
expressa R. Rorty, Heidegger captou filosoficamente a complexidade físico-neuronal do
cérebro melhor que o atomismo positivista de Carnap, do primeiro Wittgenstein ou Popper,

224
por coerência, que, em boa parte, está fisicamente “ligado” em certos mapas que
a memória reatualiza). A elaboração cerebral pode trabalhar com esta experiên-
cia prévia; pode reelaborar a conexão dos mapas (por reflexão e memorização do
refletido), e nisto consiste o trabalho eficiente e necessário da filosofia política:
reelaborar os mapas que a experiência política (e as próprias filosofias políticas
da história) usa cotidianamente e que já não respondem à realidade complexa do
mundo contemporâneo da humanidade.
Por isso, quando falamos de “campo político”, estamos nos referindo a um
mundo real (objetivo,472 institucionalizado ou não), mas específico, concreto, de-
terminável. Sabemos – e em toda esta obra pretendemos analisar algumas de suas
determinações para alcançar uma certa, embora distante, precisão conceitual –
que o “campo político” não é o “campo econômico”, o “campo cultural”, o “campo
estético”, etc. Por outra parte, “o social” não é um campo, mas um âmbito onde
se cruzam muitos campos materiais. Temos experiências de que existem muitos
“campos” (sendo cada um deles um existente real ou neuronalmente presente473 em

espantados diante da categoria de “totalidade”; como se o cérebro não procedesse sempre por
“totalidades” (mapas de mapas mapeados que constituem novos mapas de quarto, quinto,
sexto graus). Ademais, o “rastelo” neuronal na “totalidade” da experiência memorizada e
avaliada é o que me permite “dizer” que “isto” é uma “árvore” e não uma “pedra”, tanto por
seu conteúdo semântico (significado: Bedeutung) como por seu lugar (sentido: Sinn) na “to-
talidade” do “mundo”. Como bem indicava Hegel, saber que “isto” é “algo” supõe conhecer
“todo” o resto e saber que “não-é-isto”: o algo (Etwas) é uma negação de todo o resto; mas,
para saber que não é “o outro”, é preciso conhecer o outro e tê-lo atualizado-como-reti-
do (memorizado) virtualmente. No conhecimento de algo, o mundo como totalidade está
virtualmente presente como um horizonte, como a totalidade das experiências cerebrais
acumuladas e recordadas em milhões de mapas interconectados, sempre se reorganizando,
esquecendo avaliações insignificantes e centralizando, recordando, as mais próximas ao
critério vida-morte. A diferença entre um computador e o cérebro é que o computador
“repete”; o cérebro nunca repete, sempre reorganiza, esquece sistematicamente, recorda
vitalmente, comete erros inevitáveis (incerteza) e os corrige segundo critérios não exatos,
mas avaliativamente hierarquizados.
472 Atenção: “objetivo” é uma expressão ambígua. Objetivo pode significar a “coisa real” (na
relação política intersubjetiva real) ou pode significar a “construção” subjetivo-neuronal
(na interioridade do cérebro, minha subjetividade íntima intracranial) que, além disso, é
“intraintersubjetiva” ou parte de “nosso” mundo cultural. Não é nunca um “afora” absoluto
e, sim, relativo a uma certa “interioridade”.
473 É evidente, mas frequentemente é uma questão não pensada, que o neuronal é “real” (mesmo
fisicamente real, já que tem um suporte celular cósmico, comunicação intercelular elétrica,
mas também química, com enzimas, etc.), mas sua “realidade” não é do mesmo tipo que a da
“pedra” que vejo diante de meus olhos. A pedra tem uma realidade cósmica observável por
todos (os cérebros), é um prius à atualização neuronal (amava dizer Zubiri). A “atualidade”
intracerebral (existência real “neuronal”, ou “intencional” como gostava de denominá-la
metaforicamente a fenomenologia) da pedra em minha interioridade (o debaixo “de minha
pele”) pode distingui-la de sua existência real física, repousando sobre o solo do planeta

225
nosso cérebro por certos mapas de mapas) e estes campos se atravessam uns aos
outros (podemos novamente usar esta palavra inglesa: overlapping). Há um entre-
cruzamento, articulação, mútuo penetrar-se, de um campo em outro.
[315] Dissemos que um sujeito pode ser ator em muitos campos. Além disso,
estes muitos campos podem atravessar-se mutuamente, e seus cruzamentos se pro-
duzem, evidentemente, no mesmo sujeito474 por suas relações intersubjetivas. Cada
sujeito trava com diferentes sujeitos funções de campos ou sistemas distintos. O
funcionamento do sujeito dentro de campos ou sistemas reais intersubjetivos é o
ponto de partida para a construção de mapas de mapas cerebrais destes mesmos
sistemas e campos. O fato de que se “cruzem” significa que modificam os outros
campos, exercem sobre uma “sobre-determinação” as determinações já constituti-
vas do campo. Estes “cruzamentos” estão completamente abertos a campos que os
cruzavam e desapareceram, que o cruzam no presente e podem cruzá-lo no futuro.
São tantos quanto atividades sistêmicas práticas os seres humanos possam realizar.
Por exemplo, o modelo usado por J. Habermas tem três momentos: um “mundo
da vida” (Lebenswelt), que é colonizado por dois “sistemas” (do tipo luhmanniano).
A partir desta simplificação redutiva, Habermas pretende pensar o real social. É
impossível. Primeiramente, porque o tal “mundo da vida cotidiana” é a totalida-
de do “mundo” no sentido heideggeriano ou a totalidade da experiência humana.
Não é assistêmica, mas é o horizonte inabarcável da totalidade da experiência da
humanidade na história mundial, hoje. Todo “mundo cotidiano” analisável já está
recortado como um “campo”, de alguma maneira sistematizado (por “mapas de
mapas” cerebrais) e nunca totalmente indeterminado por uma comunicação ideal
não institucionalizada empiricamente. Todo “mundo cotidiano” é já um campo.
Mas, além disso, cada campo tem seu “sistema” dominante e muitos “subsistemas”,
e assim como existem muitos campos, há também muitos sistemas. Esquematizar
os sistemas como sendo somente “dois” e defini-los como sistemas de comunica-
ção a partir do “poder” (redutivamente analisado) e do “dinheiro” (como se fosse a
mediação universal do sistema econômico), é de tal maneira ingênuo que não serve
para analisar nada em concreto.

Terra. Ademais, o sujeito em ato cognoscente pode “sentir” (nisto consiste o cogito de Des-
cartes): um sentimento (Cf. Damásio, 2003) que está conhecendo a coisa real (como “sinto”
que estou comendo, que estou caminhando ou que estou contente...). Quem teria dito que
o cogito cartesiano era um sentimento!
474 Assim como cada neurônio ou cada grupo neuronal pode constituir muitos mapas; quer
dizer, um neurônio ou grupo de neurônios não se “esgota” em ser “parte” de “um” só mapa. E,
por outra parte, não são nem os mesmos neurônios nem os mesmos mapas os que “entram”
em outros mapas, alguns sim, outros não. De maneira análoga, os seres humanos são atores
em distintos campos e sistemas sem se esgotar em nenhum deles. A transcendência da sub-
jetividade em referência aos campos e sistemas parecia já pressagiar-se no funcionamento
dos próprios neurônios.

226
De minha parte, deixo bem claro que há numerosos campos e que ninguém
pode fazer neste momento uma enumeração sistemática das ciências sociais e da
filosofia. Somente me refiro aos mais pertinentes de acordo com o tema que está
sendo refletido. Cada campo tem sistemas e estes são numerosos. Os campos se
cruzam, também se cruzam os sistemas e por eles se geram determinações que são
efeitos deste cruzamento. Assim como um enorme asteroide do tamanho de um
planeta “cruzasse” o sistema solar e, dadas as condições favoráveis, se “integrasse”
ao sistema sendo um novo planeta. Esta nova “determinação”, produto de um
“cruzamento” de um momento externo ao sistema, modificaria todos os planetas
restantes. Ainda mais – e isto não pode aceitá-lo Luhmann, por sua visão fechada
autopoiética do sistema –, o sistema deverá modificar também seus códigos gené-
ticos (usemos uma metáfora biológica) e começará a produzir efeitos de novo tipo.
Terá sido modificado como sistema.
O campo político está “cruzado” (overlapping) por diversos campos materiais.
Por exemplo, quando o campo econômico o “atravessa” – e o campo econômico
pode ser observado como sendo autônomo e autorreferente relativamente, ana-
liticamente, como tema da “filosofia da economia” – em algum momento de seu
próprio desenvolvimento (não é o mesmo um sistema feudal que um capitalista)
determinará de alguma maneira o campo político.475 O “cruzamento” do “campo
político” com o “campo econômico” é exatamente, no sentido etimológico (oikós-
-nómos) e não no sentido científico-político, a constituição de duas esferas diferen-
ciáveis: o econômico-político (que seria parte da economia) e o político-econômico
(que é parte da política, como veremos). É demasiadamente sabido, mas parece ser
ignorado, que em nenhum Estado da Terra existe algum Poder Executivo sem Mi-
nistérios ou Secretarias de Economia, de Fazenda, de Agricultura, de Cultura ou
de Educação, de Meio Ambiente, de Transporte, etc. É sabido que existem bancos
do Estado, nacionais ou federais. A política se ocupa ou não da economia? É óbvio.
Desde que Mandeville propôs o dilema moral sobre as virtudes (onde o “amor pró-
prio” [selflove] no nível privado podia transformar-se num grande benefício no nível
público) e Adam Smith o resolveu através da incorporação de um tema do “campo
econômico” na ética, isto é, invocou o mercado como o lugar ético por excelência,
onde a “mão divina” (dos deuses gregos do estoicismo ou a providência quase-cristã)
fazia o milagre de produzir o cumprimento do interesse comum da nação nascen-
temente industrial a partir de uma pura motivação privada. Tratava-se, analitica-
mente, do “cruzamento” do “campo econômico” com o “campo político” ou ético. A
partir deste momento, surgirão antinomias, maneiras errôneas de definir e avaliar

475 Como se pode observar, é um voltar a pensar o tema das “instâncias, mal colocado por
Alhusser”, que Marx nunca propôs como categoria teórica (a última instância, para Marx,
não era a econômica).

227
a relação dos dois “campos”. O liberalismo, em termos gerais, considera ambos in-
dependentes. Minimiza o político e o circunscreve a um individualismo metafísico
dos direitos individuais. O marxismo standard maximiza a importância do campo
econômico, minimiza o diagnóstico do político, mas, depois da revolução, e com a
escusa da “ditadura do proletariado”, maximiza a política com a pretensão de uma
planificação total da economia – o moderno ideal racionalista levado ao paroxismo,
contra Marx, que aniquila a política e a transforma em pura administração. Ha-
bermas propõe a trilogia exposta, não convincente. Luhmann (1971; 1995; 2000)
descreve abstratamente o político como sistema, mas não consegue chegar ao nível
mais complexo, menos sistêmico, mas mais real do “campo”, e, sobretudo, não nos
propõe nem uma teoria do “cruzamento” dos sistemas e, muito menos, como já
temos sugerido, o problema da mutação genética (como nos sistemas vivos, já que,
ao final, também todo sistema social é um sistema vivo, porque o ser humano é
um ser vivo e cerebral, neuronalmente organizado por mapas que são avaliados
emotivamente, isto é, em último termo, não sistematizável de maneira matematica-
mente perfeita, porque a quantidade é mais simples, abstrata e manejável, calculável,
enquanto a qualidade é mais rica, complexa e autorreprogramável e, portanto, não
predizível, improvável e irrepetível na lógica da complexidade).
O certo é que o “campo político” recebe o impacto nutriente do “campo eco-
nômico”, ou melhor, de muitos “campos materiais” (quero dizer com isso, campos
que fazem referência à produção, reprodução e desenvolvimento da vida huma-
na em comunidade, em último termo, de toda a humanidade).476 Estes campos,
como o asteroide interespacial que impacta o “campo magnético” do sistema solar,
interconectam-se, mas desde o ponto de vista do campo político, este subsume
elementos do campo econômico como políticos (o asteroide se “solariza”) e já não
como econômicos. Nasce assim um âmbito (um “subcampo”) da política econômica;
de outra maneira, nasce do exercício diferenciado e delegado do poder político
sobre o campo econômico desde o lugar da intersecção com a política. O Estado,
por exemplo, legisla sobre a tributação, sobre aduana, sobre a constituição das
empresas produtivas, sobre bancos, sobre o dinheiro de todo o país, etc. Todas
estas decisões econômicas são intervenções políticas que institucionalizam, de uma
maneira diferenciada, o campo econômico, sem o que o próprio campo econômico
não poderia existir. É bem sabido que, no Feudalismo, o domínio do senhor feudal
sobre um pequeno território exigia dos mercadores que pretendiam transitar por
seu solo pagar direitos alfandegários, o que impossibilitava o manejo sustentável do
mercado no “campo econômico”. Era uma exigência do campo econômico ampliar
o espaço do mercado; era necessário estender o território do Estado nascente. Pro-
moveu-se, então, um senhor feudal para que fosse constituído rei e, desta maneira,

476 Ver o expresso no capítulo 1 da minha Ética da Libertação (Dussel, 1998).

228
o campo econômico influenciou o campo político com o nascimento dos Estados
modernos europeus (manobra desnecessária na China, onde um extensíssimo ter-
ritório permitia facilmente as comunicações, mas, neste caso, o campo político por
meio do excessivo exercício da dominação política do imperador sobre as classes
comerciais – que, por isso, eram eunucos – limitou a expansão da classe burguesa,
sobredeterminando o campo econômico). Vemos, então, que ambos os campos
se cruzam, se determinam mutuamente, embora o sentido de tal determinação
seja diferente. Na política, a determinação econômica é material (dá o conteúdo, a
riqueza que possibilita a existência das mediações políticas); a determinação polí-
tica é prático-formal (vai dirigida a institucionalizar, por direito e com coerção, as
relações econômicas, criando-se as condições intersubjetivas necessárias: domínio
militar do território para o mercado, paz social, estabilidade das instituições para
o cumprimento de pactos, a conservação e uso do acumulado, etc.). Esta determi-
nação material é necessária, mas não suficiente.
A determinação política na econômica, por sua vez, é prático-formal; cria as
possibilidades prático-intersubjetivas para o desenvolvimento do campo econômico.
É uma determinação necessária, mas igualmente não suficiente.
Por isso, uma esfera institucional do campo político será o efeito do cruza-
mento de campos que denominarei materiais, e que, para simplificá-los (como
enormes mapas de milhares de outros mapas, sistemas ou campos) os catego-
rizarei em três momentos: a institucionalidade ecológica (relação comunidade
política-natureza), a econômica (relação da própria comunidade política consigo
mesma e com outras comunidades, através da produção, distribuição e consumo
de bens) e a instituição cultural (produção de todos os signos intracomunitários,
fruto de tradições históricas de cosmovisões, línguas, ciências, artes, em torno
de um “núcleo ético-mítico” – como analisava Paul Ricoeur –, com pluralidade
de posições, estruturas, grupos: um campo multicultural, aberto ao processo de
uma identidade plural e histórica). Isto determina a política ecológica, a política
econômica e a política cultural e muitas outras “políticas”, tantas quanto campos
de novos conteúdos materiais possam ir surgindo.

229
Esquema 21.01. Três dimensões da esfera material do político

Corporalidade viva 1. Subesfera ecológica


do cidadão a (natureza, seres vivos)
c

2. Subesfera econômica d 3. Subesfera cultural477


(produtos intercambiáveis) (construção simbólica)

Esclarecimentos ao Esquema 21.01: a: Relações do metabolismo da produção e reprodução da vida.


b: Ação transformativa da natureza (trabalho): produção tecnológica e intercâmbio prático das
mercadorias. c: A “natureza” se torna “cultura” pelo trabalho humano. d: Os bens produzidos (mer-
cadorias) são os instrumentos materiais da cultura; os momentos intencionais (língua, valores, es-
tética, etc.) são igualmente produtos de uma ação transformativa do cidadão.

2. “O social” e “o político”

[316] “O social” se distingue, para nós, de “o político”, assim como se distingue a


totalidade do campo político de um subcampo interno (uma “esfera”) determinado
pelo cruzamento de campos materiais (ecológico, econômico ou cultural). Quer
dizer, “o social” é, num segundo sentido, um momento de “o político”, fruto da pre-
sença de outros campos não políticos, produzindo, assim, um subcampo político
(e subsistemas ou esferas institucionais), efeito da intersecção com ditos campos
materiais.478 Haverá, então uma política “social”; isto é, a política social (desde o Es-
tado para o social; se cabe, “de cima para baixo”) se origina no subcampo político

477 No sentido alemão de Kultur, e não como o nível “cultural”, “espiritual”, artístico, literário.
Estes exemplos últimos são momentos da “cultura” como totalidade material e simbólica
(Dussel, 2004b).
478 Esta “esfera” ou subcampo comum pode ser ocupada com “o material” (movimentos sociais
ecológicos, econômicos, culturais, etc.), que “penetra” o campo político, guardando sempre
uma certa exterioridade (o social mais além do político: suas reivindicações sociais ante-
riores à sua manifestação como políticas); ou o “constitutivo” do social (e, neste caso, não
é um movimento político, mas um mero movimento social). Ademais, o “não-social” pode
ser um “momento” do campo político que não está determinado diretamente pelo material
(os momentos não materiais do Estado, em sentido restrito). Deve-se insistir que existe um
momento do social que não penetra no campo político (o material ou social não político
e, enquanto campos ecológico, econômico ou cultural, enquanto tais; é o abismo material
pressuposto do sujeito político, que conserva suas reivindicações estritamente sociais).

230
para intervir em tudo aquilo que está além do campo político (que são os momen-
tos não-políticos dos campos materiais),479 mas através das instituições políticas.
Que diferença haveria entre um “ator social” e um “ator político”? O “ator social”
pressiona (influencia) o campo político desde suas reivindicações próprias dos
campos materiais (sociais) e enquanto ainda não tenha tomado consciência ou não
tenha acreditado ser conveniente usar os meios institucionais do campo político;
é implicitamente político. É uma ação reivindicativa, de certa maneira pré-política,
ao menos para a consciência do agente (porque não se quer ou não se sabe como
atuar como agente político). O “ator político” poderá lutar por reivindicações sociais,
mas enquanto cidadão e exercendo conscientemente, desde sua situação de parti-
cipante, o poder político (como ação estratégica e dentro de instituições políticas
do Estado ampliado) enquanto ações políticas. É uma ação no campo político que
está determinada pelo social (pela “esfera” material da política) e que, de baixo para
cima, atua sobre o Estado (em sentido restrito)480 com consciência e meios políticos.
Mas, também pode agir de cima para baixo em relação à esfera ou subcampo social
– enquanto político e como Estado.

479 Para aclarar a metáfora matemática de conjunto, o Estado, no sentido restrito (segundo
veremos no § 22), é a “parte” da “totalidade” do campo político que tem uma instituciona-
lidade própria (e que influencia o social diretamente ou a partir de sua “esfera” material).
480 Falar de “o social” e da “política social” é tratar de uma relação “Estado-campos materiais”
(verticalidade para baixo: seria a correta “construção da justiça de cima”). “O social” dos
“movimentos sociais” é uma ação sobre o político (implicitamente política), sem plena insti-
tucionalidade e nem mediações políticas. Por isso, ao falar de “o civil” ou da “ação política
dos movimentos sociais” enquanto “sociedade civil” (verticalidade para cima) (ver § 22.3), se
trata de uma relação do determinado pelo social no Estado (em sentido ampliado, segundo
A. Gramsci) até o Estado (em sentido restrito): é a ação política dos movimentos sociais (que
eles chamam corretamente: a “construção do poder desde baixo”).

231
O Social

Esquema 21.02. O “social” e o “político”: cruzamento de campos

Campo Campo
econômico cultural

Campo
ecológico
Campo
político

Esclarecimentos ao Esquema 21.02: O “social” é o âmbito do campo político no qual se cruzam os


campos materiais (ecológico, econômico e cultural).

Por isso, e agora de maneira precisa, estrita e definida, o “social” não é o “ci-
vil”,481 nem o “político”. O civil e o político ocupam o campo público como deter-
minações próprias de dito campo, como dimensões institucionais do ator político.
O “social” (Heller, 1992, p. 9; 1988, p. 207-219 e p. 275-260),482 ao invés, surge
por determinação de outros campos, em princípio, que não são políticos, que ir-
rompem ou se apresentam no campo político.483 Trata-se da emergência no campo
político da esfera material da reprodução e crescimento da vida humana em co-
munidade, vale dizer, a esfera ecológico-econômico-cultural e seus corresponden-
tes agentes (isto é, grupos, estratos, classes, associações, próprias de cada campo
material enquanto são subsumidos no campo político). Mas, trata-se de condições
absolutas, sine qua non. Um sujeito político morto... de fome (um cidadão pobre
e deslocado) deixa de ser ator político, como é evidente. Aristóteles exigia uma
boa agricultura como condição para a vida da pólis. O campo político é cruzado e
cruza, então, por muitos campos e deve, desde um ponto de vista político, mane-
já-los a fim de que a comunidade possa realizar seus conteúdos práticos últimos (o
bem comum realizado com honesta pretensão de justiça, como veremos), para o
qual deve saber exercer o poder político sobre as esferas ecológica, econômica e cul-
tural, enquanto ação política. O “social” vem, assim, a determinar (materialmente

481 No segundo sentido (b) do § 20.3.


482 Sobre Heller, ver Dussel (2001, cap. 12, p. 243-278).
483 Seria o “civil” (a) no primeiro sentido, do Esquema 20.03.

232
ou por seu conteúdo) a, e a ser determinado (formal-praticamente ou procedimental
ou legitimamente) por instituições do campo político.
O campo econômico, por exemplo, sendo um dos momentos da esfera material,
ao cruzar-se com o campo político, recebe uma determinação propriamente políti-
ca. Assim, o Estado, em seu Poder Executivo desde uma Secretaria ou Ministério
do Trabalho, pode intervir no econômico; ou um sindicato pode fazer uma ma-
nifestação pública de protesto diante do Congresso para pressionar a anulação de
uma lei do trabalho. A dificuldade desta dupla determinação (do político sobre o
social, e vice-versa) foi inadequadamente observada por Hannah Arendt (1958,
p. 28ss; p. 41ss; 1965, p. 59ss e p. 141ss), já que tinha uma visão redutiva do político
e do material. Ao deixar o “social” fora do campo político ou do alcance da ação ou
instituição política, não percebeu que, dessa maneira, impossibilitava o exercício
do poder político, na organização do campo econômico e na previsão e resolução
dos conflitos sociais, o que constitui a condição e o conteúdo (“material” neste senti-
do) da vida política. Arendt tinha uma visão demasiadamente estreita da política e
verdadeiramente injustificável nos países periféricos, pós-coloniais, empobrecidos.
Se o ator político se encontra na miséria, como a maioria dos cidadãos dos países
do Sul do capitalismo global na atual etapa do Império484, mal se pode esperar
que cumpra com suas funções políticas de maneira adequada. O alimento, o de-
senvolvimento econômico e cultural, é para o sujeito vivente, na esfera material
da política, como a liberdade e a igualdade para o sujeito do consenso, na esfera
formal da política. Um desenvolvimento qualitativo suficiente da vida humana485
é indispensável para o desenvolvimento de um sistema democrático, e vice-versa.
Hannah Arendt faz a crítica à manipulação do social, da pobreza das massas
ou da miséria dos excluídos e tenta – embora não o consiga – justificar uma certa
visão do político, na qual a “constituição da liberdade” (depois de uma revolução,
concretamente a norte-americana ou a francesa) e a preservação de uma esfera
pública permitiria ao poder comunicativo não se debilitar, se fracionar ou, por últi-
mo, se perder na ambígua (para Arendt) luta em favor dos Sans-Culottes. Tenta de-
monstrar que a revolução norte-americana alcançou o fim de instituir uma ordem
de liberdade, porque não permitiu que o social entrasse na discussão, enquanto
que a revolução francesa foi enrolada por ter pretendido se apoiar na solução do
problema social. Como se pode ver, Arendt tem uma visão muito redutiva do que
seja a política. Em primeiro lugar, concedemos, a política é algo completamente
diferente da estrita luta social, e a felicidade política tem outra constituição prática
do que saciar a fome dos miseráveis:

484 Ver, mais adiante, na Crítica, § 29 desta Política da Libertação.


485 Ver a obra de Amartya Sen, em meu trabalho: “Princípios éticos e economia. Em torno da
posição de Amartya Sen” (Dussel, 2001, p. 127-144).

233
O postulado básico do sistema de distritos,486 soubesse-o ou não Jefferson, era que nin-
guém podia ser feliz se não participasse da felicidade pública, que ninguém podia ser
livre, se não experimentasse a liberdade pública, que ninguém, finalmente, podia ser
feliz ou livre se não participasse ou tivesse parte no poder público (Arendt, 1965, p.
255; 1988, p. 263).

Arendt percebe bem a felicidade, definida formalmente, como a felicidade na


participação da esfera pública. Contudo, tem especial cegueira para articular a ela
outra “felicidade” que, como repercussão subjetiva dos bens objetivos, materiais,
enquanto conteúdo satisfeito das necessidades, é também necessária para uma fe-
licidade política plena. Compara-se a experiência da revolução norte-americana
com a do povo britânico, que era totalmente passivo na esfera pública ou política e
que nunca havia podido ser um verdadeiro “ator político” em liberdade. Os simples
membros do Myflower puderam se comprometer em mútua confiança para criar
uma comunidade de iguais, sem autoridade nenhuma sobre eles e a partir do poder
que emanava das vontades dos participantes. Afirmavam direitos que ninguém
lhes havia concedido (como no caso do povo de Veneza que ganhava seu terreno à
Laguna) e que eram defendidos pela mesma comunidade política. “A esta liberda-
de – escreve Arendt – chamaram mais tarde direito que tem o cidadão de acessar
a esfera pública [impossível na Inglaterra, agora possível no território americano],
a participar do poder público” (Arendt, 1965, p. 127; 1988, p. 126).
[317] Arendt está, porém, consternada diante do fato de que a revolução fran-
cesa sucumbiu diante das exigências peremptórias, imediatas, no sentido da sobre-
vivência sem imediata consciência política das massas, no momento posterior aos
primeiros movimentos massivos revolucionários. Alguns demagogos exacerbaram
os anseios por justiça dos miseráveis e decapitaram, com o apoio das massas, seus
adversários políticos. Era um uso indevido do “social”:

Foi a necessidade, as necessidades peremptórias do povo, que desencadeou o terror e


que levou ao túmulo a Revolução. Robespierre sabia muito bem o que havia ocorrido, se
bem expressou a ideia (em seu último discurso), na forma de profecia: Somos chamados
a sucumbir porque na história da humanidade não soou ainda a hora de fundar a liberdade.
Não foi a conspiração de reis e tiranos – comenta Arendt –, mas a conspiração, muito
mais poderosa, da necessidade e da pobreza a que destruiu os esforços dos revolucio-
nários e evitou que soasse a hora histórica (Arendt, 1965, p. 60-61; 1988; p. 42).

Arendt acreditou que, na revolução norte-americana de 1776, não houve uma


exigência “social” –, esquecendo os quatrocentos mil escravos que havia no mo-
mento em que G. Washington lançou o processo da liberdade, esquecendo que

486 Arendt está se referindo ao primeiro nível, sob o condado ou município, onde pode ser
exercida uma democracia direta, comunicativa, cara a cara.

234
vivia da exploração dos seus afro-americanos – e, por isso, pôde chegar à constitutio
libertatis (fundação da liberdade). Confunde, assim, gravemente, a “manipulação”
da fome do povo em mãos de demagogos de turno, com a dignidade e gravidade
do problema “social”. O pior é o desprezo à importância do material (no sentido
de produção, reprodução e desenvolvimento da vida da comunidade, em vista da
felicidade, não somente pública, mas material, enquanto conteúdo de vida), que
é negação da condição absoluta de possibilidade da felicidade pública. Um cidadão
morto de fome dificilmente pode ser um participante pleno da comunidade políti-
ca. Arendt ataca o fundamento material da política:

Atrás das aparências existia uma realidade e esta realidade era biológica e não histórica487
[...]. A necessidade imperiosa que se nos faz patente na introspecção é o processo vital
que anima nossos corpos. [Esta] realidade [...] é o que, desde o século XVII, conven-
cionamos chamar a questão social, isto é, o que de modo mais exato poderíamos chamar
o fato da pobreza [...]. Sob esta necessidade, a multidão se lançou em apoio à revolução
francesa, inspirou-a, levou-a adiante e, chegado o dia, firmou sua sentença de morte
[...]. Quando estes se apresentaram na cena da política, a necessidade se apresentou com
eles e o resultado foi que o poder do antigo regime perdeu sua força e a nova república
nasceu sem vida; teve que sacrificar a liberdade [...] às urgências do próprio processo
vital [...]. Haviam sido abandonados [...] os fundamentos da liberdade aos direitos dos
Sans Culottes (Arendt, 1965, 9.59-60; 1988, p. 60-61).

Arendt coloca um falso dilema. Não se trata de ter que escolher entre liberdade
(as condições de validade e legitimidade, o formal no sentido ético e político da
maior importância488) e a justiça como luta contra a pobreza, o material (no sentido
indicado). É o falso dilema do liberalismo. O dilema contrário, também falso, é o
do materialismo ou marxismo standard: o que importa é o material (a justiça), o
formal (a liberdade) se deixa para depois. Já insistimos muito que é preciso articu-
lar entre o diferente e necessário simultaneamente na complexidade, para alcançar
o suficiente: a fundação da liberdade (condição absoluta da legitimidade e da “pre-
tensão política de justiça”489) é tão necessária quanto a erradicação da pobreza ou
da injustiça ecológica, econômica e cultural (o material).
Arendt está de acordo com J. Rawls à sua maneira. No “primeiro princípio”
rawlsiano se enuncia: “Cada pessoa há de ter um direito igual [...]”. Existe, então,
igualdade como ponto de partida. No “segundo princípio”, que é o material, o “so-

487 Aqui se pode ver uma lamentável confusão, já que a constituição biológica no ser humano é
inevitavelmente histórica (Dussel, 1998, cap. 1). Ellacuría (1991) insiste na existência huma-
na como estritamente biológica, e o biológico como momento constitutivo da historicidade
humana.
488 Ver em Ética (Dussel, 1998, cap. 2).
489 Ver mais adiante o § 28.

235
cial”, se enuncia: “As desigualdades sociais e econômicas haverão de ser conformadas
de algum modo [...]” (Rawls, 1978, cap. 2, § 11, p. 82). Quer dizer, no nível mate-
rial, que é o que determina o “social” como político, a “desigualdade” é o ponto de
partida aceito. Por que se aceita na “situação originária” material uma desigualdade
também originária? Isto já invalida todo ao argumento rawlsiano. No nível das
“liberdades básicas”, existe “igualdade”, e este momento tem prioridade sobre o
nível material:

Nos veremos obrigados a nos ocupar detidamente das condições sob as quais o valor
absoluto da liberdade em relação às vantagens sociais e econômicas [...] seria razoável [...].
O segundo princípio insiste em que cada pessoa se beneficie das desigualdades permis-
síveis dentro da estrutura básica (Rawls, 1978, cap. 2, § 11, p. 85-86).490

Ao assumir uma posição liberal, Rawls e Arendt, ao menos neste aspecto,


negam a dimensão política do material – o mesmo que para Jean Cohen e Andrew
Arato, como veremos, a respeito da civil –, ou é situado num segundo nível irre-
levante; um aspecto puramente axiológico, dos valores culturais.491 A pluralidade
valorativo-cultural ou religiosa deve ser “concepção permissível” (permissible) do
bem; existem, então, as não-permissíveis. Tal não seria somente uma “concepção”
diferente, mas um “sistema” ou práticas não permissíveis. A pergunta é: são permi-
tidas ações ou instituições contrárias ao sistema econômico capitalista? Este nível
material sobre o qual se tem cegueira é obviamente considerado como “natureza” e
acerca dele não pode haver dissidência. E se este sistema constituísse os cidadãos
do campo político como “desigualmente situados” desde o ponto de partida (não
distributivamente, mas enquanto produtores, o que condiciona suas “capacidades”
educativas492 e todas as demais), não somente no campo econômico, mas simples-

490 O pior, e já enfatizamos isso em outras obras, é que Rawls tem consciência de que “ninguém
merece uma maior capacidade natural nem tampouco um lugar inicial mais favorável na
sociedade” (1978, p. 86); quer dizer, ninguém merece “antes de nascer” ser rico. Este é
um efeito histórico-social. A consequência que Rawls deduz é falsa: “Contudo, isto não é
razão, com certeza [para Rawls, mas não para um pobre], para ignorar e muito menos para
eliminar estas distinções” (1978, p. 86). De maneira que, aceitando-se o capitalismo como
ponto de partida (em Rawls, Arendt, Weber, Habermas, etc.), para Rawls, “natural” ou “um
lugar inicial mais favorável” (observe-se a assepsia nas palavras: “mais favorável”, nunca dirá:
“injusto”) é o mesmo.
491 Considere-se o famoso “overlapping consensus” (Rawls, 1993. Lect. 4; p. 131ss; 1996, p.
165ss) que indica o nível formal do acordo entre todos os cidadãos. As diferenças materiais
são secundárias e se situam somente “em torno de uma doutrina religiosa, filosófica ou moral
[...] compreensiva” (Lect. 5, § 7; p. 201; p. 235-236). Isto é o que denominamos “cegueira
econômica”.
492 Se alguém pode pagar dezenas de milhares de dólares para inscrever seus filhos nas melhores
universidades (“melhores” no standard do “mercado”), como Harvard, Yale, Princeton, etc.,

236
mente na determinação do sujeito humano como destituído, inculto, oprimido,
com uma desvantagem inicial definitiva (que somente vencem algumas exceções
às quais se recorre para justificar as vantagens dos que partem com maiores capa-
cidades sócio-históricas injustas)?
[318] Entendemos que o nível material da permanência e crescimento da vida
da comunidade política, que se encontra no cruzamento (é outro overlapping, mas
do campo político com os campos materiais socioeconômicos) deste campo com
os campos ecológico, econômico, cultural e outros que poderiam agregar-se à lista,
determinam o âmbito político que se denomina social. A questão social (como indica
Arendt) é uma questão política (contra Arendt), não enquanto ecológica, econômi-
ca ou cultural, mas enquanto política. O “social” ou a esfera material (pluralidade
de campos, como plural é o campo dos valores materiais de Rawls ou Weber) da
política é exatamente a consideração na ação estratégica, nas instituições e nos
princípios políticos de todos aqueles campos e sistemas493 que a história inventou
para o que indicamos frequentemente como permanência e crescimento da vida
da comunidade política que subjetivamente tem o efeito positivo da felicidade po-
lítica e objetivamente a riqueza que permite cumprir as exigências de uma vida
humana politicamente desenvolvida. As condições materiais são constitutivas da
corporalidade do cidadão: sem comida (e sem agricultura), não há vida política.
O erro de Arendt diante da manipulação dos demagogos, e por sua muito parcial
visão de Marx (a quem nunca estudou seriamente), foi confundir o uso antipolítico
da questão social da inevitável e necessária exigência da justiça, que deve erradi-
car a pobreza, como condição condicionante condicionada da liberdade. A justiça
(justice não right) material494 (ecológica, econômica, cultural, etc.) condiciona, por

terá “vantagens” definitivas na sociedade norte-americana injusta (formal e materialmente,


porque o pior educado não terá liberdade de aspirar a certos graus de privilégio nesta socieda-
de oligárquica vestida de roupagem liberal da “igualdade rawlsiana”). Perguntem a um black
american ou a um latino: contam com as mesmas “liberdades básicas”? No Estado de bem-estar
europeu, estas desvantagens são muito menores, primeiro, porque as melhores universidades
ou centros de estudos são públicos e praticamente gratuitos, e os filhos das classes “mais desfa-
vorecidas” têm quase as mesmas possibilidades (embora o filho da classe média continue tendo
vantagens sobre os da classe operária, mesmo na Suécia, Noruega ou Dinamarca).
493 O campo econômico (no sentido modificado que atribuímos à categoria de Bourdieu) está
sempre determinado por algum sistema econômico (no sentido próximo ao de N. Luhmann).
Assim, o campo econômico da humanidade presente tem um sistema dominante e que se
globaliza terminalmente, o capitalismo, mas sobrevivem outros sistemas tradicionais ou
estão se originando, obscuros e invisíveis aos observadores apressados na prisão do óbvio
vigente, outros novos que serão os dominantes no futuro. O socialismo deixou de ser esta
esperança, mas das suas cinzas e dos fracassos e efeitos negativos do capitalismo globali-
zante surgem gérmens de futuras alternativas.
494 A. MacIntyre, em seu Justiça de Quem? Qual Racionalidade? (1988), chama a atenção aos
liberais (cap. VII), ao mesmo tempo que à Ilustração escocesa que culmina em Hume (cap.

237
seu conteúdo, a liberdade e a autonomia: sem vida suficientemente desenvolvida, o
sujeito corporal não pode ser livre495. A liberdade (Freedom como capacidade de es-
colher ou não escolher, isto ou aquilo, e em referência a suas mediações necessárias
para levar a cabo o escolhido, como liberdade negativa ou positiva) é uma condição
do procedimento normativo da reprodução e crescimento da vida da comunidade
política, sem a qual não é politicamente legítima.
Para resumir, uma vez começada a revolução industrial, em fins do século
XVIII, a luta social dos operários, os que sentiam em sua corporalidade viva os
efeitos negativos do capitalismo, organizaram associações e, por fim, sindicatos
(as trade unions, na Grã-Bretanha). Era uma ação inscrita no campo econômico,
em relação com a empresa. Mas, lentamente, suas exigências penetraram o campo
político da “sociedade civil”, já que o “movimento operário” começou a se estruturar
como força política para influenciar o ditame de leis em seu favor; por exemplo,
sobre a duração da jornada de trabalho ou sobre o direito de férias. Um terceiro
momento significou o aparecimento de um Labour Party, uma organização polí-
tica da “sociedade política” propriamente dita, que será continuada no continente
europeu pelos partidos social-democratas, com representantes no Parlamento. O
próprio Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels, historicamente não foi
outra coisa que uma proclamação de “grupos de opinião” dentro dos sindicatos (do
campo econômico) ou movimentos operários (políticos), nascentes organizações
ou partidos políticos operários. Não existia um tal “partido comunista”, no sentido
da Segunda ou Terceira Internacional. “O social” do sindicato econômico não é a
participação na “sociedade civil” como movimento não governamental de pressão
política, nem estes são um “partido político” na “sociedade política”.
Os partidos políticos (como no nazismo de Hitler, no fascismo da Itália de Mus-
solini, no peronismo de Juan D. Perón ou no PRI mexicano, guardando as enormes
distâncias) corporativistas incluem os sindicatos e outros movimentos sociais nas
fileiras do próprio partido político. O “partido” se transformou, assim, num “movi-
mento” ambíguo que transitava do campo social, do campo econômico, à sociedade
civil (que de fato anulava sua pluralidade) até a sociedade política. Por isso, tendia
a ser um “partido único”; na verdade, era um “aparato de Estado” de transmissão de
cima para baixo do exercício da dominação tirânica (nos fascismos do “centro”) ou do
poder hegemônico (nos populismos da periferia), segundo os casos.

XV-XVI), que se trata, em ambos os casos, de tradições particulares. É uma crítica ao for-
malismo anistórico, mas não é uma justificação contemporânea de uma concepção de justiça
por seus conteúdos materiais (incluindo a ecologia, a economia e também sim elementos
culturais).
495 Logicamente, poderia exercer iguais capacidades que alguém mais desenvolvido (por exemplo,
um cidadão pôde pagar a universidade de Harvard para realizar seus estudos e, o outro, é um
indígena numa redução rural que mal chegou a ler e escrever): empiricamente não são iguais.

238
A terceira dimensão dos “direitos humanos”, denominados com frequência di-
reitos sociais, também expressa a presença de novos desafios por parte do conjunto
de atores pertencentes a campos materiais, cujas novas necessidades não eram con-
sideradas pelo campo político tradicional. Deste modo, o campo político estende
sua fronteira e inclui agora, como políticas, demandas que, com anterioridade, eram
consideradas meramente como não-políticas, como meramente sociais. O nível ma-
terial aparece no campo político com reivindicações mais prementes, em especial
depois de 1989, pelos efeitos devastadores de um “capitalismo selvagem” sem alter-
nativas aparentes, pela doutrina da governabilidade de um neoliberalismo que não
considera para nada as exigências materiais dos países pós-coloniais, das classes
dominadas ou da marginalidade social, tudo isto devido à derrota dos regimes
do socialismo real, cujas demandas materiais não puderam ser levadas a cabo,
principalmente pela falta de um adequado aparato formal político que organi-
zasse a legitimidade democrática. Sem democracia as demandas sociais não podem
ser resolvidas a longo prazo: sem liberdade, não há justiça plena. Mas, sem que se
cumpram as demandas sociais não há, tampouco, democracia a longo prazo: sem
justiça, não há liberdade participativa. Ambas as esferas são necessárias e devem
se articular sem pretensão unilateral de serem última instância.

3. A subesfera ecológica

[319] Nos séculos XIX e XX, a humanidade descobriu os efeitos negativos dos
sistemas econômicos e a “questão social” consistiu principalmente na erradicação
da pobreza, como desigualdade material (pelo conteúdo) entre os seres humanos.
Esta descoberta seguirá vigente no século XXI, porque a desigualdade aumentou.
Mas, estará sobredeterminada por um novo descobrimento de dimensões ainda
mais catastróficas: a possibilidade real da próxima extinção da vida (não somente
a humana) sobre o planeta Terra. A biosfera está a perigo. Os efeitos negativos não-
-intencionais descomunais e sistêmicos do capitalismo, efeitos que constituem com
tal sistema um mesmo “pacote” inseparável, situa no centro da política a tomada de
decisões, com força coativa num “estado de direito” global, que permita (talvez já
seja tarde) a sobrevivência, não tanto das gerações atuais (que mal ou bem sobrevi-
verão, embora seja em piores condições), mas, especialmente, das “gerações futuras”.
Prontamente, a multidão de gerações vindouras, que deveriam ainda viver muitos
milênios, caso fossem tomadas responsavelmente as medidas necessárias, agradece-
rão à humanidade, e a seus políticos do século XXI, a possibilidade de suas vidas;
ou as galáxias (depois da extinção não improvável da humanidade) amaldiçoarão
(se puderem) a estas gerações presentes, que aniquilaram para sempre a vida e com
ela a espécie homo da face da Terra. Se os partidos que assumiram a questão social

239
foram as organizações políticas críticas por excelência dos séculos XIX e XX (par-
tidos social-democratas, comunistas, revolucionários, de esquerda, etc.), os partidos
“verdes” (quando descobrirem um diagnóstico suficientemente integral das origens
complexas do problema ecológico) serão os hegemônicos da consciência crítica polí-
tica, a partir do século XXI. A biopolítica se instalará como a dimensão central do
político, a médio e longo prazos (nos cem, mil, cinco mil próximos anos496).
O “campo político” contém subcampos e os sistemas políticos, subsistemas.
A dimensão ecológica os cruza e determina a todos eles, sendo a última instância
material, porque se trata nada menos do que da “questão da vida” (a quintessên-
cia da “questão social” e fundamento desta). A longo prazo, na sustentabilidade
do político, se encontra a necessária articulação com o “campo ecológico” e seus
“sistemas”, e os constitui como parte de seu responsável acionar estratégico e da
constituição de instituições políticas. Quer dizer, o ator político e as instituições
políticas deverão se ocupar cada vez de maneira mais premente desta dimensão
ecológica, porque é o momento em que, positivamente, acontece a produção, re-
produção e desenvolvimento da vida humana (conteúdo do princípio material da
política497) e, negativamente, se enfrenta ao evitar a extinção da vida no planeta
Terra498. Este momento, que parece óbvio, trivial, foi descoberto há pouco como
responsabilidade essencial da política, embora ninguém possa negar tratar-se da
condição absoluta de todo o resto. Quando um George W. Bush não assina os pro-
tocolos de Kyoto sobre ecologia, se manifesta a atual cegueira desta prioridade
relegada ao esquecimento. Filosoficamente, nunca na história da política (desde os
primeiros códigos legais mesopotâmicos), este aspecto havia exigido tão singular
importância. Um certo paradigma cultural e científico havia definido o território
da política (a natureza, a Terra) como um objeto do conhecimento e da ação, como
o que se compra ou se explora, como um bem dado, inesgotável e quase infinito,
e que podia ser usado inextinguivelmente. Serão marcos muito recentes de uma
mudança radical de “paradigma” da experiência humana e da ciência que nos per-
mitirão descobrir esta dimensão nova e, contudo, já definidora da política futura
de toda a humanidade.
Considerando que a vida é um fenômeno que cobre como que com uma fina e
vulnerável película a Terra, constituindo uma instável biosfera, o paradigma ne-
wtoniano-einsteiniano baseado na causalidade linear, que nasceu da Física e da

496 Se com o Neolítico começou, há mais de cinco mil anos, a destruição sistemática da biosfera
e se acelerou geometricamente desde há dois séculos com a revolução industrial, efeito do
capitalismo, os próximos cinco mil anos serão talvez os necessários para reverter os efeitos
negativos estruturais.
497 Ver, mais adiante, o § 26.
498 Podemos antecipar que é o momento originário da política enquanto crítica (ver na Crítica,
§ 42).

240
quantidade, deixou lugar a um novo paradigma, nascido da termodinâmica e da
Biologia, baseado em situações instáveis perto do caos, cujas bifurcações impedem
o cálculo de previsíveis fenômenos reversíveis, que estão agora situados em hierar-
quias estatísticas irreversíveis de crescente complexidade. É interessante que, em
obras estritamente epistemológicas, a “política” receba uma centralidade descon-
certante. O cientista, com novo paradigma, sabe que, sem a intervenção decidida
da política, o desastre já produzido pela ciência e pela economia (a “civilização
moderna”) não tem solução possível. Assim como a citada película da vida envol-
ve a Terra, da mesma maneira uma biopolítica planetária (que supõe organismos
políticos mundiais) poderá talvez salvar a vida no nosso planeta. S. Funtowicz e J.
Ravetz dizem:

A ciência evolui na medida em que for capaz de responder aos principais desafios de
cada época, mutáveis, através da história. A tarefa coletiva maior que hoje a humani-
dade enfrenta diz respeito aos problemas de risco ambiental global [ecológicos] e aos
da equidade entre os povos [econômicos] (2000, p. 23).

A resolução destes riscos exige consciência crescente de movimentos da socie-


dade civil, mas também, e em último termo, de decisões institucionais que possam
ter o respaldo do uso monopólico do exercício da coação legítima, para que sejam
cumpridas efetivamente. Sem cair em voluntarismos, a sobrevivência da humani-
dade depende, em boa medida, de consensos sobre uma clara política ecológica, que
deverá ser impulsionada colocando em questão sistemas econômicos e culturais
que justamente são a causa do desastre ecológico. O formalismo político (como o
liberalismo, o neoliberalismo, a teoria habermasiana do discurso) não tem cons-
ciência destas tarefas. Um certo ecologismo místico do tipo new age, menos ainda.
A tese de fundo é a seguinte: a política tradicional (desde os mesopotâmicos,
egípcios e gregos, até Rawls ou Habermas) parte de um mundo estável, repetível,
previsível, de uma ordem dada que é preciso respeitar ou dar-lhe permanência (tam-
bém o modelo de Newton ou de Einstein se baseava num tempo repetível, onde o
passado e o futuro eram assimiláveis). Uma política dos “conflitos” também tem
por objetivo o restabelecimento negociado da ordem; “ordem” com a qual se conta.
Neste parágrafo, queremos somente indicar o “lugar” da subesfera ecológica,
mas ainda não a convertendo num momento por excelência crítico, como o mostra-
remos mais adiante nos §§ 29 e 38. Na história da política, a subesfera ecológica não
pôde ser vista como uma responsabilidade política até recentemente. Por isso, tra-
taremos esta questão na Secção Segunda, na demonstração crítica da esfera material.

241
4. A subesfera econômica

[320] Os deuses e deusas que se referiam às tarefas agrícolas e comerciais eram


centrais nos panteões de todos os povos antigos, e a acumulação da riqueza era
considerada uma bênção desses deuses. Uma prolongada crise econômica produ-
zia quedas de reinos, de dinastias, e debilitava as comunidades políticas, permi-
tindo a ocupação de seu território por outros Estados. Havia sempre ciclos, “sete
vacas gordas e sete vacas magras”, onde uma política provisória na bonança guar-
dava reservas para as épocas difíceis. Esta subesfera foi sempre percebida como um
momento fundamental da política, razão pela qual os temas referentes à justiça
(material) se fazem presentes desde os primeiros códigos legais da Mesopotâmia
– que, no caso do Código de Hammurabi, foi, por exemplo, uma legislação estri-
tamente econômica, acerca da propriedade de bens, como a casa, o escravo, etc.,
que podia ser possuída não somente pelo pater famílias, mas também pela esposa
ou filhos. A estabilidade econômica era sinal da eficácia política. Impossível teria
sido a falange grega de Filipe e o começo do império helenístico de Alexandre sem
as minas do norte da Macedônia. A própria Modernidade europeia se inicia pela
expansão mercantil no oceano Atlântico, fenômeno econômico determinante de
muitos outros. A descoberta das minas de prata em Potosi, na atual Bolívia, e em
Zacatecas, no México (em torno de 1546), permitirá a hegemonia do império his-
pânico na Europa até a crise dos metais preciosos, em torno de 1620 – que signifi-
cará o surgimento do poder dos Países Baixos, em torno de Amsterdam, já não na
base da riqueza da prata, mas a partir do comércio. A abdicação de Carlos V, por
um endividamento excessivo, indica um mau manejo da subesfera econômica que
levou a Espanha à ruína – e, com ela, foi arrastada a América Latina até hoje. Se
Descartes e Spinoza moraram na próspera cidade de Amsterdam não deixa de ser
um condicionamento econômico de sua centralidade cultural. Na Modernidade
europeia, vimo-lo,499 as instituições políticas, em boa parte, se organizaram para
proteger a vigência de um sistema econômico que nascia com a própria Moderni-
dade: trata-se do colonialismo capitalista. Até o presente, no processo chamado
de globalização do mesmo sistema, como World-System, impacta todo o planeta.
Sua importância no campo político é essencial, não obstante os mais conhecidos
filósofos políticos não se ocupem do fenômeno. “Receitas” do FMI [NT: Fundo
Monetário Internacional] e do BM [NT: Banco Mundial] produzem crises políti-
cas de consequências imprevisíveis na Argentina, no Brasil ou no México.

499 Ver o tema já exposto desde Ginés de Sepúlveda (na parte histórica desta Política da Liber-
tação, desde [99], para incluir posteriormente Hobbes, Locke, Hume, etc.).

242
Esquema 21.03. O ator econômico e político
Instituições
econômicas
Ator produtor
campo econômico
econômico consumidor
d
a b c
Ator político cidadão campo político

Instituições
políticas

Queremos indicar, de nossa parte, a maneira como a ação estratégica e as insti-


tuições políticas determinam o campo econômico para conduzi-lo, sob o exercício
delegado do poder da comunidade política, ao cumprimento das exigências de
conteúdo (isto é, materiais), que, em último termo, deveria ser, subjetivamente, a
felicidade comum de todos os cidadãos e, objetivamente, a reprodução e cresci-
mento da vida humana em comunidade. Marx ensinou, com extrema clareza, a
maneira de descobrir como as estruturas econômicas determinam o político (o
marxismo standard posterior até aderiu a um certo economicismo antipolítico,
como mostrou e criticou Laclau). Alguns, como Schmitt, Arendt, Rawls ou Ha-
bermas, deixam de prestar atenção à questão. Outros, em troca, atribuindo ao
mercado (para eles, centro da vida econômica, sendo uma instância a mais dos
sistemas econômicos da história) ser um instrumento de “conhecimento” perfeito
(como no caso de F. Hayeck) ou de possuir uma tendência ao equilíbrio que não
haveria de ser perturbada, pensam que o político (o Estado) deve reduzir sua ação e
suas instituições ao mínimo, já que o mercado cumpre por si mesmo funções com-
plexas que é melhor não tocar (como R. Nozick), um laissez faire até ao extremo
utópico (anarquismo de direita). Observemos breve e indicativamente a questão.
O econômico tem uma relação produtiva (poiética, se recordamos os gregos)
com a natureza. É trabalho transformador da Terra. Tem, ademais, hábitos pró-
prios (tékhne), habilidade produtiva que, na Modernidade, mediante a ciência, al-
cança o nível de tecnologia. A economia é, então, e, em primeiro lugar, atividade
de fabricação. Mas, em segundo lugar, é uma relação entre dois termos: entre o
produtor, que objetiva o produto, e o necessitado, que deseja possuí-lo para con-
sumi-lo (subjetivá-lo). A relação sujeito produtivo-natureza é operação instrumen-
tal (“objetivação da subjetividade”, explicava Marx). A relação entre os que inter-
cambiam seus produtos para cumprir com as necessidades do outro é prática; e,

243
se cumpre com equidade e igualdade, é justa (justiça material).500 Termina num
momento que deixa de ser econômico: o consumo (“subjetivação da objetividade”,
dirá Marx) (apud Dussel, 1985, p. 40-43). A relação econômica é uma complexa
complementariedade entre sujeitos necessitados e produtivos: é uma relação práti-
co-produtiva.501 Pela divisão do trabalho exigida pelo desenvolvimento das técnicas
e pela diferenciação e aumento de necessidades, o trabalho se especializou. O pro-
dutor que produz com eficácia um produto, porque é especialista, deve intercam-
biá-lo por todos os outros produtos que necessita, mas não sabe produzir. Nascem,
assim, as perícias ou os ofícios na cidade neolítica. O “lugar” do intercâmbio dos
produtos, onde o produto se transforma em mercadoria, que os astecas chamavam
“tianguis”, no mundo mediterrâneo latino foi chamado de mercado. O mercado é,
então, uma instituição (não se crê que seja natural), e foi inventado pela necessidade
do intercâmbio. É uma antiga e indispensável instituição histórica. Desde o simples
mercado da aldeia neolítica mesopotâmica, até os mercados chineses, islâmicos,
bizantinos ou venezianos ou os posteriores do sistema-mundo, primeiro no Atlân-
tico Sul, com Sevilha, depois no Norte e, por último globalizado, se transformou
numa instituição intimamente ligada à política. O “espaço” é uma determinação
essencial da economia e da política. Toda comunidade política tem um “lugar”,
um território, que é protegido por seus exércitos. Este território é também, econo-
micamente, um mercado: o lugar onde os cidadãos podem efetivar com segurança
o intercâmbio entre os produtos de seus trabalhos específicos. A política, como o
Código de Hammurabi, regulará, dando legitimidade aos intercâmbios, com algu-
ma moeda comum (desde o cacau asteca até o papel moeda impresso pelos chine-
ses, desde o século VIII d.C.), inventando instrumentos de pagamento, de dívida,
de compromissos, legalmente arquivando contratos, etc. A presença do Estado é
essencial para a economia (seria o momento político da economia: a economia polí-
tica); mas a economia é igualmente essencial para o campo político (é o momento
econômico da política: a política econômica).
[321] Adam Smith, como Huang Tsung-hsi, na China,502 não concebe ainda
a economia política de uma maneira epistemologicamente autônoma, mas como
parte da gestão política do Estado. Efetivamente, o professor universitário de ética
filosófica503 dividia a exposição de suas preleções em quatro partes: a teologia na-
tural, a ética, a jurisprudência e o governo.504 No curso de Glasgow, de 1763-1764,
dividiu o último tema em quatro partes. Estudou assim: a justiça, o governo, as
receitas e a defesa militar, tudo concebido como um tratado de política econômica

500 Ver minha obra Filosofia da Produção (Dussel, 1984).


501 Ver em minha Filosofia da Libertação, 4.4: “Econômica” (Dussel, 1977).
502 Recordar o que se disse na parte histórica desta obra [76ss].
503 Ver o exposto nesta parte desta obra, em [159ss].
504 O quarto nível, o “governo”, é a política, para Smith.

244
mais que de economia – em nossa significação atual.505 Expressa claramente o
sentido da política econômica:

A economia política, considerada como um dos ramos da ciência do legislador506 ou do


estadista, se propõe a dois objetivos distintos: o primeiro, subministrar ao povo abundante
receita ou subsistência, ou, falando com mais propriedade, habilitar a seus indivíduos e
colocá-los em condições de conseguir por si mesmos ambas as coisas;507 o segundo, prover
o Estado ou República de rendas suficientes para os serviços públicos. Procurar realizar,
pois, ambos os fins, ou seja, enriquecer o soberano e o povo (Smith, 1984, p. 377).508

Observe-se, também, que a economia não era uma nova ciência recém-desco-
berta e, sim, que sua temática era concebida como parte da administração do Esta-
do, que ensinava os indivíduos a ter “abundante receita ou subsistência” para que o
próprio Estado obtivesse recursos para sua gestão (“prover [...] rendas suficientes”).
Ambas eram tarefas políticas e se complementavam. Por isso, estava pensando
mais na comunidade política como um todo do que no empresário privado isolado
(de maneira que sua exposição não é nem liberal e nem neoliberal, como é óbvio). O
sentido político de sua investigação é expresso nas primeiras linhas de sua famosa
obra, quando diz que: “o trabalho anual de toda nação (every nation) é o fundo que,
em princípio, provê de todas as coisas necessárias e convenientes para a vida (of life)
e que o país consome anualmente” (Smith, 1984, I.I, Introd., p. 3; 1985, p. 104).
O tema não é o aumento de lucro ou o valor de troca privado, mas a riqueza
material (o montante de valor de uso em referência à vida, à satisfação de necessi-
dades) de toda a nação. Preocupa-se que os membros da nação tenham “aptidão,
destreza e sensatez com o que geralmente se executa o trabalho” é importante para

505 Já indicamos, na parte histórica desta Política da Libertação [161ss], que Smith se ocupou
destas outras partes em sua obra clássica Uma investigação sobre a natureza e a causa da riqueza
das nações. A justiça (que se aproxima do sentido dos problemas econômicos como tal) ocupou
os Livros I e II da citada obra e, por isso, é a parte mais lida e citada; o governo, nos Livros III e
IV, que já é, como em Huang Tsung-hsi, uma explicação de política econômica; as receitas, no
Livro V, diretamente ligadas à subsistência do Estado enquanto tal; a defesa militar, no Livro
V, cap. I., parte I, mostra um Smith realista, longe dos tratados antigos: somente um exército
permanente e profissional vence as milícias dos Estados mais primitivos (tem já uma visão não
só europeia, mas imperial, colonialista). Esta obra, tida como a fundação da economia moder-
na como ciência, foi, na verdade, concebida como uma obra que estuda, desde o horizonte da
política, a economia (descrita nos dois primeiros livros de maneira excepcionalmente original
e oportuna para o sistema capitalista industrial em fase inicial).
506 Observe-se que a coloca na política como uma função do representante membro do parla-
mento.
507 O que interessa não é o enriquecimento do indivíduo como indivíduo, mas como membro
do todo social. A obra não se denomina: Uma investigação sobre a natureza e a origem das
lucros do empresário, mas, sobre a natureza e a riqueza das nações.
508 Uma investigação sobre a natureza... (L. IV, Introd.).

245
o maior abastecimento da comunidade política como um todo, o que se mede pela
proporção entre “produto-população” (1984, p. 3, 1985, p. 104).509 Quer dizer, o
autor de Uma investigação sobre a natureza e a origem das riquezas das nações tem a
perspectiva de um político e não de um economista. Está situado no campo político,
e, a partir deste, descreve o sistema econômico que se desenrola em seu tempo na
Europa e muito especialmente na Grã-Bretanha, enquanto deve ser gerenciado ou
dirigido para cumprir os fins estudados pela “ciência do legislador” ou “do estadista”
– quer dizer, a política. Adam Smith, filho de um alto empregado de aduanas (ofí-
cio que ele mesmo exercerá a partir de 1778), tem consciência de que a liberdade do
mercado deve ser permitida dentro das fronteiras do Estado, mas que, nas relações
entre Estados, deve-se intervir politicamente da maneira mais sábia possível para
cumprir com os interesses da acumulação de riqueza para a nação. Um protecio-
nismo consciente orienta sua investigação a favor da indústria inglesa nascente
(textos que seria bom que fossem lidos por estadistas e economistas dos países
pós-coloniais periféricos, nestes inícios do século XXI, para deixar de cumprir de
modo submisso “receitas” de neoliberais que usam Smith contra Smith).
Realmente, o Livro I da clássica obra trata, de maneira genial e sintética, a
temática própria da futura ciência econômica. Deixa entrever uma visão clara do
capitalismo industrial nascente – não tendo ainda superado a competição chine-
sa, que se encontrava em situação análoga510. Em sua primeira nota de rodapé,
refere-se a Mandeville, em sua Fábula das abelhas, onde indica a importância da
“divisão do trabalho”, mas sem esquecer que, definitivamente, o tema que interes-
sava a Mandeville era o da construção da riqueza pública (tema político), não atra-
vés de uma visão moralizante (as virtudes já desgastadas pela hipocrisia de uma
aristocracia latifundiária), mas através de um eficiente cumprimento do “próprio
interesse”.511 A política de Smith tinha sua descrição econômica, já que as ações no
campo econômico (descritas com tanta originalidade por Smith nos dois primei-
ros livros da obra que comentamos), as ações dos atores econômicos da produção,
distribuição e intercâmbio, embora “não entrem em suas intenções”, isto é, embora
não tivessem consciência plena de suas consequências, “não implica mal algum

509 Como é evidente, a riqueza é proporcional ou relativa aos bens que cada cidadão possa con-
sumir ou utilizar para cumprir seus fins, ao que é necessário agregar que uma nação nume-
rosa, além disso, tem maior riqueza absoluta. Hoje, segundo os resultados do Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), Noruega, Canadá ou Suécia têm mais
riqueza relativa (que é a que vive em concreto o cidadão) que a riqueza absoluta de Estados
Unidos ou China. Para Smith, as civilizações urbanas industriais europeias tinham maior
riqueza (em ambos os sentidos indicados) que os povos “selvagens” (como ele os denomina
eurocentricamente) dispersos, nômades.
510 Ver o escrito na parte histórica desta Política da Libertação [152].
511 Ver o que já comentamos na parte histórica desta obra [162ss].

246
para a sociedade512 que tal fim não entre a formar parte de seus propósitos, pois, ao
perseguir seu próprio interesse, promove o da sociedade513 de maneira mais efetiva
do que se isto entrasse em seus propósitos” (Smith, 1984, I, IV, cap. II, p. 402). E,
sendo sua perspectiva política, e não econômica, reflete dizendo que “não são muitas
as coisas boas que vemos executadas por aqueles que presumem servir somente o
interesse público” (1984, p. 402). Smith mostra, então, que a intenção econômica do
próprio interesse deve ser admitida pelo político e, por isso, não deve “conceder
monopólio no mercado doméstico a qualquer espécie de indústria”, porque o “gover-
nante514 que tentasse dirigir aos particulares em relação à forma de empregar seus
respectivos capitais, tomaria a seu encargo uma empresa impossível e se arrogaria
uma autoridade que não pode ser confiada prudentemente nem a uma só pessoa,
nem a um senado ou conselho” (1984, p. 402).
Mas não podemos nos equivocar. O Estado de Smith intervém em todos os
outros níveis da economia, protegendo monopolicamente o mercado interno dos
mercados externos. Trata-se de um intervencionismo nacionalista perfeitamente
explicável no capitalismo nascente no território de um Estado.515
Assim, por exemplo, a “divisão do trabalho” se encontra determinada “pela
extensão do mercado” (Smith, L. I, cap. III; p. 20): quanto maior é uma popula-
ção, maior divisão, mas a mais profunda divisão do trabalho é determinada pelo

512 Que é o que interessa ao político Smith.


513 Que é novamente o que importa a Smith.
514 Observe-se, uma vez mais, que esta é a posição do observador Smith e a partir de onde
escreve a obra: trata-se de um trado político sobre a gestão do econômico.
515 Em pleno século XX, por exemplo, na América Latina, desde 1930, quando o capitalismo
industrial começava seus primeiros passos um século e meio depois dos países “centrais”, é
preciso tomar seriamente em consideração as regras de protecionismo que Smith descobria
para a Grã-Bretanha do final do século XVIII. A alienação mental dos políticos da peri-
feria (como Carlos Salinas, Menem, Cardoso, etc.) consiste em aplicar as “receitas” que o
capitalismo central inventa para um capitalismo periférico onde, em nome da “liberdade do
mercado” (mundial) se destroem as possibilidades de uma acumulação e desenvolvimento
de uma estrutura econômica pós-colonial, periférica e subdesenvolvida industrialmente.
Aceitar ditas “receitas” de “liberdade de mercado mundial” é suicidar-se. Smith estava longe
de tal irresponsabilidade política. Por isso, gostava de trabalhar nas “aduanas”: o lugar de
fronteira entre o mercado interno (que é o abstrato) e o mercado mundial (que é o concreto)
(Cf. Dussel, 1985, p. 330ss). Marx escreve: “Assim como o mercado [...] se divide em home
market e foreign market [...], o mercado mundial não é somente mercado interno em relação
a todos os foreign markets que existem como abstração dele e, sim, [que é], ao mesmo tem-
po, o mercado interno de todos os foreign markets como partes componentes, por sua vez,
do home market” (Grundrisse, Marx, 1974, p. 139; 1971, I, p. 173). Quer dizer, o mercado
mundial é o todo em cujo interior existem todos os home markets (que têm os outros como
foreign markets). Mas também os home markets são partes no interior do mercado mundial
(por serem a totalidade de todos os mercados, incluindo seu interior home market). Os home
markets são “abstratos” porque “abstraem” o concreto real: o mercado mundial.

247
mercado mundial. Smith, como teórico da política do Estado, não deixa nunca de
pensar no horizonte macro, mundial.
A “política na Europa” comete muitos erros, como quando restringe a competi-
ção entre ofícios ou fixa seu número ou limita a circulação do capital e do trabalho
em cada nação (Cap. X, parte II; p. 115). Tanto os grandes tratados da “renda da
terra” (Cap. XI, p. 140ss), como os temas do Livro II (sobre o “emprego do capital”,
“sobre o dinheiro”, sobre o “empréstimo a juros”) (L. II, p. 250ss), são expostos
sempre para tirar conclusões quanto ao manejo público do aspecto econômico tra-
tado em vista de uma política estatal, isto é, “tanto na atividade econômica do país,
como no produto anual da terra e do trabalho da nação” (L. II, p. 251).
[322] Deixando já a descrição do sistema econômico capitalista quando cruza
o campo político, mas tratado desde a perspectiva política, aborda agora (nos Livros
III a V) o governo propriamente dito, as receitas do Estado (sem as quais as insti-
tuições políticas não têm nenhuma viabilidade) e a defesa militar. Como se pode
observar, são problemas políticos.
“A atividade comercial mais eminente de toda sociedade civilizada é a que tem
lugar entre os habitantes da cidade e os do campo” (L. III, cap. I, p. 339),516 embora
esta atividade seja eminentemente urbana. Mas, desde uma visão macro, o “sistema
mercantil” é muito mais complexo e parte da acumulação da riqueza de um país,
que não é somente dinheiro, nem ouro, nem prata. Neste sentido, opina Smith
desde uma posição industrialista, que “o descobrimento da América não enrique-
ceu a Europa em razão da importância de ouro e prata” (L. IV, cap. I, p. 394). A
política para acumular riqueza real, industrial então, se baseia nas “restrições im-
postas à introdução daquelas mercadorias estrangeiras que podem ser produzidas
no país” (Cap. II, p. 399). O aparente campeão da liberdade do mercado escreve:

Fazendo uso de restrições – mediante direitos de aduana ou proibindo em absoluto


a introdução de têxteis estrangeiros que podem ser produzidos no país – se assegura
um certo monopólio do mercado interior à indústria nacional dedicada a produzir estes
artigos [...]. É seguro e evidente que este monopólio do mercado interior constitui um
grande incentivo para aquelas indústrias particulares que o desfrutam, deslocando para
aquele destino uma maior proporção do capital e do trabalho do país que, de outro
modo, teria se deslocado (Cap. II, p. 399).

Estamos, então, de cheio, no campo político, naquela subesfera material da polí-


tica econômica. Por isso, continua Smith:

516 Cabe assinalar que a edição da obra de Smith de ampla difusão em Inglês (Penguin Books)
traz quatro capítulos do Livro III e elimina os Livros IV e V. Isto, evidentemente, produz
uma falsa interpretação da intenção política da obra e a transforma em exclusivamente eco-
nômica. É da mesma maneira como, frequentemente, não se publica a segunda parte do
Leviatã, de Hobbes e o Primeiro Trado do Governo Civil, de Locke.

248
O segundo procedimento [político] que utiliza o sistema mercantil para aumentar
a quantidade de ouro e de prata consiste em estabelecer restrições extraordinárias517
sobre a introdução de quase todos os têxteis procedentes de países com os quais se
supõe que a balança do comércio seja desfavorável. Como consequência deste princípio,
podem ser introduzidos na Grã-Bretanha os têxteis finos da Silésia, mas de nenhum
modo tecidos de cambraia e nem os lenços da França (Cap. III, p. 418).

O político que busca a racionalidade estratégica, na luta para enriquecer seu pró-
prio país, descobre que também se pode pagar “luvas à exportação” para incluir uma
balança comercial favorável (Cap. V, p. 448ss). Igualmente, pode haver “tratados de
comércio” (Cap. VI, p. 484ss) e “colônias” (Cap. VII, p. 495-570),518 mas sempre e
quando se consiga mais benefícios que custos, e isto não está assegurado a priori.
O Livro V é dedicado propriamente às finanças do Estado; quer dizer, o sistema
econômico vertido em benefício das instituições públicas da sociedade política
que, como toda instituição, tem uma materialidade que necessita ser resolvida.
Em primeiro lugar, é preciso saber em que se gastam os recursos (capítulo 1); em
segundo lugar, quais são as fontes donde procedem os ingressos (capítulo 2); em
terceiro lugar, como se manejam as dívidas públicas (capítulo 3). Sobre todos estes
temas, Smith mostra ter o sentido comum de um escocês no ethos do nascente in-
dustrialismo, que sabe que um Estado deve ser realista:

Se o projeto não pode ser levado a bom termo, deve ser abandonado. Se, com relação a
algumas das províncias do Império,519 não existe maneiras de fazê-las contribuir para

517 Novamente, fica evidenciado o intervencionismo claro e decidido daquele teórico do capi-
talismo industrial nascente. Não foi, porventura, nascente o capitalismo industrial pós-co-
lonial periférico no século XX? E não foram atacados os governos populares nacionalistas
(de L. Cárdenas, G. Vargas, D. J. Perón e, hoje, de Kirchner, Lula ou Hugo Chávez) de
ditaduras por aplicar um protecionismo smithiano? O mercantilismo liberal foi protecio-
nista e nacionalista em sua origem, como método monopólico, na concorrência de outras
potências europeias, mas em sua etapa neoliberal acusa de serem ditaduras antidemocrá-
ticas contra a liberdade de comércio aos governos dos países periféricos que quiseram usar
uma sã proteção de seus mercados. O pior, neste caso, são as elites periféricas, educadas em
escolas de economia ou de “governo” dos países centrais (em especial, dos Estados Unidos),
que repetem as posições teórico-políticas neoliberais, que são ideologia ad hoc, para penetrar
e destruir as débeis economias periféricas pós-coloniais.
518 Este tratado é o mais longo, depois do das “rendas da terra”. Este ponto mereceria um tra-
tamento especial, para descobrir o eurocentrismo racista e o capitalismo cínico de Smith,
onde as colônias são tratadas como um assunto meramente econômico em vista do enri-
quecimento da Grã-Bretanha, não demonstrando nenhum interesse humanitário por seu
objeto de estudo.
519 Está publicando a obra no momento em que se organizava o processo da emancipação das
colônias da Nova Inglaterra.

249
a conservação do mesmo em sua totalidade, já que é tempo de se libertar dos custos de
defendê-las (Cap. III, p. 843).520

Com efeito, o Estado necessita entradas para gastos estratégicos inevitáveis. A


primeira delas, para “os gastos de defesa” (Cap. I, parte I, p. 614), bem mais que
Maquiavel, embora menos que Clausewitz, Smith tem um sentido político-econô-
mico da guerra: “A aparição das armas de fogo que, à primeira vista, parecia ser tão
perniciosa, é, na verdade, favorável, tanto para a segurança como para a permanên-
cia da civilização” (Cap. I, parte I, p. 628). A “civilização”, evidentemente, é a euro-
peia, e os povos “bárbaros e selvagens” (como os coloniais periféricos) não podem
resistir a seu ímpeto, porque “na guerra moderna os grandes gastos que ocasionam
as armas de fogo proporcionam uma vantagem evidente à nação que se encontra
em melhores condições de suportá-los” (Cap. I, parte I, p. 628). Não se pode pedir
a Smith que seja crítico diante do seu trivial colonialismo metropolitano.
Há efetivamente muitos outros gastos, tais como “os gastos de justiça” (Cap. I,
parte II, p. 628ss),521 as “obras públicas e instituições públicas que facilitam o co-
mércio na sociedade” (art. 1, p. 660ss).522 Tudo nos recorda o motivo da criação do
Estado moderno como grande território unificado (contra o divisionismo feudal).
Sendo que se trata de produzir mercadorias e comercializar ditos produtos: “Para
conseguir que este produto seja o maior e valioso possível,523 é necessário abrir um
mercado o mais extenso possível e, portanto, estabelecer as comunicações mais
livres, fáceis e baratas entre as diferentes regiões do país” (art. 1, p. 645).524 Entre
estes gastos, estão a educação da juventude em universidades (art. 1, p. 671), o
fomento das artes, do culto, da promoção da dignidade do soberano, etc.

520 Este texto, em seu conteúdo, é tido em conta por Hegel, que mostra que Inglaterra com-
preendeu que escravos, assim como as colônias, é melhor emancipar do que mantê-los sob
o domínio que produz custos inúteis. Neste momento, Iturbide emancipa o México para
entrar numa dependência, já programada pelas potências centrais, da qual não se livrou
ainda no século XXI.
521 “O segundo dever do soberano [...] consiste em proteger [...] os membros da sociedade contra
as injustiças [...] ou seja, o dever de estabelecer uma reta administração da justiça” (parte II;
p. 628ss).
522 “Em primeiro lugar, boas estradas, canais navegáveis, pontes, portos, etc.” (art. 1; p. 640ss)
A cunhagem de moedas, o correio, etc.
523 De novo, Smith não está pensando no empresário individual, mas em toda a nação. Trata-se
de uma política econômica.
524 Se entenderá porque no começo da nossa Filosofia da Libertação, no prólogo sobre “Geo-
política e filosofia”, escrevíamos, em 1975: “Falamos do aspecto político, o que compreende
todos os espaços, os físicos existenciais, dentro das fronteiras do mercado econômico no qual
se exerce o poder sob o controle dos exércitos” (§ 1.1.1.1). Estamos neste espaço e o seguimos
sofrendo (claro que hoje, 2005, não tão sangrentamente como no Iraque ou entre os pales-
tinos junto a Israel).

250
A pergunta que segue é: quais são as fontes que originarão os fundos para tais
dispêndios? Smith vai percorrendo uma a uma as possibilidades: um banco do Es-
tado, o correio pago, o arrendamento das terras públicas, e outras possíveis, mas,
ao final, são os impostos a origem do necessário para os gastos públicos (Cap. II,
p. 719ss), que Smith estuda em detalhe em suas modalidades e montantes. Por
último, trata a questão das dívidas públicas que são contraídas em grande quanti-
dade e imprudentemente em tempos de guerra.
Temos, assim, o primeiro tratado político sobre o controle do sistema econômi-
co a partir dos interesses da comunidade política como um todo e como exercício
do poder no campo político, com tão original exposição das estruturas econômicas
(em seus primeiros livros, em especial) que gestará a nova ciência econômica – em-
bora não fosse seu propósito direto. É uma análise clássica da política burguesa, na
época da Modernidade madura do capitalismo industrial.
[323] Na Alemanha, ao contrário, os pensadores projetam melhor uma “política
racional”, com certos caracteres utópicos, sem verdadeira experiência empírica –
como no caso de Smith. Certamente se descobre a importância do econômico para
o político, mas se passa a uma proposta onde falta factibilidade. Neste sentido, já
expusemos525 as reflexões políticas de J. G. Fichte sobre a economia, em sua obra
O Estado comercial fechado. Nosso filósofo vê a desvantagem de um país indus-
trialmente atrasado como a Alemanha e deseja criar também, como propunha
Smith, um certo monopólio sobre o mercado interno. Mas Fichte passa os limites
do possível e imagina um Estado totalmente isolado cujo mercado, totalmente
protegido, seria absolutamente autorreferente, sem necessidade de qualquer outro.
Mereceria um comentário especial. Queremos somente assinalar que, em alguns
casos, propôs certas soluções institucionais que, de fato, foram sendo implementa-
das posteriormente. Para evitar um intercâmbio desigual entre países mais adian-
tados e outros mais atrasados (na terminologia da época), Fichte propõe que, ao
vender ao estrangeiro, o produtor entregue ao Estado seu produto, recebendo em
“dinheiro nacional” o preço do mesmo e o Estado obtendo em “moeda mundial”
o pagamento, para poder com este “dinheiro mundial”, por sua vez, comprar no
exterior os produtos necessários para a produção interna, que devem ser pagos
ao Estado em “dinheiro nacional” pelo produtor que o necessita (L. III, Cap. VI;
1991, p. 143-145; Fichte, 1971, III, p. 495-498).526 Fichte é, em muitos aspectos,
o pai do pensamento crítico econômico posterior que desconstrói, desde um ideal
racional, as anomalias empíricas de uma economia que não resiste à competição
daqueles que tenham alguma vantagem antiga.

525 Na parte histórica desta Política da Libertação [181-183].


526 O mecanismo que Fichte propõe é um tipo de “controle de divisas”. Na Argentina, na etapa
populista a partir de 1946, se organizou o “Instituto de Promoção do Intercâmbio” (IAPI)
que efetuava exatamente o projeto fichteano (Cf. Perón, 1973, p. 143).

251
Hegel, por sua vez, em Berna, quando era um pobre preceptor, leu a obra do
presbiterano escocês e fez talvez a primeira tradução filosófica alemã da temática
– já trabalhada filosoficamente pelo próprio Smith, num primeiro nível. Hegel de-
termina o sujeito dentro do campo econômico, considerando as diversas maneiras
de se situar a subjetividade em diferentes campos práticos:

No direito, o tema é a pessoa; desde o ponto de vista moral, é o sujeito; na família, é o


membro dela; na sociedade civil [ou burguesa: bürgerlichen], em geral, é o cidadão (Bür-
ger) (como burguês527). E aqui [o consideramos], desde o ponto de vista da necessidade
(Bedürfnisse) (Hegel, 1971, VIII, p. 348).528

O cidadão, enquanto membro da sociedade civil, é ao mesmo tempo, enquanto


vivente necessitado, participante do campo político (como cidadão) e econômico
(como necessitado). O cruzamento do material econômico e a formalidade política
é vivido de maneira contraditória na sociedade civil, que é ainda um “Estado externo”
(äusseren Staat):

O fim egoísta [do cidadão] em sua realização529 [...] funda um sistema de dependência
recíproca, onde a subsistência e o bem-estar do singular530 e a subsistência de uma as-
sistência jurídica,531 o bem-estar (Wohl) e o direito (Recht), se articulam e nesta conexão
se fundam e se asseguram mutuamente.532

Aqui podem ser vislumbradas as duas esferas que estamos pretendendo dis-
tinguir. O momento material do econômico, a satisfação do vivente, e o momento
formal do direito, a legitimidade do livre e autônomo. Duas esferas necessárias e
complementares.
Hegel, tendo meditado, além das posições de Smith, de Say, de Ricardo e ou-
tros muitos, sabe descobrir o próprio do campo econômico desde o momento ne-
gativo por excelência (a-falta-de: necessidade de), seguindo nisso os manchesteria-
nos em sua teoria necessidade-trabalho-valor, partindo do horizonte determinado
pela “necessidade subjetiva que alcança objetividade, isto é, a satisfação: a) por
meio das coisas exteriores que se tem, por uma parte, por propriedade e, por outra,

527 Hegel escreve em francês: bourgeois.


528 Rechtsphilosophie, § 190. O “ser humano” se opõe aos simples animais enquanto os viventes
não-humanos têm instinto, mas somente o “ser humano” tem necessidades de safistações, que
ao ser cultural (zur Bildung) não estão determinadas como entre os viventes inferiores.
529 No Estado racional ou pleno, da terceira parte da terceira secção do tratado da Sittlichkeit,
(§§ 257ss) o indivíduo se liberta desta paixão egoísta e tende por um ethos superior ao bem
da Pátria, o Estado imperial (por exemplo, Grã-Bretanha, para Hegel).
530 Este é o aspecto material, econômico.
531 Este é o aspecto formal, do direito.
532 Rechtsphilosophie, § 183.

252
por produtos das necessidades ou da vontade de outros, obtidos b) pela atividade e
o trabalho como mediação entre os dois termos” (§ 189, p. 346).533
As necessidades humanas, que se dão no sistema (daí, o título da secção A: “O
sistema das necessidades”), porque são culturais, se desenvolvem, crescem e têm
um horizonte universal. Da mesma maneira, os meios de satisfação, que se dão
igualmente em sistema, pelo luxo se lançam ao infinito. Algo correlativo acontece
com a divisão do trabalho e suas modalidades, que aumenta com as necessidades
e os que as satisfazem:

Nesta dependência e nesta reciprocidade do trabalho e da satisfação de necessidades,


o apetite subjetivo se transforma na contribuição à satisfação das necessidades de to-
dos os outros (aller anderen). Há mediação do particular pelo universal, movimento
dialético que faz com que todos ganhem, produzindo e gozando para si, ganhando e
produzindo ao mesmo tempo para o gozo dos outros. A necessidade que se encontra
na articulação complexa do que todos dependem é, para cada um, a riqueza universal,
estável, que contém a possibilidade para si de participar por sua cultura e suas atitudes
(§ 199, p. 353).

Este fundo comum é cultural, mas é igualmente “capital” (Kapital) acumulado


por todos. É aqui onde Hegel, corrigindo Fichte, mas seguindo seus passos, fala
das famosas “classes”534 da sociedade civil, a agrícola, a industrial e a burocrática,
numa descrição certamente notável que, em suas notas centrais, expressa:

A totalidade do conjunto toma a figura de um organismo formado por sistemas parti-


culares de necessidades, de perícias e de trabalhos, de maneiras de satisfazer as neces-
sidades, de cultura teórica e prática, sistemas entre os quais os indivíduos são partici-
pantes, o que conforma classes diferentes (§ 201, p. 354).

A “classe substancial” ou agrícola e a “classe industrial” se encontram propria-


mente na esfera material, enquanto que a “classe universal”, a burocracia do Esta-
do, está liberada do trabalho produtivo. É interessante anotar que aqui Hegel não
se refere à classe burocrático-política prototípica da história universal (seculari-
zada e por exames e não por nobreza de nascimento), a dos mandarins da China.
Somente está pensando na nascente burocracia do Estado prussiano, da qual o
professor universitário de Berlim começava a fazer parte (como Beamte).
Sabendo, então, a importância do momento econômico, filósofos políticos do
nível de C. Schmitt, H. Arendt, M. Foucault, J. Derrida, e o próprio E. Laclau, não
mostram a articulação do poder, da ação estratégica, das instituições políticas, com

533 A necessidade na origem é um termo; a satisfação é outro termo; o trabalho é a mediação.


534 Classes “verticais” absolutamente diversas das que Marx proporá três decênios depois.

253
o campo econômico. Não se pode pensar que seja uma desatenção; é, novamente, e,
pelo contrário, uma cumplicidade teórica com o capitalismo suposto como natureza.
Cremos que, como sugestão da importância do exercício da política na subes-
fera econômica, o exposto seja suficiente para “situar” a problemática. É mais, o
funcionamento do sistema econômico capitalista sem uma intervenção favorável e
decisiva do exercício da coação monopólica do Estado moderno seria impossível. A
necessidade de extensos mercados exige construí-los e protegê-los. Para isso, são ne-
cessários exércitos, cujos soldados são cidadãos pobres que precisam de um salário.
O mal-estar das classes subalternas somente se aquieta com a intervenção de uma
polícia que responda ao governo. Cria-se, assim, uma cumplicidade inevitável. Em-
bora sempre exigindo ao Estado, à política, que restrinja suas intervenções, o sistema
capitalista precisa dele, mais ainda na época da globalização, como veremos mais
adiante. Toda a filosofia política moderna, desde o pensamento anglo-saxão, jus-
tificou a propriedade, a herança, a exigência do cumprimento dos contratos, o fato
“natural”, da competição do mercado e mais alguns princípios explícitos. O demais o
faz, “pelas costas dos atores”, a mão providente do deus que equilibra (outro dogma
da filosofia econômica moderna), graças ao mercado, as possíveis desigualdades,
“escrevendo direito por linhas tortas”, pelo menos assim reza o dogma imperante.
Retomando o fio condutor da nossa reflexão, podemos dizer que o exercício do
poder político, como unidade da pluralidade das vontades no consenso factível,
definiu na Modernidade como comunidade de referência, a burguesia. A inter-
venção política na economia é a favor dessa fração da população, que significará
dominação em relação a outros grupos excluídos. Tal é a posição em filosofia polí-
tica do liberalismo ou de Max Weber, entre muitos outros. Voltaremos sobre esta
subesfera material de maneira crítica mais adiante, no § 42 da Crítica desta Política
da Libertação.

5. A subesfera cultural
[324] Deveremos agora tratar do que poderia ser denominado como a política
cultural, da produção econômica dos bens materiais (sempre como conteúdo refe-
rido à “permanência e aumento da vida” humana), que nos falam da sobrevivência
da corporalidade humana, se passa inadvertidamente à produção de bens mate-
riais no nível simbólico e ainda imaginário (cujos “portadores”, porém, têm sempre
consistência física535). Repitamos a definição de classe dada por Hegel, mas agora
observemos sua expressão na Enciclopédia – texto posterior e mais especulativo:

535 O conteúdo cultural de um livro (o material, então), o que diz, é “portado” por um artefato físico
de papel, com tinta, impresso com máquinas, etc. O momento físico dos bens culturais deve
articular-se ao momento dos conteúdos simbólicos, valorativos de ditos bens. Cultura, então,
é uma subesfera material de bens simbólicos, que ademais tem uma dimensão instrumental

254
A divisão concreta da natureza536 geral, que é também um assunto geral, em quan-
tidades particulares determinadas [...] que têm uma peculiar base de subsistência, e
correspondentes a estes modos (Weisen) de trabalho, de necessidades e de meios para
sua satisfação, como também de fins e interesses, como também de cultura espiritual
(geistigen Bildung) e de hábito [...]. Os indivíduos participam [...] segundo o talento na-
tural, a capacidade, o arbítrio e a sorte. Enquanto pertencem à dita esfera determinada
e fixa, têm existência real que é essencialmente particular e nesta existência têm sua
eticidade (Sittlichkeit) como honesta e seu reconhecimento e sua honra (Hegel, 1971,
p. 322-323).537

É uma descrição muito complexa do que seja uma cultura. Em primeiro lugar,
é um “depósito” (Vermögen como capacidade-de) ligado ao presente e que foi fruto
da criação das comunidades passadas, que consiste num sistema de modo (cada
cultura é um modo diferente de produção, reprodução e desenvolvimento da vida
humana) de trabalho (técnicas específicas), de necessidades (dentro do horizonte
diferencial de cada cultura) e de meios de satisfação (arroz, o pão ou a tortilha são
momentos materiais e culturais do gosto). Estas mediações sistêmicas são assumi-
das pelos projetos dos membros e a partir dos quais fixam seus fins, também como
“cultura espiritual”. O interior (neuronal, intencional, inconsciente e consciente), o
espiritual, é a matéria de elaboração intra e intersubjetiva. A cultura, como totali-
dade dada, é uma “esfera determinada e fixa”, diferenciada (existem muitas culturas
e diferentes) que constitui em último termo o “costume”, o “hábito”, a “eticidade”,
a Sittlichkeit – termo hegeliano, com origem em Sitten: costume, prática, como
uma síntese, como uma totalidade concreta do direito e da moralidade –: Kultur,
cultura, onde cada membro se encontra “em casa”, onde tem reconhecimento e
honra dos seus e por cumprir as exigências do intersubjetivo, tradicional, “nosso”.
Evidentemente que esta totalidade inclui a língua, como a memória articulada e a
expressão acabada do todo concreto, histórico, espiritual, social, que, além disso, é
estrutura comunicacional e consensualmente como fundamento de legitimação.538

física (que são mercadorias no mercado capitalista). Ver uma descrição ampla do conteúdo
do conceito de cultura em Dussel (2004b). Ademais, num materialismo humanista, a vida
“interior” das atividades superiores do cérebro se dá neuronalmente e tem igualmente como
“portadores” células nervosas que fisicamente necessitam do concurso de impulsos elétricos,
encimas, e outros componentes biológicos.
536 Vermögen pode ser traduzido por “capacidade”, mas também como o que se conseguiu acu-
mular: com o ganho de trabalhos anteriores que permite contá-lo como ponto de partida que
dá “capacidade” para não partir do zero (como quem tem alimento acumulado para usá-lo
no começo da jornada). É o depósito dos trabalhos da humanidade anterior, das gerações
passadas.
537 Enzyklopedie, § 527.
538 Fala-se hoje de uma “ética” da interculturalidade. Não se compreende que a Ética da Li-
bertação (Dussel, 1998) seja esta ética. Os princípios universais da Ética da Libertação são

255
Ademais, e articulando “economia” com “cultura” (dois momentos materiais),
quando uma comunidade política tem maior suficiência econômica (mais riqueza:
wealth e não somente exchange value) pode produzir mais e melhores portadores
físicos de seus bens simbólicos e, com isso, a reprodução e desenvolvimento da
vida cultural alcança maior progresso. Os quatrocentos mil manuscritos de obras
filosóficas, matemáticas, médicas, literárias, jurídicas, teológicas das bibliotecas de
Samarcanda e Bukhara, em tempos de Avicena (Ibn Sina), nos falam do esplendor
do comércio islâmico entre China, o rio Indo e Bizâncio. Não existia o mesmo grau
de desenvolvimento cultural nos círculos de cientistas e, em geral, da comunidade
urbana do califado de Bagdá no século X d.C., que na subdesenvolvida civilização
europeia da época. Mas a cultura ilustrada de um sábio da Escola matemática de
Bagdá não era tampouco igual à de um camponês do vale do Eufrates (embora
este podia ter uma tradição popular milenar, maior que a que pudesse possuir um
membro de uma comunidade banto Zulu, no Sul da África ou na Patagônia em
seu tempo, ao menos em alguns aspectos).
O desenvolvimento cultural, evidentemente, determina materialmente (por
seus conteúdos simbólico-culturais) os cidadãos, em suas atitudes, na formação
democrática de sua vontade, na informação de sua razão discursiva ou argumen-
tativa, na tolerância, pela autoridade de seus sábios, pela austeridade de seus místi-
cos, etc. Diante de sujeitos mais cultos, o sistema político pode ser mais complexo,
a disciplina institucional pode acrescentar-se – igualmente, o grau de dominação,
é trivial. A igualdade dos direitos dos cidadãos (e que Amartya Sen redefine como
“capacidades” [capabilities]539), que a interpretação do liberalismo exige como ponto
de partida dos cidadãos depende, inevitável e inadvertidamente, entre outros mo-
mentos, também do desenvolvimento econômico da sociedade em seu conjunto e
do indivíduo, em particular.
[325] Enquanto momento da esfera material do exercício da política, a cultura
é o âmbito em que a vida humana como totalidade abarca conteúdos concretos,
históricos, intersubjetivos. O “mundo” – no sentido ontológico de Heidegger – é
sempre um “mundo cultural”. A cultura é a totalidade que o ser humano, como
espécie, foi construindo na natureza, fazendo nela seu lar (a oikía grega: uma
ecosfera cultural-humana na biosfera). Trata-se de uma igualdade entre “huma-
interculturais: toda cultura é um modo de reprodução da vida humana (a obrigação do res-
peito à dita vida é o primeiro princípio da ética intercultural). O consenso que os membros
têm do valor de sua cultura é sua legitimidade (segundo princípio da ética, como dever).
O fato de que a cultura seja factível (e a prova está em seu desenvolvimento sobre grandes
populações através dos séculos é a melhor demonstração que cumpriu com o princípio da
factibilidade). Não todas as culturas têm claramente expresso o quarto princípio: realizar
por dever a crítica da própria cultura a partir de suas vítimas. O mesmo pode ser dito dos
princípios quarto e quinto. Mas, em resumo, a Ética da Libertação é já a ética intercultural.
Pensar em princípios à maneira de Rawls, como momentos do overlapping consensus, é cair
no formalismo liberal que estamos criticando neste § 17.
539 Ver meu trabalho sobre Amartya Sen (Dussel, 2001, p. 127-144).

256
nismo = naturalismo” – como expressava Marx (1956, vol. 1 EB, p. 536; 1968,
p. 143).540 Sendo a cultura o modo da vida humana comunitária, a política tem,
então, responsabilidade quanto à preservação e desenvolvimento da identidade de
cada cultura em seu território. O Estado, como macroestrutura de factibilidade
do exercício do poder político, vem tomando consciência de que em seu solo há
muitas culturas (também nos países “centrais” ou metropolitanos) e, por isso, não
se poderá evitar o tratamento da questão do multiculturalismo em política. Se a
nação se refere a uma cultura, os Estados modernos nunca foram “nacionais” e,
sim, “multinacionais”. Por isso, falarei sempre de Estados particulares e nunca de
Estados nacionais. Quer dizer, enfrentamos uma boa quantidade de equívocos,
dos quais abordaremos indicativamente alguns e outros os exporemos de maneira
mais crítica no § 42.
Em primeiro lugar, surge a pergunta já habitual: qual é a última instância, a
subesfera econômica ou a cultural? É o falso dilema, não de Karl Marx, da infraes-
trutura econômica e da superestrutura ideológica. Tal não existe. Num materialismo
pensado ontológica e antropologicamente (que é o mesmo), economia e cultura,
como temos repetido até a exaustão, são momentos da esfera material (no sentido
de conteúdos referidos à vida humana). A cultura não é uma ideologia. A ideologia
pode ser um aspecto quase insignificante do mundo cultural. Além do mais, a
economia não é a última instância e, sim, antes a ecologia, mas nem ela é esse nível
fundamental, mas a própria vida humana: “Segundo a interpretação materialista
(materialistischen), o elemento determinante (bestimmende Moment), na última ins-
tância (letzter Instanz) na história é a produção e reprodução da vida imediata”.541
Não existe melhor expressão para rebater o marxismo standard: a “última ins-
tância” (ainda que pese ao pobre Althusser) não é nem a economia e nem sequer
a produção material, mas de maneira não mediada, a própria vida humana. Esta
expressão estrita nos manifesta que, sendo a cultura uma totalidade estrutural da
vida humana, como uma modalidade particular e sempre diferente, dos trabalhos
(não é o mesmo o agricultor que o pastor, o urbano neolítico que o de uma cultura
mercantil como a islâmica ou capitalista como a europeia moderna), das necessi-
dades, dos que as satisfazem (como alimento, mas também como obra de arte),
das produções teóricas (como a ciência e a tecnologia), práticas (como a economia
e a política), de hábitos (como o ethos calvinista tão diverso do neoconfuciano),
e o todo expressado linguisticamente e memorizado nas narrativas simbólicas,
míticas. Quer dizer, sendo a cultura o modo concreto da “produção e reprodução

540 Manuscrito III de 1844, XXXIX. Neste texto, Marx está pensando num “postulado”: o
comunismo. Em dito estado, logicamente possível, empiricamente impossível, se daria a iden-
tidade entre natureza e humanidade. Seria uma culturalização completa da Terra. Mas fora
do postulado. Toda cultura é já um começo da humanização da natureza.
541 Engels, A origem da família, Prólogo (Marx, 1956, XXI, p. 27). A última expressão afirma:
“[...] des unmittelbaren Lebens”. Unmittelbar significa “sem mediação alguma”.

257
da vida”, poderia muito bem ser considerada a última instância material. Neste
caso, a cultura subsumiria os momentos ecológicos, econômicos, políticos, teóricos
(científicos e ideológicos), técnicos (também tecnológicos), como momentos internos
de uma totalidade dentro da qual transcorre a existência humana. De maneira ne-
nhuma ela pode ser considerada como um momento supraestrutural – em último
caso, poderia ser aceito, e não de todo, em relação aos aspectos mais literários,
teóricos, ideológicos da cultura, mas que, desde já, não podemos aceitar como uma
definição suficiente de cultura.
É sabido, além do mais, que a totalidade concreta de costumes (Sittlichkeit) não
guarda uma coerência completa e, por isso, toda cultura tem igualmente momen-
tos subculturais internos – para não cair numa definição essencialista de cultura,
como identidade metafísica universal. Existem tensões, contradições, possibili-
dades de desenvolvimento. É uma estrutura sistêmico-orgânica vivente. Antônio
Gramsci tentou, com sentido, salvar o marxismo do dogmatismo simplista da teoria
(não de Marx) da determinação unilateral economicista.
[326] Em segundo lugar, e ao contrário do exemplo anterior, não se terá dado
uma definição exclusivamente “des-economizada” da esfera material da política, de
maneira que somente aparece como substantivo o nível dos valores culturais (entida-
des metafísicas de difícil definição), tendo caído numa cegueira particular em relação
a outras subesferas do âmbito material da política? De outra maneira, o material
é somente o cultural-valorativo e não o econômico? E isto, a fim de evitar que o
overlapping consensus coloque em questão o capitalismo que é considerado como um
campo totalmente estranho à questão da justiça formalmente considerada. John Rawls
é o melhor exemplo. Em sua obra O liberalismo político, explica que o overlapping
consensus não nega posições materiais, isto é, “doutrinas compreensivas razoáveis”:

Do que necessitamos, então, é uma definição de tais doutrinas. Têm três traços prin-
cipais. Um é que uma doutrina razoável (reasonable doctrine)542 é um exercício da razão
teórica: abrange os aspectos religiosos, filosóficos, morais [...]. Organiza e perfila valores
reconhecidos [...] e expressa uma compreensão inteligível do mundo [...]. Uma doutrina
compreensiva razoável se converte também num exercício da razão prática [e] pertence
a uma tradição intelectual e doutrinal (Rawls, 1999, p. 59).

Como se pode ver, este plural nível material ou substantivo (porque pode ter
diversidade de doutrinas compreensivas razoáveis, que de maneira magnânima
Rawls reconhece) sobre o que é possível desdobrar uma estrutura de consenso que
unifica formalmente os cidadãos, fica sempre circunscrito à inteligência teórica ou
prática, no nível dos valores, o que poderíamos denominar cultura em sentido res-

542 A expressão chama a atenção. A primeira pergunta seria: qual é o critério da razoabilidade
do razoável? Evidentemente, o liberalismo norte-americano, não creio que seja razoável o
hindu, islâmico ou chinês.

258
trito: o nível mental valorativo. Ficam claramente excluídas as subesferas ecológica,
econômica, tecnológica, etc. Neste ponto, Rawls coincide não somente com K.-O.
Apel ou J. Habermas543 – que poderiam ser considerados como assumindo uma
posição formalista neocontratual, no caso do primeiro, ou discursiva – mas, igual-
mente com Charles Taylor – que seria já a expressão da posição comunitarista.544
Para todos eles, os “valores” – como para M. Weber – compreendem exaustiva-
mente o nível material, não somente da ética, mas agora também da política. Esta
cegueira às outras esferas da política indica um novo tipo de idealismo, que capta o
capitalismo como a “natureza mesma das coisas”, isto é, o mercado é um momento
estrutural natural, não percebendo que se trata também de uma instituição, que,
por sua vez, é subsumida num sistema histórico muito particular (embora se glo-
balize545) e da qual é preciso dar conta na filosofia política.
Por último, parece que toda política cultural deveria, ao menos, se fazer a se-
guinte pergunta: o direito à preservação da própria cultura não é, por acaso, toda a
questão do direito à identidade como afirmação da própria vida? Perder a própria
cultura, a própria língua, a própria memória histórica, não seria como um suicídio
coletivo? A revolução burguesa, desde a inglesa com Cromwell até a francesa, não
impuseram em suas instituições educativas um novo currículo coerente com o
conteúdo da nova concepção política? A expulsão dos jesuítas, no século XVIII,
de toda América Latina, desde a decisão política de Pombal ou de Carlos III de
Bourbon, ou o laicismo, o ensino obrigatório e gratuito de Litré, por acaso não
foram orientações bem claras de uma política cultural? Podem se justificar tais
medidas encaminhadas à educação massiva dos cidadãos por meio das instituições
de ensino? Na China, por exemplo, as grandes disputas filosóficas frequentemente
estabeleciam a maneira de oferecer o ensino, fundamentais para os exames para
eleger os mais de cem mil mandarins. Tais modalidades não eram também parte
de uma política cultural do Estado?
Sem afirmar uma posição essencialista e simplista da identidade, contudo, de-
ve-se reconhecer que, sendo a identidade cultural de uma comunidade política
uma realidade processual e plural, com contradições internas, pluralidade de ins-
pirações e com diacronias diferentes (alguns aspectos crescem e outros decrescem),

543 Objeção argumentada em Ética da Libertação, §§ 2.3-2.4 (Dussel, 1998).


544 Ver minhas críticas na obra citada, § 1.3. Taylor, em sua obra As Fontes do Self (Taylor, 1998)
tem enorme dificuldade de sequer sugerir o aspecto ecológico-econômico da Modernidade.
O material sempre são os valores e os “hipervalores”, nada mais. No seu artigo “The Politics
of Recognition” (Taylor, 1992) não supera a questão da multiculturalidade intraestatal nos
países “centrais”, ignorando ainda a interculturalidade num horizonte de história mundial
das culturas (que não devem nunca ignorar as outras subesferas materiais. Os valores de
cultura minoritárias não são articuladas à pobreza das minorias (em sentido intraestatal e
mundial pós-colonial).
545 “Globalidade” como universalidade concreta pode ser simplesmente a imposição de uma
“particularidade” com pretensão falsa de “universalidade”.

259
de qualquer maneira é fundamental para tal comunidade possuir uma certa uni-
dade consensual, em especial quando é atacada desde o exterior por culturas que se
pretendem superiores, universais ou de maior “modernidade”. A política cultural,
por exemplo, dos regimes nacionalistas de projeto articulado em torno a uma bur-
guesia nacional, em estranha aliança com a classe operária e camponesa em países
pós-coloniais (como o cardenismo no México, o varguismo no Brasil, o peronismo
na Argentina), falam continuamente da defesa de tal identidade. Os afrescos da
“escola mexicana”, de Rivera, Orozco e Siqueiros, que exaltavam o imaginário as-
teca, popular e camponês, podiam ser defendidos como conteúdo possível de uma
política cultural? E, neste exemplo, o interessante é que os artistas eram membros
do Partido Comunista, enquanto que Antônio Vasconcelos, que os convidava a
realizar seus afrescos nos edifícios representativos do Estado (palácio presidencial,
edifício da Secretaria da Educação), tinha uma fisionomia ideológica tradicional,
católica. Era possível realizar uma aliança entre esquerda e direita na “questão
cultural”, quando se tratava de fazer uma Frente Unida contra o “imperialismo”
– como o denominavam as burguesias nacionais pós-coloniais exploradas pelas
burguesias centrais anglo-saxões? Certamente, era possível e de fato foi hegemôni-
ca uma tal aliança, a partir da crise de 1929, que deu às burguesias periféricas uma
curta esperança de desenvolvimento autônomo. Por isso, a chamada “Teoria da
Dependência” – junto ao boom literário e à Teologia da Libertação546 – foi, quiçá,
o produto epistemológico teórico-cultural de maior importância, na segunda parte
do século XX, na América Latina. Sua importância política é insubstituível, como
veremos mais amplamente no § 39.

6. Os “movimentos sociais”

[327] Este tema é, de certa maneira, uma transição. Nos leva a novas questões,
a novos problemas, que, aqui, somente deveremos tocar inicialmente para “situar”
o tema, já que não se pode fazer um tratamento mais desenvolvido, porque supõe
o esclarecimento de outros conceitos que serão analisados no restante da Arqui-

546 O tema do imaginário popular, a questão da religião, igualmente deveria ser abordado neste
tópico, já que consistem também numa dimensão material, ou de conteúdo, que se contém
em narrativas simbólicas, míticas, que se celebram com ritos e que assumem a profundidade
do inconsciente e a corporalidade humana, ao mesmo tempo que sugerem metáforas
(racionalmente) justificantes da existência, da vida e da morte. Que o Estado tenha recebido
dos deuses o poder era algo defendido pela filosofia política até o século XIX. Voltaremos
também sobre a reformulação emancipadora da religião, com profundo sentido político e
crítico, contida na chamada “teologia da libertação” – narrativa considerada nesta Política
da Libertação como um libreto imediata e profundamente compreensível pelo imaginário
popular, que o marxismo standard nunca esteve em condições de valorizar (em parte, por
um certo racionalismo positivista eurocêntrico que, hoje, devemos superar cabalmente).

260
tetônica e depois se exporão na Crítica desta Política da Libertação, que pretenderá
dar uma visão crítica da ordem social e política (Dussel, 2006).547
Isabel Rauber, talvez a pessoa com maior contato com os movimentos sociais
na América Latina, expõe nosso tema em sua obra Movimentos sociais e representação
política (2004),548 que teremos muito em conta.
Um “movimento”, como seu nome indica, significa um processo que se desloca
de um ponto de partida para um de chegada. Existem tantos movimentos sociais
como possíveis reivindicações ou necessidades não satisfeitas. Desde “o social”, o
movimento social começa por ser uma ação coletiva de membros de um sistema
ecológico, econômico ou cultural (ou outros, como os raciais, de gênero, gera-
cional, etc.), que se organizam, que nascem por um conflito interno dos campos
materiais. Uma greve operária se impulsiona por um aumento de salário quando a
pobreza se faz intolerável. Estas “mobilizações” têm sido denominadas desde o sé-
culo XIX, abrindo um âmbito de conflitos de difícil negociação, a “questão social”,
fenômeno próprio do capitalismo.

Esquema 21.04. Os diversos “atores” do âmbito social” da “sociedade civil” e da


“sociedade política”

Organização
III Ator político
a3 O político Partido político
c2 (representante) (Sociedade política)

b2
II Ator civil Associação civil
a2 O cidadão (Sociedade civil)
c1 (representado)

I Ator social b1
Movimento social
a1 O sujeito social (Âmbito social)

Esclarecimento do Esquema 21.04. Flechas a: transformação do sujeito em ator; flechas b e c: relação


de fundamentação (de I a II e III) e de subsunção (de III a II e I).549

547 Ver Tese 11.1 de 20 Teses de Política.


548 Prólogo de István Mészáros. Os escritos de grandes sociólogos (Touraine, 1994 e 1997;
Giddens, 1996; etc.) são nesta obra situados e criativamente considerados em concreto
desde uma ampla experiência prática.
549 O “sujeito social” funda materialmente o “sujeito civil”, mas este subsume politicamente
aquele. A reivindicação da base às exigências da organização civil (fundamenta), mas a

261
Os “movimentos sociais” podem cruzar um primeiro umbral e “se mover” para
o campo político propriamente dito. Neste momento, o campo ou a esfera ma-
terial econômico-social (onde o desafio social indica o conflito) se cruza com o
campo político (flechas b1 e c1),550 e o operário e ator social (dirigente sindicalista,
por exemplo) atualiza sua investidura de cidadão no campo político (já que não
é somente operário, empresário, comprador ou vendedor econômico no mercado,
por exemplo) e se transforma num “ator político”. Entra agora a desdobrar uma
ação político-estratégica e a articular-se com instituições políticas do Estado
(inicialmente, no sentido amplo), da “sociedade civil”. Exige agora, por exemplo,
uma “lei do trabalho” (ou se opõe à sua anulação) segundo os interesses materiais
ou sociais dos operários. Mas, para poder influir no ditame da lei (ou opor-se à sua
derrogação) ante o Poder Legislativo, é necessário organizar um tipo de instituição
não governamental (em sentido amplo), em coordenação com as outras forças da
“sociedade civil”. O sindicato do campo econômico e social teria passado a ser uma
associação civil no campo político (em referência ao Estado, em sentido amplo).
As sufragistas britânicas, no final do século XIX, começaram a tomar cons-
ciência da exclusão das mulheres no campo familiar, social e econômico (por terem
menores salários, por exemplo), mas rapidamente perceberam a impossibilidade
de serem reconhecidas no campo político por não terem direito ao voto. A mulher,
sendo um sujeito aceito (embora dominado) na família (âmbito I), estava ausente
no campo político (II ou III); e esta ausência a impedia de fazer reconhecer certos
direitos legais que se tornaram obrigatórios para os empresários do campo ma-
terial: salários iguais nas empresas, direitos iguais à herança no campo familiar,
etc. O “movimento social” se transformou numa “associação civil”: irrompeu na
“sociedade civil” como uma associação de mulheres que exigiam o direito de parti-
cipar nas eleições políticas. Foram reprimidas. Mas haviam passado o “umbral” do
“social” (I) para o “político” (II): de um movimento social tinham se transformado
numa organização com sentido cívico-político.
Contudo, ainda é possível cruzar um segundo umbral (indicado pelas flechas
b2 e c2). A passagem da “sociedade civil” (II) à “sociedade política” (III) e se cons-
tituir de uma associação civil de sufragistas em parte do Labor Party, buscando ter
uma influência efetiva nas instâncias do Estado. Aqui, o movimento social e cívico
passava a ser explicitamente um movimento político institucional da sociedade
política – ao menos de um partido político, que funcionava como uma organização
de massas não meramente eleitoral, na Grã-Bretanha.

associação civil é mais complexa que o movimento social (o subsume) porque conserva sua
reivindicação, mas a transmuta em política.
550 É evidente que anteriormente o mero membro em si do âmbito social, por um processo de
“subjetivação” (nos explica Touraine), se tornou “sujeito”. O “sujeito” é já um membro para
si de um grupo social.

262
Um exemplo atual é o de Evo Morales, na Bolívia. De origem indígena, di-
rigente do movimento social organizado em defesa da produção tradicional da
coca, transforma o movimento cocalero numa organização da sociedade civil para
finalmente adotar o nome de Movimento para o Socialismo (MAS) e chegar, em
dezembro de 2005, à presidência da República. Um exemplo “exemplar” de movi-
mento social que passa para o campo político explícito.
Se originarão tantos movimentos sociais quantas reivindicações não cumpridas
ou conflitos aparecem nos campos materiais (ecológico, econômico, cultural, fami-
liar, religioso, etc.), efeito da emergência de camadas sociais excluídas da honesta
e digna reprodução da vida humana e, além disso, da cidadania plena e, por isso,
não podendo expressar seus direitos no corpo legal da ordem política. Este tema
será tratado com maior atenção na parte Crítica, porque é o momento crítico por
excelência de uma Política da Libertação,551 onde à Identidade da ordem vigente se
confronta desafiante a Diferença, com tantos rostos de oprimidas e oprimidos na
esfera material ou de excluídas e excluídos na esfera formal, efeitos negativos não-
-intencionais das ações e instituições do sistema político vigente.
[328] Sistematizamos, para terminar este § 21, algumas teses que, hoje, já
não podem mais ser sustentadas, tentando uma nova organização que possa recu-
perar a intenção da antiga formulação defeituosa (Rauber, 2004, p. 36-73).
A primeira. Embora o sistema capitalista esteja se globalizando e, por isso,
tenda a universalizar a situação potencial de cada membro da população da Terra
como assalariado, isto não significa que haja uma só maneira da relação trabalho-
-capital e, sobretudo, que se possa atualizar efetivamente (o desemprego estrutural
é um fato). Como temos insistido, a globalização é paralela à exclusão da maioria
dos habitantes do planeta, as massas empobrecidas do Sul. Por isso, a classe operá-
ria (em seu sentido tradicional no século XIX e boa parte do século XX) não pode
ser o único ator dos movimentos sociais e nem sequer o protagonista em certas
conjunturas sociais concretas, em especial no mundo pós-colonial e periférico.552
Frequentemente, o que cria mais-valia e, por isso, é explorado, é um privilegiado...
ao menos recebe um salário. O marginalizado, desocupado em sua terceira geração
nos morros que rodeiam Caracas, o considera membro da “aristocracia operária”,
invejando sua situação. A extrema negatividade é distinta daquela descoberta por
Marx, em 1844.
A segunda. Não é verdade, por outro lado, que as organizações operárias ou
populares reivindicativas do âmbito social não possam superar esta condição e lhes
seja, por si mesmas, impossível acessar o campo político, sendo os intelectuais, os

551 Ver, mais adiante, § 37. As Teses 11 e 12 de 20 Teses de Política (Dussel, 2006 [11,1-12.3])
antecipam o tema que será abordado no volume III desta Política da Libertação.
552 Tese primeira da obra de Rauber (2004, p. 36ss).

263
partidos revolucionários ou outras instâncias externas encarregadas de “desper-
tá-las” do sonho do consenso obediente diante da dominação que se apresenta
quase como natureza. É um vanguardismo, hoje, insustentável. Isto manifesta
um modelo piramidal hierárquico-subordinante habitual no passado (Cf. Rauber,
2004, p. 42). É necessário fazer, e indicando a distância das circunstâncias, uma
respeitosa crítica a certas expressões leninistas que deram motivo ao dogmatismo
dos partidos comunistas de antanho.
A terceira. Os sujeitos se constituem como tais (num processo de “subjetiva-
ção”) e passam a serem atores graças à participação ativa no movimento mesmo
da transformação social do qual são agentes. Desde K. Marx, R. Luxemburgo,
A. Gramsci, Paulo Freire e tantos outros, se sabe que é na própria luta pelo re-
conhecimento que os membros de certos setores sociais tomam consciência553 de
suas responsabilidades e vão, neste mesmo movimento, cumprindo um processo de
aprendizagem insubstituível. A práxis estratégica é mestra de estrategos. Não há
outras escolas. O próprio filósofo (como Confúcio, como Sócrates ou como o sábio
popular fundador do cristianismo), por não ter tido experiências pessoais, pouco
teria compreendido do que se tratava em política.554 Voltaremos sobre o tema.
A quarta. A falsa pergunta, por nós já formulada, o que tem prioridade: a trans-
formação da estrutura institucional ou da subjetividade do ator, respondida com a
simples preocupação de que ambos os momentos são termos de uma relação e, por
isso, se implicam simultaneamente. A estrutura, não sendo senão a rede de relações
intersubjetivas dos sujeitos em função dos outros, se transforma no mesmo ato em
que os sujeitos vão mudando. Deve-se prestar atenção à subjetividade passiva do
membro da comunidade política no âmbito social, a fim de que se “subjetive”, isto
é, se transforme em consciência de uma responsabilidade (assim, “aparece o sujeito”
desde a objetividade perdida do impessoal membro consensual de uma estrutura
que o domina). Este tornar-se sujeito é já transformação da estrutura nesse nó.
A quinta. Na América Latina e, em geral, no mundo pós-colonial e periférico,
não existe a priori um tipo de ator social que possa se erigir como o sujeito-referên-
cia, como o ator-vanguarda dos processos concretos que acionam os movimentos
sociais. As circunstâncias são de tal forma diversas e as conjunturas e cenários
tão cambiáveis que uma vez pode ser um movimento indígena, como no Equador,

553 Ver este aspecto na pedagogia de P. Freire (Dussel, 1998, § 5.2, p. 430ss).
554 De minha parte, os dois anos de dez horas diárias de árduo manejo na construção em
Nazaré (Israel) com operários palestinos e com pescadores no Kibbutz Ginnosar (Mar de
Tiberíades) judeus que tinham ainda no final dos anos cinquenta o espírito dos harishonim
socialistas são a contínua referência de minhas reflexões nestes temas. Comprometido como
um intelectual em minha pequena pátria Argentina (a Grande é a América Latina) também
vivi a experiência da perseguição do atentado a bomba em minha casa, etc., referências
necessárias para uma filosofia política crítica.

264
ou suburbano marginal com articulação indígena, como na Bolívia, ou completa-
mente urbano e marginalizado, como os “piqueteros” na Argentina, etc. A análise
de conjuntura descobrirá os atores.
A sexta. A transformação da subjetividade dos atores e os hábitos da sociedade
não podem ser postergados até depois da “tomada do poder”.555 O que se vier a
fazer quando se exercer delegadamente o poder da comunidade política deve-se
começar a praticar desde o início do movimento. Em especial, a formação de uma
vontade democrático-participativa horizontal em todos os níveis, ao mesmo tempo
em que a educação do assumir a responsabilidade irrenunciável pela produção,
reprodução e desenvolvimento da vida, a vida humana, a vida feliz da comunidade
política sem discriminações, universalmente. Estas transformações da subjetivida-
de e a organização dos movimentos é tarefa inicial e contínua.
A sétima. Assim como a estrutura e a subjetividade se transformam simultâ-
nea e mutuamente, da mesma maneira o militante e a organização se implicam
reciprocamente. Não há vanguarda ativa com retaguarda obediente. Deve dar-se a
horizontalidade responsável. O movimento social (a associação civil ou um parti-
do) não é sujeito histórico nem referência metafísica. O ser sujeito-ator é condição
de militância; a militância é essencial para a organização. Sem organização não há
militante. É um círculo virtuoso de condições condicionantes condicionadas. O
serviço do militante à organização, de qualquer maneira, é condição de realização
própria; o serviço da organização aos militantes é condição de cumprimento dos
fins desta estrutura social. O militante e sua organização estão a serviço da comu-
nidade no subcampo social (no âmbito onde os campos materiais se cruzam, se
sobrepõem, num overlapping de conteúdos de vida com o campo político).
A oitava. A construção-articulação do sujeito social implica uma nova e dife-
rente relação entre as classes e outros atores sociais, o movimento, a sociedade civil
e os partidos políticos. Escreve Isabel Rauber:

O reivindicativo e o social são atividades articuladas e interdependentes da política e o


político, e o mesmo ocorre com a relação aos sujeitos-atores: não se pode avançar sobre
a fraturação do social e o político e seus atores, mas sobre a base de uma articulação
orgânica, projetiva e estratégica de atores sociais e políticos enquanto todos resultam
ser sujeitos-atores sociopolíticos (2004, p. 67).556

555 Tivemos a ocasião de criticar esta expressão na discussão com John Holloway (2002), como
veremos mais adiante.
556 Como a autora compreenderá, troco às vezes a ordem das expressões (inverto seu “ator-su-
jeito”) em vista da descrição conceitual que fiz. Devo assinalar que, espero, as distinções
analíticas entre âmbito social e campo político (e dentro deste, entre uma clara especificação
entre “sociedade civil” e “sociedade política”) dará à sua excelente exposição maior contun-
dência, em especial diante do público político-popular. Vimos no painel organizado por ela
em Havana (em 5 de março de 2004) sobre “Movimentos sociais”, que a passagem do âmbito

265
A nona. O presente é o momento de estender redes, articular experiências,
fazer contato entre movimentos regionais, nacionais, mundiais. O Fórum Social
Mundial, de Porto Alegre, é um espaço impressionante, criado na América La-
tina para o mundo, por políticos e militantes sociais que descobriram uma nova
maneira de tomar consciência do que se faz no mesmo sentido em qualquer di-
minuto rincão da Terra. É uma nova internacional, já não operária, como a que
sonhara Marx: “Proletários do mundo, uni-vos!” e, sim, algo diferente: “Atores
sociais do mundo, uni-vos!”, com a única diferença de que aquela unidade se con-
seguia por correios lentos, por barcos que zingravam de portos e que tardavam
semanas e até meses para chegar à Ásia, África ou América Latina. Hoje, com a
velocidade instantânea da computação, como ensinou o subcomandante Marcos,
as redes têm uma factibilidade nunca sonhada. Nossa Terra ficou pequena. Até
nos dá “claustrofobia” nos sentir trancados neste pequeno objeto esférico, que é
nosso planeta, em meio a milhões de galáxias a milhões de anos luz de distância.
Mas, ao menos, responsabilizemo-nos de que, por muitos milênios ainda, a vida
humana um pouco mais feliz para todos seja possível. É a tarefa política estratégica
fundamental... todo restante são “coisinhas” de egoístas, idiotices557 de narcisistas,
enfermos mentais que destroem a humanidade.

social à “sociedade civil” (flechas b1 e c1 do Esquema 21-04) e desta à “sociedade política” (fle-
chas b2 e c2) foi recebida com entusiasmo por dirigentes de movimentos sociais da Bolívia,
do Equador, de Santo Domingo, da Argentina e de outros países ali presentes. Para mim,
seja dito de passagem, foi uma experiência da complementação que o intelectual orgânico
pode estabelecer com os movimentos sociais, chegando em diálogo à claridade conceitual de
categorias que ajudam a fundamentar a claridade estratégica dos atores e movimentos sociais.
557 O grego idiotés significa o “próprio”, o “individual”. Idiota, então, é o egoísta solipsista, a
quem falta a generosa solidariedade.

266
§ 22. A
 ESFERA DA FACTIBILIDADE SISTÊMICO-INSTITUCIONAL
(O MACROSSISTEMA INSTITUCIONAL DO PODER
POLÍTICO E AS MICROESTRUTURAS DA SOCIEDADE
CIVIL)

[329] A factibilidade estratégica (exposta no Capítulo 1), considerada de maneira


abstrata, anterior a todo sistema, ou indeterminada, é a ação política contingente,
ponto de partida do político como tal. Embora a factibilidade institucional constitua
uma esfera de certa permanência: é agora um modo do não-contingente (como do está-
vel na diacronia das relações intersubjetivas sistêmicas objetivas), ainda que também
do não-necessário (pode não ser; também pode ser concebido de muitas maneiras
segundo diversos modelos ou projetos e, ademais, é transformável) e do possível (en-
quanto empiricamente operável ou factível; não é impossível) (Dussel 2006).558
A “permanência” e a “coerência” funcional autorregulativa da organização de
sistemas constituídos por múltiplas instituições permite ao político acumular ex-
periências, aumentar eficácia operacional, usar a coação mútua ou legitimamente,
formando as vontades para que se possa contar com a agência de outros atores, de
outros cidadãos responsáveis que, por uma imitação sistêmica, vão construindo
a história, como resultado do passado comunitário. As estruturas dadas são, ao
mesmo tempo, com o que se pode contar como ponto de partida ou fundamen-
to da operabilidade estratégica de todos e de cada um dos membros. Nenhuma
ação estratégica pode deixar de ter referência às instituições como o horizonte
funcional original,559 como marco que situa o acionar cotidiano, construtivo. Se
fosse necessário sempre começar de novo desde um ponto zero, desapareceria a
historicidade comunitária da política (a continuidade histórica) e, com isso, toda
a possível eficácia de sua atuação. A factibilidade institucional instaura, então, uma
tradição, mas, além do mais, objetiva resultados de ações que se tornam empirica-
mente reais, sempre pressupostas, e que têm exigências próprias para além do agir
monológico (ou solipsista) do ator estratégico político. As ações são momentos es-
truturados em sistema, objetivadas com validade intersubjetiva, que determinam
relativamente (nunca de maneira absoluta) comportamentos mutuamente fun-
cionalizados, definidos, fixados, diferenciados e reconhecidos heterogeneamente
por todos os membros do corpo. Também a inovação, a invenção, a criatividade

558 Ver a Tese 8.3 de 20 Teses de Política.


559 De maneira que o tratado no Capítulo 1 sobre a ação estratégica, na verdade, é uma abstração
que pressupõe o conteúdo deste Capítulo 2 que, por seu turno, pressupõe igualmente as
ações estratégicas que o gestaram e a Vontade instituinte com seu conteúdo particular. É um
círculo. A ação está já sempre condicionada pelas instituições (quanto à sua diferenciação
articulada), como já expressamos, e as instituições estão também condicionadas por suas
ações (quanto à sua origem singular e conteúdo).

267
transformadora do dissidente pressupõe sempre e inevitavelmente o antecedente
da instituição consensual dada. Ante o caos não pode haver dissidência. Há dis-
sidência criadora ante a ordem institucional. Do caos, pode surgir a ordem, mas
não como dissidência, sim como consenso institucional sistêmico. Hobbes sabia
isso muito bem.
O poder político da comunidade, como poder instituinte, se reflete sobre a pró-
pria comunidade, que se constitui a si mesma como instituída. O macrossistema
institucional da comunidade política como totalidade, que lhe permite a realização
efetiva de seus fins, é o Estado (no significado mais amplo possível no tempo560 e
em diferentes graus de institucionalidade sistêmica561). Na medida em que cresce
a complexidade da comunidade política, e com posterioridade à “Idade-eixo” (de
K. Jaspers) até a conexão empírica entre as grandes civilizações do “estágio III
asiático-afro-europeu” no século XIII d.C., quando começa a se desenvolver uma
concepção autônoma da individualidade, recorta-se mais claramente a pluralidade
de vontades singulares, num consenso mais racionalizado, quer dizer, surge um
poder político mais soberano e fundado na própria comunidade política, o Estado
começa a ser, cada vez com maior profundidade e extensão, a expressão de uma
diferenciação sistêmico-institucionalizada do poder político, alcançando um nível
suficiente de subjetividade autocentrada, autopoiética. Acelera-se a criatividade na
institucionalização de novas mediações de factibilidade política e vai nascendo em

560 Quero indicar com isso que estou de acordo com Samir Amin, quando afirma que o Egito
faraônico talvez tenha sido o primeiro Estado da história. O que, como expõe Enrique
Florestano, o “cânon” mesopotâmico anterior à invasão europeia na América fundava nos
deuses e na organização cósmica o Estado tolteca de Tolla-Teotihuacan (a partir do ano 150
d.C.) (Florestano, 1966 e 2004). De maneira nenhuma reduzirei o conceito de “Estado” ao
mero Estado moderno europeu.
561 Não é o mesmo a figura do “rei” neolítico da Mesopotâmia ou do México (o tlatoani), que a
“república” cartaginesa ou romana, que o Maggiore Consiglio de Veneza ou que o “parlamen-
tarismo” da revolução burguesa na Inglaterra. Sem esquecer que o Congresso norte-ameri-
cano se inspirará igualmente nas tradições dos “cinco” (por último, “seis”) nações iroquesas.
Estes tipos de institucionalidade, de complexidade e inclusão crescente são, todos eles, o
testemunho de um amplo processo de desenvolvimento institucional. As instituições vão se
sedimentando com os séculos. A última de suas figuras (o Estado liberal ou o Estado de
bem-estar, por exemplo), expressa somente um momento dos possíveis modelos desta insti-
tucionalidade. Embora seja a mais madura no presente, leva a marca de uma temporalidade
necessariamente situada, limitada, circunscrita a uma história concreta que, evidentemente,
ficará subsumida em modelos futuros mais desenvolvidos, que não é preciso se atrever a
negar de antemão, ao conceitualizar como institucionalidade ideal, ou a que por Hegel foi
chamada de Ideia do Estado, a experiência europeia-norte-americana até fins do século
XX. Diante dos nossos olhos se abrem novos “desenvolvimentos” aos quais será preciso
prestar atenção, como nossos genes de recentes mutações do genoma político (se cabe a
metáfora inspirada na evolução biológica). O “Poder cidadão” da Constituição bolivariana
na Venezuela é um exemplo destas inovações.

268
distintos pontos do “estágio III” (desde o Japão e a China até Portugal e Europa)
o protoestado moderno, em certas cidades mercantis mais desenvolvidas do que
na Europa continental com clara diferenciação de poderes (o sistema moderno
europeu se inspirará historicamente em Veneza que, desde o século VIII d.C.,
havia tido um poder instituinte com maior autonomia, graças ao fato de poder
ganhar seu território à laguna e de não depender nem do império germânico nem
do Estado pontifício e, sim, da longínqua Bizâncio, o que lhe permitia maior li-
berdade política562 e também maior informação do que acontecia na organização
do governo nas cidades do mar chamado “Oriente”). Colocar-nos-emos, contudo,
historicamente no presente para só situar uma problemática mínima, ainda que,
espero, suficiente, do tema.

1. A “sociedade civil” e a “sociedade política”


[330] Num primeiro sentido, e tal como o trataremos neste parágrafo, o “civil”
e o “político” no campo político (que se distingue, ademais, do “social”, questão ex-
posta no § 21) se encontra em outro nível que o “civil” como o meramente externo
ao campo político (tema do § 20.3).
No campo político, então, a diferença entre “civil” e “político” indica a situação
do ator político tendo em conta o “grau de sistematicidade institucional”. Graus
de sistematicidade institucional se referem à diversa complexidade de estruturas, de
maior ou menor coerência, com maior ou menor duração no tempo, com repetição
mais intensiva em profundidade, com mais extensão territorial de sua vigência,
com conteúdos mais diferenciados do exercício do poder comunicativo, procedi-
mentalmente mais institucionalizados, tendo em conta a universalidade da comu-
nidade política ou a particularidade de interesses fragmentários. O “civil” é menos
institucionalmente sistemático do que o “político”, neste caso. Nesta significação
estrita, a diferença entre o “civil” e o “político” dentro do campo político é recente
(o sentido [b] do civil no Esquema 20.2).
Na Modernidade nascente europeia, tal como o expusemos, falar de “socie-
dade civil” era o mesmo que se referir à “sociedade política”. Para Hobbes, Locke
e Hume, o “estado civil” se distinguia do “estado de natureza”. Este era um hipo-
tético “estado” indeterminado politicamente, indiferenciado sistêmica e institu-
cionalmente e anterior ao “Estado” (seja qual fosse o sentido que se lhe desse).
O “estado civil”, ao contrário, aparecia exatamente no momento em que o sujeito
penetrava no campo político, graças à institucionalização de certa estrutura política
(por exemplo, um “contrato” ou uma “aliança”), na qual os membros eram deter-
minados enquanto pertencentes a um sistema político explicitamente. O sujeito

562 Ver o exposto na História desta Política da Libertação [84-94].

269
tinha uma certa “liberdade” intocada (enquanto indeterminação da subjetividade,
abstratamente não-intersubjetiva, o que, por outro lado, era o modelo teórico do
individualismo metafísico e não o fruto de uma observação empírica, modelo ex-
traído da competição do nascente mercado capitalista), que devia ser transformado
em “ator político” ou membro do Estado (o Leviatã, de Hobbes, mas também no
“estado civil”, de Locke). Esta determinação, que transforma um sujeito abstrato
politicamente (com respeito ao “campo político”) num ator político (um homo politicus),
constitui originariamente a “sociedade civil”, onde “civil” significa o próprio do
habitante da cidade (civis) ou cidadão (na etimologia germana, o burguês vem de
Burg que significa cidade amurada, própria da estratégia militar feudal). “Civil” e
“político” são, aqui, sinônimos (que não correspondem a “civil” no sentido (a) nem
(b) do Esquema 20.02).
Na Modernidade madura, para Hegel, a “sociedade burguesa” (bürgerliche)
(Hegel, 1971, VII, p. 339ss)563 ou “civil” tem o duplo significado que não lhe pode
ser dado em espanhol, francês ou inglês, e constitui um momento no “desenvolvi-
mento” (Entwicklung) do “conceito de Estado”. Não é um momento diferenciado e
simultâneo ao Estado plenamente desenvolvido, mas de um estágio menos desen-
volvido (opino que se trata do Estado liberal na visão hegeliana). A “sociedade civil”
é descrita da seguinte maneira:

O fim egoísta funda um sistema de dependência recíproca que faz com que a subsistên-
cia, o bem-estar e a existência jurídica do singular se mesclem à subsistência, bem-estar
e existência de todos [...], estando seguro somente nesta articulação. Pode-se chamar
a este sistema primeiramente Estado externo (äusseren Staat), Estado de necessidade
(Not-) ou do entendimento (Hegel, 1971, VII, § 193, p. 340).564

A “sociedade civil” hegeliana é um tipo de Estado (sem pleno desenvolvimento


institucional). A integração dos membros numa tal “sociedade civil” é puramente
“externa”, quer dizer, produzida pela compulsão policial já que não existe um inte-
resse comum suficiente para unir as “classes” antagônicas:

563 Rechtsphilosophie, § 182ss. Marx, que pensava filosoficamente em alemão, podia julgar sobre
a dupla significação e o “civil” como “burguês” estava já determinado não somente politi-
camente, mas, também, desde um ponto de vista “social” (no sentido que indicaremos no
§ 21.2, mais adiante, como o momento em que o “campo econômico” ou “campo político”,
produz uma determinação material que chamamos de maneira precisa “o social”).
564 “Estado do entendimento” (Verstandesstaat) se opõe ao “Estado racional” (Vernunftstaat)
(que é o Estado plenamente desenvolvido). O “entendimento” constitui os objetos como um
todo isolado (no nosso caso, a sociedade civil está constituída por classes em contradição).
A “razão” compreende os objetos como um todo que os unifica (as Ideias: é o Estado pleno,
como Estado interior, não já externo)

270
Enquanto que a vontade particular (besondere Wille565) pertence ainda como o prin-
cípio do qual depende a realização de cada um dos fins. O poder universal assegura a
ordem simplesmente exterior (äussere Ordnung), limitando o âmbito da contingência
(§ 231, p. 382).

Para Hegel, então, a “sociedade civil” é todo o Estado num momento menos de-
senvolvido; é o Estado liberal, no qual a participação dos membros está motivada
principalmente pela proteção da propriedade ou de bens particulares, o que impe-
de uma adesão plena subjetiva, ética e intersubjetiva, por mútuo reconhecimento
a partir da dignidade e o amor das pessoas à Pátria, por parte de todos os mem-
bros.566 Sendo um Estado externo, “o cuidado policial (polizeiliche) primeiramente
realiza e salvaguarda o que é universal (Allgemeine) na particularidade (Beson-
derheit) da sociedade civil, sob a forma de uma ordem exterior (äussere Ordnung)
e da instituição (Veranstaltung) para proteger e assegurar a grande quantidade
de fins e interesses particulares que, efetivamente, encontram sua existência no
universal” (§ 249, p. 393).
Para Hegel, pois, a sociedade civil chega a uma contradição inevitável já que, pela
revolução industrial, se produz uma cisão insuperável, a que faz com que “a acumu-
lação de riqueza aumenta por uma parte” (§ 243, p. 389), entre os ricos cada vez
menos (em número de pessoas) e mais ricos (em quantidade de riqueza), enquanto
que “uma grande massa descende a um mínimo de subsistência [...], perdendo até
o sentimento do [próprio] direito” (§ 244, p. 389). É, por isso, necessário “expulsar
fora de si” a população pobre sobrante, para “outros povos” (§ 247, p. 391):

Este desdobramento de conexões se faz possível pela colonização (Kolonization), a qual,


sob uma forma sistemática ou esporádica, é impulsionada por uma sociedade civil
desenvolvida e por meio da qual uma parte de sua população pode procurar para si um
novo território para retornar ao princípio da família567 e, ao mesmo tempo, procurar
para si uma nova possibilidade de trabalho (§ 248, p. 392).568

565 Observe-se que a vontade “particular” pertence a um grupo e não é a vontade “singular”
(einzelne).
566 Lembramos dos três possíveis tipos de exercício da força sem suficiente poder: o domínio
sobre obedientes, a governabilidade em face de problemas de cálculo no exercício do domí-
nio ou na violência tirânica. São três exemplos de um Estado “exterior”. Havendo aumento
de pobreza (“não se possui riquezas suficientes para o tributo ao excesso de miséria e à plebe
que se engendra”) (§ 245, p. 390), aumenta a insegurança e o crime.
567 A aspiração telúrica do Romanticismo.
568 Tenho insistido na clarividência geopolítica (cínica, está claro) de Hegel, que, quando o
México se emancipava da Espanha, em 1821 (data de uma das edições da Rechtsphilosophie),
o filósofo berlinês anuncia o sentido de sua nova etapa pós-colonial: “A libertação das colô-
nias (Befreiung der Kolonien) se manifesta como grande vantagem para a mãe pátria, assim
como a emancipação dos escravos é grande vantagem para o senhor escravista” (Zusatz,
p. 393). No novo pacto pós-colonial, a exploração das colônias se produzirá dentro do

271
A sociedade civil se torna um Estado orgânico, o Estado metropolitano com
colônias, que elimina suas contradições internas (expulsando-as para as periferias,
para as colônias).
O conceito de “sociedade civil” que observamos em Hegel, de todo modo, em
nada se assemelha ao sentido que queremos dar a esta expressão dentro do discurso
desta Política da Libertação.
[331] Jean Cohen e Andrew Arato (1995), que escreveram o trabalho mais
extenso sobre o tema em análise, não deixam de ter as limitações habermasianas
correspondentes.569 Com efeito, não somente indicam que é na “teoria habermasia-
na da ética do discurso na qual nos baseamos” (1995, p. 21, 2000, p. 40), mas que
usam o modelo do filósofo de Frankfurt que consiste em descrever a complexidade
social a partir de três momentos: a) um “mundo da vida cotidiana” (Lebenswelt),
de inspiração husserliana, mediando os trabalhos de Alfred Schutz (1967) (Cf.
Dussel, 1998 [135-147]), colonizado por dois sistemas: b) o “sistema político” e c) o
“sistema econômico” (inspirado em N. Luhmann). Cohen e Arato situam a “socie-
dade civil” no “mundo da vida cotidiana” ou, ao menos, sendo o terceiro momento
em relação aos níveis político e econômico. A “sociedade civil” não será, assim, uma
instância política. Como se verá, nos oporemos totalmente a esta maneira de ver
as coisas porque, penso, e darei razões, que a “sociedade civil” se encontra, embora
com diferenciada posição, dentro do “campo político” propriamente dito.
Cohen e Arato realizam uma exaustiva descrição de diversas maneiras de in-
terpretar a “sociedade civil”, partindo de exemplos contemporâneos (da Europa
oriental ante a crise do socialismo real, da esquerda na França, da presença dos
“Verdes” na Alemanha e dos movimentos contra as ditaduras militares impostas
pelo Pentágono na América Latina até 1983 (1995, p. 29-82; 2000, p. 53-112)),570
o que mostra um sentido restrito do conceito de “sociedade civil” – e de difícil
generalização:

mercado mundial monopolizado pelas potências industriais; agora é custo inútil pagar uma
burocracia, um exército de ocupação, uma Igreja, etc. Melhor é que estes gastos corram por
conta do Estado pós-colonial. A transferência de mais-valor de maior quantia, mais oculta
e de mais benefícios pela competição internacional (devido à diferença de desenvolvimento
ou da “composição orgânica do capital” das nações no mercado mundial) para as Metrópoles
europeias pós-coloniais (na América Latina, desde1810, na Ásia e África, depois de 1945).
569 A partir deste momento, nos situamos no sentido (b) do “civil” ou “sociedade civil” do
Esquema 20.03.
570 Na atualidade, já no século XXI, poderiam ser agregados, no sentido de Cohen e Arato,
os movimentos massivos (mobilizados pelos meios televisivos do grupo Cisneros) contra
o governo de Hugo Chávez, na Venezuela, ou outros que, apoiados sempre pelos meios de
comunicação (a “mediocracia”), principalmente televisivos, como Globo, do Brasil, ou Tele-
visa, no México, podem exercer um verdadeiro domínio no “campo político”, ante governos
contrários à política e aos interesses econômicos transnacionais.

272
Entendemos a sociedade civil como uma esfera de interação social entre a economia e o
Estado, composta antes de tudo da esfera íntima (em especial, a família), a esfera das
associações (em especial, as associações voluntárias), os movimentos sociais e as formas
de comunicação pública (1995, p. IX; 2000, p. 8).

Para os autores, por outro lado, será necessário “distinguir a sociedade civil de
uma sociedade política de partidos, de organizações políticas e de públicos polí-
ticos [...] de uma sociedade econômica composta de organizações de produção e
reprodução” (1995, p. IX; 2000, p. 9). Estes organismos se autoconstituem, auto-
mobilizam e são autônomos de todo o resto, embora seu objeto de regulação legal
possa estar completamente institucionalizado no nível local, regional ou mundial
– através de redes que utilizam computação e internet.
A sociedade civil se encontra ligada a três debates, explicam os autores: “entre a
democracia de elite e a participativa, entre o liberalismo e o comunitarismo e entre
os críticos e defensores do Estado de bem-estar” (1995, p. XI; 2000, p. 11).571 Na
visão eurocêntrica e norte-americana dos autores – que estão interessados “numa
renovação do projeto liberal” (1995, p. 247; 2000, p. 284)572 –, a questão funda-
mental é a das “normas da sociedade civil – direitos individuais, o direito à vida
privada, à associação voluntária, à legalidade formal, à pluralidade, à publicidade,
à livre empresa – [que] foram institucionalizadas heterogeneamente e de maneira
contraditória nas sociedades ocidentais” (1995, p. XIII; 2000, p. 12).573
Na periferia pós-colonial, a problemática da sociedade civil se encontra, ao
invés, no debate entre um Estado dependente das potências do centro e os que
lutam pela emancipação nacional a partir de uma democracia participativa. De

571 Na periferia latino-americana, pelo contrário, o debate está em mostrar os mecanismos da


utilização desta “sociedade civil” contra governos populares neonacionalistas (críticos do
neoliberalismo, como os de Kirchner, “Lula”, Hugo Chávez, Evo Morales ou a “candidatura”
de Andrés Manuel López Obrador, no México) ou estudar a importância das emergências
de grupos recentemente denominados altermundistas (críticos da globalização segundo o
programa das transnacionais e o “Grupo dos Sete”). A “sociedade civil” se encontra profun-
damente dividida e confrontada nos países pós-coloniais, periféricos, no tempo da guerra do
Iraque e o genocídio palestino em Israel – referências obrigatórias desta “sociedade civil”.
572 Esta é, obviamente, de nenhuma maneira nossa intenção.
573 No mundo pós-colonial, todavia, os temas não são somente os da “nova esquerda demo-
crática” que se integram a um processo de democracia formal, desde 1983 na América
Latina, mas, principalmente, a dos movimentos sociais e populares da extrema pobreza e
marginalidade (como os “piqueteros”, na Argentina), que foram produzidos pelas políticas
do FMI e do BM, contra a necessidade de uma moratória da dívida externa, contra as
privatizações de empresas pára-estatais (em especial, de petróleo, gás, eletricidade), etc.,
questões que Cohen e Arato não tocam, desde uma posição liberal norte-americana (para
quem o único tema relevante foi a luta contra as ditaduras e que se desconhece que foram
de militares que impõem a dependência; ditaduras que, por outro lado, os Estados Unidos
instalaram no subcontinente).

273
maneira que a sociedade civil, em alguns casos, é usada como pretexto para pres-
sionar os governos que tentam dita emancipação (como N. Kirchner, na Argen-
tina, Luiz Inácio Lula, no Brasil, Hugo Chávez, na Venezuela, ou Evo Morales,
na Bolívia) – apoiados pelos meios de comunicação em mãos de transnacionais
–, e, em outros casos, pelo contrário, são a expressão dos movimentos populares
e organismos da sociedade civil que se opõem a governos que estruturam maior
dependência nos países periféricos (como os movimentos indígenas, na Bolívia,
Equador, Peru ou México). A sociedade civil é um subcampo (dentro do campo
político) de uma “guerra de posições” – diria A. Gramsci –, no qual os cidadãos
vão se tornando cada vez mais atores de sua função política: é a antessala de res-
ponsabilidades maiores.
Para poder nos entender, e adiantando posteriores precisões analíticas, avan-
çaremos algumas descrições de determinações que nos aproximem do conceito do
que estamos esboçando.

Esquema 22.01. Sociedade civil (estado em sentido ampliado) e sociedade política


(estado restrito)
Grau de sistematicidade Exemplos de instituições
Sociedade civil Sindicato, escola, meio de comunicação, organizações
(Estado em sentido ampliado) civis cidadãs, ONGs, etc.
Sociedade política Poderes legislativo, judiciário, executivo, exército
(Estado em sentido restrito) (Estado no sentido restrito), polícia, instituições
educacionais, de saúde, de comunicação, etc.

O marcossistema institucional, o Estado em sentido restrito, é o grau máxi-


mo de complexidade funcional política. Tem funções de factibilidade política (a
eficiência administrativa dos órgãos que empregam funcionários ou “servidores
públicos”), mas também se auto-organiza com legitimidade (tema do § 23) e cum-
prindo tarefa com conteúdo em relação à vida humana dos cidadãos (visto no §
21). É, então, um sistema institucional multifacetado de eficiência na esfera da
factibilidade (instrumental), da democracia (formal) e das funções reprodutivas da
vida empírica (material). O Estado deve tornar governável a comunidade política.
Não é, porém, o único sistema institucional político, como veremos. Há micros-
sistemas políticos disseminados em todo o corpo social e político – este último foi
o objeto preferencial da análise política de M. Foucault, e com muita razão, ante a
estadolatria do marxismo standard de sua época.
Deveremos clarificar a questão da descrição inicial do Estado, inovando dras-
ticamente as determinações fundamentais atribuídas a uma tal macroinstituição,
já que há um importante debate na filosofia política, nas ciências políticas e do

274
direito acerca do conteúdo do conceito de Estado. Por isso, propomos as seguintes
descrições mínimas e provisórias:

Esquema 22.02. Campo político, sociedade civil e sociedade política


Campo político

Sociedade civil

Sociedade política
(Estado)

[332] O Estado (no sentido ainda indiferenciado)574 é a comunidade política ins-


titucionalizada. Trata-se do estado de575 ter-se dado instituições suficientes para a
vida cotidiana e o governo da totalidade da comunidade política. Sua instituciona-
lidade tem duas manifestações complementares:
a) Uma, explícita, política e global, de maior coerência sistêmica, que se “fecha”
como um conjunto autopoiético de autorreferência máxima; é o que se denomina
sociedade política ou Estado (em sentido restrito) desde cima (desde os representan-
tes eleitos em sua divisão de Poderes). Esta sociedade política é o macrossistema
institucional global, operando explicitamente na esfera público-política enquanto
tal (isto é, enquanto política e global). O “estatal” dá um sentido homogêneo à
heterogeneidade funcional das instituições organizadas em sistema. A “classe uni-
versal” (o Beamte prussiano) seria a expressão desta dimensão política.
Suas ações envolvem o Estado como totalidade. Os atores principais são os repre-
sentantes, frequentemente militantes (“intelectuais orgânicos”) ou profissionais de
tempo integral, que constituem o governo em sentido estrito. Todo cidadão repre-
sentado é sempre membro pleno, permanente e última instância do Estado enquan-
to sociedade política, ao menos potencial ou virtualmente. Pode dar atualidade à
sua qualidade de ator ou agente em tal Estado, por exemplo, em toda convocatória
para um plebiscito para modificar decisões ou revogar um governo e em muitas
outras instituições (o que denominaremos “poder cidadão”, organização de distri-
tos, conselhos, assembleias populares, etc.) que é preciso criar para complementar

574 O campo II (que coincide com o campo político) do Esquema 22.05.


575 Como quando se fala do “estado líquido” ou do “estado gasoso”. O Digesto de Justiniano
tinha um capítulo definitório: De statu hominum.

275
como democracia participativa a democracia representativa, onde há necessidade de
transformar a representação num momento mais transparente e imediato.
b) Outra, implicitamente, política e particular, com menor sistematicidade,
como sociedade civil ou expressão pública dos movimentos sociais e outras organi-
zações civis (expressão no campo político de outros campos que não são políticos):
articulação do Estado (em sentido amplo)576 desde baixo (desde os cidadãos como
participantes permanentes e como última instância política). A sociedade civil,
então, é o subcampo da microinstitucionalidade ou organização577 particular, ope-
rando implicitamente enquanto política (enquanto civil e particular). Não envolve o
Estado como totalidade, mas a parte da comunidade política que, enquanto parcia-
lizada em sua institucionalidade, depende dos interesses particulares dos diversos
grupos da própria sociedade civil, dos movimentos sociais manifestados em seu
subcampo578.
O cidadão é membro natural tanto da sociedade política quanto da sociedade
civil, mas pode ser sempre diretamente ator enquanto atualmente participante nas
organizações da sociedade civil. Na sociedade política, se faz presente pelos seus
representantes.
A “sociedade civil”, em primeiro lugar negativamente, se refere, então, a todas
as ações e instituições incorporadas (subsumidas) no “campo político” que não são
ações e instituições do Estado em sentido restrito (no conceito gramsciano que ex-
plicaremos na continuação). São ações ou instituições do Estado em sentido amplo
– o “civil” no segundo sentido (b). As ações ou instituições políticas são todas,
de uma maneira ampla ou restrita, ações ou instituições “estatais”, públicas, dos
cidadãos como tais. Isto não significa um estatismo exagerado, mas a busca de uma
nova compreensão do Estado.
O “campo político” instituído (institucionalizado coerentemente) é o Estado,
âmbito do exercício delegado do poder de uma comunidade política (como plura-

576 Gramsci propõe “ampliar” o sentido do Estado, o que me parece conveniente. O conceito
de Estado se “debilita” na sociedade civil.
577 Uma “organização” seria uma instituição política implícita e não constituída por repre-
sentantes eleitos pela comunidade política como totalidade. Uma Organização Não-Go-
vernamental (ONG) indicaria corretamente a institucionalidade parcial de um grupo de
cidadãos, enquanto cidadãos, e, por isso, membros da comunidade política, mas adscritos
à sociedade civil. Suas autoridades eleitas envolvem sob sua responsabilidade uma parte da
comunidade política. Os partidos políticos, ao contrário, são instituições híbridas e, por
isso, devem ser “vasos comunicantes” entre a sociedade civil e a sociedade política, mas se
inscrevem nesta última por natureza própria. Se se transformam numa burocracia ou num
mero mecanismo eleitoral da sociedade política perdem seu sentido.
578 Isto não significa, como afirmam Cohen e Arato, que sua finalidade seja particularista,
pode ser universal. Por exemplo, um movimento feminista sufragista tem uma finalidade
universal (envolve todas as mulheres e modifica a atitude de todos os homens), mas não deixa
de ser particular, assim como um movimento contra a discriminação racial, religiosa, etc.

276
lidade de vontades unidas no consenso legítimo instituído): o instituído e o estatal
começam agora a ser sinônimos. A “sociedade civil” e a “sociedade política” serão
o momento do “campo político instituído” onde se cruzam, articulam, imbricam (o
overlapping) todos os demais campos, em especial os campos materiais (que expu-
semos já no § 21, e que constituem o âmbito social), e isto não somente se refere a
outros campos (como o cultural, econômico, familiar, religioso, etc.), mas também
a outros sistemas de tais campos (como o sistema capitalista, o sistema de educação
escolarizada, a monogamia, as religiões,579 etc.), que toca aos atores como sujeitos
materiais, não somente em seu inconsciente intersubjetivo, mas até no nível físi-
co-neuronal mais básico, que é o pano de fundo da intimidade privada e que, de
alguma maneira, deixa entrever seus efeitos na complexa cadeia diferenciada dos
atores e instituições da “sociedade civil” e da “sociedade política”.
A “sociedade civil” é, por sua vez e exclusivamente, o conjunto de grupos, asso-
ciações, movimentos, sindicatos, meios de comunicação (televisão, rádio, jornais,
revistas, livros, etc.), instituições ou Organizações Não-Governamentais (ONGs),
enquanto cumprem alguma função política que não é, contudo, o objetivo primá-
rio de uma entidade civil (e frequentemente social). Ao sugerir que cumpre uma
“função política”, indica-se que se move dentro do “campo político”, fazendo parte,
como o expõe a análise gramsciana (que deveremos de todos os modos modificar),
do Estado em sentido ampliado.
As organizações da sociedade civil podem transformar-se eventualmente em
instituições da sociedade política e, neste caso, os membros da sociedade civil se
tornam atores explícitos da sociedade política, como no caso das “associações da
terceira idade” que aparecem de imediato sob o lema da “revolução branca” – em
referência a seus cabelos grisalhos: o cidadão ancião é um ator político temível, que
pode lutar por leis para fazer valer seus novos direitos.580

2. A instituição do Estado como “sociedade política”

[333] O conceito moderno de Estado tem uma longa história (Cf. Skinner,
1997, p. 3ss). “Estado” significa no direito romano um momento legal: o “estar581
casado” é um “estado” diferente de “estar” ou “estado de solteiro”. Também se pode
falar de status regis, état de roi, stato del principe; ou de um status rei publicae, isto é,

579 Tailândia, com um budismo de Estado ao redor de dois milênios (que observamos pessoal-
mente em Bangkok), não é Bolívia, com uma Cristandade institucionalizada há quase cinco
séculos.
580 Ver os trabalhos de José Carlos Garcia Ramírez (2003).
581 Em espanhol se diferencia entre “ser” e “estar”. “Estado” vem do verbo “estar”, de algum
modo.

277
o modo de estar governado, no caso exemplificado não sendo uma monarquia, mas
uma sociedade sob o exercício do poder de um senado ou uma assembleia. O status
podia atribuir-se à comunidade como tal (“ser cidade”) ou ao membro individual
(“ser cidadão”). Também significa graus de “estar melhor” ou “pior”: optimus status
rei publicae (o “estado ótimo da república”). Os utópicos, como Tomás Morus,
falavam do “ótimo estado da república” ao se referir ao ideal a alcançar.
No século XV, na Itália, se passa do estado do príncipe (“ser um príncipe”) a
manter o estado, quer dizer, manter o estado de ser príncipe conservando o governo
sobre a cidade. Isto é o que se começou a chamar stato (“Estado”). Maquiavel é com
quem se consagra esta formulação: “Todos os Estados (stati), todos os domínios
[...]” (1997, p. 119).582 Não é o único nem o primeiro e, sim, já era uma denomi-
nação em uso. Talvez chegue à Inglaterra pela mão do tradutor Lewis Lewkenor
que, a traduzir a obra de Gasparo Contarini De republica Venetorum (obra de 1543,
traduzida em 1599), a relação do commonwealth com os cidadãos frequentemente
traduziu republica por state. O próprio Hobbes, no início do Leviatã, escreve: “Com
efeito: graças à arte, se cria este grande Leviatã que chamamos república ou Estado”
(that great Leviathan, called a Commonwealthor State583) (Hobbes, 1998, p. 3).
Para tentar uma descrição mínima do conceito de Estado, que pareceria uma
tarefa quase impossível pela diversidade de enfoques, queremos recordar a obser-
vação do começo deste parágrafo. É preciso articular o tipo de Estado (objetiva-
mente institucionalizado) com o tipo de vontade instituinte ou a partir da concepção
que os atores (por exemplo, partido político no governo) tenham do Estado, de sua
função conjuntural concreta. Uma circunstância histórica, um “acontecimento”, no
sentido de Alain Badiou, como o pós-guerra, em 1920, na Alemanha, pôde deter-
minar o nascimento consensual da necessidade de um Estado de tipo bismarckia-
no que salvasse a comunidade política da crise que a guerra havia produzido. Era
uma “ideologia política de guerra” bem determinada historicamente. Da mesma
maneira, na América Latina, os Estados submetidos a uma crise irreversível dada a
dívida externa (imposta e injusta) impagável, produzem no final da década de 1990
um estado de crise permanente e de miséria popular, que inevitavelmente cria uma
vontade instituinte de tipo nacionalista, defensora da produção de alimentos orgâ-
nicos, do mercado nacional com base numa política industrial que favoreça a pou-
pança e o desenvolvimento interno, que se opõe à concepção do Estado neoliberal
do tipo Robert Nozick. O chamado “neopopulismo radical” (que, na realidade,

582 O Príncipe, I. Desde este momento, o Estado se refere “to the institutions of government
and means of coercive control that serve to organize and preserve order within political
communities” (Skinner, 1997, p. 8). Nos Discorsi, Maquiavel já usa com maior confiança
este termo.
583 Em latim, Civitas.

278
não é senão um certo “protecionismo nacional de desenvolvimento autocentrado”
com intenção de distribuição da riqueza para diminuir a desigualdade social, já
que, por exemplo, no México, 50% da população está abaixo da “linha da pobreza”,
como a define Amartya Sen), é mais fruto de uma conjuntura “sentida” por um
povo584 do que a conclusão de teorias de um grupo de cientistas sociais.
Alain Touraine (1997, p. 208ss) que, por ser francês, percebe melhor a situação
da América Latina e que, como uma ponte com a América Latina, propõe uma
tipologia de Estados que pode nos ser útil. A partir da revolução burguesa inglesa e
da emancipação das colônias anglo-saxônicas da América do Norte, divide primei-
ro entre a) Estados de uma tradição que defende os direitos do indivíduo como
proprietário, economicamente independente e varão, que poderia ser denominado
de “Estado particular liberal”; b) Estado como afirmação de uma comunidade po-
lítica que tende a se definir como “nação” diante de Estados estrangeiros, ante os
quais precisa defender sua soberania (na Europa central ou na América Latina, por
exemplo), e seriam “Estado de afirmação nacional”. Os primeiros terão, por sua
vez, duas vertentes: a1) o “Estado democrático constitucional”, do tipo anglo-sa-
xão, e a2) o “Estado republicano institucional”, que teve sempre grande influência
na França e que pode evoluir “para o modelo democrático constitucional [a1], mas
também para o bonapartismo [b2]” (1997, p. 209).

Esquema 22.03. Tipos de estados propostos por A. Touraine


a) Estado nacional liberal b) Estado de afirmação
nacional
Direitos do homem e do a1) Estado democrático b1) Estado nacionalista
cidadão constitucional liberal
Cidadania Comunitária a2) Estado republicano b2) Estado nacional-comu-
institucional nitário585

Outros sociólogos, como, por exemplo, Anthony Giddens, em sua Sociologia,


propõem uma descrição a partir de algumas determinações frequentemente ex-
ternas, quando escreve:

Um Estado existe onde há um aparato político, instituições de governo, tais como um


tribunal de justiça, um parlamento ou congresso, mais, funcionários públicos, uma
população civil, governando sobre um território dado, cuja autoridade se respalda por

584 Veremos nos §§ 30 e 37, da Crítica, a importância deste “sentimento” (como momento
da sensitividade da corporalidade) da negatividade dos efeitos negativos conjunturais que
produz uma certa política concreta.
585 Na América Latina, seriam os “populistas”.

279
um sistema legal e pela capacidade de empregar a força para implantar suas políticas
(Giddens, 1996, p. 345).586

[334] Não pretendemos fazer uma descrição com alguma ordem arquitetô-
nica, mas – para evitar críticas – avança-se em algumas determinações mais ou
menos dispersas, ainda que comuns em todo Estado, o que evita demasiado com-
promisso teórico. No extremo oposto, encontraremos a proposta ontológica hege-
liana, como uma verdadeira “teologia política”. Em primeiro lugar, Hegel afirma:
“A essência do Estado (Wesen des Staates) é o universal em e para si universal, a
racionalidade da vontade (das Vernünftige des Willens), mas como a subjetividade
que se sabe a si mesma e atua, e como realidade de um indivíduo” (1971, p. 330).587
O que se reflete em sua definição:

O Estado é a substância ética (sittliche Substanz) autoconsciente (selbsbewusste), unidade


do princípio da família e da sociedade civil; esta unidade (Einheit) que se dá na família
como sentimento de amor é a essência do Estado, a qual, mediante o segundo princípio
da vontade que sabe (des wissenden und aus [...] Wollens) e é ativo por si, recebe a forma
de universalidade sabida (1971, p. 330).588

Vemos, assim, que o Estado é um momento da vontade (como fraternidade) e


da Razão (como saber), numa intersubjetividade que mantém unidade (como um
singular) objetiva (em sua universalidade) pelo amor e autoconsciência. O Estado é
o momento em que todos os cidadãos (sem contradições, como na sociedade civil)
tendem desde sua subjetividade patriótica ao bem comum:

O Estado é [...] o Espírito ético que se revela claramente a si mesmo como vontade
substancial (substantielle Wille) [...]. Na cultura (Sitte) tem sua existência imediata; na
consciência de si como saber e como atualidade singular tem sua existência mediada;
por outro lado, tem sua liberdade substancial (substantielle Freiheit) no sentimento pelo
Estado como sua essência, seu fim e como produto de sua atividade (1971, p. 398).589

586 Ramón Cotarelo escreve: “O Estado, como força de organização política, é um território
compreendido dentro de fronteiras certas (territorium clausum) no qual habita um povo
concebido como conjunto de sujeitos de direitos e deveres, submetidos a um ordenamento
jurídico-político específico [...]” (Cotarelo, 1996, p. 15).
587 Enzyklopedie, § 537.
588 Enzyklopedie, § 335. As mesmas palavras são usadas na Rechtsphilosophie: “O Estado é a
realidade da ideia ética, o Espírito ético que se revela claramente a si mesmo como vontade
substancial que se Pensa e se Sabe e que cumpre o que sabe e porque o sabe” (§ 257, p. 398).
589 Enzyklopedie, § 257. “Se se confunde [este] Estado [pleno] com a sociedade civil e se ele
fosse destinado à segurança e à proteção da propriedade e da liberdade pessoal [...] sendo
facultativo ser membro do Estado” (§ 258; p. 399), se cometeria, para Hegel, a mais grosseira
confusão.

280
O cidadão tem “o sentimento (Gesinnung) político, [já que] o patriotismo en-
quanto tal é como a certeza (Gewissheit) fundada na verdade [...] que é a vontade
habitual enquanto resultado das instituições vigentes do Estado, porque são por
estas como a racionalidade se realizou, e ela [a vontade] recebe sua eficácia da ação
conforme a elas (as instituições)” (1971, p. 412).590 O cidadão vive como o paroxis-
mo da identidade com a Pátria e, por isso, Hegel não pode senão exaltar o estado
de ânimo que tem a comunidade política numa guerra, quando os membros do
todo político esquecem sua singularidade, e também sua particularidade, sua casa,
sua família, sua profissão, e entregam sua vida heroicamente pela Pátria.591 Neste
momento, a pluralidade de vontades teria uma coesão substancial. É a “Ideia” (ideia
regulativa) do “desenvolvimento do conceito de Estado”. Hegel é, como Schmitt,
um antecipado antiliberal, mas, contra Schmitt, afirma a racionalidade do Estado
(onde a Razão e a vontade se identificam). Como Schmitt, propõe uma “teologia
política”592 e justifica uma política cujo fundamento é também material na Sittlichkeit
(cultura de um povo ou a “eticidade objetiva”, como é traduzida inconvenientemente).
No Estado, para Hegel, a história da humanidade alcança a consciência plena de si, é
um momento do aproximar-se ao “Saber absoluto”, à liberdade da Vontade do Es-
pírito (como o espírito dos próprios deuses): “Os penates são os deuses inferiores
e interiores; o espírito do povo (des Volksgeist) (Atena)593 é o divino que se sabe e se
quer. A piedade é a sensibilidade e a eticidade, a virtude política”.594
O Estado, como a própria descrição indica, todavia, fica substantivado, divini-
zado, como uma mera instituição que transita pela história como o Espírito dos
deuses, “pousando” num só povo em cada momento da história, e somente este
povo recebe a plena definição de Estado:595

590 Enzyklopedie, § 268.


591 “A saúde mental de um povo consiste na indiferença ante a fixação das determinações fi-
nitas” (§ 324; 1971, p. 492-493). Cada cidadão se habitua e acomoda à função que lhe foi
designada em cada “campo” e “sistema”. É necessário, para Hegel, a guerra (como o vento
que açoita as ondas do mar, despertando-as da preguiça) para desabituar-se à determinação
e se integrar imediatamente como membro valoroso ao todo do Estado: “sua liberdade é
morte do medo de morrer” [ihre Freiheit ist verstorben an der Freiheit zu sterben] (1971, p.
492-493). E. Levinas critica o herói que morre matando, seja qual for a causa que o Estado,
a Totalidade, lhe designa (Cf. Dussel 1993, vol. 1). É claro, mata o Outro, o fraco, o negro,
o colonial, o afegão, o iraquiano, o palestino, o [...] Inimigo, com (I) maiúsculo (ver o tema
na clássica obra de H. Marcuse, O homem unidimensional (1969)), o terrorista.
592 “O Estado é a vontade divina como Espírito presente ou atual que se desenvolve na formação
e organização de um mundo” (§ 270; 1971, p. 417-418).
593 Hegel não suspeitava que Palas Atena era, na realidade, a deusa protetora de Sais, a metró-
pole egípcia de Atenas, chamada Neith.
594 Comentário ao § 257. É a fraternidade que Derrida quer clarificar.
595 Muitos dos que estudam este tema esquecem que esta determinação do Estado hegeliano
não é somente de um Estado metropolitano que, em sentido estrito, só pode ser um.

281
Este povo é o povo dominante na história universal em sua época correspondente. Não
pode haver época mais que uma só vez na história e contra o direito absoluto que tem,
por ser o representante do grau atual do desenvolvimento do Espírito do mundo, todos
os outros povos não têm direito algum (1971, p. 506).596

Deixemos, então, esta “teologia política totalitária” e consideremos outra visão


do Estado, paradoxalmente anti-hegeliana, mas também influenciada, em sua con-
cepção, por uma certa substantivação totalitária.
[335] A questão do Estado foi central na concepção política de V. I. Lênin,
até o ponto que, uma vez começada a redação de O Estado e a revolução, teve que
abandoná-la, porque se ocupou de intervir na Revolução de Outubro. Deixou ex-
plicado, no epílogo, que teve que interromper o trabalho porque “é mais agradável
e proveitoso viver a experiência da revolução do que escrever acerca dela”.597 Para
Lênin, “todo poder do Estado é coerção”.598 E mais, a questão do poder sempre se
relaciona com o Estado. Chama a atenção que um político amplamente compro-
metido no momento da ação reservasse tempo a si mesmo para escrever sobre o
tema. A questão, todavia, tinha um sentido político estratégico imediato, já que
devia esclarecer a posição dos bolcheviques em relação à “tomada do poder” do
Estado ou à sua “extinção”, como opinavam os anarquistas. Não é o mesmo estar
ao encargo do Estado, transformando-o de imediato em suas instituições, do que
simplesmente aniquilá-lo e passar à utopia de um governo direto de todos os so-
vietes ou comunidades de democracia direta. Lênin era um político realista, mas,
como veremos, não chegou a distinguir claramente entre o que estava fazendo e
um “postulado” político de um momento histórico futuro.599
A exposição do tema já começara em Engels que, negando o conceito ideal de
Estado de Hegel, se apoia mais em sua definição de sociedade civil:

O Estado não é de modo algum um poder imposto de fora à sociedade [...] é antes um
produto da sociedade quando chega a um grau de desenvolvimento determinado. [Mas
quando] esta sociedade se enreda consigo mesma numa irremediável contradição [...]
se faz necessário um poder situado aparentemente acima da sociedade (apud Lênin,
1961, II, p. 298).600

596 Rechtsphilosophie, § 347. Este espantoso texto, que tantas vezes citei em minhas obras (desde
a primeira política que escrevi no vol. 3 de Para uma ética da libertação latino-americana,
em 1973), é a expressão de uma política eurocêntrica totalitária sem igual. É contra esta
violência inaudita do universal contra a qual se levanta Sören Kierkegaard e tantos outros,
entre eles, os pós-modernos.
597 Datado no dia 30 de novembro de 1917 (Lênin, 1961, II, p. 389).
598 “Discurso de resumo sobre a questão agrária” (18 de novembro de 1917) (Lênin, 1961, II, p. 519).
599 Questão que trataremos mais adiante nos §§ 31 e 39 da Crítica.
600 Citação de Lênin, em O Estado e a revolução (Ver Engels, A origem da família, XI, MEW,
21, p. 165).

282
O Estado é, assim, “um órgão de conciliação de classes” (1961, II, p. 298). Ou
melhor, “o Estado é o órgão de dominação de classe, um órgão de opressão” (1961,
II, p. 299). É daí que chega a uma clássica conclusão:

Se o Estado é um produto do caráter irreconciliável das contradições de classe [...] fica


claro que a libertação da classe oprimida é impossível não somente sem uma revolu-
ção violenta, mas, também, sem a destruição do aparato do poder estatal. O exército
remanescente e a polícia são os instrumentos fundamentais da força do poder estatal
(Lênin, 1961, II, p. 299-300).

O realismo estratégico de Lênin, contra o utopismo anarquista, sabe que, em-


bora o Estado seja a expressão da dominação de uma classe sobre outra, será neces-
sário contar com ele no processo pós-revolucionário. Se for extinto, não há maneira
de organizar uma nova ordem. Se for usado como está, não é possível uma revolução
cabal como ele a imagina. Há uma premissa utópica que exige ser resolvida: “As
classes desaparecerão601 de um modo tão inevitável como surgiram em seu tempo.
Com o desaparecimento das classes, desaparecerá inevitavelmente o Estado” (Lênin,
1961, II, p. 305). Mas, na transição entre a revolução e o comunismo602, deverá atuar
de maneira que “o governo sobre as pessoas será substituído pela administração
das coisas e pela direção do processo de produção” (1961, II, p. 306). A “adminis-
tração” é a negação da política e a direção técnica do processo produtivo também.
No tempo da transição, então, sem política, se usará despoticamente o Estado na
“ditadura do proletariado”.603 Ao “tomar o poder estatal”, o proletariado inverte a
situação: agora se trata de exercer “uma força especial de repressão sobre a burgue-
sia por parte do proletariado” (1961, II, p. 307): “Nisto consiste precisamente o
ato da tomada de posição dos meios de produção em nome da sociedade” (1961, II,
p. 307). Isto significaria, igualmente para Lênin, “extinção da democracia [...] por-
que a democracia é também um Estado” (1961, II, p. 308).
Para Lênin, o “poder” – em maiúsculo nas traduções oficiais em espanhol – é
sempre uma força, mas como coerção, como dominação. Não existe um sentido po-
sitivo, como unidade das vontades no consenso do proletariado, por exemplo. Tam-
bém o “poder dos sovietes” é concebido exclusivamente como dominação, como
negação do antagonista; quer dizer, como ditadura. Isto será sumamente eficaz na
etapa pós-revolucionária (aumenta a factibilidade), porque o Comitê Central do

601 Aqui também se produz uma confusão entre um “postulado” da razão política e o objetivo
de alcançar este fim empiricamente: não é possível historicamente eliminar algum tipo de
“classe” (se não é o capital-trabalho, será a informado-desinformado, membro do partido-
-não membro, etc.): seria a sociedade perfeita. Sendo a premissa confusa, a conclusão não
poderá deixar de sê-lo.
602 Neste sentido, toda a história seria a transição entre a revolução e um “postulado” inalcançável.
603 A expressão é frequente, mas, neste trabalho, aparece pela primeira vez (1961, p. 307).

283
Partido Bolchevique poderá conduzir eficientemente o processo de defesa militar
e de organização da produção: “Duas questões ocupam atualmente o primeiro
lugar entre todas as demais questões políticas: a do pão e a da paz” (Lênin, 1961,
II, p. 535).604 Por isso, o Estado é necessário nesta etapa: “O poder estatal centra-
lizado [é] próprio da sociedade burguesa [...]. Duas são as instituições mais típicas
desta máquina estatal: a burocracia e o exército permanente” (1961, II, p. 316).605
Vale dizer:

O proletariado [leia-se: o Comitê Central do Partido Bolchevique] necessita o poder


estatal, organização centralizada da força, organização da violência, tanto para esma-
gar a resistência dos exploradores como para dirigir a enorme massa da população, os
camponeses, a pequena burguesia, os semiproletários, na obra de pôr em marcha a
economia socialista (Lênin, 1961, p. 313).

A sorte estava lançada desde o começo. Pela necessidade estratégica de ter que
defender a Pátria, era necessário formar um exército forte. Pela necessidade eco-
nômica, era necessária a organização disciplinada da produção. Desde 1921, com
o NEP (NT: Nova Política Econômica), o novo Estado, apoiado numa burocracia
que já não podia contar com o caos dos sovietes, levou a cabo o conceito de poder
que estava em sua origem.
Sendo o poder coação, violência, dominação (num sentido muito weberiano),
e sendo o Estado o “instrumento”606 do poder, ao proletariado (leia-se: ao Comitê
Central) cabe a tarefa de exercer a dominação ou violência, primeiro, contra as
classes dominantes do passado capitalista, mas, e inevitavelmente (porque todo
exercício do poder não é senão violência), também “dirigir a enorme massa [...] na
obra de pôr em marcha a economia socialista”. Estas tarefas se convertiam pura-
mente “administrativas” e, como a democracia se extinguiria com o Estado, não era
considerada como o modo necessário para a tomada de decisões. A “participação”
dos proletários, camponeses, etc. já não encontrou instituições de expressão.
O poder, concebido essencialista e substantivamente, a potestas, como algo que
se pode “tomar” (a expressão: a “tomada do poder do Estado” é frequente), mani-
festa, por desgraça, um sentido extrínseco, instrumentalista desta força da van-
guarda da comunidade política. Expressões como a seguinte mostram tudo o que
pretendemos indicar:

604 “Pelo pão e pela paz” (14 de dezembro de 1917).


605 “O Estado e a revolução”. Por desgraça, há quase um século de distância, podemos observar
que ditas duas instituições foram a essência do sistema político soviético, causa do seu
desmoronamento, em 1989.
606 No título do ponto 3, do cap. 1, se lê: “O Estado, instrumento de exploração da classe
oprimida” (Lênin, 1961, II, p. 302).

284
Educando o partido operário [quem são os educadores?], o marxismo [quem expressa
o marxismo?] educa a vanguarda [quem é a vanguarda, como foi eleita e com quais
direitos?] do proletariado, vanguarda capaz de tomar o poder e de conduzir todo o povo
ao socialismo, de dirigir e organizar o novo regime, de ser o maestro [?], o dirigente [?]
e o chefe [?] de todos os trabalhadores e explorados na obra de organizar sua própria607
vida social (Lênin, 1961, p. 313).

O bom realismo político entende que as massas camponesas, e também os


operários, não podiam, de maneira imediata, se encarregar das responsabilida-
des políticas prementes. Quando se estuda a história, o leitor fica admirado da
sabedoria prática de Lênin, ao ser capaz de evitar tantos obstáculos ao mesmo
tempo (militares: no Leste, com o Japão; no Oeste, com a Alemanha e Áustria;
econômicos: o ter que relançar todo um imenso sistema de produção, de trens, de
correio, bancário, elétrico...). Mas, desde um ponto de vista político e, a partir da
própria concepção do “poder”, se iniciaram desde 1917, e muito antes,608 confusões
importantes. O poder nunca foi concebido positivamente como a força da unidade
das vontades que, por consenso democrático – como vimos no § 13 e veremos no
§ 30 –, emana, obedece e se regenera na comunidade política (neste caso, entre os
operários, os camponeses, etc.; no povo). O Estado não tem nenhum poder intrínse-
co. Por isso, não se pode “tomar o poder” do Estado (como se toma a maçã, que dá,
no mito, o poder divino para dominar a Terra). O poder que pode “ser tomado”
é um poder já fetichizado. O poder, ao contrário, o tem sempre e em última ins-
tância a comunidade política (a potentia); o Estado o institucionaliza (a potestas)
e, neste caso, se trata de uma mediação, e, como tal, pode potenciar o poder da
comunidade (operando uma maior força, unidade e consenso) ou pode debilitar o
poder da comunidade (aniquilando a unidade, impedindo o consenso). Um certo
paternalismo vanguardista, que Rosa Luxemburgo criticava, se instituiu defini-
tivamente. Ela exclamava: “Nada pode submeter mais um movimento operário
[...] do que esta couraça burocrática do centralismo, no qual é aprisionado para
reduzi-lo a um autômato manejado por um comitê” (apud Dussel, 1998, p. 513).
A democracia devia desaparecer com o Estado, que foi concebido como um ins-
trumento puramente procedimental, administrativo, pensou-se, e não se postulou
que a “dissolução do Estado” devia significar, ao contrário do seu desaparecimento,
a plena expansão da democracia sem limitações (que, de passagem e como veremos,

607 A dos trabalhadores, mas não sendo empiricamente um deles.


608 Ver o debate de Rosa Luxemburgo com Lênin no começo de 1900. Num estudo que fize-
mos (Cf. Dussel, 1998, cap. 6, § 6.1.b [346ss]), citamos um texto da grande política polaca:
“Não poderíamos conceber maior perigo para o partido socialista russo que os planos de
organização propostos por Lênin” (Dussel, [353], p. 513). Rosa mostra o que será a sombra
de Stálin: “O jogo dos demagogos será bastante mais fácil [...]”

285
é outro dos “postulados” da razão política). A eficiência instrumental das decisões
centralizadas de cima para baixo (o círculo quadrado de um “centralismo demo-
crático”) ocupou o lugar de um princípio político essencial na definição do poder
e na transformação do Estado (a “democracia participativa” de baixo para cima,
foi vivida e exercida diretamente pelos sovietes, mas não soube institucionalizar
por delegação representativa o Estado socialista).609 As concepções imperfeitas do
poder, de seu exercício delegado, do Estado, da democracia, da participação, da
representação, etc., foram se acumulando até seu desmoronamento. Os ganhos
foram gigantescos; por isso, os erros devem ser estudados para permitir-nos apren-
der em sua negatividade.
[336] A. Gramsci estava completamente imerso numa situação onde devia
tomar muito a sério o campo político (diferentemente de Lênin, que era um político
prático, que exercia a coação despótica da dominação numa etapa posterior à re-
volução contra o czarismo e à incipiente burguesia russa, podia conceber a política
mais como uma técnica administrativa do que como o exercício delegado e contínuo
propriamente político da hegemonia dentro de um horizonte de forças em con-
tradição). Por isso, Gramsci concebe o Estado de uma maneira completamente
diferente de Lênin e, cuja complexidade, mesmo formulada há muitas décadas,
não deixa de ter atualidade:

Estamos sempre no terreno da identificação do Estado e governo (Stato e Goberno),


identificação que é uma representação da forma corporativo-econômica, isto é, da con-
fusão entre sociedade civil e sociedade política (società civile e società politica), porque
é de se observar que a noção geral de Estado inclui elementos que é preciso relacionar
com a noção de sociedade civil (no sentido que poderíamos dizer que Estado = sociedade
política + sociedade civil, quer dizer, hegemonia encouraçada de coerção) (Gramsci,
1975, II, p. 763-764).610

Isto porque, se “o Estado é concebido [...] como sociedade regulada [...], o Esta-
do-coerção [inclui] o Estado ético ou sociedade civil” (Gramsci, 1975, II, p. 764). Os
aparatos de hegemonia do Estado não incluem somente as instituições propriamen-
te públicas ou tidas por públicas, mas também as instituições que, “como guardiãs
noturnas”, invisíveis, cumprem tarefas culturais de criação de consenso. Uma escola
privada pode cumprir, em muitos casos melhor que uma escola pública (na América
Latina, Europa ou Estados Unidos), a tarefa de formar cidadãos que se prestem ao
consenso no Estado burguês. Gramsci diz, claramente, que no “conceito de Estado”
devem ser igualmente incluídos “organismos privados” (organismi privati):

609 Se o “comunismo” é um “postulado”, não há transição ao impossível, e desaparece um falso


problema. O que, sim, existe, é uma transição do capitalismo “real” ao socialismo “real”. Falsos
problemas tiveram graves consequências para a história da humanidade no século XX.
610 Quaderni del Cárcere [Cadernos do Cárcere], Q. 6, 5, p. 688.

286
Por Estado, deve-se entender, além do aparato do governo, também o aparato privado
(aparato privato) de hegemonia ou sociedade civil (§ 137; p. 800). O Estado é todo o
conjunto de atividades práticas e teóricas com as quais a classe dirigente não somente
justifica e mantém seu domínio, mas também chega a obter o consenso dos governados
(Gramsci, 1971, p. 109).

Haveria que pensar que existe como um momento do exercício da força (a so-
ciedade política) e outro do consenso (sociedade civil). Cristine Buci-Glücksmann
descreve bem a posição de Gramsci:

Gramsci distinguirá, progressivamente, dois conceitos de Estado, ou mais precisamente,


dois momentos de articulação do campo estatal: o Estado no sentido restrito e o Estado em
sentido amplo, chamado pleno. Em sentido restrito, o Estado se identifica com o gover-
no, com o aparato de ditadura de classe, enquanto tem funções coercitivas e econômicas.
A dominação de classe é exercida por meio do aparato do Estado em sentido clássico
(exército, polícia, administração, burocracia). Mas, esta função coercitiva é inseparável
de um certo papel adaptativo-educativo do Estado, que busca realizar uma adequação
entre o aparato produtivo e a moralidade das massas populares (1979, p. 122).

Momentaneamente, queremos reter o ganho nesta incursão através da posição


de Gramsci, em especial esta concepção restrita de Estado, como o núcleo insti-
tucional público, propriamente político, ao tempo em que se refere à comunidade
como totalidade (preferentemente em situação de hegemonia). Devemos, contudo,
nos perguntar, por exemplo, se a sociedade política e o governo podem ser igualados;
já que os “empregados” (Beamten, no Estado prussiano) do Estado (entre os quais
devem ser incluídos os militares, as polícias, os burocratas dos diversos níveis da
administração, serviços de relações exteriores, aduanas, etc.) não podem ser deno-
minados governo (já que não se ocupam, como o “timoneiro”, do leme do barco). O
governo estaria ocupado pelo pequeno grupo que, num processo estável normal,
ocupa as funções de condução, que toma decisões políticas propriamente ditas.
A estrutura burocrática da sociedade política deve ser de carreira; o governo é
propriamente político e, em princípio, é exercido por representantes eleitos pela
comunidade política, frequentemente apresentados como candidatos por partidos
políticos. Esta situação, que se deu nos Estados modernos contemporâneos, pode
receber transformações mais ou menos profundas segundo as circunstâncias. Cabe
destacar, como um fato histórico, empírico, que a pequena-burguesia, que cons-
tituía a burocracia do czarismo na Rússia ou do Estado italiano do Risorgimento,
seguirá sendo a burocracia do partido comunista russo e do fascismo, e dos regimes
após o colapso de ambos. Os governos podem mudar, mas não a burocracia peque-
no-burguesa da sociedade política611.

611 Nicos Poulantzas estudou um caso, mas poderia ser generalizado (1972, p. 450ss). Sobre
a burocracia e o burocratismo, nada melhor que as páginas de M. Weber (1944, p. 173ss).

287
[337] Poderíamos nos deter ainda numa posição completamente antagônica,
a de Robert Nozick, uma espécie de anarquismo de direita motivado por razões
completamente distintas612. Inspirado nas posições econômicas de M. Friedman e
de F. Hayeck, o jovem professor de Harvard publica, em 1974, Anarquia, Estado e
Utopia, obra na qual defende um Estado (no sentido de sociedade política) redu-
zido ao mínimo, rematando uma tradição de séculos que guarda extremo receio
diante do poder do Estado e defende a liberdade individual do cidadão (em último
termo, do mercado) na mais dura linha liberal clássica. Suas expressões políticas
empíricas serão o thatcherismo inglês (1979-1990), o reaganismo norte-america-
no, o pinochetismo no Chile ou o menemismo na Argentina. Na primeira parte da
obra, Nozick, partindo de uma reflexão sobre o “estado de natureza”, opõe-se ao
anarquismo de esquerda, defendendo o direito à propriedade de bens individual-
mente obtidos e a herança de tais bens para assegurar a liberdade individual (tendo
sempre Locke como referência)613. O Estado mínimo seria algo assim como uma
“associação de proteção dominante num território [que] satisfaz duas condições
necessárias fundamentais [...]: 1) que possui o tipo requerido de monopólio do uso
da força no território, e 2) que protege os direitos de qualquer um no território [...]
através de uma forma redistributiva” (1988, p. 117). Nozick imagina uma situação
na qual associações privadas compitam para oferecer proteção aos indivíduos; uma
dessas associações se impõe porque oferece também a defesa dos direitos até dos
que não contribuíram pecuniariamente com a instituição protetora. Esta seria o
tipo de associação que cumpre com a definição de “um Estado mínimo a partir do
estado de natureza” (1988, p. 123).
Na segunda parte, critica o Estado de bem-estar e o socialismo, porque na
medida em que o Estado pretender cumprir com suas reponsabilidades sociais614,
tende a se atribuir poderes que põem em questão a liberdade dos indivíduos: “O
Estado mínimo é o Estado mais extenso que se pode justificar. Qualquer Estado
mais extenso viola os direitos das pessoas” (1988, p. 153). Um Estado mais que mí-
nimo pretende cumprir com a justiça distributiva. Mas toda redistribuição choca
com os direitos adquiridos e comete mais injustiça em nome de uma pretendida
justiça social, opina Nozick.
Na terceira parte, esclarece sua posição sobre o “Estado mínimo”. A tudo isso,
Orfried Höffe comenta:
612 O anarquismo, e certo marxismo standard, negam o Estado. Nozick desconfia dele e o
diminui até a expressão mínima. Mas, também se opõe, de maneira decidida, ao Estado de
bem-estar; é contra este que escreve sua obra.
613 Da nossa parte, mostraremos o sentido da esfera formal do Estado (§ 23), na qual se funda
a legitimidade graças ao direito (e à defesa dos direitos individuais do cidadão).
614 Esta esfera material sugerimos no § 21, anterior. O fracasso desta proposta se viu na des-
truição de New Orleans pelo furacão de 29 de agosto de 2005. Nenhum capital privado
interveio para salvar os afro-americanos pobres e tampouco o “Estado mínimo” – por de-
finição. Conclusão: os pobres se afogaram.

288
A noção de Estado mínimo apresenta o interesse de proteger o indivíduo e os grupos
contra o estatismo que tudo devora, mas pode se esquecer dos grandes problemas da
sociedade industrial moderna (1988, p. 102) [...]. Os direitos sociais são responsabili-
dades, em primeiro lugar, do poder legislativo e executivo, que impõem assegurar aos
cidadãos condições materiais, para que possam levar uma vida digna de seres humanos
numa sociedade realmente livre e democrática (Höffe, 1988, p. 106).

Se isto se exige para uma sociedade tão democrática como aquela da Suíça ou
da Alemanha, será que o Estado não deveria promover a justiça redistributiva nos
países pós-coloniais e periféricos, como na América Latina, Ásia ou África? Nestes
países empobrecidos pela exploração colonial e pós-colonial, a proposta de Nozick
soa cínica ou puramente trivial – enquanto gosto puro por uma argumentação
formal. É sabido que, nos anos setenta e oitenta, as doutrinas de M. Friedman e F.
Hayek começaram a influenciar as políticas do FMI e do BM, semeando em nosso
continente a pobreza. Exigia, como complemento, uma concepção de Estado mí-
nimo que começou a privatizar as grandes empresas do Estado (como as dedicadas
ao petróleo – privatização dos YPF argentinos que passaram às mãos do capital
espanhol –, o gás, a eletricidade, a telefonia, etc.) como no caso de Menem, na Ar-
gentina, Carlos Salinas, no México, e tantos outros, que transformaram o Estado
de bem-estar dos regimes do capitalismo nacionalista periféricos, “Estados na-
cional-comunitários” os chamará Touraine (os populismos), em Estados mínimos
endividados, insolventes e quebrados. As consequências estão à vista. A filosofia
política tampouco é neutra, tem responsabilidade e cumplicidade evidente. Nozick
joga um papel: o dos “novos mandarins” do Império, no dizer de N. Chomsky.
Caberia, ainda, apresentar uma visão mais formalista do Estado, como a de
Niklas Luhmann615. Também se poderia mostrar a evolução do fenômeno do Es-
tado na América Latina616. Mas a extensão do parágrafo nos obriga a fechar a
temática, fazendo um resumo para terminar.
O Estado, em sentido restrito, ou a sociedade política, enquanto macrossiste-
ma institucional político, constitui o centro da esfera da factibilidade operativa po-
lítica de máxima eficiência (esfera bem determinada deste nível B institucional617),
já que é a última instância organizacional da vida humana; seja Estado municipal,
estadual, de um Estado particular, de confederação ou de organização regional ou
mundial de todos os Estados ou confederações do Planeta. Cada tipo de sistema

615 Ver em Luhmann, “Der Staat des politischen Systems” (2000, p. 189ss; 1995, p. 137ss).
616 Ver Kaplan (1983) e, em especial, a exposição de Solari (1976, p. 494ss e p. 579ss). Outros
aspectos em Cotorelo (1996), Sorelo (1996), Dunleavy (1999), etc.
617 Estou me referindo às três esferas (ver [246] do nível institucional (nível B, com relação ao
nível A estratégico [capítulo 1] e ao nível C dos princípios implícitos (capítulo 3): o formal
democrático (§ 23), o material ecológico-econômico-cultural (§ 21) e o que agora abordamos
da factibilidade política (o presente § 22).

289
institucional menor é subsumido e transubstanciado (diria Marx) no de maior ins-
titucionalidade. O Estado municipal é subsumido no provincial ou estadual, este
no Estado particular (mal chamado “nacional”), este nas possíveis confederações
regionais (como a Comunidade Europeia ou o Mercosul). A confederação mundial
de todos os Estados (pressagiada na Organização das Nações Unidas) é o sistema
institucional da comunidade política da humanidade como instância final. Que
esta confederação mundial pudesse vir a ser um Estado mundial só indica outra
possibilidade, a de um Estado unitário (Estado mundial). A confederação mundial
ou o Estado federal mundial estaria ao final do caminho da atual experiência. Esta
confederação mundial deveria dar sempre uma grande autonomia aos Estados par-
ticulares membros. Este projeto, de mero postulado, parece que poderia deixar de
ser uma impossibilidade empírica para se manifestar, já hoje, como uma imperfeita
e primeira possibilidade real, histórica, perfectível, numa ONU sem vetos.
[338] De tudo isto deriva que o Estado (ampliado ou restrito) não deve ser con-
fundido, como tampouco o poder, como necessariamente um macroinstrumento
de dominação, de coerção. Num primeiro momento, o Estado é uma instituição
necessária para a permanência e aumento da vida humana. É necessário ver seu
surgimento no Neolítico como uma das invenções mais notáveis da humanidade
e que tornou possível inúmeros avanços qualitativos na história humana. Como
a vontade e o poder, é preciso definir, de início, o Estado positivamente como a
macroinstituição política que permite a permanência e desenvolvimento da vida
humana. Que de fato, de maneira não-necessária, como possível e contingente-
mente e com frequente plausibilidade, o Estado se transforme num momento
de dominação de uns seres humanos sobre outros, é uma constatação histórica.
Mas isso não torna possível incluí-la em sua descrição fundamental. O Estado é a
comunidade política institucionalizada enquanto totalidade. Empírica, concreta
e historicamente vemos que se desenvolvem desde o Neolítico (desde o Sul da
Turquia, Mesopotâmia, Egito, etc.), desde o VI milênio a.C., macroinstituições
políticas que podemos denominar, com Samir Amin, Estados. Seu aspecto positivo
é um aumento formidável na produção agrícola e pastoril, aumento da população,
desenvolvimento do transporte, dos caminhos, de amplos períodos de paz, de in-
cremento das artes, das ciências, da escrita e literatura, do direito, etc. Ao mesmo
tempo, no seu aspecto negativo, se vê o desenvolvimento dos métodos e instituições
de dominação dos grupos governantes sobre os governados, o desenvolvimento
dos exércitos, das torturas, vexames, humilhações, injustiças, extermínio de popu-
lações, escravidão, servidão, tributos desproporcionais, etc. Num nível narrativo
simbólico, o profeta Samuel pergunta aos hebreus se desejam ter um rei (que será
Saul) para serem dominados e se converter em seus servos, perdendo a liberdade
do deserto. O profeta está contra o Estado (1 Sam 8, 11-18).

290
Os efeitos negativos, não-necessários, mas inevitáveis, movem eticamente cer-
tos movimentos anarquistas, e também um certo marxismo, a definir o Estado
exclusivamente como “um instrumento das classes dominantes” – no começo do
XXI, na periferia, como instrumento das transnacionais e do neoimperialismo
norte-americano. Com efeito, as classes ou os grupos que controlam o Estado, ou
o “bloco histórico no poder” (para me expressar como Gramsci), frequentemente
são os que exercem o poder com hegemonia e domínio. Mas o exercício do con-
trole do poder do Estado não deve, em primeiro lugar e como sua essência, ser
julgado como dominação (como na descrição weberiana do poder somente como
dominação sobre o outro e não como exigência do poder-pôr mediações para a
vida humana). Se emancipamos o Estado como instituição, mediação necessária
para a vida humana, de seu exercício defectivo, podemos empreender a tarefa da
“transformação do Estado” e não de sua necessária destruição hic et nunc. O que
não quer dizer que, em seu momento, não proponhamos a “dissolução do Estado”
como um postulado da vontade e da razão políticas, cujo sentido abordaremos na
Crítica, volume III desta obra, § 41.
Podemos resumir, por ora, que o Estado é a institucionalização do exercício do
poder da comunidade política – sejam quais forem suas estruturas e sejam quais
foram os grupos ou classes que alcancem a hegemonia, a dominação ou a violência
através das instituições da sociedade política (Estado em sentido restrito) – para
tornar factível tal exercício. Um exercício direto não mediado por instituições é im-
possível. A factibilidade é, então, o sentido do Estado enquanto tal. Mas o Estado
não tem como próprio o Poder, mas o exerce em nome da comunidade política,
última instância do poder do Estado.

Esquema 22.04. Os três momentos do “triângulo” lacaniano


2) O simbólico: o Estado

A coisa impossível618

3) O imaginário: a Pátria

Estaríamos tentados a usar o triângulo proposto por J. Lacan na nossa temá-


tica. 1) A “coisa” impossível é a comunidade política feliz plenamente realizada. 2) O
momento simbólico ou sua expressão racionalizada é o Estado, organizado num
território constituído como mercado. 3) O momento imaginário é a Pátria – da qual

618 Esta “coisa impossível” seria uma comunidade política perfeitamente feliz e institucionalizada.
É novamente um postulado.

291
Hegel tem clara consciência –, cuja memória está cinzelada pela história dos heróis,
a bandeira, os hinos, os signos identitários de uma comunidade ideal impossível.
O Estado deve realizar e se aproximar da “coisa”: a felicidade como fruto ins-
titucional e político da comunidade. A racionalidade das instituições e a força
das vontades unidas no consenso, como poder, são as mediações. A Pátria é a
referência de uma identidade processual, que vai se construindo na história e cuja
fidelidade ao “acontecimento fundacional” é necessário renovar continuamente. O
“patriotismo” está fora de moda, mas o está porque o único patriotismo aceitável
é o do Império. Todo outro patriotismo é negado. O patriotismo dos Estados
periféricos é, hoje, um vício. Penso, contudo, que, sem a renovação consciente da
afirmação a uma tradição patriótica, não é possível mover as vontades das comu-
nidades políticas periféricas “quebradas”, derrotadas e em crise. Os heróis são os
que metaforicamente representam a comunidade política dispersa na imagem da
sua possível reconstrução.
Para que o Estado possa exercer o poder delegado, precisa organizar institui-
ções diferenciadas que lhe permitam, como órgãos de um corpo, cumprir funções
específicas.
A primeira destas instituições na divisão do poder ou na diferenciação do seu
exercício, quando se pensa no Estado, é o Poder Executivo, já que, em sua origem
indiferenciada (desde o chefe do clã de caçadores, até o reizinho, o rei ou o impe-
rador, para terminar sua longa história nos presidentes ou primeiros-ministros),
a função diretiva do poder (das vontades unidas no consenso do grupo) devia,
para ser factível, unificar-se. A unicidade, a referência à consciência indivisa de
uma autoridade como instância decisiva, é condição de factibilidade do uso das
mediações (que podem ser fiscalizadas, julgadas e corrigidas, mas com as quais
é preciso contar). “Executivo” significa o agir, obedecendo o disposto por outros
poderes decisórios que fixam o horizonte, a universalidade ou especificidade (mas
não a singularidade) do que é preciso realizar. “Executar” é dar forma concreta ao
já determinado em geral. É uma instância “descendente” (do universal ao concre-
to), que enfrenta mediações, instrumentos, passos. Mas, nesta concreção, o ato se
diversifica. As Secretarias ou Ministérios mostram bem a diferenciação das me-
diações materiais (e algumas formais) e de factibilidade (mediações de mediações:
por exemplo, pontes e caminhos que tanta importância conquistaram na revolução
francesa nos sucessivos governos da burguesia triunfante, o que deu nascimento
também à Escola Politécnica para preparar os engenheiros do Estado, que aumen-
tava e acelerava seu mercado nacional unificado).
[339] Desde Montesquieu, a divisão de Poderes e sua mútua fiscalização par-
tia do fato de o Poder Executivo, demasiado forte (que no início só era exercido
pelo rei absolutista), não tinha, em relação aos Poderes Legislativo e Judiciário,
débeis, nenhum equilíbrio, e o cidadão sem direitos não podia se opor ao Sobera-

292
no absoluto. Assim avançava por crescente limitação mútua a institucionalização
de diferentes Poderes do Estado, seguindo a tradição da integração dos diversos
tipos de governo entre os quais se combinava numa estrutura mista (que Veneza
exemplificou no Ocidente tomando o que fora procedente da oriental Bizâncio e que
foi levado a cabo no Reino Unido pela primeira vez na Modernidade nascente). O es-
tado burguês, originariamente uma monarquia parlamentar, conservava elementos
antigos (o rei e uma assembleia de nobres: a Câmara e os Lordes), combinando-os
com um Parlamento legislativo dos Comuns (plebeus ou burgueses) e com um
Primeiro-ministro executivo.
A sociedade política ou o Estado em sentido restrito, em grande parte depen-
dendo do Poder Executivo, tem, então, algumas instituições que sempre encontra-
remos presentes e sem as quais dificilmente poderia cumprir seus fins.
Em primeiro lugar, aparece um tipo de ofício próprio do Estado moderno,
ainda que já tenha existido sempre, de uma ou outra forma. No Estado egípcio,
estavam os escribas, representados frequentemente em estátuas e frisos por serem
pessoas de grande importância na escritura política; igualmente, entre os maias e
os astecas, havia os especializados em escrever os textos e conhecer a memória das
tradições, tratados e mitos. Entre os chineses, de uma maneira nunca igualada –
até o presente ocidental – a burocracia dos mandarins foi a primeira instituição
em seu tipo de tão alta especialização na história mundial da política. Os estudos
e os exames para aceder ao cargo de mandarim significaram o desenvolvimento da
própria filosofia chinesa e, em especial, da filosofia política. Nos Estados europeus
modernos, de Castela e Aragão, primeiro, a burocracia organizou arquivos que
ainda são conservados com milhares de documentos perfeitamente catalogados –
entre eles trabalhamos durante anos, alojado no Palácio de la Lonja, em Sevilha,
no Arquivo das Índias. Administrados os reinos sob Conselhos, compostos por
burocratas universitários em sua maioria (procedentes muitos de Salamanca ou
Paris), os trâmites estavam perfeitamente regulamentados. Todos estes Conselhos
tinham, como indicamos, seus arquivos, que se inspiravam no mais antigo (e com
extrema continuidade) arquivo romano (posteriormente do Vaticano), da Igreja
medieval latina e posteriormente católica. Com o surgimento do Estado prussiano,
Hegel pôde integrar em sua descrição política esta classe particular:

A classe universal (allgemeine), mais precisamente a que se consagra ao serviço do go-


verno, tem como sua determinação imediata o fim universal por atividade essencial [...].
Assim, se une verdadeiramente o particular do Estado com o universal (1971, p. 473).619

A burocracia tem uma fisionomia particular, própria da instituição do Estado


ao qual pertença, mas nas funções particulares deve sempre imprimir suas ações

619 Rechtsphilosophie, § 303.

293
e seu sentido universal, do cumprimento dos interesses comuns. Existe extremo
perigo, e é a triste realidade atual em países periféricos, que os membros do Es-
tado sigam perseguindo fins particulares (por exemplo, de classe empresarial) e
coloquem a riqueza e as instituições públicas a serviço de interesses particulares. É
a corrupção da burocracia, ao sobrepor a particularidade sobre a universalidade.
Contra a visão weberiana620 da interpretação da burocracia ocidental como tipo
universal (eficácia formal de meios-fins, competência de indivíduos especializados,
premiação personalizada, assalariados de tempo integral, etc.), Anthony Giddens
(1996, p. 322ss) mostra que a burocracia japonesa (hoje teria que olhar também
para a China) tem outros princípios organizacionais: visão de conjunto de todas as
funções da instituição (com práticas em cada secção), trabalho em equipe, consulta
fluida de empregados e chefes na definição das agendas, problemas e suas solu-
ções, estabilidade vitalícia assegurada, ajuda econômica na solução das exigências
cotidianas familiares dos membros, etc., o que cria outro tipo de responsabilidade
comunitária e criativa nos membros da burocracia.
O burocratismo pode chegar a tipificar a totalidade do Estado, como no caso
de Estado soviético, que se organizou desde o Comitê Central de maneira ad-
ministrativa mais que propriamente política. A lógica burocrática mostrou suma
eficácia, no momento de crise e de guerra; mas, no momento de paz e normalidade,
quando o crescimento criativo era necessário, o “burocratismo” mostrou seus limi-
tes e produziu sua derrocada. A mentalidade burocrática, como “igualitarismo” da
obediência irresponsável, impediu o risco da inovação. O ideal da racionalização
perfeita (a planificação burocrática)621 é impossível, e, ao tentar realizá-la, se desata
a tirania burocrática; ao pretender aboli-la, ao contrário, se cai no terrorismo anar-
quista (como veremos na Crítica, volume III, § 35 e 43).
Uma instituição sempre necessária (até que o postulado da paz perpétua seja
empiricamente realizado) é a que permite a defesa da comunidade política diante
de outras que poderiam agredi-la e enquanto defende a sobrevivência da comuni-
dade política de maneira imediata: referimo-nos à instituição exército. É claro que
há muitas maneiras de interpretar a importância do exército. No Sunzi chinês,
lemos: “A guerra é o assunto mais importante para o Estado.622 É o terreno da vida

620 Ver Weber: “A dominação legal com administração burocrática” (1984; I, III, II; p. 173ss).
621 Ver a Crítica da razão utópica, de Franz Hinkelammert (1985, cap. IV): “O marco catego-
rial do pensamento soviético” (p. 123ss). “Mais que o controle consciente da lei do valor, se
trata do controle consciente de todo o processo de institucionalização e, neste sentido, do
controle democrático da dominação. A abolição da dominação, em sentido estrito, é a ilusão
transcendental de progressos infinitos ou a mistificação transcendental de ações diretas”
(1985, p. 266).
622 Escrito no tempo dos “Estados guerreiros”, na China.

294
e da morte, a via (tao) que conduz à sobrevivência ou à aniquilação. Não pode ser
ignorada” (Sunzi, 2001, 1, p. 107).
Mas, como a guerra está sujeita à decisão estratégico-política, os chineses
sabem sobre as guerras aspectos que, desde os gregos até Clausewitz e Kissinger,
os ocidentais ignoraram: “Em geral, na guerra, é preferível preservar um país do
que destruí-lo, preservar um exército do que destruí-lo, preservar um batalhão do
que destruí-lo [...]. O mais desejável é submeter o inimigo sem lutar batalha algu-
ma” (Sunzi, 2001, 3, p. 125).
A essência da guerra não é o “encontro”,623 mas a defesa da comunidade política,
e a maior vitória é não ter feito nenhuma guerra e ter preservado a vida comum. Se
isto não fosse possível, seria preciso encarar a melhor estratégia, a guerra defensiva.
Nunca se pode justificar politicamente uma guerra ofensiva. Todas as conquistas
coloniais modernas são um crime de lesa humanidade. Não por isso se deve des-
cartar a necessidade do exército defensivo.
[340] É interessante anotar que já Maquiavel indicava que um “Savonarola de-
sarmado” não podia se sustentar no poder. Por isso escreveu A arte da guerra, que
é tão atual, em especial no caso dos países fracos, pós-coloniais, periféricos, como
Afeganistão, Iraque, Cuba, México ou os palestinos no ocidente do rio Jordão, que
se encontram em situações análogas às pequenas cidades renascentistas. Apraz
ler algumas das primeiras palavras do florentino: “Quem deve querer a paz senão
aquele que da guerra pode receber maior dano? Quem há de temer mais a Deus,
senão aquele que, enfrentando diariamente infinitos perigos, necessita mais de sua
ajuda?” (Maquiavel, 1997, p. 530).624
Sabemos que o “inimigo político” (tal como o define Schmitt), por outro lado,
não é o “inimigo absoluto” da guerra; mas, se o exército é uma instituição do Es-
tado, não é a guerra (que é o uso do exército) um momento da política? Penso que
se deva afirmar desde o início que a “guerra defensiva” é certamente um momento
da política em seu direito pleno porque, propriamente, não há inimigo a destruir,
mas existe a necessidade de defender a comunidade e, por isso, mais que alcançar
uma vitória sobre um “inimigo absoluto”, o objeto da guerra defensiva é a vitória
como afirmação da própria vida da comunidade política defendida, como afirmava
o Sunzi, como uma guerra evitada.
O exército do qual falamos é, por outro lado, um “exército defensivo”. A defesa
como objetivo estratégico deve ser vista em suas táticas, em seus instrumentos,
em suas armas, em sua disciplina. Hoje, por exemplo, um exército defensivo deve
ter numerosíssimos mísseis terra-ar mais que aviões; bombas antitanques mais
que tanques; organização disseminada num povo em armas (como os suíços) para

623 Carl von Clausewitz, Da Guerra, L. IV (Clausewitz, 1999, p. 169ss).


624 Proêmio ao livro A arte da guerra.

295
defender seu território (na montanha, no campo, na aldeia, na cidade) mais que bata-
lhões e esquadras para ocupar outras regiões. Uma organização da guerra defensiva
popular, muito racional e tecnológica, faz um povo, embora seja fraco, muito mais
forte para “enfrentar” o inimigo em “encontros” de exércitos estabelecidos. O povo
suíço é um povo em armas. Cada cidadão, durante toda sua vida, segue recebendo
treinamento militar. Guarda em sua casa suas armas, sua mochila e seu uniforme.
Maquiavel já havia mostrado o perigo dos exércitos profissionais separados do povo:
“Otávio Augusto, primeiro, e depois Tibério, atendendo mais a seu poder pessoal
do que ao bem público, começaram a desarmar o povo romano para dominá-lo mais
facilmente e a manter, de contínuo, os exércitos nas fronteiras do Império”.625
Adam Smith mostra, pelo contrário, que somente um exército permanente e
profissional pode realizar a finalidade específica que o pensador presbiteriano justi-
fica. O que acontece é que Smith já pensa num exército imperial agressivo, de domi-
nação de colônias e de superioridade diante de outros exércitos na Europa: “A pri-
meira obrigação do Soberano, que é a de proteger a sociedade contra a violência e da
invasão de outras sociedades independentes, não pode se realizar por outro meio que
o da força militar” (L. V, cap. 1; p. 614). Smith mostra um algo grau de competição
no tema e, pelas finalidades que atribui ao exército, indica a necessidade de passar de
uma organização eventual de milícias ou de camponeses, a um exército profissional
permanente (para o qual, é evidente, é preciso prever gastos importantes).
Entre os filósofos políticos atuais (desde H. Arendt, Rawls ou Habermas, para
citar alguns), este tema nunca é tratado suficientemente. É que pensam desde o
Norte, desde os Estados metropolitanos, que têm os exércitos dominadores do
mundo. Desde o Sul, tudo é diferente. Poderia, então, ser objeto de releitura com
novos olhos o Sunzi, mas também Karl von Clausewitz, no que se refere à “nação
sem armas” que faz trocar o sentido do exército, que nunca deve se dirigir contra
seu próprio povo (como “força de ocupação”), nem sobre outro povo irmão (como
“força de ocupação”). Clausewitz escreve:

Segundo a ideia que temos sobre a guerra do povo, esta, igual a uma essência em forma
de nuvem ou vapor, não se condensa em nenhuma parte nem forma um corpo sólido; de
outro modo, o inimigo envia uma força adequada contra seu centro, arrasa-o e faz mui-
tos prisioneiros [...]. O caminho mais fácil que deve seguir um general para produzir esta
forma mais eficaz de levantamento nacional é apoiar o movimento por meio de destaca-
mentos pequenos enviados desde o exército (1999; L. VI, cap. XXVI; p. 411; p. 442).

O teórico de guerra alemão explica amplamente o sentido de um povo levanta-


do em armas. Na Espanha, o povo derrotou Napoleão. Em nosso tempo, Vietnã e
Iraque puderam vencer forças desproporcionalmente maiores. O exército colom-

625 Como mostra também Huang Tsung-shi, na China (Huang, 1993).

296
biano-norte-americano nunca poderá derrotar os guerrilheiros unidos ao povo. O
exército é uma instituição a serviço da política do povo e também de uma política
com clara pretensão de justiça. Esquecê-lo é cair numa ilusão perigosa.626
O Estado, instituição necessária, do mesmo modo, deve fazer os cidadãos cum-
prir as decisões, isso se as decisões foram obtidas por consenso válido, isto é, legí-
timo (se os afetados participaram simetricamente pelo Princípio Democrático, que
trataremos no § 25). Neste caso, os indicados participantes estão obrigados (cada
um consigo mesmo pelo Princípio da Soberania) a cumpri-las. Ao não fazê-lo,
eles mesmos decretam as penas que devem ser aplicadas aos infratores (tudo, por
ora, num nível ideal). É esta a razão porque a instituição do exercício delegado do
monopólico da coerção do Estado é legítima; e, por isso, a organização que torna
factível tal exigência, a polícia, por exemplo, é necessária (e também legítima, em
princípio). O exército se diferencia, então, da polícia, enquanto que o primeiro
defende a comunidade política de agressores externos como totalidade, a segunda,
dos agressores internos contra os consensos legítimos, promulgados no sistema
do direito. Nada disto é externo e a entropia institucional exige ter os olhos muito
abertos para descobrir quando o legítimo deixou de sê-lo e a mera hegemonia vá-
lida se transformou em dominação encoberta.
Da mesma forma, o Estado tem instituições culturais e educativas para pro-
duzir novo conhecimento e para celebrar sua identidade passada e progressiva de
conteúdos simbólicos que constituem sua “eticidade” valiosa. Não somente tem di-
reito, mas obrigação de fazê-lo. O Estado deve garantir o ensino necessário a toda
a comunidade política, para manejar todos os momentos de sua própria cultura, de
maneira universal, gratuita (ou ao menos igualitária e não, como em certos países,
Estados Unidos por exemplo, onde as diferenças econômicas determinam defini-
tivamente o ponto de partida pela educação diversificada segundo possibilidades
pecuniárias; quer dizer, no momento da seleção dos agentes em todas as profissões
no âmbito social, na sociedade civil ou no Estado627).
Existe, igualmente, um direito do Estado de possuir instituições comunicativas,
meios publicitários do Estado, que permitem informar a comunidade sobre todos
aqueles acontecimentos administrativos, públicos e estatais, sobre os quais a comu-

626 Por exemplo, o México deveria ter um exército absolutamente não convencional. Deveria
estar de todo voltado a resistir a uma invasão (de um poderosíssimo Estado imperial) e, por
isso, com uma estratégia “suíça” defensiva, gastando muito menos em armas pesadas para
substituí-las por armas leves em mãos do povo. Outra solução seria a da Costa Rica: eliminar
o exército, demasiado poderoso ante a Guatemala e demasiado frágil ante os Estados Unidos.
627 No sistema europeu, no latino-americno (onde Cuba é um exemplo a ser imitado) e nos
regimes socialistas (ao menos, como propósito), o ensino público permite a todo cidadão
contar realmente (não declamatoriamente) com as mesmas oportunidades culturais, edu-
cativas, profissionais. A sociedade baseada no mercado é cultural e essencialmente desigual;
o princípio do fairness é uma pura ideologia liberal sem conteúdo social.

297
nidade deve estar informada. Neste sentido, novamente, os Estados europeus man-
tiveram este direito para os Estados. Os países anglo-saxões e os latino-americanos,
que os imitam, abandonaram em mãos da iniciativa privada (da sociedade civil,
como veremos) os meios de informação, o que levou a uma distorção patológica
que deverá ser emendada urgentemente para evitar maiores catástrofes políticas.628
As Secretarias ou Ministérios de Economia, da Fazenda, etc., devem tomar
medidas explícitas (organizativas, legais, alfandegárias, etc.) que regulem o nível
econômico e ecológico. Estas intervenções estatais são consideradas por aqueles
que absolutizam substantivamente o mercado como uma entidade metafísica in-
tocável como indesejáveis. Contudo, eles mesmos sabem que os Estados europeus
modernos foram fruto de exigências próprias da mesma burguesia, do capitalismo
que necessitava mercados em territórios ampliados, até pelo mundo colonial (e
pós-colonial) abarcar todo o globo terráqueo. Sem a intervenção política dos Es-
tados metropolitanos, este processo teria sido impossível. Agora, pedem a não-in-
tervenção, no momento em que os Estados do Sul do planeta devem cumprir nesta
etapa da história funções análogas do nascimento a uma acumulação de riqueza
em mãos das comunidades políticas pós-coloniais.
Como se pode supor, indicamos somente alguns aspectos de tudo o que consti-
tui as instituições da macroinstituição que chamamos sociedade política, isto é,
o Estado em sentido restrito.

3. As estruturas da “sociedade civil” (o Estado em sentido ampliado)

[341] Como parte do Estado, embora com menores graus de sistematicidade,


e no sentido do Estado ampliado em A. Gramsci,629 a sociedade entra a exercer
uma função cada vez mais ativa como momento do campo político, no cruzamento
(overlapping) com muitos outros campos não políticos – mas, em outro sentido
que o determinado pelo “âmbito” de “o social”. A sociedade civil é constituída por
instituições, associações, organizações não governamentais (ONGs), de origem
privada ou particular, que cumprem finalidades próprias, mas têm também fun-

628 Trataremos este tema no próximo § 23.5 [362ss) e na Crítica (§ 43), já que penso que a “me-
diocracia” se transformou na América Latina num problema político central a ser resolvido
com a maior brevidade possível.
629 Além dos autores já indicados, ver Solari (1976, p. 564ss), Cohen e Arato (1995, p. 345-
563), toda a discussão entre J. Habermas, Reinhardt Koselleck, N. Luhmann e Cohen e
Arato, que a todo custo querem colocar a sociedade civil no “mundo da vida” (Lebenswelt),
fora dos sistemas político e econômico, introduzindo um interessante debate sobre a “esfera
pública” em sua história, já que os “direitos de comunicação e os direitos privados fazem
possível a sociedade civil moderna” (1995, p. 413), temas sobre os quais nos debruçaremos
no seguinte § 23.

298
ções estruturais na criação do consenso necessário, na acumulação de força e na
elaboração da agenda das atividades públicas que exerce a sociedade política.
Sua atualidade é fruto de algumas conjunturas que podem se esgotar no curto
prazo, mas abrem, de todos os modos, problemas de maior alcance. Nas socieda-
des do socialismo real da Europa do Leste, não havia propriamente sociedade civil
ou persistiam como presenças ainda retardatárias da ordem burguesa capitalista
já superada. A insistência na importância da “vida cotidiana” por uma pensadora
como Agnes Heller (1970; 1970c; 1978), da Escola de Budapeste, indicava a im-
portância desta sociedade civil necessária. Da mesma maneira, se falou da presen-
ça da sociedade civil nas ditaduras latino-americanas (de 1964 a 1984), quando
lentamente os cidadãos foram se opondo aos Estados autoritários de dependência
pós-colonial. Também se usa este termo, por exemplo, em movimentos de classe
média e alta na Venezuela, como oposição apoiada pelos meios de comunicação
transnacionais a serviço de interesses antipopulares.630 De qualquer modo, estes
corpos intermédios entre o cidadão singular, as organizações sociais e a sociedade
política propriamente dita, vêm se fazendo presente com maior força nos últimos
tempos. É necessário prestar-lhes atenção. Mas, especialmente, pelo sentido que
lhe dera A. Gramsci, enquanto constituem o “sentido comum” que justifica a agen-
da do Estado (a sociedade política).

Esquema 22.05. O “social”, a “sociedade civil” e a “sociedade política”

III
Estado
Sociedade
restrito
Política
Estado
ampliado
Sociedade civil
II

O Social
I

630 No México, igualmente, uma marcha contra a insegurança, auspiciada pelos meios de comu-
nicação e as classes médias conservadoras, em 2004, contra o governo popular do Distrito
Federal, de J. M. Lópes Obrador, se fez chamar “sociedade civil”.

299
A sociedade civil, por outro lado, fortalece a esfera pública, e em algumas oca-
siões se identifica com ela. Nos salões literários do século XVIII, nas comunidades
de algumas organizações mais ou menos secretas, foi nascendo a opinião pública,
política, ante o Estado absolutista monárquico.
As organizações religiosas (Igrejas, comunidades, denominações, seitas, mo-
vimentos espirituais, etc.) também são parte importante da sociedade civil. Na
época da Cristandade colonial das Índias ocidentais (na América Latina), a Igreja
católica foi algo mais do que isso; foi um momento constitutivo central da socieda-
de política, como se pode ver na Recopilación de las Leyes de los Reynos de las Indias,
onde exercia uma função fundamental não somente na educação dos invasores
europeus e na transculturação dos indígenas, mas também como uma instituição
judicativa, que fiscalizava o poder político das instituições seculares. Esta função
explicitamente política irá se transformando lentamente nos séculos XIX e XX,
pela secularização da sociedade política, mas a Igreja Católica guardará (como na
Itália de A. Gramsci) um lugar central na sociedade civil, quiçá como a mais impor-
tante das instituições neste subcampo político. É evidente que a Igreja não se esgota
como participante da sociedade civil, já que, por organizações próprias, está presen-
te no âmbito social e em especial no campo cultural – seu lugar específico desde
sua origem no Império romano, tendo ocupado muitas outras funções em outros
campos, mas de maneira supletiva, conjuntural, segundo os desafios dos tempos.
As instituições próprias do campo econômico, como as empresas capitalistas,
os sindicatos de trabalhadores, os organismos de coordenação empresarial, os
bancos, o próprio mercado, a propaganda nos meios de comunicação, a cultura
que instaura as mercadorias e suas modas (programadas para destruir o valor de
uso sem ter sido usado, porque, simplesmente, não se usa mais um bem “porque
não está na moda”,631 e é descartado como inútil), exercendo um poder econômico
imenso, faz-se presente também na sociedade civil através de organizações públi-
cas de pressão política.
As escolas e universidades privadas, os meios de comunicação (aos quais re-
servaremos algum lugar em outros parágrafos desta Política da Libertação, por
sua crescente importância e coativa intervenção ainda não democrática ou politi-
camente regulamentada), quer dizer, a televisão, as rádios, a imprensa em geral,
os editoriais, os movimentos culturais, artísticos, os museus, etc., são momentos
insubstituíveis na criação de consenso e na hermenêutica do acontecer político em
geral da comunidade política. Não é simplesmente um poder a mais (é um me-
gapoder de poderes: a mediocracia fora de toda legalidade no momento).632 Com

631 Ver de Jean Baudrillard, Para uma crítica da economia política do signo (México, Siglo XXI,
1977).
632 A “liberdade de imprensa” (como a “liberdade do mercado”) ainda não foi ainda regula-
mentada ou limitada) a partir do “direito à informação veraz” (como o “direito a evitar ser
vítima dos desequilíbrios ou efeitos negativos desiguais na redistribuição de bens pelo mero

300
Gramsci, é preciso considerá-los o momento de criação cultural de legitimidade
de um regime político. Daí, igualmente, os movimentos de “intelectuais”, em todos
os ramos do saber, da experiência e das vanguardas dos movimentos sociais ou
populares, os “intelectuais orgânicos” que são os que possibilitam a formulação
legitimamente simbólica e que incentivam a mobilização histórica do “imaginário
popular tradicional”. Não existe sociedade política que possa exercer o poder a
longo prazo sem a “explicação” que da história, da política, da ética e do sentido
geral da vida proponha uma geração de intelectuais orgânicos. Nenhum regime
político, e menos quando busca uma transformação de fundo, foi produzido na
história sem o antecedente que supôs a “releitura da história da humanidade”, que
foi feito por uma comunidade científica (em especial, de ciências sociais), a fim
de fundamentar o período em que o regime no exercício do poder lhe toca jogar
sua oportunidade. O confucionismo na China, a ontologia bramânica na Índia,
o platonismo nos impérios helenistas, a teologia dos padres gregos em Bizâncio, o
agostinismo e tomismo na Cristandade latino-germânica, as escolas corânicas (he-
lênico-arabizadas) nos Califados islâmicos, a Ilustração na Modernidade, o marxis-
mo nos Estados socialistas, etc., deram a “base” de um certo consenso sobre o que o
poder podia ser exercido. Estas comunidades de intérpretes, de hermeneutas (apa-
rentemente depreciados em nossa época tecnológica) seguem aportando as últimas
razões de todos os campos práticos e das instituições e sistemas que os factibilizam.
Os movimentos sociais podem também ingressar na sociedade civil, enquanto
se fazem presentes com demandas políticas, como qualquer outra associação civil.
Por exemplo, as cooperativas de produção e consumo633, a organização de socie-
dades de troca (mutuais) como protesto político, são também instituições civis.
Os movimentos étnicos também são questões da sociedade civil. Em primei-
ro lugar, para conseguir fazer compreender que os Estados (sociedades políticas)
devem se definir na base de uma pluralidade étnica (se as houver, como na Bolívia,
Equador, México, etc.) e também regular as relações interétnicas, quando seja ne-
cessário (Cf. Stavenhage, 2000). Nestes casos, os problemas culturais de nações
diferentes no mesmo território, sob um mesmo manto institucional do Estado,
exigem a potenciação de uma sociedade civil onde o problema étnico, indígena, em
outros casos, tem carta de igualdade com outros momentos deste mesmo subcam-
po político. Os movimentos indígenas da Bolívia ou Equador, que conseguiram
destituir um presidente ou paralisar um país durante longo tempo, mostram a
“passagem” de um movimento social que se faz presente na sociedade civil com
uma clara intenção política e que pressiona a sociedade política como tal. Neste
sentido, a Frente Zapatista de Libertação Nacional se define a si mesma como

mecanismo do mercado”; quer dizer, o direito de regular legalmente o mercado) a favor da


comunidade política.
633 Ver a obra pioneira de Rizeto Migliaro (1985, 1988 e 1991) sobre a qual voltaremos na
Crítica, volume III desta Política da Libertação.

301
uma força na sociedade civil e que “empurra” o crescimento de outras forças, no
mesmo subcampo político, para transformar o Estado. Veremos mais adiante estes
movimentos sociais que se transformam em atores políticos.
O neoliberalismo, em resposta às gestões novas do campo político, neste mo-
mento, lança certos setores da sociedade civil (identificada com a pequena-bur-
guesia temerosa do popular empobrecido) contra os Estados pós-coloniais. Isto
acontece enquanto estes tentam reconstruir sua estrutura para se defender do ata-
que da globalização capitalista que impera sem nenhuma regulação (que deveria
começar a estabelecer um “Estado de direito” no mercado mundial, em referência
às transnacionais, ao fluxo do capital financeiro em “paraísos fiscais”, a mecanis-
mos de endividamento de países pobres, com uma grande falta de equidade, etc.).
Manipulam-se certos grupos da sociedade civil, apoiada pela mediocracia, com o
objetivo de desestabilizar o poder democraticamente instituído, formulando-se,
assim, um novo modelo de estratégia da oposição política que se orquestrou, por
exemplo, desde 2001, na Venezuela. Denomina-se de “modelo venezuelano”, que
consiste na gestão mediocrática da sociedade civil com atores burgueses da classe
média (que anteriormente nunca tinham ganho a rua) contra regimes ou políti-
cos que defendem um certo nacionalismo popular radical (tipo Hugo Chávez). A
questão da “opinião pública” – como veremos mais adiante – mudou radicalmente
de natureza. A imprensa, como meio escrito, exigia do leitor a profundidade e o
repouso para poder pesar argumentos. A liberdade de imprensa era uma garantia
de informação. Ao contrário, a televisão, com seus “estilhaços” de imagens, obnu-
bila por completo o processo discursivo racional e impõe de maneira imediata o
conteúdo notificado por repetição e pela autoridade mistificada dos meios públicos
(embora privados por sua origem, interesses e intenções). O telespectador passivo
é conformado pela notícia idelogicamente orientada de maneira não direta, mas
facilmente discernível por um telespectador crítico (mas, quase inexistente, porque
não existe nenhum tipo de educação crítica). A comunidade política vai desen-
volvendo de maneira intuitiva uma certa consciência crítica, de algum modo, mas
que é totalmente insuficiente em relação ao efeito avassalador da programação
tecnicamente orientada da televisão e, em menor medida, do rádio. Voltaremos
sobre este tema.

4. Os partidos políticos

[342] A consideração da origem histórica dos partidos políticos modernos634


ajuda para compreender melhor o sentido desta instituição ligada principalmente à
sociedade política. Deveriam ser os vasos comunicantes entre a sociedade política

634 Ver, entre outros, Duverger (2002) ou Giddens (1996, p. 350ss).

302
(à qual pertencem em sentido lato), a sociedade civil e o âmbito social (onde se “cru-
zam” outros campos práticos, o econômico, o ecológico, o cultural, etc.) que, como
a “árvore sagrada” maia, tem suas raízes no solo nutritivo do social, seu tronco na
sociedade civil e sua folhagem e frutos na sociedade política. Quando é algo mais
que uma “maquinaria eleitoral”, cumprem uma função insubstituível na democra-
cia representativa, embora devam ser complementados com novas estruturas que
organizem a democracia participativa. Contudo, sua história talvez nos manifeste
empiricamente mais sobre sua natureza do que uma teoria puramente dedutiva.
Sempre houve, desde a fundação das cidades, grupos de pessoas que formavam
uma comunidade que eram mais influentes que outros junto aos que exerciam o
Poder. Entre os chineses, a escola legalista se opunha, em algum momento, à confu-
ciana, e os imperadores se apoiavam em uns e perseguiam a outros. As escolas filo-
sóficas entre os mandarins, na verdade, eram frações com opinião e poder político.
No Egito, comunidades de sábios (ou sacerdotes dos diversos deuses) constituíam
estruturas de poder. Entre os gregos, na ágora, se reuniam os membros em torno
de pessoas, ou por bairros, ou por interesses comuns. Em Bizâncio, igualmente.
Entre os islâmicos, o Califado, num momento, alentava uma escola de direito,
num outro momento, outra. O mesmo ocorria com os reis medievais. Mas o que
denominamos “partido político” é um fenômeno moderno, europeu, e, dependente
do adaptar-se um método eletivo, por votação, dos representantes aos órgãos cole-
giados do governo, depois do triunfo da burguesia, e como maneira de deslocar o
poder tradicional da nobreza.
Na revolução francesa, na Constituinte de 1789, os deputados, eleitos regio-
nalmente entre os “notáveis” do lugar, segundo diversas maneiras, mas, em geral,
representantes de grupos oligárquicos sem nenhuma representação popular, ao
reunirem-se em Versalhes, alguns, como os bretões, por exemplo, provenientes de
uma mesma província, se reuniram para unir ideias. Transladada a Constituinte
para Paris, se reuniram no convento dominicano de Saint-Jacques, donde recebe-
ram o nome de “ jacobinos”. Este grupo, como primeiro recordado pela história, era
simplesmente um grupo de deputados. No Parlamento de Frankfurt, ao contrário,
se reuniam posteriormente por afinidades ideológicas: no café Milani (extrema-di-
reita), no do Cassino (centro-direita), no hotel Würtemberg (centro-esquerda), na
rua Castiglione (esquerda), no hotel Mont-Tonnerre (extrema-esquerda).
Pouco a pouco, porém, quando foi preciso pensar na reeleição dos represen-
tantes, começaram a organizar comitês eleitorais, de amigos ou correligionários
dos eleitos, os que criaram o outro polo dos futuros partidos: os deputados eleitos
e os organismos de base responsáveis de sua eleição futura. Em geral, os partidos
nasceram, então, “de cima para baixo”. Na Inglaterra, por exemplo, para obter uni-
dade nas votações, se “comprava” os votos dos deputados, havendo, inclusive, uma

303
Patronage secretary, onde os deputados passavam, após as votações, para cobrar o
prometido. Havia um inspetor (“látego”: Whip) que controlava se havia votado
efetivamente como havia prometido (Cf. Duverger, 2002, p. 18).
O aparecimento de partidos nascidos “de baixo para cima” é devido aos grupos
de esquerda. Em primeiro lugar, o sindicalismo, as trade unions britânicas que, em
1889, criam um organismo político (passa do âmbito social à sociedade política
propriamente dita), pela moção Holmes, que será o Labour Party. Existiram outros
partidos socialistas, de origem parlamentar e de intelectuais. Em fins do século
XIX, na Bélgica e Holanda, nasce o partido conservador católico. Como os socia-
listas, são partidos com organização social e da sociedade civil antes de conseguir
representantes nos parlamentos.
Mais organizado ainda, mas de características próprias de partidos nascidos na
clandestinidade, com métodos próprios das sociedades secretas, nascerá o partido
bolchevique russo, liderado por Lênin, por exemplo. Quando, em 1917, passa ao
exercício do poder, conservará traços de sua época clandestina, dali a importância
de seu Comitê Central e sua organização “de cima para baixo”.
Os partidos fascistas, na Itália (caso bem estudado por Gramsci) e na Ale-
manha (para o qual se inclinará no começo dos anos trinta Carl Schmitt, já que
coincidia com sua crítica do liberalismo parlamentarista do período de Weimar)
tenderam à constituição igualmente (como os comunistas) de um partido único.
O bipartidarismo norte-americano, que se situa na origem da organização dos
partidos modernos, segue um processo distinto dos europeus, mas também surgiu
desde grupos de deputados que organizaram seus comitês eleitorais, tendo uma
mínima diferenciação ideológica ou social (embora os democratas mais ligados aos
sindicatos e os republicanos ao grande capital) e não constituindo muito mais que
uma “maquinaria eleitoral”.
[343] Na América Latina, os primeiros partidos, no sentido moderno, nascem
no século XX. Na Argentina, com a lei Sáenz Peña, de 1912, de eleição universal e
com a eleição de uma primeira votação popular com padrão, em 1918, inaugura-se
o sistema de eleições com partido. O Partido Radical, que surge da revolução de
1890, chega ao poder. Desde os anos trinta, lentamente, os partidos populistas
(desde 1918, Hipólito Irigoyen, na Argentina; desde 1930, Getúlio Vargas, no
Brasil; desde 1934, Lázaro Cárdenas, no México; um modelo populista pós-colo-
nial, com valores que é necessário saber revalorizar no presente) organizam uma
vida política unipartidária que, de todas as formas, era, talvez, o mais factível e
que permitiu um amadurecimento político que dificilmente teria tido outra opor-
tunidade. Sua crise desde 1954 (que começa com a queda de Jacobo Arbenz, na
Guatemala), permitirá a tomada do governo por parte de partidos desenvolvimen-
tistas, primeiro, e de crescente dependência dos Estados Unidos, depois. As dita-

304
duras militares (desde 1964, no Brasil, até 1985) interrompem o pouco de vida
democrática acumulada, para posteriormente organizar débeis governos de maior
dependência diante do avanço do neoliberalismo avassalador. No século XXI, há
um lento surgimento de neopopulismos radicais de vocação nacionalistas, desde
N. Kirchner, Luiz Inácio Lula da Silva, H. Chávez, a Frente Ampla no Uruguai,
Evo Morales, na Bolívia, etc. pressagiam novidades diante da crise que produz
uma miséria crescente.
O sistema de partidos da sociedade política pode ser muito diverso. Há os
unipartidarismos (como em Cuba), bipartidarismos (como nos Estados Unidos)
ou pluripartidarismos (em quase todos os países). A partir da eleição universal
de representantes e pelo princípio da maioria (duas instituições cuja factibilidade
concreta mostrou eficácia, mas que não tem por detrás uma teoria coerente) ou de
representação proporcional, às vezes, mista, o partido pode ter uma convocatória
mais classista (como o Labour Party, em sua origem), ser expressão de comunida-
des religiosas (como as Democracias Cristãs) ou étnicas (como o Partido Nacional
Escocês, o Nacionalista Vasco, na Espanha, ou o EZLN entre os maias) e, recen-
temente, por exemplo, a partir dos desafios ecológicos (como os Partidos Verdes).
Os partidos são, então, uma instituição nascida à sombra do Estado moderno,
que abarca pronunciadas diferenças em diversas regiões. O Partido do Congresso
da Índia (de inspiração populista pós-colonial, impulsionado principalmente pelo
próprio Mahatma Gandhi) não pode ser comparado com o Partido Comunista
Chinês (fundado por Mao-Tsé-Tung), embora ambos tenham conseguido grande
estabilidade na manutenção do controle do governo.
Enquanto no centro do sistema (Europa, Estados Unidos, etc.) existe como
que um “desalinhamento partidista”, cansaço político (Giddens, 1996, p. 354ss),
não se pode dizer o mesmo da periferia. Veremos na secção Crítica desta obra esta
problemática. No centro, uma certa crise do Estado de bem-estar deu lugar à etapa
thatcherista (1979-1990) e reaganiana. Isto foi devido, segundo alguns, a uma “so-
brecarga do Estado” – que tendo prometido mais e mais desde o final da segunda
guerra mundial, não pôde já pagar a seguridade social, a assistência à saúde, a
educação, etc. Para outros, foi uma “crise de legitimação”, embora as causas desta
crise sejam aproximadamente as mesmas (falta de recursos).
Na periferia pós-colonial, pelo contrário, o nascimento, a organização e a crise
dos partidos políticos segue, todavia, completamente outra sequência. No período
de entre-guerras, o surgimento de uma certa burguesia nacional permitiu a origem
dos partidos populistas (partidos com um projeto nacional anti-imperialista, de
burguesia industrial, de afirmação da identidade cultural, etc., como na Indonésia
com Sukarno, com Nasser no Egito e com os citados na América Latina) ou fran-
camente revolucionários (como na China, no Vietnã ou em Cuba, etc.). A crise

305
do Estado populista começou, como já indicamos, em 1954 (quando os Estados
Unidos terminam de organizar sua hegemonia global do capitalismo mundial, em
tempos de Guerra fria).
Paradoxalmente, porém, quando no “centro” se fala de crise do Estado, na pe-
riferia se pensa na reorganização do Estado para fazer frente ao avanço neoliberal
que destrói as economias (e os mercados) periféricos. Este fora de tempo ou pro-
cesso sem sincronia, não é advertido facilmente na filosofia política dos Estados
Unidos e Europa e se pensa como se o mundo palpitasse com o mesmo ritmo
político. Mas não é assim.
O que a periferia pós-colonial necessita neste momento são partidos que dei-
xem de ser “maquinaria eleitoral”, que, de baixo para cima”, fundem suas raízes nos
desafios sociais, materiais e saibam formar representantes que responsavelmen-
te possam elaborar projetos políticos que o momento exige. Certamente, o nível
material (ecológico, econômico e cultural) tem uma prioridade angustiante, e os
partidos serão julgados e eleitos por sua capacidade na solução destes problemas
materiais, em primeiro lugar.
Veremos mais adiante outras exigências formais, de legitimidade, de democra-
cia, que são igualmente essenciais. Ao tratar o problema da democracia (nos §§ 23
e 25), deveremos nos debruçar sobre alguns aspectos referentes aos partidos, já que
se encontram intimamente ligados.635
A estrutura, o estilo, o método para eleger seus dirigentes e candidatos, seu
projeto, a formação disciplinada da vontade de seus membros, tudo pressagia o
tipo de governo que cumprirão. Quem não foi profundamente democrático em
suas próprias eleições; quem não se ocupou fraternalmente com os membros do
partido, mal poderá fazê-lo quando for governo. O partido é uma “escola” de po-
lítica, é um miniestado, onde se atrai a juventude (as próximas gerações) e onde se
formam os “quadros” (dirigentes e representantes com espírito de serviço à comu-
nidade). Uma “maquinaria eleitoral”, repetindo, é uma caricatura de partido que
pode ser útil nos Estados do “centro”, onde tem uma estrutura econômico-militar
dominante, mas não é sustentável na periferia, onde o estado de prostração é hu-
milhante e destruidor.

635 Não é o mesmo uma democracia representativa multipartidária, que uma democracia re-
presentativa de um só partido, e a democracia participativa (que não é necessariamente
democracia direta, como veremos muito mais adiante).

306
§ 23. A ESFERA FORMAL DA LEGITIMIDADE (O ESTADO DE
DIREITO E A OPINIÃO PÚBLICA POLÍTICA)
[344] O tema deste parágrafo,636 como seu título sugere, trata o que na moral
ocupa a questão da validade prática intersubjetiva ou a aplicação do princípio de uni-
versalidade: o que foi acordado é válido, porque foi decidido por uma participação
discursiva e simétrica dos afetados.637 Analogicamente, o que na moral se denomina
validade prática, em política se denominará legitimidade institucional. A intersubjeti-
vidade na política se refere a esta questão da validade, em geral subsumida dentro do
horizonte do campo político. A pergunta é: em que condições uma ação estratégica
ou uma instituição política tem legitimidade? Sem legitimidade, todos os momentos
do campo político carecem de uma fundamentação comunicativa, consensual, que
dê força discursiva à unidade da vontade de todos os participantes. Vale dizer, sem
legitimidade, se perde o poder político, em seu sentido originário, forte, fundamental.
Poder-se-á exercer a força, o domínio, a violência e outros tipos de relações práticas
políticas, fetichizadas (já que são exercício de um poder tirânico, de ditadura, etc.),
mas já não será poder político obediencial que responde à potentia. Quem constrói
somente sobre a força da violência edifica sobre areia, a longo prazo vem a torrente
de água e, socavando os cimentos, deita a obra abaixo. Augusto Pinochet e Carlos
Menem são bons exemplos disso. E isto porque não se reúnem as vontades plurais
por comunicação consensual (que sempre envolvem a razão discursiva) ou se usa
a força, a violência, o engano, etc., manobras que constituem uma unidade débil,
puramente aparente, ocultando o ter “dominado” a vontade da comunidade sem seu
próprio consentimento livre, autônomo, racional. A unidade é fictícia. A política,
para ter duração de longo prazo, exige legitimidade consensual aceita por todos os
membros do corpo político. É um componente essencial da definição do político do
campo político.
O sistema democrático constitui uma totalidade de funções estruturais, que
servem de mediação legitimadora entre a comunidade política soberana, lugar de
emergência do poder (potentia) e as instituições encarregadas do exercício delegado
do governo do poder do Estado (tanto no sentido restrito como amplo: a potestas).
Um sistema democrático concreto é uma estrutura empírica, nunca perfeita (de ma-
neira que o princípio democrático638 jamais pode ser perfeitamente levado a cabo; é
impossível efetuá-lo de todo faticamente) e, portanto, nenhum sistema empírico ou
histórico (ou tipos concretos de sistema democrático, como, por exemplo, o liberal
ou o norte-americano) pode ter a pretensão de ser o modelo democrático a impor a

636 Ver Tese 8.1 de 20 Teses de Política (Dussel, 2006).


637 Ver toda a problemática desta questão desde minha tomada de posição sobre o assunto que
expressei em minha Ética da Libertação, cap. 2 (Dussel, 1998 [114-160]) e em Apel; Dussel
(2005).
638 Ver mais adiante § 25.

307
qualquer outro Estado. Todos os sistemas empíricos democráticos podem acercar-se
ou afastar-se de um modelo ideal inalcançável, impossível de se efetuar empirica-
mente de maneira acabada. A democracia, enquanto tal, é também um postulado, do
que resultam tantos falsos problemas que se apresentam em seu estudo ou descrição.

1. A discursividade da política. Soberania e legitimidade


A passagem da esfera material para a esfera formal é expressa por Hegel, ao
escrever em sua Filosofia do Direito:

A relação recíproca das necessidades e do trabalho refletem em si, em geral na perso-


nalidade indeterminada,639 no direito abstrato. É na esfera do relativo, como cultura,640
que se dá a existência (Dasein) do direito, como o reconhecido (annerkantes), sabido e
querido universalmente, que recebe validade (Gelten) e realidade objetiva por mediação
deste saber e deste querer (Hegel, 1971, VII, p. 360).641

O que Hegel indica como “cultura” é o âmbito da intersubjetividade histórica.


Para ele, a “eticidade” (Sittlichkeit) deve ser interpretada “intersubjetivamente”, ge-
neralizando a doutrina do “reconhecimento” da sua juventude.642 O âmbito de uma
subjetividade indeterminada, na intersubjetividade da comunidade política, quer
dizer, não institucionalizada ainda no político, adquire pela institucionalização
concreta de um sistema cultural ou civilizatório dado, desde o mútuo reconhe-
cimento, a validade universal, sabida (consensual ou discursivamente) e querida
(como pluralidade de vontades), que adquire a forma determinada de um sistema
de direito. Deste modo: “A realidade objetiva do direito é, por uma parte, do que se
tem consciência [quer dizer] de ser algo sabido; [e] por outra parte, o ter o poder e a
validade do real, e, por isso, tornar-se consciente do saber de sua validade universal
(allgemein Gültiges)” (Hegel, 1971, VII, p. 361).643
Para que algo valha praticamente644 para alguém, é necessário que este “alguém”
tenha podido de uma maneira livre, autônoma (estas são as condições kantianas e
liberais, que frequentemente se opõem à justiça645), aceitar as razões (não os atos

639 Unendlichen pode ser traduzido por “infinito”, mas prefiro a tradução que proponho.
640 Vimos que é o último momento ou subesfera material.
641 Rechtsphilosophie, § 209.
642 Ver Vittorio Hösle (1987), em especial, quando se refere à “intersubjetividade” (4.2.4, p.
263ss) e sobre a “eticidade” (7.5, p. 528ss) ou em “O cristianismo como a religião da inter-
subjetividade” (8.2.3, p. 651ss) e a obra já citada Kampf um Anerkennung (Honneth, 1992).
643 Rechtsphilosophie, § 210.
644 Embora a validade teórica, estudada por Peirce e Apel, tenham as mesmas exigências.
645 Se a “ justiça” estivesse enquadrada somente no nível material (e é falso porque há exigências
de justiça procedimental) não somente se oporia às exigências formais ou de validade, mas
que seria necessária para articular a “pretensão de bondade” (na ética) ou agora “pretensão
de justiça” (na política, como veremos no § 28).

308
ou “pressões” contra sua vontade pela violência ou a pura força física) que se lhe
oferecem a seu consentimento, à sua aceitação racional. As condições de “aceita-
bilidade” de questões a serem decididas praticamente de maneira racional são,
intersubjetivamente falando, as condições da validade e, em política, da legitimi-
dade. A “força”646 da vontade em torno do decidido mutuamente de maneira livre
(indica a incondicionalidade da subjetividade) e racionalmente (indica o modo ou
forma – argumentativa, com razões – da proposta intersubjetiva, que lhe permita,
desde a própria decisão, autônoma, de cada participante o “tomar como próprio”
o enunciado alheio: aceitá-lo como razoável) é o poder. Quanto maior a liberdade
e autonomia têm os participantes e quanto maior simetria supõe, tanto maior é o
poder resultante. É um momento essencial da política.
A pluralidade de vontades deve, então, alcançar consenso em numerosos e de-
cisivos aspectos da vida da comunidade política, para poder desenvolver as exi-
gências dos projetos de todos os participantes. Para isso, cada um deve decidir
sobre os projetos. O mero decidir algo entre muitas vontades põe já sobre a mesa
o modo, a maneira, o procedimento que será usado para realizar tal decisão desde
uma pluralidade de vontades que podem se opor irreconciliavelmente (e perder,
portanto, o poder). Paradoxalmente, a primeira decisão a formular é o modo de
como se deverá decidir. Como a decidibilidade é inevitavelmente finita, imperfeita
(impossível de ser exercida perfeitamente), será preciso que lentamente se provem
historicamente as maneiras imperfeitas, mas sempre perfectíveis de decidir com
maior legitimidade. Mas, antes ainda de decidir o modo de decidir as decisões,
há uma pergunta essencial: quem tem o direito, a potestade ou a autoridade de
decidir? É a questão tradicional da soberania, sobre a qual já Jean Bodin647 escreveu
o primeiro famoso livro (colocando-lhe um nome, soberaineté, e definindo a antiga
questão: quem tem, em último termo, esta capacidade, majestatem, escreve Bodin,
e donde a recebe?).648 Toda a história da filosofia política é o longo caminho da pas-
sagem da soberania dos deuses (como na Mesopotâmia, já que eram os deuses que

646 Que não seria o temor ante a violência, mas a convicção humana de que o que se propõe é
válido para todos (universalidade concreta), onde se guarda um equilíbrio entre: a) o ter que,
talvez, mudar uma decisão “X” porque se mostra com razões que “Z” (proposta por outro)
é melhor, e b) o ter que aceitar ou “assumir como próprio” “Z”. Não é fácil motivacional ou
afetivamente este “deixar o próprio” pelo alheio. Exige um ato de virtude (humildade), em
seu sentido profundo. “A humildade é a verdade”, dizia a grande mulher espanhola Teresa
de Ávila, um ato que se impõe subjetivamente porque a razão discursiva dá o fundamento
e o conteúdo (material) à vontade. É por isso que a pluralidade de vontades unidas pelo
consenso racional constitui o poder político de uma comunidade. As vontades foram “dis-
ciplinadas” (não reprimidas) pelo consenso discursivo. Este último é agora nosso tema.
647 Ver na História desta Política da Libertação [130].
648 Claro que se dizemos qual é a “última autoridade”, por definição não pode “recebê-la”. Mas,
neste caso, a recebe de si mesma, ou melhor, é autorreferencial. Na tradição mesopotâmica,
egípcia, grega, islâmica, cristã, etc. a “última” instância eram os deuses ou Deus que a tinha
como atributo próprio não recebido.

309
ditavam a lei649) à soberania do rei (como Hammurabi, que recebia a lei dos deuses,
e, posteriormente, do Deus monoteísta nas tradições semitas, bizantina, islâmica
ou segundo a tradição cristã latino-germânica). Até que a soberania chegasse a ser
uma faculdade da comunidade política como tal. Com Francisco Suárez, contra
Bodin e outros autores, incluindo Hobbes, Deus não dá ao rei a autoridade em
primeiro lugar, mas aos reinos que firmam o pacto com o rei (que recebe a auto-
ridade dos reinos que firmam o pacto). Mas o passo definitivo é quando se define
como última instância da soberania a própria comunidade política, como o último
fundamento intersubjetivo da soberania. Sem dúvida, o caminho foi lento porque,
em muitos casos, se pensava que o soberano era o Estado, a macroestrutura da so-
ciedade política, que se levantava como um Leviatã, como um novo Deus na terra.
[345] Para esta Política da Libertação, a última instância da soberania, a última
instância na tomada de decisões e, por isso, a origem de “dar-se as leis” (e tudo o
que isto supõe, como veremos) é a própria comunidade política como pluralida-
de de vontades consensuadas. A única soberana é a própria comunidade política
como totalidade. Sua intersubjetividade autônoma, comunitariamente livre e res-
ponsável, é o fundamento desde onde se tomam as decisões (como vontade e como
consenso discursivo racional). O fundamento ontológico primeiro, como poder
instituinte originário, é o poder da própria comunidade política em sua maior
generalidade e extensão, que denominamos potentia (ver § 14). Todos os cidadãos
(e, por isso, a importância de internar-se mais além do horizonte do sistema até os
que não são parte, fazendo participantes os excluídos: desde os antigos escravos na
Grécia até as mulheres, os não-proprietários, os não-alfabetizados, os proletários,
os idosos, os menores de vinte e dois anos, os cidadãos que habitam terras estran-
geiras, etc.) devem ser partes componentes indivisíveis do corpo político que exerce
sempre (no tempo), em todo lugar (no território do Estado), em toda circunstância
(universalidade de ser membro do corpo), o poder de decisão universal como poder
instituinte primeiro, do que chamaremos comunidade política particular (dentro
dos limites de um território, de um Estado particular: México, Alemanha, Rússia,
Estados Unidos, Nigéria, etc.650). A potentia funda a potestas.
A soberania, deve-se precisar, é uma determinação da comunidade política
e não de alguma instituição particular. Nenhum cidadão singular que exerce o
poder delegado é soberano. A comunidade intersubjetiva o é. Por outra parte,

649 Ver nesta Política da Libertação [6ss]. Moisés recebe no Sinai a Lei do seu Deus.
650 Deve-se, ainda, colocar o último termo de toda soberania possível, a de toda a humanidade
(já sem limites e sob o exercício de uma instituição a ser construída no futuro no horizonte
mundial). Chegará o dia em que certas decisões gravemente ecológicas poderão ser pos-
tas em votação universal. Os instrumentos eletrônicos permitem já imaginar, sem sonhar
demasiadamente, consultas ou plebiscitos nos quais participe toda a humanidade em as-
pectos pontuais muito graves. Isto supõe um aumento gigantesco da formação da vontade
democrática, em especial nos autodenominados países mais desenvolvidos (por exemplo, o
“Grupo dos Sete”).

310
como é uma determinação do poder, enquanto a pluralidade de vontades dos ci-
dadãos está unida consensualmente como comunidade política, somente existe
soberania quando dito poder político tem autodeterminação, isto é, liberdade como
independência ante outro poder estatal e autonomia em relação a todo outro poder
legislativo. A emancipação das colônias, por exemplo, permite determinar o poder
da comunidade política da ex-colônia como autônomo (neste caso, com capacidade
de ditar suas leis). Não se trata da liberdade e da autonomia do cidadão (como
condição do ato moral ou político como tal), mas da liberdade e autonomia da
comunidade (como condição do ato soberano e da possibilidade da instituição de
leis próprias). A soberania é, assim, uma determinação do poder político: é o mo-
mento em que dito poder, ao possuir a autodeterminação, pode constituir-se como
poder instituinte sem dependência de outras comunidades políticas. Os Estados
pós-coloniais, frequentemente, não alcançaram ainda plena autonomia no começo
do século XXI, quer dizer, ainda não tem real independência ou soberania política.
Dependem das metrópoles no fundamento de suas últimas decisões.
Primeiro, está a) a comunidade política; depois, b) o poder político (potentia),
embora seja inicial e somente emergente no “acontecimento fundacional”;651 pos-
teriormente, se cumpre c) o caráter de soberania, enquanto capacidade de autode-
terminar-se: pode decidir por si mesma e) a instituição de suas estruturas práticas
e agir em referência a elas com liberdade consensual comunitária.
Soberania e legitimidade são conceitos diferentes. A soberania se refere ao ca-
ráter da comunidade como origem de toda decisão, portanto, também das leis.
Tem a ver com a comunidade como emancipada. A legitimidade se refere, em troca,
a um modo de alcançar o consenso dos cidadãos. Tem a ver com os singulares en-
quanto participantes simétricos. Legítimo é o decidido com equidade (tò íson, em
grego, fairness, em inglês), em todos os momentos da participação livre ou autôno-
ma (momento da vontade) dos cidadãos afetados pelo que se decide consensual-
mente (mediante condições racionais). Desta maneira, as ações ou instituições são
decididas com direito soberano pela comunidade, quer dizer, por ser a comuni-
dade autodeterminada, pode decidir algo desde si, sendo sua própria origem. Por
sua vez, a comunidade pode decidir estruturar de uma maneira determinada as
instituições ou atuar por certos objetivos legitimamente, quanto ao modo da parti-
cipação dos cidadãos; ou quanto ao modo de participação desta comunidade, como
singular, ante outras comunidades, também tomadas em sua singularidade.
O primeiro problema político, então, consiste em que a comunidade política
guarde sempre uma consciência ativa prática (Gewissen, se diria em alemão) da
responsabilidade de ser participante pleno ou agente último da soberania – da
potestas, do poder delegado e, por isso, de ser sujeito do direito anterior a todos
os direitos restantes652, de decidir universalmente como comunidade; de decidir

651 Recorde-se o que foi dito no § 15.


652 Sobre a vida própria não há direito, porque fomos investidos dela sem prévia subjetividade

311
os modos, de decidir o dar-se o sistema das leis, seus conteúdos e sua aplicação.
Quer dizer, no tempo, a comunidade política deve estar sempre atualmente atenta a
exercer a soberania in actu. Uma eleição a cada seis anos de um representante é um
momento pontual de decidir por uma pessoa que cumprirá uma obrigação delega-
da (poder obediencial) em relação à comunidade. Mas este ato pontual da eleição
deve ser interpretado como a erupção de um vulcão (que acontece poucas vezes
no tempo), de um magma (a comunidade política vivente) que está continuamente
em atividade (avaliando, efetuando muitas outras atividades políticas na socieda-
de civil, organizando associações, estudando, elaborando proclamações, protestos,
escritos, revogando mandatos, etc.), buscando os momentos para manifestar sua
vida política soberana permanente.

Esquema 23.01. A comunidade política, soberana, explicita os direitos, se dá


as leis legítimas que determinam direitos, que enquadram deveres que a obrigam
b
com explicitam-se
soberania direitos
a c

A comunidade política dá-se as leis


auto-determinada legitimamente
(potentia) (potestas)

e d
que emolduram
deveres que obrigam

que pudesse desejá-la ou repudiá-la. Somos já sempre seres viventes. Desde a dignidade (não
o valor da vida, como expressa Agnes Heller e tantos outros) da vida se fundam todos os
direitos. A liberdade subjetiva, também, acerca da qual não há direito, nem pode ter valor, é
um momento da vida humana que se recebe desde sempre e como ponto de partida. Tem-se
direito de sobreviver (seguir vivendo) e exercer a liberdade (sendo politicamente livres, não
ontológica ou subjetivamente livres, porque esta liberdade originária é própria de nossa
organização cerebral graças a ainda uma misteriosa evolução da vida nervosa). A soberania
e a legitimidade são, então, dimensões da liberdade, da autonomia dos sujeitos singulares ou
da comunidade; são momentos formais, procedimentais e normativos como modos, maneiras:
modos do poder da comunidade (como emancipado e, por isso, comunidade soberana), modo
da vontade e da razão prática do cidadão (como livre, autônomo discursivamente e como
participante simétrico e, por isso, determina como legítima a ação ou a instituição em cuja
realização participa).

312
Este círculo ontológico mostra que a comunidade soberana (flecha a) toma de-
cisões (flecha b) que não são simples imposições, mas devem ser fruto legítimo
das decisões consensuais, racionais, da comunidade política. E que, como fruto
do consenso (b), podem determinar (c) os direitos dos cidadãos e das instituições
por eles fundadas (até a macroinstituição do Estado), que enquadram ao mesmo
tempo deveres653 (d) dos participantes discursivos que tomaram parte nas discus-
sões com liberdade e autonomia (por ora, pode ser de maneira acrítica654), quer
dizer, simetricamente, neste decidir ou “se dar as leis” que, por terem participado,
são corresponsáveis e, por isso mesmo, obrigam (os cidadãos e o Estado) a cumprir
deveres fixados por eles mesmos (e); isto é, quando foram decididas legitimamente
as exigências ou as penas autoimpostas (a), obrigando-se a cumpri-las para permi-
tir a convivência civil.
Quando se parte de uma comunidade política soberana, se deve decidir, como
momento posterior, sobre os modos ou procedimentos que serão adotados em toda
decisão da comunidade. Este modo determina o legítimo no exercício da soberania
(isto é, a comunidade como poder de autodeterminar-se, como condição universal,
decide agora e em primeiro lugar, como vai se determinar a si mesma). A soberania
pode ser exercida legitimamente e a legitimidade pode não ser soberana.655 A de-
cisão sobre tais modos é já a decisão fundamental, que, de certa forma, sobredeter-
mina o resto. O primeiro passo decide o rumo de todo o caminho posterior. Não é
o mesmo caminhar para o Sul ou para o Norte. O primeiro passo indica a direção
e define o trajeto posterior. Marca, ademais, a distância de cada passo, seu ritmo,
sua força, sua precisão. É a primeira ação do poder instituinte (a soberania com
vontade legítima, no melhor dos casos) ainda não institucionalizado; é anterior ao
poder constituinte (porque este já foi institucionalizado).
[346] A legalidade e a legitimidade não são sinônimos. Kant exigiu para o po-
lítico, situado na esfera pública, somente a legalidade da jurisdição externa das

653 Não entram, aqui, ainda, os chamados “direitos humanos” que não derivam de normas legais
positivas. Neste caso, derivariam, segundo uma antiga tradição, de uma “lei natural”. Mas, por
não poder aceitar esta tradição, devo me referir ao ser humano, que é ético e político desde sua
origem e, por isso, os direitos se explicitam diretamente e desde o início das determinações
constitutivas do ser vivente humano, autoconsciente e responsável em sentido prático. Para
alguns esclarecimentos sobre a chamada “falácia naturalista” (Cf. Dussel, 2001, p. 87-102).
654 Toda esta descrição é, por ora, no nível dos princípios, idealmente, enquanto tal. Veremos
na Crítica, volume III desta Política da Libertação, que uma perfeita legitimidade é impossível
e, se é impossível, a desconstrução deverá demolir em regra as pretensões exageradas que
exigem a criação de instituições compensatórias e a transformação permanente das mesmas
instituições para adequá-las à realidade histórica que vai mudando. Esta é a problemática
de uma política de libertação que, por ora, mantemos em suspenso, metodologicamente.
655 Os colonos da Nova Inglaterra ou da Nova Espanha não tinham ainda soberania, mas seus
atos de rebeldia eram legítimos, ao menos para eles mesmos. Ver, mais adiante, os §§ 30 e
41, na Crítica desta Política da Libertação.

313
ações ou instituições. Reservou a moralidade para a integração da subjetividade
plena, por convicção, no ato privado. Carl Schmitt atribuiu a Spinoza, e de alguma
maneira a Kant, este esvaziamento da política, reduzida a ser como um campo de
mera legalidade externa. A “decisão” (Entscheidung)656 da vontade deixava de ter
sentido numa política do puro cumprimento objetivo das leis. Legitimidade, cujo
esboço fizemos, é, porém, muito mais que mera legalidade e, além disso, é anterior
às leis, determinando-as como legítimas ou não. A legalidade (ou coincidência da
ação com a obrigatoriedade objetiva da norma legal) da ação ou instituição com
respeito à lei se funda, por outra parte, em sua legitimidade. A legitimidade define
o modo da vontade e da razão prática, que decidem e promulgam a lei. Se a lei não
é legítima, se anula a necessidade da legalidade. Se não há legitimidade, isto é, par-
ticipação simétrica dos afetados enquanto livres e racionais, a lei é ilegítima: não
obriga (flecha e, do Esquema 23.01), e o não-participante ou participante assimétri-
co não está obrigado a cumprir algo que lhe é alheio, contrário à sua vontade, já que
não tomou parte na elaboração do consenso por ter sido excluído. O excluído pode
obedecer por violência, por força, por temor, mas estas pressões não outorgam
legitimidade à lei. A longo prazo, a ordem política sem legitimidade consensual
não pode se sustentar. Criação de consenso político é universalização de aceitação
legítima das ações e instituições. Gramsci descreve isto adequadamente como hege-
monia. A legitimidade compartilhada cria consenso ou aceitação do poder político
com a participação majoritária voluntária dos cidadãos. Neste caso, a força da lei
não se funda no temor à coerção externa policial, mas na convicção cidadã que
surge como responsabilidade de tê-la gerado, o que, numa narrativa comunitária,
poderíamos chamar, no campo imaginário, a defesa da própria identidade, de fra-
ternidade ou patriotismo.
Kant, o da terceira etapa da sua vida (a da crítica transcendental), é responsável
em boa medida, pela tradição formalista que reduziu o político ao legal, separando-
-o redutivamente do conteúdo de convicção subjetiva (e o que dizer da materialidade
do político, que foi depreciada como patológica, não percebendo a importância do
econômico e social, talvez por estar submerso num mundo cotidiano que impedia
de ver criticamente o capitalismo mercantil da Confederação da Hansa, à qual
pertencia Königsberg). Kant conhece explicitamente o tema que temos repetido
tanto nesta Política da Libertação: “A faculdade de um ser de agir segundo suas
representações se chama vida (Leben)” (1968, VII, p. 315; 1989, p. 13),657 mas este
tema ficará sempre fora da moral (e da política), assim como as “inclinações”. Por
isso, em sua descrição sobre o direito, escreve:

656 Também essencial para Luhmann (“Politisches Entscheiden”) (2000, p. 140-169), embora
em outro sentido.
657 Metafísica dos Costumes, AB 1.

314
O conceito de direito, enquanto se refere a uma obrigação que lhe corresponde [...], afe-
ta, em primeiro lugar, somente a relação externa, e certamente prática, de uma pessoa
com outra [...]. Uma ação é conforme ao direito quando permite ou cuja máxima permite
a liberdade do arbítrio de cada um coexistir com a liberdade de todos segundo uma lei
universal (AB 33, 1968, VII, p. 317; 1989, p. 38-39).

Por isso, a ação política não pode exigir uma adesão interna da convicção fra-
terna, mas somente a coincidência com a lei na esfera pública:

A mera concordância ou discrepância de uma ação com a lei, sem ter em conta os
motivos da mesma [o que deixaria, com razão, muito nervoso Carl Schmitt], se chama
legalidade (Legalität) (conformidade com a lei), mas aquela na qual a ideia do dever se-
gundo a lei é, por sua vez, o motivo da ação, chama-se moralidade (Moralität) da mesma
(AB 15, 1968, VII, p. 324; 1989, p. 14).

Daí que, o único que pode unir as vontades ou impulsos dos sujeitos políticos
individuais livres é a coação externa (policial): “O direito restrito pode represen-
tar-se também como a possibilidade de uma coação (Zwanges) recíproca universal,
concordante com a liberdade de cada um segundo leis universais” (AB 36, 1968,
VII, p. 339; 1989, p. 41).
Esta é quase a definição de sociedade burguesa ou civil em Hegel, como Estado
externo, que se unifica por coação e não por consenso racional, que obriga normati-
vamente por ter participado simetricamente nos acordos com as vontades frater-
nas dos cidadãos. Esvaziou a política de motivações materiais.
Carl Schmitt denomina este tipo de regime de “Estado legislativo” ou “ juridi-
cista”658. A pura legalidade não pode fundar-se a si mesma, porque emana de uma
substância política que a funda, mas Schmitt não pode institucionalizar adequa-
damente sua ambígua proposta de uma “democracia plebiscitária”.
A posição formalista, como se pode observar, se funda na legalidade (e no seu
momento no estado de direito), a essência do político. O voluntarismo ontológico
funda-o somente na vontade da comunidade. Por isso, descrevemos o poder po-
lítico como pluralidade das vontades (momento material da emotividade), mas
sempre unidas pelo consenso (discursividade racional), força que mobiliza e dá le-
gitimidade originária (potentia). O fundamento substancial da legalidade legítima,

658 Schmitt, Legalität und Legitimität (1932, p. 10), distingue-o do Estado de “vontade pessoal”
e do “Estado administrativo”. M. Weber, todavia, amplia o sentido de legitimidade e, por
isso, pode fazê-la coincidir com a dominação. A “dominação legítima” (Weber, 1944, p.
170ss) pode ser legal ou racional (coincidiria com Kant), mas unificando-a frequentemente
com a burocrática (que seria a administrativa de Schmitt), agregando a tradicional (não
considerada por Schmitt) e sendo a carismática algo muito parecido ao regime de “vontade
pessoal” de Schmitt.

315
então, é: vontade + racionalidade, materialidade + formalidade, poder político da
comunidade que funda a decisão autodeterminante da soberania que se constitui
como poder instituinte. Instituir-se é dar-se instituições. Como dizia Luhmann,
é necessário assegurar de maneira permanente a unidade voluntária histórica de
uma comunidade,659 porque é uma dupla contingência com expectativas de ambos
os extremos que devem estabilizar-se institucionalmente. Do contrário, a unidade
das vontades pode dissolver-se em cada instante e fazer desaparecer o poder polí-
tico da comunidade. As vontades consensuais, que institucionalizam dita unidade,
fortalecem o poder, estabilizam-no no tempo e lhe dão factibilidade, mediações.
Do contrário, as expectativas podem não se cumprir por parte da alteridade que
pode contingentemente não realizar a função que dela se espera. Sem legitimidade
o poder não tem forma; sem vontade de vida o poder não tem conteúdo; sem ins-
titucionalização o poder se dissolve na impossibilidade de seu exercício.

2. Do poder indeterminado (potentia) à sua diferenciação como


legislativo

[347] O poder deve institucionalizar-se para permanecer no tempo, para durar


historicamente e servir à vida. Mas, toda determinação institucional concreta
deixa de ser uma ideia regulativa660 e se transforma numa realidade empírica con-
creta, imperfeita, corrigível, contingente (potestas). Os sistemas concretos demo-

659 Seja-me permitido uma metáfora. Se dois amantes desejam consensualmente instituir sua
amizade para sempre, decidem mutuamente contrair matrimônio. As vontades decididas
a se casar são vontades instituintes. O ato fundamental institucional, a partir de vontades
constituintes de um contrato, é o ato público do casamento, segundo o ritual tradicional
de cada cultura. O casamento é como a constituição. Sobre sua institucionalidade/cons-
tituinte, nascerão outros momentos institucionais (comprarão uma casa, terão paternida-
de-maternidade de filhos, etc.). Se as vontades consensualmente instituintes se separam,
porque se opõem por conflitos inegociáveis, todo o resto perde sentido e o casal se divorcia.
Para Schmitt, vale a longínqua metáfora, todo político, e em especial a Constituição, pende
da vontade do povo (no casal, seria o amor). Contudo, desde a origem, houve não só amor
(vontade), mas também consenso com pretensão de permanência no tempo mutuamente
exigente e público (comunicação unificante institucional: com contrato diante de terceiros).
Schmitt tem razão em criticar o legalismo kantiano-liberal, mas não percebe o momento
discursivo racional como constitutivo do poder político que é o que ontologicamente funda
a Constituição, porque é a vontade consensual da comunidade como poder instituinte/
constituinte originário. Não ao voluntarismo e nem ao legalismo: articulação completa de
instâncias complementares, sem última instância: matéria (vontade) + forma (consenso) +
factibilidade estratégica (institucionalização)
660 Se deverá distinguir entre o conteúdo de um “modelo” (utopia imaginada ou projeto) (2. do
Esquema 25.01) da orientação prática de um “postulado” (3. do dito Esquema), das exigências
normativas de um “princípio deôntico-político” (4).

316
cráticos pretendem, de diferentes maneiras, manter legitimidade, achegando-se, à
sua maneira, nunca perfeita, da identidade de representante/representado – ante a
impossibilidade da factibilidade da democracia direta. Toda distância entre re-
presentante e representado (como da potestas/potentia) dará motivos a equívocos,
opacidades, distorções e dominação possíveis. De todas as formas, é inevitável, a
institucionalização diferenciada põe um “ente” (Dasein) ou mediação entre os mui-
tos (vontades consensuais da comunidade política) e os poucos (os atores do Esta-
do e outras instituições necessárias). Todo problema é que tal função seja legítima.
O sistema democrático busca tipos de maior ou menor legitimidade, estabilidade,
governabilidade. Um sistema pode ser mais legítimo e menos governável, pode ter
maior estabilidade, mas menor legitimidade. Toda decisão tomada para eleger as
proporções, articulações, prioridades, é contingente, em maior ou menor medida,
incerta, o que não significa que existam princípios universais políticos implícitos,
como veremos no Capítulo 3.
Talvez a mais antiga instituição das comunidades políticas tenham sido a me-
diação para alcançar o consenso e, assim, poder exercer o poder concertado do
grupo. Todos os clãs, as tribos, as etnias, as cidades neolíticas tiveram sempre um
corpo de anciãos (de sábios, de xamãs, etc.) que governavam a comunidade ou ser-
viam de contrapeso ao exercício do poder de um líder, guerreiro ou chefe militar,
um reizinho, um rei. Este corpo de anciãos ou senado (de senior: o ancião) era o
lugar do encontro de todas as famílias, das tribos, das etnias, onde se organizava
a maior auctoritas do governo da comunidade, na base da tradição, da memória
da comunidade, dos seus costumes míticos. A discursividade se estabeleceu em
primeiro lugar nesta longínqua instituição.
Entre os povos indígenas americanos, o encontro dos anciãos sempre começava,
em cada sessão, com o rito de compartilhar o fumar um cachimbo que, de boca
em boca, passava por todos os membros da assembleia e que significava a força, a
vida na unidade da paz (“o cachimbo da paz”, o chamam). Este tipo de organização
ou senado terá grande influência na organização da Federação de Estados Norte-
-americanos. Os iroqueses, com efeito, haviam organizado uma confederação de
cinco (depois, seis) povos que se reuniam para decidir todo o concernente à vida
e à guerra desta grande comunidade. Franklin, que tinha grande admiração pela
sabedoria política dos iroqueses, a propôs como exemplo para a organização das
colônias da Nova Inglaterra.
Efetivamente, a “Grande Lei de Paz” havia claramente estipulado o modo con-
federativo das “cinco nações” iroquesas. Assim, lemos:

Esta é a Grande Lei das Cinco Nações confederadas. Esta é a sabedoria e a justiça que
nos outorgou o Grande Espírito para criar e eleger os chefes, dada e estabelecida como
a Lei que não se muda, usos e costumes das Cinco Nações índias, que são os Mohawks,
Oneidas, Onondagas, Cayugas e Sênecas e outras nações de índios do continente. O

317
objeto é que as Leis sejam estabelecidas para a paz entre as numerosas nações [...]. O
número dos representantes desta confederação das Cinco Nações é de cinquenta, não
mais nem menos. Eles são os únicos que decidem, legislam e tomam medidas sobre o que
interessa a seus povos. E os Mohawks [...] enviam nove chefes. Os Oneidas [...] nove. Os
Onondagas [...] catorze. Os Cayugas [...] dez. Os Sênecas [...] oito. E quando os chefes
das Cinco Nações confederadas se reúnem para ter conselho, este deve ser aberto e
fechado pelos chefes dos Onondagas [...]. Quando se trata uma proposta no conselho
das Cinco Nações, os chefes Mohawks, com os dos Sênecas, consideram por primeiro
o assunto [...], depois os chefes Oneidas e Coyugas [...] (Moquin, 1973, p. 20-21).661

Assim, passo a passo, iam estipulando as regras no tratamento de todos os


assuntos políticos da confederação. Desta maneira, os iroqueses conseguiram uma
paz prolongada – já que parece que a “Grande Lei” foi estipulada em torno de 1400
d.C. e vigorou durante quatro séculos –, e puderam, como os Mapuches no Chile,
oferecer longa resistência aos invasores europeus.
No Mediterrâneo, já o repetimos frequentemente, as cidades fenícias tinham
assembleias com os representantes das diversos cabildos mercantis e das colônias.
Os gregos os imitaram. Os romanos, com tradições etruscas, se inspiraram em
muitos elementos do sistema grego. No Império Bizantino oriental (grego), as ci-
dades continuaram as antigas tradições. O sistema das cidades islâmicas também é
de tradição bizantina, mas também persa. Veneza, cidade bizantina no Ocidente,
foi o antecedente próximo de toda a organização político-legislativa moderna. Seu
sistema misto de governo se imporá universalmente. O Doge veneziano será o Rei
na Inglaterra, o Consiglio Maggiore será, nas ilhas britânicas, correspondente ao
Great Council (Magnum Concilium), eleito desde 1332. Como em Veneza (com seu
Minore Consiglio) teve uma Câmara que rodeava o Rei (Privy Council), que depois
se independentiza (também como em Veneza, em 1229, aparece o Consiglio de’
Pregati),662 e constitui a House of Lords. De sua parte, a House of Commons (que,
de alguma maneira, cobrará novamente a importância do Maggiore Consiglio de
Veneza) será, no começo, órgão da nobreza baixa e, depois, a ocuparão os burgue-
ses, desde a revolução de Cromwell, mas é desde 1689 que, com Guilherme III
de Orange, começa propriamente o que se poderia chamar o “parlamentarismo”,
com seu alternative government. Estas duas câmaras constituem o Parlamento, que,
desde dita revolução, foi orientado por duas correntes de opinião ou protopartidos
políticos: os Tories e os Whigs. Em 1832, foi realizada a primeira eleição com parti-
cipação de cidadãos ingleses de diversas classes sociais, que logo passaram de meio
milhão de eleitores. As mulheres deverão injustamente esperar quase um século
para serem consideradas cidadãs por inteiro.

661 “Constitution of the Iroquois Federation”.


662 Ver na parte histórica desta Política da Libertação [85].

318
[348] Esta tradição de quase três milênios de instituições políticas, contingen-
tes, empíricas (foram estas, concretamente, embora pudessem ser outras e melho-
res), são meras mediações inventadas pela razão política estratégica à parte de uma
longa experiência de êxitos e fracassos. Nada têm de essencial, ao certo, nem de
naturais. São históricas, puramente decididas desde a experiência, falíveis, falsáveis,
invalidáveis. Todavia, respondem ao crescimento de uma consciência em certos ho-
rizontes culturais, que recordam também uma acumulada evolução de práticas e
teorias que se ocupam de sua fundamentação. Conceber o poder político como uma
unidade consensual das vontades de uma comunidade política serve de horizonte
desde o qual, como um postulado, se tem critérios para melhorar as instituições
histórico-contingentes já inventadas e experimentadas por uma longa prática.
A transformação do corpo legislativo, nos Estados Unidos da América do
Norte, responde a um transplante de um certo tipo de comunidades políticas das
que nos ocuparemos no § 29 – em outro horizonte histórico. O enfrentamento
de uma natureza estranha e anistórica – para eles –, o confronto com os povos in-
dígenas, a presença massiva de escravos africanos trazidos do distante continente
africano e, por último, a discriminação dos hispano-americanos em solo norte-a-
mericano, configurarão uma fisionomia política muito diferente da europeia. Não
é simplesmente a Europa em solo americano. É outra realidade histórica, cultural,
técnica, econômica e política. A concepção norte-americana do Poder Legislativo
é nova em muitos aspectos, embora mantenha continuidade.
A House of Lords, numa América sem nobreza, se transforma (inspirando-se
nos iroqueses) num Senado, onde cada Estado autônomo envia igual número de re-
presentantes para assegurar equidade e direitos aos Estados menores.663 A Câmara
de Deputados ocupa o lugar das House of Commons. Ambas as Câmaras constituem
o Congresso. O presidencialismo norte-americano substitui claramente o Rei, mas
cresce no exercício do poder, equivalente ou até maior ao do Doge veneziano.
Na América Latina, imitou-se o modelo norte-americano, sem chegar nunca
nem à real separação de poderes, nem a uma viável governabilidade das Câmaras.
O federalismo, na maioria dos casos, foi fictício (já que houve um centralismo
exagerado em torno das cidades capitais), e o presidencialismo foi quase ditatorial.
Somente depois da queda das últimas ditaduras de Segurança Nacional (1983 em
diante), iniciou um processo de institucionalidade algo mais complexa do regime
democrático.
O Parlamentarismo europeu, por sua parte, especialmente o alemão, no século
XX, tende a dar a totalidade do poder a um Parlamento unificado (sem House of

663 Devo assinalar que na África, atualmente, uma Câmara interétnica com igual representação
e pelas mesmas razões entre as etnias de um Estado, seria sumamente conveniente. Foram
as etnias iroquesas que originaram o federalismo norte-americano. Seria bom que as etnias
africanas se inspirassem, igualmente nos iroqueses.

319
Lords nem Senado) e onde o primeiro ministro (que forma o governo, enquanto dura
a “confiança” do corpo legislativo-governamental) é eleito pelo próprio Parlamento.
Neste caso, o Legislativo concentrou a totalidade do poder político. Um presidente
ou monarca mantém um papel de representação quase exclusivamente simbólica.
Na Inglaterra, por sua vez, a tradição do antigo partido dos Wigs, evoluirá até
uma “democracia liberal”, que nasceu propriamente no século XIX diante dos
oponentes: de um lado, os conservadores que apoiavam a Monarquia absoluta e, de
outro, o nascente movimento operário, que se expressava numa posição de “demo-
cracia radical”. A “democracia liberal”, que organiza o Estado em favor dos inte-
resses da burguesia industrial, se oporá à monarquia, à nobreza e aos latifundiários
em decadência e defenderá os novos direitos da burguesia (em especial, o direito à
propriedade empresarial, à liberdade do comércio, de mercado, da imprensa, etc.),
mas ante o proletariado crescente por causa da revolução industrial, a restrição
da participação das massas, dispondo medidas institucionais que restrinjam sua
participação (por exemplo: no taxation without representation),664 instituições que
permitiam à minoria burguesa manter a “hegemonia” diante das maiorias popula-
res. O dilema era: como governar sendo minoria? Isto abrirá toda a problemática
dos conceitos de “hegemonia” (quando um projeto político de uma minoria tem
o consenso da maioria) ou a pura “dominação” (quando perde este consenso). Há
ainda muito espaço entre o “consenso da maioria” contra seus interesses ou em favor
deles. É toda a diferença entre a democracia liberal e a democracia participativa ou
radical, segundo as denominações que se adotem.
A institucionalidade das mediações organizativas se encontra, então, no nível B
de nossa Arquitetônica. Trata-se de um nível sempre contingente e que se constituiu
historicamente. Pode haver, ademais, fundamentação filosófica das instituições
(na medida em que se argumente sobre seu sentido último), avaliação do seu con-
teúdo (enquanto se aproximem mais do seu “conceito”, diria Hegel, ou a seu pos-
tulado, diria Kant) e, sobretudo, estudos de ciência política sobre sua conveniência
política. Nos manteremos no nível da fundamentação filosófica.
[349] Vejamos a diferença de fundamentação de alguns aspectos, a partir de
uma expressão clássica retomada por Carl Schmitt, quando afirma que “auctoritas,
non veritas, facit legem”. Se a autoridade reside na comunidade política, que delega
seu exercício ao governo (como parte funcional do Estado), dita autoridade deve ser
usada para produzir, reproduzir e acrescentar a vida ecológica, econômica e cul-
tural da comunidade (a verdade política). Teríamos, então, que inverter a proposta:
“Veritas, non auctoritas facit legem”. A auctoritas é delegada ao governo para cumprir
seus conteúdos (a verdade da política). De outra maneira: se o poder político per-

664 O que, invertendo, define: “Não representação sem pagar impostos”. A população assala-
riada não pagava impostos, logo...

320
Esquema 23.02. Alguns momentos dos temas que queremos abordar quanto à
legitimidade do estado
Poder político: pluralidade de vontades consensuadas institucionalizáveis (potentia)
(Opinião pública)665
Poder instituinte soberano
a
Poder instituído (potestas)
Poder constituinte
b
Constituição
(Poder constituído)
Direitos humanos c

e d
Poder Judiciário Sistema do Direito Poder
O Juiz Legislativo
f
O Tribunal “Estado de Direito”

Poder Executivo

Poder Eleitoral

Poder Cidadão

Esclarecimentos ao Esquema 23.02. a. O poder indiferenciado (potentia) decide determinar-se insti-


tucionalmente. b. O poder se determina, em primeiro lugar, como poder instituído (potestas) que,
com respeito à Constituição, é poder constituinte (que se concretiza como Assembleia Constituin-
te). c. A Constituição (que deve positivar os direitos humanos) estabelece um Poder Legislativo. d.
O Poder Legislativo promulga o Sistema do Direito constitucionalmente. e. O Poder Judiciário665
interpreta o sistema do direito, aplicando-o aos casos particulares, resolvendo os conflitos que se
apresentam na comunidade política, o que cria um “Estado de Direito”. f. O Poder Executivo realiza
ações dentro do marco legal. O Poder Eleitoral666 determina e julga a validade de todos os processos
eleitorais de todos os poderes restantes e de todas as instituições (políticas e civis, se o requerem
estas últimas). O poder cidadão é a última instância fiscalizadora de todos os demais Poderes e
instituições.

665 A Suprema Corte de Justiça ou o Tribunal Constitucional, em última instância, deve ser
igualmente o que julga a constitucionalidade das leis e instituições, mas, como veremos na
Crítica, lhe corresponderia algo mais, isto é, julgar o surgimento de novos direitos e o fato de
que aconteça a necessidade de uma modificação constitucional.
666 Estamos antecipando a questão que trataremos na Crítica, § 43.

321
tence ao povo e a verdade prática (veritas) é o consenso da comunidade enquanto
referida extradiscursivamente (como afirma A. Wellmer) à realidade da vida da
comunidade, deve ser em tal conteúdo onde se encontra o fundamento da lei e
não no mero exercício do poder de uma vontade fetichizada por parte do governo.
Por isso, e contra Schmitt, podemos considerar a seguinte expressão: “A ordem
legal, como toda ordem, se sustenta numa decisão (Entscheidung) e não numa
norma” (1996, p. 26).667 Estamos de acordo com aquilo que, no seu fundamento
ontológico, não pode partir de uma norma. A vontade decide primeiramente sobre
uma norma, que é seu efeito. Para Schmitt, esta “decisão” não tem fundamentação
alguma e, por isso, é o ponto de partida, manifestada na capacidade que tem, quan-
do é soberana, de declarar o “estado de exceção”. Neste momento, já não podemos
segui-lo – e, nisto, tampouco estamos de acordo com G. Agamben. Para nós, esta
“decisão” da vontade do governante está fundada na vontade que lhe outorgou
delegadamente esta autoridade, decisão da comunidade em seu nível de “razão polí-
tico-consensual”. Este acordo e esta decisão volitivo-racional política estão funda-
dos – como mostramos no § 14 – na própria vontade intersubjetiva que, como toda
vontade, é o “querer-viver” da vida humana em comunidade, que pode decidir so-
beranamente (quando é uma comunidade emancipada ou autodeterminada) sobre
o poder-pôr os meios para a sobrevivência da própria comunidade. Isto desde um
ponto de vista material, sabendo que formalmente é a razão política sobre outro
constitutivo fundamental. A “decisão” da autoridade de declarar o “estado de ex-
ceção” se funda na “decisão consensual” da vontade comunicativa da comunidade
política, que agora será mediada pelo exercício delegado de seu poder, por meio de
uma autoridade representativa, por uma instituição organizada para este fim.668
Neste sentido, Schmitt sugere em outros textos, embora nos estudados parecia
que nada podia anteceder a esta “decisão”, uma certa fundamentação ontológica
de tal “decisão”. De fato, a Constituição (que é a forma formarum da legalidade)
estaria debaixo da lei, mas debaixo daquela se encontraria ainda “a vontade do povo
alemão, que é algo existencial, superando todas as contradições sistemáticas, as co-
nexões e a obscuridade dos momentos singulares da Constituição, funda a unidade
política e o direito público” (Schmitt, 1996d, p. 10).669 Haveria que esclarecer que,
para nós, a vontade do povo deve incluir um momento de racionalidade discursiva
e institucional, sempre ausente nas descrições de Schmitt.
A “decisão” da comunidade com poder soberano de institucionalizar-se (como
quando os patriotas mexicanos decidem dar-se uma Constituição em Chilpan-

667 Politische Theologie, I.


668 Como veremos mais adiante que, no “estado de rebelião”, que é o efeito direto deste “exercí-
cio consensual” da comunidade, se nega a delegação do poder na autoridade, a qual retorna
à sua última instância de poder, isto é, à vontade de “decisão” da própria comunidade.
669 Verfassungslehre.

322
cingo)670 é um ato segundo da mesma vontade consensual que se determina a si
mesma como “poder instituinte” – usando a expressão de C. Castoriadis. Em
nosso tempo, o primeiro passo do poder instituinte é dar-se uma Constituição,
uma lei fundamental que defina o fundamento legal do futuro “sistema do direito”.
Preste-se atenção ao fato de que o modo, a forma ou o procedimento que este poder
instituído se dê a si mesmo determinará, como um a priori impossível de superar,
o conteúdo formal mesmo da Constituição e o sistema do direito a se organizar.
Se a convocação é dirigida a nobres (não a plebeus), a proprietários (não a pobres),
a alfabetizados (não a incultos), a varões (não a mulheres), a livres (não a escra-
vos), a crioulos (não a indígenas), a brancos (não a afros), etc., fica determinado
o conteúdo futuro do sistema legal. O “véu da ignorância” de J. Rawls quer sanar
este aspecto da questão, mas nunca poderá fazê-lo, porque, ao final, se convocará
os que tenham conseguido consciência dos seus direitos e tenham lutado até este
momento por seu reconhecimento. Os oprimidos ou excluídos do presente e do
futuro, sem consciência dos seus direitos políticos, não são convocados, sendo o
primeiro de todos: o poder participar nas discussões instituintes (antes que as
constituintes). Por isso, ficarão inevitavelmente fora dos “muros da pólis” (os não-
-humanos asiáticos e bárbaros), como ensinava Heráclito de Éfeso. Primo Verdad
deixou fora da comunidade que devia tomar as rendas do poder na Nova Espanha,
estando o rei da Espanha preso por Napoleão, em 1809, a toda a comunidade
de povos originários, indígenas, que eram 80% da população mexicana. Somente
foram aceitos como soberanas as “municipalidades” crioulas (de brancos nascidos
na América). O poder instituinte, fundamento do constituinte, define de certo
modo o sistema do direito futuro, desde a autodefinição dos limites (Cf. Muffe,
2000; Young, 1990) que a comunidade política fixa a si mesma e reflete sobre si,
decidindo como se institucionalizar.
O “procedimento”, pelo qual se convoca e se organiza uma Constituição, não
pode ser constitucional, é um poder anterior e fundacional. O formalismo kelse-
niano, neste ponto, é indefensável. Trata-se de um procedimento próprio do poder
instituinte originário, que deve ser legítimo – e democrático, como pensava F.
Suárez, segundo veremos mais adiante – desde a origem. Na própria descrição do
que seja o poder político, já se inclui o procedimento instituinte primeiro: as von-
tades se reúnem por um consenso que deve respeitar as razões de todos os cidadãos
afetados reconhecidos em igualdade (condição da validade prática e teórica em
geral) (Cf. Dussel, 1998, cap. 2); deve ser democrático (também pré-institucio-
nalmente, como o intuía bem F. Suárez). Se existe este consenso das vontades, se
tem poder, força, potentia. É este mesmo procedimento normativo o que convoca

670 Na narrativa mítica da libertação dos escravos do Egito com Moisés, primeiro se emanci-
pam, conseguem soberania, posteriormente se dão a “lei” no Sinai para institucionalizar
um poder político que estava ainda indeterminado.

323
à eleição dos constituintes que formarão um corpo constitucional. Discursividade
e legitimidade do exercício do poder político são processos que devem culminar
na possibilidade de estabilizar (com permanência no tempo), por instituições, um
sistema político. O poder instituinte se transforma em constituinte.671
Jürgen Habermas (1981 e 1992) trouxe, seguindo o caminho aberto por K.-O.
Apel, muitos elementos a ter em conta na discursividade da política, até o excesso,
já que, em definitiva, o político somente é para ele um exercício de razão discursiva,
isto é, a política se reduz à filosofia do direito672.
Uma vez que a comunidade instituinte se autodetermina como constituinte,
confirma o modo ou procedimento pelo qual foi convocado como o que regulará ou
normatizará as discussões decisórias para promulgar uma Constituição. De novo,
estas normas internas do corpo são as que determinam o conteúdo da Constitui-
ção. De qualquer modo, todas as decisões, consensos, normas procedimentais têm
sempre como última instância o poder da comunidade política.
Por outra parte, quando a comunidade política se auto constitui como poder
instituído (potestas) ao dar-se uma Constituição (seja a que for e também como
forma muito simples de determinar sua forma de governo em geral), a comunidade
se transforma em Estado (no sentido amplo de A. Gramsci). Por isso, assinalamos
mais acima que o Estado é comunidade política institucionalizada, por mais com-
plexa que tal institucionalidade chegue a ser e, na medida em que vá cumprindo os
requerimentos que a crescente consciência política da comunidade política, situa-
da histórica e circunstancialmente, exija. Não existem a prioris estratégicos válidos
para todas as comunidades: há, somente, exigências situadas para cada comunida-
de política (o que não nega princípios universais). Na América Latina, o costume
de pretender copiar a melhor Constituição do momento (criada adequadamente
para outra comunidade em outro momento político), impulsionou os políticos e
patriotas a pretender cumprir uma função impossível, a de “meter” a realidade
da própria comunidade política num “modelo” estranho, num estreito corpete. O
resultado está à vista. Nunca se alcançou, até o presente, um “estado de direito”,
porque as instituições (e o próprio direito) não surgiram de práticas preexistentes
registradas na experiência como exitosas politicamente às que tinha que institu-
cionalizar para fixá-las como permanente para tornar possível a governabilidade
estável à qual aspira toda ordem política.
[350] Continuemos nossa descrição. O Poder instituinte/constituinte, como
dissemos, se determina agora como poder instituído por uma Constituição. O

671 Tudo está completamente “confuso” na obra de A. Negri, El poder constituyente (Negri,
1994), já que confunde o “poder fundamental” (potentia) com o “poder instituinte” (Casto-
riadis) e com o “poder constituinte” (C. Schmitt), que são já momentos da potestas (a potentia
que vai dando instituições a si mesma).
672 Ver a crítica de James Marsh (2001).

324
próprio J. Rawls673 coloca a questão de que os princípios, em primeiro lugar, se apli-
cam, conformando uma Constituição: “O procedimento seria o processo político
regido pela Constituição, o resultado, a legislação promulgada, enquanto que os
princípios de justiça definiriam um critério independente, tanto para o procedi-
mento quanto para o resultado” (1978, p. 229).674
Deixaremos para o próximo capítulo toda a questão dos princípios políticos
implícitos dos quais a Constituição é um efeito concreto, histórico, contingente.
Por ora, a Constituição é o fruto de uma Assembleia Constituinte anterior ao Es-
tado, convocada ad hoc, e deveria, em princípio, distinguir-se do Poder Legislativo,
que funda seu agir sobre a própria Constituição, já que é um Poder do Estado ou
sociedade política. A Constituição define a forma do próprio Estado (se é república
ou monarquia, se é federal ou unitária, seu território, os direitos dos cidadãos, as
prerrogativas das instituições públicas, seus poderes, sua separação e mútua fisca-
lização, etc.). Assim, a Constituição define a forma arquitetônica do Estado, como
sociedade política e civil: “Constituição, em sentido absoluto, pode significar uma
regulação legal fundamental, quer dizer, um sistema de normas supremas e últimas
(Constituição = norma de normas)” (Schmitt, 1966, p. 31).675
A Constituição é, assim, o acordo segundo, institucional, explícito (potestas),
do consenso da comunidade (que se funda no consenso primeiro da pluralidade
de vontades, pela qual “um povo é um povo”, nos disse Rousseau [potentia]) que
se dá uma forma concreta de Estado. Poderia ser considerado o contrato positivo,
explícito e segundo da comunidade política. Assim, se produz agora uma brecha,
uma Entzweiung (cisão)676 originária, se estabelece a separação entre o poder da
pluralidade de vontades consensuadas, indeterminado (potentia), e a determina-
ção institucional desse poder formalizado numa Constituição (potestas). Abre-se,
deste modo, o espaço de uma possível confrontação entre a) os direitos dos membros
da comunidade política (como sujeitos e atores em outros campos que o político),
como direitos que guardam uma certa exterioridade com respeito ao campo po-
lítico, ao sistema e ao Estado (não à comunidade humana em toda a sua riqueza,
mas sim, à comunidade enquanto política), e b) as instituições constituídas positiva e
concretamente (que poderiam violar eventualmente direitos dos sujeitos em outros
campos). Na mesma Constituição, devem ser expressos positivamente estes direi-
tos humanos dos cidadãos (Cf. Habermas, 1992, p. 151ss),677 enquanto sujeitos
de outros campos práticos (da família, da economia, da cultura, da religião, etc.),

673 Por sua parte, J. Habermas, em Faktizität und Geltung (1992, VI, p. 292ss; 1998, p. 311)
trata o problema da Constituição em relação com a posição de Dworkin e outros autores,
em especial, a questão do tribunal constitucional.
674 Uma Teoria da Justiça, cap. IV, § 31.
675 Teoria da Constituição, § 1, 11.
676 É a flecha a do Esquema 14.03.
677 Ver Habermas, Faktizität und Geltung, III, iii.

325
que não devem ser considerados simplesmente como direitos privados do cidadão,
nem como direitos individuais anteriores ao Estado – como é formulado pelo libe-
ralismo, em seu individualismo metafísico –, mas, como respeito à subjetividade
dos cidadãos, sempre intersubjetiva, que intervém em outros campos e sistemas
nos quais tem possibilidade de exercer sua “liberdade comunicativa”. Segundo o
desenvolvimento e as lutas pelo reconhecimento dos próprios direitos do cidadão
(em outros campos), dos direitos políticos e sociais, positiva-se uma lista sempre
aberta de direitos humanos.
Hans Kelsen (1979; 1988) tem razão ao colocar a Constituição como ponto
de partida formal do sistema legal, e considerar tal sistema como uma totalidade
autorreferencial em sua consideração lógica:678 nisto, N. Luhmann (1982, vol. 1-2)
leva ao extremo a hipótese kelseniana sistêmica. Por isso, sendo a Constituição
o fundamento formal do sistema de direito, não somente garantir aos próprios
participantes da comunidade política seus direitos de sujeitos prévios e, em parte,
exteriores ao único campo político, mas que também deve determinar os direitos
ou as exigências dos contratantes (deles mesmos) de cumprir responsavelmente
(obedecendo-se a si mesmos por terem sido participantes) naquilo que diz: pacta
sunt servanda. Quer dizer, a Constituição institucionaliza também os órgãos legíti-
mos pelos quais o Estado exerce o monopólio da coação ante os que não cumprem
o que se comprometeram, acordando-o livremente e participando simetricamente
no pacto constitucional. Por isso, deve ser normatizada a separação de poderes,679
para que se fiscalizem mutuamente, e que, desde o cidadão até o mais alto gover-
nante, cumpram com os deveres que se autoconstituíram. Isto supõe, ademais,
institucionalizar o sistema judicial para que possa exercer publicamente a justiça
como monopólio do Estado, o tão prestigiado “ juiz” com visão pan-ótica e de equi-
dade justa, para privar os cidadãos, de maneira singular, se erigirem juízes de seus
pares. O “estado de direito” é, então, um círculo que se fecha com um Tribunal
Constitucional Supremo que opina sobre constitucionalidade das leis, ações ou
instituições. A Constituição fundamenta o “estado de direito”, enquanto se coloca
como a última referência formal (não material, que é a própria vontade consensual
da comunidade política) de todos os conflitos que se apresentem, inclusive e, em
primeiro lugar, do próprio Estado, resolvidos com base nas leis ditadas pelo Poder
Legislativo (flecha c, do Esquema 23.02) e interpretadas em sua aplicação para

678 No que não tem razão e novamente por lhe faltar uma adequada descrição do nível material
que certamente Schmitt sugere (de maneira redutiva): é equivocar a fundamentação mesma
da Constituição. A Constituição é o efeito de um poder constituinte, substantivamente uma
vontade comunicativa consensual, anterior e fundamento da Constituição.
679 No art. 16 da Declaração 1789, se assinala como exigências mínimas, duas determinações:
“Toute société dans laquelle la garantie des droits n’est pas assirée, ni la séparation des pouvoirs
déterminés, n’a point de Constitution”.

326
resolver os conflitos singulares pelo Poder Judiciário (flecha e) (que tem sob seu
mandato a instância coativa)680. Quando o “círculo” se fecha (flecha f) sem interfe-
rências, estabelece-se o “estado de direito”. Nem todo Estado com um sistema de
direito tem um “estado de direito”. Tem-no e o respeita quando o próprio Estado e
todos os cidadãos, ações e instituições têm o direito (Constituição, leis, juízes que
“aplicam” a norma abstrata ao caso singular) como instância formal última681. Se
a Constituição institucionaliza o sistema republicano (não monárquico) de repre-
sentação (não direto) de uma democracia, que se exerce com três poderes (depois,
estudaremos uma democracia com cinco poderes, tal como a imaginou Simón
Bolívar682), somente então podemos chegar ao momento “legislativo” do Estado
(no sentido restrito de Gramsci) ou sociedade política. O parlamentarismo atual, do
tipo italiano ou alemão, unifica, de certa maneira, o Poder Legislativo e Executivo,
já que este último emana como Primeiro-Ministro de uma “confiança” não muito
duradoura nem governável do próprio Parlamento. Charles de Gaulle quis dar à
França uma maior estabilidade, dotando-a de um presidencialismo débil, se com-
parado ao norte-americano ou latino-americano (que, por sua vez, são excessivos e
deveriam ser debilitados em favor de uma maior intervenção da Câmara de Sena-
dores e Deputados). A Assembleia Constituinte que dita a Constituição é a comu-
nidade legislativa fundacional, mas, como tal, somente age uma vez e depois desa-
parece. Em alguns casos, as faculdades da Assembleia Constituinte são outorgadas
ao Poder Legislativo e, quando isto se torna frequente e sem maiores exigências, a
Constituição perde o sentido de ser a norma de todas as normas. Pelo contrário,
no sistema norte-americano, o juridicismo do poder dos juízes (e, evidentemente,

680 Se a instância judicial se corrompe, como era o caso na Itália e, atualmente, no México, o
“circulo” não se fecha, as interferências atuam como “escapes” do sistema e os conflitos se
agudizam, e o “estado de direito” desaparece (se o houve alguma vez no passado, que tam-
pouco é o caso do México ou na maioria dos países latino-americanos corrompidos por um
ancestral corporativismo “clientelista”).
681 Ver Elias Díaz, “Estado de direito” (1996b). Atualmente, o Estado de Israel sob o governo
de A. Sharón, que gerencia um costume da “vingança” ou “lei de talião”: “olho por olho, dente
por dente” – que, na verdade, se cumpre com um: por um olho que me destróis, te destruo dez
olhos –, e em referência à comunidade palestina, está fora de todo “Estado de direito” e seria
simplesmente um Estado delinquente (Díaz, 1996b, p. 67), porque sua “resposta militar” por
uma decisão do Poder Judiciário que deveria opinar sobre estes casos. Se ambas as comu-
nidades se encontram num “Estado de guerra”, no caso os palestinos não são “terroristas” e,
sim, inimigos e, neste âmbito, há igualmente um “direito internacional” que exige cumprir
os direitos humanos (que os Estados Unidos tampouco cumpriram com os prisioneiros ta-
libãs em Guantánamo). O império americano, desde 1989, esqueceu que existe também um
“Estado de direito” internacional e que um Tribunal Penal Internacional deveria ocupar-se
destes casos. Como pensava Locke, ao não ter um tal juiz entre os Estados, reina entre eles
o “estado de guerra”. Estados Unidos não desejam um “estado civil” (ou político) entre todos
os Estados, para poder seguir cometendo suas arbitrariedades imperiais (Cf. Kelsen, 2003).
682 Mais adiante, § 43.

327
da Suprema Corte de Justiça), ao poder opinar sobre inconstitucionalidade de uma
lei, se coloca sobre o Poder Legislativo (e também do Poder Executivo ou dos me-
canismos eleitorais). Há uma certa primazia do Poder Judiciário.
[351] O Poder Legislativo (que é muito menos do que um Senatus romano, que
cumpria funções legislativas, executivas e judiciais, tal como o démos de Atenas)
é a cabeça do tímpano da “democracia deliberativa” – para usar a expressão de
James Bohman (1997) –, cabeça visível de um imenso iceberg, cuja estrutura básica
é, em último termo, a comunidade política in actu, deliberando cotidianamente,
de uma maneira informada e responsável, sobre o bem comum da sociedade. John
Elster (1997) mostra muito bem a diferença entre o Fórum (o espaço do Senado: o
campo político) e o mercado (o campo econômico). O cidadão não é, quando age e
decide no campo político, um mero comprador de mercadorias no mercado (campo
econômico). A “democracia deliberativa” quer indicar o comportamento sui generis
do sujeito político, ator da sociedade civil ou política, que exerce sua razão discur-
siva (movida por uma vontade fraterno-política), cuja decision-making não funciona
como no caso da escolha de uma mercadoria no mercado. Esta última se relaciona
com necessidades, dentro de um marco de escassez (também de dinheiro da parte
do comprador) e em função do critério fixado concretamente por um sistema eco-
nômico que, no capitalismo – nível que, nesta Arquitetônica, não pusemos ainda
em questão –, é “o aumento da taxa de lucro”. A decisão política, ao invés, se refere
ao próprio sujeito (um cidadão que defende seus direitos em outros campos não
políticos e também enquanto ator político dentro do sistema institucionalizado) e
em relação a outros membros da mesma comunidade política (que tem a ver com
a reprodução e desenvolvimento da vida de todos, com instituições mutuamente
constituídas para garantir a legitimidade das ações e das mesmas instituições, den-
tro de um marco de factibilidade concreta, histórica). Trata-se de uma decisão práti-
co-comunitária que se diferencia claramente da decisão econômica prático-produtiva.
Dito isso, deve-se afirmar que a “democracia deliberativa”683, no nível institu-
cional do Poder Legislativo (Parlamento ou Congresso, Câmara de Senadores ou
Deputados, etc.), é a culminação de uma “discursividade” in actu de toda a comu-
nidade, desde os órgãos participativos em todos os níveis, até a opinião pública, que
observaremos como “opinião política” e que é a última garantia “deliberativa” de
toda democracia. Uma comunidade política des-politizada, ou sob o bombardeio
de uma mediocracia de fato, mal pode exigir uma deliberação democrática a seus
órgãos deliberativos do Estado.

683 Um tratamento do tema pode ser encontrado em J. Habermas, Faticidade e Validade (VII,
1992, p. 349ss; 1998, p. 363ss). Habermas estuda as concepções “empiristas” que tiram do
tema toda sua normatividade (I); compara os “modelos normativos de democracia” (II);
julgando a pretensão de Robert Dahl (III). Ver, igualmente, Bohman-Rehg (1997).

328
Este Poder Legislativo, como postulado e sistema de partidos políticos, deveria
ser o lugar ideal da discursividade, onde se pesam razões e se tomam decisões racio-
nais (desde uma vontade formada e informada), a favor da justiça numa comunida-
de política. Schmitt formulou uma demolidora argumentação, mostrando as con-
tradições concretas do sistema liberal parlamentar (Cf. Schmitt, 1996d; 1998).684
Uma vez sabido que uma decisão perfeita é impossível (se necessitaria tempo in-
finito com uma inteligência prática infinita), não se pode senão admitir que toda
decisão é falível (portanto, falseável), incerta (portanto, corrigível), a votação deve
ser decidida por maioria (mera quantidade sobre a qualidade) e não determinada
necessariamente a melhor decisão (qualitativamente); somente indica que ante a
não unanimidade de uma possível decisão certa e perfeita, é necessário internar-se
no ambíguo campo histórico das decisões falíveis, que deveriam ir se corrigindo a
posteriori por erro/êxito. Mas, neste campo claro e obscuro das decisões (tanto le-
gislativas como singulares), há, contudo, princípios universais (que consideraremos
no capítulo 3) e critérios de ação que emolduram (põem limites ou “diques” ante a
fortuna, como diria Maquiavel) as decisões a tomar ou corrigir. De todas as formas,
como nenhuma instituição é perfeita, é preciso continuar verificando os fatos e
melhorando à medida que avança... da história de cada comunidade concreta. Nada
está escrito sobre o futuro, mas este futuro depende da sabedoria prática, que se
expressa no consenso deliberativo que arranca desde a base mesma da comunidade
política (que se educa pela experiência, cultura e teoria que esta comunidade pro-
duz) e que culmina na comunidade de representantes685 dos órgãos institucionali-
zados deliberativos do Estado.

3. O sistema do direito
[352] O Poder Legislativo é o lugar institucional onde é gerado o “sistema do
direito” – para nos expressar como Hegel ou Luhmann.686 A comunidade política
se dá por meio da Constituição, um órgão cuja função e responsabilidade política
é ditar as leis necessárias para dar a todo o aparato do Estado operabilidade (facti-

684 “O parlamento cessa de ser representante da unidade política; se converte em expoente


dos interesses e disposição de ânimo de massas de eleitores e o pensamento de uma seleção
de diretores políticos não justifica um Parlamento por umas centenas de funcionários de
partido. [Por sua parte] o povo mesmo não pode discutir – esta é segundo Montesquieu a
grande desvantagem da democracia –; somente pode aclamar, eleger e dizer Sim ou Não
às questões que lhe são propostas” (Schmitt, 1996d, p. 303). Schmitt desprestigia o Poder
Legislativo e o próprio povo; o dilema se torna insolúvel e a solução que propõe é pior que
as antinomias descartadas.
685 Trataremos a questão da “representação” mais adiante (§ 41), quando exporemos o dilema
e a crítica que se estabelece ante a antinomia da “representação-representação direta”.
686 Ver o sentido da expressão na Tese 8.2 (Dussel, 2006).

329
bilidade prática) e legitimidade, ao mesmo tempo que define as regras da convivência
dos cidadãos no nível público de todos os demais campos (econômico, esportivo,
religioso, familiar, cultural, etc.), quando se cruzam com o campo político. Desde
muito antes do tão antigo Código de Hammurabi, a humanidade vem nomeando,
definindo e institucionalizando as mais diversas situações singulares que possam
universalizar-se no direito em relação ao ator concreto que, sendo parte do campo
político, é sempre intersubjetivamente funcional em outros campos, e as institui-
ções que para tais efeitos foi criando a humanidade. Descobrindo, conceituando
e legalizando as situações concretas, os possíveis conflitos, suas negociações ou
acordos e as penas, em caso de não cumprimento do que havia sido estabelecido,
foi avançando num bosque de infinitas possibilidades de relações práticas. Na Lei
151 ou, talvez, simplesmente “Disposição 151”, lemos, neste famoso Código, a de-
finição de um caso “singular” que se eleva como “universal”, e se fixa uma pena,
castigo ou sanção:

Se687 uma mulher que vive na casa de um senhor obrigou seu marido a lhe entregar uma
tabuleta,688 mediante a qual um credor do seu marido não pode embargá-la (a ela), se
este senhor teve uma dívida antes que tomasse esta mulher (em casamento), seu credor
não poderá embargar sua esposa (Lara Peinado, 1986, p. 26).689

Aqui, o campo político do legislador toma decisões de direito com relação ao


campo econômico e familiar, e estabelece um direito da mulher, um direito políti-
co sobre uma questão econômica. Como pode imaginar o leitor, as possibilidades
de situações e relações humanas como estas são infinitas. A tarefa do legislador
pareceria impossível. Nos últimos quatro mil e quinhentos anos, a humanidade foi
categorizando, catalogando e avaliando as situações singulares; foi classificando-as
por campos, por sistemas, por subsistemas, de modo que os inumeráveis casos
singulares cheguem a ser organizados em leis que respondem a diferentes tipos,
secções ou corpos do direito. O legislador690 deve tomar a cargo todo este corpo le-
gislado e continuar a permanente tarefa de atualização, de transformação e acrés-
cimos, segundo os requerimentos (que sempre serão, como veremos mais adiante,
fruto de reiteradas lutas pelo reconhecimento de novos direitos que se pretende

687 Este “se” condicional indica o caso “singular” que fica elevado a “lei universal” para todos os
casos “singulares” semelhantes.
688 Trata-se uma tabuleta ou ladrilhinho, de barro bem cozido, que vale como “documento-
-constância” e que se arquiva convenientemente em arquivos que ainda se encontram (ou se
encontravam antes da guerra do Iraque) no deserto mesopotâmico.
689 Código de Hammurabi, § 151.
690 A quem Montesquieu dava certas recomendações, no cap. XVI do livro XXIX do Espírito
das Leis: “Coisas que é preciso ter em conta para a elaboração das leis” (Montesquieu, 1995,
II, p. 349ss).

330
sejam institucionalizados legalmente, para permitir legitimamente cumprir novos
tipos de situações intersubjetivas).
O Poder Legislativo é um corpo deliberativo imperfeito, limitado, sempre exi-
gindo permanentes melhorias; mas, é igualmente um corpo necessário, que deve
fazer transparecer sua atividade para alcançar plenamente o caráter do público por
excelência. Na disciplina do argumento deliberativo do membro do Poder Le-
gislativo, se joga um momento essencial do regime democrático de governo. Na
América Latina, em especial, é necessário dar mais força a este Poder e diminuir
o do Executivo, para chegar a uma situação na qual seja factível empiricamente um
“estado de direito”, ainda não existente devido a condicionamentos históricos que
já se estendem por meio milênio.
As leis são o efeito das decisões deliberativas do Poder Legislativo, de cujo seio
emanam estas exigências universais, que devem ser aplicadas aos casos singulares
pela consciência normativo-política cotidiana do cidadão, mas, nos casos de confli-
tos inegociáveis, pelos juízes. Kant escreve, na Metafísica dos Costumes: “Chama-se
[...] direito (ius) ao conjunto de leis, para as quais é possível uma legislação exterior
(äussere) [...]. O conceito de direito, enquanto se refere a uma obrigação que lhe
corresponde [...] afeta, em primeiro lugar, somente uma relação externa (äussere)”
(AB 31-33; 1968, VII, p. 336-337). E é ainda mais claro quando escreve: “Assim
como o direito em geral somente tem por objeto o que é exterior (äusserlich) nas
ações, o direito estrito, isto é, aquele não está mesclado com nada ético (Ethisches
beigemischt ist), é o que não exige senão fundamentos externos (äussere)” (AB 36;
1968, VII, p. 339).
Para Kant, a vida política dos cidadãos tem em referência às leis uma posição
externa de legalidade. A lei perdeu seu caráter de norma que obrigue subjetivamen-
te por motivações normativas. É um coincidir irrepreensível da ação com a lei no
âmbito público. Uma moral da convicção subjetiva foi arrancada de uma política
da pura legalidade.
[353] Numa Política da Libertação, como é o nosso caso, a lei obriga não so-
mente pública ou externamente (sempre também), mas obriga também intersub-
jetivamente, porque, sendo o público um modo da intersubjetividade; sendo a lei
fruto de um ato deliberativo de uma comunidade política na qual cada membro
foi ator e com direitos de participação simétricos (em princípio, e já veremos na
parte Crítica as objeções a esta pretendida simetria); sendo, por isso, dita lei obra
de cada um, isto é, da qual cada um é responsável, e que ao conseguir o consenso
ao ditá-la (a lei) se constituiu a si mesmo como seu autor e ficou, por isso, obrigado,
deve, então, obedecer no foro interno subjetivo (intersubjetivo); vale dizer, também se
obrigou a ser-lhe obediente sob pena de receber o castigo (a coação legítima) que
todos estipularam no momento de sua participação discursiva, livre, autônoma e
simétrica (em princípio). A lei, longe de obrigar externamente e situar a ação mera-

331
mente como legal, obriga normativamente e determina a vontade como exigência
legítima (legitimidade que obriga, deôntica e subjetivamente, os participantes do
corpo político de maneira análoga a como obrigam as exigências éticas a conduta
humana em geral ou abstratamente).
Hegel reconcilia a moralidade puramente subjetiva de Kant com a legalida-
de puramente legal do filósofo de Königsberg, numa síntese onde a “comunidade
ética” vive por dentro das leis como próprias de sua intersubjetividade cultural e
política, como uma “segunda natureza” (à maneira da areté ou virtude grega ou
como o rito confuciano que disciplina a subjetividade e se exterioriza publicamen-
te): “A realidade objetiva do direito é, por uma parte, um momento da consciência,
algo que se sabe; por outra parte, tem o poder da realidade, e ser válido e, por
isso, ser conhecido como o que tem validade universal (allgemein Gültiges)” (Hegel,
1971, VII, p. 351).691 O direito não é, agora, meramente externo; o externo se
encontra na interioridade de uma cultura, objetividade que constitui a própria
intersubjetividade, enquanto o direito “é algo conhecido, reconhecido e querido uni-
versalmente, e que recebe sua validade (Gelten) e a realidade objetiva por mediação
do saber e deste querer” (§ 209, p. 360). Este “querer” subsume a obrigação moral
de Kant como fraternidade política, pública. A lei obriga como o querido, não
somente como o que coage externa e legalmente.
Demos outro passo adiante. Um dos primeiros trabalhos de Niklas Luhmann
foi sua Sociologia do Direito, na qual começou a desenvolver uma visão geral dos
problemas sociológicos, com um alto grau de abstração. Luhmann assinala que o
direito é, por isso, uma “estrutura de um sistema social que se baseia na generali-
zação congruente de expectativas comportamentais normativas” (1983, I, p. 121).
Fixam-se as funções normativamente cumpridas com antecipação no plano empí-
rico, para que a expectativa esperada por cada uma das partes, a chamada “dupla
contingência”, se cumpra (até com a validação da força física). Luhmann distingue
um hábito, uma dimensão dos usos e costumes de uma comunidade, das regras mo-
rais (que têm já expectativas antecipadamente formuladas normativamente), com o
direito, que tem determinações mais “limitantes”, já que define “os papéis especiais
(de cada ator) que decidem os conflitos em forma impositiva, seja através de dispo-
sições que estabelecem as sanções em caso de transgressão, seja pela combinação
de ambas as características” (1983, p. 42). O direito deve, como todo sistema, para
Luhmann, afrontar a complexidade (das possíveis expectativas de conflitos), sim-
plificando a possibilidade de fixar estruturas estabilizadas de “expectativas ante
expectativas” (1983, p. 45):

691 Rechtsphilosophie, § 209.

332
O comportamento do Outro não pode ser considerado um fato determinado, deve ser
considerado como expectable692 em sua seletividade, como seleção entre outras possi-
bilidades do Outro [...]. Para encontrar soluções integrais, confiáveis, é necessário que
se possam ter expectativas que não se refiram a comportamentos, mas sobre expecta-
tivas do Outro. Para ter um controle sobre a complexidade das relações sociais, não
é necessário somente que cada um experimente, mas, também, que cada um possa ter
uma expectativa sobre a expectativa que o outro tem de si mesmo (1983, I, p. 47-48).

Os componentes de um sistema do direito não são expectativas cognitivas, mas


prático-normativas: são “estruturas seletivas de expectativas que reduzem a com-
plexidade e a contingência” (1983, p. 65-66). Acomete-nos o desejo de dar um
exemplo babilônico: “Se um senhor tomou esposa, [se] ela lhe dá filhos [e] logo
morre, seu pai [da mulher e de seus filhos] não poderá reclamar seu dote; seu dote
pertence [exclusivamente] a seus [da mãe] filhos” (Lara Peinado, 1986, p. 27).693
O pai da esposa tinha a “expectativa” de recuperar o dote, talvez também
seu esposo e os filhos da mãe também. O direito define, simplificando a com-
plexidade (entre as expectativas do sogro, do esposo e dos filhos) e a contingên-
cia (havendo quatro tipos de atores, na relação paterna, matrimonial e filial,
acontecendo a morte no ínterim, etc.) para fixar uma “estrutura seletiva de ex-
pectativas” em favor da relação “mulher-mãe-filhos” – que manifesta, seja dito
de passagem, uma alta estima da autonomia feminina na Babilônia. Tudo isto
exige “um mecanismo de institucionalização” (1983, I, p. 80). Claro que esta
“redução institucional não pode ser apressadamente interpretada como compul-
são social” (1983, p. 81).694 Não todas as “normas, instituições ou princípios de
identificação [dos casos definidos] são juridicamente relevantes” (1983, p. 108),
por isso, será preciso selecionar os que sejam realmente “estruturas de expec-
tativas” fundamentais, exemplares [chamadas por Luhmann “generalizações
congruentes” (1983, p. 109ss)]. Desta maneira, o direito constitui um sistema
necessário para a sociedade, mas se distingue de outros sistemas (também do
sistema político [para Luhmann] que, tendo “entrecruzamentos” [Kopplungen]
com o sistema econômico, tem-no igualmente com o direito695). Como exercício

692 Como se espera que se comporte o ator: de tal maneira. Pode contingentemente, contudo,
agir de outra maneira que está fora da expectativa. Espera-se que o mestre aja com paciência,
mas poderia “pegar o aluno”, e esta ação “não esperada” (fora da expectativa) entra já na
possível sanção do direito.
693 Código de Hammurabi, § 162.
694 Anota que “aqueles cujas expectativas sejam contrárias à instituição, terão contra si o peso
de uma autoevidência presumida [...]. Isto significa que a crítica a expectativas instituciona-
lizadas está acoplada a pretensões de liderança, as que, independentemente de conteúdos,
provam resistência” (1983, p. 83).
695 Ver Luhmann, Die Politik der Gesellschaft, cap. 10: “Strukturelle Kopplungen”, IV (Luhmann,
2000, p. 388ss): “[...] quando discutirmos a relação do sistema político com o sistema do
direito [...]” (p. 389). Da nossa parte, podemos falar igualmente do cruzamento (overlapping)

333
do poder, o direito tem “força física” (1983, I, p. 123ss) para “regular comporta-
mentos divergentes” (1983, p. 132).
[354] A “positividade” do direito está referida, em última instância, a uma “de-
cisão” (II, p. 7),696 por instância legislativa ou pelos juízes, que vão “diferenciando
funcionalmente o direito” (II, p. 17ss), que, com o desenvolvimento da sociedade
e do direito, através dos séculos, alcança a complexidade diferencial imensa atual,
que toca uma grande quantidade de casos contingentes categorizados por defi-
nições específicas (quase-universais, nunca singulares) de maneira “condicional”
(II, p. 27). Não somente se “diferencia” o conteúdo do direito, como também o
“processo decisório” (II, p. 34ss). É claro que a positivação do direito tem “riscos
e problemas” (II, p. 52ss), não somente porque o cidadão não pode conhecer este
imenso sistema complexo, mas também porque muitos casos singulares não têm
lugar dentro do sistema (em especial, quando são novos), o que abre um horizonte
de “transformação do direito” (Cap. V; II, p. 116).697 O direito não é imune às
transformações sociais, antes, cumpre a função de “controlá-las”. Luhmann nos
propõe um quadro:

Esquema 23.03. Mútua determinação da transformação do direito e da socie-


dade
A) Sociedade
a) Transformação b) Permanência
1) Transformação
a) Transformação funcional de nor- 2) Codificação
B) Direito mas jurídicas
4) Condições
b) Permanência 3) Direito positivo
estáveis

Para Luhmann, quando a “sociedade” (A) muda (a), produz-se uma transfor-
mação funcional das normas do direito (B.a.1). Para alcançar a permanência, a

ou subsunção no sistema político do subsistema do direito (no nível B é uma “esfera ins-
titucional”, a formal ou de legitimidade) dentro do “campo político” (o todo de ambos os
sistemas, que são parte, que se tocam e se determinam mutuamente). Para Luhmann, há dois
sistemas: o político e o do direito. Para nós, o campo político e o sistema político subsumem
o subsistema ou esfera do direito (que abstratamente pode ser considerado um “sistema”).
696 Em Politik der Gesellschaft, igualmente, a “decisão política” (politisches Entscheiden) (Luhmann,
2000, p. 140ss) é definitória na política. Influência de Carl Schmitt?
697 Esta obra, na primeira etapa de Luhmann, não está ainda dentro da “obsessão” por uma
“teoria dos sistemas”, razão pela qual não dedica explicitamente um capítulo ao “direito
como sistema”. Em vez disso, é mais sensível à questão da “transformação” do direito. Mais
adiante (no § 44), abordaremos novamente o tema.

334
sociedade codifica os comportamentos (A.b.2), o que leva a uma transformação ou
a uma nova codificação do direito que, para alcançar a permanência, instituciona-
liza-o como direito positivo (B, b, 3), o que dá à sociedade condições agora estáveis
de diferenciação (A.b.4). Este otimismo jurídico de Luhmann, que é compartilha-
do por J. Habermas sob a forma de “estado de direito”, é próprio do pensamento
europeu, o que lhe permite também tratar os “problemas jurídicos da sociedade
mundial” (2000, p. 154ss) – que trataremos mais adiante.
É sabido que, posteriormente, Luhmann considerará o sistema do direito cada
vez mais como um sistema “autopoiético” e, na medida em que o autonomiza au-
torreferentemente, irá se diferenciando de todos os sistemas, em especial, do sis-
tema político.
Para Max Weber, o direito é um sistema que legitima a dominação que, por
sua vez, permite uma obediência que dá coesão à ordem social. Nem o poder de-
rivado da dominação burocrática ou carismática tem a força da “dominação legal”.
Com efeito, já sabemos que, para Weber, “existem três tipos puros de dominação
legítima. O fundamento primário de sua legitimidade poder ser: 1. De caráter ra-
cional: que descansa na crença na legalidade de ordenações estatuídas e de direitos
de mando dos chamados por estas ordenações a exercer a autoridade (autoridade
legal)” (1944, p. 172).698
Weber propõe uma definição sociológica, não normativa, razão porque “o
que obedece somente o faz enquanto membro da associação e somente obedece
ao direito” (1944, p. 174). Trata-se de uma “dominação legal com administração
burocrática”, de maneira que não pode haver legitimidade do direito enquanto um
acordo das vontades por um consenso racional fruto de uma participação simé-
trica, que seria a objetivação em leis de um poder político, em sentido normativo.
Sendo que o poder é sempre um tipo de dominação: “toda dominação se manifesta
e funciona em forma de governo [...]. O poder de mando pode ter uma modesta
aparência e o chefe pode considerar-se um servidor dos dominados” (I, IX, § 2,
p. 701). Pode-se sempre observar isto como cinismo weberiano, já que, sendo o
poder somente dominação, deve aparecer (não ser) como sendo exercido por um
servidor “dos dominados” e obedientes aos mandatos específicos. Por isso, a domi-
nação direta não tem tanta estabilidade como a “dominação mediante organização
[...] ante as massas dominadas” (p. 704), já que o direito ou “o ordenamento jurídico”
outorga legitimidade ao mandato enquanto a uma ordem fundada em valores, tem
validade ética – mas seu fundamento é particular, não objetivo ou racional, como
a materialidade dos próprios valores culturais.699
[355] Jürgen Habermas, que escreveu uma filosofia do direito em interpreta-
ção discursiva na muito completa Faticidade e Validade (1992), expõe de maneira

698 Economia e Sociedade, 1. III, 1, § 2.


699 Ver as páginas dedicadas a Weber por J. Habermas (1992, p. 92ss; 1998, p. 132ss).

335
normativa o problema da “validade jurídica” (III, 1992, p. 109ss; 1998, p. 147ss),
recordando que Savigny não conseguiu esclarecer “em sua teoria do direito a rela-
ção entre princípio moral, princípio do direito e princípio democrático (se é quer se
me permite chamar princípio democrático àquilo pelo qual Kant vê caracterizada
a forma republicana de governo). Os três princípios expressam, cada um à sua ma-
neira, a mesma ideia de autolegislação (Selbsgesetzgebung)” (1992, p. 118; 1998, p.
155). Quer dizer, tanto a moral,700 como o direito701 e a democracia702 têm validade
ou legitimidade – não como em Weber – enquanto os membros da comunidade,
na decisão, no dar-se as leis ou no procedimento institucional do Estado, tenham
podido participar simetricamente no acordo, no consenso, alcançado racionalmen-
te. Neste caso, o poder não é dominação, e a obediência703 não é fruto de não ter
consciência de sofrer uma tal dominação, mas do compromisso normativo que se
adquire ao cumprir um acordo do qual se foi autor: pacta servanda sunt. Aquele
que se dá uma lei (como membro ativo da comunidade política legislativa) ou o que
participa (ainda que seja delegadamente por seu representante legitimamente elei-
to) numa decisão deve obedecê-la, por uma exigência racional (pela aceitação do
melhor argumento) e da vontade (por uma motivação fraterna fundada no acordo
aceito livremente) que enquadra sua subjetividade (com convicção intersubjetiva,
contra o parcial esvaziamento da política por parte de Spinoza ou Kant).
O princípio do direito, no qual se fundamenta sua legitimidade, para Haber-
mas, “não constitui um elo intermediário entre o princípio moral e o princípio
democrático, mas somente o reverso do próprio princípio democrático” (1992,
p. 123; 1998, p. 159). Efetivamente, a legitimidade de todas as instituições (sejam
próprias das esferas material ou de factibilidade, mas, especialmente, da esfera for-
mal ou procedimental: do direito propriamente dito, de todo o nível B) depende do
Princípio Democrático: o de poder participar simetricamente em todos os acordos
que afetem o cidadão – de maneira racional, livre, autonomamente, sem violência.
Trata-se do princípio da soberania da comunidade política. O consenso prático
legítimo é o fundamento do sistema do direito, do direito institucionalizado, do
direito positivo.
Aqui, seria bom assinalar que o antigo conceito de “direito natural” expressava
a necessidade de ter um ponto de vista exterior (e anterior) ao “direito positivo”,
que servisse de regra de fundamentação (de onde se aplica) e de crítica (de corre-
ção quando o direito “positivo” fosse injusto). Desde já e definitivamente, devemos
superar esta posição metafísica ingênua, dogmática. O direito “positivo” funda sua
legitimidade no consenso soberano da comunidade política. Dito consenso é o a

700 Tema que expusemos em nossa Ética da Libertação, cap. 2 (Dussel, 1998).
701 Tema deste parágrafo.
702 Questão a ser tratada no próximo capítulo 3, § 25.
703 O que denominamos “poder obediencial” (ver § 14).

336
priori (como uma anterioridade e exterioridade do direito positivado) de fundamen-
tação do direito, de onde poderá ser criticado e transformado (claro que para isso
deverá aparecer historicamente, desde a exterioridade a posteriori, uma consensuali-
dade que poderá receber o nome estrito de soberania popular704).
Habermas expressa muito bem que “o que, no âmbito da vida pessoal, se chama
[...] autonomia moral, é o que para a constituição de uma sociedade justa significa
[...] a autolegislação democrática” (1992, p. 127; 1998, p. 163). De outra parte,
para que a legitimidade do corpo do direito seja pleno, deverá supor igualmente
uma institucionalização dos “direitos humanos”, enquanto substância normativa
pressuposta, que deverá se articular com a “soberania” da comunidade política
(Cf. 1992, p. 129ss; 1998, p. 164ss). Neste ponto, porém, devemos fazer um
esclarecimento.
Os chamados “direitos humanos”, os direitos subjetivos ou individuais do libe-
ralismo devem ser redefinidos e, neste sentido, deveríamos ir além de Habermas.
Ditos direitos não são meros “direitos humanos”, “direitos subjetivos” ou “direi-
tos individuais” em abstrato, como se o sujeito pudesse ter direitos autônomos
por ser uma entidade metafísica substantiva anterior ao Estado (no que consiste
a concepção liberal). Trata-se, pelo contrário, de “direitos do sujeito” humano que
devem ser reconhecidos no campo político705 e pelos sistemas institucionais polí-
ticos empíricos; o sujeito que, sem nunca deixar de ser intersubjetivo, é já sempre
membro pertencente a muitos outros campos práticos, externos (ao menos com
exterioridade analítica) ao mero campo político. Estes direitos são reconhecidos
ao cidadão, não como direitos do indivíduo substantivo anteriores ao Estado, mas
como direitos a ser participante em outros campos (familiar, econômico, religioso,
cultural, etc.): transcendentalidade funcional ou sistêmica do sujeito em relação
ao mero campo político, cujo sistema de direito deve incluir e, definir, ademais, os
direitos políticos próprios do sujeito ou ator econômico, social, familiar, cultural,
esportivo, etc., ao que se reconhece liberdade (negativa) em referência ao campo po-
lítico (não está obrigado à exclusiva obediência política), e liberdade (positiva) para
exercer funções à parte do político (é livre para atuar como membro de diversos
sistemas intrinsecamente não-políticos).
Os “direitos privados”, do mesmo modo, devem ser reconhecidos como próprios
do sujeito (intersubjetivo),706 enquanto se inscreve em campos privados de conduta
(por exemplo, na família) o que não significa tampouco que sejam próprios de um

704 Ver, mais adiante, o tratamento do tema na parte Crítica, capítulo 6, § 34. Já expusemos
a questão em Dussel (2001, cap. VII, p. 149ss), onde critico a posição de Habermas com
relação aos “princípios”. É evidente, ademais, que o direito se funda num conteúdo de verdade
referido à vida humana.
705 Ver acima § 16.1.
706 Recorde-se o dito no § 12.2.

337
indivíduo substantivo independente, mas que consistem em âmbitos intersubjeti-
vos que devem ser reconhecidos como exteriores ao mero campo público político.
A legitimidade do sistema do direito, contudo, é fruto de uma institucionaliza-
ção compartilhada pela comunidade e aceita em sua própria determinação jurídica
– o que agrega uma nova nota à mera legitimidade em geral:

A conexão interna que buscamos entre soberania [da comunidade política...] e direitos
humanos consiste em que no Sistema do Direito se recolhem exatamente as condições
sob as quais podem se institucionalizar juridicamente as formas de comunicação ne-
cessárias para a produção de normas politicamente autônomas [...]. A cooriginalidade
de autonomia privada e autonomia pública se mostra somente quando deciframos e
desvendamos em termos de teoria do discurso a lógica de pensamento que representa
a autolegislação, figura pela qual os destinatários são também autores de seus direitos
(Habermas, 1992, p. 134-135; 1998, p. 169).

Os direitos humanos devem ser “positivados” (expressar juridicamente) na


Constituição, de modo que já não são considerados meramente direitos naturais,
mas reconhecidos como conquistas históricas da consciência político-jurídica da
comunidade. Nos direitos humanos (que são o fundamento do corpo de leis futu-
ro), se reconhece, como já assinalamos, a pertinência do cidadão como sujeito de
outros campos práticos (direitos subjetivos e privados por meio dos quais o campo
político se liga a todos os demais campos práticos não políticos), sendo o primeiro
destes direitos políticos o que afirma que o próprio cidadão, autônomo (ou livre),
de maneira privada (já indicada) e publicamente (como participante da comunida-
de soberana) é a última instância de toda decisão legislativa (institucionalizante,
positivizante, juridicizante). Enquanto se dá a si mesmo as leis (autolegislador sobera-
no), a cidadã e o cidadão são origem do direito (fundamento da legitimidade política
da lei) e destinatários (devem obedecer à lei por serem sua própria decisão707).
Habermas nos propõe uma formulação ainda não adequada do problema,
quando indica que o princípio moral universal deve particularizar-se no nível do
direito708 (distinção analógica do direito que porei entre colchetes): “Válidas [le-
gítimas] são aquelas normas [jurídicas] (e somente aquelas normas [jurídicas]) às

707 Supera-se, assim, a aparente aporia expressa por Rousseau: conseguir um tipo de associação
onde ao mesmo tempo o cidadão permanece livre e, contudo, é obediente à lei. A lei, neste caso
(não como em Hobbes), não foi ditada por um poder soberano externo, mas por si mesmo, já que o
cidadão, como membro da comunidade é o soberano. Permanece “livre” diante da lei enquanto
cumpre livremente o estipulado, já que o cidadão “se ligou” a si mesmo e ante os outros com a
obrigação de cumprir o acordado por consenso racional e aceitabilidade voluntária.
708 No próximo parágrafo (§ 24), abordaremos o tema, que não será o da “analogia” dos princí-
pios políticos, para distingui-los da “universalidade” abstrata da moral ou da ética, porque
desenvolveremos a questão de uma subsunção analógica.

338
quais todos os [cidadãos] que podem ver-se afetados por elas pudessem prestar seu
assentimento como participantes em discursos [político-] racionais” (Habermas,
1992, p. 134-135; 1998, p. 172).709
O Poder Legislativo é a função pela qual a sociedade política dá o corpo das
leis a toda a comunidade política. Dito corpo, de crescente complexidade num pro-
cesso de mais de quatro mil anos (expresso nos antigos códigos da Mesopotâmia),
aumenta em diferenciação e precisão. É a tarefa específica do Poder Legislativo que
o atualiza continuamente desde as exigências históricas da comunidade política,
que permanece viva e atuante no tempo e no espaço – como última referência legis-
lativa, cujo juízo fiscalizador deveria cumpri-lo um poder cidadão, como veremos
mais adiante.
[356] Por tudo isso, o sistema do direito pode fundamentar então o direito a
exercer o monopólio do uso da coação legítima710 e não seria, neste caso, uma mera
dominação externa, mas uma condição interna à comunidade acordada por mútuo,
autônomo e racional consenso para o cumprimento do pactuado contra os que,
esquecendo indisciplinadamente a decisão originária, se voltaram ilegitimamente
(enquanto não cumprem o acordado) contra a lei, na qual, antecipadamente, tive-
ram de normatizar juridicamente as instituições que enfrentariam estes casos (por
exemplo, todo o sistema de educação de tais cidadãos, entre cujas organizações se
pode contar a polícia711).
“Liberdade comunicativa” poderia ser denominado este estado da subjetividade
do ator em diversos campos nos quais pode agir com uma participação autônoma
(privada ou pública), que se positiva na “liberdade política” do cidadão. Isto explica
que a “ação comunicativa depende sempre da intersubjetividade da relação que os
agentes estabelecem e isto explica por que esta liberdade leva anexas obrigações
ilocucionárias” (Habermas, 1992, p. 152; 1998, p. 185).712

709 Esta formulação pressupõe uma situação ideal de comunicação. Para nós, vale como um
“postulado” de impossível realização empírica; quer dizer, é um “princípio de orientação”,
o qual é muito útil e, por isso, ponto de partida de toda “desconstrução” (ver na Crítica, os
§§ 34 e 43).
710 No Esquema 23.01, indicamos este “círculo” da legitimidade/obediência. A flecha d indica a
obrigatoriedade da lei; a flecha e, a necessidade da obediência ou, em seu defeito, o assumir
os cargos que o sujeito do delito sabia estipulado com anterioridade, e que o “liga” (obriga)
não somente diante de si, mas, e principalmente, ante os outros de respeitar sua “palavra”,
suas decisões. No Esquema 14.03, se mostrava esta “circularidade” de maneira originária.
711 O uso legítimo (ou normativo) da ação policial entrará em crise quando enfrenta a coação
ante comunidades que têm nova consciência de novos direitos não contemplados no corpo
das leis (tema que abordaremos no § 44). Quando a coação legítima se torna violência (e
também terrorismo de Estado, como no caso de frequentes ações do Estado de Israel contra
os palestinos, tais como a “lei do talião” ou vingança de Estado, sem juízo jurídico prévio),
uma Política da Libertação tem claros conceitos interpretativos para tratar a questão de
maneira universal (Cf. Dussel, 2004).
712 Entre estas “obrigações ilocucionárias” (illokutionären Verpflichtungen) está a obediência à lei.

339
Por tudo isso, o sistema do direito deve incluir: 1. Direitos (e leis que os ins-
titucionalizem) da esfera material (“Direitos fundamentais que garantam condi-
ções de vida que venham social, técnica713 e ecologicamente asseguradas [...] em
termos de igualdade de oportunidades”) (Habermas, 1992, p. 156-157; 1998,
p. 189), esfera do conteúdo político. 2. Direitos da esfera das instituições formais
ou procedimentais da autonomia e liberdade do cidadão (“Direitos fundamentais
[...] ao maior grau possível de iguais liberdades subjetivas [...]; ao desenvolvimento
e configuração politicamente autônomos do status de membros da [...] comunidade
jurídica. Direitos fundamentais que resultam diretamente da acionabilidade dos
direitos [...]. Direitos fundamentais de participar com igualdade de oportunidades
em processos de formação da opinião714 e da vontade comuns [...]”) (Habermas,
1992, p. 155-156; 1998, p. 188-189). 3. Direitos da esfera da factibilidade ou do
exercício do poder administrativo, que são os direitos das instituições públicas que
se desdobram como deveres do cidadão:

O [exercício delegado do] poder do Estado (Staatsmacht) somente adquire uma forma
institucional estável e fixa em e com a organização da administração pública no término
de uma hierarquia de cargos. O alcance e peso do aparato estatal depende da medida
em que a sociedade recorre ao meio que é o direito, com o fim de operar com vontade
e consciência sobre seus próprios processos de reprodução (Habermas, 1992, p. 168;
1998, p. 201).

O que supõe, como contrapartida, que:

No sistema da administração pública se concentra um poder que vez por outra há de se


regenerar a partir do poder comunicativo [leia-se consensual]. Daí que o direito não seja
somente elemento constitutivo do código poder que governa os processos administrativos.
Constitui, por sua vez, o meio para a transformação do poder comunicativo [consensual,
desde baixo] em administrativo (Habermas, 1992, p. 208-209; 1998, p. 237).

Como se pode ver, todo o edifício da legitimidade do sistema do direito (e


do próprio Estado) se funda no poder consensual da comunidade política (desde
baixo), o único soberano. Por isso devemos abordar dois temas intimamente liga-
dos à legitimidade ativa, atual: o “estado de direito” (que legitima a resolução pú-

713 Observe-se como Habermas não quer usar a palavra “econômica”, o que o obrigaria a en-
frentar o problema do capitalismo, como um sistema que nega estes direitos fundamentais
(e, em especial no presente, quando a “flexibilização do trabalho” deixou os trabalhadores
de todo o mundo globalizado num estado de insegurança jurídica ante o capital mundial no
“estado de natureza” – quer dizer, sem normatização jurídica com possibilidade de coação
legítima (!) no nível mundial). Agora sim que se faz necessário aquele: “Proletários de todo
o mundo (globalizado), uni-vos!”.
714 Questão que trataremos no ponto 5 deste parágrafo.

340
blica dos conflitos sociais) e, de outro tipo, a “opinião pública”, que é a que constitui
em concreto e historicamente o consenso vigente na comunidade política (suporte
hermenêutico da adesão unificada das vontades a toda instância da sociedade civil
e política). Sem um consenso atuante, as vontades perdem motivação tendencial e
o poder, um “bem escasso”, no dizer de H. Arendt, dissolve-se, deixando em seu
lugar a pura força da coação como dominação política.

4. O poder judiciário: o “estado de direito”

[357] Desde os mais antigos sistemas políticos, como os da Mesopotâmia, há


mais de quarenta séculos, o sistema do direito, cujos enunciados são universais,
necessitava uma mediação legítima de sua aplicação715 aos casos particulares. De
nada valeria o melhor sistema jurídico, se não houvesse alguém que aplicasse o
universal ao particular ou singular ou sem que alguém pudesse subsumir o parti-
cular ou singular no universal com justiça. Justo é o juiz que, em cumprimento das
condições universais da legitimidade política (que seria a articulação adequada dos
níveis materiais da verdade prática – em relação à reprodução da vida –, usando os
procedimentos legitimamente acordados – desde um sistema de leis –, e conside-
rando as condições histórico-empíricas do que há de se julgar), sustenta honesta e
publicamente ante a comunidade política uma “pretensão política da justiça”, quer
dizer, do juízo proferido como interpretação do sentido prático do ato em questão
(em princípio, de um réu acusado de algum crime). É preciso, então, analisar os
muitos momentos deste ato complexo de julgar com legitimidade política.
Entre os gregos, o “tribunal” (kritérion) dos que julgavam devia “afastar-se” (kri-
nêin) descomprometidamente (para alcançar a equidistância que exige a justiça) do
ato ou “pessoa acusada” (kritós) sobre a qual ditava o “ juízo” (krísis) de inocência ou
culpa, no que consistia a “sentença judicial” (krina) própria do “ juiz” (krités).
Aristóteles716 tratou a questão com sua precisão habitual. O julgamento do juiz é
um enunciado prático com pretensão de verdade que depende, porém, da integridade

715 No mundo latino é expressado com a palavra applicatio, em alemão com Anwendung.
716 Relendo o volume IV, escrito em 1973, A política latino-americana, publicada em Bogotá, em
1979 (parte da obra em cinco volumes Para uma ética da libertação latino-americana, sob o
título genérico de Filosofia ética latino-americana IV (Cf. Dussel, 1973; em CD-Rom, Dussel,
2004, na catalogação 12), cremos conveniente recomendar ao leitor consultar os § 63-66
(vol. IV, p. 63-123; em especial, notas 380ss, p. 165ss) tema aos quais temos que nos referir
necessariamente, já que estão ali explicados com maior atenção, no contexto da política lati-
no-americana na década dos anos setenta. Ali se pode observar a clara distinção entre “nação
oprimida como povo”, no sentido populista, e “classe oprimida como povo” (vol. IV, p. 64-80)
(no sentido crítico, antipopulista ou de exterioridade social, que Horácio Cerutti (1983) nunca
adverte em sua crítica unilateral da questão em minha exposição precisa daqueles dias).

341
ética da subjetividade de quem julga. A corrupção do juiz é a destruição do “estado
de direito” em seu fundamento. Por isso o Código de Hammurabi a condenava com a
pena de morte. O estagirita, na Ética a Nicômaco, diz:

Por isso é que chamamos sophrosynen717 (temperança), porque significa salvadora (sót-
zousan) da interpretação prática (phrónesin). O que ela salva é a hypólepsin718 [...]. Os
princípios (arkhai) da práxis (praktón) são os que se buscam praticamente (praktá).
O que está corrompido pelo prazer ou temor não aparece (ou phainetai) no princípio
[...]. O mal (kakía) é, desta sorte, corrupção do princípio. Assim, a sabedoria prática
(phrónesin) é necessariamente o hábito (héxin) que opera segundo (metá) a verdade da
razão (lógou alethê), em referência aos bens práticos humanos (VI, 5, 1140b 11-20).

A ética do discurso mostra, com razão, que em Aristóteles ainda há como que
um paradigma solipsista, já que somente aquele que é prudente (sábio prático) pode
saber singularmente se a hypólepsis de outro cidadão é reta, correta, justa. Falta-lhe
a discursividade ao não poder constituir a hypólepsis como conclusão consensual
de uma “pretensão de validade prática” que inclua a intersubjetividade e a comu-
nidade. Mas o que escapa em parte a Apel e Habermas é que cada participante (o
juiz, quando não se trata de um tribunal coletivo) deve exercer sua própria respon-
sabilidade judicativa desde o exercício singular da “sabedoria prática” (phrónesis)
concreta, quando decide seu próprio juízo acerca do caso. Quer dizer, o consenso
comunitário pressupõe já sempre o juízo de cada membro da comunidade prática
e este não pode ser senão singularmente “prudencial”. O mesmo acontece com o
juízo singular de todos os membros de todas as instituições (legislativa, executiva,
judiciária, eleitoral ou cidadã). É, então, necessário saber articular complexamente
a prudência do sujeito singular que emite um juízo (uma interpretação, um momento
hermenêutico), em todos os níveis com o consenso prático da deliberação democrá-
tica intersubjetiva, discursiva.719
Aristóteles fala dos “silogismos práticos” (syllogismoi tôn praktôn) que podem
esclarecer a análise do “ juízo prático” do cidadão, do político representante

717 Sophér, em grego, é o “salvador”, do verbo sotzo, que significa “salvar”.


718 Ver Dussel (1973b, § 5, p. 39ss). Hypó (debaixo) e lépsis (captura, percepção) significa sus-
peita, opinião, crença. “Cai sob a ação” de uma função hermenêutica, interpretativa de opi-
nião (doxastiké, em Aristóteles, 1140b 27). É o “ juízo eleito” (a máxima de Kant, e o “ juízo
querido” (pela vontade) ou o “querer julgado” (pela razão discursiva prática); a Entscheidung
ou decisão final, decisiva, empírica.
719 Toda dissidência justa, quando consegue provar no futuro sua verdade prática contra o con-
senso vigente, é um ato determinado pela phrónesis e não pelo consenso válido. A phrónesis da
“razão prática” veritativa anterior ao futuro consenso válido (a nova razão prática consegue se
fazer aceitável por todos). A “verdade da razão” em vista de bens materiais (como conteúdo:
em último termo, a reprodução e desenvolvimento da vida humana, que são os “bens práticos
humanos” de Aristóteles) cria o “consenso”, e não vice-versa.

342
e do juiz (três tipos de “ juízos” analogicamente semelhantes em sua estrutura
hermenêutica). Escreve o fundador do Liceu: “[a] Os silogismos práticos têm seu
princípio720 [premissa maior] desta maneira: posto que tal é o fim e o bem comum
(aristón), qualquer que seja, já que para o argumento podemos tomar o que se nos
ocorra” (V, 12, 1144a 30-31).
A premissa menor se ocupa “das coisas humanas (tà anthrópina) sobre as quais
se pode deliberar (bouleúsasthai)” (7, 1141b 9). A partir dos princípios, então, e
deliberando retamente sobre as mediações para levá-las a cabo singularmente (é
o momento da aplicação), por último se decide a hypólepsis: “[b] o saber deliberar
(eú bebouleústhai) é próprio do prudente. A justa deliberação é fruto da retidão
(orthótes) do que convém acerca do fim (télos), sendo a prudência a que permite [c]
a decisão verdadeira (alethès hypólepsis)” (8, 1142b 38-39).
Em [a] temos o momento universal, o todo, a premissa maior do silogismo prá-
tico. Em [b], o momento particular, a parte, as premissas menores que permitem
deliberar sobre as mediações para alcançar o fim, os princípios. Em [c], chega-se à
conclusão singular, prática, concreta, a electio latina, a máxima da vontade de Kant,
o singular demonstrado, justificado (quando o processo é dedutivo, momento “de-
terminante” do juízo prático, diria Kant). A “interpretação eletiva” (ou a decisão
final da máxima concreta: proaíresis) é o que por último decide a política (já que
é o juízo prático que governa as ações estratégicas): “O eleito (proairetoû) é o que
desejamos porque o temos deliberado [julgado racionalmente] (bouleuthoû orektoû)
em vista do fim; assim a eleição (proaíresis) é acerca do querer julgado (bouleutikè
órexis) [...] toda vez que apetecemos algo (oregómetha) porque o temos deliberado
(boúleusin) (III, 3; 1113a 10-14).
[358] No Egito, situados em outra tradição política, o “ juiz” por excelência,
que tem em sua mão a balança onde se pesa o bem e o mal (que se impõe como
símbolo em toda a ordem jurídica), é Osíris,721 sendo o “ juízo final” na grande sala
de Ma’at – a Moira grega –, o postulado do juízo perfeito. O mito de Osíris, a
consciência moral, se subjetiva e entra na tradição semita e cristã, na filosofia árabe
(primeira herança do aristotelismo), na filosofia latino-germânica. Todo o tema
da consciência (em alemão, Gewissen) tem longa história.722 Tomás de Aquino, que
produzirá uma síntese muito particular da terminologia hebraica e grega, trata o

720 Arkhé (origem, princípio). Para os clássicos, a syndéresis ou noús (VI, 3, 1132b 16-17) pelos
“hábitos” primeiros captam os “princípios práticos” pelos quais se alcança a verdade “Pela
decisão prática (hypolépsei) ou a opinião teórica (dóxe) é possível incorrer em erro” (VI, 3,
1132b 16-17).
721 Ver supra, na descrição histórica, vol. 1 [7].
722 Ver minha obra (Dussel, 1973, vol. 2, § 24, p. 52-59).

343
tema, anotando que “a consciência aplica (applicatur) o conhecido pela syndéresis723
ao exame dos atos particulares (ad actum particularem)” (Tomás de Aquino, 1964,
p. 320ss).724 Os atos particulares, ademais, nos diz, estão submersos numa grande
incerteza (in rebus autem agendis multa incertitudo invenitur725), porque se trata de
acontecimentos singulares e contingentes (singulariza contingentia). Embora incer-
tos, os atos particulares devem ser a conclusão de um ato racional de discernimen-
to de um processo hermenêutico (inquisitio726), uma deliberação (consilium) que,
por meio do “silogismo acerca do operável (syllogismo operabilium)”,727 conclui na
“eleição (electio), [que] é o inteligido apetecido (intellectus appetitivus) [ou] o apetite
deliberado (appetitus inquisitivus)”728. Como sempre, estamos num momento prévio
à disjunção da Modernidade e, por isso, a ordem do desejo e o da racionalidade se
codeterminam adequadamente. É de recordar a precisão com que esta tradição,
analiticamente, descreve os momentos do processo que culmina na decisão (tanto
do cidadão, como do juiz, mas, principalmente, do político que exerce o poder).
A prudência ou o hábito da sabedoria prática era analisado na filosofia latino-
-germânica, tendo em conta as diferenças possíveis de suas: a) “partes integrais”,
b) “subjetivas” ou c) “potenciais”.
Em primeiro lugar (a), enquanto às suas “partes integrais”, o cidadão, o político
profissional ou o juiz devem ter, num primeiro momento (1), “memória”, na me-
dida em que, ao enfrentar o “operável contingente” (contingentia operabilia)729 deve
recordar todos os casos anteriores singulares, porque não se trata de universais.
Em termos cerebrais, tudo o que nos enfrenta é um remembered presente (Edelman,
1989); é o passado do ter-sido-no-mundo, de Heidegger, desde onde se implanta
o pro-jeto futuro e do qual se abrem as possibilidades: os contingentia operabilia.

723 Ver o tema em De Veritate (q. 16). A syndéresis é uma “faculdade” (potentia) e um “hábito”
(habitus) natural acerca dos “primeiros princípios práticos” (habitus naturalis primorum prin-
cipiorum operabilium (1964, resp., p. 322) que se dá em todo ser humano e “é impossível que
se extinga” (impossibile extinguatur) (1964, art. 2, resp., p. 324).
724 De Veritate, q. 17, a. 2, resp. 1 (1964, p. 330). A syndéresis se ocupa dos “ juízos universais”
(iudicium universale) que se aplica num “silogismo particular” (syllogismo particulari). A cons-
ciência é, por uma parte, uma “faculdade” (potentia; q. 17, a. 1, et videtur, p. 326); por outra, é
hábito (habitus, sed contra, p. 327), já que pode ser melhor ou pior, segundo o uso que dela se
faça. Em terceiro lugar, a consciência é também “ato” (actus, sed contra, p. 327), enquanto aplica
os universais ao particular adequadamente, dissemos que é “reta” (recta); enquanto dirige a
ação, dissemos que próprio dela é “instigar, conduzir ou obrigar” (vel investigare, vel inducere,
vel ligare); enquanto examina o ato cumprido, dissemos que “acusa ou remorde” (accusare vel
remordere) ou, pelo contrário, “defende ou excusa” (defendere vel excusare) (resp.; p. 328).
725 Summa Theologiae, I-II, q. 14, a. 1, corpo (Tomás de Aquino, 1950, I, p. 71).
726 Summa Theologiae, II-II, q. 49, a. 5, corpo; II, p. 269.
727 Summa Theologiae, I-II, q. 13, a. 3, corpo; I, p. 69.
728 Summa Theologiae, cit. I-II, q. 14, q.1.
729 Todos os textos que seguem pertencem a Summa Theologiae, II-II, q. 49-51; II, p. 266-277.

344
Quanto maior conhecimento da história, dos acontecimentos, de anteriores expe-
riências se tenha, o ato será mais acertado politicamente.
Num segundo momento (2), tem-se uma “percepção intuitiva”730 do caso sin-
gular em toda a sua complexidade. É uma “reta avaliação de algum fim particular”
(recta aestimatio de aliquo particulari fine). De novo, a maior observação, a maior
atenção no descobrimento do que a estratégia chinesa denominava xing (situação,
configuração estratégica ou tendência dos acontecimentos731) em relação ao shi
(potencial de dita situação). Ou seja, quanto mais capacidade haja nesta avaliação
da realidade (ratio particularis) do poder (como vontade coletiva, unida, com maior
ou menor potentia) que se dissemina no campo político heterogeneamente, melhor
capacidade se terá na consecução dos outros momentos do ato prudencial, estra-
tégico, discursivo.
Num terceiro momento (3), a docilitas (capacidade de aprendizagem) que, por
um lado, significa saber aprender como discípulo dos outros, da realidade políti-
ca, dos erros; mas, por outro, estudar (ou fazer-se aconselhar) pelas ciências, as
tecnologias, os saberes teóricos, práticos e técnicos. O “teimoso” (como a “pedra”)
não pode ser um bom político, mas pode sê-lo o que se adapta à realidade, como a
“água” – segundo a metáfora chinesa, que arrasta torrencialmente as pedras mais
pesadas, rompendo-as ao penetrar em suas fendas, além de não ser facilmente
conhecida por sua transparência.
Num quarto momento (4), a solertia732 (imaginação pronta e criativa) que é como
a agilidade mental prática que imagina pronta (velox) e facilmente soluções inespe-
radas, novas, geniais, adequadas. Num quinto momento (5), a ratio ou a capacidade
de descobrir possibilidades “razoáveis”. O razoável supõe: (6) a providentia (pre-
visão) ou o saber determinar os meios adequados para os fins estratégicos; (7) a
circumspectio (observação das circunstâncias que rodearão a ação possível), que exige
saber descobrir todas as circunstâncias que determinam a singularidade do evento,
quer dizer, novamente considerar a rede da estrutura do poder dentro da qual se
encontra a ação possível, incluindo os efeitos; (8) a cautio (cautela), que obriga a
observar atentamente os impedimentos que se interpõem na consecução da ação
(C. Schmitt observaria detidamente os “passos” do inimigo político, em especial).
Em segundo lugar (b), as “partes subjetivas” da prudência são, para os filósofos
latinos, num primeiro momento (1), a prudência em referência a si mesmo; num se-

730 Aristóteles a denomina aístesis (VI, 8, 1142a 29-29); em latim, sensus (Tomás de Aquino,
1949, p. 328), intellectus (Summa Theologiae, II-II, q. 49, a. 2, corpo; p. 267).
731 Recorde-se o que foi dito na História, acima em [115].
732 Em grego, eustokhía. Esta aptidão essencial na política é assim descrita: “Solertia autem esta
facilis et prompta coniecturatio circa inventionem medii” (Summa Theologiae, II-II, q. 49,
a. 4, corpo; p 268-269).

345
gundo momento (2), a prudência em relação à “multidão” (mulitudo), que pode ser
prudência miliar, econômica (em referência à casa, ao feudo, à cidade) e política.733
Em terceiro lugar (c), as “partes potenciais”, que são (1) a euboulía (virtude do
saber deliberar), (2) a synesis (virtude do saber emitir um juízo no momento da deci-
são, sem titubear). (3) a gnóme (virtude do bom juízo ou da reta ilação, subsunção
ou aplicação do princípio ao caso contingente singular: ad hoc pertinet gnóme, quae
importat quandam perspicacitatem iudicii).734 Para Kant, seria o momento da deter-
minação do juízo reto na “aplicação” do princípio ou da lei universal.
Na Modernidade madura, como vimos em [171-172], Kant descreve um duplo
movimento no exercício da “faculdade de julgar” (Urteilskraft). Se se parte do “uni-
versal” (Allgemeinen)735 que pode ser “a regra, o princípio, a lei”736, o ato judicativo
deve deduzir, justificar ou subsumir o particular (a hypólepsis aristotélica ou a elec-
tio latina) “no universal”. Deve, então, “descender”, explicando desde o princípio a
conclusão prática (flechas b).

Esquema 23.04. Ascensão dialética (do juízo reflexionante) e descenso justifica-


tivo (do juízo determinante) práticos
Fundamentação
Nível (C)737
universal prático c
1) Os princípios
Nível (B)
2) O sistema do direito, das leis, as regras, etc.
particular prático

Nível (A) Ascenso reflexivo Descenso determinante


Empírico prático (Ontológico-dialético) (Justificação)
(singular)
b
a
O caso concreto O juízo determinado

733 Distingue ainda a prudência do príncipe ou da cidade (regnitiva) ou dos súditos (política)
(Summa Theologiae, a. 4, corpo; p. 265).
734 Summa Theologiae, q. 51, a. 4, ad 3; p. 277.
735 Texto já citado na Crítica do Juízo, Introdução (IV, B XXVI, A XXIV; Kant, 1961, p. 20;
1968, VIII, p. 251).
736 No primeiro caso, pode ser uma aplicação do cidadão na vida cotidiana política; no segundo,
pode ser o filósofo que fundamenta o princípio ou o toma como ponto de partida para uma
justificação; no terceiro caso, pode ser o juiz que aplica a lei.
737 Para Apel, é a Teil A; para nós, o “Nível C”, que são os princípios implícitos que abordaremos
na Crítica (Capítulo 3, §§ 24-27).

346
[359] Se, pelo contrário, se parte do “caso concreto”, se deve poder situá-lo
dentro de um horizonte em que se consiga estabelecer alguma relação com um mo-
mento universal (com algumas regras, leis ou princípios) a partir do qual encontre
um fundamento de justificação,738 quer dizer, de “sentido” prático, devendo, para
isso, primeiramente, lançar diversas “hipóteses” de possíveis relações com regiões
universais eventualmente justificantes (um ato semelhante à abdução de Peirce, ou
de ascenso dialético ou ontológico da “parte ao todo)” (Dussel, 1974c, passin):739
“a faculdade de julgar reflexionante deve ascender (aufzusteigen) do particular [...]
ao universal”.740 A ordem do conhecimento da natureza se estrutura desde um
princípio a priori transcendental, o “princípio de finalidade” (por semelhança ao
“princípio de causalidade” de Hume). Mas, na ordem prática, da liberdade, da
moralidade ou da política, “há um princípio supremo de todas as leis morais [que]
é um postulado”.741 Este postulado – que, no começo das exposições de Kant, pa-
recia possível de ser realizado empiricamente in the long run – pouco a pouco, lhe
foi aparecendo como empiricamente impossível de efetivação. Nos explica que se
trata de um postulado, um horizonte de orientação que elucida “um homem que
venera a lei moral” e que se lhe ocorre “pensar que mundo ele, guiado pela razão
prática, criaria se isto estivesse em seu poder”;742 o postulado é, assim, a referência
de universalidade, na qual o caso particular deve fundar-se em sua moralidade. Na
Crítica da Razão Prática, as ideias de Deus e imortalidade fundavam a moralidade
do ato, fazendo possível a realização futura do “bem supremo” (depois da morte).
Pelo contrário, agora, graças a um postulado político, é possível ir antecipando o
“bem político supremo” (hoesten politischen Gut) na história (A 235; B 265; 1968,
VII, p. 479; 1988, p. 195).743 Desta maneira, refere-se o caso particular ao princípio
universal que, metaforicamente, é imaginado como uma “ascensão”. Com efeito,
nos diz que “a paz perpétua (o fim último do direito das gentes em sua totalidade)

738 O descobrimento, clarificação e arquitetônica na construção de todo um “marco teórico ju-


rídico” (com princípios e normas, constitucionais e legais) exigido pelo “caso concreto”, difícil
é o que Dworkin denominará “teoria coerente do direito” (1999). Penso que seu Hércules
deveu chamar Osíris, a onisciência divina perfeita: o juiz perfeito.
739 Ver o momento dialético-ontológico do método que ascende do particular (a parte) ao todo
ontológico (Dussel, 1973, cap. 6, § 36; vol. 2, p. 156ss). Há anos, escrevíamos: “Em primeiro
lugar, o discurso filosófico da cotidianidade ôntica e se dirige dia-lética e ontologicamente
para o fundamento [...]. Em segundo lugar, demonstra cientificamente (epistemática e apo-
dicticamente) os entes como “possibilidades existenciais” (Dussel, 1973, p. 163).
740 Texto citado de Kant (B XXVII, A XXV), A fundamentação (flecha c do Esquema 23.04)
é um novo ascenso para a origem última.
741 O texto merece ser citado: “[...] das oberste Prinzip aller Sittengesetze ein Postulat ist”
(KUK, § 91; B 460, A 454; ed. esp., p. 316; ed. al., p. 601).
742 Texto já citado de A religião dentro dos limites da pura razão, BA v (Kant, 1968, VII,
p. 650). É interessante que o postulado zapatista: “Outro mundo é possível!” é o postulado
que antecede ao de Kant, neste caso.
743 A Metafísica dos Costumes, § 62.

347
é, certamente, uma ideia irrealizável. Mas, os princípios políticos”744 que orientam as
ações e instituições para o “estado de paz perpétua, não são irrealizáveis, mas, sem
dúvida, são realizáveis, na medida em que tal aproximação é uma tarefa fundada
(gegründete) no dever” (A 228; B 257; 1968, p. 474; 1988, p. 190-191). Concluindo:
“Esta ideia racional de uma comunidade pacífica [...] formada por todos os povos
da terra [é o] princípio do direito” (A 229; B 259; 1968, p. 475; 1988, p. 192). Todo
o sistema do direito (desde a Constituição até as leis que o Poder Legislativo edita,
e suas possíveis regulamentações) se justificam ou se fundam neste postulado uni-
versal primeiro. A própria “sociedade civil”, com sua organização legal coativa e
seus fins materiais (a felicidade comum e a cultura), é já um nível fundado neste
postulado primeiro (começando, assim, o descenso do mais universal ao menos
universal, da flecha b do Esquema 23.04).
Como se terá observado, atingimos o topo da montanha que ascendemos. A
aplicação do horizonte universal será a função descendente da “faculdade do juízo
determinante”: “Se o dado (gegeben) é o universal [...] a faculdade de julgar, que
subsume (flecha b) o particular [A-B] no universal [C] (também no caso quando,
além da faculdade de julgar, dê a priori às condições únicas em que seja possível
efetuar esta subsunção), é determinante (bestimmend)” (Kant, 1968, VIII, p. 251;
1988, p. 20).745
Agora “o universal” (que, para Apel, é a Teil A) pode ser aplicado ao “caso singular”,
isto é, pode ser julgado, avaliado e determinado em sua juridicidade (ou em sua justiça
real) pelo juiz. O mesmo acontece com o ato a ser praticado pelo cidadão ou pelo polí-
tico profissional (a priori constituído como válido, moral, legal ou legitimamente). Por
isso, todos os momentos do âmbito transcendental universal (a comunidade ética, o
sistema do direito, etc.) são “as condições de aplicação (Bedingungen der Anwendung)
da vontade moralmente determinada por seu objeto que lhe é dado a priori (o bem
supremo)” (KpV, A 4-5;1968, IV, p. 679). Este nível transcendental universal está
estruturado complexamente. O juiz, por sua parte, sendo uma instituição política,
pública, jurídica, aplica o universal (o sistema do direito) em referência ao caso concre-
to que deve julgar, isto é, as “ações meramente externas e sua conformidade à lei [e, por
isso,] se chamam jurídicas [...]: é a legalidade”746 – no formalismo kantiano.
Apel parte das conclusões kantianas, atualiza-as desde a ética do discurso, dis-
tinguindo uma “parte A” de fundamentação de princípios – tema do próximo capí-

744 A “paz perpétua” é agora o fundamento dos “princípios políticos”, o postulado último de
toda justificação política. Este é o nível “universal” (C) (que funda os princípios) que teve
que buscar-se para poder ter uma referência última do sentido prático, da moralidade e da
legalidade de todo “caso concreto” sobre o qual se exerce a faculdade do juízo reflexionante
que ascende do particular (o caso) ao universal (o fundamento dos princípios).
745 KUK, Introdução, IV; B XXVI, A XXIV.
746 Texto citado, MS, Introdução (Kant, 1968, VII, p. 318). O juiz não enfrenta um sujeito
moral, nem julga a ação ética, que se determina moralmente por exigências subjetivas, internas.

348
tulo 3, flecha c do Esquema 23.04 – e uma “parte B” de sua aplicação hermenêutica,
mas retificando a problemática, já que não são aceitáveis as posições de Aristóteles
ou Kant naquilo que é “a problemática normal de uma phrónesis ou uma faculdade
do juízo [...] no sentido de uma moralidade convencional aristotélica da pólis [deter-
minada] pelos costumes de aplicação convencional correspondente, [ou], como o faz
Kant, [com] a aplicação responsável de uma moralidade de princípios abstrata [da]
faculdade do juízo do homem comum [...], sem necessidade de muita perspicácia ou
ciência” (Apel, 1992, p. 30-31).747
Apel chama a atenção sobre a “mediação histórica entre o princípio universal
ideal [...] e a situação concreta de uma comunidade comunicativa real” (Apel, 1992,
p. 32), já que o desenvolvimento histórico político e cultural pós-convencional de
uma sociedade com “estado de direito”, permite a presença de mais adequadas
condições para uma aplicação válida de princípios:

Kant ainda não é capaz de pensar o problema de uma responsabilidade histórica da


aplicação de uma ética de princípios pós-convencional. Numa comunidade comunicativa
real, historicamente condicionada, são praticamente as condições de aplicabilidade de
uma ética da comunidade ideal as que ainda não estão em absoluto dadas (Apel, 1992,
p. 38-39).748

Por uma parte, o “estado de direito” não tem avançado tanto que pudesse haver
simetria entre os afetados que entram no discurso de aplicação749 – e podemos as-
sinalar que nunca existirão condições perfeitas de simetria. Tampouco, nunca se
darão as condições materiais de simetria – questão colocada em nossa Ética da
Libertação –, pelo que o “princípio de extensionalidade” ou de “complementação”
(Ergänzungsprinzip) obriga a produzir na história um desenvolvimento que produ-
za uma tal simetria dos argumentantes,750 mas a ética do discurso não tem recurso
estratégico para cumprir uma tal obrigação.751 Voltaremos sobre a posição teórica
de Apel no próximo capítulo 3.
[360] Habermas (1999b) trata a questão da aplicação do direito pelo juiz co-
meçando por situar a “hermenêutica jurídica”, que permite enfrentar o “realismo

747 A Ética do discurso como Ética da responsabilidade.


748 Apel repete frequentemente que “as condições de aplicação da ética do discurso não têm
sido ainda realizadas” (Apel, 1992, p. 40).
749 Este argumento me levará a invalidar na sua aplicação empírica a ética do discurso (Cf.
Dussel, 1998 [133-134]).
750 “O que argumenta já aceitou também necessariamente a obrigação de ajudar a superar a
diferença – a longo prazo, aproximadamente –, mediante a transformação das relações
reais” (Apel, 1985, p. 260).
751 A Ética e a Política da Libertação têm, ao invés, ditos recursos, tanto o nível da ação estratégica
(em especial a crítica), as instituições (transformadas para tal fim) e também dos princípios

349
jurídico” e o “positivismo jurídico”. Estamos, então, na ordem da justificação (ou do
descenso do fundamento ao fundado).752 A hermenêutica da lei se encontra ante o
fato de eleger uma “decisão jurídica como [...] subsunção de um caso sob a regra
correspondente” (Habermas, 1992, V, 1, p. 244):

A hermenêutica propõe por isso um modelo processual de interpretação (Auslegung). A


interpretação começa com uma pré-compreensão (Vorverständnis) de marcado caráter
avaliativo que estabelece entre norma [o universal] e o estado de coisa [o caso singular]
uma relação prévia e abre um horizonte para o estabelecimento de ulteriores relações
(Habermas, 1992, V, 1, p. 244).

Na interpretação cotidiana (que Habermas, com Heidegger, chama “pré-com-


preensão”753 ou “interpretação derivada”), tal como o sentido comum descobre
“sentido” dos acontecimentos, o juiz deverá saber (como momento da faculdade
reflexionante do juízo) situar754 o caso singular, que se trata de resolver, tendo “pre-
tensão de legitimidade (Legitimitätsanspruch) das decisões judiciais” (Habermas,
1992, V, 1, p. 245),755 dentro da totalidade do sistema do direito. A “escola realista”
recorre sem escrúpulos a momentos extrajurídicos (psicológicos, sociológicos, his-
tóricos) e os justapõe ao corpo das leis e princípios jurídicos, caindo num instru-
mentalismo político incoerente. O positivismo jurídico, em troca, conta autorrefe-
rencialmente somente com o corpo legal e, quando não houver legislação positiva
que possa permitir o juízo do caso concreto, deixa-o à “discrição” prudencial do
juiz: cai, assim, num irracionalismo jurídico.
[361] Ronald Dworkin desenvolve sua metodologia de “interpretação constru-
tiva” a partir da estratégia argumentativa dos “casos difíceis” (1994, p. 4; p. 146ss),
admitindo que na administração da justiça se deva também fazer referência aos
pontos de vista morais de uma determinada tradição e a objetivos políticos, mas

(porque conta com outros princípios que permitem mutuamente sua aplicação). O princípio
formal permite a aplicação do material; o princípio material move a mudança das condições
reais (histórico-sociais) da assimetria, como veremos na parte Crítica desta obra.
752 “Justificar” (Rechtfertigung) indica o “descenso”. “Fundamentação” (Begründung) indica o
ascenso. Aristóteles o sabia muito bem (Cf. Dussel, 1974c).
753 Ver Dussel (1973, cap. 1, § 7): “Hermenêutica existencial” (Vol. 1, p. 65ss).
754 Seguindo o sentido da flecha a do Esquema 23.04, o juiz deverá selecionar por coerência
e conhecimento prévio (a paideia na qual Aristóteles fazia consistir o processo dialético
(Dussel, 1974c, § 3, p. 28) um lugar no sistema do direito (2) e princípios fundamentais
(1). E neste caso não se pode senão partir das “opiniões cotidianas” (tà endoxa a denomi-
nava Aristóteles) e exercer uma “imaginação criadora” (semelhante à do criador artista),
contando, claro, com o conhecimento do especialista no tema que descobre coerências
hipotéticas no sistema do direito que lhe podem ser úteis para julgar o caso com “pretensão
de legitimidade da decisão judicial”.
755 Cabe advertir que a “pretensão de legitimidade” não é o mesmo que a mera e absoluta “le-
gitimidade”: somente terá que cumprir com as condições de toda “pretensão”.

350
sem talvez advertir suficientemente que os conteúdos morais se transformam ra-
dicalmente quando adquirem forma jurídica.
Uma decisão do juiz é jurídica (legal), mas não deixa de ser moral e política. O
assunto consiste em saber integrar os três componentes. Como existem princípios
e regras específicas que concretizam os primeiros, Dworkin propõe: a) “no que se
refere ao método, recorrer ao procedimento da interpretação construtiva”, b) “no
que se refere ao conteúdo, mediante o postulado de uma teoria do direito que efetue
em cada caso uma reconstrução racional de direito vigente e o traga a conceitos”
(Habermas, 1992, V, 1, p. 256). Dita “interpretação construtiva” não é outra coisa
que analisar toda a ordem jurídica e um selecionar o que tenha relevância nesta
ordem com respeito ao caso concreto, para reconstruí-lo coerentemente, a fim de
justificar uma decisão idealmente válida. Embora haja incerteza, é necessário re-
duzir o grau de seu exercício, e quando haja contradição entre princípios aplicá-
veis ao caso concreto, tem que haver critérios para selecionar a norma adequada.
De todas as maneiras, um juiz que efetuasse perfeitamente esta tarefa deveria ter
a onisciência de um Hércules (de um Osíris, diria eu). Com efeito, para levar a
cabo esta tarefa de construir uma teoria do direito ad hoc, se necessitaria: “Co-
nhecer todos os princípios válidos e todos os fins e objetivos que são mister para
a justificação; ao mesmo tempo, ter uma perfeita visão de conjunto da densa rede
de elementos enlaçados por fios argumentativos, de que consta o direito vigente”
(Habermas, 1992, V, 1, p. 260).
A indeterminação própria do direito (por ser universal) não impede que possa
ser aplicado adequadamente, embora deva reconhecer a dificuldade de chegar a
ter um marco teórico coerente, a partir da Constituição, incluindo diferentes nor-
mas constitucionais, leis simples, direitos consuetudinários, decisões de princípio,
comentários, para resolver o caso contingente.756 O conceito de “integridade” qua-
lifica a coerência de todos os momentos para Dworkin. Claro que muitos opinam
que esta teoria é impraticável.
Klaus Günther, por sua vez, distinguindo “discursos de fundamentação”757 e
de “ justificação”, permite-nos chegar a uma descrição tal que se poderia resumir
em que “a justificação de um juízo singular há de se apoiar no conjunto de todas as
razões normativas suscetíveis de poder considerar-se, que resultem relevantes em
virtude de uma interpretação [a mais] completa da situação” (Habermas, 1992,
V, 1, p. 267).758
Para Dworkin ou para Günther, de qualquer modo, o exercício aplicativo é mo-
nológico, o juiz é um solitário, cujas construções interpretativas são inevitavelmente

756 É todo o processo que, partindo do nível C, baixa de 1) e 2) pela flecha b (do Esquema 23.04)
ao juízo determinado (justificado) do caso concreto com pretensão de legitimidade.
757 Flechas a e c do indicado Esquema 23.04, de “ascensão dialética” (Cf. Günther, 1989).
758 Em referência ao texto de Günther (1991).

351
falíveis. É possível pensar num procedimento cooperativo na formação da teoria
do direito, no sentido de Dworkin, para justificar uma melhor aplicação? Isto su-
poria, pelo menos, uma dupla comunidade de referência (à maneira da indefinitly
community de Peirce): a) uma comunidade de juízes (por analogia a uma comuni-
dade científica, enquanto ao estudo e debates histórico-científicos do direito), e
b) uma comunidade judiciária (como os tribunais constituídos por cidadãos em
alguns Estados, questão não colocada por Habermas), consistindo ambos como
modos, não os únicos, de “procedimentos argumentativos [jurídicos] de busca
cooperativa da verdade” (Habermas, 1992, V, 1, p. 279). O juiz, o promotor, o
defensor, um possível tribunal de cidadãos, o réu, seus familiares, a vítima, e até
a opinião pública, constituem uma trama intersubjetiva que vai se ligando dra-
maticamente no processo temporal do juízo. É nestes laços inter-humanos, onde,
pelos melhores argumentos, e não pela simples coação, vai ganhando terreno uma
decisão do caso concreto que tem a “pretensão de legitimidade” – pretensão que,
como o seu conceito o inclui, pode ser melhorada, corrigida,759 mas que parte de
uma certa aceitabilidade por parte dos afetados.
Para que a “pretensão de legitimidade” não seja somente formal (tendo em conta
o sistema do direito), mas que possa tomar igualmente em consideração a situação
material ou social de um possível acusado, para o qual será necessário usar princípios
que situem a solução do caso dentro do horizonte da normatividade da esfera ma-
terial da política, para que se alcance uma “pretensão de legitimidade real”. A legiti-
midade do juízo se completará com um juízo justo, como retomaremos na Crítica.760
O “estado de direito” vincula o sistema de direito e as leis com a capacidade do
exercício do poder político, que sanciona com legitimidade a solução de um confli-
to entre cidadãos – mediante a intervenção do poder judicial –, quando o conflito
não encontrou uma resolução por negociação razoável prévia. Neste caso, a ordem
política cobra estabilidade, governabilidade. O “estado de direito” garante, por
uma parte, os direitos do sujeito prático, como membro de outros campos (e em
sua dignidade ético-transcendental como tal) e, por outra parte, ante o exercício
delegado do poder por parte do Estado:

No estado de direito (Rechtsstaat), entendido em termos de teoria do discurso, a sobera-


nia popular não se encarna já numa assembleia intuitivamente identificável de cidadãos

759 Este é o argumento apodítico contra a pena de morte. A pena deveria ser ditada por um
“ juiz perfeito”, por meio de uma “decisão perfeita” – porque seria uma pena não falseável,
não invalidável, não falível: ao morto não se pode ressuscitar. Como a reversibilidade é im-
possível, mas todo juízo humano é finito, logo, não se pode nunca dar como pena a morte do
acusado. Esta pena, numa cultura pós-convencional, é manifestação de barbárie do passado.
G. W. Bush afrontou, sem suprimi-la, a execução de dezenas destas penas, o que manifesta
a irracionalidade e sua total insensibilidade ética, jurídica política.
760 Aqui caberia tomar em consideração a obra de MacIntyre, embora modificada.

352
autônomos; retrai-se aos circuitos de comunicação, por assim dizer, carentes de sujeito,
que representam os foros e organismos deliberativos e decisórios [...]. No Estado de-
mocrático de direito, o poder político se diferencia [...] no poder comunicativo e poder
administrativo (Habermas, 1992, IV, 1, p. 170).761

De nossa parte, como se verá repetidamente, queremos indicar além do suge-


rido, a necessidade e a criação de instituições que deem a possibilidade de uma
participação direta (no nível da base, distrital ou de bairro) por parte dos cidadãos
autônomos (que deveriam se organizar paralelamente nas instituições da repre-
sentação) desde baixo. Isto não nega, mas funda a possibilidade que seja “o direito
como um meio através do qual o poder comunicativo (indiferenciado) se transfor-
ma em administrativo” (Habermas, 1992, p. 187). A produção discursiva do di-
reito (Poder Legislativo) e a resolução dos conflitos (em especial, os sociais) (Poder
Judiciário) permitem que o estado de direito consolide a contínua regeneração do
poder político da comunidade. Claro que J. Habermas sempre se refere somente a
uma legitimidade formal. Por nossa parte, já o assinalamos, se considerarmos que
o estado de direito também se deve fundar na igualdade de direitos de reproduzir
e desenvolver a vida concreta dos cidadãos (na esfera material), teremos um con-
ceito de legitimidade real, e, por isso, também a ideia de um estado de direito real
(quer dizer, formalmente fundado no direito, nas leis, e materialmente existente na
resolução dos conflitos sociais,762 que surgem de um não cumprimento dos reque-
rimentos ecológicos, econômicos ou culturais de toda a população).
O estado de direito, então, dinamiza todos os interstícios da comunidade po-
lítica, de suas ações estratégicas, de suas instituições, impedindo de fazer justiça
“por suas próprias mãos” ou aplicar a “lei do talião” como vingança. A formação
disciplinada da vontade exige uma tolerância democrática fundada na fraterni-
dade cidadã. O Poder Judiciário se levanta assim como uma última instância fun-
dante que permite a vida política civilizada. Tudo se corrompe quando o direito

761 “No sistema da administração pública se concentra um poder que, uma ou outra vez, há de
se regenerar a partir do poder comunicativo [...]. A ideia de estado de direito pode desen-
volver-se, portanto, recorrendo aos princípios conforme aos que se obtém direito legítimo
a partir do poder comunicativo e este, por sua vez, através do direito legitimamente estabe-
lecido se transforma em poder administrativo” (Habermas, 1992, IV, III, p. 208).
762 Habermas adverte esta problemática ao considerar que “o poder social (soziale Macht),
embora de um modo distinto que o administrativo, pode tanto possibilitar como restringir
a formação do poder comunicativo” (Habermas, 1992, IV, III, p. 215-216). Este “poder
social” é algo assim como a potentia que surge de baixo, desde as demandas dos oprimidos ou
excluídos – que Habermas não trata de problematizar suficientemente –, embora escreva:
“quando se cumprem as condições materiais (materielle Bedingungen) necessárias para pôr
em prática liberdade de ação ou comunicação” (Habermas, 1992, IV, III, p. 215-216). E
chega a expressar: “A ideia de que o poder do Estado podia elevar-se como um pouvoir neutre
acima das forças sociais, foi sempre já ideologia” (Habermas, 1992, IV, III, p. 216).

353
é usado para o cumprimento de interesses inconfessáveis e a dominação coage
os cidadãos ao silêncio e ao medo. O poder político da comunidade se debilita,
o consenso se dissolve, a potentia dá lugar a uma potestas dominadora, parcial,
injusta. A reprodução da vida dos cidadãos se dificulta, a participação se aniquila,
a factibilidade técnica do domínio do bloco histórico no poder, sem hegemonia, se
transforma em pura dominação.

5. A
 opinião pública e política: o consenso ativo. A manipulação econo-
micista da mediocracia
[362] O consenso da comunidade política, vimo-lo repetidamente, constitui
um momento especial do poder em seu sentido positivo, radical. As vontades não
poderiam consolidar a potentia dos muitos sem a unidade que se funda no consen-
so. Nisto coincidiriam H. Arendt, J. Habermas, A. Gramsci e esta Política da Li-
bertação. Dissolvido, corrompido, destruído, o consenso se debilita e até se extingue
o poder da comunidade política. O que, hoje, chamamos opinião pública – e mais
estritamente opinião política – toca esta rede nevrálgica do poder como poder. De
outra maneira, insistimos que a democracia deliberativa exige uma comunidade
política in actu sempre atenta aos problemas e conflitos da realidade complexa
do campo político, a fim de que, pela contínua e presente discussão dos cidadãos,
argumentando, cada um desde sua posição de participante, se crie um estado de
discursividade ativa, que tem sua expressão pública e institucionalizada nos órgãos
legislativos. O que liga e funda os órgãos legislativos com a consciência intersub-
jetiva da comunidade política é a opinião pública, mas enquanto opinião que não é
somente pública, mas que, situada no campo político, realiza uma interpretação
ou hermenêutica763 propriamente política.
Em Transformação estrutural da esfera pública,764 Habermas expõe uma deta-
lhada história da transformação da “esfera pública” na sociedade europeia, sob o
projeto de organizar um Estado social no começo da década dos anos setenta. Se
deixamos de lado o amplo processo do tema nas sociedades grega (Habermas,
1962, p. 13ss) e latino-germânica (1962, p. 17ss), na “festa barroca [o público]

763 Assim como o juiz deve interpretar (hermenêutica) o corpo das leis para ditar um juízo, de
maneira análoga, cada cidadão deve interpretar (a hermenêutica política cotidiana) o sentido
político das ações dos atores políticos e o funcionamento das instituições segundo tenham
sido previamente definidas.
764 Traduzida para o espanhol como Historia y crítica de la opinión pública (em alemão, Struk-
turwandel der Oeffentlichkeit) (Habermas, 1962), a palavra alemã Oeffentlichkeit, do abstrato
(-keit) de oeffentlich (público) que procede de offen (aberto, franco, patente), não pode ser
traduzido por publicidade, mas por “esfera pública”. A transformação de Oeffentlichkeit (a
esfera pública) em oeffentlichen Meinung (opinião pública) – questão do capítulo VII (1992,

354
perdeu literalmente a ostentação e [2] se retira das praças públicas aos jardins, das
ruas aos salões de palácio” (1962, p. 22). A burguesia ganhará, por sua parte, a esfe-
ra pública, no primeiro capitalismo mercantil, comercial, nas grandes feiras que se
estabeleciam nos cruzamentos das ruas de amplo trânsito. Havia, assim, “tráfego
de mercadorias e de notícias” (1962, p. 28). É evidente que Habermas nada nos
dirá sobre Veneza, que nisto superava todas as cidades continentais europeias;
nem de Istambul, Bagdá, Samarcanda e, cruzando o Tarim, as enormes cidades
de Yang-ze. Nestas cidades, que florescem em Flandres (Bruxelas, Antuérpia e,
depois, Amsterdã), “público [...] resulta análogo a estatal; o atributo já não se refere
à corte representativa de uma pessoa dotada de autoridade, mas, antes ao funcio-
nário [...]. O domínio senhorial se transforma assim em polícia; as pessoas a ela
subordinadas formam, como destinatários da violência pública, o público” (1962,
p. 32). A classe mercantil comercial rapidamente (na Inglatera, primeira metade do
século XVII é publicada a Gazette of London) começa a editar boletins informati-
vos econômicos: nasce, assim, a imprensa escrita. A opinião da classe burguesa se
confronta com o Estado, a monarquia absoluta. Mas, bem cedo, o Estado começa
a utilizar este novo meio. Richelieu foi protetor de um periódico estatal fundado
por Renaudor, em 1631. A opinião escrita da burguesia havia criado sua contra-
parte. O poder da imprensa era crescente porque tinha como publicum milhares
(na França e em toda a Europa, mas também no México, Buenos Aires, Bogotá ou
Lima) de grupos literários e políticos que se reuniam em torno do recém-chegado
produto (os coffee-houses, os salons, os Tischgesellschaften), que, através de Viena,
provém do império otomano. Era uma esfera pública semiprivada. A família bur-
guesa patriarcal defende sua privacidade, mas se abre ao público. O primeiro piso
das casas dos comerciantes de Amsterdã dá para a rua, onde estão as oficinas e o
tratamento com os clientes: é a abertura ao mercado, ao público; no segundo piso,
está a família: é o privado; no terceiro piso, cujas comportas altas se abrem por
detrás aos canais por onde os barcos depositam as mercadorias, elevadas por gruas,
na casa do comerciante, onde trabalham os assalariados: é a fábrica.765 Aparece o
intercâmbio epistolar que utiliza a novel instituição do correio (primeiramente

p. 278ss) – deve hoje ser considerado como confrontando uma nova transformação que,
partindo de “opinião pública” clássica, se passa à “construção manipulada” de dita opinião
pública – como efeito das ciências da comunicação e de corporações transnacionais globa-
lizadas. Esta última transformação, mais além do Estado social, dentro do qual se encontra
Habermas, em 1961, e num mundo globalizado por redes eletrônico-computadorizadas,
dá ao tema uma total nova atualidade. Sobre sua visão um tanto mais atual (Cf. Habermas,
1992, VIII, III, 1, p. 435ss).
765 No México, a casa de Miguel Allende, patriota comerciante no início do século XIX, tem
a mesma estrutura (evidentemente, não há um terceiro piso porque em São Miguel não
há canais).

355
usado para a distribuição dos periódicos).766 Cresce a trama de redes de comuni-
cação intersubjetiva.
O Estado absolutista não tarda em organizar a censura, como medida de restri-
ção da esfera pública. Contudo, afiançado na própria burguesia, na Grã-Bretanha,
entre 1694-1695, se funda o Banco da Inglaterra e se produz a abolição da censura.
Aumenta o número de votantes (que, posteriormente, com a Reformbill, chegará
a um milhão de eleitores), aumenta a presença da burguesia num Parlamento am-
pliado que, ao final do século XVIII, deverá, pela primeira vez, se referir à public
opinion, que pressiona uma guerra contra a Rússia:

A ideia burguesa do Estado legal, isto é, a vinculação de toda a atividade estatal a um


sistema o mais contínuo possível de normas legitimadas pela opinião pública (oeffentli-
che Meinung), está orientada a um acantonamento do Estado como instrumento de
dominação (Habermas, 1967, p. 103-104).

Tudo isto é possível no tempo do crescimento da influência da burguesia na


chamada “opinião pública”.767 No começo, para Hobbes, por exemplo, a opinião
crítica à monarquia era detestável – como vimos na visão histórica (supra [134]).
Locke, pelo contrário, lhe dá um valor central, indicando que a virtude exige uma
public esteem (Habermas, 1962, p. 114).
É Rousseau, contudo, que usa por primeiro a expressão opinion publique num
sentido crítico, como confiança no juízo do sentido comum do povo simples,
como opinião popular da assembleia reunida na praça pública no momento do
exercício da democracia direta (embora garantida pela censura) (Rousseau, 1963,
p. 174ss),768 oposta ao mero publique éclairé, que é fruto da imprensa, dos discursos
de salão. Os sábios e a ilustração – é a burguesia ilustrada – se extraviam em
conhecimentos desnecessários, c’est de l’opinion publique qu’ils sont ennemis (Rou-
sseau, 1963, p. 228).769 Para Rousseau, como é sabido, a civilização corrompeu
o ser humano. Como se poderia salvar o cidadão dessa corrupção? Na Volonté
générale brota como o “estado de natureza” anterior à “sociedade civil” e expressa
sua bondade como opinion publique, como o bon sens (1963, p. 148ss):770 “Oh! Deus

766 Todos os impérios, desde o persa até o inca, tiveram correios, mas nunca para transportar
correspondência privada e em tal proporção.
767 “Opinião” pode significar, por um lado, um ato de menor certeza do que um juízo científico,
filosófico, certo, argumentando; mera opinião cotidiana (doxa, em grego). Mas, por outro
lado, é a reputação, o crédito, o juízo que alguém ou algo mereça, no sentido da “honorabi-
lidade” de Mandeville (“Tenho uma excelente opinião de fulano”).
768 Do Contrato Social, IV, 7.
769 Discurso sobre as ciências e as artes (Rousseau, 1963). A “opinião” simples é o falso juízo (A
quoi bon chercher notre honneur dans l’opinion d’autrui” (1963, p. 228).
770 Ver Do Contrato Social, IV, caps. 1 e 2.

356
todo-poderoso [...], livra-nos da iluminação e das artes funestas de nossos pais e
dá-nos a ignorância, a inocência e a pobreza, os únicos bens que podem produzir
nossa felicidade” (Discours, 1963, p. 226).
A opinião pública do povo é soberana. Contudo, deverá aceitar a mediação
legislativa, isto é, as instituições, para sua autorregulação, mas sempre pretenderá
diminuir sua importância, recordando a necessidade da democracia direta, donde
a opinion publique exerce sua presença, sendo o tribunal permanente e última ins-
tância do político. Nisto, J. Bentham estará totalmente de acordo. De todas as
maneiras, esta posição utópica – enquanto lhe falta o critério de discernimento
que possa criticar a própria opinião popular, e que são os princípios dos quais
falaremos no capítulo 3 – deverá ser tomada em consideração771.
[363] Em Hegel temos uma exposição explícita do tema na Filosofia do Direito
(§ 315-320):

A liberdade subjetiva formal de que os indivíduos como tais podem ter e manifestar
seus próprios juízos, sua própria opinião (meinen) e conselho a respeito dos assuntos
gerais, se manifesta no conjunto que se denomina opinião pública (öffentliche Meinung).
É o universal em e para si, o substancial e o verdadeiro associado a seus contrários: o
singular para si e a particularidade da opinião dos muitos (der Vielen); esta existência é
a contradição em si mesma, o conhecido como aparência; é o essencial e imediatamente
o não-essencial (Hegel, 1971, VII, p. 483).772

Neste texto se pode ver o sentido crítico a respeito do popular em Hegel e,


portanto, de sua opinião. Contra Rousseau, escreve: “As ciências, se são verdadei-
ramente ciências, não se encontram de nenhuma maneira no terreno da opinião
e de visões subjetivas [...] Elas não entram na categoria do que constitui a opinião
pública” (Hegel, 1971, VII, § 319, p. 488).
A sociedade burguesa (ou civil), para Hegel, era contraditória em suas clas-
ses fundamentais; não tinha por isso unidade nem objetivo comum. Opunha-se,
então, a uma visão liberal, mas também acreditava que o “povo” como massa in-
forme não podia tampouco ser referência de opinião sustentável. Apoia a ciência
ilustrada ou a vontade unificada do príncipe (Hegel, 1971, VII, § 320, p. 489). A
posição liberal, com o tempo, deverá contar com a coação do Estado, e não somente
a opinião pública. Durante um certo tempo, a imprensa lhe foi favorável e, nesse
momento, Hegel escreve: “Definir a liberdade de imprensa como a liberdade de falar

771 Um certo populismo espontaneista latino-americano caiu nesta simplificação; não assim a
Ética da Libertação (contra o aviso de H. Cerutti). Seria a relação entre o crítico e o povo.
Na narrativa simbólica semita haveria que se referir à dialética entre o povo que adora o
ídolo no deserto e o profeta Moisés, que o critica (e dirige para a “Terra prometida”) quando
havia perdido o rumo.
772 Rechtsphilosophie, § 316.

357
e de escrever o que se quer é correlativa à definição da liberdade, como liberdade de
fazer o que se quer. O assim dito pertence à barbárie inculta da representação e é
tão superficial como sua expressão” (Hegel, 1971, VII, § 319, p. 486).
Efetivamente, John Stuart Mill, em sua obra Sobre a Liberdade, é já a expressão
de uma burguesia que, tendo usado a opinião pública ilustrada contra o Estado
monárquico, começa agora a perceber que será usada pelas massas empobrecidas.
O liberalismo se torna cético em relação à opinião pública, sem mais nada; é ne-
cessário, determiná-la: “O único poder que aqui ainda conserva seu bom nome
é o das massas [...]. E o que constitui uma novidade ainda mais significativa, as
massas criam atualmente suas próprias opiniões, não já através de dignitários da
Igreja ou do Estado, não já a partir de líderes ou de escritos que se destacam acima
do habitual” (apud Habermas, 1962, p. 163). É o cúmulo, as massas pretenderem
pensar com a própria cabeça! É o que, tempos depois, expressará oligarquicamente
J. Ortega y Gasset, com a expressão: “a rebelião das massas”:

Se uma grande massa desce ao mínimo de subsistência que se apresenta como o que
normalmente necessita um membro da sociedade, se perde assim o sentimento do
direito, da legitimidade e da honra de sobreviver por meio da atividade do seu próprio
trabalho, observamos a formação da plebe (Pöbels) (Hegel, 1971, VII, § 244, p. 389).773

Tocqueville ou Milton também pensavam assim. Vale dizer, nos encontramos


de imediato ante uma nova transformação da posição política da opinião pública:

Frente a uma opinião pública que, ao que pareça, de instrumento de libertação774 que era,
se converteu numa instituição opressora [para os interesses liberais], não resta outro
remédio ao liberalismo, de acordo com sua própria lógica, que empregar todas as forças
para combatê-la. Agora, é preciso recorrer – nos diz Habermas – à organização res-
tritiva para garantir a influência de uma opinião pública minoritária frente às opiniões
dominantes, influência que, per se, não conseguiria se impor (Habermas, 1962, p. 167).

O dilema, ainda sem solução, será: como poder exercer o poder, como dominação
contra a opinião pública da maioria, representando os interesses da minoria? A este
dilema reponde a definição de poder de Max Weber e muitos outros depois dele.

773 Esta massa é irracional e não faz parte propriamente da sociedade civil: “a subsistência
dos miseráveis [não] seria procurada pelo trabalho, o que seria contrário ao princípio da
sociedade civil” (Rechtsphilosophie, § 245, p. 390). Como já expusemos em outros lugares,
“a sociedade civil é impulsionada a buscar, fora dela, [...] em outros povos, que lhes são
inferiores quanto aos recursos que eles têm em excesso” (Rechtsphilosophie, § 346, p. 391).
Estes povos estão na América Latina, na África ou Ásia. A contradição da extrema pobreza
produzida pelo capitalismo funda a possibilidade do colonialismo, justificado plenamente
por Hegel (embora a Alemanha prussiana não tivesse colônias, naquele momento).
774 Para a burguesia, é evidente.

358
[364] Karl Marx se situa nesta encruzilhada e, desde a contradição existente
na sociedade civil – como a define Hegel –, mostrará a impossibilidade de uma
solução com legitimidade real. Mas, isto já é tema do § 40, do capítulo 6.
H. Arendt, espantada com a invasão do social na esfera política, se inclina a
definir a opinião pública como uma dimensão mais próxima do social que do es-
tritamente político. “A deformação do campo público – para H. Arendt – são a
burocracia, o Estado de bem-estar, a opinião pública e a corrupção política” (Cf.
Cohen; Arato, 1995, p. 185). Para nossa filósofa, os Estados Unidos tem alguns
traços despóticos, ao ter fracassado uma democracia mais direta, com instituições
republicanas genuínas, o que teria dado lugar a um são pluralismo de opiniões.
Para ela, uma opinião pública unificada e homogênea é um defeito. O interesse,
vinculado ao campo econômico, impõe-se sobre a opinião genuína, que é um mo-
mento comunicativo autêntico.775
C. Schmitt, por razões inversas, em sua crítica ao liberalismo e ao parlamen-
tarismo, pretende demonstrar que a democracia se baseia numa homogeneidade
que suporia uma massa popular altamente preparada com uma opinião pública
unificada. Ao não ser assim e sendo que a opinião pública é uma ficção que o
liberalismo deve negar, já que se funda numa discussão que parte, por definição,
de uma pluralidade de opiniões, Schmitt conclui que é impossível “a conexão es-
trutural da opinião pública com a esfera pública parlamentar”, isto é, é impossível
“que se estabeleça um meio de identidade genuíno, ainda que incompleto, entre
governantes e governados” (Cf. Cohen; Arato, 1995, p. 232). Esta unidade é, para
Schmitt, mitológica.
N. Luhmann (2000, p. 274),776 que elimina a sociedade civil como uma cate-
goria em seu indiferenciado “sistema político”, dá importância à “opinião pública”
dentro de uma concepção empírica. Para Luhmann, o sistema político tem autono-
mia do sistema do direito. Os sistemas políticos tendem a uma maior diferencia-
ção e complexidade para responder a desafios cada vez mais complexos de outros
sistemas de seu entorno. O sistema político não pode ser renovado – contra Ha-
bermas – por estruturas discursivas nem por pressupostos normativos. O sistema
político, ademais, se diferencia de outros sistemas sociais por seu modo interno de
comunicação e de processos de decisão. A opinião pública entra, assim, não como
um meio de comunicação da esfera pública de características inalcançáveis – no
sentido de que todos os membros opinassem o mesmo – e, sim, como temas eleitos
que são “pré-compreensões compactadas durante o curso da comunicação dentro

775 Em Sobre a Revolução (Arendt, 1965) critica diretamente Rousseau pelas razões que já for-
necemos; quer dizer, o ter deixado as reivindicações sociais dos sans coulottes distorcerem a
esfera pública, política.
776 Ver Luhmann, cap. 8: Oeffentliche Meinung (2000, p. 274) e Luhmann (1982).

359
de limites sistêmicos mais ou menos firmes num mundo real comumente aceito,
pressuposto de maneira não articulada” (Luhmann, 1971, p. 13).777 Estes temas se
articulam aos processos de ação e põem diques ao que o político pudesse decidir.
Não é um momento da democracia; é somente “um mecanismo orientador [...] que
põe limites ao possível” (Luhmann, 1971, p. 20). São temas ou “regras de atenção”
(focalizam algumas questões) contingentes e variáveis cuja origem ou lógica não é
fundamental. Mas “a resposta à opinião pública é gerar e manter formas que per-
mitam ao sistema político não responder à opinião pública” (Cohen; Arato, 1995,
p. 319). Quer dizer, no caso da opinião pública medida por pesquisas, por exemplo,
não significa que será preciso reagir imediatamente num sentido, mas que mos-
trará uma tendência sobre a qual é necessário descobrir o sentido in the long run,
conservando a autonomia do sistema. A opinião pública pode cair em instrumen-
talização ou manipulação, mas estes mecanismos não esgotam o significado deste
fenômeno. A sociologia avançou muito na teoria das eleições de representantes.
As conclusões destas observações se transformam em componentes do processo
político em todos os níveis, mas é necessário discernir entre um mecanismo de
conhecimento de opiniões e as decisões propriamente políticas que podem fazer
mudar radicalmente estas opiniões.
A isto é preciso agregar a função dos “meios de comunicação” (Massenmedien)
(Luhmann, 2000, p. 305ss), questão que, por sua importância, pretenderemos tra-
tar mais adiante.778
Para sintetizar o que obtivemos até aqui, queria assinalar que a “esfera pública”
é o lugar, “o público” é o caráter daquilo que acontece neste lugar, e a “opinião públi-
ca” é o conteúdo interpretativo público, comunitário, induzido por argumentos779
(na ágora, no parlamento, nos meios de comunicação), por opiniões privadas ou
juízos públicos, ou por imagens repetitivas que ocupam o lugar dos antigos argu-
mentos (hoje, controladas, manipuladas e monopolizadas pelos meios massivos
de comunicação). Esta opinião pública, como a interpretação vigente do “sentido
comum” público e variável das multidões, não se encontra situado na esfera formal
propriamente institucional, mas guarda uma assistematicidade não-institucional
de ambígua disseminação na capacidade interpretativa prático-política da comuni-
dade política como um todo. Desde este âmbito, surgem, como desde um caldo de
cultura, os projetos de leis, a eleição dos representantes, e cada vez, pelos métodos
de pesquisas certamente distorcidas (mas, nem por isso, menos indicativas de um
“estado da opinião” flutuante), as referências obrigatórias do político profissional,

777 Cf. Cohen; Arato, 1995, p. 318.


778 Ver § 41 do capítulo 3 da Crítica desta obra.
779 A argumentação num sentido muito amplo, tal como a expõe Pedro Reygadas (2005), em
sua obra Teorias da argumentação.

360
dos partidos políticos e das diversas instituições. A opinião pública é uma inter-
pretação política generalizada que informa o político sobre um “estado” (verda-
deiro ou errado, correto ou incorreto, manipulado ou certo, etc.) da percepção do
“público” a respeito do que a ação do ator desperta na comunidade. Ser cego diante
da opinião pública é suicídio para o político (não poderá nem corrigir seus erros;
como o médico que não sabe detectar o ritmo do coração do paciente); ater-se
somente e a curto prazo à opinião pública seria ter perdido a orientação que deve-
ria desprender-se de ter um projeto político próprio (situado desde os princípios
material, formal, de factibilidade, e tantos outros) que permite a visão de longo
prazo; seria ter perdido a estratégia previamente decidida e sua tática; se encon-
traria como um barco à deriva, em mãos da fortuna, sem bússola nem virtù alguma.
A opinião pública se encontra numa esfera intermediária entre o nível estra-
tégico e institucional, entre a esfera material-social e a formal da legitimidade do
direito, entre a sociedade política propriamente dita e a sociedade civil na ordem
da factibilidade. É um âmbito que articula muitos aspectos do político, referência
última de juízo prático coletivo, cambiante, manipulável, mas inevitável e extrema-
mente relevante no sistema republicano democrático vigente e futuro. A “verdade
prática” perfeita (infalível) da opinião pública democrática de um povo (no sentido
que pensava Rousseau) é um postulado político de impossível realização empírica,
mas que orienta a ação de um representante responsável (quando deva dissentir
ante seus pares pelo interesse comum) e “obediente” (ante o cotidiano consensus
populi, que é a opinião pública) ante seus representantes. Ligar, então, a questão
do consenso discursivo democrático com a questão da opinião pública é inevitável.
O consenso intersubjetivo, comunitário, explícito, concreto, atual, cambiante é a
opinião pública. A opinião pública implícita, com maior permanência in the long
run, com memória, mais estável e que abarca não somente temas conjunturais,
mas, uma certa compreensão com sentido de totalidade, é o consenso ou a memória
de um povo. Isto apresenta vários problemas que não abordaremos aqui.
Tocamos alguns temas desta esfera formal da legitimidade de todo sistema
político, do Nível B do campo político. Como já assinalamos, voltaremos sobre eles.

361
CAPÍTULO 3
OS PRINCÍPIOS IMPLÍCITOS FUNDAMENTAIS:
A NORMATIVIDADE DA POLÍTICA

[365] Sejamos claros desde o início deste capítulo 3. Interessam-me os princí-


pios780 e a questão normativa na política (que não é exatamente o problema ético).
Sem eles, tanto nos cidadãos como nos políticos profissionais em geral,781 não po-
derá haver exercício delegado do poder político, ou seja, não poderá haver liberta-
ção alguma. O político eticamente corrupto é um mau político que não resistirá
às propostas de traição, de dentro e de fora, contra a comunidade política que diz
representar. Num curso de filosofia política para um grupo de políticos profissio-
nais, que ministro desde 2004 no Distrito Federal do México,782 os dirigentes se
mostraram interessados por uma exposição desta questão, principalmente porque
incluí o tema dos “princípios normativos da política”. Estes princípios são de difícil

780 Ver as Teses 9 e 10 de 20 Teses de Política (Dussel, 2006 [9.1ss]). Para os “princípios norma-
tivos críticos”, ver as Teses 13 e 14 da mesma pequena obra ([13.01ss]).
781 Nestes dias de janeiro de 2005, Augusto Pinochet está sendo julgado no Chile por crimes
contra os direitos humanos. Mas, ninguém pensa nem ninguém tem a capacidade política
para fazer seu promotor e sustentáculo político, o general Henry Kissinger, que hoje se atreve
também a criticar George W. Bush pelo desastre de sua guerra genocida no Iraque, a sentar
no banco dos réus. Este cinismo, sem princípios normativos, a partir somente de uma política
de defesa “dos próprios interesses” da nação dominadora é o tema que estamos abordando.
782 Recordo também que, em 2002, dirigi um seminário sobre “Ética e política” na Escola de
quadros da Frente Sandinista de Libertação Nacional, a convite de Miguel Escoto e com a
presença do comandante Daniel Ortega.

363
compreensão, da mais confusa operabilidade e frequentemente de pouca vigência.
Mas estão sempre pressupostos implicitamente em toda ação política ou da orga-
nização ou transformação de toda instituição. Não se trata, em primeiro lugar, de
um neokantismo de moda, nem sequer da exigência de coerência e consistência de
um discurso teórico (que certamente me interessa e que busco simultaneamente);
trata-se, fundamentalmente, de uma exigência política de vida ou morte, de legi-
timidade real, cujo não cumprimento produz não somente uma completa incoe-
rência prática ou o desnecessário sofrimento de povos inteiros e, sim, a própria
destruição do poder consensual como tal (a origem última do político): a potentia.
É preciso definir a política de maneira nova, para que seja possível a transformação
que se necessita. Com agentes políticos corruptos eticamente não há possibilidade
de libertação da pobreza, da dependência e da ilegitimidade.
Os princípios normativos políticos, em primeiro lugar, constituem as condições
de possibilidade, o momento próprio essencial do político. Se o político é de algu-
ma forma o exercício do poder consensual com capacidade de cumprir as media-
ções para a permanência e aumento da vida da comunidade política, os princípios
são os pressupostos já sempre dados que permitem, como exigência deôntica, tanto
o querer viver próprio, como o conteúdo da comunidade, como a possibilidade de
gestar o consenso como unidade da potentia, como a consideração das circuns-
tâncias para seu desenvolvimento. Não são momentos posteriores das ações ou as
instituições políticas que normatizam somente como regras externas (à maneira
da legalidade de Kant) e, sim, são as condições a priori intrínsecas constitutivas da
exigência originária, os “pré-sub-postos” normativos ontológicos do poder político.
Os princípios políticos, conforme os apresentaremos neste parágrafo, são: a)
negativamente, os que delimitam o campo político enquanto tal; b) positivamente,
os que constituem os supostos abismais ou condições absolutas de possibilidade
da potentia política dos momentos primeiros do poder consensual como tal. O não
cumprimento dos primeiros princípios normativos da política destrói o próprio
poder comunicativo: o ponto de partida e de chegada de toda política. Se o político
é o desdobramento do poder consensual no campo que o poder abre e estrutura, o
não cumprimento destes princípios normativos da política corrompe a própria
origem. O fato empírico de “o político” se dilui, se desvanece, se debilita, se desarti-
cula e perde consistência. Os princípios desdobrarão sua virtualidade em todos os
âmbitos; b.1, na consensualidade do poder; b.2, em seu querer viver comunitária
e institucionalmente; b.3, em sua relação de factibilidade com a escassez de bens
materiais; b.4, na ação estratégica como política em seus componentes; b.5, nas
instituições (marcando seus limites disciplinares e conteúdos).
A corrupção originária consiste em pretender exercer o poder do outro (de
outro cidadão ou da comunidade ou parte dela) como poder próprio: é o fetichismo
do poder. O primeiro momento de seu desenvolvimento consiste em torcer este

364
poder pretensamente próprio a favor de si mesmo; é o primeiro uso fetichista do
poder. Toda outra corrupção é um novo desenvolvimento desta corrupção.
Neste capítulo, se deverá definir, em primeiro lugar, negativamente, o marco que
enquadra o “campo político”, onde se cumprem as ações e as instituições, como
politicamente “possíveis”. Se a política é a “arte”783 do “possível”, existe uma linha,
um horizonte que define e diferencia o possível do impossível. O impossível, neste
caso, não é simplesmente o que não se pode fazer e, sim, o que, praticando-se com
pretensão de ação justa, não o é, porque se transformou numa atuação antipolítica
ou destrutivamente não-política. Existem ações que podem ser feitas, mas não
como “políticas”; isto é, ao pretender uma ação que perdeu o sentido político (quan-
do ultrapassa o limite de sua própria natureza, como, por exemplo, ao assassinar o
oponente político) a ação já deixa de ser política. Em segundo lugar, positivamente,
se mostrará a potentia normativa dos princípios que se situam como um a priori
ontológico sob os próprios constitutivos do poder, em todos os momentos de seu
desdobramento, exigindo dos agentes realizar o que o poder necessita para poder
aparecer como potência existente num campo político dado. A moralidade do singu-
lar kantiano é assumida pelos princípios como um ator comunitário intersubjetivo
que tem motivações próprias em efetuar o comum e não já como um vazio e frio
legalismo externo (assim se supera o neokantismo liberal, hoje tão em voga, e o
voluntarismo irracionalista schmittiano, no poder como dominação do Império,
com os grupos neostraussianos), assumindo-os, reconstruindo-os unitariamente
e superando-os.

783 Em sentido estrito, a política não é uma “arte” (tékhne) e, sim, “prudência” (phrónesis), como
indicamos mais acima.

365
§ 24. DEFINIÇÕES PRÉVIAS
1. Os princípios políticos operam implicitamente
[366] Rosa Luxemburgo indica o tema que desejamos expor:
[...] Os princípios [...] impõem à nossa atividade marcos estritos (feste Schränke), tanto
em referência aos fins a alcançar como aos meios de luta que se aplicam e, finalmente,
aos modos de luta [...] naturalmente; os que buscam somente os êxitos práticos desejam
ter as mãos livres, quer dizer, separar a práxis da teoria [leia-se: os princípios], para agir
independentemente dela (Luxemburgo, 1966, I, p. 128).
Para ter ante os olhos parte da complexidade do tema, propomos os seguintes
níveis de abstração, conservando a ordem do exposto até o momento (nível A: ação
política; nível B: instituições políticas; e, agora, nível C: princípios políticos):
Esquema 24.01. Diversos graus lógicos de abstração e de aplicação dos princípios,
momentos teleológicos784 e ações, e seus efeitos a partir de uma ordem política dada.
Nível C. Princípios políticos
1. O
 rdem ontológica ou omnitudo - Fundamento ontológico ou constituição real
realitatis do vivente humano
2. Princípios éticos implícitos - Primeiro grau de abstração
3. Princípios políticos implícitos - Subsume o nível anterior
4. Postulados políticos - São enunciados de perfeição786
5. Utopias políticas785 ou modelos - Imaginadas com conteúdo histórico
Nível B. Instituições políticas
6. Sistema político histórico concreto - Conformam-se instituições segundo os
princípios, postulados, projetos, etc.
Nível A. Ações políticas
7. Projetos políticos e fins da ação - Metas de ação concreta são organizadas
8. Regras de estratégia de ação - Fixadas desde os fins decididos
9. Regras táticas de ação - São determinados conjunturalmente desde a
10. Meios políticos a serem empregados estratégia
11.Ação concreta política (práxis) - Escolhidos desde as táticas
- Decididos em consequência e de modo
contingente
Efeitos políticos positivos ou negativos787
12. Os não-intencionais a curto prazo - Seguem as ações
13. Os não-intencionais a longo prazo - Dificilmente previsíveis

784 “Teleológico”, num sentido pós-metafísico.


785 Não são “princípios” normativos políticos, mas são ideias reguladoras que orientam o nível
da ação política (A, e a correção de seus efeitos negativos).
786 Semelhante aos postulados históricos e políticos de Kant. São os “conceitos transcenden-
tais” de Hinkelammert.
787 Desde os efeitos negativos se desdobrará todo o discurso crítico da filosofia política, objetivo
da Crítica desta Política da Libertação (Vol. III).

366
A ação política, desdobrada do poder político (impulsionado pelos princípios,
como veremos), se efetua dentro de um campo estratégico-institucional, dentro de
um âmbito delimitado pelos princípios; quer dizer que a ação está sendo “de-
-marcada” por um horizonte de possibilidade/impossibilidade, a partir do que N.
Luhmann chamaria uma “dupla contingência”, onde as expectativas ante uma ação
se encontram asseguradas no interior de dito marco. O que ultrapassa este marco
é uma ação caótica, impossível de ser julgada como política. A “expectabilidade”
possível se encontra, então, dentro de um espaço delimitado, cujas fronteiras são
colocadas pelos princípios políticos. É algo mais do que a mera virtù de Maquia-
vel que, não subsumindo princípios éticos, demarca um âmbito demasiadamente
amplo, dentro do qual, contudo, a imprevisibilidade da fortuna tem sido diminuí-
da, graças a certas regras coerentes de conduta (no nível 8 e 9, do Esquema 24.01),
mas onde, a longo prazo, a ordem política mostrará contradições impossíveis de
superar, em virtude das quais o campo ainda não poderia se chamar estritamente
político enquanto desdobrado do poder consensual.
É possível entender, por isso, desde já, que os princípios, limites universais de
toda ação, não tiram dela seu caráter inevitável de contingência falível; é mais, au-
menta a capacidade para melhor manejar a falibilidade contingente enquanto tal,
como veremos.
É necessário, ademais, tentar articular uma reflexão ontológica (e também a do
realismo crítico de um X. Zubiri) com outra de corte deontológico; isto é, mostrar,
de alguma maneira, a relação entre Heidegger e Zubiri com Kant. Com efeito, em
nossa primeira Ética da Libertação (Dussel, 1973), buscamos uma fundamentação
ontológica da ética a partir de um Dasein como “ser-no-mundo”, cujo horizonte
último ético-ontológico era a “compreensão-do-ser” (o télos de Aristóteles). Desde
este Entwurf (pro-jeto),788 como “poder-ser” adveniente, como futuro (Zu-kunft),
diria E. Bloch desde Heidegger, se abriam as possibilidades, que era toda a ordem da
ação (a práxis como atualidade do ser-no-mundo). As possibilidades da ação ficavam
fundadas na compreensão-do-ser. O “poder-ser” (como pro-jeto) era o “dever-ser”
que se constituía na “compreensão-do-ser”: a falácia naturalista nada tinha a ver
neste horizonte ontológico, já que o “ser” humano era originariamente “ético”, e
condenado desde sua própria origem à responsabilidade autêntica deste seu ser. Ser
e Dever-ser se davam simultaneamente desde o ponto de partida. As ações eram
devidas desde o pro-jeto ontológico.
Contudo, além disso, os princípios políticos não obrigam desde fora e, sim, cons-
tituem desde dentro a própria essência do poder como potentia positiva, já que obriga
ao “querer-viver” a fazê-lo desde um “consenso” que seja “viável”: vale dizer, os prin-
cípios políticos impulsionam os momentos essenciais do poder enquanto tal.

788 Que é algo mais que o nível 3 do Esquema 24.01; trata-se do nível 1.

367
Desde o realismo crítico de Zubiri, o mundo heideggeriano ficou situado dentro
de um cosmos,789 no qual o sujeito humano vivente é real, num sentido pré-ontológico
(embora sempre acedamos à sua realidade desde o mundo, desde a linguagem, desde
a interpretação). “Existem fatos reais, embora sejam sempre interpretados” – contra a
proposta de Nietzsche ou G. Vattimo (com o qual debatemos esta questão durante
três dias em Bogotá790) de que “não há fatos, há somente interpretações”. É, nesta
ordem, que se situa o sujeito vivente e vulnerável (ordo realitatis) e a exigência política
(desde o princípio material) da produção, permanência e aumento da vida humana
que obriga ao querer viver como potentia. Sem esta ordem trans-ontológica podemos
cair numa mera fenomenologia intencional de corte idealista ou meramente formal;
se perderia a ordem da verdade prática791 e a ordem do poder como realidade.
O entendimento, por sua vez, no horizonte problemático de Kant, de corte idea-
lista ou meramente formal, constitui objetos (correlativo ao momento da inter-
pretação do sentido de Heidegger). De sua parte, a razão pura teórica já não tem
um momento objetivo próprio, porque as Ideias não são objetos e, sim, postulados
(objeto de “fé racional”) (Cf. Dussel, 1973b, p. 75ss) e por eles são necessários
“princípios” formais morais (nível 2 e 3, do Esquema 24.01) – segundo um princí-
pio de universalidade cuja validade não tem conteúdos – ou “postulados” de ação
política e histórica (nível 4.) – que recuperam um certo conteúdo da ação histórica
e política e, por isso, os assumiremos como postulados “políticos”, reconstruindo
seu sentido. É incompatível uma compreensão ontológica (ou ainda trans-ontoló-
gica) com uma moral de princípios de tipo kantiano? Sê-lo-ia, se considerássemos
a moralidade kantiana dentro da concepção de um paradigma solipsista idealista
moderno da consciência e não fosse redefinida e complementada – retomando tam-
bém elementos da tradição mais antiga como, por exemplo, a noção de arkhé, em
Aristóteles, e da tradição do pensamento árabe ou latino-germânico.792 Nestes
casos, os princípios práticos (que eram captados pelo lógos praktikós ou ratio prac-
tica, mediando a syndéresis, segundo vimos) eram enunciados ou juízos universais
que expressavam o télos humano (ou a compreensão-do-ser heideggeriano) ligados
à realidade da existência. Os princípios expressavam dimensões ontológicas do
ser-no-mundo, como momento do ser humano, ético por natureza.793

789 Ver na Filosofia da Libertação (Dussel, 1977) a diferença entre mundo e cosmos, entre “com-
preensão-do-ser” num mundo como totalidade de sentido, e acesso à realidade da coisa real
dentro da omnitudo realitatis (ou o cosmos como totalidade das coisas reais).
790 Ver o debate em Vattimo (2002).
791 Ver capítulo 3 de Dussel (1998). É parte do tema debatido por Brandom (1998) e Habermas
(1999b), como veremos mais adiante.
792 Momentaneamente, deixamos de lado a reconstrução completa da questão que será ne-
cessário efetuar no capítulo 4, desde um ponto de vista da alteridade, em seu momento
de exterioridade (desde uma posição levinasiana, também modificada), onde falaremos de
princípios críticos.
793 Pode parecer uma redundância ou uma contradição falar de ser “ético” por “natureza”. Mas,
queremos assim expressar que o ser humano, desde sua constituição real, tem a capacidade

368
[367] Desta maneira, para nós, os princípios éticos (e, em seu momento, políti-
cos, como desdobramento do “ser-humano” numa região ontológica ou um “campo
prático” analógico) explicitam como exigências, enunciados que têm dimensões on-
tológicas, ou do sujeito real vivente, já dadas. A explicitação do implícito é a pas-
sagem do dado, ontológica ou realmente, no ser humano como estrutura vivente
com atividades cerebrais superiores autoconscientes. O fato de ser responsável do
próprio comer (também culturalmente, como arte culinária ou celebração ritual)
para seguir vivendo humanamente, se explicita794 nele: “Devemos comer para não
morrer!” – como exigência ética.795
Por analogia com o campo do jogo – campo sem intenção prática, isto é, onde a
tensão vida-morte do sujeito humano é deixada de lado e, por isso, se “descansa”,
não se tem já o peso de colocar a vida em risco –, Wittgenstein propõe como exem-
plo as regras que organizam a ação do homo ludens, que pode servir-nos metaforica-
mente para introduzir o tema. Se dez esportistas jogam uma partida de basquete,
num “campo esportivo”, devem cumprir as regras deste esporte. Se os boxeadores,
no quadrilátero cumprem as regras do boxe, triunfa o que consegue impactar com
mais golpes seu “inimigo” (“inimigo” esportivo certamente, o que supõe certos li-
mites ou disciplina), ao qual também pode deixar sem consciência. Quer dizer, no
boxe se pode vencer fisicamente o antagonista. A intenção não é assassiná-lo e,
sim, deixá-lo indefeso e, portanto, esportivamente vencido. Se, no caso anterior, um
basquetebolista deixasse fora de jogo a um “inimigo” numa partida de basquete,
aplicando-lhe golpes como o boxeador, teria deixado de ser basquetebolista (este
comportamento é impossível como basquetebolista), e não seria, contudo, boxeador
e, sim, receberia uma pena pela infração cometida contra as regras (os princípios)
do basquete. Se insistisse em golpear seu oponente, então teria também deixado
de ser esportista, teria ultrapassado o “limite” deste esporte e haveria que chamar a
polícia para que o tratasse como um simples infrator da lei, no campo político, já que
estaria agredindo outro cidadão. Quando um basquetebolista agride, sem intenção
de fazê-lo, um oponente esportista (ato que o boxeador faz com a intenção legítima

de autoconsciência, reflexividade e responsabilidade sobre sua própria vida, recebida a seu


encargo. É um “ser-ético”, indissoluvelmente (Cf. Dussel, 2001), sobre a “falácia naturalista”
(2001, p. 87-102).
794 Como se poderá ver, existem dois momentos onde o implícito se torna explícito. Em primeiro
lugar, e não nos deteremos sobre este particular, enquanto os princípios são já momentos
implícitos no ser ético real do ser humano como vivente. Em segundo lugar, como estes prin-
cípios éticos (e agora políticos) estão implícitos na vida cotidiana política, por exemplo, sem
que os agentes tenham notícia explícita, ou consciente, de sua existência ou de seu conteúdo.
Neste segundo sentido, é analisado por Robert Brandom, como veremos.
795 Explicitação, então, das mediações necessárias para a vida humana, quer dizer, das “neces-
sidades humanas” (certamente, ao menos, como necessidades “básicas”, mas também como
necessidades “histórico-culturais”) que se fundam, em último termo, no modo de realidade
do ser humano como vivente.

369
em seu campo de boxe, omitindo aqui o fato de que é um esporte que deveria ser
proibido por ser desumano), é objeto de pena e ainda é corretamente esportista se
aceita a pena contra si. Se não a aceitasse e agredisse o árbitro, por exemplo, seria
suspenso; isto é, teria deixado de ser esportista, conforme já indicamos. O mesmo
aconteceria se o boxeador, após derrotar o oponente, quisesse seguir golpeando-o.
Teria igualmente ultrapassado o “limite” deste esporte específico.
Analogamente, o campo político tem regras, princípios. O campo militar tem
outras regras. Neste último, pretende-se eliminar fisicamente o “inimigo” (o hostis
de C. Schmitt, o inimigo absoluto, de Derrida), ao menos deixá-lo sem defesa e
derrotado, podendo incluir sua eliminação física, e que, se o fizesse, não deixaria
de ser por isso militar. Mas, se no campo político alguém matasse seu “antagonista
político” porque o considera um inimigo “total” (inimigo militar), então o campo
político deixaria de ser político; transformar-se-ia num campo antipolítico ou per-
versamente político: sua ação seria algo distinto de uma ação propriamente políti-
ca. Neste sentido, as “regras” ou “princípios” políticos delimitam o campo político
como político e é “impossível” seguir sendo político quando se pretende matar o ad-
versário, como no caso de um inimigo militar. Na metáfora esportiva, o basquete
seria à política o que o boxe é à arte militar. Tendo em conta que também o boxe
e a arte militar têm regras (princípios), porque, do contrário, tampouco seria boxe
e, sim, uma briga de rua, e uma batalha militar seria uma carnificina bárbara e
primitiva. Também a guerra tem princípios propostos por tratados internacionais
(o antigo ius gentium, que J. Locke desconhece).
A “crítica” da razão e da vontade políticas é a clara análise dos limites do “campo
político”. Os princípios políticos (ou as regras normativas fundamentais) nos per-
mitirão definir ditos limites. O delimitar a diferença, por exemplo, entre o adver-
sário político e o hostis (o inimigo militar), supõe um critério e um princípio de
diferenciação, anterior ao antagonismo.
Os “princípios”, contudo, são sempre implícitos ou ocultos de modo pré-predica-
tivo cotidianamente. Encontram-se invisíveis no próprio desenvolvimento das prá-
ticas políticas – no sentido preciso que lhe daremos nesta obra de filosofia política
– e, todavia, definem consistentemente os “limites”, as fronteiras, que demarcam o
“possível/impossível” do “campo político”.
Do que se trata é, atendendo às razões dos pensadores “antiprincipialistas”,
pretender elaborar um conceito de “princípio” que seja posterior a esta posição
cética. Seria o caso de princípios que cumprem implicitamente na prática política a
função de definir, como um “marco” de referência, um “campo” entre o “possível”
e o “impossível” (tal como o define Hinkelammert) do político propriamente dito,
negativa e positivamente. Acontece com as regras linguísticas: não são aprendidas
para depois aplicadas. Nas práticas empíricas não se descobre que o princípio foi
aplicado inadequadamente quando se consegue definir uma contradição entre o

370
uso prático a posteriori e o conhecimento a priori teórico explícito da regra. Pelo
contrário, o princípio prático (em nosso caso, os princípios éticos subsumidos pelos
princípios políticos, e estes aplicados praticamente e em concreto na ação estraté-
gica ou institucional efetiva) são os que permitem a coerência e pretensão política
de justiça da própria ação e da instituição, do poder no exercício cotidiano, a curto
e longo prazos. Se, por exemplo, um político assassina seu adversário, além de
eliminar fisicamente seu oponente (que significa já a diminuição do poder diante
de um inimigo externo), cria, ao mesmo tempo, uma “inimizade” atual e crescente
de todos os “amigos” do assassinado: agora tem “inimigos” no sentido militar do
termo (e não somente adversários políticos, que põem sua própria vida em risco796),
e em muito maior número (além do mais, potencialmente “inimigos” num possível
campo de violência extrapolítica ou de uma política como exercício do poder como
pura dominação). Ademais, seus próprios “amigos” começam a se sentir insegu-
ros e ocultam possíveis críticas para não se transformar em possíveis “inimigos”.
Cresce a tensão no campo político distorcido, desnaturalizado, e o político assas-
sino deverá começar a criar um sistema de terror para imobilizar seus adversários,
inimigos, e também os amigos agora inseguros. O poder consensual se debilita,
os participantes lhe tiram sua adesão. O “campo político” vai se transformando
lentamente num “campo militar” ou meramente policial, de mútua manipulação,
espionagem e insustentável desconfiança generalizada. Teria se perdido o consen-
so minimamente necessário para a hegemonia (agora no sentido gramsciano). A
potentia teria sido destruída. O totalitarismo corrompe, então, o “campo político”
como político, como espaço do exercício do poder comunicativo.
O enunciado que se refere negativamente ao princípio material e universal
político se expressaria assim: “Não mates o adversário político!”. Positivamente,
obrigaria: “Age fraternalmente797 com outros membros da comunidade política!”
e exerce o poder em vista da permanência e aumento da vida. Isto mostra nas
próprias práticas políticas “implicitamente” seu sentido político, a longo prazo e
empiricamente, dando estabilidade e crescimento no tempo ao exercício institu-
cional do poder consensual, em suas diversas modalidades e estruturas, mas, e,
em segundo lugar, manifesta também em sua própria constituição a possibilidade
da existência do campo e da ação política, permitindo negativamente a existência
da oposição (do antagonismo político) dentro do enfrentamento democrático pela
hegemonia no exercício político possível do poder consensual (antagonismo polí-
tico que não é a “inimizade” do adversário na guerra, neste caso no sentido de C.
Schmitt ou de J. Locke), que positivamente desdobra um aumento da vida política.

796 Diz um provérbio popular: “Quem com ferro fere, com ferro será ferido”. Um presidente
mexicano, que criou ao final de seu sexênio um clima de terror (tendo em seu próprio en-
torno mortes “suspeitas” de parentes e correligionários, viveu a experiência de ter um irmão
preso e outro assassinado. O campo político muda de natureza.
797 Esta é a intenção da obra de Derrida (1994), Políticas da Amizade.

371
[368] A posição antiprincipialista se levanta contra certa defesa de princípios
formulados de maneira racionalista explícita, predicativa, abstrata. Mas seria justi-
ficável se fossem definidos os princípios de uma maneira adequada e com um rico
conteúdo programático. Um antiprincipialismo a todo custo adotaria uma posição
que lhe impediria ter critérios para delimitar o campo que permitisse uma ação e uma
organização institucional propriamente políticas. Quando se nega simplesmente os
princípios em nome da contingência da política ou porque antes se critica o exercício
da razão desde um ceticismo radical – à maneira de Richard Rorty –, neste caso, a
política “fica no ar”, sem fundamento deontológico. Isto acontece porque antes se
caiu num ceticismo de todo exercício da racionalidade, incluindo a política, mas
também e sub-repticiamente, da racionalidade crítica democrático-emancipatória.
Outra coisa é negar que se possam fundamentar os princípios ou que não se deva
fundamentá-los em última instância transcendentalmente – como o propõe em sua
“destranscendentalização” (Detranszendentalisierung) Habermas contra Apel. Terá
que explorar diversas maneira de fundamentação e, quiçá, exercitá-las simultanea-
mente. Tampouco se pode negar que haja princípios a partir do argumento de que o
antagonista apareça empiricamente de maneira inesperada num campo político sem
conteúdo (um “universal vazio”) e sem condições – como pensa E. Laclau –, razão
pela qual os princípios pareceriam inúteis e desnecessários porque não outorgam
claridade alguma à análise da lógica da luta pela hegemonia. Se opõe à existência de
princípios desde uma certa posição crítica pós-moderna ao afirmar a fragmentação
da política e a impossibilidade de toda universalidade de princípios porque negaria
a complexidade da ação estratégica, sua incerteza, sua contingência, sua indecidibi-
lidade,798 próprias da política. Por último, também se opõem aos princípios os que
negam que o ator político deva conhecê-los explícita e predicativamente para poder
agir. Atendendo a todas estas razões, e muitas outras, que explicam a possibilidade
de uma posição anti-fundacionalista, acreditamos que é possível desenvolver uma
estratégia argumentativa que permita mostrar a conveniência e a necessidade crí-
tico-política de certos princípios políticos sempre implícitos nas práticas políticas.
Robert Brandom mostra como as “regras” (rules) (ou os “princípios”, no nosso
caso) podem ser interpretadas pelos racionalistas (como Platão, Kant ou Frege)
como regras ou princípios explicitamente conhecidos (e enunciados) como tais e que
se aplicam com posterioridade: “Wittgenstein argues that [...] proprieties governed
by explicit rules rest on proprieties governed by practice. Norms that are explicit in
the form of rules presupose norms implicit in practices”799 (Brandom, 1998, p. 20).

798 Esta palavra poderia significar o “indizível” (o que não se pode “dizer” explicitamente) ou o
“indecidível” (que não se pode “decidir” perfeitamente). Ambos os aspectos são próprios de
toda mediação política empírica, finita.
799 “Wittgenstein argumenta que propriedades [...] regidas por regras explícitas repousam
sobre propriedades regidas pela prática. Normas que são explícitas na forma de regras
pressupõem normas implícitas nas práticas” (NT).

372
Sellars argumentou contra o “regulismo” (que, em política, seria um “principia-
lismo”) no sentido de mostrar que se se necessitasse conhecer a regra para usá-la
nas práticas linguísticas seria preciso conhecer antes outra meta-regra para enun-
ciar a própria regra (porque ela consiste também num enunciado linguístico) para
saber se seu enunciado é correto, mas isto nos levaria a um regresso ao infinito
(Sellars, 1963, p. 321). Brandom conclui: “The norms implicit in regularities of
conduct can be expressed explicitly in rules, but need not be so expressible by those
in whose regular conduct they are implicit”800 (1998, p. 27).801
O principialismo pensa os princípios políticos como enunciados proposicio-
nais explícitos que devem ser fundamentados (o fundacionalismo) para que o ci-
dadão ou o político, ao ter consciência deles, possa aplicá-los. O antiprincipialismo
simplesmente nega estes princípios ao opinar ceticamente sua impossibilidade ou
ao não poder imaginar ou não crer necessário um exercício, ainda que implícito, dos
princípios das instituições e das práticas políticas dos diversos atores do campo
político. Nós afirmamos os princípios como normas (ou regras prático-políticas)
constitutivas, como regras que fixam limites ao campo político e que, de dentro,
animam as instituições e o exercício das ações políticas, normalmente de maneira
não intencional, invisíveis ou encobertos à consciência do agente, sendo, contudo,
vigentes implicitamente na instituição ou na própria ação. O ator, graças aos princí-
pios, demarca, de fato, empiricamente, o campo político e obtém um impulso nor-
mativo para organizar as instituições e efetuar sua ação, exercendo implicitamente
o princípio em todo o político. Ao não fazê-lo, a instituição ou a ação se situaria
fora do espaço político, faltando-lhe a potência normativa, desenvolvendo estruturas
de poder de maneira patológica, autocentradas, fetichistas, de um poder como do-
minação totalitária, autoritária, despótica, ou de outro tipo que, desde um ponto
de vista estritamente político teria deixado de sê-lo e começaria a produzir efeitos
negativos inesperados que criariam tanto ruído num curto e longo prazo, que o
campo político, as ações políticas e as instituições iriam desaparecendo enquanto
tais, negadas, destituídas ou suplantadas por outros tipos de ações ou instituições
que teriam passado a outro campo da ação (por exemplo, ao campo da guerra ou
ao da mera manipulação tecnocrática ou totalitária policial).

800 “As normas implícitas nas regularidades de conduta podem ser expressas explicitamente
em regras, mas não precisam ser assim expressas por aqueles em cuja conduta regular estão
implícitas” (NT).
801 E acrescenta: “The problem that Wittgenstein sets up, is to make sense of a notion of norms
implicit in practice that will not lose either the notion of implicitness, as regulisn does or the
notion of norms, as simple regularism does” (1998, p. 29). “O problema que Wittgenstein
levanta é dar sentido a uma noção de normas implícitas na prática que não perderá nem
a noção de implícito, como faz o regulismo, nem a noção de normas, como o regularismo
simples” (NT).

373
2. Princípios, postulados, utopias e projetos políticos

[369] Penso ser necessário diferenciar claramente os princípios éticos dos políti-
cos (níveis 2 e 3 do Esquema 24.01) e estes dos postulados políticos (nível 4), sabendo,
além disso, que ditos postulados (pense-se em A paz perpétua, de Kant, ou nos
“conceitos transcendentais”, de Hinkelammert) não devem ser confundidos com
as utopias imaginárias (recorde-se a obra de Tomás Moro, nível 5), nem com os pro-
jetos políticos concretos (nível 7). Por sua parte, os modelos ou tipos institucionais
possíveis servem para a realização concreta dos sistemas políticos empíricos (nível
6), dentro de cujo horizonte (e mais além deste quando se tem a intenção transfor-
madora) se cumprem as ações estratégico-políticas (indicadas nos restantes níveis
do Esquema 24.01).
Vejamos algumas destas noções a fim de fixar um conteúdo semântico mínimo
em cada uma destas expressões. Os postulados, tal como o vimos quando Kant
aborda o tema,802 são referências que orientam a ação:

A paz perpétua é certamente irrealizável. Mas [as] alianças entre os Estados, enquanto
servem para acercar-se continuamente do estado de paz perpétua, não são irrealizáveis
e, sim, são, sem dúvida, realizáveis, na medida em que tal aproximação é tarefa fundada
no dever (A 228, B, 258; 1958, VII, p. 474).803

O postulado, como um horizonte que sempre se desloca e nunca pode ser


realizado, como a estrela polar dos chineses que lhes permitia orientar-se na na-
vegação noturna, mas que como tal era inalcançável. A “ilusão transcendental”
– na expressão de F. Hinkelammert (1984), consistiria no caso de que os navega-
dores quisessem efetivamente chegar à estrela com seus juncos – é a que comete
o anarquista extremo da esquerda revolucionária, ou o conservador capitalista
quando pretendem realizar empiricamente o postulado hic et nunc (por exemplo,
a “sociedade sem classes”, a “dissolução do Estado”, em Bakunin ou J. Holloway,
o “comunismo” em sua etapa plena – de O Estado e a Revolução, de Lênin –; ou
o “Estado mínimo”, de Nozick, a “competição perfeita” do neoliberalismo de F.
Hayek, que é postulada desde um mercado total; ou a “fraternidade” e a “igual-
dade” da revolução francesa, etc.). Todos estes exemplos nos falam de situações
ideais, “perfeitas”,804 já que, tendo (ou não) possibilidade lógica, são empiricamente

802 Ver [171-180] da parte Histórica desta obra.


803 A metafísica dos costumes, § 51.
804 Na Física moderna, a mecânica parte de um “modelo de impossibilidade” (Cf. Hinkelam-
mert, 1984): o perpetuum mobile (um objeto que se moveria permanentemente). Desde esta
impossibilidade empírica (com possibilidade meramente lógica) se foram inventando instru-
mentos para reduzir o efeito da inércia e se aproximar (para usar a palavra kantiana) do mo-
delo impossível. No mundo da Cristandade latino-germânica, o “modelo de impossibilidade”,
conceito metodológico fundamental para uma crítica da razão política, era hipoteticamente

374
impossíveis de serem realizados plenamente; contudo, têm uma função política já
que abrem novos horizontes de ações e instituições possíveis.805 Proporemos al-
guns postulados correlativos aos princípios políticos – que são enunciados deôn-
ticos universais ou imperativos, como veremos. Consideremos, somente como em
esboço, como K. Marx usou a categoria de postulado na economia política (que
pode nos servir de exemplo análogo para a política).806 Marx indica um aspecto
do postulado da economia burguesa ao escrever: “A produção por parte de um
indivíduo isolado, fora da sociedade [...] não é menos absurda que a ideia de um
desenvolvimento da linguagem sem indivíduos que vivam juntos e falem entre si”
(Marx, 1974, p. 6).807 Marx deve ter tomado esta intuição de Hegel naquilo que
Habermas recorda de que é “mérito de Hegel ter descoberto o papel epistemoló-
gico da linguagem e do trabalho” (1999b, p. 191ss)808 – mas Habermas não pôde
desenvolver este tema por seu formalismo. Ante esta formulação, Marx enuncia
outro postulado contrário: “Imaginemo-nos finalmente, para variar,809 uma as-
sociação de homens livres que trabalhem com meios de produção comunitários e
empreguem, conscientemente, suas muitas forças de trabalho individuais como
uma força social [...]” (Marx, 1975, MEGA [1987], II, 6, p. 109).810 Esta descrição
adquire forma definitiva em outro enunciado:

colocado como antes do pecado original, no paraíso. Nesta situação ideal, o ser humano teria
podido viver sem propriedade, sem Estado, não havendo dominação, nem classes, nem...
pecado. Mas, como esta situação ideal (ante rem) é empiricamente impossível na sociedade
atual (post peccatum), era necessário aceitar a existência da propriedade, do Estado e de
outras mediações que devem ser estipuladas como momentos do ius gentium (na filosofia
latino-germânica cristã, a propriedade, por exemplo, não era, por tudo isso, de direito na-
tural, tal como seria formulada posteriormente pela burguesia).
805 Ver o que já foi tratado em nossa obra Ética da Libertação, no capítulo 3 (no parágrafo 3.4-3.5).
806 Tratamos o tema em Dussel (1993, p. 288ss; 1998d, p. 81ss).
807 Grundrisse. Este Robinson Crusoé (Marx os chama, por isso, “robinsonadas”) singular,
no “estão de natureza” antes do contrato da “sociedade civil” é parte de um postulado do
individualismo liberal (4. do Esquema 24.01).
808 Ver a reflexão de Habermas (1999b, p. 191ss) sobre a importância no jovem Hegel da “lin-
guagem e do trabalho” (inspirado em Honneth, 1992). Escreve Hegel: “A boca que fala, a
mão que trabalha [...]. Linguagem e trabalho [...] deixa[m] que o interior se volte inteira-
mente fora de si e o abandone a algo outro” (Phänomenologie des Geistes, Leipzig, 1949, p.
229, apud Habermas, 1999b, p. 192). Habermas mostra que a partir do trabalho se abre o
mundo da cultura material, da ferramenta. Mas, Habermas não consegue ainda desenvolver
nunca esse âmbito e somente continua sua reflexão a partir da “língua”, a “boca”, a pragmá-
tica. Indicamos no debate com Apel e nesta Política da Libertação a importância da esfera
material (§ 21). Nem Habermas, nem Apel, puderam continuar estas reflexões do jovem
Hegel que somente Marx retomou coerentemente. A linguagem se situa no nível formal,
procedimental, deliberativo da legitimidade; o trabalho se refere ao campo econômico e ao
aspecto material da política, como veremos mais adiante novamente em detalhe.
809 Ironia que Marx se faz a si mesmo, já que recorda frequentemente o postulado em várias
formas.
810 O Capital, I, 1. É o postulado 4 do Esquema 24.01).

375
O Reino da liberdade somente começa ali onde cessa o trabalho determinado pela ne-
cessidade e a adequação a finalidades exteriores [...]. Por conseguinte, está mais além
(jenseits) da esfera da produção material propriamente dita [mais além de] todos os
modos de produção possíveis (möglicher) (Marx, 1956, MEW, XXV, p. 828).

Este é o postulado do campo econômico, no qual seu limite impossível empírico


seria um futuro “tempo de trabalho zero”: a economia perfeita suporia não traba-
lhar mais, tempo livre para o campo da cultura; e, por isso, “a redução da jornada de
trabalho é condição básica” (Marx, 1956, MEW, XXV, p. 828) (quando se traba-
lha menos há mais tempo para a criação espiritual, passagem do campo econômico
ao da cultura), que é como uma aproximação assintótica ao zero do trabalho, im-
possível empiricamente (como Kant imagina a aproximação à paz perpétua, empi-
ricamente impossível, por meio de uma antecipação: a “aliança entre os Estados”).
O postulado, segundo o “princípio empírico de impossibilidade” (Hinkelam-
mert, 1984, p. 182),811 embora enuncie um impossível empírico, orienta a ação para
o que o princípio obriga. O postulado é um enunciado descritivo (como horizonte
perfeito) acerca do que, no princípio, é prescritivo (no âmbito empírico). O âmbito
em que se exerce o dever-ser do princípio não é ideal, mas empírico, é o que se deve
efetuar no concreto existente.
Valha esta curta reflexão sobre o sentido dos postulados na ação prática e no
nível das instituições.
As utopias são narrativas imaginárias que partem de fatos reais que se projetam
no futuro. A descrição dos momentos negativos da ordem histórica existente é cla-
ramente manifestada; frente aos mesmos se relatam acontecimentos imaginaria-
mente futuros nos quais se daria positivamente um mundo melhor que o atual, onde
as “injustiças” presentes desapareceriam. As utopias são facilmente compreensí-
veis pelo imaginário popular. Pulularam na crise do mundo da Cristandade, no
momento da origem do capitalismo, nos séculos XVI e XVII. A Monarquia in-
diana, de Torquemada (uma Cristandade franciscano-indígena sem presença de
europeus), ou a Utopia, de Tomás Moro, são, com efeito, utopias: embora “não-te-
nham-lugar” (ouk-tópos, em grego), servem como um horizonte imaginário político
crítico ou construtivo da nova sociedade.

811 “A lógica da investigação científica”, não só contra Popper, mas também às concessões que
Apel faz ao popperismo, indica que um enunciado por seu conteúdo semântico poderia ser
logicamente possível (o perpetuum mobile da mecânica ou a planificação perfeita de um L. V.
Kantorovich (Hinkelammert, 1984, p. 128ss), mas empiricamente impossível (Dussel, 1998,
cap. 3, parágrafo 3.4). O postulado lança as ações empíricas para a realização conscientemente
orientadora do conteúdo lógico perfeito, enquanto tal não possível (empiricamente), mas que
demarca um critério de ação com sentido (orienta para...). O princípio normativo é a outra
cara, a cara positiva do postulado: o dever, como impulso, motivação, potentia da obrigação)
que anula a subjetividade para o objetivo prático e o ordena (imperativo) agir neste sentido.

376
O projeto político concreto que, por exemplo, pode ser apresentado por um
partido político para mostrar seu plano de ação é já uma formulação estratégica
global com intervenção de especialistas (economistas, politólogos, planejadores,
historiadores, psicanalistas, filósofos, antropólogos e muitos mais, não devendo
faltar os militantes especialistas) que propõem com racionalidade meio-fim (razão
estratégico-técnica) objetivos precisos que se comprometem a realizar a curto e
médio prazos. Não deveriam faltar os horizontes de longo prazo – e seria um
projeto político com sentido histórico maior.

3. Ética e princípios normativos da política

3.1. Três possíveis relações

[370] Hegel se referia ao nosso tema ao escrever na Filosofia do Direito:

Falou-se muito da oposição entre moral e política e das exigências de a primeira medir
a segunda. Aqui, é preciso observar que o bem de um Estado (Wohl eines Staates) tem
totalmente outra justificação para o bem do singular, e [que] a existência da substância
ética (sittliche Substanz) do Estado, isto é, seu direito imediato, não é abstrata e, sim,
tem existência concreta. Somente esta existência concreta, e não numerosas ideias
gerais tidas por mandatos morais, pode ser tomada pelo Estado como seu princípio
(Prinzip) da ação e da conduta. A assim chamada injustiça política, aparente oposição
à moral, responde a uma visão superficial das concepções da moralidade (Moralität),
da natureza do Estado e da relação de uns pontos de vista da moral (Hegel, 1971, VII,
p. 501-502).812

Hegel está criticando frontalmente Kant e mostra (como C. Schmitt, por


exemplo) a incapacidade do filósofo de Königsberg de articular adequadamente
ética e política. Com efeito, Kant, ao reduzir o direito e a política ao cumprimento
da legalidade externa, reservando a moralidade subjetiva para o ato propriamente
ético-individual (como ética da convicção), deixou – questão tão criticada com
razão por C. Schmitt – a ação política sem motivação forte, uma vontade ética,
propriamente política como exercício de uma eleição constituinte da vontade dos
indivíduos e de um povo. A política perdeu seu conteúdo de vontade, de poder, sua
articulação com as motivações dos cidadãos singulares e da comunidade política.
Esta política legalista com uma normatividade puramente formal, externa, con-
duz, a longo prazo, à despolitização ou ao “maquiavelismo” (não o do próprio Ma-
quiavel) de uma política sem parâmetros éticos. Não é possível criticar os efeitos

812 Rechtsphilosophie, § 337, Zusatz.

377
de uma política corrompida: se a política é uma formalidade (com o tempo, só uma
técnica do exercício do poder como dominação), porque não seria um instrumento
para o cumprimento dos interesses dos grupos, classes, nações, Estados mais po-
derosos? Não tendo uma convicção subjetiva da necessidade de cumprir uma lei
acordada por todos, isto é, legítima, o corrupto não seria o que deixou de cumprir
uma exigência normativa e, sim, seria simplesmente o que não soube tecnicamente
ocultar suficientemente diante da lei (ou ao possível acusador ou juiz) os fatos que
puderam reconstruir seu ato delituoso. Sem consciência ética intersubjetiva que
se articula com a legitimidade comunitário-objetiva, como exigir do cidadão ou
seu representante o cumprimento de objetivos comunitários ao que deixou efetuar
como membro da comunidade ou como representante? Somente o ingênuo deixará
de se aproveitar das instituições políticas para o proveito dos seus.
Mas Hegel fala de uma “injustiça (Unrechte) própria da política” – no texto
citado –, que seria algo assim como o indicado no seguinte exemplo. Na ética,
há um mandato universal: “Não matarás!”. Mas, na decisão política de deter um
delinquente, a polícia pode matar o assassino que viola a lei, ainda que seja aciden-
talmente. Mais ainda, acontece que os heróis (por exemplo, G. Washington, M.
Hidalgo ou P. Lumumba), em sua luta pela emancipação de sua Pátria, matam
inevitavelmente soldados inimigos. Esta morte seria uma das “injustiças” – aos
olhos de uma moral subjetiva – da quais fala Hegel813. Hegel mostra que havia uma
oposição numa visão “superficial” da moral subjetivo-individualista e a existência
de uma política formal-externa. Ao se descrever ambos os momentos de maneira
mais adequada e profunda e se distinguir o abstrato (moral) do mais concreto
(político) – onde se podem ocorrer oposições de princípios universais em situa-
ções de maior complexidade e onde é preciso saber escolher priorizar os princípios
segundo a situação concreta, sem perder, por isso, a exigência normativa, no senti-
do de uma teoria ad hoc, à maneira sugerida por R. Dworkin –, pode-se justificar
plenamente a aparente oposição.
Outra maneira, semelhante à kantiana (na questão da articulação da moral e da
política até a Metafísica dos Costumes), de pretender chegar a uma articulação da ética
e da política, é a de Dworkin, em sua Ética Privada e Igualitarismo Político (1993),
mas seu individualismo metafísico impedirá igualmente uma resolução do proble-
ma. Com efeito, numa ética do “modelo do desafio”, o “liberal ético” deverá exigir de
todos os participantes da política ter uma “igualdade de recursos” – criticando, de
certa maneira, o “segundo princípio”, da diferença, de J. Rawls: “Os liberais éticos

813 Júlio Cabrera deixa a política sem normatividade alguma, já que exige que o princípio ético
do “não matarás!”, universal para a bondade do ato, é impossível de cumprir na política. Seu
argumento e minha resposta podem ser lidos em Cabrera (2004) e Dussel (2004c).

378
insistem que a justiça é uma questão de recursos814, não de bem-estar.815 Mas qual
porção de recursos é a porção justa? A qualidade liberal concreta: uma porção igual
para todos” (Dworkin, 1993, VI, p. 173).
Mas, imediatamente, enfrenta-se um segundo problema. De um ponto de
vista “parcial”, de cada pessoa, estes recursos poderão ser usados segundo maior
ou menor perícia, segundo objetivos muito diversos que produziriam de ime-
diato novas diferenças: “Em condições de igualdade de recursos se produz uma
divisão do trabalho entre a perspectiva política e a privada” (Dworkin, 1993, VI,
p. 181). Para que houvesse uma situação de justiça, haveria, ademais, que compen-
sar “os recursos pessoais [como inteligência, força, saúde, etc., que] não podem ser
leiloados. Por isso, a igualdade liberal exige um reajuste nos recursos impessoais
[em terceira pessoa] que compense as diferenças de recursos pessoais”.816 E assim
segue construindo argumentos até chegar a propor que, em terceira pessoa, o
indivíduo pode aceitar um sistema de acordo neutro (que seria o político) onde
cada um possa conservar seu modo substantivo de viver sua vida boa em primeira
pessoa. Portanto, a política (em terceira pessoa) não é uma “continuidade” da
ética (em primeira pessoa); e, sim, cada um, tendo direito à sua própria convicção,
deve ter tolerância com outras posições substantivas desde o marco da “igualdade
liberal” política. A ética em terceira pessoa, por sua parte, sendo tolerante, é um
momento da política liberal. Quando se nega a homossexualidade, por exem-
plo, “a igualdade liberal tampouco pode ser neutra em relação a estas convicções
em primeira pessoa, evidentemente, porque exigem algo que ela reputa injusto”
(Dworkin, 1993, VI, p. 198).
No individualismo metafísico, a perspectiva coletiva (a política) se dissolveu
num campo impessoal, vazio de motivações éticas pessoais, onde a perspectiva in-
dividual (a ética) é tolerada como algo externo ao político propriamente dito. Uma
posição como a de Hegel, de C. Schmitt ou de outros comunitaristas, é evidente,
opõe-se a esta maneira de articular ética e política.
Por sua vez, J. Habermas, abordando um dos aspectos da relação entre ética e
política, indica que:

814 De imediato, surgiria a pergunta de qual critério se usaria para medir os recursos e ob-
viamente deverá responder que segundo critérios mercantis (por exemplo, de dinheiro no
mercado), o qual suporia aceitar como suposto dado o capitalismo. E tal é assim que, como se
trata de uma teoria “distribucionista” (fala-se de “subasta” para alcançar a igualdade origi-
nária), chega ao problema da produção, cometerá imediatamente contradições irresolúveis.
815 Amartya Sen, com o desenvolvimento de uma ética de capabilities, oferece outra solução, que
não são meros recursos – que critica com grande acerto o economista da Índia –, e menos
um ambíguo “bem-estar” – cuja medida é impossível. Ver meu artigo: “Princípios éticos e
economia em torno à posição de Amartya Sen” (Dussel, 2001, p. 127-143).
816 Quais seriam os critérios de dita avaliação e qual o método para medir as diferenças? Tudo
isso se torna empiricamente impossível. Seria semelhante ao postulado de Marx: “A cada
um segundo o sua necessidade...”. Mas, Dworkin não conta com uma teoria dos postulados.

379
A moral e o direito servem ambos, certamente, à regulação de conflitos interpessoais
e ambos têm por fim proteger por igual a autonomia (individual e pública) dos par-
ticipantes e afetados. Mas, não deixa de ser interessante que a positividade do direito
imponha uma cisão da autonomia que não tem equivalente pelo lado da moral (1992,
Epílogo da 4. ed.; ed. esp. 1998, p. 648).

Este e muitos outros aspectos nos obrigam a considerar a questão mais sistema-
ticamente. Com efeito (e segundo vimos), existem diferentes maneiras de encarar
a relação entre a ética e a política, e mais concretamente, entre os princípios éticos
e políticos. Ao menos poderíamos indicar, para começar, três maneiras parciais ou
redutivas de descrever a relação entre ética e política. Consideremo-la de maneira
apenas indicativa.
[371] Em primeiro lugar, por exclusão, a) a ética e a política se opõem como dois
momentos diversos. Trata-se de liberar a política de exigências normativas, como
as estabelecidas pela ética. Maquiavel confronta a tradição na qual tanto a ética
como a política comportavam essencialmente virtudes (recorde-se a posição de
Aristóteles, Alfarabi ou Dante, onde havia uma prudência ou justiça do singular, e
outras). O florentino descreve uma política que se liberta do exercício das virtudes
práticas tal como as entendia. A política moderna havia dado seus primeiros pas-
sos, descartando as virtudes do passado e definindo uma nova virtù, que consistiria
num certo hábito que teria regras estratégicas e táticas para a ação,817 semelhante
às artes. Era uma tékhne que tinha semelhanças, embora muito menos elabora-
das e dentro de uma lógica da presença, do modelo e do encontro da ação militar
grego-renascentistas, com a estratégia chinesa, que incluía um certo cinismo, um
comportamento do engano, um saber não colocar todas as “cartas sobre a mesa”.
Esta será a concepção da Modernidade, em especial na sua relação com a peri-
feria colonial (com o índio, o escravo, o colono de outra cultura), com o oponente
mercantil, com a classe trabalhadora na Europa, com o antagonista do exercício
político de um “poder como dominação legítima”. De igual modo, um certo proce-
dimento extremo puramente formal, que poderia ser atribuída a certas teorias da
democracia atual, evacuaria as exigências éticas ou normativas da política. É uma
posição que hoje tem muita audiência.
Em segundo lugar, por inclusão, b) se pensa a relação entre ética e política desde
sua articulação como “ética política”. Desde o gênero da ética se desce a várias
espécies: a ética individual, familiar, política, etc., que são, por isso, especificações
do gênero. Para alguns intérpretes árabes ou latino-germânicos da Cristandade
europeia, esta foi a posição de Aristóteles818. A “ética política”, hoje em dia, seria

817 Nos níveis 8 e 9, do Esquema 24.01.


818 Aristóteles compreendeu o problema da ética como uma política (politikè) – a vida própria
da pólis –, e dentro dela, e como formando um todo orgânico, a vida da aldeia e da família

380
a parte comunitária da ética819. Mas, então, a política como tal – ao não ser ética
política é novamente definida – fica sem um componente intrínseco normativo.
Haveria uma terceira posição, por justaposição, c) na qual se descreve o momen-
to normativo da política, mas ante a qual deveremos indicar algumas diferenças
de fundo. Trata-se da maneira de articular a relação dos princípios éticos com os
princípios tais como o princípio democrático ou do direito que, embora parciais
(porque não são tratados como princípios políticos propriamente ditos), indicam já
um caminho de solução. Trata-se da proposta de Apel e Habermas. A solução dos
filósofos frankfurtianos foi se diferenciando, já que recentemente, Apel criticou
as teses de Habermas. Vejamos rapidamente o estado da questão. Para ambos
existe um “princípio discursivo” que, desde o começo e por inspirar-se pragma-
ticamente em Ch. Peirce, devia ter um conteúdo normativo, e julgava o papel de
um “princípio moral” (no ambíguo âmbito da Lebenswelt). Ante as objeções feitas
a Habermas por não ter distinguido suficientemente os princípios morais dos po-
líticos, Habermas propôs, em Faticidade e Validade, uma solução que poderia ser
resumida no seguinte texto:

Desde os pontos de vista normativos (normativen) [...] a autonomia moral e a auto-


nomia cidadã são cooriginais e podem ser explicadas com a ajuda de um princípio
do discurso (Diskursprinzip), que não expressa outra coisa senão as exigências pós-
-convencionais de fundamentação (Begründungs-) Este princípio [...] tem certamente
um conteúdo normativo820 [...], mas se move num nível de abstração [...] que é ainda
neutral (neutral) frente à moral e ao direito, pois se refere a normas de ação em geral
[...] é ainda indiferente frente à distinção entre moralidade e legitimidade (Habermas,
1992, III, II, p. 138).

Apel reage fortemente contra este texto, em muitos níveis. Em primeiro lugar,
não pode aceitar que o princípio moral e o do direito gozem de igual origem. Desde

patriarcal escravista (o âmbito da oukonomikè). Não há propriamente uma ética do indiví-


duo singular; é impensável. A política é a ética coletiva.
819 Em sua monumental Moral und Politik, Vittorio Hösle (1997) fala sempre de uma “ética
política”. A ética política é uma parte da política, tratada disciplinar ou epistemologicamente
pela ética filosófica. Minha intenção é, em vez disso, mostrar que a política, como tal, tem
princípios normativos que subsumem os princípios éticos universais e abstratos. Os novos
princípios normativos, fruto da subsunção, são estritamente “políticos”. Não sendo cumpri-
dos, a ação não é mais uma ação política. A “Ética política” (parte da ética e da filosofia) deixa
a Política enquanto tal (que é uma ação diferente de uma mera ação ética) sem princípios
normativos (porque toda a normatividade é ética). Na política, então, é necessário (também
das ciências políticas e da mera ação política estratégica empírica) mostrar o momento
normativo (que, sendo político, tem sua origem na subsunção de princípios éticos). O “prin-
cípio democrático” de Habermas, embora meramente formal, tem a vantagem de assumir
a normatividade política enquanto tal. É o começo da solução adequada.
820 Seria uma normatividade puramente lógica, mas não moral.

381
Kant, o princípio moral não pode ter “a mesma categoria enquanto se trate da fun-
damentação da validade universal” (Apel, 1998, p. 760-761).821 O princípio moral é
anterior e superior (ocuparia no Esquema 24.02 o lugar do Princípio do Discurso
de Habermas).

Esquema 24.02. Os três princípios de Habermas organizados em dois níveis de


abstração
Princípio do Discurso

Princípio Moral Princípio do Direito

Em segundo lugar, sendo que para Apel o Princípio do Discurso é idêntico ao


Princípio Moral, o Princípio do Discurso não pode ser neutro e, sim, claramen-
te normativo,822 porque é já a norma básica da moral.823 Em terceiro lugar, um
Princípio do Direito teria que ser definido claramente em relação ao Princípio
Democrático, que indica um nível político – que Habermas identifica com o mero
nível do direito, dentro do qual se move a totalidade da obra Faticidade e Validade,
que é somente uma filosofia do direito e nunca uma filosofia da política.824 Em quarto
lugar, Apel apresenta a problemática da justificação ou da aplicabilidade (Anwen-
dbarkeit) da norma básica não somente à política (como Princípio Democrático),

821 K.-O. Apel, Auseinandersetzungen, 14, II.I.I.


822 Diferentemente da nossa posição, um princípio formal-discursivo não pode se identificar
com “o princípio ético” (porque há mais de um) e poderia haver um princípio discursivo da
razão teórica (dos cientistas da comunidade epistêmica) que não pode se identificar com
um princípio discursivo da razão prático-moral (ou ética).
823 O “Princípio ou norma fundamental do ideal moral do discurso” deve ser compreendido como
“o dotado de um suficiente sentido moral (no sentido da exigência da necessária consensuali-
dade de todos os afetados) nas soluções tocantes a seus interesses” (Apel, 1998, p. 771).
824 Habermas não pode escrever uma filosofia da política porque lhe falta o aspecto material e
estratégico para ela; é somente e necessariamente uma filosofia do direito. Por isso, não fala
do poder, do Estado, da ação estratégica, etc. Em Apel o formalismo é muito mais acentuado
porque nem sequer escreveu uma filosofia do direito, já que se situa quase exclusivamente
no nível da fundamentação transcendental.

382
mas também à economia de mercado;825 questão que Habermas não analisou em
pormenores e teria muitas dificuldades em fazê-lo.
É sabido que, para Apel, além do Princípio do Discurso (ou “norma básica de
fundamentação consensual”), existem “normas básicas de responsabilidade histó-
rica” (Apel, 1992, p. 786),826 graças às quais os membros da comunidade de co-
municação estão obrigados a procurar a conservação das condições naturais da
humanidade, mas também alcançar a simetria entre todos os membros (como uma
conquista histórico-cultural), sendo preciso, para isso, aplicar a norma básica em
relação com os princípios políticos827 e econômicos mais concretos. É neste nível
que se deve integrar o Princípio do Direito com o poder político e econômico, mas
não se vê claramente que o Princípio do Direito é um momento interno ao campo
político e portanto teria que articulá-lo com os demais princípios políticos. Pode
parecer que, para Apel, há somente um princípio, aquele do direito – já que o pró-
prio princípio democrático é empírico –, que não e propriamente descrito como
um princípio político, do qual não se sabe que relação tenha com o poder político
ou com o Estado (Apel, 1998, II, p. 813). Este nível da “responsabilidade histórica”
somente se estende sobre o “Princípio Democrático”, que articula a “autonomia pri-
vada e pública, e onde os cidadãos são simultaneamente autores e súditos das leis”
(1998, II, p. 817).
Apel distingue entre “o Princípio da Democracia [que] não pode ser equipara-
do, na linha dos princípios, com aquele, discursivamente fundamentável, do direito
em geral” (1998, II, p. 818).828 O tema daria azo a uma longa discussão.

825 É neste tipo de temas, na aplicação, por exemplo, à economia, onde Apel (mas também Haber-
mas) mostram que a falta de princípios materiais os leva a aceitar ingenuamente o capitalismo
de mercado, sem nenhuma distância crítica (“A relação com a economia [...] sob a forma de um
ordenamento [jurídico] do quadro da economia [...] garante a independência [...] como pura
liberdade negociável e contratual de todos os participantes do mercado [...] na liberdade de
competição” (1998, p. 815). Trata-se simplesmente da “aplicação” do princípio abstrato moral
a campos concretos sobre os quais não se tem nem critérios nem princípios críticos. Ademais,
Apel fala de “ética política” e “no sentido do comunitarismo, também de um princípio político
que faz referência a sistemas particulares de poder” (1998, p. 761), sem problematizar o campo
político como tal (ambiguamente compreendido na Parte B, “saco de alfaiate”, como o chamou
antes, onde cabe tudo confusamente). É preciso notar que já se está falando de três princípios:
princípios políticos, democrático e do direito que, como veremos, se encontram em diferentes
níveis de abstração, dentro de esferas bem precisas e com muita complexidade.
826 Grundnormen der geschichtsbezogenen Verantwortung junto a um “Princípio teleológico de
complementação” (Selbseinholungsprinzip) ou também denominado Ergänzunsprinzip.
827 Note-se que o princípio do direito poderia parecer que não é um princípio político. O que é
a política para Apel e Habermas? Penso que nunca respondem de maneira clara e complexa
devido a seu formalismo.
828 Destaque-se que se fala ainda “de uma fundamentação atual da justiça política (Bergründung
der politische Gerechtichkeit) conduzida sob a ótica da ética do discurso” (1998, II, p. 818),
questão que não deve ser “atirada em saco roto”.

383
Para finalizar esta curta introdução à temática, penso que as três soluções in-
dicadas para as possíveis relações entre ética e política não são as que gostaria de
sustentar em cada caso, por diversas razões. Seria necessário chegar a uma solução
mais compreensiva que não deixasse a política numa situação de não-normativida-
de absoluta; ou que confundisse a relação ética e política com a mera possibilidade
de uma ética política (onde a ética política delimitasse um horizonte normativo
que pudesse se diferenciar da política como tal829); ou que confundisse o ético (ou
o moral) com o âmbito meramente individual e o político com o meramente for-
mal (o direito e a democracia). A discussão entre Habermas e Apel nos advertiu,
de todo modo, sobre uma maneira de impostar a problemática da articulação dos
princípios éticos e os políticos, mas que deveremos resolver de outra maneira, dada
a crítica que temos feito à ética do discurso enquanto referente aos princípios,
questão a qual se refere nossa Ética da Libertação.

3.2. Princípios éticos e princípios políticos: possível articulação830


[372] Se Kant nos fala, na Crítica do Juízo, de juízos reflexivos ou determi-
nantes, agora devemos abordar os do segundo tipo. Trata-se de uma subsunção
determinante dos princípios éticos pelos princípios políticos. A “pretensão de bon-
dade”831 do ato ético é subsumida numa mais complexa e institucionalizada “pre-
tensão política de justiça”,832 num campo específico prático, enquanto cumpre as
exigências da normatividade própria da política como política. Quem não cumpre
as exigências normativas da política não é somente um mau ético, mas come-
te uma injustiça política, cujas contradições, debilitamento do exercício do poder
consensual (potentia), ineficácia ou corrupção (fetichismo da potestas) poderá ser
observada a curto ou longo prazo.
Trata-se de esclarecer três questões. A consideração da maneira como se pro-
duz a subsunção dos princípios éticos nos diversos campos práticos. A descrição

829 Paradoxalmente, a afirmação de uma “ética política” deixa muitos momentos do campo po-
lítico sem normatividade. O momento ético ou normativo da política seria a “ética política”,
enquanto que, por exemplo, as ciências políticas empíricas tratariam de um objeto que não
teria normatividade. É uma maneira sutil de radical separação entre ética e política. Pretendo
pensar o político, incluindo, num primeiro momento implicitamente, a normatividade da polí-
tica enquanto tal, também no caso do objeto empírico das ciências sociais políticas ou da ação
política concreta que não sabe explicitamente como está presente a normatividade em seu agir.
830 Ver as teses 9.1-9.2 de 20 Teses de Política (Dussel, 2006).
831 Esta denominação não foi ainda adotada em Dussel (1998). Ver Dussel (2001, p. 145-149),
em especial, a nota 4 da p. 146).
832 Esta questão será objeto do § 28, como conclusão desta Arquitetônica. A questão é tratada
por Apel no “Excurso 1: Considerações críticas à fundamentação da Justiça política por
Höffe” (Apel, 1992b, p. 47-57).

384
de dita subsunção no caso dos três princípios fundamentais da ética no campo
político e, por último, uma rápida consideração do conceito de normatividade que
utilizaremos no campo político (que não deve ser considerado meramente ético).

3.2.1. Subsunção analógica dos princípios éticos nos diversos campos práticos
O problema perene das éticas de princípios é a questão da aplicação.833 A “apli-
cação” pode ser entendida a) como mera passagem do gênero à espécie e, portanto,
a totalidade do conteúdo semântico ou extensão do conceito específico estariam já
incluídos na identidade do gênero. Ou, cumprindo outra possibilidade lógica, b)
se trataria da passagem do analogado principal que tem um âmbito de semelhança
(similitudo, diziam os clássicos), mas não de identidade, com os restantes analoga-
dos que o subsumem, mantendo estes um certo âmbito de distinção (é a questão da
Di-ferença834). Os meros princípios éticos (ao menos em número de seis em nossa
Ética da Libertação) determinam o âmbito semântico no qual tem semelhança com
os campos práticos concretos (a exigência ôntica formulada pelo princípio ético
com conteúdo universal: onde os princípios éticos coincidem com os princípios
políticos com “semelhança” – similitudo e não identidade). Os princípios práticos
dos campos específicos e concretos (econômico, pedagógico, ecológico, político,
religioso, esportivo, familiar, cultural, de gênero, de raça, etc.) subsumem este nú-
cleo de semelhança (similitudo) dentro de um horizonte noético, com maior com-
plexidade, de diferente extensão. Quer dizer, são “assumidos” (subsumidos) num
conceito mais concreto.

833 Ver, por exemplo, a contribuição de Apel, “Diskursethik vor der Problematik von Recht und
Politik”, em Apel e Kettner (1992b, p. 29-61). Para Apel, toda a questão é como se passa
da Parte A da fundamentação para a Parte B de princípios fundados ou de sua aplicação
hermenêutica. O que acontece é que fora da Parte A (para nós nível C) a outra Parte fica
ambiguamente indicada. Não há nem sequer, como no caso de Habermas, uma pseudoteoria
das estruturas, onde a aplicação acontecerá. A própria Lebenswelt de Habermas é um certo
âmbito diferenciado que, como mostraremos, nunca pode se dar, já que, de fato, está cruzado
por muitos campos que têm maior ou menor institucionalidade, mas não podem deixar de ter
alguma. No mundo cotidiano do lar, o íntimo por excelência (o máximo de privacidade), não
deixa de ter alguma institucionalidade de, por exemplo, uma família monogâmica, poligâmi-
ca, poliândrica ou matriarcal... tipos de relações institucionalizadas. De maneira que a “ater-
risagem” dos princípios (sua aplicação) se efetua sobre terrenos não estudados, organizados,
teoricamente determinados. Trata-se de uma improvisação ingênua. Tal como, por exemplo,
uma política quase liberal num mercado capitalista de um direito moderno eurocêntrico, etc.,
acerca de cujas questões não existe nenhuma consciência crítica em Apel.
834 Na Lógica hegeliana, a “identidade-diferença” pertence à Totalidade; a le même, diria E.
Levinas. Por isso, chamamos, desde 1970, ante Derrida, o “Dis-tinto” a “Di-ferença”, mais
além da “Identidade-diferença” totalizada. Se se entende que, ao colocar uma letra maiús-
cula ou um hífen na palavra “Di-ferença” estamos indicando a distinctio analógica (com re-
ferência à mera diferença ou o que mantém exterioridade em relação à Identidade-diferença,
poderíamos usar o termo assim desconstruído (Lakebrik, 1955), por exemplo, “o analético”.

385
Esquema 24.03. Os princípios éticos (analogado principal) são subsumidos ana-
logicamente pelos princípios práticos (analogados mais concretos) de campos par-
ticulares

Princípios
éticos

Princípios Princípios
Semelhança
políticos econômicos

Princípios
de outros
campos

DISTINÇÃO ANALÓGICA

Esclarecimentos ao Esquema 24.03. No âmbito da similitudo (a similitude), os princípios éticos


coincidem com todos os demais; é o que têm de semelhantes, não de idênticos (por exemplo, o “Não
matarás!” de cada campo prático). O nível da distinctio (“distinção analógica” do Esquema) é no que
cada princípio não coincide com os demais (mas não é diferença específica e, sim, um analogado).
Assim, “Não matarás o competidor no mercado!”, no campo econômico; “Não matarás o antagonista
como o opositor no conflito pela hegemonia!”, no campo político; “Não matarás o filho ou a filha!”, no
campo pedagógico (como cumpriu Abraão com Isaac, mas não Édipo); “Não matarás a mulher!”, no
campo de gênero, são princípios normativos analógicos.

Os princípios éticos não podem regular uma ação concreta supostamente ética
enquanto tal, já que, como indicava Max Scheler em relação aos valores,835 uma ação
puramente ética que encarnasse um valor em abstrato não tem realidade alguma.
Ninguém pode cumprir um ato ético em si, um mero ato de justiça enquanto tal.

835 Observava que uma ação não podia encarnar um valor de maneira direta e pura, como
quando alguém diz: “Realizou um ato que portava o valor da justiça enquanto tal”. Deve
ser um ato de justiça econômico, familiar ou político: o ato concreto porta o valor.

386
Todo ato concreto se exerce, subsumindo um princípio ético numa ação cumprida
num momento intersubjetivo de um campo determinado, dentro de um sistema,
em referência, ainda que seja longínqua, a algum tipo de pertença comunitária
(como singular de uma comunidade, mais ou menos institucional, etc.). O “mundo
da vida cotidiana” (Lebenswelt) de Habermas, enquanto relação intersubjetiva sem
campo, sem sistema ou sem institucionalidade alguma, é uma abstração inexis-
tente, já que, por mais íntimo e particular que seja, ao final todo ato é um ato ético
num campo... ao menos familiar, por exemplo. Neste caso, e como tal, os princípios
éticos correspondentes são subsumidos nos princípios normativos de uma família,
com características históricas e sociais determinadas, embora seja numa sociedade
pós-convencional (onde a família tem, inevitavelmente, certa organização “conven-
cionalmente” pós-convencional: a pós-convencionalidade absoluta é impossível, já
que buscaria a indeterminação empírica impossível do postulado).
O exercício dos princípios éticos subsumidos num “campo familiar” privado
(que não é o da moralidade solipsista kantiana que consistiu numa redução indivi-
dualista que define ambiguamente o moral), como temos indicado, devem distin-
guir-se do exercício dos princípios éticos subsumidos no campo “público-político”.
Os princípios éticos não teriam como tais um “campo” próprio (por serem abstra-
tos).836 O “Não roubarás!”837 em geral, em sua dimensão ética e universal, não tem
conteúdo concreto nem um campo prático próprio. É um princípio de princípios.

836 Como temos visto, Habermas distinguiu, em Facticidade e Validade, III (Habermas, 1992,
p. 109ss), entre um “princípio discursivo” não-moral e um princípio moral do indivíduo
privado na Lebenswelt, distinto do princípio intersubjetivo (o “Princípio Democrático” ou
do “direito”). Apel afirma que o princípio discursivo já é moral – embora, aqui, seja preciso
recordar a diferença entre o princípio discursivo teórico, de uma comunidade de matemá-
ticos, por exemplo, do princípio discursivo prático de uma comunidade pública. Na noite
escura da validade formal (de uma pretensão de validade-verdade confundida), não existe
possibilidade para ulteriores diferenciações (“à noite, todos os gatos são pardos”, expressa
a sabedoria popular), que estamos fazendo nesta Política da Libertação. Vimos o tema em
Apel no texto já referido: “Auflösung der Diskursethik? Zur Architektonik der Diskurdif-
ferenzierung in Habermas Faktizität und Geltung”, em Auseinanderstzungen (Apel, 1998, p.
727ss). A questão agora é mostrar como este princípio em abstrato não tem “campo” algum
de vigência e o princípios discursivo normativo “individual” (sendo impossível, porque
todo ato é sempre relacional a algum campo) é sempre intersubjetivo e comunitário, embora
possa ser “privado” (na família) e, por isso, se distingue do princípio político. Outra coisa é
que o sujeito “singular” (einzeln) (S do Esquema 16.02) seja o ponto necessário de referência
de todos os campos e de todos os princípios, e o que decida, em último termo (sem deixar
de cumprir um exercício monológico da phrónesis, também no ato participativo do con-
sentimento na aceitação do acordado comunitariamente – também sempre diferenciada:
phrónesis familiar, econômica, política, etc.).
837 O “Não roubarás!” se infere do “Não matarás!”, já que roubar, em princípio, é tirar parte
do fruto do trabalho do outro, donde objetivou sua vida: roubar é matar o próximo em
proporção ao tempo de sua vida que ocupou para produzir o que lhe é roubado.

387
O “Não roubarás o salário do operário na empresa capitalista!”838 é um imperativo
ético subsumido no campo econômico do sistema burguês e, enquanto específico e
concreto, tem agora “conteúdo” real, empírico. Assim é da mesma forma no caso de
todos os princípios do campo político, em sua formulação normativa mais abstra-
ta. A ética filosófica estuda os princípios éticos em geral, abstratamente. A filosofia
política estuda os princípios políticos que, como todos os princípios práticos de
algum campo específico, subsumem os princípios éticos e os executam nas práticas
constitutivas (seriam maneiras analógicas de cumprir os princípios éticos) e impli-
citamente (como normatividade exercida em concreto, sem necessária consciência,
enunciado ou definição explícita) de cada um dos campos indicados.
[373] Se tomamos como exemplo o campo econômico, nos permitirá colocar
o tema que estamos tratando. A relação entre ética e economia tem sido tratada,
entre outros, por Adam Smith, Friedrich Hayek, Amartya Sen ou Peter Ulrich.
Em primeiro lugar, frequentemente, a relação não se estabelece diretamente entre
ética e campo prático regional (o econômico) (por exemplo, em economia: o capi-
talismo; em política: o liberalismo). Os dois primeiros economistas citados são
pensadores que se ocuparam de éticas econômicas que justificam a racionalidade
do sistema capitalista (um dos possíveis do campo econômico), sem intenção de
esclarecer a relação mais ampla entre ética (e seus princípios) e o campo econômico
(que davam por subentendido e que de fato identificavam com o sistema dentro do
qual se encontravam).839
Adam Smith, professor de ética e ativo criador da teoria econômica do sistema
capitalista, pensava a relação entre ética e economia de uma maneira que se imporá
posteriormente. O sujeito ético cumpre normativamente os princípios práticos do
capitalismo como sistema de mercado. A economia propriamente não subsume os
princípios éticos (como explicamos até aqui) e, sim, inversamente, um sistema histó-
rico-concreto dita as normas fundamentais à ética, que se transforma, assim, numa
ética de mercado. Os princípios desta ética (que subsume ou aplica os princípios do
mercado) se atém primeiramente a que o governante não intervenha no mercado
(por ser este uma realidade infinitamente complexa840). Deve, por outra parte, de-
fender a propriedade privada e o respeito aos contratos. Por sua vez, o cidadão deve

838 Isto porque no escravismo até se assassinava o escravo sem castigo político algum. Ver
meu artigo sobre a relação entre a vida humana e o não pagar o justo salário (Dussel, 1993,
p. 185ss), questão que se encontra na base do compromisso político de Bartolomé de Las
Casas, em 1514, em favor do indígena americano.
839 Recorde-se a diferença entre campo (mais amplo) como “lugar” do sistema (mais abstrato,
institucionalizado e de menor extensão semântica), indicado supra no § 16.01.
840 “O governante que pretendesse dirigir os particulares a respeito da forma de empregar seus
respectivos capitais tomaria a seu encargo uma empresa impossível” (Smith, 1984, IV, cap.
9 [ed. esp., p. 612]).

388
respeitar as regras da competição e as leis juridicamente vigentes (numa Grã-Bre-
tanha organizada politicamente pela burguesia). Sobretudo, deve estoicamente ter
um domínio sobre suas paixões, poupar, ser sóbrio em seus gastos, e laborioso em
seu trabalho. Como se pode observar, é uma ética fetichizada ou fundada sobre os
princípios da competição do mercado de um sistema histórico-concreto (mas com a
pretensão de ser natural ou próprio de um “estado de natureza” segundo, quando já
existe estoque, isto é, capital): o capitalista. O campo econômico se confunde com o
sistema e não resta a possibilidade de exterioridade crítica alguma.
Friedrich Hayek distingue dois tipos de moral de maneira ainda mais coe-
rente. Uma voluntarista, que pretende que haja princípios a priori que devem ser
respeitados na economia, por um lado, e outra, ao contrário, que entende os meca-
nismos do mercado (que são para ele evolutivos, naturais e necessários) enquanto
devem ser aceitos com humildade, sem rebeldias irracionais (e, por outra parte, re-
beldias inúteis) contra o canal necessário do mercado. Em primeiro lugar descarta
o primeiro tipo ético:

Demandas de justiça são simplesmente incompatíveis com qualquer processo natu-


ral de caráter evolutivo [...]. Porque é indubitável que o funcionamento de tal tipo de
processos não se detém jamais [...]. A evolução não pode estar submetida em nenhum
momento ao que as pessoas possam considerar ser mais justo (Hayek, 1990, p. 128).
O princípio da justiça distributiva – segundo o qual cada agente deve receber o que
moralmente merece – carece totalmente de sentido numa ordem extensa de cooperação
humana (Hayek, 1990, p. 189).

Hayek propõe um ceticismo radical quanto à moral tradicional ou no primeiro


sentido:

Mesmo quando seja indubitável que a moral tradicional [...] não pode ser justificada
racionalmente, o mesmo acontece com qualquer outro possível código de conduta [...].
Quaisquer que sejam as normas que, em definitivo, decidamos adotar, nunca poderiam
ser justificadas sobre a base da razão (Hayek, 1990, 120).

Vale dizer, somente o mercado, infinitamente complexo, nos permite conhecer


o necessário, dando como resultado final um preço a cada mercadoria (é, assim, um
mecanismo de conhecimento).841 A competição é que regula todo este imenso me-
canismo. A moral que pretenda impor ações corretivas é ilusória. Assim, passa-se
a um segundo tipo de moral na qual o agente, ao descobrir os mecanismos naturais
do mercado, aceita-os com virtuosa resignação e humildade:

841 “Orientados pela constelação dos preços, por exemplo, nos vemos induzidos a realizar certos
atos cujas consequências finais não temos buscado intencionalmente” (Hayek, 1990, p. 45).

389
A desigualdade se suporta, sem dúvida, melhor e afeta muito menos a dignidade hu-
mana se estiver determinada por forças impessoais [...]. Numa sociedade em regime
de competição não existe menosprezo para uma pessoa nem ofensa à sua dignidade
quando é despedida (Hayek, 1990, p. 141). Afirmo igualmente que se a humanidade se
negar a assumir as mencionadas tradições842 [...] condenará à morte ou à miséria grande
parte da população atual (Hayek, 1990, p. 63).

Como se pode ver, é um sistema concreto (nem sequer o campo) econômico o que
aplica seus princípios à ética. Esta, então, é a que explicita os princípios econômicos
e atua em coerência. A ética seria, deste modo, um âmbito subsidiário da economia,
que faz com que evitemos cair na atitude daqueles que “se sentem perturbados [eti-
camente] por alguns efeitos [negativos] do mercado” (1990, p. 142). Quer dizer, “as
reações, supostamente racionais [éticas] que incessantemente se rebelam contra as
instituições e a moralidade das que a ordem capitalista não pode prescindir” (1990,
p. 37) devem ser superadas por uma ética funcional ao sistema. Como se pode ima-
ginar, trata-se de uma intervenção fetichista quase perfeita. A ética – no sentido
que a definimos na Ética da Libertação – desapareceu e em seu lugar se construiu
uma ética perfeitamente acomodada à reprodução do sistema concreto, não da vida
humana, de cada comunidade e da humanidade, em última análise.
O neoliberalismo nos propõe a relação da ética e um campo prático de maneira
invertida. O econômico constitui a ética e, esta, a política.
[374] Amartya Sen,843 economista da Índia, por sua vez, reagindo contra a eco-
nomia liberal clássica e também ante uma ética utilitarista articulada com a econo-
mia capitalista-liberal, propõe-se a pensar os princípios éticos e a economia de uma
maneira mais crítica que F. Hayek (e também que A. Smith). Em primeiro lugar,
“por que deve ser unicamente racional perseguir o próprio interesse, excluindo o
dos demais?” (Sen, 1987, p. 32). Contrariamente, que “a maximização do próprio
interesse deva ser racional parece ser absolutamente insustentável” (1987, p. 33),
já que, por exemplo, “o êxito de algumas economias de livre mercado, como a do
Japão, [...] sugere que os desvios sistemáticos do comportamento egoísta para o
dever, a lealdade e a boa vontade desempenharam um papel fundamental no [dito]
êxito industrial” (1987, p. 35-36). De outra parte, a lei de “otimização de Pareto”,
no sentido que toda medida econômica deveria aumentar a utilidade de alguns,
mas sem reduzir a de nenhum outro, que teria sentido na relação rico-pobre, in-
versamente, quando se trata de beneficiar o pobre significa sempre “um reduzir o

842 Tais como o respeito à “propriedade privada, à poupança, ao intercâmbio, ao jogo limpo
e à fidelidade às obrigações contraídas” (Hayek, 1990, 18), a herança, ou a humildade em
aceitar ser perdedor na competição do mercado, etc.
843 Ver meu trabalho “Princípios éticos e economia. Em torno da posição de Amartya Sen”
(Dussel, 2001, p. 127-144).

390
luxo dos ricos” (1987, p. 50); quer dizer, o rico não maximiza seu interesse próprio;
limita-o. Eticamente, A. Sen (1985) propõe que cada agente econômico parta de
uma situação particular com capabilities (capacidades de desenvolvimento) diferen-
tes, em meios culturais e econômicos distintos, onde o “bem-estar” não significa
melhorar o PIB em dólares e, sim, ver cumpridas suas expectativas valorativas:

O conjunto de capacidades representa, pois, a liberdade de escolha que uma pessoa tem
entre os modos de vida diferentes que quer viver (Sen, 1998, p. 113). É possível con-
ceber o modo de vida alcançado por uma pessoa como uma combinação de realizações
ou de fazer (doing) e de ser (being) (Sen, 1998, p. 112).

Vemos, então, que, diferentemente de Hayek, Sen opina que os princípios eco-
nômicos subsumem os éticos, que, sendo aqueles que são vigentes num mundo de
vida (à maneira dos “comunitaristas”844) se impõem à economia, que é uma media-
ção na realização no modo de vida concreto, motivado por seus valores, desde onde
se deve medir o grau de desenvolvimento de um povo. Porque se uma comunida-
de mal tivesse se desenvolvido, embora tivesse índices objetivos de maior riqueza
(medidos por um critério monetário mercantil), ainda assim teria fracassado em
realizar o ideal de vida boa da comunidade.845
Peter Ulrich (1993) leva a efeito a tarefa analítica de aplicar a ética do discurso à
economia. Trata-se novamente de uma crítica da razão utilitarista em economia,846
mas agora desde o “giro pragmático” da “razão ético-comunicativa” (1993, p. 269).
Trata-se de partir do “a priori de uma comunidade de comunicação econômico-
-política” (der politisch-ökonomischen Kommunikations-gemeinschaft) e, situando-se
num nível procedimental, estudar a relação entre “mundo da vida cotidiana” (Le-
benswelt) e ordem econômico-política (que é um sistema), através do problema da
propriedade privada e, em especial, pela democratização de todos os processos
de gestão do acordo consensual (Konsensorientiertes Management) (1993, p. 431);
para terminar refletindo sobre um “sistema social do Estado” como “política social
emancipatória” (emanzipatorische Sozialpolitik) (1993, p. 467): “A transformação de
nossas instituições e formas de vida socioeconômicas vão requerer ainda um longo
e intensivo processo de aprendizagem democrática – processo emancipatório do
trabalho do velho mito da megamáquina industrial” (1993, p. 474).

844 Ver Dussel (1995, cap. 3, parágrafo 1.3).


845 Nossa ética nunca parte, nem primária nem fundamentalmente, do ideal de “vida boa”;
contudo, admite que a argumentação de A. Sen, embora não fundada num princípio uni-
versal material, tem maior consistência ética que a de F. Hayek, por exemplo. Sobre um
tratamento inicial integral da questão dos princípios normativos na economia, ver o citado
em “Os princípios éticos material e formal e a ação econômica” (Dussel, 2001, p. 134ss).
846 “Kritik der utilitaristischen Vernunft” (1993, p. 173ss).

391
Ulrich subsumiu de maneira muito interessante no campo econômico o prin-
cípio moral formal discursivo do consenso democrático na gestão econômica e na
participação do trabalho no processo produtivo. Mas, paradoxalmente, não de-
senvolveu propriamente todo o aspecto material da economia; quer dizer, toda a
esfera da razão material econômica (que não é a mera razão econômica ético-comu-
nicativa, formal). Por isso, não soube se situar no a priori de uma comunidade de
produtores-consumidores econômico-política propriamente dita (que não é a simples
comunidade comunicativa correspondente).847 É a aplicação do princípio discursivo
formal à economia; um dos tantos princípios éticos (que, para Ulrich, como para
Habermas e Apel, parece ser o único).
A subsunção dos princípios éticos nos diversos campos práticos, de outra parte,
é hoje denominada de “éticas aplicadas” – como no caso, por exemplo, da “ética da
empresa” ou da “bioética médica”. Frequentemente, transformam-se em prática
casuística no presente, constructos ideológicos já determinados por um sistema ca-
pitalista; quer dizer, são, na verdade, éticas funcionais intrassistêmicas (um pouco
como a de Hayek em economia), pretendendo ser discursos “livres de valores” (a
partir da expressão weberiana de Wertfreie, o que, por outra parte, supõe defi-
nir a ética subjetiva a partir de “ juízos de valor”), sendo, na verdade, teorias que
consolidam, justificando, certos sistemas concretos, dentro dos respectivos campos
práticos. Assim, a bioética se coloca de maneira abstrata a proibição ou a possibi-
lidade ética da eutanásia ou a clonagem, mas, não tem nenhuma perspicácia para
iniciar a descrição (e crítica) de todo o sistema da saúde ou, talvez mais exatamente,
do sistema para enfrentar enfermidades. Este sistema, que inclui certo tipo de me-
dicina ocidental eurocêntrica, com uma concepção da enfermidade somática, em
grande parte quimioterápica (cujos medicamentos são fabricados por corporações
transnacionais químicas, com monopólios conhecidos e sistemas de propaganda
que, como se provou, produzem frequentemente novas enfermidades – como Ivan
Illich (1973 e 1974) criticou em seu tempo), cujo diagnóstico do que seja enfermi-
dade está, em boa medida, sob o controle de uma medicina científico-positivista
elitista (e para os que têm recursos para pagá-la, que são minorias no horizonte
mundial), com um sistema médico que permite que o mesmo especialista, suas clí-
nicas, hospitais, companhias de seguros, empresas de produção de instrumentos
cada vez mais sofisticados, acabem por explorar economicamente a enfermidade (e

847 Em nosso debate com Apel falamos no início de uma “econômica transcendental”. Não
se trata, porém, de tal coisa e, sim, de uma econômica que descreva o campo econômico, o
trabalho produtivo e o consumo, as instituições econômicas desde seus princípios também
normativos (que permitem aos agentes ter uma “pretensão econômica de justiça”; justiça em
referência à produção, intercâmbio, distribuição e consumo dos bens econômicos), analógica
à “pretensão política de justiça” (justiça em referência à constituição e às relações dos atos
estratégicos, das instituições políticas e dos princípios). Ver a obra de Apel e Dussel (2005).

392
o enfermo e suas famílias e, em especial, quando vão chegando à velhice). O atual
sistema de enfrentamento da enfermidade se articula ao sistema capitalista (isto é,
o campo econômico cruza com o campo da saúde) e produz uma conjuntura anti-
normativa como totalidade, o que abre uma possibilidade ética que a bioética médi-
ca está muito longe de saber analisar filosoficamente. É um exemplo, entre muitos,
em que os princípios éticos deveriam ser subsumidos pelos princípios normativos
do campo da saúde de modo criativo. Quando alguém oferece – como me ocor-
reu – este tipo de programas “Ética médica” (que é uma moral solipsista abstrata
num sistema vigente que não é analisado) em cursos da Faculdade de Medicina,
evidentemente, não são aceitos pelos claustros de professores bem demarcados no
sistema de exploração econômica da enfermidade.

3.2.2. Modo analógico de subsunção de cada um dos três primeiros princípios


éticos no campo político
[375] Assim como cada campo prático subsume os princípios éticos analogica-
mente, o mesmo acontece com o campo político que nos ocupa.
Em primeiro lugar (tema do § 25), o mero princípio ético de validade (Dussel,
1998, cap. 2), componente formal necessário de toda “pretensão de bondade” (de
um ato, uma norma, uma micro ou macroinstituição, etc.), será analogicamente
subsumido agora pelo princípio político de legitimidade (que denominaremos “Prin-
cípio Democrático” que necessitará, por sua vez, ser redefinido dentro do nosso
próprio discurso) e, portanto, assume também o princípio jurídico de legalidade
(em relação ao sistema do direito848), que deve ser cumprido por toda ação política
(que tem outras determinações que o puro ato abstrato ético; por exemplo, consta
das determinações a se efetuar dentro de uma “esfera pública”, “institucional”, em
referência ao exercício do “poder consensual de uma comunidade política”, dentro
de um “campo político” concreto, etc.) com “pretensão política de justiça”.849 Por
isso, com razão, Francisco Suárez850 pensava que o regime democrático era o “natu-
ral”, que não necessita institucionalidade originária. Efetivamente, a comunidade
deve chegar ao acordo de se dar um rei (na monarquia) ou permitir a poucos (o
senatus) governar em nome de todos ou, realmente, institucionalizar a democracia.
A maneira originária de querer (embora seja implicitamente e por costumes ances-
trais) dar-se uma organização política é já sempre e como pressuposto a vigência do
“Princípio Democrático” (que poderia também chamar-se “princípio originário de
consensualidade”). O ato mesmo de decisão para determinar como serão eleitos

848 Tratado supra no anterior § 23.


849 Questão que exporemos mais adiante no § 28.
850 Veja-se o indicado na história da Política da Libertação [114-119].

393
os representantes de uma Assembleia Constituinte é já um momento do exercício
procedimental normativo. Se a decisão emana de uma participação simétrica dos
afetados, dando razões, pode-se dizer que esta decisão tem legitimidade. Desta
maneira, em todos os momentos da vida política em que haja necessidade de chegar
a acordos consensuais, este princípio subsume no campo político o princípio ético
de validade universal.
Em segundo lugar (tema do § 26), o princípio ético material (Dussel, 1998, cap.
1) é subsumido igualmente pelo princípio material universal da política, naquilo
que o conteúdo de todo ato humano deve, em última análise, produzir, reproduzir
ou acrescentar à vida da comunidade, tendo como última instância a humanidade
atual e futura. Agora se torna complexo o princípio meramente ético, dadas as
exigências institucionais do campo político ao cruzar com os campos ecológico,
econômico e cultural, constituindo-se no âmbito material da política851 (que, em
sua conflitualidade constitui o “problema social”, que trataremos na seção Crítica,
volume III). Em algo o princípio material da política é semelhante ao princípio
ético (no que diz respeito absoluto à vida humana e a seu desenvolvimento), mas
agora delimitado no horizonte analógico determinado (naquilo em que o político
é dis-tinto do meramente ético).
Em terceiro lugar (tema equivalente nesta Política, que trataremos no § 27), o
princípio de facticidade da ética (Dussel, 1998, cap. 3) se confronta primeiramen-
te com as limitantes que a natureza estabelece a toda ação e instituição humana.
Como opinava D. Hume, e tantos outros, se pudéssemos produzir por milagre as
satisfações que nossas necessidades requerem, isto é, se não houvesse escassez, não
existiria nem a política, nem a economia, sem quase nenhuma exigência de disci-
plina. Mas, como Kant o enuncia em seu imperativo hipotético de factibilidade:
“Se a máxima da ação não é tal que resista à prova da forma de uma lei natural,
é moralmente impossível” (Kant, A, 124, 1968, VI, 189). Isto é, a máxima deve
poder ser realizada cumprindo as regras da natureza, onde as condições neces-
sárias (não as contingentes) estão fixadas, não somente pelas relações humanas
intersubjetivas ou a exigência da vida humana e, sim, pelas regras mais gerais da
natureza que limitam o agir humano no espaço, o tempo, a gravidade: a escassez
e as limitações empíricas da corporalidade do ser humano (como ser físico real,
também antes de ser vivente). Novamente, a política estará drástica e inescapavel-
mente limitada pelas condições de possibilidade físico-naturais, às quais é preciso
agregar todas as condições limitantes empíricas econômicas, psicológicas, cultu-
rais, históricas, políticas, etc. Não tudo é politicamente possível nem tampouco
todo o tecnicamente possível de ser operado é possível político normativamente
(esta última como possibilidade normativa). Esta “possibilidade” não é natural e,

851 Indicado no § 21.

394
sim, situada dentro das exigências normativas da política, esfera regulada também
pelos dois primeiros princípios já enunciados (o material de reprodução da vida
humana e o formal da legitimidade).
Repetindo, o princípio de factibilidade ética adquire agora novas determinações,
transformando-se num princípio de factibilidade estratégico-política, o que inclui
maiores componentes práticos, mais responsabilidade de curto e longo prazo e
maior capacidade de exercê-los com outros atores estratégicos e dentro do quadro
das instituições existentes (ou desafiando-as para sua transformação). Por isso,
é igualmente um princípio de responsabilidade dos efeitos das ações e institui-
ções que é preciso saber prever com seriedade honesta – sabendo das limitações
próprias do agente humano finito –, desde cujos efeitos negativos (embora sejam
não-intencionais) se iniciará a tarefa desconstrutiva de toda a Crítica desta Política
da Libertação.
Com efeito, os princípios políticos, implícitos nas ações e nas instituições,
subsumem os princípios éticos. Quando são explicitados, aparecem em primei-
ro lugar como princípios políticos e não como éticos. Somente ante um segundo
movimento de explicitação aparece, de sua parte, o movimento ético subjacente.
O simples: “Não deves matar... o adversário político!” que está implícito em toda
prática política que pode receber este nome, embora não se tenha consciência ex-
plícita ou forma predicativa de sua existência, nem de sua aplicação, tem, por sua
parte, implícito o imperativo ainda mais geral: “Não matarás!” (o princípio abstrato
ético). Ambos os princípios estão vigentes em toda ação política e são exercidos
sempre de fato nas práticas políticas, cumprindo sua função de pôr um marco, um
freio, a qualquer ação que pretendesse operar o contrário, mostrando sua “eficácia”
política de longo prazo, dando coerência à ação política; constituindo o poder poli-
ticamente como potentia, movendo as vontades e exigindo chegar ao consenso, por
dentro, e permitindo elaborar também o critério através do qual fica demarcado
o oponente no campo político como adversário político (“oposição” dentro dos
limites definidos pelo campo político), e não como “inimigo” militar (o oponente
absoluto a ser eliminado fisicamente pelo exercício da arte da estratégica técnica
do campo militar). O princípio político, ao subsumir o princípio ético-material, o
determina regionalmente (“Não matarás [conteúdo analógico de semelhança com
todos os campos restantes] a nenhum cidadão da comunidade política [Distinção
determinada analógica própria da política]!”).
Se alguém elimina fisicamente a possível simetria do oponente, se lhe for ne-
gada uma adequada participação no campo político (por exemplo, encarcerando
o antagonista injustamente), a perda do consenso, da validade, da legitimidade da
sua ação corroerá o impacto ou sentido político de sua ação (se tornará autoritária),
e o exercício do poder já não será o de um “poder comunicativo” e, sim, meramente

395
o exercício de uma coação violenta, policialesca: poder como dominação, potestas
negativa. Neste caso, a permanência de longo prazo do político no campo político
não terá possibilidades, sustentabilidade, legitimidade, condições necessárias para
sua vigência. Teria desaparecido o poder político legítimo. O não cumprimento
empírico de certos princípios implícitos leva, então, ao fracasso da ação e da insti-
tuição como políticas. Pode permanecer sua presença dominadora, isto é, e como já
o indicamos, seria uma ação ou instituição destrutiva da potentia da comunidade
política; e teria deixado de ser política como “obediência”.
O princípio negativamente enunciado (“Não matarás!”) delimita o campo;
enunciado positivamente (“Deves considerar o adversário político dentro de um
âmbito de fraternidade fundamental porque és membro da mesma comunidade
política!”) impulsiona por dentro os momentos constitutivos essenciais do poder
político (como potentia), das ações estratégicas e das instituições políticas. Anali-
semos a questão em pormenores.
Podemos afirmar que o cumprimento sério destes três princípios políticos per-
mite honestamente ao agente político (ou à instituição) ter ao menos uma “preten-
são política de justiça” – que consideraremos no § 28 –, intersubjetiva (quanto à
vigência de sua consciência normativa política)852 e objetiva (com legitimidade real,
não somente legal ou formal). Mas, há mais, o cumprimento destes princípios cons-
titui a possibilidade real da existência do que denominamos o poder consensual não
fetichizado como mediação para a sobrevivência (não somente como permanên-
cia e, sim, como acréscimo histórico-qualitativo da vida humana), que se produz
por momentos que são fruto das exigências dos referidos princípios. Em primeiro
lugar, o poder é consensual e, como tal, tem unidade das vontades suficiente para
lançá-las a um objetivo com potência. Trata-se do cumprimento do “Princípio De-
mocrático”, que é condição ontológica a priori do consenso que constitui a coesão
do poder como tal poder. Em segundo lugar, o poder é a vontade geral da vida da
comunidade para viver; quer dizer, é o cumprimento do “princípio material” da
política como sua potência própria. O “princípio material” é o suporte normati-
vo de tal potência. Em terceiro lugar, o poder consensual é tal quando pode pôr
os meios para a sobrevivência da comunidade; isto é, cumprir com o princípio de
factibilidade política que considera e executa os meios à mão, na escassez própria
de toda estratégia, para realizar o conteúdo (do princípio material) sempre legitima-
mente (segundo as obrigações que o “Princípio Democrático” dita). Queremos com
isto sugerir que estes três princípios estão debaixo da própria realidade do poder
como tal; são o suposto e o limite não só do campo político, mas também das ações

852 O “Osíris político que temos dentro”. A consciência ética ou o Über ich moral subsumido no
que chamamos a “consciência normativa política” ou o Superego político que tem uma “sen-
sibilidade” normativo-política mais atenta nos que desenvolvem o sentido da solidariedade
aberta à exterioridade do oprimido, do excluído (ver, mais adiante, o § 32, na seção Crítica).

396
estratégicas da política de todas as ações e instituições. São como o sangue, nu-
triente de todo o organismo. Enquanto seus membros cumprem suas exigências,
ainda que seja implícita ou inadvertidamente, o corpo político goza de boa saúde.
Quando deixam de ser cumpridos de fato, começam a surgir no corpo político,
na compreensão e no exercício das ações estratégicas e na corrupção das institui-
ções, os sinais das contradições, de conflitos sem solução, de debilitação do poder
consensual, com o inevitável crescimento do exercício do poder como dominação,
como coação de acima, como despotismo, totalitarismo, autoritarismo, injustiça
social, etc. (potestas negativa do poder). A perda de consciência político-norma-
tiva na comunidade é debilitação do poder consensual, é corrupção da potência;
é como uma planta debilitada, atacada por fungos e pragas, o que termina por
secá-la. O cumprimento dos princípios dá à comunidade a força, a vitalidade, o
poder, potentia.

3.2.3. A “normatividade” do político (subsunção da obrigação abstratamente


ética no campo político)
[376] A palavra normatividade assume no campo político analogicamente o con-
teúdo semântico das obrigações originadas pelos princípios ou pelas exigências
éticas, que, como tais (como éticas), não têm campo próprio e, sim, estão em vigor
somente no âmbito abstrato do analogado principal.
O ato ou a instituição políticos, se são positivamente políticos, devem cumprir
também com as obrigações que analogicamente a ética define, e já não-éticas. São
atos ou instituições com “pretensão de justiça” enquanto atos e instituições políticos.
Se o ato político perdeu sua exigência deôntica, isto é, sua determinação normativa,
é já politicamente corrupto, fetichista – em seu sentido estrito e forte. É somente
sua pura aparência; uma ficção política; um mero exercício de força bruta despro-
vido de suas qualidades políticas. Quando J. Stálin desata toda uma maquinação
para assassinar L. Trotsky, manifesta que este tipo de exercício da força política
já não é política em seu sentido pleno; encontra-se no campo do exercício de uma
coação despótica (que converteu o campo prático num puro enfrentamento, de luta
mortal em sentido físico). O campo político se debilita, desaparece e, em seu lugar,
começa a se desenhar um campo de batalha, um “estado de guerra” – que não é
mais o “estado civil”, nem mesmo para J. Locke.853
A ética tem, então, a tarefa de analisar as obrigações práticas abstratas que
devem ser cumpridas pelo ser humano vivente enquanto tal (não é um campo in-
dividual, privado ou do “mundo da vida cotidiana”, de um J. Habermas). O nor-

853 Trata-se das flechas d e e do esquema 14.03, exercício da potestas negativa, como dominação.

397
mativo da ética consiste em sua obrigatoriedade, o que supõe a intersubjetividade
mutuamente obrigante, no fato de se impor às vontades livres, autônomas (e a
razão prática que faz acordos por razões) por regras de ação que aparecem como
“exigentes”.854 O sujeito se descobre como “exigido”, mas não sob o regime de outro
tipo de “necessidade”, como a que impera na ordem natural ou do fisicamente re-
gulado. É somente uma “necessidade” ética (que pode ser ou não ser cumprida por
uma vontade livre; não é assim a coisa física que não pode deixar de fazer o que a lei
da natureza determina). O que obriga normativamente não é a lei da natureza. Há,
então, um cumprimento necessário físico natural; e um cumprimento obrigatório
próprio do sujeito livre. Esta última, a obrigatoriedade ou exigência que rege ante
uma liberdade intersubjetiva, comunicativa, é a normatividade.
O normativo da política efetua analogicamente, no campo político, o mesmo tipo
de obrigações práticas que as éticas, mas determinadas de maneira mais complexa,
analógica e concretamente no campo político. A obrigação teórica de cada membro
de uma comunidade científica – pensada por Peirce ou Apel – de aceitar o melhor
argumento de outro participante da mesma comunidade, é uma inferência teórica
que coadjuva – na sua relação ao outro cientista como sujeito humano – a obriga-
ção científica (ante a verdade do que foi expresso) e normativa do que humildemente
reconhece o melhor argumento. É uma exigência lógica e normativa (materialmente
verdadeira pelo conteúdo do argumentado; formal válida pela intersubjetividade do
consenso conseguido). No caso da política, a aceitação das exigências de uma lei do
Estado (na qual se participou simetricamente em sua promulgação) ou de uma deci-
são tomada democraticamente (segundo a definição que demos), é igualmente uma
obrigação. Mas não é uma obrigação meramente ética (com normatividade abstrata
puramente moral). E, sim, que agora é uma obrigação institucional ou público-in-
tersubjetiva (e incluindo outras determinações do político, não contidas na definição
do ético) que a constitui como uma obrigação política. Este tipo de exigências que obri-
gam a vontade dos membros da comunidade política, racional e consensualmente
aceitas, é o que constitui a normatividade do político.
Queremos insistir muito nesta questão, que é algo mais do que a pura relação
entre ética e política. Penso que desde o tempo de Maquiavel confundiram-se
semanticamente as coisas e vejo que o tema ainda não foi esclarecido de maneira
precisa. É demasiado pretensioso indicar que poucos o tenham considerado como
o exponho, mas não vejo no panorama da filosofia política contemporânea um
tratamento decisivo da questão.

854 O exagere ou exigir vem do latim: de agir (agere) e desde (ex) certos princípios práticos. A
obrigação – de estar ligado (ligare) ante o que enfrenta (ob) – indica igualmente o tipo de
“sujeição” a princípios práticos que não são “necessários” em seu cumprimento como as leis
físicas da natureza.

398
Insisto, então. A normatividade do político (que não é a mera normatividade
ética) constitui a ação, a instituição e o princípio político como políticos. Não se
trata da presença da ética na política; o que poderia deixar a política sem normativi-
dade, sendo ainda política. Não se trata de uma ética política; que, embora pior, dei-
xaria a parte da política que não é o âmbito da “ética política” sem normatividade
alguma – e é o aceito no melhor dos casos e em geral na prática política e também
no objeto da ciência política.
Aparentada com a posição descrita, encontra-se a pura exclusão da ética e da
política. A desculpa frequente é: “Bem, este ato de justiça deve ter sido a realização
de um princípio ético; mas, a política não é a ética!”. Ou como quando F. Hayek,
que considera o fato de que seres humanos possam morrer por decisões econômi-
cas que preservam a liberdade de mercado (em nome de salvar maior número de
vidas), exclama: “Salvar a vida das vítimas é um problema ético, mas a economia
não é uma ética e, sim, é uma ciência” – com o que se subentende que a ética é
um plus que algumas consciências generosas sentem o dever de cumprir, mas que
nada tem a ver com a ciência econômica. Este tipo de juízos de valor superficiais e
contraditórios são os que queremos mostrar em sua destrutividade irresponsável.
Os princípios éticos são subsumidos em todas as ações e instituições políticas,
mas sob as exigências de obrigações políticas. Para muitos, o cidadão ou o políti-
co que não cumprisse as exigências “éticas” (por exemplo, pressionar desde uma
posição de autoridade uma secretária, confundindo assim a esfera privada com
a pública, passando de uma exigência que se enfrenta com o “ético” à ordem da
“normatividade política”), poderia ser, de uma parte, julgado por ser um sujeito
eticamente mau; mas, por outra, poderia ser tido como um cidadão que, enquanto
político, não poderia ser julgado politicamente por este ato “privado”.855 Quando um
político, por exemplo, fixar para si uma remuneração desproporcionalmente alta
em relação à média da administração, pode não incorrer em nenhuma irregulari-
dade, mas pode ser considerado um cidadão ou um político injusto, que corrompe
as ações ou as instituições políticas e os sistemas que são as mediações concretas.
A pura legalidade (kantiana) ou a pura estratégia política não bastam para o cumpri-
mento da normatividade real856 (formal procedimental, material e de factibilidade)

855 Um cidadão pode não ser julgado juridicamente pela lei diante de um juiz por um ato en-
quanto político (mas sim, enquanto privado, acusado pela mulher que ofendeu), mas pode
ser julgado politicamente pela opinião pública (segundo o princípio-coerência, como veremos
adiante), perdendo legitimidade real. Este juízo político da opinião pública não é idêntico a
um juízo legal.
856 Marx nos fala de uma subsunção formal do processo de trabalho e de uma subsunção ma-
terial. Ambas constituem a subsunção real. Da mesma maneira, a normatividade formal
estabelece obrigatoriedade, mas procedimenta. É preciso agregar-lhe as exigências da esfera
material para que a normatividade seja real.

399
da ação e da instituição política; é necessário também cumprir com os princípios
políticos normativos, tal como procuramos descrevê-los nestas páginas, para que a
política adquira autonomia da ética, de uma lado, mas, e principalmente, para assi-
nalar um critério normativo ao politicismo injusto, corrupto, hoje frequentemente
vigente. Como se pode formar ou educar a consciência normativa e a vontade com
pretensão de justiça do cidadão e do político se não se consegue integrar nem
teoricamente as exigências daquilo que no âmbito ético denominamos obrigações
práticas universais: não roubar, não matar, deixar falar com liberdade o adver-
sário, não torturar, não humilhar, etc.? Todas estas exigências não são somente
nem primeiramente valores éticos e, sim, são imperativos práticos que permitem o
aumento da vida humana da comunidade, que organizam as exigências do consenso
prático e que delimitam as ações inspiradas pela razão estratégico-instrumental.
Sem essas exigências, a humanidade, os Estados, as comunidades, as instituições
estão, não num originário “estado de natureza” (que nunca existiu) e, sim, num
permanente “estado de guerra”, que é o que se impõe como sendo a natureza das
ações e das instituições políticas (amigo-inimigo; a política meramente como o ho-
rizonte estratégico da negociação de conflitos), desde o poder definido como do-
minação (pior ainda, se se lhe agrega a qualidade de “legítima”, e já é cinismo se se
conclui com o: “ante obedientes”, de tradição weberiana).
Queremos resumir recordando que os princípios políticos não são meramente
aspectos negativos (como o indicar o limite do campo após o qual o político se
torna impossível), nem obrigações, que sobrepostas e posteriores ao campo po-
lítico, se impõem ao cidadão ou ao político e, sim, que são condições radicais de
possibilidade, que conformam a essência do político como um a priori, sem o qual
deixa de existir este tipo de ações e de instituições num campo de práticas muito
particular que têm certas regras sem as quais a humanidade ficaria desprovida de
uma das mediações sistêmicas fruto de uma ingente criatividade histórica, que
deram como resultado um hábito ou disciplina que sujeita a vontade dos membros
plurais da comunidade para não ultrapassar certos limites (que constitui os cos-
tumes do “estado civil” opostas ao caos fictício de um hipotético “estado de natu-
reza”, barbárie sem limitações) e que as une consensualmente por um “Princípio
Democrático” que, como dissemos, atravessa todos os momentos do campo político.
Sem princípios, o político desaparece e se transforma em ações e instituições que
giram em torno de critérios contraditórios que não podem acrescentar sua eficácia
estratégica a longo prazo na história, a favor da vida humana e no respeito à auto-
nomia de seus membros e comunidades. Seria uma comunidade com muito débil
ou nenhum poder consensual, que não resistirá ao embate de outras comunidades
que tenham conquistado maior coesão e potência.

400
4. Distinção entre fundamentação e justificação ou aplicação dos
princípios políticos

[377] As normas ou princípios normativos (a), como todo enunciado prático


(toda máxima, acordo intersubjetivo, decisão, norma, lei, etc.), podem ser tomados
como ponto de partida para uma ascensão dialética a seus supostos, a seu funda-
mento. Este movimento nós o denominaremos “fundamentação”. Fundamenta-se
um princípio ou enunciado pela passagem do particular que “busca” o universal
que o funda (é um ato da capacidade reflexiva de julgar). Hegel diria que é uma
passagem do que aparece (Erscheinung), o fundado, para a essência (Wesen) (o fun-
damento: Grund). Por sua parte, os primeiros princípios, sendo universais últimos,
não podem passar a outro horizonte superior ou anterior (na ordem da funda-
mentação) e, sim, que, refletindo sobre si mesmos, provam, por automanifestação,
pelo absurdo ou pela impossibilidade de seus contrários, os princípios últimos em
sua esfera. Pelo contrário (b), o movimento descendente dos princípios (máximas,
normas, etc.) para suas possíveis aplicações práticas ou enquanto são subsumidos
na ação, instituição ou campos mais concretos, como processo de descenso expli-
cativo ou epistêmico, nós o denominaremos “ justificação”. Justifica-se uma decisão
(acordo, norma, lei, etc.) desde seus princípios. Justificar é um ato da capacidade
determinante de julgar, que passa do universal ao particular ou singular. Seria pas-
sar do Grund (Princípio ou Essência ou Mundo, para Hegel ou Heidegger) ao que
aparece como explicado (neste sentido, é um processo epistêmico).
Deve-se, desde já, ter em conta que a fundamentação dos princípios normativos
da política se apoia na anterior fundamentação dos princípios éticos, que são os pri-
meiros, abstratos e, por último, fundamentais. Na realidade, na política são subsu-
midos os princípios já fundamentados. Ainda assim, se pode indicar alguns aspecto
duma fundamentação política, tendo consciência que é um momento segundo.857
a) O processo ascendente,858 que denominamos “fundamentação”, começa desde o
mais próximo, passando pelos intermediários, para chegar, ao final, ao fundamento
último, quando, como expressa Wittgenstein, “a pá se dobra”. Este é aquele tipo de
enunciado que alcança um horizonte com um estado “atrás do qual já não se pode
transitar”; quer dizer, a “impossibilidade de ultrapassar” (a Unhintergehbarkeit de
K.-O. Apel) própria dos primeiros princípios, que já foi analisada de maneira tão in-
fluente pelo próprio Aristóteles em seus textos sobre a dialética (Cf. Dussel, 1974c).
Estes princípios, no campo político, podem ser mostrados como necessários
(que, de maneira implícita, estão sempre presentes no exercício das práticas po-
líticas concretas, como temos visto) por contradição dialética ao absurdo do seu

857 Ver o problema da fundamentação ética, em Dussel (1998 e 2001, p. 87-102). Sobre uma
crítica à chamada “Falácia naturalista”.
858 Representado pela flecha a do Esquema 23.04.

401
contrário, e nisto consistiria uma possível fundamentação dialética, tal como já
Aristóteles entendia a mostração dos primeiros princípios. Estes princípios são pri-
meiros, enquanto não há qualquer outro detrás deles na política.859 Cada princí-
pio recorta um aspecto ou esfera de determinação necessária do campo político;
por isso, existem tantos princípios normativos quanto as esferas deste complexo
campo, e, por sua parte, haverá tantos oponentes para as respectivas fundamen-
tações quantos forem os tipos de princípios. A negação de um princípio político
produziria uma patologia num aspecto específico do campo político, das ações e
das instituições políticas. À negação do princípio material da política se seguiria
a patologia totalitária (onde a eliminação física por assassinato, por exemplo, dos
adversários, substituiria a luta pela hegemonia), ou a cegueira diante da miséria
(que debilitaria totalmente o conteúdo do poder político). À negação do princípio
formal ou democrático se seguiria a patologia autoritária, a crise radical da legiti-
midade ou a própria unidade do poder. E a negação do princípio da factibilidade
política produziria a patologia anarquista (que busca o impossível politicamente), a
ingovernabilidade ou o decisionismo de direita (que se autodefine como tendo, em
sua própria ação, o sentido último da luta pelo domínio sobre seus antagonistas,
catalogados como amigos ou inimigos e cujo conteúdo em referência à vida huma-
na e à forma procedimental normativa ficam indefinidos e sem critérios nem limi-
tes na coerência desta mesma ação e das instituições no curto e longo prazos860).
Konrad Ott, em seu livro Fundamentações Morais (2001),861 fala do lugar da
fundamentação de princípios éticos na lógica interna da ética. Refere-se aos modos

859 Claro que os princípios políticos, por terem subsumido os princípios éticos, ficam fundados
na fundamentação dos princípios éticos.
860 Pretendendo aumentar o poder como dominação do líder (potestas), diminui o poder con-
sensual real da comunidade, como potentia. Veremos o tema no § 39 da Crítica.
861 Se no processo de fundamentação se concede as condições de sua possibilidade forma-
listas (como as que propõe H. Albert, 1973), cai-se numa cilada. Porque, ao pretender a
fundamentação de um enunciado de outro enunciado afirmado dogmaticamente, cair-se-á
em “petição de princípio”. É necessário não esquecer a observação de Aristóteles de que
existem enunciados evidentes que podem ser “mostrados” (não “de-mostrados” desde outro
anterior) pelo absurdo, pela possibilidade de seu único contrário (a chamada “mostração
dialético-ontológica”) que não é dogmática (já que pode racionalmente argumentar criti-
camente). É evidente que o fundamento não pode estar fundado num outro. Há, então,
juízos primeiros não falseáveis de onde o falibilismo crítico pode empreender sua tarefa
desconstrutiva. Hinkelammert mostra que há enunciados “empíricos gerais de impossibi-
lidade” que Popper propõe, como, por exemplo: “É impossível que um homem viva sem ali-
mentos [...] Esta é uma impossibilidade fática, de validade indutiva e de afirmação apodítica.
Portanto, sua possibilidade imaginária não contém a mais mínima contradição lógica [nem
empírica]. Segundo a indicação de Popper, poderíamos construir agora seu falseador [...]:
Este homem vive sem alimentos [...]” (p. 186), mas, podemos descobrir com evidência que
o pretendido falseador é logicamente possível, mas empiricamente impossível e, portanto, o
primeiro enunciado é empiricamente verdadeiro. Os princípios primeiros são este tipo de

402
de fundamentar os princípios efetuados por Kant (2001, p. 77ss),862 pela corrente
utilitarista (2001, p. 94ss),863 por uma ética contratualista (2001, p. 122ss),864 pela
de Alan Gewirth (2001, p. 139ss),865 concluindo com a fundamentação pretendida

enunciados não-falseáveis; em sentido estrito, não fundamentáveis, porque são o fundamento


último; são reflexivamente autoafirmados na impossibilidade de seu falseamento, porque
o critério de falseamento os inclui, já que o “princípio de falsificação” seria enunciado as-
sim: “Todo princípio é falseável”, mas este enunciado mesmo é autocontraditório, já que
deve ter “pretensão de verdade” e, portanto, foi falseado. Um princípio de não-falseável é
o único empiricamente possível: “Não todos os princípios são falseáveis; este é um deles”.
Esta afirmação, repitamo-la novamente, não é dogmática e, sim, racionalmente mostrada.
862 Paradoxalmente, Kant parte para sua pretendida fundamentação de um Faktum da razão
prática: a lei moral. Quer dizer, o ponto de partida se dá com evidência, sem processo de
fundamentação. Por sua vez, o imperativo categórico é um tipo de “ juízo sintético a priori”
prático, mas não é possível, segundo Kant, “fundamentar um juízo sintético a priori por uma
dedução transcendental” (Ott, 2001, p. 84). A “soberania” e a “majestade” da “dignidade” da
lei moral têm um “valor absoluto” (absolute Wert), por isso, uma fundamentação é muito difícil.
Por seu turno, a dignidade da pessoa é a condição do imperativo categórico; a “Selbszweckfor-
mel” (“o fundamento de princípio é: a natureza racional existe como fim em si mesma”) (ver
na Grundlegung, BA, p. 62ss; Kant, 1968, VI, p. 59ss) é a condição do imperativo e não uma
consequência. Esta é a razão pela qual E. Tugendhat (1993) vê a presença de uma falácia. Na
realidade, Kant desenvolveu uma teoria dos “postulados” muito atual (os “conceitos transcen-
dentais” de Hinkelammert) que é um modo pragmático de mostração última. Tanto o “bem
supremo” (na KpV) quanto o “bem supremos político” (posterior à UK, do “último Kant”)
são mostrações (ou fundamentações?) pragmáticas desde o primado da razão prática.
863 Inclui o marxismo (dentro da visão formalista de Ott) como uma “ética consequencialista”,
no sentido de que “reto é o que tem resultados úteis” (2001, p. 94). Não suspeita em nada da
teoria dos postulados de Kant reconstruída por Marx, nem da possibilidade de um “princípio
material universal”, condição prática de toda ação (ética, política, econômica, etc.). O conse-
quencialismo utilitarista (de W. Paley, J. S. Mill ou Henry Sigwick, de outro modo, são mais
precisamente descritos; Cf. Dussel, 1998, cap. 1, parágrafo 1.2). Trata-se de uma fundamen-
tação antropológica a partir das tendências, dos fins, das necessidades, da felicidade.
864 A partir do individualismo metafísico que afirma a liberdade e a igualdade do singular, o
contratualismo é um egoísmo cooperativo razoável, hobbesiano e lockeano em boa parte,
que em J. Rawls alcança certa fundamentação hipotética da fairness, a partir da “situação
originária” (Dussel, 1998, cap. 2, parágrafo 2.2).
865 Este filósofo é menos conhecido em nosso meio. Gewirth (1978) tem, junto com Apel, uma
das mais refinadas análises da fundamentação da ética atual, forte cognitivista, que foi des-
crita por K. Steigleder (1997). Tudo parte dos pressupostos do poder atual, da capacidade
de agir das pessoas. Trata-se de um dialectically necessary method que analisa as condições
pressupostas em todo poder atual. “This necessary content of morality is to be found in
action and its generic features” (Gewirth, 1978, p. 25). As notas genéricas constitutivas que
se desprendem da análise do conceito de “ação” são voluntariness (voluntariedade) e purpo-
siveness (propositividade com respeito a planos de conduta), donde pode ser descoberta a
estrutura normativa da ação. As determinações morais podem se fundar em necessary beliefs
de um ator. A questão se situa no “quando as pretensões subjetivas da pessoa são de tal
maneira que constituem obrigações morais que se deixam reconhecer intersubjetivamente
como tais” (Ott, 2001, p. 140). Tudo começa com o enunciado: “1. Eu ajo H que busca
(um) fim Z”. “2. Eu quero Z” até chegar ao enunciado “19”, que se denomina: “Principle of

403
pela ética do discurso (2001, p. 150ss).866 É interessante descobrir, e o autor não o
sugere, que todos pretendem a fundamentação de só um princípio último.
Uma fundamentação dialética, não necessariamente transcendental (embora
não a exclua), permite mostrar que é impossível negar o princípio sem cair numa
contradição performativa. O que enuncia: “Eu, quando falo, sempre minto” se
contradiz performativamente. Está falando e, se sempre mente, expressou, neste
caso, uma verdade; portanto, é falso o que enunciou e se contradisse no próprio
ato de falar (ao realizar ou efetuar a “performance” de seu enunciado). Da mesma
maneira, é preciso provar que aquele que pretende refutar os primeiros princípios
normativos da política nega, ao mesmo tempo, a política como tal.
Na Ética da Libertação, mostramos, ademais, que cada processo de fundamen-
tação exige, nos seis princípios aos quais minimamente chegamos, tomar em con-
sideração seus respectivos e diferentes oponentes. Ao princípio da argumentação
prática de validade opõe-se o cético. Ao princípio material da vida humana em
comunidade se opõe o cínico que, desde o exercício do poder como dominação,
pretende não entrar na argumentação (é o oponente mais perigoso867, porque tem os
instrumentos monopólicos da coação). Ante o princípio de factibilidade política, se
levanta o oponente anarquista extremo (pretendendo o impossível empiricamente,
caindo numa ilusão transcendental de pretender empiricamente um postulado em
seu conteúdo lógico num nível de infinita perfeição) ou o conservador (que afirma
como impossível a crítica o empiricamente possível). A temática sugerida será tra-
tada em cada um dos princípios.
[378] b) O processo descendente,868 que denominamos “ justificação”,869 começa
pelos princípios ou normas universais que são subsumidos pelos níveis mais con-

Generic Consistency”, que não é um princípio de coerência e, sim, um princípio de conteú-


do moral. Seria longo mostrar cada passo. Ott conclui que Gewirth propõe uma ética que
fundamenta “Direitos elementares como o viver, alimentar-se, vestir-se, hospedar-se, com
integridade física e psíquica [...] sobre o fundamento ético de uma concepção política do
desenvolvimento como cumprimento das obrigações materiais” (2001, p. 148-149). Será
necessário prestar-lhe atenção no futuro.
866 Ver Dussel (1998, cap. 2, parágrafo 2.3-2.4) e também juntos Apel e Dussel (2005).
867 O filósofo político entra numa região de “perigo”, quando ataca teórica e criticamente o po-
der vigente como dominação. A bomba que me colocaram num atentado na Argentina por
grupos de direita, em 1973, me provou a periculosidade da filosofia política crítica; perigosa
para o poder dominador porque desvela seu fundamento e suas maquinações; perigosa para
o filósofo, como nos ensinou Sócrates e tantos outros exemplos da história.
868 Indicado pelas flechas b do Esquema 23.04. Também incluiria em seu descenso a aplicação ao
sistema do direito, às leis, que são “determinações” particularizantes dos princípios (como pas-
sagem descendente do nível 1 ao nível 2 do Esquema 23.04). Além disso, incluiria igualmente
o descenso a todos os níveis mais concretos ou complexos (indicados pelas flechas d, e e f do
Esquema 25.01). Os postulados, modelos, sistemas, ações e instituições devem ser, de alguma
maneira, “aplicações” ou “determinações hermenêuticas” dos princípios geralmente implícitos.
869 Como introdução problemática ao tema, ver Tugendhat: “Que significa justificar juízos
morais?” (2001, p. 105), mas num outro sentido do que estamos dando aqui.

404
cretos da ação política870 e na organização das instituições. Expressando a maneira
como o juiz deve situar (com um juízo reflexionador) “o caso” do acusado, no con-
texto da “universalidade” de todo o sistema do direito871 – e do qual R. Dworkin
exigia um Hércules (miticamente melhor teria sido Osíris, como a onisciência di-
vina perfeita) –, o momento da justificação é o momento em que se pode “explicar”
ou dar conta do sentido normativo de uma possível ação ou instituição concreta:
“Decidi fazer isto porque...”. Este “porque” justifica a ação: vai do princípio ou ho-
rizonte mais universal ou da particularidade de um sistema ao singular empírico.
Trata-se de uma ação hermenêutica, isto é, uma “interpretação” derivada (como a
chamaria Heidegger), que vai desde o mundo como um todo à possibilidade (ação
ou instituição) como ente ao qual se “encontra” um sentido – o sentido do ente na
fenomenologia ontológica ou no sistema de N. Luhmann. Todo sentido se des-
-cobre dentro da Totalidade do mundo. A cadeira de uma sala universitária fica
justificada em sua forma, pela função que cumpre dentro do sistema didático do
ato pedagógico (tem uma parte que serve como mesa para escrever, sob o assento
tem um lugar para livros, etc.; sua forma é muito diferente do trono de um rei,
da cadeira do Presidente da República, da cadeira de um juiz, do banquinho do
acusado, de uma cadeira elétrica, de uma cadeira de um restaurante ou cozinha,
etc.). As formas das cadeiras ficam “ justificadas” desde a funcionalidade total da
Totalidade dentro da qual se encontram. A pergunta de quem se confronta com ela
e exclama: “A que se deve a forma desta cadeira?”, é a questão pela fundamentação
(a parte busca, por abdução, como pensava Ch. Peirce, ao todo no qual fundar-se:
juízo reflexionante); alternativamente, o carpinteiro que deve fabricar uma cadeira
se pergunta: “Que tipo de cadeira devo produzir; isto é, que forma deve ter uma
cadeira cuja função se explica dentro de uma sala universitária?” (o todo se aplica
à parte). Neste segundo caso, então, a parte subsume o todo; ou o todo se aplica à
parte (duas maneiras de dizer algo que tem significados diferentes).872
O “silogismo prático” de Aristóteles parte de princípios normativos (o todo) e,
pela deliberação (o próprio ato discursivo da subsunção-aplicativa ou hermenêuti-
ca-explicativa), chega por inferência a uma hypólepsis (“o que está sob” o princípio: a
decisão querida e julgada). Indica-se esta passagem descendente da ilação (subsun-
ção) ou dedução (justificação) da conclusão prática: a máxima da vontade desejada,
a justificação com pretensão de verdade que impera a ação ou origina a instituição.
O processo de fundamentação é explícito e teórico, o de justificação, ao contrário,
não é só retórico e, sim, igualmente cotidiano, implícito e constitui a “pretensão” de
verdade e de validade (além de justiça), naquilo que todo enunciado, ainda que seja

870 Estaria determinado pelos níveis 6 e 7-10 do Esquema 24.01.


871 Que consideramos no § 23.
872 Ao dizer que a parte “subsume” o todo, a atividade se origina na parte que se enche de um
conteúdo essencial (se a “essência” é o fundamento do fundado: explica seu fundamento).
Quando se diz que o princípio se “aplica”, a atividade se origina na universalidade do prin-
cípio que se determina.

405
subjetivamente, confronta-se intersubjetivamente (ao menos diante de si mesmo
como outro) aos possíveis enunciados falseáveis e invalidáveis do outro. Dar a si
mesmo uma razão ante uma ação possível é um processo natural de justificação
que é concomitante a toda decisão. Voltaremos sobre o tema.

5. Articulação arquitetônica dos princípios


[379] Para esta Política da Libertação, como o foi para a Ética da Libertação, os
princípios se articulam, codeterminando-se numa arquitetônica complexa, sem
última instância. A formulação de uma codeterminação sem última instância quer
evitar as falácias redutivas na política (das quais falamos no § 13.2), tanto a) os
economicismos (o do marxismo standard como o dos neoliberais, o primeiro do
planejamento total e o segundo desde o mercado total ao qual deve servir o Estado
mínimo) – onde o princípio material é o primeiro princípio e a última instância –,
quanto b) os formalismos (o contratualista, liberal ou da ética do discurso e da teo-
ria do direito de Habermas) – onde o princípio formal é o único princípio determi-
nante ou, ao menos, o principal: c1) seja como ação estratégica que exacerba o prin-
cípio de factibilidade (desde Maquiavel, até a “política só do interesse” de Henry
Kissinger ou a “decisão” no estado de decisão de C. Schmitt ou exclusivamente
como “luta pela hegemonia” de E. Laclau) – onde o princípio de factibilidade é o
único princípio determinante; c2) seja como ação destrutiva que nega o princípio
de factibilidade com um comportamento anti-institucional (propondo-se o impos-
sível empiricamente, como nos anarquismos extremos).

5.1. Os princípios material, formal e de factibilidade sem última instância


Buscaremos uma descrição complexa sem última instância. Quer dizer, com
diversos momentos mutuamente determinantes. Desta maneira, o campo polí-
tico não teria um princípio universal último de todo o campo e, sim, vários;
cada princípio seria o último, nas diferentes esferas que compõem a totalidade do
campo político.
Na Ética da Libertação (1998)873, expus a necessidade de contar ao menos
com seis princípios éticos, que se me foram impondo como número mínimo, mas
suficiente para abarcar um discurso normativo complexo (longe de todo principia-
lismo fundacionalista). Se os princípios políticos implícitos na ação política subsu-
mem os éticos, devemos analisar também, como na ética, quais são suas relações e
determinações mútuas.
Na citada Ética, havíamos ordenado a exposição (didaticamente), começando
pelo princípio material. Nesta Política, daremos outra ordem à exposição dos prin-

873 Ver também, Dussel, 1999.

406
cípios, conforme já indicamos em outro trabalho (Cf. Alcoff; Mendieta, 2000,
p. 272ss). A vida humana não é um princípio; é a última referência total como o
modo da realidade do ser humano. O princípio material é um dos princípios que tem
a esta vida humana como conteúdo. Como princípio discreto, singular, não é última
instância, nem necessariamente o primeiro de todos os princípios. Seria um mate-
rialismo unilateral. O princípio material e o formal se articulam e se determinam
mutuamente. Isto deu espaço a interpretações ambíguas da minha postura teórica.
Catalogam-me de naturalista, vitalista, darwinista, materialista, etc. É verdade
que se se parte desde o princípio material, o princípio formal ou o do exercício da
razão discursiva pode ser julgado como uma função de aplicação do primeiro. Mas,
se se começa, como se pode fazer com todo sentido, pelo princípio formal (que,
em política, é o princípio democrático), o princípio material determina o conteúdo
da argumentação, das decisões, dos consensos ou dos acordos aos que se chegue
legitimamente, orientando a própria discussão, e que seriam justificados valida-
mente desde o princípio político discursivo. Poderíamos tê-lo feito assim, na Ética
da Libertação, para não prestar a dar a dúvidas e superar o antigo economicismo
standard, que esqueceu a importância do político – como Laclau adequadamente
o anota em numerosas obras –, e frequentemente ignorou a importância da legiti-
midade democrática. Além disso, também somos críticos de um certo politicismo
formalista (que afirma como política uma mera legitimidade formal, ou pior: o
puro procedimentalismo) que esquece o momento material – tanto o liberal, de
um Rawls, quanto também no caso do tratamento negativo do social, que faz refe-
rência ao aspecto material do político por parte de H. Arendt.
James Marsh (2001, p. 51-95ss) me indica, com razão, que o princípio de va-
lidade da ética não pode meramente ser considerado um segundo princípio, quer
dizer, consistir em ser exclusivamente o princípio de aplicação do primeiro e último
princípio material. Tenho insistido que nenhum princípio é última instância, mas,
infelizmente, na Ética da Libertação, por uma questão da ordem na exposição, pôde
parecer que o princípio material era última instância e primeiro princípio da ética
em geral, e que o princípio procedimental normativo de validade era somente um
segundo princípio derivado. Mas esta não era minha intenção, explicitamente in-
dicada nessa obra. Deve-se aceitar, porém, que o princípio de validade pode servir
de fundamentação ou de aplicação do princípio material;874 mas, inversamente, o

874 Ver, mais abaixo, a determinação f (do Esquema 24.04) na qual se explica a maneira como o
princípio material dá seu conteúdo e orientação à esfera da deliberação, que é o “princípio
materialista” e como a determinação formal poderia ser mal interpretada, como se o princí-
pio formal fosse uma mediação do princípio material enquanto lhe serve para alcançar seus
acordos. Mas, como Apel viu, é, neste caso, a uma verdadeira determinação determinante
e não meramente determinada. Aí, o princípio formal é última instância democrática ou
constitui a decisão material como politicamente legítima, que é uma qualificação essencial
para toda ação ou instituição política (não só ecológica, econômica ou cultural).

407
princípio material somente dá “o que há para se discutir” o tema e, além disso, a
orientação normativa do conteúdo da própria discussão, mas não sua formalidade,
validade moral, em sentido estrito, que, em política, é a legitimidade, como cumpri-
mento do princípio democrático e, sim, quanto à coerência dos conteúdos, tendo
como última referência a vida humana. Nenhum dos dois é o princípio que se situa-
ria como a última instância geral do campo político e, sim, somente em sua esfera e
que serve aos outros como mediação ou como término, mas ambos e mutuamente.
O princípio formal pode aparecer como o princípio de fundamentação ou de aplicação
em última instância do princípio material e, de fato, deve articular-se sempre como
seu momento moral procedimental. Por sua parte, o princípio material pode apare-
cer como o princípio de orientação do tema discutido, fixando a referência verdadeira
à realidade da vida como suposto de toda argumentação, segundo as exigências
morais do princípio formal. Sem o princípio de orientação, como seu nome indica,
a discussão se perderia, entraria numa situação de caos, de deslocamento; como os
navegantes sem bússola,875 os especialistas não teriam exigências éticas no próprio
tema da discussão;876 nem mútua determinação específica sem última instância;
articulação arquitetônica complexa sem reducionismos. De todas as maneiras, a
tarefa da fundamentação é discursiva, o que não nega que possa ter um primeiro
princípio material universal e que possa ser fundamentado contra outro oponente
que é do princípio formal (que se confronta com o cético).
Em geral, os filósofos políticos buscam fundar a ação política partindo de um
só princípio. O utilitarismo desde o prazer ou a felicidade; o formalismo discur-
sivo desde um princípio consensual, que pode ser contratualista ou discursivo; o
decisionismo de C. Schmitt desde a oposição estratégica amigo-inimigo ou da von-
tade plebiscitária do povo; certo conservadorismo pensa que a política se encarrega
de resolver conflitos para a permanência da ordem política vigente (como se tal
ordem política vigente fosse um limite de impossível superação ou o valor primi-
gênio); etc. Penso que estas posições são redutivas, porque no político a articulação

875 É o que acontece aos formalismos, como o de Apel ou Habermas, que, no nível político-
-econômico, aceitam a esfera material (econômica capitalista) como dada, sem princípios
éticos neste âmbito onde se joga o conteúdo da discussão. Que sentido teria uma discussão
válida (legítima) que tivesse perdido a orientação de seu tema? Se os especialistas não devem
cumprir certas exigências de conteúdo, a discussão está “perdida”. A legitimidade seria pura-
mente formal; não seria uma legitimidade real; é real quando cumpre as exigências formais
de validade e materiais do conteúdo sob o critério da vida humana da comunidade política.
876 O ético recordará aos economistas neoliberais, convidados como especialistas numa comu-
nidade de comunicação apeliana, que se o mercado produz massivos efeitos negativos na po-
pulação mundial (a vida é colocada em risco), deve-se estudar o “pacote” de recomendações
teóricas (por exemplo, não intervir num mercado que produz equilíbrio), desde os efeitos
negativos (a miséria global), indicando que o tal “equilíbrio” não é uma constatação empí-
rica e, sim, uma infiltração ideológica do modelo teórico que, neste ponto, não confronta a
realidade (quer dizer, é falso; não é verdadeiro; digo verdadeiro e não válido porque pode ser
válido para uma comunidade de economistas neoliberais).

408
dos princípios é muito mais complexa, já que existe um pluralismo de princípios
com diversas esferas de seu exercício e igualmente com numerosas mediações her-
menêuticas, estruturas institucionais da sociedade civil e política e, por último, um
nível propriamente estratégico (onde podem dar luz à ação política as propostas
desde Maquiavel até C. Schmitt, S. Žižek ou Henrique Serrano na América Lati-
na). O nível concreto estratégico da ação política como luta pela hegemonia, como
campo “vazio” que teria que ser preenchido (na complexa e interessante proposta
de E. Laclau), não é de maneira alguma o único horizonte do político. Todas estas
posições são redutivas se avançam como excludentes. Abordam momentos que
certamente são necessários, mas de nenhuma maneira suficientes para abranger
todo o significado, todo o “conceito do político”. Advogamos, então, para abrir o
debate do político, incluindo muitos aspectos frequentemente dispersos, unila-
teralmente narrado por discursos redutivos, que queremos assumir numa visão
muito mais complexa e que dê conta do político em geral.

Esquema 24.04. Mútua codeterminação dos princípios políticos

M L
a

e d
Princípio Princípio de
b c
Material Legitimidade
(M) (L)

F
Princípio de Factibilidade

Consideremos ordenadamente as possibilidades arquitetônicas mínimas deste


Esquema 24.04. A determinação formal do princípio procedimental ao princípio
material (flecha a) indica a necessidade, como já dissemos, de que todo consenso
acerca da esfera material deve ser formado pela aplicação do princípio democrá-
tico. A determinação material (b) do princípio material sobre o de factibilidade
estratégica limita as ações e instituições empíricas às possíveis normativamente
dentro do horizonte que permita a permanência e aumento da vida em todas as
dimensões de cada membro da comunidade. Vale dizer, proíbe as ações estraté-
gicas que negam a vida. A determinação de factibilidade sobre o princípio formal

409
(c) coloca igualmente limites, ao deliberar e decidir acerca das ações e instituições
efetivamente possíveis, desde as condições empíricas de escassez. Isto evita discutir
sobre impossíveis veleidades, ficções, e centrar-se sobre o que tem estrategicamente
condições de existência futura, real.
Poderíamos inverter as determinações e considerar, agora, a determinação for-
mal sobre o princípio de factibilidade (d), no sentido de aceitar que toda análise
da existência das condições reais de uma existência democrática e de decisões que
saibam pesar as razões. Deve ser uma factibilidade descoberta intersubjetivamen-
te. A determinação de factibilidade do princípio material (e), por sua vez, fixa ou
delimita as exigências da permanência e aumento da vida da comunidade dentro
dos limites da escassez, próprios dos âmbitos ecológico, econômico ou cultural, o
que significa novamente uma obrigação de sensatez e de realismo. Por último, a
determinação material sobre o princípio formal (f) é o que orienta o conteúdo da
discussão, uma vez que o princípio formal determinou as exigências procedimen-
tais da deliberação. Cada uma destas seis determinações tem 1) outro conteúdo, 2)
outro termo desde o qual (ex quo) parte e 3) ao que chega (ad quem), portanto, 4)
outra direção ou determinabilidade. Estes quatro aspectos são os momentos de sua
descrição diferencial.
Tomemos as seis possibilidades já indicadas. A determinação formal do princí-
pio material (a) dá à decisão que se tome politicamente na esfera material (estuda-
da no § 21) seu caráter de legitimidade real (por somar a legitimidade formal com
conteúdo material). Este é o contexto de toda a discussão política com o econo-
micismo socialista standard, por exemplo, que deu prioridade absoluta de última
instância ao material, ignorando o sentido político do princípio democrático. Se
substancializou a determinação material (f) e se destruiu seu estatuto político.
Como o mostra E. Laclau, se minimizou a política e se maximizou a economia,
destruindo a ambas.
A determinação material do princípio (f), de outro modo, dá ao princípio de-
mocrático (estudado no § 25) um critério de orientação intrínseca da discussão,
um critério de justiça material (ecológico, econômico ou cultural) que lhe impede
de cair num formalismo dos direitos individuais ou privados, numa prioridade
do direito à liberdade e autonomia (primeiro princípio de J. Rawls) sobre a desi-
gualdade socioeconômica (segundo princípio), que deriva num certo politicismo
formalista (que, de fato, declara a total separação do campo econômico), criticado
já por Hegel, muito mais por K. Marx ou, desde a direita, por C. Schmitt, entre
outros. Neste caso, se autonomizou fetichisticamente a determinação formal (a).
Estes dois princípios são os pivôs de toda a vida política e, por isso, falseiam e
invalidam as falácias redutivas mais frequentes. Como afirmamos no começo deste
§ 24, os primeiros princípios normativos da política têm, de uma parte, uma função

410
negativa de limitar o campo político e os subcampos; mas, positivamente, consti-
tuem intrinsecamente as condições de possibilidade do poder político, dos aspectos
constitutivos do poder consensual como tal. Se o cidadão ou o político profissional
não se atém aos primeiros princípios normativos da política, corrompe-se o próprio
poder. O fato empírico do “político” se dilui, desvanece, debilita-se, desarticula-se,
perde consistência... em todos os seus aspectos. Cada princípio inspira, mobiliza,
deonticamente, a consensualidade; o querer viver comunitária e institucional-
mente; a relação de factibilidade com a escassez dos bens materiais; a ação estra-
tégica como política em seus componentes; as instituições (justificando seus fins
e conteúdos), etc.
Não se trata, então, de uma mera questão extrínseca à política (como a lega-
lidade kantiana; ou como uma exigência subjetiva, mero juízo de valor aleatório,
optativo como os juízos do gosto culinário). Trata-se da vida (possibilidade) ou
morte (impossibilidade) da política como política e da comunidade política em
sua própria existência.

5.2. P
 ossível contradição dos princípios em sua aplicação em níveis mais
concretos. Discernimento político das prioridades

[380] O tema877 é metodológico e trata da passagem, na aplicação dos princí-


pios políticos, de um nível mais abstrato a um mais concreto. Poderia parecer, em
muitos casos concretos, que se produzem contradições entre os princípios ou a
aplicação de um mesmo princípio a casos concretos diferentes. Mas o que acontece
é como o que se dá com aviões que voam em diferentes alturas no espaço atmosféri-
co e não se chocam, embora se cruzem sobre um ponto do território. Os primeiros
princípios políticos (que tratarei nos §§ 25ss) se encontram em diversos níveis de
abstração dentro do campo político (não é a mesma a posição de 1a. que a de 3c,
do Esquema 24.05). Sua aplicação nos abre a porta ao amplo âmbito de relações
abstrato/concreto e simples/complexo que podem nos esclarecer possíveis objeções
à questão da aplicação no campo político e também dentro de sistemas concretos.

877 Já o tratamos em Dussel (2004c).

411
Esquema 24.05. Níveis de abstração dos princípios e as normas justificadas em
sua aplicação
b.  Concreto 1
a. Abstrato 1 c. Concreto 2
Abstrato 2
1. O simples 1 1a
2. O simples 2
2b
O complexo 1
3. O complexo 2 3c

A não consideração destes diversos níveis de abstração/complexidade conduz a


uma “falácia abstrativa” onde, por exemplo, o “Não matarás!” universal, abstrato e
simples da ética poderia parecer se contradizer com a exigência do uso monopólico
do exercício da coação por parte da sociedade política, na qual se justifica que um
policial, sem intenção direta (mas como um ato de defesa de uma criança inocente
que pretendesse ser sequestrada pelo crime organizado), mate o sequestrador. Esta
morte não intencional, é efeito de um ato que pode ser justificado pelo “estado de
direito”, mas poderia ser interpretada como negação do princípio ético. Se assim
fosse, a política seria confinada a um campo no qual rege o princípio de factibi-
lidade puramente estratégica, mas de nenhuma maneira os princípios normati-
vos como os que a ética obriga. Isto é, eticamente nunca, em caso algum, pode-se
matar; politicamente, ao contrário, como é um campo separado ou exterior à ética,
pode-se matar – aqui, não impera a normatividade ética, com a qual se desnorma-
tiviza a política, opinião aceita tanto por procedimentalistas e até por cínicos ou
antiprincipialistas céticos. A aparente contradição não se produz, se situamos o
enunciado no exemplo em diversos níveis de abstração.
Poderíamos argumentar pela coerência normativa da ética e da política, no
caso do heterocídio do sequestrador, da seguinte maneira. Parte-se do suposto de
que a defesa de uma ordem legítima exigida para a reprodução da vida da comu-
nidade: 1) sendo o princípio da vida humana em abstrato de vigência universal
(tanto na ética como na política, analogicamente subsumido neste campo), 2) em
sua aplicação se situaria como premissa maior do silogismo prático que, tendo em
conta a reprodução da vida dos membros concretos da comunidade, exige insti-
tuições que devem ser organizadas legitimamente pela participação simétrica dos
afetados, 3) nasce, assim, uma ordem política complexa, que deve ser garantida
pela obediência de todos os seus membros ao sistema de leis promulgadas (por-
que se alguns não aceitassem as exigências de dita ordem, se voltaria ao estado de
natureza, o que colocaria em risco a reprodução e aumento da vida comunitária),
4) por isso, legitimamente os que decidem tal ordem (que, em princípio, são todos

412
os cidadãos contando com instituições de representação legítima) determinam
igualmente as instituições para proteger dita ordem como “estado de direito” (se
institui, assim, o poder judiciário, códigos penais, a polícia, o exército, etc.), 5) os
membros da comunidade que não cumprem o estabelecido por eles próprios, como
membros soberanos, origem da lei, serão objeto do exercício do tipo de coação
legítima monopólica por parte da sociedade política que se tenha estabelecido, e
poderia acontecer o caso de que, na refrega por regulamentar os que não cumprem
o que foi estabelecido, pudesse se dar a situação de se produzir o heterocídio do
sequestrador, por exemplo, 6) nestes casos, o heterocídio praticado pela instituição
legítima não é assassinato nem se opõe ao mandato ético de “Não matarás!”, já
que teria sido o efeito não desejado do cumprimento de mediações justificadas no
princípio de defesa da vida humana (do inocente que se pretendia sequestrar).878
O princípio ético “Não matarás!” se encontra num nível abstrato (1a.). O prin-
cípio político é mais concreto (por exigir não somente a ação estratégica, mas tam-
bém as instituições públicas como momento do desdobramento do poder consen-
sual) (2b). Mas o caso exemplificado é ainda mais concreto e complexo, e entram
em conflito dois princípios universais: 3ca) a exigência do princípio democrático
justifica a obrigação legítima de usar um meio para conter fisicamente o seques-
trador, a partir do marco do princípio do direito, em coerência com o estado de
direito, sem o qual a vida comunitária estaria em perigo) e 3cb) a exigência do
princípio material de reproduzir e aumentar a vida dos membros da comunidade
(contrariado, neste caso, porque se elimina a vida de um membro: o sequestrador).
Neste exemplo, o critério político de prudência (deliberativo, discursivo e pruden-
cial de phrónesis) dá prioridade ao princípio do direito, num nível de concreção/
complexidade maior. A “falácia redutiva” fica descartada. A política, e o político
que opera ou julga (o policial, o juiz, o cidadão), de nenhuma maneira fica fora da
normatividade política, analógica a de outros campos e como subsunção, também
analógica, dos princípios e exigências éticas abstratas simples.
Poderíamos tomar um exemplo mais complexo ainda (seria como um 4d), e
antecipando-nos uma vez mais ao tema da seção Crítica, propriamente a política
de libertação. Neste caso, produz-se a crítica de uma ordem dominadora exigida
por um novo desenvolvimento ou aumento da vida comunitária: 1) sendo o prin-
cípio da vida humana em abstrato de vigência universal, e 2) tendo em conta que
a reprodução da vida dos sujeitos concretos em comunidade exige instituições;

878 Tudo isto supõe a completa legitimidade e a plena participação perfeitamente simétrica na
constituição do estado de direito, também por parte do sequestrador. Ao não se darem estas
condições (que, por outra parte, são empiricamente impossíveis tal como as tenho enunciado,
já que é frequentemente o sequestrador alguém que não participou por ser um excluído e,
por isso, é uma vítima na pobreza de um sistema de exploração), a ação coativa poderia ainda
ser injusta (tema da seção Crítica), claro que em outro tipo de exemplo.

413
3) quando a ordem institucional se tornou injusta (como a situação colonialista da
nova Espanha ante a Espanha, nos inícios do século XIX, ou da Nova Inglaterra
ante a Grã Bretanha), tirânica, dominadora ou excludente de possíveis membros
de dita ordem e nega, com isso, a vida ou qualidade necessária da vida comunitária
das vítimas; 4) estas, estrategicamente em suas lutas, têm direito de se opor à ordem
dominadora em sua totalidade (como Miguel Hidalgo ou George Washington); 5)
a eliminação eventual da vida dos que defendem a ordem injusta (colonial, por
exemplo, um general espanhol ou inglês) pelas lutas das vítimas, a fim de se libertar
das estruturas de dominação colonial que sofrem, para permitir, assim, o desen-
volvimento ou aumento da vida das vítimas (possibilitando também, desde este
momento, a honesta reprodução da vida dos dominadores que deixaram de sê-lo),
não pode ser julgar como assassinato culpável (heterocídio em sentido estrito ou
negação do princípio material ético) e, sim, como um efeito não desejado ante a
decisão do dominador de continuar sua práxis heterocida (contra as vítimas e,
neste caso, seria culpável e intencionalmente injusta e eticamente perversa). Isto
não deixa novamente a política fora da normatividade analógica à ética, embora seja
uma ação dolorosa e inevitável (ante a vontade tirânica do exercício do poder como
dominação sobre a comunidade política colonial).
Haveria, como no caso anterior, contradição de maior número de princípios
políticos, já que não somente o heterocídio do soldado espanhol ou inglês se oporia
ao abstrato princípio material (1a) e, sim, se oporia ademais ao princípio do direito
(claro que um direito em último caso da metrópole, mas não da colônia – já que
esta não havia participado em sua promulgação, e muito menos simetricamente, de
maneira que o “Direito de Índias”, compilado, em 1681, pelo rei da Espanha, não
tinha legitimidade alguma ante os colonos patriotas). O que acontece é que, como
veremos, aplica-se agora uma nova geração de princípios, os críticos, mais concretos/
complexos, que subsumem os três primeiros e vão além deles, com novas exigên-
cias, como veremos na seção Crítica. O princípio material crítico que se aplica às
vítimas (cuja mera sobrevivência exige um desenvolvimento da vida comunitária
global, histórica) e a nova legitimidade do consenso crítico das vítimas (que se opõe
à legitimidade vigente dominadora, que será debilitada, até desaparecer, por uma
crise de deslegitimação) está em contradição com os princípios políticos da antiga
ordem (a colonialista metropolitana). Novamente, é necessário discursiva e pru-
dencialmente saber decidir qual princípio tem prioridade. Para o comprometido
com a ordem imperial (espanhol ou inglês), o estado de direito segue vigente e os
atos e as intenções dos patriotas são simplesmente de simples bandidos ou terro-
ristas. Para os patriotas, os próprios princípios políticos críticos que a comunidade
de emancipação exige têm absoluta prioridade ante os princípios da ordem estabe-
lecida, injusta, metropolitana, heterocida e ilegítima para eles. A coação que cada
um exerce tem um sentido normativo exatamente oposto: da parte dos metropo-

414
litanos, a ação é politicamente injusta, perversa, terrorista; da parte dos patriotas
(da Nova Espanha ou Nova Inglaterra), a ação é politicamente justa, com honesta,
objetiva e justificável pretensão de justiça, que será, assim, reconhecida por todos
(incluindo a metrópole) a longo prazo. Pode haver heterocídio: o cometido por
Espanha ou Grã-Bretanha é um assassinato; o cometido por M. Hidalgo ou G.
Washington, é um ato que, na complexidade da dramática situação concreta, não
se pode negar que teve “pretensão política de justiça”.
Valham somente, por ora, como exemplo da passagem a diversos graus de abs-
tração/complexidade, e da necessidade de saber determinar qual princípio deve ser
escolhido como prioritário em cada caso.
Ademais, os mesmos princípios têm diversos graus de abstração/complexidade.
Os princípios políticos constitutivos ou fundamentais (que expusemos nesta Arqui-
tetônica), seja ele material, formal ou de factibilidade, são mais simples/abstratos
que os princípios críticos (do volume III, a Crítica), já que os supõem ou subsumem
(o concreto que subsume o abstrato/simples é mais complexo). Além disso, os prin-
cípios material e formal são mais abstratos/simples que o de factibilidade (que deve
tê-los em conta para que sua factibilidade estratégica não deixe de ser política). O
mais complexo de todos os princípios é o sexto (o princípio-libertação, que iremos
expor no § 35, porque subsume os outros cinco, que são sua condição de possibili-
dade). Há, então, entre os próprios princípios, níveis de abstração/complexidade.

6. Coerência ética do político. Permanência do ético no político

[381] O “sujeito ético” atua em diversos “campos” práticos, tantos quantas forem
as atividades que cumpre em sua vida diária. É membro de uma família (“campo”
A do Esquema 16.01), participa na vida de um bairro urbano (“campo” B), está
inscrito num partido político e é simplesmente um cidadão (“campo” político C),
trabalha numa empresa química (“campo” D), joga futebol num clube esportivo,
faz parte de uma comunidade religiosa ou de uma orquestra amadora (“campo” N).
Em cada um destes “campos”, desempenha, como ator, uma “ação” particular, dife-
renciada, conhecida e reconhecida pelo próprio sujeito, assim como pelos demais
membros da comunidade. Ante uma ação funcional no todo do “campo”, os demais
membros “sabem” como devem agir e têm expectativas em relação à execução logi-
camente prevista no “script” de sua função, neste espaço intersubjetivo.
O simples sujeito ético abstrato é agora um “ator” concreto, é um agente que
“representa” um “papel” em princípio predeterminado. Dentro dos “campos”, o
ator cumpre as regras do sistema prático/concreto, subsume analogicamente as
exigências normativas dos princípios éticos. O “princípio de coerência” é exercido
na articulação das diferentes maneiras de exercer os princípios universais éticos,

415
nos sistemas específicos de ação de cada campo; quer dizer, cumprir estes princí-
pios nas ações dentro do horizonte de dito “campo”. A “incoerência” ética poderia
se dar ao justificar as máximas ou as normas das ações nos diferentes campos e
sistemas respectivos a partir de princípios contraditórios ou em atuar sem prin-
cípios em algum deles (ou em todos eles) ou em aplicar os princípios éticos de
maneira inconsistente ou contraditória. Trata-se de uma justificação, aplicação ou
subsunção que opere por semelhança analógica.
Para uma ética discursiva, esta problemática sobra, já que o consenso racional
prático, que os participantes afetados simetricamente situados acordam, não muda
formalmente, embora mude a temática da discussão. A uma ética mais complexa,
que tem princípios para “orientar” eticamente o conteúdo da discussão, é-lhe apresen-
tada a dificuldade de uma subsunção coerente da ordem, onde é possível exercer
uma função de “orientação” em “campos” práticos diversos. A ética discursiva co-
nhece, porém, perfeitamente a coerência em seu agir, que deve enfrentar um po-
lítico que aplica o princípio moral consensual democrático no campo político, mas
que, neste mesmo momento, não o aplica no campo familiar (onde o princípio moral
é de gênero ou pedagógico, e ainda não democrático ou político), por um machismo
que lhe impede de discutir os problemas domésticos com sua mulher e, guardando
proporção, pelo autoritarismo ante seus filhos. Neste caso, pode não haver coerência.
Adiantemo-nos num tema pertencente ao volume Crítica (§§ 32ss). A questão
ganha maior complexidade quando se opera com vários princípios e, em especial,
com os “princípios político-críticos”,879 que se situam desde o “lugar” dos que sofrem
efeitos negativos das ações de um sistema, de uma instituição, de uma ordem, e
que, embora seus atores hegemônicos tenham “pretensão de justiça”, contudo (pela
mera existência de vítimas que sofrem os efeitos negativos indicados), trata-se de
uma “ordem” injusta (por ter vítimas) e os que agem como sujeitos (atores) de tal
“ordem” cometem atos injustos (embora tenham a consciência tranquila de estar
agindo com “pretensão de justiça” ou “bondade”). Em cada “campo”, haverá sis-
temas especificamente diferenciados e, em cada um deles, haverá “outro” tipo de
vítimas (na família, a dominação ou exclusão da mulher; na economia, os pobres
excluídos; na política, minorias ou maiorias dominadas, etc.). Para ser “coerente”,
será preciso descobrir em cada “campo” concreto o tipo de estrutura e dentro dela
a dominação e, portanto, definir com precisão o tipo de “vítima”. A Ética da Li-
bertação (como o fundamente da Filosofia, em especial, a prática) situou o Outro,

879 A primeira geração da Escola de Frankfurt teve clara intuição destes princípios “críticos” da
parte de todos os seus membros (Horkheimer, Marcuse, Adorno e Benjamin, certamente),
embora não tenham construído uma ética propriamente dita. A “Teoria crítica” partia da
“negatividade material” da vítima, da dor da sua corporalidade sofredora, num sistema
injusto, que causava dito efeito negativo (Dussel, 1998, cap. 4, parágrafo 4.2), o qual pres-
supunha, a fim de poder expor uma ética filosófica explícita, outros princípios normativos
prévios. Na política, é o conteúdo de toda esta Arquitetônica.

416
a vítima, primeiramente, como “pobre”. Mas, de imediato, foram analisandos os
diversos tipos de vitimização (a criança e a cultura popular no “campo” pedagógico;
a mulher, no erótico; as nações periféricas subdesenvolvidas e exploradas por um
capitalismo do centro metropolitano desenvolvido, no “campo” econômico; e de
diversas maneiras, no político, etc.).
Seria incoerente ser “crítico”, no nível econômico ou educativo, lutando pela
libertação das vítimas destes “campos”, mas, em troca, ser conservador no nível
familiar ou político. Nos primeiros casos, lutaria pelo reconhecimento das vítimas
econômicas ou pedagógicas, mas, nas últimas, se inclinaria, ao contrário, por acon-
selhar ações que respeitem a “ordem” imperante (de dominação machista sobre a
mulher ou da exigência de um poder dominador dentro do “estado de direito”,
como última instância, por exemplo).
O sujeito (a flecha S no Esquema 16.02), que se faz presente em todos os “cam-
pos” onde atua cotidianamente (aos quais atravessa num ponto, como um “nó”) e
nos quais cumpre diferentes papéis (é uma “atuação” conscientemente diferencia-
da, como membro de uma “rede”, referindo-me à metáfora de M. Castells), devem
eticamente justificar e aplicar analogicamente (em proporção à estrutura prática
de cada “campo”) os critérios e princípios éticos (subsumidos pelos respectivos
princípios normativos de cada “campo”), em toda ação estratégica, na geração de
instituições específicas, na hermenêutica de textos de cada um dos “campos” práti-
cos (sistêmicos sempre, menos ou mais institucionalizados) ou em outros modos
de sua presença ativa.
É importante assinalar que a coerência do sujeito-ator, na articulação da apli-
cação dos princípios éticos subsumidos analogicamente nos princípios de cada
“campo”, não pode repousar simplesmente num consenso discursivo concreto, já
que, embora possa, em cada “campo”, contar com a intersubjetividade discursiva
dos diversos membros da comunidade que atuam neles, somente o sujeito singular
(einzeln) e único pode “situar” coerentemente sua atividade em cada “campo”, em
vista de seu “projeto” (Entwurf, o Sein-können de Heidegger) biográfico, que às
vezes o obriga a assumir a dissidência, embora heroica, como no caso de Sócrates
ante o demos ateniense. Pode-se, em cada caso, tomar “a si mesmo como outro” e
dialogar consigo mesmo, num monólogo “atuado”, como que diante de uma comu-
nidade virtual,880 e, por isso, “argumentar” a favor da coerência ou não da própria

880 Este é o sentido da narrativa simbólica do “Juízo final”, na grande sala de Ma’at, na presença
de todos os deuses e da humanidade, do egípcio “mito de Osíris”. O egípcio (e posteriormen-
te muitas culturas semitas, como a dos hebreus, cristãos do Mediterrâneo do império roma-
no, muçulmanos, bizantinos, russos ou europeus ocidentais), ao cumprir uma ação solitária,
singular, única, sem espectadores, em privado, “se via visto” por Osíris, o Juiz onisciente,
por sua consciência ética (que nas pirâmides e papiros se representava com o hieróglifo do
“olho” aberto que olha). O ato monológico era virtualmente intersubjetivo sempre. O ato

417
ação nos diversos “campos”, pesando as razões de usar ou não os mesmos critérios
e princípios éticos nos níveis específicos de cada “campo”. Embora pudesse pedir
“conselho” a amigos, familiares, terapeutas, psicólogos ou psicanalistas, assessores
morais ou políticos, comunidades próximas, etc., a responsabilidade final é inalie-
navelmente singular e, aqui, a phrónesis retorna, mostrando sua importância ética
e específica em cada “campo”. Porque, se Aristóteles analisava o caso da phrónesis
de uma família ou a phrónesis política, agora devemos estendê-la analogicamente a
todos os “campos” possíveis: phrónesis econômica, desportiva, religiosa, etc.
É exatamente desde a posição singular do sujeito ético, como tendo um projeto
prático-normativo biográfico, mas igualmente uma inserção sistêmica e intersubje-
tiva (no político, econômico, cultural, de gênero, de raça, etc.), de onde pode surgir
o “dissenso” na discussão racional que pretende alcançar um consenso prático. A
“coerência” nos diferentes tipos de ações que um sujeito ético realiza pode obrigá-
-lo, num “campo”, a não cumprir com o que se esperava fazer, segundo o acordado
pelo consenso entre seus iguais, e, portanto, deverá enfrentar o dissenso.
Não se trata da contradição que pode produzir uma obrigação de um “campo”
que entra em oposição com a de outro. É o caso de um membro de uma comuni-
dade do “campo” religioso que se encontra no tempo do ano em que deve guardar
jejum (por exemplo, para um muçulmano, a época do Ramadã), é ele quem deve
decidir se participa ou não num banquete político de uma festa pátria (por exem-
plo, na França) que ocorre ao meio-dia. Neste caso, a decisão que se adote será a
conclusão de uma deliberação própria da phrónesis, que “sabe praticamente deci-
dir” (orthós lógos praktikós) qual das duas possíveis ações tem maior relevância em
vista de seu “projeto prático-biográfico” (télos).
[382] O “princípio de coerência” se aplica, por outro lado, a diferentes ações
que têm o mesmo princípio ético por analogado principal e que se cumpre em
diferentes “campos”. Por exemplo, desde o princípio material ético universal, pelo
qual se deve produzir, reproduzir e desenvolver a vida humana881, se pretende ter
uma atitude ecológica de economia de energia. Num “campo” prático, o familiar se
edifica uma casa ecológica usando conscientemente energia solar para a calefação e
a água quente; mas, no “campo” do transporte urbano, se usa um automóvel privado
e, ainda mais grave, se elege um modelo que usa excessiva gasolina. Na empresa pro-
dutivo-econômica capitalista, se utiliza pouca calefação para economizar dinheiro
(embora os trabalhadores sofram frio) e se exige, em troca, na universidade dos fi-
lhos, excelente calefação nas salas de aula, nas instalações esportivas ou nos dormi-

empírico privado “era visto” à luz de um juízo público; o público havia subsumido o privado,
não lhe deixando em definitivo nenhuma reviravolta para um segredo singular (impossível
ante o olhar absoluto e perscrutador onisciente do deus).
881 Ver minha Ética da Libertação, cap. 1.

418
tórios. Estas decisões contraditórias em diversos “campos” devem ser modificadas
até articulá-las por semelhança analógica, numa aplicação “coerente” dos princípios.
O conteúdo da ação de cada “campo” deve ser analogicamente semelhante.
Também o modo e o sentido da aplicação e subsunção dos princípios devem ser
analogicamente semelhantes.882 As ações, neste caso, não têm somente, e cada uma
em separado, “pretensão de bondade”883 (com respeito a cada “campo” específico) e,
sim, têm, ao mesmo tempo, “pretensão de coerência”, no nível singular, biográfico
e complexo do sujeito ético concreto – que atravessa os “campos” e seus sistemas,
onde realiza seus diferentes “papéis” ou funções como “ator”, adotando diversos
“disfarces” e “caretas”, que podem, porém, ser autênticas (o conceito de “persona”,
em latim, significa exatamente o “soar”, “personare”, a voz do ator através da más-
cara do teatro884 romano).
Hoje em dia, quando se fala da corrupção generalizada nas burocracias pú-
blico-políticas e privado-empresariais, da necessidade da ética na política, ou, pelo
contrário, do abandono na filosofia política moderna do componente ético, já que
a ética não abarcaria o “campo” da política, como no pensamento clássico, penso
que se está referindo não somente ao problema da ausência de normatividade no
“campo” político, em seus princípios, instituições ou ações políticas empíricas (isto
é, uma falta de ética política885) e, sim, se está fazendo referência diretamente ao
princípio de coerência, sem percebê-lo. Quando o cidadão desconfia politicamente
do profissional da política, não se trata somente de que o está criticando porque
não tenha subsumido os princípios éticos em suas ações políticas e, sim, embora
os subsume “aparentemente” no “campo” político, não o faz nos outros “campos” –
como no caso de W. Clinton, em sua vida sexual privada, mas usando um espaço
público886 – cria “insegurança” acerca da autenticidade de sua “pretensão política

882 Nunca dissemos “idênticos”, porque a aplicação e subsunção dos princípios éticos não são
“idênticas” e, sim, tem em consideração a “distinção analógica” de cada “campo”. Ajudar um
operário no nível econômico (a vítima no nível da empresa) não é “idêntico” com o ajudar
uma mulher no nível do gênero (a vítima na família ocidental)
883 Em nossa Ética, distinguimos pretensão de verdade (em referência material à realidade),
de validade (em referência à aceitabilidade da comunidade de comunicação), de eficácia
(em referência à factibilidade da ação), etc. A “pretensão de bondade” é a síntese de todas as
indicadas “pretensões”, não é o good dos comunitaristas, nem tampouco a validade, o right
dos kantianos.
884 Cada “campo” é um “teatro”, mas onde os atores não “representam” papéis de personagens
fictícios, os do roteiro escrito, inventados pelo artista da obra de teatro e, sim, onde cada
ator “representa” seu autêntico “papel” biográfico, o do roteiro da história real, no “teatro
da vida cotidiana”: isto é um “campo” prático.
885 Ver a obra de Vittorio Hösle (1997).
886 Se diz que é próprio de uma consciência conservadora exigir esta coerência. Igualmente,
pensa-se que se aproxima o tempo em que as ações públicas devam ser julgadas como pú-
blicas, com total independência das ações privadas. Todavia, os “campos” público e privado

419
de justiça”, ao não aplicar os mesmos princípios em todos os “campos” de sua con-
duta. O cidadão exige “coerência” de seu representante, tanto do político conser-
vador quanto do revolucionário, porque aquele a quem se tem “confiança” como
“representante” é a um sujeito ético concreto que se espera atue previsivelmente,
como prometeu em sua campanha pública anterior à sua eleição. Por isso, espera-se
que não seja somente “pura aparência”, cambiável e contraditória diante de aconte-
cimentos críticos. Portanto, tem-se a expectativa de que “represente” o cidadão que
o elegeu, sempre de maneira veraz – com intenção reta –, onde a realidade do seu
agir em todos os “campos” seja analogicamente semelhante com sua “aparência”
e se “assegure” esta expectativa, quando se verifica, nos diversos “campos” de sua
ação, um agir “coerente”.
Uma advertência mais. A universalidade dos princípios nada tira da ação e da
organização das instituições, no que diz respeito à indecidibilidade e à contin-
gência das decisões políticas que as sustentam. O princípio político, justamente
por ser universal, desdobra um horizonte simples e abstrato que deixa à mostra
a quase infinita complexidade-concreta das ações estratégicas e as instituições
reais. O contingente em sentido político consiste em algo que é possível (não é
impossível), que pode ser de outra maneira porque não é necessário. É concreto e,
portanto, é algo possível de ser justificado por princípios políticos e é complexo e,
portanto, não é universal ou abstrato. Por sua complexidade quase infinita, não
se pode decidir com certeza (é, então, incerto); não se impõe como o evidente (é o
que se deve experimentar, deve-se falsear, buscar lentamente por prova/erro, evitar
efeitos negativos incorrigíveis). É o impossível de ser decidido com onisciência (fora
da capacidade finita humana). Portanto, a ação e as instituições que dependem de
uma máxima indizível, sem claridade distinta e simples (como as ideias cartesia-
nas), não podem, mas inevitavelmente realizam efeitos negativos. A questão não é
retroceder diante deles ou declarar-se inocente de sua existência. Uma política da
responsabilidade assume os efeitos negativos de suas decisões incertas e infinita-
mente complexas, para corrigir os erros (efeitos negativos que produzem vítimas
políticas); para corrigi-los com coerência. A correção coerente do cidadão (repre-
sentado ou representante) que não perde “pretensão política de justiça” é a ação po-
lítica correta. O político, injusto, perverso, dominador, crê que nunca comete erros
(assim o crê e, por isso, não pode corrigi-los). O político exemplar é o que sabe que

“asseguram” ao cidadão a seriedade e honorabilidade prática da convicção dos que os “repre-


sentam”. A crise da “representação” política é também crise de confiança do representado em
relação ao representante. Se este quiser garantir honestamente a confiança de seu eleitorado,
deve manifestar coerência em suas convicções em todos os “campos”. Não somente o con-
servador, também o revolucionário deve ser coerente. O sandinismo, na pessoa de alguns
de seus ex-comandantes, é um exemplo triste. “A corrupção do melhor é a mais péssima”,
diz o antigo adágio.

420
os erros são inevitáveis, enfrenta os efeitos negativos, corrige-os coerentemente
segundo os princípios normativos (e, por isso, há coerência de curto e longo pra-
zos potenciando o poder consensual), e progride na aprendizagem da construção
e transformação de instituições políticas adequadas para a comunidade política.
Uma última reflexão. Embora os princípios éticos sejam subsumidos como po-
líticos no campo político, fica um âmbito transcendental do ético na política, não
já como princípios abstratos normativos e, sim, como a carnalidade real e concreta
de cada sujeito que cumpre alguma função em tal campo. Cada sujeito, em sua
corporalidade vulnerável, segue sendo sempre, de alguma maneira, transcendental
ao campo político, como a Alteridade que grita quando não se cumprem suas exi-
gências. É a exterioridade da subjetividade vivente corporal em referência a toda
ação ou instituição política, como a Di-ferença, como a Dignidade do Outro cidadão
como outro, como outro de si mesmo, como outro da comunidade política como
totalidade. Esta transcendentalidade do sujeito humano a todo campo e através
de todo campo, também do campo e dos sistemas políticos, recorda que nunca se
podem cumprir todas as expectativas de todos os membros da comunidade política.
A finitude da contingência da ação e das instituições nos devem recordar que a dor
e o grito do sujeito são um mais além de infinita exigência e normatividade política.

421
§ 25. O PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO: IGUALDADE

1. A razão político-discursiva

[383] Toda a questão colocada pelas correntes “contratualistas” se refere, em


última instância, à existência de um consenso originário, do qual parte a institu-
cionalidade política. Este consenso originário, contudo, nunca é efeito de um ato
histórico, voluntário, consciente, explícito, como decisão de constituir desde zero
uma comunidade política. A pedra negra, uma pedra enterrada no Foro Romano,
não longe do Senado, pretendia remeter a este contrato originário. O mesmo pode
ser dito da pedra que, em Jerusalém, recorda o pacto ou aliança de Abraão com seu
Deus. O mesmo é lembrado em Meca. Estes atos, que correspondem a uma narra-
tiva simbólica ou mítica “naquele tempo”, diria Mircea Eliade, fazem referência ao
tempo originário, que o contratualismo considera sempre como uma “metáfora”
do feito empírico, histórico, de uma comunidade política já sempre existente com
certo consenso, que antecede a todo acordo contratualizado. O tema do “contra-
to” nos remete, então, ao que aqui nos ocupa, à referência necessária do consenso
numa comunidade de comunicação política que aceita certa institucionalidade
como própria, como tradicional, como o que permite exercer o poder (a potestas)
por parte das autoridades (seja o chefe do clã, da etnia, o rei antigo, os anciãos em
Israel ou os senadores da República romana ou o Imperador chinês secundado
pela burocracia secularizada dos mandarins, ou a junta de comerciantes mais im-
portantes, como acontecia em Tiro e Sidom, ainda antes de Tebas ou Atenas, de
Veneza ou do parlamento inglês). Existe um consenso primordial, intersubjetivo,
implícito e sempre já dado, sem o qual nenhum governo pode exercer o poder co-
munitário – que se funda na racionalidade prática discursiva, como acordo acerca
do qual a tradição mostrou como melhor e que se aceita até quando alguém possa
poder colocar dita hegemonia em questão. A legitimidade de uma organização,
no exercício do poder, se sustenta formalmente no consenso político, na aceitação
tolerável da ordem estabelecida das instituições vigentes. Todo acordo ou consti-
tuição explícita, acordada, proclamada, firmada, como contrato ou aliança política,
vem depois e modifica este solo duro da tradição consensual.
A comunidade política, então, como comunidade de comunicação pública,
desde uma estrutura do poder que fica delimitada num campo político, tem sem-
pre implícita uma referência última ao critério político de legitimidade de todas
as normas legais, ações ou instituições que determine. Este critério último de legi-
timidade política é sempre e, de alguma maneira, o da participação simétrica dos
afetados (afetados pelo que há por resolver), tendo como instrumento fundamental

422
para alcançar os acordos algum tipo de instituições, onde se expressam argumen-
tos, razões (que podem também ser narrativas simbólicas ou míticas em sua ori-
gem), tudo o que está motivado por certo tipo de igualdade política, que permite a
homogeneidade da vontade geral.887
O princípio moral de validade prática888 é subsumido, agora, como possibilidade
de delimitar o campo político como político, já que a mera validade abstrata formal é
agora concretizada como princípio político de legitimidade (sempre implícito de fato
nas ações e instituições políticas). O paradigma linguístico consensual adquire senti-
do pleno, já que a vida política, sem a retórica (a expressão persuasiva na esfera públi-
ca, na ágora), não é vida política. A intersubjetividade em geral alcança, agora como
intersubjetividade política, sua especificidade formal estrita. Vejamos, em primeiro
lugar, em que consiste a racionalidade política enquanto formalmente exercida.
A ratio politica livre, autônoma, discursiva, procedimental ou democrática (for-
maliter) é um uso da racionalidade que permite alcançar a legitimidade (validade
formal) de toda norma legal, ação ou instituição. Para isso, é necessário que a razão
possa ser exercida na participação pública, efetiva e simétrica da plena autonomia,
que tem, na comunidade de comunicação política, como comunidade intersubjeti-
va com soberania política, fonte e destino do direito, cujas decisões têm, por isso,
pretensão de legitimidade política, com pretensão de universalidade. Trata-se da
razão político-discursiva.
Entramos, assim, num terreno muito transitado. Trata-se do momento discur-
sivo do consenso, da autonomia, da liberdade, da soberania política, que poderia
ser denominada com Habermas como o “princípio democrático”889. O princípio
material ou de conteúdo do exercício da razão política (que, como veremos no §
26, é, no último termo, a exigência normativa no uso do poder para a produção,
reprodução e desenvolvimento da vida humana) não pode constituir seu objeto
próprio (a decisão realizadora do material), nem ser exercercido sem mediação da
razão político-discursiva. Quer dizer, à pergunta: “Com que procedimento polí-
tico se consegue o consenso acerca da produção, reprodução ou desenvolvimento
da vida humana de uma comunidade?”, somente se pode responder: “Decida-se a
mediação necessária de maneira livre, autônoma, democrática ou discursiva legiti-
mamente, segundo as regras publicamente institucionalizadas!”; em outras pala-
vras: “Proceda-se democraticamente!”.

887 Por ora, se insistirá na igualdade, ante a distinção discriminante (esta última é a diferença
dos dominantes). Na Crítica, se prestará atenção à Di-ferença ante a igualdade dominadora
homogeneizante (esta última é a igualdade como particularidade opressora com pretensão
de universalidade).
888 Ver minha obra (Dussel, 1998, cap. 2).
889 Habermas (1992, III, III; ed. alemã, p. 151ss; ed. inglesa, p. 118ss), o chama “Princípio do
Direito”, e o distingue do mero “princípio discursivo” e do “princípio moral” propriamente
dito, como vimos, ao qual se antepõe.

423
2. A vontade que reconhece a igualdade

[384] O reconhecimento pode ser interpretado como um ato próprio da razão


(um conhecer o Outro como o igual). Pode também ser analisado fenomenologi-
camente como um ato da vontade, que “dá lugar” (a contractio da subjetividade
não solipsista, egoísta) ao Outro, como uma afirmação da alteridade (num sentido
intrassistêmico ainda) da vontade alheia, que impõe limites ao desejo (de morte)
da expansão ilimitada do si mesmo como totalidade totalitária. Quando D. Hume
afirma que é preciso colocar uma fronteira (a propriedade privada) à cobiça dos
avarentos, paixão desmedida que tende à única afirmação de um sujeito sobre todo
o resto, está considerando esta questão.890 Com razão, Honneth escreve:

A reprodução da vida social se cumpre sob o imperativo de um reconhecimento recí-


proco (Honneth, 1992, p. 148 [1997, p. 114]); e isto ao longo da distinção de três formas
de reconhecimento recíproco: da dedicação emocional, que conhecemos nas relações
de amor ou de amizade, [que] se distingue do reconhecimento jurídico e da adesão
solidários, enquanto formas de reconhecimento recíprocas (1992, p. 151 [1997, p. 116]).

O amor entre os membros no nível da vontade, o reconhecimento de ser uma pes-


soa livre juridicamente no da racionalidade discursiva e o de uma “valorização social
que lhes permita referir-se positivamente às suas qualidades e faculdades concretas”
(1992, p. 196 [1997, p. 148]) no nível social são o fundamento para o reconheci-
mento da igualdade do Outro. Estes três momentos positivos se opõem a outros
momentos negativos ou de “menosprezo”, que marcam a diferença negativa: ódio,
maus tratos e violação, violação de direitos e desrespeito à dignidade e à honra do
Outro, aspectos que se traduzem como desigualdade – e que trataremos na Crítica.
A igualdade, então, deve ser afirmada quando a Di-ferença exclui: quando a
igualdade pretende homogeneizar desde um grupo dominante os que têm direitos,
culturas, sexos, raças e necessidades distintas se fará necessária a afirmação da
Di-ferença (ver § 30).
No nível formal da política, também devem ser incluídas as paixões, os sen-
timentos, porque igualmente existe uma determinação fundamental da vontade,
já que se trata de uma ordem que regula o sistema límbico-afetivo da intersubje-
tividade da comunidade política. Kant assinalava que o “respeito” pela lei era um
sentimento determinado pelo amor à lei em sua universalidade. Os sentimentos,
em geral, para Kant, eram motivações materiais e patológicas, mas, no caso do
respeito, se tratava de uma motivação quase-formal, porque sua matéria era a pura
lei universal e, portanto, não tinha propriamente conteúdo empírico.

890 Ver na História desta Política da Libertação [153ss].

424
A pretensão de A. Honneth (1992), com seus trabalhos sobre o “reconheci-
mento” (Anerkennung), da mesma maneira, quer mostrar um nível pulsional que
não deixa de ser formal. O “reconhecimento da igualdade do Outro”, no que con-
siste pulsionalmente a “igualdade” (um dos ideais utópicos da revolução francesa),
tem, com efeito, uma dimensão propriamente formal, já que situa o interlocutor
ou ouvinte intersubjetivo na comunidade de comunicação política como alguém
que tem a mesma dignidade que o falante. Em nossa Ética da Libertação (1998, §
3.5), mostrávamos como o “reconhecimento do Outro como igual” era uma me-
diação necessária entre a ordem material (do conteúdo ético) e a ordem moral (do
procedimento normativo de validade), já que permite situar os falantes, argumen-
tadores, num mesmo nível normativo de liberdade, autonomia e participação. O
reconhecimento do Outro como igual tinha sido definido por Apel como condição
necessária da argumentação, numa comunidade linguística de comunicação, na
qual tal reconhecimento permite eticamente ao argumentador tomar o Outro a
sério e, graças a isso, aceitar sua razão.891 A aceitabilidade da razão, do argumento
do Outro, pressupõe a possibilidade (que seria certa humildade, como atitude da
vontade que “dá lugar” ao Outro) de ter que negar o próprio argumento como
inferior, se o do outro for verdadeiro ou propuser uma melhor razão, falseando a
argumentação do primeiro. O “socialismo ético” de Charles Peirce é reformulado
por Apel, considerando as condições éticas já sempre pressupostas para toda a
argumentação. Neste caso, a aceitação ou reconhecimento do Outro como igual e
a aceitação ou recepção do argumento do Outro vão juntas. A “igualdade”, então, é
pressuposta como condição do consenso. A pulsão que situa o Outro, ao menos no
mesmo nível do argumentador, participante pragmático na comunidade de comu-
nicação política, superando diversos tipos de “menosprezos” que excluem o Outro
de fato da comunidade política e que, portanto, lhe negam o caráter de “afetado”
em simetria, é o tema em questão. Fichte já havia situado o reconhecimento como
a posição dos indivíduos, que permite, como uma base, estabelecer as relações de
direito (Fichte, 1971, p. 1ss). O jovem Hegel de Jena elaborará estes princípios de
maneira criativa, para colocar o reconhecimento no fundamento da primeira filo-
sofia política desta época, embora na Fenomenologia do Espírito o tema deixe de ter
vigência. O desconhecimento da dignidade do Ouro é fonte de conflitos, ao negar
a igualdade, conforme trataremos no próximo volume Crítico desta obra.

891 Wellmer (1986) distingue entre o aceitar a razão por sua força de veracidade (com pretensão
de verdade) e o aceitar a razão por sua força validante (por ter afirmado antes a dignidade
do outro argumentador e por ter sido já aceita pela comunidade). A segunda razão é formal
e, em política, funda a legitimidade; a primeira razão é material e, em política, encontra-se
no nível do que denominaremos o ecológico-econômico-cultural, isto é, as esferas materiais
de reprodução da vida humana.

425
3. O Princípio Democrático892

3.1. Em busca do Princípio Democrático

[385] Toda teoria hipotética ou metafórica do contratualismo moderno se


funda no desejo de encontrar alguma fundamentação à normatividade893 formal-
-política, que parte de uma livre participação simétrica dos cidadãos afetados num
ato consciente de concordância. Observemos a formulação rousseauniana do pro-
blema do consenso originário no Contrato Social. Seria necessário “encontrar uma
forma de associação que defendesse e protegesse com toda a força comum a pessoa
e os bens de cada associado e pela qual cada um se unisse a todos obedecendo
unicamente a si mesmo e ficando tão livre como antes” (Rousseau, 1963, p. 61).
Trata-se de encontrar a referência primeira, a que se autoafirma como sobera-
na; enquanto cada um, ao ser participante, obedece a si mesmo, ao cumprir o que
foi decidido. Contudo, não se indica bem que o fundamento desta obediência se
estriba em que o obediente é tal porque antes é a própria fonte que ditou a lei e, por
isso, com respeito ao acordo ou consenso que representa a lei, já não é livre e, sim,
que deve cumprir obrigatoriamente o que foi acordado – o pacta servanda sunt – e,
portanto, está sujeito ao seu fiel cumprimento igualitário, como autonomia que, não
obstante, auto-obriga. Rousseau não tem clareza quanto ao conceito de comuni-
dade de comunicação, que permanece no tempo como última referência, como ator
diacrônico (e, portanto, última instância do sujeito que pôde dar-se a lei, mas tam-
bém pode cometer crimes contra esta mesma lei) no processo histórico. A vontade
geral não é, por ora, senão a vontade igualitária, unificada também pelo consenso,
da comunidade política enquanto comunidade de comunicação que permanece no
tempo histórico. Rousseau não encontra a fórmula adequada para expressar que
dita comunidade política, embora nunca entregue a outra instância nem sua prote-
ção, nem seus bens, nem o poder de decidir por si mesma, contudo não “fica tão livre
como antes”. Com efeito, agora é uma vontade institucionalizada, determinada,
demarcada por acordos que restringem a abrangência da vontade livre porque inde-
terminada; mas, por ser indeterminada e caótica, lhe é impossível a sobrevivência. A
vontade geral é o poder consensual, comunicativo, soberano, fonte de toda lei e, por
isso, obediente à lei como vontade disciplinada a seus próprios acordos.
Vejamos de que maneira Spinoza define a questão dentro de um discurso com-
plexo.894 À teoria do contrato deve-se acrescentar a instituição da maioria, que

892 Ver as Teses 10.1-10.2 de 20 Teses de Política (Dussel, 2006).


893 Um certo contratualismo ou procedimentalismo estratégico busca separar completamente
a normatividade da validade moral da legitimidade política. A proposta de Habermas ao
menos pretende articular ambos os níveis.
894 Na parte Histórica desta Política da Libertação [136ss].

426
tem sua validade porque “se dois homens concordam e conjugam suas forças, au-
mentam sua potência [...]; quanto mais homens são os que se estreitam na relação,
tanto maior será o direito que todos juntos adquirem” (Spinoza, 1985, p. 151).895 E,
por isso, “este direito, que resulta definido pela potência de uma multidão (multitu-
do), costuma se chamar público. E o exerce de maneira absoluta aquele que por con-
senso comum administra a coisa pública [...]. Quando esta administração concerne
a uma assembleia de elementos tomados da multidão, então o direito público toma
o nome de democracia” (1985, p. 151).896 Já antes, havia escrito algo semelhante:

Na verdade, chama-se democracia este direito da sociedade que por esta razão se define;
assembleia de todos os homens que têm colegiadamente direito soberano em todas as
coisas com as quais pode agir, do que se deduz que a soberana potestade não está obri-
gada por nenhuma lei e que todos devem obedecê-la em tudo (Spinoza, 1985, p. 61).897

A potestade soberana não está obrigada por nenhuma lei, porque é a fonte de
todas as leis e, por isso, por ser fruto do comum acordo livre e autônomo, todos
os membros da comunidade devem obedecê-la. Tudo isto pressupõe, como vamos
observando, a existência a priori já sempre pressuposta de uma comunidade políti-
ca. Como vimos, nunca pode haver um indivíduo solipsista como ponto de partida
de nenhum contrato originário. Enquanto nas teorias contratualistas ou liberais,
incluindo John Rawls (1973 e 1993) e até em maior medida Robert Nozick (1974),
se cai numa inevitável aporia devido a seu individualismo metafísico (e, em alguns
casos, quase-anarquista, quanto à inclinação de considerar sempre a perversidade
intrínseca da instituição do Estado): se se afirma o indivíduo, nega-se a instituição
(e vice-versa). Sendo o ser humano um ser por natureza individual e livre, toda
“instituição”898 produz inevitavelmente certa repressão, “constrangimento” (cons-
traint)899 contrário à natureza. O anarquista de esquerda – à maneira de Bakunin
– crê, outrossim, que toda “instituição” é perversa,900 porque “reprime” a liberdade

895 Tratado Político, cap. II, § 13.


896 Tratado Político, cap. II, § 17.
897 Tratado Teológico-político, cap. 16.
898 Rawls tem, porém, uma matizada teoria das “instituições” (Rawls, 1971, II, cap. 4ss), claro
que sob a “prioridade” absoluta da liberdade (individual). A aporia é transladada a um
momento posterior.
899 “Moral Constraints and the Stare” (1971, p. 26ss).
900 A “disciplina” criticada por Foucault e o conceito de “repressão” em Freud pareciam indicar
igualmente a uma certa negação radical da possibilidade da existência de toda instituição.
Creio que é preciso distinguir entre uma instituição “repressiva” e a necessária (para a repro-
dução da vida humana) “disciplina” que as instituições exigem inevitavelmente. O “Superego”
(Ueber Ich) freudiano não pode ser eliminado: é preciso reeducá-lo, reconstruí-lo, “normali-
zá-lo”, mas não deve ser suprimido ou o Eu ficaria numa anomia patológica sem referência.

427
humana primitiva e comunitária. Bakunin se propõe a destruir as instituições por
ação direta; Nozick se propõe, ao contrário, a reduzi-las ao mínimo possível.
[386] Para Spinoza, então, o consenso democrático está ligado, argumentati-
vamente, à essência e ao aumento do poder comunicativo:

O homem mais potente e livre no estado de natureza é o que se deixar guiar pela razão
[...]. Assim, a República com maior potência e mais livre é aquele que toma a razão por
seu fundamento e por regra de ação. Pois, o direito da República está determinado pelo
poder da multidão, que se conduz como um só espírito. Mas esta união [...] somente é
concebível se a nação se propõe precisamente como fim essencial, aquele que a sã razão
ensina que é mais útil para todos os homens (Spinoza, 1985, p. 159).901

A democracia é, então, o tipo de organização que unifica os seres humanos


pelo consenso racional, dando-lhe poder e maior poder como potência na unidade.
Kant colocou a questão de maneira completamente diferente, em sua obra
A Metafísica dos Costumes. Na Introdução, parágrafo E, escreve: “Assim como o
direito em geral somente tem como objeto o que é exterior (äusserlich) nas ações,
o direito estrito, isto é, aquele que não está misturado com nada ético [sic], é o que
não exige senão fundamentos externos de determinação do arbítrio” (Kant, AB,
36, 1968, VIII, p. 339). Como o direito se situa numa esfera do “externo” (em
nosso caso, o externo à intersubjetividade é impossível), se impõe de maneira
direta às faculdades apetitivas (o material, sempre egoísta ou patológico, para
Kant) ou a todos os indivíduos por “coação” (Zwang), porque “o direito está ligado
à faculdade de coagir”.902 A ação que concorda com o direito não é moral (“não
está misturado com nada ético”, como citamos acima) e, portanto, não tem nor-
matividade própria alguma. E, sim, somente mera legalidade externa. O dilema
se aprofundou: a moralidade individual se cindiu da legalidade pública que possui
os instrumentos coativos externos do direito.903 Não se partiu de uma “comuni-
dade discursiva”, mas de um individualismo metafísico. O indivíduo é o moral; o
político é o meramente legal (sem moral constitutiva ao político como político).
Não se pode pressupor a intersubjetividade e, por isso, cai-se em aporias graves.
A política sem referência ética vai à deriva, quando a “vida cotidiana” na sociedade
civil perde suas referências fortes das tradições éticas da cultura (como argumen-
tam adequadamente, neste aspecto, e não em outros, os comunitaristas904). Mas

901 Tratado Político, III, § 7.


902 Título do parágrafo D da mesma Introdução (AB 35, 1968, p. 338).
903 Nosso objetivo, como poderá imaginar-se o leitor, é articular a moralidade do sujeito sin-
gular com a legalidade política através do conceito de legitimidade política, o que exige uma
adesão prática da subjetividade como participante na comunidade e como obediente nor-
mativamente ao disposto em comum acordo. Nem a distância individualista do liberalismo
nem a irracionalidade voluntarista de Schmitt: uma superação subsuntiva.
904 Ver minha obra (Dussel, 1998, cap. 1.3).

428
a normatividade política não se funda nas tradições culturais particulares e, sim,
na essência da soberania da comunidade que “se dá as leis” (o que os alemães ex-
pressam com a palavra Gesetzgeber).
Por isso, a posição intersubjetiva sustentada desde os anos setenta por Apel e,
posteriormente, por Habermas, permitiu-lhe superar a aporia do individualismo
liberal: existindo como ponto de partida uma comunidade, esta se comporta (sem
constrangimento contra natura) como fonte do direito (dando-se a si mesma as leis),
exigindo-se para a legitimidade de seus acordos a participação igualitária, simétri-
ca, com liberdade e autonomia comunicativo-discursiva de seus membros, a quem
como destinatários do direito se deve obedecer por serem sua fonte. Se o “afetado” é
participante simétrico das resoluções que o afetam, a decisão é legítima para todos
os participantes e, mediando o princípio procedimental ou formal político que
regulará também normativamente a “institucionalização” das mediações, o que foi
decidido é obrigatório, coativamente exigido.
O conceito de “soberania”, que já abordamos mais acima, enquanto a comunida-
de é a origem e a destinatária do direito, enquanto momento de uma comunidade
histórico-discursiva, resolve a aporia das posições “contratualistas”905 – naquilo que
os contratantes devem abandonar sua vontade para que o soberano possa exercer
com liberdade a sua906. Ademais, o “princípio democrático”, que ainda deveremos
enunciar, não é somente um procedimento meramente formal “externo” e coativo
(legal) e, sim, consiste em ser o fundamento normativo formal do campo político.
O aporte de Habermas significa formalmente um grande avanço na delimi-
tação da “razão político-discursiva” e deve ser subsumido numa filosofia política
mais complexa, como a que estamos expondo aqui. Contudo, e como veremos a
continuação no § 26, ao negar a vigência política do nível material (da reprodução
da vida humana, das pulsões, que em Habermas fica redutivamente indicado no
tema da “formação da vontade”), cai num formalismo redutivista. A legitimidade
é estabelecida, para J. Habermas, num nível puramente discursivo, formal. Não
consegue compreender que um sistema político “perde legitimidade” ao não repro-
duzir aceitavelmente a vida humana dos cidadãos (como acontece frequentemente
na América Latina). É preciso articular o tema da legitimidade formal com o as-
pecto material, para enriquecer a concepção puramente formal ou procedimental
do problema da validade política: seria uma situação de dignidade real. Nos países
pós-coloniais, periféricos, pobres, a reprodução (ecológica, econômica e cultural)

905 Ver em Habermas (1992) temas como “autonomia privada e pública, direitos humanos
e soberania popular” (Cap. III, i), “soberania popular como procedimento” (Apêndice, de
1988).
906 Neste caso, é evidente, o que depõe sua vontade é distinto daquele que exerce a soberania.
A comunidade política negava sua vontade na vontade do rei ou governo, sendo estes os
soberanos, e não a comunidade política.

429
da vida humana é uma dimensão política essencial da legitimidade. Por exemplo,
no presente, ao se reproduzir um crescente empobrecimento da população, pela
política econômica neoliberal, governos que cumpriram formalmente (frequente-
mente só na simetria do exercer o direito do voto dos cidadãos, o que está longe de
ser “simetria” política plena) com o princípio democrático, mas que descuidaram
materialmente do processo legitimatório, deslegetimaram-se. Trata-se de saber
articular o primeiro princípio com o segundo (o socioeconômico) de John Rawls,
questão analisada com falhas em sua Teoria da Justiça; e, por isso, é também falha
a aplicação do princípio formal do overlapping consensus, já que somente permite
pluralidade num nível material do capitalismo, os culturais ou religiosos, mas não
no ecológico e social, que também deveriam ser incluídos como o nível econômico
fundamental (Cf. Rawls, 1993).

3.2. O enunciado do Princípio Democrático

[387] Momentaneamente, começamos a situar o nível do princípio formal da


política, que não é o único princípio – como pretendem os formalistas como Apel
ou Habermas –, nem é, tampouco, o primeiro princípio com primazia sobre o
segundo – como no caso de Rawls. Com efeito, o princípio formal (o Princípio De-
mocrático ou Princípio de legitimidade política) e o princípio material da política
(do dever da reprodução da vida humana, tema do § 26), sem última instância907,
devem se articular adequadamente na constituição de suas esferas próprias, nos
movimentos de seu processo, implicando-se em sua aplicação. Nada acerca da pro-
dução, reprodução ou desenvolvimento da vida humana em comunidade pode ser
decidido politicamente sem a mediação dos níveis formais procedimentais, que al-
cançam a pretensão pública de legitimidade que lhe outorga o princípio discursivo
na política (sendo a argumentação pública e institucional da comunidade política a
fonte de toda decisão dos afetados, graças a uma simétrica participação autônoma
de cada um de seus membros).
Contudo, não há muita clareza da existência bem determinada deste princípio.
O próprio Apel, tocando no tema, escreve:

907 O princípio formal é última instância no nível normativo procedimental, enquanto que o
princípio material o é no nível dos conteúdos. Nenhum dos dois joga como última instância
do outro. Certo marxismo standard do passado pensava que o nível material-econômico era
última instância (economicismo); certo formalismo pensa que a liberdade é a última instân-
cia ou tem absoluta prioridade sobre a justiça em seu sentido socioeconômico (liberalismo).
Amartya Sen (1999) quer mostrar como a liberdade tem, na realidade, conteúdos materiais,
em sua concepção de capabilities; mas, creio que a articulação que propusemos é mais clara
e mais forte, evitando confusões e reducionismo de um ou de outro lado.

430
[...] A estratégia argumentativa pragmático-transcendental da ética do discurso, no
sentido da fundamentação da parte A em relação a B,908 está em grau de justificar
por extensão do princípio (Ergänzung des Prinzips) o discurso ideal moral como um
princípio de instituições (Institutionsprinzip), tais como o direito e a democracia (Apel,
1998, II, p. 813).

Neste texto, pode-se ver que o Princípio do Direito e o Princípio da Democra-


cia se situam como num mesmo nível e ambos como extensão integrada ao princí-
pio moral. Por sua parte, como o político é somente um “sistema” (quase como o
do N. Luhmann) que coloniza o “mundo da vida”, o “poder político” (Machtpolitik)
quase se confunde com a “coação do Estado” (Staatsgewalt) (Apel, 1998, II, p. 814).
Ademais, para Habermas, há “poder social”, “poder administrativo”, sempre sob
a hegemonia formal do Princípio do Direito. Então, não existe clareza sobre um
princípio (ou muitos princípios) normativo político propriamente dito – sobretudo
no caso de Apel. O Princípio Democrático fica como que subordinado ao Princípio
do Direito, que cumpre o papel do principal princípio de legitimidade coadjuvado
por sua capacidade de poder usar a coação monopólica do poder do Estado –
em que Habermas tem por último definitiva confiança e, diante de tal coação,
a moral, com sua pura exigência subjetiva, parece-lhe demasiadamente débil. O
que acontece é que, efetivamente, só a motivação ética (incluindo as motivações
afetivas e os aspectos morais e de factibilidade) deve desdobrar-se em motivações
públicas e passar, assim, a estruturar o “campo político” – inexistente para os fi-
lósofos citados, que somente contam com a categoria de “sistema” abstrato. Da
nossa parte, denominaremos “Princípio Democrático” a um princípio universal
político, situado no nível originário onde se gesta a legitimidade primeira. Antes
do exercício do poder constituinte, no próprio poder instituinte; antes, também
no próprio poder como vontades em consenso (essência do poder enquanto tal),
o princípio de legitimidade obriga já as vontades a chegar a acordos racionais, de
maneira que se trata do princípio político formal constitutivo da potentia. Com
certeza se desdobrará em sua aplicação, passando do mero consenso constitutivo do
(a) poder originário da comunidade a impelir dito poder a chegar, por acordo, a se
constituir em (b) poder instituinte, em (c) poder constituinte, em (d) poder cons-
titucional, em (e) poder institucional (nas estruturas do sociedade civil ou políti-
ca), em (f) poder legal, etc. Todos estes momentos estão sob o império normativo
do que denominamos Princípio Democrático ou Princípio de Legitimidade (que
cumpre, no campo político, a mesma função que, na ética, cumpre o princípio de
validade prática). Quiçá, pareça uma denominação abusiva (porque a democracia
é um tipo de organização do poder ou do governo), mas queremos indicar com isso

908 Nesta Política da Libertação, são os níveis C e B.

431
que, desde o século XX, a democracia será o único tipo de governo possível, que é
sempre passível de melhoria, que pode descobrir novas alternativas institucionais
em seu exercício, mas sempre dentro do que denominamos “democracia”. Por isso,
trazemos de volta até a origem esta denominação institucional, um pouco à manei-
ra de F. Suárez: “É preciso considerar a multidão909 humana, [...] enquanto que,
por sua vontade (voluntate) específica ou consenso comum (communi consenso) se
reúne num corpo político”.910
A vontade consensual, enquanto se constitui discursivamente, já cumpre as
exigências do que chamaremos Princípio Democrático. Assim, quando escreve
que, dos dois tipos de governo que somente são “instituição positiva” (como a mo-
narquia ou a aristocracia), distingue-se a democracia, que é o único que não exige
organização específica, já que cumpre com a exigência de ser “instituição ou dima-
nação natural”911 e, por isso, diante de qualquer tipo de governo e seu exercício,
“o povo podia usar seu poder natural para se defender, porque nunca foi privado
dele.”912 Quer dizer, diante da crise de qualquer governo institucional, a comuni-
dade volta à constituição consensual do poder; isto é, volta a se reger pelo Princípio
Democrático, tal como o definiremos. O Princípio Democrático seria, então, o
principal princípio formal procedimental normativo do político como tal, do qual
dependeria, por exemplo, o Princípio do Direito (que parece ter certa prioridade
em Apel e Habermas, devido a seu formalismo), o princípio judicial, etc.

3.2.1. Descrição do Princípio Democrático ou Princípio de Legitimidade


Política
[388] Propomos como descrição mínima do Princípio Democrático ou formal
político, de um modo geral e sem esgotar todas as suas determinações, o seguinte
enunciado, expresso na forma de um imperativo categórico: Operemos sempre de
tal maneira que toda norma ou máxima de toda ação, de toda organização ou das
estruturas de uma instituição (micro ou macro), no nível material ou em sua aplicação
judicial, isto é, do exercício do poder comunicativo, seja fruto de um processo de acordo
por consenso, no qual possam, da maneira mais plena, participar os afetados (dos que
se tenha consciência); dito entendimento deve ser levado a cabo a partir de razões (sem
violência) com o maior grau de simetria possível, de maneira pública e segundo a ins-
titucionalidade acordada de antemão. A decisão assim eleita se impõe como um dever
político, que normativamente ou com exigência prática (que subsume como político o
princípio moral formal913) obriga legitimamente o cidadão.

909 Spinoza pôde ter-se inspirado nesta expressão suareziana.


910 De legibus, III, 2, 4.
911 Defensor fidei, II, 2, 8-9 (supra, na História desta obra [118]).
912 Defensor fidei, III, 3,3.
913 Ver em minha Ética da Libertação (Dussel, 1998, cap. 2).

432
O cidadão (seja representante ou representado), tendo cumprido este impe-
rativo, pode ter honesta e seriamente pretensão política de legitimidade, de justiça
formal, em seu agir político, tendo como horizonte de referência desde sua comu-
nidade local até, atravessando os diversos níveis comunitários e, em última instân-
cia, a humanidade enquanto tal. É uma pretensão política universal, ou seja, legítima
para todo ser humano que ocupa seu lugar empírico no campo político.
Como se poderá observar na formulação, são numerosas as determinações que
fixam seu conceito mínimo. O aspecto normativo foi por nós sugerido em expres-
sões, tais como: “opera” (um imperativo de dever-ser), “dever político”, “exigência
prática”, “que obriga”. Trata-se, com toda clareza, do aspecto formal do agir polí-
tico, determinado desde a liberdade, a autonomia da vontade, a igualdade jurídica
(como “equidade”; muito mais complexa do que a mera fairness liberal de Rawls),
situadas originariamente no nível empírico da comunidade e tendo consciência
de todas as inevitáveis restrições que se impõem no cumprimento do “Princípio
Democrático”. Por isso, indicamos certas particularidades limitantes, quando in-
cluímos que se trata da mais plena participação –, mas que nunca, por definição,
pode ser “perfeita” –; “com o maior grau de simetria possível” – veremos na parte
Crítica desta obra as contradições desta impossível perfeita “simetria” empírica, o
que abrirá todo o campo da filosofia política crítica –, de todos os “afetados dos
quais se tenha consciência” – porque, sendo histórica, dita “tomada de consciência”
é sempre finita e ignora de fato muitos sujeitos que são realmente “afetados”.914 O
certo é que esta descrição do princípio nos permite formular inicial ou indicativa-
mente o conceito de “legitimidade formal” de maneira analítica, simples, abstrata,
e como ponto de partida de muitos outros níveis concretos de maior complexidade.
É impossível reunir empiricamente o grupo correspondente de afetados, em
muitos casos de extrema urgência, para chegar a um acordo. Nestes casos, será pre-
ciso formular monologicamente (que não é solipsista) razões suficientes, das quais
se tem honesta consciência de poder apresentar publicamente quando seja possível,
de maneira que haja uma séria pretensão de legitimidade nesta virtual convocação
dos iguais, colocando-se “no lugar dos outros” – como exigia Kant, em sua Crítica
da Razão Prática, que não é condição suficiente, mas, pelo menos, supletiva.
Este princípio procedimental e normativo evitará todo tipo de vanguardismo
ou procedimentos que impeçam o público comunitário das decisões em outros ní-
veis. A intersubjetividade atual, institucional e comunitária, transforma-se, assim,
numa “escola”, numa “cultura política” que forma a vontade comunitária e a razão
prática discursiva. A retórica cobra nova vida como arte da argumentação, toman-
do em consideração o estado de receptividade do Outro. As escolas de quadros dos

914 Será toda a luta pelo reconhecimento dos afetados-invisíveis; tema também da parte Crítica
desta Política da Libertação.

433
partidos políticos se fazem necessárias; os meios de comunicação devem fornecer
material para o debate, mas, igualmente, testemunhos de rigor argumentativo e de
intenção veraz. A comunidade política deve elevar o grau de exigência na aceitação
de razões em toda mediação, em todos os níveis da vida política. Uma comunidade
em vigília, que sabe julgar, descartar, desenvolver razões, forma um corpo sadio
democraticamente.
Denominamos, por outro lado, o Princípio Democrático como princípio for-
mal, normativo ou procedimental da política em geral, enquanto a democracia
– para nós – significa a instância que define o modo ou procedimento formal (por
argumentação racional, participação simétrica, autônoma ou livre do participante)
que obriga a quem toma parte nos acordos, e, ao mesmo tempo, o situa como obe-
diente ante as decisões ou leis que tenha formulado da maneira indicada. Pacta ser-
vanda sunt (os pactos devem ser cumpridos): é um momento normativo e, por isso
mesmo, os acordos são legítimos ante o mesmo participante (ante sua consciência
política de cidadão) e ante todos os seus iguais. Princípio Democrático, princí-
pio formal da política ou princípio de legitimidade política são, então, sinônimos,
nesta Política da Libertação. É um princípio procedimental, certamente, mas é
igualmente normativo; é um procedimento empírico que outorga às decisões o
caráter institucional de determinação de legitimidade e aos sujeitos destas decisões
a pretensão de legitimidade política que, como todas as pretensões políticas restantes
– segundo veremos mais adiante –, devem cumprir exigências particulares.

3.2.2. O Princípio Democrático com referência ao momento racional do poder


O Princípio Democrático não é um princípio extrínseco que possa ou não se
cumprir nas ações políticas estratégicas ou na criação e desenvolvimento das ins-
tituições do campo político, mas que constitui ambos os níveis (a ação e a institui-
ção) intrinsecamente. Neste momento histórico da humanidade, uma comunidade
que não é democrática deixou de ser política em seu sentido pleno.915 Por quê?
Porque, se o próprio da política é o desdobramento do poder (como potentia po-
sitiva da comunidade política), dito princípio entra a constituir dito poder em si
mesmo, enquanto tal. Quer dizer, os membros da comunidade devem participar,
disciplinando sua vontade (como potentia, vontade de viver, como poder-pôr os

915 Uma oligarquia ou a pretensão de uma aristocracia deixaram de ser políticas. A monarquia,
em seu sentido absolutista ou do exercício real de um monarca, igualmente deixou de ser
expressão política obediencial. As monarquias parlamentárias e constitucionais podem ser
democráticas, no sentido que o poder executivo faz participar a coroa de alguma função
secundária do tal poder numa democracia. De maneira que, desde fins do século XX, o
político terá como determinação formal ou procedimento de legitimidade sempre a demo-
cracia, no sentido preciso em que o estamos definindo.

434
meios para a vida) ao querer da comunidade. Este consenso é fruto de razões de
maior peso daquelas vertidas pelos que deixaram abandonar as próprias por não
terem força de convencimento intersubjetivo suficiente. O dever aceitar tais deci-
sões e, portanto, o dever assumir ditas razões como próprias no consenso comum
motiva as vontades, forçando-as, não com a violência física ou externa, mas com a
convicção das razões a formar uma comunidade em acordo sobre a decisão toma-
da. O Princípio Democrático – contra o que pensa R. Rorty, que, por uma parte,
admite a democracia e que, por outra, não admite princípios universais – obriga
subjetivamente os cidadãos a participar do consenso. Assim, unifica-se a exigência
subjetiva normativa (devo admitir as melhores razões; devo participar no consenso
por razões) e as objetivas (a comunidade deve cumprir o que foi acordado, devemos
cumprir as decisões ou leis consensuadas, devemos respeitar nossas vidas). Supe-
ramos a convicção individual subjetiva do liberalismo e a motivação voluntarista
política irracional de C. Schmitt.
O consenso entra como nota essencial da definição do poder político, a simetria é
também um momento do consenso legítimo na participação dos afetados. Quer
dizer, todo cidadão deve poder participar (é um direito) e tem a obrigação de parti-
cipar (é um dever) em tudo aquilo que o afeta. Se for impedido de participar ou se
a participação não for simétrica, há uma negação da democracia – objetivamente,
como direito – e não se sentir exigido de participar e lutar por ter simetria é, igual-
mente, falta de adesão à democracia – subjetivamente, como um dever não cumprido.
Legitimidade, que é o efeito de um procedimento que obriga democratica-
mente (por isso, é normativo), é uma característica da práxis política que dá ao
agente a necessária aceitabilidade do que opera politicamente ante o restante dos
cidadãos (sejam representantes ou representados), já que indica o grau de racio-
nalidade participativa (que inclui iguais condições argumentativas) que tal práxis
conta, diante de todos os membros do corpo político. Esta aceitabilidade é a fiança
ou segurança antecipada de que a ação terá uma expectativa positiva por parte da
comunidade, que responderá como diante de quem tem auctoritas como determi-
nação do agente. Esta confiança de que o agente é legítimo, que tem autoridade
para operar o que está agenciando, solidifica os comportamentos e cria a unidade
que constitui a essência do poder comunicativo da comunidade política. Agir sem
legitimidade é ter que voltar a construir, no melhor dos casos, a possibilidade de
uma aceitação que deverá esperar a que se prove sua autenticidade, e que, no co-
meço, sempre é precária, cria a necessária exigência de provar se é sincera a vontade
do exercício de algum tipo de capacidade de condução dos momentos próprios do
campo político. Maquiavel, em O Príncipe, deve dar regras estratégicas ao novo
condottiere italiano renascentista para criar esta confiança por parte da comunida-
de, já que suas ações não se apoiam numa prévia legitimidade participativa, mas
na liderança mais ou menos carismática de difícil ou débil legitimação. O príncipe

435
se impôs não democraticamente, e sua legitimidade deverá ser conseguida por
caminhos ambíguos que, embora Maquiavel pretenda detectar certa racionalida-
de, mais se assemelharia a conselhos estratégicos de factibilidade – que de real
legitimidade.
Por tudo isso, temos que concluir que o momento racional é tão necessário
quanto a potentia da vontade que motiva a ação ou estrutura a instituição. Os ceti-
cismos pós-modernos de um campo político atravessado somente por uma estraté-
gia de pura hegemonia sem normatividade ou o cinismo militarista dos impérios e
dos ditadores não pode alcançar uma legitimidade de longo prazo. Mas não se deve
esquecer que a pura legitimidade formal (deverá ser codeterminada por uma legiti-
midade material, de dimensão ecológica, econômica e cultural) não é suficiente. É
necessária uma legitimidade real, articulação das dimensões anotadas.
Se tudo o que se indicou fosse cumprido, o cidadão seria membro de uma co-
munidade onde imperariam critérios racionais, democráticos ou igualitários com
soberania política; quer dizer, com liberdade, autonomia e plena participação si-
métrica como origem e destino da lei, do poder comunicativo.

3.2.3. O
 Princípio Democrático com referência ao momento da vontade de
participação916 no poder
[389] Solidificada a unidade da comunidade pelo consenso, deve igualmente
constituir-se como potentia, desde certa disciplina da vontade, certa tolerância de-
mocrática, que é como um respeito por todos os membros da comunidade, que se
torna em honestidade no cumprimento dos acordos consensuados, isto é, numa
decidida e subjetiva obediência917 às decisões políticas legítimas.

916 É preciso advertir que, por nos encontrarmos na exposição do Princípio Democrático, de-
vemos expor o tema da vontade, neste momento, enquanto referida à capacidade unitiva da
razão prática que alcança o consenso e que é reafirmada na afirmação do querer participar
pelo sentimento de igualdade. A vontade, como querer-viver, é poder enquanto reflexiona
as outras vontades como “querer participar”. Em referência à atividade racional, o prin-
cípio normativo democrático (“Devemos unir nossas vontades pelo consenso alcançado...!”)
também conforma ao próprio poder; é um pressuposto pré-ontológico. As vontades, neste
movimento coesionante, adotam também uma posição ativa. No momento do exercício
do princípio material político, as vontades passam à posição ativa; no princípio formal, são
ativos enquanto “querem participar” como potentia, antes de tudo, unitiva dos membros.
Quando os princípios políticos são críticos (no próximo volume), as vontades não somente
serão ativas e, sim, criadoras: serão poder como potentia “transformadora” da ordem vigente.
917 “O que manda, manda obedecendo”, proclama com razão o zapatismo. O que autoriza quem
manda, o cidadão, também deve obedecer-se, na medida em que é o soberano que se deu a lei
que o obriga por meio da institucionalização de quem manda. Sem “mando”, não há política;
sem “obediência”, tampouco é possível o cumprimento do objetivo de nenhuma instituição

436
Quero, por ora, denominar “vontade de participação”918 a disciplina ou ativi-
dade que se impõe aos impulsos humanos para poder cooperar na obra comum.
Existe, ademais, um abrir-se à aceitação da igual dignidade do Outro, que é
condição de possibilidade normativa da argumentação política, seguindo a indica-
ção de Peirce e Apel, no chamado “socialismo lógico” do primeiro, que consiste em
indicar que, para que seja possível uma comunidade de cognoscentes, de cientistas,
de argumentadores (e, por extensão, de uma comunidade política), se exige como
condição de que sejam situados numa avaliação prévia a todos os membros que dão
razões, com uma mesma dignidade. Quando o escravo argumenta honestamente
e seriamente, em uma situação normativa, seu proprietário deve conceder-lhe a
liberdade, para gerar simetria, porque, para iniciar um processo de argumentação,
em caso de o proprietário ficar em situação inferior ao escravo, poderia interromper
o processo ao ver-se “superado” pelo argumento do escravo (para quem o primeiro
tema seria: é justa a escravidão?) exigido-lhe obedecer (como escravo que é) e in-
terromper sua argumentação. Se isto acontecesse, o proprietário do escravo nunca
teria sido honestamente argumentador e, portanto, teria corrompido a necessária
simetria na participação argumentativa que sujeitos racionais exigem. Deste tipo
de argumentação se segue a exigência da igualdade, reconhecida como ponto de
partida de todos os cidadãos de uma comunidade política, a fim de politicamente
alcançar decisões consensuais racionais (e razoáveis).
Repito, o “querer-participar” e a “aceitação do Outro” cidadão argumentador
são posições da vontade que se impõe contra certa tendência individualista ao au-
tismo, narcisismo, egoísmo (destruidor do poder como consenso), como colabo-
ração, apreço, respeito, justiça de considerar o Outro como semelhante com igual
dignidade (sabendo que a dignidade é o fundamento de todos os valores), quando
se pretende tomar a Di-ferença como um fundamento de discriminação que im-
possibilita um consenso que legitima as decisões.

política. “Mandar obedecendo” (a autoridade obedece à comunidade) e “obedecer mandando”


(o cidadão, no consenso, se aceita obedientemente e, a partir de dito consenso, manda ao
que manda) são as duas caras do exercício do poder.
918 Para diferenciá-la da que denominamos “vontade de viver”, aquela que não somente consolida
a unidade pela igualdade (condição mínima enquanto aceita o outro como da mesma digni-
dade, dada aí diante dos olhos e apreciada como medida de todo valor) e, sim, que a produz
ativamente, afetivamente, pela amizade (mútua benevolência, diziam os clássicos), como, por
exemplo, a fraternidade (que veremos no próximo § 26) que, pela simpatia, cria um laço onde
a convivialidade abre um horizonte de positividade, onde o consenso é antecipado no ordo
amoris, diria Max Scheler. Do amigo é mais fácil aceitar razões, porque a vontade não luta
egoisticamente por seu bem particular, em competição com o Outro e, sim, que a unidade
afetiva com o Outro antecipa o consenso apreciado como um bem comum (não exclusivo do
Outro ou excludente de si mesmo). Na amizade, o “nós” é atividade.

437
3.3. A fundamentação do Princípio Democrático

[390] O político prático, que luta contra o cínico, não tem por tarefa funda-
mentar um princípio que, por sua parte, encontra-se, na maioria das vezes, im-
plícito em seu agir político. Contudo, dentro da comunidade política – seja um
grupo, um partido, um novo movimento social, uma comunidade de especialistas
em política, etc. – é necessário que alguns (e são os que podem pedagogicamente
produzir, reproduzir e aumentar um grupo, partido ou movimento com a explica-
ção do consenso racional e a movimentação entusiasta da vontade) levem o projeto
político até suas últimas consequências racionais. A normatividade política exige
uma convicção também intersubjetiva dos membros que, em momentos de crise,
deve saber remontar-se até o fundamento do seu agir. No caso do filósofo político,
a exigência de chegar até as últimas consequências teóricas se transforma numa
obrigação lógica (de coerência) e prática (ao poder mostrar a última instância de
toda possível aplicação). Por nossa parte, a tarefa tem sido em boa parte feita, já que
o princípio formal da ética foi suficientemente trabalhado pela ética do discurso,
como, por exemplo, por Apel, que buscou diferentes maneiras de fundamentar
formalmente o princípio do discurso, que se encontra sob o Princípio Democrá-
tico (como seu analogado político correspondente), o Princípio de Legitimidade
Política – assim denominado por nós.
O tema tem certa relevância porque Richard Rorty, teoricamente cético, aceita,
contudo, a democracia. Haveria que se perguntar se não se trata de uma contra-
dição performativa. O sistema concreto norte-americano (que não é um modelo
a ser imitado nem é um princípio, e tem hoje evidentes falências que deveria cor-
rigir, sob pena de cair num colapso de ilegitimidade), historicamente sob certa
tradição liberal, aceita que a maneira de resolver conflitos não inclui o uso direto
da força. Todos os princípios mais ou menos explícitos de um sistema concreto
supõem sempre que os conflitos indicados se resolvem por razões (ainda que seja
de uma conversation muito débil; ao menos, os que conversam devem saber de que
falam e quais são as causas pelas quais podem chegar a acordos). Seria, então, o
cumprimento deste princípio tal como o enunciamos (embora Rorty não admitiria
uma argumentação em sentido forte).
Observemos a argumentação de Apel, num momento de sua exposição, quando
se refere ao que “se pode notar especialmente com os filósofos latino-americanos”
(Apel, 1998, II, p. 819). Tratando o tema da “relação entre o princípio do direito
e o princípio da democracia”, Apel manifesta as reduções que necessariamente
pressupõe o estreito marco teórico habermasiano para suas reflexões. Como conta
somente com dois sistemas (o político e o econômico), sem nenhuma elaboração
complexa do campo político propriamente dito, a aplicação do princípio moral
cobra um reducionismo inevitável. De um lado, “o direito, na medida em que com-

438
pensa a insuficiência do princípio moral [...] e a reduz de maneira direta, exoneran-
do os seres humanos do comportamento característico da estratégia contra-estra-
tégica [...], pode ser visto como um instrumento da parte B da ética do discurso”
(Apel, 1998, II, p. 815). Quer dizer, o direito, graças à coação, se faz mais eficaz
(estrategicamente) que o mero princípio moral, não advertindo que isto acontece
porque o âmbito moral é mais abstrato, simples e vazio necessariamente que o
princípio político do direito, que é jogado num campo prático concreto, complexo
e pleno de ações e instituições.
Em segundo lugar, Apel aceita “a diferença entre o princípio do direito (no
sentido da co-originariedade do direito e a moral [...]) com o princípio democrático
(Demokratieprinzips)” (Apel, 1998, II, p. 816). Observamos que, para nós e como
primeira consideração, o princípio moral de validade (Cf. Dussel, 1998, cap. 2)
de maneira alguma se encontra numa igual originariedade (Gleichursprünglichkeit)
que um princípio do direito, já que, como vimos, um é analogado principal (situan-
do-se num nível mais abstrato, como o princípio moral) e o outro é um analogado
que subsume o anterior (num nível mais concreto; no específico, mas sim particu-
lar, o do direito). Aceito, de todo modo, que o princípio moral abstrato (em outro
nível) se diferencia dos princípios do direito que, por sua vez (num mesmo nível no
campo político), distingue-se do democrático. Mas, este último, e como segunda
consideração, não está situado semanticamente no mesmo grau de abstração, já
que o Princípio Democrático abstrato constitui intrinsecamente o princípio do
direito, no sentido que todo o sistema do direito (e seu princípio) são um âmbi-
to de aplicação concreto do Princípio Democrático (de maior universalidade). O
princípio do direito subsume o Princípio Democrático (ou este se aplica àquele).
Quer dizer, todos os procedimentos normativos legítimos do sistema do direito
(tal como o explicamos no § 23), antes de ser legislados, já pressupunham sempre
como condição de possibilidade virtualmente implícitas as regras práticas democráti-
cas (como princípio de legitimidade também do legal e do jurídico). As regras pelas
quais se convoca uma assembleia constituinte ou a um Poder Legislativo constitu-
cional são prévias a ambos os corpos institucionalizados desde uma comunidade
política democrática ainda não institucionalizada (já que, por hipótese, a situamos
num nível de exercício do poder instituinte originário).
Em terceiro lugar, para Apel, a fundamentação do princípio do discurso, que é
moral, vale como única fundamentação em sentido estrito, já que todas as relações
com princípios subalternos são movimentos de aplicação de uma “parte A” interna-
mente ou com referência à “parte B”. De nossa parte, se não podemos afirmar que
a fundamentação do princípio de validade prático-moral cumpre o papel de fun-
damentação principal (“Deves proceder de tal maneira que, para que o acordo seja
válido, é necessário que se chegue a este resultado por uma argumentação racio-
nal – seja do tipo que for – com participação simétrica dos afetados”, do contrário

439
também o cético se contradiz), é necessário praticar processos de fundamentação
analógicos para provar em cada campo, esfera e âmbito o modo de sua vigência.
Isto, ademais, relaciona-se com a questão do poder político. Se o poder político
é exercido somente como um modo colonizador (tipo de dominação de inspiração
weberiana) no “mundo da vida cotidiana”, nada tem a ver com a normatividade dos
princípios. Se, pelo contrário, o poder consensual no campo político, da comuni-
dade política, já inclui a exigência dos princípios normativos, a fundamentação dos
princípios (ou a relação de fundamentalidade dos princípios mais concretos com
os mais abstratos) tem a ver com uma “fundamentação do próprio poder políti-
co”. Como se fundamenta o poder político? Em abstrato, o fundamento de todo
exercício do poder é o poder originário consensual da pluralidade de vontades da
comunidade política originária (a potentia). Deste poder, potentia que se constrói
desde baixo, desde o nível da ação e como originante das instituições, fundamen-
tam-se ou derivam todos os outros. Também o poder totalitário ou autoritário
(a potestas fetichizada) toma a sua força de algum rescaldo do poder consensual
da comunidade. Quando se usa as instituições que permitem exercer a coação
monopólica do Estado, exercício delegado de uma instituição que a comunidade
política conformou para fazer cumprir os acordos legítimos, contra o poder con-
sensual da comunidade que lhe deu origem (dividindo suas vontades, confundindo
hermeneuticamente o sentido dos fatos para destruir o consenso de baixo, etc.),
está atuando com uma potestas ou força ilegítima, fetichizada, mas empírica. Esta
força está fundada aparentemente (fundamentada) no poder consensual, corrom-
pendo sua origem e finalidade. Por certo, o exercício delegado do poder do Estado
a favor da comunidade que o constituiu está substancialmente fundado no poder
consensual original. Os princípios (seja formal, material ou de factibilidade) se
fundam nos princípios éticos, subsumindo-os, porque ditos princípios não cons-
tituem, por sua vez, o poder consensual político, mas, antes até, a vontade dos
agentes comunitários como sujeitos que “querem viver” e “podem” fazê-lo (como
princípio ético material), que “querem participar” na construção do consenso,
como a referência do princípio formal moral, e na real possibilidade empírica e
técnica de pôr o ato: a factibilidade ética (que inclui os dois princípios previamente
enunciados). Quer dizer, a fundamentação do poder político (desde seu nível mais
fundamental e abstrato até seus níveis mais complexos, institucionais e concretos)
vai de mãos dadas com a fundamentação dos princípios normativos políticos (que
passo a passo seguem do fundamento ao fundado, os momentos do poder e dos
princípios que o constituem).
[391] Teoricamente, a argumentação de fundamentação do princípio de legi-
timação é mais fácil, porque conta com um princípio abstrato já fundamentado na
moral (como princípio de validade prático). No nosso caso, o princípio de validade
moral adquire na política a fisionomia de Princípio Democrático (não primeira-

440
mente como princípio do direito) ou princípio de legitimidade política. O oponente
do princípio político pode ser um cético, no sentido de indicar a impossibilidade
para a razão prática de se reger por tal princípio. É, então, um cético em política.
Como se poderia argumentar diante de tal cético? Mostrando que, ao falar de
política, em seu conceito próprio, já se enuncia implicitamente tal princípio. Ne-
gá-lo é negar a política enquanto tal. Por exemplo, para que uma decisão seja po-
liticamente aceitável pelos membros de uma comunidade, é obrigatório que tenha
havido uma participação livre e simétrica dos cidadãos afetados; outra maneira de
alcançar dita decisão seria um processo despótico de violência. O consenso dos
cidadãos deixaria de ser obrigatório e o cidadão se transformaria em mero súdito.
A vontade dominante exerceria o poder fetichizado, desde seu próprio interesse
(como potestas autorreferente), ou do grupo dominante, e o poder político como
potentia se debilitaria ou desapareceria.919 A argumentação de fundamentação po-
deria ser, aproximadamente, a seguinte:
1. Todo aquele que argumenta politicamente para alcançar alguma decisão
consensual já manifestou in actu que situa o oponente dentro de uma fraternidade
comunitária, na qual o reconhece como igual (a isonomia dos gregos), quer dizer,
que é um afetado pelo que há de se discutir considerado em simetria.
2. Desde a assinalada igualdade, a única maneira possível de alcançar consen-
so político é cumprindo com as exigências das instituições organizadas com esse
fim, que permitem aos participantes expressar sua opinião com razões, isto é, por
meio de algum tipo de argumentação prática (dos mais variados tipos, formas ou
expressões).
3. Usar outro tipo de mediação, tal como a violência, para ganhar a aceitação
do outro à própria razão, é uma contradição performativa (porque o acordo con-
sensual é racional e livre e, por isso, não pode ser coagido externamente; se se
violenta o outro, prova-se, no uso mesmo da força, a negação da própria pretensão
de validade, que pressupõe se deixar levar somente pela força probatória do melhor
argumento).920
4. Portanto, sempre devemos buscar alcançar a legitimidade das decisões políti-
cas por meio de uma participação simétrica dos afetados, propondo razões e nunca
por algum tipo de violência (que viole a liberdade e autonomia do oponente) e por
meio de instituições criadas com tal fim.
Quem não cumpre o princípio realiza um ato ilegítimo, na medida em que não
atende as condições estipuladas pelo princípio normativo de legitimidade. O que
acontece é que, de certa maneira, o ato ilegítimo abandona o campo político, deixa

919 Ver supra em [259ss]. Ver Dussel (1998, cap. 2 e 3).


920 As “cruzadas” ou as guerras santas mostram uma concepção dogmática da verdade que
desconfia da força probatória de seu enunciado, pelo fato de usar a violência para impô-la à
vontade do outro que a aceita por temor à morte e não por uma aprovação racional subjetiva
de convencimento ante o conteúdo veraz do enunciado.

441
de ser político, já que, pelo uso da violência, anula o campo político e o transfor-
ma, por exemplo, num campo militar, onde a disciplina do exército não supõe, na
tomada de decisões, a autonomia ou a igualdade da parte do outro participante,
o outro militar subordinado. Assim, a violência expulsa os atores para outras di-
mensões externas da disciplina prática que a política pressupõe, para não cair no
autoritarismo – por exemplo, de respeitar o antagonista político de C. Schmitt,
permitindo-lhe liberdade, autonomia e igualdade. O autoritarismo nega estas de-
terminações da subjetividade política e deve ser considerado por defeito um tipo es-
púrio de exercício de poder político, como no caso dos “que mandam, mandando”.
Na verdade, é o exercício de uma ação antipolítica, já que, para o autoritarismo,
não é necessário o consenso, nem a hegemonia, nem a democracia, mas o exercício
de uma única vontade despótica (a potestas fetichizada que não se funda nem se
regenera na potentia921). Trata-se da despolitização do campo prático – como se um
campo de futebol fosse enchido de pedras e se transformasse num depósito de
materiais de construção: teria deixado de ser um campo esportivo. Tanto E. La-
clau (que critica o socialismo real porque destitui a política, transformando-a em
administração econômica desde o Estado, um autoritarismo economicista) como
H. Arendt (com sua crítica do totalitarismo nazista, que igualmente despolitiza o
campo político e organiza um campo policial em favor do desenvolvimento de uma
estrutura industrial-militar com vontade imperial: autoritarismo nacional-capita-
lista, já que o de racista é uma desculpa para a eliminação do capital judaico ale-
mão) observaram que o não-cumprimento do princípio consensual de legitimidade
fica demonstrado em sua vigência pelo absurdo: quem cumpre com violência seus
próprios interesses (corrompendo o campo político) cai em contradição performa-
tiva, porque nega a política como política.
Mas não é somente que o que nega o Princípio Democrático radicalmente
abandona o campo político e, sim, que, a longo prazo, não tendo legitimidade (por
um processo de crise de legitimação) e não podendo contar com a força unificadora
do consenso, nem do entusiasmo comunitário na participação, ao final se debilita
a si mesmo. O poder autoritário deslegitimado lentamente não pode contar com
a força que vem de baixo, aquela pela qual os cidadãos têm sido os responsáveis
pelas decisões que os envolve. O exercício do poder político autoritário não se
funda na potentia (poder da comunidade política), por isso, é exercido como uma
força externa – no sentido kantiano –, estranha, longínqua: o medo substitui a
igualdade fraterna. Os sujeitos se paralisam, e se transformam em espectadores;
observam, cada vez mais horrorizados, os efeitos dos que lutam e dão sua vida pela
liberdade, a autonomia e a igualdade entre os cidadãos. A crise de legitimidade
(o não-cumprimento do Princípio Democrático) se transforma em crise de hege-

921 Recorde-se o esquema 14.03 no qual as ações despóticas são representadas pelas flechas d e e,
em [259-261].

442
monia. A dominação pura, coativa, direta, policial, ocupa o lugar da participação
política. Isento de fundamento, o poder autoritário, ao final, sucumbe, cai, sempre,
porque... “tem os pés de barro”, já que os pés de ferro forte são os do poder das
vontades consensualmente unidas da comunidade, que cumpre as exigências do
Princípio Democrático, que julga os tempos de tirania como “becos escuros” da
história dos povos.
O Princípio Democrático, como o descrevemos, não é eurocêntrico922 – lem-
brando que a palavra démos é egípcia, de língua copta e, segundo a tradição do Sul,
bantu e permite aplicá-la de maneira analógica não somente a cidadãos singulares,
mas a nações (como na Espanha do século XV, que unificava nações como Castela,
Aragão, Catalunha, Bascônia, Galícia, Andaluzia, etc. por consenso que se expres-
sava num pacto que estipulava as condições do exercício delegado do poder pelo rei
peninsular, desde 1476, data do casamento de Isabel e Fernando), ou, na África,
poderia ser um pacto entre etnias (que o colonialismo nunca pretendeu organizar,
desde o século XIX), ou de cidadãos individuais dentro da Modernidade euro-
peia. Todo sistema político histórico gozou sempre de certo consenso empírico
(“democrático” como o chamamos, por extensão até as origens como modo natural
de dirimir conflitos ou pactuar acordos) ao menos, implícito (como indica F. Suá-
rez), que pode se institucionalizar “democraticamente” (desde o século XVII). É
verdade que o sistema empírico, no qual cada cidadão (ou ao menos uma oligarquia)
conta como um voto na assembleia ou na votação da comunidade ampliada, tendo
nascido nas primeiras grandes cidades da Mesopotâmia, do Índico e do Mediter-
râneo, floresceu no Egito e entre os fenícios, estendeu-se pela Grécia e pela Hélade,
no Império bizantino, em Veneza ou Gênova orientais para culminar no parla-
mentarismo inglês ou na constituição norte-americana, globaliza-se rapidamente
desde a metade do século XX. Porém, este princípio não é exclusivamente euro-
peu. Os modelos de democracia dominantes que frequentemente se confundem
com os sistemas empíricos concretos de algumas destas nações é que são europeus
ou norte-americanos. Para nós, então, é preciso distinguir entre a normatividade
universal do Princípio Democrático, os modelos que se formularam teoricamente
e os sistemas que foram implementados historicamente. Nem os modelos e nem
os sistemas são imitáveis tal e qual; é necessária sempre sua transformação para
aplicá-los a partir das circunstâncias concretas (históricas, geográficas, culturais)
de cada comunidade política. Como se pode comparar uma comunidade política
sueca, na Escandinávia, com outra moçambicana, na África? Séculos de diferen-
ciação cultural, econômica e ecológica as distinguem de tal modo que qualquer
aplicação do Princípio Democrático, em cada um dos âmbitos políticos, exige par-
tir de realidades situadas com diferenças abismais. E, não obstante, em todas as

922 Apel indica o tema ante Rawls (Apel, 1998, p. 818).

443
comunidades empíricas, o Princípio Democrático pode realizar progressos num
processo de “democracia sem fim”.

4. Os postulados políticos (positivos)923

[392] Antes de começar a exposição, queremos indicar, num Esquema 21.01, os


diversos níveis de nossa exposição neste parágrafo.

Esquema 25.01. Distinção entre sistema democrático concreto (1), modelos de de-
mocracia (2), postulados democráticos (3) e princípio democrático-normativo (4)

(d) 4. Princípio democrático normativo (e)


(f)
1. Sistema Tende-se (a) 3. Postulados democráticos
democrático (c)
empírico Implementam-se (b) 2. Modelos de orienta
e ações democracias
estratégicas (Utopias) ou
projetos

Esclarecimentos ao Esquema 25.01: 1. Sistemas democráticos concretos nunca são perfeitos;924 sem-
pre são perfectíveis, contingentes, falíveis, incertos; tendem (flecha a) e se orientam por postulados.
2. São modelos teóricos, utopias imaginárias e projetos empíricos gerais925 que se implementam em
1 (b) e são orientados pelo postulado (c). 3. Postulados de impossibilidade empírica926 que orientam
a construção de modelos, utopias ou projetos dos sistemas, instituições e ações democráticas. 4. É
o princípio universal deôntico927 (que obriga a: (com a flecha d) 1, (e) 3, (f) 2).

Chamaremos “postulados democráticos” àqueles enunciados logicamente pos-


síveis, mas impossíveis empiricamente, que, não obstante, são critérios de orien-
tação. O pretender cumprir perfeita e empiricamente estes postulados denomi-
namos “ilusões transcendentais” (utopias impossíveis empiricamente). Sirva o
seguinte exemplo, já referido, meramente metafórico: os navegadores chineses se
orientam na noite, no hemisfério Norte, pela estrela Polar (no hemisfério Sul pela
estrela Canopus). Graças à estrela, fazem seus mapas das costas, dos recifes, dos
obstáculos possíveis. Orientam-se pela estrela no céu. É sumamente útil. Contudo,
se algum navegador tentasse chegar empiricamente à estrela Polar, teria confun-

923 Os postulados negativos serão tratados na Crítica, §§ 32-35 desta obra.


924 Nível 6 do Esquema 24.01.
925 Níveis 5 e 7 do Esquema 24.01.
926 Nível 4 do mesmo Esquema.
927 Nível 3 do indicado Esquema.

444
dido a utilidade da estrela (como orientadora) com a impossibilidade empírica de
alcançá-la (pretensão logicamente imaginável, pensável, não contraditória, possível,
e, quiçá, “após muitos séculos”, se poderia tecnicamente chegar lá, graças aos avan-
ços de navegação astronômica, como indicava Kant com sua “paz perpétua”).928
O empiricamente irrealizável pode ser politicamente útil – questão que o Nobel
Saramago não pôde entender.929 O postulado (logicamente compreensível, empi-
ricamente impossível) é útil porque é um critério de orientação; querer realizá-lo
(como o comunismo do marxismo, a dissolução do Estado dos anarquistas, etc.), é
uma “ilusão transcendental”.
Vejamos três postulados, dentre os muitos possíveis.

4.1. A democracia direta (situação ideal pragmático-política)

[393] A democracia direta seria uma situação ideal pragmático-política que


ocorreu muitas vezes na história. Desde os tempos das cidades fenícias do Me-
diterrâneo ou em Veneza, houve comunidades onde as decisões políticas eram
tomadas por todos os membros da comunidade política, homogeneamente consi-
derados enquanto cidadãos, os varões, etc. (frequentemente só formavam parte os
mais ricos, os proprietários, os livres – não os escravizados –, etc.). Por seu baixo
número, algumas centenas ou milhares de cidadãos, estas democracias (ou oligar-
quias) foram empiricamente impossíveis em comunidades mais amplas. Quando
subiu o número dos cidadãos, o antigo sistema de democracia direta se trans-
formou num ideal, numa ideia reguladora, num postulado. A importância deste
postulado consiste em que recorda aos Estados modernos o distanciamento de um
sistema mais perfeito. Toma-se consciência de que os sistemas democráticos empíri-
cos são sempre imperfeitos, defeituosos, limitados, jamais exemplares do todo nem
para todos. Serão julgados por sua justiça participativa, por sua governabilidade,
estabilidade, capacidade de negociar conflitos. Sua legitimidade não lhe será dada
por cumprir a democracia perfeita direta e, sim, por remediar sua impossibilidade
por aproximações toleráveis, acordadas pela comunidade e legitimadas de alguma
maneira, embora se tenha consciência de suas debilidades.
Em certos níveis (em todas as instituições de baixo número de participantes,
comunidades dentro dos municípios, conselhos, cabildos, distritos, sovietes, ou em
tribunais colegiados, etc.), é possível implementar a democracia direta participati-
va, no exercício do poder não-delegado pela comunidade, nesta instância decisória
coletiva. A presença do postulado é um princípio de orientação na procedimen-
talidade (normativa) do que deveria ser consensuado. Veremos a fecundidade dos

928 Ver na parte histórica desta Política da Libertação [171-180].


929 Ver meu artigo “¿Es la utopía útil o inútil?”, La Jornada (México), janeiro de 2005.

445
postulados, não somente na produção e reprodução das instituições, mas também
na sua transformação crítica.
A pretensão de realizar empiricamente, agora e aqui, o postulado da demo-
cracia direta, para evitar toda institucionalidade representativa, seria, como de-
nominamos, a “ilusão transcendental” de certos anarquistas de esquerda (como
M. Bakunin, em nome da perfeição moral dos cidadãos) ou de direita (como na
solução de C. Schmitt e sua democracia “aclamatória”, francamente irracional).

4.2. Identidade do representante/representado


Sendo impossível empiricamente a democracia direta numa sociedade política
com uma população de milhões de cidadãos, descobriu-se, desde antigamente, a
necessidade de eleger representantes, cujo menor número equivale a muitos cida-
dãos a mais pelos quais ocupa um lugar numa instituição de segundo grau, se for
eleito. O postulado da identidade é logicamente possível, mas empiricamente é
impossível implementá-lo.
Este postulado pode ser enunciado da seguinte forma: o exercício do poder
perfeito supõe a identidade entre representante e representado; seria uma identi-
dade transparente, mediante a qual o representante expressaria a vontade de seus
representados por mandato pontual em cada caso e que informaria de maneira
instantânea os resultados das gestões. Esta representatividade perfeita é impos-
sível empiricamente. Sendo impossível, é necessário ensaiar empiricamente insti-
tuições complementares, que se aproximem do ideal da identidade representante
e representado, sabendo de antemão suas debilidades. É novamente uma questão
de factibilidade concreta.
É preciso buscar sempre, de qualquer forma, a maneira de diminuir a distância
do representante em relação ao representado, por meio de instituições que melho-
rem esta mediação necessária e sempre imperfeita (às vezes, francamente corrupta,
outras, medianamente suportável, em épocas clássicas com uma aproximação má-
xima à identidade, de todas as maneiras assintótica, isto é, impossível). Tem maior
legitimidade o representante que permite a seus representados ter quase tanta
informação quanto o próprio representante, a fim de que o cidadão representado
possa ter plena consciência dos processos de decisão dos corpos de representantes.

4.3. A unanimidade
Entre os maias, de Chiapas, as decisões devem ser tomadas por unanimidade.
Se alguém, mesmo sendo criança, mantiver sua vontade dissidente, a comunida-
de não pode dar-se por satisfeita e não pode passar a realizar a decisão. Podem

446
passar dias para que a última vontade em dissenso admita o consenso. Estamos
diante da exigência tradicional de um postulado levado à prática empírica. Não
podemos dizer que caímos numa “ilusão transcendental”, dado o baixo número
dos participantes e o grau de proximidade de todos os membros no momento de
tomar suas decisões. Mas, se aumentasse o número, a complexidade e a gravidade
das decisões (por exemplo, ter que empreender a defesa armada contra um inimigo
iminente, onde o tempo é um elemento de vida ou morte), poderia dar-se o caso
de que um membro ou um corpo colegiado parcial da comunidade devesse deci-
dir (em referência virtual ao consenso posterior possivelmente alcançado), o que
poderia conduzir a comunidade ao êxito, mas, talvez, também à destruição ou à
derrota. Trata-se de um postulado de orientação, não de um princípio normativo
ou obrigatório empírico de ação. Deve, ademais, sempre ser institucionalizado,
estipulando as condições de uma não-unanimidade legítima. A legitimidade da não-
-unanimidade é decidida institucionalmente pelo Princípio Democrático como
princípio normativo. Por seu conteúdo, o postulado da unanimidade é um princí-
pio de orientação; sua institucionalidade será referir a normatividade à mediação
quantitativa, não qualitativa, da maioria/minoria, como veremos.
Por isso, é preciso admitir a possibilidade de existência de um não-consen-
so legítimo (quando se cumpre o Princípio Democrático), que supõe igualmente
admitir a institucionalização do discurso político legítimo de uma oposição. O
dissenso minoritário é essencial no processo democrático, já que abre a porta à
discussão real e à possibilidade futura de mudar as decisões em vista de seus efei-
tos, particularmente, dos efeitos negativos, onde os dirigentes podem ganhar a
hegemonia futura e, com isso, a maioria consensual. A existência do dissenso,
em aparência contra o postulado da unanimidade, mostra o interesse de que se
tenha pretendido séria e honestamente chegar à tal aceitação sem oposição, sem
contradição, mas que fiquem alguns sustentando suas razões dissidentes garante
à comunidade um princípio crítico interno, no qual se configura a vida política
democrática da comunidade. Por isso, o respeito aos direitos dos dissidentes, ante
a impossível unanimidade empírica, é o momento essencial na aplicação do Prin-
cípio Democrático. No manejo das “maiorias pretensamente unânimes” (que pelo
simples número majoritário dos votos não consideram seriamente as razões da
oposição minoritária em dissenso) se nega o Princípio Democrático e se cai no au-
toritarismo, despotismo ou ditadura das maiorias que impedirá o desenvolvimento
de uma democracia. Trata-se de uma involução antidemocrática.
Sartori assinala que “se o critério da maioria se transforma (erroneamente) na
norma absoluta” (2000, p. 57), excluir-se-ia da cidadania a minoria e a maioria se
faria permanente – já sem oposição minoritária. Não havendo outra posição pos-
sível, impor-se-ia autoritariamente a opinião vigente da maioria e seria impossível
“mudar de opinião” no futuro. “Os direitos da minoria são a condição necessária
do processo democrático como tal” (Sartori, 2000, p. 58).

447
Em que consistem os direitos da minoria? Que se cumpram as determina-
ções que contêm a definição do conceito mínimo do Princípio Democrático. Por
exemplo, um destes direitos é que se julgue a minoria em seu comportamento e,
como em todo juízo, o acusado, ainda mais se é minoria, tem que ser respeitado
nos momentos constitutivos de um tal juízo. Em primeiro lugar, a maioria deve
avaliar racionalmente (e não decidir a partir de motivos estratégicos egoístas ou
partidaristas), isto é, equanimemente, as provas que o acusado apresenta em sua
defesa. É falta de respeito aos direitos da minoria e prova de irracionalidade e
injusta corrupção decidir por condenar o acusado em minoria antes (no tempo) de
escutar ou prestar atenção a seus argumentos930. Em segundo lugar e em relação ao
respeito devido ao acusado, é necessário ponderar se a ação julgada merece a pena
e em qual qualidade e quantidade. Um ato insignificante, que talvez pudesse exigir
a reprimenda a um gerente,931 não pode ser o motivo de uma pena atribuída a uma
autoridade distante institucionalmente do executante e que, além do mais, envolva
sua destituição – que é um castigo administrativamente máximo, desproporcional
e, por isso mesmo, injusto. Usar um subterfúgio para castigar com uma pena de
descomunal consequência é não ter respeito ao direito da minoria. (já que o acu-
sado, embora minoria num corpo de representantes, pudesse ser uma maioria na
opinião pública, o que significa, de passagem, uma bofetada na própria cidadania
que elegeu os que formam parte da eventual maioria de representantes que, pouco
tempo depois, poderiam ser minoria932).
Sartori conclui que, para ser democrático, “um governo majoritário [deve ser]
freado e limitado pelos direitos da minoria” (2000, p. 58), do contrário, se trans-
forma num regime autoritário, antidemocrático.
Não tem direito de usar os órgãos do Estado, seja uma procuradoria, uma câ-
mara legislativa ou um corpo judicial, para eliminar um oponente político. Este ato
mostra a falta completa de formação democrática da vontade dos que agem desta
maneira, mancha definitivamente o nome singular de todos os agentes, dos corpos
e dos partidos envolvidos. Um “assassinato político” não é coisa pequena, apagável
na memória de um país com tradição e, sobretudo, quando estão sendo dados os
primeiros passos para o estado de democracia. A democracia, como o assinala
Boaventura de Souza Santos, é um processo sem fim. Nenhum país pode preten-

930 No México, por exemplo, no processo de impedimento do governante do Distrito Federal


(DF). Em 2005, Andrés Manuel López Obrador, antes de ouvir as razões do acusado, antes
de comprovar se existe ou não um corpo de delito, um partido que, durante decênios, exerceu
uma gestão antidemocrática, decidiu condenar o acusado. Tal comportamento é subjetiva-
mente imoral, publicamente irresponsável e sinal de profunda corrupção corporativa.
931 É uma referência ao processo de impedimento indicado acima. Para pretender abrir uma
rua para um hospital, se desaforou o governador do DF.
932 E, portanto, pode ser julgado como uma manobra para conservar uma maioria meramente
formal, ao eliminar aqueles que, em próximas eleições, poderiam se opor a suas maquinações
de maioria fictícia ou eventual.

448
der já ser democrático – nem os Estados Unidos e nem nenhum país europeu, que
são sistemas concretos, o são num processo contínuo de “democratização sem fim”.
Por isso, se em algum país se procede por “maiorias” ajeitadas e corruptas, sempre
se daria um enorme passo atrás no processo de democratização.

5. Phrónesis monológica e discursividade comunitária

[394] Na Ética a Nicômaco, Aristóteles se ocupa, no Livro VI (1138b- 1145a),


dos hábitos (héxis) da razão (lógos). Entre eles, aborda a virtude da phrónesis (que
pode ser traduzida por virtude ou sabedoria prática da razão ética ou política: pru-
dentia, em latim). Na filosofia contemporânea, a corrente formalista de Apel e
Habermas, entre outros, opina que a antiga phrónesis política é incluída e superada
na ação comunicativa que tem legitimidade prática na comunidade política e que é
alcançada graças à deliberação democrática, que não é senão o exercício de uma ar-
gumentação pública que busca chegar ao acordo por meio da participação simétri-
ca dos afetados, concordando com as exigências das instituições políticas vigentes
(com pretensão não somente de legitimidade, mas, por isso, igualmente, de retidão
política). Poderia parecer que a antiga phrónesis já não tem lugar. Mas não é assim.
Se considerarmos mais de perto a questão, observa-se que os agentes que de-
liberam nos órgãos institucionalizados da comunidade democrática têm, como já
mostramos na Ética da Libertação (Dussel, 1998, cap. 3.5), a possibilidade de afir-
mar uma posição dissidente em relação à maioria. Esta dissidência não deixa de
ser legítima por isso, já que na comunidade política democraticamente institucio-
nalizada deve haver lugar para minorias dissidentes. A dissidência legítima, como
demonstramos, é essencial na democracia, na discursividade, na argumentação
mesma. O que é um argumento senão razões ante um oponente real ou possível? Se
não houvesse oponentes honestos e sérios, não haveria argumentação, nem progres-
so racional qualitativo, nem democracia. Mas qual pode ser a razão pela qual alguns
membros podem adotar uma posição de não aceitação da argumentação prática
que a maioria teve por suficientemente persuasiva e pela qual adotaram um acordo
legítimo? A razão é, exatamente, a causa de que, para o dissidente, a justificação do
acordo não foi suficientemente forte para ter que abandonar a decisão que se lhe
segue possivelmente impondo-se como mais aceitável, racional.
A dissidência racional, também legítima, que não aceita o acordo legítimo933 da
maioria, está fundada num silogismo prático monológico que se pode opor com

933 É possível que dois juízos ou decisões sejam opostamente legítimos. Certamente. É por
um processo diacrônico como resolverão sua oposição e, ao longo do tempo, uma das duas
se imporá à outra, embora possam durar séculos as dissidências legítimas. Ver meu artigo
(Dussel, 2004d).

449
direito ao silogismo público majoritário. Os inventores, os inovadores, os gênios
políticos, tiveram razões (verazes) contra a validade intersubjetiva legítima da
maioria. A legitimidade – diria A. Wellmer – não é uma razão, simplesmente as-
segura: “Se todos afirmam politicamente Z. sendo que é válido para eles, é prová-
vel que pudesse ser verdadeiro para mim; mas, dada a posição política X, que eu
descobri, que eles desconhecem, e que não aceitam ainda, não posso assumir seu
consenso legítimo, porque negaria a verdade de X, não válida ainda para eles, mas
legítima para mim, porque tenho razões para isso”. Aceitar o consenso da maioria,
simplesmente porque é majoritário, não é honesto, nem sério – embora frequente.
Necessita-se de virtude cívica para defender responsavelmente a própria opinião
fruto da phrónesis; isto é, ter, por própria convicção, como verdadeiro o que deve
ser realizado politicamente. Sócrates, sozinho diante de toda a assembleia, é o
exemplo da legitimidade da phrónesis ante um consenso quase unânime, injusto,
porque formalmente possível (ao menos, por se ter respeitado a institucionalidade
do uso da votação majoritária, que não é condição suficiente de democracia).
É neste nível, monológico e não solipsista, como a phrónesis pode seguir cum-
prindo uma função relevante na filosofia política. Certa filosofia política comunita-
rista934 se opõe ao mero formalismo, recordando a importância clássica da virtude
(que também em Maquiavel se faz presente, para ser posteriormente suplantada
pela regularidade das instituições). Penso ter chegado o tempo, ante a corrupção
generalizada na política, perigosa para a sobrevivência da espécie humana, de não
esquecer a necessidade de assegurar a subjetividade política (desde o cidadão até os
representantes) com o que os clássicos denominam virtude (areté, em grego, virtus,
em latim) (Nussbaum, 1994). Não somente os princípios implícitos, as instituições
e os organismos partidários, mas, também, a afetividade (como o reconhecimento
e também o respeito pelos iguais) e a indicada virtude da phrónesis, vêm dar maior
solidez à razão prática discursiva, na deliberação pública que consegue acordos a
partir dos quais se deve agir legitimamente (desde as normas legais até ações ou
instituições), isto é, democraticamente ou com legitimidade política.

5.1. A aplicação do Princípio Democrático

O tema da aplicação do Princípio Democrático já foi tratado (§ 24), mas agora


será tratado de maneira mais específica. Com efeito, na política, em todos os níveis
(da ação estratégica às instituições e princípios), o princípio formal de aplicação dis-
cursivo-racional é o Princípio Democrático, já que é o procedimento político para

934 Pense-se em MacIntyre (1988). Mas, mesmo sem ser comunitarista, deve incluir-se a po-
sição de uma Martha Nussbaum, tomando em conta os seus trabalhos sobre a virtude na
tradição grega clássica.

450
alcançar todas as decisões, que são as que formam a trama da política como ação e
por ela como instituição. Trata-se de um momento essencial da vontade política, da
subjetividade política de todos os agentes do campo político – dura aprendizagem
da esquerda após tantos vanguardismos, “comitês centrais”, ditaduras do prole-
tariado, democracias centralizadas; igualmente de lideranças políticas ambíguas;
mas, ainda mais decisivamente, dos elitismos de direita desde o pretendido direito
dos melhores, embora minorias – em toda decisão política, direta ou indiretamente,
atual ou virtualmente, já que todo consenso, acordo ou negociação deve sempre ser
tomado desde a aceitação do nível correspondente da comunidade, os afetados.
Tratando-se de um bairro, devem poder participar os membros deste território
urbano; tratando-se de uma decisão em nível do Estado provincial, devem poder
participar os cidadãos deste Estado, e assim sucessivamente. Se for uma decisão
de um partido, de uma comissão, de um grupo, etc., toda decisão deve ser tomada
discursivamente de maneira consensual, simetricamente. Este hábito democráti-
co, virtude fundamental na formação da vontade, de atuar pública, permanente e
comunicativamente, cria um “estado de democracia” (correlativo e fonte do “esta-
do de direito”). O “estado de direito” indica estritamente legalidade; o “estado de
democracia”, ao invés, indica uma cultura de legitimidade, de reconhecimento do
Outro, também do antagonista, desde o horizonte da igualdade e da fraternidade
fundamental. O poder consensual da comunidade, como potentia, se fortalece in-
trinsecamente na contínua aplicação deste princípio. O dever agir consensualmente
não é um imperativo exterior ou legal (como em Kant), mas uma exigência nor-
mativa interior e intersubjetiva do agente, também constitutiva do próprio poder
consensual, desde dentro (produz a unidade pela força do consenso devido, potentia,
e, além disso, posteriormente ao acordo, um consenso legítimo, fundamento da
potestas formal positiva).
É aqui onde se abre um capítulo novo da política. A pedagogia política pode
ensinar prática e teoricamente o “estado de democracia” desde a infância, no lar
(por pais que exijam razões a seus filhos e acordem decisões por consenso respei-
toso), questão já colocada pela primeira geração da Escola de Frankfurt, com seus
estudos sobre A autoridade na família, e até na escola (por métodos de participação,
de eleição de representantes, de respeito à dissidência, por hábitos de discussão to-
lerante das posições do outro, etc.). Uma virtus democrática se alcança com séculos
de prática. Uma vontade que permite a dissidência, desde uma inteligência discur-
siva, pode educar-se nos cidadãos para criar o hábito democrático na comunidade,
virtude política por excelência.

451
5.1.1. A aplicação na esfera do direito e outras instituições de legitimação
[395] Habermas nos fala de um Princípio do Direito que subsumimos no
Princípio Democrático. Dito princípio consiste na mediação universal formal de
aplicação no nível das ações (já que sempre têm referência comunitária e pública,
se forem políticas) e das instituições, como modo procedimental e normativo que
lhes permite alcançar a legitimidade requerida no campo político. A revisão da
matéria tratada no § 23 poderia mostrar que, em cada momento, o Princípio De-
mocrático refere-se, em primeiro lugar, à própria soberania da comunidade, onde
nasce e se regenera a legitimidade.
A comunidade política originária é a que se atribui, em primeiro lugar, a sobe-
rania em seu sentido pleno. Soberania significa, em primeiro lugar, a fonte do exer-
cício do poder como potestas. Trata-se do sujeito ou ator, singular ou comunitário,
que tem poder (como potentia) de decidir toda mediação que a comunidade neces-
sita para agir com legitimidade e, assim, poder garantir sua sobrevivência plena.
Este modo universal de decidir é o Princípio Democrático. A comunidade política,
ao dar-se a si própria sistematicidade, institucionalidade, constitucionalidade, em
todos os níveis, é o primeiro momento do exercício do poder. A comunidade po-
lítica é autorreferente: é a origem de sua primeira determinação como totalidade,
ainda que este primeiro se colocar como soberana deve ser já cumprindo as exi-
gências do Princípio Democrático. Mesmo que indeterminada, não considerada
ainda no tempo histórico e, sim, como mera possibilidade (como potentia em si), a
comunidade, contudo, deve dar a si mesma a primeira organização sistêmico-ins-
titucional e, por isso, autodefine-se como a fonte das decisões para limitar ou de-
terminar suas funções heterogêneas internas. O Princípio Democrático organiza
o modo desta primeira institucionalização. Digo “não considerada ainda no tempo
histórico”, porque, empiricamente, embora inevitavelmente se encontre já sempre
tendo alguma institucionalidade ainda que primitiva ou negativa que seja, donde
procede toda transformação (constitutiva emancipadora ou libertadora do estado
anterior, que se interpreta como indeterminação ou caos: “estado de natureza”), a
“posição originante”935 da soberania recorda à comunidade política vigente o mo-
mento heroico instituinte, constituinte ou fundamental da época institucional na
qual ainda se vive no presente. O tempo anterior e próximo à primeira constituição
política (como fundamento da legalidade) é onde nasce a autoridade da tradição

935 Nada tem a ver com a “posição originária” de John Rawls. Da minha parte, denomino “po-
sição originária” a autorreferencialidade originária da comunidade política, colocando-se a
si mesma como última instância de soberania e autoridade (esta última em referência à tra-
dição histórica que funda dita originariedade). Não há nada anterior e abaixo da soberania
da comunidade política. Veremos, na seção Crítica, que haverá ainda uma anterioridade a
toda anterioridade, mas não pode ser considerada ainda.

452
da mesma comunidade (conceito modificado da auctoritas de H. Arendt), como
exercício originário da potestas (do poder soberano). A primeira decisão de se dar
institucionalidade, para ser legítima, deve se fundar no Princípio Democrático.
A soberania da comunidade política, que consiste neste “pôr-se” da própria
comunidade como o autopoder originante, como a última fonte do dar-se a si
mesma toda institucionalidade; do dar-se empiricamente a constituição ou as leis;
do originar a administração do poder em geral, deve decidir este “dar-se” alguma
insititucionalidade desde um estado de participação simétrica dos afetados, isto
é, cumprir com o Princípio Democrático. Por ser a origem de toda a decisão, a
comunidade política soberana autodeterminada se obriga a si mesma a obede-
cer-se. Neste caso, os que mandam na comunidade política como representantes
(potestas) não “mandam mandando e, sim, mandam obedecendo” – como enuncia
o Princípio Democrático originário de todo governo proclamado pelo Movimento
Zapatista de Chiapas. As estruturas da administração por representação do poder
diferenciado da comunidade política exercem legitimamente o poder administra-
tivo (ou executivo) como obediência à própria comunidade política; respeitou-se o
Princípio Democrático.
A soberania criticamente democrática da comunidade política se cindirá, em
seu momento, como o fundamento da “soberania popular”, conceito que poderá ser
desenvolvido somente no volume Crítico desta obra – sistematicidade conceitual
requerida pela coerência da filosofia política, como veremos. A “comunidade polí-
tica” antecipará e fundamentará o conceito de “povo”, que é mais complexo do que
aquela por encontrar-se num grau de maior desenvolvimento do discurso político.
O Princípio Democrático regerá todos os procedimentos da Assembleia cons-
tituinte, todos os capítulos da possível constituição, do enunciado dos direitos,
da diferenciação dos poderes (a potestas). É evidente que desempenhará um papel
fundamental. A filosofia nasceu como retórica junto à ágora ateniense e como con-
trole racional para o exercício empírico do Princípio Democrático: para alcançar
consenso a partir de argumentações políticas de participantes simétricos afetados.
Mas, os corpos de juízes, e os procedimentos de aplicação das leis, igualmente,
deverá penetrar todo o sistema do direito. O “estado de direito”, como temos in-
dicado, é, na verdade, o momento legal do horizonte da legitimidade criado pelo
Princípio Democrático na vida política de uma comunidade.

5.1.2. A aplicação na esfera material


O Princípio Democrático, como princípio de legitimidade, aplica-se também
como procedimento universal em toda decisão da esfera material e, portanto, tam-
bém como mediação na aplicação do mesmo Princípio Político Material (objeto
do próximo § 26). Isto levou Apel, por exemplo, a opinar que é o único princípio

453
político. A falácia redutivista consiste em pensar que a legitimidade de uma decisão
transforma ipso facto esta legitimidade no momento político pleno. Uma decisão
legítima segundo o Princípio Democrático pode ser injusta, inadequada, contradi-
tória, desde um ponto de vista material ou de sua factibilidade estratégica – e esta
verdade do juízo material político não é exclusivamente responsabilidade dos espe-
cialistas (engenheiros, economistas, intelectuais da cultura, etc.) – e, sim, recebe sua
orientação e possibilidade factível de outros princípios políticos.
Toda decisão, no tocante à esfera material (seja na subesfera política do campo
ecológico, econômico ou cultural), desde um ponto de vista formal, procedimental
e de legitimidade, deverá sempre se ater às exigências do Princípio Democrático.
Nas equipes técnicas da sociedade política que se ocupam da preservação ecológica
das comunidades, da produção, distribuição e desenvolvimento da vida econômi-
ca ou cultural da comunidade, dever-se-á sempre aprender a tomar as decisões
consensualmente, horizontalmente, com a contribuição participativa de todos os
afetados na responsabilidade do governo, por exemplo. Também na aplicação do
poder administrativo do Poder Executivo, do presidente, do primeiro-ministro, de
seus ministérios ou secretarias, dos responsáveis de diversas instituições públicas,
deve sempre primar um espírito democrático de corresponsabilidade comparti-
lhada, de uma vontade formada para alcançar acordos em todos os níveis e sobre
todos os temas, ações ou funções institucionais. A vigência do Princípio Demo-
crático é universal.

5.1.3. A aplicação na esfera da ação estratégica


O Princípio Democrático é a referência necessária nas tomadas de decisões no
nível da ação, no trabalho em equipe, contando sempre com os outros membros
com os quais são compartilhadas responsabilidades, em seus mais diversos níveis
organizativos.
A cultura democrática sempre é necessária contra o vanguardismo, o burocra-
tismo e os líderes carismáticos. Isso não significa que não se necessitem grupos de
intelectuais orgânicos, burocracias bem organizadas e o entusiasmo político de
líderes democráticos exemplares que movem, por seu temperamento ou por sua
entrega à tarefa pública. Isto porque as instituições e as comunidades não negam
a possibilidade de expressar fortes pretensões de sinceridade ou autenticidade, de
criatividade ou entrega em suas responsabilidades por parte dos representantes,
das autoridades, com coerência heroica, ética e clara responsabilidade de peritos,
de profissionais da política que mostram ao cidadão o caminho a seguir. Por isso,
as personalidades políticas exemplares são também necessárias em toda vida po-
lítica factível.

454
O efeito contrário seria o governo dos peritos, pretensamente neutros, que
pensam refutar a legitimidade democrática com a eficácia tecnológica da pura
governabilidade.
O Princípio Democrático não deverá ser confundido com um igualitarismo sem
exigências normativas, que se inclina sem sério debate e deliberação à mera opinião
da maioria puramente quantitativa. O antigo defeito da demagogia não deixou de
ser a fácil ladeira na qual pode derivar um democratismo superficial de pesquisas.
O Princípio Democrático não pode, por conseguinte, substituir o saber do
perito; mas, o saber deste deve ser conduzido pelo juízo prático e legítimo do polí-
tico. Como o arquiteto que depende do engenheiro que lhe calcule a resistência dos
materiais para a construção de um arranha-céu, sendo o juízo estético do arquiteto
o que terá a última palavra na orientação do conjunto da obra, da mesma forma, o
político democrático saberá obter acordos legítimos de medidas eficientes, onde a
“factibilidade política” ultrapassa a capacidade do perito numa disciplina material
específica. O perito tem “pretensão de factibilidade” (no campo material respecti-
vo); o político tem, por ora, “pretensão de legitimidade” (mas que, em outros as-
pectos que exporemos a seguir, poderá ter a plena “pretensão política de justiça”).

5.2. A
 lgumas micro instituições simples e concretas requeridas pela democracia
[396] Já referimos algumas destas “instituições” políticas de longa vida. Em-
bora sejam muito simples, devem ser consideradas como instituições, já que são
comportamentos que têm expectativas de respostas permanentes no tempo, cor-
relativas, tradicionais diacronicamente e que são incluídas como comportamentos
regulados intersubjetivamente e aceitos por todos. A democracia, como princípio,
com postulados, modelos ou sistemas, sempre inclui estas instituições que foram
surgindo através dos séculos em diferentes comunidades políticas e que foram pos-
teriormente assumidas pelas demais. Vejamos algumas destas instituições muito
conhecidas que não constituem intrinsecamente e com a exclusividade de suas exi-
gências o caráter de democrática; vale dizer, qualquer delas pode se converter numa
ação antidemocrática, se não cumprir com outros requisitos formais e materiais.

5.2.1. A maioria e a minoria


Um sistema democrático deve incluir sempre o agir por consenso como momen-
to essencial. Este, como indicamos,936 pressupõe sempre a possibilidade do dissen-
so. E mais: origina-se no dissenso. A instituição democrática maneja esta oposi-
ção consenso/dissenso dentro de um princípio normativo que vale para ambos os
momentos. Tanto consenso com dissenso supõem que deva ocorrer a participação

936 Ver minha discussão com Apel (Cf. Apel; Dussel, 2005).

455
simétrica dos afetados pública e institucionalmente a partir de razões. O dissen-
so, na maioria dos casos (excetuando se for sustentado por um único cidadão), é
um consenso minoritário. O fato de ser minoria não tira do consenso minoritário
a possibilidade ter a melhor razão e que, no médio ou longo prazo, possa, ou não,
vir a ser aceita pela maioria. Ser maioria não é critério de verdade, nem sequer
de validade e, sim, é um critério de eficácia (de factibilidade), que permite de uma
maneira muito precária poder continuar respondendo as demandas temporárias da
vida da comunidade. De fato, o tempo é essencial para a vida. Uma decisão perfeita,
um consenso absoluto (onisciente), exigiria tempo infinito (e também capacidade
racional infinita). Como estas condições (logicamente possíveis) são empirica-
mente impossíveis, deve-se resolver concretamente, de uma maneira pela qual se
tenha inevitavelmente uma atitude de possível factibilidade. Esta maneira deve ser
resolvida consensualmente com razões (novamente: com razões de factibilidade,
neste caso, não de conteúdo de veracidade). Concorda-se que, uma vez discutida a
questão num tempo razoável (de impossível determinação perfeita), expressar-se-á
o grau de aceitação no qual se encontra cada participante. Interrompe-se, então, o
processo argumentativo (seja como for, embora seja a partir de narrativas míticas
aceitas por todos ou pela maioria), e cada participante expressa seu juízo sobre o
que se discute, segundo um princípio de igualdade. Estipulam-se, assim, as re-
gras do jogo (neste caso, jogo real e prático). O processo argumentativo poderá
continuar de diversas maneiras; o grau de aceitação de cada participante poderá
amadurecer no sentido do que, num momento x, teve a maioria, mas, posterior-
mente, pode inclinar-se, num momento z, pela posição que adotou a minoria em
dissenso. Diante de uma nova expressão de posições, a situação pode inverter-se,
e a maioria passar a ser minoria. Não é uma simples mudança quantitativa; pode
ser um amadurecimento qualitativo que exigia tal inversão superadora e positiva.
As comunidades históricas podem tomar posições majoritárias suicidas e desa-
parecer, em consequência (como quando Tiro superestimou sua capacidade e en-
frentou os exércitos de Alexandre Magno). As cidades não opuseram resistência,
sobreviveram e conseguiram, posteriormente, de novo, sua independência. Esta é a
indecidibilidade e a falibilidade inevitável de todo consenso político. É necessário,
de qualquer maneira, tomar decisões; não tomá-las seria ainda muito pior que
tomar algumas decisões erradas (embora possa haver outras muitas acertadas).
Normativamente, repetimos, respeitar com iguais direitos a dissidência mi-
noritária é essencial para o processo de sobrevivência e legitimidade de uma co-
munidade política, para sua continuidade no tempo, para seu amadurecimento
democrático, sua governabilidade e sua eficácia justa.
Ao final, consenso e dissenso, como instituições que manejam a temporalidade
da política, são mediações empíricas ambíguas, mutáveis, cujo sentido democrático

456
não se deduz do simples fato de ser um grupo majoritário, que nunca é critério de
verdade, embora possa ser legítimo – mas, se cumpre os princípios normativos
políticos; do contrário, pode perder também dita legitimidade.

5.2.2. A representação na democracia


Já assinalamos a existência de um postulado da representação (como identi-
dade entre representante e representado). A mediação da representação política
é novamente uma instituição simples, que nasce diante da impossibilidade da de-
mocracia direta nas sociedades de milhões de cidadãos em territórios extensos.
Nunca um ator político poderá representar perfeita ou transparentemente a outro
como tal; deveria ser ele ou ela mesma e, neste caso, não haveria representação.
Por definição, o representante não é o representado e, portanto, há uma distância,
opacidade, mal-entendido, entre o representante e o representado, ainda que se
estabeleça a mais sincera e honesta relação responsável pelo cumprimento desta
função. A questão é, de novo, poder determinar minimamente quando uma repre-
sentação é politicamente legítima e quando deixa de sê-lo. É democrática a repre-
sentação quando cumpre os princípios honesta e sinceramente. A representação é
democrática quando cumpre o Princípio Democrático. Quer dizer, o represen-
tante deve tomar toda decisão como representante dos representados, depois de
ter chegado com estes a acordos a partir de um consenso, graças a uma partici-
pação simétrica (do representante) com os representados, sendo estes últimos os
afetados que sofrem por não terem suas necessidades satisfeitas e acerca das quais
tenham podido dar razões para que (como representante) aja em seu lugar. Neste
caso, a representação é legítima – o que não significa que é perfeita. A legitimidade
da representação indica que se cumpriu o Princípio Democrático nas instituições
correspondentes à função política da representação. Os postulados lhe servem
como horizontes de orientação para melhorar o cumprimento dos procedimentos
exigidos pela representação democrática.
A representação política não é intrinsecamente democrática e, sim, é uma re-
presentação democrática aquela que cumpre as exigências do Princípio Democráti-
co, nas instituições que aplicam este princípio empírica e historicamente. O repre-
sentante exemplar se aproxima de condições semelhantes do que poderia ser uma
democracia direta ou à identidade representante/representado (os dois postula-
dos), sabendo que são impossíveis empiricamente, mas que se pode agir dentro de
seu horizonte paradigmático, com reuniões permanentes com seus representados,
tendo em conta suas necessidades, discutindo seus projetos, dando informações
sobre os debates e seus resultados, etc. Este representante pode, então, ser mais
democrático que outros.

457
A chamada “democracia representativa” norte-americana, enquanto o repre-
sentante é de fato membro de uma elite política (e econômica), distorce o sentido
democrático da representação: é necessário que ganhe em autêntica representação
popular.

5.2.3. A
 votação secreta ou pública como meio de tomada de decisões ou de
eleição de pessoas
A quantidade e o número nunca são qualidade. Uma votação soma subjeti-
vidades, membros de um corpo. Nunca é critério de verdade; no máximo, é um
critério que “assegura” (mas muito relativamente)937 o cidadão que se vê rodeado
dos demais. Dar a cada participante um voto de igual qualidade (ao dar-lhe igual
quantidade de decisão) é contrário a um princípio aristocrático. Ao dar a cada
sujeito um voto, já é uma decisão institucional democrática. Quando os cidadãos
votam cada um com um voto, tanto na eleição de seus representantes quanto nas
assembleias, comissões ou demais corpos colegiados de todas as instituições da
sociedade civil e política, usam um instrumento democrático, mas, novamente,
na medida em que cumpre com outras condições do Princípio Democrático. Um
voto fraudulento, conseguido com propaganda desproporcional e desigual de um
dos candidatos a uma função pública (que somente expressa maior quantidade de
meios econômicos, mas não melhores propostas políticas para a comunidade),
é quantitativamente maioria, mas não conta com a qualitativa legitimidade de-
mocrática normativamente expressada. A não simetria na participação invalida a
pretensão política de legitimidade. Quer dizer, a quantidade de votos, por si só, não
determina a legitimidade do efeito da maioria numérica. É uma condição neces-
sária, mas não suficiente. Para ser suficiente, são necessários ainda outros deter-
minantes ou componentes para que se expresse efetivamente democráticos. Estes
outros componentes são o cumprimento articulado de, ao menos, os três princípios
políticos que descrevemos (§ 25-27).
O número, a quantidade, não agrega qualidade alguma à decisão. Que o voto
seja “secreto”, em certos casos de votação política dos cidadãos, agrega sim quali-
dade à decisão eleitoral: ao não se sentir pressionado pela opinião pública pode
expressar com maior sinceridade seu juízo pessoal honesto, sério, razoável. O voto
secreto cria independência, assegura a inviolabilidade da conclusão valorativa do
que deve ser decidido por votação. É certo que, em alguns casos, como, por exem-
plo, nas gestões do Poder Legislativo, pelo contrário, o anonimato pode encobrir
certa irresponsabilidade daquele que se esconde entre os diversos desconhecidos.

937 “Onde vai Vicente, vai a gente” afirma um dito popular. Onde vai a maioria da gente pode
não ser o verdadeiro. Sócrates enfrentou a morte para provar que a dissidência pode ter o
acesso verdadeiro à questão discutida.

458
Neste último caso, é necessário que institucionalmente se assuma de público a
responsabilidade da decisão de uma votação nominal que pode ter suma gravidade
para uma comunidade política. Os legisladores devem enfrentar o julgamento dos
seus representados e da história.

6. Das “formas de governo” aos “modelos de democracia”

[397] As “formas” de governo se referem, e em continuidade com o tema antes


assinalado, a uma questão institucional, agora procedimental ou formal, mas, ao
mesmo tempo, de factibilidade, já que o que se busca é a estabilidade na represen-
tação material da comunidade política, com governabilidade legítima ou aceita por
todos. É um saber como agir. Refere-se à estrutura das instituições da sociedade
política (do Estado propriamente dito), cuja forma tem a ver com a legitimidade e
a factibilidade para permitir no longo prazo a existência de uma ordem política
para a defesa e o desenvolvimento da vida comunitária, quer dizer, com um tal
arranjo das partes que permita um melhor exercício dos momentos centrais da
vida política. Com relação ao primeiro aspecto: a) poder alcançar um consenso
no assunto que exige uma decisão política, graças a b) participação c) dos afetados
d) de maneira simétrica. Esta coesão alcançada da pluralidade de vontades dá à
comunidade a possibilidade de sua existência no tempo, acumulação de experiên-
cias, de riquezas, de instrumentos, de instituições, que permitem certo progres-
so qualitativo da sobrevivência do grupo. Ademais, as indicadas formas tornam
possível a tomada de decisões, quando a comunidade vai aumentando em número,
desde as cidades neolíticas de umas centenas de pessoas até os atuais Estados com
dezenas ou centenas de milhões de membros. Estes componentes institucionais
foram determinando o surgimento de certas formas de governo das comunidades,
que foram resistindo pelos costumes, que foram se impondo pela estabilidade que
as comunidades que as haviam descoberto e respeitado alcançavam. O fato de que
a forma mista de governo de Veneza lhe tenha dado permanência (desde o século
IX até o século XVI da nossa era) foi motivo suficiente para que os olhos dos po-
líticos da modernidade nascente, os que tinham vontade instituinte, se voltassem
para ela para perguntar pelas causas deste “êxito”. As instituições políticas, então,
foram crescendo, complexificando-se, ampliando-se, perfilando-se, entrando em
crise, refundando-se durante os dez últimos milênios, em cidades, confederações
de cidades, reinos, impérios, até chegar aos Estados modernos metropolitanos eu-
ropeus, desde fins do século XV (o primeiro de todos, pela unificação dos reinos
da Península Ibérica, sob a autoridade de Isabel de Castela e Fernando de Aragão,
que no começo era uma monarquia contratual até cair no absolutismo).

459
As formas ou tipos de regimes (maneiras de diferenciar as funções políticas que
os Estados deveriam cumprir) ou de governo (em último caso, da sociedade polí-
tica, onde o governo é um nível no qual cidadãos são eleitos e cujos mandatos são
renováveis), não devem ser considerados somente em si ou abstratamente, e, sim,
é necessário observar, obviamente, que tipo de poderes, em que momento, em
quais circunstâncias, criam maior legitimidade (condição procedimental norma-
tiva) e factibilidade (eficácia) no longo prazo e que, assim, possam conseguir a re-
produção e o crescimento da vida da comunidade (conteúdo material). A questão
da permanência e estabilidade é um efeito da profundidade do processo de legiti-
mação e eficácia; sua avaliação se dirige diretamente à reprodução de legitimidade
e factibilidade hic et nunc (não, em geral, para todos os tempos, todos os lugares,
todas as circunstâncias). É possível que, numa situação histórica caótica, de gran-
des conflitos entre reinos, um governo que acentue a unidade (tanto por uma mo-
narquia – como a hobbesiana –, ou uma forma de ditadura – desde a schmittiana e
até a leninista ou a estabelecida na China no início do século XXI – ou um partido
único – como no populismo latino-americano dos anos trinta) pode ter argumen-
tos normativos (que partam de situações excepcionais) de justificação. Esta forma
de governo pode, então, ser implementada como a melhor hic et nunc (não a melhor
em si abstratamente), o que, de todas as formas, é já um julgamento incerto (como
todo juízo político) que corre sérios riscos e que, de fato, pode produzir piores
efeitos do que ter buscado uma democracia pluripartidária, mas politicamente não
se pode descartá-la a priori. Isto não nos impede de indicar qual seja a que pudesse
ser generalizada na situação ideal atual938 da história mundial ou regional, dada a
maturidade alcançada pela humanidade contemporânea, mas sempre a partir do
grau de evolução política concreta da comunidade política próxima.
São formas de governo ou forma de Estado? O governo, na sociedade políti-
ca, é um momento do Estado constituído por aqueles “políticos militantes” e/ou
“profissionais”939 (não propriamente membros da burocracia estável ou de carreira)
nomeados ad hoc por forças políticas (hoje, partidos políticos), eleitos por votações
da comunidade política que conseguiram a hegemonia ou o exercício da força do
Estado, cujas decisões contingentes constituem a agenda do projeto político de
um grupo de representantes na condução do aparato do Estado, como “pilotos”

938 Na seção Crítica, quando tratar os “postulados”, entender-se-á que a “forma democrática de
governo”, (em seu estado perfeito) é um “postulado” da razão política (ver §§ 34 e 43).
939 Pode haver “governantes” que surjam da militância política em momentos de grande crise
e que, sem ser “profissionais”, chegam a ser os melhores governantes. É o caso de George
Washington (um proprietário de terras com escravos), Miguel Hidalgo (um sacerdote pá-
roco), Simon Bolívar (um aristocrata formado na Europa), “Che” Guevara (um estudante
de medicina) ou Mao Tsé-tung (um mestre-escola). Pelo contrário, José de San Martín era
um “militar profissional”, mas, de certo modo, nunca foi um “político”, nem quis sê-lo para
não manchar sua espada com sangue de irmãos.

460
que dirigem a nave a seu destino estratégico assinalado. A equipe que “timoneia”
(kybernáo, em grego) o timão está alojado na cabine de condução da nave. Os mari-
nheiros (a burocracia) cumprem outras funções necessárias, mas estrategicamente
secundárias, pela complexidade na administração da macroestrutura institucional
do Estado contemporâneo.
[398] Trata-se de formas de governo enquanto o momento do exercício da au-
toridade diferenciada, mas que supõe uma forma da sociedade política como totali-
dade. Uma monarquia determina a unicidade do governo (o rei, seus conselheiros
e a corte), que pode exercer seu domínio, delegando-o a aparatos burocráticos do
Estado (por exemplo, os mandarins chineses), secularizados e altamente profissio-
nalizados. O governo é um momento do Estado.
Norberto Bobbio propôs uma reflexão histórica sobre as formas de governo
numa obra pedagógica940. Seria preciso pretender descobrir critérios de organiza-
ção das formas de governo que se relacionem à conquista progressiva de maior le-
gitimidade e factibilidade. Desde o exercício da dominação governamental por um
só (monarquia), ao exercício da força com autoridade compartilhada por um grupo
(senado, oligarquia ou aristocracia), até o processo lento de participação crescente
do número dos membros da comunidade política desde um princípio de igualdade
(democracia), segundo circunstâncias históricas bem determinadas. Mas esta evo-
lução não ocorre em abstrato; responde a exigências históricas concretas.
As cidades portos do Mediterrâneo, desde antes do século V a.C., eram gover-
nadas frequentemente pelos mercadores mais ricos que possuíam grandes frotas e
oficinas, onde se produziam mercadorias para o intercâmbio (objetos de cerâmica,
posteriormente de ferro, etc.). Assim acontecia em Tiro, Sídon, Cartago, Marse-
lha, Pérgamo, Atenas, tempos depois em Roma (mas, também, na Mesopotâmia,
no Índico, no Mar da China). Os impérios eram monárquicos; as grandes cidades
sob a proteção dos impérios eram o laboratório onde foi crescendo a experiên-
cia do campo político; eram o horizonte privilegiado do tema que tratamos. No
transcurso do tempo, estes empórios comerciais necessitaram maior número de
trabalhadores para produzir as indicadas mercadorias; havia exigência de maiores
tripulações para as frotas e, portanto, de marinheiros e também era preciso contar
com soldados para defender com seus exércitos bem equipados a cidade metropo-
litana e suas numerosas colônias contra os piratas e contra outras cidades metro-
politanas. Éfeso chegou a ter setenta colônias, muito antes que Atenas alcançasse
notoriedade; não era estranho que Heráclito de Éfeso ou Tales de Mileto fossem
filósofos muito anteriores ao Sócrates ateniense. Era preciso, então, compartilhar
o governo com os que participavam no crescimento e nas glórias de toda a comu-
nidade política. A comunidade tinha representantes em corpos (em Sais, como

940 Remetemos a esta obra (Bobbio, 1989) para não ter que repetir as classificações tradicionais,
desde Platão e Aristóteles, dos seis tipos de governo, passando pelo regime misto de Políbio.

461
em todo Egito, a “aldeia” ou “comunidade” como se denominava em copto antigo:
démos), que foram abertos a todos os cidadãos. Como mostra Jacques Rancière,
em Mésentente,941 os ricos e pobres deviam ter certo tipo ambíguo de “igualdade”
na assembleia da pólis: equidade sempre negociada, em conflito permanente, que
constituía o campo político enquanto tal. Tratava-se de um aumento de legitimidade
e factibilidade, de permanência; com o consenso, a comunidade crescia, ganhava
em força no poder político que emanava da pluralidade das vontades compactadas
num novo tipo de unidade, de participação simétrica dos afetados, que, de passivos
súditos, vão passando a ser ativos e responsáveis membros dos órgãos que tomam
as decisões políticas diretoras; participação ativa que pode se perder nos reinos
macedônicos sob a figura monárquica de Alexandre e seus sucessores e que debili-
tarão as cidades gregas, preparando-as para o domínio romano. O cidadão grego,
em sua época clássica, era um hoplita (soldado de infantaria fortemente armado e
protegido com implementos de ferro que manejava com suma maestria, com força
adquirida no ginásio, sendo temíveis diante dos inimigos).
Em nossa época, da mesma maneira, não se pode pensar em abstrato uma
forma de governo como a melhor universalmente, por exemplo, a democracia libe-
ral. Trata-se de um idealismo isento de realismo histórico e político. Em países
africanos de recente emancipação, por exemplo, onde a organização da etnia não
conseguiu ser subsumida em formas de governos modernos tradicionais, a mera
imitação de uma “democracia ocidental” salta no vazio e comete erros monumen-
tais. A integração da população africana culturalmente plural, que pretenda se
organizar em Estados à europeia, produz o efeito negativo que tem por causa este
mesmo colonialismo europeu. Poderíamos denominar o erro político como uma
“falácia abstrativa”: se pensa que o melhor regime para a Europa ou os Estados
Unidos pode servir na África, Ásia ou América Latina. As formas de governo
devem responder à história, à cultura, às circunstâncias conjunturais, a partir do
critério fundamental de legitimidade e de factibilidade, isto é, da participação simé-
trica dos membros da comunidade, que institucionaliza o poder político segundo
suas próprias tradições, para dar garantias de permanência no longo prazo. Se a
pluralidade de vontades reunidas pelo consenso da comunidade pode crescer com
uma assembleia estatal onde cada etnia envia seus representantes em igual número
(como um senado interétnico) e, ao mesmo tempo, elegem-se outros representan-
tes em proporção ao número da população (seja por partidos, grupos religiosos ou
outros critérios que tenham vigência na população africana) para constituir como
uma Câmara de Deputados, talvez pudessem se constituir novas formas de governo
de uma sociedade política nascente que não deve necessariamente imitar as exis-

941 “O que faz o caráter político de uma ação não é seu objeto ou o lugar onde se exerce e, sim,
sua forma, a que inscreve a verificação da igualdade na instituição de um litígio, de uma
comunidade existindo em sua própria divisão” (Rancière, 1995, p. 55).

462
tentes. Um Estado pluricultural, pluriétnico, plurirreligioso num mesmo territó-
rio exige criatividade política. O cidadão não receberia uma definição homogênea,
mas heterogênea e com muitas dimensões, e o direito à diferença substituiria, sub-
sumindo-o, ao direito à igualdade. Os chamados ditadores africanos posteriores
à emancipação, a partir da segunda parte do século XX, tiveram frequentemente
um modelo de formas de governo ocidental, e cometeram horríveis perseguições e
genocídios para homogeneizar a população. Era-lhes impossível igualar a popula-
ção no território assinalado ao Estado. Ainda que devessem, nunca se chegou à cla-
reza do como institucionalizar a diferença, e ninguém os ajudou (menos os poderes
metropolitanos que usam ainda hoje a divisão étnica interna para continuar com
seu latrocínio neocolonial na época neoliberal da globalização).
Ante a crise da representação, por outro lado, já que os eleitos vão constituindo
uma burocracia política autorreferente, privilegiada, que se torna opaca às exigên-
cias da sociedade civil e do âmbito social, será necessário criar novas instâncias que
modifiquem as formas de governo tradicionais e que criem vasos comunicantes
com novas instituições e a recriação de uma maior participação cidadã, perma-
nentemente. Será necessário transformar as formas de governo articulando uma
“democracia representativa” com uma “democracia participativa”.
[399] As discussões atuais sobre as formas de governo se concentram somen-
te nas formas democráticas, já que as restantes foram perdendo definitivamente
atualidade. Contudo, as diversidades neste momento são talvez muito mais im-
pressionantes do que no passado. Se tomarmos em consideração os novos modelos
de democracia que nos propõe David Held (1993), devemos considerar, em pri-
meiro lugar (de maneira eurocêntrica, é óbvio), a “democracia clássica” (I) (Held,
1993, p. 27ss).
Saltando muitos séculos, Held descreve a chamada por ele “democracia prote-
tora” (II) (1993, p. 52ss) dos direitos do indivíduo diante da monarquia absolutista
e posteriormente diante do Estado como tal. É um modelo liberal que supõe a eco-
nomia de mercado competitiva, a propriedade privada burguesa, a representação
por eleição universal, divisão dos três poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário),
nascimento da sociedade civil, soberania de um Estado sobre um território extenso.
Em terceiro lugar, fala de um “modelo radical de democracia” (III) (1993, p. 94ss)942
que, partindo de Rousseau ou de Wollstonecraft,943 exige a igualdade política e eco-
nômica que, como em Genebra, tem certa democracia direta, sendo uma comuni-
dade pequena, pré-industrial, descobrindo-se igualmente os direitos da mulher944.

942 Eliminou o de “desenvolvimentista” porque tem, na América Latina, completamente outro


sentido.
943 Deste último ver Wollstonecraft, 1982 (escrito em 1791).
944 Held propõe alguma variante, inspirando-se em John Stuart Mill, supondo já um território
amplo e um mercado capitalista competitivo.

463
O quarto modelo seria o de uma “democracia direta” (IV), como uma genera-
lização da Comuna de Paris, proposta em alguns textos de Marx (1993, p. 132ss),
numa interpretação sumamente standard como o “fim da política” (ao supervalo-
rizar-se a determinação econômica), cuja “dissolução do Estado” – como veremos
– foi, na verdade, um postulado, mais que um modelo empírico a ser aplicado.
Analisando as variantes contemporâneas, estuda as posições de Max Weber
e de Joseph Schumpeter (V) (1993, p. 175ss), mostrando que ambos têm uma
visão desencantada da democracia, da política, expondo um realismo empírico
sem normatividade, que se concretiza numa espécie de “democracia elitista com-
petitiva”, que é levado a cabo pelos políticos profissionais, partidos políticos com
posições antagônicas, em torno de um regime parlamentar (que permite um exe-
cutivo forte) que se faz auxiliar por uma democracia estável e independente, numa
sociedade capitalista industrial, onde não esperam muito do eleitorado, em geral
descrito como pouco informado e puramente emotivo, isolado e vulnerável.945
O sexto modelo, “pluralista” (Held, 1993, p. p. 225ss), partindo de algumas
intuições de Madison e sob a inspiração de Robert Dahl, mostra a importância dos
grupos de interesse ou de pressão, sendo as frações políticas a base da vida política,
não seu perigo, e interpreta a competitividade de posições como o fermento do
crescimento democrático. Escreve:

A propriedade e o controle contribuem para criar grandes diferenças entre os cidadãos


em relação à riqueza, à renda, ao status, às capacidades, à informação, ao controle
sobre a informação e a propaganda, ao acesso aos líderes políticos e, por termo médio,
às oportunidades de vida predizíveis [...]. Diferenças deste tipo ajudam, por sua vez,
a gerar importantes desigualdades entre os cidadãos [...] para participar como iguais
políticos no governo do Estado (Dahl, 1985, p. 55, cit. Held).

O sétimo modelo que Held expõe é fruto de uma longa crise da esquerda do
pós-guerra (VII). Desde a posição de S. M. Lipset sobre “o fim das ideologias”
(1963), H. Marcuse (1969) mostra a “unidimensionalidade” da proclamada demo-
cracia norte-americana, fundada nas irreconciliáveis contradições do capital que,
na verdade, domina o campo político com forças coercitivas ideológicas, o que
produz uma “crise de legitimidade” (Habermas, 1973) e uma consciência de que o
Estado administrou deficientemente os encargos sociais, transformando-se – para
uma ideologia conservadora – num “pesado” Estado de bem-estar, com um amplo
clientelismo burocrático. Surge, assim, uma “nova direita” (inspirada, em parte,
em F. Hayeck ou R. Nozick), no tempo dos governos de Margaret Thatcher e Ro-
nald Reagan – que preparam o campo para os protestos de 1989. A teoria liberal

945 As duas obras fundamentais são a já citada Economia e Sociedade, de Weber (1944), e a de
Schumpeter, Capitalismo, Socialismo e Democracia (1976).

464
clássica passa a extremos nunca vistos. A liberdade do mercado se transforma no
centro da racionalidade da democracia (desde o postulado de um “mercado de
competição perfeita”) e o Estado, de certa maneira, autolimita-se num processo de
privatização que “alivia” os gastos públicos; quer dizer, se transforma num “Estado
mínimo”. Se trataria de um “democracia legal” (assim a denomina Held) (1993,
p. 302946), cujo melhor nome seria “democracia de mercado”, já que sob a liderança
política de um Estado mínimo, segundo os princípios liberais levados ao limite, se
propõe uma sociedade de livre mercado a mais extensa possível, sem intervenção
do Estado, dando à iniciativa privada toda liberdade, privatizando as empresas do
Estado (do criticado “Estado de bem-estar”947), “flexibilizando” as leis trabalhistas
e perseguindo frontalmente, de maneira dura, os sindicatos trabalhistas, organiza-
dos desde a década de 1930 (desde a crise econômica de 1929): o New Deal.
A “nova esquerda”, entre os quais podemos citar C. Paterman (1970), N. Pou-
lantzas (1980) e C. B. MacPherson (1973), começou a elaborar o que podería-
mos denominar “a democracia participativa” (seria o modelo VIII) (Held, 1993,
p. 306ss). A proposta toma em consideração que o capitalismo produz distorções
necessárias, desigualdades que determinam a posição dos cidadãos no campo po-
lítico, pretendem extrair da posição socialista momentos que podem articular-se
a um modelo transformado de democracia. Não é uma democracia liberal nem é
uma estrutura do socialismo real, porque mostra a necessidade de eleições uni-
versais, a existência de partidos políticos, de liberdade de imprensa e de discussão
livre das opiniões. Estudaremos estas questões mais adiante, quando exporemos a
necessidade da “transformação” das instituições políticas.
Frank Cunningham (2002), partindo das posições teóricas de Aristóteles,
Rousseau, Tocqueville, Marx ou Schumpeter, analisa algumas propostas mais teó-
ricas, além dos modelos de democracia já assinalados.948 Assim, a “teoria da decisão
social” (Social choice theory) aplicada à política nos daria algo assim como uma
“democracia catalática”,949 uma engenharia social que teria esvaziado a política

946 F. Hayeck fala claramente em favor do Rechtsstaat (Hayeck, 1975, p. 220ss), mostrando como
o absolutismo dos prussianos já estabeleceu a necessidade do respeito irrestrito à lei, como,
por exemplo, Frederico II. Trata-se da defesa da lei que protege as liberdades individuais (do
mercado) ante o Estado e o ataque frontal contra o “Estado-providência” (1975, p. 281ss).
947 Na periferia pós-colonial, os governos de projeto nacionalista (chamados “populistas”) ha-
viam feito crescer o Estado diante da competição desleal do “centro”. Os expoentes máximos
desta política foram Menem, na Argentina, e Carlos Salinas de Cortari, no México, no
chamado neoliberalismo, como veremos mais adiante. (Cf. Gutiérrez, 1998, p. 197-297).
948 Por exemplo, a “democracia liberal” (2002, p. 27ss); o “pluralismo clássico” (2002, p. 73ss),
a “democracia participativa” (2002, p. 123ss), analisando-os de maneira mais crítica do que
Held, obviamente.
949 “Catallactics” (2002, p. 103) seria como uma “ciência do intercâmbio”. Vem do grego, ka-
tallagé (intercâmbio) e do verbo katallasso (mudar uma coisa por outra). Buchanan (1962) e
Tullock “deny that there id ant such thing as the oublic interestover avd above mutal advav-

465
da maioria de suas determinações, onde o fórum seria reduzido e identificado ao
mercatus. Entre os novos modelos, propõe a “democracia pragmática”, inspirada
primeiramente em John Dewey (1927) – embora se refira também a seu mestre
Macpherson, já citado. A “democracia deliberativa”, que é uma escola norte-a-
mericana que parte da obra de J. Habermas,950 proposta, entre outros, por James
Bohman e Joshua Cohen, será muito útil para descrever o aspecto que denomina-
mos formal das ações e instituições do campo político. Embora advirtam a necessi-
dade de relacionar o aspecto deliberativo da democracia com outros níveis (como,
por exemplo, J. Bohman mostra a necessidade de articular a “pobreza política”
com a “democracia deliberativa” (1997);951 ou a intervenção de Iris Marion Young
sobre a “diferença”952 tal como o mostraremos mais adiante), existe como que uma
impossibilidade de enfrentar o campo econômico e, em especial, o sistema capita-
lista como tal.
No Capítulo 6 da Crítica, voltaremos sobre estes temas desconstrutiva ou
criticamente.

7. Os sistemas políticos democráticos concretos

[400] Cada sociedade política ou Estado particular ou territorial, com uma po-
pulação atualmente de milhões de habitantes, tem um sistema político, histórico,
empírico, fruto de uma maior ou menor tradição política que adquire determina-
ções próprias de diferentes graus de legitimidade, governabilidade, estabilidade,
eficácia e desenvolvimento. De todas as maneiras, todos os Estados têm sistemas
políticos singulares e, por isso, inimitáveis; nenhum deles pode ser modelo (no sen-
tido por nós definido no parágrafo 6) para outros sistemas concretos. Pode um
sistema (indicado com 1 do Esquema 23.01) aprender de outros; pode tomar o
modelo (indicado com 2) no qual outros sistemas se inspire (mas que nunca realiza
perfeitamente) como sua própria criação. É um eurocentrismo muito disseminado
tomar os modelos de democracia na Europa ou nos Estados Unidos e propô-los
como paradigmáticos para todos os sistemas existentes nos países periféricos, pós-
-coloniais. Não se adverte que cada Estado particular se encontra num momento
único de seu próprio desenvolvimento. A adoção direta, mimética e abstrata de

tages to be gained by cooperating, so in catallactic fashion [they] recommend modelling po-


lical theory on economics where no assumption of a social goal is required” (Cunningham,
2002, p. 106).
950 Por exemplo, Bohman e Rehg (1997).
951 “Deliberative democracy and Effective Social Freedom: Capabilities, Resources and Oppor-
tunities” (1997, p. 332ss). Refere-se a Amarty Sen no tema das Capabilities.
952 Ver dela “Difference as a Resource for Democratie Communication” (1997, p. 383ss). Tam-
bém Young, 2000 e 1996.

466
Esquema 25.02. Modelos de democracia segundo David Held (1993, p. 271)
Democracia liberal Marxismo

Democracia Democracia
protetora desenvolvimentista

Democracia
desenvolvimentista
radical

Democracia elitista
competitiva

Pluralismo Teorias neomarxistas


clássico do Estado
Neopluralismo
Fim das Teoria unidimensional
ideologias da sociedade

Teoria do estado Teoria da crise


sobrecarregado de legitimidade

Democracia legal Democracia participativa


(Nova Direita) (Nova Esquerda)

outro sistema empírico (mesmo do seu modelo), de suas instituições concretas ou


de seus postulados, pode ser altamente nociva para a evolução que dito Estado pe-
riférico pode realizar no processo democratizador incipiente. Pretender acelerá-lo
é também destruí-lo. Frequentemente, o neocolonialismo europeu, desde 1989,
igualmente por parte dos Estados Unidos, maneja a ideologia da “democratiza-
ção” como uma doutrina abstrata, perversa, que oculta os fins expansionistas do
Império militarista (desde a política exterior dos dois presidentes Bush). Como se
poderia democratizar o Iraque nas mãos de uma tirania sunita, que tinha, contu-
do, princípios nacionalistas no uso do recurso natural do petróleo e do gás, por
meio de uma atroz guerra de destruição massiva, cuja finalidade era apropriar-se
de petróleo? O cinismo sem limite encobre, com um aparente processo de “de-
mocratização”, a ocupação pura e simples dos poços petrolíferos e a apropriação

467
ilegítima (ante todo tipo de direitos, tratados ou leis nacionais ou internacionais)
de ditos recursos.
A “democratização” de um sistema empírico deve sempre partir da realidade
existente, criando novas instituições em coerência com as já existentes nesta cul-
tura política concreta. Não se deve, então, confundir os princípios com os postu-
lados, com os modelos e com os sistemas políticos concretos. Nenhum sistema
político concreto pode ser dito como perfeitamente democrático. Todo sistema tem
deficiências antidemocráticas. A democratização é um processo contínuo ao infinito
que, como a linha assíntota, nunca poderá identificar-se com seu conceito. “Con-
ceito” que, na verdade, não existe, porque o princípio é exigência normativa, mas
não uma descrição conceitual com conteúdo. Também o postulado é um enun-
ciado impossível de orientação empírica (sem conceito positivo). Os modelos são,
por definição, particulares, isto é, têm conceito positivo, mas não da democracia
como tal. Um sistema empírico democrático perfeito possível não pode existir (por-
que é teoricamente contraditório). A pretensão do império militarista de impor
uma institucionalização exemplar de democracia a outros países é, no melhor dos
casos, uma “ilusão transcendental”. Estrategicamente, diz que pretende organizar
em concreto o sistema democrático propriamente dito para um país periférico ou
pós-colonial débil, encobrindo, porém, intenções perversas de domínio antidemo-
crático. Assim, a “democracia” se transforma em seu contrário: na justificação de
uma ação despótica e brutal (o mesmo pode ser dito dos “direitos humanos”, da
“ justiça”, etc.).

468
§ 26. O PRINCÍPIO MATERIAL DA POLÍTICA: FRATERNIDADE

[401] O princípio material da política poderia ser enunciado, de maneira ini-


cial e com a máxima simplicidade, como o dever do querer viver de cada um dos
membros e da comunidade política como totalidade. É a força normativa que im-
pulsiona, de dentro, ontologicamente, a própria tendência à permanência na vida
pela comunidade.953
Tudo o que se argumenta democraticamente deve estar orientado pela pretensão
política de justiça, cujo componente material é a pretensão política de verdade prática.
Em último termo, de modo abstrato, universal e, a) negativamente formulado como
proibição de uma máxima não generalizável – como nos indica Wellmer (1996) –
poderia ser enunciado num de seus aspectos: “Não matarás o antagonista político!”.
Não é justo (em referência a uma justiça material), não é político, e, por isso, quem
não cumpre este imperativo teria ultrapassado o limite, deixando atrás o campo
político porque eliminou o próprio sujeito da política (e, por isso, tampouco é de-
mocraticamente legítimo, em relação à legitimidade real e não somente formal), ao
decidir-se, em princípio e abstratamente, pela negação da vida humana do opositor.
b) Positivamente, ao contrário, este princípio seria enunciado resumidamente: “De-
vemos produzir, reproduzir e desenvolver a vida de todos os membros da comuni-
dade política!”, o que inclui a vida de todos, inclusive a própria vida como membro
da comunidade sobre o que tem responsabilidades políticas, porque, como escreve
Wittgenstein, no dia 10 de janeiro de 1917, “se o suicídio está permitido, tudo está
permitido” (apud Hinkelammert, 1996, p. 19). Este princípio não é somente con-
dição absoluta material de todos os demais; é componente essencial do conteúdo de
todos os momentos constitutivos da vida política, do campo político como tal, das
ações estratégicas e das instituições políticas em geral, do poder como potentia.
É neste sentido o modo como um princípio pode determinar outro princípio,
desde a determinação própria de sua esfera – agora materialmente. O princípio ma-
terial da vida humana no campo político determinará os conteúdos e dará orientação
ao discurso da comunidade política democrática regida pelo princípio de legiti-
midade formal. O princípio procedimental de legitimidade impera na esfera dos
momentos de fundamentação e justificação normativa. O princípio material rege a
orientação dos temas do discurso, na esfera da satisfação dos membros, enquanto
podem reproduzir e acrescentar a qualidade de suas vidas imediatas. Como temos
visto, o princípio formal determina o princípio material (ecológico, econômico e
cultural) em todos os momentos em que for preciso decidir consensualmente algu-
ma medida, quando for preciso alcançar algum acordo em todos os níveis da ação
e da institucionalidade. Mas o princípio material orientará todo momento discur-

953 Ver a Tese 9.0 de 20 Teses de Política (Dussel, 2006).

469
sivo, enquanto permite descobrir o próprio conteúdo da discussão, da decisão, do
ato ou da instituição.

1. A razão político-material

O campo político fica sempre delimitado em seu nível material por uma pri-
meira exigência: não negar a vida da própria comunidade política, dos antagonis-
mos políticos, enfim, de toda a humanidade. O tema indica, mas não é idêntico,
quando falamos da “luta pela autoconservação” (Honneth, 1992, cap. 1). Com
efeito, a vida humana, como é óbvio (mas, não por ser trivial, é aceitável, compreen-
sível ou claramente analisado), é o pressuposto absoluto e o fim de toda política.
Se os agentes políticos morrem (de fome, por repressão, perseguição, guerra, etc.),
o campo político desaparece porque desaparecem os atores de tal campo ou por-
que se transforma em outro tipo de campo (por exemplo, num campo militar).
A vida é a condição absoluta, mas, ainda mais: é o conteúdo da política e é, por
isso, igualmente, seu objetivo último, cotidiano, o de seus fins, estratégias, táticas,
meios, estruturas, instituições. Mais ainda se considerarmos a situação ecológica
tão precária como aquela na qual se encontra atualmente humanidade, para a qual
a vida das gerações futuras, no longo prazo, não está garantida de nenhuma manei-
ra, se consideramos as condições da destruição ecológica da Terra e o imobilismo
político das grandes potências para tomar decisões globais, planetárias, urgentes e
impostergáveis, que sejam eficazes; questões totalmente ausentes na agenda prio-
ritária dos agentes econômicos, militares ou políticos dominantes.
Para compreender a problemática, devemos ter clareza sobre o tipo de racio-
nalidade que se exerce neste nível da política. É sabido que a ratio política é com-
plexa (já que inclui diversos tipos de racionalidade), mas, num modo específico
de seu exercício, tem por conteúdo (materialiter) fundamental o dever produzir,
reproduzir e desenvolver a vida humana na comunidade, publicamente, em última
instância, de toda a humanidade, no longo prazo. Vale dizer, tendo a própria vida
humana como critério, se tem a pretensão de ter acesso à vida política (enquanto
responsavelmente se busca honestamente dita reprodução através da política) e,
por isso, sua pretensão é universal.954 Neste sentido, a razão terá como exercício
específico a racionalidade ou a razão político-material.
Aqui, queremos tratar, em primeiro lugar, de uma questão de suma atualidade.
O princípio material determina o âmbito da pretensão de verdade política – que
sempre é jogada na decisão falível que nunca tem certeza absoluta. O estudo de
Habermas sobre a obra de Robert Brandom acerca da questão da verdade prática

954 Este tema foi tratado no capítulo 1 da Ética da Libertação (1998).

470
pode servir para situar o tema. Vejamos brevemente o problema para poder mos-
trar nossa posição a respeito.
Brandom que, ao final, propõe um objetivismo absoluto de tipo ontologica-
mente hegeliano; e Habermas, que tem uma teoria consensual da verdade prática
(como Apel), não chegam ao que desejam sugerir como a última referência veraz
do modo de realidade da vida imediata da comunidade política. Ao faltar-lhes uma
referência forte, própria do realismo crítico – no meu caso, este realismo crítico
me é exigido por necessidade de saber incorporar na política a reponsabilidade
material do tema social, da fome dos oprimidos, da miséria nas comunidades dos
Estados pós-coloniais, da reprodução de uma vida humana não garantida nem
pelos Estados do “centro”, nem pelo mercado globalizado neoliberal, etc. –, se cai
num certo formalismo ou procedimentalismo que, embora sustente a normativi-
dade (como no caso de Habermas, não assim no de Bobbio), a falta de critérios
materiais não pode sequer exercer plenamente a função discursiva, da qual fixa as
condições formais, mas se abstém de intervir no conteúdo da própria discussão
(que deixa em mãos de especialistas).
Inteiremo-nos, embora só introdutoriamente, da exposição de Habermas sobre
a obra de Brandom. O que nos interessa para esta Política da Libertação é poder
seguir afirmando uma pretensão política de verdade – referente ao real material, aos
fatos empíricos ecológicos, econômicos e culturais, desde a perspectiva da subje-
tividade corporal vivente do cidadão. A política não termina só com a pretensão
política de legitimidade (formal). A fome ou sofrimento de um povo pode ser de-
tectada cognitiva e afetivamente como fatos aos quais se tem acesso desde uma
referência ao real por parte da nossa subjetividade, acesso ao real que se encontra
mais além de uma mera interpretação intersubjetiva válida de valores. Com a teo-
ria consensualista da verdade, Habermas pretende ir mais além do objetivismo
absoluto de Brandom. Mas a recuperação de objetividade como referência ao
mundo não a pensamos como suficiente. Deveremos também ultrapassar a posição
consensualista de Habermas e nos abrir cognitiva e tendencialmente a um âmbito
onde a vida da comunidade nos possa servir de critério real de descobrimento955 dos
problemas mais urgentes da política no presente (num sentido forte e não somente
e não meramente consensual).956
Habermas nos diz que “A realidade com a qual confrontamos nossos enun-
ciados não é uma realidade desnuda e, sim, ela mesma está já sempre impregnada
linguisticamente. A experiência com a qual controlamos nossos pressupostos está

955 Ali onde a vida está em risco de perecer, o tema aparece como mais agudo para ser tratado.
A vida é, assim, critério de descobrimento.
956 Ver o que já foi escrito sobre a diferença entre “verdade” e “validade” (Dussel, 1998, Índice
alfabético de temas, o conceito: “verdade” [ed. esp., p. 653]).

471
estruturada de forma linguística e incrustada em contextos de ação” (Habermas,
1999b, p. 48).957 Esta afirmação é perfeitamente aceitável, mas disto não segue
que não exista um acesso ao real que não seja exclusivamente linguístico. Contra G.
Vattimo, que afirmava: “Não há fatos, há exclusivamente interpretações!”, replica-
va-lhe, em Bogotá: “Há fatos, e estão sempre interpretados!”. Da mesma maneira,
todo “estado de coisa” objetivo entra sempre já (segundo a fórmula da condição
ontológica de possibilidade) num horizonte linguístico, cultural, de estruturas po-
líticas, etc., mas, ao mesmo tempo, faz referência ao real enquanto tal.958 O modo
como o real é constituído neuronalmente em nossa subjetividade temos denomi-
nado verdade real – captação de realidade originária, sempre ligada à estrutura lin-
guística, afetiva, imaginária, etc., mas delas discernível: um centauro é um objeto
puramente racional, o ser humano que veio esfomeado, implorando esmola, é per-
cebido como algo de “seu”, desde si, consistente substantivamente e independente
da percepção que dele se possa obter959.
Brandom trabalha com uma terminologia própria, na tradição pragmática
e kantiana. Mais além do horizonte do estímulo sentido (sentience, denomina-o
Brandom) (1998, p. 134), encontra-se o horizonte humano (a sapience), no qual à
vigília (aware) se agrega o “poder dar e exigir razões”, o que nos permite sermos
“crentes”, isto é, a algo “tomando-como-verdadeiro” (“beliving is taking-true”) (1998,
p. 134). Cada participante, na discussão (no dar e exigir razões), valora a pretensão
de validade do outro com sua própria e vai como que “marcando pontos” (score-
keeping), os sucessos que cada um alcança na discussão,960 e tudo isso de maneira
pública, em última análise. O saber linguístico é o meio da disputa que tem regras
implícitas. O falante pode explicitar estas regras, sendo as regras lógicas as mais
abstratas –, mas sempre em função pragmática. Com o giro linguístico, “a autori-
dade epistêmica da qual gozavam as vivências privadas de um sujeito se transfere
às práticas públicas de uma comunidade linguística” (Habermas, 1999b, p. 141).
A Brandom interessa o ouvinte (o intérprete) mais que o falante, o que recebe
e o enunciado do outro com pretensão de verdade e valora seu “peso” desde sua

957 Habermas, Wahrheit und Rechtfertigung, Introdução, VII.


958 Ver Ética da Libertação (Dussel, 1998 [99]).
959 Num dado momento do amadurecimento do cérebro infantil, este começa a distinguir entre
o puramente imaginário e o real. Para isso, o cérebro deve atingir um grau de desenvolvimen-
to suficiente. Esta captação de realidade do real deve ser diferenciada da designação de um
lugar na estrutura linguística, de um sentido interpretado, de uma valoração hierarquizada,
etc., na totalidade dos mapas neocorticais e do sistema límbico. Uma teoria puramente
consensual da verdade (que somente é teoria da validade) não é suficiente para uma política
que pretenda resgatar a importância da esfera material da política e do exercício do poder.
960 Como no esporte do futebol um antagonista pode ir 2 a 1, e depois, 3 a 1 e posteriormente
3 a 2, etc. Cada “ponto” é um argumento não refutado ou mais convincente do que o do
contrário.

472
própria perspectiva (de intérprete-ouvinte). O ouvinte-intérprete considera as ati-
tudes práticas do falante (a “pretensão de sinceridade”, por exemplo, estudada por
Habermas), a partir de suas próprias “atitudes práticas” (practical attitudes). Tudo
isso leva a que, depois do ir e vir das razões avaliadas desde as atitudes de ambos
os contendores, alguém começa a “desacreditar-se” aos olhos de seus oponentes.
O Knowing-How (o modo de conhecer) tem certa prioridade sobre o Knowing-That
(o que se conhece), “em termos de capacidades ou habilidades práticas implícitas”
(Brandom,1998, p. 135) e em consideração às consequências práticas supostas:961

As expressões chegam a significar o que significam por serem usadas como são na
prática, e os estados e as atitudes intencionais têm os conteúdos (contents) que possuem
em virtude do papel que exercem na economia da conduta daqueles aos quais são atri-
buídos (Brandom, 1998, p. 134).

[402] Por isso, “nossas atitudes cognitivas devem, em última instância, res-
ponder a estes fatos”962 que transcendem (transcendent) as atitudes (1998, p. 137).
Pareceria, então, que haveria uma objetividade dos conteúdos que de todas as ma-
neiras pressupõe a normatividade (o obedecer regras) da fala, no sentido de que
somente o que resiste argumentativamente a objeções pode ser tido como verda-
deiro. Habermas indica que Brandom tende a não distinguir suficientemente entre
“normas de ação [que] vinculam a vontade” com as “normas de racionalidade [que]
conduzem sua mente” (Habermas, 1999b, p. 149)963 e, por isso, identifica, como
pragmático que é, a atitude performativa com o verdadeiro, onde o verdadeiro é o
que se trata como tal, como verdadeiro. Isto significa afirmar um mundo igual para
todos, com independência da perspectiva de cada um. No mundo existem objetos
aos quais nossa conduta se liga. Mas há, também, enunciados sobre este “estado
de coisas”. No primeiro caso, algo é objetivo; no segundo, é tido como tal. O intér-
prete, então, pode se opor à pretensão de verdade do segundo. O saber do mundo
não é idêntico ao saber linguístico. A referência “dedística” (do indicar com o dedo)
não necessita a segunda. Mas, invertendo a tradição, Brandom concebe, em última
análise, que “a objetividade de nossos conceitos e das regras materiais [estão] anco-
radas num mundo que em si está estruturado conceitualmente” (Habermas, 1999b,
p. 166),964 de uma maneira muito semelhante à hegeliana. Os fatos do mundo são

961 Brandom usa todo um parágrafo para expor o tema de “Contenido conceptual e inferência
material” (1998, p. 102ss).
962 “O apropriado do juízo [...] está determinado pelo como as coisas realmente são, indepen-
dentemente (independently how they are taking to be) de como se considere que sejam” (1998,
p. 137).
963 Esta posição é devedora a Wittgenstein e Heidegger.
964 Brandom escreve: “A concepção dos conceitos como uma concepção articulada inferen-
cialmente permite se fazer uma imagem do pensamento e do mundo sobre o qual se pensa

473
aqueles que podem ser enunciados em orações verdadeiras (sendo o mundo a tota-
lidade dos fatos), porque o mundo é de natureza linguística. Caímos numa espécie
de idealismo absoluto da objetividade. Brandom absolutizou o consenso fático
da comunidade linguística (que é a que vai “pontuando” os acertos e desacertos
dos argumentadores), onde se encontra o mundo objetivo e os indivíduos. Para
Habermas, na comunicação não existe meramente uma relação entre argumen-
tadores, desde o coro dos espectadores (a comunidade linguística) que observa e
julga. Na comunicação – objeta com razão Habermas contra Brandom – os dois
interlocutores têm atitudes muito diferentes ao serem meramente avaliados por
um jurado impessoal. O falante propõe um ato de fala com pretensão de verdade
ante o ouvinte que pode pedir razões; neste caso, o falante dá razões e chegam a
um acordo (Cf. Habermas, 1999b, p. 175ss ). O acordo não é simplesmente o ter
impessoalmente conseguido uma “pontuação” (como numa luta de boxe), onde
um venceu o outro. Brandom ainda se move dentro de um paradigma da razão
instrumental e de um solipsismo da consciência, e a comunicação tem somente
finalidades cognitivas.
Até aqui seguimos Habermas e de certa forma lhe damos razão referente à
posição de Brandom.965 Mas, agora, deveríamos nos separar de Habermas, para
quem a pretensão de verdade acerca de algo no mundo tem ainda aspectos de certo
idealismo – criticável desde um realismo crítico. Efetivamente, se é aceitável que
se deva distinguir os fatos das normas (objetividade da normatividade), não é tão
aceitável que é preciso deixar de articulá-los em certos casos. Habermas escreve:
“Nas inferências práticas de tipo moral [...] se faz já patente a assimetria na cate-
goria das razões: para a justificação destas intenções práticas, os fatos (Tatsachen)
não constituem nenhuma base suficiente, e não tão somente resultam essenciais”
(Habermas, 1999b, p. 184). Isto porque, como se sabe, a justificação dos “pontos
de vista normativos” sempre “se apoiará menos em argumentos fáticos do que em
valorações fortes” (1999b, p. 184). Quer dizer, a normatividade dos atos se funda
nos valores da comunidade, da cultura, nas estruturas sociais intersubjetivas. Não
existe pretensão de verdade prática ou política real, mas haverá somente preten-
são de retidão ou de legitimidade. Criticamos esta posição na Ética da Liberta-
ção (1998, cap. 2). É interessante que, no capítulo 4 de Verdade e Justificação, ao
abordar a posição de Hegel e referindo-se a Marx, toca aspectos que já indicamos
em outro parágrafo, mas que desejamos retomar aqui. Com relação à posição de
Hegel, Habermas o cita:

como articulados conceitualmente de igual modo e, nos casos afortunados, identicamente”


(Brandom, 1998, p. 622).
965 Haveria muitos outros aspectos da reflexão habermasiana à qual nos deveríamos referir
se quiséssemos aprofundar este debate, tais como a identidade para Brandom entre fato e
norma, mas não podemos nos estender.

474
A boca (Mund) que fala, a mão (Hand) que trabalha, [...] são órgãos realizadores e execu-
tores [...]. Linguagem e trabalho são exteriorizações pelas quais o indivíduo [...] deixa que
o interior caia totalmente fora de si.966 O interior – comenta Habermas – se exterioriza
num meio que vai mais além da subjetividade (Habermas, 1999b, p. 198).

Habermas, contudo, nunca desenvolverá este âmbito da “mão que trabalha” que
se encontra dentro dos campos da ecologia, da economia ou da cultura (também
com seus instrumentos materiais), que devem ser distinguidos do ambiente da
linguagem (a boca). A realidade das coisas reais (não dos objetos do mundo) está
situada dentro do que queremos chamar cosmos (para distingui-lo de mundo, Welt).
A totalidade das coisas reais (a omnitudo realitatis de X. Zubiri) é o referente ao
qual o trabalho se dirige e transforma (muda realmente sua forma, pela ação física
da mão). Esta realidade não é só e primeiramente objetiva; é resistente, consistente
fisicamente desde si, “de seu”, captada neuronalmente como um prius à própria
captação: são as coisas reais antes de serem objetos conhecidos, por conhecer ou
desconhecidos, cuja constituição própria nada diz em relação ao conhecimento
ou à sua posição de valor de uso (num nível prático de necessidades). A consis-
tência própria do real, no que é seu e é anterior e independente (lógica e realmente)
da subjetividade. Habermas (como Heidegger) somente se refere a um mundo
existencial, linguístico, “totalidade de fatos” (assim definido por Wittgenstein ou
Brandom), referência objetiva da linguagem. Enquanto que, pelo trabalho, se
acede ao cosmos967 como o real e como realidade objetiva, enquanto incorporado
a um mundo (totalidade ontológica ou existencial), que pode realmente transfor-
má-lo num mundo cultural (pelo trabalho). Mas, igualmente, o cosmos pode par-
cialmente ser conhecido enquanto realidade objetiva e é referência última da estru-
tura linguística em posição veraz. Este acesso sempre linguístico, interpretativo,
mundano, à realidade do real tem a vida humana como critério de acesso. Quer
dizer, pragmaticamente, o real interessa à subjetividade corporal vivente enquanto
é sempre e de alguma maneira mediação para a vida – somente neste caso a von-
tade tende a este aspecto do real e fixa a referência do momento cognitivo: a coisa
real se torna objeto constituído. Esta referência ao real (sempre sob as condições
linguísticas, interpretativas, existenciais do mundo, mas também referente à reali-
dade da coisa real através de fatos empíricos) é o que constitui o conteúdo material
de todo ato voluntário e cognitivo. A razão material, que tem como critério de ver-
dade a reprodução e o crescimento da vida do sujeito, acede ao real para captar seu
conteúdo objetivo, constituído neuronalmente, isto é, atualizado na subjetividade
como captação do real. O real tem uma consistência física no cosmos, “de seu”. O

966 Até aqui o texto da Fenomenologia do Espírito, citado por Habermas.


967 Ver Filosofia da Libertação (Dussel, 1977, 2.2.3).

475
conhecido (e amado) tem uma existência neuronal (intencional, diria E. Husserl),
é um objeto constituído que diz referência ao real.
O quase-idealismo da teoria consensual da verdade de Habermas (que é, na ver-
dade, teoria da validade intersubjetiva), ao não descobrir a capacidade material da
razão, impede-lhe de analisar toda a esfera dos conteúdos referentes à vida imediata
da comunidade política, em suas esferas ecológica e econômica, reduzindo – como
J. Rawls, Ch. Taylor e tantos outros – o aspecto material da existência humana
à esfera da cultura e aos valores fortes de dita cultura. A cegueira dos aspectos
materiais da política (como a ecologia e a economia) tem as piores consequências.
Numa Política da Libertação, há fatos (dos que Habermas indica que “nas refe-
rências práticas de tipo moral [...] os fatos não constituem nenhuma base suficien-
te”) que têm relevância para descobrir aspectos normativos. O fato real de que o
ser humano necessita alimentar-se (por ser uma subjetividade corporal vivente) é o
ponto de partida para justificar a obrigação política de prover tal alimento à comu-
nidade política por parte de quem exerce o poder (potestas) como representante.
Quando uma população tem um alto percentual de habitantes com fome, tem-se
um fato; a política deve encarregar-se, por exigência normativa, de tal realidade à
qual se acede por fatos empíricos. Há fatos, que não são meros valores culturais nem
de outro tipo (já que na verdade fundam os valores), que se encontram na base da
normatividade968 da política, em seu aspecto material. Os fatos da extinção de es-
pécies animais, o efeito estufa que põe em risco o futuro da humanidade, etc., são
descobertos pela razão material (um tipo de racionalidade), que mede toda atua-
ção humana desde a vida humana como última referência, como fatos perigosos,
efeitos do comportamento humano global – portanto, não são já fatos meramente
naturais e, sim, fatos práticos de responsabilidade política – que devem ser evitados.
A razão instrumental considera a relação técnica meio-fim (e “fim” num sentido
técnico). A razão material considera os fins da ação instrumental desde o horizonte
da possibilidade ou impossibilidade da conservação e aumento da vida humana,
no médio e longo prazos. Julga, portanto, os fins e os valores (que, para M. Weber,
são referências dadas, irrefutáveis, legitimadas por tradição). Um meio para um
fim racional, portanto, para Weber, de um sistema dado, eficaz para a razão ins-
trumental, pode ser considerado pela razão material como irracional, já que põe
em perigo a vida humana. O sistema capitalista é considerado por muitos críticos

968 Como repetimos frequentemente, não é que os fatos fundem o “dever-ser” e, sim, que o mo-
mento normativo já está presente no próprio fato, por ser um aspecto do ser humano como
ser vivo. Somos responsáveis comunitariamente pela sobrevivência de todos os membros
do grupo pelo fato de que somos autoconscientes ou que podemos receber nossa vida como
“encargo” (sob nossa responsabilidade: nesta responsabilidade, começa já a normatividade
da existência humana).

476
como uma estrutura cuja eficácia ou critério de produtividade se tornou irracional;
os efeitos não intencionais põem em risco a vida, enquanto tal, no planeta Terra
e a vida humana pela produção de efeitos negativos não intencionais, tais como
a pobreza estrutural crescente. A vida humana, como critério da razão material,
julga os sistemas a partir do seu conteúdo; julga seus fins, seus meios. A legitimidade
formal nos fala da autonomia e da liberdade dos participantes. As exigências da
racionalidade material, sempre em referência à vida humana imediata, nos falam
dos meios e dos fins devidos para a reprodução e desenvolvimento da própria vida,
como condição e momento constitutivos da política enquanto tal.

2. Conatio vita conservandi: fraternidade e dikaiosyne

[403] Se a razão material acede à realidade para dar o conteúdo à política,


a vontade como querer-viver da subjetividade corporal é o momento tendencial
desta mesma referência da subjetividade à realidade do real. A vontade é um querer
conservar e acrescentar a vida, como vontade política. Esta tendência se refere à
realidade cósmica (na ecologia e na economia) ou à realidade cultural ou do Outro,
em cujo caso o outro sujeito é querido como última referência em dita reprodução
e aumento da vida, como comunidade. Desta maneira, o poder da comunidade
como potentia é o correlato da razão material. A razão capta subjetivamente o
aspecto real necessário para a vida; a vontade tende a este aspecto real, aspirado
à satisfação, isto é, ao poder subjetivar esta substância física e nutricional da rea-
lidade objetiva e sua própria subjetividade, ou a companhia do Outro também
como afirmação de vida comunitária, já que o solitário está perdido: não poderá
reproduzir nem aumentar sua vida, simplesmente se extinguirá. O trabalho, como
relação com a realidade física, é objetivação da subjetividade como preparação, por
transformação da realidade, do consumo como subjetivação da objetividade trans-
formada em satisfatoriedade e como mediação prática com os outros membros
da comunidade – em cuja divisão do trabalho estriba a possibilidade do aumento
civilizatório da própria vida humana social.
O racionalismo nos acostumou a tratar política desde o ponto de vista da razão
prática. É necessário não esquecer nunca o desejo, a vontade, a conatio spinozista
que, neste caso, é a tendência à conservação da vida humana como tal: conatio vita
conservandi – modificando a expressão clássica.
Se a fraternidade é a amizade entre os sujeitos, intersubjetiva, a dikaiosyne ou
justiça indica que esta fraternidade ou amor pelo Outro como igual deve empiri-
camente concretizar-se em lhe atribuir materialmente o que lhe corresponde: o
fruto do seu trabalho como sobrevivência ecológica, justiça econômica e direito à

477
identidade valorativa de sua própria cultura. “Dar ao outro o que materialmente
lhe corresponde” é o momento produtivo (ser humano-natureza) da relação prática
(sujeito-sujeito), na qual se articulam fraternidade benevolente e justiça pela equi-
dade de seus conteúdos empíricos em relação à vida (vida ecológica, vida econômica,
vida cultural) desde o poder, biopoder.
Numa obra sugestiva, Políticas da amizade (1994), Jacques Derrida desenvol-
ve uma reflexão política, mas não sobre a razão formal-discursiva política e, sim,
sobre o que Max Scheler chamaria a ordo amoris: a ordem do amor político. A
amizade política é um aspecto material do poder como fraternidade que unifica as
vontades e as “liga” num manejo que multiplica sua força somada funcionalmen-
te. Esta é uma determinação material, um aspecto do conteúdo da política. Com
efeito, a amizade ou fraternidade política une a comunidade política (e foi uma das
dimensões utópicas pulsionais da revolução francesa: “Igualdade, fraternidade...”,
e de Rousseau em sua expressão “a vontade geral”). Não há poder comunicativo
(potentia) sem fraternidade; é a outra cara da razão discursiva, não como oposição,
isto é, como uma razão discursiva negada, mas como articulação com a razão do
outro: como vontade comum graças ao amor. Não é o contrário nem o oposto;
não é uma alternativa. Arquitetonicamente, é outra dimensão do mesmo. Ptah, o
deus egípcio, tinha duas manifestações: Thot, a língua (a razão, o logos grego ou a
dabar semita) e Horus, o coração (o amor criador). Da mesma maneira, a dimen-
são material ou de conteúdo da política tem uma razão político-material (fun-
damentalmente ecológico-econômico-cultural) e uma pulsão de coesão fraterna
(o apolíneo nietzscheano, mas ainda positivamente, como solidificante do poder
político originário: a fraternidade interburguesa opunha uma frente unida diante
do antigo mundo feudal e, depois, diante dos latifundiários ou do mercantilismo
anti-industrial).
É interessante observar que, seguindo a tradição fenomenológica iniciada por E.
Husserl (Cf. Dussel, 1973b, § 16ss, p. 119ss), Max Scheler pretenda superar o racio-
nalismo formalista descrevendo um âmbito intermediário entre objetos racionais e
puramente afetivos, o reino dos valores (Werte). Os valores não são objeto da razão
conceitual teórica, nem de alguma potência psicológica do desejar e, sim, constituí-
dos e descobertos por um “sentimento estimativo” (Fühlen) (Scheler, 1954, p. 60),969
não puramente objetivo, mas determinado pela objetividade pura dos valores. Esta
faculdade que estima valores seria, para nós, a razão prática articulada à vontade
que tende à satisfação, como realização das mediações para a vida. É de se notar que
tanto M. Scheler como Nicolai Hartmann escrevem páginas significativas sobre
a relação dos valores, o sentimento estimativo e a vida (Scheler, 1954, p. 289-309;

969 M. Scheler, Der Formalismus in der Ethik und die materiale Wertethik, I, I, 3.

478
Hartmann, 1962, p. 340-343). Hegel, por sua parte, tocou ambos os temas em seu
sistema,970 da mesma forma, Nietzsche e M. Heidegger.971
Scheler compreendeu profundamente que a pura razão prática kantiana, que
procedia pelo imperativo formal a priori – ao menos, na transcendental –, deixava
de lado completamente o âmbito tendencial (já que o respeito era um sentimento
igualmente formal) e valorativo. Por isso, pretendeu descobrir um âmbito material
(de conteúdos) e que, não obstante, foram a priori analisáveis desde a epokhé feno-
menológica (um tipo de noémata constituído por uma intenção ou nóesis especifi-
camente ética). Eram os valores captados por este Fühlen (sentimento estimativo).
Este âmbito material teve sorte, já que G. Moore, M. Weber, J. Rawls, K.-O. Apel
e J. Habermas aceitam-no como claramente existente e válido em sua objetividade
material. E mais, é a única materialidade que os três últimos citados aceitam. O
estatuto ontológico dos valores nunca foi bem definido (já que vai desde um plato-
nismo realista até o subjetivismo não empírico e, por isso, não válido para a ciência
no sentido forte, sendo que é preciso saber descrevê-lo de maneira satisfatória).
Todos observam que existe uma relação entre os valores e a vida humana. O
que ocorre é que a vida é dicotomizada em momentos contrapostos. A vida bio-
lógica vegetativa ou animal do corpo humano, de um lado, e, por outro, a vida
espiritual ou mental.972 Embora Hartmann admita que “o ser humano não criou a
vida e, sim, que está constituída, é real (wirklich), foi-lhe dada (ihm gegeben)” (Hart-
mann, 1962, p. 341) – tal como expressava E. Bloch –, opina que “o valor da vida é
ontologicamente a base do sujeito” (1962, p. 340). Entretanto, a “vitalidade, a força
da vida, [...] a saúde” são “bens supremos” (1962, p. 341), mas que devem ser dis-
tinguidos da vida do ser espiritual do ser humano. Scheler, por seu turno, mostra
“a referência do valor à vida”: “Os valores e ter valor são absolutamente relativos à
vida” (Scheler, 1954, p. 290).973 Há, contudo, valores “úteis” e outros “espirituais”;
estes últimos são os valores “mais altos” (höchster) em relação aos valores “bioló-
gicos” (1954, p. 302) e, como tais, são independentes deles.974 Desta maneira se
obscurece a enunciada relação da vida humana com os valores indicados.
[404] Hegel distingue perfeitamente o “sentimento prático” (praktisches Ge-
fühl), tanto do entendimento, que constitui objetos, quanto da razão prática ou

970 O “sentimento prático” (das praktische Gefühl), na Enciclopédia (§ 471ss), por um lado; e, por
outro, o tema de “a vida” (das Leben), na última seção sobre “A Ideia”, cap. 1 (Hegel, 1971,
VI, p. 469ss).
971 Ver o já assinalado no § 14 desta Política da Libertação.
972 Nicolai Hartmann é um caso paradigmático, já que chega a escrever uma obra sobre O
problema do ser espiritual (Hartmann, 1962b).
973 “Werte und Wertsein überhaupt sind relativ auf das Leben”.
974 “[...] die geistigen Werte [...] die von seiner biologischen Organization unabhängig sind” (1954,
p. 302).

479
dos sentimentos em geral. Este “sentimento prático” é um momento do “espírito
prático [...] e como tal tem o conteúdo (Inhalt) da razão, mas como imediatamente
singular (Einzelnen)”,975 não como universal. Para Hegel, esta faculdade é um “sen-
timento” do “dever-ser”, um sentimento ético.
Seria preciso ainda radicalizar a reflexão. Com efeito, os valores existem de al-
guma maneira como a priori da ação prática. Se tomarmos em conta os recentes es-
tudos da neurologia cerebral976 – em investigações como as de A. Damásio (1999 e
2003) – na linha das reflexões de Nietzsche, neste ponto acertadas, se assinala que
uma mediação, uma ação possível ou uma coisa que nos enfrente no mundo (como
uma pedra ou um animal), como possível alimento ou como predador perigoso,
ou como instituição social ou histórica, tem valor pelo lugar que ocupa no ciclo
meio-fim, cuja última instância é a reprodução ou aumento da vida. A hierarquiza-
ção das coisas reais com valor é necessária, já que se deve saber situá-las dentro de
uma ordem memorizada, lexigraficamente determinada (nomeada) numa escala
de maior ou menor utilidade no momento de usá-las. A corporalidade vivente
cerebrada, desde as exigências ecológicas, econômicas e culturais, fixa o valor das
possibilidades existenciais, sempre humanas,977 e determina a periculosidade do
que mata ou o valor positivo do que é mediação da vida humana (tudo, em última
análise, subsumido pelos conteúdos culturais). Vale dizer, a mediação tem valor,
vale (valha a redundância) enquanto está integrada a um ciclo de produção, repro-
dução ou aumento da vida humana. O valor indica que a mediação é efetivamente
meio para a vida humana. A vida humana é, assim, o critério do valor de todas as
suas mediações, mas, como tal, não tem valor (contra o que opinam M. Scheler, N.
Hartmann ou A. Heller), porque tem dignidade. Marx indicava corretamente que
a vida humana (o “trabalho vivo”) não podia ter valor, porque era a “fonte criativa
do valor”: a mercadoria vale enquanto contém vida objetivada. A vida é o critério

975 Enziklopedie, § 471.


976 Ver o exposto na Ética da Libertação, cap. 1 (Dussel, 1988, § 1, I).
977 Com isto, estamos negando a superioridade a priori de valores culturais em relação a su-
postos valores biológicos. O ato de comer é biológico, mas é sempre subsumido como ato
cultural; é mais, a celebração política ou religiosa máxima frequentemente é um “banquete”
oferecido aos comensais (“O Reino de Deus é como um banquete...”). Todo ato humano é
sempre humano e o mais estritamente biológico não deixa de ser cultural e vice-versa. A
carnalidade vivente humana é “espiritual” até em seus mais obscuros recônditos. Não é o
banheiro o lugar dos excrementos, do odor fétido do resto não digerido do alimento neces-
sário para a vida? Contudo, os banheiros italianos contemporâneos não são obras de arte?
Os perfumes egípcios não são, desde há cinco mil anos, fragrância para eliminar os “olores”
do corpo humano vivo (que nas temperaturas do Nilo suavam e fediam ofensivamente às
narinas refinadas pela cultura)? A vida vegetativa e animal é subsumida unitariamente
pela vida humana. Geneticamente (como desdobramento do genoma humano) cada célula
humana viva é humana.

480
do valor, sem que ela mesma tenha valor, não porque não tivesse um conteúdo pró-
prio humano, normativo, ético, e, sim, porque é o critério último ético e político de
tudo o que vale. A vida humana é que dá valor econômico às mediações econômicas
da vida humana; é a própria vida que constitui o valor político de todas as media-
ções do campo político (ações e instituições) e, assim, em todos os campos. O tipo
de racionalidade que estima o valor ou descobre a relação de meio-fim em todas as
mediações para a vida é o que denominamos razão material prática.
Por isso, a vida humana é critério universal de verdade prática (nesse caso: polí-
tica). Do real que nos rodeia, de tudo o que se apresenta do cosmos real em nosso
mundo, prestamos atenção, interpretamos, recortamos cotidianamente (e também
na atividade científica, na ação prática política, etc.) tudo o que tem relação, em
última análise, com a vida humana, com nosso projeto singular, público ou político
de vida (seja qual for seu conteúdo cultural como “vida boa”). A omnitudo realitatis
(a totalidade das coisas reais em nosso mundo existencial e mais além do seu ho-
rizonte) somente aparece à nossa consideração enquanto tem a ver como mediação
de realização de algum aspecto da nossa vida. Verdade é a atualidade, na interio-
ridade construída neuronalmente de nossa subjetividade, da coisa ou instância
real. Pois bem, somente atualizamos, construindo objetualmente o real em nosso
cérebro, aquilo que tem relação com projeto concreto imediato de nossas vidas.
Neste sentido, a vida é critério de verdade, de verdade prática e de verdade política.
É a questão material por excelência. O que não entra no circuito do interesse pelas
coisas que a vida humana imediata desperta, fica fora de nossa consideração; quer
dizer, não é atualizada em nossa subjetividade. Pode ser parte do real, mas não é
realidade objetiva.
Devemos dar um passo adiante. Se do real que nos rodeia detectamos as me-
diações para a vida, são igualmente estas mediações as que atraem nossas ten-
dências, paixões, sentimentos, todas as estruturas do sistema límbico cerebral.
As tendências, pulsões, a vontade tem as mediações que permitem a produção,
reprodução e aumento da vida imediata e tendem a elas, antecipando como desejo
o gozo ou a satisfação da subsunção do nutricional ou necessário que essa media-
ção tenha para nossa vida corporal vivente-cultural. Se a criança deseja o açúcar,
é porque nele encontra a energia que necessita para cumprir as exigências de sua
vitalidade juvenil. Se o cientista deseja chegar à solução de um teorema, utiliza-se
de meios inferiores a superiores numa complicada sinergia de estruturas, o faz,
em última instância, para, por meio do conhecimento científico, poder produzir,
reproduzir ou aumentar a vida humana. A vontade, tal como a temos definido, é
o querer-viver. A razão material prática descobre ou conhece (constitui cerebral-
mente como objetos complexos) do real o que necessita manejar no campo político
para levar a cabo tarefas ecológicas, econômicas ou culturais. A vontade, por sua
vez, tende ao real como satisfator (da própria vida imediata). Se tende às coisas (que

481
se necessitam), também tende (pulsão para o Outro, amor, desejo metafísico, o cha-
maria em seu ápice E. Levinas) a outras subjetividades corporais viventes, a outros
seres humanos e, na política, a outros membros da comunidade em tal campo.
E também, o poder político primeiro (potentia) é a pluralidade de vontades uni-
das pelo consenso (de alguma maneira sempre racional), e agora é preciso chamar
a atenção neste aspecto, também solidificadas, soldadas pela fraternidade. Desde
Schopenhauer, o ser ou a realidade é vista como Vontade (Wille). Para nós seria
“Vontade de Vida” (Wille zum Leben). Trata-se do momento da vontade como
querer-viver-com-os-outros enquanto realização de uma satisfação profunda, já não
somente no nível erótico (do campo familiar), ou do jogo (no campo esportivo)
mas, na satisfação da companhia do Outro pela alegria que outra subjetividade
produz à subjetividade corporal vivente. Esta outra subjetividade, com a qual pode
contar, com a qual pode realizar ações públicas, institucionais, efetivas, eficazes,
em relação à mútua e gozosa realização e aumento da vida da comunidade política.
Mais poder (como potentia) tem uma comunidade quanto mais “amizade” pública
existe entre os cidadãos. Este é o tema da obra de J. Derrida.
Na Políticas da amizade, Derrida se impõe a tarefa de desconstruir o conceito
de fraternidade, o postulado da revolução francesa. Penso, contudo, e como ve-
remos no § 33 (quando vamos expor o momento crítico do princípio material da
política), que se enreda entre as mil pregas barrocas e se perde na última delas.
E. Levinas nunca chegou a entendê-lo e esta desconstrução o comprova. Com
efeito, tudo transcorre dentro do horizonte ontológico – com dois polos antité-
ticos –, mas nunca ultrapassa dito horizonte até o âmbito meta-físico ou ético,
onde, num terceiro momento, encontraria a solução à dupla aporia apresentada com
grande erudição (sobre as mesmas possibilidades de interpretação do “louco de
Turim”978). Na verdade, é um diálogo sustentado com Carl Schmitt, de passa-
gem com Nietzsche, com Aristóteles e muitos outros filósofos que abordaram
a questão da amizade. Derrida aborda, então, diversas políticas ou maneiras de
tratar o tema da “amizade” (ou “inimizade”), tendo como referência permanente
as duas aporias nietzschianas, que não consegue resolver – nem ele nem Nietzs-
che: “E talvez então chegará também a hora da alegria, quando diga: Amigos, não
há amigos! Grita o sábio, moribundo; Inimigos, não há inimigos! – grito eu, o louco
vivente” (apud Derrida, 1994, p. 45 e 68).979
[405] A primeira aporia se enuncia na contradição de jogar na cara dos amigos
(Amigos!) que não há amigos. Em relação a esta aporia, seja porque o “primeiro

978 Como se poderá ver mais adiante em minha interpretação, o ser “louco” significa uma sabe-
doria mais que ontológica, já indicada por Paulo de Tarso (personagem de “moda” na filosofia
política atual). Digo que o enunciado nietzschiano está “sobre” sua capacidade de interpreta-
ção, porque penso que o que genialmente enuncia nem ele mesmo chega a resolver.
979 Nietzsche, Menschliches, Allzumenschliches, 376 (Nietzsche, 1973, 1, p. 404).

482
amigo” é somente um, o que é muito pouco, seja porque também ele não pode
ser o “amigo perfeito”, porque a perfeita amizade é própria dos deuses, ou seja,
é empiricamente impossível. O certo é que permitirá muitas sutis reflexões (que
tanto agradam sofisticamente a Derrida). Mas, ao final, poderíamos perguntar:
por que se trata do “sábio moribundo”? Derrida nunca explica bem este fato.980 Em
referência à segunda aporia: grita aos inimigos (Inimigos!), mas, na verdade, eles
não existem. Esta segunda aporia ficará encoberta e sem solução em toda a obra
de Derrida. Menos ainda se pergunta porque o “inimigo” deixa de sê-lo e porque
é loucura viva decretar que tal inimizade deixou de existir. Desde qual horizonte
a inimizade desaparece e o inimigo pode se transformar em “amigo”? Este enigma
não terá solução para Derrida (porque nem o descobre como enigma). Sua reflexão
se desdobra à luz dos textos semitas que, embora os cite, nunca são esclarecidos
(e que, paradoxalmente, formam parte do melhor da expressão verbal de grande
beleza de Nietzsche, mas incompreensível para Nietzsche). Estes textos semitas
se referem à segunda parte do enigma nietzscheano. O primeiro, de maneira se-
melhante ao texto de Nietzsche, opõe amizade e inimizade (não é assim o texto
de Aristóteles, que somente fala de amizade; ou o segundo, do fundador do cris-
tianismo, que somente fala de inimizade): “Maldito o que não tem amigos, porque
seu inimigo se sentará no tribunal para julgá-lo. Maldito o que não tem nenhum
inimigo, porque eu serei, eu, seu inimigo no dia do juízo final” (apud Derrida, 1994,
p. 190). Nietzsche deve ter se inspirado num texto semelhante a este enunciado,
mas, repito, não pôde resolvê-lo. O outro texto somente se refere à inimizade, im-
pensável para Aristóteles, e que Nietzsche apresenta na segunda parte de seu enun-
ciado, lançando mão mais uma vez da tradição semita (tão detestada por Zaratus-
tra): “Ouvistes dizer: Amarás o teu próximo e odiarás teu inimigo. Mas, eu vos digo:
Ama teus inimigos e roga por aqueles que te perseguem” (apud Derrida, 1994, p. 317).981
Derrida tem a Schmitt como referência essencial, ainda que em suas idas e
vindas. A questão é, em seu fundamento, que a fraternidade na comunidade polí-
tica está atravessada por uma contradição que a fratura: a linha passa pelo amigo/
inimigo. Não é o inimigo total, é somente o inimigo público político dentro do
Todo da comunidade, da fraternidade. Mas esta fraternidade fragmentada, além
disso, é falo-logocêntrica, já que não é sororidade (irmandade com a irmã), mas
fratrokrasia patriarcal.

980 Ver nossa reflexão a respeito no § 33 da parte Crítica desta obra.


981 Mt 5, 43 (Lc 6, 26). Este texto já está citado na obra de C. Schmitt, O conceito do político.
Derrida aceita a crítica de Nietzsche contra o conceito de “próximo”, desconhecendo a her-
menêutica de Levinas, que mostra que o “próximo” é com o que se estabelece a experiência
de “proximidade” (cara a cara, em hebraico panim el panim), isto é, o Outro. No midraxe
do fundador do cristianismo sobre o “bom samaritano”, este estabelece com o roubado,
ferido e abandonado fora do caminho (a Totalidade), dita experiência de cara a cara. Para o
samaritano, o “próximo” é o que foi retirado fora do caminho, na Exterioridade: o Outro.

483
Querendo pensar o enigma nietzscheano, Derrida se perde, não esclarece, se
embaraça, não avança:

A frase muito familiar de Aristóteles é, pois, uma palavra de moribundo, uma última
vontade que fala já a partir da morte. Sabedoria testamentária à qual é preciso opor,
embora seja o preço da loucura, a insurreição que grita desde o presente vivo. O mori-
bundo se dirige a amigos para lhes falar de amigos, embora seja para dizer-lhes que não
há. O moribundo morre e se volta para o lado da amizade, o vivente vive e se volta para
o lado da inimizade. A sabedoria, do lado da morte, e foi o passado, o ser-passado do
que passa. A loucura, do lado da vida, e é o presente, a presença do presente (Derrida,
1994, p. 69; 1990, p. 60).

Não se mostra claramente do sentido da sabedoria, porque enfrenta a morte e


porque se vive a amizade neste horizonte. Menos ainda se mostra de qual loucura
se está falando (como negação da sabedoria diante da morte, portanto, de outra
sabedoria ante a vida) e porque, no horizonte da vida, o inimigo desaparece. Fica
tudo numa penumbra sugestiva, mas que não resolve o enigma.
A desconstrução da fraternidade derridiana que, de todo modo, pode ser útil
como um primeiro momento negativo (não podendo radicalizar a negatividade
também não consegue avançar na construção positiva posterior) se desdobra,
como já dissemos, confrontando Schmitt. Por isso,

Que o próprio político, que o ser-político do político, surja em sua possibilidade com
a figura do inimigo, este é o axioma schmittiano em sua forma mais elementar. Seria
injusto reduzir a ele o pensamento de Schmitt, como se faz frequentemente, mas este
axioma é, em todo caso, indispensável tanto para seu decisionismo quanto para sua
teoria da exceção e da soberania. O desaparecimento do inimigo faz dobrar os sinos
pelo político como tal. Marcaria o começo da despolitização (Entpolitisierung) (Derrida,
1994, p. 103; 1990, p. 103).

Schmitt, assim como Nietzsche e Derrida, é evidente, entende o poder político


como dominação e o campo político como dominado por estruturas de uma “Von-
tade de Poder” que se ordenam em forças organizadas em grupos de amigos ante
inimigos. De todos os modos e como elemento próprio de certo vitalismo larvar
em todos eles (que desejaria decantar de elementos reacionários, referindo-se a A.
Negri, Marx ou Freud), toda reflexão diz respeito à vida humana:

Schmitt [...] nomeia sem equívoco este dar morte. Vê ali o sentido da originariedade
ontológica [...] que se deve reconhecer nas palavras inimigo e luta, primeiramente e sobre
o fundo de uma antropologia fundamental ou de uma ontologia da vida humana: esta
é um combate e cada ser humano é um combatente, diz Schmitt [...]. Isto significa, ao

484
menos, que o ser para a morte desta vida humana não se separa de um ser para matar
ou para a morte em combate (Derrida, 1994, p. 145; 1990, p. 144-145).

[406] É uma política fundada na vida, mas, como todo o pensamento de di-
reita (incluindo Heidegger), é uma vida “para a morte”. É o risco da morte o que
constitui o campo político como político e, por isso, mais que a fraternidade (como
amizade) é a inimizade o momento essencial. De novo, devemos recordar que, se o
poder da comunidade é a potentia afirmativa, o campo político é o campo onde se
desdobram a ação e as instituições políticas para alcançar a reprodução e o aumen-
to da vida, e não seu contrário. Seu contrário, a morte, relembra a vulnerabilidade
da política, seu limite, o fetichismo, a potestas como dominação. Inevitável, sim,
mas não inevitavelmente essencial. No pessimismo schmittiano, como em Ma-
quiavel, Hobbes e tantos outros, tudo parte da “hostilidade”. Não existe

[...] hostilidade sem possibilidade de matar [assim como] não há, tampouco, correla-
tivamente, amizade fora desta pulsão mortífera [...]. Esta pulsão mortífera do amigo/
inimigo procede da vida e não da morte, da oposição da vida a si mesma enquanto ela
mesma se afirma, e não de algum tipo de atração de morte pela morte ou para a morte
(Derrida, 1994, p. 146; 1990, p. 145-146).

Pretende-se afirmar a vida, mas sempre rodeando a morte. A fraternidade se


torna impossível como ponto de partida porque é “a partir desta extrema possibi-
lidade [amizade/inimizade] que a vida do ser humano adquire sua tensão especifi-
camente política” (Schmitt, 1993b, p. 35; 1998, p. 65). A política tem seu conceito
nesta tensão entre vida e morte, entre amizade e inimizade; a fraternidade somen-
te cobre o primeiro momento, mas não o segundo, como tensão sempre temível da
morte que, como uma espada de Dâmocles, constitui o campo político (moderno)
como tal.
Na filosofia clássica grega, ao contrário, falava-se de uma virtude ou hábito que
fazia ao membro da cidade tender a desejar a dar a todos os outros participan-
tes do todo político o que lhe correspondia segundo seu direito (e não segundo
a inclinação egoísta): a dikaiosyne. Na Cristandade germânica, se expressava isso
pelo adágio: Justitia ad alterum est.982 A evolução deste conceito de justiça, que
seria longo rastrear983, nos mostraria que não perdeu sua atualidade se por tal se

982 “A justiça diz respeito ao Outro”.


983 A famosa obra de MacIntyre, no debate sobre a moral formalista, analítica ou liberal, do co-
munitarismo norte-americano que pretende mostrar a importância do material (no sentido
estrito ver Dussel, 1998, § 1.3) apresenta esta história na evolução do pensamento anglo-
-saxão: “So the Aristotelian account of justice and of practical rationality emerges from the
conflicts of the ancient polis, but is then developed by Aquinas in a way which escapes the

485
entender certa disciplina da subjetividade desejante, que permite pôr à disposição
dos outros membros da comunidade bens comuns sobre os quais deve ser exerci-
do o poder delegado do Estado, como instituição que contribui para produzir e
distribuir equitativamente as mediações para a reprodução e aumento da vida de
todos os cidadãos. Uma pretensão política de justiça remeterá, em última análise,
a esta questão. Os clássicos dividiam a justiça em três tipos: a) a justiça legal, que
inclinava a cumprir as leis (seria a disciplina dos cidadãos no “estado de direito”);
b) a justiça que se dirigia da parte ao todo ou justiça produtiva, na qual os membros
da sociedade tendiam economicamente a trabalhar para poder contar com os bens
necessários para a reprodução da vida; e, por último, c) a justiça distributiva, do
todo à parte, pela qual a comunidade, institucionalizada, permitia aos cidadãos
participar nos bens comuns do todo – que despertou especial interesse no utilita-
rismo de J. Bentham. Tudo isso é parte do que deve ser tratado no aspecto material
da política, atualizada sua problemática, mas não por clássicos inúteis.
É preciso também ter claro, em definitivo, que o momento decisivo, final, do
cumprimento do princípio material da política é a satisfação, ou mais exatamente
o consumo consumado (valha a expressão!), quando a subjetividade corporal viva
fisicamente subsume, digere o satisfator material, a coisa real, e o trans-forma em
seu próprio corpo. O “pão” (que o tribunal por Osiris deu ao faminto em cumpri-
mento de uma exigência de justiça transcendental, mais além da mera lei positiva)
torna-se realmente a subjetividade corporal do cidadão: “subjetivação da objetivida-
de”, escrevia corretamente Marx: “Na primeira [a produção], o produtor se coisifica
(versachlichte); no segundo [o consumo], a coisa produzida por ele se personifica
(personifiziert)”.984
Esta “personificação” do objeto material produzido (nas subesferas ecológica, eco-
nômica ou cultural) é o cumprimento por seu conteúdo, material, então, da política.
Esta é, também, a verdade do utilitarismo, enquanto a felicidade é a constatação
ou ressonância subjetiva da corporalidade reconstituída em sua vitalidade e sen-
tida como prazer, gozo. A política não tem somente como condição a alimentação
(Aristóteles punha, neste sentido, a agricultura como condição da possibilidade da

limitations of the polis. So the Augustinian version of Christianity entered in the medieval
period into complex relationship of antagonism, later of synthesis and then of continuing
antagonism to Aristotelianism. So in quite different later cultural context Augustinian
Christianity, now in the Calvinist form, and Aristotelianism, now in a Renaissance version,
entered into a new symbiosis in seventeenth-century Scotland, so engendering a tradition
which at it clímax of achievement was subverted from within by Hume. And so finally
modern liberalism, born of antagonism to all tradition, has transformed itself gradually
into what is now clearly recognizable even by some of its adherents as one more tradition”
(MacIntyre, 1988, p. 10).
984 Grundrisse, Caderno M (Marx, 1974, p. 12; 1971, p. 11). “Na alimentação, por exemplo,
uma forma de consumo, o ser humano produz sua própria corporalidade (Leib)” (Marx,
1974, p. 12; 1971, p. 11).

486
existência da pólis), senão como efetivação da essência da política enquanto ação
reprodutiva (permanência) e como aumento (desenvolvimento) da vida humana (já
que, no nível cultural, a possibilidade do desdobramento qualitativo da vida não
tem limites e se pode sempre melhorar: criação incessante de nova produção até fu-
turas satisfações mais excelentes). A razão material política descobre a verdade prá-
tica da realidade “cósmica” e cultural, na medida em que é administrável; a vontade
fraterna unifica as vontades materialmente; mas, ambas operam para poder viver
plenamente os conteúdos da vida humana. Deste modo, descrevemos o momento
material do bem comum político (objetivo [enquanto finalidade e objetividade ante-
rior à práxis política] da pretensão política de justiça), que exige também legitimidade
formal democrática e, por último, possibilidade fática real para completar todos os
seus componentes mínimos.

3. O Princípio Material da política


[407] Trata-se de um princípio político incontestável que sempre esteve já pres-
suposto em toda descrição ou filosofia política, mas implicitamente. É necessário
explicitá-lo, escrevê-lo, fundamentá-lo, mostrar como se subsume em todos os mo-
mentos da política, tanto da ação estratégica quanto das instituições, em especial
no exercício delegado do poder como representação (potestas).

3.1. O Princípio sempre suposto implicitamente


O momento racional da política é tão óbvio, trivial, tão do sentido comum, que
ficou oculto atrás de outras considerações da filosofia política moderna. Pretendo
dar alguns exemplos, bem conhecidos – e os dou por conhecidos para mostrar sua
aparente trivialidade.
Spinoza, a partir do racionalismo da recente hegemonia burguesa de Ams-
terdã na Europa, escreve no Tratado Teológico-político (1670), capítulo XVI: “Os
homens, sem auxílio mútuo, vivem miseravelmente [...]. Para levar uma vida feliz
e cheia de segurança precisaram esforçar-se para fazer de modo que tenham em
comum sobre todas as coisas este direito que cada um havia recebido da natureza
[...]” (Spinoza, 1985, p. 58).985

985 É preciso recordar-se que, no estado de natureza, somente imperam “a força e o apetite in-
dividuais” (Spinoza, 1985, p. 58). O pacto deve seguir “somente os conselhos da razão [...] e
reprimir os apetites”. Vê-se, então, que o estado de natureza a superar põe em perigo a vida
por causa, entre outras, dos apetites – momento material. “Entre os homens, quando são
considerados vivendo somente sob o império da natureza, aquele que não conhece a razão
ou que não possui o hábito da virtude vive sob a única lei dos seus apetites” (1985, p. 56).

487
Efetivamente, é a razão o melhor meio para conservar a vida com segurança e
paz e “não há ninguém que não deseje viver seguro e sem medo [...] o que não ocorre
nunca enquanto cada qual vive segundo seu capricho” (Spinoza, 1985, p. 58). O
fundamento do argumento consiste na necessidade de passar de um estado natural
caótico segundo os apetites egoístas a um estado de ordem civil (o político), onde
a razão é a “segurança da vida”.
Ainda mais claro é John Locke, que publica, em 1690, seus Dois Tratados sobre o
Governo Civil e que, no Segundo Tratado, cap. 2 (“Do estado de natureza”), escreve:

[...] Este estado de natureza é um estado de liberdade [...]. Esta liberdade não lhe
confere o direito de desenvolver a si mesmo [...]. O estado de natureza tem uma lei
natural [...]. A razão,986 que coincide com esta lei, ensina que [...] ninguém deve causar
dano a outrem em sua vida (in his life) [...]. Da mesma maneira que cada um de nós está
obrigado à sua própria conservação [...] à conservação da vida (of the life) (Locke, 1976,
§ 6, p. 6-7).

Seguindo Hooker (1977),987 mostra que no “estado de natureza” temos “in-


capacidade para nos proporcionar, somente por nós mesmos, as coisas necessárias
para a vida, conforme nossa dignidade humana” (Locke, 1976, § 15, p. 613). O
estado de natureza é como um “estado de guerra”, onde nos “expomos para que [o
adversário] nos tire a vida” (1977, § 16, p. 14). O suicídio não é possível porque “o
ser humano [...] não tem poder sobre sua própria vida988 [...] não dispõe do poder
de acabar com sua própria vida” (1977, § 22, p. 29).989 A passagem à propriedade
privada, de igual modo, é fundada por ser “a maneira mais vantajosa para a vida”
(1977, § 25, p. 22). Em primeiro lugar, é verdade que “a razão natural nos ensina
que os homens, uma vez nascidos, têm o direito de conservar sua existência [a
vida] e, por conseguinte, comer e beber e dispor de outras coisas que a natureza
outorga para sua subsistência” (1977, § 24, p. 22). Mas, em segundo lugar, pelo
trabalho, colocamos a terra em condição para “ser útil para a vida” (1977, § 21,
p. 26), e “a medida da propriedade foi bem assinalada pela natureza, limitando-a ao
que alcança o trabalho de um homem e as necessidades da vida” (1977, § 34, p. 29).
Até aqui a argumentação de Locke se funda sempre na vida humana. De ime-
diato, graças ao dinheiro, podem ser acumuladas “grandes possessões” (1977, § 36,
p. 30), embora ainda permita ser intercambiado por “artigos verdadeiramente úteis

986 Locke inclui a razão no estado de natureza, não é assim em Spinoza, como vimos.
987 A obra foi terminada em 1592.
988 Repete este princípio frequentemente, duas vezes neste § 22; de novo nos § 23 e 135 (cap. 9).
989 Claro que, por aceitar a pena de morte, Locke defende que quem teria merecido a morte
poderia seguir vivendo como possessão de outro (desta maneira, justifica a escravidão) (Cf.
1977, § 85, p. 62).

488
para a vida” (1977, § 47, p. 35). Aparece o dinheiro, e o discurso de Locke muda de
sentido a partir do capítulo 6 do Segundo Tratado; já não recorre mais à vida como
fundamento de argumentação. A própria “sociedade política ou civil” (1977, § 77ss,
p. 58ss) terá agora por “finalidade primordial a defesa da propriedade” (1977, § 85,
p. 63).990 A vida deixa definitivamente de ter significado.
Jean-Jacques Rousseau, no Livro I, cap. 6, do Contrato Social, escreve: “Supo-
nho que, tendo chegado os homens a um momento em que os obstáculos impedem
sua conservação (conservation) no estado de natureza [...], neste estado primitivo
não podem subsistir (subsister), e o gênero humano morreria (periroit) se não mu-
dasse sua forma de ser” (Rousseau, 1963, p. 60). Para não perecer, para conservar a
vida, é necessário passar a “uma forma de associação” superior. A vida é novamente
o fundamento da argumentação.
Johann G. Fichte, no livro I, capítulo 1, II, O Estado Comercial Fechado (1800), é
ainda mais claro: “O objetivo de toda atividade humana é o poder viver: e a esta pos-
sibilidade de viver têm o mesmo direito todos aqueles que a natureza trouxe à vida.
Por isso, é preciso fazer a divisão antes de tudo de tal maneira que todos disponham
dos meios suficientes para subsistir. Viver e deixar viver!” (Fichte, 1991, p. 19).
[408] Quero agora me referir a dois filósofos contemporâneos que viveram em
sua pele a perseguição e a morte – num caso, uma morte possível, no outro, uma
morte real. Trata-se do filósofo judeu que viveu a perseguição nazista e se exilou
nos Estados Unidos, Hans Jonas (1966; 1979; 1996), que fundou uma ética da
vida como responsabilidade; e do filósofo latino-americano Ignácio Ellacuría, que
foi assassinado pela ditadura militar orquestrada pelo Pentágono e a CIA “em
razão de seus compromissos políticos, em El Salvador.991 Um é filósofo da luta
pela vida, na primeira parte do século XX; o outro, na segunda parte. Para a hu-
manidade, desde sua origem, a vida humana foi um fato natural não problemático,
enquanto que a morte é que apareceu desde a origem como enigmática.992 Também
a biologia era uma ciência, mas sem exigências éticas, políticas. Quando em 1972 o
Clube de Roma mostra os “limites do crescimento” (Cf. Meadows, 1972),993 a vida

990 Claro que o conceito de “propriedade” estará, de algum modo, ligado à “sua vida, sua li-
berdade e seus bens” (p.e., 1977, § 87, p. 64). “[...] não podendo existir nem subsistir uma
sociedade política sem possuir em si mesma o poder necessário para a defesa da propriedade
[...]” (1977, § 87, p. 64).
991 Ellacuría, em especial desde o capítulo 1: “A materialidade da história” (1991, p. 43ss),
expressa exatamente o sentido de conteúdo da política como dimensão vital, da vida, biolo-
gicamente, seguindo a tradição de Xavier Zubiri. Todo o capítulo VIII (1995, p. 164-203)
trata da vida como modo de realidade.
992 Tal é a constatação efetuada com grande sentido crítico por G. Bataille e E. Morin.
993 Infelizmente, a ética que sustenta as ações do Clube de Roma (Cf. King, 1991) é somente
uma ética dos valores. Não conseguiu ainda formular uma ética da vida e da validade de-
mocrática e factível que seria muito mais de acordo com sua problemática.

489
começou a ser um “problema”, já não teórico e, sim, angustiantemente político:
a vulnerabilidade, limitação, precariedade e começo de extinção da vida sobre o
planeta Terra já é visto como um possível suicídio coletivo da humanidade:

Esta vulnerabilidade coloca de manifesto, através dos efeitos, que a natureza da ação
humana mudou de fato e que lhe foi agregado um objeto de ordem totalmente nova,
nada menos que a inteira biosfera do planeta, pela qual temos de responder já que
temos poder sobre ela (Jonas, 1979, p. 33). A fórmula de Bacon diz que saber é poder.
Mas, o programa baconiano, por si, isto é, em sua própria execução no auge do seu
triunfo, manifestou sua insuficiência, e mais ainda, sua contradição íntima, o perder o
controle sobre si mesmo [...]. O poder se tornou autônomo [...]. O que agora se tornou
[normativamente] necessário, se a catástrofe não lhe colocar freio antes, é o poder sobre
o poder, a superação da impotência frente à autoalimentada coação do poder que o
exerce progressivamente (Jonas, 1979, p. 235).994

Por sua vez, Ellacuría, mostrando a constituição fundamental da “materialida-


de da história” (1991, cap. 1) e depois de analisar como o ser histórico é fisicamente
material, espacial e temporal, chega ao fundamento biológico da história e escreve:

Embora a sociedade não seja um organismo [...], os diversos grupos humanos [...] são
os que biologicamente se veem forçados a fazer história. Muitas das realizações do
homem, não somente naturais e, sim, opcionais, devem-se a determinantes biológicos
fundamentais [...]. Ainda mais se atendemos a toda a riqueza e plenitude das necessi-
dades e das forças da vida biologicamente considerada (Ellacuría, 1991, p. 79).

Franz Hinkelammert, em sua obra Democracia e Totalitarismo, situando-se


mais decididamente do que os dois filósofos citados no nível estrito da “vida hu-
mana”, mostra a importância do conteúdo material, no cruzamento com o campo
econômico e ecológico:

Certamente, não se pode assegurar a reprodução material da vida humana sem assegu-
rar, por sua vez, a reprodução da natureza humana. Sendo o processo de produção uma
transformação da natureza material em meios de satisfação das necessidades básicas
no processo de trabalho, o esgotamento da natureza significaria sempre a destruição
da própria vida humana (Hinkelammert, 1990, p. 31).

994 Jonas acerta no ataque frontal à falácia naturalista desde um nível material. Mas os limites
da posição de Jonas são visíveis em diversos níveis. Busca uma fundamentação somente on-
tológica (nós, transontológica) desde o ser e não desde a realidade viva; uma ética teleológica
(e não desde a vida humana que é a que coloca os fins), onde a tecnologia (e não o capital
como critério de eleição tecnológica: aumento da taxa de lucro) aparece como o perigo. Não
se descobre a vida humana como critério de uma ética da responsabilidade pela vida futura.

490
A tarefa, portanto, da ratio política, enquanto razão prático-material, é a de
se ocupar da produção, reprodução e desenvolvimento da vida humana em co-
munidade. A macropolítica se obriga a cumprir dito imperativo no nível da hu-
manidade como um todo, no longo prazo, e responsabilizando-se politicamente
pela produção e reprodução da biosfera (ecologia) e como sistema da divisão do
trabalho, da produção dos fatores de realização de satisfações e sua distribuição e
intercâmbio (economia). Ao dizer “no longo prazo”, pensamos, por exemplo, nos
próximos cinco mil anos. Quer dizer, se o processo neolítico que na Mesopotâ-
mia e no Egito alcançou há aproximadamente cinco mil anos uma maturidade
civilizatória suficiente – havendo na Terra, naquele momento, cerca de 60 a 100
milhões de seres humanos –, no começo do século XXI, a humanidade terá quase
centuplicado sua ocupação demográfica. A concentração demográfica, os recursos
não renováveis, o aquecimento da atmosfera, o buraco na camada de ozônio no
Polo Sul, etc., manifestam que, materialmente (por seu conteúdo), a “macropolítica
planetária” deverá adotar novos critérios para a reprodução e desenvolvimento da
vida humana ou a vida humana desaparecerá no curto prazo. Na produção eco-
nômica, o político deverá fazer adotar, por exemplo, um critério do descenso da
taxa de uso de recursos não renováveis (como o petróleo); o ascenso da taxa de
recuperação de recursos fixos da terra (por exemplo, o ferro ou cobre); o aumento
da taxa do uso dos recursos renováveis (por exemplo, energia solar ou hidráulica,
madeira, plásticos sintéticos, combustão por álcool, etc.). A política, desde antes de
Aristóteles até Rawls, nunca havia se ocupado deste mister. É agora absolutamente
prioritário materialmente. Mas seria a negação ou superação da política moderna
de Maquiavel no Renascimento, de Locke no capitalismo ou de Bacon da revolução
científica. A filosofia política ainda não subsumiu responsavelmente esta dimen-
são. Os “partidos verdes”, ingênuos ante a economia capitalista, são o fruto de uma
novidade material que será determinante no terceiro milênio.
Toda a condução das outras atividades ecológico-econômico-culturais no plano
internacional, nacional, regional, étnico, etc. da razão política em seu nível mate-
rial são aspectos parciais, fragmentários, específicos, deste critério fundamental de
verdade política, que é ao mesmo tempo um princípio material político: o dever de
produzir, reproduzir e desenvolver politicamente a vida humana de toda a huma-
nidade e como condição de sua possibilidade a existência da biosfera. Este “dever” é
o princípio deôntico material fundamental de toda política possível. E isto porque
o cidadão é uma corporalidade vivente, uma subjetividade necessitada e um sujeito
autor-reflexivo que tem a vida humana (a sua e de toda a humanidade, em última
análise) a seu encargo (é a “responsabilidade” de H. Jonas ou o “ter o encargo da
realidade”, de I. Ellacuría). De uma maneira óbvia, contundente e correta, escreve
Hinkelammert: “A reprodução material da vida humana é a última instância de
toda vida humana e, portanto, de sua liberdade: o homem morto – ou ameaçado

491
de morte – deixa de ser livre, independentemente do contexto social no qual viva”
(Hinkelammert, 1990, p. 8).

3.2. O enunciado do Princípio Material da política


[409] A vida humana, a “vida nua” – diria G. Agamben995 –, mas, no sentido
mais radical, da comunidade política, é a última instância de todos os princípios
(também do princípio material996).
A diferença entre zoé (vida biológica) e bíos (vida dentro de um campo cul-
tural, e também político) é própria do pensamento grego, de Aristóteles, por
exemplo. Este dualismo é superado em parte pela modernidade – indicação dada
por M. Foucault (Agamben, 1995, p. 4-5), em suas reflexões sobre a disciplina
do poder sobre o corpo vivente dócil do cidadão –, mas cai num novo dualismo
(que nem Foucault e nem Agamben descobrem997). De todas as formas, Agamben
descreve corretamente:

O que se deve perguntar [...] não é tanto o sentido da possível articulação do viver bem
com télos político e, sim, bem antes, é necessário perguntar porque a política ocidental
se constitui através da exclusão [...] da vida nua. Qual é a relação entre política e vida se
a política se apresenta como o que deve acontecer através de uma exclusão? [...] A vida
nua tem, na política ocidental, o singular privilégio de que sua exclusão é o fundamento
da cidade dos homens (1995, p. 10).

Exclusão da vida nua ou imediata (Hinkelammert) da política, que diz, contu-


do, sempre tê-la em conta. Exclusão desde “a biopolítica do totalitarismo moderno,
por uma parte, até a sociedade do consumo e do hedonismo das massas, de outra
parte” (1995, p. 15). A vida da qual falamos nesta Política da Libertação é a vida
humana (conteúdo de toda decisão), mas cruzada pela decisão consensual racional

995 Ver Homo sacer, Introdução (Agamben, 1995, p. 11ss: vida nua).
996 O princípio material não é a última instância do princípio formal e vice-versa. Mas, a vida
humana imediata, na qual todos os princípios se fundam (e também as faculdades, tais como
a razão e a vontade e todo o resto) sim, é a última instância.
997 A “vida nua” imediata se situará, post factum, como o Outro que exige justiça, desde sua
fome, sua sede, sua nudez (recordemos as exigências do Livro dos mortos do Egito). Estas
exigências da “vida nua” (como a chamará E. Levinas) seja novamente a vida que reaparece.
De maneira que a vida se dá como num “estado de natureza” anterior ao campo político,
aos sistemas históricos; é subsumida neles e a vida se transforma em “vida política”, mas
esta “vida política” não deixa de ser vida e suas exigências naturais, econômicas e culturais,
cruzam o campo político e se tornam normativas. O simples comer imediato, natural, cobra
a fisionomia de um direito político estrito e fundamental. Este retorno crítico da vida não se
encontra tão presente como me agradaria nem em Foucault nem em Agamben.

492
(contra o totalitarismo moderno) e diante do sistema capitalista que a assume so-
mente como a do comprador, cujas necessidades são produzidas não por exigências
da vida imediata (sempre cultural), mas pelas preferências impostas pela moda e
pela propaganda do mercado.
A comunidade política tem em sua vida (fonte de todo valor e critério de toda
decisão quanto a seu conteúdo) a origem da soberania. Mas se poderia pensar que:
“O paradoxo da soberania – Agamben referindo-se a Foucault e Schmitt – se enun-
cia: o soberano está, ao mesmo tempo, fora e dentro da ordem jurídica” (1995, p. 19).
O vivente é soberano sobre sua vida; tem-na a seu encargo. Por isso, não é que a
vida da comunidade política esteja fora da ordem legal quando se estabelece o “esta-
do de exceção” (ou, post factum, quando irrompe em sua luta pelo reconhecimento
de novos direitos, como veremos na parte Crítica) e, sim, que, enquanto é soberana
e porque é soberana como fonte da lei, o vivente pode igualmente suspendê-la em
caso de extrema necessidade. Não está fora, está debaixo; está antes, em e depois
da ordem jurídica. É a referência intersubjetiva permanente, é a auctoritas sobre a
potestas.998 O homo sacer de Agamben é uma “figura” do direito romano; quer dizer,
é já um momento determinado pelo direito, pela instituição política como tal. A
vida nua não é tão nua, está já “vestida” de uma falta de direito, não é sacrificável
(porque é detestada pelos deuses), mas pode ser morta por qualquer um. Deve
viver, fugindo; no corpo do direito, é referência à qual é homo sacer, não pode ter
proteção. Mas, esta vida nua de juridicidade está definida negativamente desde
(e no) campo político. Quando falamos de sujeito corporal vivo, estamos falando
de algo mais radical. Estamos falando de que o sujeito corporalmente vivo está
funcionalmente presente em muitos campos e, entre eles, no político. Porém, sua
subjetividade viva não é viva porque é política; mas, ao contrário, porque é viva, é
que o campo e os sistemas políticos têm certas exigências para cumprir com estas
corporalidades vivas que já sempre estão pressupostas em toda ação ou instituição
política. Nossa “vida imediata” não é a “vida nua” de Agamben. Este homo sacer nos
servirá, na parte Crítica, para compreender o processo pelo qual o excluído (incluí-
do) na ordem política, que, para Agamben, é um modo de entender a existência
política como tal, pode inaugurar uma nova ordem, pela transformação da ordem
vigente. Esta figura, na exterioridade da ordem jurídica, não pode ser encontrada
no direito romano-indo-europeu; mas pode ser encontrada nos códigos semitas
desde antes de Hammurabi, e no Egito e, posteriormente, na Palestina. É outra

998 Agamben indica muito bem a referência última da lei em relação à vida nua ante factum (a
priori), mas, ao não considerar o post factum (a posteriori), escapa-lhe igualmente o in facto. A
vida da comunidade é a que funda a auctoritas (não já o pater famílias, nem o príncipe, nem o
senado e nem o imperador). Agora, quem sustenta subjetivamente a auctoritas e a soberania
é a própria comunidade imediatamente e, em última instância, sempre. Haverá instituições
(potestas), mas estarão sempre referidas à potentia populi. Não estamos falando dos romanos
e, sim, de nossa atualidade política, hoje, na América Latina (e como um dever-ser).

493
a tradição que Agamben (2000) pretende estudar em outra de suas obras e tendo
como referência W. Benjamin, como veremos mais adiante.
A vida imediata da qual falamos deve ser recuperada primeiro na posição de
Marx e relacioná-la diretamente a uma teoria das necessidades. Com efeito, o viven-
te deve repor constantemente elementos naturais que incorpora metabolicamente
em seu organismo, graças aos quais vive, isto é, precisa repor o que a própria vida
como atividade vai consumindo. A vida produz, assim, um consumo produtivo; pro-
dutivo da própria vida. Uma célula, por exemplo, a corporalidade de uma ameba,
deve alimentar-se de seu meio (Umwelt ou entorno) que, sendo hostil, significa certo
perigo (isto é, possibilidade de enfrentar a morte, em última instância), mas do qual
o vivente precisa tomar as substâncias nutrientes peremptoriamente, sem escusa
alguma. Este consumo dos elementos naturais, pelo organismo vivo, havendo-os
incorporado dentro de sua membrana, produz inevitavelmente, depois de um tempo,
um novo estado de falta de, negatividade que deve ser satisfeita ansiosamente. Todo
o organismo entra num estado de pânico e tende até o possívelmente lhe seja propor-
cionador de satisfação. Este apetite ou tendência é o que denominamos necessidade.
A vida tem tantas necessidades quantas dimensões pode atender.

Esquema 26.01. Algumas determinações mínimas da necessidade


Objeto natural
c Satisfator Produto g

d consumo Objeto produzido


Natureza
Organismo b
Vivo a f
instrumento
necessidade trabalho
e

Esclarecimentos ao Esquema 26.01. O ciclo a-b-c-d ocorre quando os proporcionadores de satisfação


estão dados. O ciclo e-f-g se agrega quando for necessário que o proporcionador de satisfação seja
um produto do trabalho (técnica produtiva) (Cf. Dussel, 1985, p. 34ss).

Todas as suas necessidades são humanas, no ser vivente humano, desde as mais
peremptórias até as mais sublimes da contemplação estética ou sacra. São dimen-
sões que despertam necessidades de uma vida humana que devem ser satisfeitas,
negar-se com positividade (negação de negação: o comer nega a negatividade da
fome, como diria Sartre).
[410] Agnes Heller trabalhou o aspecto material da existência humana du-
rante toda a sua vida. Desde seus primeiros trabalhos, teve sempre uma inclinação

494
particular para as estruturas afetivas [Instinto, Agressividade e Caráter (1977) e
Teoria dos Sentimentos (1979)], que devem ser situadas dentro do nível material
antropológico. Mas, antes, abordou o tema em Teoria das Necessidades em Marx
(1974) e, posteriormente, Uma revisão das Teorias das Necessidades (1985b), na
qual pretende estabelecer certa diferenciação das necessidades não de todo con-
vincente, já que a autora luta contra uma noção simplista de “comunismo” (não en-
tendendo que se trata de um postulado e dali a proposta de “necessidades radicais”,
que logo abandona, já que é possível explicar a questão em Marx de outra maneira).
O que fica claro é que, efetivamente, as “necessidades” (Bedürfnissen) detectam nas
coisas reais seu valor de uso; não o produzem, mas o constituem enquanto tal.
Uma maçã sem uma necessidade de alimentar-se não tem valor de uso, mas qua-
lidades naturais determinadas. Se estas qualidades podem alimentar um vivente,
corre por conta do vivente. Se tais qualidades não estiverem naturalmente à mão,
então, em atitude produtiva e por meio do trabalho e de instrumentos, e graças à
transformação da natureza, podem produzir valores de uso. Sempre as necessida-
des estão ali para indicar quais valores de uso se necessita para o consumo. Com
efeito, o necessitado com valor de uso é consumido por último. Esta destruição ou
subsunção real do proporcionador de satisfação pelo consumo, que produz final-
mente a satisfação da necessidade, culmina o processo propriamente material da
vida humana, no sentido que lhe damos nesta Política da Libertação.
Alguns autores (como Abraham Maslow (1968), Erich Fromm (1947; 1979),
Michael Maccoby (1981, 1995, 2002), Manfred Max Neef (1881, 1885, 1999), Len
Doyal e Ian Gough (1994) ou Martha Nussbaum (1998)999) ordenam as necessidades
de tal maneira que se pode ter certa ideia de sua complexidade. Não é preciso pensar
numa ordem hierárquica, porque se em alguns casos as prioridades propriamente
físicas são fundamentais (como o comer, como que o corpo guarda certa temperatura
pela vestimenta ou a habitação, etc.), em outros, são as culturais. De todos os modos,
não é demais observar uma lista das necessidades para ter uma ideia distante do que
estamos indicando, quando falamos delas como tema da política.
Estas listas, certamente incompletas, mostram ao menos algumas dimensões
das necessidades (ou capabilities na conceituação de Amartya Sen (Cf. Dussel,
2001),1000 de grande interesse para este tema), relacionadas essencialmente ao

999 Além disso, ver O’Neill (1998) e Wiggins (1985).


1000 Amartya Sen não usa somente o PIB para medir o grau de desenvolvimento humano e,
sim, muitos outros fatores qualitativos relacionados a outros aspectos do ser vivente que
indicam frequentemente maior grau de desenvolvimento humano, embora economicamente
(em dólares) uma população possa não ter tanta riqueza monetária (mas pode ter maior
riqueza cultural, de valores humanos, de maneiras de viver em conformidade com necessi-
dades superiores, com a menor destruição ecológica da natureza, ou com uma atitude não
tão agressiva no consumo, etc.).

495
Esquema 26.02. Listas de necessidades humanas para em conta no campo po-
lítico
Maslow Fromm Maccoby Max Neef e Doyal e Gough Nussbaum
(Necessidades) (Necessida- (Impulsos- outros (Necessidades (Capacidades
des) valores) (Necessidades) básicas) [capabilities])

1. Fisiológicas A. Instintivas Sobrevivência 1. Subsistência Alimentação, 1. Vida


Prazer moradia, 2. Saúde do
ambiente sadio, corpo
saúde
2. Segurança 2. Proteção Segurança física 3. Integridade
e econômica, física do corpo
infância, saúde
3. Amor, afeto, B. Relações Sociabilidade 3. Afetos Relações 5. Emoções
pertencimento íntimas 5. Participação primárias
C. Raízes
humanas
4. Autoestima Domínio, Autonomia 7. Afiliação
dignidade
5. Autorreali- D. Transcen- 6. Criação Autonomia 4. Sentidos,
zação dência crítica imaginação,
pensamento
6. Cognitivas E. Marco de Informação, 4. Entendi- Educação básica 5. Razão
Orientação significado mento prática
7. Estéticas Prazer 7. Criação
F. Senso de 8. Identidade
Identidade
Jogo 6. Ócio 9. Jogo
9. Liberdade 10. Controle
ambiental
Fontes: citadas acima e Júlio Boltnivik: jbolt@colmex.mx

que denominamos “vida humana imediata” da comunidade política – dentro do


campo político, então. Como é evidente, o político deve cruzar com esta esfera
das necessidades em geral e se deve estabelecer uma política com cada uma delas.
É responsabilidade das instituições políticas, da sociedade civil e política (o Esta-
do), do governo, o incidir neste cruzamento de campos, onde o político tem uma
responsabilidade regida por uma normatividade material urgente, especialmen-
te nos países do Sul, cuja população não tem de maneira alguma organizado o
cumprimento das necessidades indicadas e, neste caso, falar de prioridade de
“necessidades básicas” (comida, bebida, vestimenta, habitação, educação primária,
segurança, salário garantido, etc.) na política não se pode deixar de considerar

496
como relevante. Contudo, as filosofias políticas do Norte não prestam a devida
atenção em sua reflexão a estes níveis da existência vivente da comunidade políti-
ca, porque entre eles estão evidentemente cumpridas com suficiência. Em troca,
nos países pobres pós-coloniais, se transforma no objetivo primeiro e essencial da
política. Por isso, a normatividade do princípio material não pode ser deixada na
sombra ou em lugar secundário da exposição teórica e das práticas concretas. Deve
manter, ao menos, um mesmo nível de importância que o Princípio Democrático
de legitimidade. Entre nós, o princípio material deveria ser denominado Princípio
Político de Sobrevivência.
Materialmente falando, então, por seu conteúdo, o princípio material político
é última instância na esfera que se refere à vida da comunidade política. Formal-
mente, pela necessidade de legitimidade que exige todo momento público-político,
o Princípio Democrático é última instância na procedimentalidade normativa de
toda política. Quanto à sua possibilidade real, sua eficácia, dentro das condições
de escassez e governabilidade, o Princípio de Factibilidade Política é última ins-
tância no nível estratégico. De nada vale o cumprimento de um ou de dois destes
princípios, se falta o terceiro. Os três são requeridos na constituição da “pretensão
política de justiça”.
A determinação material orienta o manejo dos conteúdos e responde a uma
coerência e a uma ordenação própria, distinta das outras esferas. A determina-
ção formal controla o procedimento deliberativo e, na ordem da fundamentação e
justificação das decisões, pode exercer a função de última instância formal.1001 A
determinação de factibilidade estratégica (que estudaremos no § 27) descobre e fixa
as mediações realizáveis em concreto, empiricamente, no curto e longo prazos da
governabilidade. Este último, ademais, abre todo o âmbito da responsabilidade a
posteriori sobre os efeitos, que deveriam ser previstos em sua possibilidade.
Resumindo. O princípio material da política obriga a realização do ato e ins-
tituição políticos, em seu aspecto de conteúdo, de referência à realidade da efetiva
produção, reprodução e aumento da vida humana, em todas as suas dimensões, tan-
tas quantas necessidades a comunidade tenha (sabendo que ditas necessidades são
humanas e, por isso, se desdobram na história, crescem e se desenvolvem) e em todos
os membros da comunidade política, dentro das instituições de um Estado particu-
lar, tendo como última referência toda a humanidade. Este princípio parte de fatos,
julga fatos, tem pretensão forte de verdade política e, por isso, de justiça material.
Uma descrição mínima do princípio material poderia ser enunciada assim: De-
vemos agir sempre para que toda norma ou máxima de toda ação, de toda organização
ou instituição (micro ou macro), de todo exercício do poder consensual, tenha sempre
por propósito a produção, manutenção e aumento das dimensões próprias da vida
imediata dos cidadãos da comunidade política, em última análise, de toda a humani-
dade, sendo responsáveis também destes objetivos, no médio e longo prazos (os próximos
milênios). Desta maneira, a ação política e as instituições poderão ter pretensão política

1001 Exposto no anterior § 25.

497
de verdade prática – não só de retidão1002 –, na subesfera ecológica (de manutenção e
crescimento da vida em geral do planeta, em especial, em relação às gerações futuras),
na subesfera econômica (de permanência e desenvolvimento da produção, reprodução e
intercâmbio de bens materiais) e na subesfera cultural (de conservação da identidade e
crescimento dos conteúdos linguísticos, valorativos, estéticos, religiosos, técnicos e práticos
das tradições correspondentes). A satisfação das necessidades da corporalidade vivente
dos cidadãos (ecológicas, econômicas e culturais) provarão como fato empírico o sucesso
da pretensão política de justiça. É um princípio com pretensão universal, cujo limite é o
planeta Terra e a humanidade em seu conjunto, no presente e até no longínquo porvir.

3.3. A fundamentação do Princípio Material


[411] Sendo a vida a condição absoluta da existência humana, sua negação
incluiria evidentemente a extinção de todas as dimensões da existência e, entre
elas, toda atividade no campo político. Extinguir uma comunidade é fazer de-
saparecer a política. Quando visitamos ruínas de antigas civilizações, captamos
empiricamente a extinção da comunidade política que produziu estes gigantescos
monumentos (como quando, em Tikal maia, na Guatemala, admiramos a acrópole
com dezenas de enormes pirâmides). A vida ausente nos recorda a necessidade de
conservá-la como condição primeira da política. Se a fundamentação do princípio
discursivo encurrala o cético numa contradição performativa, quem nega o prin-
cípio material da política pode ser levado a um tipo de contradição performativa?
Hans Jonas busca uma fundamentação ontológica1003 da responsabilidade pela
vida humana em geral – que ele considera desde o ponto de vista da ecologia no
longo prazo e em referência às gerações futuras, o que certamente está incluído
no princípio material da política. Jonas parte do fato de que “a responsabilidade
é complementar à liberdade” (1996, p. 101). É também um fato que todos temos
experiência de “ser responsáveis” por nossos atos, que é o que denominamos “cons-
ciência moral”. Por isso, ninguém pode evitar o aceitar a responsabilidade pelos
efeitos de seus atos, sendo supremo o seu próprio ser (ao que, por exemplo, poderia
causar morte). O ser é o extremamente digno. “Entre estes dois polos ontológicos
da liberdade humana e do valor do ser se situa a responsabilidade” (1996, p. 102).

1002 Por exemplo, para Habermas, a “certeza da ação” (Handlungsgewissheit) não é o mesmo que
“asseverabilidade justificada” (Gerechtfertigter Berhauptbarkeit) (Cf. Habermas, 1999b, p.
292; p. 280). Mas, na política, e na esfera material, a mesma certeza da ação tem a ver com
a asseverabilidade justificada dos fins da ação, com respeito não somente a valores (que
permitem uma pretensão de retidão) e, sim, a fatos reais do mundo objetivo (como a extinção
de muitas espécies vivas, a fome de uma comunidade política ou o desaparecimento de uma
língua ou de uma cultura dominada, explorada e, por isso, extinta), pelo que a ação pode
estar imperada por uma máxima que tenha pretensão de verdade prática, como veremos.
1003 “Toward an Ontological Grounding of an Ethics for the Future” (Jonas, 1996, p. 99ss).

498
Mas, ainda mais: “em sua dimensão íntegra, contudo, a responsabilidade é uma
função do nosso poder e proporcional a ele. A magnitude do nosso poder determina
a extensão do que se pode afetar da realidade [...]. O poder aumenta a responsabi-
lidade” (1996, p. 102-103); também sobre o futuro.
Jonas continua no sentido de que “o crescimento do poder se refere à moderna
tecnologia” (1996, p. 103),1004 fazendo-nos responsáveis pelos efeitos negativos que
causamos no planeta Terra. Se seguirmos adiante desta maneira, a espécie huma-
na se extinguirá. “Por que é uma obrigação para a humanidade seguir existindo?”
(1996, p. 105). O ser humano é o único “que pode assumir esta responsabilida-
de. Reconhecemos imediatamente que este pode ser mais do que um simples fato
empírico. Reconhecemo-lo como um aspecto distintivo e decisivo da existência
humana. Temos neste fato um princípio básico da antropologia filosófica” (1996, p.
105-106):

O que conseguimos é uma dedução metafísica de um dever específico de responsabili-


dade sobre o futuro da humanidade a partir do fenômeno da própria responsabilidade
[...]. A capacidade de ser responsáveis [...] é primariamente dada como um fato da
experiência [...]. Daí se deduz o dever de perpetuar a existência (1996, p. 107).

Se seguíssemos uma argumentação semelhante para nosso tema, deveríamos


tomar um caminho aproximado ao seguinte – radicalizando alguns aspectos do
processo. Sendo o ser humano e, por conseguinte, o cidadão como membro da
comunidade política, um vivente que cerebralmente alcançou o grau da “autocons-
ciência” (devido à mais desenvolvida estrutura neuronal que, graças à evolução
linguística descobriu poder se referir a sujeitos tais como “eu”, “tu”, “nós”, etc.), pode
refletir sobre sua própria subjetividade e, assim, atribuir a si mesmo suas ações.
Esta autoatribuição do agente é o que se denomina responsabilidade, que se exerce
sobre tudo o que corresponde à sua existência de vivente. No fato empírico de se
descobrir um ser humano, se conhece igualmente a existência da responsabilidade.
Não é uma dedução; é uma constatação sincrônica que coimplica. É um ser que, em
sua essência, tem simultaneamente um dever-ser; é um ser em cuja natureza coin-
cide sincronicamente o ser normativo. Sua normatividade consiste em agir desde
sua responsabilidade.1005

1004 Como Jonas tem problemas com o diagnóstico de Marx, não entende que a questão eco-
lógica não é consequência de uma tecnologia perversa e, sim, da tecnologia que o critério
do capital subsumiu em seu processo produtivo, efeito da competição no curto prazo, que
impõe o produzir mercadorias em menor valor e, consequentemente, este critério é o que
se usa para determinar a tecnologia antiecológica. O antiecológico não é a tecnologia e, sim,
a essência do capital.
1005 Ver meu artigo sobre “A falácia naturalista” (Dussel, 2001, p. 87-102).

499
O ser vivo delimita sua existência numa vulnerabilidade, muito particular e
que se descobre como um fato complexo nas necessidades. Para viver é preciso
comer, beber, ter certa temperatura... do contrário, extingue-se o ser vivo. Ser res-
ponsável sobre sua existência é, antes de tudo, ser responsável pelas necessidades
de sua própria vida. Ou melhor: sua vida lhe foi dada como encargo; deve responder
por ela diante da própria consciência normativa e diante da comunidade que espe-
ra seus serviços. Re-spondere significa, em latim, “tomar a cargo” (spondere) algo,
“ante” alguém, reflexamente (re-): quer dizer, como a quem se pede atribuir a fonte
de mérito ou castigo. Para Kant, a lei era um Faktum, e dela emanava a “obrigação”
(Verbindlichkeit) como corolário. Na verdade, e mais radicalmente, o Urfaktum (o
fato fundamental) é a responsabilidade; a lei obriga a um responsável. Sem respon-
sabilidade não existe obrigação da lei e também a liberdade é uma consequência
da autoconsciência reflexa responsável do sujeito, já que a reponsabilidade é como
o distanciamento do fato empírico que o tribunal exige para julgar. Sem esta dis-
tância, o juiz é parte. A liberdade do sujeito é possível porque o responsável pode
distanciar-se das decisões e considerá-las, a várias delas, como contingentes, pos-
síveis. Sem responsabilidade, não há liberdade.
Os cidadãos, sujeitos vivos responsáveis, têm por natureza um “querer-viver” (a
vontade de Schopenhauer), uma inclinação (a conatio de Spinoza), um instinto inato
da própria vida que lhe permite permanecer na vida. Se faltasse este “querer-viver”,
o vivente estaria em estado de suicídio. Com efeito, sendo o ser humano reflexivo
sobre este “querer-viver” e responsável de sua própria vida, que tem a seu encargo,
chama-se obrigação normativa esta exigência que se impõe à consciência normativa
do sujeito ao se experimentar como responsável por sua própria vida. O conteúdo
do enunciado: “Nós devemos viver” como exigência normativa está dado no fato
de sermos viventes autoconscientes, responsáveis, que têm sua vida-a-cargo como
última instância de cumprimento. Se não houvesse esta consciência de dever ou se
não se cumprisse dito dever, se estaria num “estado de suicídio”, repito. Podem sui-
cidar-se empiricamente, mas não teriam cumprido este dever1006 e teriam provado,
com sua eliminação, o dado irracional da negação irresponsável de sua vida.
Politicamente, a comunidade dos viventes humanos é responsável por suas vidas,
como condição absoluta de toda atuação. Uma comunidade que tenha sido extinta
não pode cumprir nenhum dever político. Além disso, sendo responsáveis pela
vida que mutuamente receberam a cargo, conservá-la (e acrescentá-la) é o primeiro
dever político. O exercício do poder (como potentia: vontades que são o querer-viver
do vivente; e como potestas: as instituições para exercer este poder delegadamente)
tem como finalidade primeira, e igualmente como conteúdo de todo seu agir, pre-

1006 Júlio Cabrera (2004) indicava que, efetivamente, há muitas razões para negar a própria vida
(como o herói que dá a vida pela comunidade). Não a consideraria esta negação da própria
vida como suicídio propriamente dito (Cf. Dussel, 2004c).

500
servar e acrescentar esta vida, que, como sujeitos viventes, como cidadãos e como
comunidade política, são responsáveis mutuamente por ela. Absurdo e irracional
por excelência seria exercer o poder para eliminar a vida da comunidade. Este
suicídio coletivo é o antipolítico por excelência. Haveria uma “vontade de morte”
que ipso facto significa a extinção da comunidade e da política.
Por isso, propusemos que o oponente à fundamentação do princípio material
é o cínico que exerce o poder (por último, militar, com o que pode eliminar a vida
do argumentador oponente). O cínico não entra na discussão. Não existe manei-
ra de argumentar contra suas decisões. Suas decisões se apoiam em argumentos
tautológicos que negam toda prova em contrário. São argumentos aparentes que
não agregam novo conhecimento, por isso, os denominamos “argumentos tautoló-
gicos”. São os argumentos de Ginés de Sepúlveda, de John Locke ou de George W.
Bush. Os três têm aparentes argumentos para eliminar o Outro, isto é, se opõem
à permanência e aumento da vida de seres humanos.
Vimos que Ginés de Sepúlveda mostrou claramente, no momento inaugural da
Modernidade, o tipo de “argumento tautológico” contra a vida, já que é ele mesmo
quem define o inimigo e como inimigo lhe declara a guerra, por definição sempre
uma “guerra justa”.1007 Da mesma forma, John Locke enuncia o mesmo argumento
tautológico, que nada prova senão a onímoda vontade de dominação do escravista
ou do colonizador [154-151]. Em nosso tempo, George W. Bush igualmente deu
como premissa maior da guerra contra o Iraque o uso de “armas de destruição
massiva” e a perseguição aos terroristas (definidos também pelos agressores, de
maneira que lhes será muito fácil detectar como terrorista o próprio inimigo).
Os iraquianos testemunharam não terem ditas armas. Depois de meses de busca,
deu-se por terminada a tarefa de encontrá-las. Neste momento, teria sido honesto
aceitar o erro. Mas, não; não foi reconhecido erro algum. O cínico havia dado com
plena consciência uma argumentação tautológica de antemão falsa. Negou, de fato,
a vida do Outro, por um valor infinitamente menor (o valor de troca do petróleo
iraquiano). Numa guerra injusta (de conquista colonial ou de expansão imperial),
se viola o princípio material político, evidentemente.
O argumento de fundamentação do princípio material poderia ser resumido
aproximadamente da seguinte maneira:
1. Todo ser humano singular pressupõe a vida de uma comunidade política.
2. Além disso, todo aquele que age politicamente já manifestou in actu que é
um ser corporal vivente, por isso, no conteúdo da política se pressupõe o agir em
vista da satisfação das necessidades da vida humana.
3. Por outra parte, todo membro de uma comunidade política tem um desen-
volvimento cerebral que lhe permite experimentar fenômenos, tais como a cons-
ciência prática, a autoconsciência pragmática e a autorreflexividade, que investe

1007 Ver o que dissemos no volume da História desta obra [99-100].

501
o sujeito de uma responsabilidade (simultânea à consciência e à reponsabilidade
empírica, como “encarregar-se da realidade”, segundo Zubiri, ou como “responsa-
bilidade pelo Outro”, segundo E. Levinas) sobre a própria vida humana.
4. Como ser reflexivo autoconsciente (agora de maneira explícita, como fruto
de uma decisão da liberdade em seu exercício empírico) deve cumprir as exigências
de sua responsabilidade já que, ao não fazê-lo, se produziria um suicídio coletivo,
5. Por isso, todo membro de uma comunidade política deve pretender produzir,
reproduzir e aumentar a vida humana de cada um e de todos os membros de sua
comunidade, em última análise, de todas as comunidades políticas, quer dizer, da
humanidade, operando as respectivas ações e instituições.

3.4. A aplicação do Princípio Material. Modelos de intervenção


[412] Assim como o princípio formal de legitimidade política tem aplicação
universal em toda decisão, em seu aspecto normativo-procedimental, da mesma
maneira, o Princípio Material será aplicado no processo de toda decisão (seja para
atuar estratégica ou institucionalmente) quanto à orientação normativa do próprio
conteúdo do procedimento discursivo. O que se discute ou se decide deve responder
ao imperativo deôntico, normativo de ser uma mediação para a reprodução e au-
mento da vida da comunidade política.
a) Na esfera material. O político, não especialista em ecologia, economia ou
em disciplinas culturais, deve, contudo, exercer certa condução da orientação em
todos os passos que devam ser dados para chegar a uma tomada de decisões, que
foi iluminado e investigado em suas diversas possibilidades pelos especialistas, em
todos os ramos dos campos materiais que cruzam o campo político. O político
terá a última responsabilidade diante da comunidade política que o elegeu como
seu representante (enquanto potestas) na tomada de decisões materiais. Se uma
decisão quanto à política financeira empobrecesse massivamente a comunidade
política, o político tem autoridade delegada e a responsabilidade diante da co-
munidade para exigir dos especialistas encontrar a maneira de não produzir tal
efeito negativo, que põe em risco um aspecto fundamental da vida da população.
O governo de Néstor Kirchner, na Argentina, graças ao conhecimento da ciência
econômica de seu ministro da economia, conseguiu diminuir substancialmente
sua dívida externa e exigiu, por um boicote nacional, diminuir o preço da gasolina
e de outros produtos à transnacional Shell e British Oil. Trata-se de uma decisão
política, por mediação do saber econômico, que expressa uma vontade em favor da
possibilidade de sair de uma espantosa crise econômica que o FMI e as corpora-
ções transnacionais (produtivas e financeiras) impuseram ao país. Nisto, estriba
a possibilidade, e a exigência normativa, de intervir em qualquer campo material
desde o campo político, naquilo que se enuncia como “política ecológica”, “política

502
econômica”, “política cultural”, etc., desde alguma organização da sociedade
civil ou desde instituições da sociedade política (do Estado). O liberalismo nos
habituou a pensar que o político deve deixar que o campo econômico, o mercado
do sistema capitalista, funcione com uma total autonomia, já que, supostamente,
tende ao equilíbrio. Na verdade, isto é parte de um discurso ideológico, já que o
modelo liberal propicia de fato uma contínua intervenção no campo econômico
por meio de uma política impositiva, de aduanas, de fixação de taxas bancárias,
de luta contra a inflação, para impedir a “competição desleal” entre as empresas
capitalistas, entre as corporações, etc. Estas “intervenções” no campo econômico,
fazem parte da condução política da comunidade por parte do exercício do poder
(potestas), sempre presente de uma ou outra maneira.
Estas intervenções políticas, ou aplicações dos princípios materiais, nas esferas
materiais podem ser descritas como modelos. O chamado “Estado de Bem-estar”
era um tipo de relação entre um sistema político (do campo político) que se cruzava
e orientava a um sistema econômico (do campo econômico) de maneira particular.
Desde Keynes, com sua doutrina do “pleno emprego” – diante da crise de 1929 –,
compreendeu-se que não era necessário contrair a produção, mas criar um forte
mercado interno (também na periferia pós-colonial, o que derivará no chamado
nacionalismo ou “populismo latino-americano”, por exemplo), controlar, mas não
evitar, a inflação, alcançar o pleno emprego. Vale dizer, o capital financeiro estava
a serviço do capital produtivo e as grandes massas (de operários e camponeses)
gozavam de uma solvência nunca antes e nunca depois obtida, no século XX, no
sistema capitalista. Este modelo certamente supunha dar certa prioridade (limi-
tada pelas estreitas margens do capitalismo, evidentemente) ao aspecto material
reprodutivo da comunidade política em seu conjunto. O modelo neoliberal, pelo
contrário, define a priori que o sistema político não deve intervir no mercado (mo-
mento central do sistema capitalista) e, ao contrário, se intervém, é para permitir
que a lógica competitiva do mercado se aproxime do seu postulado: a competição
perfeita (enunciado que não é um postulado, porque é logicamente impensável e
contraditório1008 e empiricamente impossível).

1008 Já abordei este tema. Se a competição entre capitais fosse perfeita, se suporia que todos
os competidores teriam iguais capacidades (por exemplo, igual composição orgânico-tec-
nológica do capital). O planejamento perfeito é logicamente pensável (não a competição
perfeita), embora seja empiricamente impossível. O que não indica que seja possível um
planejamento imperfeito, aproximado. No presente, graças a modelos computadorizados
se pode antecipar situações futuras com milhares de variáveis ao subsumir materialmente a
tecnologia eletrônica no processo de planificação. Está-se vivendo no presente uma revolu-
ção semelhante à revolução industrial, quando se subsumiu materialmente a máquina a vapor
no processo de produção. Marx estaria entusiasmado ao ver as possibilidades de planejar,
mas estaria mais desencantado, porém, ao ver o uso perverso que se faz destas estruturas
computadorizadas.

503
b) Na esfera democrática. O princípio material político, então, orienta a própria
discussão. Não somente é preciso institucionalizar a simetria na organização dos
participantes afetados para que a decisão consensual racional alcançada seja legíti-
ma (formalmente); é necessário que o político vigie continuamente os argumentos
em seus conteúdos, em seus pressupostos, em suas consequências, no curto, médio
e longo prazos. Esta atenção do político aos conteúdos, tomando como referência
o princípio material, constitui a função de orientação da discussão, que de legiti-
midade formal se transforma em legitimidade integral, material; vale dizer, é uma
legitimidade real. A verdade prática da decisão com legitimidade real é o cumprimento
na própria ação, nas instituições, dos dois princípios normativos já estudados.
c) Na esfera da factibilidade política. Da mesma maneira, o princípio mate-
rial político fixa um limite à mera factibilidade, eficácia estratégica, como técnica
da governabilidade possível. Maquiavel libera a política das virtudes antigas que
haviam se tornado hipócritas e inúteis. Mas, em seu lugar, deixa regras estratégi-
cas, entre as quais a sobrevivência da comunidade é conveniente para garantir ao
príncipe a continuidade do exercício do poder. Neste caso, a referência à vida da
comunidade não é um fim em si (diria Kant), mas um meio para o fim de exercer o
poder como potestas-dominação.
A crítica da razão instrumental, que a primeira geração da Escola de Frankfurt
realizou, advertia sobre o perigo de constituir a técnica, a razão formal meio-fim
factível, como o único critério da ação. Os fins da razão instrumental (o meio para
o mero exercício da potestas como dominação desde o uso da relação técnica sujei-
to-natureza) ou estratégica (prática do sujeito-sujeito político), devem ainda serem
julgados desde a possibilidade/impossibilidade de reproduzir e acrescentar a vida
da comunidade humana, em última análise, da humanidade, legitimamente. Isto
vale como um princípio ecológico e econômico fundamental, mas igualmente desde
o ponto de vista da sobrevivência cultural, num mundo globalizado pluricultural,
onde algumas culturas exterminam outras, e, com isso, seus valores criados durante
milênios de enigmas positivos para a sobrevivência que se perderam definitivamen-
te. O mesmo pode ser dito quanto à sua execução democrática.

4. Os postulados político-materiais1009

[413] Poderíamos buscar descobrir alguns postulados que se encontram de-


baixo da ação e da instituição moderna e ainda capitalista. Por exemplo, e sempre
a partir de D. Hume, poderíamos dizer que é um postulado “Que todos tenham
a propriedade necessária para viver!” (aplicação própria do “Princípio de Justiça”,

1009 Deixamos para a futura parte Crítica os postulados críticos que abrem horizontes novos de
ações libertadoras.

504
para Hume, a fim de defender os cidadãos contra a destruição propiciada pela
paixão da avareza). O que acontece é que, tendo conquistado a propriedade dos
senhores medievais feudais e dos latifundiários do capitalismo nascente, a classe
mercantil, e muito mais a classe industrial, se apropriaram de campos, imóveis ur-
banos e meios de produção, despojando os antigos servos, peões do campo ou mas-
sas urbanas empobrecidas de toda propriedade. Do postulado “Que todos tenham
a propriedade necessária para viver!” se passou à proclamação de um novo direito:
“A propriedade privada é de direito natural”, entendendo-se por propriedade pri-
vada a propriedade positiva adquirida, despojando de sua propriedade senhores
feudais e camponeses livres. O postulado (logicamente possível) se manifestou
como empiricamente impossível (dada a organização do campo econômico sob
o domínio do sistema capitalista nascente, desde fins do século XV), e é o fun-
damento que torna inexorável a pobreza de tantas gerações passadas e presentes.
Da mesma maneira: “Ide pelo mundo e trabalhai a terra como Deus (anglicano)
mandou!” – premissa que se encontra na argumentação de Locke e onde se fun-
damenta o direito de ocupar terras vacantes em mãos dos indígenas americanos
nômades, vadios e indolentes para Locke –, transforma-se no colonialismo, na
dominação da periferia, na exploração do mundo pós-colonial, até hoje.
Também o postulado de implantar a “fraternidade” no mundo – da revolução
francesa –, que estipula que todos os seres humanos são “irmãos” (esquecendo, de
passagem, as “irmãs”: a sororidade), fecha muito rapidamente (como a “cerrata” do
“Conselho Magno” de Veneza) o horizonte dos que são irmãos, iguais, membros
plenos da “sociedade civil”. Efetivamente, muito rapidamente (por ser uma revolu-
ção burguesa) para ser cidadão é preciso ter propriedade, ser varão, alfabetizado,
ou fazer parte da elite urbana (a “cidade letrada”). Muitos ficam fora da “frater-
nidade”, ficam excluídos da participação simétrica. A “fraternidade”, como pos-
tulado (logicamente pensável, mas empiricamente impossível de maneira efetiva),
deixa de ser um “critério de orientação” para os grupos dominantes. Pelo contrá-
rio, como veremos na parte Crítica, o postulado não-cumprido da “fraternidade”
universal pela burguesia seguirá vigente entre os oprimidos e excluídos, como um
critério de orientação a ser cumprido, e dali surgirão as revoluções futuras, e por
eles proporemos como este “plus”, mais além da “fraternidade”, o conceito estrito
de “solidariedade”.1010

1010 Ver, na parte Crítica desta obra, o § 33.

505
§ 27. PRINCÍPIO DE FACTIBILIDADE ESTRATÉGICO-POLÍTICO:
LIBERDADE

[414] O agente político, sujeito corporal vivente no campo político, confronta-se


necessariamente como um a priori sempre já pressuposto, com uma situação pe-
rene, um estado de recursos escassos, com os quais deverá inevitavelmente convi-
ver para alcançar as metas programadas, o que o levará num nível estratégico da
factibilidade (ou possibilidade da realização concreta) a resolver o problema da
eficácia. Na gestão da escassez com eficácia, se situa o problema da governabilidade
do complexo sistema político. Em última análise, trata-se da produção e reprodu-
ção da vida dos membros da comunidade política de maneira legítima, eficazmente
levada a cabo no plano empírico de recursos escassos. O tema poderia ser expresso
assim: não se deve fazer o que não se pode (seria a ilusão moralista); não se pode
fazer o que não se deve (seria a posição normativa); o que se deve, é preciso fazê-lo
eficazmente (o realismo crítico-normativo que propugnamos).1011
Tocamos num tema central da política. Alguns a definiram como “a arte do
possível”. Trata-se de uma possibilidade empírica. Hegel nos fala dos projetos po-
líticos impossíveis, quando observa: “estas abstrações produziram [...] a ruína de
tudo o que existe e tem [...] como fundamento uma pretensa racionalidade” (1971,
VII, p. 400-401).1012 Marx, ao contrário, mostra a impossibilidade da política (e
do próprio capitalismo), quando se deixa tudo nas mãos das relações mercantis,
sacrificando a vida humana exclusivamente ao progresso do capital: “A sociedade
capitalista é impossível, porque é autodestruidora, portanto, o progresso desenca-
deado dentro da sociedade burguesa somente pode ser orientado em função da
vida humana, se for controlado em função da própria vida humana” (Hinkelam-
mert, 1984, p. 22). Este “controlar” a ação ou a instituição (afinal, o capital é uma
instituição econômica) possíveis indica o momento normativo do princípio de fac-
tibilidade política que não é senão o enquadrar a ação eficaz sistêmica dentro dos
parâmetros já tantas vezes referidos da vida humana e a legitimidade – tal como a
temos definido nesta Política da Libertação.

1. A razão estratégico-política

Já indicamos repetidamente a diferenciação aristotélica entre lógos poietikós


(razão instrumental) e lógos praktikós (razão prática, em nosso caso, “estratégica”).
O primeiro determina a relação sujeito-natureza como razão técnica. O segundo
determina a relação sujeito-sujeito como razão estratégica. A razão estratégico-po-

1011 Ver a Tese 10.3 de 20 Teses de Política (Dussel, 2006).


1012 Rechtsphilosophie, § 258, Comentário

506
lítica se encarrega da complexidade das circunstâncias, dentro da qual se inscreve
toda ação ou instituição, quanto a serem efetuadas, realizadas. A “realização” de
uma máxima ou juízo imperativo prático deverá sempre contar com a capacidade
da razão estratégica que, no processo da temporalidade, deve decidir as condições
técnicas para efetivar uma ação ou instituição e, ao mesmo tempo, antecipar o fu-
turo da ação ou instituição quando realizadas, desde o momento do projetar no
presente este objeto prático ainda não dado. O arquiteto deve, com os recursos
de que dispõe, decidir os materiais que usará para construir sua obra e incluir no
projeto todas as variáveis que se apresentarão a posteriori, sendo uma verdadeira
antecipação da obra possível, quanto à sua possibilidade real e a seus efeitos. Seria
mau arquiteto se esquecesse alguma variável que pudesse pôr em perigo a obra
uma vez construída.
A possibilidade da qual falamos, então, é tripla. Indica a) que possa ser realizada
quanto aos recursos disponíveis (o passado acumulado no presente), e b) que possa
efetuar a ação ou instituição quanto às circunstâncias que se apresentam no futuro
(para o qual é preciso antecipar o advir). Ao observar que a obra deva resistir a
circunstâncias futuras que precisam ser prevenidas, se pressupõe, também, que é
preciso c) igualmente antecipar os efeitos positivos (buscados) ou negativos (que
pudessem se apresentar e que devam ser evitados), no imediato, médio e longo
prazos. A experiência de muitos atos e obras passadas já cumpridos e os resultados
já observados permitem estudar antecipadamente ditos efeitos. Hoje, graças aos
meios eletrônicos e aos avanços teóricos, é possível conceber os modelos de simu-
lação com milhares de variáveis que permitem nos inteirar do futuro provável,
de maneira muito mais segura (embora nunca se deixe de lado a incerteza, pela
aparição de variáveis não previstas).
A factibilidade estratégica deve, então, ser enfrentada na complexidade do
tempo. É um tipo de racionalidade meio-fim que, graças à imaginação, observa
com anterioridade (construindo cenários futuros) os efeitos por vir dos aconteci-
mentos presentes, fruto de ações ou instituições (Cf. Dussel, 1998, cap. 3).
Max Weber (1944), como já vimos várias vezes, distinguiu entre razão formal
(que orienta a ação social racional em ordem a fins) e material (em ordem a valores).
A primeira procede a partir de “ juízos empíricos”, que podem ser desenvolvidos na
ciência; a segunda opera com “ juízos de valor”, que são subjetivos, como os juízos
de gosto – e não se pode, com estes, desenvolver um discurso científico. Os dois
tipos de racionalidade descritos acima (a razão política prático-material e a discur-
siva) são desconhecidos para Weber. Isto o faz cair inevitavelmente no reducionis-
mo da “razão instrumental” tão criticada por Horkheimer, Adorno e Marcuse. A
racionalidade formal está “sujeita ao número e ao cálculo” (Weber, 1944, I, II, p. 9;
p. 64) e se encaminha a “fins” já dados no sistema vigente (seja político, econômico,
tecnológico, etc.). Não existe possibilidade nem de pôr fins, nem de julgá-los. O

507
problema normativo da política, da razão estratégica (normativamente determi-
nada), consiste exatamente em poder ver a compatibilidade dos fins da ação (da
racionalidade formal: por exemplo, o fim do sistema burocrático ou da empresa
capitalista) com a possibilidade da reprodução da vida humana (a verdade do fim)
e com a procedimentalidade democrática de sua eleição (a legitimidade do fim).
A razão estratégica, prática e, neste caso, política, como se pode ver, subsume
a mera razão técnico-instrumental, que lhe serve de apoio científico-tecnológico
– por exemplo, em modelos cibernéticos de estudos antecipatórios de situações
futuras, de planos econômicos, políticos ou sociais, que permitem ao político ele-
ger dentro de diferentes cenários e cuja responsabilidade política não diminui por
contar com tais recursos de probabilidades.
A factibilidade, por outro lado, cumpre uma das determinações essenciais
do poder político, já que este, como pluralidade de vontades que “querem-viver”,
unidas pelo consenso democrático, deve “poder-pôr-os-meios” destas mesmas exi-
gências. O poder-pôr realmente as mediações que se abrem como possibilidades
(econômicas, psicológicas, físicas, históricas, etc.) é conditio sine qua non para que
se dê o exercício político. Os melhores projetos políticos por seus conteúdos, e le-
gítimos em sua decisão, fracassam por falta de condições objetivas, empíricas, con-
cretas de sua realização; o mais frequente, por não ter recursos econômicos, mas
igualmente por outras causas determinantes. A eficácia de um político, que opera
o melhor resultado possível em proporção a um meio escasso, conta enormemente
na avaliação da gestão de um representante. Na política, o poder administrativo ou
executivo é julgado fundamentalmente no nível estratégico da factibilidade efetiva
dos projetos. “Realizar, não prometer!”, era o slogan de um político.
Isto supõe, por outro lado, uma crítica da razão utópica, ou, de modo mais sim-
ples, uma crítica das possibilidades.

Esquema 27.01. Três tipos de “possíveis” políticos


1. 2. 3.
É possível do O possível do crítico O possível do anarquista
conservador (impossível para o (impossível para o crítico e o
(superado para o conservador – superado conservador)
crítico) pelo anarquista)

[415] Estrategicamente, para o conservador que toma a “ordem vigente” como


o melhor mundo possível (1.) (a sociedade aberta de K. Popper), o possível (2.) do
crítico (o progressista) é um impossível (tanto como o do anarquista). Para o mesmo
crítico (o progressista), o impossível do conservador pode ser ainda para ele, ou ela,

508
possível. Para o anarquista extremo, é possível (3.) o que é impossível, tanto para o
conservador quanto para o crítico, e, portanto (como para A. Negri ou J. Hollo-
way), o possível do crítico (o progressista) é uma ordem intolerável, superada e,
como tal, injusta. Será preciso situar estes três tipos de possíveis, em cada caso. Por
ora, o possível anarquista é o oponente principal em nossa reflexão (na parte Crítica
deveremos nos confrontar melhor com o conservador), já que é o empiricamente
impossível (embora possível logicamente, como todo postulado, que o anarquista
confunde com fins empíricos a realizar historicamente no futuro).1013
Cada um destes possíveis abre um campo de atividade (ou de institucionalida-
de). Ao que opina que o único possível é o vigente, muitas possibilidades estraté-
gicas lhe são fechadas e, ao final, cai em autocontradição. O pensamento conser-
vador, como o de Peter Berger, é um bom exemplo. Em sua obra O Dossel Sagrado,
P. Berger parte da ordem institucional vigente, que sempre contém negatividade:

Todos os mundos constituídos socialmente padecem de uma intrínseca precariedade.


Sustentados pela atividade humana, encontram-se sob a constante ameaça dos fatos
humanos do egoísmo e da estupidez. Os programas institucionais sofrem a sabotagem
de indivíduos com interesses antagônicos (1971, p. 44).1014

São inevitáveis as ações e as ideologias contrárias à ordem vigente. Para resistir


a elas, a ordem produz, por um processo de legitimação, razões e ações que tendem
a justificar a ordem estabelecida. Quanto maior é a contestação, maiores são as
ações legitimadoras. Quando uma ordem chega a uma aceitação clássica, quase sem
críticas, os processos legitimadores são desnecessários e, numa situação de plausi-
bilidade, ou de aceitação perfeita, a legitimação já não seria necessária para nada.
Quando, pelo contrário, o processo legitimador fracassa, pode-se cair no caos, de
modo que há como que três polos: uma realidade vigente precária, um caos sempre
possível como destruição da ordem e um ideal de plausibilidade perfeita:

Desordem [...] é a antítese de todos os nómoi socialmente constituídos [...]. Ir contra


a ordem social é sempre correr o risco de submergir na anomia (1971, p. 55). Toda
sociedade humana, qualquer que seja o modo como é legitimada, deve manter sua
solidariedade frente ao caos (Berger, 1971, p. 69-70).

Estamos num círculo dentro do qual o que não pode ser posto em questão
é o estatuto supremo e invariável da ordem vigente. Toda crítica, seja qual for a

1013 Toda nossa proposta de postulados pretende fazer o anarquista compreender que o que
busca tem sentido como princípio de orientação, mas não como princípio de factibilidade
empírica (que é o que estamos abordando).
1014 Ver Hinkelammert (1984, p. 34ss).

509
origem, deve ser rechaçada (e evidentemente se nega qualquer conteúdo material
e se lhe atribui somente “o egoísmo e a estupidez”, que são razões superficiais,
individuais e abstratas, não histórico-institucionais). Todo projeto que supere o
da ordem vigente deve ser negado. É a fetichização do passado-presente e a im-
possibilidade de um futuro com progresso qualitativo, aumento de vida humana,
ecológica, econômica ou cultural.
Para o anarquista, pelo contrário, tendo um horizonte de possibilidade quase
ilimitado, porque se propõe fins empiricamente impossíveis, perde o sentido do
estratégico e entra num campo ilusório, onde ações não razoáveis (para não dizer
irracionais) se tornam factíveis. Um exemplo é a estratégia política de um J. Hol-
loway, onde a organização política é taxada de burocratismo e na qual os aconte-
cimentos (como Seatle, Barcelona ou Cancún) devem ser vividos como presença
crescente de processos de maturação da multidão. Como o Estado é uma insti-
tuição perversa (e desaparecerá; quer dizer, deve ser considerada como impossível
numa política revolucionária), o tema estratégico se desvia para a transformação
social da comunidade política e não se buscará nunca o que se denomina “a tomada
do poder”; poder que, por outra parte, é sempre considerado como dominação. A
razão estratégica perdeu seu sentido e se transformou em ética; mas, como a ética
deve ser subsumida num campo, como, por exemplo, o político, uma pura ética
política nem é ética e nem é política. É a “ilusão transcendental”1015 de F. Hin-
kelammert: pretender realizar, empiricamente, postulados que não são objetivos
estratégicos da ação política, mas princípios de orientação ou sentido.
A razão estratégica cobra todo o seu sentido, quando se situa no “estratégico” (a
esfera da factibilidade) desde a ordem vigente, mas, igualmente, podendo produzir
transformações que se abram para um futuro possível mais além do vigente. A
criatividade da práxis, como a pensa H. Jonas, desenvolve toda sua potencialidade.

2. A vontade temporalizada: como disciplina (sophrosyne) e como


fortaleza

[416] Na estratégia, nem tudo é racionalidade prática. Também intervém a


vontade, imprimindo à ação estratégica impulsos e motivações sem as quais é im-
possível a práxis política concreta. A potentia está em potência e não em ato, se
não tem as condições (Hegel, Marx) para se tornar ato. Em primeiro lugar, explica
Aristóteles, na Ética a Nicômaco:

1015 “Ilusão” por referência àquilo que os navegadores chineses tomam a estrela Polar como
referência para saber se guiar em alto-mar, mas não como um destino de uma viagem na
qual chegariam efetivamente à estrela empiricamente.

510
Por isso, chamamos sophrosyne [disciplina], porque significa aquela que salva (sózou-
san) a phrónesis. O que ela protege é a hypólepsin [...]. O princípio (arkhé) é aquele em
vista do qual agimos. Por isso, quando o ser humano se corrompeu pelo gozo ou pela
dor, se lhe oculta a origem, isto é, se lhe obnubila o projeto em vista do qual elegemos
as possibilidades e agimos. O vício (kakía) corrompe a origem (VI, 5, 1140b, 11-20).

Quem corrompe sua vontade (pela prioridade do egoísmo, pelos interesses do


grupo dominante, pelo roubo de bens públicos, por se deixar abrandar pelo con-
forto) não pode, com clareza e firmeza, lançar-se ao objeto estratégico. A “decisão
concreta” (hypólepsis) deixa de ter referente afetivo, “não concorda com a retidão do
querer” (tê oréxei tê orthê) (V, 2, 1139a 30-31). A “verdade prática” tem relação com
a realidade da vida humana; a retidão da vontade tem relação com a ordem do que-
rer. O político (cidadão ou representante), para não perder a bússola nas decisões
estratégicas, deve calibrar suas tendências até os objetivos previstos: a reprodução
e desenvolvimento da vida da comunidade na satisfação de suas necessidades e na
sua participação simétrica nos acordos. Toda outra motivação desvia a força de seu
compromisso político estratégico.
Em segundo lugar, e da mesma maneira, na ação estratégica e, em especial,
quando a responsabilidade entra no longo prazo, se deve encarar com inteireza
as maiores dificuldades. A “fortaleza” (andreia) blinda a vontade com a força do
caráter, que se identifica com as vontades da comunidade e assegura a fidelidade ao
acordo consensualmente alcançado. Esta fidelidade é da que nos fala A. Badiou, no
regime de verdade que se abre desde o acontecimento originário fundador da ordem
política.1016 “I endure”, exclama Joaquim – numa poesia dos hispanos discrimina-
dos hoje nos Estados Unidos1017. Este saber resistir é próprio de uma vontade es-
trategicamente preparada para travessias de longo prazo. Somente os que vencem
as dificuldades da fortuna alcançam o objetivo perseguido.

3. O Princípio de Factibilidade Estratégica

[419] Exporemos o tema do terceiro princípio que, por ser o mais complexo,
subsume os dois anteriores. Estes dois se codeterminam entre si, sem última ins-
tância. Contudo, o terceiro princípio pressupõe os outros dois, embora também
os determine. Sem este terceiro princípio, os outros dois ficam num nível abstrato,
sem possibilidade de passar à realidade efetiva.

1016 Questão exposta no § 15.


1017 Rodolfo Gonzales, I am Joaquín, 1972.

511
3.1. O Princípio de Factibilidade e a possibilitas potentiae1018

Em primeiro lugar, o Princípio Normativo de Factibilidade delimita negati-


vamente o campo político: traça uma linha entre possível/impossível. O campo
político é, por último e estritamente, o espaço da ação política possível, tanto do
cidadão como do representante. Os dois princípios implícitos já enunciados (ma-
terial e formal) delimitam também a ação política concreta em sua possibilida-
de (impossível seria um autoritarismo antidemocrático ou a simples guerra, por
exemplo). Trata-se de um último princípio abstrato que, por sua vez, demarcará
os níveis mais concretos (das instituições, nível B, e da ação política concreta, nível
A). É o princípio de possibilidade política ou factibilidade estratégica. Não se deve
(embora técnica ou estrategicamente se possa) pretender efetuar uma ação, micro
ou macroinstituição, sem considerar as exigências dos princípios material e formal
políticos. Seria legitimamente e, por seu conteúdo, impossível politicamente.
Por outro lado, há circunstâncias que mostram a impossibilidade simples e
empírica de ações políticas, desde um ponto de vista social, histórico, etc. As con-
dições de existência de um ato em toda a sua complexidade devem ser “possíveis”
para que sejam “políticas”. Mal poderiam ser políticas se são impossíveis e, contu-
do, certos anarquismos extremos buscam impossíveis e, por isso, não podem ter
ditos atos com pretensão política de justiça.
Em segundo lugar, o Princípio Normativo de Factibilidade motiva intrinse-
camente, positivamente de dentro, a realização de todos os momentos do poder
(como potentia e como potestas). O “poder-agir” não indica simplesmente a capaci-
dade técnica de efetuar um ato. Exige o cumprimento de condições suficientes para
que seja “politicamente” eficaz, ao constituir uma intervenção no campo político e
na estrutura de poder que tenha alguma pretensão de duração, de estabilizar-se,
de exercer sua atualidade até ter alcançado os fins a que se propõe. A ação politi-
camente eficaz, desde um ponto de vista estratégico, deve ponderar as estruturas
de forças em jogo, deve analisar o estado do exercício do poder num momento
dado1019, para que a intervenção tenha um resultado de estabilização ou transfor-
mação (seja qual fosse o objetivo estratégico) da ação com a qual se pretende mar-
car presença no campo político, público, e resistente a toda intervenção política,
que não consiga dobrar, de alguma maneira, o estado prévio das coisas.
A Vontade de Poder – como um “poder-pôr novos valores”, que é um dos sig-
nificados do conceito nietzscheano –, é uma subjetividade prática que se “põe” no
campo político como um ator, que desde sua corporalidade vivente, como afetivi-

1018 “Possibilidade da potência”: se potentia é o poder da comunidade como unidade de muitas


vontades, é ainda necessário que possa exercer este poder (possibilitas).
1019 Entre o shi ou o “potencial” favorável da realidade à vista do político chinês.

512
dade ou desejo, motiva ou se move, tem o atrevimento de se lançar à arena pública,
tem a capacidade de sua própria afirmação como resistente-ator, tem a valentia de
infligir uma modificação em dito campo. O meramente resistente passa a ser uma
força geradora, ou o que já exerce uma força passa a unir novas vontades passivas a
uma causa. “Pode”, então, mudar a estrutura do poder – no sentido foucaultiano,
agora. Exercita poder o que modifica a rede e os pontos ou nós da rede (e, por isso,
campo minado, já que cada vontade na estrutura do poder é uma possível mina,
uma possível explosão, um conflito inevitável) ou o campo magnético do poder.
Não necessariamente domina outras vontades, já que o que passivamente resistia
pode passar a um estado de igualdade sem exercer domínio (mas, sem se deixar
dominar) e isto é já um novo exercício do poder. Pode se estabelecer na igualdade;
pode pretender passar à hegemonia; pode recair na passividade resistente. Tudo
é possível, mas se manifesta como poder ao modificar a estrutura. Mas, também,
ao não modificá-la, pode seguir exercendo um poder, ao menos como resistência
e, em certos casos – como nas guerras defensivas populares, ou na desativação de
uma obediência criativa que se torna resistência passiva (“quinta colunista”) dos
povos em relação aos ditadores antipopulares – como deixando a possibilidade do
exercício da força ao fazer o vazio. Como o toureiro, que deixa passar o touro com
toda a sua potência inútil, ou os russos, ao incendiar Moscou diante de Napoleão
que, embora já não tivesse inimigos à vista (e podia crer ter obtido um triunfo), foi
derrotado ao encontrar-se no vazio de Moscou, uma capital inexistente e diante
de um inverno que destruirá seu exército. Os russos deixaram toda resistência e o
poder de Napoleão ficou aniquilado, no vazio da imensa estepe, que não oferece
nem resistência. Do sublime do herói, se cai no ridículo do ingenuamente enreda-
do na cilada de um inimigo evaporado. Os sortilégios do exercício do poder têm
uma lógica inesperada que confunde o melhor estrategista.
O “poder-agir” não indica simplesmente a capacidade técnica de efetuar um
ato. Exige, na política, uma complexidade suficiente para que seja “politicamente”
eficaz, ao constituir uma intervenção no campo político e na estrutura de poder
que tenha alguma pretensão de duração, de estabilizar-se, de exercer sua atuali-
dade até ter alcançado os fins que se propõe. A ação politicamente eficaz, de um
ponto de vista estratégico, deve ponderar as estruturas de forças em jogo, deve
analisar o estado do exercício do poder, num momento dado para que a interven-
ção tenha um resultado de estabilização ou de transformação (seja qual fosse o
objetivo estratégico) da ação, com a qual se pretende fazer-se presente no campo
político, público então, e resistente a toda intervenção política que não consiga
dobrar, de alguma maneira, o estado prévio das coisas.
O poder político, portanto, não é somente potentia, é também possibilitas, quer
dizer, possibilitas potentiae, na qual consiste a operabilia: o que for preciso fazer
segundo as possibilidades reais. A potentia (poder fundante) está, no começo, “em

513
potência”: deve passar ao ato. A factibilidade (operação da razão estratégica e de
uma vontade afirmada) faz passar a potentia ao ato. Hegel (texto utilizado por
Marx, nos Grundrisse, para mostrar a maneira como o trabalho vivo ficava em
potência se não fossem dadas as condições para passar ao ato [Tätigkeit]) assina-
lava: “Possibilidade (Möglichkeit) e contingência (Zufälligkeit) são os momentos da
realidade (Wirklichkeit), interior e exterior, postos como meras formas, que cons-
tituem a exterioridade do real” (Hegel, 1971, p. 284).1020 Mas é preciso distinguir
três momentos, no esclarecimento do pensar hegeliano:

1) A condição a) é o que se supõe, como somente posta, existe como relativa à coisa
(Sache)1021 [...]; b) As condições são passivas, são usadas como material para a coisa e
entram por conseguinte no conteúdo da coisa [...]; 2) A coisa é, além disso, a) um pres-
suposto, como posto, é somente algo de interno e de possível [...], b) obtém pelo emprego
das condições sua existência exterior [....]; 3) A atividade (Tätigkeit) é a) igualmente
existente por si como independente (um ser humano, um caráter) e, também, tem sua
possibilidade somente nas condições e nas coisas; b) é o movimento para sobrepor
(übersetzen) as condições como coisa [...] enquanto se sobrepassa do lado da existência;
ou melhor, para tirar a coisa fora das condições (Hegel, 1971, p. 292-293).1022

Quer dizer, a factibilidade contingente de toda ação estratégica ou gestão de


toda instituição (desde sua geração até sua entropia) supõe: condições empíricas
concretas; a passagem da potência ao ato, a atividade do agente político em vista
de realizar dita ação ou instituição (a coisa da política). Esta atualidade do agente
a partir de condições reais, empíricas, escassas, dadas, é todo o horizonte da facti-
bilidade estratégico-política.

3.2. Primazia redutiva do estratégico sem normatividade


[420] Em sua Crítica da Razão Instrumental, M. Horkheimer se ergue tanto
contra a “razão objetiva” como contra a “razão subjetiva”. À primeira se atribui
certo realismo ingênuo, à maneira de Platão ou Aristóteles, enquanto “o grau de
racionalidade da vida do ser humano podia ser determinado conforme sua har-
monia com a totalidade. A estrutura objetiva desta – e não somente o ser humano
e seus fins – devia servir de pauta para os pensamentos e as ações individuais”
(Horkheimer, 1973, p. 16). Por sua vez, chama “razão subjetiva” à que se propõe
técnica ou instrumentalmente dominar a natureza e seus sujeitos:

1020 Enzyklopedie, § 145.


1021 No nosso caso, a “coisa” é a ação ou a instituição política empírica a ser efetuada.
1022 Enzyklopedie, § 148.

514
Segundo esta última, unicamente o sujeito pode possuir razão num sentido genuíno;
quando dizemos que uma instituição ou alguma outra realidade é racional, usualmente
queremos dar a entender que o ser humano a organizou de um modo racional, que
aplicou em seu caso, de maneira mais ou menos técnica, sua faculdade lógica, calculadora.
Em última instância, a razão subjetiva resulta ser a capacidade de calcular probabili-
dades e de adequar assim os meios corretos a um fim dado (Horkheimer, 1973, p. 17).

Por isso, “nenhuma realidade em particular pode aparecer per se como racional;
esvaziada de seu conteúdo, todas as noções fundamentais se converteram em meros
invólucros formais. Ao subjetivar-se, a razão se formaliza” (Horkheimer, 1973,
p. 17). A mera razão discursiva pode igualmente formalizar-se (como no caso de
Habermas), mas é outro tipo de formalização. Esta é o esvaziamento formalista do
meio ao fim. A racionalidade (à maneira de M. Weber) é a relação da mediação ao
objetivo. Na razão política, seria o tipo de racionalidade formalista, onde a política
é compreendida como um mero campo vazio de possibilidades, sem exigências
materiais (nem de legitimidade), na qual a razão estratégica pode desenvolver sua
habilidade sem limites de usar calculadamente os meios, a fim de impor sua von-
tade (dominadora):

A razão aparece totalmente sujeita ao processo social. Seu valor operativo, o papel
que desempenha no domínio sobre os seres humanos e a natureza, foi convertido em
critério exclusivo [...]. É como se o próprio pensar tivesse se reduzido ao nível dos
processos industriais, submetendo-se a um plano exato; dito brevemente, como se se
tivesse convertido num componente fixo da produção (Horkheimer, 1973, p. 33).1023

A normatividade da factibilidade estratégica começa exatamente no fato de ter


plena consciência de que a pura estratégia não pode ser o princípio, em última ins-
tância, da política. Se não tem conteúdo (a permanência da vida) nem legitimidade
(cumprimento do princípio democrático), a pura estratégia se perde no “sem sen-
tido”: exercício do poder (potestas como dominação) sem ser a expressão do poder
da comunidade (potentia) e, portanto, uma ação formalista em cumprimento dos
puros interesses de grupo dos governantes, carente de toda fundamentação real.
Se cai no fetichismo do poder através da técnica.
Por isso, poderíamos detectar duas posições extremas ante o exercício da razão
estratégica. Uma que poderíamos denominar o “maquiavelismo cínico” (em seu
significado cotidiano, sem referência ao Maquiavel histórico) ou “realismo político”
e, o outro, o “idealismo irrealista” ingênuo. A primeira posição é a dos políticos,
que se ufanam de não ter conteúdo ideológico dogmático em seu quefazer político

1023 “Quais são as consequências da formalização da razão? Noções como a de justiça, igualdade,
felicidade, tolerância [...] perderam suas raízes espirituais” (Horkheimer, 1973, p. 4).

515
e, por isso, livres de amarras desnecessárias (como indicava R. Luxemburgo, em
relação aos sociais-democratas), podem projetar estrategicamente o mais conve-
niente para seus interesses eventuais. Como o camaleão, trocam de cor segundo
a circunstância. Seu defeito principal, além de cometer frequentes contradições
(já que suas decisões mudam com as circunstâncias externas), debilitam o poder
(potentia), não têm legitimidade e, no longo prazo, não contam com o apoio do
“poder de baixo”, que é necessário para toda autoridade que busca ser eficaz. Seu
“realismo” é aparente, superficial, falta-lhe contar com um fundamento. A realida-
de na qual se apoia é contingente, débil, não cobre as coisas por muito tempo. Se
trataria de uma tecnologia puramente estratégica do poder dominador (potestas
fetichizada), sobre a qual não se pode edificar nenhum futuro duradouro.
No segundo caso, o que crê que os meros princípios (claro que definidos de
maneira abstrata e a partir de valores de difícil fundamentação empírica) ou as
virtudes subjetivas (sem suficiente referência ou exigência intersubjetiva) podem
operar por si mesmas, sem a necessária e cuidadosa observação das circunstâncias
empíricas, as condições para efetuar a coisa política, cairá em simplificações subje-
tivas, em dogmatismos impraticáveis, em decisões que não resistirão à dura prova
da realidade da força coativa do poder vigente, dos interesses criados, dos grupos
que constituem o bloco histórico no poder.
A “pretensão de factibilidade normativo-estratégica” não se prova nem se de-
fende facilmente na comunidade dos atores políticos, mas é a única garantia da
estabilidade e da governabilidade, no longo prazo de uma comunidade política.
A limitação das regras estratégicas do Maquiavel histórico, de todos os modos,
se deixa ver na impossibilidade de superar uma política que, embora criticando
adequadamente a hipocrisia de uma política virtuosa (desde os gregos), não soube
implantá-las (as regras de factibilidade) desde uma normatividade que lhe deram
mais peso e, pelo mesmo, alcançaram melhor o que se propunha: a permanência,
no longo prazo, da autoridade do novo príncipe ou das instituições da República
(príncipes e instituições tão débeis, em Florença, como fortes e estáveis, na Roma
republicana ou na Veneza de sua época, seus exemplos).

3.3. Enunciado normativo do Princípio de Factibilidade Estratégica


[421] O Princípio de Factibilidade Estratégica é normativo. Obriga o político
(cidadão ou representante) a levar a cabo o politicamente possível. A possibilidade
inclui também que se cumpra com a normatividade dos outros princípios. Na ar-
ticulação da complexidade normativa (que, por outra parte, é óbvia e de extrema
simplicidade), é preciso integrar as exigências da vida e o consenso simétrico da
comunidade, que são limites que demarcam o campo do possível, enquanto é nor-
mativamente factível.

516
Tendo em conta algumas de suas determinações, o Princípio Normativo-Estra-
tégico poderia ser enunciado da seguinte maneira: Devemos agir estrategicamente,
tendo em conta que as ações e as instituições políticas devem sempre ser consideradas
como possibilidades factíveis, estratégicas, mais além da mera possibilidade conser-
vadora e mais antes da possibilidade-impossível do anarquismo extremo (de direita ou
de esquerda). Quer dizer, os meios e os fins exitosos da ação e das instituições devem ser
conseguidos dentro de estritos marcos: a) cujos conteúdos estão delimitados e motivado
de dentro pelo princípio material político (a vida imediata da comunidade) e b) cuja le-
gitimidade tenha ficado determinada pelo princípio de democracia. O mesmo vale para
os meios, as táticas, as estratégias para cumprir os fins dentro do projeto político concreto
que se pretende1024. A “pretensão de factibilidade política” da ação estratégica deve, então,
cumprir com as condições normativas, materiais e formais, em cada um de seus passos,
já estabelecidas nos parágrafos anteriores, mas, além disso, com as exigências próprias
da eficácia política, na gestão da escassez, e da governabilidade, para permitir à factibi-
lidade normativa poder dar existência a uma ordem política que, no longo prazo, alcance
permanência e estabilidade, devendo não somente atender, ao efetivar sua ação, os efeitos
positivos (causa de felicidade, mérito e honra), mas especialmente devendo se responsa-
bilizar pelos efeitos negativos (causa de crítica ou castigo), em cujo caso não deixará de
corrigi-los, para que os efeitos negativos, embora sejam indiretos ou não-intencionais,1025
não produzam fatos definitivamente irreversíveis. Deverá ser considerado, para isso, em
primeiro lugar, a) a eficácia diante da escassez de recursos (quantitativamente finitos
ante uma comunidade com necessidades sempre crescentes), quanto à decisão e uso dos
meios, e, em segundo lugar, b) a governabilidade (desde a complexidade das instituições),
partindo da incerteza contingente do indizível das ações e das instituições.
Agora se poderá entender que a ação estratégica deverá (é uma obrigação nor-
mativa, deôntica) considerar se cumpriu com as exigências normativas das esferas

1024 O princípio político de factibilidade aplica os dois primeiros princípios normativos polí-
ticos para determinar a possibilidade dos fins (fixa um limite negativamente: “Não deves
fazer isto!”), mas exerce uma função específica, própria, no juízo a respeito dos meios, não
somente que cumpram formalmente os fins (usando a racionalidade formal descrita por M.
Weber), mas também material e procedimentalmente, quanto à consistência intrínseca do
meio enquanto normativo (“Opera este meio porque afirma a vida, é legítimo e eficaz para o
fim!”). Não se deve torturar o oponente político para que delate a estratégia do antagonista
político. Esta impossibilidade normativo-política indica que não todos os meios são possí-
veis (usá-los, julgá-los e determiná-los) para os fins (normativos) da política. A objeção se
expressaria aproximadamente assim: “Que utilidade tem esta normatividade que diminui
minhas possibilidades estratégicas?”. A resposta seria: a curto prazo, pareceria diminuir as
possibilidades, mas a médio e longo prazos, a coerência, evitando contradições, permite uma
fundamentação firme para convencer o grupo de atores, cria legitimidade, evita os conflitos
de origem material, permite aos atores uma honesta pretensão política de justiça, dá maior
permanência e estabilidade à ação, à instituição ou à ordem alcançada.
1025 Os efeitos negativos não-intencionais serão o ponto de partida da Crítica desta Política da
Libertação, como veremos desde o § 30.

517
material e formal-democrática, para que sua ação possa ter “pretensão política
de eficácia”. Uma ação “A”, que se encontrasse fora do horizonte das ações que
cumprem com os dois primeiros princípios, podem tecnicamente ser realizadas, mas
seria estrategicamente inadequada desde o ponto de vista integral da política. Uma
guerra do Iraque pode tecnicamente ser feita, mas se trata do exercício de uma ação
orientada somente pela mera “razão instrumental”, criticada por Horkheimer e
Adorno: é um ato bárbaro, irracional, perverso, antipolítico, no longo prazo, em
vista das gerações futuras,1026 contraria a paz perpétua que Kant aspirava realizar
também empiricamente, antecipada em cada ação que estabelecesse a paz em vez
da guerra. Pelo contrário, esta guerra distancia o cumprimento do postulado. É
injusta, embora factível, com mera factibilidade técnica, não factibilidade política
propriamente dita.

Esquema 27.02. Limites que demarcam a ação estratégico-normativa

A
Esfera material

Esfera formal
Esfera estratégica
da factibilidade

O mero poder, como puro poder-fazer, como o cumprir uma possibilidade, vale
dizer, a mera factibilidade lógica, empírica, técnica como potestas ativa: como dyna-
mis, Macht: “poder-fazer efetivamente” uma ação, micro ou macroinstituição posta
na realidade objetiva, não é ainda factibilidade política estrita.
A ratio política, em sua dimensão de factibilidade estratégica e instrumental
(na ordem dos factibilia ou até dos operabilia), deve agir tendo em conta as condi-
ções lógicas, empíricas, físicas, de recursos. Mas, ao mesmo tempo, deve tomar em
consideração as exigências ecológicas, econômicas, sociais, históricas, etc., para
ser uma possibilidade real política da efetivação concreta de uma máxima, norma,
lei, ato, instituição ou sistema político. Desta maneira, a máxima, a norma, a lei, a

1026 A guerra não cumpre com o princípio material da vida porque mata uma população de
inocentes; nem com o princípio democrático porque não conta com o consenso do afetado
(a população genocidamente exterminada). A finalidade estratégica (o domínio sobre o pe-
tróleo de outra comunidade política) é puro latrocínio e barbárie e, além disso, inconfessável
(até diante da própria comunidade norte-americana).

518
ação, a instituição, o subsistema,1027 etc., poderá ter pretensão de eficácia ou êxito
político (Cf. Dussel, 1998, cap. 3). Neste caso, trata-se de uma razão político-estraté-
gica, que subsume o princípio ético de factibilidade, na complexidade institucional
e pública da razão política. Uma ação será integralmente política se cumprir os três
princípios enunciados.
Ademais, todo o problema das formas de governo (Cf. Bobbio, 1989), por
exemplo, deveria se situar no contexto dos três princípios enunciados, porque estes
são condições universais abstratas – também no caso da factibilidade em geral
– de ditos tipos de governo. O Princípio Democrático, por exemplo, enquanto
princípio, é o dever agir de certa maneira discursiva universal (chegando à decisão
válida por razões, com a participação simétrica dos afetados de maneira pública e
institucionalizada por direito), mas não inclui como tal um tipo concreto determi-
nado de governo ou uma maneira de eleger ou votar por representantes. A votação
universal e secreta pode ser instituição de uma democracia; mas, um tal tipo de
votação não é a única democrática possível. O Princípio Democrático não é um
tipo ideal de governo e, sim, um princípio político universal de legitimidade (no
nível C, invertendo a distinção apeliana1028). Os “tipos de governo” democráticos
ou os modelos de exercer a democracia, embora os tenhamos exposto no contexto
do Princípio Democrático (§ 23), podem muito bem ser situados na esfera da fac-
tibilidade institucional política, no nível das mediações (num nível B). A filosofia
política, em seu nível abstrato (C), analisa os critérios e os princípios implícitos e
estuda também os critérios dos tipos de governo específicos em geral (nível B); a
ciência política entra em seu estudo, no particular, teórico, sociológico, histórico,
enquanto que a ação política singular (nível A) os determina em concreto, os exerce
ou os transforma de fato.
Para concluir, a factibilidade político-normativa não nega a razão estratégica,
o êxito da ação política, mas a subsume, demarcando-a dentro das exigências dos
dois primeiros princípios que, em sua formulação universal negativa, poderiam ser
reduzidos a duas proibições de máximas não universalizáveis – para nos expressar
como A. Wellmer –: “Não matarás teus oponentes políticos!” (contra o totalitaris-

1027 Os sistemas políticos, de direito, burocráticos, do exército ou da polícia que exercem uma
coação legítima, etc., são mediações necessárias equívocas (porque podem deixar de ser le-
gítimas e se transformar em pura violência desde o poder), no tempo da “hegemonia” (como
diria Gramsci, diferenciando-se da mera “dominação”, diferentemente de Max Weber para
quem sempre a legitimidade é um tipo de dominação).
1028 Ver meu artigo “Princípios, mediações e o bem como sínteses”, conferência pronunciada
na plenária do Congresso da Society for Phenomenology and Existential Philosophy dos
Estados Unidos (Lexington, 1997). Ali, expunha, inversamente ao que faço nesta Política
da Libertação, do nível A da universalidade dos princípios; do nível B, da particularidade
das mediações, das mútuas articulações, das aplicações e das instituições; do nível C, a
singularidade da decisão concreta, última.

519
mo ou a simples guerra) e “Não excluirás o afetado da discussão nem lhe negarás
em sua participação condições de simetria!” (contra o autoritarismo antidemocrá-
tico). “Utilizarás o meio escasso, obtendo a máxima eficácia!”, na esfera estrita da
factibilidade. A factibilidade adquire, assim, maior consistência, disciplina criativa
e fortaleza, a longo prazo.
Neste caso, o cidadão é o ator, situado dentro do campo político em condições
de factibilidade meio-fim, lutando pela hegemonia de um poder obediencial para
poder alcançar o êxito na ação estratégica, sem, por isso, negar os princípios nor-
mativos exigidos à política.

3.4. A fundamentação do Princípio Estratégico


[422] O princípio se fundamenta diante de um oponente que o nega. Penso
que o oponente, neste nível do discurso da Política da Libertação, é o anarquista
extremo, que perde o sentido da factibilidade, das condições reais do êxito político,
porque, partindo de princípios éticos sumamente exigentes e nobres, não toma em
consideração a consistência real, histórica e política das mediações da realidade
cotidiana, finita, com meios escassos e com instituições que, pela necessidade da
reprodução da vida e do desenvolvimento humano, durante milênios se tornaram
sempre mais complexas.
Franz Hinkelammert, em sua obra Crítica da Razão Utópica, faz uma crítica,
no sentido kantiano, do pensamento anarquista, tomando como exemplo Flores
Magón.
Flores Magón, como todo anarquista, parte de uma situação presente injus-
ta, defeituosa, negativa, caótica. Para Hinkelammert: “O pensamento anarquista
[...] é bipolar. Tem como centro a realidade empírica; [...] esta é uma realidade
material de trabalho para a satisfação das necessidades subjugadas pelo sistema
institucional, em particular, o sistema de propriedade e do Estado” (1984, p. 97).
Hinkelammert o compara ao pensamento conservador (de K. Popper ou de F.
Hayek). Assim, “o que no pensamento conservador é o nómos que se legitima e
sacraliza” (1984, p. 97), quer dizer, as instituições capitalistas vigentes, “no pensa-
mento anarquista é o meio de opressão da vida real e material”:

Mas, dado que, onde a vida material não é livre, não existe nenhuma liberdade, a reali-
dade oprimida do pensamento anarquista é uma realidade de miséria e sem liberdade.
O problema não é o caos (do conservador) que ameaça a realidade a partir de fora, mas
a própria realidade é catastrófica, miserável e escravizante. Portanto [e como o veremos
no volume Crítica], o mal não é uma ameaça que se apresenta contra a precariedade da
ordem legítima e, sim, que está na raiz desta ordem que, por conseguinte, é ilegítima
(Hinkelammert, 1984, p. 97-98).

520
Para o anarquista, então, “a liberdade é superação de toda autoridade e proprie-
dade privada” (1984, p. 98). Flores Magón escreve:

Vamos para a vida [...]. Viver, para o homem, não significa vegetar. Viver significa
ser livre e ser feliz. Pois, todos temos direito à liberdade e à felicidade [...]. Eis, aqui,
porque os revolucionários não vamos atrás de uma quimera1029. Não lutamos por
abstrações, mas por materialidades. Queremos terra para todos, pão para todos (apud
Hinkelammert, 1984).

Efetivamente, o campo material-econômico é tomado realisticamente em


conta. Se vê a importância que tem, mas se projeta a dominação das instituições
(econômicas e políticas) à sua própria essência. As “instituições sempre dominam”;
é preciso eliminá-las definitivamente: “me imagino quão feliz será o povo mexi-
cano, quando for dono da terra, trabalhando-a todos em comum como irmãos e
repartindo-se os produtos fraternalmente, segundo as necessidades de cada um”
(apud Hinkelammert, 1984).
Estamos exatamente no nível dos postulados. Em especial, naquele de “segun-
do as necessidades de cada um”, referência direta à Crítica do Programa de Gotha,
de Karl Marx. Flores Magón sonha com a utopia:

Poderá haver criminosos, então? Terão as mulheres que seguir vendendo seus corpos
para comer? Os trabalhadores que envelheceram, terão que pedir esmola? Nada disso:
o crime é o produto da atual sociedade baseada no infortúnio dos de baixo em proveito
dos de cima [...]. Como irmãos, gozaremos a verdadeira Liberdade, Igualdade e Frater-
nidade (apud Hinkelammert, 1984).

Observamos, por um lado, o sublime de uma ética da perfeição transformada


em utopia política; mas, por outro lado, uma falta de distinção entre o que é um
postulado empiricamente irrealizável e o que é um princípio de orientação. Isto leva
a descobrir claramente a negatividade do presente institucional (o que considera-
mos de grande valor) e, em especial no nível material (acerto fundamental), mas
por uma compreensão da instituição exclusivamente como dominação,1030 o que
leva a uma ineficácia no nível estratégico da ação política (quando não a uma “ação
direta” violenta, de extremismo contraditório performativamente com o postulado
ético sublime contrário). Por isso, o anarquismo radical que, pela ausência de um
princípio político de factibilidade, busca o impossível, ultrapassando o limite do

1029 Aqui, Flores Magón coloca a questão do postulado. Não é uma abstração. É possível pensá-lo
(logicamente), mas é irrealizável empiricamente. Aqui, começa o debate. Não se confunde
o postulado com um objetivo político empírico realizável?
1030 Recorde-se o que abordamos no § 20.1 e 20.2.

521
campo político estratégico e caindo inesperadamente no campo militar irracional,
por outro lado, não pode se organizar institucionalmente pelo prejulgamento an-
ti-institucionalista incorretamente formulado.
[423] Depois do exposto, vejamos possíveis argumentos de fundamentação.
Um poderia ser formulado da seguinte maneira:
1. O anarquista extremo opina que é possível uma sociedade sem instituições se
todos os cidadãos forem eticamente perfeitos.
2. Mas, os cidadãos não podem todos ser eticamente perfeitos; se algum não o
fosse, seria suficiente para que se instaurasse alguma desigualdade em seu proveito
e ninguém poderia se defender diante deste membro político desleal.
3. Portanto, e tendo em conta que é impossível que todos os cidadãos sejam
eticamente perfeitos (na verdade, ninguém pode ser perfeito de todo em nada,
porque somos seres finitos), e dado que a dominação como desigualdade se propa-
garia caoticamente sem possibilidade nenhuma de intervenção coativa legítima (o
que suporia uma instituição).
4. Se deduz a necessidade das instituições, ao menos para conduzir a ordem aos
que injustamente ignoram as exigências igualitárias da comunidade.
Poderia argumentar-se de outra maneira sobre a necessidade da normatividade
da factibilidade, pelo absurdo:
1. Se cada membro da sociedade faz o que técnica e factivelmente pode operar,
sem consideração dos outros dois princípios (da vida e da legitimidade),
2. Todos os membros restantes poderiam fazer o mesmo. Nos encontraríamos,
assim, no estado de natureza, que hipoteticamente propõe Hobbes ou inclusive
Locke (sem juiz que decida sobre a disputa), onde a vida não poderia ser defendida,
já que qualquer um poderia assassinar o vizinho (enquanto tivesse uma faca, uma
metralhadora ou uma bomba para fazê-lo), sem que houvesse juiz para julgá-lo e
castigá-lo.
3. Se teria instaurado um sistema fundado na barbárie do mais forte; tal estru-
tura não teria legitimidade nem diante da própria consciência de seus membros.
Sem legitimidade, não haveria possibilidade de estabelecer uma ordem política
que pudesse permanecer durante longo tempo.
4. Então, a vida política seria impossível. Tudo isto vale tanto na ordem de um
Estado quanto na ordem internacional.
5. O factível, então, deve incluir as exigências da reprodução da vida de toda a
comunidade, e da humanidade em seu conjunto, e a legitimidade em todos os seus
acordos, além da possibilidade estratégica das ações e das instituições factíveis.
Somente um campo onde se respeite a vida humana e se outorgue ao Outro o
direito a uma participação simétrica abre a esfera da factibilidade política eficaz
(no sentido político pleno, isto é, normativo), não como fruto da barbárie do mais
forte (ou militarmente mais armado), como hoje acontece com os Estados Unidos,

522
e, sim, como efeito da criatividade humana para graus superiores de cultura, nor-
matividade, democracia e felicidade.

4. Postulados políticos. Liberdade

[424] Os postulados positivos (para distingui-los dos críticos ou negativos) pre-


tendem recuperar a nobre intenção do anarquista, mostrando, contudo, o erro
de confundir o logicamente pensável, possível, com o empiricamente impossível.
Temos repetido que uma sociedade sem instituições seria logicamente possível (é
pensável sem contradição), se todos fossem eticamente perfeitos; mas empirica-
mente impossível, na situação atual de uma humanidade limitada a uma corpora-
lidade vivente dentro da escassez.
Pensemos em alguns deles, implícitos no acionar dos sistemas políticos vigen-
tes. Por exemplo, na nota de um dólar se encontra em latim, junto a outros textos
sumamente sugestivos (e fetichizados, como o pretensioso: In God we trust, num
bilhete ou dinheiro para o troco, sendo que, para os profetas semitas, o dinheiro
e o Deus de Israel eram os opostos em absoluto: Deus ou Mâmon1031), um postu-
lado: Novum ordo saeculorum1032. Quer dizer, pretende-se fundar um novo sistema
político que tenha permanência no tempo, que seja “eterno”, imutável, permanente,
estável. Este postulado orienta as consciências dos cidadãos norte-americanos. Da
mesma maneira, a Constituição é considerada intocável, imutável, eterna. Funcio-
na na consciência dos cidadãos como um postulado: logicamente possível (e é o que
se pretende inculcar), embora empiricamente se saiba que é temporal, modificável,
finita. É como os dois corpos do rei medieval, um celeste, imortal, divino; o outro,
temporal, mortal, terrestre. Quando morre um rei empírico, se grita novamente:
“Viva o Rei!”, que representa a permanência postulada do estado político.
Na revolução francesa, se lançou um postulado: “Liberdade!” do cidadão. Li-
berdade como possibilidade do exercício da vontade de um cidadão, não de um
servo da espada medieval, membro indissolúvel de um feudo, ao qual pertencia
sem poder escapar de seu destino assinalado desde sempre. “Liberdade!” como
postulado (logicamente possível, mas nunca plenamente realizável num regime
empírico, histórico) indica um princípio de orientação do mundo burguês encarre-
gado do exercício delegado da potestas: das instituições do poder político do Esta-
do, de onde se reestruturarão as instituições dos diversos campos práticos (econô-
mico, cultural, religioso, etc.), por intervenção estratégica da ação política do novo

1031 Sempre digo a meus alunos que quem imprimiu a nota de um dólar cometeu um erro: devia
ter escrito: Gold, em lugar de God. Pequeno erro de impressão!
1032 Em latim, saeculorum indica não somente o plural de “século” e, sim, melhor, a “eternidade”:
nova ordem para a eternidade!

523
bloco histórico no exercício do poder. É a liberdade no agir factível da burguesia
na esfera política, no campo político. A nobreza da antiga ordem, o campesinato
de sempre, não poderão exercer esta liberdade, nem é um postulado para eles, já
que o sujeito de enunciação é a nova classe no exercício do poder. Para eles, desde
o século XVIII, nunca haverá suficiente “Liberdade” de movimento, na política,
na competição do mercado, na nova definição de subjetividade. A liberdade será
um postulado universal em torno do qual se ordenarão todos os demais valores da
burguesia. Liberdade diante do Estado da ordem antiga, diante da Igreja, diante das
tradições feudais, diante do direito pré-burguês, diante da ciência medieval. A
liberdade do cidadão, que pode exercer a espontaneidade de sua vontade como um
ato criativo na nova ordem política organizada à sua imagem e semelhança, para a
qual exige como pré-requisito uma plena liberdade de movimento.
A burguesia exigirá esta liberdade diante do Estado, onde se absterá muito de
dar a mesma liberdade a todos, aos antigos membros das ordens anteriores e aos
que desejam fundar novas ordens. Esta liberdade do sujeito é, ademais, a do ci-
dadão metropolitano, que tem o direito à liberdade de penetrar todos os campos
políticos, econômicos, culturais, religiosos, familiares, etc., das comunidades colo-
niais. Liberdade como postulado do novo mundo da Modernidade, que começou
no século XV com a invasão da América.

5. A
 aplicação do Princípio de Factibilidade Política: a pretensão
política de eficácia

[425] A plena aplicação do princípio (“deves efetuar a ação cumprindo as con-


dições empíricas exigidas normativamente”) dá à ação um peso, uma força, que lhe
garanta mais eficácia no médio e longo prazos. São ações que devem estar atentas
a mais componentes e de diferentes graus de exigências e, por isso, seus efeitos são
mais profundos. O que busca uma aliança, não puramente estratégica, mesmo
que seja para cumprir um objetivo muito limitado (por exemplo, ganhar uma elei-
ção empírica), deve considerar os outros membros do possível pacto dentro de um
espírito fraterno, dando razões sinceras e fundadas, a fim de cumprir não somente
e nem primeiramente as finalidades egoístas dos pactuantes, mas os da comuni-
dade política à qual serve (se for representante) ou “se obedece” (em terminologia
zapatista). Este maior número de exigências pode parecer inútil, faz perder tempo
precioso, que não tem eficácia imediata, mas, no longo prazo, vai criando os fios
do consenso que unifica mais estreitamente as vontades e cria um poder (como
potentia) que conta nos momentos de crise, de contradição, de confrontação com
oponentes, etc. “Ter as costas protegidas” e poder enfrentar honestamente o anta-
gonista não é tarefa simples, nem rápida, nem superficial, nem cínica. “Saber pôr

524
as cartas sobre a mesa” quando é necessário, diante de participantes que lutam por
um objetivo comum, leva muita preocupação estratégica no político que exerce essa
função como vocação e com responsabilidade diante de uma comunidade.

5.1. O êxito estratégico

A ação estratégica deve saber fixar claramente, como num processo de fluxo,
os diversos momentos da ação até sua culminação: alcançar a meta proposta. Se
poderia falar de um modelo do processo de tomada de decisões e de realização
ordenada de mediações, em vista do projeto político específico.

Esquema 27.03. Momentos de decisão e de realização estratégica do processo


político
Caso a ser resolvido
Problemas que se apresentam
Diversas hipóteses de solução. Hierarquização
Tomada de decisão
Elaboração da agenda
Avaliação dos recursos escassos
Processo de realização estratégica dos meios

Fins estratégicos
Táticas
Meios
Ações precisas

Meta alcançada. Avaliação


Consideração dos efeitos produzidos (a curto e longo prazos)
Correções necessárias dos efeitos negativos

A normatividade da ação estratégica não lhe tira nada e, sim, aumenta sua
eficácia no médio e longo prazos. Assegura a concorrência de todos os afetados
(que puderam participar simetricamente) e agrega os meios apropriados à convic-
ção, motivação e força às vontades envolvidas na defesa de direitos materiais a eles
concernentes.
O êxito, a eficácia da ação, cresce ao contar com as mediações técnicas das
exigências normativas da factibilidade, que consiste, como pudemos observar, em
incluir também no horizonte da decisão estratégica os outros dois princípios nor-
mativos da política.

525
5.2. Gestão eficaz da escassez empírica. Normatividade dos meios
A eficácia política é uma qualidade fundamental da ação, que permite efetivar
o máximo de resultados com um mínimo de recursos. Ante a escassez (também
das instituições, que sempre são menos das que se poderia sonhar que fossem
necessárias), o ator responsável e eficaz sabe da impossibilidade de contar com
uma infinidade de recursos, de mediações (mundo logicamente possível, mas im-
possível empiricamente, e do qual David Hume indicava que se obtém, ante esta
impossibilidade empírica, por “inferência da mente”, a necessidade de organizar
instituições para regular, produzir e distribuir, segundo o “Princípio de Justiça”,
os bens escassos1033). Isto exige a administração da escassez (se institucionaliza,
assim, por delegação da potentia, uma potestas específica: o poder administrativo).
As condições para efetuar os meios para os fins estratégicos exigem do ator inte-
ligência e criatividade. Os líderes políticos, imaginativos, criadores, alertas, ante
as circunstâncias propícias, como o artista, se inspiram e inventam novos hori-
zontes de possibilidades. São dons que os cidadãos não têm na mesma medida.
São altamente apreciáveis os que os possuem e os utilizam dentro de parâmetros
normativos. Não se trata de ser políticos de princípios e depois sem capacidade para
a operatividade estratégica eficaz. Sustentar princípios que dão alento intrinseca-
mente à ação e às instituições dá mais força, poder político, aos líderes eficazes. A
eficácia não está em disputa com a normatividade. Ao contrário, complementam-se
no longo prazo. Mas a normatividade não garante como tal a eficácia.
Ante um J. Habermas que descobre a razão comunicativa como buscar, antes
de tudo, o acordo entre atores que se respeitam como fins, e não se utilizam como
meio, devemos, contudo, defender a importância da ação estratégica, mas não opos-
ta à ação que busca o entendimento, o acordo, e que busca a outra subjetividade na
fraternidade intersubjetiva. Habermas sempre opõe a ação estratégica que busca
fins à ação comunicativa, que busca a pessoa do outro como o momento necessário
da comunicação moral. Se estamos de acordo com Habermas em dita distinção,
não podemos catalogar a ação estratégica como intrinsecamente desviada de um
objetivo normativo. A ação estratégica pode não buscar a comunicação, de manei-
ra imediata e principal, já que pretende realizar mediações, meios, para alcançar
fins. Mas isto não desqualifica a normatividade deste tipo de ação se integrar à sua
ação as exigências dos princípios material e de legitimidade políticos. A posição
de Habermas seria algo assim como uma falácia normativista que o impossibilita
de construir uma política empírica, porque sem ação estratégica eficaz não há po-
lítica. É possível que seja uma herança da necessária crítica da razão instrumental
da primeira geração da Escola de Frankfurt, que levou a descartá-la e a não saber,
posteriormente, como reintegrá-la na ação política eficaz e, contudo, normativa.

1033 Ver na parte histórica desta Política da Libertação [153-158].

526
O mesmo poderia ser dito de Max Weber que cairia, por seu turno, numa
falácia instrumentalista, que nega a normatividade, já que o normativo tem a ver
com valores éticos que são os únicos momentos materiais para Weber, mas na
razão formal meio-fim, também na política, não poderia existir uma normati-
vidade intrínseca à própria ação instrumental. A ética da responsabilidade, sem
ter consciência do sistema que causa os efeitos negativos acerca dos quais haveria
que reclamar responsabilidade, como no caso do capitalismo, que, em definitivo,
Weber justifica, não preenche a falta de normatividade na mesma ação instru-
mental ou estratégica, que, ao final, se realiza sem referência às exigências práticas
normativas da política.
O mais frequente em nosso tempo são as falácias procedimentalistas, que de-
finem as ações em sua possibilidade factível, sem saber, nem buscar sequer uma
possível articulação com o normativo. Não é difícil, depois, observar a corrupção
generalizada da política, na qual, quando alguém comete uma falta (rouba do erário
público, burla a lei, atraiçoa os correligionários, etc.) é julgado como pouco esperto
e pouco inteligente, incauto, mas nunca sem princípios normativos, que ninguém
sabe em que consistem, como se aplicam e nem qual seria sua utilidade na política.
Sendo a escassez de recursos a condição universal da factibilidade política por-
que, por mais numerosos que fossem, logo os recursos se tornam sempre escassos
(já que a escassez é relativa aos objetivos, que crescem na medida em que se tem
recursos), dos recursos escassos é preciso extrair o máximo rendimento, e o polí-
tico com princípios normativos tem maiores possibilidades de fazê-lo no médio e
longo prazos.
Um slogan frequente na Modernidade, desde a proposta mal-entendida de
Maquiavel, em O Príncipe, é aquela de que “todos os meios são válidos para alcan-
çar o fim”. A própria Rosa Luxemburgo opinava que os que não tinham princípios
podiam usar todos os meios estratégicos disponíveis, “têm as mãos livres”, porque
não têm “marcos firmes” que, como parâmetros de ação, lhe indiquem os limites.
Mas isto os impede de agir com coerência e, no longo prazo, alcançar os objetivos
legítimos decididos.
É evidente, depois de todo o exposto até este momento, que, na decisão dos
meios, das táticas, das estratégias e dos próprios fins em vista de um programa,
será sempre necessário aplicar os dois princípios antes enunciados para ser politica-
mente eficazes. Em relação aos conteúdos de ditos meios, o princípio de orientação
é o que define uma mediação enquanto está dirigida à produção, reprodução e
desenvolvimento da vida dos membros da comunidade (em última análise, de toda
a humanidade). Isto limita os meios a alguns. Não se trata, como criticava Maquia-
vel, que haveriam de ser unicamente virtuosos os agentes que elegem e realizam
meios, já que a virtude, sendo de uma elite feudal antiga, já não era a vigente. O
princípio material que enunciamos, em troca, tem vigência em toda situação atual,

527
em pleno século XXI, e terá sempre – enquanto a espécie humana não for extinta
por não tê-lo tomado em conta. Da mesma maneira, na escolha e na e realização
dos meios, é preciso cumprir o segundo princípio do acordo alcançado por razões
dadas pelos atores simetricamente situados e enquanto afetados por ditos meios.
É evidente que o corpo dos direitos humanos e o sistema do direito positivo são
também marcos de ditas decisões sobre meios. O meio escolhido deve conduzir a
um aumento de vida, e legitimamente. Não se pode empunhar qualquer meio para
qualquer fim; e, sim, ambos devem ser julgados de maneira articulada.
Como se poderá deduzir, na verdade, o terceiro princípio, de facticidade políti-
ca, consiste em cumprir as regras da eficácia inteligente, razoável, técnica (até cien-
tífica enquanto a modelos de processos cientificáveis, programáveis por mediação
dos meios eletrônicos e cibernéticos), tendo em conta a lógica da complexidade, de
efeitos não lineares, mas bifurcáveis, com atratores práticos, etc.

5.3. G
 overnabilidade: gestão possível e eficaz da complexidade institucional

[426] O problema da governabilidade aparece diante do fracasso de um ou


vários componentes das estruturas, das ações, da complexidade institucional da
vida política de uma comunidade. M. Alcántara Sáez diz:

A esclerose governamental; os desajustes institucionais que fazem com que, com fre-
quência, os poderes do Estado se enfrentem em competições que têm como resultado
seu descrédito; o bloqueio na hora de tomar decisões por parte dos dirigentes que
resolvem os problemas dos cidadãos; a falta de confiança destes no sistema político
[...] são algumas das circunstâncias que a política teve que enfrentar tradicionalmente
(Alcántara Sáez, 1992, p. 19).1034

Vemos que nos encontramos no nível da factibilidade concreta, não da criação


de instituições ou de organizar ações estratégicas quanto a seu conteúdo (algum
aspecto da vida humana) ou a sua legitimidade e, sim, no modo de articular efi-
cazmente as estruturas e a práxis já dada. Entropia das instituições, carga exces-
siva, impossibilidade de desembocar em efeitos positivos, etc., são elementos da
ingovernabilidade.
Será preciso reduzir a complexidade das instituições complexas para torná-las
gerenciáveis e, neste ponto, as hipóteses de N. Luhmann podem nos ser sumamen-
te úteis. Ante a complexidade das instituições políticas, quando tenham se tornado
de tal modo enfrentadas que travam seu exercício (por exemplo, o Poder Legis-
lativo freia o Executivo; o Judiciário, os outros dois; ou por um presidencialismo

1034 “Los problemas de la governabilidad de un sistema político”.

528
exacerbado, que debilita o Legislativo e o Judiciário; o parlamentarismo sem equi-
líbrio se torna ineficaz, como o italiano durante muitas décadas no pós-guerra,
etc.), a factibilidade estratégica deve abrir passagem, diminuindo a complexidade
e chegando a negociações para obter uma gestão razoável do poder administrati-
vo do Estado e em outros níveis do exercício do poder. O próprio da esfera da
factibilidade é um exercício eficaz do poder administrativo.1035 Responsabilidade
extrema na gestão dos recursos e habilidade para transformar uma situação de
confrontação paralisante numa situação governável são duas qualidades essenciais
da factibilidade estratégica. A integridade normativa do ator administrativo é um
momento essencial do exercício deste poder administrativo – que é exercido desde
uma polícia judiciária até o tesoureiro de um município ou a burocracia do Estado
em seu conjunto.
Por isso, diante da complexidade institucional, falamos de governabilidade.1036
Quando existe uma extrema complexidade das instituições, que se fiscalizam em
excesso, mutuamente (ou por corrupção ou por incompetência), podem imobili-
zar-se, aniquilar-se mutuamente: se produz um estado de equilíbrio imobilista,
um estado de ingovernabilidade (própria das águas paradas em estado de putre-
fação). Será necessário regenerar a potestas positiva (o exercício delegado do poder
de Estado), diferenciada e sempre referida à potentia (o poder da comunidade po-
lítica), para diminuir a complexidade sem perder a articulação do todo e chegar a
consensos negociados, que permitam o exercício suficiente do poder do governo.
Governabilidade é poder-ser-governo; poder timonear o barco para algum destino
e não ficar nas mãos destruidoras das correntes e dos ventos do oceano, dada a
contradição existente entre os mandos, o corpo de marinheiros, os transportados,
o peso da mercadoria, etc. A ingovernabilidade é tão debilitante quanto a ditadura,
embora tenha menos gravidade normativa.
Na América Latina, os governos militares do período das ditaduras de Segu-
rança Nacional (1968-1983) se tornaram ingovernáveis por falta de legitimidade.
Mas existem governos com legitimidade (ao menos formal) que se tornam igual-
mente ingovernáveis (como na Bolívia, desde 2002 até Evo Morales), mas por falta
de legitimidade material (o que chamaríamos legitimidade real, quer dizer, por não
responder às demandas sociais e econômicas de uma parte crescente da população
e crescente em seus direitos violados). A legitimidade e o cumprimento das exi-
gências econômicas permite sempre uma maior governabilidade. É evidente que,

1035 O poder administrativo, como seu nome indica, é o poder político em seu aspecto de eficácia
do uso dos meios para alcançar os fins estratégicos indicados pelos outros dois princípios
normativos. Sem a eficácia dos meios, tudo imerge no caos, na incerteza, na corrupção, por
último, da ordem política.
1036 Ver sobre o tema, Aguilar Villanueva (1992); Allison (1971); Birch (1984); Hennis et al.
(1977); Maloy (1992); Öffe (1984); Pasquino (1988).

529
em tempos de guerra, a governabilidade cai em situações de exceção e, por isso, de
anormalidade. Mas se poderia dizer que, nos países pós-coloniais, pelo grau sem-
pre crescente e também mutável dos modos de exploração (o último deles, a “fa-
bricação” desnecessária para seus destinatários da “dívida externa” ou os processos
de privatização que somente beneficiam os capitais monopólicos transnacionais),
nunca puderam ter períodos prolongados ou reais de clara governabilidade. A crise
neles tem sido permanente e, por isso, a ingovernabilidade é seu modo standard
de existência política.
Poderíamos indicar, pelo menos, quatro tipos de situações que produzem in-
governabilidade: a) quando a autoridade perde legitimidade (processos de deslegi-
timação), que pode ocorrer igualmente nos Estados centrais1037:

À crise de legitimidade do estado-nação devemos acrescentar a crise de credibilida-


de do sistema político, baseada numa competição aberta entre os partidos políticos.
Pego no âmbito dos meios, reduzido a uma liderança personalizada, dependente de
uma complexa manipulação tecnológica, empurrado a um financiamento ilegal pelos
escândalos políticos, o sistema de partidos perdeu seu atrativo e sua finalidade e, para
todos os fins práticos, é um resto burocrático, privado de confiança pública (Castells,
2000, II, p. 381).1038

É preciso transformar a política espetáculo num campo prático, onde a vida po-
lítica seja fim e não os lucros das transnacionais do entretenimento (lógica perversa
que corrompe a política também, ao situá-la na esfera do entretenimento, onde os
escândalos provocados, as discussões absurdas, são impulsionadas para elevar o
rating e não pelo conteúdo político honesto e sério da questão). É a superficialização
kitsch do campo político, é uma despolitização sutil por sua trivialização.
[427] b) Pela sobrecarga do governo, em decorrência da expansão das institui-
ções e do desenvolvimento dos projetos do Estado. c) Pela desagregação dos inte-
resses, como efeito da competição entre partidos. d) Pela falta frequente de cola-
boração com outros países, quando certo nacionalismo impede dita solidariedade
– sobretudo entre comunidades políticas com laços históricos fraternais, como
os Estados latino-americanos, que deveriam unificar muitas tarefas políticas de
maneira conjunta, aumentando assim a eficácia e reduzindo os gastos.
Dever-se-ia distinguir entre a falta de tomadas de decisões necessárias e a van-
tagem de deixar que a inércia das políticas já decididas (posição dos que defendem

1037 Nos Estados Unidos, os movimentos fundamentalistas de direita, frequentemente reli-


giosos, mas também setores do republicanismo perderam confiança no poder federal de
Washington (Castells, 2000, II, p. 316ss: “O povo contra o estado”).
1038 De todos os modos, o partido político é hoje necessário, mas é preciso mudar o entorno, para que
seja factível. É preciso reformar o sistema dos meios de comunicação (a mediocracia) e colocá-los
a serviço da comunidade política (e não vice-versa, como se encontra na situação atual).

530
o “inercialismo”) tenham tempo, no longo prazo, de produzir os efeitos espera-
dos. A inovação deve ser aplicada aos efeitos negativos, não aos efeitos positivos
comprovados.
Aparecerão, de qualquer modo, como sinais de ingovernabilidade, as “condi-
ções contraditórias do sistema capitalista”, tanto como as “demandas excessivas
dos cidadãos” (Alcántara Sáez, 1992, p. 26), quando realmente sejam excessivas e
não meramente necessárias para a reprodução mínima e suficiente da vida.
Poderia haver pelo menos cinco modelos que pretendem explicar a governabi-
lidade. O primeiro, funcionalista (Cf. Easton, 1957; Merton, 1957), atribui ao Es-
tado função de estabilizar e reproduzir o sistema político em sua totalidade. Con-
cretamente, trata-se de permitir a acumulação do capital e a legitimação entendida
como adesão ao sistema. Se isto não se cumprir em algum de seus aspectos, cai-se
numa situação de ingovernabilidade.
O segundo dá ênfase à cultura política da comunidade, mostrando a importân-
cia dos hábitos políticos da população, o que se alcança pela educação. O terceiro,
desde a teoria da escolha racional e pública, tomando os atores políticos como
racionais (Cf. Schumpeter, 1976) e não quando cumprem ações individuais. Os
indivíduos e as instituições competem para alcançar os recursos para cumprir as
ações políticas, desde uma posição econômica neoclássica. Por isso, as regras do
mercado não podem variar e, sim, devem, antes, ser utilizadas para o proveito
dos atores. A intervenção do Estado no mercado não é somente inconveniente; é
inútil. O quarto dá atenção aos grupos ou classes sociais, que entram em conflito
com base em interesses. Neste caso, a governabilidade depende da capacidade que
se tenha de negociar soluções para os conflitos de maneira constante (Cf. Przewor-
ski, 1991). Quando não houvesse governabilidade negociada, utilizar-se-ia a força
coativa do Estado. O quinto modelo, mais estatista, opina que, sendo o Estado
um sistema autônomo dentro da sociedade, corresponde-lhe superar suas próprias
crises, a partir de sua própria lógica (Cf. Krasner, 1978).
Por último, um modelo constitucionalista, como o de Peter Hall, que respon-
sabiliza as instituições por cair ou sair de um estado de ingovernabilidade, sendo
que tudo isso depende de cinco momentos: a articulação da classe trabalhadora,
a organização do capital e a do Estado; e isto num nível nacional (observando as
relações dos três momentos no interior da nação) e internacional (quanto às pres-
sões que sofra ou não o Estado externamente). Tudo isso representa um cenário
governável ou não. Quer dizer, a governabilidade, como é evidente, responde a um
estado de fatos determinado pelos elementos institucionais (o regime ou sistema
político) e os atores que se organizam de maneira mais ativa ou passiva. A gover-
nabilidade é o fruto de todos estes fatores.

531
Para Claus Offe (1984), um regime cai em ingovernabilidade quando entra em
contradição com seu próprio corpo de leis ou quando os atores não as respeitam
suficientemente. Vale dizer, a institucionalidade de um regime deve ajustar-se à
sua procedimentalidade – para Habermas, ademais, normativa.
Podemos, agora, entender que a “pretensão de factibilidade-política”, em geral,
faz referência à consistência com a qual o ator político vincula o meio (as ações e as
instituições) com o fim, com o objetivo previamente projetado, dentro dos limites
estabelecidos pelos dois princípios prévios (material e formal). Se puder alcançá-lo,
dizemos que o sistema político concreto tem governabilidade.
A governabilidade tem a ver com uma tékhne administrativa. A razão estra-
tégica subsume a tékhne na phrónesis, segundo a doutrina dos clássicos.1039 Com
isto, se queria indicar que a relação produtiva do ser humano com a natureza (cuja
sabedoria produtiva era a tékhne) é diversa e subsumida na relação prática de um
ser humano com outro ser humano (na qual consiste a práxis). Para os clássicos,
fazer um caminho ou uma ponte, enquanto obra de engenharia, era uma ação
técnica; fazer um caminho ou uma ponte, para unir duas comunidades e assim
concretizar uma aliança entre elas, é constituir o caminho e a ponte (a prágmata:
o produto técnico) como mediação de uma ação política (sob o controle prático da
phrónesis). É neste sentido que a administração política é uma disciplina técnica,
mas subsumida na política. Neste sentido, admitimos que a política é uma “arte”,
mas subsumida na ação política.
As chamadas políticas públicas respondem a esta vertente administrativa da
factibilidade, da governabilidade. Luís Aguilar mostra como “o estreitamento
governamental do Estado começou a dilatar a política” (1992, p. 142), queren-
do, assim, explicar como, nos anos noventa, o Estado mexicano, que ia perdendo
legitimidade e que havia dado mostras de um longo período de governabilidade,
necessitava, contudo, se transformar, porque havia sinais de que a ingovernabili-
dade crescia (no processo de deslegitimação). As “privatizações” das empresas do
Estado benfeitor, porém, não deram como resultado maior poupança e riqueza
para a comunidade política, mas acréscimo da pobreza massivamente. A falta de
legitimidade (de Carlos Salinas de Gortari, por ter usurpado o governo, tendo per-
dido as eleições de 1988 para Cuauhtémoc Cárdenas) o levou a querer recuperá-la,
distribuindo riqueza entre as massas mais pobres (o projeto “Solidariedade”), mas
teria sido necessária uma reestruturação das instituições políticas do próprio Es-
tado. A governabilidade exigiu, finalmente, a transformação eleitoral, crescendo,
assim, a credibilidade, embora não a legitimidade real (pela crise da distribuição
da riqueza, já que 50% do povo se encontrava abaixo da “linha da pobreza”, de
Amartya Sen).

1039 Ao menos de Aristóteles, na Ética a Nicômaco (I, cap. VI).

532
CONCLUSÃO DA ARQUITETÔNICA
A ORDEM ONTOLÓGICO-POLÍTICA

[428] Trataremos o problema da pretensão política de justiça, desde um ponto de


vista subjetivo, o do ator do campo político, como síntese da atitude que o cidadão
(ou representante) pode adotar ante toda ação estratégica ou instituição política.
Desde o ponto de vista ontológico ou do “todo” do sistema empírico no campo
político, que é a obra esperada pela práxis com pretensão política de justiça, expo-
remos o tema da ordem política vigente, que tem como determinação primeira a per-
manência da governabilidade no tempo histórico, isto é, trata-se do problema da
estabilidade do sistema político, tal como Aristóteles (o grande conservador ate-
niense) já o postulara, como a finalidade última da política e da filosofia política:

Uma vez que tratamos praticamente de todos os pontos que nos propusemos, segue
que, a continuação, consideremos quais são [...] as causas das quais provêm as mudan-
ças1038 nos sistemas políticos1039 [...] quais são os meios para assegurar (ou salvar1040) o
sistema político em geral e em cada caso particular e por quais meios poderia assegu-
rar-se melhor cada um dos sistemas políticos (Pol., V, 1, 1301 a 20-25).

A obsessão do último Aristóteles não é qual seja, enquanto tal, o melhor sis-
tema ou regime político (monarquia/tirania, aristocracia/oligarquia, demagogia/

1038 Em grego metabállousin, isto é, transformações ou também revoluções (stáseis).


1039 Em grego politeîai, também constituições ou estruturas das instituições políticas.
1040 Em grego soteríai ou preservação.

533
democracia1041) e, sim, qual permite maior estabilidade: soterías (V, 7, 1307b 26ss)
ou aspháleia (VI, 3, 139b 39). Por isso, inclina-se em favor da democracia que,
embora seja a pior das formas positivas ou superiores (em relação à aristocracia ou
monarquia), sua contrária (a demagogia) é a menos insegura das formas negativas
ou corrompidas (em relação à oligarquia ou tirania).
Encerramos, então, nossas análises como conclusão da Arquitetônica (neste §
28), com o tema sintético da pretensão política de justiça, por uma parte, e com a
questão da ordem política vigente, por outra. A formulação quanto às palavras es-
colhidas pode mudar, mas o fundamental é seu conteúdo.

1041 Na Política (V, 4, 1304b 19ss), se estuda como a demagogia destrói a democracia: “As trans-
formações na democracia (demokratíai) [...]”.

534
§ 28. PRETENSÃO POLÍTICA DE JUSTIÇA

Quando concluí a redação de Ética da Libertação (1998), ainda não havia con-
seguido formular claramente – nem em seus termos – a pretensão de bondade. Va-
gueava em torno do tema – o que o leitor atento pode constatar facilmente –, mas
não havia tomado consciência clara e definitiva da questão. Efetivamente, tinha
consciência que nenhum ato, norma ou instituição podia ser perfeitamente boa.
Havíamos debatido com os comunitaristas – que pretendem ter o monopólio do
bem, good – e criticamos seu reducionismo particularista. Havíamos igualmente
dialogado com K.-O. Apel, e criticado J. Habermas, a respeito de seu formalismo
do válido (right).1042 Fomos nos convencendo de que o material da ética era a “ver-
dade prática”, como acesso ao real, desde a vida (com pretensão de verdade prática);
o formal se constituía no acordo intersubjetivo (com pretensão de validade prática).
O aspecto instrumental ou de factibilidade consistia na “eficácia” ou possibilidade
empírica de realização (pretensão performativa). Uma ação ou instituição que cum-
pra tais exigências (que são requisitos e princípios) não pode ser denominada boa
(porque o bom de maneira perfeita é humanamente impossível), mas o sujeito ou
ator que as realiza (tanto a ação, a instituição, quanto a norma, etc.) pode ter pre-
tensão de bondade. A palavra bondade (goodness) agora tem um sentido ético preciso
e estrito. Era o propósito último da ética: o estudo das condições intersubjetivas,
consensuais e reais da pretensão de bondade.
Por pretensão (claim, Anspruch) deve-se entender, num sentido aproximado ao
habermasiano,1043 que a ação realizada ou a instituição fundada ou performativa-
mente atualizada, como funcionando segundo suas exigências (com pretensão de
retidão, então), pode justificar-se se alguém pedir que sejam explicitadas as razões
que explicam a tomada de decisão que se pretendia efetuar. Quer dizer, se “preten-
de” ou “se está disposto” a dar razões ou a modificar a decisão tomada, se alguém
mostrasse que há melhores razões para realizá-la de outra ou de maneira melhor.
Ter a atitude para a ação que denominamos “pretensão de bondade” não é o mesmo
que dizer que a ação “é boa”. A primeira expressão não é relativista, nem deixa
de crer que seriamente deve-se realizar a ação escolhida, porque cumpriu com as
exigências requeridas: os três componentes (obrigações aos quais se dirigem os
princípios éticos), tanto a pretensão material de verdade prática quanto a pretensão
formal procedimental-normativa e a pretensão performativa de eficácia.

1042 Ver, em minha Ética (Dussel, 1998 [404], Tese 4, mas, especialmente, a Tese 14), onde
distinguimos “verdade prática”, “válido” (validity, Gültigkeit), “bom” (good), “ justo” (just,
também right), “ justiça” (justice, Gerechtigkeit), “retidão” (rightness, Richtigkeit), “reto” (right,
richtig). Distingo claramente cada um destes termos.
1043 Ver uma de suas primeiras formulações em: “O que significa pragmática universal?”
(Habermas, 1984, p. 353-438 [ed. esp. p. 299-368]).

535
[429] Reflitamos um pouco mais sobre o tema. Ninguém pode, em concreto,
decidir, a partir de uma deliberação perfeita, nem tampouco pode pretender pos-
suir uma predição certa, também perfeita, da consequência de seus atos. Acerca de
tais consequências (em especial se se tiver em conta os efeitos no longo prazo e,
mais, quando são efeitos negativos não-intencionais), uma decisão prática ou uma
predição perfeita, absoluta, são praticamente impossíveis para a condição humana
finita. Seria preciso possuir uma inteligência infinita a uma velocidade infinita. Tal
como argumenta K. Popper contra o planejamento perfeito do historicismo extre-
mo. Há, então, decisões e predições de efeitos aproximados, falsáveis, provisórios.
Mas, neste caso, não poderemos nunca julgar apodicticamente: “Este ato é bom!”.
A ética pareceria ficar sem propósito, mas não é assim.
Do fato de que os atos incluem um momento de indecidibilidade por falta de
evidência prática absoluta e de imprevisibilidade perfeita, quer dizer, de que seja
impossível ter certeza absoluta de seus efeitos, não segue que a ética, ou a política,
perca seu sentido.
Em primeiro lugar, a ética – como eu a entendo – estuda as condições univer-
sais da constituição do ato (normas, instituições, etc.) como “bom” (ou “mau”), e
estas condições valem para todo ato concreto. A universalidade, no nível dos prin-
cípios, não nega e, sim, fundamenta a possibilidade do ato concreto, contingente e
de certa maneira sempre incerto (próprio da incerteza da condição humana) que
pode ter honesta e séria pretensão de bondade.
Um ato com pretensão de bondade deve (e esta exigência deontológica é um
dever em sentido estrito) encarregar-se das consequências (no sentido muito mais
estrito e profundo do que a mera “ética da responsabilidade”, de M. Weber e
também de H. Jonas), em especial eticamente, quando são efeitos negativos não-
-intencionais (tema da parte Crítica desta Política da Libertação), mas não menos
objetivos, observáveis, possíveis de serem descobertos – como os Reports sobre a
pobreza no mundo, produzidos pelo Programa das Nações Unidas para o Desen-
volvimento (PNUD/ONU) –, que partem de fatos empíricos das ciências duras.
Para que o agente permaneça com pretensão de bondade, deve corrigir seus atos (sua
decisão, seus efeitos), quando descobre sua negatividade. O falseamento ou corre-
ção do ato não mostra que o ato foi “mau” e que deveria ser convertido em “bom”. O
ato poderia não ser mau, já que foi cumprido desde uma honesta e séria pretensão
de bondade. O ato deve ser corrigido (seja ou não mau), se for provado com razões
não consideradas anteriormente, que não é correto em seus efeitos imprevisíveis.
É inevitável que “o justo cometa sete faltas por dia”, como afirma um provérbio
antigo1044. Não deixa de ser justo por cometer faltas éticas; deixaria de ser justo, se
não corrigisse os efeitos negativos percebidos por outros justificadamente. O agen-

1044 O injusto não tem consciência de ter cometido nenhuma falta! Por isso é injusto.

536
te com pretensão de bondade não pode deixar de cometer atos injustos, mas deve
honestamente corrigi-los, para seguir sendo justo; quer dizer, para continuar sendo
um agente com pretensão de bondade. Desta maneira, a universalidade dos princí-
pios não nega a contingência dos atos, nem a necessidade das condições universais
inevitáveis de falibilidade, exigência de falseamento e correção dos atos éticos.
A “pretensão de bondade” do ato ético, dessa maneira, não é o que os comuni-
taristas chamam good (somente referido à totalidade substantiva da cultura, desde
valores admitidos por todos); nem o que os formalistas consensuais, sejam liberais
(como J. Rawls) ou habermasianos, nomeiam right (que, redutivamente, somente
alcança validade prática); nem tampouco o que M. Weber poderia denominar a
ação racional formal, que adapta o meio ao fim (que cairia, em parte, na crítica da
razão instrumental feita pela primeira geração da Escola de Frankfurt). Trata-se
de uma ação daquele ou daquela que, honesta e seriamente, cumpriu as exigências
práticas materiais, formais e de eficiência1045 e, por isso, o ato tem uma complexidade
não vislumbrada pelas visões redutivas das éticas ou morais contemporâneas.
Além disso, a mera pretensão de bondade se transforma em pretensão crítica de
bondade, quando se integram as mais complexas condições e princípios críticos
(que também se situam nas três esferas do material, formal e de factibilidade).1046

1. Em que consiste a pretensão política de justiça?


[430] A pretensão de bondade se transforma, analogicamente, numa pretensão
política de justiça, quando no campo político se subsume a pretensão de bondade
universal, abstrata, ética, dentro do horizonte do campo político, onde se desdobra
o poder político.
Deveremos justificar, embora brevemente, as palavras escolhidas, tanto a pre-
tensão “política” (que subsume no campo político a pretensão “ética”), quanto a de
“ justiça” (que ocupa o lugar da “bondade” em abstrato, que se comporta como o
analogado principal).
Está claro que a pretensão é “política”, já que o sujeito ou ator fica situado no
campo político. Trata-se da pretensão de um cidadão ou representante (genitivo
subjetivo), quando se faz presente como ator ao executar uma ação ou ao cumprir
algum momento institucional. Se cumpre os princípios normativos (ao menos os
três indicados nesta Arquitetônica) da política, na constituição do objeto político1047
poderá ter uma pretensão “política” adequada.

1045 Tema dos capítulos 1 a 3 de Ética da Libertação (Dussel, 1998).


1046 Capítulos 4 a 6 da obra antes citada.
1047 Explicamos na ética o sentido do objeto na descrição kantiana (Cf. Dussel, 1998 [199]): “Ser
objeto do conhecimento prático significa, portanto, somente a referência da vontade [a] à
ação mediante a qual ele ou seu contrário se converte em real, e o juízo [b] de algo é ou não é

537
Esquema 28.01. Componentes da Pretensão política de justiça
1. P retensão de cumprimento das exigências
materiais da política em referência à vida
humana (pretensão de verdade prática)
(§§ 21 e 26)
2. Pretensão de cumprimento das exigências
Pretensão política de justiça
formais democráticas da política (pretensão
de legitimidade) (§§ 23 e 25)
3. Pretensão de cumprimento das exigências
de factibilidade política (pretensão de
performatividade) (§§ 22 e 27)

Mais difícil é dar razões em favor da palavra “ justiça”. Pretensão política de


“ justiça” (genitivo objetivo) quer indicar, na política, um tipo de determinação tão
ampla, como “bondade” para a ética. A palavra “ justiça” pode significar muitas coi-
sas. Em primeiro lugar, uma virtude particular, como, por exemplo, em Aristóte-
les, quando escreve: “Indagamos, contudo, a justiça (dikaiosyne) como uma virtude,
porque há uma justiça desta espécie [...] há várias justiças, e que uma é particular
(hetéra) e diferente da virtude global (holen aretén)” (EN, V, 1, 1130b 5).1048
Pode ter outro significado, num meio cultural diferente. Assim, no hebraico,
o conceito de “ justiça” (tzedék1049) – daí que, em minha primeira Ética, a denomi-
nasse “amor de justiça”1050 – tem um sentido crítico, inexistente no grego, e será de
preferência o conteúdo semântico que adotaremos mais adiante, na Crítica, § 44.
Neste caso, “ justiça” inclui a responsabilidade pelo Outro, a solidariedade com “a
viúva, o órfão e o pobre” e o estrangeiro. Tem, então, um conteúdo transcendental
e crítico em relação à ordem política vigente, como veremos. Na origem, a comuni-
dade humana guardava uma “ justiça” (tzedék) sem dominação. Rompida esta pri-
migênia igualdade, é necessário se encarregar do Outro destituído, procurar por
sua vida (tzdaká). Neste último caso, “ justiça” já não é um mero cumprir a lei, com
o direito, com o exigido pela ordem estabelecida. Agora, tzdaká é cumprir com as
exigências do Outro, enquanto digno de irrenunciável solidariedade pelo fato de
ser “alguém”, a subjetividade sensível da corporalidade sofredora do necessitado
(efeito negativo do agir da ordem política vigente).

objeto da razão prática pura, é somente a distinção da possibilidade ou impossibilidade [...]


mediante a qual certo objeto chegaria a ser real se tivéssemos a capacidade para consegui-lo
[c]” (KpV, A 100); [a] é um momento material, [b] formal e [c} de factibilidade.
1048 Interessa-nos aqui a “virtude global”
1049 Da raiz tsdaká, que, em grego cristão, poderia ser traduzido por ágape (amor de justiça pelo
Outro, diferentemente da mera amizade [philía] ou desejo libidinal [éros]).
1050 Ver Dussel (1973; 1969), em diversos lugares.

538
Pode também significar – e o temos visto no citado texto de Aristóteles – algo
assim como a plenitude do ato político enquanto tal, como Platão o emprega em
sua Politéia. Não tanto quando relata a cidade utópica primitiva, onde a justiça
era o fruto de uma vida agrícola sem contradições e, sim, melhor, a superação das
contradições da “cidade opulenta”, corrupta (como a grega, aos olhos de Platão),1051
numa cidade onde os “guardiães” (talvez, Platão pensasse na Mênfis faraônica)
haviam superado a avareza e a inveja, por uma virtude que subsumia todas as
restantes: a sophrosyne (mais ou menos como a “temperança”) e a andréia (como
“fortaleza” no cumprimento dos deveres políticos), que se reuniam na “ justiça”
(dikaiosyne), como virtude do cumprimento de todos os deveres políticos: “Em
relação à ideia de justiça (díkaios), por conseguinte, o homem justo (anér dikaías)
em nada diferia da cidade justa e lhe será semelhante” (Platão, Politéia, IV, 435b).
Da mesma maneira, escreve Aristóteles, em relação ao sentido amplo de justiça:

Todos entendem chamar justiça (dikaiosynen) aquela atitude que nos dispõe a fazer
coisas justas (dikaíon). Do mesmo modo, com respeito à injustiça, pois, por ela agem
injustamente (adikías) e querem as coisas injustas (EN, V, 1, 1129a, 6-10). Na justiça,
está toda virtude em compêndio. É ela, em grau eminente, a virtude perfeita (EN, V, 1,
1129b 30).

É deste último sentido de justiça que nos aproximamos mais, ao usá-la neste §
28. Queremos indicar com a expressão “ justiça política” o tipo pleno do ato político,
institucional, do cidadão enquanto se “ajusta” às exigências normativas tantas vezes
assinaladas, mas não a uma delas e, sim, a todas sinergeticamente articuladas num
todo sincrônico. Admitimos, de todas as formas, que a complexidade do conteúdo
do termo vai crescendo no tempo histórico. A. MacIntyre escreve, com razão:

A concepção de Aristóteles sobre a justiça e a racionalidade prática se articulava com


as pretensões de um muito particular tipo de prática, particularmente exemplificada
pela pólis, enquanto que Tomás de Aquino, assim como Ibn Rosch ou Maimônides, ex-
pressavam uma pretensão de uma forma mais complexa de comunidade [...]. Da mesma
forma, a concepção de justiça de Hume e a relação da razão com a ação expressavam
ambas uma pretensão de uma forma de sociedade da forma particular da Inglaterra
[...]. Que Aristóteles, Tomás de Aquino e Hume, e todos aqueles filósofos dos quais
nos ocupamos, estiveram sempre historicamente [...]. A forma e a organização da ins-
tituição social e suas práticas se objetivam em maior ou menor medida em teorias [...],
forma que está pressuposta na tradição (MacIntyre, 1988, p. 389-390).

1051 Ver “L’anarchie originelle du Platon” (Höffe, 191, p. 174ss). Crítica à posição de Höffe em
Apel (1992b, p. 47-57), com a qual concordo, em parte.

539
[431] Hoje, a complexidade da política global exige tomar como parâmetros
medidas de uma amplitude e profundidade antes não suspeitadas (referimo-nos às
que puderam ser tomadas no sistema antigo, em seu Estágio III, a mal denominada
Idade Média e também na Modernidade madura industrial, antes do aparecimen-
to do capital transnacional e das mediações técnicas em nossos dias). Contudo, os
agentes políticos (o cidadão e o representante que ocupa funções nas instituições
diversificadas da potestas: o poder exercido delegadamente, mandando como go-
verno) não devem deixar de ter uma atitude normativa que lhes permita cumprir
mais acabadamente a responsabilidade da situação, vocação ou realização profis-
sional de seu labor político. A meta política procedimental ou estratégica (cujos
fins podem ser egoístas, do singular ou do grupo, ou das classes, ou das elites,
etc.) deve deixar lugar a uma descrição mais adequada da ação e das instituições
políticas. Os agentes, como sujeitos que se tornam atores intersubjetivos públicos,
devem ter sempre uma pretensão política de justiça, como síntese de todas as atitu-
des que temos descrito nesta Arquitetônica. Ao não ser assim, no médio ou longo
prazos, o sistema político entra em contradições internas (e externas) e sua per-
manência corre risco de se transformar em ingovernabilidade, em crise, em caos.
O ato político (igualmente, as normas, as micro ou macroestruturas ou os sis-
temas políticos) tem determinações específicas, que subsumem as exigências éticas
na normatividade própria.
No nível A da ação estratégica (como constitutiva da potentia, o poder que
emana da própria comunidade política em ato), na lógica do antagonismo político
para conseguir a hegemonia, devem ser cumpridas as exigências normativas apli-
cadas (referência à reprodução e acréscimo da vida da comunidade; legitimidade
por participação democrático-simétrica dos participantes; factibilidade técnica
dos objetivos estratégicos concretos). Será um exercício de um poder obediencial.
Quer dizer, deve haver igualmente uma pretensão política de justiça estratégica. O
amigo/inimigo políticos devem se situar dentro de uma fraternidade que suponha
a convivialidade de uma comunidade política de cidadãos de um mesmo sistema,
de uma mesma sociedade civil e política.
No nível B das diversas esferas institucionais da potestas (o poder delegado
diferenciado institucionalmente), devem igualmente ser cumpridas as exigências
da reprodução e acréscimo dos sistemas materiais dentro da mesma esfera; do
Estado de direito no nível da legitimidade; do uso adequado das mediações de
factibilidade (por último, na administração da macroinstituição do Estado). Em
todo este nível, os agentes deverão ter pretensão política de justiça institucional ou
de cumprimento dos acordos e das mediações necessárias para tornar possíveis os
requisitos de cada esfera (material, formal e de factibilidade).
No nível C dos princípios normativos implícitos da política, novamente, o ho-
nesto e sério cumprimento destes princípios políticos permitirá, como síntese con-

540
creta, a pretensão política de justiça enquanto tal, que solidificará por dentro as deter-
minações constitutivas do poder político, enquanto potentia (desde baixo e tendo
a comunidade dos cidadãos como agentes imediatos) e como potestas (em todas as
instituições políticas).
Todo ato ou instituição política obtém sua normatividade desta pretensão polí-
tica de justiça. O ato político ou a instituição que tiveram que ser corrigidos (pela
falibilidade humana inevitável) não põe em questão esta pretensão e, sim, mostra
sua eficácia ao permitir emendar o erro, a partir dos mesmos critérios e princípios,
coerentemente. No longo prazo, poder-se-á observar a retidão dos atos incertos, e
frequentemente errôneos, mas corrigidos de tal maneira correta que sem contra-
dições se mostrará a honesta pretensão política de justiça do agente.
Boa parte dos debates atuais toca aspectos desta questão. Se C. Schmitt se opõe
aos liberais ou ao mero Estado de direito como última referência da política, tem
razão, enquanto a pretensão de legitimidade não é ainda uma pretensão política de
justiça. O simples cumprimento da lei não é suficiente. Mas, de modo contrário, a
mera referência de fundamentação ontológica da política por referência a uma von-
tade do povo, na pessoa do líder, no “estado de exceção” – momento parcialmente
material –, como pretensão de retidão (se a vontade fosse um valor forte ou um as-
pecto do conteúdo), tampouco é condição suficiente de uma plena pretensão política
de justiça. Ainda menos o seria a eficácia meio-fim, estratégica ou técnica, da razão
instrumental. A pretensão de eficácia estratégica não é, tampouco, uma pretensão
plenamente política e, sim, parcial. Quando, num nível estratégico, pensam-se que
toda política depende de uma ação cuja essência é a pretensão hegemônica (como
no caso de E. Laclau), se cai num formalismo sem conteúdo: hegemonia para quê?,
pergunta o político crítico dos Novos Movimentos Sociais. A pretensão política de
justiça pressupõe a hegemonia (ou a luta anti-hegemônica), mas como um de seus
componentes. O mesmo se diga do amigo/inimigo, como pretensão de amizade, a
partir da qual se pode derrotar politicamente o “inimigo” (como nas Políticas da
Amizade, de J. Derrida). Mas, de novo: que critério constitui o amigo como “amigo”
e o inimigo como “inimigo”? Qual é o fim da luta dos amigos? Será tal fim o mero
exercício formal e vazio da vontade do povo, por meio do líder, para ostentar o
poder: com qual propósito? Todas são pretensões unilaterais, redutivas, parciais.
O tema deste parágrafo, conclusão desta Arquitetônica, deve aclarar a ques-
tão do que seja o político – em sua primeira versão ontológica, sistêmica, abstrata.
Desde um ponto de vista do ator, trata-se da pretensão1052 fundamental de toda
ação e instituição política.
Repetindo. Agindo honestamente, com intenção de cumprir a obrigação prá-
tica das exigências normativas próprias do campo político, a ação ou a instituição

1052 Ver este tema em Dussel (1998), os parágrafos finais de cada capítulo (§§ 1.5, 2.5, etc.).

541
deverá ter como referência aquela práxis que se adapte ao exercício do poder po-
lítico, em sua plenitude normativa: enquanto atualização da vontade consensual
factível da comunidade, em seus aspectos materiais, formais e de factibilidade. De
outra maneira: tem “pretensão política (subjetivamente) de justiça política (segundo
as condições ontológicas)” aquele que atualiza ou exerce plenamente o poder políti-
co, como a força que, desde baixo (potentia), conduz a ação estratégica e a criação
de instituições justas (e são justas porque estão animadas ou impulsionadas pelo
poder político que pode receber tal nome), dentro do cumprimento integral dos
princípios políticos (tal como os temos definido, como motivação normativa inter-
na dos momentos constitutivos do político enquanto tal): chamá-lo-emos exercício
de um “poder obediencial”.

2. Permanência da ordem política


[432] Ontologicamente, ao todo concreto dentro do qual se desenrola o político
chamamos a ordem política. Distinguimos entre o campo político e os sistemas
empíricos políticos. O Todo do sistema político, constituído por ações estratégi-
cas e por diversas esferas institucionais de práticas cidadãs, constitui uma “ordem
política”. O ser da ordem política, o que funda todo o compreendido dentro desta
Totalidade de sentido, são as vontades dos membros de uma comunidade política
unidas por um consenso discursivo, desde a performatividade técnica que cons-
titui, desde baixo, o poder político originário (potentia). É parte de uma ordem
política aquilo que tem relação com o momento fundado no poder, tal como o
descrevemos minimamente. Toda ação estratégica ou instituição sobre a qual se
exerça ou se sofra a efetividade deste poder se dirá que é um momento ou mediação
da indicada ordem.
A Totalidade política, como ordem política vigente, dentro do campo político,
pretende sempre sua permanência no tempo; tende à estabilidade entre seus com-
ponentes. É a aspiração do novum ordo saeculorum: “nova ordem para a eternidade”,
como postulado temporal da identidade substantiva da ordem política. Assim,
compreenderam a ordem política os gestores dos códigos de leis dos impérios, desde
os sumérios até os babilônios, os faraós entre os egípcios, os helenos, os romanos,
os mandarins do império chinês, os bizantinos, o Califado de Bagdá, o império
otomano ou as cristandades europeias, assim como o império inca ou as confede-
rações maias ou astecas, para falar de sistemas anteriores à Modernidade.
Estabilidade de seus estamentos sociais hierarquizados e permanência no tempo
de suas instituições são determinações ontológicas às quais aspira a ordem política.
Veneza, desde 814 d.C., ano de sua fundação, até sua decadência no século XVII,
permaneceu como potência que dominava boa parte do comércio do Mediterrâneo
oriental. Toda a Modernidade nascente a teve como a ordem política a ser imitada:

542
havia conseguido estabilidade entre seus estratos sociais (ao menos na cidade-ilha
da laguna) e permanência de suas instituições republicanas durante oitocentos
anos – com alguma crise, no século XIII.
Esta estabilidade somente é alcançada quando todos os membros da comu-
nidade estão satisfeitos, na ordem de suas necessidades (ecológicas, econômicas e
culturais). Os clássicos denominavam “bem comum” a obtenção do cumprimento
destas exigências normativas da totalidade da comunidade. Hoje, exigimos, além
disso, a participação simétrica nos acordos políticos, que inclui, então, a legitimi-
dade ou a participação democrática. O “bem comum” seria a pretensão política de
justiça dos membros, na satisfação do pleno cumprimento do desenvolvimento de
suas vidas, numa ordem política estável, governável, permanente no tempo. Este
ideal, um postulado kantiano – que ele denominou com os pietistas “o Reino de
Deus na terra” (tanto na Crítica da Razão Pura, quanto em A Religião dentro dos
Limites da mera Razão, e em outras obras de seu período posterior), seria a pleni-
tude da vida política, pública, legítima, satisfatória.
Outra determinação essencial da ordem política é sua autonomia, sua soberania
plena, em relação a outros sistemas empíricos, quer dizer, a “autossuficiência” (au-
tarkéian) (Aristóteles, Política, VI, 5, 1321b 18).1053 Na Modernidade, o sistema co-
lonial (muito diferente de todos os que, com anterioridade, puderam receber este
nome, como as “colônias” de Éfeso, na Hélade) organiza toda uma ordem política
subordinada na relação centro/periferia, metrópole/colônia, e daí a necessidade
teórica do “giro descolonizador” da filosofia política atual. Somente as metrópoles
centrais cumprem a nota de plena autonomia, autodeterminação, soberania auto-
centrada. O mundo colonial, pós-colonial, periférico, estará atravessado por uma
patologia política inevitável. É preciso ter sempre em conta esta determinação ou
“diferença colonial”, no “giro descolonizador” da filosofia política que estamos pra-
ticando no presente. Esta Política da Libertação tem clara consciência metodológica
desta questão essencial, até a constituição futura de uma filosofia política global,
verdadeiramente planetária – até este momento inexistente.
Em sua origem legítima, a ordem política vigente, pelas instituições da socieda-
de política, conta, além disso, com o monopólio da coação, o que institucionalmen-
te lhe permite exercer delegadamente o poder com realismo eficaz – claro que tal
eficácia é ambígua e pode se transformar, como o veremos na parte Crítica, em mera
dominação –, tanto no espaço (como proteção do território que ocupa a comunida-
de) quanto no tempo (enquanto permanência e estabilidade da governabilidade).

1053 VII, 4, 1326 b 24: “a autossuficiência da vida”.

543
Esquema 28.02. Diacronia1054 analítica da entropia de uma ordem política vigente
100

B
Estabilidade
C
de uma ordem A
política por
consenso
0 Tempo histórico

Esclarecimentos ao Esquema 28.02: A: momento de crescimento institucional que responde às exi-


gências materiais, formais e de factibilidade da comunidade política. B: momento “clássico” do
sistema. C: crise e decadência.

A ordem política, então, tem um momento de máxima criatividade (A), quan-


do o consenso e as mediações tecnológicas apropriadas consolidam as novas ins-
tituições e a comunidade política, em fraterna vontade, empreende a construção
do novo sistema e atende as necessidades dos cidadãos. Pensemos na República
romana antes do Império. Chamamos diacronicamente o momento “clássico” (B),
quando se alcança um equilíbrio entre as demandas da comunidade (potentia) po-
lítica desde baixo e o exercício delegado do poder institucional desde cima (potes-
tas). Veneza viveu esta experiência, durante séculos. Por último, quando surge um
desequilíbrio, perde-se o consenso da base social, o exercício delegado do poder
tende a fetichizar-se, a autonomizar-se, a autocentrar-se. A coação legítima começa
a perder legitimidade. É a crise, é o caos (C), é o começo de um final de um sistema
– é a passagem à parte Crítica desta Política da Libertação. Pensemos na monarquia
francesa absolutista, que foi se debilitando no transcurso de mais de um século e
permitiu o advento da Revolução Francesa, momento culminante da decadência
(C), origem de uma nova ordem política: a República sob o regime burguês.
A ordem política está essencialmente constituída por instituições (nas três es-
feras descritas nos §§ 20-23), mas, como o campo político está atravessado por

1054 Os momentos diacrônicos indicados são analíticos. Nunca se dão exatamente nesta ordem,
nem é tão claro o período em que se passaria de um estado a outro; podem, ademais, ser
simultâneos. São meras indicações abstratas ou analíticas para ter em conta a entropia ine-
vitável da ordem política ou níveis ou esferas da mesma, que podem durar séculos (como na
ordem faraônico, em Veneza ou no Império chinês) ou decênios. Nossa descrição filosófica,
nesta Arquitetônica desta Política da Libertação, abstrata e metodologicamente, encontra-se
sempre no momento B. A maior complexidade colocará novos problemas filosóficos que
deverão ser resolvidos na parte Crítica (próximo volume).

544
outros campos materiais, deve-se ter em conta também que as ações estratégicas
respondem a situações econômicas e a ethos culturais muito diversos, segundo as
comunidades políticas de que se trate (não é o mesmo a tradição estratégico-insti-
tucional do feudalismo ou do capitalismo; da cultura chinesa, islâmica, bizantina
ou cristã latina, por exemplo; não é o mesmo o mundo hispânico peninsular ou
a América Latina e o Caribe). São histórias particulares, suas situações geopolí-
ticas, seu desenvolvimento tecnológico, etc., são muito diferenciados. A ordem
política do Kênia não é igual à da República Federal da Alemanha; Rússia não
é Índia; México não é os Estados Unidos. As diferenças substanciais das ordens
políticas deverão sempre ser tidas em conta para toda reflexão filosófica. Os con-
ceitos aparentemente mais abstratos dependem, frequentemente, da tradição his-
tórico-política de cada comunidade política, situada geopoliticamente num lugar
(location) do tempo e do espaço. Quando J. Habermas fala de “Estado de Direito”,
(Rechtsstaat) seria incompreensível o que descreve, se não soubéssemos que está se
referindo a uma experiência de sua própria ordem política estatal alemã. Por isso,
será necessário “ascender do abstrato” (esta Arquitetônica) “ao concreto” (a Crítica),
onde tudo ganhará em complexidade, em contradições, em conflitos, em transfor-
mações necessárias, institucionais e até libertadoras, em alguns casos. Tudo isto
nos exigirá um novo tipo de desenvolvimentos categoriais de uma inovada filosofia
política crítica. Com pretensão de verdade, o buscaremos –, esperando que, pelas
objeções fundadas, se avance a novos progressos teóricos necessários e urgentes.

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564
ÍNDICE ALFABÉTICO DE ALGUNS TEMAS
E AUTORES

* Neste índice, incluímos somente alguns temas e autores sobre os quais se oferece
um certo desenvolvimento no texto. Toda referência breve, secundária ou sim-
plesmente bibliográfica não será indicada. As referências remetem ao parágrafo
cujo número se encontra entre colchetes [ ] na margem esquerda do texto e não às
páginas da edição. Pro significa Prólogo.

Abraham: 304-305 Aplicação dos princípios: 394, 312, 425


Ação estratégica: 244, 246, 267-275, Arendt, H.: 265, 279, 291, 312, 316-318
276-288 Aristóteles: 357, 378, 409, 416, 428, 430
Acontecimento: 262-266 (→Badiou) Arquitetônica: Pro., 248
Ator político: 316-318, 320, 327-328 Articulação dos princípios: 379-380
(→sujeito) Auctoritas: 261, 310, 349
Agamben, G.: 260, 349, 409 Aztecas: 262
Al-Farabi: 244
Alteridade: 246 (→exterioridade) Badiou, A.: 262-266
Alinenação institucional: 306 Bartolomé de Las Casas: 398
Amigo-inimigo: 280-282 (→Schmitt) Berger, P.: 415
Amizade: 403-404 Bernstein, E.: 284
Analogia: 272 Bloco histórico: 296-301
– subsunção analógica: 272 Bobbio, N.: 398
Anarquista: 414, 422 Bourdieu, P.: 267-270
Apel, K.-O.: 245, 246, 359, 371, 374-375, Brandom, R.: 368, 401-402
387, 390

565
Campo político: 267-270, 367 Ecológica, esfera: 319
– articulação com outros campos: Econômica, esfera: 320-323
314-315 Egito: 250, 266, 358
Castells, M.: 426 – Horus: 250, 257
Castoriadis, C.: 308 – Thot: 256
Categorias, sistema de -: Pal Ellacuría, I.: 408
China 267, 276 (→Sunzi) Emancipação colonial: 264
Civil, o: 309, 316-318 Eros: 302
Clausewitz, C. von: 269 Esferas do político: 247-313
Cohen, J.-Arato, A.: 331 – de factibilidade: 329-343
Coerência ética: 381-382 – formal de legitimidade: 344-364
Comunidade política: 344 – material: 314-328 (→subesferas)
Comunitarismo: 245 Estado: 245, 332-340 (→Sociedade política,
Conceito do político 280-282 (→Schmitt; sociedade civil)
político, o) – ampliado: 331, 341 (→Gramsci)
Concreto, princípios 380 (→abstrato) – restrito: 331, 332-340
Consenso, consensual (→Gramsci, Ha- Estado civil: 309
bermas) Estado de direito: 348, 361
– poder: 257, 291-295 Estado de exceção: 280-281 (→Schmitt,
Conservador 414 Agamben)
Constituição política: 349-350 Estado de natureza: 309
Contingencia: 276, 358 Estado político: 309
Contradição de princípios 380 (→abstrato, Ética: 370-376
concreto) – ética política: 371
Corporalidade: 272 Eu conquisto: 242
Crítica (parte da Política da Libertação): 249 – ego cogito: 242
Cultural, esfera: 324-326 Exterioridade: 246 (→Levinas)

Democracia: 344-365, 383-400 (→legi- Factibilidade estratégica


timidade) modelos de democracia, – esfera de factibilidade: 247, 313,
sistema político) 329-343
– direta: 393 (→postulados) – princípio: 379, 414-427
– princípio democrático: (→princípios) Falácia reducionista do conceito de política
– sistema democrático: (→sistema) (e poder): 242, 244-245
Derrida, J.: 403-406 Fetichismo do poder: 259, 310
Determinação mútua – material, formal, Fichte: 407
de factibilidade: 379 Flórez Magón: 422
Direito: 344-365 Formal (→legitimidade, democracia)
Ditadura 281 – esfera formal: 247, 313, 344-365)
Disciplina: 306, 416 Formas de governo: 397-398 (→modelos
Discursividade: 394 de democracia)
Dissolução do Estado: (→Estado, postulados) Foucault, M.: 260, 265
Distritos, repúblicas elementares: 312, Fraternidade: 403-404
316 (→Arendt) Freud, S.: 303
Dominação – estratégia de dominação: 242 Fundamentação 358-359, 377-378

566
– do princípio de factibilidade: 422-423 – repressão: 306
– do princípio democrático: 390-391 Intelectual orgânico: 299
– do princípio material: 411 Intersubjetividade: 271-275, 344
Iroqueses (“Grande Lei de Paz”): 347
Gewirth, A.: 377
Giddens, A.: 333 Jeshua de Nazaret: 304-305
Girard, R.: 265, 304 Jonas, H.: 408, 411
Governabilidade: 426 Justificação: 357-359
Governo: 310-311
Gramsci, A.: 244, 285, 296-301, 331, Kant, I.: 346, 359, 370, 372
336, 349 Kautsky: 284
Günther, K.: 361 Kelsen, H.: 350

Habermas, J.: 245, 275, 292-295, 315, Laclau, E.: 244, 265, 267, 283-288
349, 355, 360, 392, 370, 401-402 Legalidade: 346
Hammurabi, Código de: 308, 352 Legitimidade: 344-365, 382-400 (→demo-
Hartmann, N.: 403 cracia, formal)
Hayek, F.: 320, 375 Lênin: 335
Hegel: 246, 256, 307, 313, 324, 330, 334, Levinas, E.: 271
344, 363, 370 Libertade: 424
Heidegger, M.: 250-256, 263 Locke, J.: 407
Hegemonia: 244, 285 (→Gramsci, Laclau, Luhmann, N.: 267, 295, 350, 353-354
consenso) Luxemburg, R.: 284, 366
– luta pela hegemonia: 283
Held, D.: 399 MacIntyre, A.: 318, 430
Henry, P.: 250-253 Mandeville, B.: 321
Hinkelammert, F.: 284, 369, 408, 415, 422 Mapas cerebrais: 314 (→campos)
Höffe, O.: 430 Maquiavel, N.: 244
Holloway, J.: 415 Marsh, J.: 379
Honneth, A.: 384 Marx, K.: 284, 286, 320, 325, 369, 404,
Horkheimer, M.: 420 419
Husserl, E.: 271, 403 Material, esfera material: 247, 313, 314-329
– princípio material: 379, 401-313
Igualdade: 384 (→simetria) – subesfera cultural: 324-326
Incerteza: 276, 358 – subesfera ecológica: 319
Inimigo 404 (→Schmitt, amigo) – subesfera econômica: 320-323
Instinto: 303 (→instituições) Maioria-minoria: 396 (→democracia,
Instituições: 246, 302 (→Castoriadis, instituições)
anarquismo, conservadores) Meios, normatividade: 425
– alienação: 306 Mill, J.S.: 363
– democráticas: 396 Modelos de democracia: 397-399 (→demo-
– diacronia (criatividade, estabilidade, cracia)
entropia): 432 Modernidade: 242
– diferenciação: 310 (→potestas) Morin, E.: 290
– fetichização: 310 Movimentos sociais: 327-328

567
Necessário: 276 (→contingente, incerto) Potestas: 259-262, 310-311, 345 (→poder
Necessidades 410 (→Heller) político, instituições)
Negri, A.: 349, 425 Povo: 286
Nietzsche: 252-254, 404 Pragmatismo: 306
Níveis do campo político A y B: 246, Pretensão política de justiça: 428-431
302ss – pretensão de bondade: 429 (→ética)
Nozick, R.: 245, 337 – tipos de pretensão: 431
Princípio de factibilidade: 379, 414-427
Obediencial (poder): 243, 310 – aplicação: 425
Offe, C.: 427 – enunciado: 321
Ontológico: 246, 250-261, 432 – fundamentação: 422-423
Opinião pública: 275, 362-365 Princípio formal da política: 379, 383-
Ordem vigente: 246, 432 400 (→legitimidade, democracia)
Osiris: 273, 358, 375 (→Egito) – aplicação: 388, 394
Outro, o: 271 (→Alteridade) – de legitimidade ou democrático:
Ott, K.: 377 385-400
– na Modernidade: 385-386
Paulo de Tarso: 265 – enunciado: 387-388
Partidos políticos: 342-343 – fundamentação: 390-391
Phrónesis: 244, 357, 358, 394 Princípio material da política: 379, 401-
Poder constituinte: 349-350 413
Poder instituinte: 308, 311, 349-361 – aplicação: 412
Poder Judiciário: 357 – na Modernidade: 407
Poder Legislativo: 347-351 – enunciado: 410
Poder político: 242ss – fundamentação: 411
– como dominação: 243 – postulados: 413
– como obediência: 243, 310 Princípios éticos: 370-376
– conceito negativo ou positivo: 243 Princípios normativos da política 246,
– conceitos redutivos: 244 365-427
– delegado: 311 – articulação de princípios: 379-380
– diferenciado 310-311 – implícitos: 365
– discursivo, consensual: 256, 289- – negativos: 366, 367
295 (→Arendt, Habermas) – positivos: 366
– fetichizado: 259, 310 – subsunção dos princípios éticos:
– obediencial: 259 372-375
Político, o: 244-245, 280-282, 309, 316- Princípios normativos econômicos: 375
318 (→conceito do político) (→Smith, Sen, Ulrich)
Populismo: 301 Privado, o: 271-275
Possível, possibilidade: 276 Projetos políticos: 366, 369
“Possíveis” políticos: 414 Público, o: 271-275
Postulados políticos: 366, 369, 392, 413,
424 Querer-viver: 253-255, 289
Potentia: 259-262, 310-311, 345 (→poder
político)
Rauber, I.: 327-328
– poder indeterminado: 347
Rawls, J.: 245, 307, 317, 326, 350, 387

568
Razão instrumental: 244, 420-421 Totalidade: 246, 263
Razão político-material: 401 Touraine, A.: 333
– discursiva: 383
– estratégica: 414 Ulrich, P.: 373
Reino da Liberdade: 369 Unanimidade: 393 (→postulados)
Representação: 312, 393, 396 Utopias políticas: 366, 369
Repressão institucional: 307
Revolução: 265, 312 Valor político: 254-255, 403
– francesa: 317, 424 (→Arendt) Verdade prática: 404
Rousseau, J. J.: 256, 262, 289, 310, 407 Vida humana: 250-261, 409 (→material)
Vontade: 384, 416 (→de igualdade)
Scheler, M.: 403 Vontade-de-Poder: 244, 250-261
Schmitt, C.: 244, 250-256, 280-282, 349, – como fundamento: 250-261
405 – como “poder-atuar”: 419
Schopenhauer, A.: 250-253 – de-Vida: 250ss
Scoto, Duns, 276 – geral: 289 (→Rousseau)
Séller, A.: 404, 410
Sen, Amartya: 374, 410 Walzer, M.: 266, 277-278
Simetria (participação simétrica): (→demo- Weber, M.: 242, 244, 254, 415
cracia, legitimidade) Wellmer, A.: 384
Sistema de direito: 348, 352-356
Smith, A.: 321-322, 375 Zapata, E.: Pal
Soberania: 345 Zapatismo: 243, 260
– popular: 295 Žižek, S.: 264, 265, 288
Social, o: 316-318 (→Arendt)
Sociedade civil: 310, 327-328, 330-332,
341 (→Gamsci, Hegel)
Sociedade política: 310, 330-340
(→Gramsci, Hegel)
Spinoza, B.: 259-260, 407
Suárez, F.: 387
Subesfera ecológica: 319
– cultural: 324-326
– econômica: 320-323
Subjetividade: 271-275 (→intersubjetivi-
dade, sujeito)
Subsunção dos princípios éticos: 372-375
Sujeito político: 262, 270 (→ator)
– social: 327
Sunzi: 268, 276, 339
Superestrutura: 245

Taylor, M.: 326


Teologia política: 280, 282
Tomás de Aquino: 358

569
ÍNDICE DE ESQUEMAS

Esquema 13.01. Articulação arquitetônica dos níveis A, B e C, com suas


esferas e princípios diferenciados. O silogismo político..................................... 46
Esquema 14.01. Diversos momentos de fundação do poder.......................... 60
Esquema 14.02. Diversos momentos da vontade e do poder
político (potentia).................................................................................................... 62
Esquema 14.03. Da potentia à potestas............................................................... 69
Esquema 15.01. Do caos ao acontecimento e à nova ordem.............................. 85
Esquema 16.01. Diversa extensão das categorias............................................. 93
Esquema 16.02. O sujeito (S) é ator em diversos campos (A, B, C, D, N)...... 99
Esquema 16.03. A intersubjetividade sustenta a subjetividade diante
da objetividade......................................................................................................... 101
Esquema 17.01. Oposições conceituais de uma factibilidade
político-contingente................................................................................................ 112
Esquema 19.01. Bloco histórico no poder colonial hispano-americano
(fins do século XVIII)............................................................................................ 182
Esquema 20.01. Aumento proporcional de institucionalidade
e de liberdade com progressiva substituição dos instintos
(subsumidos culturalmente)................................................................................... 198
Esquema 20.02. Diacronia de proporcionalidade inversa entre
“disciplina criadora” e “repressão alienante” em toda instituição....................... 205
Esquema 20.03. O “civil” e o “político”.............................................................. 208

571
Esquema 21.01. Três dimensões da esfera material do político..................... 230
Esquema 21.02. O “social” e o “político”: cruzamento de campos................. 232
Esquema 21.03. O ator econômico e político................................................... 243
Esquema 21.04. Os diversos “atores” do âmbito social” da
“sociedade civil” e da “sociedade política”............................................................. 261
Esquema 22.01. Sociedade civil (estado em sentido ampliado) e
sociedade política (estado restrito)......................................................................... 274
Esquema 22.02. Campo político, sociedade civil e sociedade política.......... 275
Esquema 22.03. Tipos de estados propostos por A. Touraine....................... 279
Esquema 22.04. Os três momentos do “triângulo” lacaniano........................ 291
Esquema 22.05. O “social”, a “sociedade civil” e a “sociedade política”......... 299
Esquema 23.01. A comunidade política, soberana, explicita os direitos,
se dá as leis legítimas que determinam direitos, que enquadram
deveres que a obrigam............................................................................................. 312
Esquema 23.02. Alguns momentos dos temas que queremos abordar
quanto à legitimidade do estado............................................................................ 321
Esquema 23.03. Mútua determinação da transformação do direito
e da sociedade........................................................................................................... 334
Esquema 23.04. Ascensão dialética (do juízo reflexionante) e descenso
justificativo (do juízo determinante) práticos...................................................... 346
Esquema 24.01. Diversos graus lógicos de abstração e de aplicação
dos princípios, momentos teleológicos e ações, e seus efeitos a partir
de uma ordem política dada......................................................................................... 366
Esquema 24.02. Os três princípios de Habermas organizados
em dois níveis de abstração..................................................................................... 382
Esquema 24.03. Os princípios éticos (analogado principal) são
subsumidos analogicamente pelos princípios práticos (analogados
mais concretos) de campos particulares............................................................... 386
Esquema 24.04. Mútua codeterminação dos princípios políticos................... 409
Esquema 24.05. Níveis de abstração dos princípios e as normas
justificadas em sua aplicação.................................................................................. 412
Esquema 25.01. Distinção entre sistema democrático concreto (1),
modelos de democracia (2), postulados democráticos (3) e princípio
democrático-normativo (4)..................................................................................... 444
Esquema 25.02. Modelos de democracia segundo
David Held (1993, p. 271)...................................................................................... 467
Esquema 26.01. Algumas determinações mínimas da necessidade................ 494

572
Esquema 26.02. Listas de necessidades humanas para em conta
no campo político.................................................................................................... 496
Esquema 27.01. Três tipos de “possíveis” políticos............................................ 508
Esquema 27.02. Limites que demarcam a ação estratégico-normativa........... 518
Esquema 27.03. Momentos de decisão e de realização estratégica
do processo político................................................................................................. 525
Esquema 28.01. Componentes da Pretensão política de justiça......................... 538
Esquema 28.02. Diacronia analítica da entropia de uma ordem
política vigente......................................................................................................... 544

573
ESTA OBRA FOI COMPOSTA EM ADOBE JENSON PRO
PELA EDITORA ACADÊMICA DO BRASIL E IMPRESSA
PELA META IMPRESSÃO E SOLUÇÕES DIGITAIS LTDA
EM PÓLEN BOLD.
O segundo volume da Política da Libertação trata filosoficamente da arquitetônica
– a estrutura abstrata – da política e dá continuidade ao volume que o antecedeu e
que faz uma reconstrução crítica da história da filosofia política. Ele prepara e anun-
cia a Crítica que está prometida para ser o terceiro volume. A abrangência, a profun-
didade e a consistência presentes no volume histórico segue presente neste volume.
Nele são feitas distinções conceituais centrais para compreender e agir na política.
Também são apresentados os princípios que constituem a normatividade da políti-
ca, o Princípio Democrático (igualdade), o Princípio Material (fraternidade) e o
Princípio da Factibilidade Estratégico-política (liberdade). O livro termina com a
exposição da ordem ontológico-política e sua pretensão política de justiça. Estudo
necessário e subsídio prático para agentes políticos que queiram fazer da política
processo reflexivo de ação libertadora.

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