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AULÃO

COMO
ABSORVER
O QUE VOCÊ LÊ

Raul Martins

Licensed to Paulo Gilberto Barreto da Silva - paulo.hendrix@gmail.com - 010.477.371-59


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BÁSICAS

Como Ler Livros, de Mortimer Adler

O maior clássico moderno sobre a leitura. Adler, um dos homens mais cultos de
seu tempo, trabalhou a vida inteira em prol duma educação liberal autêntica. O
livro apresenta quatro níveis de leitura (elementar, inspecional, analítica e
sintópica) e as explica detalhadamente, partindo da segunda.

The Shallows, What The Internet is Doing to Our Brains,1 de Nicholas Carr

Livro que surgiu a partir de um artigo (ironicamente, online) lançado na revista The
Atlantic, que tinha por título uma pergunta honesta: O Google nos está deixando
burros?2

O artigo fez um sucesso estrondoso. O autor aumentou-lhe o tamanho até


transformá-lo num livro. Foi traduzido para o português, se bem não se encontre em nenhum
lugar algum exemplar. O título é “Geração Superficial: O que a internet está fazendo com nossos
cérebros”. Não recomendo a tradução, que é péssima. Pode-se encontrar o livro online
facilmente.

Todas as informações sobre os três tipos de memória e algumas outras, sobre a evolução da
escrita, estão aqui.

Controle Cerebral e Emocional, do Narciso Irala

O autor descreve todas as possíveis causas da falta de atenção, bem como


exercícios específicos para curá-las. É um livro profundamente realista e
altamente recomendável.

Como Tornar-se um Leitor Inteligente, do prof. Olavo de Carvalho

Um dos cursos avulsos do prof. Olavo de Carvalho. Para iniciantes, recomendo


fazê-lo em conjunto com “Princípios e Métodos da Autoeducação”, outro de seus
cursos avulsos.

COF, do prof. Olavo de Carvalho


O milagre pedagógico que deu à luz este que vos fala. Sem o COF, meu trabalho
não existiria.

1
Livro que chegou a ser um dos finalistas no prêmio Pulitzer de 2011 para obras não-ficcionais.
2
Link para o artigo original, em inglês: https://www.theatlantic.com/magazine/archive/2008/07/is-
google-making-us-stupid/306868/

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Pontos Preliminares
Antes de falar especificamente sobre a leitura, é indispensável que
antes destruamos alguns mitos e lidemos com duas questões
seríssimas: a falta de atenção de nós, modernos, e os problemas de
alfabetização de nós, brasileiros.

- "Absorver" não é, nem de longe, um termo adequado. Absorver dá a ideia


duma esponja, de algo passivo que por sua própria natureza “chupa” os
conhecimentos. A leitura é algo eminentemente ATIVO.

Words matter. A linguagem figurada, quando muito usada e pouco analisada, em certa medida
acaba moldando o pensamento. É o caso de "absorver", que, no final das contas, reforça a falsa
ideia de que a leitura é uma atividade simples e automática, como andar ou comer.

- Por que “ativo”? Em toda comunicação humana há duas partes: quem emite a
informação e quem a recebe. Tendemos a pensar que o responsável pelo
trabalho é só quem fala ou escreve. Porém, não é assim.3 Adler usa a analogia
de alguém jogando uma bola e o outro apanhando-a — o esforço é mútuo.

Logo no comecinho de Como Ler Livros, Mortimer Adler faz questão de enfatizar que a
comunicação é sempre uma via de mão dupla.

- Mais: são esforços proporcionais. Se o sujeito que joga a bola fizer um


lançamento difícil, o apanhador terá de fazer mais esforço. Isso quer dizer que
há tipos diferentes de textos, que exigirão leituras mais ou menos atentas.
Textos apenas informativos, textos pelos quais passamos o olhar sem dar-lhes
um só segundo de atividade consciente (sinais de trânsito, manchetes, listas
de compras, rótulos de produtos). Existem textos que SEMPRE exigirão muito
do leitor. Aqui, não falaremos PRINCIPALMENTE sobre livros ficcionais.

- Há dois tipos de aprendizado: a descoberta, em que operamos diretamente


sobre o mundo, e o ensino, em que extraímos algo do discurso de alguém. Um
livro é um discurso. Mas não é um discurso como a fala.

3
Remetê-los aos áudios do Telegram.

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- Diferenças específicas da língua escrita: 1) é fixa. O escritor pode revisá-
la e editá-la mil vezes. Pode reorganizar-lhe as partes. Pode cortar
palavras, frases, parágrafos. Portanto, a língua (bem) escrita deve mostrar uma
ordem e clareza mil vezes maiores do que a língua falada. O escritor está
obrigado a criá-la e o leitor, a captá-la.

É bem verdade que a fala, por ser mais rápida e dinâmica, perde clareza. Perde exatidão. Numa
conversa, tudo é muito veloz e tem de ser ajustado no improviso. Na escrita, não. Pode-se mudar
mil vezes um texto antes de mostrá-lo aos outros. Pode-se dar um texto a revisores. A amigos.
Pode-se mudar apenas algumas partes de um texto sem mexer em absolutamente NADA das
outras partes.

- 2) faltam-lhe recursos gesticulares e sonoros. Na fala, a falta de


exatidão que se consegue com a cristalização da linguagem em certa medida
pode ser compensada por gestos, expressões faciais, ênfases na voz ou um
constante vai-e-volta de ideias.

Perde-se por um lado e ganha-se pelo outro. Na fala é impossível, sim, haver o mesmo nível de
clareza e sistematização do discurso que existe na escrita, mas e quanto a tudo aquilo que só
uma presença humana pode comunicar?

- Daí decorre que a escrita é 3) compactada. Escrever dá muito trabalho


e leva muito tempo. Fala-se em uma hora o que, escrito, levaria uma
semana. Portanto, o leitor está obrigado a preencher lacunas, às vezes a
expandir imaginativamente o texto e por aí vai.

Em “Como Tornar-se um Leitor Inteligente” diz o prof. Olavo que a escrita é sempre
“taquigráfica”. Ou seja: é sempre uma diminuição, um corte no conteúdo mais extenso da fala.

- 4) é incompleta. O autor não está presente para explicar-se. Não está


presente para completar o que queria dizer com sua presença corpórea. Só
pode levar o leitor até parte do caminho — e esperar que este venha até ele.
"É impossível entrar numa relação intelectual com algum objeto físico. Só se
pode entrar em relação intelectual com outra mente. Porém, um livro não é
uma mente — é a parte ínfima de uma mente.”

Mortimer Adler diz que um livro é o meio-termo entre a descoberta e o aprendizado: aprende-
se algo com o discurso? Sim. Mas o discurso desamparado de tudo aquilo descrito no ponto
anterior e de mais uma coisa crucial: a possibilidade de resposta do autor do discurso.

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- 5) é antinatural.
- “Experimentos revelaram que os cérebros dos alfabetizados diferem dos
cérebros dos analfabetos em muitos pontos — não somente em como
compreendem a linguagem, mas também em como processam os sinais
visuais, como raciocinam, e como formam memórias.”4

É compreensível e esperado que haja diferenças estruturais profundas nos cérebros de


alfabetizados e não alfabetizados. A escrita não é como a fala; algo espontâneo e quase
inescapável. O princípio alfabético (cada letra ou grafema corresponde a um sou, ou fonema) e
a decodificação grafofonêmica necessária para compreendê-lo são atividades alheias às
funções “naturais” do cérebro. É por isso que as crianças vão para a escola aprender a ler e a
escrever quando já sabiam, faz tempo, falar.

- No começo da escrita não havia nem espaço entre as palavras, nem uma
ordem específica e identificável. A ordem das palavras como sinal de seu
significado foi algo inventado posteriormente. A sintaxe não é natural.5 Foi só
no começo do segundo milênio, já bem depois do colapso do Império Romano,
que começou a surgiu a SINTAXE — quando o número de alfabetizados
cresceu exponencialmente e os livros passaram a ser meios de instrução e
aprimoramento pessoal, e não apenas leituras de lazer ou altas especulações
filosóficas. Ao mesmo tempo, os copistas passaram a dividir as sentenças em
palavras individuais, separadas por espaços.

Ou seja: o princípio alfabético, os espaços entre as letras, as pontuações, a sintaxe mesma —


tudo foi criado; a tudo o cérebro precisa adaptar-se por meio do treinamento. Ter dificuldades
com a leitura é o estado natural do homem não instruído ou mal instruído. Ter dificuldades com
a leitura depois de um processo educacional absurdamente deficiente é o que se esperaria de
qualquer um. Não se trata de incapacidade intelectual específica, e sim de algo universal.

- “O estado natural da mente humana, como aquele dos


cérebros dos nossos parentes do reino animal, é de
desatenção. Nossa predisposição é deslocar o nosso

4
Geração Superficial, pág. 98
5
“A falta da separação de palavras, combinada com a ausência de convenções da ordem das palavras,
colocava uma “carga cognitiva extra” nos antigos leitores, explica John Saenger em Space between
Words, sua história do livro manuscrito. Os olhos dos leitores tinham que se mover lentamente; parando
ao longo das linhas do texto, pausando frequentemente e muitas vezes voltando ao início da sentença,
enquanto suas mentes se esforçavam para descobrir onde acabava uma palavra e começava uma nova
e qual o papel que cada palavra desempenhava no significado da sentença. A leitura era como resolver
um quebra-cabeça. Todo o córtex cerebral, incluindo as áreas frontais associadas com a resolução de
problemas e tomada de decisões, estaria zunindo com atividade neural”. — Geração Superficial, pág. 114

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olhar, e assim nossa atenção, de um objeto para outro,
ser cônscios do máximo possível que está acontecendo
ao nosso redor… ‘Nossos sentidos têm uma sintonia fina
para a mudança. Objetos estacionários ou imutáveis
tornam-se parte do cenário e quase não são vistos.”6

- “A capacidade de se focar em uma única tarefa relativamente sem


interrupções representa uma estranha anomalia na história do nosso
desenvolvimento psicológico.”7

O que não quer dizer que antes da leitura ninguém jamais se houvesse concentrado em coisa
nenhuma. Já havia artífices enormemente habilidosos, caçadores mortais e ascetas que
entregavam suas vidas à contemplação silenciosa muito, muito antes de ter surgido o primeiro
leitor.

- "O que era tão notável em relação à leitura do livro é que a concentração
profunda estava combinada com a decifração altamente ativa e eficiente do
texto e a interpretação do significado.”8

A concentração exigida pela leitura era diferente. Nela havia a decifração simultânea de
elementos visuais, sonoros e semânticos. O cérebro registrava formas escritas, trasnformava-as
em sons, combinava-os em palavras e acessava-lhes o significado. Depois, combinava diversas
palavras entre si para descobrir o sentido de frases. E daí passava aos parágrafos. E daí a textos
inteiros. Era uma concentração profundamente analítica.

- "A ideia [da leitura] é desligar-se do fluxo externo dos estímulos passageiros
para conectar-se com um fluxo interno de palavras, ideias e emoções."9

O estado natural do cérebro humano é a desatenção porque no mundo incivilizado, agreste,


ameaças e oportunidades poderiam surgir a qualquer momento. Predadores ou fontes de
alimento. Tratava-se de uma dispersão atenta: todos os sentidos ficavam sempre um pouco
alertas a todas as coisas. Portanto, em certos sentidos alertas a coisa nenhuma. O "fluxo externo
dos estímulos" era tudo o que havia. A leitura exige que se faça um caminho inverso e cogite-
se apenas um fluxo de ideias e emoções que surge a partir de palavras estáticas.

6
Geração Superficial, pág. 117
7
Vaughan Bell, psicólogo pesquisador do King’s College de Londres.
8
Geração Superficial, pág. 119.
9
Geração Superficial, pág. 120.

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“Certo, Raul. Já entendi que a leitura é diferente da fala. Também
entendi que é uma coisa antinatural. Mas o que isso tem a ver com
as minhas leituras?”

Não adiantará muita coisa falarmos sobre as suas leituras se não estiver muito
claro o que é a leitura em geral. O pensamento precede a ação. O conceito que
temos de X determinará as ações que havemos de tomar em relação ao X e os
caminhos pelos quais o abordaremos.

G. K. Chesterton dizia que, às vezes, a familiaridade excessiva com alguma coisa


nos deixa cegos à sua verdadeira natureza. Temos de nos afastar da casa em que
nascemos e analisá-la de longe para que entendamos algumas coisas sobre ela
que, de outro modo, permaneceriam incompreendidas e invisíveis. É o que se dá
com a leitura.

Eu vejo por aí muita gente abordando a leitura com a cegueira de quem não
enxerga os seus muitos problemas e dificuldades. Se você sabe, por exemplo,
que a escrita apresenta maior clareza expositiva do que a fala, será inevitável
começar uma leitura mais atenta e profunda. Leitura à procura da ordem possível
àquele meio de comunicação.

Se sabe que à escrita faltam a presença do interlocutor e a possibilidade de que


lhe dê respostas, você começará a prestar maior atenção às pontuações, ao ritmo
da escrita e a todas as ferramentas de que dispõe o escritor para recriar na página
o que se sente e percebe na vida.

Se sabe que a escrita é compacta, saberá de antemão que algumas lacunas


precisarão ser preenchidas.

Se sabe que é antinatural, saberá que a leitura é algo que exige esforço
continuado, instrução adequada e, no final, uma readequação física do cérebro.

Péra, readequação física do cérebro? Sim. Quando a inteligência


muda, o cérebro vai junto. Bora falar sobre neuroplasticidade.

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Neuroplasticidade: a repetição cria novos
caminhos neurais, enfraquece ou destrói
outros e, no geral, transforma o cérebro.

- O cérebro muda de acordo com as experiências — sobretudo as experiências


repetidas. Antigamente, cria-se que o cérebro adulto era um negócio fixo,
inalterável. Só o cérebro das crianças mudava ao longo de seu
desenvolvimento.

Algum tempo atrás, uma seguidora no Instagram enviou-me uma pergunta: queria saber se era
verdade que depois dos 30 não aprendemos mais nada, coisa que seu professor lhe dissera.
Respondi com outra pergunta: será que o professor tinha mais de 30 anos?

- A metáfora em que se baseava a visão “tradicional" do cérebro adulto como


algo imutável representava-o como um maquinismo mecânico. Se você
arranca ou muda alguma parte de um trem, o coitado quebra. Assim seria o
cérebro. A metáfora foi aumentada e reforçada pelo surgimento do
computador digital.

Lembra-se do “absorver”? Pois é. Aqui temos outro exemplo de como a linguagem influencia o
pensamento. Primeiro, entusiasmados pela Revolução Industrial, alguns pensadores criaram
analogias entre o cérebro e as máquinas. Mais tarde, com os computadores, o hardware e o
software, as analogias tornaram-se irresistíveis. Nossa memória não passava de um HD; nosso
cérebro era um hardware fechado e imutável. Duas mentiras brabas, como se verá mais tarde.

- Porém, com o passar do tempo e várias experiências documentadas no livro


de Carr, chegou-se à conclusão de que: “Há evidências de que as células do
nosso cérebro literalmente se desenvolvem e tornam-se maiores com o uso,
e se atrofiam e são descartadas com o desuso. Portanto, pode ser que toda
ação deixe alguma impressão permanente no tecido nervoso”.10

- Merzenich pegou um macaco, fez-lhe incisões nas mãos e cortou seu nervo
sensorial. Os nervos voltavam a crescer a esmo e o cérebro, é claro, ficara
confuso. O cientista tocava numa parte do dedo e o cérebro do bicho dizia-lhe
que a sensação viera de outra parte do dedo. Meses depois, porém… o cérebro
refez-se. Não estava mais confuso. “As vias neurais dos animais haviam sido

10
Geração Superficial, pág. 44

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tecidas em um novo mapa, que correspondia ao novo arranjo de nervos nas
suas mãos”.11

Michael Merzenich, doutor em fisiologia pela John Hopkins, aluno de Vernon Mountcastle, um
dos maiores das neurociências, começou a fazer uma série de estudos com macacos a fim de
observar-lhes o cérebro. Acabou descobrindo que o órgão, longe do que se pensou por algum
tempo, era muitíssimo maleável. Novos hábitos ou ações repetidas criavam ligações sinápticas
novas, que surgiam “do nada” e literalmente mudavam a constituição física do cérebro.

- Descobriu-se, por exemplo, que o hipocampo posterior12 de taxistas londrinos


era maior do que o hipocampo de não taxistas. Com o tempo, o cérebro
treinado para diariamente armazenar informações espaciais e tomar decisões
baseadas nelas acabou criando ligações sinápticas a ponto de aumentar uma
de suas áreas.13

- Verificou-se o mesmo com violinistas: a parte do seu cérebro responsável pelo


controle da mão esquerda, com a qual dedilhavam as cordas do instrumento,
era também maior do que a de outras pessoas. A habilidade motora implicava
uma diferença fisicamente mensurável. Algo fora criado.

- Mas a neuroplasticidade não é só flores. Por meio da repetição, circuitos do


nosso cérebro começam a transformar atividades em hábitos. E não só
atividades boas. Não só novas habilidades. Não só conhecimentos úteis. Vícios
também. Padrões de comportamento danosos.

Aristóteles dizia que a virtude é um hábito. Boas ações praticadas repetidamente. Inversamente,
o que seria o vício? Más ações praticamente repetidamente.

- E, aqui, chegamos ao problema principal: o cérebro ser plástico não quer dizer
que é elástico. Ele muda? Sim. Transforma-se, adequa-se? Sim. Mas não é a
casa da Mãe Joana. Mudanças levam tempo, quer para o bem, quer para o mal.
O cérebro não estica e volta imediatamente ao seu estado anterior, inalterado.
O cérebro de um taxista leva anos para mudar. Assim como o cérebro de um
viciado em drogas ou em pornografia.

11
Geração Superficial, pág. 51
12
Parte do cérebro responsável pela armazenagem e manipulação das representações visuais dos
arredores de alguém.
13
Já se pode antecipar parte do que vamos falar à frente: imaginem se algum taxista ou motorista, hoje,
valendo-se apenas do Google Maps, chegou a mudar seu cérebro como os taxistas de antigaente. Toda
nova ferramenta tecnológica amplamente utilizada causa, com o tempo, mudanças estruturais no
cérebro.

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- “Se pararmos de exercitar nossas habilidades mentais, não as esquecemos
apenas: o espaço do mapa cerebral dessas habilidades é transferido para as
habilidades que praticamos no seu lugar… a possibilidade da decadência
intelectual é inerente à maleabilidade do nosso cérebro”.14

A mesma plasticidade que torna possível o aprendizado


torna possível a degradação. Isto porque o cérebro não é
infinitamente plástico. No geral, enfraquecem-se algumas
partes para que outras possam ser fortalecidas. Depois da
invenção da escrita, a prodigiosa memória verbal dos
antigos, capaz de reter perfeitamente discursos de cinco,
seis horas, perdeu-se para sempre. Também se perdeu a
capacidade de ouvir a discursos de cinco, seis horas.

Com a internet, algumas coisas mudaram já em relação à


escrita — e quase nenhuma para melhor.

14
Geração Superficial, pág. 68

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A leitura na net
e suas consequências:

Até aqui, vimos que a escrita/leitura é algo antinatural e, portanto,


precisa ser aprendido. Vimos que o cérebro pode transformar-se, para
o bem ou para o mal. Aprender a ler e escrever é transformar o
cérebro. Agora, está a hora de darmos uma olhada em como a leitura
contínua na internet e a exposição diária às telas está outra vez
mudando nosso cérebro, e por que hoje tantos têm sérias dificuldades
para manter a pura e simples atenção15 na hora de ler um livro.

- “…quando estamos on-line, entramos num ambiente que promove a leitura


descuidada, o pensamento apressado e distraído e o aprendizado superficial.
É possível pensar profundamente enquanto se surfa na net, assim como é
possível pensar superficialmente enquanto se lê um livro, mas não é o tipo de
pensamento que a tecnologia encoraja e recompensa.”

Internet significa estímulos sensoriais ininterruptos. Cores brilhantes, chamativas. Pop-ups


invasivos. Letras garrafais. Abas infinitas que se podem abrir com um só clique. Propagandas.
Hiperlinks. Barras de rolagem. Stories. O Google sempre à mão. O Youtube. Recomendações de
vídeos. Netflix. O tipo de pensamento encorajado pela internet é algo análoho

- A internet joga na sua cara uma infinidade de “reforços positivos” — repostas e


recompensas instantâneas, que, no final das contas, encorajam a repetição de
ações físicas e mentais. Clicar em linques e conseguir novas informações.
Postar algo novo e ganhar interações. Mandar uma mensagem e receber uma
resposta. Além de tudo o que de bom dela provém, é inegável que em certa
medida a net “transforma-nos em ratos de laboratório constantemente
apertando alavancas para conseguir diminutas porções de ração social ou
intelectual”.

Se a leitura foi o marco de uma mudança profunda na mente humana — a concentração ativa,
analítica —, a internet parece ser uma força que privilegia os instintos básicos do cérebro. A
atenção dispersa, ágil, eficientíssima quando se trata de fazer avaliações rápidas de fatos que
não se prolongam e logo são seguidos por outro, e outro, e outro.

15
Que está longe de ser “pura” ou “simples”, aliás.

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- "A necessidade de avaliar links e tomar as decisões de navegação
relacionadas, enquanto processa uma quantidade impressionante de
estímulos sensoriais, exige constante coordenação mental e tomada de
decisões, distraindo o cérebro do trabalho de interpretar texto ou outras
informações.”

Sobre a atenção, diz Narciso Irala em seu “Controle Cerebral e Emocional”: “O rendimento é
mínimo e a fadiga máxima quando atendemos a duas ideias simultaneamente”. Se você já
tentou ler algum texto difícil enquanto alguém gritava pelo seu nome ou punha o rádio no último
volume, sabe como é isso. O estresse causado pelo esforço mental de assimilar duas linhas de
raciocínio ao mesmo tempo é ENORME. Na internet, estamos sempre à mercê de alguma nova
linha de raciocínio pular de algum canto e nos obrigar a considerá-la, ainda que seja para rejeitá-
la.

- “Sempre que nós, os leitores, topamos com um link, temos que pausar, ao
menos por uma fração de segundo, para permitir que o nosso córtex pré-
frontal avalie se devemos clicar ou não. O redirecionamento dos nossos
recursos mentais, da leitura de palavras para a realização de julgamentos,
pode ser imperceptível para nós — nosso cérebro é veloz —, mas foi
demonstrado que ele impede a compreensão e a retenção, particularmente
quando repetido frequentemente. A medida que as funções executivas do
córtex pré-frontal tomam as rédeas, nosso cérebro não só é exercitado, mas
também fica sobrecarregado.”16

Não é porque não estamos conscientes da atividade mental que ela não existe. A simples
abertura a novos estímulos provocada pela internet já faz um belo serviço para estragar aquela
concentração profunda que é necessária à compreensão de textos mais complicados.

- Os livros, que subestimulam os sentidos, libertam o cérebro das distrações e o


deixam livre de ter que ativar as funções de resolução dos problemas. Fica
livre para uma leitura profunda.

Ponto importantíssimo: os livros são o exato oposto da internet. Neles, praticamente inexiste
algum estímulo sensorial. Só existem sinais gráficos estáticos numa página. Fornecem um
ambiente perfeito à concentração analítica e, portanto, à criação de um hábito alheio à natureza
original do cérebro. Subestimular os sentidos é estimular a atenção concentrada e ajudar
formidavelmente a memória de trabalho.

Não sabe o que é "memória de trabalho"?


Pois vai saber agora.
16
Geração Superficial, pág. 225

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Memória de curto prazo,
de trabalho e de
longo prazo:
- A memória de curto prazo retém nossas impressões, pensamentos e
sensações imediatas, coisas que duram segundos. Tudo o que aprendemos
sobre o mundo, consciente ou inconscientemente, vai para a memória da
longo prazo.

- Existe, porém, entre as memórias de curto prazo um tipo especial: a memória


de trabalho. Ela desempenha um "papel instrumental na transferência de
informação para a memória de longo prazo.”

- A memória de trabalho é aquilo de que estamos conscientes em certo


momento. A memória de longo prazo é o estoque da memória. Não estamos
conscientes das memórias de longo prazo a menos que consigamos trazê-las
cá para a memória de trabalho.

- Antigamente, acreditava-se que nas memórias de longo prazo não se


guardasse nada de muito importante. Que fossem elas apenas um enorme
armazém de fatos, impressões e eventos. Só que não. Turns out que guardam
também conceitos complexos, ou “esquemas”. Organizam porções dispersas
de informação em padrões de conhecimento. São esses esquemas que nos
permitem entender conceitos e melhor trabalhar com eles.

Explico: as memórias de curto prazo são aquelas que logo somem. As memórias de trabalho
são as memórias de curto prazo de que estamos conscientes em certo momento. Estas podem
ou virar memórias de longo prazo, ou sumir de uma vez. As memórias de longo prazo não
armazenam apenas fatos ou ideais soltos. Armazenam fatos, ideias e naturalmente ligam-nos
uns aos outros, com eles formando esquemas conceituais.

- "A profundidade da nossa inteligência depende da nossa


capacidade de transferir informação da memória de trabalho para a
memória de longo prazo e de tecer com ela esquemas conceituais.”

- A memória de trabalho, porém, é limitada e tem memória curta (ba-dum-tss).


A tendência é que as informações escapem-lhe, a não ser que consigamos
renová-las pelo treinamento.

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- Com os livros, conseguimos controlar o fluxo de informações e, portanto, a
passagem de dados da memória de trabalho à memória de longo prazo. Na
internet, com centenas de torneiras escancaradas, isso já é mais difícil: “o que
transferimos é uma miscelânia de gotas de diferentes torneiras, não uma
corrente contínua, coerente, de uma única fonte”.17

Ou seja: vamos ciscando vários pratos de comida em vez de fazer uma refeição completa com
um só deles. Fazemo-lo com agilidade e eficiência, é verdade. Temos o hábito. Temos o cérebro
treinado e moldado para isso. O resultado da eficiente agilidade é a superficialidade.

- A informação que sobe até a memória de trabalho é chamada “carga


cognitiva”. E a tal carga pode muito bem ser areia demais para o
caminhãozinho da memória. Segue-se que não conseguimos reter a
informação, armazená-la em nossa memória de longo prazo e com ela
enriquecer nossos esquemas. Quando a carga cognitiva é grande demais, as
“distrações distraem mais”. Torna-se mais difícil saber o que é relevante e o
que é irrelevante. Só comemos os dados com farinha.

- “As dificuldades de desenvolver a compreensão de um assunto ou conceito


parecem ser 'fortemente determinadas pela carga da memória de trabalho',
escreve Sweller, e, quanto mais complexo o material que tentamos apreender,
maior a penalidade imposta por uma mente sobrecarregada. Há muitas fontes
possíveis de sobrecarga cognitiva, mas duas das mais importantes são,
segundo Sweller, a 'resolução de problemas externos' e a 'atenção dividida.'
Ocorre que essas são duas das características centrais da net como uma
mídia informacional. Usar a internet pode, como sugere Gary Small, exercitar
o cérebro do modo como faz um jogo de palavras cruzadas. Mas tal exercício
intensivo, quando se torna o nosso primário de pensamento, pode impedir o
pensamento e o aprendizado profundos. Tente ler um livro enquanto está
fazendo palavras cruzadas; esse é o ambiente intelectual da internet.”18

A memória de trabalho é a chave para a retenção do que se lê. E a primeiríssima condição para
facilitar o serviço da memória de trabalho é tirar-lhe das costas serviços desnecessários. Quanto
menos estímulos visuais e microdecisões houver, melhor. Não existe inteligência sem um rico
estoque de memórias de longo prazo.

Mas espera aí, que “estoque” não é uma boa palavra.

17
Geração Superficial, pág. 229
18
Geração Superficial, pág. 230

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A memória viva:

- No meio do século XX, com o surgimento de inúmeros meios de armazenagem


de informação — fitas de áudio e vídeo, calculadoras, discos de computador,
microfilmes, fotocopiadoras, etc. — guardar informação na própria cabeça foi
parecendo ser "cada vez menos essencial”.19

A ponto de alguns entusiastas dizerem que não precisávamos decorar MAIS NADA. Que a usar
a memória humana seria uma perda de tempo, já que tínhamos meios de armazenagem de
informação capazes de guardar quantidades inimagináveis de dados. O que é parcialmente
verdade. Os meios de armazenagem conseguem, realmente, guardar infinitamente mais
informações do que um indivíduo humano. Só existe um porém: a memória humana não se limita
a guardar informações. Ela as transforma.

- Existe um prazo de maturação em que as memórias de curto prazo podem


tornar-se memórias de longo prazo. Um soco na cara, por exemplo, pode
apagar várias memórias de curto prazo.

Além de não as sobrecarregarmos, é importante compreender que as memórias de curto prazo


ficam por algum tempo instáveis no cérebro. Podem perder-se.

- Duas coisas importantes: 1) repetição é consolidação; 2) consolidação implica


em “terminações sinápticas inteiramente novas”. Implica em “síntese de novas
proteínas”.

Para que as memórias de curto prazo transformem-se em memórias de longo prazo, a repetição
é indispensável. Repetir é consolidar. Porém, não é só isso: quando alguma memória é
consolidada — retida —, novas terminações sinápticas são criadas. Ocorre a síntese de novas
proteínas. Algo que antes não existia é criado. A memória de longo prazo logo integra-se às
demais e com ela a inteligência vai tecendo novos esquemas conceituais. Os novos esquemas
conceituais são, depois, aplicados à compreensão de novas ideias. Cria-se um círculo virtuoso.
Daí decorre o seguinte: 1) quanto mais rica for a sua memória, mais inteligente você será; 2) os
esquemas já criados tornam mais fácil assimilar novas informações retidas na memória de
trabalho. Quanto mais rica for sua memória de longo prazo, mais fácil será enriquecê-la ainda
mais. 3) Inversamente, quanto mais pobre for sua memória de longo prazo, mais difícil será
começar a enriquecê-la.

19
Geração Superficial, pág. 331

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- A memória humana não se resume a informações imediatamente absorvidas
e salvas na memória; são informações que continuam a ser processadas muito
tempos depois de recebidas. São memórias vivas.

- Quando memórias de longo prazo são outra vez trazidas à memória de


trabalho, formam novas terminações sinápticas. Mudam.
Além de a memória de longo prazo continuamente combinar o que nela está para criar
esquemas, sempre que algo volta à memória de trabalho — sempre que puxamos algo da
memória e o tornamos consciente — ali é mudado. Relembrar é, portanto, uma atividade
muitíssimo frutífera. Relembrar é mudar as memórias e enriquecê-las.

- “A chave para a consolidação da memória é estarmos atentos. Armazenar


memórias explícitas e, igualmente importante, fazer conexões entre elas,
exige uma forte concentração mental, amplificada por repetição ou um
intenso engajamento intelectual e emocional. Quanto mais aguçada a
atenção, mais aguçada a memória."20

Com o que fechamos o círculo: a atenção é o principal fator de consolidação das memórias. A
leitura de livros físicos subestimula os sentidos e facilita o serviço da atenção. A memória de
trabalho, livre de estar sobrecarregada por uma atenção dividida, consegue transportar mais
dados para a memória de longo prazo, que com eles criará novos esquemas e no futuro
conseguirá integrar a si mais memórias de trabalho. Com esquemas mais ricos, a memória de
trabalho consegue reter mais informações e a opressão psicológica é menor. A atenção torna-
se melhor.

Você retém melhor o que lê.

Mas ainda falta um ponto importante.

Voltemos ao início de tudo: qual foi uma das primeiras coisas que eu lhe disse
aqui? Que a língua escrita não era como a língua falada. A língua falada, natural e
espontânea, pode ser ensinada e melhorada, sim. Mas surgirá por si mesma,
ainda que não haja intervenções ou interferências. A língua escrita, não. Esta é
uma tecnologia, uma série de técnicas que visam à criação de um estado mental
antinatural. Precisam ser ensinadas, caso contrário não surgirão
espontaneamente jamais nos indivíduos.

E aí chegamos aos problemas de alfabetização — o obstáculo mais sério à


memória de trabalho, quando se trata de reter, consolidar e entender o que se lê.

20
Geração Superficial, pág. 352

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O analfabetismo funcional:

- Mortimer Adler diz21 haver quatro níveis de leitura: a Elementar (alfabetizado),


a Inspecional (tirar o máximo do texto no mínimo de tempo), a Analítica (leitura
e compreensão de textos capazes de aumentar o seu entendimento. Torná-lo
mais inteligente) e a Sintópica (articulação de várias leituras analíticas).

Na leitura elementar, faz-se a pergunta básica: O QUE DIZ A FRASE? Trata-se de decodificar os
sinais gráficos no papel. G-a-t-o quer dizer “gato”. “Gato" refere-se um felino de pequeno porte.
Aqui, apenas com palavras individuais desligadas de um contexto, já existem sérios problemas.
Por exemplo: quando passamos de palavras que designam entes concretos, inequívocos
(árvore, banana, água, José), para palavras que designam conceitos abstratos (democracia,
racismo, beleza, ofensa), já se podem interpor entre o sentido visado pelo emissor e a
compreensão do receptor inúmeras, infinitas confusões.

As palavras podem ter sentido literal ou figurado, por exemplo. O leitor de um livro mais
complicadinho pode ter o vocabulário pobre a ponto de não conseguir acompanhar duas
páginas de raciocínio, e só com as idas infinitas ao dicionário já sobrecarregar sua memória de
trabalho, antes de chegar a compreender o sentido de um parágrafo.

Porém, não se forma uma frase com palavras completamente desligadas umas das outras.
Frases constroem-se com sentidos criados a partir das relações entre palavras. Criam-se, aqui,
outros vários problemas: como a língua é elástica, quanto ao sentido pode-se usá-la de muitas
maneiras não convencionais.

O autor pode usar um estilo empolado justamente para criar um efeito irônico, por exemplo. O
humor que se cria com o exagero. Se o leitor não tiver alguma cultura literária, não conseguirá
identificar que é um exagero e lerá o texto irônico como se fosse sério.

Sintaticamente, o autor pode gostar de escrever longas orações subordinadas, em que os


complementos do sujeito estejam longe dele na frase. As funções sintáticas podem estar
invertidas. Bagunçadas. Pode haver elipses. Vírgulas opcionais. Opções puramente estilísticas.

A verdade é que a maior parte dos brasileiros encontra dificuldades com as operações mais
básicas da leitura. O que nos leva ao seguinte ponto:

- A maior parte dos brasileiros não chegou ao nível exigido pela leitura
Elementar. A leitura dos alfabetizados.

21
Em seu clássico “Como Ler Livros”.

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Segundo o INAF, há cinco níveis de letramento: existem
1) o analfabeto em sentido estrito, o sujeito incapaz de ligar as letras G-A-T-O e formar a
palavra “gato” ou reconhecê-la num texto. 2) o leitor rudimentar, 3) o leitor elementar, 4) o
leitor intermediário e 5) o leitor proficiente.

O INAF diz ser um analfabeto funcional apenas quem está nos níveis rudimentar e elementar —
coisa que é muitíssimo enganosa, como se verá mais tarde.

Mas o que é, afinal de contas, o conceito de analfabetismo funcional?

- Existem, entre o analfabeto completo e o plenamente alfabetizado, graus


diversos de compreensão da língua escrita e falada. Alguém ser “alfabetizado
funcionalmente” quer dizer alguém capaz de usar a linguagem mais ou menos
eficientemente no cotidiano. É alguém com poderes linguísticos suficientes para
guiá-lo pela vida diária com o mínimo de eficácia e desenvoltura. Isto é: para ler
bilhetes, propagandas, revistas, jornais ou artigos científicos curtos — e
compreendê-los.

- 42% das pessoas no Brasil — com margem de erro de 2% para mais ou menos
— estão no nível elementar; 23% estão no nível intermediário; 8% estão no nível
proficiente.

- Quem está no nível Rudimentar consegue ler, por exemplo, bilhetes curtos e
propagandas (como um anúncio das Casas Bahia). Isto porque é capaz apenas
de localizar informações explícitas que estejam emtextos curtos e familiares.
- O nível Elementar compreende indivíduos que conseguem localizar
informações em textos já medianos, ainda que "seja necessário realizar
pequenas inferências”. Segundo o INAF, quem está nessa categoria é capaz
de "ler e entender textos de média extensão.” Com a descrição do próximo
nível, logo se verá que isso é balela.
- O nível Intermediário consegue localizar informações em diversos tipos de
textos (ou seja: consegue apontar o dedo e dizer que “x" ou “y" é uma
informação relevante) e reconhecer figuras de linguagem, além de
conseguir fazer um resumo decente do que lê. 22 Porém, ainda tem um
trabalhão para distinguir opiniões e posicionamentos subjetivos de fatos
objetivos. Não sabe direito quando está lendo uma opinião ou algo que se
apresenta como fato.
- É apenas no nível Proficiente "que estão as pessoas cujas habilidades não
mais impõem restrições para compreender e interpretar textos em situações

22
Ora, se apenas o sujeito que está no nível intermediário consegue reconhecer figuras de linguagem
(ironia, metáforas, analogias, metonímias, etc.), como se pode dizer que alguém no nível elementar lê e
ENTENDE alguma coisa?

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usuais: leem textos de maior complexidade, analisando e relacionando suas
partes, comparam e avaliam informações e distinguem fato de opinião.”23

Ou seja: 8% da população brasileira não encontra grandes dificuldades para ENTENDER textos
comuns. Não estamos falando das grandes obras literárias da humanidade. Estamos falando de
artigos acadêmicos (bem escritos) que tenham tamanho mediano. De artigos de jornal um
pouco mais longos.

- Que algo fique muito claro: a leitura Elementar de Adler só pode ser posta em
prática perfeitamente por quem esteja no nível Proficiente. Não se confundam
pela coincidência de nomes: o nível Elementar do INAF não corresponde à
leitura Elementar de Adler. Esta pressupõe um leitor plenamente alfabetizado.
Tanto é assim que o autor deixa claro que em 1971 estimava-se que quase 75%
das crianças americanas precisassem de aulas de reforço em leitura para que
atingissem a máxima proficiência na leitura elementar.

- Segundo Adler, idealmente o Ensino Médio no mínimo deveria ensinar aos


alunos a leitura analítica — o terceiro nível de leitura. À faculdade, no mínimo
dos mínimos, caberia ensinar-lhes a leitura sintópica. O último nível. Mais à
frente, queixa-se de que era muito comum haver alunos que só atingiam o
nível da leitura sintópica depois de três, quatro anos de vida acadêmica. E
quanto ao Brasil?

- Segundo o último relatório do Inaf, “apenas um terço (34%) das pessoas que
atingem o nível superior podem ser consideradas Proficientes pela escala do
Inaf”. 24 Ou seja: 34% de todos os estudantes universitários conseguiria
aplicar a leitura Elementar sem grandes problemas.

Ufa!
Espero que agora você tenha entendido por que
logo de cara não fui abordando Adler, ensinando-
lhes técnicas avançadas de leitura e toda sorte de
paranauês — é que precisamos ter os dois pés no
chão.
23
Site oficial do Instituto Paulo Montenegro: https://ipm.org.br/inaf
24
INAF BRASIL 2018, Resultados Preliminares, pág. 11

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Ter os dois pés no chão, veja lá. Não pendurar as chuteiras de uma vez. Não jogar
tudo pelos ares e desistir. Já mapeamos o terreno e sabemos quais são suas
irregularidades, armadilhas e desafios. Agora, podemos pisar com mais
segurança.

Não lhes apresento aqui nenhuma solução mágica ou grandiosa ou instantânea


para um problema tão colossal quanto o analfabetismo funcional. Na verdade,
não lhes apresento nenhuma solução em sentido estrito. O que fiz aqui foi deixá-
los a par do problema, abrindo seus olhos para que cada um de vocês possa
correr atrás do prejuízo como puder e bem entender.

Porém, eu ter dito que há poucos preparados para fazer uma leitura elementar
perfeita não significa que todas as técnicas e ensinamentos dos níveis superiores
serão inúteis. Não estamos nos Estados Unidos da década de 70. Não temos o
Mortimer Adler vivo, para pedir-lhe uma flexibilização do método e alguma
adequação às nossas circunstâncias. Nós mesmos temos de fazê-lo. Eu já fiz por
mim. E funcionou. Agora, faço por vocês.

Nesta última parte do aulão, conversaremos um pouco sobre a leitura em si.


Práticas, técnicas, o que pode realmente ajudá-lo, o que só atrapalha. O que é
balela. Será uma lista enxuta, sem lengalengas. Nela só entrou o que eu senti que
lhes seria útil.

Antes de continuarmos, deixemos três coisas muito claras:

1) Mesmo sabendo de tudo isso, você precisa ler. Ou, melhor dizendo:
justamente porque ficou sabendo de tudo isso, você precisa começar a ler.
Precisa tentar. E, depois, tentar de novo. Precisa bater cabeça. Precisa tentar
e falhar. Tentar e conseguir. Conseguir e melhorar. Ainda que aos poucos. De
grão em grão, a galinha enche a pança. Tudo o que eu escrevi aqui e disse na
aula em vídeo terá sido em vão se você não colocar para trabalhar seus dois
olhinhos e este cérebro magnífico dentro da sua cabeça.

2) Comece a ler, porém, não para criar o tal “hábito da leitura” (urgh). Comece a
ler para ter uma VIDA melhor. Para SER alguém mais forte, inteligente,
preparado, psicologicamente estável. Para tornar-se, amanhã, alguém
melhor do que era hoje.

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3) Leia, leia, leia ainda que às cegas e o quanto puder. Sim. Paralelamente,
porém, estude gramática. O estudo sistemático da gramática, desde que feito
lado a lado com leituras constantes, é utilíssimo para organizar sua
inteligência. Se você está lendo isto aqui, é porque tem acesso também ao
PDF do meu Intensivão de Português 2020. Comece por lá. Depois, continue.

Leituras constantes e o estudo sistemático da gramática já poderão ajudá-lo


MUITO.

Passemos, finalmente, às verdades sobre a leitura e técnicas que


a ela podem ser aplicadas por todos:

- Há duas formas de ajudar a memória de trabalho a transformar informações


em memórias de longo prazo: repetição e ligação emocional ou intelectual
profundas. Daí segue-se a dica número um: tente ler livros que o interessem
de alguma forma. O interesse real o ajudará a reter melhor as informações.

- Se estivermos falando de livros apenas de consulta, como aqueles que lemos


para vestibulares ou concursos, não existe escapatória: repetição, repetição,
repetição. A ideia é grudar aquela série de fatos na cabeça só pelo tempo
necessário para usá-las em provas e depois descartá-las. É plenamente
possível fazê-lo.

- Porém, um segundo passo (e que também vale para outros livros, que o
interessam) é criar resumos.
- Pode-se fazer resumos de capítulos, de subcapítulos ou até mesmo de algum
argumento que lhe pareça particularmente difícil.
- Resumos são utilíssimos. Treinam sua escrita, tornam sua inteligência mais
organizada por meio do esforço repetido para distinguir o essencial dos
periféricos e o ajudam a reter o conteúdo na memória à força de você repeti-
lo com suas próprias palavras.
- E, se tudo o mais falhar, pelo menos servem como fontes de consulta
posteriores (faço MUITO isso).

- Dividir a atenção é sabotar a memória. Ler com pressa, afobado para chegar
ao final do livro quando ainda nem o começou, é dividir sua atenção. Muitas,
muitas vezes não consegui entender o começo de algum livro pura e
simplesmente porque estava afobado. Queria saber logo. Entender logo.

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Queria acrescentar o livro à minha listinha de leituras feitas, em vez de
acrescentá-lo à minha memória e inteligência.

- Segue-se que prestar atenção ao prefácio, à folha de rosto e ao sumário é


imprescindível. Você já fica sabendo de antemão qual é o assunto do livro, de
onde ele parte e aonde quer chegar. Pode guiar-se mais facilmente com um
mapa à mão, além de conseguir aplacar um pouco da curiosidade mórbida
que lhe atrapalha a inteligência.

- Adler recomenda que “ao encarar um livro difícil pela primeira vez, leia-o sem
parar; isto é, leia-o sem se deter nos trechos mais espinhosos e ficar refletindo
sobre os pontos que ainda lhe continuam incompreensíveis”.
- A regra, talvez à primeira vista contraintuitiva, baseia-se em algo muito
simples: é mais fácil você entender as partes difíceis numa segunda leitura, e
não numa primeira leitura truncada e infinitamente demorada. Além disso,
“entender metade ou menos do livro é melhor do que não entender nada”.
- Concordo com Adler, até certo ponto: algumas leituras são difíceis a ponto de
tornarem-se quase completamente impenetráveis ao leitor. Muita energia e
tempo gastos para pouquíssimo ou nenhum retorno. Além do mais, a
experiência de passar dias lendo e não entendendo bulhufas pode ser
traumatizante para um leitor inexperiente. Recomendo que cada um analise
sua própria situação e faça suas escolhas.

- “Ler mais rápido” é um fetiche imbecil. O que importa é saber aplicar


velocidades diferentes a tipos de leitura diferentes (a leitura inspecional, por
exemplo, pressupõe falta de tempo) e a livros diferentes. É bobagem ler rápido
um livro que mereça leitura devagar e ler devagar um livro que só mereça uma
passada de olhos.

- Faça anotações. Sempre. Copie trechos memoráveis e os guarde à parte.


Escreva nas margens dos livros resumos de páginas importantes, para que
numa pesquisa futura você tenha resumos do livro à mão.
- Sublinhe os trechos que lhe pareçam principais. Trace linhas verticais ao lado
de trechos já sublinhados para destacá-los duplamente. Asteriscos também
servem.
- Se um argumento for longo demais, ponha números em cada uma de suas
partes nas margens do livro.

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- Faça sempre perguntas ao livro. Por que o autor afirmou x? É sua
opinião? É um fato? Quais razões apresenta para afirmá-lo? Mantenha-se
aberto a mudanças de opinião ao mesmo tempo em que lhe faz perguntas
constantes.

- Para o leitor iniciante, tudo é mais difícil. Seu vocabulário é pobre? A solução
não é ler dicionários. É ler livros que o interessem mininamente. Se se tratar de
um autor mais antigo, com o vocabulário já mais arcaico e distante, não creio
ser boa ideia forçar demais a barra. O dicionário tem de estar à mão? Sempre.
Mas é importante passar mais tempo com o livro do que com o dicionário.
Largar de mão um livro aqui e ali não é crime.

- Se você tiver problemas para concentrar-se, por um tempo leia apenas


livros físicos. É importantíssimo fazer um detox na sua percepção,
acostumadíssima desde sempre a uma enxurrada colorida e psicodélica de
estímulos.
- Desligue celulares, tablets e notebooks quando estiver lendo. As tentações
serão fortes demais.
- Lembre-se do seguinte: sempre que você consegue chegar ao estado de
atenção e se distrai, para voltar àquele mesmo estado terá de gastar o dobro
de energia.
- Colocar dois dedos ou uma régua sob a linha que se lê e movê-los junto com
o olhar é ótimo para prender a atenção.

- Em relação à falta de atenção: pode ser causada por simples cansaço físico
ou fome. Pode ser causada por falta de prática. Por distrações externas. Pela
neuroplasticidade de um cérebro que terá de ser remoldado à força. Tenha
paciência consigo mesmo.

- Saber gramática não é garantia de ler bem. Já vi, com estes meus dois olhos,
um sujeito responsável por uma gramática de mais de 600 páginas ser incapaz
de compreender uma figura de linguagem simples. Só a gramática não basta.

- Esteja sempre aberto. Não se feche em suas opiniões. Faça sempre um


esforço para imaginar que o autor pode estar certo, ainda que você não goste
dele. Ainda que ele seja do outro time. Da outra ideologia. Do outro lado
político.

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