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Gabriel Perissé
A escola, ao que parece, sem se preocupar com a reconstrução de significados, parou na fase de
leitura em que o indivíduo apenas decodifica textos. A leitura não é, pois, vista como um processo
ativo, mas meramente decodificador, em que a criança ao descobrir uma determinada palavra já faz
sua ―leitura‖, muitas vezes, sem ao menos saber o que significa a palavra ―descoberta‖.
Procurar significados é o que inicialmente e automaticamente fazemos ao ler um texto. Mas, não é
só a busca de significados que caracteriza a leitura. Faz-se necessário que, após essa busca, o
leitor reflita sobre o texto formulando seu novo conhecimento de acordo com o conhecimento prévio
e seus objetivos de leitura. É a partir dessa reflexão que leitor e autor se encontram mediados por
um texto, construindo significados a partir da materialização da linguagem. Após a assimilação do
texto e reflexão sobre ele, o leitor finalmente elabora sua opinião, promovendo, assim, uma
verdadeira transformação em sua mente, que passa a não ser mais a mesma após essa leitura, a
que chamamos proficiente ou interativa.
Segundo Kato (1990:25-6), ―na leitura proficiente, as palavras são lidas não letra por letra ou sílaba
por sílaba, mas como um todo não analisado, isto é, por reconhecimento instantâneo e não por
processo analítico-sintético (...) da mesma forma que identificamos um objeto através de sua
configuração geral, podemos reconhecer uma palavra através do todo (seu contorno, extensão, etc.)
sem uma análise de suas partes‖. Então, podemos afirmar que o leitor poderá ter velocidade e
precisão de leitura naquelas palavras em que conhece sua grafia e sentido, em seu poder de
predizer e confirmar hipóteses e em sua capacidade de raciocínio inferencial (que lhe permitirá
antecipar sentenças ainda não conhecidas).
ANÁLISE - Etapa da leitura em que estabelecemos relações entre as palavras e seus significados
implícitos e explícitos.
REFLEXÃO - Etapa da leitura em que as relações analisadas começam a ser comparadas a fatos
reais.
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TRANSFORMAÇÃO - Etapa da leitura em que o leitor proficiente elabora sua própria opinião a
respeito do texto, estabelecendo relações críticas.
NÍVEIS DE LEITURA
NÍVEL LITERAL - Questionamentos que devem ser respondidos com as palavras do texto.
NÍVEL INTERPRETATIVO - Questionamentos que devem ser respondidos a partir das entrelinhas
do texto.
NÍVEL CRÍTICO - Questionamentos que devem ser respondidos através da extrapolação do texto
para a realidade.
Dependendo dos objetivos que o leitor tenha para fazer sua leitura irá adotar uma postura
específica:
LEITURA FRUIÇÃO – é ler por ler, gratuitamente, por deleite, por prazer. Sem,
necessariamente, ter um foco cognitivo. Formando hábitos de leitura. Ex.: romances,
contos, poesias.
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ATIVIDADE DE REVISÃO EM LEITURA E ESCRITA
O PULO DO GATO
O grande perigo do jornalista que começa é o de cair na presunção sociológica. É claro que,
tratando da sociedade, o jornalismo é também um pouco de sociologia – mas a sociologia
deve ir para o lugar próprio, os artigos elaborados com mais tempo, os editoriais e tópicos e,
bem digerida em um texto fluido, a reportagem.
Jornalismo é razão e emoção. O texto apenas racional é frio. E só comunica aos que se
encontrem diretamente interessados no assunto. O texto deve saber dosar emoção e razão,
e é nesse equilíbrio que está o chamado ―pulo do gato‖. Muitos jornalistas acreditam que o
adjetivo emociona. Enganam-se. Quanto mais despida uma frase, mais cortante o seu
efeito.
―E amolou o machado, preparou um toco para servir de cepo, chamou o menino, amarrou-
lhe as mãos, fez-lhe um sinal para que ficasse calado, e rachou seu corpo em sete pedaços.
O menino P., de cinco anos, não era seu filho e F. descobrira isso minutos antes, quando
discutia com a mulher.‖ Leads como esse são sempre possíveis na reportagem de polícia:
não necessitam de adjetivos. As tragédias, como os cantores famosos, dispensam
apresentações.
1.1.) Esse texto apresenta intertextualidade. Você sabe o que é? Se sabe, mostre em trecho
ela aparece.
1.3.) O que o autor quis dizer com a expressão: presunção sociológica? Explique.
1.5.) O que o autor quis dizer com a frase: Quanto mais despida uma frase, mais
cortante o seu efeito.? Explique.
1.7.) Qual a intenção do autor ao concluir o texto com a frase: As tragédias, como os
cantores famosos, dispensam apresentações. Explique.
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ATIVIDADE DE REVISÃO 2
1) Nosso primeiro conteúdo do semestre é Leitura Proficiente, com base nos conhecimentos
adquiridos sobre esse conteúdo, responda:
b) Quais são as quatro etapas da Leitura Proficiente? Tente explicar como se processa cada
uma delas.
c) Você considera que a Leitura Proficiente pode ajudá-lo de maneira efetiva em sua carreira
profissional? Como? Por quê?
d) Dentre as quatro Posturas do Leitor Ante o Texto, qual a mais rara no Brasil, levando-se em
conta nosso contexto sociocultural? Justifique sua resposta com argumentos convincentes.
f) Classifique os itens anteriores nos três Níveis de Leitura estudados e em seguida justifique
sua escolha. Obs.: leve em conta apenas as informações contidas nesta atividade.
RESPOSTAS
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COESÃO E COERÊNCIA TEXTUAL – unir ideias e evitar redundâncias
Coesão e coerência não são questões exploradas satisfatoriamente, nem mesmo nas
aulas de língua portuguesa. É comum ouvir referências muito vagas à coesão e à coerência,
que constituem um terreno vago, para onde vamos jogando tudo o que não sabemos explicar
bem. Diante daquele texto meio ruim, não muito bem formulado, não muito claro, recorremos
a uma área geral, sem contornos, onde cabe tudo e tudo se acomoda. E, aí, dizemos: falta
coesão; ou o texto não tem coerência.
Mas... falta coesão exatamente onde? Falta que tipo de recurso? Se um texto não tem
coesão é porque lhe está faltando o quê? A indefinição é pior ainda quando se trata de
coerência. Um texto, incoerente? Onde? Por quê?
Consideramos ―bom escritor‖ o sujeito que, ao produzir seus textos, busca por
estruturas da língua que conduzam o leitor por todo o enunciado construído, de modo que este
(o leitor) perceba as relações entre as partes do enunciado e, assim, seja capaz de decodificar
as informações veiculadas, capturar as intenções manifestas pelo escritor.
Para que isso aconteça, escrever torna-se uma tarefa de grande labor. Para que o
texto, por fim, seja uma unidade capaz de se compreender, os parágrafos que integram o
enunciado devem estar muito bem articulados, perfeitamente associados. Do mesmo modo, as
frases que compõem um parágrafo precisam aparecer bem articuladas; as palavras de uma
frase necessitam de uma disposição tal, de forma que sejam compreendidas.
É graças a essa solidariedade existente entre as partes que o texto vai apresentando
sua unidade, de modo que seja capaz de satisfazer a comunicação.
As frases de um texto precisam ser tão solidárias umas com as outras quanto o são
os fios que, entrecruzados, constituem um tecido. Numa comparação livre, quando vemos uma
fralda, por exemplo, percebemos, observando bem sua superfície, que inúmeros fios vão se
entrelaçando para que o tecido tenha sua unidade. Para que o texto tenha sua unidade, da
mesma forma que o tecido, suas linhas também precisam se entrelaçar. A noção de coesão
textual está diretamente relacionada a esses mecanismos de ligação entre as partes de um
enunciado, de modo que o texto apresente sua unidade.
O que nos permite identificar se uma sequência de frases constitui ou não um texto é
o fato de haver ou não elos entre essas frases, ligações que fazem as unidades linguísticas
apresentadas no enunciado criarem teias que associam um dado elemento do texto (um
pronome, por exemplo) a outro e/ou outros.
CONCEITO DE COERÊNCIA
As noções de coesão e coerência costumam ser abordadas pelo campo da linguística como
fatores que garantem a textualidade – aquilo que diferencia um texto de uma mera sequência
de palavras. - A distinção entre os dois conceitos não é unânime na área – há um intenso
debate sobre as interrelações que conectam esses dois termos, havendo inclusive quem
defenda se tratar de um só fator da textualidade.
Para Leonor Fávero, a coesão e a coerência textuais constituem níveis diferentes de análise.
Isso porque, segundo a autora, pode "haver um sequenciamento coesivo de fatos isolados que
não têm condição de formar um texto". Por outro lado, também pode poder haver textos
destituídos de coesão, mas cuja textualidade se dá [no âmbito] da coerência." (2003, p.11).
Observem os exemplos dados pela autora:
Exemplo 1: Maria está na cozinha. A cozinha tem as paredes com azulejos. Os azulejos são
brancos. Também o leite é branco.
Observando a construção acima, podemos concluir que "apesar de haver uma coesão
relativamente forte no encadeamento das sentenças [...], as relações de sentido não unificam
essa sequência" (2003, p.11).
Observando este outro exemplo, a autora comenta que o nome "Machado de Assis" foi
substituído algumas vezes (por ―bruxo de Cosme Velho‖, "nosso maior escritor" e "Mestre").
Assim, o leitor precisa conhecer alguns fatos da vida do escritor para compreender esta
mensagem. Essas informações não são obtidas partir do conhecimento da língua, mas, sim, da
cultura, registra a autora.
A COESÃO
"A coesão, manifestada no nível microtextual, refere-se aos modos como os componentes do
universo textual, isto é, as palavras que ouvimos ou vemos, estão ligados entre si dentro de
uma sequência" (FÁVERO, 2003, p.10).
A COERÊNCIA
"A coerência, por sua vez, manifestada em grande parte macrotextualmente, refere-se aos
modos como os componentes do universo textual, isto é, os conceitos e as relações
subjacentes ao texto de superfície, se unem numa configuração, de maneira reciprocamente
acessível e relevante.‖ (FÁVERO, 2003, p.10).
A coerência está ligada ao sentido decorrente da organização das ideias: ―a falta de coerência
em um texto é facilmente deduzida por um falante de uma língua, quando não encontra sentido
lógico entre as proposições de um enunciado oral ou escrito‖ (CEIA, 2005).
A COERÊNCIA
É verão. Não se pode falar de pinguins a essa altura do campeonato. Ele nem havia começado
ainda e já se cantava vitória. Vitória essa, aliás, muito almejada por todos os médicos que
insistiam em encontrar soluções para os problemas. Quem não os tem? Tenho uma vizinha
que adora o verão, mas não pode nem pensar em tomar sol. Já tentou de tudo, mas os
médicos não encontraram solução. Talvez, o melhor seja mesmo assistir aos jogos pela tv. E
se você prefere outro tipo de lazer, tem um programa sobre a vida dos pinguins na selva que
está imperdível.
CAMPO SEMÂNTICO
A coerência não pode ser mantida apenas pela adequada escolha de ideias e vocábulos que
compõem o texto. O texto anterior consegue manter grupos semânticos, retomando-os como
se fosse lógico o raciocínio:
A COESÃO
Quando dissemos que há ―Palavras que estabelecem vínculo entre as frases (ele referindo-se
a campeonato, repetição do vocábulo vitória, retomada do vocábulo verão, etc.)”, enfatizamos
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que há uma ligação gramatical entre as ideias do texto. Contudo, ela não foi suficiente para
estabelecer a coerência.
Mais um Exemplo
É verão e as pessoas querem aproveitá-lo, procurando as praias, que ficam lotadas de gente
bonita nessa estação. Há também gente bonita que não gosta de tomar sol, preferindo sombra
e água fresca. Mas há ainda os que conseguem unir os dois. O importante é que cada um pode
fazer aquilo que gosta.
CONCLUINDO
Pode-se dizer que a coesão de um texto se dá pela utilização de diversas estratégias para
manutenção da conexão interna entre os vários enunciados presentes. Há entre as ideias uma
progressão lógica (coerência), que se concatenam com elementos que reforçam as relações de
sentido entre elas. São os chamados elementos de coesão.
A coesão colabora com a coerência, porque os conectivos ajudam a dar o sentido à união
de duas ou mais ideias: alternância, conclusão, oposição, concessão, adição, explicação,
causa, consequência, temporalidade, finalidade, comparação, conformidade, condição. Ou
seja, a coesão é responsável pela manutenção qualitativa dos vínculos internos entre palavras,
frases, períodos, parágrafos que formulam as ideias do texto.
APONTE AS INCOERÊNCIAS
1) O verdadeiro amigo não comenta sobre o próprio sucesso quando o outro está deprimido.
Para distraí-lo, conta-lhe sobre seu prestígio profissional, conquistas amorosas e capacidade
de sair-se bem das situações. Isso, com certeza, vai melhorar o estado de espírito do infeliz.
3) Havia um menino muito magro que vendia amendoins numa esquina de uma das avenidas
de São Paulo. Ele era tão fraquinho, que mal podia carregar a cesta em que estavam os
pacotinhos de amendoim. Um dia, na esquina em que ficava, um motorista, que vinha em alta
velocidade, perdeu a direção. O carro capotou e ficou de rodas para o ar. O menino não
pensou duas vezes. Correu para o carro e tirou de lá o motorista, que era um homem
corpulento. Carregou-o até a calçada, parou um carro e levou o homem para o hospital. Assim
salvou-lhe a vida.
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4) No cinema, no teatro, não converse. Não mexa demais a cabeça, não fique aos beijos.
Cuidado com o barulho do papel de bala, do saco de pipocas. Não os jogue no chão, quando
acabar. Se o seu vizinho estiver fazendo tudo isso e incomodando, seja discreto. Peça que
interrompam a sessão e acendam as luzes a fim de inibir o transgressor.
RESPOSTAS
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COESÃO E COERÊNCIA TEXTUAL
Muitas vezes, o cuidado maior, por parte dos professores, é com a correção gramatical,
como se ela fosse a qualidade mais importante do texto. Lembramos aqui as sempre atuais
colocações de Othon M. Garcia (1973): "uma composição pode estar absolutamente correta
do ponto de vista gramatical e revelar-se absolutamente inaproveitável." Mais adiante
continua: "Quando o estudante aprende a concatenar as idéias e estabelecer suas relações
de dependência, expondo seu pensamento de modo claro, coerente e objetivo, a forma
gramatical vem com um mínimo de erros que não chegam a invalidar a redação. E esse
mínimo de erros se consegue evitar com um mínimo de ‗regrinhas‘ gramaticais."
Há, nos estudos sobre coerência e coesão, uma posição comum quanto à íntima relação
entre esses dois mecanismos na produção e compreensão de textos. Vimos que a coesão
não garante a coerência, embora concorra para que esta se estabeleça. Charolles (1986) é
muito claro quando afirma que "o uso dos mecanismos coesivos tem por função facilitar a
interpretação do texto e a construção da coerência pelos usuários. No entanto, eles [os
mecanismos coesivos] podem produzir incoerências: como possuem, por convenção,
funções específicas, não podem ser usados sem respeitar tais convenções. Se isto
acontecer, isto é, se o seu uso contrariar a sua função, o resultado será a incoerência ou a
falta de sequencialidade de modo que o leitor/ouvinte não será capaz de construir a
interpretação adequada."
Finalmente, é bom lembrar que, se o professor quer que seus alunos produzam textos
coerentes e coesos, pode, em primeiro lugar, mostrar a presença desses mecanismos em
textos literários, não-literários, jornalísticos, publicitários. Desta forma, vai familiarizar seu
público com essas novas aquisições linguísticas. Nesta etapa, os alunos vão perceber que
fazem parte da língua elementos que têm a função de estabelecer relações textuais. Trata-
se de processos de sequencialização que asseguram uma ligação entre os elementos
linguísticos formadores do texto - são os chamados recursos de coesão textual ou
instrumentos de coesão.
Só então os alunos passariam a desenvolver a sua própria produção. Muitas vezes, não
basta dizer que o texto do aluno é incoerente; é preciso mostrar onde estão os problemas e,
sobretudo, como podem ser resolvidos.
* o domínio das regras que norteiam a língua - isto vai possibilitar as várias combinações
dos elementos linguísticos;
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Portanto, a coerência se estabelece numa situação comunicativa; ela é a responsável pelo
sentido que um texto deve ter quando partilhado por esses usuários, entre os quais existe
um acordo pré-estabelecido, que pressupõe limites partilhados por eles e um domínio
comum da língua.
A coerência se manifesta nas diversas camadas da organização do texto. Ela tem uma
dimensão semântica - caracteriza-se por uma interdependência semântica entre os
elementos constituintes do texto. Tem principalmente uma dimensão pragmática - é
fundamental, no estabelecimento da coerência, o nosso conhecimento de mundo, e esse
conhecimento é acumulado ao longo de nossa existência, de maneira ordenada.
Neste texto, a coerência é depreendida da seqüência ordenada dos verbos com os quais o
autor mostra o dia a dia de um empresário. Verbos como lesou, burlou, explorou, safou-se...
transmitem um julgamento de valor do autor do texto em relação à figura de um empresário.
As janelas da casa foram pintadas de azul, mas os pedreiros estão almoçando. A água da piscina
parece limpa, entretanto foi tratada com cloro. A vista que tenho da casa é muito agradável.
Finalizando, vale dizer que, embora a coesão não seja condição suficiente para que
enunciados se constituam em textos, são os elementos coesivos que dão a eles maior
legibilidade e evidenciam as relações entre seus diversos componentes. A coerência em
textos didáticos, expositivos, jornalísticos depende da utilização explícita de elementos
coesivos.
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ATIVIDADE – COESÃO E COERÊNCIA TEXTUAL E CONTEXTUAL
1) Imagine a seguinte situação: Uma senhora milionária é assaltada por dois rapazes na Av.
Presidente Vargas, Rio de Janeiro. Os assaltantes levam uma bolsa com R$1,00 e um lenço
de renda. Após o assalto, a vítima vai à polícia prestar queixa e faz um dos seguintes
relatos:
a) Estava na Av. Presidente Vargas quando dois rapazes me ameaçaram, com armas,
dizendo ser um assalto. Mas se deram bem: levaram minha bolsa com R$1,00 e meu lenço
de renda.
c) Fui vítima de um assalto na Av. Presidente Vargas. Estando armada, obriguei dois
rapazes a me darem um lenço de renda e uma bolsa com R$1,00.
1.1.) Qual dos enunciados é aparentemente mais coerente com os fatos e o contexto? Por
quê?
1.2.) Qual dos enunciados parece ser o mais absurdo (incoerente)? Por quê?
1.3.) Indique a (aparente) incoerência existente no enunciado que abre essa questão.
Justifique.
1.4.) Indique dois elos de coesão existentes no enunciado que abre essa questão. Justifique
sua resposta.
2) Preencha as lacunas com os elementos de coesão necessários, procurando não
comprometer a coerência das idéias do texto.
NOTA: Não pode repetir palavras já usadas. Em cada lacuna só podem ser utilizadas (no máximo) duas palavras.
ENTREVISTA DE TRABALHO
A pessoa que me recebeu no escritório (1) __________ gentil, (2) __________ após
alguns instantes revelou (3) __________ verdadeira personalidade. Olhando (4) __________
como se estivesse querendo (5) ___________ deixar sem graça, começou a fazer muitas
perguntas difíceis (6) __________ embaraçosas, (7) __________ consegui responder bem a
todas (8) __________. Essa experiência me deixou (9) __________ segura para conseguir
realizar (10) __________ entrevistas de trabalho.
a) Vai faltar alimento e os preços vão disparar. Uma seca desoladora assolou a região sul,
principal celeiro do país.
c) Estudei o dia inteiro. Estou cansado. Farei uma boa prova amanhã.
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LEGENDA DAS CORREÇÕES DAS PROVAS
ORT – ortografia
LG – letra ilegível
LM – letra maiúscula
PL – plural
SING - singular
VB – verbo
UI – uso inadequado
RP – repetição de palavras
RI – repetição de ideias
SS – separação de sílabas
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MATÉRIA PARA AP2
NOTA DE AULA
O PROCESSO DA COMUNICAÇÃO
• Comunicação x Informação
Assim, o dado foi emitido, mas não há nenhum indício de que foi plenamente compreendido.
Não há retorno.
Esse retorno da informação recebida – conhecido como feedback – é o principal elemento que
caracteriza e dinamiza o processo da comunicação.
• Qualquer que seja o meio usado para a comunicação, a primeira questão a ser levada
em conta é se o ato da comunicação está sendo realizado dentro dos limites de
percepção do receptor.
• Nenhuma tecnologia, por mais sofisticada que seja, garante a eficiência comunicativa.
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• Perceber é conhecer através dos cinco sentidos.
• Reações ao FEEDBACK.
• A comunicação clara resulta num encontro de ideias em vez de apenas uma troca de
palavras.
Quantas vezes nos questionamos: ―por que não conseguem compreender o que digo?‖; ―por
que fulano complica tudo?‖; por que não fizeram como orientei?‖; ―não tinha entendido dessa
forma?‖; ―será que estamos falando em línguas diferentes?‖ etc.
Dessa forma, saber conviver com as diferenças e adequar o ato comunicativo aos limites de
percepção do receptor, são imprescindíveis para uma boa comunicação.
Segundo o psicólogo americano Jesse Nirenberg, cada linha de comunicação transmite várias
mensagens simultaneamente. Uma delas é comunicada pelo sentido das palavras. É a
mensagem explícita ou denotativa que tem valor comum aos usuários da língua, pois reflete a
compreensão solidificada pelo ambiente cultural e independe de interpretações individuais.
• As intenções de uma mensagem são as mais variadas: informar, ensinar, divertir, dar
ordens, chocar, amedrontar, preocupar, advertir, mostrar, pedir, relatar, definir, etc.
• A meta é que essas intenções afetem o comportamento do receptor, mas cada pessoa
tem um julgamento peculiar e sua impressão subjetiva sobre situações e interlocutores,
assim só o feedback pode averiguar o nível de compreensão da mensagem.
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• Um dos principais empecilhos para a qualidade dos processos de trabalho nas
empresas é a falta de feedback, que garante a realimentação da comunicação e o
prosseguimento do fluxo de mensagens.
• Mas como chegar a esse nível se sequer damos chance ao emissor de saber como, de
fato, foi compreendida a mensagem?
• Se o emissor tem o retorno de que sua mensagem NÃO foi plenamente compreendida
(feedback negativo), tem a chance de refazê-la quantas vezes forem necessárias para
haja o pleno entendimento (feedback positivo).
• Não há percepção sem sensação. Perceber é conhecer através dos sentidos. Toda
informação é transmitida e recebida por meio dos 5 sentidos sensoriais. E como a
percepção é filtro, então, primeiramente, é preciso desenvolver nossa capacidade de
percepção sensorial.
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QUESTIONÁRIO
4) O que o autor quis dizer com a frase: ―o mais importante na comunicação é ouvir o que não
foi dito.‖ Por quê? (pp. 8 e 9)
5) Explique, com suas palavras, a frase: ―a comunicação clara resulta de um encontro de ideias
em vez de apenas uma troca de palavras.‖ (pp. 10 e 11)
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QUESTIONÁRIO SOBRE O CAPÍTULOS 1, 2 e 3
2) Em sua opinião, quais os principais tipos de problemas que um texto mal escrito pode
causar no ambiente empresarial?
7) Dentre as variações de linguagens discutidas na página 14, qual(is) a(s) mais indicada(s)
para o moderno texto empresarial?
8) De maneira geral, que tipo de aspectos negativos os vícios podem causar ao Texto
Empresarial? Explique.
9) O que você entendeu por Verbosidade? Dê um exemplo que não seja do livro.
10) O que você entendeu por Rebuscamento? Dê um exemplo que não seja do livro.
11) Quais as tendências que, segundo a autora, apóiam a maneira de escrever artificial e
rebuscadamente? Explique.
13) O que você entendeu por Chavão? Dê um exemplo que não seja do livro.
15) O que você entendeu por Tautologia? Dê um exemplo que não seja do livro.
16) O que você entendeu por Coloquialismo? Dê um exemplo que não seja do livro.
17) O que você entendeu por Jargão? Dê um exemplo que não seja do livro.
18) Seria correto afirmar que ideias confusas prejudicam ainda mais o texto empresarial do que
a presença de coloquialismo e tautologia? Justifique.
20) Que benefícios diretos a identificação da ideia-núcleo pode trazer ao texto empresarial?
Explique.
20
MODERNIZAÇÃO DO TEXTO EMPRESARIAL
Vimos, durante as aulas, que Comunicação Escrita das Empresas continua praticamente a
mesma de 40, 50 anos atrás, ou seja, antiquada, rebuscada, imprecisa, redundante, longa
e cansativa. Como é possível perceber no texto abaixo:
TEXTO ORIGINAL
Prezado Senhor,
Tendo em vista ter chegado ao nosso conhecimento que V.Sa. deixou de cultivar um
alqueire da lavoura de trigo financiado pelo empréstimo em tela, vimos por meio desta
solicitar que, com a máxima urgência, seja-nos ressarcida a importância correspondente
ao não-cumprimento do plano orçado.
Fulano de tal
Caro Chefe,
Queria por demais troca umas palavra com o senho mais tenho doença na família e
não poço iaí.
Num compreendi o aviso de planta trigo em tela. Num comprei tela. Acho que o senho
se engano tomém quando disse que o vizinho Osvardo não cumpriu o prano que o senho falo.
Ele disse que num tem empréstimo aí e disse que pode até leva pra cadeia, que ele num vai
pagá prazo nenhum. Notra semana vo ai.
José Brasil
Como é possível perceber, o Sr. José Brasil, cliente-receptor do Banco Rural, não conseguiu
entender a carta que recebeu. Mas, também, isso já era de se esperar, afinal, a carta do Banco
foi escrita de uma forma muito prolixa e ultrapassada.
1) Faça uma análise atenta da carta do banco e responda aos itens a seguir:
d) De acordo com o capítulo 3: ―trabalhando ideias‖, uma das sugestões para escrevermos um
bom texto é a fixação do objetivo. Qual seria o principal o objetivo pretendido pelo emissor da
carta do banco? Explique.
e) Com quais das 6 qualidades, (Cap. 1) para a elaboração do moderno texto empresarial, a
terceira técnica (Cap.3): ―escolha do vocabulário‖ tem relação de complemento?
2) Utilizei, também, essa mesma carta em outros cursos e duas propostas de ―adequação
corretiva‖ de meus alunos foram colocadas abaixo. Analise as cartas propostas como
―correção‖, leia-as atentamente procurando compará-las ao conteúdo estudado como proposta
de modernização do texto empresarial. Em seguida, proponha um texto mais modernizado.
PROPOSTA 1
Vimos por meio desta, solicitar que nos seja ressarcida a importância correspondente
ao empréstimo financiado pelo Banco em tela, tendo em vista que V. Sa. Deixou de cultivar um
alqueire da lavoura de trigo, não cumprido pelo plano orçado.
Subscrevemo-nos
Fulano de tal
PROPOSTA 2
Verificamos que o senhor fez conosco um financiamento que tinha como garantia o
cultivo de um alqueire da sua lavoura de trigo.
Fulano de Tal
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CARTA COMERCIAL 1 – MODELO ULTRAPASSADO
Senhor:
Informamos V. Sa. de que, outrossim anexo a nosso escritório de advocacia, mantemos um
Departamento de Cobranças destinado não só à Capital, como também ao Interior e demais
Estados do Brasil.
Nossas condições para cobranças amigáveis e especiais são as seguintes:
Para a Capital, 20% do valor da duplicata; Interior e demais Estados do Brasil à base de 35%;
todas as despesas correm por nossa conta. Tomamos a liberdade de destacar, em anexo,
algumas empresas que poderão atestar a eficiência de nosso escritório. Reafirmando debalde
a precípua relação de serviços entre nossas empresas.
Sem outro particular, subscrevemo-nos,
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AVISO - MODELO ULTRAPASSADO
Sirvo-me do presente instrumento para informar à Vossa Senhoria que a partir desta data estou
me desunindo do quadro de funcionários desta Empresa, não obstante fico a inteira disposição
para eventuais novos projetos. Assegurando, outrossim, a mesma excelente qualidade de
serviço, todavia, em uma empresa de autoria própria, se for de Vosso devido interesse.
mui atenciosamente,
Fulano de Tal
Contador
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Fulano de Tal
Chefe do Setor de Vendas
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ATIVIDADE DE REVISÃO AP2
1) O texto abaixo deve ser lido com atenção para que se possa responder aos itens que se
seguem:
Marcio Gonçalves
A cada dia que passa reflito sobre as dificuldades que enfrentamos na comunicação
empresarial. E a conclusão que chego não é das mais animadoras. As barreiras e ruídos que
impedem os indivíduos de manterem uma comunicação saudável estão sempre presentes.
Nas empresas, principalmente, haveria algum antídoto que pudesse eliminar os ―vírus‖ que
contaminam as pessoas durante as fases e processos de comunicação?
Acredito que é hora de parar de culpar o coitado do receptor e começar a refletir se eu, você,
nós (emissores) estamos sabendo nos fazer entender. Percebo que estamos pouco
preocupados em ser claros na transmissão da mensagem e muito exigentes em tê-la entendida
por quem nos ouve ou lê.
A tecnologia está aí e com o passar dos dias tem contribuído para que usemos poucas
palavras em nossa comunicação. Não defendo quantidade em detrimento da qualidade, mas,
sim, clareza, coesão, coerência e concisão em nossas mensagens.
Quem está na ponta do processo de comunicação (o receptor), não tem o dever de saber o
que estamos pensando e/ou de conhecer nossas experiências ou compartilhar de nosso
conhecimento prévio. Diria, também, que nem mesmo deva adivinhar o que queremos. É
importante que, sobretudo nas empresas – local que se exige uma comunicação eficaz devido
ao alto grau de responsabilidade embutido nas palavras – o emissor assuma mais
responsabilidade na transmissão das mensagens a fim de garantir um total (ou será utopia?)
entendimento do que pretende comunicar.
Se cada um de nós começar a se preocupar com a qualidade das mensagens que emite,
acredito ser o primeiro passo para a criação de um antídoto que inicie a diminuição de
constantes ―ruídos viróticos‖ que andam soltos por aí. Devemos deixar de culpar aquele que
tem o privilégio de nos ouvir.
É hora de não mais deixarmos a culpa sempre para o outro e refletirmos: será que a
mensagem foi mal interpretada ou estava mal redigida? Esse posicionamento pode ser o
primeiro passo.
Fonte: www.aberje.com.br
a) Transcreva do 1º parágrafo do texto, um trecho que possa ser utilizado para responder a
pergunta “por que é necessária a modernização dos textos empresariais brasileiros”?.
Justifique sua resposta com argumentos convincentes.
b) Podemos afirmar que os estudos sobre o Cap. 2 ―Os principais empecilhos: os vícios‖
complementam a ideia do autor em relação à frase: ―Quem está na ponta do processo de
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comunicação (o receptor), não tem o dever de saber o que estamos pensando e/ou de
conhecer nossas experiências ou compartilhar de nosso conhecimento prévio.‖ Justifique sua
resposta com argumentos convincentes.
d) Poderíamos afirmar que a frase: ―se cada um de nós começar a se preocupar com a
qualidade das mensagens que emite, acredito ser o primeiro passo‖, proposta pelo penúltimo
parágrafo do texto, seria mais fácil de ser atingida se levássemos em conta as ideias discutidas
no Cap. 2 ―Os principais empecilhos: os vícios‖? Justifique sua resposta com argumentos
convincentes.
e) Seria correto afirmar que o antídoto, citado pelo texto no penúltimo parágrafo, pode ser, de
certa forma encontrado, nos capítulos 1 e 3 estudados. Explique.
f) De acordo com os capítulos estudados, que relação podemos estabelecer entre os
conceitos: jargão e rebuscamento? Explique.
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2) Utilizando os conhecimentos discutidos durante as aulas sobre as qualidades do texto
administrativo: clareza, objetividade, concisão, impessoalidade, formato e correção gramatical.
Corrija (melhore) o texto abaixo, de maneira a torná-lo adequado ao Moderno Texto
Empresarial.
DICA – Leia o texto quantas vezes forem necessárias, até conseguir entender o objetivo
principal pretendido pelo emissor. Só assim, será possível uma “correção” adequada.
TEXTO INADEQUADO
É com imenso orgulho e satisfação que vimos por meio desta informar que a média de
produção para o último ano fiscal é maior do que ano anterior, porque aquele foi o ano em que
se instalaram as novas prensas de estamparia, automáticas e hidráulicas, portanto
aumentando os números de peças estampadas durante o período, assim como também foi o
ano que se introduziram novos métodos de economia de tempo e economia de mão-de-obra, e
que também contribuíram para uma média maior de produção. Destarte, reafirmamos nossa
posição no mercado como empresa em crescente crescimento.
Fulano de Tal
Supervisor de Produção
2.1.) Identifique:
01 chavão –
01 verbosidade –
01 tautologia –
27
ATIVIDADE DE REVISÃO PARA AP3
NA PONTA DA LÍNGUA
―A nível de assertividade, ele é um forte candidato. Há cinco anos atrás, passou por um
processo de coaching e tem expertise suficiente para assumir a vaga, apesar da postura meia
anciosa‖. Quem nunca leu ou ouviu de alguém da empresa uma frase como essa, construída
com expressões viciosas, redundantes, cheias de estrangeirismos e até com equívocos de
concordância e grafia? Decididamente, é algo que causa arrepios em muitos que conhecem as
regras gramaticais e usam a língua portuguesa de uma maneira formal. Com o novo acordo
ortográfico em vigor desde o início deste ano, alterando o modo como determinadas palavras
são escritas, será que não seria este um bom momento de se reavaliar a comunicação nas
corporações, especialmente a que se dá por meio da forma escrita da língua?
Negócios em português
―O que percebemos são erros no registro da norma culta, que deve ser dominada pelos
executivos, pois exige-se deles o conhecimento da gramática na escrita e na fala em diferentes
níveis‖, aponta Adriano Chan, professor de língua portuguesa e fundador do Laboratório de
Redação Magritte. Ele acredita que, embora o uso correto da língua seja pré-requisito para a
conquista de posições profissionais de destaque, as novas gerações parecem não se
preocupar tanto com o assunto. ―A língua ainda é um instrumento de poder. Quem percebe
isso de imediato tem mais chances de crescer no mercado‖, completa. Contrariando o
posicionamento da maioria, o diretor de Operações da empresa de TI MSTech, Daniel Igarashi,
tem uma visão mais acertada sobre a importância de uma comunicação eficiente para os
negócios. ―Cerca de 65% do faturamento anual da MSTech vem do segmento de educação.
Fazer um uso correto da gramática e das palavras é essencial para que haja empatia entre
cliente e fornecedor‖, diz ele.
Daniel acredita que o uso adequado da língua seja imprescindível tanto em comunicações
oficiais, quanto naquelas do cotidiano. ―Isso reforça um hábito que, bem-cultivado, é um dos
poucos diferenciais que um profissional de mercado tem e que não se esconde atrás de um
diploma‖, assegura. ―Eu uso de forma simpática, sem que o rigor da língua faça da fala uma
demonstração de arrogância ou atitudes de um sujeito pedante.‖ Essa postura de Daniel
sintetiza o que se poderia chamar de um comunicador eficiente, que sabe transitar entre
diferentes segmentos sociais e contextos. O professor Chan pondera que dominar a norma
culta é tão relevante quanto adequá-la a audiências distintas. ―Não é preciso falar errado para
que um analfabeto nos entenda. Basta tomar cuidado com as escolhas das palavras que
fazemos para se adequar à realidade de quem nos ouve ou lê.‖
Com a roupa certa
O editor e diretor da Matrix Editora, Paulo Tadeu, compara o mau uso da língua a ir a
determinada festa com o traje equivocado: ―É a Bridget Jones aparecendo de coelhinha no
meio da festa com todo mundo vestido a rigor.‖ Por ser dono de uma editora, ele conta que sua
preocupação é redobrada nesse quesito, tanto em relação à sua própria redação quanto aos
livros que edita. ―Creio que todas as comunicações escritas que faço acabam formando a
imagem da minha empresa. Uma só que seja mal redigida pode colocar tudo a perder.‖ A área
de atuação de Paulo tem sido afetada diretamente pelo novo acordo ortográfico e terá um
papel fundamental na formação dos leitores e escritores que devem se adaptar às novas
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regras. Como é o caso do diretor da Sociedade Brasileira de Medicina de Seguros, Henrique
Oti Shinomata. Ele se diz a par das mudanças e as considera importantes já que simplificam
itens da língua portuguesa. ―Tento lidar da melhor forma, mas ainda escrevo ideia com acento
agudo e coloco acento circunflexo em voo. Vou melhorar‖, promete o médico.
Apesar de estar acostumado ao vocabulário do setor de saúde e corporativo, no qual
―sustentabilidade‖, ―assertividade‖ e ―alinhamento‖ são palavras rotineiras, Henrique critica seu
uso demasiado e sem função. ―Essas palavras, quando faladas sem um conteúdo de
credibilidade, nos remetem ao 'blá-blá-blá empresarial', porém, quando utilizadas no momento
certo, têm o seu valor linguístico.‖ Da mesma forma, palavras de língua estrangeira permeiam o
cotidiano e se inserem naturalmente no português, não podendo ser vistas como intrusas,
segundo o professor Chan. ―Os manuais tradicionais condenam o uso de estrangeirismos.
Entretanto, com a modernidade, ficou impossível não utilizar palavras de outros idiomas. Para
fazer referência ao 'mouse', devo dizer 'rato'? Os radicalismos nunca são bons.‖
Para um bom entendedor
As regras da língua devem ser consideradas artifícios para se manter uma clareza na
comunicação, seja por meio de textos ou de discursos. Para o professor Chan, elas não são
uma mera convenção gramatical e sim instrumentos para otimizar o entendimento das
mensagens. Ele explica que, na língua, há vários registros possíveis, como os da norma culta
ou da coloquial — todos estão corretos dentro de seus respectivos contextos. E ressalta que,
para a formação de um bom comunicador, ler é imprescindível. ―A leitura é a pedra angular do
conhecimento linguístico porque ela estabelece modelos a serem seguidos na fala e na escrita.
É preciso mais que conhecimento gramatical. É necessário precisão e sensibilidade.‖
2) O que o autor quis explicar quando usou o exemplo da ―roupa certa‖ em relação ao uso das
linguagens? Explique.
3) Você concorda com a frase: ―A língua ainda é um instrumento de poder. Quem percebe isso
de imediato tem mais chances de crescer no mercado‖? Justifique sua resposta com
argumentos convincentes.
4) A frase a seguir pode ser empregada a qualquer tipo de empresa: ―Creio que todas as
comunicações escritas que faço acabam formando a imagem da minha empresa.‖? Por quê?
5) Poderíamos considerar a primeira frase do texto como escrita empresarial inadequada? Por
quê? Explique detalhadamente.
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10) Utilizando os conhecimentos discutidos durante os seminários, sobre as qualidades do
texto administrativo, corrija (melhore) o texto abaixo, de maneira a torná-lo adequado ao
Moderno Texto Empresarial.
DICA – Leia o texto quantas vezes forem necessárias, até conseguir entender o objetivo
principal pretendido pelo emissor. Só assim, será possível uma “correção” adequada.
TEXTO INADEQUADO - LEIA COM ATENÇÃO
Temos a satisfação de levar ao conhecimento de Vossa Senhoria que, nesta data, pela
Transportadora Transnorte e, em atendimento ao seu prezado pedido nº432\99, de 18 de
setembro de 1999, demos encaminhamento pela Nota Fiscal nº167, às mercadorias
solicitadas pelo Departamento de Compras de sua conceituada empresa.
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ATIVIDADE DE REVISÃO
1) Leia o texto com atenção para em seguida responder aos itens propostos.
Na história, provavelmente uma ficção, Rui Barbosa surpreendeu um ladrão no quintal de sua
casa e lhe disse: "Oh, bucéfalo anácrono! Não o interpelo pelo valor intrínseco dos
bípedes palmípedes, mas sim pelo ato vil e sorrateiro de profanares o recôndito da
minha habitação, levando meus ovíparos à sorrelfa e à socapa. Se fazes isso por
necessidade, transijo; mas se é para zombares da minha elevada prosopopéia de
cidadão digno e honrado, dar-te-ei com minha bengala fosfórica bem no alto da tua
sinagoga, e o farei com tal ímpeto que te reduzirei à quinquagésima potência que o vulgo
denomina nada”. O ladrão, confuso, apenas perguntou: "Dotô, eu levo ou deixo os pato?"
Bom humor à parte, a narrativa ilustra muito bem o quanto os ruídos na comunicação podem
ser nocivos para empresas, entidades de classe, ONGs, governos, organismos multilaterais e
nações. Evidencia, ainda, a importância dos serviços especializados de assessoria de
imprensa e Relações Públicas, internos e/ou terceirizados, bem como a atuação dos
profissionais do setor.
Quando uma organização, pública ou privada, tem um problema real, a melhor maneira de
extirpá-lo de modo rápido e eficaz da mídia é admiti-lo publicamente, informar as providências
tomadas para resolvê-lo e restabelecer os direitos das pessoas eventualmente prejudicadas.
Ao agir assim, a empresa, órgão governamental ou entidade coloca um ponto final na questão
e sai com a imagem valorizada. Ao contrário, se tenta dissimular e se esquivar, continuará
sendo atacada na Web e alvo dos repórteres e meios de comunicação, no cumprimento de sua
importante e indispensável missão, nas nações democráticas, de elucidar os fatos que afetam
a sociedade.
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Nunca se deve esquecer algo inexorável: nesta civilização complexa e compulsivamente
geradora de informações, conhecimento e notícias, a comunicação é o ponto de referência dos
indivíduos em relação ao mundo, ao país e ao bairro em que moram, à empresa em que
trabalham e às instituições que regem sua interação com o Estado e a comunidade. Por essa
razão, os equívocos nessa área têm consequências cada vez mais graves. Afinal, quando são
muitos os ruídos comunicacionais, quem paga o pato é a sociedade, que fica tão desnorteada
quanto o ladrão da casa de Rui Barbosa.
a) Transcreva do 4º parágrafo do texto, um trecho que possa ser utilizado para responder a
pergunta proposta pelo capítulo 1 ―Estilo e linguagem do moderno texto empresarial‖:
Modernizar por quê?. Justifique sua resposta com argumentos convincentes.
d) Poderíamos dizer que o discurso feito por Rui Barbosa ao ladrão de patos pode ser
classificado como: prolixo, sofisticado e rebuscado? Justifique sua resposta com argumentos
convincentes.
e) Poderíamos afirmar que o texto falado por Rui Barbosa ao ladrão de patos é um interessante
e bem humorado exemplo de como algumas empresas ainda se comunicam atualmente?
Justifique sua resposta com argumentos convincentes.
f) Ao compararmos a fala de Rui Barbosa com o ladrão de patos ao Cap. 2 ―Os principais
empecilhos: os vícios‖ poderíamos considerá-la como: chavão, tautologia ou verbosidade.
Justifique sua resposta com argumentos convincentes.
g) Seria correto afirmar que a ideia central do texto acima nos ajuda a responder o porquê se
faz necessária a modernização dos textos administrativos? Justifique sua resposta com
argumentos convincentes.
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CONTOS DA
LITERATURA
CEARENSE
Moreira Campos
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DIZEM QUE OS CÃES VEEM COISAS
Moreira Campos
Ela chegou diáfana, transparente, no vestido branco que lhe descia até os pés calçados pelas ricas
sandálias de pluma. Ninguém lhe ouviu os passos. Sentou-se à beira da grande piscina, cruzando as
pernas longas. Chegou antiquíssima, atual e eterna, com sua cara de máscara. Moldada em gesso?
Apenas uma presença, porque pousou como uma sombra. Mas por um fragmento de tempo, um quase
nada, reinou entre todos um silêncio largo, que se estendeu pelo vasto terreno murado da mansão
ensombrada pelas árvores, dominou a enorme piscina e emudeceu as próprias crianças pajeadas pelas
babás de aventais bordados, e vejam que as crianças são indóceis.
Um presságio.
Fragmento de tempo apenas, porque logo o homem gordo, de ventre imenso, saltou dentro da piscina
com o copo de uísque na mão. Espadanou água por todos os lados, a piscina transbordou. Muitos se
molharam, outros saltaram das cadeiras de lona.
A onda de água despejou-se sobre Ela, que não se moveu: era trespassável e transparente. Floco de
névoa pronto a esvoaçar. Permaneceu parada, a cara imóvel, nenhum ricto. Apenas pareceria consultar
no pulso um relógio invisível, para marcar o tempo. O homem de ventre enorme já estava à beira da
piscina, gotejante e trôpego, para uma nova dose de uísque, os dedos graúdos catando no balde os
cubos de gelo. Mulheres seminuas, as nádegas reluzentes de sol e gotas d‘água. As rodas, as conversas,
os garçons que circulavam, as bandejas de salgadinhos.
- Por favor.
O garçom moço atendia, solícito, perdendo os olhos ávidos nos seios mal contidos, oferecidos e
inatingíveis.
- Obrigada.
O garçom mantinha a dignidade, ereto. A menina chegou e segurou a mãe pelo queixo:
A mãe não lhe dava atenção em flerte com o recente campeão de vôlei, uma estrutura de tórax (a mãe da
menina contrariava-se apenas com o tufo de pelos que ele tinha no meio do peito, quase imoral). A
menina impacientava-se:
O campeão levantou-se para apanhar-lhe o refrigerante. Em roda mais distante conversavam os homens
graves: a última medida do governo, a crise econômica.
- Vai o quê?
- À bancarrota.
- Mas vai.
- Como?
- A segunda.
Aniversário da dona da mansão, que se acompanhava ao violão com graça, aplaudida pelos que estavam
em volta. O garçom ou (maître, porque era solene) curvou-se ao seu ouvido. Ela se livrou do violão,
levantou-se e bateu palmas chamando todos para o almoço à americana, as mesas sob as árvores. Cada
um apanhou o seu prato, formaram-se as filas, o homem gentil cedeu lugar a umas nádegas rijas,
cortadas pelo maiô.
- Faz favor.
- Obrigada.
Os cães latiam e uivavam desesperadamente nos canis (e dizem que os cães veem coisas). Foi preciso
que o tratador viesse acalmá-los, embora eles rodassem sobre si mesmos e rosnassem. A distância, a
piscina quase olímpica, agora deserta, toalhas esquecidas, o vidro do bronzeador, o cinzeiro sobre a
mesinha cheio de pontas de cigarro marcadas de batom.
As filas. Alguém tangeu o gato que lutava com um pedaço de osso, Lenita fez o prato do marido, preparou
também o seu. Mordia a fatia de peru com farofa, quando se lembrou do filho:
- Cadê o Netinho?
Certa angústia na voz. Chamou o marido, gritou pela babá, que se distraía com as outras na varanda.
Olhos espantados e repentino silêncio talvez maior que qualquer outro. Refeições suspensas, uma
senhora mantinha no ar o garfo cheio. Tentavam segurar Lenita. Ela se desvencilhava:
As águas da grande piscina eram tranquilas, apenas levemente franjadas pelo vento. Boiava sobre elas
uma carteira de cigarros vazia. Mas a moça que se aproximara parecia divisar um corpo no fundo, preso à
escada. Voltaram a afastar Lenita, o marido a envolveu nos braços possantes, talvez procurando refúgio
também. O campeão de vôlei atirou-se à piscina e veio à tona sacudindo com a cabeça os cabelos
longos: trazia sobre o braço um corpo inerte, flácido, de apenas quatro anos e de cabelos louros e
gotejantes.
O médico novo, de calção, tentou respiração artificial, o boca-a-boca (os lábios de Netinho estavam
arroxeados) e levantou-se sem palavras e sem olhar para ninguém. Lenita soltou-se e agarrou-se ao filho:
Conseguiram afastá-la mais uma vez, quase desmaiou. A amiga limpava-lhe com os dedos a sobra de
farofa que se grudara ao seu rosto. Os cães de raça voltaram a latir desesperadamente, e dizem que os
cães veem coisas.
Lenita ficou para sempre com a sensação do corpo inerte e mole entre os braços. Um marca, presença,
que procurava desfazer com as mãos. Cabelos louros e gotejantes. Às vezes, ela despertava na noite:
- Acorde, acorde!
A presença também daquele instante de silêncio que pesara sobre a piscina. Um pressentimento apenas?
Precisamente o momento em que Ela chegara, transparente e invisível, e se sentara à beira da piscina,
cruzando as pernas longas, antiquíssima, atual e eterna.
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GLOSSÁRIO
Bancarrota - 1. Quebra fraudulenta. 2. Falência comercial, quebra, falência.
Diáfano - 1. Que, sendo compacto, deixa passar a claridade. 2. Transparente. 3. Límpido. 4. [Figurado] Magro.
Divisar - 1. Ver, enxergar, avistar (ao longe ou confusamente). 2. Distinguir (por sinais exteriores). 3. Distinguir claramente.
Espadanar - 1. Juncar de espadanas (ou de outras plantas). 2. Estender, espalhar (de modo que ocupe ampla superfície). 3. Jorrar.
Presságio - 1. Sinal pelo qual se ajuíza ou se conjetura do futuro. = AGOURO, AUGÚRIO 2. Indício de que algo está prestes a acontecer. 3. Pressentimento.
Ricto - (latim rictus, abertura da boca). Contração que descobre os dentes, dando à boca a aparência de riso.
Trôpego - 1. Que não tem o uso livre dos membros. 2. Que sente dificuldade em mover algum membro.
NÍVEL LITERAL – Questões cujas respostam podem ser retidas explicitamente do texto.
L-1) O que mais chamou a atenção do garçom ao servir a mãe da menina que pedia coca-cola?
NÍVEL INTERPRETATIVO – Questões cujas respostas devem ser inferidas a partir das ―entrelinhas‖ do
texto.
I-5) De que modo o narrador constrói o ambiente em que as personagens se encontram e os laços de
amizade que as une?
NÍVEL CRÍTICO – Questões cujas respostas devem ser elaboradas a partir de análises entre
conhecimento prévio, realidade e marcas textuais, desencadeando um olhar crítico acerca da
intencionalidade, da contextualização, das atitudes propostas etc.
C-7) A modernidade, de algum modo, contribui para relações humanas tão esvaziadas de humanidade?
C-9) Você já esteve numa festa semelhante, reproduzindo comportamentos semelhantes aos do conto?
C-10) Qual a mais recorrente crítica social empreendida pelo conto, fazendo-se um paralelo com a
atualidade? Justifique.
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A CARTA
Moreira Campos
Ele está vindo à Capital duas vezes por mês para prestar contas das obras da empresa. Traz
notícias, o pedido de encomenda ou carta do amigo para a noiva. Estudaram juntos no colégio e ocupam
agora o mesmo quarto na pensão. Buzina, aquele som de buzina já conhecido e esperado, em frente ao
portão da noiva do amigo. Ela dá o toque rápido aos cabelos diante do espelho, aligeira os passos,
cintura reduzida, pernas bem-feitas. Conversa com ele debruçada na porta do automóvel, protegendo o
decote na alvura da pele. A mãe dela às vezes aparece para notícias do futuro genro, já quase um filho, o
casamento marcado para dezembro. Ele desce do automóvel para a xícara de café em pé na sala. Bate o
cigarro contra a unha polida, e a mão longa (o anel de engenheiro) protege com elegância a chama do
isqueiro.
As notícias que traz do outro são quase sempre as mesmas. Ótimo de saúde. Continua a
trabalhar muito no banco. O extraordinário aos sábados. Por último, a notícia boa da promoção que teve.
Ele chega à conclusão, rindo, de que o casamento poderá ser apressado. A velha ri, e a filha também,
girando no dedo a aliança do noivado.
Ao retornar na segunda-feira pela manhã, novamente buzina em frente à casa, para notícia dela
ou carta, encomenda que tenha. Ela já o espera. Talvez inquieta, porque volta a olhar pela janela do
quarto, afastando a cortina. De passagem, ajeita na penteadeira, sem necessidade, o vaporizador de
água-de-colônia ou estala os dedos. Anda nervosa. Aborrece-se com a mãe. A velha tem mania de
mandar pacotinhos de doce para o futuro genro. Porque era aniversário dele, aquele bolo difícil e ridículo,
que o moço teve de ajeitar com muito cuidado no porta-malas, limpando depois os dedos no lenço de que
se evolava o perfume.
Zanga-se:
A mãe se aborrece também. Entende que não há abuso nenhum, se os dois são amigos, e o
moço sempre tão atencioso:
- Absurda é você!
Numa dessas viagens o amigo o acompanhou. Quando ela viu o noivo dentro do carro
surpreendeu-se:
- Ah, você?
Ele desceu com a pasta na mão. Beijou-a no rosto. Passou-lhe os braços sobre os ombros e a
estreitou. O outro tinha pressa de chegar em casa. A mãe sempre aflita, pensando em desastre.
- Tchau.
- Tchau.
Da última vez em que parou o carro ali, disse-lhe que trouxera carta do noivo. Esticou-se para
apanhá-la no porta-luvas. Ela pousou-lhe a mão no braço com uma pergunta que o desviou do propósito.
Conversava com a graça de sempre. Aquele jeito delicioso de arranjar os cabelos atrás da orelha. Ria.
Movimentava-se na calçada sob a luz do poste. Quis descansar o corpo contra o carro. Ele lhe disse que
poderia sujar o vestido por causa da poeira, e voltou à elegância do cigarro e do isqueiro. Ela indagava se
aquelas viagens não o cansavam. Dizia que não. A estrada era boa, asfaltada, e tinha como companhia
os próprios pensamentos. Ela quis saber que pensamentos eram esses.
Quando ele chegou em casa e buzinou para que a empregada abrisse o portão, lembrou-se de
que não lhe entregara a carta, nem ela a reclamara. Teve um gesto de contrariedade: bateu o punho
contra a mão. A mãe, que lhe vinha sempre ao encontro, indagou:
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- Alguma preocupação, meu filho?
OS ANÕES
Moreira Campos
O anão evitou registrar a queixa na polícia. Preferiu falar com o inspetor de chapéu grande na
avenidinha, junto da estátua. Temia que o negro, preso, voltasse depois, por vingança. O dinheiro que
levara era pouco: algumas cédulas encontradas dentro da caixa de sapatos vazia. O prejuízo maior fora o
relógio de pulso de Lourdinha, a mulher do anão, menor do que ele, de saia rodada e comprida, para
disfarçar as pernas tortas. O relógio era bom. Comprara-o a prestações, ainda quando estavam no Piauí.
Lourdinha gostava muito dele. Só tirava do braço quando ia dormir, colocando-o no prego da parede,
onde o negro o apanhara. Logo que Loudinha viu que ele estava com o relógio, quis morder a mão dele,
desesperada. Foi aí que o negro, com aquele riso cínico nos beiços e nos olhos, considerou bem
Lourdinha e disse:
Ele – o anão – e Lourdinha sentiram a gravidade maior, como dois meninos indefesos, que se
amparassem. Deram as mãos um ao outro e se mantiveram parados no canto da parede. A ideia do
negro engordava, começava a se tornar possível, no silêncio. No silêncio de tudo: da noite, do deserto da
rua, que é trecho comercial, sem vivalma. A grandeza dos braços do negro, de cabeça pelada e camisa
de meia, recendendo a suor grosso, de muitos dias, e ainda como se ele dormisse em um monte de
carvão. Tudo adquirira repentino silêncio, perto da porta, quando ele já ia sair. Repetia:
O anão não sabia se as mãos deles dois suavam. Continuavam presas uma à outra. Amparando-
se, sem palavras. Sem palavras, não. Porque ele disse, pôde dizer:
- Hem?
- Não já tirou?
- Já.
- Pois vá embora.
Ninguém, ninguém no deserto da rua. Só mesmo o rumor do automóvel que passou lá pelos
lados da Sé, o facho rápido dos faróis. O apito distante do guarda. O anão tinha até a ideia de que o
negro devia dormir no oitão da Sé, perto do tapume. Dissera-lhe:
- Vá embora, rapaz.
Moram no armazém que estava sendo demolido para a construção do edifício de muitos
andares. O dono do armazém deixou que eles de alojassem ali. Restam só as paredes do prédio na sua
sequência de portas pregadas com tábuas. O teto já foi demolido. O anão comprou um cadeado para a
porta de entrada. O negro forçou uma das outras: a tábua estava despregada. Dormem nas esteiras,
protegidos pelo telheiro da antiga sentina. O anão apanha água no bar da esquina e Lourdinha cozinha o
feijão na trempe de tijolo no meio do armazém. Abana o lume com a tampa da caixa de sapatos,
enquanto sua saia rodada seca no fio de arame. A sua saia rodada e as calças do marido, que são calças
de menino. Secam no arame, tangidas pelo vento e juntas uma da outra, como juntos eles estavam
quando a brutalidade do negro os ameaçava. Grande espada suspensa sobre as suas cabeças. Talvez
mesmo uma daquelas paredes que caísse, a viga de carnaubeira que ainda resta.
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- Tu aguenta mesmo um homem?
- Já.
O anão é de cor branca, uma barba viril e muito azulada, que ele faz em frente ao caco de
espelho em cima da caixa de querosene. Tem um ar sério, como que muito magoado pelos homens,
quando ele e Lourdinha vão pelas ruas, a multidão atrás. Ele vai sempre na frente com a bengalinha na
mão. Ela se atrasa um pouco, com sua saia rodada e o maracá. Lourdinha tem as pálpebras vermelhas e
os cílios roídos pelo tracoma. Teme os automóveis: as pernas são curtas e as chinelas de brinquedo. O
marido a espera na outra calçada, com aquele ar sério como que magoado pelos homens. Lourdinha
senta-se na soleira da porta do mercado ajeitando a saia. Tange o maracá:
Ôi pisa na fulô,
pisa na fulô...
O marido dança na calçada, mantendo as mãos nos extremos da bengalinha: tem ritmo. Fazem
alguns números de mágica aprendidos no circo. A multidão cresce em volta, e as cédulas vão sendo
postas na velha caixa de sapatos junto da parede. A voz de Lourdinha é meio fanhosa, mas o maracá é
firme:
Ôi pisa na fulô,
pisa na fulô...
É o que eles sabem fazer. Recolhem-se ao cair da tarde. Ele agora fala com o inspetor de
chapéu grande na avenidinha, perto da estátua. Fala com as pernas do inspetor. Não quer propriamente
que o negro seja preso, porque teme que ele volte. Só uma ameaça, talvez. Talvez também readquirir o
relógio, que é bom. Lourdinha gosta muito dele, porque limpa o mostrador demoradamente na barra da
saia. Só quer mesmo uma advertência ao negro, com sua camisa de meia dura de sujo, e ele próprio
grande, a cabeça pelada, quando disse aquilo na porta, o riso cínico no parado do rosto:
- Já.
Só quer mesmo que o negro seja advertido, enquanto ele e Lourdinha arranjam casa lá para os
lados do Arraial Moura Brasil, já apalavrada.
FONTE: CAMPOS, Moreira. Dizem que os cães veem coisas. 3ª edição. SP: Maltese, 1995.
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O CACHORRO
Moreira Campos
Ora, o diabo do cachorro me estragou o resto da tarde! Havia bem dois meses que não nos víamos. Eu
vinha pela calçada do mercado quando ele me avistou, e foi uma festa! Atirou-se contra mim, patas
erguidas, o rabo parecia um espanador, porque ele era felpudo. Segurei-o pelas orelhas, apertando-lhe a
cabeça com ternura, como sempre fiz. Isso como que o enlouqueceu: eram os amigos que se
reencontravam. Talvez há muito tempo fizesse a si mesmo essa pergunta: ―Onde ele anda?‖ embaraçava-
se nas minhas pernas, correu até a esquina, onde levantou a perna e urinou, claro que de alegria: uma
inocência de criança. Não me deixou mais, vinha ali ao meu lado.
A dona dele é Marta. Criou-o desde pequeno, como me disse. Recebeu-o numa caixa de papelão e lhe
dava o leite na mamadeira, ela ou a preta Nicota.
Namorei Marta quase um ano. Menina tranquila, interessante, bem-feita de pernas. Nasceu para ser mãe,
tudo nela fala de maternidade, até a maneira como agarrava Japi, apertando-o nos braços e deixando que
ele lhe lambesse o rosto. Namoro de janela. Depois passamos a frequentar o banco da pracinha, porque
as diversões aqui são poucas, o próprio cinema fechou. Japi nos acompanhava. Às vezes, Marta o
prendia em casa, mas ele pulava a janela. Com o tempo, também me anunciava de longe. Evidente que
Marta sabia a hora de minha chegada: daria os últimos retoques, a gota de perfume atrás das orelhas
bem feitas, muito coladas à cabeça. Mas Japi dava o sinal: latia na porta, vinha ao meu encontro,
acompanhava-me.
Os pais de Marta aprovavam o namoro. Sou o funcionário novo do Banco. Fazia o segundo ano de Direito
na Capital, mas preferi o concurso do Banco e me designaram para o interior. Cumprimento respeitoso do
pai de Marta, um bater de cabeça. Homem calado, sério. É funcionário público: dirige o Posto Fiscal. Um
dia apertou-me a mão ali na janela. A mãe de Marta, muito simpática. O riso manso, grande ternura pela
filha única, que ela discretamente examinava para saber se se preparava bem para receber-me:
Eu já seria de dentro de casa. Em dia de folga, um domingo ou feriado, Nicota me trazia na bandeja a
fatia de bolo, com o copo de refresco e o pequeno guardanapo em bico de renda, que eu apreciava.
Requintes da mãe de Marta, dona Dadá, porque Nicota, por ela mesma, é preta velha solta dentro do
vestido, um pé na chinela. Dona Dadá é admirável em trabalhos com agulha, bordados. Verdadeiras
filigranas. O pai de Marta, Seu Alfredo, já brincava com a filha na minha presença e me indagava os
negócios do Banco.
Tive a desconfiança de que a mãe de Marta cuidava, com antecipação, de alguma peça de enxoval para
a filha. Digo isso porque um dia surpreendi as duas na loja de Seu Eurico, e ambas se vexaram. Dona
Dadá se explicava:
- Sei, sei.
Acontece que apareceu Denise, na época de férias. Estuda em colégio de freiras na Capital e é filha do
prefeito Aniceto, quase dono do município, com duas ou três fazendas por aí. Ele e o gerente do Banco
são bons amigos. Tomam café no gabinete, riem, o gerente o acompanha até a porta.
Denise é deliciosa. Em toda ela uma exuberância de interna que se libertou das freiras. A pele alva, os
cabelos negros. Os olhos fogem, enquanto fingem examinar o esmalte das unhas. Foi assim que a vi e
conversei com ela na pracinha em noite de retreta. Os encontros se repetiram. Apareço na janela de sua
casa, que casa grande na esquina, com varandas, ou passeamos pela calçada até o fim da outra rua, que
é lugar calmo e deserto, a lâmpada do poste queimada. A mãe de Denise, também muito simpática. O
prefeito sempre me atirou a mão de longe, expansivo.
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Denise me disse que não quer mais voltar para o colégio. Foi difícil afastar-me de Marta. Pouparei
detalhes. Houve a necessidade de mentiras e desculpas. Vexames. Tenho sabido que ela se nega a falar
até com as amigas. Tranca-se no quarto. Em verdade, auxiliou-me muito a sua própria dignidade. O pai
me evita. Quando me vê, torce caminho. Também faço o mesmo. E quando isso não é possível,
passamos um pelo outro de olhos no chão, eu fingindo examinar os meus sapatos.
Elvira, a amiga mais chegada de Marta, diz na pracinha que eu sou ―um canalha‖.
E agora me aparece o diabo desse cachorro! A mesma alegria de sempre. Conversa. Alegria bem maior,
imensa. Descobriu-me. Corre à minha frente, volta, gruda-se, acompanha-me os passos pela calçada que
me leva à minha pensão. Para de repente: parece estranhar tudo, como se quisesse dizer que a rua e a
casa eram outras.
- Vá embora, vá embora!
- Vá embora!
Olha-me, baixa a cabeça e, por fim, toma o seu caminho. Acabo de limpar com o lenço, que trago sempre
perfumado, o resto de lama que as suas pequenas patas deixaram nas minhas calças e entro na pensão.
Pensão medíocre, anônima, onde, já àquela hora, os seres comem em silêncio debruçados sobre os
pratos.
VOCABULÁRIO
VEXARAM – Envergonharam-se
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A CAIXA DE FÓSFOROS VAZIA
Moreira Campos
Ela deixava o quarto na ponta dos pés, com sua camisola curta, o peito batido, os cabelos, soltos.
Mergulhava sobre as redes dos filhos, que se amontoavam no corredor e na sala de jantar, desde o mais
velho ao caçula, que tinha debaixo da tipóia de folha-de-flandres a aparar a urina. Vinha na ponta dos pés
e conservava o dedo nos lábios, em sinal de silêncio:
- Psiu!...
Sentava-se na beira da rede do sobrinho (era casada com um irmão da mãe dele), cujos punhos roçavam
a beira do fogão no canto da cozinha. Dizia-lhe ao ouvido que fazia aquilo para que ele não pegasse
doença com as mulheres da vida. Apertava-lhe os ombros: ele tão moço, tão alvo! Gostava de gente
moça assim. Agradava-lhe o rosto, e os dedos ainda fediam a cebola da cozinha. Descia-lhe a mão sobre
o peito, o ventre, abria-lhe o botão da cueca encardida. Não queria que ele pegasse doença nessas casas
de mulheres à toa. Levantava os olhos para o alto da telha-vã, onde o fogão punha teias de fuligem
pendentes dos caibros:
A tia era mãe cristã, com a sua grande medalha, a mantilha e o manual, ao sair para a novena, dando
antes um toque ao cabelo aparado no espelho barato do corredor.
O moço mantinha-se calado. Todas as coisas se mantinham caladas. Só eles dois e o gato encolhido ao
lado da jarra, que tinha a boca amarrada com o pano, o cabo comprido do caneco pendente do prego.
Ela mesma tomava a iniciativa de levantar a camisola curta e sentar-se sobre o sobrinho, sempre com os
olhos no alto da telha-vã, rendada de fuligem. Às vezes, pegava-o pela mão e o levava até sua cama no
quarto, onde havia o oratório com velinha acesa no pires. O moço mergulhava também sob as tipóias,
curvando-se mais sob a rede do primo rapaz, que lhe fornecia cigarros ou lhe emprestava algum dinheiro
tirado da registradora na tabacaria. Ela o ia levando pela mão, ajeitava o travesseiro na cama, chamava-
o. Reafirmava-lhe junto ao ouvido gostar de gente moça assim, os ombros bem-feitos, alva como ele.
Apertava-lhe muito os ombros.
Os nós dos dedos da mão gorda do tio, que trabalhava até tarde na casa de jogo, chamando a pedra do
víspora, batiam na porta da frente. Ela recompunha-se, voltava a ajeitar o travesseiro e os cabelos, e mais
uma vez levava o dedo aos lábios:
- Psiu!...
O sobrinho recolhia-se a rede com sua cueca encardida. O rumor da velha chave na fechadura, apanhada
pela tia dentro do jarrinho de flores artificiais na mesa do canto. Ela se cobria sempre com o lençol por
causa do vento frio da noite. Evidentemente tornavam a discutir.
O tio vinha servi-se de água na jarra. Apanhava o caneco no prego. Bochechava a água, que atirava na
área. Rondava a rede do sobrinho. Ele o sentia perto, parado, com seu pescoço curto, enterrado, as
pequenas pernas como que debruçado sobre a sua rede, a respiração quente na nuca. Depois os passos
pequenos se reiniciavam. Vozes que mais uma vez levantavam surdas no quarto:
Corpos que se mexiam nas redes. O gato continuava enrodilhado ao lado da jarra. A urina do caçula se
despejava na bacia de folha-de-flandres no corredor. Desentendimentos muitos entre os tios. Ele ainda a
vigiava. Deixava de dia a casa de jogo e chegava repentinamente em casa, onde não a encontrava.
Detinha-se a porta da frente, mordendo o seu charuto, e era inquieto. Corria a rua com os olhos, entrava,
sentava-se na velha cadeira furada, levantava-se. Tinha suspeitas de um garçom do bar da esquina, que
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parava na janela de casa, de passagem, ou conversava com a tia sob a mungubeira do Passeio Publico,
perto do quiosque. O tio vigiava-a ainda, inquieto. Sentava-se e levantava-se, detendo-se na porta e
perscrutando a rua. Desentendimentos muitos, embora ainda se procurasse ressaltar uma dignidade
passada, certo êxito que houvera: as férias, as viagens, os brilhantes da tia, o charuto caro do tio que ele
fumava de pernas cruzadas na cadeira da antiga sala. Desentendimentos surdos dentro do quarto, que
chegavam a explodir com um murro da pequena mão do tio sobre a cômoda:
- Sinhá puta!
As crianças, a menina mais nova de calcinhas encardidas pelo pó do tijolo, ficavam sempre
surpreendidas.
- Bata na boca!
Ele, o sobrinho, continuava deitado no sofá de palhinha na sala. Sentava-se, examinava os sapatos
esbodegados, amarrados com pedaços de cordão. Procurava um cigarro no bolso. Pedia-o ao primo mais
velho, que tinha quase a sua idade.
Também pedia dinheiro ao tio na casa de jogo. O tio mordia a ponta do charuto barato, olho cerrado por
causa da irritação da fumaça. Tossia, muito vermelho, afogado no pescoço. Abria a gaveta do apurado na
venda diária do jogo de bicho. Os dedos curtos e cabeludos catavam a cédula dentro da gaveta.
O tio tivera talvez dificuldade de chegar ao assunto. Começava por entender que os filhos e a religião
poderiam construir um freio para as mulheres em geral. Esta sempre fora a sua esperança. Mantinha-se
com as suas pequenas pernas abertas na soleira da porta na sua casa de jogo:
- Não.
Demorou o silêncio.
- Meu Deus!
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A VISITA AO FILHO
Moreira Campos
Ele quer visitar o filho e os netos. Principalmente o filho. Conversar com ele. Ou será que o filho
o visitou recentemente? Sim, sim. Tomaram café juntos, o filho lhe trouxe o vidro de remédio. De repente
lembra-se das coisas com muita nitidez, sobretudo das mais antigas, as do tempo de criança. Ri sozinho
e bate palmas. Lembra-se da telha que se despregou do beiral e lhe feriu a testa, quando tinha cinco
anos. Mostra a cicatriz no couro cabeludo, porque quando a pessoa crescia, a marca também se
deslocava, ia andando. A dele estava quase no meio da cabeça:
- Aqui.
Funcionam as áreas lúcidas, e ele tem a consciência de que não deve sair de casa. É o que o
filho lhe recomenda sempre, quando o visita:
Bate com a cabeça, compreendendo. Obedece ao filho, apesar de o portão com cadeado nem
sempre permanecer fechado. Perambula pelo pequeno jardim. Examina as papoulas, diverte-se com o
beija-flor, que vibra no ar e partiu como uma flecha. Ri. Às vezes vai à bodega da esquina comprar
cigarros. Já não se lembra mais da marca do cigarro, mas o bodegueiro sabe, e manda depois receber o
dinheiro de D. Laurinda, mulher dele. A negra Romana deixa a pia da cozinha e vai à procura dele na
bodega, enxugando as mãos na saia e aborrecida. Chega a ralhar:
- Pra casa!
Negra sem-vergonha e mandona, que ele mesmo já comera dentro de casa, quando mais moço.
Agora querendo dar ordem, comandar. A mulher, que é gorda, os óculos grossos como fundo de garrafa,
as contas do terço balbuciadas diante do oratório, também o vigia, paciente. Mas ele está sempre pelo
jardim ou conversa com alguém que passa pelo portão. Pelo basculante da janela D. Laurinda o viu, em
plena luz do dia, mijando dentro do jarro de samambaia no jardim:
- Nonato!
Assustou-se, encabulado.
À noite, vai à rede dela. Está descomposta, a camisola suspensa. Escorrega-lhe a mão pela
velha coxa. A mulher desperta estremunhada:
Levanta-se, espreguiça-se muito, faz luz e prepara-lhe a dose de calmante mais branda:
Não sair de casa. É recomendação do filho, a quem ele obedece muito. Mas quer visitá-lo,
também ver os netos. Quando a mulher saiu para a missa, ele examinou em volta. A negra Romana na
cozinha, o cacarejo da galinha no quintal, a voz no rádio de pilhas em cima da geladeira.
Saiu.
Consultou o mundo. A cidade parecia outra. Pelo menos aquele canto onde ele estava. A
avenida larga e asfaltada, os automóveis e ônibus. Conhecia bem a casa do filho. Na esquina, de cor
amarela, a trepadeira sobre o arco de ferro do portão. Sabia muito bem. Ficou na parada de ônibus. Subiu
com os passageiros. Houve encrenca na borboleta, porque não trazia dinheiro. Perplexidade. Um homem
daqueles só podia estar perdido no mundo. Bem parecido, ainda forte e corado, a cabeça um capulho de
algodão, de blusa de pijama e chinelas. O motorista indagou de longe, sem deixar a poltrona:
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Levou a mão ao ouvindo cabeludo:
- Hem?
Muitos risos. O ônibus demorava. Alguém se propôs a pagar-lhe a passagem, mas o motorista
recusou. O melhor era deixá-lo por ali mesmo. Talvez estivesse mais próximo de casa e alguém o
conhecesse. O próprio trocador o ajudou a descer, e ele ainda ria da calçada:
Casa de esquina, de cor amarela, a trepadeira sobre o arco de ferro do portão. Fazia anos que o
filho morava ali. Andou. Aligeirava os passos e abria muito os braços ao atravessar a rua: funcionavam os
momentos de lucidez. Seria aquela a casa? Parecida. Consultava. Voltou a procurar no bolso do pijama a
carteira de cigarros, que não encontrava. Indagou do menino quem era que morava na casa da esquina.
A cidade estava diferente. Esta outra praça enorme, o edifício em construção, os andaimes. E se
o filho se tivesse mudado, sem avisá-lo? Não, não. A casa seria sempre a mesma: a trepadeira, que
estalava as vagens atirando as sementes longe. Como era o nome da rua? Canuto...Canuto... A memória
não completava. Caiu a noite, ele perambulava e se detinha nas pontas de calçava, sempre a consultar a
frente das casas e as criaturas. Sentiu sede e bateu palmas numa porta. A empregada o serviu com ar
curioso.
- Marcondes Pereira.
- Como?
- Marcondes Pereira.
- Não senhor.
O ar continuava manso e indagador. Por que, por que todos ralhavam? O próprio pessoal do
posto achava de se meter na vida dele. Tivesse cuidado, não saísse de casa, podia morrer. Ora, bolas,
durma com uma destas! O filho, ele e o chofer dirigiram-se ao táxi. O chofer, curioso, achava estranho
que ele já estivesse naquele processo de esquecimento:
- Mas acontece.
O BANHO
Moreira Campos
Chegou tarde da noite porque o homem tinha pressa, queria as novas instalações da loja para o
Natal. Ainda trazia nas mãos e nos pés a aspereza da cal. Grudavam-se nos pelos dos braços caroços de
argamassa, que os dedos catavam; restavam nos cabelos da cabeça, insistiam, incômodos, nos cós das
calças. Bateu na porta de casa, os olhos esquecidos no gato, que se encolhia no canto da parede:
- Raimunda... Raimunda.
A mulher se levantou envolvida no lençol, os pés metidos nas grandes chinelas, o que lhe fazia
as pernas ainda mais finas. Ele curvou sob a sucessão de redes dos meninos. Tateou a caixa de fósforos
no bolso da camisa e acendeu a lamparina sobre o fogão: os meninos mais próximos estremeceram nas
tipoias. Examinou a sobra de cachaça na garrafa, bebeu-a no próprio gargalo, apanhou o pedaço de
sabão na lata e voltou a sair para o banho no grande tanque de cimento do cemitério. Fechou a porta e
guardou a chave na telha deslocada do beiral. Na rua de areia, estreita, a lua punha um silêncio de luz
que cancelava a tristeza da lâmpada no poste da esquina. Só o silêncio, os cachorros magros que
farejavam as latas de lixo, ou o salto do gato para cima do muro do cemitério, de espinhaço arrepiado. O
muro corria branco e alto ao comprido da rua a dois passos das calçadas. Quando apareceram aquelas
histórias de violação de túmulos, em que o violador parecia ter preferência por velhas, a administração
pusera vigias. Vicente e Norato faziam a ronda, trilando os apitos e chupando os cigarros no escuro.
Passavam um pelo outro e detinham-se para o dedo de prosa, os cassetetes nas mãos. Mas tudo isso
agora passara. Havia apenas a lua, o silêncio, a brancura longa do muro, os cachorros magros, farejando
latas. Ele saltou o muro bem mais adiante, perto do galpão de zinco, no ponto onde já havia alguns tijolos
deslocados e onde se deitava a copa larga da velha acácia. Evitava pisar por cima dos túmulos ou das
covas. Agachou-se um pouco até alcançar a proteção do túmulo maior e antigo, porque a lua saíra dentre
as nuvens e em frente se amontoavam os casebres do morro. Havia dois tanques: o do segundo plano e
o do terceiro plano. Preferia este, mais perto, em chão quase limpo, resguardado pela casa-de-força,
onde os homens recolhiam também as ferramentas. Quando estava sem tarefa, ele próprio pegava ali
dentro um biscate, auxiliando mestre Félix na construção de túmulos, como da última vez em que se
caprichou no mausoléu de mármore preto de desembargador Aquino. De dia os tanques tinham muita
vida: as mulheres se reuniam em volta deles para a aguação dos canteiros, os ajudantes de pedreiro
vinham apanhar água nas latas. Ele se desnudou a um canto. Ao locomover-se, vedava sempre o sexo
com as mãos. Era como se estivesse em casa, sem temores. Se por vezes atentava para o voo do
bacurau, que se desprendia do beiral da capela para o galho oscilante do cipreste, fazia-o por suspeita de
ladrão. Alguns já haviam sido pegos dentro do cemitério: pulavam o muro perto do trilho de ferro para
roubar cristos e cruzes de bronze, que vendiam na fundição.
Os dedos tornaram a experimentar a frieza da água. O corpo se encaroçou todo, e ele se cobriu
com os braços. Recolheu folhas amarelecidas que boiavam no tanque e benzeu-se, antes do mergulho
demorado e compensador. A água se derramou, correu pela calçada de cimento, empapando o chão e
dando viço à grama. Deitou-se de costas, boiando, e a lua deixava na água e na parede branca da casa-
de-força o rendado do cipreste vizinho. Vinham do morro agora o som de um violão e o retalho de voz
sem sentido. O rumor do automóvel que passava no calçamento da rua em frente. Ficou em pé no meio
do tanque, a água abaixo das virilhas: hauria a noite. Assoou-se com os dedos, atirando longe o catarro.
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Lembrou-se de comprar mais meia garrafa de cachaça no bar do Mundico. Insistia a contrariedade de ter
colocado erradamente os mosaicos no serviço da loja, depois de todo o trabalho feito. O homem queria a
loja pronta para o Natal: era zangado, vermelho. Achava de descompor, para depois ficar tirando
brincadeira como quem quer se desculpar: -―Hem, cabra safado?‖
- Diabo!
Nadou de cachorrinho em torno do tanque, boiava, espiava a lua. Saltou fora. Deu volta ao cano
da torneira de suprimento para o banho de ducha na calçada, já ensaboado, porque dentro do tanque
poderia deixar vestígios. A pancada de água era enérgica nas costas, no peito, mais uma vez olhando
para o alto. Reconstruiu a posição da torneira. O filete de água com espuma de sabão ainda corria pelo
rego da grama. Tornou a assoar-se. Meteu as calças, a camisa, que se colou ao corpo. Ajeitou no cós a
bainha da faca. Valeu-se do caco de pente, apanhou o pedaço de sabão e voltou a haurir a noite: os
brônquios desentupidos.
Pelo lado de dentro do cemitério firmava o pé na borda de uma velha sepultura colada à parede.
Procurou a chave na telha do beiral. Tornou a mergulhar sob tipoias: a chama do pavio grosso da
lamparina sobre o fogão movimentava as sombras. Armou a sua rede na sala.
O menino mais velho mexeu-se na rede. A voz de Raimunda se apertava pela porta meio
fechada do quarto:
Voltou à cozinha. Encontrou a panela, apanhou a velha lata de manteiga com farinha no canto do
fogão, onde corriam baratas. Serviu-se. Procurou a quartinha, com o copo de alumínio no gargalo. A
carteira de cigarros estava meio úmida no bolso da camisa. Abriu a porta da frente e sentou-se na soleira
para aproveitar um pouco mais a noite. A lua continuava a fazer brancas as coisas. O irmão de Mundico
só agora se recolhia ao bar da esquina: dormia com a rede atravessada na sala, junto ao balcão. Os
mesmos cachorros magros, que farejavam latas de lixo. Do lado do mar veio um vento encanado e bom,
que ele recebeu no peito. Afastou outra vez a lembrança dos mosaicos. Ainda um caroço de argamassa
no cós das calças. Consumia-se no cigarro. Cuspiu no chão, entre as pernas, e o velho relógio da estrada
de ferro bateu meia-noite.
GLOSSÁRIO
TIPOIA – Rede.
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O PEREGRINO
Moreira Campos
Chão rude, áspero, mais de pedregulhos. Um que outro bode ou cabra nas escarpas. O vento e os
redemoinhos de folhas secas. Sobre os lajedos, ao meio-dia, modorravam lagartos. Os casebres em
distância de léguas. Seres em farrapos, as calças dos homens em tiras dos joelhos para baixo, olho da
enxada ao ombro. As mulheres mal podendo apresentar-se: os restos de roupa remendados não cobriam
bem as vergonhas. Esse o pudor com que elas se entremostravam, escondidas no umbral da porta para
servir a caneca d'água, moringa na mão, olhos em terra. Nesse mundo Belarmino lavrava o roçado onde
possível: o veio d'água, o poço barrento, que os músculos rijos aprofundavam no verão maior. Trabalhava
o roçado em companhia do filho, até o dia em que a cobra, em mudança de pele, cega, muito veneno nas
presas, picou o rapaz perto do buraco do antigo formigueiro sob a oiticica, única mancha
permanentemente verde naquele mundo de cinzas.
O garrote de tira de pano no tornozelo, onde o beiço da pele já crescia duro e roxo. A vista empanada,
quase sem luz, o delírio no fundo da tipóia:
- Água.
O ferro em brasa, que a própria mulher do filho trouxe da trempe de tijolos na cozinha. O gemido,
contorções do corpo. A pele de fumo voltou a cobrir a ferida. Morreu três horas depois. Longe os vizinhos.
Légua e meia o mais próximo. Belarmino teve de ir até lá (o cachorro enrolava-se no chão sob a tipóia do
morto). Trouxe outros seres em molambos e grunhidos. E a marcha fúnebre - tipóia oscilante presa à
estaca de sabiá - se fez em direção ao distante arruado, onde havia a capela e o telheiro abatido do
mercado.
No mais, a solidão da noite e dos seres. A viúva menina, sem lágrimas. Duro mundo, carente de
umidades. Muitas lições de renúncia. Tão trabalhados todos como a escarpa fendida e crestada pelo
tempo, por onde subiam bodes e cabras.
- Ahn?
- Ô.
Eram as palavras, na noite que se comprimia, se fechava, vinda dos horizontes, da ramaria seca, de onde
voavam bacuraus. Da folhagem do imbuzeiro chegava o rasgo da coruja, sem que o mau agouro
espantasse mais. Apenas o cachorro erguia as orelhas, consultava o imbuzeiro e latia, insistente.
- Te cala, bicho!
O menino chorava no berço de varas. A viúva-menina enfadava-se. Erguia-se, limpava com a mão o cisco
ligado aos molambos do vestido (a nudez moça e magra contra a chama da trempe na cozinha ou à luz
do dia) e servia o mingau de farinha ao filho.
Continuou a levar ao roçado o prato de comida ao sogro, naquele tamanho meio-dia, a colher de latão de
través no amarrado do pano. O cachorro a acompanhava, desviando-se pelas veredas: o faro de um que
outro preá, mais presente, em pulsações de narinas, no cair da tarde. Belarmino fincava a enxada no
barro. Voltava a correr o indicador na testa para livrar-se do suor. Cuspia cuspo grosso. Deslocava-se do
canto da boca e punha na pedra a masca de fumo. Sentava-se, benzia-se e iniciava o almoço.
Palavras poucas. Mais os pressentimentos e a compreensão das duras coisas do mundo. Tanto que ela
não se assustou quando ele um dia pousou a mão áspera, de muitos calos, um casco, sobre a sua coxa
magra. Antes deu-se, sem espanto. Um objeto. Sabia que os olhos dele já lhe varavam o vestido ralo à
luz da trempe ou do dia. Entregou-se à sombra do oitizeiro, forrando-se com o próprio pano em que
envolvia os pratos.
O cachorro, apoiado nas patas traseiras, orelhas sempre erguidas, foi a única testemunha, sem contar o
anum, que teve voo rasteiro de uma estaca para outra da cerca, ou o lagarto que correu entre folhas
secas.
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Ela pôs barriga, apareceram as olheiras. A falta de ar já não lhe permitia levar a comida ao roçado.
Belarmino valia-se da própria trempe de tijolos sob o mesmo oitizeiro.
A notícia correu de boca em boca, de légua em légua, ouvidos apurados. Uma velha benzeu-se. No nono
mês, o próprio Belarmino lhe fez o parto, panela d'água fervente na trempe da cozinha, os molambos
molhados. O umbigo do filho ficou crescido pelo corte sem arte. E assim, de grande umbigo, ele
começava a engatinhar no chão de barro, o meio irmão já firme nas pernas, o volume da barriga (não
perdia o vício de comer barro). Riam os dois, o cachorro entre eles brincando de esconder-se, tudo
menino.
Um dia, bateu à porta do casebre o Peregrino. Grande chapéu de palha, o camisolão com o cordão de
São Francisco, as alpercatas e o cajado. Nos tornozelos, grudado, o pódas longas estradas. Pregava a
Bíblia, os ensinamentos de Deus, em febre de vozeirão e chamas do inferno. As loucuras. A grande barba
negra, partida ao meio, tremia. Já trazia notícia daquela mancebia e incesto.
Baixou os olhos diante do vestido ralo da viúva-menina, que já se protegia no umbral da porta. Viu todos:
Belarmino, o menino mais crescido, o filho do incesto, que engatinhava e ria sem dentes, o grande
umbigo. Pediu pousada, que lhe foi dada na esteira de palha da sala. A noite caiu. Os mesmos seres sem
palavras. Mais, em tom de voz e luta com as trevas, as andanças do Peregrino, o mundo de chão que lhe
comera as sandálias.
- Este mundo de meu Deus! - dizia, abrangendo o todo num grande gesto.
Não teve recriminações bíblicas. Cessaram ali as chamas do pecado, das condenações eternas. Apagou-
se o fogo do inferno. Talvez tivesse tido a intuição de que a palavra de Deus era pequena ou grande
demais para compreender a necessidade e a solidão. A mão cabeluda, de unhas sujas, voltou a agradar a
cabeça dos meninos. Agradeceu a dormida e o alimento. Apoiou-se ao cajado, e as suas sandálias
voltaram a palmilhar os caminhos do mundo.
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QUEDA DE BRAÇO
Moreira Campos
Havia na família a tradição de força física. Já vinha do velho chefe do clã, viúvo e com sete filhos, cinco e
duas mulheres, todos graúdos. Contava-se do velho que, quando chegava à fazenda, depois da feira de
sábado, bêbado, com preguiça de abrir a cancela para soltar o burro no pasto, apanhava o animal pela
barriga e o atirava com sela e tudo por cima da cerca. Dizia-se ainda que mais forte que ele era o filho
caçula, Damasceno que a noiva da cidade chamava de Ceno. ―Um monstro‖, assegurava Aniceto, dono
de barraca no mercado, medindo-lhe com as mãos o tronco dos braços.
Invencível.
Damasceno chegava à casa da noiva aos sábados, cedo. Enchia a casa desde a porta com a grandeza
de seu volume, camisa aberta, o cordão de ouro pendente do pescoço com a medalha de São Francisco,
que se perdia nos pêlos densos do peito. Nicinha, a noiva, aninhava nos seus braços, miúda e querente,
sentindo na testa o roçar dos pêlos, e nas narinas o cheiro do macho que acabava de amarrar o cavalo na
argola da mungubeira, rebenque ainda preso ao pulso poderoso. Damasceno ou Ceno, como a noiva
queria, saía logo para negócios: a venda de gado e algodão. Voltava à hora do almoço com alguns irmãos
e o pai. O vozeirão do velho também enchia a casa, camisa por fora das calças de brim e amarrada ao
lado com um nó, a faca no cós, o revólver, todos eles homens de armas. Vinham sem cerimônia, embora
comessem muito, porque já formavam uma grande família, o casamento de Nicinha marcado para
novembro.
Mas a novidade agora era a quebra de braço que seria disputada entre Damasceno e Cesário, guarda-
freio da estrada de ferro. Um outro colosso, invicto desde a Capital até a última estação de trem, numa
distância de quase seiscentos quilômetros. Muita fama, ainda não encontrara bom para os seus
músculos, sendo ele próprio um assombro pelo volume, que vedava a porta do vagão, e pelo pescoço
taurino, a roda do freio um brinquedo nas suas mãos, manoplas: as rodas do vagão logo mordiam os
trilhos, tamancas.
A disputa estava marcada para quinta-feira, dia em que o trem se demorava mais na estação à espera do
que vinha da linha sul.
O comentário enchia a cidade. Dez e trinta, o horário. Muitos curiosos. Consultavam-se o relógio da
estação e os relógios de pulso. Havia apostas. Negrinho, do armazém de Seu Alexandre, trouxe foguetes.
Entre os presentes, Mimosa que morava perto da estação e tinha seios fartos, mal contidos no decote da
blusinha de bolas, onde os homens perdiam os olhos, o que desesperava Seu Zé Correia, Amante de
Mimosa e dono da loja e do salão de bilhar (era casado, pai de oito filhos e montara casa para Mimosa,
teúda e manteúda). Consultavam-se os relógios. Atraso de cinco minutos, perto da caixa d‘água, o porco
que chupava bagaço de cana foi tangido dos trilhos. As válvulas da máquina (Maria-fumaça, que esta
estória é meio antiga) silvaram. O trem deteve-se. O povo comprimia-se. Cesário, na sua imensa
estrutura, assomou no patamar do vagão. Algumas palmas, desses tipos que são sempre contrários a
tudo. Damasceno ou Ceno, como queria a noiva, agarrada ao seu braço, estava tranquila. Apenas levou a
mão enorme à boca em forma de canudo para um pigarro.
A disputa se deu no peitoril da janela larga do armazém de depósito. Não havia ali mesa que resistisse ao
embate, embora alguém tivesse sugerido o trator a um canto, coberto com o encerado. Estava presente o
próprio chefe da estação, com papéis de despacho na mão, o lápis atrás da orelha.
Não teve duração superior a cinco minutos. As mãos enormes entrelaçam-se, tenazes, nó cego, um
mondrongo de raízes. As veias do pescoço de cada um intumesciam-se, estouravam, as têmporas
latejavam, gemidos surdos. Damasceno, corado, era agora um camarão, os olhos de Cesário dilatavam-
se. Silêncio. Expectativa. O braço portentoso de Cesário cedia, vibrava, recompunha-se, foi cedendo, foi
cedendo, e tombou como um grosso galho que se parte. Houve gritos, saltos, os foguetes de Negrinho
espocaram. As apostas eram pagas.
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- É um gigante mesmo.
Cesário enxugava-se com a manga da camisa, alguém lhe trouxe um copo d‘água e outro notou que o
batedor de madeira do peitoril da janela fora deslocado. Mimosa, com seios fartos, apalpava o bíceps de
Damasceno, num transporte:
Foi aí que chegou o amante, seu Zé Correia, dono da loja e do salão de bilhar, e a segurou mais uma vez
pelo braço:
- Me solta, homem.
- Pra casa!
O pai de Nicinha já abatera o porco que ele próprio cevara no fundo do quintal, para comemorar a vitória
do futuro genro. A festa foi dada, com cerveja e cachaça. Damasceno sofrera distensão do músculo e
teve necessidade de compressas aplicadas por Nicinha, o braço metido na bacia de água morna. Diz
ainda a crônica que Cesário deixou de pegar quedas-de-braço, porque ficara herniado. Já movimentava a
roda do freio com muita cautela e temor, ajeitando a funda no ventre.
GLOSSÁRIO
ESTÓRIA - (inglês story, do latim historia, -ae, do grego historía, -as, exame, informação, pesquisa, estudo, ciência) . Narrativa de ficção, oral ou escrita, ex.:
romance, conto, novela, prosa etc. No Brasil, optou por grafar história (com ―h‖) tanto para textos verídicos como para textos ficcionais.
GUARDA-FREIO – Funcionário das linhas férreas responsável pela vigília e acondicionamento dos vagões durante as chegadas e saídas nas estaçõ es.
MARIA-FUMAÇA – Locomotiva a vapor produzida no século XIX. Um dos primeiros modelos de ―trens‖, hoje, ultrapassado.
SILVARAM – Apitaram.
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A MOSCA, A PASTA E OS SAPATOS
Moreira Campos
Quando ele sentiu que ia morrer, que tudo chegava ao fim (o médico do Instituto, depois de abri-lo, dera-
lhe seis meses de vida), chamou o filho mais velho e, naquela manhã de domingo, conversam muito na
saleta. Deu instruções ao filho, mostrando-lhe a carteira de trabalho. Deixava também um pequeno
seguro. O moço, a pedido dele, colheu a apólice na gaveta da mesinha.
- Claro.
- Sei. Sei.
O filho valia-se mais da repetição: - Sei, sei. Silêncio. Tangeu a mosca que pousava no canto da boca do
doente. A galinha cacarejou no pequeno quintal, a réstia de sol insistia na soleira.
- Me ajudou muito.
Pedia que ele e os irmãos a amparassem. Os filhos eram seis, cinco homens e uma mulher. Esta também
casada e morando em Salvador. Deveria chegar no dia seguinte pela Rodoviária. Todos, mais ou menos
orientados. Miguel, o mais velho, que ali estava, mecânico, bom mecânico. Mesmos os dois mais novos,
já trocadores de ônibus, emprego que ele próprio arranjara, quando ainda tinha saúde, embora
desconfiasse que algo o começava a minar: a inapetência, o tique de apalpar o endurecimento no
intestino, bola de carne que prendia entre os dedos graúdos. A mulher ralhava: - tira esta mão daí,
homem! Recompunha-se, preocupado.
Na saleta teimava o silêncio. O filho, mais uma vez, relanceou os olhos em volta. Tornou a tanger a
mosca. Deteve-se na velha pasta de couro esquecida sobre a mesinha. Agora murcha de papéis,
duplicatas e recibos, que o emprego do pai sempre fora de cobrador. Repousava na mesinha, o fundo
costurado com barbante. Prestara muito serviço, quase que acompanhara o pai a vida toda. Difícil separar
os dois. Uniam-se: a pasta era ele, ele era a pasta. Vê-la em cima da mesa era reconstituir o velho, o seu
grande corpo, meio curvo, os braços enormes, sobraçando-a, o paletó gasto de casimira azul-marinho, a
gravata, ou melhor, o cordão da gravata enrolado no pescoço (nunca prescindira do paletó e da gravata).
Os dois eram ele também, como a pasta. Vinha pela calçada, depois de descer do ônibus na esquina,
cumprimentava os vizinhos, benquisto. Alijava-se do peso na sala, num sopro: - Upa, o dia hoje foi
pesado! A mulher o ajudava a livrar-se do paletó.
O filho sobressaltou-se:
- Sei, sei.
Sempre o silêncio entre duas palavras. Impossível admitir que aquele corpo enorme se reduzisse tanto,
descarnado. Perdia-se nas dobras do pijama, que o próprio doente apanhava com a mão para medir a
magreza, com desgosto. As pernas secas (o luzidio do osso) repousadas na banqueta ali na
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espreguiçadeira. As unhas dos pés crescidas e curvas, o corte da operação no ventre em risca vermelha,
ainda marcada pelos pontos como um zíper.
A mulher dele veio lá de dentro. Derramou a sua gordura na cadeira ao lado. Soprou, abanando-se com o
decote:
- Muito quente.
Abanava-se. A morte, pelo tempo, pela presença permanente do doente, dando hábito à casa, já não
seria um assombro, o drama dos primeiros desesperos, e lágrimas, a angústia diante do diagnóstico. Um
convívio, embora as pessoas ainda andassem por dentro de casa nas pontas dos pés, quando ele parecia
cochilar na espriguiçadeira. Mas não cochilava, porque abria os olhos amarelos, dilatados pela doença: -
Anh! – Nada. Durma.
O filho voltou a espantar a mosca, que teimava em provar o canto da boca do doente. A mulher levantou-
se. A cozinha a chamava:
- Não, mãe.
- Sei, sei.
Nova pausa:
O filho batia com a cabeça. Novamente a mosca. O pai também dizia que queria ir descalço, talvez
apenas de meias. O par de sapatos dele praticamente novo:
- Eu me lembro.
- Sei, sei.
E o filho mais uma vez perdia os olhos na réstia de sol, que já avançara até o soalho.
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BANHO DE BICA
Moreira Campos
Na manhã nublada, ela desceu da serra com o pai, que a deixou na porta de casa e ficou de apanhá-la ali
à tardinha de volta do escritório. Antes de o automóvel partir, gritou qualquer coisa para o velho,
protegendo-se da chuva com o caderno do jornal.
Alcançou a varanda gotejante. Limpou os sapatos no capacho. A porta estava apenas encostada. Sentiu
mais uma vez a irresponsabilidade de sempre. Entrou, e surpreendeu o marido no banho de chuva na
bica da cozinha com a empregada nova. Ele em cuecas e ela com o próprio vestido do corpo, os fortes
pelos espalhados e grudados ao pano molhado (imagem que jamais esqueceu). Na mesa da cozinha, a
garrafa de uísque e o prato de linguiça com farofa. A empregada correu, também gotejante, a mão
espremendo os cabelos na nuca, numa tentativa de disfarce, e trancou-se no quarto.
- Canalha!
Grandes embaraços e vexames. O marido já se enrolara na toalha, descalço, os grandes pés brancos, os
pelos ainda colados às pernas de batatas fornidas. Levava as mãos à cabeça, pedindo calma. Apontava
para vizinhança.
Refugiara-se no quarto à parte. Começou a vestir-se para ir à fábrica de móveis do pai, onde era gerente.
A empregada já fora repedidamente despedida junto à porta trancada do quarto, e ela, a mulher, ainda
encontrou forças para telefonar ao médico e receber instruções sobre a coqueluche da filha, pois a ida
para casa dos pais dela na serra era uma tentativa de cura, e esperou o pai como haviam combinado.
A separação, que deveria ter sido de dias, já durava três meses. O marido subira até a serra. Ela não o
recebera, trancada no quarto, como não o recebeu nas vezes que se seguiram, ele insistente, queria
apenas uma palavra. Limitava-se então à conversa com os sogros na sala, quase sem alterar a voz,
aquele jeito manso dele, grande de membros, abraçado à filha, que mantinha no colo. Teimava em
justificar-se. Estava tomando o banho dele sozinho. Aproveitara a manhã de chuva. A moça, lá por conta
dela, banhava-se noutra bica, até meio distante:
- Perto do pé de sapoti.
Apenas lhe pedira que preparasse um prato de linguiça. Fora tudo. A voz mansa, olhos no chão, enrolava,
criava situações. O próprio tempo decorrido já confundia as coisas, ou as pessoas procuravam confundir-
se.
- Venha pra cá, Denise. Não quero você com gente falsa!
A menina escorregava das pernas do pai. O ar dele era de abatimento, levantando-se para atirar a ponta
de cigarro pela janela.
Reconhecia.
Metida dentro do quarto (―por favor, quando ele aparecer, não me chamem‖), a mulher voltava a agitar-se.
A ideia dos grandes pelos colados ao pano molhado, que nunca a deixara. A manha, a cavilação dele.
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Tudo planejado. Descobrira a trama toda. Ele dera folga à cozinheira velha. Uma semana de férias.
Talvez até tivesse dormindo com a outra na própria cama. Tinha cara para isso. O banho de chuva fora
fortuito. Lembra-se do prato de linguiça com farofa na mesa da cozinha.
- Cínico!
Bom, evidentemente. Toda a vizinhança o sabia. Quase um menino grande. Descia do automóvel, já de
saída da garagem, para empinar papagaio com os moleques do terreno baldio. Entusiasmava-se. Certo ar
encabulado para a própria vizinhança, o cumprimento, bater rápido de cabeça, como se pedisse
desculpas por faltas cometidas. O mal dele era o sábado ou o encontro com os amigos do tempo de
solteiro. Metia-se na farra. Ficava na mesa do bar abraçado ao violão. Amarrava-se no verso da canção,
com trinado de voz e de cordas, as unhas polidas: repeite ao menos meus cabelos brancos. Não tinha
cabelos brancos, mas curtia o verso, grudava-se a ele, e perdia os olhos no asfalto em frente ao bar, onde
se embutia quantidade de tampinhas de cervejas e de refrigerantes. Dirigia-se ao automóvel
cambaleante, custava a encontrar a chave no bolso. Derribara pela segunda vez a coluna da garagem.
Faltava à fábrica, e o pai explodia, atarefado no escritório:
- Irresponsável!
Ela, em começo de vida, aborrecia-se com o próprio sogro, evitava dirigir-lhe a palavra, silenciosa, e
acolhia o marido. Tirava-lhe os sapatos, a gravata, o paletó, com dificuldade, e ele se virava pesado na
cama, de meias.
Essas dores agora culminavam. Pensava em voltar ao seu lugar de professora no colégio, fazer um
expediente no escritório do pai. Seria uma ajuda. Projetos precários. Pressentia a impossibilidade, e
transferia tudo para a distância. Refugiava-se na filha. A mãe dela e a sogra apertavam o cerco,
insinuavam-se.
Decidiu receber o marido, ele repetiu visitas e afinal veio buscá-la. A caminhoneta da fábrica já levara a
cama da filha. Com as suas grandes mãos, aquele ar encabulado, abraçava a todos. De passagem,
voltava a tomar a filha nos braços e a beijava muito. Cercava-se de imensa delicadeza. Apressou-se em
abrir a porta do automóvel para a mulher, como um motorista solícito. Com a palma da mão experimentou
o assento do carro que lhe pareceu quente. Reclamou uma toalha ou uma almofada.
Ela se agarrava à filha, mantinha-a nos braços, com a graça das suas calcinhas de renda, a franjinha
aparada, a pequena saia rodada. Partiram. Insistia o silêncio.
- Está.
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