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Universidade de São Paulo

Departamento de Filosofia

Psicologias do fascismo
Curso completo – 2019

Prof. Vladimir Safatle


Psicologias do fascismo
Aula 1

Goebbels chega a minha fá brica. Manda os funcioná rios se alinharem em


duas filas, uma à direita, outra à esquerda. Eu devo ficar entre elas e fazer
a saudaçã o a Hitler com o braço. Levo cerca de meia hora para levantar o
braço apenas alguns milímetros. Goebbels observa meu esforço como se
assistisse a um espetá culo, sem expressar nem aprovaçã o nem desagrado.
Quando finalmente consigo erguer o braço até o fim, ele diz apenas seis
palavras “Eu nã o desejo a sua saudaçã o”. Daí vira-se e vai na direçã o da
porta de saída. Eu fico exposto daquela maneira em minha pró pria
fá brica, entre meus pró prios trabalhadores, com o braço levantado.
Fisicamente, só posso ficar assim. Entã o fixo o olhar no pé torto de
Goebbels, enquanto ele se retira, mancando. E permaneço nessa mesma
posiçã o até acordar1.

Este é o relato de um sonho de um pequeno industrial alemã o em 1933,


ano da ascensã o de Hitler à chancelaria. Um sonho no qual talvez se encontre
muito da realidade socio-econô mica que seria a regra no país a partir de entã o.
Lá estava a figura do poder que reconstitui a sociedade a partir de novas
posiçõ es nas quais todos estã o igualmente distantes do centro. O pequeno patrã o
agora está ao lado de seus empregados, obrigado a fazer a saudaçã o nazista
como todos. Mas há algo nos corpos que nã o se adestra muito bem. Os gestos sã o
feitos com esforço indescritível. Há algo nos corpos que sai de suas imagens
necessá rias. O corpo de Goebbels é manco, o do pequeno patrã o é exposto em
seu descontrole, em seu esforço para sustentar um gesto simples. “Eu nã o desejo
sua saudaçã o” é o que diz o ministro da propaganda de Hitler. Esta é uma
maneira de dizer : “seus gestos sã o vazios, eles denunciam como falta-lhes o
sedimento da identificaçã o”.
Neste sonho, toda uma dimensã o libidinal de resistência e conflito
aparece. Por mais que o sujeito procure “fazer como”, há o corpo que resiste, há o
corpo que manca. Quando ele acordar e estiver na realidade socialmente
partilhada levantando o braço para fazer a saudaçã o nazista, o sonho lhe
lembrará deste real. Ele lhe produzirá um sentimento de irrealidade que pode a
qualquer momento expo-lo em sua inverdade. O corpo lhe lembrará do cará ter
real de seu pró prio desejo e da irrealidade da vida social.

Uma abordagem psicológica de fenômenos sociais é desejável?

Começar com sonhos talvez seja uma maneira adequada de dar início a
um curso sobre o fascismo. Pois eles nos lembram nã o apenas como nossas
formaçõ es do inconsciente, nossos sintomas, angú stias, desejos e fantasias sã o
1
BERADT, Charlotte; Sonhos no Terceiro Reich, São Paulo: Três estrelas, p. 30
expressõ es de dimensõ es fundamentais da vida social, como elas expressam
formas sociais de sofrimento e enraízam estruturas de resistência. Eles nos
lembram também como a verdade das dinâ micas imanentes a fenô menos sociais,
como o fascismo, exige a mobilizaçã o de uma dimensã o propriamente
“psicoló gica”, mesmo que este termo vá , no decorrer de nosso curso, perdendo
sua distinçã o específica, até o ponto em que talvez nã o tenhamos mais certeza do
que falamos quando falamos de “psicoló gico”, até o ponto em que cheguemos à
conclusã o de que precisaremos, talvez, de abandonar tanto o termo quanto seus
opostos. Pois no interior deste trajeto todos os termos que utilizá vamos para
falar de indivíduos e sociedade se demonstrarã o atravessados por uma urgente
necessidade de modificaçã o.
Por isto, gostaria de utilizar este primeira aula para abordar duas
questõ es prévias que pedem resposta antes de iniciarmos um curso cujo título é
“Psicologias do fascismo”. A primeira é de ordem epistemoló gica e poderia ser
enunciada na forma seguinte: “Qual a razã o para se propor uma abordagem
psicoló gica do fascismo?”, até porque nã o é claro o que entendemos por
“abordagem psicoló gica” neste caso. A outra questã o é simples apenas em
aparência, a saber, o que entendemos neste contexto por “fascismo”? Estamos a
falar de um fenô meno totalitá rio historicamente situado nos anos trinta do
século passado ou de uma latência sempre presente nas formas hegemô nicas de
vida no interior das sociedades liberais que, por isto, pode emergir a qualquer
momento? Se o segundo caso for correto, entã o qual sua especificidade, em que
condiçõ es poderíamos falar, de maneira analítica, de fascismo?
Uma questã o como a anterior, relativa à abordagem psicoló gica do
fascismo, apenas declina outra, de ordem mais geral, a saber: “Nã o estaríamos a
produzir um erro categorial primá rio ao mobilizarmos categorias psicoló gicas
para descrever fenô menos sociais?”. Pois pode parecer inicialmente que
estaríamos a propor alguma forma de reducionismo que ignoraria a
complexidade dos sistemas de interaçã o entre as mú ltiplas esferas sociais de
valores em prol de descriçõ es sociais baseadas na maneira com que sujeitos
individualizados mobilizam representaçõ es mentais, crenças, afetos, desejos a
fim de aderir a certos papéis e modos de reproduçã o material da vida. Como se,
ao final, as relaçõ es sociais pudessem ser descritas como desdobramentos de
uma situaçã o ideal originá ria na qual encontraríamos, preferencialmente, duas
consciências interagindo em relaçõ es de autoridade e poder. Como se
estivéssemos a falar que a expressã o institucional do Estado, por exemplo,
tivesse sempre a tendência a submeter-se à figura de uma pessoa singular na
posiçã o de líder. Estratégia que implicaria em um estranho resquício de
categorias da filosofia da consciência transpostas para o quadro da aná lise da
ló gica do poder.
Como se nã o bastasse tal dificuldade epistemoló gica, haveria ainda um
problema mais grave que se explicita quando procuramos reconstruir a gênese
do que se convencionou chamar de “psicologia das massas”, conjunto do qual as
aná lise psicoló gicas do fascismo fariam parte. O campo da psicologia das massas
nasce no final do século XIX no interior de uma conjunçã o explícita entre:
criminologia, reflexã o socioló gica sobre o impacto social dos processo de
urbanizaçã o na Europa, reflexã o política sobre movimentos de massa, além de
consideraçõ es sobre a psicologia do desenvolvimento. Em solo francês, eixo
central para o campo do qual estamos a falar, o termo nã o será exatamente
“psychologie des masses”, mas “psychologie des foules”, cuja traduçã o mais
aproximada seria “psicologia das multidõ es”. Os principais textos sã o escritos em
um prazo de nã o mais de quinze anos: Psychologie des foules, de Gustave Le Bon é
de 1895. Les lois de l’imitation, do magistrado francês Gabriel Tarde é de 1890,
seu L’opinion et la foule, de 1901. La folla delinquente, do jurista italiano Scipio
Sighele é de 1891. Por sua vez, Essai sur la psychologie des foules: considérations
médico-judiciaires sur les responsabilités collectives, do médico francês Henry
Fournial é de 1892. Depois, as discussõ es sobre psicologia das massas alcançarã o
o mundo anglo-saxã o principalmente com os trabalhos de Wilfred Trotter a
respeito do instinto gregá rio (de 1908) e de William McDougall, que em 1920
escreverá : The Group Mind: A sketch of the principles of collective psychology with
some attempt to apply them to the interpretation of national life and character. O
texto de Freud sobre a psicologia das massas e a aná lise do Eu é de 1921.  
Conhecemos aná lises anteriores a respeito de fenô menos de massa, elas
estã o lá nos textos de Edmund Burke, de Hyppolite Taine, de Charles Mackay e de
Jules Michelet, assim como nos romances de Zola, de Victor Hugo e Maupassant.
Mas esses livros sobre a psicologia das massas que descrevi anteriormente
explicitam uma perspectiva analítica nova. Eles procuram, cada um a sua
maneira, fazer das massas, da multidã o, o objeto de uma ciência a parte inteira, o
que nã o era o caso anteriormente. Na verdade, uma ciência da regressã o social,
das involuçõ es que estariam a ameaçar as novas sociedades capitalistas urbanas
do século XIX. Assumindo uma noçã o bastante presente na psicologia de entã o,
que definia a doença mental como degenerescência, como retorno a está gios
arcaicos de maturaçã o e desenvolvimento, esses trabalhos (embora os trabalhos
de Tarde sejam uma exceçã o a este caso) veem as massas como o equivalente
social de uma degenerescência patoló gica, propícia a comportamentos
criminosos, ao rebaixamento da inteligência e a reaçõ es violentas e
incontrolá veis.
Por exemplo, em seu livro supracitado que certamente será o mais
influente desta corrente inicial da psicologia das massas, Le Bon começa
afirmando: “As massas sempre desempenharam um papel importante na
histó ria, mas nunca tã o considerá vel quanto atualmente. A açã o inconsciente das
massas, substituindo a açã o consciente dos indivíduos, representa uma das
características da idade atual”2. Pois nã o seria mais nos conselhos de príncipes,
mas na alma inconsciente das multidõ es (inconsciente compreendido neste
contexto como a dimensã o do irracional, do primitivo) que se estaria a decidir o
destino das naçõ es.
Isto só pode significar, diz Le Bon, “uma fase de desordem”, um período de
“anarquia confusa precedendo a eclosã o de novas sociedades”, período
caracterizado pelo império de uma “potência unicamente destrutiva”3
representada pelas massas. Le Bon chega a usar a ideia de hipnose para
caracterizar o pretenso cará ter inconsciente do comportamento dos indivíduos
no interior da massa, para descrever como indivíduos modificariam
radicalmente seu comportamento quando parte da massa. Da mesma forma,
Gabriel Tarde irá descrever o homem social como um “verdadeiro sonâ mbulo”4,
como alguém em estado constante de hipnose, já que, em todos os três casos

2
LE BON, Psychologie des foules, préface
3
Idem, p. 14
4
TARDE; Les lois de l’imitation, p. 84
(sonambulismo, hipnose, açã o social) encontramos a ilusã o de ter ideias
sugestionadas e acreditar tê-las espontaneamente.
Sendo assim, todo o livro de Le Bon é uma tentativa de compreender o
advento das massas enquanto ator político como uma regressã o no sentido
psicoló gico do termo. Regressã o a uma sociedade ingoverná vel, já que nã o seria
possível governar as massas. No má ximo, o conhecimento de sua psicologia
permitiria nã o ser governado por elas. O esquema da degenerescência fica claro
quando Le Bon afirma ser tal mudança de comportamento resultante do fato de
que “nossos atos conscientes derivam de um substrato inconsciente formado
sobretudo por influências hereditá rias (...) por trá s das causas assumidas de
nossos atos, encontram-se causas sociais ignoradas por nó s”5. Tais causas
resultantes de sedimentaçõ es que compõ e “a alma de um povo” formariam um
inconsciente coletivo e arcaico responsá vel pela constituiçã o da unidade mental
da massa. Daí a afirmaçã o de que a psicologia das massas seria uma psicologia de
processos de regressã o: “Pelo simples fato de fazer parte de uma massa, o
homem desce vá rios degraus na escada da civilizaçã o”6.
Se nos perguntarmos pelas condiçõ es histó ricas para o advento de tal
psicologia das massas, encontraremos uma velha conhecida que fará histó ria
posteriormente:

Hoje, as reivindicaçõ es das multidõ es sã o cada vez mais claras e visam


destruir de cima abaixo a sociedade atual, para lhe levar a esse
comunismo primitivo que foi o estado normal de todos os grupos
humanos antes da aurora da civilizaçã o7.

O que nã o poderia ser diferente, já que as condiçõ es histó ricas para o


aparecimento de tal psicologia nã o é outra que as experiências revolucioná rias
que sacudiram a França do século XIX, em especial a Comuna de Paris, de 1871,
com sua insubmissã o das classes populares à s representaçõ es de ordem e
autoridade. Isto explica um pouco da razã o pela qual foi na França que a
psicologia das massas acabou por aparecer inicialmente. Foram três revoluçõ es
populares em menos de um século (1789, 1848, 1871). Diante da subida à cena
da histó ria de revoluçõ es de massa nas quais a natureza do poder era contestada,
a psicologia será mobilizada para construir um discurso social com pretensõ es
científicas no qual o corpo social era apresentado como em risco de
degenerescência, como tais fenô menos seriam explosõ es patoló gicas de
irracionalidade.
Certamente, devido a sua origem claramente reativa aos processos
histó ricos de transformaçã o social, a psicologia das massas acabaria por ser
relegada à condiçã o de curiosidade histó rica se ela nã o tivesse sido
completamente invertida por Sigmund Freud, em seu Psicologia das massas e
análise do eu, de 1921. Veremos com mais calma tal inversã o no interior de nosso
curso, mas se nosso curso começa com Freud é por ele ter representado uma
espécie de novo começo para a abordagem psicoló gica dos fenô menos sociais.
Primeiramente, porque nã o se tratava mais de descrever as regressõ es que

5
LE BON, idem, p. 22
6
idem, p. 24
7
Idem, p. 13
ameaçariam do exterior a marcha do progresso pró pria ao processo de
racionalizaçã o das sociedades europeias do começo do século XX.
O tamanho do passo dado por Freud pode ser compreendido se levarmos
em conta um ponto. Contrariamente à tendência geral da psicologia social da
época, que procurava distinguir a natureza da massa desorganizada e de grupos
organizados, isto a fim de demonstrar que a regressã o do primeiro nã o
invalidava a racionalidade do segundo, Freud se serve exatamente de dois
grupos organizados paradigmá ticos, a saber, a igreja e as forças armadas, para
descrever a natureza regressiva das massas. A distinçã o entre grupo e massa se
perde de forma deliberada. Pois Freud quer defender que grupos como a igreja e
as forças armadas demonstrariam, de maneira mais clara, o que só pode
aparecer nas massas espontâ neas de maneira “mais camuflada”. Maneira de
afirmar que a psicologia das massas é, ao mesmo tempo, uma psicologia das
instituiçõ es, isto no sentido de uma psicologia da regressã o imanente ao
funcionamento normal de nossas instituiçõ es, e nã o mais psicologia da regressã o
que apareceria como desvio em relaçã o ao bom funcionamento normal das
instituiçõ es democrá ticas. Daí virá uma das primeiras críticas feitas contra a
psicologia das massas de Freud, no caso, escrita pelo jurista Hans Kelsen 8.
Notemos como este gesto freudiano consistia em mostrar como duas
instituiçõ es que aparecem como subsistemas inerentes a toda noçã o de
democracia liberal seriam a expressã o mais evidente de nú cleos de regressã o
social no interior mesmo de nossas formas liberais de vida. No interior das
sociedades liberais, igreja e forças armadas nã o sã o a arché a ser superada por
um fortalecimento dos processos decisó rios em instituiçõ es democrá tico
representativas, como se esperaria se assumíssemos a teses de um processo
weberiano de desencantamento do mundo e de um fortalecimento progressivo
da sociedade civil no interior do liberalismo. Na verdade, igreja e forças armadas
seriam nosso verdadeiro destino. Décadas depois, outro psicanalista, Jacques
Lacan, será ainda mais explícito ao dizer: “A religiã o triunfará nã o apenas sobre
a psicaná lise , ela triunfará sobre muitas outras coisas. Nã o podemos sequer
imaginar como é potente, a religiã o”9.
Se, para Freud, a histó ria da democracia no ocidente será uma histó ria de
afastamentos malogrados em relaçã o tanto ao nú cleo teoló gico-político do poder
quanto a suas figuras fortemente hierá rquicas e militarizadas, se esses nú cleos e
figuras conhecerã o retornos perió dicos e constantes em lugares e momentos que
menos se espera, é porque nunca de fato teríamos conseguido abandonar uma
concepçã o teoló gico-política de poder (a secularizaçã o de nossas sociedades é
um projeto bloqueado), nem nunca de fato teríamos nos livrados de uma
realidade social cuja matriz fundamental de relaçã o é a guerra, para ser mais
preciso, a guerra civil (nossos Estados continuam sendo profundamente
militares). É desta forma que, a partir de Freud, a psicologia das massas deixará
de ser uma aplicaçã o da noçã o clínica de doença como degenerescência tendo em
vista dar conta de fenô menos sociais que colocariam em risco o horizonte de
racionalidade da democracia liberal. Ela se tornará entã o a aná lise das latências
de regressã o imanentes a tal racionalidade.
É neste ponto que o sentido de uma abordagem psicoló gico de fenô menos
sociais pode se fazer sentir. Pois para Freud é claro que se nunca nos livramos do
8
Ela está em KELSEN, Hans; A democracia, São Paulo: Martins Fontes, 2002
9
LACAN, Jacques; Le triomphe de la religion, Paris, Seuil, p. 78
nú cleo teoló gico-político do poder nem da guerra como paradigma central das
relaçõ es sociais é porque a maneira com que os indivíduos modernos sã o
constituídos, seus desejos socializados, a maneira com que os processos de
individuaçã o se realizam perpetuariam modos de relaçã o social fundados em
fantasmas de autoridade cujos modelos historicamente constituídos sã o pró prios
ao amparo produzido pelo poder pastoral e pela submissã o à soberania do líder
da guerra. Ou seja, a individualidade moderna nã o seria exatamente o esteio de
uma forma democrá tica de vida baseada na cooperaçã o imanente e no respeito à
integridade da pessoa. Ela seria a porta aberta a todas as formas de regressã o
social. E nã o será por acaso que comportamentos xenó fobos, racistas e violentos
nã o virã o necessariamente dos integrantes de famílias em decomposiçã o, povos
submetidos a crises profundas e submetidos a autoridade em degradaçã o, mas
também de famílias aparentemente só lidas, países aparentemente pró speros. A
teoria freudiana deve ser vista pois como um momento fundamental de auto-
crítica da modernidade e isto ficará muito claro quando a Escola de Frankfurt se
voltar a ele para analisar o fascismo.
Mas voltemos a nossa questã o epistemoló gica inicial, esta que dizia
respeito à adequaçã o de propor uma aná lise psicoló gica de fenô menos sociais. O
que vemos aqui é como nã o seria possível compreender fenô menos sociais, seus
modos de criaçã o de adesã o, as modalidades de produçã o de corpos sociais, sem
levarmos em conta a mobilizaçã o de fantasmas, de afetos e representaçõ es que
nã o sã o individuais, mas profundamente sociais. Pois este é um dos maiores
equívocos vinculados ao que chamamos normalmente de vida psíquica, a saber,
acreditar que fantasmas, crenças e desejos sã o individuais. Lembremos do que
diz Freud:

A oposiçã o entre psicologia individual e psicologia social ou das massas,


que à primeira vista pode parecer muito significativa, perde boa parte de
sua agudeza se a examinarmos mais detidamente. É certo que a psicologia
individual se dirige ao ser humano particular, investigando os caminhos
pelos quais ele busca obter a satisfaçã o de seus impulsos instintuais, mas
ela raramente, apenas em condiçõ es excepcionais, pode abstrair das
relaçõ es deste ser particular com os outros indivíduos. Na vida psíquica
do ser individual, o Outro é via de regra considerado enquanto modelo,
objeto, auxiliador e adversá rio, e portanto a psicologia individual é
também, desde o início, psicologia social, num sentido ampliado mas
inteiramente justificado10.

Em uma afirmaçã o desta natureza, fica evidente quã o pouco clara sã o


noçõ es como “ser humano particular”, como se estivéssemos a falar de algo
dotado de realidade ontoló gica. Se pensamos o ser humano no interior de
relaçõ es de desejo, é impossível abstrair o fato de sermos obrigados a descrever
estruturas sociais de relaçã o. Na verdade, fantasmas, afetos, crenças e desejos
sã o modos de participaçã o social. Podemos mesmo dizer, nã o sã o indivíduos que
desejam, mas a sociedade deseja através dos indivíduos. Nã o sã o indivíduos que
produzem fantasias, mas a sociedade produz fantasias através dos indivíduos. É
a histó ria dos desejos desejados antes de mim, como disse uma vez Alexandre
Kojève, que se manifesta nos desejos que julgo meus, nos fantasmas que julgo
10
FREUD, Sigmund; Psicologia das massas e análise do Eu, São Paulo: Companhia das Lestras, p. 14
meus. Neles, encontram-se tanto a constelaçã o familiar quanto a histó ria dos
povos, das raças, as figuras de sua literatura, assim como do que se recusou a se
constituir como família, como povo, como raça.

O que é fascismo?

O texto de Freud é de 1921 e seu horizonte histó rico é profundamente marcado


pela primeira guerra civil europeia que passou para a histó ria como a Primeira
Guerra Mundial. Ou seja, seu objeto nã o poderia ser o que aparecerá anos depois
como fascismo. Mas com a ascensã o do nazismo em janeiro de 1933 foram
publicados, no mesmo ano, dois textos propondo uma aná lise psicoló gica do
fascismo a partir do quadro compreensivo derivado do proposto por Freud. Sã o
eles : A estrutura psicológica do fascismo, de Georges Bataille, e A psicologia de
massa do fascismo, de Wilhelm Reich. Esses dois textos, escritos por autores que
nã o se conheciam e vindos de tradiçõ es distintas, irã o inaugurar uma longa série
de trabalhos que procurarã o utilizar conceitos clínicos para dar conta tanto do
fascismo como de seus mecanismos imanentes, como o anti-semitismo (muito
mais presente no nazismo alemã o do que no fascismo italiano), o totalitarismo, a
concepçã o orgâ nica do corpo social com sua forma de vínculo ao territó rio, o
nacionalismo militarista, a concepçã o imunitá ria de identidade.
Dois aspectos saltam imediatamente aos olhos na comparaçã o entre esses
dois textos. O primeiro consiste em perceber como eles procuram fornecer uma
teoria libidinal da regressã o social. Ou seja, eles procuram defender a tese de que
fenô menos como o fascismo nã o podem ser explicados se nã o levamos em conta
a economia libidinal que lhe seria pró pria. Ele nã o seria um fenô meno de classe,
de raça, de naçã o, mas uma estrutura libidinal que poderia se fazer sentir em
qualquer lugar e momento. Para sermos claros, o que esses textos afirmam é a
existência de algo como um regime fascista do desejo que deveria ser o
verdadeiro alvo de uma açã o política.
Este teoria da estrutura libidinal do fascismo, no entanto, nã o procurará
descreve-lo como alguma espécie de expressã o política do retorno a estruturas
arcaicas de comportamento, um pouco como vimos Le Bon a falar da emergência
das massas no campo político. Alguém como Reich, por exemplo, insistirá que
longe da ressurgência de comportamentos arcaicos, estaríamos diante do
resultado final de um trabalho de civilizaçã o que confunde socializaçã o e
repressã o pulsional. Pois até agora nã o houve processo civilizacional que nã o se
constituiu sobre os escombros das pulsõ es sexuais, tema também caro a Bataille.
Daí porque é importante lembrar como: “a estruturaçã o autoritá ria do homem se
produz em primeiro lugar através da ancoragem de inibiçõ es e de angú stias
sexuais na matéria viva das pulsõ es sexuais”11. Ou seja, tudo se passa como se
eles estivessem a dizer que nã o é falta de civilizaçã o que produz o fascismo, mas
civilizaçã o em sua funçã o repressiva bem sucedida e em sua capacidade de
produçã o de satisfaçõ es substitutas à sexualidade reprimida.
Mas essas teorias nã o funcionarã o simplesmente como a figura do que
Foucault chamará décadas depois de “a hipó tese repressiva”. Pois elas lembrarã o
como o fascismo será incompreensível a partir da hipó tese de um regime
repressivo “lei e ordem”. Antes, ele é a mobilizaçã o contínua e simultâ nea da
transgressã o e da repressã o. Ele é a articulaçã o entre a suspensã o da lei e o culto
11
REICH, Wilhelm; La psychologie de masse du fascisme, Paris: Payot, p. 75
da lei. É que visa Reich ao afirmar: “O fascismo nã o é, como se tende a acreditar,
um movimento puramente reacioná rio, mas ele se apresenta como um amá lgama
de emoçõ es revolucioná rias e de conceitos sociais reacioná rios”12. Bataille dirá
algo semelhante quando afirmar, sobre o fascismo: “a revoluçã o afirmada como
um fundamento é ao mesmo tempo fundamentalmente negada desde a
dominaçã o interna exercida militarmente por milícias”13. Há a emergência do que
Bataille chama de “heterogeneidade”, há a recusa da homogeneidade da
sociedade utilitá ria da produçã o pulsando no interior do fascismo. Mesmo o
vínculo a autoridade fascista será caracterizado por uma incondicionalidade que
se coloca para além de todo julgamento utilitá rio.
Desta forma, tanto Reich quanto Bataille assumem a proposiçã o política
de que o fascismo só pode crescer em situaçõ es pré-revolucioná rias. De certa
forma, ele é a figura maior do que poderíamos chamar de uma contrarrevoluçã o
preventiva que se faz passar por revoluçã o, e este “se fazer passar por” é o ponto
decisivo aqui. Pois esta é uma forma desses autores afirmarem que o ponto
analítico fundamental passa por compreender por que, em dado momento,
setores majoritá rios da populaçã o desejaram o fascismo. Pois uma teoria que
eleva o desejo a estrutura fundamental dos laços sociais precisará responder
sobre como é possível desejar o fascismo, ela precisará procurar nele os traços
conjugados de revolta contra a opressã o social e reforço da opressã o.
No que, paradoxalmente, nos encontramos em um terreno clá ssico para a
filosofia política, ao menos desde Etienne de La Boétie. Pois se o Discurso sobre a
servidão voluntária, de 1553, pode ser visto como o texto inaugural da literatura
política moderna é por ele aparecer como o primeiro a colocar o problema da
servidã o a partir dos termos de sua aquiescência. Por que em certos momentos
se deseja a servidã o, por que em certos momentos se deseja esse processo de
concentraçã o radical da soberania na mã o de um? Nã o se trata de descrever a
servidã o a partir da submissã o à força, mas a partir da sua associaçã o à voluntas,
de um querer e participar à sua pró pria servidã o, e este é o ponto fundamental:

Gostaria apenas de entender como é possível que tantas pessoas, tantas


aldeias, tantas cidades e tantas naçõ es suportem por vezes um ú nico
tirano, que tem o poder que elas mesmas lhe dã o; cujo poder de
prejudicá -las é o poder que elas mesmas aceitam, que só sabe fazer-lhes
algum mal porque elas pró prias preferem padecer deste mal a
contradizer o tirano14.

O segredo será pensar as modalidades através das quais os sujeitos


participam de sua pró pria servidã o, como eles serã o, ao mesmo tempo, a vítima e
o carrasco. Quando em 1971, Deleuze e Guattari se voltarem ao problema da
estrutura libidinal do fascismo, eles nã o deixarã o de lembrar do tipo de
estratégia outrora colocada em circulaçã o novamente por Reich:

Pois como disse Reich, o surpreendente nã o é que pessoas roubem, que


outros façam greve, mas sim que os famintos nã o roubem sempre, que os

12
Idem, p. 17
13
BATAILLE, Georges; La structure psychologique du fascisme, In: Oeuvres complètes vol. I, Paris:
Galllimard, p. 362
14
LA BOËTIE, Etienne; Discurso da servidão voluntária, São Paulo: Nós, 2016, p. 16
explorados nã o façam greve sempre: por que os homens suportam desde
séculos a exploraçã o, a humilhaçã o, a escravidã o, ao ponto nã o apenas de
quere-las para os outros, mas para si mesmos? (...) Nã o, as massas nã o
foram enganadas, elas desejaram o fascismo em tal momento, em tal
circunstâ ncia, e é isto que se faz necessá rio compreender15.

A resposta de Reich e Bataille passará por insistir que categorias como


opressã o, repressã o, ameaça nã o bastam, embora nã o se trate de ignorar a
presença dos fenô menos que elas descrevem. Há certa liberaçã o que o fascismo
realiza, há certa revolta que ele libera e nã o será possível compreender sua força
sem analisar sua produçã o. Entender a natureza dessa produçã o será um dos
desafios mais complexos.
Quando décadas depois Deleuze e Guattari retornarem aos problemas
internos à s psicologias do fascismo e à s formas de paralisia à emancipaçã o social,
apó s a consciência da paralisia das forças de transformaçã o produzidas a partir
de maio de 68, quando eles retornarem em uma via que procura explicitamente
recuperar pontos importantes do pensamento de Reich, eles claramente verã o
como estratégia política maior mobilizar a crítica em duas direçõ es: uma macro-
política e outra micro-política. Se a primeira se refere as grandes estruturas
normalmente biná rias e biunívocas de representaçã o, suas classes, partidos, seus
objetos e instituiçõ es que tendem a convergir na figura do Estado e de uma
política dirigida para o Estado (molares), a segunda se refere à lateralidade dos
fluxos libidinais que estabelecem relaçõ es e processos de transformaçã o para
além dos lugares socialmente codificados e determinados pelas estruturas
sociais (molecular). Da mesma forma, pode haver um macro-fascismo e um
micro-fascismo. Daí afirmaçõ es como: “é muito fá cil ser anti-fascista no nível
molar, sem ver o fascista que se é si-mesmo, que se conversa e alimenta, que se
autocompraz com as moléculas, pessoais e coletivas”16. E é nesta dimensã o
micro-fascista que podemos encontrar uma resposta à questã o: por que se deseja
sua pró pria repressã o? É ela que prepara a consolidaçã o de uma política estatal
fascista e que aparece como condiçã o para sua emergência.
Dentre as mú ltiplas questõ es que a abordagem de Deleuze e Guattari
produzirá , uma chamará em especial nossa atençã o. Ela se refere à utilizaçã o do
conceito de pulsã o de morte para descrever o modelo de movimento em direçã o
à catá strofe que seria imanente ao fascismo. Essa realizaçã o da catá strofe, como
se uma má quina de guerra descontrolada tivesse se apropriado do Estado,
criando nã o exatamente um Estado totalitá rio, mas um Estado suicidá rio (para
falar com Paul Virilio), uma tanatopolítica que é uma necropolítica a se voltar
contra si mesma, levará os dois a afirmarem:

Há no fascismo um niilismo realizado. É que, a diferença do Estado


Totalitá rio que se esforça por colmatar todas as linhas de fuga possíveis, o
fascismo se constró i sobre uma linha de fuga intensa, que ele transforma
em linha de destruiçã o e de aboliçã o puras. É curioso como, desde o início,
os nazis anunciaram à Alemanha o que eles trariam: ao mesmo tempo as
nú pcias e a morte, inclusive sua pró pria morte e a morte dos alemã es (...)

15
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix: L’anti-Oedipe, Paris: Seuil, 1972, p. 37
16
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix; Mil Plateaux, Paris: Seuil, p. 262
Uma má quina de guerra que tinha apenas a guerra por objeto e que
preferia abolir seus pró prios servos a parar a destruiçã o17.

Nó s veremos com calma o sentido desse recurso à pulsã o de morte como


fundamento de um desejo social de catá strofe, como fundamento de uma
experiência de purificaçã o, de um movimento sem telos que só pode se realizar
na sua pró pria aniquilaçã o.

Frankfurt contra o fascismo

Outra vertente que se apoiará nos trabalhos de Freud para desenvolver


uma reflexã o de larga escala sobre a psicologia do fascismo será a Escola de
Frankfurt. Desde os estudos pioneiros de Erich Fromm sobre a adesão do
operariado alemão ao nazismo a partir da análise das articulações entre
“impulsos emocionais do indivíduo e suas opiniões políticas” 18, os
frankfurtianos tomaram para si a tarefa de utilizar o quadro psicanalítico para
compreender as formas sensíveis de sujeição social. Fromm procurava, para
além da expressão explícita do engajamento político, compreender e tipificar as
estruturas motivacionais e emocionais que sustentavam tais decisões. Sua
compreensão visava lançar luz sobre as contradições imanentes entre
comportamentos públicos e representações psíquicas, o que poderia explicar o
sistema de modificações bruscas das posições políticas da classe operária,
como a deserção do comunismo em direção ao nazismo.
Principalmente a partir dos anos quarenta, os frankfurtianos farão
diversos estudos sobre o anti-semitismo, sobre a formação do estado nazista
(Behemoth, de Franz Neumann), sobre a antecipação do nazismo no interior da
cultura alemã (De Calegari a Hitler e O ornamento da massa, de Sigfried
Kracauer), sobre as estruturas da propaganda fascista e de extrema direita (A
técnica psicológica de Martin Luther Thomas, de Adorno; Profetas do engano,
de Löwenthal e Guterman), sobre a economia nazista (Sobre o nacional-
socialismo: uma nova ordem?, de Friedrich Pollock), sobre a personalidade
autoritária (Estudos sobre a personalidade autoritária, de Adorno e o grupo de
Berkeley). Em suma, não seria possível menosprezar o tamanho do impacto do
nazismo no interior da trajetória da primeira geração da Escola de Frankfurt e
da maneira com que boa parte de suas figuras moldarão sua compreensão das
próprias sociedades de democracia liberal.
Mas será na Dialética do Esclarecimento, em especial em seu capítulo
intitulado “Elementos de anti-semitismo”, que encontraremos pela primeira vez
de forma sistemática a descrição do fascismo como uma patologia social.
Adorno e Horkheimer se servirã o do quadro clínico da paranoia para dar conta
da natureza dos vínculos sociais no fascismo, assim como das tendências de
segregaçã o inerentes à s democracias ocidentais. Assim, ao aproximar o fascismo
e outras formas de autoritarismo da paranoia, Adorno e Horkheimer estavam a
17
Idem, p. 280
18
FROMM, Erich. Arbeiter und Angestelle am Vorabend des Dritten Reiches, Stuttgart:
Deutsche Verlags-Anstalt, 1980. p. 110. Para uma discussão sobre as primeiras colaborações
de Erich Fromm ao Instituto de Pesquisas Sociais, ver: JAY, Martin. The Dialectical
Imagination. Berkely: California University Press, 1996.
dizer que a paranoia seria o modo hegemô nico de participaçã o social no interior
de tais sociedades. O que implicava afirmar que, nestes casos, os vínculos sociais
se sustentariam a partir da generalizaçã o da paranoia como tipo social, mesmo
que os sujeitos, do ponto de vista de suas patologias individuais, tivessem outra
forma de organizaçã o de seus sintomas. Neste sentido, nã o teríamos apenas uma
analogia, mas a descriçã o de uma modalidade de funcionamento social a partir
de gestã o do sofrimento através da elevaçã o de comportamentos patoló gicos a
forma de participaçã o social. Como condiçã o de participaçã o, os sujeitos
deveriam agir como paranoicos. Um “agir como” que nã o deixará de ter
implicaçõ es na pró pria estrutura da personalidade subjetiva. Ao pensar na
paranoia, Adorno e Horkheimer falam de um funcionamento específico das
relaçõ es de identidade e alteridade, das fantasias de imunizaçã o, de contá gio, de
perseguiçã o e de grandeza. Na verdade, é a configuraçã o do corpo social que será
compreendida como paranoica. O fascismo como um corpo social paranoico.
Veremos como o conceito psicanalítico de paranoia, base do uso dos
frankfurtianos, a aproximava de uma patologia que colocava, à céu aberto, os
mecanismos de identificaçã o e introjeçã o pró prios do narcisismo que, por sua
vez, eram a expressã o de dinâ micas pró prias à constituiçã o mesma do Eu do
indivíduo moderno com seus desconhecimentos e denegaçõ es. Freud insistira
claramente, por exemplo, que o narcisismo era uma fase necessá ria do
desenvolvimento individual e que seu mecanismo expunha dinâ micas pró prias
da paranoia e da melancolia. Neste ponto, encontramos uma radicalizaçã o desta
perspectiva em Lacan e em sua maneira de mostrar como a pró pria constituiçã o
“normal” do Eu moderno era paranoica, pois produtora de uma instâ ncia
psíquica que organizava suas relaçõ es ao mundo através de projeçõ es,
introjeçõ es e fundava sua identidade a partir de um sistema de denegaçõ es e
agressividades19.
Neste sentido, era impossível colocar em circulaçã o uma crítica que eleva
a paranoia à condiçã o de patologia social sem defender que o indivíduo moderno
nã o era o esteio da vida democrá tica, mas a ferida aberta que coloca o corpo
social em risco perpétuo de deriva autoritá ria. Como se ao capitalismo restasse
fornecer regressõ es paranoicas perió dicas aos sujeitos que ele socializa e produz.
Isto pode nos explicar porque a reflexã o dos frankfurtianos nã o se serve do
fortalecimento do indivíduo moderno como contraponto à natureza paranoica
dos vínculos sociais, como seria o caso em uma perspectiva liberal. Na verdade,
os dois conceitos tecem relaçõ es profundas de solidariedade. Isto explicará
porque, nos anos 50, ao analisar a estrutura do que conhecemos por
“personalidade autoritá ria”, os frankfurtianos desenvolverã o estudos extensivos
aos modos gerais de regressã o presentes também nas sociedades liberais.
Tudo isto visa mostrar a vocês, como deve ter ficado claro, as razõ es pelas
quais trabalharemos neste curso com a hipó tese de que “fascismo” nã o deve ser
utilizado apenas para descrever a experiência histó rica que terá lugar na
Alemanha e na Itá lia anterior a Segunda Grande Guerra. Ele explicita uma
convergência de prá ticas e discursos que persegue nossas sociedades como uma
sombra e que se atualiza nas condiçõ es as mais diversas. Mas a titulo
operacional, essa sombra poderia ser descrita a partir de quatro vetores.
Gostaria que vocês tivessem isto em mente durante todo nosso curso.

19
Ver, por exemplo, LACAN, Jacques; Séminaire II, Paris: Seuil, 1982
Quatro elementos definem a forma de vida fascista e suas patologias.
Primeiro, o culto da violência. Pois se faz necessá rio acreditar que a impotência
da vida ordiná ria e da espoliaçã o constante será vencida através da força
individual de quem enfim tem o direito de tomar para si a produçã o autorizada
da violência. O fascismo oferece uma certa forma de liberdade, ele sempre se
construiu a partir da vampirizaçã o da revolta. Há uma anarquia bruta, um
carnaval sempre liberado pelo fascismo. Mas no seu caso, a liberdade se
transforma na liberaçã o da violência por aqueles que já nã o aguentam mais
serem violentados. O carnaval nã o é aqui a reversã o da ordem, mas a conjugaçã o
entre a ordem e a desordem: a desordem travestida com a fantasia da ordem.
Segundo, nã o há fascismo sem ressurreiçã o dos Estados-naçã o em sua
versã o paranoica. Pois alguém tem que cuidar das nossas fronteiras, que sã o
completamente porosas. Alguém tem que ensinar Educaçã o Moral e Cívica para
nossas crianças a fim de que elas têm orgulho desta pá tria construída através do
genocídio dos índios e da escravidã o dos negros. Alguém tem que impedir que
sejamos invadidos por mais uma leva de refugiados que vem para cá com seus
crimes. O Estado-naçã o se mostra como o ú ltimo refú gio do que é meu, do que
me é pró prio. É o meu territó rio, o meu país, a minha língua, os meus costumes, a
minha miséria, a minha violência, o meu sufocamento. A comunidade nacional é
o avesso do comum. Ela é apenas a figura alargada de uma propriedade que
aparece como a expressã o bá sica do medo como afeto político central.
Terceiro, o fascismo sempre será solidá rio da insensibilidade absoluta em
relaçã o à violência com classes vulnerá veis e historicamente marcadas pela
opressã o. Ele é a implosã o da possibilidade de solidariedade genérica. Essa
insensibilidade expressa o desejo inconfesso de que as estruturas de visibilidade
da vida social nã o sejam transformadas. Pois toda política é uma questã o de
circuito de afetos e de estruturas de visibilidade. Trata-se de definir o que pode
nos afetar, com qual intensidade, através de qual velocidade. Para tanto, há de se
gerir a gramá tica do visível, a forma com que as existências sã o reconhecidas. Na
vida social, ser reconhecido é existir, o que nã o reconhecido nã o existe. Mas ser
reconhecido nã o significa apenas uma recogniçã o do que já existia. Todo
reconhecimento é implicativo, ele exige que aquele que reconhece mude
também, pois habitará um mundo agora com corpos que antes nã o o afetavam, e
isto é o que aparece para alguns como insuportá vel.
Por fim, o fascismo sempre será baseado na deposiçã o da força popular
em prol de uma liderança fora da lei. Ele é a colonizaçã o do desejo anti-
institucional pela pró pria ordem. O desejo anti-institucional, quando realmente
liberado, pode criar poderes que voltam à s mã os do povo, democracias que
abandonam a representaçã o para transferir a deliberaçã o e a gestã o para a
imanência do povo. Mas o fascismo faz dessa anti-institucionalidade um clamor
pela mã o forte do governo expresso em uma liderança que parece estar acima da
lei, que parece poder falar o que quiser sem culpa, expor seus piores sentimentos
sem preocupaçã o com seus efeitos, demonstrar seu desejo mais baixo de
violência como expressã o de uma liberdade conquistada.
Por isso, é necessá rio que tais líderes pareçam cô micos, sejam uma
mistura de militar e palhaço de circo. Pois só assim, através dessa ironizaçã o, tais
proposiçõ es poderã o circular com fricçã o baixa. Afinal, nã o é para levar a sério
tudo o que eles dizem. Mas quem sabe o que se deve entã o levar exatamente a
sério? O que é real e o que é apenas bravata? Ninguém sabe, a nã o ser eles
mesmos. Isto se chama: misturar a ordem e a desordem, a lei e a anomia. Isto é
fascismo. Dito isto, que cada use sua capacidade de aná lise para saber em que
situaçõ es atuais esta descriçã o encaixa.
Psicologias do fascismo
Aula 2

Na aula de hoje, começaremos a leitura de Psicologia das massas e análise do


Eu, escrito em 1921 por Sigmund Freud. Como havia dito anteriormente, a escolha
em começar um curso intitulado “psicologias do fascismo” com esse texto se justifica
pelo seu caráter fundador. O texto de Freud consolida um modelo de abordagem dos
fenômenos de massa que visa descrever, em um movimento sobreposto, o
funcionamento social regressivo de grupos, instituições e os processos de formação do
indivíduo moderno. Daí o título peculiar que articula “psicologia das massas” e
“análise do Eu”. Esta articulação permite a Freud fazer uma verdadeira crítica da
psicologia social até então existente que inverte completamente seus objetos e seu
horizonte. Tal crítica nos leva à compreensão das regressões imanentes a nossa vida
institucional. Esse modelo de análise aparecerá, à posteridade, como profícuo a fim de
compreender fenômenos como o fascismo e outras figuras do totalitarismo. Pois ele
permite uma análise no interior da qual democracia liberal e fascismo estarão em
linha de contato, na qual o fascismo será uma latência da democracia liberal. O que
proponho nos nossos próximos encontros é seguir a argumentação freudiana,
apresentando a teses principais de seu livro.
Antes, lembremos como a reflexão política de Freud conhece três obras
fundamentais. Cada uma delas aborda uma dimensão do problema do político e tecem
entre si relações profundas. A primeira é Totem e tabu, livro que visa apresentar uma
tese a respeito dos fundamentos antropológicos do político através do mito do
assassinato do pai da horda primitiva e da produção da culpabilidade e da melancolia
como afetos políticos centrais. A segunda é exatamente Psicologia das massas como
sua crítica da psicologia social e sua centralidade nos processos verticais de
identificação, como veremos nas próximas aulas. Por fim, a última é Moisés e o
monoteísmo, com sua maneira peculiar de fornecer uma crítica aos fundamentos
teológico-políticos do poder. Nós iremos ver esta obra no último módulo de nosso
curso.

Freud, leitor de Le Bon

A oposiçã o entre psicologia individual e psicologia social e das massas,


que à primeira vista pode parecer muito significativa, perde boa parte de
sua agudeza se a examinamos mais detidamente. É certo que a psicologia
individual se dirige ao ser humano particular, investigando os caminhos
pelos quais ele busca obter a satisfaçã o de seus impulsos instintuais, mas
ela raramente, apenas em condiçõ es excepcionais, pode abstrair das
relaçõ es deste ser particular com os outros indivíduos. Na vida psíquica
do ser individual, o Outro é via de regra considerado enquanto modelo,
objeto, auxiliador e adversá rio, e portanto a psicologia individual é
também desde o início, psicologia social, num sentido ampliado, mas
inteiramente justificado20.

20
FREUD, Psicologia das massas, São Paulo: Companhia das Letras, p. 14
Essa introduçã o a Psicologia das massas deve ser lida, principalmente, como uma
nota metodoló gica. Freud insiste de maneira reiterada na impossibilidade de se
estabelecer distinçõ es estritas entre psicologia individual e psicologia social. O
que só pode significar que uma clínica da subjetividade será , necessariamente,
uma clínica de fenô menos sociais. Pois nã o há fato psicoló gico legível a partir de
uma perspectiva solipsista, os modos de relaçã o a si e a pró pria constituiçã o de
uma noçã o identitá ria como o si-mesmo é dependente destes fenô menos sociais
que sã o: “as relaçõ es dos indivíduos aos seus pais, irmã os e irmã s, a seu objeto de
amor, a seu professor e a seu médico”21. Freud chega mesmo a afirmar que a
distinçã o entre atos psíquicos sociais e atos psíquicos narcísicos deve ser situada
no interior da psicologia individual, já que nã o há ato psíquico narcísico, ou seja,
nã o há amor de si que nã o se oriente a partir da internalizaçã o de uma teleologia
das relaçõ es sociais. O que nã o poderia ser diferente já que identidades
individuais sã o produçõ es relacionais, as pró prias instâ ncias da vida psíquica sã o
internalizaçõ es de disposiçõ es sociais de conduta. Proposiçõ es que podem nos
levar à interpretaçã o de Etienne Balibar, para quem: “a pró pria individualidade é
um caso particular da formaçã o de massa”22.
Mas há de se saber como compreender tais estruturas de relaçõ es sociais.
Neste sentido, a grande crítica de método que Freud faz a psicologia social de seu
tempo pode ser sintetizada através da noçã o de abstraçã o. Ao tomar o indivíduo
isolado como “membro de uma linhagem, de um povo, uma casta, uma classe ou
uma instituiçã o”, a psicologia social passa por cima da estruturaçã o sistêmica dos
modos de interaçã o social, ou seja, deste modo de interaçã o social que vai
progressivamente se abrindo dos primeiros contatos entre mã e e bebê à família,
à s instituiçõ es sociais e ao Estado. Desenvolvimento progressivo que implica que
experiências primeiras de interaçã o no interior do nú cleo familiar servirã o de
base para desenvolvimento subsequentes. Isto é importante nã o para assumir
alguma forma de familiarismo, mas para insistir na dimensã o instauradora do
conflito. Pois a família é, antes de qualquer coisa, um nú cleo produtor de
conflitos e de ambivalências.
Por outro lado, note-se que Freud nã o ignora a dependência das
configuraçõ es familiares a estruturas sociais mais amplas. No entanto, quem diz
dependência nã o diz subsunçã o simples. Por isto Freud afirma: de nada adiante
tentar compreender a configuraçã o dos processos de interaçã o social postulando
algum princípio abstrato como “pulsã o gregá ria”, “pulsã o social”, “group mind”
etc. Devemos compreender como modos elementares de interaçã o influenciam
regimes de aplicaçã o de princípios sociais mais gerais. Daí porque Freud termina
insistindo: “Nossas expectativas sã o orientadas por duas possibilidades: que a
pulsã o social nã o seja nem originá ria nem indecomponível e que os inícios de sua
formaçã o possam ser encontrados em um círculo mais restrito, como por
exemplo na família”23.
A partir de tais consideraçõ es, Freud parte para uma certa revisã o de
literatura que ocupará os pró ximos dois capítulos. Tal revisã o começa com o
livro de Gustave Le Bon, La psychologie des foules, editado em 1895. A razã o nã o
deve ser procurada apenas no cará ter fundador deste livro que, aos olhos de
muitos, aparece como a inauguraçã o da psicologia social e como a realizaçã o

21
FREUD, Psicologia das massas - introdução
22
BALIBAR; “Psychologie des masses et analyse du moi: le moment transindividuel”. p. 42
23
FREUD, Psicologia das massas - introduçõa
clá ssica dos princípios de uma sociologia das massas de forte cará ter
conservador. De fato, Freud encontra uma problemá tica com a qual ele
compartilha, embora marcado por um encaminhamento que lhe é estranho. Em
seu livro, Le Bon começa afirmando:

As massas sempre desempenharam um papel importante na histó ria, mas


nunca tã o considerá vel quanto atualmente. A açã o inconsciente das
massas, substituindo a açã o consciente dos indivíduos, representa uma
das características da idade atual24.

Esta consciência do advento das massas à cena do político nas democracias


modernas, advento que implica uma política de mobilizaçã o capaz de romper
com o impéris seguro das leis e instituiçõ es, é o pano de fundo só cio-histó rico
das reflexõ es de Le Bon. Todo seu livro é uma tentativa de compreender o
advento das massas enquanto ator político como uma regressã o no sentido
psicoló gico do termo. Daí porque ele insistirá que uma massa psicoló gica seria
dotada de uma unidade mental resultante do desaparecimento da personalidade
consciente dos indivíduos Le Bon chega a usar a idéia de hipnose para insistir no
cará ter inconsciente do comportamento dos indivíduos no interior da massa.
Freud aceitará tal perspectiva ao afirmar que o comportamento da massa nã o
pode ser visto como a somató ria dos comportamentos individuais:

Devemos explicar o surpreendente fato de que este indivíduo sinta, pense


e aja de uma maneira totalmente distinta daquela que esperá vamos desde
que entra em uma multidã o de homens (Menschenmenge) que adquiriu a
qualidade de uma massa psicoló gica25.

Le Bon compreende tal mudança de comportamento como resultante do


fato de: que “nosso atos conscientes derivam de um substrato inconsciente
formado sobretudo por influências hereditá rias (...) por trá s das causas
assumidas de nossos atos, encontram-se causas sociais ignoradas por nó s” 26. Tais
causas resultantes de sedimentaçõ es que compõ e “a alma de um povo”
formariam um inconsciente coletivo responsá vel pela constituiçã o da unidade
mental da massa. Daí a afirmaçã o que a psicologia das massas seria uma
psicologias de processos de regressã o: “Pelo simples fato de fazer parte de uma
massa, o homem desce vá rios degraus na escada da civilizaçã o”27.
Esta comparaçã o entre comportamento social e hipnose já havia sido
abordada por Gabriel Tarde em um livro que apareceu cinco anos antes que este
de Le Bon, As leis da imitação. Tarde, visto também como um nome importante
na constituiçã o da psicologia social e recuperado recentemente principalmente
devido ao interesse de Gilles Deleuze por sua obra, insistia no papel fundamental
da imitaçã o na estruturaçã o do vínculo social: “o ser social, enquanto social, é por
essência imitador. A imitaçã o desempenha nas sociedades um papel aná logo
à quele da hereditariedade nos organismos e da ondulaçã o nos corpos brutos” 28.
No entanto, esta imitaçã o fundamental para a reproduçã o do vínculo social seria
24
LE BON, Psychologie des foules, préface
25
FREUD, Psicologia das massas – capítulo II
26
LE BON, idem, p. 22
27
idem, p. 24
28
TARDE, Les lois de l´imitation, p. 12
um fenô meno, em larga medida, desenvolvido de maneira inconsciente. Daí
porque Tarde irá descrever o homem social como um “verdadeiro sonâ mbulo” 29,
como alguém em estado constante de hipnose, já que, em todos os três casos
(sonambulismo, hipnose, açã o social) encontramos a ilusã o de ter ideias
sugestionadas e acreditar tê-las espontaneamente.
Mas, a fim de dar conta deste esquema de reproduçã o social através da
imitaçã o, Tarde precisa insistir no papel formador das relaçõ es de autoridade e
de prestígio. Daí afirmaçõ es como:

Foi necessá rio a fortiori no início de toda sociedade antiga uma grande
autoridade exercida por alguns homens soberanamente imperiosos e
afirmativos. Foi através do terror e da impostura, como se diz
normalmente, que eles reinaram? Nã o, esta explicaçã o é claramente
insuficiente. Eles reinaram graças a seu prestígio30.

A fim de explicar o que entende por prestígio, por uma certa forma de admiraçã o
capaz de sustentar relaçõ es sociais, Tarde faz entã o apelo à s relaçõ es pró prias a
hipnose. Segundo ele, o hipnotizado tem uma “força potencial de crença e de
desejo, imobilizada em lembranças de toda natureza, adormecidas mas nã o
mortas”31. O hipnotizador será aquele capaz de, através do seu prestígio,
atualizar tal força potencial, atualizar este desejo imobilizado em lembranças de
toda natureza. Ele será aquele capaz de colocar-se como sujeito que saber a
respeito da verdade do meu desejo. O que Tarde nã o está longe de aceitar ao
dizer: “Obedecer alguém nã o é sempre querer o que ele quer ou parece
querer?”32.Tal relaçã o de hipnose social baseada em relaçõ es assimétricas de
prestígio poderia nos explicar aquilo que Tarde chama de: “a passividade
imitativa do ser social”. Uma passividade que leva Tarde a dizer que a “sociedade
é a imitaçã o e a imitaçã o é uma espécie de sonambulismo”33.
Freud compreenderá fenô menos como a mú tua sugestã o dos indivíduos e
o prestígio do líder (poderíamos acrescentar aqui o carisma) como necessitando
de explicaçõ es. E para tanto ele mobilizará o conceito de “libido”. Ou seja, as
relaçõ es de autoridade e de coesã o no interior da massa sã o expressõ es de
vínculos libidinais inconscientes, vínculos esses que Freud nã o teme em remeter
ao conceito platô nico de “Eros”. Mas a respeito de tais vínculos, Freud dirá :

Todas essas tendências seriam expressã o dos mesmos impulsos


instintuais que nas relaçõ es entre os sexos impelem à uniã o sexual, e que
em outras circunstâ ncias sã o afastados dessa meta sexual ou impedidos
de alcançá -la, mas sempre conservam bastante da sua natureza original, o
suficiente para manter sua identidade reconhecível (abnegaçã o, busca de
aproximaçã o)34.

Ou seja, as relaçõ es políticas e a constituiçã o das massas sã o uma questã o


de atraçã o libidinal, de amor. Nã o há relaçã o vertical à autoridade e horizontal
29
idem, p. 84
30
idem, p. 86
31
idem, p. 87
32
idem, p. 97
33
idem, p. 97
34
FREUD; Psicologia das massas, op. cit., p. 43
aos membros da massa que nã o seja constituída a partir da dinâ mica das
relaçõ es amorosas, com sua produçã o de objeto de amor e suas modalidades de
identificaçã o. Nã o há sujeiçã o ou submissã o sem amor, é o que lembra Freud.
Amor que nã o desconhece a força de atraçã o dos corpos, a afecçã o dos corpos e
suas modalidades de prazer. Afecçã o que, mesmo deslocada, tem sua
inteligibilidade nos mecanismos sexuais de procura de prazer e gozo. Há um
gozo das massas e é ele que precisa ser compreendido caso queiramos entender
a natureza do político.
Se voltarmos a Psicologia das massas e análise do Eu, veremos Freud se
serve deste esquema a fim de afirmar que. no interior da massa, o indivíduo
poderia se livrar dos recalques de suas moçõ es pulsionais, o que acarretaria a
desapariçã o dos sentimentos de responsabilidade e da consciência moral. Essa
supressã o do recalque aproxima os fenô menos de massa e as formaçõ es do
inconsciente. Mas ele logo insiste em operar uma distinçã o extremamente
significativa: o inconsciente de Le Bon, diz Freud, este inconsciente resultante da
sedimentaçã o de heranças arcaicas nã o é o inconsciente psicanalítico fundado
em operaçõ es de recalque:

Nó s nã o negamos que o nú cleo do Eu (o Isso, como nomeamos mais


tarde), ao qual a “herança arcaica” da alma humana pertence, seja
inconsciente, mas nó s distinguimos um ‘recalque inconsciente” que é uma
parte desta herança. Este conceito de recalque falta em Le Bon 35.

Quer dizer, falta uma elaboraçã o clara da natureza dos conflitos psíquicos como
motor das experiências sociais que podem aparecer como herança de
experiências histó ricas. A verdadeira questã o é: quais os conflitos que levam
sujeitos a se constituírem em uma massa que se sustenta através da
implementaçã o de exigências libidinais? Esses conflitos psíquicos, cuja
compreensã o exige a mobilizaçã o dos conflitos inerentes à constituiçã o do Eu,
com suas dinâ micas de identificaçã o, com suas modalidades de sujeiçã o psíquica,
explicam principalmente a natureza das relaçõ es sociais de autoridade. Por isto,
contrariamente a Le Bon, Freud nã o se interessa pelas dinâ micas
revolucioná rias, já que os processos revolucioná rios sã o exatamente aqueles nos
quais as figuras de autoridade sã o depostas.
A este respeito, lembremos como alguns anos antes de Freud escrever
Psicologia das massas e análise do eu, um de seus mais antigos colaboradores,
Paul Federn, escrevera Sobre a psicologia da revolução: a sociedade sem pais
(1919). Neste texto, que Freud certamente conhecia pois seus argumentos
principais foram apresentados na Sociedade das quarta-feiras, Federn via no fim
do Império Austro-Hú ngaro e na queda da figura do Imperador, assim como na
vitó ria da Revoluçã o Soviética, a possibilidade do advento de sujeitos políticos
que nã o seriam mais “sujeitos do Estado autoritá rio patriarcal”. Para tanto, tais
sujeitos deveriam apelar à força libidinal das relaçõ es fraternas, relaçõ es
distintas e que nã o se derivam completamente da estrutura hierá rquica de uma
relaçã o com o pai que até entã o havia marcado a experiência política de forma
hegemô nica. Para que novas formas de identidades coletivas fossem possíveis,
nã o bastaria apenas transmutar a identificaçã o com o pai em recusa de seu
domínio. Seria necessá ria a existência de um modelo alternativo de
35
FREUD, Psicologia das massas, capítulo II
identificaçõ es que se daria de maneira horizontal e com forte configuraçã o
igualitá ria. Daí uma afirmaçã o maior como: “Dorme em nó s, igualmente herdada
ainda que em uma intensidade inferior ao sentimento de filho, um segundo
princípio social, este da comunidade fraterna cujo motivo psíquico nã o está
carregado de culpabilidade e temor interior. Seria uma liberaçã o imensa se a
revoluçã o atual, que é uma repetiçã o das revoltas antigas contra o pai, tiver
sucesso”36.
O modelo de Federn, baseado na defesa de que as relaçõ es fraternas
poderiam constituir um “segundo princípio social” relativamente autô nomo e
nã o completamente dedutível das relaçõ es verticais entre filhos e pais, inscreve-
se no horizonte de reflexõ es sobre estruturas institucionais pó s-revolucioná rias.
A partir de tal modelo, Federn tentará pensar o fundamento libidinal de
organizaçõ es políticas nã o-hierá rquicas como, por exemplo, os sovietes e os
conselhos operá rios que procuravam se disseminar na nascente repú blica
austríaca graças à s propostas dos social-democratas. A sociedade sem pais a que
Federn alude tem a forma inicial de uma repú blica socialista de conselhos
operá rios.
É fato que Freud nã o seguirá esta via. Para tanto, seria necessá ria a defesa
de uma dimensã o de relaçõ es intersubjetivas naturalmente cooperativas baseada
na reciprocidade igualitá ria. Tal dimensã o nã o existe nos escritos de Freud que,
neste sentido, estaria mais à vontade lembrando da agressividade pró pria à s
relaçõ es fraternas com suas estruturais duais baseadas em rivalidade. Por isto, as
relaçõ es de cooperaçã o tipificadas em confrarias ou comunidades de iguais só
podem se consolidar, dentro de um paradigma freudiano, apoiando-se na
exclusã o violenta da figura antagô nica. Isto talvez explique porque, mesmo
dizendo-se interessado pelos desdobramentos da revoluçã o bolchevique, Freud
pergunta-se sobre o que os soviéticos farã o com sua violência depois de
acabarem com seus ú ltimos burgueses.
Neste sentido, nã o é um mero acaso que os dois exemplos privilegiados de
massa para Freud nã o sejam, como poderíamos esperar, eclosõ es
revolucioná rias (como a Comuna de Paris, para Le Bon), mas o exército e a igreja:
duas instituiçõ es que nã o pareceriam, a primeira vista, exemplos de regressã o
social. Pois se trata de afirmar que a ló gica da regressã o social, esta mesma que
anteriormente foi usada para dar conta da tríade selvagem, criança, neuró tico e
que agora se vê acrescida da massa, é peça constitutiva que atua no cerne de
nossas instituiçõ es (e nã o simplesmente nas força que visam desestabilizá -las).
Se levarmos em conta que estamos a falar de um cidadã o do finado Império
Austro-Hú ngaro, podemos imaginar que esta forma de falar sobre o poder
teoló gico-político da igreja e as forças armadas é uma maneira metonímica de se
referir ao estado.
Ao falar sobre a igreja e as forças armadas, Freud privilegia a natureza
constitutiva das relaçõ es verticais ao líder. No caso da igreja, já que o exemplo
freudiano vem da igreja cató lica, o líder é Cristo. No caso das forças armadas, o
general. As relaçõ es entre os membros e o líder constitui uma relaçã o na qual
todos estã o igualmente distantes do centro, Por outro lado, é o vínculo libidinal
ao líder que constitui tais massas, isto a ponto do desaparecimento do líder
provocar ou pâ nico provocado pela anulaçã o das ligaçõ es mú tuas ou uma

36
FEDERN, Paul; “La société sans père”, In: Figures de la psychanalyse 2/2002 (n. 7), pp. 217-238
desintegraçã o que libera a violência generalizada contra aquele que aparece
como o outro.
Isto nos leva a dois fatores. O primeiro deles é a relaçã o entre identidade e
identificaçã o no interior dos fenô menos sociais. A proposiçã o de Freud se refere
a uma tese sobre o processo de formaçã o de identidades coletivas. Uma
identidade coletiva precisa de uma identificaçã o vertical para se constituir. Ela
precisa de uma relaçã o à representaçã o de soberania. Essa é uma tese forte e
polêmica, mas lembremos que tal identificaçã o vertical nã o precisa
necessariamente ser um líder. Ela pode se referir a um princípio diretivo, uma
ideia, uma representaçã o, uma organizaçã o. Mas, para Freud, tais identificaçõ es
verticais devem necessariamente existir.
Por outro lado, vemos como como as massas se organizam contra dois
fenô menos: o pâ nico e violência sem direçã o já que, como lembra Freud, nã o há
religiã o do amor sem violência; “Uma religiã o, mesmo que se denomine a religiã o
do amor, tem de ser dura e sem amor para com aqueles que nã o pertencem a ela.
No fundo, toda religiã o é uma religiã o do amor para aqueles que a abraçam, e
tende à crueldade e à intolerâ ncia para com os nã o seguidores”37. Nesta
proposiçã o, está sintetizado o fundamento do antagonismo político através da
consolidaçã o de relaçõ es amigo-inimigo. As massas sã o constituídas como
mecanismos de defesa contra o pâ nico vindo da angú stia da ausência de
identificaçã o, assim como da defesa contra a desintegraçã o da gestã o das
relaçõ es antagonistas entre amigo e inimigo.

Problemas de imagens

Um outro ponto central que leva Freud a se aproximar de Le Bon


enuncia-se na afirmaçã o: ‘A massa pensa por imagens que se chamam
(hervorrufen) por associaçã o, tal como acontece no homem isolado quando este
dá livre curso a sua imaginaçã o”38. Este pensar por imagens, pensar que segue a
ló gica da associaçã o com suas regras de contiguidade e semelhança, pensar que
explicaria fenô menos como o contá gio social, a catarse e a sugestã o, seria o ponto
de partilha entre massa, pensamento selvagem, pensamento infantil e neurose:

Os raciocínios inferiores das massas sã o, como os raciocínios elevados,


baseados em associaçõ es: mas as idéias associadas pelas massas tem,
entre elas, apenas ligaçõ es aparentes de semelhança ou de sucessã o. Elas
encadeiam-se à maneira das idéias de um Esquimó que, sabendo por
experiência que o gelo, corpo transparente, dissolve na boca, conclui que o
vidro, corpo igualmente transparente, deve dissolver na boca também; ou
do selvagem que acredita adquirir a bravura de um inimigo corajoso ao
comer seu coraçã o, ou do operá rio que, explorado pelo patrã o, conclui que
todos os patrõ es sã o exploradores39.

Esta noçã o assume a distinçã o entre imagem e conceito, entre a abstraçã o


pró pria ao conceito e a contiguidade indevida das imagens. No entanto,

37
FREUD, Psicologia das massas, op. cit., p. 14
38
idem,
39
LE BON, idem, pp. 44-45
percebemos novamente o deslocamento operado por Freud em idéias
relativamente correntes de sua época. O modo de pensar que Freud descreve é
aquele pró prio aos processos primá rios do inconsciente. Neste sentido, eles nã o
sã o arbitrá rios e vinculados ao erro, mas descrevem processos de encadeamento
de representaçõ es absolutamente necessá rios do ponto de vista da dinâ mica do
desejo. Eles permitem a compreensã o dos conflitos e desenvolvimentos que dã o
inteligibilidade a uma funçã o intencional central como o desejo. Por outro lado,
sendo as massas e as instituiçõ es o espaço de desdobramento de processos
primá rios, chega-se rapidamente à conclusã o de que a aná lise nã o deverá se
basear nas disposiçõ es normativas imanentes ao horizonte de racionalidade
social. Há uma dinâ mica inconsciente que deve ser desvelada e na qual se
encontra o verdadeiro fundamento da coesã o social.
Por outro lado, vemos como a figura de um pensar por analogias, por
similitudes aparece como pensar defeituoso que ignora os princípios
elementares da ló gica e do entendimento. Foucault e Adorno, por razõ es
distintas, insistiram bastante neste ponto: como a razã o moderna impô s à
mimesis como figura de um pensar exilado das exigências de racionalidade do
entendimento. Desde o descrédito cartesiano à imaginaçã o, o que tem afinidade
mimética é negado enquanto algo dotado de potência cognitiva. Vale sempre a
pena lembrar que a potência disruptiva da mimesis em sociedades pré-modernas
implica na implementaçã o social de processos de diferenciaçã o que nã o sã o
solidá rios da entificaçã o do princípio de identidade, como é o caso no
pensamento pró prio ao conceito moderno de razã o.
Por enquanto, devemos lembrar como Freud identifica o ponto cego das
teorias de Le Bon, assim como as teorias de McDougall, na reflexã o sobre a
natureza do líder das massas. De nada adiante, segundo Freud, tentar
compreender o poder da liderança (seja uma pessoa, uma idéia ou instituiçã o) a
partir de conceitos vagos como prestígio ou carisma. Mas antes de aprofundar a
natureza da relaçã o entre indivíduo e líder da massa, Freud passa à distinçã o de
McDougall entre massas organizadas (group) dotadas de singularidade e
responsá veis por processos de individuaçã o e massas desorganizadas e efêmeras
(crowd) que parecem impedir toda e qualquer individuaçã o. O fato significativo é
que Freud irá privilegiar o primeiro caso como o caso paradigmá tico. Ou seja, de
fato, a traduçã o inglesa de Strachey nã o estava totalmente incorreta: o
diagnó stico freudiano é também uma group psychology. O que deixa a crítica
freudiana ainda mais pró ximo de nossos modos de organizaçã o social.
É esta proximidade que mobiliza a crítica do jurista austríaco Hans Kelsen
à psicologia freudiana das massas. Em “O conceito de Estado e a psicologia social,
com especial referência à teoria da massa de Freud”, Kelsen se volta contra a
possibilidade das hipó teses fundamentais de Psicologia das massas e análise do
eu valerem também para sociedades democrá ticas insistindo, no seu caso, na
irredutibilidade da norma jurídica à crença ou amor por uma pessoa ou ideia
personificada. Ao acreditar na relaçã o fundamental entre norma e fantasia, ou
antes, ao operar como quem nã o é capaz de estabelecer distinçõ es entre norma e
fantasia, Freud generalizaria indevidamente o comportamento das massas e dos
“grupos transitó rios” fortemente dependentes de mó biles psicoló gicos para todo
e qualquer ordenamento jurídico possível. Freud nã o apenas indicaria a gênese
das ilusõ es substancialistas que afetam a representaçã o da autoridade do Estado,
mostrando como tais ilusõ es significariam o retorno de uma mentalidade arcaica
a ser combatida por inviabilizar uma concepçã o democrá tica da vida política
incapaz de sobreviver ao conflito particularista das paixõ es. Neste sentido, a
perspectiva freudiana nã o é eminentemente crítica, o que para Kelsen seria bem-
vindo. Ao contrá rio, ao insistir em compreender todo e qualquer vínculo social a
partir “dos processos de ligaçã o e associaçã o libidinal” em sua multiplicidade
empírica, ele pareceria expor a necessidade de tal ilusã o tanto para a pró pria
sobrevida da soberania do Estado quanto para a legitimidade da ordem jurídica.
De um lado, Kelson dirá : “Freud, portanto, vê o Estado como uma mente de
grupo”40, insistindo que uma linha vermelha teria sido atravessada, já que o
Estado, para o jurista austríaco

Nã o é um dos vá rios grupos transitó rios de extensã o e estrutura libidinal


variá veis; é a ideia diretora, que os indivíduos pertencentes aos grupos
variá veis colocaram no lugar de seu ideal de ego, para poderem, por meio
dela, identificar-se uns com os outros. As diferentes combinaçõ es ou
grupos psíquicos que se formam quando da realizaçã o de uma ú nica ideia
de Estado nã o incluem, de modo algum, todos os indivíduos que, num
sentido inteiramente diverso, pertencem ao Estado. A concepçã o
inteiramente jurídica do Estado só pode ser entendida na sua
conformidade jurídica específica, mas nã o psicologicamente, ao contrá rio
dos processos de ligaçã o e associaçã o libidinal, que sã o o objeto da
psicologia social41.

Ou seja, a existência de uma concepçã o inteiramente jurídica exigiria uma


universalidade genérica que nã o pode ser assegurada se creio que todas as
instituiçõ es devem necessariamente encontrar seu fundamento em processos de
identificaçã o e investimento libidinal, tal como quer Freud. Pois nã o haveria
identificaçõ es universalmente recorrentes, já que elas dependem das
particularidades empíricas das relaçõ es familiares em sua contextualidade
especifica.
No entanto, é fato de que, para o psicanalista, a “concepçã o inteiramente
jurídica do Estado” da qual fala Kelsen seria simplesmente uma hipó stase que
nos impediria de compreender as dinâ micas pró prias à quilo que poderíamos
chamar de “estrutura fantasmá tica da autoridade” em nossas sociedades, a saber,
a maneira com que autoridade e fantasia se articulam, o que nos levará
diretamente à teoria do supereu, como veremos na pró xima aula.
Freud havia fornecido as bases filogenéticas da fantasia que estrutura
nossa relaçã o ao lugar soberano do poder em Totem e tabu. Lá , Freud lembrava
como tudo se passava como se sujeitos agissem no interior das relaçõ es sociais
tendo que carregar o peso da culpabilidade e da melancolia produzida pelo
assassinato de um pai primordial. Os sujeitos se socializam, eles agem
socialmente a partir da culpa e da melancolia. Culpa anterior a qualquer açã o,
40
KELSEN, Hans; A democracia, São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 323
41
Idem, p. 327. Não deixa de ser sintomático a proximidade entre a vertente formalista kelseniana e
leituras “republicanas” como a crítica a Freud sugerida por Bernard Baas: “O agrupamento do povo
para o exercício do poder soberano, ou seja, do poder de fazer leis às quais todos aceitam obedecer, é a
ereção dos cidadãos que formam o bando político republicano. É claramente a ideia republicana que é
aqui objeto de amor unificando os cidadãos em um mesmo corpo: mas se trata de um corpo sem
cabeça, sem ‘chefe’ no sentido freudiano do termo” (BAAS, Bernard; Y a-t-il de psychanalystes sans-
culotte?, op. cit., p. 217)
melancolia vinda do sentimento de perda de um objeto perdido vivida sob a
forma de reprimendas e auto-depreciaçã o. Neste sentido, se Freud se vê
obrigado a afirmar o cará ter filogenético de sua fantasia social do pai primevo, é
por entender que os vínculos à ordem jurídica procuram se legitimar através da
reiteraçã o retroativa de um modelo de demanda de autoridade. Tais vínculos nã o
se alimentam apenas da especificidade de relaçõ es familiares, mas assentam-se
em outros “aparelhos de estado” como a igreja ou o exército, aparelhos mais
gerais que incitam continuamente a certas formas de vínculos libidinais. Com
esta crítica, Freud recusa até mesmo a legitimidade de um ordenamento jurídico
para além do Estado, já que se trata de criticar o fundamento fantasmá tica da
autoridade. De fato, a esfera do direito da qual fala Kelsen exige uma espécie de
“purificaçã o política dos afetos” através da defesa da validade ideal da norma que
só pode nos levar à crença na imunidade à problematizaçã o política do quadro
jurídico com seu ordenamento e seus mecanismos previamente estabelecidos de
revisã o. a teoria freudiana da psicologia das massas fornece uma crítica a tal
positivismo jurídico.
Psicologias do fascismo
Aula 3

Na aula de hoje, continuaremos a leitura de Psicologia das massas e análise


do eu a partir do comentá rio dos capítulos IV a VIII. É neste momento do texto
que fica mais explícito aquilo que Freud entende por “aná lise do Eu” e,
principalmente, como ele conta utilizar tal aná lise no interior do projeto de
compreender a natureza da psicologia das massas. Aqui aparecem a noçã o de
identificaçã o, a descriçã o do processo de constituiçã o da identidade pessoal
através do Complexo de É dipo, além a natureza libidinal da relaçã o entre a massa
e o líder e a dinâ mica melancó lica desse investimento. A ideia central de Freud é
mobilizar processos genéricos de constituiçã o do Eu a fim de expor os
fundamentos da regressã o social. Ou seja, trata-se de mostrar como a
compreensã o da constituiçã o do Eu moderno nos explica a tendência, inata a
nossas formas de vida, de produçã o de uma política regressiva de massas.
Enquanto constituirmos individualidades como fazemos, tais regressõ es serã o
sempre o nosso horizonte mais concreto.
Notem, por exemplo, a maneira como Freud passa de fenô menos
psicoló gicos “normais” à s relaçõ es pró prias à massa. Ele é capaz de começar por
descrever as dinâ micas de enamoramento e de amor para aproximá -las da
hipnose para, posteriormente, falar da relaçã o ao líder da massas como uma
relaçã o hipnó tica. Isto lhe leva a afirmar que a hipnose seria, na verdade: “uma
formaçã o de massa a dois”42. O que poderia nos levar a compreender as relaçõ es
amorosas como uma formaçã o de massa a dois, como a repetiçã o potencial de
tendências que serã o aumentadas no interior das massas.
Lembremo-nos do que vimos na aula passada, antes de continuar nossa
leitura. Freud partia da impossibilidade de se estabelecer distinçõ es estritas
entre psicologia individual e psicologia social. O que só podia significar que uma
clínica da subjetividade seria, necessariamente, uma clínica de fenô menos
sociais. Pois nã o haveria fato psicoló gico legível a partir de uma perspectiva
solipsista, os modos de relaçã o a si e a pró pria constituiçã o de uma noçã o
identitá ria como o si-mesmo seriam dependentes de fenô menos sociais como:
“as relaçõ es dos indivíduos aos seus pais, irmã os e irmã s, a seu objeto de amor, a
seu professor e a seu médico”43.
Mas Freud insistia na necessidade de compreender como se dã o, de forma
concreta, tais estruturas de relaçõ es sociais. Neste sentido, a grande crítica de
método que Freud fazia a psicologia social de seu tempo estava sintetizada na
noçã o de “abstraçã o”. Ao tomar o indivíduo isolado como “membro de uma
linhagem, de um povo, uma casta, uma classe ou uma instituiçã o”, a psicologia
social passaria por cima da estruturaçã o sistêmica dos modos de interaçã o social,
ou seja, deste modo de interaçã o social que vai progressivamente se abrindo dos
primeiros contatos entre mã e e bebê à família, à s instituiçõ es e ao Estado.
Desenvolvimento progressivo que implica que experiências primeiras de

42
FREUD, Psicologia das massas e análise do eu, op. cit., p. 71
43
FREUD, Psicologia das massas - introdução
interaçã o no interior do nú cleo familiar servirã o de base para desenvolvimentos
subsequentes. Isto permite a Freud fazer afirmaçõ es como:

a exploraçã o psicanalítica dos indivíduos ensina de maneira enfá tica que o


deus de cada homem é formado a partir do pai, que a relaçã o pessoal a
deus depende da sua relaçã o ao pai carnal, que ela oscila e se transforma a
partir desta ú ltima, e que deus, no fundo, nã o é outra coisa que um pai
elevado44.

Ou ainda, a respeito do comportamento social das massas : “Há nas massas


humanas uma forte necessidade de uma autoridade que se possa admirar (...) A
psicologia do indivíduo nos ensinou de onde vem tal necessidade das massas.
Trata-se da nostalgia do pai”45. No entanto, nã o se trata simplesmente de assumir
alguma forma de familiarismo que reduz a complexidade dos fenô menos
políticos e religiosos à projeçã o de dinâ micas internas ao nú cleo pais/mã e/filhos.
O que Freud realmente procura é insistir na dimensã o instauradora do conflito.
Pois a família é vista por Freud, antes de qualquer coisa, como um nú cleo
produtor de conflitos e de ambivalências.
Eu dissera na aula passada como esta era uma maneira de desconstituir a
crença na existência de um nú cleo de cooperaçã o imanente e de mutualismo
natural no interior da vida social. Se visõ es autoritá rias de sociedade tendem
normalmente a recuperar uma visã o idílica da família, além de projetar para as
estruturas gerais do poder as figuras do nú cleo familiar (o pai dos povos, a mã e
dos pobres, etc.), é por estarmos diante da defesa da artificialidade do
antagonismo. Como se a vida social nã o fosse antagô nica desde seu nú cleo mais
elementar de interaçã o social. Como se tais antagonismos pudessem ser
extirpados através de procedimentos de imunizaçã o contra os que nã o se
conformam à s formas da unidade e da totalidade orgâ nica. Lembremos, por
exemplo, de um manifesto eleitoral do partido nacional-socialista de 1932:

A mulher é por natureza e destino a companheira do homem. Isto implica


que todos os dois nã o sã o apenas companheiros para a vida, mas também
companheiros de trabalho. Da mesma forma que a evoluçã o econô mica
transformou, ao curso de milênios, o domínio do trabalho do homem, ela
transformou o da mulher. Mais imperioso que o trabalho em comum é o
dever do homem e da mulher na perpetuaçã o do gênero humano. É a
nobreza dessa missã o de sexos que é a causa dos dons naturais
específicos que a providência, em sua sabedoria eterna, dispensou
invariavelmente ao homem e à mulher. Nossa mais alta tarefa consiste em
facilitar aos dois companheiros ligados eternamente a fundaçã o de uma
família. Sua destruiçã o definitiva equivale à supressã o de toda
humanidade superior (...) ele é a unidade menor mas também a mais
importante de toda a estrutura do Estado.

Freud precisa insistir na prevalência do nú cleo familiar para colocar, na


origem da vida social, as marcas do antagonismo. Por isto, seu conceito de família
44
FREUD, Totem und tabu in Gessamelte Werke, vol.IX, Frankfurt, Fischer, 1999,, p. 177
45
FREUD, O homem Moisés e a religião monoteista, p. 207
é basicamente a narrativa de um sistema de conflitos de identificaçã o descrito
por ele através do complexo de É dipo.
Neste sentido, podemos aceitar que: “livrar a ideia do dirigente político da
analogia familiar-política, da analogia teológico-política assim como da analogia
epistemo-política (a compreensã o do dirigente como detentor do Saber) foi e
continua sendo uma tarefa incessante do pensamento crítico”46. Mas nã o
devemos ver Freud como alguém que procuraria retornar a tais analogias
familiar-políticas ao insistir em como as representaçõ es de liderança sã o
produzidas e dependem de representaçõ es familiares. Pois se Freud opera desta
forma é para demonstrar como as saídas neuró ticas do complexo de É dipo ainda
determinam nossas formas de aquiescência ao poder, nossas maneiras de dirigir
demandas à esfera do político.
Lembremo-nos disto para compreender melhor porque Freud partilha
com Le Bon a defesa da natureza inconsciente da açã o das massas, mas para
dizer que o inconsciente psicanalítico nada tem a ver com o sistema de heranças
hereditá rias descrito pela psicologia das massas de sua época:

Nó s nã o negamos que o nú cleo do Eu (o Isso, como nomeamos mais


tarde), ao qual a “herança arcaica” da alma humana pertence, seja
inconsciente, mas nó s distinguimos um ‘recalcamento inconsciente” que é
uma parte desta herança. Este conceito de recalcamento falta em Le Bon 47.

Se falta uma elaboraçã o clara da natureza dos conflitos psíquicos como motor
das experiências sociais que podem parecer herança de experiências histó ricas, é
porque falta a compreensã o da maneira com que os conflitos psíquicos
produzidos nos processos “normais” de socializaçã o produzem indivíduos com
fortes tendências a regressã o social. Por isto, lembrei a vocês como nã o era mero
acaso que os dois exemplos privilegiados de massa para Freud nã o fossem, como
poderíamos esperar, eclosõ es revolucioná rias (como a Comuna de Paris, para Le
Bon), mas o exército e a igreja: duas instituiçõ es que nã o pareceriam, a primeira
vista, exemplos de regressã o social. Pois se tratava de afirmar que a ló gica da
regressã o social, esta mesma que anteriormente foi usada para dar conta da
tríade selvagem, criança, neuró tico e que agora se vê acrescida da massa, é peça
constitutiva que atua no cerne de nossas instituiçõ es (e nã o simplesmente nas
força que visam desestabilizá -las). Assim, se a questã o fundamental do texto de
Freud era: “porque homens modernos retornam a estruturas de comportamento
em contradiçã o flagrante com seus pró prios níveis de racionalidade e com o
está gio atual da civilizaçã o tecnoló gica esclarecida”48, a resposta passava por
expor como tais “níveis de racionalidade” e tal “está gio atual da civilizaçã o” era
indissociá vel da conservaçã o de arcaísmos e de formas de servidã o.
Freud termina esta parte introdutó ria identificando uma espécie de ponto
cego das teorias de Le Bon, assim como nas teorias de McDougall. Ponto este que
se encontraria na reflexã o sobre a natureza do líder das massas. De nada adiante,
segundo Freud, tentar compreender o poder da liderança (seja uma pessoa, uma
idéia ou instituiçã o) a partir de conceitos vagos como prestígio ou carisma. Para
compreender a dinâ mica do político nas sociedades modernas faz-se necessá rio

46
MONOD, Jean-Claude; Qu’est-ce qu’un chef en démocratie?, Paris: Seuil, p. 87
47
FREUD, Psicologia das massas, capítulo II
48
ADORNO, Freudian theory ..., p. 412
uma teoria que vincule os processos de formaçã o do Eu à aná lise da natureza dos
vínculos entre sujeitos e figuras de autoridade. Este é o problema central do livro
e é ele que será o objeto das articulaçõ es presentes nos pró ximos capítulos.
Trata-se de um problema que permitirá , a leitores como Adorno, encontrar neste
livro a previsã o: “da ascensã o e natureza dos movimentos fascistas de massa
através de categorias puramente psicoló gicas”49.

Identificação e interação social

Partamos pois da análise dessa “mais antiga e original forma de ligação


afetiva”50, a saber, a identificação. Notemos inicialmente que “identificação” é um
conceito que visa descrever um dispositivo fundamental do processo de formação do
Eu como instância de auto-referência. É só através da identificação que o Eu se
constitui como instância, já que não haveria nada parecido a um Eu, com sua
capacidade de auto-referência e sua estrutura de identidade, originariamente. No
entanto, sabemos que a psicanálise partilha a noção de que a constituição do Eu é
resultado de um processo de socialização. Em suma, não há instância idêntica ao Eu
antes da internalização de processos de socialização. Mas socializar é,
fundamentalmente, “fazer como”, atuar a partir de tipos ideais que servem de modelo
e de pólo de orientação para os modos de desejar, julgar e agir. Daí porque a
identificação pode aparecer como peça fundamental para a compreensão do processo
de formação do Eu. O Eu é uma produção social e trata-se de compreender melhor as
engrenagens de tal produção.
Nó s já sabemos que Freud trabalha com uma ló gica sistêmica na
articulaçã o dos processos de socializaçã o, ló gica esta que se inicia no interior do
nú cleo familiar para se abrir em direçã o a esferas sociais cada vez mais amplas.
Isto explica sua tendência em procurar raízes de problemas e configuraçõ es de
vínculos sociais mais amplos a partir dos conflitos pró prios à esfera familiar. É
isto que vemos no capítulo VII do nosso texto. Nele ,Freud se propõ e a descrever
a ló gica dos processos de identificaçã o na esfera familiar a partir do Complexo de
É dipo. A seu ver, isto poderia dar conta da natureza da relaçã o do indivíduo ao
líder das massas, assim como do sistema de expectativas que ela suporta.
Do Complexo de É dipo guardemos aqui este processo que vemos mais
claramente no caso da criança masculina. A fim de ser reconhecido como sujeito
no interior do nú cleo familiar, ele deve se identificar com o pai e com a ordem
que ele estabelece. Isto significa nã o poder realizar o investimento libidinal neste
primeiro objeto que lhe proporcionou satisfaçã o lidibinal, ou seja, a mã e. Esta
distinçã o entre identificaçã o e investimento é da mesma ordem que a
diferenciaçã o entre ser como um tipo ideal e ter um objeto capaz de preencher
expectativas de satisfaçã o pulsional.
No entanto, esta identificaçã o implica em internalizaçã o de princípios de
conduta através da formaçã o de um “Ideal do eu” e de dispositivos de repressã o
a moçõ es pulsional através daquilo que Freud chama de “supereu”. Esta
internalizaçã o é o que Freud chama no texto de “introjeçã o do objeto no eu” e
pode aparecer ainda como processo de introjeçã o do objeto perdido na
melancolia ou como escolha homossexual de objeto. Lembremos ainda que tal
introjeçã o pode se dar de outras formas, além da constituiçã o de ideais. Ela pode

49
ADORNO, Freudian theory and the patterns of fascist propaganda, p. 411
50
FREUD, Psicologia das massas, op. cit., p. 63
se dar de maneira parcial “tomando apenas um traço da pessoa-objeto” 51. Ela
pode se por identificaçã o ao sintoma do outro, ou seja, repetindo seus modos de
adoecer e seus conflitos.
Freud insiste nestes processos de identificaçã o a fim de lembrar como ele
tem valor explicativo no caso da relaçã o entre o indivíduo e o líder da massa.
Pois percebamos que este objeto introjetado, embora apareça inicialmente como
limitaçã o do narcisismo, é ainda um modo de investimento narcísico, já que ele
aparece como Ideal do eu. Isto nos leva a afirmar que:

o cará ter primitivamente narcísico da identificaçã o como um ato de


devorar, de fazer o objeto amado parte de si mesmo, pode nos
providenciar uma explicaçã o para o fato de que a moderna imagem do
líder parece, as vezes, o alargamento da pró pria personalidade do sujeito,
uma projeçã o coletiva de si mesmo52.

Ou seja, a identificaçã o nã o é normalmente com alguém em posiçã o de


ideal regulador, de modelo sublimado, mas alguém que é “o alargamento da
pró pria personalidade do sujeito”, alguém que é “como nó s”, que tem as mesmas
fraquezas, explosõ es de raiva e incongruências. Ele fala o que nó s pensamos mas
nã o temos mais o direito de falar. Isto porque a identificaçã o é narcísica. O líder
sempre terá traços que o faz alguém que parece estar no mesmo nível que nó s,
pois se trata de constituir relaçõ es sociais a partir do narcisismo.
É para insistir neste ponto que Freud lembra como a identificaçã o pró pria
aos processos de formaçã o do Eu está em operaçã o em estados amorosos nos
quais o objeto amado é colocado no lugar do Ideal do Eu, como se uma certa
quantidade de libido narcísica fosse transposta para o objeto para depois
retornar sob as formas da introjeçã o. E veremos como Freud descreve essas
relaçõ es amorosas em chave necessariamente narcísica.

Melancolia e poder

Comecemos, no entanto, por salientar outro aspecto. Notemos como


Freud insiste que esse processo de introjeçã o que constitui o Eu e suas relaçõ es
também se encontra na base da melancolia. Nesse caso, vemos: “o Eu dividido,
decomposto em dois pedaços, um dos quais se enfurece com o outro. Esse outro
pedaço é aquele transformado pela introjeçã o, e que contém o objeto perdido” 53.
Na verdade, ao mostrar a similitude entre identificaçã o e certa forma de
patologia, Freud toca em um ponto central a respeito das relaçõ es entre
melancolia e poder. Judith Butler foi uma das primeiras a perceber claramente
isto ao lembrar que:

o relato sobre a melancolia é uma relato a respeito de como os domínios


psíquico e social sã o produzidos um em relaçã o ao outro. Enquanto tal, a
melancolia oferece uma visã o potencial a respeito de como os laços do
social sã o instituídos e mantidos, nã o apenas à s expensas da vida psíquica,

51
FREUD, Psicologia das massas, op. cit., p. 64
52
ADORNO, idem, p. 418
53
FREUD, Psicologia das massas, op. cit., p. 67
mas através da ligaçã o da vida psíquica à formas de ambivalência
melancó lica54.

Pois a melancolia é o modo privilegiado de produçã o da vida psíquica, ao menos


no interior das relaçõ es de poder que sã o imanentes a nossas formas de vida.
Podemos dizer isto porque a melancolia deixa evidente uma dinâ mica de
produçã o da vida psíquica que levará à constituiçã o de estruturas fundamentais
da vida psíquica, como o supereu. Partamos, por exemplo, de afirmaçõ es como:

foi-nos dado esclarecer o doloroso infortú nio da melancolia, através da


suposiçã o de que um objeto perdido é novamente estabelecido no Eu, ou
seja, um investimento objetal é substituído por uma identificaçã o (…)
Desde entã o compreendemos que tal substituiçã o participa enormemente
na configuraçã o do Eu e contribui de modo essencial para formar o que se
denomina seu caráter55.

Se a melancolia deixa evidente dimensõ es importantes do processo de


configuraçã o do Eu em seu cará ter pró prio, das transformaçõ es do cará ter do Eu,
e se elas sã o mobilizadas para explicar como se dá a relaçã o entre massa e líder,
é porque as identificaçõ es nas quais o poder político se assenta agem produzindo
em nó s melancolia, fazendo-nos ocupar uma posiçã o necessariamente
melancó lica. Podemos dizer que o poder nos melancoliza e é desta forma que ele
nos submete. Esta é sua verdadeira violência, muito mais do que os mecanismos
clá ssicos de coerçã o e dominaçã o pela força, pois se trata aqui de violência de
uma regulaçã o social que leva o Eu a acusar a si mesmo em sua pró pria
vulnerabilidade, sujeitando-se e paralisando sua capacidade de açã o ou de levá -
lo a uma reaçã o agressiva contra aqueles que portam o que outrora foi amado.
Pois a melancolia tem dois destinos: a auto-reprimenda sá dica ou a
exteriorizaçã o da violência contra si para algo que outrora foi amado.
A este respeito, lembremos primeiro como, para Freud, a melancolia é
uma forma de amor. Mesmo a maneira com que Freud descreve o enamoramento
nã o deixa de ter traços profundamente melancó licos. Por exemplo:

O objeto se colocou no lugar do ideal do Eu. Agora é fá cil descrever a


diferença entre a identificaçã o e o enamoramento em suas mais
desenvolvidas formas, chamadas de ‘fascínio’ e ‘servidã o enamorada’. No
primeiro caso o Eu se enriqueceu com os atributos do objeto, ‘introjetou-
os’, na expressã o de Ferenczi; no segundo ele está empobrecido, entregou-
se ao objeto, colocou-o no lugar de seu mais importante componente 56.

Ou seja, o apaixonar-se é descrito por Freud como uma espécie de “servidã o


enamorada” na qual o Eu se empobrece por se entregar ao objeto, por idealiza-lo:
“o objeto consumiu o Eu, por assim dizer” 57. Isto a ponto de Freud comparar o
objeto amado ao hipnotizador: “a mesma humilde sujeiçã o, mesma docilidade e

54
BUTLER, Judith; The psychic life of power, p. 168
55
FREUD, Sigmund; “O Eu e o Id”, In: Obras completas vol. 16, São Paulo: Companhia das Letras,
2011, p. 34.
56
FREUD, idem, p. 73
57
Idem, p. 72
ausência de crítica ante o hipnotizador, como diante do objeto amado” 58. Essa
forma de descrever o enamoramento como empobrecimento do Eu, e nã o como
alguma forma de confirmaçã o mú tua de si no interior de relaçõ es pretensamente
simétricas ou como alguma forma de despossessã o mú tua que leva todos a
narrarem a si de outra forma, mostra como estamos a falar de relaçõ es
assimétricas fundadas em uma ló gica melancó lica, na qual o objeto amado retira
sua força da associaçã o a um objeto perdido.
Se formos a um texto fundamental de Freud tal qual “Luto e melancolia”,
veremos porque Freud insiste em inserir a etiologia da melancolia no interior de
uma reflexã o mais ampla sobre as relaçõ es amorosas. Essa é a maneira freudiana
de lembrar que o amor nã o é apenas o nome que damos a uma escolha afetiva de
objeto. Ele é a base dos processos de formaçã o da identidade subjetiva a partir
da transformaçã o de investimentos libidinais em identificaçõ es. Esta é uma
maneira de dizer que as verdadeiras relaçõ es amorosas colocam em circulaçã o
dinâ micas identificató rias de formaçã o da identidade, já que tais relaçõ es
fornecem o modelo elementar de laços sociais capazes de socializar o desejo, de
produzir as condiçõ es para o seu reconhecimento. Através das relaçõ es
amorosas, traços de cará ter sã o modificados e identificaçõ es ao outro sã o
integradas. Eu sou aquilo que eu amo.
Por exemplo, Freud aceita uma teoria na qual a bissexualidade é a posiçã o
inata dos sujeitos. Eles começam por investir libidinalmente as duas figuras
parentais, o pai e a mã e. No decorrer do processo de constituiçã o de uma
identidade de gênero, um desses investimentos é recalcado, perdido. Mas essa
perda nã o é simples anulaçã o. Antes, ela produz uma posiçã o melancó lica. A
posiçã o masculina deve perder o investimento libidinal na figura paterna,
trocando-o por uma identificaçã o. A posiçã o feminina deve perder o
investimento libidinal na figura materna, trocando-o por uma identificaçã o. Estes
investimentos, no entanto, mesmo recalcados voltam melancolicamente ou como
reprimenda e desvalorizaçã o contra si, por ter perdido o objeto outrora amado.
Neste sentido, lembremos da definiçã o freudiana:

A melancolia se caracteriza por um desâ nimo profundamente doloroso,


uma suspensã o do interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de
amar, inibiçã o de toda atividade e um rebaixamento do sentimento de
autoestima, que se expressa em auto-recriminaçõ es e auto-insultos,
chegando até a expectativa delirante de puniçã o 59.

Assim a tese fundamental de Freud consiste em dizer que tudo se passa


como se a sombra desse objeto fosse internalizada por incorporaçã o, como se a
melancolia fosse a continuaçã o desesperada de um amor que nã o pode lidar com
suas perdas. Incapacidade vinda do fato da perda do objeto que amo colocar em
questã o o pró prio fundamento da minha identidade. Mais fá cil mostrar que a voz
do objeto ainda permanece em mim, através da autoacusaçã o patoló gica contra
aquilo que, em mim, parece ter fracassado em conservá -lo ou que permanece em
mim como marcas de identificaçã o narcísica com o objeto que me decepcionou.
Nesse sentido, uma afirmaçã o importante de Judith Butler diz que “Freud
identifica consciência elevada e auto-reprimendas enquanto signos da
58
Idem, p. 73
59
FREUD, Sigmund; Luto e melancolia, São Paulo: Cosac e Naif, 2010, p. 47.
melancolia com um luto incompleto. A negaçã o de certas formas de amor sugere
que a melancolia que fundamenta o sujeito expressa um luto incompleto e nã o
resolvido”60. Assim, a sujeiçã o do desejo pode se transformar em desejo por
sujeiçã o. Essa é uma maneira de dizer que a melancolia é o saldo afetivo
fundamental de um modelo hegemô nico de instauraçã o da vida psíquica.
Notemos entã o como o poder melancoliza os sujeitos que ele assujeita,
fornecendo o fundamento libidinal das dinâ micas de servidã o voluntá ria. Freud
compreende que a relaçã o da massa ao líder é caracterizada por impulsos
sexuais inibidos na meta. Isto significa que, mesmo servindo-se de energia
libidinal, as relaçõ es autoritá rias de poder fundamentam-se na perpetuaçã o de
certa forma de recalque. Mas de um recalque que, ao mesmo tempo, reascende a
força do objeto anteriormente investido. Assim Freud poderá dizer:

É interessante ver que justamente os impulsos sexuais inibidos na meta


conseguem criar laços tã o duradouros entre as pessoas. Mas isso se
entende com facilidade a partir do fato de nã o serem capazes de plena
satisfaçã o, enquanto os impulsos sexuais nã o inibidos experimentam uma
extraordiná ria reduçã o, mediante a descarga, toda vez que atingem sua
meta61.

A plena satisfaçã o dos impulsos sexuais permite uma descarga que nã o faz
“laços tã o duradouros entre as pessoas”. Mas a duraçã o é baseada em uma forma
muito específica de inibiçã o, a saber uma inibiçã o melancó lica. Uma inibiçã o da
meta que guarda relaçõ es indiretas com a meta inibida. O líder autoritá rio
guarda sempre traços daquilo que ele combate ou organiza purgaçõ es perió dicas
contra grupos e sujeitos que reascendem aquilo que os sujeitos precisaram
perder para constituir os sistema de cicatrizes que representa sua pró pria
identidade. Essa dinâ mica é fundamental para compreendermos a ló gica libidinal
da relaçã o entre massa e líder. O líder, assim como a instituiçã o autoritá ria,
oferece uma maneira do sujeito se relacionar à quilo que fora anteriormente
objeto de seu investimento e que ele precisou recalcar para constituir uma
identidade. Essa maneira pode se dar de duas formas: através de impulsos
sexuais inibidos na meta (e nã o é por outra razã o que Freud procurou, como
paradigma das massas, duas instituiçõ es homogêneas e de forte vínculo
homossexual inibido como a igreja e o exército) ou através da inversã o do afeto,
de amor a raiva, e a constituiçã o do objeto social de agressã o. A explosã o de
desrecalque que a massa produz é, na verdade, apenas a contrapartida de uma
posiçã o melancó lica mais profunda e original.

Uma teoria do supereu

Nesse ponto, podemos entender melhor a definiçã o freudiana de massa:


“Uma massa primá ria desse tipo é uma quantidade de indivíduos que puseram
um ú nico objeto no lugar de seu ideal do eu e que, consequentemente, se
identificaram uns com os outros em seu Eu” 62. Os membros da massa
identificam-se entre si horizontalmente porque todos eles se identificam

60
BUTLER, The psychic life of power, p. 23
61
FREUD, Psicologia das massas, p. 75
62
FREUD, idem, - capítulo VIII
verticalmente com um ú nico objeto no lugar de seu Ideal do Eu, ou ainda, de seu
supereu. O líder da massa é assim um representante do supereu social. Freud
ainda dirá , de forma mais explícita: “o indivíduo abandona seu ideal do eu
(Ichideal) e o troca pelo ideal da massa, encarnado pelo líder (Führer)” 63.
Lembremos, a este respeito, de alguns traços gerais dos processos de
socializaçã o pró prios à família burguesa. Relaçã o marcada pela sobreposiçã o
entre rivalidade e identificaçã o que aparece de maneira mais visível no conflito
entre o filho e aquele que sustenta a lei paterna. Para ser reconhecido como
sujeito e como objeto de amor no interior da esfera familiar, faz-se necessá rio
que o sujeito se identifique exatamente com aquele que sustenta uma lei
repressora em relaçã o à s exigências pulsionais. Para ser reconhecido como
sujeito, a criança deve abrir mã o de certos desejos (como os desejos incestuosos
e agressivos) e saber hierarquizar suas pulsõ es a partir de uma vontade
relativamente unitá ria. Ele deve aprender a « agir como » uma autoridade
paterna dotada de força de coerçã o.
O resultado é a internalizaçã o psíquica de uma ”instâ ncia moral de
observaçã o”, no caso, o supereu derivado da identificaçã o com os pais e outras
representaçõ es de autoridade. A internalizaçã o da lei parental através do
supereu é, para Freud, signo sempre legível de uma demanda de amor, e saber-se
objeto amado por um Outro (que é representante da Lei simbó lica), saber-se
potencialmente protegido por alguém a quem reconheço certa força tem, para o
sujeito, o valor da anulaçã o de uma posiçã o existencial de pura contingência.
Lembremos disto: todo vínculo a autoridade é baseado sob alguma forma de
demanda de amor e reconhecimento; ele nunca é simplesmente o resultado de
alguma coerção. No entanto, há um conflito fundamental entre, de um lado,
repressã o a desejos incestuosos, agressivos e polimó rficos e, de outro, demanda
de amor e reconhecimento.
Podemos nos perguntar aqui por que a formaçã o de uma instâ ncia
psíquica como o supereu deve ser vivenciada necessariamente sob a forma da
repressã o. Pois ela poderia ser vivenciada como uma espécie de aceitaçã o tanto
da limitaçã o necessá ria de exigências pulsionais de satisfaçã o quanto de um
ordenamento fundamental para a perpetuaçã o da vida social. Mas sabemos como
Freud insiste ser impossível submeter-se integralmente às injunções do supereu
sem que isto não leve à pura e simples auto-destruição. Conhecemos as pá ginas de
Freud dedicadas à descriçã o da « ferocidade » irracional do supereu na sua
aplicaçã o de exigências ao Eu. Isto a ponto dele indicar, como ideal do
tratamento psicanalítico : « fortalecer o Eu, torná-lo independente do supereu,
estender seu campo de percepçã o e ampliar sua organizaçã o de maneira que ele
possa se apropriar de pedaços do Isso. Onde Isso  estava, devo Eu advir »64. Isto
talvez se explique pelo fato do supereu não ser apenas a internalização de um
conjunto de regras e normas que visam orientar a conduta e o desejo. Antes, ele
indica a constituição e internalização de uma representação fantasmática de
autoridade que sempre acompanhará o sujeito. Ele é o complemento fantasmático
necessário para minha aquiescência à regra e à norma. Tal representaçã o é, ao
mesmo tempo, objeto de amor (por ocupar o lugar para o qual minhas demandas
de amparo se dirigem, por alimentar minhas expectativas de gratificaçã o, por

63
FREUD, Massenpsychologie und Ich-analyse, p. 144
64
Idem, GW vol. XV, op. cit., p. 86
aparecer como promessa de segurança e proteção) e de ó dio (por suas injunçõ es
serem vivenciadas de maneira restritiva).
Jacques Lacan tem uma maneira precisa de explicar esta natureza
restritiva do supereu, isto quando insiste que ele é uma “lei desprovida de
sentido”65. Podemos compreender tal ausência de sentido a partir da ideia de que
as injunçõ es do supereu sã o determinaçõ es contraditó rias feitas apenas para
submeterem o sujeito a uma representaçã o fantasmá tica de autoridade que deve
perpetuar um sentimento de inadequaçã o, fraqueza e impotência. Como se, ao
final, a afirmaçã o do líder para as massas seria sempre um: “vocês nã o estavam à
altura”. Como Hitler a dizer que ao final que o povo alemã o nã o estava à altura de
seu destino.
Este sentimento de inadequaçã o é fundamental para conservar uma
representaçã o de autoridade superegó ica, já que a possibilidade de tal
representaçã o conservar-se como ló cus de acolhimento de uma demanda de
amor está vinculada ao velamento de sua impossibilidade em dar conta do
desamparo e de impedir a confrontaçã o com a contingência. E a maneira mais
eficaz para isto é impondo obrigaçõ es contraditó rias ou superlativas que nunca
poderã o ser realizadas pelo sujeito. Desta forma, a ineficá cia do supereu em suas
funçõ es de proteçã o e segurança acaba por ser, de uma certa forma, invertida
para ser vivenciada como impotência do pró prio sujeito em se adaptar à s
exigências do supereu, o que ao menos preserva o supereu como representaçã o
fantasmá tica de autoridade. Estamos dispostos a tudo, mesmo a nos auto-destruir,
para defender a crença de que há um amor que pode nos livrar da insegurança.
Estamos dispostos até a esconder a impotência do Outro que nos promete tal
amor. Neste sentido, só podemos concordar com psicanalista inglês Adam
Phillips :

“Do ponto de vista de Freud, nossa impotência nã o diminui com o tempo.


Ela nos inquieta cada vez mais, e o terror da qual ela é a fonte nos faz
procurar a segurança ao invés da satisfaçã o, a magia ao invés do alimento,
o desmentido ao invés da constataçã o. Para Freud, somos animais
atormentados por nossa impotência”66.

Isto explica um pouco porque o supereu é, como disse Balibar em uma


fó rmula feliz, o representante da política no interior da teoria do inconsciente e o
representante do psiquismo inconsciente no interior da teoria política 67. Pois,
primeiro, ele expõ e de maneira clara como as relaçõ es de poder constituem
sujeitos através da internalizaçã o nã o apenas de normas, mas de uma “instâ ncia
moral de observaçã o” que nos “pastoreia” ao mesmo tempo que nos julga
implacavelmente. Perguntar-se sobre a economia libidinal do poder é, para
Freud, evidenciar o ponto de interseçã o entre “cuidar” e “culpar”, entender como
o cuidado paterno é indissociá vel da perpetuaçã o de relaçõ es profundas de
dependência e sujeiçã o alimentadas nã o apenas pela reiteraçã o do medo da paz
do rebanho ser, a qualquer momento, destruída pela matilha de lobos, medo que
o pastor saberá bem manejar para conservar o rebanho paralisado, mas pela

65
LACAN, Jacques; Séminaire I, Paris: Seuil, 1975, p. 9
66
PHILLIPS, Adam; Trois capacites négatives, Paris : Editions de l´Olivier, 2009, pp. 90-91.
67
BALIBAR, Etienne; Citoyen Sujet et autres essais d’anthropologie philosophique, Paris: Seuil, 2011,
p. 384
culpabilizaçã o do meu pró prio desejo de violência contra a norma de igualdade
restritiva enunciada pelo poder. Neste sentido, se Freud pode dizer que o
sentimento de culpa é o “mais importante problema no desenvolvimento da
civilizaçã o”68 é porque, entre outras coisas, ele conhece sua funçã o decisiva na
construçã o da coesã o social e na sustentaçã o das relaçõ es com a autoridade. Uma
funçã o que nã o se reduz à expressã o da responsabilidade consciente diante dos
impulsos de transgressã o de normas aceitas como necessá rias para a
perpetuaçã o da vida social. Ela indica principalmente o vínculo libidinal
inconsciente com objetos que perdemos, que ainda tem a força de projetar em
nó s a sombra de reprimendas sem fim e de auto-destruiçã o melancó lica. A culpa
que sustenta os laços sociais sob a égide do poder tem uma gênese em fantasias
inconscientes construídas a partir de objetos que perdemos, e muito pouco tem a
ver com a expressã o de uma responsabilidade diante da perpetuaçã o da vida
institucional assumida de forma consciente.

68
FREUD, Sigmund; “O mal estar na civilização”, op. cit., p. 106
Psicologias do fascismo
Aula 4

Na aula de hoje, vamos terminar nossa leitura de Psicologia das massas e análise
do eu através do comentá rio de seus ú ltimos capítulos. Neles, veremos a
mobilizaçã o feita por Freud a partir da hipó tese antropoló gica do assassinato de
uma figura coercitiva como fundamento do vínculo social. Assassinato provoca
uma circulaçã o de afetos que pulsam entre a melancolia e a mania, definindo as
dinâ micas regressiva no interior da massa.
Antes, gostaria de lembrar a vocês o que vimos até agora, qual o saldo de
nosso trajeto de leitura. Vimos como Freud abria o espaço para uma psicologia
das massas que se enraizava na aná lise dos processos de formaçã o da
individualidade moderna. Sua ideia central era de que os fenô menos sociais de
regressã o nã o poderiam ser vistos como a emergência de estruturas arcaicas
sedimentadas em um inconsciente que se confundiria com a dimensã o do
irracional. Eles eram o anverso necessá rio dos processos hegemô nicos de
constituiçã o de individualidades. Freud procurou mostrar como individualidades
eram constituídas a partir de identificaçõ es através das quais lidá vamos com
nossas contradiçõ es, nossas bivalências, nossa polimorfia a partir da
internalizaçã o de figuras disciplinares que tiravam sua força nã o daquilo que eles
eram capazes de produzir, mas da maneira com que eles eram capazes de
perpetuar nossa dependência a um poder social que nã o poderia entregar o
amparo que prometia. Ou seja, a ideia central de Freud é que a individualidade
moderna é estruturalmente dividida, ela é um espaço estrutural de sofrimento
por estar cindida entre a disciplina e sua transgressã o, entre a unidade e a
multiplicidade, por ser o campo de uma espécie de guerra civil.
As formas de sua gestã o desta divisã o serã o o fundamento para os
processos de regressã o social. Assim, as regressõ es nã o serã o simplesmente o
retorno a alguma forma de demanda de proteçã o paterna, de retorno à
simplicidade dicotô mica de situaçõ es. Elas serã o, na verdade, as formas de gestã o
da divisã o subjetiva. Vimos uma dessas formas de gestã o através da melancolia.
Eu afirmara que a massa é uma produçã o melancó lica, que a verdadeira violência
do poder consiste em submeter sujeitos à melancolia, que há uma melancolia das
massas. Isto nos permitiu compreender um pouco porque Freud insiste tanto em
levar em conta a natureza vertical da relaçã o entre massas e líder. Pois ele quer
mostrar como a violência das massas contra grupos e populaçõ es específicas, sua
relaçã o hipnotizada ao líder nã o sã o explosõ es arcaicas de violência originá ria,
nem a expressã o de uma necessidade animal de submissã o e de comando. Elas
sã o expressõ es de reaçõ es melancó licas. A violência contra grupos é
indissociá vel da maneira com que objetos anteriormente amados e investidos
serã o postos em uma série na qual encontraremos ao final os grupos atuais que
sã o alvos de violência. Daí porque essas dinâ micas de massa sã o tã o vinculadas
à s temá ticas da traiçã o, da luta contra os infiltrados, contra aqueles que parecem
conosco mas nã o o sã o.
Baseando-se em uma interversã o do afeto, de amor a ó dio, note-se como
este “ó dio” é estruturalmente diferente, pois ele é um afeto através do qual
sujeitos se voltam contra aquilo que um dia amaram, o que faz dele um
sentimento muito mais contínuo. A dimensã o maníaca da açã o das massas será
sempre marcada por tal dinâ mica. Ela se baseia no cará ter de “festa” que esta
esse “perió dico desrespeito das proibiçõ es”69 produz.
Por outro lado, a identificaçã o das massas ao líder é descrita por Freud
como uma identificaçã o superegó ica. Isto significa que sua funçã o é perpetuar
uma fantasia que dará sustentaçã o ao poder. Esta fantasia é baseada em uma
demanda de amor cujo resultado só pode ser certo empobrecimento do Eu, certa
paralisia de sua açã o. Pois este amor é baseada na internalizaçã o de objetos
perdidos que agora se voltam contra o pró prio Eu em uma dinâ mica de auto-
reprimenda e auto-depreciaçã o. A funçã o do líder, neste caso, é levar os
indivíduos a exigências cada vez mais superlativas, como se estivéssemos diante
de provas de amor que precisam sempre serem dobradas. O fim nã o poderia ser
outro que uma relaçã o na qual o pró prio líder se volta à massa como se ela nã o
estivesse à altura de seu destino, como se ela o tivesse traído. O líder promete à
massa que ela será “grande novamente”. Ele entrega sempre uma catá strofe na
qual todos sã o jogados à sua pró pria pequenez.

Retorno ao problema da horda

Voltemos então ao texto freudiano para compreender seus últimos


desdobramentos. Após fornecer esta teoria da constituição do vínculo social no
interior de sociedades de massa a partir de uma teoria das identificações, Freud
reconhece que tal estratégia pode parecer insuficiente. Vários fenômenos ligados ao
caráter regressivo das massas e de suas estruturas de julgamento parecem não poder
ser explicados a partir do problema das identificações. Por isto, Freud se propõe
analisar um teoria distinta da sua, esta desenvolvida pelo cirurgião e psicólogo social
britãnico Wilfred Trotter e apresentada no livro Instincts of the herd in peace and
war.
A base da teoria de Trotter consiste na defesa da existência de uma espécie de
instinto gregário em operação em todo organismo vivo, instinto a partir do qual ele
procura derivar todos os sentimentos que desempenham papéis fundamentais na
conservação do vínculo social, como a consciência do dever e o sentimento de culpa.
No entanto, Freud age como quem vê, nesta posição de forças instintuais na
antecâmara de todo vínculo social, um certo recurso á abstração. A posição de um
instinto gregário nos impede de compreender o peso das relações concretas do
indivíduo na configuração de suas expectativas sociais. Há um certo empirismo
fundamental freudiano, empirismo de quem afirma que não há nada que possa atuar
na consciência que não tenha, anteriormente, se apresentado á consciência. Daí o
sentido de afirmações que procuram demonstrar como : “durante muito tempo, não
percebemos na criança nada parecido a um instinto gregário ou de um sentimento de
massa. Tal sentimento se forma primeiramente em maternidades com grande número
de crianças, a partir da relação entre criança e pais, e ele se forma em reação ao ciúme
com o qual o mais velho acolhe o irmão mais novo” 70. Ou seja, não compreenderemos
nada da configuração dos vínculos sociais se não partirmos da maneira particular com
que os investimentos libidinais vão sendo determinados a partir da história social do
desejo. A abstração das forças deve dar lugar à perspectiva concreta das dinâmicas
sociais de conflito. É tal perspectiva que permite Freud propor uma arqueologia do
sentimento de solidariedade social a partir da reversão (Umwendung) de um

69
FREUD, Psicologia das massas, p. 91
70
FREUD, Psicologia das massas ... – capítulo IX
sentimento inicialmente hostil em vínculo positivo próprio à natureza da
identificação”71.
Por outro lado, a noção de instinto gregário passa ao largo, mais uma vez, do
caráter constitutivo das relações sociais de dominação. Ela não fornece um quadro
explicativo sólido para a compreensão da figura do líder (ou de alguma instância
central de autoridade) como elemento fundador da massa. Pois, para compreender o
problema da natureza dos vínculos sociais, não é possível abstrair o problema dos
modos de interação social do problema do poder. Ao contrário, devemos sempre
lembrar que relações simétricas fundam-se a partir do reconhecimento anterior da
essencialidade de relações assimétricas. Daí porque o problema freudiano é, seguindo
esta longa tradição de reflexão sobre o fato político que vincula o problema do
política à assimetria do poder, compreender porque: “todos querem ser dominados por
um só”72. É para tentar dar conta deste problema que Freud retorna, mais uma vez, ao
seu mito antropogenético do assassinato do pai primevo.
De fato, Freud é claro em seus propósitos quando afirma que: “A massa nos
aparece como uma revivescência da horda originária. Da mesma forma que o homem
das origens manteve-se virtualmente em cada indivíduo, a horda originária pode se
constituir a partir de qualquer agregado humano” 73.A função desta articulação entre
massa e horda originária consiste, principalmente, em fornecer uma perspectiva de
apreensão das peculiaridades da figura do líder das massas modernas. Tanto é assim
que Freud não deixa de lembrar: “as massas humanas nos mostram, mais uma vez, a
imagem familiar de um indivíduo isolado, onipotente no interior de uma horda de
iguais, imagem igualmente presente na nossa representação da horda originária”74.
Esta aproximação é fundamental no interior do quadro freudiano de análise porque se
trata de mostrar como a força de coesão do líder das massas não vem, simplesmente,
da sua capacidade em se colocar como tipo ideal que regula sua conduta, por
exemplo, a partir do ascetismo do dever, da imagem de auto-controle sereno de si, da
ética da convicção, como poderíamos imaginar se compreendermos a gênese das
figuras de autoridade como o que advém destes ideais do eu sintetizados pela
internalização da lei paterna. Ao contrário, e este foi um ponto claramente visto por
alguém como Adorno, as figuras de liderança são encarnações de algo como um
supereu social. Daí porque Freud pode afirmar que: “o pai originário é o ideal da
massa que domina o eu no lugar do ideal do eu”75.
Esta natureza própria ao supereu social apropriado pelo líder explica, aos olhos
de Freud, dois traços maiores advindos das figuras modernas de liderança. O primeiro
é que, enquanto tipo ideal pautado pela imagem arcaica de um pai primevo que não se
submete aos imperativos de repressão do desejo, o líder consegue mobilizar uma
revolta contra a civilização e sua lógica de socialização (já que fornece uma imagem
para além da lógica repressiva), mas perpetuando relações de dominação instrumental.
Ele mobiliza representações vinculadas ao fantasma de que a demanda de amor que
suporta os processos sociais de identificação seja direcionada e ouvida por figuras
marcadas pela onipotência (maneira de bloquear a rivalidade própria à ambivalência
da figura paterna na família burguesa). Neste sentido, sua legitimidade vem da força
em mobilizar continuamente estruturas fantasmáticas inconscientes pressupostas por
processos de socialização no interior da família burguesa.

71
idem
72
idem
73
idem, - capítulo X
74
idem
75
FREUD, idem, cap. X
Aqui, vale a pena retornar a algumas considerações postas rapidamente no
final de nossa leitura de Totem e tabu.

O mito do pai primevo

Ao ler o mito freudiano do pai primevo, Lévi-Strauss dirá :

Freud dá conta, com sucesso, nã o do início da civilizaçã o, mas de seu


presente. Partindo à procura da origem de uma proibiçã o, ele consegue
explicar nã o a razã o pela qual o incesto é conscientemente condenado,
mas porque ele é inconscientemente desejado76.

Tal afirmaçã o é repetida, a sua maneira, por alguém a milhas de distâ ncia de
Lévi-Strauss, Herbert Marcuse:

Se a hipó tese de Freud [a respeito do pai primevo] nã o for corroborada


por qualquer prova antropoló gica, terá de ser inteiramente rejeitada,
excetuando o fato de que ela encaixa, numa sequência de eventos
catastró ficos, toda a dialética histó rica de dominaçã o e, por conseguinte,
elucida aspectos da civilizaçã o até aqui inexplicados77.

Estas duas afirmaçõ es convergem na defesa da força do mito freudiano


em formalizar impasses e aspiraçõ es vivenciadas no presente. Neste sentido, a
importâ ncia de Freud estaria no fato de ter fornecido um mito à altura daquilo
que a modernidade colocava a si mesmo como questã o. De toda forma, esta nã o
será a primeira vez que a reflexã o sobre a natureza dos vínculos sociais
modernos faz apelo a um mito para dar conta da figuraçã o do que tem, de fato, a
força indestrutível de um mito, isto se pensarmos no mito como uma construçã o
social que visa dar sentido a um conflito socialmente vivenciado. No caso de
Freud, as consequências sã o enormes pois: “a constituiçã o da cidadania (o
pertencimento a uma politeia) pede um suplemento mítico que parece vir das
constituiçõ es mais arcaicas de autoridade e que alimenta as representaçõ es
patoló gicas da soberania”78.
Freud inicia seu texto retomando certas consideraçõ es sobre o totemismo
que haviam sido esboçadas no primeiro capítulo de seu livro. Inicialmente Freud
havia insistido na relaçã o privilegiada entre totemismo e exogamia, seguindo
uma via defendida por Frazer. Agora, trata-se de tentar apreender qual a gênese
possível de tais exigências de exogamia. Daí porque ele valoriza afirmaçõ es sobre
o totem como esta:

Um totem, escreveu Frazer em seu primeiro ensaio, é um objeto material


a respeito do qual o selvagem porta um respeito supersticioso pois ele
acredita que entre sua pró pria pessoa e cada coisa desta espécie existe
uma relaçã o absolutamente particular79.

76
LEVI-STRAUSS, Les structures élémentaires de la parenté, p. 610
77
MARCUSE, Eros e civilização, p. 70
78
BALIBAR, Etienne; L’invention du surmoi, p. 32
79
FREUD, Totem und tabu, p. 125
Tal relaçã o absolutamente particular indicaria uma certa forma de participaçã o:
“quanto mais voltamos no tempo, mais evidente fica que o membro de uma clã se
considera como fazendo parte da mesma espécie que seu totem”, como se os
membros do clã descendessem de um totem elevado à condiçã o de ancestral. Isto
permite a Freud afirmar que a questã o central do totemismo estaria presente nas
relaçõ es entre a descendência totêmica e os imperativos de exogamia.
Com este problema em vista, Freud passa em revista à s teorias sobre a
origem do totemismo, organizando, para isto três grupos explicativos. No
primeiro, estariam explicaçõ es de cunho nominalista. O totem seria uma
designaçã o nominal através da qual um clã tomaria o nome de um animal de
empréstimo a fim de realizar exigências de distinçã o. Posteriormente tal
empréstimo teria se naturalizado, fazendo com que a ilusã o da descendência
totêmica fosse criada. No segundo grupo, estariam as ditas teses socioló gicas que
veem no totemismo a representaçã o visível de uma religiã o social. Por fim, as
teses psicoló gicas baseadas na ideia de que o totemismo seria resultado da
crença primitiva a respeito da transmigraçã o das almas e da reproduçã o.
Nenhuma destas explicaçõ es satisfaz Freud, já que todas elas parecem
ignorar a relaçã o necessá ria entre elaboraçã o de conflitos pulsionais e formaçã o
de estruturas sociais, ou antes, entre economia libidinal e teoria social. Desta
forma, ele passa entã o a construir, a partir de teorias distintas, um outro quadro
explicativo para o fenô meno do totemismo. Dois nomes sã o fundamentais aqui:
Charles Darwin com sua teoria da horda primitiva apresentada em A
descendência do homem e Seleção em relação ao sexo, de 1871 e William
Robertson Smith com sua teoria do festim totêmico apresentada em A religião dos
semitas, de 1889.
Baseado nas teorias de Darwin, Freud afirma que o estado social
originá rio do homem estaria marcado pela vida em pequenas hordas no interior
das quais o macho mais forte e mais velho impediria a promiscuidade sexual,
produzindo com isto a exogamia. Para acoplar tal teoria aos esquemas pró prios
ao totemismo, bastou a Freud recorrer à s similitudes entre fato social e sintoma,
no caso, sintomas infantis de fobia de animais. Por exemplo, é sintomá tico como
Freud compreendia a ló gica que regia a constituiçã o do objeto fó bico do pequeno
Hans (o medo de ser mordido por um cavalo). Um dos pó los de produçã o da
fobia vem do fato de que ele ama e odeia seu pai, ou seja, a mesma representaçã o
paternal é objeto de afeto e medo, o que provoca uma instabilidade no interior da
identidade da representaçã o. Para rejeitar tal ambivalência, Hans desloca a
angú stia diante do pai para uma angú stia diante de cavalos e denega a moçã o
agressiva contra o pai. O cavalo aparece assim como um “substituto do pai
(Vatersurrogat)”. É exatamente a mesma ló gica que permitirá a Freud afirmar
que o animal totem nã o seria outra coisa que uma representaçã o substituta do
pai, da mesma forma que o animal no interior de uma fobia infantil. Daí a
afirmaçã o central que permite a compreensã o do sentido das interdiçõ es tabu
através do uso do Complexo de É dipo:

Se é verdade que o animal totem é o pai, os dois principais mandamentos


do totemismo – a interdiçã o de matar o totem e de usar sexualmente uma
mulher pertencente ao totem – coincidem, em conteú do, com os dois
crimes de É dipo, que matou seu pai e tomou sua mã e por mulher, assim
como coincidem com os dois desejos originá rios da criança, cujo
recalcamento insuficiente ou o despertar formam o nú cleo de todas as
psiconeuroses80.

Afirmaçõ es como esta renderam vá rias críticas ao texto freudiano, já que se trata
de assumir a universalidade do Complexo de É dipo (um complexo resultante de
certas características específicas da família burguesa, como a sobreposiçã o de
rivalidade e identificaçã o com a figura paterna) como dispositivo geral de
socializaçã o do desejo no interior da cultura.
Por fim, Freud apoia-se em Robertson Smith a fim de insistir que o
sacrifício e a festa sã o prá ticas sociais fundadoras e renovadoras dos vínculos
sociais. Neste sentido, lá onde há sacrifício e festa há uma organizaçã o social
baseada na circulaçã o de dons (sacrifício) e no reconhecimento de uma Lei que
se faz sentir no momento mesmo em que é suspensa (festa). Smith lembra que: ‘a
forma mais antiga do sacrifício, anterior ao uso do fogo e ao conhecimento da
agricultura, era o sacrifício animal cuja carne e sangue eram consumidos em
comum pelo deus e seus adoradores” 81 isto a fim de identificar o animal
sacrificado e o animal totêmico. Daí a hipó tese do “festim totêmico”:

O sacrifício era um sacramento, a vítima era um membro do clã . Na


verdade, era o antigo animal totem, o pró prio deus primitivo, através da
sua morte e absorçã o, os membros do clã renovavam e confirmavam a
semelhança que estes tinham em relaçã o ao deus82.

A partir daí, as peças estã o armadas para que Freud apresente a hipó tese
do assassinato do pai primevo, senhor da horda originá ria:

Um dia, os irmã os que tinham sido expulsos da hordas se uniram,


mataram e comeram o pai, colocando assim um fim a horda paterna (...)
Que eles tenham comido o cadá ver, isto é evidente para o selvagem
canibal. O pai originá rio tirâ nico fora certamente o modelo invejado e
temido de cada um dos membros da irmandade. Assim, através do ato de
comê-lo, eles realizaram a identificaçã o com o pai (...) O festim totêmico,
talvez a primeira festa da humanidade, seria a repetiçã o deste gesto
criminoso memorá vel que está no começo de tantas coisas: organizaçõ es
sociais, restriçõ es morais e religiã o (...) Eles odiavam o pai que
representava um forte obstá culo á s suas necessidades de poder e à s suas
exigências sexuais, mas eles também o amavam e o admiravam. Uma vez
que eles o eliminaram, satisfizeram seu ó dio e realizaram seu desejo de
com ele se identificar, as moçõ es tenras que tinham sido violentadas
reapareceram. Isto se produziu sob a forma do arrependimento (Reue) ,
desenvolve-se um sentimento de culpa que coincide com o
arrependimento sentido coletivamente83.

Deste sentimento de culpa, segue-se a renú ncia à s mulheres desejadas (e, com
ela, a exogamia), a conservaçã o da organizaçã o social comunitá ria, assim como a

80
FREUD, Totem e tabu
81
idem
82
idem
83
idem
preservaçã o do lugar do pai primevo como um lugar vazio ocupado por um
substituto, o totem, que deve a partir de entã o ser objeto de homenagens e
cuidados. O totemismo aparece assim como um sistema de defesa contra o
sentimento de culpa. Sem o totemismo, tal sentimento recrudesce novamente (o
que explicaria seu retorno na modernidade).
Com este esquema explicativo, Freud procura dar conta do advento da
religiã o (que teria herdado do totemismo este esquema de sentimento de culpa
em relaçã o a uma representaçã o paterna), assim como a transformaçã o de uma
“sociedade sem pais” em sociedade patriarcal. Sociedade, no entanto, em que a
figura paterna é uma pá lida encarnaçã o desta representaçã o do pai primevo.
Mas o que podemos dizer deste mito freudiano? Ha duas dimensõ es do
problema que merecem nossa atençã o. A primeiro diz respeito a esta figura do
poder que Freud apresenta através da hipó tese do pai primevo. A segunda diz
respeito à anterioridade da culpabilidade em relaçã o ao estabelecimento da Lei
social e da moralidade.
Sobre o primeiro ponto, lembremos que o mito freudiano constró i o pai
primevo como uma figura na qual convergem a enunciaçã o soberana da Lei e
exigências de regulaçã o social que tocam, principalmente, expectativas de
satisfaçã o sexual. Como se uma genealogia do poder fosse, necessariamente,
arqueologia da maneira com o que é da ordem do sexual é regulado no interior
do tecido social. Nã o é por acaso que a posse do macho mais forte nã o é simples
posse de bens, mas posse de mulheres. Freud acaba por dar forma a esta crença
moderna de que o sexual transformara-se em fator central da política. Neste
sentido, lembremos desta afirmaçã o fundamental de Foucault: : ”o que é pró prio
das sociedades modernas nã o é o terem condenado o sexo a permanecer na
obscuridade, mas sim o terem-se devotado a falar dele sempre, valorizando-o
como o segredo”84. Um valorizaçã o que permitiu que algo da ordem das
expectativas utó picas que animaram a esfera do político transformasse o que é
da ordem do sexual em campo fundamental de intervençã o social. O que explica
a constataçã o surpresa de Foucault:

E perguntemo-nos como foi possível que o lirismo, a religiosidade que


acompanharam durante tanto tempo o projeto revolucioná rio tenham
sido, nas sociedades industriais e ocidentais, transferidas, pelo menos em
boa parte, para o sexo85.

É tendo tais questõ es em mente que podemos ver o pai primevo freudiano
como um estranha figuraçã o, talvez a ú nica possível à sensibilidade moderna, do
lugar de exceçã o pró prio à soberania. O lugar do pai primevo é um lugar
soberano por deixar à vista esta articulaçã o, que estaria escondida em toda
formaçã o social (que seria a dimensã o recalcada de toda formaçã o social
“racionalizada”), onde a enunciaçã o do poder e a apropriaçã o do gozo se
vinculam. O mito do pai primevo é assim a representaçã o imaginá ria pró pria a
um tempo que vê a essência de todo poder como regulaçã o e administraçã o da
satisfaçã o subjetiva. Se o mito é aquilo que fornece uma matriz explicativa capaz
de guiar a conduta dos sujeitos diante de certos conflitos socialmente
vivenciados, entã o podemos dizer que, através do mito do pai primevo, Freud
84
FOUCAULT, História da sexualidade I, p. 36
85
idem, p. 13
acaba por nos dizer (mesmo se a contragosto) que o sujeitos modernos agem
como quem vê instituiçõ es e figuras reconhecidas de autoridade como aquilo que
instaura e é responsá vel por uma distribuiçã o desigual das possibilidades de
satisfaçã o subjetiva. Maneira de conservar certas representaçõ es fantasmá ticas
de satisfaçã o que só podem ter realidade fantasmá tica.
As consequências políticas de tal representaçã o imaginá ria serã o
exploradas em Psicologia das massas e análise do eu. Ao invés do que poderíamos
normalmente esperar (ou seja, consolidaçã o de demandas de “redistribuiçã o”),
as sociedades modernas estariam abertas ao retorno de figuras superegó icas de
autoridade vindas na linha direta do mito do pai primevo, deste objeto perdido
inicial, ou que permitem a identificaçã o com tais tipos ideais. Neste sentido,
lembremos como algumas das grandes contribuiçõ es da Escola de Frankfurt na
aná lise dos líderes fascistas era a insistência de que nã o está vamos diante de
líderes que pregavam alguma forma de sistema repressivo “law and order”, mas
de encarnaçõ es de sistemas só cio-políticos voltados para a mobilizaçã o contínua
de exigências libidinais e de transgressõ es controladas. Daí porque eles
lembravam que a verdadeira aná lise da ideologia fascista era uma aná lise da
economia libidinal que suportava o vínculo a tal ideologia.

A gênese da comunidade e o lugar vazio do poder

Neste ponto, fica claro como o ponto fundamental do argumento


freudiano neste livro nã o está na tentativa de fundamentar hipó teses
antropogenéticas recorrendo a uma pretensa cena originá ria da vida social com
sua violência primordial. Melhor seria se perguntar sobre qual perspectiva de
avaliaçã o da estrutura dos vínculos sociais no começo do século XX leva Freud a
procurar as bases para a autorreflexã o da modernidade em teorias como o
totemismo, o festim totêmico e a ideia darwiniana de que o estado social
originá rio do homem estaria marcado pela vida em pequenas hordas no interior
das quais o macho mais forte e mais velho (o pai primevo) impediria a
promiscuidade sexual, produzindo com isto a exogamia. Por isto, devemos
compreender a criação do mito do assassinato do pai primevo como a maneira,
disponível a Freud, de dizer que, em relações sociais atuais, os sujeitos agem como
quem carrega o peso do desejo de assassinato de um pai que nada mais é do que a
encarnação de representações fantasmáticas de autoridade soberana. O
fundamento da vida social é a revolta e sua impotência.
Esta dimensã o de um “agir como” é o que deve ser salientado aqui. Ela nos
envia a modos de representaçã o fantasmá tica em operaçã o nas relaçõ es de
sujeitos com instâ ncias de autoridade e instituiçõ es. Haveria muito a se dizer a
respeito desta estratégia freudiana, mas nos restrinjamos a alguns pontos gerais.
Mas queria terminar insistindo nos problemas ligados ao sentimento de culpa
como modo de adesã o social. Este sentimento de culpa vem do fato do pai nã o
ser apenas responsá vel pela crueldade e coerçã o, mas ser também objeto
perdido de amor e identificaçã o. A este respeito, lembremos como:

a identificaçã o é ambivalente desde o início; ela pode se voltar tanto para


a expressã o da ternura quanto para o desejo de eliminaçã o (…) Como se
sabe, o canibal permanece nessa posiçã o; ele gosta de devorar seus
inimigos, e nã o devora aqueles de que nã o poderia gostar de alguma
maneira 86.

Mas notemos como a identificaçã o com o pai primevo implica crença na


transmissã o, na possibilidade de ocupar em algum momento o mesmo lugar.
Note-se como a mera possibilidade de tal lugar de exceçã o existir é, de maneira
bastante peculiar, fonte de amparo pois implica alcançar posiçã o na qual as
limitaçõ es normativas seriam inefetivas, na qual a decisã o se afirmaria, como
gostava de dizer Carl Schmitt, “em sua pureza absoluta” insubmissa à codificaçã o
prévia de suas condiçõ es, em sua indivisã o teoló gica entre vontade e açã o87. Mas
com seu assassinato, instaura-se algo como uma comunidade de iguais na qual
todos acabam por abrir mã o de ocupar o lugar outrora preenchido pelo pai:

Os irmã os haviam se aliado para vencer o pai, mas eram rivais uns dos
outros no tocante à s mulheres. Cada um desejaria, como o pai, tê-las todas
para si, e na luta de todos contra todos a nova organizaçã o sucumbiria.
Nenhum era tã o mais forte que os outros, de modo a poder assumir o
papel do pai. Assim, os irmã os nã o tiveram alternativa, querendo viver
juntos, senã o - talvez apó s superarem graves incidentes – instituir a
proibiçã o do incesto, com que renunciavam simultaneamente à s mulheres
que desejavam, pelas quais haviam, antes de tudo, eliminado o pai 88.

Notemos inicialmente a recorrência da iminência hobbesiana da “luta de


todos contra todos” produzida pela igualdade natural de forças e pela
convergência de objetos de desejo. Como se antes do estado de natureza
hobbesiano houvesse a soberania do pai primevo. A possibilidade recorrente da
luta deve produzir o desejo pela instauraçã o de normas responsá veis pela
restriçã o mú tua (no caso, a proibiçã o do incesto) e pela regulaçã o das paixõ es,
garantindo assim as condiçõ es de possibilidade para a constituiçã o do espaço
político. Aparece, desta forma, uma espécie de contrato social que permite a
renú ncia pulsional, o reconhecimento de obrigaçõ es mú tuas e o estabelecimento
de instituiçõ es. Ele ainda tem, como saldo, a perpetuaçã o da condiçã o feminina
como exterior à determinaçã o dos sujeitos agentes já que, nesta narrativa, as
mulheres se perpetuam como meros objeto de contrato.
No entanto, insistamos em outro ponto. No mito freudiano há de se levar
em conta como tal constituiçã o do espaço político produz inicialmente a abertura
de um “lugar vazio” do poder, já que: “ninguém mais podia nem era capaz de
alcançar a plenitude de poder do pai” 89. Tal lugar vazio, que Freud chega a
descrever como pró prio a uma sociedade sem pais (vaterlose Gesellschaft) que
parece poder realizar a igualdade democrá tica, permitiu o aparecimento de laços
comunitá rios baseados em “sentimentos sociais de fraternidade (...) na

86
(FREUD, Sigmund; Psicologia das massas e análise do eu, p. 94)
87
Difícil discutir tal função da fantasia social do pai primevo sem recorrer à noção de decisão em
SCHMITT, Carl; Politische Theologie: Vier Kapitel zur Lehre von der Souveranität, Berlin: Duncker
and Humblot, 1934. Como se tratasse, em Freud, de fornecer a economia libidinal da soberania.
88
FREUD, Sigmund; “Totem e tabu”, In: Obras completas vol. 11, São Paulo: Companhia das Letras,
2012, p. 220
89
Idem, p. 226
sacralizaçã o do sangue comum, na ênfase na solidariedade de todas as vidas do
mesmo clã ”90.
Mas esta comunidade de iguais, esta sociedade sem pais, tem uma
fragilidade estrutural: tal lugar vazio é suplementado por uma elaboraçã o
fantasmá tica. A fantasia do pai primevo nã o foi abolida, já que ele permanece na
vida psíquica dos sujeitos sob a forma de um sentimento comum de culpa como
fundamento de coesã o social, que denuncia, por outro lado, o desejo que tal lugar
seja ocupado. Assim, o afeto de solidariedade que a comunidade dos iguais
permite circular é também responsá vel pela paralisia social de quem continua
sustentando a “nostalgia pelo pai” (Vatersehnsucht) agora elevado à condiçã o de
objeto perdido. Este pai que nã o está lá , mas que faz sua latência ser sentida,
retornará sob uma forma melancó lica.
A sociedade sem pais deverá assim converter-se gradualmente em uma
sociedade organizada de forma patriarcal. Pois o lugar vazio do poder é, ao
mesmo tempo, lugar pleno de investimento libidinal em uma figura de exceçã o
que se coloca em posiçã o soberana. Isto leva Freud a afirmar:

houve pais novamente, mas as realizaçõ es sociais do clã fraterno nã o


foram abandonadas, e a efetiva distâ ncia entre os novos pais de família e o
ilimitado pai primevo da horda era grande o suficiente para garantir a
continuaçã o da necessidade religiosa, a conservaçã o da insaciada
nostalgia pelo pai91.

“Houve pais novamente”. Mas agora pais que poderiam cuidar,


individualizar, pregar a renú ncia pulsional, em suma, aplicar o poder pastoral e
nos lembrar da importâ ncia do respeito à norma e à s exigências restritivas das
instituiçõ es. Pais que precisavam lembrar que estavam lá para enunciar mais
uma vez a Lei porque, caso nã o mais lá estivessem, estaríamos vulnerá veis a
figuras como o pai primevo. Medo que apenas ativa a memó ria da identificaçã o
arcaica com um direito natural que abri mã o, mas que constituiu em minha vida
psíquica os laços melancó licos com um objeto perdido, enredado nas sendas da
transmissã o. Assim houve pais novamente, mas pais assombrados pela
inadequaçã o em relaçã o à figuras de soberania que se fundamentam em posiçã o
de excepcionalidade em relaçã o à Lei. O que nos permite pensar que a
autoridade desses pais precisará reavivar periodicamente os traços do pai
primevo e seu lugar de excepcionalidade, dando espaço para um jogo de
reiteraçã o constante entre a Lei e sua transgressã o, pulsaçã o pendular de
retorno e distâ ncia em relaçã o à cena primitiva, pulsaçã o afetiva que vai da
mania à depressã o. Assim, se esses pais souberem como trazer periodicamente o
pai primevo, a revolta contra a civilizaçã o poderá servir de elemento para a
perpetuaçã o de uma ordem que todos sentem de forma restritiva.

90
Idem, p. 222
91
Idem, p. 227
Psicologias do fascismo
Aula 5

Na aula de hoje, gostaria de mostrar como o esquema que vimos em Psicologia


das massas, de Freud, servirá para a recomposiçã o contemporâ nea da
compreensã o do populismo. É conhecido de todos vocês como “populismo”
tornou-se um termo central na filosofia política atual. Hoje, ele é utilizado para
dar conta das forças que parecem se contrapor aos processos e modos de gestã o
inerentes à democracia liberal. Nã o é difícil perceber como, na grande maioria
dos casos, “populismo” é utilizado como sinô nimo de regressã o social e política.
Ele aparece assim como a expressã o da irracionalidade e do primado das
identificaçõ es afetivas personalistas em política. Vá rios teó ricos liberais gostam
de descrever o populismo como a explosã o do irracional e do afeto em política,
como se a democracia corriqueira fosse o domínio desencantado da razã o.
Dentro desta ló gica, o uso extensivo do termo populismo permite a
criaçã o de uma estratégia de desqualificaçã o e aproximaçã o dos extremos
políticos, isto a fim de defini-los como posiçõ es políticas anti-democrá ticas,
fundamentada nã o na força do melhor argumento, mas na mobilizaçã o de afetos
e paixõ es. Desta forma, o termo “populismo” pode ser utilizado para evitar
nomear grupos claramente racistas, xenó fobos e de tendências fascistas. Pois,
cria-se uma certa relaçã o de equivalência entre os extremos políticos da direita e
da esquerda. Por outro lado, ele tende a nomear toda tendência que nã o se
reconhece no interior das posiçõ es possíveis da democracia liberal. Assim,
“populista” serã o as políticas econô micas anti-liberais, “populista” serã o as
posiçõ es políticas que insistirã o na necessidade de refundaçã o institucional da
democracia. Pois notemos que o recurso à liderança como princípio de unificaçã o
social nã o é um elemento diferencial do populismo, mas está presente no
funcionamento normal de quase todos os processos genéricos de governo.
No entanto, populismo descreve, de forma analítica, uma dinâ mica precisa
ligada a construçã o de hegemonia no interior do campo político. Tal construçã o
de hegemonia está necessariamente ligada oa uso da noçã o de “povo” como
operador político central. O populismo aparece assim como uma forma de
integraçã o de massas ao processo político através da construçã o do “povo” como
agente. O filó sofo argentino Ernesto Laclau foi um dos poucos a conseguir
escapar da desqualificaçã o genérica do populismo, ao mostrar como este
descrevia uma característica fundamental da democracia, a saber, a capacidade
de incorporaçã o, através da construçã o do “povo”, de classes sempre expulsas do
poder92. Na sua reconstruçã o do populismo, Laclau recuperou a psicologia das
massas de Freud a fim de lhe dar uma nova dimensã o. Na aula de hoje, eu
gostaria de discutir tal operaçã o, a fim de compreender suas estratégias e limites,
assim como entender melhor a psicologia inerente à s formas atuais de aná lise de
fenô menos políticos de massa e da ló gica de formaçã o de identidades coletivas.

Demandas e afetos

92
LACLAU, Ernesto; A razão populista, São Paulo: Três Estrelas, 2014. Discuto mais detidamente a
hipótese de Laclau nos dois primeiros capítulos de SAFATLE, Vladimir; O circuito dos afetos: corpos
políticos, desamparo e o fim do indivíduo, Belo Horizonte: Autêntica, 2016
O projeto de Laclau parte da impossibilidade de pensar o campo social a
partir da noçã o de grupos em conflito. A noçã o de grupo pressupõ e uma
homogeneidade de interesse na constituiçã o de atores sociais. Cada ator é
portador de sistemas homogêneos de interesses que entram em conflito com
interesses de grupos opostos. Na verdade, Laclau se propõ e a dar um passo atrá s
a fim de abrir espaço a uma noçã o na qual grupos aparecem como arranjos
desenvolvidos a partir de demandas muitas vezes heterogêneas. Neste sentido, é
a noçã o de “demanda” que ganha importâ ncia. Entende-se, neste contexto, por
demanda uma petição, uma exigência. O que deixa claro seu horizonte de direçã o
a um Outro que deve, de certa maneira, ocupar uma dimensã o de poder. Grupos
podem conter demandas muitas vezes contraditó rias, heteró clitas e toda questã o
gira em torno de compreender como demandas contraditó rias podem ser, muitas
vezes, agenciadas em incorporaçõ es unificadoras. No caso, como é possível a
criaçã o de hegemonia a partir de um terreno socialmente fragmentado, disperso
e mú ltiplo. Lembremos que, neste contexto, hegemonia deve ser compreendido
como:

Hegemonia aludirá a uma totalidade ausente, e à s diversas tentativas de


recomposiçã o e de rearticulaçã o que, ao superar a ausência original,
tornará possível para as lutas um sentido e para forças histó ricas serem
fortalecidas com uma positividade plena93.

Por isto, o conceito de hegemonia irá emergir precisamente em um


contexto dominado pela experiência da fragmentaçã o e pela indeterminaçã o das
articulaçõ es entre diferentes lutas e posiçõ es subjetivas. O horizonte histó rico
deste pensamento insere-se na crítica à s noçõ es tradicionais de classe e de
consciência de classe como modo de constituiçã o de sujeitos políticos dotados de
unidade potencial de açã o e de interesse. Por outro lado, trata-se de outorgar
centralidade à noçã o de “afeto” na constituiçã o social. A possibilidade de
incorporaçã o nã o se dá através do esclarecimento da existência de interesses
comuns fundadores de uma classe, mas através da mobilizaçã o de afetos capazes
de estabelecer convergências entre demandas contraditó rias.
Notemos inicialmente como Laclau procura uma definiçã o estrutural de
populismo para retirá -lo da condiçã o de descriçã o de alguma forma de distorçã o
no campo pretensamente comunicacional do político. Na verdade, ele procura
definir o populismo como a expressã o do político enquanto tal. Vejamos, por
exemplo, colocaçõ es como esta a respeito da “simplificaçã o” que seria inerente à s
estratégias populistas:

Nã o seria esta ló gica da simplificaçã o e da imprecisã o a condiçã o mesma


da açã o política? Apenas em um mundo impossível, no qual a
administraçã o suplantasse totalmente a política e uma piecemeal
engineering no trato das diferenças particularizadas tivesse suplantado
totalmente as dicotomias antagô nicas, poderíamos dizer que a
“imprecisã o” e a “simplificaçã o” teriam sido realmente erradicadas da
esfera pú blica. Nesse caso, sem dú vida, o traço distintivo do populismo

93
LACLAU, Ernesto e MOUFFE, Chantal; Hegemony and socialist strategy, p. 7
seria apenas a ênfase em uma ló gica política que é um ingrediante
necessá rio da política tout court94.

Laclau está a dizer que as dinâ micas internas ao populismo sã o pró prias a
todo e qualquer embate político. Laclau chega a ver no populismo “a via real para
compreender algo relativo à constituiçã o ontoló gica do político enquanto tal” 95.
Isto a ponto de defender nã o haver “nenhuma intervençã o política que nã o seja,
até certo ponto, populista”96. A maneira depreciativa com a qual tais dinâ micas
aparecem seriam, na verdade, parte de uma estratégia de desqualificaçã o da
emergência de uma política popular a partir do final do século XIX. Daí porque
Laclau relê Le Bon a fim de afirmar que sua maneira de descrever processos de
regressã o social nã o é outra coisa que a descriçã o dos processos normais de
produçã o de significaçã o social e sentido. Ele relê Hyppolite Taine, Lombroso,
Sighele para mostrar como as representaçõ es das massas tinham como objetivo
dar conta das dinâ micas afetivas que constituíam os laços sociais, mas sem nunca
perceber que está vamos a descrever os processos gerais de constituiçã o de
formas de corpo social.
É neste ponto que Laclau recorre a Freud. Ele verá em Psicologia das
massas e análise do eu tanto a descriçã o da ló gica imanente à s identidades
coletivas populares quanto as formas de regressã o autoritá ria. Partindo das
mesmas descriçõ es do advento da sociedade de massas que influenciaram Freud
(Le Bon, Tarde, e McDougall) a fim de deixar evidente seu cará ter de reaçã o ao
aparecimento de identidades populares no campo político, Laclau retorna ao
texto freudiano para explorar a dubiedade do fenô meno identificató rio no qual
sua psicologia das massas se baseia:

Se nossa leitura está correta, tudo gira em torno da noçã o chave de


identificaçã o e o ponto de partida para explicar uma pluralidade de
alternativas socio-políticas deve basear-se no grau de distâ ncia entre o eu
e o ideal do eu. Se tal distâ ncia aumenta, encontraremos a situaçã o
centralmente descrita por Freud: a identificaçã o entre os pares como
membros do grupo e a transferência do papel de ideal do eu para o líder.
(...) Se, ao contrá rio, a distâ ncia entre o eu e o ideal do eu é menor, o líder
será o objeto eleito pelos membros do grupo, mas também será parte
destes, participando do processo geral de identificaçã o mú tua97.

Ou seja, Laclau procura definir uma diferença entre processos identificató rios a
fim de distinguir uma identificaçã o autoritá ria (esta na qual o grau de distâ ncia
entre o eu e a ideal é grande) e outra pró pria a uma dinâ mica de incorporaçã o
popular (esta na qual temos um processo geral de identificaçã o mú tua).
Mas a mera proximidade entre eu e ideal do eu nos processos de
identificaçã o entre líder e povo nã o é suficiente para determinarmos uma
natureza nã o autoritá ria dos vínculos políticos. Adorno insistia que os líderes
fascistas eram exatamente aqueles que se constituíam a partir de uma distâ ncia
mínima entre o eu e o ideal do eu. Pois a condiçã o de ser, ao mesmo tempo, o

94
LACLAU, Ernesto; La razón populista, p. 33
95
LACLAU, Ernesto; La razón populista, Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2011, p. 91
96
Idem, p. 195
97
Idem, p. 87
ideal do eu e a representaçã o de um mesmo objeto internalizado - que permite a
construçã o de relaçõ es gerais de equivalência na massa - faz o líder tender a
aparecer como “o alargamento da pró pria personalidade do sujeito, uma
projeçã o coletiva de si mesmo, ao invés da imagem de um pai cujo papel durante
a ú ltima fase da infâ ncia do sujeito pode bem ter decaído na sociedade atual” 98.
Adorno explora tal traço ao afirmar que:

uma das características fundamentais da propaganda fascista


personalizada é o conceito de ‘pequeno grande homem’, uma pessoa que
sugere, ao mesmo tempo, onipotência e a ideia de que ele é apenas mais
um do povo, um simples, rude e vigoroso americano, nã o influenciado por
riquezas materiais ou espirituais99.

Pois as identificaçõ es nã o sã o construídas a partir de ideais simbó licos. Elas sã o


basicamente identificaçõ es narcísicas que parecem compensar o verdadeiro
sofrimento psíquico do “declínio do indivíduo e sua subsequente fraqueza” 100, um
declínio que nã o é apenas apaná gio de sociedades abertamente totalitá rias. Isto
talvez explique porque este “mais um do povo” possa ser expresso nã o apenas
pela simplicidade, mas à s vezes pelas mesmas fraquezas que temos ou que
sentimos, pela mesma revolta impotente que expressamos. Pois:

o líder pode adivinhar as necessidades e vontades psicoló gicas desses


suscetíveis à sua propaganda porque ele se assemelha a eles
psicologicamente, e deles se distingue pela capacidade de expressar sem
inibiçã o o que está latente neles, isto ao invés de encarnar uma
superioridade intrínseca101.

A fim de salientar o fundamento democrá tico de sua hipó tese, Laclau


descreverá a especificidade de certa forma de alçar a particularidade do líder à
condiçã o de apresentaçã o de uma totalidade composta pelo povo. Ela consiste
em mostrar como “uma particularidade assume uma significaçã o universal
incomensurá vel consigo mesma”102, transformando-se no corpo de uma
totalidade inalcançá vel. É importante para Laclau insistir no cará ter inalcaçá vel
da totalidade a fim de impedir que ela se coloque como fundamento a ser
recuperado em um retorno autoritá rio à essencialidade original dos vínculos
sociais, aparecendo ao contrá rio como fundamento de um horizonte de
transformaçã o continuamente aberto. Para tanto, tal particularidade deve se
tornar um “significante vazio”. Ou seja, nã o basta, como em Claude Lefort, que o
lugar simbó lico do poder esteja vazio. Faz-se necessá rio que aquele que ocupa tal
lugar também apareça como um significante vazio e que tal vacuidade seja
decisiva na constituiçã o de sujeitos políticos.
Neste ponto, encontramos um dos eixos fundamentais do conceito de
populismo em Laclau. Populismo é sempre uma forma de criar hegemonia em
campos de demandas heterogêneas. Encontramos demandas contraditó rias que
sã o colocadas em uma série convergente, sã o articuladas a partir da
98
ADORNO, Theodor; op.cit., p. 418
99
Idem, p. 421
100
Idem, p. 411.
101
ADORNO, Theodor; “Democratic leadership and mass manipulation”, op. cit., p. 427
102
Idem, p. 95
convergência de todas elas a um ponto comum. No entanto, como podem
demandas sociais contraditó rias convergirem para um mesmo ponto, para uma
mesma pessoa, para uma mesma ideia? Faz-se necessá rio que esta pessoa seja
um significante vazio: alguém que nunca enuncia claramente suas posiçõ es,
alguém que parece adequar-se a todos os grupos, como se estivesse em uma
posiçã o flutuante. Este significante será a encarnaçã o de uma totalidade cujo
nome será “povo”.

O vazio instaurador

Notemos alguns pontos aqui. O primeiro foi bem salientado por Slavoj
Zizek:

“O vazio do ‘povo’ é o vazio do significante hegemô nico que totaliza a


cadeia de equivalência, isto é, cujo conteú do particular é
‘transubstanciado’ numa incorporaçã o do todo social, enquanto o vazio do
lugar do poder é uma distâ ncia que torna ‘deficiente’, contingente e
temporá rio todo portador empírico do poder”103.

Ou seja, nã o se trata de dizer que, no populismo, o lugar do poder está vazio.


Trata-se de dizer que o líder é a encarnaçã o de um povo que precisa de um
significante vazio para se totalizar. Este significante pode ser, por exemplo,
valores como “liberdade”, “justiça”. Eles precisam ser vazios para que uma
multiplicidade de demandas possa encarnar-se, transcendendo seus pró prios
contextos particulares. Este momento transcendente seria fundamental para a
constituiçã o de toda identidade coletiva.
Só assim o vazio poderia preencher o papel que lhe cabe: instaurar o povo
como um modelo de identidade coletiva baseado na multiplicidade. No caso,
multiplicidade de demandas concretas de diferentes grupos distintos, muitas
vezes contraditó rias entre si, mas capaz de ser agenciada em uma rede de
equivalências que permite, ao mesmo tempo, a constituiçã o de uma identidade
popular-coletiva e a determinaçã o de linhas antagô nicas de exclusã o (agora
politizadas). Assim, Laclau poderá afirmar:

Nã o há totalizaçã o sem exclusã o, e sem que tal exclusã o pressuponha a


cisã o de toda identidade entre, de um lado, sua natureza diferencial que a
vincula/separa de outras identidades e, de outro, seu laço equivalencial
com todas as identidades restantes a partir do elemento excluído. A
totalizaçã o parcial que o vínculo hegemô nico consegue criar nã o elimina a
cisã o mas, ao contrá rio, deve operar a partir das possibilidades
estruturais que derivam dela104.

Freud nã o falaria outra coisa ao denunciar a dinâ mica autoritá ria da psicologia
das massas, mas Laclau nã o vê tal cisã o como expressã o necessá ria de prá ticas
segregacionistas. Vá rios movimentos populistas, em especial os latino-
americanos, se servem desta totalizaçã o por exclusã o para operar no â mbito
político das lutas de classe, no que é incorreta a crítica de que Laclau
103
ZIZEK, Slavoj; Em defesa das causas perdidas, São Paulo: Boitempo, 2011, p. 247
104
LACLAU, Ernesto; idem, p. 104
desconheceria a luta de classes. Desta forma, o populismo pode dividir a
sociedade em dois campos antagô nicos no interior do qual o povo, mesmo nã o se
confundindo com a totalidade dos membros da comunidade, coloca-se como
parte que procura ser concebida como ú nica totalidade politicamente legítima,
plebs até entã o nã o-representada que reclama ser o ú nico populus legítimo.
Assim se constitui um povo. O que nã o deixa de ressoar uma ideia fundamental
de Carl Schmitt:

Palavras como Estado, repú blica, sociedade, classe e ademais soberania,


Estado de direito, absolutismo, ditadura, plano, Estado neutro ou total etc.
sã o incompreensíveis quando nã o se sabe quem deve ser, in concreto,
atingido, combatido, negado e refutado com tal palavra 105.

Por isto, um elemento central do populismo é sua natureza anti-


institucional. Ele se constitui no interior de um processo de incorporaçã o
daqueles que até entã o nã o existiam do ponto de vista dos atores políticos. Nã o-
contados que foram colocados a margem do funcionamento da vida institucional.
Por isto, sua emergência só pode se dar colocando em questã o a ordem
institucional vigente. No populismo, aqueles até entã o invisíveis começam a ser
contados. Mesmo que, para tanto, suas demandas apareçam junto a vá rias outras
demandas de naturezas distintas. Mas isto implica em mobilizar a força política
contra as instituiçõ es que, até o momento, foram responsá veis pela gestã o da
invisibilidade social. Laclau sintetiza isto da seguinte forma:

Sabemos que o populismo requer a divisã o dicotô mica da sociedade em


dois campos – um que se apresenta a si mesmo como parte que reclama
ser o todo – dicotomia que implica a divisã o antagô nica do campo social e
que pressupõ e, como condiçã o de constituiçã o do campo popular, a
construçã o de uma identidade global a partir da equivalência de uma
pluralidade de demandas sociais106.

No entanto, sob o populismo, a constituiçã o do campo popular, quanto


maior for, pede cada vez mais a suspensã o do cará ter contraditó rio de demandas
particulares que ele precisa mobilizar. Por isto, só cabe à liderança ser um
significante vazio que parece operar como ponto de unidade entre interesses
aparentemente tã o distintos. Tal cará ter vazio dos significantes que unificam o
campo popular nã o é resultado de algum arcaísmo político pró prio a sociedades
prenhes de ideias fora do lugar. Ele “simplesmente expressa o fato de que toda
unificaçã o populista tem lugar em um terreno social radicalmente
heterogêneo”107. Daí porque ele precisa afirmar:

A identidade popular se torna cada vez mais plena a partir de um ponto


de vista extensivo, já que representa uma cadeia sempre maior de
demandas; mas ela se torna intensivamente mais pobre, pois deve
despojar-se de conteú dos particulares a fim de abarcar demandas sociais

105
SCHMITT, Carl; O conceito de político – Teoria do partisan, Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 32
106
LACLAU, Ernesto; La razón populista, p. 110
107
Idem, p. 128
que sã o totalmente heterogêneas entre si. Isto é uma identidade popular
que funciona como um significante tendencialmente vazio108.

Laclau fornece vá rios exemplos para dar conta de um fenô meno que, em
seu caso, certamente tem expressõ es profundas no peronismo e em outras
formas de populismo latino-americano reformista, capazes de permitir a
constituiçã o de identidades coletivas. Nestes casos, o populismo demonstrou tal
funçã o pelo fato da defesa da ordem institucional nestes países ter sempre
estado, em larga medida, vinculada à s demandas hegemô nicas de setores
conservadores da sociedade. O que pode nã o ser o caso. Tal indeterminaçã o de
resultados relativos a fenô menos populistas permite a Laclau ver no papel
unificador de Nelson Mandela, que acaba por se confundir com o nome do
pró prio Estado, na política cosa nostra do governador paulista Adhemar de
Barros ou nos projetos de Mao Tse-Tung exemplos do antiinstitucionalismo
populista. Pois:

existe em toda sociedade um reservató rio de sentimentos anti status quo


puros que se cristalizam em alguns símbolos de maneira relativamente
independente da forma de sua articulação política e é sua presença que
percebemos intuitivamente quando denominamos “populista” um
discurso ou uma mobilizaçã o109.

Tais símbolos sã o “significantes flutuantes” cujo cará ter de “flutuaçã o” vem do


fato de poderem aparecer organizando o discurso de perspectivas políticas
muitas vezes radicalmente distintas entre si. Por outro lado, esses sentimentos
anti institucionais normalmente se encarnam em chamados aos “de baixo”, aos
que estavam fora da ordem institucional. Por isto, Benjamin evocava a atraçã o
popular pelo criminoso, pelo bandido. A atraçã o vem da posiçã o de exterioridade
em relaçã o à ordem legal.

Transformação e paralisia

As elaboraçõ es de Laclau sã o precisas em mais de um ponto. Elas


mostram como a perspectiva freudiana e seus desdobramentos permitem
compreender, com clareza, os processos identificató rios no campo político nã o
apenas como regressivos, mas também como constitutivos da pró pria dinâ mica
transformadora das lutas sociais. Nã o há política democrá tica sem o
reconhecimento de dinâ micas constituídas no ponto de nã o-sobreposiçã o entre
direito e demandas sociais, entre legalidade e legitimidade. Nã o há política
democrá tica sem um excesso de antagonismo em relaçã o à s possibilidades
previamente decididas pela estrutura institucional, e é isto que a experiência
populista nos mostra, embora o populismo nã o seja o ú nico modo de existência
do excesso de antagonismo sobre a estrutura democrá tico-institucional110. De
toda forma, Laclau nos permite compreender como a reflexã o política freudiana
pode nos ajudar a sublinhar a complexidade da relaçã o entre institucionalidade e
demandas que se alojam em um espaço anti-institucional. A irredutibilidade da

108
Idem, p. 125
109
Idem, p. 136
110
Cf. ZIZEK, Slavoj; Em defesa das causas perdidas, op. cit., p. 287
posiçã o da liderança implica reconhecimento de um lugar, nã o completamente
enquadrado do ponto de vista institucional, marcado pela presença da natureza
constituinte da vontade política. Tal lugar pode tanto impedir que a política se
transforme na gestã o administrativa das possibilidades previamente
determinadas e constrangidas pelo ordenamento jurídico atual quanto ser o
espaço aberto para a recorrência contínua de figuras de autoridade e liderança
que parecem periodicamente se alimentar de fantasias arcaicas de segurança,
proteçã o e de medo. Esta ambivalência lhe é constitutiva, pois ela é, na verdade, a
pró pria ambivalência da incorporaçã o em política. Tanto é assim que a definiçã o
de demandas democrá ticas fornecida por Laclau é bastante sumá ria:

Há um ingrediente da noçã o de democracia na tradiçã o marxista que é


necessá rio reter: a noçã o de insatisfaçã o da demanda que enfrenta um
status quo existente e permite o desencadeamento da ló gica equivalencial
que conduz ao surgimento do povo111.

Como podemos notar, esta colocaçã o nã o se diferencia muito de uma


descriçã o genérica de ruptura anti-institucional. O que nos coloca uma questã o
importante, a saber, se a concepçã o política de povo é suficiente para descrever
processos emancipató rios. A constituiçã o do povo e de sua visibilidade é
condiçã o suficiente para falarmos em política emancipató ria?
Pois talvez sejamos obrigados a afirmar que o povo é uma categoria
política provisó ria e profundamente limitada. Quando o povo sobe à cena e lá
permanece de forma nã o-provisó ria, é impossível impedir que seus eixos de
convergência nã o se cristalizem sob a figura da naçã o e se institucionalizem sob
a figura do estado. Nã o há povo sem naçã o. Nã o há naçã o sem exclusã o,
perseguiçã o e afirmaçã o territorial. Nã o é possível criticar a colonizaçã o do
campo político pelo estado-naçã o e tentar conservar uma compreensã o
ontoló gica do povo. O povo induz necessariamente ao estado e à naçã o, a nã o ser
que ele só se encarne em momentos nos quais as sociedades precisam
concentrar sua potência em um linha de fuga a fim de que rupturas e mudanças
qualitativas sejam possíveis. Por isto, o povo não deve aparecer como substância
social, mas como potência de emergência. Uma potência de emergência que
ampliará sua força se for capaz de se encarnar em um corpo social des-idêntico e
inquieto, ao invés do corpo unitá rio do imaginá rio social. Pois a política é a
emergência do que nã o se estabiliza nos regimes atuais de existência
Por outro lado, a estratégia de Laclau tem ainda outro problema
importante. Pois ele deveria explorar com mais sistematicidade a natureza
profundamente ambígua das estratégias populistas e sua necessá ria limitaçã o.
Ambiguidade entendida nã o no sentido da polaridade, sempre alimentada pelo
pensamento conservador, entre democracia com instituiçõ es fortes e
autoritarismo personalista, mas no sentido de uma oscilaçã o contínua, interna a
todo movimento populista, entre transformação e paralisia. Por sustentar a
necessidade de sujeitos políticos se expressarem como povo constituído através de
cadeias de equivalências entre demandas concretas muitas vezes contraditó rias,
o populismo é assombrado continuamente pelo risco da paralisia dos processos
de transformaçã o social devido ao fato de alcançarmos rapidamente um ponto de
equilíbrio no qual demandas conflitantes começam a se vetar mutuamente. O
111
LACLAU, idem, p. 161
populismo avança em situaçõ es nas quais há um cá lculo possível que permite a
vá rias e determinadas demandas mais fortes serem, em algum nível,
contempladas. No entanto, ele se depara rapidamente com uma situaçã o na qual
processos de transformaçã o se estancam devido ao equiílbrio impossível entre
demandas conflitantes, o que faz do processo de liderança uma gestã o contínua
do imobilismo e da inércia, desviada pela construçã o pontual de antagonismos
setorizados com grupos exteriores. Faz parte da dinâ mica do populismo a
presença destes momentos nos quais o imobilismo se justifica pela
transformaçã o da luta de classes em mero fantasma a assombrar, com ameaças
de regressõ es a condiçõ es antigas de vulnerabilidade, os setores submetidos à
liderança. Assim, consolida-se a dependência à s figuras de liderança que já nã o
sã o mais capazes de fazer o processo de transformaçã o avançar, mas que tentam
nos fazer acreditar que, se desaparecerem, elas poderiam nos levar à situaçã o de
perda das conquistas geradas. Figuras que a partir de entã o se perpetuarã o
através do retorno fatídico à mobilizaçã o libidinal do medo como afeto político.
Psicologias do fascismo
Aula 6

Na aula de hoje, gostaria de discutir o texto “A estrutura psicoló gica do fascismo”,


de Georges Bataille. Escrito em 1933, no ano da ascensã o do Partido Nacional
Socialista ao poder, o texto de Bataille é um dos primeiros a utilizar o quadro
psicanalítico de aná lise do social para dar conta diretamente do fascismo. Mas
primeiramente lembremos de alguns traços fundamentais do horizonte crítico de
Georges Bataille. Eles nos facilitarã o na tarefa de compreender sua interpretaçã o
do fascismo.

Um crítica da sociedade do trabalho

Bataille inicia seu texto afirmando que a sociedade capitalista da


produçã o é uma sociedade homogênea, ou seja, baseada na construçã o de uma
estrutura social na qual relaçõ es e valores sã o baseadas na utilidade e na
quantificaçã o. Sociedade homogênea produtora de indivíduos homogêneos.
“Homogeneidade significa aqui comensurabilidade e consciência dessa
comensurabilidade (as relaçõ es humanas podem ser mantidas por uma reduçã o
a regras fixas baseadas na consciência da identidade possível de pessoas e de
situaçõ es definidas)”112. Todo o problema de tais sociedades é como lidar com a
exclusã o do que é heterogêneo, que Bataille aproxima daquilo que é
inconsciente, ou seja, sem forma pró pria de apreensã o pela consciência. Ou seja,
a base da vida social é uma certa noçã o de homogeneidade criada pelo sistema
de produçã o, pela submissã o das atividades à abstraçã o monetá ria, pelos
ditames da sociedade do trabalho.
Em vá rios momentos, Bataille lembrará que nossas sociedades modernas
ocidentais sã o caracterizadas por serem, principalmente, sociedades do trabalho.
O trabalho aparece como atividade fundamental para a constituiçã o das
identidades sociais e para o meu reconhecimento como sujeito. Se o trabalho tem
esta dimensã o formadora é porque ele é uma das versõ es mais bem acabadas de
certo processo de auto-governo. Só aqueles capazes de se auto-governar sã o
capazes de trabalhar. Pois, como dizia Marx, através do trabalho, aprendemos a
impor uma lei à vontade, lei que deve ser reconhecida por mim como expressã o
da minha pró pria vontade. Esta vontade que submete outras vontades e que
aparece assim para o sujeito com um dever que ele mesmo põ e para si, dever que
lhe permite relativizar as exigências imediatas de auto-satisfaçã o, é um fator
decisivo na constituiçã o da noçã o moderna de autonomia. Por isto, só aqueles
capazes de trabalhar sã o autô nomos; nã o apenas no sentido material de serem
capazes de prover seus pró prios sustentos, mas no sentido moral de serem
capazes de impor para si mesmo uma lei de conduta que é a expressã o de sua
pró pria vontade. E se lembrarmos da ideia de Rousseau 113, para quem a
verdadeira liberdade é a capacidade de dar para si mesmo sua pró pria lei, ser
legislador de si mesmo, entã o seremos obrigados a dizer que o trabalho é
exercício mais importante para a liberdade.

112
BATAILLE, Georges; La structure psychologique du fascisme, p. 137
113
Ver ROUSSEAU, Jean-Jacques; Le contrat social, Paris : gallimard, 2000
No entanto, para Bataille, devido a esta natureza de auto-controle
socialmente validado nã o é possível ao trabalho aparecer, em qualquer momento
que seja, como modalidade bem sucedida de reconhecimento social. Trabalhar
sempre será uma operaçã o servil. Podemos mesmo modificar radicalmente a
divisã o social imposta ao trabalho pelo capitalismo e permitir que todos tenham
a posse dos meios de produçã o e de seus frutos. Para Bataille, isto nã o mudará o
essencial, a saber, que o mundo do trabalho é o mundo da produçã o e que
produzir implica ser capaz de submeter atividades ao cá lculo de tempo e metas,
nã o se deixar desviar das metas estabelecidas, perguntar-se pela utilidade final
de cada objeto produzido, avaliar cada açã o a partir do valor que ela produziu.
Ou seja, o mundo do trabalho é um mundo no qual posso calcular valores que
sã o homogêneos. A lei que imponho para mim mesmo quando organizo minhas
atividades a partir da ló gica do trabalho é uma lei que me ensina a calcular, a
medir, a quantificar minhas atividades, os objetos que produzo e, principalmente,
o prazer final que alcanço. E neste ponto que se encontra, para Bataille, o
verdadeiro nú cleo da experiência de alienaçã o produzida pela sociedade do
trabalho. Por isto, ele precisará lembrar:

O trabalho exige uma conduta em que o cá lculo do esforço, relacionado à


eficá cia produtiva, é constante. Exige uma conduta razoá vel, em que os
movimentos tumultuosos que se liberam na festa e, geralmente, no jogo,
nã o sã o admitidos. Se nã o pudéssemos refrear esses movimentos, nã o
poderíamos trabalhar, mas o trabalho introduz justamente a razã o de
refreá -los114.

Nesta citaçã o, vemos Bataille introduzir uma oposiçã o importante. Há um


modelo de cá lculo derivado da ló gica do trabalho. Tal modelo é indissociá vel da
noçã o de “utilidade”, assim como de um tempo no qual as atividades sã o
calculadas tendo em vista sua utilidade. Se nos perguntarmos sobre o que
devemos entender por “utilidade” neste contexto, teremos que apelar a um texto
do início dos anos 30, intitulado “A noçã o de dispêndio”. Nele, lemos:

A utilidade tem teoricamente como finalidade o prazer – mas somente sob


uma forma moderada, pois o prazer violento é tido como patológico – e se
deixa limitar, por um lado, à aquisiçã o (praticamente à produçã o) e à
conservaçã o dos bens e , por outro, à reproduçã o e à conservaçã o das
vidas humanas (...) No conjunto, qualquer julgamento geral sobre a
atividade social subentende o princípio de que todo esforço particular
deve ser redutível, para ser vá lido, à s necessidades fundamentais da
produçã o e da conservaçã o115.

Ou seja, fica claro como a utilidade aparece nã o apenas enquanto modo de


descriçã o da racionalidade pró pria a um sistema social determinado, mas
principalmente como o princípio fundamental de definiçã o da natureza dos
sujeitos pró prios a tal sistema. Os sujeitos racionais no interior do capitalismo
sã o aqueles que organizam suas açõ es tendo em vista sua auto-conservaçã o, a
conservaçã o de seus bens e a fruiçã o de formas moderadas de prazer. Eles sã o

114
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 64
115
BATAILLE, Georges; A parte maldita, precedida de “A noção de dispêndio”, p. 20
aqueles que se julgam racionais por sempre se perguntarem pela utilidade de
suas açõ es, nã o apenas suas açõ es no interior do mundo do trabalho, mas
também suas açõ es relativas a outros sujeitos. Pois, dessa forma, como dirá Marx
a respeito do problema do fetichismo da mercadoria, as relaçõ es entre pessoas
acaba ganhando a forma de relaçõ es entre coisas: “a humanidade, no tempo
humano, antianimal do trabalho é em nó s o que nos reduz a coisas”116.
Segundo Bataille, esta homogeneidade social produzida pelo trabalho
exige a figura do Estado. Pois a funçã o do Estado seria garantir a homogeneidade
e usar sua autoridade contra forças inassimilá veis. O processo produtivo produz,
no entanto, contradiçõ es ligadas ao desenvolvimento da vida econô mica. Isso
pode levar “uma parte apreciá vel da massa dos indivíduos homogêneos a cessar
de ter interesse na conservaçã o da forma de homogeneidade existente” 117. Esta
parte pode se associar a formas heterogêneas já existentes.

O sagrado e o poder

Bataille afirma que o sagrado é o melhor exemplo social do heterogêneo,


já que ele pode ser definido, como o faz Durkheim, como o absolutamente
heterogêneo em relaçã o ao mundo profano, como aquilo dotado de uma força
desconhecida e perigosa e, por isto, submetido a uma proibiçã o social de contato
que o separa do mundo homogêneo ou profano. Mas o sagrado, por sua vez, é
apenas uma parte do que Bataille chama de “dispêndios improdutivos”: tudo
aquilo que a sociedades homogêneas rejeitam como detrito sem valor ou como
valor superior transcendente. Há uma dualidade fundamental do mundo
heterogêneo, preso entre a gló ria e a decadência, entre o puro e o impuro (como
a pró pria palavra sacer indica). Tais objetos heterogêneos podem, por isto,
produzir tanto atraçã o quanto repulsã o e se apresentam a nó s através da força
violenta do choque.
Assim, contra essa sociedade do trabalho, Bataille quer apelar a tudo o
que ela compreende como excessivo, tudo capaz de mobilizar um gozo que nã o
se confunde com o cá lculo do prazer e desprazer e, principalmente, toda açã o
social que aparece como improdutiva. Pois devemos inicialmente entender por
“gozo” aquilo que está para além do prazer, aquilo que dissocia desprazer e dor,
prazer e alegria. Daí o sentido de uma afirmaçã o como:

A atividade humana nã o é inteiramente redutível a processos de


reproduçã o e de conservaçã o, e o consumo deve ser dividido em duas
partes distintas. A primeira, redutível, é representada pelo uso do mínimo
necessá rio para os indivíduos de uma dada sociedade, à conservaçã o da
vida e ao prosseguimento da atividade produtiva: trata-se, portanto,
simplesmente da condiçã o fundamental desta ú ltima. A segunda parte é
representada pelos dispêndios ditos improdutivos: o luxo, os enterros, as
guerras, os cultos, as construçõ es de monumentos santuá rios, os jogos, os
espetá culos, as artes, a atividade sexual perversa (isto é, desviada da
finalidade genital) representam atividades que, pelo menos nas condiçõ es
primitivas, têm em si mesmas seu fim118.

116
Idem; O erotismo, p. 184
117
Idem, La structure psychologique du fascisme, p. 342
118
Idem; A parte maldita, p. 21
Há vá rias questõ es que poderíamos colocar a partir de afirmaçõ es desta
natureza. Elas apontam para o fato de toda sociedade ser atravessada pela
necessidade de experiências de excesso, de dispêndio e de destruiçã o que, do
ponto de vista das exigências econô micas de produçã o e maximizaçã o, sã o
simplesmente irracionais. Este excesso tem duas formas principais, duas formas
contrá rias à utilidade e ao cá lculo: uma forma superior e outra inferior. Uma
pura e outra impura. Uma que tem um valor elevado e outra que tem um valor .
Esta distinçã o é fundamental e implica duas dinâ micas possíveis à s forças
heterogêneas. Elas podem aparecer como um poder intocá vel e purificado, sem
medida comum com o mundo homogêneo. Ou elas podem aparecer como um
aquém da forma, como uma potência do informe. Um exemplo dessas
determinaçõ es contrá rias encontra-se na palavra sacer.
Bataille afirma entã o que os líderes fascista, de uma forma muito peculiar,
pertencem a tal existência heterogênea. Eles mobilizam o descontentamento com
a homogeneidade social e o peso fastidioso das normas a seu favor. No entanto, o
fluxo afetivo que eles mobilizam se dirige a uma unidade, a uma instâ ncia
dirigente representada pela autoridade do líder:

O fluxo afetivo que une o líder aos seus apoiadores – que toma a forma de
uma identificaçã o moral destes com aquele que eles seguem (e
reciprocamente) - é funçã o da consciência comum dos poderes e das
energias cada vez mais violentas, cada vez mais desmedidas que se
acumulam na pessoa do chefe e se tornam indefinidamente disponíveis
nele119.

Cria-se assim uma soberania presa apenas a um lado da heterogeneidade, o que


produz uma soberania assentada na experiência da dominaçã o. É assim que
Bataille introduz o tema da soberania. Normalmente, o conceito de soberania é
utilizado no interior da filosofia política para descrever aquele que se encontra
em um lugar excepcional, pois fonte de emanaçã o do poder. O exemplo mais
paradigmá tico aqui é o lugar do rei no poder moná rquico. O rei é soberano
porque, sendo a fonte do poder, a lei é expressã o da sua vontade. Por isto, ele
pode, ao mesmo tempo, ser o fundamento da lei e suspendê-la quando entender
dever ser o caso. O soberano é aquele que pode estar dentro ou fora da lei, aplicá -
la ou suspendê-la, porque é dele que emana o poder. Estando fora, ele é uma
potência heterogênea que dirige a violência contra todo exterior ou contra as
formas de heterogeneidade vinculadas à s formas miserá veis. Bataille aproxima a
soberania moná rquica, da soberania religiosa e militar. Poder religioso e poder
militar sã o as formas mais claras da soberania, no que Bataille se apropria das
figuras freudianas da constituiçã o das massas organizadas. O fascismo tenderia
sempre a reunir todas essas figuras, reativando uma instâ ncia soberana latente.
Para Bataille, as forças armadas sã o baseadas na transformaçã o de uma
massa miserá vel (sempre sã o os pobres que entram na linha de frente das
guerras) em figura de gló ria através da identificaçã o com o chefe militar:

Os seres humanos incorporados em um exército sã o apenas elementos


negados, negados com um espécie de raiva (de sadismo) manifesto no
tom de cada mandamento, negados nos desfiles, pela uniforme pela
119
Idem, La strucuture psychologique du fascisme, p. 348
regularidade geométrica realizada dos movimentos cadenciados. O chefe
enquanto imperativo é a encarnaçã o dessa negaçã o violenta. Sua natureza
íntima, a natureza de sua gló ria, constitui-se em um ato imperativo
anulando o populacho infame (que constitui o exército) enquanto tal (da
mesma forma que ele anula a carnificina enquanto tal)120.

Assim esta dominaçã o soberana , para se afirmar, volta-se contra tudo o


que a sociedade homogênea definiu como heterogêneo mas impuro, exterior. Ela
se volta contra o outro lado da heterogeneidade que poderia quebrar a
experiência da dominaçã o, revelando a força do descentramento. Assim, o
fascismo se transforma no uso do heterogêneo como astú cia ú ltima da sociedade
homogênea. Contra ela, Bataille crê que devemos procurar uma forma de
heterogeneidade que nã o se submete a esta soberania moná rquica recuperada
pelo fascismo. É isto que ele procura ao falar das experiências do sagrado e do
erotismo.

O sacrifício

“O sacrifício – que é, como a guerra, a suspensã o do interdito do assassinato – é o


ato religioso por excelência”121. Mas por que o sacrifício seria o ato religioso por
excelência? Certamente, Bataille nã o está a falar do sacrifício como limitaçã o da
minha vontade em nome de um ideal moral. Algo presente quando falo, por
exemplo: “eu me sacrifiquei para defender nossa causa”. Sacrifício significa uma
destruiçã o improdutiva, melhor meio de negar uma relaçã o utilitá ria entre o
homem, as coisas e os animais. Um animal sacrificado é uma animal com o qual
nã o tenho mais uma relaçã o de uso e de submissã o à ló gica da produçã o. Ele é
objeto de uma “consumaçã o sem lucro”. Mas, principalmente, um animal
sacrificado é um animal do qual eu participo, ele me representa e tomo parte no
ritual do sacrifício através dele e, principalmente, nele. No sacrifício do animal,
eu posso ser um com ele. Por isto, Bataille pode dizer: “o sacrifício é o calor em
que se reencontra a intimidade daqueles que compõ em o sistema das obras
comuns”122. Esta intimidade revelada pelo sacrifício implica certa forma de
simbiose e de fusã o que Bataille aproxima da relaçã o amorosa. Daí uma
afirmaçã o central como:

O que o ato de amor e o sacrifício revelam é a carne. O sacrifício substitui


a vida ordenada do animal pela convulsã o cega dos ó rgã os. O mesmo se dá
com a convulsã o eró tica: ela libera ó rgã os pletó ricos cujos jogos cegos
prosseguem além da vontade refletida dos amantes. A essa vontade
refletida sucedem os movimentos animais desses ó rgã os inchados de
sangue. Uma violência, que a razã o nã o controla mais, anima esses ó rgã os,
tensiona-os até a explosã o e, de repente, é a alegria dos coraçõ es de ceder
ao excesso dessa tempestade123.

120
BATAILLE, La structure psychologique du fascisme, p. 358
121
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 105
122
BATAILLE; A parte maldita, p. 73
123
Idem, O erotismo, p. 116
O sacrifício revela a carne que nos constitui aquém da individualidade. Ele é a
revelaçã o de um corpo em nó s que é feito de carne, ou seja, de algo pró prio a
uma corporeidade que reage para além da vontade refletida dos amantes. A
carne, como dirá quase na mesma época Maurice Merleau-Ponty, é o “anonimato
inato de mim mesmo”, este ponto no qual sou habitado por uma matéria
anô nima que me aproxima do que exige uma explosã o violenta para aparecer.
O recurso à ideia de carne pode ser visto como a expressã o daquilo que
Bataille chama por um momento de “baixo materialismo”. Trata-se de uma ideia
por ele apresentada nos anos trinta e que consiste em dizer que todo ideal
elevado assenta-se em uma base material constantemente negada. Neste ponto,
nã o parece que estejamos longe do Marx de A ideologia alemã com sua crítica à
impossibilidade de ver como o sistema metafísico de ideias era a expressã o
invertida dos processos de reproduçã o material da vida. No entanto, Bataille
insiste que tal base material tem uma base distinta daquela que encontramos no
materialismo histó rico marxista. Ela é a composiçã o material heterogênea e
disforme da qual toda forma é extraída. Ela é este solo primeiro anterior a toda
forma e sempre negado como impuro, obsceno, nauseabundo e repulsivo. Por
isto, o termo “baixo materialismo”. É em direçã o a tal solo que o sacrífico procura
nos levar, em direçã o a uma matéria que é produçã o contínua de diferença e que
pode aparecer sob a forma do grotesco e do informe.
Notem aqui, principalmente, que a aproximaçã o entre sacrifício e amor
nã o é feita em nome da visã o moral de que a relaçã o afetiva duradoura exige a
restriçã o dos interesses pró prios em nome da construçã o de um
empreendimento comum. Bataille aproxima sacrifício e amor para dizer que o
erotismo partilha deste sentimento de participaçã o através do desvelamento de
um elemento comum, a carne, que é o elemento informe que me forma, o
elemento impessoal que me personaliza e que, por isto, se encontra partilhado
em um sistema de partilha que une desiguais, homem e animal, morto e vivo.
Desta forma, através do erotismo, opera-se um reconhecimento que nã o é
movimento através do qual eu confirmo meus interesses e desejos ao ver que ele
é levado em conta pelo outro. O reconhecimento produzido pelo erotismo é
reconhecimento de que em mim habita o que me leva a abrir-se como um animal
sacrificado, a procurar me ver no que perde sua forma e se submete a um agir
que nã o pode ser visto como expressã o de um Eu. Ou seja, se o amor sempre foi,
na filosofia, a figura de um modelo importante de reconhecimento social no qual
seria capaz de, através do outro, assegurar-me de minha identidade ao mesmo
tempo em que reconheço a identidade do outro, construindo assim um sistema
de mú tuo estabelecimento de identidades, o erotismo, ao menos segundo
Bataille, produz um fenô meno de outra ordem. Pois: “o que, desde o início, é
sensível no erotismo é o abalo, por uma desordem pletó rica, de uma ordem que
exprime uma realidade parcimoniosa, uma realidade fechada” 124. Entre o amor
dos filó sofos e o erotismo de Bataille há uma diferença que se expressa na
distinçã o entre um processo de reconhecimento entre sujeitos e outro processo
de reconhecimento de si na alteridade radical do que nã o aparece mais como
sujeito.
Neste sentido, podemos dizer que, através do erotismo, eu perco a
segurança da minha identidade e nã o sou mais capaz de assegurar a identidade
do outro. Em seu lugar aparece esta intimidade que descreve a força de um
124
Idem, p. 129
elemento comum que nos une e nos dissolve. Algo que deve ser compreendido
nã o como identidade, mas como espaço de confrontaçã o com a heterogeneidade
que nã o se submete a uma unidade. Por isto, o erotismo produz uma fusã o que
Bataille deve descrever como: violenta, excessiva, disforme e desordenadora.
Como se a existência de tal modelo de fusã o fosse a condiçã o para uma
experiência social de emancipaçã o em relaçã o à s amarras da figura do indivíduo,
assim como de toda e qualquer fascinaçã o pela identidade, tal como vimos, por
exemplo, no modelo da fusã o pró prio à s massas fascistas, com sua fusã o
organizada a partir da identificaçã o a um soberano capaz de produzir
homogeneidade.
Neste ponto, podemos retornar ao problema do fascismo, segundo
Bataille, isto a fim de compreendermos melhor a aposta política feita por ele com
seu conceito de erotismo. Bataille insiste que nossa sociedades sofrem por nã o
saberem como dar conta de uma experiência da heterogeneidade que se
manifesta sob a forma de desejo de fusã o e de perda de limites da
individualidade. Vimos como o fascismo seria maneira de absorver tal desejo
através de uma política das massas, mas onde o desejo de fusã o produz uma
homogeneidade organizada sob a identificaçã o, profundamente disciplinar, a um
líder transcendente, cujo discurso é marcado pela unidade, pela depuraçã o e
purificaçã o do corpo social. Maneira da identidade ter a ú ltima palavra, mesmo
se através do uso do desejo de heterogeneidade. Pois: “a tentar controlar e
purificar a heterogeneidade, o fascismo acaba por destruir a heterogeneidade
que está a usar”125.
Contra o fascismo, dirá Bataille, de nada adianta tentar alimentar as
experiências descontínuas ligadas à figura do indivíduo. Contra o fascismo, só
mesmo outra forma de heterogeneidade, esta mais radical ligada ao que vem de
baixo, ao que expressa este ponto no qual forma alguma se estabiliza, mas no
qual toda forma ainda é possível. Esta heterogeneidade é aquilo que nã o se
disciplina, aquilo que quebra toda hierarquia pois expressa a consciência da
dependência entre o alto e baixo. Ela teria, segundo Bataille, um poder
subversivo, por exigir que: “o que é alto se transforme em baixo, o que é baixo se
transforme em alto”126. Por isto, o fascismo procura destrui-la e retira-la do
contato dos homens. Para Bataille, de uma forma bastante peculiar, a melhor
arma contra o fascismo é o erotismo. Pois a luta nã o é entre regimes políticos,
mas entre formas de vida, e nã o haverá superaçã o do fascismo se nã o lhe
compreendermos como uma forma de vida que só pode ser barrada através de
outra forma de circulaçã o do desejo. No fundo, a questã o política realmente
relevante será sempre: como o desejo circula. Daí uma afirmaçã o importante
como:

Nã o apenas as situaçõ es psicoló gicas das coletividades democrá ticas sã o,


como toda situaçã o humana, transitó rias, mas continua possível
encontrar, como uma representaçã o ainda imprecisa, forças de atraçã o
diferentes das já utilizadas, tã o distintas do comunismo atual ou passado
quanto o fascismo é das reivindicaçõ es diná sticas. É tendo em vista tais
possibilidade que se deve desenvolver um sistema de conhecimentos
permitindo prever as reaçõ es afetivas sociais que percorrem a super-
125
NOYS, Benjamin; Georges Bataille’s base materialism, p. 506
126
BATAILLE, La structure psychologique du fascisme, p. 157
estruturas – talvez mesmo, em até certo ponto, delas se dispor127.

É possível se perguntar como poderíamos pensar uma experiência


política revolucioná ria (pois é isto que Bataille procura) apelando a aberturas
desta natureza. Talvez a melhor resposta passe pela influência que Bataille
sofreu de Alexandre Kojève. Uma das principais características do ensino de
Kojève foi insistir na importâ ncia de compreendermos as dinâ micas dos conflitos
sociais como problemas ligados a demandas de reconhecimento. Conflitos sociais
sã o, principalmente, conflitos por reconhecimento de nossa posiçã o de sujeitos.
Bataille acrescenta a esta ideia a noçã o de que todas conflitos por
reconhecimento só pode ser efetivamente compreendidos se levarmos em conta
como sujeitos aspiram à soberania, ao dispêndio improdutivo, ao erotismo, ao
sacrifício. No interior deste processo, cria-se um problema importante e
complexo, a saber, o que pode ser uma sociedade de sujeitos soberanos?

127
Idem, p. 163
Psicologias do fascismo
Aula 7

Na aula de hoje, gostaria de expor os traços fundamentais da reflexã o de


Wilhelm Reich a respeito do fascismo. Reflexã o esta cuja influência nã o será
apenas restrita aos anos trinta, mas que será uma referência fundamental para as
lutas de emancipaçã o social que ocorrerã o a partir do final dos anos sessenta.
Reich será peça importante na compreensã o das relaçõ es entre dominaçã o
política e repressã o libidinal, entre sexualidade e poder. Psicanalista de relaçõ es
turbulentas com a ortodoxia freudiana devido a sua concepçã o de tratamento,
libido e sexualidade, ele será afastado da Associaçã o Psicanalítica Internacional
no início dos anos trinta. Ao invés de uma técnica centrada no manejo da palavra,
Reich defendia um terapia de intervençã o corporal visando liberar a força
libidinal reprimida.
Suas reflexõ es, no entanto, nã o derivam apenas de problemas
eminentemente clínicos. Elas nasceram de uma articulaçã o extensa sobre
regimes de sujeiçã o social. Reich é um dos principais nomes (juntamente com
Alfred Adler, Siegfried Bernfeld, Otto Fenichel, Paul Federn, Erich Fromm) do que
se convencionou chamar por um tempo de “freudo-marxismo”, ou seja, a
tentativa de aproximar reflexã o marxista sobre processos de alienaçã o social e
psicaná lise. Reich irá procurar na psicaná lise a chave para compreender os
mecanismos de paralisia da emancipaçã o no capitalismo. A impossibilidade de
constituiçã o de uma consciência de classe ou de uma atitude revolucioná ria será
derivada de processos de sujeiçã o psíquica responsá veis pela pró pria formaçã o
da personalidade e do sujeito psicoló gico. Trata-se de entender como os desejos
inconscientes paralisam a emergência de uma consciência de classe. Todos esses
autores fazem parte de um tempo histó rico no qual a possibilidade de uma
revoluçã o política se colocava de forma concreta no horizonte, principalmente
depois da vitó ria da Revoluçã o Russa.
No entanto, eles se deparam com o crescimento contínuo de alternativas
fascistas e de extrema-direita no pró prio seio da classe proletá ria. Uma resposta
a isto passa pela defesa de que o fracasso da política marxista se deveria a uma
concepçã o insuficiente da psicologia humana, suas contradiçõ es e conflitos. Há
de se entender por que as massas desejaram o fascismo. Daí porque talvez a
melhor maneira de começar a refletir sobre as posiçõ es de Reich seja lembrando
de afirmaçõ es como:

Para a psicologia social, o problema se apresenta de maneira inversa: ela


nã o se demora sobre as razõ es que levam o homem faminto ou explorado
ao roubo ou à greve, mas ela procura explicar por que a maioria dos
famintos nã o rouba, por que a maioria dos explorados nã o faz greve128.

Esta é uma das colocaçõ es fundamentais de A psicologia de massas do fascismo,


de Wilhelm Reich, escrito em 1933. O livro, uma das principais obras de Reich
juntamente com A função do orgasmo e A análise do caráter apareceu como uma
128
REICH, idem, p. 62
reflexã o psicoló gica sobre os mecanismos de servidã o e, em segundo nível, como
um estudo sobre a psicologia social do fascismo. A questã o inicial gira em torno
da tentativa de compreender a constituiçã o psicoló gica dos indivíduos como uma
forma de sujeiçã o social, ou seja, como a psicologia do indivíduo moderno é fruto
da internalizaçã o da sujeiçã o social. Desta forma, ele espera explicitar em novas
bases a profunda relaçã o entre desejo e o campo social.

Fascismo e sexualidade

A partir desta questã o inicial, o fascismo será tratado como a figura


extrema da sujeiçã o. Ou seja, o que temos aqui é uma teoria geral da sujeiçã o
psíquica e uma teoria específica da estrutura psicoló gica do fascismo. O fascismo
aparece assim como uma tendência sempre inscrita na estrutura psicoló gica dos
sujeitos modernos.
A escolha em construir a aná lise da sujeiçã o social através da produçã o da
psicologia do indivíduo é clara. Primeiro, trata-se de afirmar que tal psicologia
tem como seu operador fundamental os mecanismos de repressã o. Ou seja, as
faculdades mentais e as instâ ncias psíquicas sã o fundadas na operacionalizaçã o
da repressã o à experiência sexual:

O mecanismo através do qual as massas humanas perdem o sentido da


liberdade, como a economia sexual social provou de maneira abundante
graças a experiências clínicas é a repressã o social da sexualidade genital
das crianças, dos adolescentes e dos adultos129.

O materialismo de Reich tem uma espécie de base energética fundada em uma


noçã o que eleva a sexualidade à condiçã o de fundamento material do humano.
Reich desenvolverá uma compreensã o naturalista da energia sexual, uma
bioenergética da libido (compreendida como urgência psíquica em direçã o à
gratificaçã o sexual) que é fruto de uma perspectiva materialista bastante
explícita, definindo a prá tica clínica como um processo de liberaçã o, pela via do
contato físico (vegetoterapia), da referida energia sexual de sua couraça
caracterial e muscular repressora. As disposiçõ es corporais, os traços de cará ter
funcionam como uma armadura cuja aná lise deve saber como desconstituir. Uma
desconstituiçã o que tem nã o apenas funçã o clínica, mas fundamentalmente
política.
Tal repressã o vinculada de forma estrutural aos processos de socializaçã o
nã o é, no entanto, a condiçã o para a civilizaçã o. Ou seja, é possível para Reich
pensar formas de sociedade nã o-repressiva. Trata-se, e isto nã o se encontrará
em Freud, de estabelecer as coordenadas histó ricas da repressã o, e nã o suas
coordenadas antropoló gicas. Nã o é o processo civilizató rio que produziria uma
sociedade repressiva, baseada na culpabilidade e na agressividade. Há
coordenadas histó ricas bastante precisas que podem e devem ser superadas. O
trabalho analítico deve ser um setor de tal superaçã o. Daí a necessidade de
sublinhar como a repressã o é o resultado direto da reproduçã o material de certa
forma bastante específica de forma de vida:

129
Idem, p. 299
Ao voltarmos para a histó ria da repressã o sexual descobrimos que ela nã o
nasceu com a cultura, que ela nã o é condiçã o para a formaçã o da cultura,
mas que ela iniciou relativamente tarde, apó s a instauraçã o do
patriarcado autoritá rio e do nascimento das classes130.

Isto é uma maneira de afirmar que a vida social permite modos de socializaçã o
que nã o passam pela repressã o das pulsõ es sexuais. No entanto, um modelo de
dominaçã o política baseado no patriarcado autoritá rio e um modelo de
espoliaçã o econô mica baseado na perpetuaçã o da sociedade de classes é
profundamente solidá rio da generalizaçã o de formas de repressã o. Reich eleva a
família autoritá ria, cujo teatro inconsciente nos é fornecido pelo Complexo de
É dipo, ao nú cleo central de reproduçã o social das dinâ micas de regressã o. Ela
será a “célula reacioná ria central”131, um Estado autoritá rio em miniatura que
visa nã o apenas a naturalizaçã o de um tipo patriarcal de dominaçã o, mas
também a oposiçã o da mulher como genitora e a mulher como ser sexual, de
onde se segue, por exemplo, a defesa fascista das famílias numerosas: estratégia
clá ssica para submeter a mulher a condiçã o de genitora. O que significa que
apenas o desmantelamento da família burguesa pode permitir o advento de uma
sociedade emancipada. Apenas a anulaçã o de uma prá tica clínica baseada na
reduçã o dos conflitos psíquicos aos processos de identificaçã o no interior do
nú cleo familiar poderia contribuir para a emancipaçã o.
Ou seja, Reich procura fornecer uma aná lise da gênese do fascismo que se
fundamente na natureza dos processos de repressã o social em operaçã o nas
dinâ micas de socializaçã o, em especial na família. O que significa aceitar que:
“todo espírito autenticamente revolucioná rio, toda arte e toda verdadeira ciência
tem suas raízes no nú cleo bioló gico natural do homem” 132. A emancipaçã o social
é indissociá vel de uma certa ressureiçã o da natureza negada, da afirmaçã o de
uma força bioló gica que permite aos sujeitos amar, conhecer e trabalhar. Nã o
será por outra razã o que Reich passará para a histó ria como aquele que
inventará a noçã o de “revoluçã o sexual”. Nã o haverá revoluçã o efetiva sem a
quebra das dinâ micas repressivas que fundamentam os processos de
socializaçã o.
Esta será a razã o que levará Reich a criticar as revoluçõ es comunistas que
ocorrem no início do século XX. A seu ver, o potencial revolucioná rio desaparece
na medida que as tentativas iniciais de transformaçã o das estruturas das
relaçõ es entre os sexos, dos modos de reproduçã o da família sã o abandonadas
em prol do fortalecimento dos modelos autoritá rios tradicionais. Lembremos
como, de fato, os primeiros anos da Revoluçã o Russa foram marcados pela
descriminalizaçã o da homossexualidade (1917), pelo reconhecimento do
casamento entre pessoas do mesmo sexo, legalizaçã o do aborto (1919), além das
defesas da uniã o livre, da emancipaçã o da mulher através do trabalho
assalariado (criaçã o massiva de creches e escolas em período integral), da
socializaçã o dos trabalhos domésticos (muitos dos trabalhos domésticos seriam
transferidos para a esfera pú blica através de lavanderias coletivas, refeitó rios
pú blicos etc.) e da crítica da família (criaçã o do casamento civil, supressã o do
poder marital, exercício conjunto da autoridade dos pais sobre os filhos, e

130
Idem, p. 73
131
Idem, p. 164
132
REICH, Wilhelm; La psychologie de masse du fascisme, op. cit., p. 15
facilitaçã o extrema dos processos de divó rcio). Tais mudanças se consolidam
através do Có digo das Leis sobre Casamento, Família e Tutela de 1918, mas que
serã o revistas no período stalinista.

Uma personalidade fascista

Ao descrever as estruturas da vida psíquica, Reich fala de três camadas


distintas do que ele chama de estrutura biopsicoló gica. Uma camada mais
superficial diria respeito à s dinâ micas sociais de cooperaçã o e civilidade. Uma
segunda se refere a impulsos agressivos, concorrenciais e belicistas. Por fim, a
ú ltima está vinculada ao nú cleo bioló gico natural do humano. Nela, encontra-se
uma forma de cooperaçã o mais natural e sexualmente desenvolvida. Depois da
decomposiçã o da organizaçã o democrá tica primitiva fundada no trabalho, o
nú cleo bioló gico do humano nã o teria mais conhecido representaçã o social. Por
isto, sua recuperaçã o seria necessariamente revolucioná ria.
O fascismo seria a expressã o politicamente organizada da estrutura
caracterial do homem médio, esse cuja caracteriologia estaria ligada à segunda
camada. Tal estrutura seria universal e internacional, nã o sendo pró prio de
raças, naçõ es ou partidos determinados. Ou seja, a aná lise do fascismo é uma
aná lise caracterial.
A noçã o de cará ter permite a Reich “integrar no edifício da sociologia nã o
apenas os dados econô micos, mas também os dados sexuais”. Sobre a noçã o de
cará ter, Reich lembrará que os mecanismos de defesa do Eu, assim como seus
traços de cará ter que compõ em o cerne da personalidade psicoló gica, sã o
constituídos da mesma forma que os sintomas. Daí porque:

A forma das reaçõ es do ego, que difere de um cará ter para outro mesmo
quando os conteú dos das experiências sã o semelhantes, pode ser
remontada à s experiências infantis, da mesma maneira que o conteú do
dos sintomas e das fantasias133.

Na aná lise, estamos lindando com resistências que sã o manifestaçõ es de traços


de cará ter. Este cará ter ou “modo de existir de uma pessoa” 134, seu sistema de
reaçõ es, de regularidades, representa uma expressã o de todo seu passado. Ao
analisar o fascismo a partir da estrutura caracterial, Reich apenas mobiliza mais
claramente a relaçã o entre arqueologia social das repressõ es e produçã o de
personalidade psíquica. Ou seja, Reich é praticamente o primeiro a insistir que
há uma personalidade fascista, que o fascismo é uma forma de personalidade.
Isto permite a Reich afirmar que o líder fascista só pode ocupar tal lugar porque
sua personalidade coincide com a estrutura daquela pró pria a largas parcelas da
populaçã o. O que lhe leva a analisar de forma extensiva os traços de
personalidade de Hitler.
Lembremos ainda que esta estrutura caracterial precisa ser objeto de uma
adesã o forte para constituir uma personalidade fascista. Isto explica porque a
base de seus recrutados estaria nos estratos médios, na “pequena burguesia
medíocre e reacioná ria”. Pois a pequena burguesia simplesmente teria copiado a
atitude dos “grandes”, fornecendo sua versã o caricatural e exagerada: “nã o se
133
REICH; Wilheim; Análise do caráter, São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 53
134
Idem, La psychologia de masse …p. 56
representa impunemente ao pequeno burguês a comédia da ‘grande política’”135.
Ela naturaliza aquilo que, nos estratos mais elevados, seria algo como uma
aparência assumida enquanto tal. Ela é o setor que realmente acredita nas
injunçõ es do discurso do poder e suas estratégias retó ricas de auto-justificaçã o.
A personalidade estará assim assentada em uma arqueologia social das
repressõ es porque o destino da sexualidade moldaria toda a extensã o dos traços
de cará ter do indivíduo. É isto o que permite a Reich fazer afirmaçõ es como:

A inibiçã o moral da sexualidade natural da criança cuja ú ltima etapa é o


afunilamento característico da sexualidade genital faz da criança alguém
ansioso, selvagem, submisso, obediente, “amá vel” e “dó cil” no sentido
autoritá rio da palavra; impondo a todo movimento de vida e liberdade
uma forte carga de angú stia, ela paralisa as forças de revolta no homem e
deteriora, ao impedi-lo de pensar nas coisas sexuais, sua potência
intelectual e seu senso crítico136.

Ou ainda, de forma mais explícita:

O homem genitalmente satisfeito é honesto, consciente do seu dever,


corajoso, disciplinado sem fazer muito caso disto. Todas essas qualidades
estã o organicamente ligadas à sua personalidade. O indivíduo sofrendo de
fraqueza genital cuja estrutura sexual é plena de contradiçõ es, está
constantemente em guarda para dominar sua sexualidade, para salvar sua
honra sexual, para lutar corajosamente contra as tentaçõ es, etc. Cada
adolescente e cada criança conhece a luta contra a tentaçã o da
masturbaçã o. Ë no curso desse combate que se desenvolve todos os
elementos estruturais, sem nenhuma exceçã o, do homem reacioná rio137.

A colocaçã o é clara. Haveria uma espécie de moral naturalizada que


derivaria da ausência de distorçõ es de comportamento provocada pela repressã o
à funçã o do orgasmo. Tal moral naturalizada seria o fundamento para uma
estrutura de cará ter que nã o está à s voltas com a necessidade dos sujeitos se
mortificarem até se tornarem completamente submissos à ordem ou dar conta
de contradiçõ es que aparecerã o insuperá veis, que obrigarã o os sujeitos a
encontrar formas de satisfaçã o substitutiva, de desvio agressivo à quilo com o
qual eles nã o sã o mais capazes de lidar.
Reich chegará a dizer que o medo da liberdade sexual, sinô nimo na mente
reacioná ria de caos e depravaçã o sexual é o que realmente freia a superaçã o da
liberaçã o em relaçã o à exploraçã o econô mica. A exploraçã o econô mica é
assentada na naturalizaçã o de dinâ micas sociais de opressã o, de mando, de
submissã o. Tais dinâ micas sã o inefetivas em alguém cuja liberdade sexual é
conquistada. Nã o por outra razã o, os fascistas cunharã o o termo de
“bolchevismo sexual” para dar conta do que seria o processo de depravaçã o e
enfraquecimento da naçã o produzida pela “libertinagem” bolchevique.

Imunizar o corpo social

135
Idem, p. 19
136
Idem, p. 74
137
Idem, p. 104
A partir desta estrutura repressiva de base, Reich procura derivar
algumas das características principais do fascismo, a saber, o racismo e sua
variante anti-semita, o lugar das temá ticas religiosas (o que Reich chama de
misticismo) e a fantasia da purificaçã o do corpo social que fundamenta uma
concepçã o unitá ria e identitá ria de naçã o, de estado e de pá tria. Analisemos cada
um desses pontos.
A respeito dos vínculos entre fascismo e religiã o, Reich afirma que eles se
fundam na reversã o do cará ter masoquista da antiga religiã o patriarcal em
sadismo. Daí porque um regime que se coloca como a redençã o sagrada contra a
decadência ateísta pode admitir de forma tã o orgâ nica todos os padrõ es de
violência.
Por outro lado, essa experiência religiosa nada tem a ver, por exemplo,
com a defesa de Georges Bataille a respeito da força de descentramento do
sagrado. Antes, ela é reduçã o da temá tica religiosa à defesa contra a destituiçã o
das estruturas psicoló gicas de reproduçã o da vida social sob a forma da
“individualidade”. Reich cita, por exemplo, um trecho de texto de propaganda
fascista:

Como o bolchevismo quer aniquilar toda individualidade, ele destró i a


família, que imprime ao homem sempre uma marca individual. É por isto
que ele detesta todas as aspiraçõ es nacionais. Ele quer uniformizar os
povos tornando-os dó ceis ... Mas todas as tentativas de aniquilar a vida
pessoal serã o reduzidas a nada enquanto restar no coraçã o do homem
uma centelha de religiã o, pois é na religiã o que sempre se manifesta a
liberdade pessoal em relaçã o ao mundo ambiente138.

Sobre o racismo fascista, Reich lembrará como ele estará sempre


associado ao imaginá rio da purificaçã o do corpo social, da sua unidade e da sua
imunizaçã o necessá ria:

A ideologia mundial da ‘alma’ e da ‘pureza’ é a ideologia mundial da


asexualidade, da ‘pureza sexual’ ou, para chamar as coisas por seus
nomes, uma forma de recalque sexual e de angú stia sexual, emanaçã o de
uma sociedade patriarcal autoritá ria139.

Assim, Reich insiste que o racismo nã o é apenas uma justificaçã o bioló gica
para aspiraçõ es imperialistas. Sua posiçã o estrutural e decisiva está ligada, por
um lado, à clara desumanizaçã o dos que serã o objetos da reificaçã o má xima, pois
serã o reduzidos à condiçã o de objeto. Mas o racismo fascista, como é voltado
contra setores nã o submetidos à reificaçã o da escravidã o, como os judeus, é para
Reich fruto de estrutura psicoló gica precisa. Nele, pulsa as formas mais
elementares de recalque sexual através da temá tica da purificaçã o das raças e da
hierarquia pressuposta que procura aproximar motivos teoló gicos e geográ ficos:

A ideologia fascista separa o desejo de orgasmo do homem das estruturas


humanas formadas pelo patriarcado autoritá rio e atribui tal separaçã o à s
138
Idem, p. 192
139
Idem, p. 139
diferentes raças: nó rdico se torna assim sinô nimo de luminoso, celeste,
assexual, puro; o Oriente médio, inversamente, é instintual, demoníaco,
sexual, orgiá stico140.

Ou seja, o racismo é indissociá vel das dinâ micas pró prias à repressã o.
Sabemos como tal divisã o emtre o nó rdico luminosos e o semita instintual marca
também os negros e os africanos. O fascismo relega o sexual e o sensual à s raças
estrangeiras, aos costumes que pervertem nosso povo. Reich mostra, por
exemplo, a abundante propaganda produzida pelos nazistas alemã es a respeito
da pretensa promiscuidade da entã o Uniã o Soviética, onde nã o haveria mais
casamento, onde mulheres seriam disponíveis a todos em uma espécie de
prostituiçã o generalizada, de socializaçã o das mulheres, onde “nã o haveria mais
uniã o entre homem e mulher, onde se viveria hoje com uma pessoa, amanhã com
outra, de acordo com seus caprichos”141.
Mas notemos como colocar o problema do racismo e do antisemitismo
inerente ao fascismo desta forma é maneira de afirmar que sua superaçã o nã o
passa pela denú ncia das dinâ micas econô micas e de exploraçã o imanentes a tal
violência social. Na verdade, os problemas do racismos e do antisemitismo
exigem o esclarecimento de seu fundamento sexual e a atuaçã o neste nível. O
racismo para Reich se combate através de uma revoluçã o sexual.
Reich tem o mérito de expor como nã o há autoritarismo sem regulaçã o
necessá ria da vida sexual, pois se trata de lembrar que isto nã o é uma manobra
diversionista, nã o é um elemento auxiliar, mas o fundamento necessá rio de toda
servidã o e sujeiçã o social. Reich era tã o consciente deste ponto que, no início dos
anos trinta, organizará açõ es chamadas de Sex-Pol que visavam fornecer à s
classes proletá rias esclarecimentos e auxílios para uma sexualidade livre.

140
Idem, p. 143
141
Idem, p. 170
Psicologias do fascismo
Aula 8

Ao prefaciar a versã o norte-americana de O anti-Édipo, Foucault dirá que se


tratava de uma introduçã o à vida nã o-fascista:

nã o apenas o fascismo histó rico de Hitler e de Mussolini - que soube tã o


bem mobilizar o desejo das massas – mas também o fascismo que está em
todos nó s, que assombra nossos espíritos e nossos comportamentos
cotidianos, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar esta coisa mesma
que nos domina e nos explora142.

A colocaçã o de Foucault revelava inicialmente um uso da noçã o de


fascismo que nã o se reduzia à descriçã o de movimentos totalitá rios no Europa
dos anos 30. Tratava-se de falar de algo que estaria em todos nó s, como uma
potencialidade imanente à s formas de vida que partilhamos. Isto a ponto de
Foucault continuar perguntando:

Como fazer para nã o se tornar fascista, mesmo quando (e sobretudo


quando) se crê ser um militante revolucioná rio? Como livrar nosso
discurso e nossos atos, nossos coraçõ es e nossos prazeres do fascismo?
Como encontrar o fascismo que se incrustou em nosso comportamento?
Os moralistas cristã os procuravam os traços da carne que se alojavam nas
dobras da alma. Deleuze e Guattari procuram os traços mais ínfimos do
fascismo no corpo143.

Esta maneira de compreender o fascismo se enraizava na maneira que


vimos Wilhelm Reich definir o fascismo a partir de uma aná lise caracterial e uma
aná lise de estruturas de personalidade. Mas nã o se tratava apenas de uma
recuperaçã o de certa psicologia das massas pró pria a fenô menos histó ricos dos
anos 30. Deleuze e Guattari começam a escrever juntos tendo um problema
central em vista. Ele está enunciado na seguinte constataçã o de Guattari:

Esta colaboraçã o nã o é o resultado de um simples encontro entre dois


indivíduos. Para além do concurso das circunstâ ncias, há também todo
um contexto político que nos conduziu a ela. Na origem, tratou-se menos
da apresentaçã o em comum de um saber que de um certo
desnorteamento diante da guinada que tomaram os acontecimentos apó s
maio de 68. Fazemos parte de uma geraçã o cuja consciência política
nasceu do entusiasmo e da ingenuidade da Liberaçã o, com sua mitologia
conjurató ria do fascismo. E as questõ es deixadas em suspenso por esta
outra revoluçã o abortada que foi maio de 68 se desenvolveram para nó s
segundo um contraponto tã o preocupante que nó s nos inquietamos, como
vá rias outras pessoas, das alvoradas que nos preparam e que poderiam
cantar hinos de um fascismo nova roupagem que nos levaria a ter
saudades do fascismo dos velhos tempos. Nosso ponto de partida
142
FOUCAULT, Michel; Dits et écrits II, p. 154
143
Idem, p. 155
consistiu em considerar que, em um momento crucial, algo da ordem do
desejo manifestou-se à escala de toda a sociedade para em seguida ser
reprimido, liquidado, tanto por forças do poder quanto por partidos e
sindicatos ditos operá rios e, até certo ponto, pelas pró prias organizaçõ es
esquerdistas144.

É assim que Félix Guattari apresentou O anti-Édipo em um debate


organizado pela Quinzaine littéraire, em 1972. Dificilmente poderíamos ser mais
claros a respeito do que produziu nã o apenas este livro decisivo para a filosofia
contemporâ nea, mas todo o projeto intitulado “Capitalismo e esquizofrenia” com
seus dois volumes. Segundo Guattari, trata-se de pensar porque, diante das
possibilidades de transformaçã o postas pelas revoltas de maio de 68, algo
pareceu se quebrar. Da revolta, aparece um desnorteamento provocado pelos
acontecimentos que se seguiram a maio de 68, um conjunto de promessas que
parecem nã o se realizar. Como se maio de 68 fosse uma latência na vida social
que deveria ser fechada o mais rá pido possível, tanto pelas forças do poder
quanto por partidos e sindicatos ditos operá rios e pelas pró prias organizaçõ es
esquerdistas.
De certa forma, a primeira questã o que mobiliza o projeto de Deleuze e
Guattari é um questã o de prá tica política: como se aborta uma revoluçã o? Seria o
caso de fazer aná lises socioló gicas sobre os conflitos no interior dos grupos que
mobilizaram maio de 68, suas fragmentaçõ es e equívocos estratégicos? Ou seja,
há de se compreender tal aborto como o resultado de escolhas políticas
equivocadas, cá lculos de circunstâ ncia errados? Ou seria o caso de ir em direçã o
a outro nível de aná lise, um nível mais elementar que procura compreender a
dificuldade na constituiçã o de sujeitos políticos capazes de sustentar processos
de transformaçã o? Nível este que deve começar com uma crítica dos modelos
hegemô nicos de subjetividade com seus aparelhos sociais de reproduçã o
internalizados como um sistema de repressõ es e limitaçõ es que parece nos
paralisar diante de acontecimentos com forte potencial emancipador?
Questõ es desta natureza parecem naturalmente procurar articular os
campos da psicologia e da política. A sua maneira, elas parecem inicialmente ser
uma revivescência de estratégias críticas que já teriam sido colocadas em
circulaçã o no século XX, em especial à ocasiã o de pesquisas feitas nos anos trinta
a respeito da psicologia do fascismo. Todos estes trabalhos procuravam
compreender, a partir da aná lise da economia libidinal dos sujeitos, a forma com
que a paralisia diante das possibilidades de uma revoluçã o operá ria estava
enraizada nos regimes de constituiçã o da vida psíquica. Todos eles, à sua
maneira, viam o fascismo nã o apenas como um regime político, mas como a
consequência necessá ria de um modo de constituiçã o da vida psíquica. O
fascismo seria, inicialmente, um modo de funcionamento da vida psíquica. Por
isto, tais trabalhos procuravam compreender como a pró pria constituiçã o da
vida psíquica, com suas dinâ micas de identificaçã o, com suas modalidades de
organizaçã o de conflitos, com seus sistemas de repressã o pulsional era, na
verdade, o fundamento de formas de sujeiçã o social. Daí a ideia de que nã o
haveria transformaçã o política possível que nã o começasse por partir da crítica à
sujeiçã o que dá forma à vida psíquica.

144
GUATTARI, Félix in DELEUZE, Gilles; L’île déserte, Paris: Minuit, pp. 301-302
Mas havia algo mais no projeto de Deleuze e Guattari e que faz de
“Capitalismo e esquizofrenia” uma experiência intelectual ú nica. Lembremos
desta afirmaçã o de Guattari: “em um momento crucial, algo da ordem do desejo
se manifestou”. Ele deixa claro um dos pressupostos maiores do projeto
Capitalismo e esquizofrenia, a saber, a ideia de que uma teoria do desejo é,
necessariamente, uma teoria dos modos sociais de produçã o e que, por
consequência, uma teoria da transformaçã o dos modos sociais de produçã o só
pode ser uma teoria da transformaçã o do desejo. Um marxista clá ssico torceria o
nariz a tal colocaçã o, lembrando que a teoria dos modos de produçã o deve ser
compreendida como expressã o dos regimes sociais de trabalho. De fato, de certa
forma, Deleuze e Guattari operam uma substituiçã o da centralidade da categoria
de trabalho ao proporem a centralidade da categoria de desejo. Como dirá
Guattari em conceitualizaçã o marxista, o desejo nã o deve ser considerado como
uma superestrutura subjetiva, mas como elemento fundador da infraestrutura.
Isto a ponto de Deleuze e Guattari afirmarem, por exemplo:

Na verdade, a produçã o social é unicamente a pró pria produçã o desejante


em condiçõ es determinadas (...) Só há desejo e social, nada mais. Mesmo
as formas as mais repressivas e mais mortíferas de reproduçã o social sã o
produzidas pelo desejo, a partir da organizaçã o que deriva de tal ou tal
condiçã o que devemos analisar (...) Nã o, as massas nã o foram enganadas,
em certo momento elas desejaram o fascismo e é isto que se trata de
explicar, esta perversã o do desejo gregá rio145.

De fato, nã o é possível explicar a racionalidade de um sistema econô mico


e político se nã o formos capazes de explicar como se constró i a adesã o
psicoló gica a suas injunçõ es e premissas. Esta ideia está presente desde o
momento em que Max Weber lembrava ser impossível compreender o
capitalismo sem partir do ethos que ele exige com seus regimes específicos de
vontade e de auto-controle, sem partir da ética protestante na qual ele se
sustenta e que ele perpetua, ao menos durante sua primeira fase. Podemos dizer
que é uma intuiçã o semelhante que levam Deleuze e Guattari a defender a
necessidade de afirmar que todo modo de produçã o social é, basicamente, um
modo de inscriçã o social do desejo, isto a ponto de afirmarem que só há desejo e
social, nada mais.
No entanto, Deleuze e Guattari dizem ainda algo a mais. Pois nã o há
regime de sujeiçã o que seja baseado na pura e simples coerçã o, nã o há
dominaçã o que seja apenas uma questã o de submissã o pela força. A sua maneira,
toda sujeiçã o é também uma captura do desejo. Daí a necessidade de afirmar:
nã o, as massas nã o foram enganadas. Em certo momento elas desejaram o
fascismo e este é o verdadeiro desafio: compreender como se deseja o fascismo,
quais sã o os afetos que nos mobilizam a tal desejo, como eles sã o produzidos
para que eles possam ser desativados. Trata-se entã o de fazer a crítica de
modalidades de inscriçã o social do desejo que bloqueiam algo que poderíamos
chamar, se quisermos, de potencial emancipató rio.
Neste sentido, o projeto “Capitalismo e esquizofrenia” é uma peculiar
crítica da antropologia filosó fica baseada na categoria de desejo, crítica
construída com o objetivo de fornecer a genealogia dos mú ltiplos processos de
145
DELEUZE e GUATTARI; L’anti-OEdipe, pp. 36-37
alienaçã o social. Uma genealogia que nã o teme apelar, entre outros, a
procedimento clá ssicos da filosofia social, como uma filosofia da histó ria
constituída, neste caso, a partir dos desdobramentos da forma-Estado e que visa
construir, ao menos segundo as palavras de Pierre Clastres: “uma teoria geral da
sociedade e das sociedades”. Por isto, podemos dizer que o eixo fundamental do
projeto de Deleuze e Guattari pode ser descrito da seguinte forma: articular a
crítica da economia política a uma crítica da antropologia filosófica do desejo.
Como dirá Deleuze: “É pois a economia política enquanto tal, a economia dos
fluxos, que é inconscientemente libidinal: nã o há duas economias; o desejo ou a
libido sã o apenas a subjetividade da economia política”146. Maneira de mostrar
como a economia política pró pria ao capitalismo, com seus processos de
racionalizaçã o, é indissociá vel da procura em dar realidade social a um conceito
de agente cuja compreensã o exige a aná lise de seus modos de desejar,
fundamento maior de seus modos de ser.
Neste ponto, encontra-se uma de suas operaçõ es filosoficamente mais
surpreendentes do projeto. Deleuze e Guattari mobilizam uma forte crítica a uma
certa compreensã o filosó fica do desejo que aproximaria nomes como Platã o,
Hegel e, principalmente, a psicaná lise (cuja metapsicologia seria fortemente
dependente de certa tradiçã o filosó fica), isto a fim de afirmar que tal
compreensã o filosó fica forneceria o horizonte normativo dos modos de
socializaçã o no interior do capitalismo avançado. Como se o capitalismo fosse
dependente de uma certa metafísica, como se ele fosse, à sua maneira, a
realizaçã o social de uma certa metafísica. Por fim, como se sua crítica só pudesse
ser, ao mesmo tempo, a crítica de uma metafísica pretensamente hegemô nica no
pensamento ocidental. Maneira de submeter a economia política do capitalismo a
uma crítica da metafísica ocidental, de afirmar que, de certa forma, o capitalismo
é uma metafísica materializada em processos de racionalizaçã o social.
Contra tal compreensã o metafísica do desejo, faz-se necessá rio contrapô -
la a uma outra, construída principalmente através do acoplamento dos conceitos
de conatus, em Spinoza e de potência (Macht), em Nietzsche. Dois filó sofos
aparentemente marginais à constituiçã o hegemô nica do pensamento ocidental.
Faz-se necessá rio ainda acoplar tal reflexã o filosó fica aos conceitos produzidos
pelas prá ticas de tratamento da psicose colocadas em circulaçã o na Clínica de La
Borde, da qual Guattari fazia parte. A seu ver, este embate ao mesmo tempo
filosó fico e clínico é, no fundo, estratégia necessá ria para fazer a crítica nã o
apenas de um ontologia do desejo, mas de toda uma política que, por pensar
processos de organizaçã o apenas a partir das figuras do partido e do Estado, nã o
sabe o que fazer quando o desejo aparece, em acontecimentos com forte
potencial de ruptura, para além das figuras de sua alienaçã o. Por isto,
“Capitalismo e esquizofrenia” nã o é apenas um projeto crítico, mas é uma
proposiçã o de refundaçã o dos campos da clínica e da política, uma tentativa de
fornecer a teoria que, de certa forma, teria faltado a maio de 68, a teoria que o
acontecimento seria capaz de produzir. Pois:

Se é verdade que a revoluçã o social é insepará vel de uma revoluçã o do


desejo, entã o a questã o se desloca: sob quais condiçõ es a vanguarda
revolucioná ria poderá se liberar de sua cumplicidade inconsciente com as
estruturas repressivas e desativar as manipulaçõ es do desejo das massas
146
DELEUZE, Gilles; L’île déserte, p. 274
pelo poder, manipulaçõ es que as fazem: ‘combater pela sua servidã o
como se estivessem a combater pela sua salvaçã o’?147

Segmentaridade e micropolítica

Este horizonte pode nos permitir melhor compreender a maneira com que o
problema do fascismo retorna em Mil Platôs, em especial no seu capítulo IX.
Deleuze e Guattari introduzem sua discussã o sobre o fascismo a partir de uma
teoria geral da organizaçã o social. Essa teoria nã o parte de formas de
desenvolvimento em sequência, ela nã o é evolutiva. Na verdade, ela tenta dar
conta de um jogo de dinâ micas distintas presentes em todas as formas sociais.
Maneira de abandonar uma perspectiva histó rica teleoló gica.
Tendo isto em mente, Deleuze e Guattari partem de uma apresentaçã o de
modos de segmentaridade, conceito que vem de Durkheim e se refere a regimes
de organizaçã o e reorganizaçã o social que estabelece relaçõ es nã o a partir de um
centro funcional, como no caso da noçã o de Estado. Aparece aí a distinçã o entre
sociedades de segmento e as sociedades centralizadas.
Deleuze e Guattari partem daí para abandonar tal distinçã o e propor duas
formas de segmentaridade : uma dura e biná ria, outra flexível e nã o-biná ria.
Todas as duas estariam presentes em todas as formas sociais, em maior ou
menor grau. Esta é a base para uma distinçã o bastante presente em sua teoria
entre estruturas molares e estruturas moleculares. Note-se que tais dualidades
nã o sã o mobilizadas tendo em vista uma distinçã o etapista entre tipos de
sociedades. Elas procuram dar conta de tendências diversas, de níveis distintos
no interior de todas as formas sociais. Esta dualidade será fundamental para a
distinçã o que nos interessa, a saber, esta entre macropolítica e micropolítica.
Deleuze e Guattari a descreve assim:

Sejam conjuntos do tipo percepçã o ou sentimento: sua organizaçã o molar,


sua segmentaridade dura nã o impede todo um mundo de micro perceptos
inconscientes, de afetos inconscientes, segmentaçõ es finas que nã o
apreendem ou nã o experimentam as mesmas coisas, que se distribuem de
outra forma, que operam de outra forma. Uma micropolítica da
percepçã o, da afecçã o, da conversaçã o, etc. Se consideramos os grandes
conjuntos biná rios, como os sexos ou as classes, fica claro que eles passam
também nos agenciamentos moleculares de outra natureza, e que há
dependência recíproca. Pois os dois sexos reenviam a mú ltiplas
combinaçõ es moleculares que colocam em jogo nã o apenas o homem na
mulher, mas a relaçã o de cada um no outro com o animal, a planta, etc. Mil
pequenos sexos148.

Ou seja, a macropolítica é aquela que se organiza a partir de um modo


necessariamente biná rio e opositivo, daí a referência à s esferas da classe e do
sexo. Este binarismo é o modo privilegiado de organizaçã o e legislaçã o inerente
ao Estado, a uma constituiçã o do que eles chamarã o de “aparelho de Estado”.
Nesse sentido, a macropolítico normalmente opera pela visibilidade de grandes
oposiçõ es.
147
DELEUZE, Gilles; L’île déserte, p. 304
148
DELEUZE e GUATTARI, Mille Plateaux, p. 260
No entanto, esses binarismos molares também se enraízam em estruturas
moleculares. Assim, os binarismos escondem um rede molecular de relaçõ es em
seu interior que sempre forçam as oposiçõ es molares a um ponto de
decomposiçã o. As contradiçõ es sociais só funcionariam a grande escala; do ponto
de vista micropolítico as organizaçõ es se fazem a partir de linhas de fuga, de
dinâ micas de transbordamento. Deleuze e Guattari fazem a mesma observaçã o a
respeito da relaçã o entre classe e massa. Há sempre um outro regime que
coexiste com a separaçã o e a totalizaçã o de segmentos duros. Há sempre uma
tensã o internas à s formas sociais entre processos de codificaçã o e fluxo de
descodificaçã o.
Deleuze e Guattari ainda farã o uma distinçã o interna à s estruturas
moleculares. Há os fluxos moleculares que permitem devires e micro-devires,
que estabelece conexõ es e relaçõ es para além dos binarismos molares. Mas há
também aquilo que eles chamarã o de linhas de fuga com seu empuxo em direçã o
ao fora.
Neste sentido, a aná lise política nã o deve se deixar aprisionar pela
dimensã o macropolítica, embora tal dimensã o nã o seja indiferente. Ela também
nã o deve ter a ilusã o de que a dimensã o micropolítica é a verdadeira esfera
decisiva: “As fugas e movimentos moleculares nã o seriam nada se eles nã o
repassassem pelas organizaçõ es molares, nã o refizessem seus segmentos, suas
distribuiçõ es biná rias de sexo, de classe, de partidos”149. Esta é uma maneira de
dizer que uma aná lise efetiva deve compreender as articulaçõ es entre
macropolítica e micropolítica, deve apreender os fenô menos em seu ponto de
articulaçã o entre os dois níveis. Pois só assim será possível apreender o
movimento efetivo e as tensõ es concretas em jogo nas transformaçõ es políticas.
Esta dimensã o micropolítica nã o é “individual” em contraposiçã o à
dimensã o “social”. Podemos dizer que ela é libidinal, organizada como fluxo, em
contraposiçã o à dimensã o institucional e organizada como segmento. Uma
contraposiçã o fundada sob uma solidariedade profunda. Daí porque:

A administraçã o de uma grande segurança molar organizada tem por


correlato toda uma microgestã o dos pequenos medos, toda uma
insegurança molecular permanente, a ponto de que a fó rmula dos
ministérios do interior poderia ser: uma macropolítica da sociedade por e
para uma micropolítica da insegurança150.

Uma teoria do fascismo

Esta compreensã o das relaçõ es entre molar e molecular será fundamental para a
leitura que Deleuze e Guattari farã o do fascismo. Pois nã o se trata de privilegiar a
dimensã o macropolítica e descrever o fascismo a partir da presença de uma
concepçã o totalitá ria de Estado, até porque outros modelos políticos conhecerã o
figuras totalitá rias do Estado. O fascismo traz um tipo muito específico de
totalitarismo no qual a preservaçã o do Estado totalitá rio nã o será o eixo da
ló gica da açã o política. Mas para entender este ponto, faz-se necessá rio
compreender a dimensã o molecular do fascismo, compreender o micro-fascismo.
Neste nível, o fascismo se mostra muito menos centralizado e duro do que, por
149
DELEUZE e GUATTARI, Mille Plateaux, p. 264
150
Idem, p. 263
exemplo, o estado stalinista, que seria a figura mais clá ssica de um Estado
totalitá rio. Observando-o a partir de sua estrutura molecular, o fascismo aparece
muito mais como um corpo cancerígeno do que como um organismo totalitá rio.
Nesta dimensã o do “microfascismo”, fica mais claro encontrar uma
resposta à questã o reichiana: “Por que o desejo deseja sua pró pria repressã o?”.
Pois: “é muito fá cil ser anti-fascista no nível molar sem ver o fascista que se é,
que nos entretemos e alimentamos, que cuidamos com moléculas pessoais e
coletivas”151. Mas a resposta de Deleuze e Guattari a respeito do que nos faz
desejar o fascismo passa pela implementaçã o política de uma certa dimensã o da
pulsã o de morte, mesmo que os dois afirmem, à ocasiã o: “nã o invocamos pulsã o
de morte alguma”. Mas nã o seria necessá rio invoca-la de maneira explícita. Basta
ouvir o que pulsa em afirmaçõ es como:

Eis aí o quarto perigo: que a linha de fuga atravesse a parede, que ela saia
dos buracos negros, mas que, ao invés de se conectar com outras linhas e
aumentar suas valências a cada vez, ela se volta à destruiçã o, à aboliçã o
pura e simples, à paixã o de aboliçã o152.

Nó s veremos na aula que vem por que insistir que se trata aqui de uma
leitura libidinal do fascismo que se apoia, à sua maneira na mobilizaçã o de um
certo risco interno à pulsã o de morte. Mesmo as ambiguidades que Deleuze e
Guattari descrevem (o mesmo processo pode produzir a pura e simples aboliçã o
ou a mutaçã o das formas e lugares) está bastante enraizado nos usos do conceito
psicanalítico de pulsã o de morte. Como veremos na aula que vem, Guattari
deixará isto mais claro.
Mas, por enquanto, insistamos em outro ponto, a saber, o fascismo nã o é
exatamente o culto da ordem, o fortalecimento da estrutura biná ria da norma e
de suas formas de controle. Há algo em seu interior que se assemelha a essas
dinâ micas libertá rias de linha de fuga, a esses fluxos moleculares que
paradoxalmente sã o fundamentais para processos de singularizaçã o. Mais uma
vez, encontramos a ideia de que há algo que necessariamente aproxima o
fascismo de um processo revolucioná rio efetivo. No entanto, essa possibilidade
de efetivaçã o é cortada por uma submissã o da força de transformaçã o a uma
paixã o de aboliçã o.
De toda forma, percebamos que é necessá rio que o assujeitamento faça
também parte do desejo, que ele se enraíze nos agenciamentos do desejo. Ele é
uma de suas linhas que sempre pode ser seguida. Deleuze e Guattari lembram
entã o como tais liberaçõ es de linhas de fuga sã o impulsionadas por má quinas de
guerra. Essa figura da má quina de guerra visa dar conta de um princípio social de
movimento e desterritorializaçã o. Ela descreve todo agenciamento social em
relaçã o de exterioridade ao campo estatal de uma dada situaçã o. Ou seja, a
guerra nã o aparece aqui como um exercício do Estado, mas como um princípio
exterior que o Estado procura, por vá rias formas, capturar. Pois em toda
sociedade, o que é primeiro sã o suas linhas de fuga, seus movimentos de fuga.
Posteriormente, aparecem aparelhos do Estado cuja funçã o é captura-las. A
guerra se aproxima aqui da figura nietzscheana da potência e do combate. Trata-
se da virtude do guerreiro, que em vá rias situaçõ es se coloca em confronto com
151
DELEUZE e GUATTARI, Mille Plateaux, p. 262
152
Idem, p. 280
as obrigaçõ es do Estado. Trata-se da figura do nô made que nã o se move por
viver em um espaço liso.
Tal má quina de guerra pode operar como um princípio de mutaçã o
contínua de formas, por um princípio de nomadismo que se desdobra em um
longa linha de fuga ou pode liberar uma carga catastró fica de destruiçã o. Nesse
caso, a má quina de guerra funciona exatamente a partir da guerra, pois a guerra:
“é o ú nico objeto que resta quando a má quina de guerra perdeu sua potência de
mover”153. O mesmo princípio de transformaçã o pode se deteriorar em forma
bruta da destruiçã o. Toda linha de fuga tem um risco interno de se tornar uma
linha de aboliçã o, de destruiçã o de si e dos outros. De certa forma, a questã o
central gira em torno viver em linhas de fuga, de impedir que as linhas de fuga
sejam tomadas por má quinas de destruiçã o e de autodestruiçã o. Quando isto
ocorre, uma forma fascista necessariamente emerge. Por isto, é importante para
Deleuze e Guattari indicar diferenças entre o fascismo e o totalitarismo:

O totalitarismo é conservador por excelência. Já no fascismo trata-se


claramente de uma má quina de guerra. E quando o fascismo constró i um
Estado totalitá rio, nã o é mais no sentido em que um exército de Estado
toma o poder mas, ao contrá rio, no sentido de uma má quina de guerra
que toma para si o Estado. Uma colocaçã o bizarra de Virilio nos coloca no
bom caminho: no fascismo, o Estado nã o é exatamente totalitá rio, mas
suicidá rio. Há no fascismo um niilismo realizado154.

Ou seja, a guerra fascista nã o é uma guerra de conquista, ela nã o tem como parar,
ela nã o tem como se realizar. Como se fosse um “movimento perpétuo, sem
objeto nem alvo” cujos impasses só levam a uma aceleraçã o cada vez maior. A
ideia nazista de dominaçã o nã o está ligada ao fortalecimento do Estado, mas a
um movimento em movimento constante. Hannah Arendt falará da: “essência
dos movimentos totalitá rios que só podem permanecer no poder enquanto
estiverem em movimento e transmitirem movimento a tudo o que os rodeia” 155.
há uma guerra ilimitada que significa a mobilizaçã o total de todo efetivo social, a
militarizaçã o absoluta em direçã o a uma guerra que se torna permanente.
Guerra, no entanto, cuja direçã o nã o pode ser outra que a destruiçã o simples.
Como se o horizonte da catá strofe fosse, desde o início, o verdadeiro horizonte
da açã o. Deleuze e Guattari lembram, por exemplo, dessas afirmaçõ es de
Goebbels:

No mundo da fatalidade absoluta no interior do qual se move Hitler, nada


tem mais sentido, nem o bem nem o mal, nem o tempo nem o espaço, e o
que os outros homens chamam de ‘sucesso’ nã o pode servir de critério
(...) É prová vel que Hitler terminará em catá strofe156.

Nã o por outra razã o, tudo se passa como se o nazismo tivesse


necessariamente que se realizar neste famoso telegrama 71, no qual Hitler
anuncia: “Se a guerra está perdida, que a naçã o pereça”. Arendt, cuja aná lise

153
Idem, p. 281
154
Idem, p. 281
155
ARENDT; Origens do totalitarismo, p. 434
156
Idem, p. 282
Deleuze apreciava, falava do fato espantoso de que aqueles que aderiam ao
fascismo nã o vacilavam mesmo quando eles pró prios se tornavam vítimas,
mesmo quando o monstro começava a devorar seus pró prios filhos.
Falta a aula 9
Psicologias do fascismo
Aula 10

Na aula de hoje, iniciaremos o nosso módulo sobre o problema do fascismo na Escola


de Frankfurt através do comentário do último capítulo da Dialética do
Esclarecimento: “Elementos do anti-semitismo: limites do Esclarecimento”. Do ponto
de vista metodológico, este é o capítulo mais importante do livro. Pois Adorno e
Horkheimer submetem a discussão sobre o anti-semitismo a um modelo de análise do
que poderíamos chamar de “patologias sociais”. Trata-se de compreender o anti-
semitismo não apenas como um comportamento político, mas como o sintoma de um
vínculo social que se organiza tal como uma patologia mental. Desta forma, as
estruturas autoritárias e totalitárias da vida social não serão explicadas apenas através
de sua necessidade econômica, mas principalmente através de seu vínculo a estrutura
psíquica dos sujeitos socializados. Sem negligenciar a pergunta sobre as condições
sócio-econômicas que geraram o anti-semitismo, interessa aos nossos autores,
principalmente, compreender como funciona a estrutura psíquica e libidinal do anti-
semita.
No entanto, esta perspectiva não visa, por sua vez, patologizar o anti-semita
como alguém que sofreria, porventura, de alguma forma de doença mental. Esta seria
uma forma de transformar o anti-semitismo em um fenômeno marginal vinculado a
indivíduos ou grupos refratários ao processo de esclarecimento e racionalização
social. No entanto, a perspectiva de Adorno e Horkheimer é mais radical e consiste
em analisar o anti-semitismo como: “um esquema profundamente arraigado, um ritual
da civilização”157. Um modo de comportamento organicamente vinculado ao modo
com que a modernidade constitui individualidades e pensa, tanto psiquicamente
quanto socialmente, ideias como identidade e diferença. Assim, a análise da estrutura
psíquica e libidinal do anti-semita aparecerá como a lente de aumento que nos permite
observar as tensões no interior de todo e qualquer processo de formação do Eu
moderno. Por isto que o anti-semitismo aparecerá como um “limite do
esclarecimento”, como um fenômeno que expõe os limites internos do esclarecimento.
Para realizar este modelo de análise do anti-semitismo, Adorno e Horkheimer
precisam colocar em circulação um movimento duplo. Primeiro, trata-se de
compreender porque “em razão de sua adaptação deficiente” os judeus seriam o grupo
que: “tanto prática quanto teoricamente, atraem sobre si a vontade de destruição que
uma falsa ordem social gerou dentro de si mesma” 158. Argumentos que levam em
conta a posição sócio-econômica dos judeus na Europa, representantes do capital mas
sem direito de posse, assim como a tensão entre as religiões cristã e judaica serão
utilizados. Nesta parte, que vai até o sub-capítulo V, o modelo de análise é
relativamente tradicional.
No entanto, a partir do sub-capítulo V, Adorno e Horkheimer farão apelo a
uma antropologia filosófica profundamente inspirada na psicanálise freudiana para
descrever dois processos complementares: a passagem de uma racionalidade mimética
a uma racionalidade conceitual e o processo de formação do Eu como instância auto-
identitária. É na maneira com que a racionalidade mimética será recalcada para
permitir o fortalecimento das ilusões identitárias do Eu que Adorno e Horkheimer
verão as raízes psíquicas do anti-semitismo e de todo e qualquer processo de
segregação social, já que:
157
ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 160
158
Idem, p. 157
A cólera é descarregada sobre os desamparados que chamam a atenção . E
como as vítimas são intercambiáveis segundo a conjuntura: vagabundos,
judeus, protestantes, católicos, cada uma delas pode tomar o lugar do
assassino, na mesma volúpia cega do homicídio, tão logo se converta na norma
e se sinta poderosa enquanto tal159.

Na verdade, esta análise do totalitarismo fascista como patologia social terá dois
momentos: este que encontramos em nosso texto e uma análise das mutações da
autoridade através do quadro freudiano fornecido por Psicologia das massas e análise
do Eu. Podemos encontrar tal elaboração no texto de Adorno: Teoria freudiana e as
estruturas da propaganda fascista. O que vincula os dois desenvolvimentos é o uso
contínuo da categoria clínica de “paranoia” para descrever a estrutura psíquica e
libidinal no interior do fascismo. Longe de ser uma simples metáfora, tal uso de um
conceito clínico para a análise de fenômenos sociais é de extrema importância.
Esta era uma maneira de lembrar que a compreensão de fenômenos como o
fascismo era incompleta se mobilizasse apenas categorias econômicas, sociológicas e
políticas. Elas precisariam mobilizar também categorias psicológicas para dar conta
da maneira com que experiências políticas podem gerir estruturas psíquicas e se
enraizar em dimensões nas quais as ações não são motivadas apenas por cálculos de
maximização de interesses ou de crença política, mas também por circuitos
inconscientes de afetos.
Assim, ao aproximar o fascismo e outras formas de autoritarismo da paranoia,
Adorno e Horkheimer estavam a dizer que a paranoia seria o modo hegemônico de
participação social no interior de tais sociedades. O que implicava afirmar que, nestes
casos, os vínculos sociais se sustentariam a partir da generalização da paranoia como
tipo social, mesmo que os sujeitos, do ponto de vista de suas patologias individuais,
tivessem outra forma de organização de seus sintomas. Neste sentido, não teríamos
apenas uma analogia, mas a descrição de um modalidade de funcionamento social a
partir de gestão do sofrimento através da elevação de comportamentos patológicos a
forma de participação social. Como condição de participação, os sujeitos deveriam
agir como paranoicos. Um “agir como” que não deixará de ter implicações na própria
estrutura da personalidade subjetiva.
Mas há um ponto que gostaria de insistir nessa aula. Lembremos como o
conceito psicanalítico de paranoia, base do uso dos frankfurtianos, a aproximava de
uma patologia que colocava, à céu aberto, os mecanismos de identificação e
introjeção próprios do narcisismo que, por sua vez, eram a expressão de dinâmicas
próprias à constituição mesma do Eu do indivíduo moderno com seus
desconhecimentos e denegações. Freud insistira claramente, por exemplo, que o
narcisismo era uma fase necessária do desenvolvimento individual e que seu
mecanismo expunha dinâmicas próprias da paranoia e da melancolia. Neste ponto,
encontramos uma radicalização desta perspectiva em Lacan e em sua maneira de
mostrar como a própria constituição “normal” do Eu moderno era paranoica, pois
produtora de uma instância psíquica que organizava suas relações ao mundo através
de projeções, introjeções e fundava sua identidade a partir de um sistema de
denegações e agressividades160. Isto lhe obrigava a pensar uma clínica que é,
inicialmente, crítica das ilusões identitárias e sintéticas do Eu, se não quisesse ser o
fortalecimento de tendências paranoicas nos indivíduos.
159
ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 160
160
Ver, por exemplo, LACAN, Jacques; Séminaire II, Paris: Seuil, 1982
Neste sentido, é impossível colocar em circulação uma crítica que eleva a
paranoia à condição de patologia social sem defender que o indivíduo moderno não é
o esteio da vida democrática, mas a ferida aberta que coloca o corpo social em risco
perpétuo de deriva autoritária. Como se ao capitalismo restasse fornecer regressões
paranoicas periódicas aos sujeitos que ele socializa e produz. Isto pode nos explicar
porque a reflexão dos frankfurtianos não se serve do fortalecimento do indivíduo
moderno como contraponto à natureza paranoica dos vínculos sociais, como seria o
caso em uma perspectiva liberal. Na verdade, os dois conceitos tecem relações
profundas de solidariedade. Gostaria de desenvolver este ponto nas próximas aulas.

O anti-semitismo

Na aula de hoje, partiremos da discussão sobre o anti-semitismo. Adorno e


Horkheimer começam seu texto lembrando que os judeus são o grupo que atrai para
si, de maneira privilegiada, a vontade de destruição gerada pela falsa ordem social.
Sua caracterização como povo sem pátria, ligado a si apenas pela força da tradição e
da religião teria levado a um “apego inflexível às suas próprias formas de
ordenamento da vida” e a uma relação sempre insegura com a ordem dominante. Isto
auxiliou a eleição do anti-semitismo em modo social maior de racismo.
Adorno e Horkheimer são sensíveis às representações sociais normalmente
associadas aos judeus: banqueiros e intelectuais, o dinheiro e o espírito como o sonho
renegado daqueles que a dominação mutilou. Na posição de banqueiros eles são os
bodes expiatórios da injustiça econômica de uma classe inteira. Pois os judeus ficaram
presos ao setor de circulação, sem direito a aceder a posses no setor produtivo, eles se
transformaram nos oficiais de justiça para o sistema inteiro, atraindo a si o ódio que
normalmente deveria estar direcionado a uma classe inteira. Na Europa, eles se
transformaram nos intermediários que representam, para o povo, a conta a pagar pelo
progresso:

Os judeus não foram os únicos a ocupar o setor de circulação, mas ficaram


encerrados nele tempo demais para não refletir em sua maneira de ser o ódio
que sempre suportaram. Ao contrário de seu colega ariano, o acesso à origem
da mais-valia ficou-lhes em larga medida vedado. Foi só após inúmeras
dificuldades e tardiamente que lhes foi permitido o acesso à propriedade dos
meios de produção161.

Desta forma, a revolta contra uma classe econômica se transforma em revolta contra
um povo. O conflito sócio-econômico se transforma em conflito cultural, em revolta
contra formas de vida pretensamente diferentes. Assim, o destino dos judeus esteve
ligado ao descontentamento em relação a um processo de racionalização econômica
que eles foram obrigados a representar por serem “capitalistas sem propriedade”.
Esta explicação ligada à posição econômica dos judeus na Europa será
acrescida à defesa de uma relação particularmente problemática entre cristianismo e
judaísmo, até porque o judaísmo esteve, durante toda a época de intolerância religiosa
na Europa, presente como minoria constantemente vítima de revoltas.
Adorno e Horkheimer desconfiam do propalado universalismo paulino do
cristianismo por identificarem uma “nostalgia incontrolada” dos vínculos
comunitários religiosos canalizados como “rebeliões racistas” esporádicas: “os
descendentes dos visionários evangelizadores são convertidos, segundo o modelo
161
Idem, p. 163
wagneriano dos cavaleiros do Santo graal, em conjurados da confraria do sangue e em
guardas de elite”162. A potencia comunitária da religião cristã é ativada de forma
violenta contra os semitas. Esta nostalgia incontrolada dos vínculos comunitários
pode ser melhor compreendida se lembrarmos da leitura frankfurtiana do cristianismo,
que coloca de ponta a cabeça a leitura hegeliana. Ela está resumida na seguinte
afirmação:

Na medida em que o absoluto é aproximado do finito, o finito é absolutizado.


Cristo, o espírito que se tornou carne, é o feiticeiro divinizado. A auto-
reflexão-humana no absoluto, a humanização de Deus por Cristo, é o próton
pseudos. O progresso para além do judaísmo tem por preço a afirmação de que
o homem Jesus era Deus. É justamente o aspecto reflexivo do cristianismo, a
espiritualização da magia, que está na origem do mal163.

Podemos entender tais colocações da seguinte maneira. No cristianismo, um particular


(Cristo) é elevado à condição de universal abstrato (Deus). Tal humanização do
divino tem um preço: a impossibilidade de vivenciar a limitação do particular, com
suas exigências. Um finito vale por absoluto, ele deve se sacrificar no absoluto, mas
tal sacrifício nunca é completo, pois implica perpetuação da natureza representativa
da finitude. Algo muito diferente do judaísmo e de seu caráter radicalmente anti-
representativo. Ao dar tal lugar à finitude, Adorno e Horkheimer podem dizer que o
cristianismo queria permanecer espiritual, mesmo quando aspirava à dominação. O
sacrifício do finito através da morte de Cristo faz com que o cristianismo viva entre a
recaída em uma religião natural (e o reconhecimento da inanidade do sacrifício da
representação finita) e o reconhecimento do paradoxo de um fé que exige sacrifício
completo da razão do mundo (como vemos nestes “cristão paradoxais”, como Pascal e
Kierkegaard). Os que recaíram em uma religião natural precisavam ver, nos que não
confundiram seu particularismo com o universal (a religião judaica), o inimigo a ser
abatido.

Mimese

Mas o verdadeiro cerne da discussão de Adorno e Horkheimer sobre o anti-


semitismo está vinculado à necessidade do recalque da mimese enquanto condição
para a formação da individualidade. Com o recalque da mimese é o problema da
relação à alteridade que se transforma em questão: “A mera existência do outro é
motivo de irritação. Todos os outros são ´muito espaçosos´ e devem ser recolocados
em seus limites, que são os limites do terror sem limites” 164. Sendo os judeus uma das
figuras privilegiadas da alteridade na Europa, abre-se espaço para uma discussão que
enquadra o anti-semitismo como sintoma de uma recuperação social da revolta contra
a mimese perdida.
Esta é a maneira frankfurtiana de dizer que a consolidação de uma
racionalidade que expulsa as afinidades miméticas de seu horizonte é paga com o
retorno, no campo político, do extermínio de todo risco de se perder no outro, de sair
do invólucro defensivo de uma identidade construída de maneira compulsiva. Esse
extermínio não é sem definir modalidades de “retorno” à mimese recalcada, a uma

162
Idem, p. 165
163
Idem, p. 166
164
Idem, p. 171
“mimese da mimese”, como se fosse o caso de: “colocar diretamente a serviço da
dominação a própria rebelião da natureza reprimida contra a essa dominação”165.
Uma maneira de introduzir o problema da assimilação da mimese passa pela
compreensão de afirmações como:

A natureza que não se purificou nos canais da ordem conceitual para se tornar
algo dotado de finalidade; o som estridente do lápis riscando a lousa e
penetrando até a medula dos ossos, o haut goût que lembra a sujeira e a
putrefação; o suor que poreja a testa da pessoa atarefada; tudo o que não se
ajustou inteiramente ou que fira os interditos em que se sedimentou o
progresso secular tem um efeito irritante e provoca uma repugnância
compulsiva166.

As figuras mobilizadas aqui indicam certa forma de vínculo libidinal ao que


não se purificou na ordem conceitual, ao som que toca os ossos, à mistura promíscua
entre putrefação e alimentação, ao elemento não ajustado à imagem. Como se
houvesse alguma forma de tendência de retorno ao não completamente formado, ao
não completamente determinado, ao que não se submete integralmente à “recognição
no conceito”. Esta tendência a uma identificação com o que não é provido de
semelhança, de uma imitação do que não se assemelha é exatamente o que Adorno e
Horkheimer chamam de “mimese”.
Para apreender a especificidade de tal conceito, faz-se necessário lembrar que
sua construção visa dar conta de quatro problemas diferentes, porém complementares,
a saber, o problema do conteúdo de verdade do pensamento analógico que sustenta
práticas mágicas e rituais, a tendência pulsional a regressar a um estado de natureza
marcado pela despersonalização, o mimetismo animal e, sobretudo, as experiências
estéticas contemporâneas de confrontação com materiais reificados. Teoria
antropológica da magia, teoria psicanalítica das pulsões, mimetismo animal e o
problema estético da representação: eis os eixos da problemática frankfurtiana do
mimetismo.
Não é o caso de discutir aqui todas essas dimensões do problema, mas apenas
de lembrar de alguns traços essenciais do uso frankfurtiano da noção de mimese e
suas consequências políticas. Primeiramente, lembremos da maneira com que a
problemática do conteúdo de verdade do pensamento mágico coloca-se para Adorno e
Horkheimer. Se o pensamento racional deve denegar toda força cognitiva da mimese,
é porque se trata de sustentar: “a identidade do eu que não pode perder-se na
identificação com um outro, mas [que] toma possessão de si de uma vez por todas
como máscara impenetrável”167. A identidade do eu seria pois dependente da
entificação de um sistema fixo de identidades, de uma rigidez de diferenças
categoriais. A projeção de tal sistema sobre o mundo é exatamente aquilo que Adorno
e Horkheimer chamam de “falsa projeção” ligada à dinâmica do narcisismo e a
processos de categorização do sujeito cognoscente.
Mas, por outro lado, se a racionalidade mimética do pensamento mágico pode
pôr as múltiplas afinidades entre o que existe, é porque ele seria mais aberto ao
reconhecimento da natureza constitutiva da identificação. Isto pode nos explicar a
importância de considerações como: “o espírito que se dedicava à magia não era um e
idêntico: ele mudava igual às máscaras do culto, que deviam se assemelhar aos
165
Idem, p. 172
166
Idem, p. 168
167
ADORNO et HORKHEIMER, Dialética do esclarecimento, p. 24
múltiplos espíritos”168. Mas Adorno e Horkheimer sabem que tal imitação pode ir até
aquilo que não tem forma. Sigamos uma afirmação canônica sobre o mimetismo. Ele
seria o index de uma: “ tendência a perder-se no meio ambiente (Unwelt) ao invés de
desempenhar aí um papel ativo, da propensão a se deixar levar, a regredir à natureza.
Freud a qualificou de pulsão de morte (Todestrieb), Callois de mimetismo”169. A
pulsão de morte freudiana expõe a economia libidinal que leva o sujeito a vincular-se
à uma natureza compreendida como espaço do inorgânico, figura maior da opacidade
material aos processos de reflexão. Esta “tendência a perder-se no meio ambiente” da
qual fala Adorno e Horkheimer pensando na pulsão de morte é o resultado do
reconhecimento de si no que é desprovido de inscrição simbólica. É tal manifestação
da pulsão de morte que deverá ser negada por aqueles que negam a mímese.
Isto fica ainda mais claro se levarmos a sério o recurso feito por Adorno a
Roger Caillois. Operação extremamente esclarecedora pois nos ajuda a compreender
melhor o que significa esta “tendência a perder-se no meio ambiente” da qual fala
Adorno. Pois lembremos que, com seu conceito de psicastenia lendária, Caillois
tentava demonstrar como o mimetismo animal não deveria ser compreendido como
um sistema de defesa, mas como uma “tendência a transformar-se em espaço” que
implicava em distúrbios do “sentimento de personalidade enquanto sentimento de
distinção do organismo no meio ambiente”170. Falando a respeito desta tendência,
própria ao mimetismo, de perder-se no meio ambiente, Caillois afirma:

O espaço parece ser uma potência devoradora para estes espíritos


despossuídos. O espaço os persegue, os apreende, os digere em uma fagocitose
gigante. Ao final, ele os substitui. O corpo então se dessolidariza do
pensamento, o indivíduo atravessa a fronteira de sua pele e habita do outro
lado de seus sentidos. Ele procura ver-se de um ponto qualquer do espaço, do
espaço negro, lá onde não se pode colocar coisas. Ele é semelhante, não
semelhante a algo, mas simplesmente semelhante171.

Este espaço negro no interior do qual não podemos colocar coisas (já que ele
não é espaço categorizável, condição transcendental para a constituição de um estado
de coisas) é um espaço que nos impede de ser semelhantes a algo de determinado. Por
outro lado, tal como na noção freudiana de tendência de retorno a um estado
inorgânico, Caillois lembra que o animal geralmente mimetiza não apenas o vegetal
ou a matéria, mas o vegetal corrompido e a matéria decomposta. “A vida recua em um
degrau”, dirá Caillois (2002, p. 113).
O que faria o fascismo, segundo Adorno e Horkheimer, não é apenas perpetuar
esse recalque da mimese, mas permitir seu retorno através da violência contra aqueles
contra os quais a afinidade mimética está proibida. Assim: “o impulso recusado é
permitido na medida em que o civilizado o desinfeta através de sua identificação
incondicional com a instância destruidora”172. Há uma “mimese desinfetada” nos
rituais de homogeneidade fascista, há uma “mimese desinfetada” na possibilidade de
imitação dos judeus a partir do escárnio e da derrisão. Há projeção nos judeus de tudo
168
ADORNO E HORKHEIMER, idem, p. 24 [tradução modificada]
169
idem, p. 245 [tradução modificada]
170
O termo « psicastenia » refere-se a nosografia de Pierre Janet que compreendia a psicatenia como
afecção metal caracterizada por rebaixamento da tensão psicológica entre o eu e o meio, sendo
responsável por desordens como sentimentos de icompletude, perda do sentido da realidade,
fenômenos ansiosos, entre outros.
171
CAILLOIS, Le mythe et l’homme, p. 111
172
ADORNO e HORKHEIMER; Dialética do esclarecimento, p. 172
aquilo que seriam os impulsos que o sujeito não admite como seus e que, no entanto,
lhe pertencem. É neste ponto que aparece a mobilização da paranoia como patologia
social do fascismo.

A sombra da razão

Na estrutura clínica psicanalítica, a paranoia é ainda concebida como um dos


três quadros nosográficos próprios à estrutura psicótica, juntamente com a
esquizofrenia e a melancolia (ou psicose maníaco-depressiva). Sua caracterização
atual não é muito distinta daquela que encontramos em Freud. Desde 1895, Freud
compreendia a paranóia como um “modo patológico de defesa”173 que se servia de
mecanismos como o delírio174 e uma forte tendência à projeção de representações
inconciliáveis com a coerência ideal do Eu. À ocasião de seu texto paradigmático
relativo ao caso Schreber, tais mecanismos de defesa encontrarão seu fundamento em
uma desesperada reação contra um certo impulso homossexual impossível, por razões
estruturais, de ser vivenciado como tal pelo sujeito.
Por trás desta temática aparentemente muito redutora ligada à defesa contra a
homossexualidade (que, no limite, nos obrigaria a tese incorreta do ponto de vista da
fenomenologia clínica referente à impossibilidade de alguém ser, ao mesmo tempo,
paranoico e homossexual explícito) há, no entanto, o que poderíamos chamar de uma
intuição psicanalítica fundamental a respeito das psicoses. Ela se refere à
impossibilidade de alguma forma de mediação simbólica das identificações e da
alteridade devido à fixação em um estado de desenvolvimento e de maturação que
Freud chamava de “narcísico”. Assim, devido a tal fixação, todo reconhecimento de si
em um outro aparece como anulação catastrófica dos regimes de identidade que, até
então, sustentavam uma certa estabilidade pré-psicótica. O problema da defesa contra
o homossexualismo é, no fundo, modo freudiano de dizer que, na psicose paranoica,
todo reconhecimento de si em um outro é vivenciado de maneira ameaçadora e muito
invasiva, o que coloca uma personalidade formada a partir da internalização de
identificações em rota contínua de colapso. Notemos ainda como tal situação indica
um certo modo de ligação defensiva à identidade, de negação da “interioridade da
diferença”, que demonstram a fragilidade, no caso da psicose, dos modos de síntese
psíquica fundadas na noção funcional de Eu.
O primeiro traço do fascismo que Adorno e Horkheimer associam à paranoia é
a natureza projetiva da relação ao mundo:

O anti-semitismo baseia-se numa falsa projeção. Ele é o reverso da mimese


genuína, profundamente aparentada à mimese que foi recalcada, talvez o traço
caracterial patológico em que esta se sedimenta. Se a mimese se torna
semelhante ao mundo ambiente, a falsa projeção torna o mundo ambiente
semelhante a ela175.

A projeção serve para expulsar impulsos que o sujeito não admite como seu,
assim como tudo aquilo que quebraria a unidade e a coerência suposta da
personalidade. Adorno e Horkheimer admitem que, em certo sentido, perceber é

173
Ver, FREUD; Sigmund; Manuscrit H In: La naissance de la psychanalyse, Paris: PUF, 1996, p. 98.
174
Sendo que, em Freud, o delírio paranóico é: “uma tradução em representações de palavras do
reprimido que retornou maciçamente na forma de signos perceptuais” (SIMANKE, Richard; A
formação da teoria freudiana das psicoses, Belo Horizonte: Loyola, 2008, p. 100)
175
ADORNO e HORKHEIMER, Dialética do esclarecimento, p. 174
projetar. Ou seja, eles assumem a natureza projetiva da percepção como algo
faltamente inerente ao espírito devido a exigências de autoconservação. No entanto,
tal tendência à projeção seria paulatinamente controlada através de uma dupla
reflexão, de uma reflexão duplicada. O sujeito tem a experiência da resistência que
vem do objeto e tal resistência pode ser integrada através deuma reflexão de segundo
grau. Daí porque Adorno e Horkheimer podem dizer: “o patológico no anti-semitismo
não é comportamento projetivo enquanto tal, mas a ausência de reflexão que o
caracteriza”176. Nota-se claramente uma articulação profunda entre paranoia e
narcisismo que está na base da descrição psicanalítica da nosografia. O paranoico
projeta o mundo a sua imagem e semelhança, reificando tal projeção.
Por outro lado, contrariamente a outras categorias da psicose, como a
esquizofrenia, a paranoia teria como traço diferencial a preservação das funções
superiores do raciocínio. Neste sentido, não é desprovido de interesse perceber como
encontramos tal intuição em um trabalho profícuo de psicologia social como Massa e
Poder, de Elias Canetti177. Esta absorção de modos formais de raciocínio e
comportamento próprios a estrutura normal pode ser identificado, por exemplo, na
presença, no interior da paranoia, de algo como um “vício da causalidade” e um
“vício da fundamentação”. Uma espécie de princípio de razão suficiente elevado à
defesa patológica : nada acontece que não tenha uma causa. Assim, na “ontologia
paranóica”, não haverá lugar para noções como contingência e acaso. Por trás da
máscara do novo, há sempre o mesmo. Tudo o que é desconhecido deve ser remetido
a algo conhecido e referido ao doente. Isto leva o paranoico à necessidade compulsiva
do desmacaramento. Ele quer que haja algo por trás dos fenômenos ordinários e só se
acalma quando uma relação causal é encontrada. Como dirá Adorno e Horkheimer:

A excessiva coerência paranoica, este mau infinito que é o juízo sempre igual,
é uma falta de coerência do pensamento. Ao invés de elaborar intelectualmente
o fracasso da pretensão absoluta e assim continuar a determinar seu juízo, o
paranoico se aferra à pretensão que levou seu juízo ao fracasso178.

Essa excessiva coerência seria traço de uma forma de saber chamada por
Adorno e Horkheimer de “semicultura” ou “semiformação”: “uma semicultura que,
por oposição à simples incultura, hipostasia o saber limitado como verdade, não pode
suportar a ruptura entre o interior e o exterior, o destino individual e a lei social, a
manifestação e a essência”179. Eles chegam a dizer que a paranoia seria o sintoma do
indivíduo semicultivado, com sua atribuição arbitrária de sentido ao mundo exterior,
seus estereótipos e generalizações marcadas por perseguições e grandeza. Ou seja, o
traço fundamental dessa semicultura é a hipóstase de relações, a impossibilidade de
admitir a limitação do saber, o que leva o sujeito a não suportar rupturas entre o
exterior e o interior, o destino individual e a lei social, a manifestação e a essência.
“Desde Hamlet, a vacilação tem sido para os modernos um sinal de pensamento e de
humanidade”180. Daí uma tendência às formas do complot, da perseguição.
Neste sentido, é possível dizer que um dos traços fundamentais da paranoia,
traço que fornece a base de sua certeza delirante e da incorrigibilidade de seus
julgamentos, está vinculado à naturalização das estruturas e dos quadros narrativos de

176
Idem, p. 176
177
CANETTI, Elias; Massa e poder, São Paulo : Companhia das Letras, 2005, pp. 448-463
178
ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 181
179
ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 182
180
Idem, p. 191
organização da experiência. Não é possível ao sujeito tomar distância de suas próprias
construções, retificando criticamente suas pretensões a partir dos acasos e
contingências da experiência, desconfiando de sua sistematicidade e de sua exigência
absoluta de sentido e ligação, pois tais construções foram naturalizadas. Neste sentido,
não seria incorreto ver, nesta forma imanente de adesão a suas próprias crenças, um
efeito maior daquilo que em teoria social chamaríamos simplesmente de reificação. O
que talvez nos permitiria dizer que a paranoia é uma sombra da razão, pois é o risco
aberto quando ocorre uma reificação da própria estrutura do conhecimento. Esta
compreensão da paranoia como uma espécie de “patologia da reificação” estará
claramente presente em Adorno e Horkheimer quando estes afirmarem:

Sempre que as energias intelectuais estão intencionalmente concentradas no


mundo exterior, ou seja, sempre que se trata de perseguir, constatar, captar
(que são as funções que, tendo origem na empresa primitiva de subjugação dos
animais, se espiritualizaram nos métodos científicos da dominação da
natureza), tendemos a ignorar o processo subjetivo imanente à esquematização
e a colocar o sistema como a coisa mesma. Como o pensamento patológico, o
pensamento objetivador contém a arbitrariedade do fim subjetivo que é
estranho à coisa; ele esquece a coisa e, por isto mesmo, inflige-lhe a violência
a que depois é, mais uma vez, submetida na prática181.

Por outro lado, notemos como há um conjunto de valores políticos que


parecem nortear o sofrimento paranoico. Falamos de unidade, identidade, controle e
risco de invasão. Como se fosse questão de assegurar a posse e a unificação de um
território a todo momento ameaçado. Não é difícil perceber, já neste momento, como
os motivos paranoicos parecem derivados de uma certa compreensão a respeito
daquilo que uma ordem deve ser capaz de produzir.

181
ADORNO e HORKHEIMER; idem, p. 180
Psicologias do fascismo
Aulas 11 e 12

Na aula de hoje iremos terminar o mó dulo dedicado à Escola de Frankfurt em sua


leitura do fascismo. Gostaria de começar por fazer uma recapitulaçã o desse
mó dulo. Deve ter ficado claro para vocês como a leitura frankfurtiana do
fascismo privilegia o problema do anti-semitismo e o lugar funcional que os
processos de segregaçã o ocupam como motor de construçã o de coesã o social.
Claro que a leitura dos frankfurtianos nã o se resume ao lugar funcional da
segregaçã o no interior das prá ticas do Estado totalitá rio. Na verdade, se puder
dar a vocês um panorama dos trabalhos da Escola de Frankfurt sobre o tema, eu
desenvolveria três eixos.
No primeiro, encontramos os trabalhos sobre a consolidaçã o do Estado
fascista. O principal trabalho neste eixo é Behemoot: a estrutura e prática do
nacional-socialismo, de Franz Neumann, mas devemos lembrar também do
premonitó rio texto “O combate ao liberalismo na concepçã o totalitá ria de
estado”, escrito por Herbert Marcuse no início dos anos trinta e “Capitalismo de
Estado: suas possibilidades e limitaçõ es”, do economista Friedrich Pollock. Esta
discussã o a respeito do Estado fascista está conectada a uma hipó tese que será
um dos eixos de discussã o entre os frankfurtianos, a saber, a ascensã o do
capitalismo de estado, segundo Pollock. Nele, encontramos a tese da passagem
inexorá vel de um “capitalismo privado” determinado pelo mercado para um
capitalismo de alta regulaçã o estatal, seja ele totalitá rio ou democrá tico.
Capitalismo no qual as decisõ es econô micas estariam submetidas à orientaçã o
política das deliberaçõ es de gestã o controlada pela burocracia estatal, pelo
partido vitorioso e pela classe empresarial. Pollock chega a falar em uma
substituiçã o de problemas econô micos por problemas administrativos, criando
um horizonte “racional” de gestã o.
Este modelo dialoga, em certos pontos, com a ideia de que a noção
fascista de “estado total” que, como compreendera Marcuse já nos anos trinta,
nunca havia se contraposto ao liberalismo. Antes, era seu desdobramento
necessário em um horizonte de capitalismo monopolista. Compreendendo
como o fundamento liberal da redução da liberdade à liberdade do sujeito
econômico individual em dispor da propriedade privada com a garantia
jurídico-estatal que esta exige permanecia como a base a estrutura social do
fascismo, Marcuse alertava para o fato do “estado total” fascista ser compatível
com a ideia liberal de liberação da atividade econômica e forte intervenção nas
esferas políticas da luta de classe. Daí porque:

“Os fundamentos econô micos desse trajeto da teoria liberal à teoria


totalitá ria serã o assumidos como pressupostos: repousam essencialmente
na mudança da sociedade capitalista do capitalismo mercantil e
industrial, edificado sobre a livre concorrência dos empresá rios
individuais autô nomos, ao moderno capitalismo monopolista, em que as
relaçõ es de produçã o modificadas (sobretudo as grandes ‘unidades’ dos
cartéis, dos trustes etc.) exigem um Estado forte, mobilizador do todos os
meios do poder”182

Esta articulação entre liberalismo e fascismo fora tematizada por Carl


Schmitt, pois vem de Schmitt a noção de que a democracia parlamentar com
seus sistemas de negociações tendia a criar um “Estado total” 183. Tendo que dar
conta das múltiplas demandas vindas de vários setores sociais organizados, a
democracia parlamentar acabaria por permitir ao estado intervir em todos os
espaços da vida, regulando todas as dimensões do conflito social,
transformando-se em mera emulação dos antagonismos presentes na vida
social. Contra isto, não seria necessário menos estado, mas pensar uma outra
forma de estado total. Neste caso, um estado capaz de despolitizar a sociedade,
tendo força suficiente para intervir politicamente na luta de classes, eliminar as
forças de sedição a fim de permitir a liberação da economia de seus pretensos
entraves sociais. Como bem lembrará Pollock, esse mesmo modelo poderá
tanto operar em chave de democracia liberal quanto de regime autoritário. Se
pudermos completar, essa indiferença vem do fato dos dois polos estarem
menos longe do que se gostaria de imaginar. Na verdade, tanto em um caso
como em outro os fundamentos da racionalização liberal, com sua noção de
agentes econômicos maximizadores de interesses individuais, permanecia com
a estrutura da vida social e dos modos de subjetivação, justificando toda forma
de intervenção violenta contra tendências contrárias.
Neumann compreende em outra chave o estado nazista. Na verdade, sua
leitura está muito mais vinculada à compreensão de uma situação de conflito
perpétuo que decompõe a capacidade de planificação do estado em prol de um
movimento anárquico em direção à guerra imperialista. Uma guerra levada por
um estado que está a todo momento a ponto de se decompor. Por isto, uma
guerra que deve ser implacável:

Nada resta senã o lucro, poder, prestígio e, acima de tudo, medo.


Desprovidos de qualquer lealdade comum e preocupados somente com a
preservaçã o de seus pró prios interesses, os grupos dominantes romperã o
tã o logo o Líder milagreiro encontre um oponente de valor. No presente,
cada seçã o precisa das outras. O exército precisa do partido porque a
guerra é totalitá ria. O exército nã o pode organizar a sociedade
“totalmente”; isto é tarefa do partido. O partido, por outro lado, precisa do
exército para vencer a guerra e assim estabilizar e mesmo ampliar seu
pró prio poder. Ambos precisam da indú stria monopolista para garantir a
expansã o contínua. E todos os três precisam da burocracia para alcançar a
racionalidade técnica sem a qual o sistema nã o consegue operar. Cada
grupo é soberano e autoritá rio; cada é equipado com poderes legislativos,
administrativos e jurídicos pró prios; cada um é assim capaz de conduzir
há bil e inescrupulosamente os compromissos necessá rios aos quatro184.

182
MARCUSE, Herbert; Cultura e sociedade, vol. I, São Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 61
183
Ver SCHMITT, Carl; “Starker Staat und gesunde Wirtschaft. Ein Vortrag für Wirtschaftsführen”, in
Volk und Reich Politische Monatshefte für das junge Deutschland, 1933, tomo 1, caderno 2, pp. 81-94
184
NEUMANN, Behemoot, p. 397
No segundo eixo de estudos dos frankfurtianos, encontramos as aná lises
sobre a relaçã o entre nazismo e cultura. Talvez o mais exemplar desses estudos
sobre De Caligari a Hitler, de Sigfried Kracauer, nã o por acaso uma “histó ria
psicoló gica do cinema alemã o”. Kracauer analisa a produçã o cinematográ fica
alemã até a ascensã o de Hitler a fim de recompor “o padrã o psicoló gico de um
povo numa determinada época”185. Foi apó s a Primeira Guerra Mundial que o
cinema alemã o realmente nasceu. Ele nã o poderia ser indiferente a seu pró prio
nascimento, a sua necessidade de elaborar os traumas de um país humilhado
pela derrota e conduzido por um governo fraco até uma crise econô mica de
proporçõ es catastró ficas. Kracauer insistirá na compreensã o da psicologia social
como condiçã o para determinar os processos que levam à consolidaçã o do
nazismo. Daí afirmaçõ es como:

A dissoluçã o de sistemas políticos resulta na decomposiçã o de sistemas


psicoló gicos e, no tumulto subsequente, atitudes internas tradicionais,
agora liberadas, sã o impelidas a se tornarem manifestas, sejam elas
combatidas ou apoiadas186.

Por fim, temos o eixo das aná lise do fascismo como patologia social. Foi
isto que vimos nas ú ltimas duas aulas. Primeiro, eu insistira com vocês no
sentido em abordar um fenô meno social como o fascismo enquanto patologia
social. Vale a pena entendermos melhor este ponto devido a sua importâ ncia
epistemoló gica.

Retornando à hipótese do fascismo como patologia social

Podemos compreender sociedades como sistemas produtores e gestores


de patologias. Inexiste sociedade que nã o se fundamente em um complexo
processo de gestã o de patologias e tal gestã o é uma dimensã o maior, mas nem
sempre completamente explícita, de reproduçã o social de afetos. Nã o se trata
apenas de se perguntar pelas modalidades de sofrimento que sociedades
produzem, já que toda forma de restriçã o e coerçã o, toda forma de assunçã o
normativa é necessariamente produtora de sofrimento. No entanto, nem toda
forma de restriçã o e coerçã o é produtora de patologias, da mesma forma que
nem todo sofrimento é traduzível imediatamente na forma de patologia. Um
sofrimento patoló gico é um sofrimento socialmente compreendido como
excessivo e, por isto, objeto de tratamento por modalidades de intervençã o
médica que visam permitir a adequaçã o da vida à valores socialmente
estabelecidos com forte carga disciplinar.
Há de se insistir neste ponto pois reconhecer-se como portador de uma
patologia é indissociá vel do ato de se reconhecer em uma identidade social com
clara força performativa. Uma patologia mental pressupõ e um ato de
reconhecimento por parte do pró prio portador, um ato que o modifica e o
inscreve socialmente. Por isto, a discussã o sobre os processos de produçã o de
identidade social tem, no debate a respeito da estrutura do sofrimento psíquico,
um setor importante de desenvolvimento. Pois ao ser traduzido em patologia, o
sofrimento transforma-se em modo de partilha de identidades que trazem em
185
KRAKAUER; De Calegaria a Hitler, p. 20
186
Idem, p. 21
seu bojo regimes definidos de compreensã o dos afetos e de expectativas de
efeitos. Neste sentido, podemos dizer que as patologias sã o setores fundamentais
de processos de socializaçã o. Socializamos sujeitos, entre outras coisas, ao faze-
los internalizar modos de inscrever seus sofrimentos, seus “desvios” e
descontentamentos em quadros clínicos socialmente reconhecidos. Nã o se
socializa apenas levando sujeitos a internalizar disposiçõ es normativas positivas,
mas principalmente ao fornece-lhes uma gramática social do sofrimento, ou seja,
quadros patoló gicos oferecidos pelo saber médico de uma época. Nã o se socializa
apenas através da enunciaçã o da regra, mas principalmente através da gestã o
das margens.
Por isto, as categorias clínicas utilizadas para descrever patologias
pró prias a sofrimentos psíquicos sã o necessariamente patologias sociais. Neste
contexto, percebe-se que falar em “patologias sociais” implica, inicialmente,
discutir a maneira com que categorias clínicas participam de formas sociais de
disciplina.
Mas é fato que a aná lise de Adorno e Horkheimer a respeito do fascismo
como um laço social paranoico dizia um pouco mais. Pois se tratava nã o apenas
de compreender como patologias mentais forneciam a inscriçã o de formas de
sofrimento a serem geridas e classificadas. Tratava-se de mostrar como essas
mesmas patologias se transformavam em modo normal de participaçã o social.
Até porque:

Padrõ es de personalidade que foram descartados como ‘patoló gicos’


porque nã o estavam em consonâ ncia com os padrõ es manifestos mais
comuns ou com os ideais mais dominantes em uma sociedade,
mostraram-se em um investigaçã o mais apurada serem apenas
exageraçõ es do que era quase universal sob a superfície dessa sociedade.
O que é ‘patoló gico’ hoje pode, com a modificaçã o de condiçõ es sociais,
tornar-se a tendência dominante de amanhã 187.

Ou seja, falar em patologias sociais implicava inicialmente uma reflexão


sobre as patologias enquanto categorias que descrevem modos de participação
social, e não uma reflexão sobre a sociedade como organismo saudável ou doente.
Tal reflexã o permitiria, por sua vez, o desenvolvimento de uma articulaçã o entre
clínica e crítica no interior da qual a crítica social aparece indissociá vel do
diagnó stico de limitaçã o do campo de experiências implicado na circulaçã o
massiva de quadros de patologias, na transformaçã o reiterada de sofrimento em
patologias específicas.
Isto explica muito dos dois processos principais em jogo na compreensã o
do fascismo proposta por Adorno e Horkheimer. O primeiro diz respeito a
definiçã o da estrutura projetiva da paranoia como ponto de partida para a
aná lise do fascismo. Na paranoia, a relaçã o ao mundo dos objetos é marcado pela
projeçã o, graças a qual os conflitos internos ao aparelho psíquico sã o expulsos e
retornam sob a forma de delírios. Vimos como Adorno e Horkheimer
reconheciam que todo pensamento tinha uma dimensã o projetiva. No entanto, o
que diferencia percepçã o e delírio é certa capacidade de retificaçã o da
experiência através da internalizaçã o dos fracassos da projeçã o. A isto, os dois
chamavam de “reflexã o duplicada”. Esta capacidade de retificaçã o da experiência
187
ADORNO e alli.,; Studies in the Authoritarian personality, p. 157
inexistiria no fascismo, pois nã o há internalizaçã o do princípio de resistência dos
objetos.
Vimos como tal ausência de retificaçã o da experiência era resultado da
generalizaçã o da reificaçã o da estrutura do conhecimento. Neste ponto, Adorno
introduzia sua teoria da semiformaçã o. A este respeito, notemos o sentido de
afirmaçõ es como:

Hoje, mais provavelmente, as á reas rurais sã o criadouros de


semiformaçã o. Lá , sobretudo graças aos meios de comunicaçã o de massa
como o rá dio e a televisã o, o mundo de representaçã o pré-burguesa,
essencialmente apegado à religiã o tradicional, está subitamente
despedaçado. Ele está suplantado pelo espírito da indú stria cultural;
todavia, o a priori do conceito propriamente burguês de formaçã o, a
autonomia, nã o teve tempo para se formar. A consciência passa
imediatamente de uma heteronomia a outra; em vez da autoridade da
bíblia, se coloca a do campo de esportes, da televisã o e das “histó rias
verdadeiras” que se sustentam na exigência do literal, da factualidade do
aqui e agora da imaginaçã o produtiva. O ameaçador ali, que no Reich de
Hitler se revelou amplamente mais drá stico do que as questõ es relativas à
mera sociologia da formaçã o, quiçá até hoje dificilmente foi enxergado de
maneira correta188.

O que diz Adorno? Ele nã o afirma que semiformaçã o diga respeito a uma
incapacidade da circulaçã o de informaçõ es, do acesso a conhecimento produzir
por si só autonomia. Ao contrá rio, “a consciência passa de uma heteronomia a
outra”, da autoridade de bíblia, à autoridade da indú stria cultural, à autoridade
dos que denunciam a verdade expressa em complots inimaginá veis. Em todos
esses casos, o elemento central é a incapacidade de uma relaçã o cognitiva ao
mundo sob o fundo de crise. Digamos que nenhum lugar vazio circula, nenhuma
contingência ocorre, nenhum acaso obriga à revisã o. Semiformaçã o nã o está
ligada à falta de acesso à pretensa totalidade do saber, mas impossibilidade de
lidar com a fragilidade do saber, com os descompassos entre experiência e saber.
Isto pede nã o apenas uma descriçã o socioló gica das modalidades de circulaçã o
do saber, mas uma descriçã o psicoló gica da relaçã o entre saber e desejo, do
saber como anteparo a certas formas de desejo.

O problema da identificação narcísica

Assim, se nos perguntarmos porque certos sujeitos abraçam


semiformaçõ es, devemos nos dirigir ao outro polo do diagnó stico do fascismo
como patologia social, a saber, a reduçã o dos processos identificató rios a
identificaçõ es narcísicas. Adorno sabe que nossa era é uma era marcada pelo
declínio da autoridade paterna. Este era um tó pico presente nos trabalhos dos
frankfurtianos desde os anos trinta. Isto significa, entre outras coisas, que as
figuras de autoridade nã o poderiam mais se constituir a partir de representaçõ es
paternas e ideais sublimados e tipos sociais marcados pelo auto-controle de seus
pró prios desejos. As identificaçõ es nã o serã o simbó licas, elas serã o imaginá rias.

188
ADORNO, Teoria da semiformação
Por isto, as identificaçõ es só poderiam ocorrer com personalidades que sã o a
projeçã o narcísica do pró prio sujeito.
Isso faz o líder fascista tender a aparecer como “o alargamento da pró pria
personalidade do sujeito, uma projeçã o coletiva de si mesmo, ao invés da
imagem de um pai cujo papel durante a ú ltima fase da infâ ncia do sujeito pode
bem ter decaído na sociedade atual”189. Adorno explora tal traço ao afirmar que:

uma das características fundamentais da propaganda fascista


personalizada é o conceito de ‘pequeno grande homem’, uma pessoa que
sugere, ao mesmo tempo, onipotência e a ideia de que ele é apenas mais
um do povo, um simples, rude e vigoroso americano, nã o influenciado por
riquezas materiais ou espirituais190.

Pois as identificaçõ es nã o sã o construídas a partir de ideais simbó licos. Elas sã o


basicamente identificaçõ es narcísicas que parecem compensar o verdadeiro
sofrimento psíquico do “declínio do indivíduo e sua subsequente fraqueza” 191, um
declínio que nã o é apenas apaná gio de sociedades abertamente totalitá rias. Isto
talvez explique porque este “mais um do povo” possa ser expresso nã o apenas
pela simplicidade, mas à s vezes pelas mesmas fraquezas que temos ou que
sentimos, pela mesma revolta impotente que expressamos. Daí porque: “o líder
pode adivinhar as necessidades e vontades psicoló gicas desses suscetíveis à sua
propaganda porque ele se assemelha a eles psicologicamente, e deles se
distingue pela capacidade de expressar sem inibiçã o o que está latente neles, isto
ao invés de encarnar uma superioridade intrínseca”192. Ao descrever de maneira
mais precisa o processo imanente à s identificaçõ es narcísicas, Adorno dirá :

A fragilidade do eu [tema que Adorno traz do psicanalista Hermann


Nunberg] que retrocede ao complexo de castraçã o, procura compensaçã o
em uma imagem coletiva e onipotente, arrogante e, assim, profundamente
semelhante ao pró prio eu enfraquecido. Esta tendência, que se incorpora
em inumerá veis indivíduos, torna-se ela mesma uma força coletiva, cuja
extensã o até agora nã o se estimou corretamente193.

Ou seja, a figura da liderança fascista é uma compensaçã o à experiência


efetiva de enfraquecimento do Eu, ameaçado pelo complexo de castraçã o.
Marcado pelo seu enfraquecimento, o Eu nã o é capaz de estabelecer mediaçã o
alguma com aquilo que nã o lhe é absolutamente semelhante. Toda capacidade de
afinidade mimética será brutalmente denegada, toda presença da alteridade é
vista como fonte de frustraçã o. Neste sentido, Adorno é um dos primeiros a
compreender a funcionalidade do narcisismo enquanto modo privilegiado de
vínculo social em uma sociedade de enfraquecimento da capacidade de mediaçã o
do eu, adiantando em algumas décadas problemas que levarã o à s discussõ es
sobre a “sociedade narcísica”. Ele sabe como tal fraqueza permite, através da
consolidaçã o narcísica da personalidade com suas reaçõ es diante da consciência
tá cita da fragilidade dos ideais do eu, aquilo que chama de expropriaçã o do
189
ADORNO, Theodor; op.cit., p. 418
190
Idem, p. 421
191
Idem, p. 411.
192
ADORNO, Theodor; “Democratic leadership and mass manipulation”, op. cit., p. 427
193
ADORNO, Theodor; Ensaios de psicologia social e psicanálise, São Paulo: Unesp, 2015
inconsciente pelo controle social, ao invés de transformar o sujeito consciente de
seu inconsciente. O que serve para nos lembrar como estas apropriaçõ es
frankfurtianas de consideraçõ es freudianas servem, entre outras coisas, para nos
mostrar como o autoritarismo em suas mú ltiplas versõ es nã o é apenas uma
tendência que aparece quando a individualidade é dissolvida. Ele é
potencialidade inscrita na pró pria estrutura narcísica dos indivíduos modernos
de nossas democracias liberais. O que nã o poderia ser diferente para alguém que
afirma: “Quanto mais nos aprofundamos na gênese psicoló gica do cará ter
totalitá rio, tanto menos nos contentamos em explicá -lo de forma exclusivamente
psicoló gica, e tanto mais nos damos conta de que seus enrijecimentos
psicoló gicos sã o um meio de adaptaçã o a uma sociedade enrijecida”194.
Por ter que lidar com uma sociedade enrijecida, a constituiçã o moderna
do indivíduo é potencialmente autoritá ria, pois ela é narcísica, com tendência a
projetar para fora o que parece impedir a constituiçã o de uma identidade
autá rquica e unitá ria, além de continuamente aberta à identificaçã o com
fantasias arcaicas de amparo e segurança. Conhecemos a ideia clá ssica segundo a
qual situaçõ es de anomia, famílias desagregadas e crise econô mica sã o o terreno
fértil para ditaduras. Um pouco como quem diz: lá onde a família, a prosperidade
e a crença na lei nã o funcionam bem, lá onde os esteios do indivíduo liberal
entram em colapso, a voz sedutora dos discursos totalitá rios está à espreita. No
entanto, se realmente quisermos pensar a extensã o do totalitarismo, seria
interessante perguntar por que personalidades autoritárias aparecem também em
famílias muito bem ajustadas e sólidas, em sujeitos muito bem adaptados a nossas
sociedades e a nosso padrão de prosperidade.

A personalidade autoritária

Este é o horizonte dos Estudos sobre a Personalidade Autoritá ria, publicados em


1950 e desenvolvidos por Theodor Adorno e pelos psicó logos Else Frenkel-
Brunswik, Daniel Levinson e R. Nevitt Sandford. Trata-se de um largo estudo
sobre indivíduos potencialmente fascistas. Ele parte da premissa de que
convicçõ es políticas, econô micas e sociais formam uma “mentalidade” que
expressa tendências de uma “personalidade”. Tal personalidade seria
responsá vel seria essencialmente “uma organizaçã o de necessidades”, uma
estrutura que, ainda que sempre modificá vel, é frequentemente muito resistente
a transformaçõ es fundamentais:

As forças da personalidade sã o primariamente necessidades (pulsõ es,


desejos, impulsos emocionais) que variam de um indivíduo a outro em
sua qualidade, intensidade, modo de gratificaçã o e objetos aos quais se
vinculam, e que interagem com outras necessidades em padrõ es
conflituais ou harmô nicos195.

Notemos como, sem mencioná -lo, esse estudo recupera a intuiçã o de


Reich em Psicologia das massas e fascismo a respeito do fascismo como um tipo
de personalidade. Lembremos como Reich determinava uma etiologia de tal
personalidade através do destino do processo de socializaçã o das pulsõ es
194
ADORNO, Theodor; Ensaios de psicologia social e psicanálise, op. cit.
195
ADORNO e alli.; Studies no authoritarian personality, p. 155
sexuais, o que nã o será o caso nesse estudo. Mas mesmo nã o oferecendo uma
etiologia da personalidade autoritá ria, o estudo insiste na existência de um
padrã o geral de comportamento marcado pela permanência estrutural de
dinâ micas de segregaçã o que facilmente podem evoluir para comportamentos
abertamente fascistas. Há um “fascismo potencial” naturalizado em prá ticas de
segregaçã o que habitam de forma extensiva no interior de nossas democracias
liberais. Potencialidade que indica como indivíduos diferem em sua
suscetibilidade a propaganda antidemocrá tica. Daí porque se trata de insistir que
as prá ticas de segregaçã o nã o sã o fenô menos isolados, mas parte de um quadro
ideoló gico mais amplo que dá forma à personalidade. Alguém hostil em relaçã o a
uma minoria é normalmente hostil a uma variedade de outros grupos. O que nos
leva a compreender a personalidade como uma espécie de “ideologia privada”.
Uma das inovaçõ es fundamentais dessa pesquisa consistiu em levar a
sério a compreensã o de que tal personalidade é formada, inclusive, por
elaboraçõ es inconscientes que nã o sã o imediatamente acessíveis aos pró prios
sujeitos. O que lhe levou a desenvolver um modelo de abordagem que privilegia
questõ es indiretas, que trabalha com “níveis” no interior da personalidade. Isto
os levou a questioná rios compostos por questõ es fatuais, escalas de atitude e
opiniõ es, além de questõ es ‘projetivas’. A expectativa era de que tal formato de
questioná rio permitiria inferências sobre níveis profundos da personalidade dos
sujeitos.
O sistema de escalas era composto por três escalas visando avaliar níveis
de anti-semitismo, de etnocentrismo e de conservadorismo político-econô mico.
Com o desenrolar da pesquisa, ficou claro que as escalas de anti-semitismo e de
etnocentrismo tendiam a se correlacionar com um horizonte fascista que
permitiu a constituiçã o do que será conhecido como “escala F”. Trata-se de um
questioná rio composto por um conjunto de 77 questõ es visando medir o
potencial fascista da personalidade em questã o. Tais questõ es estavam divididas
em eixos que visavam medir: convencionalismo, submissã o autoritá ria, anti-
intracepçã o, superstiçã o e estereotipia, poder e rudeza, destrutividade e cinismo,
projetividade e sexo. Já o universo da pesquisa era composto tanto de
voluntá rios da Universidade de Berkeley e Oregon quanto por pacientes da
clínica psiquiá trica da Universidade da California, prisioneiros da Prisã o estadual
de San Quentin, membros de sindicatos, grupos de fieis de igrejas, além de
membros do Rotary club.
Por fim, lembremos como esta procura por uma “personalidade
autoritá ria” visava explicar porque os padrõ es de comportamento e de adesã o
fascista nã o estavam vinculados diretamente a classes, mas a estruturas
psicoló gicas. Em situaçõ es de fascismo nã o é incomum indivíduos irem contra
seus pró prios interesses materiais. Pois nã o se trata de compreender tais açõ es
como açõ es de indivíduos maximizadores de interesses, mas como sujeitos
motivados por sonhos, fantasias e delírios.
Psicologias do fascismo
Aula 13

Na aula de hoje, começamos nosso ú ltimo mó dulo. Ele é dedicado à compreensã o


das estruturas afetivas do fascismo, do neoliberalismo, além de apresentar de
uma proposta de superaçã o de processos de regressã o de laços sociais,
desenvolvida por Freud. Trata-se de discutir as bases afetivas do fascismo, sua
perpetuaçã o no interior do neoliberalismo e a resposta freudiana a tal desafio.
Tendo isto em vista, gostaria de começar através da discussã o de certos aspectos
da teoria do poder de um dos mais influentes teó ricos que deram suporte ao
nazismo, a saber, o jurista alemã o Carl Schmitt. Schmitt é o teó rico de uma visã o
de estado, de política e de poder que se realiza de forma explícita através do
nazismo alemã o. No entanto, sua astú cia vem do fato de, no mesmo movimento,
explicitar, dinâ micas presentes no interior da tradiçã o de nossa filosofia política.
Há vá rias formas de abordar sua teoria, mas eu gostaria de explorar uma
de maneira privilegiada. Ela concerne a compreensã o do fundamento do estado a
partir de certa teoria dos afetos. Podemos encontrar este ponto em sua leitura da
filosofia política de Thomas Hobbes. A leitura de Hobbes feita por Schmitt nã o é
apenas rica. Ela explicita, em um vocabulá rio aberto, uma concepçã o de política
que ultrapassa o quadro do absolutismo hobbesiano. Para tanto, proponho
seguir tal leitura, reconstruindo alguns aspectos importante da teoria do Estado
de Thomas Hobbes.

O fantasma da guerra total

Partamos da definiçã o célebre de Hobbes:

Durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz


de mantê-los todos em temor respeitoso eles se encontram naquela
condiçã o a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens
contra todos os homens196.

Daí porque: “a origem de todas as grandes e duradouras sociedades nã o


provém da boa vontade recíproca que os homens teriam uns para com os outros,
mas do medo recíproco que uns tinham dos outros”197. Esta definiçã o determina
uma das condiçõ es centrais do estado de natureza, a saber, a insegurança e a
guerra iminente. Uma guerra que nã o é apenas o tempo da batalha, mas a
disposiçã o contínua à violência contra o outro. É uma reflexã o sobre a guerra que
funda a reflexã o política moderna. Ou seja, o problema político fundamental em
Hobbes estará ligado ao destino da destrutividade, ao destino desta “inimizade”
beligerante. A saída do estado de natureza e de sua guerra de todos contra todos,
estado este resultante de uma igualdade natural que nã o implica consolidaçã o da
experiência do bem comum mas conflito perpétuo entre interesses
concorrenciais, se faria pelas vias da internalizaçã o de um “temor respeitoso”
constantemente reiterado e produzido pela força de lei de um poder soberano.
Pois:
196
HOBBES, Thomas; Leviatã, São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 109.
197
HOBBES, Thomas; Do cidadão, São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 28
se os bens forem comuns a todos, necessariamente haverá de brotar
controvérsias sobre quem mais gozará de tais bens, e de tais
controvérsias inevitavelmente se seguirá o tipo de calamidades, as quais,
pelo instinto natural, todo homem é ensinado a esquivar198.

Proposiçã o que ilustra como as individualidades seriam animadas por algo como
uma força de impulso dirigido ao excesso. Nã o pode haver bens comuns porque
há um desejo excessivo no seio dos indivíduos, desejo resultante da “natureza
ter dado a cada um direito a tudo” 199 sem que ninguém esteja assentado em
alguma forma de lugar natural. Como lembrará Leo Strauss, a respeito de
Hobbes: “o homem espontaneamente deseja infinitamente” 200. Tal excesso
aparece, necessariamente para Hobbes, nã o apenas através do egoísmo ilimitado,
mas também através da cobiça em relaçã o ao que faz o outro gozar, da ambiçã o
por ocupar lugares que desalojem aquele que é visto preferencialmente como
concorrente. Pois o excesso, como é traço comum de todos os homens, só pode
acabar como desejo pelo mesmo. “Muitos, ao mesmo tempo, têm o apetite pelas
mesmas coisas”201. A guerra será inevitá vel se lembrarmos que o direito natural
(jus naturalis) é o direito de tudo fazer para preservar minha pró pria natureza,
ou seja, minha vida. Da mesma forma, a lei natural (lex naturalis) prescreve a
proibiçã o de fazer e aceitar aquilo que é destrutivo à minha vida. Assim, Hobbes
descreve como o aparecimento histó rico de uma sociedade de indivíduos
liberados de toda forma de lugar natural ou de regulaçã o coletiva
predeterminada só pode ser compreendido como o advento de uma “sociedade
da insegurança total”202. Este ponto é fundamental pois é a possibilidade efetiva
da morte violenta que definirá a necessidade de emergência do político.
Notemos pois como o conflito entre indivíduos se dá como consequência
necessá ria da expressã o da natureza de seus desejos. É na verdade uma reflexã o
sobre o desejo como disposiçã o humana fundamental que inaugura uma das
bases da filosofia política moderna. O que demonstra como o desejo é, para os
modernos, uma categoria política por excelência. Segundo Hobbes, os desejos sã o
miméticos. Deseja-se o mesmo que o outro, vejo como o outro deseja para saber
como desejar, ou seja, há desde o início uma certa forma de dependência entre os
seres humanos, mas esta racionalidade mimética nã o se traduz em empatia ou
tendência à cooperaçã o. Ela se traduz em rivalidade e violência direta. É a
expressã o do desejo que coloca os indivíduos na rota de uma luta de vida ou
morte. No entanto, esta luta nã o pode ser regulada pelos pró prios contendores.
Dela, nã o emerge nada a nã o ser um impasse, já que todos os indivíduos sã o
portadores de força relativamente igual. A força maior de um nã o irá muito mais
além do que a força de dois ou três unidos. A luta só pode ser superada entã o
através da introduçã o de um terceiro elemento, que neutraliza a rivalidade da
relaçã o dual, a saber, através da instauraçã o do direito e do Estado. Daí esta

198
HOBBES, Thomas; Do cidadão, op. cit., p. 7
199
Idem, p. 30
200
STRAUSS, Leo; The political philosophy of Thomas Hobbes, University of Chicago Press, 1963, p.
10
201
HOBBES, Do cidadão, p. 30
202
CASTEL, Robert; L’insécurité sociale: qu’est-ce qu’être protégé?, Paris: Seuil, 2003, p. 13
definiçã o de Schmitt: “Para Hobbes, o Estado nã o é outra coisa que a guerra civil
constantemente impedida por meio de um força ilimitada”203.
No entanto, há de se entender melhor qual é a natureza deste direito. É ele
expressã o da liberdade dos indivíduos e sua capacidade de criar instituiçõ es? Ou
é o Estado a expressã o de uma coerçã o consentida, de uma restriçã o legítima
como condiçã o para a nã o desagregaçã o do laço social? Qual a natureza do pacto
que produz o advento do Estado?
A fim de responder tal questã o percebamos que é contra a destrutividade
amedrontadora desse excesso que coloca os indivíduos em perpétuo movimento,
fazendo-os desejar o objeto de desejo do outro, levando-os facilmente à morte
violenta, que se faz necessá rio o Estado. Ou seja, como nenhuma forma de pacto
imanente entre indivíduos é possível, como a pró pria figura do indivíduo
portador de interesses já é a consolidaçã o da inevitabilidade do conflito, já que
luto pelos meus interesses a despeito dos interesses do outro, nã o haverá outra
saída para a regulaçã o social do que o aparecimento de uma força externa
chamada de “governo” capaz de estabelecer um pacto feito da auto-restriçã o
mú tua e da limitaçã o de si.
Notemos, no entanto, um ponto importante. Este estado de natureza é
composto de indivíduos que parecem naturalizar princípios de conduta baseados
na concorrência, no sentimento de posse e na propriedade. Daí porque Hobbes
dirá que os três principais motivos de conflito sã o: a concorrência, a
desconfiança e a gló ria. Ou seja, e esta é uma tese avançada pela primeira vez por
Macpherson no clá ssico A teoria do individualismo possessivo, tudo se passa como
se Hobbes tivesse naturalizado a emergência do indivíduo moderno liberal em
situaçã o de ator animado pela exigência de reconhecimento de seus interesses,
colocando-o no fundamento de uma antropologia normativa do humano. Mesmo
sem ser exatamente um teó rico liberal, já que Hobbes submete o direito da
propriedade individual à s condiçõ es de sobrevivência do Estado, vemos
claramente como sua teoria política é, na verdade, resultado da naturalizaçã o
antropoló gica dos pressupostos imanentes à individualidade liberal.

O medo como afeto que funda o laço social

Neste sentido, há de se estar atento para o circuito de afetos que


constituirá o fundamento possível desta forma de vida social. Pois a
possibilidade mesma da existência do governo e, por consequência, ao menos
neste contexto, a possibilidade de estabelecer relaçõ es através de contratos que
determinem lugares, obrigaçõ es, previsõ es de comportamento, fornecendo à
sociedade sua racionalidade, estaria vinculada à circulaçã o do medo como afeto
instaurador e conservador de relaçõ es de autoridade. A emergência do indivíduo
moderno é indissociá vel da elevaçã o do medo à condiçã o de afeto social central.
Ninguém melhor que Carl Schmitt descreve os pressupostos desta passagem
hobbesiana do estado de natureza ao contrato fundador da vida em sociedade:

Este contrato é concebido de maneira perfeitamente individualista. Todos


os vínculos e todas as comunidades sã o dissolvidos. Indivíduos
atomizados se encontram no medo, até que brilhe a luz do entendimento

203
SCHMITT, Carl; Le Leviathan dans la doctrine d’état de Thomas Hobbes, p. 86
criando um consenso dirigido à submissã o geral e incondicional à
potência suprema204.

Notemos o sentido da elevaçã o do medo como afeto político instaurador


de laços sociais. Esse medo teria a força de estabilizar a sociedade, paralisar o
movimento e bloquear o excesso das paixõ es, viabilizando assim a perpetuaçã o
de nossas formas sociais. Isto leva comentadores, como Remo Bodei, a insistir em
uma “cumplicidade entre razã o e medo”, nã o apenas porque a razã o seria
impotente sem o medo, mas principalmente porque o medo seria, em Hobbes,
uma espécie de “paixã o universal calculadora” por permitir o cá lculo das
consequências possíveis a partir da memó ria dos danos, fundamento para a
deliberaçã o racional e a previsibilidade da açã o205. Ou ainda, como dirá Esposito,
em Hobbes, o medo “nã o determina apenas fuga e isolamento, mas também
relaçã o e uniã o. Nã o se limita a bloquear e imobilizar, mas ao contrá rio, leva a
refletir e neutralizar o perigo: nã o tem parte com o irracional, mas com a razã o. É
uma potência produtiva. Politicamente produtiva: produtiva de política”206. Por
isto, o medo ligado à força coercitiva da soberania, ou seja, o medo que tenho do
soberano, deve ser visto apenas como certa astú cia para defender a vida social
de medo maior:

porque os vínculos das palavras sã o demasiado fracos para refrear a


ambiçã o, a natureza, a avareza, a có lera e outras paixõ es dos homens, se
nã o houver o medo de algum poder coercitivo – coisa impossível de supor
na condiçã o de simples natureza, em que os homens sã o todos iguais, e
juízes do acerto dos seus pró prios temores (2003, p. 119).

É verdade que Hobbes também afirma: “As paixõ es que fazem os homens
tenderem para a paz sã o o medo da morte, o desejo daquelas coisas que sã o
necessá rias para uma vida confortá vel e a esperança de consegui-las por meio do
trabalho”207. Ou seja, parece nã o haver apenas um afeto, mas três: medo, desejo e
esperança. Da mesma forma, ele lembra que, sendo a força da palavra demasiado
fraca para levar os homens a respeitarem seus pactos, haveria duas maneiras de
reforçá -la: o medo ou ainda o orgulho e a gló ria por nã o precisar faltar com a
palavra. Tais consideraçõ es parecem abrir espaço à circulaçã o de outros afetos
sociais, como a esperança e um tipo específico de amor-pró prio ligado ao
reconhecimento de si como sujeito moral. Renato Janine Ribeiro, por exemplo,
insistirá que “pode-se reduzir a pares a multiplicidade das paixõ es: medo e
esperança, aversã o e desejo ou, em termos físicos, repulsã o e atraçã o. Mas nã o é
possível escutar a filosofia hobbesiana pela nota só do medo, que nã o existe sem
o contraponto da esperança”208.
No entanto, a antropologia hobbesiana faz com que tais afetos circulem
apenas em regime de excepcionalidade, o que fica claro em afirmaçõ es como: “de
204
SCHMITT, Carl; Le Léviathan dans la doctrine de l’État de Thomas Hobbes: sens et échec d’un
symbole politique, Paris: Seuil, 2002, p. 95.
205
BODEI, Remo; Geometria delle passioni: Paura, speranza, felicità – filosofia e uso politico, Milão:
Feltrinelli, 2003, p. 86.
206
ESPOSITO, Roberto; Communitas, op.cit., p. 6
207
HOBBES, Thomas; Leviatã, p. 111
208
RIBEIRO, R.J.; Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra seu tempo, Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2004, p. 23
todas as paixõ es, a que menos faz os homens tender a violar as leis é o medo.
Mais: excetuando algumas naturezas generosas, é a ú nica coisa que leva os
homens a respeitá -las”209. Faltaria à maioria dos homens a capacidade de se
afastar da força incendiá ria das paixõ es e atingir esta situaçã o de esfriamento na
qual o vínculo político nã o precisaria fazer apelo nem ao temor nem sequer ao
amor (que, enquanto modelo para a relaçã o com o Estado, acaba por construir a
imagem da soberania à imagem paterna, modelando a política na família). Ou
seja, o esfriamento das paixõ es aparece como funçã o da autoridade soberana e
condiçã o para a perpetuaçã o do campo político, mesmo que tal esfriamento se
pague com a moeda da circulaçã o perpétua de outras paixõ es que parecem nos
sujeitar à contínua dependência.
Por isto, mais do que expressã o de uma compreensã o antropoló gica
precisa, que daria a Hobbes a virtude do realismo político resultante da
observaçã o desencantada da natureza humana, seu pensamento possui como
horizonte uma ló gica do poder pensada a partir de uma limitaçã o política, no
caso, a impossibilidade de pensar a política para além dos dispositivos que
transformam o amparo produzido pela segurança e pela estabilidade em afeto
mobilizador do vínculo social. Política na qual “o protego ergo obligo é o cogito
ergo sum do Estado”210. Difícil nã o chegar em uma situaçã o na qual esperamos
finalmente por “um quadro jurídico no interior do qual nã o exista realmente
mais conflitos – apenas regras a colocar em vigor” 211. O que fica claro em
afirmaçõ es como:

entre os homens sã o muitos os que se julgam mais sá bios e mais


capacitados do que os outros para o exercício do poder pú blico. E esses
esforçam-se por empreender reformas e inovaçõ es, uns de uma maneira e
outros doutra, acabando assim por levar o país à perturbaçã o e à guerra
civil212.

As reformas e inovaçõ es sã o um convite à perturbaçã o e à guerra civil.


Pois o estado hobbesiano é, acima de tudo, um Estado de proteçã o social, ou seja,
Estado baseado na promessa de amparo, que se serve de todo poder possível,
instaurando um domínio de legalidade pró pria neutro em relaçã o a valores e
verdade. Estado que precisa realizar sua tarefa sem constrangimento externo
algum, ou seja, como uma má quina administrativa que desconhece coerçõ es em
sua funçã o de assegurar a existência física daqueles que domina e protege. Um
Estado construído a partir da dessocializaçã o de todo vínculo comunitá rio,
constituindo-se como o espaço de uma “relaçã o de nã o-relaçõ es”213.
Nã o é por acaso que este Estado será comparado a um Leviatã . A metá fora
nã o poderia ser mais adequada. O Leviatã é um monstro aquá tico dotado de
força descomunal que aparece no Livro de Jó . O contexto de sua apariçã o é
sintomá tico. Sem entender os desígnios divinos, enfermo e despossuido de tudo
o que tinha, Jó expressa sua perplexidade. Sendo um servo temente, por que
sofre tanto? Jeová entã o lhe aparece nã o para lhe responder a apazigua-lo, mas
para mostrar a desmedida entre a ciência divina e a ciência humana. Ou seja, ele
209
HOBBES, Leviatã, p. 253
210
SCHMITT, Carl; O conceito do político – Teoria do partisan, Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 56
211
BALIBAR, Etienne; Violence et civilité, Paris: Galilée, 2010, p. 56
212
HOBBES, Thomas; Leviatã, op. cit., p. 146
213
ESPOSITO, Roberto; Communitas, op. cit., p. 12
está diante de Jó para dizer : quem és tu que questiona meus desígnios? Neste
contexto, Jeová apresenta a figura de duas forças descomunais: uma aquá tica (o
Leviatã ) e outra terrestre (Behemooth). “Nã o há nada mais tremendo sobre a
terra que se lhe possa comparar”, dirá a Bíblia. Um poder o mais potente,
supremo e sem partilha. Ou seja, fazer do Estado um Leviatã é inscrever-lhe a
força de uma imagem teoló gica que visa anular o sofrimento e a restriçã o como
disposiçã o de revolta. Daí porque Schmitt dirá , que o Estado aparece aí como:
“uma totalidade mítica, compreendendo o deus, o homem e a má quina” 214. Ele
precisa ser dotado de uma força absoluta a fim de realizar seu designo de
proteçã o. Isto significa que sua autoridade nã o se deixa limitar por valores e
verdade. Seu mandamento é uma decisã o soberana nã o restringida por nada,
ú nica forma de evitar o conflito inevitá vel de interpretaçõ es e a sediçã o. Daí
afirmaçõ es como:

Ou bem esse Estado é realmente existente como estado, e entã o ele


funciona como o instrumento irresistível de calma, segurança e ordem, e
todo o direito objetivo, assim como o subjetivo, está de seu lado, pois
enquanto legislador ú nico e supremo ele edita todo o direito; ou entã o ele
nã o existe realmente e nã o realiza sua funçã o de assegurar a paz, e
novamente é o estado de natureza que reina, nã o havendo simplesmente
mais Estado215.

Por isto, nã o é possível dizer que o Estado opere aqui a partir de uma
ló gica do reconhecimento. Ele opera, ao contrá rio, através da impossibilidade de
reconhecer aquilo que seria constitutivo da natureza humana. Pois há uma
violência elevada à condiçã o de determinaçã o metafísica do humano. Violência
que só pode aparecer como desagregaçã o de todo e qualquer laço social. Notem
que há uma decisã o, prenhe de consequências, que faz a violência vinda do
cará ter excessivo do desejo ser expressa apenas como tendência à despossessã o
do outro, de sua vida e de seus bens.
Cabe ao Estado usar o medo para impor aos indivíduos a limitaçã o de seus
desejos e a restriçã o de suas possibilidades de reconhecimento. Cria-se assim
uma duplicidade fundamental na estrutura dos sujeitos que sã o cidadã os e
cidadã s de tal Estado. Como cidadã o e cidadã do Estado ajo como sujeito capaz
de me auto-limitar, sujeito dotado de controle. No entanto, o que me vincula a tal
personalidade é um afeto responsá vel pela restriçã o e repressã o de meus reais
impulsos. Por isto, a pró pria noçã o de personalidade será comparada por Hobbes
a uma má scara, recobrando o sentido originá rio do termo persona entre os
gregos. Má scara que nã o reconhece, mas que encobre algo a ser reprimido para
que o laço social possa existir.
Mas há um ponto no qual essa força é quebrada, ao menos no interior da
teoria de Hobbes. Pois há uma ú nica limitaçã o que Hobbes reconhece ao poder
do Estado. Ela se refere ao direito dos indivíduos à auto-defesa quando a vida
está ameaçada pelo poder soberano, o que decorre do respeito ao primeiro
direito natural. Se o soberano atenta contra minha vida, tenho o direito de a ele
me contrapor, pois o que me liga a ele é um pacto de proteçã o que nã o existe

214
SCHMITT, Carl; Le Leviathan …, p. 84
215
Idem, p. 107
mais. No entanto, o soberano guarda o direito de continuar sua açã o contra mim
já que pode tudo fazer para garantir a proteçã o social e a permanência do Estado.
Nesta mesma linha, Schmitt dirá que o germe de morte que destruiu o
Leviatã foi a preservaçã o da liberdade interior de pensamento e de crença. Teria
sido por este caminho que o “pensamento judeu liberal” de Spinoza teria se
aproveitado para distinguir a obrigaçã o dos rituais do culto exterior e a
liberdade da crença privada, reduzindo paulatinamente o Estado a uma mera
aparência reguladora, a um garantidor do direito à opiniã o individual. Este seria
o caminho para uma situaçã o na qual o Estado nã o poderia mais reduzir os
conflitos no seio da sociedade à condiçã o de “distú rbios” e tentativas de
rebeliõ es.

A função do amparo

Mas nos atentemos para outro aspecto do nosso problema. Ele diz
respeito ao modelo geral de gestã o social quando as exigências de
reconhecimento sã o bloqueadas. Pois o Estado nã o será apenas a instâ ncia que
opera a repressã o. Ele será o gestor da lembrança contínua de que há algo a se
reprimir. Ele nã o será apenas o bombeiro da vida social, mas também o pró prio
piromaníaco. Pois o fato fundamental no interior desta relaçã o de nã o-relaçõ es é
a necessidade que a legitimaçã o da soberania pela capacidade de amparo e
segurança tem da perpetuaçã o contínua da imagem da violência desagregadora à
espreita, da morte violenta iminente caso o espaço social deixe de ser controlado
por uma vontade soberana de amplos poderes. O segredo da legitimidade do
Estado é a perpetuaçã o da iminência da guerra de todos contra todos. O
fundamento fantasmá tico deste Estado será a figura do conflito social reduzida à
condiçã o de guerra de todos contra todos. Daí uma conclusã o importante de
Agamben: “A fundaçã o nã o é um evento que se cumpra uma vez por todas in illo
tempore, mas é continuamente operante no estado civil na forma da decisã o
soberana”216. Este mecanismo de fundaçã o que necessita ser continuamente
reiterado diz muito a respeito da continuidade do medo como força de reiteraçã o
da relaçã o do Estado ao seu fundamento.
Sendo o Estado nada mais que “a guerra civil constantemente impedida
através de uma força insuperá vel”217, ele precisa provocar continuamente o
sentimento de desamparo, da iminência do estado de guerra, transformando-o
imediatamente em medo da vulnerabilidade extrema, para assim legitimar-se
como força de amparo fundada na perpetuaçã o de nossa dependência. Na
verdade, devemos ser mais precisos e lembrar que a autoridade soberana tem
sua legitimidade assegurada nã o apenas por instaurar uma relaçã o baseada no
medo para com o pró prio soberano, mas principalmente por fornecer a imagem
do distanciamento possível em relaçã o a uma fantasia social de desagregaçã o
imanente no laço social e de risco constante da morte violenta. Uma fantasia
social que Hobbes chama de “guerra de todos contra todos”. É através da
perpetuaçã o da iminência de sua presença que a autoridade soberana encontra
seu fundamento. É alimentando tal fantasia social que se justifica a necessidade
do “poder pacificador” da representaçã o política, ou seja, do abrir mã o de meu

AGAMBEN, Giorgio; Homo sacer, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001, p. 115.
216

SCHMITT, Carl; Le Léviathan dans la doctrine de l’État de Thomas Hobbes: sens et échec d’un
217

symbole politique, op. cit., p. 86


direito natural em prol da constituiçã o de um representante cujas açõ es
soberanas serã o a forma verdadeira de minha vontade. Só assim o medo poderá
“conformar as vontades de todos”218 os indivíduos, como se fosse o verdadeiro
escultor da vida social.
É importante ainda salientar que essa fantasia pede uma dupla
fundamentaçã o. Por um lado, ela apela à condiçã o presente dos homens. Nã o
sendo uma hipó tese histó rica, o estado de natureza é uma inferência feita a
partir da aná lise das paixõ es atuais. Isto leva comentadores como Macpherson a
afirmar que, longe de ser uma descriçã o do ser humano primitivo, ou do ser
humano aparte de toda característica social adquirida, o estado de natureza
seria: “a abstraçã o ló gica esboçada do comportamento dos homens na sociedade
civilizada” 219.
Hobbes pede que lembremos como “todos os países, embora estejam em
paz com seus vizinhos, ainda assim guardam suas fronteiras com homens
armados, suas cidades com muros e portas, e mantém uma constante vigilâ ncia”.
Lembra ainda como os “particulares nã o viajam sem levar sua espada a seu lado,
para se defenderem, nem dormem sem fecharem – nã o só as portas, para
proteçã o de seus concidadã os – mas até seus cofres e baú s, por temor aos
domésticos”220. Mas notemos um ponto central. A espada que carrego, as trancas
na minha porta e em meus baú s, os muros da cidade na qual habito sã o índices
nã o apenas do desejo excessivo que vem do outro. Eles sã o índices indiretos do
excesso do meu pró prio desejo. Como se Hobbes afirmasse: “olhe para suas
trancas e você verá nã o apenas seu medo em relaçã o ao outro, mas o excesso de
seu pró prio desejo que lhe desampara por querer lhe levar a situaçõ es nas quais
imperam a violência e o descontrole da força”. A retó rica apela aqui a uma
universalidade implicativa.
De toda forma, como nã o se trata de permitir que configuraçõ es atuais
sejam, de maneira indevida, elevadas à condiçã o de invariante ontoló gica, faz-se
absolutamente necessá rio também a produçã o contínua dessas construçõ es
antropoló gicas do exterior caó tico e do passado sem lei. Ou seja, mesmo nã o
sendo uma hipó tese histó rica, nã o há como deixar de recorrer à antropologia
para pensar o estado de natureza. Assim, aparecem construçõ es como esta que
leva Hobbes a acreditar que:

os povos selvagens de muitos lugares da América, com exceçã o do


governo de pequenas famílias, cuja concó rdia depende da concupiscência
natural, nã o possuem nenhuma espécie de governo, e vivem nos nossos
dias daquela maneira brutal que antes referi221.

Ou seja, sociedades sem Estado como nó s, os povos de muitos lugares da


América, sã o mobilizadas continuamente para lembrar à sociedade europeia
porque a soberania é legítima. No interior desta ló gica de legitimaçã o, esta é
nossa funçã o. Ou ainda:

218
HOBBES, Thomas; Leviatã, op. cit., p. 147
219
MACPHERSON, C.B.; The political theory of possessive individualism: Hobbes to Locke, Oxford
University Press, 1962, p. 26.
220
HOBBES, Thomas; Do cidadão, p. 14.
221
Idem, p. 110.
sabemos disso também tanto pela experiência das naçõ es selvagens que
existem hoje, como pelas histó rias de nossos ancestrais, os antigos
habitantes da Alemanha e de outros países hoje civilizados, onde
encontramos um povo reduzido e de vida breve, sem ornamentos e
comodidades, coisas essas usualmente inventadas e proporcionadas pela
paz e pela sociedade222.

Sociedades da violência e sociedades da penú ria estã o à nossa espreita seja em


uma diferença geográ fica, seja em uma diferença histó rica. Na verdade, sempre
deverá haver um “povo selvagem da América” à mã o, o Estado sempre deverá
criar um risco de contaminaçã o da vida social pela violência exterior,
independente de onde esse exterior esteja, seja geograficamente no Novo Mundo
ou no Oriente Médio, seja historicamente em uma cena originá ria da violência.
Ao menos neste ponto, Carl Schmitt é o mais consequente dos hobbesianos
quando afirma que:

Palavras como Estado, repú blica, sociedade, classe e ademais soberania,


Estado de direito, absolutismo, ditadura, plano, Estado neutro ou total etc.
sã o incompreensíveis quando nã o se sabe quem deve ser, in concreto,
atingido, combatido, negado e refutado com tal palavra 223.

Neste ponto, será importante ao Estado operar em duas frentes. Primeiro,


colocando continuamente a sociedade em guarda contra os “distú rbios”, as
revoltas internas. Deverá assim sempre haver um princípio de sediçã o contra o
qual deveremos estar à espreita. Segundo, a funçã o do Estado consistirá em
definir quem sã o os inimigos, como se gerencia a guerra, que será sua açã o
fundamental, mesmo que essa seja uma guerra fria. Isso explica porque Schmitt
dirá :

O inimigo político nã o precisa ser moralmente mau, nã o precisa ser


esteticamente feio; ele nã o tem que se apresentar como concorrente
econô mico e, talvez, pode até mesmo parecer vantajoso fazer negó cios
com ele. Ele é precisamente o outro, o desconhecido e, para sua essência,
basta que ele seja, em um sentido especialmente intenso,
existencialmente algo diferente e desconhecido, de modo que, em caso
extremo, sejam possíveis conflitos com ele, os quais nã o podem ser
decididos nem através de uma normalizaçã o geral empreendida
antecipadamente, nem através da sentença de um terceiro “nã o
envolvido” e, destarte, “imparcial”224.

Ou seja, o inimigo é aquele que mobiliza o cará ter polêmico da diferença e do


desconhecimento, o sistema de defesas contra o que me implica como alteridade.
Nã o haveria vida política sem uma operaçã o desta natureza. A vida política é,
para Schmitt, a mobilizaçã o contínua da força tendo em vista a gestã o do medo
da despossessã o produzido pela existência da diferença. Pois a diferença nã o é
apenas algo que tolero, ela é o que me transforma e me despossui. Ela me leva a
222
HOBBES, Thomas; Os elementos da lei natural e política, São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 70
223
SCHMITT, Carl; O conceito de político – Teoria do partisan, Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 32
224
Idem, p. 28
uma forma de vida outra. Contra isto, uma certa política existe. Ela existe
inclusive para impedir outra forma de diferença, fora do horizonte da guerra, a
diferença do “distú rbio”:

Em hipó tese alguma se constitui em um progresso no sentido do


humanitarismo proscrever a guerra cerceada do Direito internacional
europeu, designando-a como reacioná ria e criminosa e, em seu lugar, em
nome de uma guerra justa, desencadear inimizades revolucioná rias entre
classes e raças que nã o mais sã o capazes, e tampouco o querem, de
diferenciar entre inimigo e criminoso225.

225
Idem, p. 10
Psicologias do fascismo
Aula 14

Na aula de hoje, gostaria de falar sobre a psicologia do indivíduo neoliberal e sua


estrutura de afetos. Pois lembremos que o neoliberalismo nã o é apenas um modo
de regulaçã o dos sistemas de trocas econô micas baseado na maximizaçã o da
concorrência e do dito livre-comércio. Ele é um regime de gestã o social e
produçã o de formas de vida. Margareth Thatcher mostrou ao menos a virtude da
honestidade ao afirmar que “a economia é o método. O objeto é modificar o
coraçã o e a alma”226. Se Thatcher tivesse lido Foucault, ela complementaria
afirmando que o coraçã o e a alma sã o peças na dominaçã o que o poder exerce
sobre o corpo. Há uma instauraçã o sensível da vida psíquica cujos mecanismos
precisam ser compreendidos. Há de se ter isto em mente quando se perguntar o
que seria entã o este novo homem neo-liberal, qual sua economia libidinal.
Neste sentido, toda reflexã o sobre o neoliberalismo talvez tenha de partir
de um paradoxo aparente. Poderíamos começar lembrando como o
desmantelamento neoliberal do sistema de seguridade social construído pelos
ditos Estados de Bem-estar a partir dos anos setenta provocou a liberaçã o de um
processo de expropriaçã o da mais-valia absoluta, ou seja, de acumulaçã o
econô mica através de uma expropriaçã o baseada na intensificaçã o dos regimes
de trabalho e na reduçã o dos salá rios. Os nú meros sã o claros neste sentido: por
exemplo, enquanto o PIB norte-americano por habitante cresceu 36% entre
1973 e 1995, o salá rio horá rio de trabalho de nã o-executivos (que constitui a
maioria dos empregos) caiu em 14%. No ano 2000, o salá rio real de nã o-
executivos nos EUA retornou ao que era há cinqü enta anos227. No entanto, tal
processo ocorreu paradoxalmente a partir do momento em que as sociedades
capitalistas nã o podiam mais constituir sua coesã o social e sua adesã o
psicoló gica a tal processo através do recurso aos modelos de internalizaçã o
psíquica de uma ética do trabalho de moldes weberianos; devido, entre outras
coisas, ao desenvolvimento exponencial da sociedade de consumo e suas
exigências de mobilizaçã o total dos desejos, de enunciaçã o integral dos desejos
no interior da esfera da multiplicaçã o da satisfaçã o mercantil. Neste momento,
em que um novo ethos do capitalismo se fazia necessá rio, o neoliberalismo
conseguiu consolidá -lo através de uma certa expropriaçã o direta da economia
libidinal dos sujeitos.
A disciplina neoliberal nã o pode ser compreendida como simples
conjunto de condiçõ es para a internalizaçã o de dinâ micas repressivas capazes de
determinar sujeitos em individualidades rígidas e funcionalizadas, como vemos
nas “sançõ es psicoló gicas” da moralidade pró pria ao espírito protestante do
capitalismo, tal como descrito por Weber. Por serem repressivas, tais estruturas
disciplinares produziam subjetividades clivadas entre exigências de
conformaçã o social e uma “outra cena” na qual se alojava a potência
desreguladora do desejo. A uniformizaçã o disciplinar criava uma matriz de
conflito claramente presente na fratura entre princípio de realidade e desejo
recalcado cujo modelo de sofrimento psíquico era tã o claramente expresso nas
neuroses, tais como descritas por Freud. Mas regimes de gestã o social que se
226
THATCHER, Margaret; Interview in http://www.margaretthatcher.org/document/104475
227
Ver, a este respeito, THUROW, Lester ; Les fractures du capitalisme, Paris, Village Mondial, 1997.
queiram realmente eficazes nã o podem permitir clivagens desta natureza com a
consequente constituiçã o de um polo alternativo de motivaçõ es para o agir, que
encontrariam muitas vezes expressã o em atividades normalmente dissociadas
do universo compulsivo do trabalho alienado, atividades vistas por este como
improdutivas (como o sexo, a experiência amorosa, o fazer estético, dar aulas
sobre o problema da contradiçã o em Hegel, etc.). Ele deve expropriar todas as
esferas que poderiam fornecer espaço para experiências que nã o se deixam ler a
partir da ló gica em operaçã o na esfera econô mica, eliminado os afetos que tais
experiências geram. Processo de expropriaçã o cujas bases foram pela primeira
vez descritas através do conceito frankfurtiano de “dessublimaçã o repressiva”.
Mas expropriar só é possível aqui através da absorçã o da pró pria dinâ mica
pulsional pela ló gica econô mica, ou seja, através de uma socializaçã o das pulsõ es
que nã o passe mais, de forma hegemô nica, pelas clivagens organizadas sob a
forma do recalque. Uma socializaçã o que nã o é simplesmente retorno à temá tica
da integraçã o das demandas particulares de satisfaçã o por uma sociedade cada
vez mais “hedonista”, topos clá ssico de uma crítica moral da sociedade de
consumo, mas que se refere à maneira com que a estrutura polimó rfica e
disruptiva da ordem das pulsõ es, sua potência de indeterminaçã o é traduzida em
um novo papel só cio-econô mico através de uma forma renovada de gerir
conflitos psíquicos.
O neoliberalismo conseguiu resolver esta equaçã o através da constituiçã o
de um “ideal empresarial de si” como dispositivo disciplinar:

lá onde o liberalismo clá ssico mantinha uma distinçã o e à s vezes mesmo


uma tensã o entre critérios da moral individual ou coletiva e as açõ es
econô micas (de onde se seguem as diferenças impressionantes de tom, de
tipos de questõ es e mesmo de prescriçõ es entre A riqueza das nações de
Adam Smith e sua Teoria dos sentimentos morais) o neoliberalismo produz
normativamente os indivíduos como atores empreendedores,
endereçando-se a eles como tais, em todos os domínios de suas vidas 228.

Assim, se nos perguntarmos sobre como foi possível colocar em marcha um


processo de recentragem da acumulaçã o através da extraçã o da mais-valia
absoluta no momento em que nã o havia mais condiçõ es para apelar à ética
protestante do trabalho, responderemos que devemos estar atentos a a maneira
com que um certo “consentimento moral”229 a tal expropriaçã o, vindo
exatamente daqueles que dela mais sofrem, constitui-se graças ao impacto
psíquico da internalizaçã o de um “ideal empresarial de si”. Graças à
internalizaçã o de tal ideal, o risco de insegurança social produzido pela
desregulamentaçã o do trabalho foi suplantado pela promessa de plasticidade
absoluta das formas de vida produzidas como propriedades de projetos
individuais; tal desregulamentaçã o se traduziu em liberaçã o da potencialidade
de constituir projetos conscientes de formas de vida, da mesma forma que a
intensificaçã o do desempenho e das performances exigida pelo ritmo econô mico
neoliberal se transformou em um peculiar modo subjetivo de gozo. Assim, o

228
BROWN, Wendy; Les habits neuf de la politique mondiale: néolibéralisme et néoconservatisme,
Paris: Les Prairies Ordinaires, 2007, p. 54
229
Bem percebido, como veremos no próximo capítulo, por Axel Honneth em HONNETH, Axel; Das
recht der Freiheit, Frankfurt: Suhrkamp, 2013.
medo do risco provocado pela insegurança social pode aparecer como covardia
moral.
Este ideal empresarial de si foi o resultado psíquico necessá rio da
estratégia neoliberal de construir uma “formalizaçã o da sociedade com base no
modelo da empresa”230, o que permitiu à ló gica mercantil, entre outras coisas, ser
usada como tribunal econô mico contra o poder pú blico. Pois é fundamental ao
neoliberalismo “a extensã o e disseminaçã o dos valores do mercado à política
social e a todas as instituiçõ es”231. A generalizaçã o da forma-empresa no interior
do corpo social abriu as portas para os indivíduos se auto-compreenderem como
“empresá rios de si mesmos” que definem a racionalidade de suas açõ es a partir
da ló gica de investimentos e retorno de “capitais” e que compreendem seus
afetos como objetos de um trabalho sobre si tendo em vista a produçã o de
“inteligência emocional”232 e otimizaçã o de suas competências afetivas. Ela
permitiu ainda a “racionalizaçã o empresarial do desejo” 233, fundamento
normativo para a internalizaçã o de um trabalho de vigilâ ncia e controle baseado
na auto-avaliaçã o constante de si a partir de critérios derivados do mundo da
administraçã o de empresas. Esta retraduçã o das dimensõ es gerais das relaçõ es
inter e intrasubjetivas em uma racionalidade de aná lise econô mica baseada no
“cá lculo racional” dos custos e benefícios abriu uma nova interface entre governo
e indivíduo, criando modos de governabilidade muito mais enraizados
psiquicamente.
Notemos ainda que esta internalizaçã o de um ideal empresarial de si só
foi possível porque a pró pria empresa capitalista havia paulatinamente
modificado suas estruturas disciplinares a partir do final dos anos 20. A
brutalidade do modelo taylorista de administraçã o de tempos e movimentos,
assim como a impessoalidade do modelo burocrá tico weberiano haviam
paulatinamente dado lugar a um modelo “humanista” desde a aceitaçã o dos
trabalho pioneiros de Elton Mayo, fundados nos recursos psicoló gicos de uma
engenharia motivacional na qual “cooperaçã o”, “comunicaçã o” e
“reconhecimento” se transformavam em dispositivos de otimizaçã o da
produtividade. O que permitiu a uma soció loga como Eva Illouz lembrar que:

a esfera econô mica, longe de ser desprovida de sentimentos, tem sido, ao


contrá rio, saturada de afeto, um tipo de afeto comprometido com o
imperativo da cooperaçã o e com uma modalidade de resoluçã o de
conflitos baseada no ‘reconhecimento’ bem como comandada por eles 234.

Esta “humanizaçã o” da empresa capitalista, responsá vel pela criaçã o de uma


zona intermediá ria entre técnicas de gestã o e regimes de intervençã o
terapêutica, com um vocabulá rio entre a administraçã o e a psicologia, permitiu
uma mobilizaçã o afetiva no interior do mundo do trabalho que levou à “fusã o
progressiva dos repertó rios do mercado com as linguagens do eu” 235. As relaçõ es
de trabalho foram “psicologizadas” para serem melhor geridas, até chegar ao
230
FOUCAULT, Michel; O nascimento da biopolítica, op. cit., p. 222
231
BROWN, Wendy; Les habits neufs de la politique mondiale: néolibéralisme et néo-conservatisme,
Paris: Les Prairies Ordinaires, 2007, p. 50
232
Cf. GOLEMAN, Daniel; Inteligência emocional, Rio de Janeiro: Objetiva, 1996
233
DARDOT e LAVAL: La nouvelle raison do monde, op. cit, p. 440.
234
ILLOUZ, Eva; O amor nos tempos do capitalismo, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011, p. 37
235
Idem, p. 154
ponto em que as pró prias técnicas clínicas de intervençã o terapêutica
começaram por obedecer, de forma cada vez mais evidente, padrõ es de avaliaçã o
e de gerenciamento de conflitos vindos do universo da administraçã o de
empresas. Sem tal movimento prévio, nã o teria sido possível ao neoliberalismo
reconstruir processos de socializaçã o, em todas as esferas sociais de valores,
através da internalizaçã o de um ideal empresarial de si.
É fato, no entanto, que tal internalizaçã o de ideais exige uma mobilizaçã o
cruzada de regimes de identificaçã o. Se, por um lado, ele apoia-se na constituiçã o
de ideais, por outro é inegá vel que tal processo deve ser impulsionado, entre
outros, por uma parcela significativa de medo. Há uma produçã o neoliberal da
adesã o social através da circulaçã o do medo que nã o deve ser menosprezada,
mesmo que ela nã o sirva de causalidade suficiente. É do manejo conjunto do
medo e da esperança, do temor e do desejo, que estruturas de poder se
fundamentam.
Esta dimensã o psicoló gica do medo foi claramente compreendida por
Adorno em suas reflexõ es sobre o capitalismo tardio e as modificaçõ es na
economia psíquica que ele implica. Enquanto instâ ncia psíquica de auto-
observaçã o submetida ao impacto das transformaçõ es sociais, o supereu
mesclaria atualmente o medo arcaico de aniquilaçã o física com “o medo muito
posterior de nã o mais pertencer ao conjunto humano”236 devido ao fracasso de
ser bem sucedido como sujeito econô mico. Assim, é importante que o discurso
social produza a circulaçã o incessante do risco de morte social devido à
degradaçã o econô mica iminente daqueles que resistem a reconstruir sua vida
psíquica a partir da racionalidade econô mica. Pois:

quem nã o se comporta segundo as regras econô micas, hoje em dia


raramente naufraga imediatamente, mas no horizonte delineia-se o
rebaixamento socioeconô mico (...) O medo de ser excluído, a sançã o social
do comportamento econô mico, internalizou-se há muito através de outros
tabus, sedimentando-se no indivíduo237.

Uma mobilizaçã o contínua do medo advindo do risco de morte social só


efetivamente possível a partir do momento que o desmantelamento do Estado-
providência se impô s como realidade inelutá vel e consensual.
Tal medo se funde com outros medos produzidos no interior da sociedade
neoliberal, como a insegurança advinda de um estado contínuo de guerra, sem
distinçã o possível entre situaçã o de guerra e de paz. Insegurança impulsionada
pela violência espetacular de pretensas “comunidades arcaicas” refratá rias à
ló gica neoliberal de valores e de modos de circulaçã o de desejos. Peça
fundamental da adesã o social à s sociedades neoliberais a ponto destas serem,
cada vez mais, sociedades que se deixam transpassar por formas militares de
controle, criando uma oscilaçã o sintomá tica entre liberalidade e restriçã o
securitá ria. Pois o amá lgama produzido pela ló gica de confronto entre “nossos
valores e modos de vida liberais” e tudo aquilo que é descrito como fruto de uma
mentalidade baseada na recusa à nossa liberdade, visa alimentar a sensibilidade
social contra a possibilidade de nos afastarmos da racionalidade econô mica que

236
ADORNO, Theodor; Escritos sobre psicologia social e psicanálise, op. cit., p. 76
237
Idem, p. 75
funda a esfera dos nossos valores. Os medos funcionam como um sistema de
vasos comunicantes.

A função do medo

A funçã o do medo dentro da psicologia do indivíduo neoliberal é central.


Lembremos, a este respeito, como Frederik Hayek estabelecia uma oposiçã o
entre o conceito liberal de liberdade e a democracia, alertando para os riscos de
uma “democracia totalitá ria” ou de uma “ditadura plebiscitá ria”. Hayek
considerava que a democracia deveria ser limitada, pois colocaria em risco a
verdadeira liberdade, isto é, a livre concorrência. A liberdade aparece para o
liberalismo como a livre disposiçã o da propriedade e a liberdade para cumprir à
risca as exigências irracionais da acumulaçã o.
Mas esse conceito liberal de liberdade só poderia se impor à base de choques.
Afinal, as sociedades não aceitam sem resistência limitar seus desejos e sua
inquietude à liberdade de empreender (reservada para alguns). A experiência histórica
das lutas por liberdade revela justamente a insistência em livrar a atividade da
submissão à forma do trabalho, da ânsia pela igualdade radical e pelo fim da
naturalização da exploração, da vontade de liberação do mundo das coisas dos
contratos de propriedade. Para tanto, a experiência do medo da morte social deveria
ser imposto custe o que custar. O que nos explica a necessidade de despolitizar a
sociedade, nem que seja apelando a ditaduras. Como dirá Hayek, em entrevista ao
jornal chileno El mercurio, em 1981, ou seja, durante o regime Pinochet:

Eu diria que, enquanto instituição de longo termo, sou totalmente contra


ditaduras. Mas uma ditadura pode ser um sistema necessário durante um
período de transição. Às vezes, é necessário para um país ter, durante certo
tempo, uma forma de poder ditatorial. Como vocês sabem, é possível para um
ditador governar de maneira liberal. E é possível que uma democracia governe
com uma falta total de liberalismo. Pessoalmente, prefiro um ditador liberal a
um governo democrático sem liberalismo.

Difícil não perceber que a matriz desta ditadura liberal vem exatamente de
Carl Schmitt, como vimos na aula passada.

O infinito ruim do neoliberalismo

Mas voltemos os olhos para a estrutura interna dos ideais empresariais de


si a fim de compreender melhor a natureza de suas disposiçõ es normativas.
Lembremos, neste sentido, como tais ideais se baseiam na racionalizaçã o das
açõ es a partir de uma dinâ mica de maximizaçã o de performances. Açõ es que
visam à pura maximizaçã o de performances devem se organizar de maneira
similar a atividades econô micas baseadas na extraçã o da mais-valia e, por
consequência, nos processos de auto-valorizaçã o circular do Capital. Este é o
sentido fundamental da estratégia lacaniana em insistir na homologia entre a
forma pela qual objetos que causam o desejo (objetos a) circulam socialmente no
interior das sociedades capitalistas contemporâ neas e o estatuto da mais-valia
em Marx, criando com isto o sintagma “mais-gozar” (plus-de-jouir).
Lacan se interessa pelo fato da mais-valia poder ser extraída a partir do
momento em que o trabalho social inscreve-se no mercado como trabalho
abstrato, mensurá vel como puro quantum de trabalho, permitindo com isto que
o capitalismo se sirva da dessimetria entre valor pago pelo tempo de trabalho e
valor dos objetos produzidos durante tal tempo quantificado. Assim, se Lacan
pode afirmar que “o que Marx denuncia na mais-valia é a espoliaçã o do gozo”, é
para lembrar que a renú ncia ao gozo produzida pela abstraçã o do tempo de
trabalho (tema batailleano por excelência que nos lembra como o tempo do gozo
e o tempo do trabalho nã o se confundem), esta “reduçã o do pró prio trabalhador
a nã o ser nada mais que valor” 238, ou seja, nã o ser mais que suporte do processo
de produçã o do valor, permite a produçã o de um mais-valor que inaugura a
circulaçã o incessante da auto-valorizaçã o do Capital. Circulaçã o do que “é
absolutamente urgente gastar. Se nã o se gasta, isto produz toda forma de
consequência”239.
Esta racionalidade pró pria a uma sociedade organizada a partir da
circulaçã o do que nã o tem outra funçã o a nã o ser se auto-valorizar, que
determina as açõ es dos sujeitos a partir da produçã o do valor, precisa socializar
o desejo levando-o a ser causado pela pura medida da intensificação, pelo puro
empuxo à ampliaçã o que estabelece os objetos de desejo em um circuito
incessante e superlativo chamado por Lacan de mais-gozar. Assim é possível
afirmar que “subjetivaçã o ‘contá bil’ e subjetivaçã o ‘financeira’ definem em ú ltima
aná lise uma subjetivaçã o do excesso de si sobre si ou ainda pela ultrapassagem
indefinida de si”240.
Como se trata, porém, de uma ló gica contá bil e financeira, em momento
algum o excesso deve colocar em questã o a normatividade interna do processo
capitalista de acumulaçã o e desempenho. Em momento algum o excesso implica
quebra das ilusõ es de autonomia que orientam os indivíduos empresariais em
suas relaçõ es por propriedade. Pois este é um excesso quantitativo que nã o se
transforma em modificaçã o qualitativa. Sob a forma-empresa, ao contrá rio, todo
excesso é financeiramente codificá vel, é confirmaçã o do có digo previamente
definido241. Como diria Hegel a respeito de outros fenô menos, esse excesso é
marca de uma má infinitude, pois nã o passa ao infinito verdadeiro do que muda
sua pró pria forma de determinaçã o a partir de si, do que é infinito por realizar-se
produzindo paradoxalmente a exceçã o de si. Uma exceçã o que, ao ser integrada,
modifica processualmente a estrutura da totalidade anteriormente pressuposta.
Antes, ele é o infinito do ruim do que é sempre assombrado por um para além
que nunca se encarna, para além cuja ú nica funçã o é marcar a efetividade com o
selo da inadequaçã o, do gosto amargo do “ainda nã o”. A aná lise do capitalismo
sempre precisou de uma teoria dos dois infinitos.
Por fim, é importante salientar que um ideal empresarial de si baseado na
dinâ mica de maximizaçã o de performances exige a flexibilizaçã o contínua de
normas tendo em vista o crescimento de quem vence relaçõ es de concorrência. O
sujeito neoliberal é muito mais um agente calculador de custos e benefícios do
que um sujeito a quem se espera a conformaçã o à s normas sociais. Ele nã o segue
normas positivas, mas calcula resultados e por isto, flexibiliza normas
continuamente. Pois sendo a concorrência o valor moral fundamental do laço
238
LACAN, Jacques; Séminaire XVII, Paris: Seuil, 1991, p. 93
239
Idem, p. 19
240
DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian; La nouvelle ordre du monde, op. cit., p. 437
241
Desta forma, “não se trata de assegurar aos indivíduos uma cobertura social dos riscos, mas de
conceder a cada um uma espécie de espaço econômico dentro do qual podem assumir e enfrentar
riscos” (FOUCAULT, Michel; O nascimento da biopolítica, op. cit., p. 198)
social, uma versã o mercantil da luta hobbesiana entre os indivíduos, cabe ao
Estado assegurar as condiçõ es de possibilidade no interior das quais sua
violência possa desdobrar-se. Tais condiçõ es fundamentam-se, por sua vez, na
tradutibilidade geral, na conversã o sempre possível da violência da concorrência
em flexibilizaçã o contínua de normas e formas. A violência contra o outro se
converte em violência contra as formas e normas que pareciam determinar o
outro e que permite ultrapassá -lo.
Desta forma, através da flexibilizaçã o normativa, a forma de vida
neoliberal traduz a violência da estrutura pulsional polimó rfica e fragmentá ria -
que anteriormente parecia ser o fundamento libidinal da revolta - para a crítica à
funcionalizaçã o e à fixidez das identidades sociais. Este é um ponto importante,
pois é necessá rio que os sujeitos aprendam a desejar a flexibilizaçã o, nã o apenas
devido à s promessas de realizaçã o e de ganho presentes no capitalismo, mas
também devido à tentativa de transformaçã o da flexibilidade em expressã o
natural da dinâ mica pulsional dos sujeitos, à variabilidade estrutural de seus
objetos. Se o neoliberalismo pode contar com o consentimento moral ao risco
ligado à precarizaçã o resultante de processos de flexibilizaçã o pró prios a modos
intermitentes de trabalho baseados em “projetos”, deslocalizaçõ es contínuas e
reengenharias infinitas, é porque tal flexibilizaçã o parece traduzir a pulsã o em
seu ponto mais insubmisso. Todo consentimento moral fundamenta-se em um
consentimento pulsional mais profundo. Assim fica mais fá cil marcar toda recusa
a ela como covardia moral e infantilismo.
No entanto, há de se lembrar como a flexibilizaçã o nã o implica
desarticulaçã o dos quadros de regulaçã o, mas apenas seu deslocamento. O
enfraquecimento de estruturas institucionais com sua capacidade de assistência
e amparo, assim como o enfraquecimento de capacidade de produçã o de lugares
e identidades sociais, além de normas fixas, dá lugar à mutaçã o das instituiçõ es
sociais (Estado, escola, igreja etc.) em empresa. Todas elas começarã o a
funcionar a partir de uma mutaçã o na qual suas ló gicas se adaptarã o à ló gica
empresarial. O desamparo provocado pelo enfraquecimento da capacidade
institucional de assegurar condiçõ es mínimas de defesa nas relaçõ es trabalhistas
é pago pelo amparo produzido pelo discurso do indivíduo como promessa de que
toda experiência poderá ser objeto de cá lculo de utilidade, de interesse, de
satisfaçã o, amparo produzido pela injunçã o a ser plenamente um indivíduo
empreendedor de si como condiçã o para o reconhecimento social e a auto-
realizaçã o pessoal.
Desta forma, nã o se trata mais de regular através da determinaçã o
institucional de identidades, mas através da internalizaçã o do modo empresarial
de experiência, com seu regime de intensificaçã o, flexibilidade e concorrência. A
regulaçã o passa assim do conteú do semâ ntico dos modelos enunciados pela
norma ao campo de produçã o plá stica dos fluxos que se conformam ao modo
empresarial de experiência. A regulaçã o social poderá produzir uma das mais
impressionantes características do modelo disciplinar neoliberal, a saber, sua
capacidade de construir espaços de “anomia administrada”, isto ao assumir
situaçõ es de anomia na enunciaçã o das conformaçõ es normativas, mesmo
guardando a capacidade de administrá -lo através da regulaçã o do modo geral de
experiência. A biopolítica das sociedades capitalistas contemporâ neas se
transforma assim em uma peculiar gestã o da anomia.
É com tais processos em mente que podemos entender as mutaçõ es da
corporeidade na era neoliberal. Tais mutaçõ es poderã o nos mostrar como a
biopolítica pró pria ao neoliberalismo nã o poderia, de fato, ser compreendida
através do impacto de estruturas normativas disciplinares que funcionariam a
partir de exigências de conformaçã o a mandatos simbó licos claramente
determinados. Ela estaria vinculada à conformaçã o dos sujeitos a certa forma de
indeterminaçã o absorvida pelo modo de funcionamento normal do capitalismo
atual. É necessá rio que eles organizem sua experiência subjetiva naquilo que ela
tem de mais decisivo, a saber, em seu modo de relaçã o com a diferença, através
desta forma de circulaçã o financeira da indeterminaçã o. É necessá rio que tal
organizaçã o seja corporalmente sentida, que ela tenha uma realidade corporal.

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