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AO TERRRITÓRIO USADO A PALAVRA: PENSANDO PRINCÍPIOS DE SOLIDARIEDADE

SOCIOESPACIAL

María Laura Silveira

I. O QUE É O TERRITÓRIO USADO? UMA INTRODUÇÃO

Talvez não seja possível propor um conceito híbrido sem antes abordar o conceito
puro que se pretende dialeticamente superar. Essa parece ser a premissa que orienta a
reflexão de Milton Santos (1994, p. 15) quando escreve:
“Vivemos com uma noção de território herdada da Modernidade incompleta e do seu legado de
conceitos puros, tantas vezes atravessando os séculos praticamente intocados. É o uso do território,
e não o território em si mesmo, que faz dele objeto da análise social. Trata-se de uma forma
impura, um híbrido, uma noção que, por isso mesmo, carece de constante revisão histórica. O que
ele tem de permanente é ser nosso quadro de vida. Seu entendimento é, pois, fundamental para
afastar o risco de alienação, o risco de perda do sentido da existência individual e coletiva, o risco
de renúncia ao futuro”.

Equívoco da modernidade é a expressão utilizada por Latour (1991) para referir-se


à persistência em trabalhar epistemologicamente com conceitos puros, hoje desprovidos
de potencial explicativo. Para o autor (LATOUR, 1991) a idéia de híbrido ajudar-nos-ia
a desanuviar os problemas da contemporaneidade.
Com a afirmação da Geografia moderna, a idéia de território no seu sentido mais
puro, isto é, assimilada ao Estado, tornou-se uma categoria tão basilar quanto longeva.
No seu sentido mais restrito, território é um nome político para a extensão de um país.
Há mais de um século, Ratzel insistia em que aquele resultava da apropriação de uma
porção da superfície da Terra por um grupo humano. O território, portanto, advinha da
transformação do espaço vital.
Já Vallaux (1910, 1914), discutindo a obra de Ratzel, asseverava que o espaço não
é apenas extensão, nem o domínio do Estado, mas sobretudo a diferenciação dos
conteúdos que o definem ou, em outras palavras, o valor do conjunto físico mais o valor
dos homens. A noção de diferenciação, portanto, despontaria como um elemento central
para discutir espaço e território.
Mais tarde, Gottmann (1975) propõe entender o território como uma porção do
espaço geográfico ou como uma extensão espacial de uma jurisdicção de governo. Aos
conteúdos naturais do espaço acrescentavam-se os conteúdos políticos que nos davam o
território, um verdadeiro corpo político. Todavia, continuava o autor (GOTTMANN,

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1975) tal dimensão política não é um dado estático, mas uma construção histórica. Essa
era também a preocupação de Isnard (1982, p. 25) quando escrevia “não há sociedade
sem um espaço que lhe seja próprio, no qual as gerações se sucedem numa continuidade
tal que se realiza uma identificação entre um povo e seu território”.
Dir-se-ia que a existência de um país supõe um território e um Estado e, em
decorrência, a idéia de soberania, mesmo quando possa existir uma nação sem território
e sem Estado. Neste caso, a territorialidade não faltará pois o sentimento de pertencer
àquilo que nos pertence, embora permaneça apenas como reivindicação, sempre estará
presente na idéia de nação. É a preocupação com o destino e com a construção dos
lugares que perpassa o uso do território e, por conseguinte, a respectiva noção. Não há
como explicar o território sem seu uso, não há como explicar o território usado sem
projeto. É isso que faz do território uma categoria central para a formulação de uma
teoria social.
Entretanto, o território usado inclui todos os atores e não apenas o Estado, como
na acepção herdada da modernidade. Abriga todos os atores e não apenas os que têm
mobilidade, como na mais pura noção de espaço de fluxos. É o domínio da contigüidade
e não somente a topologia das empresas ou qualquer outra geometria. Refere-se à
existência total e não apenas à noção de espaço econômico. O território usado envolve
todos os atores e todos os aspectos e, por isso, é sinônimo de espaço banal (SANTOS,
1996), espaço de todas as existências. A história se produz com todas as empresas, todas
as instituições, todos os indivíduos, independentemente de sua força diferente, apesar de
sua força desigual.
O território usado não é uma coisa inerte ou um palco onde a vida se dá. Ao
contrário, é um quadro de vida, híbrido de materialidade e de vida social. Sinônimo de
espaço geográfico, pode ser definido como um conjunto indissociável, solidário e
contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações (SANTOS, 1996). É o
território propriamente dito mais as sucessivas obras humanas e os próprios homens
hoje. É o território feito e o território se fazendo, com técnicas, normas e ações. Como
conceito puro, o território é constituído de formas mas, como conceito híbrido, o
território usado é constituído de “objetos e ações, sinônimo de espaço humano, espaço
habitado” (SANTOS, 1994, p. 16).
A cada momento histórico, o conjunto solidário e contraditório dos sistemas de
engenharia, dos movimentos da população, das dinâmicas agrícolas, industriais e de
serviços, do arcabouço normativo e do alcance e extensão da cidadania revelam o uso

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do território. Cada período se define por essa superposição de divisões territoriais do
trabalho que revelam a forma em que o território é usado.
Por isso, a definição de qualquer pedaço do território deve levar em conta a
interdependência e a inseparabilidade entre a materialidade, que inclui a natureza, e o
seu uso, que inclui a ação humana, isto é, o trabalho e a política. É preciso examinar
paralelamente os fixos, aquilo que é imóvel, e os fluxos, aquilo que se move. Nesse
quadro a vida da nação se desenvolve. É no território que as velhas técnicas
permanecem e as novas se inserem para rearranjar o trabalho. Nele as decisões políticas
se gestam e nele se rebatem, dando valores diferentes às formas do trabalho e aos
lugares.
Em outras palavras, o território usado abriga as ações passadas, já cristalizadas
nos objetos e normas, e as ações presentes, aquelas que se realizam diante dos nossos
olhos. No primeiro caso, os lugares são vistos como coisas, mas a combinação entre
ações presentes e ações passadas, às quais as primeiras trazem vida, confere um sentido
ao que preexiste. Tal encontro modifica a ação e o objeto sobre o qual se exerce e, por
isso, uma não pode ser entendida sem o outro. As bases materiais e imateriais
historicamente estabelecidas são apenas condições, no entanto, sua atualidade, isto é,
sua significação real, advém das ações realizadas sobre elas. A tal complexo conjunto
podemos denominar território vivo, o território vivendo.
Desse modo, quando analisamos técnicas, normas e ações estamos fazendo um
esforço para entender a constituição do território, seus usos, isto é, como, onde, por
quem, por quê, para quê o território é usado (SANTOS e SILVEIRA, 2001). São as
modernas estradas de rodagem do Estado de São Paulo, mas também os rios navegáveis
da Amazônia; a agricultura moderna no Centro-Oeste e a agricultura de subsistência no
sertão nordestino; os edifícios inteligentes da metrópole paulista mas também a precária
rede de esgoto de sua periferia; os pedágios mas também os horários de circulação dos
ônibus urbanos; as ações das grandes empresas e dos sindicatos.
É uma dialética entre os homens no território; é o território no processo de ser
usado. Tratar-se-ia de uma obra de permanente reconstrução do território já utilizado
pelas gerações precedentes, através das diversas instâncias da produção, isto é, de
sistemas de objetos e normas presentificados pelas desiguais ações contemporâneas.
A história nos vêm como forma e como norma, como monumentos e
documentos no dizer dos historiadores. É desse modo que o território usado é uma
norma, pois é um princípio ou um molde para a ação presente, a qual, dotada de poder

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desigual para transformar o que existe ou para concretar o possível, exercita novos usos,
isto é, cria mais objetos e normas. Poderíamos dizer com Giddens (1984, 1987) que o
exercício da ação encontra regras – dadas por elementos normativos e por códigos de
significação –, mas também recursos – de autoridade e de alocação. É um processo
solidário e contraditório entre, de um lado, existências técnicas e normativas que nos
vêm de tempos pretéritos e de passados recentes e, de outro, possibilidades do nosso
período. Não é um dualismo, não são conceitos puros porque, de um momento histórico
a outro, algumas existências permanecem, outras mudam parcialmente, outras
desaparecem. Carregando seletivamente o passado naquilo que permanece, o presente é,
na realidade, movido pelo futuro. É a intencionalidade que completa essa mediação
entre o presente e o futuro. Tal intencionalidade é, de algum modo, uma antecipação do
futuro que nasce desigual. Um processo permanente, ininterrupto e conflitante de
produção de configurações territoriais e de vida social. A cada período, podemos
reconhecer uma totalidade: o território usado, sinônimo de espaço banal, manifestação
mais concreta da nação.
Como os objetos e as normas nos vêm do passado, autorizar-nos-iam a utilizar
um particípio: território usado. As ações presentificam esses objetos e normas,
preenchendo-os de novos conteúdos ou criando novas existências. É aí que o gerúndio é
de rigor: território sendo usado. Nesse sistema de ações o futuro se instala e o território
torna-se, ainda mais, um híbrido.

II. GLOBALIZAÇÃO E USO DO TERRITÓRIO

Cada momento da história pode ser visto, então, como um palimpsesto desses
conteúdos: técnicas, normas e ações. A cada período corresponde uma base material e
uma forma da vida social. Dir-se-ia que as técnicas autorizam uma forma de trabalhar e
de repartir o trabalho, ao passo que a política potencializa ou prescreve essas
autorizações técnicas. A redistribuição do processo social não é, portanto, alheia às
formas herdadas. São os usos do território.
Essa dinâmica é marcada hoje pela aceleração, que pode ser vista como
virtualidade da técnica e, ao mesmo tempo, como mandamento da política. Com mais
rapidez os objetos são substituídos recompondo suas relações sistêmicas, enquanto as
normas são declaradas obsoletas e substituídas por novos princípios do fazer. Isso recria
o quadro onde as ações se desenvolvem, alcançando também seu sistemismo. A cada

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rearranjo desses conteúdos sistêmicos uma nova velocidade é possível e, mormente,
muda a hierarquia dos lugares e a capacidade de agir dos atores.
Os sistemas técnicos contemporâneos possibilitam a instantaneidade da
informação e do dinheiro nos diferentes lugares do planeta. Tal instantaneidade é uma
manifestação de que as variáveis centrais da globalização são, ao mesmo tempo,
determinantes e dominantes, pois comandam o movimento da história e invadem a vida
social. Tecnociencia, informação e finança são os motores da divisão territorial do
trabalho hegemônica, rosto mais concreto da globalização.
Tudo isso significa que, pela primeira vez na história, a universalidade se
empiriciza, isto é, passamos da idéia de universalidade à sua realização histórica
(SANTOS, 1984; 1996). Hoje não apenas a natureza é universal, mas a sociedade nas
suas manifestações técnicas, informacionais e financeiras. É a universalidade empírica,
produto e produtora do tempo empírico (SANTOS, 1996), que significa a
interdependência dos eventos a escala mundial. Em outros termos, a vida se torna
entrelaçada graças à sistematicidade planetária da técnica, da informação e da finança,
definindo assim o acontecer solidário ou a realização compulsória de tarefas comuns
mesmo que o projeto não seja comum (SANTOS, 1996).
Não podemos duvidar da plena inserção do território brasileiro na universalidade
empírica e no acontecer solidário, mesmo que tenha sido tantas vezes canhestramente
produzida, reservando à nação um papel claramente subalterno. Por essa razão, certas
regiões do território nacional passam a ser mais utilizadas do que outras e, desse modo,
cada uma delas acolhe desigualmente as modernizações e seus atores dinâmicos,
cristalizando usos antigos e aguardando novas racionalidades.
Hoje, as políticas sociais de Estado parecem esvaziadas pelos novos conteúdos
materiais e imateriais que, a cada dia, são definidos pelas grandes empresas. O uso do
território torna-se ainda mais seletivo e, desse modo, acaba punindo as camadas mais
pobres, isoladas e distantes dos centros produtivos. Agravam-se diferenças e
disparidades, devidas, em parte, aos novos dinamismos e a outras formas de comando e
dominação.
Nas últimas décadas, o peso ideológico do mercado externo na vida política
nacional tem orientado e legitimado a transferência de dinheiro público e social para a
construção de sistemas de engenharia, para a produção moderna e para a organização do
comércio exterior. Desse modo, o território passa a ser regulado pelo mercado que é, na
verdade, uma regulação advinda da microeconomia das grandes empresas. É isso que

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permite entrever um mapa com regiões do mandar, regiões do fazer...e regiões
desprezadas...
Amiúde, cultivou-se essa confusão entre a lógica do chamado mercado global e
a lógica individual das empresas globais. Dando ênfase à existência de uma entidade
dita universal, o discurso do mercado global oculta os interesses de um punhado de
firmas, cuja preocupação maior é aumentar a mais-valia e produzir convicção na
sociedade. Cabe aqui destacar o papel das grandes empresas da informação e a
legitimação de um modo de produzir concentrado e excludente ou, em outras palavras, a
criação de um modus fasciendi que nos convence da naturalidade ou inexorabilidade dos
mecanismos em voga (SILVEIRA, 2006b). A adaptação ao mercado global, à
competitividade e à modernização exige obediência a um conjunto de medidas que
acabam por assumir a condução geral da política econômica e social. Vistas como
soluções “técnicas” são, na verdade, regras e prescripções que levam a abdicar da
formulação de uma verdadeira política nacional, tanto econômica quanto social fundada
no território usado. Daí a idéia de morte da política (SANTOS, 2000; SAPIR, 2002).
Cada empresa assume uma lógica internacional e, mesmo que seu berço seja
nacional, as regras da competitividade referem-se mais ao produto global do que à
dinâmica do lugar. Não escapa a esse conjunto de normas a nova lógica locacional das
empresas no território nacional que, de um lado, valoriza localizações prontas com todas
as condições requeridas e, de outro, exige a adaptação dos lugares para que a operação
empresarial seja rentável.
Portanto, as novas hierarquias no território dependem da capacidade das regiões
para satisfazer os reclamos corporativos. Entretanto, a insaciabilidade do capital
desmancha permanentemente tais hierarquias e obriga os atores regionais a novos
investimentos materiais e normativos. As áreas globalizadas tanto são agrícolas como
industriais e de serviços e caracterizam-se pela existência de infra-estrutura moderna e
mão-de-obra qualificada e, portanto, pela sua inserção numa cadeia produtiva global,
pelas relações distantes e freqüentemente estrangeiras que criam e também pela sua
lógica extravertida. Como essas demandas são erráticas e aceleradas, o território revela
uma dinâmica imprevisível e alienada, uma vez que não precisa ter correspondência
com os interesses da sociedade local ou nacional.
De modo geral, o território nacional encarna uma organização apta a servir as
grandes empresas hegemônicas e, como corolário, vê enfraquecer a solidariedade
orgânica, sendo sua manifestação mais visível a hostilidade das parcelas modernas às

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atividades menos lucrativas. Interdependência entre ações e atores que emana da sua
existência no lugar, a solidariedade orgânica opõe-se à solidariedade organizacional.
Nesta a interdependência é produto de normas presididas por interesses alheios e
mutáveis em função do mercado, que revelam a produção de uma racionalidade
moderna e limitada (SANTOS, 1996).
Ainda que incompletamente ou insatisfatoriamente, os princípios de
solidariedade orgânica haviam sido fortalecidos pelo Estado, o que acabava por limitar
as possibilidades políticas das grandes empresas, cujas técnicas tampouco eram
planetárias. De algum modo, no período que antecedeu a globalização, a instância
econômica e a instância territorial coincidiam. Território nacional e mercado não eram
inelutavelmente desencaixados e, por isso, o poder público podia exercer uma certa
liderança nos processos econômicos sem ser, como hoje, apenas coadjuvante. Nos dias
atuais, por exemplo, no momento em que uma ferrovia de passageiros é transformada
em uma linha de cargas ao serviço de uma grande empresa, vemos no lugar a erosão de
um elemento que dava força ao cotidiano regional e, ao mesmo tempo, uma maior
inserção no mercado mundial. O crescimento e a modernização vinculados a um poder
corporativo fazem com que os objetos e os nexos que formam as regiões deixem de ser
interdependentes uns com os outros e, desse modo, rompe-se a solidariedade orgânica e
instala-se uma solidariedade organizacional. Em outras palavras, um princípio de
organização externo e científico passa a regular a produção e circulação, isto é, os
objetos, a forma de trabalhar, as escalas de produção, a velocidade de circulação, as
demandas e as prioridades. O princípio de organização interna, criador de
interdependências contíguas, é estilhaçado e os nexos no lugar são subordinados aos
nexos do mundo. Há uma intensa produção de desordem.
Assim, duas tarefas tornam-se concomitantes e necessárias e não se realizam
sem a peremptória participação do dinheiro público. De um lado, é preciso construir e
manter a nova ordem corporativa a partir de um território bem equipado e fluído. De
outro lado, é mister controlar a desordem social nascida da falta de respostas às
demandas básicas. Quem não participa dessa racionalidade corporativa está igualmente
subordinado a essas lógicas pela força e pela capilaridade da informação e do dinheiro.
Ambas as tarefas supõem uma drenagem de recursos sociais, que deixam de sustentar
solidariedades orgânicas para perfazer solidariedades organizacionais.
Haveria, assim, uma utilização privilegiada dos bens públicos e uma utilização
hierárquica dos bens privados. É dessa forma que maiores lucros são obtidos por alguns

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agentes, ainda que trabalhem sobre os mesmos bens e embora sejam nominalmente
públicos. Para a equação interna da firma é mais rentável, a partir das virtualidades da
técnica contemporânea, dividir as etapas da sua produção e abraçar as diferentes regiões
do país. Todavia, a inteligência do capital precisa unificar as etapas tecendo verdadeiros
círculos de cooperação que cingem o território. Entretanto, a cada dia vemos que boa
parcela da cooperação não é um custo operacional das empresas mas da sociedade, ora
pela via dos investimentos do Tesouro, ora pela via das Parcerias Público-Privadas que
asseguram as infra-estruturas de que precisam as grandes corporações e os ganhos
futuros pela exploração dos usos sociais. Quando um bem essencial à vida é produzido
ou distribuído em situação de monopólio ou oligopólio territorial, a sociedade torna-se
cativa e o dinheiro apropriado pode ser considerado social.
Desse modo, as maiores empresas passam a desempenhar um papel central na
produção e funcionamento do território e, por meio da colaboração ou da omissão do
Estado, tornam-se parte e juízes em conflitos de interesse com empresas menos
poderosas, consolidando essas situações de oligopólio.
Para tanto, o comportamento das firmas é internamente normado e externamente
normativo, o que reduz sensivelmente o grau de imprevisibilidade no seio de seus
sistemas de ações. Em contrapartida, é a nação que se torna imprevisível tanto no seu
funcionamento como na sua evolução, pois adota as oscilações, exigências e caprichos
de um mercado mundializado. A estabilidade das corporações, graças à realização dos
princípios de solidariedade organizacional, redunda na instabilidade do território
nacional em virtude da ruptura da solidariedade orgânica.
Vale a pena reforçar que não é o mercado como uma totalidade quem ditamina o
destino da Nação, mas um reduzido número de grandes empresas. Cada firma encarna
diferentemente o princípio único da competitividade e, por isso, os respectivos sistemas
de objetos e ações não são idênticos apesar do seu forte ar de família. Cada uma tem
próprio escopo, sua própria temporalidade, suas metas específicas e motivações
próprias, tantas vezes apresentadas como necessidades regionais. A busca fundamental é
a mais-valia, que deve sempre crescer e, para tanto, é mister eliminar viscosidades que
possam criar atritos, inclusive a produção e distribuição coletivas dos bens e serviços
mais básicos.
A sofisticação contemporânea dos instrumentos financeiros e sua capilaridade
no território revelam um retrato extremamente complexo. A venda de ações de grandes
firmas, a participação dos trabalhadores em fundos de pensão (CHESNAIS, 2005), os

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complexos mecanismos de investimento e poupança oferecidos pelos bancos, entre
outros elementos, produzem concomitantemente uma pulverização da propriedade e um
distanciamento do comando que é altamente concentrado, com o respectivo
desconhecimento das decisões por parte da sociedade nacional. A maior instabilidade da
economia internacional e o enorme volume de recursos das empresas e bancos globais
conduz a um processo de fusões e aquisições que, entre outras coisas, permite diminuir
os riscos (GONÇALVES, 2003, p. 32). A finança paira sobre o território e o
instrumentaliza. Perde-se o conhecimento sobre a identidade e intencionalidade dos
atores hegemônicos.
Concomitantemente à nova ordem e como seu necessário corolário, o poder
público contribui ativamente para a implementação no território dos princípios
financeiros. Assim, novos nexos são criados, privilegiando sempre a inserção do
teritório nacional no chamado mercado global, cuja fonte de lucro é o dinheiro em
estado puro (SANTOS, 2000). Cria-se, então, uma nova economia política, na qual tudo
deve ser organizado em função desse lucro a ser sempre mais concentrado: os nexos
internos devem responder a uma dada contabilidade global, a renovação tecnológica
deve ser incessante, o mercado a conquistar é o externo enquanto sub-repticiamente
internacionaliza-se o mercado interno. Não há como apoiar ou compensar as economias
regionais que não se adequam à competitividade em marcha; não há como destinar
dinheiro a objetos e organizações que não ofereçam taxas de retorno tão altas quando o
mercado financeiro internacional. A prioridade é produzir e fazer circular os produtos e
serviços mais rentáveis, mesmo quando se trate de educação, saúde ou bens culturais,
para os quais sempre haverá uma demanda cientificamente produzida pela sofisticação
dos produtos, pela propaganda e pelo crédito, assim como pela ausência do Estado. A
preocupação em institucionalizar alguns princípios de solidariedade orgânica é, quando
existe, subordinada. Criada a escassez, desenvolve-se um mercado para uns e uma
“pobreza estrutural e globalizada” para a maioria (SANTOS, 2000, p. 72-73).
Os princípios organizacionais, novos conteúdos do território brasileiro, são
extremamente seletivos. Tomam da rede urbana herdada apenas o que interessa e são,
ao mesmo tempo, motores da produção de uma nova rede urbana. Por essa razão, nas
regiões mais dinâmicas, aumenta o número e o tamanho das cidades médias, nas quais
se verifica maior renda relativa e, consequentemente, importantes níveis de consumo.
São pontos privilegiados para o exercício do acontecer complementar no território
nacional, isto é, de novas relações entre cidade e campo orientadas por uma produção e

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circulação modernas. O acontecer complementar associa-se ao acontecer homólogo, que
é a base da construção de áreas agrícolas ou industriais modernizadas, cujo suporte
técnico reside nessas cidades médias. Nas enormes extensões metropolitanas, apenas
alguns pedaços acolhem o acontecer hierárquico, como no caso das tarefas de
concepção e gestão ligadas à tecnociência, à informação e à finança, responsáveis pelos
aconteceres homólogos e complementares das áreas modernas do território.
Estabelecem-se no território nacional verdadeiras hierarquias funcionais e
estatísticas, causas e consequências das sístoles e diástoles das finanças, da informação,
da tecnociência. A dispersão do sistema técnico permite produzir em áreas até agora
periféricas, as quais necessitam crescentes quantias de informação e dinheiro. Assim,
sob a força das variáveis centrais da época desenvolve-se um acontecer complementar e
homólogo, com o predomínio das técnicas e das normas, tão modernas quanto alheias.
No entanto esse império se exerce a partir de pontos muito seletivos, onde se realiza um
acontecer hierárquico, com o predomínio da política das empresas que decidem a
intensidade e o alcance das variáveis determinantes. É um acirramento da
verticalização.
Nas mesmas metrópoles os nexos institucionalizados da solidariedade orgânica
também são erodidos, abandonando enormes parcelas da população à sua sorte. A nova
rede urbana revela, desse modo, áreas luminosas e áreas opacas. As primeiras são o
locus dos eventos próprios da nova ordem, enquanto as segundas são aquelas que
resultam de uma combinação explosiva: seus nexos orgânicos deixaram de contar com o
apoio do Estado, ao passo que não são escolhidas pelos nexos organizacionais. Às
pessoas e aos lugares que não façam parte da novíssima divisão territorial do trabalho
faltará, amiúde, a realização de certos consumos coletivos. Estamos referindo-nos tanto
a densas porções da periferia paulistana e de outras grandes metrópoles brasileiras como
a pequenas aglomerações do sertão nordestino ou da Amazônia.
Em decorrência, há uma acumulação de eventos portadores da divisão do
trabalho hegemônica em certos pontos e áreas e um abandono de extensas parcelas,
condenando a população à falta de acesso aos serviços essenciais à vida. É a produção
de uma enorme dívida social (SANTOS, 2000). Não surpreende então o aumento da
pobreza, da doença, da violência e das migrações. Neste último caso, as pessoas
abandonam seus lugares em busca não apenas de trabalho, mas também da possibilidade
de consumir bens materiais e imateriais, como educação, saúde, informação e cultura.
Quando chegam às cidades nem sempre encontram emprego, nem sempre têm acesso

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aos bens e serviços agora mercantilizados (OLIVEIRA, 2002, p. 129) e, por vezes, se
defrontam com fronteiras dentro da própria nação. É o caso de diversas prefeituras de
cidades médias que, temerosas de uma escala do acontecer que lhes escapa, impedem a
entrada de pessoas sob pretexto de que os sistemas de ensino e saúde e mesmo o
emprego serão insuficientes para atender os recém-chegados. Mas é também a situação
de enormes periferias metropolitanas, nas quais a precariedade da habitação, a falta de
saneamento básico e de serviços de saúde condena a população a péssimos níveis de
vida. Diversos padrões de distribuição de doenças e mortes desenvolvem-se nessas áreas
opacas, alerta Luisa Iñiguez Rojas (2006, p. 236). A modernização seletiva e acelerada
do território, com a decorrente desvalorização de outras parcelas abandonadas à sua
sorte, autorizar-nos-ia a pensar que hoje a pobreza, a doença e a violência são
manifestações da empiricização da velocidade.
Advindo de um período de neoliberalismo, o território acaba por fornecer um
retrato complexo e contraditório. No que ele tem de moderno exerce uma inércia e
convida a reforçar as redes, os pontos luminosos, as geometrias cuja integração não é
nacional mas planetária. O território nacional é usado para abrigar algumas parcelas da
divisão territorial do trabalho hegemônica sem, por isso, completar os circuitos
espaciais de produção. No que ele tem de opaco pode ajudar a descobrir a ineficácia
social de certos parâmetros erigidos como absolutos. É o caso dos indicadores
macroeconômicos autonomizados, pois estes podem melhorar sem que certos lugares do
território conheçam tais benesses. Se a população de uma pequena cidade nascida ao
serviço de uma grande corporação não encontra as respostas às suas demandas de saúde,
se desloca e utiliza os hospitais de uma cidade contígua, tantas vezes pertencente a outra
unidade da Federação. Daí a preocupação de Raul Borges Guimarães (2006, p. 256-257)
ao propor a multiplicidade de escalas em que a vida se desenvolve como modo de
articular os circuitos de reprodução das doenças e os circuitos de produção dos serviços
de saúde. Quando os consumos sociais devem ser feitos fora de uma company-town,
quando a vida social e política não encontra respostas nesse ponto luminoso e deve
recorrer a outros lugares, cria-se uma demanda mas também uma oferta, cuja análise
pode apontar caminhos para o futuro. Não é talvez um indicador macroeconômico e sim
um movimento migratório, uma defasagem entre formas político-administrativas e uso
dos serviços de saúde, uma demanda insatisfeita e insolvável, uma técnica não-moderna,
uma produção marginal no lugar que podem revelar o uso do território e, assim, as
verdadeiras necessidades de uma nação.

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Não é da alçada do princípio organizacional a busca daquilo que vários autores
denominaram justiça espacial. A globalização, tal como acolhida hoje na maior parte
dos países periféricos, significou um aumento das polarizações socioespaciais. Seu
corolário é a escassez de recursos, de bens e serviços universais no resto do território e,
por isso, um desigual exercício da democracia, levando à sua fragilidade como condição
de vida de uma sociedade. Eliza Almeida (2005) explica como a dialética entre a
centralização dos serviços particulares de saúde e a descentralização incompleta dos
serviços públicos cria escassez absoluta nas áreas rarefeitas e escassez relativa nas áreas
densas do território, prenhes como estão de alvéolos do mercado.
No momento em que as demandas sociais deixam de coincidir com o novo mapa
de investimentos privados e públicos, nos defrontamos com a substituição da
organicidade pela organização na política da Nação. Retira-se o embrionário Estado do
bem-estar e entra o mercado puro, cuja manifestação mais acabada é a escassez de
escolas e estabelecimentos de saúde e a abundância e a ubiqüidade das instituições e
instrumentos financeiros. Face a esse retrato não poderemos dizer, como Rosanvallon
(1995) quando resume os elementos do Estado previdência, que a sociedade foi liberada
da necessidade e o indivíduo foi protegido dos riscos da existência.

III. PENSANDO PRINCÍPIOS DE SOLIDARIEDADE SOCIOESPACIAL

Considerado no seu movimento, o território usado permite uma visão unificada


dos diversos problemas sociais, econômicos e políticos. É nos lugares e na convergência
de todas as instâncias da vida social que a história se desenvolve. Por tal razão, o lugar
revela sua inserção ativa ou passiva no modelo globalitário, nas luminosidades ou
opacidades do território nacional. Como nos ensina Milton Santos (1999), ali a
produtividade e a competitividade das empresas deixam de ser definidas per se, isto é,
apenas pela estrutura interna de cada corporação e passam a ser atributo do lugar. Nas
palavras do autor (SANTOS, 1999): “é como se o chão, por meio das técnicas e das
decisões políticas que incorpora, constituísse um verdadeiro depósito de fluxos de mais-
valia, transferindo valor às firmas nele sediadas”.
Todavia o atual exercício da política parece transitar um caminho prenhe de
obstáculos. De um lado, a força das grandes empresas e dos demais atores financeiros
no uso do território é incomensurável. Seu resultado é um espaço excludente que, por

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isso, se torna revelador das contradições, mostrando uma verdadeira privatização do
território nacional. É o que buscamos discutir nas páginas anteriores.
De outro lado, o predomínio das formas vazias ou puras, dos cálculos abstratos e
dos rumos auto-referenciados impõem-se como instrumento e linguagem da política. A
mera abstração de índices econômicos, cuja elaboração é ideológica, não revela o real
funcionamento do país. O território é visto apenas como forma, isto é, como sua divisão
político-administrativa; a política é vista como um conjunto de equações econômicas.
Freqüentemente ambas visões, juntas, acabam por perfazer um território reticular, onde
o poder público oferece, a partir dos entes federativos, as garantias que a equação da
firma precisa, como na criação de municípios estudada por Cataia (2003).
Destarte, vemos duas totalidades abstratas, o território e a política, que pretendem
substituir a verdadeira totalidade concreta: o território usado e sendo usado de forma
diversa nos lugares. Daí talvez o fracasso de certas políticas de descentralização que
tratam situações concretas e diversas como se fossem abstratas e homogêneas ou, ainda,
das políticas isoladas que buscando solucionar problemas urgentes, amiúde acabam por
reforçar o problema sistêmico. Discutindo as fragilidades das políticas setoriais de
saúde na Amazônia, Viana e outros autores (2007, p. 129) sublinham tanto os padrões
organizacionais e de financiamento com predomínio de estratégias homogêneas para o
território nacional, como a proposição de recortes regionais cujo fundamento é apenas a
disponibilidade de serviços de saúde.
A análise supõe o entendimento de como as coisas e as ações se repartem e se
relacionam, evitando a escolha prévia ou antecipada de soluções, sejam estas
científicas, sejam estas políticas. O esforço da análise não pode ser negligenciado. Mas,
porque sabemos que o que existe sempre é unitário, isto é, a realidade é unitária, a visão
de conjunto deve preceder e acompanhar o exercício da análise e da política.
A escolha de categorias pertinentes ao período, ao mesmo tempo analíticas e
sintéticas, não é um problema menor, pois sua falta nos faz escorregar, mais uma vez,
em formas vazias. Limites e fronteiras carecem da força explicativa própria das formas-
conteúdo, atentas a realçar o que existe e o que não existe em cada lugar, seu
funcionamento e suas reais necessidades. Reduzir uma região ao seus status político-
administrativo, sem considerar que o sistemismo dos objetos e ações ultrapassa seus
limites e, paralelamente, que os atores têm força desigual, pode tornar ineficaz uma
política pública. A superposição de cálculos econométricos e de divisões político-
administrativas pode negligenciar as relações predatórias de extração de mais-valia,

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paralelas à produção de dívidas sociais. Privilegiar as abstrações macroeconômicas,
alheias às feições dos lugares e que só podem ser administradas pelo governo central,
pois são feitas à medida de uma interlocução com os organismos financeiros
internacionais (SANTOS, 1999), pode acelerar a destruição da solidariedade orgânica. É
o exemplo do PIB, do déficit público, da balança de pagamentos, da inflação, dos
investimentos estrangeiros diretos e de tantos outros indicadores que fornecem uma
visão única e homogênea do território nacional. Trata-se, certamente, de uma distorção.
O movimento desigual e combinado dos lugares reclama uma visão unitária mas não
homogênea dos diversos problemas nacionais e regionais.
Como o território é usado por todos os atores apesar de sua força desigual e como
nenhum objeto ou ação pertence apenas à economia ou à política ou à cultura, não seria
politicamente eficaz trabalhar com uma idéia de território formal ou de território usado
apenas por alguns. A não-autonomia do tecido de objetos e ações nos lugares preenche
de conteúdo híbrido a categoria pura de território. Debruçando-se sobre os modos de
construir um Estado previdência ativo diante dos fracassos do que ele chama Estado
previdência passivo, Rosanvallon (1995) prevê o enriquecimento da noção de direito
social a partir do direito à inserção, apontando, para tanto, a necessidade de incorporar a
especificidade das situações. Acrescentamos que tal especificidade pode ser mais
claramente desvelada a partir da sua realização histórica: o território usado.
A vida concreta dos lugares, em suas oportunidades técnicas e políticas para outro
gênero de trabalho que não obrigatoriamente o global, poderia ser alvo da formulação
de políticas, menos consagradas a satisfazer as demandas de produtividade espacial,
fluidez e competitividade das grandes empresas. Partir da dinâmica do lugar, que é
incompletamente globalizada, e não da lógica do produto, que é completamente
globalizada, poderia contribuir à descoberta do que é escasso no lugar como, por
exemplo, a produção e distribuição de bens universais, aqueles capazes de eliminar o
diminuir o handicap entre atores sociais. O lugar poderia ser entendido menos como
depósito de mais-valia para as corporações e mais como um elo de políticas
socioespacialmente integradas de educação, saúde, cultura, informação. A contabilidade
nacional e regional, tal como hoje é realizada, considera apenas a produção para o
mercado externo como geradora de riqueza. É preciso reforçar o papel do consumo
interno a partir de uma produção também interna. Se o território demonstra atualmente
sua produtividade para produtos globais, sua forte organização autoriza também uma
alta concentração de riqueza. Um território capaz de abrigar diferentes formas de

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produzir e consumir ajudaria ao desenvolvimento de um mercado socialmente
necessário (RIBEIRO, 2004) e, por conseguinte, mais distributivo.
Todavia, quando o direito à previdência social transforma-se em uma espécie de
seguro mercantil ou investimento capitalista, o processo de individuação está posto, pois
os nexos do coletivo desaparecem e uma massa de dinheiro social pode ser desviada
rapidamente, sob o amparo da lei, para investimentos imobiliários ou financeiros em
alguns pontos do território. O rearranjo de recursos públicos e particulares destinados à
educação e saúde revelam dinâmicas tão contraditórias e mercantís quanto às da
previdência.
O investimento desse dinheiro social em grandes objetos funcionais a agentes
poderosos, como certas obras de infra-estrutura, acaba por instrumentalizar o território,
tornando-o apto para o exercício de um pequeno punhado de atores. A cada
modernização, um novo conjunto de atores e de lugares é declarado não-moderno e,
desse modo, o valor do seu trabalho diminui e a pobreza estrutural se consolida. Por
esse caminho, o dinheiro é retirado de elementos estruturadores da contigüidade, da
técnica menos moderna, da interdependência entre gerações, das organizações menos
modernas, enfim da solidariedade orgânica, para conduzí-lo a elementos que
desestruturam a ordem local e nacional e fortalecem uma nova ordem social cuja base
material lhe é adequada. A contabilidade nacional torna-se também instrumentalizada e
passa a considerar como despesas as necessidades básicas, criando entraves ao consumo
coletivo.
Em outros termos, se houver uma certa demanda solvável para serviços
educacionais, de saúde ou previdência, o mercado pode instalar-se e o poder público
ajudará à produção e renovação dessa demanda, esvaziando quanto for necessário a
condição de universalidade da distribuição. Do pacto de civilização fundado na
previdência social, que permitiu uma espécie de compatibilidade, mesmo que
incompletamente realizada e incompletamente difundida, entre o modo de produção e
uma certa justiça social, passamos a uma sociedade de risco, que não pode ser tolerante
com os mais fracos. Calculados os riscos hoje com técnicas primorosas, é possível
produzir discursos individuais, reforçando a idéia de que é mais importante o indíviduo
e sua realização pessoal do que a sociedade, incapaz de fornecer as condições de tal
realização. Nada mais longe da idéia de mutualização. Um grande conteúdo de
propaganda busca produzir o convencimento de que a responsabilidade individual é o
único valor que interessa pois permite, ao mesmo tempo, cuidar do futuro de forma

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responsável e acumular dinheiro no presente. O custo de tamanha distorção é o
abandono daqueles cuja demanda não é solvável em nenhum momento da vida e em
nenhum lugar do território. Num período dominado pela informação, o único risco que
merece ser enfrentado é, de um lado, o individual e para isso criam-se contratos e
seguros e, de outro, o mercadológico que se torna um leitmotiv da política pública. Os
nexos indígenas da vida coletiva serão substituídos pelos nexos alienígenas do
individualismo mercantil. De um modo geral, os partidos políticos, unanimente
preocupados com o crescimento (HAMILTON, 2006), acabam por aceitar a lei da oferta
e da procura aplicada à vida social como um todo, aí incluídos os serviços universais,
oferecendo quando possível soluções pontuais e assistencialistas a quem ficar fora do
jogo do mercado. A topologia é mais forte que o espaço banal.
Daí a idéia de que as grandes empresas instalam uma ordem para si e uma
desordem para todo o resto da sociedade (SANTOS, 2000). O espaço banal acumula
áreas opacas e regressões sob a promessa de que o espaço de redes permitirá o
crescimento e, desse modo, diminuirá a pobreza e o subdesenvolvimento. Esse é um
princípio de organização, um princípio normativo que se infunde sobre as heranças
materiais e normativas advindas do passado para produzir ações ditas eficazes.
A ingovernabilidade da nação advém tanto da ordem corporativa quanto dessa
escassez estrutural de bens e serviços universais nos lugares. É o resultado da
“Federação globalizada” para utilizar as palavras de Milton Santos (2000).
Acreditamos que haja um imperativo territorial na produção de educação, saúde,
cultura. Essa idéia não parece suficientemente utilizada na formulação de políticas,
talvez porque o planejamento esteja hoje imbuído de uma razão setorial e, por
conseguinte, instrumental.
Tal imperativo territorial permite pensar que há uma relação biunívoca entre saúde
e território, entre educação e território, entre cultura e território. Além de constituírem
bens sem os quais a sociedade vai à deriva (LILLE e VERSCHAVE, 2003), educação e
saúde são atividades econômicas e sociais de peso e, por isso, centrais para entender os
objetos e ações que constituem o território. Não é excessivo lembrar que o consumo
desses bens de interesse comum, mesmo quando realizado na esfera pública, é
crescentemente produtivo, apesar do discurso dominante. A produção de educação,
saúde, cultura e suas atividades ligadas desempenham um papel na geração de riqueza
local. A consideração desse fato permitiria acrescentar, ao argumento cívico, um
argumento econômico. A outra face da medalha nos mostra que o território, pelos seus

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conteúdos como a distribuição e estrutura da população, do emprego, da renda, das
infra-estruturas, da agricultura, da indústria e dos serviços influi sobre a produção da
educação e da saúde. A urbanização do território, o crescimento das metrópoles e, mais
recentemente, das cidades médias, a ocupação agrícola e industrial de áreas até agora
periféricas, são algumas das características que exigem dos sistemas como educação e
saúde uma expansão e, ao mesmo tempo, uma densificação. Esses fenômenos são, no
período atual e mormente num país como o Brasil, originados por uma relação dialética
e contraditória entre Estado e mercado.
Os bens e serviços que são do interesse comum, representativos de direitos
“naturais”, deveriam ser reconhecidos como um direito legítimo, aberto a todos, de
distribuição universal. Quando a oferta pública não chega a todas as pessoas e a todos
os lugares tende a instalar-se e a crescer a oferta mercantil, encarnando uma resposta
segmentada e parcial a esses reclamos. Essa é a lógica do mercado, isto é, alojar-se nas
regiões onde a demanda já existe ou tem altas perspectivas de desenvolver-se. Todavia,
a demanda que interessa é uma demanda solvável. Daí que certos lugares e camadas
sociais sejam a priori desinteressantes, a menos que a solvência seja assegurada pela via
do crédito sob suas diversas formas. Desse modo despontam fragmentações
socioespaciais com relação aos bens de interesse comum e, em decorrência, curto-
circuitos no exercício da cidadania. Segundo quantidades e qualidades da oferta,
desenha-se um mapa bem diferenciado, no qual quanto mais forte é o mercado desses
bens fundamentais à vida mais tendem a coincidir suas concentrações com as áreas
luminosas do território. O processo cumulativo torna-se exponencial como resultado
não de processos naturais como o discurso tenta fazer acreditar, mas de decisões
políticas, como a distribuição de recursos. Não ignoramos a correspondência necessária
entre hierarquias urbanas e hierarquias de instituições educacionais ou de saúde, mas
isso deveria ser uma atribuição do Estado e não das empresas, para evitar excessivas
distorções no acesso. Uma nação preocupada com o exercício de uma cidadania forte e
plena não poderá tolerar que a oferta de educação, de saúde e de outros bens e serviços
de interesse comum seja feita em vários níveis, segundo a capacidade econômica dos
atores. Não é possível concordar com uma discriminção ab initio, seja ela socio-
econômica ou territorial.
Para tanto, será necessário não mais restringir-se a números abstratos e
homogêneos e estudar as dinâmicas regionais que não se explicam fora do território
nacional: o crescimento vegetativo da população, os fluxos de pessoas na busca de

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emprego, saúde, educação, informação e cultura, a imobilidade da população que pode
produzir e consumir num dado ponto do território, mesmo que ali não conte com os
instrumentos ou a propaganda mais modernos, as demandas educacionais e de saúde das
massas imóveis, a necessidade de garantir um mercado contíguo e suficiente para não
curvar-se inexoravelmente ao financiamento internacional que arroja os mais fracos à
velocidade de uma taxa de juros que o próprio país não comanda. É preciso, outrossim,
enfrentar os paradoxos da contemporaneidade como o aumento exponencial do
consumo mercantil e o crescimento incessante da pobreza estrutural. Que os pobres
consumam objetos do atual sistema técnico não significa que eles tenham satisfeito suas
demandas de bens e serviços de interesse comum como educação, saúde e previdência
(SILVEIRA, 2006a; SILVEIRA, 2007).
Se a manipulação brutal a que se referia Lukács, retomada por Agnes Heller
(1996), significa a negação da necessidade e da escassez, é preciso hoje ficarmos muito
atentos ao que esses pensadores denominaram manipulação refinada, a qual
reconhecendo as necessidades e a escassez, oferece instituições para projetos já
existentes e universais. Esta voz de alerta parece ganhar atualidade em tempos de
terceiro setor, enxugamento do Estado, responsabilidade social empresarial e outros
sistemas de ações.
O imperativo territorial do qual falávamos se consolida. Se a educação e a saúde
são geograficamente condicionadas, as características do território se refletem no modo
como a educação e a saúde são produzidas. A produção diferenciada e seletiva desses
bens vincula-se à forma como participam do uso do território. Que o mercado é seletivo
não é novidade, mas a seletividade do poder público é um dado relativamente novo,
indicando novos “pactos territoriais” funcionais (SANTOS, 1987). É preciso superar o
handicap da herança socioespacial, do território usado de forma excludente, para
assegurar o acesso aos bens de interesse comum à totalidade da população. Se o
território tal como foi usado impõe certos constrangimentos à política atual, também
abriga oportunidades para a realização das possibilidades históricas como as
proporcionadas pela técnica contemporânea. Talvez o caminho não seja a busca de
soluções financeiras e de direito formal para ampliar um sistema que foi criado para
manter fortes limites. Quiçá o caminho seja pensar sistemas socio-espaciais cuja
essência seja o crescimento permanente, a busca da real universalidade. Milton Santos
(2000) propõe construir uma “Federação lugarizada”, que se oponha à “Federação
globalizada” e, para isso, haveria que reconhecer áreas de identidade, legitimadas pelas

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próprias condições de existência. Tratar-se-ia de uma regionalização do cotidiano,
fundamento da emergência de um quarto nível político-territorial, para que os lugares já
não sejam um depósito de mais-valia, um mero recurso para um punhado de atores, mas
uma casa coletiva, um verdadeiro abrigo para todos os homens, empresas e instituições.
É a vida que, diante da descoberta dessa desordem, é chamada a produzir um sentido
para o lugar. Face à aderência ao discurso único por parte de boa parcela da política
pública, das empresas e da mídia e das respectivas formas de alienação, é preciso
encontrar um sentido para o cotidiano, para o acontecer no lugar. Quais as normas
pragmáticas globais que os homens juntos num lugar podem desobedecer e o que isso
significa? É preciso que todos cumpram as regras de competitividade e produtividade
ditadas pelos que comandam as variáveis determinantes (tecnociencia, informação,
finança)? Quais as normas nascidas na contigüidade? Como se dá o trabalho e a vida no
lugar? Como é pensado no lugar o País e o futuro? Quando o mundo é visto a partir do
lugar vive-se a escassez no seu sentido mais amplo: escassez do comando do nosso
trabalho, das promessas da globalização, do consumo. É o reino do acontecer solidário,
o cotidiano no período técnico-científico-informacional, que se realiza na
interdependência dos eventos. Isto supõe formular as idéias e suas etapas. No início, as
medidas compensatórias não poderão faltar para ultrapassar o handicap, mas o futuro
somente poderá ser enfrentado com um projeto nacional. Construir um Estado que possa
aglutinar sem matar a liberdade, que possa cuidar da cidadania, cooperando na produção
de um sentido local e nacional, que possa fortalecer as solidariedades sem impor
soluções domesticadas ou folclorizadas será uma das etapas de um projeto
transformador, pois uma nação de cidadãos não virá com mais velocidade e fluidez, mas
com uma vida mais lenta, ancorada na solidariedade orgânica que permita uma
planificação social e socializante. É preciso construir um sentido, que não poderá nunca
esquecer o Brasil no lugar, o Brasil e os seus lugares, a Nação Brasileira.

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