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Migrações Internacionais

e a pandemia de Covid-19

PROCESSOS MIGRATÓRIOS EM TEMPOS DE


PANDEMIA: ACENTUAÇÃO DA PUNIÇÃO E DO
CONTROLE SOCIAL

Fernanda Carolina de Araujo Ifanger


Pontifícia Universidade Católica de Campinas
João Paulo Ghiraldelli Dal Poggetto
Pontifícia Universidade Católica de Campinas

As sociedades parecem ter


sempre precisado do “outro”, de alguém que pudesse justificar a
superioridade do grupo dominante.
Essa relação é objeto de estudos da obra sociológica “Os
estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir
de uma pequena comunidade”184, a partir de um estudo realizado na
década de 1950, em uma pequena cidade ao sul da Inglaterra, de nome
fictício Winston Parva, dividida em três zonas distintas. Elias e
Scotson buscaram compreender as relações sociais e de
interdependência que se manifestavam no local. Enquanto na zona um
viviam as pessoas mais privilegiadas economicamente, nas zonas dois
e três residiam os operários das fábricas locais.
Contudo, a despeito da aparente semelhança existente entre
os residentes dessas duas últimas áreas da cidade, profundas
disparidades foram verificadas, especialmente em razão do fato de que
os habitantes da zona dois, território mais antigo de Winston Parva,
consideravam-se superiores aos demais, pelo simples fato de
habitarem o local há mais tempo, sem que existissem quaisquer
diferenças étnicas, nos níveis de desenvolvimento econômico ou

184ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia


das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Tradução de Vera
Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

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educacional, nem mesmo de atividade profissional desses sujeitos.


Ainda assim, os habitantes da zona dois, chamada por eles próprios de
“aldeia”, negavam-se a manter contato com os recém-chegados da
zona três, o “loteamento”, exatamente pelo fato de serem recém-
chegados, de serem outsiders na terra daqueles estabelecidos.
Diante desse contexto, os autores chamam a atenção para a
estigmatização grupal praticada em Winston Parva, por meio da qual
um grupo rotulava negativamente outro, cujo elemento fundamental
era a instabilidade do equilíbrio do poder entre agrupamentos sociais
distintos.
Evidencia-se, dessa forma, que “quando as pessoas aceitam
que existe um diferente, aquele que será vítima da violência do grupo
(do sacrifício, da justiça), e se une em torno disso, constrói o outro e o
nós, e nesse sentido, constrói o grupo, funda o grupo”185.
Nas sociedades atuais, entre tantos outros grupos, são
considerados o “outro”, os imigrantes, pessoas que, de acordo com
Bauman, não respeitam as barreiras traçadas nas cidades justamente
para afastá-las, demonstrando a “indecente tendência a ultrapassar as
fronteiras e aparecer de surpresa em locais para os quais não foram
convidados”. Ademais, os imigrantes “trazem consigo o horror de
guerras distantes, de fome, de escassez, e representam nosso pior
pesadelo: o pesadelo de que nós mesmos, em virtude das pressões
desse novo e misterioso equilíbrio econômico, possamos perder
nossos meios de sobrevivência e nossa posição social”186.
Para lidar com esse outro desconhecido e temido, cada vez
mais os países centrais, principalmente, têm se utilizado do
instrumental oriundo do direito penal, que consegue, com facilidade,
excluir, sob a justificativa de proteger. Assim, se identifica uma linha
de convergência entre migração e direito penal em que “o estrangeiro,
não raras vezes, é taxado de ameaça e confundido com terrorista”187.
A recente pandemia do coronavírus agravou ainda mais a
situação do migrante, afetado com novos obstáculos à sua
movimentação e, muitas vezes, sem acesso aos serviços de saúde.
No final de dezembro a China comunicou à Organização
Mundial de Saúde (OMS) a existência de um tipo de ‘pneumonia’ de

185 LATERMAN, Ilana. Violência e incivilidade na escola: nem vítimas, nem


culpados. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2000. p. 27.
186 BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Tradução de Eliana Aguiar.

Rio de Janeiro: Zahar, 2009


187 GALIB, Carolina Piccolotto. O outro como inimigo: a criminalização do migrante.

Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Metodista


de Piracicaba. Piracicaba. 117p. 2018. P. 88.

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causa desconhecida na cidade de Wuhan, de forma que nos três dias


conseguintes foram informados quarenta e quatro casos novos. Em 07
de janeiro a China já havia conseguido identificar que a doença era
causada por um novo tipo de coronavírus e em 12 de janeiro
compartilhou o sequenciamento genético do novo tipo viral188.
De acordo com o Ministério da Saúde o coronavírus
(COVID-19), denominado cientificamente de SARS-CoV-2, é uma
doença infectocontagiosa que clinicamente pode variar de quadros
assintomáticos a graves, cuja transmissão é realizada por meio do
contato com gotículas de saliva ou secreção nasal de uma pessoa
infectada ao tossir ou espirrar, havendo algumas condições clínicas189
que aumentam o risco de complicação, sem que exista, ainda, vacinas
ou tratamentos específicos190.
A propagação do vírus se deu muito rapidamente. O
primeiro caso fora da China ocorreu depois de quatorze dias do
primeiro registro da doença, na Tailândia (13 de janeiro), seguido
pelas notificações do Japão (15 de janeiro) e Coréia do Sul (20 de
janeiro), conforme Relatório de Situação 1 da ONU.
Ainda em janeiro, outros casos fora da China se espalharam
pelo mundo, atingindo 16 países. Em fevereiro, a doença ganhou nova
proporção, alastrando-se para 34 novos países ou regiões. Porém, em
março há grande disparo de casos, sendo relatados novos casos em
137 novos países ou regiões, ou seja, quatro vezes mais casos que o
mês anterior e oito vezes mais que o primeiro mês191.
Assim, em vista dessa rápida propagação e o potencial de
colapso dos sistemas de saúde em razão da quantidade de pessoas que
desenvolvem quadros agravados da doença, fez com que a OMS, em
11 de março, reconhecesse uma situação de pandemia192.
A gravidade da situação se verifica pela quantidade de casos
confirmados e número de óbitos em pouco tempo. Até o dia 13 de

188 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Relatório de situação 1, de 21 de


janeiro de 2020.
189 Pessoas com: idade superior aos sessenta anos; com cardiopatias graves ou

descompensadas (insuficiência cardíaca, infartados, revascularizados, portadores de


arritimias, hipertensão arterial sistêmica descompensada); pneumopatas graves ou
descompensados (dependentes de oxigênio, portadores de asma moderada/grave,
DPOC); imunodeprimidos, doentes renais crônicos em estágio avançado (graus 3, 4 e
5); diabéticos; e gestantes de alto risco.
190 BRASIL. Ministério da Saúde. Guia de vigilância epidemiológica: emergência de
Saúde Pública de importância nacional pela doença pelo coronavírus 2019. Brasília,
2020. P. 6-7.
191 Cf. Relatórios de Situação 3 a 12, 16, 26, 31, 33, 35 a 67 e 69 da ONU.
192 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Relatório de situação 51, de 11 de

março de 2020.

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junho foram infectados 7.656.165 e faleceram 426.599 pessoas no


mundo, segundo levantamento feito pela Universidade de Stanford193.
Em 14 de junho, o Brasil contava com 867.624 pessoas infectadas e
43.332 óbitos194.
Atuação institucional com os migrantes diante da pandemia: dos
discursos de ódio às políticas de vigilância, controle e punição
As histórias de outras epidemias e pandemias nos auxiliam a
termos uma maior compreensão sobre as ações tomadas pelos Estados
no momento atual.
Segundo Ventura, o primeiro ato ante uma epidemia é tentar
compreender aquilo que parece inexplicável, responsabilizando
alguém pelo incidente, com base em informações incompletas e que
formam um padrão no imaginário popular. Nesse sentido, a epidemia
de HIV/Aids nos anos de 1980 reviveu medos das epidemias da peste
e da sífilis, criando proteções repressivas atingindo populações
vulneráveis que se enquadravam em arquétipos estigmatizados pela
dominação política, social e econômica, como, por exemplo,
homossexuais e estrangeiros. Mesmo caso durante a crise do ebola,
onde o estrangeiro, especialmente africanos, foram considerados
riscos à saúde pública195.
Desde a epidemia de ebola a atuação internacional às crises
sanitárias se dão pelo paradigma da “segurança global de saúde”, que
representa o fortalecimento dos sistemas de vigilância e, quando
necessário, a contenção e a militarização, que justificam regimes
jurídicos de exceção, violadores da democracia, do Estado de Direito e
dos Direitos Humanos. Assim, medidas são tomadas para evitar a
propagação da doença, sem levar em consideração as circunstâncias
sociais que potencializam a sua origem, mutabilidade e propagação, o
que somente aprofunda as desigualdades entre os países196.
Nesse contexto, a situação dos migrantes fica ainda mais
delicada, pois a mistura de barreiras políticas, socioculturais,
econômicas e legais faz com que tenham acesso e conscientização
limitados quanto aos serviços de saúde e bem-estar, acrescentados ao

193 STANFORD UNIVERSITY. COVID-19 Updates.


194 BRASIL. Ministério da Saúde. Painel Coronavírus.
195 VENTURA, Deisy. Impacto das crises sanitárias internacionais sobre os direitos

dos migrantes. Revista Internacional de Direitos Humanos (SUR), v. 13, n. 23, p. 61-
75, 2016.
196 VENTURA, Deisy. Impacto das crises sanitárias internacionais sobre os direitos

dos migrantes. Revista Internacional de Direitos Humanos (SUR), v. 13, n. 23, p. 61-
75, 2016.

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medo de procurar tais serviços e sofrer deportação, barreiras


linguísticas e atitudes xenófobas ou discriminatórias.
Pesquisa realizada durante a epidemia de influenza A
(H5N1), concluiu que os migrantes geralmente não são incluídos em
estratégias e planos nacionais de combate à epidemia, já que dos vinte
e um países analisados de determinada região da Ásia que têm grande
fluxo migratório, somente três adotavam alguma medida de controle
de saúde nas fronteiras e tratamento adequado para quem não é
cidadão, mesmo que os migrantes sofressem grande exposição à
doença que era associada ao contato direto com aves infectadas, vivas
ou mortas, por se concentrarem na ocupação de serviços dos setores
de avicultura e similares. Concluiu-se, ainda, que os migrantes são
injustamente discriminados como vetores de doenças e, por isso,
sofrem restrições de locomoção197.
Durante a pandemia do coronavírus também parece ter
ficado evidente que dentre as propostas supostamente destinadas a
conter a doença, foram incluídas medidas de afastamento do
estrangeiro.
Em 10 de março de 2020 havia, no mínimo, 1.820 restrições
de movimentos de pessoas implementadas em virtude da pandemia
por coronavírus. Todavia, entre 11 de março a 20 de abril, tal número
aumentou para, no mínimo, 48.000restrições. Apenas um a cada cinco
países possui medidas específicas para salvaguardar os migrantes,
sendo que cerca de 55% não possui nenhuma medida com esse fim.
Todavia, 69% dos países oferecem assistência a seus nacionais que
estão no exterior em tempos de crise, desde que, na maioria dos casos,
haja consulados para prestar esse amparo198.
O Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas
(ONU), em 8 de maio, apelou para todos os líderes políticos, as
instituições de ensino, os veículos midiáticos e de redes sociais, a
sociedade civil e aos atores religiosos fazerem um esforço coletivo
para acabar com o discurso de ódio desencadeado pela pandemia, que
criou bodes expiatórios e disseminação do medo; aumentou os
discursos xenofóbicos; alastrou teorias e ataques antissemitas e
antimuçulmanos relacionados à doença; colocou migrantes e
refugiados na posição de ‘fonte do vírus’ com negação ao acesso
médico; expôs a ideia de descartabilidade de idosos; e transformou

197 WICKRAMAGE, Kolita. et. al. Where are the migrants in pandemic influenza
preparedness plans?. Health Hum. Rights, n. 20, v. 1, p. 251-258, jun 2018.
198 MIGRATION DATA PORTAL. Migration data relevant for the COVID-19

pandemic. [online], 9 jun. 2020.

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jornalistas, profissionais da área da saúde, pessoas que trabalham com


direitos humanitários e direitos humanos em alvos de ataques199.
Na União Europeia, imigrantes relataram ter recebido em
meados de março de 2020 água, mantimentos e combustível das
autoridades, mas sido impedidos de desembarcarem em razão da
pandemia do coronavírus. Isso ocorreu devido a Europa ter fechado
temporariamente as fronteiras para cidadãos que não pertencem ao
bloco europeu200, inclusive com alguns países, como, por exemplo,
Bélgica, França e Holanda tendo fechado os escritórios que
processavam pedidos de refúgio. Assim, refugiados e migrantes que já
estão na Europa, vivendo em centros de acolhimento superlotados,
encontram inúmeras dificuldades no acesso à saúde201.
Nos Estados Unidos da América, em 22 de abril, o
Presidente Donald Trump declarou que em razão das altas taxas de
desemprego relacionadas à pandemia do coronavírus, visando a
proteger os americanos da ameaça por competição pelos empregos
escassos que vão para os imigrantes, bem como acesso ao sistema de
saúde, declarou suspensa202 a entrada de pessoas que estejam fora dos
Estados Unidos a partir da data da proclamação e não possuem visto
de imigrante válido ou não possuem um documento válido que
comprove a condição de viagem oficial203.
Em que pese o abrandamento na entrada de imigrantes de
uma determinada categoria (profissionais de saúde), o Presidente dos
Estados Unidos anunciou que mesmo após a pandemia adotará de
forma permanente as medidas restritivas de controle de imigrantes,
incluindo recusa unilateral antes de uma audiência judicial e elevação

199 [Informação verbal] Apelo contra o discurso de ódio decorrente da pandemia por
COVID-19 realizado pela Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas,
António Manuel de Oliveira Guterres, em maio de 2020.
200
Excetuando-se a entrada de imigrantes a partir de pedido de refúgio aceito, desde
que realizados vastos exames médicos.
201 STRAUSS, Marina. Coronavírus reforça tendência anti-imigração na EU.

Deutsche Welle (DW), [online], 29 mar. 2020.


202 Excepcionalmente, poderão entrar nos Estados Unidos residentes permanentes

legais; imigrantes, acompanhados de seu cônjuge e/ou filhos solteiros menores de 21


anos de idade, que requeiram o visto como profissional da saúde, para realizar
pesquisas médicas ou destinadas ao combate do COVID-19 ou para realizar trabalho
essencial que combata, recupere ou alivie os efeitos do surto de COVID-19;
estrangeiros que sejam cônjuges de um cidadão dos Estados Unidos; estrangeiros
participantes do “EB-5 Immigrant Investor Program”; estrangeiros menores de 21
anos de idade que sejam filhos de cidadãos americanos; estrangeiros que atendam ao
interesse público ou interesse nacional; qualquer membro das Forças Armadas e seus
cônjuges e filhos; estrangeiros de acordo com o ‘Visto Especial de Imigrantes’.
203 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Proclamação.

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e a pandemia de Covid-19

do parâmetro avaliativo de pedido de asilo por perseguição estatal204.


Além disso, no fim de maio, discursou sobre o fim da relação entre o
país com a Organização Mundial da Saúde, que, em sua visão, seguia
direções erradas apontadas pela China, que era o país responsável pelo
surgimento e não contenção do novo coronavírus (COVID-19)205.
As acusações do Presidente Donald Trump colaboram para
aprofundar um movimento de racismo, xenofobia e hostilidade contra
chineses e cidadãos descendentes do leste da Ásia, que já havia se
manifestado durante a epidemia de SARS em 2003, em que os
chineses foram alvo de intolerância e agressividade206. Tais exposições
são bastante induzidas por medo e notícias falsas sobre a doença e os
hábitos de higiene e alimentação dos chineses, que teriam feito o vírus
‘surgir’. Em países da Europa e no Brasil há relatos de racismo e
xenofobia, inclusive surgindo nas redes sociais francesa a “hashtag
#JeNeSuisPasUnVirus” (eu não sou um vírus) pelas comunidades
asiáticas207.
Os migrantes em situação irregular foram drasticamente
afetados, por perderem o emprego e renda ou por estarem diretamente
expostos ao continuarem trabalhando (faxineiros, auxiliares de
enfermagem, motoristas, entregadores de delivery e funcionários de
supermercados). Nos Estados Unidos, essas pessoas, em sua maioria
provenientes da América Latina, estão impedidas de receberem seguro
desemprego ou auxílio financeiro do governo, vivendo aglomeradas
em casas com muitas pessoas para poderem pagar o aluguel e todas
tendo pouco ou nenhum acesso à saúde. Os municípios de Nova York,
Massachussets e Flórida que concentram maior população latina têm
20 a 33% mais chance de adoecimento e óbito em relação ao número
global do respectivo Estado208.
No final de maio, a América do Sul representava 87% dos
casos de COVID-19 da América Latina, tendo por consequência a
adoção de medidas restritivas de mobilidade, como, por exemplo,

204 KANNO-YOUNGS, Zolan; HÁBERMAN, Maggie. Trump administration moves


to solidify restrictive immigration policies. The New York Times, [online], 12 jun.
2020.
205 ALVIM, Mariana; SANCHES, Mariana. O dito e o não dito no anuncia de Trump

de ‘rompimento’ entre EUA e OMS. BBC News Brasil, [online], 29 mai. 2020.
206 CECCO, Leyland. Canada’s Chinese community faces racist abuse in wake of

coronavirus. The Guardian, [online], 28 jan. 2020.


207 LIMA, Juliana Domingos de. Como o racismo aflora diante do medo do

coronavírus. Nexo Jornal, [online], 3 fev. 2020.


208 SANCHES, Mariana. Coronavírus: nos EUA, cidades com migrantes brasileiros e

hispânicos têm 30% mais mortes por covid-19. BBC News Brasil, [online], 19 abr.
2020.

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e a pandemia de Covid-19

toques de recolher, fechamento de empresas e fronteiras, bloqueios.


Todavia, isso impactou diretamente nos empregos oferecidos aos
migrantes, que perdem, muitas vezes, o status migratório regular, mas
ficam sem a possibilidade de retornar ao país de origem209.
Entre os países da América do Sul, o Brasil tem o maior
número de casos da doença. O atual Presidente da República, Jair
Bolsonaro, indicou em janeiro de 2020, durante reunião em Davos,
alinhamento a grupos de extrema-direita da União Europeia que são
anti-imigração, afirmando que cooperaria com líderes que exigem
maior controle para a imigração nas negociações na ONU210.
Após o decreto de pandemia, o Congresso Nacional editou a
Lei Federal nº 13.979/2020 que viabiliza aos administradores públicos
adotem as medidas que entenderem cabíveis para o controle da
doença, dentre as quais se incluem a restrição excepcional e
temporária de entrada e saída do País211.
A Portaria Interministerial nº 152, de 27 de março de 2020,
regulamentando a referida Lei Federal, restringiu212 temporária e
excepcionalmente a entrada de estrangeiros no País pelo prazo de
trinta dias por via aérea e terrestre213.
As Portarias Interministeriais nº 203214 e 204215 renovaram as
restrições às entradas de estrangeiros por via aérea e terrestre,

209 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL PARA AS MIGRAÇÕES. Casos de


COVID-19 na América do Sul representam 87% do total da América Latina: OIM
pede recursos.
210 CHADE, Jamil. Bolsonaro se alinha a grupo anti-imigração da União Europeia. O

Estado de São Paulo, [online], 24 jan. 2020.


211 BRASIL. Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Dispõe sobre as medidas para

enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional


decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019.
212 As exceções para entrar no território nacional são para brasileiro, nato ou

naturalizado; imigrante com residência de caráter definitivo de prazo determinado ou


indeterminado; profissional estrangeiro identificado e em missão de organismo
internacional; funcionário estrangeiro credenciado no Governo brasileiro; estrangeiro
que tenha cônjuge, companheiro, filho, pai ou curador brasileiro, que tenha o ingresso
autorizado pelo Governo para atender ao interesse público ou que seja portador do
Registro Nacional Migratório; estrangeiro que realiza transporte de cargas;
passageiros em trânsito internacional que não saiam da área do aeroporto; e, por fim,
passageiros em voo que realiza pouso técnico para reabastecer sem o desembarque de
pessoas
213 BRASIL. Portaria Interministerial nº 152, de 27 de março de 2020. Dispõe sobre a

restrição excepcional e temporária de entrada no País de estrangeiros, conforme


recomendação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA.
214 BRASIL. Portaria Interministerial nº 203, de 28 de abril de 2020. Dispõe sobre a

restrição excepcional e temporária de entrada no País de estrangeiros, por via aérea,


conforme recomendação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - Anvisa.

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respectivamente, por mais trina dias cada uma. A Portaria


Interministerial nº 255, de 22 de maio de 2020, além de renovar os
prazos das citadas limitações, incluiu a proibição de entrada via
aquaviária216.
Considerações Finais
Com a pandemia do coronavírus o medo do outro, que pode
carregar a doença consigo e contaminar a todos que com ele tiveram
contato, se evidenciou. E a tentativa de construir muros e impedir a
aproximação de qualquer um que possa representar risco se avultou.
E, nesse contexto, os migrantes seguem na tentativa de
encontrar um lugar em que possam viver com dignidade, mas veem
cada vez mais obstáculos sendo impostos pelos países, os impedindo
de recomeçar suas histórias e, por vezes, até de subsistirem.
O Escritório de Drogas e Crimes das Nações Unidas
(UNODC) realizou uma pesquisa que indica que, a curto prazo, as
restrições de movimentos a partir do alto controle e/ou fechamento de
fronteiras terrestres, marítimas e aéreas irão reduzir o movimento
migratório. Todavia, a médio e longo prazo, podem resultar no
aumento da migração que, afetada pela recuperação econômica da
pandemia, não possibilitará regularidade aos migrantes e, portanto,
aumentará o tráfico de pessoas217.
Isso porque os conflitos, violações à direitos humanos e
condições de vida insalubres e desumanas não cessaram durante a
crise de saúde, de forma que a análise de pessoas que chegam por mar
e terra à Espanha, Grécia e Itália, comparando-se os anos de 2019 e
2020, sugere que as restrições dos Estados não estão impedindo as
viagens e movimentos de migrantes. O desespero e a necessidade
fazem com que os migrantes utilizem serviços de contrabandistas para
atravessar fronteiras, que aumentam os valores cobrados agravando
sua vulnerabilidade econômico-financeira. Além disso, os caminhos e
circunstâncias expõe os migrantes a um alto risco de vida e
215 BRASIL. Portaria Interministerial nº 204, de 29 de abril de 2020. Dispõe sobre a
restrição excepcional e temporária de entrada no País de estrangeiros, de qualquer
nacionalidade, por via terrestre, conforme recomendação da Agência Nacional de
Vigilância Sanitária – Anvisa.
216 BRASIL. Portaria Interministerial nº 255, de 22 de maio de 2020. Dispõe sobre a

restrição excepcional e temporária de entrada no País de estrangeiros, de qualquer


nacionalidade, conforme recomendação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária
– Anvisa.
217 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Escritório de Drogas e Crimes. How

COVID-19 restrictions and the economic consequences are likely to impact migrant
smuggling and cross-border trafficking in persons to Europe and North America.

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e a pandemia de Covid-19

integridade física, de abuso e exploração, como, por exemplo,


privação de liberdade por extorsão e violência 218..
Destaca-se, também, que a pandemia causou uma
desaceleração econômica que resultará em uma recessão global com
altos níveis de desemprego, fazendo com que, na busca por postos de
trabalho e melhores condições de vida, os migrantes sejam obrigados
a se deslocar novamente.
Segundo Anyar de Castro, “Os homens são como pássaros,
quando não tem comida vão a outro lugar buscá-la”219. Assim, a busca
por melhores condições de vida e pela sobrevivência são intrínsecas à
natureza humana.
Nesse sentido, possível afirmar que nenhuma governança
proibicionista de movimentos migratórios tem o poder de negar essa
realidade. A construção de uma sociedade justa perpassa, justamente,
por uma sociedade solidária, que ao invés de adotar políticas de
exclusão do outro, por meio de discursos de ódio e normas rígidas de
vigilância, controle e punição, adotassem normas e posturas de
reconhecimento do outro e inclusão enquanto pessoa.

Referências
ALVIM, Mariana; SANCHES, Mariana. O dito e o não dito no anuncia de
Trump de ‘rompimento’ entre EUA e OMS. BBC News Brasil, [online], 29
mai. 2020. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-
52857170>. Acesso em: 13 jun. 2020.
ANIYAR DE CASTRO, Lolita. Fronteiras e pássaros: apontamentos para
uma visão das migrações tradicionais, e uma perspectiva das migrações no
século da globalização. Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade, Rio
de Janeiro, v. 2, n. 4, p. 85-98, 1997.
BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Tradução de Eliana
Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2009
BRASIL. Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Dispõe sobre as medidas
para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância
internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-
2022/2020/lei/L13979.htm>. Acesso em: 10 jun. 2020.

218 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Escritório de Drogas e Crimes. How


COVID-19 restrictions and the economic consequences are likely to impact migrant
smuggling and cross-border trafficking in persons to Europe and North America.
219 ANIYAR DE CASTRO, Lolita. Fronteiras e pássaros: apontamentos para uma

visão das migrações tradicionais, e uma perspectiva das migrações no século da


globalização. Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade, Rio de Janeiro, v. 2, n.
4, p. 85-98, 1997. p. 97.

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Migrações Internacionais
e a pandemia de Covid-19

______. Ministério da Saúde. Guia de vigilância epidemiológica: emergência


de Saúde Pública de importância nacional pela doença pelo coronavírus 2019.
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______. Portaria Interministerial nº 203, de 28 de abril de 2020. Dispõe sobre
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a restrição excepcional e temporária de entrada no País de estrangeiros, de
qualquer nacionalidade, por via terrestre, conforme recomendação da
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<http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-204-de-29-de-abril-de-2020-
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