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Ao examinar as histórias da infância de grande número de pessoas neuróticas, verifiquei que o denominador

comum a todas elas é um ambiente onde aparecem combinadas de várias maneiras, as características abaixo.

O mal fundamental é sempre a falta de autêntico calor humano e afeição. Uma criança pode aguentar um
bocado do que é considerado traumático – desmame súbito, surras ocasionais, experiências sexuais inadequadas –
desde que, intimamente, se sinta desejada e amada. Desnecessário dizer que a criança tem aguda percepção de quando
o amor é genuíno, não podendo ser ludibriada por fingimento(s). A razão principal para a criança não receber suficiente
carinho e afeição é a incapacidade dos pais de lhe darem isso, devido às suas próprias neuroses. Segundo minha
experiência essa essencial ausência de carinho estará disfarçada, camuflada, e os pais afirmarão cuidar e ter em vista “o
interesse da criança”. Teorias educacionais, supersolicitude ou atitude de “renúncia” de uma mãe ideal são fatores que
lançam as sementes de sentimentos futuros de imensa insegurança.

Diversos atos e atitudes dos pais despertarão hostilidade, como preferência por outros filhos, repreensões
injustas, mudanças bruscas de indulgência excessiva para rejeição desdenhosa, promessas não cumpridas, e também,
face às necessidades da criança, atitudes que variam desde desconsideração temporária, até interferência constante em
desejos justos e legítimos (da criança), perturbar, incomodar e sabotar, inviabilizando, amigos e amizades, ridicularizar
tentativas e iniciativas artísticas, esportivas, manuais, etc. constituindo tudo isso, uma atitude dos pais, que, ainda que
inconsciente, visa desintegrar a vontade do filho.

Crianças, assim como adultos, podem aceitar inúmeras privações justas ou necessárias. Uma criança não se
incomoda de ser treinada em hábitos de limpeza, se isto não é levado a extremo, nem a coagem com crueldade – sutil
ou flagrante. A criança também não se incomodará com um castigo ocasional, desde que saiba que é amada e o castigo
seja proporcional, justo, e não apenas para machuca-la ou humilhá-la. O que importa é o sentimento/ânimo com que
são impostas as frustrações/privações, e não estas.

Pais neuróticos que criam o ambiente a que referimos, em regra estão descontentes com sua vida, não tem
relações afetivas e/ou sexuais satisfatórias estando propensos a fazerem dos filhos o objeto único de seu... “amor”.
Valem-se dos filhos como instrumento(s) de satisfação de sua necessidade de afeto.

Acostumamo-nos a acreditar que oposição hostil, hostilidade à família, ou algum de seus membros, é ruim para
o desenvolvimento da criança. Será desastrosa se a criança estiver lidando, lutando contra as ações, a trama, de pais
neuróticos. Havendo razões, motivos para oposição, para hostilidade, o perigo para a estruturação do caráter da criança
estará não em sentir/expressar suas reações, e sim, em reprimi-las. Diversos perigos derivarão da repressão de suas
reações. Um deles é a criança assumir toda a culpa e sentir-se indigna de ser amada, sendo que o perigo que nos
interessa é que a hostilidade reprimida pode criar ansiedade iniciando o vicioso círculo da neurose.

Várias serão as razões - variando em combinação e grau – para que uma criança criada em tal ambiente reprima
sua hostilidade: 1- incapacidade; 2 - medo; 3 - amor; 4 - ou sentimentos de culpa.

1 - A incapacidade da criança é, muitas vezes, entendida apenas pelo ângulo biológico, como um fato biológico.
Embora a criança dependa durante longos anos do ambiente para satisfação de suas necessidades (por ter menor vigor
físico e experiência que os adultos) tem sido dada exagerada importância ao aspecto biológico. Após os dois ou três
primeiros anos de vida há uma mudança da dependência biológica para um gênero de dependência que abrange a vida
mental, intelectual e espiritual da criança. Isso continua até o princípio da vida adulta, quando toma sua vida em suas
próprias mãos.

O grau em que os filhos dependem dos pais terá grande diferença individual, sendo resultado do que os pais
procuraram conseguir na educação dos filhos: tornar o filho forte, corajoso, independente, apto a lidar com toda sorte
de situações, ou se a tendência principal é fazê-lo obediente, conservá-lo ignorante a respeito das realidades da vida,
“abrigando-o” dentro de um casulo, em suma, infantilizá-lo até aos vinte anos de idade, ou mesmo mais tarde. Em
crianças que crescem em condições adversas esta incapacidade é reforçada intimidando-as, paparicando-as ou
conservando-as em estado de dependência emocional. Quanto mais incapacitada, inerte, fizermos a criança sentir-se
tanto menos ela se atreverá a sentir ou demonstrar antagonismo(s) – e tanto mais estes serão adiados.
Nessa situação o sentimento latente (ou “lema”) será: tenho de reprimir minha hostilidade porque preciso de
você.

2 – O medo pode ser despertado, diretamente, por meio de ameaças, proibições e punições e por explosões de
cólera ou cenas violentas testemunhadas pela criança; pode também ser provocado por intimidação indireta como
impressionar a criança com “os grandes perigos da vida” – germes, tráfego, estranhos, crianças malcriadas, trepar em
árvores, etc. Quanto mais apreensiva se sente, tanto menos a criança ousará sentir ou mostrar hostilidades. Aqui o lema
é: tenho de reprimir minha hostilidade porque tenho medo de você.

3 – O amor pode ser outra razão para se reprimir a hostilidade. Quando a afeição legítima está ausente, muitas
vezes é exagerado, verbalmente, o quanto os pais gostam do filho e de como “se sacrificariam por ele até a última gota
de sangue”. A criança, já intimidada por outros modos e formas, pode apegar-se a essa “imitação de amor” e recear
mostrar-se rebelde para não perder a recompensa por se dócil, submissa, para não perder o “amor”. Nessas situações o
“lema” é: tenho de reprimir a hostilidade por medo de perder o seu amor.

4 – A criança reprime sua hostilidade contra os pais porque teme que qualquer manifestação dela irá prejudicar
suas relações com eles. Tem medo, puro e simples, de que aqueles poderosos gigantes a deserdarão, retirarão sua
confortadora benevolência ou se voltarão contra ela. Em nossa cultura, além disso, faz-se a criança sentir-se culpada por
quaisquer sentimentos de hostilidade ou antagonismo; faz-se com que se sinta indigna, desprezível ante seus próprios
olhos, se sentir ou manifestar ressentimentos contra os pais ou violar as regras deles. Essas duas razões para
sentimentos de culpa estão estreitamente relacionadas. Quanto mais culpada fizermos a criança sentir-se, tanto menos
ela se atreverá a sentir rancor ou levantar acusações contra seus pais.

Na esfera sexual, sentimentos de culpa também são bastante estimulados. Quer as proibições sejam expressas
através de um silêncio significativo ou de ameaças francas e castigos, a criança vem a perceber que não só são proibidas
a curiosidade e as atividades sexuais, como também que será desprezível e sórdida se por elas se interessar ou a elas se
entregar. Fantasias e desejos sexuais com relação a um dos pais, embora permanecendo não expressos como resultado
da restrição face à sexualidade em geral, propenderão a fazer a criança sentir-se (mais) culpada. Nessa situação o
“lema” é: tenho de reprimir a hostilidade porque eu seria uma criança má se me sentisse hostil.

Quaisquer dos fatores citados, em várias combinações, podem levar a criança a recalcar a sua hostilidade e,
finalmente, gerar ansiedade.

A ansiedade infantil é fator necessário, mas não condição absoluta para o desenvolvimento de uma neurose.
Condições favoráveis, como uma mudança de ambiente - e das condições adversas - logo no começo da vida, influências
neutralizantes de qualquer espécie, podem deter um explícito desenvolvimento neurótico. Se, contudo, como acontece
muitas vezes, as condições de vida não melhorarem reduzindo a ansiedade, esta persistirá, e aumentará, pondo em
funcionamento os processos que constituem uma neurose.

Faz grande diferença saber se a reação de hostilidade e ansiedade restringe-se ao meio que levou a criança a
adotá-la ou se evolui para uma atitude generalizada de hostilidade e ansiedade para com (todas) as pessoas.

Se a criança tem a felicidade de ter uma avó carinhosa, uma professora compreensiva, alguns bons amigos, sua
experiência com essas pessoas a impedirá de só esperar o mal de toda gente. Porém, quanto mais difíceis forem as
experiências da criança no seio de sua família, tanto mais ela propenderá a desenvolver não só uma reação de ódio para
com os pais e outras crianças, mas também uma atitude de desconfiança e desdém com relação a todos. Quanto mais a
criança for isolada e obstada, bloqueada, sabotada, em suas experiências próprias, tanto mais será incentivado esse
desenvolvimento. E, finalmente, quanto mais a criança disfarçar, reprimir seu rancor contra a família, mais ela projetará
sua ansiedade sobre o mundo exterior e assim convencer-se-á de que o mundo, em geral, é perigoso e assustador.

A criança que haja crescido no tipo de ambiente acima descrito não se atreverá, em seus contatos com outras
pessoas, a ser ativa e pugnaz da mesma forma que elas o são. Terá perdido a bem-aventurada certeza de ser um ser
humano válido e de ser querida, e tomará a brincadeira mais inofensiva como uma rejeição cruel. Também será menos
capaz de se defender.
A condição alimentada pelos fatores a que me referi – ou fatores semelhantes – é um sentimento
insidiosamente crescente e difuso de estar-se isolado e indefeso num mundo hostil, e as reações agudas a situações e
estímulos cristalizam-se em uma atitude de caráter. Essa atitude é o solo fértil em que uma neurose poderá brotar a
qualquer momento. Por causa do papel fundamental desempenhado por essa atitude nas neuroses, dei-lhe uma
denominação especial: ansiedade básica. Ela está inevitavelmente entrelaçada com uma hostilidade original
(hostilidade básica).

Apesar da enorme gama de formas de manifestação da ansiedade – e das infinitas formas de proteção contra
ela, que variam de indivíduo para indivíduo –, a ansiedade básica é mais ou menos a mesma, variando apenas em
extensão e intensidade. Ela pode ser descrita, grosso modo, como uma sensação de se ser pequeno, indefeso,
abandonado, ameaçado num mundo disposto a abusar, ludibriar, atacar, humilhar, atraiçoar, invejar. Uma paciente
minha exprimiu essa sensação num desenho que fez, espontaneamente, no qual aparecia sentada no meio de uma
cena, como um bebê minúsculo, nu e inerte, rodeado por toda espécie de monstros ameaçadores, humanos e animais,
prontos para atacarem-na.

Em psicose(s) é comum encontrar um grau elevado de percepção – consciência - duma ansiedade assim. Em
pacientes paranoicos essa ansiedade está “ligada” a uma ou algumas pessoas definidas; em pacientes esquizofrênicos
há uma aguda percepção de hostilidade potencial no mundo que os rodeia, tão intensa que eles se mostram inclinados
a considerar como potencial hostilidade até uma delicadeza recebida.

Nas neuroses, todavia, raramente há a percepção da existência da ansiedade básica ou da hostilidade básica –
ou pelo menos do peso e valor que têm na vida total do indivíduo. Uma paciente minha que viu-se em sonho como um
ratinho que tinha de se abrigar num buraco para não ser pisado (dando uma imagem absolutamente verdadeira de
como era e agia em sua vida) não tinha a menor ideia de que realmente todos a assustavam e declarou-me que “não
sabia o que era ansiedade”.

Uma desconfiança de todos pode estar camuflada por uma convicção de que as pessoas em geral são bastante
agradáveis, coexistindo com “boas relações” maquinais com os outros; um desprezo profundo por todos pode estar
escondido por uma facilidade em admirar os demais.

Cumpre-nos agora esclarecer uma questão: não será a atitude de hostilidade/ansiedade básica com relação às
pessoas – descrito aqui como um componente essencial das neuroses –, uma atitude normal, que temos todos, ainda
que secreta, discretamente, conquanto em menor grau? Ao examinarmos esta questão é necessário compararmos duas
posições.

A ansiedade básica tem, realmente, um “aparentado”, um similar, que a filosofia e religião alemã – e seu
vocabulário – denominaram de Angst der Kreatur. O que este termo exprime é que, de fato, todos somos indefesos
perante forças mais poderosas que nós mesmos, como a morte, enfermidade, velhice, catástrofes da natureza,
acontecimentos políticos e acidentes. A primeira vez que percebemos isso é na debilidade da infância, permanecendo
essa noção conosco a vida inteira. Essa ansiedade da Kreatur tem em comum com a ansiedade básica o elemento da
vulnerabilidade, da desproteção diante das grandes forças. Mas não sugere hostilidade por parte de tais forças.

Poderemos dizer, então, o seguinte: a experiência levará uma pessoa em nossa cultura a tornar-se retraída com
a pessoas à medida que vai atingindo a maturidade e a ficar mais cautelosa ao depositar confiança nos outros, a
familiarizar-se com o fato de que muitas vezes os atos das pessoas não são ditados pela lealdade, mas pela covardia e
oportunismo. Se ela for honesta, incluir-se-á nessa regra; se não, verá isso mais claramente ainda nos outros.
Resumindo, ela adquire uma atitude que é decididamente afim, próxima, da ansiedade básica. Há diferenças, todavia: a
pessoa amadurecida e sadia não se sente incapaz diante desses “defeitos” humanos e não há nela nada do
indiscernimento, da desorientação, da atitude neurótica básica. Ela preserva a capacidade de dar a algumas pessoas
bastante cordialidade e confiança legítima. As diferenças, talvez devam ser explicadas pelo fato de que a pessoa sadia
vivenciou grande parte de suas experiências adversas numa idade em que pode absorvê-las, superá-las, integrá-las,
enquanto que a pessoa neurótica as teve num estágio em que não pode, não conseguiu fazer o mesmo.
A ansiedade básica tem repercussões específicas, efeitos precisos na atitude da pessoa para consigo mesma e
para com os outros. Significa isolamento emocional, tanto mais difícil de suportar porque coincide com um sentimento
de debilidade intrínseca do eu. Significa um abalo nas bases da confiança própria. Leva em si a semente, um núcleo de
conflito potencial entre o desejo de confiar nos outros e a impossibilidade de fazê-lo por causa da vívida desconfiança e
hostilidade sentidas com relação a eles.

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