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Cultura, cosmovisão

e contextualização 54
Charles H. Kraft

U ma p,ergunta-chav para o cr· tãos--qu trabalham num con­


texto transcultural é: "°-11al é a isã <l cultura para Deus? A
culturajudaica.niada por Deus d ve se-r, portant , im - ta a todos
os que o seguem,ou existe algu ma indicaçã a crituras d que
Deus tem uma postura diferente�". Creio que temos noss.a resposta
em lCoríntio .19-22, quando aulo articula seu método (e de
Deus) com relação à diversidade cultural. Paulo diz:" r cedi,para
com os judeus,como judeu,a fim de ganha os judeus--[...] Aos sem
lei, como se eu mesmo o fosse ... para ganhar os que ,á:vem.fora
do regime da l@i". Seu método, entao, é: "Fiz-me tudo para com
todos, com o fim de, por todos os odos, salva lguns".
Os cristãos primitivos eram judeus. Era natural que acreditassem
que as formas culturais com que lhes apresentaram o evangelho
fossem as únicas corretas. Por isso,criam que todos os convertidos
a Cristo deviam adotar a cultura judaica. Deus usou o apóstolo
Paulo, sendo ele próprio judeu, para ensinar àquela geração - e
à nossa - um método diferente. No texto citado, ele articula o
método de Deus. Em Atos 15.2, encontramos Paulo discutindo

••••••
intensamente contra a posição da Igreja primitiva com relação ao
direito dos gentios de seguirem a Jesus no contexto sociocultural
em que estavam inseridos. O próprio Deus havia mostrado, pri­
CHARLES H. KRAFT é professor
de antropologia e comunicação meiramente a Pedro (At 10) e depois a Paulo e a Barnabé, que essa
intercultural na School of Intercultural era a maneira certa, derramando o Espírito Santo sobre gentios
Studies do Fuller Theological Seminary que não haviam se convertido à cultura judaica (At 13 e 14).
desde 1969. Com sua esposa,
Todavia, a Igreja costuma esquecer a lição de Atos 15. Temos
Marguerite, foi missionário na Nigéria.
Suas aulas e seus escritos versam seguidamente retomado a pressuposição de que tornar-se cristão
sobre antropologia, cosmovisão, significa adotar nossa cultura. Qgando a Igreja exigiu que, após
contextualização, comunicação a era do Novo estamento, todos adotassem a cultura romana,
transcultural, cura interior e batalha
Deus incumbiu Lutero de provar que pessoas que falavam alemão
espiritual. Dentre seus numerosos
livros, podemos destacar Christianity e adoravam à moda alemã podiam ser aceitas pelo Senhor. Mais
in Culture [Cristianismo na cultural, tarde, o anglicanismo surgiu para mostrar que Deus podia usar
Anthropology for Christian Witness a língua inglesa e seus costumes, e o wesleyanismo surgiu para
[Antropologia para testemunho
permitir que as classes baixas da Inglaterra soubessem que Deus
cristão) e Christianity With Power e
Defeating Dark Angels [Cristianismo
as aceitava, com sua cultura. Assim tem sido na história cristã, e
com poder e vitória sobre os anjos sempre há questões culturais importantes no desenvolvimento de
das trevas). cada nova denominação.
.....
Kraft
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In felizmente, o problema p ersiste. Os comu- Pª dronizado, ma esse comportament o padro-


.
nicadores do evangelho co ntin uam impo ndo sua ntzado ou estruturado, embora impressionante,
cultura e sua denominação aos novos convertidos. é a m e nor parte <la ultura. Na profondidade,
[Portanto, tentamos aplicar a missões co nceitos -
estao as pr ssuposiçõe que hamamos "co mo-
ª
antr opológicos , p ara proteger aq ueles quem visão", com base na qual as pessoas gov ernam
o de for çar a ser como nós.] Se
tem os a incl inaçã seus co mportam ntos no nível da uperfície.
usarmos O méto dO bíb
1 li· co, devemos nos adaptar Qyando algo a feta a supe r fície de uma cul-
e adequarª apresentação da mensagem de Deus à tu ra, esse nív el pode ser a lterado. A nature-
culnira do povo que a receb e. Não devemos re- za e a extensão dessa mudança, contudo, serão
presentarª Deus de forma incorreta, como alguns infl uenciadas pela estruturação da cosmovisão
cristãos judeus primitivos fizeram (At 15.1), exi- de nív el profund o dentro da cultura.
gindo que os convertido s aderissem ao r ituais A c ultura (incl uindo a cosmovisão) é uma
j udaicos p ara s erem aceitos por Deus. questão de estr utura e padrõ es. A cultura não
faz nada. A cultura é com o o roteiro seguido
Cultura e cosmovisão definidas pelo ator. O roteiro contém diretrizes que ser­
O termo "cultura'' é o rótulo que os anttopólogos vem para orientar seu trabalho, mas o ator, por
atribuem aos costumes estruturad os e pr essu­ sua vez, pode modificar o roteiro, se perceber
posiçõ es d e cos m ovis ão qu e os p ov os utiliza que alguma coisa foi esquecida ou alterada.
para governar sua vida. Cultura (incluindo a
cosmovisão) é o modo d e vida de um povo, seu Cultura nível de superfície
planejam ento d e vida, s eu m odo de lida com (Comportamento padronizado)

o ambiente biológico, fís ico e social. Consist e


em pressup osiçõ es apreendidas e padronizadas
(cosmovisão), em conceit os e comp ortamentos Cultura nível profundo
e na arte r esultant e (cultur a mat erial). (Pressuposições da cosmovisão)

A cosmovisão, o nív el profundo da cultura,


é o conjunto culturalmente estruturad o de pres­ Há vários níveis d e cultura (incluindo, é
suposiçõ es (inclu indo valores e compromissos/ claro, a co smo visão). <l!ianto mais "alto" o
alianças) que s erve como base para que um povo nível, mais diversidade está incluída n ele. Por
perceba e respo nda à realidad e. A cosmovisão e x emplo, pod e mo s falar de cultura n o nível

não está separada da cultura. Ela está incluídcrna multinacional, como "cultura ocidental" (ou
cultura como o nível mais pro fundo é:le pressu­ co smovisão), ou "cultura asiática'' ou "cultura
posiçõ es nas quais um pov o base ia sua vida. africana". Essas entidades culturais a bran­
A cultura p ode ser comparada a um rio, com gem um grande númer o d e culturas nacio­
um nív el de superfície e um nível pro fundo. nais distintas. Por exemplo, d entro da cultura
A sup erfície é visível. A maior parte d o rio, ocidental t emos as v ariedades alemã, francesa,
contudo, está abaixo da superfície e é invisív el. italiana, britânica e americana. Dentro da cul­
O!ialquer coisa que acont eça na sup erfície do tura asiática, e xistem as variedades chinesa,
rio, porém, será af etada pelo fenômeno de nível japonesa e coreana. Essas culturas nacionais,
profundo, como a correnteza, a limpeza ou su­ p ortanto, p odem conter muitas subculturas. Na
jeira do rio, outros objetos, e assim por diant e. O América, por exemplo, temos os american os
que acontece na sup erfície é tanto uma resposta hispânico s, os american os índio s, os ameri­
ao fenômeno externo quanto uma manifestação cano s coreano s, e assim p or diante. Dentro
das c aract erísticas do nível pro fundo do rio. dessas subculturas, p o demo s falar ainda d e
Assim é a cultura. O que v emos na superfí­ culturas comunitárias, culturasfamiliares e até
cie de uma cultura é o comportamento humano cultura individual.
394 Cultura, cosmovisã o e contextualização

Além disso, o termo "cultura" pode designar É importante que testemunhas transculturais
tipos de estratégias (ou mecanismos) usados por reconheçam tanto a possibilidade de mudança
membros de muitas sociedades. Assim, podemos quanto o lugar e o poder do hábito.
falar de subgrupos como cultura (ou cosmovisão) A distinção que estamos fazendo está incor­
de pob1·eza, cultura dos surdos, cultura de jovens, porada no contraste entre as palavras "cultura"
cultura de operários, cultura de motoristas de táxis e "sociedade". A cultura refere-se à estrutura·,
e, até mesmo, cultura de mulheres. Identificar as a sociedade refere-se ao povo em si. Qyando
pessoas dessa forma é muito útil para o estabe­ sentimos alguma pressão para nos conformar,
lecimento de estratégias evangelísticas. é a pressão do povo (pressão social), não a do
padrão cultural (o roteiro).
Povo e cultura O quadro povo/cultura resume a distinção
No teatro, reconhecemos a diferença entre os entre o comportamento do povo e a estrutura­
atores e o roteiro, e o mesmo ocorre com a cul­ ção cultural desse comportamento.
tura. Especialistas e não-especialistas costumam
s: referir à cultura como se fosse uma pessoa. Culturas e cosmovisões devem
E comum ouvirmos frases do tipo: "A cultura ser respeitadas
delesfaz com que ajam assim"; ou: ''A cosmovi­ A estruturação cultura/cosmovisão funciona
são deles determina sua maneira de ver a reali­ tanto fora quanto dentro de nós. Estamos sub­
dade". Observe que os verbos em itálico dão a mersos nela e nos relacionamos com ela como
impressão que uma cultura se comporta como o peixe se relaciona com a água. Estamos em
uma pessoa. geral tão desapercebidos disso quanto o peixe
Como numa peça de teatro, existem papéis, deve estar da água ou como estamos do ar que
e os atores os seguem por hábito, mas o "poder" respiramos. De fato, apenas notamos a cultura
que faz com que as pessoas sigam um roteiro quando entramos em outro contexto cultural e
cultural é o poder do hábito, algo dentro delas, obser.vamos costumes diferentes dos nossos.
não um poder que a cultura tenha em si mesma. Infelizmente, quando vemos outro povo vi­
A cultura (incluindo a cosmovisão) nãopossui nenhum vendo de acordo com padrões culturais e cos­
poder em si ou por si mesma. movisão diferentes dos nossos sentimos pena
As pessoas costumam seguir os papéis de sua deles, como se o modo de vida deles fosse in­
cultura, mas nem sempre. Em geral, modificam ferior ao nosso. Assim, dispomo-nos a desco­
velhos costumes e criam outros. Embora os há­ brir meios para "resgatá-los" de seus costumes.
bitos que resultam numa grande conformidade Um dos mais trágicos erros dos americanos (até
sejam fortes, é possível mudar nossos costumes. de missionários) na tentativa de ajudar outros

Povo (sociedade) Cultura


Comportamento no nível de superfície Estrutura no nível de superfície
O que fazemos, pensamos, dizemos ou sentimos, cons- Os padrões culturais baseados no que habitualmente
ciente ou inconscientemente, na maioria das vezes por fazemos, pensamos, dizemos ou sentimos.
hábito, mas também criativamente.

Comportamento no nível profundo Estrutura no nível profundo


Presumir, avaliar e comprometer-se, mais por hábito, (cosmo visão)
mas também criativamente: Os padrões pelos quais executamos nossas pressuposi-
1. com respeito a escolher, sentir, questionar, inter- ções, avaliações e compromissos de comportamento de
pretar e valorizar; nível profundo. Padrões para escolher, sentir, questio-
2. com respeito à escolha de significado; nar, interpretar, valorizar, explicar, relacionar-se com os
3. com respeito à explicação, relacionamento com os outros, comprometer-se e adaptar-se ou decidir tentar
outros, nosso compromisso e adaptação ou decisão mudar as coisas ao nosso redor.
de tentar mudar as coisas ao nosso redor.
-
Charles H. Kraft
395.

povos 'que d�°o: ns_tram pouco respeito pelos 6. A cultura tende a mostrar uma integração
costumes tJad1c1on�us destes. mais ou menosjirme ao redor de sua cosmovi­
O método de Jesus, contudo, consiste cm são. As pressuposições de cosmovisão forne­
honrar a cultura de um povo e sua cosmovi­ cem a "cola" com a qual as pessoas mantêm
são, e não arrancá-los dela. Assim como ele en­ sua cultura unida.
trou na cttltura judaica para comunicar-se com 7. A cultura/ cosmovisão é complexa.Jamais se
os judeus, também devemos entrar na cultura descobriu uma cultura/ cosmovisão simples.
do� povos que queremos conquistar. Seguin­ 8. As práticas e pressuposições da cultura/ cos­
do o exemplo de Jesus, notamos que trabalhar movisão são baseadas em acordos coletivos ou
de dentro para fora envolve uma crítica bíbli­ "multipessoais": um grupo social concorda,
ca da cultura e da cosmovisão do povo, tanto inconscientemente, em governar-se de acor­
quanto a aceitação deles como ponto de par­ do com seus padrões culturais.
tida. Contudo, se desejarmos testemunhar de 9. A cultura/ cosmovisão é estrutura. Nãofaz
modo eficiente, deveremos falar e nos compor­ nada por si só. As pessoas fazem coisas, seja
tar de maneira que honre a única forma de vida de acordo com seu roteiro cultural, seja mo­
que eles conhecem. De igual modo, se a Igreja dificando o roteiro. Qyalquer suposto poder
quer fazer algo significativo na tarefa de receber de cultura ou de cosmovisão baseia-se nos
os povos da maneira que Jesus deseja, precisa hábitos das pessoas.
esta adaptada à cultura em questão (embo­ 10. Embora analiticamente, precisamos tratar o
ra sem aceitar costumes e pressuposições não povo e a ultura/ cosmovisão como entida­
bíblicos), como a Igreja primitiva em relação des separadas. Na vida real, o povo e a cultural
aos povos do primeiro século. A essas igrejas, cosmovisãofuncionam em conjunto.
chamamos "igrejas de equivalência dinâmica",
"igrejas contextualizadas" (v. a seguir) ou "igre­ CARACTERÍSTICAS COMPLEMENTARES
jas aculturadas". DE COSMOVISÃO
1. Uma cosmovisão consiste de pressuposições
(incluindo imagens), dando base a todos os
CARACTERÍSTICAS DE CULTURA E valores culturais, lealdades e comportamentos.
COSMOVISÃO 2. As pressuposições e imagens da cosmovisão
1. A cultura/ cosmovisão proporciona um plano dão base para nossa percepção da realidade e
total para viver, para lidar com cada aspecto nossas respostas a ela.
da vida e oferecer ao povo um modo de con­ 3. Há duas realidades: REAHDADE como
trolar a própria vida. Deus a vê e realidade percebida como
2. A cultura/ cosmovisão é um legado do passa­ nós, com limitações humanas, a vemos
do, aprendido como sefosse absoluto e perfeito. (lCo 13.12). Nossa cosmovisão nos forne­
3. A cultura/ cosmovisãofaz sentido para aque­ ce as lentes - o modelo ou mapa - através
les que estão inseridos nela. das quais percebemos, interpretamos, estru­
4. Mas nenhuma cultura/ cosmovisão parece ser turamos e respondemos à REALIDADE
perfeitamente adequada, seja às realidades da de Deus.
biologia e do meio ambiente, seja às respos­ 4. As pressuposições ou premissas da cosmo­
tas a todas as perguntas de um povo. visão são aprendidas com os mais velhos, ..
5. A cultura/ cosmovisão é um sistema adap­ não questionadas deforma lógica, mas aceitas
tável, um mecanismo de ajustes. Oferece pa­ como verdade sem necessidade de prova. Rara -
drões e estratégias para capacitar as pessoas mente nos ocorre que possa haver pessoas
a se adaptarem às condições físicas e sociais de outros grupos que não compartilhem de
ao seu redor. nossas pressuposições.
396 Cultura, cosmovisão e contextualização

5. Organizamos nossa vida e nossas experiên­ possamos lidar com elas mais sabiamente do
cias de acordo com nossa cosmovisão e ra­ que vem sendo feito.
ramente a questionamos, a menos que nossa
experiência desafie algu mas de suas pres­ Cosmovisão e mudança cultural
suposições. Mudança cultural significativa é sempre uma
6. No ministério transcultural, os problemas que questão de mudança na cosmovisão. Assim
surgem das diferenças de cosmovisão são os mais como qualquer coisa que afete as raízes de uma
difíceis para se lidar. árvore influenciará seus frutos, qualquer coi­
sa que afete a cosmovisão de um povo afetará
Os subsistemas da cultura toda a cultura e, é claro, as pessoas que agem
Com a cosmovisão no centro, influenciando em função daquela cultura.
toda a cultura, podemos dividir a cultura do Jesus sabia disso. C21Jando queria comuni­
nível de superfície em subsistemas. Há muitos car coisas importantes, ele mirava no nível da
subsistemas culturais. Esses subsistemas contêm cosmovisão. Alguém perguntou: "Oliem é o
várias expressões comportamentais de pressu­ meu próximo?" Jesus, então, contou-lhe uma
posições da cosmovisão. história e depois pergu ntou quem tinha agido
de maneira correta com relação ao próximo
Subsistema social (Lc 10.29-37). Ele estava levando o povo a re­
(família, educação,
parentesco, controle considerar e, quem sabe, mudar um valor básico
social) no sistema deles.
Etc. Subsistema
linguístico Em outra ocasião Jesus disse: "Ouvistes que
------- Cosmovisão ------- foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu
inimigo. Eu, porém, vos digo: amai os vossos
Subsistema Subsistema
tecnológico religioso inimigos e orai pelos que vos perseguem.[ ... ]
a qualquer que te ferir na face direita, volta-lhe
Subsistema
econômico também a outra" (Mt 5.43,44,39). Mais uma
vez, as sementes de uma mudança no nível pro­
fundo da cosmovisão foram plantadas.
Embora seja tentador apresentar o cristianis­ C21Jando há mudança no nível profundo,
mo como substituto de uma religião tradicional contudo, geralmente as coisas saem do equi­
nas formas eligiosas do cristianismo ociden­ líbrio, e qualquer desequilibrio no centro da
tal, essa_,é a maneit:a errada de testemunhar. O cosmovisão de uma cultura tende a causar di­
cristianismo deve se direcionado à cosmovisão ficuldades para o restante da cultura. Por exem­
de um povo, para que, de uma parte mais im­ plo, o povo dos Estados Unidos acreditava, no
portante da cultura, influencie cada um desses nível da cosmovisão, que não podia ser vencido
subsistemas. Verdadeiramente, os convertidos na guerra, mas depois da derrota no V ietnã,
precisam manifesta atitudes e comportamen­ um profundo senso de desmoralização varreu
tos cristãos bíblicos em toda a sua vida cultural, a sociedade, contribuindo grandemente para o
não apenas na prática religiosa. desequilibrio da nação, na época.
Se desejamos conquistar os povos para P roblemas importantes de cosmovisão
Cristo e vê-los dentro de igrejas que honrem podem ser causados mesmo quando boas
ao Senhor e afirmem sua cultura, teremos de mudanças, introduzidas por pessoas bem-in­
lidar com elas dentro de sua cultura e com tencionadas, como os missionários, são aplica­
base em sua cosmovisão. Faremos isso com ou das no nível da superfície sem a devida atenção
sem sabedoria. Espera-se que, ao compreender aos significados do nível profundo, aos quais o
mais o que cultura e cosmovisão significam, povo está ligado. Por exemplo a quase exigência
aft
Charles H. Kr
397-
::---

univ ersal dos missionários de que os africanos por missionários), e você entenderá que existe,
ue tivessem mais de um esposa se divor- pelo menos, alguma azões legítimas (entre as
.
qciassem das "extras " antes db
o at1smo 1 cvou os ilegítimas) para certo antr pólogos criticarem
cristãos e não cristãos-africanos a crtas pres u o trabalho missionário.
indesejáveis com relação
posjções de cosJ110visao
ao Deus cristão, dentr · as: Deus é CQJltra os Cristianismo contextualizado (adaptado)
verdadeiros líderes da socie<la<lc africana; Deus O objetivo do testemunho cristão é ver as pes­
não é___aia.vo · d ue as mulheres tenham juda soas convertidas a Cristo e integrada a gru­
e co m an.heirismo no ar; Deus quer que os pos que chamamos "igrejas", as quais devem ser
homens seJam e cr ·zado a uma única mu­ bíblica e culturalmente adaptadas. O processo
lbe (com.o os brancu parecem ser); Deus é pelo qual a igreja se torna "aculturada" na vida
favorável�o divorcio, à irresponsabilidade so­ de um povo costumava ser chamado "acultura-
ciaLe até mesmo à prostituição. Nenhuma des­ çao
_ ,,. Agora, porem,
, prefiere-se o termo "con-
sas conclusões é irracional ou · rreal, do ponto textualização".
de :vista deles. Embora acreditemos que Deus A contextualização do cristianismo faz parte
pretenda que cada homem tenha apenas uma do registro do Novo Testamento. É o processo
única esposa, essa mudança foi forçada depressa no qual os apóstolos se envolveram ao comu­
demais, diferentemente do método paciente de nicar aos de fala grega a mensagem cristã que
Deus no_Antigo Testamento, que levou muitas chegou a eles na língua e na cultura aramaica.
gerações para abolir esse costume. A fim de contextualizar o cristianismo aos que
Como foi mencionado, mesmo as boas mu­ falavam grego, os apóstolos expressaram a ver­
danças, se introduzidas de modo equivocado, dade cristã no padrão de pensamento de seus
podem levar ao desequihbrio e à desmoralização receptores. Palavras e conceitos de cada cultura
cultural. Entre os ibibio, do sul da Nigéria, a foram usados para explicar temas como Deus,
mensagem...do gracioso perdão divino resultou igreja, pecado, conversão, arrependimento, ini­
em muitas conversões ao Deus cristão, pelo fato ciação, "palavra" (logos) e outras áreas importan­
de ser mais tolerante que o deus deles. Entre­ tes da vida e da prática cristãs.
tanto, os convertidos.não viram a necessidade de As igrejas gregas primitivas corriam o risco
agir com retidão: afinal, acreditavam que Deus de serem dominadas pelas práticas religiosas ju­
sempre os perdoaria, não importasse o que fi­ daicas, porque seus líderes eram judeus. Contu­
zessem. Na Austrália aborígine, entre os yir-yo­ do, Deus enviou o apóstolo Paulo e outros, que
ronts, os..missionários trouxeram machados de enfrentaram os cristãos judeus e lutaram pela
aço para substituir os tradicionais machados de implantação de um cristianismo contextualiza­
pedra, e isso causou uma ruptura muito grande do para os gentios de fala grega. Para isso, Paulo
na cultura, simplesmente porque os machados teve de travar uma batalha contra muitos líderes
eram dados às mulher_es e aos jovens que, por judeus que achavam ser a tarefa dos pregadores
tradição, deviam tomar os machados empres­ cristãos simplesmente impor conceitos teológi­
tados dos homens mais velhos. Essa mudança, cos judaicos aos novos convertidos (v. At 15). Os
mesmo trazendo ao povo uma melhor tecnolo­ judeus conservadores eram os heréticos contra
gia, desafiou suas pressuposições de cosmovisão os quais Paulo lutou, pelo direito dos cristãos
e causou a destruição da autoridade dos líde­ de fala grega, a fim de que estes pudessem ter o
res, disseminando uma ruptura social e quase evangelho em sua língua e cultura. Concluímos,
a extinção do povo. Adicione a esses exemplos com base nas passagens de Atos 10 e 15, que é
o enorme dano (cultural e espiritual) entre os plano de Deus que o cristianismo bíblico seja
povos não ocidentais causado pela influência "reencarnado" em cada língua e em cada cultura
das escolas ocidentais (até mesmo as dirigidas ao longo da História.
398 Cultura, cosmovisão e contextualização

Biblicamente, a contextualização do cristia­ difere de povo para povo e precisa ser abordada
nismo não é simplesmente passar adiante um de forma diferente, culturalmente adaptada a
produto que foi desenvolvido de uma vez· por cada grupo cultural.
todas na Europa ou na América. Trata-se, na
verdade, da imitação do processo pelo qual os Contextualizar o cristianismo é arriscado
apóstolos passaram. Retornando à analogia da á muitos riscos envolvidos na tentativa de pro­
árvore, o cristianismo não deve ser como a árvo­ mover um cristiani mo cultural e biblicamente
re que foi cultivada e cresceu numa sociedade e adaptado. O ri co d sincretismo esta sempre
depois foi transplantada para um novo ambiente presente. Sincretismo é a mistura de pressupo-
.
cultural, trazendo em suas folhas, galhos e frutos ões cristãs com p.ressuposiçõcs-dc cosmovisão
a marca indelével de produto da sociedade que que são i.ncompativcis c.om . cristianismo e re­
a enviou. O evangelho deve ser plantado como sultam nu cristianismo não bíbJico.
uma semente, que brotará e será nutrida pela O sincretismo existe em todos os lugares
chuva e pelos componentes do solo cultural do em que se praticam rituais cristãos como se
povo que a recebeu. O que brota da semente do fossem mágica ou se usa a Bíblia para lançar
verdadeiro evangelho pode parecer bem dife­ encantamentos; ou, como na Índia, onde o povo
rente acima do solo da planta que despontou considera Jesus apenas outra manifestação hu­
na sociedade de origem, mas embaixo do solo, mana de uma de suas divindades; ou, como na
no nível da cosmovisão, as raízes devem ser as América Latina, onde se praticam adivinhações
mesmas, e a vida provém da mesma fonte. e feitiçarias nas igrejas ou se insiste em que as
Numa igreja verdadeiramente contextuali­ pessoas se convertam a uma cultura diferente
zada, embora a "árvore' no nível da superfície para se tornar cristãs. Nos Estados Unidos, é
possa parecer diferente, a mensagem essen­ o cristianismo sincrético, e não o bíblico, que
cial será a mesma, e as doutrinas essenciais de vê "a maneira de viver americana" como con­
nossa fé estarão preservadas, já que se baseiam dizente com o cristianismo bíblico; que presu­
na mesma Bíblia. Todavia, a formulação dessa me que, por produzir fé suficiente, é possível
mensagem e a relativa proeminência de muitas pressionar a Deus para obter o que se deseja;
questões diferem de sociedade para sociedade. que se deve, por amor e tolerância, respeitar o
Por razões culturais, coisas como o que a Bíblia homossexualismo e até mesmo o "casamento"
diz sobre relacionamento familiar, medo e espí­ homossexual, apesar da clara condenação bí­
ritos maus, a defesa da dança e os rituais estarão blica a essa prática.
muito mais em foco no cristianismo africano Há pelo menos dois caminhos para o sin­
contextualizado do que estão na América. cretismo. O primeiro é importar expressões
Deus deseja que o cristianismo de hoje seja estrangeiras da fé e permitir que o povo que
dinamicamente equivalente ao cristianismo do as recebe una sua cosmovisão a essas práticas,
Novo Testamento, percebido pela humanida­ com pouca ou nenhuma orientação dos missio­
de hoje como entusiasticamente relevante com nários. O resultado é um tipo de cristianismo
relação aos problemas que enfrenta. Embora "nativo" ou mesmo, como na América Latina,
muitas igrejas não ocidentais hoje sejam domi­ um "paganismo cristão". Os missionários ca­
nadas por estilos de adoração e doutrinas oci­ tólicos romanos, especialmente, caíram nessa
dentais, não é bíblico que permaneçam assim. armadilha por presumir que, se um povo pra­
Existem, é claro, problemas básicos semelhantes tica os chamados rituais "cristãos" e usa uma
(por exemplo, o pecado e a necessidade de um terminologia "cristã", ele está pensando como
relacionamento com Cristo) com os quais os os cristãos europeus.
povos de todas as sociedades terão de lidar, mas O segundo caminho para o sincretismo
a maneira como esses problemas se manifestam consiste tão somente em dominar a prática cristã
---
Charles H. Kraft

de um povo com ideias importadas, tanto no criado: não vinha com aquela aura de influên­
nível da superfície quanto no nível profundo. O cia que em geral acompanha as sugestões dos
resultado é um tipo de cristianismo não adap­ proponentes estrangeiros.
tado que leva o povo a adorar e praticar sua fé Embora o perigo do sincretismo esteja sem­
de acordo com padrões estrangeiros e a desen­ pre presente quando se tenta aculturar o cris­
volver um conjunto especial de pressuposições tianismo, é um risco inevitável no processo de
de cosmovisão para as situações no âmbito da levar os povos a experimentar o cristianismo
igreja, quase sempre ignorado na vida parti­ do Novo Testamento. Seja numa situação de
cular. A cosmovisão original, então, permane­ pioneirismo, seja depois de a fé estrangeira ter
ce quase intocada pelos princípios bíblicos. É sido praticada por anos, a busca por um cristia­
0 tipo de cristianismo que alguns evangélicos nismo vital, dinâmico, bíblico e contextualizado
protestantes defendem, provavelmente por demandará experiência com maneiras cultural e
medo do primeiro tipo de sincretismo. Em bíblicamente novas de compreender, apresentar
muitas situações, esse tipo de cristianismo atrai e praticar a "fé que uma vez por todas foi entre­
aqueles que já estão se ocidentalizando, porém gue aos santos" (Jd 3). Exigirá atenção especial
muitas das pessoas ligadas à tradição veem no em relação ao que está acontecendo no nível da
cristianismo pouco ou nada que satisfaça suas cosmovisão. Para esse fim, as contribuições dos
necessidades, porque ele é apresentado e pra­ antropólogos dentro da cultura e da cosmovi­
ticado de uma forma à qual não conseguem são poderão nos possibilitar a defesa de um
se adaptar. cristianismo verdadeiramente contextualizado,
Embora devamos ser cautelosos com res­ relevante e significativo.
peito ao sincretismo, há um meio-termo que
envolve profunda confiança na habilidade do Entender a cultura ajuda
Espírito Santo em guiar o povo e na capacidade na contextualização
do povo receptor em seguir essa direção. De­ A compreensão da cultura e da cosmovisão, con­
vemos, portanto, olhar sempre para o Espírito forme apresentada neste artigo, tem nos ajudado
Santo (não para nós mesmos) e elegê-lo nosso muito no esforço empreendido para entender o
Guia, enquanto participamos, com o povo, do que significa adequação bíblica e cultural. Entre
processo de descobrir a direção correta. Pode­ as diversas formas de compreensão extraídas de
mos assegurar ao povo que o Espírito Santo estudos estão as seguintes:
sempre os guiará de acordo com as Escrituras. 1. Deus ama os povos tal como são cultural­
Praticando essa abordagem, o missionário Jacob mente. Como podemos ver na Bíblia, ele de­
Loewen decidiu jamais responder diretamen­ seja trabalhar em todas as culturas e idiomas,
te a qualquer pergunta de novos convertidos, sem exigir que sejam substituídos.
como: "O que devemos fazer?". Em vez disso, 2. As culturas e idiomas da Bíblia não foram
ele lhes perguntava: "O que o Espírito Santo criados por Deus. São, na verdade, obras hu­
está lhe mostrando?". Ele só participava dessa manas e pagãs, como qualquer uma das mais
busca depois que eles já estivessem lutando de 6 mil culturas e línguas de nosso mundo
algum tempo para descobrir uma resposta, mes­ hoje. A Bíblia demonstra que Deus pode
mo assim sempre lhes oferecia pelo menos três usar qualquer cultura pagã (grega, ameri­
alternativas de escolha. O resultado era que eles cana ou brasileira) com meio de transmitir
geralmente desenvolviam uma quarta alternativa, sua mensagem à humanidade.
diferente das outras três. Se a escolha atendesse 3. A Bíblia mostra que Deus trabalhou com
às necessidades do povo, continuavam com ela. seu povo de forma culturalmente apropriada.
Caso contrário, estavam livres para alterá-la no Ele aproveitou costumes já em uso e os re­
que fosse preciso, já que eles mesmos a haviam vestiu com novo significado, orientando o
400 Cultura, cosmovisão e contextualização

povo a usá-los para os propósitos divinos, danças que devam acontecer nas estru turas
com base num novo entendimento da cos­ precisam ser implantadas pelo povo, com
movisão. Entre tais costumes estão a cir­ base em seu entendimento das Escrituras e
cuncisão, o batismo, a adoração no monte, da obra de Deus na vida deles, pela direção
o sacrifício, a sinagoga, o templo, a unção e a e auxílio do Espírito Santo, não por pressão
oração. Deus quer que as igrejas de hoje se­ vinda de fora.
jam culturalmente adaptadas, a maioria dos 5. Embora a contextualização dentro de uma
costumes revestidos com novo significado, nova cultura corra o risco de criar algu ma
conforme os propósitos divinos. Dessa for­ forma de sincretismo nativo, o cristianismo
ma, o povo mudará no nível da cosmovisão dominado por formas culturais estrangeiras
e também no nível da superfície. com significados importados é antibíblico
4. Todavia, o trabalho de Deus dentro da cul­ - e também é sincretismo. Devemos, por­
tura sempre causa mudança. Deus muda pri­ tanto, seguir as Escrituras e correr os ris­
meiramente as pessoas e depois, por meio cos inerentes ao uso das formas culturais
delas, as estruturas culturais. Qyaisquer mu- do povo receptor.

Perguntas para estudo

1. Como a cosmovisão afeta o comportamento?

2. A cultura leva a uma ação específica? Isso influencia padrões e tendências de pensamentos
ou ações?

3. Por que raramente questionamos nossas pressuposições de cosmovisão?

Bibliografia

KRAFT, Charles H.Anthropologyfar Christian Witness. Maryknoll: Orbis, 1996.

____. Christianity in Culture Maryknoll: Orbis, 1979.

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