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O SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL NO BRASIL: apresentando a

pesquisa, problematizando a política social1

Raquel Raichelis Degenszajn


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

Berenice Rojas Couto


Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)

Maria Carmelita Yazbek


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

O SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL NO BRASIL: apresentando a pesquisa,


problematizando a política social
Resumo: O texto apresenta pesquisa realizada em âmbito nacional sobre a implantação do SUAS no
Brasil. Considera a importância do processo de investigação na formação de pesquisadores e propõe-se
a contribuir com o debate no campo da proteção social ao considerar a Assistência Social como política
pública e direito da população. Apresenta problematizações sobre as categorias centrais da Política
Nacional de Assistência Social - PNAS/2004, indicando a necessidade de compreendê-las no seu caráter
contraditório e no desafio de romper com uma visão conservadora impregnada na área. Apresenta, de
forma inicial, o debate sobre as tendências da proteção social em tempos de nova crise capitalista. Por
fim, aponta a necessidade de aprofundar a reflexão sobre o denominado processo de “assistencialização”
das políticas sociais e argumenta que é preciso aprofundar o debate na perspectiva da defesa da
Seguridade Social como campo da proteção social.
Palavras-chaves: Proteção social, Política Nacional de Assistência Social, SUAS, implantação, crise
capitalista, assistencialização, seguridade social.

O SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL NO BRASIL: apresentando a pesquisa,


problematizando a política social
Abstract: The article presents a research developed nationally on the implementation of SUAS (Unique
System of Social Assistance) in Brazil. It considers the importance of the investigation process in the
capacity-building of researchers and aims to contribute with the debate in the field of social protection by
presenting Social Assistance as a public policy and as a right of the population. It also presents
problematizations on the central categories of the National Policy of Social Assistance - PNAS/2004,
pointing out the need for understanding its conflicting character and the challenge of overcoming a
conservative perspective disseminated in the area. It introduces the debate on the trends of social
protection in the context of a new capitalist crisis. Finally, it indicates the need to strengthen the reflection
on the so-called process of "asistencialization" of social policies and argues that it is necessary to promote
the debate affirming the importance of Social Security in the field of social protection.
Keywords: Social protection, National Policy of Social Assistance, Unique System of Social Assistance,
implementation, capitalist crisis, asistencialization, social security

Recebido em: 03.10.2010. Aprovado em: 16.06.2011.

R. Pol. Públ. / São Luís – MA / Número Especial / p. 453 - 460 / Outubro de 2012.
Raquel Raichelis Degenszajn, Berenice Rojas Couto e Maria Carmelita Yazbek

1 INTRODUÇÃO conhecimento sobre a Política de


Assistência Social, objetivando
A pesquisa apresentada foi contribuir para efetivação do processo
desenvolvida no âmbito de uma de implantação do SUAS no Brasil a
proposta de cooperação acadêmica partir do levantamento, sistematização e
aprovada e financiada pela publicização de informações sobre esse
Coordenação de Aperfeiçoamento de processo, considerando a amplitude
Pessoal de Nível Superior (CAPES) e geográfica e a diversidade da realidade
pelo Conselho Nacional de nacional.
Desenvolvimento Científico e A proposta de investigação
Tecnológico (CNPq)2, envolvendo o objetivou realizar: uma análise do
Programa de Pós-Graduação em conteúdo e dos fundamentos da Política
Políticas Públicas da Universidade Nacional de Assistência Social – PNAS
Federal do Maranhão (UFMA); o (BRASIL, 2004); uma análise da gestão
Programa de Pós-Graduação em estadual e municipal na ótica dos
Serviço Social da Pontifícia gestores, técnicos e representantes dos
Universidade Católica de São Paulo Conselhos; e um estudo do processo de
(PUC-SP) e o Programa de Pós- implantação e implementação do SUAS
Graduação em Serviço Social da em nível nacional, priorizando o Centro
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Referência da Assistência Social -
Grande do Sul (PUCRS), sob a CRAS, estrutura estatal criada a partir
coordenação geral do primeiro. da proposta do SUAS.
Para o desenvolvimento da A pesquisa empírica foi
pesquisa, os professores pesquisadores realizada em 7 Estados: Pará,
e os alunos de pós-graduação, Maranhão, Pernambuco, São Paulo,
membros das equipes dos três Minas Gerais, Paraná e Rio Grande do
Programas, constituíram uma rede de Sul. Foram pesquisados 41 municípios,
cooperação acadêmica entre Programas obedecendo aos seguintes critérios por
de Pós-Graduação consolidados, Estado: capitais, 1 município de grande
integrantes de diferentes regiões porte, 1 município de porte médio, 2
geográficas do país, para produzir municípios de pequeno porte 1 e 1
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município de pequeno porte 2 (segundo


critérios da NOB/SUAS). (BRASIL, 2 DOS RESULTADOS DA PESQUISA:
2005). problematizando fundamentos e
A metodologia da pesquisa conceitos da PNAS e do SUAS
previu a realização de entrevistas
semiestruturadas com gestores A política nacional de
estaduais e municipais; observações Assistência Social (BRASIL, 2004) e a
sistemáticas nos CRAS (56) e em NOB/SUAS (BRASIL, 2005) foram
alguns CREAS (11), utilizando-se de consideradas avanços conceituais, na
roteiro prévio construído pela equipe e medida em que estabelecem critérios
de grupo focais com a participação de para sua definição e possibilidades de
técnicos e conselheiros do CMAS e do acesso, assentado nas características
Conselho Estadual de Assistência de política pública vinculada ao campo
Social - CEAS, buscando problematizar dos direitos sociais. A problematização
coletivamente o movimento de dos conceitos foi pautada pela análise
implantação dos CRAS e a apreensão dos elementos que informavam esse
da implantação do SUAS no município. campo, indicando que isso requer o
Foi realizada também uma enfrentamento da forma política e
pesquisa pela Internet (sob institucional de apreensão da
responsabilidade da equipe do assistência social no Brasil.
Maranhão), com informações O debate sobre as políticas
levantadas mediante a aplicação de um sociais brasileiras demonstra que
questionário on line, com perguntas historicamente estas políticas se
fechadas, abertas e semiabertas, numa caracterizaram por sua pouca
amostra representativa da realidade efetividade social e por sua
nacional, sendo selecionado, em cada subordinação a interesses econômicos.
região, o Estado de maior e de menor Seu escopo foi desenhado em uma
IDH e um total inicial de 625 municípios perspectiva residual, sem o
brasileiros sorteados, considerando o comprometimento em enfrentar a
porte dos municípios, mais o Distrito desigualdade social que caracteriza a
Federal. sociedade brasileira. A Assistência

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Social representa nessa ótica uma área movimento para apreensão dessa
de grande tensão, uma vez que o construção representa um campo de
padrão arcaico que se referencia em disputa que é essencial na definição da
matrizes, apoiado pelo favor, política de Assistência Social. Assim, a
clientelismo, mandonismo, conceituação dos usuários na PNAS,
desprofissionalização é elemento bem como a matricialidade sócio-
enraizado na cultura dessa política. O familiar, a abordagem territorial e a
Estado tradicionalmente abdicou de sua questão relativa aos trabalhadores e a
condução, transferindo-a às entidades gestão do trabalho no SUAS foram
privadas, filantrópicas ou não, o que apresentados e problematizados, de
impactou diretamente na dificuldade modo a contribuir para o debate
encontrada na materialização da política coletivo. (COUTO et al., 2010).
como campo de responsabilidade Assim, em relação aos usuários,
obrigação do Estado, direito de embora sua definição seja um avanço
cidadania. conceitual que permite inclusive
Nessa perspectiva, a romper com os velhos paradigmas
construção da PNAS e da NOB/SUAS utilizados para sua identificação (como
que se pautou em movimentos da pessoas “inaptas” para o trabalho), a
sociedade e dos atores que participaram pesquisa aponta a necessidade de
dessa disputa, foi um grande avanço na enfrentar os velhos preconceitos na
consolidação de instrumentos que definição dessa população, seja
auxiliaram na construção dessa área identificando-os com a condição de
como o de uma política pública subalterna (YAZBEK, 2009), seja na
reclamável por todos aqueles a quem condição de desorganizada e
ela se destina. (RAICHELIS, 2006). despolitizada. Aponta a necessidade
Como fundamento essencial de retomar o debate desses usuários
para análise dos dados empíricos na sua vinculação com a classe
recolhidos na pesquisa realizada, em trabalhadora e como fração dessa
uma primeira etapa os conceitos classe que sofre mais intensamente as
centrais da PNAS e do SUAS foram refrações da questão social. O desafio
problematizados, ressaltando que o nesse campo é construir espaços
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coletivos de participação dos usuários síntese, do patrimônio coletivo das


que incidam sobre o enfrentamento do cidades. Importante ressaltar que o
diagnóstico reiterativo da ausência dos equacionamento de grande parte das
mesmos nas definições políticas da “vulnerabilidades sociais” não tem
política. origem na dinâmica local, depende de
A perspectiva da políticas macroestruturais que
territorialização incorporada na PNAS extrapolem os limites da intervenção
foi analisada como potencialmente no território. Além disso, a participação
inovadora, pois sua abordagem popular na escala das intervenções
conceitual, baseada nas ideias de territorializadas pode assumir um
Milton Santos, é considerada um caráter restrito, pontual e instrumental,
aporte fundamental por permitir pensar com riscos de despolitização e
o território como espaço vivido, da isolamento, distante da inserção crítica
pulsação da vida da cidade e por isso na esfera política da cidade e em
com potencial de alterar as condições relações societárias mais amplas.
de vida da população. Dessa forma, Em relação à matricialidade
organiza as provisões aonde a sociofamiliar, é necessário apontar que
população se encontra, garantindo o ter como referência a família não
acesso e buscando superar a representa necessariamente uma
fragmentação dos serviços e das inovação no campo das políticas
intervenções. sociais brasileiras. No seu viés mais
Essa abordagem, contudo, conservador, o campo da política
requer vigilância, pois pode ser social responsabiliza a família pelo
apreendida apenas como definição cuidado de seus membros, e a
geográfica e, se agregada a conceitos desproteção social é considerada uma
como vulnerabilidade e risco social, falha de um “grupo familiar
pode estigmatizar a população e desagregado”. Romper com esse
transformar os territórios de moradia paradigma exige enfrentar o debate
em guetos que afastem a população sobre as novas formas de organização
do usufruto dos bens culturais, dos e relação de grupos familiares, uma
serviços e espaços públicos, em tentativa de superar os padrões

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burgueses que têm organizado as às três esferas de poder público e a


metodologias de atenção a essas inúmeras entidades privadas que se
famílias e recolocar o debate da localizam nesse campo. As
compreensão das singularidades características dos recursos humanos
desses grupos na perspectiva de seu envolvidos nessa área são
pertencimento a uma classe social, o heterogêneas, tanto no aspecto da
que apontaria para uma atuação junto formação como das condições de
a essas famílias numa perspectiva trabalho. A desprofissionalização foi
emancipatória. A adoção do princípio padrão histórico da área e, tanto a
da matricialidade sociofamiliar sem PNAS como o SUAS, bem como a
problematizá-lo, pode levar ao NOB/RH apontam para o
deslocamento dos conflitos e enfrentamento dessas condições,
contradições de classe da sociedade identificando que a formação
capitalista, de natureza continuada e as condições de trabalho
macrossocietária, para a esfera íntima são fundamentais para o salto
do indivíduo, da comunidade e das qualitativo da política pública. A
relações intrafamiliares. pesquisa evidenciou um quadro de
Em relação aos pessoal em nível nacional ainda
trabalhadores e à gestão do trabalho bastante insuficiente, que apresenta
no SUAS, ressalta-se que a questão importante defasagem política e
de recursos humanos técnica que incide na compreensão do
profissionalizados e reunidos sob papel do trabalhador social. Essas
contratos de trabalho consistentes e condições se agravam quando
com a garantia de trabalhadores problematizadas na
públicos constitui-se em enorme contemporaneidade, em que a nova
desafio para a administração pública morfologia do trabalho impõe
brasileira. Esse desafio torna-se muito condições precarizadas, trabalhos
mais ampliado quando o debate é parcelados, terceirizados ao conjunto
realizado no campo da política de dos trabalhadores, ao que adere com
Assistência Social. Seu escopo grande facilidade o campo da política
compreende trabalhadores vinculados de Assistência Social. O debate
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sobre gestão deve, portanto, explicitação do campo das políticas


extrapolar o campo da administração sociais. Ao discuti-las, é necessário
de pessoas para ampliar-se na repor o campo da contradição das
perspectiva de compreender como se políticas sociais. Pois, essas
organizam as condições institucionais categorias podem e têm servido para
para que o trabalho – social e coletivo justificar intervenções despolitizadas e
- ocorra. Enfim, nesse quesito o que carreado para o espaço institucional
está em pauta é a ressignificação do métodos gerenciais conservadores,
trabalho na Assistência Social e a que buscam eficácia no gasto público
construção de identidades de através de uma direção focalizada e
trabalhador da política no contexto das meritocrática de serviços, programas e
lutas mais gerais da classe benefícios.
trabalhadora.
Na análise das categorias 3 OS DESAFIOS E LIMITES QUE
consideradas centrais é preciso EMERGEM DA PESQUISA
apontar a relação intrínseca entre elas,
uma vez que sua compreensão Os dados da pesquisa
articulada é formulação necessária apontam inúmeras contradições do
para que a política de Assistência SUAS no seu movimento de
Social possa adquirir potencialidades implantação na realidade dos
transformadoras. Como elemento municípios e estados brasileiros. O
agregador desse debate, a equipe confronto persistente entre o velho,
problematizou essas categorias e sua representado pela ideologia do favor,
presença no campo das políticas da benesse, e o novo, expresso pelo
sociais e particularmente no campo da seu desenho enquanto explicitação do
seguridade social, aonde todas elas campo dos direitos sociais da
vêm ganhando destaque. Assim, seguridade social não contributiva e de
matricialidade sociofamiliar, uma política pública assentada em
territorialidade, protagonismo dos valores republicanos marca as
usuários e gestão do trabalho têm sido condições e perspectivas concretas de
apontados como centrais para a sua materialização. Em vários

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momentos foi possível identificar essas do SUAS. Nesse campo colabora a


características convivendo e ideia que a experiência acumulada na
disputando espaço na dinâmica de política está localizada na rede
implantação do sistema. Os estados privada, o que dificultaria a sua
pesquisados, bem como os condução pelas estruturas de Estado.
municípios, evidenciaram uma forte Cabe ressaltar que, embora essa
mobilização no território brasileiro na experiência seja reconhecida, ela
direção da implantação do SUAS, ocorreu em uma realidade institucional
demonstrando que esse é um que historicamente passou ao largo do
processo em movimento, pleno de controle social e da participação
contradições e tensões, mas também popular, o que atenta contra um dos
de possibilidades de avanços primados essenciais da política
históricos nessa área. pública, consubstanciados em
Nessa dinâmica, destaca-se mecanismos de democratização e de
a iniciativa de conferir maior unidade e controle social. Aí se evidencia uma
uniformidade à rede socioassistencial das grandes contradições do SUAS: a
como forma de garantir organicidade à construção de uma política pública,
política de Assistência Social. A que exige um papel expandido do
composição de rede socioassistencial, Estado nas três esferas, e a
bem como a necessária primazia do concretização da política sob uma
Estado na condução da política, base ampliada da oferta privada de
permanece como campo de tensão. A programas, projetos e serviços
criação dos CRAS e dos CREAS como socioassistenciais realizados pelas
indutores do papel do Estado nos entidades de assistência social, em
territórios ainda merece maior muitos casos, sem a necessária
enfrentamento na organização do transparência, gestão democrática,
sistema. A herança da área induz a compromisso com direitos sociais, que
uma realidade diversa e traz para a a esfera pública requer.
arena política a importância da Foi possível observar em
problematização do papel do Estado e municípios e estados, ainda de forma
das entidades privadas na constituição significativa, a prevalência da
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implantação do SUAS como resposta de organização e condução do


aos requisitos formais como meio de trabalho coletivo.
acesso ao fundo público. A regulação Em relação aos
nacional e o financiamento da União profissionais, ainda persiste um
foram responsáveis pela adesão dos número grande de trabalhadores sem
municípios de pequeno porte 1 e 2, vínculos construídos com a área, com
mas a identidade dos CRAS ainda é percepção da política pelo viés
um processo em construção. Embora conservador. O arsenal de
a NOB/SUAS indique seu papel no conhecimentos teóricos e técnico-
território como catalizador de operativos defasado exige uma política
demandas e organizador do sistema, de qualificação permanente, o que
bem como o indutor na atenção às demandaria um espaço de
famílias moradoras do território, ainda capacitação continuada assumido
é bastante difuso o trabalho social pelas gestões estadual e federal.
realizado com as famílias pelos CRAS. Constatou-se também alta
A pesquisa identificou esforços de rotatividade de trabalhadores, mesmo
equipes profissionais que tentam quando a forma de inserção é o
descortinar uma nova forma de atuar concurso público, uma vez que não há,
no campo da Assistência Social, mas na maior parte das vezes, mecanismos
em grande parte as atuações têm institucionais de reconhecimento e
reproduzido as formas mais valorização do trabalho, como planos
tradicionais que o sistema quer de carreira e política salarial. Esses
combater. Contribui para isso a elementos fragilizam a implementação
própria estruturação física dos CRAS, do SUAS.
não raro sem espaços que garantam Em contraposição a esses
privacidade e acessibilidade aos limites, foi possível perceber que a
usuários, a ausência de diagnósticos maioria dos sujeitos envolvidos com a
que justifiquem sua implantação nos política da assistência social
territórios onde estão situados, e com reconhece que a PNAS e,
equipes técnicas em número principalmente, a organização do
insuficiente para propor novas formas sistema materializado na NOB/SUAS

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recoloca a política como um campo sua estruturação está atrelada aos


inovador, com potencialidade de limites e possibilidades postos na
romper com os velhos paradigmas. realidade sociopolítica de estados e
Demonstram que essa construção municípios.
deu-se na esteira do compromisso Também são recorrentes
com os usuários e que a expansão do nos debates temas como pacto
sistema tem respondido a demandas federativo; esse, principalmente,
da população, embora de modo problematizado pelo papel da esfera
precário e insuficiente. estadual, que para a maioria dos
O reconhecimento dos municípios ainda é ausente e pouco
limites estruturais colocados pela sedimentado. Embora as
realidade brasileira é encarado como responsabilidades e funções da gestão
um enorme desafio a ser vencido. Na estadual estejam elencadas no
pesquisa foi possível perceber que os sistema, há predominância da esfera
apontamentos feitos pela equipe na federal na relação com os municípios
avaliação dos instrumentos da política no SUAS, tanto no que se refere ao
são problematizados por gestores, desenho e oferta de serviços, bem
técnicos e conselheiros. A como ao financiamento, processo de
implementação do SUAS tem feito capacitação das equipes profissionais
emergir uma série de questionamentos e às orientações e normativas
que deverão ser enfrentados, como técnicas, sendo esse um nó crítico que
por exemplo, a dimensão do município precisa ser enfrentado.
e a constituição do sistema Outra questão que emerge
correlacionados ao papel e às no debate ressaltado à guisa de
configurações que os CRAS devem conclusão foi o tema da
assumir do ponto de vista quantitativo intersetorialidade. Certamente
e qualitativo. Como definir constitui-se num desafio teórico e
homogeneamente realidades tão prático. É necessário que a
díspares? A garantia dos serviços e o construção do campo específico da
acesso universal devem ser os Assistência Social possa ser inserida
balizadores dessa construção, mas no debate da necessária interface
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entre as políticas sociais para que a discurso de profissionais, o que


proteção social às populações possa evidenciou uma dinâmica de (re)
ser garantida. Não se trata do debate legitimação deste instituto, que ainda
entre os órgãos do sistema, embora coloca em questão o caráter privado
esse também deva ser feito, mas de da ocupação desse espaço que
como esse sistema se relaciona obstaculiza a concretização da
institucional e politicamente com o Assistência Social como política e
campo da seguridade e da proteção pública.
social e o compõe na direção de que Persiste também como um
os usuários do SUAS estejam achado de pesquisa a frágil presença
protegidos e acessem direitos como do controle social e com ela também
respostas do Estado às suas ainda a sub-representação dos
necessidades sociais. usuários e de suas organizações nas
Outro tema que é recorrente definições da política de assistência
no campo da assistência social diz social. Esse tema bastante recorrente
respeito à presença constante do também aponta para uma necessária
primeiro damismo na materialização redefinição das formas de relação com
da política. Esse tema conduz a um a população, pois ainda não são
retorno às formas mais tradicionais de significativos os esforços no sentido de
realização da área. Vinculada à ideia investir na organização coletiva da
de que o patrimonialismo é constituinte população e em democratizar os
da política social brasileira, a espaços de deliberação e de atenção
Assistência Social desde os primórdios às suas demandas.
cumpriu esse papel quando delegou Para finalizar, é importante
às primeiras damas a representação assinalar que os sujeitos entrevistados
privada na execução do atendimento à e que participaram dos grupos focais
população “carente”. A pesquisa demonstraram compromisso com o
revelou que hoje há um movimento de enfrentamento das dificuldades.
profissionalização das primeiras Consideram um desafio a implantação
damas, que dessa forma busca do SUAS em bases republicanas e
justificar sua permanência inclusive no como política pública, ressaltando,

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porém, as potencialidades positivas 4 CONCLUSÃO


que a trajetória percorrida para a
implementação do SUAS evidencia. Para além dos dados recolhidos e
Para os inúmeros pesquisadores que analisados na pesquisa realizada e o
participaram da pesquisa a realidade debate teórico sobre os fundamentos da
apresenta-se como terreno fértil para a PNAS, faz-se necessário alguns
materialização dessa possibilidade apontamentos sobre a atual crise
histórica. capitalista e seu rebatimento no campo
Cabe um destaque ao das políticas sociais. O campo da
processo coletivo de pesquisa proteção social constrói-se na
vivenciado e a riqueza de sua sociedade capitalista sob o embate e a
experimentação para as equipes. A luta da classe trabalhadora em ver
troca possibilitada pela interface entre reconhecido seu direito a ser protegida.
as universidades parceiras, a Essa luta foi travada na sociedade
aproximação de professores e alunos brasileira sob a lógica da “cidadania
de níveis diversos de formação e a regulada” e seus ganhos foram
interação com a diversidade das dirigidos, prioritariamente, à condição de
realidades locais, bem como a riqueza trabalhador assalariado. A parcela da
de poder problematizar com população que não se enquadrava
profissionais e gestores os desafios da nesse contexto era atendida pela
implantação do sistema, constituiu-se estrutura da caridade e da
numa aprendizagem marcante para os benemerência, e quando alvo de
sujeitos partícipes da investigação, e programas assistenciais o objetivo
seguramente contribuiu não só para a primordial era inseri-la no mercado
produção de conhecimentos sobre o formal de trabalho, lócus privilegiado da
tema, mas também para a capacitação proteção.
de pesquisadores e profissionais É caudatário do movimento pelos
comprometidos com a construção da direitos sociais universais (tão presentes
esfera pública no âmbito da politica de no século XIX) o debate sobre a
assistência social. proteção social e sua não vinculação ao
mercado formal, que se dá no contexto
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da chamada reestruturação produtiva a política de Assistência Social no Brasil,


partir da crise capitalista dos anos de uma vez que o Programa Bolsa Família
1970. No capitalismo financeirizado do é processado pela área.
século XXI, o “pleno emprego” já não O grande desafio reside, assim,
constitui categoria central da sociedade em manter os programas de
do trabalho e os trabalhadores transferência de renda como direito dos
precarizados, parcializados, trabalhadores e ampliar o leque
desempregados buscam atenção às protetivo para enfrentar essa crise, que
suas necessidades sociais no âmbito precisa ser pensado através da
das políticas sociais articulação das políticas sociais,
desmercadorizáveis. Assim, o particularmente da Seguridade Social.
campo assistencial, antes espaço da Como fazê-lo em realidades onde
benesse e da meritocracia, vai ser o argumento (falacioso) reiteradamente
problematizado como campo de utilizado pela classe capitalista é de que
realização dos direitos sociais. foi a ampliação da proteção social um
No entanto, a crise capitalista dos elementos essenciais da crise do
atual impõe às políticas sociais um capital? O Estado, instância
retorno à residualidade, e embora o imprescindível na construção desses
sistema de proteção social brasileiro sistemas, é problematizado e o retorno
continue universal na letra da Lei, ganha a formas tradicionais e regressivas é
“cada vez mais foros de unanimidade a alardeado como a resposta efetiva às
idéia de que política social é, por “fraturas” sociais construídas pela crise,
excelência, algum tipo de ação voltada que sem dúvida tem um enorme custo
para os excluídos (os pobres) e, por social. Esse cenário de ajuste às
definição, focalizada”. (VIANNA, 2008). configurações da ordem capitalista
Nesse contexto, os programas de internacional, com seu caráter
transferência de renda aparecem como regressivo e conservador, ameaça o
carro chefe para impulsionar o consumo direito e a cidadania traz de volta a
e assim enfrentar um dos problemas do questão da meritocracia e com ela a
capital para a sua reprodução. Essa “desuniversalização” e a
tendência aponta para uma crítica à

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“descidadanização”. (PEREIRA; acesso a benefícios públicos e planos


BRAVO; YAZBEK, 2010). de provisão privados; e o outro,
Assim, é tarefa fundamental composto pela grande maioria de “não
analisar essa crise ampliando o leque integrados” ao mercado ou
de possibilidade de tensionamento para precarizados, com uma proteção social
que a proteção social construída como pública frágil ou sem nenhum tipo de
patrimônio da classe trabalhadora proteção, vivendo às expensas da
contribua para o enfrentamento, o caridade privada da sociedade em geral,
movimento intenso de sem nenhuma perspectiva de direito
desregulamentação não só do trabalho, constituído.
como também de toda proteção social. Trata-se, certamente, de uma
O debate sobre a assim perspectiva que confronta o modelo de
denominada “assistencialização” das universalização de direitos sociais e
políticas sociais3 ganha importância econômicos que a Constituição Federal
quando a dimensão atravessa todo o brasileira anunciou, mas não conseguiu
campo das políticas sociais, inclusive a consolidar.
da Assistência Social, pois parece ser
esse o caminho construído para o
REFERÊNCIAS
desmonte dos sistemas de Seguridade
Social como direito social. O BRASIL. Ministério do Desenvolvimento
Social e Combate à Fome. Secretaria
aprofundamento desse debate remete
Nacional de Assistência Social. Política
ao tema da “refilantropização” como Nacional de Assistência Social.
Brasília, 2004.
forma de responder às refrações da
questão social (YAZBEK, 1995); ou ______. ______. ______. Sistema
Único de Assistência Social (SUAS).
parece indicar, como apontado por
Norma Operacional Básica
Noguera (2000), um movimento de (NOB/SUAS): construindo as bases
para a Implantação do Sistema Único de
reposição da “dualização” no campo da
Assistência Social. Brasília, DF:
proteção social, fraturando a população MDS/SNAS/SUAS, jul. 2005.
em dois estratos antagônicos; aquele
COUTO, B. et al. O Sistema Único de
integrado ao mercado de trabalho e Assistência Social: uma realidade em
movimento. São Paulo: Cortez, 2010.
inserido nos regimes contributivos com
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NOGUERA, José A. La do Programa PROCAD/CAPES. A pesquisa


Reestructuración de la Politica Social en envolveu um número grande de professores
pesquisadores, mestrandos, doutorandos e
España. In: ADELANTADO, José alunos de iniciação científica e teve como
(Coord.). Cambios en el estado del espaço temporal os anos de 2005 a 2010.
bienestar: conclusiones. Barcelona:
2
Icaria Editorial; Universitat Autònoma de Trata-se, por parte da CAPES, do Programa
Barcelona, 2000. Nacional de Cooperação Acadêmica –
PROCAD, desenvolvido, em nível nacional,
que contou também com o apoio financeiro do
PEREIRA, Potyara A. P.; BRAVO, Maria CNPq, e obtido mediante à concorrência ao
Inês; YAZBEK, Maria Carmelita. Edital MCT/CNPq 03/2008 – Ciências
Tendências da política social no Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas .
contexto da crise e impactos para o 3
O termo “assistencialização” objeto de
Serviço Social In: CONGRESSO polêmicas no debate do Serviço Social é, na
BRASILEIRO DE ASSISTENTES visão das autoras, inapropriado para dar conta
SOCIAIS, 13., 2010, Brasília. Lutas dos processos em curso no âmbito dos
sociais e exercício profissional no sistemas de proteção social. Por um lado, a
contexto da crise do capital: utilização desta denominação reforça a visão
preconceituosa sobre a assistência social,
mediações e a consolidação do projeto reeditando velhos estigmas e contribuindo para
ético-político do Serviço Social. Brasília, refrear a sua construção como política pública
D.F.: CFESS, julho/agosto, 2010. de seguridade social, para a qual a categoria
dos assistentes sociais tem desempenhado um
RAICHELIS, Raquel (Coord.). SUAS: papel de referência. Por outro, por não exaurir
a análise crítica da complexidade das
configurando os eixos da mudança. In: tendências contemporâneas que jogam a favor
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento da desuniversalização da proteção social como
Social e Combate à Fome. Instituto de um todo (e não apenas da política de
Estudos Especiais da Pontifícia assistência social), buscando reduzi-la a uma
Universidade Católica de São Paulo ação pública voltada à pobreza extrema, com
base em critérios meritocráticos, focalizados e
Cadernos SUAS, Brasília, 2006. excludentes. Por essas razões, o termo
“assistencialização” está entre aspas ao longo
VIANNA, Maria Lúcia Teixeira Werneck. do texto.
A nova política social no Brasil: uma
prática acima de qualquer suspeita Raquel Raichelis Degenszajn
Assistente Social
teórica? Praia Vermelha, Rio de
Doutora em Serviço Social
Janeiro, n. 18, p. 120-145, 2008. Professora assistente doutor da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP
E-mail: raichelis@uol.com.br
NOTAS
Berenice Rojas Couto
1
O texto a seguir é uma síntese do material Assistente Social
disponível no livro O sistema único de Doutora em Serviço Social pela Pontifícia
assistência social no Brasil (SUAS): uma Universidade Católica do Rio Grande do Sul -
realidade em movimento, publicado pela PUC-RS
Cortez Editora, organizado pelas Profs. Dras. Professora titular da Pontifícia Universidade
Berenice Rojas Couto, Maria Carmelita Católica do Rio Grande do Sul - PUC-RS
Yazbek, Maria Ozanira Silva e Silva e Raquel E-mail: berenice.couto@terra.com.br
Raichelis, que debate a pesquisa nacional
realizada por três Programas de Pós-
Graduação (UFMA, PUCSP, PUCRS) através

R. Pol. Públ. / São Luís – MA / Número Especial / p. 453 - 460 / Outubro de 2012.
Raquel Raichelis Degenszajn, Berenice Rojas Couto e Maria Carmelita Yazbek

Maria Carmelita Yazbek


Assistente Social
Doutora em Serviço Social pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo
Professora do Programa de Pós-Graduação em
Serviço Social da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo - PUC-SP
E-mail: mcyaz@uol.com.br

Pontifícia Universidade Católica de São


Paulo - PUC-SP
Rua Ministro Godói, 969, 4o. andar, sala 4E-11,
Perdizes - São Paulo/SP
CEP: 05015-901

Pontifícia Universidade Católica do Rio


Grande do Sul - PUC-RS
Av. Ipiranga, 6681, Partenon - Porto Alegre/RS
CEP: 90619-900

R. Pol. Públ. / São Luís – MA / Número Especial / p. 453 - 460 / Outubro de 2012.

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