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V

O deus da vegetação

o.
o hom em é este trigo recém colhid
Dos vel hos cam pos ceifados pel
CEOFFREY CHA UCE R

a
veg eta ção é o flo res cim ent o ple no do deu s filho e am ant e, um
O de us da qu ali da-
abe lec ida s fir me me nte as gra nd es com un ida des agrícolas. Na
vez est za; na qu ali -
de am ant e da Mã e-T err a, ess e deu s é o Sol e a chu va qu e a fertili
de o res ult ado
a as colheitas qu e ela dá à luz com
dad e de filho da ter ra, rep res ent
l.
da fertilização. O ciclo é inf ind áve ),
s sup rem os de ste con cei to for am Ta mm uz (do Or ien te Mé dio
Ex em plo , qu e lev ou o
ver em os no cap ítu lo XIX , e Os íris do Egito (ca pít ulo XVIII)
que o tem po seu
ese nta nd o o filho Hó rus , ao me sm
c_onceito um est ági o adi ant e apr
filho e seu pró pri o eu ren asc ido . ea
rea l do de us da veg eta ção var iav a com o am bie nte do po vo qu
A forma está conta-
ia. Va mo s exa mi nar o exe mp lo do can ane u Baal, cuja história
conceb
s Shamra.
da viv ida me nte nas táb uas de Ra -
o do de us sup rem o Ele tin ha um a irmã chamadél Anat, sua alia
~aal era filh a, um a
e e deu sa da fer tili dad e qu e apa ren tem ent e havia sido, ela pró pri
da_hnn fato de qu e o
sa da luta, o qu e parece refletir o
Mae-Terra. An at tam bém era deu

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• território cananeu teve dificuldades na agricultura e precisou lutar muito para
conseguir bons resultados.
A função fertilizadora de Baal ern basicamente a da chuva e das tempestades,
fenômenos puramente sazonais que provocavam o crescimento das culturas.
Na estação fértil, Baal desfrutava a companhia de três donzelas, que consti-
tuíam uma deusa da Fertilidade Tripla, jovem e feliz: a nédia donzela, Filha da Ne-
blina; a rutilante Filha das Chuvas; e a Donzela da Terrn, Filha do Mundo Inteiro.
No entanto, por mais organizados que fossem os campos, por mais salva-
guardados que estivessem os poços, nunca era possível superar permanente-
mente um inimigo, que era a aridez do verão tórrido, ocasião da ausência das
tempestades de Baal, tão necessárias à vida. O período da seca era personifica-
do por Mot, terrível deus da esterilidade e da morte.

A cidade dele, em ruím1s;


dilapidado o trono em que ele se senta,
só resta asco na terra que herdou.

Mot enfrentou Baal e matou-o, mas Baal, antes de morrer, fez uma coisa
aparentemente estranha: teve relações com uma novilha. Ora, o touro era um
animal de culto e os cananeus dependiam do gado como dependiam das co-
lheitas. Por isso, sem dúvida o ato de Baal representa a provisão antecipada e
cuidadosa do estoque de gado para enfrentar a estação árida.
Com Baal banido para o Inferno 'como os mortos', era chegada a hora de
Anat (irmã de Baal e deusa guerreira, além de indestrutível deusa da fertilida-
de) fazer alguma coisa. Ela saiu em busca do corpo de Baal, pedindo ajuda a
Shapash, deusa do Sol que tudo vê, até o Inferno, embora transitasse à noite.
Quando ela estava saciada de chorar,
Bebendo lágrimas como vinho,
Gritou bem alto para Shapash, Luz dos Deuses:
Sobe para mim, imploro-te, poderoso Baal!
Como o exemplo de Ishtar e Tammuz, ela própria foi ao Inferno recorrer a Mot,
que foi inflexível; então o aspecto de deusa da luta de Anat entrou em cena.
Ela dominou o deus Mot
e clivou-o com uma lâmina;
com uma pá, joeira-o;
com fogo, seca-o;
com uma pedra de moer, moe-o;
espalha-o pelo campo;
os pássaros comem os despojos,
as criaturas selvagens consomem os fragmentos;
os resíduos são divididos.

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A linguagem ngrícoln tem s ignificndo; no fim do período fértil, os produtos
das culturas s~o colhid0s, joe irndos e moídos. Mas em Canaã tnmbém era cos-
tume oferecer aos deuses os primeiros frutos da colheita, moídos e secos ao
fogo.
Como veremos mais adiante (p. 57), os israelitas muito assimilaram do ri-
tual agrícola sazonal dos cananeus, inclusive a linguagem; e o a to de Anat
ecoou no Levítico 2,14: "Se ofereceres uma oblação de primícias a Javé, será e la
de espigas assndas ao fogo e de grãos novos triturados( ...)".
Assim Baal renasceu e chegou a hora de rejubilar-se:

Pois o Poderoso Baal está vivo,


pois o Príncipe, Senhor da Terra, existe! ...
Dos céus choveu óleo e os rios verteram mel.

Ano após ano, os deuses da fertilização e da esterilidade se alternam na vi-


tória com a deusa da fertilidade, que nunca morre, nem mesmo a cada estação,
sempre desempenh ando o seu papel.
O corresponde nte ciclo humano de rituais, isto é, as estações de luto, sacri-
fício e regozijo, tem uma semelhança inevitável, por mais que as condições lo-
cais varie1n. Com certeza, nos tempos primitivos, o sacrifício era humano. O
Rei do Milho era escolhido pela perfeição física e cumulado de honrarias na
personificaç ão do deus da fertilidade sazonal, que, por ocasião da colheita,
mantinha relações com uma sacerdotisa que representava a deusa e logo de-
pois era morta-por ela ou por um representant e seu. Desempenh ar os papéis
das divindades apropriadas no drama ritual era encarado (e ainda é, instinti-
vamente) como um meio de sintonizar a humanidade com a finalidade das di-
vindades, garantindo assim um bom resultado.
Um trecho do texto de Ras Shamra sugere isto, quando Anat

( ... ) prepara assentos para os guerreiros,


penteadeira s para os soldados,
escabelos para os heróis ...

e depois de uma recepção tão hospitaleira passa a massacrá-los . Feito isso, ela
usa a água do próprio Baal para se purificar (como as sacerdotisas do sacrifício
certamente faziam):

Com as mãos em concha, ela recolhe a água e se lava;


o orvalho do céu, a fertilidade da terra,
a chuva d' Aquele que se eleva até as Nuvens.

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E~t~t· b ;m ho 5<'guc.: o padrJo .idotado por 1T1uit.is deu sas que, d epois d ;i.-. rt"-
J,1çt\cs ~L'x u ;-1is do ri to, bnnhc1vnm-sc para recuperar n vi rgindade no ~cnt1d(J iln-
t1g(), n :-1 o d e cclib,, to m as d e sua condiç,10 de independe nte, n ão pcrtenc<:n té a
ninguém do ::,cx o rn Jsc ulino, seja e le homem o u deu s.
O sacrifício e o aca s.1 l.:11ncn lo do rei e deus do milho deve ter sido e ncarn do
como um a ncces::,idJd c tr b te, mas amorosa, n5o co mo uma o rg iJ sádica . Em A
dt'11~n brnnrn , p. 316, Robert C rJves diz: "Não há dú vidJ d e que, na lenda origi-
na l, fs is foi cúmp lice volunt 5ria de Set no assass inJto de Osíris" .
A trJgéd iJ cru a d o rilu a l primitivo, com o pnpel in ev itável d e a 1T1,rnte e
imoladora desempe nhado por fsis, foi esquecida na le nda cl áss ica, período me-
nos cru el, e m q ue o cos tume de sJcrificar vítimas hum anas j5 havia si d o ab,rn-
donado muito tempo antes. Mas pod emos garantir que Graves tem ra z."ío.
(Os cri s tilos que vêem no sacrifício do Rei do Milho um indício d e b;irbJri-
dJde pJgã d eve riam consid erar o seguinte: o SélCrifício do própri o Cris to, que
fni aco mp ;rnhado d e escárnio, e n5o de honra, tamb ém é encJrJd o com o um
ep isódio tris te mJs inevitável da meta divina, o bem-estar da hum anidade; e o
símbolo mai s sagrndo da cristandade é um ins trumento de execuç5o por to rtu-
ra . N e m sempre as verdad es espirituais s5o confortáveis.)
Naturíllmente, o massacre dos 'heróis' por Anat pode ter sido ape nas umJ
le mbr.1nça tfa prática do sacrifício humano de épocas muito anteriores; a men-
ç5o da o f~renda das primícias que fizemos na p. 31 e no verso do Levítico s uge-
re q ue tai s o ferend.1s já hJviam substituído o sacrifício humano.
E as o ferendJs desse tipo permanecem até hoje nos 101 trajes típicos va ri;-i -
dos, ma s seme lh;mtes, que s5o dedicados especialmente à prime ira colhe ita.
Voltaremos a outro aspecto do tema da fertilidade cíclica do deus n o cap ítu-
lo JX, e ao te ma do Rei do Carvalho, do Rei do Azevinho e do deus Sacrificado,
no capítul o X.

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