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GEORGES DUBY
GUilHERME
MARECHAL
ou o MELHOR CAVALEIRODO MUNDO
TRADUÇÃO
Renato Janine Ribeiro
3l! Reimpressão
Copyright by
Librairie Artheme Fayard, 1984
Traduzido do original em francês
Guillaume le Maréchal ou le meilleur chevalier du monde
Tradutor do Poema
Eugênio Gardinalli Filho
Capa
1
Marcela Sion
Revisão Técnica
Margareth Rago
Stela Bresciane
Copydesk
...._@_....
Sonia Maria Amorim
Revisão
Flávia Ribeiro
Franz Keppler CONDE Marechal não agüenta mais. Agora
Barbara E. Benevides
Arnaldo Rocha Arruda O se sente esmagado pelo cargo. Faz três anos,
quando o instavam para assumir a regência, que
1." Edição: Fevereiro de 1988 ele terminou aceitando ante tão forte insistência,
. .
CIP-B~asil. Catalogação-na-fonte tornando-se "guardião e senhor" do rei-menino e
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
de todo o reino da Inglaterra, ele havia dito e repe-
Duby, Georges
tido: "Estou velho demais, fraco e alquebrado". Ti-
G974 Guilherme Marechal, ou, o melhor cavaleiro do mundo I nha mais de oitenta anos, afirmava. Exagerava um
Geo~gesDu~y_; tradução, Renato Janine Ribeiro. - Rio de
J aneiro : Edlçoes Graal, 1987. pouco, pois não sabia exatamente qual era sua ida-
chev~[:rduJ:o m~:~e.GuiIhaume le Maréchal ou le meilIeur
de. Mas quem sabia, naquela época? Na vida, as
datas mais importantes eram outras, não a de nasci-
1. Guilherme, o Marechal B' f 2
Militar. 1. Título. n. Título: O mclh%c~.:at:iro do ~:J~~
'. .
mento. Esta se esquecia. E eram tão poucos os mui-
to velhos que os outros até os envelheciam - e eles
87-1040 CDD - 923.544
próprios se envelheciam ainda mais. Aliás, nós tam-
pouco sabemos com precisão quando nasceu Gui-
lherme Marechal. Os historiadores fizeram contas,
Direitos adquiridos por
EDIÇÕES GRAAL LTDA.
suposições; e propõem: por volta de 1145. Sem
Rua Hermenegildo de Barros, 31-A muita exatidão. O Marechal saiu de um meio muito
Glória, Rio de Janeiro, RJ inferior para que adiante fuçar nos arquivos. Ao
CEP: 20.241 passo que, no ano de que agora estou falando, 1219,
Te!.: 252-8582
a fortuna já o elevou tanto que podemos acom-
1995
Impresso no BrasillPrinted in Brazil 7
panhar dia após dia, ou quase, seus últimos feitos corpo do qual ele é a cabeça. Um grupo de homens.
seus últimos gestos. ' Os seus homens: cavaleiros de sua casa; e, ainda, seu
Guardara o vigor quase até o fim. No dia 20 de filho mais velho. Precisa desse séquito numeroso pa-
maio de 1217, foi visto lutando em Lincoln como ra o grande espetáculo que vai começar, o da morte
um .moço co~ os m?ços. Três meses depois, até principesca. Logo que todos se juntam para compor
precisaram retê-Io: pois ele não queria tomar parte o cortejo, ele manda que o carreguem. Em sua casa,
com os marinheiros de Sandwich, na abordagem da afirma, sofrerá mais à vontade. Melhor morrer em
frota francesa? Mas, na festa da Candelária de 1219 casa do que> em qualquer outro lugar. Levem-no a
desabou de repente. Ele pressentia isso, e fazia algum Caversham, à sua casa solarenga. Possui muitas des-
tempo que, sem ,na?a dizer a ninguém, já se prepa- tas, mas é esta que escolhe porque, do lado da região
rava para sua ultima aventura. Veio passar uma em que nasceu, é a mais próxima e acessível. Não
t~mporada. no cas~el? de Marlborough, onde é pos- dá mais para andar a cavalo: o rio Tâmisa é o me-
SIVel que tivesse vivido seus primeiros anos. A 7 de lhor caminho. E assim, no dia 16 de março, o conde
março está em Westminster e dali, "cavalgando com Guilherme é "ataviado" pelos seus numa barca, a
sua dor", chega à Torre de Londres, como se qui- sua mulher na seguinte, e começa a viagem a remo,
sesse o aconchego e a proteção das muralhas da velha sem afã, sem pressa.
fortificação dos reis. Vai deitar-se. A quaresma está
apenas. começando. Pode-se sonhar com época mais Desde que chegam, sua primeira preocupação
apr?pnada para sofrer, aceitar a dor, suportá-Ia, é libertar-se do fardo que tanto lhe pesa. Pois o
a fim de ter a remissão dos pecados e purificar-se homem que se aproxima da morte deve desfazer-se
lenta, calmamente, antes da grande passagem? A pouco a pouco de tudo, começando por abandonar
condessa está a seu lado, como sempre. Quando a as honrarias do mundo. Primeiro ato, primeira ceri-
doença. piora, quando os médicos confessam que na- mônia de renúncia. Ostentoso, como serão também
da mais podem fazer, Guilherme manda chamar os atos seguintes, pois naquele tempo todas as belas
todos os que, quando ele saía, formavam sua escolta. mortes são verdadeiras festas - elas exibem-se co-
Naturalmente. Assim tinha de ser. Pois quando, em mo num teatro, perante grande número de especta-
sua vida, ele esteve sozinho? Quem aparece só, no dores, de ouvintes atentos a cada atitude, a cada
começo do século XIII, a não ser os insensatos, os palavra, atentos a que o agonizante manifeste seu
possessos, os marginais perseguidos? A ordem do valor, a que fale e aja segundo a sua posição, a que
mundo exige que cada qual esteja envolvido num legue um derradeiro exemplo de virtude aos que lhe
tec~do de solidariedades, de amizades - num corpo. vão sobreviver. Cada indivíduo, dessa maneira, ao
Guilherme então convoca todos os que formam o deixar o mundo tem o dever de contribuir uma últi-

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ma vez para fortalecer a moral que conserva íntegro
teiro real e à sua volta. Guilherme, porém, não pode
o corpo social, fazendo sucederem-se as gerações na
deixar o leito. Será preciso que os mais importantes
regularidade que agrada a Deus. E nós, que não sa-
senhores do reino atravessem o rio, venham à sua
bemos mais o que é a morte suntuosa, que esconde-
cabeceira. Dia 8 ou 9 de abril, então, entram em
mos a morte, que a calamos e expelimos apressados,
seu quarto, acompanhando um menino de doze anos,
como algo que incomoda e perturba, nós, para quem
o reizinho Henrique. O Marechal começa sua aren-
a ~oa morte deve ser solitária, rápida, discreta: apro-
ga falando a esse menino: escusando-se de não pod.er
veitemos que a grandeza alcançada pelo Marechal
guardá-lo por mais tempo, desenvolvendo u.m dis-
o mostre a nossos olhos, brilhando com luz excepcio-
curso moral, esse discurso que, segundo os ntos? os
nal, e acompanhemos a cada passo, a cada pormenor,
pais devem dirigir em seu leito de morte ao filho
o ritual da morte à maneira antiga, que não era uma
primogênito, seu herdeiro. Guilherme admoesta a
partida furtiva, esquiva, porém numa chegada lenta,
criança, exorta-a a viver no respeito d.a moral, re-
regrada, governada - um prelúdio, passagem solene
zando a Deus, afirma, para que Hennque desapa-
de uma condição para outra, superior, mudança de
reça cedo se por alguma desgraça se tornar desleal
estado tão pública quanto as bodas, tão majestosa
como, infelizmente, alguns de seus avós. E toda a
quanto a entrada dos reis em suas leais cidades. A
companhia repete amém. O Marechal então dispen-
morte que perdemos, e que talvez nos faça falta. sa a todos. Ainda não está pronto. Precisa de um dia
inteiro para escolher quem lhe sucederá na guarda
do rei menor. Quer afastar o bispo de Winchester,
voraz, que minutos atrás se agarrava ao adolescente,
A função da qual o Marechal ainda se encontra imaginando tê-lo em suas mãos, dado que, em 1216,
investido é tão pesada que todos os que têm alguma o Marechal lhe confiou como que uma subtutela do
importância no Estado têm de ver, com os próprios menino, frágil demais na época para seguir o re-
olhos, como ele a abdica, como ele a abandona. O gente em suas cavalgadas sem fim, e por isso agora
rei, é claro, igualmente o legado papal - posto que desejaria tê-lo só para si. Guilherme quer meditar,
Roma, nesse primeiro quartel do século XIII, con- aconselhar-se, com seu filho, com sua gente, com os
sidera que o reino da Inglaterra está sob sua pro- íntimos. Em família, no seu círculo mais fechado,
teção, sob seu controle -, o justiça-mor da Ingla- decide: hoje há rivalidades demais no país. Se con-
terra e, ainda, todos os principais barões. Verdadeira fiasse Henrique, terceiro de seu nome, a algum, os
multidão, que se reuniu para ver. Não caberia na outros ficariam despeitados, e a guerra recomeçaria.
Só ele, em meio a todos os barões, tinha autoridade
casa solarenga de Caversham. Acampa na outra mar-
indiscutível. Quem poderá substituí-Io? Deus, Deus
gem do rio, em Reading, no interior do grande mos-
tão-somente. Deus e o papa. A eles, então, ele cederá
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el-rei - isto é, ao legado que representa a ambos na subir. Convém que, no momento do exitus, da saí-
Inglaterra. da, o agonizante se mostre nu, assim como saiu do
ventre de sua mãe. Parte para um re-nascimento.
Isso ele faz no dia seguinte, ainda deitado, mas Para uma vida nova, que vale mais que esta. E este
apoiando-se de lado, erguendo-se assim o mais que segundo nascimento, a morte, vale mais que o pri-
pode, pedindo ao rei para se aproximar, seguran- meiro. Era essa data, na vida de cada pessoa, a que
do-lhe a mão, depois entregando-o em mãos do lega- se fixava melhor nas memórias, na época em que vi-
do, mandando finalmente que seu filho atravesse o veu e morreu Guilherme Marechal.
Tâmisa e vá a Reading, onde está reunida a corte Prossegue o despojamento. Agora que o Mare-
inteira, para em seu nome, diante de todos, esqui- chal abandonou o ofício público, aguarda-se que ele
v~ndo o bispo de Winchester que ainda insiste, que abra ainda mais a mão e largue o que ela ainda con-
amda se agarra ao pescoço do menino corado, repetir serva, seus bens particulares, todas as suas terras.
o gesto que acaba de ser feito com as mãos - esse Os espectadores, os ouvintes aguardam a segunda
sinal tão simples, tão visível, esse rito de desinves- cena do primeiro ato, a da distribuição, da divisão
tidura e de investidura pelo qual se consuma a trans- da herança. Que o morto transmita ao vivo, quer
ferência de posse.
dizer, que ele prontamente transfira a posse dos bens
Está aliviado. Anoitecendo, volta a falar, diz àqueles vivos que têm direito ao que ele possuiu até
as palavras que tem de dizer. Escutemos suas pala- o momento presente, aos bens que ele recebeu, tam-
vras, ou pelo menos essas cuja memória mais tarde bém, de outra pessoa. Desta feita não há gestos.
se preservou, após sua morte, na casa de seus herdei- A assistência não segue com os olhos um objeto
ros, essas que eles julgaram dignas de sua glória: passando de uma mão a outra. Ela escuta. Essas pa-
"J~ estou liberto. Mas convém que eu prossiga e lavras ela estoca na memória, para repeti-Ias mais
c~lde de minh'alma, já que meu corpo está em pe- tarde, se preciso for. Guilherme, em voz alta e clara,
ngo de morte, e que, diante de vós, terminei de me enuncia suas vontades. Na verdade ele tem pouquis-
libertar de todas as coisas da terra para só meditar, sima liberdade. Cada qual sabe com relativa precisão
agora, nas do Céu". É esse o percurso segundo as o que há de caber a Fulano ou Beltrano conforme o
regras. Dos corpos temos de nos livrar como se costume, essa lei não escrita, porém tão impositiva
fossem andrajos inúteis, e igualmente de tudo o quanto os códigos mais rígidos. A regra, por sinal,
que se prende à carne, à terra. O homem que está é bastante simples: existe um único herdeiro "na-
morrendo deve gastar suas últimas forças libertan- tural", o homem em quem o defunto há de sobrevi-
do-se desse lastro, para poder elevar-se mais depressa ver, que porta o mesmo nome que ele, Guilherme,
e mais alto. Pois a questão é essa mesma: decolar, Marechal, junior - seu primogênito. Por esse título,
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por ser homem e porque nasceu primeiro, teria di- época, está obrigada a transmitir intacta, ou mesmo
reito a tudo. Pois lhe compete ocupar ao lado da aumentada, à geração que se segue: este solar, o
rr: ãe o lugar que seu pai já vai abandonar, e prote- Marechal acaba de adquiri-lo, por isso tem a liber-
dade de aliená-Ia como melhor lhe parecer.
ge-!a, contra os outros e contra si mesma, e ainda
gerir os seus bens. Com efeito, à esposa, que tam- Falta Anseau, o filho mais moço, ainda bem
bém o ouve, Guilherme, o Velho, nada lega. Nem novo. Para ele já não há terra. E Guilherme fala:
poderia legar. Pois tudo o que ele possuía, ou quase, "Ele me é caro. Mas que viva para ser cavaleiro,
e de que agora se despoja, pertence a essa mulher que ascenda conquistando honra; então encontrará
veio dos ancestrais da mulher, e ele só teve em nome alguém que lhe tenha amor, e que grande honra
dela, "por sua autoridade". E esses bens enormes o lhe preste, honra sem igual". Prestemos atenção: no
filho mais velho também os terá em mãos, até a seu caçula, no filho que é o mais próximo de sua
morte dela, na mera qualidade de herdeiro legí timo, carne, senão do coração, porque é provavelmente o
Mas Guilherme, o Moço, tem quatro irmãos e único que ainda não deixou a mansão paterna para
cinco irmãs. Não parece que os outros rapazes esti- fazer o aprendizado no mundo, o agonizante vê um
vessem presentes. Sabemos, em todo o caso, que o destino que poderá assemelhar-se ao seu, como ele
mais velho, Ricardo, estava muito longe nessa oca- partindo do nada e alçando-se heroicamente, apenas
sião, na França e no campo inimigo, na corte de com as próprias forças, até alcançar a glória. Sua
Felipe Augusto. O auditório fica sabendo que esse decisão expressa confiança e, quem sabe, ternura.
segundo. filho recebe parte da sucessão, parte aliás Porém seu velho amigo João de Early intervém com
substancial - o senhorio de Longueville, na Nor- uma advertência: "Não podeis tratá-lo assim; dai-
mandia, pelo qual Guilherme, o Pai, em tempos pas- lhe algo de vosso haver (isto é, de vosso dinheiro),
sados, prestou homenagem ao Capeta. É um favor, pelo menos para que possa mandar ferrar seu cavalo.
mas que é prudente conceder-lhe a fim de acal- Agir de outro modo será agir mal". Guilherme con-
má-Ia, contestá-Ia - para que não vá, como tantos corda; mas não tira terra do herdeiro; em favor de
filhos mais novos a quem o pai nada deixou, invejar Anseau institui, sobre a herança, uma renda anual
o mais velho, intrigá-Ia, odiá-Ia. Gilberto, terceiro de cento e quarenta libras. Uma pensão, que lhe
filho, já está instalado na Igreja, e bem instalado, será cortada se ele se portar mal. Mas a soma não é
tendo seu lugar, e lucrativo: ele não precisa de nada, pequena: com ela dava para comprar, na época,
e nada recebe. Gauthier, o quarto, ganha um solar, três excelentes cavalos de guerra.
porém pequeno e que não lhe vem do patrimônio E as filhas? Graças a Deus quatro já estão
ancestral; um tal legado não amputa a base fun- casadas, e muito bem casadas, com o que há de mais
diária de poder e prestígio que cada geração, nessa rico entre os barões da Inglaterra. Portanto já re-

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ceberam o dote, que o pai lhes deu antes do casa- mogenitura, porém atenuado por alguns dons me-
mento; nada mais têm a esperar dele. Porém a mais nores em favor dos irmãos, para não acabar com
nova, Joana, continua solteira, e isso inquieta o mo- a amizade fraterna: tais usos garantiam a estabilida-
ribundo: "Não a dei em vida. Ai! Isso consolaria a de dos patrimônios, e por conseguinte a dos alicer-
minha. alma". Era essa a preocupação dos pais: evi- ces em que se fundava a superioridade da classe do-
tar deixar órfãs solteiras. "Desoladas", isto é, sós. minante, numa hierarquia das condições ter renas
Sem um homem que cuide de arranjar-lhes marido considerada em harmonia com as intenções divinas.
aceitando pagar o preço do matrimônio. Pois, na Nessa época o costume sustenta a ordem do mundo.
época, não se usa desposar uma mulher que nada Ele é como que sagrado, indestrutível. Mas ainda
possui, e na sociedade mais elevada é até costume os assim convém que o chefe da casa, no momento de
homens se unirem a mulher mais rica que eles. As entregar a alma, enuncie claramente suas vonta-
donzelas sem arrimo, sem haver, dificilmente encon- des, suas escolhas. Palavras, acima de tudo, e públi-
tram pretendente e, se as bodas demoram demais , cas. Já bastariam. Mas além disso se toma o cuidado
essas moças correm um grande risco, como Guilher- de confiá-Ias ao texto escrito, para que tudo fique
me Marechal sabe muito bem, "de cair na vergo- bem estabelecido. Não há tabelião aqui, na época.
nha". Fora do controle masculino, são poucas as O ato é redigido na própria casa, por servidores que
que não perdem a vergonha. Guilherme pode contar saibam escrever. Guilherme manda apor-lhe seu selo
com o filho mais velho, é claro, cujo dever é obter o privado, e que também aponham os seus a esposa
mais rápido possível um marido para a irmã. Para e o primogénito, que são, além dele, os únicos pos-
facilitar-lhe a tarefa, para, além disso, atrair even- suidores de todo o restante: o que ele legou ele lhes
tuais candidatos, o pai faz o que está a seu alcance tirou. Mas isso ainda não é tudo. Manda que o
e que todos julgam suficiente: institui, em nome de pergaminho seja levado ao arcebispo de Canterbury,
Joana, outra renda, mais baixa, de trinta libras' ao legado, aos bispos de Salisbury e Winchester, para
além disso tira do seu tesouro, do qual pode dispo; que também o selem e fulminem, contra eventuais
a seu bel-prazer, uma soma vultosa de dinheiro, du- infratores, as excomunhões rituais. Munida dessas
zentos marcos, para que ela tenha o seu enxoval.
garantias, a peça é guardada num cofre. É pouco
provável que seja preciso lê-Ia algum dia. Mas as
palavras congeladas, que ela conserva feito relicário,
pertencem agora ao tesouro da família.
Disposições testamentárias dessa ordem eram as
vigentes, no começo do século XIII, no meio aris- O homem que está morrendo, vagarosamente,
tocrático da Inglaterra e da França do Norte. Dotes já está liberto do que mais lhe pesava. Mas continua
que excluíam as filhas da sucessão, o direito de pri: preso à terra pelo corpo. Segundo as regras, a preo-

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cupação com o corpo intervém nesse momento do irmãos templários me enterrarem deixai-a a eles,
espetáculo, terceira fase do progressivo desnudamen- para que dela façam o que melhor lhes parecer".
te. O Marechal volta-se para João de Early: "Ide
buscar dois lençóis de seda, lá, com Estêvão, a quem
os deixei em depósito". Quando os tem em mãos,
fala a Henrique, filho de Geraldo. É o segundo em Enquanto somente se falava em herança, ainda
amizade dentre os seus companheiros mais fiéis, po- não parecia dado o passo final: já não se tin~a ou-
rém nem Henrique nem João de Early é parente ou vido, vinte anos antes, Guilherme Marechal ditando
igual de Guilherme; estão abaixo dele, que os do- seu testamento? Porém agora ele falou em enterro,
mina, e por isso nada o impede de amá-los de todo e mencionou o cortejo de seus funerais. Descobre-se
o coração: sente-se que lhes tem maior afeto do que que, desta vez, é para valer, que ele se apresta para
a seus filhos, mais confiança, também, de que eles a partida. Começa, pois, neste instante, a demons-
constituem seu mundo mais Íntimo. "Parecem desbo- tração de luto. Primeiro as lágrimas. Todos os que
tados? Quero-os abertos." E então se desenrola o moram na casa se põem a chorar, terna e dolorosa-
pano belo e de boa qualidade, exposto à admiração mente. Todos os homens, o filho, os cavaleiros e
dos presentes, do filho e de todos os cavaleiros domés- valetes até os mais humildes dentre os servidores.
ticos: "Senhores, olhai bem. Tenho estes panos já Às lágrimas femininas ninguém dá grande impor-
faz trinta anos; quando voltei do Ultramar trouxe- tância. Mas o aumento das masculinas marca o tér-
os comigo, para o uso que agora terão. Haveis de mino do primeiro atO. Guilherme, o Moço, sai então
cobrir com eles meu corpo, quando eu for enterrado. do quarto, chamando os cavaleiros que ain~a não
- Mas onde?" O herdeiro, que vai cuidar dos fune- estão presentes. Pois chegou a hora de orgamzar as
rais, formula a pergunta premente e grave que está vigílias. O morrente já escolheu sua sepultura, o
na mente de todos. Pois cabe ao agonizante designar lugar onde deseja que seu corpo jaza,. aguardando
o lugar de sua última morada, exprimir, nesse mo- a ressurreição. Com essas palavras, confiou esse cor-
mento exato, o desejo que tem relativamente à carne po aos que executarão suas vontades; el~ já não é
que vai abandonar. "Bom filho, quando eu estava no inteiramente seu. Aliás, já nem está tão firmemente
Ultramar dei meu corpo ao T emplopara nele re- preso a sua alma. Por conseguinte, deve ser estrita-
pousar após minha morte." E depois, voltando-se mente guardado por aqueles que cuidam dele. O en-
para João de Early: "Vós me cobrireis com os len- voltório corporal agora desliza rumo à morte - não
çóis quando eu morrer. Com eles cobrireis o esquife. se sabe que movimentos logo o agitarão, mod~fic.an-
E, se fizer mau tempo, comprai um tecido cinzento, do-lhe cor e odor. Ele inquieta. Não deve mais ficar
bom e grosso, qualquer tecido, colocai-o por cima sem vigilância, não se deve abandonar à sol~dão~ssa
para que a seda não se estrague, e depois que os pessoa que tragicamente se desfaz. Junto ao corpo
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deve haver uma guarda permanente. Três cavaleiros. hesitação ou murmúrio, nada terem de próprio, não
Eles se revezarão dia e noite. Na companhia de João tocarem nas mulheres, renunciarem à jactância, ao
de Early e Tomás Basset, Guilherme, o Filho, o su- jogo, a tudo o que é ornamento inútil. Admirou-os
cessor, cumprirá o turno mais perigoso: velará de como alguém que conhecia o ofício: combatentes,
noite, nessas horas turvas em que ronda o demônio. alegres, mais capazes do que ninguém. Julgou que
Neste instante também entram em cena as na pessoa deles se conjugam os méritos das duas ca-
preocupações religiosas. O que aprendemos graças tegorias dominantes da sociedade humana, a ordem
aos últimos momentos de Guilherme Marechal é dos religiosos e a dos cavaleiros, e que por isso tais
muito precioso para nós, historiadores. Com efeito, homens se postavam, com toda a evidência, na van-
a narrativa que estou explorando revela com muita guarda dos que hão de ter o Paraíso. Decidiu, por-
crueza a maneira pela qual os homens dessa época tanto, ainda na Terra Santa, fazer parte de sua com-
e situação social viviam o cristianismo. E assim per- panhia. Mas, hesitando em abandonar tão pronta-
mite retificar dois depoimentos falaciosos, primeiro mente o mundo secular, limitou-se então, como
o da literatura hagiográfica, que faria tomarmos to- disse ainda há pouco, a se "dar". Era esse um pro-
dos os cavaleiros por outros tantos santos Alexis ou cedimento usual, naquela época. No final do século
Maurício, contritos numa devoção dócil, e também XII, muitos fidalgos (cujos avós, nos tempos idos,
o da literatura de ficção romanesca, que se desen- pediam no leito de morte a graça de vestir, para a
volveu contestando a ideologia clerical e que, por passagem, a túnica de burel dos beneditinos) assim
isso mesmo, exagera o aspecto profano. A devoção se filiavam à florescente congregação dos templá-
autêntica que se descortina é confiança em Deus, rios, vinculando-se desde já, porém aguardando para
serena, com um moderado recurso aos padres. E é completar a sua integração uma hora mais avança-
no quadro institucional mais harmônico com o es- da de sua vida, o momento preciso, ao aproximar-se
pírito da cavalaria, a Ordem dos Templários, que a a morte - quando, consumando in extremis o seu
preocupação religiosa se manifesta em primeiro compromisso, se beneficiariam de todas as graças
lugar. prometidas aos membros plenos da companhia. Para
Durante a peregrinação que o fez passar vários Guilherme chegou a hora, ele bem sabe: "Não tem
meses na Terra Santa (o "Ultramar"), em 1185, disposição de esperar mais".
Guilherme Marechal pôde ver em ação, no auge de Aimery de Sainte-Maure, nascido na Touraine,
seu poder, esses monges guerreiros. Observou-os, ex- amigo dos reis Plantagenetas, mestre da comenda-
pondo o corpo ao perigo na luta pelo Cristo, en- doria do Templo em Londres, foi prevenido. Sabe
quanto permaneciam estritamente submissos à dis- que o Marechal quer ser enterrado na casa que ele
ciplina monástica, que lhes impunha obedecerem sem governa. Chega a tempo para proceder à recepção
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querem seguir a moda, na devoção como no :-esto?
do agonizante. Ela terá lugar, solene, perante todos
Ele agora parece um raro testemunho de aritudes
os seus, posto que deles se vai separar para ingressar
superadas pelo tempo. Tem perfeita consciência dis-
em outra família. Também as mulheres, suas pa-
so, e afirma: "Escutai-me; há muito tempo que me
rentas, devem assistir à cerimônia. São chamadas a
dei ao Templo; para e Ie agora me vou. "
condessa e as filhas. O rito ainda é de passagem. Pas-
sagem da cavalaria simples à "nova" cavalaria, como Peguem então no seu guarda-roupa o manto
dizia São Bernardo, à cavalaria renovada, a desses branco com a cruz vermelha: faz um ano que ele
"homens novos" que decidiram tornar-se mais per- a mandou costurar, e Godofredo, o Ternplário, é
feitos. É bem possível que tal rito, no começo do o único a saber de sua existência. Está deitado. Im-
século XIII, já pareça um pouco antiquado. As for- possível vesti-Ío com a capa. Ordena que estendam
mas de devoção evoluem muito rapidamente, nessa a sua frente esse emblema de sua nova condição.
época. O monaquismo está em decadência, e espe- Mudar de ordem é mudar de hábito. É, acima de
cialmente o monaquismo militar. São cada vez mais tudo, mudar a maneira de viver, contrair novas
raros os moços que ainda querem se fazer ternplá- obrigações. Agora Guilherme é um templário '. ~ara
rios, juntando-se a esses cavaleiros cujo fracasso é sempre. Os templários são monges. Estão proibidos
tão patente nas terras de além-mar, e de quem se de se aproximar das mulheres. Portanto Guilher-
comenta que não são tão puros, que não deveriam me não se aproximará mais da sua. Nesse instante,
mexer tanto com o dinheiro, e a respeito dos quais pois, separa-se daquela que nestes vinte anos fez,
já corre a suspeita de que se dediquem a curiosas com ele, uma só carne: "Bela amiga, beijai-rne, nun-
práticas no segredo das comendadorias. Mas Gui- ca mais me beijareis". Ergue-se da cama o mais que
lherme é um sobrevivente. Não é comum viver tan- pode, para que, num derradeiro beijo, suas bocas se
to quanto ele em seu meio - entre cavaleiros que unam. O choro aumenta. A condessa e as filhas, des-
comem como lobos, bebem como condenados e que falecidas, são retiradas da câmara, enquanto Mestre
morrem de congestão, quando não é de um golpe Aimery toma a palavra e, diante de uma audiência
brutal em pleno exercício de seu mister, o das armas. exclusivamente masculina, pronuncia as palavras
Até hoje, por exemplo, nenhum dos reis de França consagradas.
passou dos cinqüenta anos. Para atingir sem proble-
mas essa idade é preciso ser bispo ou então monge
de Cluny. Trinta anos são passados desde a doação
Agora tudo o que resta é deixar correr o tem-
que o Marechal fez de si mesmo. Será que ele assu-
po, é aguardar, seguir o andamento dessa agonia.
miria hoje o mesmo compromisso, agora que já faz
que se arrasta. Ela já demora dois meses, e com e~a
muito tempo não pertence à baixa cavalaria, po-
o grande espetáculo que estou descrevendo, cUJO
rém à sociedade mais elevada, na qual todos sempre
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ritmo se estira excepcionalmente. O público poderia defunto que canta, se não forem os salmos da peni-
cansar-se. Porém persevera. A câmara não se esvazia. tência, em uníssono com os oficiantes: que escân-
Para ver como morre o Marechal, os espectado- dalo. Então Henrique, seu outro amigo íntimo,
res se acotovelam ao lado do filho mais velho, quase aconselha-o: "Chamai vossas filhas, elas cantarão por
sempre sentado, paciente, fiel, cumprindo perfeita- vós. Vereis o bem que isso vos fará". Elas entram
mente o papel que é seu, à cabeceira do leito de no quarto. Guilherme manda que a mais velha, Ma-
morte. Uma tal afluência, uma tal assiduidade ates- falda, a "bigota", casada com Bigot, futuro conde
tam o prestígio desse que lentamente vai partindo. de Norfolk, comece o canto. Ela obedece; força-se
Por isso toda a casa se rejubila, dedica-se a prolon- a fazê-lo; mas é evidente seu contragosto. Depois
gar ao máximo essa maravilhosa longevidade: por- é a vez da mais nova, a donzela, a ingênua, por
que ela confere glória à família. Guilherme não isso mais chorosa que as irmãs. Sua garganta se
sente mais fome. Precisa comer, para que a nature- fecha; ela se perde. Seu pai, que pensa tratar-se
za continue a "fazer nele seu trabalho". O tem po de timidez, repreende-a: "Não tenhas vergonha".
todo estão- a incomodá-lo, a enfiar-lhe comida , es- E depois lhe mostra como deve fazer, como cantar
farelando' pão sem ele perceber entre os cogumelos as pa Iavras, ((
uma a uma ".
que ainda aceita comer. Todos se inquietam. Enga- Essa noite foi a última em que viu as cinco
no: a vida cola-se estreitamente a essa enorme car- filhas e, depois de mandá-Ias de volta à mãe, ele, que
caça. Chega até mesmo, em certas ocasiões, a ani- sempre foi tão senhor de si, parece que se sentiu
mar-se de força juvenil. Um dia, o moribundo in- extraordinariamente comovido. Represando a dor,
terpela João de Early: "Posso dizer-vos grande no- passa rapidamente aos assuntos sérios, explica no por-
va? - Podeis, senhor, desde que não vos canse falar. menor ao filho que ordem devem seguir seus fune-
- Não sei de onde isso me vem, porém há mais de rais: que Guilherme, o Moço, esteja o mais perto
três anos que não sinto uma vontade de cantar tão possível dele quando entrar, quando seu corpo en-
grande como a que tenho faz três dias. Ora, per- trar, melhor dizendo, em Londres. Quer também
gunto se Deus veria isso com bons olhos? - Ide, que se pense nos pobres. Serão multidão, já sabe,
senhor, cantai. A natureza se fortalecerá em vós. no cortejo fúnebre. É raro um serviço tão opulento.
Será bom se isso vos der vontade de comer. - Ca- E decide que desses pobres pelo menos cem receberão
lai-vos. Cantar não seria direito. As pessoas a minha comida, bebida e roupas após a festa.
volta pensariam que enlouqueci, acreditariam que O dia inteiro insistem com ele. Instam-no a se
perdi a cabeça". alimentar - sem descanso: precisa comer -, ins-
Realmente, tem todo o cabimento cantar du- tam-no a cuidar da alma - sem descanso: precisa
rante as bodas ou depois dos torneios. Mas um quase dar. Porque dar é lavar em águas abundantes o pe-

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cada. Já que a terra que ele detinha por autoridade em perigo, espalhando as dádivas entre os pobres de
da esposa agora saiu de suas mãos, está nas do her- Cristo, a começar por aqueles que não apenas nada
deiro, para a salvação precisa despojar-se do que possuem, como ainda santificam sua pobreza pela
ainda lhe resta, isto é, de seu tesouro, desses valores abstinência e a prática do ascetismo, e cujas orações
móveis, tão preciosos, e que são SÓ dele, sobre os por isso mesmo são as mais eficazes, as mais capazes
quais tem todos os direitos, que se sabe estarem em- de aplacar a ira de Deus. Porém o agonizan.te tam-
pilhados em seu quarto, no reduto tão bem fechado bém pode salvar a própria alma, e talvez seJa quem
onde estão guardados adornos, roupas, moedas, anéis. mais o possa - acertando o que deve, reparando os
Chegou a hora de dispersar esse monte de riquezas, males que infligiu. Pois não basta confessar as faltas
cujo peso poderia fazer a alma do dono pender para cometidas; exige-se, de quem vai morrer, que reme-
o lado da condenação. É o que os homens de Igreja more os nomes de todos a quem lesou no curso de
não se cansam de lhe repetir. Pois eles estão presen- sua vida, para agora os ressarcir. Deve restituir tudo
tes, em número cada vez maior, atraídos por isca o que tomou, as presas que fez por cobiça, se ~uer
tão formidável. Entre eles o abade de Nutley, um escapar, na outra vida, dos tormentos. Isso os amigos
mosteiro da congregação de Arrouaise, retornando, de Guilherme lhe repetem sem descanso, a ponto de
ao que diz, da reunião do capítulo geral; lá se soube aborrecê-Ia. Irritado, ele chega a tratá-los com as-
que o Marechal passava por maus momentos; os cô- pereza. Mas o momento é gravíssimo. Os riscos que
negos decidiram acolhê-lo como confrade, e repar- ele corre são enormes. O que Guilherme arrisca é
tir com ele as graças de que dispõem devido às tudo. E no entanto não hesita em dizer, em voz alta,
preces e às boas obras praticadas por ordem tão o que pensa, e que pode parecer descabido. Ele sabê
caridosa; o abade vem justamente trazer essa boa muito bem qual será o alcance de seu discurso. Dele
nova; traz consigo as provas, as cartas seladas de se espera, como de todos os moribundos, cujas pala-
que se muniu. Que o moribundo fique tranqüilo. E vras são ouvidas com atenção, que pregue uma úl-
seja generoso. Ele será. Todos, a sua volta, o pres- tima lição, expondo a boa moral.
sionarn. Essa moral não é a dos padres, que só a eles
O principal é que ele não esqueça nada. Esva- aproveita. Nem é a dos tartufos. É a moral da cava-
zie todos os cofres. Os mais ardentes, mais empe- laria. Ora, e é isso o que nos importa; dessa moral os
nhados em estimular sua largueza são, é claro, os historiadores sabem muito pouco. Prestemos atenção,
amigos mais próximos, os que o amam de verdade, pois, como prestou nessa hora, ao redor de seu leito,
Henrique, filho de Geraldo e o letrado da casa, Fe- a assistência inteira, registrando com todo o cuidado,
lipe. Esses nada reclamam para si mesmos. Desinte- para a posteridade, para a linhagem, a sentença que
ressados, somente se preocupam em salvar uma alma ele teve a coragem de enunciar: "Os homens de Igre-

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ja caem em cima de nós; eles nos arrancam o que Realmente, o primeiro cuidado do senhor é não
podem. Na minha vida venci pelo menos quinhen- transgredir os preceitos da moral doméstica, que o
tos cavaleiros, tornando-lhes portanto armas, cava- obriga a tratar o melhor possível seus familiares,
los e arreios. Se por causa disso o Reino dos Céus nem os da moral social, que ordena aos cavaleiros,
me for recusado, o que hei de fazer? Como preten- cuja ordem se situa no topo da hierarquia, que se
deis que eu devolva tudo? Nada posso fazer por ataviem com mais riqueza que todos os outros ho-
Deus além de me entregar pessoalmente a Ele, ar- mens. O bom senhor pensa primeiro nos seus, nes-
rependido de todas as más ações que cometi. Se os ses que ele reúne em sua casa e que tudo devem à
padres não querem que eu seja banido, rejeitado, sua largueza. O bom senhor, como o rei São Luís
excluído, devem deixar-me em paz. Ou o que dizem daqui a poucos anos, também conhece a importân-
é falso, ou então nenhum homem há de encontrar a cia dos adornos corporais, numa cultura baseada na
salvação" . ostentação e exibição, numa sociedade que julga o
homem pelo que ele porta sobre o corpo. Sabe que
E mais tarde, nos instantes finais, quando lhe
vêm recordar que seu guarda-roupa continua reple- é preciso andar bem vestido para ser amado, temido,
to.: todas as vestes escarlates, as peles de esquilo que servido. O Marechal é bom senhor. É esse aspecto de
ali estão, mais as oitenta peles preciosas, todas bem sua pessoa que ele quer deixar gravado na memória
conservadas e novas, que ele não levará consigo; que dos seus, coroando com generosidade e fausto as vir-
s~ ~presse a mandar vendê-Ias; com o dinheiro, ju- tudes adequadas a sua posição. Por isso a noite se
diciosamente repartido entre as comunidades reli- gastou na divisão de tudo o que era seda, Vair*,
giosas, ele adquirirá orações, ou seja, os instrumen- marta. Todos os cavaleiros tiveram sua parte das
tos de sua redenção. Agora ele se irrita de vez: "Ca- mais belas roupas que o corpo do senhor vestira. O
lai a boca, importunos. Já estou cheio desses conse- pouco que restou, o de menos qualidade, ficou para
lhos. Logo será Pentecostes, quando os cavaleiros de os pobres. Em cada um dos que trajavam seus ata-
minha casa devem receber seus novos adornos. Eu vios podia-se sentir que o agonizante revivia. Assim
sei disso, eu sei que nunca mais os poderei distribuir. foi que, no domingo anterior à Ascensão, Guilherme
E é agora que vós quereis me perturbar. Vinde, João cerimonialmente se despojou de suas vestes. Nada
de Early. Por essa fé que deveis a Deus e a mim, mais tinha de seu, além do sudário. Estava pronto
mando que façais em meu nome a divisão de todas para partir.
as roupas. E, se não houver o bastante para todos,
mandai comprar em Londres o que estiver faltando. » Pele, metade branca e metade cinzenta, do esquilo conhe-
Que nenhum dos meus tenha por que se queixar de cido como petit-gris; daí vem o nome do termo heráldico
mim". "veiro". (N. do T.)

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Já encarregara o filho de dizer adeus, em seu eu, João de Early. - És tu, João? - Eu mesmo,
nome, a todos os que o serviram e que não se encon- Senhor. - Não consigo dormir. - Mas como pode-
travam presentes, de agradecer-lhes tudo o que po- rieis dormir, não comendo já faz uns bons quinze
diam ter feito ou dito. No dia seguinte, Guilherme, dias!" Guilherme Marechal se vira na cama, e estira
o Moço, implorou de joelhos ao pai, pelo amor de os membros. As dores da morte começam a se ma-
Cristo, que comesse ainda alguma coisa. "Temos cer- nifestar. "joão, depressa, trata de abrir, de escan-
teza de que isso vos fará bem. - Pois bem, con- carar todas as portas e janelas. Manda chamar meu
cordou, comerei quanto puder." Por bondade. Sen- filho, a condessa, os cavaleiros. Estou morrendo, não
tou-se, apoiado num cavaleiro. Quando a toalha foi posso mais esperar, quero me despedir deles." joão
posta, mandou achegar-se João de Early. "Enxergais se precipita, abre tudo o que é porta e volta para
o mesmo que eu? - Senhor, não sei o que estais amparar em seus braços o conde, que, deitado sobre
vendo. - Pois juro que vejo dois homens brancos: seu peito, desfalece e cerra os olhos. Mas se recom-
um a minha direita, outro à esquerda; jamais vi ho- põe: "joão, eu desmaiei? - Desmaiou, Senhor. -
mens tão belos. - Senhor, creio que Deus vos man- Nunca te vi tão espantado. Por que não me mo-
dou emissários que hão de vos levar pelo bom cami- lhaste o rosto com um pouco d'água de rosas, para
nho." Então o conde começou a repetir: "Abençoa- eu poder falar a essa boa gente? Pois pouco tempo
do seja Deus Nosso Senhor, que até hoje me conferiu me resta para falar". Revigorado pela água de
tantas graças". João de Early jamais se perdoou não cheiro, pode enfim pronunciar, agora que todos es-
ter perguntado quem eram esses dois personagens, al- tão presentes, suas últimas palavras. O que diz é,
víssimos e deslumbrantes, puros como ninguém é na singelamente, sua morte: "Estou morrendo. Con-
terra. Anjos? Santos? Ancestrais veneráveis retor- fio-vos todos a Deus. Não posso mais permanecer
nando a este mundo? Não importa: sua presença in- convcsco. Não posso me defender da morte". E en-
dicava que se abriam as portas do Além; esses envia- tra, en tão, no silêncio.
dos vinham acolher o Marechal, escoltá-lo ; o sinal João de Early se apaga, cedendo o lugar a quem
era claro: a passagem, iminente. de direito. O filho senta-se. Chorando baixinho,
Na terça-feira, 14 de maio de 1219, ao meio- isto é, de coração, e não por exibição, acolhe nos
dia, o filho volta com os outros homens. Encontram braços o pai, que se entrega, se "aconchega" nele.
o conde virado para a parede, repousando em paz. Os religiosos, tendo recebido o que podiam, não ten-
Pensam que dorme, e o moço Marechal manda que do o agonizante mais nada para lhes dar, já se ha-
todos se calem e se retirem. Então ouvem o mori- viam retirado discretamente. Mas agora acorrem: o
bundo falar e perguntar: "Quem está aí? ,- Sou abade de Nutley, com todos os seus cônegos, o abade

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de Reading, com' seus monges, trazendo este último, Esses grandes personagens, cercados de seus séquitos
da parte do legado, a absolvição pontificia que tem respectivos, formam um préstito deslumbrante de
o valor de indulgência plenária. O Marechal preci- honra. Deus mais uma vez manifestava ao Marechal,
saria mesmo dela? Desde o começo de sua doença, favorecendo assim o esplendor do cortejo fúnebre, a
confessava-se a cada semana. Com toda a pompa, bondade que por ele tivera durante toda a vida. À
entrada de Londres, o corpo foi recebido pelo arce-
o que mal não faz, os dois abades o absolvem pela
bispo de Canterbury, primaz da Inglaterra. Foi so-
última vez. Os presentes acreditam vê-lo inclinar-se,
berba a vigília, na igreja do Templo toda ilumi-
erguer ainda a mão, persignar-se, adorar a cruz de-
nada, com os cânticos sacros ressoando. Tudo se fez
posta a sua frente. Entrega a alma. Não há nenhu-
tão bem, tão perfeitamente, com tanta beleza e gló-
ma indicação de que tenha recebido o viático.
ria, que os assistentes, de coração reanimado, até es-
queciam a própria dor. Rendiam graças ao céu pela
honra que havia por bem dar ao defunto. No dia
O espetáculo ainda não terminou. A alma se seguinte o corpo baixou à terra, diante da grande
foi, o corpo fica. Exposto aos olhares, no centro da cruz, ao lado do túmulo de Mestre Aimery, cuja
cena, continua a representar seu papel. Na sua pre- carcaça carnal entregara a alma antes ainda dele, e
sença (enquanto ainda reside em seu domínio, em o aguardava.
sua casa solarenga, antes de deixar o recinto para Ao terminar a festa fúnebre, deitado no esquife
ganhar a última morada, o Templo, em Londres), defronte da sepultura aberta, o corpo do Marechal,
o abade de Reading veio celebrar a missa na capela embora mudo, continuava a falar. Dava uma lição
doméstica, pelo que é recompensado por uma renda a todos os assistentes, que se pretendia fossem inú-
de cem libras, concedida por Guilherme, o Filho, e meros, e de fato eram. A seus olhos, o corpo ofere-
sua mãe. O cortejo se forma e começa a avançar. cia a imagem do que eles mesmos um dia seriam.
Duas etapas estão previstas. A cada uma delas o Inexoravelmente. "Espelho", assim o definiu o arce-
corpo do Marechal passará a noite numa igreja, em bispo na alocução que pronunciou, para edificação
lugar seguro. São a igreja abacial de Reading, pri- dos presentes. "Vejam, senhores, o que vale o mundo.
meiro, depois a de Staines. Nesta última juntam-se Cada homem, quando chega a esse ponto, já não
ao cortejo todos os condes da região, o conde de significa mais nada: não passa de um torrão de ter-
Surre:y, o conde de Essex, o conde de Oxford; de ra. Considerem, aqui, esse que se ergueu ao topo dos
mais longe acorre o conde de Gloucester, Gilberto valores humanos. Chegaremos todos ao mesmo pon-
de Clare: é o marido da segunda filha de Guilherme. to. Eu e os senhores. Um dia, haveremos de morrer."

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Assim passa tudo o que é carne. Neste mundo toda Pois esses foram magníficos, à altura da honra
vaidade é vanidade. do conde Marechal. Nem todos morriam tão bem
assim. O próprio Guilherme pudera avaliar esse lado
trinta anos antes, trinta anos quase exatos, quando
morreu el-rei, seu senhor, avô do rei de hoje, o~tro
Henrique, Henrique II da Inglaterra, Henrique
Não se enxerga mais o corpo. Já desapareceu
Plantageneta, o Soberbo, novo rei Art,:r; ~ue tem-
dentro da terra, onde apodrecerá em paz, bem fe-
pos atrás havia roubado Leonor de Aquitârua ao Ca-
chado. Contudo, invisível, ainda uma vez mani-
peta e que, em seus dias, foi dos mais poderosos
festa seu poder, e com muita pompa. Da maneira entre os poderosos. O Marechal não se esqueceu.
mais terrena possível, alimentando - dando de Muitas vezes, repetiu aos seus o que guardava na
comer, de beber, dando aos outros ocasião de se memória. Com os próprios olhos, vira o soberano ser
alegrarem. Conforme os usos, ele preside um ban- devorado pouco a pouco pelo mal que. com~çou
quete de encerramento, na posição do dono da casa, pelo calcanhar, subiu ao longo das coxas, lllvadlU o
do senhor, que nunca inspira tanto amor como corpo inteiro e o queimava todo, pela frente, por
quando distribui pão e vinho. Ele dissera isso ao trás. Vira-o arrastar-se feito bicho, gemend.o de do~,
herdeiro: quer que cem pobres sejam acolhidos e e sabendo muito bem que Ricardo, seu filho mais
comam até se fartarem. Comam e bebam com ele. velho, seu herdeiro, seu inimigo, irritado de vê-Ia
Ou melhor, por ele. Pois é bem essa a função que demorar tanto a ceder-lhe o lugar, estava rindo em
cabe a tais ágapes póstumos: a alma do morto pre- companhia dos cortesãos da França: "O velho re-
cisa que os vivos orem por ela e a comilança poste- presenta uma comédia". Vira-o ficar todo verme-
rior ao enterro pode ser vista como o salário dessas lho, e depois todo preto. Não estava presente quan.-
orações, talvez até mesmo, mais profundamente, do a morte feriu com as unhas o coração do rei,
como o equivalente delas. Nesse dia há mais pobres quando o sangue lhe escorreu do nariz para a boc~,
do que é preciso. Há três meses que angariavam, im- mas contaram-lhe que o moribundo padeceu SOZI-
pacientes, o final da agonia. Aqui estão todos, de nho. Seus amigos, de carne e de coração, fugiram de-
mãos estendidas. Nem vale a pena contá-Ios. For- pressa, para um lado ou outro, levando o que de-
mam multidão tão densa que sequer cabe em Lon- viam guardar, abandonando o corpo à s~nh.a dos d?-
dres, perto da sepultura. Será preciso usar os espaços mésticos. Contava, ainda durante sua propna agonia,
abertos de Westminster para se proceder à distribui- que os "arpões" haviam arpoado com toda a for~a;
ção de moedas e víveres que encerra a dramaturgia a Henriq ue nada restou, nada, a não ser seus calçoes
dos funerais. e calças. Alguns homens de muita lealdade, e era o

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caso do.Marech.al, acorreram, envergonhados do que
rante a assembléia atenta, o rei voltou-se para Gui-
presenc.lavam; Jogaram seus mantos sobre o cadáver.
lherme des Barres, seu amigo: "Ouviste o que me
Este fOI e~terrado, e isso segundo as conveniências. disseram? - O que lhe disseram, Alteza? - Por
~as, no dia seguinte, batalhões de pobres esperavam minha fé, vieram-me dizer que o Marechal, que foi
a entr~da da ponte de Chinon, sabendo muito bem tão leal, está enterrado. - Que Marechal? - O da
o, que Ia aco~t:cer: eles iam comer. Nada havia, po- Inglaterra, Guilherme, valeroso que foi, e sábio. -
~em, no palácio real, sequer pão preto. O Marechal Em nosso tempo não houve em lugar algum melhor
Indagou se havia dinheiro: nem uma moeda. E da
cavaleiro, e que melhor soubesse manejar as armas.
po~te se ouvia a irritação crescendo, os gritos de - O que dizes? - Afirmo, e Deus me seja teste-
escandalo,_ a amea~a de quebrar tudo. Os pobres ti- munha, que jamais conheci melhor cavaleiro que ele
nham razao em UIvar. Que vergonha um rei morto em toda a minha vida". Guilherme des Barres sabia
não dar de comer.
do que estava falando: ninguém se igualava a ele
. A 14 de maio de 1219 Guilherme Marechal em valor na corte da França, quer dizer, no mundo
ahme~tou os pobres melhor do que um rei. E foi inteiro. Na sua idade madura, havia rivalizado em
um .rel que se incumbiu de pronunciar seu último valentia com o conde Marechal; às portas de São
~IOglO, o que muito enalteceu a parentela. Esse rei João d'Acre batera-se com o próprio Ricardo Cora-
Justamente, que havia humilhado o orgulho dos Plan- ção de Leão. Cabia-lhe conferir ao falecido um J?ri-
tagenet~s, que também vencera o imperador em ba- meiro prêmio, em competência militar e esportrva,
talha, CInCO anos atrás, em Bouvines, e cujo poder O rei Felipe que, por seu ofício, presidia o conselho
agora se alastrava pelo mundo, dominando-o Com e sabia quanto valia a amizade varonil, cimento do
tal segurança que lhe deram, como aos imperadores Estado feudal, coroou-o por outro critério, o da leal-
roman~s dos tempos antigos, o cognome de Augus- dade: "O Marechal foi, no meu juízo, o homem mais
to: FelJpe~ segundo do nome, rei da França. Felipe leal e autêntico que já conheci, em qualquer lugar
Augusto tinha a Corte reunida na região do Gâtinais que fosse". Finalmente, João de Rouvray, um dos
quando lhe .chegou a nova da morte de Guilherme , que mais perto estiveram do rei em Bouvines, e que
a quem muito apreciava. Em companhia de seus pa- com Guilherme des Barres e os amigos de juventude
rentes e dos principais barões, acabava de jantar. Os guardava o corpo real, comemorou a prudência:
senhores de posição inferior, que haviam servido à "Alteza, julgo que foi ele o mais sábio cavaleiro que
mesa, começavam a comer. Entre eles se encontrava se viu, por toda a parte, em nosso tempo". Escorada
Ricardo, ~ segundo filho do Marechal; entraria ago- nas proezas, sustentada de um lado pela lealdade, de
ra no período de luto fechado. O rei teve a genti- outro pela prudência, aqui temos a cavalaria, a mais
leza de esperá-Ia terminar a refeição. E depois, pe- exaltada ordem que Deus criou. Nesse tribunal de
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val?r e valentia reunido em torno do rei Cape to, pri-
merro lugar-tenente de Deus na terra, Guilherme
Marechal, mais valeroso, mais leal e mais sábio as-
sim foi proclamado o melhor cavaleiro do mundo.

2
...._@_....
URANTE toda a representação sacra, que no
D cumprimento da vontade paterna ele ordenara
tão bem, o jovem Marechal ocupou o primeiro lu-
gar, após o do defunto. Desde que o pai se acamou,
ele praticamente não se afastou dele, praticamente
não dormiu. Agora, ele se via instalado no lugar
vazio do pai, e repousava em seus ombros essa gló-
ria linhageira que o velho Guilherme rapidamente,
graças às suas virtudes, alçara a um grau quase com-
parável ao do rei. Incumbia seu sucessor a aumen-
tar essa honra ou pelo menos não deixar ofuscar-se
seu brilho. Por isso seu dever primeiro consistia em
arraigar a imagem do fundador na memória, tão
profundamente que ela pudesse resistir ao desgaste do
tempo, sem jamais se apagar por completo, apon-
tando a cada geração de seus pósteros um exemplo
de boa conduta. Essa memória, é óbvio, fora con-
fiada a numerosas comunidades de padres ou mon-
ges, uma de cujas funções - certamente a principal
aos olhos dos leigos - consistia em orar pelos mor-
tos até o fim dos tempos. Talvez também fosse con-

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servada pelos ornamentos da sepultura. O sepulcro física. Esse aspecto do Marechal a canção evoca bem
do Marechal no Templo de Londres desapareceu an- cursivamente, o "feitio" de seu corpo. E o que afir-
tes de ser descrito pelos amadores de antigüidades; ma dele é muito banal: belos os pés, belas as mãos;
é justo supor que estivesse revestido de sinais expres- belo de corpo, bem ereto; estatura avantajada. Só
sivos, de figuras comemorativas: adquiria-se o há- que era moreno de cabelo e de rosto - o que não
bito, na época, de inscrevê-Ias nos túmulos dos ricos- constituía elogio: os santos e os valorosos se reco-
homens. Mas era preciso mais que isso. nheciam pelo louro, pela pele clara; nesse tempo se
Era preciso ultrapassar o espaço reservado à de- prendia ao escuro, tenaz, a idéia de pecado, de misé-
voção religiosa. Um outro memorial devia ser cons- ria - e que - qualidade benvinda, esta, num ca-
truído, de ordem profana: capaz de fazer o renome valeiro - sua "abertura de pernas" era das mais
do desaparecido irradiar-se no espaço social em que amplas. Mas, em começos do século XIII, as artes
ele se ilustrara, e que jamais deixara, a não ser, dias plásticas, cada vez mais empenhadas na figuração da
antes de entregar a alma, quando se tornou monge luz, não se interessavam ainda pela semelhança; a
ternplário; convinha fazer brilhar sua glória nas cor- escultura e a pintura expunham, defronte a um ce-
tes principescas e nos acampamentos erguidos perto nário abstrato, personagens cujo caráter específico
dos campos de torneio. Importava, por conseguinte, se exprimia, não em uma fisionomia, mas em emble-
que o valor de Guilherme Marechal fosse celebrado mas simbólicos e atitudes; o que mostravam eram,
nas formas específicas de uma cultura que fora a principalmente, ações.
sua, que era a de todos os seus amigos, e que ele O poema composto para a glória do Marechal
contribuíra para exaltar - a cultura da cavalaria. também descreve ações. Seus "gestos", gestas. Can-
Quase todas essas formas eram então como que ção de gesta: a expressão até conviria, porque o poe-
happenings: divertimento festivo, fugaz, frágil, tão
ma foi descrito, senão na forma - que é a dos ro-
volátil que nada delas chegou a nós, salvo a letra de
mances -, pelo menos no espírito dessas epopéias ri-
algumas canções. O monumento que Guilherme, o
quíssimas, das longas séries de versos que contavam,
Moço, resolveu erigir em memória de seu pai foi,
por exemplo, as façanhas várias de outro Guilherme,
precisamente, uma canção.
o de Orange, do nariz curto. O Marechal reviveu
A intenção era a de manter o defunto presente na relação pormenorizada, exata, das peripécias de
através de palavras. Mas não, como nas imagens as- sua existência. Sua biografia foi escrita para ser ou-
sociadas ao culto funerário, apresentando-o em re- vida, recitada em público por um leitor profissional.
trato estático, descrevendo com exatidão e minúcia Em que circunstâncias? De que maneira? Não dis-
os traços peculiares de sua fisionomia, de sua si- pomos de nenhuma indicação a respeito. Sabemos,
lhueta, representando o herói através de sua pessoa apenas, que foi oferecida à atenção da parentela mais
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próxima. o doador teve o cuidado de mandar ins- se meio da alta nobreza a que chegara por sua in-
crever, no final, que encomendara a obra pensando trepidez, o Marechal não constituiu exceção; que,
em seus irmãos e irmãs, para "alegrá-Ias" fazendo-os em conformidade ao ritual do luto aristocrático,
"ouvir" "os grandes feitos e honra de seu ancestral", muitas outras vidas foram cantadas, em sua época,
acrescentando ainda que lhes devia esse dom enquan- além da sua; mas que de tais evocações poéticas tudo
to filho mais velho e herdeiro, e que não tinha dú- se perdeu, porque era raríssimo que fossem confia-
vidas quanto à gratidão deles. das à escrita e, ademais, nas residências das grandes
Era excepcional, nas linhagens de maior fortu- famílias, o texto escrito facilmente se deteriorava.
na, exaltar dessa maneira a imagem do chefe morto Ainda mais esse tipo de texto, destinado a um uso
da família? Não temos a menor idéia, assim como profano, particular, e que não se exprimia em latim.
não sabemos se, por volta de 1220, já estava difun- Pois a memória que se conservava dos reis da
dido o uso de instalar sobre o túmulo uma imagem época, tanto de Felipe Augusto como de Godofredo
dos senhores defuntos. Na catedral de Le Mans, ha- Plantageneta, estava envolta nessa língua hierática,
via já meio século que se podia contemplar, fixada a das liturgias eclesiásticas e dos "autores" da lite-
no esmalte, uma efigie (não um retrato) de Godo- ratura erudita. O latim impunha respeito; convinha
fredo Plantageneta. A essa imagem se associava, por aos elogios reais: os reis, por serem consagrados, eram
sinal, uma biografia que também chegou a nós. Po- meio eclesiásticos; eem latim Suetônio redigira a
rém Godofredo Plantageneta era pai, avô e bisavô Vida dos Doze Césares, modelo de tudo. Mas o re-
dos cinco reis da Inglaterra a quem Guilherme Ma- gistro dos atos dos barões, confiado à escuta di!
rechal, no curso de sua vida, serviu. Não era essa homens e mulheres que não sabiam ler ou escrever,
descendência que justificava que ele assim sobrevi- provavelmente utilizava uma língua que eles pudes-
vesse? Representações desse tipo não seriam um mo- sem entender, a que eles empregava senão no dia-a-
nopólio que os soberanos da época, por terem sido dia, pelo menos nas cortes onde se reunia a cavalaria,
ungidos e consagrados, repartiam somente com os onde se impunham as maneiras que distinguem do
santos e os bispos? E, se um escritor foi incumbido vulgo as pessoas bem nascidas. O autor da canção
de relatar os feitos de Guilherme Marechal, não seria de Guilherme Marechal serve-se, em todo caso, de
porque ele esteve muito perto do poder real, porque, falar da boa sociedade da Inglaterra e de seus reis
regente, chegou até mesmo a ocupar, por um certo que eram angevinos. Trata-se do dialeto da França
tempo, o lugar do próprio monarca? Nesse caso a do Oeste. Assim, esse poema, que foi posto em rimas
canção documentaria o orgulho devido a um êxito às margens do Tâmisa, constitui um dos primeiros
extraordinário, ou pior, a pretensão despudorada de monumentos da literatura francesa. E é a mais an-
um arrivista. Mas também podemos pensar que, nes- tiga biografia que se conserva nessa língua. Muito

42 43
vulnerável, essa obra deveria ter-se perdido, como irmãs, ou por um sobrinho; por ocasião, como muito
tan tas outras. acontecia, de um matrimônio. A menos que um
Com efeito a linhagem do Marechal não de- curioso de história tenha tido a vontade de conser-
morou a extinguir-se. Isso era muito freqüente na var, para seu uso próprio, uma narrativa que lhe
class: ~ominante, em. decorrência das práticas pru- parecia ensinar muita coisa dos acontecimentos re-
dent issimas que, a fim de restringir as partilhas a centes, e que ele entendia digna, pelas qualidades de
c~da sucess~o e manter a unidade da fortuna, proi- estilo, de figurar numa biblioteca de qualidade. O
biam a maior parte dos rapazes de se casar, limi- poema, se não desapareceu, talvez seja por sua bele-
tando assim os nascimentos legítimos mas também za. As obras-primas resistem.
comprimindo, perigosamente, a ampliação da des-
cendência. E ainda assim a posteridade de Guilher-
me parecia bem garantida: dos filhos que gerou em
sua esposa, dez lhe sobreviveram, sendo cinco ho- Cento e vinte e sete folhas de pergaminho -
mens. Mas, um a um, todos morreram sem progeni- não falta uma sequer; em cada uma delas, duas
tu~a. Guilherme desapareceu doze anos apenas de- colunas de trinta e oito linhas; ao todo, dezenove
pOIS de seu pai, em 1231; Ricardo daí a três anos' mil, novecentos e quatorze versos: Guilherme, o
Gilberto, que era clérigo, deixou e~tão o estado sa~ Moço, não poupou cuidados. Sete anos se passaram
cerdotal, cingiu a espada, assumiu os tí tulos e mor- na coleta de informações, na elaboração e adequada
re~ de uma queda de cavalo em 1241, sem ter pro- edição da obra. O resultado custou caro e quem o
criado um herdeiro legítimo. Só restava, então, An- financiou quis que todos °soubessem, que isso cons-
seau, o caçula - o Marechal, ao morrer destinara-o tasse do poema. O filho primogênito, "que arcou
à vida de aventura, julgando que não teria a menor com todas as despesas", foi portanto o responsável
chance de herdar o patrimônio; mas este veio ter a pela realização da obra. Mas não foi ele quem a es-
ele. A fortuna durou pouco: morreu em 1245. Nãc creveu. Nem poderia fazê-lo, faltando-lhe lazer e,
havia mais homem que portasse o nome do Marechal. acima de tudo, competência. Para tanto contratou
Quem iria, então, preocupar-se em conservar-lhe a um artesão, cujo ofício consistia em compor can-
memona. , . ~ O I
ra, pe o maior dos acasos, o texto dessa ções, um homem desses que "de trovar entendem
história chegou até nós. Num único manuscrito, é viver". Um trovador':'. Nós conhecemos o nome des-
verdade, e que não é o original. A transcrição, me-
díocre (o copista compreendia mal uma língua que " Ou, em francês, um trouvêre, isto é, trovador da França
do Norte, que exerce sua arte baseado nos modelos dos autên-
certamente era refinada demais para ele), parece de
ticos e primeiros trovadores, em francês troubadours, os da
época. Talvez tenha sido encomendada por uma das Provença. (N. do T.)

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se "que o livro fez e trovou" - João -, não po- ditário esperava receber um relato sincero; por isso
rém o sobrenome, não a identidade. o executante se aplicou a uma minuciosa triagem do
É magnífico escritor: palavras vivas, justas, que era verdade, do que era falso, por entre os ves-
apropriadas; faz límpida a narrativa, inspiradas as tígios que restavam das ações do Marechal.
personagens, o diálogo envolvente; sabe mostrar; Mas também importava que o relato fosse vasto,
cumpriu com perfeição sua incumbência: tornar o encorpado. E por isso o autor se empenhou num
Marechal presente, vivo. Além disso, revela-se histo- esforço meticuloso de coletar todos ?s vestrgios, ~e
riador muito consciencioso. A própria obra se apre- recuperar o mais ínfimo gesto. O cu~dado que dedi-
senta como uma "vida", mas igualmente como uma cou a fazer exaustiva sua coleta explica que gastasse
"história". Faz uns cem anos que, nos mosteiros e tantos anos antes de completar a obra que lhe fora
nas coIegiadas, os homens que se dedicam a relatar encomendada. Sendo trovador, porém, não foi lll-
os fatos que chegaram a seu ouvido empenham-se formar-se nos livros das bibliotecas eruditas. Sua in-
em verificar as informações, em criticar os testemu- dependência fica bastante nítida quando confron-
nhos com o mesmo escrúpulo dos historiadores de tamos seus dizeres com os dos cronistas a quem teria
hoje em dia; essa preocupação nosso autor também sido tço fácil ele se referir, e que, por sinal, vão-se
manifesta. João trata de sempre indicar suas fontes. pilhando uns aos outros: não vemos, entre a relação
Em várias ocasiões, ouvimo-lo que confessa suas he- que eles propõem dos acontecimentos e a dele, se-
sitações, que explicita as exigências de veracidade quer a mínima convergência, que permitiria supor
que deseja respeitar. Assim procede ao relatar como que João os tivesse lido. Ele abeberou-se em outras
se passou a batalha de Lincoln, quando o Marechal fontes, que sem ele ficariam inacessíveis para sem-
triunfou como se rei fosse. O acontecimento é es- pre, pois pertencem à vertente profana da cultura
tratégico, fundamental: a carreira do herói e toda a do século XIII. Quase tudo se evaporou dessa parte
ação que o poema foi desenvolvendo então chegam da criação cultural. A nós ela não chega. É por isso
a seu ponto culminante. É preciso ver com muita que sua canção me soa apaixonante. Obra de um
clareza, não dizer nada de que não se tenha muita homem que não pertencia à intelligentsia clerical,
certeza. Nesse ponto, João, o Anônimo, faz sua pro- ou que, pelo menos, dela se afastara no curso de seu
fissão de fé: "Aqui, senhores, que me convém dizer? trabalho, o poema é um depoimento raríssimo sobre
Os que me fornecem a informação não concor- o que eram, entre os cavaleiros da época, o senso c
dam entre si; não posso obedecer a todos: seria ex- o conhecimento da história. Dá forma a uma me-
traviar-me; seria perder a boa trilha, seria perder mória que não direi sequer cortês, pois nas gran-
parte de vosso crédito. Na história, que é verdade, des cortes principescas o peso da influência ecle-
ninguém deve mentir conscientemente". O coman- siástica sobre as maneiras de pensar dos leigos era

46 4.7
sensivelmente maior do que na casa de Guilherme. Contudo, no essencial, "a informação", como
O que a nós chegou é infinitamente precioso: a me- diz ele, a matéria que amolda vem-lhe de outras
m_ória da cavalaria em estado quase puro, da qual, pessoas. Quando, nos derradeiros versos, apresenta
nao fosse esse testemunho, quase nada saberíamos. os créditos da obra e roga a Deus que dê "a alegria
A dar-lhe crédito, seria sua memória própria do paraíso" àqueles que contribuíram na sua exe-
que. joão, o !rovador, investigou. Enquanto redigia cução, menciona três pessoas em especial: o produtor
a biografia, e de se supor que pertencesse à domes- - Guilherme, "o bom filho"; o realizador - ele
ticidade mais próxima de Guilherme, o Moço. Mas, próprio; e ainda um terceiro homem, que, por amor,
se pensarmos que não é mero artifício de estilo nem por "bom amor" ao seu senhor, forneceu a infor-
simples redundância, o fato de ele intervir pessoal- mação, consagrando a tal ofício "seu coração, men-
mente, aqui e ali, no desvio de um verso afirmando te e haver" - João. Da mesma forma que Paul
(('~ ." «1 b o,,' Meyer, editor desse texto, considero que esse João
LtO eu VI, em ro-rne daquilo , então devere-
mos supor que esse escritor bem podia ser um da- não é nosso autor. É um João de identidade muito
queles arautos d'armas que, no campo de torneio, precisa. Faz apenas um momento que o deixamos, o
punham ordem nos recontros, identificavam os pro- mais íntimo de todos na agonia do Marechal, João
tagornstas segundo seus sinais heráldicos e, cantan- de Early. O sobrenome que porta designa uma aldeia
do-Ihes_ as façanhas, faziam crescer a reputação dos do condado de Berkshire, perto de Reading, perto
c~mpeoes. E que, como outros especialistas na publi- também de Caversham. João vinha, pois, da mesma
cidade da cavalaria, ele fizera parte, pelo menos em região onde nascera o Marechal. Ali possuía alguns
uma que outra fase, dos próximos do Marechal, ho- domínios. Talvez fosse seu parente afastado. Entra
mem que pagava bem. Por outro lado, como os fei- no relato em 1188, quando da tomada de Montmi-
tos que o autor diz haver presenciado remontam até rail, no Maine. Nessa ocasião era escudeiro do Ma-
cerca de 1180, o poema teria sido escrito por um rechal, assistindo-o. Cuidava de seu arreio, guardava
homem já bastante idoso. O dialeto normando de o cavalo de batalha, carregava o escudo. Tais fun-
que se vale confirma, aliás, esse fato: nele aparecem ções cabiam normalmente aos rapazes, aprendizes do
tantos arcaísmos que até poderíamos situar a com- serviço militar: Guilherme estivera na mesma posi-
posição da obra trinta anos antes, no final do século ção uns vinte anos antes. Por volta de 1188 João de
XII. Outro elemento confirmatório teríamos na in- Early acabava de entrar para seu serviço. O Mare-
sistência com que João chora os bons tempos pas- chal acolhera-o ao retornar da Terra Santa; antes
sados, quando, segundo ele, tudo era mais belo; a tivera por escudeiro Eustáquio de Bertrimont, Tal
menos que isso não passe de um lugar-comum da como Guilherme há mais tempo, tal como Eustáquio
literatura de corte da época. há menos, João não demorou a tornar-se cavaleiro,
4R 49
porém não se separou de seu amo e mestre. Seguiu-o nos ativermos ao que o autor aponta, pelo menos
a cada passo, compartilhando de sua fortuna. Assim parte das recordações de que ~le foi incumbid? de
também se elevou, pouco a pouco, no nível que lhe elaborar já havia passado antenormente da fala a es-
competia: o rei João, em especial, cumulou-o de crita. Já estava fixada em notas. Será que João de
favores. Parece, contudo, que sempre se conservou Sarly começara a celebrar a glória de seu senhor e
"moço", no sentido que tinha esta palavra na língua benfeitor a suas próprias custas (pois está dito que
dos cavaleiros: é muito provável que jamais se tenha ele gastou o seu "haver" nisso), ditando a alguns
casado. É certo, pelo menos, que morreu sem ter letrados tudo o que lembrava? É possível. Pelo me-
filhos - em 1231 seu irmão Henrique recebeu sua nos o que está fora de dúvida é que as informações
herança integral. Passou toda a vida ligado a Gui- mais seguras vêm de João de Early, o duplo do
lherme Marechal por esse sentimento que o poema Marechal, que sobreviveu a ele e tem o que contar.
chama de amor. E conta o que viu com os próprios olhos, mas tam-
Palavra fortíssima: é o ápice da amizade varo- bém , e talvez acima de tudo, o que o Marechal, em ,
nil. Ela justifica o papel que João de Early aqui vida, contava e gostava de ouvir contar. A merno-
assume. Ele é o informante por excelência, O poe- ria de João de Early na verdade coincide com a de
ma se nutre basicamente dos elementos que sua me- Guilherme Marechal. João era o conservador oficial
mória conservou, durante os trinta e um anos em dessa memória; ele continua a portá-Ia, morto o
que serviu o falecido. Parece que o poeta, ao verse- Marechal, e a fazê-Ia reluzir, tal como em tempos
jar, utilizou esse material já sob forma escrita, pois havia portado e feito reluzir as armas de seu pa-
não diz, várias vezes, "o escrito afirma o que eu trono. E entrega-a, reluzente, quando o mandam
afirmo", "é isso o que o escrito me faz supor"? Se fazê-lo. Como fiel servidor, que devota sincero amor
não leu os cronistas eclesiásticos, é certo porém que a seu amo. Pela voz de João, mais novo que ele uns
trabalhou com pergaminhos. Um deles é o registro vinte anos, fala o próprio Guilherme. Dele provém
já antigo, conservado nos arquivos da casa, que lhe a informação, de sua própria memória. Pois, afinal,
serviu para indicar exatamente o que o Marechal ga- a canção não será o mesmo que suas memórias, não
nhou numa série de torneios. Mas é também o caso escritas pessoalmente, porém faladas, e depois re-
desse outro escrito, ou melhor, desses escritos que ele produzidas fielmente? O mesmo que uma autobio-
menciona, e que divergem, como já mostrei, a pro- grafia? O equivalente dessas vidas de si mesmo .que,
pósito da batalha de Lincoln: a matéria na qual se tomando Santo Agostinho por modelo, alguns inte-
baseou a História não foi, portanto, apenas uma me- lectuais como Guiberto de Nogent e Abelardo ha-
viam começado a escrever, um secu 'I o antes. ~N-ao
mória transmitida por via oral. Ou, em todo caso, se

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5l
possuímos as recordações pessoais de um cavaleiro
contemporâneo de Leonor de Aquitânia e de Felipe tórica da França em 1891, 1894 e 1901, ~uniu o
Augusto? Aproveitemos uma SOrte tão favorável. texto de um comentário pormenorizado, pr~clso, que
nos permite checá-Ia item por ite~ .. Uns tnnta anos
mais tarde, Sydney Painter, que VIrIa a co~tar entre
os melhores medievalistas americanos e fOI um d.os
Essas recordações nos surpreendem por sua pre- primeiros a estudar seriamente a cult~ra da ca:valana,
cisão. Precisão incri vel, como, cem anos mais tarde, examinou os arquivos com cuidado ainda maior; seu
vemos em pormenores das recordações de joinville, livro William Marshall, Knight-errant, Baron an.d
que escrutinou seu passado ainda mais idoso que João Regent o] England (Guilherme Marechal, Cavalei-
de Early, e com a mesma intenção: a de fazer tornar ro Andante, Barão e Regente de Inglaterra), que
à vida seu falecido senhor, repetindo as palavras que foi publicado em Baltimore no ano de 1933, forne-
São Luís pronunciara, relembrando as suas atitudes, ce todos os complementos que se possam desejar. Eu
a cor de suas vestes - também ele falando, ditando. me baseio nesses dois monumentos de erudição e sin-
Memória exata, infalível, prodigiosamente rica, a de to-me perfeitamente à vontade. Eles me conven-
todos os homens desse tempo que não sabiam ler
cem de que nada do que está relatado .no ~oema
nem escrever (Guilherme Marechal, como sabemos,
stá em franca contradição com o que fOI escrito na
era analfabeto; um dia seu amigo Balduíno de Bé- e , A •

mesma época e que chegou a nos - cron~cas ou


thune lhe fez entregar uma missiva; ele mandou que
um clérigo a lesse, o qual se desicumbiu muito bem cartas. As poucas deformações devem-se a dOISfatos.
de sua tarefa, lendo-a "palavra a palavra", diz a O primeiro é que esse documento literário. é um
canção, "sem nada saltar"), que deviam portanto panegírico, como eram as Vidas de s:ntos e reis, ,u~a
confiar plenamente no que o seu cérebro arquivasse defesa de si mesmo, como sempre sao as memorias.
e que por isso se rodeavam de precauções para não Exagera os méritos, é óbvio, concentrando neles tod:
deixar atrofiar-se essa faculdade natural, adestran- a luz, mantendo criteriosamente na sombra o que e
do-a espontaneamente pela prática do canto (Gui- menos glorioso, apagando mesmo o que possa des-
lherme gostava de cantar), pela declamação, a mí- lustrar a imagem. Era essa uma das funções dessa
mica, a ruminação do que ouviam. literatura de família: contribuir para a defesa d~s
interesses da linhagem, inocentando os parentes cuja
O registro que temos, dessa memória fiel,
é igualmente correto. Podemos verificá-Io. Paul conduta se via censurada, heroicizando os co:ardes,
Meyer, que organizou a admirável edição da Histó- cs matreiros, os perversos, contradizendo, mediante a
ria em três volumes, publicados pela Sociedade His- exaltação de suas supostas virtudes, todos os rumo-
res que podiam correr em detrimento de sua fama.
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A apologia ia muito longe, às vezes. Parece ser este Quero, apenas, tentar ver o mundo como esses ho-
o caso, a~iá~. ~e surgia uma tal necessidade, após n .ens o viam.
1219, de msisnr tanto na lealdade de Guilherme (é
verdade que "leal" rima com "Marechal"), não será
por que era fundamental pôr fim às acusações de
que ele fora felão, traidor? Temos provas de que F alei em homens. Pois esse mundo é masculino.
sua reputação não era tão excelente quanto afirma Nele só contam os varões. Precisamos começar real-
o autor do poema, e muitos, na Inglaterra, o acusa- çando este traço primeiro, e fundamental: são pou-
~am de falta ao dever vassálico, e de perfídia. Con- quíssimas as figuras femininas no poema, e fugidias
siderernos o elogio, simplesmente, como um elogio; as suas aparições. As únicas mulheres que se conser-
não nos deixemos enganar por ele.
vam, por um momento, em cena pertencem à pa-
O outro defeito resulta das falhas da lembrança. rentela do herói, a sua parentela mais próxima: mãe,
Esquece-se mais facilmente aquilo que somente se irmãs, esposa, filhas - a família restrita, círculo
sabe de ouvido. Assim, quando o olhar se aventura no qual se impõe o tabu do incesto, não segundo as
fora da época que João de Early viveu pessoalmente prescrições da Igreja, que ampliava em demasia a
v,e~~s enfraquecer-se o rigor, que, nos períodos mai; esfera da proibição, 'porém segundo a moral que
próximos, conserva em exata continuidade linear a então efetivamente se respeitava. Mas até essas pa-
seqüência precisa dos feitos e gestos. E a memória rentas próximas só aparecem como sombras, que mal
se des~ia, se esfiapa, p~;de toda a coerência quan- se vislumbram. Da mãe de Guilherme apenas nos
do joão, o Trovador, ja não se atreve a dizer "eu chegam o nome, a casa (ilustre) de que descende e
vi" - quando os acontecimentos que relata têm o fato de que ela se empenhou em mandar um de
mais de quarenta anos. A visão turva-se, antes de seus familiares procurar notícias de seu filho menor,
1188; e perde-se, antes de 118 O. Essa é uma censura quando preso. Já observamos o lugar que a esposa
menor, devo confessar, quanto ao objetivo que me ocupa: marginal. Ela só aparece mesmo, com as fi-
proponho. Com efeito, menos me preocupam os lhas, durante a longa seqüência da agonia. Quando
fatos do que a maneira pela qual eles eram recorda- os homens se lembram de chamá-Ias, essas mulheres
entram na câmara onde o Marechal agoniza; mas
dos e mencionados. Não estou escrevendo uma his-
não permanecem, não tomam a palavra; ou, em todo
tória do que aconteceu; ela já existe, por sinal muito
caso, nada do que tenham dito pareceu digno de nos
bem escrita. O meu propósito é simplesmente o de
ser relatado: todos os diálogos são masculinos. Elas
esclarecer o que ainda se conhece pouco, recolhendo choram, desmaiam, desempenham o papel que em
n~sse testemunho, cujo excepcional valor já apon- tais circunstâncias convém ao sexo feminino. Resta
ter, o que ele nos conta da cultura dos cavaleiros. essa ponta de ternura que o moribundo sente pela
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companheira de vinte anos ou pela mais desfavore- vencer; então as mulheres juntaram-se aos maridos,
cida de suas filhas. Ele também chora por elas. E são
que saíam de suas casas, e perseguiram os franceses
essas as únicas lágrimas que o vemos derramar. Mas
em debandada, armadas com porretes, maças, ma-
em nenhum lugar está assinalado que se tenha preo- chados. Antes disso, essas amazonas, junto com as
cupado com as mulheres antes da cena de adeus. damas da nobreza, se acotovelavam nas janelas e no
Salvo a propósito dos esponsais, os seus próprios e os
alto das galerias. Desde o começo da partida elas já
das quatro primeiras filhas. Casamentos, quer dizer, acompanhavam o desenrolar do combate, especta-
assuntos graves. Assuntos que os homens resolvem
entre si. doras apaixonadas.
Precisamos dizer que esse combate, no poema,
Aqui, ali, percebemos, penetrando no relato, ou- é descrito como se costuma descrever um torneio -
tras mulheres. Contei, ao todo, sete emergências des-
com arautos, menestréis que contam cada golpe de~-
sas, todas ou quase todas muito curtas. Na sua maior
ferido, e um público atento de torcedores. Com efei-
parte são suscitadas pelo próprio desenrolar da nar- to, na incerteza geral que mencionei, já que esse
r~tiva. Descrevendo a morte do herói, o autor pre-
acontecimento se passa na retaguarda da memória,
cisava abrir lugar às filhas que visitam, decentemen-
supõe-se que o herói foi armado cavaleiro naquele
te, o seu pai agonizante, que assistem, decentemente,
dia. É por isso que tal escaramuça é tratada como
a? :e~ último suspiro. Igualmente convém, nas pe- uma dessas festas nas quais os cavaleiros recém-ar-
:lpeclas desse. jogo especificamente masculino que mados exibiam sua audácia, mostrando-se a suas ad-
e o esporte militar, fazer intervirem ocasionalmente miradoras. Na verdade, porém, a história de Gui-
algun.s per~onagens femininos. Alguns aparecem de lherme Marechal sugere que as mulheres, naquele
maneirn direta, pois sucede que certas mulheres
tempo, não assistiam aos torneios com tanta fre-
t~me~ parte em tais ações. Mas pode-se dizer que qüência quanto se supõe. Descrições de torneios são
sao, ainda, mulheres? Já sem nenhum traço femi-
o que não falta ao relato que estou comentando.
nino, elas combatem, na verdade, como homens. É
Ora, a presença feminina é mencionada, e ainda
o caso de Dona Nicole, que tinha, por direito de assim às margens da ação, somente em dois de tais
herança, o castelo de Lincoln; defendeu-o, com todas
recontros. Em Pleurs, na Champagne, fim da parti-
as forças, contra a gente do príncipe Luís da Fran-
da: uma mulher de elevada estirpe, ciosa de agir
ça. E também o caso de mulheres menos bem-nas- com elegância, veio oferecer ao duque de Borgonha,
cidas, que metem diretamente a mão na massa: as padrinho de uma das seleções em campo, uma solha
burguesas de Drincourt (a atual Neufchâtel-en- mirabolante, com dois pés e meio de comprimento,
Bray). Neste burgo os cavaleiros franceses e nor- ou talvez ainda maior. Esse objeto simbólico consti-
mandos se batiam, quando os últimos começaram a tuía o prêmio destinado ao melhor. (É notável,
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não há dúvida, que coubesse a uma mulher confe- Em Joigny, porém, as mulheres desempenham outra
ri-lo, e esse dado vem confortar aqueles que acredi- função: distrair os homens, ajudá-Ios a passar o tem-
tam na elevação da mulher no século XII, compra- po quando esse tempo lhes pesa, pois o ~cavaleiro,
zendo-se em imaginar, num quadro trovadoresco, de armadura, não sabe o que fazer se nao tem de
belas que coroam os mais valerosos.) Quem é prín- lutar. Com efeito, logo a seguir - como sempre,
cipe, de coração nobre, não fica com tais presentes, são apenas os homens que falam: "Vamos dançar,
distribui-os a outros fingindo que os considera mais para enganar o tédio da demora". O?servemos. a
valentes. Assim procedeu o duque de Borgonha. cena com atenção, pois é rara a oportunIdade de V1S-
"Para redobrar a honra" da dama, que era cortês, lumbrar como se dançava na época. Homens e mu-
culta e, diz a canção, valerosa ela mesma, a prenda lheres dão-se a mão para alguma coisa que recorda
passou de mão em mão por todos os maiores ba- uma ciranda. Não há músicos, basta o canto para
rões até chegar, como já imagina o leitor, nas mãos movimentar a dança. "Quem fará a cortesia de can-
do Marechal. tar?" Evidentemente é o Marechal. Ele entoa um
canto com sua voz, sem acompanhamento, e todos
No torneio de joigny, ainda mais brilhante, as
se juntam a ele. Cortesia. Era de se esperar, numa
mulheres aparecem na abertura. O time do qual o
obra rimada à maneira dos romances, na mesma
Marechal é capitão já está em campo; espera, arma-
época em que Guilherme de Lorris compunha o
do, o sinal de partida, animado, buliçoso, já na arena.
Romace da Rosa, e que se dedica a descrever os pra-
Eis que deixa o castelo a condessa, "bem-feita de ros-
zeres que um homem de boa cepa encontra na vida.
to e de corpo", escoltada de damas e donzelas "ele-
gantes, corteses e de boa natureza". Os cavaleiros não Ora, faço questão de observar como é discreta a
se contêm mais, rompem as fileiras; entrechocam-se, presença da cortesia. A par de descrições tão minu-
entusiasmados com o prêmio, revigorados, esporea- ciosas, tão prazerosas, dos jogos militares, só depara-
dos por visão assim encantadora: "A audácia dobra mos com uma única alusão a esses intermédios, du-
em seu coração". Poder feminino, dessa feita incon- rante os quais, para brincar, os cavaleiros por alguns
testável. Mas examinemos mais de perto que papel instantes se misturavam com mulheres de sua posi-
é atribuído às mulheres. Elas aparecem para excitar ção. E, mesmo aqui, não é nelas que se concentra
os guerreiros à maior valentia. Eles se batem melhor a atenção. Podemos ter certeza de que, exibindo os
quando é ante os seus olhos; a guerra, ou o simula- seus talentos de cantor, Guilherme procurava agra-
cro de guerra, toma então as feições de uma com- dar à condessa e a suas companheiras - e não afir-
petição entre varões, de uma dessas exibições eróticas mar, por uma proeza de outra espécie, a sua .preemi-
que, dizem-nos os etnólogos, entram em Jogo na nência sobre os companheiros de liça, continuando
dimensão mais elementar dos mecanismos da vida. junto às damas um concurso de excelência varonil

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que a maior parte do tempo se realizava apenas entre A segunda história é de .a~or, poré~ de ~m
os homens? amor do qual o herói não é SUjeito nem objeto. ',-:a-
Seja como for, ao longo desses quase vinte mil valgava solitário, na companhia de seu escudeiro
versos só nos aparecem três mulheres que, sem se- Eustáquio, rumo a Montmirail, onde o espe:avam
rem suas parentas próximas, estiveram em relação dois de seus companheiros de aventura, Baldu~~o de
direta com o Marechal. Vejamos quem são elas. A Béthune e Hue de Hamelincourt. Enquanto viajava,
primeira a surgir no relato é uma dama, esposa de teve vontade de dormir; deita-se ao lado. da estr~da,
um senhor, que sentiu pena de Guilherme quando que talvez datasse dos ro~a?os, manda tirar a redea
este ainda era muito moço: gravemente ferido, o e os arreios aos cavalos, deixá-los pastar soltos. Ador-
bando de aquitanos que o aprisionara fugia, arras- mece. Um ruído o desperta. Uma voz de mulher,
tando-o de lugar em lugar, para que os seus não o bem perto; ela diz - é a única mulher '~,m toda a
canção de quem ouvimos as palavras - Ah, ~eu
conseguissem libertar. Numa dessas etapas furtivas,
Deus, como estou cansada". Não está só. Abrindo
uma mulher de qualidade, "franca e de boa raça",
os olhos Guilherme percebe um casal que passa,
olhou-o de longe, uma noite. Amor? Desejo, quem montad~ em dois palafréns bem alimentados, "~ur-
sabe? Seria essa mulher uma daquelas esposas insa- tivos no seu grande furto?" , e portando fa.r~os ~lca-
tisfeitas que Deus, para tentar os futuros santos, mente ataviados. O homem é belo, de condição livre,
mandava (assim contavam os hagiógrafos) perse- a mulher bela, dama certamente, ou donzela. Am-
guir na calada da noite os adolescentes que repou- bos muito elegantes, adornados com capas _de bo~
savam em seu canto? Em todo caso, aqui é a estima tecido flamengo. "Eustáquio, o que ouço? Poe a ~n-
que o trovador valoriza, a estima só. A dama per- da em meu cavalo, quero saber de onde eles vem,
gunta. Contam-lhe que prova de coragem o donzel para onde vão." (Com efeito, é de. bom tom abo,:-
acaba de dar: expôs o seu corpo aos piores perigos dar as pessoas que cruzamos no caminho, quando sac
para vingar a morte do tio assassinado. Ela manda gente de qualidade.) Na press~, o Marechal esquece
a espada. Alcançando o cavaleiro, toma-o pela man-
alguém perguntar-lhe: de que precisa ele? De esto-
ga do manto, pergunta-lhe: "Quem sois? - Um
pa, para estancar a ferida: ela lhe envia um tecido,
homem. - Bem vejo que não sois bicho". O outro
às escondidas, num pão do qual retirou o miolo,
se livra com um safanão, e prepara-se para tirar a
sorrateira como sabem ser as mulheres de muita ter-
nura. Mas nada nos diz que ela se tenha aproximado
'; No original, emblant grande emblure, O verbo embler, do
do menino: não foram mãos de mulher que curaram
francês medieval, hoje desaparecido, junta a idéia de voar e a
Guilherme, porém as suas próprias, que assim se de roubar (como o atual valer) . Tentamos manter esse duplo
transmudaram em mãos de cirurgião. sentido na tradução. (N. da T.)

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a mesa do albergue. Contaram as moedas; o monge
arma da bainha: "Quereis briga, ides tê-Ia" (o diá-
não havia mentido: mais de dez mil denários, soma
logo é de João, o Trovador, que estou seguindo lite-
bastante para comprar muitas coisas belas. Depois de
ralmente). "Eustáquio, minha espada!" O desco-
comerem e beberem, Guilherme disse de onde vinha
nhecido deixa cair o manto, guarda a arma, tenta
fortuna tão inesperada. Hue protestou: então, eles
escapulir. Mas é alcançado sem demora. Resiste, cai-
ficaram com as montarias e bagagens: "Vou pegar
lhe o chapéu, enxerga-se sua tonsura: é um monge,
meu cavalo, vou alcançá-Ios". Guilherme acalmou-o.
o mais belo monge do mundo. Envergonhadíssimo,
Era sua vontade que a história acabasse ali.
angustiado, rende-se: "Estamos à vossa mercê. Sou
monge, como podeis ver. Ela é minha amiga (no- A anedota é uma das que maior prazer dava
te-se que termo usa: não diz esposa). Raptei-a de contar ao pé do Marechal, em sua velhice. A lição
sua terra. Estamos seguindo para o estrangeiro". que ela dá é de muito interesse para o historiador
Chorando, a moça confessa ser flamenga, irmã de dos costumes. Revela-lhe o que fica oculto em quase
Dom Raul de Lens. "Não há sentido em vagardes todas as fontes que ele consegue interrogar, excetu-
assim, sem sentido", censura-lhe Guilherme (é insen- ando as romanescas (que temos toda a razão em con-
sato uma moça de boa cepa percorrer as estradas siderar com relativo ceticismo) : as moças, nas famí-
como uma puta; os únicos errantes toleráveis são lias de maior prestígio, nem sempre eram dóceis;
os cavaleiros andantes. "Ide desistir dessa loucura. Eu acontecia que vivessem um amor livre, que casais se
vos reconciliarei com vosso irmão: é conhecido formassem sem o assentimento da parentela. As
meu." Mas ela replica: "Nunca tornarão a me ver órfãs, negociadas entre o irmão e os possíveis noivos,
numa terra onde sou conhecida". O Marechal não por vezes tratavam de casar-se sozinhas. Com uma
insiste, inquieta-se: têm alguma coisa? Denários, ou freqüência talvez menos excepcional do que nos pa-
qualquer outra moeda? O monge mostra um cinto receria à primeira vista, sucedia que o rapto, a fuga,
repleto de moedinhas; ali tem pelo menos quarenta os noivados clandestinos - numa palavra: o amor
e oito libras (gaba-se); esse dinheiro ele porá a ju- _ viessem perturbar as tramóias dos chefes de famí-
ros, numa boa cidade de comércio; viverão de ren- lia. E não era impossível, depois disso, ajeitar as
das. "Usura? Pelo bom Deus, não posso admiti-lo. coisas por intermédio de amigos, acalmar os ranco-
Eustáquio, confisca as moedas." Isso feito, o casal res, reconciliar as donzelas com os homens de cujo
consegue escapar. "J'a que se recusam a emen d ar-se, controle elas haviam fugido, devolvê-Ias, é verdade
já que sua maldade os arrebata", Guilherme manda- que com menos viço, ao circuito regular das trocas
os ao diabo. Eustáquio recebeu ordens de não dizer
matrimoniais. Sob a condição, é claro, de que elas
nada quando o Marechal voltasse junto dos amigos.
se dispusessem a tanto. Essa história nos mostra q~e
Estes perdiam a paciência, esfomeados. Para revigo-
algumas, ou por vergonha, ou por paixão, não acei-
rá-los, Guilherme lançou o saco de dinheiro sobre
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tavam retomar ao aprisco; que havia mulheres de- contra seu amante: não é missão dos cavaleiros for-
cidid,as a decidirem elas mesmas o seu destino, pouco çar o respeito dos votos monásticos. Mas aproveita
lhes Importando o preço a pagar por isso, a oportunidade de castigá-Ios ind,iret~mente,: há, o
dinheiro. Certamente eles têm dinheiro. Dinheiro
A moral do cavaleiro - isso, em compensação,
que lhes queima as mãos, que por sinal ele se recusa
conhecemos bem - mandava-o lançar-se, de rédeas
a tocar, com as mãos próprias, encarregando o es-
soltas, ao socorro das mulheres bem-nascidas quando
cudeiro de tomá-Ia. Dinheiro que serve ao prazer
as VIsse em perigo. Com efeito, assim que ouve a
da cavalaria, que o cavaleiro gasta ledo e feliz, que
queixa feminina, a qual lhe soa como um pedido de
sentiria vergonha em economizar. Pouco importa
socorro, Guilherme salta a cavalo. Mas a moral do
como foi adquirido. O repugnante é que esse tonsu-
cavaleiro também lhe vedava usar de força contra
rado, que deita moças nobres na sua cama, pretende
as mulheres. Tratando-se de amor, ele deve respei-
utilizá-Io tal como um burguês, pondo-o a juros.
tar-lhes a vontade. Aliás, também a Igreja assim de-
Um homem de qualidade não "ganha" dessa ma-
termina. O elo conjugal abençoado por Deus não se
neira. Também ganha dinheiro, porém graças à va-
estabelece, segundo as reiteradas proclamações da
lentia, presas que conquista expondo o corpo ao
Igreja, pela adesão do coração, pelo consentimento
perigo, não se aproveitando dos embaraços dos ou-
recíproco? O Marechal, cavaleiro perfeito, domina
tros para emprestar-Ihes - emprestar especialmente
então os seus ímpetos: deixa a "amiga" com o ami-
a cavaleiros, como ele sabe muito bem, cavaleiros
go. Por dentro, porém, ele ferve: é que esse amigo
imprevidentes, que pagam juros de agiota. Por isso
é um monge, Derrisão. Os monges não lhe interes-
Guilherme rapa o tesouro sem nenhum peso na cons-
sam muito nessa fase florescente de sua vida. Con-
tudo, o que o revolta é que moças de boa família ciência. Só pega o dinheiro, desviando-o de um uso
ignóbil em favor de outro, o único que não é fétido,
lhes entreguem o corpo. Um clérigo, quando muito,
infame: dilapidá-Io em festa. Apreender os outros
ainda se podia aceitar. A cavalaria quer o monopó-
bens seria ato de banditismo. Mas esse confisco lhe
lio de todas as mulheres de sua condição social; ze-
parece honroso, assim como a todos os que, para sua
losa, ciumenta, proíbe aos varões de outras catego-
rias que se aproximem delas. Tal como no passado, o maior glória, divulgaram a lembrança de suas boas
ações. Quanto à mulher, tampouco tocou nela. Tra-
conde Guilherme de Poitiers, trovador, o Marechal
tou essa sem-vergonha em estrita obediência às leis
considera que as damas e donzelas que não recusem
todo o amor a não ser o dos cavaleiros merecem ser da cavalaria.
queimadas, ou vivas, ou no inferno. Porém, segunda Finalmente - e chegamos à última silhueta fe-
o preceito da paz de Deus, não se sente no direito minina que aparece no relato, mas impalpável, qua-
de erguer a mão contra a mulher culpada. Nem se invisível: não recebe nome; não se descortina seu

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· rosto; comparece apenas no discurso dos homens, no
muito forte que lança sobre a realidade das relações
debate masculino que a rorna por objeto -, urn
entre masculino e feminino no final do século XII,
amor atribuído ao Marechal, um amor culpa-
nessas grandes cortes cujos príncipes divertiam seus
do. Em 1182 - quando tem pelo menos trin-
amigos reunidos, fazendo ler romances b~etões .. ~s
ta e cinco anos -, ainda não se casou: é, co-
in ve josos, os "lisonjeiros" (o anônimo Joao utiliza
mo se dizia, "donzel", mas já glorioso, célebre in-
as mesmas palavras dos romancistas) montam ~~tão
vejado, pois. Por seus companheiros mais próxi~os,
uma intriga. Que vai prosperar entre os familiares
os guerreiros que, como ele, pertencem à enorme casa
do jovem senhor, que na competição por seus fa-
militar formada para Henrique, o Moço, herdeiro
vores não hesitam em se espionarem uns aos outros.
do rei da Inglaterra, que seu pai, Henrique Planta-
E terminará transformando o amor do senhor em
geneta, já mandou consagrar e coroar, associando-o
"grande ódio, e cruel", contra o caval~iro cuja per-
a seu poder. São cinco os que invejam a Guilherme.
dição eles conspiram. Contudo, precavidas, nao que-
De três, o poeta cala o nome: sua linhagem ainda
rendo ser também eles odiados, limitar-se-âo a des-
não se extinguiu quando ele escreve o poema. Men-
pertar suspeitas. Adãoe Tomás são norrnandos. Co-
ciona, somente, Adão de Iqueboeuf e Tomás de Cou-
meçam abordando outro normando, Raul de H~-
lonces, Os cinco querem causar a perdição de seu
mars, apostando no orgulho étnico, corda das mais
companheiro, só porque seu senhor comum o ama
sensíveis: "Seremos reduzidos ao papel de bastardos,
em demasia. É isso o que eles lhe invejam, o grande
se continuarmos deixando esse inglês nos suplantar
a~or que o favorece. Assim tudo, nessa história,
em tudo". Só se fala dele, na Normandia, na Fran-
grra em torno do amor, porém não nos enganemos:
ça. E por quê? Porque tem na palma da mão o
em torno do amor dos homens entre si. Isso já não
arauto d'armas, Henrique Le Norrois, que, a cada
nos espanta; começamos a descobrir que o amor
tcrneio que se abre, lança o grito de guerra de Gui-
cortês, o que cantaram os trovadores da Prcvençn, lherme: "Deus ajude o Marechal!" Os melhores en-
e depois os da França do Norte, o amor que o cava- tão acorrem, somando-se a seu grupo. E lhe basta es-
leiro devota à dama de sua eleição, talvez apenas tender a mão para vencer cavaleiros e tomar cavalos.
~ascarasse o essencial, melhor dizendo, talvez pro- Daí vem sua posição na cavalaria, o renome que
jetasse na área do jogo a imagem invertida do es- nos ofusca e o dinheiro que lhe serve para conquis-
sencial: que são as trocas amorosas entre guerreiros. tar tantos amigos. Porém, não é isso o que nos irrita.
A história é bastante comprida. Vou examiná. Não acreditamos no que ouvimos: com a esposa de
Ia corn todos os detalhes que o poema fornece. Não D. Henrique, nosso amo e senhor, Guilherme "faz
isso". Isso, o quê? Faz amor? Não, essa palavra não
apenas porque o Marechal costumava contá-Ia ou
aparece. Ao longo de toda a canção o termo amor
gostava de ouvi-Ia, mas acima de tudo devido à luz
só aparece para designar o sentimento que os ho-
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me-?s têm unspelos outros. O que se diz aqui é coisa
paredes divisórias, escuras desde o cair da noite, re-
muito mais simples: o Marechal deita-se com a
rainha. pletas de homens. Aliás, a própria mulher, frustrada
o mais das vezes, pode ter vontade de se divertir. A
. A r~inha, esposa do jovem rei Henrique, é Mar- promiscuidade favorece ligações que não são sem-
gar~da, fIlha do rei Luís VII da França, irmã de pre, necessariamente, de mera exibição. Em tempos
Fellpe Augusto. Em 1168, para consolidár a paz re- idos, na casa do rei da França, o avô e a mãe do
centemente firmada entre a casa Capeta e a dos jovem Henrique, Guilherme Plantageneta e Leonor
Plantage~etas, ela foi entregue por seu pai ao filho de Aquitânia, então rainha, talvez tenham unido
de Hennque II da Inglaterra. O menino tinha cin- seus corpos; disso, pelo menos, gabava-se Godofre-
co anos, ela três. Agora ela tem, vinte e cinco , dez do Plantageneta. Em todo caso, cada qual pensa que
anos a menos que o Marechal. E isso tudo o que sa- tais fornicações, quer violentas quer consentidas, po-
bemos.a seu respeito. E sabemos graças a outras fon- dem vir a acontecer; o chefe da casa as receia, te-
tes, pOIS o poema, como já disse, sequer pronuncia o mendo dar o nome a filhos gerados por outra se-
s~u nom~. Ela aparece na biografia como uma espé- mente e que assim usurparão os bens ancestrais; a
cie de signo abstrato, um atributo que valoriza sua volta todos ficam à espreita, empenhados em
realça o brilho do herói. E como realça! Pois quem' manter bem aceso o ciúme do senhor para se torna-
sen~o T ristão, pode sonhar com dama de melho; rem seus favoritos, para prejudicarem os companhei-
posição> Tristão, porém, era sobrinho do rei Mar- ros. "Se el-rei, nosso senhor, dizem Adão e Tomás,
cos. G~ilherme está longe de poder aspirar a paren- conhecesse a 'raiva' do Marechal, bem nos vingaría-
tesco ~ao elevado. Não passa de um rapaz vivendo mos dele." Instam Raul a revelar-lhe a "vergonha",
uma vida de aventuras, nisso igual a seus acusadores. as "coisas feias" que "desonram e enganam" o rei.
A presunção de adultério é latente nas casas Vergonha que recai sobre os seus, que por isso tam-
?ob_res.. Todos os cavaleiros moços (Guilherme não bém se sentem aviltados.
e tao Jovem assim, mas é "moço" no sentido da
Prudente, Raul se esquiva. Tal como os intri-
época: solteiro) assediam a esposa do senhor. É o
gantes, não quer incorrer na ira do senhor, nem na
Jogo, cortês. Apimenta a competição permanente
do homem que vai ser denunciado. Não importa, o
que tem na Corte seu lugar de escol. Rivalizam todos.
boato já corre. Chega aos ouvidos de Guilherme Ma-
Quem conquistará ° amor da dama, para assim ter o
rechal através de Pedro de Préaux. A vergonha seria
do senhor? Mas há um risco, o de acabar envolvido
sua - pensa ele - caso se defendesse da mentira.
nesse jogo, de. ultrapassar os limites da convenção.
Seguro de sua inocência, aguarda que a verdade se
Nesse caso o Jogo se torna perigoso. Uma mulher
imponha. Ninguém ainda se' atreve a falar ao ma-
quase não tem defesas nessas grandes residências sem
rido. Então um dos cinco imagina empregar, para
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as costas e parou de lhe falar. Privou-o de seu amor.
esse mister, um homem dos mais fáceis de manipular Foi seu único castigo, mas o pior, que durament,e
da casa. E ~os seus mais próximos, primo-irmão por
o atormentou.
parte de par e de mãe; é um "valete", um mocinho, Traído ou fingindo-se traído, Guilherme reti-
adoles~ente que o rei ama (agora se fala em amor).
rou-se da c~rte. Espontaneamente, conta a história.
Embn~gam-no até ele perder a razão, até cair na
Logo, porém, lhe ~etornaram. ~s esperan~as. He~r~-
armadilha esse Raul, tão bem conhecido corno "o
que, o Moço, preCIsava dele: Ja se anunCIava o ,UltI-
L.ogrado". Raul leva a informação ao rei, que ini-
mo rorrieio do outono de 1182, antes que a epoca
cialmente se recusa a acreditar. Então saem da som-
do Natal interrompesse a temporada esportiva. A
bra os cinco conspiradores, dando o testemunho co-
seleção inglesa de nada valeria se ? Marechal, nã,o
letivo que o costume exige para sustentar a acusa-
figurasse nela, como antes, na qualIdade de prmci-
ção ~ontra a esposa e assim dar início à causa. Eles
pal desportista. Vergonha e rancor se apagavam ante
confirmam: estão a par do fato "por virem e ouvi-
o desejo de conquistar mais uma copa nesses cam-
rem". Perturbado, quer dizer, convencido, Henri-
peonatos militares. Medimos aqui quanto podia valer
que, o Moço, age como é seu dever.
o ciúme, quanto valiam também as mulheres, face
No que diz respeito a Margarida, nenhuma pa- aos prazeres que os cavaleiros esperavam alcançar
lavra na canção menciona sua sorte. É como se ela na vida. Assim se viu chegar Guilherme, todo ar-
não existisse, é como se os homens não lhe dessem mado, no instante exato em que os cavaleiros, com
a menor importância, sequer seu marido, preocupan- as cores dos Plantagenetas, iam entrar em campo.
do-se apenas com as flutuações do amor e do ódio Sem dizer palavra o Marechal juntou-se a eles, fa-
den,tr~ d~ fechado universo masculino. A rainha zendo durante toda a jornada os prodígios de exce-
tera sido mterrogada, terá sido submetida à prova lência que dele eram esperados. Somente desta feita,
do ferro em brasa, que na época ainda se usava em conteve-se de vencer da maneira que convém aos fi-
tais circunstâncias? Sabemos apenas que Henriq~e dalgos, isto é, capturando cavalos, cavaleiros e ar-
passados alguns meses, mandou-a de volta, como se reios. Em duas ocasiões se lançou ao socorro daquele
fosse um objeto que perdera os atrativos, a seu ir- que continuava a ser seu senhor, libertando-o da
mão, rei Felipe da França, que por sinal logo voltou pressão adversária quando estava a ponto de s~r cap-
a encontrar-lhe urna serventia, casando-a com o rei turado. Às suas proezas o partido de Hennque, o
Bela da ~~ng:ia. Mas nenhuma crônica afirma que Moço, deveu a vitória. Dos dois lados todos concor-
esse repúdio tivesse outros motivos além das idas e daram em reconhecer Guilherme como o melhor
vindas de urna diplomacia que, naquele tempo, tinha da jornada. Quando, após o recontro, os maiores
nos casamentos e separações seus meios mais habi- barões se reuniram como de costume, o conde de
tuais. Quanto ao Marechal, o seu senhor voltou-lhe
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Flandres censurou, brincando, o jovem rei: "Belo JUiZO de Deus. Deus, pelo resultado de um duelo
primo, quem tem um cavaleiro como o Marechal judiciário, distinguirá o inocente do culpado. Gui-
não o deixa afastar-se". Conversa de bêbado? O lherme aceita até mesmo que haja três combates su-
beato de adultério já teriaextrapolado os limites da cessivos. Diz-se disposto a enfrentar um após o ou-
casa real? O interpelado não responde palavra; não tro os três mais valorosos capitães que se possa en-
pode explicar suas razões; todos o vêem enrubescer, contrar. Se não conseguir vencer a todos, admite
e Guilherme também enrubesce, de vergonha e có- que o marido desconfiado o mande matar, o faça
lera. Entre os dois homens, silêncio. A devoção, o enforcar. É isso o que ele propõe, em plena assem-
serviço perfeitamente cumprido não bastam para bléia, ao homem que se sente lesado. Ou então que
fazer renascer o amor. O rancor é mais forte, abafa lhe cortem um dedo, qualquer um, da mão direita.
o reconhecimento. Por isso Guilherme volta à es- Aceita combater o campeão adversário com esse
trada, sozinho. Nenhum de seus amigos ousa fazer- bandicap, Novo rei Marcos, Henrique, o Moço, re-
lhe companhia, ante o ressentimento do chefe. cusa: "Não cuido de vossa batalha". A uma cena
Mas os invejosos querem ainda mais. Viram I) tão dramática só falta um personagem: Isolda.
senhor de cara fechada para o glorioso, mas perce- Estará presente? O que nos surpreende é que as-
bem que não pode dispensar sua colaboração. Por suntos desse tipo sejam tratados assim, como um
isso precisam desferir seus golpes mais de cima. Vão grande espetáculo. Tudo o que resta a Guilherme
a Ruão, informar o pai, Henrique, o Velho. Esse é ir embora. O que faz, solenemente. Diante dos
estremece diante de "vergonha" tão grande. E é dois reis, o velho, o moço: "Posto que não ergue a
tudo. No íntimo, está muito satisfeito: o bando de cabeça nenhum dos que me infamaram, e que isso
bagunceiros que o filho protege faz que gaste muito é tolerado, contra a lei do país, posto que vossa
dinheiro; se o Marechal vai embora, melhor: um corte está inteiramente voltada contra mim, apesar
a menos, logo o mais pródigo. Porém, quando chega de eu haver oferecido mais satisfações do que satis-
aos ouvidos de Guilherme que o rei Henrique II de faria a razão, bem vejo que é forçoso eu ir viver
Inglaterra, que ele sabe estar informado do caso , em outra parte. Alegra-me, pelo menos, que uma tal
terá no próximo Natal corte plenária em Caen, cor- assembléia tenha visto, com os próprios olhos, como
re até o monarca. Agora está decidido a pôr fim ao me foi negado o que era meu direito". Devidamen-
silêncio, a justificar-se em público, e perante o me- te munido de salvo-conduto, deixou então o domí-
lhor auditório possível, a flor da cavalaria reunida nio Plantageneta. Seguro de estar agindo correta-
para a festa de inverno. É o lugar e hora de romper mente. Algumas semanas depois, de fato o rei moço
o abcesso, de resolver o diferendo segundo o direito, já lhe pedia que retornasse. Entretanto ele se tinha
e de se oferecer, como um novo Tristão, para a ba- livrado da esposa. Nada o impedia de amar o Ma-
talha - de se dispor ao ordálio, ao julgamento e rechal, o qual, de resto, continuava a ser-lhe indis-
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pensável. Tornou a amá-lo, Com uma complacên-
esta ressonância da fantasia determinou (se é que o
cia que nos espanta. Porém não cabia justamente
fez) a recordação dos fatos vividos que ficou fixada
aos reis, na medida em que encarnavam a primeira na História de Guilherme Marechal? Pois me sur-
das três funções, a da sabedoria, mostrar (como es-
preende ver como é curta a distância que separa das
creve Georges Dumézil, em La courtisane et les seig-
ficções corteses a realidade que o poema pretende
neurs colorés, p. 192, baseando-se nos trabalhos de
descrever fielmente .- e para medi-Ia esse texto nos
Joel Grisward) "uma serena tolerância face à fra-
fornece uma ocasião ímpar. Uma tal constatação nos
queza feminina"?
convidaria a não mais considerar tão falaciosa a ima-
Segundo o panegírico do defunto, o rumor era gem que a literatura romanesca apresenta dos com-
calunioso. O Marechal foi acusado injustamente, portamentos masculinos e femininos. De qualquer
como a santa Susana pelos velhos, enganado tal como forma, penso que o Marechal, na atitude que a bio-
os Reis Magos foram por Herodes, condenado sem grafia lhe atribui, a de sentir-se honrado pela condi-
provas como Daniel na cova dos leões. Quer dizer ção social da mulher que teria conquistado, é a me-
que era inocente? O segredo e a dissimulação per- lhor testemunha que temos para o que foi, na sua
tencem, por definição, à. cortesia. Em todo caso verdade social, o amor conhecido como cortês. N egó-
podemos supor que não foi pequeno seu orgulho, e cio de homens, no qual compareceu a vergonha e a
que tinha prazer em se gabar de ter sido, uma vez honra, o amor - deveria forçar-me a falar em ami-
em sua vida, amante de uma rainha. Assim não imi- zade? - varonil. Repito: apenas dos homens se afir-
tou com os gestos adequados, no mais brilhante dos ma que amam, num relato do qual as mulheres estão
cenários e no mais belo dos papéis, as aventuras da- ausentes quase por completo. Gênero literário muito
quele que foi o mais fascinante dentre os heróis preciso, a apologia fúnebre talvez estivesse sujeita a
romanescos? Quem sabe se no resto da vida, uma este tipo de discreta prescrição. Seja como for, nesse
vez passado o perigo, ele se defendeu da suspeita texto que podemos considerar como suas memórias,
com tanto ardor quanto deram a entender os que o Marechal nada revela de arroubos que, em nossa
mais tarde celebraram suas virtudes? Não lhe Íingug gern, chamaríamos de amorosos. Um tal si-
agradaria deixar pairar a dúvida? Ao que tudo lêncio já basta para dizer muita coisa acerca da
indica sem insistir muito na pessoa da amante, condição feminina, ou melhor, da consideração que
cujo principal atrativo a seus olhos, como tam- os homens da época tinham pelas mulheres.
bém no romance, consistia em ser esposa de um
rei. Esses contos que tanto prazer davam aos cava-
leiros, sem jamais os enfarar, neles alimentavam so-
Elas são, quando delas se fala, quantidade des-
nhos fadados a grande repercussão: em que medida
prezível. Porém há também muitos homens que não
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valem mais do que elas, aos olhos do Marechal e de nheiro, a pé, como convém aos inferiores, seres re-
seus amigos. Nenhuma alusão encontramos às mas- pugnantes, mas de inegável eficiência. Vislumbra-
sas dos que tinham a função de lavrar a terra. Uma mos alguns deles nos bastidores dos combates. O pal-
única, aliás, - o comentário de que os camponeses co, porém, está inteiramente ocupado por cavalos
sofriam com as guerras. Atenção, porém. Não va- e cavaleiros, e todos estes, salvo alguns "sargentos",
mos pensar que os cavaleiros tivessem pena deles; são de boa raça. Aos olhos do homem cujas faça-
deploravam, apenas, os efeitos de sua miséria: quan- nhas ouvimos narrar só importa uma parte da espé-
do os pobres, saqueados, esfolados pelos combaten- cie masculina, a que é formada pelos combatentes
tes, nada mais têm de seu, só lhes restando abando- dignos de tal nome, designados por Deus para tal
nar os campos e fugir, os próprios senhores se em- ofício; a espada que receberam ao serem, solenemen-
pobrecem. É destes últimos que devemos nos con- te, armados atesta qual é sua vocação: são eles os
doer. - T ampouco aparecem burgueses, ou rara- cavaleiros.
mente, pois se trata de gente desprezível: que vai E o elogio do Marechal é, acima de tudo, o
juntando dinheiro às custas dos cavaleiros, por eles elogio deles. A louvação se amplifica por um mo-
espoliados. Mas o que é surpreendente é que os pró- mento, no ponto culminante da narrativa, ao con-
prios homens de preces mal apareçam. Vemos passar tar como a fortuna mudou de campo durante os
somente alguns bispos, não dos mais santos, não dos combates de Lincoln, quando o céu deu a vitória a
mais cultos, simplesmente os que, com um elmo co- Guilherme e seus companheiros. Acreditamos então
brindo a cabeça, vão ao campo de batalha com seus ouvir as palavras que garantiam a coragem desses
irmãos cavaleiros: o bispo de Dreux, o bispo de homens e sua altivez na própria adversidade, exal-
Winchester. Ao que tudo indica, no seu período vi- tando os valores principais de um estado que eles
goroso e folgazão o Marechal não costuma conviver tinham certeza ser o maior de todos. Profissão de
com clérigos ou monges. O monumento erigido a uma fé imune a quaisquer dúvidas, profissão de
sua glória fala pouco em suas devoções. Tão pouco desprezo não menos convicto por tudo o que é in-
quanto em seus amores. O que não nos permite, po- ferior a esse estado, por toda ação que não é militar.
rém, supor que no correr da vida tenha freqüentado
pouco as mulheres. Pois sabemos que era devoto a o afã das armas que será?
seu modo, um modo livre, desconfiadíssimo dos es- Empregam-se elas como a pá,
pecialistas da oração, um modo que podemos consi- a joeira, O machado? Não,
bem mais grave é seu fardo. Então,
derar bastante comum no meio militar. Foi rodeado
da cavalaria - que digo?
de guerreiros que Guilherme viveu e agiu. Eles Que é cometimento tão rijo
ocupam toda a sua memória. Alguns deles não eram e arrojado, de arte tão árdua,
nobres: os "ribaldos" que se batiam em troca de di- que o mau de tentá-ia se guarda.

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Quem erguer-se ao alto pretende
dessa honra, primeiro lhe im pende, Ora longe de se atenuar, o desequilíbrio agra-
pois, empreender-lhe o aprendizado. vou-se bruscamente em meados do século XII, du-
rante a infância de Guilherme Marechal. O princi-
A cultura dos tempos feudais nada nos deixou pado normando viera ter ao marido da neta do
que mostre, mais claramente do que estes versos, o Conquistador, outro grande vassalo do Capeto, ~o-
que a classe dominante pensava de si mesma, ou como dofredo Plantageneta, conde de Anjou. Seu filho
agia a fortuna para alçar um homem, e alçá-Io tão Henrique pretendia o trono da Inglaterra, alegando
alto. o sangue da mãe. E subiu a esse trono em 1155, logo
depois de tomar a esposa do rei Luís VII de França,
Leonor, tornando-se, em nome dela, conde de Poit~u
e duque de Aquitânia. Seu poder assim se estendia
por uma boa metade do reino de França; se preten-
] á está na hora de situar, em poucas palavras,
o cenário no qual se movimentam esses cavaleiros. dia estender-se até os Pireneus e a cidade de Tolosa,
O teatro é evidentemente o da guerra, do interminá- revelava-se inconteste, pelo menos, ao norte do rio
vel conflito entre Cape tos e Plantagenetas. Em 1066, Loire: e se exercia com todo o vigor a poucas léguas
a vitória de Hastings entregara a Inglaterra a Gui- de Paris. Uma tal pressão sobre o domínio real era
lherme, duque dos normandos, e aos cavaleiros que insuportável. Assim, temperadas pelo freio, p~r si-
o seguiam. A ilha assim caiu sob o domínio de uma nal bastante eficaz, que constituíam a ideologia da
aristocracia cuja cultura e maneiras de expressão realeza e o elo feudal, entrecortadas por tréguas pro-
eram inteiramente continentais, e que do outro lado longadas dado que era impossíve~ fazer a gue~~a por
da Mancha conservava, além das sepulturas de seus mais do que alguns meses seguidos, as hostilidades
antepassados, boa parte de seus interesses, domínios não haveriam de cessar até a morte do Marechal:
e poderes. A Normandia pertencia ao reino de Fran- entre Luís VII e depois Felipe Augusto, por um lado,
ça. Continuou a pertencer-lhe, e seu duque conti- e por outro Henrique II e depois seus filhos e su-
nuou vinculado aos soberanos francos, sucessores de cesscres Ricardo Coração de Leão e João sem Terra.
Carlos, o Calvo, e de Hugo Capeto, pelos ritos da No correr dos três quartos de século cobertos
homenagem - vassalo deles, obrigado pelo menos a pelo relato que ora utilizo, uma fissura foi aumen-
nada fazer que pudesse prejudicá-los. Porém, sendo tando, insensivelmente, no seio da aristocracia an-
agora rei também ele, por direito de conquista, seu glo-normanda: uma parte dela foi gradualmente se
poder efetivo logo superou o do outro rei, seu se- conscientiz.ando de ter vínculos mais sólidos com a
nhor, que passou a ter como principal preocupa- Inglaterra. E ainda assim, mesmo depois de conqu~s-
ção a de reduzir a desigualdade entre ambos. tados por Felipe Augusto o ducado da 'Normandia,
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o Maine e o Anjou, os cavaleiros do rei da Inglaterra
não deixaram de sentir-se em casa do outro lado do
mar, e de sentir uma estreita solidariedade cultural
com os cavaleiros do rei de França, compartilhando
seu desdém e desconfiança por tudo o que portava
armas adiante do Loire ou na Aquitânia.
3
Nenhuma batalha de verdade ocorreu antes de
Bouvines (1214) e Lincoln (I 217) , porém uma sé-
rie de e~caramuças, escandida de quando em vez por
...._@_....
a!gu,ns Impulsos agressivos mais intensos, que cons-
nturarn o elemento picante na existência da cavala-
ria. Dessa existência a vida de Guilherme Marechal
nos conta tudo - pela construção de suas frases, a
e~colha das palavras, o jogo da memória e do esque- As regras desse gênero literário muito preciso que
eram as Vidas dos santos mandavam começar a
narrativa pela parentela, por esse tronco do qual o
CImento, em suma, pelo que confessa e pelo que
o~ulta. ?em contar que se trata, já, de uma biogra- herói era apontado como o mais admirável rebento.
fia. Assim, graças a Paul Meyer e Sydney Painter, Evocar a ascendência parecia indispensável, "pois
que a submeteram a uma crítica erudita, posso me da boa árvore nasce o bom fruto", como repete nos-
dar ao direito de repartir com seus primeiros ouvin- sa canção: não recebemos todos nós ao nascer, tra-
t~s, de quase oitocentos anos atrás, o prazer tão zido pelo sangue dos ancestrais, o germe das virtu-
VIVO que proporciona um texto tão belo. des que nos incumbe fazer florescer? Aquela época
considerava a santidade como atávica. E também
a valentia. Por isso a Vida de Guilherme Marechal
começa pela linhagem, porém não vai muito longe
por essa via: detém-se no pai e no tio -materno, Pois
esse herói era um homem novo. Punha sua glória
em nada dever a ninguém, a não ser a si próprio.
Podemos supor que, em vida, tenha falado bem pou-
co de seus antepassados, bastante obscuros. Seu filho
e amigos, morto o Marechal, não tinham portanto
como venerar-lhe a memória. Além disso, no con-
junto das honras e bens que sustentavam, em 1219,

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a grandeza do Marechal moribundo, a parte que lhe Os marechais, aliás, não se situavam nos graus mais
vinha dos avós devia ser bem pequena. Por conse- elevados dessa escala. Estavam subordinados a um
guinte não era necessário fazer uma genealogia mui- dos principais oficiais, o condestável, ~n~arrega?o dos
to remota. estábulos senhoriais e de tudo o que dIzIa respelto aos
cavalos. Contudo, dado que desde o ano Mil o pape~
Assim, é graças a outra fonte, o diploma régio
da cavalaria não parava de aumentar no tocante a
que, bem tarde em sua vida, conferiu a Guilherme o
ação militar, sua função f?ra tamb~m aumentando
cargo de marechal, que conhecemos o nome do avô
em prestígio e valor político. E eVld:ntemente su-
paterno - Gilberto. Porém apenas o nome: não
bia de importância e de nível de rendImento segun-
sabemos qual sua origem. Esse nome sugere, contu-
do o poder do senhor servido. Na «família" do rei
do, que fosse filho ou sobrinho de algum dos aven-
de Inglaterra o marechal da corte, no t~mpo de
tureir?s que seguiram Guilherme, o Conquistador,
Gilberto controlava o serviço militar devido pelos
ou s: Juntaram a ele d~pois de ocupada a Inglaterra,
feudatá:ios da coroa e o gasto de dinheiro na guer-
atra~dos pelas perspectivas que a conquista oferecia.
ra' também lhe incumbia manter a ordem no círculo
Possivelmente um filho caçula, certamente nascido
q~e rodeava o soberano. O costume, ~á então fixado
no contin~nte. Observemos que essa origem já esta-
por um regimento escrito, .estabele~Ia seus ganhos:
va esquecida no começo do século XIII ou que, pelo
catorze denários , meio sesterro de vinho e. uma vela
menos, os descendentes já não se importavam muito
por dia, se comesse as refeições na c.asa, ~unt~ com
com ela. Guilherme Marechal é classificado entre os
os outros' vinte e quatro denários (ISto e, dOISsol-
ingleses; sente-se inglês; vê os normandos como es-
dos) , um' naco de pão, um sesteiro de vinho e vinte
trangeiros, os franceses ainda mais. O que não o
e quatro pedaços de vela caso se alimentasse po~
impede de admirar os cavaleiros de França e de lhes
atribuir as primeiras posições na cavalaria «por sua conta própria. Em certas solenidades, quando o rei
valentia e apreço e pela honra de seu pais", armava um conde ou barão, ele também tinha di-
reito a um palafrém selado por novo cavaleiro.
Um século antes da morte de seu neto esse
Gilberto exerceu junto ao rei de Inglaterra, Henri- T ais ofícios domésticos logo se tornaram here-
que I, as funções de marechal da corte, o que lhe va- ditários. À morte de Gilberto, por volta de 1130,
leu seu apelido, que terminou sendo nome de famí- seu filho mais velho, João, pai de Guilherme, rece-
lia. Naquele tempo, os marechais eram domésticos' beu o título e as prerrogativas a ele anexas; conser-
alimentados e vestidos como os demais membros da vou-os ainda depois de 1239, quando se afastou defi-
casa real; esperavam além disso gratificações, cujo nitivamente da corte e da pessoa do rei. Pois esse ia
.montante variava conforme a largueza do senhor e o gradualmente perdendo o poder que lhe re~tava. E~-
lugar por eles ocupado na hierarquia dos servidores. têvão de Blois sucedera em 1135 a seu tIO Henri-
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que I, que não tinha mais filhos legítimos. Foi-lhe
difícil instalar-se no trono; para fazer-se aceito, pre- que haveria de favorecer a Guilherme. Considero-os
cisou multiplicar as concessões à aristocracia. Pois como a causa de todos os seus futuros sucessos.
contra ele se erguiam todos os que, no intuito de Por mero acaso João fez ainda cedo, no melhor
justificar sua reticência e exigir maiores concessões, momento, a opção correta. Aderiu ao, Ia.do de Ma-
proclamavam Matilde, filha do falecido rei, herdeira tilde. Esta passava perto de seus domínios qu~n~o
mais direta do que Estêvão. Seu número foi crescen- ele a serviu, numa escaramuça, expondo a propna
do pouco a pouco, ao passo que se esvaziava o te- vida. Cobriu-lhe a retirada quando o pequeno bando
souro. A confusão tomou conta do reino assim divi- que a servia recuava ante as forças, bastante supe-
dido. Em cada província os velhos ódios se revigo- riores, do rei Estêvão. Aqui ve~os un: desses por.me-
ravam, as cobiças, a vontade de crescer às Custas dos nores precisos - ínfimos, porem catlVant:s, e ainda
vizinhos. Tomava-se um partido ou outro, o do rei mais aos olhos dos entusiastas da cavalana - que
coroado, o da mulher que lhe disputava a sucessão. freqüentemente resistem ao esquecimen~o qua.ndo
Isso também sucedeu em torno do castelo de Marl- esse desfia a trama da memória. Era pr:cIso f~gIr, e
borough, condado de Wiltshire, nas terras de João depressa; Matilde cavalgava como en~ao faziam as
Marechal, onde este fora viver achando que a oca- mulheres sentada sobre sua montana co~o uma
sião era propícia para fazer seu jogo pesssoal. Esse amazona; , atrasava a cornpan h'Ia. "Sen hor:, J~ro p~r
jogo, no qual (como diz o poema) "um perde e Jesus Cristo (ter-lhe-ia dito João). que nao. e POSSI-
outro ganha", era a guerra. Entendamos: a rapina, vel esporear o cavalo dessa maneira; deveis passar
o saque, a ganância. João se defrontava, do Outro uma de vossas pernas sobre a sela." Lutou com de-
lado da planície, com Patrícia, governador do cas- dicação, resistiu ao inimigo, tentou, no convento fe-
telo de Salisbury, chefe de outro bando. Nesse ponto minino de Wherwell, retardar o avanço dos perse-
alcançamos os confins da memória de família. Em guidores. Estes incendiaram a torre em que ele se
brumas tão remotas mal se distingue a silhueta de instalara; o chumbo do teto derreteu-se e esco:reu
João. Tudo o que se recordava era que ele distribuía sobre seu rosto; os homens do rei pensaram que tmh:
com largueza e, não sendo conde nem barão dos morrido. Graças a Deus sobreviveu: regressou a pe
mais ricos, ainda assim conseguira manter a sua volta até Marlborough, porém só lhe restava um o~ho. A
grande número de cavaleiros. Trezentos, diz o texto, memória dos príncipes é curta. Porém MatII~e se
o que obviamente é exagero. Pelo menos dois acon- recordou da façanha, da dedicação de seu servidor,
tecimentos, porém, conservam-se nitidamente regis- e seu filho Henrique Plantageneta não o esq~ec~eu
trados na memória. Dois fatos importantes por suas ao tornar-se rei de Inglaterra à morte de Estevao,
conseqüências: estão ambos na origem da fortuna em 1154. João assim conquistara o a~or e boa vo?-
tade do senhor que mais favores podia lhe conferir.
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A segunda esposa, donzela Sibila, valia mesmo muito
Ele ia subindo na escala social graças a sua va-
lentia - mas acelerou o processo e subiu mais alto mais que a primeira.
casando-se com uma moça de elevada linhagem. Des-
de o começo desta história já nos deparamos com os
efeitos determinantes que as estratégias matrimoniais
Foi mãe de Guilherme, segundo dos quatro fi-
produziam, nessa época e nesse meio, sobre todos os
lhos varões que João Marechal engendrou "nela",
ritmos de ascensão social. Como sempre acontecia
mais duas filhas. Guilherme seria portanto o quarto,
com o primogênito, João Marechal foi casado cedo.
na ordem de sucessão ao pai. Precediam-no os filhos
Sua mulher, de quem nada sabemos, pois para Gui-
do primeiro leito, Gilberto e Gauthier (sabemos que
lherme e seu biógrafo ela não apresentava nenhuma
pelo menos este último exerceu o cargo de marechal,
utilidade, deu-lhe dois filhos. Porém, agora ele se
depois do pai) , e João, primogênito do s~gundo ~a-
via na oportunidade de contrair uma aliança muito
samento, que tinha o mesmo nome do pai e tambeI?
mais vantajosa. Ia-se evidenciando que Matilde esta-
lhe sucedeu. Nessa abundante progenitura masculi-
va para vencer. Patrício, o rival de João, já tratava
na Guilherme se localizava, pois, entre os extranu-
de se acertar com os prováveis vencedores. Levava
merários assim como Anseau, o filho seguinte, e o
vantagem na guerrinha local. Era de sangue bem
caçula, Henrique. O mais novo foi posto I?a I~re;a;
superior ao de João, o que nem mesmo no círculo
depois de longa espera, o sucesso de seu 1fl:~ao no
de Guilherme, cinqüenta anos passados, ninguém se
mundo o fez ascender no clero: morreu bispo de
atreveria a contestar; tinha mais poder do que ele.
Exeter. Que importância se dava, na casa, a esse.s
Negociava sua adesão a Matilde. Os Plantagenetas, meninos que tiveram a má sorte de nascer ma~~
para terem seu apoio, fizeram-no conde de Salis- novos? Uma anedota - é ela que introduz o herói
bury. Em contrapartida conseguiram que ele cedes- em cena quando devia ter uns cinco ou seis anos,
se a irmã a seu fiel servidor João. Os casamentos ser- e era esta uma das recordações mais antigas que ele
viam para isso - reconciliar inimigos, consolidar a contava - lança uma certa luz sobre a condição da
paz. Sem hesitação - na época eram corriqueiras criança na sociedade de cavalaria. Os ~o~u~entos
essas substituições de uma esposa por outra - João que possuímos falam tão pouco da condição mfa?-
repudiou a esposa, ficou livre, tornou a casar-se. til deixam-nos tão mal informados, que mUltas his-
Agia, segundo o panegírico, pelo que chamaríamos to~iadores, entre os quais eu, nos inclinamos a pen-
de civismo e para satisfazer seu senhor. Para pôr sar que os filhos de cavaleiros, exceto (s: tanto) o
filho primogênito, mal importavam a~ pal enquanto
fim à discórdia que reinava entre ele e Patrício. E
não tivessem a idade de combater Junto dele ou
não por apetite. Temos o direito de não seguir cega-
contra ele. Examinemos então essa anedota.
mente, nesse ponto, o que nos diz o trovador João.
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Foi no tempo em que João Marechal lutava pouco lhe importava a criança: ele ainda tinha "a
contra o rei Estêvão. Este cercava o burgo de New- bigorna e o martelo para forjar outro, mais belo".
bury. Impaciente, enfurecido, jurando vingar-se
O que pensar de tal bravata? Que os pais eram
desses vilões que lhe faziam a afronta de resistir por
tão prolíficos, e a mortalidade infantil tão grande,
tanto tempo: pois o chefe da guarnição se recusava
que mal se importavam com seus rebentos, ainda
a entregar o castelo, e a soldadesca de pé se atrevia
que do sexo masculino? Ou, antes, que uma resposta
a repelir os ataques dos cavaleiros do rei. Estêvão
dessas pertence ao libreto clássico da grande ópera
teimava no cerco. Mas terminou negociando. A luta
que então se representava, com belos gritos, com be-
feudal era entrecortada de mil tréguas; mal a ação
los gestos, no teatro da guerra feudal, e na qual tão
perdia seu ímpeto, o tédio desagregava as tropas,
importante quanto trocar golpes era intimidar, ate-
geralmente de pequeno porte; se um assédio demo-
morizar, convencer o adversário por meio de pala-
rava, elas não demoravam a se dissolver; bastava um
vras e mímicas? De minha parte estou persuadido
pouco mais de tempo para que os cavaleiros fossem
de que nenhum dos lados acreditou que se iria até o
sumindo, um a um. Os chefes viam-se então obriga-
fim, que se chegaria à execução capital. Isso bem
dos a tratar, a firmar uma trégua para que cada
se vê depois da réplica, quando o espetáculo conti-
lado pudesse recompor as forças, antes de voltar ao
nua, numa sucessão de suspenses. É verdade que na
jogo, para uma nova partida, igualmente curta. As-
Inglaterra, país mais rude que o continente, havia
sim se concedeu trégua de um dia aos defensores de
mais crueldade. Mas, dentre os que ouviam no co-
Newbury, e depois uma trégua mais longa ao cava- meço do século XIII a história de Guilherme Mare-
leiro que os apoiava, João Marechal, que prometia chal, quem poderia acreditar, a não ser mediante um
servir de intermediário para conseguir de Matilde a esforço extraordinário de recuo até uma época qua-
rendição da praça. Estêvão exigiu garantias, porém; se centenária e já legendária, que se pensasse seria-
~xigiu que um dos filhos de João lhe fosse confiado mente em sacrificar um refém, ainda por cima filho
Como refém. Guilherme, o quarto filho, foi o es- de fidalgo, e de fidalgo perigoso? O interesse dessa
colhido. Refém de pouco valor, é verdade. Não encenação, que talvez só tenha existido na mitologia
impediu que João reforçasse o castelo durante a tré- da família - e cuja recordação, em todo caso, deve
gua. O rei percebeu que tinha sido enganado. O me- ter sido muito embelezada -, reside a meu ver nos
nino, diz a canção, viu-se então "na aventura". Di- sentimentos atribuídos a um dos dois protagonistas:
ríamos hoje: em perigo. Vieram então os "lisonjei- o rei Estêvão.
ros" que sempre são maus conselheiros, patifes. Ins- O poeta o mostra enternecido com a crianci-
taram o rei a enforcar Guilherme ou, pelo menos, nha. Provavelmente as ações desse soberano, a me-
a ameaçar fazê-Io. Alertado disso, o pai fez saber que mória que se tinha dele, o lugar que na galeria dos
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retratos reais cabia ao antecessor de Henrique II já os filhos de cavaleiros, nessa época, deixavam cedo
induziam a emprestar-lhe os traços de um homem a casa paterna; iam fazer em outros lugares o apren-
fraco, atributos femininos, uma ternura meio idiota. dizado da vida, e no caso dos filhos mais novos, a
Mas, afinal? O biógrafo de Guilherme diz que ele despedida era definitiva, salvo algum acaso feliz.
se derreteu, o coração inundado de "doçura", pe- Completados os oito ou dez anos, assim eram apar-
gando o menino entre as mãos, repelindo os conse- tados de sua mãe, das irmãs, das mulheres de seu
lhos dos "lisonjeiros". Isso porque o garoto pedia sangue, em meio às quais haviam vivido até então
para brincar com o punhal de um cavaleiro que o e a quem se sentiam apegados. Notemos, aliás, que
escoltava até a forca, porque pensava que era um as primeiras perguntas do pequeno Guilherme, re-
balanço a catapulta onde fingiam que o iam colocar fém, ao servidor de sua casa que veio em sigilo in-
para projetá-Ia feito bola de aço por sobre as mura- formar-se de como estava (espiando-o por entre
lhas, po!-'que perguntava o tempo todo de que esta- os panos da tenda real) foram sobre como passavam
vam bnncando, enquanto sitiantes e sitiados se en- sua mãe, suas irmãs, uma ruptura, portanto. E du-
genhavam em tornar ainda mais terríveis os pre- pla: com a casa natal, com o universo feminino ?O
paratrvos de sua pretensa execução. Guilherme Ma- quarto das crianças pequenas. E passagem muito
rechal, chamando em seu socorro sua memória mais brusca para um outro mundo, o das cavalgadas, das
remota, dizia ainda que, como o sítio prosseguisse e estrebarias, armazéns de armas, caçadas, embosca-
ele continuasse refém, o rei gostava de tê-Ia em Sua das, enfrentamentos viris. Os meninos cresciam nes-
tenda, rolando os dois juntos no chão recamado de se meio, integrados no bando de cavaleiros, mistu-
flores, divertindo-se em brincadeiras de destreza, em rados os adolescentes, na promiscuidade militar, com
partidas de um tipo de pôquer, que jogavam Com homens já maduros. Passavam assim a pertencer, em
folhas de grama, e que a criança ganhava, está óbvio. posição subalterna, confundidos inicialmente com os
Cenas dessa ordem convêm perfeitamente à gesta do serventes, à armada sustentada por um novo patro-
conde Marechal: pois convinha introduzi-Ia em cena no, o qual se incumbia de educá-Ias, de diverti-Ias,
já nos braços de um rei, situação premonitória de tornando-se assim seu novo pai, enquanto a figura
sua futura ascensão até o poder soberano. Será que do pai, do pai verdadeiro, do pai "natural", rapida-
pareceram inverossímeis aos que as ouviram contar? mente se apagava em sua memória, se, não tendo
Relações de tanta ternura soariam estranhas? Deve- eles a primogenitura, não tinham esperanças de su-
ríamos excluir, do rol das atitudes naturais desses ceder a ele um dia.
guerreiros, o amor pelas criancinhas?
Observemos que Guilherme Marechal bem pa-
Um sinal da condição infantil, pelo menos, é rece ter expelido completamente o pai da lembrança.
certo, e dele dependeu todo o destino de Guilherme: Ele mar reu em 1165. Sabemos da data graças a
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Outros testemunhos, pois o poema não faz a menor denstokes, onde, narra a história, repousavam seus
alusão a esse falecimento. É verdade que Guilherme ••ancestrais".
estava longe: vivia então na Normandia. Mas era Seu pai? Não. Os ancestrais maternos: o prio-
um adulto, com uns vinte anos de idade. Nessa es- rado, sabemos graças aos arquivos, havia-se benefi-
pécie de memórias que nos legou, não mostra o ciado dos favores de Patrícia de Salisbury, e foi desse
menor interesse em dizer que se sentiu comovido lado, do lado da linhagem de maior honra e à qual
com a morte de um homem a quem certamente não ele sabia dever mais coisas, que João Marechal II es-
via desde muitos anos, nem que tenha sentido a von- colhera ser enterrado. Uma aparente indiferença à
tade ~e revê-Ío no leito de morte ou de acompanhá- morte do pai, demonstração de dor e sentimento de
Ia ate a sepultura. Podemos até nos perguntar se família à morte do irmão mais velho: há explica-
não terá esquecido o próprio lugar em que repou- ção para essas duas atitudes. Em 1165 Guilherme
sava o despojo do pai e se terá rezado alguma vez não herdava nada - assim como em 1219 seus
por ele. O único luto que jamais exibiu a darmos filhos mais novos tampouco herdavam, e nada per-
crédito às memórias, foi pela morte do irmão mais mite supor que tenham assistido aos seus funerais.
velho. Quando recebeu a nova, manifestou com tal Mas em 1193 ele herdava: João Marechal n não
veemência a dor adequada que os presentes pensa- tinha filho varão. Uma prova a mais, e formal, des-
ram que «s~u .coração ia explodir". Cuidou pessoal- se traço característico da época: o que há de ritual
mente da distinção das exéquias. Mandou seus pró- nas manifestações de afeto entre parentes os sinais
prios cav~leiros a Marlborough buscar o corpo, externos de apego que são os únicos a podermos exa-
acompanha-lo em grande pompa por três dias in- minar, posto que não temos como sondar os cora-
teiros, junto com a viúva, até Cirencester, onde se ções ou avaliar a sinceridade dos sentimentos, de-
juntou a eles. Nessa abadia de cônegos regulares or- pendiam diretamente da localização dos interessados
denou que o ofício se fizesse com todas as honras' , na cadeia sucessória. É a transmissão dos bens que
e quase desmaiou, do único tipo de desmaio que não alimenta, nessa sociedade, os únicos elos afetivos que
compromete um cavaleiro. Na verdade, ele tinha as pessoas são obrigadas a exprimir em público. Na
muita pressa em partir: Ricardo Coração de Leão minha linhagem eu expresso abertamente o amor que
- o ano é 1193 - estava retornando do cativeiro. tenho por aquele que ainda detém os direitos que
Essa notícia lhe chegou ao mesmo tempo que a da serão meus quando caírem de suas mãos moribundas,
morte do irmão, e, diz o poema, já lhe serviu para tal como o vassalo ama abertamente o senhor de
pôr bálsamo em sua alma. Não devia demorar-se e quem recebeu benefícios. O pai de Guilherme foi
partiu a galope para encontrar o rei, deixando o cor- pranteado, suas exéquias organizadas, sua memória
tejo fúnebre prosseguir sem sua companhia até Bra- exaltada por Gauthier, o filho (dentre os dois pri-

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meiros) que lhe sobreviveu, que provavelmente vol- mocinhos. Estes que chegam são os que a família
tara a viver a seu pé, uma vez completado seu perío- decidiu não mandar para a Igreja. Assim que parece
do de aprendizado, que lhe sucedeu no cargo de ma- correto arrancá-Ios das saias da mãe e das criadas, os
rechal, e que não tardou a morrer. Se Guilherme não pais se preocupam em confiá-Ias a Tancarville, para
(e
que os trate como se fossem seus netos.
"N--ao sao
chorou o pai, não foi porque sentisse raiva de ter
sido expulso da casa, sem nada ou quase nada. Agiu seus descendentes, porém neles corre o mesmo san-
da mesma forma com seu filho mais novo, a quem gue que é seu. Devido às leis de un:a gen~tica usu-
amava muito, como ele próprio diz. Não chorou o almente aceita na nobreza, são pOIS destinados, se
pai porque não lhe devia nada, fora o fato de tê-Ia ele se der ao trabalho de cultivar suas capacidades,
gerado, sem muito trabalho - nem, talvez, muito a se tornarem tão ricos, tão generosos, tão corajo-
prazer -, e de tê-Ia colocado numa casa adequada sos quanto ele mesmo. Ele acolhe sem problemas essa
para se iniciar nas armas e ficar em condição de meninada. As despensas da casa estão sempre cheias.
se fazer por si. Como poderia usar melhor as reservas de alimento,
todo esse trigo que seus foreiros lhe trazem à casa,
do que criando esses meninos? Ele os educa. Sabe que
assumindo essa função ele substitui seus pais e, por-
Voltando a paz, com a morte de Estêvão e a tanto, multiplica sua progênie muito mais do que
coroação de Henrique lI, o jovem Guilherme se ele próprio poderia gerar em suas sucessivas esp?sas.
despede da mãe, de suas irmãs (que choram) e parte T em sob a férula um tropel de futuros guerreiros.
com um equipamento dos mais simples, acompa- Pertencerão a ele por todo o sempre, presos nos laços
nhado apenas de outro "mocinho" e de um serviçal. de uma amizade respeitosa que costuma aparecer,
Atravessa o mar. Seu pai decidiu mandar o quarto aos olhos de quem é seu objeto, como a mais segura
filho para a N ormandia, junto de Guilherme de riqueza que possa haver no mundo. O senhor de
T ancarville, camarista do rei de Inglaterra. Esse ho- T ancarville se regozija de ver esses adolescentes se
mem, seu primo-irmão, governa um castelo forte, rivalizando para agradá-lo.
no qual reúne noventa e quatro cavaleiros sob seu
Mal entrou nessa competição pelo amor desse
estandarte, e é muito boa a posição que ocupa na
que o alimenta, e Guilherme já se sente invejado. Os
casa real: dos parentes próximos de João é um dos
mais poderosos. Por isso está obrigado a "amar" mais ciumentos repetem ao patrono: por que se incomo-
do que ninguém sua linhagem, a "exaltá-Ia" tanto dar com esse imprestável "estraga-carne": o tempo
quanto possa, a "honrá-Ia". Todos os seus primos que não passa comendo passa dormindo. O chefe não
confiam plenamente nele. Contam com ele. Por isso lhes dá ouvidos. Guilherme continua a comer bem;
vê chegarem a seu castelo verdadeiros enxames de são seus "os mais belos nacos que chegam ao senhor".

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o senhor o ama. Ele prospera. Logo será escudeiro, que tanta discrição quanto à p~ópr~a sole.nidade?
seguindo em suas expedições os guerreiros, servindo- No meu entender a melhor explicação seria a se-
os. Passa oito anos nesse estado preparatório. Final- guinte: não se gastou dinheiro com esse caçula. Ele
mente Guilherme de Tancarville decide - o seu foi armado cavaleiro em uma fornada geral, como
protegido já passou dos vinte anos - cingir-lhe so- era hábito nas melhores casas, sem ter nenhum re-
lenemente a espada. Que é uma ferramenta, porém, levo; misturado com os outros, numa cerimônia de
mais do que isso, um emblema do direito e dever de rotina.
combater. Seu ingresso na cavalaria certamente Contudo o autor do poema, aproveitando as
ocorreu durante a primavera de 1167. A canção não incertezas de urna memória que vacilava no tocante
diz em que data. Não descreve o cerimonial. Isso é a tempos assim afastados, quis m~?nificar. esse ponto
meio estranho, porque na época era costume dar crucial da biografia de um herói que figurava na
enorme importância a essa jornada em que a in- sua obra como o modelo da cavalaria. O canClOfilsta
fância termina e o homem feito é admitido na socie- João transformou o rito cost~~eiro que se, seg~ia à
dade dos adultos. Neste dia começa a verdadeira entrega dos jaezes - uma especie de [antaziya arabe
vida, e cada cavaleiro o recorda como o mais belo que se chamava quintana, e,xerc,ício e~üestre no cor-
de sua existência. Na biografia do herdeiro dos con- rer do qual os novos cavaleiros investiam com a la~-
des de Guines, que foi inserida numa crônica genea- ça contra manequins para demonstrarem sua perr-
lógica uns trinta anos antes de se escrever a história cia - em um autêntico combate. Nessa parte de
de Guilherme Marechal, a data em que ele foi ar- seu relato ele integra lembranças descosidas, que na
mado cavaleiro é o único elemento cronológico pre- verdade se referem a um combate do qual o Mare-
ciso. Ora, sabemos que o conde Marechal sentia essa chal realmente participou, só que cinco anos mais
mesma reverência pelo seu adubamento. Mais devoto tarde em Neufchâtel-en-Bray. Desta feita ele lutou
do que dá a entender seu biógrafo, sentia que tal li- do lado normando, para defender o conde d'Eu con-
turgia lhe infundira, para o resto de sua vida, algo tra a agressão dos flamengos, dos homens de Pon-
da graça divina. Em 1189, teria dito, a amigos que
thieu e de Bolonha. Nesse quadro, no centro de um
temiam por sua vida, ou pelo menos por sua for-
recontro agitado, violento, sanguinolento mesm~,
tuna, num momento crítico que atravessava: "Deus,
como eram os choques armados durante as expedi-
a quem por isso rendo graças, fez-me enormes mer-
ções de saque, mas que ele apresenta tão espetacular
cês em minha vida desde que sou cavaleiro; minha
coragem se apóia na certeza de que continuará a fa- quanto um torneio - e espontaneamente a palavra
zer-me o bem". Na sua mente a cavalaria, enquanto "torneio" aparece no texto -, ele situa a ~rova
fonte de graças, era exatamente o que os teólogos da exigida de quem acaba de ser admitido no. seio da
época definiam como um sacramento. Então? Por cavalaria e que deve mostrar-se digno de tal ingresso

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perante numeroso público (o qual reúne represen- corte. Deu uma festa. Comida e bebida à vontade,
tantes dos dois sexos e dos diversos níveis da socie- e da melhor -- "boas carnes compradas com bom
dade que realmente importam - cavaleiros, damas, dinheiro", daquelas que os mercadores vendem,e que
donzelas, burgueses, burguesas). "Fez suas provas", são superiores ao que se pode tirar dos saleiros e
diz o poema. E tanta virtude demonstrou que os tonéis da casa. Oitenta cavaleiros devorando o que
espectadores "não podiam acreditar que ainda estava encontram. Dar de comer aos seus, com abundância:
aprendendo o manejo das armas". Ninguém, afirma eis o dever do bom senhor. Os familiares esperam
o texto, esperava que ele se revelasse de tal modo: também que ele Ihes proporcione diversão. Uma vez
ao começar a exibição foi postar-se ao lado do ca- saciados conversam. Rememoram os melhores lan-
marista, mas este mandou o principiante afastar-se: ces da jornada: "Ricas palavras e belos dizeres". Pia-
"Guilherme, fica atrás, não sejas tão afoito. Deixa das. Guilherme de Mandeville, barão, também quer
passarem os cavaleiros". Ora, cavaleiro ele já pen- fazer rir: "Marechal, peço-vos um presente, um
sava ser. E provou que já era. Arriscando a própria sinal de amor. - Qual? - Uma retranca ou um
vida, enfrentando não espantalhos, porém os mais velho cavalo de tiro". Ingênuo, o novo cavaleiro
perigosos dentre os combatentes, esses cavalarianos protesta: não possui mais nada de seu; "não se bateu
que eram chamados de sargentos para distingui-Ias pelo ganho, mas para libertar a cidade". Perdeu
dos de melhor raça e que por isso mesmo não hesi- tudo o que tinha. Os outros caem na gargalhada. Ele
tavam em usar de toda a .força. Eles se juntaram entende a lição. Tem coragem para dar e vender. E
contra Guilherme. Tomaram da arma ignóbil, um aprende que a coragem serve, antes de mais nada,
desses ganchos de ferro utilizados, na Flandres, para para se enriquecer. Ora, de momento, passada a fes-
derrubar as casas dos burgueses que desrespeitavam ta, depois de galopar, esgrimar, beber, comer, falar,
seu compromisso de paz. Pegaram-no pelo ombro, melhor do que jamais se fez nas mais suntuosas ceri-
tentando derrubá-Ia do cavalo -, Resistiu. Treze ma- mônias de investidura de Pentecostes, ele se vê mais
lhas da cota que usava se arrebentaram, mas não pobre do que nunca em sua vida. É a estiagem, o
caiu do cavalo. Cavalo que acabava de receber junto pon to mais baixo de sua existência.
com a espada, que valia muito dinheiro, que ele não Com efeito, mal o bando retornou a T ancar-
hesitou em arriscar junto com sua vida e que, me- ville, seu chefe, o camarista, anuncia aos novos cava-
nos protegido do que o cavaleiro (que tinha arma- leiros que de agora em diante só devem cont,ar com
dura) , foi ferido de morte. Isso nada tem a ver com as próprias forças. Completada sua aprendIzagem,
os jogos da quintana. ele não mais se responsabiliza por alimentá-Ios. Par-
De noite, como era costume depois de serem tam então, diz o texto, que vão "rodar pela terra",
armados novos cavaleiros, o camarista reuniu sua Rodar, palavra rica de sentido. Andar sem descanso,

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tava-os, criava-os, tutelava-os. Com a e~rância co-
em puro movimento movimento sem reta, sem
meçava a liberdade, porém também o perigo. O M~-
meta. Pois não há meta final. Procurar, aqui, ali.
rechal, conta João, autor da história, então sentiu
Demandar. Os velhos verbos "querer" e "conque-
rer": "conquistar apreço", sozinho. E sozinho pela "enorme terror".
primeira vez. Pois na ruptura anterior, quando Gui- Pois Guilherme não era primogênito. Qua~do
lherme, de coração partido, teve de deixar a mãe e foi armado cavaleiro seu irmão mais velh~, ~erdelro,
as irmãs, apenas mudou de pensão: expulso, segundo futuro chefe da linhagem, os costumes exigiram ~ue
os usos, da casa paterna, seguiu, equipado - pouco também fosse mandado a rodar pelo .mundo, porem
equipado, é verdade, mas pelo menos suas mãos não de maneira gloriosa. Seu per~urso sena d:e~mero alar:
estavam vazias -, para uma outra casa na qual os de. Destinava-se a fazer bnlhar na regrao, durant~
costumes garantiam que seria acolhido. Essa primeira alguns meses, ou mesmo anos, a honra da cas~. Ex-
partida não era aventura. Nem liberade: sob o poder punha-se o rapaz aos perigos, é verdade, porem ele
de um novo genitor, ia prosseguir sua infância. Mas recebia tudo de que precisava para enfrentar a pro-
hoje terminou a meninice. Com a espada na cinta va com fausto, para se valorizar, conjugando p:o.eza
Guilherme se tornou homem em meio aOs homens: com largueza. Era preciso que ele fosse. magmflc~.
Agora só pertence a Deus. Junto com o boldrié mi- Por isso partiu escoltado de companheiros e ser:-i-
litar, recebeu um poder que é, acima de tudo, poder çais, as bestas ricamente ajaezadas, levando consigo
sobre si mesmo. Os ritos de investidura consagram grande quantidade de moedas de p~ata. Sendo caçu-
essa cerimônia na qual um homem toma posse de I porém Guilherme entrava na Vida sem nada pos-
a,' De tudo o que havia rece bid
<' 1 o
d e seu patrono,
si mesmo. Assim entendemos seu sentido, compreen- oUlr. di ~ d
ritualmente, ao mesmo tempo que a con içao e
demos que fosse tão importante ser armado cava-
cavaleiro, o que lhe restava? Apenas a espada, a cota
leiro na sociedade em que penetramos graças ao poe-
de malhas partida, a cicatriz causada pelo ga~cho de
ma, que tal evento fosse considerado o principal de
ferro, que ele conservaria até o fim de seus dias. Seu
toda a vida masculina. Antes de receberem as armas ,
bom cavalo estava morto. Quanto ao manto, pre-
nesse dia notável, os rapazes se despiam e lavavam
cisou vendê-Io: vinte e dois soldos, em denários an-
o corpo. Tal como se lavava o corpo dos recém-nas-
gevinos. Isso era pouco, somente um décimo do q~e
cidos e o dos defuntos. Pois essa entrada, essa passa-
custava um cavalo de guerra adequado, so~a estri-
gem, era análoga às outras passagens, nascimento,
tamente suficiente para comprar um burnnho q~e
morte. Era como se eles viessem ao mundo pela se-
o carregasse com suas armas: afinal de c~ntas nao
gunda vez, a única, na verdade, que importava real-
podia pegar a estrada a pé, levando o eqUlpamento
mente. Até então o que tinham vivido era ainda a
gestação, devidamente protegidos. Alguém alimen- nas costas.
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vagem demais e mal treinado, de modo que .ningué~
~ois ele ~art.iu para a luta. Rodar (tourner)
se atrevia a utilizá-Ia num combate esportivo. GUl-
tambem quena dizer fazer torneios. Ir de um tor-
lherme saltou em cima dele, deu-lhe de esporas, do-
neio a outro. Nos quais brilharia, é claro, como os
mou-O enfim, numa espécie de rodeio cujas fases,
primogênitos, mas sem jogar dinheiro pela janela.
feitas de idas e vindas, o poema acompanha no me-
Tentando, ao contrário, ganhá-Ia. Ganhar apreço.
nor detalhe. E soube utilizá-lo com tal maestria que
Ganhar, acima de tudo, a vida. Arrumar a vida. Mal
naquele dia acabou fazendo quatro prisioneiros e
tinha saído da casa de T ancarville e já lutava em
meio: meio porque consentiu, ingênuo que era,em
torneios, e já vencia. Com efeito, ainda lhe mostra-
dividir o quinto com um companheiro que a~i~mava
vam a porta, ainda lhe diziam que partisse mundo
tê-Ia ajudado na captura. Esse sucesso perm:tlU que
afora, e )á cheg~va a notícia de um torneio prestes
completasse seu equipamento, podendo ~ntao apre-
a. se realizar, GUIlherme, o Camarista, que não que- sentar-se em melhor postura no torneio segulilte.
na perder a ocasião, apressou-se a formar seu time.
Batendo-se muito bem ainda desta feita, porém so-
Seu ex-escudeiro, novo cavaleiro, ainda estava no
zinho: doente, ou mal avisado, seu patrono não apa-
castelo. E o camarista o contratou, como teria tra-
receu. Fez maravilhas, segundo o que contou mais
tado com um cavaleiro de passagem pelo lugar.
tarde. Voando com suas próprias asas.
Como alguém que vinha reforçar o esquadrão do-
méstico, aumentando-o, não mais que isso. Com que Já se falava dele. Começava a despertar inveja.
prazer o conde Marechal, daí a vários anos, lembra- Tinha apenas vinte, ou vinte e dois anos, e o que
ria que seu patrono, o Camarista, o havia tratado faria? Prosseguir seu caminho, solitário, como um
como amigo e mesmo "neto" - o amor de Carlos franco-atirador? Nessa época nenhum cavaleiro agia
Magno por Rolando. Mas contaria também que nesse sozinho por muito tempo. Todo ano - toda prima-
dia, tão decisivo - era sua primeira luta de ver- vera-, centenàs de rapazes se viam, como ele, lan-
dade -, dele só recebera "pequenos dons". Ele fri- çados para fora das fortalezas da nobreza, como um
sava a parcimônia do castelão para deixar bem claro fermento de turbulência que chegava ao mundo ex-
que, no limiar da vida verdadeira, estivera reduzido terior. A sociedade se protegia: canalizava essa tor-
às suas próprias forças. E o que mais queria salientar rente de juventude, enquadrava rapidamente sua in-
era. que conseguira sem ajuda de ninguém a rnon- quietante impetuosidade. Pois a sociedade que ora
tana de combate indispensável para acompanhar os analiso era grumosa; irresistivelmente os indivíduos
o~tros em ~u~uras expedições lucrativas. Como já se viam forçados a se aglutinar, agregando-se a gru-
nao I?er~en~la~a casa de T ancarville, não tomou parte pos, e era assim, rodeado de amigos, somando-se a
na distribuição dos melhores cavalos da estrebaria.
eles, que cada qual fazia seu caminho na vida. So-
Restou um, porém, no pátio, que ninguém quis. For- mente na ficção romanesca é que existia andanç;t
te, bonito, de belo porte, mas rebelde ao freio, sel-
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solitária. E mesmo assim ela sÓ ocupa trechos desses quando terminou por romper o ví~cul~,' foi ~ara es-
romances. Neles a solidão não é vivida como liber- tabelecer sem demora uma nova ligação. N ao tar-
tação, porém, muito ao contrário, como uma crise dou a se prender a outras cores, a passar à proteção
dolorosa, como uma espécie de penitência que mor- de um novo patrono.
tifica. A corte espera a volta de todos esses Lance- Quando assim interrogo este documento t~o
lotes e, enquanto dura a prova, os cavaleiros legen- rico a fim de seguir a trajetória de uma ascensao
dários sonham, tal como Erec, em retornar breve- social, com o intuito de partir de seu exemplo para
mente ao ninho, ou então, se ainda não se casaram, construir hipóteses mais sólidas acerca do que devem
em se abrigarem logo no seio de um espaço domés- ter sido os movimentos de capilaridade e ascens~o
tico protetor. Na verdade, os guerreiros tinham bas- social na aristocracia do Ocidente durante o meio
tante medo de ficar sozinhos: o isolamento os en- século que se situa em torno do a~o 1200 (quer
vergonhava, e muito. Um homem visto cavalgando dizer, quando estava no auge o cr~s~imento da E~-
solitário era digno de lágrima, ou aparecia como um ropa: no tempo forte de um prodigioso desenvolvi-
desterrado, o que foi o caso do próprio Guilherme mento que de um único impulso fez acelerar-~e a
quando, suspeito de adultério, não conseguiu se jus- circulação monetária, fortalecerem-se a~ estatais e,
tificar e precisou fugir, o coração cheio de raiva, portanto, multiplicarem-se as oportumdade~ para
da corte de Caen em plena época de Natal. Quinze que um indivíduo se elevasse dentro da SOCiedade,
anos antes, logo após ser armado cavaleiro, sentiu já através do dinheiro, cujo montante aumenta,:"a c,
muita dificuldade em se desligar da casa do cama- portanto, apressava o próprio fluxo, já consegullld~)
rista. Quando teve a coragem de deixá-Ia, sem nin- os favores de príncipes mais ricos, e portanto mais
guém mais, para participar de seu segundo torneio, magnânimos), um fato me parece bastante claro: a
surpreendeu a todos. "Quem é esse, que sabe usar roda da fortuna, que ergue a uns e abaixa a outros,
tão bem de suas armas?", perguntou dom Barnabé girava naquele tempo a uma velocidade crescente,
de Rougé. Sua dúvida foi satisfeita. Dava para iden- mesmo dentro de um meio social aparentemente es-
tificar esse cavaleiro, situá-Ío numa formação: "É tável, firmemente escorado nas estruturas linhagei-
de Tancarville seu escudo". Pois Guilherme havia raso Contudo, no caso dos cavaleiros, tal movimento
conservado a insígnia da família na qual passara
se mostra desdobrado. Dá-se em dois níveis superpos-
sua formação, que dele fez um homem. Ostentava-a
tos. No mais baixo, determinado indivíduo se vê
como uma licença. Como um selo de qualidade. Mas
em ascensão; eleva-se, supera os demais, porém no
também como uma tábua de salvação, uma carteira
de filiação a um grupo, recurso contra o desfavor e, interior de cada grupo social, dentro dessas molé-
até mesmo, contra as sevícias que costumava sofrer culas que são as grandes casas da nobreza, ante os
o homem que se apresentava sem companheiros. E, olhos de seu chefe, num clima de permanente com-

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petiçao interna, das mais violentas, e que vai agra-
vezes, esse homem tinha as melhores condições de
vando a inveja, alimentando a intriga e as traições
Iazê-lo - pois, em decorrência das estratégias ma-
dissimuladas. Por outro lado, num plano superior, .~
trimoniais, a esposa geralmente provinha de melhor
dessa vez ante os olhos dos senhores desses princi-
raça que o marido. Por conseguinte, para subire~ na
pados que não param de se fortalecer, um movi-
vida os rapazes geralmente se voltavam para a linha-
mento análogo suscita a ascensão de certas casas. A
gem materna. Quando escolhidos para servir a seu.s,
primeira coisa que o ambicioso deve fazer, portanto,
elevavam-se na hierarquia eclesiástica graças ao tIO
é vencer dentro de seu próprio grupo. Porém, quem
cônego, abade ou bispo; se cavaleiros, iam combater
pretenda elevar-se ainda mais alto deve pensar em
sob as ordens do tio rico-homem de pendão, certos
ascender no interior do grupo mais próximo da fon-
de encontrarem no seu círculo uma amizade calo-
te que distribui benesses - do grupo que esteja mais
rosa, um firme apoio e, ainda, as melhores oportu-
bem situado face aos poderes eminentes que são,
nidades de fazer fortuna.
agora, os dos soberanos. Desde que não se viu mais
"mantido" na família, tão poderosa, de T ancar- Guilherme escolheu esse partido. Poucos dias
ville - o que quer dizer mantido pela família -, depois de sua investidura e seus primeiros feitos
primo de seu pai, Guilherme prontamente se dirigiu d'armas, tornou a atravessar o mar. Queria, como
para uma família ainda mais poderosa e que enten- depois contou, visitar sua "boa linhagem" - en-
deu de aceitá-lo tal como era, ou seja, como um tendamos: das duas linhagens que nele confluíam,
homem que já dera provas de seu valor, porém nada a que lhe parecia capaz de proporcionar melhores
tinha de próprio além das armas. Escolheu essa fa- ganhos. Ao se despedir do senhor de T ancarville, este
mília a dedo: era a de Patrício de Salisbury, irmão lhe deu um último conselho: não se demorasse na
de sua mãe. A disposição dos laços de parentesco na Inglaterra; o país de nada valia para quem preten-
sociedade de cavalaria atribuía ao tio materno, em desse ascender no ofício das armas. Chauvinismo de
relação aos sobrinhos, direitos e deveres privilegiados. normando. Mas conselho equilibrado, que o moço
A linhagem que ele chefiava havia cedido, em tem- Guilherme soube levar em conta: acabava de desco-
pos idos, uma donzela a outra linhagem; assim per- brir que lucro podia obter participando de torneios;
dera o poder sobre a moça, porém, em compensação, sabia que, naquela época, não se organizavam tor-
viria a adquirir igual poder sobre os filhos que ela neios do outro lado da Mancha. Sabia porém, pelo
pusesse no mundo. Por isso o tio esperava que os menos - e por isso fazia a viagem -, que na In-
filhos da irmã lhe dessem amor maior ainda que ao glaterra encontraria uma casa de maior pompa.
próprio pai, e reciprocamente ele se sentia obrigado Patrícia de Salisbury tinha uma vantagem sobre
a amá-los mais do que este último. Em especial, era Guilherme de Tancarville - era conde. Ou seja, si-
seu dever ajudá-los em sua carreira. Ora, o mais das
tuava-se imediatamente abaixo do soberano, no mais
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alto grau da hierarquia de honras e poderes. E, além principal, a moral do feudalismo condenava o vas-
disso, detinha o favor da corte. Desde que se decidiu saIo que erguesse a mão sobre o senhor, ou sobre
a apoiar a mãe do rei Henrique II, Patrícia soube aquele - como Patrícia - que o representava. Ora,
conservar o amor do Plantageneta. Por seu intermé- um crime tão odioso, aconteceu que foi Guilherme
dio, o sobrinho assim se aproximava um pouco mais quem o vingou, e penso que tal feito foi decisivo para
da casa real. sua ascensão.
Dessa maneira, mal tinha chegado à Inglaterra Mal viu o golpe que lhe matava o tio, ele agiu
e já voltava ao continente, dessa vez a serviço do segundo os preceitos de uma terceira moral, a mais
rei. Agora seguia para o Poitou. Leonor de Aquitâ- exigente, a da linhagem. Seu parente - e que pa-
nia, condessa de Poitiers, rainha de Inglaterra, toma- rente: o tio materno, mais do que seu próprio pai
va esse rumo para tentar submeter seus vassalos re- - caía ante os golpes de um assassino. Era seu dever
voltosos. O rei Henrique encarregara Patrícia de lançar-se em seu socorro, tentar salvar a vítima e,
guardar, em seu nome, a rainha durante a viagem. quando nada mais fosse possível, pelo menos lavar
Nessa função protetora, o conde de Salisbury foi o insulto no sangue do homicida. Temerário se me-
atacado, de surpresa, por um dos grandes barões teu na refrega, a cabeça desprotegida, sem elmo.
rebeld:s, ~ senho~ de Lusignan. A primeira coisa que Logo eram sessenta e oito contra ele, armados de
fez fOI por a rainha em lugar seguro; depois, sem chuços; com muita coragem conseguiu matar seis de
demora, enfrentou o inimigo, apesar de ainda estar seus cavalos; porém, afinal, passando por trás da
mal equipado. Montado num cavalo em pêlo, correu sebe contra a qual o jovem cavaleiro se tinha encos-
para deter os agressores. Enquanto esperava uma tado, um adversário (pelas costas, mais uma vez)
montaria melhor que seus escudeiros já lhe traziam, conseguiu feri-Ia na coxa. Caiu. Levaram-no, presa
foi ferido de morte, pelas costas, à maneira do Poi- de qualidade, gravemente ferido: aqui se localiza o
tou: por todo o norte do Loire se costumava dizer episódio da dama que lhe mandou a estopa. Esse
que as pessoas daquele condado, gente sem fé nem feito de armas, muito brilhante, teve repercussão
lei, sempre agiam à traição. Uma tal agressão causou de longe superior à das proezas mais notórias que ele
escândalo. Foi denunciada como um crime. A duplo tinha realizado no campo do torneio. Guilherme
título: a moral dos guerreiros, dos autênticos, dos agora não estava praticando um jogo. Não estava
nobres, dos francos, mandava que se tomasse todo procurando a glória, nem um butim. Simplesmente
o cuidado no sentido de não matar os cavaleiros; e cumpria seu dever, o primeiro dever de um moço,
proibia, isso de maneira formal e absoluta, matá-Ias enfrentando o mal, expondo realmente a vida ao
desse modo, pelas costas, ainda sem terem em mãos perigo. Isso já bastaria para elevar, e muito, seu pre-
todas as suas armas. Por outro lado, e isso era o coce renome. Mas sucedia que o homem que ele

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procurara vingar era o lugar-tenente do rei. Foi designou "para guardar e instruir o rei moço de
então como se Guilherme tivesse vingado o próprio Inglaterra" .
rei e defendido a rainha, já que, nesse caso, era a Aos vinte e cinco anos vemos então Guilherme
pessoa dela que os criminosos atacavam. Eleonora situado muito acima de suas primeiras esperanças -
assim o sentiu: deu reféns em troca de Guilherme, membro da casa, da "rnesnada", como se dizia na
salvou-o do cativeiro, admitiu-o entre os seus. Foi época, do "palácio" de Henrique, o Moço. Esse corpo
alimentado e armado por ela. De familiar do tio, esse se compunha de um núcleo principal, permanente,
acontecimento fortuito o transformou em familiar de cinco ou seis cavaleiros (entre os quais Guilher-
do soberano. me) ; ocasionalmente ele se expandia, enormemente
por vezes; chegava a reunir até uns duzentos c~va-
leiros; mas o efetivo habitual orçava pelos vinte
guerreiros, sendo a maioria de normandos. Guilher-
A condição monárquica, por esse tempo, já se me era o chefe inconteste do grupo, "superando
tinha emancipado o suficiente da confusão feudal, todos os demais". Poderíamos, aqui, indagar se a
já tinha alcançado uma certa maturidade: e, por biografia não exagera a posição do herói. Mas acon-
isso, conseguir a estima do rei, poucos meses após tece que o seu testemunho é confirmado por do-
ser armado cavaleiro, garantia o futuro de um cumentos encontrados nos arquivos da época: na
homem. Dois anos mais tarde, no verão de 1170, lista de personagens que subscreviam os atos de Hen-
Henrique II formava a casa de seu filho primogênito, rique, o nome de Marechal se lê acima de todos os
Henrique, o Moço, a quem ele acabava de fazer rei, simples cavaleiros; segue-se imediatamente ao dos
sagrando-o e coroando-o. Ao pé desse príncipe, rapaz nobres de primeira categoria, ao dos barões. Pense-
de quinze anos, um ano a mais do que os costumes mos portanto em Guilherme como uma espécie de
do tempo exigiam para a maioridade, porém que prefeito do palácio; protege o patrono ainda ado-
ainda não fora armado cavaleiro, e por isso preci- lescente, dirige-o, manipula-o. O resto de sua vida
sava ser guiado, governado, era então necessário Guilherme reivindicou a glória de ter sido, durante
haver um homem de confiança, que lhe servisse de aqueles anos, "mestre e amo de seu senhor" (e o
mentor, de instrutor no ofício das armas, que além biógrafo, repetindo-o, justifica: "Em nome de Deus,
disso o ajudasse a não deslustrar a honra de sua casa, ele bem podia sê-lo, posto que o superava em proe-
por exemplo substituindo-o nas refregas as mais zas"). Entendamos o sentido da expressão: Henri-
difíceis. Henrique pai procurou um homem assim que, o Moço, era efetivamente "senhor" de Gui-
credenciado entre os jovens cavaleiros que mostra- lherme, que como todo vassalo lhe devia fidelidade.
vam seu valor na casa real. E foi Guilherme que ele Henrique, porém, via-o como seu "mestre", no sen-

110 III
tido pedagógico do termo: quem lhe ensinava as absurda: a de um moço que um dia receberá tudo,
armas. Desse magistério procedia a ascendência que que os tios e irmãos invejam, que vai crescendo, que
fazia de Guilherme o "amo" desse menino, seu se- não suporta mais depender apenas da liberalidade
nhor. Em latim, a palavra adequada seria dominus. paterna. Impaciência dos dois lados: "Muitos ditos
Guilherme na verdade dominava Henrique. Ora, fortes e amargos"; é inevitável agravar-se a discór-
esse era rei. Por enquanto apenas associado ao pai e dia, e todos os que têm interesse em envenenar essas
em posição subalterna. Mas Henrique, o Velho, já querelas domésticas, em especial os chefes das senho-
chegava aos cinqüenta anos, idade em que morrem rias inimigas, fazem o possível para piorar a situa-
os príncipes dessa época. Henrique Junior logo per- ção, para instigar ao máximo o velho e o moço
deria a ressalva. Reinaria sozinho. E então Guilher- em seu antagonismo. Na casa Plantageneta isso veio
me teria o melhor lugar de todos para fazer fortuna resultar em ruptura. No ano de 1173, quando boa
a seu lado. parte do baronato já se revoltara na Inglaterra con-
Por enquanto ele o educa, ensina-lhe o que o tra a expansão do poder régio, Henrique II, que
"moço", o menino, deve ir progressivamente conhe- então tinha a corte em Alençon, ficou sabendo que
cendo. Essa formação é realizada no interior do seu filho mais velho também se rebelara, com o
bando que constitui a "rnesnada", enxame vagabun- apoio do irmão Ricardo. Estavam ao sul do Loire,
do que "erra", anda pelo país. Errar e gastar andam nos territórios que pertenciam à mãe; e toda a aris-
juntos. Ora, o jovem rei nada tem de seu. Os seus tocracia da Aquitânia, perpetuamente indócil e que
dirigem-lhe então a ambição para um dos grandes apenas aguardava uma ocasião para protestar" se
feudos dos avós, a Normandia, ou quem sabe o revoltou com eles. Era evidente que o rei de França
Anjuo. Ao rei Henrique lI, que desconfia de seu os apoiava, posto que seu jogo consistia em apro-
filho imaturo, repugna pôr-lhe nas mãos terras tão veitar tudo o que pudesse debilitar seu grande rival.
belas. Por isso o herdeiro se vê forçado a continuar Guilherme tomou o partido de seu senhor imediato.
vivendo na dependência do pai. Que logo reclama Seguia nisso seu dever. Era de sua "família", era
de seus gastos desmedidos. Invejosos o rodeiam, inve- "homem seu": pertencia a ele. Mas também levava
josos o excitam a dilapidar. "Quinhentas libras ante- em conta seu interesse - apostava no futuro, na
ontem. E não lhe resta uma sequer. Um dia desses, juventude, na ascensão, que acreditava rápida, do
não lembro bem quando, dei-lhe mil libras ... " moço de quem era o "amo". O cronista Benedito de
Enquanto, por outro lado, os cavaleiros da casa im- Pererborough, relatando a discórdia, inscreve Gui-
pelem seu patrono a fazer cada vez mais exigências. lherme Marechal no rol dos que traíram Henrique II.
Todas as linhagens nobres da época, salvo talvez a O outro Henrique, o Moço, não passava então
dos reis de França, eram afetadas por essa situação dos dezenove anos. Já era rei, também, mas ainda

112 113
não possuía espada, não tendo sido armado cava- Eu me indago se, escolhendo seu mestre para
leiro. O que, para os cavaleiros de sua casa, era uma padrinho, o novo cavaleiro não qu~s justam~nt: ma-
vergonha; repetiam: seja logo armado, "que sua nifestar, em plena revolta, sua independência -
"rnesnada" será mais audaz, mais honrada e, acima recusando submeter-se a alguém mais poderoso do
de tudo, mais alegre". Na verdade, Henrique ainda que ele na reverência que todo cavaleiro devia a
não conhecia o bastante do ofício. Nem tinha chega- quem o introduzia na sua "ordem"; eu me pergunto
do à idade adequada. E, mais importante, seu pai não se Henrique, o Moço, na verdade não quis ter por
tinha pressa. O autor da história do Marechal pre- padrinho, como ele mesmo disse, apenas a Deus. E
tende que Henrique II queria, para "sobrelevar" seu Guilherme, que era um ninguém. Este, contudo, até
herdeiro, que ele fosse armado pelo rei de França. a morte considerou esse papel que cumpriu tão cedo
Pois era costume que o sogro - Luís VII o era des- como a maior honra que teve no mundo. Brincou,
de as bodas de 1171 - armasse o genro. Porém se em criança, nos braços do rei de Inglaterra. E agora
pode supor que João, escritor, afirmasse isto apenas suas próprias mãos faziam o rei da Inglaterra pass~r
para valorizar seu herói. Pois o sacramento militar da infância à plena virilidade. O que não poderia
não foi ministrado por um rei, personagem sagra- esperar, depois, de seu senhor?
do; mas por Guilherme Marechal, pobre cavaleiro, No outono de 1174 voltou a paz. Muito dura
que não tinha "um sulco de terra nem coisa alguma, para os rebeldes ingleses. Porém o velho rei perdoou
fora sua cavalaria". Seu discípulo caminhou até ele, o filho. E não foi rigoroso com Guilherme, que afi-
apresentando-lhe a espada: "De Deus e de vós, quero nal não lhe faltara - pois a fidelidade doméstica,
receber esta honra". Guilherme cingiu-o do gládio, na época, prevalecia sobre todas as demais, devendo
depois beijou o novo cavaleiro. Repleto de glória e ser atendida em primeiro lugar. Henrique, o Moço,
invejado por todos a sua volta, especialmente pelos não tinha muita pressa de retornar à casa do pai;
grão-senhores da corte de França enviados por Luís demorou-se no continente; finalmente, um ano de-
VII: um dos irmãos do rei, seu condestável, o senhor . atravessou o mar com sua " mesna d"L
pors, a. ogo se
de Montmorency, Guilherme des Barres. Nessa oca- aborreceu: não havia torneios na Inglaterra. Logo
sião eram todos aliados do filho rebelde. Firmaram se cansou das caçadas, das falações, de estar parado,
então com o Marechal uma amizade que jamais se
de não ter o que fazer. "Um longo período parado
enfraqueceria, a despeito de todos os conflitos e in-
envergonha o moço." O que significa: cobre-o de
versões de aliança: naquela época a guerra era tão
vergonha. Envergonhados, sentindo-se inúteis, ocio-
normal quanto a paz, uma ocupação, maneira e
meio de vida; passageira; e, para os cavaleiros, pra- sos, os "moços", os donzéis não conseguem ficar
zerosa ; ela nada rompia permanentemente das rela- parados e se tornam insuportáveis. Foi o que acon-
ções do coração. teceu com Henrique, o Moço, em poucos meses.

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~ssim que falou em fazer uma peregrinação a San-
tiago de Compostela, Henrique, o Velho, deu-lhe
permissão, aceitando de bom grado pagar as des-
pesas de mais uma viagem só para se livrar rapida-
mente do filho. E por isso o rei moço e os seus cor-
reram ao continente, escolhendo a travessia mais
curta, a que vai de Dover a Wissant, perto de Bo-
lonha. O importantíssimo conde de Flandres, Felipe
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...._@_....
de Alsácia, que nos territórios do reino de França
seguia uma política de orgulho e prestígio, aguar-
dava o bando. Pretendia distrair o fedelho que o co-
mandava e assim tomá-Ío sob sua direção. A 19 de
abril de 1176, a vida voltou a ter sabor. O mundo
dos torneios e das andanças tornava a abrir-se para
o esquadrão que desembarcava com Guilherme Ma-
A BEIRA dos trinta anos, era a primeira vez que
ele se sentia perfeitamente senhor de si. É ver-
dade que continuava encerrado num grupo. Nesse
rechal a sua testa.
grupo, porém, estando longe de Henrique II, não
sentia mais nenhuma autoridade que o contivesse.
As rédeas estavam firmes em suas mãos. O chefe
nominal da companhia, o senhor que lhe dava as
cores, o cavaleiro novo que ele havia armado, sendo
pouco hábil não tinha como dispensar seu conselho,
seu socorro, confiando inteiramente nestes. N à prá-
tica, o Marechal tinha, tal como um barão, a chefia
de uma casa, e de uma casa bastante independente.
Como viria a se conduzir? Como contaria, depois,
que se conduziu, ele que desejava ser reconhecido
como o melhor cavaleiro do mundo?
Sua função, seu dever para consigo mesmo,
para com o senhor a quem servia e ainda para com
todos os homens da "família", consistia, como afir-
ma o autor da História, em "conquistar apreço" -
quer dizer, o renome de valentia - e honra. Au-
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tâncias mais sólidas. Ninguém devia ofender-se co~
mentaressa honra ou, pelo menos, nada poupar para isso. Benedito de Peterborough errou ao tach~r GUi-
que a honra não fraquejasse, não se transmudasse lherme Marechal de traidor, e o próprio Hennque H,
em vergonha. O maior medo dos homens desse meio como já vimos, não entendeu assim as coisas.
em relação à vergonha era que ela lhes viesse dos
O segundo dever desses guerreiros consistia em
d~sregramento.s das mulheres, de sua parentela pró-
agirem com valor, em serem valer,osos - comba-
xima e, especialmente, de sua própria mulher, da
tendo com o intuito de vencer, porem obedecendo a
esposa. Henrique, o mais jovem de todosv era em
determinadas leis. O cavaleiro não luta à manei.ra
t~do o ?ando o único casado, não somente porque
dos vilões. Essa observação Guilherme fez um dia,
nao havia outros varões primogénitos dentro do gru-
ao conde Balduíno de Flandres, numa das etapas da
po, porém ainda porque esses grupos, ou "mesnadas"
árdua guerra que os anglo-normandos travavam
se identificavam com casas nobres constituídas em
con tr a o rei de França, já no ano de 1197 . Tendo
torno de um único casal. Por isso o rei subordinado
em apoio as tropas de suas camunas, Balduíno de
da Inglaterra precisava vigiar bem sua consorte. Já
Flandres propunha formar como que um espaço fe-
os d~mais cav~leiros, o Marechal e seus colegas, eram
chado, uma "liça", cercada pelas carroças de .seus
solteiros. Corriam menos riscos. Seu ardor se concen-
soldados plebeus. Ali os cavaleiros aguardanam,
tra.va todo na :naior atenção às obrigações da cava-
protegidos, o ataque inimigo. O ~arechal se r~belou
laria, no respeito às regras de uma moral neles in-
contra um tal conselho. Nada disso; esses vei culos
culcada durante a adolescência e que continuavam
podem ser dispostos diante da praça sitiada, .p~ra. im-
a _fortalecer e:n sua mente todas as narrações e can-
pedir a intervenção dos soldados pedestres mmugos:
çoes que OUViam. São três as principais determina-
que vilões enfrentem vilões. Mas, para homens cuja
ções dessa ética.
função e honra residem em manejar as armas, não
Primeiro, a fidelidade. Manter a palavra não há nenhuma fortaleza. Eles enfrentarão o adver-
trair a fé jurada. Essa exigência era dosada segundc sário como cavaleiros, não como "cavilosos" (não
hierarquia estrita e rigorosa. O cavaleiro se situava agindo à maneira das raposas, que usam de artifícios,
no centro de vários círculos concêntricos, cuja coe- porém feito leões) , em campo aberto, recusando-se
são se devia à lealdade dele. Devia ser leal aos com- a fazer qualquer emboscada, dispondo-se em or-
ponentes de todos esses círculos. Porém, havendo dem de batalha, à vista do inimigo. O valeroso ne-
exigências contraditórias, devia prevalecer a fideli- nhuma proteção almeja, a não ser a presteza de seu
dade. aos mais próximos, em primeiro lugar ao que cavalo, a qualidade de sua armadura e o devotamen-
chefiasse o corpo inicial; os amigos mais distantes
to de seus iguais, cuja amizade o fortalece. A hon-
vinham depois, a fé a eles devida era mais flexível ra cbriga-o a parecer intrépido, até às raias da [ou-
dobrando-se, porém sem se romper, diante de ins-
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cura. Essa temeridade fez que os companheiros de - ou, pelo menos, o renome e a calorosa amizade
Guilherme o repreendessem, fraternalmente, diante que o cercam. O único elogio que o Marechal apn:-
dos muros de Montmirail, durante as guerras do ciava ouvir, relativo a seu pai, era que este havia
Maine: ele se excedia. Por sobre o fosso escavado na distribuído suas riquezas em abundância e, certa-
rocha, defendendo a fortaleza que os anglo-norman- mente, o valor pelo qual ele próprio esperava ser
dos investiam, estava lançada uma simples ponte es- admirado, na canção que ora analisamos, era sua
treita, sem parapeito, que fazia como que uma cor- munificência, sua incapacidade de conservar o que
Cova pela metade de sua extensão. No seu ponto quer que fosse, o desperdício que dele jorrava em
mais elevado estavam dez inimigos, entre os quais abundância, dispersando seu haver para alegrar as
um cavaleiro, armados todos de chuços. O Mare- pessoas a quem amava.
chal galopou contra o obstáculo, forçando-o; por
Mas é nesta articulação de suas estruturas que
conta própria, o cavalo deu meia-volta; caso se des-
mais vemos a moral da cavalaria chocar-se com a
viasse apenas uns dois dedos, Guilherme cairia no
realidade. Ela se formou num tempo em que era
abismo. Mais tarde, o Marechal muito se gabou des-
pequena a circulação de moedas, em que o dom e
sa imprudência sua. Quando ensinava Henrique, o
sua retribuição envolviam praticamente tudo, no
Moço, excitava-o a arriscar-se dessa maneira, sem
movimento da riqueza, o que não se transmitia por
considerar o perigo, estando sempre prestes a acor-
herança. Ora, durante o abrupto crescimento eco-
rer ao pupilo para tirá-lo de dificuldades e tirar-lhe
assim, também a glória. ' nômico do último quartel do século XII, a intro-
missão da moeda veio abalar as bases mesmas dessa
Talvez aqui eu devesse enunciar um quarto construção. Até os menos perspicazes percebem que
preceito: com igual temeridade, conquistar o amor os chefes dos Estados, então renascentes, "azeitam as
das damas. Foi o que valeu a Guilherme os dissabo- mãos", fazendo seu jogo graças tanto ao dinheiro
res que já relatei. Mas as mulheres têm parte Ínfima quanto às armas; foi graças ao dinheiro que o rei
no relato que me dá tais informações: por isso não Henrique II conseguiu separar de seu filho revoltoso
me detenho na cortesia. E me atenho à terceira das os barões de França, graças ainda ao dinheiro que
virtudes necessárias - a largueza. Esta realiza o mais tarde Felipe Augusto obteve o apoio da cúria
gentil-homem, instaura a distinção social. A biogra- pontif icia, Esse poder novo da moeda desmoraliza.
fia afirma-o com toda a clareza: "gentileza (ou Pois os denários funcionam como se estivessem es-
seja, nobreza) cria-se na casa da largueza". O ca- condidos por trás de paliçadas, são coisas desprezí-
valeiro tem o dever de nada reter em suas mãos. veis, de vilões. Vilões e burgueses não dão dinheiro,
Tudo o que lhe chega ele dá. De sua generosidade porque o apreciam demais: acumulam-no; fazem-no
haure a força que possui e o essencial de seu poder frutificar, emprestam com usura. Recordemos a ira
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de Guilherme contra o monge sedutor. Ao passo uma vez que um desses plebeus bri~~entos que vi-
que o cavaleiro, nisto seguindo a moral de sua ordem, nham tentar a sorte, oriundo de regioes selvagens e
só toca na moeda com repugnância e para pronta- pobres, Sancho, chefe de um bando de mercenano~
mente reparti-Ia na festa. Sucede, porém, que o ca~ que Henrique, o Moço, tinha contratad~, e que ,ate
valeiro se veja obrigado a utilizá-Ia para necessida- então não vira a cor do soldo a ele devido (pOlS ,a
des sérias, e isso num ritmo crescente. Tudo tem mercadoria se infiltrara até na própria guerra: havia
preço. É o caso do equipamento indispensável ao zente que para fazê-Ia exigia pagamento, e caro,
guerreiro, e que se estraga depressa, especialmente ~ratando-se de bons especialistas), segurou com a
os bons cavalos de que ele depende para suas proe- mão o freio do cavalo no qual ia Guilherme: ",Es-
zas, e que perde nos jogos belicosos, ou machuca nas tais preso. - Por quê? - Para que me pagueIs o
cargas de cavalaria, ou, ainda, que arrebentam nas devido; eu me contentarei com cem marcos. - Sou
cavalgadas. Cada esquadrão de cavaleiros andantes cavaleiro pobre, nada possuo. Mas, lealmente, eu vo~
assim se vê rodeado de uma nuvem de traficantes fio (eu vos dou a palavra de) que me entrega~el
solícitos a segui-Io, a precedê-lo, esperando-o num à vossa prisão no dia por vós fixado". Vemos entao
ponto da estrada, alcançando-o, aglomerando-se des- o Marechal preso em nome das dív~das de seu senhor.
de que sentem que está para ocorrer uma refrega de Por sorte, pôde obter a soma e a liberdade. Mas res-
monta. Eles abrem seus fardos, exibem as merca- tam o incômodo dessas obrigações, que tanto pesam,
dorias, tentadores. Têm de tudo, mas cobram o pre- o desagrado de ter de se entregar mediante p~lavra,
ço de suas mercadorias. Por isso ninguém pode per- de entregar corpo e alma, até se t~rnar cativo de
seguir a glória e a honra sem jogar dinheiro pela ja- mercadores, de mercenários. E fmalmente uma
nela, nem sempre por prazer. amarga descoberta: «Quando,f~lta o h~ver, o orgu-
A casa do rei moço, por exemplo, tem gastos lho tem de se ajoelhar"; a penuna tambem pode cau-
tão enormes que os credores a atacam mal desponta sar vergonha. Constante obses~ão d~ vergonha. Por
falta de dinheiro, não conseguir mais ma,nter a po-
a aurora, ao termo de cada etapa. Então se descobre
sição, o lugar, no grande jogo da ~avalana. E c~m~
que a casa deve trezentas libras a fulano, cem a
terá dinheiro com nobreza, sem vileza, quem nao e
beltrano, ou duzentas, por enfeites, mas também por
herdeiro sequer de uma terra, quem não tem p~r
palafréns, ou víveres; um certo dia, a dívida "sobe trás de si esses intendentes que fazem va~er os di-
a seiscentas libras", confessa o escrivão que registra reitos senhoriais, sem que o senhor precI~e s,equer
as contas. Quem poderá tirar tanto dinheiro dos pensar nisso? O dinheiro agora se re~ela mdlspen-
cofres? O Marechal, que se adianta: "A 'rnesnada' sável à honra, quando ela exige que seja despr~zado,
não tem tantos denários, porém vós os tereis em um e isso no momento exato em que é urgente ahmen-
mês"; e os outros confiam em sua palavra. Sucedeu tar essa honra, exaltá-Ia, durante os anos d a " mo-

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cidade": foi com essa questão, lancinante, que o to de Caen, no ducado de N ormandia. Todas as
Marechal se deparou cada dia de sua vida, após re- outras foram organizadas nos confins, nas "marcas"
~or~ar à França, e nos sete anos que se seguiram, dessas formações políticas, junto às velhas florestas
mteiramenre dedicados a torneios. fronteiras que desde tempos imemoriais separavam
as etnias (nos limites do Verrnandois e dos domí-
nios capetos, entre Gournai e Resson, perto de Com-
piêgne ; três vezes nos limites da Champagne, em
o gosto pelos torneios então estava no auge. Lagny e Joigny, com a Ilha de França e o ducado
Nos anos vinte do século XIII, ao ser redigida a de Borgonha; nas fronteiras da Normandia, com o
narração, os contemporâneos julgavam, ao que tudo Ponthieu, em Eu, com a Bretanha e o Maine, em
indica, que tal gosto já diminuíra muito. É pelo Saint- James e Saint-Brice, com o Perche e o con-
~e~os este o ponto de vista do autor: não nos pre- dado de Blois, em Anet, Maintenon e Épernon).
cipitemos a tomar como simples lugar-comum lite- Uma tal distribuição geográfica dará muito o que
rário suas lamentações sobre a decadência da proe- pensar aos interessados nas origens desses simulacros
za. Tomemos um fato como ponto de partida: en- de batalha.
quanto João, trovador, trata dos anos 1173-1183, Quanto aos jogadores, parte deles vinha da
ao longo de mais que dois mil e quinhentos versos, área delimitada pelos mais excêntricos dentre esses
fala quase somente de torneios. Nenhum documen- quinze campos de torneio - área que considero
to, a meu conhecimento, dá informações mais ricas como a pátria desse esporte -, porém havia tam-
sobre como então se praticava tal esporte. Tal como bém os que vinham de fora. O espaço de recruta-
as touradas de hoje, ou o rúgbi, não era jogado em mento dos participantes formava então uma espé-
todos os lugares. Quem vivesse na Inglaterra e dese- cie de auréola em torno do espaço de jogo propria-
jasse tomar parte nele, conforme observei ainda há
mente dito, ampliando-o porém não em demasia.
pouco, via-se obrigado a atravessar o canal da Man-
Muitos vinham da Inglaterra; contudo, de mais
cha. A biografia do Marechal contém a descrição
longe, um rei da Escócia figurava em torneios como
de dezesseis torneios, todos eles localizados com pre-
cisão, exceto um. Assim divisamos o paraíso dos um espectador interessado. Muitos vinham da Breta-
torneios, circunscrito por uma linha imaginária que nha, do Anjou, do Poitou, porém nenhum de re-
passaria por Fougêres, Auxerre, Épernay, Abbeville. giões mais do sul. Muitos vinham de Borgonha, da
Vemos também que apenas duas dessas partidas fo- Flandres, do Hainaut, alguns da região de Thiois,
ram disputadas no centro de principados feudais, ou das Terras a Montante, quer dizer, da Baixa Lo-
uma em Pleurs, perto de Sézanne, no condado de rena; nenhum, porém, de regiões mais a leste. Com
Champagne, outra em Saint-Pierre-sur-Dives, per- efeito, a voga de um esporte depende não só da tra-

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dição, porém do ardor dos que o organizam, dos oficies desses organizadores. Desincurnbir-se deles
que se esgotam para dar-lhe sucesso. Para compre- a contento era o meio mais eficaz de um barão au-
en,der a geografia dos torneios, devemos, pois, exa- mentar seu prestígio, a maneira mais prezada, e por
minar quem os promovia.
isso mesmo mais lucrativa, de dar curso à largueza,
, Nenhum rei, exceto o moço Henrique, mas que pcsto que lhe trazia reconhecimento e gratidão, es-
J~stamente não passa de um moço, que, sob a auto- pecialmente do elemento mais fogoso, mais ágil da
ridade do pai, ocupa o papel de príncipe da juven- sociedade militar: de todos esses "rapazes" que for-
tude, encarregado de atividades fúteis, cuja realeza, mavam a esmagadora maioria dos competidores, j~
para dizer a verdade, ninguém leva a sério. Não pa- que, no meio dos que mediam suas forças em tais
recia decente que os lugares-tenentes de Deus , a campos, os "altos barões" eram quase que os únicos
quem os santos óleos da sagração conferiam poder a serem casados. Por toda a história, os poderes pro-
:emi-religioso, se metessem em diversões que a Igre- curaram obter apoios organizando jogos. Estou con-
ja condenava em todos os seus concílios do último vencido de que, no final do século XII, a alta aris-
meio século, como armadilhas do Canhoto; os tor- tocracia não encontrava, no norte do reino de Fran-
neios, afirmava ela, desviavam os cavaleiros de Cris- ça, trunfo mais forte para resistir ao fortalecimento
to dos negócios militares importantes, em especial da magistratura real do que esse: conquistar o apoio
da cruzada; eles mutilavam, estragavam esses guer- da cavalaria oferecendo-lhe sua diversão predileta.
rei~os cuja vocação seria a de combater o mal, a he- Também era por prazer que alguns barões se entre-
resia, a descrença; eles os dizimavam: pois nesses en- gavam, por inteiro, ao que podemos legitimamente
fre,nt~mentos havia maior risco de morte do que na chamar de rnecenato: os condes de Clermont, de
propria guerra. Contudo, os duques e condes - os Beaumont, de Saint-Pol, de Bolonha, Roberto de
altos barões - não se sentiam tão presos quanto os Dreux, primo-irmão do rei Felipe Augusto, Teobal-
reis pelas proi bições eclesiásticas: deles, havia vinte do de Blois, o duque de Borgonha, o conde de
no torneio de Lagny. Somos tentados a enxergá-Ias Hainaut. Um dos mais apaixonados, nesse período,
como sócios de uma espécie de clube, de uma socie- era Felipe de Alsácia. Foi ele que introduziu no es-
dade para a difusão do esporte bélico. Ou, pelo me- porte Henrique, o Moço, mal este desembarcou no
nos, podemos considerar que alguns deles mais ou continente. Esperava-o em Arras, para levá-Ia sem
menos controlavam o negócio do torneio. Eles com- demora ao torneio de Gournai. Ou melhor, com a
binavam entre si a melhor forma de escalonar esses demora estritamente necessária para equipá-Ia, as
combates simulados durante a temporada, e de pro- suas custas, de maneira soberba.
videnciar a propaganda necessária para seu bom an- O autor da história de Guilherme Marechal se
damento. A cavalaria inteira contava com os bons desculpa: não pode contar no pormenor as peripé-
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cias de cada torneio. Porque foram em enorme nú- do, três mil foram os cavaleiros presentes, cada qual
mero: "Quase toda semana se fazia torneio, numa tendo seus servidores; também participaram pelo-
praça ou noutra". Se a guerra de verdade cessava tões de combatentes de baixa nascença, desprezados,
durante a temporada imprópria - os franceses a porém úteis, por serem muito hábeis no manejo das
detestavam, diz o relato, "quando a frialdade envol- armas vis, lanças, ganchos, e que eventualmente,
v-e o ar" -.-, o gosto pelo jogo era tão grande que reunidos em grupos mercenários, podiam constituir
ne~ o fno nem as intempéries interrompiam por uma força auxiliar decisiva, numa batalha de ver-
muito tempo os torneios, embora não fosse bom dade ou simulada; calculemos então que estivessem
lutar sob chuvas intensas, e os homens receassem presentes mais de dez mil guerreiros e talvez igual
acima de tudo, expor à umidade do inverno os ca~ número de cavalos; acrescentemos ainda a turba de
valos e armamentos ,- em especial, por serem muito parasitas, traficantes, cambistas, prostitutas, todos
delicadas as cotas de malha e lorigas, que nessa esta- unidos na esperança de ganhar mais, ao término
ção ~e enferrujavam rapidamente. Em Gournai, uma dessa festa belicosa, do que poderiam ter na mais
partida se prolongou até os últimos dias de novern- acorrida romaria cristã. Multidão enorme. Durante
brc? n~ ano ~e 1182; a seguinte começou já a 13 dois ou três dias, perto de Lagny, burgo em que ti-
de janeiro: o mtervalo assim se reduzia ao mínimo nham lugar feiras renomadas, assim se encontrava
possível, à curta quaresma que era imposta pelo ad- reunida mais gente,mais riqueza, mais tráfico pro-
vento, ao período de abstinência imediatamente an- vavelmente do que em qualquer outro lugar ao norte
terior ao Natal e, no oitavo dia após essa festa à dos Alpes, com a possível exceção de Paris. E, certa-
grande reunião solene da corte durante a qual' os mente, muito mais dinheiro assim trocava de mãos.
reis se exibiam em toda a glória, portando a coroa, A biografia do Marechal ensina que cada tor-
e presidiam as discussões mais graves (como, no ano
neio era anunciado com quinze dias de antecedência.
de que tratamos, Henrique 11 fez em Caen). In- A notícia se espalhava. O "dizer", ou seja, o rumor
terrupções da mesma natureza se produziam, e pelas de que um combate se preparava em Eu assim se
mesmas razões, em torno da Páscoa, de Pentecostes, difundiu, em apenas duas semanas, por toda a Fran-
da festa de Todos os Santos. Porém, salvo essas pou- ça, o Hainaut, a Flandres, a Borgonha e o Poitou,
cas férias, a cavalaria jamais parava.
a Touraine, o Anjou, a Normandia e a Bretanha.
É óbvio que nem todos os seus membros parti- Urna tal rapidez, numa tal distância, faz supor um
cipavam de todos os recontros, mas alguns destes sistema aperfeiçoado de comunicação, contando com
atraíam verdadeira multidão. Em Lagny, que é sem grande número de informantes. A publicidade fica-
sombra de dúvida o mais bem-sucedido dentre os va a cargo, ao que podemos supor, dos que eram
torneios mencionados no texto que estou exploran- chamados de arautos, profissionais da identificação
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ças da armadura e os arreios do cavalo se ajustavam
dos jogadores e da propaganda de seu esporte. Capa-
zes de reconhecer todos os cavaleiros, cujo rosto o e encaixavam corretamente, deixando tudo re~uzen-
em
elmo encobria, graças aos sinais heráldicos que osten- te enrolando cotas de malha e lorigas para a vi.ag ,
tavam, peritos igualmente na arte de compor e in- c;nsertando elmos e escudos para que suas Juntas
terpretar uma cançãozinha para garantir o lança- protejam perfeitamente, passando pelas l:nalhas os
mento de determinada seleção ou campeão, de exal- laços que no momento oportuno, prendenam o. ca-
, . pes
tá-lo, de fazer aumentarem de fama suas façanhas pacete aos elementos que protegla~ a nuca e. o ar-
e, assim, crescer seu apreço e preço (há alguma ver- coço. Assim se preparava cada unidade que ia p -
dade, aparentemente, no que os invejosos contavam ticipar da competição. Cada uma ?elas era expre~-
são de uma casa, estreitamente umda pelos elos a
desse Henrique Le Norrois, empenhado em fazer
comensalidade, reconhecida por seu brado de re~-
aumentar a reputação do Marechal). Tais interme- OOl
nião que funcionava como um sobrenome patr -
diários, meio poetas, meio rufiões, parece que pulu-
mic~, e pela insígnia pintada no escu~o que ~eus
lavam e prosperavam. O sucesso dos jogos dependia
membros portavam, todos eles companheiros hablt1.~-
deles. Sem seus ofícios não se concebe que, em um
ados a jogar juntos, a pegarem a bola voando. ao pn-
territ~rio tão vasto, num calendário tão repleto, os
. . 1 lh es fiizesserr'. e que ' termmada a
organizadores pudessem divulgar um programa as- melro sina que . ~ - 1 cros
sim denso e diversificado, e ainda juntar tantos com- partida, repartiam, aos olhos d o ca.p~t~O, os u
e glória alcançados. Os po~cos sohtanos procura-
petidores e suas torcidas.
vam no último instante, mtegrar-se nu.ma dessas
Ao saberem do torneio acorriam, basicamente, "mesnadas" ou então se entendiam entre SI p~ra for-
"donzéis", cavaleiros ainda não casados (sem mu- ze ca-
marem uma, improvisada, como a d esses qum
ee

lher, sem casa), "andantes". Contudo, como já dis-


valeiros de companhia" que se associaram para .t~-
se, eram bem poucos os que vinham sós a campo, na
mar parte no torneio de Anet e, vendo-se em difi-
manhã da partida. A regra era que chegassem aos
culdades, pediram a ajuda do Marechal, que passa-
grupos ao lugar escolhido para o combate. As casas
mais numerosas dirigiam-se com todos os seus mem- va perto de seu grupo.
Esses esquadrões solidamente aglutinados eram
bros, conduzidas pelo seu chefe ou suplente, atrás
da bandeira que lhes exibia as cores. Antes disso to- acolhidos, à chegada, pelos barões organizad~res. do
elro
dos se preparavam, entusiasmados, na parte pública encontro. Os grandes senhores chegavam pnm ,
da residência do chefe, na sala onde os cavaleiros do- estabelecendo-se em seus alojamentos, quer no ~as-
mésticos se deitavam ao lado uns dos outros, de noi- tela quer no burgo próximo ao campo. E :eumam
sob seu patrocínio seleções que podemos dizer na-
te, para dormir. Esta noite eles a passaram em claro, . a to
polindo o equipamento militar, verificando se as pe- cionais. Pois cada uma delas trazia consigo, enqu n

131
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durava a refrega, o orgulho de tal ou qual etnia. Champagne". Para o torneio de Lagn?" a~sim co~-
Considero que o sentimento de pertencer a determi- seguiu montar enorme formação multmaclOnal: Oi-
nado povo, ao povo dos "francos" ou dos "angevi- tenta cavaleiros, dos quais quinze portavam ban-
nos", era bastante vivo no final do século XII; é deira, (quer dizer, dirigiam sob suas próprias insíg-
verdade que basicamente sob uma forma negativa, nias uma equipe já constituída), o que elevava a
de rejeição ao que se sentia como estrangeiro; já ob- mais de duzentos cavaleiros o efetivo total. Dessa
servei com que (maus) olhos os ingleses encaravam verdadeira cocrte o memorial do Marechal descreve
os homens do Poitou e como os normandos acha- no pormenor as diversas componentes e classifica-as
vam insuportável a chefia de um inglês. E estou segundo o respectivo mérito .no .desporto. Os f:an-
convencido de que esse orgulho de ser bretão, fran- ceses são mencionados em pnrneiro lugar, depois os
cês ou da Champagne se reforçava em tais recon- flamengos e então os normandos; já os ingleses -
tros, quando se via lutarem, disputando o prêmio, tendo à frente o Marechal, pois se tratava da "casa"
a seleção da Bretanha, da Champagne ou ainda a que o tinha por "chefe", e da qual fazia parte seu
da França (entendamos: do antigo ducado de F ran- irmão caçula Anseau - só aparecem em quarto lu-
ça, centro da bacia parisiense) . Para dizer a verdade, gar nesse quadro de resultados, antes, apenas, dos
tal como as seleções nacionais de nossos dias, estas angevinos.
não eram formadas apenas de nacionais. Considere- Podemos dar crédito aos detalhes tão precisos
mos a seleção inglesa, chefiada por Henrique, o que aqui nos expõe o poeta incumbido. de r~mar .a
Moço, da qual o Marechal era ao mesmo tempo o vida de Guilherme: para montar essa lista tao mi-
treinador e o verdadeiro capitão: durante um ano nuciosa, certamente ele utilizou os registros feitos
e meio ela foi sendo derrotada, depois, graças aos es- pelo escrivão de Henrique, o Moço. Pois, quando se
forços de seu técnico, conseguiu (segundo minha arrolavam com tanto cuidado os nomes dos conten-
fonte) superar as outras, inclusive a melhor, a dos dores é porque estava presente o dinheiro. Nesse tipo
franceses, que até então, quando a viam aparecer de coisas, o dinheiro contava tanto naquela época
em campo, já dividiam, rindo, "os arreios e esterli- quanto em nossos dias. E narra-se, com tod~s as le-
nos" de que logo a iriam despojar. Enquanto assim tras, que esses cavaleiros de pendão e caldeira esta-
conquistava, gradualmente, graças a Guilherme, a vam a soldo de Henrique: que lhes pagava diaria-
honra, renome e ainda o butim que lhe permitia mos-
mente vinte soldos para cada cavalo que levavam, a
trar-se mais generoso do que todos, reunindo a sua
contar do dia em que deixavam suas residências.
volta os rapazes, Henrique, o Moço, juntou sob as
Quer dizer que Henrique devia seus sucessos à faci-
cores inglesas o que de melhor havia entre os cava-
leiros; escolhia, diz o texto, sem "barganhar", sem lidade que mostrava em gastar; seu pai tinha razão
regatear, "os bons cavaleiros da França, Flandres e em julgar insuportável uma tal prodigalidade: pOiS

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batendo os franceses, a quem naturalmente se alia-
superava a de todos os outros patrocinadores. Uma
vam os borguinhões e os guerreiros da Champagne.
vas~a negociação em torno do dinheiro assim pre-
cedia, acompanhava, seguia cada competição. E os
campeões se punham, com sua reputação, à venda.
Guilherme Marechal fez subir, e muito, os lances
em 1183, enquanto trabalhou por conta própria,
o terreno escolhido, o "campo" (termo que
vem do vocabulário dos juízos de Deus, quer dizer,
depois de incorrer no ódio de seu patrono : "Todos
dos duelos judiciários ou batalhas, palavras que re-
cobiçavam tê-lo", diria mais tarde, dizendo-se dis-
sultavam na mesma coisa, nesses combates solenes
postos. a pagar qualquer coisa por ele. O que lhe
durante os quais dois príncipes acordavam pôr ·em
ofereciam eram pensões. O conde de Flandres e o
jogo, de uma vez por todas, todos os seus direitos e
duque de Borgonha lhe propuseram, separadamente,
todas as suas forças), era uma vasta extensão des-
a renda de quinhentas libras; o procurador de Bé-
campada. Aparentemente sem limites l?recisos, p~-
thune, o mesmo valor, porém solidamente fixado em
rém não sem dificuldades. Estas se deviam em pn-
terras bem designadas; João de Avesne, trezentas li-
me ira lugar ao que se conhecia por "liças", como
bras, e além disso o senhorio de tudo o que ele go-
que barreiras, parecidas com as cercas que por esse
vernava. Não devemos dar demasiada fé a números
tempo protegiam as casas, grandes ou pequenas,
que podem expressar a vaidade do Marechal. Mas
onde os homens se retiravam para repousar, e que
um fato subsiste naquela época: o esporte já era
o costume resguardava, punindo com pesados casti-
uma atividade na qual alguns podiam ganhar mais
gos quem se atrevesse a quebrá-Ias. Com efeito, as
do que ninguém.
liças delimitavam refúgios ou "recess~s", áreas. n~u-
A partida se travava numa grande jornada, tralizadas nas quais os combatentes tinham direito,
entre dois adversários, feito uma batalha. Por isso segundo as regras do jogo, a se abrigar~m por um
era preciso que as diversas seleções nacionais se re- instante a fim de recuperar o fôlego, beber um tra-
partissem em dois campos. Essa divisão era anun- go, em suma, se refazerem. Diante dessas espécies de
ciada previamente. Sabia-se que tal dia, a tais horas, cercas , antes de começar a competição para valer,.
os angevinos e bretões, mais os cavaleiros do Poitou na véspera ou bem cedo no dia aprazado, os mais
e de Le Mans, enfrentariam a seleção francesa, so- novos, os principiantes, se desafiavam e seenfren-
mada à normanda e à inglesa. Sul contra norte, des- tavam em encontros amistosos. A elas se dava o nome
de "justas de justiça" (joutes plaídisses): talvez a
sa feita. Porém, quando a narrativa fornece o plano
diferença entre elas e o torneio autêntico fosse a
segundo o qual se desenrolou o jogo, constatamos as
mesma que opunha ao tempo de guerra e dos julga-
afinidades de costume: normandos e ingleses for-
dos (plaíds), das pendências, das assembléias de ar-
mando uma equipe conjugada e, quase sempre, com-
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--- -- -- -- -----_ ...• _---_ ...•.• _-


__ ._ ..
bitragem. Pois não passavam de exercícios nos quais, ções. Os homens de maior posição não se dig~avam
de comum acordo, se evitavam as pancadas mais a tomar parte nelas: reservavam-se para depois. En-
fortes e mais perigosas. O Marechal tinha enorme quanto aguardavam sua vez almoçavam - fervendo
desdém por esses folguedos, nos quais nada estava de impaciência se as brincadeiras de abertura demo-
em jogo e nenhum perigo se corria: neles nada havia ravam mais do que o devido, enfurecendo-se quando
a ganhar, nada a perder. Defronte às liças também essas diversões iam tão longe que o tumulto juvenil
se viam, ao principiar a jornada principal, a única chegava a abalar as mesas onde comiam. A narrativa
a contar realmente na série, as seleções que iam não menciona nenhum sinal para marcar o começo
chegando, tomando posição e terminando seus pre- da verdadeira partida. Quando uma das tropas se
parativos e que, ainda desarmadas, ainda a pé, es- sentia pronta para a luta, avançava c~ntra a o~tr.a:
peravam chegar as últimas formações. Contudo, assim principiava o torneio. Pois o Jog? conststra,
além dessas barreiras, erguidas para atender às ne- exatamente, em lançar-se sobre o adversano. Exata-
cessidades da competição, havia outros obstáculos em mente como nas batalhas de verdade: o choque de
campo. Acidentes naturais, que tornavam mais ape- dois conjuntos a cavalo, o fragor, a poeira se levan-
titosa a partida, pois podiam ser utilizados para ar- tando. Duas palavras se destacam no vocabulário
mar emboscadas ou para escapulir de um ataque. tão preciso, tão técnico do poema, duas palavras-
Falo nos bosquetes, nas filas de videiras, em algum chave: "ferir" no meio da multidão, isto é, desferir;
antigo "outeiro" que na verdade não passava de e "apontar", ou carregar, com a lança apontada, .:!.m
uma fortificação de terra abandonada, da qual ain- vagas sucessivas, sendo que os cavaleiros de uma fila
da restavam as paliçadas, ou ainda em alguma.vgran- esperavam que os da anterior não tivessem acabado
ja", exploração agrícola isolada que começava a dis- com tudo e que lhes restasse ainda onde vibrar seus
seminar-se pelos campos. Às vezes até uma aldeia, golpes. O objetivo consistia em abater, em perfurar,
com ruas estreitas, que um pelotão de infantes podia em "forçar", em "desfazer": abalar os adversários,
facilmente obstruir, e que assim se convertia, tendo repeli-los, desordená-Ios e, finalmente, desbaratá-Ias,
fugido (é óbvio) os vilões que residiam nela, como pô-Íos em debandada.
que num pequeno castelo no qual se podia repousar De começo tentava-se o possível para conservar
enquanto o partido adverso se esgotava percorrendo a formação, num lado como no outro, a mais coesa
os campos. possí vel, para "andar com prudência", quer dizer,
Nesse percurso eriçado de obstáculos, o torneio em fileiras cerradas, «batalhadas", cada pelotão ou
principiava com figuras mais leves, que a história unidade básica mantendo sua união e tentando pre-
do Marechal chama, sem mais detalhes, de "come- servar um alinhamento firme, no ataque como na
çarnentos". Certamente se tratava de meras exibi- defesa, para que a linha de frente não vergasse. Isso

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era o mais difícil. Em primeiro lugar era preciso e hábeis haviam esperado o dia todo que despontas-
cada um conter sua vontade de se lançar à frente sem entre o inimigo os refluxos da debandada, para
dos outros, o desejo irrefreável de se apartar do gru- assim vencer.
po a fim de "ganhar" mais que os companheiros, em Pois era então que se conseguiam presas mais
honras e em lucros. Por isso a vitória mais dependia fáceis e em maior número. No torneio não se jo-
da disciplina, do autodomínio, do que do ardor. Pois, gava apenas a honra. Os cavaleiros ~ueriam, c?mo
após algumas cargas, ainda marcadas pela embria- na guerra, conquistar armas, arrreros, cavaleiros,
guez causada pelas trocas de golpes, o desânimo aca- prender homens. Às vantagens já garantidas, ao ~ol-
bava nascendo num dos campos, seja pelo choque dos do ou salários que recebiam do chefe de sua eq~llpe,
pequenos grupos justapostos, perto demais uns dos desejavam juntar um suplemento, a parte que trves-
outros ou invejosos entre si, seja pelo excesso de tur- sem no saque. Os maiores predadores se recrutavam
bulência, das irrupções descontroladas desses homens entre os "donzéis"; aos senhores, aos homens casa-
fogosos. Os capitães de seleção mais prudentes espe- dos uma tal cobiça parecia menos conveniente. Em
ravam a hora de desordem, guardando-se na reserva 1198, quinze anos após a refrega de Lagny, Ricardo
até verem as linhas começarem a ondular no campo Coração de Leão censurou o Marechal por se por-
adversário, rompendo-se, mesmo em alguns pontos. tar assim, como um moço; ele atordoara, mais que
Era esta a tática do conde de Flandres. Somente se isso, fendera o elmo e a ceifa do guardião do cas-
metia com os seus no torneio ao perceber os primei- telo de Milly-en-Beauvaisis: depois, um pouco can-
ros sinais de lassidão e desordem. Então lançava sua sado, simplesmente se sentou sobre o corpo do pri-
casa "de viés", com o objetivo de desagregar por sioneiro, para que não o roubassem dele; isso não era
completo o outro exército, já vergado, de fazê-lo conduta adequada a sua idade, nem a seu estado de
em pedaços, derrubando por terra suas bandeiras, homem casado: "Aos donzéis deixa i esses feitos, que
pisando-o, dividindo-o em pequenos grupinhos de- precisam ganhar apreço". Realmente, parece mes-
sorientados que só pensavam agora em fugir, perse- mo que os baróes evitavam tomar coisas e gentes em
guidos, rodeados pelas maltas do adversário, tentan-
demasia. Seu maior cuidado visava a evitar serem
do se defender em cada acidente do terreno, já
capturados. Os outros, porém, desde que chegavam
exaustos e logo cercados, terminando assim a jorna-
já faziam suas escolhas na seleção adversária e, ava-
da numa série de pequenos assédios tenazes. Era isso
o "desbarato", e os homens se maravilhavam quando liando o preço dos arreamentos que vislumbravam
ambos os partidos resistiam por tanto tempo que o ao longe, medindo suas forças com as dos outros,
comitê dos barões se via forçado a ordenar uma tré- marcavam do outro lado do campo o cavaleiro que
gua. De comum acordo os dois lados se detinham, tentariam aprisionar, no momento propício. O Ma-
ambos bastante desapontados. Com efeito, os fortes rechal lembrou-se disso a vida toda: na manhã de

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seu primeiro torneio, ele, cavaleiro recém-armado, sim foi acometido por cinco cavaleiros, em Saint-
escolheu à primeira vista dom Felipe de Valognes; Brice, e por quatro, em Épernon; em Gournai, sete
boa escolha, pois conseguiu essa bela presa, assim adversários se juntaram para capturar o conde de
inaugurando a longa série dos homens a quem captu- Saint-Pol.
rou. "também acontecia que um combatente visas-
se, em meio ao tumulto, alguém que outrora lhe
escapara e a quem, por essa razão, detestava; o em-
bate era a ocasião da desforra, quando se saciavam Mas, para vermos mesmo o jogo se desenrolar,
rancores, velhos ou novos. Desse modo foi que Gui- com suas fintas e falhas, o melhor não será lermos o
lherme perseguiu Reinaldo de Nevers, no torneio texto da própria História, em algum de seus episó-
de Maintenon. De qualquer forma, a paixão não dios? Ela não descreve o conjunto, posto que o autor
consistia. apenas em jogar direito. Não há dúvida de acompanha seu herói, sem parar de olhá-lo, porém
que o ardor de capturar ou de vingar-se, a praxe é justamente isso que nos dá a oportunidade de nos
de escolher antes do choque, ao ver a caça (as peças instalarmos, com ele, no centro mesmo do combate.
que cada um queria para si, tudo isso aumentava Por isso escolho - e com pesar, porque bem gos-
os riscos de desordem. Ainda mais que era raro al- taria de não abrir mão de texto nenhum - o que
guém, lúcido, partir só para o ataque. A caça aos nos é contado de um desses recontros, o de Lagny,
ad versários no torneio, tal como a caça aos animais e, traduzindo apenas os vocábulos que hoje nos es-
de porte, se fazia em pequenos grupos de compa- capam, entrego a narrativa tal como foi redigida,
nheiros já tendo prática de desentocar, de caçar de ou quase, para que o leitor possa julgar a qualidade
corso, de esgotar o animal, coisas que se faziam em da relação, ou melhor - por que recusar esse termo
equipe. Eles combinavam como cercar, como isolar -, da reportagem, para que ele possa apreender o
o hcmem que tinham levantado"; O Marechal as- prazer que advém da admirável leveza com que o
poema exprime o movimento e a vida, embora as
" Alguns termos técnicos de caça: desentocar é "fazer sair palavras disponíveis ainda fossem muito pouco nu-
da toca ou buraco o animal que aí se refugiou"; caça?" de merosas e, apesar, das exigências da versificação. A
corso é perseguir correndo, com ou sem cães, animais de pêlo narrativa começa com o tumulto, numa seqüência
veados, lebres, raposas, (ou p. ex.}, ou ainda, dentre as aves,
as corredoras (avestruzes, emas); levantar é (o cão) encontrar
de versos curtos:
a caça e fazê-Ia pôr-se de pé, correndo em sua perseguição.
Obviamente o uso que Duby faz desses termos é metafórico. Renhida grita e estridor.
As definições que demos são do Vocabulário de Caça, de C. Ri- Todos ferem com furor.
beiro de Lessa, São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1977, segunda Lá estrondeia o estardalhaço
edição. (N. do T.) das lanças, que, em estilhaços

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caindo ao solo, a eriçá-Ia, Conde Gofredo ". de sorte
tolhem o avanço aos cavalos. tal batalhava, e sua coorte,
Na planície a pressa é vívida. quando o rei chegou potente,
Cada grupo diz sua insígnia. que estava dispersa a gente
que devera estar-lhe ao pé.
Estes se aferram aos freios, E vindo o rei, nem lhe é
e há os que secundam os prélios preciso puxar da espada,
De toda parte os cavalos com o inimigo em debandada
avançam, a passos árduos. e acossado em rude encalço,
Cada homem se aplica à liça uns no empenho da proeza,
com força e afinco, pois nisso outros-no afã da riqueza.
é que O valor se descerra. E não foi sem sobressalto
Vedeis tremer a terra que se achou só, desta sorte.
quando o jovem rei clamou: À direita viu um mago te
"Basta! Esta espera me assanha, de adversários, pelo menos
à luta!" E a luta encetou. uns quarenta cavaleiros.

Mas o conde de Bretanha, Maneando a lança, sem mais,


acometeu contra os tais,
seu irmão, face ao combate,
e com tal fúria os feriu,
prudente, se pôs de parte.
que a lança se lhe partiu
como se fosse de vidro.
Os que ao pé do rei iam indo
arremetem com tal ímpeto, E os muitos ali reunidos
que nele já não atentam. lograram por fim sustá-Ia.
Investem com todo o alento Afluíam de todo lado,
contra os outros, força afoita. enquanto ao rei, afinal,
só o seguia o Marechal,
E foi decerto derrota, que estava sempre por perto
não [oi simples retirada, no momento aceso e certo.
quando lbes deram caçada
por entre as vinhas e valas. E ainda Guilherme de Préau x,
Entre as cepas eles iam que nesse dia se vê
que por ali se esparziam, de seu grupo dividido,
e por sob a cota traz
caindo amiúde os cavalos.
E iam caindo, e já em seguida
o tropel os pisa e pisa. ". Ou Godofredo, abreviado em uma sílaba para manter a
métrica na tradução: Geoffroy, no original. (N. do T.)

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uma loriga e, ademais, vede o rei quase a ser preso.
elmo do ferro mais rígido. Prendei-o, por vosso apreço.
Os outros tinham retido O elmo já não o reveste,
o rei, e ansiava o inimigo e a ruína lhe está prestes".
por abatê-lo. Em frontal Conhecendo aquilo, o conde,
repto irrompeu Marechal, com rude, riso, responde:
e a eles se arrojou de chofre. "A batalha é nossa, agora".
E enristou tão rijos golpes, E apertaram as esporas
desatou tão fero ataque, e, partindo a toda a brida,
e arremessos e arremates, contra o rei vêm de seguida.
que se desprende, no enleio, Marechal não mais espera
a testeira e mais o freio e os enfrenta como fera.
do cavalo em que reluta Tão rude enrija a refrega,
o rei. Guilberme, com arrojo, que já sua lança se quebra.
rápido salta ao pescoço
do animal, e assim disputa
enquanto o adversário arde
Aqui faltam um ou dois versos no manuscrito,
por prendê-lo, E Guilherme os quais certamente mostram Guilherme Marechal
de Préaux afronta-os infrene. sendo abalado pelo choque, já a ponto de ver-se lan-
çado ao chão:
Para guardd-lo dos golpes,
o rei com o escudo o cobre. . .. até os joelhos do cavalo.
Mas a fúria adversa é tanta Mas logo fez-se o reparo.
que ao rei ao cabo lhe arranca Sobre ele, abate a batalha,
o elmo, e o crânio lhe machuca o assalto raiva, e ele talha,
destarte, e o ânimo insulta. tange, atinge todos, tudo,
Foi longa a luta, foi dura, fere os elmos, quebra escudos.
e exuberou de bravura Tanto lutou Marechal,
Marechal, provando audaz qu< os que o viam, afinal,
têmpera e empenho sem par. já não sabiam dizer
em que se tornara o rei.
Peleja o rei. O senhor Disse o rei mais tarde, e todos
Herloin de Vancy - que é por que o sabiam de vista, e outros
sinal senescal do conde que isso souberam de ouvida,
de Flandres - mantinha longe que jamais tamanha lida
da luta uns trinta cavalos. de um cavaleiro, e tão bela
Veio-lhe um de seus vassalos se lutara, como aquela
com termos deste teor: de Marechal. E os melhores
"Por Deus, brando e bom senhor, cobriram-no de louvores.

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o elogio é exagerado, não resta dúvida. Tal co- dessa maneira. Os medrosos bem que o evitavam,
mo o romance ou a canção de gesta, isola excessiva- ficando longe do que era mais brutal na refrega.
mente o herói do grupo que necessariamente o encer- Por conseguinte, ninguém se sentia, desonrado S?
por
ra e enfatiza a façanha singular. Porém dá para ver cair. Ou, como conta a canção: "E entre os pes dos
de maneira esplêndida, que o jogo consiste mesmo, cavalos que devemos procurar os homens de mor
acima de tudo, em fazer prisioneiros, e mostra que valor".
táticas são utilizadas com essa finalidade. A mais ex- Por outro lado, ficamos sabendo que as lanças
pedita e também a mais gloriosa era "abater" o jo- eram frágeis e era mais freqüente voare~ em peda-
gador adversário, derrubá-lo do cavalo com um ços do que o adversário cair ante s:u. impacto Os
golpe seco, de lança. guerreiros que se arriscavam a. partiCIpar de Justas
Outras passagens da biografia nos contam que sabiam, realmente, manter-se firmes nas selas e con-
o esgrimista bem-sucedido se contentava com isso, o trolar sua montaria. Não fugiam do choque. Sa-
mais das vezes, hesitando em jogar rapa ou deixa: biam resistir. Depois a luta prosseguia, corpo a cor-
negligenciava o cavaleiro derrubado e se afastava, po, com a espada, com a maça. Os golpes s: concen-
levando consigo seu animal. No torneio de Eu, as- travam no capacete. Para tanto, a proteçao da ca-
sim foi que Guilherme Marechal derrubou duas vezes beça se tinha desenvolvido considera~elmente: ?
Mateus de Walincourt, capturando duas vezes o ca- simples chapéu de ferro já não pare~Ia constrtuir
valo dele, aliás o mesmo. Lançar de pernas para o proteção suficiente; era relegado aos criados, O elmo
ar, habilmente, o cavaleiro adversário passava, aos tendia, no final do século XII, a tomar a forma de
olhos dos connaisseurs, pela mais bela figura desses uma caixa fechada (ou melhor: quando João escre-
grandes bailados militares. E os mais aplaudidos eram via nossa história, já havia quarenta anos que assu-
os cavaleiros que se atreviam a acometer os grandes mira essa forma), tão hermeticamente fechada que
barões. Tal como nas batalhas de verdade, o objeti- o combatente assim encerrado corria o risco de mor-
vo último consistia - acabamos de ver Herluíno de rer asfixiado caso se acercasse demais de um fogo no
Vancy vangloriar-se disso um pouco antes da hora mato. Um dia, Guilherme fez essa descoberta às suas
- em derrubar ou prender os chefes. Quando um expensas. Portanto, para vencer o adversário, quer
conde de Clermont caía, depois se reerguia e tor- dizer, para capturá-Io, era preciso martelar sua ca-
nava a montar a cavalo, como Felipe Augusto na beça, até despojá-Ia dessa parte, de sua armadura,
batalha de Bouvines, dava motivos para falatórios despir-lhe a fronte - e, se Henrique, o Moço, se
por "muito e muito tempo". Para dizer a verdade, sentiu tão "insultado" de ver-se assim posto a nu,
porém, tais sucessos eram raros. Primeiro porque só certamente não foi apenas por ter perdido sua prin-
os mais valorosos, os mais temerários se chocavam cipal proteção; foi, também, por vergonha ~; ou

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então, até atordoá-Io, de tantas pancadas e tão for- cativo, saindo sem demora e sem ajuda dos vapores
tes, sobre o que cobria seu crânio. O Marechal as- em que os golpes no elrno o tinham metido, libe-
sim recordava as inúmeras vezes em que ficou preso rava seu cavalo e escapava; ou então era o próprio
no seu capacete, como cego, incapaz de tirá-lo, ou animal que se livrava, empinando seguidas vezes;
porque o choque trocara os lados do elmo, ou por- acontecia ainda que o cavaleiro largasse a montaria
'1:ue este fora .tão amassado que, terminada a par- para fugir, como fez dom Simão de Neauphle: que
tida, era prectso recorrer aos bons ofícios de um se agarrou numa goteira relativamente baixa, pas-
ferreiro, .a seu martelo e tenazes, e pôr a cabeça sando por uma ruela na aldeia em que o Marechalo
sobre a bigorna até que ele pudesse extraí-ia do en- capturara; ao chegar ao abrigo, este olhou para trás
vol,tório de fer:o, finalmente descascado, porém e só viu o animal desmontado; riu-se muito dos dois
apos grande fadIga e preocupação.
lados. Pois o jogo, apesar de tão brutal, era também
Das vezes em que o alvo, embora não caísse do muito alegre, o que sentimos a cada verso da narra-
cavalo, se sentia porém tão maltratado, tão ensur- tiva. Por isso, havendo condições, o melhor era ga-
dec~do J?elo f:agor do combate, que se enfraquecia rantir rapidamente a posse do cativo, que valia mais
e nao VIa mais com clareza, não sabendo onde vi- que a montaria; agarrá-Io pelo corpo, fazê-lo passar
brar seus golpes, era chegada a hora de segurar seu por cima da cabeça do animal, levá-lo vivo: Guilher-
animal "pelo freio" e de puxá-lo para fora do com- me se gabava de ter agido assim muitíssimas vezes.
bate, conduzindo-o até os depósitos de arreios dos Finalmente, quando a presa chegava a bom porto,
quais cuidavam os escudeiros e tratadores. Partir as- o cavaleiro capturado era deposto no chão e se re-
sim do combate, com um butim vivo, obviamente conhecia prisioneiro, dando sua "fiança", sua pa-
enfraquecia o grupo e por isso a tarefa mais árdua lavra; o vencedor confiava o cavalo do outro a seus
dos capitães, tanto nos torneios quanto nas batalhas homens; enquanto o vencido, agora confinado no
de verdade, consistia em retardar as capturas até o banco, assistia como espectador ao final do combate,
momento em que o desânimo do adversário se Con- julgava golpes duvidosos, dava conselhos aos joga-
vertia em debandada, em que o outro campo já se dores seus amigos. Às vezes, tal como Guilherme de
via completamente desarticulado, em que as presas Préaux, até lhes dava uma ajuda. Fraudando um
mais atraentes - como foi o caso quando dom Her- pouco. Que lealdade resistia ao desejo, à paixão de
luíno decidiu intervir - já não estavam protegidas "ferir" e de "apontar"? A menos que o compro-
por seus servidores. Mas levar a presa até um lugar misso assumido oralmente autorizasse o cativo, em
seguro tampouco era coisa fácil, pois os amigos do certas circunstâncias, a retornar à refrega. Como
atordoado acorriam a socorrê-Io. Assim fez Guilher- explicar, de outro modo, que alguns confessassem ter
me, que protegia o rei, seu pupilo. Alguma vez o sido aprisionados várias vezes numa só jornada?
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tes poderiam exigir, na próxima ocasião, dos chefes
Quando um dos partidos cedia por completo
ao "desbarato", ou ainda, por ter caído a noite, os de suas seleções.
competidores aceitavam, extenuados, parar e atri- Contudo caindo a noite, nas trevas que nem
buir a vitória por pontos, ainda assim os participan- sempre eram' seguras (em Éper?on, o cavalo ~e
tes não se separavam. No campo e em suas cerca- guerra do Marechal foi roubado a porta do casarao
nias o confronto continuava ainda algum tempo onde fora cumprimentar o conde Teobaldo), o c~n-
bastante próximo, porém agora para tratativas pací- tro da discussão passava a girar em torno do butirn.
ficas. Não lembravam mais uma batalha e sim uma N a guerra, a praxe era que, ao termo do combate,
feira. Em vez de golpes, palavras; o barulho já não os chefes de bando "dividissem o ganho", que to-
era tanto de armas, mas o do tilintar de dinheiro dos entregavam em suas mãos: assim foi em. Milly,
sonante. Agora importava cuidar das feridas do cor- onde o Marechal confiou o cavalo que havia cap-
po, começando por tirar a armadura toda amassada turado ao capitão de seu esquadrão: era o rei Ri-
- o que nem sempre era coisa fácil. Depois cada cardo, que, por largueza, deixou-lhe o animal. C~mo
um se informava dos amigos, a quem perdera de isso se passava nos torneios? Parece que se respert a-
vis~a nas reviravoltas do combate: estariam presos, vam as mesmas regras: quando Mateus de Walin-
fendos, mortos? Os principais senhores, já sem o court quis obter a restituição gratuita da montaria
elmo, se entregavam ao prazer de se exibir, discutin- que o Marechal lhe tirara em combate, não foi re-
do entre si à frente dos mais moços, "entredizendo" clamá-Ia ao vencedor, porém ao chefe deste, Hen-
os negócios. Depois de rivalizarem em valentia, ri- rique, o Moço. O certo, em todo cas?, é qu~ inú:
meras negociações atravessavam a noite segulllte a
valizavam em cortesia e prudência golpeando-se com
competição. Era preciso avaliar, contar, pagar. Os
palavras, em discursos intermináveis, que varavam
que prometeram "fiança" corriam atrás de amigos,
a noite. Era um vaivém interminável de alojamento
que os ajudassem a conseguir a liberdade, pagando
a alojamento. Comentava-se o combate. Pela justa-
o resgate que haviam prometido; e, se não tinham
posição de relatos parciais, tentava-se reconstituir
êxito, o que era freqüente, partiam em busca de
o confronto como um todo, para se distribuir de
reféns, ou de bens, para dar em caução ao cavaleiro
maneira equitativa tudo o que fosse prêmio, tudo o
que os dominara. Os que sentiam menos vergonha
que fosse menção. Uma lista dos laureados assim
pediam algum desconto - por exemplo, que lhes de-
ia se elaborando e os jogadores, ao termo de cada
volvessem os equipamentos que haviam perdido, ou,
recontro, se viam reclassificados em função das fa-
pelo menos, que recebessem de graça metade deles.
çanhas daquele dia. Aos arautos e menestréis com-
Já os vencedores, entre os quais é claro que sempre
petia tornar pública a classificação: esta, por sua
estava o Marechal, ao terminar cada partida se diver-
vez, influía no valor dos soldos que os participan-
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tiam à larga, gastando esse dinheiro que agora lhes de que conseguiu, após ano e meio de exercrcios e
escorria pelas mãos e do qual não sabiam muito bem tentativas, levar a seleção inglesa ao primeiro plano
o que fazer, como bons cavaleiros que protestavam _ não se enriqueceu muito nesse período de sua
ser. Pois era uma surpresa dispor de tanto dinheiro, vida. Ele próprio o confessava ao mercenário San-
para um homem que geralmente passava o tempo cho, sinceramente, e não para ter perdoadas as dí-
correndo atrás dele. Assim se via o cavaleiro falto vidas de seu rei: "Eu, pobre donzel, que não tenho
de dinheiro agora radiante de poder pagar suas com- um sulco de terra". Nos últimos sete anos, porém,
pras à vista, estendendo de uma só vez cinco mil e havia capturado centenas de cavaleiros. Pelo menos
quinhentas moedas de prata ou, ainda, desenvolto, quinhentos, afirmou no leito de morte. Só no tor-
jogando sua presa nos dados. E, caso ganhasse - o neio de Eu prendeu dez, num único dia, e doze ca-
Marechal nunca perdia, é óbvio -, ainda se entre- valos com as selas e "aparelhos", sendo que um ele
gava ao enorme prazer de dar presentes a todos, aos apresou duas vezes. Para aproveitar mais o ofício, e
cruzados, aos desafortunados, aos que tiveram o azar como duas mãos valessem mais do que uma, aceitou
de cair prisioneiros: ao prazer de esvaziar a bolsa e a oferta de um cavaleiro da mesma "mesnada", Ro-
de perdoar, cantando, a dívida que seus próprios gério de Gaugi, flamengo, "apreciado nas armas, va-
prisioneiros tinham para com ele. Talvez fosse ap';!- leroso e audaz". Rogério lhe propôs formarem uma
nas isso, essa liberalidade extravagante e necessária, sociedade, tal como os homens de negócios, na qual
o que distinguia o torneio da guerra, na qual os cati- repartissem os lucros e prejuízos. Assim os dois cons-
ves, mesmo sendo de sangue nobre, eram tratados tituíram, no interior da "casa" de Henrique, o Moço,
com muito maior severidade, como os presos que o um corpo bastante unido, um grupo de trabalho
chefe mercenário Marcadé arrastava pelas estradas, de solidariedade ainda mais estreita que a usual. Essa
com uma corda no pescoço, amarrados feito galgos. companhia durou um par de anos e juntos os dois
O torneio era uma festa. E, como todas as festas, ter- ganharam muito mais do que outros que formavam
minava numa despreocupada dilapidação de rique- associações de seis ou oito membros. O autor da
zas, e os cavaleiros, vencedores ou vencidos, iam dor- História cita como provas as contas mantidas pelos
mir mais pobres do que haviam acordado. Somente criados encarregados de escrever, em particular Wi-
ga~havam os traficantes, somente ganhavam os pa- gain, escrivão da cozinha do rei moço - o que
rasitas. confirma, diga-se de passagem, que todas as presas
passavam pelas mãos do chefe do bando. Entre Pen-
tecostes e a Quaresma que se seguiu, Guilherme e
Rogério capturaram cento e três cavaleiros; quanto
Por isso o Marechal, vitorioso (se lhe dermos aos cavalos de guerra e aos arreios, os contadores não
crédito) em todos os torneios - ou pelo menos des- se deram ao trabalho de enumerá-Ias todos. Contu-

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do, magnífico, lançando sobre a mesa os sacos de de seu cavalo. Confessemos que era coisa de valor,
moedas assim que os recebia para que todos se esbal- porque ele sempre deu muita importância ao esplen-
dassem, bom jogador, que com um sorriso desistia dor de sua equipagem e a sua elegância pessoal, sem-
de pressionar os prisioneiros (de quem poderia ar- pre quis eclipsar todos os concorrentes,exibindo as
rancar mais dinheiro) , esforçando-se e vencendo por armas mais brilhantes e a moda mais recente. Para
mero prazer, Guilherme Marechal nada conservava cuidar de todos esses petrechos e se mostrar, como
para si, salvo a glória. os barões, com uma bela escolta, arrumou um es-
cudeiro; na feira de Lagny, comprou por trinta li-
Desde o ano de 1178 que ele dominava, com
bras um segundo cavalo de guerra, o qual, diria
autoridade cada vez maior, o herdeiro de Henrique
mais tarde, somando à glória de poder gastar soma
lI. Fora se insinuando até chegar ao mais alto grau
tão elevada a de conhecer os cavalos melhor do que
da sociedade. Os maiores barões o tratavam como seu
igual. Nas conversas noturnas agora ele era ouvido. o vendedor, valia mais de cinqüenta.
Já em 1179 o conde de Huntingdon e Cambridge Esse esplêndido aparelho convinha a sua fama.
lhe cedia a preferência; ele também tinha prece- Esta era tão grande e segura que ele poderia facil-
dência sobre os demais cavaleiros de pendão e cal- mente se empregar, por um preço elevado, ou então
deira. Ele não conseguia mais se conter - pavonea- agregar-se a outra seleção. Pois seu concurso era
va-se -, estourava de vaidade; talvez tenha cometi- disputado. O conde de Flandres e o duque de Bor-
do imprudências, talvez tenha desejado jogar, sem ganha mandaram procurá-Ia por montes e vales e
muita habilidade, feito homem novo ainda mal po- lhe propuseram rios de dinheiro: ele recusou qual-
lido, o difícil jogo do amor cortês com a rainha. quer compromisso permanente, aceitou apenas con-
O fato é que se tornou insuportável na casa do rei tratos temporários; certamente foi um destes que
moço. Seus companheiros então montaram a arma- lhe valeu o pequeno feudo flamengo, o qual sabe-
dilha que já vimos, e romperam, pela calúnia ou a mos que lhe pertenceu. Também poderia, se der-
maledicência, os laços amorosos que ligavam Gui- mos crédito ao que sua memória conservou, ter saí-
lherme ao senhor de todos eles - causaram sua des- do naquela ocasião da "mocidade", da donzelice, ca-
graça. Conservou praticamente um único amigo, sando-se, fundando sua casa pessoal: o procurador
Balduíno, filho caçula do procurador de Béthune. de Béthune lhe teria oferecido a própria filha, re-
No começo de 1183, quando mal havia completado forçada por uma renda de mil libras. O Marechal
os quarenta anos, afastado das cortes e da mesa real, afetou ainda não ter "coragem" - ou seja, a inten-
assim se viu forçado a portar-se como um mocinho, ção - de se casar. Agradeceu. A seu orgulho já
como um cavaleiro andante. Porque nada havia eco- bastava ter visto um conde de Saint-Pol acercar-se
nomizado. Tudo o que tinha de seu cabia no dorso dele a galope, um dia de janeiro de 1183 ,enquanto

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ele avançava pelo campo de Cournai, abraçá-Io, bei- sua valentia nunca lhe dará vantagem melhor ou
já-Ío, pedir-lhe que o incluísse aquele dia entre os mais sólida do que esta: reconquistar a afeição do
homens que conduzia ao combate, enquanto ele, Ma- rei segundo da Inglaterra. Com esse objetivo em
rechal, é claro que declinava uma tal honra, fingia mente, trata de fazer que o círculo de Henrique, o
ocupar uma posição inferior, respeitar a hierarquia Moço, esteja bem informado, não apenas de suas fa-
dos títulos e condições, porém aceitava companhia çanhas recentes, não apenas do fato de que para
em pé de igualdade: como o conde não dispusesse vencer não precisa aliciar companheiros por inter-
de um animal de qualidade, emprestou-lhe um de médio do arauto Henrique Le Norrois, mas, acima
seus dois cavalos de guerra. Saboreou o prazer de se de tudo, das ofertas mirabolantes que tem rejeitado.
impor aos olhos de todos em associação fraterna com Espera que o chamem de volta, confiando na astú-
esse altissimo barão, que já conduzia trinta cavalei- cia de Balduíno de Béthune. Não precisa aguar-
ros sob seu pendão, fraternidade na qual era ele o dar muito tempo. Pois, passada a Quaresma, Henri-
irmão maior, é evidente, porque suas proezas exce- que, o Moço, rompe com o pai, inicia nova guerra
deram de longe as de qualquer outro durante todo contra ele e procura munir-se de apoios.
esse torneio tão prestigiado.
Uma noite, o rei moço se fecha num cômodo
Ao término deste, podemos considerar que está para reunir um conselho dos mais restritos, com
no apogeu de sua celebridade esportiva. Põe então apenas três cavaleiros: seu irmão Godofredo, conde
sua garridice em tratar de sumir o mais depressa pos- da Bretanha, o senhor de Lusignan e Rogério de
sível, em afastar-se dos que queriam tê-Ia por qual- Gaugi, que em tempos foi sócio do Marechal ·e, evi-
quer preço, pretextando uma peregrinação a Colô- dentemente, toma sua defesa. Porém nisso tem o
nia para ver as relíquias dos Reis Magos. Gesto sim- apoio de Godofredo, que trabalha para que ele re-
bólico de devoção, posto que esses reis, na mente do cupere a graça do príncipe: Henrique, afirma, não
Marechal ou talvez mais na de seu biógrafo, ti- pede encontrar melhor conselheiro para suas bata-
nham sido vítimas da injustificada desconfiança de lhas; quanto ao senhor de Lusignan, apesar de so-
Herodes, assim como ele agora padecia a de SêU jo- frer o ódio de Guilherme, que ° considera como ins-
vem senhor. E Guilherme vai alardeando sua espe- tigador do assassínio de Patrício de Salisbury, ofe-
rança de obter um milagre graças a essa viagem san- rece-se para combater em campo fechado para pro-
ta: ser lavado da suspeita de adultério que o macula. var em duelo, na qualidade de campeão da rainha
Quer dizer que dirige um apelo. Ao Céu. Ou, mais e do Marechal, que as acusações dirigidas contra
diretamente, ao antigo patrono, não se consolando ambos não têm qualquer fundamento. Henrique, o
de ter perdido seu amor. Uma tal conduta é muito Moço, fica convencido. Expulsa o principal dos in-
lúcida, da parte do Marechal. Sabe muito bem que vejosos, o traidor que tomara o lugar de sua vítima
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à f~ente da "mesnada". Todos se põem à procura de fossem mais brutais do que nos terrenos de jogo,
Guilherme. O camarista da casa toma a estrada, per- pois os ódios se azedavam, porém isso sem que tal
corre-a sem sucesso, regressa estafado, de mãos aba- esporte mais violento chegasse a degradar, de ma-
nando. Por acaso, no caminho de volta depara com neira irremediável, a amizade que havia entre os
o. Marechal, que está retomando ( vigoroso e bem- adversários, baseada no sangue, na vassalagem, na
disposto, de Colônia, e descobre - surpreso, dando cerimônia de investidura, no companheirismo. Era
graças ao Céu - que seu voto foi atendido. As pe- necessário um acidente - um golpe mal pensado,
regrinações têm esse poder. Devoto, Guilherme tam- que matasse por equívoco - para que esses laços
bém é muito precavido. Quer ter a certeza de que profundos se desatassem, para que o rancor subisse
e inspirasse a vontade de vingar-se. Contudo, ainda
ninguém mais falará em adultério. Não quer, de-
aqui, cada qual devia respeitar as regras, falar, acer-
pois de voltar à casa do rei moço, que alguém lhe
tar as coisas, antes de passar de uma frente de com-
recorde sua proposta e o convide, com base no que
bate a outra. Por isso, em nome do camarista, o rei
tinha oferecido, a travar um duelo judiciário, com moço concedeu um prazo. O Marechal se dirigiu até
um dedo cortado, ou ainda contra três campeões a corte de França, onde contava com muitos ami-
sucessivos. Além disso, aceitar a oferta de Henrique, gos, fez-lhe saber que seu senhor já o isentara de
o Moço, é meter-se na pendência que o opõe ao pai. culpa e que ninguém mais poria o bedelho nas suas
Guilherme faz questão de não incorrer na ira do relações com a irmã de Felipe Augusto, pediu e re-
rei velho. Não quer queimar os navios, e somente cebeu cartas do rei, de seu tio arcebispo de Reims,
tomará partido, somente se juntará às forças do do seu primo Roberto de Dreux, do conde T eobaldo
moço Henrique se tiver o prévio assentimento de de Blois, que era a providência dos que lutavam
Henrique, o velho. em torneios. Essas cartas, patentes, foram remetidas
Aqui aparece com maior clareza do que nunca ao rei de Inglaterra, pedindo-lhe que autorizasse o
o que era a guerra, nessa época: nada mais do que caluniado a retomar suas funções: não restou alter-
um dos tempos fortes de discórdias intermináveis. nativa, a Henrique II, senão a de expedir suas pró-
A guerra propriamente dita nunca se estendia por prias cartas, igualmente patentes, ao Marechal. Re-
muito tempo. Constantemente interrompida por bei- cusando, ele daria a pensar que continuava a prestar
jos, simulacros de reconciliação e tréguas, ela era crédito às intrigas. Autorizava-o a voltar a seu se-
conduzida sempre na superfície - sendo quase tão nhor e dava-lhe também permissão de fazer-lhe a
incapaz quanto os torneios de causar qualquer dano guerra, com todas as suas forças, garantindo-lhe
à sólida trama de relações que estruturava a socie- porém que isso em nada diminuiria o amor que ele,
dade de cavalaria. Na guerra os confrontos talvez rei, lhe tinha.

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Guilherme Marechal, escoltado por seu amigo filho tão gastador. No seu pesar, nem reclamava
Balduíno e por Hue de Hamelincourt, mal tinha mais. Mandou pagar os cem marcos. Assim liberou
regressado ao aprisco e o rei moço morria de uma Guilherme de seu compromisso. Mas foi tudo. Com
deença inesperada, a 11 de junho de 1183. Foi um Balduíno de Bérhune e Hue, o Marechal precisou
duro golpe. As mesnadas se desagregavam assim que retornar aos torneios.
desaparecia seu chefe. Por uma brusca meia-volta Por sorte ele se tinha feito cruzado. Henrique,
da reda da fortuna, os que se encontravam no o Moço, como tantos cavaleiros do seu tempo, fize-
pináculo viam-se rebaixados, precisando alguns até ra promessa de partir em peregrinação a Jerusalém
implorar pão de porta em porta. Todas as esperanças assim que tivesse condições para tanto. No leito de
de Guilherme assim ruíam. Seu chefe, contra toda morte, na grande cena da agonia, enquanto pronun-
a expectativa, morria antes do próprio pai, e en- ciava seu testamento, legou sua cruz a Guilherme,
quanto dirigia uma guerra contra esse mesmo pai, o amo de sua casa, seu substituto natural, incum-
guerra esta da qual Guilherme também participava. bindo-o de "levá-Ia até o Santo Sepulcro e quitar
Autorizado, é verdade. Porém, o amor que as cartas sua dívida com Deus". Receber esse dom foi uma
do rei lhe prometiam seria mesmo tão caloroso? Que grande honra. A missão, aliás, não era desagradável.
acolhida lhe daria Henrique, o Velho? É claro que Além dos benefícios que proporcionaria à alma e
perdoaria o filho, falecido. Mas, e seus servidores? dos prazeres que se podia esperar de uma excursão
Mais angustiado que todos os outros, Guilherme to- a terras tão longínquas, ainda permitia que o Ma-
mou a frente dos cavaleiros da casa: tinham o dever rechal, nesses tempos difíceis, se afastasse, deixasse
de conduzir o corpo embalsamado de seu senhor, passar o tempo, visse o que sucederia. E isso nas
de Quercy, onde ele morrera, até seu pai, em pri- condições mais favoráveis. De acordo com as con-
meiro lugar, e depois até Nossa Senhora de Ruão, veniências, os cruzados que se preparavam para a
lugar que Henrique, o Moço, escolhera para aguar- viagem santa eram cumulados de presentes - di-
dar a ressurreição, ao pé de seus antepassados, os nheiro, cavalos, equipamentos de toda a espécie.
duques normandos. Outra preocupação, menor, po- Apareciam como os mandatários de todos os demais
rém lancinante: como de costume a caixa estava que, por enquanto, hesitavam em fazer viagem tão
vazia e os credores lhes barravam a passagem pela
demorada. Guilherme Marechal mostrara muita lar-
estrada; foi então que o Marechal teve de se ofe-
gueza com os cruzados, quando ele próprio ganhava
recer como fiador de cem marcos de prata ao
dinheiro a rodo. Agora era sua vez de receber. Co-
mercenário Sancho. Henrique II nem pestanejou
quando Guilherme lhe relatou o mal desconhecido, meçou fazendo uma pequena viagem à Inglaterra;
os sofrimentos, o último suspiro, a contrição do fi- num caso desses, o costume mandava despedir-se dos
nado. Pagou sem discutir todas as dívidas de seu "amigos carnais"; visitou suas irmãs, essas mulheres

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que não via desde tantos anos, a quem o ligavam as contava os torneios? Calava-se acerca de tão. sober-
recordações de sua primeira infância e que, para ba aventura? E por que não? Talvez re,spelta~~e o
este caçula sem herdeiro, constituíam toda a sua preceito da ordem do Templo, à qual ~a se filiou,
linhagem. Deixando-as, deixou-lhes também o pou- que proibia toda jactância vã. ?~entao pode~os
co que possuía. Pois quem partia para a Terra San- supor, como o editor, que a copia do manuscnto
ta se despojava dos bens tal como deve fazer quem original não esteja completa. Em todo caso, ~udo o
se aproxima da morte. A esperança de cada cruzado que ela nos diz é que Guilherme passou dOIS anos
não era conquistar junto ao Santo Sepulcro a me- na Síria, fazendo nesse prazo tantas proezas e lar-
lhor das mortes, a mais segura, a que garantia todas gueza quanto muitos outros em sete an~s, e que
as indulgências; seu sonho não era ser enterrado, ao serviu o rei Guido de Jerusalém, conquistando o
termo da peregrinação, junto aos santos no vale de amor dos templários, dos hospitalários, de todos, en-
Josafá, para poder ocupar um dos primeiros lugares fim. Só o vemos reaparecer em 1187, poucos meses
na coorte dos futuros ressuscitados? Guilherme tal- antes de chegar ao Ocidente a nova da grande der-
vez também esperasse uma tal recompensa. Mas ao rota de Hattin, da perda da Verdadeira Cru~, que
partir tinha boas razões, caso sobrevivesse, caso re- voltava às mãos dos infiéis, como logo volta na Je-
gressasse, de contar com um lugar na casa real, na rusalém.
casa, agora, do velho rei. Ao se apresentar a Henri- Regressando, o Marechal correu para. junto de
que Plantageneta, requerendo-lhe a permissão de Henrique lI, que, co~o havi~ prometido, o, (~co~-
viajar, este lhe dissera que não se demorasse: pre- servou", com os demais cavaleiros de seu palácio. O
cisava dele. E, enquanto lhe dava cem libras em velho monarca declinava, já começava a apodrecer
denários de Anjou, à guisa de viático, por outro lado em pé. Confiava nos ingleses para enfrentar a insu-
lhe tomava dois cavalos, que o Marechal recebera bordinação que grassava, mais e mais, em seus do-
de outros doadores. Eles serviriam, disse-lhe o rei, mínios do continente. Guilherme se instalou entre
de fiança para seu rápido regresso. os "familiares" do rei. Essa posição não era isenta
de perigos; saltava aos olhos que o patrono não iria
durar muito tempo. Seu filho Ricardo, impaciente
Dor recolher a herança, mal contendo a cólera, irri-
o biógrafo nada conservou das recordações tava-se com ele. Tudo indicava que viria a tratar
dessa cruzada. Uma tal omissão é espantosa. É ver- com muita aspereza os amigos do pai. Para dizer a
dade que João de Early, o principal informante, verdade, o Marechal mal tinha escolha. Aliás, já co-
ainda não estava a serviço do Marechal. Mas será meçava a envelhecer. Tinha, quando muito, uns dez
que este não contava seus feitos de Ultramar, como anos menos que Henrique lI; aproximava-se da idade

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em que os cavaleiros, entrevados, se aprestam para de rendimento por ano, ou seja, o mesmo preço do
a morte. Não tinha mais condições, em todo caso, de cavalo que comprara na feira de Lagny. Ora, sua
voltar aos torneios, de tornar a apreciar seus praze- pobreza se devia, como dissera com muita exatidão
res, de aproveitar os ganhos fáceis que proporcio- a Sancho, ao fato de ter-se conservado "donzel". O
navam: na emoção que se seguiu ao desbarato dos que então desejava, perto dos cinqüenta anos, era
Estados latinos da Terra Santa, a cavalaria ouvia perder a solteirice, recebendo finalmente uma es-
com mais docilidade as injunções da Igreja; os jogos posa que fosse rica herdeira, casando-se a ~m só
militares estavam suspensos, como medida de peni- tempo no seu leito, na sua casa, no seu senhorio. Se,
tência" enquanto se preparava uma nova expedição quatro anos antes, recusara a donzela que Roberto
geral. E verdade que as guerras continuavam. Gui- de Béthune lhe oferecia, talvez seja porque ela lhe
lherme as travou o melhor que pôde, como bem sabia trouxesse em "casamento" rendas apenas e não a
fazer, a serviço de seu novo senhor. Para tanto expôs residência e os poderes senhoriais com que ele so-
seu corpo ao perigo, enfrentando a gente do rei de nhava. É mais provável, como já disse, que ele esti-
França em Montmirail, entre Châteaudun e Le vesse se reservando para destino melhor. Queria ser
Mans, e em outras escaramuças, defendendo o rei casado pelo rei de Inglaterra, por um dos dois, pelo
moribundo contra as agressões intermináveis de seus moço a quem servia, ou, na sua falta, por seu pai.
filhos, que Felipe Augusto, abertamente ou não, ins- Pois era público e notório que o rei de Inglaterra
tigava e apoiava. podia dispor de um abundante viveiro de mulheres
Contudo, o Marechal sentia, em seus membros, sem marido, algumas das quais valiam muito di-
que envelhecia; que logo não teria grande utilidade nheiro. O costume alimentava constantemente essa
nas armas e deixariam de contratá-Io, e ele teria de reserva - autorizando o soberano a dar em casa-
se juntar, no tédio de alguma comendadoria do Tem- mento as viúvas e órfãs de seus vassalos falecidos,
plo, ao grupo queixoso dos guerreiros descartados. a distribuí-Ias judiciosamente entre os cavaleiros sol-
Parecia-lhe urgente conseguir, enquanto ainda era teiros que lhe eram ligados, em paga de seus bons
tempo, enquanto Henrique II não morria, uma re- serviços. Era assim que ele governava, que ele con-
compensa sólida, assegurando-lhe uma posição e re- trolava, mais firmemente que por qualquer outro
cursos estáveis para o momento que se aproximava, artifício, os grandes senhores de seu reino, e tam-
em que o ofício se lhe tornaria penoso demais e lu- bém os pequenos. Pois ninguém podia ambicionar
crativo de menos. Continuava pobre. Ao voltar da presente mais vantajoso: que de um só golpe mu-
cruzada, seu patrono lhe concedera um feudo na dava a condição dos homens, seu "estado", transfe-
Inglaterra, a terra de Cartmel, no Lancashire ; mas rindo-os da completa dependência dos caçulas à se-
era um feudo muito modesto: trinta e duas libras gurança dos seníores.
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o rei consentiu; deu-lhe a mão da filha de pressas o que lhe caía das mãos. Infelizmente, ?ui-
seu senescal, morto havia três anos sem herdeiro lherme não podia casar-se de imediato. A apetitosa
varão, a "donzela de Lancastre", de excelente edu- herdeira então se encontrava em lugar seguro, em
cação, e, para fruir depois das bodas, seu "tene- Londres, na torre, havia já treze anos, desde a morte
ment", o feudo que seu pai houvera da coroa. Essa do pai. Ali estava protegida contra as surpresas. Era
mulher ainda não era núbil. Esperando a puberdade, um tesouro tão precioso que o rei não se decidia a
foi confiada a seu futuro marido, que" a conservou largá-Ia. Humberto Gauthier, então amanuense do
com toda a honra e protegendo-a da desonra" (o justiça-mor de Inglaterra, recebeu ordens para que
que significa que resistiu a fazer o que muitos fa- a moça e a terra fossem entregues rapid~mente. Só
ziam em seu caso: a ter prazer com a menina), "por que Henrique 11 morreu ainda mais rápido, a 6 de
bastante tempo, como sua cara amiga". "Amiga", julho de 1189.
não esposa. Pois dois anos mais tarde, em maio de Novo golpe, muito mais duro que o primeiro,
1189, considerando que seu concurso era cada vez porque fazia apenas um mês que Guilherme incor-
mais indispensável nos combates árduos que haviam rera no ódio de Ricardo Coração de Leão, o novo
recomeçado no Maine, ele pediu coisa melhor - e rei. O velho soberano, perseguido pelo filho mais
foi atendido. Para satisfazê-Io, Henrique 11, cuja os cavaleiros de França, retirava-se da cidade de Le
doença piorava, os tumores que lhe devoravam a Mans, em meio às chamas. Inebriado pela vitória,
entrecoxa já se convertendo em pústulas, pegou as Ricardo,então conde de Poitiers, salta sobre o cava-
cartas espalhadas pela mesa, tornou a embaralhá-Ias lo, sem perder tempo envergando uma armadura.
e as redistribuiu. Gilberto, filho de Rainfroi, seu Não porta elmo, apenas um chapéu de ferro, nem
novo senescal, teve a "donzela de Lancastre", para cota de malha, somente um gibão de couro. O Ma-
tanto se desfazendo da herdeira que então tinha em rechal tem a incumbência de proteger a retirada,
mãos, a qual passou a Reinaldo, filho de Herbert; tal como em tempos idos seu pai cobriu a de Matilde,
Balduíno de Béthune recebia a herdeira de Château- ou como ele próprio, em Lagny, protegeu Henrique,
roux, enquanto a seu velho amigo Guilherme vinha o Moço, contra a investida dos que o queriam cap-
ter o quinhão que ambicionava: a "donzela de Stri- turar. Lança-se contra o agressor, espada e chuço em
guil", O prêmio que lhe cabia era mesmo grande. riste. Diálogo:
Helvis de Lancastre não passava de um feudo de
cavaleiro; ao passo que Isabela de Striguil repre- "Por Deus, Marechal, à morte
não me atireis, que nem forte
sentava sessenta e cinco feudos e meio; assim pode-
L'ÓS me vedes, nem armado."
mos medir que influência o Marechal conseguiu, em E diz Marechal: "Que () diabo
apenas dois anos, sobre o rei que se debilitava tão L'OS carregue em desbarato,

depressa, na verdade, que era preciso agarrar às já que eu mesmo não vos mato".

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É verdade que poderia matá-Io: Ricardo não cupação. Sabia-se que Ricardo era impulsivo e ran-
está enfiado numa armadura. Poupa-o, porém fere coroso. É claro que, durante as festas que marcavam
com a lança seu cavalo, matando-o. O conde cai ao a ascensão ao trono, parecia pouco provável que
chão. "Foi um belo golpe", que salvou da captura condenasse alguém à morte. Porém, se porvcntura
ou de destino pior os que fugiam em debandada. Guilherme conseguisse salvar a pele, que chances lhe
restavam de recolher o fruto de seu longo serviço,
Matar o cavalo montado pelo herdeiro do tro-
o belo presente do rei defunto? Esse eldorado de
no e fazê-Io morder o pó num torneio, quanto mais
sonho? A "donzela de Striguil" como poderia vir ter
nos combates mais duros da guerra, não era ato sem
conseqüências, nem mandá-Ío morrer nas mãos do a suas mãos?
diabo. Pois naquela época tais fórmulas eram apre- Entrada de Ricardo - impassível. Sua fisiono-
ciadas ao pé da letra, e a letra então detinha uma mia não trai nada '- raiva, regozijo, incômodo.
força terrível. Por isso, enquanto levava em cortejo Pára diante do corpo, aproxima-se da cabeça do pai,
o despojo do velho Henrique para Fontevraud, a fica pensativo por bastante tempo. Chama então,
casa inteira do defunto se interrogava. Faltava pou- dentre todos os que tomaram o partido do rei seu
co para que todos vissem surgir o novo rei, que se pai, apenas o Marechal e dom Maurício de Craon,
aproximava para os funerais: "O conde vai chegar; e alguns outros, amigos seus: "Vamos lá fora". Fora,
apoiamos seu pai e o combatemos; seu coração esta- uma pequena assembléia se reúne em volta do prín-
rá contra nós". A esse temor assim respondiam os cipe; é seu primeiro conselho real. Então fala, e
mais avisados: "O mundo não é somente dele. Po- suas primeiras palavras são estas: "Marechal, outro
deremos sair de sua tutela, e, se nos convier mudar dia quisestes matar-me, e sem sombra de dúvida eu
de senhor, Deus bem saberá dar-nos seu apoio. Nós, teria morrido se não tivesse desviado vossa lança
em particular, nada temos a temer, porém recea- que já alcançava meu braço. Foi esse um dia infeliz
mos a sorte do Marechal. Mas ele deve saber do se- para vós. - Real senhor, não tive nunca a intenção
guinte: enquanto tivermos cavalos, armas, denários, de vos matar, nem fiz nenhuma tentativa nesse sen-
enfeites, dividiremos com ele O que quiser". É a vez tido. Ainda tenho forças para investir com uma
do Marechal: "É verdade que matei o cavalo e não lança. Se o quisesse, teria ferido diretamente vosso
me arrependo disso. A vossas ofertas agradeço mui- corpo, como fiz com o do cavalo. Se o matei, não
to, porém não aceitarei tirar o que vos pertence. acho que agi mal, nem me arrependo. - Marechal,
Pois como depois vos retribuir? Deus, porém, fez-me estais perdoado. Jamais me irritarei convosco pelo
tanto bem desde que sou cavaleiro: eu me fio em sua que aconteceu". Primeiro alívio, decisivo: Guilher-
boa vontade". Confiança e fé. No fundo de si mes- me não será punido no corpo. Mas ainda resta a
mo, na verdade, o Marechal se consumia de preo- "donzela de Striguil". A questão é formulada sem

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demora, porém por outro homem, amigo de Ricardo, possui determinada mulher. Por isso é prudente que
o chanceler: "Senhor, não leveis a mal, somente que- a festa, a cerimônia pública de acasalamento, seja
ro recordar que o rei a deu ao Marechal. - Pelo celebrada na própria casa. Como uma afirmação de
Senhor Deus, não é verdade. Ele somente prometeu direito. E além disso onde Guilherme, "pobre don-
dá-Ia. Mas eu lhe faço a graça de dar-lhe a mes- zel", encontraria os recursos para a munificência,
quinha. Com o feudo". Quer dizer, com o essencial. os gestos de tanta largueza necessários a qualquer
Todos agradeceram a Ricardo. O Marechal não acre- solenidade nupcial? Somente nos domínios da espo-
ditava no que ouvia. Escapara por pouco. sa. Contudo, o cavaleiro que o hospedou em Londres
E então o Marechal correu com todas as rédeas insiste para que se demore, tranqüiliza-o: ele pagará
soltas, tomou posse, casou-se. Ele, mais Gilberto Pi- todas as despesas. Guilherme cede, consente em co-
part, estavam incumbidos de ir à Inglaterra guardar pular ali mesmo. Mas precisa de uma cama. Dom
a terra de Ricardo e seus direitos. Em apenas dois Enguerrand de Abernon empresta-a, a alguma dis-
dias eles atravessaram o Anjou, o Maine e a Nor- tância, em Stokes, Isabela está em seus braços. Ele
mandia, tomaram um barco em Dieppe; a ponte tem quase cinqüenta anos. Finalmente deixa a mo-
desabou com seu peso; Pipart, de braço quebra- cidade. Essa noite, tratando de deflorar a donzela
do, ficou na margem; Guilherme, embora ma- de Striguil, de engravidá-Ia, ele passa a fronteira,
chucado na perna, agarrou-se à pavesada, fez o bar- chega ao melhor lado, o dos "senhores". Sua fortuna
co entrar na Inglaterra, aproveitando a passagem - nada mais é preciso -, sua enorme fortuna está
por Winchester para cumprimentar a velha Leonor feita.
que, graças à viuvez, livre, tornava a brilhar. Chega
a Londres. O justiceiro-mor, guardião da moça, co-
meça fazendo ouvidos moucos, negocia, finalmente
a entrega, a contragosto. Guilherme quer levá-Ia
prontamente. Tem a maior pressa de consumar J
casamento, porém entende casar-se nas terras dela.
Por isso tem sua importância. Graças à posse de
uma herdeira, o moço casado passa a ter casa, a ser
amo e senhor, porém de um patrimônio que não é
seu, o dos avós de sua esposa; sabe perfeitamente
que os tios e sobrinhos reclamam e, ainda, a "rnes-
nada" inteira do antigo patrão, irritados todos, com
esse homem que vem dominar-lhes a casa, só porque

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5
...•
_@>_ •...

ICARDO, filho de Gilberto de Clare, o pai de


R Isabela, casara-se segundo a lei em 1171; morreu
cinco anos depois. Nesse tempo em que o costume
mandava esperar o décimo-segundo ano antes de
mandar as meninas para a cama do marido, Isabela
tinha a idade exigida. Porém certamente não passa-
va de dezessete - era uns trinta anos mais moça
que o marido. O qual já vivia o declínio, portanto.
Eram então muito grandes as possibilidades de que
essa mulher não demorasse a enviuvar, cobiçadissi-
ma, de novo em mãos do casamenteiro legal, ou seja,
o rei, a quem serviria uma segunda vez de riquissi-
mo salário para valorosos serviços. Quem poderia
prever, no dia em que se casaram, a espantosa Íon-
gevidade de Guilherme? E que ela viveria ainda trin-
ta anos a sua sombra? Que ele usaria por tanto tem-
po seu corpo, lavrando-a com tanto afinco que ela
lhe daria pelo menos dez filhos? Que ele exploraria
tantos anos a fio os direitos cuja gestão o matrimô-
nio lhe confiava? Tais direitos eram enormes. Ape-

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nas uma herdeira, em toda a Inglaterra, era mais Pembroke. Mandara dizer a Roma que o país mer-
rica do que ela. gulhava numa desordem intolerável e que a Igreja
Os Clare eram senhores, desde 1096, do castelo muito sofria com isso. O papa enviou-lhe um anel
de Striguil, sobre o rio Severn, defronte de Bristol· de ouro, investindo-o e incumbindo-o de fazer
nas proximidades, também era deles a fortaleza de guerra na Irlanda, guerra esta quase santa. E árdua,
Goodrich; o chefe de sua casa era conde de Pem- mas felizmente o rei podia contar com as pendências
broke. Pertencia ao pequeno grupo de barões que ásperas e intermináveis que dividiam os clãs locais
cobriam as fronteiras do País de Gales, incumbidos e seus chefetes, que se diziam reis. Um deles, Der-
de conter os ataques que sempre viam desse lado e, mot, rei de Leinster, para vencer seus rivais, aliou-se
para desempenhar tarefa tão difícil, dotados de po- ao invasor e deu sua filha a um dos chefes ingleses,
deres excepcionalmente amplos. O rei de Inglaterra, Ricardo de Clare, alcunhado "Arco Vigoroso". Ri-
que por toda a parte era muito cioso de seus direi- cardo pacificou o reino pela força bruta, derrotou
tos e regalias, cedia estas últimas aos barões das fron- os perturbadores da ordem, rapidamente dominou a
teiras. O conde de Pembroke, como os demais "pa- ilha; mas Henrique não lhe cedeu o território in-
latinos", possuía nessas marcas um poder compará- teiro, conservando os portos, Dublin, Waxford,
vel ao dos grandes vassalos do rei de França. Do lado Waterford. Porém Ricardo recebeu, como feudo,
de se~ pai, Isabel~ pretendia, ainda, a sucessão de todo o interior, em torno do castelo-forte de Kilke-
u~a Importante linhagem normanda, que se extin- ny. O país era rebelde; os nativos mostravam-se re-
gU1~a em 1164: seu trisavô, no final do século XI, calcitrantes, quase tão perigosos quanto os galeses;
havia desposado uma Giffard; ela não pôde receber para dominá-Ias era preciso um punho forte, era
toda a herança, tendo de dividi-Ia com um primo, preciso portanto que o novo rei de Irlanda (em
o conde de Hertford, mas de qualquer forma teve 1177, Henrique II elevou seu filho João sem Terra
o castelo de Orbec, perto de Lisieux, e metade de a essa dignidade) concedesse ao senhor de Lienster
LonguevilIe: duas casas solarengas e o serviço de prerrogativas tão vastas quanto as que o conde de
Pernbroke possuía na Inglaterra. Nas terras da
quarenta e três cavaleiros. Um belo senhorio: como
Irlanda se encontrava, sem sombra de dúvida, a
vemos pela taxa de sucessão, dois mil marcos de
parte mais rica dos domínios que Guilherme Ma-
prata, que o rei exigiu de Guilherme antes de au-
rechal adquiria por seu casamento. Sua mulher era
torizá-Io a receber o feudo e conservá-Io em nome neta de rei; e disso se gabava. A Canção de Dermot,
de sua esposa. Finalmente, pelo lado de sua mãe, que narra a conquista de Leinster e celebra seu pai
Isabela possuía um quarto da Irlanda, ou coisa pa- e avô, deve ter sido encomendada por ela, tal como,
recida. Em 1170 Henrique Plantageneta havia ini- posteriormente, com o mesmo espírito de marcar o
ciado a conquista da ilha, partindo justamente de orgulho de família, seu filho pagou a história de
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seu marido. Acrescentemos que Leinster proporcio- e realeza, que trabalhava obstinadamente para re-
nava rendas vultosas - dezessete mil libras por ano cuperar parte das regalias que as necessidades da
em meados do século XIII, ao morrer o último filho defesa haviam forçado a ceder, em tempos passa-
de lsabela: quinhentas vezes mais que Cartrnel: di- dos, aos barões das fronteiras. Assim, Guilherme es-
gamos, para dar uma idéia, o valor de mais ou me- perou mais de dez anos, antes de receber a espada a
nos quatrocentos cavalos de guerra da melhor qua- que faziam jus os condes de Pembroke; quanto a
lidade. Leinster, jamais conseguiu receber todos os direitos
Para dizer a verdade, embora aceitasse dar a de alto poder.
Guilherme Isabela com seu "feudo", Ricardo Cora- Porém, em 1189, as bodas foram motivo de
ção de Leão conservou em mãos boa parte da he- júbilo para ele. Nós o vemos logo manifestar seu
rança. Vê-se como o poder que o soberano tinha de reconhecimento à Providência por um favor tão
dar em casamento as filhas e viúvas dos grandes maravilhoso, por tanta riqueza de uma só vez: na
vassalos podia ser bastante lucrativo. Mantendo por única terra propriamente sua, Cartmel, funda uma
um tempo tão prolongado essas mulheres sob sua comunidade de religiosos que, dia apÓs dia, por todo
tutela, o rei não se limitava a receber, descontada o sempre, elevarão ao Céu, em seu nome, cânticos
apenas a parte do guardião a quem ele as confiava, de ação de graças; no mesmo priorado instala cô-
os frutos gerados pelo seu patrimônio: depois disso, negos regulares, os quais vai buscar - dado impor-
quando terminava por cedê-Ias a um ou outro den- tante - em Bradenstokes, no santuário da linha-
tre seus amigos, tratava de barganhar, fazia-os espe- gem de sua mãe, onde seu irmão mais velhoesco-
rar o maior tempo possível, demorava especialmen- lherá (dentro em breve) ser enterrado. Mal entra
te a transferir-lhe os principais direitos senhoriais, em posse de uma esposa e já se empenha - modes-
os que limitavam sua soberania. Para o recém-casa- tamente ainda, pois sua fortuna é tão brusca que
do, que até então não era ninguém, o presente se isso o intimida - em preparar o lugar santo onde
revestia de um tal valor que ele consentia, sem recla- se enraizará sua futura linhagem, para tanto sacri-
mar demais, na perda de alguns desses direitos; sem ficando o pequeno bem que havia conquistado com
dizer nada por enquanto, agradecendo paciente, mas suas próprias forças. Isso não o perturba. Em nome
esperando com o correr do tempo - e o apoio de de sua mulher, tem agora mil vezes mais do que
companheiros que viriam atestar qual era o cos- possuía.
tume e jurar que desde tempos imemoriais seus pre- Dessa mulher, ele cuida como se fosse o mais
decessores tinham feito isso e aquilo - acabar re- precioso dos tesouros. Vemos que ela o segue por
cebendo o que restava do bolo. Guerrinha travada toda a parte. O rei, seu senhor, manda-o atravessar
em surdina, entre os novos ricos por casamento c o canal, acompanhando-o à N ormandia - ela vai

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junto. Todo o poder que ele pretende deter nessa rei), que vos investiu com vossos feudos ao con-
província, em Longueville e em outros lugares, ema- quistar a terra (direito de conquista, que se tornou
na da pessoa, da "cabeça" de Isabela; é indispensá- senhorial graças à distribuição e concessão dos pode-
vel que todos então a vejam a seu lado, que cada res feudais). Ela ficará convosco, grávida (no seu
qual reconheça, com os próprios olhos, que ela per- ventre repousa talvez o futuro senhor, mais seguro
tence a ele, que reparte seu leito, que juntos são do que Guilherme, porque não dominará ~penas p~r
uma única carne; e que por isso é forçoso prestarem matrimônio, feito príncipe conserte, porem por fi-
homenagem a seu marido, formarem sua corte, evi- liação e herança direta) ; até que Deus me traga de
tarem qualquer atentado a sua honra. Uma necessi- volta, peço a todos vós que a guardeis bem e natu-
dade análoga obriga-o a embarcá-Ia em sua nau ralmente, pois ela é vossa senhora ... " Realmente:
quando segue para a Irlanda, pela primeira vez, em tudo o que ele ora possui é dela, e sente-se como o
1207. E quando, quase imediatamente, é chamado angustia a perspectiva de perdê-Ia de vista, ain~a ql.~e
de volta por João sem Terra, que nessa época o por um curto instante. Será que ela lhe escapara, ?e:-
detesta e de quem Guilherme receia as ciladas - os xando-o novamente sem nada nas mãos? Necessário
homens do conselho do Marechal mostram-se des- cercá-Ia de perto, tomar todas as precauções para
confiados, convencidos de que o rei o convoca "por que ninguém a tire de seu po?er. E também irnpe-
engenho, mais para fazer-lhe mal do que bem", e o di-Ia, ela que é tão moça, de ir se desavergonhar as
proclamam, alto e bom som, perante a condessa escondidas ou ainda fornicar tão às escâncaras que
desesperada -, ele a deixa em Kilkeny, porém muito ele precise separar-se dela. Pois não se repudia a
bem guardada. Veio à Irlanda com dez cavaleiros opulência.
de confiança, retorna com apenas um para escol-
tá-lo em sua viagem, e incumbe João de Early, Es-
têvão de Evreux, seu primo, e os outros sete de
conservarem a ordem durante sua ausência, de con- Opulência? Cuidado: é isso mesmo? Porque não
ter os vassalos locais, esses celerados que a conquista devemos raciocinar como um banqueiro dos tempos
colonial precipitou no país e cuja turbulência ele modernos. Em fins do século XII, o dinheiro conta,
bem conhece. Reuniu-os todos antes de partir, na e como conta, já mostrei. Todavia, a riqueza, ou o
sala do castelo: "Senhores, vede a condessa que aqui fato de que os domínios forneçam uma quantia d'.!-
eu trouxe pela mão, a vossa frente (mostra, fir- terminada de libras, soldos ou denários, tem menos
memente preso a seu punho, esse corpo no qual cor- importância, infinitamente menos, do que o poder.
re o sangue detentor da autoridade que pesa sobre Antes de envolver Isabela em seus braços, o Mare-
o senhorio). É a vossa senhora natural (por nas- chal não era desprovido de poder. 'Tinha-o, e quanto,
cença: é filha do conde anterior, neta do antigo já por sua reputação, seu renome de perito militar:

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de dom tão soberbo, o que até então ele sÓ fora por
tinha a certeza de que, em caso de infortúnio, as
bem pouco tempo, e por delegação alheia, enquanto
portas se abririam por toda a parte, na Inglaterra
servia a Henrique, o rei moço: chefe de "mesnada",
ou no continente, para acolher o herói famoso dos
mais belos torneios de antanho e que sempre encon- chefe de casa, chefe, em suma.
traria emprego em alguma família das mais impor- Com esse gesto Ricardo o enriquece, é claro,
tantes. Além disso, podia contar, a qualquer mo- mas o importante é que também o transforma; faz
mento, com o amor particular de alguns homens, Guilherme Marechal mudar de escalão, na hierarquia
amigos de absoluta confiança, fiéis companheiros de das condições sociais; eleva-o à posição daqueles cujo
suas aventuras, entre os quais sobressaía o nome de poder é ativo e estável. Pois, nessa época, o único
Balduíno de Béthune; e, finalmente, já havia algum poder autêntico é o dos homens casados. O homem
tempo que possuía seu próprio "pelotão", um pe- vale mil vezes mais que a mulher, mas não vale
queno grupo de familiares, rapazes a ele devotados quase nada se não possuir ele próprio uma mulher,
de corpo e alma, entre os quais se destacava seu es- legítima, na sua cama, no centro de sua casa. O
cudeiro João de Early. Quando sobe ao trono Ri- hábito, que ainda perdura, de negar o matrimônio à
cardo Coração de Leão, intui-se que o Marechal é maior parte dos moços nobres visa acima de tudo a
intocável: todos os que são leais ao rei defunto pro- impedir as divisões de herança - mas possui tam-
testam que lhe darão força, que, se for o caso, se bém uma vantagem suplementar, a de reservar so-
entregarão como reféns em seu lugar e, até no inte- mente a alguns dentre os guerreiros os atributos da
rior do outro partido, alguns, que o temem pelos verdadeira autoridade, fazendo de todos os outros
apoios que possui e ainda por sua habilidade, faIam seus subordinados. Pois o que os "donzéis" tinham a
em seu favor ao novo rei; há tudo o que ele sabe mais que os bastardos? Direitos sobre a herança an-
das brigas internas da família real, o mal que conhe- cestral. Porém tais direitos não passavam de virtuais;
ce e bem pode vir a revelar em voz alta; entram quase nenhum deles, no correr da vida, chegava a
em jogo também, quem sabe, velhas recordações que exercê-Ias diretamente; apenas pediam, então, que
se conservam na linhagem Plantageneta, sobre esse fossem mantidos em um estado digno de sua con-
que vinte anos atrás vingou no Poitou a glória de dição pelo homem casado que dirigia sua linhagem
Leonor. e que podia ser seu pai, o irmão mais velho ou ainda,
quando já envelheciam, o primeiro de seus sobrinhos.
Em todo caso o que vemos é Ricardo forçado a
Já pela sua própria condição um donzel sempre era
conter o rancor, a reprimir os ímpetos de matá-lo,
"pobre", significando a pobreza naquela época, nun-
de lavar no sangue a afronta recentíssima, forçadc
ca esqueçamos, não a penúria mas a impotência. Du-
a manter as promessas do pai e, a despeito de tudo,
rante a adolescência, o filho de cavaleiro via a sua
dar-lhe esposa, fazendo assim, de Guilherme, através
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frente a vida escandida em três seqüências, em clérigos chamavam de caritas, e a língua das cortes
função de duas cerimônias principais, duas datas, de "amizade", sustentada pela "fé", outra palavra-
duas grandes festas- já que a comunidade cele- chave a evocar uma combinação de confiança e fi-
brava ambas as passagens com jogos, risos e uma delidade. Nessa relação afetiva, geradora de deveres
festiva dilapidação de riquezas. Se passasse dos vinte e direitos, assentava a coesão de um edifício hierar-
a~os, se tivesse a sorte de não ser liquidado antes quizado, construido de finíssimas folhas superpostas;
d~sso por :u.m dos acidentes tão freqüentes no apren- tudo estava em ordem e tudo se conformava às in-
dizado militar, então tinha a certeza de que viveria tenções de Deus, quando os homens (ninguém pres-
a primeira dessas datas, que, para todos os moços tava muita atenção às mulheres, as quais constitu-
bem-nascidos que a família escolhera não enfiar na íam uma outra espécie, subordinada por definição) ,
Igreja, marcava o término das "infâncias" e a en- estabelecidos em tal ou qual nível, viviam juntos na
t~ada no grupo dos guerreiros: era o dia em que se concórdia, serviam fiel e lealmente os que estavam
v~am armados cavaleiros. Recebiam a espada, insíg- logo acima deles e recebiam serviço adequado por
ma do poder de combater, de usar legitimamente da parte dos seus inferiores imediatos. A ordem assim
força, o que os alçava acima dos imaturos e de todos se mostrava fundada numa combinação de desigual-
os vilões. Já o segundo desses dias era apenas um dade, serviço e lealdade. Se ela situava em um bloco
sonho e o mais das vezes quimérico. Nessa data, a acima de todos os outros leigos essa parte da socieda-
de suas núpcias, o guerreiro transpunha a fronteira de formada pelos fidalgos, por outro lado distinguia
decisiva. Penetrava no círculo, estreit issimo, dos que na classe dominante múltiplas estratificações, simul-
realmente dominavam. Foi isso o que sucedeu ao taneamente determinadas pelas relações de domestici-
Marechal, em 1189. Arrisquemos um termo: ele dade, que garantiam a autoridade do chefe de famí-
mudou de classe. Esperava isso havia um quarto de lia sobre toda a gente de sua casa, pelas relações de
século. parentesco, que subordinavam os caçulas aos mais
velhos e a geração dos moços a dos anciãos, pelas
relações de vassalagem, que alçavam o senhor sobre
quem lhe prestasse homenagem, pelas relações políti-
.. Dentre seus mais altos méritos, o texto que cas, finalmente, pregadas sobre a hierarquia das ho-
utilizo tem o de lançar viva luz sobre o jogo dos menagens, formando uma pirâmide cuja base eram
poderes nesse estágio superior da sociedade que cha- os meros cavaleiros; o ápice, o rei; e os barões, o
mamos de feudal. No final do século XII, sabe-se ní vel mediano. Esses diferentes sistemas de depen-
que os homens dados à reflexão pensavam essa so- dência interferiam muitas vezes uns nos outros, suas
ciedade tal como pensavam o conjunto do universo disposições chegavam a se contradizer, mas sempre
visível e invisível. Isto é: cimentada pelo que 'JS a amizade que obrigava (com rigor maior ou menor,
182 183
dependendo da proximidade dos homens e da qua- mais resistente de sua casa. De um momento para o
lidade de sua relação) ao serviço mútuo, ao auxílio, outro esta tomou corpo e se organizou: quando
ao conselho, se traduzia em dois eixos perpendicula- embarca para a Normandia, a 12 de maio de 1194,
res: num plano horizontal, ela mantinha a paz en- é acompanhado pelos chefes de serviço domésticos,
tre os pares; num vertical, ela forçava à reverência um camarista, um capelão assistido de três amanu-
face aos superiores, à benevolência pelos inferiores. enses, e são necessários dois navios para conter todos
Essa complexa quadrícula tem na história do Ma- os cavaleiros de seu séquito.
rechal, ou mais precisamente na última época de Pois são numerosos os vassalos que agora se reú-
sua vida, uma das melhores ilustrações que conheço. nem a sua volta. A partir de 1189 Guilherme viveu
Seu casamento, retirando-o do grau rebaixado uma experiência nova: ao visitar os domínios de
e subalterno ao qual o prendia o celibato, modificou sua esposa, um após outro, viu guerreiros aproxima-
fundamentalmente a posição por ele ocupada no ta- rem-se em fila, ajoelharem-se de mãos postas a sua
buleiro das amizades e serviços. Ele já tinha sua frente - à frente dele, o único sentado em toda a
"gente", sua criadagem, porém pequena, apenas al- sala -, dele, que pegava essas mãos entre as suas,
guns servidores, como tinham todos os homens de erguia esse que por tais gestos se tornava seu
guerra bem-sucedidos. Mas agora o vemos patrono e, homem, beijava-o na boca, ouvia-o jurar-lhe fideli-
quando, cinco anos mais tarde, seu irmão mais ve- dade. A contar de agora espera que todos os que se
lho, João, morre sem deixar filhos, essa função de prestaram a tais ritos lhe prestem serviços: que lhe
patrono alcança ainda maior envergadura, não tanto sejam fiéis, que formem sua corte, que o ajudem a
por ele herdar as terras da linhagem - que mal so- distribuir justiça, acorram quando ele desfraldar a
mam uns dez solares -, porém porque assume a bandeira de senhor, em Longueville, ou em Striguil,
chefia dessa mesma linhagem. Cabe-lhe doravante ou ainda em Kilkeny. Essas amizades nem sempre
alimentar os parentes moços, educá-los, recompensá- têm a mesma têmpera das outras. Mas pelo menos,
los, dar-Ihes casa: tal como ele mesmo se ligara a nascendo elas em feixe em torno de cada uma das
Guilherme e Patrício. É com esses donzéis que ele se fortalezas que ele domina em nome da esposa, fa-
Salisbury, agora esses meninos o seguem como a zem dele o par dos "altos e poderosos homens" que
própria sombra - sirva João de exemplo, o filho de outrora, quando retornava estafado, estropeado, glo-
seu irmão Anseau, que o ama tanto quanto ele amou rioso, soberbo do campo dos grandes torneios, lhe
Guilherme e Patrícia. É com esses donzéis que ele se prometiam mundos e fundos para tê-Io em sua casa.
mostra mais atencioso, mais generoso também, e E ele, que não ousava aceitar que o conde de Pon-
deles recebe, em troca, a mais fervorosa devoção, thieu o tratasse como igual, sabe que hoje está ins-
com a qual pode contar. Eles constituem o núcleo talado, legitimamente, no mesmo nível de poder.

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Desde que fez da donzela Isabela sua esposa, já perto da velhice, cujo valor ele bem conhecia e que
ele subiu um ponto na escala das dignidades: de podia ser-lhe bastante útil: a mulher que deu a Bal-
simples cavaleiro alçou-se ao grau superior, entrou duíno fez dele conde de Aumale. Mostrou-se porém
no baronato real. O baronato inglês é aberto e rela- menos fértil do que a herdeira de Striguil e só lhe deu
tivamente fluido: renova-se mais rápido que no con- uma filha. Mas esta, já que seu pai "não tinha fi-
tinente devido, exatamente, ao uso que o rei faz das lhos fora a donzela", constituía um belo partido.
herdeiras. Por isso o que importa a Guilherme não Os dois companheiros se amavam muito - conver-
é tanto fazer-se aceitar pelos barões como seu par saram - e concordaram quanto ao casamento. Bal-
- afinal, muitos são homens tão novos quanto ele duíno daria, como presente de casamento aos jovens,
-, é aumentar suas amizades nesse meio, é conquis- todas as terras que possuía na Inglaterra e em outros
tar apoios, é, acima de tudo, proteger-se. Pois, nesse países, desde que o rei (o casamenteiro inevitável em
meio restrito, as ciumeiras, a rivalidade em torno caso de morte do vassalo e que mantinha a maior
das vantagens do poder são ardentes, tão brutais e vigilância sobre o mercado matrimonial como um
mais perigosas do que, no plano inferior, a disputa todo) o autorizasse. Todos os amigos de Guilherme
entre os "moços" pelas larguezas do patrão. Para e Balduíno aprovavam a união. Bonsentendedores
esse fim, ele utiliza os filhos que sua mulher vai, de cavalos, eles apreciavam o pedigree: o jovem ga-
regularmente, pondo no mundo. Casa-os. Sua polí- ranhão e a poldra, concordavam eles, eram ambos
tica é a mesma de todos os chefes de linhagem. Eles nascidos "de pai audaz e mãe valente"; podia ter-se
cuidam de que os rapazes da casa se conservem sim- a certeza de que deles sairiam bons frutos. O Mare-
ples cavaleiros e geralmente só procuram esposa para chal e seu amigo davam muita importância a essa
um dos filhos, o primogênito, que lhes sucederá.
aliança. Combinaram que se por desgraça a menina
Preocupação que o Marechal tem com seu primeiro
(que tinha menos de sete anos) morresse, o jovem
filho, ainda bem novo. Em 1203 - Guilherme, o
Guilherme desposaria uma irmã mais nova, que Deus
Moço, ainda não completou doze anos -, ele trata
com Balduíno de Béthune, o velho companheiro talvez capacitasse Balduíno a gerar, pois sua mulher
cuja amizade e cumplicidade nas aventuras jamais era jovem; e, caso a morte ferisse primeiro Guilher-
lhe faltaram. Balduíno também se casara graças a me, o Moço, seu irmão caçula Ricardo, teria a noiva,
Ricardo Coração de Leão, poucos anos após o Mare- obviamente com o "matrimônio", isto é, o dote.
chal. Esperava ter a herdeira de Châteauroux, que o Combinações bastante precoces, como então se cos-
rei Henrique lhe prometera. Ora, Ricardo já dera es- tumava fazer. As bodas de fato só ocorreram onze
sa moça a André de Chauvigny, um de seus fiéis. anos mais tarde.
Tornando-se rei, procurou meios de compensar Bal- Para dizer a verdade, entre o conde de Pem-
duíno e de conseguir a devoção pessoal desse solteirão broke e o conde de Aumale o pacto não criou uma
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amizade - foi decorrência desta. Para fazer novos odiado por alguns chefes de clãs, o que Guilherme
amigos no seu novo nível, o Marechal serviu-se de conseguiu, cedendo suas filhas (porém a que preço?
suas filhas. Era essa a utilidade delas, na política das Quanto ele tirou do patrimônio para dar-Ihes em
famílias. Elas eram casadas em outras casas para dote?), foi garantir pelo menos uma série de coni-
consolidar a paz, para que dessem à luz a sobrinhos vências neutras em quatro casas tão poderosas quan-
que amariam o irmão da mãe mais do que o próprio to a sua. Isto quanto à amizade no plano horizontal.
pai e que mais tarde, possivelmente, hesitariam em Já no eixo vertical, ele dominava completamente
infligir danos demasiado graves a seus primos. Por a esposa, que fizera sua sem ter ela nenhum parente
isso Guilherme se empenhou em encontrar noivos próximo apto a defendê-Ia, e os filhos. Também era
para suas meninas. Uma única, conforme já vimos, muito grande o controle que exercia sobre os moços
ainda lhe restava quando morreu. As três mais ve- e os não tão moços, que alimentava em sua casa.
lhas, conta o poema, haviam sido "bem empregadas". Contava, porém sem uma convicção absoluta, com
Foram entregues a três filhos de conde. Guilherme o serviço de bom número de cavaleiros dotados de
deu Mafalda, a primeira, «ao melhor e mais belo feudos próprios. Contudo, neste eixo, ele próprio
homem que conhecia", Hugo Bigot, futuro conde se encontrava em posição mediana. Devido às ter-
de Norfolk; a terceira, Sibila, ao futuro conde ras das quais tomara posse em função do casamento,
de Derby ; a segunda, Isabela, a Gilberto de Clare. que não eram alódios porém feudos, ele precisou
Este tinha a vantagem de ser conde de Hertford prestar homenagem após as bodas, precisou ajoelhar-
por via paterna, conde de Goucester por via mater- se. Diante de vários senhores. Porém destes o prin-
na, e ainda primo de sua futura esposa; uma tal cipal era o rei. Até que ponto, de que maneira ele
aliança - que, notemos de passagem, não dava a se sentia sujeito a eles? E, nesse nível, o que signifi-
menor importância às ameaças que, da boca para cava a lealdade?
fora, a Igreja lançava contra os incestuosos - de- A este respeito a canção nos ensina muitas coi-
veria favorecer a reunião de heranças desmembradas. sas. É quanto a isso que agora passo a interrogá-Ia,
A quarta não teve tanta sorte; quando um homem deixando de lado os acontecimentos que ela nos con-
tem muitas filhas não há como exigir demais para ta, matéria considerável e que, após o ano de 1189,
as últimas: apenas um bom amigo do Marechal, o forma quase todo o resto da obra - pois, tornando-
senhor de Briouze, então no infortúnio, aceitou ca- se barão, o conde Marechal se encontrava metido
sar Eva com um de seus netos. bem no meio da alta polí tica. Mas, por isso mesmo,
Já contando em seus flancos com as indispen- o que o biógrafo relata deste assunto, e que freqüen-
sáveis relações que se haviam reforçado durante sua temente se afasta das narrativas mais comuns, já foi
longa vida de andanças, porém invejado e mesmo tratado desde muito tempo nas boas histórias escritas

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à moda antiga, principalmente nas que lidam com lentia e ímpeto fizeram os normandos e ingleses,
os fatos, tanto nas da Inglaterra como nas da Fran- até então sempre vencidos, pôr em debandada a ca-
ça, dado que então o destino dos Plantagenetas e o valaria de França. Quanto a João sem Terra, a His-
dos Capetos se prendia de tão perto. Remeto então tória cala suas virtudes, por sinal duvidosas, e a todo
a essas histórias e, antes de mais nada, à que Lavisse instante dá a entender que Guilherme bem pouco o
coordenou no começo do século XX. O que faço, amava; mas não diz nada mais: não fala palavra de
agora, é destacar os sinais que permitem vislumbrar Artur de Bretanha, que todos acreditavam ter sido
melhor como se situava o poder do rei no interior morto pelas próprias mãos do tio, o rei. A lealdade
do sistema feudal. impunha uma tal discrição. Notemos, porém, que a
impunha não ao súdito, porém ao bom vassalo, que
na cerimônia de homenagem havia jurado que nun-
ca atentaria contra a honra de seu senhor. Pois a
Face aos dois primeiros reis a quem serviu, narrativa que utilizo mostra muito claramente que
Henrique, o Velho, e Henrique, o Moço, a História o Marechal tratava o Plantageneta tal como tratava
mostra Guilherme numa atitude de veneração fiel. os barões seus pares,em igualdade de posições, como
Ele foi de suas "famílias", de suas casas; foram para um poder rival e não dominante, salvo no que decor-
ele como pais, mais ainda - porque era este o ria da ligação de vassalagem.
vínculo mais forte -, como tios maternos. Que O biógrafo de Guilherme, que enxerga o mundo
esses quase-tios fossem também reis apenas serviu de maneira tão profana, não faz a menor alusão ao
para aumentar o orgulho do moço que, de qualquer poder suplementar, sobrenatural, eventualmente mi-
forma, teria servido a eles como um sobrinho. A raculoso, que a pessoa real recebia graças às lirurgias
afeição que o Marechal tinha naturalmente por esses da sagração, impregnando-se, destacando-se da ma-
dois soberanos, as obrigações que sentia em relação a lha de relações feudais, erguendo-se a uma posição
eles, procediam, nesse período de sua vida, da mais es-
treita, da mais íntima das relações de dependência: a
doméstica; confrontada com esta, a relação do súdito
j intermediária entre os homens e Deus. Nenhuma
aura se vê em torno desses reis; nada os distingue,
na vida cotidiana, de seus súditos mais poderosos.
com o rei parecia formal, fria, sem vigor, quase sem
Guilherme, "que teve o coração íntegro e puro", ser-
efeito. Casando-se, ele não será mais familiar de nin-
viu-os de boa-fé. "Como senhores e reis", afirma
guém, não fará parte dos validos de Ricardo Coração
de Leão ou de João sem Terra. A estes o que ele deve expressamente o texto. De fato, se bem os serviu é
é uma obrigação de direito público. Cumpre-a, po- porque lhes havia prestado homenagem. Mas tam-
rém sem entusiasmo. Ricardo, a História elogia, po- bém homenageara outros homens e quando suas obri-
rém em versos rápidos: herói de cavalaria, sua va- gações para com esses outros senhores entravam em

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contradição com as de súdito, ele não hesitava: mo- seus vassalos, portanto também com Guilherme, uti-
delo de lealdade, o Marechal recusava servir ao rei lizando essa homenagem que inicialmente não qui-
para cumprir em primeiro lugar o serviço do senhor sera receber, controlando-o graças a seus feudos da
de quem era homem, e portanto amigo. De todas as Irlanda, exigindo dele o serviço. Guilherme terá ser-
morais cujas regras ele respeitou, a mais exigente ,_ vido a esse senhor tão presente, capaz de castigar
após a doméstica - foi a da relação de vassalagern. seus feudatários desobedientes, mais do que ao outro,
Tão privada quanto aquela, passava sempre à fren- que nunca se via e que talvez jamais voltasse a seus
te da moral pública. O rei podia muito bem apre- domínios? Essa acusação lhe foi feita. A História
sentar-se com a coroa sobre a fronte, nas grandes alega que o rei afastado não quis dar crédito aos ma-
festas de Páscoa e Natal, como representante de ledicentes, quando regressou, retrucando-lhes que
Deus na terra, incumbido de manter a sociedade dos "o Marechal nunca foi mau nem falso". Talvez. Se
homens na mesma ordem que também rege as es- Guilherme se considerava tão isento de culpas, teria
trelas: no final de tudo, ele era o último a ser servido. faltado à praxe de acompanhar o despojo do irmão
Poucos meses após sua ascensão ao trono, Ri-- mais velho até a sepultura, para galopar tão às pres-
cardo partiu para as cruzadas, levando consigo boa sas ao encontro de Ricardo em 1194, assim que sou-
parte de seus barões. Guilherme nãoo acompanhou: be que o soberano estava de volta, empenhado em
"Já dera o passo, no rumo da Terra Santa, que é castigar os traidores? Protestou fidelidade ao rei,
preciso para pleitear a misericórdia divina". Fi~l sú- parece que se fez ouvir, porém sem romper com
dito, fiel vassalo, vassalo do rei. Mas, quanto aos João, que Ricardo deserdava por ter-se aliado a Fe-
bens que Isabela tinha em herança na ilha vizinha, lipe Augusto. Quando Ricardo intimou os vassalos
vassalo igualmente do rei da Irlanda. Este era João, de seu irmão a romperem com ele, a receberem di-
irmão de Ricardo. Durante algum tempo João re- retamente do rei seus feudos, muitos assentiram. Mas
lutara a receber homenagem do Marechal: enquan- não Guilherme, que afirmou que não faria isso.
Resistiu em nome da dupla lealdade. E sem temor,
to a órfã estivera sob a guarda real, ele assumira o
dizia, porque em boa-fé servira, em nome dos feu-
controle de suas terras irlandesas, usando-as como
dos que tinha de cada um deles, seus dois senhores
se fossem de seu patrimônio próprio, cedendo-a a
num mesmo plano, não aceitando absolutamente que
seus amigos como feudos. O rei precisou irritar-se, um tivesse qualquer vantagem somente por ser rei.
dizer, "pelas pernas de Deus", qual era sua vontade, O rei cedeu - naquele momento precisava de todos
e João acabou obedecendo ao irmão mais velho. Mas, os seus homens, para auxílio, para conselho. E teria
agora que Ricardo estava na Síria, João se movimen- condições, em nome de uma concepção da soberania
tava, juntando na Inglaterra tudo o que conseguia completamente oposta às maneiras de pensar de seus
agregar, contando justamente com seus "amigos", cavaleiros, de exigir que estes faltassem a amizades

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nascidas dos compromissos firmados por ocasião da conde João. Minha consclencia e saber o apontam
homenagem, corroendo assim o sistema de valores como o mais próximo herdeiro da terra de seu pai
de vassalagem? Nesse sistema, numa tal rede de ami- e de seu irmão. Está mais perto do pai do que es-
zades se fundava todo o seu próprio poder. Guilher- taria o neto." João foi feito rei, apreciou o serviço
me, sendo seu vassalo e amigo, serviu a Ricardo o assim prestado, deu a Guilherme o que Ricardo Co-
melhor que pôde nas guerras contra os franceses, ar- ração de Leão, para mantê-Io sempre em expecta-
riscando a vida feito um moço, chegando mesmo a tiva, sempre demorara a lhe entregar: tudo a que
se aventurar, qüinquagenário que era e já lhe ran- tinha direito por herança e por matrimônio, a dig-
gendo as juntas do corpo, a escalar com armaduras nidade de marechal e, mais importante ainda, a es-
e tudo os fossos do castelo de Milly, então sitiado. pada de conde de Pembroke.
Mas serviu dentro dos estritos limites das obrigações Tudo transcorreu pois no melhor dos mundos
feudais, sabendo-se sujeito a outras de igual natu- possíveis, até o momento em que Guilherme tornou
reza. Nada fez que pudesse prejudicar a João. E foi a se sentir preso entre dois senhores cujos interesses
a este que se dirigiu, como a seu senhor natural, ao se contrariavam. Pois ele prestou homenagem a
saber, em 10 de abril de 1199, véspera de Ramos, que um outro rei, o de França. Obrigado, por deveres
o rei tinha morrido de seus ferimentos. de- família. João sem Terra, vencido por Felipe Au-
Neste dia ele está na torre de Ruão. É noiti- gusto, abandonava a Normandia. Guilherme poderia
nha. Já vai se deitar. Já lhe estão tirando as calças. aceitar a perda de Longueville e das outras terras
Veste-as de novo, depressa; atravessa rapidamente o normandas? Era seu dever conservá-Ias para sua mu-
Sena, vai até Notre-Dame-du-Pré, onde dorme o lher, filhos e linhagem. Em maio de 1204 o rei o
arcebispo de Canterbury. Lágrimas, raiva: "Proeza incumbiu, com Roberto de Estouteville, conde de
morreu. Quem poderá defender nosso reino, morto Leicester mas também conde de Passy-sur-Eure, de
Ricardo? Os franceses hão de lançar-se contra nós, uma embaixada junto ao rei Capeto, que eles encon-
querendo ter tudo, querendo tudo tomar. Apresse- traram na abadia de Le Bec. Falaram de paz com
mo-nos na escolha de quem devemos fazer nosso o rei Felipe, falaram igualmente das terras que ti-
rei". O arcebispo inclina-se em favor de Artur, filho nham ambos na Normandia e terminaram chegando
de Godofredo de Bretanha, irmão mais novo do rei a um acordo. Guilherme e Roberto pagaram imedia-
defunto. "Seria mal, responde Guilherme. Artur está tamente quinhentos marcos de prata, cada um, ao
sob mau conselho (na verdade, estava sob a guar- rei de França: viriam ajoelhar-se a seus pés e rec-eber
da de Felipe Augusto), é desconfiado, orgulhoso; dele seus feudos se, dentro de um ano e um dia,
se o elevarmos acima de nós, ele nos causará males e João não conseguisse reconquistar a província. As-
problemas; não ama a gente do país. Mas pensai no SIm, quando onze meses mais tarde João sem Terra

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tornou a enviar Guilherme ao outro lado da Mancha rão os mais próximos seus ao longo de toda a agonia;
para essas conversações de paz constantemente reto- do lado do rei seus "solteiros", os rapazes que ele
madas, ele lhe deu autorização, segundo a História, alimenta, que rivalizam em devoção para conquistar
de prestar homenagem a Felipe a fim de perder os seu amor e os presentes que ele distribui, as ricas her-
feudos, não querendo (disse-lhe) que Guilherme não deiras. Os vínculos que constituem a obrigação de
tivesse com que servi-lo, "sabendo muito bem que aconselhar não resistiram - nem os vínculos de di-
quanto mais tivesse, melhor o serviria". reito público, que prendem os barões a seu rei, nem
os de ordem privada e, ainda assim tão sólidos, que
O relato acrescenta, porém, que mais tarde
fazem os vassalos responder a seu senhor quando
João alegou não lhe ter dado tal permissão e per-
este os convoca para discutir uma acusação de felo-
seguiu Guilherme desde que este voltou. O rei pre-
nia. Somente resistem os elos domésticos, mais estrei-
parava-se então para atravessar o mar e intimou o
tos, mais fortes até do que a ligação do filho ao pai.
conde a acompanhá-lo, isso solenemente, à frente de
toda a hoste reunida, exigindo dele contra o rei de Os donzéis defendem a posição desse que os
França o auxílio que, segundo o costume feudal, alimenta - aconselham-no a confiscar os feudos do
todo vassalo deve ao senhor que parte a fim de re- Marechal, não entendendo, afirma seu porta-voz,
cuperar sua herança legítima: "Ah, real senhor, pela "por que razão um homem conservaria sua terra se
graça de Deus seria muito mal eu fazer-lhe guerra falta com seu senhor em caso de necessidade". Den-
sendo homem dele. - Ouvide, senhores, ouvide: ele tre os barões, apenas Balduíno de Béthune apóia o
não poderá negar o que disse. Seu feito, como vedes, Marechal. Mas ainda aqui o que entra em jogo é a
mostra-se em toda a feiúra. Pelos dentes de Deus, amizade mais sólida que existe, a dos companheiros
quero que meus barões o julguem". Guilherme não de luta, e talvez mais do que isso, se lendo entre-
foge ao juízo, levanta-se, ergue o dedo à altura da linhas suspeitarmos que entre eles houvesse, em si-
testa: "Senhores, olha-me bem, pois pela fidelidade lêncio, o amor que nasce entre os homens nos
que vos devo hoje serei exemplo e espelho de vós esquadrões de cavaleiros. "Calai-vos, não vos com-
mesmos. Prestai muita atenção ao que diz o rei: o pete, nem a mim, julgar em tribunal um cavaleiro
que pensa fazer de mim ele fará a cada um de vós da qualidade do Marechal." O rei não insiste, diz:
e coisa ainda pior se tiver forças para tanto". Os "Vamos à mesa", depois da refeição, medita sua vin-
barões olham-se uns aos outros; retiram-se, afastan- gança, procura alguém que possa desafiar o Mare-
do-se tanto do rei quanto de Guilherme. Ambos, chal, forçando-o a combater em campo cerrado para
cara a cara, somente estão rodeados de seus familia- sustentar a justiça de sua causa, vencendo-o mesmo,
res. Do lado de Guilherme, João de Early e Henri- quem sabe. Mas não encontra ninguém que a tanto
que filho de Gerout, os dois amigos íntimos que sc- se atreva: fraqueza do poder feudal; fraqueza, ou

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mesmo nulidade, do poder real. Impotência. Somen- rude de mais sólido. O rei consente, porém depois
te resta ao soberano mascarar a irritação, fingir-se se a~redita "engenhado", enganado, muda de opi-
contente. Tudo o que consegue, com base no cos- nião, afirma que nada prometeu, nada permitiu,
tume feudal - e é o único recurso que lhe sobra manda um mensageiro a Striguil: o Marechal está
-, é uma garantia, é exigir que lhe seja confiado a ponto de embarcar. O rei quer seu segundo filho
como refém o filho mais velho do homem de quem como refém suplementar: "Lavai as mãos, ide co-
desconfia, que em verdade não o traiu, porém que mer, diz Guilherme, a quem lhe traz a ordem régia,
ele trata agora como inimigo, posto que, dividindo quero aconselhar-me com minha gente e meus ba-
sua fidelidade em obediência à moral das linhagens, rões" (pois a questão em pauta, o destino dos her-
tornou-se (sem deixar de ser seu amigo) também deiros de seu senhor, afeta a esses últimos tanto ou
amigo de seu inimigo. Para isso servem os filhos, já quase tanto quanto aos parentes). A maior parte
sabemos desde a infância do Marechal. E, até o fim, opina que ele desobedeça. Guilherme aceita, porém,
não será sua autoridade soberana, não será a amea- por lealdade: "Se ele quiser, eu lhe enviarei todos
ça de confiscar o feudo de Guilherme mediante sen- os filhos que tenho", mas irei, "por bem ou por
tença de felonia proferida em corte feudal, serão mal, para a Irlanda". Parte em viagem e, quase ime-
os filhos de seu vassalo, que conserva cativos à guisa diatamente, estoura a crise, a propósito justamente
de fiadores da conduta paterna, em seus castelos, ao de um parente por aliança do Marechal, que dele
alcance de sua mão (dessa mão que, dizia-se, tinha é também vassalo em algumas terras - Guilherme,
estrangulado Artur de Bretanha), e serão outros senhor de Briouze, na Normandia, igualmente ba-
homens ainda, os mais íntimos, os mais amados de rão nas fronteiras galesas.
Guilherme, que valerão a João sem Terra, rei de O rei João, em apuros - o papa lançou o in-
Inglaterra, de meios para impedir seu súdito, seu ho- terdito sobre a Inglaterra -, exige reféns de tudo
mem, de prejudicá-Ia. o que é nobre. Briouze, não querendo confiar seus
Pois agora, entre o rei e seu alto barão, sob a filhos à sanha de quem matou Artur, fugiu com
capa da amizade se ocultam o rancor e a desconfian- a família; o Marechal acolhe-o, por respeito aos de-
ça. Por isso Guilherme sente que é bom se afastar. veres de parentesco, de fidelidade, e hospeda-o em
Quando João retorna à Inglaterra no ano seguinte, Kilkeny. Intimado a entregá-lo aos enviados do rei,
por volta da festa de São Miguel, o Marechal pede- Guilherme manda levá-lo a lugar seguro. Perseguido
lhe licença para ir visitar suas terras da Irlanda: o desobediente Briouze, João sem Terra vem acam-
onde nunca esteve antes. Encontra um retiro nesse par em casa de Guilherme, e depois o "acusa" pe-
país distante, nessa colônia selvagem, ainda rebelde, rante os barões da Irlanda reunidos em Dublin. "É
verdade (defende-se Guilherme), hospedei meu se-
e mostra vontade de apoiar-se no que tem de mais
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nhor quando, com muita dor e sofrimento, ele veio dia venha a faltar-lhe ou a combatê-lo. Eles acei-
t~r a meu castelo. Não deveis levar a mal o que tam esse dever, que é mais uma marca de amizade;
fiz. Não acredi,tava cometer nenhum erro, porque pois, se algum se recusasse, seria sinal de que o Ma-
el~ era meu arrugo e senhor. Não sabia que estivés- rechal o prejudicou, de que lhe causou (no seu en-
seis de mal com ele. Tudo parecia correr muito bem tender) "tanto mal que ele se sente no direito d-
entre vós e ele, quando eu deixei a Inglaterra." Afir- não o socorrer em juízo e de não fazer a canção
ma estar pronto para o duelo judiciário. Porém, ain- em seu favor", O rei divide os cinco reféns pelos
da desta vez: não encontra nenhum campeão dis- seus castelos da Inglaterra, onde ficaram presos du-
posto a rnedir-se com ele. De novo constatamos a rante um ano, sendo que um morreu nesse cativeiro
Impotência ?o soberano, do senhor feudal, reduzido, involuntário. Mas, quando chegou o momento em
uma ve~ mais, a reclamar reféns. "Já tendes em mãos que precisou de todas as forças disponíveis para re-
meus fIl~os e .todos os meus castelos da Inglaterra. tomar a guerra contra os galeses, libertou os sobre-
Se quereis mais castelos e fortalezas, eu vos darei, viventes. Isto era hábito seu, afirma, severo, o
bem como os filhos de meus vassalos." João delib poema: "Mantinha à distância os homens de bem,
'I' ,I era
conJL1~eusdf arru lares, "em sua câmara", a sós; e exi- exceto nos casos de grande necessidade",
g~,. oao e Ear1y e quatro outros cavaleiros, os mais A grandíssima necessidade data de 1213, para
fiéis dentre os "moços" do Marechal. sermos exatos, Felipe Augusto então se aprestava a
Este t}n~a o direito de dispor, a seu bel-prazer, invadir a Inglaterra, para tirá-Ia com o aval do
de seus proprios filhos. Porém não desses homens' é papa do rei João excomungado. Guilherme volta da
verdade que ele~ lhe pertencem, mas não por co:O- Irlanda, sempre leal; "sequer considerou a crueldade
pie to. Eles preCIsam dar seu assentimento e e' do rei". Porém conseguiu que seus dois filhos fossem
f - - o que
az .Ioão de Early, em nome dos demais: "Sou ho- soltos, e confiados a João de Early, quer dizer, a seu
~em do rei, e vosso. Se el-rei nosso senhor o auto- du plo. Agora já está bem velho, velho demais para
nzar, estou disposto a entregar-me como refém" poder ser de alguma utilidade em Bouvines ou em
Por boa
. amizade ' como sempre' . "N ao h"a amIgo ver- .
- La Roche-aux-Moines, os dois campos de batalha em
dade!;o q~e falte com seu senhor havendo necessi- que se vai travar o combate decisivo entre os reis
dade . Joao sem !erra deseja mais do que isso: quer inimigos, Restam seus filhos, seus substitutos natu-
ter como garantia toda a companhia que escolta o rais. O mais velho sumiu. Na falta de algo melhor,
M,a~echal, mas não como refém, e sim com uma es- João sem Terra pega o segundo, leva-o à França
pecie de compromisso ou seja - esses cavaleiros não para guerrear, contra a vontade do pai que, sentin-
entregarão seu corpo ao rei, mas prometerão, sim- do o rumo que as coisas tomam, preferiria tê-lo por
plesmente, abandonar seu patrono caso este algum perto, e pretende que ele é "novo demais para ser

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levado a lugar tão longínquo". É verdade: o caçula
cai doente, quase morre, sobrevive praticamente por de Dammartin, os vencidos de Bo~vines. Ao con-
acaso. Do mais velho, porém, o pai sabe como se ser- trário: ele aceitou dar todos os refens, to~~s as g~-
vir. Para fazer melhor seu jogo, em vários tabuleiros rantias que o senhor de seus feudos lhe eXIglU;. acei-
a um mesmo tempo, em meio a suas múltiplas fide- tou comparecer ao tribunal desse senhor e ser J~lga-
lidades. Depois dos reveses reais, em 121 5, o baro- do por seus pares: e se jamais. . o foi
01, e por que
~ tinha
nato está em rebelião. O autor da canção prefere o direito em seu favor e nenhum camp~a~ ous~u
traspassar", como diz, saltar esse tempo de discór- f t r o risco de contestar-lhe esse direitovtâo
en ren a 1 . di ., . M
evidente pelas liturgias do due o JU IClano:. o a-
dias e confusões, afirmando que, "de todo o mal,
rechal se refugiava por trás. da lei ~ão-e~cnta que
nada foi feito pelo Marechal". Pelo Marechal em
o b ngava
. o homem bem-nascido a nao trair nenhu- . d
pessoa, é possível que não. Nada podemos afirmar
ma das amizades que nele se entrel~çav~n: -~ am a
com certeza. Mas é sabido, em todo caso, que seu que por conta disso ficasse reduzido a inaçao, de
herdeiro e sucessor, Guilherme, o Moço, logo tomou braços cruzados, enquan.to seus dive~sos sen?ores se
o partido dos rebeldes, junto com um Outro Gui- confrontavam -, ou tivesse de deixar agirem os
lherme "que ele amava como irmão", Guilherme Es- outros, um familiar como João de Ead~r, ou, mel~or
pada Longa, conde de Salisbury, irmão bastardo do ainda, seus filhos, que quando não se~vIam de refens
rei João. E no ano seguinte, quando o príncipe Luís, bem podiam, como "amigos" do par, encarar .com
filho de Felipe Augusto, desembarcou na Inglaterra, altivez o senhor dele. Não cedendo nada; tergrver-
o velho Marechal não se comprOmeteu. Bastava-lhe sando: tendo sempre a seu pé sua frutuosa esposa:
que seu filho mais velho estivesse entre os primeiros Guilh~rme sempre esteve convencido de ser leal. =:
a prestar homenagem ao invasor - pelos seus feudos mo agora se sentisse rico, ao término de uma lo~gu~s-
da Normandia, por sinal. sima espera, e nada quisesse arriscar, por pru.~encla,
Jogo duplo? Parece certo. Mas não é menos do que tanto tardara a ter; ou talvez por ja estar
certo que Guilherme jamais traiu a fé que tinha muito entrado em anos, mais que sessenta, pa~a
jurado a João sem Terra. Nunca desafiou o rei. poder meter-se em aventuras, conseguiu então ,::VI-
Nunca esteve entre os vassalos infiéis que o texto tar, sem prejuízo de sua franqueza, a "grande ver-
chama de "empris", ou seja, esses vassalos "empreen- gonha". A de um Roberto, conde de Alençon, por
dedores", que conspiravam contra seu senhor, rom- exemplo, que "quando o rei (João) lhe de~ bens
pendo com este de maneira deliberada, aberta, como e ° beijou na boca, no mesmo dia ele o traiu. Na
Guilherme de Briouze, ou ainda como fizeram con- mesma jornada mudou de lado, bandeou-se para o
tra Felipe Augusto, o conde de Flandres e Reinaldo rei de França a quem prestou homenagem e com
quem firmou aliança, e fez os franceses entrarem
202
203

I
····" ..

r. •
em sua cidade. Vergonha alguém se aviltar por sua
livre vontade". berto de adornos reais ajustados a seu tamanho, o
menino "cavaleiro se tornou, pequeno e belo". Le-
varam-no primeiro à catedral de Gloucester, onde
foi ungido dos santos óleos e coroado, depois a sua
. Em 1216, no mês de outubro, abandonado pela câmara, e, uma vez aliviado das roupas da sagração,
maior parte de seus barões e cavaleiros, que tinham tão pesadas em seu corpo, foram todos para o salão
passado para o lado do príncipe Luís, João sem e comeram.
Terra morria quase sozinho em Gloucester. Falando Tomar conta do órfão, ter sua tutela, ou seja,
c?mo deve falar todo moribundo, arrependido, pe- a do reino assumir a regência: o Marechal é velho,
dindo como de praxe o perdão daqueles a quem vascila. Essa noite, ele retirou-se para seus aposentos,
lesou. O último que mencionou foi o Marechal _ no castelo de Gloucester, com os três homens que são
dis~e que ele o serviu lealmente e rogou aos poucos seus íntimos: João, seu sobrinho, sir Raul Musard,
amigos que lhe restavam que confiassem o herdeiro governador do castelo, e, finalmente, João de Early.
da coroa à guarda dele, o único capaz de defender O primeiro aconselha-o a aceitar; o que começamos
sua sucessão. Esse menino - que tinha doze anos _ devemos terminar: "Fazei-o ; Deus vos ajudará, e
então se encontrava guardado no castelo de Devizes , grande será a vossa honra". O segundo aconselha-o
com o tesouro. Maio pai entregou a alma, seus raros a aceitar: "Podereis fazer ricos-homens todos os vos-
seguidores foram buscá-Ia. Guilherme estava na es- sos, a vosso critério, e outros, e mesmo nós que aqui
preitae também tomou o rumo de Gloucester, en- estamos". João de Early, porém, só sabe dizer que:
contrando-os na planície de Malmesbury: o pequeno "Acredito que vosso corpo esteja debilitado pela
Henrique vinha nos braços de um sargento real, seu fadiga e a velhice. E o rei mal tem dinheiro. Receio
(t" «B
mestre , quase sua ama. em ensinado", o herdei- o labor, o duro enfado". Porém no dia seguinte e,
ro representou à perfeição o papel que lhe cabia: talvez justamente porque o legado papal soube fa-
prenunciou claramente a fórmula estudada, disse lar em expiação, em redenção, afirmando que Deus
que se confiava a Deus e ao Marechal para que este, lhe perdoaria os pecados caso ele aceitasse sofrer -
no lugar de Deus, a serviço de Deus, o guardasse. O
já tão perto da morte- uma tal penitência, o Ma-
menino chorava, os que o rodeavam também cho-
rechal assume o poder que lhe oferecem, E USa esse
ravam, e o próprio Guilherme, de pena, ternamente.
poder. Consegue dinheiro, o "haver" cuja falta, no
P?r jovem que fosse, o novo rei da Inglaterra pre-
cisava ter uma espada. Ou seja: precisava ser arma- fim da vida de João sem Terra, fora causa de todos
do cavaleiro. O que o Marechal fez prontamente: se afastarem do rei. Divide as jóias que estavam guar-
não era a primeira vez que armava um rei. Reco- dadas nos cofres de Devizes: trinta e três safiras,
quinze diamantes - que valem quinhentas e qua-
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205

J
renta livras - a determinado capitão de mercená- peões em um duelo judiciário. O Senhor Deus reve-
rios, seis rubis e sete safiras para pagar as guarni- la esse dia Seus desígnios, apontando o vencedor, in-
ções de Devizes e Windsor e, para a de Dover, que dicando de que lado está o direito legítimo. Para o
resiste aos franceses, sessenta e três esmeraldas de Marechal, Lincoln é a Bouvines" de que sua idade
segunda escolha, trinta e três safiras, dezenove rubis, avançada não permitiu que participasse. O lugar que
nove granadas. E, faltando-lhe as pedras para todos ocupa é o de um dos reis. Por isso sua função pri-
os gastos a enfrentar, manda vender os tecidos de meira, como oficiante principal, consiste em falar,
seda, pois precisa pagar as pensões conhecidas como em inflar a coragem mediante sucessivas arengas,
"feudos de bolsa", satisfazer todos os que servem apontando no adversário a encarnação do mal, o
a troco delas. Essas medidas dão estabilidade ao novo desrespeito, o sacrilégio, repetindo o que sempre se
governo. proclama, idade após idade, às tropas amedrontadas
O mesmo empenho ele põe em promover a as- um momento antes do confronto decisivo: "Para
censão dos seus: a seu filho primogênito - que se defendermos nosso valor, por nós, em prol dos que
juntou ao pai, largando o príncipe Luís, posto que nos amam, para a proteção de nossas mulheres e
a amizade por parentesco sempre há de prevalecer filhos, de nossas terras igualmente, para conquistar-
sobre a amizade de vassalagem - Guilherme confia mos a honra mais elevada, pela paz da Igreja tam-
as casas da moeda de Londres, de Winchester, de bém, pela remissão de nossos pecados, sustentamos
Durharn, de Canterbury, de Y ork - todas, em su- o peso das armas ... A resistência do país sois vós ...
ma -, e ainda por cima a guarda (quer dizer: a Olhai-os bem: eles estão em vossas mãos. Nós nos
exploração) dos feudos confiscados aos rebeldes; en- venceremos, se audácia e coragem não vos faltarem.
riquece seu sobrinho João; faz rico João de Early. Se morrermos, Deus nos receberá em Seu paraíso.
Resta, ainda, a honra. Ele a colhe às braçadas. Pois Se os vencermos, teremos adquirido honra imorre-
nunca, em toda a sua vida, pareceu tão apropriado doura para nós e nossa linhagem. Eles são excomun-
seu grito de guerra, a divisa "Deus ajude o Mare- gados; por isso, dentre eles os que morrerem irão
chal". O Céu está a seu lado, que sempre socorre Os para o inferno".
protetores dos órfãos. E no verão de 1217, em Lin- Apesar de entrevado, ele faz questão de tomar
coln, o Céu mostra com toda a clareza onde depõe parte na luta; prende o elmo, esporeia o cavalo como
seu favor, ao dar-lhe vitória em batalha. fazia outrora, "tão ligeiro quanto um esmerilhão".
Batalha: uma dessas raríssimas provas nas quais
,;. A batalha de Bouvines, a 27 de julho de 1214, marcou a
duas partes, depois de intermináveis debates, deci-
derrota de João sem Terra frente a Felipe Augusto, rei de
dem submeter sua pendência a Deus, ao Seu juizo, França; Georges Duby estudou-a em seu livro Le dimanche
lançando todas as forças em campo, tal como cam- de Bouvines, Paris, Gallimard, 1973. (N. do T.)

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W'.

Ataca na primeira fila. E tão bem que agarra pelas pensaram dessa maneira; alguns já pensavam assim
rédeas o cavalo do chefe inimigo, do homem que desde 1205, quando Guilherme pusera as mãos entre
no campo adversário também ocupa o lugar de rei, as de Felipe Augusto para não perder Longueville
ou melhor, de pretendente a rei, do príncipe Luís - acusavam-no de amar demais os franceses para
que ora está sitiando Dover. É um barão, um de seus poder ser leal a João sem Terra. Mateus Paris, cro-
pares, o conde de Le Perche. Guilherme vai captu- nista, exprime a opinião corrente quando nos mos-
rá-lo, Será ele sua última presa, a mais gloriosa. Mas tra o rei de França sendo informado da derrota de
infelizmente - acasos da guerra -, deslizando pelas Lincoln: ele interroga os mensageiros, inquieto: é
paredes do capacete, um chuço vem furar o olho do verdade que o rei João morreu? Foi coroado seu fi-
conde, que cai e morre. Única morte, dentre os lho? E o Marechal: continua vivo? Continua? "En-
cavaleiros, nessa jornada tão dificultosa, a não ser a tão, não tenho o que recear por meu filho". E, se
do desastrado que o feriu e mais uma terceira. O rei Guilherme, o Moço, se empenhou tanto para que o
sofreu xeque-mate, a partida está ganha e a bata- panegírico de seu pai fosse rimado da maneira mais
lha terminou em sucesso, bem maior que de Bouvi- esplêndida, certamente foi para tentar mostrá-lo sem
nes, onde o líder do exército vencido conseguiu culpa, para lavá-Io das suspeitas de deslealdade.
fugir. Como em todas as batalhas, o resultado desta A posição de regente embriagou ° Marechal?
basta para mudar tudo. O menino-rei não tem mais A alegria de substituir, de modo tão imprevisto, na
nada a temer, os franceses têm de deixar a ilha. condição de soberano da Inglaterra esse homem in-
Porém a honra determina que o Marechal os consi- certo, João sem Terra, a quem ele servira a contra-
dere da melhor maneira possí vel. São seus amigos de gosto, em pequenas doses, pois em silêncio o detesta-
longa data - trata-os como fazia, anos atrás, nas va? Nada disso. Com toda a honestidade, Guilherme
neites que se seguiam aos torneios, com os cavaleiros manteve-se fiel a sua moral. Esta era a da cavalaria.
seus cativos. Largueza rima com proeza. Faz ques- N a segunda noite em Gloucester, quando acabava
tão de escoltar pessoalmente, até a costa, Luís de
de aceitar a regência, sozinho em seu quarto com os
França, que abandona o país. Belo gesto. Muitos o
mesmos três amigos, sentiu o coração que "germi-
acharam, até, belo demais. Sentiram-se chocados. O
nava". Enquanto chorava se viu (disse) perdido,
interesse de Estado não exigia relegar as atitudes ca-
valheirescas entre as velharias imprestáveis? Vinte como em alto-mar, "não encontrando mais fundo
anos depois, Henrique lU haveria de afirmar pe- nem margem". Para tirá-lo de tal angústia João de
rante Gauthier, terceiro filho do Marechal e seu Early insistiu com ele que, no pior dos casos, sua
sucessor após a morte dos irmãos mais velhos, que missão seria grande honra, grande alegria, grande
seu pai o traíra: pois deveria ter conservado na pri- elevação d'alma: ainda que todos os barões ingleses
são mais estrita o príncipe Luís e seus barões. Muitos mudassem de campo, abusassem da "iniciativa", se

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rendessem a Luís de França - e fosse necessário ças a esse cérebro aparentemente pequeno demais
fugir para a Irlanda com Henrique menino. E, de para entravar, com raciocínios supérfluos, o desen-
golpe, Guilherme recuperou a energia: "Sabeis o volvimento natural de seu vigor físico: poucos pen-
que farei? Eu o carregarei no meu pescoço. De ilha samentos e curtos, um apego obstinado, na sua
em ilha ... " Esse papel derradeiro lhe agradava, o força limitada, à ética muito rude dos guerreiros,
de terminar os dias feito São Cristóvão. Do mais cujos valores se resumiam em três palavras: proeza,
fundo de sua memória lhe voltava uma lembrança largueza, lealdade. Graças a sua longevidade, acima
da mais tenra infância, do tempo em que brincava, de tudo - maravilhosa. Não será este o ponto essen-
mais novinho ainda do que o pequeno Henrique, nos cial? Na pessoa de Guilherme Marechal, nessa es-
braços de quem então era rei de Inglaterra. E agora trutura indestrutível, sobrevivia o século XII de
ele tinha o atual rei de Inglaterra em seus braços, suas façanhas, de quando ele tinha trinta anos, o
quer dizer, o poder no nível mais elevado que possa / . tempo da exuberância e do tumulto, de Lancelote
existir neste mundo sublunar. Apoteose. Durante •
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~ I
e Gavaíno, dos cavaleiros da T ávola Redonda. Be-
dois anos ele pôde fazer o que quis. Mas agindo como los tempos, já passados. Ele podia caminhar em paz
nunca deixou de agir, segundo as regras da honra *'~ para a morte, orgulhando-se de ter sido o instru-
1
da cavalaria. Como um simples cavaleiro. mento do derradeiro, tão fugidio, tão anacrônico
Nunca ele foi mais do que isso. Caçula sem i triunfo da honra sobre o dinheiro, da lealdade con-
bens. Rico-homem e barão, porém apenas na medida tra o Estado - orgulhando-se de ter levado a cava-
em que era tutor de sua mulher e de seus filhos. In- laria à plenitude.
vestido com o poder real, porém somente por guar- Mas a cavalaria estava acabada desde pelo me-
dar o rei ainda muito moço. Sem jamais ter imagi- nos duas décadas, e o próprio Guilherme já não pas-
nado que pudesse alcançar um tal poder. Sem ter sava de uma forma residual, de relíquia. Ela e ele,
sido formado para exercê-lo, sem possuir título para em 1219, praticamente só serviam para opor, às
tanto, nem do sangue de sua família, nem da litur- asperezas do real, a tela enganosa e tranqüilizante
gia dos padres. Tendo por única qualidade - e os dessas vanidades com que cada homem, naquele
momento e na alta sociedade, alimentava em seu
que celebraram suas virtudes, falando em seu nome,
coração uma nostalgia lancinante.
retomando suas próprias palavras, exprimindo o que '~
I

ele firmemente acreditava, só quiseram dizer isso -


a de ser considerado o melhor cavaleiro do mundo.
Foi essa excelência, ela somente, que o capacitou a (
fr
.;
elevar-se tão alto. Graças a seu corpo enorme, infa-
tigável, forte, hábil nos exercícios de cavalaria, gra-

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j, 211

ti

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