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O JURISTA LUIZ GAMA: ANÁLISE DOS NEXOS ENTRE SUA PRODUÇÃO

E REDE DE RELAÇÕES1

Luiz Gustavo Ramaglia Mota2

Resumo

A presente comunicação oral refere-se à apresentação de resultados parciais de pesquisa de


mestrado em andamento. Esta tem como objetivos analisar a produção intelectual de Luiz Gama no
campo do Direito, compreendê-lo enquanto um autor de discursos jurídicos, investigar as
características da sua argumentação e, por fim, buscar, nas fontes investigadas, indícios das suas
redes de relações e o perfil dos indivíduos defendidos por ele. As fontes investigadas compreendem
16 processos judiciais nos quais Luiz Gama tomou parte como advogado impetrante e suplicante,
entre as décadas de 1860 a 1880. A maioria desses processos envolve petições de habeas corpus em
que Gama advogou em prol de escravizados. Luiz Gonzaga Pinto da Gama (1830-1882) foi um
negro baiano, filho de africana livre e pai fidalgo. Foi um destacado abolicionista republicano e
liberal radical, tendo atuado na literatura, no jornalismo, no Direito e na política. Embora nascido
livre, foi escravizado pelo próprio pai quando criança e encaminhado à Corte e, então, a São Paulo.
Foi nesta cidade que ele viveu a maior parte de sua vida. Após ter vivido como escravizado por
quase uma década, fugiu e ingressou no Exército, tendo depois trabalhado em diversas autoridades
policiais. Ganhou fama por defender, sem custos, os escravizados nos tribunais. A presente
comunicação está estruturada da seguinte forma: a primeira seção contém uma apresentação
biográfica sobre Luiz Gama, bem como trata do abolicionismo em São Paulo; em seguida, há uma
revisão historiográfica sobre o tema. Por fim, a análise da documentação.

Introdução: Luiz Gama e o abolicionismo radical em São Paulo

1
Texto apresentado no 9º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Florianópolis (UFSC), de 14 a 18 de maio de 2019.
Anais completos do evento disponíveis em http://www.escravidaoeliberdade.com.br/
2
Mestrando em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). E-mail para contato: luizgrmota@gmail.com

1
Luiz Gonzaga Pinto da Gama (1830-1882) foi um negro baiano, filho de Luiza Mahin, uma
africana livre, e de pai fidalgo. Ficou famoso como advogado3 abolicionista, tendo atuado também
nos campos da literatura4, do jornalismo5 e da política6. Apesar de nascido livre, ele foi escravizado
pelo próprio pai aos 10 anos de idade. Foi então levado para a Corte e depois para São Paulo, onde
viveu por oito anos (1840-1848) na casa de seu proprietário trabalhando como escravo doméstico.
Sua alfabetização inicial foi tardia, apenas aos 17 anos, e por conta do apoio de um bacharel que
então frequentava a residência de seu senhor. Um ano mais tarde, Gama fugiu, obteve sua liberdade
e entrou no Exército.
No Exército (1848-1854), Gama usou seu tempo livre para aprender o ofício de copista, o
que lhe angariou oportunidades de trabalho junto a alguns de seus superiores, como o conselheiro
Furtado de Mendonça7, que passaram a lhe oferecer trabalhos. Entretanto, após desavenças com um
superior hierárquico, ele foi afastado da instituição.
Ao deixar o Exército, passou a trabalhar como escrivão de Polícia. Após dois anos, graças
ao seu patrono, o conselheiro Furtado de Mendonça, obteve o cargo público de amanuense na
Delegacia de Polícia.
O período de Luiz Gama como funcionário público na Delegacia de Polícia (1856-1868) é
considerado por Lígia Ferreira como igualmente rico e conturbado 8. Foi quando ele aprofundou
suas relações com os membros da elite política e intelectual paulistana que gravitavam em torno da
3
Embora formalmente Luiz Gama não tivesse o título de bacharel em Direito – já que esse curso era voltado à elite e
os negros eram impedidos de frequentá-lo –, ele adquiriu os conhecimentos jurídicos de forma autodidata, contando
também com o auxílio de outros bacharéis em Direito, com destaque ao conselheiro Furtado. Estritamente falando, o
termo correto para designá-lo seria "rábula", uma espécie de advogado provisionado por autorização dos tribunais
que existia na época. Optou-se aqui pelo termo "advogado" pois esta era a função que ele de fato exercia. Vale
mencionar que, em 2015, em cerimônia na Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo, foi concedido
postumamente a Luiz Gama o título de advogado, pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
4
Em 1859, então com 29 anos, Luiz Gama publicou sua primeira e única obra literária, Primeiras Trovas Burlescas de
Getulino.
5
Ao longo de sua vida, Gama se envolveu em diversos jornais satíricos e políticos, como o Diabo Coxo, Cabrião, O
Ipiranga, Radical Paulistano e O Polichinello.
6
Gama foi um liberal radical, tendo militado primeiramente no Partido Liberal e, após sua ruptura com este, no Club
Radical e então no Partido Republicano Paulista. Foi membro também da maçonaria.
7
Francisco Maria de Souza Furtado de Mendonça foi Catedrático da cadeira de Direito Administrativo da Academia de
Direito de São Paulo (1839-1882), tendo exercido também a função de bibliotecário (1848-1849) da mesma faculdade.
Ele também ocupou altos postos na administração, na judicatura e foi Delegado de Polícia. Cf. MENNUCCI, 1938, p. 25;
ADORNO, 1988, p. 126.
8
FERREIRA, 2001, p. 182.

2
Academia de Direito de São Paulo. Foi também quando ele publicou suas Primeiras Trovas
Burlescas de Getulino, simbolizando sua entrada dentro do grupo dos bacharéis. Sua atuação
política, na imprensa e nas tribunas de Direito datam igualmente desse período. Entretanto, toda
essa militância de Gama incomodou sobremaneira os setores senhoriais escravistas e conservadores.
Com o retorno do Partido Conservador ao poder federal, seguiram-se várias demissões dos
opositores políticos nas províncias. Em São Paulo, uma de suas vítimas foi justamente Luiz Gama.
A partir de então e até o fim de sua vida, ele passou a obter seu sustento na advocacia. Ganhou fama
por defender, sem custos, os escravizados nos tribunais. Nas ações de liberdade, sustentava a favor
de seus clientes a ilegalidade da escravidão no país.
Tendo feito até aqui uma breve apresentação biográfica de Luiz Gama, convém agora nos
debruçarmos sobre alguns aspectos essenciais do contexto social mais amplo em que ele viveu, de
modo a melhor compreender sua atuação política e jurídica.
Primeiramente, a cidade em que Gama vivia, a São Paulo imperial, era um povoamento
urbano de pequenas proporções e de precária infraestrutura. Segundo Sergio Adorno, a cidade
continuava no mesmo “marasmo dos tempos coloniais”9, sendo que os bacharéis representavam um
verdadeiro “polo difusor de mudanças sociais”10. Eles eram os usuários dos escassos serviços
públicos, além de serem o centro da vida social e cultural da pequena cidade. Assim, “São Paulo
parecia viver às expensas da vida acadêmica”11. Foi nesse espaço, circulando entre as esferas de
poder executivo e judiciário e interagindo com a elite dos bacharéis, que Luiz Gama viveu 42 anos
de sua vida. Este “território” frequentado por ele tinha as seguintes características: era composto de
determinados tipos de indivíduos (estudantes e professores de Direito, magistrados, livreiros,
tipógrafos) e de instituições (delegacias de polícia, a Academia de Direito de São Paulo, gabinetes
de advogados etc.), constituindo um “enclave circunscrito às ruas ao redor do Largo de São
Francisco”12.
Em segundo lugar, é necessário compreender a dinâmica do movimento abolicionista
naquele momento e naquele local, pois sem isso torna-se difícil entender a atuação de Gama. As

9
ADORNO, 1988, p. 80.
10
Ibidem, p. 81.
11
Ibidem, p. 81.
12
FERREIRA, 2001, p. 197.

3
origens do abolicionismo em São Paulo, nos anos 1870, se caracterizaram pela ação jurídica.
Segundo Maria Helena Machado, os advogados buscavam usar as brechas da Lei de novembro de
183113 para defender a ilegalidade da escravização de africanos trazidos ao Brasil após a
promulgação dessa lei14. Para a autora, foi em torno de Luiz Gama “que se articularam uma série de
estratégias bastante engenhosas que definitivamente passaram a incomodar proprietários de
escravos e autoridades”15.
Robert Conrad, ao tratar do abolicionismo brasileiro de modo geral, destaca a existência de
um “espírito emancipacionista” já existente entre 1862 e 1865, e que se radicalizou com a crise
política de 186816. A partir de então desenvolveu-se uma nova força social, composta por um
liberalismo renovado e identificado com reformas democráticas, entre elas o fim da escravidão.
Conrad afirma que a crise de 1868 gerou “fortes sentimentos reformistas entre estudantes,
escritores, políticos liberais e uma parte da população urbana informada”17. No caso de Gama, essa
crise influenciou a radicalização de suas posições políticas em direção ao Club Radical, além de ter
como uma de suas consequências a sua demissão do emprego público.
Um terceiro ponto que merece ser considerado diz respeito ao grupo de intelectuais com
quem Luiz Gama travou contato e com os quais se envolveu politicamente: os bacharéis da
Academia Imperial de Direito de São Paulo. Segundo Sérgio Adorno, as Academias de Direito
foram responsáveis por formar um tipo de intelectual produtor de um saber sobre a nação – saber
esse que não se deu através de um efetivo ensino jurídico, mas sim nos interstícios dos institutos e
associações acadêmicos18. Para Adorno, as lutas políticas e a produção literária foram práticas
privilegiadas no cotidiano da Academia de Direito de São Paulo, frequentada pelos bacharéis. O

13
A Lei de 7/11/1831 foi a primeira lei nacional a proibir o tráfico de escravos, declarando livre todos os escravos
vindos de fora do Império do Brasil e impondo penas aos importadores dos mesmos. Cf. MAMIGONIAN; GRINBERG,
2018, p. 285-286.
14
MACHADO, 1994.
15
Ibidem, p. 144.
16
A queda do gabinete liberal de Zacarias de Góis, em 16/071868, e a ascensão do gabinete conservador do Visconde
de Itaboraí, foi responsável por uma grave crise política, algo que não se via, conforme Robert Conrad, desde 1848. A
crise levou a duras críticas ao imperador e ao sistema imperial por parte dos setores sociais liberais. Cf. CONRAD,
1975, p. 101.
17
CONRAD, 1975, p. 103.
18
ADORNO, 1988, p. 157.

4
bacharel19, principal intelectual da sociedade brasileira no século XIX, foi fundamental na
construção do Estado brasileiro – que se constituiu em um verdadeiro “Estado de magistrados”20,
dominado por juízes e secundado por parlamentares e funcionários de formação jurídica. Ele
ocupou a maioria dos cargos centrais e regionais de governo, seja no Judiciário (juízes e carreiras
afins), no Executivo (delegados de polícia, presidentes e secretários provinciais, ministros e
conselheiros de Estado) ou no Legislativo21.
Cabe notar que, apesar de manter íntimo contato com os bacharéis, Luiz Gama se difere
deles em muitos sentidos. Primeiramente, pelo elemento racial e social: enquanto um bacharel
típico um indivíduo do sexo masculino, branco e pertencente à elite econômica, Gama era negro e
de origens modestas. Ele tampouco possuía um título de bacharel, tendo adquirido seus
conhecimentos jurídicos de forma autodidata. Para compreender melhor as redes de relações de
Luiz Gama e a posição em que ele se inseria nelas, é fundamental investigar a sua ligação com os
bacharéis – o que deverá ser feito ao longo da pesquisa.

Luiz Gama e o abolicionismo sob a pena da história

Após a apresentação de Luiz Gama e do abolicionismo em São Paulo, convém tratarmos de


como esses temas foram pensados e analisados na historiografia.
O abolicionismo radical de Gama possui destacada relevância na história desse movimento
no Brasil, bem como no entendimento do processo histórico da escravidão, pois teve impacto direto
na libertação de centenas de escravizados, além de representar um enfrentamento à ordem
escravocrata-senhorial do período e influenciar diversos outros agentes do período em defesa dos
escravos. Embora pesquisas sobre Luiz Gama tenham se iniciado desde o fim do século XIX e
ganhado projeção em meados do século XX, Célia Marinho de Azevedo afirmou, no fim da década
de 1980, que os conhecimentos existentes ainda eram insuficientes para compreender a contribuição

19
Em sua análise, Adorno traça uma espécie de ethos do bacharel: admiração pelo saber ornamental, culto à erudição
linguística, identificação com a cultura europeia, fé pedagógica na razão e crença na juridicidade como limitação do
poder e fonte de legitimidade. Ademais, fala na dedicação ao jornalismo, à literatura (especialmente a poesia), na
consagração ao teatro, e na necessidade de ser bom orador e de participar dos grêmios literários e políticos, das
sociedades secretas e das lojas maçônicas. Cf. ADORNO, 1988, p. 158-159, 162.
20
Ibidem, p. 78.
21
Ibidem, p. 78.

5
real de Gama no seio das campanhas abolicionistas e republicanas em São Paulo22. Escrevendo no
começo dos anos 2000, Ligia Fonseca Ferreira destacou, a respeito de Luiz Gama, que “ele parece
sair do domínio dos historiadores, dos críticos literários e dos intelectuais ligados ao movimento
negro para se confrontar, de uma maneira ainda pouco discreta, com um público mais
abrangente”23.
Para Elciene Azevedo, por sua vez, os estudos das últimas décadas foram responsáveis pela
construção de um consenso geral na historiografia sobre o abolicionismo brasileiro24, cuja
periodização criou dois momentos bastante distintos, com atribuições valorativas próprias. Em um
primeiro momento, nos anos 1870, fala-se em um movimento abolicionista legalista e moderado,
dentro do qual Luiz Gama estaria supostamente inserido; após sua morte, em 1882, teria começado
um "novo" abolicionismo, radical e de forte adesão popular. Azevedo problematiza tal
periodização, uma vez que a ela foram atribuídos valores externos aos acontecimentos que
compuseram esses dois momentos. Assim, segundo a autora, o segundo momento é tratado como
“mais importante, melhor, mais legitimamente popular ou espontaneamente revolucionário do que o
anterior”25. Segundo Azevedo, construiu-se uma oposição baseada no antagonismo despolitização
versus politização,
(...) definindo o que é ou não político a partir de ideias que são exteriores ao período analisado. Tais
pressupostos acabam excluindo a possibilidade de perceber como políticas as diversas formas de engajamento
e envolvimento tanto de escravos como de advogados e autoridades públicas na atuação em favor da liberdade,
ainda nas décadas anteriores à de 188026.

Ainda conforme a autora, essa oposição também carrega uma interpretação sobre a
participação dos escravos: na primeira fase, eles estariam excluídos da ação abolicionista, pois são
incapazes de atuação jurídica; na segunda, teriam atuado mais ativamente27.
Em seu estudo sobre as disputas judiciais envolvendo advogados, juízes e escravos, Elciene
Azevedo contrapôs-se ao consenso historiográfico acima exposto e, em sua análise dos processos

22
AZEVEDO, 2004 apud FERREIRA, 2001, p. 17.
23
FERREIRA, 2001.
24
AZEVEDO, 2010, p. 27.
25
AZEVEDO, 2010, p. 29.
26
Ibidem, p. 29.
27
Ibidem, p. 29.

6
judiciais, defendeu que havia, na São Paulo da segunda metade do século XIX, um “forte
engajamento político que, apoiando as reivindicações escravas na Justiça, procurou usar a lei como
aliada na luta pela Abolição”28. Analisando especificamente a atuação jurídica de Luiz Gama, a
autora apontou que ele se utilizava também da imprensa para publicizar sua interpretação da lei para
um público mais amplo, formado não apenas de bacharéis em Direito, mas também de leigos.
Assim, conforme a autora, Gama informava os leitores, tentava conquistar sua opinião e também
especificava como uma lei poderia ser acionada por outros escravos e seus advogados. “De certa
forma, criava, por meio do jornal, uma espécie de jurisprudência”29.
Assim, Elciene Azevedo defende a tese de que havia sim um “significado político” nos
embates envolvendo a liberdade dos escravos e que não se construía apenas nos tribunais, mas em
outros espaços sociais, como os jornais30. Para ela,
os embates jurídicos em torno da liberdade, a princípio restritos aos tribunais, ecoavam na sociedade por meio
da imprensa, atingindo não somente uma elite letrada, potencialmente apta a se converter ao abolicionismo,
mas, sobretudo, os maiores interessados no assunto, os escravizados 31.

A mesma autora contesta também a interpretação de que o abolicionismo desse período teria
sido estritamente moderado e dócil. Ao investigar os embates jurídicos envolvendo escravos,
advogados abolicionistas e autoridades fiéis à ordem escravista, a autora percebeu haver uma
divergência de interpretações entre os agentes envolvidos. Enquanto as autoridades tinham uma
posição “legalista em forma pura”32, os advogados abolicionistas de São Paulo contestavam essa
visão em seu próprio campo, “mostrando ser outra sua relação com o texto legal”33. Assim, ao
contrário da interpretação legalista rotulada por parte da historiografia, esses advogados se
contrapunham
àqueles que, de fato, viam na lei o meio único de conquista da liberdade, os quais usavam suas filigranas para
postergar o direito dos escravos à sua autonomia. Meio e não fim, a lei assumia, nas suas ações [dos advogados
abolicionistas], papel central no recrudescimento do abolicionismo 34.

28
Ibidem, p. 98.
29
Ibidem, p. 102.
30
Ibidem, p. 118.
31
AZEVEDO, 2010, p. 115.
32
Ibidem, p. 145.
33
Ibidem, p. 146.
34
Ibidem, p. 146, nossos destaques.

7
Contrapondo-se ao legalismo escravista do governo imperial, a interpretação jurídica abolicionista,
que unia tanto advogados quanto escravos, representou uma resistência à política escravista do
período. A autora caracteriza essa interpretação abolicionista da seguinte forma:
A publicidade e a politização efetuadas nos foros por esses advogados, respondendo e intensificando as
aspirações e demandas dos que buscaram o direito de serem "Africanos Livres", atribuíram significados novos
e radicais à lei de 1831. Ao instrumentalizar, apoiar e reelaborar as aspirações e lutas dos próprios cativos,
esses advogados mostravam, com sua atuação, o papel fundamental que desempenhavam na construção social
da ideia do direito à liberdade, minando aos poucos, assim, a legalidade da propriedade escrava35.

Levando em consideração o que foi exposto acima, tentaremos, em nossa análise


documental, alcançar as experiências e agências dos escravizados e de outros agentes – bem como
suas relações com Luiz Gama –, a partir da análise das ações desse advogado – cujos indícios
aparecem na documentação. Ao mesmo tempo, buscaremos compor um perfil dos pacientes
defendidos por Gama, e identificar a argumentação jurídica e o embasamento teórico utilizados por
ele na defesa dos escravizados.

Análise da documentação

Até o presente momento da pesquisa, foram consultados e analisados 16 processos jurídicos


– de um universo de aproximadamente 30 que foram encontrados – em que Luiz Gama aparece
como suplicante, impetrante ou apelante. Esses processos foram consultados no Arquivo do
Tribunal de Justiça de São Paulo e abarcam um período de 13 anos, entre 1869 a 1882.
Antes de entrar na análise dos conteúdos da documentação, convém primeiro descrever ao
leitor como se apresenta essa documentação, ou seja, tratar de seus elementos formais. Embora cada
processo obviamente trate de questões particulares e cada um possua uma especificidade, eles
apresentam elementos em comum. A primeira folha é uma folha de rosto na qual estão identificadas
as principais informações do processo: o órgão em que está inserido (Tribunal da Relação de São
Paulo), o ano corrente, o título do mesmo (ex: Petição de Habeas Corpus nº 22), as partes
envolvidas (suplicante/impetrante/apelante e paciente) e a data em que o escrivão autuou a petição –
é o escrivão, aliás, o responsável pela escrita desta parte do documento. Em seguida, a partir da

35
Ibidem, p. 146, nossos destaques.

8
segunda folha, de modo geral, segue a petição do advogado: é aqui que observamos, pela pena de
Luiz Gama, o pedido de habeas corpus ou uma ação de liberdade, junto de breve apresentação e
descrição do caso. Ademais, é nesta parte que ele apresenta seu embasamento teórico-jurídico que
justifica seu pleito. Após a petição, o "caminho" torna-se mais variável e depende de cada processo.
É possível encontrar, por exemplo, pedidos do juiz a algum escrivão, depoimentos ou certidões de
autoridades sobre o caso em questão, autos de qualificação, autos de perguntas do carcereiro etc.
Por fim, encontramos o "Acórdão em Relação", a decisão final do processo, assinada por um
colegiado.
Embora em um primeiro olhar a documentação pareça ser algo simples e facilmente
elucidável, uma análise atenta permite perceber que trata-se de algo complexo e envolvendo
diferentes "vozes", interesses, agentes e disputas36. Uma primeira observação é que um só processo
é composto de várias partes, cada uma com um função própria e tendo sido escrita por um agente
diferente. Ao longo da análise, foram identificados os seguintes tipos de agentes: suplicante,
paciente, escrivão, secretário da Relação, carcereiro, chefe de polícia, testemunha, juiz,
desembargador, presidente da Relação etc. E cada um destes é responsável pela escrita de uma
parte do documento. Por exemplo, os pacientes – aqueles que são defendidos por Luiz Gama, entre
eles muitos negros e escravizados – não produzem, eles mesmos, a sua visão sobre os fatos em
nenhuma parte dos processos; contudo, suas histórias e relatos aparecem a partir da visão das
autoridades (acórdão, depoimentos de chefes de polícia ou carcereiros) e do próprio Luiz Gama, que
apresenta o histórico do paciente e a arbitrariedade pelo qual este passa.
Assim, a própria apresentação dos fatos envolvendo os pacientes, bem como a interpretação
daqueles, difere conforme o agente que escreve cada parte do processo. Em um mesmo documento,
por exemplo, Luiz Gama caracteriza seus clientes, José e Felipe, como "monjolo" e "moçambique",
respectivamente, "manumitentes" e "africanos livres criminosamente postos em ilegal cativeiro"37.
Por sua vez, no acórdão conferido – que decidiu pela soltura dos dois e para que aguardassem
posterior ação de liberdade – lê-se: "(...) concedem a soltura pedida aos pacientes José e Felipe,

36
Para E. P. Thompson, o campo do direito é um espaço indeterminado de lutas e de conflitos, sendo a Justiça uma
arena privilegiada onde se efetivam os conflitos sociais. Cf. THOMPSON, Senhores e caçadores. A origem da lei negra.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987 apud AZEVEDO, 2010, p. 30-31.
37
Habeas Corpus nº 61... 30 jul. 1880 a 03 ago. 1880, destaques nossos.

9
africanos escravos (...)"38. Ou seja, enquanto Gama faz questão de especificar a etnia de cada um
dos africanos e classificá-los como "livres" e vítimas de ilegalidades, as autoridades judiciais
continuam a chamá-los de "escravos", mesmo após concederem sua soltura, pois segundo seu
entendimento, eles só seriam livres após resultado positivo em uma ação de liberdade. Essa
distinção de tratamento parece convergir com o argumento de Elciene Azevedo39 sobre as diferença
de interpretações jurídicas e de posições políticas existentes nessa época – entre, de um lado, uma
visão estritamente legalista, associada às autoridades imperiais e, de outro, uma nova leitura radical
da legislação por parte dos abolicionistas.
Em relação aos conteúdos dos processos, a maioria deles – 14 de 16 – envolve petições de
habeas corpus impetradas por Gama. Dos dois restantes, um trata de petição em que Gama requer
uma provisão interina para solicitar causas nos tribunais de São Paulo40, enquanto o outro é uma
ação de liberdade41.
Com base nesses processos, é possível traçar o perfil dos pacientes defendidos por Luiz
Gama. De um universo de 31 indivíduos em 15 processos 42, constata-se que a maioria deles é negra
(24). Os outros sete referem-se a um italiano, dois espanhóis, um fazendeiro, um trabalhador
agrícola, um policial e um tenente, conforme se observa na tabela 1.

Tabela 1 - Perfil dos pacientes defendidos por Luiz Gama

Identificação do processo Paciente(s) envolvido(s) Número de pacientes

Appellação civel nº 324 Pardo Francisco 1

Petição de Habeas Corpus nº 22 Antonio Ribeiro, súdito italiano 1

Petição de Habeas Corpus nº 26. Felipe e João Ricardo, negros, 2


ilegalmente detidos por suspeita de

38
Habeas Corpus nº 61... 30 jul. 1880 a 03 ago. 1880, destaques nossos.
39
E que foi objeto de atenção na seção anterior deste texto.
40
Autos...20 a 27 dez. 1869.
41
Apelação... 05 dez. 1876 a 19 jul. 1878.
42
Excluímos aqui o processo referente aos Autos...20 a 27 dez. 1869, uma vez que este não envolve pacientes, mas
trata-se de solicitação para obter uma provisão.

10
serem escravos.

Petição de Habeas Corpus nº 47 João Franco de Moraes Octavio, 1


fazendeiro da vila de Ribeirão
Preto

Petição de Habeas Corpus nº 60-A Luiz, escravo e menor de 14 anos 1

Habeas Corpus nº 61 José e Filippe, africanos livres 2

Habeas Corpus nº 63 o preto João carpinteiro 1

Petição de Habeas Corpus nº 64 Ignacia, Francisco, Leandro, 6


Antonio, Joaquim e Francisco:
negros

Petição de Habeas Corpus nº 66 Luiz Alexandre, trabalhador 1


agrícola, casado, com cerca de 30
anos e morador da vila de Parnaíba.

Petição de Habeas Corpus sem nº Caetano, preto. 1

Petição de Habeas Corpus nº70 Leandro e Francisco, negros 2

Habeas Corpus nº 74 Francisco de Sant’Anna dos 1


Santos, ex-praça do Corpo Policial

Habeas Corpus nº 92 Lourenço Gonzales e Santiago 2


Villarinho, espanhóis

Habeas Corpus nº 84 Braz, Theotonio, Gregorio, 8


Antonio, Manuel, Agostinho,
Mathias e sua mulher Joana, negros
alforriados e ilegalmente detidos

Pedido de Ordem de Soltura tenente Elizeo Dantas Bacellar 1

Total de processos: 15 Total: 31

11
Dos casos defendidos por Gama envolvendo negros e escravizados, nota-se que em ao
menos dois deles, a questão girou em torno da suspeita da escravidão: Felipe e João Ricardo 43, e
Joaquim e Francisco44, foram todos presos pelas autoridades pelo simples fato de levantarem
suspeita quanto a serem escravos. No primeiro caso, Felipe estava preso há mais de 3 anos e João
Ricardo, há 2 anos. Em sua defesa, Luiz Gama denunciou que a desconfiança policial se sobrepunha
à lei. O advogado se embasou nas Ordenações Filipinas do Livro 4, título 4245; e na Lei de
01/04/163046. As autoridades, por sua vez, justificaram as prisões com base na Lei n. 2033, de
20/09/1871; e no Decreto n. 4824, de 22/11/1871, cap. 3, seção 1ª, ambas tratando sobre a prisão
para averiguação policial.
No segundo caso, envolvendo Joaquim e Francisco – entre outros negros detidos –, ambos
estavam presos há dois anos. Em sua defesa, Gama baseou-se tanto na jurisprudência do próprio
tribunal, que já havia decidido pela soltura de negros em casos anteriores, quanto no Decreto de
14/02/1857, art. 4º, que dizia que escravos não procurados ou não reclamados por seus senhores,
são considerados abandonados; e na Lei n. 2040, de 28/09/1871, art. 6º, § 4º, que afirmava que
escravos abandonados são considerados livres por decreto. Além disso, ele também destaca o
Alvará de 10/03/1682, nºs 4 e 5.
Nesses dois casos, Gama foi vitorioso e obteve a soltura dos quatro negros. Chama a atenção
a decisão a respeito de Joaquim e Francisco, na qual os juízes afirmam o seguinte:
"(...) ilegal é a prisão dos Pacientes (...) por falta de justa causa; pois que como tal não pode ser considerada a
simples suspeita de que são cativos; visto como esta condição não se presume, nem mesmo nas pessoas de cor
preta"47.

Assim, ao aceitar a solidez da argumentação jurídica de Gama, os magistrados tiveram que


reconhecer a existência de direitos aos negros, direitos esses que já existiam aos cidadãos brancos e
que deveriam também se estender à população negra. A estranheza que esse fato deve ter gerado

43
Petição de Habeas Corpus nº 26 ... 11 a 19 jun. 1877.
44
Petição de Habeas Corpus nº 64 ... 04 a 08 out. 1880.
45
Que declara o cativeiro contrário à natureza, donde decorre o princípio de direito civil de que todo indivíduo se
presume livre até que se prove o contrário.
46
Esta, segundo Gama, “manda aceitar, como mais fortes, por serem mais racionais, e conformes ao direito natural, as
razões em favor da liberdade, por serem preferíveis às que podem fazer justo o cativeiro”. Cf. Petição de Habeas
Corpus nº 26 ... 11 a 19 jun. 1877.
47
Petição de Habeas Corpus nº 64 ... 04 a 08 out. 1880, destaques nossos.

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entre os magistrados parece indicada na citação acima, quando os juízes parecem ser forçados a
reconhecer que não se pode presumir que uma pessoa seja escrava – ou seja, não se pode agir de
forma ilegal – "nem mesmo" com as pessoas de cor preta.
Por fim, outro ponto de análise encontrado na documentação diz respeito ao entendimento
de Luiz Gama enquanto um intelectual do Direito. Além da legislação e da jurisprudência utilizadas
por ele para embasar suas petições, observou-se que o advogado faz referência a uma revista
jurídica (Gazeta Jurídica), e a um autor do Direito e à sua obra (Borges Carneiro, Direito Civil).
Essa constatação é uma evidência inicial que a presente pesquisa deverá ainda desenvolver, mas
parece revelar desde já a existência de um "circuito" intelectual em que estavam inseridos esses
advogados abolicionistas. Assim, desvendar esse "circuito" poderá nos levar a compreender melhor
a formação do pensamento abolicionista nesse período.

Fontes

Autos Cíveis de Petição para expedição de provisão de Solicitador de causas. TJ1 1001373327 - 7
(Arquivo do Tribunal de Justiça de São Paulo). 20 a 27 dez. 1869.
Apelação cível nº 324. A81 507A1026 - 0013 - 4 (Arquivo do Tribunal de Justiça de São Paulo). 05
dez. 1876 a 19 jul. 1878.
Petição de Habeas Corpus nº 22. TJ1 1001561595 - 3 (Arquivo do Tribunal de Justiça de São
Paulo). 1877.
Petição de Habeas Corpus nº 26. TJ1 1001561596 - 5 (Arquivo do Tribunal de Justiça de São
Paulo). 11 a 19 jun. 1877.
Petição de Habeas Corpus nº 47. TJ1 1001373324 - 0 (Arquivo do Tribunal de Justiça de São
Paulo). 2[4/9] abr. 1879 a 09 mai. 1879.
Petição de Habeas Corpus nº 60-A. TJ1 0001186877 - 5 (Arquivo do Tribunal de Justiça de São
Paulo). 29 jul. 1880 a 03 ago. 1880.
Habeas Corpus nº 61. TJ1 1001561503 - 9 (Arquivo do Tribunal de Justiça de São Paulo). 30 jul.
1880 a 03 ago. 1880.
Habeas Corpus nº 63. A81 096H0224 - 0040 - 3 (Arquivo do Tribunal de Justiça de São Paulo). 21
set. 1880.

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Petição de Habeas Corpus nº 64. TJ1 1001373328 - 9 (Arquivo do Tribunal de Justiça de São
Paulo). 04 a 08 out. 1880.
Petição de Habeas Corpus nº 66. TJ1 1001561502 - 7 (Arquivo do Tribunal de Justiça de São
Paulo). 29 a 30 out. 1880.
Petição de Habeas Corpus nº [sem nº]. TJ1 1001561501 - 5 (Arquivo do Tribunal de Justiça de São
Paulo). 23 a 26 nov. 1880.
Petição de Habeas Corpus nº70. TJ1 1001495000 - 1(Arquivo do Tribunal de Justiça de São Paulo).
08 fev. 1881.
Petição de Habeas Corpus nº 74. TJ1 1001373323 - 8 (Arquivo do Tribunal de Justiça de São
Paulo). 15 a 18 mar. 1881.
Habeas Corpus nº 92. 2ª via TJ1 1001373325 - 3 (Arquivo do Tribunal de Justiça de São Paulo). 04
a 08 ago. 1882.
Habeas Corpus nº 84. TJ1 0001373326 - 5 (Arquivo do Tribunal de Justiça de São Paulo). 17 a 24
mar. 1882.
Pedido de Ordem de Soltura, a favor do paciente Eliseo Dantas Bacellar. TJ1 1001495001 - 3
(Arquivo do Tribunal de Justiça de São Paulo). 28 jul. 1882.

Bibliografia

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AZEVEDO, Celia. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites, século XIX. 3. ed.
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AZEVEDO, Elciene. Orfeu de carapinha: a trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São
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CÂMARA, Nélson. Escravidão nunca mais! Um tributo a Luiz Gama. São Paulo: Lettera.doc,
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CAMARGO, Mônica. O habeas corpus no Brasil Império: liberalismo e escravidão. Revista
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