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Carlos Drummond de Andrade foi um poeta, contista e cronista brasileiro, considerado por muitos

o mais influente poeta brasileiro do século XX, sendo um dos principais poetas do Modernismo
brasileiro, tendo estreado com o seu primeiro livro na década de 30 e produzido uma vasta obra
até a sua morte na década de 80. Drummond já foi retratado como personagem no cinema com o
filme Poeta de Sete Faces (2002) e na televisão com a minissérie JK (2006). Escritor canônico, é
representado em esculturas, como é o caso das estátuas “Dois poetas”, na cidade de Porto
Alegre, e “O Pensador”, na praia de Copacabana no Rio de Janeiro, além de um memorial em
sua homenagem na cidade de Itabira.
Coisas Lembradas
Carlos Drummond de Andrade

A conversa recaiu sobre coisas que os antigos nos deixaram.


– Bem, – disse o bacharel – eles nos deixaram tudo: a ordem social, o direito, as artes e as
letras...
– Não me refiro a essa herança colossal – esclareceu o pintor. – Estou falando nos bens de
família.
– Ah, sim, aquilo que nos tocou por herança.
– Não é bem por herança. São as coisas que não entram em inventário, e geralmente as mais
estimadas.
– Mais estimadas? Uma casa, as ações de uma empresa não são mais estimadas? – arriscou o
economista.
– Para mim não são – respondeu o pintor. – E acho que para muita gente também.

– Por exemplo?

– Um objeto de nada. Tanto pode ser um canivete como um daguerreotipo, uma caixinha de
madrepérola, um livrinho de apontamentos.
– Tem razão – concordou uma das moças. – Eu venero – é assim mesmo que se diz? – os
sapatos de cetim da vovó, com que ela se casou.
– Botou num oratório? – ironizou outra moça.

– Não botei, mas guardo como relíquia. São lindos. Como vovó tinha pés pequeninos! Eu sinto
que aqueles sapatinhos faziam parte de um amor e de uma grande esperança.
– Poeta!

– Antes fosse. Faria a minha ode aos sapatos de cetim.

– Luísa tem razão – comentou o pintor. – Essas coisas estão impregnadas de sentido, ou melhor,
de emoção. E de certo modo são eternas.
– Como, eternas? – escandalizou-se o economista.

– Em primeiro lugar, elas duraram mais do que os donos. Sobreviveram. E se nós as


conservamos com carinho, continuam vivas por tempo indeterminado. Só morrem quando
esquecidas ou jogadas fora.
– Ou leiloadas.

– Não. Leiloadas, continuam a viver. Talvez uma existência contrafeita, com a carga emocional
diluída. Mas resistem.
– Nunca tinha pensado nisso – falou o estudante. É mesmo. As coisas podem durar mais do que
a gente, mesmo sendo coisas frágeis, que a gente fez.
– E louça? E xícara em que os bisavós beberam, prato em que eles jantaram, com a pintura azul
meio desbotada? Não é um barato? – disse Luísa.
– Tudo é um barato, se vem de outra era e fala uma linguagem. As caixas de rapé, que tanto
podiam ser verdadeiras joias como coisinhas apenas funcionais.
– Os vasos de Sèvres, das velhas salas de visitas.

– Não falemos de coisas tão refinadas. Falemos de humildades.

– O lenço bordado, ou então o lenço grande, de xadrez, para os espirros do rapé.

– O par de esporas de prata. As caçambas de montaria.

– To me lembrando da sela de meu avô, fazendeiro em Cocais, atirada no porão, e que a gente
montava sem cavalo, fingindo galopar.
– E eu da caneta-tinteiro, dizem que das primeiras que apareceram, vinda dos Estados Unidos,
com florões dourados. Tava num baú de minha tia.
– E minha tia, que guardava uma coleção de vidros de perfume franceses dos bons tempos, todos
de formato art-nouveau: rosas, lírios, crisântemos?
– Coleção já é um exagero. Basta uma peça de coisa antiga, ligada à história familiar.

– Ah, que coisa fantástica o espartilho que minha madrinha guardava no armário! Pedi para
experimentar, ela recusou. Eu queria curtir o século XIX dentro dele.
– E assim foram passando em revista os binóculos, os carnês de baile, as luvas, as estampas, as
cartolas, os xales, os relógios, desfilaram compoteiras, penicos, lorgnons, peles, camafeus,
almofarizes, porta-cartões, potes de farmácia, condecorações, laços de fita, surgiram no ar, em
palavra, bugigangas, pequenas preciosidades, bagulhos, berenguendéns, bagatelas, coisas
foscas ou de brilho, nonadas, fanfreluches, tudo tocado pelo tempo e pelos mortos, tudo que é
saudade ou aspira a sê-lo. Alguém suspirou:
– “A grande dor das coisas que passaram.” Mas o pintor reagiu:

– A grande cor, a grande flor das coisas que passaram.

(Crônica extraída de: ANDRADE, Carlos Drummond de. Farewell. Rio de Janeiro: Record,
1996.)

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