Você está na página 1de 23

1

QUEM FOI O REVOLUCIONÁRIO DA BATATINHA?

Fredric J. Baur era tão orgulhoso de ter criado a lata de Pringles que quis ser enterrado dentro
dela.

Em 1966, a empresa americana Procter & Gamble inventou um novo tipo de batata chips.
Diferentemente das outras disponíveis no mercado, ela não era apenas fatiada, frita e
salgada. Era uma espécie de purê temperado e moldado, batizado de Pringles – o nome,
escolhido pela sonoridade, saiu de uma lista telefônica do estado de Ohio. (...)

GRANDES MOMENTOS

Além da lata de Pringles, Fredric Baur criou outros produtos para a Procter & Gamble,
como óleos para fritura e uma mistura para sorvete. Fred tinha muito orgulho dessa
mistura, mas ela não foi bem recebida e foi tirada de circulação. (...) (SELBACH, Cecília.
Quem foi o revolucionário da batatinha? Revista Superinteressante, Rio de Janeiro, p. 60,
nov. 2008, grifos meus.)

Quem não gosta de batata frita, cozida, corada ou até mesmo dentro de uma lata, como
a Pringles? Aliás, por que dizemos “dentro de uma lata”, em vez de “enlatada”? Bem, se
desejamos comprar produtos enlatados, podemos pensar em sardinha e seleta de
legumes, por exemplo, mas não em batata...
2

E quando pensamos em batata, imediatamente associamos a palavra à imagem do


vegetal; estranho, não? batata não combina com vegetal, mas com frango a passarinho,
linguiça, bife... Por outro lado, vegetal não combina com batata, mas com salada,
vinagre, dieta...

O criador da lata de Pringles também criou uma mistura para sorvete; mesmo não tendo
dado certo a mistura, a palavra sorvete evoca os deliciosos sabores dessa guloseima, que
também não combina com dieta (a menos que seja diet), mas com castanhas e calda,
produtos muito calóricos...

Mas a batata também pode evocar outros contextos não tão imediatos quanto o delicioso
mundo dos sabores... Comer batata frita é muito diferente de estar com dor na batata da
perna ou com uma batata quente nas mãos; da mesma forma, almoçar arroz, feijão, bife e
purê de batata não é o mesmo que dizer uma batata ou mandar alguém ir plantar
batatas...

Vivemos imersos em associações que vamos evocando à medida que o nosso


conhecimento de mundo se amplia. As experiências que vivenciamos, as situações que
enfrentamos, as escolhas que fazemos, o tipo de vida que levamos, as preferências que
vamos descobrindo integram nosso dia a dia e guiam cada passo que damos, cada
momento que vivemos e cada decisão que tomamos.

Analisemos mais de perto essas associações:

batata fritar

verdura descascar
3

sorvete cozinhar

banana tomar

bebida cortar

É de se notar que, em cada palavra, há um segmento em negrito/itálico; é justamente


esse segmento (ou morfema lexical) que contém o significado da palavra, sua porção
responsável pela imagem que evocamos; também a partir desse morfema, fazemos
inúmeras associações de sentido com outras palavras e seus respectivos referentes,
situados no mundo extralinguístico.

Como pano de fundo de todas as associações que fazemos está o nosso conhecimento de
mundo:

batata fritar

banana descascar

cozinhar

cortar

sorvete
tomar

bebida
4

cozinhar
verdura
cortar

Podemos fritar, descascar, cozinhar e cortar batatas e bananas, mas não podemos fazer o
mesmo com o sorvete; tomamos uma bebida e um sorvete, embora este não seja líquido,
o que mostra que um morfema lexical pode conter traços de sentido distintos; assim
também, cortamos as verduras e cozinhamo-las, mas não podemos “tomá-las”...

Os lexemas (morfemas lexicais) servem ainda de suporte para encaixe de afixos (prefixos
e sufixos) para que possamos atrelar-lhes traços adicionais de sentido. A atribuição de
traços semânticos (de sentido) não se reduz ao uso de princípios lógicos nem prescinde da
cultura dos sujeitos que integram uma determinada comunidade linguística; vejamos: o
sufixo -inh(o), segundo a gramática tradicional, opõe-se ao sufixo -ão, sendo aquele
diminutivo e este aumentativo; entretanto, essa oposição é muito relativa e não resiste a
uma análise mais acurada:

No salão: No calçadão:

– Nós somos as – Que legal! Eu


patricinhas de plantão! também sou uma
patricinha!
Adoro entrar no
Instagram!
5

Na praia: No parque:

– Que coincidência! – Oi! Eu sou a


Eu também sou uma Moniquinha!
patricinha! Adoro ficar
no Whatsapp! – Oi! E eu sou o
Pedrinho!

Não restam dúvidas de que Moniquinha é o diminutivo carinhoso de Mônica; entretanto,


patricinha não é o diminutivo carinhoso de Patrícia, assim como Ricardão não é o
aumentativo de Ricardo, até porque o Ricardão não precisa sequer ter o nome de Ricardo:
ele pode se chamar Joaquim, João, Roberto ou ter qualquer outro nome, uma vez que
Ricardão é uma alcunha.

Há muitos outros exemplos que podemos enumerar; há muito que orelhão deixou de ser
aumentativo de orelha para designar o telefone público. Do mesmo modo, caixão não é
uma caixa grande, mas uma urna mortuária; curiosamente, o aumentativo de caixa é
formado a partir da articulação do sufixo diminutivo -ote ao lexema caix- e, ainda assim, a
palavra caixote tem o uso restrito, já que não é qualquer presente grande que
acomodamos em um caixote; aliás, de um modo geral, usamos caixotes para acomodar
frutas e legumes no supermercado; quando precisamos de uma caixa grande para outro fim,
procuramos uma caixa grande, e não um caixote.

No telefone: Na rua:

Olá, eu me chamo José, Olá, eu sou um


mas sou o Ricardão! A caminhão!
propósito, na Vocês acham que eu
adolescência, eu era um tenho porta ou portão?
verdadeiro mauricinho!
6

É de se notar que a atribuição de afixos (sufixos e prefixos) não é um mero jogo de


encaixes, uma vez que esses morfemas derivacionais podem agregar ao referente ao qual
se conectam traços valorizadores ou pejorativos; contudo, esses traços não são inerentes
aos afixos, mas surgem da combinação entre eles e o radical, pois, se assim não fosse,
seríamos forçados a reconhecer em Moniquinha uma alcunha tão pejorativa quanto
patricinha e não é o que ocorre; não há uma regra para a escolha de Patrícia e Maurício
para designar, respectivamente, a mocinha e o rapaz que só gostam de frequentar
lugares da moda e são “riquinhos” e “metidinhos”. Por que Patrícia e Maurício, e não
Mônica e João, por exemplo? Não há uma explicação lógica para o fato de que, hoje em
dia, ser chamado de patricinha e mauricinho não é elogio, pelo contrário.

No trabalho:

Bem, se o laranjeiro é
um plantador (ou
vendedor) de laranjas,
será que a faxineira é
uma plantadora (ou
vendedora) de faxinas?

Dependendo da entonação com que se pronuncie a palavra casinha, pode-se estar


designando uma casa grande e luxuosa; por outro lado, se considerarmos casinha apenas
como uma casa pequena, dificilmente escolheremos nos mudar para um casebre, pois,
mesmo que -inh(o) e -ebre sejam, ambos, sufixos diminutivos, o segundo agrega ao
radical (lexema) o traço miséria, o que diferenciará os dois substantivos, uma vez que um
casebre tem presença do traço [+ miséria], ao passo que uma casinha tem ausência do
traço ([- miséria]). É certo que uma casinha pode ser pobre e modesta, mas ser miserável
é muito diferente, uma vez que miserável integra um campo associativo em que figuram
substantivos como privação e necessidade, que não integram necessariamente o mesmo
campo de pobre e modesta.
7

Conforme podemos observar, a partir dos exemplos dados, não se trata aqui de somar 2 e
2 e achar 4; não estamos fazendo cálculos, até porque, se o fizermos, os resultados serão
não só 4 mas também 5, 6, 7, ... n, dependendo de fatores outros que não somente nosso
aparato genético.

Vamos considerar os grupos de palavras abaixo:

GRUPO 1 GRUPO 2
Barbudo Narigudo Bronquite Bursite
Bigodudo Barbado Tendinite Labirintite
Barrigudo Imberbe Estomatite Esofagite
Bunduda Pontudo Gastrite Laringite
Peituda Bicudo

Na mercearia...

– Estamos vendendo enlatados de sufixos. A senhora quer comprar?


– Bem, depende do sufixo...
– O sufixo -ite está em promoção...
– Ora! Ainda estou no meu juízo perfeito! Prefiro comprar as batatas
Pringles!
– Que pena... Só temos enlatados de sufixos...

Convém ressaltar a natureza opcional do emprego dos afixos, de acordo com as


necessidades de expressão do falante; sendo assim, ele formará laranjal se quiser
designar uma plantação de laranjas, mas laranjinha se quiser fazer alguma ressalva sobre
o tamanho da fruta. É de se notar que tal natureza opcional não é compartilhada pelos
processos flexionais da língua, pois estes sofrem uma série de constrangimentos, em
função dos padrões linguísticos vigentes. Em consequência, ao dizermos menina todo um
8

mecanismo sintático entra em ação e impõe suas regras de concordância nominal e


verbal (por exemplo: “A menina está brincando.” x “As meninas estão brincando.”).

Enlouquecendo o professor...

– Bem, professor, se o laranjeiro é o vendedor ou plantador de laranjas...


– Então o lixeiro é o vendedor ou plantador de lixo?
– E a lixeira?
– A lixeira lava o lixo assim como a lavadeira lava a roupa?
– A lavadeira também lava a calçada e a louça?
– E o motoqueiro? Lava motos? Vende motos? Planta motos?
Afinal, ele faz o quê?
– Afinal, professor, por que a lavadeira não lava carros também? Por que o
motociclista não trata das motos assim como o dentista trata dos dentes?
– Tenho muitas dúvidas, professor!
– Calma, meninos, não é bem assim... Ai, ai, ai... Socorro... Alguém me ajude...

Coisas

Coisas boas:
bombom, bolinho, bolacha,
pastel, pipoca, pitanga.

Coisas lindas:
barquinho, balão, boneca,
palhaço, pião, poema.

Coisas de todos:
lago, estrada, folhagem,
luar, estrela, farol.
9

Coisas de poucos:
mel, moeda, medalha,
milagre, amigo, amor.

(DINORAH, 1984, p. 23, grifos meus)

Inicialmente, vamos observar que cada estrofe do poema acima tem um subtítulo:

coisas
Título do poema:

Subtítulo de cada estrofe:

coisas boas

coisas lindas

coisas de todos

coisas de poucos

Podemos, então, observar que o substantivo coisas está sendo especificado por quatro
palavras ou expressões diferentes:

boas

lindas
coisas
de todos

de poucos
10

Há diversos aspectos a considerar, a partir da análise do texto; vamos, pois, a eles; as


preferências da autora começam pelos subtítulos escolhidos, melhor dizendo, pela
escolha das palavras ou expressões que irão particularizar o referente coisas; assim é que
podemos observar que as coisas são boas, e não ruins, por exemplo; na sequência, as
coisas agora são lindas, e não feias; as duas últimas caracterizações revelam uma
oposição entre de todos e de poucos.

Feitas essas escolhas iniciais, a autora seleciona as coisas que, segundo a sua visão de
mundo, são boas, lindas, de todos e de poucos. Naturalmente, um outro autor poderia ter
feito escolhas diferentes, uma vez que a experiência de cada um é vivenciada como se
fosse única, mesmo que outras pessoas já tenham passado por experiências semelhantes.
Na verdade, o que determina as escolhas do falante (ou do produtor do texto) não é a
experiência em si, mas o modo como ele vivencia essa experiência.

Vamos supor agora uma situação em sala de aula em que o professor peça aos alunos
para elaborarem seus próprios poemas a partir do texto Coisas; em suas criações, os
alunos têm liberdade para mudar ou manter as palavras ou expressões que particularizam
o referente coisas; assim, dois alunos apresentam os seguintes poemas:

Aluno 1:
Coisas
Coisas boas: Coisas de todos:

computador, pen drive, livros, chocolate, problemas, incompreensão, neuroses,


sorvete, dinheiro. dificuldades, buracos, poluição.

Coisas lindas: Coisas de poucos:

mar, céu, sol, dinheiro, poder, status,


piscina, poesia, amor. sinceridade, fama, sucesso.

Aluno 2:
11

Coisas
Coisas desprezíveis: Coisas de ninguém:

dinheiro, poder, status, vaidade, orgulho, árvores, flores, campos,


egoísmo. rios, florestas, aves.

Coisas feias: Coisas de alguns:

favelas, buracos, poluição, pobreza, alegria, saúde, dinheiro,


miséria, fome. influência, poder, sucesso.

Primeiramente, vamos notar que o aluno 1 manteve as palavras e as expressões que


particularizam o referente coisas, embora tenha feito outras escolhas para exemplificar
essas coisas (boas, lindas, de todos e de poucos); o aluno 2, por sua vez, não só alterou
todo o seu exemplário mas também as palavras e as expressões que particularizam o
referente coisas, embora tenha usado expressões quase sinônimas das usadas pela autora
do poema Coisas (de todos = de ninguém; de poucos = de alguns). Devemos ressaltar que,
se 30 alunos tivessem construído seus próprios poemas, teríamos 30 poemas diferentes,
uma vez que cada pessoa vivencia de modo único as suas experiências.

Como podemos observar, as palavras e expressões que caracterizam o referente coisas


nos três poemas pressupõem a existência desse referente; ou seja, só podemos
particularizar, modificar, especificar referentes que tenham existência (real, como dinheiro,
ou imaginária, como fadas e bruxas). Essa relação de pressuposição é unilateral, uma vez
que o referente coisas (ou qualquer outro) não depende, para existir, das palavras e
expressões que o caracterizam.

Vejamos a sinopse do filme Dinheiro sujo:

Dinheiro muda tudo, ou pelo menos é o que Duke e Amber gostariam de acreditar
especialmente depois que Duke (Brian Geraghty – Eu Sei Quem Me Matou), um veterano
de guerra que, ao cair por acaso em uma transação de drogas mortal, acaba achando uma
12

mala cheia de dinheiro sujo. Após uma parada para uma cerimônia rápida de casamento,
Duke e Amber (Jenna Dewan – Vem Dançar) caem na estrada para começar a tão
sonhada vida nova. O sonho logo se transforma em um pesadelo quando Pollen (Christian
Slater – Bobby), um agente corrupto da polícia, aparece para pegar o dinheiro de volta. A
perseguição segue em ritmo alucinante e a ação aumenta ainda mais quando Duke e
Amber são forçados a despistar o maluco Pollen ao passo em que lutam por suas vidas.

(Disponível em: http://www.interfilmes.com/filme_18709_Dinheiro.Sujo (Love.Lies.Bleeding).html. Acesso


em: ago. 2019, com adaptações.)

É de se notar que os adjetivos sujo (em dinheiro sujo) e nova (em vida nova) pressupõem a
existência dos referentes dinheiro e vida, uma vez que particularizam esses referentes;
não se trata aqui de dinheiro apenas, mas de dinheiro sujo; o mesmo raciocínio pode ser
aplicado à análise de vida nova, em que vida é uma coisa e vida nova é outra bem
diferente, sobretudo se considerarmos o contexto em que tais palavras são empregadas.
Assim, fica claro que sujo e nova mantêm uma relação de dependência, respectivamente,
com dinheiro e vida, mas o inverso não é verdadeiro, uma vez que dinheiro e vida
independem de sujo e nova para existir na realidade.

A essa altura, já podemos falar de termo determinante e termo determinado, bem como de
subordinação. O termo determinado é o suporte de qualquer construção em que se
articulam, pelo menos, dois elementos; destes, o termo determinado é o “sustentáculo”
ao qual se “pendura” o termo determinante. Este, por sua vez, particulariza, especifica,
modifica o termo determinado. Nessa relação, o termo determinado é o elemento central,
regente, subordinante, ao passo que o determinante é o elemento marginal, regido,
subordinado (CARONE, 1991), que faz a diferença. Assim, no texto “Dinheiro sujo”, os
substantivos dinheiro e vida são os termos determinados, enquanto os adjetivos sujo e
nova são, respectivamente, seus determinantes.
13

Vamos entender melhor esses conceitos. A gramática tradicional divide as “classes


gramaticais” em dez categorias diferentes e estanques: substantivo, artigo, numeral,
pronome, adjetivo, verbo, advérbio, preposição, conjunção e interjeição (esta última não
pode ser considerada “classe gramatical”1). Vejamos o porquê de serem essas classes
estanques; para tal, vamos imaginar dez “caixinhas”, sendo cada uma para uma “classe
gramatical” específica; desse modo, temos:

substantivos adjetivos numerais

pronomes artigos verbos

advérbios preposições conjunções

interjeições

Agora que temos as caixinhas, vamos pôr dentro delas exemplos das classes que
representam:

sujo; novo;
dinheiro; vida; João;
alegre; rico; um; dois;
carro; cadeira; vela;
feliz; tristonho; duplo; ambos;
amor; alegria;
rasgado; leve; pobre primeiro etc.
ternura etc.
etc.

este; esse;
sair; cantar;
nada; tudo; cujo; o; a; os; as;
dançar; viver;
quem; que; um; uma;
dormir; ler;
meu; alguém; uns; umas
estudar etc.
ninguém etc.

1
Ver, a esse respeito, CARONE, 1991.
14

agora; nunca; a; de; para; quando; que;


hoje; amanhã; em; por; até porque; mas;
ontem; perto; ante; com; entretanto;
longe etc. sem etc. enquanto etc.

ah! oh! oba!


bravo! ai! ui!
hein; hum!
eia! bis! etc.

O elo que une os elementos de uma dada classe são as propriedades comuns que esses
elementos compartilham (ASSAD, 2008); mesmo assim, há que se ter uma certa cautela
na análise, pois, dependendo do contexto, os limites entre uma classe e outra são
bastante tênues; assim é que pobre pode ser adjetivo (“Há muitas pessoas pobres nessa
região.”) ou substantivo (“Vi um pobre caído na rua.”); da mesma forma, muito pode ser
advérbio (“Meu filho come muito.”) ou pronome adjetivo (“Meu irmãos comem muito
chocolate.”). Estes são apenas alguns exemplos da tenuidade desses limites.

Se observarmos bem cada “caixinha”, veremos que os elementos nelas contidos não se
relacionam com ninguém, estão isolados. De que nos serve, por exemplo, uma lista de
preposições se não soubermos o que fazer com elas? O mesmo raciocínio se aplica às
demais classes, que, isoladas, permanecem encerradas dentro de suas respectivas
caixinhas como as batatas Pringles dentro de uma lata fechada. Por isso, dizemos que as
classes são estanques.

Por outro lado, se compararmos cada caixinha, perceberemos que as ditas interjeições
destoam das demais caixas; primeiramente, a maioria delas não tem uma configuração
fonemática, isto é, não reúne sons articulados; além disso, as interjeições equivalem a
verdadeiras frases, uma vez que, usadas para expressar sentimentos dentro de contextos
bem determinados, não necessitam de explicações adicionais para o seu perfeito
entendimento; por exemplo, se uma pessoa pisa no pé de outra, a que recebeu a pisada
15

provavelmente emitirá algo como “ai!”; esse “ai!” significa algo como “Meu pé doeu!”;
assim, nada mais precisa ser dito, o que é reforçado pela entonação característica das
interjeições. O mesmo não se dá com as demais classes, que contraem entre si relações
de dependência no momento em que “saem das caixinhas” para formar sintagmas, frases
e textos.

Assim é que vida e nova, isoladas em suas respectivas caixinhas, não mantêm relação
nenhuma entre si, o que já não ocorre em “Após uma parada para uma cerimônia rápida
de casamento, Duke e Amber (Jenna Dewan – Vem Dançar) caem na estrada para
começar a tão sonhada vida nova.” (cf. texto Dinheiro sujo, p. 11-12). Nesse trecho, vida e
nova contraem entre si uma relação de dependência, isto é, uma relação entre termo
determinado (vida) e termo determinante (nova).

Dizer que o termo determinante faz a diferença é o mesmo que dizer que ele é um
modificador do termo determinado, uma vez que um mesmo termo determinado pode
ser modificado por diferentes termos determinantes pertencentes a uma mesma classe,
como o determinado rapaz e os determinantes adjetivos que o modificam:

belo, bonito, inteligente,


rico, pobre, inconveniente, agradável, misterioso,
rapaz amigo, seco, antipático, ignorante, corajoso,
nobre, interessante, gordo, magro, hipócrita,
moreno, louro

Naturalmente que a escolha do termo determinante depende da intenção comunicativa


do produtor do texto; há que se notar ainda que os adjetivos arrolados acima diferem não
só no sentido mas também no acréscimo de informações exigidas para precisar esse
sentido; por exemplo, em rapaz louro, temos um adjetivo objetivo, já que, a partir de
nosso conhecimento de mundo, sabemos reconhecer um cabelo louro e não há o que se
discutir quanto a esse ponto; entretanto, em rapaz interessante, o produtor terá de dar
16

explicações adicionais para precisar o sentido de interessante, pois, lembremo-nos, o que


é interessante para uns pode não ser para outros; temos aqui um exemplo de descrição
subjetiva (ver, a esse respeito, KERBRAT-ORECCHIONI, 1997).

Vejamos agora, a partir das “classes gramaticais” os termos determinados e seus


respectivos determinantes:

TERMOS DETERMINADOS TERMOS DETERMINANTES

artigo

pronome adjetivo
substantivo
numeral adjetivo

adjetivo

advérbio
verbo

Naturalmente que, embora os termos determinantes sejam diferentes entre si e


mantenham relações de subordinação em relação aos respectivos determinados, há que
se considerar que suas funções em relação a estes são igualmente diferentes, já que cada
termo determinante apresenta características que lhe são próprias.
17

O determinante, por excelência, do substantivo é o adjetivo, que lhe confere atributos e


especificidades que o modificam e particularizam; mas vejamos como se processam essas
funções de determinação; comecemos pelo “artigo”:

Texto 1:

Sobre a arte de construir uma vilã

Patrícia Pillar conta que se inspirou em clipe de Amy Winehouse e apelou à aeróbica e ao
boxe para viver a diabólica Flora. (JORNAL O Globo, Capa: revista da TV. Domingo, Rio
de Janeiro, 9 nov. 2008.)

Texto 2:

Vamos passear no cemitério?

Curiosidades e surpresas de uma visita às tumbas de personalidades no São João Batista e


no Caju. (REVISTA VEJA, Capa: veja Rio, Rio de Janeiro, 5 nov. 2008.)

Texto 3:

ANSIEDADE

Escolhas demais, informações demais, expectativas demais e tempo de menos. Entenda


o que está por trás da maior epidemia moderna: a sensação de que não vamos dar conta
de tudo. (HUECK, Karin. Capa: Revista Superinteressante, Rio de Janeiro, nov. 2008.)

O texto 1 faz referência direta a uma das protagonistas de uma novela das oito, A
favorita, da Rede Globo; é de se notar aqui a ausência do artigo antes de Patrícia Pillar, o
18

que se justifica pelo fato de ser a atriz única, isto é, não há duas Patrícias Pillar, mas tão
somente uma; o mesmo raciocínio pode ser aplicado a Amy Winehouse, que também é
única e dispensa a presença de qualquer artigo.

Por outro lado, o substantivo Flora, no texto, está determinado não só pelo artigo definido
a mas também pelo adjetivo diabólica, o que revela a intenção do produtor do texto de
caracterizar a personagem; ou seja, não se trata de qualquer Flora, mas da personagem
diabólica de Patrícia, que, como sabemos, a interpreta magistralmente. Da mesma forma,
a presença do artigo definido antes do substantivo arte revela-nos que não se trata de
qualquer arte, mas da arte de construir uma vilã.

Observemos ainda a presença do artigo definido antes dos substantivos aeróbica e boxe, o
que se justifica pelo fato de serem, ambos, as atividades físicas escolhidas por Patrícia,
dentre muitas outras possíveis, para dar vida à personagem.

Já o substantivo clipe dispensa a presença do artigo, uma vez que o texto não informa em
qual clipe a atriz se inspirou e, lembremo-nos, a cantora Amy Winehouse gravou diversos
clipes; se o texto não especifica o clipe, isto significa que pode ser qualquer um deles.

Uma última questão que se pode apresentar, a partir da análise do texto 1, é o porquê de
serem o substantivo e o verbo os termos determinados, isto é, os suportes em que se
“penduram” os termos determinantes; na verdade, o termo determinado serve de
“âncora” para o(s) termo(s) determinante(s), isto é, ancora-0(s); para verificarmos a
veracidade de uma tal afirmativa, retiremos do texto 1 os substantivos e os verbos:

Sobre a de uma

que se em de e à e ao para a diabólica.


19

Como podemos observar, o resultado lastimável é um amontoado de palavras em uma


construção sem sentido. Ressaltemos ainda que o verbo, como termo determinado, será
visto em outro momento.

O texto 2, cuja manchete é, no mínimo, surpreendente (afinal, cemitério é lugar de


passeio?), também nos revela aspectos muito interessantes para a análise do papel do
artigo, isto é, de sua presença ou ausência e as respectivas pistas que carreia para o texto,
de acordo com a intenção comunicativa do produtor do texto.

Embora o substantivo cemitério não seja seguido por nenhum modificador, o que nos
poderia levar à interpretação de que o texto se refere a qualquer cemitério, o
prosseguimento da leitura desfaz essa impressão inicial e justifica o uso do artigo definido
antes de cemitério (no cemitério = em + o cemitério), pois não se trata de qualquer um,
mas dos cemitérios São João Batista e Caju.

Na sequência, temos que os substantivos curiosidades e surpresas não vêm precedidos de


artigo, uma vez que a intenção aqui é generalizar; ou seja, as curiosidades e as surpresas
podem ser variadas, o que inviabiliza o uso do artigo antes desses substantivos e torna-os
indefinidos, como assim determina o produtor do texto.

Raciocínio semelhante pode ser empregado em relação a visita, mas não a tumbas;
vejamos: qualquer pessoa pode fazer uma visita às tumbas; essa visita pode ser rápida ou
demorada (caso as pessoas decidam apreciar ou não as obras artísticas, que, segundo a
matéria, enfeitam esses cemitérios), alegre ou triste (dependendo da relação que cada
pessoa mantinha com o (a) falecido (a), a visita terá coloridos diferentes). Assim, não há o
que se precisar em relação ao substantivo visita; o mesmo já não se dá com tumbas (às = a
+ as), uma vez que não são quaisquer tumbas, mas tumbas de personalidades; como não
está especificado no texto de capa a que personalidades o autor se refere, podemos
20

justificar a ausência de artigo antes de personalidades, afinal, podem ser muitas e, de fato,
só no São João Batista são vinte e seis!

Quanto ao texto 3, comecemos pelo título: ansiedade; não é segredo para ninguém que se
trata de um estado afetivo único (e indesejável), o que justifica a ausência de artigo antes
desse substantivo; isto é, não há mais o que se precisar se se trata de um estado único,
assim como tantos outros – raiva, angústia, desassossego etc., igualmente ímpares.

Escolhas, informação, expectativas... quantas e quais são? não sabemos, o texto não diz,
pois a intenção aqui é generalizar; só sabemos que escolhas, informação e expectativas
excessivas provocam ansiedade... Somando-se a isto, temos o tempo – único e indivisível
–, que falta e não pode dar conta de tudo o que fazemos e queremos; é de se notar que a
ausência de artigo antes do substantivo tempo não se dá pelo mesmo motivo que sua
ausência antes dos três substantivos que iniciam este parágrafo: estes são genéricos;
aquele, único.

Cabe ressaltar ainda que a ansiedade está sendo definida no texto como a maior epidemia
moderna (da = de + a), o que justifica o uso do artigo definido antes do substantivo
epidemia; da mesma forma, “o que está por trás dessa epidemia” é a sensação de que não
vamos dar conta de tudo; ou seja, não se trata de qualquer tipo de sensação, mas a de que
não vamos dar conta de tudo, o que também não dispensa o uso do definido antes do
substantivo sensação.

Comparemos os anúncios abaixo:

Texto 1:

Mundo Verde
21

A sua loja de conveniência em produtos naturais.

(MUNDO das Marcas. Mundo Verde.


Disponível em: http://mundodasmarcas.blogspot.com/2008/10/mundo-verde.html.
Acesso em: 22 out. 2008, grifos meus.)

Texto 2:

Chega um dia em que todo mundo descobre como é fácil voar.

Gol. Aqui todo mundo pode voar.

Quando a Gol nasceu, estava nascendo também uma nova era da aviação brasileira. Uma
era mais moderna, mais inteligente, mais tecnológica. Com a Gol, você programa toda a
sua viagem de forma rápida e descomplicada. Pela Internet, você compra passagens,
reserva assentos e faz até o check-in. Porque tudo o que a Gol faz tem o mesmo objetivo:
mostrar que, aqui, voar é muito mais fácil.

www.voegol.com.br

GOL – Linhas aéreas inteligentes

(GOL. Aqui todo mundo pode voar. Revista Superinteressante, Rio de Janeiro, p. 4-5, nov.
2008, grifos meus.)

Façamos uma análise comparativa entre os textos 1 e 2; interessa-nos aqui o uso do


pronome adjetivo possessivo sua, enquanto termo determinante, respectivamente, dos
substantivos loja e viagem.
22

Se observarmos atentamente a propaganda do Mundo Verde, perceberemos que, a


despeito do que está escrito no texto, a loja não é, de fato, nossa, conforme afirma a
propaganda; por outro lado, o texto permite que nos sintamos “em casa”, como se a loja
fosse mesmo nossa. Ou seja, trata-se aqui de uma estratégia argumentativa cujo objetivo
é ambientar o consumidor, isto é, permitir que este sinta o “clima” de intimidade entre
ele e a loja; com isso, o consumidor tende a se sentir mesmo “em casa” e, por
conseguinte, suficientemente motivado para entrar na loja em busca de algum produto
que seja do seu agrado, mesmo que ele “saiba” intimamente que a loja não é sua (= não
lhe pertence).

É de se notar que o mesmo determinante (pronome adjetivo possessivo sua) sinalizará um


sentido diverso no texto 2, uma vez que, nesse texto, a viagem é nossa mesmo; se assim
não fosse, ela simplesmente não existiria, seria cancelada ou nem mesmo idealizada;
acrescente-se a isso que, ao comprarmos uma passagem para viajar, nós estamos,
efetivamente, pagando pela viagem, o que a torna nossa, pois nenhuma outra pessoa, a
não ser nós próprios, poderá fazer uso da passagem que compramos, isto é, ninguém
poderá viajar em nosso lugar.

Desse modo, não é difícil perceber o momento em que o pronome adjetivo possessivo
sua “funcionará” como termo determinante, já que a viagem é sua, e não de outra pessoa;
da mesma forma, a loja também é “sua”, embora você “saiba” que esse “sua” não
significa “sua mesmo”, mas sim “de qualquer consumidor”, isto é, “de todos”.
Precisamente aqui, o possessivo, ao mesmo tempo em que designa a posse de um,
designa a de todos; ou seja, a loja não é propriedade de ninguém, a não ser do próprio
dono. Se a função possessiva está descaracterizada (a posse não é verdadeira, mas
ilusória) no texto 1, a própria ilusão de posse redesenha a carga semântica do possessivo,
uma vez que um novo traço semântico, no caso, virtual [+ ilusão de posse], lhe é
agregado, o que, em última análise, não deixa de ser uma “posse”.
23

Por fim, o grupo formado pelo indefinido toda, com função adjetiva, e o artigo a, em toda
a, antes de sua viagem, revela-nos que se trata da viagem inteira, completa, isto é, de ida e
de volta, uma vez que, de um modo geral, viajamos não só com o objetivo de ir mas
também com o de voltar; além disso, as companhias aéreas têm interesse de vender
tanto a ida como a volta e, por isso mesmo, facilitam tudo o que podem para que o
consumidor sinta-se satisfeito a ponto de não precisar buscar os serviços de outra
companhia.

Convém ressaltar ainda que a função adjetiva do indefinido toda refere-se à significação
que esse determinante assume no texto (inteira, completa = adjetivos), em detrimento do
seu sentido tradicional, qual seja o de qualquer (não se trata de uma viagem qualquer mas
da sua – tanto de ida como de volta –, que deve ser inteiramente facilitada pela companhia
que você escolheu, no caso, a Gol).

Você também pode gostar