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Preciado: Ser ‘trans’ é cruzar uma fronteira política | Cultura | EL PAÍS Brasil
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PAUL B. PRECIADO
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Cartaz desenhado pela artista Peregrine Honig para banheiros mistos, nos EUA. JONATHAN DRAKE / REUTERS
Eu me atrevo a dizer quais são os processos de cruzamento que melhor nos permitem compreender a
transição política global que estamos enfrentando. A mudança de sexo e a migração são as duas práticas
de travessia que, ao porem em xeque a arquitetura política e legal do colonialismo patriarcal, da
diferença sexual e do Estado-nação, situam um corpo humano vivo nos limites da cidadania e até do que
entendemos por humanidade. O que caracteriza as duas viagens, para além do deslocamento geográfico,
linguístico ou corporal, é a transformação radical não só do viajante, mas também da comunidade
humana que o acolhe ou rejeita. O antigo regime (político, sexual, ecológico) criminaliza todas a práticas
de travessia. Mas onde a travessia é possível, o mapa de uma nova sociedade começa a ser desenhado,
com novas formas de produção e de reprodução da vida.
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No meu caso, o cruzamento começou em 2004, quando comecei a me administrar pequenas doses de
testosterona. Durante alguns anos, transitando por um espaço de reconhecimento de gênero que oscilava
entre o feminino e o masculino, entre a masculinidade lésbica e a feminilidade King [ou feminilidade
masculina], experimentei a posição que agora é chamada de gênero fluido. A fluidez das encarnações
sucessivas se chocava com a resistência social para aceitar a existência de um corpo fora do binário
sexual. Essa "fluidez" foi possível durante os anos em que me administrei uma dose de testosterona que
chamamos de "limiar", porque desencadeia a proliferação no corpo dos chamados "caracteres
secundários" do sexo masculino.
“Mudar de sexo” não é, como quer a guarda do antigo regime sexual, dar um salto para a psicose. Mas
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também não é, como pretende a nova gestão neoliberal da diferença sexual, um mero trâmite médico-
legal que pode ser completado durante a puberdade para dar lugar a uma normalidade absoluta. Um
processo de redesignação de gênero em uma sociedade dominada pelo axioma científico-mercantil do
binarismo sexual, onde os espaços sociais, trabalhistas, afetivos, econômicos e gestacionais estão
segmentados em termos de masculinidade ou feminilidade, de heterossexualidade ou homossexualidade,
é cruzar aquela que talvez seja, juntamente com a raça, a mais violenta das fronteiras políticas inventadas
pela humanidade. Cruzá-la é ao mesmo tempo saltar uma parede vertical interminável e caminhar sobre
uma linha desenhada no ar. Se o regime heteropatriarcal da diferença sexual é a religião científica do
Ocidente, então mudar de sexo só pode ser um ato de heresia.
À medida que aumentava a dose de testosterona, as mudanças se intensificavam: o pelo facial é um mero
detalhe em comparação com a força com que a voz precipita uma mudança de reconhecimento social. A
testosterona provoca uma variação da grossura das cordas vocais, um músculo que, ao ter sua forma
modificada, varia o tom e o registro da voz. A mudança de voz é experimentada pelo viajante de gênero
como uma posse, um ato de ventriloquia que o força a se identificar com o desconhecido. Sem dúvida,
essa mutação é uma das coisas mais bonitas que já vivi. Ser trans é desejar um processo de crioulização
interior: aceitar que só somos nós mesmos graças à — e através da — mudança, da mestiçagem, da
mistura. A voz que a testosterona impulsiona em minha garganta não é uma voz de homem, é a voz do
cruzamento. A voz que treme em mim é a voz da fronteira. Como diz Glissant, “entendemos melhor o
mundo quando trememos com ele, porque o mundo está tremendo em todas direções”.
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Junto com a mudança de voz veio a mudança de nome. Durante algum tempo, desejei que meu nome
feminino fosse declinado em masculino. Ou seja, quis me chamar Beatriz e ser tratado, segundo as
gramáticas, com pronomes e adjetivos masculinos. Mas aquela torção gramatical era ainda mais difícil
que a fluidez de gênero. Decidi então procurar um nome masculino. Em maio de 2014, o subcomandante
Marcos anunciou, em uma carta aberta enviada “da realidade zapatista”, a morte do personagem Marcos,
que tinha sido inventado como um nome sem rosto para dar voz ao processo revolucionário de Chiapas.
Naquele mesmo comunicado, o subcomandante afirmou que deixava de se chamar Marcos para se
chamar Galeano, em homenagem a José Luis Solís López, conhecido como Galeano, assassinado em
maio de 2014. Pensei então em me chamar Marcos. Queria usar o nome de Marcos como uma balaclava
que cobrisse meu rosto e meu nome. Marcos seria uma forma de desprivatizar meu antigo nome, de
coletivizar meu rosto. Minha decisão foi denunciada imediatamente nas redes pelos ativistas latino-
americanos como um gesto colonial. Afirmavam que, sendo branco e espanhol, eu não podia usar o
nome de Marcos. A ficção política durou poucos dias. Esse nome, enxerto político fracassado, existe
apenas como um traço efêmero inserido na assinatura do artigo do Libération de 7 de junho de 2014.
Sem dúvida, eles tinham razão. Havia naquele gesto arrogância colonial e vaidade pessoal, mas também
uma busca desesperada de proteção. Quem se atreve a abandonar seu nome para adotar um nome sem
história, sem memória, sem vida? Aprendi duas coisas, aparentemente contraditórias, com o fracasso do
enxerto do nome Marcos: eu teria de lutar por meu nome e, ao mesmo tempo, meu nome teria de ser uma
oferenda, teria de ser presenteado a mim como um talismã. (…)
A ciência, a tecnologia e o mercado estão redesenhando os limites do que é e será um corpo humano
vivo. Esses limites são definidos hoje não só em relação à animalidade e às formas de vida consideradas
até agora subumanas (os corpos não brancos, proletários, não masculinos, trans, com deficiência,
doentes, migrantes…), mas também frente à máquina, frente à inteligência artificial, frente à
automatização dos processos produtivos e reprodutivos. Se a primeira Revolução Industrial foi
caracterizada pela invenção da máquina a vapor, pela aceleração das formas de produção, a revolução
industrial atual, marcada pela engenharia genética, pela nanotecnologia, pelas tecnologias de
comunicação, pela farmacologia e pela inteligência artificial, afeta em cheio os processos de reprodução
da vida. O corpo e a sexualidade ocupam na atual mutação industrial o lugar que a fábrica ocupou no
século XIX. Há, ao mesmo tempo, uma revolução dos subalternos e apátridas em andamento e uma
frente contrarrevolucionária lutando pelo controle dos processos de reprodução da vida. Em cada canto
do mundo, de Atenas a Kassel, de Rojava a Chiapas, de São Paulo a Johannesburgo, é possível sentir não
só o esgotamento das formas tradicionais de fazer política, mas também o surgimento de centenas de
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milhares de práticas de experimentação social, sexual, política, artística... Fazendo frente ao aumento das
forças edípicas e fascistas surgem, por toda parte, as micropolíticas do cruzamento.
Paul B. Preciado é um filósofo transgênero feminista, autor, entre outras obras, de ‘Manifesto
Contrassexual’ (N-1 Edições). Este texto é um fragmento de seu novo livro ‘Un Apartamento en Urano’,
lançado nesta quarta-feira na Espanha pela editora Anagrama.
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