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Poderio de fogo do Minas Gerais: coberta do encouraçado com seus canhões


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História

O almirante negro e seu


encouraçado
prateado 100 anos da Revolta da Chibata

P
arodiando a relatividade cien- reitos políticos cassados por ter escrito só escapou o almirante João Cândido.”
tífica, o tempo militar passa em 1959 A revolta da chibata, hoje um O motim descrito pelo modernista é,
mais vagarosamente do que clássico, relançado agora pela Editora com certeza, o episódio mais analisa-
o civil e um século pode não Paz e Terra por causa do centenário da do da história da Marinha brasileira,
ser tanto tempo assim quan- revolta em 2010. mas, compreensivelmente, a maioria
do o assunto é delicado para “Acordei em meio duma maravi- dos estudos foca na história social, em
as Forças Armadas. Em 2008, lhosa aurora de verão em novembro de especial nas raízes históricas do recru-
ao inaugurar no Rio uma estátua do 1910. A baía esplendia com seus morros tamento, as condições de vida e traba-
marinheiro João Cândido (1880-1969), e enseadas. E vi na baía, frente a mim, lho das praças e as regras de disciplina
líder da Revolta da Chibata de 1910, navios de guerra, todos de aço, que se da corporação. “Embora esses estudos
o presidente Lula sancionou lei de dirigiam em fila para a saída do porto. mencionem os navios da Esquadra de
anistia póstuma ao chefe da rebelião e Reconheci o encouraçado Minas Gerais 1910, a relação entre a revolução tecno-
seus participantes. A Marinha, então, que abria a marcha. Seguiam-no o São lógica naval do final do século XIX e a
afirmou “não reconhecer heroísmo Paulo e mais outro. Todos ostentavam revolta de 1910 até hoje não foi tema de
nas ações daquele movimento” e nada uma pequena bandeira vermelha. Se- estudos aprofundados. Daí proponho
“tem a se opor à colocação da estátua, ria toda uma revolução numa aurora?”, que a aquisição dos modernos encou-
desde que haja o cuidado de evitar in- perguntou-se Oswald de Andrade, tes- raçados Minas Gerais e São Paulo, que
serções ofensivas à Força e às vítimas temunha ocular da história. “De repen- tinham acabado de chegar ao Brasil,
dos amotinados”. Não foi a primeira te vi acender-se um ponto no costado vindos da Inglaterra, funcionou como
reação negativa dos marinheiros. “Na do Minas e um estrondo ecoou perto elemento ‘desequilibrador’ nas relações
década de 1930, o jornalista Aporelli, o de mim, acordando a cidade. Um es- entre oficiais e marinheiros, já que os
Barão de Itararé, tentou publicar uma tilhaço de granada bateu perto num grandes navios trouxeram consigo con-
crônica do feito e foi miseravelmente poste da Light. Era contra a chibata, a dições industriais de trabalho e disci-
assaltado por oficiais da nossa Mari- carne podre que se levantavam os sol- plina que se chocaram com os castigos
nha de Guerra que o deixaram nu e dados do mar. O seu chefe, o negro João corporais ainda vigentes na Marinha de
surrado numa calçada de Copacaba- Cândido, imediatamente guindado ao nosso país, desencadeando a revolta”,
na”, escreveu Oswald de Andrade, para posto de almirante, tinha se revelado explica o cientista político João Roberto
quem a revolta e suas reivindicações um hábil condutor de navios. A revol- Martins Filho, da Universidade Fede-
tinham ecos do Encouraçado Potemkim, ta teve o mais infame dos desfechos. ral de São Carlos, autor de A Marinha
filme soviético de Eisenstein. Em 1964 Foi votada pelo Congresso a anistia, brasileira na era dos encouraçados, 1895-
o jornalista Edmar Morel teve seus di- mas presos eles foram massacrados e 1910, estudo apoiado pela FAPESP que

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Movimentação cotidiana no navio que exigia mil homens para ser operado

será lançado em março pela Editora da o Minas e o São Paulo, para marinhas dele assemelhavam-se a uma tainha
FGV. Em sua pesquisa, Martins anali- de grandes potências. Daí não fica di- lanhada para ser salgada”. “Os castigos
sa os impactos, internos e externos, da fícil entender como a incorporação de corporais garantiam a dominação do
modernização da Marinha brasileira, navios da mais avançada tecnologia a oficialato branco a bordo e nos quartéis,
iniciada entre 1904 e 1906, e que fez uma Marinha que ainda disciplinava a continuidade da prática da tortura de
com que o país, ainda que por apenas seus marinheiros com a chibata ter sido escravos agora aplicada por oficiais da
alguns meses, fosse a única nação, além causadora de uma revolta como a que Marinha a marinheiros livres 12 anos
da poderosa Grã-Bretanha, a possuir aconteceu em 1910”, nota o pesquisador. após a abolição da escravidão”, observa
um dreadnought, o navio britânico de Não era possível efetivamente reunir a o historiador Álvaro Pereira do Nasci-
guerra precursor da era dos imensos tecnologia state of the art dos imensos mento, da Unicamp, autor de Cidadania,
encouraçados de armamento padro- encouraçados com o espetáculo terrível cor e disciplina na revolta dos marinhei-
nizado e de grande calibre. de marinheiros negros amarrados em ros de 1910 (Mauad/Faperj, 264 páginas,
um ferro que havia na coberta dos na- R$ 39). “Raros eram os que desejavam
Bélico - “A política naval brasileira vios e castigados brutal e publicamente ser marinheiros e os homens eram re-
provocou repercussões não apenas na para toda a tripulação, nus da cintura crutados à força nas ruas ou prisões e
região, onde quase levou a uma guerra para cima. Os códigos até limitavam as havia o alistamento de menores pobres,
com a Argentina, preocupada com o chibatadas a 25, mas era comum chega- órfãos e desvalidos, enviados por pais,
aumento do potencial bélico brasileiro, rem a 100, 250 e até 500 num único dia. tutores e juízes. O governo incentivava
mas também nos Por ter agredido esse tipo de alistamento enviando pa-
principais cen- um cabo com uma gamento de prêmio aos responsáveis
tros decisórios navalha, um ma- dos garotos. O disciplinamento usado
navais da época, rinheiro, em no- pelos oficiais era o que maior aversão
onde se passou vembro de 1910, gerava entre os possíveis candidatos”,
a especular so- no Minas, rece- explica o pesquisador.
bre a principal beu 200 chibata- Em 1910, quando a Marinha de
transferência dos das. Segundo um Guerra esperava a chegada dos navios
imensos navios, oficial, “as costas encomendados aos estaleiros ingleses

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‘ Tem V. Excia. O prazo de doze horas para mandar-nos a resposta satisfatória
sob pena de ver a pátria aniquilada. assinados, Marinheiros

em Newcastle, como parte do seu rea­ incomunicável, e só saiu após um ar- vibrante emoção patriótica toda a alma
parelhamento, iniciava-se o governo do rastado processo militar”, conta Pereira nacional, porque não foi só o Rio de
marechal Hermes da Fonseca (1910- do Nascimento. Em 1911, a maior parte Janeiro que recebeu nas águas de sua
1914). Marinheiros brasileiros tinham fora desligada, morta ou fugira. “De- formosa baía o formidável dreadnou-
ido até a Europa para tripular os novos vido ao racismo na Marinha, negros ght; foi o Brasil inteiro que saudou no
Minas e São Paulo e descobriram uma não poderiam ser oficiais. Mesmo que vulto agigantado do colosso dos ma-
nova realidade, sem chibatas e castigos distantes do oficialato, os marinheiros res sul-americanos o símbolo sobera-
excessivos. Em 22 de novembro o mo- de 1910 desejaram construir uma no- no de sua própria pujança, a expressão
tim começou precipitado justamente va realidade, capaz de alavancar suas concreta de sua energia da nação”. O
pelo castigo das 200 chibatadas no ma- carreiras, garantir um espaço no qual dreadnought era o navio-símbolo do
rinheiro que batera no cabo. O sinal foi assegurasse dias mais felizes para suas século XX e suas inovações modernas.
o toque da corneta das 22 horas. “Nós vidas.” A prova viva de que essas espe- “Era a ideia de que a industrialização da
marinheiros, cidadãos brasileiros e re- ranças não se concretizaram foi a vida guerra transformava os encouraçados
publicanos, não podendo mais supor- do almirante João Cândido, que, após em estabelecimentos comparáveis às
tar a escravidão na Marinha brasileira, a o terror da cela, que era diariamente, a modernas fábricas, o que se faria sen-
proteção que a Pátria não nos dá, rom- pretexto de limpeza, pintada com cal e tir principalmente nos dreadnoughts,
pemos o negro véu, que nos cobria aos água (essa evaporava e só ficava a cal), cuja tripulação chegava a perto de mil
olhos do patriótico e enganado povo. foi internado num hospício e trabalhou homens. Além do número, é preciso
Achando-se todos os navios em nosso por 40 anos num mercado de peixes. considerar a concentração que a vinda
poder, tendo a seu bordo prisioneiros Difícil imaginar tudo isso em abril do Minas e do São Paulo trouxe a nossa
todos os oficiais, os quais têm sido os de 1910, quando o Minas Gerais fez força naval. Num único salto, um terço
causadores da Marinha brasileira não sua entrada triunfal no Rio de Janei- das guarnições se concentrou apenas
ser tão grandiosa, mandamos essa men- ro, descrito pelo jornal O Paiz com em dois navios”, observa Martins Filho.
sagem para V. Excia. Faça aos marinhei- cores entusiasmadas: “A chegada foi o Bastava comparar: o antigo orgulho da
ros brasileiros possuirmos os direitos acontecimento que fez palpitar numa frota nacional, o Riachuelo, tinha 98
sagrados que as leis da República nos
facilita, retirar os oficiais incompeten-
tes, a fim de que desapareça a chibata,
o bolo, e outros castigos semelhantes;
aumentar o nosso soldo (...). Tem V.
Excia. o prazo de doze horas para man-
dar-nos a resposta satisfatória sob pena
de ver a pátria aniquilada, assinados,
Marinheiros.” O marechal aproveita e
decreta estado de sítio, suspende as ga-
rantias constitucionais e persegue seus
inimigos políticos. “No Congresso, a
posição de Rui Barbosa foi vitoriosa
e se concede anistia aos rebelados, en-
cerrando-se a revolta. Mas, logo em se-
guida, a Marinha desrespeita a decisão,
expulsando dezenas de ex-amotinados.
Há uma nova revolta em dezembro e os
marinheiros de novembro e dezembro
são presos, muitos colocados para mor-
rer asfixiados numa masmorra na ilha
das Cobras. Outros são enviados para
o Acre, onde são obrigados a trabalhar
nos seringais e na construção da ferro-
via Madeira-Mamoré. João Cândido foi
um dos dois sobreviventes da cela da
ilha das Cobras. Passou dois anos preso, Marinheiro em seu posto num dos celebrados canhões do Minas Gerais

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em sua opinião, quando esses homens,
os ‘garantias’ (oficiais britânicos que
vinham para ajudar a treinar equipes
nacionais), voltassem para a Inglaterra,
as máquinas logo ficariam em péssimo
estado”. A isso se acresciam os proble-
mas com disciplina e com o racismo
nos maus-tratos dos oficiais para com
os marinheiros, no geral negros aos
quais eram atribuídos todos os males
das guarnições, expresso pela grita da
“falsa piedade pelo negro boçal que
mata e rouba” dada pela Marinha dian-
te do clamor da sociedade pós-revolta
de 1910. “A força naval que recebeu o
Minas e o São Paulo era marcada por
agudos contrastes e paradoxos. Em es-
cala menor ela refletia os dilemas do
país”, nota o pesquisador. “No caso,
Maioria da tripulação era composta de negros e mulatos pode-se também perceber que a im-
portância simbólica dos novos navios
tenha dado a seus marinheiros um no-
metros. O Minas tinha portentosos 165 condensadores conseguiam resfriar 8 vo senso de dignidade.” Outro aspec-
metros. “Subir a bordo dele era ascen- mil metros quadrados de área e a água to da influên­cia do fator tecnológico,
der a outro mundo com 12 canhões de que corria neles pesava 23 toneladas; continua Martin Filho, é a potência
12 polegadas, dispostos em seis torres havia dezenas de compartimentos para do canhão dos dreadnoughts, já que
giratórias, todas movidas à eletricida- maquinistas, foguistas, marinheiros e durante todo o transcorrer do movi-
de, com os outros mecanismos de tiro oficiais e o Minas possuía dois conveses, mento pairou sobre a capital o fantas-
movidos à força hidráulica; o navio era quatro cobertas e um porão.” ma das torres giratórias cujo poder de
movido por motores de tripla extensão O que soava, porém, como van- fogo, amplamente discutido à época
que ficavam em duas salas, medindo tagem podia trazer problemas, pois, da chegada do Minas e do São Paulo,
cada uma cerca de 19 metros de com- como observava um diplomata inglês, ainda estava na memória da população
primento por sete metros de largura; a “os oficiais brasileiros não tinham co- carioca. “Também foi a questão tecno-
propulsão era dada por dois pares de nhecimento para manejar os compli- lógica que impediu o governo de atacar
hélices de cinco metros de altura; os cados mecanismos do novo navio e, os navios, já que era impensável, depois

Operação de rotina numa das inúmeras tarefas exigidas no Minas

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Dia da revolta: marinheiro ao centro com faixa “Deus e liberdade”

de anunciar ao mundo que era dono para os navios imensos como os dre- nação amiga e diminuição do círculo
dos maiores encouraçados e festejar os adnoughts, mais até do que as grandes de influência de nações inimigas.
navios como estandartes nacionais, ar- potências. “O fato de o Brasil ter sido o No caso portenho houve mesmo a
riscar sua destruição. Isso estava de tal único possuidor de dreadnoughts além nomeação de um chanceler adversário
modo forte que se arriscou à humilha- da Inglaterra provocou uma polêmi- do Barão do Rio Branco que pregava a
ção do governo e da Marinha, em troca ca mundial sobre como nossas com- invasão do Rio de Janeiro caso o Brasil
da preservação dos dreadnoughts.” pras se inseriam no equilíbrio naval não se decidisse a “dividir” sua nova fro-
do período. Havia boatos em jornais ta com os argentinos. “Por sorte ele foi
Argentina - Afinal, em dezembro de americanos de que, em caso de guer- substituído e a possibilidade de guerra
1908, a notícia de que o Minas iria fi- ra entre EUA e Japão, por exemplo, o em torno dos dreadnoughts foi afastada.
car pronto fez com que o Congresso Brasil poderia vender seus navios para A nau dos insensatos foi chamada à ter-
da Argentina, em desespero, aprovasse o último, como declarara a Argentina”, ra.” O final foi tristonho. O Rio de Janei-
as despesas para a construção de dois afirma o pesquisador. Discutiam-se os ro, o terceiro da frota não adquirido pelo
dreadnoughts destinados a equiparar os planos de guerra mundial levando-se Brasil, acabou comprado pelos turcos,
portenhos ao poderio naval brasileiro, em consideração o Brasil e seus navios. confiscado pelos ingleses na guerra e re-
em que pesaram os boatos de que seria Diplomatas ingleses se preocupavam batizado de Agincourt, tendo participado
construído um terceiro navio (o Rio de com as visitas de presidentes brasileiros da batalha da Jutlândia. Menos glorioso,
Janeiro) ainda maior do que os dois ao Kaiser alemão que os levava a conhe- o Minas não foi à Primeira Guerra Mun-
anteriores. Via-se nesse movimento a cer a Krupp e seus canhões. “Não seria dial e, em 1922, bombardeou o forte de
mão dos estaleiros estrangeiros inte- prudente agendar uma visita de Her- Copacabana, para, dois anos depois, con-
ressados em abrir uma corrida naval mes da Fonseca para dar uma olhada na frontar seu irmão, o São Paulo, na revolta
entre os sul-americanos para colher nossa frota em Portsmouth?”, observou tenentista. Na Segunda Guerra Mundial,
lucros com a febre dos extravagantes o chefe da delegação britânica no Rio, foi levado a Salvador, onde ficou como
e custosos dreadnoughts, em que o após o presidente brasileiro voltar da nau pedra na defesa do porto. Deu bai-
Brasil já mergulhara, sem saber que a Alemanha. Quase como o presidente xa em 1953, alguns anos depois do São
construção moderna naval tinha um Lula hoje é cortejado pelos governos Paulo, rebocado para seu leito de morte
componente de transitoriedade que estrangeiros que desejam que o Brasil e desmontado. Nem de longe lembrava
transformava um navio em obsoleto compre um caça de seus países, naquela o portento que há 100 anos tão bem di-
antes mesmo de ele sair do estaleiro. época se queria que comprássemos na- rigido pelo almirante negro foi capaz de
Os grandes estaleiros sabiam também vios e canhões da Inglaterra, e não dos tirar Oswald de Andrade da cama. n
que os mercados dos países menos de- alemães, evitando problemas na guerra
senvolvidos eram especialmente bons que se aproximava, lucros restritos à Carlos Haag

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