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O POLITICAMENTE CORRECTO - UMA INDAGAÇÃO NÃO INTENCIONALMENTE PROVOCADORA.

Quem quiser ler (e perceber, em conjunto com a restante obra) "A sociedade aberta e os seus
inimigos", de Karl Popper (uma obra imprescindível para qualquer pessoa e, sobretudo, para
qualquer jurista), compreenderá claramente o que se passa.

Ao invés de um racionalismo crítico, vivemos no contexto de um racionalismo dogmático, em


que à razão é atribuída a função de prover fundações e redesenhar a partir dessas fundações,
isto é, vivenciamos uma engenharia social utópica e, por isso, tendencialmente, ditatorial e
desligada da realidade das coisas. O naturalismo ético, de que nos fala Popper, reduz normas a
factos e, por isso, conduz a um positivismo ético ao serviço de agendas construtivistas. Nunca,
mas nunca, criticar é uma fonte de problemas mas, antes, uma fonte de soluções, num devir
constante de tentativa e erro, a base essencial de qualquer sociedade complexa
(Habermas/Luhmann) e, por isso, resiliente (Nassim Taleb).

A diferença é uma fonte de riqueza e não, de modo nenhum, de entropia.

Uma sociedade aberta apenas se desenvolve com a abertura - perdoe-se-me o pleonasmo -


permanente a perspectivas críticas, politicamente correctas ou incorrectas, numa dinâmica de
interacção pluralista e evolucionista, contrária, por isso, a qualquer ditadura, seja a do do
"politicamente correcto" ou outra qualquer.

No entanto cabe fazer uma advertência - a crítica do "politicamente correcto" (doravante,


apenas, PC) não implica, necessariamente, a aceitação, a priori, de qualquer afirmação como
válida apenas porque "politicamente incorrecta". A coberto, também, do "politicamente
incorrecto" muita "javardice" se tem dito e escrito, como se de uma licença de porte de arma
se tratasse.

Em boa verdade, a linguagem, escrita ou falada, é uma arma (“A book is a loaded gun.” ― Ray
Bradbury, Fahrenheit 451)

Procurando a origem deste conceito (PC) encontrei – acabei por perceber que não
surpreendentemente – uma referência à palavra russa “ideinost”. No contexto do regime
soviético, nos anos trinta, mais precisamente em 1934, o conceito de “ideinost” e o adjectivo
“ideinyi”, articula-se como um dos elementos característicos do Realismo Socialista (por
oposição ao “realismo burguês”), no pressuposto de que a arte deveria servir uma utilidade
social e política. Assim, se Engels definia “realismo” como caracteres típicos em situações
típicas, a evolução soviética de “realismo” afinava o conceito de “típico” afirmando que tal não
correspondia necessariamente ao que é mais frequente e sim algo não necessariamente
directamente observado mas, antes, enquadrado por uma compreensão das leis e
perspectivas do desenvolvimento social futuro, isto é, uma realidade seleccionada e
organizada por determinados princípios (no caso, os do Marxismo) (“The Long Revolution”,
Raymond Williams, págs. 302 e 303, Broadview Press, 2001; e “Epic Revisionism: Russian
History and Literature as Stalinist Propaganda”, Kevin M. F. Platt e David Brandenberger, pág.
302, nota 22, U.W., 2006).

No fundo mais não fizeram os marxistas do que adequar, no sentido inverso, a ideia que a
Igreja Católica Apostólica Romana já há muito havia percebido quando elaborou o seu Index
Librorum Prohibitorum – uma lista de livros proibidos porque não acompanhavam os cânones
da mesma.

Reconhece-se aqui a linguagem como instrumento, simultaneamente, de expressão e


modelação da realidade, mormente da realidade pensada.

Mesmo com o abandono, em linguística, da hipótese Sapir-Whorf (de acordo com a qual a
estrutura de uma linguagem pode influenciar ou determinar fortemente a mundivisão do
indivíduo) aceita-se, apesar de tudo, que a linguagem tem algum, ainda que pequeno, efeito
sobre o pensamento.

Por isso, a escolha das palavras utilizadas para descrever uma certa realidade não é
indiferente, mas, ao invés, carregada do sentido definido pelo contexto social, histórico e
cultural em que são empregues.

Daí que, em termos de linguagem, o PC tenha procurado impor – e impôs, culturalmente –


palavras PC, afastando palavras não PC. Assim, nos E.U.A., utilizar a palavra “negro” ou
“colored” é considerado não PC porque eram palavras usualmente utilizadas para fazer
referência a um afro-americano nos tempos da escravatura.

Se é certo, para mim, que certas palavras são, de facto, ofensivas, porque efectivamente
carregadas de um sentido pejorativo, não é menos certo que o PC chegou a extremos
absurdos, mesmo no campo da linguagem.

Exemplar – desse exagero – é a substituição da expressão “Feliz Natal” pela de “Festas Felizes”.
A ideia, da substituição – que se institucionalizou – é a de que há pessoas que não são católicas
e que, por isso, seriam ofendidas, ou segregadas, com a utilização de tal expressão. A questão
é que só há “festas” porque é “Natal”. Essa é a realidade. Festeja, quem desejar festejar (e não
apenas fazer compras e gozar um período de férias, se puder), o nascimento de Jesus Cristo. A
substituição não é neutra – apesar da definição de PC – mas sim culturalmente orientada no
sentido de descontextualizar o período em causa.

Outro exemplo é o termo “herstory” utilizado por feministas críticas do termo “history” e
defensoras de uma historiografia não centrada, alegadamente, nos feitos dos elementos do
sexo masculino.

Usualmente aponta-se o PC como algo próprio da “esquerda” ou dos “liberais” (em sentido
norte-americano).
Trata-se de um viés compreensível (atendendo à manifesta força de imposição que aquela ala
extremista ganhou nas duas últimas décadas), mas que, em termo funcionais e rigorosos, me
parece errado.

O essencial do PC – no campo da linguagem – é a utilização da mesma como instrumento


social de conformação. E isso acontece em qualquer campo ideológico.

Os mesmos princípios – de tentativa de disfarce da realidade pela linguagem – são largamente


usados – e tornaram-se norma – pelas correntes neoliberais (precisamente aquelas que,
esvaziadas de qualquer carga ética ou axiológica, com critérios puramente económicos, nos
trouxeram colectivamente ao ponto em que estamos, sem horizontes comuns de valores).

Assim, o “trabalhador” passou a ser “colaborador” (tentando esbater a carga social do


primeiro termo); “deixar de fazer um produto” passou a ser “descontinuado”; fechar uma
fábrica ou escritório e ir para outro país passou a ser “deslocalizar”. “empregado/a de balcão”
passou a ser “auxiliar de vendas”; contínuo passou a auxiliar da acção educativa (e, depois,
penso, ainda outra designação), e por aí fora.

Tudo numa tentativa de suavizar certas realidades ou transmitir uma sensação de mudança
real que apenas é linguística.

Qualquer grupo ideológico usa, assim, a linguagem como forma de PC, isto é, como maneira de
veicular a sua mundivisão, matizar realidades e fazer avançar agendas culturais e políticas.

Não há um PC. Há muitos PC’s.

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