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Os esquimós do estreito de Bering contam que o herói trapaceiro Corvo estava

certo dia sentado, secando suas roupas numa praia, quando observou uma baleia
nadando pesadamente perto da praia. Ele disse: "Da próxima vez, querida, venha
voando, abra a boca e feche os olhos". E então ele vestiu rapidamente as roupas de
corvo, colocou a máscara de corvo, juntou uns gravetos para fogueira sob o braço e
voou para a água. A baleia se elevou. Fez o que lhe havia sido dito. Corvo penetrou
nas mandíbulas abertas e foi diretamente garganta abaixo. A surpresa baleia fechou
a boca e mergulhou; Corvo ficou em seu interior e olhou em volta.
Quando Corvo dos Esquimós penetrou, com suas tochas, no ventre da baleia,
viu-se na entrada de uma bela sala, em cuja extremidade mais distante brilhava uma
lâmpada. Ele se surpreendeu por ver, sentada ali, uma bonita jovem. A sala era seca
e limpa; a espinha da baleia sustentava o teto e as costelas formavam as paredes.
De um tubo que se estendia ao longo da espinha dorsal, pingava lentamente o óleo
que alimentava a lâmpada.
Quando Corvo entrou na sala, a mulher levantou os olhos e exclamou: "Como
você chegou aqui? Você é o primeiro homem que entra neste lugar". Corvo lhe
contou o que havia feito e ela lhe disse que se sentasse do lado oposto da sala.
Essa mulher era a Alma (Inua) da baleia. Ela pôs comida diante do visitante, deu-lhe
frutos e óleo e lhe contou, nesse meio tempo, como havia conseguido os frutos no
ano anterior. Corvo permaneceu por quatro dias como hóspede da Inua, no ventre
da baleia, e durante todo o tempo em que ali permaneceu ficou imaginando que tipo
de tubo poderia ser aquele que se estendia pelo teto. Toda vez que a mulher
deixava a sala, ela o proibia de tocá-lo. Mas, certa vez, quando ela saiu de novo, ele
foi até a lâmpada, estendeu as garras e pegou uma grande gota do óleo, que pôs na
língua. A gota era tão doce que ele repetiu a operação e passou a tomar gota após
gota, com a mesma rapidez com que caíam. Todavia, eis que sua ganância achou
essa rapidez muito pouca e ele se aproximou, retirou um pedaço do tubo e o comeu.
Mal havia feito isso, eis que uma grande golfada de óleo vazou na sala, apagou a
lâmpada e a própria câmara passou a movimentar-se violentamente de um lado para
o outro. Esse movimento durou quatro dias. Corvo estava praticamente morto de
fadiga, por causa do terrível ruído que explodia ao seu redor durante todo o tempo.
Mas, subitamente, tudo se acalmou e a sala ficou parada; pois Corvo havia rompido
uma das artérias do coração e a baleia morrera. A Inua jamais retornou. O corpo da
baleia imergiu.
Mas agora Corvo estava preso. Enquanto imaginava o que faria, percebeu que
dois homens conversavam, montados nas costas do animal, e que haviam decidido
chamar todas as pessoas do lugarejo para ajudá-los com a baleia. Eles logo
conseguiram fazer um furo na parte superior do grande corpo. Quando o furo estava
suficientemente amplo, e todas as pessoas haviam ido embora com pedaços de
carne, que levariam para a terra firme, Corvo saiu sem ser percebido. Mas tão logo
havia chegado ao solo, ele percebeu que havia esquecido seus gravetos ali dentro.
Tirou o casaco e a máscara, e as pessoas logo viram um pequeno homem negro,
envolto numa ridícula pele de animal, se aproximar. Elas o observaram com
curiosidade. O homem se ofereceu para ajudar, arregaçou as mangas e pôs-se a
trabalhar. Pouco depois, uma das pessoas que trabalhavam no interior da baleia
gritou: "Vejam o que achei! Tochas no ventre da baleia!" Corvo disse: "Meu Deus,
isso é ruim! Minha irmã certa feita me disse que, quando são encontrados gravetos
dentro de uma baleia que as pessoas abriram, muitas dessas pessoas vão morrer!
Acho melhor fugir!" Ele baixou as mangas e correu. As pessoas se apressaram a
seguir-lhe o exemplo. Então, apenas Corvo, que acabou por voltar, teve, durante
algum tempo, tudo para si.
Na história esquimó de Corvo no ventre da baleia, o motivo dos gravetos para a
fogueira sofreu um deslocamento e uma subsequente racionalização. O arquétipo do
herói no ventre da baleia é amplamente conhecido. A principal façanha do
aventureiro costuma ser a feitura de uma fogueira com os gravetos no interior do
monstro, produzindo assim a morte da baleia e a própria libertação. Fazer uma
fogueira dessa forma simboliza o ato sexual. Os dois gravetos — receptáculo e
haste — são conhecidos, respectivamente, como fêmea e macho; a chama é a nova
vida gerada. O herói que faz fogo na baleia é uma variante do casamento sagrado.
Mas em nossa história esquimó, essa imagem de fazer fogo foi submetida a
uma modificação. O princípio feminino foi personificado pela bela garota que Corvo
encontrou na grande sala existente no interior do animal; ao mesmo tempo, a
conjunção macho-fêmea foi simbolizada separadamente, pelo fluxo de óleo do tubo
até a lâmpada acesa. O fato de Corvo provar desse óleo representou sua
participação no ato. O cataclismo resultante representou a crise típica do nadir, o
término da velha era e o início da nova. A emergência de Corvo simbolizou, em
consequência, o milagre do renascimento. Assim sendo, os gravetos tornaram-se
supérfluos, levando à criação de um inteligente e divertido epílogo para lhes dar uma
função na trama. Tendo deixado os gravetos no ventre da baleia, Corvo faz as
pessoas se afastarem, assustadas, e aproveita sozinho a festa da gordura. Esse
epílogo constitui um excelente exemplo de elaboração secundária. Ele desempenha
um papel no caráter trapaceiro do herói, mais não se configura como elemento
básico da história. a

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