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CAPÍTULO 4

Destino de Sangue

O
Forte Caliaph visto de cima era um lugar
terrível, repleto de orcs, pilhas de corpos, sangue,
lama e dejetos. Aust e Aranis sobrevoaram pelo
campo de batalha, testemunhando o quanto Ekar perdera naquele
dia, pois haviam baixas nos três exércitos e o fim estava longe de
chegar. O cavaleiro desviava das flechas disparadas contra a dupla,
numa habilidade de quem estava muito acima da técnica do
inimigo. Aust procurava o filho de Akazahur, sem se importar com
os demais da turba. Ele sabia que se vencesse o verdadeiro inimigo,
a batalha se encerraria, ao mesmo que sabia que não seria um
combate fácil e que sua vida estava em jogo.
Foi quando Aust finalmente avistou Ragnar.
— Aí está você... — Aust sussurrou enquanto cerrava os
olhos.
— Não é um inimigo comum. — Aranis advertiu — Está
protegido pela benção de Akazahur, não poderá ser ferido por
nenhuma arma que conhecemos.
— Existe uma arma que pode feri-lo, mas para evoca-la
precisarei de tempo. Pode conseguir esse tempo para mim?
Aranis acenou com a cabeça e empinou o Pegasus no ar, em
seguida pronunciou palavras de proteção enquanto ficavam
translúcidos até desaparecerem completamente, como se o
inimigo, ainda que fitasse o olhar para eles, não pudesse enxerga-
los. Aust cortou a palma da mão com sua faca élfica, depois segurou
sua aljava no colo, despejou sangue sobre as flechas e começou a
entoar palavras em Lenarin, a língua morta dos primeiros elfos. As

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flechas emanaram uma luz branca, enquanto runas circularam a
mão direita do príncipe de Elindael. A magia de sangue conectava
a vitalidade de Aust à sua aljava, sua força vital impregnada na
ponta das flechas. Ele sabia que cada disparo sacrificaria parte de
sua longevidade, mas que suas flechas seriam capazes de
ultrapassar qualquer barreira mística. Agora só lhe restava não
desperdiçar um tiro sequer.
— Estou pronto. — Suas palavras mesclavam-se a dúvida.
— Prepare-se para enfrentar seu destino, príncipe. — Aranis
deu um rasante em direção ao salão, pousando em meio aos orcs.
Ele abriu caminho com sua lâmina dourada, enquanto Aust partia
em direção ao algoz de seu povo, dessa vez decidido a por um fim
nisso tudo.
Mais à frente Fenrir escalava a muralha da fortaleza,
cravando seus sabres entre as frestas das rochas. Alguns arqueiros
tentavam acerta-lo, mas sua habilidade não lhe faltava, nem mesmo
naquelas condições, desviando de cada seta disparada contra ele.
Finalmente no topo, avistou o xamã de Akazahur, proferindo
palavras profanas para fortalecer o exército orc, ao mesmo que
controlava os morcegos atrozes, como se visse pelos olhos das
criaturas. O pirata correu em direção ao velho xamã, aproveitando
de sua concentração para desferir uma estocada em pontos vitais
do monstro. A lâmina de seu sabre perfurou o inimigo, trazendo
sua consciência de volta pra seu corpo enquanto urrava de dor. O
sabre ficou preso entre as costelas da fera, enquanto ela rosnava
palavras profanas, dobrando de tamanho e aparentando ficar mais
musculoso e mais temível. Fenrir soltou o sabre e saltou para trás
bem antes de ser acertado por um golpe da besta, o movimento
brusco deixando o pirata ofegante. Apesar da criatura ser forte, sua
velocidade não acompanhava a de Fenrir, deixando o pirata livre
para perfurar pontos vitais sempre que o xamã baixava a guarda.

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Mas o monstro se cansara daquele jogo e conjurou uma onda de
escuridão, que envolveu boa parte do salão, impedindo que o pirata
pudesse enxergar um palmo a sua frente.
— Sua covardia não irá lhe proteger por muito tempo. —
Fenrir sibilou contra o xamã, mesmo sem ver onde ele estava.
— Não preciso de muito tempo. — Gargalhava o monstro
atroz. Ele disparou um raio esverdeado contra Fenrir,
enfraquecendo o pirata, tanto na força, quanto na velocidade.
O líder dos doutrinadores tocou o joelho no chão enquanto
ofegava. A escuridão impedindo-o de detectar o inimigo e agora o
raio de enfraquecimento restringindo seus movimentos. Ele
levantou com dificuldade, cambaleou uns dois passos, mas antes
que pudesse reagir, foi pego pela cintura e erguido do chão.
— Tão indefeso, tão frágil, um verdadeiro desperdício ser
destruído nesse estado. — O xamã escarnecia enquanto apertava
lentamente, como uma serpente constritora.
— A única coisa que você deve temer é minha perspicácia,
sua aberração!. — Fenrir segurou o antebraço do monstro, afim de
se localizar, depois sacou uma adaga da cintura e arremessou bem
na cara da criatura, acertando seu olho em cheio. O monstrou urrou
de dor, levando as duas mãos até o rosto. Fenrir saiu rolando no
chão até sair da escuridão e aproveitou da distração para se
esconder atrás de barris. Não demorou muito até que a criatura saiu
do breu, com o rosto lavado em sangue, bufando enquanto
procurava o líder dos piratas.
— Vai pagar caro por isso, desgraçado! — o xamã
praguejava — Eu vou devorar seu crânio e jogar o seu corpo para os
peixes do mar! Vamos, apareça!
Fenrir carregava dois revolveres com balas místicas,
sabendo que ao se revelar teria pouco tempo para vencer a fera.
Agora era partir para o tudo ou nada. Ele mirou entre os barris bem

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no peito do monstro atroz, esperou, esperou, esperou até encontrar
a abertura perfeita na defesa do xamã e disparou uma bala de
revolver que ao tocar no peito do monstro, explodiu feito uma bola
de fogo, causando um estrondo ensurdecedor. Sua oportunidade de
vitória começava agora. Ele correu em direção do inimigo enquanto
ele estava aturdido, mas quando chegou próximo o xamã recobrou
sua lucidez e partiu em direção de Fenrir, que por sua vez, se jogou
no chão, passando por entre as pernas do monstro e disparando um
relâmpago de seu segundo revolver, eletrocutando o devoto de
Akazahur, fazendo-o cair de joelhos. Sem perder tempo, Fenrir
segurou seu sabre e partiu em direção do xamã, decepando sua
cabeça num único golpe, fazendo a criatura tombar sem vida,
enquanto o pirata caia de joelhos, esbaforido. Uma vitória amarga,
um inimigo horrendo, uma noite infeliz.
O céu por um momento estagnou, sem tempestade, sem
escuridão profunda, até mesmo a chuva abrandou-se, como se a
feitiçaria de Akazahur perdesse força pela morte de seu xamã, um
momento que desestabilizou a confiança do exército orc e que
trouxe esperança para as tropas de Arkalrea. Uma guerra que
começou a margear o equilíbrio entre as tropas.
Aust de Melliamines presenciou quando as duas espadas do
rei enfrentaram Ragnar. Ele viu o machado dourado se estilhaçar
nas costas do Orc, viu o anão ser cortado ao meio, viu Durkan
perder o braço de aço e se entregar a derrota. Nesse momento ele
se desapegou de qualquer sentimento de heroísmo, decidiu não agir
em prol dos que lutavam contra a besta, desta vez, toda sua energia
estava concentrada em disparar contra Ragnar todo o sentimento
de vingança pelo seu povo, pelos seus pais, por tudo o que abdicou,
por toda a vida de subúrbio que precisou viver, pelos amigos que
perdera, pelo tesouro real que deixou para trás, por sua honra, por
seu legado. Ele não esperava sair vivo daquela batalha, não esperava

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rever Elindael, nem as outras virtudes ou qualquer outro elfo que o
esperasse lá fora. Seu único desejo era vingar-se e depois dali,
qualquer um poderia receber o mérito pela vitória, qualquer um
poderia ser rei em seu lugar, qualquer futuro que viesse a existir lhe
satisfaria se conseguisse ser aquele que abateu o filho de Akazahur.
— Nindarê Eol Adantanê — Aust pronunciou as palavras de
juramento contra Ragnar e disparou uma flecha carregada de sua
energia vital, o brilho de luz envolvendo toda a seta enquanto
perfurava o punho do filho de Akazahur, a dor invadindo seu corpo
pela primeira vez. Ele largou a foice e arregalou os olhos, sem
entender o que acontecera, se adaptando ao ferimento, aturdido
pela vulnerabilidade.
O sangue da besta maculava a terra, enervecendo tudo a sua
volta. As paredes se enchiam de lodo, a madeira da construção
apodrecia, um fedor terrível se espalhava, lembrando a putrefação.
Ragnar ficou parado por uns segundos, paralisado pelo êxtase que
lhe envolvia. Uma aura escura cobria sua silhueta, deixando a fera
ainda mais macabra e temível. Seria necessária muita força de
vontade para não se desesperar perante aquela personificação da
maldade.
E num instante súbito o monstro finalmente reagiu...
Rápido como um raio, Ragnar partiu em direção do príncipe
élfico, sua velocidade desafiando os reflexos de Meliamines. Aust se
esquivou por um triz, usando de sua intuição para prever o
movimento. A fera continuou atacando ainda mais rapidamente,
como se sua velocidade aumentasse a cada golpe, enquanto o jovem
elfo se mantinha esquivando, como uma dança ritualística, repleta
de piruetas e acrobacias. Algumas vezes Ragnar acertou as
estruturas a seu redor, destruindo toda construção que tocava.
Bastaria um golpe certeiro para vencer o jovem elfo

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definitivamente, se Aust não reagisse logo, poderia ser derrotado
sem cumprir seu objetivo.
Finalmente o jovem elfo decidiu revidar...
Numa esquiva, Aust de Meliammines girou por três vezes,
inclinando-se enquanto girava, fazendo de sua perna direita um
compasso e agachando-se durante o movimento até ficar numa
posição vantajosa para atirar. Ele disparou com muita precisão, a
flecha brilhando e perfurando o peito do monstro. Ragnar ignorava
a dor enquanto partia em disparada, saltando e golpeando com as
duas mãos o local onde Aust estava, segundos depois do elfo evadir
de lá. O príncipe saltou em direção da fera, saltou acrobaticamente
contra ele, disparou duas flechas em suas costas e continuou
correndo para tentar pegar distancia segura. Ragnar virou-se e
perseguiu o elfo, quase o acompanhando, jogando seu corpo para
esmagar o inimigo contra a parede, mas sua presa foi mais rápida e
conseguiu rolar para o lado sem sofrer danos, enquanto a parede da
fortaleza se desmoronava com o encontrão.
— O que houve, seu maldito? — Aust esbravejava. — Não
consegue me alcançar, não é? Minhas flechas continuarão a te
perfurar até você não ter mais forças para me perseguir. Não
importa quantas vezes tente, você jamais me alcançará! É o seu f...
O braço de Ragnar brotou do chão e agarrou a perna de
Melliamines, sua reação o paralisando. Como ele pode estar saindo
do chão? Pensou o elfo. Será que se jogar contra a parede foi mera
distração? Como ele conseguiu penetrar a terra e cavar até aqui tão
rapidamente?
O chão da fortaleza começou a ficar movediço. O sangue do
filho de Akazahur transformou o local, permitindo que fosse
moldado misteriosamente. Talvez tenha sido dessa forma que ele
conseguiu se transportar rapidamente dos escombros e aparecer
debaixo do príncipe élfico. Ragnar apertou forte o suficiente para

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danificar a perna de Aust, fraturando um de seus ossos. O príncipe
tentou mirar uma flecha, mas seu arco foi arrancado pela outra mão
da criatura, que subitamente saiu do terreno arenoso, suspendendo
o elfo no ar e o arremessando contra carroça, que quebrou com o
impacto. O dano do arremesso foi absorvido pela armadura élfica
que recebera, mas o ferimento de sua perna comprometera sua
mobilidade.
— Você é patético... — Ragnar zombava de Aust. — Achou
mesmo que só por ter me acertado, poderia me vencer? Suas setas
mágicas nem me fizeram cócegas, eu estava apenas brincando com
você, curioso para saber até onde sua arrogância poderia te levar.
Infelizmente você não conseguiu me divertir, então chegou a hora
de eu acabar de uma vez por todas com essa pantomima.
O Orc apontou a mão para sua foice e esta veio rodopiando
até ele, o carrasco continuou a caminhar lentamente, emanando
uma aura maligna de puro ódio, seu desejo de matar transpirando
por todos os poros. Aust não conseguia se movimentar com
perfeição e sabia que mesmo que tentasse não conseguiria escapar
de seu algoz. Ele sacou suas espadas élficas, cortou seu braço e
deixou seu sangue jogar sobre as lâminas, entonando o feitiço
lenarin por uma segunda vez, seus cabelos se esbranquiçando
enquanto runas surgiam em seu corpo. Pela primeira vez, o príncipe
de Elindael começou a sentir seu corpo fraquejar pelo peso do
tempo, era certeza que o confronto decisivo estava se aproximando
do fim.
— Eu sou a esperança de meu povo, o predestinado a vencer
esta guerra! — Aust se encheu de luz enquanto o anel da esperança
se manifestava, seu corpo transbordando de uma força superior. As
auras se chocavam em luz e trevas, num contraste que podia ser
visto por todos que estavam naquele lugar.

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Ragnar partiu com tudo para cima de Melliamines, sua foice
sendo aparada pelas lâminas élficas. Uma dispersão de energia se
espalhou e se repetiu por todas as vezes que as armas se
encontraram. A magia élfica, combinada com o poder da esperança
davam a Aust uma energia descomunal, suficiente para medir
forças contra o atroz, mas o local ao redor deles não suportaria por
muito tempo aquele combate, correndo o risco de ruinas Durgash
ser totalmente destruída. As espadas élficas cortaram inúmeras
vezes a cara do monstro, deixando-o debilitado, mas bastou um
único golpe da foice de Ragnar para deixar Aust moribundo. A
lâmina deixando o jovem ranger entre a vida e a morte.
O filho de Akazahur arrastou o corpo do príncipe élfico até
o topo da muralha, para um lugar que todos pudessem ver. Um
rastro de sangue marcou o trajeto, sem identificar se era élfico ou
orc. Era o momento mais propicio para se revelar quem venceria
definitivamente uma guerra que já perdurava por muito tempo.
— Veja elfo... — Ragnar falava entredentes, enquanto
contemplava a guerra de cima. — Sua tentativa de se vingar trouxe
os últimos elfos para a morte. Vocês estão em menor número, são
mais frágeis e suas vestimentas não são o suficiente para segurar a
força esmagadora de meu exército. Você sabe por que eu não
avancei sobre as terras de Alran até agora? Porque eu sabia que você
viria, sabia que os elfos acreditariam que poderiam vencer o meu
povo e recobrar a sua honra. Pois eu digo que se enganaram, sua
arrogância te traiu e agora será o fim dos elfos de Arkaurea.
Hastearei seu corpo no topo da muralha, cravado em minha foice,
para que todos possam enxergar o destino daqueles que levantam
suas espadas contra o poderoso Akazahur.
Nesse momento Ragnar escutou uma voz baixa vindo em
sua direção, como se alguém pronunciasse para si mesmo um texto
previamente memorizado. Ele olhou para trás e avistou um

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cavaleiro de armadura completa, resplandecente por uma aura
divinal. Ele possuía um escudo grande e espelhado, e arrastava uma
espada larga com uma única mão, embebedando-a no rastro de
sangue de ambos os inimigos.

Eu ofereço minha espada, para que se cumpra a profecia.


Que eu a segure firme enquanto a luta perdurar.
Eu a alimento com o sangue dos reis élficos
e a apresento ao sangue dos meus inimigos.
Que meu escudo suporte cada investida
e que minha armadura se mantenha impenetrável.
Eu ofereço o meu corpo, para que se cumpra a profecia.
Que meus músculos se tornem aço, que meu sangue ferva.
Que minha visão mire a fraqueza de meu inimigo
e que minha vontade de vencer alcance o coração de Thalin.
Eu ofereço a minha vida, para que se cumpra a profecia.
Que meu destino liberte este mundo da escuridão
e que eu cumpra a vontade dos deuses.
Que Thalin receba meu espirito nos campos verdejantes
e que os bardos desta terra cantem sobre este dia.

Aranis riscou a espada no sangue de Aust e Ragnar, depois


a ergueu para o alto, enquanto o rastro de sangue se inflamava
muito rapidamente em direção da muralha, obrigando o orc a soltar
o príncipe élfico e se posicionar defensivamente, com os braços em
forma de X a frente de seu corpo. As chamas o envolveram em uma
coluna ardente, numa temperatura capaz de derreter metal. Um
feixe de luz azul caiu sobre Aranis, dando a ele asas de energia
brilhante, transfigurando o paladino numa versão angelical, seus
olhos incandescentes, como estrelas brilhantes num céu escuro. Ele
rodopiou sua espada também transfigurada e cheia de energia e

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golpeou a linha de fogo que partia dele em direção a coluna ardente,
e toda a chama se tornou esbranquiçada, radiante.
Foi nesse instante que se pôde ouvir Ragnar gritar de dor.
As chamas se extinguiram e o filho de Akazahur estava
irreconhecível, seu corpo queimado pelas chamas brancas. Por um
momento eu me perguntei como foi que Aranis conseguiu
ultrapassar a proteção mística da semi-divindade, mas depois
entendi que ele tinha usado o sangue do príncipe élfico como
catalizador de sua magia divina, transformando sua poderosa magia
em algo ainda mais terrível. Aust ainda respirava com dificuldade,
tentando encontrar forças para se manter na luta, ele se arrastou
muito lentamente ate uma parede e se encostou nela, avaliando a
ferida putrefata em seu abdômen. Ele entoou cânticos élficos, mas
sua magia lutava contra a podridão que a lança de Ragnar deixara,
de modo que demoraria mais que o esperado para se recuperar. Já
Ragnar regenerava lentamente, retomando a consciência e mirando
com muito ódio seu novo inimigo.
— Você não faz ideia do que acontecerá com você por isso.
— Ragnar rosnava baixo, enquanto pegava sua foice e partia em
direção do Paladino.
— Ah, não tenha dúvidas de que eu sei. — Respondeu
Aranis enquanto posicionava seu escudo. — Eu fui criado para pôr
um fim em sua tirania, meu destino acaba aqui, criatura vil.
Ragnar usou de sua velocidade para pegar impulso e saltar
contra o Paladino celestial, segurando com suas duas mãos o cabo
da foice. Uma luz carmesim emanava de sua lâmina, deixando um
rastro rápido que destorcia a visão de quem a fitasse. Seu golpe
parecia como um ataque do ferrão de um escorpião gigante, mas
subitamente foi aparado pelo escudo espelhado de Aranis, que
brilhou fortemente e converteu todo o dano do impacto em um
choque de retorno, como se Ragnar tivesse acertado a si mesmo.

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E mais uma vez o monstro urrou de dor.
A ferida aberta desta vez não cicatrizou. Ragnar cambaleou
para trás, aturdido com o que acontecera. O escudo espelhado ficou
danificado, com muitos trincos por toda a superfície. O ataque do
orc teria sido fatal se acertasse Aranis, mas ao que parece, o
paladino já tinha previsto isso, providenciando um inibidor
perfeito, o que ele não previu foi que seu escudo não suportaria um
segundo golpe com tamanha força.
— Eu não posso ferir você diretamente, mas você pode ferir
a si mesmo... — O paladino falava enquanto deixava de lado seu
escudo, para não o perder por completo numa segunda investida.
Quando eu vi esse momento fiquei aflito, pois não conseguia
imaginar qual outra alternativa restava para continuar lutando
contra a fera. De certo havia mais coisas para se descobrir sobre o
paladino de Thalim.
A cura de Aust finalmente começou a fazer efeito. Ele já não
corria mais perigo, apesar de sua vitalidade ainda não lhe permitir
lutar. Sua visão voltou ao normal, o que antes não passava de um
borrão de cores, agora se tornara Ragnar coberto de sangue. Ele
demorou a entender que o anjo divinal que estava a sua frente era
Aranis Pragalus, pois sua transfiguração o deixou ainda mais
superior a qualquer outra imagem de herói que Aust tivesse visto
ou ouvido falar. Ele procurou seu arco e o viu distante de seu
alcance, rastejou até ele enquanto o inimigo não o tinha como alvo,
depois colocou o arco no colo, ofegante. Aust só teria uma única
chance de vencer Ragnar, se ele falhasse, o orc o despedaçaria
completamente. Por isso teria que fazer algo que fosse decisivo. A
magia de sangue deixava-o muito desgastado e o anel da esperança
era imprevisível, ele não tinha em mente nada que pudesse ajuda-
lo, nenhuma alternativa que lhe garantisse a vitória.
Foi nesse momento que ouviu uma voz em seu interior.

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Palavras harmoniosas vinham em seu coração, como a voz
de uma chantre de guerra, cantando uma canção que precede a
vitória. A entonação era angelical como a música dos arcontes das
quais lera quando ainda vivia em Elindael. Aust não conseguia
decifrar se o que ouvira era uma mensagem divina, um
encantamento, ou um delírio de seu alter ego, mas o que quer que
fosse, estava lhe encorajando a depositar sua confiança num último
disparo. Então ele fechou os olhos e tentou entender o que de fato
deveria fazer.
Enquanto isso Ragnar e Aranis ainda estavam em combate,
se encarando, esperando ver qual seria o próximo movimento.
Ragnar não sabia qual truque Aranis usaria contra ele, enquanto o
paladino já não tinha muitas cartas na manga para resistir a
próxima investida.
— Quando eu vim a esta terra, fui batizado com o nome de
Aranis Prágalus... — O paladino finalmente falou. — Mas aquele
que verdadeiramente me criou, me deu o nome de Azariel. Sou um
celestial de Thalin, escolhido entre seu exército para destruir você.
A profecia que um escolhido de sangue real venceria o filho de
Akazahur não deixava certeza que sua maldade seria impedida, e o
deus da justiça não poderia confiar o destino da Ekar em palavras
enigmáticas. Por isso recebi a missão de vir a terra, encarnando
como filho do rei Prágalus, para que eu fosse habilitado a ser o herói
da profecia, pois também possuo sangue real. Tambem conheço
maneiras de extrair de meu sangue poderes superiores, ainda que
isso me destrua muito mais rapidamente, sem contar que não
conheço o segredo dos elfos, para ofertar minha longevidade como
tributo. A mim restara ofertar a minha própria essência, de modo
que terei pouco tempo até desvanecer-me por completo. Por isso
saibas que esta é a ultima vez que troco palavras contigo, a única
coisa que receberás de mim a partir de agora é a punição por sua

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maldade. Prepare-se — Aranis se encheu de luz, transfigurando-se
por inteiro. —, chegou o momento de ser subjugado.
Antes que Ragnar pudesse falar algo em resposta, o anjo já
estava ao lado dele, sua velocidade acima da compreensão humana.
Ele perfurou o abdômen do monstro, deixando sua energia fluir
pela lâmina, trespassando seu inimigo, vazando um feixe de luz das
costas da besta. Ragnar jogou o braço num balanço, mas Aranis
desapareceu novamente, reaparecendo mais distante, despejando
uma onda horizontal de energia radiante, vinda de sua espada
contra o inimigo, jogando Ragnar contra a muralha. A imunidade
divina já não surtia efeito contra os ataques do paladino de Thalin,
mas o preço que ele pagava por isso era alto. Sua alma estava sendo
consumida como combustível para a energia radiante que
transbordava de seu corpo, encurtando rapidamente o tempo de
vida dele. A verdade é que Ragnar ainda continuava vivo, mesmo
depois de sofrer tanto dano, sua força de vontade muito maior do
que seus ferimentos. O peso para desequilibrar a balança deste
árduo duelo seria o tempo e aquele que suportasse mais tempo as
consequências da batalha seria o vencedor.
Ragnar chamou sua foice e ela rapidamente o respondeu.
Ele recobrou sua posição e partiu em investida contra Aranis, seu
corpo tomado por uma aura vermelha de fúria. A besta desferiu um
golpe violento, aparado pela espada de luz do anjo. As energias se
chocavam de modo que as construções do castelo começaram a se
deteriorarem. Rachaduras surgiram por toda parte e uma torre
inteira desabou sobre os exércitos que lutavam lá embaixo. Se a
batalha perdurasse por mais tempo, era provável que o forte
Caliaph se transformasse em uma verdadeira ruina.
Os golpes de Aranis foram perdendo força quando sua luz
começou a vacilar. Sua energia espiritual estava praticamente
esgotada, lutando apenas com o que lhe restara da vontade. Ragnar

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estava acabado, com feridas que caberiam um punho inteiro dentro
delas. Os dois lutavam para se manter de pé, enquanto tremores e
desabamentos continuavam a surgir. Foi num golpe cravado que
Ragnar vencera o enviado de Thalin, sua foice partindo a espada
celestial em muito pedaços, enquanto a lâmina rasgava o peito do
celestial. Ele caiu para trás, suas asas de energia marcando o chão a
sua volta. Ragnar se apoiou em sua foice, ofegante. Seu corpo lavado
de suor e sangue, sua vista ficando turva. Não era certo que
continuaria lutando depois de tudo, uma vez que os danos que
Aranis o causou, seria o suficiente para impedir que continuasse de
pé, restando-lhe apenas uma fração de vida que se agarrava a esta
realidade com todas as forças. O monstro cambaleou para frente e
caiu sobre o corpo do paladino, sua respiração quase parando e seus
músculos em choque. Aranis começou a perder os sentidos,
satisfeito por ter cumprido seu propósito, agora só lhe restava ser
recebido nos salões da justiça. Quando ele finalmente fechou os
olhos para se deixar levar para o paraíso, foi subitamente
preenchido por uma do terrível. Era Ragnar que cravara seus dentes
no pescoço dele, sugando toda sua energia vital, se fortalecendo
pelo sangue real do predestinado, recobrando seu aspecto divino
enquanto Aranis definhava. O paladino tentou lutar contra a
covardia do filho de Akazahur, mas sua luz foi ficando fraca, até
desaparecer completamente.
Por um momento eu acreditei no estado moribundo de
Ragnar. Achava que ele tinha caído sem forças, mas na verdade a
besta se jogou sobre Aranis para absorver sua energia vital. O corpo
do herói se transformou em energia pura e o filho de Akazahur não
deixou escapar nenhuma fagulha de luz, tomando para si toda a
força vital do celestial. Suas feridas começaram a cicatrizar,
enquanto seu corpo se fortalecia. Ele ficou de pé, envolto de energia
brilhante, que logo se corrompeu em uma aura negra de pura

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maldade. O Orc atroz deu um grito de vitória aterrador e seu poder
se espalhou por todo o campo de batalha. Os orcs se encheram de
inspiração e dobraram sua força de batalha, reduzindo mais
rapidamente o exército inimigo. Era um fato, a batalha estava
praticamente vencida, Akazahur dominaria por inteiro os campos
de Kaliaph e invadiria Arkaurea com destruição.
O fim estava prestes a chegar, mas ainda havia um ato final
do espetáculo.
As palavras estavam nítidas no coração de Aust. Enquanto
ele se concentrava, seu espirito foi transportado para um templo
natural, em meio a um campo aberto, com estátuas de anjos feitas
de pedra, cobertas por plantas rasteiras que se enroscavam nelas.
Havia um lago próximo, cuja água espelhava como se fosse feita de
prata, e o sol estava baixo, próximo a se pôr no horizonte. O céu
divisava entra o vermelho do crepúsculo e os tons de azul que
precediam a noite, sendo que já podia ser ver estrelas
desabrocharem no firmamento. Pairando sobre as águas prateadas,
com o sol se pondo em suas costas, vinha um arconte, de cabelos
de fogo em trança, como um espiral que alcançava os calcanhares.
Sua armadura era branca e cobria o seu corpo quase por inteiro,
deixando avista vestes de um tecido nobre, com uma saia vermelha,
repartida em três fissuras que iam até a cintura. Ela portava uma
alabarda de ouro maciço, cravejada de rubis, com runas no interior
de cada joia. Por fim a temperatura em suas costas fazia o ar
movimentar-se, como se houvessem asas de calor, ou simplesmente
transparentes. Os olhos dela eram incandescentes, como se fossem
fornalhas ardentes da montanha dourada dos anões. Aust não
podia conter a excitação que brotava de seu interior, sem saber
como descrever a magnitude encarnada a sua frente.
— Se morri fui trazido até o paraíso. — Aust comentou
emocionado. — Quem entre os deuses recebeu meu espirito?

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O arconte levitou suavemente até o príncipe élfico,
enquanto sua imagem ficava mais nítida e ainda mais inspiradora.
Já próxima deixou que sua voz suave percorresse até o mais
profundo do ser de Aust, como se fosse uma moção que partira de
seu interior.

Eu sou a vontade de viver de quem não tem saída.


Sou a força de uma mãe que defende sua cria.
Sou o ímpeto selvagem de quem não teme a morte,
e a adrenalina do herói que busca a glória das canções.
Eu sou a espada que vence a guerra no último momento,
e o gigante que mora no coração do pequeno sonhador.
Sou aquela brisa que sopra em meio ao calor da batalha
e o grito inspirador do senhor dos exércitos.
Sou Tanael, deusa da bravura, quem veio dar-lhe a vitória.

Por um momento Aust ficou atônito, sem conseguir decifrar


as palavras que acabara de sentir. Por mais que tudo parecesse irreal
e que a sensação incompreensível de que havia um meio de vencer
a guerra, mesmo depois de nada mais lhe restar, invadisse
violentamente o seu ser, ele ainda não compreendia tudo o que
estava acontecendo. A única coisa que não lhe passava pela cabeça
era o desejo de hesitar, pois a imagem a sua frente lhe dava a
sensação que tudo podia ser feito se ele acreditasse ser capaz de
fazer. Foi nesse momento que o príncipe dos elfos de Elindael
decidiu se jogar nos braços da senhora da bravura, deixando-se
guiar pelo que lhe fosse proposto.
— Dizei então, rainha dos vitoriosos, como posso vencer a
guerra? Mostrai-me o caminho para sobrepujar meu inimigo. Serei
grato enquanto durar os dias de minha vida, assim como toda a

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minha nação te honrará por nos devolver a esperança. Guie meus
dedos, seja minha seteira, guie a ponta de minha flecha, seja a
firmeza de meus dedos ao mirar contra o inimigo, e tudo que tenho
será teu.
Então Tanael abraçou Aust de Meliamines e seu calor
aqueceu o coração do elfo. Ela sussurrou palavras em seu ouvido e
este entendeu de uma vez por toda como poderia vencer a guerra.
Ela deslizou para trás do arqueiro, colocando sua alabarda a frente
dos dois, depois segurando as mãos do elfo e as posicionando sobre
sua arma. Ela ergueu a alabarda enquanto a apoiava com as mãos
esticadas para frente, como se Aust estivesse empunhando um arco
e a alabarda fosse sua flecha. Nesse momento a imagem de Tanael
ficou translucida, como se esta se transformasse num espirito. Num
supetão Aust estava novamente em Caliaph, envergando o arco da
esperança, manifestado pelo anel do mesmo nome, seu artefato
feito de pura energia brilhante. Mas desta vez, a flecha que
apontava para Ragnar, era vermelha e dourada da cor do
crepúsculo, mesmo que translucidamente podia se ver Tanael
segurando sua alabarda apontada contra o vilão. Foi nesse
momento que uma aura dourada emanava do corpo do príncipe,
enquanto ele balbuciava palavras em Lenarin, conjurando um novo
feitiço que lhe surgia na mente. Ragnar, presenciando tamanho
poder, recobrou sua foice e partiu furioso em direção de Aust,
enquanto por trás dele, rastros de sua aura negra tomava a forma
terrível de Akazahur. Naquele momento haviam dois grandes
duelos, Ragnar e Aust lutavam para decidir o destino das raças,
enquanto Akazahur e Tanael se enfrentavam para dar a vitória a seu
representante eleito.
Aponte para o alto. A voz poderosa de Tanael ordenou a
Meliamines. Sem hesitar, ele obedeceu enquanto cantava alto sua
canção de Bravura.

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— Ninnawê Tanael Turrmanaltar, Berehir Ninfalcurun
Flexor Sindalar. — O idioma Lenarin era difícil de se traduzir,
principalmente quando se tratava de palavras que a própria deusa
induzira ao príncipe falar. Eu arriscaria interpretar que Aust
naquele momento suplicava para a deusa deixa-lo desfrutar da
glória de Falcus, o primeiro elfo a disparar uma flecha. Em seguida
ele disparou contra o céu e sua flecha voou até se perder no
firmamento estrelado, seguida de toda luz dourada que emanava
do príncipe. O disparo foi seguido de um trovão ensurdecedor, que
fez toda a batalha parar por um instante, sem entenderem de onde
vinha aquele estrondo. Até mesmo Ragnar se jogou para trás,
espantado com o clarão e o barulho. O pilar de luz se estendeu por
um tempo e depois se extinguiu, levando consigo muito da
longevidade de Aust, seus cabelos completamente esbranquiçados.
O que quer que tenha sido o encantamento do príncipe, seu efeito
parecia ter sido simplesmente pirotécnico, uma vez que não trouxe
nenhuma consequência em batalha.
Foi nesse momento que Ragnar pôs a gargalhar.
— Então é isso? Foi para isso que voltou dos mortos? Um
clarão e um estrondo? Definitivamente você é a vergonha de seu
povo, me privando de qualquer vontade de acabar com sua
existência. Mas esta batalha já se estendeu demais e já não consigo
manter meu olhar para sua patética silhueta. Prepare-se para sentir
toda a fúria de Akazahur, de modo que não sobrará nada de você,
nem mesmo uma alma para ser enviada para o inferno.
Nas últimas palavras, a aura negra tomou o corpo de
Ragnar, transfigurando-o na imagem de Akazahur, como se o
próprio deus da Destruição tomasse o corpo de seu filho para que
ele mesmo desse um fim a guerra. Seus músculos dobraram de
tamanho e seus cabelos cresceram até o calcanhar, seus olhos
tornaram-se um poço de breu e suas presas se salientaram, assim

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como suas garras que mais pareciam facas enferrujadas. Mas foi
quando Akazahur levantou sua foice contra Aust que o milagre
aconteceu.
Um feixe dourado de luz caiu subitamente do céu, como
uma seta luminosa e perfurou o ombro do deus da destruição, o
feixe acertou o chão e lá estava cravada uma flecha de ouro e rubis.
Akazahur olhou para o céu somente para contemplar uma chuva de
feixes de luz, como se as estrelas do firmamento estivessem caindo
na terra, e centenas, não, milhares de feixes de luz castigavam todos
os orcs daquele campo de batalha, perfurando-os e os enchendo de
chamas douradas, como se a luz das flechas fosse mortal ao toque.
O deus da destruição tentou se proteger de todas as maneiras, mas
as flechas não paravam de cantar e vez ou outra ele era acertado,
cada acerto deixando-o mais enfraquecido, até que não resistiu e foi
acertado por dezenas delas, seu corpo transformando-se numa pira
radiante enquanto urrava. O corpo de Ragnar estourou e dele se
agigantou as sombras de Akazahur, tomando forma de uma
criatura tempestuosa e sombria. Mas as setas de luz perduraram em
se derramar no campo de batalha, perfurando a tempestade e
destruindo toda a escuridão. Os homens e os elfos que restaram
ficaram maravilhados, tomados pela bravura de Tanael e
revigorados com a dádiva da vitória. A alvorada começou a surgir
no horizonte, um coro de alegria vindo dos exércitos ecoou pelos
campos de Caliaph, era o fim da guerra, os orcs foram vencidos,
Arkaurea estava salva. Aust caiu de joelhos, com as mãos no chão,
seus longos cabelos brancos por entre os ombros... e lágrimas que
molhavam a terra, seus antepassados poderiam descansar em paz,
sua promessa finalmente tinha se cumprido, com ela a profecia,
com ela a vingança, com ela o fim de uma jornada e o começo de
uma nova era.

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