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José Outeiral.
(segunda versão do texto/ material exclusivamente para circulação nos
Seminários: não revisado. Fevereiro de 2007. )
Morrer de tédio
Arthur Rimbaud, Une saison en enfer
Enunciado
O objetivo deste texto é discutir, num tempo de novíssimas, complexas e sempre
atualizadas classificações diagnósticas, estabelecidas numa perspectiva fenomenológica, uma
condição clínica, o “Spleen”, o tédio, relacionando-o à adolescência e à cultura contemporânea.
As raízes e relatos dessa experiência emocional, o “spleen” ou o tédio, são
encontradas no romantismo do século XIX e, em certos aspectos, tem hoje uma presença
marcante na adolescência.
Quero, também, abordar a importância de estabelecermos uma compreensão
psicodinâmica do tédio, mais especificamente entre “sentir tédio” e “ser entediante”. Ao tratar do
tema do “spleen” na adolescência, somos também remetidos às questões relativas às
resistências com as “transformações” dessa etapa da vida, da superficialidade nas relações e
da dificuldade em estabelecer uma intimidade verdadeira, assim como sentimentos de vazio e
de falta de sentido na vida.
Recorrerei, brevemente, a algumas contribuições da filosofia que poderão se
mostrar úteis ao clínico, indivíduo de per si habitualmente curioso.
O leitor logo reconhecerá que o tédio não é uma condição exclusiva do processo
adolescente, mas faz parte de diferentes momentos do ciclo vital.
O Spleen
primeiro grande nome” ( Sérgio Alcides, 2004 ). Recentemente Moacyr Scliar (2003) escreveu
sobre este tema, o “spleen” e o tédio, fazendo referências tanto a Charles Baudelaire como a
Álvares de Azevedo, no livro Saturno nos Trópicos. A Melancolia Européia Chega ao Brasil.
Jaime Ginzburg, em 1997, por sua vez, apresentou uma tese de doutorado exatamente sobre a
“Lira dos Vinte Anos” de Álvares de Azevedo, falando desses mesmos sentimentos.
Milna Kundera cita três tipos de tédio: passivo (bocejo, falta de interêsse), tédio
ativo (como quem necessita e pratica um hobby) e o tédio rebelde (arruaças, depredações).
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Martin Dohelmann define quatro tipos: tédio situacional (uma dada situação nos deixa
entediados, uma espera prolongada, por exemplo), tédio da saciedade (quando temos em
demasia a mesma coisa e ocorre a banalização), tédio existencial (quando existe uma falta de
sentido na vida) e o tédio criativo (somos levados a criar para escapar do tédio). Flaubert
diferenciou o tédio comum (ennui commun) do tédio moderno (ennui moderne) .
“O uso da palavra tédio está cada vez mais presente em nosso cotidiano. Não há
ocorrência do substantivo boredon, na língua inglesa antes de 1760, e, desde então, seu uso
aumentou progressivamente...o francês ennui e o italiano noia, ambbos através do provençal
enojo, têm raízes no latim inodare (odiar ou detestar) e remontam ao século XIII. Mas essas
palavras são menos usáveis para nosso propósito, porque são estreitamente emaranhadas com
o conceito de acedia (acedia), melancolia e tristeza geral. O mesmo se aplica ao inglês spleen,
que remonta ao século XVI.”
A acédia medieval (acedia ou accidia) corresponde ao que temos hoje como tédio,
com suas características de indiferença e ociosidade, configurando o tédio pré-moderno ; a
acedia, entretanto, representava um conceito moral, próprio das minorias (monges e
aristocratas), enquanto o tédio é um estado psicológico que pertence a todos os sujeitos.
Sveden (Sveden, 1999) escreve:
“Havia palavras no grego antigo para ociosidade (skholé, alays e argós) e para um
tipo de saciedade ou estado de espírito blasé (kóros), mas nada que correspondesse
inteiramente ao nosso conceito de tédio. O mais próximo era a palavra akedia, palavra
composta de kedos, que significa importar-se com, e um prefixo negativo. O conceito, no
entanto, desempenha apenas um pequeno papel no pensamento grego antigo, em que
descrevia um estado de desintegração que podia se manifestar como estupor e falta de
participação. Foi apenas no século IV d.C., com os antigos patriarcas da Igreja dos desertos
além de Alexandria que o termo adquiriu significado mais técnico, passando a descrever um
estado de cansaço ou de saciedade com a vida.”
outra na unidade plena de raízes de um agir essencial. Todos nós, sem exceção, somos servos
de slogans, aderimos a programas, mas ninguém é o guardião da grandeza interior do Dasein e
de suas necessidades. Esse deixar vazio repercute finalmente em nosso dasein, seu vazio é a
ausência de qualquer opressão essencial. Falta mistério a nosso dasein, e, assim, o terror
interior que cada mistério carrega consigo, e que confere ao dasein sua grandeza, permanece
ausente”.
Podemos então discutir no tédio a questão da “falta de sentido”, do “vazio” e da
“temporalidade”.. Ai temos temas para reflexões.
“.... adeus e viva que não há mais nada digno de contar-me senão que a cidade
ainda não deixou de ser São Paulo... o que quer dizer muitas coisas: entre as quais tédio e
aborrecimento... “.
Ele escreveu da mesma forma que Charles Baudelaire, ambos entediados com
suas cidades. Estes dois flaneurs tinham, entretanto, queixas distintas. Álvares de Azevedo
queixava-se da falta de progresso e civilização de São Paulo, enquanto Charles Baudelaire
queixava-se da modernização e da velocidade de sua Paris. Isso é relevante pois mostra que
para o verdadeiro “Spleen” adolescente a realidade externa, como tal, não importa tanto, como
veremos a seguir..
“Nunca vi lugar tão insípido, como hoje está São Paulo. Nunca vi coisa mais tediosa e
inspiradora de spleen... a vida aqui é um bocejar infindo”.
Álvares de Azevedo escreveu em Lira dos Vinte Anos uma série de versos aos
quais ele deu o título de Spleen e Charutos, onde sua, digamos, filiação ao “Spleen” fica mais
uma vez caracterizada. Não querendo tirar do leitor o prazer de procurar ele mesmo a leitura das
obras de Álvares de Azevedo, quero trazer um dos poemas da série Spleen e Charutos, e
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comentá-lo, na medida do possível e de forma breve, sob o olhar da psicanálise, deixando o leitor
completar a tarefa.
Solidão
Alguns críticos, como Jaci Monteiro, consideram que um dos poemas mais
significativos de Álvares de Azevedo é aquele onde ele comenta sobre o poeta Lamartine,
escrevendo que “Ossian o bardo é triste como a sombra que povoa seus cantos”, onde
“Lamartine é monótono e belo como a noite, como a lua sobre o mar e como o murmúrio das
ondas... Mas choraminga uma eterna melodia, tem a lira de seu um gênio uma só corda... “. O
“Spleen”, então, se caracteriza não só pelo tédio, como também pela monotonia e pela
superficialidade , em lugar de um viver criativo, como veremos adiante e como escreveu o poeta:
“monótono...murmúrio sobre o mar...eterna melodia...lira de uma só corda”.
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Um adolescente “desmotivado”
Alfredo tem dezesseis anos e não apresenta “maiores problemas”. Concorda
com a sugestão dos pais, que o acham “desmotivado”, para que procure uma ajuda psicológica.
A entrevista com os pais, e as subseqüentes com o jovem, não revelam nenhuma condição
particular que justifique sua dificuldade, “tédio” ou “desânimo”, como ele diz Não é exatamente
uma “tristeza” ou algo que configure uma depressão, no sentido psicopatológico habitual. Durante
a infância não apresentava esses sintomas e brincava e se relacionava com facilidade. Era uma
criança alegre e disposta. O sentimento que é agora referido começou há cerca de dois anos.
Quase nada o agrada e se queixa de tudo, dizem os pais e ele concorda. Na verdade, conta com
enfado, “acho tudo um saco”. Um fator que pareceu positivo ao analista foi a queixa dos pais de
que ele passava muitas horas, com revistas, “lendo” no banheiro. Nas sessões Alfredo provoca
uma certa sonolência no analista e não é fácil, para ele, seguir o relato do adolescente, que
parece monocórdico e monótono. Alfredo, aos poucos, revela uma moralidade exagerada e
crítica. As mulheres, em suas associações, ou são “virginais” ou “vagabundas e vulgares”, sendo
que hoje a maioria delas, diz ele, são “pouco confiáveis”. Repete o mesmo tema e o analista tem
de tomar cuidado para não se contaminar com o “Spleen”; esse “Spleen” agora com causa,
sentido pelo analista.por meio da identificação projetiva e percebido na contratransferência.
que a religiosidade é o caminho que irá buscar. Nada a interessa e passa o dia “entediada”.
Cumpre suas tarefas escolares, é gentil com as pessoas e não parece estar deprimida. Não é
possível encontrar eventos que possam estar relacionados com o que ela sente. Apenas acha
“tudo uma droga!”. Como comentou com os pais de que estava pensando em entrar para “uma
vida religiosa” eles ficaram bastante preocupados. Eles relatam, entretanto, um fato paradoxal:
ela tem em seu arquivo escolar fotos de atores. A adolescente se percebe como uma “chata”,
dizem os pais, em contraste com a criança alegre e criativa que ela fora. Sugeri aos pais que
aguardassem e me procurassem dentro de seis meses, ou antes se considerassem necessário,
após termos conversado sobre a situação. Cerca de dois anos depois eles me procuram dizendo
que a preocupação era outra: a “entediada e desinteressada”, agora queria sair todas as noites e
só pensava em namoros. A sugestão de Donald Winnicott de que o tempo é um fenômeno
curativo na adolescência me pareceu ser verdadeira.
O Spleen na adolescência
A adolescência é caracterizada, como sabemos, por inúmeros elementos, dos
quais quero referir alguns: (1) a perda do corpo infantil, dos pais da infância e da identidade
infantil; (2) da passagem do mundo endogâmico ao universo exogâmico; (3) da construção de
novas identificações assim como das imprescendíveis desidentificações; (4) da resignificação
das “narrativas” de self; (5) da reelaboração do narcisismo; (6) da reorganização de novas
estruturas e estados de mente; (7) da aquisição de novos níveis operacionais de pensamento (do
concreto ao abstrato); (8) da apropriação do novo corpo; (9) do recrudescimento das fantasias
edípicas; (10) da vivência de uma nova etapa do processo de separação-individuação; (11) da
construção de novos vínculos com os pais, caracterizados por menor dependência e idealização;
(12) da primazia da zona erótica genital; (13) da busca de um objeto amoroso; (14) da definição
da escolha profissional; (15) do predomínio do ideal de ego sobre o ego ideal; enfim, de muitos
outros aspectos que seria possível seguir citando, mas, em síntese, da organização da identidade
em seus aspectos espaciais, temporais e sociais. Em vários outros textos enfoquei diferentes
facetas desse momento evolutivo de uma maneira mais detalhada (Outeiral, 2003; 2004). As
transformações da adolescência, por outro lado, ocasionam flutuações que se caracterizam por
momentos progressivos – nos quais predomina, entre outros aspectos, o processo secundário, o
pensamento abstrato e simbólico e a comunicação verbal - e momentos regressivos – com a
emergência do processo primário, da concretização defensiva do pensamento e a retomada de
níveis não verbais de comunicação.
todo, provocando tristeza pela identidade infantil que vai sendo perdida e um temor pelo mundo
adulto e suas representações que vão se avizinhando ( o tão temido e desejado mundo adulto ...).
René Passeron, como nos recorda Edson Souza, considera que toda a obra de arte é um
“curativo do vazio”. O “Spleen” se insere, a meu ver, por essas vias. Minha intenção é, apenas,
reavivar a memória e ativar as associações, fornecendo elementos para reflexão. Álvares de
Azevedo é o nosso exemplo de adolescente sofrendo de “Spleen”, condição que todos
reconhecemos nos adolescentes que estão á nossa volta e no adolescente que, espero, nós
fomos, somos e seremos.
tornar entediante: acredito que seja por isso que Holding e interpretação de Donald Winnicott,
que trata de um paciente “boring”, seja um livro não muito lido...
“... se uma pessoa vem falar com você e, ao ouvi-la, você sente que
ela o está entediando, então ela está doente e precisa de tratamento psiquiátrico. Mas se ela
mantém seu interesse independentemente da gravidade do seu conflito ou sofrimento, então você
pode ajudá-la”.
SUMÁRIO
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SUMMARY
The author makes an psychoanalytic overview about the adolescent “Spleen”, trough the
poem “Solidão” of Álvares de Azevedo and distinguish between the activity of “boring
someone” from the feeling of “being bored”, with the contributions of Donald Winnicott.
Bibliografia
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ROUANET, Sergio. As razões do iluminismo. Companhia das Letras. São Paulo. 1998
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