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Bau da

Interculturalidade
Contos Populares de Países Terceiros
Introdução
Caro leitor(a), esta é a primeira edição de contos populares de paí-
ses de onde, maioritariamente, são originários os cidadãos imigran-
tes que vivem e/ou foram atendidos pelos serviços do GAIME/CLAII de
Santarém. Contos dos nossos novos concidadãos scalabitanos, que
connosco partilham o quotidiano Ribatejano e Português. Pensamos
que, ao entreabrir este estrato formador das suas mentalidades, eles
tornar-se-ão – melhor dito, nós tornar-nos-emos, ainda mais próxi-
mos.
Esta publicação insere-se assim, no âmbito de um Projecto de
Promoção da Interculturalidade – ICI-Informar, Conviver e Integrar
– dinamizado pelo Munícipio de Santarém em Parceria com o Alto
Comissariado para a Integração e Diálogo Intercultural, financiado a
75% pelo Fundo Europeu de Integração de Nacionais de Países Ter-
ceiros.
Os contos populares, com cariz de magia e encantamento, de conto
de fadas, são um atributo antiquíssimo de expressão do imaginário,
do carácter, da mentalidade e da arte de cada povo. Uma arte que se
formou e acompanhou a caminhada histórica do desenvolvimento e
estabelecimento desses povos, da sua identidade cultural e nacional.
Uma das características dos contos populares é a de terem surgido
ainda antes da escrita. De se terem transmitido oralmente, passando
de boca em boca, de família em família, de geração em geração.
Daí ser frequente encontrar-se várias versões de um mesmo con-
to, quer em povos da mesma família linguística e cultural, quer no
seio de um mesmo país e povo. Isso mesmo acontece com alguns dos
contos aqui publicados, que nesta época de afirmação, ou reafirmação
identitária nacional são reivindicados como seus por diferentes povos
de raízes comuns. Tal pode ser observado, por exemplo, na Ucrânia,
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Bielorrússia e Rússia. Mas, o que é mais curioso e tem originado con-
traditórias explicações e grandes dissertações, é que tal acontece
mesmo em povos de grupos linguísticos bastante distintos. Mesmo
quando esses povos ficam nos antípodas geográficos, entre os quais
historicamente não se registaram relações culturais e/ou económi-
cas relevantes. Lede o conto “Papas de machado”, que em tudo nos
faz lembrar a história de uma célebre sopa ribatejana, e tereis a opor-
tunidade de, a este respeito, tirardes as vossas próprias conclusões.
Outra especificidade daí decorrente é a de na transmissão oral de tais
contos, mesmo depois de fixada pela escrita, se ter conservado um
nível de exposição que não raro viola a lógica formal, mas que em
contrapartida preserva a magia da efabulação, como se regressásse-
mos aos recuados tempos em que surgiram. Aí porventura residirá
o facto de esses contos continuarem a ser largamente divulgados
desde o berço, aceites e muito, muito populares, tornando-se assim
património de cada nova geração.
Esta pequena colectânea não consegue esgotar o tema, nem di-
vulgar todos os contos, nomeadamente devido à falta de espaço mas
nunca como consequência da sua falta de importância ou representa-
tividade cultural. Para além disso, e em razão de alguns desses con-
tos serem precisamente mais divulgados e traduzidos, poderão já ser
do conhecimento de parte do público, levantando-se ainda eventuais
problemas de direitos autorais.
Esta publicação contou, na fase da sinalização e recolha do mate-
rial, com a indispensável colaboração e disponibilidade de Cidadãos
Imigrantes residentes no Concelho de Santarém, aos quais, agrade-
cemos.

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Índice
1. A espiguinha de trigo (conto popular Ucraniano)
2. O urso (conto popular Bielorrusso/Eslavo)
3. Papa de machado (conto popular Russo/Eslavo)
4. O cozinheiro e o rei (conto popular Moldavo)
5. Três palavras - Três perguntas (conto popular Georgiano)
6. Tyndalé (conto popular Moldavo)
7. Sirkô (conto popular Ucraniano)
8. O moço de estrebaria escravo (conto popular do Cazaquistão)
9. O bode e o carneiro (conto popular Ucraniano)
10. O sol e a chuva (conto popular Georgiano)
11. O Sol, o Moróz e o Vento (conto popular Ucraniano)
12. Toucinho de coelho (conto popular Ucraniano)
13. Conto dos dois coelhinhos (conto tradicional Bielorrusso)
14. A pequena Maria e o urso (conto popular Ucraniano/Russo/Bielorrusso)
15. A cabra-cabreza (conto popular Ucraniano/Russo/Eslavo)

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Bau da
Interculturalidade

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A espiguinha de trigo
(conto popular Ucraniano)

Era uma vez dois ratinhos, O Remoinho, ou Krut, e o Torvelinho, ou


Vert, mais o galo-galante-Gasganete-Vociferante – Pivnyk, Golossissti
Shiika. Os ratitos não faziam outra coisa que não fosse divertir-se,
cantarolando e dançando todo o santo dia, girando e redemoinhando
num virote. O galo-galante-Gasganete-Vociferante, esse, mal a aurora
despontava, era o primeiro a despertar tudo e todos em redor. Só de-
pois é que ia trabalhar.
Certo dia, certa vez, ao varrer o quintal, o galo encontrou uma es-
piguinha de trigo no chão.
- Remoinho, Torvelinho – chamou-os o galo-galante-Gasganete-
Vociferante.
- Olhem aqui o que eu encontrei!
Os ratitos acudiram ali, a correr, tendo opinado:
- É necessário malhá-la para a debulhar.
- Quem é que a vai malhar? – perguntou o galo.
- Eu é que não! – gritou um.
- Eu é que não! – gritou o outro.
- Bom, está bem. - disse o galo. – Malho-a eu.
E meteu mãos à obra. Enquanto isso, os ratitos puseram-se a brin-
car ao jogo da alpercata.
O galo-galaró lá acabou de malhar, tendo então gritado:
- Hei, Remoinho. Hei, Torvelinho. Ora vejam a quantidade de cereal
que debulhei! Os ratitos abeiraram-se a correr e, na sua estridente
chiadeira, proclamaram, a uma só voz:
- Agora é preciso acarretar o cereal debulhado para o moinho, para
ali o moerem e dele fazerem farinha!
- E quem é que o acarreta? – indagou o galo.
- Eu é que não! – gritou o Remoinho.
- Eu é que não! – gritou o Torvelinho.
- Bom, está bem. – disse o galo.
- Eu levo o cereal para o moinho. Ditas estas palavras, içou o saco
para os ombros e meteu-se ao caminho. Enquanto isso, os ratitos
puseram-se a jogar ao eixo-ribaldeixo, saltando, à vez, um sobre o
outro, divertindo-se a bom divertir. O galo, ao voltar do moinho, vá de
chamar novamente os ratitos:
- Remoinho, anda cá. Torvelinho, vem aqui também! Olhem, eu já
trouxe a farinha e tudo.
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Os ratos, que logo correram até ele, desfizeram-se em elogios.
- Ai mas que galo tão fixe! Assim, sim! Assim é que é! Agora é só
amassar a massa e fazer bolinhos e roscas.
- E quem é que amassa? - perguntou o galo. Ao que se seguiu de
novo a cantilena dos ratitos:
- Eu é que não! “ – guinchou o Remoinho.
- Eu é que não! “ – chiou o Torvelinho.
O galo pensou, pensou, até que disse:
- Pelos vistos, lá terei de ser eu de novo a fazê-lo.
Assim foi. Ele amassou a massa, acarretou lenha para o forno e pô-
lo a aquecer. Logo que o forno ficou quente, pôs as roscas e bolinhos
a cozer. Os ratitos também não perdiam tempo - só que a cantarolar
e a dançaricar. Até que as roscas e os bolinhos se cozeram. O galo-
galaró-bondoso-de-meter-dó, tirou-as do forno e colocou-as sobre a
mesa. Aí, os ratitos não se fizeram rogados – chegaram-se à mesa
num ápice. Nem foi preciso chamá-los…
- Oh, estou tão esfomeado! – guinchou o Remoinho.
- Ai mas que vontade de comer eu tenho! – chiou o Torvelinho.
E, sem esperarem mais nada nem ninguém, logo se sentaram à mesa.
Foi então que o galo lhes disse:
- Esperem lá, esperem lá! Digam-me primeiro uma coisa. Quem é
que encontrou a espiguinha?
- Foste tu! – gritaram alto e bom som os ratitos.
- E quem é que a malhou e debulhou? – perguntou mais uma vez
o galo.
- Quem a debulhou foste tu! – responderam eles em tom já mais
baixo.
- E quem é que acarretou o cereal para o moinho?
- Também foste tu – responderam Remoinho e Torvelinho, agora já
numa voz completamente sumida.
- E quem amassou a massa? E a lenha, quem é que a acarretou?
E quem aqueceu o forno? E as roscas e bolinhos, quem os fez e pôs a
cozer?
- Tu. Tudo foi feito por ti. – responderam os ratitos numa chiadela
sussurrada.
- E vós? O que fizestes vós?
O que poderiam eles responder a tal pergunta? Pouco mais do que
nada. Remoinho e Torvelinho começaram a levantar-se e a sair, de
mansinho, da mesa. Por seu lado, o galo galante, Gasganete Vocife-
rante, não fez nada para os travar.
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Por que motivo haveria de obsequiar com roscas e bolinhos aque-
les mandriões, aqueles preguiçosos?

O Urso
(conto popular Bielorusso)

Imaginam como surgiu o urso?

Antes de se tornar no que é hoje, o urso era, tal como nós, homem
– um ser humano. Nos longínquos tempos em que se passou esta
história, havia poucas pessoas, e mesmo essas viviam nas florestas.
Viviam da caça às feras e às aves. Na época quente do ano apanha-
vam bagas silvestres e cogumelos, extraíam raízes de certas plantas,
das quais faziam reservas para o Inverno. Contudo, nessa recuada
época eram de nozes e de mel as maiores reservas que os homens
de então faziam. Havia muitas abelhas, principalmente nas cavidades
existentes em troncos de árvores e na terra. As pessoas procuravam
abelhas nessas cavidades. O primeiro a encontrar um enxame envolvia
essa árvore com uma liana ou corda e mais ninguém tinha o direito de
atentar contra o mel que ali se encontrasse.
Por essa altura vivia um homem que era um mandrião que só visto,
pois contado não se acreditaria. Como não se queria dar ao trabalho de
andar à procura de mel, aproveitava-se, pela calada, do que os outros
descobriam.
O mandrião levava uma vida de regalo. De nada fazer e de tanto mel
alheio comer, ficou largo até mais não. Engordou de uma tal maneira,
que mais parecia uma barrica. Por isso, deixou de ser capaz de subir
às árvores para aceder ao mel.
Foi então que começou a pensar no que haveria de fazer para, sem
grande esforço, trepar às árvores. Pensou, pensou, mas não encon-
trou uma solução.
Certo dia, chegou aos ouvidos do mandrião a notícia de que longe,
muito longe, a sete florestas e sete pântanos dali, vivia um feiticeiro
capaz de realizar as coisas mais incríveis.
- “Vou ter com esse longínquo feiticeiro. Talvez ele consiga tornar-
-me mais leve.” – pensou para consigo. Assim fez. Pôs-se a caminho,
atravessando floresta atrás de floresta. Quando atravessava uma de-
las, reparou numa tília com uma corda a enrolá-la.
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Abeirou-se da tília e viu que na cavidade daquela, muito baixinha,
onde se encontrava um enxame de abelhas, havia muito mel. O man-
drião sorveu mel até ficar empanturrado e lá continuou o seu cami-
nho. Não levou muito tempo a deparar-se com mais uma tília com uma
corda nela enrolada, a qual, tal como a anterior, tinha mel na cavidade
existente no tronco. Mel que ele gulosamente também sorveu.
Não se sabe bem quanto tempo mais levou, quanto caminho mais
calcorreou. O certo é que, ao fim e ao cabo, acabou mesmo por che-
gar ao abrigo semi-subterrâneo do feiticeiro. Bateu à porta, mas
ninguém abriu a entrada – o senhor da casa encontrava-se ausente.
Aí, o mandrião resolveu sentar-se, não se preocupando muito com
o resto. A dado momento, reparou que mesmo à frente do seu nariz
havia uma tília com uma cavidade no tronco. Ora o nosso mandrião já
se acostumara a aproveitar-se do mel alheio, sorvendo-o até à última
gota. Mesmo ali não resistiu ao seu hábito costumeiro. Porém, mal
começara a devorar o mel, de bochechas cheias qual sorvedouro, eis
que aparece o feiticeiro. Perante aquela cena, o senhor dos feitiços
olhou para o mandrião e exclamou:
- Ah, mas que raio de indivíduo. Por essa malvadez, doravante não
farás outra coisa que não seja surripiar o trabalho das abelhas.
Após estas palavras, o feiticeiro transformou o mandrião no animal
que hoje conhecemos como urso. Eis como surgiu o urso.
Quem não acreditar neste relato, que deite a mão a um urso e lhe
pergunte se realmente não foi assim que tudo sucedeu.

Papa de machado
(conto Russo, mas também muito popular entre Ucranianos e Bielorussos)

Certo dia, certa vez, aconteceu que certo soldado, no seu caminho,
atravessou uma aldeia. Cansado e esfomeado, o soldado entrou numa
isba (casa), cumprimentou os presentes e, dirigindo-se à dona da
casa, perguntou:
- Ó patroa, arranja-se por aí qualquer coisita que se coma? Ora o
que a dona daquela isba mais tinha era comida.
No entanto, respondeu-lhe:
- Qualquer coisa que se coma? Que se coma não tenho nada! Hoje
nem mesmo eu ainda comi!
- Faz-se uma papa e está o assunto arrumado – sugeriu o soldado.
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- Não tenho de quê, meu caro. A não ser este machado…
- Pois dê-me esse machado, que dele mesmo farei uma papa!
- Que raio de prodígio vem a ser este? – pensou a dona da casa.
- Deixa-me cá ver como é que o diabo do soldado fará uma papa a
partir de um machado.
Mais por curiosidade do que por bondade, a dona da casa trouxe-
lhe o machado. O soldado não se fez rogado. Pegou no machado, colo-
cou-o numa púcara de barro, deitou-lhe água dentro e pôs ao lume a
cozer. Foi cozendo, cozendo, até que levou à boca a provar e proferiu:
- Está a ficar saborosa, o raio da papa! Se lhe juntássemos um
pouco de grão, então, não sei se lhe digo se lhe conto…
Mais curiosa do que bondosa, a dona da casa trouxe-lhe uma mão
cheia de grão.
O soldado deitou o grão na púcara, deixando cozer, cozer, até que
voltou a provar e disse:
- Está praticamente pronta. Se se lhe acrescentasse um bocadito
de manteiga e uma pitada de sal, então sim… isso é que era!
Incapaz de suster a curiosidade, a mulher trouxe o que lhe fora
pedido. Uma vez acabada de fazer a papa, o soldado chamou a dona
da casa:
- Patroa, ó patroa, agora só falta comer a papa – sentenciou o
soldado.
- Traga aí um naco de pão e uma colher, e vamos a isto! – acres-
centou ele.
E lá se puseram, o soldado e a dona da casa, a comer a papa.
- Nunca pensei que de um simples machado se pudesse fazer tão
saborosa papa! – Exclamou, deliciada, a dona da casa, enquanto o
soldado ia comendo com um sorriso no rosto.

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O cozinheiro e o rei
(conto popular Moldavo)

Era uma vez um rei que, certo dia, certa vez, convidou vários outros
reis, czares e conselheiros, todos estrangeiros, para um grande ban-
quete, com músicos e tudo.
Três dias antes da festa, o rei chamou o seu cozinheiro, deu-lhe
dinheiro e ordenou-lhe que fosse ao mercado e comprasse o que de
melhor e mais caro houvesse neste mundo e no outro! Ele queria que
à mesa apenas e só fossem servidos alimentos da máxima excelên-
cia.
O cozinheiro foi ao mercado e gastou o dinheiro todo em línguas.
Levou-as para a cozinha, confeccionou-as com especiarias, pre-
parando com elas diversos pratos para a mesa real.
Finalmente, os convidados reuniram-se. O rei indicou-lhes os seus
lugares à mesa e ordenou que fosse servida a comida.
O cozinheiro fez servir a cada conviva um pedaço de língua. Os hós-
pedes comeram-no, tendo então o rei ordenado que fosse servido o
prato seguinte.
O cozinheiro, porém, serviu de novo um pedaço de língua a cada
um dos presentes! Os convidados entreolharam-se, espantados, não
percebendo por que razão somente lhes serviam pratos à base de
língua. Tratar-se-ia de uma tradição local?
Contudo, os convidados comeram o que lhes fora servido, ficando
à espera do que se seguiria, o que de facto daí a pouco seria ordenado
pelo rei. Acontece que o cozinheiro trouxe um prato novamente à base
de… língua!
- Por que não nos servem outra coisa que não apenas língua? –
procuraram saber os convidados.
O rei, muito incomodado, chamou o cozinheiro e perguntou-lhe:
- Então eu não te ordenei que fosses ao mercado e comprasses o
que de melhor e mais caro houvesse, neste mundo e no outro? – , ao
que o cozinheiro respondeu:
- Vossa eminência! Haverá neste mundo ou noutro qualquer algo
de maior excelência ou de mais prestimoso do que a língua? A língua
consegue tudo – leva reis ao trono, suspende guerras, estabelece a
paz!
Os convivas ficaram espantados com o cozinheiro, elogiando a sua
engenhosidade. Então os presentes, após conferenciarem entre si,
decidiram mandar o cozinheiro novamente ao mercado, só que dessa
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vez para comprar a pior coisa que pudesse haver à face da Terra.
O cozinheiro lá foi, tendo comprado no mercado nada mais nada
menos do que ... língua! O rei, ao ver, disse-lhe:
- Então eu não te pedi que comprasses a pior coisa que houvesse
à face da Terra?
O cozinheiro esclareceu:
- Vossa eminência! Haverá algo neste ou noutro mundo qualquer
pior do que a língua? Devido a ela pode-se deitar tudo a perder, tudo
destruindo - desde a amizade à concórdia e à paz!
Tanto os reis como os seus conselheiros ficaram rendidos à sabedo-
ria do cozinheiro.

Três palavras - Três perguntas


(conto popular Georgiano)

Em tempos que já lá vão viveu, ou talvez não, um casal muito, muito


pobre. Não havia mais pobre do que aquele homem e aquela mulher.
A palhota onde viviam estava a ruir, com o telhado quase a desabar
sobre as suas cabeças.
- Não tenho forças para continuar a viver assim. Tenho de ir ga-
nhar algum dinheiro noutra aldeia – desabafou o camponês à espo-
sa.
Na margem de um rio das redondezas o homem encontra um pes-
cador, a quem pede:
- Bom homem, toma-me como trabalhador. Servir-te-ei leal e de-
dicadamente.
- Está bem, aceito-te ao meu serviço – concordou o pescador.
- No final do ano pagar-te-ei com uma vaca, mas uma vaca invul-
gar, que se pode ordenhar cinco vezes ao dia e tem crias cada duas
semanas.
O homem pobre começou a trabalhar, servindo leal e dedicada-
mente o pescador. Lançava com ele as redes de pesca ao mar, pas-
toreava o gado, tratava da vinha, regava a horta. Assim passou um ano.
O pescador trouxe a prometida vaca e disse ao trabalhador:
- Cá está a vaca pelo teu trabalho, companheiro. Esta não é uma
vaca habitual, pois pode-se ordenhar cinco vezes ao dia e tem crias de
duas em duas semanas.
Porém, dentro de três anos, três meses e três dias irei ter contigo.
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Direi três palavras e farei três perguntas. Se não conseguires respon-
der-lhes, reaverei não só a vaca, como todas as suas crias.
O homem pobre despediu-se do pescador e, levando a vaca à ar-
reata, dirigiu-se para a sua casa.
A esposa esperava o marido com lágrimas de alegria. Passaram a
viver desafogadamente.
A vaca era ordenhada cinco vezes ao dia e tinha crias cada duas
semanas. No final do ano já contavam com uma verdadeira manada. O
casal vivia sem os apertos de outrora. Porém, o camponês não parava
de pensar no pescador e nas perguntas que aquele lhe faria quando
aparecesse no prazo estipulado.
Passaram três anos e três meses. Restava esperar três dias. O
agricultor andava desolado. Não comia nem bebia.
- O que se passa contigo, homem? – perguntava-lhe a mulher.
- Estamos a prosperar, não sabemos o que é desgraça nem amar-
gura, e tu mesmo assim estás para aí sentado sem alegria.
Até que o camponês lhe contou o acordo feito com o pescador.
- Ele virá aqui amanhã e levará a manada inteira, pois não conse-
guirei responder às suas perguntas.
- Mas que raio de motivo havias de arranjar para te lamentar! Eu
mesma responderei às perguntas dele. Só não deves é permitir que
ele entre em casa ou no celeiro.
Ainda a noite não passara nem o dia nascera, quando o pescador
fez a sua aparição. Bateu à porta.
- Quem é que não deixa os outros dormir? – respondeu a mulher
às batidas na porta.
- Abre, sou eu, o pescador. Vim dizer três palavras e fazer três per-
guntas.
- Fá-las a partir daí. Para que haverias de entrar em casa?
- Ontem enviei-vos uma ave, onde é que a meteram?
- Qual ave, qual quê. Aquilo era uma mosca e o galo já a engoliu!
- O teu galo não é nada pequeno!
- Não é pequeno? Não é pequeno é favor! Pois saíba que quando
ele canta aqui, prega a minha irmã de cangalhas a nove montanhas
deste lugar!
- Mas que irmã fracota e adoentada tendes!
- Qual fracota e adoentada, qual quê!! Em nove anos, teve nove fi-
lhos. Todos cresceram que nem Hércules. São eles que tomam conta
da nossa manada e a pastoreiam!
O pescador percebeu: a vaca estava em boas mãos. Quanto à ma-
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nada, não conseguiria o intento de dela se apoderar. Em vista disso,
sentenciou:
- Vós sois dignos e merecedores da vossa ventura. Que ela vos sirva
e traga proveito.
Só então o casal permitiu ao pescador que entrasse no seu lar,
tratando-o generosamente com tudo o que melhor e mais saboroso
havia na casa..

Tyndalé
(conto popular Moldavo)

Um belo dia, a esposa mandou Tyndalé ao mercado comprar leite


ácido1 e natas maturadas. Lá ir, Tyndalé foi, só que não levou consigo
qualquer jarro. Uma vez chegado ao mercado, não tinha mais onde
deitar o leite e as natas, que não fosse as mãos em concha... Assim,
Tyndalé, sem pensar duas vezes, pegou no chapéu que levava na ca-
beça e disse para com os seus botões:
- Aqui está onde vou levar o que venho comprar.
Bem dito, bem feito. Aproximando-se da vendedora de leite, pediu-
-lhe:
- Senhora, deite-me o leite no chapéu.
Ela assim fez – deitou o leite no chapéu e recebeu o dinheiro.
- Mas logo outra chatice se lhe deparou: e agora, onde levar as
natas que tinha vindo comprar?
- Tyndalé pensou, pensou, e eis o que decidiu:
- É isso! Viro o chapéu do avesso, e pronto! Satisfeito por ter en-
contrado uma saída para aquela situação, voltou o chapéu do avesso,
sem reparar que dessa forma entornara o leite. Compradas as natas,
meteu os pés ao caminho, de volta a casa.
A sua mulher, que já estava à sua espera, ao ver que Tyndalé só
tinha comprado as natas, perguntou-lhe:
- E onde está o leite, Tyndalé?
- Está aqui, mulher, ora vê! - disse Tyndalé, começando a virar o
chapéu no sentido contrário. E as natas, catrapus, foram direitinhas
ao chão.
Assim levou Tyndalé as compras até casa.

1 Leite ácido - espécie de iogurte ou soro de leite, nalguns países da ex-URSS designado por “prostokvasha”.

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Sirkô
(conto popular Ucraniano)

Há muito, muito tempo, vivia um cão, de nome Sirkô, com um


camponês. Só que, de tão velho, metia dó. O dono, vendo que Sirkô já
não tinha préstimo, escorraçou-o da sua propriedade. Sirkô pôs-se a
deambular pelos campos.
O lobo das redondezas, ao vê-lo por ali naquele estado, abeirou-se
dele e perguntou-lhe:
- Porque andas tu assim, desprezado, por estas paragens?
Ao que Sirkô lhe respondeu:
- Ora, compadre, o meu dono correu comigo. Eis porque ando por
aqui a vaguear sem rumo.
- Se quiseres – disse-lhe o lobo, faço com que o teu dono te aceite
de volta. O que dizes?
Perante tais palavras, Sirkô exclamou:
- Fica sabendo, estimado amigo, que se fizeres isso por mim, hei-
de arranjar maneira de te agradecer.
Então, o lobo disse-lhe:
- Ora bem, escuta:
- Logo que o teu dono vá com a esposa fazer as colheitas, ela há-de
pôr o bebé à sombra de alguma meda de feno1. Tu anda ali por perto,
para eu saber onde puseram eles a criança. Depois eu aposso-me do
miúdo, mas entretanto tu recupera-lo, como se eu me tivesse assus-
tado e largado a criança.
Daí a poucos dias o camponês foi, de facto, com a esposa para a
seara fazer a colheita. A mulher pôs o pequenito sob o abrigo de uma
meda de feno e depois foi para o lado do marido, ajudá-lo a fazer a
ceifa. Daí a nada, era bom de se ver! O lobo, correndo pela seara,
apossou-se da criança, levando-a campo fora.
Sirkô lançou-se no encalço do lobo.
O velho Sirkô, sabe deus como, lá alcançou o lobo e resgatou o
menino, trazendo-o ao antigo dono. Depois de tal aflição, o camponês
tirou da lancheira um naco de pão e um pedaço de toucinho e disse:
- Toma, Sirkô. Come. Isto é por não teres deixado o lobo devorar o
meu menino!
Rente à noite, ao partirem do campo, levaram o Sirkô consigo. À
chegada a casa, o dono disse:
- Ó mulher, cozinha aí uma porção que se veja de pastéis de trigo2
e condimenta-os bem condimentados com toucinho!
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Mal os pastéis ficaram prontos, o camponês chamou o Sirkô, sen-
tou-o à mesa, tendo-se ele próprio sentado ao lado do seu fiel amigo,
dizendo:
- Bem, esposa minha, serve lá os pastéis, pois são horas de jantar-
mos.
A esposa serviu o jantar. O marido pôs uma farta porção numa tige-
la para o Sirkô, mas de forma a que ele, não fosse o diabo tecê-las,
não se queimasse!
Enquanto isso, Sirkô ia pensando: “Tenho de agradecer ao lobo por
este favor”.
Passado tempo, o camponês, tendo esperado o fim do período
de jejum religioso, durante o qual não se podia comer carne, deu a
sua filha em casamento. Sirkô foi ao campo, procurou por lá o lobo e
disse-lhe:
- No domingo à noite aparece dissimuladamente lá pela horta da
casa. Eu faço com que entres em casa e assim te retribuirei o favor
que me prestaste.
O lobo esperou pelo domingo e foi até ao local que Sirkô lhe indi-
cara. Nesse preciso dia, em casa do camponês, celebrava-se o casa-
mento da filha do dono de Sirkô. O cão foi ter com o lobo, levou-o à
socapa para dentro de casa e sentou-o debaixo da mesa. Sirkô tirou de
cima da mesa uma garrafa de gorilka3 e um grande pedaço de carne,
tendo-os levado para debaixo da mesa. Em vista disso, alguns convi-
dados quiseram bater-lhe. Porém, o dono da casa disse:
- Não batam ao Sirkô. Ele prestou-me grandes serviços. Por isso,
hei-de retribuir-lhe com todo o bem possível durante o resto da sua
vida.
Sirkô foi tirando o que de melhor havia sobre a mesa e ofertando o
lobo. Deu-lhe tanta comida e bebida que, a dada altura, o lobo não se
susteve e disse ao cão:
- Agora, estava capaz de cantar!
Sirkô não concordou, avisando-o:
- Nada de cantorias. Ai de ti! Arranjarias uma encrenca das grandes!
Bom, é melhor é dar-te mais uma garrafa de gorilka, e vê lá se ficas
de bico calado. O lobo bebeu a garrafa de gorilka que o cão lhe trou-
xera e voltou a dizer:
- Bem, agora é que canto mesmo! - bem dito, bem feito: começou
a uivar de uma tal maneira debaixo da mesa, que só visto!
Uns fugiram da casa para fora, outros puseram-se a desancar no
lobo até mais não.
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Sirkô saltou sobre o lobo de forma tal, que aparentemente até pare-
cia que o queria estrangular. O dono disse então:
- Não batam no lobo, senão ainda matam mas é o meu Sirkô! Ele
próprio dará conta do recado.
Sirkô lá levou o lobo até ao campo, dizendo-lhe:
- Tu prestaste-me um grande favor, lobo, e eu, conforme prometi,
retribui-te com o bem que pude.
Assim se despediram um do outro, indo cada qual à sua vida.

1 Meda em forma de cone, parecida a uma tenda índia, idêntica às que se usam nalgumas regiões de Portugal,
nomeadamente na região das Beiras, de modo a proteger a palha dos cereais, ou o feno, das chuvas.
2 Trata-se de trigo sarraceno, muito apreciado naqueles países, utilizado quer como condimento e recheio,
quer em papas.
3 gorilka – espécie de aguardente, ou vodka ucraniana.

O moço de estrebaria escravo


(conto popular do Cazaquistão)

Um Khan1 (rei oriental) tinha três velozes cavalos. O khan gostava


tanto deles que não os confiava a mais ninguém, a não ser ao mais fiel
de todos os seus escravos. Era das mãos desse escravo, e só mesmo
das desse, que o khan recebia ora um, ora outro cavalo quando ia fazer
os seus passeios montado. Era igualmente nas mãos desse escravo, e
só mesmo nas suas mãos que, ao regressar, deixava os cavalos.
Certa vez, em conversa com os seus vizires2 (ministros), o khan
elogiou largamente o dito escravo.
- Este moço de estrebaria é muito, muito trabalhador. E não menos
importante – sublinhou o khan, ele é igualmente muitíssimo honrado.
Aconteça o que acontecer, nunca mente.
Os vizires, enciumados, não gostaram nada da preferência que tal
elogio do khan significava.
- Oh, não se apresse em louvores, tahsyr3 (Senhor meu)! Não há
pobretana que não tenha o dom de mentir. Com certeza que esse Vos-
so servo, simplesmente, ainda não se viu a braços com uma situação
tal, em que se visse forçado a mentir.
- Por que razão caluniais, sem qualquer fundamento, um bom
homem? – Exclamou o khan, procurando envergonhar os seus
vizires.
- Estou certo de que o meu moço de estrebaria preferirá morrer a
18
mentir. Acredito nele como em mim próprio!
Então, o mais antigo dos vizires, dirigindo-se ao seu khan, disse:
- Tahsyr meu! O que me daríeis Vós de recompensa se eu fizesse
com que esse servo mentisse?
- Se o meu moço de estrebaria mentir – respondeu-lhe o rei,
- cedo-te o trono de khan. Porém, ó vizir, se perderes a aposta, não
haverá quem te salve de te deceparem a cabeça.
O vizir ficou radiante e a si próprio definiu um prazo para atingir
aquilo a que se propunha - quatro dias.
Aquele vizir tinha três lindas filhas. Eram tão belas, tão belas, que
nem o sol nem a lua se comparavam à sua beleza.
Ao chegar a casa, o vizir chamou as suas filhas, dizendo-lhes:
- Minhas filhas – dirigiu-se-lhes ele, tenho-vos a comunicar que
discuti com o próprio khan. Eu asse-gurei-lhe que faria com que o seu
moço de estrebaria lhe mentisse. Se eu conseguir fazer com que isso
aconteça, então, com a ajuda de Alá, tornar-me-ei khan. De contrário,
espera-me uma morte certa.
As filhas do vizir puseram-se a congeminar:
- Como ajudar o nosso pai, fazendo com que o moço de estrebaria
minta ao khan?
Momentos depois, o vizir voltou a dirigir-se-lhes:
- Vejo que estais dispostas a ajudar-me. Ora, não é difícil alcançá-
-lo. Já pensei no que há a fazer para o conseguir.
- Somos todas ouvidos, pai – exclamaram as jovens uma a uma,
aproximando-se do vizir.
- Sendo assim, eis o que vos aconselho a fazer. A partir de hoje,
cada uma de vós irá, à vez, ter com o moço de estrebaria quando ele
estiver a pastar os cavalos durante a noite, permanecendo com ele até
ao amanhecer. Ao prepararem-se para o regresso, ele há-de pergun-
tar-vos como agradecer a vossa visita. Então, como recompensa, vós
pedir-lhe-eis a cabeça de um dos corcéis. O servo não se atreverá a
recusar o vosso pedido. Assim, quando tiver matado os três cavalos,
o moço de estrebaria não ousará reconhecer tal verdade perante o
khan. Dessa maneira, ver-se-á obrigado a mentir-lhe.
As filhas concordaram com o plano de seu pai.
No primeiro dia, foi a filha mais velha a ir ter com o moço de es-
trebaria. Ela vestiu a sua melhor roupa, tendo ficado tão bela, tão bela”
como uma “Peri”4. Ao vê-la, o moço de estrebaria ficou de tal modo
desconcertado, que por momentos perdeu o dom da fala. Nunca antes,
em lado algum, dele se aproximara tão bonita, tão bela rapariga.
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Finalmente recomposto, o moço de estrebaria exclamou:
- Oh, Khanym5! Bem vinda sejas!
A filha do vizir sorriu e, carinhosamente, disse:
- Vim até aqui, pois quero partilhar contigo esta noite. Eu sou a filha
do vizir-chefe. Sabei que, de tantos pretendentes ter, desde filhos de
nobres e de vizires, a filhos de reis, não consigo encontrar descanso.
Contudo, o meu coração para nenhum deles se inclina. Prefiro o teu
amor por uma noite, ao deles por toda a vida.
- Oh, khanym! Haveis tomado a decisão acertada. – exclamou o
escravo, de cabeça completamente perdida.
A filha do vizir passou toda a noite com o moço de estrebaria. Quan-
do, pela manhã, se preparava para regressar a casa, o servo pergun-
tou-lhe:
- Oh khanim, neste momento de despedida tem algum pedido a
fazer-me? – perguntou o escravo.
- Gostaria que me ofertasses a cabeça de um dos cavalos – respon-
deu, de pronto, a filha do vizir.
Após uma curta hesitação, o moço de estrebaria derrubou de um
só golpe um dos cavalos, cortou-lhe a cabeça e entregou-a à jovem.
Ela pegou na cabeça decepada do cavalo e, sem pressas, encami-
nhou-se para casa.
À noite foi a filha do meio a ir até à pastagem. Ela era suave e cari-
nhosa que nem um anjo. O moço de estrebaria ficou muito contente
com a sua chegada. Ela ficou toda a noite com o escravo. De manhã,
tal como a sua irmã, em sinal de gratidão pediu, e recebeu, a cabeça
de outro dos cavalos. Ao terceiro dia foi a vez da filha mais nova do
vizir-chefe ir ter com o moço de estrebaria. Tudo se repetiu, tendo ela
regressado a casa com a cabeça do terceiro cavalo.
Durante três dias, o pobre escravo não conseguiu arranjar coragem
para confessar ao khan o que acontecera. Por fim, decidiu-se e tomou
o caminho do palácio. O khan não se encontrava no local do costume.
Por isso, o moço de estrebaria, pretendendo imaginar como seria o
seu encontro com o khan, colocou o chapéu que trazia sobre o trono.
Assim, fazendo de conta que o chapéu era o khan, foi até à porta da
sala e voltou a dirigir-se ao trono.
- Por onde andastes estes três dias? Por que razão não me man-
tiveste informado sobre como estão os meus três cavalos preferidos?
– perguntava ao moço de estrebaria o khan imaginário.
- Oh tahsyr meu! Os seus cavalos estão de perfeita saúde, bem
tratados e lustrosos - respondeu mentalmente o escravo, logo sentin-
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do profunda vergonha pela falsidade das suas palavras.
Tornou a sair pela porta e tornou a dirigir-se ao trono.
- Por que motivo não apareceste estes três dias? Como estão os
meus cavalos? – perguntou-lhe novamente o khan imaginário.
Então, o moço de estrebaria disse:
- Oh tahsyr meu! Os cavalos estão muito doentes. Já há três dias
que nem tocam na comida.
E mais uma vez o moço de estrebaria sentiu vergonha de si próprio
por aquelas enganosas palavras. O moço, após um instante, abanou a
cabeça e saiu da sala.
Tornou repetidamente a abeirar-se do khan imaginário, e outras
tantas vezes se censurou por mentalmente lhe mentir. Por fim, de-
cidiu-se. Contaria toda a verdade ao khan, desse por onde desse! Foi
até à horda6 do khan, onde este habitualmente conferenciava com os
seus vizires e nobres senhores.
- Hei, onde andaste estes três dias? – gritou-lhe o khan, ao avistar
o se moço de estrebaria.
- Não aconteceu nada com os meus cavalos preferidos? – quis o
khan saber.
Ao que o servo disse:
- Oh, meu tahsyr! Aqui tem a minha cabeça. Decepe-a, se por bem
assim achar, pois vós já não tendes cavalos.
E o servo contou tudo ao khan, não lhe ocultando nada.
O khan, ao saber da morte dos seus tão adorados cavalos, ficou
muito pesaroso. De tal forma, que não conseguiu pronunciar palavra
durante muito tempo. Finalmente, virou-se para o homem sentado
ao seu lado, que era nem mais nem menos do que o vizir-chefe. O
vizir caiu aos pés do khan, em pranto, suplicando-lhe misericórdia.
Contudo, o khan foi implacável. O rei chamou, e ordenou ao carrasco
que cortasse a cabeça ao vizir. Entretanto o khan, para o lugar do vizir,
nomeou o moço de estrebaria.
Foi assim, graças à sua honradez, que o moço de estrebaria atingiu
a felicidade.

1 - Khan - título equivalente a rei, nalguns reinos orientais do passado.


2 - Vizir - título equivalente a ministro, no sistema de governação de alguns reinos orientais do passado.
3 - Tahsyr - forma de tratamento equivalente a “Senhor meu”, “my lord”.
4 - “peri” - na mitologia persa, é uma fada-madrinha alada, de excelsa e cativante beleza, protectora das
pessoas dos espíritos malignos. Noutra versão, trata-se de um anjo expulso do céu, entretanto purificado, ser
etéreo que habita nas camadas superiores, próximas do céu, que se alimenta dos odores das flores e protege
as pessoas dos espíritos malignos.
5 - “Khanym”, ou “Khanum”- trata-se da esplendorosa, da bela rainha “Bibi Khanym“, esposa do grande Khan
Timur, ou Tamerlão (n. 1336 – m. 1405, um dos maiores conquistadores e dos mais célebres khanes da história

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da humanidade), senhor de meio mundo no seu tempo. Em honra da bela Bibi Khanym (após mais uma vito-
riosa campanha militar do khan Tamerlão, dessa feita na Índia) foi construída a célebre mesquita do mesmo
nome, em Samarcanda, ”a pérola das estepes asiáticas” e capital do império timúrida. Essa mesquita deveria,
de acordo com as aspirações de grandeza de Tamerlão, tornar-se na mais grandiosa e mais bela de todas as
construções confessionais do mundo do seu tempo.
6 - Horda - forma de união e governação entre os povos turcófonos na antiguidade. Governo do império tár-
taro-mongol.

O bode e o carneiro
(conto popular Ucraniano)

Em tempos que já lá vão, numa aldeia distante viviam marido e


mulher em grande pobreza, apenas tendo como seu um bode e um
carneiro.
Um dia o marido disse à esposa:
- Ó mulher, temos de nos desfazer do bode e do carneiro. Eles só
comem o pouco que temos, sem qualquer proveito.
Se bem o disseram, melhor o fizeram.
- Vá, vá, fora daqui bode. Fora daqui carneiro. Não ponham nem
mais um pé nesta casa.
O bode e o carneiro assim fizeram. Empandeiraram os seus ha-
veres numa sacola e puseram-se dali a andar.
Foram andando, andando, caminhando, caminhando, até que de
repente, no meio de um descampado, viram a cabeça de um lobo de-
cepada.
O carneiro era grandalhão, mas medroso, enquanto que o bode era
destemido, mas tinha uma fraca figura.
- Pega nela que és grande e forte – disse o bode ao carneiro.
- Leva-a tu, bode, pois és mais destemido.
Acabaram por ser os dois a pegar na cabeça do lobo decepada, ati-
rando-a para dentro da sacola. Continuaram a andar, a caminhar, até
que de repente vislumbraram as chamas de uma fogueira.
- Vamos até à fogueira! Pernoitamos ali, para que os lobos não nos
devorem – disse um deles.
Ao aproximarem-se do local, viram que se tratava de lobos a fazer
papa para, à falta de carne, comerem.
- Mas que maravilha! Fixe, malta – exclamaram entre si os lobos.
- Olá, amigos. Olá, olá! A papa ainda não está a ferver, daí que a
vossa carne vem mesmo a calhar.
Nesse ponto o bode assustou-se a bom assustar. O carneiro, esse,
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já há muito que estava aterrorizado. Nesse pano de fundo, o bode en-
controu a seguinte saída:
- Ó carneiro, traz lá a cabeça de lobo – o carneiro assim fez.
- Não é essa. Traz a maior – o carneiro levou aquela e tornou a
trazer… a mesma, claro, pois outra não tinham!
- Traz-me outra, ainda maior do que essa! – tornou a ordenar o
bode. O carneiro assim fez, trazendo a mesma se outra fosse, mas que
aos lobos de facto parecia cada vez maior! Nesse ponto foi a vez de os
lobos se assustarem, começando a coçar a cabeça e a pensar como
sair dali para fora.
- Isto está tudo muito bem, malta, mas a papa está a ferver e é
preciso ir buscar água para lhe deitar.
Quem assim falou foi um dos lobos, que logo se encaminhou na
direcção da água. Porém, ao ficar um pouco afastado dali, disse para
consigo:
- Vão mas é para o diabo. Fiquem a léguas de mim e vão morrer
longe.
O segundo lobo começou, também ele, a congeminar como escapar
dali. Foi buscar água e ficou lá sentado.
- E nós aqui sem nada que deitar na papa. Vou buscá-lo com um
calhau e trago-o a toque de caixa, que nem um cão.
Mal ficou fora de vista, também ele deu às da vila diogo para bem
longe dali, não mais voltando. O terceiro mantinha-se sentado, muito
apreensivo, até que disse:
- Vou buscar aqueles dois malvados e trago-os a toque de caixa. Ai
isso é que trago!
Saiu a correr e ninguém mais lhe pôs a vista em cima.
- Bom, irmão-carneiro, vamos mas é fazer as honras à papa. Coma-
mos quanto antes e depois temos mas é de sair desta fumarada, antes
que as coisas aqueçam em demasia por aqui.
Enquanto isso, os lobos encontraram-se num sítio ermo do des-
campado e começaram a discutir a situação:
- Mas o que podemos nós, três lobos, ter a temer de um bode e de
um carneiro? Vamo-nos àqueles dois e chamamos-lhe um bife.
Os lobos regressaram ao local, mas os dois companheiros tinham-
se despachado rapidamente e saído da fumarada da fogueira. Numa
corrida, procuraram refúgio num carvalho que havia por ali, em cima
do qual se ocultaram. Os lobos começaram a pensar na maneira de
deitar a mão ao bode e ao carneiro. Puseram-se à procura deles,
acabando por os encontrar em no carvalho.
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O bode intrépido subira ao cume do carvalho, enquanto que o car-
neiro, medroso que era, ficou bastante mais abaixo.
- Deita-te aqui – disseram os lobos mais novos ao mais experi-
ente.
- Tu, como mais velho, é que tens que magicar uma maneira de
acabar com eles.
O mais veterano dos lobos deitou-se e começou a conjecturar. O
carneiro, sentado num tranco frágil, não parava de tremer de medo.
Tanto tremeu, tanta vibração causou, que se estatelou mesmo sobre
o lobo deitado, assustando-se de morte tanto um como outro. O bode,
sempre destemido, não perdeu presença de espírito e pôs-se a ber-
rar:
- Tragam-me o feiticeiro do cajado! Tragam-me o feiticeiro do ca-
jado!
Os lobos, apavorados com aquela reviravolta, não tiveram outro
remédio senão bater dali em retirada.
Lá diz o velho ditado: o medo tem os olhos grandes.

O sol e a chuva
(conto popular Georgiano)

Era uma vez um homem pobre que tinha duas filhas. Uma, deu-a a
casar com um agricultor, outra, com um oleiro.
O tempo passou, até que certo dia a esposa do homem pobre alvi-
trou:
- Ó homem, vai visitar as nossas filhas. Vê como elas estão. Procu-
ra saber do que elas precisam, que alegrias têm na vida.
O homem pobre fez o que a esposa lhe aconselhou. Primeiro foi
visitar a sua filha mais velha, cujo marido era agricultor. O velhote
perguntou como ia a vida, como corriam as coisas da casa e se espe-
ravam uma boa colheita.
- O que vos poderei eu dizer? Como podeis ver, está um calor tre-
mendo – respondeu o genro agricultor.
- Se nesta semana não chover, tal como as coisas caminham, es-
tamos desgraçados. O trigo perder-se-á na seara, queimado pela es-
turra!
Depois, o homem pobre foi visitar a filha mais nova. Perguntou ao
24
genro oleiro como ia o seu negócio, gabando-o pela sua entrega ao
trabalho, por ser tão diligente.
- Fizeste muita louça – disse ao genro.
- Vendendo-a no mercado, asseguras o sustento para todo o In-
verno.
- Como lhe hei-de explicar… Caso o calor se mantenha por mais
uma semana, as minhas tigelas e os meus jarros atingirão o ponto
de secagem ideal. Nesse caso, não há Inverno que me meta medo.
Porém, se chover, estaremos completamente perdidos!
O homem pobre voltou a casa.
- Então, como vivem as nossas filhas? – perguntou a esposa.
- Esta semana, ou a nossa filha mais velha ou a mais nova vai ficar
na miséria - explicou o marido à esposa, que se benzia sem nada per-
ceber.

O sol, o Moróz1 e o Vento


(conto popular Ucraniano)

Indo certo dia, certa vez, um homem a passar numa estrada, viu
três caminhantes e dirigiu-se-lhes, dizendo:
- Viva, bom dia! – prosseguindo o seu caminho sem parar.
Os três companheiros puseram-se a discutir sobre a qual deles é
que o homem cumprimentara. Decidiram voltar atrás, indo no encalço
do homenzinho e, ao alcançá-lo, perguntaram-lhe:
- A qual de nós é que desejaste bom dia?
Ao que ele respondeu com outra pergunta:
- Mas, afinal, quem sois vós?
Um responde:
- Eu sou o Sol.
Outro diz:
- Eu sou o Moróz.
Por sua vez, o terceiro disse:
- E eu sou o Vento!
- Pois bem, as minhas palavras foram dirigidas ao Vento - reco-
nheceu, por fim, o desconhecido. Eis senão quando o Sol, furibundo,
vociferou:
- Ai é? Pois quando fores a atravessar o restolho, hei-de queimar-
-te.
25
Ao que o Vento disse, sossegando o caminhante:
- Não tenhas medo. Eu soprarei uma corrente fria e arrefecer-te-
-ei, nada deixando chegar até ti.
Já o frio árctico Moróz(e) ameaçou:
- No Inverno, hei-de enregelar-te.
Mais uma vez o Vento saiu em defesa do desconhecido, dizendo ao
Moróz(e):
- Eu soprarei de forma tal, que em breve passará o tempo da tua
estação e o calor reaparecerá num ápice.
Por aqui se vê que, por sabedoria ou acaso, o caminhante fez a
escolha certa.
1 - Moróz – termo russo, muito corrente na linguagem comum e na literatura dos estados oriundos da ex-
URSS e nos países eslavos orientais, significando o frio árctico, frio de Inverno. No imaginário popular este
termo ganhou autonomia como personagem animada e nome próprio, daí se transferir para a literatura, como
aqui acontece, juntamente com o Vento e o Sol. Lê-se “Máróze”

Conto dos dois coelhinhos


(conto tradicional Bielorusso)

Certo dia, dois coelhinhos sentaram-se num bosque a aquecer-se


ao sol e a conversar, debaixo de uma bétula.
É tão bom estar no bosque!...
Enquanto isso, os insectos iam-se perseguindo uns aos outros,
zumbindo com as suas asitas, como se se estivessem a rir. Mais além,
o melro assobiava, bulindo com o menino Pilipko:
- Pyulip! Pyulip!
Pilipko, na mata de urzes, de cestinha de vime no braço, procurava
descortinar “borovitchki” [cogumelos comestíveis – “boletos”].
Um pouco mais longe, um cuco ia cantando em sua própria honra:
“cucu-cucu”.
Que lindo dia. Que dia quente e alegre!
Contudo, os coelhinhos não estavam felizes. Na sua conversa há
desconsolo.
- Oh, que sina amarga a nossa! – dizia um dos coelhitos.
- Cada santo dia é passado em temor, cada minuto a tremer de
medo, a ver se o inimigo não andará pelas proximidades.
- E são tantos os nossos inimigos! Não há quem não nos faça mal,
a nós, pobres coelhinhos!
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São as pessoas a magoar-nos. São os bichos a maltratar-nos. Até
as aves de rapina - gaviões, corujas, mochos – até elas nos mortifi-
cam, a nós, pobres coelhinhos.
- E como nos poderemos salvar-nos de tão ruins inimigos? Onde
procurar protecção? A única esperança são as nossas pernas: se elas
nos conseguirem pôr ao largo – poderemos dar-nos por felizes. Caso
não nos consigam pôr a léguas – não salvaremos a pele!
E os coelhinhos puseram-se a chorar amargamente. Iam chorando
e limpando as lágrimas com as patitas.
- Mas como havemos nós de viver neste mundo? – lamentava-se
em jeito de pergunta o segundo coelhinho.
- Pois se ninguém nos teme… Mas é que mesmo ninguém, por nin-
guém ser! Será que só nos resta mesmo atirarmo-nos ao mar?
Os pobres coelhitos choravam a bom chorar, desconsoladamente,
até que se encaminharam para o lago, decididos a afogar-se de tanta
amargura, de tão enorme tristeza.
Chegados ao lago, pararam para uma última e definitiva despedida
um do outro. Aproximaram-se da margem para se deitarem à água,
quando de repente vêem – uma rã dá um salto, assustada, para um
montículo. Ao ver os coelhitos, ela ficara atemorizada.
- Eh pá! – exclamou um dos coelhinhos.
- E esta, hã! Afinal, neste mundo sempre há criaturas que nos te-
mem, a nós, coelhos! E, ao que se vê, para elas ainda é mais difícil do
que para nós, viver neste mundo.
Os coelhinhos entreolharam-se e puseram-se a correr de volta ao
bosque.

A pequena Maria e o urso


(conto Eslavo muito popular entre Ucranianos, Russos e Bielorussos)

Em tempos que já lá vão, viviam um velhinho e uma velhinha, e


com eles a sua netinha Maria, a quem carinhosamente chamavam
Masha1.
Certa vez, as amigas dela juntaram-se para ir ao bosque apanhar
cogumelos e bagas silvestres. Antes, porém, foram chamar a Masha
para ir com elas.
- Avô, avó – pediu Masha.
- Deixem-me ir ao bosque com as minhas amigas!
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Ao que os avós responderam:
- Vai lá, mas não te atrases das tuas amigas, senão perdes-te.
Chegadas ao bosque, as meninas começaram a apanhar cogume-
los e bagas silvestres. A Mashenka1 foi caminhando de árvore em
árvore, de arbusto em arbusto, acabando por se afastar para muito,
muito longe das amiguinhas.
Aí, ela começou a gritar “hei”, “hei”, chamando por elas. Porém, as
amigas não a ouviam, nem davam sinal de si.
Masha andou, andou, até que se perdeu por completo. De tanto
andar, chegou ao ponto mais longínquo e mais cerrado do bosque. Ao
olhar, viu uma pequena isba2.
Mashenka bateu à porta, mas ninguém respondeu. Empurrou a
porta, e a porta abriu-se. Mashenka entrou na pequena isba e sentou-
se à janela num comprido banco de madeira.
Sentou-se e pôs-se a pensar:
“Quem é que morará aqui? Porque será que não se vê vivalma?...”
Ora naquela isba vivia um urso grande-grandalhão. Só que naquele
momento ele não estava em casa. Andava pelo bosque. Ao fim do dia,
ao regressar à isba e ao ver Mashenka, o urso ficou radiante.
- Hum! – pronunciou.
- Agora não te deixo ir embora! Ficas aqui a morar comigo. Vais pôr
lenha no forno para o aquecer, fazer papa e dar-ma a comer.
Masha barafustou, chorou, lastimou-se, mas nada a ajudou. Foi as-
sim que Masha passou a morar com o urso na isba.
O urso ia todo o santo dia para o bosque, ordenando a Masha que,
sem ele, não pusesse o pé fora da isba.
- E se tentares fugir, hei-de encontrar-te e então…então sim, como-
te pela certa”!
Mashenka pôs-se a pensar como escapulir-se dali e fugir do urso.
À sua volta, porém, era só floresta. Não fazia ideia em que direcção ir,
tão pouco tinha a quem perguntar...
Matutou, matutou, até que magicou um plano.
- Certa vez, ao chegar o urso do bosque, Masha disse-lhe:
- Ó urso, urso, deixa-me ir um diazito à aldeia levar umas lem-
branças ao meu avô e à minha avó.
- Não – replicou o urso.
- Tu perdes-te no bosque. Dá-me os presentes, que eu mesmo lhos
levo!
Ora, era precisamente disso que Mashenka precisava! Ela fez
pastéis, arranjou uma caixa enorme e disse ao urso:
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- Cá está. Olha, eu ponho os pastéis nesta caixa, e tu leva-los ao
meu avô e à minha avó. Mas lembra-te: não abras a caixa durante o
caminho, nem dela tires pastéis. Eu vou subir a uma árvore e, de lá,
observar-te!
- Está bem – respondeu o urso.
- Dá cá a caixa! Masha disse:
- Agora sai ao varandim e vê se o tempo está com cara de ir chover.
Assim que o urso saiu para o varandim da isba, logo Mashenka se me-
teu dentro do caixote, pondo o prato dos pastéis sobre a cabeça.
Ao tornar à sala, o urso encontrou aquela grande caixa já preparada.
Pô-la às costas e meteu-se a caminho da aldeia.
Assim caminhou o urso, indo ora entre pinheiros, ora entre bétulas,
barranco abaixo, outeiro acima. Foi andando, andando, até que, tendo
ficado cansado, disse:

Vou mas é sentar-me neste cepo,


e comer um pastel ou papo-seco!

Mas nisto soa a voz da Mashenka, de dentro do caixote, como se de


longe fosse:

Eu estou a ver tudo, tudinho!


Não te sentes no cepo.
Não comas nem pastel nem papo-seco!
Vá lá, vá lá ursinho.

Leva-os à minha avó,


Leva-os ao meu avô!

- Bolas, mas que olhos-olhões ela tem! Vê tudo! – exclamou o


urso.
Dito isto, pegou no caixote e lá continuou o seu caminho. Andou,
andou, e mais andou e tornou a andar, até que parou, sentou-se e
disse para consigo:

Vou mas é sentar-me neste cepo,


e comer um pastel ou papo-seco!

Mas eis que soa de novo a voz de Mashenka, de dentro do caixote,


como se de longe fosse:
29
Eu estou a ver tudo, tudinho!
Não te sentes no cepo.
Não comas nem pastel nem papo-seco!
Vá lá, vá lá ursinho.

Leva-os à minha avó,


Leva-os ao meu avô!

O urso ficou espantado:


- Ai mas que esperta que ela é! Sentou-se a altura tal, que a sua
vista alcança uma grande, uma enorme lonjura!
E o urso lá se levantou, fazendo-se rapidamente ao caminho. Ele
chegou à aldeia, encontrou a casa onde viviam os avós de Masha, e
toca de bater ao portão com quanta força tinha:
- Tuc-tuc-tuc! Abram, abram! Trago-vos presentes da parte da
Mashenka.
Os cães, tendo captado o cheiro do urso, atiraram-se a ele. Eles
corriam e ladravam de todos os quintais.
O urso assustou-se, pôs o caixote junto ao portão e fugiu dali para
fora sem sequer olhar para trás.
A avó e o avô da Masha saíram então cá fora, abeirando-se do
portão. Puseram-se a olhar e repararam numa grande caixa ali colo-
cada.
- O que terá o caixote? – Interrogou-se a avó.
Nisto, o avô levanta a tampa, mira, mira e não pode crer no que os
seus olhos vêem! Bem dentro da caixa está a sua netinha Mashenka
sentada, viva, vivinha e com muita saudinha!
Os avós ficaram radiantes. Puseram-se a abraçar e a beijar a sua
Mashenka, não parando de lhe gabar a inteligência.

1 Masha, Mashenka - diminuitivos de Maria, sendo o último deles o mais carinhoso, equivalente a Mari-
azinha.
2 isba - designação de casa típica de outros tempos na Rússia, feita de madeira, podendo por vezes parecer-se
a uma cabana. Lê-se “isbá”.

30
A cabra-cabreza
(conto popular da Ucrânia e da Rússia)

Em tempos que já lá vão, em certo país, em certa região, viviam um


velhote e uma velhota com a sua netinha Masha, em feliz comunhão.
Eles não tinham nem vaca nem porco, nem mais gado nenhum.
De animais, só tinham um - uma cabra de olhos pretos esbuga-
lhados, perna torta e chifres aguçados.
Porém, ao velhote nada disso apoquentava, pois era a cabra que
mais adorava. Não se querem crer? Ora escutem, e já vão ver.
Certa vez, o velhote disse à mulher para ir pôr a cabra a pastar.
Ela deixou-a pastar, pastar, até que a fez a casa regressar. O velhote,
sentado ao portão, não deixou de perguntar:
- Cabrinha minha, minha cabrinha, de olhos pretos esbugalhados,
perna torta e chifres aguçados: o que comeste? O que bebeste?
- Não pude comer nem beber.
A velhota nem no pasto me quis manter. Só ao passar a correr pela
pontezita, consegui de um plátano arrebatar uma folhita. Foi esse o
meu pasto, nada farto, nada basto.
O velhote, furioso com a mulher, gritou, barafustou, até que a neta,
pastar a cabra mandou. Ela deixou-a pastar, pastar, até que a fez a
casa regressar.
O velhote, sentado ao portão, não deixou de perguntar:
- Cabrinha minha, minha cabrinha, de olhos pretos esbugalhados,
perna torta e chifres aguçados: o que comeste? O que bebeste?
Ao que a cabra respondeu:
- Não pude comer nem beber, nem a vossa netinha no pasto me
quis manter. Só ao passar a correr pela pontezita, consegui de um
plátano arrebatar uma folhita. Foi esse o meu pasto, nada farto, nada
basto.
O velhote ficou furioso com a neta, gritou, barafustou, até que ele
próprio, a cabra a pastar levou. Ele deixou-a pastar, pastar, até ela se
fartar, fazendo-a depois a casa regressar.
O velhote correu a tomar a dianteira, sentou-se ao portão e, com
antecipada satisfação, perguntou à matreira:
- Cabrinha minha, minha cabrinha, de olhos pretos esbugalhados,
perna torta e chifres aguçados: Então, desta vez, comeste bem?
E de beber, bebeste com fartura também?
Ao que a cabra respondeu:
- Não pude comer nem beber. Ao passar pela pontezita a correr, lá
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consegui arrebatar uma folha de plátano, mas só mesmo uma pude
comer.
O velhote enfureceu-se com a impostora. Pegou no cinto e zurziu-
lhe as ilhargas, deixando-lhas bem coçadas, tendo-se para a floresta
raspado a matreira.
Embrenhou-se bosque dentro a cabra-cabreza. Ao ver a isba do
coelho que ali vivia, penetrou nela com grande destreza, subindo para
o capelo do forno e trancando as portas no ferrolho.
O coelho, esse, andava numa horta das cercanias a comer repolho.
Quando chegou a casa, deparou-se com a porta trancada.
O coelho, então, bateu à porta, perguntando:
- Quem é que se apossou da minha isba, nem sequer me deixando
entrar lá?
Ao que a cabra lhe respondeu:
- Eu sou a cabra-cabreza, de ilhargas coçadas com severa aspe-
reza, comprada por três tostões furados. Tenham cuidado, pois com
as patas posso-vos deixar todos espezinhados, com os chifres - todos
varados, com o rabo – todos vergastados.
O pobre coelho fugiu a bom fugir, escondendo-se debaixo de uma
moita a carpir, Todo ele em convulsão, Enxugando as lágrimas com a
mão.
Indo por ali o lobo cinzentão a passar, Disse, com os dentes a re-
chinar:
- Ó coelhito, do que estás tu para aí a chorar, tantas lágrimas a
derramar?
- Como não hei-de eu chorar, como não hei-de penar, se na clarei-
ra do bosque construí uma isba para nela morar. E agora a cabra-ca-
breza me a ocupou, e quando lá cheguei, nem nela entrar me deixou!
- Não estejas para aí a penar, coelhinho, Não padeças assim,
cinzentinho, pois agora mesmo para lá iremos e de lá a expulsare-
mos.
O lobo cinzento abeirou-se da isba, e vá de gritar:
- Cabra-cabreza, sai da fornalha, liberta a isba, para o coelhinho a
ela voltar, pois se não o fizeres, não há quem te valha!
Mas eis que a cabra lhe responde:
“Eu sou a cabra-cabreza, de ilhargas coçadas com severa aspe-
reza, comprada por três tostões furados, mas se chego a saltar daqui,
se chego daqui a sair, ai de vós, que vos deixo todos espezinhados
e com os chifres - todos varados, faço-vos em fanicos, por todas as
ruelas espalhados.”
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O lobo, assustado, pôs-se dali a fugir. O pobre coelho, debaixo de
uma moita, ia chorando, E, com a mãozita, as lágrimas enxugando.
Depois foi o urso-perna gorda a por ali passar. À sua volta eram só
árvores e arbustos sob as suas patas a estalar.
- Ó coelhito, do que estás tu para aí a chorar, tantas lágrimas a
derramar?
- Como não hei-de eu chorar, como não hei-de penar, se na clarei-
ra do bosque construí uma isba para nela morar, e agora a cabra-ca-
breza me a ocupou, e quando lá cheguei, nem nela entrar me deixou!
- Não te apoquentes mais, coelhinho! Que eu de lá a expulsarei
num instantinho.
O urso foi até à isba, e toca a rugir:
- Cabra-cabreza, fora da fornalha, já! Sai da casa do coelhinho,
desocupa-lhe a isba. Mas eis que a cabra lhe responde:
- Se chego a saltar daqui, se chego daqui a sair, ai de vós, que vos
deixo todos espezinhados, e com os chifres - todos varados. Faço-vos
em fanicos, por todas as ruelas espalhados.
O urso, assustado, pôs-se dali a fugir.
O pobre coelhinho, numa moita, mais do que nunca ia chorando, e
com a mãozita as lágrimas enxugando, sem esperança, clamando:
Quem ajuda este pobre coelhinho, quem ajuda o cinzentinho?
Até que por ali passou o galo-galaró, de crista escarlate, cocoro-
cocó, botas encarnadas calçadas, esporas nos pés bem aguçadas, e
ao ombro – uma foice, olará, olaró!
- Porque choras tu, coelhinho, tão amargamente? Porque derra-
mas tu assim, cinzentinho, lágrimas tão abundantemente?
- Como não hei-de eu chorar, como não hei-de penar, Se na clarei-
ra do bosque construí uma isba para nela morar, e agora a cabra-ca-
breza me a ocupou, e quando lá cheguei, nem nela entrar me deixou!
- Não te apoquentes mais, coelhinho! Que eu de lá a expulsarei
num instantinho.
- Mas como, se eu a tentei pôr de lá para fora, sem resultado. O
lobo quis correr com ela, e viu o seu intento falhado. Depois foi a vez do
urso tentar, em vão, de lá escorraçá-la. Como conseguirás tu agora,
Pedrote-galarote, de lá expulsá-la?
- Vamos lá – retorquiu o galo-galaró.
- Pernas ao caminho e logo veremos. Talvez consigamos, talvez
desta de lá a escorracemos. Abeirou-se Pedrote-galarote da isba, e
pôs-se a berrar com quanta força há:
- Cá vou eu, cá vou eu não tarda nada, com uma espora em cada pé
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bem armada, De foice em riste bem afiada
- É desta é que a cabra leva a cabeça cortada! Cocorococó, que
ninguém tenha dela um pingo de dó.
Assustou-se a cabra a valer. Deu um destes saltos da fornalha, que
era bom de ver. Primeiro pulou da fornalha para a mesa, da mesa
saltou para o chão com ligeireza, e dali saiu porta fora correndo a bom
correr, tendo-se ido na floresta esconder, sem que mais ninguém a
pudesse ver.
Assim pôde o coelhinho voltar à sua isba na clareira da floresta,
ainda hoje por lá andando a roer cenouras, contente e em festa. De
todos que o ajudaram, guarda gratas recordações, e a todos manda
saudações.
Assim chegou ao fim este conto, esta lenda. A quem com atenção
até ao fim a ouviu - um louvor, uma prenda.

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Bau da
Interculturalidade
Promotores:

Munícipio de Santarém 2010

Edição: Tiragem:
CMS/DSAS 2010 500 exemplares
aPersistente - CHAMUSCA

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