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EDNA BERTOLDO
GORETE AMORIM
JANE MARINHO
SEVERINA LESSA MOURA
Organizadoras:
Edna Bertoldo
Gorete Amorim
Jane Marinho
Severina Lessa Moura
MARX E A EDUCAÇÃO
Diagramação: Fernanda Beltrão
Revisão: Sidney Wanderley
Capa: Laura de Bona
Catalogação na Fonte
Departamento de Tratamento Técnico Coletivo Veredas
____________________________________________________________
M392 Marx e a educação / (Organizadoras) Edna Bertoldo ... [et al.].
– Maceió : Coletivo Veredas, 2021.
273 p.
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-88704-09-7
CDU: 331+37(111.1)
____________________________________________________________
Elaborada por Fernanda Lins de Lima – CRB – 4/1717
Este trabalho está licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição
4.0 Internacional. Para ver uma cópia desta licença, visite http://creativecom-
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1ª Edição 2021
Coletivo Veredas
www.coletivoveredas.com
Organizadoras:
Edna Bertoldo
Gorete Amorim
Jane Marinho
Severina Lessa Moura
MARX E A EDUCAÇÃO
1ª Edição
Coletivo Veredas
Maceió 2021
Sumário
Apresentação��������������������������������������������������������������������������������������������������� 7
As organizadoras
7
trutural do capital que, sem dúvida, tem afetado a educação tanto no
tocante às condições materiais, como a infraestrutura das escolas, os
salários, entre outros, como também em relação à disseminação de va-
lores e de concepções que norteiam as atividades educacionais.
A manifestação da crise estrutural do capital na educação tem
se evidenciado por meio da criação, sempre renovada, de mecanismos
de controle do processo educacional imprescindíveis à manutenção
do sistema do capital. Por meio de um discurso em defesa de uma
suposta neutralidade científica, a burguesia tem realizado muitos em-
bates teóricos e práticos em todos os níveis de ensino, intervindo na
organização curricular, a exemplo da atual reforma do Ensino Médio
(Lei 13.415/2017), mediante a retirada da obrigatoriedade de discipli-
nas como História, Sociologia e Filosofia, fundamentais ao processo de
formação dos indivíduos, além da chamada Escola sem Partido, entre
outros.
O pensador húngaro, György Lukács (2012, p. 75), analisa que
tem se dado um “irresistível avanço da manipulação no capitalismo
contemporâneo como inelutável, como ‘destino’”. Tendo em vista a
influência da perspectiva burguesa sobre a educação, torna-se neces-
sária a disseminação de uma teoria que exponha o ser das coisas em si
(LUKÁCS, 2012, p. 26) e, ao mesmo tempo, aponte para perspectivas
que conduzam à resolução da questão.
Apesar da existência de muitas teorias que se propõem explicar
os problemas sociais, entendemos que a teoria social de Marx represen-
ta uma importante arma crítica para a humanidade, constituindo uma
alternativa para explicar a essência dos problemas enfrentados neste
século XXI. Marx, ao explicar a natureza do capital, as contradições, a
crise estrutural e seus efeitos devastadores sobre a humanidade, aponta
para alternativas que, diferente de tantas outras que buscam a melhoria
do capital, propõe a construção de uma nova forma de sociabilidade.
É neste sentido que o presente livro se configura, estando cons-
tituído por 11 artigos da autoria de pesquisadores do ensino superior
com produção no campo do marxismo, além da entrevista de Ivo To-
net, um dos mais renomados estudiosos de Marx no Brasil e com uma
relevante produção sobre educação na perspectiva da teoria de Marx.
Todos os textos que compõem o presente livro têm em comum o pres-
suposto de que sendo a natureza desta ordem social a manutenção da
exploração humana através do trabalho, o seu objetivo no campo edu-
cativo consiste na formação de indivíduos adaptados aos seus meca-
nismos de produção e reprodução social. Sendo assim, é imperativo
romper com a concepção burguesa de educação, buscando uma nova
perspectiva de educação que aponte para além do capital.
8
Com base nestas ideias, o presente livro encontra-se organi-
zado em três partes, sendo que a PARTE I - CATEGORIAS E
FUNDAMENTOS DA ONTOLOGIA MARXIANA inicia com
uma entrevista realizada pelas organizadoras desta Coletânea com o
professor Ivo Tonet, seguida de cinco artigos. O primeiro artigo Im-
portância de Marx para a análise sobre a educação, de Edna
Bertoldo, analisa a importância da teoria de Marx para compreender
a influência ideológica conservadora burguesa no processo de forma-
ção dos indivíduos na sociedade atual, uma vez que a burguesia, clas-
se social dominante porquanto exerce o controle sobre a economia,
controla também a educação. Contudo, a autora constata que apesar
do caráter limitado da educação, por não ser a esfera decisiva no pro-
cesso de transformação radical da sociedade, torna-se imprescindível
a disseminação de uma teoria crítica e radical como a de Marx para se
contrapor à perspectiva da educação burguesa, com vistas à superação
da ordem social. A autora entende que a sociedade só pode se trans-
formar mediante o processo de luta de classes e não por meio da edu-
cação, como tem sido amplamente difundido na sociedade atual. O
segundo artigo Ontologia, trabalho e educação, da autoria de Fer-
nando de Araújo Bizerra e Mayra de Queiroz Barbosa, apresenta
uma análise dos complexos do trabalho, da educação e seus vínculos
com a emancipação humana e a política, demonstrando a função da
política educacional no processo de emancipação política nos limites
da ordem do capital e a contribuição da educação para a emancipação
humana. O terceiro artigo A educação e sua relação com a supe-
restrutura e a estrutura na ontologia marxiana, de Sayarah Carol
Mesquita dos Santos e Edna Bertoldo, tem como objeto de estudo
a educação e sua relação com as categorias superestrutura e estrutura,
no qual examina como a educação se relaciona com essas categorias
analíticas. Fundamentando-se na teoria de Marx, as autoras entendem
que as categorias superestrutura e estrutura não são concebidas de
modo unilateral e determinista, mas em uma relação dialética. A edu-
cação, esfera superestrutural, não está isolada e tampouco determina-
da univocamente pela estrutura. A autores concluem que no processo
de reprodução do ser social, a educação mantém uma relação diale-
ticamente articulada com a materialidade, sendo irredutível à esfera
estrutural que é o trabalho, a esfera fundante da totalidade social. O
quarto artigo O socialismo de Marx: anotações sobre a Crítica ao
Programa de Gotha, da autoria de Antonio Nascimento da Silva
e Deribaldo Santos, debate algumas das principais teses de Marx
sobre o socialismo contidas, por sua vez, na Crítica ao programa de Go-
tha. O objetivo da exposição é entender a crítica de Marx à pretensão
9
de Lassalle de construir o comunismo amparado pelo Estado e uma
vez aclarada essa crítica, os autores analisam o equívoco, comum nas
chamadas esquerdas progressistas, de esperar que a burguesia eduque a
classe trabalhadora com o apoio do Estado burguês. Os autores ressal-
tam a posição política de Marx quanto à transição da atual sociabilidade
burguesa ao comunismo, bem como algumas questões relacionadas ao
próprio método dialético e seu edifício teórico em geral, destacando a
proposta de Marx que consiste na construção de uma sociedade co-
munista a partir de uma práxis revolucionária. Finalizando esta primei-
ra parte do livro, Osmar Martins de Souza e Susana Jimenez, em
O trabalho produtivo de capital e a educação subsumida a esse
fim na teoria marxiana, partindo do trabalho produtivo, na sociedade
capitalista, que é aquele que propicia a continuidade do processo de
produção e reprodução do capital, analisam o trabalho em sua determi-
nação essencial, como produtor de valor de uso, subsumido ao traba-
lho produtor de valor (de mais-valor). Este processo de subsunção do
trabalho ao capital tem por base as relações econômicas burguesas, mas
nem de longe se restringe a estas, pois para se reproduzir uma determi-
nada forma de sociabilidade faz-se necessário um processo formativo/
educacional, por meio do qual se transmitem as habilidades e valores
que contribuem para conformar os indivíduos a este tipo de sociedade.
Concluem os autores que é preciso compreender a relação existente
entre o trabalho que produz o capital e as determinações essenciais de
uma formação/educação subsumida a esse fim.
A PARTE II - POLÍTICA EDUCACIONAL, ESTADO,
CAPITAL E TRABALHO, está composta por quatro artigos: o pri-
meiro, da autoria de Analéia Domingues, intitula-se A crise do ca-
pital: a porta de entrada dos empresários na educação pública
brasileira. A autora analisa os mecanismos de inserção dos empresá-
rios no sistema educacional público no Brasil, apontando que, com a
reestruturação produtiva nos anos de 1990, cresce a reivindicação dos
empresários a fim de participar de decisões e formulações das políti-
cas para a educação, com o objetivo de colocar a educação a serviço
do sistema produtivo. Além da reestruturação produtiva, a burguesia
lança mão da Reforma do Estado com vistas a superar a crise do ca-
pital que, naquele momento, era entendida pelos liberais como uma
crise do Estado. A autora reconhece que embora o projeto neoliberal
tivesse sido implantado no governo de Fernando Henrique Cardoso,
foi no governo de Luís Inácio Lula da Silva que os empresários organi-
zados no Movimento Todos pela Educação tiveram carta branca para
delinear os rumos da educação pública. O segundo artigo, da autoria
de Emanuela Rútila Monteiro Chaves, Maria das Dores Mendes
10
Segundo e Josefa Jackline Rabelo, intitulado O poder destrutivo
da crise estrutural do capital, aborda os principais aspectos da crise
atual a partir das teses defendidas por Istvan Mészáros e a contrao-
fensiva do capital à crise. O referido autor afirma que o sistema do
capital vivencia uma crise crônica e endêmica que libera todas as suas
tendências destrutivas sobre a totalidade social. Buscando retomar
o processo de expansão e acumulação, o capital, por meio das suas
personificações, organizou um conjunto de medidas que deu corpo
à reestruturação do capital. Na busca para manter a sua hegemonia
sobre o complexo social global, o capital utiliza-se de estratégias cada
vez mais destrutivas, pondo em perigo até mesmo a existência da vida
humana. Diante de tal possibilidade, as autoras defendem que a úni-
ca alternativa humanamente viável é a construção revolucionária de
uma ordem sociometabólica qualitativamente superior. Em seguida,
o artigo O sentido ontológico de formação humana: fundamen-
to para a crítica ao conceito de educação integral do Estado
burguês, de Gorete Amorim, partindo do surgimento da sociedade
de classes, da propriedade privada e do Estado, confirma que a edu-
cação dos indivíduos passou a ser controlada em função da repro-
dução do modo de produção de cada época histórica. No entanto,
o Estado necessita mascarar permanentemente sua função essencial,
propalando a possibilidade de educação integral em seus discursos e
documentos oficiais, a exemplo da proposta do Documento da Base
Nacional Comum Curricular (BNCC) para o Ensino Médio. Diante
dessa contradição, a autora busca apreender o sentido ontológico de
formação humana em Marx (2015) e fazer a crítica ao conceito de
educação integral do Estado burguês, com base no método marxiano.
A autora considera que é fundamental, num momento histórico de
esvaziamento do conhecimento científico do currículo escolar, en-
fatizar a centralidade do trabalho e criticar a distorção do significa-
do de formação integral propalada pelo Estado burguês. Por fim, o
quarto artigo, Educação e humanização: considerações acerca
da formação/qualificação dos trabalhadores sucroalcooleiros
do Brasil, de Jane Marinho, faz uma análise do processo de forma-
ção/qualificação dos trabalhadores sucroalcooleiros através do Plano
Nacional de Qualificação do Setor Sucroalcooleiro (PLANSEQ-S). A
autora examinou o processo de formação dos trabalhadores, levando
em consideração as implicações do plano para a “humanização do tra-
balho”, uma vez que o PLANSEQ-S implementou o projeto de qua-
lificação proposto pelo Compromisso Nacional do Setor Sucroalcoo-
leiro (CN), no qual a questão da formação/qualificação foi idealizada
como a saída principal para resolver a problemática do desemprego
11
e a melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores. A autora conclui
demonstrando como o discurso da formação vem sendo utilizado para
mascarar as novas demandas de exploração do capital.
Finalmente, a PARTE III - HISTÓRIA, EDUCAÇÃO E
PROPOSTAS EDUCACIONAIS, apresenta em primeira mão o ar-
tigo O legado histórico da educação soviética, de Severina Lessa.
A autora analisa que após a Revolução de Outubro de 1917, diante do
atraso cultural e científico da velha Rússia e da persistente manipulação
da ideologia burguesa sobre as massas, Lenin estava convicto de que a
escola e a instrução pública seriam um instrumento estratégico funda-
mental para a consolidação do socialismo. Referendada na experiência
apresentada em obras de Moisey Mikhaylovich Pistrak, o referido arti-
go apresenta o legado histórico da educação soviética, conduzida por
persistentes pedagogos que tomaram para si o desafio de criar uma
pedagogia social de inspiração marxista. A autora busca compreender
as decisões tomadas sobre o novo sistema educacional e a tarefa de for-
mar a nova geração comunista soviética através da instrução para o tra-
balho, da consciência revolucionária e da união da juventude em torno
das necessidades coletivas e sociais. Finalmente, Neide de Almeida
Lança Galvão Favaro e Paulo Sergio Tumolo encerram a presente
Coletânea com o artigo Pedagogia histórico-crítica: uma análise
crítica da sua estratégia política, no qual os autores analisam a estra-
tégia política da pedagogia histórico-crítica, a partir da obra de Derme-
val Saviani, considerando seus fundamentos e a materialidade em que
tal proposta é elaborada. Para os autores, esta pedagogia propõe-se a
contribuir para a superação do capitalismo, embasada em uma deter-
minada leitura da educação escolar e da conjuntura atual, sugerindo a
atuação escolar articulada à intervenção nos espaços institucionais, a
luta pela democracia, pela “publicização” do Estado e pela adoção da
educação para o desenvolvimento. O resultado obtido identifica um
movimento inverso em relação aos clássicos do marxismo, ao partir
da proposta educativa para analisar a realidade e determinar o projeto
político, o que afeta os objetivos almejados.
As organizadoras
12
PARTE I – CATEGORIAS E FUNDAMENTOS
DA ONTOLOGIA MARXIANA
Entrevista com Ivo Tonet
Edna Bertoldo1
Gorete Amorim2
Jane Marinho3
Severina Lessa Moura4
Introdução
15
Minas Gerais (1982) e doutorado em Educação pela Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho/Marília/São Paulo (2001).
Em 1980 ingressou na Universidade Federal de Alagoas como pro-
fessor de Filosofia.
Sua produção teórica sempre esteve voltada para a compreensão
e a transformação radical do mundo. Embora esteja aposentado desde
9/4/2013, continua produzindo e percorrendo o país inteiro para a
realização de conferências e cursos com o propósito de contribuir
para a difusão da teoria de Marx, além de análises da realidade social
nela embasadas. Sua experiência é na área de Filosofia, com ênfase
em filosofia política, atuando principalmente em temas como socia-
lismo, marxismo, política, educação e método científico.
Feita essa breve apresentação de nosso entrevistado, cabe es-
clarecer que as questões que conduziram a entrevista decorreram
de quatro temas fundamentais: educação escolar, educação geral e
emancipação humana; educação, política e ideologia; educação, co-
nhecimento e formação da consciência de classe do trabalhador; e,
por fim, educação, trabalho e revolução.
16
Organizadoras: É mediante o processo educativo que o su-
jeito tem a possibilidade de se apropriar do conhecimento histo-
ricamente produzido pela humanidade. No entanto, com o surgi-
mento da propriedade privada e com a divisão de classes, deu-se
a exploração do homem pelo homem. Com isso, a apropriação do
conhecimento passou a ser determinada pela divisão de classe: en-
quanto o trabalhador tinha acesso a uma formação alienada volta-
da para o saber fazer, ao burguês, ao contrário, destinava-se uma
formação propedêutica. Contrapondo-se aos ideais de formação
da perspectiva burguesa, surge uma perspectiva crítica, defendendo
que o indivíduo deve se apropriar do conhecimento historicamente
produzido de forma crítica, que possibilite compreender a realidade
não apenas na aparência, mas na sua essência. Outra abordagem,
fundamentada na ontologia do ser social, defende que a apropriação
do conhecimento produzido historicamente não é suficiente, pois
é preciso que o indivíduo tenha acesso aos conhecimentos neces-
sários à transformação radical da sociedade de classes. Esse tipo de
conhecimento pode ser transmitido nas instituições educativas da
sociedade capitalista?
17
crítico – é exigir dela algo que ela não pode fazer. Como, porém, a
escola, como todas as outras dimensões sociais, também é atravessada
pela luta entre capital e trabalho, aqueles que assumem essa última
perspectiva podem, sim, fazer o que chamo de “atividades educativas
emancipadoras”, isto é, atividades várias que permitam aos estudantes
a compreensão do processo histórico desde as suas origens, a compre-
ensão da sociedade capitalista para além dos seus elementos aparentes
e a fundamentação da possibilidade e da necessidade da superação
desse sistema social e da construção de uma sociedade socialista. Cer-
tamente, o conhecimento que faz parte do patrimônio acumulado pela
humanidade ao longo de milênios é elemento que deve ser apropriado,
mas, como ele é também socialmente determinado, tem de ser revisto
e posto sob a luz da perspectiva da classe operária. A condição neces-
sária para a realização dessas atividades é que os próprios educadores
tenham o domínio dessa perspectiva revolucionária, e isso implica, ne-
cessariamente, o estudo da teoria marxiana, pois ela representa o pa-
tamar mais elevado de conhecimento que a humanidade já produziu.
18
Ivo Tonet: O único meio de superar tanto o reprodutivismo
quanto o idealismo é o conhecimento da realidade como ela é em
si mesma. Como essa realidade é complexa e está sempre em mo-
vimento, o método mais apropriado é, necessariamente, o método
histórico-dialético, cujos fundamentos foram elaborados por Karl
Marx. Ele permite apreender a realidade social como uma totalidade,
um “complexo de complexos”, sempre em movimento, permeado
de contradições e mediações. Também permite compreender como
se dá a relação entre o momento objetivo e o momento subjetivo, ga-
rantindo a especificidade de cada um, mas afirmando, claramente, a
prioridade ontológica do momento objetivo. Nem a realidade como
mero desdobramento puramente externo ao sujeito, nem a realidade
como resultado das ideias, mas sempre como uma articulação entre
os dois momentos: objetivo e subjetivo. Obviamente, na concretude
de cada momento histórico.
19
Organizadoras: Recentemente foi publicada a 3ª edição re-
visada de “Educação contra o Capital”, que é uma contraposição
à formação da consciência alienada do trabalhador. Fale-nos um
pouco sobre a encruzilhada na qual a educação se encontra, con-
forme sua expressão: “ou contribui para a reprodução do capital e
sua barbárie ou para a construção de uma nova e superior forma de
sociabilidade”.
20
no processo de formação da consciência de classe dos trabalha-
dores. Contudo, cada vez mais isto vem se perdendo de vista. Na
opinião do senhor, de quem seria esta tarefa nos dias atuais?
21
revolucionárias. Mas, mesmo reduzidos, esses espaços não deixam
de existir. É nesses espaços que educadores revolucionários podem e
devem atuar para atingir aqueles objetivos que mencionamos acima.
22
desse modo, “mais humano”. Trata-se de uma evidente forma de
idealismo, pois concede a prioridade à subjetividade em detrimento
da realidade objetiva. No âmbito educacional isso se expressa tanto
nas mais variadas afirmações da educação como a mola mestra do
desenvolvimento, como na proposição de “outras políticas educa-
cionais”, outras pedagogias, outras didáticas, outras avaliações, que
poderiam ter um caráter emancipador.
23
Gramsci, Mészáros – é tarefa imprescindível para compreender a
crise atual e orientar as lutas em direção a uma sociedade onde TO-
DOS os indivíduos possam realizar amplamente as suas potenciali-
dades.
24
Importância de Marx para a Análise sobre a
Educação
Edna Bertoldo1
Josefa Jackline Rabelo2
Introdução
25
“produzir uma mercadoria cujo valor seja mais alto que a soma dos va-
lores das mercadorias exigidas para produzi-la, os meios de produção e a
força de trabalho, para as quais adiantou seu bom dinheiro no mercado”.
Por ter adiantado seu dinheiro, o capitalista considera natural que o pro-
duto resultante do trabalho seja propriedade sua.
Nesta sociedade, não é suficiente ter dinheiro para que se dê a do-
minação de uma classe pela outra. Como analisam Marx e Engels,
A condição essencial para a existência e a dominação da classe bur-
guesa é a concentração de riqueza nas mãos de particulares, a forma-
ção e multiplicação do capital; a condição de existência do capital é o
trabalho assalariado. (MARX; ENGELS, 2008, p. 30).
26
dos esses problemas apresentam-se em nível mais elevado; não são
mais formas de expressão de antagonismos ideológicos que, muitas
vezes, permanecem latentes, mas formas francas de expressão de
uma situação mundial de crise geral e duradoura. (LUKÁCS, 2012,
p. 43).
27
2012, p. 26), ao mesmo tempo aponte para o seu devenir.
Apesar de existirem muitas teorias que contribuem para explicar os
problemas sociais, entendemos que a ontologia marxiana é a que melhor
cumpre a função social no sentido de pensar radicalmente o futuro da
humanidade.
Sua importância se dá não apenas pelo fato de representar uma
contraposição à teoria burguesia – até porque muitas outras teorias assu-
mem este papel –, mas principalmente porque, ao se opor radicalmente
à concepção burguesa do ser social, Marx criou uma nova concepção da
história humana, desde sua gênese e desenvolvimento, levando em conta
a relação concreta dos indivíduos que são os efetivos construtores da his-
tória passada, presente e futura.
Marx, ao explicar a natureza do capital com suas contradições, suas
inevitáveis crises e suas consequências devastadoras para a humanidade,
construiu uma perspectiva teórica rica de possibilidades por auxiliar na
construção de uma sociedade superior a esta. Por isso, a ontologia marxia-
na é essencialmente distinta daquelas teorias que, embora façam críticas ao
sistema do capital, limitam-se a melhorar esta sociedade e não a superá-la.
Por essa razão a perspectiva teórica de Marx representa um instru-
mento a serviço da humanidade neste século XXI, que além de permitir
o conhecimento da realidade na sua essência, orienta os atos humanos na
direção de sua efetiva transformação.
Neste sentido, para combater a influência do ideário conservador
burguês na educação brasileira, é preciso nos munir da ontologia marxia-
na. A nova concepção de mundo possibilita a busca de alternativas para
a problemática educacional não de maneira parcial que, como a história
tem demonstrado, têm resultado no total fracasso. Só na conexão com
a totalidade social os problemas educacionais encontrarão solução. Dito
de outra forma, sem mudar a exploração do homem pelo homem, sem
mudar a forma atual de trabalho, as mudanças na educação terão sempre
um caráter parcial.
Diante da crise estrutural do capital, é fato incontestável que ao
invés de haver uma ampliação da interferência do Estado na implantação
de políticas sociais e, em particular, de políticas educacionais, o que temos
presenciado é a contínua diminuição de investimentos sociais em prol da
classe trabalhadora.
Pelo exposto até então, o leitor poderia trazer à luz a pergunta que,
como afirma Manacorda, já foi levantada desde “épocas distanciadas en-
tre si e com diferentes motivações” (1991, p. 13), qual seja: por que buscar
na teoria de Marx os fundamentos para a análise da educação, se ele não
foi educador e não elaborou nenhuma obra sobre a educação?
28
1 Análises sobre a educação em Marx
4 Paulo Nosella, na Apresentação da obra publicada pela editora Alínea (2007), esclarece
que “O livro originalmente foi publicado pela Editori Riuniti de Roma, em 1986”. Mana-
corda, no Prefácio, explica que os três volumes de Il marxismo e l’educazione, editados en-
tre 1964 e 1966 por Armando, Roma, constituem a base de Marx e a pedagogia moderna.
5 Foi traduzida por Newton Ramos de Oliveira, com a revisão de Paolo Nosella e prefácio
de Dermeval Saviani.
6 Teoria marxista da educação, Editorial Estampa, 1976.
7 Educação e luta de classes, Cortez, 2001.
8 Um resumo da biografia do autor é apresentado por Saviani no prefácio à edição brasi-
leira publicada pela editora Alínea.
29
a intenção de orientar os delegados sobre algumas questões que seriam
tratadas no I Congresso da Associação Internacional dos Trabalhadores,
que se realizou em Genebra no período de 3 a 8 de setembro de 1866. O
documento é constituído por 11 resoluções orientadoras das lutas con-
cretas e versa sobre assuntos diversos; a quarta delas se refere à questão
da educação, com o título “Trabalho juvenil e infantil (ambos os sexos)”.
É nesta resolução que Marx expõe sua concepção de ensino; esta
compreende a união entre trabalho produtivo, ensino intelectual, exercício
físico e adestramento tecnológico,9 como condição para elevar “a classe
operária bastante acima do nível das classes superior e média”. De acordo
com Manacorda (1991, p. 26), aqui se encontra “uma autêntica e pessoal
definição do conteúdo pedagógico do ensino socialista”.
Em Crítica ao Programa de Ghota (1875), constata-se a “recusa de
uma educação igual para todas as classes” (MANACORDA, 1991, p. 39),
pois na sociedade burguesa, “o ensino não pode ser de repente transmi-
tido igual a todas as classes, sem o risco, evidentemente, de um rebaixa-
mento de nível”.
Manacorda (1991, p. 30), analisando comparativamente As instru-
ções aos delegados e O Capital, constata que há uma “substancial coinci-
dência” entre ambos os textos:
Começa10 pela questão do poder político, como condição para colo-
car-se em prática a escola do futuro: a transformação da razão social
em poder político e as leis gerais impostas com a força do Estado, das
Instruções, como em O Capital, a inevitável conquista do poder por
parte da classe operária [...].
9 Manacorda (p. 31) chama a atenção para as diferenças essenciais entre as terminologias
“politécnico” e “tecnológico”, nas Instruções e em O Capital. Nas Instruções, escritas por
Marx em inglês, o termo “politécnico” (politechnical training) aparece apenas uma vez, en-
quanto o termo “tecnológico” (technological) é usado com mais frequência “para indicar o
ensino na perspectiva do socialismo”. Na obra O Capital, o autor observa que o termo
“politécnico” diz respeito “apenas às escolas historicamente existentes com este nome [...]
que Marx tinha criticado, no distante ano de 1847, como não essencial para modificar a
relação de trabalho do operário”. Quanto ao ensino “tecnológico”, diz o autor que se trata
de “um dos elementos das escolas politécnicas (e das profissionais e de agronomia) existen-
tes, parcimoniosamente doados pelos burgueses aos filhos dos operários”. Em resumo, o
“politecnicismo” refere-se à “disponibilidade para os vários trabalhos ou para as variações
dos trabalhos”. Já ‘“a tecnologia’ sublinha, com sua unidade de teoria e prática, o caráter de
totalidade ou omnilateralidade do homem, não mais dividido ou limitado apenas ao aspecto
manual ou apenas ao aspecto intelectual (prático-teórico) da atividade produtiva” (p. 32).
10 A outra coincidência diz respeito ao uso dos termos “tecnológico” e “politécnica” nos
referidos textos.
30
É inegável a influência do percurso metodológico do pensador
italiano sobre a produção teórica desenvolvida no campo da educação
marxista no Brasil. A presença daqueles textos marxianos analisados
por Manacorda se encontra na produção de grande parte dos educado-
res marxistas, principalmente do professor Dermeval Saviani, uma das
maiores expressões do marxismo na educação brasileira.
Mas isso não quer dizer que não existam polêmicas no debate
sobre a educação em Marx. A este respeito, Saviani identifica duas posi-
ções distintas sobre a questão, sendo a primeira representada por aqueles
que consideram que Marx se equivocou ao propor o trabalho infantil; e
a segunda, por aqueles que entendem que as análises do pensador ale-
mão sobre a educação são ultrapassadas, por se limitarem ao contexto
daquela época.
O educador marxista, discordando de ambas as posições, defende
que as análises de Marx não são equivocadas e muito menos ultrapassa-
das. Argumenta que: 1) Marx não generaliza a junção entre trabalho e
instrução, por reconhecer que o ensino começa antes de se efetuar a ar-
ticulação entre instrução e trabalho produtivo; 2) Ele dosa a participação
da criança no trabalho, que começa com duas horas e vai aumentando
gradativamente conforme as faixas etárias; 3) Ao situar a classe operária
em contraste com as demais classes (média e superior), Marx “indica a
estratégia a ser adotada na luta da classe operária contra a burguesia em
relação ao papel do Estado” (2018, p. 77).
Com base nas argumentações acima, Saviani esclarece que “o que
está em causa, aqui, é o entendimento do trabalho como princípio educati-
vo” (2018, p. 76, grifo nosso).11
Todos os esforços empreendidos para fundamentar as análises
sobre a educação em Marx têm seguido, em grande medida, o itinerário
apresentado por Manacorda. São, conforme o autor assinala, textos que
têm em comum o fato de serem programas políticos. As ideias presentes
nestes textos de programas políticos têm influenciado desde os pionei-
ros da educação marxista no Brasil, a exemplo de Saviani, até as novas
gerações de educadores marxistas.
A produção do conhecimento sobre educação e marxismo tem
resultado na ampla difusão de pressupostos que até pouco tempo pare-
ciam convergentes entre os educadores marxistas, a começar pela tese
do trabalho como princípio educativo, cujo eixo principal diz respeito à
identidade entre trabalho e educação. Além disso, outras questões tam-
11 Sobre o polêmico debate em torno do trabalho como princípio educativo, sugerimos a
leitura das obras Capital e educação escolar, de Ademir Quintilio Lazarini (2015), e Traba-
lho e proletariado no capitalismo contemporâneo, de Sergio Lessa (2007).
31
bém merecem destaque, como o caráter de classe da ciência e a apropria-
ção do conhecimento pela classe trabalhadora; a relação da classe operária
com o Estado; as análises sobre a sociedade socialista e a suposta existên-
cia de um Estado operário, entre outras.
Para ilustrar, faremos uma breve menção à posição segundo a qual
a humanidade conheceu o socialismo, em geral convergente entre os pen-
sadores marxistas estrangeiros e os educadores marxistas no Brasil.
Resultante dessa análise, efetivou-se uma educação socialista que
foi se firmando a partir de “uma nova proposta pedagógica” que, “acom-
panhando as pegadas de Marx”, obteve “resultados reais” (MANACOR-
DA, idem, p. 9). Como corolário disso, também se afirma a existência do
“Estado operário”.12
De acordo com esta mesma perspectiva, Suchodolski, no prefácio
de sua obra Teoria marxista da educação (1957), afirma:
Num país que constrói o socialismo, a atividade formativa e educati-
va deve ocupar um lugar destacado entre os assuntos sociais impor-
tantes. A única condição para alcançar o sucesso neste campo é o
aprofundamento científico das leis e métodos da atuação pedagógica.
(1957, p. 9, grifo nosso).
32
jovens, das mulheres – principalmente as mais jovens – e dos adultos. Os
relatos de Marx sobre a legislação fabril inglesa de 1833 a 1864 no capí-
tulo VIII “A jornada de trabalho”, em O Capital, ilustram muito bem a
dura realidade enfrentada pela classe trabalhadora.
Como o trabalho ocupava a maior parte do tempo dos indivíduos,
independentemente de idade e sexo, o acesso à educação escolar era ain-
da incipiente, o que levava a classe trabalhadora a lutar pela diminuição
da jornada de trabalho e pelo direito à instrução.
O processo de expansão e acumulação capitalista no contexto
atual é fruto da exploração do trabalho; no entanto, o capital se utiliza
de muitos mecanismos para velá-la, impedindo assim que o trabalhador
consiga desvelar o verdadeiro “segredo” deste poderoso sistema.
Para que o “segredo” do modo de produção capitalista possa se
revelar à classe trabalhadora, é indispensável o acesso ao conhecimento.
Ocorre, porém, que nem todo tipo de conhecimento possibilita a apre-
ensão da realidade na sua essência, conjugada à necessidade de transfor-
má-la, pois é isto o que caracteriza o caráter científico revolucionário da
teoria marxiana.
A apropriação pela classe trabalhadora do conhecimento científi-
co oferecido pela educação escolar burguesa não leva necessariamente
ao conhecimento da realidade em sua essência. Por este motivo, ela tem
necessidade de outro tipo de conhecimento, de caráter revolucionário,
que é a teoria de Marx.
Mas seria atribuição do Estado propiciar à classe trabalhadora o
conhecimento revolucionário?
Para alguns, não cabe à educação escolar a transmissão deste tipo
de conhecimento, o que é possibilitado apenas no âmbito da educação
geral; para outros, é papel da educação escolar a transmissão do conhe-
cimento científico, sendo isto suficiente para a classe trabalhadora elevar
sua consciência. Estas alternativas, excludentes, não parecem ser condi-
zentes com as contradições da sociedade e a premente necessidade de
transformá-la.
Marx, ao analisar o projeto de programa do futuro Partido Operá-
rio Socialista da Alemanha em Crítica ao Programa de Ghota (1875), fez
duras críticas à pretensão de atribuir ao Estado a tarefa de educar o povo.
Contudo, isso não quer dizer que seja impossível a transmissão do
conhecimento revolucionário no interior da escola, através da ação de
indivíduos singulares. Lukács (1978, p. 18, grifo nosso) afirma que “Ape-
nas a grande filosofia e a grande arte e alguns indivíduos de comporta-
mento exemplar, em sua ação, contribuem para formar para a liberdade,
para o fazer-se homem do homem”. Isto significa dizer que no interior
da escola é possível que professores singulares, orientando sua prática
33
pedagógica com base na teoria científica de Marx, possam transmitir o
conhecimento revolucionário para a classe trabalhadora.
Como esclarece Tonet (2016), a realização de uma educação eman-
cipadora não é possível no sistema do capital, mas apenas a realização de
atividades educativas emancipadoras. Portanto, uma coisa é pretender que
o Estado cumpra esta tarefa, o que é uma impossibilidade ontológica,
porque, como diz Marx, o Estado é instrumento de opressão da classe
trabalhadora; outra, muito diferente, consiste na possibilidade de existirem
“alguns indivíduos de comportamento exemplar” que, “em sua ação”,
possam contribuir “para formar para a liberdade”, como afirma Lukács.
Esclarecida essa questão e retomando a discussão acerca da impor-
tância de Marx para a educação, Tonet, na obra Educação contra o capital
(2016), entende que existem dois caminhos para compreender a educação
na perspectiva de Marx: 1) aquele que parte das passagens em que Marx
discorre sobre a educação e 2) aquele que apreende a educação a partir da
teoria geral do ser social de Marx.
A partir da exposição feita anteriormente, podemos deduzir que as
análises baseadas no percurso delineado por Manacorda podem ser asso-
ciadas ao primeiro caminho descrito por Tonet, isto é, têm como ponto
de partida as passagens em que Marx discorre sobre a educação. De acor-
do com Tonet, a análise da educação por esta direção não permite a apre-
ensão do caráter radical crítico e revolucionário de Marx, ficando limitado
ao enfoque político; além disso, não é possível, por essa via, apreender a
essência da teoria marxiana.
O segundo caminho, que consiste na apreensão da educação a par-
tir da teoria geral do ser social de Marx, segundo a opinião do autor, é im-
portante não apenas pelo fato de Marx ser um grande pensador, mas por
ter sido o instaurador de uma concepção radicalmente nova de mundo, de
conhecimento e de ação prática.
34
ontologia vulgar-materialista, que vê as categorias mais complexas como
simples produtos mecânicos das mais elementares e fundantes e impede
a compreensão da particularidade das categorias mais complexas, crian-
do entre as categorias fundadas e fundantes uma falsa hierarquia (ibidem,
p. 117).
Qual o significado da ontologia materialista? Lukács, responden-
do à questão, assinala dois aspectos que possibilitam o seu esclarecimen-
to: 1º) a nova ontologia surge “purificada do turvamento provocado por
categorias lógicas e gnosiológicas”; 2º) com ela se dá a separação entre
pontos de vista ontológicos e pontos de vista axiológicos.
A perspectiva gnosiológica, tendo como pressuposto uma deter-
minada ontologia (ontologia metafísica, por exemplo), tem no sujeito o
polo regente do conhecimento; no ponto de vista ontológico, ao con-
trário, a prioridade está no objeto. Como esclarece Tonet (2013, p. 14),
a captura do próprio objeto implica o pressuposto de que ele não se
resume aos elementos empíricos, mas também, e principalmente, àque-
les que constituem a sua essência. É importante assinalar que, segundo
o autor, independentemente de ser uma ontologia de caráter metafísico
ou histórico-social, o ponto de vista ontológico implica a subordinação
do sujeito ao objeto, não cabendo ao “sujeito criar – teoricamente – o
objeto, mas traduzir, sob a forma de conceitos, a realidade do próprio
objeto” (idem, ibidem, p. 14).
Lukács entende que a velha ontologia buscou substituir filosofica-
mente uma religião em decadência – a ontologia da Antiguidade –, que
foi desenvolvida diretamente a partir de pressupostos teológicos, como
no caso da ontologia da escolástica, e assim criou uma hierarquização nas
formas do ser. Acha-se no ápice desta hierarquia universal o Ser supremo
que é Deus, considerado o mais autêntico dos seres.
A ontologia do ser social, ao contrário, é radicalmente distinta das
tradições filosóficas que examinam a complexidade dos fenômenos de
forma isolada nas dimensões metafísica, lógica, gnosiológica, pois estas
“jamais conseguiram avançar até a sua gênese, até o fundamento real do
seu ser – até a chave para sua decodificação ontológica” (idem, p. 369).
De acordo com esta perspectiva teórica, a sociedade não surge
e não se desenvolve sem a transformação da natureza, sem a interven-
ção do homem sobre o ser inorgânico, o ser orgânico, resultando num
processo crescente de reprodução social. Neste processo, “surge uma
categoria qualitativamente nova com relação às precedentes formas do
ser, tanto inorgânico como orgânico” (LUKÁCS, 2013, p. 61).
Segundo Lukács, a descoberta da gênese do ser social, com sua
evolução, contradições e desenvolvimento, é um elemento necessário à
elaboração teórica marxista. A ontologia marxista se distingue das pers-
35
pectivas teóricas que buscam um ser transcendente explicativo do real, ao
demonstrar que somente o homem é produtor e produto da sociedade,
podendo elevar-se e tornar-se um ser consciente de si mesmo. Para que
estas ideias se efetivem na realidade, é necessário, segundo Lukács (1978,
p. 16), que “o trabalho seja dominado pela humanidade, que não seja ape-
nas meio de vida, mas o primeiro carecimento da vida”. Isto requer con-
dições materiais e possibilidades para a sua efetivação.
A ontologia marxista, segundo Lukács, contribui efetivamente para
refletir a educação a partir de uma perspectiva emancipadora, em contra-
posição à concepção de educação burguesa, que, por meio de uma “mani-
pulação ilimitada”, como diz o pensador húngaro (2013), busca eliminar
definitivamente os critérios objetivos da realidade, propondo um ideal de
homem a ser formado, com base na obediência passiva à exploração ca-
pitalista.
36
minável do ser social. O mesmo não se pode dizer da educação no seu
sentido restrito. A análise da educação feita por Lukács compreende uma
distinção fundamental entre a educação no seu sentido amplo e a educa-
ção no seu aspecto restrito, devendo-se levar em consideração a relação
existente entre ambas, conforme afirma o autor:
entre educação no sentido mais estrito e o sentido mais amplo não
pode haver uma fronteira metafísica. Entretanto, em termos imedia-
tamente práticos ela está, ainda que de maneiras extremamente dife-
rentes, dependendo da sociedade e classes. (LUKÁCS, 2013, p. 177).
37
sujeito que trabalha, certo domínio do objeto sobre o qual atua. De acor-
do com a ontologia do ser social, o homem não nasce dotado de saber, de
conhecimento, pois a aprendizagem não resulta de sua constituição gené-
tica. Somente no decurso de sua vida, ao produzir com outros homens, é
que ele vai adquirindo habilidades e conhecimentos, criando instrumentos
de trabalho e aperfeiçoando as técnicas de trabalho. Isto se dá mediante
um longo processo de apropriação, sem o qual seria impossível a apren-
dizagem.
Neste sentido, trata-se de um processo histórico-social em que os
homens aprendem fazendo com outros homens, a partir da incorporação
dos conhecimentos elaborados pelas gerações anteriores. Isso pressupõe
um ato educativo que já se encontra presente na mais singular forma de
trabalho, com função que lhe é própria e, portanto, distinta da função do
trabalho, a saber, a transformação da natureza.
A educação surge, então, como um componente ineliminável do
processo de trabalho, sendo ele (o trabalho) o desencadeador e impulsio-
nador de tal processo.
Esse processo simples de trabalho, de mediação entre homem e
natureza, desencadeia, sempre, novas posições teleológicas, conforme
acentua Lukács:
Um pôr teleológico sempre vai produzindo novos pores, até que de-
les surgem totalidades complexas, que propiciam a mediação entre
homem e natureza de maneira cada vez mais abrangente, cada vez
mais exclusivamente social. (2013, p. 205).
38
partir da base ontológica, não podem ser consideradas atividades que
visam à transformação da natureza, a exemplo do direito, da ciência, da
educação, entre outras. Aqui já se dá um momento complexo de atuação
do homem, pois seu objetivo visa atuar sobre a subjetividade. Trata-se,
conforme verificamos, da teleologia secundária. Portanto, podemos afir-
mar, com base em Lukács, que trabalho não se confunde com educação.
Em síntese, do ponto de vista da teoria marxiana, é ontologica-
mente incorreto afirmar que trabalho se confunde com educação, uma
vez que consistem em duas esferas sociais distintas que mantêm entre si
uma relação, sendo importante ressaltar que a educação, embora exiba
certo grau de autonomia, encontra-se sempre dependente em relação ao
trabalho. Embora a educação tenha seu processo de gênese no mais sim-
ples ato de trabalho, ela se constitui numa atividade que vai tendo, cada
vez mais, um papel decisivo no processo de afastamento das barreiras
naturais.
Na sociedade atual, a perspectiva burguesa, ao buscar estreitar os
laços entre trabalho e educação, por meio de uma “crescente subordi-
nação da educação aos interesses do mercado, em escala mundial” (JI-
MENEZ, 2010, p. 15), difunde o mito de que, por meio da educação, o
indivíduo se torna apto para o trabalho e, com isto, pode modificar sua
condição de vida. Contrapondo-se a esta concepção, defendemos, com
Mészáros (2005, p. 9), que “a educação não é um negócio, é criação. A
educação não deve qualificar para o mercado, mas para a vida”.
A objetividade da realidade demonstra, ao contrário da concep-
ção burguesa, que não é por meio da educação que as condições de
existência humana se transformam na sua essência, mas somente através
de uma mudança radical na forma de ser do trabalho, o que exige a su-
peração desta sociabilidade. No estreitíssimo campo das possibilidades
que o sistema do capital ainda permite à humanidade, é possível, e cada
dia mais necessário, almejar uma concepção de educação que se con-
traponha à perspectiva burguesa, que se projete para além da existente
na sociedade atual, tendo clareza de que só poderá se efetivar, em sua
plenitude, numa sociedade para além do capital, para usarmos o termo
de Mészáros (2002). Isto nos coloca diante de um duplo desafio que
consiste não apenas na superação da concepção burguesa de educação,
como também daquela que, embora seja progressista, limita-se ao ideal
reformista.
Como educação e sociedade estão intimamente relacionadas, não
pode haver mudança na educação sem mudança social. Assim, a pers-
pectiva ontológica consiste em conceber a educação para além do Es-
tado, do capital e desta forma de trabalho na sociedade de classes. De
acordo com este ponto de vista, a educação está inserida no processo de
39
luta de classes, pois, como diz Lukács, “a luta de classes é a força motriz
decisiva da história do gênero humano”. Portanto, a sociedade só pode
se transformar mediante o processo de luta de classes, e não por meio da
educação, como tem sido alardeado.
Uma sociedade para além do capital coloca-se como uma necessi-
dade crucial nos dias de hoje e, ao mesmo tempo, como uma possibilida-
de que se apresenta enquanto alternativa histórica e real. Este pressuposto,
decisivo na teoria de Marx, é um elemento norteador das análises acerca
da educação que pretendem se fundamentar em Marx.
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40
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41
Ontologia, Trabalho e Educação
Fernando de Araújo Bizerra1
Mayra de Queiroz Barbosa2
43
Objeto de intensos debates3, as imbricações entre trabalho e
educação ocupam a atenção de diversos pesquisadores brasileiros, so-
bretudo a partir dos anos oitenta do século passado. Diante disso, já
nessas linhas introdutórias cabe uma advertência: não é nossa preten-
são fazer uma análise exaustiva sobre a temática em tela. Do mesmo
modo, considerando o conteúdo ensaístico desse pequeno artigo, não
é nossa pretensão elencar a totalidade das produções marxistas que
tomam para si o desafio de perquirir como trabalho e educação se
inter-relacionam na dinâmica societal.
Longe de ser uma leitura unívoca, a busca pela compreensão
marxiana da questão da educação pode se dá por dois caminhos, a
saber:
O primeiro: considerando que Marx não escreveu nenhuma obra
específica sobre a questão da educação, tratar-se-ia de rastrear,
nas suas obras, as passagens em que ele se refere a esta proble-
mática. O segundo: buscar, em primeiro lugar, a arquitetura mais
geral do pensamento de Marx, para, em seguida, apreender o sen-
tido da atividade educativa no interior desse quadro arquitetôni-
co. Como essa arquitetura mais geral significa uma teoria geral do
ser social, esse caminho implicaria, em primeiro lugar, a resposta
à pergunta pela natureza geral e essencial do ser social. Só num
segundo momento é que se buscaria a resposta acerca da nature-
za da educação (TONET, 2011, p. 135).
3 Para uma síntese das principais posições desse debate no Brasil, Cf. Bertoldo (2015).
44
tou como um elemento quase imperceptível na consideração de seu
conjunto. Essa problemática tem vários motivos que só são des-
vendáveis caso se considerem como ponto de partida os fatos mais
simples que emanam da vida cotidiana. Afinal, aqui se encontra o
solo donde se desprendem os problemas tomados como objeto de
investigação pela ciência. Não é demais lembrar, quanto a isso, que
“só uma lebre que exista pode ser caçada, só uma amora que exista
pode ser colhida etc.” (LUKÁCS, 2010, p. 37).
Os homens questionam-se sobre si, sobre os fenômenos que
o rodeiam e sobre o mundo desde muito tempo. Porque existe tudo
isso? De onde surgiu? Qual é a sua razão de ser? Perguntam-se so-
bre sua origem e o seu fundamento, bem como sobre o lugar que
ocupam. No Ocidente, contudo, é que se inicia o tratamento mais
sistematizado acerca de tais questões.
Essa sistematização foi possível a partir da filosofia grega, sur-
gida no século VI a.C. Anterior a ela reinaram por milênios as expli-
cações mágicas, de cariz religioso ou mitológico, que recorriam ao
sobrenatural, ao sagrado, ao mistério, à magia. Indo além do mítico,
pensadores cultivaram na Grécia um novo modo de pensar a reali-
dade. Abria-se, desde os alvores do pensamento grego, o mundo à
possibilidade de conhecimento. A atividade intelectual e contempla-
tiva começava a ser exaltada. O pensamento filosófico erige se con-
trapondo ao pensamento mítico, embora não o elimine de forma
completa e imediata, pelo menos é o que comprova o pitagorismo
e a obra de Platão.
Quando se organizaram as cidades-Estado e floresceu a pro-
dução destinada ao estabelecimento de vínculos comerciais, as tradi-
ções míticas e religiosas perderam progressivamente sua importância
e os filósofos buscaram explicar os fenômenos que se desenharam à
sua frente a partir de causas encontráveis na própria realidade e não
exógena à ela.
O desenvolvimento científico que conhecemos até hoje re-
sulta de um amplo e cumulativo processo de amadurecimento pos-
sível graças à superação objetiva dos empecilhos postos. Porém,
seus fundamentos metodológicos estão dados já na filosofia grega
ao passo em que ela levantou problemas decisivos à especificidade
do reflexo científico da realidade, visando seu esclarecimento. Em
todo caso, “o esforço filosófico tende a ultrapassar decisivamente a
subjetividade humana com seus limites, deficiências e preconceitos,
e a refletir com a maior fidelidade possível a realidade objetiva tal
como é em si”. Na filosofia grega, “o sujeito do conhecimento tem
de criar intelectualmente seus próprios instrumentos e modos de
45
proceder para fazer, com sua ajuda, que a apreensão da realidade seja
independente das limitações da sensibilidade humana” e “para auto-
matizar, por assim dizer, esse autocontrole” (LUKÁCS, 1974, p. 154,
tradução nossa).
Os filósofos gregos imprimiram explicações racionais à reali-
dade que os cercavam. O mundo natural, como também o mundo
social, é tomado como objeto de conhecimento. O conhecimento
do mundo tal como ele é torna-se, na vigência do mundo grego e de
seus fenômenos inerentes, uma possibilidade. Todavia, entre alguns
grandes expoentes da ciência grega a essência dos fenômenos era
imutável, não sendo passível de alteração pelos homens por não ser
constructo deles.
Platão, por exemplo, advogou que o conhecimento constituía
em um meio para apreender a natureza última e essencial da realida-
de. Abstraindo e superando as experiências, os homens desenvolve-
riam a capacidade de captar a verdadeira natureza das coisas em seu
sentido eternal, em sua imutabilidade. No dia a dia, os sujeitos são
demandados a fazer escolhas através de decisões e aí a teoria exerce,
de acordo com a âncora analítica do mencionado filósofo ateniense,
um papel intransferível. Decidir entre alternativas requer certo co-
nhecimento sobre elas.
Os sujeitos tomam suas decisões baseando-se em princípios e
valores gerais que adotam e segundo os quais agem frente a determi-
nadas situações. Os valores, na visão platônica, não são arbitrários,
casuísticos. Enquanto normas da ação, afirmam-se como formas ou
ideias gerais, abstratas, permanentes, invariáveis e só por isso orien-
tam a ação humana. Como captar a essência permanente dos fenô-
menos? A solução platônica consiste, atesta Marcondes (2001, p. 59),
em “supor que temos um conhecimento prévio que a alma traz consi-
go desde o seu nascimento”. Ao filósofo cabe, diante disso, despertar
o conhecimento inato que ficou esquecido pela alma.
Platão justificou a primazia do pensamento sobre a existência
sensível das coisas. Demostrou, para isso, como o mundo sensível
participa do mundo inteligível. O mundo ideal platônico apresenta
uma ambiguidade: ele tem que “ser ao mesmo tempo e indissoluvel-
mente a abstração suprema, a realidade puramente suprassensível e
a mais viva concreção”. A essência das coisas, independente, como
defende Platão, “é uma força ativa e criadora que faz o mundo das
aparências encarnar-se como formas mítico-sensíveis do mundo ide-
al” (LUKÁCS, 1974, p. 165, tradução nossa).
A filosofia platônica produz, conforme o autor, uma pseudo-
desantropomorfização. Objetivamente, a pseudodesantropomorfiza-
46
ção se traduz ao estabelecer um mundo “sobre-humano”, “trans-
cendente ao homem”, cuja qualidade é superior ao que pode ser
perceptível e pensável. Subjetivamente, pode ser percebida ao dirigir
o homem à ruptura com seu ser concreto, ruptura essa necessária
para que se estabeleça um contato proveitoso com o outro mundo.
O humano, na análise de Platão, não se encontra em si mesmo. Ao
assim se posicionar, este filósofo se contrapõe à ciência. Pois, para
esta, a essência do mundo deve ser buscada no próprio mundo.
Aristóteles, apesar das críticas dirigidas à teoria de Platão, re-
presenta um esquema que faz eco com as opiniões platônicas, po-
dendo ser assim resumido:
O Cosmos seria uma estrutura esférica que articularia uma es-
fera eterna (a das estrelas fixas) com o seu centro, no qual se
localizaria a Terra, onde tudo não passaria de movimento, de
história. Esta estrutura forneceria a cada coisa o seu “lugar na-
tural”, de tal modo que conhecer a essência de cada ente nada
mais significava que descobrir o seu “lugar natural” dentro da
estrutura cosmológica. O “lugar natural” dos homens seria o
espaço limitado pelos semideuses e os bárbaros: a humanidade
poderia se desenvolver no espaço entre os bárbaros (os huma-
nos mais primitivos) e os gregos (em especial os Atenienses, os
humanos mais desenvolvidos). Tal como em Platão, também
em Aristóteles o limite da história humana é dado, não por ne-
nhuma dimensão propriamente sociohistória, mas pelo caráter
dualista de sua concepção de mundo: a essência impõe aos ho-
mens o “modelo” da Ideia ou o “lugar natural” do Cosmos
(LESSA, 2006, p. 88).
47
mundo terreno, com sua transitoriedade, onde brotam os pecados pelos
quais os homens precisam pagar. Diante dessa dualidade, a história,
ao invés de produto da ação dos homens, era imposta por forças
metafísicas. A vida dos homens estava traçada a princípio por Deus,
o criador de tudo e de todos, e não cabia a ela questionamentos, mas
sim entendimento, obediência. Conhecer o mundo seria permitido
sem violar os ensinamentos dos textos sagrados, dada a sua prece-
dência a qualquer conhecimento. Os homens precisavam primeiro
crer para, pela iluminação divina, compreender o mundo. “Credo ut
intelligam4”, dizia Santo Agostinho. “Credo que absurdum!5”, exclamava
Tertuliano.
Na filosofia medieval, fortemente influenciada pela Igreja Ca-
tólica, a regência da objetividade no processo de conhecimento já
presente entre os gregos permanece, assim como a recorrência a algo
prévio para explicar o mundo. A concepção agostiniana é reveladora
desse aspecto, postulando que a história da humanidade é um proces-
so de alianças e rupturas entre o homem e seu Criador. Marcondes
(2001, p. 111), ao enfatizar a relação de Santo Agostinho com con-
cepções da Antiguidade, afirma:
[...] Santo Agostinho conclui [...] que, dada a convencionalidade
do signo linguístico - isto é, as palavras variam de língua para lín-
gua e são sinais arbitrários das coisas -, este não pode ter qualquer
valor cognitivo mais profundo; não é através das palavras que
conhecemos; logo não podemos transmitir conhecimento pela
linguagem. A possibilidade de conhecer supõe algo de prévio,
que torna inteligível a própria linguagem. Sua posição é assim, na
mesma direção da filosofia platônica, inatista, ou seja, supõe que
o conhecimento não pode ser derivado inteiramente da apreen-
são do sensível ou da experiência concreta, necessitando de um
elemento prévio que sirva de ponto de partida para o próprio
processo de conhecer.
48
pode penetrar”. Em sendo assim, “a razão não é mais do que um
instrumento limitado para conferir certa sustentação racional às ver-
dades religiosas, que, em última instância, estão para além da própria
razão” (TONET, 2013, p. 65). Tomás, sob os ventos que sopram
o Medievo, ao final das contas corrobora com a existência de algo
transcendental. Para ele, a razão recebe as informações advindas do
mundo exterior e possibilita ao sujeito o aperfeiçoamento do seu
conhecimento.
Em se tratando do mundo moderno, na etapa do pensamento
burguês que vai dos renascentistas à Hegel observa-se que o caráter
progressista do capitalismo no seu nascedouro “permitia aos pensa-
dores que se colocavam do ângulo do novo a compreensão do real
como síntese de possibilidade e realidade, como totalidade concreta
em constante evolução” (COUTINHO, 2010, p. 25). Os represen-
tantes ideológicos da burguesia, rompendo com a herança da on-
tologia greco-medieval, tomaram a realidade como uma totalidade
racional; portanto, passível de conhecimento. Conhecer e, através
disso, dominar a realidade conforme determinados fins eram possi-
bilidades postas à razão humana. O pensamento pode, segundo os
modernos, elucidar a substancialidade do real. Afirmavam, explicita-
mente, o caráter racional dos processos histórico-sociais.
Quando a burguesia emergiu num processo ascensional e al-
tamente revolucionário, como atestam Marx e Engels (1998), en-
carnando a defesa da tríade “igualdade, liberdade e fraternidade”,
necessitou demonstrar que a história é construída pelos homens e,
por tal motivo, a reversibilidade das contradições semeadas pelo ve-
lho mundo era possível.
Os modernos, em geral, defendem que o caminho metodoló-
gico recursado para capturar os eventos da realidade natural serve,
igualmente, para desvendar a legalidade social. O funcionamento
da sociedade aparece, portanto, como homólogo ao da natureza. A
investigação acerca dos fenômenos e problemáticas sociais avolu-
mados com a consolidação da organização societária burguesa se-
gue a mesma tendência do racionalismo formal. A pressuposição
fundamental é a de que a dinamicidade da sociedade, ao invés de
está assentada em preceitos teológicos, se fundamenta em leis na-
turais, invariáveis, que independem da ação finalística do homem
– provam-no as várias tentativas positivistas de formular uma ciên-
cia da sociedade rígida e moldada conforme métodos particulares
inspirados nos esquemas da matemática (Jean Baptiste Condorcet),
da biologia (Saint-Simon) e da física social (Augusto Comte), bem
como as proposições de verve neopositivista, estruturalista, etc.
49
As ciências sociais autonomizadas/parcelares - sociologia, fi-
losofia, antropologia, economia, ciência política, psicologia - tomam
setores particulares da sociedade como objeto específico de reflexão.
Surgem para explicar os profundos impactos brotados das transfor-
mações levadas a cabo pela burguesia na organização da sociedade,
sobretudo aqueles que acometem os trabalhadores em face do ubí-
quo avanço do capital. Para isso, tais ciências trilham, quase que ex-
clusivamente, os procedimentos metodológicos das ciências naturais.
Visando o conhecimento, o sujeito descobre a invariabilidade das leis,
observa a regularidade dos fenômenos isolados, formula hipóteses,
submete-as à verificação e reconhece a objetividade social em sua
empiricidade. A sociedade é metodologicamente encarada como um
organismo biológico que precisa do adequado desempenho de todas
as suas partes. Caso haja uma relação desarmônica entre elas, de-
correntemente aparecem as disfunções a serem remediadas no seu
próprio interior.
Dentre os modernos, Descartes alimenta uma “ontologia da
subjetividade”; Kant nega a ontologia e, nesse movimento de nega-
ção, supervaloriza o indivíduo e a subjetividade em relação à objeti-
vidade. Ora, “se uma ontologia é a prioridade do mundo objetivo,
na medida em que ele transfere, desloca o centro de atenção para a
subjetividade nós temos, em suma, a negação da ontologia”. Hegel,
importante arauto da cientificidade moderna, reafirmou uma ontolo-
gia “reconvertendo a teoria do conhecimento a uma fenomenologia
do espírito, isto é, a uma história da razão autoconstituinte”. Por isso,
a “[...] ontologia hegeliana é uma ontologia da razão, só que esta razão
não é da subjetividade, é uma razão como princípio de racionalidade
do mundo e este é constituído ontologicamente por via lógico-on-
tológica”. Dito de outro modo, em Hegel “é a lógica que constitui o
universo da mundanidade” (CHASIN, 1988, p. 15). Cada um à sua
maneira, com diferenças consideráveis, reforça uma marca inocultá-
vel da razão moderna: uma certa aversão pela objetividade e a ênfase
na subjetividade como polo regente do conhecimento. Abandona-se
a objetividade e a substitui pela subjetividade, com todas as consequ-
ências daí decorrentes.
Não raro, quando os filósofos do passado e do presente se
deparam com questões (em tudo complexas) relativas ao ser social,
de modo a resolvê-las sob pressões cada vez mais amplas e agudas,
costumeiramente ou não a distinguem do ser em geral ou o inter-
pretam como “algo que não tem mais o caráter de ser – como, por
exemplo, no século XIX, o valor, a validade etc.”. Como resultado, a
cognoscibilidade do ser social se esbarra num “tosco contraste entre
50
o mundo do ser material enquanto reino da necessidade e um puro
reino espiritual da liberdade” (LUKÁCS, 2012, p. 25).
Na moldura da ontologia marxiana, o ponto de partida para
o conhecimento do ser social é inequívoco: não são as divindades,
nem a natureza, nem o “espírito”, nem outro ponto de partida elegi-
do a talante do sujeito. O saber ontologicamente fundado do mundo
deve partir dos indivíduos, reais e ativos, que vivem sob condições
sociais já encontradas, obra da atividade passada de outros indivídu-
os, e modificadas pela sua ação perante as respostas dadas às neces-
sidades. A história do ser social é, queiramos ou não, saibamos ou
não, gostemos ou não, resultado exclusivo das ações humanas correspon-
dentes a um contexto histórico e social.
Tal história é totalmente compreensível, inteiramente expli-
cável a partir de como, em cada momento particular, em circuns-
tâncias variáveis, o trabalho se organiza. Na constatação de Marx e
Engels (2009, p. 23-24, grifo dos autores),
As premissas com que começamos não são arbitrárias, não são
dogmas, são premissas reais, e delas só na imaginação se pode
abstrair. São os indivíduos reais, a sua ação e as suas condições
materiais de vida, tanto as que encontraram quanto as que pro-
duziram pela sua própria ação. Essas premissas são, portanto,
constatáveis de um modo puramente empírico. [...] Podemos
distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião
– por tudo o que se quiser. Mas eles começam a distinguir-se
dos animais assim que começam a produzir os seus meios de
subsistência (Lebensmittel), passo esse que é requerido pela sua
organização corpórea. Ao produzirem os seus meios de subsis-
tência, os homens produzem indiretamente a sua própria vida
material.
51
ordem lastreada pelos antagonismos advindos da relação-capital, fi-
liando-se, pois, a uma perspectiva de classe bem definida, qual seja: a
perspectiva da classe proletária. Ela resulta de um rigoroso acúmulo
teórico preliminar alcançado por Marx entre os lustros que cobrem
os anos 1843-1858. A ontologia marxiana deve ser, antes de mais
nada, compreendida como uma ontologia do ser social. Embora ela
pressuponha uma ontologia geral do ser, a “determinação central da
ontologia marxiana como especificamente referida ao ser social está
na sua categoria fundante, a categoria de práxis, cuja pertinência é ex-
clusiva aos indivíduos pertencentes ao gênero humano” (NETTO,
2017, p. 184, grifos do autor).
Marx, apesar de sua genialidade individual, é legatário das
“doutrinas dos representantes mais eminentes da filosofia, da eco-
nomia política e do socialismo” (LENIN, 1983, p. 72). Em sua cami-
nhada inicial manteve vínculo direto e crítico com a filosofia alemã,
como bem demonstra suas referências aos escritos de Hegel (com
sua lógica motriz idealista) e à obra de Ludwig Feuerbach (nutriz do
materialismo contemplativo). Incorporou e superou criticamente as
descobertas de apologéticos da ordem burguesa, a exemplo de Adam
Smith e David Ricardo, a tal ponto que “lá onde os economistas bur-
gueses viam relações entre objetos [...], Marx descobriu relações entre
homens” (LENIN, 1983, p. 75, grifos do autor), desmistificando o nú-
cleo medular da exploração capitalista e os corolários dessa explo-
ração. Debateu com os socialistas utópicos franceses, especialmente
Saint-Simon, Proudhon, Owen, Foureir e Blanc, os quais teceram
uma “crítica romântica ado capitalismo” (LENIN, 1983). Marx, lon-
ge de repudiar as valiosas conquistas da época burguesa, assimilou e
reelaborou um cabedal de conhecimentos que permitiram, por via
de um movimento consubstanciado por continuidades e rupturas, a
formulação de uma nova ontologia.
Para Chasin (1988a, p. 45), a despeito de ter se apropriado dos
conhecimentos existentes, ratificando-os ou os criticando, Marx não
só supera, mas também sobrevive, a filosofia especulativa, instaurando
uma filosofia da transformação. Marx, sem cavar abismos entre filo-
sofia e ciência, fez reemergir uma forma do saber “unitário, sintético
e direcionado à totalização” – eis o giro marxiano.
O pesquisador que se propõe conhecer o mundo até o fim tem
que envidar esforços para conhecer a realidade como tal. O fato de
a teoria ser a reprodução ideal da dinâmica real, não significa que ela
seja um reflexo mecânico, uma fotocópia do que está fora da cons-
ciência do sujeito e se internalizada por elucubrações desprovidas de
concretude. Na contracorrente do lastro da filosofia alemã, “a qual
52
desce do céu à terra”, Marx e Engels (2009, p. 32, grifo dos autores)
afirmam que “aqui sobe-se da terra ao céu”. Isso quer dizer que
“não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou se repre-
sentam, e também não dos homens narrados, pensados, imaginados,
representados para daí se chegar aos homens em carne e osso”. E,
para um maior esclarecimento, prosseguem: “parte-se dos homens
realmente ativos e, com base no seu processo real de vida, apresen-
ta-se também o desenvolvimento dos reflexos [Reflexe]”.
A produção das ideias, das representações teóricas sobre o
real é determinada pela atividade prática dos homens. A moral, a
religião, a metafísica e as ideologias não existem por si sós; “são os
homens que desenvolvem a sua produção material e o seu intercâm-
bio material que, ao mudarem essa sua realidade, mudam também o
seu pensamento e os produtos do seu pensamento”. Sendo assim,
“Não é a consciência que determina a vida, é a vida que determina
a consciência” (MARX; ENGELS, 2009, p. 32). A consciência, as
representações, as ideias e tudo que diz respeito ao sujeito resultam
da sua atividade prática, têm calço no real e não se sustêm fora desse
terreno objetivo.
A rejeição ao teor idealístico não é a única tarefa teórica enca-
beçada por Marx durante seu percurso investigativo para capturar o
real. Na Tese I sobre Feuerbach, Marx dirige sua crítica ao materia-
lismo contemplativo, à sua visão acerca da realidade. São de sua au-
toria os seguintes comentários ao polemizar contra as proposituras
feuerbachianas:
O principal defeito de todo o materialismo existe até agora (o
de Feuerbach incluído) é o que o objeto [Gegenstand], a realidade,
o sensível, só é apreendido sob a forma de objeto [Objekt] ou da
contemplação, mas não como atividade humana sensível, como prática;
não subjetivamente. Daí o lado ativo, em oposição ao materialis-
mo, [ter sido] abstratamente desenvolvido pelo idealismo – que,
naturalmente, não conhece a atividade real, sensível, como tal.
Feuerbach quer objetos sensíveis [sinnliche Objekt], efetivamente
diferenciados dos objetos do pensamento: mas ele não apreen-
de a própria atividade humana como atividade objetiva [gegens-
tändliche Tätigkeit] (MARX, 2009, p. 119, grifos do autor).
53
os homens a desenvolver cada vez mais as potências físicas e mentais
sem tornarem-se redutíveis aos traços genéticos que o determinam
enquanto exemplar de uma espécie. Pela mediação do trabalho, e em
decorrência dos seus resultados objetivos e subjetivos, os homens
vão se diferenciando da natureza e ascendendo à sua condição de
ser-para-si porquanto essa atividade possibilita o surgimento de pro-
cessos sociais que predominam em relação à naturalidade orgânica.
Esclarecidas essas questões, em pinceladas mais do que su-
cintas, passemos na sequência ao exame dos liames entre trabalho e
educação. Para isso, será imprescindível levarmos em consideração a
peculiaridade de tais complexos sociais, evidenciando a função social
que cada um exerce.
54
construiu o favo em sua cabeça, antes de construí-lo em cera.
No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado que já
no início deste existiu na imaginação do trabalhador, e portanto
idealmente.
55
de necessidades precisa ser satisfeita a cada instante. Ao término de
que cada ato de trabalho, as necessidades humanas são atendidas ao
mesmo tempo em que o trabalho já realizado cria novas necessida-
des (objetivas e subjetivas) e novos caminhos para satisfazê-las. Daí
os homens confrontam-se com necessidades renovadas mediante sua
ação, respondendo-as com reações conscientes. Porém, as respostas
dos indivíduos não são determinadas por componentes geneticamen-
te herdados da espécie; não ocorrem de modo involuntário, como
entre os animais. São respostas práticas, sempre guiadas pela consciência e
possíveis pela tomada de decisões entre alternativas, a dilemas práticos presentes
na vida cotidiana.
Por certo que as necessidades se diversificam, correspondendo
a um determinado estágio de sociabilidade alcançado, as respostas
também são as mais diversas. Isso demonstra que nem todo o agir
humano se esgota no trabalho. Desde o ato mais primitivo de traba-
lho, ele se revela como sendo parte constituinte de uma totalidade
social. O trabalho não existe isoladamente. A partir dele, e em torno
dele, constelam-se diversos complexos sociais que, quão diferente-
mente organizados, se relacionam, tanto em seu interior como em
seu exterior, heterogeneamente. Ao passo em que a humanidade vai
evoluindo chama à vida uma gama de complexos sociais que intera-
gem entre si.
É inconteste que sem o trabalho várias objetivações não exis-
tiriam, basta apenas pensar principalmente naquelas que estão vincu-
ladas a uma práxis social mais elevada. No âmbito da ontologia mar-
xiana, o trabalho permanece, igualmente, como sendo a protoforma
das demais objetivações humanas que não se dirigirem de imediato
ao natural. Por isso, para o filósofo húngaro aqui referenciado, o ser
social é um “complexo de complexos”; uma totalidade fundada pelo
trabalho e composta por inúmeros outros complexos que se interco-
nectam de forma dialética e permanente.
d) Pelo ato de transformar matérias naturais em objetos úteis,
produzindo algo antes inexistente, tem-se outro efeito inevitável: ocor-
re o desenvolvimento das capacidades e a potencialização das habili-
dades do seu sujeito. O sujeito opera uma modificação na natureza,
graças ao conhecimento adequado de suas leis, e é também modificado
em sua interioridade, em “sua própria natureza”. O trabalho possibili-
ta, concomitantemente, uma dupla transformação: a transformação da
natureza (objetiva) e a transformação do indivíduo (subjetiva). Não é
de se estranhar que a individualidade que realizou o ato de transformar
o mundo natural apareça, no final do ato, mais ricamente constituída
e já não é exatamente a que o iniciou. Ontologicamente, o indivíduo
56
aparece sempre com qualidades novas, transformadas e complexifi-
cadas. Adquire novos conhecimentos, desenvolve habilidades e sua
sensibilidade.
Importantíssima é a consideração de que a natureza consti-
tui a base insuprimível da vida em sociedade. Ainda que se altere
a forma de organização dos homens para transformar a natureza
nos meios de produção e de subsistência, é inalterável o fato de
que a sociedade, seja na sua forma mais primitiva, quer na sua mo-
dalidade moderna, não existe sem a natureza. Essa impossibilidade
de existência da sociedade sem a natureza resulta na dependência
ontológica da primeira em relação à segunda. Vale ressalvar, para
evitar recorrentes equívocos teóricos: com isso não se está reforçan-
do as deformações que, inclusive do ponto de vista metodológico,
interpretam a sociedade como símile à natureza; que apreendem o
funcionamento de uma organização social sujeito às leis operantes
na natureza. As leis da natureza (fixas, rígidas) são em tudo distin-
tas das leis da sociedade7 (construídas pelos homens, servem para
compreender a sociedade a elas atinente). Guardam como elemento
comum apenas o fato de serem causais.
Quando ocorre essa transposição simplista desconsidera-se
que a história humana é o desenvolvimento de organizações societá-
rias particulares – heterogeneamente constituídas por movimentos
de progressos e recuos, continuidades e descontinuidades - que em
nada mudam a espécie biológica homo sapiens. A peculiaridade da vida
em sociedade consiste no fato de que ela é edificada pela ação cons-
ciente dos homens ao encontrarem cada vez menos “prontas” as
condições para sua reprodução, produzindo-as sempre de maneira
nova através do trabalho sob pena de fenecerem. Desconsidera-se,
além disso, que o salto operado pelo trabalho distanciou os homens
da natureza, embora sem dela prescindir, e fundou um novo ser, o
ser social, regido por leis que, ao fim e ao cabo, não se assemelham
em nada à legalidade reinante na natureza.
Dissemos linhas atrás que, diante do elenco de necessidades
que se heterogeneízam na vida cotidiana, surge uma cadeia de com-
plexos sociais no interior do processo reprodutivo social total como
resultado da miríade de decisões alternativas dos indivíduos. Alguns
complexos emergem espontaneamente8, como é o caso do trabalho,
7 Observa Marx (1996, p. 130): sendo distintas as leis da natureza das leis sociais, no
percurso investigativo para capturar a essência dessas últimas “não podem servir nem o
microscópico nem reagentes químicos”.
8 Essa espontaneidade, obviamente, não elimina o papel dos indivíduos enquanto
criadores de tais complexos.
57
da divisão social do trabalho, da economia, da linguagem, da alimenta-
ção, da sexualidade, da sociabilidade, da educação, etc. Diferentemen-
te, outros apenas passam a existir, funcionar e se reproduzir quando
um certo estágio da divisão social do trabalho atribui a um seleto
grupo humano especializado a função de organizar, regular e pôr em
funcionamento tais complexos. Dentre tantos, encaixam-se nesse rol
complexos como o Estado, o Direito, a propriedade privada, a família
monogâmica etc. que, dotados de estrutura e autolegalidade interna
específica, auxiliam a reprodução das sociedades cindidas em classes
sociais antagônicas, dada a inconciliabilidade de seus interesses.
Todos os complexos sociais guardam em relação ao trabalho
duas relações inelimináveis: uma relação de dependência ontológica, pois
o trabalho é a matriz fundante de todo e qualquer complexo; e uma
relação de autonomia relativa dada pelas funções desempenhadas desde
o exato momento que aparecem. Cada complexo se organiza interna-
mente para melhor conduzir o atendimento das necessidades postas e
interage dialeticamente com os demais complexos e com a totalidade
social.
No caso da educação, complexo social particular que supre a
necessidade de capacitar os homens “a reagir adequadamente aos
acontecimentos e às situações novas e imprevisíveis que vierem a
ocorrer depois em sua vida” (LUKÁCS, 2013, p. 176), ela
[...] se enquadra, do ponto de vista ontológico, naquele conjun-
to de complexos que diferentemente do trabalho não realiza a
troca orgânica sociedade/natureza. Embora se distingam do
trabalho por sua função social, que no caso desses complexos
se dirigem para a consciência de outros homens com o objetivo
de ensejar-lhes determinadas posições teleológicas, eles têm nele
sua origem ontológica e atuam no sentido de mediar, em última
instância, a troca orgânica sociedade/natureza. Quanto mais de-
senvolvido é o ser social, mais os complexos sociais desse tipo
ganham expressão e importância para a reprodução social. (MA-
CENO, 2017, p. 89).
58
sujeito que planejou e objetivou a ação de transformar a natureza.
Conta-se, aí, com a influência do acaso. Na educação, os pores teleológicos
dirigem-se a outro sujeito (ou, a depender da situação, a vários sujeitos). O objeto
da ação é ao mesmo tempo um sujeito. Age-se objetivando influenciar o
comportamento dos sujeitos de tal modo que eles atuem de uma
determinada forma diante do que lhes é apresentado.
Na crescente sociabilização do ser social, o ser-em-si da edu-
cação afirma-se ao exercer influência sobre “os homens no sentido
de reagirem a novas alternativas de vida do modo socialmente in-
tencionado. O fato de essa intenção se realizar – parcialmente – de
modo ininterrupto ajuda a manter a continuidade na mudança da
reprodução do ser social” (LUKÁCS, 2013, p. 178). À diferença do
trabalho, a educação incide sobre a consciência, sobre a subjetivida-
de. Se é correto afirmar que sem o trabalho a educação não existiria,
não deixa de ser verídico que o trabalho impulsiona a existência da
educação enquanto um complexo essencial para a reprodução do
gênero humano. Inexiste transformação de qualquer setor da rea-
lidade sem que o sujeito esteja dotado de um quantum de conheci-
mento a ele atinente. Tendo em vista que o homem não nasce com a
posse do saber, é no processo de sua constituição genérica, atuando
junto a outros homens, que ele vai adquirindo conhecimentos sis-
tematizados por outras gerações e potencializando suas habilidades.
Incorporar os conhecimentos existentes pressupõe um ato educati-
vo, ato esse presente já no trabalho mais primitivo.
Lima e Jimenez (2011), munindo-se do arcabouço categorial
da ontologia marxiana, concluem que a educação, por ser fundada
pelo trabalho, guarda com ele uma relação de identidade da identida-
de e da não identidade. A identidade revela-se no fato de o trabalho
ser a protoforma de toda práxis social, fundando inclusive a edu-
cação. Esta, à semelhança do trabalho, possui como característica a
objetivação de posições teleológicas, o que exige a movimentação
de séries causais. Assim como o trabalho, a educação se realiza pela
relação entre teleologia e causalidade.
A não identidade, por sua vez, se consubstancia à medida que
no trabalho são postas teleologias primárias, direcionadas ao inter-
câmbio entre homem e natureza, cujo eixo da ação volta-se para
transformar objetos naturais em valores de uso. Na educação, em
particular, as posições teleológicas secundárias objetivam influenciar
outros indivíduos a realizarem determinadas posições antes às situ-
ações postas por sua cotidianidade.
Tonet (2012, p. 67), analisando a relação trabalho e educação,
constata que:
59
Ao examinar esta categoria [o trabalho], vemos que, assim como
a linguagem e o conhecimento, também a educação é, desde o
primeiro momento, inseparável dela. O trabalho, por sua pró-
pria natureza, é uma atividade social, e, por isso, sua efetivação
implica sempre, por parte do indivíduo, a apropriação dos conhe-
cimentos, habilidades, valores, comportamentos, objetivos, etc.,
comuns ao grupo. Somente através desta apropriação é que o
indivíduo pode tornar-se (objetivar-se) efetivamente membro do
gênero humano. Esta apropriação/objetivação tem na educação
uma das suas mediações fundamentais.
60
biológicos e aquilo que o meio põe, “aprendem” com os adultos. As
aquisições comportamentais firmam-se e se mantêm inalteradas por
toda a existência do animal.
Distintamente da “educação” do mundo dos animais, as
“aquisições da espécie humana que são transmitidas biologicamente
não são suficientes para assegurar a reprodução social do homem”.
Qual a razão disso? Como explicar esse fato? “Exatamente porque
os homens precisam adquirir, para a sua reprodução social, compor-
tamentos e habilidades que não são biologicamente herdados, é que
a educação no ser social é marcadamente social” (MACENO, 2017,
p. 92). O aprendizado humano não resulta da estrutura biológica
que o define como exemplar de uma espécie.
As apropriações dos homens, resultantes de uma atividade
conscientemente posta, são “heterogêneas ao ser orgânico, apro-
priações que dizem respeito ao ir-sendo indivíduo socialmente de-
terminado”. Assim sendo, “não há determinabilidade nas aquisições
de habilidades e comportamentos humanos, pois tais apropriações
não objetivam integrar o indivíduo homem à sua espécie animal”,
e tampouco se dirigem à mera reprodução do indivíduo biológico.
Ao contrário, “a sua função remete ao ser social, e, portanto, ao ser
social do homem” (MACENO, 2017, p. 93).
Sobre a aquisição das aptidões humanas, Bertoldo (2015, p.
153) esclarece:
[...] elas são geradas pelos próprios homens, à medida que vão
criando o seu mundo exterior e a si mesmos. Essas aptidões hu-
manas, enquanto se desenvolvem e se consolidam, são transmi-
tidas pelas gerações mais velhas às mais novas, constituindo um
processo contínuo de educação. Trata-se de um processo que
tem como característica a continuidade, pois sem ela a trans-
missão da cultura de uma geração para outra não seria possível.
Contudo, isto não significa que esse traço de continuidade seja
análogo ao processo de transmissão hereditária, da forma como
ocorre com os animais.
61
educacional, passando a requerer formas diferenciadas de educa-
ção. (BERTOLDO, 2015, p. 153).
9 Até mesmo a educação “que com o aparecimento da escola (em todos os seus níveis e
variações) passa a ter uma terminabilidade (isto é, se organiza em etapas, níveis ou ciclos
que são certificados ao final de cada uma das fases concluídas) definida (ainda que se
possam frequentar inúmeros cursos infinitamente), não é capaz de preparar os homens por
completo” (MACENO, 2017, p. 94-95).
62
sua efetivação. (LIMA; JIMENEZ, 2011, p. 84-85).
Concluindo...
63
comandada pelo capital. Aqui, a educação deve necessariamente se
articular com a revolução.
Tendo em vista a dinâmica reprodutiva da sociedade atual,
[...] não se pode pretender uma educação emancipadora como
uma proposta geral. Mesmo lá onde o acesso à educação se dá
da forma mais elevada possível no interior do capitalismo, a he-
gemonia das classes dominantes imprime a ela um caráter pro-
fundamente conservador. Nem é preciso citar os exemplos dos
Estados Unidos e da Europa. (TONET, 2012, p. 56).
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66
A Educação e sua Relação com a Superestrutura
e a Estrutura na Ontologia Marxiana 1
Introdução
67
dição de pobreza. Ao lado disso, a educação pública adquire feições
cada vez mais mercantis, mediante a criação de mecanismos diversos
como a Educação a Distância5, os projetos de inovação tecnológica,
a formação para o empreendedorismo, as parcerias entre a esfera pú-
blica e a privada, entre outros.
As críticas feitas à abordagem de Althusser sobre a questão da
superestrutura e estrutura, sem dúvida, cumprem um papel impor-
tante no campo do marxismo. No entanto, entendemos que a discus-
são sobre a questão deve ser feita a partir de uma perspectiva ontoló-
gica em que o ponto de partida seja o resgate da concepção marxiana
do ser social, da sua base fundante que é o trabalho e a explicitação
da gênese de outras esferas sociais constituintes do ser social distintas
do trabalho. Com isto, torna-se possível apreender a relação entre a
base estrutural do ser social e a superestrutura, superando a forma
de apreensão da questão, que consiste na exposição de pontos de
vistas distintos entre a abordagem althusseriana e as críticas realiza-
das. Somente a partir daí será possível apreender a educação em sua
relação com as esferas da superestrutura e estrutura, a partir de uma
abordagem ontológica.
Portanto, partindo de Marx (2008; 2012; 2013), fazemos o res-
gate da análise sobre a relação entre superestrutura e estrutura, tendo
como fio condutor de análise a categoria trabalho. Além disso, nos
reportamos ainda a dois grandes seguidores de Marx da atualidade,
pela importância do resgate da perspectiva ontológica: Lukács (2010;
2013) e Mészáros (2008; 2011).
Para atingir o objetivo proposto, o presente artigo foi estrutu-
rado da seguinte forma: inicialmente apresentaremos a interpretação
de Althusser (1985) sobre as categorias superestrutura e estrutura e,
em seguida, faremos o resgate da categoria fundante do ser social,
que é o trabalho, acompanhado da explicitação de como, a partir daí,
surgem as demais esferas sociais, como a educação, e a análise da
relação entre trabalho e educação na ontologia marxiana. Conside-
rando que a educação é uma categoria fundada a partir do trabalho,
é necessário situar de modo preciso qual é sua função e sua relação
5 A educação a distância se estendeu também para a educação básica, no nível médio, a
partir da reforma do ensino médio, com a Lei 13.415/2017 (Art. 4o, § 11: “Para efeito de
cumprimento das exigências curriculares do ensino médio, os sistemas de ensino poderão
reconhecer competências e firmar convênios com instituições de educação a distância com
notório reconhecimento, mediante as seguintes formas de comprovação: [...] VI - cursos
realizados por meio de educação a distância ou educação presencial mediada por tecnolo-
gias”. Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13415.htm.
68
com a categoria superestrutura e estrutura. Por fim, analisaremos
as categorias superestrutura e estrutura na perspectiva da ontologia
marxiana, assim como a relação com a educação, trazendo as con-
tribuições de Marx (2008), Lukács (2010; 2013) e Mészáros (2011).
69
Para expor de forma ilustrativa e resumida a relação entre su-
perestrutura e estrutura na perspectiva althusseriana, organizamos a
figura abaixo:
70
distinta daquela desenvolvida por Althusser, pois tem como ponto
de partida o trabalho, que é a base fundante do ser social. A apre-
ensão dessas categorias a partir da ontologia é condição necessária
para compreender a educação no processo de reprodução do ser
social.
71
presente na representação do trabalhador no início do processo,
portanto, um resultado que já existia idealmente. (MARX, 2013,
p. 255-256).
72
humana. Nas palavras de Santos (2017, p. 45), são necessários “ou-
tros complexos sociais para que o devir humano se desenvolva. A
educação vai ser um desses complexos potencializadores do desen-
volvimento humano”.
Todas as categorias surgidas do complexo do trabalho ga-
nham uma autonomia relativa, mas jamais rompem a sua dependên-
cia ontológica com o ato fundante. Neste sentido, com a educação
não é diferente.
Bertoldo (2015, p. 31) assinala que
quanto mais o ser social se desenvolve, quanto mais uma so-
ciedade ascende a um novo patamar de desenvolvimento, tanto
mais surgem novas categorias, novas situações, que implicam
relações e nexos cada vez mais complexos. Isto significa dizer
que estas categorias se apresentam de forma independente, au-
tônoma em relação àquela de origem. Contudo, isto só confir-
ma a sua dependência em relação àquela de esfera fundante.
73
conhece a sua parcela de contribuição no desenvolvimento do ser
social”.
Desse modo, entre trabalho e educação existe articuladamente
a relação de dependência ontológica, autonomia relativa e determina-
ção recíproca, evitando assim a “superestimação quanto à subestima-
ção da educação” (TONET, 2016, p. 102).
Na obra Para uma ontologia do ser social II, Lukács (2013) afirma
que a educação se constitui em dois sentidos: amplo e estrito.
No sentido estrito, a educação é concebida na perspectiva de
atender às demandas de um modo de produção da sociedade, uma
educação demandada pelos homens em um contexto específico. Um
exemplo é o modo de produção capitalista que impulsionou o pro-
cesso de industrialização; com isso, surgiu na sociedade moderna a
exigência de uma instituição que possibilitasse a formação da força de
trabalho com os conhecimentos necessários e mínimos para atender
aos interesses do processo produtivo. Essa instituição foi e continua
sendo a escola.
A educação no sentido amplo é apreendida pela concepção
ontológico-marxiana como um processo social elementar, uma vez
que “sua essência consiste em influenciar os homens no sentido de
reagirem a novas alternativas de vida do modo socialmente intencio-
nado” (LUKÁCS, 2013, p. 131), tornando-se um processo no qual o
homem forma e é formado constantemente.
Lukács (2013), destacando a essência da educação no sentido
amplo, anota:
[...] O essencial da educação dos homens, pelo contrário, consiste
em capacitá-los a reagir adequadamente aos acontecimentos e às
situações novas e imprevisíveis que vierem a ocorrer depois em
sua vida. Isso significa duas coisas: em primeiro lugar, que a edu-
cação do homem – concebida no sentido mais amplo possível
– nunca estará realmente concluída. Sua vida, dependendo das
circunstâncias, pode terminar numa sociedade de tipo bem dife-
rente e que lhe coloca exigências totalmente distintas daquelas,
para as quais a sua educação – no sentido estrito – o preparou.
(LUKÁCS, 2013, p. 130).
74
um processo educativo amplo, que qualifique os sujeitos para a vida,
e não para atender aos interesses do mercado, porquanto este reduz
a educação a mercadoria para os fins lucrativos e mercadológicos do
capital e seu processo reprodutivo. É necessário, pois, pensar numa
educação que contemple o desenvolvimento omnilateral dos indiví-
duos, uma educação ampla, que se constitui na vida.
Na concepção ontológico-marxiana, a educação tanto é pro-
duto das determinações objetivas e concretas da realidade material,
como uma forma social que possibilita a mediação no processo de
desenvolvimento do ser da sua condição natural para um ser social,
por meio de processos educativos que vão surgindo e se desenvol-
vendo mediante a relação entre trabalho e educação.
É importante destacar, ainda, as considerações do educador
brasileiro marxista Dermeval Saviani acerca da relação entre traba-
lho e educação, e sua crítica contundente à análise althusseriana so-
bre o processo educativo.
Como se sabe, na obra Escola e democracia (1999), Saviani faz
uma classificação das teorias da educação em duas grandes divisões,
que são as teorias não críticas (Pedagogia Tradicional, Pedagogia
Nova e Pedagogia Tecnicista) e as teorias crítico-reprodutivistas.
No campo das teorias crítico-reprodutivistas, o autor situa a
teoria da escola como aparelho ideológico de Estado (AIE), sendo
Althusser um autor de destaque.
Saviani assinala os limites da concepção estruturalista por esta
considerar apenas o determinante econômico na realidade social,
sendo Althusser (1985) o principal representante. Para Althusser o
papel das instituições, principalmente da escola, na sociedade capi-
talista, consiste em reproduzir as ideologias da classe dominante:
é através da aprendizagem de alguns saberes práticos (savoir-
-faire) envolvidos na inculcação massiva da ideologia da classe
dominante, que são em grande parte reproduzidas as relações de
produção de uma formação social capitalista, isto é, as relações
de explorados com exploradores e de exploradores com explo-
rados. (ALTHUSSER, s/d, apud SAVIANI, 1999, p. 34, grifo
do autor).
75
é, sim, determinada pela sociedade, mas que essa determinação
é relativa e na forma de ação recíproca – o que significa que o
determinado também reage sobre o determinante. Consequente-
mente, a educação também interfere sobre a sociedade, podendo
contribuir para a sua própria transformação. (SAVIANI, 2007,
p. 80).
76
dádiva natural, mas tem de ser produzida pelos próprios ho-
mens, sendo, pois, um produto do trabalho. Isso significa que o
homem não nasce homem. Ele forma-se homem. Ele não nasce
sabendo produzir-se como homem. Ele necessita aprender a
ser homem, precisa aprender a produzir sua própria existência.
Portanto, a produção do homem é, ao mesmo tempo, a for-
mação do homem, isto é, um processo educativo. A origem da
educação coincide, então, com a origem do homem mesmo. (SAVIANI,
2007, p. 154, grifo nosso).
77
teleologia é um processo em tudo distinto da transformação do
real enquanto tal. (LESSA, 2007, p. 117).
78
Na análise das categorias superestrutura e estrutura, Marx
(2008), em sua obra Contribuição à crítica da economia política, compre-
ende que a totalidade social tem como base fundante as relações de
produção, isto é, a estrutura econômica da sociedade, a partir da qual
se desenvolvem formas sociais de consciência que constituem as es-
feras superestruturais.
Para ele:
na produção social da própria existência, os homens entram em
relações determinadas, independentes de sua vontade; essas rela-
ções de produção correspondem a um grau determinado de de-
senvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade
dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da
sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura
jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determi-
nadas de consciência. (MARX, 2008, p. 47).
79
Assim, não é possível conceber a superestrutura e a estrutu-
ra numa relação dualista e antagônica, pois entre essas categorias há
uma relação dialética, uma vez que a totalidade social não se constitui
sem a existência de mediações de vários complexos que influenciam
e são influenciados no processo de desenvolvimento da sociedade. É
notável, portanto, a interação da superestrutura com a estrutura na
concepção ontológico-marxiana.
Quanto mais o ser social se desenvolve, maiores serão as me-
diações necessárias na unidade dinâmica desse processo. Nesse sen-
tido, a ligação entre superestrutura e estrutura acaba sendo tão es-
treita, tão “íntima, que em vários casos singulares não seria nada fácil
constatar quando o conteúdo dos pores teleológicos que aí surgem é
predominantemente econômico e quando ele ultrapassa o puramente
econômico” (LUKÁCS, 2013, p. 288).
Para acentuar a interação entre a superestrutura e a estrutura,
Lukács (2010) destaca o papel da base econômica como “momento
preponderante” (LUKÁCS, 2010, p. 19) e as formas superestruturais
possuidoras de autonomia relativa, de modo que entre essas cate-
gorias se expressa a dialética da mútua reciprocidade de determina-
ção. Observa-se que as esferas superestruturais não são uma simples
determinação da estrutura econômica, pois, “longe de constituírem
um reflexo passivo, essas estruturas podem agir (ou retroagir) sobre
a base material em maior ou menor grau, sempre, no interior das
‘condições, possibilidades ou impedimentos’ que esta lhes determi-
na” (LUKÁCS, 2010, p. 20).
Mészáros (2011), em sua obra basilar Para além do capital, faz
uma análise das categorias superestrutura e estrutura a partir do Es-
tado e sua relação com o capital no processo sociometabólico. O
Estado representa a “estrutura geral de comando político do capital”
(MÉSZÁROS, 2011, p. 29), sendo a estrutura (trabalho) a categoria
fundante da sociedade; esta precisa, por sua vez, do Estado como
um representante político fundamental para defender os interesses
do sistema. Todavia, isso não o torna idêntico ou igual à estrutura do
capital. Trata-se, na verdade, de uma relação dialética entre a estrutura
política – o Estado – e a estrutura do capital, a economia.
A estrutura abrangente do Estado não está longe da base
econômica nem pode ser reduzida a uma superestrutura. Com isso,
percebe-se que existe uma correspondência recíproca entre Estado
e capital, entre a forma superestrutural e a estrutura. Não há uma se-
paração ou determinação de via única, em que a base material apenas
determina as outras esferas sociais ou apenas determina a estrutura
de comando político do capital, isto é, o Estado. É preciso compre-
80
ender que ambos se determinam e se correspondem mutuamen-
te. Mészáros (2011, p. 125, grifo nosso) pressupõe que existe uma
“correspondência estreita entre [...] a base sociometabólica do sistema
do capital e do Estado moderno como estrutura totalizadora do
comando político da ordem produtiva e reprodutiva estabelecida”.
Partindo da análise de Mészáros, a questão se apresenta com
a seguinte resolução: trabalho (estrutura material) e Estado (estru-
tura de comando político) fazem parte de um processo dialético de
determinação, de modo correlacionado, e não simplificado e meca-
nicista. Compreende-se que não é possível reduzir o Estado a uma
superestrutura ausente e isolada da sua base material, pois o pró-
prio Estado constitui uma estrutura cuja dimensão é política e legal.
Contudo, o Estado não pode ser concebido como uma estrutura
material, que emana diretamente das funções econômicas. Nesse
sentido, assim como o Estado, a educação, uma esfera social funda-
da pelo trabalho, não pode ser reduzida a simples superestrutura e
tampouco ser idêntica à estrutura material.
Deve-se compreender que entre superestrutura e estrutura
não pode existir uma relação determinística mecânica, mas de inte-
ração dinâmica, pois a superestrutura pode provocar “alterações na
estrutura que, por sua vez, levam a modificações na superestrutura”
(JAPIASSÚ; MARCONDES, 2001, p. 180), constituindo, portanto,
uma relação de constante interação dialética.
Desse modo, a totalidade social não se torna determinada
apenas pelas condições estruturais, mas se constitui por diversas es-
feras sociais que tanto influenciam como são influenciadas de modo
recíproco e complexo, como podemos observar na figura a seguir.
81
Figura 2 – Representação da relação superestrutura e estrutura na
ontologia marxiana
82
sem romper seu elo com a estrutura da sociedade, isto é, o trabalho,
a educação mantém-se sempre articulada de forma dialética e recí-
proca à base material.
Conclusão
Referências
83
e proletariado no capitalismo contemporâneo. São Paulo: Cortez, 2007.
p. 105-125.
LUKÁCS, György. Prolegômenos para uma ontologia do ser social: questões
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SAVIANI, Dermeval. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 11.
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TONET, Ivo. Educação contra o capital. 3. ed. São Paulo: Instituto Lukács,
2016.
84
O Socialismo de Marx: Anotações sobre a Crítica
ao Programa de Gotha
Antonio Nascimento da Silva1
Deribaldo Santos2
Introdução
85
cipitadas conclusões, dando oportunidade às mais variadas críticas,
estas que perdem imediatamente a validade quando confrontadas
com o real ou mesmo com uma leitura mais séria.
Para compreender de forma mais aprofundada possível o
marxismo, é preciso mais que a simples leitura de algumas folhas de
determinado livro; necessita-se de um árduo esforço no estudo não
apenas das obras de Marx, senão no de seus clássicos representantes,
como, por exemplo, Lukács e Mészáros. Necessita-se examinar desde
os primeiros escritos até os mais sistematicamente elaborados.
Diante da dificuldade que é empreender tal estudo mesmo para
os que o fazem com certa paixão, optamos aqui por trazer à discus-
são – em vez da obra que representa o ápice da carreira intelectual de
Marx, que é O Capital – um texto pequeno, porém importante, que
contribui sobremaneira para ampliar a compreensão sobre o autên-
tico programa socialista. Escolhemos o texto Crítica ao programa de
Gotha.
Ressaltamos que tal artigo é relevante, uma vez que possibilita
analisar a postura de luta do próprio Marx, a maneira como ele tratava
as questões políticas mais imediatas e, especialmente, o modo como
o “Marx filósofo”4 emprega a dialética em sua práxis revolucionária.
O texto em questão possibilita-nos, mediante as críticas dirigidas a
Lassalle, entender algumas das históricas distorções que o marxismo
sofreu ao longo do tempo.
A Crítica ao programa de Gotha foi publicada 15 anos depois de
ser escrita, em 1875. Neste ano, ocorria na cidade alemã chamada
Gotha um congresso para tratar da união entre o Partido Social-De-
mocrata dos Trabalhadores (Sozialdemokratische Arbeiterpartei – SDAP)
(eisenachianos) e a Associação Geral de Trabalhadores Alemães (Allge-
meiner Deutscher Arbeiterverein – ADAV) (lassalianos), fundado e dirigido
por Ferdinand Lassalle. Antes do congresso, uma cópia da proposta
(programa) de unificação é enviada a Marx, para que este pudesse
fazer suas considerações. Segundo Marx, a citada proposta que ao ser
aprovada fundou o Partido Social-Democrata da Alemanha (Sozial-
demokratische Partei Deutschland – SPD)5, estava repleta de distorções e
4 As aspas chamam atenção para uma prática corriqueira no meio acadêmico que diz respei-
to a uma separação grotesca que se faz do autor que aqui estamos tratando, como se hou-
vesse vários Marxs: o cientista político, o economista, o filósofo, o historiador, o sociólogo
etc. Tal prática leva a um entendimento minimizado e controverso do arcabouço teórico do
pensador alemão.
5 Durante a redação deste texto, o governo da cidade de Gotha era exercido pelo SPD por
meio do prefeito Knut Kreuch.
86
contradições se comparada a um autêntico programa socialista. Por
trás destas distorções, para Marx, está a influência de Ferdinand Las-
salle.
Marx redige sua crítica destacando os pontos que denotam
a influência idealista e “oportunista” de Lassalle. Entre os vários
pontos destacados por Marx, optamos por privilegiar os temas que
se relacionam mais diretamente com a proposta de uma sociedade
comunista e com a práxis revolucionária que vise atingir tal socieda-
de, com a transição da atual sociabilidade burguesa ao comunismo
e questões ligadas ao próprio método dialético e seu edifício teórico
em geral. Grosso modo, pretendemos ressaltar a posição política de
Marx em relação a uma sociedade comunista, bem como o processo
que conduziria a tal e o modo como este mantém a coerência entre
teoria e práxis.
87
za”. Podemos constatar assim que todas as outras categorias são pro-
dutos sociais; apenas o trabalho é ponto médio no salto ontológico
que transformou o humano em sujeito social.
Em sua análise, Lukács trata de diferentes momentos que ca-
racterizam o trabalho como ato fundante do ser social. Em primeiro
lugar, o trabalho é teleológico, ou seja, tem uma finalidade preconce-
bida antes de ser efetivado na prática. Isto implica dizer que em todo
processo de trabalho existe a finalidade posta antes de sua execução.
Esta teleologia é real porquanto é posta no trabalho e, apenas por
meio deste, o trabalho se realiza. Não há trabalho sem teleologia e
esta não existe fora da práxis social, pondo em xeque a especulação
religiosa da existência de um deus que pré-idealizou o mundo hu-
mano e suas relações6, bem como o espírito do mundo hegeliano
(LUKÁCS, 1982).
A teleologia posta no trabalho pode ser dividida – apenas para
fins didáticos – em dois momentos. Primeiramente, o de pôr um fim
e, posteriormente, o de buscar meios que permitam atingir aquela
finalidade. Nesse movimento, o fim posto teleologicamente dirige o
processo de busca pelos meios e nesse processo entra a escolha, a
decisão entre as alternativas que se julga adequada para alcançar de-
terminada finalidade. Na escolha entre uma ou outra alternativa, tem
papel importante a subjetividade do indivíduo, pois todo o processo
acima descrito dá-se com base no reflexo do mundo circundante,
pressupondo, por tênue que seja, um grau de conhecimento da rea-
lidade que lhe é exterior. Ademais, ressalta o filósofo, o desencadea-
mento do processo de trabalho ocorre sempre segundo uma neces-
sidade real material, nunca de forma arbitrária, isto é, tem sempre
a função de atender a, suprir uma necessidade concreta (LUKÁCS,
1982).
O trabalho, no plano ontológico, é positivo ao sujeito humano,
dado que o afirma enquanto tal. Do resultado do processo de traba-
lho, da síntese entre ser social e natureza, desprendem-se os elemen-
tos sociais. Apenas sobre a natureza, com efeito, é possível o trabalho.
Neste estágio, os homens e mulheres podem reconhecer-se em seu
6 Supondo a existência de Deus, este não realizou um trabalho, pois não transformou a
natureza, mas sim, criou-a – a-histórica. Ademais, no trabalho teleológico, nunca o homem
tem o exato domínio de seu resultado (LUKÁCS, 1982). Ao contrário, Deus, desde que criou
o mundo, tem o absoluto controle sobre todo o processo das relações deste – ainda que no
livro sagrado cristão Ele tenha se arrependido de sua criação –, bem como a certeza do seu
fim em um momento que apenas o criador conhece. Destarte, como veremos a seguir, o
trabalho pressupõe uma necessidade real, concreta. Um Deus que tem necessidades mate-
rialmente concretas não parece ser muito divino.
88
trabalho, é-lhes agradável a utilidade do ritmo desse processo. Como
afirma Lukács (1982, p. 269) ao dialogar com Bücher, “[...] el can-
sancio se produce sobre todo por la permanente tensión intelectual
durante el trabajo. Esta tensión puede disminuirse mediante la auto-
matización […]. Esta es precisamente la función del ritmo”.
Não podemos, no entanto, tomar o processo de trabalho, por
ele ser teleológico, como algo absolutamente determinado. A natu-
reza constitui-se como campo objetivo onde a intenção do sujeito
se depara com a causalidade posta e natural. A ação do trabalhador,
desse modo, ocorre sob uma liberdade concretamente limitada pela
natureza, e a própria escolha de alternativas dentro desse campo
já traz consigo o socialmente produzido anteriormente (LUKÁCS,
1982).
Nas sociedades de classes, esse processo sofre profundas
mutações. O trabalho adquire um caráter negativo conforme vai
deixando de pertencer ao trabalhador que o realiza, para ser pro-
priedade de outrem, tornando-se uma força estranha que se contra-
põe ao seu produtor. O trabalho assume, dessa forma, um caráter
contraditório, pois ao tempo que é o único meio que possibilita a
existência física do trabalhador, nega-o completamente. Entretanto,
sublinhamos que essa “negatividade” é proveniente não do trabalho
em si, mas da maneira como as forças produtivas são organizadas
em uma sociedade dividida em classes. Portanto, o trabalho além de
estranho, torna-se alienado.
Sobre isso, Marx (2010, p. 81) afirma:
A exteriorização (entäusserung) do trabalhador em seu produto tem
o significado não somente de que seu trabalho se torne um ob-
jeto, uma existência externa (äusern), mas, bem além disso, [que
se torna uma existência] que existe fora dele (ausser ihm), inde-
pendentemente dele e estranha a ele, tornando-se uma potência
(Macht) autônoma diante dele, que a vida que ele concedeu ao
objeto se lhe defronta hostil e estranha.
89
Marx é bastante claro nesta passagem. Afirmar que o traba-
lho é fonte de toda riqueza, se não nega, pelo menos omite a base
sobre a qual todo trabalho se realiza e – como mostramos acima
–, sem a qual ele seria impossível. Dessa forma, o trabalho con-
creto, enquanto processo mesmo, ou ainda no plano ontológico,
como sugere Marx, acrescenta valores de uso e de troca àqueles
valores previamente existentes na natureza. O minério possui seu
valor material, sobre este ser inorgânico, o processo de trabalho
que é natural do ser social, acrescenta-lhe outros valores, isso por-
que inicialmente, para o trabalhador, tal minério já possui um valor
material que é historicamente determinado. Destarte, como escreve
o pensador alemão, “[...] olhando o diamante não se percebe que
é uma mercadoria. Quando serve como valor de uso, estético ou
mecânico, sobre o colo de uma dama ou na mão do lapidário, é
diamante e não mercadoria” (MARX, 2008, p. 52).
De outro modo, seria mais justo dizer que o trabalho con-
creto produz valores de uso e constitui meio para ampliar a riqueza
material que é naturalmente dada. Na sociabilidade burguesa, ba-
seada no acúmulo do lucro sobre quaisquer circunstâncias, toda-
via, o trabalho alienado, ao tempo que é condição para a existência
física do seu produtor, nega-o enquanto tal. A direção que é dada
à produção pela sociabilidade burguesa leva a uma irremediável de-
gradação da própria natureza, pressuposto básico do trabalho no
plano ontológico. Esse processo ocorre com um único objetivo: o
lucro. “Na América do Sul – por exemplo –, a agropecuária derruba
as florestas tropicais com o objetivo de criar extensas pastagens
e grandes culturas de exportação, como a soja” (FREITAS et al.,
2011, p. 65).
Ora, se o trabalho é o ato gênese do ser social e, como pro-
curamos mostrar acima, ele pressupõe a natureza em geral, pois
apenas nesta ele pode concretizar-se; e mesmo sendo a relação
ser social-natureza repleta de contradições – as quais a humanida-
de procura desde os mais remotos tempos superar através de um
maior domínio das forças naturais –, o sujeito humano, em tese,
deveria ter um natural zelo com a natureza, haja vista ser condição
de sua existência como ser social, pondo o campo no qual o pró-
prio trabalhador irá se afirmar através do trabalho. Como diz Tonet
(2005, p. 34), “[...] a relação com a natureza não é, para o homem,
um mal necessário, mas um momento constitutivo essencial do seu
processo de entificação”.
Mesmo a este nível de nossas considerações, já podemos in-
ferir com base em Marx, bem como nos clássicos que o seguiram,
90
que a posição de Lassalle em relação ao trabalho, como expusemos
acima, está claramente equivocada.
2. Problema da igualdade
91
mesmo resultado, ou seja, de que não há conciliação entre elas. Des-
se modo, o máximo que se pode fazer é tentar reduzir ou amenizar
os conflitos entre ambas. No plano político isso quer dizer: propor
reformas capitalistas como viraram moda no discurso vigente das
chamadas esquerdas democráticas.
Sobre a questão da liberdade e da igualdade, dois momentos
são importantes: compreender o aspecto da liberdade no processo de
trabalho e entender os desdobramentos do trabalho na sociedade, de
modo mais específico, na proposta marxiana de sociabilidade. Depois
disso, poderemos entender com maior segurança a crítica de Marx a
Lassalle em relação ao tema da igualdade na produção.
Como aludimos, uma das características fundamentais do tra-
balho é justamente o momento da escolha entre alternativas. Todo
processo de trabalho parte de necessidades materiais concretas; o
atendimento de tais necessidades, além de solucionar aquele proble-
ma imediato de sobrevivência, produz novas necessidades que exi-
gem, por sua vez, novas medidas e um processo diferente para so-
lucioná-las. Assim, “[...] do conhecimento imediatamente útil para a
produção do machado se evolui para o das propriedades das pedras
em geral e, desse modo, para o da natureza” (LESSA; TONET, 2008,
p. 25).
O fim teleológico, mesmo partindo de necessidades materiais
concretas, advindas da relação do agente humano com a materialida-
de, dá-se, sobretudo, na consciência e depende desta faculdade para
se realizar como tal. Como afirma Lukács: teleologia não é trabalho.
O esteta húngaro, baseado nas contraposições de Marx a Darwin,
afirma ainda que o primeiro “[...] nega a existência de toda teleologia
fora do trabalho (de práxis humana)” (LUKÁCS, 2018, p. 16). O pro-
cesso completado, ou seja, a prévia ideação objetivada, concluindo o
processo de trabalho, modificando a natureza conscientemente em
prol de necessidades, ao contrário dos animais, é o que nos faz perce-
ber o caráter não epifenomênico da consciência humana.
Como já deve estar claro, de nada adiantaria o papel da consci-
ência se a natureza não fornecesse o chão sobre o qual se desenvol-
vem todos os complexos humanos. A natureza fornece as alternativas
concretas para que a faculdade da consciência possa, através de várias
mediações, escolher o melhor meio para atingir aquele fim posto te-
leologicamente.
A liberdade humana funda-se, justamente, na possibilidade de
escolha entre as alternativas postas pela natureza/sociedade. Tais al-
ternativas, por seu turno, formam perguntas a que a consciência bus-
ca responder. A relação entre as perguntas e a tentativa de respostas
92
formuladas pelo subjetivo que, por seu turno, é produto de deter-
minadas relações histórico-sociais, produz a necessidade concreta
de escolha entre a série de alternativas postas. A esse movimento
Lukács denomina de teleologia.
No plano ontológico, a liberdade não é uma abstração, tam-
pouco e muito menos uma divindade transcendente como o livre-ar-
bítrio tomista. Essa liberdade processa-se nos limites da natureza/
sociedade. As possibilidades postas pela história humana impõem
a atuação da faculdade da consciência subjetiva. Essa consciência,
concretamente construída pelas contradições sócio-históricas, não
pode desconsiderar as contingências do acaso.
Em resumo: a liberdade, analisada no plano ontológico, não
é uma abstração, senão concretamente fundada na síntese entre ob-
jeto e sujeito. O trabalho teleologicamente orientado torna possível
buscar a articulação entre liberdade e igualdade sem que ambas se
contraponham de forma mecânica e irreconciliável. Ao final deste
ensaio retomaremos a discussão sobre essa relação.
Procuraremos agora, mediante o que foi discutido acerca da
liberdade, proceder em relação ao problema da igualdade, tencio-
nando entender como esta categoria é concebida na proposta de
Ferdinand Lassalle e compreender, a partir daí, a crítica de Marx a
tal concepção7.
De acordo com Lassalle: “A libertação do trabalho requer a
elevação dos meios de trabalho a patrimônio comum da sociedade
e a regulação cooperativa [genossenschaftliche] do trabalho total, com
distribuição justa do fruto do trabalho” (citado por MARX, 2012, p.
27). Na mencionada passagem, Marx esmiúça detalhadamente cada
frase desse período. Contudo, apenas nos ateremos de modo espe-
cífico à última parte: distribuição justa do fruto do trabalho.
De acordo com essa posição, em uma sociedade emancipada,
o produto do trabalho coletivo deve ser equitativamente distribuído
entre os produtores, portanto, com princípio de igualdade. Toda-
via, tal posicionamento é negligente, e o é principalmente por não
considerar as diferenças entre os indivíduos. Antes das implicações
dessa posição, devemos atentar para o fato de que, se não foi por
má-fé, pelos menos Lassalle não aplicou bem o método dialético
materialista sobre a história para chegar a tal opinião. Como afirma
Marx (2008, p. 250), “[...] considerar a sociedade como um único
indivíduo é considerá-la falsamente, especulativamente”. Além dis-
93
so, Lassalle parece não ter levado em conta que “[...] o concreto é
concreto porque é a soma de muitas determinações, isto é, unidade
do diverso” (MARX, 2008, p. 258).
Não observando tais indicadores metodológicos, Lassalle ne-
gligencia as particularidades, as diferenças que possibilitam a um ou a
outro indivíduo poder produzir, aproximadamente, por exemplo, de
acordo com suas características físicas e somáticas. É precisamente
sobre esse ponto que a crítica de Marx irá se sustentar, pois mostra
que a igualdade reclamada por Lassalle não é outra coisa senão a pró-
pria igualdade burguesa, a mesma ferreamente defendida pelo direito
burguês.
Ponderamos que a perspectiva de igualdade em que se baseia
Lassalle é construída mediante os mesmos métodos sobre os quais
se erguem os economistas que, como diz Marx, confundem elemen-
tos comuns a determinados períodos históricos. Esses economistas
vulgares confundem determinadas formas de produção, que podem
ser generalizadas e tidas como categorias universais, com aqueles ele-
mentos que são característicos de cada momento, de cada modelo
produtivo, portanto, elementos particulares (MARX, 2008).
Para afirmar essa igualdade abstrata, o indivíduo é visto em sua
forma genérica, abstratamente, sem considerar as particularidades do
sujeito real. É assim que a economia burguesa considera o trabalhado
assalariado, ou seja, o quantum que se recebe por um determinado
trabalho como sendo natural. Haja vista que em todas as sociedades
classistas antecessoras à sociabilidade burguesa esse quantum está pre-
sente; desconsidera, com tal procedimento, que a relação em que se
fazia presente essa quantidade trocada, por sua vez, por uma determi-
nada força de trabalho, é histórica e, assim, socialmente determinada.
As relações entre senhor e escravo diferem em muitos elementos da
relação entre senhor e servo, bem como da relação entre patrão e
empregado na sociedade capitalista.
Sintetizando: a posição de Lassalle é uma posição burguesa.
Esta classe é a que se beneficia com a campanha de mascaramento da
realidade; a mesma que pressupõe equivocadamente – como mostra a
realidade histórica – que todos os homens e mulheres são iguais entre
si. Lembremo-nos do discurso capitalista liberal da livre concorrên-
cia, da possibilidade de cada um ter sua propriedade, bastando para
isso querer e esforçar-se para tal; ou mesmo a máxima da burguesia
liberal: a minha liberdade acaba quando começa a sua. É pouco provável
que certos africanos que, em virtude de suas condições materiais pre-
cárias, tendo a mais baixa expectativa de vida do planeta consignada
por seus processos históricos, queiram realmente morrer tão cedo
94
e que não desejem fazer algo que lhes possibilite ter garantido ao
menos uma refeição por dia, fazendo, com isso, que se prolonguem
suas precárias vidas por mais alguns míseros anos.
Este posicionamento burguês não tem outro objetivo senão
reproduzir as relações capitalistas. Tal princípio de igualdade, tal
como defende Lassalle, contrapõe-se a uma proposta radical que
aponta para além das relações de domínio do humano pelo humano.
Isso, decisivamente, não condiz com o programa socialista de Marx.
A respeito dos antagonismos entre liberdade e igualdade, estes
“[...] se manifestam na subjetiva dimensão político-jurídica” (TO-
NET, 2005, p. 4). De fato, no regime capitalista, apenas do ponto de
vista formal, e ainda com algumas restrições, é que a liberdade e a
igualdade podem coexistir. No cotidiano das relações político-bur-
guesas percebe-se que tal igualdade se limita ao “direito” de voto8.
No modo de produção capitalista, ser livre é ser proprietário,
é ser cidadão, possuidor, pagar impostos... Numa sociedade em que
a maioria é explorada por uma minoria, contudo, apenas esta mino-
ria é proprietária da matéria-prima, dos instrumentos, dos processos
e do produto do trabalho. Dessa forma, não há possibilidade de
que, nesse modelo produtivo, estabeleça-se uma liberdade real, bem
como uma igualdade concreta entre os indivíduos. É compreensível
o discurso burguês que afirma a impossibilidade da liberdade real,
haja vista que o horizonte dos defensores de tal postura limita-se ao
capitalismo, não vislumbrando nada além da mesquinhez de suas
relações.
Não é nossa tarefa aprofundar o debate sobre o pseudoanta-
gonismo entre liberdade e igualdade, que, como vimos, é “direito”
dentro dos limites do capitalismo. Queremos apenas ressaltar que os
esforços em alcançar, nem que seja aproximadamente, esses patri-
mônios humanos através das instituições burguesas e sobre a base
capitalista são infrutíferos, mesmo sendo efusivamente defendidos
pelos partidários da chamada esquerda democrática. Sublinhamos
ainda que a afirmação de existir já essa liberdade/igualdade não pre-
tende outra coisa senão esfriar os poucos ânimos revolucionários
restantes e, assim, manter tranquilamente em curso prático os pro-
jetos de reprodução do status quo.
95
3. Todas as outras classes são reacionárias, apenas a classe pro-
letária é revolucionária?
96
ponderância da primeira sobre a segunda, pois os reformistas que
antes de Lutero se posicionaram firmemente não apenas contra a
Igreja, mas contra o modo de produção feudal, foram desarticula-
dos, esmagados, ao passo que os críticos restritos à Igreja consegui-
ram lograr êxitos9.
É lícito aludirmos, não obstante, como forma de reforçar tais
exemplos, que o caráter revolucionário da burguesia, por exemplo, é
abordado do ponto de vista filosófico por Hegel. Sobre isso, Luká-
cs, citando trechos da filosofia hegeliana, diz que a forma superior
de sociabilidade, antes de se consolidar como universal, já se fazia
presente no seio do feudalismo como momento particular, este que
deve necessariamente ter se constituído como elemento corruptor
dos costumes cristalizados daquela sociedade, ou seja, do feudalis-
mo enquanto pretensão universal (LUKÁCS, 1968).
Tais particularidades, que aqui não representam outra coisa
senão as ideias burguesas/capitalistas, surgiam no regime feudal
como ideias revolucionárias que apontavam para a superação do an-
cient régime10.
Apesar de não ser tão simples, podemos adiantar que o caráter
revolucionário da classe trabalhadora se deve ao fato de que são os
trabalhadores os sujeitos históricos que impulsionam a sociedade, é
o trabalho que funda o ser social. Como já afirmamos anteriormen-
te, na esteira de Lukács (2018), apenas o trabalho é de fato o ponto
médio entre homem e natureza, seja esta última orgânica ou inorgâ-
nica. A classe operária é ontologicamente revolucionária, aquela que
por sua própria natureza necessita, acima de qualquer outra, levar a
cabo a revolução, romper com sua atual situação, na qual está sujeita
a exploração e domínio.
Aos trabalhadores é negado o processo, as ferramentas e o
próprio produto do trabalho. Como assevera Marx (2010, p. 81),
“[...] quanto mais objetos o trabalhador produz, tanto menos pode
possuir e tanto mais fica sob o domínio do seu produto, do capital”.
Ora, no capitalismo, se há uma classe que deve dirigir a revolução,
esta classe é justamente os trabalhadores, pois são eles os diretamen-
te afetados pela dominação burguesa.
9 Tivemos, no Brasil, o movimento chamado teologia da libertação, que liderado por reli-
giosos se mostrou, em alguns aspectos e dentro de suas limitações teológicas, mais revolu-
cionário do que vários grupos que se diziam de esquerda, ateus, ou até socialistas.
10 Na filosofia de Hegel, principalmente na fase das ilusões heroicas, o pensamento bur-
guês era o universal, haja vista ser a vontade coletiva a própria expressão da particularidade
em geral. O equilíbrio, portanto, é a forma suprema de sociabilidade.
97
É importante ressaltar, a despeito do próprio método de Marx,
que tais características atribuídas à classe trabalhadora não consti-
tuem obra do pensamento, de um juízo abstrato. Ao contrário, é o
pensamento captando o real, pois as contradições são concretas e
perpassam o cotidiano. Imaginemos, para ilustrar, aquele agricultor
que trabalha todo o ano e ao final não lhe resta sequer um alqueire
de sua produção, a não ser a perspicácia e a heroica vontade de fazer
viver a si e a seus entes, além da sobre-humana esperança de que no
próximo ano “as coisas vão melhorar”.
Dito isso, é ainda mais claro por que aos trabalhadores inte-
ressa diretamente a revolução, a superação da situação de exploração
degradante para o corpo, mente e espírito. Aos capitalistas não pode
interessar tal ação, pois lhes retiraria a situação que ainda é de confor-
to. Isso também é válido, mudando o que tem de ser mudado, para as
classes intermediárias.
Como outrora, a burguesia se pôs revolucionária em face do
feudalismo, mesmo quando este último era a expressão particular to-
mada universalmente de sociabilidade, e seus princípios éticos e mo-
rais predominavam; agora, a classe trabalhadora se põe como auten-
ticamente revolucionária, encontrando no marxismo sua expressão
teórica par excellence. Todavia, difere de todos os seus predecessores,
entre outras coisas, por almejar a superação das classes sociais an-
tagônicas, e não a mera substituição de uma classe exploradora por
outra.
Não há dúvida de que, para Lassalle, a classe ou sujeito revolu-
cionário é(são) o(s) trabalhador(es). Não há, porém, explicações mais
concisas sobre as mediações através das quais tal classe, que aliás é
posta por Lassalle de uma forma mística, encabeçaria a revolução.
Isto nos parece proposital, pois, como veremos em seguida, o pro-
grama lassaliano chega a ser, em essência, antirrevolucionário, dado
que pretende pedir concessões de bom grado do Estado burguês à
luta do proletariado.
Para Marx, até onde compreendemos, a classe/sujeito revolu-
cionário é, como transparece em sua obra, o proletariado, isto é, a
classe que produz a riqueza material. A revolução, no entanto, não
é para essa classe uma missão messiânica ordenada dos céus, porém
imposta pela objetividade das relações de exploração sob as quais se
encontra confinada a classe trabalhadora. Na atualidade, é difícil uma
caracterização mais precisa dessa classe em virtude da enorme divisão
social internacional do trabalho; ademais, isso implicaria a análise das
classes de transição, algo que excederia a proposta desta comunica-
ção.
98
Diante do que temos exposto, sublinhamos que existe a cer-
teza histórica da mudança. Essa segurança, entretanto, não implica
que tal mudança se realize mediante os pressupostos do marxismo,
tampouco que a próxima formação social seja o socialismo. Por fim,
a constatação da mudança como lei histórica, não implica, ao menos
que se realize a transformação e a sociedade atinja uma nova socia-
bilidade, que o novo metabolismo social deva ser necessariamente
melhor que o atual. Não existe receita para a revolução! A não ser
como construção da imaginação de alguns críticos medíocres de
Marx e daqueles que, folheando orelhas dos livros de alguns comen-
tadores, se julgam marxistas.
11 Isto não implica, é claro, que sejam distribuídas tais riquezas segundo a proposta mar-
xista.
99
desenvolvimento das forças produtivas desses povos da Austrália é
baixo, de tal modo que alguns grupos nem sequer utilizam a argi-
la para produzir utensílios (TYLOR, 1920). Um dos elementos que
contribuem para esse baixo desenvolvimento é o limitado acesso que
estes povos têm a culturas diferentes da sua. Este nível de isolamento,
de certa forma, impede ou dificulta que haja o intercâmbio de no-
vas técnicas, tornando muito lento o surgimento de novos elementos
culturais entre estes aborígenes, devido à importância da técnica no
desenvolvimento da produção12.
Eis, acima, um exemplo empírico do argumento de Marx sobre
a complexificação das relações: o aumento do intercâmbio eleva a
produção de riquezas materiais. O fato de a produção ter se desen-
volvido ao nível que presenciamos hoje nos países de capitalismo de-
senvolvido, contudo, não implica necessariamente que por tal motivo
deva ocorrer uma revolução socialista. Obviamente, se assim fosse,
já teria ocorrido.
Hoje se produz alimento suficiente para mais do que o dobro
da população mundial (FAO, 2004). Tal estágio da produção é um
dos pressupostos necessários, pois sem haver produção de alimentos
suficiente para todos, não faz sentido falar em socialismo, porque esta
forma de sociabilidade implica que todos tenham controle coletivo
sobre os meios de produção, bem como sobre os produtos. Se o
nível de desenvolvimento em que se encontram as forças produtivas
impede que haja produção suficiente para todos, esta não pode ser
dividida, pois isso só agravaria a situação de miséria. O alto desenvol-
vimento da produção, e a concentração desta nas mãos de uma mino-
ria que desfruta de toda a produção material-cultural produzem, em
paralelo, como produto direto da exploração, uma massa desprovida
de tais produções, em oposição à primeira.
É precisamente essa injusta situação de desigualdade no seio de
uma sociedade que esbanja riqueza que se torna o estopim para mo-
vimentos no sentido de superá-la. O grupo hegemônico, porém, dis-
põe de uma série de instrumentos que, por várias mediações, tentam
estabilizar esta contradição, ou mesmo mascará-la. Assim, cada vez
mais, as contradições se mostram mais chocantes e claras, de modo
que se torna sempre mais difícil a burguesia encobrir os graves efeitos
do capitalismo. Esse agravamento atesta de modo irrefutável a crise
estrutural do capital (MÉSZÁROS, 2011).
100
O que queremos sublinhar com tais considerações é que as
condições que, segundo Marx, são necessárias para que haja, de fato,
uma revolução socialista exitosa, só podem ser condições gerais, uni-
versais, ou seja, condições dominantes. Como a burguesia poderia
se rebelar contra a sociedade feudal se essa forma de sociabilidade
não fosse dominante e oprimisse os ideais burgueses que surgiam?
A burguesia, uma vez superado o regime feudal, não poderia
se estabelecer de outra forma senão de modo geral, como socia-
bilidade dominante, pois a luta que empreendera outrora contra o
feudalismo não foi um combate local, porém em virtude das rela-
ções estabelecidas entre os diversos povos. Com base num modelo
produtivo comum, tal luta se dava em todos os lugares onde domi-
navam as relações de produção feudais.
Mesmo que a Inglaterra e a França sejam os dois grandes
símbolos da Revolução Industrial/Burguesa de rompimento com
o mundo feudal, as relações contra as quais lutaram os burgueses
nesses países eram – com as devidas ressalvas –, de modo geral,
as mesmas em todo o mundo onde existia o feudalismo. Assim, as
condições históricas que levaram a tal acontecimento eram condi-
ções genéricas, e também práticas, que faziam sentir seus efeitos
diretamente naquele pequeno grupo que aos poucos galgava o status
de classe hegemônica.
Se o inimigo é comum em todos os lugares, vencê-lo significa
suplantá-lo em todos os lugares onde antes domina, do contrário
não haverá superação. Entretanto, a superação do regime feudal pela
burguesia não implica a anulação completa dessa forma de sociabi-
lidade. Esta superação é dialética, precisamente naquele sentido de
Hegel. Dito de outro modo, ela nega para superar, ao tempo que
conserva. Isto é de tal modo coerente com a realidade que, atual-
mente, presenciamos resquícios medievais em muitas instituições.
Da mesma forma que o capitalismo não poderia suplantar o
feudalismo estabelecendo-se apenas num país, ou num continente,
como temos procurado demonstrar – e dessa forma mantendo as
reais características de um determinado modelo produtivo –, o co-
munismo, por sua vez, apenas pode estabelecer-se como modelo
dominante na sociedade em geral se superar o capitalismo em todas
(em todas mesmo) as suas dimensões. Alertamos ainda que essas
condições são condições práticas, haja vista que, sem elas, qualquer
tentativa de implantar o comunismo seria apenas um esforço para
generalizar a miséria (MARX; ENGELS, 2007). Isto fica claro quan-
do se tenta dividir para dez um quantum que é apenas o necessário
para a sobrevivência de cinco. Com efeito, sem tais condições, o
101
comunismo não pode se assumir como modelo produtivo hegemôni-
co e, dessa forma, não pode também se estabelecer de modo apenas
setorial, mantendo os traços que o definem como tal, pois “[...] toda
ampliação do intercâmbio superaria o comunismo local” (MARX;
ENGELS, 2007, p. 39).
Ainda tratando dessa questão, Marx e Engels (2007, p. 39) diz:
O comunismo, empiricamente, é apenas possível como ação “re-
pentina” e simultânea dos povos dominantes, o que pressupõe
o desenvolvimento universal da força produtiva e o intercâmbio
mundial associado a esse desenvolvimento.
102
proposta lassaliana é considerada oportunista e seu programa são
“artigos de fé”. Suas ações indicam que ele pretende obter vanta-
gens particulares do Estado, o que justifica o fato de suas propostas
não abordarem os problemas de uma forma clara e objetiva em prol
da classe trabalhadora (MARX, 2012). Esta série de elementos pro-
va a não autenticidade comunista das proposições de Lassalle.
Voltando à questão do Estado nacional ao qual se refere Las-
salle, este não pode ser outro senão o Estado capitalista, o órgão a
serviço da burguesia que “canta vitória” sobre as cinzas do ancient
régime. Esta sociabilidade, este modelo de Estado, não é um mode-
lo nacional, nem regional, ela é a regra capitalista. Dada a dialética
real e as contradições concretas, todavia, consideramos como ponto
fora da regra, por exemplo, o caso dos aborígenes. Dessa forma, não
faz sentido falar em uma luta pela emancipação “nacional”, nem se
for apenas inicialmente como diz Lassalle.
Certo é que a forma tática da luta deve considerar as particula-
ridades históricas de cada país ou região. Ou seja, o capitalismo que
rege a América Latina é o mesmo que coordena a Europa. Entre
esses dois continentes, no entanto, há diferenças históricas, seja com
relação à produção e à distribuição, seja com relação à circulação e/
ou ao consumo. Diante de tais elementos históricos particulares,
constitui um absurdo pensar que o Brasil é um país de capitalismo
periférico apenas porque a revolução na produção ocorreu na Ingla-
terra e a política na França. Muito embora o que levou tais eventos
a ocorrer nestes países foram, igualmente, circunstâncias históricas
concretas.
Em outras palavras, não há um capitalismo local, de modo
que não há como se organizar para superá-lo como fenômeno lo-
cal. Cuba, Coreia do Norte, China e a própria União Soviética, por
exemplo, são provas históricas dessa impossibilidade, enquanto
muitos teóricos, destacadamente burgueses, afirmam exatamente o
contrário, utilizando tais casos como ilustração de quão fracassado
pode ser um país comunista. Para extrair a dúvida, basta uma leitura
da base do programa comunista (Manifesto do Partido Comunista) a fim
de perceber a enorme diferença. Ressaltamos, todavia, a importân-
cia que tiveram as tentativas anti-imperialistas recentes, sobretudo as
latino-americanas. Estas, mesmo constituindo, no limite do discur-
so, tentativas sem sucesso de instauração do comunismo, sinalizam,
mediante algumas contraditórias conquistas alcançadas, os avanços
que promoveriam caso houvessem de fato tais sociedades superado
o modo de produção capitalista. Cuba, por exemplo, é o 14º em qua-
lidade de educação, ficando logo atrás da Alemanha e muito à frente
103
de países como Grécia, Suécia e Estados Unidos (UNESCO, 2011).
Não negligenciamos, portanto, as conquistas obtidas pelas ten-
tativas ocorridas de se implantar o comunismo. Elas mostram, sobre-
tudo, que é possível empreender a luta contra o regime dominante.
Os caminhos tomados por essas iniciativas desviaram-se por uma
série de mediações das propostas autênticas de Marx e, como agra-
vante, em seus momentos iniciais estavam ausentes muitas daquelas
condições históricas e materiais necessárias a que temos aludido.
Se, como procuramos mostrar, é incoerente falar de emancipa-
ção da classe trabalhadora de forma regional, mais incoerente ainda
é achar que as aspirações desta classe, necessariamente, conduzam a
uma “fraternização universal”. Devemos lembrar as inúmeras me-
diações concretas entre o desejo mediante uma necessidade, e a sa-
tisfação do que é necessário; e recordar, ainda, que a existência de
uma necessidade real, não implica a sua satisfação. Como já dissemos,
Lassalle é bastante vago em suas propostas, o que dá margem para
a fragilização e para o esfriamento do vigor revolucionário contido
no autêntico programa comunista. Mesmo com esses problemas, o
Programa de Gotha foi aceito e os partidos, unificados.
Não é nossa intenção ir além da reflexão da própria crítica de
Marx à proposta lassaliana, mas podemos, com todas as ressalvas,
vislumbrar o stalinismo como o produto das distorções sofridas ao
longo da história pelo programa comunista. Essas alterações, como já
mencionamos, em parte se devem às forças históricas circunstanciais
que impossibilitam, ou dificultam sobremaneira, a implementação
autêntica da proposta, ou ainda, no segundo caso – e ambos parecem
estar intimamente relacionados –, são oriundas de interesses políti-
co-partidários. De modo geral, essas modificações têm como pano
de fundo a intenção de se aproveitar particularmente da conflituosa
condição na qual se encontra a sociedade. Não estamos negando,
com isso, que, em algum momento da história, tenha existido um
partido político sério e realmente voltado aos interesses coletivos.
Reafirmamos apenas o modo como os partidos políticos, inclusive os
que se dizem de esquerda, se aproveitam de situações históricas para
obter o poder.
Sobre a questão do comunismo em um só país, Stalin se destaca
como uma das principais figuras defensoras dessa concepção. Ade-
mais, este georgiano foi o propulsor e implementador dessa proposta
na prática que mais repercutiu no mundo capitalista. Seu nome foi
transformado pela campanha nazista e pelos imperialistas burgueses
em adjetivo para um Estado violento, totalitário, repressivo, repleto
de fome e miséria (MARTENS, 2009).
104
Não há espaço para discutirmos especificamente a atuação de
Stalin. Advertimos apenas para o fato de que, apesar de as visíveis
diferenças entre a proposta marxista e o que aconteceu na União
Soviética sob o mando de Stalin, precisamos ter sempre em mente
o real papel da propaganda burguesa que, não sem motivos, procu-
rou de todas as maneiras possíveis criar a mais terrível imagem do
que ficou conhecido como “socialismo real”, acreditando com isso
acabar, de uma vez por todas, com o fantasma de Stalin e, por con-
seguinte, com o comunismo (MARTENS, 2009).
Cremos que, mediante o exposto, torna-se razoavelmente
compreensível a impossibilidade de um comunismo regionalizado.
Como diz Marx, se um país conseguisse implementar em seu terri-
tório o comunismo, todo o desenvolvimento da produção capitalis-
ta em seu entorno o suplantaria, fazendo deste um mero fenômeno
local e com dias marcados para se extinguir (MARX; ENGELS,
2007). Além disso, os fundadores do marxismo entendem “[…] o
comunismo na condição de suprassunção (Aufhebung) positiva da pro-
priedade privada, enquanto estranhamento-de-si (Selbstentfremdung) humano,
e por isso enquanto apropriação efetiva da essência humana pelo e para
o homem” (MARX, 2010, p. 105).
Como afirmam os autores:
[...] O proletariado [pressupõe, portanto, a história universal
como existência empírica prática (Somado aos Manuscritos)] só
pode, portanto, existir histórico-mundialmente, assim como o
comunismo; sua ação só pode se dar como existência “histó-
rico-mundial”; existência histórico-mundial dos indivíduos, ou
seja, existência dos indivíduos diretamente vinculada à história
mundial. (MARX; ENGELS, 2007, p. 39).
Notas conclusivas
105
Compreendê-los significa conhecer melhor o próprio socialismo pro-
posto e defendido por Marx, bem como pelos clássicos do marxismo.
Esse entendimento nos possibilitará apontar os equívocos recorren-
tes nas atuais messiânicas propostas de reformas para a salvação da
crise por que passa o mundo capitalista. Diante do que expusemos
não poderíamos chegar a outra conclusão senão que não há possibi-
lidades de se atingir uma sociedade humana emancipada por meio do
capitalismo e com o apoio da burguesia.
As propostas de Lassalle tentam, justamente, mascarar essa real
impossibilidade, fazendo crer que de fato há uma saída pela via do
próprio Estado burguês: pelas reformas políticas. Tal mascaramento
procede, a nosso ver, por duas vias. Primeiro, distorcendo os funda-
mentos teóricos do socialismo e, mediante isso – as duas vertentes
encontram-se entrelaçadas –, misturando ações que conduzem o mo-
vimento comunista dos trabalhadores a uma postura de não enfren-
tamento, mas de consenso aos ditames burgueses.
As afirmações presentes no programa de unificação de Gotha
representam exatamente uma espécie de abertura, de modo a facilitar
a cooptação do partido revolucionário pela burguesia. Tal caracterís-
tica é ressaltada por Marx, ao chamar de “ocos” os argumentos de
Lassalle, pois estariam a permitir as mais variadas conclusões, sem
uma postura firme em defesa do proletariado (MARX, 2012).
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108
O Trabalho Produtivo de Capital e a Educação
Subsumida a esse Fim na Teoria Marxiana
Osmar Martins de Souza1
Susana Jimenez2
Introdução
109
Tumolo (2002, p. 92) destaca que, sob a ordem do capital, o trabalho
e as formas de organização do trabalho (taylorismo, fordismo, toyo-
tismo) foram desenvolvidos e aperfeiçoados para elevar o grau de
exploração da força de trabalho da classe trabalhadora.
Este processo de subsunção do trabalho ao capital tem por
base as relações econômicas burguesas, mas nem de longe se restrin-
ge a estas, pois para se reproduzir uma determinada forma de socia-
bilidade faz-se necessário um processo formativo/educacional, por
meio do qual se transmitem as habilidades e valores que contribuem
para formar/conformar os indivíduos neste tipo de sociedade. É pre-
ciso compreender a relação existente entre o trabalho que produz e
reproduz o capital e as determinações essenciais de uma formação/
educação subsumida a esse fim. Desse modo, a discussão neste artigo
se centra em torno da relação entre o capital, o trabalho produtivo de
capital e a formação/educação desse tipo de trabalhador assalariado
de que o capital necessita prioritariamente para se reproduzir.
110
mens produzem e se reproduzem como seres sociais. Marx con-
sidera que o trabalho, enquanto produtor de valor de uso, é uma
condição eterna da vida humana e que, independentemente da for-
ma como a sociedade está organizada, ele não pode ser eliminado,
como se pode constatar na análise da sociabilidade capitalista, na
qual a prioridade é a criação de valor de troca (de valor) ou a valo-
rização do valor.
Sobre isso, no capítulo primeiro, “A mercadoria”, do Livro I
de O Capital, Marx faz a seguinte consideração:
Como criador de valores de uso, como trabalho útil, o trabalho
é, assim, uma condição de existência do homem, independente
de todas as formas sociais, eterna necessidade natural de me-
diação do metabolismo entre homem e natureza e, portanto, da
vida humana. (MARX, 2013, p. 120).
111
requeridas para sua produção, os meios de produção e a força de
trabalho, para cuja compra ele adiantou seu dinheiro no mercado.
Ele quer produzir não só um valor de uso, mas uma mer-
cadoria; não só valor de uso, mas valor, e não só valor, mas
também mais-valor. (MARX, 2013, p. 263, grifos nossos).
112
vadamente se não extrair o mais-valor, que é oriundo da exploração
da mercadoria força de trabalho7. Essa é a lei inerente ao processo
de produção capitalista. Nesse preciso sentido, o autor de O Capital,
no capítulo 23, “A lei geral da acumulação capitalista”, anota:
A produção de mais-valor, ou criação de excedente, é a lei
absoluta desse modo de produção. A força de trabalho só
é vendável na medida em que conserva os meios de produção
como capital, reproduz seu próprio valor como capital e for-
nece uma fonte de capital adicional em trabalho não pago.
(MARX, 2013, p. 695, grifos nossos).
113
se o seu trabalho criar um mais-valor, gratuitamente, para o capitalis-
ta. Sobre esse ponto, Marx, no capítulo 14 de O Capital, em que trata
do mais-valor absoluto e relativo, enfatiza:
A produção capitalista não é apenas produção de mercadorias,
mas essencialmente produção de mais-valor. O trabalhador pro-
duz não para si, mas para o capital. Não basta que, por isso, ele
produza em geral. Ele tem de produzir mais-valor. Só é produ-
tivo o trabalhador que produz mais-valor para o capitalista
ou serve à autovalorização do capital. (MARX, 2013, p. 578,
grifos nossos).
114
Em sua obra O Capital, Marx não faz tábula rasa à economia
política burguesa, mas lhe tece uma crítica radical, no sentido mar-
xiano que esse termo possui, a saber: “Ser radical é agarrar as coisas
pela raiz” (MARX, 2005, p. 151). Além de objetivar o conhecimento
mais profundo da realidade, o pensamento marxiano coloca a neces-
sidade de sua objetivação em um processo prático revolucionário.
Contraditoriamente, os teóricos burgueses, com seu “tacanho espí-
rito”, se dedicam a elaborar interpretações da realidade que convêm
à reprodução das relações sociais burguesas e à conformação dos
indivíduos a essa ordem social. Por isso, segundo Marx, a burgue-
sia, ao conquistar o poder político nos principais países da Europa,
como na França e na Inglaterra, abriu mão de conhecer a realidade
por meio de uma investigação verdadeiramente científica e passou a
produzir uma apologética, já que esta contribui para a manutenção
de seus interesses como classe social dominante (MARX, 2013, p.
86).
O pensamento burguês, necessariamente desprovido de “im-
parcialidade científica”, não pode preocupar-se em esclarecer pro-
fundamente a realidade, pois não objetiva sua transformação, mas
sua conservação. Nesse sentido, essa “tacanha explicação” não his-
toriciza o trabalho na sociedade burguesa, mas o toma de forma
abstrata e imutável. Em direção oposta, Marx, no Livro quatro de
O Capital, sobre a “Teoria da mais-valia”, com o rigor já explicitado
e tendo a realidade concreta como pressuposto essencial8, distingue
historicamente o trabalho produtivo na sociabilidade capitalista do
trabalho produtivo em geral, considerando o primeiro da seguinte
forma:
Trabalho produtivo no sentido da produção capitalista é
o trabalho assalariado que, na troca pela parte variável do
capital (a parte do capital despendida em salário), além
de reproduzir essa parte do capital (ou o valor da própria
força de trabalho), ainda produz mais-valia para o capi-
talista. Só por esse meio, mercadoria ou dinheiro se converte
em capital, se produz como capital. Só é produtivo o trabalho
assalariado que produz capital. (Isso equivale a dizer que o
trabalho assalariado reproduz, aumentada, a soma de valor nele
empregada ou que restitui mais trabalho do que recebe na for-
ma de salário. Por conseguinte, só é produtiva a força de tra-
8 Os pressupostos de que partimos não são pressupostos arbitrários, dogmas, mas pres-
supostos reais, de que só se pode abstrair na imaginação. São os indivíduos reais,
sua ação e suas condições materiais de vida: tanto aquelas por eles já encontradas como
as produzidas por sua própria ação. Esses pressupostos são, portanto, constatáveis por via
puramente empírica (MARX; ENGELS, 2007, p. 86, grifos nossos).
115
balho que produz valor maior que o próprio). (MARX, 1987,
p. 132-133, grifos nossos).
116
tos e as habilidades que os preparem para desempenhar as diversas
atividades que são requisitadas pela produção capitalista e a sua con-
sequente divisão do trabalho9. Por isso, a produção capitalista requer
uma educação em sentido estrito, que tenha como função essencial
transmitir determinados conhecimentos, habilidades e valores que
contribuam para a conformação dos indivíduos (dos trabalhadores)
às necessidades de reprodução da ordem do capital.
117
A discussão sobre a educação do trabalhador assalariado produ-
tivo de capital não pode ser feita sem ter por pressuposto que o capital,
para sobreviver, para reproduzir-se como capital, necessariamente tem
de subjugar o trabalhador assalariado produtivo para se apropriar do
mais-trabalho. Marx considera que o capital é o poder econômico da
sociedade capitalista que domina tudo (MARX, 2007, p. 265). Domi-
na o trabalho, bem como aperfeiçoa os instrumentos que propiciam a
continuidade dessa dominação, já que o seu impulso vital é sua própria
autovalorização e não a valorização do trabalho. Assim, a formação/
educação não passa à margem desse processo, mas, subsumida a esta
lógica, assume em larga medida a função de contribuir com a reprodu-
ção do capital.
Como poder econômico da sociabilidade burguesa, o capital
submete o trabalho à sua própria lógica, forçando continuamente o
trabalhador a vender sua força de trabalho como mercadoria, para
ter acesso aos meios de subsistência a fim de sobreviver. O trabalho
assalariado produtivo de capital, por estar submetido ao processo de
produção capitalista, acaba por produzir e reproduzir as condições de
manutenção de sua submissão ao domínio do capital.
Sobre esta relação entre capital e trabalho, Marx, no capítulo 23
do Livro I de O Capital, a “Reprodução simples”, anota:
O capital pressupõe o trabalho assalariado; o trabalho assalariado
pressupõe o capital. Ambos se condicionam reciprocamente, am-
bos se produzem reciprocamente. Um trabalhador numa fábrica
de algodão produz apenas tecidos de algodão? Não, ele produz
capital. Ele produz valores que servem novamente para comandar
seu trabalho e, por meio dele, criar novos valores. (MARX, 2013,
p. 653).
10 As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe
que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo, sua força espiritual dominante.
A classe que tem à sua disposição os meios da produção material dispõe também dos meios
da produção espiritual. As ideias dominantes não são nada mais do que a expressão ideal
118
Sobre essa finalidade da educação na ordem do capital, István
Mészáros, no texto Educação: o desenvolvimento contínuo da consciência socia-
lista, ressalta:
[...] a educação contínua do sistema do capital tem como
cerne a asserção de que a própria ordem social estabeleci-
da não precisa de nenhuma mudança significativa. Precisa
apenas de uma regulação exata em suas margens, que se deve
alcançar pela metodologia idealizada do pouco a pouco. Por con-
seguinte, o significado mais profundo da educação contínua
da ordem estabelecida é a imposição arbitrária da crença na
absoluta inalterabilidade de suas determinações estruturais
fundamentais. (MÉSZÁROS, 2007, p. 295, grifos nossos).
das relações materiais dominantes, são as relações materiais dominantes apreendidas como
ideias; portanto, são a expressão das relações que fazem de uma classe dominante, são as
ideias de sua dominação. Os indivíduos que compõem a classe dominante possuem, entre
outras coisas, também consciência e, por isso, pensam; na medida em que dominam como
classe e determinam todo o âmbito de uma época histórica, é evidente que eles o fazem
em toda a sua extensão, portanto, entre outras coisas, que eles dominam também como
pensadores, como produtores de ideias, que eles regulam a produção e a distribuição das
ideias de seu tempo; e, por conseguinte, que suas ideias são as ideias dominantes da época
(MARX; ENGELS, 2007, p. 47).
119
A educação institucionalizada, especialmente nos últimos 150
anos, serviu – no seu todo – ao propósito de não só fornecer os
conhecimentos e o pessoal necessário à máquina produtiva
em expansão do sistema do capital, como também gerar e
transmitir um quadro de valores que legitima os interesses
dominantes, como se não pudesse haver nenhuma alterna-
tiva à gestão da sociedade, seja na forma “internalizada” (isto
é, pelos indivíduos devidamente “educados” e aceitos) ou através
de uma dominação estrutural e de uma subordinação hierárquica
e implacavelmente impostas. A própria História teve de ser total-
mente adulterada, e de fato, frequente e grosseiramente falsifica-
da para esse propósito. (MÉSZÁROS, 2005, p. 35, grifos nossos).
120
do capital; a coerção muda exercida pelas relações econô-
micas sela o domínio do capitalista sobre o trabalhador.
A violência extraeconômica, direta, continua, é claro, a ser em-
pregada, mas apenas excepcionalmente. (MARX, 2013, p. 808,
grifos nossos).
11 O processo que cria a relação capitalista não pode ser senão o processo de separação
entre o trabalhador e a propriedade das condições de realização de seu trabalho, processo
que, por um lado, transforma em capital os meios sociais de subsistência e de produção
e, por outro, converte os produtores diretos em trabalhadores assalariados (MARX, 2013,
p. 786).
121
A educação é o meio essencial por meio do qual os indivíduos
internalizam as formas de consciência, os valores, ou seja, o modo de
vida dominante em uma determinada sociedade. Por isso, a educação
deve ser compreendida a partir dessas bases na sociabilidade capita-
lista, pois esta assumiu a função de corroborar a formação/confor-
mação dos trabalhadores assalariados produtivos e improdutivos ao
modo de vida desta sociabilidade. Como se pode constatar concreta-
mente, a educação institucionalizada (formal/escolar) vem desempe-
nhando essa função com bastante eficácia, visto que em sua grande
maioria, os trabalhadores aceitam as exigências do modo de produção
capitalista como se estas fossem naturais.
Se num primeiro momento, como no período de transição do
modo de produção feudal para o modo de produção capitalista, ca-
racterizado por Marx como período da acumulação primitiva de capi-
tal, a violência foi o método predominante de formação/educação/
conformação dos trabalhadores assalariados (expropriados dos meios
de produção) à nova ordem econômica, num segundo momento, as
próprias leis imanentes do sistema do capital exerceram esse papel,
coagindo os trabalhadores a se submeter ao processo de produção
capitalista.
Marx, no capítulo oito do Livro I de O Capital, “A jornada de
trabalho”, assevera:
Foi preciso esperar séculos para que o trabalhador “livre”, em
consequência do modo de produção capitalista desenvolvido,
aceitasse livremente, isto é, fosse socialmente coagido a vender
a totalidade de seu tempo ativo de vida, até mesmo sua própria
capacidade de trabalho, pelo preço dos meios de subsistência que
lhe são habituais, e sua primogenitura por um prato de lentilhas.
(MARX, 2013, p. 343).
122
para reconhecer essa forma de vida com naturalidade. Por isso, o uso
da “violência extraeconômica”, exercida principalmente por meio do
Estado moderno12, dá-se apenas em momentos de forte crise do ca-
pital, quando a coerção econômica e a social não conseguem atenuar
os conflitos entre os interesses inconciliáveis do capital e do trabalho.
Marx entende que a manutenção desse antagonismo entre a
classe trabalhadora (sem meios de produção13) e a classe burguesa
(proprietária dos meios de produção) é uma necessidade vital do pro-
cesso de produção capitalista. Esse antagonismo é essencial para a
vida do capital; o capital tende a reproduzir numa escala cada vez
mais ampliada essa relação social contraditória entre as duas classes
sociais.
Sobre essa situação, o autor de O Capital afirma:
Em seu próprio desenrolar, portanto, o processo capitalista de
produção reproduz a cisão entre força de trabalho e condições
de trabalho. Com isso, ele reproduz e eterniza as condições
de exploração do trabalhador. Ele força continuamente o
trabalhador a vender sua força de trabalho para viver e ca-
pacita continuamente o capitalista a comprá-la para se en-
riquecer. (MARX, 2013, p. 652, grifos nossos).
123
A tendência constante e a lei de desenvolvimento do modo de
produção capitalista consistem em separar cada vez mais do tra-
balho os meios de produção, bem como concentrar cada vez mais
em grandes grupos os meios de produção que se encontram dis-
persos, isto é, transformar o trabalho em trabalho assalariado e os
meios de produção em capital. (MARX, 2017, p. 947).
14 Por força de trabalho ou capacidade de trabalho entendemos o complexo [Inbegriff] das
capacidades físicas e mentais que existem na corporeidade [Leiblichkeit], na personalidade
viva de um homem, e que ele põe em movimento sempre que produz valores de uso de
qualquer tipo (MARX, 2013, p. 242).
15 Essa força de trabalho é uma mercadoria na sociedade capitalista, e como valor de todas
as outras mercadorias, o seu valor é a quantidade de trabalho socialmente necessário para
produzir e reproduzir, isto é, as despesas de manutenção do operário, no sentido largo do
termo (MANDEL, 1978, p. 33).
124
da ciência e de sua aplicabilidade tecnológica, a organização so-
cial do processo de produção, o volume e a eficácia dos meios
de produção e as condições naturais. (MARX, 2013, p. 118).
125
duração do mais-trabalho, no entanto, é obtida subtraindo da jor-
nada de trabalho total o tempo de trabalho necessário. (MARX,
2013, p. 388).
126
de produção e as condições naturais (MARX, 2013, p. 118).
Sobre a queda no valor da força de trabalho, Marx acrescenta:
[...] a queda no valor da força de trabalho também é causada
por um aumento na força produtiva do trabalho e por um cor-
respondente barateamento das mercadorias naquelas indústrias
que fornecem os elementos materiais do capital constante, isto
é, os meios e os materiais de trabalho para a produção dos
meios de subsistência. Em contrapartida, nos ramos de produ-
ção que não fornecem nem meios de subsistência nem meios de
produção para fabricá-los, a força produtiva aumentada deixa
intocado o valor da força de trabalho. (MARX, 2013, p. 390).
127
vos e que se consuma do tempo total de trabalho disponível somente
o necessário, na formação/educação dos trabalhadores.
A educação em sentido estrito (formal/escolar), subsumida à
lógica do capital, volta-se fundamentalmente para o desenvolvimento
de habilidades específicas nos indivíduos (nos trabalhadores), para
que estes exerçam funções específicas, de acordo com as necessida-
des da divisão capitalista do trabalho. Com o encurtamento no tempo
de formação, diminui-se o valor da mercadoria força de trabalho e o
seu equivalente em mercadorias (em meios de subsistência), e aumen-
ta-se o mais-valor (o lucro do capitalista).
Marx, no capítulo quatro do Livro I de O Capital, “A transfor-
mação do dinheiro em capital”, afirma:
Para modificar a natureza humana de modo que ela possa ad-
quirir habilidade e aptidão num determinado ramo de trabalho e
se torne uma força de trabalho desenvolvida e específica, faz-se
necessária uma formação ou um treinamento determinados, que,
por sua vez, custam uma soma maior ou menor de equivalentes
de mercadorias. Esses custos de formação variam de acordo com
o caráter mais ou menos complexo da força de trabalho. Assim,
os custos dessa educação, que são extremamente pequenos no
caso da força de trabalho comum, são incluídos no valor total
gasto em sua produção. (MARX, 2013, p. 246).
Conclusão
128
o que importa é o seu próprio desenvolvimento. Isso é claramente
constatável na educação em sentido estrito (institucionalizada/es-
colar), na atual sociedade, em que se limita o período de formação
dos indivíduos a poucos anos e de maneira extremamente desigual
(MÉSZÁROS, 2007, p. 294).
Sobre a questão da formação/educação do trabalhador pro-
dutivo na lógica do capital, Marx utiliza os seguintes termos no texto
Trabalho assalariado e capital:
Quanto menor for o tempo de formação profissional exigi-
do por um trabalho, menores serão os custos de produção
do operário, menor será o preço do seu trabalho, o seu sa-
lário. Nos ramos da indústria em que quase não se exige tempo
de aprendizagem e a mera existência física do operário basta, os
custos exigidos para a produção do operário reduzem-se quase
somente às mercadorias indispensáveis para mantê-lo vivo em
condições de trabalhar. O preço do seu trabalho será, portan-
to, determinado pelo preço dos meios de existência necessá-
rios [...]. Devem ser incluídos, nos custos de produção da força
de trabalho simples, os custos de reprodução pelos quais a
espécie operária é posta em condições de se multiplicar
e de substituir os operários usados por operários novos.
(MARX, 2010, p. 44, grifos nossos).
129
mesmo o tempo livre do domingo – e até mesmo no país do sa-
batismo – é pura futilidade! (MARX, 2013, p. 337).
Referências
130
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131
PARTE II – POLÍTICA EDUCACIONAL,
ESTADO, CAPITAL E TRABALHO
A Crise do Capital: A Porta de Entrada dos
Empresários na Educação Pública Brasileira
Analéia Domingues1
Introdução
Neste artigo, trataremos dos mecanismos de inserção dos em-
presários no sistema educacional público no Brasil. Apontaremos
que, com a reestruturação produtiva nos anos de 1990, cresce a rei-
vindicação dos empresários a fim de participar de decisões e formu-
lações das políticas para a educação. O empresariado brasileiro obje-
tivava colocar a educação a serviço do sistema produtivo. Em outras
palavras, era necessário formar a nova força de trabalho requerida.
Mostraremos também que, além da reestruturação produtiva, a bur-
guesia lança mão da reforma do Estado com vistas a superar a crise
do capital que, naquele momento, era entendida pelos liberais como
uma crise do Estado.
Com a reforma do Estado, o projeto neoliberal foi implan-
tado no Brasil. Uma das consequências desse projeto foi a redução
dos gastos públicos no que se refere às políticas de cunho social.
Os reformadores do Estado articularam o entendimento segundo o
qual a educação é um serviço não exclusivo do Estado. Em outras
palavras, as parcerias entre o setor público e o privado foram legali-
zadas e incentivadas.
Embora o projeto neoliberal tivesse sido implantado no go-
verno de Fernando Henrique Cardoso, foi no governo de Luís Iná-
cio Lula da Silva que os empresários organizados no Movimento
135
Todos pela Educação tiveram carta branca para delinear os rumos da
educação pública.
1 A crise do capital
136
mentâneas violentas das contradições existentes, irrupções violentas
que restabelecem momentaneamente o equilíbrio perturbado” (Marx,
1988, p. 179).
Carcanholo (2010, p. 2) também contribui para entendermos o
conceito de crise na teoria marxiana:
A crise em Marx não é apenas uma fase do ciclo econômico, es-
pecificamente aquele momento onde o auge da acumulação de
capital se reverte em recessão/depressão. Crise em Marx tem o
sentido de manifestação das contradições do modo de produção
capitalista, ao tempo que a unidade nessas contradições é reposta.
137
A produção capitalista não é apenas produção de mercadoria,
mas essencialmente produção de mais-valor. O trabalhador pro-
duz não para si, mas para o capital. Não basta, por isso, que ele
produza em geral. Ele tem de produzir mais-valor. Só é produtivo
o trabalhador que produz mais-valor para o capitalista ou serve à
autovalorização do capital. (MARX, 2013, p. 578).
138
capitalista não fizer isso e um concorrente o fizer, ele estará em bre-
ve fechando as portas. A expansão é uma necessidade do capitalista
para reproduzir-se enquanto capitalista.
Para continuar lucrando e como saída para as crises, o capital
precisa diversificar a divisão do trabalho, criar novos desejos e ne-
cessidades através do desenvolvimento de novas linhas de produtos.
“Para o capitalismo sobreviver, deverá existir ou ser criado espaço
novo para a acumulação” (HARVEY, 2005, p. 62). Nessa linha de
raciocínio, Silver (2005, p. 51) utiliza para explicar esse processo o
termo solução de produto:
Os capitalistas tentam aumentar os lucros e o controle não
apenas se deslocando para novos locais ou transformando o
processo de trabalho, mas também se deslocando para novos
setores e linhas de produto menos sujeitas à competição intensa
ou a outros aborrecimentos.
4 Em termos gerais, para Mészáros (2010, p. 71), a crise estrutural é uma crise que afeta
a totalidade de um complexo social em todas as relações com suas partes constituintes,
como também a outros complexos aos quais é articulada. Uma crise não estrutural, em vez
disso, afeta apenas algumas partes do complexo em questão. Assim, não importa o grau de
gravidade em relação às partes afetadas, não pode pôr em risco a sobrevivência contínua
da estrutura global.
139
particular (por exemplo, financeira, comercial ou de um ou outro
ramo da produção, ou de um ou outro setor particular de traba-
lho, com sua gama específica de capacidades e grau de produti-
vidade etc.). b) Seu alcance é realmente global (no sentido mais
temerosamente literal do termo), mais do que limitado a uma
série particular de países (como foram todas as mais importantes
crises do passado, inclusive a “grande crise mundial” de 1929-
1933). c) Sua escala temporal é extensa, contínua – se se preferir,
permanente –, mais do que restrita e cíclica, como foram todas
as crises anteriores do capitalismo. d) No que respeita à sua mo-
dalidade de desenvolvimento, defini-la como sub-reptícia poderia
ser uma descrição adequada – em contraste com as erupções e
desmoronamentos mais espetaculares do passado –, com a ad-
vertência de que não estão excluídas para o futuro nem mesmo as
mais veementes e violentas convulsões, uma vez quebrada aquela
complexa máquina hoje ativamente empenhada na “gestão” da
crise e na transferência mais ou menos provisória das crescentes
contradições. (MÉSZÁROS, 2010, p. 69-70).
140
2.1 A reestruturação produtiva: o regime de acumulação flexível
141
(2011, p. 52), o capital buscou incrementar a extração de mais-valia
através de uma produção sem interrupções e sem tempo morto, in-
tensificando as condições de exploração da força de trabalho e eli-
minando o trabalho improdutivo, que não cria valor. Com a flexibili-
zação7 da produção, o próprio trabalhador também foi flexibilizado,
passando a ser um trabalhador multitarefas e polivalente. Harvey
(2010, p. 166) afirma que o controle do trabalho, na produção e no
mercado, é vital para a perpetuação do capitalismo. Kuenzer (2016, p.
4) traz uma reflexão interessante a esse respeito:
Daí o caráter “flexível” da força de trabalho; importa menos a
qualificação prévia do que a adaptabilidade, que inclui tanto as
competências anteriormente desenvolvidas, cognitivas, práticas
ou comportamentais, quanto a competência para aprender e para
submeter-se ao novo, o que supõe subjetividades disciplinadas
que lidem adequadamente com a dinamicidade, com a instabili-
dade, com a fluidez.
142
capital, há a necessidade de formar profissionais flexíveis que acom-
panhem as mudanças tecnológicas decorrentes da dinamicidade da
produção científico-tecnológica contemporânea. Desenvolver com-
petências e a capacidade de aprender ao longo da vida se tornam
essenciais ao desenvolvimento e à reprodução do capital:
Para que esta formação flexível seja possível, torna-se neces-
sário substituir a formação especializada, adquirida em cursos
profissionalizantes focados em ocupações parciais e, geralmen-
te, de curta duração, complementados pela formação no traba-
lho, pela formação geral adquirida por meio de escolarização
ampliada, que abranja no mínimo a educação básica, a ser dis-
ponibilizada para todos os trabalhadores. A partir desta sóli-
da formação geral, dar-se-á a formação profissional, de caráter
mais abrangente do que especializado, a ser complementada ao
longo das práticas laborais. (KUENZER, 2016, p. 3).
143
processo de expropriação que cria maior disponibilidade de força de
trabalho para o mercado e intensifica a exploração. Com maior quan-
tidade de força de trabalho disponível, num momento de recessão as
pessoas serão obrigadas a vender a sua força de trabalho em troca de
qualquer moeda.
144
nistra em maio de 1979, na Inglaterra, com a responsabilidade de
reformar a economia daquele país.
As medidas tomadas por Thatcher para conter a crise foram
inúmeras. Anderson (1995, p. 12) considera esse pacote de medidas
como “o mais sistemático e ambicioso de todas as experiências neo-
liberais em países de capitalismo avançado”. Foram elas: elevação da
taxa de juros, abolição de controle sobre os fluxos financeiros, priva-
tização de quase tudo que havia sido mantido pelo controle estatal,
cortes nos gastos sociais, desemprego, nova legislação antissindical9
etc. Com a implementação dessas medidas, segundo Antunes (2009,
p. 63), a sociedade inglesa alterou-se profundamente:
Mutações ocorreram em seu parque produtivo, passando pela
redução das empresas estatais, pela retração do setor indus-
trial, pela expansão do setor de serviços privados, enfim, pela
reconfiguração da Inglaterra na nova divisão internacional do
trabalho. Houve também enormes repercussões na forma de
ser da classe trabalhadora, de seu movimento sindical, de seus
partidos, de seus movimentos sociais, de seus ideários e valores.
145
eliminar ou reduzir os direitos sociais e trabalhistas conquistados. Os
direitos sociais, nessa conjuntura, foram retirados da órbita do Esta-
do, sendo privatizados e transferidos para o mercado ou para a so-
ciedade civil: “a ideia de Estado mínimo significa o Estado máximo a
serviço dos interesses do capital” (FRIGOTTO, 2000, p. 163).
O Estado do Bem-Estar Social, promotor de políticas sociais,
passou a ser severamente atacado. Além de postular a retirada do
Estado como promotor de políticas sociais, os neoliberais defendem:
A restrição dos ganhos de produtividade e garantias de emprego
e estabilidade de emprego; a volta das leis de mercado sem restri-
ções; o aumento das taxas de juros para aumentar a poupança e
arrefecer o consumo; a diminuição dos impostos sobre o capital
e a diminuição dos gastos e receitas públicas e, consequentemen-
te, dos investimentos em políticas sociais. (FRIGOTTO, 2000,
p. 81).
146
proporciona a submissão de uma classe à outra; é a criação de uma
ordem que legaliza e consolida essa submissão, amortecendo a co-
lisão de classes. Os trabalhadores são levados a acreditar, através da
disseminação e difusão de ideias da classe burguesa, em ideias que
distorcem a realidade. Isso acontece, segundo Nogueira (2017), para
esconder o fato de que o verdadeiro poder nasce como resultado
da atividade dos trabalhadores, ao produzirem a riqueza. Escreve o
autor:
Assim, as forças e capacidades humanas são projetadas numa
instituição, o Estado, que aparece para os próprios homens
como superior a eles mesmos, como possuidora de qualidades
que estão além do alcance de qualquer indivíduo e mesmo da
coletividade. Com isso esconde-se o fato de que o Estado não
passa de uma força social que foi roubada da sociedade e apro-
priada por uma minoria a fim de garantir a realização de seus
interesses. (NOGUEIRA, 2017, p. 55).
11 Para Bianchi (2013, p. 1-2), “a lei do desenvolvimento desigual e combinado é uma das
faces mais conhecidas do pensamento de Trotsky”. Para Nahuel Moreno (1981, p. 63),
essa é “a descoberta mais importante do marxismo e da ciência moderna, como teoria que
unifica as leis genéticas e estruturais”. Ernest Mandel (1980, p. 37) a define como a principal
forma de aplicação, por Trotsky, da dialética à compreensão e transformação da realidade
contemporânea. E Michael Löwy (1998, p. 73 e 79) considera que essa é a contribuição
147
aspectos avançados e atrasados ocorrem simultaneamente no proces-
so de desenvolvimento econômico dos países.
É só a partir do pós-guerra de 1945 que o processo de indus-
trialização nos países latino-americanos ganha força, principalmente
por conta dos investimentos de grandes empresas estrangeiras. O de-
senvolvimento industrial, ao tempo que desenvolve as forças produ-
tivas, promove também a formação de uma classe de empresários
industriais. Respaldamo-nos em Bambirra (2015, p. 79) para afirmar
que o desenvolvimento do capitalismo no Brasil não implicou o de-
senvolvimento de um processo revolucionário “no sentido da toma-
da de poder por novas classes e da transformação radical das relações
de produção nas quais se assentavam as velhas classes, como o fez
a burguesia europeia.” Porém, a burguesia industrial reivindicou o
controle hegemônico do poder, oferecendo, segundo a autora, “um
projeto próprio de desenvolvimento econômico e social” (BAMBIR-
RA, 2015, p. 81).
Souza (2002, p. 99) afirma que o caso brasileiro tem especifi-
cidades e, nesse sentido, não podemos falar de crise provocada pelo
esgotamento do modelo taylorista/fordista. A esse respeito, explica
o autor:
Ao tratar do caso brasileiro, assim como de outros países latino-
-americanos, é evidente que não se pode falar de esgotamento
de um “velho” regime de acumulação, de esgotamento do velho
paradigma taylorista/fordista ou de redefinição de modelo de de-
senvolvimento sem fazer algumas ponderações. Tal dificuldade
justifica-se pelo simples fato de o modelo de desenvolvimento
taylorista/fordista não ter se concretizado em países do chama-
do terceiro mundo exatamente da mesma forma que nos países
desenvolvidos.
mais importante do revolucionário russo à teoria marxista e uma das teses marxistas mais
amplamente assimiladas. Muito embora a importância dessa lei seja incontestável, sua
formulação explícita é tardia. Apenas em 1932, Trotsky começou a sobrepor à conhecida
lei do desenvolvimento desigual uma lei do desenvolvimento combinado. O autor de
História da Revolução Russa, após 1932, não fez referência a uma “lei do desenvolvimento
desigual e combinado” e continuou sempre a escrever a respeito das duas leis. Foi apenas
em 1957, ou seja, 17 anos após a morte de Trotsky, que o filósofo estadunidense George
Novack publicou na revista inglesa Labour Review um ensaio no qual apresentava o conceito
de “lei do desenvolvimento desigual e combinado” (cf. LEIDEN, 2007, p. 149). Novack
foi, entretanto, muito além de Trotsky na apresentação desta, afirmando que ela seria uma
das “leis fundamentais da história humana” (NOVACK, 1988, p. 9) e teria “raízes em
acontecimentos comuns a todos os processos de crescimento, tanto na natureza como na
sociedade” (idem, p. 15).
148
No caso brasileiro, a Reforma do Estado12 e a implementação
do neoliberalismo como projeto político-ideológico, aliadas à rees-
truturação produtiva, foram medidas tomadas pela burguesia para
que este alcançasse os seus objetivos: garantir as taxas de lucro e se
reproduzir.
Nos anos de 1980, a indústria brasileira vê-se obrigada a se
desenvolver para atender aos padrões internacionais. Parte dela
(empresas do setor metal-mecânico, automobilístico e petroquímico
siderúrgico) incorporou a microeletrônica em seu processo produti-
vo. Porém, o trabalho manual não deixou de existir, pelo contrário,
passou a conviver com as tecnologias13. As empresas que incorpo-
raram a microeletrônica passaram a repensar a qualificação dos tra-
balhadores para um novo processo de produção. Isso aconteceu,
principalmente, quando se teve um significativo aumento da auto-
mação microeletrônica nos anos de 1990. De acordo com Sampaio
(2006, p. 76):
A reestruturação produtiva no Brasil, sinalizada pela crise do
modelo de substituição das importações e pelas mudanças po-
líticas ocorridas neste período, impulsionou a necessidade das
empresas nacionais a adotar novos padrões de competitividade
internacional. Entre o conjunto de mudanças ocorridas no perí-
odo, destaca-se a crise econômica decorrente do endividamento
externo brasileiro e o aumento de juros estabelecido pelo go-
verno dos EUA.
12 Segundo Bresser-Pereira (1998, p. 60), idealizador da reforma, esta pretende: “a) a
delimitação das funções do Estado, reduzindo o seu tamanho em termos principalmente de
pessoal, por meio de programas de privatização, terceirização e ‘publicização’; b) a redução
do grau de interferência do Estado ao efetivamente necessário, por meio de programas
de desregulação que aumentem o recurso aos mecanismos de controle via mercado; c)
o aumento da governança do Estado, ou seja, da sua capacidade de tornar efetivas as
decisões do governo, por meio do ajuste fiscal; d) o aumento da governabilidade, ou seja,
do poder do governo”.
13 É um exemplo do que Trotsky chamou de desenvolvimento desigual e combinado.
14 Mandato Presidencial de 15 de março de 1990 a 29 de dezembro de 1992.
15 Mandato Presidencial de 1º de janeiro de 1995 a 31 de dezembro de 2002.
149
como a sua baixa remuneração e mudanças no processo tecnológi-
co e informacional. As mutações no processo produtivo produziram
uma grande precarização da força de trabalho, sentida principalmente
na indústria automobilística. As mudanças no processo produtivo,
aliadas à implementação de um projeto de cunho neoliberal, provo-
caram profundas mudanças na sociedade brasileira.
De acordo com Melo (2010), as empresas agora precisam, para
competir nacional e internacionalmente, reorganizar seus trabalhado-
res, que passam a executar mais funções. O resultado dessa reorgani-
zação, para o autor, é que o trabalhador é levado a buscar individu-
almente “os conhecimentos teóricos e científicos, necessários ao seu
trabalho na produção mediada pelas tecnologias, e, por outro lado, é
também chamado a se dedicar, a ‘vestir a camisa da empresa’, a ser
um trabalhador empreendedor” (MELO, 2010, p. 70). A educação
do período taylorista/fordista que treinava para um cargo específico
passa a ser obsoleta, sendo muito criticada pelos empresários:
Asseveram os empresários que não se pode mais ignorar as defi-
ciências no sistema de ensino, como era possível no taylorismo/
fordismo, cujo norte era o treinamento específico para cada car-
go. A má educação influencia, hoje, na produtividade, de forma
direta. (MELO, 2010, p. 71).
150
neoliberais na América Latina, entre elas as referentes à educação
dos filhos dos trabalhadores, foi gestada no Consenso de Washin-
gton16, que definiu uma série de medidas de ajuste estrutural a se-
rem adotadas, centradas na desregulamentação dos mercados, na
abertura comercial e financeira, na privatização do setor público e
na rearticulação do aparelho do Estado para atender aos interesses
do capital. Como consequência, ocorreu nos países latino-america-
nos uma série de reformas, estimuladas pelo Banco Mundial, para
“criar e garantir um mercado”, pois era necessário que a produção
e os serviços fossem convertidos em atividades economicamente
rentáveis.
Montaño e Duriguetto (2011, p. 211) listaram as medidas que
deveriam ser tomadas pelos países latino-americanos. Essas medidas
foram chamadas de “recomendações” e abarcam dez áreas, a saber:
Disciplina fiscal; redução dos gastos públicos; reforma tribu-
tária; juros de mercado; regime cambial de mercado; abertura
comercial; eliminação de controle sobre o investimento direto
estrangeiro; privatização; desregulação das leis trabalhistas; ins-
titucionalização da propriedade intelectual.
151
brasileiro mudou a sua forma política. Krawczyk (2008, p. 798), em
relação à reforma do Estado, afirma que esta foi elaborada sob a égide
de uma forte crítica às funções dos Estados nacionais. Foram impostas
mudanças importantes como a substituição do controle centralizado
pela incorporação da iniciativa privada e individual na gestão pública.
Bresser-Pereira, um dos maiores liberais brasileiros, foi um dos
grandes responsáveis pela reforma do Estado nos anos de 1990. Ele
parte do princípio de que é o Estado que está em crise e não o capital.
Atribuiu a crise do Estado à sua ineficiência. Portanto, seria necessário
reorganizá-lo: “A atual reforma está apoiada na proposta de adminis-
tração pública gerencial, como uma resposta à grande crise do Estado
dos anos 80 e à globalização da economia – dois fenômenos que estão
impondo, em todo o mundo, a redefinição das funções do Estado e da
sua burocracia” (BRESSER-PEREIRA, 1996, p. 1).
Bresser analisa a crise como a perda da capacidade do Estado de
coordenar o sistema econômico de forma complementar ao mercado.
Seria uma crise fiscal, uma crise do modo de intervenção do Estado,
uma crise da forma burocrática pela qual o Estado é administrado, e
também uma crise política.
A reforma do Estado objetivava, em curto prazo, facilitar o
ajuste fiscal, particularmente nos estados e municípios, onde existia
um claro problema de excesso de quadros; em médio prazo, tornar
mais eficiente e moderna a administração pública, voltando-a para o
atendimento dos cidadãos (BRESSER-PEREIRA, 1996, p. 17).
Em 1996, Bresser escreveu o artigo “Da administração pública bu-
rocrática à gerencial”, no qual apresentou as bases do Estado gerencial,
refletindo sobre suas atribuições. Enfatizou a necessidade de o Estado
facilitar o desenvolvimento da economia para que o país fosse inter-
nacionalmente competitivo:
Seu novo papel é o de facilitar para que a economia nacional se
torne internacionalmente competitiva. A regulação e a interven-
ção continuam necessárias, na educação, na saúde, na cultura, no
desenvolvimento tecnológico, nos investimentos em infraestrutu-
ra – uma intervenção que não apenas compense os desequilíbrios
distributivos provocados pelo mercado globalizado, mas princi-
palmente que capacite os agentes econômicos a competir a nível
mundial. (BRESSER-PEREIRA, 1996, p. 1).
152
em benefício da sociedade” (BRESSER-PEREIRA, 1996, p. 2). Cri-
ticava o Estado burocrático e o excesso de funcionários.
A ideia de Estado ineficiente, posta pela Reforma do Estado
e reafirmada por Bresser-Pereira, ampliou as relações entre o setor
público e o setor privado, incentivando as parcerias18. No que se re-
fere à educação, com a Reforma do Estado essas parcerias passam
a ter aporte legal. Beneti (2014) opina que a crise do capital, aliada à
reforma do Estado, possibilitou a entrada e o crescimento da inicia-
tiva privada no campo educacional. Verificou que nos últimos anos
as grandes redes mundiais de ensino estão “abocanhando” as peque-
nas, disputando espaços, domínio e poder financeiro como qualquer
outro negócio.
153
Segundo Feitosa (2012), as parcerias são utilizadas na educação
para a prestação de muitos serviços que vão desde a infraestrutura,
com as construções de escolas, até questões particularmente pedagó-
gicas, como a formação de professores. As parcerias são a porta de
entrada dos empresários no setor educacional. Santos (2012) ressalta
que, no âmbito da administração pública, sobretudo nas secretarias
de Educação de vários municípios brasileiros, a parceria público-pri-
vada está sendo considerada como uma “estratégia moderna” de ges-
tão dos serviços públicos, por apresentar processos de gerenciamen-
to que podem garantir a “qualidade da educação pública”. No nosso
entender, essa “estratégia moderna” faz parte de “um projeto mais
amplo que reconstitui a educação pública como uma indústria de ser-
viços de educação a ser governada, como parte da construção de uma
sociedade de mercado” (ROBERSTON; VERGER, 2012, p. 1.135).
No governo de Fernando Collor de Melo (1990-1992) a agenda
neoliberal foi aberta. Mas são os governos subsequentes que a colo-
cam efetivamente em prática. Tanto no governo Fernando Henrique
Cardoso (1995-2002) quanto nos governos de Luís Inácio Lula da
Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016).
De acordo com Leher (2010a, p. 36), o governo Collor fa-
voreceu o crescimento do setor empresarial ao remover o controle
público sobre as instituições privadas que passaram a ser reguladas
pelo mercado. Porém, na perspectiva do autor, seu governo logo se
mostrou incapaz de colocar em prática o projeto neoliberal, o que fez
com que os setores dominantes apoiassem seu impeachment. Foi com
a eleição de Fernando Henrique Cardoso (FHC) que a agenda neoli-
beral passou a ser implementada no Brasil. FHC provocou profunda
mudança na economia do país através de privatizações e da entrada
de capital estrangeiro.
Em 1990, com a conferência de Jomtien,19 financiada por ór-
gãos internacionais como UNESCO (Organização das Nações Uni-
das para a Educação, Ciência e a Cultura), UNICEF (Fundos das Na-
ções Unidas para a Infância), PNUD (Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento), o Banco Mundial assumiu de fato o co-
mando da educação mundial com a finalidade de adequá-la às neces-
sidades do mercado. Bruno (2011, p. 552) afirma que o objetivo do
19 Conhecida como Conferência Mundial de Educação para Todos, reuniu representantes
de 150 países e 120 organizações não governamentais. Dessa conferência resultou um
documento intitulado Declaração Mundial sobre Educação para Todos e um plano de ação
cujo foco central era a universalização da educação básica e a melhoria da qualidade de
ensino.
154
encontro era: “Construir um consenso em âmbito mundial em tor-
no de uma educação para todos com equidade social, tendo em vista
enfrentar dois desafios: desenvolver uma educação que respondesse
às novas exigências do setor econômico e atender às demandas das
populações pobres (gestão da pobreza)”.
A Conferência Mundial de Educação para Todos mostra quão
importante a educação é para a reprodução do capital; com ela o
controle sobre os processos educacionais pelas agências multilate-
rais se acirra ainda mais.
No que tange à educação, segundo Leher (2010a, p. 41), o
governo de FHC elaborou um projeto educacional afinado à agenda
neoliberal, com vistas a cumprir os acordos de Jomtien. Esse pro-
jeto foi comandado pelo então ministro da educação, Paulo Renato
de Sousa, que recrutou técnicos brasileiros que estavam em ativi-
dade em organismos internacionais como o Banco Mundial (BM)
e o Banco Interamericano de desenvolvimento (BID). O próprio
ministro era um dos técnicos do BID.
Ainda de acordo com o autor, o projeto educacional do go-
verno FHC seguiu algumas linhas gerais, entre elas: avaliação de
produtividade implementada pelo Estado; ênfase na formação pro-
fissional; fortalecimento do setor privado no Ensino Superior com
a criação do Fundo de Financiamento do Ensino superior (FIES);
medidas gerenciais para melhorar o fluxo escolar, como organiza-
ção por ciclos e aprovação automática; criação de instrumentos para
aferir a qualidade da educação, como: Exame Nacional de Cursos
(provão), Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), Sistema Na-
cional de Avaliação da Educação Básica (SAEB) e Censo Escolar; e
controle sobre os conteúdos trabalhados na escola através da cria-
ção dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). Nesse contex-
to, segundo Neves (2001, p. 30):
O Estado passa a assumir diretamente a formação técnica e éti-
co-política do trabalho simples, buscando a universalização do
ensino fundamental e ampliando o acesso ao nível médio de
ensino. Simultânea e progressivamente, delega ao empresariado
do ensino a formação técnica e ético-política do trabalho com-
plexo, responsabilizando-se diretamente, no entanto, pela for-
mação de fração significativa do corpo docente das instituições
de ensino superior, através de cursos de Mestrado e Doutorado.
155
mentação do projeto neoliberal na sociedade brasileira, a educação
foi amplamente subordinada às necessidades do mercado.
Embora houvesse resistência na sociedade, o projeto neoliberal
foi implantado com a justificativa da eficiência e da qualidade, que
foram as grandes bandeiras da reforma da educação. Bresser-Pereira
(1996) ressaltou a necessidade de educar a sociedade para que as mu-
danças implementadas pela reforma do Estado fossem aceitas. Nesse
sentido, a educação, em geral, e a escola, em particular, contribuiriam
para a produção da conformidade e do consenso, bem como os ou-
tros aparelhos privados de hegemonia.
Luís Inácio Lula da Silva, ao assumir a presidência em 2003,
não rompeu com o projeto neoliberal que estava em curso, pelo con-
trário, manteve, segundo Leher (2010a, p. 53), “o núcleo duro das
medidas neoliberais de Cardoso”. Entre essas medidas, o governo
petista não reviu as privatizações realizadas no governo anterior que
afetavam diretamente os trabalhadores. Aprovou, em 2004, a Lei n.º
11.079, de 30 de dezembro de 200420, que institui normas gerais para
licitação e contratação de parceria público-privada no âmbito da Ad-
ministração Pública.
O então presidente, em sua gestão, encontrou um cenário de
estabilidade econômica e política que possibilitou o surgimento de
um ambiente favorável ao crescimento do mercado. Lula investiu na
criação de novos grupos econômicos e no fortalecimento dos já exis-
tentes, com programas de crédito específicos. É no seu governo que
os empresários passaram a “ter uma ascendência sistêmica sobre a
educação por meio do Plano de Desenvolvimento da Educação21”
(LEHER, 2010a, p. 58).
Segundo Krawczyk (2008, p. 801), ao tempo do lançamento
do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), é promulgado
um decreto contendo um Plano de Metas intitulado “Compromisso
de todos pela educação”. Para a elaboração desse plano, o Ministério
da Educação (MEC) articulou-se a um grupo de empresários que,
20 A lei em seu artigo 2º conceitua o termo “parceria público-privada” como sendo “o
contrato administrativo de concessão, na modalidade patrocinada ou administrativa”. A
primeira modalidade diz respeito à concessão de serviços públicos ou de obras públicas
que envolvem adicionalmente a tarifa cobrada dos usuários, contraprestação pecuniária do
parceiro público ao parceiro privado; a segunda modalidade é o contrato de prestação de
serviços onde a Administração Pública é a usuária direta ou indireta.
21 É um plano de ação plurianual 2008/2011. Reúnem-se 52 ações que cobrem todas as
áreas de atuação do MEC e incidem sobre uma série de aspectos nos diferentes níveis de
ensino (KRAWCZYK, 2008, p. 801).
156
em 2006, havia lançado o Movimento Todos pela Educação. Esse
movimento entende que “a educação deve ser o eixo estruturante da
ação do Estado para que o país possa continuar a se desenvolver”
(KRAWCZYK, 2008, p. 814). Nessa perspectiva, as parcerias entre
o setor privado e o setor público são fundamentais, principalmente
para adequar a educação às necessidades do mercado. Trata-se de
uma das principais estratégias do Movimento Todos pela Educação.
Conclusão
157
fortaleceu a estratégia para o Estado reformar a educação e adequá-la
aos interesses do mercado. A seguir, reivindicou participação direta
nas decisões políticas e na formulação das políticas públicas para a
educação. A Reforma do Estado abriu também possibilidades para
que o setor privado passasse a atuar no setor público por meio de
parcerias. Com a inserção do setor privado no setor público, o pri-
meiro amplia significativamente suas formas de atuação e, conse-
quentemente, o seu mercado.
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Paulo: Boitempo, 2014.
161
O Poder Destrutivo da Crise Estrutural do Capital 1
Introdução
163
destrutivas sobre o complexo social global. Buscaremos contextuali-
zar a nova configuração do capitalismo avançado, que surge a partir
do processo de restauração do capital, tendo o seu início no final da
década de 1970.
Tido como um dos pensadores marxistas mais importantes da
contemporaneidade, István Mészáros, apoiado no legado marxiano e
lukacsiano, em seus estudos pautados por uma perspectiva ontológi-
ca sobre o controle sociometabólico do capital, defende que a atual
crise que o atinge não se caracteriza como cíclica ou conjuntural,
decorrente, segundo Marx, da queda tendencial da taxa de lucros e
da redução da realização da mais-valia. Segundo Mészáros (2011), o
sistema do capital passa por uma crise qualitativamente diferente das
anteriores, definida como uma fratura no eixo estrutural da socieda-
de, que afeta as suas três dimensões fundamentais (produção, circula-
ção e consumo), possuindo um alcance verdadeiramente global. Essa
crise impacta todas as formas concebíveis do sistema do capital, não
se restringindo apenas ao capitalismo.
Ricardo Antunes (2011) na apresentação da obra Para Além do
Capital de István Mészáros, afirma que, este autor com base no lega-
do marxiano, destaca que capital e capitalismo são elementos distin-
tos. O capitalismo é uma das formas sociais possíveis de expressão
do capital, podendo este continuar a exercer o seu domínio mesmo
com a superação do capitalismo, como ocorreu nas experiências pós-
-capitalistas da URSS e dos demais países do Leste Europeu. Nes-
sas experiências, a divisão social hierárquica do trabalho continuou
a existir e a extração do sobretrabalho ou do trabalho excedente se
deu de forma política e não econômica, como ocorre no capitalismo,
demonstrando que o controle sociometabólico do capital não foi de
forma alguma superado. Os elementos que compõem a operacionali-
dade do capital, como a produção inicial e esporádica de mercadorias
e o capital monetário e mercantil, existiam há milhares de anos, mas
não eram práticas dominantes por estarem subordinadas aos modos
de controle do metabolismo social predominantes em determinado
período da história. Só se tornam hegemônicas com a consolidação
do capital como complexo social universal sob a forma capitalista
burguesa (MÉSZÁROS, 1998, p. 15).
Tal tese mészáriana tem implicações de largo alcance para a luta
revolucionária, já que a ruptura com o modo de controle sociometa-
bólico do capital deve ter como foco a extinção do tripé capital-Es-
tado-trabalho assalariado. Considerando os crescentes abalos dessa
crise, que tende a se manifestar em escala cada vez mais intensa, in-
clusive nos países mantidos em uma espécie de subdesenvolvimento
164
forçado (MÉSZÁROS, 2003), a presente investigação busca contri-
buir, mesmo que minimamente, para a compreensão das consequ-
ências destrutivas e das possibilidades histórico-concretas de luta
que se abrem para o sujeito revolucionário.
5 O filósofo húngaro István Mészáros (2011) explica que a ativação dos limites absolutos
do capital não está separada, mas ao contrário, tende desde o início a ser inerente à lei do
valor, correspondendo à plena maturidade dessa lei, no contexto do encerramento da fase
de ascendência histórica do capital. Por outro lado, é possível afirmar, segundo ele, que essa
fase de ascendência teve o seu fim decretado porque o sistema do capital atingiu os seus
limites absolutos no que se refere à acomodação da lei do valor a seus limites sistêmicos.
165
me exposto por Mészáros (2011), que reúne os antagonismos estrutu-
rais desse modo de controle sociometabólico.
Uma das características fundamentais derivadas do domínio do
capital foi a completa disjunção entre necessidade e produção, que aca-
bou por subordinar valor de uso a valor de troca, possibilitando a reti-
rada dos obstáculos que limitavam o dinamismo da produção. Dessa
forma, o capital transformou a produção no objetivo da humanidade e
a geração de riqueza no objetivo da produção.
Antes que o capital pudesse controlar, de forma eficaz, o socio-
metabolismo e impor seus imperativos estruturais à humanidade, Més-
záros (2011) observa que foi necessário subjugar várias determinações
naturais espontâneas, tornando permanentes as separações artificiais
que compõem o seu modo de funcionamento, de modo a torná-las
naturais, ou seja, derivadas da própria natureza humana. Nessas sepa-
rações está o rompimento entre a existência humana e as condições
inorgânicas de sua existência.
Assim, diante do impacto reificante do capital, e paralelamente ao
processo de expropriação dos meios de produção, o significado de pro-
priedade foi brutalmente alterado, afastando-se do seu sentido original,
que consistia na relação do trabalhador com as suas condições de pro-
dução e reprodução como sendo de sua posse. Com essa modificação,
o conceito de propriedade passou a se identificar com a produção e a
troca de mercadorias, além de atuar fortemente na garantia da legitima-
ção das práticas de exploração e expropriação próprias desse modo de
controle do metabolismo social.
Como aponta Mészáros:
Sob o comando do capital, o sujeito que trabalha não mais pode
considerar as condições de sua produção e reprodução como sua
própria propriedade. Elas não mais são os pressupostos autoeviden-
tes e socialmente salvaguardados do seu ser, nem os pressupostos
naturais do seu eu como constitutivos da “extensão externa de seu
corpo”. [....] Assim, a relação original entre o sujeito e o objeto da
atividade produtiva é completamente subvertida, reduzindo o ser
humano ao status desumanizado de uma mera “condição de produ-
ção”. (2011, p. 611, grifos do autor)
166
de se autovalorizar incessantemente, trouxe o domínio do aspecto
quantitativo sobre o qualitativo. Apesar de a possibilidade da emanci-
pação humana, como defende Marx, estar intimamente ligada ao alto
desenvolvimento das forças produtivas e à consequente expansão da
produção, este desenvolvimento possuiria não só uma dimensão quan-
titativa, mas também, e principalmente, um viés qualitativo, expresso
na expansão das necessidades e no crescimento das condições de sua
satisfação. Como o domínio do capital rompe com a relação entre ne-
cessidade e produtividade, desconsiderando qualquer medida humana
como norte do processo produtivo, transforma suas potencialidades
produtivas em destruição, impossibilitando qualquer controle sobre as
tendências destrutivas derivadas da dominação da qualidade pela ex-
pansão quantitativa.
A quantificação, que atinge todas as instâncias sociais sob os di-
tames do capital, traz consequências para o exercício do trabalho vivo,
que se torna mecânico e mensurável, desconsiderando a dimensão hu-
mana (qualitativa) do trabalhador. À medida que o capitalismo atinge
o seu estágio mais avançado, trazendo profundas transformações no
processo produtivo derivadas da revolução técnico-científica, cresce a
utilização dos setores não produtivos e parasitários em face do traba-
lhador produtivo. Em outras palavras, diminui a utilização do trabalho
vivo, elevando absurdamente a composição orgânica do capital, o que
resulta no desemprego estrutural e na crescente precarização, tanto da
atividade laborativa como das condições de vida do trabalhador.
Embora essa contradição entre trabalho produtivo e não produ-
tivo tenha se manifestado desde os períodos mais remotos do capitalis-
mo, é só no auge do desenvolvimento da produção que ela assume sua
forma mais explícita e acabada. A contradição entre trabalho produ-
tivo e não produtivo advém da contradição fundamental entre capital
e trabalho e do caráter explorador do processo de trabalho capitalista,
que necessita de uma forma de controle adequada para manter a explo-
ração e a subjugação da força de trabalho.
A transformação da atividade humana livre e consciente em uma
mercadoria como outra qualquer tornou possível a existência de um
controle do capital sobre as jornadas de trabalho, exercido de forma
horizontal e vertical, de acordo com os parâmetros da divisão de tra-
balho capitalista. A dimensão horizontal refere-se à divisão funcional
do trabalho, que, por sua vez, é inseparável da dimensão vertical; esta
corresponde à estrutura de comando do capital, cujo objetivo reside
em salvaguardar os interesses ligados à vitalidade do sistema, ou seja,
assegurar a extração de mais-valia conjugada à máxima exploração do
trabalho.
167
A ruptura da unidade entre produção e necessidade significou
uma dupla fratura concretizada por meio da separação dos produtores
dos seus instrumentos de produção, impossibilitando qualquer tipo de
controle sobre o processo produtivo; e da impossibilidade de o produ-
to do processo de trabalho ser um valor de uso destinado a atender às
necessidades do seu produtor, o que significa que o produto do traba-
lho mercantilizado possui valor de uso apenas como veículo do valor de
troca, estando o primeiro completamente subordinado ao segundo. Essa
dupla ruptura fornece a base material indispensável à operacionalização
do capital, pois separa os trabalhadores das condições do exercício do
seu trabalho, tornando-os dependentes da venda da sua força de trabalho
para garantir sua sobrevivência, porquanto subjuga necessidade e valor
de uso a valor de troca, possibilitando a reconstituição da unidade ante-
riormente rompida por meio da sua sujeição aos imperativos de repro-
dução do capital. Desse modo, o critério de necessidade, assim como a
legitimação do valor de uso e, consequentemente, da utilidade, estaria
subordinado e corresponderia diretamente aos interesses expansionistas
do capital.
A separação dos produtores dos seus meios e materiais de pro-
dução não foi a única condição para que o sistema sociometabólico do
capital constituísse o seu domínio dinamicamente. Foi imprescindível
também suprimir qualquer tipo de controle humano sobre o proces-
so produtivo e sobre a distribuição do produto social. Isso quer dizer,
segundo Mészáros (2011), que em última instância, o capital opera um
modo de controle sem sujeito e as personificações do capital e as formas
de controle vertical e hierárquico sobre o trabalho atuam no sentido de
atender os seus imperativos expansionistas.
Para adequar a jornada de trabalho à expropriação dos meios de
produção, foi necessário um processo de homogeneização, que equivale
à fragmentação (divisão do trabalho) e à completa degradação da ativi-
dade laborativa humana e do próprio trabalhador, uma vez que ele não
mais detém o conhecimento nem o controle sobre o processo produtivo,
contribuindo apenas com uma ínfima parcela do trabalho social total.
Segundo Mészáros (2011), a homogeneização completa as carac-
terísticas do modo de operar do capital e é conduzida de acordo com
parâmetros estritamente econômicos, que correspondem às suas deter-
minações materiais, tendo como base a sua expansão através da extração
de mais-valia do trabalho vivo. A homogeneização das relações distribu-
tivas e produtivas sob a supremacia do capital tornou-se uma condição
indispensável para a sua existência, pois sem ela esse modo de regulação
social não poderia enfrentar as contradições geradas ao longo do seu
desenvolvimento.
168
Atualmente, as contradições do capital vêm se intensificando,
exigindo o uso cada vez mais recorrente do mecanismo de deslocamen-
to de forma a garantir a sua reprodução ampliada. Entretanto, esse me-
canismo tem atuado com eficácia reduzida; o seu bloqueio representa
um obstáculo potencialmente explosivo, já que o capital nunca ofereceu
soluções efetivas a nenhuma das suas contradições subjacentes. Muito
pelo contrário, cultivou-as, na medida em que, a partir delas, devido à
sua natureza contraditória, obtinha prosperidade (MÉSZÁROS, 2011).
6 Com base em Marx, Mészáros explicita que as crises cíclicas são formas de o capital
“progredir para além das suas barreiras imediatas e, desse modo, estender com dinamismo
cruel sua esfera de operação e dominação. Nesse sentido, a última coisa que o capital
poderia desejar seria uma superação permanente de todas as crises” (2011, p. 795).
169
do capital. Entretanto, com a crise estrutural esse mecanismo de repro-
dução e de deslocamento das contradições exibe perturbações cada vez
mais intensas, pondo o complexo global frente a frente com os seus li-
mites últimos.
A crise estrutural do capital, de acordo com Mészáros (2011),
afeta a totalidade do complexo social (e não somente a esfera eco-
nômica), desde as suas relações com as suas partes constituintes
a outros complexos com os quais mantenha relação. Por sua vez,
uma crise não estrutural atinge somente algumas de suas partes, e
independentemente do grau de severidade, não coloca em risco a
sobrevivência da estrutura global. Nessa direção, as contradições só
podem ser deslocadas enquanto a crise for parcial, exigindo apenas
mudanças no interior do próprio sistema, já que uma crise estrutural
impõe a necessidade de superação do complexo global existente e
a sua substituição por um complexo global alternativo, ou seja, por
outra forma de sociabilidade7.
Mészáros enfatiza que para Marx “uma transformação socia-
lista viável tinha que emergir – e somente poderia emergir – da cri-
se estrutural do sistema do capital global, com sua divisão social do
trabalho internacional antagônica e um mercado mundial profunda-
mente problemático” (2011, p. 705). Claro que para essa possibili-
dade ser concretizada é urgente, de acordo com Mészáros (2011), a
reorientação do movimento socialista internacional, na perspectiva
de um movimento radical organizado da massa proletária. A alter-
nativa societal socialista pressupõe a reorientação da produção e da
distribuição tendo como eixo central a problemática da necessidade,
do uso e da qualidade. O que está em jogo não é só a expropriação
dos expropriadores, e sim o controle consciente global do processo
de produção pelos produtores livremente associados. Esse controle
possibilitaria o emprego potencialmente criativo do aumento do tem-
po disponível (derivado do avanço da produtividade) e a superação
do tempo excedente ou tempo supérfluo, utilizado pelo capital para
atender aos seus imperativos expansionistas. A riqueza de produção
possibilitada pelo socialismo seria a universalidade das necessidades
7 Em face do agravamento das condições sociais ora vivenciadas, nunca foi tão atual a
célebre formulação de Rosa Luxemburgo: “Socialismo ou barbárie?”. Apesar de todas as
distorções do movimento socialista desde a dissolução da URSS e do fim do regime do
sistema do capital pós-capitalista nos países do Leste Europeu, a possibilidade de instauração
do socialismo é real, não apenas pela existência de uma série de condições materiais, mas
principalmente pela necessidade histórico-social que nos coloca diante de duas alternativas: a
instauração de outra forma de organização social tão universal quanto o capital, alicerçada nas
necessidades humanas e no trabalho livremente associado, ou o extermínio da humanidade.
170
e potencialidades humanas construídas através do intercâmbio do
homem com a natureza. Esta seria a verdadeira finalidade do tra-
balho. Marx jamais defendeu o retorno às formas anteriores de or-
ganização social. Muito pelo contrário, enfatizou firmemente que o
socialismo só seria possível com o alto desenvolvimento das forças
produtivas, para evitar o retorno da escassez e a luta pelo necessário
(MÉSZÁROS, 2011; MARX, 2013).
A eclosão da crise na década de 1970, mais precisamente 1973-
1974, acarretou um esgotamento do padrão de acumulação fordis-
ta/taylorista e de sua base estatal keynesiana. Sobre os chamados
“anos dourados do capitalismo”, Mészáros (1995) citado por Les-
sa (1998) afirma que o Estado de Bem-Estar Social se conformou
como a primeira forma de crise estrutural que o capital vivenciou
no período pós-guerra e reitera que tanto neste momento como
hoje, o entrave à reprodução do capital era a impossibilidade de am-
pliar o consumo na mesma medida do desenvolvimento das forças
produtivas. Mesmo operacionalizando um amplo deslocamento das
contradições com a adoção de um mercado consumidor de massas
regulamentado politicamente, o Welfare State teve um prazo de va-
lidade breve, acarretando a eclosão do segundo momento da crise
estrutural do capital, expresso tanto na sua derrocada como na dis-
solução das sociedades definidas por Mészáros como pertencentes
a um sistema do capital pós-capitalista.
Como resposta ao desmantelamento do modelo anterior e
à consequente queda das taxas de lucro, o capital, personificado na
burguesia monopolista e nos seus representantes políticos, condu-
ziu uma ofensiva pautada pela reestruturação econômica e políti-
co-ideológica. Esse processo reestruturador teve como base: a des-
regulamentação (tanto dos processos comerciais como das operações
financeiras); a flexibilização das relações de trabalho e da produção;
e a privatização do patrimônio público. Tais medidas foram expres-
sas em um tripé fortemente articulado: a reestruturação produtiva
(com a implantação do toyotismo como modelo de organização e
gerenciamento da produção), o ideário neoliberal e a financeirização
(NETTO, 2010; NETTO e BRAZ, 2007).
A reestruturação produtiva concretizada pela implantação do
toyotismo gerou profundas mudanças no setor produtivo. Além da
exigência de um trabalhador polivalente, capaz de executar inúmeras
funções, trouxe a adoção maciça das novas tecnologias, provocando
a diminuição do trabalho vivo e o aumento do número de traba-
lhadores no setor dos serviços (setor parasitário). Essa nova confi-
guração teve fortes implicações para o conjunto dos trabalhadores,
171
destacando-se a precarização do trabalho e o desemprego em massa,
que na conjuntura atual assume um viés estrutural8.
No campo político-ideológico, o ataque foi conduzido median-
te a implantação do ideário neoliberal e sua proposta de reforma do
aparelho estatal, que teve como eixo principal as medidas a seguir: a
não intervenção do Estado na economia; o corte nos gastos públicos
(principalmente nos recursos destinados aos serviços sociais), uma
vez que se atribuía a situação vivenciada a uma crise fiscal gerada
por gastos excessivos e não à crise de valorização do capital, que
comprometia a arrecadação e a capacidade do Estado de financiar
investimentos públicos; a privatização de bens estatais, repassando
para a esfera mercantil a execução e a administração das suas ativida-
des; o combate ao poder dos sindicatos e a adoção de medidas para
desestabilizar o movimento da massa operária; a retomada das taxas
de desemprego e o estabelecimento da desigualdade, tidos como as-
pectos positivos para favorecer o dinamismo econômico e retomar as
taxas de crescimento.
Apesar de toda a retórica da não intervenção do Estado na
economia, há uma necessidade cada vez maior, segundo Mészáros
(2003), do auxílio direto do Estado. A dependência do capital em re-
lação à oferta crescente dessa ajuda se torna cada vez mais acentuada
com o agravamento da crise estrutural, aproximando o sistema dos
seus limites sistêmicos, pois já é possível perceber a incapacidade do
Estado para ofertar quantidades astronômicas de recursos financei-
ros a fim de socorrer as economias em crise.
A crise de valorização do capital e o colapso do padrão de acu-
mulação fordista/ keynesiano, aliados à desregulamentação e à libe-
ralização, abriram as portas para um regime de acumulação derivado
de outro estágio do processo de internacionalização. O capitalismo
contemporâneo se baseia numa economia cada vez mais concentrada
e centralizada por meio dos oligopólios industriais. A inexistência de
alguma barreira protecionista nacional à expansão do capital forne-
ceu também as condições para a dominação do capital financeiro,
que a partir de então passa a comandar o processo de reprodução do
capital em escala ampliada.
Nessa direção, destacamos, portanto, que o principal fator que
possibilitou a financeirização9, ou a disponibilidade de grandes quan-
172
tidades de capital monetário que se valoriza de forma fictícia, foi a
superacumulação proveniente do maior crescimento econômico da
história, conjugada à queda das taxas de lucro dos investimentos no
setor produtivo.
O processo reestruturador que inaugurou um novo perfil do
capitalismo avançado demonstra a verdadeira face do capital, que
se utiliza de estratégias cada vez mais intensivas para se libertar de
qualquer amarra que atrapalhe a sua tentativa de expansão ilimitada.
No entanto, a restauração do capital, ao invés de promover a alme-
jada solução para os seus antagonismos estruturais, intensificou-os
drasticamente, potencializando ainda mais os efeitos10 da crise es-
trutural.
Mesmo diante de uma crise profunda e endêmica, o capital
possui um vasto arsenal voltado para a administração das contradi-
ções existentes, como também a capacidade de criar outros instru-
mentais para a defesa da sua continuidade como modo de produ-
ção e reprodução ampliada. Entretanto, a utilização frequente de tal
arsenal, diante da sua eficácia decrescente, é uma consequência da
crise estrutural que se alastra (MÉSZÁROS, 2011).
Diante da severidade da crise atual, a lógica expansionista
incontrolável do capital gera a produção do desperdício em uma
escala crescente, impondo um consumo de produtos não duráveis
através da manifestação do que Mészáros (2011) denomina de va-
riante capitalista da taxa de utilização decrescente do valor de uso
dos produtos. Essa tendência manifesta o ideal do capital de apro-
ximar ao máximo a produção e o consumo da taxa zero de uso,
desvinculando-se completamente das oscilações da demanda e do
consumo real, objetivando promover uma produção sem interrup-
ções e em escala ampliada.
A taxa de utilização decrescente de bens materiais e meios de
produção e serviços está, de algum modo, implícita no desenvolvi-
mento da produtividade e é uma tendência da maior proporção de
do capital, esse setor parasitário continua a depender, como não poderia deixar de ser, da
produção de riqueza no setor produtivo de onde extrai uma parte da mais-valia produzida
e repassa para o mercado financeiro, aonde vai se autovalorizar.
10 Mészáros (2008) alerta que por ter um caráter estrutural, a crise ora vivenciada tende a
se agravar, atingindo não apenas o setor financeiro global, predominantemente parasitário,
mas todos os campos sociais, econômicos, culturais e políticos. Pode-se dizer que já é
possível perceber alguns desdobramentos desse aprofundamento, através da degradação
ambiental, do aumento da violência (que se estende da cidade ao campo), da precarização
cada vez maior das condições de trabalho e da miséria absoluta de milhares de pessoas.
173
tempo e de recursos materiais utilizados a favor da produção de pro-
dutos duráveis. Ela se manifesta na proporção variável em que uma
dada sociedade despende do seu tempo disponível para a produção
de bens reutilizáveis e de consumo rápido; esta proporção tende a
crescer em favor dos primeiros. Nesse sentido, seria coerente que
uma quantidade cada vez maior de recursos materiais fosse utilizada
para a fabricação de produtos ou bens reutilizáveis, de modo a aten-
der às necessidades básicas de todos. É justamente a maior alocação
de tempo na produção desses tipos de bens, processo intrínseco ao
avanço produtivo, que torna possível um alto desenvolvimento das
forças produtivas, bem como a existência de uma organização social
verdadeiramente sustentável, capaz de proporcionar a libertação do
homem do trabalho explorado.
O filósofo húngaro fornece uma explicação esclarecedora
acerca da peculiaridade da taxa de utilização decrescente inerente ao
avanço da produtividade. Ele utiliza o exemplo do processo de desen-
volvimento dos instrumentos de produção. Inicialmente, ele aponta
que o uso constante dos instrumentos de produção remete a um pe-
ríodo histórico muito primitivo, no qual eles desempenhavam o papel
de extensão do corpo do produtor. A complexificação das habilida-
des produtivas, e consequentemente, dos instrumentos de trabalho,
acarretou um grau de diversificação que trouxe importantes mudan-
ças na utilização desse instrumental no intercâmbio do homem com
a natureza. Em um estágio mais avançado, essa diversificação dá lugar
à fragmentação; esta se concretiza por meio do caráter específico de
cada instrumento.
Assim, pode-se dizer que não era possível a utilização constan-
te de todos os instrumentos pelo produtor. Quando este utilizava um,
na aplicação de uma habilidade específica, os outros ficavam sem uso.
Isso, porém, não implica a diminuição do tempo de utilidade do ins-
trumento de trabalho; significa que ele por algum momento não ia ser
utilizado porque existia uma multiplicidade de instrumentais, e todos,
obviamente, não podiam ser empregados no mesmo momento. Essa
subutilização, ou a diminuição da utilização de um produto pela exis-
tência de outros da mesma espécie, só que com funções diferentes,
nada tem em comum com a variante capitalista da taxa decrescente de
utilização, que decorre da necessidade de o capital encontrar formas
para manter a sua expansão sem limites.
Sob a manipulação do capital há uma inversão na tendência
desse processo de desenvolvimento. Os bens duráveis passam a ser
consumidos cada vez mais rapidamente, sendo lançados ao lixo antes
de esgotarem a sua vida útil, tudo para aligeirar o ciclo reprodutivo
174
do capital e aumentar a sua rotatividade. Desse modo, a variante
capitalista da taxa de utilização decrescente não é de modo algum
inseparável do avanço da produtividade, pois algumas condições
históricas tiveram de ser efetivadas para tornar possível a sua sujei-
ção aos imperativos do capital. Entre essas condições estão a sepa-
ração ou a expropriação dos meios de produção dos produtores e a
alienação das condições de sua autorreprodução, ambas essenciais
à consolidação do domínio do capital sobre a classe trabalhadora,
além de reunir os elementos necessários para uma produtividade ex-
tremamente mais dinâmica, se comparada à de organizações sociais
anteriores, por não limitar mais a produção ao consumo dado.
Como é possível perceber, o desenvolvimento da produção
ligado à taxa de utilização decrescente apresentou duas faces que se
contrapuseram. De um lado, seguiu vinculada à maior proporção de
tempo e de recursos materiais empregados para a produção de bens
duráveis, mantendo sem problemas a sua ampliação, embora tor-
nasse limitado o seu alcance, que se restringia somente a uma parte
ínfima da sociedade; do outro, alcançou plenamente o seu objetivo,
com a consolidação do progresso produtivo trazido pelo capital,
que não só garantiu a supressão das contradições associadas à sua
configuração mais limitada, como também tornou as novas mani-
festações dessa tendência muito problemáticas, tanto a curto como
a longo prazo, favorecendo a propagação do consumo imediato e a
dissipação de grandes quantidades de forças produtivas.
A taxa decrescente de utilização não se manifesta somente na
subutilização dos produtos e na redução da sua vida útil como estra-
tégia para acelerar o ciclo de consumo, possibilitando o escoamento
da superprodução. Na verdade, ela está presente nas três dimensões
fundamentais da produção e do consumo, atingindo também: a es-
fera dos serviços, por meio do crescente uso daqueles que oferecem
um potencial de utilização menor; as fábricas e a maquinaria, cuja
subtilização estaria intimamente ligada ao constante emprego de
inovação tecnológica; e, por fim, à própria força de trabalho, através
da diminuição do trabalho vivo, como consequência do incremento
tecnológico na produção. Essa redução acarreta o desemprego em
massa e a restrição da população consumidora, contradição que, por
sua vez, incide sobre a própria funcionalidade do sistema.
Nos seus primórdios, conforme Mészáros (2011), a taxa de
utilização decrescente em sua variante capitalista se manifestou atra-
vés da reabilitação do luxo, conjugada à expansão do círculo de con-
sumo. O movimento do capital, tido “como a contradição viva”,
ao tempo que efetiva as suas tendências ao longo da sua dinâmica
175
expansionista, produz as suas contratendências, que são respostas e
formas de contê-las. Nesse sentido, a taxa decrescente de utilização,
tida como uma das leis tendenciais11 mais importantes do capitalismo,
assume nos dias atuais uma forma extrema de destruição e perdula-
riedade, embora seja de certa forma equilibrada pela sua contraten-
dência, expressa na reconstituição do capital após a periódica destrui-
ção das unidades superproduzidas.
A fase atual do capitalismo revolucionou as forças produtivas,
que alcançaram um alto patamar científico/tecnológico, permitindo
a produção de uma vasta quantidade de riqueza, antes inimaginável.
Contudo, esse alto desenvolvimento, ao invés de fortalecer as possi-
bilidades civilizatórias do capital, esboçadas por Marx no século XIX,
esgotou-as drasticamente, voltando todo o seu potencial para a pro-
dução destrutiva, como evidencia Mészáros (2003):
Hoje não há sentido em falar de um “desenvolvimento geral da pro-
dução” associado à expansão das necessidades humanas. Assim,
dada a forma em que se realizou a deformada tendência globa-
lizante do capital – e que continua a se impor –, seria suicídio
encarar a realidade destrutiva do capital como o pressuposto do
novo e absolutamente necessário modo de reproduzir as condi-
ções sustentáveis da existência humana (p. 22).
176
tradições do sistema e superar qualquer limitação aos objetivos de
autorreprodução do capital. No entanto, com o passar do tempo,
essas estratégias não se mostraram capazes de atender totalmente
aos imperativos irrestringíveis do sistema, exigindo a prática de uma
forma extrema de desperdício baseada na produção da destruição
que consome e descarta imensas quantidades de recursos materiais.
O que torna possível essa mudança, nos moldes da estrutura
produtiva existente, segundo Mészáros (2011), é a equivalência entre
consumo e destruição do ponto de vista da realização capitalista. A
subordinação do valor de uso ao valor de troca faz com que não haja
diferença alguma em que um produto atinja o seu patamar máximo
de utilização ou que ele nunca seja usado, pois, na lógica do capital,
o critério de utilidade está subjugado ao princípio da vendabilidade.
Isso quer dizer que mesmo que um produto nunca seja utilizado, o
que realmente importa para o capital é que o seu valor de troca haja
sido realizado.
Nessa perspectiva, o que irá determinar a prevalência do con-
sumo normal ou do consumo para a destruição é a maior adaptação
de um ou de outro para satisfazer as necessidades globais de expan-
são do capital sob condições diversas. Mészáros (2011) explica que
mesmo nas situações mais delicadas, encontra-se uma combinação
dos dois casos. Todavia, é possível perceber uma tendência cada
vez mais acentuada em benefício do pseudoconsumo, ao longo do
século XX, nos países ocidentais emergentes.
Atualmente, o capital segue, nesse e em muitos aspectos, o
que Mészáros classifica como sendo a sua linha de menor resistên-
cia12. Isso significa que se o capital encontra uma forma equivalente
que atenda aos seus requisitos de autorreprodução, ele não irá optar
por um curso alternativo que não corresponda às suas determina-
ções materiais. Ou seja, ele vai preferir a opção que melhor se ajuste
a seus parâmetros estruturais, procurando manter o seu controle
sobre a totalidade social.
O fim da fase de ascendência histórica do capital, que Mészá-
ros define como marco cronológico da erupção da crise estrutural,
trouxe à tona limites sistêmicos. Com essa crise, o movimento do
177
capital em busca da expansão e da acumulação é bloqueado, tornando
cada vez menor a possibilidade de deslocamento dos antagonismos
internos do sistema, o que, por sua vez, significa que toda a incon-
trolabilidade desse metabolismo social é ativada e os efeitos da sua
expansão anterior são potencializados.
Considerações Finais
Referências
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178
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179
O Sentido Ontológico de Formação Humana:
Fundamento Para a Crítica ao Conceito de
Educação Integral do Estado Burguês
Gorete Amorim1
Introdução
181
Curricular Comum para o Ensino Médio:2
Prevista na Constituição de 1988, na Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional, de 1996, e no Plano Nacional de Edu-
cação, de 2014, a BNCC expressa o compromisso do Estado
Brasileiro com a promoção de uma educação integral e o
desenvolvimento pleno dos estudantes, voltada ao acolhimen-
to com respeito às diferenças e sem discriminação e preconceitos.
(BRASIL/MEC, 2018, p. 9, grifo nosso).
182
1844, revela o aprofundamento das restrições impostas ao desen-
volvimento humano no modo de produção capitalista. “Com a va-
lorização do mundo das coisas, cresce a desvalorização do mundo dos
homens em proporção direta” (MARX, 2015, p. 307, grifo do autor).
Em Marx (2015), fica evidenciado que o trabalho enquanto
processo da autoconstrução humana, ou seja, enquanto forma de
produção que satisfaz as necessidades humanas do indivíduo e do
gênero, como “livre manifestação de vida, um gozo de vida” (Idem,
p. 222), “aparece a tal ponto como desrealização que o trabalhador é
desrealizado até à morte pela fome” (MARX, 2015, p. 305).
Não são poucos os elementos explicitados por Marx (2015)
que denunciam o empobrecimento material e espiritual daqueles per-
tencentes à classe que produz. Isso decorre do pressuposto de que
no modo de produção sob a forma do trabalho alienado, “quanto
mais o trabalhador se esforça (ausarbeitet), tanto mais poderoso se
torna o mundo objetivo, alienado, que ele cria perante si próprio;
quanto mais pobre se tornam ele próprio [e] o seu mundo interior,
tanto menos ele possui” (Idem, p. 305).
A contradição entre o elevado potencial do indivíduo de pro-
duzir, mediante o trabalho, cada vez mais e em menor tempo o que
lhe é necessário e o ininterrupto processo de aprofundamento de
restrição do acesso à própria produção tem causado não somente
privação material, mas a mutilação de potencialidades humanas dos
trabalhadores. Isso ocorre porque no trabalho alienado, nas palavras
de Marx (2015, p 307), “[...] quanto mais formado o seu produto,
mais deformado o trabalhador; [...] quanto mais espiritualmente rico
o trabalho, tanto mais sem espírito (geistloser) e servo da natureza se
torna o trabalhador”.
Os elementos mencionados por Marx sobre as consequências
do trabalho alienado para a formação do trabalhador são, a nosso
ver, suficientes para se afirmar que não se encontra, nessa forma
de trabalho, o pressuposto da formação humana. Desse modo, o
conceito de formação humana em Marx advém do trabalho como
manifestação livre de potencialidades do indivíduo, que se realiza ao
produzir o que é necessário à própria existência e à reprodução da
sociedade emancipada do trabalho alienado e da propriedade priva-
da, ou seja, o trabalho associado, que tem na propriedade coletiva o
seu fundamento.
De acordo com Marx (2015, p. 346), somente “no pressuposto
da propriedade privada positivamente superada, o homem produz o
homem, a si próprio e ao outro homem”. Nesse sentido, a formação
humana é o processo em que
183
O homem apropria-se de sua essência omnilateral de uma manei-
ra omnilateral, portanto como homem total. Cada uma de suas
relações humanas com o mundo, ver, ouvir, cheirar, saborear, ta-
tear, pensar, intuir, sentir, querer, ser ativo, amar, em suma, todos
os órgãos da sua individualidade, bem como os órgãos que são
imediatamente na sua forma órgãos comunitários, [VII] são no
seu comportamento objetivo ou no seu comportamento para com o ob-
jeto a apropriação do mesmo, a apropriação da realidade humana; o
seu comportamento para com o objeto é o acionamento (Betätigung)
da realidade humana (precisamente por isso ela é tão múltipla
quanto múltiplas são as determinações essenciais e atividades humanas),
[...]. (Idem, p. 349, grifo do autor).
184
sentidos espirituais e sentidos práticos – se estende por toda a his-
tória da humanidade; no entanto, o desenvolvimento tem ocorrido
de forma unilateral nas diferentes formas de sociedades de classes e
para ambas as classes. Assim como para “o homem esfomeado não
existe a forma humana da comida, mas apenas a sua existência abs-
trata como comida” (Idem, p. 352) que nutre o homem da mesma
forma que nutre um animal, também para
O homem necessitado e cheio de preocupações não tem ne-
nhum sentido para o espetáculo mais belo; o comerciante de mi-
nerais vê apenas o valor mercantil, não a beleza nem a natureza
peculiar do mineral; ele não tem qualquer sentido mineralógico;
portanto, a objetivação da essência humana, tanto do ponto de
vista teórico quanto do prático, é necessária tanto para fazer
humanos os sentidos do homem como para criar sentido humano cor-
respondente a toda riqueza do ser humano e natural. (MARX,
2015, p. 352-353, grifo do autor).
185
tológico-primário do ser social. Marx constata que este ser não se
define pela espiritualidade, mas pela práxis” (Idem, p. 76). Assim,
tomando o trabalho como ponto de partida, Marx demonstra que
este, em sentido ontológico, se constitui numa práxis humana que re-
quer uma relação recíproca entre subjetividade e objetividade no ser
social. Nessa relação recíproca, o indivíduo desenvolve-se enquanto
gênero humano no processo de exteriorização de sua interioridade,
do conhecimento de que já havia se apropriado socialmente e de que
necessita fazer uso para realizar novas objetivações transformadoras
da realidade e do próprio ser da práxis, pois sempre se transforma ao
criar o novo.
Conforme Tonet (2012, p. 76-77), Marx mostra que na práxis
humana não existe entre subjetividade e objetividade “uma relação de
exclusão, nem de soma, mas uma relação de determinação recíproca.
Desta relação recíproca é que resulta a realidade social”. Para a com-
preensão das formas concretas da referida relação no processo histó-
rico de reprodução do ser social, tomando o trabalho como ponto de
partida, o autor apresenta um exemplo esclarecedor:
[...] é o fato de a produção da riqueza material ser realizada pelos
escravos ou pelos servos que permite entender o privilegiamento
concedido ao espírito na formação humana. No caso da sociabilida-
de capitalista, é a centralidade do trabalho abstrato que permite entender a
subordinação da formação cultural/espiritual/humana aos imperativos da
produção da riqueza e, portanto, a impossibilidade de uma autêntica forma-
ção humana integral (Idem, p. 77, grifo nosso).
186
lista, porquanto faz parte de sua própria natureza degradar o ser em
função do ter, pela acumulação de riquezas produzidas por meio da
exploração do homem pelo homem.
Um exemplo concreto da base de sustentação do modo de
produção capitalista – exploração do homem pelo homem – e da
consequente degradação humana foi explicitamente descrito por
Engels (2010) em A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, em
meados do século XIX. Esta valiosa obra permite conhecer, em
detalhes, o processo de degradação da condição de vida dos traba-
lhadores, acompanhada de uma educação restrita às demandas do
sistema, em contraposição à formação humana desde os primórdios
do desenvolvimento industrial.
Engels (2010) demonstra que os trabalhadores (homens, mu-
lheres e crianças), para sobreviver, se submetiam não somente à es-
cravidão material, mas igualmente à espiritual, reproduzida também
em escolas destinadas à classe trabalhadora, conforme constata ao
visitar fábricas e escolas rurais onde as condições de vida e educa-
ção aparentavam ser melhores do que na cidade, quando verdadei-
ramente o fabricante
[...] se serve da escola para habituar as crianças à submissão,
[...] só tolera no salão de leitura materiais que defendem os in-
teresses da burguesia e despede os trabalhadores que para lá
levam jornais ou livros cartistas e socialistas. Você tem diante
dos olhos uma idílica situação patriarcal, a vida dos contrames-
tres, a vida que a burguesia promete aos operários que aceitam
também a condição de escravos espirituais. (ENGELS, 2010, p.
222, grifo do autor).4
4 Trata-se de parte da nota 22, em que Engels relata a situação patriarcal e de escravidão
material e espiritual a que são submetidos os operários em fábricas instaladas no campo.
187
Quando as causas que concorrem para degradar moralmente o
operário atuam com mais força e impacto do que de hábito, é tão
certo ele tornar-se um criminoso como é certo que a água passa
do estado líquido ao gasoso se aquecida a 80º Réaumur. Sob a ação
brutal e embrutecedora da burguesia, o operário transforma-se
numa coisa tão desprovida de vontade como a água e, como esta,
submete-se às leis da natureza com a mesma inevitabilidade –
num certo ponto, qualquer liberdade, para ele, deixa de existir.
(Idem, p. 167-168).
188
correr dos séculos; “seu impulso cego e desmedido, sua voracidade
de lobisomem por mais-trabalho” (MARX, 2013, p. 337) o fazem
transgredir “não apenas os limites morais da jornada de trabalho,
mas também seus limites puramente físicos. Ele usurpa o tempo
para o crescimento, o desenvolvimento e a manutenção saudável
do corpo. Rouba o tempo requerido para o consumo de ar puro e
de luz solar. [...]” (Idem, 2013, p. 337), e assim, degrada a própria
condição biológica de existência humana.
Embora os limites impostos à formação humana possam ser
observados de forma mais nítida no capitalismo, pressupondo haver
um maior aprofundamento da contradição entre o crescente desen-
volvimento das forças produtivas, da produção de riqueza material
e espiritual e o aumento imensurável da exploração da força de tra-
balho nos diferentes ramos de produção, a gênese da negação de
possibilidades para o indivíduo desenvolver suas potencialidades é
encontrada já nas primeiras sociedades divididas em classes5.
Essa é uma questão que Tonet (2012) – “na esteira de Marx e
Lukács” (para usar suas palavras) –, analisa profundamente quando
trata da temática da “Educação e formação humana”, especialmen-
te em suas obras Educação, cidadania e emancipação humana e Educa-
ção contra o capital. Nas supracitadas obras, o autor revela elementos
que explicitam o caráter da formação do homem nas sociedades de
classes, onde a educação dos indivíduos não mais ocorre de modo
espontâneo, e tampouco de modo integral, como ocorria nas socie-
dades primitivas.6
Em Educação contra o capital, o autor dedica o quinto capítulo
à citada temática e, de início, recupera da Grécia antiga uma das pa-
lavras que, segundo ele, talvez melhor traduza a ideia de formação
humana.
Para Tonet (2012, p. 75):
Talvez nenhuma palavra tenha expressado tão bem a ideia de
189
formação humana como a palavra paideia. Paideia exprimia o ideal
de desenvolver no homem aquilo que era considerado específico
da natureza humana: o espírito e a vida política. Mas, por isso
mesmo, essa formação era privilégio apenas de alguns poucos,
os cidadãos. Além disso, excluía todo tipo de atividades – as que
lidavam com a transformação da natureza – que não fossem con-
dizentes com essa natureza propriamente humana.
190
quanto ao lugar social ocupado: o trabalho é concebido como ati-
vidade inferior, que demanda um brutal processo de redução das
potencialidades humanas ao desenvolvimento de resistência física
da classe subalterna predestinada a suportar, em condições desuma-
nas, o extensivo e exaustivo trabalho predominantemente agrícola.8
De acordo com Tonet (2012), é no capitalismo que ocorre
uma profunda mudança na ideia de formação humana:
O trabalho passou a ser privilegiado como atividade principal.
Não, porém, o trabalho como uma atividade criativa, explicita-
dora das potencialidades humanas, mas o trabalho como sim-
ples meio de produzir mercadorias e, especialmente, a mercado-
ria das mercadorias que é o dinheiro. Certamente, a formação
cultural ainda era bastante valorizada, especialmente no período
ascensional do capitalismo, ou seja, até a realização plena da
revolução burguesa. No entanto, ela passava a ser cada vez mais
perpassada pela lógica do ter, terminando por ser uma espécie
de cereja no bolo da acumulação da riqueza material. (Idem, p.
76).
191
perspectiva da elevação do indivíduo a gênero humano, tão só efe-
tivada pelo acesso à riqueza material e espiritual acumulada pela hu-
manidade, nas sociedades de classes, contraditoriamente, vai se tor-
nando algo cada vez mais distante, à medida que o desenvolvimento
das forças produtivas serve de base para a reprodução da propriedade
privada.
A essência de tal contradição não se encontra nas possibilida-
des crescentes de produção, pois, segundo Bertoldo (2015a, p. 161), a
partir de Marx, “o desenvolvimento multifacetado do gênero huma-
no pressupõe o desenvolvimento das forças produtivas, da riqueza
coletiva jorrando em abundância [...]”; encontra-se, sim, na privação
de acesso aos produtores das condições necessárias ao desenvolvi-
mento humano.
Ainda que essa seja uma contradição das sociedades de classes,
no capitalismo ela se aprofunda, pois não se trata apenas de uma se-
paração entre espírito e matéria, ou seja, de uma formação unilateral,
senão de colocar a humanidade em patamares cada vez mais degra-
dantes em termos de desenvolvimento do indivíduo como partícipe
do gênero humano.
Tal situação também é explicada por Tonet (2012) quando trata
do duplo efeito que a sociedade de classes produziu sobre a história
da humanidade: se, “por um lado, possibilitou um desenvolvimento
muito rápido das forças produtivas e também da riqueza espiritual,
por outro lado, excluiu a maioria da população do acesso à riqueza
acumulada pela humanidade” (Idem, p. 78). E mesmo parte da po-
pulação privilegiada pertencente à classe dominante, não desenvolve
suas potencialidades numa perspectiva humana, tendo em vista a for-
mação unilateral dos indivíduos ser característica da própria natureza
da sociedade de classes, independentemente do grau de desenvolvi-
mento das forças produtivas e do consequente acúmulo de riquezas
materiais e espirituais.
Embora as relações sociais vigentes apresentem elementos
concretos do processo de degradação humana, não é tão simples
compreender esse limite que é imposto à formação humana, pois, di-
ferentemente das demais sociedades de classes, nesta “é proclamada
a igualdade de todos os homens por natureza. O que significa que,
em princípio, todos eles deveriam poder ter acesso ao conjunto do
patrimônio humano” (TONET, 2012, p. 78).
No entanto, o que ocorre, na verdade – trazendo alguns as-
pectos apresentados por Tonet (2012) que demonstram a impossibi-
lidade da formação humana integral na sociedade capitalista –, é que
existe uma distância que se alarga cada vez mais entre o discurso e
192
a realidade, porquanto, em primeiro lugar, o capitalismo aprofunda
a desigualdade social com o descarte de milhões de trabalhadores
tanto da produção industrial quanto de outros setores do mercado
formal, ainda que seja uma necessidade do capital aparentar preo-
cupação com uma massa de jovens e adultos que o próprio sistema
condena à miséria material e ao não acesso ao patrimônio espiritual
produzido pela humanidade: conhecimento, arte, cultura etc.
Em segundo lugar, o capital também necessita de um contin-
gente da classe trabalhadora para vender sua força de trabalho. Nes-
se caso, o discurso é o de que a formação integral se caracteriza pela
integração da educação básica ou superior à educação profissional
em nível técnico ou tecnológico; “quando essa formação é desnu-
dada dos seus elementos superficiais e ideológicos, deixa ver que
ela nada mais é do que a formação de mão de obra10 para o capital”
(TONET, 2012, p. 79).
A venda da força de trabalho pelo trabalhador ao capitalista
ocorre alinhada à lei da oferta e da procura no mercado. O atual
momento de crise do capital e o consequente desemprego estrutu-
ral (para usar os termos de Mészáros) são exemplares. O discurso
de preparação para o trabalho assalariado é cada vez mais falacioso
para um grande contingente da juventude brasileira; o acesso à dita
educação para o trabalho não passa de preparação para o desem-
prego. O preparo é de fato para o propalado empreendedorismo
individual.
Em terceiro lugar, como visto, a formação da classe dominan-
te tampouco é integral, tendo em vista que
o aspecto espiritual da formação “integral” também sofre de-
formações. Isso porque, estando todo o processo de autocons-
trução humana mediado pela propriedade privada de tipo capi-
talista, a própria formação espiritual não poderia escapar dessa
lógica. (TONET, 2012, p. 79).
193
doria arte, conhecimento, cultura, educação etc. – portanto, determina
quem tem ou não acesso –, este acesso, por mais amplo que seja, de
acordo com Tonet (2012, p. 79), “tem um viés profundamente defor-
mador”:
Se pensarmos que a formação moral e ética é uma parte impor-
tantíssima desse processo, veremos imediatamente como uma
apropriação centrada no indivíduo e, portanto, oposta aos outros
indivíduos, induz a uma deformação da personalidade. Isso porque
toda essa formação leva o indivíduo a aceitar como natural uma
forma de sociabilidade que implica que o acesso de uma minoria
esteja alicerçado no impedimento do acesso da maioria.
194
de pobre, conforme declaração do então Ministro da Educação Men-
donça Filho: “a BNCC expressa o compromisso do Estado brasileiro
com a promoção de uma educação integral e o desenvolvimento ple-
no dos estudantes” (BRASIL/BNCC-EM, p. 5).
Seguindo a mesma orientação, o documento reforça a perspec-
tiva do compromisso do Estado com a formação integral do ser hu-
mano, em sua introdução:
[...] a BNCC afirma, de maneira explícita, o seu compromisso com
a educação integral. Reconhece, assim, que a Educação Básica
deve visar à formação e ao desenvolvimento humano global,
o que implica compreender a complexidade e a não linearidade
desse desenvolvimento, rompendo com visões reducionistas
que privilegiam ou a dimensão intelectual (cognitiva) ou a
dimensão afetiva. Significa, ainda, assumir uma visão plural, sin-
gular e integral da criança, do adolescente, do jovem e do adulto
– considerando-os como sujeitos de aprendizagem – e promover
uma educação voltada ao seu acolhimento, reconhecimento
e desenvolvimento pleno, nas suas singularidades e diversida-
des. (BRASIL/BNCC-EM, p. 14, grifos nossos).
195
Embora a pesquisa aponte para o percentual de 70% da juven-
tude brasileira trabalhando ou procurando emprego, também eviden-
cia que em sua grande maioria se encontra sem ter a quem vender
sua força de trabalho, “Se 3 em cada 4 jovens fazem parte da PEA
[População Economicamente Ativa], pouco mais da metade está efe-
tivamente trabalhando, pois uma parcela significativa de jovens vive
situações recorrentes de desemprego” (Idem, p. 18). O que é ainda
mais grave em relação às possibilidades reais de desenvolvimento das
potencialidades humanas, ou seja, conceber-se humano à medida que
tem acesso à riqueza material e espiritual produzida pela humanidade.
Ocorre que “Entre os que trabalham, quase a metade o faz cumprin-
do uma jornada de mais de 40 horas semanais” (Ibidem); assim, todo
o tempo é ocupado pelo trabalho.
Há muitos outros índices negativos que denunciam o lugar
em que se encontra a juventude pobre na sociedade contemporâ-
nea, porém os mencionados já são suficientes para desvelar o estreito
conceito de educação integral do Estado burguês. Que “interesses e
possibilidades” podem existir, por parte do Estado, para a formação
da juventude que necessita ocupar mais 40 horas semanais com ativi-
dades de trabalho? E quanto à juventude, ainda que tenha interesse,
de que tempo livre dispõe para a educação escolar, a arte etc.?
Por mais que se esforce para camuflar o verdadeiro concei-
to de educação integral, o Estado não encontra chão para fugir da
própria contradição e transfere para a escola e para os indivíduos a
responsabilidade com o desenvolvimento da educação numa pers-
pectiva integral. Para cumprir com as finalidades da educação estabe-
lecidas pelo Estado, cabe à escola que acolhe a juventude:
[...] garantir o prosseguimento dos estudos a todos aqueles que
assim o desejarem, promovendo a educação integral dos estu-
dantes no que concerne aos aspectos físicos, cognitivos e socioe-
mocionais (LDB, Art. 35-A, § 7º), por meio:
• da firme convicção na capacidade que todos os estudantes têm
de aprender e de alcançar objetivos que, à primeira vista, podem
parecer além das suas possibilidades;
• da construção de “aprendizagens sintonizadas com as necessi-
dades, as possibilidades e os interesses dos estudantes e, também,
com os desafios da sociedade contemporânea”, como definido
na Introdução desta BNCC (p. 14);
• do favorecimento à atribuição de sentido às aprendizagens, por
sua vinculação aos desafios da realidade e pela explicitação dos
contextos de produção e circulação dos conhecimentos;
• do estímulo ao desenvolvimento de suas capacidades de abs-
196
tração, reflexão, interpretação, proposição e ação, essenciais à
autonomia pessoal, profissional, intelectual e política e do estí-
mulo ao protagonismo dos estudantes em sua aprendizagem e
na construção de seus projetos de vida; e
• da promoção de atitudes cooperativas e propositivas para o
enfrentamento dos desafios da comunidade, do mundo do tra-
balho e da sociedade em geral. (BRASIL/BNCC-EM, p. 14).
O que oferecer à juventude pobre, colocada em situação de
vulnerabilidade social, vítima de diversos modos de violência e cada
vez mais distante das reais possibilidades de desenvolvimento das
potencialidades humanas? Em que se diferencia o conceito de edu-
cação integral do Estado burguês da perspectiva marxiana de for-
mação humana?
4. O distanciamento entre a anunciada educação integral e a
formação humana em sentido ontológico
197
essencialmente possibilitar ao indivíduo alcançar patamares mais ele-
vados do gênero humano, não somente pelo acesso ao patrimônio
material e espiritual produzido pela humanidade, que visa preparar
para responder social e conscientemente a novas situações que sur-
gem no processo de reprodução social, mas também pela possibilida-
de de, em sentido amplo, ser partícipe do processo de produção desse
patrimônio, tendo em vista que sempre haverá situações novas para
as quais o conhecimento acumulado não se mostra suficiente para a
humanidade responder adequadamente.
A função ontológica da educação é universal, logo, por mais
alienante que se configure determinado modo de produção, a ponto
de submeter sua autonomia relativa a um grau reduzido de sociali-
zação do conhecimento produzido e acumulado pela humanidade,
conforme ocorre, em larga medida, no sistema de produção vigente,
isso em nada altera a natureza de sua função. A forma de organiza-
ção do trabalho determina, mas não de forma absoluta, a função da
educação e dos demais complexos sociais existentes, ainda que seja
da natureza do capital
[...] não apenas limitar o acesso quanto ao número de pessoas,
mas também quanto à qualidade do conteúdo, tendo sempre em
vista que o objetivo último – imposto pela sua própria lógica in-
terna – não é a realização plena de todos os indivíduos e, pois, do
gênero humano, mas a sua própria reprodução. (TONET, 2013,
p. 258-259).
198
zer a uma necessidade humana, de realizar a essência humana e
de oferecer à essência de outro o seu objeto. 3º) Eu teria a cons-
ciência de servir como mediador entre ti e o gênero humano, de
ser reconhecido por ti como um complemento do teu próprio
ser e como uma parte necessária de ti mesmo, de ser aceito em
teu espírito e em teu amor. 4º) Eu teria, em minhas manifesta-
ções individuais, a alegria de criar a manifestação da tua vida,
ou seja, de realizar e afirmar, na minha atividade individual, a
minha verdadeira essência humana, a minha sociabilidade hu-
mana [Gemeimwesen].
199
dade nos contextos das culturas digitais, aplicar conhecimentos
para resolver problemas, ter autonomia para tomar decisões, ser
proativo para identificar os dados de uma situação e buscar so-
luções, conviver e aprender com as diferenças e as diversidades.
(BRASIL/BNCC-EM, p. 14, grifo nosso).
Conclusão
200
13.415/2017, que institui a reforma do Ensino Médio –, o Estado
brasileiro tenta mascarar não somente a unilateralidade própria da
educação em sociedades de classes, mas o esvaziamento do currícu-
lo escolar de conhecimentos científicos, sob o discurso da educação
integral.
O grau de insatisfação entre professores e estudantes com os
rumos que a educação brasileira tem tomado é evidente e constatável
pela quantidade de manifestações localizadas e paralisações nacionais
de repúdio às reformas educacionais e na luta pela defesa da qualidade
da educação. São formas de reação necessárias, ainda que o caráter
limitado da luta parcial no interior da estrutura do Estado burguês tão
só possibilite conquistas que resultaram em recuos ou alterações nas
deliberações políticas do Estado, sem alterar sua natureza e a função
de favorecimento dos interesses dominantes.
Nesse contexto, apreender o sentido ontológico de formação
humana em Marx (2015) é, sem dúvida, fundamento indispensável
à crítica radical ao conceito de educação integral do Estado burguês.
Uma das artimanhas do Estado burguês tem sido apropriar-se
de complexos sociais com funções ontológicas – destinadas, essen-
cialmente, a fazer com que o indivíduo se sinta pertencente ao gêne-
ro humano –, para atribuir-lhes funções adequadas à reprodução do
modo produção que sustenta uma determinada forma de sociedade
de classes. Não poderia ser diferente na sociedade capitalista.
Não tendo como escapar da contradição existente entre a fun-
ção de promover uma educação para a adequação dos indivíduos às
demandas da produção e o discurso legal de desenvolvimento de uma
educação integral voltada para o desenvolvimento pleno dos estudan-
tes, o distanciamento entre o conceito de educação integral do Estado
e a perspectiva ontológica da formação humana é desvelado, confor-
me visto, no BNCC para o Ensino Médio.
Isso ocorre, certamente, em todos os documentos que tratam
da perspectiva de uma educação integral, uma vez que esta não é o
princípio basilar da educação em nenhuma forma de sociabilidade
que necessite desenvolver nos indivíduos comportamentos, valores,
atitudes, habilidades etc. adequados aos interesses da reprodução do
modo de produção sustentado na exploração do homem pelo ho-
mem.
A finalidade da educação burguesa não é o desenvolvimento
das potencialidades humanas na perspectiva de ampliar possibilidades
de realização do ser humano, enquanto indivíduo que se reconhece
partícipe do gênero humano, pelo acesso à riqueza material e espiritu-
al produzida pela humanidade.
201
Aliar conteúdos de disciplinas consideradas da base comum
curricular a conteúdos de formação técnica profissionalizante não é,
do ponto de vista ontológico, educação integral. Ao contrário, deter-
mina, em larga medida, a função da educação ao preparo técnico para
o trabalho formal e/ou informal, em detrimento do desenvolvimento
de potencialidades humanas latentes.
Referências
202
Educação e Humanização: Considerações Acerca
da Formação/Qualificação dos Trabalhadores
Sucroalcooleiros do Brasil
Jane Marinho12
Introdução
203
pequenas máquinas agrícolas no campo.
Para dar prosseguimento ao processo de modernização e ex-
pansão do setor, o Estado lança uma série de programas a partir
dos anos de 1960, como o Fundo de Recuperação da Agroindús-
tria Canavieira (1961), o Fundo Especial de Exportação (1965), o
Programa Nacional de Melhoramento da Cana-de-açúcar (1971) e o
Programa Nacional do Álcool (1975) (CARVALHO, 2009), (SILVA,
2012), (SZMRECSÁNYI, 1979).
Entre esses programas, o Proálcool foi definitivo para a mo-
dernização, já que fora criado num momento em que o mercado
do petróleo passava por uma grande crise, para ser colocado como
combustível alternativo à gasolina (SILVA, 2012).
Conforme Oliveira e Thomaz Júnior (2002, p. 8), é possível
observar três grandes momentos de desenvolvimento da produção
canavieira: 1) a “transferência de tecnologia externa e de estudos
sobre nutrição, adubação e adoção de práticas culturais”; 2) o “rela-
cionado ao melhoramento genético da cana-de-açúcar”; 3) “o tripé
melhoramento genético, insumos industriais, máquinas e implemen-
tos”.
Os insumos industriais, maquinários e os implementos foram
financiados pelo Estado por meio do Proálcool que, de 1975 até o
final da década de 1980, foi responsável pela modernização e pelo
crescimento das empresas no mercado nacional e internacional.
Desse modo, o setor sucroalcooleiro conseguiu se desenvolver até
mesmo durante as crises econômicas e fiscais.
A partir dos anos de 1990, o cenário produtivo da cana-de-
-açúcar passa por profundas mudanças. Com a desregulamentação
dos preços dos produtos sucroalcooleiros, o setor inicia um pro-
cesso de liberalização da economia no mercado mundial, não mais
organizado e planejado pelo Estado, mas marcado pela competiti-
vidade entre as usinas. Após este período de crise, intensifica-se o
processo de reestruturação produtiva, caracterizado pela introdução
progressiva da colheita mecanizada (SILVA, 2012).
Neste cenário, as usinas aderem ao discurso da produção sus-
tentável para implantar a mais alta modernização nos setores pro-
dutivos, mecanizando praticamente toda a produção no canavial, do
plantio à colheita da cana, com o discurso de que atende aos acordos
internacionais de proteção ao meio ambiente.
A mecanização da colheita da cana contribui para o aumento
da produtividade, já que nos últimos anos, a exigência da produti-
vidade do cortador de cana tem sido alterada de cinco toneladas de
cana por dia (5 t/d) nos anos 80 para 10 t/d nos anos 90 e 12 t/d
204
nos dias atuais. Nas regiões mais competitivas o trabalhador chega
a cortar até 15 t/d, o que representa um aumento significativo da
exploração da força de trabalho.
O corte mecanizado, além de levantar a bandeira da produ-
ção sustentável, representa muitas vantagens para os empresários,
visto que é possível: uma economia de até 30% com a contratação
de força de trabalho, o aumento da t/d já que algumas máquinas
chegam a cortar até 1.220 t/d, a competição entre os trabalhadores,
um maior controle no processo de trabalho e o rebaixamento dos
salários.
Diante das possibilidades apresentadas ao setor, tudo estava
se encaminhado para o seu sucesso irrestrito, não fosse a visibilida-
de da exploração da força de trabalho nas empresas sucroalcoolei-
ras do Brasil, que passou a ser recorrente no mercado internacional.
As acusações realizadas pelas principais mídias jornalísti-
cas, por organizações não governamentais (ONGs), pelos sindi-
catos, pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e pela
Comissão Pastoral da Terra (CPT), sobretudo entre 2005 e 2007,
denunciavam as degradantes condições de trabalho do setor sucro-
alcooleiro, que ora e outra faziam vítimas, como as que morriam
nos canaviais em virtude da extensa jornada de trabalho, além dos
trabalhadores libertados das fazendas de cana pelos agentes do Mi-
nistério do Trabalho e Emprego (MTE), por estarem em condições
análogas à da escravidão.
É a partir do período citado e das críticas que o governo
federal estava recebendo nos encontros mundiais, quando fazia a
defesa e a publicidade do álcool, que surge o projeto de “humanizar
o trabalho” no setor sucroalcooleiro.
Na tentativa de melhorar a imagem do setor, o governo fe-
deral, a partir de 2007, teve de tomar algumas decisões em relação
às condições de trabalho dos cortadores de cana. O Estado buscou
intervir e demonstrar que as empresas produziam com responsa-
bilidade social, respeitando os direitos dos trabalhadores. Foi neste
contexto que nasceu a proposta de conciliação entre capital e traba-
lho, mediada pelo Estado, com vistas a tratar das condições de tra-
balho dos cortadores de cana. A partir de então, passou-se a discu-
tir as práticas de trabalho “humanizadas” no setor sucroalcooleiro.
Conforme afirmado nas cinco cláusulas do CN, a “humani-
zação” no setor ocorreria por meio do cumprimento das leis traba-
lhistas já existentes e pela criação de alguns benefícios que seriam
criados pelo Estado por meio de políticas públicas, como a deman-
da da qualificação dos trabalhadores.
205
Diante do compromisso assumido pelo Estado para a melho-
ria das condições de trabalho dos cortadores de cana, decidiu-se in-
vestigar como a proposta de qualificação possibilitaria a “humaniza-
ção” dos trabalhadores e quais as verdadeiras intenções do processo
de escolarização criado pelo Estado para atender a uma necessidade
específica do setor sucroalcooleiro.
206
trabalho decente e a qualidade de vida; a terceira destaca o Compro-
misso Nacional; a quarta parte expõe os Termos do Compromisso
por meio das cinco cláusulas; a última trata da atividade sucroalcoo-
leira no Brasil e seus trabalhadores (BRASIL, 2009).
A cláusula terceira dedica-se às políticas públicas, entre elas a
escolaridade, que passou a ser reconhecida pelo Estado como uma
demanda importante para a melhoria da qualidade de vida dos tra-
balhadores. Nela consta que a “alfabetização e a elevação da escola-
ridade dos trabalhadores do cultivo manual da cana-de-açúcar” e o
desenvolvimento de ações de “qualificação e requalificação dos tra-
balhadores [...] eram prioridades da defesa da humanização” (BRA-
SIL, 2009).
Precisamente para atender a esta demanda de qualificação, o
PLANSEQ-S foi criado pelo edital de nº 27, objetivando
Qualificar trabalhadores oriundos do setor sucroalcooleiro,
sejam desempregados que buscam entrar ou retornar a cadeia
produtiva da cana-de-açúcar, ou empregados que perderão seus
postos de trabalho, devido à mecanização da colheita que, por
conseguinte, necessitarão de qualificação para permanecer no
setor supracitado. (BRASIL, 2010).
207
dores para atividades relacionadas ao cultivo manual da cana-de-
-açúcar. (BRASIL, 2010).
208
Diante dessa problemática, conclui-se que todos os cursos
destinados aos trabalhadores do setor agrícola desconsideravam o
perfil escolar dos cortadores de cana. Por conta disto, as vagas não
eram preenchidas e muitas turmas não puderam ser formadas (SIL-
VA, 2012).
Assim, o quesito do “perfil relativamente baixo de escolari-
dade” dos trabalhadores reconhecidos no CN foi omitido na única
ação de qualificação do governo federal que visava à “humanização
do trabalho” no setor sucroalcooleiro (BRASIL, 2009, p.19).
O PLANSEQ-S não passou de uma ação pontual, seletiva e
excludente, que lançou uma proposta de qualificação fantasiosa, ina-
cessível e desrespeitosa aos trabalhadores do setor sucroalcooleiro.
O acordo tripartite que fantasiava a “humanização do traba-
lho” na empresa capitalista precisou ser mediado pelo Estado, cuja
função social, historicamente determinada, é agir em favor da classe
dominante, propagando falsas ideologias e encobrindo o antago-
nismo de classes entre capital e trabalho por meio de uma capciosa
conciliação.
Não se está negando a importância de uma ação política que
visa melhorar as condições de trabalho de um setor que é historica-
mente reconhecido por seu traço hostil e desumanizado. Contudo,
também não se pode ser ingênuo o bastante para acreditar que a
defesa da “humanização do trabalho” no CN seria possível de se
efetivar numa sociedade fundamentada no processo de exploração
dos trabalhadores.
Como o Estado está limitado a uma atividade formal nega-
tiva, ele não pode findar os males sociais, simplesmente porque ele
emerge da contradição da vida privada (MARX, 2010a). Logo, ele
existe apenas como mediador das contradições e das barbáries so-
ciais aprofundadas com o desenvolvimento do capitalismo.
Para Engels, não há dúvidas sobre a função do Estado: um
instrumento de contenção do antagonismo de classe. Trata-se de
um órgão político e administrativo da burguesia, que opera de acor-
do com o modo de produção de cada momento histórico. Foi assim
desde o modo escravista, e continua a ser com o modo capitalista.
Como um comitê político que veste a túnica da burguesia, o
Estado tem o dever de estabelecer os princípios, as normas e as con-
dições para a manutenção da opressão de uma classe sobre a outra.
Nesse sentido, o Estado só reconhece o direito do cidadão
de posse, o direito da propriedade, pois sua função é preservar esse
direito. Assim, ele revela um grau de desenvolvimento tardio que
precisa submeter a humanidade aos imperativos do poder econômi-
209
co dominante.
Como foi criado para amenizar o antagonismo de classe, o Es-
tado precisa utilizar uma fórmula administrativa para tentar abrandar
os problemas sociais, como a miséria, a saúde, a educação, o desem-
prego, mas nunca solucionar esses problemas. Isso significa que “o
Estado não pode eliminar a contradição entre a função e a boa von-
tade da administração, de um lado, e os seus meios e possibilidades,
de outro, sem eliminar a si mesmo, uma vez que repousa sobre essa
contradição” (MARX, 2010a, p. 60).
Ainda conforme o aludido autor, o Estado político instituiu
todos os pressupostos da vida egoísta da sociedade burguesa. Nessa
perspectiva, é impossível pensar que a solução dos males sociais se
encontra lá, onde a vida privada e a vida pública estão entrelaçadas
(MARX, 2010b).
Assim, a única coisa que mantém o vínculo entre os homens
na sociedade de classe é o desejo egoísta de proteger a propriedade
e de se colocar como defensor desta. Foi para isso que o direito e a
“liberdade” nasceram: para garantir a propriedade privada e para re-
gularizar a exploração entre os homens (MARX, 2010b).
Consequentemente, o Estado moderno representa a continui-
dade da expansão e da expropriação do capital, de acordo com as
necessidades produtivas desse sistema contraditório e coercitivo, que
tem imposto, através do ato jurídico, rígida opressão à classe traba-
lhadora. No capitalismo, o Estado não conhece limites para submeter
tudo e todos, inclusive os seres humanos, à ordem de produção so-
ciometabólica do capital (MÉSZÁROS, 2009).
Foi nesse processo de contradições que o Estado brasileiro lan-
çou a defesa da “humanização do trabalho” no setor sucroalcooleiro,
atestando a possibilidade de mudança do quadro da exploração da
classe trabalhadora nesse setor produtivo. Na realidade, a “humani-
zação” defendida tinha como foco a expansão e a acumulação da
economia no mercado internacional.
O Estado afirma proposições impossíveis de ser efetivadas
nos limites do capitalismo atual. Portanto, ainda que defenda a pos-
sibilidade de controlar a exploração do capital sobre o trabalho, ao
certificar que as condições precárias serão sanadas em definitivo, a
proposta de “humanização do trabalho” no setor sucroalcooleiro é
uma verdadeira contradição, pois se compreende, a partir de Mészá-
ros (2009), que o capital é um sistema produtivo radicalmente incon-
trolável e ilimitado em seu processo de expansão:
Antes de mais nada, é necessário insistir que o capital não é sim-
plesmente uma “entidade material”, mas é, em última análise, uma
210
forma incontrolável de controle sociometabólico. A razão principal por
que este sistema forçosamente escapa a um significativo grau de
controle humano é precisamente o fato de ter, ele próprio, sur-
gido no curso da história como uma poderosa estrutura “totali-
zadora” de controle à qual tudo o mais, inclusive seres humanos,
deve se ajustar, e assim provar sua “viabilidade produtiva”, ou
perecer, caso não consiga se adaptar. Não se pode imaginar um
sistema de controle mais inexoravelmente absorvente do que o
sistema do capital globalmente dominante, que sujeita cegamen-
te aos mesmos imperativos a questão da saúde e a do comércio,
a educação e a agricultura, a arte e a indústria manufatureira,
que implacavelmente sobrepõe a tudo seus próprios critérios de
viabilidade, desde as menores unidades de seu “microcosmo”
até as mais gigantescas empresas transnacionais, desde as mais
íntimas relações pessoais aos mais complexos processos de to-
mada de decisão dos vastos monopólios industriais, sempre a
favor dos fortes e contra os fracos. (MÉSZÁROS, 2009, p. 96,
grifos do autor).
211
atividades econômicas – para retomar a superficial e conhecida
tipologia dos “setores econômicos” de Colin Ckark: o primário,
o secundário e o terciário), a intensificação do trabalho (também nos
três ‘setores’), a enorme defasagem entre o crescimento das ren-
das capitalistas e o crescimento da massa salarial etc., resultando
na extração articulada de mais-valia absoluta e relativa e na recu-
peração de formas de trabalho típicas dos primeiros momentos
da instauração do capitalismo (trabalho a domicílio) e, mesmo,
em formas de trabalho forçado e, em casos extremos, mas não
excepcionais, escravo. A constatação mais óbvia desse incremen-
to da exploração aparece, em todos os quadrantes do mundo, nos
mais chamados fenômenos de “exclusão social”. (NETTO, 2010,
p. 20, grifos do autor).
212
enquanto ser social é um ato nascente de liberdade, uma vez
que caminhos e meios para a satisfação de necessidades não são
mais efeitos de cadeias causais espontaneamente biológicas, mas
resultados de ações decididas e executadas conscientemente.
Mas, ao mesmo tempo e de modo igualmente indissolúvel, esse
ato de liberdade é diretamente determinado pela própria neces-
sidade, mediada por aquelas relações sociais que produzem seu
tipo, qualidade etc. Esta mesma dupla presença, a simultaneida-
de e a inter-relação de determinismo e liberdade, também pode
ser encontrada na realização do fim. Originalmente, todos os
seus meios são fornecidos pela natureza e essa sua objetividade
determina todos os atos do processo de trabalho, que é consti-
tuído por uma cadeia de alternativas. Finalmente, o homem que
executa o processo de trabalho é, no seu ser-propriamente-as-
sim, dado enquanto produto do desenvolvimento anterior; por
mais que o trabalho possa modificá-lo, também esse devir outro
já nasce sobre um terreno de capacidades cuja origem é em par-
te natural e em parte social e que já estavam presentes, desde
o início do trabalho, na forma de operar do trabalhador como
momentos codeterminantes [...]. (LUKÁCS, 2013, p. 103).
213
A forma como as relações de produção se realizam na atualida-
de não eliminou a originalidade do trabalho, mas como a organização
da produção ocorre de forma alienada, os trabalhadores realizam o
trabalho tão somente para satisfazer a sua condição natural. Ou seja,
o processo exploratório de trabalho não permite que o homem de-
senvolva a sua humanidade. Isso é possível porque todo o tempo
de vida do sujeito tem se tornado tempo de trabalho, tempo para
produzir um mínimo de sobrevivência para que ele e sua família con-
tinuem vivos. O trabalho, nessas circunstâncias, coloca o trabalhador
na mesma condição de satisfação das necessidades imediatas, como
a dos animais.
Mesmo assim, diante das projeções da mecanização no setor
sucroalcooleiro, foi defendida a “humanização do trabalho”, e a esco-
larização dos trabalhadores foi apontada como um dos caminhos da
proposta. Neste contexto, as autoras Moraes (2007) e Liboni (2009)
advertiram sobre o perfil escolar dos cortadores de cana, apontando
a necessidade de uma qualificação que permitisse a reintegração dos
trabalhadores. A segunda autora sugeriu a parceria entre público e
privado para a criação dos cursos de capacitação. E o PLANSEQ-S
foi o limite da qualificação que o Estado conseguiu oferecer aos mar-
ginalizados.
214
balho, para afirmar o discurso da melhoria da qualidade de vida e da
qualificação dos trabalhadores.
Nos documentos analisados, investigou-se como a proposta
de formação/qualificação do governo federal foi encaminhada em
todo o Brasil e os resultados das ações.
A partir da análise da proposta de formação/qualificação en-
cabeçada pelo PLANSEQ-S, expõem-se os limites do discurso da
educação via melhoria da qualidade de vida e “humanização do tra-
balho”, quando a intenção real não é atender à classe trabalhadora,
mas apenas expandir os interesses do capital.
215
tavam o cansaço físico e não aguentavam enfrentar uma sala de aula
depois de um dia no canavial (SILVA, 2012).
Outro achado da referida pesquisa é que as empresas estão evi-
tando contratar trabalhadores analfabetos. Conforme a fala de um
dos entrevistados, é difícil lidar com um trabalhador que não sabe ler
uma placa, uma sinalização, retirar o dinheiro no caixa eletrônico etc.
(SILVA, 2012).
A pesquisa demonstrou que as empresas tinham plena cons-
ciência do perfil escolar dos seus trabalhadores e reconheciam que
a realização dos cursos daria novas oportunidades aos trabalhadores
que conseguissem efetivar a matrícula e finalizar o curso. Ademais,
algumas empresas não conseguiram fechar as turmas, por conta da
exigência escolar (SILVA, 2012).
Diante do exposto, e do propósito assumido neste trabalho,
pode-se afirmar, com base na análise crítica do discurso em defesa
da “humanização do trabalho”, expressa no CN, que a política de
qualificação assumida nesse acordo tripartite foi uma ação pontual e
assistencialista, destinada aos poucos trabalhadores que estavam ap-
tos às novas exigências do capital sucroalcooleiro. Por isso, o fato de
a maior parte dos trabalhadores ficar de fora do treinamento/capaci-
tação não pode ser configurado como um problema para a política de
formação específica do capital; ao contrário, representa a produção
alienada e desigual desse sistema produtivo.
O discurso da qualificação profissional teve dois objetivos no
CN: 1) formar uma força de trabalho necessária à demanda da meca-
nização; 2) culpabilizar os trabalhadores pelo processo de desempre-
go, porque, afinal de contas, os cursos foram ofertados, todavia, os
trabalhadores não tinham perfil escolar adequado para o treinamen-
to/capacitação. Com isso, leia-se: o Estado e as empresas fizeram a
sua parte; os trabalhadores, não.
Assim, constatou-se que a teoria do capital humano justifica a
atual situação dos trabalhadores utilizando a premissa de que novos
cargos foram criados, mas os trabalhadores não estavam aptos para
assumi-los; por isso, tiveram de se qualificar. Desse modo, tenta-se
jogar sobre os ombros da classe trabalhadora o problema de como se
sustenta este modo de produção. Mais uma vez, a “sociedade do co-
nhecimento” ressuscita seu discurso ideológico para dizer que a saída
para a crise do desemprego é o conhecimento, a qualificação, quando,
em verdade, ele é o resultado do processo de acumulação.
O Estado afirma a relação entre qualificação e empregabilida-
de, falseando o processo de acumulação, quando, de fato, as ações de
formação devem materializar as necessidades produtivas e ideológi-
216
cas do capital. Isso significa que a educação não precisa desenvolver
as capacidades intelectuais dos sujeitos, mas apenas treiná-los e ca-
pacitá-los para a valorização do capital.
Por isso, compreende-se que o processo de formação engen-
drado pelo capital visa simplesmente ao treinamento/capacitação
da força de trabalho adequada aos princípios da acumulação. Essa
formação não contribui para o processo de humanização dos tra-
balhadores, simplesmente porque é uma qualificação técnica exclu-
sivamente destinada ao saber fazer, que impossibilita o trabalhador
ir além da prática laborativa. É uma qualificação conformista, apa-
rentemente neutra, que age de modo eficiente na conduta dos tra-
balhadores; estes são treinados para nunca questionar e a sempre
desenvolver o trabalho com eficiência.
Além de esse tipo de qualificação não resolver a questão do
desemprego, ela se resume a um treinamento/capacitação que apro-
funda a alienação da classe trabalhadora. Como ela está orientada à
maximização do lucro, não eleva a espiritualidade e ainda auxilia no
processo de desumanização.
Assegura-se que a política de treinamento assinalada como a
solução dos problemas dos trabalhadores, através do PLANSEQ-S,
não visou atender sequer à demanda do setor, mesmo nos limites do
treinamento. Foi tão só uma ação pontual, descontinua e fundamen-
talmente despreocupada com a realidade escolar dos trabalhadores.
Para certificar essa afirmação, pode-se apresentar a fala da
consultora para assuntos sindicais e trabalhistas da ÚNICA, Elimara
Aparecida Assad Sallum, exposta na Audiência Pública: Queimadas
em canavial, nº 586.224, de 15 de maio de 2013. Nesse evento, a
referida consultora tratou dos programas de qualificação oriundos
do CN, das respectivas mudanças e dos problemas desse processo.
Ao analisar a demanda da qualificação ofertada pelo governo
federal, que assumiu as políticas públicas no CN, ela asseverou que
esta questão era uma das etapas principais para a melhoria das boas
práticas trabalhistas; por isso, considerou que era possível qualificar
os trabalhadores, mas apontou que “existe um número grande de
pessoas analfabetas, um analfabetismo funcional e uma baixa esco-
laridade”, e que essa realidade poderia ser modificada por meio de
“políticas públicas, que se iniciam com a alfabetização desses traba-
lhadores até a requalificação para a inserção no mercado de traba-
lho, no nosso ponto de vista” (BRASIL, 2013, p. 72-73).
A consultora observou, ainda, que o sucesso desse investi-
mento só seria possível a médio e longo prazo. Nesse sentido, pode-
-se dizer que a consultora revelou a ineficiência de uma ação pontual
217
para resolver uma questão histórica, como a escolaridade dos corta-
dores de cana.
Ao tempo que afirmou a necessidade de uma política de médio
e longo prazo para a problemática da qualificação, ela considerou “de
extrema importância a questão das políticas públicas” para a “qualifi-
cação, alfabetização”, demandadas do CN, uma vez que
[...] a qualificação de trabalhadores e política pública no local de
origem, de migração, porque é cultural, no setor do Brasil, esses
trabalhadores com baixa escolaridade, buscando a sua sobrevi-
vência e de seus familiares, migrarem de um lado para outro no
país para fazer a safra da cana-de-açúcar. (BRASIL, 2013, p. 73-
74).
218
[...] este Projeto foi criado em São Paulo pela União da Indústria
da Cana-de-Açúcar, junto com a Federação dos Empregados
Rurais e Assalariados do Estado de São Paulo e com o apoio
de parceiro. Esse Projeto teve sucesso? Muito sucesso, mas, in-
felizmente, não atingiu a sua meta, porque a meta inicial, no
primeiro ano, era a de qualificar 7 mil trabalhadores. Qual foi o
mais grave problema? A questão do nível de escolaridade. Foi
necessário criar o Projeto Pré-Renovação, com três meses com
aula de Matemática, Português e Conhecimentos Gerais. Muito
bem. Nos dois anos subsequentes do Projeto, foram requalifica-
dos 5.730 trabalhadores. (BRASIL, 2013, p. 74-76).
219
mais uma vez naturalizar a exploração e reforçar a cultura in-
dividualista mediante o convencimento de que os processos de
inclusão e exclusão no mercado de trabalho e nos espaços de
convivência cidadã – conforme os termos do discurso que ex-
pressa essa mesma lógica – decorrem da qualificação e compe-
tência dos indivíduos, ocultando, desse modo, o caráter estrutural
do desemprego como efeito mais perverso do processo de globa-
lização e reestruturação capitalista. (JIMENEZ et al., 2002, p. 3).
220
da, na qual o Estado e o capital fingem estar sensíveis às condições
da classe trabalhadora, quando apenas estão preocupados em mas-
carar a profunda desigualdade em que se encontram estes sujeitos.
Além disso, as políticas públicas assumidas pelo Estado ca-
pitalista tendem a “responder às necessidades da valorização do
capital, por meio da formação do capital humano necessário à am-
pliação das taxas de mais-valia”. É necessário que o trabalhador re-
nove suas esperanças por meio de treinamento/capacitação de curta
duração, como o PLANSEQ-S, para que possa sonhar com a rein-
serção no mercado de trabalho; mas ele “jamais adquire emprego
formal como pretende” (SOUZA, 2010, p. 136-137).
Ainda segundo Souza:
No campo educacional, a ofensiva do capital tem se materializa-
do em ações e formulações no sentido da reconfigurar o sistema
educacional para atender de modo mais eficiente as novas de-
mandas produtivas, seja preparando o trabalhador para ocupar
postos de trabalho em condições mais flexíveis, seja formando o
contingente excedente da força de trabalho para aceitar passiva-
mente as condições laborais de precariedade, informalidade ou
desemprego. Para isto, têm-se empreendido esforços para for-
mar competências sociais e profissionais no conjunto da classe
trabalhadora em busca da formação de um trabalhador de novo
tipo, mais adaptado à volatilidade do mercado e à velocidade das
mudanças no trabalho e na produção, propiciadas pelo avanço
da ciência e da tecnologia, especialmente da informática e da
microeletrônica. Mas ao mesmo tempo, há a necessidade de se
conformar o número imenso de trabalhadores excluídos. Para
isso, o recrutamento da Teoria do Capital Humano tem servi-
do de cimento ideológico das iniciativas públicas e privadas de
formação do trabalhador de novo tipo. (SOUZA, 2010, p. 138).
221
ta ao capital, e segundo porque ele se torna invendável no mercado
de trabalho. Em verdade, a política de qualificação do PLANSEQ-s
configurou-se como um espaço de qualificação/requalificação am-
plamente fundamentado na “concepção burguesa de formação hu-
mana”. Esse processo não garante a reintegração dos trabalhadores
e tampouco possibilita ou abre espaço para questionamentos sobre
essa proposta (SOUZA, 2010, p. 139).
De acordo com Souza (2010, p. 142-143), o processo de for-
mação sob a “ótica do capital” busca o “aumento da produtividade
industrial para maior valorização do capital, por meio do aumento da
mais-valia relativa”. Como a ciência e a tecnológica devem atender
ao interesse dominante de expansão, a qualificação reservada para a
maioria dos trabalhadores deve contribuir para “o aumento de pro-
dutividade do trabalho num contexto em que o trabalho vivo é cada
vez mais reduzido”. Contrariando essa proposta de formação, a pers-
pectiva de qualificação sob a “ótica do trabalho” assegura que
[...] o aumento da produtividade decorrente da ciência e tecnolo-
gia aplicada na produção só faz sentido como fator de diminuição
da jornada de trabalho e consequente aumento do tempo livre do
trabalhador como fator de construção da consciência de classe.
(SOUZA, 2010, p. 146).
222
venção nesta, deixando de ser um epifenômeno e se transformando
numa ação orientada e previamente idealizada, essa intervenção só
poderia encaminhar o homem para processos sociais cada vez mais
humanizados, pois, à medida que ele fosse aperfeiçoando a inter-
venção no seu meio social, necessidades seriam criadas. Assim, não
só o ambiente seria transformado, mas o próprio homem, ao intro-
duzir necessidades que outrora não faziam parte da sua vida.
No entanto, o modo dominante de produção não possibilitou
que os trabalhadores transcendessem as suas necessidades básicas,
uma vez que o processo alienado está orientado para a valorização
do capital e não para o desenvolvimento omnilateral dos verdadeiros
produtores da riqueza social.
Nesse sentido, o modelo dominante de produção não permite
a humanização do trabalho, porque nele nada está voltado à realiza-
ção dos trabalhadores, especialmente a qualificação, que é utilizada
apenas para aumentar a produtividade e para adestrar os sujeitos
para os diversos ramos de produção e para o mundo da incerte-
za. Ao contrário dessa prática de formação específica do sistema
capitalista, a única proposta de educação que poderá efetivamente
contribuir para o processo de humanização é a defendida por Marx,
a “formação omnilateral, a formação do homem completo, que tra-
balha não apenas as mãos, mas também com o cérebro e que, cons-
ciente do processo que desenvolve, domina-o e não é dominado por
ele” (SOUZA, 2010, p. 150, grifo do autor).
Entende-se que o conhecimento é um processo essencial para
o trabalho, mas se a sua aquisição está fundamentada em processos
alienados de produção, não favorece o pleno desenvolvimento hu-
mano. A “humanização” sob o crivo do capital tem sugado “toda a
liberdade a serviço da avareza”. Desse modo, o trabalhador tem se
desfeito do seu maior tempo de vida “para não perecer totalmente”
(MARX, 2010c, p. 26).
Finalmente, a proposta de qualificação do PLANSEQ-S não
contribui para o processo de humanização, visto que ela é a condi-
ção essencial para que os trabalhadores permaneçam como servos
de suas necessidades corpóreas e essenciais, bem como não estimula
o desenvolvimento espiritual do trabalhador, porquanto é direciona-
da unicamente ao processo de expansão e modernização do capital.
A proposta de treinamento/capacitação do PLANSEQ-S não
rompe com a lógica do capital, antes assume o domínio sobre o de-
senvolvimento social. Como esse processo não “conduz à autorre-
alização dos indivíduos como ‘indivíduos socialmente ricos’ huma-
namente falando, como não está destinada à emancipação humana”,
223
conduz à concretização da exploração e da alienação (MÉSZÁROS,
2008, p. 47).
Conclusão
224
As condições em que o trabalho no corte da cana continua a
ser realizado não demonstram nenhum traço de humanização no se-
tor sucroalcooleiro. O que se tem de concreto é a restrição das ações
puramente humanas na vida desses trabalhadores, uma vez que seu
tempo de vida é tempo de trabalho.
Leontiev (1978) afirma que não há nenhuma possibilidade de
o ser social se desenvolver plenamente na sociedade de classe, pois
as interações sociais se realizam de forma alienada e explorada. As-
sim,
[...] a encarnação no desenvolvimento dos indivíduos dos resul-
tados adquiridos pela humanidade na sequência do desenvolvi-
mento da sua atividade global, e a de todas as aptidões humanas,
permanecem sempre unilaterais e parciais. Só a supressão do
reino da propriedade privada e das relações antagônicas que ela
engendra pode pôr fim à necessidade de um desenvolvimen-
to parcial e unilateral dos indivíduos. Só ela cria, com efeito,
as condições em que o princípio fundamental na ontogénese
humana se pode plenamente exercer. (LEONTIEV, 1978, p.
173-174).
Referências
225
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227
PARTE III – HISTÓRIA, EDUCAÇÃO E
PROPOSTAS EDUCACIONAIS
O Legado Histórico da Educação Soviética
Severina Lessa Moura1
Introdução
231
ventude deve possuir todos os conhecimentos modernos. “Aprender
a transformar o comunismo de fórmulas, conselhos, receitas, pres-
crições e programas feitos e aprendidos de cor em algo vivo que dá
unidade ao vosso trabalho imediato, transformar o comunismo em
guia do vosso trabalho” (LENIN, 2004, p. 391).
A importância inegável das contribuições da escola soviética
para o campo da Pedagogia Social passa necessariamente pelo reco-
nhecimento das dificuldades extremas enfrentadas por persistentes
e abnegados pedagogos diante da tarefa de construir uma educação
em um país afetado pela falta de cultura geral e pela ausência de saber
trabalhar e viver coletivamente.
Dificuldades e conquistas são relatadas em obras que contri-
buíram de forma central para a elaboração deste estudo, tais como:
(1) o livro A Escola-Comuna (2013), organizada pelo pedagogo M. M.
Pistrak, onde acompanhamos a experiência coletiva da Escola-Co-
muna2 do Comissariado Nacional da Educação, que recebeu o nome
de seu fundador, P. N. Lepeshinskiy. Apresentada em 1924, essa obra
é considerada um documento histórico que relata os esforços dos
momentos iniciais da organização da escola soviética.
Na segunda obra, Fundamentos da Escola do Trabalho (2011), Pis-
trak explicita a sistematização de sua experiência na condução da
Escola-Comuna Lepeshinskiy e de outros contatos com escolas pri-
márias. Os textos foram escritos em 1924, após um ano da primeira
versão que circulou na Rússia. A terceira obra, Ensaios sobre a Escola
Politécnica (2015), também de Pistrak, publicada em 1929, trata de ex-
periências em diferentes instituições científicas e educacionais sovié-
ticas, para além da Escola-Comuna, quando o debate se sobrepõe à
questão do trabalho na escola e se volta para o trabalho de natureza
politécnica3, etapa superior das relações entre ensino e trabalho.
Nas duas primeiras obras acima referidas, encontra-se a con-
tribuição de Pistrak como relator e sistematizador das experiências a
partir da Escola-Comuna P. N. Lepeshinskiy, conduzida por ele e um
coletivo de pedagogos colaboradores, e os participantes invisíveis,
crianças e jovens estudantes da comuna escolar, os camaradas mais
novos, os mopshks, como se autodenominavam os estudantes da Es-
cola Experimental-Demonstrativa de Moscou da Comissão Nacional
de Educação. O autor busca expor detalhadamente o plano para a
232
educação revolucionária, os ideais, as concepções, os princípios e os
valores do processo revolucionário inicial na União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas (URSS), no interior de um processo de cons-
trução da denominada, por ele, Pedagogia Social.
É louvável a constante afirmação de Pistrak, como relator e
autor dessas obras, de que a vivência pedagógica é uma construção
coletiva. Os textos sistematizados, apesar de seu caráter científico,
não têm uma forma acabada, concluída. Os pedagogos revolucio-
nários demonstram ter consciência de que o processo histórico es-
tava apenas sendo gerado entre erros e acertos, sob a convicção dos
princípios orientadores da pedagogia social preconizados no ideal
revolucionário.
Tratar sobre a educação soviética é, antes de tudo, estrei-
tar o conhecimento sobre o desenvolvimento da Escola-Comu-
na, os desafios e dificuldades que teve de superar, próprios de um
processo pioneiro. A pedagoga russa Nadezhda Konstantinov-
na Krupskaya (1869-1939), maior referência intelectual de Pistrak,
analisou profundamente os estudos e as práticas pedagógicas da
nova escola, compreendendo os ataques que a experiência sofreu
pela ousada postura das escolas experimentais, “por terem, cada
uma, sua fisionomia própria, por não terem programas fortemente
estabelecidos” (KRUPSKAYA, 2013, p.103).
O planejamento tem seu valor inicial, contudo, a questão para
a Escola-Comuna é como realizá-lo, como o pedagogo se coloca
diante do processo real. Tomamos as palavras de Krupskaya, (2013,
p. 105), quando afirma: “no processo de crescimento, o plano inicial
inevitavelmente passa por mudanças, a vida introduz nele correções,
mas ao mesmo tempo aprofunda-o e torna-o mais claro”.
A Escola-Comuna, do seu surgimento, em 1918, até tornar-se,
em 1923, a Escola-Comuna experimental demonstrativa do Comis-
sariado Nacional da Educação, de forma geral, assimilou para si o
método de construção revolucionário do poder soviético.
Nas palavras de Krupskaya (2013, p. 105):
avaliação atenta de todas as condições, todo o meio ambiente,
sondagem dos germes do futuro mais vitais e aptos ao desen-
volvimento, criação para eles das condições favoráveis. Nossa
revolução tentou evitar a doutrinação e, exatamente por isso,
ela tornou-se tão vital. Não há doutrinação também no trabalho
da Escola-Comuna experimental demonstrativa do Comissaria-
do Nacional de Educação. O método de trabalho dela é muito
valioso e é extremamente necessário até que amplas massas de
professores se familiarizem com ele.
233
Outra questão sobre a qual Krupskaya (2013, p. 105) se debru-
ça e que considera reveladora na experiência é o fato de os pedago-
gos buscarem a ligação entre a “escola com fortes fios à vida social
ao redor, transformando a própria escola em parte integrante des-
sa vida, ligada inseparavelmente a ela, e racionalmente organizada”,
tratando-se de uma experiência, então em desdobramento, quando
a relação da escola com a vida social ainda indicava um intenso exer-
cício.
A Escola-Comuna colocou algumas pedras na base de cons-
trução dessa ligação. Acompanhemos, então, o percurso histórico da
criação da Escola-Comuna P. N. Lepeshinskiy, conduzida por Pis-
trak.
1 A Escola-Comuna P. N. Lepeshinskiy
234
Em suas palavras, “muita firmeza e resistência necessitou-se em
tais condições difíceis, para que os pioneiros da escola não deixas-
sem a tarefa logo no início”.
Na primavera de 1919 ocorre a mudança da escola para um
novo prédio, separando-se da escola rural e abrindo inscrições para
os que desejassem ser transferidos para a nova escola. Diante da
pequena adesão, começou-se a aceitar os mais pobres das aldeias
mais distantes. Registra-se a tristeza de muitas crianças impedidas
de permanecer na escola.
Com os novos alunos, foi criado um internato onde as crian-
ças foram convidadas para a vida comunal. Ali, realizavam as re-
feições do dia: café, almoço e jantar de forma coletiva. O trabalho
ocupava o cotidiano na escola. Segundo Pistrak (2013, p. 140), “o
trabalho transformou as crianças e introduziu no seu ambiente o
interesse para a nova, para a ‘sua’ escola, uniu-os e favoravelmente
influenciou na sua organização e disciplina”.
O trabalho aqui referido diz respeito às tarefas rotineiras que
os estudantes realizavam para a própria manutenção e organização
da vida cotidiana: preparação das refeições; o cuidado dos mais
velhos com os mais novos, e, também, na produção de camas, de
colchões e cuidados com as hortas – atividades consideradas pelos
pedagogos comunistas como germes do trabalho social.
A palavra comuna, nos primórdios tão desconhecida, perde
sua conotação hostil, sendo utilizada pelas próprias crianças para
denominar a nova escola de comuna escolar.
Após um ano de experiência, era possível perceber que as
crianças reagiam às intempéries das condições circundantes, de-
fendiam a escola diante dos camponeses através de agitações nas
aldeias e, também, quando era necessário, pegavam em armas para
defendê-la dos ataques dos inimigos. A escola continuou sofrendo
toda sorte de repressão por parte da população, vivenciando coti-
dianamente um processo de luta cruel, sendo uma vez incendiada.
Apesar do desenvolvimento e do fortalecimento da experiên-
cia, as condições adversas à vida da escola comunista na aldeia Lit-
vinovichi, inviabilizavam a construção de um trabalho experimen-
tal normal. Com menos de um ano, a escola-comuna mudou-se
para Moscou. Esse primeiro período “pioneiro” da vida da comuna
escolar introduziu nela bases firmes e definidas, abaixo caracteri-
zadas no relato dos pedagogos comunistas, que, segundo Pistrak
(2013, p. 143), “se fortaleceram, ampliaram-se e transformaram-se
em fundamentos seguros da comuna escolar no futuro”, como des-
creve nosso autor:
235
1. espírito comunista, social, que já exitosamente forja-se e forta-
lece-se no pequeno coletivo de pequenos comunardos;
236
em uma ou duas horas de atividades com o professor, sem a presen-
ça de todas as crianças.
O clima humano era o de desgraça comum, alegria comum.
O enfrentamento comum, todos lutando contra o meio. Todavia,
as tristezas também estavam presentes. Como diz Pistrak (2013, p.
145):
Nem todos se subordinam à vontade da comuna – a reunião
geral dos adultos e crianças. Não é possível romper tão rápido
com o passado. Admoestações, repreensões públicas, isolamen-
to, isolamento de sete dias. Uma série de dias pesados passou: é
preciso romper o isolamento e isso todos sentiram; no lugar de
estado de espírito amigável e normal, há alguma nota falsa. É
inadmissível. Aproveitamos uma festa soviética. Anistia. Todos
respiram mais livremente.
237
trabalho entre os membros da escola nas oficinas, curral, hortas etc.
A distribuição das tarefas era feita voluntariamente. Na ausência de
voluntários a comuna escolar indicava.
Aqui, também, distribuía-se o trabalho da comuna e indica-
vam-se os membros da Comissão de Redação, Comitê de Trabalho
(organização infantil responsável pelo controle, distribuição e orga-
nização do trabalho na comuna e na fazenda soviética). E, ainda, era
o momento de discussão sobre as questões relacionadas ao teatro e
sobre as travessuras dos membros da comuna. No lugar de um tribu-
nal ou de juízes, havia uma conversa conjunta e amigável. As crian-
ças presidiam essas reuniões, mas os trabalhadores escolares também
estavam presentes, com pleno direito de participação. Apoiavam as
crianças sempre que necessário.
O Comitê de Trabalho, para cumprir sua tarefa, precisava sa-
ber: quantos membros a comuna tem e qual trabalho permanente re-
aliza na fazenda soviética ou na comuna; qual a quantidade de mem-
bros da comuna que não tem trabalho permanente; se num dado dia
existiria trabalho temporário na fazenda soviética ou na comuna, e
qual seria ele. Para alcançar as informações, o Comitê comunicava-se
diariamente com o escritório da fazenda soviética e com a Comissão
Econômica da comuna. De posse de todos os dados, distribuía o tra-
balho, e, às vezes, retirava parte dos membros com trabalho perma-
nente para atender à demanda de trabalho urgente. É, ainda, obriga-
ção do Comitê: observar a qualidade do trabalho executado, realizar
balanço do trabalho, avaliar os resultados e publicar em boletins de
trabalho da escola e, através destes e das reuniões gerais, influenciar
os que se esquivam e são refratários diante de suas responsabilidades.
A dinâmica das atividades envolvia adolescentes a partir de 13
anos, com quatro horas de trabalho na fazenda soviética, em diversos
setores: horta, estufas, gado, oficinas de reparo, colheita do feno, e
outros. O trabalho era pago com leite às crianças que trabalhavam.
Apesar da possibilidade de rodízio das atividades desempenhadas,
muitos optavam por permanecer em um único tipo de trabalho, ob-
tendo grandes habilidades e conhecimentos especializados. Simulta-
neamente ao trabalho no campo, ocorria o trabalho em eletricidade,
orientado por profissionais técnicos.
As tarefas práticas eram ligadas à comuna escolar, com a ad-
ministração do pedagogo de cada área do conhecimento. A comuna
tinha sua própria horta experimental, onde aconteciam os experi-
mentos orientados pelo pedagogo de ciências sociais, por exemplo.4
4 Para conhecer o trabalho desenvolvido por pedagogos especialistas nas áreas da Matemá-
238
Salienta-se uma significativa experiência que saiu da comuna para
a contribuição social e econômica da Rússia. Trata-se da questão
da turfa, que foi trabalhada com o pedagogo de ciências naturais,
técnicos e cientistas sociais. A experiência teve seu impulso a partir
de uma excursão realizada às estações elétricas de Sharur, Kashir e
outras; e também o estudo dos materiais da revista Vida Econômica,
possibilitando aos estudantes mais velhos informações científicas
sobre a situação econômica da Rússia moderna. Através da revista
acompanharam a exportação de petróleo, a extração de carvão de
pedra, turfa, transporte ferroviário, plantas fabris, safras e outras. A
experiência marcou fortemente a produção intelectual das crianças,
chegando à publicação de artigos no Notícia da comuna escolar.
Pistrak (2013, p. 125) faz questão de enfatizar que, “compara-
tivamente, uma quantidade insignificante de tempo foi dedicada ao
trabalho na biblioteca, ao trabalho com o livro”; contudo, ele reco-
nhece que a organização de uma série de espetáculos bem como as
críticas feitas aos livros possibilitaram aos pedagogos avaliar “mais
profundamente a alma das crianças, conhecer suas necessidades. E
essas críticas, artigos, informes, poemas no boletim e no Notícias
ensinaram a escrever corretamente”.
Outras atividades importantes no contexto da instrução das
crianças eram as atividades relacionadas aos jogos, à música, ao can-
to, as quais favoreciam momentos de descontração em toda a comu-
na escolar e a criação rítmica dos mais artísticos. O piano de cauda
era um dos instrumentos mais utilizados naquele momento. Após
um período de realizações artísticas, o trabalho musical atraiu crian-
ças camponesas. As adversidades iniciais da aldeia, dos camponeses,
converteram-se na aceitação do próprio momento revolucionário.
As mudanças operadas nos camponeses resultaram de um tra-
balho coletivo, conversas, apresentação e esclarecimento das tarefas
da escola, discussões e a proposição de um trabalho conjunto; tudo
acontecia nas assembleias. Debates políticos ocorriam com frequ-
ência, assim como fortes discussões. A estratégia utilizada pelas
crianças não contou com embates frontais, mas de imediato elas
recorriam aos trabalhos escolares e à leitura de documentos que
orientassem as discussões seguintes com os camponeses.
As precárias condições da vida na aldeia foram analisadas. O
alto grau de analfabetismo dos camponeses, a falta de hospital, de
tica, Física, Ciências Naturais, História e Ciências Sociais, Ciências Econômicas, Literatura
e Artes Plásticas, recomendamos o livro A Escola-Comuna, organizado por Moisey M. Pis-
trak, Expressão Popular (2013).
239
médicos, de trabalho cultural-educativo. Anota Pistrak (2013, p. 154):
“nunca havia chegado um agitador honesto, e entre os camponeses
não havia nenhum comunista. E o trabalho ferveu”. A experiência
provou que o trabalho a ser realizado extrapolava a força das crianças.
Ações organizativas partiram da comuna, que estendeu seus servi-
ços à aldeia, tais como atendimento ambulatorial com o médico da
comuna e discussões com o magistério do distrito, que demonstrara
interesse em construir a escola do trabalho. As ações tiveram como
base amplas pesquisas sobre a realidade da aldeia, tanto no campo
médico como no campo escolar.
Interessa-nos, em particular, a pesquisa realizada pelas crianças
mais velhas sobre as condições nas quais se achavam a escola e o pro-
fessor. Desde as condições ambientais e a distância entre as escolas,
até o quantitativo de crianças e professores em diversas situações:
quantas crianças por professor; quantos grupos por ele conduzidos;
quantas crianças estavam fora da escola. Outros dados foram levanta-
dos: se existia trabalho artesanal, que fábricas existiam, que fazendas
soviéticas estavam localizadas no distrito, de que se ocupou e qual a
ocupação atual da população. As ações e os encaminhamentos sobre
os dados colhidos, os problemas apontados e as decisões necessárias
foram explicitadas em assembleias e conferências distritais, semanais,
que ocorriam na comuna.
Para tanto, as atividades pedagógicas se davam na biblioteca
e na sala de leitura. Jornais foram disponibilizados na fazenda e na
aldeia, lidos em voz alta; os livros foram emprestados e o gramofone
apresentou falas de Lenin e Trotsky. Espetáculos foram organizados
inicialmente com as crianças da comuna escolar e, posteriormente,
com a juventude camponesa.
Foram realizadas reuniões de jovens e adultos, comícios e or-
ganização das células da União da Juventude Comunista, simultanea-
mente às questões de cunho pedagógico e do apoio aos camponeses.
Os adolescentes, membros da comuna, em acordo com o conselho
rural e distrital, tiveram um papel importante nesse processo, segun-
do Pistrak (Idem, p. 154): “organizaram conferências distritais e, com
a ajuda dos trabalhadores escolares, apresentaram-se nelas, tomaram
parte na sessão regional da juventude e de lá saíram como delegados
para a sessão regional do Partido Comunista da Rússia”. Os adoles-
centes envolveram também a juventude camponesa nessa tarefa.
As adversidades climáticas na Rússia, como sabemos, são fato-
res determinantes para a população. A escola-comuna, como a maior
parte do povo russo, sofria com o inverno rigoroso, ressurgindo a
questão sobre a lenha, agasalhos, comida, sobre o trabalho pedagó-
240
gico no inverno. Não havia recursos suficientes. Nas palavras de
Pistrak (2013, p. 155), “as crianças, dezenas de crianças, não tinham
para onde ir, um lugar para viver; assim era preciso a todo custo
desenvolver a escola”.
Uma nova mudança aconteceu. As crianças mais velhas fo-
ram para a Vtoroy Ilinskiy Pereulok, em Moscou. Vinte crianças e um
pedagogo. As crianças mais novas permaneceram em Uspensk com
um número insuficiente de pedagogos. Mesmo que lá nada estivesse
arrumado, “mas o que fazer? Não há outra saída”, o deslocamento
foi efetuado. Conforme Pistrak, (Idem, p. 156), “o período de luta
pela existência da escola acabou. Começa um novo período, um pe-
ríodo de buscas pedagógicas mais profundas e construção pedagó-
gica sistemática”.
O novo período marca o outono de 1920-1923, no prédio na
Segunda Alameda Ilinskiy. A tarefa principal foi colocar em ordem
a vida regular da escola e o trabalho escolar. A oficina encontrava-
-se em estado inicial, envolvendo vinte crianças e um pedagogo.
Aqui tem início o 2º grau. Novas crianças integram-se ao núcleo
fundamental; o pequeno coletivo vindo de Uspensk absorve uma
quantidade duas vezes maior de noviços. Quanto aos pedagogos,
foram selecionados um a um, aptos para, ensinando, aprender por si
e procurar abrir caminhos novos.
Acrescenta Pistrak (2013, p. 157):
O grupo de estudantes era extremamente variável, heterogêneo
como qualquer outro grupo. Pelo seu conhecimento e desen-
volvimento, era preciso nivelar a massa de crianças, “refazer
conhecimentos”, “pôr remendos”. O trabalho escolar come-
ça com isso, mas ao mesmo tempo e imediatamente começam
também as buscas de um caminho real de concretização da liga-
ção com a vida externa e o trabalho. Como? Através da fábrica,
planta industrial, empresa.
241
que os estudantes não vão inutilmente à fábrica; o convite para que
eles continuem. A permanência dos estudantes na mesma empresa
possibilita o estabelecimento de laços sólidos, com a perspectiva de
aprofundar a essência do processo.
Nesta etapa experimental, o relato aqui exposto segue o cur-
so das considerações finais, de um processo de autoavaliação – das
precárias condições estruturais e ambientais, acima relatadas, até a
aprendizagem dos estudantes diante do trabalho regular e autônomo.
Os depoimentos das crianças sobre como a comuna é querida para
elas. Todavia, a experiência enfrentava novos desafios; não podia ser
diferente em um ambiente político revolucionário. A fome na Rússia
exigia que a comuna acolhesse novas crianças; as habitações estavam
lotadas, e o frio não era vencido facilmente. Todavia, segundo Pistrak
(2013, p. 158), “heroicamente a comuna supera todas as adversidades
e segue em frente em suas buscas”.
Os pedagogos consideram que a superação das adversidades
está relacionada à questão da autodireção e dos princípios básicos
que davam sustentabilidade à criação de novos caminhos. Esses tra-
çaram uma curva de crescimento que não foi diretamente para cima,
mas cresceu lentamente. Um novo dado apresentado no relato é a
introdução inesperada, na comuna escolar, da Nova Política Econô-
mica (NPE). Relata Pistrak (2013, p. 159): “nós, por inércia, vivendo
a época da Escola-Comuna de 1919-1920, não assimilamos o novo
fator da vida externa; tomados de surpresa, nós não pudemos encon-
trar imediatamente um lugar correto para ela”.
Esse fator externo reverte uma situação peculiar. Antes, todas
as crianças viviam na escola e seu lar era secundário. Com as mudan-
ças econômicas, a vida em casa era melhor do que na escola. Com
recursos escassos, foram obrigados a recusar o sustento de crianças
que tinham famílias e parentes. Essa situação causou discórdias, diz
o autor (2013, p. 159): “a fonte de entusiasmo para as crianças, que
antes era clara, rotineira, tornou-se nebulosa, ocultou-se em tarefas
cada vez mais complexas da construção revolucionária”. Mais uma
crise que, segundo o relato, foi superada lenta e persistentemente,
acreditando na correção dos princípios e das ideias já consolidadas.
Chega-se ao outono de 1922 com novo ânimo e dedicação ao
trabalho coletivo. Os grupos de estudantes estavam organizados em
primeiro e segundo grau. O 2º grau, ao longo de dois anos, fortale-
ceu-se e consolidou sua base material; o 1º grau permaneceu lutando
pela possibilidade de desenvolver o trabalho. Segue-se a necessidade
de um espaço com condições favoráveis à experiência que Uspensk
não oferecia para as crianças mais novas. Resolveram transferir o 1º
242
grau para Moscou e Lipovk. Um novo período organizacional foi
necessário para erguer a fazenda soviética abandonada por seis anos.
O trabalho com o 2º grau avançou satisfatoriamente. O lema prin-
cipal da União da Juventude Comunista – aprender – inculcou-se
inteiramente na consciência e vontade das crianças. Tem-se de con-
tê-las do zelo exagerado, mas isso é uma ótima base para o cresci-
mento da escola. Toma-se, também, a decisão de sair das paredes da
escola para defender e divulgar as ideias e os princípios já consoli-
dados.
A experiência indicara que as condições mais favoráveis pos-
sibilitariam a realização de um plano de trabalho mais amplo. Nesse
sentido, a comuna escolar encontrou na fazenda soviética de Lipovk
as condições materiais para realizar o trabalho com o 2º grau, base-
ado na economia rural. Transcrevemos o texto do próprio relatório
de Pistrak (2013, p. 161) sobre o plano de trabalho com a economia
campesina:
Basicamente consiste na criação em Lipovk de uma escola para
adolescentes que concluíram o 1º grau de quatro anos, princi-
palmente a juventude camponesa vizinha. Ela foi pensada como
uma escola camponesa, que introduz métodos novos e eleva-
dos de economia rural, que influencie socialmente, através das
crianças, o campesinato local, e lenta e persistentemente trans-
forme o dia a dia do camponês.
243
com menos erros e maior certeza, encontrar os caminhos ne-
cessários.
244
expectativa inicial era o fortalecimento da ditadura do proletariado
como o primeiro passo rumo ao socialismo. A escola experimental
conseguiu avançar em muitos problemas que a atualidade revolu-
cionária exigia: a questão da autodireção; a relação com a União da
Juventude Comunista da Rússia; a questão sobre o tamanho, o ca-
ráter e a organização do trabalho físico; a questão sobre o conteúdo
do ensino.
No breve histórico, acima esboçado, percebe-se a luta orgânica
e desbravadora para a criação da nova escola; uma reflexão contínua
sobre o fazer cotidiano adverso, que não possibilitou inicialmente o
trabalho pedagógico propriamente dito. Experiência que, segundo
Krupskaya (2013), atingiu soluções extremamente importantes para
os problemas da atualidade soviética. Essas escolas tinham como
finalidade criar coletivamente uma referência de educação, orienta-
da pelos princípios básicos da escola única do trabalho. Em suma,
construir uma escola para preparar os construtores da nova socie-
dade.
Referências
FREITAS, Luiz Carlos. A luta por uma pedagogia do meio. In: PISTRAK, Moi-
sey Mikhaylovich. A escola-comuna. 2. ed. São Paulo: Expressão Pop-
ular, 2013.
KRUPSKAYA, N. K. Prefácio da Edição Russa. In PISTRAK, Moisey Mikhay-
lovich. A escola-comuna. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2013.
LENINE, V. I. Obras Escolhidas em três tomos. Tomo 3. Tradução Instituto
de Marxismo-Leninismo. 2. ed. São Paulo: Editora Alfa-Omega, 2004.
PISTRAK, Moisey Mikhaylovich. A escola-comuna. 2. ed. São Paulo: Ex-
pressão Popular, 2013.
________. Fundamentos da Escola do Trabalho. 3. ed. São Paulo: Ex-
pressão Popular, 2011.
________. Ensaios sobre a Escola Politécnica. 1. ed. São Paulo: Expressão
Popular. 2015.
245
Pedagogia Histórico-Crítica: uma análise crítica
da sua estratégia política
Introdução
247
dos anos de 1970, sob a liderança de Dermeval Saviani (1944-). Na
atualidade, ampliou-se o grupo de intelectuais e educadores compro-
metidos com sua fundamentação, implantação e divulgação no meio
educacional, comprovando sua relevância para esta análise.
A pedagogia histórico-crítica assume um compromisso explí-
cito com a compreensão dos “[...] limites da educação vigente [...]” e
com a superação dos mesmos, “[...] por meio da formulação dos prin-
cípios, métodos e procedimentos práticos ligados tanto à organização
do sistema de ensino quanto ao desenvolvimento dos processos pedagógicos
[...]” (SAVIANI, 2003c, p. 119, grifos nossos) da educação formal.
Contrapondo-se às pedagogias liberais e às que consideram “críti-
co-reprodutivistas”, seus formuladores procuram intervir na trans-
formação da escola e da sociedade, e, para isto, também nas políticas
educacionais, com uma perspectiva dialética, que reivindicam estar
fundamentada na teoria marxista.
Este artigo objetiva analisar criticamente o projeto estratégico
da pedagogia histórico-crítica, identificando sua coerência interna e
seus desdobramentos políticos. Confronta-os com o movimento do
real, decorridos quase quarenta anos de sua história. Nos limites des-
ta discussão, amparadada no referencial teórico e político marxista,
privilegia-se a produção teórica de Saviani, considerando seus funda-
mentos e a materialidade em que foi produzida, tendo em vista que
ele é o autor matricial desta proposta até os dias atuais.
Preconiza-se que a pedagogia histórico-crítica inverte o movi-
mento em relação aos clássicos do marxismo, pois parte de uma de-
terminada concepção acerca das potencialidades da educação escolar
na sociedade capitalista para então analisar as condições reais e pro-
por sua estratégia política, comprometendo o projeto histórico socia-
lista com o qual se filia. Para demonstrar tais conclusões, na primei-
ra parte resgata-se o percurso teórico de Saviani e suas formulações
acerca da pedagogia histórico-crítica, situando-o brevemente diante
da conjuntura em que foi produzido. Identificam-se a seguir alguns
elementos do projeto político proposto, apreendendo suas formula-
ções estratégicas. Por fim, explicitam-se certos aspectos detectados
de seus limites e incongruências internas.
248
o esgotamento do período ditatorial burguês-militar4 (1964-1985) e
o ascenso das greves e movimentos organizados dos trabalhadores,
resultantes da crise mundial de superprodução do capital que se in-
tensificava e aprofundava as contradições inerentes a esta sociabili-
dade.
Foi neste ambiente que Saviani aderiu ao marxismo, adotan-
do-o como referencial teórico. Sua formação inicial estava assentada
em bases cristãs. Desde 1955, nos seminários católicos de Cuiabá –
MT e Campo Grande – MS, frequentou os cursos ginasial e colegial
(atuais anos finais do ensino fundamental e ensino médio), aprofun-
dando-se depois em Filosofia no Seminário de Aparecida do Nor-
te – SP. Formou-se em Filosofia em 1966, na PUC de São Paulo,
concluindo seu doutorado em Filosofia da Educação em 1971. Sua
atuação docente deu-se a partir de 1967, no ensino médio e superior
(BONAMINO, 1989). Neste percurso, filiou-se ao tomismo e tam-
bém à fenomenologia (PEREIRA, 2009).
Em 1978 Saviani passou a coordenar a pós-graduação em Fi-
losofia da Educação, na PUC de São Paulo, aglutinando pesquisa-
dores que se envolveram na elaboração da pedagogia histórico-críti-
ca. Seus resultados foram veiculados em eventos e artigos nos anos
de 1980 e posteriormente condensados em livros. Segundo Pereira
(2009), esta pós-graduação, em sua origem, não estava pautada no
referencial teórico marxista, nem mesmo seus docentes e estudan-
tes, incluindo o autor aqui analisado.
O próprio Saviani (2011b, p. 78) explicou sua transição teóri-
ca, indicando que até a segunda metade da década de 1970, seu “[...]
contato com o marxismo era muito incipiente5, alguns poucos tra-
balhos acadêmicos, sem maiores consequências”. A fenomenologia
o embasava, conduzindo-o a discussões em torno da liberdade e da
consciência humana, além de utilizar Paulo Freire. Apesar disto, Sa-
viani (2011a) considerou que teve propensão para a dialética desde o
início de sua carreira, já convergindo para a pedagogia histórico-crí-
4 Para Netto (2014, p. 83, grifos do autor), foi “[...] uma ditadura com indiscutível caráter de
classe, [...]”, visto que, “[...] nos seus procedimentos operativos e nas suas finalidades, serviu
à burguesia brasileira e aos seus sócios (as empresas imperialistas e os grandes proprietários
fundiários); [...]”. O termo “burguês-militar” visa explicitar o seu caráter de classe.
5 Em sua atividade na pós-graduação, iniciada em 1972, teve contato com textos acerca
da dialética, de Álvaro Vieira Pinto e Lefebvre. Foi apenas em 1978 que estudou o próprio
Marx: “[...] Contribuição para a crítica da economia política, com destaque para o tópico referente
ao ‘método da economia política’; O capital, além de A ideologia alemã e dos Manuscritos”
(SAVIANI, 2011b, p. 83).
249
tica, embora então não a tenha elaborado teoricamente. Ao citar um
texto seu6, de 1969, avaliou que ele foi “[...] uma primeira tentativa de
construção de uma teoria dialética da educação” (SAVIANI, 2011a,
p. 217).
Em 1987, ao prefaciar a 6ª edição da obra Educação brasileira:
estrutura e sistema7, Saviani (2005a) dispensou a necessidade de altera-
ções significativas no texto, após revisão atenta, atualizando apenas a
metodologia. Afirmou ter superado o método fenomenológico-dialé-
tico que a sustentava e aderido ao método dialético, mas considerou
necessário o destaque dado antes ao momento analítico-descritivo, a
fim de evitar a simplificação da dialética. Afirmou ter lido os Manuscri-
tos econômico-filosóficos e empreendido “[...] alguns estudos dialéticos da
educação brasileira”, embora não tivesse “[...] penetrado a fundo na
obra de Marx”. Admitiu ainda estar sob influência da fenomenologia,
por meio de autores como Sartre e Marcuse, embora considerasse
desnecessária então a “[...] agregação do prefixo ‘fenomenológico’.
Por isso afirmei ter superado, por incorporação e não por exclusão, a
perspectiva teórico-metodológica adotada” (SAVIANI, 2005a, n.p.).
Desde o final da década de 1970, autores da sociologia francesa
que infligiram duras críticas às funções reprodutoras da escola capi-
talista nos anos de 1960, tiveram ampla adesão no meio educacional.
Saviani (2003c) afirmou que, em 1978, em um Seminário de Educa-
ção realizado em Campinas, predominava a tendência baseada nestes
autores, que anos depois ele denominaria de “crítico-reprodutivis-
tas”. De seu ponto de vista, não havia ainda clara distinção entre esta
tendência e a histórico-crítica, sendo que o termo “dialética” gerava
dificuldades, estando associado a uma relação intersubjetiva, dialógica
e idealista.
De acordo com Saviani (2003c, p. 69), foi em 1977, após um
curso frequentado na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar),
que concluiu que autores como “[...] Bourdieu e Passeron não se en-
caixavam na concepção dialética” e, por isso, sua teoria deveria ser
250
denominada de “[...] vertente ‘sócio-lógica’, porque no fundo o que
eles pretendem fazer é uma lógica do social”. Preconizou depois
que os autores “crítico-reprodutivistas” não identificariam a contra-
dição na escola, apenas na sociedade, o que inferiu fundamentado
na sua leitura das obras de Vincent Petit e George Snyders.
Para elaborar uma nova proposta, o agrupamento reunido em
torno da pedagogia histórico-crítica se reportou ao marxismo. A
referência matricial para esse grupo, todavia, não foi Marx (1818-
1883), mas sim Gramsci (1891-1937), o que foi atestado por um de
seus membros, Nosella (2010). Categorias como hegemonia, socie-
dade civil e Estado ampliado foram apropriadas e se constituíram
em elemento fundamental de suas formulações8. Embora os estu-
dos fossem ricos e polêmicos, Nosella (2010, p. 192) avaliou depois
que: “[...] A contextualização histórica dos textos gramscianos, in-
felizmente, era escassa. Não houve contato algum com os Escritos
Políticos anteriores ao cárcere, nem era possível detectar os sérios
limites [...]” das edições, traduções e editorações disponíveis.
Para a análise crítica da elaboração inicial da pedagogia histó-
rico-crítica, considerou-se neste estudo as determinações próprias
daquela conjuntura para o pensamento educacional da esquerda.
Além das censuras impostas pelo regime ditatorial, que impactaram
no estudo das obras dos clássicos do marxismo, havia a condição da
formação cultural brasileira, solidamente amparada no humanismo
tradicional herdado da influência jesuítica. É sintomático o caso das
instituições confessionais, como a PUC de São Paulo, que foram
focos profícuos de resistência à ditadura e de formação de quadros
para os movimentos sociais. Segundo Cunha (apud HANDFAS,
2006), isso marcou a formação dos educadores, devido à hegemo-
nia política e ideológica da igreja católica no sistema e no corpo de
profissionais do ensino, ocasionando uma espécie de “messianismo
educacional”.
Um marco para a pedagogia histórico-crítica foi o ano de
1979, pois definiram-se então seus objetivos com a primeira turma
de doutorado da PUC de São Paulo. O problema central era superar
o “crítico-reprodutivismo” e a visão “politicista” da educação, para
criar alternativas à educação escolar.
8 Na graduação e pós-graduação do país proliferaram estes estudos, sendo que, “[...] na dé-
cada de 1980, entre os educadores ocorreu uma verdadeira ‘gramscimania’”. Por isso, “[...]
O grupo de educadores, ligado ao nome do Prof. Dermeval Saviani e que mais tarde torna-
ra-se um Movimento Nacional entre os pedagogos, denominado ‘Pedagogia Histórico-Crí-
tica’, inspirou-se claramente num marxismo ‘a La Gramsci’” (NOSELLA, 2010, p. 193).
251
A introdução preliminar da pedagogia histórico-crítica consta
em Escola e Democracia (SAVIANI, 2003a), publicada pela primeira
vez em 1983, hoje com mais de quarenta edições, contendo artigos
de 1980 a 1983. Nos termos do autor, este livro contém “[...] os pres-
supostos filosóficos, a proposta pedagógico-metodológica e o signi-
ficado político da pedagogia histórico-crítica” (SAVIANI, 2003c, p.
6). Outra obra de destaque, que deu continuidade e complementação
às análises anteriores, é Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproxima-
ções (SAVIANI, 2003c), editada em 1991, atualmente com mais de 10
edições e contendo em sua versão inicial artigos redigidos de 1983 a
1988.
Tendo em vista a comprovada influência e, consequentemen-
te, os impactos políticos da pedagogia histórico-crítica, gestada neste
ambiente intelectual e conjuntura, procede-se nos limites deste artigo
à exposição de alguns elementos de sua formulação estratégica.
252
Saviani (2003a, p. 57) explicitou depois que visava “[...] abrir
espaço para as forças emergentes da sociedade” e inserir a escola
“[...] no processo mais amplo de construção de uma nova socie-
dade”. Para isto, demarcou a pedagogia que esboçava, contrapon-
do-a às liberais: “Uma pedagogia revolucionária centra-se, pois, na
igualdade essencial entre os homens” (SAVIANI, 2003a, p. 65), não
apenas na formal.
Pretendia contribuir para superar a “marginalidade”, sem cair
no imobilismo, mas também sem a ingenuidade de acreditar no po-
der da escola para resolvê-la. Objetivava ofertar aos educadores “[...]
o exercício de um poder real, ainda que limitado” (SAVIANI, 2003a,
p. 31). Um dos fundamentos de sua análise escolar consistiu na lei-
tura de que, no interior da divisão de classes da sociedade capitalista,
a classe dominante se apoderava do saber e da cultura produzidos
pelos dominados, excluindo-os do acesso a estes bens.
Pautado neste pressuposto, relacionou em 1983 a posse ou
a ausência da cultura erudita com a democratização e a marginali-
zação social, respectivamente. Saviani (2003c, p. 22) concebia que
“[...] a restrição do acesso à cultura erudita conferirá aqueles que
dela se apropriam uma situação de privilégio”, enquanto que “[...] os
membros da população marginalizados da cultura letrada tenderão
a encará-la como uma potência estranha que os desarma e domina”.
Atribuiu assim à escola a função política de democratizar o
acesso aos conhecimentos, “[...] mesmo veiculando a própria cultura
burguesa, e instrumentalizando os elementos das camadas popula-
res no sentido da assimilação desses conteúdos” (SAVIANI, 2003a,
p. 55). A partir desta apropriação, eles conseguiriam defender seus
interesses, portanto, se fortaleceriam. A luta pela democracia ad-
quiriu relevância, sintonizada com o contexto mais amplo, contra o
regime ditatorial, o que se revela inclusive no título da obra matricial,
Escola e democracia.
Para evitar a identificação entre educação e política, embora
as considerasse inseparáveis, ressaltou a especificidade da educação,
relacionada à socialização dos conteúdos, pois seria “[...] realizan-
do-se na especificidade que lhe é própria que a educação cumpre
sua função política” (SAVIANI, 2003a, p. 88). Em outro momento,
Saviani (2003c) reafirmou esta convicção, preconizando que pela
competência técnica é que se realizava o compromisso político da
escola. Isto porque o horizonte político, por si, não era ainda a capa-
cidade de caminhar e esta dependia da competência técnica.
A atuação no interior da escola teve como elemento norteador
um novo método de ensino, que visava instrumentalizar os docen-
253
tes. Saviani (2003a) delineou cinco passos, considerando-os momen-
tos articulados de um movimento orgânico: o primeiro era a prática
social; o segundo a problematização, que apontaria as questões a se-
rem resolvidas no âmbito da prática social; o terceiro a instrumenta-
lização; o quarto a catarse e o quinto a prática social final. Quanto à
instrumentalização, Saviani (2003a, p. 71) explicou que consistia na
“[...] apropriação pelas camadas populares das ferramentas culturais
necessárias à luta social que travam diuturnamente para se libertar
das condições de exploração em que vivem”. A catarse representava
a efetiva incorporação dos instrumentos culturais, que se tornariam
elementos ativos de transformação social, consistindo no momento
culminante da relação pedagógica. Ela demarcava a passagem da sín-
crese à síntese, pela mediação da análise. Como efeito final, a prática
social não seria a mesma, pois o modo de se situar nela teria se alte-
rado qualitativamente.
O método de ensino9, criado desde 1969, foi adequado e apre-
sentado na forma de cinco passos, condizendo com a proposta “re-
volucionária” que teorizava agora. Explicou, no entanto, que o seu
critério de cientificidade fora retirado da concepção dialética de ciên-
cia de Marx (2003a).
Em 1983, as influências do marxismo na sua análise pedagógica
se delineavam mais explicitamente. Declarou que “[...] a educação é
um fenômeno próprio dos seres humanos”, sendo, “[...] ao mesmo
tempo, uma exigência do e para o processo de trabalho, bem como é,
ela própria, um processo de trabalho” (SAVIANI, 2003c, p. 12), não-
-material10. Ao discutir a escola, situou-a de forma “[...] privilegiada,
a partir da qual se pode detectar a dimensão pedagógica que subsiste
no interior da prática social global” (SAVIANI, 2003c, p. 14).
Saviani (2003c) relacionou a educação escolar com a alteração
das relações capitalistas, em 1985, estabelecendo um vínculo entre a
difusão do saber elaborado e a socialização dos meios de produção,
o que radicalizava a função que atribuía à escola diante do proje-
to socialista. Explicou que: “[...] a proposta de socialização do saber
elaborado é a tradução pedagógica do princípio mais geral da socia-
lização dos meios de produção”. Pedagogicamente, tratava-se “[...]
9 Indica-se a leitura da tese de Wihby (2018), intitulada O método de ensino da pedagogia histórico-
crítica: uma análise crítica, para o aprofundamento das discussões críticas acerca deste método
de ensino.
10 O debate polêmico no campo marxista, no que se refere à identificação da educação com o
processo de trabalho e sua classificação como trabalho não-material, pode ser acompanhado
em Lessa (2007), Lazarini (2010) e Saviani (2012).
254
de socializar o saber elaborado, pois este é um meio de produção”
(SAVIANI, 2003c, p. 83).
Argumentou, em Conferência de 1988, que a generalização da
instrução para a população “[...] contraria os interesses de estratifi-
cação de classes [...]”, daí decorrendo as tentativas de desvalorizar a
escola, “[...] cujo objetivo é reduzir o seu impacto em relação às exi-
gências de transformação da própria sociedade” (SAVIANI, 2003c,
p. 98).
Nesta mesma lógica analítica, preconizou em 1987 a adoção
da politecnia no ensino médio, sugerindo a introdução de oficinas
de madeira e de metal nas escolas, sustentando-se na experiência
russa de Pistrak (1888-1937)11. Isto estaria coerente com a condição
atingida no capitalismo, “[...] já detectando a tendência do desen-
volvimento para outro tipo de sociedade que corrija as distorções
atuais” (SAVIANI, 2003b, p. 139). Seu intuito era unir o trabalho
manual e o intelectual, possibilitando a compreensão da produção
da ciência, da natureza do trabalho e do sentido das diferentes es-
pecialidades.
Analisou também a contradição que concebia haver na so-
ciedade capitalista em relação à escola, expressa, por um lado, na
necessidade de se difundir os conhecimentos e avançar em seu do-
mínio, a fim de revolucionar as técnicas de produção, e, por outro,
na necessidade de impedir a difusão destes conhecimentos, já que
seriam meios de produção:
Na sociedade capitalista, a ciência é incorporada ao trabalho
produtivo, convertendo-se em potência material. O conheci-
mento se converte em força produtiva e, portanto, em meio de
produção. Assim, a contradição do capitalismo atravessa tam-
bém a questão relativa ao conhecimento: se essa sociedade é
baseada na propriedade privada dos meios de produção e se
a ciência, como conhecimento, é um meio de produção, deve-
ria ser propriedade privada da classe dominante. (SAVIANI,
2003b, p. 137).
11 Moisey Mikhaylovich Pistrak atuou em meio à experiência revolucionária russa do séc.
XX, envolvendo-se na reconstrução da sociedade e da educação. Durante a perseguição
stalinista, foi preso e fuzilado em 1937.
255
sua meta reorganizar o ensino, instrumentalizando os trabalhadores,
conscientizando-os e socializando o saber, concebido como um meio
de produção, o que, por si só, já seria revolucionário para Saviani.
Foi no interior deste projeto que preconizou a luta pela “pu-
blicização do Estado”, que consistiria em “[...] encaminhar a ação do
Estado para as iniciativas que dizem respeito ao interesse público”
(SAVIANI, 1989, p. 6). Analisou que, sob a égide do capital, o Estado
acabava sendo colocado a serviço dos interesses privados das classes
dominantes, sendo que no Brasil isto assumia vultos ainda maiores.
Para reverter este quadro e atingir a meta proposta, era necessário tra-
tar da “justiça tributária”, corrigindo o imposto de caráter regressivo,
no qual quem ganha menos paga mais. Isto viabilizaria uma arrecada-
ção de recursos suficientes para que o Estado cumprisse seus deveres
e priorizasse as políticas sociais, dentre estas a educação. Além deste
desafio, era preciso criar “mecanismos mais democráticos”, para que
as entidades da sociedade civil participassem da formulação das po-
líticas educacionais. A democratização contribuiria para um Estado
“mais justo”.
Saviani (2000) propugnava o “entusiasmo crítico” no trabalho
escolar, incitando os educadores a contribuírem na formulação de
políticas educacionais coadunadas com este projeto. Coerente com
suas convicções, o autor atuou incisivamente nas discussões para a
elaboração da nova Constituição Brasileira, de 1988, bem como das
demais normativas e políticas educacionais que passavam a ser deba-
tidas a partir da redemocratização12. Seu objetivo era possibilitar que
a crítica contestadora cedesse lugar à crítica superadora.
Nos anos de 1980, no âmbito da “transição gradual” do regime
ditatorial, houve eleições estaduais e municipais, nomeando-se go-
vernos classificados como democráticos e populares. A proposta da
pedagogia histórico-crítica foi adotada em alguns sistemas públicos
de ensino, como na prefeitura de Curitiba e nos estados do Paraná e
de São Paulo13. O próprio Saviani se inseriu na administração pública,
tendo ocupado o cargo de membro do Conselho Estadual de Educa-
ção (CEE) de São Paulo, no governo Franco Montoro (1983-1987),
em 1983, 1984 e 1985. A estratégia de “ocupação de espaços” no âm-
12 Sua participação ativa foi contínua e pode ser constatada na elaboração do projeto da nova
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), que seria aprovada depois com a
Lei nº 9.394/1996; nas posteriores críticas que realizou à mesma; bem como nas proposições
relativas ao Plano Nacional de Educação (PNE), sancionado depois na Lei nº 10.172/2001.
13 Tais experiências foram inspiradas nos postulados de Saviani, embora não se possa afir-
mar que tenham sido reflexos diretos deles.
256
bito do Estado se objetivava e ampliava as esperanças de um efeito
multiplicador para as novas ideias pedagógicas, que eram submeti-
das ao teste da prática efetiva.
O otimismo que acompanhou o agrupamento da pedagogia
histórico-crítica, reunido em torno de Saviani, foi, todavia, arrefeci-
do diante dos acontecimentos da década de 1990. Iniciava-se “[...]
uma nova fase em que a ‘realidade rebelde’ lançava uma ducha de
água fria no entusiasmo que acompanhou, no âmbito da comuni-
dade educacional, a formulação e as tentativas de implantação de
propostas pedagógicas críticas” (SAVIANI, 2007, p. 16).
O declínio das lutas proletárias e o avanço da ofensiva do ca-
pital, consubstanciados na reestruturação produtiva e nas reformas
políticas e educacionais de caráter neoliberal, empreendidas sob a
orientação dos organismos internacionais multilaterais, resultaram
na revisão da estratégia adotada. As esquerdas eram imobilizadas,
bem como as possibilidades vislumbradas pelas forças progressistas,
de conduzirem a nova LDBEN. Para Saviani (2004, p. 236), só res-
tava “[...] uma única alternativa: a estratégia da resistência ativa”, que
compreendia não apenas as críticas, mas a formulação de propos-
tas alternativas, além de uma organização coletiva. Manteve assim a
proposta política de “[...] ocupar os espaços deixados pelas diversas
lacunas ou omissões do texto da lei”.
Saviani (2004, p. 237) inferiu que a situação exigia “[...] altera-
ção nos conceitos que até então orientavam as forças de esquerda,
com a consequente alteração também nas formas de luta”. Ele se
referia ao conceito de Estado e de partido, que considerava estarem
se “alargando”, o que seria constatável com as ONG’s. Sugeriu re-
tomar a “metodologia gramsciana”, com os conceitos de “Estado
ampliado”, que articulava a sociedade política e a sociedade civil;
e de partido, também ampliado, que incluía o partido político e o
partido ideológico, este visando à hegemonia por intermédio dos
organismos da sociedade civil.
A abertura de perspectivas para a efetivação dessa possibilida-
de depende da nossa capacidade de forjar uma coesa vontade
política capaz de transpor os limites que marcam a conjuntura
presente. Enquanto prevalecer na política educacional a orien-
tação de caráter neoliberal, a estratégia da resistência ativa será
a nossa arma de luta. Com ela nos empenharemos em construir
uma nova relação hegemônica que viabilize as transformações
indispensáveis para adequar a educação às necessidades e aspi-
rações da população brasileira (SAVIANI, 2004, p. 238).
257
autor até a atualidade, demandando seu posicionamento diante das
reformas educacionais que eram conduzidas pelo Estado. Ao analisar
em 1998 as normativas legais que eram estabelecidas, indicou “[...] os
efeitos da determinação estrutural própria da forma social capitalista
sobre a política educacional como modalidade da política econômica
e a esta subordinada” (SAVIANI, 2002, p. 3). Na lógica de mercado
que imperava, os investimentos sociais eram considerados custos, por
isto, “[...] o Estado, submetido a essa mesma lógica, tenderá a atrofiar
a política social, subordinando-a, em qualquer circunstância, aos dita-
mes da política econômica” (SAVIANI, 2002, p. 4).
Afirmou que, para inverter isto: “Bastaria que a educação fosse
definida no âmbito governamental como prioridade número 1 [...]”
(SAVIANI, 2002, p. 156). Sua direção seria para a “racionalidade
social”, que envolvia o lema “Educação, Democracia e Qualidade Social”
(SAVIANI, 2002, p. 157, grifos do autor). O objetivo era a trans-
formação democrática “de fato”, que implicava em um projeto de
“desenvolvimento nacional” centrado no aperfeiçoamento humano,
não no mercado.
A luta, imediata, combateria a “falta de vontade política” do
governo, objetivando:
a) Ampliação dos recursos da área social visando equilibrá-la com
a área econômica. Isto implicará o aumento do poder de pressão
sobre o aparelho governamental através da organização e unifica-
ção dos movimentos populares.
258
Inferiu que, sem a educação, “[...] os indivíduos ficam excluídos” e
as empresas perdem produtividade, sendo “[...] tragadas na voragem
da competitividade” (SAVIANI, 2010c, p. 245). Assumindo isto, a
educação teria que ser priorizada na questão dos investimentos. Sa-
viani (2010c, p. 245) estava “[...] convencido de que o problema todo
se resume na questão da estratégia de desenvolvimento do país”.
Ao reafirmar esta proposta, Saviani (2008a, p. 324, grifos nos-
sos) justificou-a em 2007: “Trata-se de uma proposta ingênua, ro-
mântica? Não. Ela apenas extrai, com certo grau de radicalidade, as
consequências do discurso hoje dominante”, com “[...] uma pitada
de ironia na forma em que foi enunciada”. Na entrevista intitulada
Motor do desenvolvimento, de 2008, asseverou que a educação devia ser
o “[...] eixo do projeto de desenvolvimento nacional”, para bene-
ficiar outros setores. Para Saviani (2008b, p. 7), poderíamos assim
ter um ganho próximo ao da Coréia do Sul, que durante vinte anos
fez isso “[...] e se tornou um dos principais países, tanto no aspecto
educacional quanto no desenvolvimento econômico”.
Sustentou ainda que “todos” os recursos disponíveis deve-
riam ir para a educação, o que não prejudicaria outras áreas, “[...]
como saúde, segurança, estradas, desemprego, pobreza etc. Ao con-
trário, a educação será a via escolhida para atacar de frente, e simul-
taneamente, todos esses problemas” (SAVIANI, 2010c, p. 245). Isto
devido à ampliação do número de escolas, que absorveria todos os
estudantes, com contratação dos profissionais necessários, bem re-
munerados. Assim, milhares de empregos seriam criados, os alunos
seriam retirados das ruas e do assédio do tráfico de drogas, além de
promover o desenvolvimento econômico, ativando o comércio e a
indústria.
A relação da educação com a reestruturação capitalista tam-
bém foi alvo das análises do autor, que apontou desafios específicos
ao Brasil, ligados “[...] ao atraso em que se encontra a educação
pública em nosso país relativamente ao próprio desenvolvimento da
educação nas condições postas pela sociedade capitalista” (SAVIA-
NI, 2005b, p. 267).
É possível identificar em seus textos (SAVIANI, 2005b, 2010c,
2011b) distintas interpretações. De um lado, identificou relações en-
tre a “revolução microeletrônica” e a necessidade da escola unitá-
ria, da formação omnilateral, que só não se concretizava devido aos
entraves criados pelo capitalismo, mesmo tendo os empresários se
sensibilizado com esta necessidade. A tese do “saber” como “meio
de produção” justificava esta resistência, já que sua socialização en-
traria em contradição com a lógica do capital. A estratégia era resistir
259
e lutar, de forma organizada e consciente, o que exigia o concurso da
educação.
Em 2002, todavia, ao criticar o viés assistencialista das políti-
cas educacionais, inferiu que, ideologicamente, a educação era vista
como um custo desnecessário diante do alto grau de desenvolvimen-
to tecnológico, pois as máquinas fariam boa parte do trabalho e seu
gerenciamento demandaria poucos técnicos e intelectuais. O conhe-
cimento pragmático e o desenvolvimento da capacidade de adapta-
ção bastariam por isto, já que o fundamental era ser “empregável”.
Saviani (2010c, p. 170) alertou para não se ceder a esta “[...] onda até
certo ponto atraente”, resistindo ativamente para o aumento dos re-
cursos educacionais.
Os elementos investigados na produção de Saviani permitem
inferir que o projeto político da pedagogia histórico-crítica não so-
freu alterações substanciais ao longo de sua formulação14, mantendo-
-se a defesa da escola pública nos parâmetros originais, mesmo diante
da nova conjuntura. Diante da impossibilidade de reproduzir neste
artigo a totalidade do enunciado teórico do autor, ressalta-se que ele
frequentemente afirma a relação entre a educação e as relações de
produção, nos parâmetros do marxismo, concebendo-a como deter-
minada, de forma contraditória e não mecânica. Neste aspecto, há
total concordância com o seu posicionamento e destaca-se o avanço
proporcionado para o campo educacional com a inserção de tais dis-
cussões, ultrapassando o mero aspecto técnico e pedagógico.
Nos marcos da discussão aqui desenvolvida, priorizaram-se os
desdobramentos práticos de sua teoria, tendo em vista o objetivo
proposto. O que se inferiu foi que, ao aplicar a teoria na análise da
prática social e esboçar a sua estratégia política, tais fundamentos se
esvaem por vezes, introduzindo um viés ideológico que contradiz os
pressupostos marxistas, demarcando uma inconsistência teórica na
pedagogia histórico-crítica. A fim de evidenciar tais limites e contri-
buir para o debate e o avanço teórico, indispensáveis para a luta so-
cialista, procede-se a seguir à análise crítica de sua estratégia política.
260
vessou a análise da pedagogia histórico-crítica acerca da escola e
da realidade histórica, afetando sua adesão ao marxismo e, inevi-
tavelmente, a sua proposição estratégica. O conhecimento obtido
no âmbito escolar foi alçado à condição de revolucionário, já que
poderia alterar as relações produtivas e sociais, tendo em vista sua
identificação com os meios de produção.
Neste sentido, Saviani (2003a, 2003c) elaborou a pedagogia
histórico-crítica e, em seu interior, o método de ensino anterior-
mente descrito, para orientar a ação pedagógica nas escolas e assim
assegurar a socialização dos conhecimentos historicamente acumu-
lados. A investigação de Wihby (2018) demonstrou, todavia, que
também no método de ensino se evidenciam limites na apropriação
do marxismo por Saviani. Nos termos da mesma, “[...] embora o
autor utilize em seu método de ensino termos do arcabouço teórico
de Marx, ele não utiliza o arcabouço teórico de Marx, pois a raiz
de sua proposição está na fenomenologia, na metafísica, no idea-
lismo e especialmente no utopismo de Furter” (WIHBY, 2018, p.
385). Dentre suas implicações práticas, destacou o fato de que seu
método de ensino constitui um amálgama entre pesquisa, ensino e
aprendizagem15.
No que se refere ao conteúdo de seu projeto estratégico, foi
possível inferir que a defesa da escola pública adquiriu uma im-
portância “decisiva” e norteou toda a produção teórica de Savia-
ni, desde o final da década de 1970. É compreensível este desvio
ideológico em relação ao marxismo no período inicial, tendo em
vista o insuficiente acúmulo teórico obtido nas condições históricas
brasileiras. Naquele período, a apropriação da teoria marxista foi ou
por intermédio de seus comentadores, ou por uma leitura abstra-
ta e a-histórica dos clássicos. Em depoimentos de seus ex-alunos
de doutorado (HANDFAS, 2006; NOSELLA, 2010), comprovam-
-se os limites que havia na consistência teórica, pois o estudo dos
autores era pontual, de perspectiva doutrinária, com um método
abstrato, e amparado em um ingênuo otimismo político frente ao
momento de democratização.
Já ao final dos anos de 1980, entretanto, foram apontados
alguns limites. Rachi (1990) identificou a apreensão abstrata da ca-
tegoria “contradição”, marcada por uma ênfase “lógica”. A cons-
15 Como este não é o foco deste estudo, apontam-se apenas estas conclusões, por confir-
marem a assertiva quanto ao idealismo que perpassa esta teoria, estendendo-se inclusive
para o campo da prática pedagógica. Para aprofundar o assunto, recomenda-se a leitura de
Wihby (2018).
261
tatação óbvia da função escolar, de socializar conhecimentos, foi
acompanhada de uma excessiva confiança no seu papel transforma-
dor, concentrando-se nas suas possibilidades formais. Segundo Rachi
(1990, p. 281): “Nesse tratamento, sobra abuso na especulação sobre
o devir da realidade escolar e falta rigor de análise no andamento
objetivo da prática histórico-social”. Ele preconizou, portanto, que
Saviani “[...] poderia ser chamado de autor de uma ‘dialética do pen-
samento’, na acepção de que muitas de suas formulações, envolvendo
as categorias de realidade e possibilidade, estão assentadas na pura
lógica do pensamento” (RACHI, 1990, p. 250).
Na produção de Saviani, Vieira (1994, p. 70) também apreen-
deu que, “[...] nos momentos em que a história é requisitada ela apare-
ce como complemento ilustrativo do movimento realizado pela ideia
[...]”, o que exerce “[...] forte atração lógica sobre seus leitores”. As
contradições sociais são generalizadas, em distintos contextos, sendo
que o “[...] movimento histórico é organizado e disciplinado ao sabor
da engenharia lógica do autor e as categorias, que exerceriam a função
explicativa do movimento histórico, passam a ordenar o movimento
no seu ritmo e intensidade” (VIEIRA, 1994, p. 65).
Como resultado, sobrevalorizou-se a função transformadora
da escola, obtida por intermédio da “vontade” dos educadores, de
posse de uma teoria educacional adequada, diluindo assim sua ação
reprodutora. Mesmo afirmando reiteradamente, com base no marxis-
mo, ser a educação condicionada, determinada socialmente, Saviani
(2003a, p. 66) afirmou em relação ao seu papel: “Ainda que secundá-
rio, nem por isso deixa de ser instrumento importante e por vezes
decisivo no processo de transformação da sociedade”.
Tullio (1989), por sua vez, inferiu que as interpretações do au-
tor foram particularizadas, fechadas na análise do fenômeno educati-
vo, afetando a visão política. Bonamino (1989) corrobora tal assertiva
ao ponderar que “[...] Saviani nos oferecia sua visão da educação e
da escola como núcleo a partir do qual era possível revelar a com-
preensão política mais ampla das condições, estratégias e do sentido
dado ao processo de transformação social”, invertendo o percurso de
Gramsci, então sua matriz teórica.
De fato, o que se observou foi que categorias gramscianas,
como hegemonia, sociedade civil, guerra de posições e Estado am-
pliado, foram adequadas para defender a importância da escola pú-
blica no movimento de superação do capitalismo, sendo utilizadas
abstratamente. A concepção de hegemonia, por exemplo, foi tratada
por um viés iluminista e gnosiológico, secundarizando as relações so-
ciais de produção nas quais ela é gerada.
262
Ela foi relacionada ao plano da consciência, tornando-se pri-
mordial dominar o que os dominantes dominavam, o que seria pos-
sível obter pela escola. A relação entre o senso comum e a consciên-
cia filosófica adquiria a forma de uma “relação de hegemonia”, cujo
significado radicava na estrutura da sociedade, que era marcada pelo
antagonismo de classes. Esta relação, portanto, se dava na forma de
uma luta hegemônica.
[...] Luta hegemônica significa precisamente: processo de desar-
ticulação-rearticulação, isto é, trata-se de desarticular dos inte-
resses dominantes aqueles elementos que estão articulados em
torno deles, mas não são inerentes à ideologia dominante e rear-
ticulá-los em torno dos interesses populares, dando-lhes a con-
sistência, a coesão e a coerência de uma concepção de mundo
elaborada, vale dizer, de uma filosofia (SAVIANI, 2000, p. 3).
Para o autor, o problema que envolvia esta luta era que o pro-
letariado “[...] não pode se erigir em força hegemônica sem a eleva-
ção do nível cultural das massas” (SAVIANI, 2000, p. 3), por isto a
importância fundamental da educação. Para Saviani (2000, p. 194):
“A valorização da escola, então, teria de estar associada à aquisição
dos instrumentos capazes de elaborar e dar uma forma erudita à
cultura popular, forma esta que lhe permitiria disputar a hegemonia
com a cultura dominante”.
Fica explicitado aí que o fundamento da hegemonia, para o
autor, não é econômico, mas sim gnosiológico. Em oposição a tal
leitura, retoma-se a concepção dos clássicos. Marx (2010, p. 46) con-
cebia ser a autoconsciência inteligente insuficiente para uma revo-
lução social, pois esta necessita de “[...] um fundamento material”,
já que a “[...] teoria só se efetiva num povo na medida em que re-
presenta a concretização de suas necessidades”. Ao analisar o ame-
ricanismo e o fordismo, Gramsci (2001, p. 247-248) foi enfático ao
afirmar que é a base material que fundamenta a hegemonia, apoiada
na coerção e no consenso: “[...] A hegemonia nasce da fábrica e
necessita apenas, para ser exercida, de uma quantidade mínima de
intermediários profissionais da política e da ideologia”.
O fundamento material a que Marx se refere, bem como a
hegemonia que vem da fábrica, identificada por Gramsci, supera-
ram a perspectiva idealista. Para o marxismo, a hegemonia de uma
classe só é assegurada pelas bases materiais, e não por meio de uma
elaboração teórica superior. Esta também é importante, mas está
relacionada à existência concreta. Marx e Engels (2007, p. 47) preco-
nizaram ainda que “[...] ideias dominantes não são nada mais do que
263
a expressão ideal das relações materiais dominantes, são as relações
materiais dominantes apreendidas como ideias”.
A tese de que a formação da hegemonia do proletariado de-
pende da passagem do senso comum à consciência filosófica fica sem
sentido, portanto, se não vier acompanhada de transformações radi-
cais na materialidade objetiva da sociedade, ou seja, nas relações de
produção que garantem a sobrevivência desta forma social.
Se a leitura realizada neste estudo for procedente, é uma inver-
são idealista considerar que a elaboração teórica de outra forma de
existência é a condição para a classe trabalhadora obter a hegemonia
e assim transformar a base material da sociedade. Na teoria de Sa-
viani, mesmo quando procurou articular a objetividade histórica ao
processo de conquista e permanência da hegemonia de uma classe,
generalizou e adequou a realidade às formulações lógicas, configuran-
do o caráter a-histórico e gnosiológico da abordagem.
Como resultado, ele acabou atribuindo à educação escolar a
tarefa de desenvolver o pensamento, garantir a passagem do senso
comum à consciência filosófica, transformar a prática social, enfim,
um grande peso na tarefa de revolucionar a realidade histórica. As
categorias gramscianas acabaram sendo utilizadas de forma abstrata,
comprometendo a leitura da educação escolar, do real e também o
projeto político proposto16. O próprio Saviani (2010b, p. 19) concor-
dou que “[...] a leitura de Gramsci feita pelos educadores brasileiros
na década de 1980 foi a leitura possível nas condições históricas então
vividas e só no quadro dessas condições ela pode ser adequadamente
compreendida”. Coaduna-se com tal argumentação, por isso a neces-
sidade de datar historicamente sua produção.
O problema verificado, no entanto, é que tal leitura não foi
superada na sua produção mais recente. Apenas para fundamentar tal
assertiva, em meio a sua vasta produção citamos uma entrevista de
2009, em que Saviani (2011b) preconizou a necessidade de retomar
Gramsci e seus conceitos de Estado e de partido ampliados, diferen-
ciando o partido político do partido ideológico. Como este último
visava “[...] à hegemonia no seio da sociedade através dos organismos
da sociedade civil” e esse campo da hegemonia implicava uma rela-
ção pedagógica, “[...] a educação é chamada a desempenhar um papel
de transcendental importância” (SAVIANI, 2011b, p. 201, grifos nossos).
264
Isto porque considerava necessário articular a crítica à concepção do-
minante com a superação do senso comum, extraindo seu bom senso,
a fim de elaborar uma nova concepção de mundo.
No que se refere à estratégia política do período inicial, pode-
-se afirmar que foi marcada pelo “entusiasmo crítico” e resultou em
“[...] um ativismo educacional que se manifestou na sobrevalorização
do papel da escola” (HANDFAS, 2007/2008), na luta institucional e
na participação nas instâncias do Estado, em prol da democracia. Tal
posicionamento foi adotado em meio às lutas operárias e pode ser
identificado com a própria atitude da esquerda naquela conjuntura.
Foi na passagem da década de 1970 a 1980 que a mobilização dos
trabalhadores resultou na criação do Partido dos Trabalhadores (PT)
e da Central Única dos Trabalhadores (CUT).
Toledo (1994), ao analisar as consequências e transformações
no pensamento da esquerda marxista a partir dos anos de 1970, cons-
tatou que o resultado foi a reabilitação da questão da democracia des-
te período em diante. O problema, todavia, foi que sua defesa adquiria
então um valor estratégico, um fim em si mesma, não mais um valor
tático, privilegiando interlocutores como os socialdemocratas e os de-
mocratas radicais (liberais progressistas e marxistas antileninistas).
No caso da pedagogia histórico-crítica, privilegiou-se a leitura
de Gramsci, mas adequada de forma funcional à estratégia vislum-
brada. Nosella (2010, p. 195) corrobora esta hipótese ao explicar que
houve uma “moda gramsciana” devido à “abertura política”, que per-
mitiu estudos do marxismo nas escolas. Gramsci “serviu” às esquer-
das brasileiras.
[...] A particular concepção revolucionária de Gramsci, que pri-
vilegiava a ‘guerra de posições’ (guerra ideológica e de conven-
cimento) à ‘guerra de movimentos’ (guerrilhas e golpes de Es-
tado), se adequava cada vez melhor às esquerdas brasileiras que
abandonavam, a partir de meados dos anos 70, a experiência das
guerrilhas urbanas e rurais. Mais ainda: Gramsci se apresentava
aos pedagogos com uma imagem de marxista moderno, [...], um
educador humanista, [...]. Em certos círculos, Gramsci adquiria
até o perfil de um educador no sentido próprio do termo, isto é,
de um ‘pedagogo’ (NOSELLA, 2010, p. 195).
265
ministrada pelo Estado” (SAVIANI, 1987, p. 20). Com tal intento,
preconizou um duplo e concomitante movimento: os representantes
populares deviam exercer controle severo sobre as verbas públicas e o
ensino ministrado pelo Estado; além de suas organizações desenvolve-
rem projetos educativos inteiramente autônomos em face do Estado.
Há nesta proposição alguns aspectos preocupantes, dentre eles,
a transposição a-histórica e a sobreposição das estratégias políticas de
Gramsci e de Marx, constituídas em contextos socioeconômicos e po-
líticos bastante distintos, para a realidade brasileira. Outro aspecto veri-
ficado é a alusão à sociedade civil, que estaria representada apenas pelos
interesses populares, em detrimento da incisiva presença das classes
dominantes. Além disto, ela seria dotada de condições de controle da
educação formal, instituindo na escola pública um projeto educativo
voltado para as massas, contra os interesses burgueses.
A mediação do Estado também foi tratada de forma problemáti-
ca em relação à teoria marxista, levando a proposições de sua “publici-
zação”. Incitando à luta para que o país assumisse desde já o “princípio
republicano” da educação como dever do Estado, Saviani (2010d, p.
41) avaliou que “[...] essa mesma sociedade, em seu sentido republica-
no, estabeleceu a distinção entre as esferas pública e privada gerando a
expectativa de que o público, por estar referido ao bem comum, à coisa
pública [...], deveria sempre prevalecer sobre o privado”. Diante disto,
direcionou a luta no âmbito da política educacional: “[...] Republica-
nizando a educação, estaremos radicalizando uma das promessas da
burguesia liberal e, com isso, explorando seu caráter contraditório ten-
do em vista a superação dessa forma social” (SAVIANI, 2010d, p. 41).
Em 1998, ao apresentar uma alternativa ao Plano Nacional de
Educação (PNE), Saviani (2002) reconheceu que as políticas sociais
eram subordinadas aos interesses econômicos, obedecendo à lógica do
mercado. Indicou então que isto só poderia ser rompido de um modo:
tomando a “decisão histórica” de investir mais em educação. Como o
governo não tinha “vontade política” para tomar esta decisão, era pre-
ciso reagir com a “resistência ativa”. Apesar de afirmar que só com o
socialismo haveria uma solução definitiva, propôs a luta pela “raciona-
lidade social”, pela democracia “de fato” e por um “desenvolvimento
nacional para o homem, não para o mercado” (SAVIANI, 2002). Para
superar o capitalismo, considerou indispensável lutar com os seguintes
objetivos: equilibrar as áreas social e econômica, por meio da pressão
popular; substituir o neoliberalismo por políticas públicas do Estado; e
desatrelar as políticas sociais da economia.
Constata-se a supervalorização da participação política no in-
terior do Estado burguês, em detrimento da consideração da deter-
266
minação estrutural do capital, com o predomínio da ilusão de que é
possível alterar substantivamente o Estado no âmbito do capitalismo,
subordinando a economia às necessidades sociais. Seu caráter de clas-
se foi relegado a segundo plano, explicitando outra incoerência teórica
em relação ao marxismo.
O projeto proposto concebe que basta a participação demo-
crática, desde que seja uma democracia “de fato”, para que o Estado
burguês modifique seus objetivos, deixe de servir ao capital e priorize
as necessidades da humanidade, tornando-se mais “justo”. É o que se
deduz das análises realizadas, em que a democracia viabiliza a constru-
ção de outra ordem social. Isto fica ainda mais visível quando o autor
indica, reiteradamente, que o maior impedimento para que as deseja-
das transformações ocorressem era a “falta de vontade política”.
A crítica marxiana ao operário inglês John Weston, integrante
da Primeira Internacional, que também atribuía à vontade dos capi-
talistas o aumento ou a diminuição dos salários, torna-se procedente
neste caso. Marx (apud LAZARINI, 2010, p. 459) afirmou a necessi-
dade de “[...] ir além dos domínios da vontade [...]”, pois “[...] o que
temos a fazer não é divagar acerca da sua vontade, mas investigar o
seu poder, os limites desse poder e o caráter desses limites”. A raiz
explicativa desta vontade só pode ser encontrada nas condições obje-
tivas das relações sociais de produção capitalistas.
A tentativa de aperfeiçoar o Estado para construir uma socieda-
de mais justa, elaborar políticas e programas sociais, para Tonet (2010,
p. 24, grifos do autor), é um equívoco frequente que a esquerda tem
cometido, “[...] apostando em que o seu Estado e as suas políticas so-
ciais serão melhores do que o Estado e as políticas sociais dos outros”.
Na análise aqui exposta, considera-se que esta foi a forma en-
contrada para resolver de modo pragmático e imediato o problema da
escola, forçando seu caráter social transformador. A defesa da escola
pública adquiriu centralidade no projeto estratégico de Saviani, em
detrimento da leitura do real e da proposição estratégica. O resulta-
do foi uma superestimação das possibilidades da escola pública e das
políticas educacionais, frente às demais lutas sociais necessárias para a
superação da ordem social do capital, bem como a adequação da leitu-
ra do movimento do real e das estratégias políticas a esta perspectiva.
Isto comprometeu seriamente a compreensão da relação so-
cial do capital, cujos limites e equívocos foram constatados por La-
zarini (2010), de forma consistente. Ele problematizou a tese de que
o saber seria um meio de produção e/ou força produtiva, indistin-
tamente, identificando que ela permaneceu no constructo teórico
da pedagogia histórico-crítica. Considera-se que esta tese ultrapassa
267
os limites da análise centrada no aspecto político dos problemas, mas
está pautada em um pressuposto fundamental problemático, pois
apreende a essência da contradição capitalista no âmbito ideológico.
O conceito de meio de produção descola-se da teoria de Marx
(1985), que no capítulo V de “O Capital” explicita detalhadamente o
processo de trabalho e, com ele, os meios de produção. Ele analisou
“[...] o processo inteiro do ponto de vista de seu resultado, do pro-
duto”, quando então “[...] aparecem ambos, meio e objeto de trabalho, como
meios de produção”. Além disto, afirmou que produtos de processo de
trabalho anteriores podem entrar num processo de trabalho como
meios de produção. “O mesmo valor de uso constitui o produto des-
se trabalho, e o meio de produção daquele. Produtos são, por isso,
não só resultados, mas ao mesmo tempo condições do processo de
trabalho” (MARX, 1985, p. 151). Meios de produção são, na obra
marxiana, os objetos e os meios de trabalho, condições objetivas que
se incorporam ao trabalho vivo do homem no processo de trabalho.
Concebe-se, portanto, que “[...] o conhecimento é condição sine qua
non para a fabricação de qualquer meio de produção, mas não se iden-
tifica com ele, não é a mesma coisa” (FAVARO; TUMOLO, 2016, p.
568).
Lazarini (2010), ao detectar tal problema no interior da teoria
de Saviani, também chamou a atenção para a distinção feita por Marx
entre as forças produtivas e os meios de produção de uma sociedade,
explicando a importância do entendimento desta questão: “[...] trata-
-se de definições que versam sobre categorias econômicas decisivas
que explicam as raízes e o desenvolvimento da relação social capital
e precisam ser apreendidas inequivocamente” (LAZARINI, 2010, p.
278), para não comprometer a leitura do movimento real. A compre-
ensão histórica e social é prejudicada em uma análise infundada e traz
desdobramentos problemáticos, afetando a capacidade de intervir na
relação capitalista.
Estes equívocos na análise do capital, em relação ao referencial
marxista, se estendem também à questão da politecnia. Nesta pers-
pectiva, sobressai o aspecto gnosiológico na estratégia a ser adotada,
pois o entendimento de como a ciência foi incorporada no processo
de trabalho, nas diferentes especialidades, permitiria apreender a ló-
gica interna da relação do capital. A compreensão das relações me-
diadas pelo capital, no caso da análise do processo de trabalho, ficou
restrita à categoria “trabalho concreto”.
Tumolo (1997) foi assertivo quanto ao emprego de um novo
enfoque metodológico nas abordagens sobre a relação entre a educa-
ção e as relações de produção. Depois de esclarecer que não via equí-
268
vocos nas análises que empregavam a categoria “trabalho concreto”
– já que eram importantes e trouxeram contribuições explicativas
– explicitou seus limites, por oferecerem apenas uma apreensão
parcial e precária da realidade. Para captar a essência da relação so-
cial do capital, seria imprescindível avançar e apreender também as
complexas e históricas categorias de “trabalho abstrato” e “trabalho
produtivo de capital”.
O resultado destes limites na produção de Saviani foi a trans-
posição anacrônica das proposições de Marx e de Pistrak em relação
à politecnia, advindas de tempos e contextos distintos, para a reali-
dade brasileira atual, comprometendo o teor das propostas políticas.
Por fim, a proposição da luta pela efetivação da educação
como eixo do desenvolvimento econômico também demonstra in-
coerências teóricas diante do marxismo, pois sugere a possibilidade
de, por esta via, sem exigir a superação radical do capital, subverter
a lógica inerente a esta relação, beneficiando a humanidade. Com
base nesta suposição de Saviani (2010a), indaga-se se o desenvolvi-
mento obtido com a priorização dos investimentos na educação não
seria o capitalista, pois proporcionaria o aumento do consumo, de
empregos, a distribuição de renda, além da resolução de problemas
ambientais e sociais, como a segurança.
Sua proposta não conduziria à armadilha de propugnar a uti-
lização da educação como estratégia para corrigir os efeitos e as
contradições inerentes à relação do capital, esta incontrolável e in-
saciável, nos termos de Mészáros (2008)? No interior do marxismo,
desde Marx até “[...] os principais pensadores-militantes marxistas”
que investigaram o modo de produção capitalista, “[...] suas conclu-
sões apontam numa direção diametralmente oposta àquela desejada
por Saviani” (FAVARO; TUMOLO, 2016, p. 568), permitindo ques-
tionar aqui o sentido da sua proposta e seu significado político para
a luta de classes.
Considerações Finais
269
É no intuito de avançar no debate do campo marxista que esta
análise crítica foi realizada. A contribuição histórica de Saviani e da
pedagogia histórico-crítica são inegáveis e marcaram as discussões do
campo educacional, inserindo categorias e análises marxistas. A pro-
dução do conhecimento, não obstante, necessita ser continuamente
retomada e criticamente analisada à luz do movimento do real, sob
o risco de reduzir-se à doutrinação, opondo-se ao caráter histórico e
dinâmico que demarca o marxismo. O que justifica esta atitude não é
a necessidade teórica, mas sim prática, pois trata-se da adoção de uma
determinada direção política para a luta socialista.
No caso da pedagogia histórico-crítica, analisada a partir da
produção de Saviani, constatou-se uma inversão na condução do
projeto estratégico em relação aos seus autores matriciais, Marx e
Gramsci. Ambos discutiram a educação no interior de um projeto
estratégico mais amplo, após a apreensão da conjuntura no interior
da totalidade social. Ao captarem as contradições reais, apresentaram
a proposição de uma determinada estratégia para a realidade em que
viviam. Suas proposições políticas e educacionais só podem ser con-
sideradas neste aspecto, sob o risco de realizar-se uma transposição
a-histórica, resultando em um projeto anacrônico, sem correspon-
dência com a realidade.
A pedagogia histórico-crítica inverteu o percurso ao centrali-
zar as discussões na escola pública, aplicando-lhe uma interpretação
formal e generalista acerca de suas contradições, desvinculando-se do
movimento do real. A partir disso formulou o “dever ser” da esco-
la brasileira, sobrevalorizando sua função no projeto revolucionário.
Desta forma, a realidade acabou invariavelmente sendo adequada às
proposições acerca das possibilidades da escola pública, tendo como
produto um projeto estratégico centrado na atuação no interior do
Estado capitalista, efetivado com a ampliação da democracia, o que
resultaria na inversão de suas funções. A meta seria fortalecer as po-
líticas sociais e assim “[...] utilizar o Estado como instrumento de
neutralização do processo de apropriação privada dos bens social-
mente produzidos”, sendo que, desta forma, “[...] tal luta aponta na
direção da socialização da economia, portanto, no limite, é a questão
da superação do capitalismo que está sendo posta (SAVIANI, 2010a,
p. 254-255). O socialismo resultaria desta estratégia, em detrimento
da revolução preconizada por Marx e Gramsci.
Nesta análise crítica, conclui-se com a necessidade de revisão
desta teoria e, consequentemente, de seu projeto estratégico. Isto
porque ela acaba por distanciar-se do referencial marxista ao adotar
análises abstratas e a-históricas, comprometendo a tarefa revolucio-
270
nária de fundar uma nova ordem social, que supere a propriedade
privada, o que não pode ser obtido com o consentimento do Estado
burguês. A educação escolar pode e deve ser acionada para contri-
buir nesta possibilidade aberta pela história, mas não como estraté-
gia decisiva, pois ela é apenas um dos complexos da superestrutura.
O desafio está posto para a classe como um todo, por isto o balanço
crítico da teoria é fundamental, sendo tarefa permanente de todos
aqueles comprometidos com um novo projeto societal.
Referências
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