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Lídia

Lídia era bonita porque tinha um nome bonito e porque a uma história de Natal convém uma
menina bonita. Vivia num apartamento muito alto, voltado para o mar. Tinha um quarto onde
dormia, um quarto onde estudava e um quarto onde brincava. Este era o mais bonito de
todos. Tinha imensos brinquedos vindos das mais diversas partes do mundo. Tinha brinquedos
com música dentro, daquela música duma melodia finíssima e límpida, como uma filigrana.
Tinha brinquedos de onde saía uma música que parecia vir de dentro da terra, espessa,
distante, quase triste. Tinha brinquedos que exalavam música como se nascesse nas altas
montanhas, rarefeita e leve, trazida em asas de condor.

Todos estes brinquedos alegravam Lídia que, muitas vezes, chamava os seus amigos e, no fim
da escola, ficavam ali a brincar, a olhar o mar e a ouvir aquelas músicas que saíam de dentro
dos brinquedos.

Os pais de Lídia eram viajantes e raramente estavam em casa. Aliás, a sua casa era o avião,
tantas as vezes que voavam de cidade para cidade, de continente para continente. Mas quase
todos os dias telefonavam a Lídia, perguntando se estava bem e prometendo mais um
presente para o regresso. Lídia ficava feliz com os telefonemas, mas quando desligava o
telefone, pensava: “Eu gostava tanto de ter os meus pais sempre à minha beira. Gostava tanto
que os meus amigos os conhecessem melhor. Gostava tanto de adormecer a seu lado ou
acordar com os seus beijos…”

E assim ficava muito tempo suspensa na recordação dos pais. Uma vez ou outra não conseguia
evitar uma lágrima mais atrevida. Mas tudo passava e quando os pais regressavam, Lídia
matava as saudades, abraçava-os muito, ia com eles jantar fora ou a casa de algum amigo. Só
não gostava quando esses encontros eram com pessoas que chegavam sempre atrasadas,
passavam a refeição a falar pelo telemóvel e não lhe ligavam importância nenhuma. Se calhar
não tinham filhos nem podiam perder tempo com as crianças. Eram homens de negócios.

Regressavam a casa e, logo de seguida, novamente tinham de partir.

— Amanhã sairemos cedo para um país distante…

— Que país é esse? — perguntava Lídia.


— É um país onde há muitas crianças pelas ruas: umas a trabalhar, outras a mendigar, outras a
olhar para quem passa. É um país muito grande e muito pobre. Os meninos não têm casa
como a nossa, nem escola, nem brinquedos.

— E pais, têm pais? — perguntou Lídia.

— Muitos têm pais, mas são tão pobres, tão desprezados pela vida, que é como se não
tivessem.

— Mas eu pensei que vocês só faziam negócios com países ricos, que com os pobres não se
negoceia…

— Também fazemos negócios com os ricos, mas, negociando com os pobres, podemos ganhar
mais dinheiro, e assim tu terás sempre mais e mais brinquedos.

No meio das conversas, Lídia acabava por adormecer e de manhã, quando acordava, já estava
a casa novamente vazia. O que lhe valia é que tinha muitos amigos, com os quais ia tornando
menos duras as prolongadas ausências dos pais. Mas o pior foi quando, ao aproximar-se o
Natal, Lídia soube pela mãe que tinham uma viagem importantíssima. Por isso não podiam
passá-lo em casa.

— Mas nesse país, as pessoas fazem negócios no dia de Natal? — perguntou Lídia.

— Sabes — respondeu-lhe o pai — nesse país o Natal é um dia como outro qualquer. As
pessoas têm outros costumes, outra cultura, outra religião.

— Eu pensei que o Natal era Natal em todo o mundo… — disse Lídia com desencanto.

A conversa ficou por ali. Mas Lídia, apesar da tristeza, começou a sonhar com a noite de Natal
em casa dos avós. Viriam os primos: a Teresa, a Helena, o Miguel, a Ana e o Luís. Lídia queria
fazer-lhes uma surpresa.

Pensou durante alguns dias e, uma noite, teve uma ideia: “Já sei. Vou fazer um teatro em
verso.”Lídia gostava de escrever versos e foi escrevendo no seu caderno os versos para o
presépio. Mas não os mostrou a ninguém para poder fazer uma surpresa.

Quando chegou a noite de Natal, toda a família se juntou em casa dos avós. Era uma casa
muito grande com um terreiro cheio de árvores, umas que tinham folhas todo o ano, outras
que no Inverno ficavam todas despidas e à noite pareciam fantasmas gigantes com uma só
perna e muitos braços. Entre as árvores havia canteiros de arbustos e plantas. A noite estava
de tempestade: a chuva e o vento pareciam dançar uma dança violenta e desconcertada. Os
ciprestes que estavam nos cantos do terreiro vergavam-se tanto que pareciam bailarinos em
fúria. Mas, na alegria daquela noite, ninguém ligava nada à tempestade.

A consoada era na sala maior: uma sala cheia de brilhos que, reflectidos no espelho ao fundo,
a tornavam ainda mais brilhante. Quando a porta de vai-e-vem que dava para a copa se abria,
vinham os aromas do Natal e via-se a azáfama das pessoas que estavam na copa e na cozinha e
andavam de lado para lado.

Quando todos já tinham consoado, Lídia chamou os primos ao andar de cima e explicou-lhes o
seu teatro de verso.

— Todos têm de decorar o seu verso — disse.

Seguiu-se um grande alvoroço com cada um a disputar o seu verso preferido. Quando
chegaram a acordo, ensaiaram durante algum tempo e, por fim, desceram, cada um muito
senhor do seu papel.

Puseram-se por detrás de um biombo que havia na sala e Lídia pediu silêncio.

— Senhoras e senhores, vamos apresentar: Versos para o Presépio. Ouviram-se palmas, muita


excitação e depois fez-se silêncio.

No rosto de todos havia um sorriso de felicidade e curiosidade. Cada um foi saindo na sua vez
e dizendo o verso que lhe competia:

Vejo no céu uma estrela


Muito bela.
Navega num mar de prata
Vou com ela.
O seu destino é Belém
Vou também.
Levo flores neste raminho
Para o Menino.
Eu levo um brinquedinho
Para o Menino.
Eu não tenho que levar
Mas vou e oferecerei
Estes versos de cantar.

E todos remataram em coro:


Com as flores e o brinquedo
E estes versos de cantar;
Com a estrela sobre a gruta
E os pastores a dançar,
Meu Menino de Belém
Dança connosco também.

As palmas encheram a sala e parece que os seus brilhos se multiplicavam, dançando nas
paredes, no ar, em todos os sítios. Se não fosse a ventania que atirava a chuva contra as portas
e as janelas, todos pensariam que, lá fora, o céu era realmente um mar de prata, cheio de
estrelas e calmaria.
Ana, que era a mais pequena, não se cansava de saltar, enquanto repetia o seu verso: vou com
ela…vou com ela…vou com ela…

Durante um tempo manteve-se este ambiente de excitação e alegria. Tanto mais que, de
seguida, foi a distribuição das prendas. Da árvore de Natal cada um foi recebendo os seus
presentes: jogos, bonecas, livros de histórias, puzzles, carros telecomandados e até um
computador. De todos os presentes que recebeu, Lídia gostou sobretudo do que lhe foi
deixado pelos pais: um presépio esculpido em madeira com um Menino negro, sorridente e
acariciando o focinho do burro que lhe estava ao pé. Lídia sempre vira o Menino Jesus, branco,
deitado nas palhas. Aquela imagem trouxe-lhe à lembrança os meninos negros que tantas
vezes via na televisão, esqueléticos, de grandes ventres e um olhar raso de resignação, um
olhar de quem foi vencido pela humilhação da fome e do desprezo. Lídia como que ficou
ausente da sala, alheia à excitação geral.

Entretanto, veio uma ordem para os meninos se irem deitar. Contrafeitos, lá foram subindo
com os seus presentes. Aos poucos, o silêncio foi tomando toda a casa.

Lídia não tinha sono. Quando entrou no seu quarto, sentou-se junto à janela, abriu as
portadas, puxou a cortina, colocou o presépio no peitoril e ficou a olhar a tempestade. O vento
continuava a agitar as árvores com violência, soltando gemidos tremendos e esmagando a
chuva contra as paredes, os muros, as janelas. Mais ao longe, o mar rosnava feroz. Mas,
mesmo assim, a sua voz tinha beleza, uma beleza inexplicável.

Lídia encostou o rosto na vidraça para sentir a fúria da tempestade. E pensou nos pais. E
pensou nos meninos a quem a miséria roubou o Natal. E pensou que também na sua cidade
havia meninos pobres. Mas moravam do outro lado da cidade. E teve vontade de fazer como a
menina que conhecia de uma história. Chamava-se Joana e, na noite de Natal, foi levar os
brinquedos que recebera ao seu amigo Manuel, que morava do outro lado do pinhal e não ia
ter prendas na noite de Natal [A Noite de Natal, Sophia de Mello Breyner Andresen]. Mas Lídia
não tinha nenhum amigo pobre. Na sua escola não havia meninos pobres. No seu prédio não
havia meninos pobres. No seu bairro não havia meninos pobres. Lídia só conhecia os meninos
pobres de que lhe falavam os pais, ou os que via na televisão, ou os que moravam do outro
lado da cidade, junto ao rio, ou os que, no Verão, vinham arrumar automóveis na praia que
havia em frente à sua casa.

Lídia estava muito triste por não poder vencer esta distância entre si e os meninos pobres e
por nada poder fazer para alterar a ordem do mundo. E perguntou-se: “Será que os pobres
hão-de ser sempre pobres…?” Desencostou o rosto da vidraça e pegou no presépio.
Aconchegou-o no colo e acariciou o Menino. Do andar de baixo vinha um ruído distante de
talheres e cristais e vozes indistintas. Mas novamente se encostou à janela a ver, ouvir e sentir
a tempestade. E, embalada na música da tempestade, Lídia começou a sentir sono. Levantou-
se da cadeira, correu a cortina, fechou as portadas, beijou o seu Menino negro, deitou-se e
adormeceu.

Natal de 1996

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