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Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)

Departamento de História da Arte


Disciplina “Arte no Brasil I”
Gabriela Lima Lira, 2º Semestre

Reflexões sobre o preservar: O quê, porquê e para quem?

Aproximadamente 60 anos antes do cantor e compositor Gilberto Gil publicar a


música “Aquele abraço”, que celebra em seus versos a vivência carioca numa busca
de reafirmação da memória e cultura, em meio ao conturbado cenário sociopolítico
ocasionado pela ditadura militar (1964-1985), é montado o então edifício imigrante
conhecido por “Palácio Monroe”, no fim da Avenida Central do Rio de Janeiro.
Inicialmente projetada para a feira de Saint Louis no estado do Missouri, que celebrava
o centenário da compra da Louisiana pelos Estados Unidos, e posteriormente
desmontada, a construção chega em território nacional no ano de 1905, e marca não
somente uma trajetória peculiar na história da arquitetura local, como a busca da
identidade brasileira em meio às influências que recebia. (Atique, 2013).
O edifício contava, em sua estrutura e aparência, com características que
remetiam tanto aos moldes franceses, quanto aos estadunidenses. Nas palavras de
Atique (2013), “Era o Brasil procurando um ‘lugar’ entre a América e a Europa”. Seu
ecletismo era apreciado por uma parte da população, e chegou a entrar em um
documento de 1972 proposto por Paulo Santos, que indicava a urgência de tombá-lo
para fins de preservação. No entanto, o edifício não agradava a todos, e
posteriormente recebeu o apelido de “monstrengo arquitetônico” pelo jornal O Globo,
em 1975. (Atique, 2016). Após uma longa disputa entre o preservar e o depredar, o
edifício se despede do Rio de Janeiro em 1976, sendo substituído por um
estacionamento.
O que, portanto, explicaria o curso singular que ergueu, modificou e pôs abaixo
o Palácio Monroe? Quais são os fatores que implicaram a influência do contexto
político e a relação do Jornal o Globo para a demolição de algo tão significativo para
uma parte da população? E do outro lado, o que motivou a indignação popular
recorrente da queda do edifício imigrante? Neste ensaio, não buscarei responder
perguntas, mas sim considerar eventos da atualidade em meio ao cenário da
preservação e anti-preservação, apontando a influência da internet para o
fortalecimento do debate.
Em um mundo contemporâneo envolvido por avanços tecnológicos, onde
usuários da web, ainda ressentidos pelo trauma que se estabeleceu com a demolição
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do Palácio Monroe, abrem espaços para discutir, expressar opiniões e propor
maneiras de solucionar uma reconstrução do edifício (ATIQUE, 2016), as
controvérsias que tangem a ideia de preservação de uma obra ainda se perpetuam
através de novos interesses, tal qual ocorreram durante os anos em que se debatia o
“tombamento ou demolição” por políticos, administradores, arquitetos, professores,
historiadores e outros, em publicações feitas pelo jornal O Globo.
Através das recentes polêmicas envolvendo a obra “Fumeur V” do pintor
cubista espanhol Pablo Picasso, pude observar outra versão, uma contemporânea, do
debate sobre preservar. De acordo com a revista Exame, o desenho em questão
tratava-se de uma gravura adquirida por um coletivo artístico no leilão Christie’s, a
proposta era transformá-lo em um Non Fungible Token, e para cumprir tal propósito o
grupo decidiu incendiar a obra, apontando uma “destruição criativa”, onde a obra seria
“imortalizada” através do gesto. Em termos práticos, a materialidade do desenho de
Picasso converteu-se em cinzas, resultando nas peças de NFT “Picasso queimado I”
e “Picasso queimado II”.

“The Burned Picasso I (Fumeur V)” in: Artequeacontece.com.br


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“The Burned Picasso II”, 2021. In: Artequeacontece.com.br

O ato dividiu opiniões entre usuários das redes sociais: o que para alguns
representa uma revolução fantástica no Mercado de Arte, para outros é desrespeitoso
e absurdo. O site “Arte que Acontece” já havia publicado em março de 2021, uma
matéria abordando a questão da NFT-Art.

O NFT nada mais é que o tipo de código de verificação (token) que é


permanentemente vinculado à obra de arte. Ele é, portanto, um ativo único
que representa a propriedade e autenticidade das artes digitais (como são os
certificados e assinaturas dos artistas em pinturas, por exemplo), tornando
possível negociá-las com segurança por meio de uma tecnologia que permite
que o envio e o recebimento de dados sejam rastreados (blockchain).
(RKAIN, 2021)

Em termos práticos, a nova tecnologia permite garantir a autenticidade da obra


para aquele que a possui na internet, em um pen-drive ou em um arquivo de nuvem
(RKAIN, 2021). Tal possibilidade foi o que motivou o coletivo a incendiar “Fumeur V”,
pois deste modo tornou-se possível leiloar as obras de NFT através de uma plataforma
online.
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Desta forma, o espírito democrático que as artes digitais emanavam, podendo


ser compradas a preços acessíveis, está com seus dias contados ou já se foi
de vez. Afinal, um simples código agora pode transformar uma obra que
custava 600 reais em uma obra de 60 mil reais. No fim, tudo se resume a ter
algo único e exclusivo, como a forma de obra de arte mais tradicional do
mundo: a pintura. (RKAIN, 2021)

Observa-se, portanto, que os debates envolvendo o sistema de economia


capitalista estão intrínsecos ao caso citado. Dentre as questões que motivaram o
incêndio de Picasso pelo coletivo, nota-se a possibilidade de alavancar o valor da obra
através da autenticidade garantida pela tokenização. O ato, entretanto, foi
rapidamente criticado por usuários de redes sociais.
Tomei liberdade para destacar alguns comentários retirados do twitter, que
contribuem para a análise do clima entre os usuários da web e a notícia sobre a obra
de Picasso, presentemente discutida neste ensaio.

P. (@Pedrokymba) “Pra mostrar como o capitalismo é uma maquina antiarte


cafona: hoje queimaram uma obra do Picasso por conta do NFT dela valer
mais no mercado.
Isso mesmo, queimaram um original do picasso para ficarem com uma cópia
digital autenticada (...)” 20 jul. 2021, 10:44AM. Tweet.

Aqui, o usuário P. expressa uma nítida indignação pelo incêndio de “Fumeur


V”, apontando o sistema de economia capitalista como mecanismo para uma
insensibilidade artística, o que ele denomina por "máquina antiarte”. O sentimento de
revolta também é observado através de outros comentários.

P&V. (@segueonigro) “Mano, os caras queimaram um Picasso pra vender o


digital em NFT, que é uma moeda, ou token que não tem a sacada da moeda
que é trocar. Queimaram um Picasso pra virar uma cripto moeda que não é
moeda. Queimaram um Picasso. Não, sério… Pode empalar gente assim? A
lei deixa?” 22 jul. 2021, 2:49AM. Tweet.

É possível especular diferentes motivações para o sentimento dos internautas


aqui apresentado, como a rejeição da tecnologia de NFT, o apreço pelas obras do
pintor espanhol, ou talvez o fim da materialidade de uma obra autêntica. O que fica
nítido através da análise de debates na internet é o sentimento de choque, de
indignação. O coletivo teria o direito de queimar uma gravura autêntica de Picasso,
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pelo fato de tê-la comprado em um leilão? Haveriam maneiras de impedir tal ato?
Entretanto, impedir é preservar?
Evidentemente, também houveram internautas que não enxergaram o
acontecimento com grandes preocupações. O usuário O publicou,

O (@Odirbernady). “Me fez graça ver Picasso nos Assuntos do Momento


do twitter porque queimaram um pra fazer NFT, mas: Picasso fez coisa
melhor em guardanapos pra pagar o almoço em algum bistrô. Podem dormir
tranquilos que a História da Arte não está ameaçada. Muito barulho por nada”.
20 Jul. 2021, 7:12PM. Tweet.

De fato, “Fumeur V” não se trata de uma das obras mais destacadas do pintor
cubista, mas ainda assim representa uma fração, mesmo que pequena, do trabalho
do artista. Assumir que sua destruição não deveria gerar impacto é assumir que a
gravura é, em certo nível, descartável.
Embora a NFT art seja essencialmente utilizada para o comércio de obras
autorais, o caso de Picasso pode representar, sobretudo, uma significativa mudança
no mercado de arte e uma expansão no debate sobre os limites da tecnologia.

Conclusão
A demolição do Palácio Monroe é uma situação claramente distinta do "Picasso
queimado”, seja pelo contexto histórico em que ambas estão inseridas, seja pelo tipo
de linguagem que representam. Busquei estabelecer uma ponte entre as pautas da
arquitetura e da pintura, e deste modo, levantar questionamentos sobre os interesses
envolvidos na transformação destrutiva das artes através da comparação dos dois
casos. De um lado, há um Edifício Imigrante que marcou a memória da cidade do Rio
de Janeiro e, após muitas divergências, foi demolido para se tornar um
estacionamento (Atique, 2013). Do outro, há uma gravura de Pablo Picasso que foi
incendiada em 2021 para se tornar um non-fungible token.
O que observa-se, portanto, é que ambos os casos geraram um impacto nos
debates acerca da conservação, tendo repercussões amplamente discutidas através
de plataformas da internet. É possível notar o choque e o trauma, que se estabelece
em diferentes grupos, fomentados pelos processos que abalam a existência de algo
singular como uma obra.
Levando em consideração a trajetória do Palácio Monroe para se manter na
Avenida Central do Rio de Janeiro, e a importância da gravura de Picasso, encerro
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este ensaio com a seguinte pergunta: Quem tem o direito de decidir sobre o que vai
ser preservado?

Referências
AQUELE Abraço. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São
Paulo: Itaú Cultural, 2021. Disponível em:
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra70977/aquele-abraco. Acesso em: 09 de
dezembro de 2021. Verbete da Enciclopédia.

ATIQUE, Fernando. “O edifício imigrante”, 2013.

ATIQUE, Fernando. “A midiatização da (não) preservação: reflexões metodológicas


sobre sociedade, periodismo e internet a propósito da demolição do Palácio
Monroe”, 2016. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/anaismp/a/svmtkPChsmLGvw8SfbcQYQk/?lang=pt. Acesso
em 09 de dezembro de 2021.

MOTTA, Marly. “O Rio de Janeiro continua sendo? ”. Rio de Janeiro, CPDOC, 2000.
14f. Disponível em:
http://cpdoc.fgv.br/producao_intelectual/arq/1160.pdf. Acesso em 09 de dezembro de
2021

PABLO Picasso. The Smoker V (Flumeur V). In: MOMA, 2021. Disponível em:
https://www.moma.org/collection/works/71392. Acesso em 18 de dezembro de 2021.
RKAYN, Jamile. “Só se fala em crypto art e NFT art… Mas e agora? O que é isso?”.
Arte que acontece, 2 de março de 2021. Disponível em:
https://www.artequeacontece.com.br/so-se-fala-em-crypto-art-e-nft-art-mas-e-agora-
o-que-e-isso. Acesso em: 14 de dezembro de 2021.

RUBINSTEINN, Gabriel. “Grupo queima obra de Picasso e faz NFT: ‘Vivo para
sempre no blockchain’”. EXAME Future of money, 17 de Julho de 2021. Disponível
em:
https://exame.com/future-of-money/blockchain-e-dlts/grupo-queima-obra-de-picasso-
e-faz-nft-vivo-para-sempre-no-blockchain/. Acesso em 14 de dezembro de 2021.

SILVA, Aila; SILVA, Cassia. “Um quadro de Picasso encriptado: sobre NFT e
desmaterialização”. Jornal USP, 30 de agosto de 2021. Disponível em:
https://jornal.usp.br/artigos/um-quadro-de-picasso-encriptado-sobre-nft-e-
desmaterializacao/. Acesso em 14 de dezembro de 2021.

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