Você está na página 1de 13

See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.

net/publication/307594751

CROCODYLIA: UMA LONGA HISTÓRIA DE SUCESSO EVOLUTIVO

Article · December 2016

CITATIONS READS

0 4,082

1 author:

João Pedro Barreiros


University of the Azores - Faculty of Agrarian and Environmental Sciences
221 PUBLICATIONS   2,303 CITATIONS   

SEE PROFILE

Some of the authors of this publication are also working on these related projects:

Vertebrate Natural History View project

Portraits of poisonous reptiles View project

All content following this page was uploaded by João Pedro Barreiros on 04 September 2016.

The user has requested enhancement of the downloaded file.


João Pedro Barreiros*

CROCODYLIA:
UMA LONGA
HISTÓRIA
DE SUCESSO
EVOLUTIVO1

[1]

* O artigo respeita a grafia anterior ao Acordo Ortográfico.


1 CE3C – Centre for Ecology, Evolution and Environmental Changes/
Azorean Biodiversity Group and Universidade dos Açores – Departamento
de Ciências Agrárias, Angra do Heroísmo, Açores, Portugal.
RESUMO barbatana caudal de um tubarão bem como uma progressiva
diminuição ou ausência das grandes escamas epiteliares tão
Neste artigo pretende-se descrever a história evolutiva dos características das espécies actuais. Este grupo incluía, tam-
crocodilos bem como as espécies actualmente existentes no bém, formas terrestres com longos dentes serrilhados e
Mundo referindo os principais aspectos da sua ecologia tais extinguiu-se maioritariamente no final do Cretáceo, há 65
como distribuição geográfica, tamanhos máximos e eventual MA, embora algumas formas tenham sobrevivido na Austrália
perigosidade para humanos, habitats e alimentação, aspectos até muito recentemente (1 MA).
reprodutivos, conservação e produção para consumo humano.
Por outro lado, o grupo ao qual todas as espécies actuais per-
A Ordem Crocodylia divide-se em três famílias, Alligatoridae, tencem, Eusuchia, evoluiu há cerca de 120 MA. Todas as
Crocodylidae e Gavialidae que compreendem 23 espécies espécies modernas pertencem à Ordem Crocodylia que se
vivas distribuídas por todos os continentes com excepção da divide em três famílias: Alligatoridae, Crocodylidae e
Europa e da Antárctica. Gavialidae. A maior parte dos autores concorda que estas se
separaram filogeneticamente há pelo menos 60 MA.
São um dos grupos de répteis mais antigos com um proces-
so evolutivo relativamente bem conhecido e que data desde Se é fácil, mesmo para um não profissional, distinguir um Gavial
há 320 milhões de anos tendo sobrevivido às maiores crises dos demais Crocodylia, sobretudo pela forma inconfundível do
ecológicas do Planeta causadoras de catastróficas extinções seu focinho muito comprido, diferenciar um Alligatoridae de
em massa. um Crocodylidae pode ser menos óbvio. Porém, basta verificar
[2]

que, ao contrário dos Alligatoridae, os Crocodylidae possuem


Os Crocodylia são um exemplo de sucesso evolutivo e resi- um focinho muito menos alargado e com uma indentação bem
liência morfológica que atravessam a história da vida na visível no extremo anterior da maxila superior. Nesse sulco o
Terra, da evolução reptiliana e até se incluem fortemente na 4.º dente alongado da mandíbula encaixa perfeitamente. Estas
evolução humana Holocénica com considerável impacto duas características serão o bastante para podermos afirmar se
mesmo nos dias de hoje. estamos perante um crocodilo ou um caimão/jacaré ou aligátor.

EVOLUÇÃO MORFOLOGIA

Os primeiros fósseis reconhecidamente identificáveis como O sucesso dos crocodilos está directamente ligado à sua ana-
crocodilianos têm cerca de 200 milhões de anos (MA) e tomia e a um design que provou, ao longo de milhões de anos,
incluem as antigas subordens Protosuchia e Sphenosuchia. ser capaz de se adaptar a tudo o que a evolução da vida na
Contrariamente ao cenário clássico, os primeiros crocodilos, Terra lhes atirou.
do género Ortosuchus, eram terrestres e assim se mantiveram
durante cerca de 20 MA altura em que evoluíram para formas Alguns aspectos anatómicos e fisiológicos são cruciais para se
predominantemente aquáticas em mares, lagos e rios. entender esta questão:

O primeiro grande grupo de crocodilianos denomina-se 1. As válvulas nasais e palatais – garantem a estan-
Mesosuchia e inclui formas terrestres e marinhas sendo que quicidade das aberturas nasais e esofágicas per-
estas últimas apresentavam os membros posteriores e ante- mitindo que os crocodilos se mantenham sub-
riores em forma de barbatanas, uma cauda achatada similar à mersos sem que entre água nas vias respiratórias.

vol. LXI ‘16


CROCODYLIA:
UMA LONGA HISTÓRIA DE SUCESSO EVOLUTIVO

Este detalhe aparentemente simples permite aos tiagudas na cauda e possuindo tecido ósseo no
crocodilos uma respiração aérea eficiente pelas dorso formando a clássica “armadura” que pro-
narinas – quando apenas estas assomam fora de tege os órgãos internos dos crocodilos principal-
água – ou pela boca quando se encontram com- mente de combates intra-específicos.
pletamente emersos.

2. Os olhos – a visão subaquática dos crocodilos é


perfeita graças a uma pálpebra lateral transparen- REPRODUÇÃO
te que funciona como uma autêntica “lente-de-
-contacto”. Todos os Crocodylia são ovíparos depositando os ovos em
buracos escavados na areia ou construindo montes de vege-
3. Audição – a audição dos crocodilos abrange uma tação sobre os mesmos. A capacidade das fêmeas de contro-
vasta frequência (dos 100 aos 6.000 Hz) sendo a larem a temperatura de incubação é vital para o desenvolvi-
mais especializada de todos os répteis. mento dos embriões sendo que temperaturas abaixo dos
308°C geralmente resultam em elevadas mortalidades ou
4. Poros sensoriais – ao longo das maxilas existem
malformações.
terminais nervosos que detectam os mais débeis
movimentos e vibrações na água.
O sexo de todos os Crocodylia é determinado pelas condições

[3]
da incubação, nomeadamente pela temperatura. Se esta for de
5. Maxilas e dentes – os dentes dos crocodilos são
30°C ou menos existe um desenvolvimento lento e nascem
cónicos e sub-iguais substituindo-se constantemen-
apenas fêmeas. Incubações a 31°C produzem neonatos de
te ao longo da vida do animal e prendem eficaz-
ambos os sexos enquanto entre 32 e 33°C geram sobretudo
mente qualquer presa. Os músculos que fecham as
machos. Se a temperatura for superior a 33°C continuam a
mandíbulas são extremamente poderosos e facil-
gerar-se apenas machos ou acontece uma reversão para
mente esmagam a carapaça de uma tartaruga ou o
fêmeas. Este processo tem sido ultimamente visto como um
crânio de um porco.
mecanismo de aumento das probabilidades de se atingirem
6. Coração – ao contrário dos outros répteis, cujo co- grandes tamanhos, uma vez que o crescimento é mais rápido
ração é mono-ventricular, os crocodilos possuem nas fêmeas, num menor espaço de tempo e, assim, aumentar
um coração com quatro câmaras similar ao das as possibilidades de sobrevivência de cada indivíduo.
aves e mamíferos sendo extremamente eficaz nos
mecanismos de troca gasosa. Durante toda a incubação, as fêmeas dedicam um extremo-
so cuidado com a ninhada e interagem por sons com as crias
7. Estômago – a eficiência digestiva dos crocodilos mesmo antes da eclosão estabelecendo um laço de reconhe-
permite-lhes um aproveitamento do alimento cimento que é vital à sobrevivência dos neonatos nos primei-
engolido cerca de 40% superior ao de um mamí- ros dias de vida. De facto, um neonato é vulnerável a um
fero carnívoro. As enzimas digestivas são eficazes vasto leque de predadores que compreende aves, mamífe-
com ossos, cascos e demais estruturas rígidas das ros, répteis, alguns peixes e mesmo invertebrados como
presas engolidas. caranguejos. Para além destes, o canibalismo é frequente nos
Crocodylia pelo que os recém-eclodidos são mantidos pelas
8. Pele – as escamas apresentam formas e consis- mães em pequenos charcos isolados e activamente defendi-
tências diferentes sendo macias no ventre, pon- dos até que se dispersem e possam sobreviver por sua conta.
ALIMENTAÇÃO As famílias Alligatoridae, Crocodylidae e Gavialidae distin-
guem-se entre si por diversos detalhes sendo que esta últi-
Todos os Crocodylia são predadores activos logo após a eclo- ma, que contém apenas uma espécie (Gavialis gangeticus) é
são. Os neonatos consomem primeiramente insectos e imediatamente distinguível das demais, sobretudo pelas
outros invertebrados, bem como pequenos peixes e anfíbios. características únicas das suas maxilas extremamente alonga-
Uma vez que o seu crescimento é, inicialmente, rápido, o das e adaptadas a uma dieta eminentemente piscívora.
tamanho das suas presas aumenta de modo proporcional
sendo que a maior parte dos crocodilos são predadores
As famílias Alligatoridae e Gavialidae terão evoluído a partir
oportunistas bem como necrófagos. Em África, por exemplo,
de ancestrais de água doce enquanto a família Crocodylidae,
não é raro observar grupos de muitas dezenas de Crocodylus
niloticus devorando cadáveres de hipopótamos ou de elefan- tendo em conta as características da sua língua e a eficiência
tes o mesmo acontecendo na Índia em que grupos de C. na excreção de excesso de sal, terá evoluído de ancestrais
palustris se agregam à volta de cadáveres de elefantes asiáti- marinhos. Ainda hoje existem duas espécies com ocorrências
cos. Mesmo animais em avançado estado de decomposição marinhas conhecidas – Crocodylus acutus e C. niloticus – ou
são ingeridos por crocodilos sendo que a captura de grandes com hábitos predominantemente marinhos e mesmo capa-
presas por parte de animais de maiores dimensões tanto zes de longas travessias oceânicas – C. porosus.
pode ir de antílopes a javalis como de leões a jaguares, gran-
des serpentes, outros crocodilos, animais domésticos, peixes A família Alligatoridae compreende oito espécies inseridas
e, naturalmente, humanos (este aspecto é discutido abaixo).
em três géneros:
[4]

Algumas espécies, porém, especializam-se em determinados


Alligator mississippiensis e A. sinensis
grupos de presas. Gavialis gangeticus, Crocodylus cataphractus,
C. johnsoni e Tomistoma schlegelii, todos com focinhos estreitos Caiman crocodilus, C. latirostris e C. yacare
e dentes muitos pontiagudos, são eminentemente piscívoros Melanosuchus niger
enquanto os pequenos Crocodylia de floresta (Osteolaemus Paleosuchus palpebrosus e P. trigonatus
tetraspis, Paleosuchus palpebrosus e P. trigonatus) ingerem prin-
cipalmente anfíbios, pequenos peixes e invertebrados bem Destas, apenas a espécie Alligator sinensis ocorre fora das
como répteis e pequenos mamíferos. Os Crocodylia de maior Américas sendo igualmente a mais rara de todas com uma
porte, sobretudo os maiores exemplares de Alligator mississip- população actual extremamente reduzida e confinada ao
piensis, Crocodylus acutus, C. intermedius, C. niloticus, C. palus- baixo Rio Yangtsé e alguns tributários.
tris, C. porosus e Melanosuchus niger são os que mais predam
grandes presas e possuem hábitos mais generalistas. A mais conhecida, Alligator americanus, é cada vez mais comum
nos E.U.A. ocorrendo desde o Leste do Texas até à Carolina do
Norte com concentrações importantes na Florida, Geórgia,
Louisiana e Mississippi. Pequenas populações são hoje encon-
DIVERSIDADE2 tradas no SE do Oklahoma e no SW do Arkansas. A sua carne
e pele são exploradas nos E.U.A. e a sua caça é de novo permi-
Presentemente, reconhecem-se 23 espécies da Ordem
Crocodylia (Quadro I) distribuídos por todo o Mundo com
excepção da Europa e Antárctica. 2 Por questões de espaço não se apresentam aqui descrições detalhadas de
cada espécie mas apenas alguns dos dados mais relevantes que completam
Embora o público em geral associe a imagem de um croco- a informação do Quadro 1. O leitor pode aceder gratuitamente à página
oficial da IUCN a fim de complementar a informação sobre cada espécie
dilo a África é na América Central e do Sul e na Ásia que se
aqui referida: http://www.iucncsg.org/pages/Crocodilian-Species.html
concentra o maior número de espécies.

vol. LXI ‘16


CROCODYLIA:
UMA LONGA HISTÓRIA DE SUCESSO EVOLUTIVO

[5]
Figura 1. “Close-up” de um Caiman crocodilus,
fotografado pelo autor na Colômbia em 2009.

tida dada a exponencial recuperação das populações a partir C. yacare são, também, relativamente comuns e a primeira
dos anos 80 do séc. XX. ocorre inclusive em áreas de elevada densidade humana
nomeadamente no Rio Tietê – que atravessa a megalópole de
Os caimões, ou jacarés, são exclusivos da América do Sul com São Paulo – ou a Baía de Guanabara no Rio de Janeiro. Todas
excepção da espécie Caiman crocodilus genericamente conhe- as espécies deste género são de porte intermédio (máx. 3,5m)
cida como Caimão-de-lunetas (Fig. 1). De facto, C. crocodilus e não constituem uma ameaça real para pessoas.
ocorre desde o S do México e em toda a América Central com
populações particularmente abundantes na Venezuela esten- Melanosuchus niger, pelo contrário, é o único caimão (e o
dendo-se ao Perú, NW da Bolívia e praticamente toda a meta- segundo Alligatoridae juntamente com Alligator mississippiensis)
de Centro Norte do Brasil. Algumas populações ferais estão que atinge as dimensões e a fama de atacar humanos, normal-
hoje estabelecidas em Cuba, na Florida e em Porto Rico. De mente atribuída aos grandes crocodilos. Atinge 5m ou mais de
facto, C. crocodilus parece beneficiar da presença humana e do comprimento e ocorre na bacia Amazónica incluindo Bolívia,
efeito que o excesso de caça de algumas espécies sul-america- Perú, Equador, Colômbia, Guiana e Guiana Francesa. Curio-
nas de maior porte (Melanosuchus niger e Crocodylus intermedius) samente não foi descrito na Venezuela e Suriname embora
teve na facilitação da sua expansão. As espécies C. latirostris e possam existir populações nesses países.
A família Alligatoridae completa-se com as duas espécies ATAQUES E INTERACÇÕES
Amazónicas de caimões anões, Paleosuchus palpebrosus e P.
COM HUMANOS
trigonatus. Ambas não ultrapassam 1,7m de comprimento e
possuem hábitos marcadamente florestais sendo, aparente- Os grandes exemplares de algumas espécies causam aciden-
mente, menos aquáticos que os seus parentes de maiores tes graves, muitas vezes fatais, com humanos. Para além de
dimensões. existir uma pressão humana cada vez mais elevada em
regiões outrora remotas e com saudáveis populações de cro-
A família Gavialidae compreende apenas uma espécie – codilos, o próprio turismo de natureza coloca em contacto
Gavialis gangeticus. Este animal único foi relativamente comum humanos sem preparação para prevenir acidentes e muito
na maioria dos rios e lagos desde o Paquistão à Birmânia. Hoje, menos para lidar com um evento, se este se produzir. As
apenas cerca de 2.000 adultos sobrevivem no N da Índia e no populações que residem em áreas com Crocodylia de gran-
Nepal. O excesso de procura da sua pele foi fatal para o Gavial des dimensões e reconhecidamente perigosos adoptam algu-
que, hoje, sobrevive sobretudo devido aos intensivos progra- mas formas de protecção, nomeadamente recorrendo a
mas de criação em cativeiro e repovoamento. estruturas físicas que impedem ou reduzem a aproximação
destes animais a aldeias ribeirinhas ou locais de pesca.
A família Crocodylidae compreende 14 espécies inseridas
em três géneros, sendo que 12 destas pertencem ao muito Inevitavelmente, para um grande Crocodylia, um humano
disseminado género Crocodylus. As várias espécies distri- constitui apenas mais uma potencial presa pelo que a preven-
buem-se pela América do N e Central (Crocodylus acutus, C. ção dos acidentes passa, em primeira instância, pela nossa
[6]

moreletii, C. rhombifer), América do S (C. intermedius), África própria capacidade de prevenir o contacto próximo e de
(C. cataphractus, C. niloticus, Osteolaemus tetraspis), Ásia (C. assumir comportamentos preventivos.
mindorensis, C. novaeguineae, C. palustris, C. siamensis,
Tomistoma schlegelii) e Austrália (C. johnsoni). O grande cro- Mesmo assim, existem todos os anos ataques fatais em núme-
codilo do Indo-Pacífico, Crocodylus porosus, também conheci- ros consideráveis atribuídos a algumas das maiores espécies
do como crocodilo-marinho ou crocodilo dos estuários é o deste grupo. As bases de dados mais fidedignas reportam ata-
maior e mais pesado réptil actual e apresenta uma vasta dis- ques na Austrália e nos E.U.A. mas é em África, onde a reco-
tribuição geográfica que se estende do Leste da Índia e Sri lha de informações fidedignas é mais difícil, que se produzem
Lanka até remotas ilhas do Pacífico tais como Salomão e mais fatalidades – no mínimo cerca de 500 acidentes por ano.
Vanuatu.
1. Nos E.U.A., o aumento de populações humanas
O crocodilo-americano, C. acutus, também apresenta hábi- e de visitantes às vastas áreas protegidas sobretu-
tos marinhos sendo comum encontrá-lo em praias e mangais do na Florida conduzem a ataques graves e fatais
costeiros. Para além de C. intermedius, endémico da bacia do de Alligator mississippiensis;
Rio Orinoco na Venezuela/Colômbia e com populações bas-
tante reduzidas, C. acutus ocorre em áreas costeiras da 2. Na Austrália ocorrem acidentes regularmente
América do Sul desde Trinidad & Tobago até ao N do Perú. com Crocodylus porosus sendo que esta espécie é
conhecida por causar vários acidentes na Indo-
O Falso-Gavial, Tomistoma schlegelii, ocorre somente em nésia, Filipinas, Malásia e Nova Guiné (juntamen-
áreas remotas da Malásia, Samatra e Bornéu. Como o próprio te com o endémico C. novaeguineae);
nome indica trata-se de um animal semelhante ao Gavial e
igualmente piscívoro mas filogeneticamente próximo dos ver- 3. Em África, Crocodylus niloticus é o 3.º animal sel-
dadeiros crocodilos. vagem a causar mais fatalidades em humanos (em

vol. LXI ‘16


CROCODYLIA:
UMA LONGA HISTÓRIA DE SUCESSO EVOLUTIVO

primeiro aparecem os leões e em segundo os Assim, actualmente, a produção de crocodilianos é uma


hipopótamos); forma de produção animal intensiva e fornece números ele-
vados de animais para ambos os objectivos acima referidos.
4. Na Amazónia, onde a vastidão e dispersão de Em alguns casos, o sucesso é tão grande que permitiu man-
humanos neste vastíssimo e complexo ecossiste- ter a procura de peles, fornecer carne de elevada qualidade
ma desafia por si só qualquer tentativa de obter nutricional e organoléptica e reduzir a pressão da caça sobre
números aproximados de ataques, os acidentes populações selvagens.
graves ou fatais com Melanosuchus niger são regu-
larmente reportados com particular incidência Ao contrário da zootecnia convencional o produto principal
nos estados brasileiros de Amazonas, Roraima, desta produção são as peles sendo a carne um subproduto.
Rondónia, Acre e especialmente no Amapá3; Porém, essa carne tem uma procura cada vez maior tendo
também permitido o acesso a proteína animal por parte de
5. Na Índia ocorrem com regularidade acidentes muitas populações de países menos desenvolvidos que, de
graves e fatais com Crocodylus palustris. outra forma, não a teriam. A própria biologia dos crocodilianos
favorece a sua produção intensiva uma vez que têm um eleva-
Não sendo fácil generalizar as causas destes ataques, um do índice de aproveitamento e conversão do alimento (que é
padrão parece emergir – há cada vez mais pessoas a residir barato, muitas vezes proveniente de restos de matadouros ou
e/ou a utilizar áreas onde ocorrem grandes Crocodylia. No de peixes descartados) bem como o seu crescimento inicial

[7]
caso particular dos E.U.A. e da Austrália é possível que o rápido, até ao tamanho médio de abate (cerca de 1,5 a 2m).
aumento de acidentes que se tem verificado desde os finais de
1980 se devam aos regimes de protecção em vigor para Actualmente, o comércio internacional de peles de crocodi-
Alligator mississippiensis e Crocodylus porosus, respectivamente. lo envolve 30 países que exportam, legalmente, cerca de 1,5
milhões de peles por ano.

Esta actividade garante que algumas das espécies mais raras


PRODUÇÃO EM CATIVEIRO (Alligator sinensis, Crocodylus rhombifer e C. siamensis) sejam
(CROCODILE FARMING) criadas em cativeiro e possam ter populações restauradas,
pelo menos parcialmente, nos seus habitats de origem. O
Até aos anos 70 do século XX, o comércio mundial de peles caso concreto do crocodilo-cubano (C. rhombifer) é particu-
de crocodilianos dependeu da caça e causou severos declí- larmente importante por uma outra razão: no S de Cuba,
nios nas populações de muitas espécies com destaque para onde ocorrem as únicas populações selvagens, existe uma
Alligator mississippiensis, Crocodylus intermedius, C. rhombifer, elevada taxa de hibridização com o crocodilo-americano (C.
C. siamensis, C. mindorensis e Melanosuchus niger. acutus) (Fig. 2). Nas instalações de Zapata e na Isla de la
Juventud um grande esforço na detecção destes híbridos tem
Um esforço internacional de regulamentação e redução da sido levado a cabo por forma a manter populações genetica-
caça juntamente com a inclusão de todas as espécies no acor- mente puras deste animal único.
do CITES permitiu avanços significativos na produção em
cativeiro tendo, desde o início, sido assumido que esta teria
duas vertentes: a) fins comerciais na venda de peles e carne
3 Em 2004, durante uma viagem de barco de Belém para Manaus, o autor
e b) reprodução de números importantes de animais para
conheceu um residente em Macapá (Amapá) cujo irmão tinha sido morto
acções de repovoamento e reconstituição de populações
por um Melanosuchus niger algumas semanas antes.
dizimadas pela caça do passado.
[8]

Figura 2. O autor com um híbrido de Crocodylus acutus x C. rhombifer


acabado de capturar nos pântanos de Zapata, Cuba, em 2011.
Foto de Fernando Matallanas.

vol. LXI ‘16


CROCODYLIA:
UMA LONGA HISTÓRIA DE SUCESSO EVOLUTIVO

QUADRO 1

ESPÉCIES DE CROCODYLIA ACTUALMENTE EXISTENTES.


DISTRIBUIÇÃO GEOGRÁFICA, TAMANHOS MÁXIMOS,
PERIGOSIDADE PARA HUMANOS E ESTADO DE CONSERVAÇÃO.

Espécie Distribuição Comprimento Perigosidade Estatuto Obs.


geográfica máximo IUCN
comprovado (m)

Alligator E.U.A. (Carolina do Norte 5 Elevada LR Populações a


mississippiensis até Texas e Florida) aumentar

Alligator sinensis China (Rio Yangtsé) <3 Nula CR Habitat reduzido


por intensa

[9]
pressão humana

Caiman crocodilus América Central >3 Nula LR Populações a


e do Sul a moderada aumentar.
Introduzido em
Cuba, Florida e
Porto Rico

Caiman latirostris América do Sul >3 Nula a moderada LR Populações a


aumentar

Caiman yacare América do Sul >3 Nula a moderada LR

Melanosuchus niger América do Sul >5 Elevada LR Dependente


de conservação

Paleosuchus América do Sul <2 Nula LR


palpebrosus

Paleosuchus América do Sul <2 Nula LR


trigonatus

Gavialis gangeticus Índia e Nepal 6-7 Nula CR Populações


em declínio
Espécie Distribuição Comprimento Perigosidade Estatuto Obs.
geográfica máximo IUCN
comprovado (m)

Crocodylus acutus América do Norte 5-6 Moderada a elevada VU


(Florida, Texas e México),
Caraíbas e América Central,
América do Sul (Trinidad &
Tobago até ao Perú)

Crocodylus África Ocidental e Central 3-4 Nula a moderada DD


cataphractus desde Mauritânia a Angola
e Este da Tanzânia

Crocodylus johnsoni Norte da Austrália 3 Nula LR


exclusivamente em
água doce

Crocodylus América do Sul 5-6 Moderada CR Caça furtiva.


[10]

intermedius (Venezuela e Colômbia) Habitat reduzido

Crocodylus Filipinas (ilhas de Luzon, <3 Nula a moderada CR Destruição de


mindorensis Mindoro, Negros e outras habitat
de menor dimensão)

Crocodylus moreletii América Central <4 Nula LR Dependente de


(Sul do México, Belize conservação
e Guatemala)

Crocodylus niloticus Muito comum em toda >5 Elevada – causa LR Populações a


a África subsaariana largas centenas aumentar
desde Mauritânia e Chade de acidentes nomeadamente
até à África do Sul e fatais/ano no Egipto onde já
Madagáscar ocorre perto do
delta do Nilo

Crocodylus Endémico da Nova Guiné 4 Moderada LR Ainda bastante


novaeguinae comum em toda
a ilha

Crocodylus palustris Sudeste do Irão, Sul Paquis- > 4 Moderada a elevada VU Destruição de
tão, Índia, Sudeste Nepal habitat

vol. LXI ‘16


CROCODYLIA:
UMA LONGA HISTÓRIA DE SUCESSO EVOLUTIVO

Espécie Distribuição Comprimento Perigosidade Estatuto Obs.


geográfica máximo IUCN
comprovado (m)

Crocodylus porosus Amplamente distribuído >7 Elevada LR Juntamente com


desde o Sri Lanka e possivelmente as serpentes
Este da Índia até ao entre 8 e 9 Python reticulatus
Norte da Austrália e e Eunectes murinus
ilhas do Pacífico é o maior réptil
(Salomão, Vanuatu) actual e certamen-
te o mais pesado

Crocodylus rhombifer Cuba (Pântanos de Zapata >3 Moderada CR Hibridização com


e Isla de la Juventud) C. acutus

Crocodylus siamensis Sudeste Asiático <4 Nula a moderada CR Menos de 2.000


(Laos, Camboja, Tailândia, adultos no estado
Vietname e Bornéu) selvagem. Prova-

[11]
velmente extinto
fora do Camboja
e Laos

Osteolaemus África ocidental desde 2 Nula LR


tetraspis Mauritânia a Angola
e Este da Tanzânia

Tomistoma schlegelli Malásia, Samatra e Bornéu 4 Nula EN Menos de 2.500


indivíduos no
estado selvagem

Categorias IUCN:
CR – Criticamente ameaçado ou em risco de iminente extinção no meio natural;
EN – Ameaçado ou em risco de extinção no meio natural;
VU – Vulnerável ou em risco de extinção no meio natural num futuro próximo;
LR – Menor risco (dependente de medidas de conservação, eventualmente ameaçado ou de menor preocupação);
DD – Sem dados ou sem informação suficiente para se categorizar num dos níveis acima.
BREVE CONSIDERAÇÃO FINAL

Sempre tive um grande fascínio por répteis em geral e por


crocodilos em particular, provavelmente devido ao período
mais marcante da minha vida – NE de Angola, Vila de
Henrique de Carvalho (actual Saurimo) entre 1974 e 1975.
Continuo a trabalhar com estes animais que, embora impli-
quem alguns riscos, são um exemplo magnífico de um
extraordinário modelo evolutivo que perdura desde há cen-
tenas de milhões de anos e que, estou certo, continuará a
povoar os nossos habitats selvagens bem como o riquíssimo
folclore e imensa diversidade antropológica e etnográfica que
os crocodilos exercem sobre todos nós. Pena que não os
possamos ter nas Sete Cidades.
[12]

BIBLIOGRAFIA
RECOMENDADA:
Para dados actualizados sobre esta Ordem de RICHARDSON K., Webb G. & C. Manolis 2000.
répteis consulte: http://www.iucncsg.org/pages/ Crocodiles: Inside and Out. Surrey Beatty and Sons:
Crocodilian-Species.html Sydney.

Para dados actualizados sobre ataques de SIDELEAU, B. & Britton, A. 2013. An analysis of
crocodilos consulte: www.crocodile-attack.info crocodilian attacks worldwide for the period 2008
– July 2013. Pp. 110-113 in Crocodiles.
CALDWELL, J. 2015. World Trade in Crocodilian Proceedings of the 22nd Working Meeting of the
Skins, 2011-2013. UNEP-WCMC: Cambridge. IUCN-SSC Crocodile Specialist Group. IUCN:
Gland, Switzerland.
LANGLEY, R.L. 2005. Alligator attacks on humans
in the United States. Wilderness and Environmental
Medicine, 16(3): 119-124.

vol. LXI ‘16

View publication stats

Você também pode gostar