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DOSSIÊ
EM ANDRÉ GORZ
André Langer*
O presente artigo tem por objetivo apresentar a análise crítica de André Gorz sobre o trabalho e a ecologia
política a partir da centralidade que o conceito de racionalidade econômica no capitalismo adquire em
seu pensamento. Para ele, a extensão ilimitada da racionalidade econômica ao trabalho e à natureza é
considerada sem futuro do ponto de vista da sociedade. Gorz reconhece a íntima relação entre a crítica do
capitalismo e a tarefa da ecologia política. Outro aspecto presente em sua obra, menos explorado, é a relação
entre trabalho e crise ecológica. O capitalismo apropria-se do trabalho ou emprego não apenas para os seus
interesses, mas também os transforma em instrumentos de destruição da natureza. Este paper objetiva tam-
bém, fiel ao espírito do próprio Gorz, embora de maneira sucinta, indicar alguns horizontes alternativos.
Palavras-chave: Gorz. Racionalidade econômica. Trabalho. Ecologia política. Capitalismo.
“Nós sabemos que o nosso modo de por um sistema (o capitalismo), que privilegia
vida não tem futuro” (Gorz, 1978, p. 18). Essa uma determinada racionalidade (econômica,
sentença sobre a nossa civilização não foi pro- instrumental), com vistas a um optimum: a
nunciada ontem, mas em meados da década de obtenção do máximo de lucro. O resultado é
70 do século passado. Ela revela uma análise um círculo vicioso que implica a dominação
aguda do nosso modo de produzir e de con- da natureza e a exploração humana através da
sumir, que moldou um estilo de vida e está técnica e do trabalho.
se mostrando sem futuro. De lá para cá, ela, Por isso, na perspectiva de Gorz, a su-
infelizmente, não apenas não foi desmentida, peração da presente crise só se dá pela críti-
como está sendo confirmada pelas subsequen- ca da racionalidade econômica, ou seja, pela
tes pesquisas e pela observação de fenômenos crítica do capitalismo e do trabalho. Quanto a
http://dx.doi.org/10.1590/S0103-49792017000300006 479
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superar o redutor homo economicus e abra es- inevitavelmente pela crítica do trabalho. Uma
paço para um ser humano com DNA marcado das características de nosso autor é que ele não
pela convivialidade. Portanto, nas reflexões de se detém nem se contenta apenas com a análi-
Gorz, três campos sempre estão, de uma ou de se, por mais aguda e interessante que seja. Ela
outra maneira, relacionados: economia, ecolo- se insere na perspectiva de propor alternativas.
gia e sociedade. Assim, embora de maneira sucinta, indicamos
A perspectiva inovadora do pensador alguns dos seus horizontes alternativos.
reside no fato de que ele coloca o trabalho, O artigo se divide em três partes. A pri-
entendido como princípio organizador de nos- meira concentra-se na revolução representada
sa vida e de todo o corpo social, no centro de pelo surgimento da civilização tecnocientífi-
uma relação com três termos: “instrumento de ca e na crise de reprodução que ela implica.
transformação da natureza, ele [o trabalho] es- A segunda analisa a racionalidade econômica
trutura as nossas sociedades democráticas nos no contexto da “invenção” do trabalho. Consi-
últimos três séculos” (Gollain, 2000, p. 7, grifo deramos ser essa a parte central da reflexão. O
do autor). Sendo assim, o trabalho “constitui conceito de racionalidade econômica, embora
um objeto privilegiado da crítica de uma eco- desenvolvido tardiamente, é fundamental para
logia política preocupada com a dupla explora- dimensionar corretamente as reflexões de Gorz
ção da natureza e do ser humano, inaugurada sobre a ecologia política e o trabalho. A terceira
pelo capitalismo” (Gollain, 2000, p. 7). parte, finalmente, propõe, sempre a partir das
Parte das análises de Gorz centra-se na reflexões do pensador francês, perspectivas de
crítica da sociedade capitalista do crescimen- convivência em sociedade e em harmonia com
to. O capitalismo constitui-se em “um sistema a natureza. O denominador comum é sempre a
social cujos aparelhos e processos de produção limitação da racionalidade econômica.
e de reprodução autonomizados ameaçam a
existência individual até nas bases naturais da
vida” (Gorz, 1991, p. 23). A “produção de mer- A CIVILIZAÇÃO TECNOCIENTÍFICA
cadorias” esbarra em limites físicos intranspo-
níveis, o que leva à constatação de que “o capi- O Ocidente pode ser lido como aquele
talismo de crescimento está morto, assim como segmento que realizou, inicialmente, uma muta-
a sociedade de crescimento” (Gorz, 1978, p. 17). ção na maneira de conceber e de fazer ciência. O
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Mas a pergunta é: como chegamos a essa conhecimento científico perseguido pela ciência
situação? Que barreiras foram transpostas? Que moderna significou uma ruptura com a “ciência-
reduções foi preciso impor? Em suma, que novo contemplação”, tornando-se menos intervencio-
paradigma vai surgindo? Vamos trazer algumas nista no mundo e mais propenso a compreender
reflexões com vistas a descortinar algumas das as leis naturais e os fenômenos sociais.
características do paradigma técnico-científico Ainda no final do século XVI, Francis
que deu suporte à civilização ocidental. Bacon defendia apaixonadamente uma fina-
Antes de proceder a essa análise, apre- lidade prática para a ciência, ao desejar sua
sentamos o objetivo e a estrutura deste artigo. vinculação com a “indústria”. Dedicava-se
Queremos, nas linhas que seguem, apresentar a à afirmação da ideia “de que o saber devesse
análise crítica de André Gorz sobre o trabalho e produzir seus frutos na prática, de que a ci-
a ecologia política a partir da centralidade que ência devesse ser aplicável à indústria, de que
o conceito de racionalidade econômica, no ca- os homens tivessem o dever sagrado de se or-
pitalismo, adquire em seu pensamento. Gorz re- ganizarem para melhorar e para transformar
conhece a íntima relação entre a crítica do capi- as condições de vida” (Bacon, 1620 apud De
talismo e a tarefa da ecologia política, que passa Masi, 1999, p. 12).
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(PIB), que, por sua vez, pode ser verificado pelo CONFLITOS DE REPRODUÇÃO DO
número de empregos que cria. No entanto, a ló- CAPITALISMO
gica da quantificação, da matematização, da do-
minação, revela-se astuta. O progresso é, por na- O capitalismo, como sistema, apresenta
tureza, cumulativo e linear, e se traduz de forma uma capacidade de reprodução que, por sua
quantitativa em detrimento da qualidade. dinâmica autonomizada, entra em conflito
Essa racionalidade quantificável do de- com a dinâmica da natureza e da humanidade
senvolvimento (Beaud, 1997). O capitalismo, informado por
uma lógica racional instrumental e marcado
[...] é irracional. O desenvolvimento ignora
que o crescimento técnico-econômico produz pela ânsia de domínio, entranha um conflito
subdesenvolvimento moral e psíquico: a hiperespe- de reprodução social, longa e profundamente
cialização generalizada, a compartimentalização em explorado em suas diversas facetas pelas mais
todas as áreas, o hiperindividualismo e o espírito do diversas ciências sociais. Quando falamos que
lucro geram a perda da solidariedade. O desenvol-
o capitalismo se volta contra a humanidade,
vimento engendra um conhecimento especializado
corremos o risco de uma generalização apres-
que é incapaz de compreender os problemas multi-
dimensionais (Morin, 2002, p. 45). sada e incorreta. Por um lado, o capitalismo
apresenta uma enorme capacidade de criar ri-
A ecologia política tem como uma de quezas e mercadorias, além de mobilizar, com
suas tarefas questionar tal concepção de pro- essa finalidade, poderosos meios técnicos, in-
gresso e de desenvolvimento. Um pensamento telectuais, materiais e financeiros. Por outro,
complexo deve propor progressos também no apresenta uma enorme capacidade de ignorar
nível do espírito, não apenas das técnicas ou a pobreza e a miséria e de transformar paisa-
dos meios de produção. Ou, como diz Morin gens, sociedades, normas e valores. Os seres
(1996, p. 98) com certa ironia, “há que fazer humanos não estão colocados da mesma ma-
um progresso na ideia de progresso”. Reconhe- neira diante desse sistema e não contam com
cer certas ignorâncias e limites pode ser um os mesmos recursos para enfrentar suas adver-
progresso na ciência, ao contrário do que se sidades. Seria mais correto postular que uma
pensava anteriormente. pequena parcela da humanidade, que tem o
A noção de progresso, portanto, parece controle da “máquina capitalista”, usufrui das
ter perdido seu rumo. Prometeu desenvolvi- benesses oferecidas por esse modo de produ-
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de transformação se impôs e que consiste no fechado em que nada entra e nada sai, ou seja,
seguinte: “em vez de a economia estar embuti- desenvolve um metabolismo em que não há en-
da nas relações sociais, são as relações sociais tradas (de matéria e energia), nem saídas (resí-
que estão embutidas no sistema econômico” duos). Está em permanente equilíbrio. Com essas
(Polanyi, 2000, p. 77). A consequência desse características, a economia se apresenta como
processo é que, em definitivo, “[...] a socieda- uma “máquina de moto-perpétuo, uma máquina
de humana torna-se um acessório do sistema capaz de produzir trabalho ininterruptamente,
econômico” (Polanyi, 2000, p. 97). Aqui se en- consumindo a mesma energia e valendo-se dos
contra o cerne daquilo que Polanyi chama de mesmos materiais. Tal máquina seria um recicla-
“grande transformação”. Em tal contexto, a de- dor perfeito” (Cechin, 2010, p. 41).
vastação da terra não se apresenta como uma No entanto, há aqui um equívoco: “isso
fatalidade, mas “a consequência de um modo contradiz uma das principais leis da física:
de produção” que “exige a maximização dos a segunda lei da termodinâmica, a lei da en-
rendimentos e recorre a técnicas que violam o tropia” (Cechin, 2010, p. 41). De acordo com
equilíbrio biológico” (Gorz, 2010, p. 10). essa lei, a energia é dissipativa e, portanto, em
qualquer processo de produção, há sempre
A mundialização da produção, das trocas e da co-
municação e, sobretudo, do poder inaudito sobre
perdas – a quantidade de energia que entra em
a natureza, fruto do desenvolvimento tecnológico, qualquer processo não é a mesma que sai.
conferem à humanidade [...] um estatuto de força Essas descobertas no campo da física
geológica planetária (Gollain, 2000, p. 23). e da química são fundamentais para a com-
preensão de qualquer atividade econômica
Estudos realizados já nos anos 1960 come-
e, mais ainda, para a detecção dos limites da
çam a questionar o futuro e a sobrevivência de
economia capitalista. Emerge uma visão, essa
um sistema de crescimento indefinido e de ex-
sim real, de que “a economia não é uma totali-
pansão ilimitada das mercadorias em um mundo
dade, mas, sim, um subsistema de um sistema
físico limitado. Economistas, como Serguei Podo-
maior” (Cechin, 2010, p. 41), o ecossistema. O
linsky, Georgescu-Roegen e, mais recentemente,
metabolismo social deve estar referido ao me-
Herman Daly, entre outros, têm o atrevimento de
tabolismo da natureza, deve abrir-se a ele; caso
questionar, com base em pesquisas da física, os
contrário, entrará em conflito com ele. O siste-
fundamentos da ciência econômica. Resulta que
ma econômico, como qualquer outro sistema,
os fundamentos da ciência econômica assentam
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e trabalho são os únicos fatores de produção nes- o conhecemos e praticamos, aquilo que é o cer-
ses esquemas analíticos, assim, não foi atribuída ne de nossa existência individual e social, foi
nenhuma importância para o papel da natureza na
uma invenção, mais tarde generalizada com o
explicação da dinâmica capitalista, nem como fonte
provedora de recursos, nem como sumidouro de re-
industrialismo” (Gorz, 2003, p. 21).
síduos (Cechin, 2010, p. 43). A natureza do trabalho passou por uma
profunda mutação, que alterou sua compreen-
A utilização da metáfora mecânica aplica- são, suas características e seu lugar social. A ati-
da à economia foi responsável por uma compre- vidade, feita com vistas à satisfação das neces-
ensão do processo de produção como um sistema sidades vitais, transmutou-se em atividade pro-
isolado, a-histórico e que não sofre de interferên- dutora de mercadorias, em trabalho abstrato. É
cias externas. Sobre essa base irreal se assenta a esse tipo de trabalho que “se tornou a principal
visão de um crescimento econômico infinito. fonte de renda que permite aos indivíduos vi-
ver, mas que é também uma relação social fun-
damental [...] e finalmente o meio para alcançar
A INVENÇÃO DO TRABALHO a abundância” (Méda, 1995, p. 8).
Pelo fato de propor que o trabalho seja
Gorz debruça-se a destrinchar a raciona- uma criação do capitalismo, não se quer, evi-
lidade econômica que deu origem e sustenta- dentemente, afirmar que aquelas atividades
ção ao paradigma moderno de economia, com realizadas em vista da subsistência física, do
as características e impactos que acabamos de atendimento das necessidades básicas da vida
ver. Como a racionalidade econômica está es- individual e social – o que hoje chamamos de
treitamente vinculada à concepção de trabalho trabalho –, não tenham existido. Nessa acep-
a que ela dá origem, vamos, primeiramente, ção, o “trabalho” sempre existiu, embora com
nos deter a analisar as mudanças que ela opera outras feições nas sociedades pré-capitalistas.
na atividade que, de um modo geral, denomi- Antes de examinar a transformação na
namos de trabalho. natureza do trabalho operada pelo capitalismo
Em nossas sociedades, o trabalho foi al- e suas consequências, vamos nos deter a in-
çado a fator estruturante da organização eco- dicar sucintamente os elementos centrais das
nômica, política e social. Ele se tornou um concepções de trabalho anteriores ao surgi-
“fato social total”, pois “estrutura não somente mento da modernidade.
a nossa relação com o mundo, mas também as Primeiramente, convém recordar que as
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A ideia de necessidades ilimitadas está os gregos, dizia respeito à luta pela sobrevi-
ausente nessas sociedades, assim como a ideia vência física do corpo. Ele estava associado
de acumulação ou de produção acima do ne- ao seu processo biológico. Havia uma estreita
cessário para a satisfação das necessidades. relação entre produção e consumo. Tudo o que
Além disso, elas não conhecem o exercício in- é produzido pelo labor é destinado ao consu-
dividual ou com intenções puramente indivi- mo imediato, motivo pelo qual não deixa nada
duais da atividade produtiva. Por isso, também atrás de si e é, por isso mesmo, marcado pelo
o tempo consagrado ao aprovisionamento ou efêmero. Já o “work” (obra) é uma atividade
às atividades de reprodução da força física é inerentemente solitária e requer a maestria
o mínimo possível. Em suma, “o sistema eco- do uso das mãos para produzir objetos que
nômico estava submerso em relações sociais não são intrínsecos ao ciclo vital da espécie.
gerais; os mercados eram apenas um aspecto Através dessas atividades, os humanos fabri-
acessório de uma estrutura tradicional contro- cam uma infinidade de coisas que os rodeiam
lada e regulada mais do que nunca, pela auto- e passam a constituir a sua mundanidade. A
ridade social” (Polanyi, 2000, p. 88). Ou então, obra combina permanência e liberdade.
os fatos sociais que estruturam essas socieda- Os gregos, além disso, faziam uma rígi-
des não têm uma natureza econômica. da distinção entre a esfera privada e a esfera
Também entre os gregos não é possível pública. “A esfera privada, aquela da família,
encontrar algo que unifique as atividades pro- confundia-se, pois, com a esfera da necessida-
dutivas. Entre eles, encontramos uma hierar- de econômica e do trabalho, ao passo que a es-
quia muito rígida na classificação das múlti- fera pública, política, aquela da liberdade, ex-
plas atividades humanas, que são valorizadas cluía rigorosamente as atividades necessárias
em função da maior ou menor semelhança que ou úteis dos ‘assuntos humanos’” (Gorz, 2003,
podem ter com a imobilidade e a eternidade. p. 23), o que reforçava a ideia da superioridade
Hannah Arendt (1989) faz uma distinção en- da atividade política em relação ao “trabalho”.
tre vita contemplativa e vita activa. A primeira “Servil e restrito ao doméstico, o ‘trabalho’,
caracteriza-se pela valorização do pensamento, longe de conferir uma ‘identidade social’, era
da contemplação ou da ciência. Já a vita acti- algo que pertencia à existência privada e ex-
va pode ser dividida em dois grandes ramos de cluía da esfera pública aquelas e aqueles que
atividades: um primeiro, que abarca a atividade a ele se viam assujeitados” (Gorz, 2003, p. 24).
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ética e a atividade política, atividades que go- Além disso, e esse é um aspecto importante na
zam de grande estima e consideração entre os análise de Gorz, para os gregos, “a esfera do
gregos, porque não apresentam mediação ma- consumo e das necessidades materiais tem um
terial e potencializam a esfera da liberdade. A lugar limitado, porque, para eles, as necessi-
essas atividades, opõe-se o conjunto de ativida- dades são limitadas [...], a ideia de felicidade
des que nos liga ao reino da necessidade, e que não vem da satisfação de uma série limitada de
estão situadas no polo mais baixo da hierarquia necessidades” (Méda, 1995, p. 46).
de valorização. O que chamamos de trabalho Como se pode ver, também nessa civili-
identifica-se com esse nível de atividades. zação, não encontramos um termo que unifique
Gorz referencia-se em Hannah Arendt, e dê o significado daquilo que chamamos
ao fazer a discussão sobre o conceito de tra- “trabalho”, embora ele já se apresente como
balho, especialmente na distinção que a filó- uma atividade distinta de outras atividades.
sofa fez entre “labor” e “work”.3 O labor, para O século XVIII europeu é testemunha
3
Como observa com acerto Silva (1999, p. 165, na nota labor e trabalho. A tradução é imprecisa porque, no portu-
n. 2), versão brasileira do livro A condição moderna, de guês, o termo trabalho (do francês “travail”) corresponde
H. Arendt, os termos “labor” e “work” “foram traduzidos originalmente ao que Arendt chama de “labor” e não ao
de maneira, a meu ver, imprecisa, como, respectivamente, que ela chama de “work”, cujo correspondente seria obra.
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ter preço, isto é, uma atividade passível de ser outra mudança na concepção moderna de tra-
comprada e vendida em um mercado, além da balho: a de que o trabalho se transmutou de
possibilidade de parte da atividade humana “poièsis”, isto é, de algo que se “faz”, em algo
ser destacável de seu sujeito. O trabalho apa- que se “tem” (Gorz, 2004). Ter ou não ter um
rece como “uma ‘capacidade’ de que o indiví- trabalho significa ter ou não ter um emprego e,
duo dispõe livremente e com a qual negocia por conseguinte, um salário. É essa dimensão
as condições de compra com um empregador” que está em crise hoje, com a chamada “crise
(Méda, 1995, p. 73). Emerge, portanto, um do trabalho”. Pedimos desculpas por mais uma
conceito de trabalho imediatamente material, longa citação, mas ela explicita bem o que nos-
quantificável e mercantil. so autor pensa sobre essa questão.
A característica fundamental do emprego
O ‘trabalho’ é definido, antes de tudo, por ser uma
é ser “uma atividade realizada em vista do in- atividade social, destinada a inscrever-se no fluxo
tercâmbio mercantil e tornada necessariamen- das trocas sociais na escala do conjunto da socieda-
te objeto de um cálculo contábil, de maneira de. Sua remuneração atesta tal inserção, mas ainda
que seja realizada o mais eficazmente possível” não é isso o essencial: o essencial é que o ‘trabalho’
(Gollain, 2000, p. 112). Desse novo horizonte preenche uma função socialmente identificada e
normatizada na produção e na reprodução do todo
sociocultural nasce o trabalho entendido como
social. E, para preencher uma função socialmente
emprego ou como assalariamento: identificável, deve ser ele próprio identificável pe-
A característica mais importante desse trabalho – las competências socialmente definidas que aciona
aquele que ‘temos, ‘procuramos’, ‘oferecemos’ – é ser conforme certos procedimentos socialmente determi-
uma atividade que se realiza na esfera pública, soli- nados. Ele deve, em outros termos, ser um ‘ofício’,
citada, definida e reconhecida útil por outros além uma ‘profissão: isto é, a mobilização de competências
de nós e, a este título, remunerada. É pelo trabalho institucionalmente atestadas segundo procedimentos
remunerado (mais particularmente, pelo trabalho homologados (Gorz, 2004, p. 11, grifo do autor).
assalariado) que pertencemos à esfera pública, ad-
quirimos uma existência e uma identidade sociais Para Gorz, a sociedade do trabalho pas-
sou a identificar a forma particular de trabalho,
(isto é, uma ‘profissão’), inserimo-nos em uma rede
o emprego, o assalariamento, com a forma gené-
de relações e de intercâmbios, onde a outros somos
equiparados e sobre os quais vemos conferidos cer-
rica de trabalho. O emprego é sinônimo de tra-
tos direitos, em troca de certos deveres. O trabalho
balho, embora não o seja. Parte do esforço teó-
socialmente remunerado e determinado – mesmo
rico de Gorz consiste em desvincular esses dois
para aqueles e aquelas que o procuram, para aqueles
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cionalidade econômica. O capitalismo indus- lização de todos os seus elementos (que) nada
trial submete o trabalho a uma racionalidade tinha de novo”, mas em que, em um determi-
econômica cuja crítica ocupa um dos lugares nado momento, “os produtores quiseram impô
centrais na análise de Gorz, desenvolvida es- -lo a seus fornecedores”, o que se abstiveram
pecialmente em seu livro Metamorfoses do tra- de fazer antes (Gorz, 2003, p. 26).
balho: crítica da razão econômica. E ele o faz Em uma análise conclusiva que recorda
recorrendo especialmente a Max Weber e Jür- muito Polanyi, Gorz diz que:
gen Habermas (Gorz 2003; 1991; Silva, 1999).
A racionalidade econômica foi por longo tempo
Para Gorz, a ideia moderna de trabalho é contida, não apenas pela tradição, mas por outros
contemporânea do capitalismo manufatureiro. tipos de racionalidade, outras finalidades e outros
Até por volta de 1850, o capitalismo industrial interesses que lhe consignavam limites a não serem
ainda coexistia com a indústria doméstica na ultrapassados. O capitalismo industrial só pôde de-
produção têxtil, ou seja, “a ‘produção industrial’ senvolver-se a partir do momento em que a raciona-
lidade econômica emancipou-se de todos os outros
não era, em seu conjunto, regida pela racionali-
princípios de racionalidade, para submetê-los a seu
dade econômica” (Gorz, 2003, p. 24). A tecela- único domínio (Gorz, 2003, p. 27).
gem era, para os tecelões domésticos, mais do
que um meio de ganhar a vida, “um modo de O “espírito do capitalismo” transgri-
vida regido por tradições, respeitadas – embora de fronteiras antes mantidas em seus limites
pareçam irracionais do ponto de vista econômi- e consiste na “sua estreiteza unidimensional,
co – pelos capitalistas” (Gorz, 2003, p. 24, grifo indiferente a qualquer outra consideração
do autor). A esses não passava pela cabeça se- além da contábil, pela qual o empreendedor
quer a possibilidade de racionalizar o trabalho. capitalista leva a racionalidade econômica a
No entanto, como a burguesia nascente suas últimas consequências.” (Gorz, 2003, p.
“não pode existir sem revolucionar continu- 26). Segundo Weber, uma das características
amente os instrumentos de produção e, por fundamentais da economia privada capitalista
conseguinte, as relações de produção, por- é “ser racionalizada com base no cálculo arit-
tanto, todo o conjunto das relações sociais” mético rigoroso, ser gerida de forma planejada
(Marx; Engels, 1999, p. 69), esse estado de e sóbria para o almejado sucesso econômico,
coisas está para ser transformado radicalmen- contrariamente à existência do camponês”
te. Para descrever esse momento revolucio- (Weber, 2004, p. 67).
nário, Gorz transcreve um longo trecho de A Entretanto, Weber, e Gorz na sua esteira,
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coercitivo” (Gorz, 2003, p. 112). Foi o caráter não o contrário. As necessidades de consumo
revolucionário da introdução do cálculo que deveriam crescer pelo menos tão rapidamen-
permitiu “emancipar-se de toda tutela exterior te quanto o aumento da produção de merca-
e era gerador de uma ordem cujas leis objetivas dorias (Gorz, 2003). “A eficiência ilimitada na
não admitiam apelo” (Gorz, 2003, p. 112). valorização do capital exigia assim o máxi-
A consequência mais importante é que a mo ilimitado de ineficiência na provisão das
racionalidade econômica “separava o trabalho necessidades e de desperdício no consumo”
de sua necessidade. A finalidade do trabalho (Gorz, 2003, p. 115), o que abre margem para
não era mais a satisfação das necessidades” uma série de análises críticas de Gorz sobre a
(Gorz, 2003, p. 113). O trabalhador “não pro- questão do consumo e do consumismo. Nesse
duz nada do que consome e não consome nada autor, encontramos uma crítica radical do mo-
do que produz” (Gorz, 2003, p. 30). A nova fi- delo de consumo, sempre vinculada à crítica
nalidade do trabalho passa a ser a de ganhar o do modelo de produção, o que, por sua vez,
suficiente para poder comprar as mercadorias entrelaça economia, sociedade e natureza.
produzidas pela máquina social. Na medida O sucesso da ideologia do progresso ili-
em que a paixão racionalizadora se autonomi- mitado, do “crescimentismo”, consiste na ca-
za em relação a qualquer outra finalidade, ela pacidade que o sistema capitalista tem para
faz aparecer alavancar indefinidamente o consumo de
mercadorias. Para isso, vale-se de algumas es-
... uma medida objetiva da eficácia, do esforço e da
vitória: o montante do ganho. Vencer não era, por-
tratégias que incluem o recurso à propaganda
tanto, uma questão de apreciação pessoal e de “qua- (travestir as mercadorias de símbolos), ao au-
lidade de vida”; era mensurável pela quantidade de mento da obsolescência dos produtos, à subs-
dinheiro ganho, pela fortuna acumulada. A quan- tituição dos consumos e serviços coletivos por
tificação fazia surgir um critério irrecusável e uma consumos e serviços individuais, entre outros
escala hierárquica que não precisavam ser validadas
(Gorz, 1978, 2010; Latouche, 2009).
por nenhuma autoridade, nenhuma norma, nenhu-
ma escala de valores. A eficiência era mensurável
Ironicamente, embora o capitalismo in-
e, através dela, a capacidade de um indivíduo, sua dustrial, em sua época, tenha superado dois
virtude: mais vale mais que menos, aquele que con- grandes limites – transformar o trabalho em
segue ganhar mais vale mais que aquele que ganha mercadoria, o trabalho concreto em trabalho
menos (Gorz, 2003, p. 113). abstrato e vencer as barreiras do suficiente –,
Na essência dessa nova lógica está o fato atualmente, o capitalismo financeiro defronta-
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Por trás disso está um determinado projeto de vimento dos indivíduos” (Gorz, 1991, p. 173).
sociedade. Mas Gorz cedo percebeu que o capita-
Gorz propõe duas políticas: a primeira lismo, dada sua capacidade de resiliência,
diz respeito à diminuição do tempo de traba- poderia assimilar a pressão ambiental e incor-
lho, com vistas a partilhar, entre todos, o traba- porá-la com vistas a seus interesses, tirando
lho social necessário e aumentar o tempo livre, proveito, inclusive, da destruição da natureza.
dedicado ao exercício de atividades não neces- Por isso, em um artigo publicado originalmen-
sariamente econômicas, mas criadoras de rela- te na revista Le Sauvage, em 1974, e depois
ções sociais e cheias de sentido (Gorz, 2004); incorporado ao livro Écologie et Politique, fala
a segunda diz respeito à defesa incondicional na ecologia “deles”, contrapondo-a à “nossa”,
da renda universal de existência (Gorz, 2004, com objetivos e fins diversos. Ali ele insiste na
2005; Langer, 2004). A renda garantida deve necessidade de opor à divisa da sociedade ca-
tornar possíveis, segundo Gorz, todas “as ativi- pitalista, à “ideologia do crescimento” – “Aqui-
dades fora do mercado, fora de compatibilidade lo que é bom para todos não vale nada. Você
e fora de normas, e que não são e não produzem só será respeitado se for ‘melhor’ do que os ou-
nada de permutável por outra coisa, nada de tros” –, esta outra, uma divisa ecológica – “Só é
mensurável e de traduzível em seu equivalente digno de você aquilo que é bom para todos. Só
monetário” (Gorz, 2005, p. 75). Baseia-se mais merece ser produzido o que não favorece nem
em critérios antropológicos do que econômicos. diminui ninguém” (Gorz, 1978, p. 14).
Entrelaçada com essa perspectiva está a Nesse sentido, a ecologia política deve
ecologia política. “O reequilíbrio entre trabalho necessariamente ser anticapitalista e socialista.
remunerado, de um lado, atividades não remu-
Para viver melhor, é preciso daqui em diante pro-
neradas e lazeres, de outro, é particularmente duzir e consumir de outra maneira, fazer melhor
importante na perspectiva de uma reestrutura- e mais com menos, eliminando, para começar, as
ção ecológica da sociedade” (Gorz, 1991, p. 169), fontes de desperdício (exemplo: as embalagens per-
porque há uma relação entre o tempo dedicado didas, o mau isolamento térmico, a prevalência do
ao trabalho remunerado e a tendência ao consu- transporte rodoviário, etc.) e aumentando a durabi-
lidade dos produtos (Gorz, 1991, p. 194).
mo de mercadorias. Inversamente, “a autolimi-
tação da duração do trabalho, o ‘tempo escolhi- Por essa maneira de ser e de pensar de
do’ torna possível a autolimitação da renda e do Gorz, a sociedade socialista continua a estar
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André Langer
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RACIONALIDADE ECONÔMICA, TRABALHO E ECOLOGIA ...
This article’s objective is to present André Gorz’s L’objectif de cet article est de présenter l’analyse
critical analysis of work and political ecology starting critique d’André Gorz sur le travail et l’écologie
from the centrality that the concept of economic politique. Notre point de départ est la centralité
rationality acquires in his thought. To the author, que le concept de rationalité économique dans le
the unlimited extension of economic rationality to capitalisme acquiert dans sa pensée. Selon lui,
work and nature is considered futureless from the l’extension illimitée de la rationalité économique
viewpoint of society. Gorz recognizes the intimate au travail et à la nature est considéré sans avenir du
relationship between criticism of capitalism point de vue de la société. Gorz reconnaît l’étroite
and the task of political ecology. Another aspect relation existante entre la critique du capitalisme
present in his work – the least explored one – is the et la tâche de l’écologie politique. Un autre aspect
relationship between work and ecological crisis. présent dans son œuvre, et beaucoup moins
Capitalism appropriates work or employment not exploré, est la relation entre le travail et la crise
just for its interests, but also for transforming them écologique. Le capitalisme s’approprie le travail ou
into instruments of environmental destruction. l’emploi non seulement pour les soumettre à ses
This paper also aims to indicate – following the intérêts mais aussi les transforme en instruments
spirit of Gorz, although in a succinct manner – a de destruction de la nature. Cet article veut aussi,
few alternative horizons. bien que de manière succincte mais fidèle à l’esprit
de Gorz, donner quelques alternatives pour de
nouveaux horizons.
Keywords: Gorz. Economic rationality. Labor. Mots-clés: Gorz. Rationalité économique. Travail.
Political ecology. Capitalism. Ecologie politique. Capitalisme.
Caderno CRH, Salvador, v. 30, n. 81, p. 479-496, Set./Dez. 2017
André Langer – Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor na
Faculdade Vicentina – FAVI, de Curitiba, e tradutor. Entre suas publicações está: Pelo êxodo da sociedade
salarial. A evolução do conceito de trabalho em André Gorz. Cadernos IHU, v. 2, n. 5, 2004.
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