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Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación

Departamento de Lenguas y Literaturas Modernas


Professorado de Português.

Do substantivo gente para a gente com função


pronominal: uma análise de gramaticalização 

Disciplina: Língua e gramática portuguesa IV


Aluna: Fernandez, Maria Eugenia.
Professor (as): Peez Klein, Daniela.
Nascimento, Rosanne

2022
RESUMO
Pretende-se no presente trabalho desde um olhar funcionalista da língua analisar o
processo de gramaticalização pelo qual atravessou o substantivo “gente”. À vista disto,
apresenta-se a nova função adquirida “a gente” como pronome pessoal de primeira
pessoa do discurso na língua portuguesa brasileira (LOPES, 2007).

PALAVRAS CHAVE:
Gramaticalização - gente> a gente –– funcionalismo

1.1 Apresentando o processo de gramaticalização 


No Português Brasileiro (PB) é muito frequente a utilização do pronome “a gente”
empregada para substituir o pronome pessoal “nós”. Esta forma popular é usada para
referir-se a um grupo de pessoas incluindo o locutor do discurso (conforme as
observações que serão apresentadas mais adiante).

Delimitando cronologicamente a fase histórica deste uso pronominal, registramos que


tem sua origem do substantivo “gente” onde por meio da funcionalidade da língua em
diferentes contextos discursivos passou ser parte de outra classe/categoria. “Gente”
passou pelo processo de gramaticalização adquirindo uma nova função: gente > a gente.

Vale ressaltar que a gramaticalização é um dos processos mais comuns que se tem
observado e estudado nas línguas em geral. Este processo leva a mudança de um item
lexical que passa a assumir um novo status como item gramatical, podendo mudar de
categoria sintática e também receber uma nova função na sentença, além disso, um item
pode sofrer alterações semânticas e fonológicas (LEITE GONÇALVES 2007). 

Desta forma, salientamos que a gramaticalização é um caso específico de mudança


linguística já que, a funcionalidade da língua gera uma passagem através do discurso
para uma alteração da gramática e da língua visto que se ajustam às necessidades
comunicativas; forma> função. 

É justamente nessa passagem que percebemos os deslizamentos funcionais


desempenhados pelo substantivo “gente” conforme já verificado por (SANTOS 2007).
Para evidenciar isso numa amostra do uso atual da nova função, usaremos como corpus
a examinar memes já que, este gênero textual é muito frequente no mundo da internet
com o propôs humorístico/crítico sob estrutura semiótica e linguística. Porém, para que
algo se torne um meme é preciso que contenha padrões usuais empregados pela
sociedade. Neste trabalho apresentaremos o uso linguístico frequente de “a gente” no
português brasileiro. 

1.2 Abordando as mudanças linguísticas


Para entender os diversos processos de mudanças linguísticas é preciso conceber a
língua como uma entidade viva que evolui e sofre alterações permitindo a renovação do
sistema linguístico. 

NEVES (2000:03), diz que “a língua (e a gramática) não pode ser descrita como um
sistema autônomo, já que a gramática não pode ser entendida sem parâmetros como
cognição e comunicação, processamento mental, interação social e cultura, mudança e
variação, aquisição e evolução”.

A gramática funcional modelo que acompanha o presente trabalho verifica como se


processa a comunicação nas diversas línguas, quer dizer, é uma gramática de uso
linguístico que considera a relação entre estrutura e função como algo instável, essa
instabilidade reflete o caráter dinâmico da língua. Ademais, esta teoria busca verificar
como opera não apenas o usuário da língua, mas também, sua capacidade linguística
para se adequar a diferentes contextos comunicativos.

Desse modo, apontando às mudanças linguísticas conforme um olhar funcionalista,


assinalamos que esta abordagem se preocupa em estudar a relação entre as estruturas
gramaticais das línguas e os diferentes contextos comunicativos em que elas são usadas
(MARTELOTTA, 2008). Este modelo teórico enfatiza na explicação das regularidades
observadas no uso interativo da língua, recorrendo ao contexto de uso para compreender
a motivação das diferentes estruturas sintáticas. Em outras palavras, as expressões
linguísticas só podem ser entendidas a partir de sua função no contexto, pois é na
estrutura sintática onde a gramática é construída em relação ao contexto no qual o
discurso se molda. Em razão disso, língua é considerada pelos funcionalistas como um
órgão maleável, pois ela serve a funções cognitivas e comunicativas do falante e é uma
estrutura motivada pelo sentido particular de cada contexto de enunciação. 
Perante estas mudanças, surge a gramática emergente assumida por vários estudiosos da
gramaticalização. Esta nova gramática estuda todas e cada uma das mudanças
linguísticas (velhas formas versus normas formas) considerando a língua em uso e
aludindo que não existe uma gramática fixa, mas sim, uma em constante
gramaticalização/ renovação (HOPPER, 1987). 

1.3 Deslizamentos funcionais gente> a gente: gramaticalização em


evidência 
Em primeiro lugar, olha-se para o estado atual do sistema pronominal do Português
Brasileiro que sofreu diversas evoluções devido à inclusão de novas formas neste caso,
o uso de “a gente”.  A forma teria aparecido no sistema a partir do século XVII,
instaurando-se efetivamente na língua no século XX e passando por diversas mudanças
relacionadas tanto às suas propriedades formais como semântica (ARRUDA, 1998). O
pronome pessoal “a gente” teve sua origem do substantivo “gente” que, ao se
desempenhar em certos contextos discursivos, adquiriu outras propriedades, funções e
valores passando a formar parte de outra categoria: a gente.

A nova forma está cada vez mais presente no falar dos brasileiros colocando-se em
lugar do pronome “nós” (1° pessoa do singular); diante disso, LOPES, (2002) declara
que este processo refere-se a uma mudança tanto gramatical quanto pragmática bem
como mencionam os funcionalistas. Cabe ressaltar que “gente” significa ser humano
por oposição a um ser de outra espécie (Aulete Digital) ou mesmo “Quantidade não
determinada de pessoas; povo, multidão, população” (Aurélio Digital). À vista disso,
em seu processo de gramaticalização perdeu traço de número colocando-se “a gente” no
quadro dos pronomes pessoais e funcionando como “nós” aludindo a um falante mais
alguém. Veja-se nos seguinte corpus analisados;
[Corpus 1] Em: https://ar.pinterest.com/pin/774056254689035819/?
amp_client_id=CLIENT_ID(_)&mweb_unauth_id={{default.session}}&simplified=true

[Corpus2] em: https://br.ifunny.co/picture/lucas-um-dia-vamos-namorar-e-vamos-esfregar-na-cara-


KsgIaPQd7

[Corpus 3] em:https://www.uol.com.br/ecoa/reportagens-especiais/eliane-brum-alegria-
de-estar-junto-e-instrumento-de-resistencia-poderoso/#page5.

Percebe-se como “gente” é utilizado (1) na terceira pessoa para referir-se a um grupo de
pessoas. Em (2) observa-se como “a gente” inclui a pessoa que começou o chat e Lucas 
a quem foi enviada a mensagem (3° pessoa/ele). Com isto, observamos que a forma
gramaticalizada mantém de “gente” o traço formal de 3° pessoa embora ela acione uma
interpretação semântico-discursiva de 1° pessoa (+EU).

Ademais, o substantivo “gente” atua como representativo de “pessoas” até chegar ao


uso atual: “a gente” como pronome sujeito, acontecendo à mesma situação no trecho
retirado de uma reportagem, sua autora Eliane Brum no artigo utiliza “a gente”
incluindo-se como promovedora de um planeta melhor e menciona que para isso,
EU+alguém devem se transformar em outro tipo de pessoa (gente) para melhorar a
situação de crise. Nesse sentido, a forma gramaticalizada herdou a referência
indeterminada e a noção coletiva do substantivo “gente”.

1.4 “A gente” e “nós”: uma análise dos contextos de uso         

Nas diversas gramáticas normativas, não há divergências significativas quanto ao elenco


dos pronomes pessoais sujeitos e a forma de apresentá-los, um dos autores de referência
é (Lima, R. 1973). Conforme (SANTOS, 2007) os gramáticos caracterizam os pronomes
pessoais como indicadores universais das três pessoas do discurso: quem fala, com
quem se fala e de quem/que se fala, admitindo formas no singular com correspondentes
no plural.

Tanto “a gente” quanto “nós” são duas formas aceitáveis dependendo do contexto de
uso. A gramática tradicional não inclui formas como “você” ou “a gente”, portanto,
quando fazemos uso da norma culta ou mesmo em situações formais do uso da língua é
exigida a forma “nós”. Já em uma comunicação informal, o uso de “a gente” é muito
recorrente. 

 (Quadro 1 – gramática tradicional) em (Lima, R. 1973).

Número 1° pessoa 2° pessoa 3° pessoa


Singula Eu Tu Ele/ela
r
Plural Nós Vós Eles/elas

(Quadro 2 – usos atuais)

Número 1° pessoa 2° pessoa 3° pessoa


Singula Eu Tu/Você Ele/ela
r
Plural Nós/a gente Vocês Eles/elas

O pronome “a gente” segundo o Dicionário Aurélio (online) é uma locução equivalente


semanticamente ao pronome pessoal “nós” e para a gramática a utilização do pronome
“a gente” deve ser empregada na terceira pessoa do singular. A conjugação verbal será
demonstrada da seguinte maneira: ao utilizarem “nós” (1° pessoa do singular) como se
apresenta nos memes (1) e (2) os verbos são conjugados na 1ra pessoa do plural. Já nos
memes (3) e (4) ao utilizarem “a gente”, o verbo é conjugado na terceira pessoa do
singular, mesmas conjugações visadas no meme (5).

[Corpus 1em https://me.me/i/0-que-n%C3%B3s-queremos-a-cura-para-a-bipolaridade-mundo-

b74ab3e5b6024021ab1d09eeec90f745 e corpus 2 em http://epsub.blogspot.com/2013/01/meme-o-


que-queremos.html ]

[Corpus: 3 em https://www.memecreator.org/meme/a-gente-sai-da-faculdade-no-
feriado-mas-a-faculdade-no-sai-da-gente/ e corpus 4 em
https://makeameme.org/meme/a-gente-junto ]
[Corpus 5]

O uso de “a gente” ao invés de “nós” pode ser relacionado com a proposta de


(HALLIDAY 1974/5/6-1985). Segundo o autor a escolha dos itens está ligada com o
sistema social, ou seja, o funcionamento da língua se dá a partir dos fatores externos
onde o falante determina suas escolhas. Isto tomaria relevância entendendo que cada
pessoa pertence a um grupo social diferente e utiliza a língua em diversas situações com
o fim de atingir diferentes objetivos. 

Por outro lado, a partir do contínuo uso de “a gente” observamos que tal uso é mais
frequente em contextos menos formais (memes). Quanto o uso de “nós” é possível
aparecer em contextos menos formais já que é o pronome mais recomendado de acordo
com a norma culta em relação a suas regras gramaticais, com isso, tem mais
formalidade. Portanto, as duas formas convivem no sistema do português brasileiro
embora a forma inovadora venha ganhando espaço no português informal do Brasil.

Outra observação remete-se ao caráter dêitico da nova função que se oporia ao caráter
simbólico/representativo de “gente”. Isto pode ser explicado porque o uso dos pronomes
pessoais na cena de interação linguística é usado com função dêitica quer dizer, referem
às pessoas que participam no discurso (sujeitos) quanto o uso simbólico/representativo,
o substantivo nomeia uma generalidade. (genérico) > nome genérico > pronome
sujeito+indefinido. Em outras palavras, o caráter dêitico de “a gente” significa que o
pronome pessoal indica as pessoas que participam no discurso (eu+alguém) dentre a
conversa de uma maneira explicitada pelo contexto, a sua vez, esse caráter dêitico se vê
reflexado/mencionado através de um adverbio de tempo como na seguinte oração: “A
gente vai comer hoje”. Caso contrário acontece com o substantivo gente já que nomeia
pessoas em geral sem especificações, como no caso de; “tem que sair a conhecer gente”
(pessoas qualquer, sem especificação, generalidade).

1.5 “A gente”: artigo definido + substantivo


Os artigos definidos são palavras variáveis em gênero e número que precedem um
substantivo para determiná-lo de modo preciso. Sintaticamente, o artigo definido
funciona como adjunto adnominal especificando o substantivo, ressaltando que o
adjunto adnominal é um termo acessório da oração que tem como função determinar ou
caracterizar um substantivo. 

Com base nessa definição, “a gente” com estrutura de artigo definido + substantivo
serve para fazer referência a um interlocutor já conhecido pelo locutor mesmo,
incluindo-se porque como foi verificado, embora seu uso seja conjugado em 3° pessoa
do singular adiciona como 1° pessoa do plural, em razão disto, o artigo definido a
acompanha a conjugação verbal da 3° pessoa em número após substantivo. Quanto ao
gênero, o substantivo “gente”  é feminino e singular concordando assim com o artigo
anteposto. 

1.6 “Agente” ou “a gente”? 


Uma dúvida frequente é a diferença entre "agente" e “a gente”, duas palavras quase
iguais que se diferenciam não só por um espaçamento entre o artigo “a” e o substantivo
“gente”, mas também por seu significado. “Agente” escrito de maneira junto é um
substantivo que refere a uma pessoa que faz algo, uma pessoa que age; exemplo, agente
secreto, agente da polícia. Já “a gente” separada como foi exposto nosso trabalho refere-
se a uma locução pronominal que se relaciona com o pronome “nós”; exemplo, a gente
vai jantar juntos amanhã, a gente viaja todos os anos.

Em resumo, estes dois termos são utilizados em diferentes contextos e para fazer
menção a diferentes pessoas do discurso, ou seja, “agente” designa o sujeito da ação e
“a gente” se relaciona com um conjunto de pessoas incluído o “eu” da enunciação.

Corpus 1 e 2 em: https://portuguesemassa.wordpress.com/2013/04/17/a-gente-x-agente-whats-


the-difference/
Considerações finais 

O presente trabalho pretendeu evidenciar o uso de “a gente” com função pronominal


que começou se instaurar no sistema do português brasileiro a partir do século XX
mostrando como esta nova categoria foi fruto da gramaticalização experimentada pelo
substantivo “gente”. Como abordado até aqui, a gramaticalização pressupõe
principalmente, nos estágios iniciais, a coexistência entre novos valores/usos ao lado
dos antigos e a permanência de propriedades lexicais nas formas gramaticalizadas. Pois,
nem todas as propriedades formais do nome gente foram perdidas, visto que os traços
formais persistem na forma gramaticalizada (3ra pessoa).

Além disso, nos exemplos que constroem nosso corpus foram memes utilizados com o
propósito de entender as regularidades linguísticas que produzem as variadas estruturas
sintáticas. Como resultado, observou-se como a inovação do sistema pronominal leva
aos falantes da língua portuguesa brasileira a utilizarem diferentes estratégias no uso de
a gente e nós como equivalentes, dado que a língua se adapta às necessidades cognitivas
e comunicativas dos falantes, salientando que a nova categoria “a gente” tem um uso
mais frequente em contextos menos formais entendo que “nós” é um pronome
regularizado pela norma culta e, portanto é utilizado na fala/escrita formal (gramática
normativa). 

Referencial bibliográfico 

Modesto, ATT (2006). Abordagens funcionalistas. Revista Letra Magna-Revista


Eletrônica de Divulgação Científica em Língua Portuguesa, Lingüística e Literatura,
ano , 3 .

Gonçalves, S. C. L., Lima-Hernandes, M. C., & Casseb-Galvão, V. C. (2007).


Introdução à gramaticalização. São Paulo: Parábola.

Arruda, Carolina Palma de Sousa, 1998 - A gramaticalização do pronome a gente: um


percurso através de cartas pessoais e familiares- Universidade Estadual de Campinas.
Dos Santos Lopes, C. R. (2007). A gramaticalização de a gente em português em tempo
real de longa e de curta duração: retenção e mudança na especificação dos traços
intrínsecos. Fórum linguístico, 4(1), 47-80.

de Castilho, A. T. (2010). A NOVA GRAMÁTICA DO PORTUGUÊS


BRASILEIRO14.

Lima, R. (1973). Gramática normativa da língua portuguesa. J. Olympio.

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