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Mauricio J.

Souza Neto
(Org.)

Língua(gem) e justiça social:


saberes, práticas e paradigmas

TUTÓIA-MA, 2021
EDITOR-CHEFE
Geison Araujo Silva

CONSELHO EDITORIAL
Ana Carla Barros Sobreira (Unicamp)
Bárbara Olímpia Ramos de Melo (UESPI)
Diógenes Cândido de Lima (UESB)
Jailson Almeida Conceição (UESPI)
José Roberto Alves Barbosa (UFERSA)
Joseane dos Santos do Espirito Santo (UFAL)
Julio Neves Pereira (UFBA)
Juscelino Nascimento (UFPI)
Lauro Gomes (UPF)
Letícia Carolina Pereira do Nascimento (UFPI)
Lucélia de Sousa Almeida (UFMA)
Maria Luisa Ortiz Alvarez (UnB)
Marcel Álvaro de Amorim (UFRJ)
Meire Oliveira Silva (UNIOESTE)
Rita de Cássia Souto Maior (UFAL)
Rosangela Nunes de Lima (IFAL)
Rosivaldo Gomes (UNIFAP/UFMS)
Silvio Nunes da Silva Júnior (UFAL)
Socorro Cláudia Tavares de Sousa (UFPB)
2021 - Editora Diálogos
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(eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG)

L755

Língua(gem) e justiça social [livro eletrônico] : saberes, práticas


e paradigma: volume 1 / Organizador Mauricio J. Souza Neto. –
Tutóia: Diálogos, 2021.

Formato: PDF
Requisitos de sistema: Adobe Acrobat Reader
Modo de acesso: World Wide Web
ISBN 978-65-89932-25-3

1. Linguagem e línguas – Estudo e ensino. 2. Linguística. I.Sou-
za Neto, Mauricio J.

CDD 407

Elaborado por Maurício Amormino Júnior – CRB6/2422

https://doi.org/10.52788/9786589932253

Editora Diálogos
contato@editoradialogos.com
www.editoradialogos.com
sU Á

Apresentação ....................................................................................................................... 7
Mauricio J. Souza Neto

Prefácio: Gritos de guerra, palavras de justiça ...............................................12


Rogério Modesto

CAPÍTULO 1 - Língua(gem) e Violência Simbólica.........................................16


Neila Priscila dos Santos Costa

CAPÍTULO 2 - Poder, Dominação e Racismo Estrutural: Análise Crítico-


Discursiva da Ideologia Judicial no Brasil..........................................................35
Gisleuda de Araújo Gabriel
Cleudene de Oliveira Aragão
Gislene Araújo Gabriel

CAPÍTULO 3 - Tradutor e Intérprete de Libras: instrumentalizando o


Sistema Judiciário para uma comunicação acessível................................53
Railda Freitas da Silva Costalonga
Flávia Medeiros Álvaro Machado

CAPÍTULO 4 - Barreiras na efetivação da audiodescrição na TV e no


cinema, apesar das leis.................................................................................................83
Deise Mônica Medina Silveira
Manoel José Passos Negraes

CAPÍTULO 5 - Representações da mulher em campanhas


publicitárias da cerveja Skol: uma análise à luz da teoria enunciativa
bakhtiniana....................................................................................................................97
Marcela Regina Vasconcelos da Silva Nascimento
CAPÍTULO 6 - Experiência leitora como resistência: diálogos entre o
Leia Mulheres - Salvador e o Feminismo Negro...........................................118
Milena Farias de Sousa

CAPÍTULO 7 - Língua(gem)-discurso-ideologia: o pós-feminismo e a


limitação da justiça social........................................................................................137
Agda Dias Baeta

CAPÍTULO 8 - Raça e resistência em espaço digital: efeito-autor e


legitimidade das mídias negras brasileiras.....................................................158
Larissa da Silva Fontana

CAPÍTULO 9 - El colorismo en Latinoamérica: Lo negro también es


bonito...................................................................................................................................182
Carlui Brower

Sobre o organizador.....................................................................................................197

Sobre os autoras e autores.......................................................................................198

Índice remissivo..............................................................................................................202
Apr E T ç ~

Para a cosmogonia das religiões de matriz africana, o número nove é


associado à força de Oyá, a senhora dos ventos. A dualidade da força bruta
manifestada na leveza; força búfala em asas de borboleta. Oyá ô!
Pois o que se descortina na continuidade dessa escrita são nove ventos,
nove folhas, nove búzios, nove navalhas. Este primeiro volume da coletânea
Lingua(gem) e justiça social é uma manifestação do axé temperado, cozido e
enrolado em nove folhas de mamona da Editora Diálogos. Um axé que aqui é
oferecido em nove alguidares, ainda fumegantes e em ebulição; um axé que é
oferecido em nove textos.
O axé é a força vital que todos os seres possuem. O axé é a força que nos
conecta ao mundo e nele nos mantém presentes. Os nove textos que com-
põem esta coletânea formam um axé discursivo, político e pedagógico, nos
convidando a uma agenda dialógica e interventiva no que tange o uso da lín-
gua como transe permanente para ver, ser e estar no mundo. Por isso, todos
os textos apresentados, após macerarem as violências impostas pela vida na
modernidade, firmam o adoxu e urgem nove cortes para a sacralização da lín-
gua e seu uso como ensinamento de esteira e de entrincheiramento, ou seja,
o seu uso como justiça social.
Na língua há o encontro com o desconhecido, e é nesse encontro que nos
formamos e construímos corpos, ideias, identidades etc. Ao assinalar o uso
da língua como justiça social estou, estamos, primeiramente, reconhecendo
que é através da língua e desse encontro que vemos e manifestamos vonta-
des, desejos, afetos, violências (ou seja, a existência de discursos e práticas
de desumanização, de subalternização e de extermínio de um determinado
grupo em prol da existência de outro), e formamos guerrilhas para combater
essas últimas. Utilizar uma língua na estrada da justiça social é uma forma de
a-tu-ação no mundo.
Uma proposta como essa tem a ver com embates contra-hegemônicos e
em vias de mobilizar ações de implosões, de descontinuidade de violências, de
restauração e de cura daquilo que foi violentado.
Isso só pode ser feito através de um redimensionamento do uso da lin-
gua(gem) como ação político-pedagógica per se.

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Usamos a língua em todos os espaços e em todos os momentos. E esse
uso, sobretudo no processo de interação, é um ato político e pedagógico, pois
estamos, a todo momento, ensinando algo, mesmo que sem a intenção cons-
ciente disso.
Os textos que compõem esse ebó de palavras instam ebós de comporta-
mento. Esses textos se alinham ao pensamento aqui apresentado, pois não
só reconhecem as violências aquareladas através da língua, bem como asse-
guram caminhos que nos ajudam a enxergar essas violências, ao passo que
nos colocam (nós, leitores) como agentes de negociação, de atenuação e de
solução para esses conflitos.
Jogando o primeiro fogo de pólvora, temos Neila Priscila dos Santos Cos-
ta, com o capítulo Língua(gem) e violência simbólica. Nele, a autora circuns-
creve violências contra mulheres, dentro da perspectiva dos Estudos Críticos
do Discurso, dialogando com outros campos do saber como os Estudos Cul-
turais, Estudos de Gênero, e discute e problematiza sobre como práticas dis-
cursivas (re)produzem a violência simbólica de gênero contra a mulher, tendo
como material de análise, imagens e frases de efeito que circulam na internet.
Dando continuidade, Gisleuda de Araújo Gabriel, Cleudene de Oliveira
Aragão e Gislene Araújo Gabriel, a fim de desvelar de que forma se manifesta
o racismo estrutural no âmbito do sistema judiciário, analisam uma sentença
condenatória com base na dimensão ideológica a partir de uma decisão do
Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. O texto Poder, Dominação e Ra-
cismo Estrutural: Análise Crítico-Discursiva da Ideologia Judicial no Brasil
termina apontando para a necessidade de se ter uma política de redução do
crescimento da população prisional, por meio da implementação de políticas
de segurança e justiça que não apresentem o encarceramento como única
medida punitiva. Isso, por si, ajudaria no combate ao extermínio da popula-
ção negra, ação proveniente do racismo estrutural e da cultura escravocrata
brasileira.
Em Tradutor e Intérprete de Libras: instrumentalizando o Sistema Ju-
diciário para uma comunicação acessível, Railda Freitas da Silva Costalonga
e Flávia Medeiros Álvaro Machado dialogam sobre as políticas linguísticas de
acessibilidade comunicacional para o cidadão surdo em relação à tarefa do
Tradutores e Intérpretes de Libras (TILS) do Tribunal de Justiça do Espírito
Santo e a instrumentalização dos Operadores do Direito em busca de melho-
rias para o contexto jurídico. Contudo, apontam as autoras para o fato dos

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TILS encontrarem dificuldades, devido a falta de informações basilares, para
execução do seu ofício. Nesse sentido, vislumbra-se a necessidade de investi-
mento na área de Libras para o contexto jurídico, o que permitiria informa-
ções e direitos acessíveis a todos os cidadãos.
Ainda pensando nos processos de acessibilidade, Deise Monica Medina
Silveira e Manoel José Passos Negraes, em Barreiras na efetivação da audio-
descrição na TV e no cinema, apesar das leis, propõem uma reflexão sobre
o acesso das pessoas com deficiência visual à informação e entretenimento.
Apresentando base teórica sólida e a legislação brasileira, os autores con-
frontam o que está escrito academica e legalmente com a prática efetiva das
ações de acessibilidade. Com isso, chamam atenção para o fato de a falta de
acessibilidade ser um problema social. Assim, conclamam tanto dos usuários
quanto dos profissionais de audiodescrição para cobrarem dos órgãos com-
petentes a efetivação de direitos humanos básicos, como o acesso à informa-
ção. Como concluem os autores, o acesso à informação, ao entretenimento
e ao lazer é fundamental para a formação da pessoa com deficiência como
cidadão ativo, garantindo mais condições e conhecimentos para que possa
interferir na realidade ao seu redor de forma mais efetiva e assertiva.
Representações da mulher em campanhas publicitárias da cerveja
Skol: uma análise à luz da teoria enunciativa bakhtiniana é o quinto texto
desta coletânea. O texto oxúnico, de autoria de Marcela Regina Vasconcelos
da Silva Nascimento, utiliza-se da teoria bakhtiniana para analisar, através
de campanhas publicitárias da cerveja Skol, na sua maioria voltada para ho-
mens, como as mulheres são representadas nessas propagandas. A discussão
proposta pela autora nos leva a dois caminhos. No primeiro, somos convida-
dos a ver e a refletir sobre o uso da língua (e das ideologias nela materializa-
das) como forma de violentar corpos; sobre como o machismo constrói teias
de violências nas representações de mulheres. No segundo, contudo, somos
testemunhas do efeito da re_ORI_ent_ação e de seus efeitos, como a, talvez,
inesperada reação do público diante dessas propagandas.
Milena Farias de Sousa escreve o Experiência leitora como resistência:
diálogos entre o Leia Mulheres - Salvador e o Feminismo Negro. Nele, a autora
nos apresenta a iniciativa Leia Mulheres, Clube de Leitura que visa a fomentar
a leitura e o debate de obras escritas por mulheres. O texto autobiográfico
de Sousa é mais do que um gesto de abertura; é um gesto de movimentação
de si para o outro e de volta para si. É um compartilhamento sobre como as

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leituras do Leia Mulheres a formou como leitora dos livros e como leitora e
escritora do mundo. Em outras palavras, é um convite para reflexão sobre
a ideia do leitor como ator e como autor do seu processo de formação cida-
dã. Sousa, como uma mulher branca, de “pele clara, cabelos lisos e loiros”, ao
se questionar e impulsionar a sua escrita, mobilizando engrenagens teóricas
como o letramento racial crítico e as ideias do Feminismo Negro, acaba por
questionar a branquitude e o heteropatriarcado. Nesse processo de amadu-
recimento e de descobertas, Sousa se inscreve no ativismo do uso da língua
para reconhecer práticas de desumanização e de lutar contra elas.
O sétimo texto é o exusíaco Língua(gem)-discurso-ideologia: o pós-fe-
minismo e a limitação da justiça social, de Agda Dias Baeta. A autora, base-
ando-se na teorização feita por Eni Orlandi, de considerar língua-discurso-
-ideologia, traça um paralelo entre processo comunicativo, práticas do eu e
pós-feminismo, delineando a maneira como a transformação social tem sido
prejudicada pela circulação de uma formação discursiva que se apropria do
vocabulário e dos ideais dos movimentos feministas de forma a esvaziá-los de
seu cunho político, dando origem a uma versão domesticada de feminismo,
incapaz de abalar as estruturas dominantes. Isso não só limita o avanço das
pautas e das ações em prol da justiça social, mas também reduz o sentido
dessa última.
Raça e resistência em espaço digital: efeito-autor e legitimidade das
mídias negras brasileiras é o oitavo texto da coleção e vem assinado por La-
rissa da Silva Fontana. Partindo da Análise do Discurso Materialista, de Mi-
chel Pêcheux, Fontana busca compreender como a imprensa negra se recon-
figura entre processos de avanços tecnológicos, convergências midiáticas e
práticas sociais, constituindo, atualmente, as chamadas mídias negras, cuja
comunicação social não se compromete somente com raça, mas com gênero,
sexualidade, idade, territorialidade e religião a fim de ocupar os mais diversos
espaços multi-midiáticos possibilitados pelo digital.
Fechando o xirê epistemológico, Carlui Brower kura em nossos braços
seu texto El colorismo en Latinoamérica: lo negro tambien és bonito. Brower
analisa o ocorrido no concurso de beleza Señorita Afrodescendente, em 2018
na Colômbia, em que a ganhadora do prêmio era uma pessoa de pele mais
clara, podendo ser lida socialmente como branca. Dessa forma, o autor traz
a discussão do colorismo para o centro do debate, analisando o conceito de
beleza associado à discussão racial e o racismo que impera nos carimbos do

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que é e do que não é belo. Indo além, de quem pode decidir quem é belo. A
discussão latente que se estabelece tem a ver com o poder de nomear e como
essa nomeação pode servir, e serve, para promover violências. Em outra ins-
tância, como esse episódio, que não é isolado, pode acabar contribuindo para
ações de combate, ações de práticas de empoderamento e de uso da língua
como justiça social.
Assim começa este livro. Como disse, um ebó de palavras e de compor-
tamento. Este livro tem um caráter denunciativo, pois evidencia como a lín-
gua(gem) pode ser utilizada para desumanizar, para diminuir, para deturpar.
Este livro, também, tem um caráter, não intencional, propositivo. Este livro
coloca seus leitores em uma posição de letrautoria, um letramento que os in-
junge a buscar ações de reflexo-ação; ações de autoria e de protagonismo de
práticas que utilizam a língua(gem) como justiça social.
Agradeço às autoras e aos autores dos textos aqui presentes. Suas con-
tribuições formaram essa boneca Abayomi, Iyá mẹsan ọ̀run, que aqui anda e
transita em vários campos teóricos; que transita nos nove oruns. Às leitoras
e aos leitores, que esse livro seja de grande valia nos seus estudos, e nas suas
práticas diárias fora da academia.

Mauricio J. Souza Neto


CEO da Ọfò̀: Language and Cultural Solutions

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r i

Gritos de guerra, palavras de justiça

Com toda serenidade, penso que é bom


que certas coisas sejam ditas.
Essas coisas, vou dizê-las, não gritá-las.
Pois há muito tempo que o grito não faz mais parte de minha vida1.

- Frantz Fanon

O trinômio língua, linguagem e poder não é estranho aos nossos ouvidos.


Na verdade, ele tem sido ponto focal de diferentes tradições dos estudos da
linguagem em diferentes epistemologias. Se os métodos e técnicas evocados
por esses diversos olhares muitas vezes produzem contradições fundamen-
tais entre si, é certo, porém, que há entre eles um ponto de encontro: o enten-
dimento de que a linguagem é, sem dúvidas, um instrumento incontornável
para os exercícios e as práticas dos poderes que (des)organizam o funciona-
mento de nossa sociedade.
Não é à toa, então, que expressões como poder, dominação, opressão, vio-
lência, mas também resistência, re-existência, justiça entre outras... estão mo-
bilizadas (de distintas maneiras, vale ressaltar) de modo a produzir diferentes
efeitos de sentidos para o grande campo dos estudos da linguagem.
E é exatamente isso que veremos nos textos que compõem este primei-
ro volume da coletânea Lingua(guem) e justiça social: saberes, práticas e para-
digmas, organizado pelo inquieto e consequente Maurício J. Souza Neto.
Essa organização, que nos chega em boa hora, pode ser chamada, sem
qualquer impropriedade, de necessária, inovadora e potente. Isso porque,
como se poderá constatar com sua leitura, ela não se resume à denúncia dos
usos maléficos da língua e da linguagem na produção das injustiças e desi-

1 FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: Edufba, 2008, p. 25.

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gualdades sociais. Ela vai além. Ela apresenta um caráter propositivo, porque,
ao tematizar diferentes relações entre linguagem, poder e justiça social, colo-
ca em pauta não apenas modos de ação, mas os de reação ao poder.
Se posso dizer que esta coletânea insere-se numa tradição que retorna
à relação já consagrada em torno do trinômio mencionado no início deste
prefácio, é peremptório destacar que o caráter inovador da coletânea oferece
ares novos a essa discussão tão importante e que certamente consumirá os
estudos da linguagem por muito tempo.
São ares novos porque as autoras e os autores dos capítulos que com-
põem a obra recusam respostas fáceis, idealistas e totalizadoras, provocando
um movimento analítico que leva às consequências a ideia de justiça social e
sua relação com a linguagem.
São ares novos porque a cada texto as perspectivas teóricas mobiliza-
das não se encerram em si mesmas, como se fossem autossuficientes, mas,
ao contrário, são confrontadas com outras epistemologias, para que as suas
engrenagens teóricas estejam a serviço das questões relativas à linguagem e
à justiça social. Em outras palavras, não estamos diante de textos que “apli-
cam” teorias, mas diante de verdadeiros gestos de escuta que priorizam as
questões fundamentais e, a partir delas, mobilizam um instrumental teórico
que não se sobrepõe às questões a serem escutadas, colocando-se, em reali-
dade, à disposição delas.
São ares novos porque os objetos tematizados nos textos evocam múlti-
plas discussões, representativas das tensões e polêmicas que circunscrevem
nossa experiência social contemporânea. Eles sinalizam o confronto entre
dominação e resistência, mostrando a intimidade, nem sempre pensada, en-
tre a insubmissão e a justiça.
Em A língua: ensinando novos mundos/novas palavras2, bell hooks nos en-
sina que a língua do opressor não é em si mesma opressora. Se ela é uma língua
que oprime, isso se deve ao fato de que ela é posta em funcionamento a partir
das demandas políticas de dominação do opressor. Mas a língua, a língua em
si, está aberta ao possível, ao desejo e à resistência; ela “rebenta, se recusa
a estar contida dentro de fronteiras”3. Tanto é assim que, como nos mostra
hooks, aquele que está em situação de opressão consegue se apropriar da lín-

2 hooks, bell. A língua: ensinando novos mundos/novas palavras. In: Ensinando a transgredir: a educação como
prática da liberdade. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. 2 ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017.
3 hooks, 2017, p. 223.

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gua do opressor, modificando-a e servindo-se dela para efetivar a sua resis-
tência. Essa língua, quando tomada, reclamada, adquirida, conecta os que es-
tão em situação de opressão, os irmana, os aquilomba e é posta para trabalhar
de modo que confronte o poder.
Eis aí um jeito de fazer a língua funcionar em direção à justiça social: do-
brando-a e desdobrando-a, contornando-a, reivindicando a língua e reinven-
tando seus usos e sentidos. Aqui, faço menção ao famoso provérbio africano
que diz: Até que os leões inventem as suas próprias histórias, os caçadores serão
sempre os heróis das narrativas de caça. Retornar a esse provérbio me leva à
reflexão sobre as potencialidades de dizer de outro modo, explorando o próprio
da língua em sua capacidade de paráfrase, polissemia e metáfora.
O que é preciso dizer de outros modos? Como podemos dizer de outros
modos? Sem dúvidas, dizer de outros modos é mexer com as maneiras pelas
quais nós - e aqui minha ênfase recai sobre um nós possível que é constituído
por aqueles para quem a defesa da justiça social é como condição sine qua non
de vida: mulheres e homens negros, indígenas, LGBTQIA+ e/ou os que convi-
vem com alguma deficiência - temos sido significados na história predomi-
nantemente branca, eurocêntrica-ocidental e imperialista.
Dizer de outro modo é, por exemplo, questionar o sentido dominante que
se assentou em nossa história brasileira e para o qual a relação entre “negros”
e “escravos” é automática. É dizer que os negros foram escravizados, recusan-
do outras construções que não marquem o fato de que a escravização foi um
processo, uma tomada, uma transformação - como nos sinaliza o verbo e o
sufixo destacados. É mexer com marcas na língua que parecem mínimas, mas
que nos permitem inscrever outras narrativas na história, narrativas com-
prometidas com a justiça social.
Se este, que parece ser um processo mínimo, ainda assim apresenta di-
ficuldades singulares, porque exige desafiar estruturas já bem sedimentadas,
lembro, com Michel Pêcheux4, que “não há ritual sem falha, desmaio ou ra-
chadura”5. Se as estruturas de dominação e poder agem a todo instante para
produzirem e se reproduzirem através dos aparelhos ideológicos, das insti-
tuições e de nós mesmos, sujeitos identificados com sentidos de difícil des-
construção, cabe lembrar que essa maquinaria está aberta à falha. Assim se

4 PÊCHEUX, Michel. Delimitações, inversões, deslocamentos. Tradução de José Horta Nunes. In: Caderno de
Estudos Linguísticos. Campinas, v. 19, jul/dez, 1990, p. 7-24.
5 Pêcheux, 1990, p. 17.

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estabelece um jogo entre o sob e o contra em que, se por um lado, somos cons-
tantemente subordinados a diferentes estruturas de poder (e eventualmente
até atribuímos sentidos a elas), por outro, essa subordinação não consegue
produzir a todo instante fechamento e completude, permitindo, assim, que a
abertura e a incompletude trabalhem a nosso favor.
É nesse jogo, então, que as resistências se formam. E elas, se muitas ve-
zes se apresentam de maneiras sutis, não devem ser jamais subestimadas. Há
também poder em: “não entender ou entender errado; não escutar as ordens;
não repetir as litanias ou repeti-las de modo errôneo; falar quando se exige
silêncio; falar sua língua como língua estrangeira que se domina mal; mudar,
desviar, alterar, o sentido das palavras e das frases; tomar os enunciados ao
pé da letra; deslocar as regras da sintaxe e desestruturar o léxico jogando
com as palavras”6.
É pensando sobre isso que convido todas as pessoas à leitura deste li-
vro. Uma leitura insubmissa, reflexiva, mas, se preciso, inquieta. Uma leitura
atenta às frestas da língua, da linguagem e do poder. Uma leitura que con-
sidere a língua como espaço de resistência, ainda que ela esteja pondo em
jogo as demandas da dominação. Uma leitura aberta às utopias da língua e
aos seus poderes que não deixam passar as dimensões da igualdade e da de-
sigualdade, da justiça e da injustiça. Uma leitura corajosa de quem sabe que
é sempre possível ressignificar a vida, transformando os gritos de guerra em
palavras de justiça.

Rogério Modesto
Departamento de Letras e Artes
Universidade Estadual de Santa Cruz

6 Pêcheux, 1990, p. 17.

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p T 1

Língua(gem) e Violência Simbólica1

Neila Priscila dos Santos Costa

Introdução

O objetivo deste capítulo é abordar, ainda que de forma breve, uma vez
que se trata de um assunto bastante vasto, sobre violências contra mulheres
a partir da perspectiva dos Estudos Críticos do Discurso, dialogando com ou-
tros campos do saber, como os Estudos Culturais, Estudos de Gênero, além
de discorrer e problematizar sobre como práticas discursivas (re)produzem a
violência simbólica de gênero contra a mulher, tendo como material de análi-
se imagens e frases de efeito que circulam na internet. Observa-se que a vio-
lência simbólica de gênero contra a mulher, através do discurso veiculado via
internet, perpetua representações que se inserem na construção das identi-
dades e subjetividades das mulheres, bem como contribui para a (re)produ-
ção de assimetrias e desqualificações contra elas e o universo do feminino e
das feminilidades. A relevância deste estudo está ligada ao enfrentamento
das violências contra mulheres, levando em consideração as proporções cada
vez maiores dos atos de violência em diversas esferas do social.

1 O texto aqui apresentado com modificações, refere-se à minha monografia de graduação intitulada “Violência
simbólica contra mulheres na internet”, apresentada no ano de 2014 ao Instituto de Letras da Universidade Federal
da Bahia. O primeiro capítulo da monografia (e apenas ele), também incorporado a este capítulo em recortes e
com modificações, foi cedido na íntegra, em 2015, à página Não Me Kahlo para sua publicação online, ver página:
https://naomekahlo.com/o-poder-simbolico-e-a-violencia-simbolica/. Os outros capítulos são inéditos e também se
apresentam modificados e em recortes substanciais para fins de elaboração deste capítulo.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 16


DOI: 10.52788/9786589932253.1-1
Embora as violências mais retratadas e vivenciadas pelas mulheres se-
jam as violências física, psicológica e sexual, os mecanismos simbólicos atre-
lados a tais violências constituem a mola propulsora e mantenedora dessas
violências. Por trás da violência física, psicológica, sexual, patrimonial, do-
méstica existe a violência simbólica, aquela que, segundo Bourdieu, sustenta
-se através do poder simbólico. É sobre esta violência que aqui versaremos, a
partir das considerações de Pierre Bourdieu sobre o poder simbólico em seu
livro intitulado O Poder Simbólico (1989); trataremos também sobre o concei-
to de gênero, a partir de teóricas como Márcia Macedo, Cecília Sardenberg,
Joan Scott, Judith Butler, relacionando-o brevemente com a abordagem dos
Estudos Críticos do Discurso e dos Estudos Culturais. O corpus deste traba-
lho foi coletado via internet, no período de agosto de 2013 a março de 2014, e
refere-se a um texto de blog e quatro imagens retiradas de páginas da rede
social Facebook. O critério de escolha das imagens partiu da vinculação da
imagem da mulher a proposições que carregam representações e significa-
dos historicamente estabelecidas ao gênero em questão, bem como imagens
que expressam explicitamente um discurso de violência e desqualificação da
figura feminina. Aqui focalizaremos em apenas duas dessas imagens na seção
de análise, dado o limite de espaço para a abordagem dos outros dados.
Assim, na primeira seção deste trabalho, busco entender um pouco sobre
o conceito de poder simbólico, cunhado por Pierre Bourdieu, visando compre-
ender e ampliar, mais adiante, a discussão sobre violência simbólica de gêne-
ro contra mulheres. Na segunda seção, adentramos mais especificamente ao
debate sobre violência simbólica, violência de gênero e violência simbólica de
gênero. Na terceira seção, abordo sobre o conceito de gênero: como tem sido
pensado pelas(os) teóricas(os) da área, relacionando-o aos Estudos Críticos
do Discurso na penúltima seção. No capítulo de análise de dados, apresento
algumas considerações acerca do corpus selecionado, estabelecendo relações
com as teorias aqui articuladas. Na conclusão, busco sintetizar as reflexões
realizadas neste capítulo acerca da análise de dados, apontando os mecanis-
mos e a forma como a violência simbólica é (re)produzida e como fundamenta
preconceitos, abusos e desqualificações contra as mulheres.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 17


O poder simbólico

Muitos conceitos são centrais no debate acerca da violência simbóli-


ca, mas o conceito de poder simbólico (1989), cunhado pelo sociólogo francês
Pierre Bourdieu, é crucial na análise deste fenômeno, quando o relacionamos
a um outro e também foco deste livro e capítulo: o fenômeno da língua(gem).
Segundo Bourdieu, há um poder que se deixa ver menos ou que é até mesmo
invisível. Esse poder que está nas entrelinhas, disfarçado nos símbolos, sig-
nos, modos de ser, agir, interagir, movimenta muitos outros poderes e atos
e é cunhado com este propósito. Explica Bourdieu: “o poder simbólico é, com
efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade da-
queles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem”
(BOURDIEU, 1989, p. 7).
E de que maneira esse poder se manifesta? Através de sistemas simbó-
licos, comenta o teórico, tais como a religião, a ciência, a língua(gem) - aqui in-
cluem-se as artes - é que o poder simbólico se estabelece e se revela. A língua(-
gem) como foco da nossa discussão seria, então, para o teórico, um sistema
simbólico, uma estrutura estruturante, pois que se configura como meio de
conhecimento e construção dos sentidos do mundo e dos objetos do mundo,
e também uma estrutura estruturada (BOURDIEU, 1989), visto que também
apresenta uma estrutura que reflete sua sociedade, sua cultura. Reforço que
o conceito de língua aqui adotado reflete a língua enquanto prática social,
enquanto discurso, não desconsiderando sua estrutura, mas encarando-a de
forma não determinística, e, portanto, sujeita a transformações; e linguagem,
de forma mais abrangente, incluindo aí não somente a língua, mas outros
meios de expressão do pensamento, dos sentimentos, meio de comunicar, de
representar e interagir, como são as artes, por exemplo.
Desse modo, o poder simbólico, por meio de sistemas simbólicos, cons-
trói a realidade com base numa dada homogeneidade espacial, temporal e, eu
diria, também sociocultural, conforme uma ordem gnoseológica, nas pala-
vras de Bourdieu, que vai ditar essa homogeneidade, os sentidos do mundo,
a partir da validade e dos limites desse conhecimento. É também a partir de
símbolos que uma determinada comunidade linguística, artística, religiosa,
científica entra em consenso acerca desses sentidos e das representações que
circulam em seu meio e que podem contribuir para a reprodução ou trans-

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 18


formação de paradigmas, de ideias e de uma ordem social (BOURDIEU, 1989,
p.10). Os símbolos são parte do modo como representamos a realidade e o
mundo, o meio pelo qual uma cultura e seus valores se expressam e se (re)
afirmam.
Ao falar sobre sistemas simbólicos se faz necessário abordar sobre suas
produções, chamadas por Bourdieu de produções simbólicas, e que podem
funcionar como instrumentos de dominação e de reafirmação de relações
abusivas de poder. Com base em Marx, ele elucida que tais produções rela-
cionam-se com os interesses das classes privilegiadas, sobretudo, as que são
donas dos meios de produção. A cultura dominante colabora para a integra-
ção real da classe dominante, para a inclusão fictícia da sociedade no seu con-
junto, portanto, à “desmobilização (falsa consciência) das classes dominadas;
para a legitimação da ordem estabelecida por meio do estabelecimento das
distinções (hierarquias) e para a legitimação dessas distinções” (BOURDIEU,
1989, p. 10). Van Dijk (2010) define esse poder como poder social, que tem
como pano de fundo o poder simbólico, em termos de controle. Esse controle
acontece sobre as ações de outros, sobre o acesso de determinados grupos a
determinados espaços, sobre o controle do próprio discurso, no sentido do
que é permitido ou não dizer e de que maneira, também a partir do controle
das mentes.
Os sistemas simbólicos cumprem sua função social e política a partir
das suas produções, e a classe detentora desses poderes, as chamadas elites
simbólicas, vai se delineando pelo acúmulo de poder tanto material quanto
simbólico, num processo que também é histórico.
É assim que os sistemas simbólicos cumprem a sua função política de instru-
mentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para
assegurar a dominação de uma classe sobre a outra (violência simbólica) dan-
do o reforço da sua própria força às relações de força que as fundamentam e
contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a domesticação dos
dominados (BOURDIEU, 1989, p. 11).

Vale ressaltar que não só a classe privilegiada, mas as demais classes


coexistem em constante luta hegemônica, em busca de espaços e meios de
produção simbólica. O interessante aqui é pensar que a hegemonia nunca é
estável e que se faz necessário buscar meios de equilibrar as discrepâncias
entre os diversos grupos sociais, esta é uma luta constante que não pode ficar
somente no campo teórico.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 19


Violência simbólica, violência de gênero e violência simbólica
de gênero

De acordo com Sardenberg, membra do Núcleo de Estudos Interdisci-


plinares sobre a Mulher (NEIM/UFBA), “o mundo simbólico aparece como um
grande quebra-cabeça a ser decifrado” (SARDENBERG, 2011, p. 2) e é nesse
mundo que a violência simbólica se localiza e se manifesta através de toda
uma produção, via língua, artes, religião, ciência e outros sistemas simbóli-
cos, que reforçam, tendo em vista a questão da violência, relações abusivas
de poder, desqualificações, preconceitos de toda ordem e, até mesmo, qua-
dros de feminicídio, LGBTfobia, bem como outros crimes. Para ela, a violência
simbólica se “infiltra por toda a nossa cultura, legitimando os outros tipos de
violência” (SARDENBERG, 2011, p. 1).
Sardenberg (2011) comenta ainda que a violência de gênero se refere
a toda e qualquer forma de agressão, seja ela física, moral, psicológica, emo-
cional, institucional, cultural ou patrimonial que seja impetrada contra de-
terminados indivíduos, explícita ou implicitamente, devido à sua condição
de gênero ou orientação sexual (SARDENBERG, 2011, p. 1). Além disso, ao
afirmar que, dado a ordem de gênero patriarcal regente em nossa sociedade,
que, segundo a autora, está “inscrita e perpetrada nas nossas instituições so-
ciais, nos nossos sistemas de crenças e valores e no nosso universo simbólico”
(SARDENBERG, 2011, p. 2), são as mulheres as que mais estão expostas a esse
tipo de violência, pois “em virtude da ordem de gênero patriarcal, ‘machista’,
dominante em nossa sociedade, são […] as mulheres e, em menor número, os
homossexuais, que se veem mais comumente na situação de objetos/vítimas
desse tipo de violência” (SARDENBERG, 2011, p.1 ). É nesse sentido que a ex-
pressão “violência de gênero” tem sido usada com certa reserva, sendo neces-
sário realizar as devidas considerações acerca do contexto, das condições de
produção e dos reais sujeitos afetados, vítimas da violência em questão.
De fato, a violência de gênero se expressa com força nas nossas instituições
sociais (falamos então de violência institucional de gênero) e, de maneira mais
sutil, embora não menos constrangedora, na nossa vida cultural, nos atacando
(ou mesmo nos bombardeando) por todos os lados, sem que tenhamos plena
consciência disso. Diariamente, ouvimos piadinhas, canções, poemas, ou vemo-
-nos diante de contos, novelas, comerciais, anúncios, ou mesmo livros didáti-
cos (ditos científicos!), de toda uma produção cultural que dissemina imagens e
representações degradantes, ou que, de uma forma ou de outra, nos diminuem

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 20


enquanto mulheres. Essas imagens acabam sendo interiorizadas por nós (até
mesmo as feministas “de carteirinha”), muitas vezes sem que nos demos conta
disso. Elas contribuem sobremaneira na construção de nossas identidades/sub-
jetividades, diminuindo, inclusive, nossa autoestima. Isso tudo se constitui no
que chamamos de violência simbólica de gênero, uma forma de violência que é,
indubitavelmente, uma das violências de gênero mais difíceis de detectarmos,
analisarmos e, por isso mesmo, combatermos (SARDENBERG, 2011, p.2).

Para aprofundarmos mais o assunto, é necessário tecer algumas linhas


sobre o que vem a ser gênero, embora essa seja uma discussão já muito reali-
zada na atualidade pelos Estudos de Gênero e Sexualidades.

Estudos de Gênero

No calor e emergência dos movimentos sociais e de contracultura da dé-


cada de 1960, período crucial para ofervilhar os estudos de gênero, as mulhe-
res que militavam nas várias causas e frentes percebiam cada vez mais que
exerciam uma posição acessória em relação aos homens. A classe trabalhado-
ra não era assim tão homogênea como se pensava, e o trabalhador, enquanto
entidade masculina, já não representava bem seu conjunto, haviam traba-
lhadoras, mulheres que assumiam e desempenhavam tarefas muitas vezes
consideradas socialmente menos nobres, como de auxiliares e assistentes,
sendo assim esquecidas dos cargos de representação e liderança (GROSSI,
2010, pp.1-2).
Os primeiros estudos em gênero no Brasil datam da década de 70 e 80,
mas já se registra a existência de trabalhos e teses desde a década de 60 sobre
a condição feminina e a opressão das mulheres nas sociedades de classes, a
exemplo de escritos de Heleieth Saffioti, mais precisamente da sua tese “A
mulher na sociedade de classes”. Muitos desses estudos mostravam que mulhe-
res das classes trabalhadoras estavam em maior desvantagem social quan-
do comparadas às de classes socioeconomicamente privilegiadas, porém
eles também mostravam que todas elas, enquanto conjunto, eram oprimidas
diante de uma dada ordem patriarcal vigente (GROSSI, 2010, p.3 ).
A partir da década de 80, inicia-se um processo de problematização em
torno da dita “condição feminina”, que buscava questionar qualquer tipo de
essencialização nela implicada, o que resultou na constatação de um contexto
plural da condição feminina no Brasil, que apontava para muitas diferenças,

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 21


desde a classe social, a região de origem, a geração (GROSSI, 2010), a raça e a
etnia, o gênero e as sexualidades. Às sobreposições dessas categorias, é dado
o nome de interseccionalidade, um conceito cunhado, desenvolvido e muito
debatido por estudiosas e teóricas negras, como Kimberlé Crenshaw, Patrícia
Hill Colins, Carla Akotirene, e que explica a situação de privilégio de alguns
sujeitos e grupos sociais, em geral, homens, brancos, heterossexuais, cris-
tãos, de classe média-alta, para citar algumas possíveis intersecções, em con-
traposição à situação de desvantagem estrutural vivida por grupos em geral
de pessoas negras, mulheres negras, LGBTs, pessoas de religiões de matriz
africana, de baixa renda ou em situação de pobreza. Desse modo, a pluralida-
de do sujeito social não podia se resumir ao conceito singularizado, essencia-
lizado e binarizado de “mulher” e “homem”, assim também o era para a classe
trabalhadora, que não se resumia a um universal masculino, nem feminino.
É para dar conta dessa multiplicidade que os estudos de gênero estabe-
lecem vínculos com outras áreas do conhecimento, que, por sua vez, oferecem
ferramentas e aporte teórico para ampliar as análises, as problematizações
acerca da determinação biológica que permeia não somente a ideia de con-
dição feminina, mas as relações de gênero, os papéis sociais, bem como pro-
postas que essencializam os sujeitos e reproduzem paradigmas de opressão
e subalternidade.
Grandes contribuições de diversas áreas surgem no que diz respeito à
compreensão do conceito de gênero e podemos observar as diferentes pers-
pectivas que têm sido apresentadas sobre o tema com o passar do tempo. É
com o movimento feminista, no final da década de 1960 e início da década de
70, que estudiosas(es) começam a pensar e problematizar sobre o assunto. A
dicotomia gênero e sexo, introduzida pelas feministas anglo-saxãs, buscava
esclarecer o caráter socialmente construído do gênero, rejeitando o determi-
nismo biológico imposto que caracterizava o sexo. Seria, então, gênero, com
base em Louro, uma categoria fundamentalmente social, “é no âmbito das
relações sociais que se constroem os gêneros” (LOURO, 2013, p. 26). Ela co-
menta ainda que o conceito de gênero está diretamente ligado ao momento
histórico e à sociedade em que se vive, e mais delimitadamente, aos grupos
que a compõem. Também o gênero “institui a identidade do sujeito (...) trans-
cende o mero desempenho de papéis, a ideia é perceber o gênero fazendo par-
te do sujeito, constituindo-o” (LOURO, 2013, p. 29).

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 22


A distinção feita por Hall entre gênero e papéis sociais é importante
porque, uma vez que gênero remete à questão identitária, portanto, multi-
facetada, mutável e até mesmo contraditória, os papéis sociais restringem
a multiplicidade do sujeito, as diversas expressões da feminilidade, da mas-
culinidade, visto que compreendem basicamente um conjunto de regras ou
padrões arbitrários (formas de se comportar, falar, vestir) estabelecidos por
uma dada sociedade aos seus membres, ressaltando os jogos e relações de po-
der que estão por trás e que constroem hierarquias entre os gêneros (LOURO,
2013, pp. 28-29).
A historiadora Joan Scott busca, em sua proposta, pensar gênero como
uma categoria de análise histórica, explicar e especificar o efeito do gênero
nas relações sociais e institucionais. Para isso, conceitua gênero a partir de
duas proposições: “(1) o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais
baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e (2) o gênero é uma forma
primária de dar significado às relações de poder” (SCOTT, 1995, p.86). Ainda
segundo Scott, quatro aspectos estão inter-relacionados e devem ser consi-
derados quando do estudo do gênero enquanto constitutivo das relações so-
ciais, como mencionado na proposição (1), são eles:
[...] os símbolos culturalmente disponíveis que evocam representações simbóli-
cas [...] – Eva e Maria como símbolos da mulher, por exemplo, na tradição cristã
ocidental – mas também mitos de luz e escuridão, purificação e poluição, ino-
cência e corrupção. [...] Em segundo lugar, conceitos normativos que expres-
sam interpretações dos significados dos símbolos, que tentam limitar e conter
suas possibilidades metafóricas. Esses conceitos estão expressos nas doutrinas
religiosas, educativas, científicas, políticas ou jurídicas [...]; instituições e [...] or-
ganização social – este é o terceiro aspecto das relações de gênero [...] O quarto
aspecto do gênero é a identidade subjetiva (SCOTT, 1995, p. 86).

Em sua segunda proposição, Scott reafirma o caráter político do termo


e seu uso, e propõe que “gênero é um campo [...] por meio do qual o poder é
articulado” (SCOTT, 1995, p.88).
Outra perspectiva importante a ser comentada, aqui muito resumida-
mente, refere-se à proposta da filósofa Judith Butler, que comenta sobre o
conceito de gênero, levantando a diferença entre gênero performado e gê-
nero performativo. Segundo a autora, quando dizemos que gênero é perfor-
mado, fazemos referência aos papéis sociais, como se estivéssemos interpre-
tando papéis, enquanto que, ao defender a ideia de gênero performativo, esta
é a proposta de Butler, ela comenta que uma série de efeitos é produzida. A
forma como agimos, falamos ou nos comportamos consolida, segundo ela, a

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 23


impressão de ser/estar homem ou ser/estar mulher, impressão esta que é to-
mada como uma realidade interna, uma verdade e um fato sobre nós, quando
na verdade é algo que está sendo produzido e reproduzido todo tempo, em
outras palavras, comenta Butler em Big Think (2014): “To say that gender is
performative is to say that nobody really is a gender from the start”2 (BUTLER,
2014).
É com base nessas breves reflexões que se faz urgente pensar os pa-
péis sociais, o sujeito e suas posições, a construção de identidades e o gênero
como produções sociais, bem como considerar as relações de poder aí imbri-
cadas. A construção das identidades, do sujeito e suas posições não é neutra
e precisa ser encarada como socialmente, culturalmente, historicamente e
politicamente situada, produto das interações sociais que são diretamente
mediadas pela língua(gem), sobretudo, por práticas discursivas. É a partir da
abordagem dos Estudos Críticos do Discurso (ECD) que buscamos, neste es-
tudo, aprofundar as análises e encontrar algumas respostas para o fenômeno
das violências de gênero dirigidas às mulheres em materiais compartilhados
via internet. Discutiremos um pouco mais adiante sobre essa abordagem te-
órico-metodológica.

Estudos Críticos do Discurso e Gênero

Teóricas(xs) dos estudos do discurso buscam, em geral, num emara-


nhando sistemático e excludente das subjetividades e dos contextos de pro-
dução linguística se apropriar dos elementos extralinguísticos, subjetivos,
cognitivos, históricos, sociopolíticos, que fazem parte da realização linguís-
tica e passam também a focar no usuário da língua e nos discursos por eles
produzidos em suas interações sociais, bem como as relações de poder que
são aí estabelecidas.
Van Dijk, teórico dos Estudos Críticos do Discurso, entende a lingua-
gem como lugar de interação, considerando os elementos extralinguísticos e
o contexto sócio-histórico da produção dos discursos. Dessa forma, conside-
rar a escrita, os gêneros textuais, as estruturas sintáticas, a entonação etc., é
importante, porém insuficiente, visto que o discurso é resultado de interações
sociais, históricas, culturais, políticas, econômicas. O teórico, então, liga ao

2 “Dizer que o gênero é performativo é dizer que ninguém realmente é um gênero desde que nasce” (Tradução
minha).

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 24


micronível (nível linguístico) os elementos que compõem o macronível, isto
é, elementos que compõem a estrutura social, como a família, os movimentos
sociais, as instituições que detêm poder social. Dentro desse raciocínio, os
usuários da língua estariam de certo modo condicionados linguisticamente,
historicamente, culturalmente na produção dos seus discursos (OLIVEIRA,
2013, p.314-315).
Mas o que vem a ser discurso? Van Dijk o concebe como: “[...] formas
de ação e interação social, situadas em contextos sociais dos quais os parti-
cipantes são não apenas falantes/escritores e ouvintes/leitores, mas também
atores sociais que são membros de grupos e culturas” (DIJK, 2000, p. 6 apud
OLIVEIRA, 2013, p. 325). O discurso não é neutro. Existem interesses políti-
cos, econômicos, culturais que se embaraçam em suas entrelinhas e, sendo o
discurso rodeado por ideologias, é também coberto por processos que pro-
movem exclusões sociais, desqualificação do outro, supressão de identidades
e de vozes, injustiças e violências. De acordo com Oliveira (2013, p.329), essas
ações são legitimadas com base na violência física ou no poder simbólico a
partir de esquemas mentais.
Van Dijk propõe pensar os modelos mentais como esquemas pelos quais
o indivíduo constrói o contexto e a realidade em que vive, e que também são
responsáveis pelas representações e percepções ligadas às experiências de
vida de cada um, às crenças e aos valores, conhecimentos prévios interna-
lizados pelo indivíduo (DIJK, 2012, p.87-92). É também a partir de esquemas
mentais que os indivíduos aprendem, internalizam padrões, mentalidades,
informações e as reproduzem.
Segundo Fairclough (2001), discurso é modo de ação, é constituinte da es-
trutura social e moldado por ela, é a forma como as pessoas agem sobre o mun-
do e sobre outras pessoas (RESENDE; RAMALHO, 2013); refere-se à linguagem
falada e escrita, enfatizando a relação entre falante e receptor ou escritor e
leitor, e considerando os processos de produção e interpretação; discurso faz
referência também aos diversos modos de estruturação das áreas de conheci-
mento e prática social (FAIRCLOUGH, 2001, p. 21). Fairclough comenta que:
Os discursos são manifestados nos modos particulares de uso da linguagem e
de outras formas simbólicas, tais como imagens visuais [...]. Os discursos não
apenas refletem ou representam entidades e relações sociais, eles as constro-
em ou as ‘constituem’; diferentes discursos constituem entidades-chave (sejam
elas a ‘doença mental’, a ‘cidadania’ ou o ‘letramento’) de diferentes modos e
posicionam as pessoas de diversas maneiras como sujeitos sociais (por exem-
plo, como médicos ou pacientes), e são esses efeitos sociais do discurso que são
focalizados na análise de discurso (FAIRCLOUGH, 2001, p.22).

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 25


É com base nessas ideias que este estudo buscou analisar dados retira-
dos das redes sociais, sobretudo do Facebook, que atualizam vozes, ideologias,
valores através do uso da linguagem via internet e que são reforçadores de
violências contra mulheres.

Análise de dados

Os textos analisados foram retirados das páginas Orgulho de Ser Hé-


tero e UFBA no período de 2013 a 2014 e podem ser acessadas através da rede
social Facebook. São imagens com frases agregadas a elas, também chamadas
de frases de efeito, porque induzem e direcionam o leitor/usuário da rede a
uma determinada interpretação. Ao lado das imagens, constam alguns co-
mentários sobre o material visualizado, que estão ocultados, de usuários da
rede e integrantes da página. Utilizando-se a função print screen do computa-
dor, foram selecionadas seis imagens, quatro delas referentes a imagens das
páginas supracitadas e duas imagens referentes a um texto coletado no blog
Orgulho Hétero. Neste capítulo, resumo a análise a apenas duas imagens, que
são as seguintes:

Figura 1 - Texto multimodal 1

Fonte: Orgulho de Ser Hétero (Facebook).

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 26


Figura 2 - Texto multimodal 2

Fonte: Orgulho de Ser Hétero (Facebook)



Os primeiros textos multimodais analisados foram selecionados na
página Orgulho de ser Hétero, comunidade virtual localizada na rede social
Facebook, e evocam uma mentalidade corrente de que mulher e trânsito não
combinam, atualizada pejorativamente e de forma desqualificante pelo dita-
do conhecido: “mulher no volante perigo constante”. No quesito imagético, o
texto multimodal 1, apresentado no layout de visualização das fotos da rede
social em questão, traz em si a foto dividida em duas partes. Na primeira
parte da foto, posicionada acima, e aqui já podemos fazer uma leitura a partir
do posicionamento das partes da foto no todo, temos um homem dirigindo
um carro e, no banco do carona, temos um cachorro. Na segunda parte da
foto, localizada abaixo, temos uma mulher dirigindo o carro e ao lado, temos
o mesmo cachorro sentado no banco do carona. Ainda sem a influência da
frase de efeito neste processo interpretativo, podemos observar que há uma
diferença entre as duas partes da foto referente à expressão do rosto do ca-
chorro. É perceptível a manipulação ocorrida na imagem ou na situação da
foto, pressupondo que as orelhas do animal foram puxadas por alguém que
está nos bancos de trás, criando uma expressão de apreensão e medo no cão
na segunda parte da imagem, na qual a mulher se localiza. Se, então, levar-
mos em consideração a frase de efeito acima da foto: “Minha esposa sempre
fala que dirige melhor do que eu. O olhar do nosso cachorro diz tudo...”, somada à
frase de edição: “Esse cachorro sabe o perigo que corre!”, podemos constatar que
intenções de desqualificação da habilidade de dirigir pela figura feminina no

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 27


discurso veiculado se acentuam, uma vez que há a associação do mal dirigir
feminino à expressão assustada e de suposto desconforto do animal, através
da manipulação da imagem, bem como aos sentidos das frases de efeito, ou
seja, a esposa sempre fala que dirige melhor do que ele, embora o olhar do
cachorro seja o responsável por “entregá-la”, o olhar manipulado do cachorro
diz, e esse olhar se impõe sobre o dito da figura feminina, desautrizando-a.
O texto multimodal 2, seguindo a mesma proposta de desqualificação
da habilidade de dirigir das mulheres, agrega uma informação importante: a
data 8 de março, que remonta a uma situação trágica em 1857, quando mu-
lheres operárias da indústria têxtil de Nova Iorque protestavam por melhores
condições de trabalho e foram violentamente reprimidas (ALVES; PITANGUY,
1991, p.41). Esta data, embora existam muitas outras versões da história, ficou
conhecida como o Dia Internacional da Mulher, em homenagem às mulheres
que lutaram e lutam diariamente pelos seus direitos, data que trata, portanto,
de questões políticas, de combate a violências várias perpetradas contra mu-
lheres, bem como de assimetrias advindas das hierarquizações e relações de-
siguais entre os gêneros. Assim, o texto multimodal 2 mostra um conjunto de
carros batidos, capotados, amontoados, como se uma tragédia tivesse acon-
tecido naquele lugar e associa a desordem dos automóveis às comemorações
do 8 de março. De fato, pode ser uma tragédia para o discurso hegemônico
ter que encarar um movimento social e político tão forte como é o feminismo,
que historicamente tem contribuído para avanços sociais de todas as ordens.
A produção simbólica veiculada neste material, o texto multimodal 2,
além de ser reforçadora do ditado popular “mulher no volante, perigo cons-
tante”, desqualifica o Dia Internacional da Mulher quando alude tão somente
a uma festa, que é um momento de descontração, de divertimento, de uso
de bebidas alcoólicas, substância tão associada aos acidentes de trânsito, por
exemplo, revelando, assim, a proposta hegemônica, patriarcal, que hierarqui-
za as relações de gênero, de desqualificação dos esforços femininos e das pro-
postas políticas por trás da data. Certamente que há de se comemorar o dia 8
de março, mas não se pode apagar o fundo político dele, resumindo-o a uma
festa. Saffioti (1994), Sardenberg e Macedo (2011) colocam que:
Com efeito, historicamente, o ‘feminino’ tem sido construído como subordinado
ao ‘masculino’, sendo que, no Brasil, como de resto na América Latina (ou mes-
mo em nível mundial) dominam as relações de gênero ‘patriarcais’. Na verdade,
na maioria das sociedades contemporâneas e, tanto no nível simbólico quanto
no da prática social, o ‘masculino’ se sobrepõe hierarquicamente ao feminino,

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 28


resultando numa situação ‘real’ de prestígio, privilégios e poder maior para os
homens – um exemplo evidente dessa assimetria é expresso na violência do-
méstica e que, no Brasil, tem um vetor recorrente: ela se expressa na violência
masculina sobre a mulher e é um claro traço constitutivo da organização social
de gênero no país (SAFFIOTI, 1994b) (SARDENBERG; MACEDO, 2011, p. 38).

Os efeitos ideológicos e hegemônicos que se quer veicular através des-


ses formatos hipertextuais são, então, atualizados e reforçados com base na
crença do mal dirigir feminino, ou seja, com base em um sistema de crenças
que revalida a todo instante essa ideia, inclusive naturalizando-a, e que se
insere na identidade socialmente construída para o gênero feminino, lem-
brando que esta identidade é atualizada para a sobrevivência dos padrões
hegemônicos, nas práticas discursivas. De acordo com Fairclough (1997, p.
80) apud Resende e Ramalho (2013):
[...] hegemonia implica o desenvolvimento – em vários domínios da sociedade
civil (como o trabalho, a educação, as atividades de lazer) – de práticas que na-
turalizam relações e ideologias específicas e que são, na sua maioria, práticas
discursivas. A um conjunto específico de convenções discursivas [...] estão, im-
plicitamente, associadas determinadas ideologias – crenças e conhecimentos
específicos, posições específicas para cada tipo de sujeito social que participa
nessa prática [...] (RESENDE; RAMALHO, 2013, p. 44).

Embora o discurso hegemônico patriarcal demonize o ato e a habilidade


de dirigir um veículo pela mulher como forma de desqualificação e manuten-
ção de poder, uma vez que historicamente a mulher tem sido relegada à do-
mesticidade e um veículo está associado à ideia de mobilidade, de liberdade,
de meio que facilita o acesso a outros lugares, acesso ao espaço público, que
põe o sujeito em movimento, em contato com o mundo, com culturas e pes-
soas, alguns dados do Departamento Nacional de Infraestrutura e Trânsito
(DNIT) mostram uma realidade diferente. A pesquisa realizada em 20113, e
disponível no site responsável do governo federal sobre número de condu-

9https://www.gov.br/dnit/pt-br/download/rodovias/operacoes-rodoviarias/estatisticas-de-acidentes/quadro-0302-
numero-de-condutores-envolvidos-por-sexo-e-idade-do-condutor-ano-de-2011.pdf. É importante ressaltar que estes
são dados coletados em 2013 e 2014, quando ocorreu a pesquisa que se transformou em uma monografia de
graduação. No site https://www.gov.br/dnit/pt-br/rodovias/operacoes-rodoviarias/estatisticas-de-acidentes (DNIT) é
possível encontrar este quadro e dados referentes aos anos de 2005 a 2011. Somente a partir de 2007 há dados
registrados por gênero. Existem dados reunidos e atuais também neste link: https://www.gov.br/infraestrutura/
pt-br/assuntos/transito/conteudo-denatran/estatisticas-denatran (DENATRAN), embora não estejam registrados os
dados por gênero. É possível ainda encontrar dados atuais também no site da Polícia Rodoviária Federal: https://
www.gov.br/prf/pt-br/acesso-a-informacao/dados-abertos/dados-abertos-acidentes. Nos dados analisados de Totais
Gerais constata-se que os homens envolvem-se mais, morrem mais e matam mais em acidentes de trânsito.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 29


t0res envolvidos em acidentes com um ou dois veículos, divididos por sexo4
e faixa etária, revelam estatísticas que vão de encontro com informações his-
toricamente (re)produzidas em torno do gênero feminino e o trânsito. Em
uma amostra de 331.652 mil acidentes (Totais Gerais – Brasil), o percentual
de acidentes ocorridos para o gênero masculino foi de 87% aproximado, para
o gênero feminino 9% aproximado e para o gênero não informado 5% aproxi-
mado. Ainda no documento fornecido pelo DNIT, os números são maiores nos
casos de acidentes letais para o gênero masculino. No website da Associação
Brasileira de Educação de Trânsito (ABETRAN5), acessado em 2013/2014, tam-
bém encontramos dados, com base no Anuário Estatístico do Departamento
Nacional de Trânsito, DENATRAN - RENAEST (Registro Nacional de Aciden-
tes e Estatísticas de Trânsito) de 2008, que colaboram para o entendimento
das crenças que envolvem a habilidade de dirigir pelas mulheres, mostrando
que as figuras 1 e 2 forçam um discurso desqualificante da mulher condutora.
O número de motoristas do gênero masculino representa 71% do universo
considerado na pesquisa, enquanto 29% são motoristas do gênero feminino,
sendo que, no que se refere ao quesito Condutores Envolvidos em Acidentes de
Trânsito com vítima - Brasil - Por sexo (2008), em um universo de 630.860, 86%
dos envolvidos em acidentes são homens, enquanto 14% são mulheres. No
quesito Vítimas Fatais de Acidentes de Trânsito – Brasil – Por sexo (2008), num
total de 32.064 vítimas, 27.449 (86%) foram homens, enquanto que o total de
mulheres vítimas corresponde a 4.615 (14%).
A ideia de condição feminina, construída desde muito antes da década
de 80, continua sendo representada pela ideia essencialista de mulher, isto é,
descartando a pluralidade do gênero feminino, como dito por Grossi, (2010
p.3-4), há uma realidade plural da mulher que aponta diferenças diversas e
que, portanto, precisamos considerar essa pluralidade. Também podemos
pensar a atualização dos papéis sociais sobrepujando a identidade de gêne-
ro. Em outras palavras, os papéis sociais substituem e limitam a multiplici-
dade existente na identidade de gênero e reforçam a manutenção de papéis
tradicionais, no caso da mulher, voltados especialmente para o doméstico e
para os cuidados familiares. Sendo o papel de motorista, condutor, tradicio-

4 Nomenclatura encontrada no documento. Não é possível encontrar o dado referido usando o termo gênero
neste documento, embora seja o termo adequado.
5 https://www.abetran.org.br/. Atualmente (2021) o site do Denatran comporta diretamente estatísticas de trânsito
e acidentes, bem como as estatísticas referentes a infrações, frota e condutores habilitados. Site do Denatran:
https://www.gov.br/infraestrutura/pt-br/assuntos/denatran

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 30


nalmente masculino, a mulher, portanto, passa a ser negativada nesta habi-
lidade. Até aqui temos uma ideia de como os papéis sociais estão ligados à
dicotomia público x privado, reforçados por visões essencialistas dos sujeitos
sociais, e que tenta através da desqualificação da habilidade de dirigir pela
mulher, reposicioná-la na domesticidade. Retomando a ideia do automóvel
como símbolo de mobilidade, como meio que possibilita autonomia, conhecer
outros lugares, pessoas, culturas, sair do âmbito privado; e entendendo que
foi e é historicamente atribuído ao masculino, podemos compreender como
a questão do público x privado tem sido articulada em termos de relações de
gênero e relações de poder.
O automóvel é, por excelência, um símbolo de masculinidade, potência, vigor.
Refletindo sobre esse fato, temos que dirigir é um espaço “duplamente” mas-
culino, pois o espaço público é considerado masculino e dirigir um automóvel
também é considerado tarefa masculina. Quando a mulher começa a dirigir, o
homem sente que ela estava “invadindo” um espaço masculino. Em troca des-
sa invasão, as mulheres que dirigem escutam, ainda hoje, piadas depreciativas
da condição feminina e, frequentemente, são motivos de chacota. O ataque é
sempre uma provocação quanto à capacidade da mulher de dirigir de forma
adequada e segura, com o intuito claro de desmotivá-la, deixá-la insegura e
também de demonstrar o quanto desagrada aos homens essa “invasão” de es-
paço (LORENTZ, 2008, p. 92).

Nesse sentido, quando a atuação da figura feminina foge desse padrão


determinado pelos papéis sociais tradicionais, de mulher doméstica, dona de
casa, recatada, as possibilidades de viver sua performatividade, nas palavras
de Butler, são limitadas por forças retaliadoras. Retomando o conceito de es-
sencialismo, Woodward (2012) coloca que “o essencialismo pode fundamentar
suas afirmações tanto na história quanto na biologia” (2012, p. 15), e estando
os papéis sociais atrelados ao sexo do indivíduo, não ao seu gênero, pode-
mos concluir que esta construção hipertextual se volta para a reprodução e
a atualização de padrões hegemônicos, sexistas, via desqualificação da figura
feminina, tentando reposicioná-la em papéis sociais tradicionalmente cons-
truídos. Retomando Scott (1995), “gênero é um campo [...] por meio do qual, o
poder é articulado” (SCOTT, 1995, p. 88), nesse sentido, fica nítido que há, no
estabelecimento e no exercício de papéis sociais tradicionais, manutenção de
poder e hierarquia que reforça assimetrias nas relações de gênero, e que tam-
bém desconsidera ou exclui outras possibilidades que fogem da binariedade:
mulher x homem.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 31


Considerações finais

A (re)produção de violência simbólica de gênero contra a mulher aconte-


ce por via das produções simbólicas. Neste trabalho analisamos imagens que
forma produzidas, visando a desqualificação da figura feminina a partir da
destituição do seu "bem dirigir", associando-a ao "mal dirigir" como questão
naturalizada, com base em manipulação de imagem e reprodução de frases,
ditados, piadas que circulam no imaginário social e que atualizam a ideia de
“mulher no volante, perigo constante”, ainda que dados e a própria realidade
mostrem o contrário. Frases como “só podia ser mulher” estão cotidianamen-
te associadas a olhares repreensivos e reprovadores, chacotas, piadas, humi-
lhações e terrorismos pelos quais as mulheres têm que vivenciar e enfrentar
diariamente ao estacionar um carro, ao dar uma partida no veículo, ao realizar
uma manobra, não é de se surpreender que quase todas essas chacotas são
agenciadas por homens, ainda que eles sejam os maiores causadores de situ-
ações de sinistro. Certamente que estes comportamentos violentos afetam a
performance feminina no trânsito, pois há uma demanda sobre-humana para
que elas dirijam com extrema perfeição. Não se quer também com isso dizer
que as mulheres não se envolvem em acidentes, não causam sinistros ou não
realizam manobras inadequadas no trânsito, ao contrário, se busca dar um
tratamento justo a esta realidade, contestando os excessos descabidos, que
no fundo buscam retroalimentar uma ordem social que subalterniza e do-
mestica mulheres.
As produções simbólicas da língua(gem) também alimentam a desqua-
lificação das lutas políticas empenhadas por mulheres pela garantia de seus
direitos, como acontece na manipulação de imagem que associa o dia 8 de
março a um estacionamento cheio de carros amontoados, seguido de frase de
efeito “estacionamento da festa”. Parece inofensivo, diriam algumas pessoas
para se “levar na esportiva”, afinal “é apenas uma piada”. Acontece que piadas
são produções simbólicas, e assim como o racismo, o machismo é uma estru-
tura que causa sofrimento psíquico, humilha, desautoriza, anula, escraviza,
subalterniza, mata mulheres e feminilidades.
O discurso veiculado nas imagens e frases de efeito, produzido por vo-
zes hegemônicas, é reforçador de ditados populares discriminatórios como
“mulher no volante, perigo constante”. Ele reproduz e atualiza padrões sexis-

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 32


tas, que tentam reposicionar a figura feminina em papéis sociais tradicional-
mente construídos, ligados à domesticidade e ao espaço privado, com base
em mecanismos simbólicos historicamente construídos.
É, por fim, também observável que há uma constante tentativa de des-
tituir a mulher de sua liberdade, de seu livre arbítrio, de sua posição enquan-
to agente, de qualquer posição de destaque, buscando domá-la. Vale lembrar
que os símbolos e representações veiculadas nas imagens e frases de efeitos
são produtos históricos e politicamente situados e que pautados em ideias
essencialistas e deterministas, traz implícita a ideia de uma cultura de natu-
ralização da subalternidade da mulher através da ideia de domesticidade e
privação do seu acesso ao espaço público.

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LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 34


p T 2

Poder, Dominação e Racismo Estrutural: Análise


Crítico-Discursiva da Ideologia Judicial no Brasil

Gisleuda de Araújo Gabriel


Cleudene de Oliveira Aragão
Gislene Araújo Gabriel

Introdução

A fim de desvelar de que forma se manifesta, sociodiscursivamente, o ra-


cismo estrutural no âmbito do Sistema Judiciário, o presente estudo analisa
uma sentença condenatória com base na dimensão ideológica, instituciona-
lizada, do discurso judicial, a partir de uma decisão do Tribunal de Justiça do
Estado do Paraná (TJPR).
Para isso, na busca de desvelar como as formas linguísticas em textos
legais contribuem (ou não) para a reprodução, manutenção e transformação so-
cial dos discursos, traçamos o arcabouço teórico-metodológico com base na
Análise do Discurso Crítica (ADC) aplicada a uma decisão judicial. Segundo
Kress (1989), “através da exposição a textos marcados por desigualdades de
poder, os sujeitos sociais são treinados a ocupar determinadas posições de
poder”.
Em relação à problemática, ressaltamos que o estudo de caso associa-se
à fundamentação de cunho ideológico contida na sentença judicial da Ação
Penal (BRASIL, 2020), nº. 0017441-07.2018.8.16.0196, da Comarca da Região
Metropolitana de Curitiba-PR, 1ª vara criminal, disponibilizada no site oficial

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 35


DOI: 10.52788/9786589932253.1-2
do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJPR)1. Vale destacar que parte
dos operadores do Direito falham em relação a uma reflexão teórico-meto-
dológica acerca de expressões referenciais existentes em decisões judiciais
(CANUTO; COLARES, 2017, p. 2).
Além disso, o caso mencionado é apenas mais um que a decisão proferi-
da pela magistrada gerou clamores públicos e ganhou repercussão nacional,
em que o poder pode ser verificado não apenas pelo gênero do texto (sentença
judicial), mas também por meio do controle exercido por conta de sua posição
social de poder (magistrada) (WODAK, 2002, p. 11).
Acerca do controle e do processo de reprodução do poder por meio do
discurso, tendo em vista a ideia de que o discurso controla mentes e, por isso,
controlam ação, é essencial para quem está no poder controlar, primeira-
mente, o discurso. Nesse sentido, Van Dijik (2015) afirma que, uma vez que
as ações das pessoas são controladas por seu conhecimento, atitudes, ideo-
logias, normas e valores, o controle da mente significa controle indireto da
ação que, sendo controlada, pode novamente ser discursiva, fazendo com que
o poderoso discurso possa, indiretamente, influenciar outros discursos que
sejam compatíveis com o interesse daqueles que detém o poder.
Destacamos que, a fim de justificar a importância de discutirmos acerca
do caso em que a decisão judicial apresenta-se repleta de estereótipos descri-
tivos que são utilizados contra negros, demostrando a “insanidade racista do
sistema judiciário brasileiro”, a análise centra-se no campo interdisciplinar
do Direito e da Linguística Aplicada (MOREIRA, 2019, p. 104). Ressaltar ainda
que, segundo Moreira (2019, p. 104), o maior problema da discriminação ins-
titucional reside na presunção de que atos arbitrários não são motivados por
animosidade, visto que compõem aspectos considerados normais nas insti-
tuições.
Nesse sentido, partimos da concepção de linguagem como prática social
discursiva de Fairclough (2016), pois apresenta a dimensão crítica do olhar
sobre a linguagem em comum com a Escola Social do Discurso. Tendo em
vista que “se propõe a examinar em profundidade o papel da linguagem na
reprodução das práticas sociais e das ideologias, assim como seu fundamen-
tal papel na transformação social” (FAIRCLOUGH, 2016, p. 11).

1 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (PROJUDI) da Região Metropolitana de Curitiba-PR, 1ª


vara criminal, disponibilizada no site oficial do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJPR). Processo
Digital nº: 0017441-07.2018.8.16.0196. Ref. mov. 855.1 - Assinado digitalmente por Ines Marchalek Zarpelon:
620819/06/2020: PROFERIDA SENTENÇA CONDENATÓRIA. Arq: sentença condenatória. Disponível em:
https://projudi.tjpr.jus.br/projudi/. Acesso em: 20 ago. de 2020.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 36


Assim, para além da análise das relações de poder e de dominação, é
importante realizar uma análise acerca das formas simbólicas de propagação
das ideologias, a partir do pensamento de Thompson (2011), além da Análise
do Discurso Crítica (ADC), que se apresenta como estratégia central para que
se desenvolva uma investigação das construções discursivas que promovem
práticas racistas no âmbito do Direito.
Além disso, a interpretação da ideologia abre caminho para a reflexão
crítica cotidiana dos atores leigos, assim como das relações de poder e do-
minação em que esses atores estão inseridos, a qual envolve a análise sócio-
-histórica das relações estruturadas de poder, em relação as quais o papel das
formas simbólicas é discutido, por esse motivo a interpretação da ideologia
pode servir para o estímulo da reflexão crítica acerca das relações de poder
e dominação, tendo em vista suas bases, seus fundamentos e as formas pelas
quais elas são sustentadas (THOMPSON, 2011, p. 38).
Além disso, de acordo com o pensamento de Sampaio (2020), tendo em
vista que opera no âmbito da ideologia, a construção do discurso da meri-
tocracia é um fator de estabilização política, além de ser economicamente
eficaz, pois atua a partir de mecanismos institucionais e se consolida pelo
discurso de que as desigualdades são fruto da falta de mérito individual e
deixa de considerar toda a estrutura social e concepções políticas e históricas
do racismo.
Desse modo, o presente artigo apresenta 2 (dois) blocos estruturantes:
(1) O Racismo Estrutural - em que discutimos o racismo como fundamento
estruturador das relações sociais no Brasil - além de refletir sobre aspectos
circunscritos à sociedade brasileira, relacionados ao Poder e à discriminação
racial histórica; e (2) Análise Crítico-Discursiva da Ideologia Judicial - em que
realizamos uma análise crítica da decisão judicial, a partir dos pressupostos
fáticos com base nos modos de operação da ideologia.

O Racismo Estrutural

Entendendo a linguagem como mecanismo de manutenção de poder,


partimos da ideia de todo Racismo é Estrutural e que, portanto, a sociedade
é estruturalmente racista (ALMEIDA, 2019). Nesse sentido, de acordo com
Machado (2000, p.13) o racismo é definido como uma “configuração multidi-

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 37


mensional de crenças, emoções e orientações comportamentais”, alinhadas
em dois eixos estruturantes relativos à diferenciação e inferiorização racial e
à diferenciação e inferiorização cultural.
As discriminações estruturais são fundamentadas no processo de ra-
cialização da sociedade brasileira e evidenciam-se nos debates, atos políticos,
nos planos e projetos de nação. Assim, de acordo com Sampaio (2020), o racis-
mo é reproduzido no sistema de justiça criminal de forma implícita, mas que
criminaliza reiteradamente práticas relacionadas à população negra, e que
são justificadas pelo discurso meritocrático, a fim de excluí-la socialmente.
Para Almeida (2019), o racismo encontra-se institucionalizado no ima-
ginário nacional brasileiro, pois os estudos a respeito da desigualdade racial
não problematizavam a condição social dos negros e apenas serviam para
justificar sua inferioridade na sociedade brasileira. Para o autor, a negação
do racismo e a evolução do conceito de democracia racial ganharam ênfase
com o surgimento do conceito de meritocracia - ao afirmar que os negros que
se esforçarem poderão usufruir de direitos iguais os dos brancos, reduzindo
questões de cunho histórico à ausência de esforços e contribuindo para a ma-
nutenção da desigualdade entre brancos e negros.
Imediatamente, a meritocracia serve como um instrumento eficaz de
estabilidade econômica e manutenção de poder. “A meritocracia se manifesta
por meio de mecanismos institucionais, como os processos seletivos das uni-
versidades e os concursos públicos” (ALMEIDA, 2019, p. 81).
A categorização humana em raças, mesmo que a ciência (Antropologia e
Biologia) negue sua existência, ainda hoje é utilizada como justificativa para
as desigualdades existentes. Além disso, por meio da concepção de raças, essa
construção discriminatória dos seres humanos serve de base para estudos
que justificam a exploração de determinados povos, a partir de suas caracte-
rísticas (SAMPAIO, 2020).
Nesse sentido, Sampaio (2020) explica que a noção de raça também é um
elemento político utilizado para naturalizar e perpetuar desigualdades, além
de justificar a segregação social e o genocídio de grupos socialmente consi-
derados minoritários. Ademais, também foi usada como justificativa para a
dominação de culturas e sociedades, por meio da invasão de terras, com o dis-
curso de levar a civilização a esses lugares. Assim, a partir de Almeida (2020),

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 38


Raça não é um termo fixo, estático. Seu sentido está inevitavelmente atrela-
do às circunstâncias históricas em que é utilizado. Por trás da raça sempre há
contingência, conflito, poder e decisão, de tal sorte que se trata de um concei-
to relacional e histórico. Assim, a história da raça ou das raças é a história da
constituição política e econômica das sociedades contemporâneas (ALMEIDA,
2020, p. 24-25).

Nesse sentido podemos afirmar que raça constitui um elemento político


que, ainda conforme Almeida (2020, p.30), por conta de seu aspecto históri-
co, opera a partir de dois registros que se entrecruzam e se complementam:
como característica biológica e como característica étnico-cultural.
Assim, de acordo com SILVA (2020), cada cultura possui suas diferentes
formas de classificar o mundo e é pela construção de sistemas classificatórios
que a cultura nos proporciona os meios pelos quais podemos dar sentido à
sociedade e construir significados, em que há entre os membros da socieda-
de, um certo grau de consenso acerca de como classificar as coisas, a fim de
manter a ordem social, cujos sistemas partilhados formam o que se entendo
como cultura:

[...] a cultura, no sentido dos valores públicos, padronizados, de uma comuni-


dade, serve de intermediação para a experiência dos indivíduos. Ela fornece,
antecipadamente, algumas categorias básicas, um padrão positivo, pelo qual as
ideias e algumas categorias básicas, um padrão positivo, pelo qual as ideias e os
valores são higienicamente ordenados. E, sobretudo, ela tem autoridade, uma
vez que cada um é induzido a concordar por causa da concordância dos outros
(DOUGLAS, 1966. P. 38-39, apud SILVA, 2020, p. 42).

Por isso, a diferença pode ser reconhecida de forma negativa, por meio
da exclusão ou da marginalização de pessoas que são definidas como “outros”,
como o que ocorre com aqueles que sofrem com racismo.
Além disso, vale destacar que existe um padrão circular e fechado de
análise do racismo, que em si mesmo elabora as perguntas e as responde,
limitando a pesquisa empírica a confirmá-las. Assim, Machado (2000) reflete
a partir da ideia de que, se o racismo é estrutural e atravessa todas as ins-
tâncias institucionais e pessoais na sociedade, então ele estará em todos os
pensamentos e discursos. Logo, como em todos os discursos existe precon-
ceitos raciais e, por mais escondidos que estejam, empiricamente, é possível
revelá-los, então, o racismo é estrutural.
Para Almeida (2019) o preconceito deve ser entendido com a constru-
ção e definição de conceito sobre determinada pessoa ou grupo, estabelecida

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 39


por fatores históricos e sociais. Deste modo, Racismo “é uma manifestação
normal de uma sociedade, e não m fenômeno patológico ou que se expressa
algum tipo de anormalidade”. Para o autor, o conceito de raça não é estático,
mas dependente das vigentes relações dos grupos sociais (ALMEIDA, 2019,
p.16).
Conforme Fanon (2008) o racismo e também o colonialismo deveriam
ser “entendidos como modos socialmente gerados de ver o mundo e viver
nele”. Logo, para compreender a lógica de produção das construções discursi-
vas, o caminho seria examinar a linguagem, “na medida em que é através dela
que criamos e vivenciamos os significados” (FANON, 2008, p. 15).
Almeida (2019) argumenta que o racismo pode ser definido a partir de 3
(três) concepções: (1) individualista - pela qual o racismo se apresenta como
uma deficiência patológica, decorrente de preconceitos; (2) institucional -
pela qual se conferem privilégios e desvantagens a determinados grupos em
razão da raça e normalizam-se os atos por meio do poder e da dominação
domínio sobre a organização política e econômica da sociedade; e (3) estrutu-
ral – apresentado de modo “normal” nas relações sociais, políticas, jurídicas
e econômicas, fazendo com que a responsabilização individual e institucional
por atos racistas se reproduzam de forma não condenatória.
Nesse sentido, Van Dijik (2015) assevera que dominação consiste em
uma noção de forma de abuso de poder 2que implica a dimensão negativa de
abuso, assim como a dimensão de injustiça e de desigualdade, ou seja, todas
as formas ilegítimas de ação e de situações, a qual envolve os vários tipos de
abuso de poder comunicativo, tais como a manipulação, a doutrinação ou a
desinformação, assim como o assédio sexual de mulheres por homens.
Vale destacar que dominação consiste em uma noção de forma de abuso
de poder que implica a dimensão negativa de “abuso”, assim como a dimensão
de injustiça e de desigualdade, ou seja, todas as formas ilegítimas de ação e
de situações, a qual envolve os vários tipos de abuso de poder comunicativo,
tais como a manipulação, a doutrinação ou a desinformação, assim como o
assédio sexual de mulheres por homens (DIJIK, 2015).
De fato, “o racismo é um fenômeno presente me diversas sociedades
contemporâneas, latente na cultura, nas instituições e no cotidiano das rela-
ções entre os seres humanos” (MUNANGA, 2017, p. 33). No entanto, apesar de

2 Abuso de poder consiste no uso ilegítimo do poder, ou seja, na violação de normas e valores fundamentais, dos
direitos sociais e civis das pessoas, no interesse de quem tem o poder e contra os interesses dos outros. (DIJIK,
T. A. V. Discurso e poder. 2. ed., São Paulo: Contexto, 2015).

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 40


toda a evolução histórica e biológica, Munanga (2017) afirma que as crenças
racistas não retrocedem,

[...] o que mostra que a racionalidade em si não é suficiente para que todas as
pessoas possam abrir mão de suas crenças racistas. Em outros termos, os ra-
cistas são movidos por outra racionalidade, que não é necessariamente cientí-
fica (MUNANGA, 2017, p. 33).

Nesse sentido, observamos que os conceitos de racismo se fundamen-


tam, a partir das relações sociais com base nos estudos e na compreensão dos
fatos sociohistóricos, políticos, jurídicos e econômicos. Além disso, na direção
do pensamento de Sampaio (2010), tendo em vista que possui uma racionali-
dade na própria ideologia, com a colaboração do mito da democracia racial e
da formulação teórica que une a cultura popular à ciência, ou seja, bases para
as práticas racistas existentes na vida cotidiana, o racismo não é problema de
ignorância social, por isso não deve ser explicado como sendo resultado da
dominação de determinado grupo sobre outro.
Nesse sentido, somente a partir de um discernimento acerca das estru-
turas sociais em geral, e das relações de poder, em particular, os Estudos Crí-
ticos do Discurso podem examinar os abusos de poder, como podem prejudi-
car as pessoas e como a desigualdade social pode ser produzida e reproduzida
no cotidiano, a fim de entendermos como o poder é distribuído de forma de-
sigual em nossa sociedade (DIJIK, 2015).
Além disso, Machado (2000) explica que o preconceito não é apenas uma
atitude individual, mas uma forma de cognição social estruturalmente funda-
da, cuja finalidade é legitimar as relações de dominação global, e que conhece
uma reprodução ampla, por meio de diversos de discursos. Nesse sentido,
para analisar o discurso é preciso levar em consideração estruturas de poder
e dominação, cognição social e discurso.
Vale destacar que o que dizemos faz parte de uma rede mais ampla de atos
linguísticos que, em geral, contribui para definir ou reforçar a identidade que
supostamente estamos apenas descrevendo, ou seja, quando utilizamos uma
linguagem racista como “negrão” para nos referir a uma pessoa negra do sexo
masculino, não estamos apenas fazendo uma descrição sobre a cor da pessoa,
mas estamos nos inserindo em um sistema linguístico mais amplo que contribui
para reforçar a negatividade atribuída à identidade “negra” (SILVA, 2020, p. 93).
Do exposto, atribuímos uma importância fundamental ao fenômeno dos
estudos da linguagem como um recurso linguístico capaz de nos fornecer
elementos de compreensão do outro para-o-outro.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 41


Análise Crítico-discursiva da Ideologia Judicial

Em agosto deste ano (2020), foi aberto um processo disciplinar contra


a Desembargadora Inês Marchalek Zarpelon, da 1ª Vara Criminal de Curitiba/
PR, que assinou na sentença condenatória proferida em desfavor de um ho-
mem, integrante de uma organização criminosa e praticante de furtos, por
ter utilizado o critério “raça” como argumento em sua decisão. Logo, o caso
ganhou grande repercussão nacional nas mídias e por parte de movimentos
sociais.
No entanto, os desembargadores do Tribunal de Justiça do Paraná-TJ/
PR concordaram, por unanimidade, com o voto do relator do caso, desembar-
gador José Augusto Gomes Aniceto, segundo o qual em nenhum momento a
juíza considerou a cor da pele do homem para aumentar a pena dele ou sen-
tenciá-lo. No entendimento dos julgadores, a polêmica gerada em razão das
palavras escolhidas pela magistrada aconteceu por má interpretação de texto
e o caso ainda será submetida ao Conselho nacional de Justiça (CNJ).
Entretanto, ao examinarmos o poder de grupos sociais ou de profissões,
como a de juiz, podemos perceber que eles controlam a maior parte das pro-
priedades, ou seja, elementos existentes em um julgamento. Nesse sentido,
Van Dijik (2015) afirma que, quando os falantes são capazes de influenciar
os modelos mentais, o conhecimento, as atitudes, e até mesmo as ideologias
dos receptores, podem indiretamente controlar suas ações futuras, ou seja, o
controle das ações dos outros, mentalmente controlado, é uma forma de po-
der, sobretudo no caso da manipulação, quando a audiência está pouco ciente
desse controle.
Além disso, segundo Sampaio (2020), o sistema judicial criminal no Bra-
sil mostra que a população negra é alvo de criminalização e segregação social
sistemática até hoje, sobretudo por meio da chamada guerra às drogas que
envolve o encarceramento em massa, assim como o extermínio resultante,
majoritariamente, da letalidade policial, a exemplo da operação da Polícia Ci-
vil realizada no dia 06 de maio de 2021, quinta-feira, na favela do Jacarezinho,
na Zona Norte do Rio de Janeiro, a segunda maior chacina da história do Es-
tado3.

3 Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2021-05-06/operacao-policial-mata-25-pessoas-no-


jacarezinho-em-segunda-maior-chacina-da-historia-do-rio.html . Acesso em 10/05/2021.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 42


Logo, para a autora, enquanto o sistema capitalista funciona a partir da
sensação de insegurança e do aumento da violência para sobreviver, por meio
dos aparelhos ideológicos, o Estado opera para legitimar essas operações, o
que é reflexo do racismo e a prova de que as instituições operam por meio da
lógica da necropolítica (SAMPAIO, 2020).
Dessa forma, Mbembe (2020, p. 71), entende necropolítica como sendo
“as formas contemporâneas que subjugam a vida ao poder da morte e re-
configuram profundamente as relações entre resistência, sacrifício e terror”.
Nesse sentido, de acordo com Sampaio (2020), o Estado opera a necropolíti-
ca4, ao combinar presenças e ausências, ou seja, trata-se da combinação de
uma cultura que produz criminosos, isto é, inimigos públicos a serem com-
batidos e/ou eliminados, juntamente com a garantia de direitos e segurança
prisional, o que aumenta os níveis de tensão entre quem está privado de liber-
dade e quem trabalha nas prisões.
Assim, como um instrumento essencial do Estado, o biopoder, ou seja,
uma tecnologia de poder, sendo a soberania o poder de suspensão da morte,
de fazer viver ou deixar morrer, constitui o racismo, de modo que classifica os
sujeitos conforme suas características fenótipas, dividindo uma linha divisó-
ria entre grupos “inferiores” e “superiores”, como acontece com a população
negra, a fim de garantir o extermínio de determinada população, sem que
haja um estranhamento. (p. 73).
Nesse sentido, Mbembe (2020, p. 5-6) apresenta a definição de biopoder
como sendo aquele domínio da vida sobre o qual o poder estabeleceu o con-
trole”, ou seja,

(...) o biopoder parece funcionar mediante a divisão entre as pessoas que devem
viver e as que devem morrer. Operando com base em uma divisão entre os vi-
vos e os mortos, tal poder se define em relação a um campo biológico – do qual
toma o controle e no qual se inscreve. Esse controle pressupõe a distribuição da
espécie humana em grupos, a subdivisão da população em subgrupos e o esta-
belecimento de uma cesura biológica entre uns e outros (MBEMBE, 2020, p.17).

Diante de tal definição, podemos perceber que se trata do racismo, em


que o critério raça está evidentemente presente na racionalidade do biopo-
der.

4 Achille Mbembe.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 43


Desse modo, faz-se necessário desenvolver a análise da ideologia conti-
da no discurso da sentença judicial e, para isso, partiremos da apresentação
dos 3 (três) conceitos base da abordagem tridimensional do discurso propos-
ta por Fairclough (2016, p. 95), a fim de tornar claro o referencial teórico-
-linguístico utilizado neste artigo: i) em relação às estruturas sociais, o autor
refere-se a “entidades sociais” que aqui são representadas pela justiça, pelas
classes sociais e pela própria linguagem; ii) quanto às práticas sociais, o autor
se refere às articulações de elementos sociais que se relacionam especifica-
mente a algumas áreas, como no caso do Sistema Judiciário; e iii) ao se referir
a eventos sociais, o autor faz referência às práticas específicas dos agentes
sociais, as quais materializam-se em textos e que, neste estudo, está relacio-
nada à decisão judicial em análise.
Nesse sentido, a fim de desenvolvermos a análise ideológica-discursiva
da sentença, tomaremos como referência os 5 (cinco) modos gerais de ope-
ração da ideologia desenvolvidas por Thompson (2011) e suas respectivas es-
tratégias típicas de construção simbólica, as quais podem alertar formas de
como o sentido do mundo social pode ser mobilizado, assim como delimitar
possibilidades para operação da ideologia (THOMPSON, 2011, p. 9-82)
Conforme Thompson (2011, p. 16), o conceito de ideologia pode ser usado
para se referir às maneiras como o sentido (significado), em circunstâncias
particulares serve para estabelecer e sustentar relações de poder sistemati-
camente assimétricas, isto é, relações de dominação de forma ampla, ideolo-
gia e sentido a serviço do poder.
Além disso, o conceito de ideologia é extremante importante na argu-
mentação acerca do papel do discurso no exercício ou na legitimação do po-
der. Assim, Van Dijik (2015) pressupõe-se que o termo se refere à consciência
de um grupo ou classe, elabora explicitamente ou não em um sistema ideo-
lógico, que é inerente às práticas econômicas, políticas e culturais dos mem-
bros do grupo, de modo que seus interesses (do grupo ou da classe) materia-
lizam-se (primeiramente, da melhor maneira possível).
Os grupos de classes dominantes possuem a tendência de esconder sua
ideologia, ou seja, seus interesses, assim como têm como meta torná-la aceita
como um sistema de valores, normas e objetivos “geral” ou “natural”, ou seja,
assim a reprodução ideológica incorpora a natureza da formação de consen-
so, assim como o poder que dela se deriva toma uma forma hegemônica (DI-
JIK, 2015).

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 44


Nessa acepção, o estudo de ideologia exige que as formas de como o sen-
tido é construído e utilizado pelas diferentes formas simbólicas sejam ave-
riguados desde as falas linguísticas no cotidiano até as imagens e os textos
complexos. Ou seja, analisando os contextos sociais dentro dos quais as for-
mas simbólicas são empregadas/articuladas, possamos averiguar também de
que forma o sentido é mobilizado pelas formas simbólicas em contextos es-
pecíficos para estabelecer e sustentar relações de dominação (THOMPSON,
2011, p. 16).
Acerca dos fatos e de acordo com a sentença, um homem condenado,
conhecido como “Negrinho”, que atuava diretamente na prática de crimes,
especialmente para acobertar fugas, era responsável por dar apoio ao gru-
po que o acompanhava. Ao proferir a sentença condenatória, a magistrada
justificou o fato de que o homem pertenceria ao grupo criminoso devido à
sua raça. Alegando, também, na motivação para a realização dos crimes, que
“seguramente está à obtenção fácil de dinheiro, o que é comum nesta espécie
de crime”, ou seja, na condenação do réu, utilizou critérios referentes à raça e
classe social.
Logo depois da má repercussão do caso, a juíza divulgou nota de escla-
recimento em que ressaltou que a cor da pele jamais serviu ou servirá de ar-
gumento ou fundamento para a tomada de decisões judiciais e explicou que a
organização criminosa, cuja parte foi identificada e todos foram condenados,
depois de investigação policial, era composta por pelo menos nove pessoas
que atuavam em praças públicas na cidade de Curitiba, praticando assaltos
e furtos. O que se deu, independentemente de cor da pele, mas em razão da
prova existente nos autos: “Em nenhum momento a cor foi utilizada - e nem
poderia - como fator para concluir, como base da fundamentação da senten-
ça, que o acusado pertence a uma organização criminosa. A avaliação é sem-
pre feita com base em provas”5.
Dessa forma, percebemos que o racismo estrutural e estruturante se
reproduz em todas as relações sociais em nossa sociedade, por meio das ins-
tituições no Brasil e acordo com Sampaio (2020) pode-se afirmar que a ideia
de meritocracia é sustentada pela negação do racismo, assim como pela ide-
ologia da democracia racial, tendo em vista que, por meio do discurso de que
não há racismo, a culpa acerca das da condição das pessoas negras passa a

5 Redação do Migalhas. Disponível em: https://migalhas.uol.com.br/quentes/334042/tj-pr-arquiva-processo-


contra-juiza-que-citou-raca-ao-condenar-homem. Acesso em: 10 dez. de 2020.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 45


relacionar-se a elas mesmas, sob o argumento de não terem feito tudo o que
estava ao seu alcance para transformar essa realidade.
Diante da breve explanação inicial dos faltos, resta ater-se à efetiva aná-
lise crítica de trechos dos discursos contidos no decorrer da sentença con-
denatória, nos depoimentos das vítimas e dos policiais civis que, juntamente
com as demais provas, possuem especial relevância na decisão proferida, o
que preocupa, tendo em vista que revelam marcas do racismo existente em
nossa sociedade. Acerca do que foi apresentado em um dos depoimentos, o
depoente

[...] relatou que o grupo tentava parecer e se identificar como pessoas com aparên-
cia comum da população. Que Djalma, era um “senhorzinho” com bigode. Eros
usava óculos e parecia mais intelectual, tentando parecer um professor, e al-
gumas mulheres que se vestiam bem; fugindo desse padrão, estava Natan, que
era magro e negro, e de fácil identificação, e por isso acredita que ele possuía o
encargo de despistar, estando sempre na cobertura [...] (BRASIL, 2020, p. 35,
grifo nosso).

Diante disso, podemos afirmar que, no Brasil, a política de segurança


pública torna-se um fator determinante para a promoção da exclusão, crimi-
nalização e extermínio da população negra, ao passo que, segundo Sampaio
(2020), ao reproduzir institucionalmente o racismo, com base em uma lógica
que opera para a manutenção das estruturas sociais e da prevenção dos ris-
cos à política de criminalização da população negra. Assim, uma sociedade
estruturalmente racista é produzida, causando a sistemática da criminaliza-
ção, assim como a exclusão dos negros no país.
Acerca da análise ideológica a partir de Thompson (2011, p. 83), podemos
perceber que a Legitimação se manifesta por meio da estratégia de constru-
ção simbólica da universalização. Por meio da qual os acordos institucionais
servem aos interesses de alguns indivíduos e que se manifesta por meio da
instituição que classifica. De acordo com Moreira (2019, p. 102), o negro reve-
la-se como uma ameaça, por meio de estereótipos construídos socialmente
e promovem julgamentos imediatos acerca do valor das vidas das pessoas
como servindo aos interesses de todos. Nesse sentido, tais acordos são vistos
como estando abertos a qualquer um que tenha habilidade e tendência de ser,
a princípio, bem sucedido.
Além do mais, a periculosidade o homem negro não é somente um es-
tereótipo negativo que promove a discriminação das nossas forças policiais,

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 46


mas também é instrumento de governança social (MOREIRA, 2019, p. 103).
Nesse sentido, O negro simboliza o biológico e, em determinados momentos,
está preso em seu corpo (FANON, 2020).
Ao relatar “que pode dizer que Natan nunca abordava, ficando sempre
na cobertura, bem como Tony, já que ambos fugiam do padrão das pessoas que
não chamam a atenção” (BRASIL, 2020, p. 36, grifo nosso), podemos perceber
que, a fim de dissimular relações de poder, além do modus operandi ideológi-
co da Legitimação perpetrado por meio da universalização, a ideologia surge
como dissimulação expressa por meio da tropo - estratégia que faz uso figu-
rativo da linguagem, isto é, das formas simbólicas por meio do emprego de
metáforas (THOMPSON, 2011, p. 84).
Também é capaz de dissimular relações sociais, por meio de sua repre-
sentação, ou pela representação de indivíduos e de grupos nelas implicados,
como se fossem possuidores de características que não possuem, o que faz
com que características algumas sejam intensificadas, em detrimento de ou-
tras, impondo sobre elas um sentido positivo ou negativo (THOMPSON, 2011,
p. 85).
Isso mostra que o comportamento de agentes institucionais também é
motivado por estereótipos negativos acerca de grupos minoritários (MOREI-
RA 2019, p. 104) Além disso, como mecanismos de poder e do Direito, os pro-
cessos de racialização da sociedade são legitimados pelo Estado subordinam
as pessoas, tendo em vista que, por meio da política criminal, influenciada
pela estrutura social racista, criminalizam condutas (SAMPAIO, 2020).
Além disso, percebemos que, referente à ação da Polícia Militar, em ra-
zão da manutenção da ordem, a instituição ainda trata a população, sobre-
tudo a mais pobre e negra, como inimigos do Estado, o que resulta em uma
sociedade carcerária ou disciplinada, em que a prisão moderna se torna me-
táfora da condição de humanidade moderna (SAMPAIO, 2020).
No trecho em que se afirma que “a acusada Noeli Aparecida Alves, co-
nhecida pelo grupo como “Lindinha”, pois, segundo a visão do grupo, ela era
“lindinha”, não aparentando ser alguém que comete delitos, portanto, pessoa
útil ao grupo por passar despercebida pelos policiais” (BRASIL, 2020, p. 41,
grifo nosso), pode-se perceber a presença do mesmo recuso utilizado ante-
riormente, o que confirma também o fato de que os negros, quando não são
excluídos por meio da discriminação indireta, sofrem a discriminação estéti-
ca, também confirmado no excerto abaixo (MOREIRA 2019, p. 97).

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 47


No momento em que o depoente afirma “que o réu Eros, como diver-
sos outros integrantes da organização criminosa, tentavam se parecer com
transeuntes de aparência comum da região Central da cidade, para que não
pudessem ser localizados em meio à população” (BRASIL, 2020, p. 55, gri-
fo nosso), podemos perceber, mais uma vez, o uso figurativo da linguagem
comum no discurso cotidiano, eficaz na mobilização do sentido no mundo
sócio-histórico o que, em certos contextos, o sentido mobilizado pode estar
associado a poder, podendo servir para criar, sustentar e reproduzir tais rela-
ções (THOMPSON, 2011, p. 86).
No trecho seguinte, ao afirmar que o réu “finge estar inserido na socie-
dade”, nota-se, ainda uma vez, o apelo à estética, a qual remete à estigma-
tização do negro na sociedade, por meio do modo de operação da ideologia
conhecida como unificação, a qual é utilizada para estabelecer e sustentar re-
lações de poder no nível simbólico. Independente das diferenças e divisões
que possam separá-los, por meio de uma unidade que interliga os indivíduos
em uma unidade coletiva (THOMPSON, 2011, p. 86).
Assim, como mecanismos de poder e do Direito, os processos de raciali-
zação da sociedade são legitimados pelo Estado subordinam as pessoas, ten-
do em vista que, por meio da política criminal, influenciada pela estrutura
social racista, criminalizam condutas
Ainda, conforme Thompson (2011, p. 86), a estratégia padronização ou
estandartização é uma das formas por meio das quais esse modo é expresso
em formas simbólicas. São adaptadas a um referencial padrão, o qual é posto
como um fundamento compartilhado e aceitável de forma padrão e que é se-
guida, por exemplo, por autoridades de Estado. Logo, a fim de desenvolver e
estabelecer uma hierarquia legitimada, conforme:

[...] o réu era visto há mais de um ano perambulando pelo centro da cidade,
fingindo estar inserido na sociedade, buscando com isso um disfarce melhor para o
cometimento dos crimes, pelo que essa circunstância deve ser considerada em
seu desfavor (BRASIL, 2020, p. 55, grifo nosso).

Por fim, o discurso da juíza, apresentado a seguir, revela a utilização da


estratégia da simbolização da unidade que também consiste em uma constru-
ção simbólica que busca a unificação e que em circunstâncias particulares
pode servir para estabelecer e sustentar relações de dominação. Destacamos
que se refere à dominação dos brancos sobre os negros, a qual envolve a cons-

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 48


trução de símbolos de unidade, de identidade e de identificação coletivas que
são difundidas por meio de um ou de vários grupos. Tais identidades podem
estar interligadas ao processo de narrativização - recorrentes em toda a sen-
tença -, cujos símbolos podem ser parte integrante da narrativa das origens
que conta uma história compartilhada que projeta um destino coletivo, uma
identidade coletiva criada e constantemente reafirmada (THOMPSON, 2011,
p. 86). Por conseguinte,

A conduta social consubstancia-se no comportamento do réu frente à socieda-


de. (...) Sobre sua conduta social nada se sabe. Seguramente integrante do grupo
criminoso, em razão da sua raça, agia de forma extremamente discreta os delitos
e o seu comportamento, juntamente com os demais, causavam o desassosse-
go e a desesperança da população, pelo que deve ser valorada negativamente
(BRASIL, 2020, p. 107, grifo nosso).

Diante disso, ficam evidentes os reflexos do racismo estrutural, na so-


ciedade brasileira o que, de acordo com Sampaio (2020), juntamente à lógica
da política criminal (determinada por quem governa e tendo em mente a ma-
nutenção da ordem) busca manter as estruturas sociais como estão prees-
tabelecidas, ou seja, no status quo, subalternizando o negro no seu status de
marginal, perpetuando os aparelhos ideológicos do Estado que opera para a
exclusão, encarceramento e extermínio da população negra no Brasil, tendo
a pena a função de excluir a população que perturba a ordem e , por isso, deve
ser sistematicamente excluída do meio social.
A política criminal no Brasil, assim como a construção do sistema de
segurança pública segue uma lógica de riscos e de manutenção da ordem que
opera a partir de uma lógica de aparato criado para a punição de um setor
da sociedade que, na lógica do racismo estrutural, por não se encaixar nos
padrões dos grupos sociais que estão no poder, põe em risco a ordem, o que
aumenta a insegurança, em vez de garantir a proteção (SAMPAIO, 2020).
Vale ressaltar que vivemos em uma sociedade que parte do pressuposto
de que a raça não tem significação social, que faz com que pessoas brancas
vejam relatos acerca de discriminação racial como sendo algo estranho ou
imaginário e, mesmo diante de estudos científicos e dados estatísticos sobre
o assunto, lançam suspeição sobre sua existência (MOREIRA, 2019, p. 97).
Diante disso, destaca-se que, no Brasil, as instituições brasileiras rela-
cionadas ao Sistema de Segurança Pública estão institucionalmente estru-
turadas para que haja, por meio de discriminações raciais, a manutenção do

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 49


poder de uma determinada classe, o que é refletido na política criminal brasi-
leira que tem a população negra e pobre como principal alvo, tendo em vista
que é vítima de um processo de criminalização, extermínio e encarceramento
em massa (SAMPAIO, 2020).
Dessa forma, evidencia-se que o Estado opera a necropolítica, pois, em-
bora o Direito tenha a possibilidade de realizar avanços sociais e promover
transformações sociais que buscam garantir, ainda que no âmbito formal, a
construção de um ideário igualitário, ao fazer parte da estrutura social e ins-
titucional que reproduz o racismo, por meio de ações políticas e ideológicas,
passa a ser um instrumento limitado na luta contra a desigualdade racial.

Considerações finais

A partir da análise, podemos afirmar que o Estado, cada vez mais pro-
move a subordinação de minorias raciais, tendo em vista que as decisões ju-
rídicas, direta ou indiretamente, servem como instrumento de reprodução
da opressão racial, por meio do discurso que opera por intermédio de uma
“simples” desconsideração do impacto que uma prática social pode ocasionar
em um grupo.
Além disso, o Direito opera como um sistema que pode ser manipulado
para que a exclusão de grupos minoritários seja mantida em nossa sociedade
por meio da reprodução, de forma explícita, de discursos que promovem a
manutenção do binômio inferioridade e superioridade; um dos principais mar-
cadores do racismo como sistema hierárquico.
Nesse sentido, cerca das consequências do seu moderado poder, tendo
em vista que podem ter acesso à educação e à pesquisa, por conta do seu sa-
ber jurídico, ou da sua influência, os juízes são, em princípio, os únicos que
decidem acerca da liberdade, ou até da vida e da morte, cujas consequências
podem ser enormes. Dessa forma, na direção do pensamento de Van Dijik
(2015), para além da abrangência e dos diversos acessos discursivos, o poder
dos juízes poderia ser medido, a partir das consequências sociais e políticas
desse acesso.
No entanto, a transformação e inclusão social de grupos historicamente
excluídos, parte da verificação do sistema de justiça no Brasil, pois atua dire-
tamente na conformação de características penais.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 50


Nessa perspectiva, em seu processo hermenêutico, o Direito precisa
considerar o papel da raça, tendo em vista que a hegemonia branca se esta-
belece em nossa sociedade como forma de composição e não democratização
das carreiras jurídicas, por meio de mecanismos e processos que se desen-
volvem independentemente da vontade de indivíduos particulares, como a
população negra matinada em condições precárias de existência por meio de
condutas sociais desqualificadores.
Indo ao encontro do pensamento de Sampaio (2020), o racismo estru-
tural e a construção do mito da democracia racial produziram violentas con-
sequências para a população negra no Brasil que, na superfície, é visto como
uma sociedade multirracial e igualitária, mas que, em suas estruturas, cri-
minaliza e exclui o negro. Além disso, racismo como ideologia está presente
na base de toda a estrutura do Estado brasileiro e se reproduz em todas as
relações sociais e institucionais, sejam elas formais, por meio da consolidação
de leis que criminalizam a população negra; seja materiais, por meio dos altos
índices de homicídios contara a população negra.
Dessa forma, tendo em vista que a racialização consiste em uma forma
de construção de diferenciação dos indivíduos, por meio da diferenciação de
raça, a fim de estabelecer as relações de poder, o critério raça se estabelece
como ponto central nos processos de governança social com objetivo de pro-
mover o controle social dos indesejados, subalternizados, cuja identidade é
construída pelos outros, ou seja, imposta de fora para dentro.
Portanto, diante desse cenário, no Brasil, faz-se necessário desenvolver
uma política de desencarceramento, a fim de reduzir o crescimento da popu-
lação prisional, por meio da implementação de políticas de segurança e justi-
ça que não apresentem o encarceramento como única medida punitiva. Além
de superar a política de extermínio da população negra, a qual é proveniente
do racismo estrutural em nossa sociedade, que ainda apresenta uma cultura
escravocrata e que não superou as desigualdades sociais e raciais.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 51


Referências

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LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 52


DOI: 10.52788/9786589932253.1-2
p T 3

Tradutor e Intérprete de Libras: instrumentalizando o


Sistema Judiciário para uma comunicação acessível

Railda Freitas da Silva Costalonga


Flávia Medeiros Álvaro Machado

Introdução

O sentido da noção de direitos linguísticos, como quaisquer outros di-


reitos, remetem-nos a um pêndulo, ou seja, temos a legislação que estabele-
ce e reafirma o direito igualitário, mas, ao mesmo tempo, percebe-se que há
muito para se dialogar sobre a prática, para não deixar à deriva na sociedade
o direito de um cidadão.
Inicialmente, sabemos que os direitos linguísticos são garantidos por leis
vigentes no país, porém, ainda que exista legislação criadas e elaboradas pelo
Sistema Judiciário, na prática, notamos o quão é insuficiente para a realização
plena de políticas linguísticas de garantias do acesso do imigrante à educação,
à informação e à comunicação. Atualmente, o fato é que os “direitos humanos
fundamentais” ao cidadão brasileiro concentram-se em manter a proteção das
minorias, em detrimento da criação de ações que construam outras deman-
das sociais, como do direito linguístico. Sendo assim e segundo a Constituição
Federal Brasileira de 1988, no Brasil, o reconhecimento da diversidade linguís-
tica e sua valorização, bem como a garantia de direitos linguísticos do cidadão
que faz uso de línguas diferentes da língua oficial do país, a língua portuguesa
- LP, é presente mais para efeitos internacionais.

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DOI: 10.52788/9786589932253.1-3
Todavia, as considerações preliminares destacadas até aqui instigam
ainda mais o que compreendemos em relação aos direitos linguísticos, prin-
cipalmente quando são vistos para o pleito coletivo, mesmo que atenda às
particularidades individuais da sociedade. Parafraseando Abreu (2016), os di-
reitos linguísticos podem ser abordados enquanto “direitos das línguas” ou
enquanto “direitos dos grupos linguísticos”. Com isso, consideramos plausi-
velmente como tributos linguísticos esses “direitos” para a comunidade sur-
da no Brasil, a qual já vem pleiteando ações de políticas linguísticas, com o pro-
pósito ser legitimada no Poder Público Brasileiro, mesmo que na atualidade
a própria legislação vigente se apresente como um “sistema bifásico”, o que
significa que muitos setores públicos e sociais não atendem o que a própria
legislação preconiza. Com isso, os militantes de causa lutam por um “conjun-
to de ações que privilegia as línguas como bens jurídicos de natureza difusa a
serem tutelados pelo Estado”, como argumenta o autor.

por um lado, há um conjunto de ações que privilegia as línguas como bens ju-
rídicos de natureza difusa a serem tutelados pelo Estado e, por outro, um viés
que deve contemplar, como bem jurídico a ser tutelado, o direito dos falantes,
vistos individualmente ou em grupo, de utilizarem as suas próprias línguas nas
mais diversas situações sociais, oficiais ou não (ABREU, 2016, p.175)

Abreu (2016) esclarece que, segundo a legislação brasileira no envolto de


políticas linguísticas, as línguas se constituem em “bens de natureza difusa” e
em “patrimônios culturais imateriais”, consideradas pelo autor como tutela
do Estado. Portanto, compreendemos que todo, no contexto jurídico a ser
tutelado como o direito de uso de uma língua, pelo ponto de vista coletivo, é
percebido como manifesto comunicativo que subscreve não apenas ao direito
linguístico mas a garantia linguística da expressão, por meio do uso da língua
materna de uma comunidade, e sendo assim, naturalmente, neste caso, des-
tacamos a comunidade surda brasileira.
A partir das perspectivas teóricas de autores como De Meulder (2015),
Hlibok (2018) e Severo (2013), que falam sobre a discussão de políticas linguís-
ticas e que discutem a “gestão linguística” no grupo de minorias, o objetivo,
neste capítulo, é discutir as políticas linguísticas, principalmente as que envol-
vem a área de Libras. Além disso, corrobora-se, a partir do ponto de vista de
Lopes (2009), a relação inteligibilidade da inclusão linguística em uma pro-
posta pós-estruturalista.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 54


De Meuder (2015) afirma que, conforme as Nações Unidas, há 31 países
que reconhecem as línguas de sinais como uso linguístico de cidadãos surdos.
Esse reconhecimento está atrelado às categorias que especificam as questões
legislativas, a cultura e ao uso da língua para cada nação. Para Witches (2021
apud SPOLSKY, 2016, p. 353), decorrem pelo ponto de vista de Spolsky (2016)
sobre as teorias de políticas linguísticas, como a “emergência de uma prática
de governamento”. Dessa forma, Hlibok (2018) dialoga sobre a eficácia do de-
senvolvimento de políticas linguísticas que reconhecem as línguas de sinais
como garantias da legislação do país com subsídios a direitos sociais. Nessa
discussão das políticas linguísticas, Severo (2013, p. 108) destaca que “a diversi-
dade linguística funciona no interior de uma racionalidade Estatal, portanto,
como tática de governo”, ou seja, os Estados de uma nação registram o reco-
nhecimento do uso de uma língua de minorias, preservando, assim, a comu-
nidade de fala do seu usuário.
Dentre tantos avanços sociais alcançado para os direitos linguísticos de
línguas de minorias, e não menos importante, a luta do cidadão surdo no Bra-
sil em que nos últimos 30 anos de trajetória (FENEIS, 2017) buscam o pleito
por direito de serem atendidos e compreendidos, a pessoa surda, por meio do
uso da Língua Brasileira de Sinais – Libras, considerada a língua materna de
fala.
Relembrando a legislação, a Libras foi regulamentada pela Lei de n.º
10.436 de 24 de abril de 2002, em que é reconhecida “como meio legal de co-
municação e expressão”, conforme estabelece o artigo 2º:

[d]eve ser garantido, por parte do poder público em geral e empresas concessio-
nárias de serviços públicos, formas institucionalizadas de apoiar o uso e difu-
são da Língua Brasileira de Sinais - Libras como meio de comunicação objetiva
e de utilização corrente das comunidades surdas do Brasil (BRASIL, LEI de n.º
10.436/2002 - Artigo 2º).

Diante dessa afirmação legal, compreendemos que o direito linguístico


não se alcança sem uma construção de políticas linguísticas, sendo elas con-
solidadas coletivamente em prol de uma comunidade surda. Ihering (2005, p.
41) argumenta que “[n]enhum povo pode, em caso algum, abandonar a defesa
de seu direito”. É neste intento em alcançar este privilégio de uma comunica-
ção pelo uso da língua materna - Libras, que o cidadão surdo mantém a mili-
tância por seus direitos civis, linguísticos e tradutórios, de forma aliada com

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 55


os professores bilíngues, professores surdos e entre outros profissionais que
trabalham diretamente com Libras. Neste ponto de vista, chamamos a aten-
ção para o profissional Tradutor e Intérprete de Língua de Sinais - TILS, que
certamente, não menos importante, é o que “empresta” a “voz” para a pessoa
surda com o propósito de garantir uma acessibilidade comunicacional.

Emergência dos direitos linguísticos no Sistema Judiciário

O conceito para o lexema DIREITO se descortina em dois sentidos, con-


forme explica Moraes (2017), primeiro o autor o entende como forma objetiva,
na qual temos um conjunto de regras que abarcam seus direitos e deveres; e
o segundo, o sentido compreendido é mais subjetivo e abstrato, ou seja, tra-
ta-se de um direito almejado e idealizado, como do respeito e de viver com
dignidade.
A partir dos anos 50 do século XX o direito de comunidades marginali-
zadas passaram a ser uma questão para arquivo jurídico na garantia de polí-
ticas linguísticas. Uma breve análise nos documentos publicados nas últimas
décadas ao que se refere aos direitos linguísticos, observamos 4 registros1,
tais como: Carta Europeia das Línguas Regionais e Minoritárias - Estrasbur-
go (1992); Declaração Universal dos Direitos Linguísticos - Barcelona (1996);
Carta Europeia do Plurilinguismo - Paris (2005); e, Manifesto de Girona sobre
os Direitos Linguísticos (2010). Nessa breve análise documental, observamos
a problematização central dos 4 registros pela busca do reconhecimento de
direitos linguísticos das comunidades que estão marginalizadas e que fazem
uso de uma língua diferente da sua nação.
Dessa forma, identificamos, nos documentos, que o vínculo está dire-
cionado ao “plurilinguismo linguístico” para acesso à educação, à informação
e à comunicação como um todo na Europa. No livro “Direitos Linguísticos e
Direitos Internacionais”, Fernández Liesa (1999, p. 8-9) destaca que

1 Os registros como a Carta Europeia das Línguas Regionais e Minoritárias - Estrasburgo (1992); a Declaração
Universal dos Direitos Linguísticos - Barcelona (1996); a Carta Europeia do Plurilinguismo - Paris (2005); e o
Manifesto de Girona sobre os Direitos Linguísticos (2010), são documentos que foram registrados e assinados
na Europa, como um pleito de espaço de enunciação heterogêneo, marcado por uma história que destaca um
elo entre países e à memória da colonização, sendo eles enquanto colonizadores, não enquanto colonizados.
Destacamos aqui no sentido de evidenciar a distância da memória e o espaço latino-americano, especificamente
o brasileiro.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 56


a última década [década de 1990] viu os conflitos das minorias aumentarem de
uma forma sem precedentes no direito internacional contemporâneo. A pro-
teção das minorias constitui em um dos melhores métodos para a prevenção de
determinados conflitos nacionais e internacionais, procurando reduzir as causas
da sua emergência, através do reconhecimento e proteção dos direitos linguís-
ticos, bem como através do estabelecimento de medidas para a resolução de
tensões, tanto internas quanto internacionais. (FERNÁNDEZ LIESA, 1999, p.
8-9, grifos do original).2

Neste ponto de vista, percebemos que a garantia de políticas linguísticas


e direito linguístico são ações que já ocorrem em diversas discussões interna-
cionais. No Brasil, analisando a comunidade surda brasileira, não seria dife-
rente o pleito aos direitos do cidadão surdo. Retomando o conceito DIREITO,
percebe-se que a literatura disponível sobre o contexto jurídico para a área de
Libras ainda é muito incipiente. No nosso cotidiano, encontramos presente
o conceito DIREITO, basta observar quando compramos algo, quando regis-
tramos alguém, quando nasceu, quando pagamos impostos, entre outros. É
notável, que o DIREITO está em qualquer circunstância da vida social.
O DIREITO mencionado, logo, atende a todos os requisitos processuais
de forma coletiva a qualquer cidadão brasileiro. No entanto, quando se refere
ao cidadão surdo brasileiro o DIREITO permanece com as mesmas caracte-
rísticas sociais, porém o que ocorrerá é um adendo do que chamamos “direito
linguístico”, ou seja, para uma comunicação formal, torna-se necessário que
haja um TILS para mediar a comunicação entre surdos e ouvintes, caso con-
trário, poderá defrontar-se com um óbice3 jurídico. Cintra, Grinover e Dina-
marco (2010, p. 40 - 41) afirmam que esta diligência é atribuída como “ingres-
so em juízo", conforme o que os juristas utilizam em contexto de trabalho.

Direitos Linguísticos

2 Tradução Livre: “La última década [los años 90] ha visto agravarse los conflictos minoritarios de una manera
que carece de precedentes en el Derecho internacional contemporáneo. La protección de las minorías constituye
uno de los mejores métodos para la prevención de determinados conflictos nacionales e internacionales, intentando
reducir las causas de su surgimiento, mediante el reconocimiento y protección de los derechos lingüísticos, así
como por el establecimiento de medidas para la solución de las tensiones, tanto internas como internacionales
(FERNÁNDEZ LIESA, 1999, p.8-9, grifos do original).
3 O significado de ÓBICE do dicionário Aurélio, diz que é “impedimento, embaraço, empecilho, obstáculo,
estorvo”. Porém, é um conceito de uso do contexto jurídico, e de acordo com Cintra, Grinover, Dinamarco, (2010,
p. 40), no contexto jurídico o uso do conceito ÓBICE tem o sentido de “admissão do processo”, ou seja, no âmbito
jurídico, o termo óbice legal é utilizado no sentido de “impedir algo, sendo, para isso, respaldado por alguma
norma ou lei previamente estabelecida e que assegure tal objeção.”

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 57


A Constituição da República Federativa do Brasil (CFB/1988), apropria-
da de força normativa, reconhecimento das garantias4 e direitos humanos,
destaca o artigo 1.º, que define a relação dos princípios fundamentais de ga-
rantias a qualquer cidadão brasileiro, e neste caso também se inclui o cidadão
surdo brasileiro: (I) a soberania, (II) a cidadania e (III) a dignidade da pessoa
humana. Em sequência, no artigo 3.º, inciso IV, observamos, ainda, que o ob-
jetivo fundamental da CFB/1988 serve para promover “o bem de todos sem
preconceitos de quaisquer formas de discriminação”. Por conseguinte, obser-
vamos os direitos e garantias indispensáveis ao cidadão, descritos no caput
do artigo 5.º, a qual declara que “somos iguais perante a lei independente da
natureza, sem nenhuma distinção, ainda que, essa natureza que nos distin-
gue seja a comunicacional”. Neste ponto de vista, corroboramos o parecer de
Alexandrino (2011, p. 122), que afirma que toda norma precisa primeiramente
perpassar os “aplicadores da lei”5 para poder impedir que haja tratamento
distinto a quem a lei considera como iguais na sociedade.
Sendo assim, os direitos linguísticos estão preconizados em várias abor-
dagens legais no Brasil para qualquer cidadão brasileiro. Nesta linha de ra-
ciocínio, algumas reflexões são pertinentes nesta temática: como o direito lin-
guístico está sendo construído e desenvolvido para o cidadão surdo brasileiro?
Seguiríamos os mesmos princípios da CFB/1988? Problematizando o direito
linguístico do cidadão surdo, destacamos a Lei Brasileira de Inclusão – LBI de
n.º 13.146/2015, no artigo 79, § 1.º, que dispõe a respeito do Poder Público em
assegurar à pessoa com deficiência o acesso à justiça com “igualdade com as
demais pessoas”, corroborando o artigo 84º da lei, que fortalece esclarecendo
que todo o surdo se utiliza dos recursos e adaptações necessárias para garan-
tir ao acesso comunicacional. Neste caso, estamos analisando pelo ponto de
vista do acesso comunicacional no contexto jurídico. Vejamos um exemplo,

4 Alexandre de Moraes é um professor do curso de Direito que define doutrinariamente a distinção entre “ter
direitos” e “garantias fundamentais”. Para Moraes (2016), os DIREITOS para o ser humano são considerados
normas principais que representam bens jurídicos, já as “garantias fundamentais” são normas acessórias que
representam instrumentos de proteção ao indivíduo frente ao Estado.
5 Os “aplicadores da Lei” são todos aqueles “funcionários responsáveis pela aplicação da lei” incluindo todos os
agentes da lei, quer nomeados, quer eleitos, que exerçam poderes policiais, especialmente poderes de detenção
ou prisão. Nos países onde os poderes policiais são exercidos por autoridades militares, quer em uniforme,
quer não, ou por forças de segurança do Estado, será entendido que a definição dos funcionários responsáveis
pela aplicação da lei incluirá os funcionários de tais serviços.” (ver Código de Conduta dos para os Funcionários
Responsáveis Pela Aplicação Da Lei Adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas, no dia 17 de Dezembro de
1979, através da Resolução nº 34/169.) Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/cao_criminal/
CAOCri_ControleExtAtivPol/C%C3%B3digo%20de%20Conduta%20para%20os%20Funcion%C3%A1rios%20
Respons%C3%A1veis%20pela%20Aplica%C3%A7%C3%A3o%20da%20Lei_2.pdf. Acesso em: 20 de ago. de 2021.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 58


que demanda uma ação judicial de um processo trabalhista entre um surdo
(contratado) e uma empresa (contratante), essa ação envolve direitos traba-
lhistas respaldados pelo Conselho Superior da Justiça do Trabalho. No en-
tanto, para esse trabalhador surdo existe um direito amparado legalmente, o
direito linguístico, o qual dá acesso à comunicação e informação.
Sabemos que a Resolução CSTJ de nº 218/2018 passou a oportunizar
a capacitação de servidores em assuntos que envolvem a acessibilidade. A
questão é pertinente, pois será que o uso de uma língua de modalidade visual
e gestual, com apenas um curso de capacitação daria conta de todo o teor que
envolve uma ação na justiça? Como pesquisadoras da área de Libras e do Di-
reito, mesmo que o servidor se esforce e faça com eficiência a comunicação,
o mesmo ainda não é um TILS que conhece as habilidades e competências
psicofisiológicas (HURTADO ALBIR, 2005) para uma tarefa de interpretação,
sendo de forma simultânea e/ou consecutiva no contexto jurídico.
Outro exemplo em que podemos verificar a importância de atender aos
direitos linguísticos do indivíduo surdo, encontra-se identificada numa apela-
ção cível que fora julgada no Tribunal de Justiça do Estado de Roraima (RR),
na qual o apelante, pessoa jurídica de direito, representada por agentes no
exercício de suas funções, negou ao apelado6, cidadão surdo, seus direitos
constitucionais contidos no artigo 5.º da Lei de n.º 13.146/2015. Pelas infor-
mações descritas na apelação, percebe-se a falta de conhecimento quanto
aos direitos linguísticos do indivíduo surdo que começa desde as primeiras
unidades de atendimento ao público que não estão informados e preparados
para atuarem com o quesito acessibilidade comunicacional.

Vocabulário jurídico e acessibilidade comunicacional

O ser humano se comunica de forma verbal e/ou não-verbal, sendo assim,


a forma verbal é extremamente essencial o uso da linguagem oral, e a forma
não-verbal pode acontecer por meio da linguagem corporal, como o uso de ex-
pressões faciais e corporais, a linguagem do vestuário, como o uso de uma toga
que indica a função exercida pelo magistrado, outras. (DAMIÃO, p. 18-19).

6 Referência da Apelação Cível encontra-se no Nº 0834742-84.2014.8.23.0010. Sendo o apelante o Estado de


Roraima, e o apelado Fredson Clever Damasceno. Rel. Desa. Tânia Vasconcelos. Disponível em: https://tj-rr.jusbrasil.
com.br/jurisprudencia/673832894/apelacao-civel-ac-8347428420148230010-0834742-8420148230010. Acesso
em: 25 de set. 2020.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 59


As formas linguísticas surgem na língua padrão, linguagem culta ou po-
pular são relações do uso da língua. Contudo, Medeiros (2004, p.25) explora as
variações extralinguísticas como fatores

[...] sociológicos: variações originadas por idade, sexo, profissão, nível de estudo,
classe social, raça; – geográficas: compreendem variações regionais. Indivídu-
os de diferentes regiões tendem a apresentar diversidade no uso da língua, par-
ticularmente com relação ao vocabulário e expressões idiomáticas; – contextu-
ais: envolve assunto, tipo de interlocutor, lugar em que a comunicação ocorre,
relações que unem interlocutores (MEDEIROS, 2004, p.25).

Os níveis de linguagem para uso profissional na área jurídica é algo que


requer a presença do nível culto, nível comum e nível popular para comu-
nicação com seu cliente e com o magistrado. Dessa forma, sabemos que a
construção de um texto jurídico é registrado por vocábulos muito complexos,
de um alto nível intelectual do uso da língua portuguesa e, por conta disso, é
necessário um profissional da área jurídica, referência na tradição de produ-
zir textos com terminologias jurídicas, em um amplo domínio da norma culta
da língua portuguesa.
No contexto jurídico e por sua formalidade de uso da língua, é importan-
te saber se expressar adequadamente com o uso das palavras, pois por meio
delas que um advogado formula um pedido jurídico ao seu cliente, formali-
zando o pensamento por meio das palavras utilizadas corretamente e conju-
gadas ao nível de conhecimento jurídico. No entanto, geralmente, necessitam
de um vocabulário bem preciso para a produção de um texto jurídico e com-
preensão dos clientes que o Operador do Direito elabora um processo judicial.
De acordo com Quadros e Karnopp (2004, p.15), as línguas de sinais in-
tegram também o contexto dos estudos linguísticos, respeitando as particu-
laridades culturais e sociais com relação ao contexto e à linguagem.
Todavia, compreendo sobre os processos de tradução e interpretação
de Libras para ortuguês e vice-versa, Machado (2017) afirma que a compre-
ensão e o reconhecimento da palavra escrita em língua portuguesa são fun-
damentais para a leitura. Toda a construção de uma representação mental
significativa exige do leitor-surdo um conhecimento prévio sobre o assunto,
o qual realiza a tarefa da tradução e/ou interpretação no contexto jurídico;
além de um conjunto de crenças, motivações e atitudes em relação ao leitor-
-surdo (MACHADO, 2017, p. 108). Com isso, entende-se que toda a atribuição
de significado ao input linguístico ocorre de maneira estratégica da leitura

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 60


com o leitor, isto é, todo o sistema cognitivo utiliza-se de diferentes recursos
de leitura com o objetivo de criar uma representação efetiva da leitura e com-
preensão, tão logo a informação é processada cognitivamente.
É a partir dessa premissa que abordaremos o contexto dos direitos le-
gais e individuais do cidadão surdo de exercer, com acessibilidade, o que está
garantido na Lei de nº 12.319/2010, que regulamenta a profissão do TILS em
contexto comunitário. Assim, neste capítulo, abordaremos a função de de-
sempenhar o papel legal, conforme demandas estabelecidas no contexto ju-
rídico. Dessa maneira, compreendemos que explorar a problemática desta
pesquisa, no sentido de identificar a “instrumentalização do acesso do tra-
dutor-intérprete de libras/português no judiciário”, foi o que despertou para
recorrer à construção do corpus, para o registro dos dados e das análises, com
seus respectivos resultados.
Nesse sentido, entendemos que, para o êxito da comunicação acessível,
é imprescindível que o TILS tenha formação de ensino superior capacitado,
conforme apresenta o artigo 17.º do Decreto de nº 5.626/2005 e a LBI de n.º
13.146/2015 no artigo 28.º, que diz que todos “os tradutores e intérpretes de
Libras, quando direcionados à tarefa de interpretar [...], devem possuir nível
superior, com habilitação, prioritariamente, em Tradução e Interpretação em
Libras”.

A tarefa do Tradutor e Intérprete de Língua de Sinais - TILS

No compilado de verbetes do Dicionário da Língua Portuguesa (FERREI-


RA, 2009, p. 1121), temos a descrição do significado do lexema intérprete com o
seguinte sentido: “[...] pessoa que serve de tradutor ou de intermediário para
fazer compreender indivíduos que falam idiomas diferentes [...]”. Porém, no
contexto em voga, essa pesquisa e no aspecto linguístico que abordamos an-
teriormente, é certamente pertinente destacar a definição da função de intér-
prete de língua de sinais abordada por Quadros (2002, p. 27):
É o profissional que domina a língua de sinais e a língua falada do país que é
qualificado para desempenhar a função de intérprete. [...] Além do domínio das
línguas envolvidas no processo de tradução e interpretação, o profissional pre-
cisa ter qualificação específica para atuar como tal. Isso significa ter domínio
dos processos, dos modelos, das estratégias e técnicas de tradução e interpre-
tação. O profissional intérprete também deve ter formação específica na sua
área de atuação (por exemplo, a área da educação). (QUADROS, 2002, p. 27).

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 61


Machado (2017, p. 46-47), no tocante ao destaque das habilidades e com-
petências do TILS, menciona que este profissional atua em várias esferas da
sociedade e, para alcançar um conhecimento em diversos contextos com
maestria e propriedades linguísticas, tradutórias e interpretativas, o TILS
perpassa por experiências também extralinguísticas na tarefa da tradução e
interpretação. A autora ressalta que “traduzir não se trata simplesmente de
transmitir o que foi dito em outra língua”, mas que

[...] nessa vertente, o tradutor e intérprete necessita vivenciar práticas tradu-


tórias, no intuito de aprimorar suas escolhas semântico-pragmáticas, eviden-
ciando suas habilidades e competências linguísticas para o processo de inter-
pretação e tradução. (MACHADO, 2017, p. 46-47).

Nessa linha de pensamento e de acordo com Nordin (2018, p. 83), adver-


timos que este profissional precisa atuar de forma ética (cf. o Código de Con-
duta ética do TILS)7, transparente e sobretudo imparcial. A função do TILS no
âmbito jurídico se enquadra em algumas regras essenciais, como: (a) escla-
recer às partes que a atuação do intérprete não irá interferir na decisão do
juiz, visto que sua atividade se trata de uma ferramenta de trabalho neutra;
(b) traduzir da língua de partida para língua de chegada sem a obrigatorieda-
de de explicar ao réu/autor surdo cada terminologia jurídica. Caso não saiba
o sentido da terminologia o questionamento deve ser dirigido ao juiz ou ao
advogado; (c) não ficar responsável em responder pelo indivíduo surdo; e, (d)
iniciar a audiência é imprescindível que se apresente às autoridades. Obser-
vando as competências que a autora descreve, a profissão do TILS atualmente
regulamentada pela Lei de nº 12.319/2010, apresenta-nos a tarefa do TILS no
artigo 2.º e artigo 6º:

O tradutor e intérprete terá competência para realizar interpretação das 2


(duas) línguas de maneira simultânea ou consecutiva e proficiência em tradu-
ção e interpretação da Libras e da Língua Portuguesa. [...] São atribuições do
tradutor e intérprete no exercício de suas competências: [...] prestar seus ser-
viços em depoimentos em juízo, em órgãos administrativos ou policiais. (ARTI-
GO 2º e 6º - Lei de nº 12.319/2010).

7 FEBRAPILS – Federação Brasileira das Associações dos Profissionais Tradutores e Intérpretes e Guia-
intérpretes de Língua de Sinais. Código de Conduta e Ética - Primeira alteração aprovada na Assembleia Geral
Ordinária - 13 de abril/2014. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/0B7ZxCOYQ0QJmTUdtZ2xIZHlqQ1U/
view?resourcekey=0-UR8f76e4adlVWnFLu1CTwQ>. Acesso em: 20 de jul. 2021.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 62


Nesta mesma perspectiva, apreciamos as reflexões de Bieleski, (2012, p.
6), que destaca “[o] trabalho do intérprete não [sendo] [sic] apenas decodificar
os conteúdos e as falas, ou mesmo as situações de interação, sua função é
ultrapassar a mera decodificação, compreender os enunciados e dar sentido
a eles”. Pois, de fato, como Machado (2017) afirma, trata se de um profissional
com habilidades linguísticas e cognitivas, que executa o seu ofício com res-
ponsabilidade, ética e compromisso social, cooperando e garantindo os di-
reitos linguísticos do cidadão surdo no contexto comunitário – educacional,
saúde e jurídico.

Problematizando a pesquisa no Contexto Jurídico

Atualmente vivenciamos uma grande divulgação de projetos sociais em


prol da inclusão para a comunidade surda, bem como destaques em mídias
televisivas em relação aos trabalhos dos TILS, ambos têm sido objeto de pro-
moção da acessibilidade para as pessoas surdas. No entanto, o que percebe-
mos é que no decorrer dos anos, pesquisadores na área dos Estudos Linguís-
ticos, Estudos da Tradução e Estudos da Interpretação, vem apresentando os
grandes desafios e dificuldades ao que se refere a tarefa do TILS em diferen-
tes contextos, e no caso dessa pesquisa o contexto jurídico brasileiro.
Todavia, ainda encontramos setores que desconhecem a tarefa do TILS,
e no contexto jurídico não está diferente atualmente. Com isso, o desconheci-
mento dos Operadores do Direito que são os magistrados, membros do Minis-
tério Público, advogados, ou qualquer outro que esteja neste ramo de atuação
no contexto jurídico, desconhecem as especificidades da tarefa do trabalho e
da atuação profissional do TILS. Com isso, faz-se necessário que os pesquisa-
dores dos Estudos da Tradução, sendo que à área de Libras ainda é incipiente
nas pesquisas do contexto jurídico, mas, nas línguas orais, percebemos que,
ao longo das últimas décadas ,estão elucidando essa abordagem. No entanto,
Santos e Reckelberg (2019, p. 4) ressaltam a discussão sobre os “intérpretes
de Libras-Português: dificuldade e desafios e no contexto jurídico”, dando ên-
fase às relações que surgem quando se trata do contratado e do contratante,
como, por exemplo, o fato do TILS ser convidado diretamente pelo surdo, por
relações de amizade, tendo que colaborar com os Operadores do Direito, en-
caminhamentos formais da intimação e nomeação, como de praxe se realiza

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 63


nesse contexto, isto é, de um profissional TILS para atuar na ação no Sistema
Judiciário e não como ocorre de modo informal.
No desenvolver desta pesquisa, deparamo-nos também com situações
similares relatadas no parágrafo acima e, dentre os resultados obtidos, perce-
bemos que, inicialmente, as dificuldades encontradas foram classificadas nos
aspectos linguísticos utilizados no contexto jurídico, devido aos termos téc-
nicos-jurídicos que são costumeiramente utilizados. O cidadão surdo, usuá-
rio de Libras que também desconhece os sentidos das terminologias empre-
gadas nos textos escritos da língua portuguesa, bem como no empréstimo
linguístico que o TILS realiza da língua de partida para a língua de chegada
- LP para Libras. Nota-se a grande dificuldade do TILS em obter um repertó-
rio linguístico na área jurídica para agir com aspectos éticos e linguísticos
diante de uma tarefa interpretativa, podendo ser simultânea ou consecutiva,
como destaca Russel (2002), que compara o uso da interpretação consecutiva
e simultânea numa tarefa de precisão em relação à prática dos intérpretes. A
depender do processo em ação, as questões emocionais relativas se tornam
evidentes em cada ação jurídica. Certamente são problematizações relevan-
tes e precisam ser consideráveis pelo Poder Judiciário pela busca do empe-
nho e cooperação com a tarefa do TILS em garantir acessibilidade comuni-
cacional de forma que se estabeleça o acesso à comunicação e à informação.
Um destaque relevante das quais poucos Operadores do judiciário têm
conhecimento e percepção a respeito do tempo de duração que cada TILS
deve atuar quando eles são contratados individualmente no contexto jurídi-
co, justamente pelo alto teor de complexidade que envolve o uso de termino-
logias nessa área. A Febrapils e as associações brasileiras de TILS orientam
esse tempo de revezamento. Um exemplo que consideramos pertinente des-
tacar, refere-se a quando o tempo de atuação do TILS excede os 20 minutos
de trabalho recomendado pela federação. Após esse período, a medição passa
a ficar comprometida e o processamento cognitivo, linguístico, tradutório e
interpretativo passam a sofrer decalques da língua portuguesa na modalida-
de oral para Libras, principalmente quando envolve diretamente a tarefa de
interpretação simultânea, ressalta Machado (2017, p. 176).
A federação recomenda que este profissional em atuação procure junto
ao contratante a parceria profissional de outro colega TILS, com o intento de
revezar adequadamente e manter o ritmo cognitivo, como se apresenta nas
pesquisas de Machado (2017) e na nota técnica da Febrapils. Essa nota técnica

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 64


discorre sobre a importância de todo TILS revezar a cada 20 minutos de in-
terpretação simultânea, para manter a qualidade da prestação dos serviços
especializados de intérprete e guia-intérprete de Libras e língua portuguesa,
atuando em quaisquer contextos comunitários, ou mesmo em materiais au-
diovisuais, televisivos e virtuais que requerem com prioridade a tarefa do
TILS, pois entendemos que toda a

[...] interpretação a mobilização de textos predominantemente orais e sinaliza-


dos em situações de interação face-a-face que demandam do intérprete habi-
lidades, competências e esforços diferentes das exigidas de um tradutor como
a memória de curto prazo, o uso da linguagem expressiva em situações face-a-
-face e, dependendo do tempo da atividade, o revezamento entre dois profissio-
nais para garantir a qualidade do serviço (FEBRAPILS, 2017, p. 2).

Dentre outros fatores, os juristas desconhecem a importância de o TILS


obter um conhecimento prévio dos autos para se familiarizar com as termino-
logias do enunciado que será interpretado simultaneamente à fala do enun-
ciador. Machado (2017, p. 198) compreende que todo o “TILS se apropria de
uma tradução cognitiva no sentido de compreender o texto falado e poste-
riormente realizar uma interpretação simultânea”. Em caso do TILS não te-
nha esse acesso aos informes dos processos jurídicos no qual ele fará a mediação
comunicacional, o que ocorre com frequência pela falta de acesso do TILS ao
conhecimento prévio, pode ocorrer um distanciamento da língua de partida
para língua de chegada durante a tarefa da interpretação simultânea. Nesse
momento, a perícia do TILS corresponde ao conhecimento da língua em uso
(Libras e Português), bem como o repertório linguístico de terminologias no
contexto jurídico que ele passa a adquirir conforme suas práticas.
Para um processo tradutório e/ou interpretativos, as escolhas lexicais
são fundamentais, como enfatiza Machado (2017, p. 46): “[...] em todos os atos
tradutórios, o enunciado depende de certos conhecimentos e/ou empíricos,
devendo, dessa forma, acessar as informações previamente e o que está sendo
traduzido se valerá dos aspectos cognitivos, físicos e emocionais do tradutor
e intérprete”. Após refletir sobre a posição da autora e as diferentes respostas
concedidas ao questionário do TILS, quanto à forma de acesso ao judiciário,
notamos que a categoria dos TILS ainda desconhecem os movimentos fede-
rativos e associativos, os quais têm se movimentado em prol dessa classe de
profissionais em todo o território nacional brasileiro. Com isso, recomenda-
mos que o TILS, com formação em Letras-Libras, em tradução e interpreta-

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 65


ção, cadastre-se junto às instituições que representam diretamente os TILS,
como aqui já mencionado, a Febrapils e o Sindicato Nacional dos Tradutores
- SINTRA, pois essas representações da categoria profissional conhecem toda
a parte da instrumentalização que acessibiliza a comunicação do surdo na
sociedade.
Outra situação enfrentada pelos TILS no contexto jurídico é a formali-
dade do uso da língua no Sistema Judiciário, usualmente chamada juridiquês8
pelos magistrados. Essa linguagem técnica requer intrinsecamente uma
compreensão dos textos legais e doutrinários, para obter-se, depois, uma in-
terpretação de qualidade.
Dessa forma, essa pesquisa visa também dialogar com o Sistema Judici-
ário, na tentativa de encontrar profissionais TILS capacitados e qualificados-
para dar direitos plausíveis e eficientes ao cidadão surdo, quanto à prestação
de serviços especializados, e o prolabore em relação aos honorários, confor-
me demandas para esse profissional no mercado de trabalho. Sendo assim,
entendemos que essa pesquisa proporcionará, após a coleta de dados, um
banco de dados de profissionais TILS que estejam habilitados para atuarem
no judiciário, assegurando, assim, ao jurista que julgará o processo, a presen-
ça de TILS qualificados para tal tarefa de comunicação. Diante desta análise
é que se reafirma a necessidade de um TILS habilitado para este cenário, pois
certamente irá requerer deste profissional mais segurança linguística para
uma tarefa de interpretação simultânea com uso de terminologias jurídicas.

Metodologia e procedimentos

A pesquisa é qualitativa e quantitativa, com isso, os procedimentos me-


todológicos para essa pesquisa foram realizados por ferramentas disponíveis
na plataforma do G-suíte, como o formulário do google, que deu suporte para
a coleta dos dados e, posteriormente, às análises dos resultados obtidos.
As pesquisadoras selecionaram dois grupos: um de TILS e o outro de
Operadores do Direito (juízes e advogados). O questionário foi elaborado se-
paradamente, de forma pública e on-line, pelo formulário do google, sendo

8 Juridiquês é um neologismo que designa o uso excessivo do jargão jurídico e de termos técnicos do Direito.
Na prática esses excessos tornam a linguagem jurídica um idioma desconhecido para a maioria das pessoas:
juridiquês. Disponível: http://www.juridiques.adv.br/about.html. Acesso em: 15 out 2020.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 66


divulgado nas redes sociais em que TILS participam com frequência, como
o Instagram e Facebook da Febrapils e das associações de TILS. No primeiro
momento, foram elaboradas 15 questões abertas e fechadas para os TILS, se-
guindo o perfil solicitado durante a divulgação do questionário para partici-
par do questionário, tal como:

(a) Tradutores e intérpretes com formação em Letras-Libras;


(b) Experiência no contexto jurídico do Sistema Judiciário;

Para o grupo dos Operadores do Direito, seguiu-se os mesmos procedi-


mentos metodológicos para a coleta de dados, modificando-se apenas o nú-
mero de pergunta que , nesse caso, foram 13 também abertas e fechadas, se-
guidas de um questionamento dissertativo, como “o que é ser Operador do
Direito no Sistema Judiciário?”.
Desta maneira, toda a pesquisa e a coleta de dados foi realizada para
uma análise quantitativa, construindo o corpus, para, então, analisar os dados
obtidos. As perguntas estão apresentadas de forma dissertativa pelas auto-
ras, para que o leitor compreenda as análises realizadas e dos resultados en-
contrados nesta pesquisa, tanto para o grupo de TILS como também para o
grupo de magistrados9.
A aplicação dos questionários estruturados possuia perguntas idên-
ticas, realizadas para todos os participantes que receberam o convite via
e-mail e abriram o link do formulário do google para preencher as questões.
Ressaltamos que não houve coletas de informações pessoais, justamente para
não identificar os TILS e nem os Operadores do Direito que participaram desta
pesquisa. Contudo, entendemos que os “grupos de pessoas” escolhidas esta-
vam situadas em nosso universo da pesquisa, ito é, os grupos que respode-
ra aos questionários, TILS e Operadores do Direito. Assim, não optamos por
“qualquer grupo de pessoas” como participantes desta pesquisa, visto que a
intenção foi de contemplar o objetivo proposto e obter os resultados que hi-
poteticamente esperávamos.
Entendemos que um dos grandes trunfos do método quantitativo é re-
alizar questionários que especifiquem a necessidade de um grupo que deseja

9 Os Magistrados são considerados os “Ministros dos Tribunais Superiores, os Desembargadores e juízes dos
tribunais locais”, conforme apresenta a enciclopédia jurídica. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.
br/verbete/185/edicao-1/magistratura. Acesso em: 28 de ago. de 2021.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 67


explorar os dados, obtendo os resultados para todo o grupo em estudo, como
também definindo ações para toda uma categoria. Contudo, para que isso
seja possível, é necessária a atenção aos métodos estatísticos, para que os
resultados sejam precisos e científicos. Todavia não foi possível realizar uma
análise completa dos dados, devido ao tempo que nos foi orientado durante a
coleta da pesquisa junto ao Programa de Iniciação Científica da Universidade
Federal do Espírito Santo – PIIC/UFES.
No entanto, a pesquisa seguiu o cronograma baseado em números e
gráficos, que possibilitaram obter um resultado de ambos os grupos. Sendo
assim, essa abordagem, visa validar as hipóteses iniciais, tais como: (a) obser-
vação direta dos grupos a serem pesquisados; (b) validação dos dados cole-
tados; (c) aplicação de questionários aos grupos escolhidos, e (d) análises do
corpus construído para pesquisa.
De acordo com Silveira e Gerhardt (2009), a pesquisa quantitativa é nor-
teada pelo positivismo, considerando a realidade que se pretende analisar dos
grupos selecionados. Podemos afirmar, portanto, que analisar dados estáticos
em números demanda tempo para se ter clareza das informações coletadas.
Contudo, todo o questionário desta pesquisa foi pensado com cuidado pelas
pesquisadoras, considerando que os questionários aplicados foram idênticos
a todos os grupos selecionados.
As questões foram respondidas à medida que os grupos de pesquisas
enviaram as respostas, gerando um arquivo com todas as respostas dos par-
ticipantes. Trabalhamos com escalas de gráficos, que auxiliaram diretamente
nas análises das respostas dos participantes. Assim, a partir dessas respostas
foi possível saber qual ou o quanto uma opção apresentada foi relevante em rela-
ção às demais questões apresentadas.

Construção do Corpus e análise dos dados

Os procedimentos metodológicos foram elaborados com o uso dos re-


cursos da plataforma do G-suíte para a construção dos questionários de per-
guntas abertas e fechadas direcionados aos grupos de pesquisa. No grupo
dos TILS, o questionário elaborado, como dito, possuía 15 questões objetivas
e abertas. Essas questões estavam direcionadas aos TILS que atuam ou atua-
ram no âmbito jurídico. O propósito de eles colaborarem com essa pesquisa

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 68


foi de dialogar sobre suas experiências em relação ao acesso enquanto pro-
fissionais ao Sistema Judiciário. Já no questionário para os Operadores do Di-
reito/magistrados, foram elaboradas 13 questões, sendo elas também abertas
e objetivas, com a finalidade de eles colaborarem com seus registros sobre
como o Sistema Judiciário nomeia e/ou contrata os TILS para a prestação de
serviços especializados. Com isso, analisamos os grupos de pesquisa e apre-
sentamos dissertativamente a seguir os dados encontrados, conforme as res-
postas obtidas no questionário respondido.
Analisando as respostas do grupo dos TILS, observamos que a partici-
pação desses profissionais que atuam(ram) no Sistema Judiciário Brasileiro-
foram de Estados como Pernambuco (5,9%), Paraná (5%), São Paulo (5,9%), e o
restante residentes de Vitória e/ou grande Vitória, no Estado do Espírito San-
to, precisamente dos municípios de Vitória (capital), Cariacica, Serra, Viana
e Vila Velha. Sendo assim, obtivemos o total de 17,6% de TILS capixabas que
participaram da pesquisa de .
Na pesquisa, solicitamos a participação de TILS com experiência no con-
texto jurídico, porém obtivemos um resultado de 35,5% de profissionais que
trabalham no contexto jurídico de forma esporádica, com trabalho efetivo
deles consolidado mais em contextos educacionais e culturais. Contudo, ana-
lisamos que 88,2%, um percentual significativo de TILS, atuam regularmente
no âmbito jurídico, entretanto essa tarefa não ocorre sob a nomeação oficial
para as diligências processuais, mas sim sob a necessidade particular e com
muito mais frequência quando o cidadão surdo comparece ao judiciário já
com uma pessoa que conhece a Libras (alguém conhecido) e sabe se comunicar
com o surdo. Consequentemente, o TILS passa a acompanhar informalmente
o processo, sem o suporte e o aparato legal do Sistema Judiciário.
Conforme os dados obtidos no questionário, percebemos que os TILS di-
vergem nas respostas encontradas em relação ao modo de acesso para pres-
tar serviços ao judiciário. Observamos que a execução do serviço de TILS,
em 11,8% dos casos, ocorre como uma tarefa voluntária; 29,4% dos TILS são
convidados pelos surdos e/ou por alguma indicação que ocorre de forma in-
formal; e apenas 17,6% dos TILS recebem uma intimação judicial via e-mail
ou por ordem de um oficial de justiça, que se apresenta em sua residência ou
local de trabalho, e o TILS exercem essa função de forma profissional.
Em sequência, analisamos a frequência com que o TILS fora solicitado
para prestar serviços especializados em demandas jurídicas. Observamos
que 35,3% dos TILS atuam de forma esporádica. O mesmo percentual se apli-

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 69


ca aos TILS que atuam por meio de intimações judiciais. Por fim, concluindo
essa análise inicial, somente 23,5% dos TILS não informaram a regularidade
de frequência que atuam no contexto jurídico.
É perceptível que, a lentos passos, a prestação de serviço do TILS em
contexto jurídico brasileiro ainda não é, na sua totalidade, reconhecida e
compreendida como a devida importância de direitos linguísticos, no sentido
de tender acessivelmente o cidadão surdo no contexto jurídico.
Retomando a LBI de n.º 13.146/2015, a qual determina, no artigo 79º, que
o Poder Público deve assegurar à pessoa com deficiência o acesso à justiça,
convenientemente em igualdade às demais pessoas no Brasil, oferecendo, as-
sim, todos os recursos necessários e adaptáveis, como, por exemplo, o acesso
do cidadão surdo à comunicação e à informação por meio da presença do
TILS, com o intuito de acessibilizar a comunicação no Sistema Judiciário Bra-
sileiro.
No mesmo questionário identificamos um número expressivo de surdos
que desconhecem ou conhecem parcialmente a obrigatoriedade que o judici-
ário tem de atendê-los. São 64,7% dos surdos que não conhecem que o Siste-
ma Judiciário Brasileiro é obrigado a garantir o acesso, através de serviços de
um TILS para realizar a mediação em uma comunicação acessível, por exem-
plo. A Declaração Universal dos Direitos Linguísticos (1996)10, artigo 20º, diz
que “[...] todos têm direito a serem julgados numa língua que sejam capazes
de compreender e possam falar, ou a obterem gratuitamente um intérpre-
te”. Sendo assim, o Sistema Judiciário Brasileiro, por amparo legal, necessita
garantir, seja em quaisquer situações jurídicas, o acesso comunicacional à
pessoa surda.
O TILS, enquanto prestador de serviços, tem a prerrogativa de estabe-
lecer previamente os honorários por seus serviços prestados por contratos,
independente do resultado da demanda que ele interpretar, pois o seu ofício é
de meio11 da tarefa profissional. O código de Processo penal do artigo 281.º, des-
creve que “os intérpretes são, para todos os efeitos equiparados aos peritos”.

10 Declaração Universal dos Direitos Linguísticos, produzido no âmbito do PEN Internacional e assinado pela
UNESCO, bem como denominado de Declaração de Barcelona em 1996. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/
direitos/deconu/a_pdf/dec_universal_direitos_linguisticos.pdf. Acesso em: 29 jun 2020.
11 Na apreciação da Ministra Nancy Andrighi da Terceira Turma do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) ao
considerar uma obrigação de meio a contratação dos profissionais liberais, no qual equipara-se os TILS, define
que “a obrigação de meio limita-se a um dever de desempenho, isto é, há o compromisso de agir com desvelo,
empregando a melhor técnica para alcançar um determinado fim, mas sem obrigar à efetivação do resultado”.
Em específico ao prestar o atendimento no judiciário o resultado da interpretação ficará a cargo da decisão do
juiz. JUSBRASIL. Obrigações de meio resultado. Disponível em: https://stj.jusbrasil.com.br/noticias/112142153/
meio-ou-resultado-ate-onde-vai-a-obrigacao-do-profissional-liberal. Acesso em: 10 out. 2020.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 70


Nas questões abertas, observamos, ainda, como mostra o Gráfico 1, a
forma como se realiza o pagamento dos serviços prestados ao Sistema Ju-
diciário Brasileiro e como ocorre essa remuneração dos honorários. Os TILS
responderam que 35,3% dos atendimentos não há pró-labore definido, em con-
traposição a 29,4% dos TILS, que já realizaram servidos com acordos prévios
junto aos contratantes (surdos ou advogado do surdo); e por fim, apenas 11,8%
dos TILS recorrem à tabela de honorários sugerida pela Febrapils e/ou Sintra.

Gráfico 1 - Formas de pagamento do TILS

Fonte: Organizado pelas autoras.

De fato, há uma fração significativa dos serviços prestados realizados de


forma voluntária, tendo uma parcela um pouco menor de TILS que definem
seus valores junto aos contratantes, como observamos no Gráfico 1, no en-
tanto, ainda são menos de 60% de TILS que atuam com pró-labore conforme
a tabela brasileira da Febrapils e/ou Sintra.
Em continuidade, observamos os resultados do grupo dos Operadores
do Direito que foram 100% da Grande Vitória do Estado do Espírito Santo.
Analisamos as 13 questões e apresentamos as nossas percepções, conforme
os registros encontrados nos resultados obtidos para essa pesquisa.
A forma como norteia o Sistema Judiciário na Grande Vitória, por parte
dos Operadores do Direito/juízes é ainda muito desconhecido para esse con-
texto. De acordo com as respostas encontradas, não houve um registro sele-
cionado pelo magistrado que demonstra “a sensibilidade de atentarem para
a necessidade da acessibilidade comunicacional dos surdos em suas audiên-
cias”. Todos relataram que só se percebem a necessidade quando estão em
audiência e precisam se comunicar com a parte surda. Outro dado bastante
pertinente e que também identificamos foi a falta de registro deles estarem
“atentos às necessidades do cidadão surdo”, não observando em suas audi-

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 71


ências a necessidade de adequação linguística, cognitiva, tradutória e inter-
pretativa quanto ao TILS que precisa administrar durante todo um processo
numa audiência. Também percebemos que os Operadores do Direito relataram
que as adequações junto ao TILS e ao surdo é vista quando as partes envolvi-
das no processo judicial as solicitam para realizar um atendimento qualifica-
do ao surdo.
Entendemos que uma situação em que um juiz tem o poder de absolver
ou condenar um cidadão é algo que nos chama atenção, pois quando o magis-
trado desconhece as necessidades profissionais do TILS e o próprio direito do
surdo, a problemática é ainda maior para uma garantia pública de políticas
linguísticas como estabelece a legislação na garantia da acessibilidade comu-
nicacional. Sabemos que, no contexto jurídico, há necessidade do TILS quali-
ficado para tarefa, com um repertório jurídico, pois o magistrado se apropria
de um linguajar rebuscado nas audiências. Todavia, percebemos que quando
o magistrado desconhece as reais necessidades do TILS e do surdo, as resolu-
ções das sentenças ocorrem pela condição do surdo, SER SURDO e não pelo
processo como um todo, ou seja, os juízes observam a condição clínica do sur-
do e não a necessidade de uma comunicação acessível. Infelizmente, há juris-
tas que observam o surdo como um sujeito já penalizado pela condição física
e também não reconhecem o TILS como um agente da comunicação, um pro-
fissional que está em atuação para acessibilizar a comunicação no contexto
jurídico e sim como alguém conhecido do surdo.
Na atualidade, observamos que os juristas ainda observam o trabalho
do TILS como algo assistencialista ou de caridade, isto é; para os juristas o
TILS é apenas um acompanhante do surdo que se disponibiliza na condição
de alguém conhecido para ajudar na comunicação no contexto jurídico, desco-
nhecendo assim, a total operacionalização e a instrumentalização da tarefa
de traduzir e/ou interpretar.
Dentre essas análises e os obstáculos que observamos nos resultados
encontrados no questionário respondido por ambos os grupos de pesquisa,
identificamos que, para os TILS atuarem de forma profissional, a maior difi-
culdade é conseguir dialogar com a classe dos magistrados e/ou os agentes
envolvidos no trâmite judicial. Com esse registro, consideramos a real neces-
sidade de se avançar com pesquisas junto aos juristas, bem como para a área
de Libras ao que se refere aos TILS no contexto jurídico.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 72


Conforme o Gráfico 2, apenas 11,8% dos TILS foram recepcionados como
profissionais de acessibilidade comunicacional, ou seja, um número muito re-
duzido para real importância que tem a atuação dos TILS no contexto jurídi-
co em relação à necessidade de comunicação e compreensão do surdo. É, de
fato, um índice muito baixo para a compreensão do magistrado no Sistema
Judiciário. Ainda na mesma questão, percebemos que 17,6% dos magistrados
compreendem a finalidade da acessibilidade para pessoa surda através de um
profissional TILS, e 23,5% do magistrado percebem os TILS como peritos da
acessibilidade comunicacional, sendo um percentual muito baixo, mas que
podemos considerar, ao mesmo tempo, positivo para a nossa área de libras.
Na totalidade, encontramos 41,1% dos magistrados que desconhecem a real
tarefa do TILS no contexto judiciário, registrando que se encontram solícitos
a esse “novo cenário de inclusão” no Estado do Espírito Santo. como se obser-
va no Gráfico 2 a seguir:

Gráfico 2 - Atuação do TILS e o Magistrado

Fonte: Organizado pelas autoras

De acordo com Nordin (2018, p. 82) foi pertinente analisar, mesmo que
ainda primariamente a questão do Sistema Judiciário, pois a autora ao men-
cionar que um “[...] juiz deve enxergar o intérprete como ferramenta de tra-
balho, assim sendo saberá o código de conduta e o seguirá com maestria para
melhor gerenciar sua audiência”. A autora enfatiza a importância dessa práti-
ca realizada junto ao Sistema Judiciário e, com isso, consideramos um discur-
so ideal para todo o Sistema Judiciário, contemplando a tarefa profissional
do TILS e garantindo assim, a acessibilidade comunicacional para o cidadão
surdo. A Lei de n.º 12.319/2020 do artigo 4º, nos incisos de I a III12 descreve

12 Art. 4º A formação profissional do tradutor e intérprete de Libras - Língua Portuguesa, em nível médio, deve
ser realizada por meio de: I - cursos de educação profissional reconhecidos pelo Sistema que os credenciou; II -
cursos de extensão universitária; e III - cursos de formação continuada promovidos por instituições de ensino

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 73


formações necessárias para uma atuação adequada e coerente dos TILS para
atuarem no contexto educacional, porém determina o acesso ao contexto ju-
rídico e até mesmo da área da saúde, mas não esclarece qual formação que
deve o TILS obter para ser um perito no contexto jurídico. Entendemos que ain-
da há muito que se promover em políticas linguísticas e até mesmo em cursos
de formações que capacitam profissionais TILS para atuarem no judiciário.
Rodrigues e Santos (2018, p.19) e Machado (2017) afirmam que no Brasil
não há cursos nos contextos jurídicos, formações especializadas e literaturas
específicas para as especificidades dos tradutores e intérpretes na atuação
em diferentes contextos. O curso de bacharelado de Letras-Libras da Uni-
versidade Federal do Espírito Santo – UFES, por exemplo, oferece na grade
curricular a disciplina de Laboratório de interpretação jurídica, com o objeti-
vo de permitir vivências e práticas aos discentes do curso. No entanto, é uma
disciplina com uma carga horária de 60 horas, o que não é possível contem-
plar toda a necessidade nesta área.
Machado (2017, p. 239) em sua tese de doutorado apresenta essa dis-
cussão para uma formação especializada no contexto jurídico. Nas palavras
da autora “[...] a “habilitação” que a legislação prioriza ainda se encontra no
âmbito genérico da formação, uma vez que os diferentes contextos de atua-
ção indicam que é necessário garantir formações com conhecimentos espe-
cializados”. Uma dessas propostas de formação especializada é o que autora
apresenta de que

[...], necessita-se viabilizar a acessibilidade comunicacional, com a presença


do TILS definido por formações mais específicas. A grade curricular para um
curso de especialização em Tradução e Interpretação em Libras e Português,
[...], definir-se-ia, de forma ampla, aqui apresentada, com pelo menos seis pro-
postas elaboradas com as seguintes disciplinas específicas para a formação de
TILS em contextos especializados: a) Lexicologia e Terminologia aplicada à
Tradução/Interpretação – estudar na prática terminologias lexemáticas que
se aplicam ao contexto político; b) Laboratório de Interpretação e Processos
Semânticos – análises semânticos e pragmáticos do processo de interpretação
simultânea linguística e cultural. Vivências e práticas de interpretação simul-
tânea no processo de escuta, análise textual, compreensão cognitiva, produção
sinalizante (interpretar simultaneamente), (re)elaboração das ideias do enun-
ciado em outra língua, sem perder o objetivo do sentido, o ritmo, a prosódia
do enunciado da língua de partida para a língua de chegada, tomando decisões
linguísticas importantes, instantâneas e ininterruptas das línguas envolvidas
num contexto específico de atuação profissional; [...]; d) Aspectos Linguísticos

superior e instituições credenciadas por Secretarias de Educação.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 74


e Conhecimento Especializado – identificar a gramática das línguas em uso
(Libras e LP), exemplificando em sentenças de textos de discursos [...]; e) Moda-
lidade de Discursos: interpretação simultânea[/consecutiva] – identificar os
gêneros de discurso em situações de vivência e prática [...], reconhecendo os
aspectos multimodais do ato de fala do locutor e o interlocutor no discurso; f)
Políticas Linguísticas e Tradução/Interpretação de Libras – ampliar o conhe-
cimento sobre as discussões linguísticas e tradutórias em relação aos atributos
profissionais do mercado de trabalho. A proposta encontrar-se-ia em sintonia
com a inovação acadêmica e de excelência, no sentido de aprimoramento do
conhecimento especializado para o TILS que prestará serviços no mercado de
trabalho [...]. (MACHADO, 2017, p. 239 – grifos do original).

A importância de uma formação especializada para que o TILS consiga


realizar a tarefa de interpretação simultânea e/ou consecutiva no contexto
jurídico é de extrema importância, pois, dessa forma, garante-se a acessibili-
dade comunicacional do cidadão surdo. Considerando, assim, que o TILS no-
meado para atuar na esfera jurídica deve primordialmente ter um repertório
linguístico e terminológico com vocabulários técnico-conceito-jurídicos, no
sentido de manter as informações morfossintáticas e semântico-pragmática
da língua de partida para a língua de chegada, ou seja, para que não ocorra
uma comunicação com lacunas de entendimento com o juiz e o cidadão sur-
do, como se verifica em Fonseca (2007).
Ao longo dos tempos, a atuação dos TILS, antes dessa profissão ser re-
conhecida por lei, foi reduzida a uma tarefa de assistencialismo para “ajudar”
em todos os contextos que o surdo transitava. Após longos debates, discus-
sões e pesquisas, hoje é possível compreender que todo o TILS é um profissio-
nal com registro no Código Brasileiro de Ocupações – CBO e fazem suas car-
reiras profissionais, por meio de exaustivos estudos, pesquisas e formações
diversas para serem reconhecidos como TILS no mercado de trabalho. São
profissionais que investem tempo e estudos para melhor atender a comuni-
dade surda em seu direito linguístico e cultural.
Todavia, vale ressaltar que, atualmente, para todo e qualquer TILS ex-
periente e novato de formação, temos a Febrapils que representa as asso-
ciações estaduais com inúmeras diretrizes dos direitos e deveres para esses
profissionais, como código de ética, tabela de honorários, entre outras asses-
sorias que assegura uma acessibilidade comunicacional de forma profissio-
nal para o cidadão surdo brasileiro.
Em síntese, referenciamos a pesquisa do questionário controlado para o
judiciário de Vitória, com o propósito de alcançar respostas oportunas em re-

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 75


lação à acessibilidade comunicacional do cidadão surdo capixaba. Cabe, aqui
ressaltar que, quanto ao contato aos setores jurídicos, não tivemos o retorno
esperado, por estarem com suas atividades presenciais suspensas durante a
coleta de dados. Contudo, os magistrados consultados via e-mail pela pesqui-
sadora apresentaram dados que consideramos relevantes e pertinentes para
compartilharmos cientificamente.
Sabemos que os magistrados têm o devido conhecimento da formação
técnica e acadêmica necessária para atuarem no contexto do judiciário, con-
tudo, em relação à profissão do TILS, ainda se apresenta como incipiente para
o contexto do Sistema Judiciário. Esse argumento se baseia nas respostas que
tivemos deles ao relatarem que não tiveram experiências em julgados, en-
quanto outros disseram que desconhecem qualquer tarefa que o TILS possa
realizar ou, ainda, ouviram comentários de como alguns colegas procederam,
pois ainda não haviam vivenciado esta prática em suas ações jurídicas. Essas
informações foram obtidas quando solicitados a eles que “selecionassem os
tipos de contratação destes profissionais que eles conheciam”, respondo que
o Sistema Judiciário necessitarealizar uma licitação física de TILS para que
eles possam “acessar como prestadores de serviços especializados” o contex-
to jurídico e que mantenham para contratações “[...] eventuais um banco de
dados de TILS cadastrados para que realizem uma contratação direta através
de nomeação judicial”.
Dentre os Operadores do Direito que acessaram o questionário, quando
perguntados sobre em “caso de eventuais demandas surgirem surdo como
parte integrante de um processo jurídico e o não houver o TILS, como seria
o procedimento?”. As respostas foram que “dificilmente isso ocorre, pois, na
grande maioria está sempre presente um familiar, um conhecido de confian-
ça do surdo e eles sabem se expressar nas falas do surdo. E por conta disso,
nós Operadores do Direito, não se apercebe da real necessidade linguística que
o surdo necessita durante uma audiência, e com quando não há a presença
de TILS, percebemos a necessidade e orientações aos seus advogados que te-
nham alguém para se comunicar com o surdo. e assim, adiamos a audiência
ou uma oitiva por este motivo”.
A pergunta mais relevante diz respeito ao cerne desta pesquisa, em que
foi saber se “no judiciário eles dispõem de uma lista de profissionais TILS?”;
e, “qual o meio de recebimento pelos serviços prestados do TILS?”. Uma das
respostas dos operadores que participaram da pesquisa, foi de indicar que se

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 76


tenha um banco de dados do sistema judicial, uma lista pública de peritos e,
quando necessário, a pessoa surda e/ou representante legal poderá solicitar
tais serviços diretamente ao juiz em petição dirigida. Quanto ao pagamento,
a única informação obtida é realizar a paga dos honorários do perito pelo sis-
tema público da justiça ou conforme decisão do juiz.
Dentre todas as 13 questões planejadas para o magistrado, destacamos
ainda o que fora mencionado do caso que ocorreu no dia 19 de dezembro de
2019, em que o Tribunal de Justiça do Espírito Santo divulgou um comunica-
do com o seguinte tema: “Magistrados e servidores podem contribuir com o
levantamento das necessidades de treinamento para 2020, por meio de for-
mulário”. O objetivo desta notícia era para que os magistrados sugerissem
cursos para a Escola de Magistratura do Espírito Santo, como cursos básicos
de Libras.
Dessa forma, identificando a relevância do comunicado, foi questiona-
do qual a orientação que o Doutor (a) ou o setor/órgão poderia(m) sugerir
como tópico de formação (ou treinamento) prévio aos estudantes de direito,
futuros magistrados, para que em audiências houve por parte dos Operadores
do Direito o conhecimento mínimo e necessário para compreender os aspec-
tos linguísticos e culturais da pessoa surda? Em continuidade, questionamos
a forma de como proceder com o atendimento judicial para a pessoa surda?
Os que participaram dos questionários foram precisos em responder e
como sugestão, entende que é necessário realizar um curso básico de instru-
mentalização obrigatório para todos os magistrados e servidores do Sistema Judi-
ciário para que possam compreender, ao menos minimamente, de como pro-
ceder num atendimento judicial para pessoas com necessidades específicas.
O Poder Judiciário desconhece a importância da participação do TILS
para o acesso à justiça no sentido que esteja realmente ao alcance da comu-
nidade surda. Assim concedendo-lhes o direito de disponibilizar um TILS que
seja habilitado e especializado para atuar, independente dos trâmites pro-
cessuais no jurídico. Acreditamos que havendo uma receptividade por parte
da Comissão de Acessibilidade Inclusiva no Tribunal de Justiça do Espírito
Santo, alcançaremos para comunidade surda uma comunicação acessível, o
que é de direito garantido. O que falta são políticas linguísticas e políticas pú-
blicas que empenhem esforços para esse novo olhar, nesse novo movimento
da tarefa do TILS em contexto jurídico.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 77


Compreendemos, dessa forma, que é de extrema relevância ao judiciário
que o executor das leis tenha o conhecimento das necessidades linguísticas e
culturais do surdo, buscando sempre informações junto às instituições não-
-governamentais do Estado, como as Federações e Associações dos surdos e
TILS em todo o país e, assim, operacionalizar um cadastro único de TILS al-
tamente habilitados e selecionados por bancas com linguísticas, professores
bilíngues e de Libras, numa comissão que auxilia o Sistema Judiciário, regis-
trando os TILS numa base de dados para consultas públicas da sociedade,
dos usuários de Libras, dos Operadores do Direito do Sistema Judiciário e de
outros contextos jurídicos que necessitam também de acessibilidade comu-
nicacional, mediada pelo TILS.

Considerações finais

Considerando a relevância da pesquisa que realizamos, com o objetivo


de dialogar sobre as políticas linguísticas de acessibilidade comunicacional
para o cidadão surdo em relação à tarefa do TILS e a instrumentalização dos
Operadores do Direito, em busca de melhorias para o contexto jurídico, iden-
tificamos que os TILS encontram dificuldades para interpretar no contexto
jurídico, dentre elas as mais recorrentes: (1) ausência de terminologias dos
vocábulos jurídicos; (2) não ter acesso aos autos com antecedência para poder
planejar um repertório condizente a ser trabalhado numa interpretação das
línguas envolvidas; (3) falta de conhecimento por parte do juiz e do advogado
sobre a tarefa do TILS e os limites éticos de sua atuação; (4) falta de reveza-
mento com outro TILS em audiências extensas; (5) cobrança de familiares do
surdo ou do próprio surdo esperando que TILS será o defensor ou quem irá
julgar a causa absolvendo de qualquer acusação. Notamos que ainda se neces-
sita de avançar em pesquisas para a área de Libras, no caso correlacionando
a atuação profissional do TILS no contexto jurídico.
Diante da coleta dos dados, compreendemos que o TILS precisa ter aces-
so aos autos, para realizar um melhor desempenho quando diagnosticado o
nível do uso da língua de sinais e de compreensão do sujeito surdo que par-
ticipa do processo. É de extrema relevância que o judiciário tenha conheci-
mento das partes envolvidas no processo e que há como parte no processo
judicial um cidadão surdo, que necessita da mediação comunicacional em Li-

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 78


bras. Pensando no caso do surdo que não tenha acesso ao código linguístico
da comunidade surda da comarca - Libras, deverá o juiz intimar um tradu-
tor-surdo para realizar uma mediação intralingual, ou seja, o tradutor-surdo
mediará a comunicação com o cidadão surdo (parte do processo), para que o
TILS intérprete simultaneamente ou consecutivamente para as partes envol-
vidas.
Outra sugestão para quaisquer que seja a comarca, é a criação de uma
central de intérpretes, como já se tem consolidado entre outros estados do
Brasil. Sendo assim, o judiciário e/ou a comissão de acessibilidade do judi-
ciário terá um local para solicitar TILS gabaritados para realizar a tarefa de
acessibilidade em prol da comunidade surda no contexto jurídico. Percebe-
mos tantas necessidades para área do TILS no contexto jurídico e de uma
acentuada urgência para instrumentalizar e formalizar parcerias junto ao
Tribunal de Justiça, e com as instituições não-governamentais que represen-
tam a categoria dos TILS no Estado e no país.
Concluímos, assim que as respostas que obtivemos dos participan-
tes da pesquisa evidenciou que tanto os Operadores do Direito no Tribunal de
Justiça do Espírito Santo, como também os TILS no contexto jurídico, neste
caso, destacamos o Sistema Judiciário, é unânime nas respostas em relação
ao direito do cidadão surdo em garantir um profissional qualificado e espe-
cializado para atuar em contextos altamente complexos, como o contexto do
judiciário.

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p T 4

Barreiras na efetivação da audiodescrição na TV e no


cinema, apesar das leis

Deise Mônica Medina Silveira


Manoel José Passos Negraes

Introdução

Em plena era da informação e do entretenimento, é preciso refletir so-


bre o espaço efetivamente aberto para o acesso das pessoas com deficiência
visual a estes conteúdos, pois trata-se de um público significativo, de acordo
com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Segundo
o censo de 2010, 6,5 milhões de pessoas têm algum nível de dificuldade para
enxergar, sendo aproximadamente 500 mil pessoas cegas e 6 milhões com
baixa visão.
O acesso do público com deficiência visual aos produtos audiovisuais
se dá através da audiodescrição ou AD, um modo de tradução intersemiótica
que traduz imagens em palavras.
A saga pela implementação da audiodescrição na TV já dura 21 anos,
desde a Lei 10.098, de 2000, e ainda estamos muito longe de termos a maior
parte do conteúdo veiculado acessível às pessoas com deficiência visual.
No cinema, a obrigatoriedade de tornar as salas acessíveis a este público
teve início em 2015, com a Lei nº 13.146, que institui a Lei Brasileira de Inclu-
são da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), porém,
assim como na TV, a acessibilidade nesses espaços vem sendo adiada desde
então.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 83


DOI: 10.52788/9786589932253.1-4
Com o objetivo de apresentar um panorama sobre o processo legal do
acesso à informação e ao entretenimento na TV e nas salas de cinema, traze-
mos, neste artigo, informações sobre a deficiência visual e sobre o processo
de acessibilidade do público com deficiência visual à televisão brasileira e às
salas de cinema do país.

Deficiência: pressupostos, modelos e a Lei 13.146

Devido à grande relevância dada à visão na nossa maneira de interagir


com o mundo, costumamos relacionar a falta desse sentido às trevas ou à es-
curidão, pois é a essas referências que a sensação de sermos privados da visão
por alguns instantes, voluntária ou involuntariamente, nos leva.
Essa forma de pensar o ser humano privado da visão como alguém que
vive na escuridão faz com que formemos opiniões distintas sobre eles, vendo-
-os ora como pessoas indefesas, que precisam do nosso assistencialismo, ora
como seres superiores aos videntes, já que, mesmo privados da visão, con-
seguem levar uma vida “quase normal”, ou ainda como merecedores dessa
punição devido a pecados cometidos.
A referência à cegueira para expressar sentimentos distintos ocorre des-
de a antiguidade a partir de personagens como Édipo, que furou seus olhos
quando descobriu que tinha matado o pai e casado com a mãe; Sófocles, que
descreve a cegueira como uma condição pior que a morte, uma autopunição
para o pecado do incesto; ou ainda, em outra perspectiva, quando os deuses
gregos destroem a visão de Tirésias e o recompensam com o dom da profecia,
presenteando-o com um bastão mágico que o guia.
Outro dado relevante é que, na visão popular, a relação direta que se
estabelece entre ver e conhecer data de muitos anos na história da humanida-
de. Sócrates, em Fédon, descreve a cegueira como a perda do olho da mente,
e na nossa linguagem cotidiana o uso do verbo ver significando compreender
é muito comum. Amiralian (1997, p. 24) nos diz que, “em nossa mente, iden-
tificamos o não-ver com a incompreensão, incompetência ou incapacidade
de compreender e conhecer com perspicácia e profundidade as verdades do
mundo”.
Conceber a pessoa com deficiência visual como alguém incapaz de co-
nhecer ou compreender é, de fato, segregá-la, relegando-a a uma posição
marginal, pela negação do acesso à informação que leva ao conhecimento.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 84


Essa visão da deficiência como fator determinante no tratamento des-
tinado às pessoas é reforçada pela ciência do século XIX, que, ao consagrar o
corpo como lócus privilegiado de saberes e formas de poder, passa a se dedi-
car à deficiência enquanto patologia e anormalidade, adotando o modelo bio-
médico que trata a deficiência e a exclusão social como consequências natu-
rais da lesão em um corpo, cujo dono deve ser objeto de cuidados biomédicos
de normalização. A esse respeito, Diniz (2007), nos diz que:

O corpo com deficiência somente se delineia quando contrastado com uma re-
presentação de o que seria o corpo sem deficiência. Ao contrário do que se ima-
gina, não há como descrever um corpo com deficiência como anormal. A anor-
malidade é um julgamento estético e, portanto, um valor moral sobre os estilos
de vida. Há quem considere que um corpo cego é algo trágico, mas há também
quem considere que essa é uma entre várias possibilidades para a existência
humana. (DINIZ, p. 4).

O Modelo Biomédico busca um padrão de normalidade no desempenho


físico, intelectual e sensorial do ser humano, que poderia ser alcançado por
intermédio de “intervenções dos saberes biomédicos”. Pela ordem médica, as
lesões e as doenças são descritas como “desvantagens naturais e indesejadas”,
e “práticas de reabilitação ou curativas são oferecidas e até mesmo impostas
aos corpos, com o intuito de reverter ou atenuar os sinais da anormalidade”
(DINIZ; BARBOSA; SANTOS, 2009, p. 68).
Da aproximação dos estudos sobre deficiência com o campo dos estudos
culturais e feministas, surgiu, no Reino Unido nos anos 1970, o modelo social
da deficiência, para o qual a deficiência é essencialmente uma questão de di-
reitos humanos e justiça social, cuja alegação é de que:

Os impedimentos corporais somente ganham significado quando convertidos


em experiências pela interação social. Nem todo corpo com impedimentos vi-
vencia a discriminação, a opressão ou a desigualdade pela deficiência, pois há
uma relação de dependência entre o corpo com impedimentos e o grau de aces-
sibilidade de uma sociedade (DINIZ; BARBOSA; SANTOS, 2009, p. 67).

Enquanto o Modelo Biomédico compreende a deficiência como um fa-


tor biológico, vendo um corpo cego como um corpo transgressor, com uma
limitação sensorial para interagir socialmente, o Modelo Social afirma que a
experiência da desigualdade pela cegueira só se manifesta em uma sociedade
pouco sensível à diversidade de estilos de vida, pois “são as barreiras sociais
que, ao ignorar os corpos com impedimentos, provocam a experiência da de-
sigualdade” (DINIZ; BARBOSA; SANTOS, 2009, p. 67).

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 85


É importante ressaltar que um modelo não exclui o outro. Contudo “a
medicalização do corpo deficiente sugere a insuficiência do discurso biomé-
dico para a avaliação das restrições de participação impostas por ambientes
sociais com barreiras” (DINIZ; BARBOSA; SANTOS, 2009, p. 66).
A Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e
seu Protocolo Facultativo, foi ratificada pelo Congresso Nacional e incorpo-
rada ao texto Constitucional brasileiro por meio do Decreto Legislativo nº
186/2008 e do Decreto Executivo nº 6.949/2009, sendo o primeiro tratado de
Direitos Humanos do século XXI. Seu processo de construção, redação, arti-
culação e aprovação envolveu diferentes esferas do governo e da sociedade
civil, sobretudo das próprias pessoas com deficiência, podendo ser considera-
da como uma síntese do processo histórico vivido em relação à inclusão das
pessoas com deficiência e um marco para as próximas décadas.
A Convenção da ONU assume que a deficiência não diz respeito somente
ao indivíduo, como infortúnio ou tragédia pessoal, mas relaciona as barreiras
e a interação das pessoas com deficiência com o ambiente, conforme excerto
a seguir, retirado do preâmbulo do Decreto Legislativo 186 de 2008: “[...] a de-
ficiência é um conceito em evolução e que resulta da interação entre pessoas
com deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao ambiente que impe-
dem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade
de oportunidades com as demais pessoas” (BRASIL, 2008; 2009).
Tal afirmação da Convenção da ONU ratifica a visão do modelo social da
deficiência ao atribuir às barreiras presentes nos ambientes e nas atitudes
das pessoas o impedimento da plena participação das pessoas com deficiên-
cia no exercício de sua cidadania com igualdade de oportunidades.
Seis anos mais tarde, em 2015, é promulgada a Lei 13.146, que institui a
Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com
Deficiência), cujo objetivo é assegurar e promover, em condições de igualda-
de, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com
deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania.
Em consonância com a proposta do modelo social da deficiência e com
a Convenção da ONU, a Lei 13.146, em seu Artigo 2º, considera pessoa com
deficiência: “Aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física,
mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais bar-
reiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igual-
dade de condições com as demais pessoas” (BRASIL, 2015).

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 86


E, em seu Artigo 3º, inciso III, define barreiras como:

Qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que limite ou impeça


a participação social da pessoa, bem como o gozo, a fruição e o exercício de seus
direitos à acessibilidade, à liberdade de movimento e de expressão, à comunica-
ção, ao acesso à informação, à compreensão, à circulação com segurança, entre
outros. (BRASIL, 2015).

Essas barreiras se apresentam nas vias, nas edificações, nos espaços pú-
blicos e privados, nos transportes, nos sistemas de comunicação e tecnologia
e no comportamento das pessoas ao agirem de forma a impedir ou prejudicar
a participação social da pessoa com deficiência em igualdade de condições e
oportunidades com as demais pessoas.
A recente promulgação da Lei 13.146, que abraça o princípio do mode-
lo social da deficiência, reiterado pela Convenção da ONU, visa assegurar a
inclusão social e a cidadania das pessoas com deficiência em condições de
igualdade com as demais pessoas. Para tal, é imprescindível que as pessoas
com deficiência tenham acesso pleno às informações veiculadas nos meios
audiovisuais.
As pessoas com deficiência visual contam com o recurso da audiodescri-
ção para ter acesso a informações disponibilizadas em meios diversos. Por se
tratar de um recurso ainda pouco conhecido da maioria das pessoas, a seguir,
apresentaremos essa ferramenta de acessibilidade presente nos meios audio-
visuais e nos meios digitais de comunicação de massa.

Audiodescrição

A audiodescrição traduz em palavras informações visuais estáticas (ex.,


obras de arte, ilustrações etc.) e dinâmicas (ex., filmes, clipes etc.), para que
conteúdos-chave, transmitidos visualmente, não passem despercebidos e
possam também ser acessados por pessoas cegas e com baixa visão, congêni-
ta ou adquirida, além de atender também pessoas com deficiência intelectual
e dislexia (FRANCO; SILVEIRA; CARNEIRO; URPIA, 2013).
A audiodescrição, também referida aqui como AD, tem sido cada vez
mais usada para ampliar a acessibilidade em diferentes meios de dissemina-
ção da cultura e da informação, como por exemplo, em peças teatrais, espetá-
culos de dança, partidas de futebol, desfiles de moda, bailes de debutantes, vi-

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 87


sitas a museus, entre outros, contemplando as pessoas com deficiência visual
com o acesso à informação, à cultura, ao entretenimento e ao lazer.
Enquanto ferramenta que permite acessibilidade, a audiodescrição se
classifica como uma tecnologia assistiva, que, de acordo com o Comitê de
Ajudas Técnicas, CAT, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, trata-se
de:
[...] uma área do conhecimento, de característica interdisciplinar, que englo-
ba produtos, recursos, metodologias, estratégias, práticas e serviços que ob-
jetivam promover a funcionalidade, relacionada à atividade e participação de
pessoas com deficiência, incapacidades ou mobilidade reduzida, visando sua
autonomia, independência, qualidade de vida e inclusão social (CAT, 2007, p. 9).

Segundo o Comitê de Ajudas Técnicas(2007), a meta da tecnologia as-


sistiva é dar autonomia, independência e qualidade de vida às pessoas com
deficiência, para sua inclusão social, em todos os âmbitos em que é aplicada.
De modo geral, o processo de audiodescrição tem início com a produção
de um roteiro, que é um texto escrito para ser verbalizado por voz huma-
na ou por voz sintetizada1. As falas criadas no roteiro entram nos momen-
tos de silêncio das peças audiovisuais, para descrever, por exemplo, cenário,
figurino, personagem, mudanças espaçotemporais etc. Quando se trata de
imagens estáticas, os roteiros devem conter também a verbalização de qual-
quer texto escrito que componha a imagem, por exemplo, falas em balões de
histórias em quadrinhos ou charges. Para obras de arte, é necessário que o
roteiro apresente informações sobre a autoria da obra, o estilo, a dimensão,
a disposição, a cor, a textura etc., ou, de acordo com os estudos da multimo-
dalidade, O’Toole (1994) propõe descrições com base nas informações sobre a
obra, episódios, figura e membro.
As audiodescrições se apresentam nas formas pré-gravada, ao vivo e si-
multânea. Nas ADs pré-gravadas, o roteiro é criado e posteriormente grava-
do em estúdio, onde é feita a edição de maneira a encaixar a audiodescrição
nas pausas e momentos de silêncio das peças audiovisuais, sem qualquer al-
teração ou prejuízo ao áudio original. Nas ADs ao vivo, para peças de teatro ou
espetáculos de dança, por exemplo, o roteiro é preparado previamente e lido
durante o espetáculo a partir de uma cabine de onde o audiodescritor tem
uma visão geral do palco e transmite o áudio, via microfone, para os fones de

1 São as vozes que leem, por meio dos softwares leitores de tela, o conteúdo das páginas da internet, do celular e
dos livros didáticos digitais, aos quais os alunos devem ter acesso. Para que os leitores de tela façam a descrição
das imagens encontradas nas mídias citadas, é necessário que tais descrições tenham sido associadas às
imagens, utilizando, por exemplo, as diretrizes da norma WCAG 2.0.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 88


ouvido usados pelo público. Esse tipo de AD não pode ser gravado devido às
improvisações típicas desse tipo de evento cultural. Por fim, nas ADs simul-
tâneas, não há roteiro. O audiodescritor descreve o que acontece à medida
que os eventos se dão. Essa categoria de AD é muito comum em eventos ao
vivo, como casamentos, festas de debutante, desfiles de moda etc.; em geral,
o audiodescritor usa um microfone e a transmissão é feita para toda a plateia
presente.
O processo de tradução que vai da criação do roteiro até a realização da
AD envolve uma equipe de profissionais2 formada pelo audiodescritor rotei-
rista, que pode ser mais de um, responsável pela criação do roteiro; o audio-
descritor consultor, que deve ser uma pessoa com deficiência visual3, com co-
nhecimento na área, a qual é responsável por analisar a adequação do roteiro
ao entendimento da descrição das imagens, mas que muitas vezes participa
do processo desde a elaboração do roteiro; e o audiodescritor narrador4, que
é responsável pela gravação em estúdio ou pela leitura do roteiro ao vivo.
A audiodescrição tem como público primeiro as pessoas com deficiên-
cia visual, porém pesquisas apontam seus ganhos para pessoas com autismo
(FELLOWERS, 2012), pessoas com deficiência intelectual (CARNEIRO, 2015) e
pessoas com surdez (RIBEIRO; LIMA, 2012).
Apesar de obedecer aos critérios das tecnologias assistivas apresenta-
dos pelo Comitê de Ajudas Técnicas e de contribuir para dar autonomia, in-
dependência e qualidade de vida às pessoas com deficiência para sua inclusão
social, a implementação da audiodescrição na televisão brasileira tem sido
alvo de resistência das emissoras de TV, conforme será apresentado a seguir.

A televisão brasileira e o público com deficiência visual

Apesar de o artigo 5º da nossa Constituição prever que “todos são iguais


perante a lei, sem distinção de qualquer natureza [...]” (BRASIL, 1988), a luta

2 A profissão de audiodescritor, cujo código é 2614-30, foi reconhecida em 2013, passando, desde então, a integrar
a Classificação Brasileira de Ocupações – CBO.
3 A deficiência visual pode ser total ou parcial. As pessoas com deficiência visual parcial são chamadas de
baixa visão, pois possuem algum resíduo visual, central ou periférico, que é utilizado no desenvolvimento das
atividades diárias.
4 A opção pelo termo “narrador” ao invés de “locutor” deve-se à importância de diferenciar esses dois
profissionais, já que em experiências anteriores, nas quais locutores profissionais foram contratados para
gravar roteiros de AD em estúdio e usaram artifícios como impostação de voz e vozes artificiais, os resultados
foram pouco positivos.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 89


pela implementação do recurso de audiodescrição na televisão brasileira,
para garantir o acesso à informação para as pessoas com deficiência visual,
tem sido travada há muito tempo.
O primeiro passo foi dado no ano de 2000, com a Lei 10.098 – Lei da
Acessibilidade, que estabelece normas e critérios para a promoção da acessi-
bilidade. Em seu Artigo 2º, Inciso II, Alínea “d”, essa lei define como barreira
nas comunicações “qualquer entrave ou obstáculo que dificulte ou impossi-
bilite a expressão ou o recebimento de mensagens por intermédio dos meios
ou sistemas de comunicação, sejam ou não de massa”. E em seu Artigo 17, ela
apresenta:
O Poder Público promoverá a eliminação de barreiras na comunicação e esta-
belecerá mecanismos e alternativas técnicas que tornem acessíveis os sistemas
de comunicação e sinalização às pessoas portadoras de deficiência sensorial e
com dificuldade de comunicação, para garantir-lhes o direito de acesso à in-
formação, à comunicação, ao trabalho, à educação, ao transporte, à cultura, ao
esporte e ao lazer. (BRASIL, 2000).

Quatro anos se passaram para que essa lei fosse regulamentada pelo
Decreto 5.296/2004, que em seu Artigo 52 determinou a oferta de aparelhos
de televisão equipados com recursos tecnológicos que pudessem ser usados
por pessoas com deficiência auditiva ou visual. E no Artigo 53, atribuiu à Ana-
tel a responsabilidade de regulamentar os recursos de acessibilidade na pro-
gramação veiculada pelas emissoras de TV. Entre os recursos previstos estão
o closed caption ou legenda oculta, audiodescrição e janela de Libras.
Um ano mais tarde, foram publicados dois novos decretos. O Decreto
5.371, de fevereiro de 2005, que aprova o Regulamento do Serviço de Retrans-
missão de Televisão e do Serviço de Repetição de Televisão, ancilares ao Ser-
viço de Radiodifusão de Sons e Imagens. E o Decreto 5.645, de dezembro de
2005, que altera o Artigo 53 do Decreto 5.296/2004, atribuindo ao Ministério
das Comunicações a responsabilidade pela regulamentação das normas téc-
nicas previstas na Lei 10.098/2000.
Ainda em 2005, o Comitê Brasileiro de Acessibilidade da Associação
Brasileira de Normas Técnicas publicou a Norma Brasileira NBR 15290, de
Acessibilidade em Comunicação na Televisão, que estabelece diretrizes ge-
rais a serem observadas, consideradas as diversas condições de percepção e
cognição, com ou sem a ajuda de sistema assistivo ou outro que complemente
necessidades individuais.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 90


O prazo para a expedição da norma complementar para implementação
do plano de medidas técnicas previsto pelo Decreto 5.645/2005 era de 120
dias, a contar de sua publicação em dezembro de 2005. Em abril de 2006, mês
em que o plano de medidas técnicas deveria ser implementado, foi publicado
o Decreto 5.762, que prorrogou por mais 60 dias a expedição da referida nor-
ma complementar.
Nesse mesmo ano, 2006, é publicada a portaria n.º 310, que, consideran-
do o disposto no Artigo 53, do Decreto 5.296/2004, resolve, em seu Artigo 1º:
“Aprovar a Norma Complementar n.º 01/2006 - Recursos de acessibilidade,
para pessoas com deficiência, na programação veiculada nos serviços de ra-
diodifusão de sons e imagens e de retransmissão de televisão”.
Para os efeitos dessa Norma, conforme redação dada pela Portaria no.
188, de 24 de março de 2010, deve ser considerada a seguinte definição:

3.3. Áudio-descrição: é a narração, em língua portuguesa, integrada ao som


original da obra audiovisual, contendo descrições de sons e elementos visu-
ais e quaisquer informações adicionais que sejam relevantes para possibilitar
a melhor compreensão desta por pessoas com deficiência visual e intelectual.
(BRASIL, 2006b)

Porém, em junho de 2008, a questão da acessibilidade na televisão brasi-


leira sofreu um retrocesso com a publicação da portaria 403, pelo Ministério
das Comunicações, que em seu Artigo 1º suspende a aplicação do subitem
7.1 da Norma Complementar 01/2006, aprovada pela Portaria 310/2006, no
que se refere à obrigatoriedade de veiculação na programação exibida pelas
exploradoras do serviço de radiodifusão de sons e imagens e do serviço de re-
transmissão de televisão do recurso de acessibilidade, de que trata o subitem
3.3 da mesma norma.
Logo em seguida, no início de julho de 2008, foi promulgado o Decreto
Legislativo 186 da Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência,
que, em seu Artigo 30, Alínea “b”, atribui aos Estados Partes a obrigação de
tomar medidas para que as pessoas com deficiência tenham acesso a progra-
mas de televisão, cinema, teatro e outras atividades culturais, em formatos
acessíveis. O que resulta na publicação da portaria 466, do Ministério das Co-
municações, no último dia do mês de julho, determinando o prazo de 90 dias
para o início das transmissões com o recurso da audiodescrição.
Antes do término do prazo de 90 dias, estabelecido na Portaria 466, o
Ministério das Comunicações suspendeu a aplicação do recurso da audiodes-

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 91


crição para a realização de nova consulta pública, com prazo até 30 de janeiro
de 2009, com possibilidade de prorrogação sine die, e ainda prevendo a pos-
sibilidade de convocação de mais uma audiência pública, conforme Portaria
661, de 14 de outubro de 2008.
Após várias reuniões entre lideranças brasileiras militantes pela imple-
mentação da audiodescrição no Brasil, portarias ministeriais e manifestações
públicas, entrou em vigor o cronograma estabelecido pela Portaria 188/2010,
que previa uma progressão na veiculação de programas com audiodescrição
nas emissoras de televisão aberta, que operam em sinal digital.
O cronograma iniciou com a obrigatoriedade de programação audio-
descrita por duas horas semanais, chegando a 20 horas semanais ao final de
julho de 2020. Emissoras de televisão aberta, como a Rede Globo, a Record, o
SBT e a TV Aparecida, entre outras, tem aumentado a oferta da programação
com audiodescrição, para atender ao disposto na Portaria supracitada.
De acordo com a Resolução 692, da ANATEL, de 12 de Abril de 2018, todos
os recursos de acessibilidade, fornecidos pelas emissoras abertas, incluindo
a audiodescrição, devem ser repassados na íntegra pelas TVs por assinatura
aos seus assinantes, mesmo que, para isto, seja necessária a troca do aparelho
onde se troca o canal da TV (conversor). 
Além das leis que asseguram o direito da pessoa com deficiência visual à
programação televisiva, apresentaremos, a seguir, o processo legal de acesso
dessas pessoas ao conteúdo veiculado nas salas de cinema.

Acessibilidade nas salas de cinema do Brasil

A Lei Brasileira de Inclusão, Lei 13.146, de 06 de julho de 2015, previa,


originalmente, em seu Artigo 125, inciso II, um prazo de 48 meses, a partir
da sua entrada em vigor, para o disposto no parágrafo sexto do artigo 44, a
saber:

§ 6º As salas de cinema devem oferecer, em todas as sessões, recursos de aces-


sibilidade para a pessoa com deficiência. 

Assim, todas as salas de cinema do país deveriam passar a oferecer os re-


cursos de acessibilidade – legenda para o público surdo e ensurdecido; janela

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 92


com intérprete da Libras e audiodescrição – a partir de janeiro de 2020. Po-
rém, no último dia de 2019, o Presidente da República, Jair Bolsonaro, assinou
a Medida Provisória nº 917, de 31 de dezembro, convertida na Lei nº 14.009, de
3 de junho de 2020, alterando o prazo previsto no inciso II do Artigo 125, de 48
para 60 meses. Assim, a obrigatoriedade da oferta de acessibilidade nas salas
de cinema ficou adiada por mais um ano, passando a ter início em janeiro de
2021.
De acordo com matéria do site da Câmara dos Deputados:

O governo afirmou que a mudança de data era “imprescindível” porque os re-


cursos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), para financiar as obras de adap-
tação das salas de cinema (R$ 126 milhões), só foram liberados em dezembro do
ano passado, leia-se dezembro de 2019. De acordo com a (Ancine), o Brasil possui
3,5 mil salas de cinema.

Segundo a Agência Senado (2021), o Ministério do Turismo explicou que,


“se o prazo de adaptação não fosse prorrogado, de 50% a 70% do parque exibi-
dor nacional se tornaria irregular em 2021”, e, para a relatora da MP 917/2019,
senadora Soraya Thronicke (PSL-MS), “ainda persistem barreiras que dificul-
tam o direito das pessoas com deficiência de usufruírem os conteúdos nas
salas de cinema”.
Em 31 de dezembro de 2020, uma nova Medida Provisória, de número
1.025, convertida na Lei nº 14.159, de 2 de junho de 2021, foi assinada pelo pre-
sidente Jair Bolsonaro, alterando novamente o prazo previsto no inciso II do
Artigo 125, de 60 para 84 meses. Assim, o novo prazo para disponibilização da
acessibilidade nas salas de cinema passa a ser janeiro de 2023.
De acordo com a Agência Senado (2021), segundo a Presidência da Re-
pública, “a MP se faz necessária em razão das medidas restritivas e do fe-
chamento das salas de cinema provocados pela pandemia de covid-19, o que
prejudicou o faturamento do setor em 2020”.

Considerações finais

Apesar da aprovação e da regulamentação de uma legislação que res-


guarda o direito das pessoas com deficiência visual às informações e ao en-
tretenimento, interesses contrários provocam constantes adiamentos na

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 93


acessibilização da programação na TV e dos produtos audiovisuais exibidos
nos cinemas para esse público de representação tão significativa e que con-
tinua sendo obrigado a brigar por direitos humanos básicos, garantidos ape-
nas no papel.
Contudo, desde os anos 80, o protagonismo das pessoas com deficiência,
com base no modelo social, tem sido cada vez mais valorizado e, desse modo,
não podemos deixar de lutar para efetivar esses direitos humanos básicos,
como o direito à informação, fundamentais para o exercício desse protago-
nismo com qualidade.
Assim, faz-se necessário uma mobilização do segmento, tanto dos usuá-
rios quanto dos profissionais de audiodescrição, para cobrar os órgãos com-
petentes, inclusive por meio do Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas
com Deficiência – Conade. Além destes, as instituições que atendem pessoas
com deficiência devem fazer coro nessa cobrança, de maneira mais efetiva,
coletiva e organizada, utilizando para isso os meios de comunicação e as re-
des sociais.
Afinal, o acesso à informação, ao entretenimento e ao lazer é fundamen-
tal para a formação da pessoa com deficiência como cidadão ativo, garantin-
do mais condições e conhecimentos para que possa interferir na realidade ao
seu redor de forma mais efetiva e assertiva.

Referências

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LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 96


p T 5

Representações da mulher em campanhas


publicitárias da cerveja Skol: uma análise à luz da
teoria enunciativa bakhtiniana

Marcela Regina Vasconcelos da Silva Nascimento

Introdução

De acordo com Bakhtin (2011), toda comunicação discursiva se realiza


por meio de enunciados proferidos por sujeitos ativos, engajados no processo
de interação verbal. O enunciado é, assim, concebido como a real unidade de
comunicação, de modo que o discurso só pode existir na forma de enuncia-
ções que provêm de um sujeito e se dirigem a outros sujeitos. Consequente-
mente, cada enunciado está inserido em uma cadeia de diálogo social (BAKH-
TIN, 2011).
Em virtude do feixe de relações dialógicas em que se insere cada enun-
ciado, é possível compreender por que “os enunciados não são indiferentes
entre si nem se bastam cada um a si mesmos; uns conhecem os outros e se
refletem mutuamente uns nos outros” (BAKHTIN, 2011, p. 297). Logo, todo
enunciado traz ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais dia-
loga.
Essa cadeia dialógica pressupõe uma necessária relação com o outro, a
qual é intrinsecamente axiológica, visto que o sujeito, ao produzir um enun-
ciado, ocupa uma posição frente às enunciações de outrem, uma vez que, con-
forme ressalta Bakhtin (2011, p. 297), “é impossível alguém definir sua posição
sem correlacioná-la com outras posições”.

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DOI: 10.52788/9786589932253.1-5
Com base nisso, este trabalho tem como objetivo analisar a construção
axiológica da mulher em peças e campanhas publicitárias da marca de cer-
veja Skol. Tal análise demanda a consideração da representação da mulher a
partir de embates dialógicos travados entre anúncios publicitários da Skol,
os diversos enunciados a que responde e aqueles que se constituem como
reações-resposta a esses anúncios publicitários.
Os pressupostos teóricos que embasam esta pesquisa estão inseridos
no âmbito da teoria dialógica do discurso de orientação bakhtiniana, consi-
derando, além de estudos do próprio Bakhtin (2010, 2011), as contribuições de
Beth Brait (2007), Sobral (2009), Zozzoli (2012), entre outros.
Para a realização deste estudo, foi utilizada metodologia documental de
cunho qualitativo. O corpus foi constituído por enunciados produzidos pela
empresa produtora da cerveja Skol e por enunciadores que responderam a
anúncios dessa marca.
Este capítulo está organizado em três seções, além da introdução e das
considerações finais: a primeira, “a natureza dialógica do enunciado”, trata do
enunciado concebido como unidade de comunicação e como elo de uma ca-
deia de diálogo social, discutindo a noção de dialogismo; a segunda, “o caráter
ativo e responsivo da compreensão”, aborda a compreensão no plano das rela-
ções dialógicas, salientando sua natureza ativa e responsiva, já que não pode
prescindir de sua essência axiológica. A seção seguinte, “representações da
mulher a partir de uma campanha publicitária”, consiste na análise do corpus
à luz dos pressupostos teóricos bakhtinianos.

A natureza dialógica do enunciado

A comunicação discursiva ocorre no processo dialógico estabelecido en-


tre os sujeitos da interação. Um ponto fulcral da teoria enunciativa bakhtinia-
na consiste no caráter ativo dessa comunicação, pois, de acordo com Bakhtin
(2011, p. 271), “toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza
ativamente responsiva”.
Bakhtin (2011, p. 274) define o enunciado como a “real unidade da comu-
nicação discursiva” (grifos do autor), uma vez que “o discurso só pode existir
de fato na forma de enunciações concretas de determinados falantes, sujeitos
do discurso [...] e fora dessa forma não pode existir” (BAKHTIN, 2011, p. 274).

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 98


Assim, o enunciado, concebido como unidade da comunicação, não equi-
vale a frase ou sequências frasais, visto que não pode ser reduzido a uma aná-
lise meramente linguística. Conforme explicam Brait e Melo (2007, p. 63), em
virtude de sua natureza discursiva, o enunciado se constitui como uma uni-
dade de significação necessariamente contextualizada.
Essa contextualização, que se dá numa dimensão discursiva, conside-
rando aspectos interacionais, históricos, sociais e culturais, pressupõe o fato
de que todo enunciado provém de alguém e se dirige a alguém.
Acerca desse destinatário, Brait e Melo (2007) apontam que, no âmbito
dos estudos bakhtinianos, existem múltiplas possibilidades, afinal, o outro a
quem se dirige o enunciado pode ser (1) o interlocutor direto do diálogo na
vida cotidiana, ou seja, o destinatário concreto; bem como pode ser (2) um
destinatário presumido com base na circulação do enunciado; ou pode, ainda,
ser (3) um sobredestinatário, para o qual não estão traçadas fronteiras rígidas
de tempo e espaço (BRAIT; MELO, 2007, p. 71-72).
A enunciação, portanto, se constrói no diálogo do eu com o outro. O enun-
ciador não almeja meramente discorrer acerca de um objeto cujo conteúdo
satisfaz a si mesmo. Ele se dirige ao outro, enuncia para o outro. Ao produzir
o enunciado, o sujeito considera, entre outros importantes aspectos, quem é
o destinatário, a imagem que faz dele, o efeito que deseja causar nesse desti-
natário, e essas considerações determinam aspectos ligados à composição e
ao estilo do enunciado, além de trazer implicações à construção da autoria.
A respeito da noção de autoria, é possível afirmar que o sujeito emerge
como autor ao assumir um posicionamento axiológico no diálogo com o ou-
tro. O enunciador encontra-se em uma arena de vozes sociais, frente às quais
assumirá uma posição valorativa. Como autor, o sujeito não se limita a um
registro passivo dos acontecimentos ao seu redor: ele se depara com uma
realidade atravessada por diversas posições axiológicas e, a partir do seu pró-
prio viés valorativo, recorta, reorganiza e reelabora essa realidade, que, dessa
forma, é ativamente construída no horizonte apreciativo do enunciador.
Assim, essa realidade já atravessada por inúmeras valorações sociais é
dada ao sujeito por meio dos enunciados de outrem, que se apresentam como
formações verbo-axiológicas refratadas e refratantes. Diante disso, consta-
ta-se que o sujeito não tem acesso a uma realidade neutra: a vida chega a ele
por meio do diálogo com enunciados alheios, os quais materializam posições
valorativas e, portanto, já refrataram o objeto de que tratam (recortaram,

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 99


analisaram, avaliaram conforme seu juízo de valor), ao mesmo tempo em que
se prestam à análise e à apreciação, possibilitando o recorte, a reordenação, a
reavaliação do mundo, sendo, por isso, também refratantes.
É possível, então, constatar que nenhum enunciado poderá apenas refle-
tir a realidade, uma vez que só existe enunciado no diálogo vivo e inconcluso
que se encontra no âmago das relações sociais. Todo enunciado é dado ao su-
jeito como refratado e refratante e, ao se inserir nesse diálogo, o enunciador
não apenas reflete, mas também refrata o mundo.
Consequentemente, o diálogo com vozes de outrem é condição indis-
pensável para a produção do enunciado, que se constitui como “um elo na
cadeia da comunicação discursiva” (BAKHTIN, 2011, p. 289). Compreende-se,
assim, por que a noção de dialogismo é um dos conceitos basilares da teoria
bakhtiniana, para a qual todo discurso é imbuído de outros discursos, que se
reproduzem, entrecruzam-se, completam-se ou com os quais polemiza etc.
Logo, no interior de qualquer enunciado, diversas vozes sociais se in-
ter-relacionam, já que o enunciado responde a outros já-ditos e orienta-se
para aqueles que estão no por vir, inserindo-se, desse modo, em uma cadeia de
diálogo social em que cada enunciado se constitui como um elo dialógico por
natureza. A inserção nessa cadeia dialógica exige dos sujeitos envolvidos na
comunicação discursiva uma compreensão responsiva ativa.

O caráter ativo e responsivo da compreensão

De acordo com Bakhtin (2011, p. 261), “o emprego da língua efetua-se em


forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos
integrantes desse ou daquele campo da atividade humana”. Tais enunciados
não podem ser concebidos como fenômenos isolados e estanques, como se
pudessem ser autossuficientes, visto que mantêm relações dialógicas entre
si, relações essas cuja compreensão exige a vinculação à situação extraverbal
que engendra o enunciado.
Nessa perspectiva, o enunciado envolve uma necessária relação com
o outro, a qual deve ser compreendida de modo axiológico, pois se estabelece
entre sujeitos que ocupam posições sociais e constroem julgamentos de valor
a partir de apreciações sociais. Diante disso, entende-se por que, na aborda-
gem bakhtiniana, não existe consciência que não seja social ou signo que não
seja ideológico.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 100


Acerca da natureza ideológica do signo, Zozzoli (2012, p. 258) enfatiza
que “o signo, sempre ideológico, é compreendido e o sinal é reconhecido”. As
palavras de uma língua tornam-se signos para os sujeitos quando ocorre a
compreensão ativa, a qual implica uma tomada de posição em relação ao que
é dito e compreendido (ZOZZOLI, 2012, p. 258-259).
Essa compreensão ativa sempre ocorre na vida social, pois unicamente
num plano abstrato a língua se presta “a uma compreensão passiva, apenas
existente para a reflexão linguística” (ZOZZOLI, 2012, p. 259). A apreensão ati-
va do discurso de outrem é indispensável ao dialogismo, o qual é constitutivo
do uso da língua, já que tal uso sempre se dá por meio de enunciados, pro-
duzidos por sujeitos ativos que se dirigem a outros sujeitos ativos, cultural e
sócio-historicamente situados.
O signo, portanto, é constituído num plano interindividual e se reveste
de valor axiológico. Assim, quando os sujeitos lançam mão de um material
linguístico-semiótico, fazem-no a partir de posições sociais e, conforme seu
horizonte valorativo, ressignificam e imprimem o tom axiológico que trans-
forma esse material em signos, os quais constituem os enunciados.
Em decorrência, constatamos que o caráter axiológico não pertence à
palavra isoladamente, mas ao enunciado, à fala viva (BAKHTIN, 2011, p. 291).
Como “todo enunciado é um elo na cadeia da comunicação discursiva de um
determinado campo” (BAKHTIN, 2011, p. 298), só pode ser concebido na in-
trínseca relação com outros enunciados.
A compreensão de um enunciado requer essa necessária relação com
outros enunciados, frente aos quais ocorre uma tomada de posição, que se
inicia desde o momento em que o interlocutor tem os primeiros contatos
com o significado linguístico, que, por si só, não é suficiente para que haja a
compreensão. Quanto a isso, Bakhtin (2011, p. 271) esclarece que

toda compreensão é prenhe de resposta, e nessa ou naquela forma a gera obri-


gatoriamente: o ouvinte se torna falante. A compreensão passiva do significado
do discurso ouvido é apenas um momento abstrato da compreensão ativamen-
te responsiva real e plena, que se atualiza na subsequente resposta em voz real
alta (BAKHTIN, 2011, p. 271).

Com base nisso, Bakhtin (2011) elucida que o enunciador não espera uma
compreensão passiva do seu interlocutor, que a enunciação não se realiza
para meramente tornar inteligível o objeto de sua fala; ao contrário disso, o

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 101


sujeito almeja uma resposta. Assim, ao tratar do herói dostoievskiano, Bakh-
tin (2010, p. 36, grifo do autor) assevera que cada ideia

sugere desde o início uma réplica de um diálogo não concluído. Essa ideia não
tende para o todo sistêmico-monológico completo e acabado. Vive em tensão
na fronteira com a ideia de outros, com a consciência de outros. É a seu modo
episódica e inseparável do homem (BAKHTIN, 2010, p. 36).

Destarte, cada enunciado deve ser compreendido como um elo dialógi-


co, visto que está inexoravelmente relacionado a enunciados de outrem, já re-
alizados ou presumidos, em face dos quais o sujeito reage responsivamente,
frente aos valores que perpassam tais enunciados. Acerca da atitude respon-
siva ativa, Nascimento (2018, p. 53-54) afirma:

Todo discurso está imediata e diretamente determinado pelo já-dito e pela


resposta antecipada. Todo dizer se orienta tanto para o espaço interdiscursi-
vo como para o discurso-resposta que ainda não foi dito, mas foi solicitado e
é esperado. O ouvinte que recebe e compreende um discurso adota, para com
esse discurso, uma atitude responsiva ativa: ele concorda ou discorda (total ou
parcialmente), completa, adapta, executa uma ação etc. A compreensão de um
enunciado é acompanhada de uma atitude responsiva ativa, toda compreen-
são é prenhe de resposta, ainda que essa resposta não seja verbal, podendo se
configurar como um ato ou até mesmo como silêncio (NASCIMENTO, 2018, p.
53-54).

Logo, o enunciador assume uma posição, expressando um ponto de vis-


ta em relação ao outro, pois a compreensão do discurso alheio demanda uma
atitude responsiva ativa, condição sine qua non para que se estabeleça o dia-
logismo inerente às práticas de linguagem. Por isso, é pertinente afirmar que

compreender a enunciação de outrem significa orientar-se em relação a ela,


encontrar o seu lugar adequado no contexto correspondente. A cada palavra da
enunciação que estamos em processo de compreender, fazemos corresponder
uma série de palavras nossas, formando uma réplica. [...] Assim, cada um dos
elementos significativos isoláveis de uma enunciação e a enunciação toda são
transferidos nas nossas mentes para um outro contexto, ativo e responsivo. A
compreensão é uma forma de diálogo [...]. Compreender é opor à palavra do lo-
cutor uma contrapalavra (BAKHTIN; VOLOCHÍNOV, 2002, p. 131-132, grifo dos
autores).

A contrapalavra se alicerça na relação estabelecida entre a “palavra


alheia” e a “palavra minha”. Cada enunciador, ao produzir sua resposta a
enunciados de outrem, apropria-se da “palavra alheia”, mas não a incorpo-

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 102


ra passivamente ao seu dizer, como se apenas duplicasse o pensamento do
outro. Longe disso, o sujeito, ao enunciar, adiciona à “palavra alheia” o seu
colorido axiológico, fruto de suas vivências e valorações, e, com isso, a con-
verte em “palavra minha”. Conclui-se, portanto, como preconizam Angelo e
Menegassi (2011, p. 207), que

a contrapalavra consiste na “palavra minha”, resultado das ressignificações da


palavra do “outro”. Se a devolutiva permanecer no nível da repetição, não há
constituição de “palavras minhas”, mas apenas uma dublagem que não traz
consigo nada de novo e enriquecedor ao próprio produtor (ANGELO; MENE-
GASSI, 2011, p. 207).

Portanto, a compreensão dos enunciados que circulam nas diversas prá-


ticas sociais requer do sujeito uma atitude responsiva ativa, que irá imprimir
aos seus enunciados o tom axiológico sem o qual não se estabelece o dialo-
gismo e, consequentemente, não há comunicação, visto que o dialogismo é
constitutivo da linguagem em uso. Nesta pesquisa, investigamos a constru-
ção axiológica da mulher a partir da análise de embates dialógicos em que se
inserem campanhas publicitárias da cerveja Skol.

Compreensão responsiva e dialogismo a partir


de uma campanha publicitária

Com base nas reflexões suscitadas pelos estudos de Bakhtin e o Círculo,


podemos refletir sobre a construção axiológica da mulher na cadeia dialógica
em que estão inseridos anúncios publicitários da Skol. Para tanto, partimos
de um enunciado produzido pouco antes do carnaval de 2015, pelo marketing
publicitário dessa marca de cerveja, como parte da campanha Viva RedON-
do, a qual, segundo a Ambev, empresa dona da marca Skol, tinha como mote
“aceitar os convites da vida e aproveitar os bons momentos”.
Esse enunciado, uma peça publicitária cujo locus físico foi constituído
por outdoors espalhados pela cidade de São Paulo, trazia, como principal ele-
mento verbal, a mensagem “esqueci o ‘não’ em casa”.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 103


Imagem 1 – Peça publicitária da Skol, Campanha Viva RedONdo

Fonte: Reprodução/Facebook

A compreensão responsiva desse enunciado demanda considerar o di-


álogo que ele estabelece com outros enunciados; o papel dos sujeitos envol-
vidos nessa interação discursiva, os lugares sociais que ocupam; o momen-
to histórico em que se dá a enunciação; os posicionamentos axiológicos que
emergem nesse confronto dialógico.
Assim, para refletir acerca dos sujeitos, é impreterível recordar que, de
acordo com Bakhtin e o Círculo, o eu emerge quando assume uma posição
frente ao outro. A subjetividade se constrói na linguagem em face da alteri-
dade, em resposta à voz do outro. Em virtude disso, Sobral (2009), ao refletir
acerca do sujeito na perspectiva bakhtiniana, afirma que o eu existe no âmago
das relações que estabelece com a sociedade, que, por sua vez, também de-
pende do sujeito para existir.
O estabelecimento dessas relações que pressupõem a intersubjetivida-
de requer considerar os lugares sociais que os interlocutores ocupam. Em
relação ao enunciado em foco, há um enunciador, a marca de cerveja Skol, que
enuncia para o outro a partir de uma posição sócio-histórica e ideologicamen-
te construída.
A Skol, cujo nome remete à palavra escandinava skål (expressão que an-
tecede brindes na Escandinávia, semelhante ao uso da palavra “saúde” no Bra-
sil), é uma marca de cerveja do Carlsberg Group, conglomerado de cervejarias
multinacional fundado na Dinamarca, em 1847. Lançada em 1959, na Europa,
a marca chegou ao Brasil em 1967, com licença para ser fabricada no país. A

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 104


Skol tem sido apontada como uma das marcas mais valiosas do segmento,
movimentando bilhões de dólares no mercado brasileiro.
Desde 1996, a Skol tem investido maciçamente em campanhas publici-
tárias, tendo a agência F/Nazca, pertencente à rede internacional de agências
Saatchi & Saatchi, como responsável por suas propagandas. A F/Nazca foi a
criadora de vários slogans da Skol, entre os quais o muito conhecido “desce
redondo”.
Historicamente, a Skol, por meio de campanhas desenvolvidas pela F/
Nazca, tem construído a imagem do que é “descer redondo”, em oposição ao
que “desce quadrado”, que está associado às marcas de cerveja concorrentes.
Um resgate dos enunciados produzidos na construção dessa identidade re-
vela o enaltecimento de uma supremacia masculina, cujos desejos são postos
em evidência, concomitantemente a uma objetificação da figura feminina,
apresentando a mulher a partir de um estereótipo à disposição dos desejos
masculinos.
Esse lugar social ocupado pela Skol foi construído ante uma socieda-
de que naturalizou a reificação da mulher e, em sua maioria, não questiona-
va o machismo ou a misoginia. Diante disso, não costumavam surgir fortes
objeções a enunciados nos quais a Skol representava um sujeito ideológico
que coisificava o corpo feminino, exposto como um objeto à mercê de desejos
sexuais dos homens. Tal posicionamento da Skol, inclusive, realizava-se por
meio de uma valoração positiva, em que, muitas vezes, assumia ares de cer-
ta malandragem, visando provocar humor, conforme é possível constatar em
alguns enunciados produzidos para a campanha publicitária “Invenções”, de
2005:

Imagem 2 – Bebedouro, peça publicitária da Skol, Campanha Invenções

Fonte: Quase Publicitários1

1 Disponível em: <https://quasepublicitarios.wordpress.com/2010/06/23/anuncios-da-skol/>. Acesso em: 12 Set.


2019.

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Imagem 3 – Tarja de censura, peça publicitária da Skol, Campanha Invenções

Fonte: Quase Publicitários

Imagem 4 – Provador, peça publicitária da Skol, Campanha Invenções

Fonte: Quase Publicitários

Constata-se, portanto, que os enunciados da Skol encontravam certa


aceitação do outro a quem a marca de cerveja se dirigia, visto que a reação-
-resposta do interlocutor, não raras vezes, consistia em brincadeira, riso e
identificação. Se a Skol se constituía como uma marca machista, não o fazia
sozinha, uma vez que os sujeitos (enunciador e destinatários) interagem res-
ponsivamente com os enunciados produzidos, de modo que os interlocutores
da Skol também atuam de forma ativa na constituição da marca, à medida
que, também assumindo um lugar social machista, aceitam, naturalizam e
propagam os valores veiculados pelo sujeito ideológico Skol. Afinal, de acordo
com o que Sobral (2009, p. 47) explica, ao refletir acerca do sujeito na perspec-
tiva bakhtiniana, é necessário reconhecer que

[...] o sujeito é pensado em termos de uma interação constitutiva com a socie-


dade: assim como precisa da sociedade para existir como tal, o sujeito constitui,
em suas relações com outros sujeitos, essa mesma sociedade (SOBRAL, 2009,
p. 47).

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 106


Condizente com essa ideia, é possível concluir que o sujeito, além de ide-
ológico, é constitutivamente social e dialógico. Esses três atributos (ideológi-
co, social e dialógico) estão intrinsecamente relacionados e, segundo a teoria
enunciativa de Bakhtin, não se pode atribuir uma característica de maneira
desvinculada da outra. Em decorrência, compreende-se que o sujeito ideo-
lógico Skol precisa da sociedade para se constituir como machista, ao passo
que, no interior das relações dialógicas, constitui (fortalece, reforça) o ma-
chismo na sociedade.
Todavia, nos últimos anos, observam-se transformações sociais, cultu-
rais e históricas que têm proporcionado uma discussão, cada vez maior, de
questões relacionadas à igualdade de gêneros, pondo em xeque a naturali-
zação do machismo. Simultaneamente a isso, os usos que a sociedade tem
feito dos avanços tecnológicos, sobretudo aqueles ligados à comunicação por
intermédio de redes sociais virtuais, têm permitido maior interação entre
empresas e consumidores, o que tem desvendado um consumidor de caráter
ativo, o qual não apenas compra (ou não) um produto, mas aceita ou recusa
os aspectos ideológicos associados ao bem ou serviço oferecido por meio da
propaganda.
A identificação ou a rejeição dos consumidores, no contexto atual, pode
ser manifestada por meio das redes sociais virtuais, o que dá à avaliação des-
ses indivíduos um maior alcance. Através de curtidas, comentários, compar-
tilhamentos e outros recursos de que dispõem na esfera virtual, os consumi-
dores julgam, elogiando ou criticando, os posicionamentos ideológicos das
empresas e influenciam a apreciação que outras pessoas fazem de cada mar-
ca, repercutindo no comportamento dos internautas em relação à compra do
produto ou serviço oferecido.
Tudo isso se dá numa atmosfera altamente dialógica, em que os elos
dessa cadeia não se estabelecem apenas entre os consumidores, mas também
entre consumidores e empresas, as quais não podem ficar alheias aos emba-
tes que são travados nessas redes sociais. As empresas interagem, cada vez
mais, com seu público-alvo e, ao suscitarem reações-resposta, avaliam as ré-
plicas obtidas e orientam suas estratégias discursivas e mercadológicas por e
para os posicionamentos que os sujeitos revelam quando enunciam.
Esses efeitos se fazem notar em relação à enunciação da peça publicitá-
ria Esqueci o “não” em casa, que imediatamente suscitou reações-resposta em
redes sociais, entre as quais se destacam os enunciados produzidos por duas

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 107


amigas, a ilustradora e publicitária Pri Ferrari e a jornalista Mila Alves, que,
usando fita isolante, acrescentaram os dizeres “e trouxe o nunca” a um dos
outdoors com essa peça publicitária da Skol, em um ponto de ônibus da Rua
Vergueiro, uma localização importante na capital paulista.
Em seguida, a publicitária e a jornalista tiraram fotos ao lado do outdoor
e postaram-nas em seus perfis no Facebook e no Instagram, com a seguin-
te legenda: “A ‘maravilhosa’ Skol decidiu fazer uma campanha de carnaval
espalhando frases que induzem a perda do controle. ‘Topo antes de saber a
pergunta’, ‘esqueci o não em casa’ são alguns exemplos. Uma campanha to-
talmente irresponsável, principalmente durante o carnaval que a gente sabe
que o índice de estupro sobe pra caramba. Eu e a @sugarmila decidimos fazer
uma pequena intervenção. Amigos publicitários, vocês precisam ter mais no-
ção e respeito. #feminismo #respeito #estuproNAO”.

Imagem 5 – Protesto contra peça publicitária da Skol Esqueci o “não” em casa

Fonte: G1 – Economia: mídia e marketing2

A postagem alcançou milhares de pessoas, que a curtiram, comenta-


ram e compartilharam, ampliando o diálogo estabelecido. Além disso, o ma-
nifesto das duas mulheres gerou uma série de enunciados na esfera jornalís-

2 Disponível em: <http://g1.globo.com/economia/midia-e-marketing/noticia/2015/02/acusada-de-apologia-ao-


estupro-skol-ira-trocar-frases-de-campanha.html>. Acesso em: 12 Set. 2019.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 108


tica, tais como Outdoor da Skol para o carnaval gera indignação em SP3 (Revista
Exame), Propaganda de carnaval da Skol é alvo de críticas feministas4 (Revista
Fórum), Campanha de cerveja é acusada de desrespeitar as mulheres5 (Estadão).
A análise dessa cadeia dialógica demonstra que o protesto da publici-
tária e da jornalista ocorre como enunciado-resposta não só à peça publici-
tária Esqueci o “não” em casa, mas também a outros enunciados da Skol em
que se constata uma apreciação depreciativa da mulher, objetificada pelo viés
machista (como exemplo, imagens 2, 3, 4 e 6), bem como também responde a
enunciados de outrem que incitam a cultura do estupro.

Imagem 6 – Parte de peça publicitária da Skol, Campanha Invenções

Fonte: Objetificação Feminina6

O próprio enunciado Esqueci o “não” em casa é também uma resposta


que dialoga, coadunando-se, com campanhas anteriores da marca e com vo-
zes sociais de acordo com as quais a mulher que adota determinados compor-
tamentos (como usar certos tipos de roupa ou ir às ruas, brincar o carnaval)
está se submetendo propositalmente a uma suposta inevitável abordagem
masculina, a qual, de acordo com essa perspectiva ideológica, deve ser aceita.

3 Disponível em: <https://exame.abril.com.br/marketing/outdoor-da-skol-para-carnaval-causa-indignacao-em-


sao-paulo/>. Acesso em 12 Set. 2019.
4 Disponível em: <https://revistaforum.com.br/noticias/propaganda-de-carnaval-da-skol-e-alvo-de-criticas-
feministas/>. Acesso em 12 Set. 2019.
5 Disponível em: < https://economia.estadao.com.br/blogs/radar-da-propaganda/campanha-de-cerveja-e-
acusada-de-desrespeitar-as-mulheres/> . Acesso em 12 Set. 2019.
6 Disponível em: <https://objetificacaofem.wixsite.com/cervejaemulher/blog/análise-de-peças-vii>. Acesso em 12
Set. 2019.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 109


Diante disso, é necessário reconhecer o embate dialógico instaurado,
em que o posicionamento axiológico da marca de cerveja é confrontado pelo
posicionamento das duas mulheres autoras da postagem. Esse confronto
ocorre num momento histórico bastante específico: em sentido estreito, num
momento que precede o carnaval de 2015; em sentido amplo, num momento
em que a cultura do estupro e o machismo têm sido mais discutidos (e rejei-
tados) por parcela bastante significativa da sociedade.
A consideração desse momento histórico é fundamental para a compre-
ensão do posicionamento de Pri Ferrari e Mila Alves em relação à peça publi-
citária da Skol em foco. As duas mulheres, resgatando vozes sociais que apre-
sentam o período carnavalesco como um período de libertinagem e ausência
de limites, em que a mulher que sai às ruas tem que estar disposta a tudo,
para “não estragar a festa”, opõem-se a esses dizeres, construindo o enuncia-
do: “deixei o ‘não’ em casa. E trouxe o nunca”.
Com isso, assumem um posicionamento de que a mulher pode ir às ruas,
sem que seja obrigada a ceder aos desejos masculinos (observe-se que, no
enunciado delas, a mulher não fica em casa, ela vai às ruas, mas traz o nunca.
Não apenas o uso do “nunca”, mas também a escolha do verbo “trazer”, neste
caso, é essencial para a expressão do tom valorativo).
Constata-se, assim, que o enunciado-resposta das duas mulheres dialo-
ga não apenas com a peça publicitária da Skol (a que reage imediatamente),
mas também com discursos que põem em xeque a visão tradicional machista
do que deve ser o lugar da mulher, discursos que repensam as relações entre
gêneros e apontam criticamente aquilo que se constitui como machista e mi-
sógino.
A reação-resposta da Skol ao enunciado das duas amigas configurou-
-se, primeiramente, em uma declaração na qual a empresa se comprometia
a recolher a campanha Esqueci o ‘não’ em casa, substituindo-a por outra com
“mensagens mais claras e positivas”, já que, de acordo com a Skol, embora o
objetivo da marca fosse levar o interlocutor a “aceitar os convites da vida e
aproveitar os bons momentos”, a mensagem da campanha em questão havia
proporcionado “um entendimento dúbio”:

As peças em questão fazem parte da nossa campanha “Viva RedONdo”, que tem
como mote aceitar os convites da vida e aproveitar os bons momentos. No en-
tanto, fomos alertados nas redes sociais que parte de nossa comunicação pode-
ria resultar em um entendimento dúbio. E, por respeito à diversidade de opini-

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 110


ões, substituiremos as frases atuais por mensagens mais claras e positivas, que
transmitam o mesmo conceito. Repudiamos todo e qualquer ato de violência
seja física ou emocional e reiteramos o nosso compromisso com o consumo
responsável. Agradecemos a todos os comentários. (Declaração oficial da Skol7).

Assim, à denúncia de que sua peça publicitária criada para o carnaval


de 2015 incita o estupro, a Skol responde, primeiramente, com uma declara-
ção em que nega a intenção de fazer apologia a comportamentos machistas
e misóginos. Por meio desse enunciado, a marca se propõe a fazer uma nova
campanha, ao mesmo tempo em que defende a campanha anterior, retirada
de circulação, segundo a Skol, em virtude de uma possibilidade de “entendi-
mento dúbio” e graças ao fato de que a empresa se preocupa com o “respeito
à diversidade de opiniões”. Afirma, ainda, que a nova campanha transmitirá
“o mesmo conceito”.
Todavia, a despeito da defesa que fez da campanha a ser retirada de cir-
culação, os enunciados-resposta produzidos em seguida (imagem 7) demons-
tram uma orientação valorativa contrária àquela que incita a aceitação de
toda e qualquer abordagem em meio aos dias da folia de Momo.

Imagem 7 – Peças publicitárias da Skol, com slogan Neste carnaval, respeite

Fonte: Catraca Livre8

Embora tenha negado a existência de um caráter machista na peça pu-

7 Disponível em: <http://g1.globo.com/economia/midia-e-marketing/noticia/2015/02/acusada-de-apologia-ao-


estupro-skol-ira-trocar-frases-de-campanha.html>. Acesso em: 13 Set. 2019.
8 Disponível em: <https://catracalivre.com.br/cidadania/criatividade-de-publicitarios-protege-melhores-no-
carnaval/ >. Acesso em 13 Set. 2019.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 111


blicitária Esqueci o ‘não’ em casa, dois anos depois, no dia 08 de março de 2017,
Dia Internacional da Mulher, a Skol postou, em suas redes sociais (canal no
Youtube e perfil no Facebook) e num site oficial destinado à nova campanha,
o vídeo Reposter Skol, em que admite o machismo de campanhas produzidas
pela empresa.
Essa nova propaganda consistia numa proposta de refazer pôsteres de
campanhas passadas promovendo uma releitura, guiada por aquilo que, para
a marca, seria um novo olhar. Para a refacção, foram escolhidos três pôsteres
em que modelos loiras com poucos trajes seguram a cerveja Skol (imagem 8).

Imagem 8 – Peças publicitárias escolhidas para refacção na campanha Reposter Skol

Fonte: G1– Economia: mídia e marketing 9

No primeiro pôster, a mulher segura um copo com a cerveja, enquan-


to olha sorridente para trás, na direção do visualizador. A modelo veste uma
saia, que, de acordo com a marca, se tivesse sido inventada por um bebedor de
Skol, deixaria as nádegas da mulher à mostra. No segundo pôster, a modelo
traz, em uma mão, uma bandeja com a cerveja Skol, e na outra, um leque para
abanar o homem a quem a bebida será servida. No último pôster, apresenta-
-se a “garota do tempo Skol”, cujo biquíni amarelo sinaliza o tempo quente,
ao passo que o biquíni verde representa o tempo frio (mas, segundo a marca,
“tem sempre clima para uma Skol”).
Oito ilustradoras e artistas plásticas foram convidadas para refazer es-
ses pôsteres, redimensionando o lugar feminino e promovendo uma ruptura
com a valoração segundo a qual a mulher é um objeto à disposição dos dese-

9 Disponível em: https://g1.globo.com/economia/midia-e-marketing/noticia/skol-lanca-acao-para-trocar-


cartazes-machistas-de-bares.ghtml . Acesso em: 10 Set. 2019.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 112


jos masculinos. O convite foi feito a Camila do Rosário, Carol Rossetti, Elisa
Arruda, Eva Uviedo, Evelyn Queiróz (a Negahamburguer), Manuela Eichner,
Sirlaney Nogueira e Tainá Lima, cujos trabalhos demonstram engajamento
com questões feministas.
Com isso, a marca assume seu passado machista (inclusive, afirmando,
no vídeo, que “o mundo evoluiu e a Skol também. E isso [a exposição objetifi-
cada de corpos femininos em seus pôsteres publicitários] não nos representa
mais”). Com a proposta de desconstruir os estereótipos em que investiu ao
longo de duas décadas, a Skol lançou essa campanha com o slogan “Redondo
é sair do seu passado”.
Estando inserida num momento histórico em que são cada vez mais
frequentes os questionamentos em torno de concepções patriarcais outrora
aceitas com relativa naturalidade, a Skol percebe o redirecionamento valo-
rativo crescente em parte considerável da sociedade e reconhece que a per-
sistência num viés apreciativo machista poderia impactar negativamente a
marca, levando, inclusive à perda de consumidores.
Nesse contexto, há um esforço da empresa para mostrar aos seus consu-
midores que o posicionamento axiológico da marca mudou e que o horizonte
valorativo que reificava a figura feminina pertence ao seu passado. Inclusive,
para comprovar a mudança em seu feixe de valorações, a Skol se propõe a
construir, em suas campanhas publicitárias, uma nova identidade da mulher,
a partir da voz das próprias mulheres, que mostrariam, por meio das ilustra-
doras feministas convidadas para refazer os pôsteres, como gostariam de ser
representadas.
O vídeo dessa campanha e os pôsteres refeitos (como exemplo, imagens
9 e 10) não se constituem como simples homenagem por causa do Dia Inter-
nacional da Mulher, devem ser compreendidos como mais enunciados con-
cebidos como reação-resposta ao movimento iniciado nas redes sociais, em
2015, pela publicitária e pela jornalista, duas mulheres que denunciaram o
caráter machista da peça publicitária Esqueci o “não” em casa, da campanha
Viva RedONdo.

Imagem 9 – Releituras de Eva Uviedo para a campanha Reposter Skol

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 113


Fonte: Eva Uviedo10

Imagem 10 – Releituras de Carol Rossetti para a campanha Reposter Skol

Fonte: Carol Rossetti11

Em virtude da repercussão da postagem das duas amigas, a qual ren-


deu curtidas, comentários, compartilhamentos, matérias jornalísticas, entre
outras formas de interação, a Skol sentiu a necessidade de adotar um novo
posicionamento axiológico, como uma estratégia mercadológica, já que havia
emergido, na sociedade, uma denúncia da natureza machista dos anúncios
publicitários da marca, cuja identidade estava sendo discutida e questionada.
Como a reputação machista poderia gerar repúdio de consumidores (e, so-
bretudo, de consumidoras) que rejeitam posturas sexistas e misóginas, a Skol
se empenhou para reconstruir sua imagem.

Deve-se salientar que a empresa não apenas respondeu dialogicamente

10 Disponível em: <https://evauviedo.com.br/reposter-skol>. Acesso em 12 Set. 2019.


11 Disponível em: <https://www.carolrossetti.com.br/skol >. Acesso em 12 Set. 2019.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 114


às críticas, mas também proporcionou canais para fomentar o diálogo, visto
que não se restringiu ao convite para a refacção dos pôsteres pelas artistas
feministas: abriu espaço no site oficial da campanha para que internautas
também pudessem contribuir com suas releituras dos pôsteres.
Dessa forma, a Skol incorpora novos dizeres aos enunciados que pro-
duz, buscando um novo viés valorativo, a fim de construir a imagem de uma
empresa que se importa com o que seu público (inclusive, o feminino) pensa a
seu respeito. Como efeito disso, surgiram diversos enunciados-resposta (co-
mentários, postagens em blogs, matérias jornalísticas etc) elogiando a inicia-
tiva da marca, cuja identidade estava sendo reconstruída sem mais negar seu
passado machista.

Considerações finais

A palavra não chega aos sujeitos em “estado de dicionário”, pura e neu-


tra. Conforme explica Bakhtin (2011, p. 283), “nós assimilamos as formas da
língua somente nas formas das enunciações e justamente com essas formas
[...] Aprender a falar significa aprender a construir enunciados”.
Cada enunciado se constitui como um elo de uma cadeia de diálogo so-
cial, cujas fronteiras não podem ser rigidamente delimitadas, visto que não é
possível determinar a partir de qual enunciado tal cadeia começa, da mesma
forma como não se pode considerá-la como um produto pronto, acabado, a que
se pode impor um final. Ademais, ainda que fosse possível identificar extremi-
dades, seria forçoso reconhecer que, em seu interior, os fenômenos não ocor-
rem de maneira linear, uma vez que são dinâmicos, múltiplos e multifacetados.
A despeito disso, podemos reconhecer e analisar enunciados perten-
centes a uma mesma cadeia dialógica, porquanto se constata que há vínculos
entre certas enunciações: um enunciado traz ecos e ressonâncias de outros
enunciados, com os quais dialoga, concordando, assimilando, completando
ou, ainda, polemizando, discordando, refutando.
A natureza axiológica intrínseca desse diálogo social exige dos sujeitos
uma atitude responsiva ativa. Como “toda compreensão é prenhe de respos-
ta” (BAKHTIN, 2011, p. 271), é impossível engajar-se em uma situação de inte-
ração verbal, da qual o dialogismo é constitutivo, sem assumir uma posição
frente às diversas vozes sociais que atravessam os enunciados de outrem.
Diante disso, a análise empreendida para a realização desta pesqui-

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 115


sa desvendou como a peça publicitária da Skol Esqueci o “não” em casa, da
campanha Viva RedONdo, coaduna-se com enunciados anteriores da marca,
ratificando uma valoração machista, que deprecia e objetifica a mulher. To-
davia, embora tenha durante muito tempo naturalizado esse viés valorativo,
a sociedade (ou parcela significativa dela) reagiu à campanha com críticas e
questionamentos.
A repercussão negativa da campanha nas redes sociais pode ser melhor
compreendida quando se tem em mente que, neste momento histórico, a so-
ciedade vem passando por transformações que têm levado à não aceitação de
posturas preconceituosas e à discussão acerca da necessidade de igualdade
de gêneros. Soma-se a isso o fato de que tais embates dialógicos encontram
no espaço virtual um lugar propício à sua realização, visto que, nas redes so-
ciais, não ocorre apenas a divulgação de produtos e serviços pelas empresas,
mas também se manifestam os comentários, as críticas e os elogios do públi-
co consumidor, cada vez mais cônscio de seu papel cidadão.
Os enfrentamentos dialógicos que se seguiram à publicação da peça
publicitária Esqueci o “não” em casa contribuíram para que a Skol mudas-
se seu posicionamento axiológico quanto à representação da mulher, o que
culminou na campanha Reposter Skol, em que a marca tenta reconstruir sua
imagem, reconhecendo seu passado machista, porém se comprometendo a
ocupar um novo lugar social.

Referências

ANGELO, C. M. P.; MENEGASSI, R. J. Manifestações de compreensão responsiva


em avaliação de leitura. Linguagem & Ensino. Pelotas, v.14, n. 1, p. 201-221, jan./jun.
2011.
BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévsky. Tradução do russo, notas e pre-
fácio de Paulo Bezerra. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo Paulo Be-
zerra. 6. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.
BAKHTIN, M. ; VOLOCHÍNOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas
fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Michel
Lahud e Yara Frateschi Vieira. 9. ed. São Paulo: Hucitec, 2002.
BRAIT, B.; MELO, R. Enunciado/ enunciado concreto/ enunciação. In: BRAIT, B.
(org.). Bakhtin: conceitos-chave. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2007.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 116


NASCIMENTO, M. R. V. S. A heterogeneidade enunciativa em memes do “Bode
Gaiato”. Entrepalavras. Fortaleza, v. 8, n. 1, p. 50-70, jan./abr. 2018.
SOBRAL, A. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do Círculo de Bakh-
tin. Campinas: Mercado de Letras, 2009.
ZOZZOLI, R. M. D. A noção de compreensão responsiva ativa no ensino e na apren-
dizagem. Bakhtiniana. São Paulo, v. 7, n.1, p. 253-269, jan./jun. 2012.

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p T 65

Experiência leitora como resistência: diálogos entre o


Leia Mulheres - Salvador e o Feminismo Negro

Milena Farias de Sousa

Palavras iniciais

O presente trabalho surgiu a partir do desafio lançado pela Mestre Janja


Araújo, ao propor, como avaliação final da Disciplina Dinâmica das Relações de
Gênero, Raça e Classe1, a elaboração de um artigo que articulasse as referên-
cias debatidas em sala ao longo do semestre com nossos objetos de pesquisa.
Por meio dele, objetivei compreender as possíveis contribuições do Feminis-
mo Negro para o debate proposto pelo clube de leitura Leia Mulheres–Salva-
dor (meu contexto de pesquisa no doutorado) sobre a presença/ausência e as
possíveis representações da mulher na Literatura.
Para os que não o conhecem, o Leia Mulheres é uma iniciativa surgida
no Brasil, em 2014, na cidade de São Paulo, mas que se difundiu por diversas
cidades do país, indo além das nossas fronteiras, com filial em Portugal. Tra-
ta-se de um Clube de Leitura, cujo objetivo consiste em fomentar a leitura e o
debate de obras literárias ou não, escritas por mulheres. Frequento o grupo
desde 2017, acompanhando as leituras propostas e participando dos debates,
e essa participação me levou a perceber como esse ambiente se tornou um
espaço profícuo para discussões sobre as relações entre gênero e identidade,
de modo que, abracei a oportunidade de estudar o tema sob o viés da Análise
do Discurso Crítica ao ingressar no doutorado em 2018.

1 Disciplina cursada no Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e


Feminismo (Ppgneim/UFBA).

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 118


DOI: 10.52788/9786589932253.1-6
Ao levar a pesquisa adiante, percebi que não há como discutir gênero
sem compreender outras esferas de opressão, afinal, como defende Lorde
(2019), não existe hierarquia de opressão, todas estão conectadas e partem
de um mesmo pressuposto: a crença na superioridade inerente de um grupo
de pessoas com determinadas características sobre todos os outros que não
as compartilham. Desse modo, passei a atentar, também, para as questões de
raça e de classe dentro dos Estudos Feministas. Este capítulo, resulta de algu-
mas dessas reflexões e se organiza da seguinte maneira: primeiramente, uma
reflexão sobre o meu próprio lugar de fala nessa discussão, contando com
as contribuições de Ribeiro (2017) sobre Lugar de Fala e de Schucman (2012)
sobre Brancura e Branquitude; em seguida, articulo o meu objeto de pesquisa
com as ideias apresentadas pelas Feministas Negras: Bairros (1995), Carneiro
(2003, 19995), Collins (2019), hooks (1995) e Lorde (2019).

O desafio que nos está posto

Muitas vezes o trabalho intelectual leva ao confronto com duras realidades. Pode
nos lembrar que a dominação e a opressão continuam a moldar as vidas de todos
sobretudo das pessoas negras e mestiças. Esse trabalho não apenas nos arrasta
mais para perto do sofrimento como nos faz sofrer. Andar em meio a esse sofrimento
para trabalhar com ideias que possam servir de catalisador para a transformação
de nossa consciência e nossas vidas e de outras é um processo prazeroso e extático.
Quando o trabalho intelectual surge de uma preocupação com a mudança social e
política radical quando esse trabalho é dirigido para as necessidades das pessoas
nos põe numa solidariedade e comunidade maiores. Enaltece fundamentalmente a
vida. (HOOKS, 1995, pp.477 -478).

Diversos são os desafios impostos aos intelectuais, pesquisadores e aca-


dêmicos negros na contemporaneidade. Um dos principais se refere à impo-
sição da Academia de que, para se debater determinado tema, é preciso fazer
um levantamento de grande parte do referencial teórico canônico reverencia-
do naquela área, geralmente, um repertório dominado por sujeitos brancos,
homens em sua maioria, e de origem europeia ou norte-americana. Mesmo
quando o objetivo é questionar, apresentar alternativas a esse modelo, quan-
do se ousa romper com este paradigma, ouvem-se questionamentos acerca
da ausência de certos nomes na discussão de tal temática. Isso coloca intelec-
tuais negros diante de um impasse: embora a epistemologia necessária para
discutir determinados temas, sobretudo aqueles que envolvem gênero, raça e

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 119


classe seja outra, e haja uma necessidade de se afirmá-la nas pesquisas e nas
produções acadêmicas, há uma cobrança (que não é aleatória e nem inocente)
de que se domine todo um referencial eurocêntrico, branco e masculino. Tal
impasse resulta em uma dupla jornada que consiste na realização simultânea
de leituras que deem conta dessas duas demandas.
A provocação que apresento neste artigo, no entanto, diz respeito à ou-
tra parcela de intelectuais: aqueles que se consideram brancos e tiveram toda
a sua base curricular forjada a partir desse repertório branco, acreditando ser
este suficiente para a sua formação e ignorando discussões que são cruciais
para repensar a nossa realidade social, bem como a nossa trajetória acadê-
mica. Não deveriam os intelectuais brancos, então, se propor a realizar o mo-
vimento inverso e se debruçar, também, sobre a bibliografia produzida por
intelectuais negros?
A mesma reflexão se aplica, também, às obras literárias produzidas por
mulheres, especialmente, mulheres negras. Embora essas obras estejam sen-
do constantemente produzidas, ainda há muita dificuldade no mercado edi-
torial para que sejam publicadas e, mesmo quando o são, a sua leitura, ainda
é, muitas vezes, restrita a um pequeno grupo. Se a maioria de nós fizer um pe-
queno exercício de retrospectiva literária, perceberá que ao longo de nossas
trajetórias acadêmicas e pessoais, quando fomos induzidos ou nos permiti-
mos ler Literatura, caímos, mesmo que de forma inconsciente, em um padrão
de leitura masculino, branco, heterossexual, urbano e elitista.
Sabemos que, numa sociedade machista, racista e classista, como a
brasileira, não basta não ser machista, é preciso lutar contra o machismo, não
basta não ser racista, é preciso ser antirracista, não basta não promover um
preconceito de classe, é preciso lutar contra as desigualdades sociais. Nesse
sentido, faz-se necessário assumir um compromisso pessoal e intelectual na
luta contra estruturas de opressão que persistem ainda hoje em nossa socie-
dade.
O Leia Mulheres – Salvador, clube de leitura que integro e pesquiso, e
sobre cujo percurso reflito neste artigo surge no escopo dessas inquietações.
Da percepção da importância de se assumir, de forma consciente, a decisão
de ler aquilo que acreditamos ser decisivo na mudança que tanto almejamos.
Se nossa luta é pela igualdade de gênero, que nos disponhamos a ler mais
mulheres, se é contra o racismo, que leiamos negros e negras, se é por igual-
dade social, que estejamos atentos à voz de quem clama por ela e que fala de

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 120


lugares sociais nem sempre reconhecidos ou validados. No entanto, se com-
preendo a importância da intersecção desses aspectos na luta, preciso estar
alerta para o fato de que não preciso pertencer a determinado grupo para
estar atenta e abraçar a sua luta, afinal é de justiça social, em suas mais diver-
sas manifestações que estamos falando. Vale reiterar que todas essas formas
de exclusão repousam em bases ideológicas semelhantes: “a crença na do-
minação construída com base em noções de inferioridade e superioridade.”
(BAIRROS, 1995, p. 462)
No que se refere ao racismo, mais especificamente, é preciso reconhe-
cer que somos, também, seres racializados (SCHUCMAN, 2012) e buscar com-
preender de que maneira reproduzimos em nossas vidas atitudes racistas e,
ainda, perceber e questionar os privilégios que nos foram concedidos exclusi-
vamente em função da cor da nossa pele.

O meu Lugar de Fala

Ribeiro (2017) sistematizou, aqui no Brasil, o conceito de Lugar de Fala, a


partir de um resgate da Feminist standpoint theory (Teoria do ponto de vista
feminista), de Patrícia Hill Collins. O conceito reconhece a intersecção das de-
sigualdades e considera que a mesma pessoa pode assumir diversas posições
de acordo com suas características, destacando a relevância do cruzamento
não hierárquico entre categorias como gênero, raça, classe e geração.
O termo tem engendrado interpretações bastante equivocadas, resul-
tantes de generalizações, por se acreditar que se trata de uma defesa para que
cada grupo só possa ser alvo de comentários de pessoas que o constituem.
Esta visão resulta de uma confusão, muito comum, entre os conceitos de lu-
gar de fala e representação. Não há nada que impeça os sujeitos de falarem a
respeito de temas diversos, mas, neste caso, é preciso estar ciente de estar
falando sobre algo ou alguém, e não ter a pretensão de falar por, ou seja, de
representar um grupo ao qual não se pertence.
Além disso, é preciso reconhecer que todos partem de um lugar de fala
e, em função disso, reconhecer os privilégios ou opressões vivenciadas a par-
tir desse lugar. Trata-se de perceber que cada grupo social “experimenta a
opressão a partir de um lugar, que proporciona um ponto de vista diferente
[...]” (BAIRROS, 1995, p.462) e que, nesse processo, torna-se importante deter

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 121


o poder de autodefinir-se, ou seja, de falar sobre si, como argumenta Collins
(2019).
Tomando por base essa reflexão, qual seria, então, o meu lugar de fala?
Sou uma mulher, de 28 anos. Pele clara, cabelos lisos e loiros. Desde pe-
quena, sempre fui conhecida e caracterizada pela cor dos meus olhos, ver-
des. Sob essas marcas, externas, tenho diversas outras, não tão visíveis, mas
que, marcam igualmente a minha trajetória. Sou filha de um pai de origem
humilde, nascido em Valença que cursou apenas o nível Fundamental I, anti-
go Primário, incompleto. Analfabeto funcional, ele alternou, ao longo de sua
vida, entre as profissões de garçom e porteiro. Tornou-se alcoólatra, antes
que eu completasse 4 anos de idade, o que comprometeu, diversas vezes, sua
relação com o trabalho e com a família. Minha mãe, 15 anos mais velha do que
meu pai, era secretária. Casou-se aos 42 anos, engravidou aos 44, realizando
um grande sonho. Aposentou-se comigo bem pequena e dedicou o restante
da sua vida aos cuidados com sua tão sonhada casa própria, que construiu a
duras penas, e à minha educação. Por ela, fui cercada de todo amor, cuidados
e atenção que uma filha única tão desejada poderia ter. Nunca tivemos luxo
em casa. Moramos de favor uma época. Já em nossa casa, todo o dinheiro que
entrava era direcionado à alimentação, às contas da casa e aos estudos.
Estudei toda a minha Educação Básica na rede particular: o Fundamen-
tal I numa escolinha de bairro de baixo custo; e o Fundamental II e o Ensino
Médio em uma escola de médio porte, como bolsista, ambas de orientação
religiosa. Tive uma criação religiosa, não somente nas escolas, mas também
em casa. Frequentei igreja, cantei em coral, fui batizada. O controle do corpo
sempre foi imposto para mim como algo prioritário. Nunca tive liberdade
para vestir o que quisesse. Minhas roupas tinham de ser “compostas”. Saia
curta, barriga de fora? Nem pensar! Dançar, pior ainda. Lembro-me clara-
mente de uma ocasião em que fui sozinha a uma festa de aniversário infantil,
a três casas da minha, na rua onde morava e fui interrompida e levada de
volta para casa por minha mãe porque uma vizinha comentou com ela que
eu estava dançando na festa, sendo que eu havia passado todo o tempo com
o corpo colado à parede. Só depois dos 24 anos tive coragem de expor minha
barriga na rua e de dançar sem censura.
Perdi minha mãe aos 12 anos, atropelada, num acidente que eu presen-
ciei. A dor provocada em mim naquele momento, até hoje reverbera e machu-
ca. Meu pai, naquela época, permaneceu em seu estado de presença- ausente,

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 122


mas pude contar com o amparo da família, da escola e de amigos próximos
a nós. Continuei meus estudos. A voz de minha mãe continuava ecoando em
minha mente, incentivando-me a dar o meu melhor, a seguir estudando, por-
que essa era a alternativa que estava posta para mim. Não haveria nenhuma
outra herança.
Cursei Letras na UNEB. Prestei concurso para a Rede Pública Municipal
e Estadual de Ensino e fui aprovada, o que me permitiu alguma ascensão so-
cial. Hoje, sou professora de escola pública, esposa, mãe de duas, e continuo
uma eterna aprendiz.
Ao longo da minha vida, as reflexões sobre a questão racial aqui no Bra-
sil demoraram a se apresentar para mim. O meu fenótipo colaborou para
que esse aspecto não estivesse posto para mim desde cedo. Não me entendia
como um ser racializado. A classe, por outro lado, estava posta: tive origem
pobre.
Durante a minha Graduação e Mestrado, tive somente uma professora
que se autodeclarava negra. Foi ela a única a pontuar questões sobre raça e
racismo em suas aulas na disciplina Literaturas Africanas de Língua Portugue-
sa. Lembro de termos discutido, também, a representação de crianças negras
em livros de Literatura Infanto-Juvenil e como esse sistema de representação
era perverso. Naquele momento, tive, ainda, a oportunidade de repensar e
desconstruir muitas das concepções religiosas que carregava comigo. A no-
ção de verdade única e absoluta que se aplicaria a todos os povos em todas
as épocas, por exemplo. Ali, pude perceber que aspectos que, até então, eu
compreendia apenas como diferenças, promoviam desigualdades e injustiças
entre os sujeitos. O contato pontual que tive com autores e autoras negros, ao
longo desse período, devo a ela.
Outras inquietações foram se apresentando para mim como professora
da Rede Pública de ensino. Naquele contexto, tive contato com uma realidade
que, até então, estava ofuscada para mim. Fui me dando conta de que a pobre-
za não era a única questão, porque, no Brasil, a pobreza tem cor. E não havia
comparação entre o que eu havia experienciado na infância e a realidade de
muitos dos meus alunos, afinal,

quando comparamos brancos pobres com negros pobres percebemos que os


significados construídos em torno da pertença racial branca asseguram a eles
privilégios e vantagens em diversos setores sociais, uma possibilidade de as-
censão social, por assim dizer. (SCHUCMAN, 2012, p. 101).

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 123


Já no Doutorado, em função do meu objeto de pesquisa, sobre o qual fa-
larei mais detalhadamente adiante, senti-me impulsionada a conhecer mais
a respeito do Feminismo Negro. Em função disso, busquei disciplinas em ou-
tros programas que cobrissem esta que é uma lacuna em muitos institutos.
No PPGNEIM (Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre
Mulheres, Gênero e Feminismo) e no PPGELitCult (Programa de Pós-Graduação
em Literatura e Cultura), pude iniciar quase do zero leituras sobre o tema, dan-
do início a um processo de Letramento Racial, conceito formulado por France
Winddance Twine e traduzido e apresentado por Schucman (2012), que con-
siste, basicamente, em cinco passos:

(1) um reconhecimento do valor simbólico e material da branquitude;


(2) a definição do racismo como um problema social atual, em vez de um legado
histórico;
(3) um entendimento de que as identidades raciais são aprendidas e um resul-
tado de práticas sociais;
(4) a posse de gramática e um vocabulário racial que facilita a discussão de raça,
racismo e anti-racismo;
(5) a capacidade de traduzir e interpretar códigos e práticas racializadas de
nossa sociedade e
(6) uma análise das formas em que o racismo é mediado por desigualdades de
classe, hierarquias de gênero e heteronormatividade
(TWINE, 2006, p.344 apud SCHUCMAN, 2012, p. 103, 104)

Como ocorre em outros tipos de Letramento, o Letramento Racial é pro-
cessual. Embora ele não possa ser medido, apenas experienciado por meio de
práticas sociais, reconheço as limitações que tenho, mas também os avanços
que alcancei por meio das leituras e dos debates que integrei ao longo desses
últimos anos. Hoje, reconheço que minha história foi atravessada pela cor da
minha pele, cabelo e olhos, embora tenha vivido até pouco tempo atrás sem a
consciência dos privilégios e oportunidades que se ofereceram para mim ex-
clusivamente em consequência da minha aparência. Apesar da minha origem
pobre, tive acesso a espaços e experiências que provavelmente seriam nega-
dos a uma pessoa negra, oriunda da mesma classe social que eu. Identifiquei
as diversas circunstâncias em que aspectos da minha personalidade, cará-
ter ou competência foram deduzidos a partir de características físicas. E me
questionei, ainda, sobre os diversos momentos em que, de forma inconscien-
te, corroborei com um sistema de opressão do qual discordo plenamente. Não
tenho a intenção ou pretensão de representar ou sobrepujar mulheres negras
com minhas colocações. Elas falam por si. Quero me colocar justamente no

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 124


lugar de escuta, de compreender como posso, por meio do meu discurso e
prática, me tornar aliada na luta. São as reflexões que teci a partir da leitura
de intelectuais negras brasileiras, em diálogo com o meu objeto de pesquisa
nessa trajetória do doutorado que apresento a seguir.

O Leia Mulheres - Salvador e o Feminismo Negro

Como, então, cheguei à conclusão de que o Feminismo Negro era um


arsenal teórico fundamental na realização da minha pesquisa? No Doutora-
do, dispus-me a pesquisar um Clube de Leitura que integro desde 2017, o Leia
Mulheres-Salvador. Trata-se de uma iniciativa vinculada ao grupo criado em
2014, em São Paulo, cuja inspiração adveio de uma campanha lançada pela
autora e ilustradora inglesa Joanna Walsh, por meio da hashtag #readwo-
men2014 (#leiamulheres2014), provocando seus seguidores a ampliarem, em
seu repertório pessoal de leitura, o número de livros escritos mulheres. O ob-
jetivo central do grupo, portanto, consiste em debater exclusivamente livros
escritos por mulheres, cuja temática traga à tona discussões sobre o univer-
so feminino e/ou questões que lhe tangenciam. Em Salvador, os encontros
presenciais mensais costumavam ocorrer no Museu de Arte da Bahia (MAB),
localizado no Corredor da Vitória. Com o advento da pandemia do Covid-19,
porém, passaram a ocorrer pelo aplicativo Google Meet. Mesmo havendo um
objetivo comum, cada sede do Leia Mulheres atribuiu ao grupo um caráter pe-
culiar. Em Salvador, ficou definido que o recorte seriam obras cujo conteúdo
necessariamente problematizasse questões relacionadas à questão de gêne-
ro. Algumas moderadoras, inclusive, já compreendem e caracterizam o grupo
como de natureza Feminista.
Embora o recorte do grupo seja, inicialmente, um recorte de gênero, al-
gumas das autoras escolhidas são negras e apresentam em suas obras aspec-
tos relacionados às suas identidades, não apenas como mulheres, mas como
mulheres negras. Entre as autoras negras lidas estão: Carolina Maria de Je-
sus, com Quarto de Despejo, Chimamanda Adichie, com Americanah e Hibis-
co Roxo, Conceição Evaristo, com Olhos D’Água, Octavia Butler, com Kindred,
Ryane Leão com Tudo nela Brilha e Queima, Roxane Gay, com Fome e Toni Mor-
rison com Amada.2

2 A lista completa das obras lidas no Leia Mulheres-Salvador pode ser consultada na página do grupo no
Instagram @leiamulheres_ssa, ou no site oficial do Leia Mulheres: https://leiamulheres.com.br/local/salvador/.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 125


Ao definir o meu contexto de pesquisa e iniciar as leituras sobre Femi-
nismo, duas questões ficaram latentes para mim: primeiramente, gênero,
classe e raça são aspectos indissociáveis, não há estudo ou reflexão possível
em que esses aspectos estejam fragmentados; consequentemente, não há es-
tudo possível sobre o Feminismo atualmente sem que a pauta do Feminismo
Negro esteja em debate. Carneiro (2003), nos alerta para o fato de que:

em conformidade com outros movimentos sociais progressistas da sociedade


brasileira, o feminismo esteve, também, por longo tempo, prisioneiro da visão
eurocêntrica e universalizante das mulheres. A conseqüência disso foi a inca-
pacidade de reconhecer as diferenças e desigualdades presentes no universo
feminino, a despeito da identidade biológica. Dessa forma, as vozes silenciadas
e os corpos estigmatizados de mulheres vítimas de outras formas de opressão
além do sexismo, continuaram no silêncio e na invisibilidade. (CANEIRO, 2003,
p.118).

Nesse mesmo texto, intitulado Mulheres em Movimento, publicado em


2003, Sueli Carneiro propõe uma importante reflexão acerca dos avanços e
das demandas dos Movimentos Feministas no Brasil. Ela inicia seu texto des-
tacando a identificação do Feminismo brasileiro, desde a sua gênese, com as
lutas populares e com as lutas pela democratização do país. Os discursos e
práticas dentro do movimento, porém vêm sendo reformulados a partir da
percepção da existência de um silêncio em torno de outras formas de opres-
são além do sexismo, para a qual o movimento emergente de mulheres ne-
gras e suas reflexões acerca do ideário e da prática feminista no Brasil têm
sido determinantes.
Carneiro (2003) designa essa trajetória por meio da expressão “enegre-
cendo o feminismo”. Com ela, simultaneamente, assinala o caráter branco
e ocidental da formulação feminista clássica e revela a insuficiência teórica
para lidar com as diversas expressões do feminino em sociedade multirra-
ciais como a brasileira. Tais iniciativas permitiram o estabelecimento de uma
agenda de combate às desigualdades de gênero intragênero e a afirmação e
visibilização de uma perspectiva feminista negra. Em suas próprias palavras:

A ação política das mulheres negras vem promovendo: o reconhecimento da


falácia da visão universalizante de mulher; o reconhecimento das diferenças
intragênero; o reconhecimento do racismo e da discriminação racial como
fatores de produção e reprodução das desigualdades sociais experimentadas
pelas mulheres no Brasil; o reconhecimento dos privilégios que essa ideologia
produz para as mulheres do grupo racial hegemônico; o reconhecimento da ne-
cessidade de políticas específicas para as mulheres negras para a equalização

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 126


das oportunidades sociais; o reconhecimento da dimensão racial que a pobreza
tem no Brasil e, conseqüentemente, a necessidade do corte racial na proble-
mática da feminização da pobreza; o reconhecimento da violência simbólica e
a opressão que a brancura, como padrão estético privilegiado e hegemônico,
exerce sobre as mulheres não- brancas. (CARNEIRO, 2003, p.129, 130).

Nesse sentido, mesmo o Leia Mulheres-Salvador não sendo um espaço re-


servado exclusivamente para a leitura de obras escritas por autoras negras3,
levando em conta o caráter feminista do grupo, há uma preocupação em con-
templar, nas leituras e debates, autoras negras, pois se entende que o debate
sobre raça e racismo é crucial e urgente.
Um questionamento bastante relevante para esta reflexão que propo-
nho é lançado por Bairros (1995): “Numa sociedade racista, sexista, marcada
por profundas desigualdades sociais, o que poderia existir de comum entre
mulheres de diferentes grupos raciais e classes sociais?” (BAIRROS, 1995,
p.458). Reconhecer essas possíveis semelhanças, problematizar as diferenças,
tentar compreender melhor esse a quem (parafraseando o escritor moçambi-
cano Mia Couto), nos acostumamos a chamar de Outro, são caminhos viáveis
para que possamos encontrar um elo que respeite as especificidades de cada
grupo.
Ao revisitar conceitos adotados pelo Feminismo hegemônico, Bairros
(1995) nos aponta duas teorias feministas que buscaram superar as limita-
ções dos conceitos formulados naquele momento: o Feminismo Socialista e
o Ponto de Vista Feminista (Feminist standpoint). Em relação ao primeiro, ela
afirma que embora tenha oferecido alternativas para se compreender a in-
tersecção entre gênero, raça, orientação sexual e classe, ele interpretou os
demais aspectos como dimensões secundárias que se somariam à questão de
gênero. Na Teoria do Ponto de Vista Feminista, por seu turno (representada
pelas ideias da feminista afro-americana Patricia Hill Collins e resgatada no
Brasil pela filósofa e feminista negra, Djamila Ribeiro, por meio do conceito
de Lugar de Fala), compreende-se que “Raça, gênero, classe social e orientação
sexual reconfiguram-se mutuamente formando [...] um mosaico que só pode
ser entendido em sua multidimensionalidade.” (BAIRROS, 1995, p.461).
Tomando por base as concepções apresentadas pelo Ponto de Vista Fe-
minista, compreendemos, então, que a opressão é experimentada pela mulher
negra a partir de um lugar que lhe possibilita um ponto de vista diferencia-
do acerca do que é ser mulher em uma sociedade racista, sexista e desigual.

3 Existe um grupo em Salvador com esse propósito: o Lendo Mulheres Negras. Os encontros ocorrem mensalmente
no CEAO e as obras são divulgadas com antecedência na página do grupo no Facebook com mesmo nome.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 127


Sendo assim, uma consequência imediata dessa perspectiva teórica é que as
diferentes dimensões identitárias que constituem os indivíduos não podem
ser fragmentadas. Não há, portanto, uma identidade única, uma vez que a
experiência de ser mulher ocorre de maneira situada social e historicamen-
te. Nesse sentido, Bairros (1995) recorre a bell hooks para concluir que “[...]
o que as mulheres compartilham não é a mesma opressão, mas a luta para
acabar com o sexismo, ou seja, pelo fim das relações baseadas em diferenças
de gênero socialmente construídas.” (BAIRROS, 1995, p.462). Ou seja, embora
as opressões sejam distintas, a mulher branca e a mulher negra partilham da
mesma luta contra o sexismo que, por sua vez, para ser uma luta coerente,
precisa considerar os aspectos de raça, classe, orientação sexual, as especifi-
cidades de cada grupo.
A importância de se considerar tais especificidades é ressaltada, tam-
bém, por Carneiro (2003). Segundo a autora, quando o Feminismo politiza
as desigualdades de gênero, coloca as mulheres no lugar de novos sujeitos
políticos, condição que faz com que estas assumam, cada uma a partir do
lugar em que está inserida, olhares diversos que irão desencadear processos
particulares relacionados às especificidades de cada grupo. Ela exemplifica
da seguinte forma:

[...] grupos de mulheres indígenas e grupos de mulheres negras, por exemplo,


possuem demandas específicas que, essencialmente, não podem ser tratadas,
exclusivamente, sob a rubrica da questão de gênero se esta não levar em conta
as especificidades que definem o ser mulher neste e naquele caso. Essas óticas
particulares vêm exigindo, paulatinamente, práticas igualmente diversas que
ampliem a concepção e o protagonismo feminista na sociedade brasileira, sal-
vaguardando as especificidades. (CARNEIRO, 2003, p.119).

Se, por um lado, a ótica que as mulheres de grupos subalternizados in-


troduzem no Feminismo resulta na afirmação das mulheres em geral como
sujeitos políticos, por outro, exige o reconhecimento das diferenças e desi-
gualdades que existem entre nós.
A autora argumenta que a preocupação com identidades de gênero não
desencadeia naturalmente uma solidariedade racial entre as mulheres e foi
justamente essa percepção que levou as mulheres negras a enfrentarem, den-
tro do próprio movimento Feminista, as contradições produzidas pelo racis-
mo entre as mulheres, especialmente entre as negras e brancas no Brasil.
No contexto do Leia-Mulheres Salvador, essa é uma reflexão muito perti-
nente, porque quando falamos em ler mulheres, de quais mulheres estamos
falando? Esse é um questionamento que precisa guiar nossas escolhas e nos-

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 128


sos debates. Mesmo tendo uma preocupação contínua em desafiar as inte-
grantes do grupo a lerem algo a que não estejam habituadas, e em diversificar
as autoras, contemplando a leitura de obras escritas por mulheres de diver-
sas nacionalidades, de diversas culturas, de diversas raças, sejam elas canô-
nicas e/ou contemporâneas, se por um momento, nos distraímos, no mesmo
instante caímos no ciclo vicioso de ler majoritariamente mulheres brancas
do eixo Europeu e Americano. Diante do cuidado das moderadoras em pen-
sar a seleção dos livros de forma criteriosa, elas fizeram um levantamento
das obras lidas ao longo dos três anos de existência do grupo, o qual nos foi
apresentado no último encontro de 2018, o do mês de dezembro. Os dados
foram organizados de acordo com três critérios: a nacionalidade da autora,
a raça e o gênero textual da obra, mas gostaria de destacar aqui somente os
dois primeiros.
Em números absolutos, no que se refere à nacionalidade das autoras, te-
mos o seguinte quadro: entre as autoras das 35 obras lidas, 12 são brasileiras,
08 estadunidenses, 04 canadenses, 03 britânicas, 02 italianas, 02 nigerianas,
01 iraniana, 01 espanhola, 01 nicaraguense e 01 bielorrussa. Os números rela-
tivos podem ser vistos no gráfico a seguir:

Figura 1: País de Origem das Autoras das Obras


Fonte: Elaborado pela autora

A partir da Figura 1, pode-se observar, portanto, um padrão inconsciente

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 129


de leitura que contempla majoritariamente autoras, primeiramente, brasilei-
ras e, em seguida, de países anglo-saxões. Das 35 obras lidas, apenas 7 foram
escritas por autoras negras, de três nacionalidades: brasileira, estadunidense
e nigeriana, sendo que Chimamanda Adichie, escritora nigeriana, teve duas
das suas obras lidas. Ou seja, embora haja até um número expressivo de au-
toras negras, a maioria dos livros lidos ainda é de autoria branca.
Com base na autocrítica proposta pelas moderadoras para o grupo no
último encontro de 2018 e nas sugestões dadas por algumas integrantes do
grupo, planejou-se, para 2019, entre outras, a leitura de: O ministério da Feli-
cidade Absoluta, da indiana Arundhati Roy, O Feminismo é para Todos, da fe-
minista afroamericana bell hooks e As Alegrias da Maternidade da nigeriana
Buchi Emecheta.
É importante que nesta nossa reflexão, estejamos atentos ao poder da
Literatura como forma de expressão, de representação, de identificação e de
resistência. Em relação às mulheres, e em especial, às mulheres negras, esse
é um aspecto extremamente relevante para a luta. Carneiro (2003) nos alerta
que:

[...] para além da problemática da violência doméstica e sexual que atingem as


mulheres de todos os grupos raciais e classes sociais, há uma forma específica
de violência que constrange o direito à imagem ou a uma representação posi-
tiva, limita as possibilidades de encontro no mercado afetivo, inibe ou compro-
mete o pleno exercício da sexualidade pelo peso dos estigmas seculares, cerceia
o acesso ao trabalho, arrefece as aspirações e rebaixa a auto-estima. Esses são
os efeitos da hegemonia da ‘branquitude’ no imaginário social e nas relações
sociais concretas. É uma violência invisível que contrai saldos negativos para
a subjetividade das mulheres negras, resvalando na afetividade e sexualidade
destas (CARNEIRO, 2003, p.122).

A autora continua suas considerações tomando por base os meios de


comunicação, mas suas conclusões podem ser estendidas, também, para re-
pensarmos o papel da Literatura nesse contexto. Segundo ela, os meios de
comunicação têm se constituído um importante espaço de interferência e
de agendamento de políticas para o movimento de mulheres negras, pois a
maneira como o racismo e o sexismo são naturalizados na mídia, acaba re-
produzindo e cristalizando determinados estereótipos e estigmas que afetam
negativamente, e em larga escala, não apenas a identidade racial, mas o valor
social desse grupo, as imagens e os sentidos construídos sobre ele. Os meios
de comunicação, portanto, não somente reproduzem representações já sedi-

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 130


mentadas no imaginário social, mas se instituem como agentes que colabo-
ram na construção e reconstrução dos sistemas de representação. Carneiro
(2003) problematiza, assim a parca presença de mulheres negras nas mídias
e a fixação das personagens por elas representadas em categorias específicas,
tais como a mulata e a empregada doméstica.
Como poderoso espaço de representação que é a Literatura, poderí-
amos fazer o exercício de reescrever parcialmente o parágrafo anterior da
seguinte forma: a maneira como o racismo e o sexismo são naturalizados na
Literatura, acaba reproduzindo e cristalizando determinados estereótipos e
estigmas que afetam negativamente e em larga escala, não apenas a identi-
dade racial, mas o valor social desse grupo, as imagens e os sentidos construí-
dos sobre ele. A Literatura, portanto, não somente reproduz representações já
sedimentadas no imaginário social, mas se institui como agente que colabora
na construção e reconstrução dos sistemas de representação. Um exemplo
levantado pela autora é a alusão à escritora Carolina Maria de Jesus para de-
bater o poder que a sua escrita teve de romper as barreiras de gênero, classe
e raça, ecoando até hoje:

O esforço pela afirmação de identidade e de reconhecimento social representou


para o conjunto das mulheres negras, destituído de capital social, uma luta his-
tórica que possibilitou que as ações dessas mulheres do passado e do presente
(especialmente as primeiras) pudessem ecoar de tal forma a ultrapassarem as
barreiras da exclusão. O que possibilitou, por exemplo, que a primeira roman-
cista brasileira fosse uma negra a despeito das contingências sociais em que ela
emergiu? (CARNEIRO, 2003, p.129)

Outro aspecto importante é que a falta de condições, enfrentada por


grupos que foram historicamente marginalizados, para construir suas pró-
prias representações foi um fator crucial para a veiculação de estereótipos
por parte das mídias. Essa exclusão simbólica, a falta de representação ou a
representação distorcida da imagem da mulher negra podem ser compreen-
didas, também, como formas de violência, daí a importância da autodefinição,
do escrever sobre si, destacados por Collins (2019).

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 131


O desafio da intelectualidade negra

Bell hooks, em seu texto Intelectuais Negras, de 1995, resgata elementos


da sua própria história para traçar uma profunda reflexão acerca dos desafios
enfrentados por mulheres negras em sua trajetória intelectual. Ela afirma
que a decisão consciente de trilhar um caminho intelectual não é algo fácil.
Para muitos homens e mulheres negras tem funcionado, muitas vezes, mais
como um chamado, do que como uma escolha, uma vez que há uma pressão
superior à mera vontade individual, que os impele, ou mesmo empurra para
o trabalho intelectual. No caso dela, particularmente, esse foi um refúgio, um
abrigo onde ela pôde encontrar um modo de atuar sobre as coisas e, conse-
quentemente construir a própria identidade subjetiva.

Esse reconhecimento vivido de como a mente pelo pensamento critico podia


ser usada a serviço da sobrevivência como podia ser uma força curativa em mi-
nha luta para combater o desespero da infância me permitiu tornar-me um eu
autônomo na família disfuncional e levou-me a valorizar o trabalho intelectual.
Valorizava-o não por ter-me trazido status ou reconhecimento mas porque ofe-
recia recursos para intensificar a sobrevivência e meu prazer de viver (hooks,
1995, p.466)

A fala de hooks (1995) se aplica à experiência de diversas escritoras ne-


gras. A própria Carolina Maria, ou mesmo Conceição Evaristo, que chegou a
cunhar um termo para designar esse processo de imbricamento entre a sua
escrita e a sua vida: “escrevivência”. Isso significa dizer que toda escritora é,
naturalmente, uma intelectual? Não necessariamente. Com base em Terry
Eagleton, a autora apresenta dois aspectos para a caracterização do intelec-
tual ocidental: primeiramente, este não seria somente alguém que lida com
as ideias, mas alguém que o faz transgredindo fronteiras porque percebe a
necessidade de fazê-lo; além disso, o intelectual teria essa capacidade de per-
ceber a relação vital existente entre as ideias e uma cultura política mais am-
pla. Um intelectual seria caracterizado, portanto, por essa percepção de que
a intelectualidade permite compreender a realidade e o mundo em volta, ca-
pacitando os sujeitos a participar de forma mais plena da comunidade, e não
a isolar-se dela, como muitos acreditam. Nas palavras dela: “[...] o trabalho
intelectual é uma parte necessária da luta pela libertação fundamental para
os esforços de todas as pessoas oprimidas e/ou exploradas que passariam

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 132


de objeto a sujeito que descolonizariam e libertariam suas mentes” (hooks,
1995, p.466). Observe-se que o perfil de intelectual traçado por hooks (1995)
diverge bastante dos modelos burgueses de intelectualidade individualistas
e elitistas. Ela reforça um modelo de insurgência que vai de encontro àquela
imagem de uma figura masculina (nunca feminina), solitária, isolada ou exila-
da.
Essa mesma sociedade patriarcal que projeta e reforça essa imagem
masculina isolada, pune a nós, mulheres quando fazemos escolhas semelhan-
tes. Hooks (1995) reconhece que, mesmo quando voltado para uma coletivi-
dade, para a realidade, todo trabalho intelectual passará por longos momen-
tos de solidão, pois, embora as melhores ideias surjam em contexto de troca,
paralelamente é necessário haver um tempo de contemplação solitária das
ideias, fundamental no processo intelectual. Segundo ela, o processo de escri-
ta tende a ser individual e a ocorrer de maneira isolada, e, nesses momentos,
torna-se difícil manter uma noção de compromisso em relação à comuni-
dade, sobretudo para as mulheres negras que, em seu processo pessoal de
socialização foram ensinadas a desvalorizar ou sentir culpa quanto ao tempo
passado distante dos outros, desse modo, torna-se difícil reivindicar ou criar
um espaço para a escrita solitária. Isso se torna especialmente desafiador em
relação às mulheres negras que se tornam mães, sobretudo se o forem em
condição solo:

Frequentemente o medo do isolamento da comunidade ou a sensação de que a


vida não é bem vivida se não vivida em comunidade foi identificada como uma
barreira impeditiva para negras optarem de corpo e alma pelo trabalho intelec-
tual (hooks, 1995, p.471).

Mesmo quando suas circunstâncias sociais oferecem recompensas pela


atividade intelectual, a socialização sexista que sugere às mulheres que o tra-
balho mental deve ser secundário aos cuidados da casa, do marido dos filhos,
e da família em geral dificulta a tomada de decisão pelo trabalho intelectual
como prioritário. Ou seja, para a maioria das mulheres, mas especialmente
as mulheres negras, o tempo para se dedicar à atividade intelectual só existe
após o término dos afazeres domésticos e, ainda assim, entrando em conflito
com o tempo que poderia ser dedicado a prazeres relacionais com amigos e
família.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 133


A autora reflete que, em muitos casos, a negação do trabalho intelectual
ocorre porque não se percebe uma conexão entre este e a vida real, o domí-
nio da experiência concreta. Outras vezes, mulheres negras interessadas no
trabalho intelectual se veem tomadas por incertezas diante da ausência de
representatividade nesse meio, bem como pela ausência de reconhecimento
do trabalho daquelas que conseguem destaque.
Hooks aponta então para a necessidade de dois movimentos para o flo-
rescimento de intelectuais negras:
1. a crença essencial no valor do seu próprio trabalho;
2. o endosso correspondente do mundo ao redor a fim de apoiar e
alimentar esse trabalho.
Ela ressalta, ainda, que muitas vezes, esse reconhecimento pode surgir
de lugares não convencionais, e que é preciso buscá-lo, também, nesses es-
paços, ou ainda, criar diferentes espaços para que essa valorização ocorra. E
conclui:

Quando comunidades negras diversas enfocarem os problemas de gênero e o


trabalho de estudiosas for lido e/ou discutido mais amplamente nesses lugares
as intelectuais negras não apenas terão maior reconhecimento e visibilidade,
haverá também maior estímulo para que as jovens estudantes escolham cami-
nhos intelectuais (hooks, 1995, p.476).

Relacionando essas reflexões de hooks (1995) à Literatura, percebe-se


que se confirma uma supremacia masculina, branca, rica e heterossexual no
mercado editorial brasileiro. As dificuldades apontadas pela autora para a
consolidação de uma carreira intelectual são um aspecto importante dessa
questão. O racismo, o classismo e o sexismo que subsistem nesse contexto,
são o outro lado da questão. Sendo assim, a publicação de obras escritas por
pessoas que se distanciem desse perfil, já é, por si só, um grande desafio. Mas
além desse, há outro: não basta que essas obras sejam publicadas, elas preci-
sam ser lidas. O que acaba consolidando um círculo em que, quanto maior o
número de leitores, maior a pressão sobre o mercado editorial para publica-
ção, e quanto maior o número de publicações e de divulgações em torno da
obra, maior o número de leitores. Os clubes de leitura se inserem nesse cená-
rio, como uma forma de pressionar o mercado editorial, de divulgar os nomes
das autoras e das obras, de ampliar o público leitor. Nesse contexto, se temos
essas preocupações, agimos como

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 134


companheiros e companheiras portanto seres humanos que [...] simbolizam [...]
a possibilidade do encontro da solidariedade e do amor entre grupos étnicos
e raciais diferentes [...] parceiros que colocam sua representação social ou seu
prestigio pessoal a serviço da luta pela igualdade de direitos e oportunidades
para todos. (CARNEIRO, 1995, p.549)

O combate ao racismo, à discriminação racial e ao privilégio branco


precisa, portanto, se constituir como elemento central na luta Feminista, em
qualquer contexto em que ela se apresente, para que seja possível represen-
tar as necessidades e interesses, que são tão diversos dentro do movimento
quanto as mulheres que o constituem.

Considerações finais

Penso que o exercício de refletir acerca da trajetória do Leia Mulheres


– Salvador pelo viés do Feminismo Negro me permitiu pensar não somen-
te sobre o grupo, mas também, sobre meu percurso pessoal como leitora e
como acadêmica. Ao encerrar este artigo, o faço já bem diferente de quem
eu era no início do processo de escrita. A percepção da necessidade de nos
debruçarmos mais sobre obras escritas por mulheres negras nos confronta
com a dura realidade de que precisamos repensar nossas práticas há tanto
engessadas pela reprodução de sistemas de dominação e opressão nos meios
escolar e acadêmico. Não se trata de um movimento simples, e, por vezes, ele
pode nos trazer sofrimento ao desvelar aspectos da nossa própria história
que lutamos para ocultar. Mas é preciso encarar esse doloroso desafio com a
determinação de que é possível trabalhar com as ideias de modo que elas sir-
vam de catalisador para transformar a nossa própria consciência, as nossas
vidas e, consequentemente a de outras pessoas, o que termina por transfor-
mar todo o processo em algo prazeroso. Estou convicta de que este trabalho
emana de uma preocupação com a mudança social e política e, nesse sentido,
não me resta dúvidas, de que enalteceu, em alguma medida, também, a minha
própria vida. Aos que o lerão, recomendo que analisem e, se necessário, re-
pensem suas próprias trajetórias de leitura e de vida. E deixo o convite: Leiam
Mulheres Negras!

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Referências

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CARNEIRO, S. Gênero, raça e ascensão social. Estudos Feministas, Vol. 3, No.2, 1995,
p. 458-463.
COLLINS, P. H. Pensamento feminista negro: o poder da autodefinição. In:
HOLLANDA, H.B. (Org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de
Janeiro: Bazar do Tempo, 2019, p. 271-310.
HOOKS, B. Intelectuais negras. Estudos Feministas, Vol. 3, No.2, 1995 ,p. 465-477.
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RIBEIRO, D. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2017.
SCHUCMAN, L. V. Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: Raça, hierarquia
e poder na construção da branquitude paulistana. Tese (Doutorado em Psicologia
Social) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, 2012.

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p T 7

Língua(gem)-discurso-ideologia: o pós-feminismo e a
limitação da justiça social

Agda Dias Baeta

Introdução

O feminismo está na moda e tem sido convencionado nos discursos pú-


blicos de empoderamento das mulheres (SIMÕES e AMARAL, 2020), os quais
ecoam nos meios de comunicação e nas retóricas das instituições políticas,
econômicas e sociais. Apesar disso, a equidade de gênero ainda é uma realida-
de distante em todo mundo (GALLAGHER, 2013), até mesmo em países tidos
como referência em desenvolvimento social (GADIR, 2017; IKONEN, 2020). A
persistência da desigualdade de gênero e da opressão das mulheres em meio
a popularização do tema reside no fato de que a manifestação dos feminismos
na sociedade contemporânea se dá em dois níveis: o dos movimentos sociais
e o das construções discursivas (FRASER, 2009). No primeiro nível, o objeti-
vo sempre foi e será a busca pela justiça de gênero. Já, enquanto construção
discursiva, a manifestação do feminismo de maior visibilidade na sociedade
contemporânea – o pós-feminismo – não está articulada com esse mesmo
propósito, o que constitui um dos grandes desafios enfrentados pelas femi-
nistas da atualidade. Se, por um lado, o feminismo e seu vocabulário ganha-
ram visibilidade e repercussão midiática; por outro, têm sido difundidos se-
gundo a lógica neoliberal de individualismo, liberdade de escolha, autonomia
e consumo que mina a luta coletiva e os esvazia de seu teor político (GALLA-
GHER, 2013) e transformador.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 137


DOI: 10.52788/9786589932253.1-7
A partir da teorização de Orlandi (2000, p. 17) a respeito da relação lín-
gua-discurso-ideologia – que afirma que a ideologia se materializa no dis-
curso e esse, por sua vez, se materializa na língua – e considerando que “o
discurso é o lugar em que se pode observar a relação entre língua e ideologia,
compreendendo-se como a língua produz sentidos por/para os sujeitos”, o ob-
jetivo deste capítulo é traçar um paralelo entre processo comunicativo (HALL,
2006), práticas do eu (FOUCAULT, 1987) e pós-feminismo (GILL, 2007b), de-
lineando a maneira como a transformação social tem sido prejudicada pela
circulação de uma formação discursiva que se apropria do vocabulário e dos
ideais dos movimentos feministas de forma a esvaziá-los de seu cunho polí-
tico, dando origem a uma versão domesticada de feminismo (DEAN, 2010),
incapaz de abalar as estruturas dominantes. Logo, limitando o avanço não só
em direção à justiça de gênero, mas também em direção à justiça social, em
um sentido mais amplo, já que o pós-feminismo influencia o modo como o
sujeito contemporâneo pensa, percebe e reproduz gênero e outras categorias
sociais, como classe, raça, sexualidade, idade e deficiência (BAETA, 2021).
As conclusões obtidas com o estudo revelam que o processo de consti-
tuição das subjetividades dos indivíduos ocorre em circuito idêntico ao do
processo comunicacional de codificação e decodificação das mensagens te-
orizado por Stuart Hall (2006), evidenciando a relação estreita entre língua,
discurso e ideologia defendida por Orlandi (2000). Além disso, quando aplica-
dos aos estudos feministas, é possível perceber como que tais circuitos têm
atualmente privilegiado a manutenção das estruturas dominantes ao coop-
tar a linguagem e a ideologia dos movimentos feministas de forma a circular
na cultura popular pseudofeminismos que atendem ao interesse das institui-
ções patriarcais e ofuscar formações discursivas, como a interseccionalidade
(CRENSHAW, 1991), que buscam agir em prol da justiça social.

Linguagem, análise do discurso e ideologia

“Compreender a língua fazendo sentido enquanto trabalho simbólico”,


de acordo com Orlandi (2000, p. 15), é a função da análise do discurso. Para a
autora, há muitas maneiras de se estudar a linguagem e a análise de discurso
é uma delas. Perspectiva a partir da qual se concebe a língua como mediação
necessária entre o indivíduo e a realidade social. Por não terem sentido nelas

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 138


próprias, as palavras derivam seus significados das formações discursivas em
que se inserem e essas, “por sua vez, representam no discurso as formações
ideológicas. Desse modo, os sentidos sempre são determinados ideologica-
mente” (ORLANDI, 2000, p. 43) e, portanto, “não estão predeterminados por
propriedades da língua. Dependem de relações constituídas nas/pelas forma-
ções discursivas” (ORLANDI, 2000, p. 44). Logo, “é pela referência à formação
discursiva que podemos compreender, no funcionamento do discurso, os di-
ferentes sentidos. Palavras iguais podem significar diferentemente porque se
inscrevem em formações discursivas diferentes” (ORLANDI, 2000, p. 44), ou
seja, representam ideologias distintas.
Para estabelecer a relação palavra/sentido, a ideologia necessita da lín-
gua e do discurso. É por meio de tais processos que ela conecta pensamento,
linguagem e mundo, “ou em outras palavras, reúne sujeito e sentido” (OR-
LANDI, 2000, p. 96). Com isso, podemos dizer que é pela ideologia que “o su-
jeito se constitui e o mundo significa” (ORLANDI, 2000, p. 96). Dessa forma, “o
estudo do discurso explicita a maneira como a linguagem e a ideologia se ar-
ticulam [e] se afetam em sua relação recíproca” (ORLANDI, 2000, p. 43). É nele
que se pode observar tal simbiose, uma vez que “a materialidade específica
da ideologia é o discurso e a materialidade específica do discurso é a língua”
(ORLANDI, 2000, p. 17). Também a análise do discurso nos faz perceber que é
impossível não estarmos sujeitos aos equívocos e opacidades da linguagem e
que “não há neutralidade nem mesmo no uso mais aparentemente cotidiano
dos signos” (ORLANDI, 2000, p. 9), colocando-nos em estado de atenção para
sermos capazes de, ao menos, estabelecermos uma relação menos ingênua
com a linguagem e com o discurso. Tal situação, colocada por Orlandi (2000),
é o que evidenciaremos neste capítulo ao tratamos do pós-feminismo, uma
formação discursiva que se apropria do vocabulário feminista distanciando-o
da ideologia dos movimentos sociais e significando-o segundo os valores ne-
oliberais de individualismo, meritocracia, escolha e consumo.

Os feminismos e a contemporaneidade

O feminismo nunca foi único. Ele se desdobra em inúmeras perspec-


tivas e abordagens que se entrelaçam, complementam, interseccionam e,
em alguns aspectos, podem até ser conflitantes (PERROT, 2007; TAVARES e

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 139


MAGALHÃES, 2014; TONG, 2009). No entanto, mesmo que as feministas dis-
cordem sobre a melhor estrutura teórica para explicar e desafiar os sistemas
de desigualdades, tem algo com que todas concordam: a construção ideoló-
gica do feminino pela mídia não é neutra, desempenha papel determinante
na normatização dos estereótipos de gênero (BACHMANN, HARP e LOKE,
2018) e, consequentemente, na opressão das mulheres. Essa “tirania” exerci-
da pela mídia, apesar de amplamente discutida e denunciada pelas feministas
da chamada Segunda Onda, permanece até os dias atuais, mais de meio sécu-
lo após os primeiros debates, e “abriu caminho para algo infinitamente mais
complexo e sofisticado1” (GALLAGHER, 2013, p. 26).
Se durante as décadas de 1960 a 1980 as feministas tiveram que lidar
com algo novo, que era a representação das mulheres nos meios de comuni-
cação, as feministas de hoje têm de lidar com um conteúdo de mídia que se
apropriou do vocabulário feminista para invocar o tema de forma vazia, des-
politizada, baseada nos preceitos neoliberais de individualismo e liberdade
de escolha, dando origem a uma formação discursiva intitulada pós-feminis-
mo (GALLAGHER, 2013; LEWIS, BENSCOPE e SIMPSON, 2017; MCROBBIE,
2009). Como analisa Nancy Fraser (2009), temos na sociedade contemporâ-
nea a manifestação dos feminismos em dois níveis: o dos movimentos sociais
e o das construções discursivas. Os feminismos que fazem parte do primeiro
nível, o dos movimentos sociais, se caracterizam pela luta política em prol
da justiça de gênero. Já no segundo, o das construções discursivas, “como o
discurso se torna independente do movimento” (FRASER, 2009, p. 29), nem
sempre os feminismos – ou pseudofeminismos – expressos nesse nível terão
os mesmos objetivos dos movimentos sociais. Eles podem ser apenas “uma
cópia sinistra” e “traiçoeira” do primeiro (FRASER, 2009, p. 29).

Feminismo manifesto como formação discursiva

Apesar da equidade de gênero ainda ser uma realidade distante, pode-


mos dizer que o discurso feminista está na moda. Termos como empodera-
mento estão cada vez mais presentes na retórica de instituições políticas e
sociais, inclusive nos meios de comunicação (GALLAGHER, 2013), materia-

1 As citações dos textos originais em inglês foram traduzidas pela autora.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 140


lizando o que Fraser (2009) chamou de segundo nível ou segundo sentido
da manifestação dos feminismos na sociedade contemporânea: as constru-
ções discursivas; ou, o que na definição de Foucault (2008) seriam as forma-
ções discursivas. As formações discursivas são marcadas por regularidades
de conceitos e enunciados (FOUCAULT, 2008) que “representam no discurso
as formações ideológicas” (Orlandi, 2000, p. 43, ênfase adicionada) e são res-
ponsáveis por formar as subjetividades dos indivíduos (GILL e ORGAD, 2016).
Como explica Foucault (1987, p. 122), o sujeito se constitui pelas práticas do
eu, que “não são algo que o indivíduo inventa por si mesmo”, mas “padrões
que ele encontra na cultura”. Portanto, as práticas do eu – ou subjetividades –
não são aleatórias, são determinadas por padrões “propostos, sugeridos e im-
postos a ele pela sua cultura, sua sociedade e seu grupo social” e que circulam
por meio do discurso, logo, se materializam na linguagem (ORLANDI, 2000).
Se representarmos a conceitualização sobre a construção das subjetividades
– ou práticas do eu – em um fluxo, teremos a cultura determinando padrões
ou estereótipos que são disseminados na sociedade por meio das formações
discursivas, sendo internalizados pelo sujeito e constituindo a sua subjeti-
vidade de maneira que suas práticas reproduzirão estes mesmos padrões,
normatizando-os e criando um ciclo de consentimento (Figura 1).

Figura 1 -Constituição das subjetividades do sujeito segundo as práticas do eu de


Foucault (1987)

Fonte: BAETA, 2021.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 141


No entanto, como defende Orlandi (2000, p. 15), o discurso “torna possí-
vel tanto a permanência e a continuidade quanto o deslocamento e a trans-
formação do [indivíduo] e da realidade em que ele vive”. Assim, é também por
meio das formações discursivas que se pode constituir as práticas do eu de
maneira a alterar os modelos de opressão vigentes. Isso porque – uma vez que
a ideologia é “o mecanismo estruturante do processo de significação” e “se
materializa na linguagem” (ORLANDI, 2000, p. 96)” – o trabalho simbólico do
discurso está na base da produção da existência humana” (ORLANDI, 2000,
p. 15). Portanto, o feminismo – enquanto formação discursiva – pode tanto
manifestar sua própria ideologia (no caso, a justiça social de gênero), como
“pode e será invocado para legitimar uma variedade de diferentes cenários,
nem todos os quais promotores de justiça de gênero” (FRASER, 2009, p. 29).
Nesse sentido, podemos dizer que, hoje, percebemos duas linhas discursivas
principais em torno dos feminismos. Uma é o discurso de interseccionalida-
de, pautado nos movimentos sociais que “impulsionam o pensamento femi-
nista a reconhecer a diversidade das mulheres e os desafios que essa diversi-
dade apresenta” (TONG, 2009, p. 200). A outra é o pós-feminismo, que coopta
o vocabulário e os ideais do feminismo em uma falsa retórica feminista que
dá a ilusão de progresso enquanto reafirma as velhas e estáveis posições de
gênero na sociedade (GALLAGHER, 2013).

Interseccionalidade

Embora o fenômeno tenha sido reconhecido por autores como Karl Marx,
Friedrich Engels e Angela Davis em trabalhos anteriores (WALLIS, 2015, p.
606), o termo interseccionalidade foi cunhado por Crenshaw ( 1991) “como um
modo de explicar a opressão das mulheres afro-americanas” (BACHMANN,
HARP e LOKE, 2018, p. 3) e sua teoria lançou as bases para que outras estu-
diosas feministas no campo da comunicação “ampliassem seu escopo analí-
tico para incluir as relações de poder associadas com gênero e nacionalidade,
raça, etnia, sexualidade e processos de globalização” (BYERLY, 2018, p. 24). A
chamada “teoria da interseccionalidade explica como as subjetividades e as
experiências das pessoas são definidas por meio de um complexo e entrelaça-
do conjunto de identidades” (BACHMANN, HARP e LOKE, 2018, p. 3) e cons-
titui o alicerce argumentativo dos feminismos multicultural, pós-colonial e

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 142


global/transnacional, assim como de seus desdobramentos nos feminismos
negro e latino, por exemplo, entre inúmeros outros, que tentam “explicar as
complexidades da vida das mulheres em relação a [suas representações na]
comunicação” (BYERLY, 2018, p. 25).
A interseccionalidade, então, é constituinte de uma construção discur-
siva contra-hegemônica – representante da formação ideológica dos mo-
vimentos feministas contemporâneos – que disputa espaço na mídia com
o pós-feminismo. Nos termos de Stuart Hall (1998, p. 453), que argumenta
que a cultura popular “é a arena de consentimento e resistência” ao norma-
tivo imposto pelos poderosos, a interseccionalidade é a formação discursi-
va de resistência e, como tal, desafia não só os estereótipos, mas também as
opressões de gênero interligadas às demais categorias sociais, como classe,
sexualidade, raça, etnia, entre tantas outras. Apesar de ter menos visibilida-
de, principalmente nos meios de comunicação convencionais, o discurso de
interseccionalidade tem obtido certo êxito graças ao ativismo de mídia fe-
minista – que “pode ser definido como o esforço organizado das mulheres
para fazer mudanças em empresas de mídia estabelecidas ou criar novas es-
truturas de comunicação com o objetivo de expandir a voz das mulheres na
sociedade e possibilitar seu avanço social” (BYERLY e ROSS, 2006, p. 101) – e
às condições propiciadas pelas mídias conectivas, que abrem espaço no dis-
curso público para vozes diversas, inclusive as que desafiam as ideologias do-
minantes. Como enfatizam Harp e Bachmann (2018, p. 188), “é de fato, neste
novo ambiente de mídia digital que as ideologias contra-hegemônicas estão
tendo espaço para apresentar e articular pontos de vista e perspectivas alter-
nativas”. Sem dúvida, o uso das mídias conectivas para desenvolvimento de
uma rede global – de disseminação de conhecimento e aumento de consci-
ência – que conecta mulheres em todo o mundo, dando-lhes a possibilidade
de se comunicarem por meio de suas próprias palavras e imagens (GALLA-
GHER, 2013) e de ressaltarem as questões de interseccionalidade, dá força e
espaço público ao ativismo feminino. Ativismo esse que, apesar de ser enca-
beçado por um pequeno número de feministas autodeclaradas, tem grande
potencial para gerar mudança (MCROBBIE, 2009). Portanto, a ansiedade e a
preocupação causadas por esse novo ambiente ativista feminista – favoreci-
do pela tecnologia e pela globalização – levou as instituições dominantes à
propagação de uma nova construção discursiva: o pós-feminismo. Ancorado
nos valores neoliberais e disfarçado de “formas modernas e esclarecidas de

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 143


governamentalidade com ‘consciência de gênero’” (MCROBBIE, 2009, p. 2), o
pós-feminismo, enquanto formação discursiva hegemônica, tem o objetivo de
impedir o potencial feminista de ser realizado.

Pós-feminismo

Como argumenta Orlandi (2000, p. 15), o discurso é “palavra em movi-


mento, prática de linguagem” que “se situa face à articulação do simbólico
com o político” e “jamais é inocente” (ORLANDI, 2000, p. 96). Assim, as mes-
mas palavras podem ter diferentes sentidos dependendo da formação ideo-
lógica que representam, logo, da formação discursiva que as propaga. O que
acarreta o paradoxo com o qual se confrontam as feministas contemporâne-
as (GALLAGHER, 2013). Se por um lado, o tema feminismo e seu vocabulário
ganharam visibilidade, passaram a fazer parte do campo cultural e a alcançar
um maior número de pessoas, marcando cada vez mais presença nas narrati-
vas midiáticas – seja em programas televisivos, no cinema, na publicidade ou
nas redes sociais –; por outro, é apresentado de maneira distorcida, dentro
de uma perspectiva pós-feminista, provocando o que Angela McRobbie (2009)
chama de desarticulação do feminismo. Como elucida a autora, essa desarti-
culação consiste em substituir o teor político e transformador do movimen-
to promovendo “um modo altamente conservador de empoderamento cuja
marca é a conexão ativa de mulheres jovens com noções de mudança, direi-
to ao trabalho e com novas liberdades, principalmente sexuais” (MCROBBIE,
2009, p. 27). Conexão essa criada por meio do discurso midiático que invoca
o feminismo dentro da lógica neoliberal de individualismo, liberdade de es-
colha, autonomia e consumo que mina a luta coletiva (GALLAGHER, 2013),
dando origem a um feminismo vazio de conteúdo que entrelaça o feminismo
e o antifeminismo, uma vez que deixa subentendido que as reivindicações das
mulheres já foram alcançadas e por isso, a luta atualmente é irrelevante e que
a solução para a desigualdade está nas mãos das próprias mulheres (GILL e
ORGAD, 2016).
O “feminismo” desarticulado (MCROBBIE, 2009) e reconfigurado (GILL e
ORGAD, 2016) expresso na mídia é teorizado como pós-feminismo, um termo
que tem sido utilizado com significados controversos pelas estudiosas devido
à falta de especificidade em sua definição. Segundo Gill e Scharff (2011), pelo

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 144


menos três interpretações para o termo são identificadas nos estudos femi-
nistas. A primeira se refere a ele como uma orientação teórica ou perspectiva
analítica, resultante de uma quebra epistemológica dentro dos feminismos
representante da maturidade do feminismo acadêmico. Dentro desse concei-
to, o “pós” assinalaria mudanças que desafiariam o feminismo hegemônico e
estariam relacionadas com outros movimentos fundamentalistas que lutam
por mudança. Tal definição aproxima o significado de pós-feminismo do que
tratamos neste estudo por movimentos feministas contemporâneos, uma vez
que levanta questões de diversidade e questiona o essencialismo (BROOKS,
1997). A segunda interpretação o considera como um novo momento histó-
rico, iniciado após o auge da Segunda Onda, no qual o feminismo já atingiu
seus objetivos e, portanto, é celebrado como algo do passado. Já a terceira in-
terpretação atribuída ao termo pós-feminismo o define como um movimento
de reação ao feminismo, uma “estância política regressiva” (GILL, 2007b, p.
148) que o acusa da infelicidade feminina e defende o retrocesso nas questões
de gênero.
No entanto, para a análise entre língua, discurso, ideologia e (in)justiça
social em questão neste capítulo, utilizamos uma quarta definição. A noção de
pós-feminismo “como uma sensibilidade composta de vários temas interre-
lacionados”, desenvolvida por Rosalind Gill (2007b, p. 147). A autora, por con-
siderar todas as definições anteriores incompletas e intercambiáveis e com o
objetivo de atribuir clareza ao termo (BANET-WEISER, GILL e ROTTENBERG,
2019), o descreve como uma “sensibilidade que caracteriza um número cada
vez maior de filmes, programas de televisão, anúncios publicitários e outros
produtos de mídia” (GILL, 2007b, p. 148). Nessa interpretação, “o pós-femi-
nismo é tratado como uma formação discursiva que molda como nos rela-
cionamos, pensamos e reagimos em relação ao feminismo e à transformação
do lugar das mulheres na sociedade contemporânea” (LEWIS, BENSCOPE e
SIMPSON, 2017, p. 215), já que foi desenvolvida para identificar as regularida-
des que caracterizam as narrativas atuais de mídia, objetivando atribuir rigor
às análises dos produtos culturais (GILL, 2007b).
O pós-feminismo como sensibilidade é algo discursivamente produzi-
do (LEWIS, BENSCOPE e SIMPSON, 2017). É uma estratégia de moldagem
da subjetividade das mulheres que ao se apropriar dos ideais e do vocabu-
lário feministas, os transfigura em uma versão “domesticada”, “uma forma
segura e não ameaçadora de feminismo” (DEAN, 2010, p. 391), fundamentada

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 145


nos valores neoliberais de individualismo e consumo para não desestabilizar
as estruturas de poder. Como aponta Gill (2007b), o pós-feminismo marca a
mudança na relação entre o feminismo e os meios de comunicação. Nas dé-
cadas de 1960 a 1980, o feminismo era externo à mídia e atuava como uma
voz crítica, questionando a invisibilidade ou a forma irreal e manipuladora
como as mulheres eram representadas. Na contemporaneidade, o feminismo
inspira os conteúdos de mídia. Assuntos como violência doméstica, anorexia
e padrões de beleza aos quais as mulheres são expostas figuram em inúmeros
programas de TV, filmes, artigos de jornais e revistas. No entanto, as perspec-
tivas adotadas são problemáticas (GILL, 2007b), uma vez que trivializam e/ou
vilificam o feminismo (MCROBBIE, 2009) ao abordá-lo como não articulado
com os desejos das mulheres contemporâneas; como já tendo obtido seu êxi-
to; ou mesmo, resumindo-o ao poder de escolha e empoderamento individual
das mulheres.

Regularidades, desigualdades e exclusões do


discurso pós-feminista

Como toda formação discursiva, o pós-feminismo é marcado por regu-


laridades de conceitos e enunciados (FOUCAULT, 2008). Alvo de inúmeras
análises, as regularidades que compõem o pós-feminismo como formação
discursiva têm sido elucidadas em vários estudos (GILL e HERDIECKERHO-
FF, 2007; GILL e ORGAD, 2016; MCROBBIE, 2009; TASKER e NEGRA, 2007) e
foram agrupadas por Rosalind Gill (2007b) em uma tentativa de atribuir rigor
às análises de produtos culturais. Resumidamente, podemos identificá-las
como: 1) a feminilidade atrelada à detenção de um corpo sexy como fonte de
poder para as mulheres; 2) a substituição da objetificação das mulheres pela
subjetificação, na qual, supostamente, a objetificação ocorre por “escolha” das
próprias mulheres que conquistaram a liberação sexual e “optam” por se re-
presentarem desta maneira; 3) a sexualização da cultura com a proliferação
do discurso sobre sexo e sexualidade nos meios de comunicação; 4) a ênfase
na autovigilância, na disciplina e 5) na transformação, que estabelece o “eu”
como um projeto que deve ser constantemente monitorado e aperfeiçoado
para a obtenção do sucesso em qualquer área da vida; 6) o ressurgimento
das ideias de diferença sexual natural, que obscurecem as desigualdades de

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 146


gênero ao tentar afirmá-las como oriundas de fatores genéticos ou mesmo
astrofísicos; 7) o foco no individualismo, na escolha e no empoderamento,
responsáveis por popularizar os valores feministas sem a sua essência cole-
tiva e política, manipulando-o em prol dos interesses neoliberais; 8) a ênfase
no consumismo, já que por ser o pós-feminismo uma construção discursiva
a serviço dos interesses neoliberais, todas as respostas para as aflições das
minorias são resolvidas com o consumo de algum produto ou serviço; 9) e a
comoditização das diferenças que, apoiada nas ideologias “pós”, assume que
opressões como o sexismo, o racismo e a homofobia já não existem ao eviden-
ciarem o sucesso de celebridades negras, mulheres e LGBTQIA+ como prova
de que o preconceito é coisa do passado (BAETA, 2021). Todos esses temas,
ou regularidades, que caracterizam o discurso pós-feminista “coexistem e
são estruturados pelas rígidas e contínuas desigualdades e exclusões rela-
cionadas a raça e etnia, classe, idade, sexualidade e deficiência, assim como
gênero” (GILL, 2007b, p. 149), ao mesmo tempo que trabalham também para
normatizá-las, obscurecendo-as e, portanto, limitando os avanços em direção
à justiça social.
Como argumenta Springer (2007), o modo como o pós-feminismo abor-
da as questões de inclusão e exclusão, assumindo que a igualdade de gênero é
um ato conquistado, acaba por permitir que as diversidades racial e étnica (e
incluímos também as demais categorias de opressão) sejam tratadas de for-
ma descontextualizada politicamente, ou seja, do mesmo modo como o pós-
-feminismo descontextualiza o vocabulário e os valores feministas da justiça
de gênero, também o faz com as demais categorias sociais, esvaziando-as do
seu teor político e tratando-as meramente sob aspectos individuais. O pós-
-feminismo, como os feminismos da Segunda Onda, “assume uma categoria
universal de mulheres” (SPRINGER, 2007, p. 258) constituída pelas brancas,
de classe média, heterossexuais, jovens, magras e sem deficiências. Logo, o
sujeito do pós-feminismo tem as características das mulheres hegemônicas,
o que não significa que as demais estão totalmente excluídas, já que o pós-
-feminismo é essencialmente contraditório. No entanto, a inclusão das “dife-
renças” se dá sob aspectos simbolicamente aniquilatórios, uma vez que está
submetida à parametrização com o sujeito hegemônico.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 147


O pós-feminismo e a representação das mulheres nos meios de
comunicação

A partir da década de 1960, as feministas tiveram que lidar com um de-


safio “que os movimentos de mulheres anteriores não tinham conhecido: um
mundo dominado pela mídia” (GILL, 2007a, p. 9). A forma como as mulhe-
res passaram a ser representadas nos meios de comunicação, principalmen-
te com a popularização da televisão – que teve sua influência sobre o públi-
co comparada com a “noção pré-industrial de religião” (GERBNER, 1978, p.
47), tal a sua significância na disseminação de imagens convenientes para
as estruturas dominantes –, impulsionaram os estudos feministas de mídia
(MENDES e CARTER, 2008) a desenvolverem conceitualizações como “a mís-
tica feminina” (FRIEDAN, 1971) e “a aniquilação simbólica” das mulheres pelos
meios de comunicação (TUCHMAN, 2000), que continuam a fazer sentido
mesmo nos dias atuais. O termo “aniquilação simbólica” – “originalmente
cunhado por George Gerbner” (GALLAGHER, 2013, p. 23) ao afirmar que “a
representação no mundo ficcional significa existência social; a ausência sig-
nifica aniquilação simbólica”(GERBNER, 1972, p. 44) – foi trabalhado por Gaye
Tuchman (2000) no capítulo introdutório da publicação Hearth and Home:
Images of Women in the Mass Media, de 1978, e “se tornou uma ampla e pode-
rosa metáfora usada para descrever o modo como as imagens de mídia tor-
nam as mulheres invisíveis” (GALLAGHER, 2013, p. 23). Tal invisibilidade se
dá tanto pela não representação das perspectivas e pontos de vista das mu-
lheres, como por uma representação fundamentada nos interesses daqueles
que definem a agenda pública e de mídia (GALLAGHER, 2013), o que resulta
em “uma estranha discrepância” entre a realidade feminina e a sua imagem
propagada na mídia, à qual as mulheres tentam se enquadrar (FRIEDAN, 1971,
p. 11). Fenômeno chamado por Betty Friedan (1971) de “a mística feminina” e
que evidencia que as representações midiáticas das mulheres “são em grande
medida falsas, representando-as menos como elas realmente são e mais como
alguns querem que elas sejam” (FRANZWA, 1978, p. 273, ênfase adicionada).
Ambos os conceitos – aniquilação simbólica e mística feminina – arti-
culam-se tanto com a teorização de Foucault (1987) sobre a constituição da
subjetividade do sujeito, abordada anteriormente, quanto com o modelo de
comunicação de Stuart Hall (2006), baseado na codificação/decodificação,
que contextualiza o processo comunicativo como uma complexa estrutura
em domínio. Segundo a abordagem de Hall (2006), o receptor no processo co-

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 148


municativo não é passivo. Ele atua tanto na decodificação da mensagem – in-
terpretando-a de acordo com seu repertório cultural, disponível no contexto
social do qual ele faz parte – quanto na sua reprodução ou retransmissão, eta-
pa imprescindível para que o processo comunicativo seja realizado completa-
mente. Logo, o sujeito não é apenas receptor. É, ao mesmo tempo, receptor e
emissor (ou reemissor) da mensagem. Dessa maneira, a comunicação ocorre
em um circuito contínuo (composto pelas práticas de produção, circulação,
distribuição/consumo e reprodução), no qual as mensagens são produtos das
ideologias que circulam por meio das formações discursivas ou representa-
ções – que se materializam na linguagem, seja verbal ou não verbal – e são
consumidas pelo público/receptor que as decodifica (de acordo com seu re-
pertório cultural) e reproduz, dando continuidade ao processo comunicativo
para efetivação de seu significado. Hall (2006, p. 163, ênfase adicionada) ainda
ressalta que considera esse processo uma “complexa estrutura em domínio”
porque, mesmo acreditando que não há discurso que não seja influenciado
pelas regras sociais que guiam a leitura e moldam a interpretação da audi-
ência, essa “ordem cultural dominante” não é unívoca (HALL, 2006, p. 169),
assim como não o é a relação linguagem-pensamento-mundo (ORLANDI,
2000). Justapondo o modelo de codificação/decodificação de Hall (2006) com
a conceitualização de práticas do eu, de Foucault (1987), notamos o processo
de constituição de subjetividades articulado por meio das representações es-
tabelecidas pelo processo comunicativo (Figura 2).

Figura 2. Paralelo entre a constituição das subjetividades do


sujeito e o processo comunicativo.

Fonte: BAETA, 2021.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 149


A adequação das análises – tanto dos conceitos de aniquilação simbó-
lica e mística feminina desenvolvidos pelos estudos feministas das décadas
de 1960 a 1980, quanto dos quadros teóricos concebidos por Foucault (1987)
e Hall (2006) – às investigações de mídia contemporâneas, nos faz perceber
que apesar das grandes transformações ocorridas nos cenários midiáticos
– devido ao avanço tecnológico e à globalização – e do novo desafio que se
impõe com o paradoxo criado pelo pós-feminismo (visibilidade e desarticu-
lação), as questões que preocupam as feministas hoje ainda são as mesmas
de meados do século passado: “poder, valores, representação e identidade”
(GALLAGHER, 2013, p. 23). Isso porque, mais de meio século após os primei-
ros estudos feministas de mídia, os padrões de discriminação por meio da au-
sência, trivialização e condenação discutidos por Tuchman (2000) na década
de 1970 – embora agora estejam muitas vezes disfarçados de “feminismo” –
ainda operam contra as mulheres na sociedade (GALLAGHER, 2013) em nome
da permanência dos estabelecidos papéis de gênero e da manutenção das es-
truturas tradicionais. Um primeiro olhar sobre os quatro fatores, menciona-
dos por Margaret Gallagher (2013), que prevalecem nos estudos feministas de
mídia – poder, valores, representações e identidade – poderia nos levar a um
entendimento linear de como essas questões se relacionam, já que seríamos
capazes de constatar que as estruturas de poder impõem os seus valores por
meio das representações para formar as identidades de gênero (Figura 3).

Figura 3 - Suposta linearidade entre as questões analisadas pelos


estudos feministas de mídia.

Fonte: BAETA, 2021.

Além desse entendimento ser errôneo, por não considerar, assim como
no processo de comunicação linear2, contestado por Stuart Hall (2006), o pa-
pel ativo do indivíduo na interpretação e reprodução dos valores, um outro

2 Emissor/mensagem/receptor.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 150


erro dessa leitura se baseia em considerarmos a questão poder, tão discutida
nos estudos feministas de mídia, como sinônimo de estrutura política, Go-
verno ou classe social dominante. Como declarou Foucault (1987, p. 122), “di-
ficilmente uso a palavra ‘poder’ e se faço, algumas vezes, é sempre como um
atalho para a expressão que eu sempre uso: relações de poder”. Para o autor,
apesar de associado pela maioria das pessoas às instituições patriarcais, o
poder existe em qualquer tipo de relação humana. Seja uma relação amorosa,
institucional, econômica, política ou até mesmo em uma simples conversa, o
poder está sempre presente e é a forma como “um indivíduo tenta direcionar
o comportamento do outro” (FOUCAULT, 1987, p. 122).
Com base na interpretação de poder de Foucault (1987) e considerando a
definição de Gerbner (1978, p. 47) de que “cultura é um sistema de mensagens
que cultiva as imagens adequando-as à estrutura estabelecida de relações
sociais” – e como tal, “sua função é fazer as pessoas aceitarem a vida como
boa e a sociedade como justa, sem questionar como as coisas realmente são”
(GERBNER, 1978, p. 47) – , podemos traçar um panorama mais efetivo sobre
as quatro preocupações centrais dos estudos feministas de mídia. Assim, ao
analisar cada uma das questões – poder, valores, representações e identida-
de – de acordo com o contexto apresentado, chegaremos à interpretação de
que a cultura ou ideologia, mencionadas respectivamente por Foucault (1987)
e Hall (2006), são os valores das estruturas dominantes que determinam a
identidade de gênero por meio do estabelecimento de padrões/estereótipos
ou mensagens que circulam e são disseminados pelas representações ou for-
mações discursivas que são distribuídas, consumidas ou decodificadas pelos
indivíduos moldando as suas práticas do eu ou subjetividades, que consti-
tuem o verdadeiro poder na sociedade (Figura 4). É nesse ponto do circuito
comunicativo ou da “complexa estrutura em domínio”, quando o indivíduo
realiza a reprodução da mensagem, que se efetiva a propagação ou a quebra
de estereótipos, paradigmas ou padrões impostos pelas estruturas de domi-
nantes. Logo, é quando se pode romper com o normativo e propor formações
discursivas alternativas que busquem a justiça social.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 151


Figura 4. Os estudos feministas de mídia e as relações de poder
no processo comunicacional

Fonte: BAETA, 2021.

Assim, é pelo fato de o poder estar localizado, não nas estruturas pa-
triarcais, mas em todas as relações humanas, que os feminismos como movi-
mentos sociais, enquanto força de mudança, ameaçam o domínio vigente ao
terem o potencial para estabelecer representações que gerem práticas do eu
divergentes das hegemônicas. No entanto, isso não é fácil de acontecer. Como
argumenta Gerbner (1978, p. 47), sempre que um movimento social “ameaça
ou promete reestruturar um conjunto específico de relações sociais”, é con-
tra-atacado pelas “dinâmicas políticas de gerenciamento cultural dos movi-
mentos sociais” que se manifestam por meio das táticas de descrédito, isola-
mento e subcotação e pela função da imagem. A tática de descrédito mostra
o movimento de forma pejorativa, hostil e depreciativa; a de isolamento cria
um espaço para um elemento do movimento e o convence a não deixar nin-
guém interferir nesse “seu reino”; e a de subcotação consiste na desumani-
zação das mulheres, normalmente pela institucionalização do estupro e pela
objetificação sexual (GERBNER, 1978). Aplicando a teoria de Gerbner (1978)
ao contexto contemporâneo, percebemos nitidamente o descrédito no anti-
feminismo, que é uma das principais características da sensibilidade pós-fe-
minista. A subcotação está ainda mais presente com a extrema sexualização
da cultura e a substituição da objetificação pela subjetificação sexual. Já o
isolamento é instituído pelos mantras de individualismo e culto da confiança,
articulados para afastar o conceito de coletividade intrínseco aos feminismos
reais. No pseudofeminismo, propagado pelo pós-feminismo, o individualismo

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 152


evoca a meritocracia e o esforço pessoal, incentivando cada mulher a lutar
por seu espaço na esfera pública; e o culto da confiança dissemina que as
mulheres só dependem delas próprias para chegarem aonde quiserem. Logo,
elas estão sozinhas – isoladas – em sua busca e devem ser determinadas para
não deixar ninguém interferir na sua trajetória.
A outra vertente das dinâmicas políticas de gerenciamento cultural
abordada por Gerbner (1978, p. 49) é a função das imagens, ou seja, dos es-
tereótipos criados para refletir os valores das estruturas dominantes como
recurso projetivo para “encorajar o isolamento de identidades desviantes”. As
imagens ou estereótipos são utilizados para justificar o desmerecimento e a
brutalização dos grupos que fogem à norma. Nas palavras de Gerbner (1978,
p. 49), “você chama um grupo de ‘bárbaros’ se quiser ser brutal com eles . . .
um grupo de ‘insanos’ se quiser suspender as regras de racionalidade e razão
no gerenciamento deles”. Nas representações pós-feministas de mídia, as mu-
lheres são projetadas como livres, autônomas, independentes, emancipadas
e detentoras do direito de escolha. De acordo com o conceito de função das
imagens, de Gerbner (1978), tal recurso é utilizado para desmerecer qualquer
tentativa de reivindicação de igualdade que possam afetar a estabilidade das
estruturas dominantes. Logo, se as mulheres já são livres e podem fazer tudo
que os homens fazem, qual a razão para existir um movimento feminista?
Como podemos observar, mais de 40 anos após a teorização de Gerbner
(1978), as dinâmicas políticas de gerenciamento cultural dos movimentos so-
ciais estão em pleno funcionamento na sociedade contemporânea, por meio
da representação do sujeito pós-feminista, e trazem um agravante: o fato de
o próprio feminismo e seu vocabulário ter sido incorporado nessas represen-
tações como estratégia de afastar a ameaça dos movimentos sociais latentes.
Tal recurso, como já alertava George Gerbner, em 1978, é utilizado porque:
a imagem das mulheres tem uma significância particular. . . é o maior campo
de batalha para o desenvolvimento e a perfeição dos instrumentos culturais
de todos os tipos de dominação. Traz uma questão de poder para cada família,
cada lar. As táticas de degradação das mulheres são transportadas e exploradas
em outras áreas como classe, raça e minorias. (GERBNER, 1978, p. 49).

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 153


Considerações finais

A teorização de Orlandi (2000) sobre a relação entre língua, discurso


e ideologia pode ser evidenciada ao longo deste capítulo a partir da análise
do discurso pós-feminista. O pós-feminismo entendido como formação dis-
cursiva tem dominado os produtos culturais contemporâneos e a sua alta
visibilidade nos meios de comunicação fizeram com que jargões como em-
poderamento se tornassem palavras da moda e o feminismo passasse a ser
“digno” de consumo pelas massas. No entanto, o que poderia ser o triunfo
das mulheres, na verdade, se tornou um grande paradoxo. Afinal, o feminis-
mo “senso-comum” que circula na mídia reside apenas no discurso, já que é
desarticulado do teor político e coletivo dos movimentos sociais em prol da
justiça social, e atua, na prática, a favor da manutenção das estruturas pa-
triarcais reconfigurando a feminilidade de maneira que os avanços obtidos
pelas mulheres, como o acesso ao mercado de trabalho e a liberação sexu-
al, não ameacem a hierarquia de gênero convencionalmente estabelecida, ou
seja, não provoquem a transformação social.
Assim, no contexto contemporâneo, no qual prevalece o pós-feminismo,
percebemos que o vocabulário de empoderamento, liberdade sexual e inde-
pendência econômica que assinala os ideais dos movimentos feministas é uti-
lizado com sentidos que atendem aos interesses da ideologia neoliberal, enfa-
tizando o individualismo, a meritocracia, a liberdade de escolha e o consumo.
O que evidencia o uso de uma mesma linguagem significada por uma outra
ideologia que não a dos movimentos sociais, que buscam a justiça social. O
paralelo entre os fluxos de constituição das práticas do eu e do processo co-
municativo nos mostrou também como que a construção das mensagens e
das subjetividades ocorre em um mesmo circuito contínuo de propagação de
ideologias, evidenciando a relação intrínseca entre língua, discurso e ideolo-
gia teorizada por Orlandi (2000). Além disso, quando aplicados aos estudos
feministas, é possível perceber como que tais circuitos têm atualmente privi-
legiado a manutenção das instituições patriarcais ao cooptar a linguagem e
a ideologia feministas de forma a circular na cultura popular pseudofeminis-
mos que atendem ao interesse das estruturas dominantes (ou em domínio)
e ofuscar formações discursivas, como a interseccionalidade (CRENSHAW,
1991), que buscam agir em prol da justiça social ao questionarem os integra-
dos ciclos de opressão a que estão sujeitas as mulheres pertencentes a mino-
rias de classe e raça, entre outras categorias sociais de discriminação.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 154


A análise de discurso apresentada neste capítulo, como previa Orlandi
(2000, p. 9), “nos coloca em estado de reflexão e, sem cairmos na ilusão de
sermos conscientes de tudo, permite-nos ao menos sermos capazes de uma
relação menos ingênua com a linguagem”. Ao percebermos que, apesar de
sermos normalmente levados a interpretar os objetos simbólicos, os senti-
dos parecem ser previamente organizados pela ideologia, o que não pode-
mos perder de vista é que “o discurso torna possível tanto a permanência e
a continuidade quanto o deslocamento e a transformação [do indivíduo] e da
realidade em que ele vive” (ORLANDI, 2000, p. 15). Assim, mesmo conscien-
tes de que os sentidos são sempre previamente “administrados”, o discurso
nos dá a possibilidade de ruptura. Como declara Orlandi (2000), saber como
os discursos funcionam é colocar-se em uma encruzilhada entre a memória
institucional – aquela resultante das ideologias dominantes que normatizam
estereótipos – e a memória constituída pelo esquecimento, que é a que torna
possível o diferente, a ruptura, o outro.

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LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 157


p T

Raça e resistência em espaço digital: efeito-autor e


legitimidade das mídias negras brasileiras

Larissa da Silva Fontana

Introdução

A luta da população negra pela possibilidade de romper a hegemonia


de uma comunicação social predominantemente branca, responsável por (re)
produzir imaginários racistas e estigmatizantes, no que se refere a retratar
as vivências negras em âmbito midiático, é histórica. Desde o período escra-
vocrata, negras e negros reconhecem que o dizer de si, de suas questões e de
suas vivências, quando compartilhados, poderiam se tornar instrumento de
mobilização e luta.
Em 1798, por exemplo, um grupo de pessoas negras soteropolitanas, in-
fluenciadas pela Revolução Francesa, por processos de independência que se
travavam no continente americano, como nos Estados Unidos e no Haiti, e
por revoltas populares nacionais, como a Inconfidência Mineira, organizaram
panfletos manuscritos, colados em lugares estratégicos de Salvador, como
forma de estimular a Conjuração Baiana, também conhecida como Revolta
dos Búzios ou dos Alfaiates (1798-1799). No conteúdo dos manuscritos, pedia-
-se abertamente por liberdade e igualdade, convocando os homens a insur-
gir-se contra o a escravidão, exigindo o fim da discriminação social e racial.

[...] Do ponto de vista comunicacional, a Revolta dos Búzios é um marco para a


comunicação brasileira, tendo em vista que foi através dos boletins sediciosos
que um grupo de pessoas se organizou para contrapor o império em um mo-

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 158


DOI: 10.52788/9786589932253.1-8
mento do país que qualquer tipo de contestação à ordem era violentamente
reprimida. Os escritos demonstram determinado grau de pensamento político
e revolucionário, além de consciência do poder que a comunicação tem para
luta política, tendo em vista que não houve combate armado (PINHEIRO, 2019,
p. 58-59).

De lá para cá, tal consciência quanto ao poder da comunicação como


forma de mobilização e luta política se consolidou. Assim, especialmente após
a Independência do Brasil, começam a surgir periódicos organizados por pes-
soas negras para um público negro que estava crescendo gradativamente.
É o caso dos folhetins “O Homem de Côr” (posteriormente intitulado de “O
Mulato ou o Homem de Côr”), “Brasileiro Pardo”, “O Cabrito”, “O Crioulinho” e
“O Lafuente”, produzidos e postos em circulação entre setembro e novembro
de 1833, no Rio de Janeiro. Esses periódicos são identificados por pesquisado-
ras e pesquisadores da comunicação social como inaugurais da chamada Im-
prensa Negra, caracterizada pela prática jornalística feita por e para pessoas
negras que buscam, por meio de esforços coletivos, controlar os códigos da
dominação e subvertê-los (MAGALHÃES-PINTO, 2006, p. 28).
Para Magalhães Pinto (2006), os jornais da imprensa negra são funda-
dores de um meio em que pessoas negras “formularam uma fala própria e
tornaram-na pública” (MAGALHÃES-PINTO, 2006, p. 27) a partir de um con-
traditório sentido de grupo que mobilizou sujeitos em defesa de uma igualda-
de racial teoricamente proposta e garantida nos textos constitucionais, mas
que dissimulava práticas racistas que marginalizavam e estigmatizavam co-
tidianamente as (sobre)vivências negras, “com escravidão institucionalizada
ou não, no campo ou no meio urbano” (MAGALHÃES-PINTO, 2006, p. 43).
Segundo a autora, o trabalho da imprensa negra buscou demarcar o negro
enquanto cidadão livre e brasileiro, reivindicando a existência de um consi-
derável grupo populacional brasileiro não branco, de marcada ascendência
negro-africana, que não havia desfrutado do progresso prometido pela inde-
pendência do país.
Em momentos determinantes da história política brasileira como a Inde-
pendência (1822), abolição da escravatura (1888), a Proclamação da República
(1889) e a Ditadura Militar (1964-1985), encontramos expressões da imprensa
negra no país inteiro, que trazem “relatos e informações de pontos de vista,
senão de sentidos absolutamente diversos, conflitantes, o que possibilita um
outro entendimento sobre várias coisas” (MAGALHÃES-PINTO, 2006, p. 38)

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 159


que, mesmo heterogêneos entre si, denunciam a marginalização da popula-
ção negra dentro da sociedade brasileira e a continuidade da discriminação
e da desigualdade racial no país. Jornais, revistas, folhetins, panfletos desen-
volvidos por associações e agremiações de pessoas negras, coletivos políticos
negros, grupos artísticos que articularam conjuntura política e identidade
coletiva, constituindo publicações não só como espaço possível de afirmação
identitária e cultural, mas também de construção política pela perspectiva
de sujeitos racializados. Apesar de muitas vezes apagados da historiografia
tradicional, a imprensa negra não esteve alheia ao que se passava no país e
seus periódicos podem ter sido agentes nos processos de transformação das
relações sociais em diferentes condições de produção.

Esta é uma característica presente em toda história da imprensa e das mídias


negras, demonstrando que apesar das principais abordagens serem relativas
à temática étnico/racial, as publicações centram-se em debates de acordo com
os variados contextos nos quais não só se inserem, como também ajudam a
construir. Desta forma, a imprensa negra está presente nos debates acerca do
fim do Império e início da República, nos debates em torno do capitalismo e co-
munismo, dentre outras disputas políticas que acontecem ao longo da História
brasileira (PINHEIRO, 2019, p. 66).

Responsável por um amplo e histórico trabalho de afirmação e positiva-


ção da negritude, a imprensa negra disputou a narrativa midiática por meio
da construção de uma imprensa organizada por e para pessoas negras, colo-
cou suas reivindicações em circulação e desenvolveu inúmeras estratégias
para ressignificar as vivências, as formas de resistência e os espaços desti-
nados a população negra no Brasil. E essa atuação ganha novos contornos no
séc. XXI com o advento da internet.
Nas últimas duas décadas, com a criação de diversas políticas de cunho
social como ferramenta de inclusão – frutos da luta histórica do movimento
negro brasileiro (GOMES, 2017) –, parte da população negra, em especial a
juventude, passa a ocupar espaços como a universidade e a política institucio-
nal, apesar da persistente desigualdade brasileira. Essa entrada trouxe para
estes espaços, majoritariamente brancos, outras narrativas, interesses, expe-
riências culturais e formas de organização política. Neste cenário, o espaço
digital se torna possibilidade de difundir e amplificar o alcance dessas nar-
rativas contra hegemônicas, que apesar de presentes nos espaços institucio-
nais de poder, ainda estão em posição desigual de legitimidade e circulação.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 160


Ainda assim, segundo Lima (2019), na última década, por exemplo, a presença
de coletivos negros na internet (especialmente das mulheres negras) ampliou
discussões acerca da interseccionalidade como política emancipatória, ex-
pandiu os espaços de atuação e incorporou novas discussões culturais, so-
ciais e políticas na luta por espaços em diferentes esferas estatais e políticas.
Tais mudanças sociais e tecnológicas promovem e exigem uma reorga-
nização das estratégias políticas e comunicacionais dos grupos ativistas que,
além das pautas históricas dos movimentos negros, passam a encarar novas
demandas (preparo de jovens negros para ingresso e permanência na uni-
versidade via sistema de cotas; auxílio em casos de racismo e fraude de cotas
nas universidades; formação política de jovens negros e negras ingressantes
nas universidades) e novas práticas sociais que envolvem letramento digital,
relações intergeracionais, inter-regionais e interculturais, além da reatuali-
zação da influência internacional que não se dá somente quanto às pautas
discutidas, mas que determina até mesmo a ordem de relevância e alcance
das plataformas utilizadas on-line.
Essas transformações colocam o desafio de compreender a agência de
sujeitos racializados e suas formas de atuação em condições de produção que
reorganizam a imbricação entre as lutas antirracistas e a comunicação social
explicitamente engajada, entre deslocamentos e repetições historicamente
determinados que constituem contraditoriamente as relações sociais confi-
guradas na/pela internet.
Assim, nesse texto, a partir do escopo teórico-analítico da Análise de
Discurso Materialista (PÊCHEUX [1975] 2016), busco compreender como a
imprensa negra se reconfigura entre processos de avanços tecnológicos, con-
vergências midiáticas e práticas sociais, constituindo, atualmente, as chama-
das mídias negras, cuja comunicação social não se compromete somente com
raça, mas com gênero, sexualidade, idade, territorialidade e religião a fim de
ocupar os mais diversos espaços multi-midiáticos possibilitados pelo digital.
Para isso, primeiramente, apresento considerações sobre as noções de
autoria (ORLANDI, 1996), efeito-autor (GALLO, 2001; 2007; 2012) e discurso
da escritoralidade (GALLO, 2011; 2016) na relação com a possibilidade de au-
torias negras legitimadas institucionalmente. Em seguida, desenvolvo aná-
lises do modo como veículos da mídia negra se apresentam em suas seções
“sobre”, focalizando o modo como dizem de si, de suas práticas e de seu pú-
blico-alvo. Essas análises buscam responder às seguintes perguntas: Como

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 161


se pode dizer, na internet, a partir de uma autoria negra? Como se resiste aos
silenciamentos impostos pela racialização no espaço digital? Mas, principal-
mente, há, nessas mídias, a possibilidade de efeito-autor? Para tal reflexão,
analisei, especificamente, as seções sobre do Portal Geledés – Instituto da
Mulher Negra (1997), do Mundo Negro (2001), do Blogueiras Negras (2012), do
Alma Preta (2015) e do Notícia Preta (2018).

Autoria, efeito-autor e raça

A autoria, segundo Foucault (1996), está relacionada ao sistema jurídico-


-institucional que regula, organiza e limita o espaço discursivo. Deste modo,
a possibilidade do “ser autor” é diretamente afetada por relações de trans-
formação, modificação e coerção travadas entre as instituições e os sujeitos
numa conjuntura histórica dada, ou seja, esta função se “ajustaria” aos dife-
rentes sujeitos e também às “etapas” da história social, política e do pensa-
mento humano. Logo, ocupar a posição de autor foi assumir, ao longo da his-
tória, determinadas responsabilidades frente às instituições que, no Brasil,
são constituídas numa formação social capitalista atravessada pela colonia-
lidade (ALMEIDA, 2018; MODESTO, 2021). As relações entre as instituições
e os sujeitos negros, que se transformaram a partir de diversos processos
de submissão e subversão, possibilitaram condições materiais de legitimação
de determinadas autorias negras que, mesmo em desvantagem frente aos
dizeres produzidos pela branquitude, se colocam na disputa pelos modos de
significar a história brasileira.
Na perspectiva materialista da análise de discurso, a autoria é uma fun-
ção discursiva em que os sujeitos, a partir da relação com a linguagem, esta-
belecem movimentos de associação entre as várias posições em que se ins-
crevem para dar sentido aos fatos. Segundo Orlandi (1996), “o autor consegue
formular no interior do formulável e se constitui, com seu enunciado, numa
história de formulações”. Em outras palavras, a função-autor organiza a plu-
ralidade de sentidos num todo coerente produzindo efeitos de unicidade e
coerência a sua enunciação (ORLANDI, 1996). Assim, essa função diz respeito
à dimensão enunciativo-discursiva da autoria, constitutiva de todo sujeito ao
qual se impõe, por meio do social e da individuação que se trava em distin-
tas determinações sócio-históricas, a necessidade de unidade e coerência, em

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 162


movimentos pelos quais o sujeito se identifica com uma formação discursiva
já estabilizada.
Gallo (2001; 2007; 2012) distingue função-autor e efeito-autor enquanto
dois níveis possíveis de análise discursiva. Enquanto a primeira se dá numa
dimensão enunciativa-discursiva e se relaciona “com a heterogeneidade in-
terna a uma formação discursiva dominante, que ganha aí seu movimento e
sua unidade sem perder, com isso, sua dominância” (GALLO, 2001, p. 2), o efei-
to-autor se dá numa dimensão discursiva por excelência, produzido enquan-
to “efeito do confronto de formações discursivas, cuja resultante é uma nova
formação dominante” (GALLO, 2001, p. 2) em um acontecimento discursivo
(GALLO, 2007). Nessa dimensão, a autoria se relaciona com a estabilidade e
legitimidade que constitui os discursos de escrita.

Estou referindo-me aqui, ao nível discursivo da escrita, que tenho tratado como
sendo um Discurso de Escrita, por oposição a um Discurso de Oralidade (1992).
O primeiro, aquele que tem efeito de “fim” e efeito-autor; e o segundo, o da
Oralidade, aquele que se estende sem “fecho” e sem efeito autor, ou menos, com
efeito autor irrelevante (GALLO, 2007, p. 213, grifos meus).

O efeito de autoria, enquanto efeito de fecho no confronto entre diferen-


tes formações discursivas, é possível pela inscrição no Discurso de Escrita
(DE), que dispõem de efeitos de unidade, de legitimidade e de prestígio pela
relação que estabelecem com a institucionalidade, com “um lugar discursivo
legitimado, reconhecível, sem que haja, para sua interpretação, necessidade
do contexto imediato, porque o que está dito se alinha a uma discursividade
recorrente, que faz com que ao lermos, re-conheçamos os sentidos” (GALLO,
2012, p. 55). Em outras palavras, o efeito-autor é produzido por sujeitos que
podem se filiar aos discursos de escrita – em sua diversidade de formas, como
o discurso científico, jornalístico, jurídico etc. – e assim ocupar as posições
institucionalizadas de autoria.
Já o Discurso de Oralidade (DO) é caracterizado pela ausência do “fecho
discursivo” que possibilita a determinados textos (e sujeitos) sua legitimação,
isto é, são destituídos do efeito autor. As formas em que essa discursividade
se produz – agendas, bilhetes, listas etc. – têm seus processos de significa-
ção atrelados ao contexto situacional imediato: “os sentidos são inacabados,
provisórios, sempre passíveis de serem corrigidos, alterados, ou seja, sem
efeito-autor” (GALLO, 2001, p. 2). Ou seja, o discurso da oralidade se dá na

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 163


dimensão da linguagem que se estabelece enquanto não fechada, provisória
e sem legitimidade.
A luta da população negra pelo dizer de si se relaciona com a possibilida-
de de inscrição em discursos de escrita, dado que o histórico da escravização
interditou, por um longo período, a possibilidade de filiação de sujeitos ne-
gros ao discurso da escrita e às posições de autoria legitimadas. Em boa parte
do período escravocrata, esses sujeitos só compareceram aos discursos da es-
crita enquanto objetos a serem ditos e significados pelos sujeitos legitimados
para isso: os sujeitos brancos que, inscritos nos discursos de escrita, produzi-
ram gestos de interpretação instituídos de efeito-autor que (re)conhecemos
até hoje. Na contramão da hegemonia, a imprensa negra se constituiu como
uma forma de luta que estabeleceu filiações ao discurso da escrita ainda no
séc. XIX, o que possibilita que (re)conheçamos até hoje as expressões da im-
prensa negra em seu efeito-autor já estabilizado.
Para refletir sobre efeito-autor produzido por autorias racializadas, con-
sidero que a produção deste efeito é condicionada a relações desiguais de po-
der ser/dizer frente às instituições. O caráter sócio-histórico do efeito-autor
diz de como a função-autor, ao ser mobilizada por distintos sujeitos, se define
e é definida entre exterioridade/interioridade, além de determinar diferen-
temente os autores e as implicações que desta posição resultam. As relações
que transpõem as (não) possibilidades de autorias negras impõem focar no
político (ORLANDI, 1996), na divisão desigual do sentido, e no modo como
sujeitos negros mobiliza(ra)m diferentes sentidos sobre o “ser negro”, num
embate que constitui uma história brasileira moldada entre gestos de domi-
nação e resistência.
Gallo (2007) destaca ainda que as relações de “dispersão” e “fechamento”
que constituem DE e DO coexistem e se transfiguram constantemente. Am-
bos produzem seus efeitos (de fecho e de abertura) na prática da textualização
(GALLO, 2008), em que uma memória institucional passa a se relacionar a
uma atualidade. A autora define a textualização como “uma prática de fixa-
ção, de ‘escrituração’ de um fragmento” em que o texto não é considerado
como objeto, mas como “um fragmento determinado, estabilizado, resulta-
do de um trabalho, um funcionamento: a prática de sua produção” (GALLO,
2008, p. 43). Nesta prática, pode se suceder o efeito-autor quando se apreen-
de, no confronto entre discursividades, o deslocamento.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 164


Na perspectiva da AD, a possibilidade de deslocamento no confronto en-
tre diferentes formações discursivas é constitutiva dos sentidos, enquanto
os gestos de interpretação são constitutivos da língua, compreendida como
base dos processos discursivos que materializam os (sempre) possíveis des-
lizamentos historicamente determinados. Para Pêcheux ([1983], 2015, p. 53),
todo enunciado é “linguisticamente descritível como uma série de pontos de
deriva possível oferecendo lugar à interpretação” estando “intrinsicamente
exposto ao equívoco da língua, sendo, portanto, suscetível de tornar-se outro”
(PÊCHEUX, [1983] 2015, p. 53). Essa possibilidade de o enunciado tornar-se
outro é o espaço da interpretação que permite compreender a relação entre
língua e história, o funcionamento da ideologia.
Entendemos o texto como espaço possível de apreender o discurso (OR-
LANDI, 2001), como um espaço de funcionamento ideológico, da relação não
estável entre língua e história. Essa relação não se dá numa articulação sem
“falhas” – sendo o equívoco entendido como inscrição da falha da língua na
história. A ideologia não escapa ao fato de que a língua, enquanto sistema
sintático passível de jogo, não é transparente e evoca a interpretação. Além
disso, a tensa relação entre língua e histórica também não se dá sem o tra-
balho do político, isto é, da divisão desigual de sentidos, cuja “direção não é
indiferente às injunções que derivam da forma da sociedade tomada na histó-
ria, em um mundo significado e significante, em que as relações de poder são
simbolizadas” (ORLANDI, 2001, p. 90).
Quando se dão no/pelo espaço da internet, Gallo (2011) afirma que essas
relações se transfiguram, organizando processos de constituição, formula-
ção e circulação de discursos e sujeitos distintos daqueles do mundo “offline”.
A autora argumenta que os espaços exclusivamente digitais como os blogs,
que se fundam na/pela internet, podem ser entendidos como acontecimentos
discursivos:

[...]enquanto instância produtora de acontecimentos discursivos, diremos que


somente quando há sentidos em contradição e, para além disso, uma nova for-
ma de formular, aliada a um novo caminho de interpretação, é que a internet
pode ser considerada produtora de discurso... (GALLO, 2009 apud GALLO, 2011,
p. 416-417).

Enquanto acontecimento, esses espaços articulam memória à atualida-


de (PÊCHEUX, [1983] 2015). No caso do espaço digital, a autora acredita que

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 165


essa articulação não é configurada com a memória institucional, mas com
a memória metálica, produzida pela mídia e pelas novas tecnologias de lin-
guagem. Segundo Orlandi (1996; 2015), a memória metálica sustenta a ilusão
de memória infalível da informatização dos arquivos, o que reduz “o saber
discursivo a um pacote de informações, ideologicamente transparentes” (OR-
LANDI, 1996, p. 16). Os espaços digitais enquanto acontecimento se configu-
ram na relação entre quantidade, armazenamento e processamento de infor-
mações, o que produz efeitos de completude sobre o trabalho da autoria, pela
ilusão de ampla circulação dada na grande quantidade de artigos, na plura-
lidade de autores, na diversidade de temáticas, no intenso fluxo de comentá-
rios e acessos, na constante atualização de novas postagens...

A memória da máquina, da circulação, que não se produz pela historicidade,


mas por um constructo técnico (televisão, computador, etc). Sua particularida-
de é ser horizontal (e não vertical, como a define Courtine), não havendo assim
estratificação em seu processo, mas distribuição em série, na forma de adição,
acúmulo: o que foi dito aqui e ali e mais além vai se juntando como se formasse
uma rede de filiação e não apenas uma soma, como realmente é, em sua estru-
tura e funcionamento (ORLANDI, 2015, p. 9).

A organização horizontal e seriada da memória metálica, segundo Gallo,


é mobilizada na textualização da internet, possibilitando que inúmeros sujei-
tos se tornem autores – inclusive aqueles que não se inscrevem publicamen-
te na discursividade da escrita – e que diversos textos sejam produzidos com
efeito de “fechamento”, “já que eles não estão sustentados pela memória his-
tórica, mas pelo ‘arranjo’ que produzem (que tende ao infinito)” (GALLO, 2011,
p. 418) o que deslocaria autoria da sustentação unicamente institucional. A
autora afirma que a discursividade da rede se constitui enquanto discurso da
escritoralidade, um discurso desestabilizador cujas margens instáveis pro-
duzem “efeito de autoria sobre sujeitos não alinhados às conhecidas instân-
cias de poder, que são próprias dos processos discursivos identificados ao
Discurso da escrita” (GALLO, 2011, p. 418)
Dada a organização técnica da internet, o discurso da escritoralidade se
publica e, pelo funcionamento da memória metálica, simultaneamente de-
saparece entre a série em que se constitui. Apesar de sua possibilidade de
acesso pelo mundo todo, sua legitimidade não é sustentada por esse “alcan-
ce” significado como global, ou por um discurso reconhecido por todos por
sua institucionalidade, mas na relação como determinados gestos de leitura

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 166


e sujeitos leitores que possibilitam que nos posicionemos enquanto autores,
mesmo que momentaneamente, acompanhando a “permanência temporária”
que as publicações online dispõem (GALLO, 2012, p. 60).
Enquanto dispositivo técnico, a internet possibilita a autoria, mas não a
legitima por si. Isto porque o funcionamento da internet se dá por interfaces
pré-determinadas que autorizam determinadas formulações e interditam
outras, afetando as condições de circulação dos discursos, a partir de suas
clivagens subterrâneas, compreendidas por Pequeno (2014, p. 31) como “dis-
positivos técnicos de configuração das possibilidades materiais da leitura”,
como os filtros e os algoritmos. Também na internet há determinações so-
ciais, históricas e ideológicas para o que se formula e se lê, mesmo que não se
identifique um sujeito mediador.
Dito isso, para Gallo (2016), a produção do efeito-autor no discurso da es-
critoralidade está atrelada à condição material da formulação e da circulação.
A legitimidade que possibilita que a significação online tenha efeitos de uni-
dade reconhecíveis independentemente do contexto de enunciação específi-
co, se constitui na relação com gestos de leitura. A escritoralidade, enquanto
prática discursiva, impõe a inscrição de um outro, o leitor, sempre dividido,
que irá integrar esse movimento de fecho.
Em síntese, para Gallo (2016), a legitimidade produzida no discurso da
escritoralidade decorre de circunstâncias que envolvem outras ordens dis-
cursivas e exige, na produção da unidade com efeito de fecho, uma leitura a
partir de um discurso de Escrita (GALLO, 2016, p. 6), cuja condição material
é que irá elaborar esse efeito ou não. Nesse discurso, efeito-autor e efeito-lei-
tor se constituem, então, a partir de um imbricamento com a discursividade
escrita, cujos lastros de institucionalidade (e poder) podem comparecer tanto
na projeção formulada pela função autor de um leitor virtual ou nas diferen-
tes leituras possibilitadas por diferentes sujeitos leitores reais.
Na injunção à interpretação, que impõe o dimensionamento do discur-
so, esses movimentos afetam o trabalho de restrição, de versão frente à va-
riança, à contingência da formulação ser sempre outra. Assim, se “o domínio
da escritoralidade, por parte do sujeito-autor, permite, portanto, que a partir
dessa função, o sujeito constitua a posição da leitura que se espera” (GALLO,
2016), analiso, na próxima seção, essa construção no modo como alguns sites
da mídia negra dizem de si, dos seus objetivos e de seu público-alvo para com-
preender como se constitui o efeito-autor das mídias negras.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 167


O efeito autor das mídias negras brasileiras

As mídias negras são identificadas como “espaços de comunicação so-


cial produzidos por pessoas negras que tratam de pautas e temas sobre a vi-
vência das pessoas negras e sobre a luta contra o racismo” (FOPIR, 2020, p. 8).
Segundo o Fopir1 (2020), tais mídias possuem caráter heterogêneo, atingindo
diferentes públicos e contextos (comunitário, estadual, regional, nacional e/
ou internacional). Entre os critérios para que o veículo seja considerado parte
da chamada mídia negra está a necessidade de pertencer majoritariamente
a empresários negros e negras, além de ter pessoas negras nos cargos de
gestão e coordenação. As organizações negras ou ativistas negros e negras
que trabalham com conteúdo comunicacional acerca das diversas vivências
racializadas também são consideradas mídias negras.
Antes de passar às análises dos recortes2, é importante ressaltar que os
portais analisados são muito distintos entre si: possuem histórias diferentes,
equipes que possuem (ou não) organizações online e offline, configurações
técnicas, visuais e textuais diferentes, propósitos e abordagens distintos. As
regularidades apresentadas no dizer de si, posicionando-se enquanto espaço
virtuais de prática antirracista é o que analiso nessa seção e, a meu ver, o que
possibilita “agrupá-los” sob a designação de mídias negras.
O portal Geledés – Instituto da Mulher Negra, por exemplo, está no ar
desde 1997 e é fortemente atrelado a atuação offline do Instituto da Mulher
Negra, organização de sociedade civil, fundada em 1988 e liderada por femi-
nistas negras reconhecidas por sua atuação no movimento de mulheres ne-
gras clássico (RIOS; MACIEL, 2017), como Sueli Carneiro e Suelaine Carnei-
ro. O Geledés publica textos produzidos por seu público, além de reproduzir
reportagens e artigos de opinião de outros espaços, como blogs pessoais e
outros veículos de mídia negra. Já Mundo Negro (2001), Alma Preta (2015) e
Notícia Preta (2018) se constroem enquanto veículos de comunicação, filiados

1 Fórum Permanente pela Igualdade Racial


2 A noção de recorte é definida por ORLANDI (1984), enquanto unidade discursiva, “fragmentos correlacionados
de linguagem-e-situação” (ORLANDI, 1984, p. 14), a partir do entendimento de que há uma relação constitutiva
(e não hierárquica) entre as unidades e o todo, organizada em dadas situações e em determinadas condições
de produção. Para Orlandi (2001), por meio dessa operação, é possível compreender o trabalho da variança na
unidade textual, ou seja, como o jogo de diferentes formações discursivas são textualizadas. O efeito de unidade
do texto, o “todo”, nessa perspectiva, é compreendido a partir do modo como se organizam os recortes em
determinadas situações discursivas que não podem ser pensadas isoladamente das condições de produção.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 168


à prática jornalística, especializados em temática racial, e a escrita é destina-
da à jornalistas formados ou em formação. O Blogueiras Negras (2012), por
sua vez, apesar de apresentar traços do discurso jornalístico, se coloca como
espaço de acolhimento para produções diversas de mulheres negras, sem
restrições quanto ao gênero textual ou à formação de quem escreve.

R1: O Portal Geledés é o espaço de expressão pública das ações realizadas pela
organização no passado e no presente, e de seus compromissos políticos com a
defesa intransigente da cidadania e dos direitos humanos, a denúncia permanente
dos entraves que persistem para a concretização da justiça social, a igualdade de
direitos e oportunidades em nossa sociedade (GELEDÉS, 1997, s/p, grifos meus).

R2: Nossa missão é informar a sociedade a partir da perspectiva racial negra e


periférica, e responder aos anseios desse público com notícias multimídia. Nós
assumimos o caráter político de valorização do conhecimento e da cultura negra,
assim como a tarefa de exigir direitos e questionar o Estado em todas as dimensões
da vida cotidiana (ALMA PRETA, 2015, s/p, grifos meus).

R3: Um jornal antirracista é antes de tudo uma plataforma educativa pois, atra-
vés da informação, trabalhamos a mudança de termos e formas comunicacio-
nais historicamente preconceituosas e, que muitas vezes, já estão enraizadas
em nossa sociedade e expressam-se de uma forma quase que natural em nosso
cotidiano. Estas expressões, que foram historicamente integradas a linguagem, po-
dem, além de atingir moralmente quem as recebe, configurar crime de racismo e/ou
injúria racial (NOTICIA PRETA, 2018, s/p, grifos meus).

R4: Nossa missão é promover a livre produção de conteúdo, partindo do princípio


de que às mulheres negras sempre lhes foi negado lugares e discursos. Queremos
dar visibilidade aos nossos assuntos e nos tornarmos protagonistas de nossas lu-
tas e vidas. [...] Promover e celebrar a cultura afrodescendente através da mídia
negra, usando como instrumentos as bases mídia-livristas e democráticas de co-
municação, buscando sempre o diálogo com a sociedade, sempre deixando nos-
sos espaços abertos a interação, contribuindo com a comunidade na troca de
informação (BLOGUEIRAS NEGRAS, 2012, s/p, grifos meus).

Nesses recortes, é possível apreender que essas mídias se constroem


enquanto agentes mantenedores da ordem jurídica, mobilizando valores
constitutivos do que é estabelecido enquanto direitos e deveres do cidadão
brasileiro. São evocadas diversas garantias jurídicas que mobilizam, para os
sujeitos autores e leitores, a noção de responsabilidade, apontada por Lagazzi
(1988, p. 6), enquanto “noção constitutiva do caráter humano, da pessoa, do
cidadão, sem o que não nos reconheceríamos socialmente” e que sustenta a
constituição do sujeito de direito “responsável por suas ações, ao qual a his-
tória tensa de sua constituição foi atribuindo direitos e deveres” (LAGAZZI,
1988, p. 5).

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 169


Segundo Lagazzi (1988), a partir da leitura de Haroche ([1984] 1992), o su-
jeito de direito é produzido pela instituição jurídica que o constitui de forma
ambígua: ao mesmo tempo que este se vê como ser livre, único e senhor de si,
frente ao Estado, é visto como permutável e substituível, integrante de “uma
massa uniforme de sujeitos assujeitados que têm a ilusão da unicidade” (p.
7). Essa ambiguidade é sustentada por meio do funcionamento das leis, que
passam a assegurar antagonicamente direitos e deveres que só se concebem
na oposição: “os direitos de uma pessoa, são sempre os deveres de outra e vi-
ce-versa, por isso a tensão constitutiva das relações interpessoais” (LAGAZZI,
1988, p. 26). Essa configuração singulariza e generaliza simultaneamente o
sujeito de direito, o que garante a permanência da divisão desigual de poder
entre as pessoas, organizando [...] relações hierarquizadas e autoritárias de
comando-obediência, presentes nas mais diversas situações e diferentes con-
textos sociais, que levam as pessoas a se relacionarem dentro de uma esfera
de tensão, permeada por direitos e deveres, responsabilidades, cobranças e
justificativas (LAGAZZI, 1988, p. 07).
As diversas garantias constitucionais do cidadão brasileiro são mobili-
zadas no modo como as mídias negras apresentam a si, suas missões e seus
objetivos: no recorte 1, temos expressões como “espaço de expressão pública”
e em R4, “promover livre produção de conteúdo” o que pode ser relacionado à
garantia do direito de liberdade de expressão; em R1, temos “a defesa intran-
sigente da cidadania e dos direitos humanos” além da “denúncia permanente
dos entraves que persistem para a concretização da justiça social, a igualdade
de direitos e oportunidades em nossa sociedade” e em R2 “a tarefa de exi-
gir direitos e questionar o Estado em todas as dimensões da vida cotidiana”
o que pode ser entendido como a defesa da igualdade de direitos perante à
lei; ainda, o direito à educação, promovido pelo jornal antirracista enquanto
“plataforma educativa” em R3 e, também, o direito à cultura em R4, enquanto
agente que busca “promover e celebrar a cultura afrodescendente” e em R2,
na assunção do “caráter político de valorização do conhecimento e da cultura
negra”.
Se a legitimação no discurso da escritoralidade se dá pela relação com o
sujeito-leitor, ao mobilizar o discurso jurídico em suas próprias definições, es-
ses veículos não só constroem a si a partir de uma relação com uma legislação
que eles reconhecem – na necessidade de sua própria existência – enquanto
falha, mas projetam um gesto de leitura sustentado numa discursividade es-

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 170


crita que, em sua institucionalidade, produz o efeito de unidade legítima às
mídias negras. O leitor virtual produzido enquanto condição de enunciação
dos sujeitos autores, nesse caso, é aquele que se reconhece enquanto sujeito
de direito e que reconhece, independentemente da situação enunciativa, o
funcionamento da instituição jurídica e a organização de direitos e deveres.

R5: Em nosso site e redes sociais você encontra reportagens, análises, cobertu-
ras de eventos, artigos opinativos e demais conteúdos jornalísticos em formato
textual e audiovisual. [...] A partir do jornalismo de qualidade, apresentamos
para a comunidade negra e não negra um olhar sobre a realidade mais fidedigna
ao cotidiano da maioria da população (ALMA PRETA, 2015, s/p, grifos meus).

R6: Desde o primeiro momento nosso desejo era ser referência para as mulhe-
res de ascendência Africana e aqueles que se identificam com o feminismo e a luta
antirracista das mulheres negras. [...] Somos um veículo de comunicação produ-
zindo um conjunto de informações atualizadas 5 vezes por semana, com tex-
tos originais, atingindo não só mulheres negras e afrodescendentes, mas também
todos aqueles que lutam, vivem e partilham do projeto feminista e antirracista de
sociedade (BLOGUEIRAS NEGRAS, 2012, s/p, grifos meus).

R7: O mundo negro é um portal de notícias voltado para a comunidade negra e de-
mais etnias que se interessam pelos assuntos relacionados à cultura e ao cotidiano
dos negros no Brasil e no mundo (MUNDO NEGRO, 2001, s/p, grifos meus).

R8: Um jornal antirracista é antes de tudo uma plataforma educativa pois, atra-
vés da informação, trabalhamos a mudança de termos e formas comunicacio-
nais historicamente preconceituosas e, que muitas vezes, já estão enraizadas
em nossa sociedade e expressam-se de uma forma quase que natural em nosso
cotidiano. [...] Mudar a forma como nos comunicamos é a principal ferramenta
na luta contra o racismo e as desigualdades (NOTÍCIA PRETA, 2018, s/p, grifos
meus).

Destaco, nos recortes acima, como as definições do público-alvo dessas


mídias negras abarcam diferentes sujeitos, inclusive os brancos. Naquelas
que formulam explicitamente seu público, é notável que a comunidade ne-
gra nunca aparece como único segmento a ser alcançado por esses veículos,
ao mesmo tempo que não comparece à formulação a possível destinação ao
público branco, apesar desse grupo constar incluído em designações como
“comunidade não negra” (R5), “aqueles que se identificam com o feminismo
e a luta antirracista das mulheres negras” e “todos aqueles que lutam, vivem
e partilham do projeto feminista e antirracista de sociedade” (R6) ou “demais
etnias que se interessam pelos assuntos relacionados à cultura e ao cotidiano
dos negros no Brasil e no mundo” em (R7).

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 171


Outras formas também mobilizam um possível leitor branco pela inde-
terminação: em R5, temos a interlocução “Em nosso site, você encontra...”, ou
então em “nossa sociedade”, “nosso cotidiano”, “como nos comunicamos” em
R8, formas pluralizadas que incluem tanto os sujeitos que organizam a mídia
negra em questão, quanto os possíveis leitores, sem distinção de gênero ou
raça. Por mais que essas formas possam abarcar outros sujeitos racializados
como indígenas e asiáticos, essa divisões projetam dois leitores virtuais que
intervém como leitura de fecho, de legitimação: a primeira leitura é a de su-
jeitos negros que, subjetivados enquanto sujeito de direito, se reconhecem
nos objetivos da mídia negra, reconhecendo também sua distinção e dispari-
dade de direitos. A segunda é a leitura pelos sujeitos brancos, enquanto efe-
tivos sujeitos de direito, constituídos tanto como únicos e responsáveis por
si, quanto como “iguais” perante o Estado. Destaco, ainda, que essa projeção
de leitura é afetada pelas clivagens subterrâneas do digital que determinam
para quem essas mídias são apresentadas, com que frequência, quando etc., e
pelo recorte de gênero, raça, classe, território e geração que restringe o aces-
so à internet no Brasil.

R9: O Notícia Preta é um jornal antirracista que acredita na comunicação como


uma ferramenta de não reprodução de preconceitos e estereótipos, estigmatizantes
ou pejorativos em relação à população negra na imprensa. O portal foi fundado em
novembro de 2018 pela jornalista Thais Bernardes, editora-chefe do Notícia Pre-
ta, e conta com jornalistas voluntários que colaboram pontualmente enviando
seus textos (NOTÍCIA PRETA, 2018, s/p, grifos meus).

R10: A Alma Preta é uma agência de jornalismo especializada na temática racial.


Nosso objetivo é construir um novo formato de gestão de processos, pessoas e
recursos através do jornalismo qualificado e independente. [..] Existimos para in-
formar a sociedade de maneira objetiva e apresentar a possibilidade de uma socie-
dade menos violenta e desigual. [...] Realizamos uma cobertura objetiva e técnica da
realidade com cuidado especial para as desigualdades de raça, gênero, sexualidade,
classe, território. A partir do jornalismo de qualidade, apresentamos para a comu-
nidade negra e não negra um olhar sobre a realidade mais fidedigna ao cotidiano
da maioria da população (ALMA PRETA, 2015, s/p, grifos meus).

R11: No ar desde 2001 ele é um dos primeiros sites com conteúdo exclusivo para
negros, produzidos por jornalistas, sendo um espaço de notória credibilidade, o que
numa era repleta de “produtores de conteúdo”, garante ao portal um destaque
em comparação aos demais veículos voltados para esse público. A nossa linha edi-
torial se pauta uma agenda positiva, não negando os problemas relacionados ao
público afrodescendente, mas principalmente apresentando um conteúdo que di-
virta, informe e eleve a autoestima por meio da informação e interatividade (MUN-
DO NEGRO, 2001, s/p, grifos meus).

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 172


R12: Somos um veículo de comunicação produzindo um conjunto de informações
atualizadas 5 vezes por semana, com textos originais, atingindo não só mulheres
negras e afrodescendentes, mas também todos aqueles que lutam, vivem e par-
tilham do projeto feminista e antirracista de sociedade (BLOGUEIRAS NEGRAS,
2012, s/p, grifos meus).

Como já dito, o efeito autor só se efetiva pelo confronto entre diferentes


formações discursivas com nova dominante. Quando se trata de sujeitos em
posição desigual e inferiorizada na distribuição de poder, esse movimento
de legitimação da autoria e de seu “poder dizer” exige ainda mais força, pois,
“quanto mais inédito for o sentido, mais forte terá que ser o efeito-autor para
garantir seu reconhecimento e sua legitimidade” (GALLO, 2007, p. 213). As-
sim, é possível também identificar nessas seções “sobre”, dizeres que asso-
ciam às mídias negras ao discurso jornalístico. Nos recortes acima, temos
a mobilização de diversas designações que relacionam esses veículos, suas
produções ou os sujeitos que atuam nesses espaços à prática jornalística. Na
tabela abaixo, sintetizo designações que significam o espaço, o sujeito e as
práticas que se relacionam à discursividade jornalística:

Tabela 1: Designações relacionadas ao discurso jornalístico

Designações de
Recorte Designações de Espaço Designações das práticas
sujeitos

“jornalista”, “edito-
“comunicação como uma
“jornal”, “imprensa”, “por- ra-chefe”, “jorna-
R9 ferramenta”, “envio de
tal” listas voluntários”,
textos”
“seus textos”

“jornalismo qualificado
e independente”, “jor-
nalismo de qualidade”,
R10 “agência de jornalismo” “informar a sociedade de
maneira objetiva”, “cober-
tura objetiva e técnica da
realidade”

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 173


“espaço de notória cre-
dibilidade”; “portal com “linha editorial”; “apresen-
destaque [pela prática jor- tar um conteúdo”, utilizar
R11 “jornalistas”
nalística] em comparação da informação e da intera-
aos demais veículos para tividade como meio
esse público”

produção de “conjunto de
informações, atualizadas
R12 “veículo de comunicação”
5 vezes por semana, com
textos originais”
Fonte: Produção da autora.

Pelo funcionamento dessas designações – que estabelecem relações in-


terdiscursivas entre nomeação e referenciação (GUIMARÃES, 2002; ZOPPI-
-FONTANA, 2003) – podemos apreender a recorrência do discurso jornalísti-
co (DJ), caracterizado por Mariani (1998) como uma modalidade do “discurso
sobre”, cujo efeito produzido é o de “tornar objeto aquilo sobre o que se fala”
(MARIANI, 1998, p. 63). Esse discurso constitui o sujeito enunciador a partir
de um efeito de distanciamento, projetando à posição de jornalista uma ima-
gem de espectador imparcial que marca a diferença entre quem fala em rela-
ção ao que é falado e que possibilita “formular juízos de valor, emitir opiniões
etc, justamente porque não se ‘envolveu’ com a questão” (MARIANI, 1998, p.
64).
Mariani (1998) afirma que os “discursos sobre” agem na institucionaliza-
ção dos sentidos, que se relaciona ao “efeito de linearidade e homogeneidade
da memória” (MARIANI, 1998, p. 64), à possibilidade de unidade, de fecho e de
reconhecimento para além do contexto imediato de enunciação: “são discur-
sos intermediários, pois ao falarem sobre um discurso de (‘discurso origem’),
situam-se entre este e o interlocutor, qualquer que seja” (MARIANI, 1998, p.
64), funcionamento que pode-se identificar em práticas como o “envio de tex-
tos [sobre algo ou alguém]”, a atuação de “informar a sociedade de manei-
ra objetiva”, a realização de uma “cobertura objetiva e técnica da realidade”,
“apresentar um conteúdo” ou a produção de “conjunto de informações”.
Além disso, segundo a autora, o discurso jornalístico representa um lu-
gar de autoridade “em que se efetua algum tipo de transmissão de conheci-
mento, já que o falar sobre transita na correlação entre o narrar / descrever
um acontecimento singular, estabelecendo sua relação com um campo de sa-

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 174


beres já reconhecido peio interlocutor” (MARIANI, 1998, p. 64). Nos recortes,
tal lugar é mobilizado pelo modo como as designações marcam os agentes
que atuam nessas mídias como jornalistas ou editores-chefes destacando,
inclusive, a qualificação profissional destes agentes para falar sobre algo ou
alguém de maneira dita objetiva.
Ao tematizar o mundo enquanto objeto, o discurso jornalístico se cons-
trói pela crença de que “apresenta os fatos tais como são, com uma linguagem
isenta de subjetividades” (MARIANI, 1998, p. 65). É o que vemos reproduzido
em alguns dos objetivos das mídias em análise, que dizem de sua atuação a
partir da (imaginária) instrumentalização da linguagem de forma objetiva e
técnica. Entre prática e profissional, se produz o efeito de certeza quanto à
veracidade do que é narrado e quanto à pertinência do narrado para a orga-
nização social.
Assim como na imprensa de referência que analisa Mariani, na im-
prensa e nas mídias negras, a maneira que se denomina, descreve e narra
os eventos políticos, sobretudo no que se refere à raça, é regulada historica-
mente, “resultado de uma memória institucional vinculada ao dizer jorna-
lístico que ultrapassa a polêmica entre opinião / informação e a construção
ou não dos acontecimentos” (MARIANI, 1998, p. 70). No caso em questão, em
que se autodeclara “negra”, “preta”, mobilizando desde seu título ou subtí-
tulo a memória da racialidade, essa vinculação envolve ainda os processos
de racialização e de genderização silenciados na “imprensa tradicional”, as
tensas relações dos sujeitos constituídos por esses processos na/com a so-
ciedade e a projeção da corporalidade, isto é, de imagens dos corpos negros
sobre a produção, formulação e circulação de sentidos. Ao serem articulados
por esses sujeitos racializados e genderizados, esses processos discursivos
são trabalhados de maneira distinta da “imprensa de referência”, mesmo que
atravessados pelo discurso jornalístico – enquanto um discurso de escrita –,
cuja propriedade é “sua submissão ao jogo das relações de poder vigentes”,
“sua adequação ao imaginário ocidental de liberdade e bons costumes” e seu
“efeito de literalidade decorrente da ilusão da informatividade”.
Essas mídias se sustentam no discurso jornalístico ao mesmo tempo
que marcam sua distinção da imprensa de referência, em processos que de-
nunciam a sobredeterminação racista deste discurso jornalístico institucio-
nalizado. No recorte 9, há a determinação enquanto jornal antirracista, que
acredita [suprimindo os agentes que acreditam] em um discurso jornalístico

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 175


– comunicação enquanto ferramenta – de não reprodução de preconceitos
e estereótipos, estigmatizantes ou pejorativos em relação à população negra
em oposição a existência de um jornal racista que reproduz preconceitos e
estereótipos. Além disso, há também a demarcação do envio de textos de jor-
nalistas voluntários, o que denota um fazer jornalístico não trabalhista, mas
motivado pela crença na possibilidade de uma comunicação antirracista.
Em R10, temos também a determinação enquanto uma agência de jor-
nalismo “especializada em temática racial”, em detrimento daquelas que não
contam com tal especialização. Há também um objetivo coletivizado pelo
pronome possessivo em 3ª pessoa do plural (nosso), de construir um “novo
formato de gestão de processos, pessoas e recursos”, a partir da prática de um
“jornalismo de qualidade e independente” em oposição à existência de um ve-
lho formato, atrelado a um jornalismo não qualificado e dependente da ordem
institucionalizada (e racista) do jornalismo tradicional. Destaco também a in-
serção de um nós que acompanha a articulação entre produção jornalística
tradicional e prática política na/pela comunicação em “existimos para infor-
mar a sociedade de maneira objetiva [DJ] e apresentar a possibilidade de uma
sociedade menos violenta e desigual”, “realizamos uma cobertura objetiva e
técnica da realidade [DJ] com cuidado especial para as desigualdades de raça,
gênero, sexualidade, classe, território” e “apresentamos para a comunidade
negra e não negra [DJ] um olhar mais fidedigno ao cotidiano da maioria da
população”.
Já em R11, temos “um dos primeiros portais feito por jornalistas” – vin-
culação da figura de autoridade – “mobilizados desde 2001 na produção de
conteúdo exclusivo para negros, em oposição a ausência de veículos voltados
para esse público”. A identificação de uma agenda declarada positiva em opo-
sição a existência de uma agenda negativa no discurso jornalístico quanto à
população negra, além de um objetivo que articula a informatividade do dis-
curso jornalístico à diversão e à elevação de autoestima de seus leitores, o que
marca uma atuação que busca proximidade e envolvimento com os possíveis
leitores frente ao distanciamento e suposta neutralidade do discurso jorna-
lístico. E, em R12, uma produção caracterizada pela quantidade, atualização
constante e originalidade que atinge a quem luta, vive e partilha “do projeto
feminista e antirracista de sociedade”, demarcando uma produção específica
e politicamente engajada que é o que atraí determinado público, diferente-
mente da imprensa tradicional que se apresenta como neutra, uma vez que

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 176


sua prática costuma apagar para o sujeito-leitor o processo de construção da
notícia (MARIANI, 1998).
É possível afirmar, a partir dessas análises, que a articulação entre prá-
tica jornalística e prática política é determinante dessas mídias enquanto
mídias negras, uma vez que o discurso jornalístico é atravessado por dizeres
de intervenção social frente ao racismo. Ao mesmo tempo em que essa arti-
culação define esses veículos ela atravessa também as projeções de leitura.
Nesse aspecto, as determinações de público-alvo exploradas anteriormente,
ao se definirem de maneira ampla, por vezes indeterminada, constituem um
ponto de negociação entre discurso jornalístico, discurso jurídico e discurso
político fundamental para o gesto de leitura que produz fecho, que legitima
a produção de um efeito-autor: ao construir um público que inclui negros
e não negros, cujo efeito é de amplitude e indistinção, todos os leitores são
significados como iguais perante à imprensa negra, pois podem, se quiserem,
ler, acessar e se informar por essas mídias, assim como nas imprensas de re-
ferências. Entretanto, essa leitura é vinculada à prática antirracista, o que en-
volve o comprometimento com a aprendizagem de uma linguagem antirra-
cista, a partilha do projeto feminista e antirracista da sociedade, ao interesse
pela cultura e pelo cotidiano dos negros e negras brasileiros que constituem
a maioria da população brasileira. Assim, nenhum sujeito é excluído do públi-
co-alvo das mídias negras e da luta contra o racismo, uma vez que o próprio
ato de as ler se apresenta como prática antirracista.

Considerações Finais

A partir das análises é possível afirmar que no confronto entre as dis-


cursividades da raça, do jurídico, do jornalístico e do político irrompe um
efeito-autor sustentado pela dominância de um discurso jornalístico político
racializado que cada vez mais é reconhecido como tal, até o ponto de tornar-
-se óbvio. Não acredito que esse efeito-autor seja fundado nas mídias negras,
mas que só é possível pelo reconhecimento de uma prática jornalística espe-
cífica que se reatualiza no discurso da escritoralidade, mas cujo evento dis-
cursivo inaugural se dá na filiação da imprensa negra a discursos de escrita
em diferentes condições de produção, uma vez que “a cada aparição, o efei-
to-autor se fortalece e ‘ecoa’ para todo indivíduo aí inscrito enquanto sujeito

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 177


desse discurso, um sujeito autor, por estar afetado por esse efeito de autoria
aí produzido” (GALLO, 2007, p. 212).
Assim, se depois de fundado em circunstância de confronto, o efeito au-
tor tende a “‘ecoar’ em todos os ‘comentários’ dessa produção fundadora, ou
seja, nos textos que se produzirão estabelecendo com ela uma relação para-
frástica” (GALLO, 2007, p. 212), é possível compreender que este efeito-autor,
sustentado pela filiação a um discurso jornalístico político racializado, atra-
vessa as diversas produções online identificadas enquanto mídias negras,
em seus mais diversos formatos – vídeos, podcasts, reportagens, artigos de
opinião, etc – uma vez que, no discurso da escritoralidade, essas produções
podem ser entendidas como “espaços cambiáveis” (GALLO, 2011, p. 421) que
se relacionam à “presentificação” do efeito-autor. O conteúdo mobilizado
nesses espaços é a “materialização do ‘presente’ do texto” (GALLO, 2011, p.
421), ou melhor, a presentificação da textualização que reatualiza determina-
do efeito-autor.
Como dito, as relações entre sujeitos de direito nas sociedades de estado
se dão de forma hierarquizada e autoritária, organizando comando e obedi-
ência respaldados pelas instituições, “enquanto centros legitimados (legiti-
madores) de poder” (LAGAZZI, 1988, p. 26). Nessas relações, determinados
sujeitos são constituídos, por meio de processos de racialização e genderiza-
ção, como corpos excedentes, exteriores à comunidade, mantidos à distância.
Na formação social brasileira, sujeitos racializados e genderizados foram (e
são) regularmente destituídos do direito e impelidos ao dever. Entretanto,
ao ocuparem a internet (que não detém, por si só, de poder de legitimação),
recorrem a esse discurso jornalístico político racializado, num retorno às ins-
tituições que historicamente marcaram tais sujeitos como racializados, para
(re)afirmarem sua pertença à sociedade brasileira, jogando com o fato de que
“direitos e deveres são formulados para a garantia da comunidade, do grupo,
e não para possibilitar a singularidade de cada um para ser reconhecido pelo
grupo, é preciso entregar-se tornar-se igual” (LAGAZZI, 1988, p. 30).
Sujeitos negros que historicamente foram mantidos no discurso da
oralidade, passam a atuar frente a institucionalização social de sentidos, se
impondo enquanto agentes na disputa de sentidos sobre si e sobre suas vi-
vências. Assim, é possível compreender as mídias negras, a partir de uma
perspectiva discursiva, como espaços digitais de produção de “discursos so-
bre” que mobilizam os discursos racializados (MODESTO, 2021), em sua di-

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 178


versidade, os impondo enquanto objeto a ser (re)significado, num processo
em que as mídias negras são significadas enquanto responsáveis por falar so-
bre a raça, por retratá-la, torná-la compreensível para os leitores. Nessa prá-
tica, aberta à resistência e à dominação, se (re)constroem sujeitos, sentidos e
espaços que disputam a constituição do imaginário social, a cristalização da
memória do passado, bem como a construção de uma memória para o futuro.
A atuação da mídia negra ao tematizar a raça em seus mais distintos
aspectos pode deslocar ou reproduzir os sentidos da racialização, mas, aci-
ma de tudo, ao levar seus leitores a se confrontarem constantemente com
aspectos distintos da racialização a partir de sua produção que se apresenta
ampla, atualizada e qualificada para falar sobre a raça, pode produzir práticas
de leitura que (re)interpretem os fatos do mundo afetadas por suas lentes ra-
cializadas: um olhar presente guiado ao passado e ao futuro.

Referências

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LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 180


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LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 181


p T 9

El colorismo en Latinoamérica:
Lo negro también es bonito

Carlui Brower

Introducción

La presencia del colorismo en las comunidades Latinoamericanas es


una situación que aún afecta a las personas con rasgos físicos que se alejan
del prototipo de belleza europeo (Canache et al. 506; Chávez-Dueñas et al. 4;
Hernández 190; Osuji 1491; Patton 26; Williams 3). Sin embargo, a pesar de
que hoy día existen estudios en el área, es necesario continuar investigando
este tema para poder enriquecer la literatura del campo de los estudios cultu-
rales en Latinoamérica. En este trabajo se demuestra que aún hoy día, ciertos
conceptos de belleza tienden a ser más aceptados que otros, especialmente en
países latinoamericanos, como es el caso de Colombia. Para esto, se hizo uso
de contenido visual presente en redes sociales (Facebook e Instagram), tales
como imágenes, videos, en entre otros, y la reacción que estos han causado
en la población colombiana durante la elección y coronación de la Señorita
Afrodescendiente 2018. Al mismo tiempo, se combinó este contenido visual
con algunos artículos académicos escritos en el área, e incluyendo aquellos
artículos que han sido publicados en periódicos en línea. El principal objetivo
al escribir este trabajo es crear conciencia acerca de la presencia de coloris-
mo en la población Latinoamericana, más específicamente en Colombia, y al
mismo tiempo, poder continuar con el incesante debate de las diferencias
étnicas y raciales en Latinoamérica. Se puede afirmar que para solucionar

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 182


DOI: 10.52788/9786589932253.1-9
este problema es necesario educarse y no ignorar el hecho de que a pesar de
que el colorismo no sea un problema que afecte a todos directamente, de una
manera u otra, somos partícipes de este.
Este trabajo escrito se enfoca en las presentes dificultades que muchos
Latinos de descendencia africana tienen que vivenciar en la sociedad de hoy
día, debido al gran impacto del colorismo en países Latinoamericanos y del
Caribe, especialmente en Colombia. Hablando del rechazo hacia lo afro (color
de piel, rasgos faciales, textura de cabello, etc.) y de lo que se considera “bello”
en nuestra sociedad, este estudio se sitúa precisamente en lo ocurrido en un
concurso de belleza colombiano, llamado Señorita Afrodescendiente, en don-
de su ganadora fue una candidata “blanca” o “mestiza”. Este veredicto ha cau-
sado una gran controversia, no sólo en Colombia sino también en el exterior
desde la elección de la ganadora el pasado julio de 2018, ya que supuestamen-
te este es un concurso de belleza en donde se debería exaltar la belleza de la
mujer afrodescendiente colombiana. Lo que ha resultado de este concurso
servirá como base para continuar enriqueciendo la literatura dentro de los
estudios culturales en Latinoamérica, haciendo énfasis precisamente en te-
mas de raza, etnia y género.

Planteamiento del problema

Debido a que las diferencias raciales en Latinoamérica continúan siendo


un tema de conversación (Canache et al. 506; Chávez-Dueñas et al. 4; Hernán-
dez 190; Osuji 1491; Patton 26; Williams 3), es necesario estudiar algunos de
los problemas que aún están presente dentro de la comunidad afrodescen-
diente. Tomando como punto inicial el veredicto de un concurso de belleza
en Colombia, llamado Concurso Nacional e Internacional de Belleza y Talento
Srta. Afrodescendiente (CNIBTA), un concurso destinado para la apreciación
de la belleza de la mujer afrocolombiana, intento resaltar que los estereotipos
y/o conceptos de belleza europeos, inculcados en la sociedad Latinoameri-
cana, siguen prevaleciendo con el pasar de los años. Es importante resaltar
estos hechos para continuar con una infinita conversación sobre las desigual-
dades de género, creencias y, sobre todo, de raza.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 183


Análisis de la literatura

Desde el principio de la era colonial (1492-1763), junto con el comercio


de esclavos en las Américas en aquella época, ha existido una preferencia por
ciertos fenotipos europeos, que se han considerado “mejores” y más “acep-
tables” ante los ojos de la sociedad. Chávez-Dueñas et al., en su artículo Skin-
-Color Prejudice and Within-Group Racial Discrimination: Historical and Current
Impact on Latino/a Populations, abordan puntos muy importantes, los cuales
son relevantes para este tema. Los autores hablan de la estratificación racial
que se originó durante el tiempo de la colonización, a través de la cual se
puede entender que cualquier persona que se encuentre en una posición más
alta en comparación con las demás, también tendría un valor más alto. Esta
creencia se reflejó en gran medida en la forma en que se organizaron las dife-
rentes razas en la comunidad y el poder y/o la posición que se les otorgó. En
Fig. 1 podemos apreciar una pirámide creada por los españoles, que represen-
ta los diferentes “niveles” de estratificación racial que se aplicaban en aquella
época. En dicha pirámide se puede observar que los españoles, es decir, los
blancos, están situados en la cima de la pirámide. Los siguientes fueron sus
descendientes nacidos en las Américas, dándoles de alguna manera menos
valor que los nacidos en España. El hecho de tener a los negros/africanos en la
parte inferior muestra que eran la población menos valorada en las Américas
durante la época de la colonización.

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Figura 1 - Latin American Social Caste Pyramid (LASCP)

Fuente - Chavez-Dueñas, Nayeli Y., Hector Y. Adames, and Kurt C. Organista. “Skin-Color
Prejudice and Within-Group Racial Discrimination.” Hispanic Journal of Behavioral Scien-
ces 36, no. 1 (2014): 3-26.

Adicionalmente, ha existido la creencia de que, a través del mestizaje,


las culturas indígenas y africanas de la sociedad Latinoamericana desapare-
cerían eventualmente (Chávez-Dueñas et al. 8; Osuji 1491). Este pensamiento
fue la intención principal de los españoles, quienes en algún momento se sin-
tieron amenazados por el temor a ser superados en número por los miembros
de las otras razas (indígenas y negros). Su solución “lógica” fue entonces mo-
tivar a grandes poblaciones de gente proveniente de Europa a vivir en áreas
donde había mayores concentraciones de afrodescendientes, dando origen al
concepto de “mejorar la raza”, como si las razas no-blancas fueran considera-
das menos, o sin valor en absoluto. Chávez-Dueñas et al., también mencionan
que, debido a la mezcla de diferentes razas, se ha dado origen a una forma de
privilegio para aquellos que tienen más fenotipos europeos. Sue afirma que,
“light-skinned Latino/as also benefit from White privilege to varying degre-
es but this mostly ‘is an unacknowledged secret that is overtly and covertly
denied and protected through the use of self-deception’” (137). Desafortuna-

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 185


damente, esto es parte de la realidad en la que viven much@s latin@s,1 ya
que sería más fácil para una persona con menos características africanas y/o
indígenas encontrar un trabajo digno, o que se le permita ingresar a un lugar
público.2 Si bien, la discriminación racial, especialmente entre las personas
de la misma raza en las comunidades Latinoamericanas sigue siendo un tema
relevante en la actualidad, muchas personas tienden a ignorarla y/o no hablar
de ella. Sostengo que, para resolver este problema, esta conversación debe te-
ner lugar, de modo que el color de piel de otra persona no deba ser una razón
para discriminarla.
En un artículo escrito por Canache et al., titulado Determinants of Per-
ceived Skin-Color Discrimination in Latin America, los autores también abor-
dan cómo el hecho de que existen diferentes tonos de piel y características
raciales ha alentado a ciertas personas a categorizar a otros siguiendo estos
aspectos (507). Dado el caso que esto se realice de manera consciente o in-
consciente por personas pertenecientes a un grupo racial en particular, es
común que algunos miembros de ese grupo discriminen contra aquellos que
poseen cualquier rasgo de origen africano/negro, ya que estos se consideran
negativos y no bellos ante los ojos de la sociedad. Sin embargo, esto no solo
se mide en función de las características físicas de las personas, como el co-
lor de la piel, los rasgos faciales, las texturas del cabello, etc., sino también
en otros aspectos, como el lenguaje, el acento y la forma de vestir (508). Se
podría decir que este problema es más frecuente entre las personas de un
mismo grupo racial, pudiendo ser parte del mismo estatus socioeconómico,
aunque este puede que no sea el caso. A pesar de que alguien tenga el mismo
tono de piel que otra persona, el hecho de provenir de un barrio “mejor”, o
tener un ingreso económico más alto, son factores que se toman en cuenta
cuando se trata de discriminación hacia personas de cierto grupo racial. Ca-
nache et al., también argumentan que “in the United States, for example, an
African American who is a corporate CEO may be exposed to fewer potential
instances of discrimination than an African American who works as part of

1 El uso de la arroba @ ha sido usado en varios países Latinoamericanos para omitir la especificidad de género
en español. En este trabajo, hago uso de @ para referirme los géneros masculinos y femeninos presentes en
sustantivos y adjetivos.
2 Para mirar algunos ejemplos de racismo en Colombia, originados por el rechazo a los rasgos de personas negras,
por favor dirigirse al periódico El Espectador “El bar que no acepta negros”, o El Espectador “Discriminación
racial en una ciudad de mayorías negras”, o ver el video “Tenía rabia y él me estaba intimidando. No soy racista”
en la revista Semana.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 186


a construction crew” (508). Esto podría ser un aspecto un poco controversial,
ya que la mayoría de las personas no necesariamente conocerían los ingresos
de alguien basándose en la forma en que se viste o habla. La discriminación
basada en el color de piel, o colorismo, es un tipo de discriminación que se
enfoca principalmente en el tono de la piel de una persona, afirmando que los
tonos de piel más oscuros tienen más posibilidades de ser discriminados que
una persona con una piel más clara. Una definición más formal del término
colorismo es propuesta por Herring et al., en su libro Skin/Deep: How Race and
Complexion Matter in the “Color-Blind” Era, quienes lo definen como:

the discriminatory treatment of individuals falling within the same “racial”


group on the basis of skin color. It operates both intraracially and interracially.
Intraracial colorism occurs when members of a racial group make distinctions
based upon skin color between members of their own race. Interracial colorism
occurs when members of one racial group make distinctions based upon skin
color between members of another racial group. (3)

De hecho, se ha visto en experimentos sociales, en el programa conocido


como, What Would You Do?,3 que las personas con características predomi-
nantemente europeas tienden a discriminar hacia aquellas con característi-
cas más africanas/negras, a pesar de la forma en que se visten o de la forma
en que hablan.
Por otro lado, un aspecto relevante del problema que se produce como
consecuencia de la discriminación del color de piel es el privilegio que se otor-
ga a las personas con tonos de piel más claros cuando solicitan a trabajos. En
un artículo titulado Envisioning the United States in the Latin American myth
of ‘racial democracy mestizaje’, escrito por Tanya Katerí Hernández, la autora
aborda la discriminación que está presente en el lugar de trabajo basada en
los solicitantes de piel clara frente a aquellos de piel oscura. Hernández men-
ciona que, “in the US persons of African descent with lighter skin shades are
consistently accorded social and economic privileges in contradistinction to
persons with a darker hue, and more pronounced African phenotypes and
hair textures” (195). Es claro que esta es una realidad presente, no solo entre
la comunidad Latinoamericana sino también entre la comunidad afro-esta-

3 Un programa de televisión estadounidense en el cual se plantean situaciones de la vida real para captar las
reacciones del público. En varios episodios se presentan casos de discriminación basados en el color de piel,
forma de vestir, acento, lugar de origen, entre otros temas controversiales. Un ejemplo puntual de un caso de
discriminación es el episodio llamado What Would You Do: Black Customer is Racially Profiled by Shopping at High
End Store que se encuentra en www.abcNEWS.com

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 187


dounidense y, sin embargo, es increíble pensar que esto aún sigue sucediendo
en el siglo XXI. Hace unos 5 o 6 siglos, esto era común durante la época de la
colonización, junto con el período de la esclavitud; sin embargo, los restos de
estas creencias aún rondan en la actualidad. Horton afirma que, “US histo-
rians have long noted that even during times of slavery mixed-race ‘mulat-
toes’ enjoyed important advantages over darker skin persons of African an-
cestry, ‘because many whites believed the infusion of “white blood” increased
their ability and civility’” (122-23). Esta idea se puede conectar con la adopción
de niños en los Estados Unidos, lo cual es un punto discutido por Hernández.
No solo existe discriminación en el lugar de trabajo o quizás en espacios pú-
blicos, sino que también existe una diferencia significativa entre los precios
de adopción según la raza del niño. Hernández menciona que, “because of
the differential parental demand for children based on skin color, a hierarchy
for the cost of adoption has resulted where lighter-skin biracial children are
more expensive to adopt than darker-skin African American children, and
white children cost the most to adopt” (196). Todo esto sirve para demostrar
que nuestra sociedad aún tiene una preferencia significativa por aquello de
origen europeo, incluyendo características físicas como el tono de la piel, la
textura del cabello, los rasgos faciales, etc., rechazando cualquier cosa que
pertenezca a lo contrario de las características anteriormente mencionadas.
Adicionalmente, en un estudio realizado por Elena Padrón en su artículo
Whiteness in Latina Immigrants: A Venezuelan Perspective, la autora aborda el
concepto de blancura en Venezuela y cómo el hecho de que muchas personas
sean de raza mixta hoy da paso a diferentes formas de discriminación basa-
das en el color de los ojos, la textura del cabello, el estatus socioeconómico,
el idioma, la familia, la educación, etc. La autora dice que “some might claim
that the process of mestizaje, or widespread racial mixing, that took place in
Venezuela, and which resulted in a great majority of its current population
being of “mixed race,” implies that there is no significant racism in that cou-
ntry” (194). Esta idea puede ser percibida como verdadera por algunas per-
sonas, especialmente en los Estados Unidos, donde las tensiones raciales e
incluso la larga historia de la segregación racial se consideran un tema can-
dente en dicho país. Sin embargo, este no es necesariamente el caso en países
como Venezuela y otros países de Latinoamérica, donde se establecen ciertos
tipos de discriminación no solo en función del tono de piel sino también de
otros aspectos ya mencionados. También, Padrón al citar a Nichols, dice que

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 188


“[he] aptly claims that in the history of Venezuela it has always been ‘unders-
tood that more milk is better than more coffee’” (197). Esto apoya la idea que,
al mezclar una población no blanca con otra población de blancos puros, el
país eventualmente erradicaría la existencia de rasgos “no puros”, especial-
mente aquellos rasgos africanos/negros, en otras palabras, “a way to cleanse
the effect of non-white racial traits” (Padrón 197). Otros países de América
Latina, como Brasil, también han seguido esta práctica; con la idea de que
el mezclar razas era una manera de obtener un estatus social más alto. Sin
embargo, esto no siempre es el caso. El simple hecho de ser una persona afro-
descendiente de piel oscura, o incluso, de piel clara, es decir, no ser blanco de
ninguna manera, le otorga a esta persona menos credibilidad y menos poder
en la sociedad (Chávez-Dueñas et al. 7).
Otro aspecto prominente que vale la pena mencionar tiene que ver con
las diferentes terminologías usadas para referirse a una persona afrodes-
cendiente en Latinoamérica. El artículo Mixed and Multiracial in Trinidad and
Honduras: Rethinking Mixed-Race Identities in Latin America and the Caribbean,
de Sarah England, aborda el uso del término Moren@ en las comunidades que
forman parte de Latinoamérica y el Caribe. La autora afirma que, “In much
of Latin America the term moreno, meaning brown, is used as a polite way to
refer to Afro-Latinos without actually calling them black. It places one on the
colour continuum somewhere near the bottom but with the suggestion that
there is some mixture on the way to whiteness” (201). Así, tal como lo explica
la autora y de la manera como el término Moreno es usado por personas de
comunidades Latinoamericanas y del Caribe para referirse a cualquier perso-
na que sea típicamente de piel oscura, la finalidad es sonar menos grosero al
describir o referirse a alguien que forma parte de la comunidad afrodescen-
diente. Además, en español, el uso de la palabra Negro o Prieto se ha converti-
do en un tipo de tabú, ya que quien use dichos términos podría ser percibido
como mal educad@ en algunas culturas. Esto solo demuestra, de una manera
u otra, que lo Negro todavía se considera algo negativo. En Confronting white-
ning in an era of black consciousness: racial ideology and black-white interracial
marriages in Rio de Janeiro, escrito por Chinyere Osuji, la autora estudia y afir-
ma que la razón por la que las personas negras se casan con alguien blanc@
es para crear “more attractive looking offspring” (1491). También argumenta
que, “[Brazilian elites] encouraged interracial marriage with whites to ‘bleach
out’ non-white populations. Classic Brazilian race scholars found that darker

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 189


Brazilians strategized to marry white or lighter partners to gain social status
through accessing white social circles and producing offspring with more
European physical features” (1491). Lamentablemente, esta es una creencia
que se pone en práctica, ya sea consciente o inconscientemente, por personas
en Latinoamérica y el Caribe, especialmente por aquellos que forman parte
de la comunidad Negra. Sin embargo, en los últimos años, ha habido una serie
de movimientos sociales que han fomentado a que la comunidad afrodescen-
diente se acepte y se ame tal cual como es. Osuji menciona que, después de
2001, algunos activistas han desafiado la democracia racial en Brasil, alentan-
do a más Afrobrasileños a acoger las palabras Negro, Pardo y Preto como parte
de su identidad, lo que ha generado un mayor aprecio por lo Afro (1491).
Finalmente, muchos investigadores en esta área de estudios raciales
han analizado la “evolución” de la raza y cómo esta afecta todavía a una can-
tidad significativa de la población, especialmente la afrodescendiente. Junto
con la mentalidad de que todo lo que está relacionado a los negros e incluso
a los indígenas es “malo”, también está el prejuicio dirigido a la raza y el tono
de la piel de las personas. Hoy en día, la mayoría de la población afrodescen-
diente es la que más lucha para acceder a la educación, encontrar un buen
empleo, comprar o alquilar una casa e incluso ingresar a un espacio público.
La idea de que las relaciones interraciales mejorarían las cosas o reducirían la
discriminación, es solo un concepto utópico. No importa cuántas razas hagan
parte de la identidad de un individuo, este sería juzgado por su piel y por el
simple hecho de que no es blanco. Esto no solo es un problema en Latinoamé-
rica, sino también en otras partes del mundo, como los Estados Unidos, por
ejemplo. Sin embargo, la identificación racial y los problemas que surgen a
partir esta, de cierta manera, es una conversación que se aborda de una forma
diferente y que varía de un país a otro.

Ser negro en Colombia

Al hablar de las comunidades afrodescendientes en Colombia, a quienes


se les tiende a referir con el término de “Afrocolombian@s”, es imprescindib-
le proporcionar una definición de este, y a la vez, narrar un poco acerca de la

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 190


historia de esta comunidad. Según el Ministerio de Cultura de Colombia,4 la
comunidad afrocolombiana “está compuesta por hombres y mujeres con una
marcada ascendencia (lingüística, étnica y cultural) africana. Los y las afroco-
lombianos (as) son algunos de los descendientes de africanos y africanas- pro-
venientes de diversas regiones y etnias de África- que llegaron al continente
americano en calidad de esclavos” (2). A lo largo de la historia y aún después
de la abolición de la esclavitud en Colombia, en el año 1852, la comunidad
afrocolombiana ha sufrido de discriminación racial, poca participación en la
política, dificultades para acceder a la educación superior y, por ende, menos
opciones de empleo con buena remuneración, entre otros tipos de obstácu-
los. Según el Departamento Administrativo Nacional de Estadística (DANE)
de Colombia, hoy por hoy, la comunidad afrocolombiana representa el 10.62%
de la población, con un total aproximado de 4.311.757 de personas.5
Por otro lado, la representación de la mujer negra, especialmente, en
concursos de belleza ha sido muy pequeña o casi nula. No fue sino hasta el
año 2001, mientras Colombia pasaba por algunos escándalos raciales, que
la primera mujer negra fue elegida Señorita Colombia o Miss Colombia, en
el Concurso Nacional de Belleza; un famoso concurso que ha estado vigente
desde los años treinta. Vanessa Mendoza es el nombre de esta “Barbie Ne-
gra”,6 representante del departamento7 (estado) del Chocó, quien causó un
poco de controversia entre los colombianos debido a su color de piel oscura y
evidentes rasgos de origen africano. Colombia, un país con gran fama de mu-
jeres bellas, finalmente eligió una mujer que representaba a una comunidad
marginada, y casi que ignorada a nivel nacional. Sin embargo, esta victoria
solo duró ese año, puesto que 14 años después, la segunda mujer afrodescen-
diente fue elegida Señorita Colombia en el mismo concurso, en el año 2015.
Esta vez, Andrea Tovar, una mujer de la misma región que Vanessa Mendo-
za, convenció al jurado con su piel color canela y sus rasgos físicos africanos
un poco menos evidentes que los de Vanessa. En esta ocasión, Colombia eli-

4 El Ministerio de Cultura es la entidad rectora del sector cultural colombiano y tiene como objetivo formular,
coordinar, ejecutar y vigilar la política del Estado en materia cultural. Es una organización que actúa de buena
fe, con integridad ética y observa normas vigentes en beneficio de la comunidad y sus propios funcionarios.
(Tomado directamente desde la página web del Ministerio de Cultura de Colombia: http://www.mincultura.gov.
co/).
5 Estos datos fueron obtenidos en el Censo General 2005, realizado por el Departamento Administrativo
Nacional de Estadística (DANE) de Colombia.
6 Este apodo se le fue otorgado por sus rasgos físicos, y cercano parecido a la conocida muñeca “Barbie”.
7 Lo que en Estados Unidos se conoce como “Estados”, en Colombia se le llama “Departamentos”.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 191


gió una mujer “menos negra” visiblemente, que incluso muchos llegaron a
cuestionar si en realidad Andrea era una mujer afrodescendiente o no. Sería
posible afirmar que Colombia estaría recurriendo a una belleza que tuviera
que ver con la exaltación de rasgos menos africanos, o menos negros, en con-
traste con una belleza que encaja en prototipos de origen europeos. Es aquí
donde se daría paso al concepto de colorismo en concursos de belleza y en
otros ámbitos de la vida social.

La señorita afrodescendiente

Para situar esta investigación, es necesario entender el porqué de este


concurso de belleza, titulado “Señorita Afrodescendiente”. Este certamen de
belleza fue creado por una famosa modelo, actriz y empresaria afrocolombia-
na en el año 2011. Según la página web del concurso, el objetivo principal del
mismo es el de:

Incidir positivamente en la eliminación de la discriminación racial y la basa-


da en género. [El Concurso Nacional e Internacional de Belleza y Talento Srta.
Afrodescendiente (CNIBTA)] es el espacio de empoderamiento, emprendimien-
to y liderazgo que promueve la idoneidad de las mujeres. Es un vehículo de acci-
ón, congregación y reflexión sobre la importancia de conservar nuestro acervo
cultural, el intercambio y la convivencia entre grupos étnicos, con acciones,
procesos, programas educativos y proyectos que contribuyan a la elevación de
la autoestima y desarrollo integral de la población. (Página Web, Srta Afrodes-
cendiente)

Del nombre de este certamen, se podría afirmar que la meta de este es


resaltar la belleza de la mujer afrocolombiana, la cual, históricamente, se ha
visto opacada por los prototipos de belleza europeos. No obstante, al hacer un
breve análisis visual de las candidatas representantes de diferentes regiones
de Colombia, en el CNIBTA 2018, tan solo 5 de 15 concursantes cuentan con
aquellos rasgos físicos que visiblemente caracterizan o distinguen a una per-
sona negra, tales como el color de la piel, la textura del cabello, rasgos faciales,
entre otros. A pesar de que todos estos rasgos puedan variar de persona a
persona, siempre hay algo que distingue a una persona negra de una persona
blanca, y viceversa, a simple vista. Además, cabe resaltar que en lo descrito
en la página web del concurso, no hay nada explícitamente estipulado acerca
de la(s) mujer(es) afrocolombiana(s), y mucho menos, algunos requisitos que

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 192


se deben tener en cuenta a la hora de querer ser una participante en dicho
concurso.
Sin embargo, pese a que en las versiones anteriores del CNIBTA, la
ganadora siempre fue una mujer visible y físicamente afrodescendiente, en
la elección de la ganadora del año 2018, este no fue necesariamente el caso.
Incluso, los medios de comunicación a nivel nacional e internacional, asimis-
mo como las redes sociales, no dudaron en hacer saber sus reacciones ante
tal veredicto, en donde Ana Paula Rueda fue elegida como “Señorita Afrodes-
cendiente 2018-2019”. Esta vez, la ganadora era una mujer “blanca” ante los
ojos de muchos espectadores, como era descrita en los encabezados de una
gran cantidad de periódicos, revistas y blogs en línea.8 La autora del artículo
“Cuando la Ganadora de Señorita Afrodescendiente es Blanca”, Sher Herrera,
una reconocida afro-feminista afrocolombiana, menciona en su artículo que:

La belleza de las mujeres afrodescendientes es tan poco valorada en Colombia


que, en los más de 80 años del Reinado Nacional de la Belleza, solo en dos oca-
siones han ganado mujeres visiblemente afrodescendientes, la primera Vanes-
sa Alexandra Mendoza una mujer bellísima, muy inteligente y defensora de los
derechos afrodescendientes y la segunda y más reciente Andrea Tovar. Pero
como siempre, ganar la corona implicó para ellas entrar en estrictos cánones
de belleza (cabellos alisados, labios pequeños, etc.). Tenían que ser cuatro veces
mejores candidata que las opciones blancas mestizas, y por supuesto sin qui-
tarles méritos a ellas, ni a las demás mujeres negras que han participado, de
alguna manera se vieron impulsadas por las condiciones sociales y políticas del
momento frente a la discriminación racial. (Página Web, Nómada)

La autora menciona el nivel de exigencia, o por lo menos, la expectativa


que se tiene de una mujer negra al concursar en estos certámenes de belleza,
con el propósito de demostrar que su belleza también vale, y que por ende
son dignas de obtener la corona. Esta lucha se ve aplacada para las mujeres
blancas o mestizas, quienes por sus rasgos físicos y color de piel tienen que
esforzarse menos por el mismo objetivo. En Hey Girl, Am I More than My Hair?:
African American Women and Their Struggles with Beauty, Body Image, and Hair,
Tracey Owens Patton menciona que “White hegemonically defined standards
of beauty is not a new occurrence” (25). Históricamente, las mujeres negras
han sido rechazadas por su apariencia física y su belleza era menos válida
que la de las mujeres blancas. Es por esta razón que nuevas oportunidades

8 Algunos de los periódicos nacionales que hablaron del tema fueron: El Espectador, Pulzo, Canal Capital, entre
otros. Y algunos periódicos, revistas y blogs a nivel internacional que escribieron acerca del tema fueron:
Excélsior, Remezcla, VICE, HipLatina, Afroféminas, Nómada, entre otros.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 193


como el CNIBTA están presentes para la apreciación de un tipo de mujer que
antes no se apreciaba. Sin embargo, es evidente que la historia de racismo y
de colorismo aún dejan sus huellas en la mentalidad de la sociedad de hoy día.
Adicionalmente, la reacción que el pueblo colombiano ha tenido ante
la participación de algunas candidatas que no encajaban con el prototipo de
la mujer negra, también ha estado presente en las redes sociales. En la página
de Facebook del CNIBTA, cada una de las candidatas tuvo la oportunidad de
presentarse y hacerse conocer ante el público colombiano. En uno de estos
videos, la candidata ganadora, quien hasta aquel entonces no había sido co-
ronada, defiende su participación en el concurso y demuestra que es una can-
didata como todas las demás. Este comunicado surgió a raíz de que muchas
personas ya estaban cuestionando su raza, o más bien, su identidad como
mujer negra. Su argumento de que todos los seres humanos se originaron en
África y por ende todos somos afrodescendientes, es muy cuestionable, espe-
cialmente viniendo de una mujer no negra. Sher Herrera hizo uso de su cuen-
ta de Instagram para expresar su opinión en cuanto a este comunicado hecho
por Ana Rueda, en el cual decía que “sabemos muy bien que la racialización
no tiene que ver con la sangre que corre por nuestras venas, tiene que ver con
nuestra apariencia, … ¿O quién tenía que lidiar con los chistes pesados sobre
el pelo? … ¿Acaso yo soy blanca por tener un abuelo blanco? ¿Acaso yo soy de
la comunidad wayuú por tener una tatarabuela wayuú?” (Herrera, Instagram,
2018). Este es solo uno de varios ejemplos de las reacciones que la población
colombiana ha hecho público a través de las redes sociales para expresar su
inconformidad ante la decisión tomada en el concurso Señorita Afrodescen-
diente 2018-2019.

Conclusión

La larga historia de la colonización por parte de los europeos en las


Américas ha dejado diferentes huellas y algunas cicatrices en lo que hoy se
conoce como Latinoamérica y el Caribe. Estas huellas hacen alusión a la rica y
significativa influencia de culturas y tradiciones, asimismo que se ven refleja-
das en las creencias y prácticas que hoy por hoy todavía están presentes en la
cotidianidad de muchos. Las cicatrices tienen que ver con aquellas tensiones
raciales entre personas de una población en particular, como producto de la

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 194


mezcla de razas e ideologías con el carácter de excluir a quienes sea necesa-
rio para su propia supervivencia. Es aquí donde se evidencia la existencia del
colorismo en la comunidad afrodescendiente o negra, junto con la creencia
de que ciertas características europeas y tonos de piel más claros son más
apreciados o mejores vistos en la sociedad. Este tema del colorismo sigue
creando división, perpetuando la presencia de la discriminación, un proble-
ma que todavía está presente en la actualidad. Con todo lo dicho, sería posible
afirmar que el colorismo, no solo en Colombia, sino también en otros países
Latinoamericanos, es y seguirá siendo un tema de conversación de ahora en
adelante, lo cual requiere de la atención de todos con el fin de encontrarle una
solución. La gente puede elegir ignorar el problema, o abordarlo y hasta qui-
zás erradicarlo de una vez por todas, hasta que el colorismo no sea más que
una palabra sin importancia para las personas de “todos los colores”.

Referencias

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LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 196


gA
Mauricio J. de Souza Neto

Licenciado em Letras Vernáculas com Língua Estrangeira Moderna (in-


glês) pela Universidade Federal da Bahia e Mestre em Língua e Cultura pela
mesma universidade. Possui certificados de proficiência e ensino de língua
inglesa pela University of Cambridge. Com experiência de ensino no Brasil e
no exterior (Fulbright Alumni at University of Arizona), desenvolve trabalhos
na área de ensino e de aprendizagem de línguas em perspectiva contra-colo-
nial, e tem interesse em trabalhos dessa natureza e na relação entre língua,
raça, cultura e comunidade. É membro da REPENSE ? Rede de Pesquisadores
NegreS de Estudos da Linguagem, e integra o grupo de pesquisa DTeR - Dis-
curso e Tensões Raciais , da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC).

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 197


AU T A E s

Agda Dias Baeta: Mestre em jornalismo e comunicação pela Universida-


de de Coimbra, especialista em gestão estratégica da comunicação organiza-
cional e relações públicas pela Universidade de São Paulo e bacharel em co-
municação social pela Escola Superior de Propaganda e Marketing. Com mais
de 15 anos de experiência nas áreas de comunicação e marketing de grandes
corporações, têm se dedicado ao estudo das representações de gênero e do
discurso feminista na comunicação organizacional e midiática, tendo histó-
rias em quadrinhos, telenovelas, redes sociais e filmes publicitários entre os
meios analisados.

Carlui Brower: Estudiante de doctorado en educación con un enfasís


en currículo e instrucción en American College of Education. Actualmente
trabaja como maestro de inglés como segunda lengua en el distrito escolar
de las escuelas públicas en Washington, DC. Recibió una licenciatura en es-
pañol y francés de la University of Wisconsin-Stevens Point, y una maestría
en la enseñanza del español de la University of Arizona. Se interesa por temas
sociolingüísticos, culturales, y pedagógicos.

Cleudene de Oliveira Aragão: Graduação em Letras pela Universidade


Estadual do Ceará e mestrado em Letras pela Universidade Federal do Ceará
(1998). Doutora em Filología Hispánica pela Universitat de Barcelona. Atual-
mente, professora de língua e literatura espanholas no Curso de Letras e de
linguística aplicada no Programa de Pós-graduação em Linguística Aplicada
da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Líder do Grupo de Pesquisa Li-
teratura: Estudo, Ensino e (Re) leitura do mundo (GPLEER). Realizou Estágio
Pós-doutoral na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas
Gerais - junto ao GPELL/CEALE (UFMG).

Deise Mônica Medina Silveira: É doutora em Educação e mestre em Le-


tras e Linguística, pela Universidade Federal da Bahia e possui licenciatu-
ra em Letras com Língua Inglesa pelo Centro Universitário Jorge Amado. É
professora de inglês do Instituto Federal da Bahia (IFBA) e líder do Grupo de
Pesquisas em Estudos Linguísticos, Tradução de Acessibilidade – LINTRA.
Tem interesse nas áreas de tradução e acessibilidade, educação especial e

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 198


educação inclusiva. É pesquisadora em audiodescrição de imagens estáticas
e Legendas para Surdos e Ensurdecidos (LSE). Atua como audiodescritora e
legendista.

Flávia Medeiros Álvaro Machado: Doutora em Letras – UCS (2013-2017);


Mestre em Letras, Cultura e Regionalidade – UCS (2012); Proficiente em uso
e ensino (2009) e Tradutor/intérprete de Libras e Português (2007) – UFSC
(PROLIBRAS). Atuação profissional: assessoria e consultoria de Libras, Tra-
dução/interpretação de Libras e Português. Docente nas modalidades a dis-
tância (EaD) e presencial nas áreas da pedagogia, letras e libras. Atuou por
15 anos como coordenadora e docente no Programa de Libras (PLIBRAS), e
no Curso de Pós-Graduação (Lato Sensu) na Universidade de Caxias do Sul
– UCS. Atualmente é professora do Magistério Superior na UFES, no quadro
permanente, no Departamento de Línguas e Letras (DLL) e do Programa de
Pós-Graduação de Stric Sensu em Linguística (PPGEL) e editora de seção da
Revista (Con)texto da UFES. Líder Grupo de Pesquisa LingCognit- Lingua-
gem e Cognição: escolhas tradutórias e interpretativas - PRPPG/CNPq/Ca-
pes/UFES.

Gislene Araújo Gabriel: Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação


Mestrado Acadêmico Interdisciplinar História e Letras – MIHL/ UECE (Linha
de Pesquisa 2: Gênero, Raça e Identidades); Licenciatura em Letras com ha-
bilitação em Português/Francês e suas respectivas Literaturas (CH -UECE).
Bacharel em Direito pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR; Especialista
em Direito Público pela Faculdade Entre Rios do Piauí (FAERPI).

Gisleuda de Araújo Gabriel: Graduada em Letras - Português/Francês


e suas respectivas Literaturas. Mestrado em Linguística Aplicada pelo Pro-
grama de Pós-Graduação em Linguística Aplicada (PosLa - UECE). Atua como
professora de Língua Portuguesa (PLM) e Francesa (FLE). Possui experiência
com o ensino de Português para Estrangeiros (PLE) na Academia de Versailles
(França 2009-2010). Atualmente, doutoranda pelo Programa de Pós-Gradua-
ção em Linguística Aplicada (PosLa - UECE). Membro do Grupo de Pesquisa
Literatura: Estudo, Ensino e (Re) leitura do mundo (GPLEER) e do Grupo de
Pesquisa LIFT - Linguagem, Formação e Trabalho.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 199


Larissa da Silva Fontana: Doutoranda em Linguística no Instituto de
Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas. Mestra em
Linguística pela mesma instituição. Licenciada em Letras – Português/Inglês
pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Desenvolvo pesquisa na área
da Análise do Discurso Materialista, investigando as diversas designações
que envolvem o processo de racialização de mulheres negras brasileiras em
diferentes momentos da história do Brasil. Interesso-me também por pesqui-
sas acerca da decolonização do conhecimento linguístico, da construção de
masculinidades e feminilidades negras em contexto brasileiro e da prática da
interseccionalidade gênero-raça-classe como base para análises discursivas,
por meio de articulações teóricas entre o pensamento decolonial afrodiaspó-
rico negro e o escopo teórico-analítico da AD materialista. Atualmente, inte-
gro os grupos de pesquisa “Mulheres em Discurso: Lugares de enunciação e
processos de subjetivação” (IEL/Unicamp) e “DTeR - Discurso e Tensões Ra-
ciais” (UESC). Além disso, construo a Rede de Pesquisadores NegreS de Estu-
dos da Linguagem (REPENSE) e a Associação Nacional de Pós-Graduandos e
Pós-Graduandas (ANPG).

Manoel José Passos Negraes: É bacharel em Sociologia e Política, pós-


-graduado em Sócio-psicologia pela Fundação Escola de Sociologia e Política
de São Paulo, pós-graduado em Antropologia Cultural, pela Pontifícia Uni-
versidade Católica do Paraná, e em Tradução Audiovisual Acessível – Audio-
descrição, pela Universidade Estadual do Ceará. Atua há mais de 15 anos em
defesa dos direitos humanos das Pessoas com Deficiência, com experiência
no Terceiro Setor e no Poder Público. Desde 2018 atua como audiodescritor
consultor, pela Vias Abertas – Comunicação, Cultura e Inclusão, e por outras
empresas.

Marcela Regina Vasconcelos da Silva Nascimento: Doutora em Linguís-


tica pelo Programa de Pós-graduação em Linguística da Universidade Federal
da Paraíba (PROLING-UFPB). Professora Adjunta do Departamento de Letras
do Centro de Artes e Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco
(CAC-UFPE). Docente do Mestrado Profissional em Letras (PROFLETRAS-U-
FPE). Pesquisadora líder do Núcleo de Estudos de Línguas e Discurso (NELD-
-UFPE-CNPq). Realiza pesquisas no âmbito da Análise Dialógica do Discurso,
abordando, principalmente, relações dialógicas, posicionamento axiológico,
verbo-visualidade, gêneros discursivos, enunciação.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 200


Milena Farias de Sousa: Doutoranda em Língua e Cultura pelo Progra-
ma de Pós-Graduação em Língua e Cultura (PPGLINC) da Universidade Fe-
deral da Bahia (UFBA). Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos
da Linguagem (PPGEL) da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Campus
I (2014). Licenciada em Letras - Língua Portuguesa e Literaturas de Língua
Portuguesa pela Universidade do Estado da Bahia (2010). Atua como profes-
sora efetiva de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental II na Rede Muni-
cipal de Ensino de Salvador (BA).

Neila Priscila dos Santos Costa: Mestra e doutoranda em Língua e Cul-


tura pelo Programa de Pós-graduação em Língua e Cultura da UFBA, Univer-
sidade Federal da Bahia, graduada em Letras, Língua Estrangeira Moderna:
Língua Inglesa pela UFBA. Também assina como Neila Sanco, tendo publica-
do seu primeiro romance “A pescadora de verdades” em 2021.

Railda Freitas da Silva Costalonga: Graduanda em Letras-Libras – ba-


charelado em tradução e interpretação, graduada em Bacharel em Direito,
bolsista da Iniciação Científica – PIBIC/PRPPG/UFES e membra do Grupo de
Pesquisa LingCognit- Linguagem e Cognição: escolhas tradutórias e inter-
pretativas - PRPPG/CNPq/Capes/UFES.

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 201


Índice remissivo

A
Acessibilidade 8, 9, 56, 59, 61, 63, 64, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 78, 79, 83, 84, 85, 87,
88, 90, 91, 92, 93, 94, 95, 198

Análise do Discurso 10, 35, 37, 118, 180, 200

D
Deficiência visual 9, 83, 84, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93

Discurso 6, 10, 16, 17, 18, 19, 24, 25, 28, 29, 30, 32, 33, 35, 36, 37, 38, 41, 44, 45,
48, 50, 73, 75, 86, 97, 98, 100, 101, 102, 125, 137, 138, 139, 140, 141, 142, 143, 144,
145, 146, 147, 149, 154, 155, 157, 161, 162, 163, 164, 165, 166, 167, 169, 170, 173, 174,
175, 176, 177, 178, 179, 180, 198
E
Estudos Críticos do Discurso 8, 16, 17, 24, 41
F
Feminismo 6, 9, 10, 28, 33, 108, 118, 124, 125, 126, 127, 128, 130, 135, 137, 138,
139, 140, 142, 143, 144, 145, 146, 147, 148, 150, 152, 153, 154, 156, 157, 171, 180
G
Gênero 8, 10, 16, 17, 20, 21, 22, 23, 24, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 36, 118, 119, 120,
121, 124, 125, 126, 127, 128, 129, 131, 134, 136, 137, 138, 140, 142, 143, 144, 145, 147,
150, 151, 154, 161, 169, 172, 176, 198, 199, 200
I
Ideologia 6, 10, 37, 41, 44, 45, 47, 48, 51, 126, 137, 138, 139, 142, 145, 151, 154, 155,
165

Interseccionalidade 22, 138, 142, 143, 154, 161, 200


J
Justiça social 7, 11, 13, 14, 138, 147, 151, 154
L
Letramento 10, 11, 25, 161

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Libras 5, 8, 9, 53, 54, 55, 56, 57, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 67, 69, 72, 73, 74, 75,
77, 78, 79, 80, 81, 82, 90, 93, 199, 201

Língua 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 18, 20, 24, 25, 32, 53, 54, 55, 56, 59, 60, 61, 62,
64, 65, 66, 70, 74, 75, 78, 81, 91, 100, 101, 115, 138, 139, 145, 154, 165, 197, 198

M
Mulheres negras 22, 120, 124, 125, 126, 128, 130, 131, 132, 133, 134, 135, 161, 168,
169, 171, 173, 200
P
Práticas discursivas 8, 16, 24, 29
R
Racismo 8, 10, 32, 35, 37, 38, 39, 40, 41, 43, 45, 46, 49, 50, 51, 52, 120, 121, 123,
124, 126, 127, 128, 130, 131, 134, 135, 147, 161, 168, 169, 171, 177, 181, 186, 194

Religião 10, 18, 20, 148, 161

Representações 9, 16, 17, 18, 20, 23, 25, 33, 66, 98, 118, 130, 131, 143, 148, 149,
150, 151, 152, 153, 198
S
Sexualidade 10, 33, 130, 138, 142, 143, 146, 147, 161, 172, 176
T
TILS 8, 9, 56, 57, 59, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 68, 69, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77,
78, 79
V
Violência 8, 12, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 25, 29, 32, 34, 43, 111, 127, 130, 131, 146

LÍNGUA(GEM) E JUSTIÇA SOCIAL: SABERES, PRÁTICAS E PARADIGMAS | VOLUME 1 203

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