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Abstract
We will seek to present in this brief paper, some considerations
about anti-Haitian discourse, who produced and disseminated in the long
term, is the foundation on which sits a certain tradition of Haitian identi-
ty. It is a narrative about the development and the establishment of these
discourses, whose origins - in the presented perspective - date back to
the colonial period, from the relations established between colonizers and
colonized, and develop in an unique way from the Revolution trauma,
which features on the one hand, as the foundational framework of the
Haitian people, and on the other, its denegation. We will seek to demon-
strate how the recurrence of certain remains of this discourse, mapped
throughout the text, allows us to sketch the outline of a tradition in which
the Haitian identities emerge, in most cases, under a negative bias, de-
rogatory, and sometimes, barbarian.
Keywords: Haiti. Anti-haitianism. Identity. Respresentation. Discourse.
*
Recebido em: 15/09/2015.
Aprovado em: 19/10/2015.
1
Mestre e Doutorando pelo Programa de Pós-
-Graduação em História da Universidade Fede-
ral de Goiás (PPGH/UFG). E-mail: advascon-
celos@ig.com.br.
Alex Donizete Vasconcelos
próximo àquilo que Abdala Junior (2002, p. 50) designou ção que, segundo acreditamos, ainda perdura.
como um “exercício de hegemonia”, que “[...] não se faz Uma das primeiras controvérsias envolvendo es-
apenas com coerção, mas com a circulação de ideias, que ses discursos tem lugar na polêmica estabelecida entre o
têm atores determinados, que se situam em determinados Frei dominicano Bartolomé de Las Casas (1574-1556) e o
territórios.” O discurso é, nesse sentido, segundo Fernan- espanhol Juan Ginés de Sepúlveda (1490-1573), em fun-
des (2012, p. 80) “[...] ferramenta de luta e objeto pelo ção da exploração /escravização dos nativos pelos con-
qual se luta, do qual os sujeitos desejam apoderar.” É por quistadores e colonizadores ibéricos. Da defesa procedida
meio do discurso, entendido como algo que extrapola a por Las Casas em favor dos nativos resultou a publicação
língua e a textualidade, que se constrói no imbricamento da Brevissíma Relação Sobre a Destruição das Índias, em
do social com o histórico; que as identidades são confor- 1552. Os principais desdobramentos desse embate foram,
madas, que os indivíduos, interpelados pela ideologia, em linhas muito gerais, a proibição, ainda que formal,
conforme Althusser (1985, p. 96), são “recrutados” ou pela Coroa espanhola, da escravização e do comércio do
“transformados” em “sujeitos”. Interessa-nos, assim, de- índio e a o acatamento da sugestão de Las Casas para que
fossem trazidos escravos negros da África para substituir
a mão de obra dos nativos americanos.
2
Em sua resolução 1542 (2004), de 30 de abril de 2004, o Con- A introdução massiva dos negros africanos impli-
selho de Segurança da ONU estabeleceu a Missão de Estabi-
cará profundas alterações sociopolíticas, econômicas e
lização das Nações Unidas no Haiti (MINUSTAH) por um
período inicial de seis meses, com a intenção de prorrogá-la, culturais no Novo Mundo. Bruit (1988, p. 151) afirma que
e pediu que a autoridade da Força Multinacional Provisória Las Casas, apesar de seus louváveis intentos, deixou-nos
(FMP), que atuava no país desde a deposição de Aristide,
52 fosse passada a MINUSTAH, em 1° de junho de 2004. uma inextirpável herança: “[...] a imagem de um povo
Anti-haitianismo: uma tradição de identidade haitiana?
com vocação para escravo, resignado a viver uma história nizador opera, via discurso, o assujeitamento ideológico
que não lhe pertence, porque é a história do outro, abdi- desses “povos sujeitos” começam a surgir, no entanto, de-
cando de sua condição de sujeito, de sua ação e do seu terminadas dissonâncias, que, em diferentes momentos,
pensamento.” O desenvolvimento e a propagação dessa espaços e gradações, acabaram provocando fissuras no
imagem, sobretudo a partir de meados do século XVIII, interior desse sistema de dominação.
repercutirá diretamente na ampliação do escopo daqueles Uma dessas fissuras, certamente uma das mais
discursos e nos eventos que levarão à formação do Es- significativas, foi a Revolução Haitiana, que teve lugar na
tado Haitiano, pois o negro, ao ser inserido no sistema antiga colônia francesa de Saint-Domingue, no final do
colonial, passa a ser alvo, também, de todas as agressões século XVIII. É a partir dessa Revolução, que se trans-
e anátemas que já pesavam sobre o nativo. Como afirma- forma no marco fundante da nação haitiana, que dada
ram Stein & Stein (1987, p. 51) “A chegada do negro es- discursividade, anti-haitiana – tributária dos discursos
cravo [...] adicionou um novo fator étnico. Seu fenótipo coloniais, e, de certa forma, matriz para o delineamen-
e inferioridade, legalmente sancionados, ajustaram-no de to dessa tradição de identidade haitiana – se desenvolve.
imediato à sociedade [...]”. Alicerçados sobre os estigmas degenerativos e inferiori-
O olhar do colonizador não pode, no mais das zantes do discurso colonial, os discursos anti-haitianistas
vezes, perceber e/ou tolerar as diferenças e, se as per- orientarão os discursos de identidade haitianos, dando
cebe, busca homogeneizá-las, o que faz, quase sempre, ensejo ao desenvolvimento daquilo que denominamos
por meio daquilo que Godoy (2003, p. 101) chamou de neste artigo como uma tradição de identidade haitiana.
“arma da cultura”, empregada na imposição de modelos
dominantes que contribuem decisivamente para a desca- 3 Da Revolução à tradição
racterização e o desmantelamento das culturas das socie-
dades colonizadas. Ao componente cultural, que figurava Nossas inquietações acerca das origens dessa tra-
como central na dissimetria das relações existentes entre dição de identidade haitiana nos conduziram, então, para
o colonizador – civilizado – e o colonizado – bárbaro/ um espaço temporal localizado aquém do marco fun-
incivilizado – , é acrescentado o componente racial, que, dante da nação haitiana. Constatamos que os discursos
dadas as condições sociopolíticas do período, dão ensejo anti-haitianistas, apesar do aparente paradoxo, deitavam
ao desenvolvimento de determinadas práticas racistas e raízes na longa duração, nos discursos engendrados pelos
de – difusa – ganha contornos próprios, dando opor- salvajismo, de despotismo inherentes a una población de
tunidade ao desenvolvimento e o estabelecimento de ‘raza negra’ cercenada del mundo ‘blanco’.”
um discurso anti-haitianista propriamente dito. Nesse Desse modo a Revolução passa a figurar como um
sentido, conforme pontuou Scaramal (2006, p. 7) “Os marco referencial para o desenvolvimento de um discur-
argumentos anti-haitianistas disseminaram-se a partir so anti-haitaino, que, normalizando, estabelece um recor-
da revolução dos escravos e da luta pela independên- te a partir do qual o outro surge como uma excrescência,
cia do país, representando a abjeção ao haitiano uma tornando-se perigo e ameaça. Santana (2003, p. 59) afir-
espécie de continuidade dessas proposições.” Essa dis- ma que foi “[...] justamente o feito de ser o primeiro país
cursividade toma forma e se estrutura, então, a partir negro a conseguir sua independência no mundo que fez
da reação das metrópoles coloniais – França, Inglater- com que o Haiti passasse a figurar como o lócus da bar-
ra, Espanha – à derrota que lhes fora infligida pelos bárie por excelência.”, ao que acrescenta, corroborando
negros de Saint-Domingue, oficializada em janeiro de nossos apontamentos, que também a América, há tem-
1804, quando Jean-Jacques Dessalines, um dos líderes pos, figurava no centro de uma tradição que a configura
da Revolução, proclamou oficialmente a independên- como “[...] um continente de povos atrasados e degenera-
cia daquela que seria a primeira república negra inde- dos, forjando toda uma série de estigmas no imaginário
pendente do mundo e, para todo o sempre, uma nódoa europeu e também americano.” (SANTANA, 2003, p. 59).
no sistema colonial praticado nas Américas e no Cari- Desenvolve-se, então, corroborando Gates Júnior
be. Segundo Gates Júnior (214, p. 239), (2014), a partir da ameaça representada pelo levante dos
praticamente todo o mundo ocidental aliou-se negros haitianos, determinado haitianismo, que pode ser
para sufocar a nova república no berço. Mesmo entendido – em linhas gerais como certo temor desenvol-
quando não se entendiam entre si, a França, a
Inglaterra e os Estados Unidos uniam forças vido por parte das elites coloniais, sobretudo dos proprie-
contra o Haiti. Recusavam-se a reconhecê-lo tários de escravos, de que o ocorrido em Saint-Domingue
como uma nação legítima. A simples lembrança
pudesse encorajar os escravos de outras localidades a se
do Haiti era uma ameaça grande demais [...] Es-
ses países não podiam permitir que o exemplo rebelar contra o sistema instituído. O anti-haitianismo
do Haiti motivasse outros negros no Caribe, na – fruto, em grande parte desse temor, dos rancores e da
América Latina e, principalmente, no sul dos
Estados Unidos, a lutar para libertar-se da es- aversão desenvolvidos contra o haitiano em função da
cravidão. Entretanto, é claro que o exemplo da derrota infligida por estes às principais metrópoles colo-
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revolução teve exatamente esse efeito. niais da época – vem à esteira do haitianismo, podendo
Dessa forma o Haiti não seria aceito ou reconhe- ser caracterizado, também em linhas gerais, como um viés
cido como um país independente – a não ser tardiamen- ideológico-discursivo detrator, estigmatizante, fundado
te e, no caso da França, mediante o pagamento de uma sobre um conjunto de preconceitos históricos, culturais e
vultuosa “indenização” – por nenhum dos países com raciais de origem colonial, que acaba ganhando força com
quem mantivera relações durante o período colonial e, o advento da Revolução, extrapolando os limites da ilha.
em especial, ao longo da Revolução; pelo contrário. Os Poderíamos dizer, dessa forma, que tanto o haitianismo
excessos e os horrores cometidos de ambos os lados nas quanto o anti-haitianismo constituem-se como desdo-
encarniçadas disputas entre metrópole e colônia levaram bramentos da revolução, diferindo-se, principalmente,
alguns grupos da colônia – tanto de brancos quanto de pelo fato de que, enquanto o haitianismo permanece li-
negros – ao estupor, (PATTEE, 2008, p. 58). Assim, esse gado a ela, o anti-haitianismo avança, superando seus li-
estranhamento contribuiu para que determinadas cons- mites espaço-temporais, como teremos oportunidade de
truções discursivas e identitárias, gestadas no período observar. Assim, segundo Santana (2003, p. 61),
anterior, fossem instrumentalizadas e ganhassem novo
o ensinamento do homem negro, o negro haitia-
impulso. Esse conjunto de representações foi sendo in- no, passou a ser caracterizado como um exem-
trojetado no imaginário coletivo, por meio da utilização plos práticos da barbárie que os povos de origem
africana podiam chegar. Desta forma, o antigo
de um aparato discursivo amplo e diversificado e de certa escravo haitiano se converteu em um espectro
gestão da memória. Conforme assinalou Hurbon (1993, sedento de sangue de seu amo branco, um as-
sassino, estuprador, canibal e posteriormente em
p. 44), uma vez independentes, “[...] muy pronto, cirula-
bárbaro. O Haiti então passa a representar um
54 rán a través de toda Europa rumores de canibalismo, de exemplo tão perturbador quanto perigoso, por
Anti-haitianismo: uma tradição de identidade haitiana?
(1884), de St. John Spencer4. Com Hayti or the Black improvement; on the contrary, he is gradually
retrograding to the African tribal customs [...] I
Republic os discursos anti-haitianistas atingem seu pa- now agree with those who deny that the negro
roxismo, ganhando novos contornos. St. John estabele- could ever originate a civilisation (sic.), and that
ce, segundo Pattee (2008, p. 146-147), uma tradição de with the best of educations he remains an infe-
rior type of man. He has as yet show himself to-
literária grotesca ou escandalosa sobre o Haiti. Pattee tally unfitted for self-government, and incapab-
(2008, p. 146-147) afirma ainda que le as a people to make any progress whatever.
[...] It is pitiable to read their history, and see
[...] desde mediados del siglo pasado, la litera- how they are almost ever swayed by the meanest
tura grotesca ha conocido tal auge, que duran- impulses of personal interest and ambition, and
te algún tiempo, especialmente en los Estados how seldom they act from patriotic motives.
Unidos, estava de moda publicar libro tras libro
del tema haitiano, cada uno más fantástico en Na esteira de St. John – ou da tradição por ele inau-
sus tergiversiones que el anterior [...] Haití se gurada, de acordo com Pattee (2008) – surge considerável
ha presentado como una especie de cámara de
número de autores/obras5 que, influenciados em maior
horrores, donde el ambiente esta impregnado
de misteriosas fuerzas y los destinos de la masa ou menor medida pela obra espenseriana, contribuem,
de la gente presididos por creencias atávicas que sobremaneira, para robustecer os discursos anti-haitia-
repugnan al siglo XX.
nistas, reforçando estigmas, àquela altura seculares, que
Ocupado em descrever as maneiras e os costumes
pesavam – e, segundo acreditamos, ainda pesam – sobre
daquilo que denomina como popular and untravelled
o povo haitiano. Segundo Hurbon (1993, p. 72), “Desde
classes, ou seja, das massas, St. John redige um compên-
la aparición de la devastadora obra de Spencer [...] hasta
dio da denegação e da detração ao haitiano. Nas páginas
cerca de la década de 1940, no parece que haya habido una
de Hayti or the Black Republic, o haitiano insurge como
tregua o un periodo de calma en las campañas dirigidas en
um selvagem, supersticioso, libidinoso, indolente, inca-
el estrajero contra Haití.” (Grifo nosso). No período apon-
paz, bárbaro e canibal. O livro de St. John torna-se, as-
tado por Hurbon (1993), compreendido entre a última
sim, breviário dos discursos e estigmas apresentados de
década do século XIX e as primeiras quatro décadas do
maneira esparsa nas obras que o antecederam. Segundo
século XX, haverá, no entanto, inflexão no direcionamen-
Hurbon (1993, p. 71), “[...] es con la aparición de la obra
to dado a essa discursividade. Pela primeira vez desde a
de Spencer St John [...] quando se forjará en Europa la re-
independência, em 1804, os discursos anti-haitianistas
putacion de Haiti, ‘país de bárbaros’”. A obra de St. John
serão empregados como parte de uma estratégia de Esta-
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consequences did not constitute the cause of American e a divulgação de elementos que contribuíram para tecer
intervention in Haiti, but merely furnished the awaited a imagem do país como um locus da barbárie.” Logo, a in-
opportunity.” (JOHNSON, 1920, p. 7). Esse discurso re- tervenção passa a figurar nos discursos anti-haitianistas
leva a ideia – ainda corrente, mesmo que carente de sus- como uma espécie de atestado da incapacidade do povo
tentação – de que o haitiano, não bastasse ser incapaz haitiano – e, por conseguinte, do negro – para o autogo-
de se autogovernar, constituía (e), também, um perigo e verno ou para os padrões ocidentais de civilização. Castor
uma ameaça para a paz e a estabilidade da região. Segun- (1971, p. 11) afirma que Esa situación daba lugar en extran-
do Hurbon (1993, p. 86), “Para los norteamericanos que jero a interpretaciones malintencionadas. [que] Invocaban
se encuentran con esta ideologia ‘prefabricada’ [...] Haití, a menudo el caso de Haití para apoyar su tesis acerca de la
hundido en la noche del salvajismo, só se pondrá sobre el pretendida incapacidad de la raza negra para gobernarse.
caminho de la civilización solamente merced a una ocupa- Os marines estadunidenses deixam o Haiti em
cion o recolonización”. 1934, em meio a uma onda de greves e protestos que, ini-
A intervenção estadunidense do Haiti de 1915 a ciados nos últimos anos da década de 1920, contava com
1934 desenvolve-se, então, por um lado, como parte da a participação de amplos setores da sociedade e buscavam
política estratégica dos Estados Unidos, norteada pela retomar a direção dos destinos do país. É possível obser-
doutrina Monroe7 e no corolário Roosevelt8, que buscava var também, nesse período, em meio a essa efervescência
defender seus interesses políticos e econômicos do país na política e social, o despertar de um grupo de intelectuais
região caribenha e latino-americana9 – ao mesmo tempo haitianos – cujo maior expoente foi Jean-Price Mars –
que contribuía para a “[...] construcción de la identidad que, engajados na luta contra o invasor, liderando ou to-
estadunidense como sociedad civilizada, hegemónica, ex- mando parte nos movimentos de protesto10 que eclodiam
pansionista y liberal.” (SANTOS, 2012, p. 4) – e, por ou- pelo país, procuram repensar as identidades haitianas por
tro, como uma consequência da fragilidade sociopolítica meio de uma revisão histórica e cultural, orientada no
e econômica do Estado haitiano, que acabava reforçando, sentido de valorizar e exaltar as raízes sociais e culturais
ainda mais, os motes anti-haitianistas que recaíam sobre africanas, sob as quais recaíam grande parte das críticas
o país. anti-haitianistas.
Corroborando essa perspectiva, Scaramal (2006, p. Concomitantemente tinha lugar, no outro lado
62) afirma que “o episódio da primeira invasão dos Esta- da ilha, na República Dominicana – que também estive-
Haití y el destino dominicano13, e Orígenes del Estado hai- tes que se sucedem no poder só o fazem contando com
tano (1954), de Peña Batlle, que constitui a primeira parte o beneplácito do governo dos Estados Unidos, devendo
uma obra inacabada, interrompida pela morte prematura estar sempre alinhados com suas políticas regionais. Os
de Peña Batlle, em 195414. descontentamentos, gerados, em grande parte, em de-
La Isla al Revés e Origenes del Estado Haitiano corrência dessa política subserviente, conduzem o país
constituem, assim, uma clara tentativa de construção de a mais uma crise, que culmina com a deposição de Paul
dada dominicanidade, operada a partir da desconstrução Magloire, em 1956, abrindo um vazio de poder no país.
das identidades haitianas. Tal desconstrução é operada É em meio a essa crise que o médico François Duvalier, o
por meio da reprodução de determinados motes anti-hai- Papa Doc, começa a ganhar projeção. Valendo-se de sua
tianistas, destacadamente racistas, no caso de Balaguer, e grande desenvoltura e articulação política e social, e con-
políticos e culturais, no caso de Peña Batlle. Enquanto, tando com o aval dos Estados Unidos, Papa Doc é eleito
para Peña Batlle, o Haiti surge como “[...] una sociedad presidente em 1956, dando início, em 1957, a um dos pe-
sin historia propriamente dicha, sin antecedentes tradicio- ríodos mais obscuros da história do país15.
nales, sin punto de partida y sin raíces espirituales.”, Bala- Instala-se, então, uma ditadura atroz e sanguiná-
guer o apresenta um como um país povoado por negros ria, cujas figuras emblemáticas são os Tontons Macoutes16,
de “una raza inferior”, “tarados por lacras físicas depri- que, a serviço dos ditadores, implantam a “paz dos cemi-
mentes” e praticantes “[...] de el incesto y otras prácticas térios”, silenciando, num curto espaço de tempo, grande
no menos bárbaras [com] tremendas deformaciones mo- parte das vozes de oposição ao sistema. Papa Doc, um re-
rales.” (BALAGUER, 1993, p. 35-36, 49-82). presentante da elite negra do país, aproxima-se das mas-
É possível notar, nessas proposições, a proximi- sas, tornando-se um ferrenho defensor do Vodu e da ne-
dade entre esses discursos e aqueles que, em outros mo- gritude, governando por meio de uma política populista
mentos, buscavam caracterizar os nativos ou mesmo os e patrimonialista. Segundo Grondin (1985, p. 48) “Duva-
revolucionários haitianos. Há, ao que parece, a manifesta- lier manipulou as massas e projetou-se como o presidente
ção de dada memória discursiva, que, segundo Fernandes delas. Para manter-se no poder, Duvalier submeteu o país
(2012, p. 95), “[...] refere-se ao reaparecimento de discur- à hegemonia norte-americana no Caribe: fez do Haiti um
sos e/ou acontecimentos outros, de diferentes momentos satélite incondicional do país do Norte.”
históricos, [...] certa reaparição do passado em novas con- A política dos Duvalier, caracterizada, em gran-
da, uma economia arruinada, a própria nação traumati- meiros anos da década de 1990. Mais uma vez o haitiano
zada, o homem haitiano profundamente alterado em seu é tomado como um perigo e uma ameaça. Tem início,
ser por esta maquinaria do terror e da corrupção.” nesse período, o estabelecimento de uma série de mis-
À queda de Jean-Claude Duvalier, em 1986, provo- sões da ONU/OEA18, que, afora seu viés humanitário,
cada em grande parte como decorrência do esgotamento destinavam-se, em alguma medida, a contenção do hai-
daquele modelo político, representado pela mobilização tianos em seu próprio território.
de amplos setores da sociedade haitiana, sobrevém outro Aristide retorna ao poder em 1995, contando, para
vazio de poder que dura até o início da década de 1990, tanto, com o apoio dos Estados Unidos. Alguns de seus
quando o ex-padre salesiano Jean-Bertrand Aristide é opositores e antigos aliados o acusam de ter se curvado
eleito para presidência, em meio a uma intensa agitação aos desígnios das políticas estadunidenses, traindo os
social. Aristide, detentor de uma oratória singular, sur- ideais que o haviam conduzido ao poder. Antes de deixar
ge como um representante das massas despossuídas do o poder, em 1996, Aristide, tentando implementar uma
Haiti. Usa os púlpitos eclesiásticos para se levantar contra série de reformas políticas e econômicas, extingue as For-
o duvalierismo, por um lado, e contra o ‘imperialismo’ ças Armadas do Haiti (FAd’H), criando, ainda que não
estadunidense, por outro. Tout mon se mon17, dizia Aris- soubesse, o principal fator de instabilidade de seu segun-
tide, sendo aclamado como “pai dos pobres”, pelas massas do mandado, iniciado no ano de 2001, após o governo
até então ignoradas. O discurso de Aristide o aproxima de seu sucessor, seu antigo ministro René Garcia Préval.
das massas, com quem mantém uma aparente comunhão. Seu segundo mandato, apesar da aclamação popular, se-
A tentativa frustrada de golpe perpetrada por Roger La- ria breve e conturbado, não diferindo muito do primeiro.
fontant, um duvalierista ligado aos Tonton Macoutes em Aristide, que a todo tempo se valera de sua popularidade
7 de fevereiro de 1991, constituíam uma mostra do que para ascender e para se manter no poder, renuncia – ou é
seria sua estada a frente do governo haitiano. Aristide não deposto do poder – em 28 de fevereiro de 2004, diante da
completaria um ano de mandato e sofreria novo golpe, ameaça da invasão da capital, Porto Príncipe, por ex-mi-
dessa vez bem sucedido, encabeçado por Raoul Cedras, litares das FAd’H, os mesmos que, em 1995, haviam sido
Comandante-em-Chefe das Forças Armadas do Haiti. A destituídos de suas funções por Aristide.
ascensão de Cedras ao poder faz com que o país mergulhe, A queda – ou a retirada – de Aristide do poder
uma vez mais, em uma grave crise política e humanitária, em 2004 representa mais um capítulo da conturbada his-
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na qual, segundo estimativas, de três a cinco mil pessoas tória haitiana, ao mesmo tempo que parece corroborar
perderam suas vidas e outros tantos foram deportados ou um dos argumentos basilares dos discursos e da ideolo-
expulsos do país, inaugurando o que Wooding (2010, p. gia anti-haitianista. Num interregno de pouco mais de
114) denominou “la crise de los boat people”. uma década, Aristide vai de esperança a desilusão do
O boat people, representado pela icônica figura povo haitiano. O fracasso de Aristide surge, no interior
do refugiado que, mediante as graves perturbações so- dessa ideologia, como uma demonstração da pertinên-
ciopolíticas e econômicas vividas em seu país, lança-se cia de suas proposições, sobretudo daquelas que buscam
ao mar em embarcações improvisadas, rumando em representar o haitiano como incapaz de se autogovernar.
direção aos países vizinhos, sobretudo para a costa da O estabelecimento da MINUSTAH, em junho de 2004,
Flórida, nos Estados Unidos, reascende e reforça a ab- figura, assim, aos moldes do que ocorrera em julho de
jeção e a repulsa com relação ao haitiano. As políticas 1915, como um atestado da incapacidade e/ou da inépcia
de imigração dos Estados Unidos não reconhecem os
haitianos como refugiados políticos, o que acaba fazen-
do com que haja deportações em massa durante os pri-
18
Ao todo foram seis missões que precederam à última (MI-
NUSTAH), ainda curso: a Missão Civil Internacional no
Haiti (MICIVIH), OEA/ONU, em 1993; a Missão das Na-
ções Unidas no Haiti (UNMIH), da ONU, em 1993; a Missão
17
Os discursos anti-haitianistas parecem exercer um poder tão de Apoio das Nações Unidas no Haiti (UNSMIH), da ONU,
grande, tanto sobre os haitianos quanto sobre aqueles com em 1996; a Missão das Nações Unidas de Transição no Haiti
quem esses se ligam, que Aristide, ao reconhecer e a condi- (UNTMIH), da ONU, em 1997; a Missão de Polícia Civil das
ção de cidadãos ao povo haitiano, torna-se, num breve espa- Nações Unidas no Haiti (MIPONUH), da ONU, em 1997; a
ço de tempo, um líder carismático para as massas haitianas Missão de Apoio Internacional Civil no Haiti (MICAH), da
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e, uma ameaça às elites e aos interesses externos. a OEA e o CARICOM, em 2000.
Anti-haitianismo: uma tradição de identidade haitiana?
não só de Aristide, mas do povo haitiano, sobretudo das em suas relações com o outro, seja ele caribenho, o do-
massas, por ele representadas, para figurar como protago- minicano, o estadunidense, e/ou ainda, contemporanea-
nistas de sua própria história. mente, os membros dos contingentes civis e militares da
MINUSTAH, oriundos de um total aproximado de mais
4 Anti-haitianismos no contexto da MINUSTAH de trinta e nove países, que se revezam semestralmente,
em solo haitiano, há mais de dez anos. Podemos afirmar,
Os discursos a partir dos quais as identidades enquanto partícipes de um desses contingentes militares
haitianas são pensadas, no contexto da intervenção da da MINUSTAH20, que esses sujeitos, oriundos dos cinco
MINUSTAH, são/foram produzidos a partir de uma continentes do globo, desempenharam/desempenham
multiplicidade de agentes, espaços e atores, que vão de um papel relevante na reprodução e na disseminação dos
discursos oficiais da ONU à publicações em periódicos/ discursos que animam esses anti-haitianismos ao com-
jornais, de agências internacionais, ou mesmo haitianas, partilharem com os seus, muitas vezes de maneira sensa-
de especialistas, de críticos e de cronistas. Tal corpus, dada cionalista e destituída de crítica, a situação atual do país.
sua diversidade, permite que se estabeleçam recortes, Foi também no contexto dessa última intervenção
buscando pontos de convergências que caracterizam um – MINUSTAH – que ainda perdura, que “los medios de
discurso que vai da detração à vitimização do haitiano, comunicación”, apontados anteriormente por Moya Pons,
subjetivando-o, uma vez que as teleobjetivas das câmeras passaram a desempenhar um papel ainda mais relevante
buscam retratar apenas o espetáculo do caos e da miséria na reprodução e na disseminação desses ideais anti-hai-
produzidos por séculos de jugo colonialista-imperialista, tianistas. A última crise haitiana – cujas origens podem
indiferença e ostracismo. ser buscadas no primeiro golpe militar sofrido por Jean-
É justamente a partir da apropriação e do envie- -Bertrand Aristides em setembro de 1991, cujos desdo-
samento ideológico dessa conturbada historicidade19 que bramentos irão culminar com a intervenção da MINUS-
os discursos anti-haitianistas se estruturam e ganham es- TAH, iniciada em 2004 – tem lugar em um momento que
paço, sendo tomados, por vezes, como verdades pacíficas os aparatos midiáticos, sobretudo aqueles disseminados a
e incontestes. Nessa perspectiva fatalista, o ‘problema’ do partir da rede mundial de computadores passam a orien-
Haiti passa a não ser outro, senão os próprios haitianos, tar, de maneira permanente e decisiva, as opiniões e as
conforme pontuou Bhabha (2003, p. 127) “A população percepções de uma parcela significativa da população
Trata-se, assim, da apropriação e da reprodução estrangeiros” de que falava Heleno (2005), longe de cons-
de determinados discursos com o propósito de, por um tituírem simples acasos, representam a manifestação da
lado, fortalecer determinados estereótipos que pesam so- tradição que aqui buscamos desvelar.
bre o Haiti e seu povo, e, por outro, isentar a comunidade A espetacularização do drama haitiano consti-
internacional pelos sucessivos fracassos experimentados tuía, nos anos que se seguiram à ocupação, fator que
no Haiti. Nessa perspectiva, conforme pontuou Bhabha inibia a aproximação daqueles que poderiam contribuir
(2003), o problema do Haiti são os haitianos. É, portanto, para amenizar o drama vivido pela população, ao mesmo
pelo agenciamento desses discursos (textuais ou imagéti- tempo que favorecia quem dela se beneficiava. Ao serem
cos) pela mídias – ou pelo colonizador –, que dada tradi- discutidas alternativas para o desenvolvimento social
ção de identidade sobressai e se mantém, pois, segundo econômico do Haiti, um grupo de empresários haitianos/
SILVA (2009, p. 96), a identidade é um ato performativo, estrangeiros “insistiram especialmente na necessidade
sempre em construção, ligada a estruturas discursivas, de melhorar a imagem negativa do Haiti no exterior e
narrativas e a sistemas de representação, que mantém es- de apresentá-lo sob uma luz mais favorável [...]” (ONU,
treitas conexões com relações de poder. 2009, p. 12), o que demonstra o poder dessas represen-
Existe no Haiti, como diria Joinet (2005, p. 19), tações na conformação das representações e, logo, das
especialista independente contratado pela ONU, o que se identidades haitianas. A partir dos trechos apresentados,
convencionou chamar de “cultura/síndrome do rumor”. podemos depreender a existência de uma tendência em
Há, ao que parece, uma considerável distância entre o se reforçar ou perpetuar essa imagem negativa do Haiti,
universo factual, das práticas cotidianas, e aquele cons- retratando-o como um Estado em permanente anarquia e
truído por meio dos diferentes discursos, sobretudo os caos, corroborando as assertivas de Heleno acerca do di-
midiáticos. Heleno21 (PEREIRA, 2005, p. 14), primeiro recionamento dado pela imprensa às notícias veiculadas
comandante dos componentes militares da MINUSTAH sobre o Haiti, que privilegiariam os seus aspectos negati-
no Haiti, corrobora essa perspectiva ao afirmar que vos, potencializando-os e, sobretudo, da permanência de
[...] no Haiti, a imprensa e os correspondentes um determinado discurso, anti-haitinista.
estrangeiros, principalmente, estão ali para pas- Outro momento ímpar da ocupação, e do paro-
sar ao resto do mundo a ideia de desorganiza-
ção, e eles não só transmitem essa ideia, como xismo desses discursos, marcado por uma das maiores
exageram para valorizar o seu próprio trabalho. tragédias naturais, se não a maior, das últimas décadas
Universitas Relações Internacionais, Brasília, v. 13, n. 2, p. 51-65, jul./dez. 2015
internacional para com o país, mas também, e de maneira BALAGUER, Joaquín. La realidad dominicana:
ainda mais contundente, a abjeção potencializada por um semblanza de un país y de su régimen. Buenos Aires:
Ferrari Hermanos, 1947.
discurso que, como tentamos demonstrar durante todo o
nosso trabalho, coloca o haitiano no limiar da condição BALAGUER, Joaquín. La isla al revés: Haiti y el destino
humana. As aproximações da natureza desses discursos, dominicano. Santo Domingo: Corripio, 1993.
bem como as permanências observadas, evidenciam a
BATTLE, Manuel Arturo Peña. Orígenes del Estado
existência de uma determinada tradição que teima em Haitian. Trujillo: Montalvo, 1954.
não silenciar e que coloca o povo haitiano como contra-
ponto da identidade que o outro busca estabelecer para BHABHA, Homi K. Interrogando a identidade: Franz
si mesmo. Fanon e a prerrogativa pós colonial. In: ______. O local
da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2003. p. 70-104.
O outro, branco, civilizado e dotado de capacida-
des que o haitiano ‘não possui’, enfatiza neste apenas o BOLL, Maria Amália Azevedo; BONNICI, Thomas. O
que, por outro lado, lhe confere uma superioridade apa- preconceito racial e a fragmentação do sujeito em ‘Uma
margem distante’, de Caryl Phillips. Revista Fragmentos,
rentemente natural, “a identidade”, como afirmou Silva
Florianópolis, n. 33, p. 83-96, jul./dez. 2007.
(2009, p. 80). É essa imagem que, (re)produzida desde os
tempos coloniais, orienta os discursos produzidos acer- BRUIT, Héctor Hernan. América Latina: quinhentos
ca do Haiti: um país de negros incapazes, débil, caótico anos entre a resistência e a revolução. Rev. Brás. Hist, São
Paulo, v. 10, n. 20, p. 147-171, mar. /ago. 1991.
e totalmente dependente da ajuda internacional. Como
afirmou Schwartsman (2010, p. on-line), “No Brasil, [e CASTOR, Suzy. La ocupación norteamericana de Haiti y
não só aqui] Haiti virou sinônimo de miséria e das pio- sus consecuencias 1915-1934. Ciudad de México : Casa de
res mazelas da pobreza. Na França, designações comuns las Américas, 1971.
para o país caribenho incluem ‘nação patética’ e ‘pedaço CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de
da África perdido no meio das Américas’. Janeiro: Forense Universitária, 2002.
A MINUSTAH permanece, ainda hoje, em solo
COUTINHO, Eduardo F. Mestiçagem e multiculturalismo
haitiano, sem previsão para deixar o país. O período pós-
na construção da identidade cultural latino-americana.
-terremoto trouxe outras, e novas, dificuldades para o Revista Biblioteca Mário de Andrade, São Paulo, v. 58, p.
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