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O trabalho do Cirurgião-Dentista na Atenção


Primária à Saúde: entre o prescrito e o real
The work of the dental surgeon in Primary Health Care: between the
prescribed and the real

Wagner Gomes Reis1, Magda Duarte dos Anjos Scherer2, Daniela Lemos Carcereri3

RESUMO No cenário mundial, o Cirurgião-Dentista atua, sobretudo, no setor privado. No


Brasil, esta realidade começa a mudar com a inclusão desse profissional na Estratégia Saúde
da Família (ESF). Este estudo de caso realizado no Centro-Oeste do Brasil busca compreender
o trabalho do dentista nesse contexto, através de análise documental, observação do trabalho
e entrevistas. Da análise temática de conteúdo emergiram duas categorias: condições para o
trabalho na ESF e modo de trabalho na ESF. A influência histórica do modelo de atenção indi-
vidual, o contexto adverso do trabalho, as concepções de ESF dos profissionais e a autonomia
que lhes é conferida restringem sua atuação.

PALAVRAS-CHAVE Saúde bucal; Atenção Primária à Saúde; Odontólogos.

ABSTRACT On the world scene, the dental surgeon acts, mostly, in the private sector. In Brazil
this reality begins to change with the inclusion of this professional in the Family Health Strategy
(ESF). This case study performed in the central-western of Brazil seeks to comprehend the den-
tist’s work within this context, through documental analysis, observation of work and interviews.
From the thematic overview of content emerged two categories: the working conditions and the
way of working at the ESF. The historical influence of the individual care model, the adverse
context of work, the conceptions that professionals have about ESF and the autonomy which is
granted to them constrain their performance.

KEYWORDS Oral health; Primary Health Care; Dentists.

1 Secretaria de Saúde do
Distrito Federal – Brasília
(DF), Brasil.
wgreis@globo.com

2 Universidadede Brasília
(UnB), Departamento de
Saúde Coletiva – Brasília
(DF), Brasil.
magscherer@hotmail.com

3 Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC),
Departamento de
Odontologia – Florianópolis
(SC), Brasil.
daniela_carcereri@hotmail.
com

SAÚDE DEBATE | rio de Janeiro, v. 39, n. 104, p. 56-64, JAN-MAR 2015 DOI: 10.1590/0103-110420151040608
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Introdução Para atuar na ESF o CD precisa desenvol-


ver competências para além do seu ‘núcleo
O modelo brasileiro de atenção à saúde do saber’, saindo do isolamento da prática
caracteriza-se pela conjugação de ações e restrita ao consultório e ao equipamento
serviços de promoção, proteção e recupe- odontológico, assumindo um novo papel na
ração da saúde, sendo organizado de forma equipe e nas ações de promoção à saúde. E
regionalizada e hierarquizada. Sua princi- isto se constitui em um desafio, na medida
pal porta de entrada é a Atenção Primária à em que se faz necessário integrar a prática
Saúde (APS), que deve ser a ordenadora da dos profissionais diante de um cenário
rede de atenção, preferencialmente por meio marcado pela maneira fragmentada com
da Estratégia Saúde da Família (ESF). que cada especialidade ou subespecialida-
A ESF vem demonstrando potência para de cuida de apenas uma parte da atividade
reorganizar a prática na APS. Constitui-se (SCHERER; PIRES; SCHWARTZ, 2009).
em inovação tecnológica na gestão e na or- Toda atividade profissional apresenta um
ganização do trabalho, e reúne diretrizes de aspecto que envolve sua prescrição, ou seja,
vanguarda (MATTOS ET AL., 2014). É operaciona- um conjunto de antecipações e outro que se
lizada mediante a implantação de equipes vincula à realização da atividade concreta de
multiprofissionais em Unidades Básicas de trabalho. São três as dimensões, chamadas
Saúde (UBS), responsáveis pelo acompanha- por Schwartz (1998A) de ingredientes da com-
mento de número definido de famílias locali- petência, que buscam predefinir a atividade
zadas em área geográfica delimitada. de trabalho: a heterodeterminação, com as
No cenário mundial, o Cirurgião-Dentista prescrições e os recursos tecnológicos dis-
(CD) atua predominantemente no setor poníveis para a atividade; as experiências
privado. No Brasil, a inserção desse profis- apreendidas no trabalho, que, formando um
sional no serviço público foi reforçada desde conjunto de valores científicos e culturais do
o ano 2000, com as chamadas Equipes de coletivo, guiam e influenciam na atividade; e
Saúde Bucal (EqSB) na ESF (BRASIL, 2011). Essa a dimensão dos valores.
estratégia, associada às novas Diretrizes A formação acadêmica, as políticas públi-
Curriculares Nacionais (DCN) dos cursos cas e as atribuições profissionais constituem
de graduação na área de saúde, às diretri- as principais normas antecedentes do CD,
zes para a Política Nacional de Saúde Bucal que antecipam a atividade antes de começar
(PNSB) e à Política Nacional de Atenção a agir. E o agir é um entrecruzamento de
Básica (PNAB) contribuem para o deslo- normas antecedentes e de tentativas de re-
camento do campo técnico da odontologia normalização, na relação com o meio de
para o campo da Saúde Bucal Coletiva (SBC) vida, onde ocorre um debate permanente de
(BOTAZZO; CHAVES, 2013). valores que resultam em escolhas feitas por
A literatura registra diversos estudos indivíduos e grupos, dada a insuficiência das
que analisam a atenção à saúde bucal na prescrições para tornar o trabalho eficaz. “As
ESF (PAIM; SOARES, 2011; PEREIRA ET AL., 2012). Todos renormalizações são as múltiplas gestões de
destacam seu caráter inovador e registram variabilidades, a transgressão de normas,
as dificuldades e os avanços obtidos, entre- assim como a construção de redes e de co-
tanto, nenhum buscou compreender mais municação que o trabalho requer” (SCHERER;
especificamente o trabalho do CD na ESF: PIRES; JEAN, 2013, P. 3205).
Como o CD desenvolve seu trabalho? De Como normas antecedentes para o traba-
que maneira enfrenta as inúmeras prescri- lho na APS destacam-se ainda as ordens da
ções surgidas no processo de mudança ainda hierarquia institucional, os procedimentos,
recente do modelo assistencial? as normas técnicas, as diretrizes (BRASIL, 2008,

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2011) e os objetivos transmitidos aos trabalha- Nesse sentido, a gerência dos serviços
dores relativos aos prazos e à produtividade. precisa superar a influência do modelo
Considera-se que a atividade profissio- taylorista de administração, que regula o tra-
nal exige a presença de normas, que devem balhador apenas na conduta do prescrito por
ser identificadas e analisadas para se com- ela, e que, com isso, limita as renormaliza-
preender um trabalho, mas que também é ções necessárias para a produção de eficácia
fundamental ‘enxergar’ a dinâmica das renor- no trabalho. O fato de o trabalho real diferir
malizações e da singularidade da prática do do prescrito constitui um dos elementos es-
trabalho profissional, nem sempre visíveis. senciais para a compreensão de como o tra-
Mesmo quando os profissionais buscam balho se desenvolve na realidade.
colocar em prática os protocolos, sempre há Após mais de dez anos da inserção da saúde
um encontro de diferentes vontades, sujeitos bucal na ESF, ainda são poucos os estudos
e necessidades, onde diferentes negociações que abordam o trabalho do CD nesse contex-
de eficácia são realizadas (RAMMINGER; BRITO, to (BOTAZZO; CHAVES, 2013). No Brasil, o Distrito
2011). Isso vai determinar, por exemplo, se Federal (DF) foi um dos pioneiros na inclu-
um CD fará uma palestra de orientação de são de EqSB no Programa Saúde da Família
higiene oral a um grupo de usuários ou se, (PSF) (ZANETTI, 2001), sendo, pelo seu histórico,
além disso, irá dialogar com cada um deles cenário propício. Estudos desta natureza
sobre a técnica de escovação, ou, ainda, se podem contribuir para reorientar prescrições
irá pegar na mão e na escova de um deles, e a gestão do trabalho. Este artigo tem como
ensinando a todos sobre a maneira correta objetivo compreender o processo de trabalho
de realizar os movimentos. Isso denota a do CD na ESF, tendo como referência a ergo-
complexidade da atividade do trabalho em logia e as prescrições para a APS.
saúde. Somam-se a isso os constrangimentos
do meio, que podem alterar ou impedir a re-
alização de atividades. Percurso metodológico
O trabalho na ESF fomenta mudanças na
atuação do CD pela chamada ‘intercessão Trata-se de estudo de caso (YIN, 2005), com
partilhada’, ou seja, a relação existente não abordagem qualitativa e triangulação na
só entre o profissional e o paciente, mas o coleta e na análise de dados (MINAYO, 2004). A
envolvimento de um contexto amplo, que vai unidade de análise é o trabalho do CD. Os
desde o serviço até a família e a comunida- seis CDs participantes, vinculados a três UBS
de. Atitudes como o vínculo e o acolhimento de três regionais de saúde, foram incluídos a
tomam uma dimensão maior na ESF (SANTOS partir de indicação dos gestores, obedecendo
ET AL., 2008) e vão exigir o desenvolvimento de a critérios qualitativos: serem CDs integran-
novas competências. tes de equipes completas e afinadas com as
Para que o trabalho de saúde bucal na prescrições da ESF; e serem CDs com reco-
ESF integre toda a equipe de profissio- nhecida identidade e atuação conforme prin-
nais, buscando o conhecimento integral e cípios e diretrizes da ESF. Eram mulheres
a construção coletiva das intervenções, e com idades entre 30 e 55 anos, que trabalha-
não apenas articulações pontuais e encami- vam na APS por um período que variou entre
nhamentos internos, é essencial que todos 1 e 13 anos, sendo de 1 a 7 anos na ESF. Destas,
compreendam, em toda a sua complexida- quatro tinham atualização ou especialização
de, o processo saúde-doença, e ampliem a em saúde da família ou saúde coletiva.
intervenção sobre determinado problema, Os dados foram coletados no período de
outrora reservado à atividade do CD (FACCIN; fevereiro de 2012 a março de 2013, através
SEBOLD; CARCERERI, 2010). de análise documental, observação das

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situações de trabalho dos CDs e entrevistas Houve consenso sobre a falta de treina-
semiestruturadas. mento e preparo para o trabalho na APS.
Foram analisados registros diários de ati- Os profissionais, identificados apenas pelas
vidades, relatórios, atas de reunião e planos iniciais de seus nomes, relataram os desafios
de ação elaborados pela equipe da ESF e enfrentados no processo de busca pelos co-
pelos CDs. As observações em turnos de nhecimentos: “[...] fui falando com os colegas,
quatro horas totalizaram de 12 a 16 horas eles foram me explicando mais ou menos como
por UBS. Buscou-se identificar as atividades funcionava. Eu não tive treinamento algum,
desenvolvidas pelos profissionais, como são nem apresentada formalmente eu fui. Tive que
realizadas e o que interfere na sua implemen- ir buscando as coisas” (ADB). “Nenhum, fui
tação, a inserção do CD na equipe, a relação jogada!” (ELB). “[...] eu não tive nenhuma for-
com os usuários e as condições de trabalho. mação, nenhuma orientação. Simplesmente,
A coleta foi guiada por roteiro baseado nas nós fomos colocados nesse local e nos entrega-
prescrições para o trabalho da PNAB e do ram o Caderno 17, e falaram: ‘Bom, aqui é para
referencial da ergologia, considerando que a ser executada a Atenção Básica’” (MLC).
atividade de trabalho é como as pessoas se A falta do domínio das normas anteceden-
engajam na gestão dos objetivos do traba- tes, considerado por Schwartz (1998A) como o
lho, servindo-se dos meios disponíveis ou primeiro ingrediente da competência, neste
inventando outros para fazer frente às varia- caso, de como operar a saúde bucal na ESF,
bilidades e produzir sentido no trabalho. Tal confere limites à atuação do CD, que vai ad-
processo é sempre o resultado de um debate quirindo esses saberes aos poucos, na medida
de normas e valores em um confronto com em que, por si só, vai se apropriando da natu-
o que o meio oferece e com a capacidade do reza do serviço. Por outro lado, à medida que
profissional de agir (SCHWARTZ, 1998B). o profissional vai buscar, por conta própria
Os dados da observação e da análise do- e ao longo do tempo, o conhecimento perti-
cumental geraram roteiro para as entrevis- nente ao seu trabalho, incorporando pouco a
tas semiestruturadas e foram tratados pela pouco histórico e saberes, através da experi-
análise temática de conteúdo (MINAYO, 2004), ência que constrói, ele está desenvolvendo
que inclui a leitura das evidências produzi- o segundo ingrediente da competência, que
das, a codificação das unidades de significa- trata da dimensão experimental do trabalho.
do e a elaboração das categorias temáticas. Estudos demonstram que o trabalho reali-
Desse processo emergiram duas categorias zado nunca corresponde exatamente àquele
temáticas: condições para o trabalho na ESF fixado pelas regras ou mesmo por objetivos
e o modo de trabalhar na ESF. O projeto foi predeterminados. Assim, mesmo em situa-
aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa da ções em que as regras são socializadas, a varia-
Secretaria de Estado de Saúde do DF, sob o bilidade no momento da execução da tarefa é
nº 240/2012. enorme e até mesmo imprevisível. O trabalho
apresenta-se sempre revestido de comple-
xidade e, por envolver a atividade humana,
Resultados e discussão nunca se resume à prescrição, ao contrário
da lógica taylorista, que defende que seguir as
Condições para o trabalho na ESF normas e protocolos seria suficiente.
Embora a análise documental tenha evi-
As informações colhidas evidenciaram limi- denciado a existência de referenciais formais
tações na disponibilidade de insumos e ins- a serem seguidos, quanto ao planejamento e
trumentos, na infraestrutura das instalações e à estruturação do trabalho, a prática revelou
também na gestão e organização do trabalho. autonomia dos CDs para gestão:

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[...] eu crio a minha rotina. A gente precisa aten- Condição de trabalho ‘ideal’ exige in-
der determinadas faixas etárias, tem uma por- vestimento dos gestores junto aos traba-
centagem que a gente tem que atender. Mas não lhadores, no sentido de qualificá-los para
é especificado quantas vezes a gente tem que o desafio da ESF. Além disso, é necessário
fazer a palestra, com quem a gente faz. Então a proporcionar estabilidade e segurança
gente cria essa rotina. (ADA). funcional para que desempenhem suas
atividades com motivação, compromisso e
“Aqui, se você quiser, você consegue reali- tranquilidade. Este é um dos pontos fortes
zar um bom trabalho” (ELB). da realidade estudada, pois todos os CDs
Essa liberdade que o CD desfruta em do DF estão inseridos no regime estatu-
seu trabalho no DF, por um lado, favorece tário e gozam de um plano de carreira es-
o poder criativo do profissional, diante das pecífico. Tal fato pode também contribuir
exigências das situações reais do trabalho. para o exercício pleno da liberdade que
Por outro lado, o estudo sugere que o mo- lhes é conferida para a gestão do próprio
vimento de inovar no trabalho está dire- trabalho.
tamente relacionado ao ‘querer fazer’, ou
seja, ao comprometimento do profissional O modo de trabalho na ESF
com a finalidade de seu trabalho, bem como
ao ‘poder agir’, ingredientes da competên- O modo de trabalho é influenciado pelo in-
cia que resultam do debate de valores e teresse e pela afinidade do profissional com
das escolhas dos profissionais, bem como o seu trabalho. Houve um consenso de que
da capacidade de enfrentar os constrangi- a filosofia de trabalho da ESF seria impor-
mentos do meio. Neste sentido, para que o tante para os usuários e para a sociedade,
trabalho do CD seja resolutivo, é preciso porém as entrevistas denotaram contrastes,
haver sempre combinações de graus de au- tais como:
tonomia com responsabilidade no desen-
volvimento de suas ações. Eu gosto de lidar com comunidades, acho que
A falta de diálogo do gestor com as atender uma família fica mais fácil de abordar.
Equipes de Saúde Bucal, antes do início das Gosto de trabalhar em equipe, ter outros profis-
atividades, e a falta de capacitação e perfil sionais junto (ADA). Eu sempre me identifiquei
para o trabalho, aliadas à autonomia existen- com esse tipo de trabalho. Eu observava que os
te, podem gerar diferenças no que se refere atendimentos que não fazem parte do Programa
às atividades desenvolvidas, como pode ser Saúde da Família eram aquela coisa meio que
verificado pelos seguintes relatos: olhando só o problema, a doença, não davam
foco à pessoa [...]. (MLC).
Mas uma coisa a gente prioriza: é a parte do tra-
balho educativo e preventivo [...]. Então, quando E, por outro lado: “Foi uma razão pessoal,
a gente vai iniciar o tratamento de um paciente, eu precisava das 40 horas. E, na época, a
ele só inicia o atendimento na cadeira após pas- gerente disse que a única maneira de eu con-
sar por uma palestra educativa e preventiva, com seguir seria vindo para cá, porque ninguém
ilustração de vídeos. (MLC). queria vir” (ELB). “Com nada, eu não me
identifico com nada. Nem com o trabalho e
“Noventa por cento curativa [...]” (SUB). nem com o grupo” (SUB).
A pesquisa levanta a questão-chave de que, Os relatos acima mostram uma dicotomia
em tese, todos estão em condições de traba- de perfis para o trabalho na ESF. A interces-
lhar à luz do modelo, porém, as dificuldades são partilhada (SANTOS ET AL., 2008) exigida na
encontradas informam uma dura realidade. ESF fica comprometida em decorrência da

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dificuldade do trabalhador de se identificar tem uma boa iluminação... A pessoa, às vezes,


com essa nova proposta, na qual o relacio- nem está querendo te receber naquela hora... Eu
namento profissional com o usuário assume considero que tirar o profissional do centro de
novas dimensões (MERHY; FRANCO, 2003). saúde, que poderia estar fazendo vários atendi-
Essa diferença de prazeres na prática mentos... Ele está andando, às vezes, em áreas
profissional interfere na maneira com que perigosas, [...] inclusive, eu acho que isso leva as
os profissionais lidam com os protocolos e pessoas a ficarem muito acomodadas. (ADB).
também com as renormalizações produzidas
diariamente no trabalho. Essas renormali- Uma das coisas que dificultam o nosso trabalho
zações podem ser, por exemplo, construídas é a questão cultural da localidade, porque as pes-
com o intuito de melhorar o resultado final soas não ouvem muito a parte preventiva, [...]
da atividade, mas também para reduzir ou eles só querem saber do curativo. E quando é pa-
desconstruir determinada tarefa. lestra, eles falam: ‘Aí, mas que saco, eu tenho que
A satisfação pessoal, o gosto por traba- fazer isso!’. (ELB).
lhar com comunidades e em equipe, o foco
na saúde e não na doença são observáveis Há, nitidamente, um conflito entre o
na maioria dos relatos e, de maneira geral, protocolo da ESF e aquilo que os CDs va-
não ficou evidenciado, nas observações e nas lorizam e julgam viável e pertinente que
entrevistas, que os profissionais exerceram seja feito. Os depoimentos revelam medo
seus trabalhos em condições de insatisfação. da violência, maior valorização do traba-
Observou-se uma predominância de ati- lho dentro da UBS e pouco vínculo com
vidades curativas e preventivas individu- os usuários dos serviços. Sendo assim, o
ais, em detrimento de ações de promoção profissional contorna ou modifica as pres-
de saúde coletivas. Em ocorrência menor, crições, mantendo-se no modelo tradicio-
foram realizadas ações de promoção à saúde nal de atenção à demanda espontânea e de
com grupos previamente selecionados para cuidado individual.
o atendimento clínico, tais como orienta- As renormalizações no trabalho se dão
ções sobre higiene bucal e escovação super- quando o profissional ‘enxerga’ a necessi-
visionada, com distribuição de escovas de dade de alterar uma prescrição prévia em
dente e creme dental; e orientações sobre o busca do seu objetivo de alcançar o resulta-
funcionamento do serviço de odontologia e do, orientado pelas escolhas que ele mesmo
também sobre a programação do tratamen- faz, em função de um debate de valores. As
to, sendo que o trabalho era desenvolvido normas operatórias não são separadas das
preferencialmente no contexto da UBS. normas da individualidade. Nisso, ocorre
A pesquisa revela a hegemonia do modelo a todo tempo o confronto entre as normas
de atenção centrado no fazer odontológi- antecedentes e as tentativas de renormali-
co. Botazzo e Chaves (2013), ao discutirem zações pelo trabalhador (SCHWARTZ, 2011).
os antecedentes e o estado da arte da SBC, A lógica taylorista defende que seguir as
no Brasil, registram que os limites das suas normas e os protocolos seria suficiente para
práticas fazem parte de um processo histó- a realização do trabalho. Ao se deparar com
rico em superação. a tarefa, o trabalhador se vê diante de impre-
O modo como se trabalha está ligado vistos, muitas vezes impossíveis de se deter-
também a uma visão de mundo, seja ela par- minar e equacionar com precisão prévia.
ticular ou partilhada por um coletivo: Observou-se a preocupação do profissio-
nal com a necessidade de encontrar alter-
Na minha opinião, sair do centro de saúde para ir nativas para o enfrentamento de problemas
‘na’ casa de uma pessoa, que, muitas vezes, não diários:

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[...] a autoclave quebrou, a gente juntava os ins- momento da execução, cada um reinventa-o
trumentais; a TSB fazia um embrulho, colocava o à sua maneira, com seus valores e sua histó-
nome e eu levava no centro de saúde para este- ria, preenchendo as lacunas da prescrição e,
rilizar. À tarde, no outro dia, passava lá, pegava assim, atendendo às exigências do processo
e trazia [...] o exame é enviado para o centro de produtivo.
saúde, só que não vem para cá. Aí, o que acon- Destaca-se que o agir profissional é in-
tece: eu tenho que ir buscar quase toda semana fluenciado pelas características intrínsecas
[...] as radiografias. (ADA). de cada ser humano, mas sempre em uma
relação dialética com o meio. Sem essa
O estudo evidencia as renormalizações compreensão, corremos o risco de reduzir
produzidas pelo CD em sua rotina de traba- os entraves à implementação e à integração
lho, visando agilizar e ser eficiente, realizan- da saúde bucal na ESF à culpabilização dos
do tarefas que seriam de responsabilidade da indivíduos e grupos, como se a capacidade
área administrativa. Nesse caso, a renorma- deles de operar as diretrizes da APS não fi-
lização ocorreu para minimizar um dano e zessem parte de um contexto macro (sistema
para que o trabalho pudesse ser concluído. O de saúde), meso (nível da gestão) e micro (do
meio, sempre infiel (SCHWARTZ, 1998B), interfere cotidiano dos serviços).
no trabalho do profissional em proporções A organização do modelo de saúde geral
variadas, a cada dia, nunca sendo o mesmo. existente no lócus de desenvolvimento da
O ‘modo de trabalho’ prescrito para o CD ação, a UBS, prevalece como indutora da or-
na ESF e na APS (BRASIL, 2008, 2011), se difere ganização das ações de saúde bucal (BULGARELLI
do trabalho curativo individualizado tra- ET AL., 2014), e, no caso do DF, novos estudos
dicional. As ações de atenção integral, ex- devem considerar a cobertura atual e a his-
trapolando os limites da boca, bem como a tória de implantação da ESF ao se analisar o
participação no processo de territorializa- trabalho dos CDs.
ção e planejamento da atuação da equipe,
são exemplos das ações nas quais o CD deve
estar integrado, com os diferentes profissio- Considerações finais
nais. A pesquisa demonstra que há, ainda,
um longo percurso para a efetivação da A pesquisa mostra que o contexto e o modo
saúde bucal no DF, segundo as diretrizes es- de trabalho dos CDs do DF dificultam que os
tabelecidas. “A gente não se atém ao Caderno profissionais exerçam os princípios da APS,
17, mas todos nós já tivemos essa orientação, tais como a coordenação do cuidado, a lon-
e acho que, no fundo, a gente segue um pouco, gitudinalidade e a integralidade, bem como a
né?” (ELB). “[...] eu sigo muita coisa lá, que orientação familiar e comunitária.
‘estão’ no Caderno 17, mas eu tenho liberda- Ter liberdade para introduzir mudanças
de para outras coisas” (ADB). “Conheço. A necessárias à realidade de cada território
gente tenta trabalhar ‘em cima’ do Caderno. é fundamental na lógica do modelo, mas é
Só que a gente tenta adequar à nossa realida- preciso que o processo de trabalho aconte-
de, porque não tem jeito de seguir exatamen- ça respeitando as necessidades de saúde da
te como é” (CLC). população.
Percebe-se que a execução dos protoco- Os achados da pesquisa indicam um
los (BRASIL, 2008; 2011) na prática de trabalho grande caminho a percorrer pelo CD para
do CD sofre variações. Há a compreensão, se aproximar do que está prescrito pelas
pelos profissionais, de que esses protocolos diretrizes nacionais. O CD ainda é um pro-
não são suficientes para atender às neces- fissional solitário na UBS; mesmo na ESF,
sidades reais do profissional, e de que, no o processo de trabalho ainda permanece

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centrado nele. Neste sentido, o trabalho em individual, o contexto adverso do trabalho,


equipe não é fortalecido e restringe a efeti- as concepções de ESF dos profissionais e a
vidade das ações de promoção da saúde. A autonomia que lhes é conferida restringem
influência histórica do modelo de atenção sua atuação como CD da ESF. s

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SAÚDE DEBATE | rio de Janeiro, v. 39, n. 104, p. 56-64, JAN-MAR 2015


64 REIS, W. G.; SCHERER, M. D. A.; CARCERERI, D. L.

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