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Wagner Gomes Reis1, Magda Duarte dos Anjos Scherer2, Daniela Lemos Carcereri3
ABSTRACT On the world scene, the dental surgeon acts, mostly, in the private sector. In Brazil
this reality begins to change with the inclusion of this professional in the Family Health Strategy
(ESF). This case study performed in the central-western of Brazil seeks to comprehend the den-
tist’s work within this context, through documental analysis, observation of work and interviews.
From the thematic overview of content emerged two categories: the working conditions and the
way of working at the ESF. The historical influence of the individual care model, the adverse
context of work, the conceptions that professionals have about ESF and the autonomy which is
granted to them constrain their performance.
1 Secretaria de Saúde do
Distrito Federal – Brasília
(DF), Brasil.
wgreis@globo.com
2 Universidadede Brasília
(UnB), Departamento de
Saúde Coletiva – Brasília
(DF), Brasil.
magscherer@hotmail.com
3 Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC),
Departamento de
Odontologia – Florianópolis
(SC), Brasil.
daniela_carcereri@hotmail.
com
SAÚDE DEBATE | rio de Janeiro, v. 39, n. 104, p. 56-64, JAN-MAR 2015 DOI: 10.1590/0103-110420151040608
O trabalho do Cirurgião-Dentista na Atenção Primária à Saúde: entre o prescrito e o real 57
2011) e os objetivos transmitidos aos trabalha- Nesse sentido, a gerência dos serviços
dores relativos aos prazos e à produtividade. precisa superar a influência do modelo
Considera-se que a atividade profissio- taylorista de administração, que regula o tra-
nal exige a presença de normas, que devem balhador apenas na conduta do prescrito por
ser identificadas e analisadas para se com- ela, e que, com isso, limita as renormaliza-
preender um trabalho, mas que também é ções necessárias para a produção de eficácia
fundamental ‘enxergar’ a dinâmica das renor- no trabalho. O fato de o trabalho real diferir
malizações e da singularidade da prática do do prescrito constitui um dos elementos es-
trabalho profissional, nem sempre visíveis. senciais para a compreensão de como o tra-
Mesmo quando os profissionais buscam balho se desenvolve na realidade.
colocar em prática os protocolos, sempre há Após mais de dez anos da inserção da saúde
um encontro de diferentes vontades, sujeitos bucal na ESF, ainda são poucos os estudos
e necessidades, onde diferentes negociações que abordam o trabalho do CD nesse contex-
de eficácia são realizadas (RAMMINGER; BRITO, to (BOTAZZO; CHAVES, 2013). No Brasil, o Distrito
2011). Isso vai determinar, por exemplo, se Federal (DF) foi um dos pioneiros na inclu-
um CD fará uma palestra de orientação de são de EqSB no Programa Saúde da Família
higiene oral a um grupo de usuários ou se, (PSF) (ZANETTI, 2001), sendo, pelo seu histórico,
além disso, irá dialogar com cada um deles cenário propício. Estudos desta natureza
sobre a técnica de escovação, ou, ainda, se podem contribuir para reorientar prescrições
irá pegar na mão e na escova de um deles, e a gestão do trabalho. Este artigo tem como
ensinando a todos sobre a maneira correta objetivo compreender o processo de trabalho
de realizar os movimentos. Isso denota a do CD na ESF, tendo como referência a ergo-
complexidade da atividade do trabalho em logia e as prescrições para a APS.
saúde. Somam-se a isso os constrangimentos
do meio, que podem alterar ou impedir a re-
alização de atividades. Percurso metodológico
O trabalho na ESF fomenta mudanças na
atuação do CD pela chamada ‘intercessão Trata-se de estudo de caso (YIN, 2005), com
partilhada’, ou seja, a relação existente não abordagem qualitativa e triangulação na
só entre o profissional e o paciente, mas o coleta e na análise de dados (MINAYO, 2004). A
envolvimento de um contexto amplo, que vai unidade de análise é o trabalho do CD. Os
desde o serviço até a família e a comunida- seis CDs participantes, vinculados a três UBS
de. Atitudes como o vínculo e o acolhimento de três regionais de saúde, foram incluídos a
tomam uma dimensão maior na ESF (SANTOS partir de indicação dos gestores, obedecendo
ET AL., 2008) e vão exigir o desenvolvimento de a critérios qualitativos: serem CDs integran-
novas competências. tes de equipes completas e afinadas com as
Para que o trabalho de saúde bucal na prescrições da ESF; e serem CDs com reco-
ESF integre toda a equipe de profissio- nhecida identidade e atuação conforme prin-
nais, buscando o conhecimento integral e cípios e diretrizes da ESF. Eram mulheres
a construção coletiva das intervenções, e com idades entre 30 e 55 anos, que trabalha-
não apenas articulações pontuais e encami- vam na APS por um período que variou entre
nhamentos internos, é essencial que todos 1 e 13 anos, sendo de 1 a 7 anos na ESF. Destas,
compreendam, em toda a sua complexida- quatro tinham atualização ou especialização
de, o processo saúde-doença, e ampliem a em saúde da família ou saúde coletiva.
intervenção sobre determinado problema, Os dados foram coletados no período de
outrora reservado à atividade do CD (FACCIN; fevereiro de 2012 a março de 2013, através
SEBOLD; CARCERERI, 2010). de análise documental, observação das
situações de trabalho dos CDs e entrevistas Houve consenso sobre a falta de treina-
semiestruturadas. mento e preparo para o trabalho na APS.
Foram analisados registros diários de ati- Os profissionais, identificados apenas pelas
vidades, relatórios, atas de reunião e planos iniciais de seus nomes, relataram os desafios
de ação elaborados pela equipe da ESF e enfrentados no processo de busca pelos co-
pelos CDs. As observações em turnos de nhecimentos: “[...] fui falando com os colegas,
quatro horas totalizaram de 12 a 16 horas eles foram me explicando mais ou menos como
por UBS. Buscou-se identificar as atividades funcionava. Eu não tive treinamento algum,
desenvolvidas pelos profissionais, como são nem apresentada formalmente eu fui. Tive que
realizadas e o que interfere na sua implemen- ir buscando as coisas” (ADB). “Nenhum, fui
tação, a inserção do CD na equipe, a relação jogada!” (ELB). “[...] eu não tive nenhuma for-
com os usuários e as condições de trabalho. mação, nenhuma orientação. Simplesmente,
A coleta foi guiada por roteiro baseado nas nós fomos colocados nesse local e nos entrega-
prescrições para o trabalho da PNAB e do ram o Caderno 17, e falaram: ‘Bom, aqui é para
referencial da ergologia, considerando que a ser executada a Atenção Básica’” (MLC).
atividade de trabalho é como as pessoas se A falta do domínio das normas anteceden-
engajam na gestão dos objetivos do traba- tes, considerado por Schwartz (1998A) como o
lho, servindo-se dos meios disponíveis ou primeiro ingrediente da competência, neste
inventando outros para fazer frente às varia- caso, de como operar a saúde bucal na ESF,
bilidades e produzir sentido no trabalho. Tal confere limites à atuação do CD, que vai ad-
processo é sempre o resultado de um debate quirindo esses saberes aos poucos, na medida
de normas e valores em um confronto com em que, por si só, vai se apropriando da natu-
o que o meio oferece e com a capacidade do reza do serviço. Por outro lado, à medida que
profissional de agir (SCHWARTZ, 1998B). o profissional vai buscar, por conta própria
Os dados da observação e da análise do- e ao longo do tempo, o conhecimento perti-
cumental geraram roteiro para as entrevis- nente ao seu trabalho, incorporando pouco a
tas semiestruturadas e foram tratados pela pouco histórico e saberes, através da experi-
análise temática de conteúdo (MINAYO, 2004), ência que constrói, ele está desenvolvendo
que inclui a leitura das evidências produzi- o segundo ingrediente da competência, que
das, a codificação das unidades de significa- trata da dimensão experimental do trabalho.
do e a elaboração das categorias temáticas. Estudos demonstram que o trabalho reali-
Desse processo emergiram duas categorias zado nunca corresponde exatamente àquele
temáticas: condições para o trabalho na ESF fixado pelas regras ou mesmo por objetivos
e o modo de trabalhar na ESF. O projeto foi predeterminados. Assim, mesmo em situa-
aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa da ções em que as regras são socializadas, a varia-
Secretaria de Estado de Saúde do DF, sob o bilidade no momento da execução da tarefa é
nº 240/2012. enorme e até mesmo imprevisível. O trabalho
apresenta-se sempre revestido de comple-
xidade e, por envolver a atividade humana,
Resultados e discussão nunca se resume à prescrição, ao contrário
da lógica taylorista, que defende que seguir as
Condições para o trabalho na ESF normas e protocolos seria suficiente.
Embora a análise documental tenha evi-
As informações colhidas evidenciaram limi- denciado a existência de referenciais formais
tações na disponibilidade de insumos e ins- a serem seguidos, quanto ao planejamento e
trumentos, na infraestrutura das instalações e à estruturação do trabalho, a prática revelou
também na gestão e organização do trabalho. autonomia dos CDs para gestão:
[...] eu crio a minha rotina. A gente precisa aten- Condição de trabalho ‘ideal’ exige in-
der determinadas faixas etárias, tem uma por- vestimento dos gestores junto aos traba-
centagem que a gente tem que atender. Mas não lhadores, no sentido de qualificá-los para
é especificado quantas vezes a gente tem que o desafio da ESF. Além disso, é necessário
fazer a palestra, com quem a gente faz. Então a proporcionar estabilidade e segurança
gente cria essa rotina. (ADA). funcional para que desempenhem suas
atividades com motivação, compromisso e
“Aqui, se você quiser, você consegue reali- tranquilidade. Este é um dos pontos fortes
zar um bom trabalho” (ELB). da realidade estudada, pois todos os CDs
Essa liberdade que o CD desfruta em do DF estão inseridos no regime estatu-
seu trabalho no DF, por um lado, favorece tário e gozam de um plano de carreira es-
o poder criativo do profissional, diante das pecífico. Tal fato pode também contribuir
exigências das situações reais do trabalho. para o exercício pleno da liberdade que
Por outro lado, o estudo sugere que o mo- lhes é conferida para a gestão do próprio
vimento de inovar no trabalho está dire- trabalho.
tamente relacionado ao ‘querer fazer’, ou
seja, ao comprometimento do profissional O modo de trabalho na ESF
com a finalidade de seu trabalho, bem como
ao ‘poder agir’, ingredientes da competên- O modo de trabalho é influenciado pelo in-
cia que resultam do debate de valores e teresse e pela afinidade do profissional com
das escolhas dos profissionais, bem como o seu trabalho. Houve um consenso de que
da capacidade de enfrentar os constrangi- a filosofia de trabalho da ESF seria impor-
mentos do meio. Neste sentido, para que o tante para os usuários e para a sociedade,
trabalho do CD seja resolutivo, é preciso porém as entrevistas denotaram contrastes,
haver sempre combinações de graus de au- tais como:
tonomia com responsabilidade no desen-
volvimento de suas ações. Eu gosto de lidar com comunidades, acho que
A falta de diálogo do gestor com as atender uma família fica mais fácil de abordar.
Equipes de Saúde Bucal, antes do início das Gosto de trabalhar em equipe, ter outros profis-
atividades, e a falta de capacitação e perfil sionais junto (ADA). Eu sempre me identifiquei
para o trabalho, aliadas à autonomia existen- com esse tipo de trabalho. Eu observava que os
te, podem gerar diferenças no que se refere atendimentos que não fazem parte do Programa
às atividades desenvolvidas, como pode ser Saúde da Família eram aquela coisa meio que
verificado pelos seguintes relatos: olhando só o problema, a doença, não davam
foco à pessoa [...]. (MLC).
Mas uma coisa a gente prioriza: é a parte do tra-
balho educativo e preventivo [...]. Então, quando E, por outro lado: “Foi uma razão pessoal,
a gente vai iniciar o tratamento de um paciente, eu precisava das 40 horas. E, na época, a
ele só inicia o atendimento na cadeira após pas- gerente disse que a única maneira de eu con-
sar por uma palestra educativa e preventiva, com seguir seria vindo para cá, porque ninguém
ilustração de vídeos. (MLC). queria vir” (ELB). “Com nada, eu não me
identifico com nada. Nem com o trabalho e
“Noventa por cento curativa [...]” (SUB). nem com o grupo” (SUB).
A pesquisa levanta a questão-chave de que, Os relatos acima mostram uma dicotomia
em tese, todos estão em condições de traba- de perfis para o trabalho na ESF. A interces-
lhar à luz do modelo, porém, as dificuldades são partilhada (SANTOS ET AL., 2008) exigida na
encontradas informam uma dura realidade. ESF fica comprometida em decorrência da
[...] a autoclave quebrou, a gente juntava os ins- momento da execução, cada um reinventa-o
trumentais; a TSB fazia um embrulho, colocava o à sua maneira, com seus valores e sua histó-
nome e eu levava no centro de saúde para este- ria, preenchendo as lacunas da prescrição e,
rilizar. À tarde, no outro dia, passava lá, pegava assim, atendendo às exigências do processo
e trazia [...] o exame é enviado para o centro de produtivo.
saúde, só que não vem para cá. Aí, o que acon- Destaca-se que o agir profissional é in-
tece: eu tenho que ir buscar quase toda semana fluenciado pelas características intrínsecas
[...] as radiografias. (ADA). de cada ser humano, mas sempre em uma
relação dialética com o meio. Sem essa
O estudo evidencia as renormalizações compreensão, corremos o risco de reduzir
produzidas pelo CD em sua rotina de traba- os entraves à implementação e à integração
lho, visando agilizar e ser eficiente, realizan- da saúde bucal na ESF à culpabilização dos
do tarefas que seriam de responsabilidade da indivíduos e grupos, como se a capacidade
área administrativa. Nesse caso, a renorma- deles de operar as diretrizes da APS não fi-
lização ocorreu para minimizar um dano e zessem parte de um contexto macro (sistema
para que o trabalho pudesse ser concluído. O de saúde), meso (nível da gestão) e micro (do
meio, sempre infiel (SCHWARTZ, 1998B), interfere cotidiano dos serviços).
no trabalho do profissional em proporções A organização do modelo de saúde geral
variadas, a cada dia, nunca sendo o mesmo. existente no lócus de desenvolvimento da
O ‘modo de trabalho’ prescrito para o CD ação, a UBS, prevalece como indutora da or-
na ESF e na APS (BRASIL, 2008, 2011), se difere ganização das ações de saúde bucal (BULGARELLI
do trabalho curativo individualizado tra- ET AL., 2014), e, no caso do DF, novos estudos
dicional. As ações de atenção integral, ex- devem considerar a cobertura atual e a his-
trapolando os limites da boca, bem como a tória de implantação da ESF ao se analisar o
participação no processo de territorializa- trabalho dos CDs.
ção e planejamento da atuação da equipe,
são exemplos das ações nas quais o CD deve
estar integrado, com os diferentes profissio- Considerações finais
nais. A pesquisa demonstra que há, ainda,
um longo percurso para a efetivação da A pesquisa mostra que o contexto e o modo
saúde bucal no DF, segundo as diretrizes es- de trabalho dos CDs do DF dificultam que os
tabelecidas. “A gente não se atém ao Caderno profissionais exerçam os princípios da APS,
17, mas todos nós já tivemos essa orientação, tais como a coordenação do cuidado, a lon-
e acho que, no fundo, a gente segue um pouco, gitudinalidade e a integralidade, bem como a
né?” (ELB). “[...] eu sigo muita coisa lá, que orientação familiar e comunitária.
‘estão’ no Caderno 17, mas eu tenho liberda- Ter liberdade para introduzir mudanças
de para outras coisas” (ADB). “Conheço. A necessárias à realidade de cada território
gente tenta trabalhar ‘em cima’ do Caderno. é fundamental na lógica do modelo, mas é
Só que a gente tenta adequar à nossa realida- preciso que o processo de trabalho aconte-
de, porque não tem jeito de seguir exatamen- ça respeitando as necessidades de saúde da
te como é” (CLC). população.
Percebe-se que a execução dos protoco- Os achados da pesquisa indicam um
los (BRASIL, 2008; 2011) na prática de trabalho grande caminho a percorrer pelo CD para
do CD sofre variações. Há a compreensão, se aproximar do que está prescrito pelas
pelos profissionais, de que esses protocolos diretrizes nacionais. O CD ainda é um pro-
não são suficientes para atender às neces- fissional solitário na UBS; mesmo na ESF,
sidades reais do profissional, e de que, no o processo de trabalho ainda permanece
Referências
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Janeiro, v. 18, n. 11, p. 3203-3212, 2013. em: 11 mar. 2013.