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Geografia e Giro Descolonial Experiencia
Geografia e Giro Descolonial Experiencia
GIRO DESCOLONIAL
GEOGRAFIA E
de uma descolonização que do I Seminário Geografa e giro
valorize outras racionalidades, descolonial: experiências, pensamentos
outras epistemes, outras formas de e horizontes de renovação do
saber, viver e existir oriundas das pensamento crítico realizado em
experiências de re-existências dos Valter do Carmo Cruz • Carlos Walter Porto-Gonçalves • novembro de 2014 na Universidade
grupos subalternizados. Federal Fluminense-UFF. Tal
Renato Emerson dos Santos • Denílson Araújo de Oliveira •
seminário foi organizado pelos grupos
Trata-se de um pequeno passo
Gabriel Siqueira Corrêa • Carolina de Freitas Pereira • de pesquisa NETAJ/UFF (Núcleo
em uma longa caminhada ainda a
de Estudos Sobre Territórios, Ações
ser percorrida para a construção Jorge Montenegro e Otávio Gomes Rocha •
Coletivas e Justiça) e NEGRA/FFP-
de uma “biblioteca descolonial”
Simone Raquel Batista Ferreira • Marilda Teles Marcai • UERJ (Núcleo de Estudo e Pesquisa
a partir da geografia produzida
em Geografa Regional da África e da
em nosso país. Esperamos que tal Marcelo Argenta Câmara • Eduardo Barcelos •
Diáspora) com apoio do Programa
obra cumpra o papel de fomentar e
Marcos Vinícius da Costa Lima • Edir Augusto Dias Pereira • de Pós-Graduação em Geografia da
ampliar o interesse e os debates entre
Universidade Federal Fluminense –
os geógrafos(as) sobre os temas e Mateus de Moraes Servilha • Claudio Barría Mancilla •
POSGEO-UFF.
questões aqui tratados.
Lina María Hurtado Gómez
GEOGRAFIA E americano.
O livro que o leitor tem em mãos
GIRO DESCOLONIAL é o resultado desse rico, profundo
e desafiante esforço coletivo para
EXPERIÊNCIAS, IDEIAS E HORIZONTES se estabelecer um diálogo mais
DE RENOVAÇÃO DO PENSAMENTO CRÍTICO efetivo entre a geografia brasileira
e o pensamento descolonial latino-
americano. Os textos fazem uma
Valter do Carmo Cruz crítica a colonialidade do saber e
ao eurocentrismo como narrativa
Denílson Araújo de Oliveira (org.) colonial do mundo que subalterniza
saberes, culturas, grupos, povos e
É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Editora.
G31
Inclui bibliografia
ISBN: 978-85-7785-512-4
1. Movimentos sociais. 2. Geografia humana. I. Cruz, Valter do Carmo. II. Oliveira, Denílson
Araújo de.
Proibida a reprodução, total ou parcial, por qualquer meio ou processo, seja reprográfico, fotográfico, gráfico, microfil-
magem etc. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas e/ou editoriais. A violação dos direitos auto-
rais é punível como crime (Código Penal, art. 184 e §§; Lei 6.895/80), com busca, apreensão e indenizações diversas
(Lei 9.610/98 – Lei dos Direitos Autorais – arts. 122, 123, 124 e 126).
colonial” a partir da geografia produzida em nosso país. Esperamos que tal obra
cumpra o papel de fomentar e ampliar o interesse e os debates entre os geógrafos
sobre os temas e questões aqui tratados.
1 O conceito de violência epistêmica é usado por Santiago Castro-Gómez (2005) em um diálogo com for-
mulação da pensadora indiana Gayatri Spivak.
II
Essa cosmovisão cria uma forma muito particular de pensar a relação espaço-
tempo. Segundo Doreen Massey (2004), todas essas narrativas compartilham de
uma imaginação geográfica que rearranja as diferenças espaciais em termos de
sequência temporal, suprimindo, desse modo, a espacialidade e a possibilidade da
multiplicidade e da diferença. “A implicação disso é que lugares não são conside-
rados genuinamente diferentes; na realidade, eles estão simplesmente à frente ou
atrás numa mesma história: suas ‘diferenças’ consistem apenas no lugar que eles
ocupam na fila da história” (p. 15).
Desse modo, a autora conclui que, para que haja histórias múltiplas, coexis-
tentes, deve existir espaço. Em outras palavras: “o pleno entendimento da espacia-
lidade envolve o reconhecimento de que há mais de uma estória se passando no
mundo e que essas estórias têm, pelo menos, uma relativa autonomia” (MASSEY,
2005 p. 15). Nesse sentido, o espaço deve ser entendido como: “uma simulta-
neidade de histórias inacabadas, o espaço como um momento dentro de uma
multiplicidade de trajetórias. Se o tempo é a dimensão da mudança, o espaço é a
dimensão da multiplicidade contemporânea” (MASSEY, 2005).
III
rança desse processo. Inúmeras vezes nos lembram de que o fim do colonialismo
não significou o fim da colonialidade. Os processos formais de independência não
significaram uma ruptura com as práticas, experiências e ideias coloniais. Essa co-
lonialidade, na interpretação desses autores, permanece ativa e atual, e, portanto,
o esforço por descolonização da sociedade, do Estado, do pensamento continua
como um horizonte e um desafio cotidiano. Essa interpretação nos obriga a ter
uma outra leitura do passado e uma compreensão mais complexa dos processos
de mudança/ruptura e continuidade na história e na geografia das sociedades la-
tino-americanas. Esses autores afirmam que a colonialidade não foi uma etapa ou
um estágio anterior à inserção das nossas sociedades na modernidade, mas uma
dimensão constitutiva da nossa própria forma de viver a modernidade.
Essa nova perspectiva epistemológica, ética e política de compreender a nossa
história e geografia que ganha destaque no momento atual não nasceu agora,
mas sim é resultado de um longo processo, fruto de muitas formas de pensar e de
agir contra o legado do colonialismo nos últimos cinco séculos. A nossa história
é a história do colonialismo e sua herança, mas também é a história das resistên-
cias e lutas dos grupos subalternizados contra essa realidade. Sempre houve lutas
concretas e formulações de pensamento que tinham como horizonte a superação
do colonialismo e da colonialidade. Portanto, o pensamento descolonial não se
restringe ao debate contemporâneo do “giro decolonial”, ele tem uma longa tra-
jetória histórica.
Nessa direção podemos identificar uma longa linhagem de pensamento crítico
que atravessou o século XIX e XX com pensadores que buscaram compreender a
especificidade das nossas sociedades periféricas através de uma interpretação de
nosso passado colonial e a necessidade de superarmos essa herança. Podemos iden-
tificar, por exemplo, uma leitura descolonial nas obras dos pensadores da teoria
da dependência, que se propuseram a rediscutir a relação entre centro e periferia
e a desvendar os mecanismos do tipo de capitalismo dependente a que os paí-
ses da América Latina estavam submetidos. Esse “espírito descolonial” orientou
movimentos filosóficos e teológicos como a teologia da libertação e a filosofia da
liberação, que se propunham outros horizontes de espiritualidade e de liberdade,
pensando a partir das vítimas e dos grupos mais vulneráveis da histórica latino-a-
mericana. É possível também identificar um esforço de descolonização no campo
da formulação de uma teoria educacional que está presente na obra de Paulo Frei-
re, marcada pela busca de uma Pedagogia da liberdade e da autonomia. O esfor-
2 Para ver a genealogia do pensamento descolonial detalhada, Castro-Gómez e Grosfoguel (2007), para ver
um sumário dos conceitos e linhas de força, Escobar (2003).
IV
disciplinar. Mas precisamos ultrapassar a ideia de que esse debate tem a ver com
certas temáticas, situações e sujeitos específicos. O giro decolonial inaugura no-
vas perspectivas epistemológicas, teóricas, metodológicas com grandes impli-
cações éticas e políticas no pensar e fazer geográfico como um todo. Por outro
lado, as categorias, os conceitos e as noções geográficas têm sido incorporados
pelos(as) autores(as)4 do pensamento descolonial de forma parcial e precária
reduzindo a geograficidade a metáforas espaciais. Categorias e conceitos como
espaço, território, lugar, escala etc. são de grande potencial cognitivo e político
para renovação do pensamento crítico e para ampliação e enriquecimento dos
estudos descoloniais. Contudo seu uso precisa ultrapassar o sentido metafórico
e ganhar consistência teórico-metodológica capaz de considerar a geografici-
dade como um elemento essencial em termos ontológicos e epistemológicos
para compressão de nossas sociedades. É necessário realizarmos um verdadeiro
giro espacial/territorial para que se realize plenamente um giro decolonial. Para
efetivar tal projeto, faz-se necessária a incorporação do patrimônio intelectual
acumulado pela geografia às reflexões do pensamento decolonial. Do mesmo
modo, precisamos extrair todas as consequências epistêmicas, teóricas e meto-
dológicas da incorporação do pensamento decolonial no campo da geografia.
Essa é uma árdua tarefa coletiva que está por se fazer.
3) O terceiro desafio é ultrapassar o debate epistêmico e teórico abstrato e fecun-
dar essas ferramentas teóricas e epistemológicas que o pensamento descolonial
vem produzindo (como, por exemplo, os conceitos de colonialidade do poder,
colonialidade do saber, colonialidade do ser, colonialidade da natureza) com
experiências, casos, situações concretas que permitam superar os excessos de
uma leitura teórica abstrata que essa perspectiva tanto critica. Precisamos de
estudos capazes de oferecer um diagnóstico de nossa realidade, uma ontologia
política descolonial do presente. Estudos que possam ajudar a compreender
quem somos nós e o que estamos fazendo de nós mesmos como sociedade,
construir genealogias de nossa experiência moderna-colonial concretamente.
As teorias, os conceitos e as interpretações do pensamento descolonial pre-
cisam dialogar com a diversidade de experiências de lutas sociais concretas.
Bem como os conhecimentos e as epistemologias construídas nas lutas sociais
4 Os principais autores do pensamento descolonial têm formação disciplinar fora da geografia. São filósofos,
sociólogos, antropólogos, críticos literários etc. Essa diferença de formação disciplinar se expressa na cons-
trução discursiva desses autores, na qual o espaço está presente apenas no sentido metafórico.
Referências
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______. Mundos y conocimientos de outro modo: el programa de investigación
de modernidad/colonialidad latinoamericano. In: Tabula Rasa. Bogotá – Colôm-
bia, n. 1, 2003
Nietzsche
“Limite entre saberes, limite entre disciplinas, limite entre países. Por todo lado se
fala que os limites já não são rígidos, que os entes já não são tão “claros, distintos
e definidos” como recomendara René Descartes. Cada vez mais se fala de empresas
internacionais, ou transnacionais ou multinacionais, assim como se fala de inter-
disciplinaridade, transdisciplinaridade ou multidisciplinaridade. Enfim, por todo
lado são usados os prefixos inter, trans ou multi indicando que as fronteiras, sejam
elas epistêmicas, sociológicas ou geográfico-políticas, se é que podemos separá-las,
são mais porosas do que se acreditava.”
5 Neste artigo dou continuidade às reflexões que venho propondo e coletivamente elaborando junto ao Gru-
po de Trabalho Hegemonias e Emancipações de CLACSO, desde 2001. Já em 2001 iniciava Da geografia às
geo-grafias: um mundo em busca de novas territorialidades, uma reflexão sobre epistemes e territórios afirmando
a epígrafe acima.
(1743-1803) bem que tentou ser livre nos marcos de uma confederação francesa
que, ainda que revolucionária, não via a liberdade se tornar igual para todos e,
assim, demonstrava os limites da fraternidade, pois estes princípios não atravessa-
vam o Atlântico e não chegavam à Ilha de São Domingos. Foi preciso outro Jean
Jacques, J-J. Dessalines (1758-1806), para proclamar a independência do Haiti e,
assim, expressar a vontade geral dos negros haitianos de promover a dupla eman-
cipação tanto da metrópole como dos senhores locais que teimavam em manter a
colonialidade. A América ainda hoje abriga essa contradição constitutiva.
Cuba e Porto Rico, que permaneceram sob o domínio espanhol até o final
do século XIX, experimentarão o mesmo peso do, então, novo império estadu-
nidense, o mesmo peso que já havia sentido o México quando teve anexados,
entre 1845 e 1848, seus amplos territórios do Texas à Califórnia. A fragmentação
territorial da América Central expressa essa tensão emancipatória e de domina-
ção, haja vista o caráter geoestratégico dessa região. Simon Bolívar (1783-1830)
já o pressentira quando convocara, em 1826, exatamente para o Panamá, uma
primeira reunião entre estados que acreditava irmãos, e o fazia em contraponto
à Doutrina Monroe (1823), que buscava uma integração sob hegemonia estadu-
nidense. A Colômbia sentiu o peso dessas ações imperiais com a amputação do
Panamá, em 1903. Alguns poucos anos antes, José Martí (1853-1895) percebera
essa clivagem consagrando-a com a expressão Nuestra América para se distinguir
da outra América, hegemônica. Não olvidemos, pois, que mesmo em Nuestra
América os novos estados independentes se fizeram sob a inspiração das Luzes e,
assim, o eurocentrismo se faz presente seja pela via da “América para os ameri-
canos” (do Norte), com a Doutrina Monroe, seja com a Alca ou com os TLCs;
enfim, pela colonialidade do saber e do poder. Os povos originários, os afro-a-
mericanos e mestiços continuaram submetidos à servidão e à escravização mesmo
após a independência. Assim, a colonialidade do saber e do poder sobreviveu ao
fim do colonialismo (QUIJANO, 2005).
Para quem pensa o mundo numa perspectiva emancipatória e a partir da Amé-
rica, sobretudo da América negra, indígena e mestiça e dos segmentos excluídos da
riqueza que produz sob relações de dominação/opressão e produção/exploração, é
fundamental compreender esse caráter colonial-moderno do sistema-mundo que
conformou um complexo de classes sociais embebido na racialidade (QUIJANO,
2005), para que possamos apontar outros horizontes neste mundo em transfor-
mação em que estamos mergulhados. E não é de América Latina, simplesmente,
que estamos falando, posto que os negros e os índios us-americanos sabem o lugar
que ocupam na geografia do poder, como o furacão Katrina recentemente nos re-
velou em Nova Orleãs e na Luisiânia7. Afinal, a América é moderna há 500 anos.
Aqui se inventou a Revolução (1776) antes dos franceses e iniciou-se a descoloni-
zação ainda que permanecendo prisioneiro do pensamento colonial. Outros pro-
tagonistas deixaram marcas nessa história, como Tupac Amaru II (1738-1781),
Tupac Katari (1750-1781), Toussaint de Louverture e Jean-Jacques Dessaline,
entre outros. Hoje nos encontramos em plena descolonização do pensamento
e, por isso, olhamos o mundo dialogando com o pensamento subalterno, que
vem sendo construído nesses 500 anos, como nos alertam os zapatistas Rigoberta
Menchu (1959-), Evo Morales (1959-).
***
7 A Venezuela parece estar percebendo que Nuestra América tem uma geografia que vai além do rio Grande,
quando se dispõe a vender combustível (gasoil) mais barato em alguns bairros pobres de algumas cidades
us-americanas, como vimos logo após o furacão Katrina em 2005.
9 Logo, com signo. Não há apropriação material de algo sem sentido. Toda apropriação material é simbólica.
O território é onde a cultura se materializa e, ao mesmo tempo, onde a natureza é significada (territoria-
lidade). Como o signo nunca pode conter seu referente “objetivo” é sempre possível dizer de outro modo
o mundo. A palavra pedra nunca será sólida, assim como a palavra água nunca matará a sede de ninguém.
Todavia, os homens e as mulheres só vivem através dos símbolos, dos signos, das representações que nunca
poderão conter o mundo que representam, simbolizam, significam. Nenhum livro, seja sagrado ou cientí-
fico, terá o contexto no texto, razão de tantos dogmatismos. Como diria Pierre Bourdieu, é da natureza da
realidade social a luta permanente para dizer o que é a realidade social.
10 Que toma o campesinato por sua propriedade familiar da terra e dos meios de produção, esquecendo que
o campesinato historicamente se conforma com práticas comunitárias e de uso comum da terra, como se
pode ver, na Europa, com a derrota que lhe foi imposta com a privatização das suas terras comuns (enclou-
sers), ou na Rússia, com a obschina.
tras”, assim como qualquer contradição que desgastasse a revolução, como tentou
fazer com os Miskitos do Caribe. Todavia, a história dos Miskitos se inscrevia em
demandas próprias e, talvez, a melhor herança do sandinismo e dos Miskitos seja
exatamente a legislação que reconhece a autonomia indígena, como afirma Héc-
tor Díaz-Polanco, intelectual mexicano que trabalhara com os Miskitos que soube
compreender o caráter imperialista do apoio dos Estados Unidos, recusando-o.
Não devemos ignorar a importância dos movimentos dos guetos negros das ci-
dades us-americanas desde os Black Panters e Rappers (hip-hop) até as rebeliões dos
anos 80 e inícios dos 90 (“griot”). A trajetória do hip-hop é, nesse sentido, interes-
sante, posto que uma expressão estético-cultural nascida no Caribe se mundializa
a partir dos guetos urbanos negros das maiores cidades dos EUA11. A globalização
se complexifica com o estabelecimento de secretas relações que atualizam pro-
cessos históricos subjacentes ao sistema-mundo moderno-colonial, sobretudo a
racialidade (QUIJANO, 2005). Em quase todas as cidades latino-americanas o
hip-hop ensejará uma reinvenção da problemática racial com contornos distintos
do modo como até então se apresentava, sobretudo entre jovens pobres “quase
todos pretos” (Caetano Veloso), mestiços e indígenas. A cultura se politiza.
Desde então, nas mais diferentes reformas constitucionais na América Latina
(Nicarágua, Colômbia, Brasil, Equador, Venezuela, Peru, Chile), pela primeira
vez se reconhece e se declara o direito à diferença aos negros e aos povos ori-
ginários, fenômeno que passará a ser conhecido seja como constitucionalismo
multicultural (VAN COTT, 2000), seja como plurinacionalidade, seja como plu-
ralismo jurídico12 (WALSH, 2002a).
A reconfiguração do estado territorial nacional tradicional, ao mesmo tempo
em que reconhece diferentes territorialidades em suas fronteiras internas, está
imerso naquilo que Jairo Estrada muito apropriadamente chamou constituciona-
lismo supranacional (ESTRADA, 2006 e PORTO-GONÇALVES, 2006, onde
ganham curso as determinações emanadas das organizações multilaterais, sobre-
tudo do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional e da Organização
Mundial do Comércio. O Caracazzo, a queda de Alfonsin e a invasão do Panamá
11 A poetisa María Hernandez, filha de porto-riquenhos nascida em Nova York, dirá “eu não nasci em Porto
Rico. O Porto Rico nasceu em mim”.
12 O pluralismo jurídico pressupõe a existência de múltiplas fontes para o direito e não só o Direito Romano.
Pelo menos três dimensões desses direitos podem ser identificadas: 1- direito ao autogoverno (autonomias);
2- direito especial de representação (Colômbia, p. e.); e 3- direitos poliétnicos (educação em sua própria
língua etc.).
cultura mais uma que se soma ao mesmo sistema de relações sociais e de poder.
Enfim, o pluri e o multiculturalismo reconhecem a diferença e a congelam e/ou
guetificam. Sabemos como o racismo na África do Sul territorializou as diferen-
ças nos bantustões estimulando a diversidade cultural. Estaríamos, aqui, diante
daquilo que Díaz-Polanco chamou de liberalismo comunitarista que, dialogando
com os novos protagonistas de nosso tempo, vem recusando o individualismo
fóbico que tanto caracteriza o velho liberalismo13. Talvez o caso colombiano com
sua proposta de democracia comunitária seja o que mais venha avançando na
direção dessa nova vertente liberal, conforme vem alertando o antropólogo Jaime
Caycedo e o mexicano Díaz-Polanco. Nesse caso, temos o contrário do que apon-
taria uma perspectiva emancipatória, posto que se trata de buscar não só “outras
relações entre grupos, como também entre práticas, lógicas e conhecimentos dis-
tintos, com o afã de confrontar e transformar as relações de poder (incluindo
as estruturas e instituições da sociedade) que naturalizam as assimetrias sociais”
(WALSH, 2002a), enfim, no sentido da interculturalidade e ao que Díaz-Polanco
chama de El Canon Snorri14 (DÍAZ-POLANCO, 2004).
Tudo indica que a afirmação da diversidade e o legítimo direito à diferença
devam mergulhar na compreensão dos complexos mecanismos por meio dos
quais a opressão, a injustiça e a exploração buscam se legitimar, o que significa
compreender as relações entre as dimensões cultural, social, econômica e política
e buscar novas epistemes entre os protagonistas que estão impulsionando pro-
cessos instituintes de novas configurações territoriais. Afinal, não é isoladamente
que cada grupo subalternizado é mantido nessa condição. É o isolamento de
cada qual que é condição do isolamento de cada um. Os limites do localismo se
mostram, aqui, evidentes, com a compreensão que não se pode prescindir do lu-
gar e da diversidade. O divide et impera romano aí está a nos desafiar na busca da
afirmação da diferença onde cada qual se reinvente reinventando o conjunto das
relações que faz de cada qual ser o que é nesse sistema-mundo moderno-colonial
marcado pela injustiça, opressão, insegurança e devastação.
13 Díaz-Polanco (2004) destaca o rico debate que vem sendo travado no interior do campo liberal para o que
nos convida a prestar mais atenção, já que não estaríamos diante do mesmo e velho liberalismo. De um
lado seria a aceitação da diferença cultural, portanto, de algo que não é mais o indivíduo, mas que seria
confinada à ordem liberal. Convicção ou pragmatismo?
14 El Canon Snorri é “a virtude da tolerância e a aptidão para reconhecer valores alheios” (DÍAZ-POLANCO,
2004: 231).
2003: 215). Por isso, mais do que resistência, o que se tem é R-Existência, posto
que não se reage, simplesmente, a ação alheia, mas, sim, que algo preexiste e é a
partir dessa existência que se R-Existe. Existo, logo resisto. R-Existo.
Assim como os romanos aprenderam com os gregos e estes dos egípcios, sa-
bemos que os colonizadores se apropriaram do conhecimento nativo para do-
miná-lo e ocupar seus territórios. Mas, depois de 500 anos os zapatistas trazem
o México Profundo à cena política e os bolivianos reinventam Tupac Katari. A
elite criolla boliviana sabe, literalmente, o que esse nome lhe traz à cabeça. A
totalidade do sistema mundo é não só contraditória como heterogênea e, assim,
não pode ser reduzida à dialética do capital-trabalho. Ou melhor, há heterogênese
na totalidade. Embora Marx tenha se colocado de um ponto de vista crítico e
emancipatório no interior do capitalismo, não teria percebido a diferença colonial
como constitutiva e estruturante do capitalismo, o que é fundamental para com-
preender a América Latina (ARICÓ, 1982), como, mais tarde, bem o faria José
Carlos Mariátegui. Walter Mignolo nos faz uma interessante provocação quan-
do se pergunta: “se, como condição de sua ‘inteligibilidade’, a diferença colonial
exige a experiência colonial em vez de descrições e explicações socio-históricas do
colonialismo. Suspeito que esse seja o caso e, se for, é também condição para a
diversidade epistemológica como projeto epistemológico...” (MIGNOLO, 2003:
253. Os grifos são meus – CWPG). E aqui temos um bom caminho para a crítica
a esse moderno “olhar de sobrevoo” (MERLEAU-PONTY; ARENDT, 1987)
que se abstrai do mundo para, de fora, colonizá-lo, o que nos remete à necessida-
de de um caminhar com, a um conhecimento com e não sobre.
Gaston Bachelard em seu A poética do espaço havia distinguido entre lógica
material, aquela que se constrói a partir do atrito, do tato e do contato com a
matéria, uma lógica do sentimento, e aquela lógica formal que se constrói pelo
olhar das formas, lógica matemática, para ele também ocularista. A parafernália
de visores, de amplos (tele)visores em cada esquina, em cada lugar, enfim, de
sensores a distância (sensoriamento remoto via satélite) nos dá conta da sociedade
do controle (Foucault) generalizado que essa lógica comporta (PORTO-GON-
ÇALVES, 2001). Assim, a problemática dos saberes não pode descambar para um
culturalismo que ignora a materialidade dos fazeres e dos poderes. Afinal, o fazer
cotidiano está atravessado o tempo todo pela clivagem da dominação, pelo menos
desde 1492 (os maias e os aimaras incluem também os impérios estatalistas dos
astecas e dos incas). No fazer há sempre um saber – quem não sabe não faz nada.
Há uma tradição que privilegia o discurso – o dizer – e não o fazer. Todo dizer,
como representação do mundo, tenta construir/inventar/controlar mundos. Mas
há sempre um fazer que pode não saber dizer, mas o não saber dizer não quer
dizer que não sabe. Há sempre um saber inscrito no fazer. O saber material é um
saber do tato, do contato, dos sabores e dos saberes, um saber com (o saber da do-
minação é um saber sobre). Há um saber ins-crito e não necessariamente es-crito.
Cornelius Castoriadis e o grupo “Socialismo e Barbárie” dedicaram páginas mara-
vilhosas a esses saberes que se fazem desde os lugares, desde o cotidiano, desde as
lutas que, do ponto de vista dos grupos/classes sociais em situação de subalterni-
zação, se dão nos espaços ocultos e não nos espaços abertos dos conflitos da pólis
(SCOTT, 2004 [1990]).
O poeta brasileiro Caetano Veloso disse que “só é possível filosofar em alemão”
e, assim, à sua maneira, associou a episteme ao lugar. Embora o pensamento
filosófico tenha um lugar e uma data de nascimento, o pensamento não, como
nos ensina Walter Mignolo convidando-nos a não confundir o pensamento fi-
losófico com o pensamento enquanto tal. Assim, uma racionalidade mínima é
condição de qualquer comunidade humana e a diversidade de racionalidades o
maior patrimônio da espécie, sua expressão maior de criatividade. Talvez a ideia
de incompletude de cada cultura, proposta por Boaventura de Sousa Santos, se
constitua numa boa perspectiva para fundarmos um novo diálogo de saberes,
uma verdadeira política da diferença transmoderna (Dussel) para além da mo-
dernidade-colonial, conforme Enrique Leff nos convida com o auxílio de Ema-
nuel Levinas, abrindo espaço para uma hermenêutica diatópica (Boaventura de
Sousa Santos), do que talvez o zapatismo, esse híbrido de pensamento maia com
marxismo, e a interculturalidade, esse exotópico/terceiro espaço/gnose liminar,
onde também se vê o marxismo dialogando com os quéchuas e aimaras, sejam as
melhores traduções disponíveis.
Referências
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15 Em que pese a indicação de Wedderburn (2005), bem como de diversos outros autores, de que esta leitura
de “país” da democracia racial, exceção em todo o planeta, também é proposta em outros “países”, sobretu-
do da América Latina. Vivemos paradoxalmente, portanto, num “mar” de (ou, num continente composto
todo de) exceções. Ver, por exemplo, Oakley (2001) e Hidekazu (2002).
16 Ver, p. ex., Mignolo. Uma outra pensadora, não vinculada a este grupo, mas que também faz a crítica ao
eurocentrismo, a indiana Gayatri Spivak, aponta proposta semelhante do Grupo de Estudos Subalternos,
ao colocar que “o projeto deles é o de repensar a historiografia colonial indiana, a partir da perspectiva da
cadeia descontínua de insurgências de camponeses durante a ocupação colonial” (2010, p. 72) – o que
lemos como uma narrativa de histórias territoriais a partir do lócus epistêmico dos dominados/explorados/
subalternizados, ou mesmo daqueles que foram exterminados. É nesta mesma direção que temos proposto
pensar a formação do território brasileiro como um processo de “branqueamento do território” (Santos,
2009), que compreende o branqueamento da ocupação (com aniquilação, extermínio, expulsão ou mesmo
assimilação e embranquecimento de outros grupos, negros e/ou indígenas), o branqueamento da imagem
(com as narrativas históricas apresentando lugares, países, como sendo iniciados apenas a partir da chegada
dos brancos, ou seja, negando o protagonismo histórico a outros grupos) e o branqueamento cultural (com
a imposição de determinadas matrizes de relação sociedade-natureza sobre outras) dos territórios.
17 Obviamente, diversos outros diálogos (e/ou influências) do Grupo Modernidade/Colonialidade podem ser
apontados. Nos restringimos a estes pelo foco de interesse do presente texto.
O presente trabalho tem como objetivo traçar algumas anotações sobre o ra-
cismo e a luta antirracismo do Movimento Negro brasileiro, sob uma perspectiva
descolonial. Para isso, aqui propomos a necessidade de: (i) debater a relação en-
tre racismo e outros princípios de dominação/exploração/hierarquização, repo-
sicionando o racismo dentro de leituras de totalidade; isso nos impulsiona a (ii)
construir uma leitura do nosso padrão de relações raciais, pensando-o em sua
complexidade e diversidade de mecanismos operativos; daí, (iii) compreender a
própria forma de estruturação e ação do Movimento Negro brasileiro, marcado
pela pluralização de formas e focos de ação, assim como de atores constituintes.
Acreditamos que assim estamos nos posicionando dentro das disputas de sentido,
significado, narrativa e estratégias que constituem o próprio movimento social.
18 Há todo um debate sobre a origem histórica de sistemas de dominação “raciais”. Moore Wedderburn
(2005), p. ex., aponta o sistema de castas indiano como um sistema de dominação pigmentocrático mile-
nar, portanto, anterior e independente do modo de produção capitalista. Não entraremos neste debate
aqui, mas trabalhamos com a leitura de que em nossa realidade o que opera é um sistema vinculado ao
capitalismo, e central para ele.
19 D’Adesky (2001), baseando-se em Pierre-André Taguieff, nos mostra a existência de racismos diferencialis-
tas e universalistas. Da mesma forma, também há antirracismos baseados tanto em universalismos quanto
em diferencialismos.
Esta leitura do padrão (brasileiro) de relações raciais nos conduz a pensar não
apenas a racialidade (e a complexidade) das classificações raciais, mas também
uma classificação de contextos onde este princípio de hierarquização social (a
raça) é mobilizado ou não é. Sansone fala em “espaços”, e fazer uma leitura das
relações raciais a partir da sua espacialidade implica admitir que estes “espaços”
são, na verdade, “contextos de interação”. Há na nossa sociedade um complexo
padrão de relações raciais que mistura, no cotidiano das relações sociais, momen-
tos onde há interações marcadas por horizontalidade, integração e igualdade entre
brancos e negros e, ao mesmo tempo, outros momentos onde há verticalidades,
hierarquias e diferenças que são transformadas em desvantagens, ou vantagens
desiguais entre estes grupos. Esta mistura entre momentos de horizontalidade e
momentos de verticalidade é que vai permitir que, a um só tempo, convivam em
nossa sociedade (i) uma representação de si própria como sendo uma “democracia
racial” e (ii) a reprodução e a consolidação de desigualdades sociais baseadas em
raça, o que deveria ser extirpado caso horizontalidade, integração e igualdade fos-
sem princípios ordenadores das relações raciais vigorando em todos os momentos
da construção do tecido social.
Esta organização espaçotemporal das relações sociais delineia que, nos mo-
mentos e lugares em que se define o acesso às riquezas que a sociedade produz
(acesso a educação, emprego, saúde, conhecimento e seus instrumentos de pro-
dução, posições de poder etc.), as diferenças raciais são mobilizadas na forma de
verticalidades e hierarquias, assim produzindo e reproduzindo inequivocamente
as desigualdades raciais. Um profícuo exemplo é a disputa pelo acesso a um pos-
to de emprego: dois amigos, um branco e um negro, se apresentam em busca
de uma vaga de emprego. Neste momento há, como situação predominante em
nosso tecido social, uma vantagem do postulante branco em relação ao postulante
negro – o acesso ao emprego é um dos campos onde a assimetria é a marca das
relações raciais, inclusive nas situações em que há igualdade nas variáveis que po-
deriam configurar diferenciais entre os postulantes (mesma qualificação, mesma
idade etc.). Estes dois postulantes podem ser os melhores amigos, e, ao sair da
entrevista, se põem a comentar “Como foi a sua entrevista? O que lhe pergun-
taram?”, sentados numa praça, ou dentro do ônibus a caminho de suas casas.
Neste momento, eles voltam a ter uma interação marcada pela horizontalidade
nas relações inter-raciais, momento este que foi sutilmente precedido por outro
onde a assimetria era a tônica. E se, quando estão ambos dentro de um ônibus,
este veículo de transporte coletivo for parado pela polícia? Terão igualdade de
tratamento? As chances de ser abordado pela polícia, e ter um tratamento de
desrespeito e suspeita por parte do policial são as mesmas? Este exemplo que reú-
ne situações corriqueiras na nossa sociedade mostra como a mudança de padrão
pode se dar no mesmo lugar, em momentos diferentes, ou em lugares diferentes:
espaço e tempo aqui são flexionados de acordo com o que está em questão em
cada “contexto de interação”.
Esta coexistência de momentos e lugares onde há posições distintas e distintos
padrões de interação racial é que permite que o mesmo indivíduo que seleciona
narcisicamente com base em pertencimento racial no balcão de emprego possa
retornar para sua rua e encontrar-se com um amigo negro. A ambiguidade no
comportamento deste indivíduo revela uma construção espacial que é resultante
de um “aprendizado” social: ainda que inconscientemente, ele “sabe” onde a raça,
a cor, o pertencimento racial é importante como critério (de seleção) regulador
das relações sociais e onde não é – afinal, um erro no trabalho pode lhe custar seu
emprego, e um erro nas relações de amizade pode lhe custar o reconhecimento e
laços afetivos. Goffman (1975) nos ajuda a compreender esta organização espacial
das relações sociais ao trabalhar com a ideia de “regiões de fachada” e “regiões
de fundo”, e mostra como há práticas e signos associados a tais “regiões”. Esta
geo-grafia simbólico-prática condiciona não somente práticas e normas de con-
dutas21, mas também as possibilidades de presença e os tipos de presença de indi-
víduos nos lugares (contextos e cenários sociais), de acordo com a forma como a
sociedade tem constituídas suas estruturas, seus pertencimentos e atributos.
Isso implica a assunção de que os corpos, os habitus, os códigos culturais dos
indivíduos são permitidos ou não dependendo do lugar (contexto e cenário so-
cial), o que tem relação direta com a construção e a forma como se estruturam as
hierarquias sociais (a colonialidade do poder)22.
21 Vale também ver a leitura que faz Giddens (1989) sobre esta organização espacial do fluxo das práticas so-
ciais no cotidiano, onde ele aprofunda o papel do espaço e do tempo (através das contribuições de Torsten
Hagerstränd) e das relações de poder (trazendo as contribuições de Michel Foucault).
22 Quijano (2010) propõe o conceito de “heterogeneidade histórico-estrutural do poder” que, nos ajudando
a realizar a articulação entre análises de caráter mais “atomísticas” com leituras de “totalidade”, indica
que “a articulação de elementos heterogêneos, descontínuos e conflituosos numa estrutura comum, num
determinado campo de relações, implica, pois requer, relações de recíprocas, determinações múltiplas e
heterogêneas”.
23 A estrutura classificatória do IBGE para o quesito cor/raça utiliza cinco categorias: branco, pardo, preto,
amarelo e indígena. Para o órgão, diante da semelhança de comportamentos das estatísticas sociais de
pardos e pretos, que permite considerar que sejam resultados da exposição a processos sociais semelhantes,
estes podem ser agrupados numa categoria analítica, “negro”. “Negro”, para o IBGE, portanto, não é uma
categoria de cor/raça utilizada nas pesquisas, mas sim, a partir da análise dos resultados delas.
24 Ressalve-se que, na verdade, no caso do quesito cor/raça o levantamento censitário do IBGE mescla autoa-
tribuição com heteroatribuição, pois em caso de ausência da pessoa no domicílio é o entrevistado presente
(que pode ser morador da residência ou mesmo um vizinho) quem classifica a pessoa. A heteroatribuição,
neste caso, não é realizada pelo entrevistador.
(...) é pertinente sair da teoria eurocêntrica das classes sociais e avançar para uma
teoria histórica de classificação social. O conceito de classificação social, nessa
proposta, refere-se aos processos de longo prazo nos quais os indivíduos disputam
o controle dos meios básicos de existência social e de cujos resultados se configura
um padrão de distribuição do poder centrado em relações de exploração/domi-
nação/conflito entre a população de uma sociedade e numa história determinada.
a distribuição dos indivíduos nas relações de poder tem (...) o caráter de pro-
cessos de classificação, desclassificação e reclassificação social de uma popula-
ção, ou seja, daquela distinção que ocorre num padrão societal de poder de
longa duração. Não se trata aqui somente do fato que as pessoas mudam e
possam mudar o seu lugar e os seus papéis num padrão de poder, mas que tal
padrão está sempre em questão (...). (p. 115)
(...) uma sociedade que constitui suas relações por meio do racismo, (...) [tem]
em sua geografia lugares e espaços com as marcas dessa distinção social: no caso
brasileiro, a população negra é francamente majoritária nos presídios e absoluta-
mente minoritária nas universidades; (...) essas diferentes configurações espaciais
se constituem em espaços de conformação das subjetividades de cada qual. (p. 2)
27 Em Santos (2011), discutimos a importância de “discernir a emergência das identidades de base espacial
das diferentes formas de sua mobilização no jogo social” (p. 152). A construção de um espaço (ou, lugar)
enquanto referência de negritude não necessariamente tem subjacente um uso político – ou, este pode não
ser o principal mote da criação desta referência espacial da identidade.
citar os bailes e espaços de “charme”, no Rio de Janeiro (p. ex., o baile do “Tanga-
rá”, que ocorre numa esquina no centro da cidade uma vez por mês) e em outras
cidades. Estes são espaços públicos, ocupados temporariamente por segmentos da
comunidade negra, enquanto momentos de lazer que são lastreados politicamente
pela valorização da negritude. A dimensão temporária e intermitente (porém re-
corrente) da ocupação destes lugares configura uma territorialidade marcada pela
superposição com outras territorialidades (p. ex., dos comerciantes, de trabalha-
dores)28. A geo-grafia deste espaço é dada pela corporeidade dos frequentadores
e pelos traços culturais valorizados que remetem diretamente à negritude. São as
experiências sociais (de espaço) que organizam esta geo-grafia das relações raciais.
29 No caso brasileiro, podemos falar de pelo menos duas ideologias raciais hegemônicas, desde o século XIX:
(i) a ideologia do branqueamento da população, hegemônica desde o século XIX até aproximadamente
meados do século XX, quando no bojo do processo de industrialização a dificuldade nas condições para
importação de força de trabalho branca imigrante obrigou a utilização crescente de estoques autóctones de
mão de obra (ver Vainer, 1990), o que impulsionou a emergência da (ii) ideologia da democracia racial,
funcional para um modelo de acumulação de capital com base pobre (ou seja, ancorado na hiperexploração
da força de trabalho – ver Chico de Oliveira, 1982). O ideário da democracia racial pregou o convívio de
diferentes grupos raciais mas de maneira a preservar hierarquização e dominação entre eles, permitindo a
um capitalismo periférico, dependente e marcado pela colonialidade (!), instaurar taxas diferenciadas de
exploração e acesso às riquezas produzidas. Isso se reflete nas desigualdades raciais que diversos autores
vêm mostrando em estatísticas e indicadores sociais. Ao negar a existência do racismo (quando necessário,
a fórceps), o ideário da democracia racial neutraliza as reações a ele, constituindo-se então num poderoso
instrumento de controle de subjetividades inclusive dos subalternizados.
32 Com destaque para as desigualdades raciais, o que permite que, mesmo sendo difícil a reconstituição dis-
cursiva das cadeias de atos e ações que consubstanciam o racismo (as diferentes formas de discriminação)
num determinado contexto ou problemática social, seja possível apontar impactos da organização racializa-
da de comportamentos sociais e valores, através da identificação da existência de desigualdades raciais.
33 O que sustenta a importância política inclusive daquelas iniciativas chamadas de “culturalistas” – leia-se
despolitizadas – em perspectivas reducionistas, mas que concorrem para promover equilíbrio nas represen-
tações de indivíduos e grupos ao constituir espaços de valorização da negritude.
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I. Introdução
Vivemos um período do urbano brasileiro denso de tensões raciais. Intolerân-
cia religiosa, destruição de terreiros, genocídio do povo negro, eventos de discri-
minação racial em espaços públicos e privados, racismo ambiental, políticas de
embranquecimento da paisagem/território, entre outras. O racismo se dimensio-
na espacialmente numa pluralidade de experiências que revelam tensões nos pro-
jetos de cidade e de nação. A cidade do Rio de Janeiro é ideologicamente utilizada
como padrão de nossas relações raciais. Nas últimas décadas tem se transformado
no principal laboratório das políticas de city-marketing. O objetivo do artigo é
analisar a inscrição espacial do imaginário colonial biopolítico racista nas políticas
de city-marketing na cidade do Rio de Janeiro35. Sugerimos duas possibilidades:
34 Este artigo é resultado das investigações do autor sobre o Imaginário Colonial, Espaço Urbano e Racismo
no NEGRA (Núcleo de Estudos e Pesquisa em Geografia Regional da África e da Diáspora) da Faculdade
de Formação de Professores da UERJ. Algumas das ideias aqui elaboradas foram parcialmente exploradas
em Oliveira (2014).
35 Apresentaremos uma leitura plural da biopolítica que nasce como exercício do poder sobre a vida das popu-
lações humanas. Neto (2008) identifica pelo menos cinco formulações de biopolítica criadas por Foucault.
1- A biopolítica e a saúde; 2- A biopolítica e o racismo de Estado; 3- A biopolítica e a sexualidade; 4- A
biopolítica e a segurança; 5- A biopolítica e a economia. Neste trabalho, iremos de forma direta e indireta
nos apropriar da relação entre biopolítica e saúde, racismo de Estado, sexualidade e segurança. Contudo,
Castro-Gómez (2012) e Grosfoguel (2011) apontam que a leitura de biopolítica de Foucault é marcada
por uma visão eurocêntrica, pois existem formações de poder que operam molecularmente que não estão
contempladas nas investigações de Foucault como a colonialidade.
36 Grofoguel (2011; 2014), em diálogo com Fanon, aponta que o racismo cria uma zona do ser e uma zona do
não ser. Essas zonas não são homogêneas e nem “[...] un lugar geográfico específico sino una posicionalidad
en relaciones raciales de poder” em múltiplas escalas (Idem). A zona do ser não se vive à opressão racial e sim
privilégios. Na zona do não ser vive-se à opressão racial em lugar de privilégios raciais. Portanto, a opressão
de classe, de gênero e sexualidade vividas na zona do não ser é qualitativamente distinta das opressões vividas
na zona do ser. Negar a zona do não ser é negar opressões a hetararquias (Idem) inscritas e sentidas de forma
desigual no uso e na apropriação do espaço da cidade. A grande mídia buscará afirmar que o racismo não é
algo da cultura brasileira, Não somos racistas, título do livro de Ali Kamel (diretor-geral do jornalismo e do
esporte da Rede Globo de Televisão) que se coloca frontalmente às políticas afirmativas. A fabricação deste
consenso ideológico racial fez com que a Rede Globo utiliza-se do privilégio (econômico, político e racial)
do diretor num dos capítulos da novela das nove, Duas Caras, de 2008, apresentando a atriz negra Juliana
Alves (fazendo o papel de Gislaine – uma estudante negra apresentada como a mulata Da Cor do Pecado,
título de outra novela de tom racista da mesma emissora) lendo o livro Não somos racistas, de Ali Kamel. Os
afro-convenientes são centrais para a tese de que não somos racistas.
El racismo es, en términos foucaultianos, ante todo una tecnología que preten-
de permitir el ejercicio del biopoder, “el viejo derecho soberano de matar”38.
En la economia del biopoder, la función del racismo consiste en regular la dis-
tribución de la muerte y en hacer posibles las funciones mortíferas del Estado.
Es, según afirma, “la condición de aceptabilidad de la matanza”39.
37 O racismo é aqui entendido como um padrão de poder que estabelece uma hierarquia de inferioridade/
superioridade acerca do humano pela raça (GROSFOGUEL, 2011; 2014) agindo em múltiplas dimensões
e escalas. Há, portanto, múltiplos racismos, como defende Fanon (2008). Há uma dimensão política, eco-
nômica, cultural e epistêmica do racismo, assim como escalas micro, local, regional, nacional, internacional
e global do racismo. O racismo pressupõe produção de afastamentos, distâncias materiais e simbólicas defi-
nindo limites e fronteiras acerca da humanidade do outro (OLIVEIRA, 2011). Assim, espera-se dos corpos
racialmente inferiorizados um comportamento espacial regulado, pois possuem um uso discriminado dos
espaços e das escalas da vida social e são corpos matáveis. A corporeidade passa a ser um patrimônio que se
carrega criando para este um capital racial. Em nossa investigação vemos que essa grafia espacial das relações
raciais são constantemente camufladas por ideologias raciais.
38 M. Foucault, Genealogía del racismo. De la guerra de las razas al racismo de Estado, La Piqueta, 1992, p. 90.
39 Ibid. , p. 10.
40 Entrevista com Giorgio Agamben concedida a Juliette Cerf, na Verso. Retirado de http://outraspalavras.net/
posts/giorgio-agamben-pensamento-como-coragem-de-transformacao/ em 4/8/2014.
41 Idem.
quem deve viver e quem deve morrer” (AGUIAR, 2012, p. 142), numa situação
de plena vigência das regras constitucionais (Idem). O estado de exceção se con-
verteu na base normativa do direito de matar, mas que não é necessariamente um
poder estatal (MBEMBE, 2006)42. O medo branco da onda negra transforma-se
numa arma para os que geram e para quem se utiliza como pretexto para ações
arbitrárias e antidemocráticas sob o discurso da lei e da ordem.
[...] o racismo é indispensável como condição para poder tirar a vida de alguém,
para poder tirar a vida dos outros. A função assassina do Estado só pode ser
assegurada, desde que o Estado funcione no modo do biopoder, pelo racismo.
42 Mbembe (op. cit.) aponta que a primeira experiência biopolítica foi a escravidão e que o contexto das plan-
tation expressa manifestações do estado de exceção, pois o soberano, no contexto colonial, poderia matar
em qualquer momento e local, não estando submetidos a nenhuma das regras legais e institucionais.
dos rolezinhos43 foi uma estratégia biopolítica de contenção territorial que teve o
racismo como mecanismo de contenção, já que o critério racial era posto como o
mais ‘objetivo’ pelos aparatos de segurança tanto pública quanto privada na proi-
bição na entrada dos shopping centers. Mas Haesbaert (2010) aponta que numa
barragem é impossível controlar todo o volume que chega, sempre havendo verte-
douros “por onde o conteúdo, quando aumenta em volume, acaba fluindo. Você
barra sempre de forma parcial ou temporária. Não existe mais a possibilidade de
um fechamento completo” (Ibidem). Distinções raciais no acesso e no uso desses
espaços são necessárias para quebrar qualquer sentido de unidade negra ou dos
aparatos de in-segurança serem acusados de racistas. Os hábitos e costumes colo-
niais que fixam identidades não somente pela riqueza, mas também pelo capital
simbólico da “brancura” ainda é um signo de distinção no acesso e no uso dos es-
paços da cidade (CASTRO-GÓMEZ, 2009; OLIVEIRA, 2011). Neste contexto
de megaeventos, o espírito patriótico necessita criar uma divisão racial do trabalho
em que cabe à “mulata” o papel de atrair o turista internacional que vai criar
emprego e investimento na cidade44. A visão excepcional da mulher brasileira, es-
pecialmente a “mulata”, é revigorada para o consumo45. A grande mídia é um dos
principais divulgadores deste imaginário colonial sobre a mulher negra que reduz
as suas possibilidades de futuro ao consumo do seu corpo. Somos, assim, o país
das “mulatas”. Espera-se delas lealdade cívica, isto é, o patriotismo de cidade, para
43 Os rolezinhos foram um fenômeno social espontâneo que aconteceu em várias cidades brasileiras no se-
gundo semestre de 2013 e início de 2014 de passeios combinados pela internet de grupo de jovens das
favelas e periferias sociais urbanas em shopping centers. Além de demonstrar que a juventude pobre, em sua
maioria negra, vive em espaços segregados sem direito a lazer, ganharam destaque no noticiário nacional
e internacional devido ao mal-estar e medo branco explícito de uma onda negra, favelada, periférica, nos
seus espaços privilegiados de consumo, os shopping centers. Portas das lojas foram fechadas no momento dos
rolezinhos e ações judiciais foram expedidas para proibir esses encontros.
45 Esta visão preconceituosa sobre a mulher brasileira tem fortalecido a imagem do Brasil como destino se-
xual. Exemplo disso foram as camisas da Adidas vendidas em São Francisco (que rapidamente foram tiradas
do mercado por pressão do movimento negro e feminista brasileiro), com o slogan da Copa do Mundo de
2014, marcadas pelo apelo sexual vinculado aos corpos das mulheres brasileiras para consumo.
vender a imagem sem grandes conflitos e segura num contexto de crise iminente
(VAINER, 2011a)46.
O imaginário de brasilidade deve ser reforçado para que o Brasil se torne des-
tino turístico, assim a fusão entre mulher e natureza na comercialização do
paraíso deve ser reforçada com a fusão de mulher e cultura, com a comerciali-
zação da mulata. Assim, o Brasil se torna um paraíso de mulatas, onde natureza
exuberante, mulheres sensuais e mestiçagem fundem-se na figura da mulata.
(GOMES, 2010, p. 54)
47 Essa ideia pode ser constatada na entrega de imóveis do programa federal “Minha Casa, Minha Vida” no
Rio de Janeiro, que tem sido marcada pela atuação biopolítica/necropolítica de milicianos.
“[...] constatou que todos, absolutamente todos os 64 condomínios do “Minha Casa, Minha Vida” destina-
dos aos beneficiários mais pobres – a chamada faixa 1 de financiamento – no município do Rio são alvo da
ação de grupos criminosos. Neles, moram 18.834 famílias submetidas a situações como expulsões, reuniões
de condomínio feitas por bandidos, bocas de fumo em apartamentos, interferência do tráfico no sorteio dos
novos moradores, espancamentos e homicídios (MARINATTO; SOARES, 2015).
49 Não ter o título de propriedade da terra pode significar expulsão, despejo e destruição de seus referenciais
identitários, especialmente nos espaços-vitrines alvos do planejamento estratégico.
51 A Prefeitura alega nas propagandas oficiais que “as remoções têm o intuito de oferecer maiores condições
de habitabilidade e segurança aos moradores. Assim, quando a Secretaria Municipal de Habitação – SMH
declara que determinadas casas estão expostas a situação de risco, as mesmas devem ser desocupadas. [...]
A condenação das casas e posterior desocupação têm sido marcadas pela ausência de laudos técnicos que
balizem as decisões, pelo constante desrespeito às ações judiciais ou até mesmo pelo uso intimidador dos
agentes da justiça, caracterizando relações de truculência durante o processo. Recorrentemente tais práticas
têm sido acusadas pelos movimentos sociais, quase sempre sem publicidade. Um ato exemplar desta política
foi a edição do Decreto n. 30.398/2009, ainda na segunda semana da gestão Paes, estabelecendo que a re-
cém-criada Secretaria de Ordem Pública realizasse as demolições das edificações e construções sob risco de
desabamento ou irregulares, considerando inadiável a tomada de providências em relação aos prédios que
colocam em risco a vida e a segurança dos munícipes” (FAULHABER; NACIF, 2013, p. 6-7).
52 Nos protestos contra os megaeventos e o city-marketing, Rafael Braga Vieira, um jovem negro, analfabeto,
pobre, em situação de rua, foi a única pessoa, em todo o território nacional, condenada por ato de violência
das manifestações de junho de 2013. Rafael não estava nas manifestações, mas foi preso pela polícia do Rio
de Janeiro no bairro ao lado onde estavam ocorrendo as manifestações, portando uma garrafa de plástico
de desinfetante e água sanitária que ele possuía para levar para o local em que iria dormir na noite de 20 de
junho de 2013. No laudo pericial, que deveria ser técnico, o perito afirma que uma garrafa de plástico com
desinfetante e água sanitária, que são materiais não explosivos, seriam utilizados para construir explosivos,
o chamado coquetel molotov. Vemos a gestão biopolítica do espaço através de práticas racistas e classistas
restituir os tempos da ditadura e da escravidão ao usar Rafael Braga Viera como bode expiatório.
53 Mas silencia que “[...] as famosas praias da Zona Sul, onde se contam a dedo os negros que as frequentam.
No caso destas praias, é possível vê-los como vendedores ambulantes (chá-mate, mentira carioca, cerveja,
refrigerante, óculos de sol etc.), como se o serviço doméstico se transferisse para as áreas de lazer” (GARCIA,
2006, p. 200). Também silencia a hegemonia branca nas posições de poder, a intensificação de eventos
de discriminação racial coletiva nos campos de futebol e dissimula a segregação racial dos moradores das
comunidades.
54 Para Santos (2010) fascismos sociais não se referem ao fascismo dos anos 30 e 40. “Ao contrário deste, não
é um regime político, mas social e civilizacional. Em vez de sacrificar a democracia às exigências do capita-
lismo, promove-a até não ser necessário nem conveniente sacrificá-la para promover o capitalismo. Trata-se
de um fascismo pluralista, forma que nunca existiu.” Para o autor são três fascismos sociais: 1- o fascismo
de Apartheid Social; 2- o fascismo paraestatal; 3- o fascismo de insegurança. Falaremos deles adiante.
55 As favelas nasceram como a contraface da modernidade urbana. Ou seja, a favela é a expressão moderno-
-colonial do urbano, subalternizando grupos sociais que a compõem e caracterizando-se como formações
territoriais subalternas num contexto de (re)novação da colonialidade nos primórdios do pós-colonialismo.
56 Para o filósofo camaronês Achilles Mbemebe (2006), inspirado na ideia de biopolítica de Foucault, o ne-
cropoder e a necropolítica revelam que a expressão última da soberania reside no poder e na capacidade de
decidir quem pode viver e quem deve morrer.
57 “Em toda sociedade, em toda coletividade, existe, deve existir um canal, uma porta de saída, através do qual
as energias acumuladas, sob forma de agressividade, possam ser liberadas” (FANON, 2008, p. 13).
58 Até o momento o seu corpo não foi encontrado. O caso Amarildo não é o único. Estudiosos estimam que
tenha ocorrido um aumento considerado dos desaparecidos forçados relacionados com casos policiais.
60 O vigilantism também atinge no Brasil a população LGBTT ao expressar as suas afetividades no espaço
público. A biopolítica do deixar viver ou fazer morrer tem a dimensão da sexualidade.
62 No início de 2014 a mídia passou a relatar ações de grupos jovens, em sua maioria brancos, de classe média-
-alta que se intitulavam justiceiros que acorrentavam, torturavam pobres, em sua maioria negros, suspeitos
de roubos, viciados em crack e em situação de rua. No final de outubro deste mesmo ano (2014), alguns
integrantes da quadrilha dos justiceiros que acorrentou e espancou o jovem negro no bairro do Flamengo
foram presos por tráfico e associação ao tráfico de drogas pela polícia do Rio de Janeiro. Segundo o jornal
Brasil de Fato do dia 30 de outubro de 2014: “Eles também praticavam crimes como roubo e furto de auto-
móveis, receptação, estupro e tentativa de homicídio, além de tráfico de drogas e associação para o tráfico.
O grupo agia nos bairros Flamengo, Catete e Laranjeiras”.
memória e lhe ensinaram as lições que sobrevivem 125 anos depois da liber-
dade sem conteúdo da Lei Áurea. A lei que libertou os brancos do fardo da
escravidão antieconômica. Mais de um século depois, o menino ainda sabe
como é que se fala até mesmo com moleque que herdou os mimos da casa-
grande: “Eu não, meu senhor, todo mundo aqui é trabalhador”, defendeu-se.
64 LANNA, A. L. D. Cidade colonial, cidade moderna no Brasil: pontos e contrapontos. In. Anais do IV
Seminário de História da Cidade e do Urbanismo. RJ: UFRJ,1996, p. 496.
65 Outra situação colonial que emerge são as marcas nas casas que serão removidas. Remonta-se aí “[...] ao
autoritarismo do curioso “PR” de “Príncipe-Regente” ou “Ponha-se na Rua” no Rio de Janeiro colonial”
(FAULHABER; NACIF, 2013, p. 12).
66 Essa geografia de privilégios elitizados e racializados no seu limite afirma a eliminação. O genocídio da po-
pulação negra se expressa nas mortes por autos de resistência de ditos policiais, o crescimento de skinheads
e justiceiros. Esses grupos apelam para punições que não são sancionadas por instituições legais e nem
dependem destas para dar legitimidade a suas ações. Recentemente (dia 4 de fevereiro de 2014) várias de-
clarações da jornalista Rachel Sheherazade do SBT defendendo o linchamento e a tortura do jovem negro,
acusado de roubo, preso pelo pescoço com uma tranca de bicicleta num poste no bairro do Flamengo (RJ)
afirmando que “a atitude dos vingadores é até compreensível”. Para a âncora do tele-jornal “o contra-ataque
aos bandidos é o que chamo de legítima defesa coletiva de uma sociedade sem Estado contra um estado
de violência sem limite”. Ela continua dizendo: “Aos defensores dos direitos humanos, que se apiedaram
do marginalzinho preso ao poste, eu lanço uma campanha: faça um favor ao Brasil, adote um bandido”.
Percebemos a grande mídia como agente biopolítico e, diferentemente de Martins (1995), que cria uma
identificação explícita da elite brasileira com os justiceiros. Quanto mais degenerados e as raças inferiores
desaparecerem, mas a espécies superiores crescerão fortes, vigorosos e proliferarão (FOUCAULT, 2005).
Um discurso fascista “em defesa da sociedade” racista e elitista (Idem), que define um coeficiente negativo
para a vítima e positivo para o agressor (MEMMI, 2010). Esse genocídio cria uma geocronobiopolítica
urbana, isto é, momentos do dia, especialmente à noite, em locais escuros e/ou com iluminação precária,
em que negros são postos como potenciais criminosos se estiverem circulando por determinados espaços da
cidade à noite, é mais larga e perigosa.
Os capitalistas raciais68
Entendemos por capitalistas raciais os agentes modeladores do espaço urbano
que instituem uma organização e uma distribuição do espaço que concedem pri-
vilégios a determinados grupos raciais de status social posto como superior. Cas-
tro-Gómez (2009) aponta que “dificilmente podríamos hablar de uma burguesía
‘moderna’ – en el sentido europeu del término – sino, más bien, de uma burguesía
moderno-colonial”.
Os capitalistas raciais são uma multiplicidade de agentes (do marketing e da
publicidade a industriais e promotores imobiliários) que transitam pela zona do
ser (GROSFOGUEL, 2011; 2014). O papel deste não é novo na estruturação
das cidades brasileiras. Tradicionalmente se constituíram a partir de tecnologias
biopolíticas na produção do espaço (Idem).
67 Esse grupo é bastante ampliado. Apresentamos apenas esses três para uma reflexão mais aprofundada.
69 No final do século XIX e no início do XX no Rio de Janeiro, o poder medical atribuía autoridade aos
médicos sanitaristas na configuração do urbano e a eliminação dos espaços insalubres. No atual contexto
do planejamento estratégico e do city-marketing, o poder medical passa a assumir autoridade política na
configuração do meio urbano através da higienização da paisagem de grupos postos como anormais e dro-
gadictos que perdem o controle sobre os seus corpos e criam cracolândias em itinerários turísticos e/ou em
espaços-vitrines. O exercício do poder medical tem uma dimensão geopolítica, pois cabe ao Estado elimina
este mal-estar, especialmente das paisagens emblemáticas do marketing urbano. Os espaços/paisagens que
não são vitrines não serão alvo do exercício do poder medical. Aí o poder medical é banhado pelo imaginário
colonial, pois retira o estatuto de humanidade destas populações ao serem abordados como animais pela
lógica de in-segurança. A interdição, tanto a compulsória quanto a consentida, é um mecanismo de poder
que visa eliminar do campo visual da paisagem os indesejados. O combate às cracolândias, nestas políticas,
nunca foi apontado como uma questão de saúde pública, pois a medicina nesta lógica não é vista como
prática de socorro, e sim como uma tecnologia de poder e controle populacional sobre a vida administrada
pelo Estado e a burguesia moderno-colonial (GROSFOGUEL, 2009; 2010).
Das 13 favelas que compõem a lista do governo, 11 ficam na Zona Sul da ci-
dade: Pavão-Pavãozinho, Ladeira dos Tabajaras, Chapéu Mangueira, Rocinha,
Vidigal, Santa Marta e outras. Segundo Freixo (2011) as favelas da Zona Sul
apontadas no projeto possuem percentuais de expansão horizontal inferior ao
total de crescimento das áreas de favelas do Estado. A favela Santa Marta, por
exemplo, decresceu em 0,78%.
Racismo ambiental
O conceito de racismo ambiental nasceu de lutas das populações negras nos
EUA no final da década de 1970 contra as injustiças ambientais que sofriam
precarizando os seus espaços vividos. Essa população estavam sendo alvo de injus-
tiças ambientais que através do racismo selecionava as áreas das populações vul-
nerabilizadas (negros, imigrantes, pobres, ...) para o despejo de resíduos tóxicos
(HERCULANO, 2008). Dessa forma, o debate sobre racismo ambiental nasce
do colonialismo interno nas áreas centrais do capitalismo71. Por serem grupos da
zona do não ser alvos da opressão racial (GROSFOGUEL, 2013), as áreas onde
viviam eram postas como zonas de sacrifício dos grandes centros que produziam
um processo de acumulação via espoliação dos grupos historicamente subalterni-
zados (HARVEY, 2005). O racismo ambiental é a expressão de uma ajuste espa-
cial que absorve o excedente de mão de obra com empreendimentos desprezados
pelos grupos das áreas privilegiadas por serem poluidores e/ou com alto grau de
risco ambiental que deixa um rastro de devastação (Idem). Compreendemos o
racismo ambiental como a expressão do imaginário colonial na ação do Estado e
de empresas que vulnerabiliza ainda mais grupos historicamente invisibilizados e
subalternizados. Assim, compreendemos que uma gestão necropolítica do espaço
é criada e se utiliza do racismo de Estado e de instituições empresariais no alo-
camento dos despejos industriais. Não há mais-valia sem gente de menos-valia.
No atual contexto do city-marketing o racismo ambiental tem intensificado
as zonas de sacrifício com atração de megaempreendimentos. As áreas habitadas
pelos mais pobres, negros, pescadores, quilombolas em várias partes do estado
têm se tornado essas zonas de sacrifício. Porém, os ditos benefícios têm privi-
legiado uma pequena elite e intensificado o padrão de cidade-mercadoria e de
conflitos. As parcerias público-privadas criadas para atrair empregos, arrecadação
de impostos e aumento do dinamismo das economias locais têm criado uma ge-
ografia dos proveitos e rejeitos (PORTO-GONÇALVES, 2006) em que os rejeitos
são impostos às populações mais pobres e negras e os proveitos são exportados e/
ou são apropriados pelos grupos dominantes72.
71 Devo essas considerações ao professor Valter do Carmo Cruz e ao debate no seu núcleo de estudos – NETA-
J-UFF (Núcleo de Estudos sobre Território, Ações Coletivas e Justiça da Universidade Federal Fluminense).
Todo e qualquer equívoco analítico é de minha responsabilidade.
72 O neoliberalismo como projeto civilizatório (LANDER, 2000) forjou-se com o discurso de criação de
áreas mais competitivas. Áreas mais competitivas são: as que têm ausência e/ou pouca eficácia de legislações
trabalhistas, ambientais, o exercício biopolítico do racismo de Estado que garanta segurança para o capital
e as melhores áreas para os seus rejeitos, altíssima taxa de mais-valia sobre pessoas de menos-valia.
O fascismo territorial existe sempre que atores sociais com forte capital patri-
monial retiram do Estado o controle do território onde atuam ou o neutrali-
zam, cooptando ou violentando instituições estatais e exercendo a regulação
social sobre os habitantes sem a participação destes e contra seus interesses. São
territórios coloniais privados em Estados quase sempre pós-coloniais.
73 No bairro de Santa Cruz (cidade do Rio de Janeiro) a fábrica gerida pelo empresário Eike Batista, lou-
vado investidor do marketing urbano, tem lançado poeira metálica na atmosfera e atingido toda a região.
Isto é, destruindo as condições materiais e simbólicas de existência naquela localidade. Estabelece aí um
colonialismo interno na zona do não ser produzindo e intensificando a precarização territorial de uma área
majoritariamente habitada por uma população pobre e negra.
As fábricas que historicamente foram utilizadas como símbolos da modernidade pela burguesia ocultaram,
deliberadamente, a colonialidade. A burguesia moderno-colonial silenciava e ainda hoje silencia a distribui-
ção racial do capital, do trabalho e dos poluentes (CASTRO-GÓMEZ, 2009) e as consequências na vida
e na saúde humana. Nos espaços que não são vitrines, o Estado não aciona poder medical para questionar
esse arranjo espacial das relações raciais que tem criado injustiças ambientais, como o caso da fábrica TKSA,
pois é regido por imaginário colonial que invisibiliza e produz não existências de grupos historicamente
subalternizados (NETO, 2008; OLIVEIRA, 2011; CASTRO-GÓMEZ, 2009; SANTOS, 2004).
tar) sobre as favelas ocupadas pelo tráfico74. Há aqui uma clara analogia com
as “pacificações” coloniais, dirigidas contra as aldeias dos autóctones que não
se submetiam voluntariamente às autoridades administrativas e religiosas da
época. Uma metáfora de natureza terapêutica poderia ser lembrada para pensar
as ações “pacificadoras”, equiparando-as a remover um tumor maligno, que
afetaria o próprio corpo social. Mas tal metáfora não seria aplicável, pois ine-
xiste o registro tanto de uma clara convergência entre médico e paciente no
processo terapêutico quanto de um antagonismo entre o doente e os agentes
portadores da doença.
Tal como no caso dos indígenas nos aldeamentos missionários, é necessário que
os tutores imponham aos tutelados uma moralidade (da qual pretensamente es-
tariam desprovidos) com a qual eles possam afinal resistir às investidas sedutoras
do demônio. Esta pedagogia colonial, religiosa e que se serve de meios aberta-
mente repressivos é aplicada [...]. A “comunidade pacificada”, na visão dos pla-
nejadores e nas representações da mídia, não é só aquela onde se desenrolou uma
ação militar para desalojar o controle do crime organizado, mas aquela em que os
moradores e as condições de vida teriam passado por uma modificação completa,
fruto de uma ação supostamente de natureza civilizatória.75
74 “A ideia é simples. Recuperar para o Estado territórios empobrecidos e dominados por grupos criminosos
armados. Tais grupos, na disputa de espaço com seus rivais, entraram numa corrida armamentista nas úl-
timas décadas [...] Decidimos então pôr em prática uma nova ferramenta para acabar com os confrontos”
(José Mariano Beltrame – Coluna “Palavra do Secretário”, de 10/9/2009. Disponível em: http://upprj.
com/wp/?p=175).
Assim, a mudança na soberania nas áreas que antes eram dominadas pelos
narcotraficantes pelo domínio militar do Estado não tem significado eliminação
dos problemas sociais, muito pelo contrário. Inúmeros relatos e várias manifes-
tações populares em favelas de UPPs afirmam a presença de policias corruptos,
autoritários, torturadores que praticam assassinatos e ocultamento de corpos, es-
pecialmente nas áreas com pouca circulação e iluminação. Ou seja, “o vínculo
secreto entre [a nova] soberania e exceção viabiliza a ação dos governos absolu-
tamente independente de toda regra jurídica” (AGUIAR, 2012, p. 143). Desta
forma, as UPPs têm revelado um novo totalitarismo nos espaços de favela. As
UPPs são espaços militarizados e funcionam como espaços de exceção à legisla-
ção vigente. A instituição Estado, no Rio de Janeiro (com grande probabilidade
em todo o território nacional), funciona sobre as bases do biopoder, logo, sua
função homicida somente pode ser assegurada pelo racismo (Idem). O racismo
de Estado tem importância vital na gestão de territórios e populações, pois repre-
senta a condição com a qual a polícia pode exercer o direito de matar, humilhar,
sequestrar, torturar e amedrontar sem que isso seja considerado crime (Ibidem).
As instituições de in-segurança têm banalizado a morte e o mal no cotidiano dos
espaços pobres (ARENDT, 1999). O estado de exceção tornou-se na história
brasileira a norma para grupos subalternizados posicionados na zona do não ser
(GROSFOGUEL, 2011; 2014). Devido ao fato de que as favelas e as periferias
sociais urbanas historicamente terem se constituído como espaços de pouca e/
ou precária iluminação pública, o exercício biopolítico tem se tornado mais ex-
76 A distribuição precarizada e desigual da iluminação pública tem criado ambientes in-seguros para os po-
bres, as mulheres e os negros. Ela é um dos vários elementos que precariza a vida desses grupos nas cidades.
Infelizmente esse não é só um exemplo brasileiro. A iluminação pública, que historicamente se constituiu
como símbolo da modernidade urbana, não eliminou o imaginário colonial acerca das mulheres e dos
negros no uso de determinados espaços em determinados momentos, o que já chamamos de geocronopolí-
tica urbana. Esse imaginário colonial que impõe normas de uso dos espaços da cidade os culpabiliza pelo
próprio estupro e/ou morte por não adotarem um comportamento de submissão para os negros e de recato
para as mulheres na sua indumentária. Esse imaginário colonial define os momentos do dia (especialmente
à noite) que negros e mulheres terão um uso do espaço ainda mais normatizado, interferindo diretamente
nas suas trajetórias.
77 Ademais, as áreas de UPPs e arredores “[...] estão sofrendo com um processo de ‘remoção branca’ com o
aumento do valor da terra e com a cobrança de determinadas taxas das concessionárias que os moradores
muitas vezes não têm condições de arcar” (FAULHABER; NACIF, 2013, p. 10).
78 Várias comunidades de terreiro têm sido expulsas por remoções para obras viárias e ligadas a Copa do Mun-
do e Olimpíadas. Ademais, há outro tipo de expulsão que as comunidades de terreiro têm sofrido ligada aos
chamados Soldados de Jesus, narcotraficantes que se dizem evangélicos e proíbem práticas litúrgicas ligadas
à Umbanda e ao Candomblé, reproduzindo o fascismo paraestatal falado anteriormente.
Esse fascismo paraestatal criado pelos Soldados de Jesus é uma forma de embranquecimento da cultura do
território que impede o direito à ancestralidade. Diríamos que ação religiosa orientada pelo eurocentramento de
mundo feitas pelos ditos Soldados do Jesus se torna importante para os agentes econômicos (capitalistas raciais) na
gestão racista do espaço de exceção sob a soberania do narcotráfico em áreas disputadas pelo mercado imobiliá-
rio. O crescimento deste fundamentalismo religioso frente às religiões de matriz afro revela a busca pela natura-
lização e a rotineirização do imaginário eurocentrado racista como um aspecto civilizacional fundante da nossa
sociedade como símbolo da normalidade. A gestão racista do espaço praticada pelos traficantes evangélicos é, em
verdade, uma gestão biopolítica do espaço, pois o fazer morrer e o deixar viver é um exercício de branqueamento
do território que impede qualquer manifestação religiosa afrodescendente, reafirmando o modelo civilizacional
eurocentrado como superior e único, ou seja, um racismo de extermínio. Esse direito de matar ou deixar viver
negando a sua identidade e geo-história não é visto como crime no discurso hegemônico (AGAMBEN, 2014).
79 A resolução não apenas impede de forma indireta a realização de bailes funk nas favelas ditas pacificadas,
mas também proíbe festas de aniversários que toquem música funk sem autorização do comandante da
“Nos causou estranhamento que a gente tivesse que pedir autorização da Po-
lícia Militar para fazer qualquer evento. Isso deixa o produtor cultural na mão
da PM, que pode até colocar mais requisitos do que está na norma”, conta o
produtor cultural Guilherme Pimentel, da Apafunk (Associação dos Profissio-
nais e Amigos do Funk).
O regime tutelar criado com a pacificação anula toda ação ou expressão públi-
ca do tutelado, isto é, o morador da favela produtor cultural de funk é destituído
de poder criar seus espaços. Desta forma, escamoteia
UPP. Ou seja, superioridade moral do pacificador no exercício do poder soberano (PACHECO DE OLI-
VEIRA, 2014). O jornalista Hanier Ferrer afirma: “A PMERJ também tem o poder totalmente autoritário
de mudar de ideia, caso tenha permitido a realização de algum evento e, no dia, avisar que não será mais
possível a realização do mesmo – caso que aconteceu certa vez na realização de um evento no Borel” (p. 5).
Esta resolução cria condicionamentos na produção/uso cultural dos espaços de favela de UPP: 1- Aviso
com 20 dias de antecedência às autoridades; 2- Delimitação de áreas de estacionamento; 3- Instalação de
geradores para caso de blecaute; 4- Instalação de câmeras de segurança; 5- Instalação de detector de metais;
6- Atendimento médico emergencial; 7- Autorização do comando da UPP.
[...] por completo qualquer iniciativa (agency) que não seja subscrita pelo seu
tutor. Suas estratégias e táticas não serão inscritas na história, suas imagens e
narrativas lhe foram tomadas, sendo-lhe negada sistematicamente e por prin-
cípio a permissão e até a possibilidade de falar.80
Os planos de ação são estabelecidos e executados pelo tutor (ou por outros
por ele delegados) sem qualquer participação ativa nem a possibilidade de sua
interferência nos métodos ou nos objetivos. Assim, embora os programas go-
vernamentais muitas vezes definam metas a serem cumpridas e benefícios a
serem recebidos pelas populações tuteladas, na realidade o que é fielmente
executado são as ações repressivas e de controle, em geral de interesse de ter-
ceiros, as demais raramente saindo do papel. (PACHECO DE OLIVEIRA,
2014, p. 145-146)
Vemos que a norma 13 estabelecida pelo governo estadual na gestão dos terri-
tórios das UPPs, uma das bases da pacificação, tem promovido um uso regulado
da produção cultural popular. Entendemos, inspirados em Fanon (2008), que o
objetivo procurado não é somente o desaparecimento total da cultura preexis-
tente e destruição do sistema de referência, mas uma agonia continuada que é
“aprisionada no estatuto colonial, estrangulada pela carga da opressão” (Idem)
que destrói o mais profundo da existência do ser, a sua cultura e os meios e a razão
de existência (Ibidem). O processo de branqueamento reifica a cultura da favela
despolitizando sua origem, usos e sentidos.
Na lacuna deixada pelo funk, a classe média carioca passou a promover suas
próprias festas nos morros, o que divide a população local.
Pela questão da segurança, Santa Marta e Vidigal, favelas da Zona Sul que
têm UPPs consolidadas há anos, são os principais locais destas festas. O morro
encravado no tradicional bairro de Botafogo conta com uma quadra da escola
de samba Mocidade Unida do Santa Marta. Ela foi arrendada a um produtor
que ainda não tem alvará para a realização de eventos. Mas, com a aprovação
da Polícia Militar, ocorre ali pelo menos uma festa por fim de semana.
80 Vide as reflexões sobre a anulação da voz e da própria agência dos colonizados e subalternos desenvolvidas
por Said (1984); Goody (2008); De Certeau (2010); Spivak (2010).
R$ 50. Proibitivo para os padrões dos moradores, assim como festas de rock,
música eletrônica, jazz e outros estilos que alteram a cultura do morro carioca.
“Isso está deixando a comunidade muito revoltada. Porque a gente não tem
condição de pagar cem paus numa festa. E, se a gente toca um funk, a polícia já
vem com uma postura toda enviesada, enquanto as outras festas estão rolando
soltas sem nenhum problema”, afirma Thiago Firmino, guia de turismo e DJ,
morador do Santa Marta. (CARPES, 2013)
Festas para a classe média branca da zona do ser como símbolo de uma morali-
dade que os pobres não têm passam a ser realizadas nas UPPs em substituição aos
tradicionais bailes funk, usurpando a cultura negra funkeira. A gastronomia ca-
rioca, que historicamente foi formada por mulheres mais velhas negras, migran-
tes e pobres, é substituída por um padrão eurocentrado de homens brancos nos
espaços de favelas com UPPs. Uma racionalização da cultura através de uma visão
elitista, machista e racista. Esses eventos têm mudado os significados das festas
locais ao: 1- mudar a composição econômica dos participantes com ingressos que
impedem que os moradores possam frequentar esses espaços; 2- transformação na
composição racial dos participantes das festas ao impedir os moradores, em sua
maioria negros, de ter direito a lazer e entretenimento na proximidade de suas re-
sidências; 3- despotização/espetacularização da cultura negra ao servir de cenário
das festas com imagens de personagens do samba; 4- embranquecimento do jazz
e do blues como algo cult para as favelas.
Como é que a usurpação pode tentar passar por legitimidade? Dois procedi-
mentos parecem possíveis: demonstrar os méritos eminentes do usurpador, tão
eminentes que pendem uma recompensa como essa; ou insistir nos deméritos
do usurpado, tão profundos que só podem suscitar uma desgraça como essa.
Esses dois esforços são de fato inseparáveis. A inquietação do usurpador, sua
sede de justificação, exige dele, ao mesmo tempo, que se autoeleve às nuvens e
que afunde o usurpado para baixo da terra. (MEMMI, 2007, p. 90)
Referências
ACSELRAD, H. Cidade – espaço público? A economia política do consumismo nas
e das cidades. Rev. UFMG, Belo Horizonte, v. 20, n. 1, p. 234-247, jan./jun. 2013.
ALCÂNTARA, G. Abaixo a farofa! Exclusão “legitimada” em territórios de praia.
Dissertação de Mestrado do IPPUR / Rio de Janeiro: 2005.
ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São
Paulo: Companhia das Letras, 1999.
BARBOSA, J. L. O ordenamento territorial urbano na era da acumulação glo-
balizada. In: Território, territórios. Rio de Janeiro: Universidade Federal Flumi-
nense, 2002.
BEAUVOIR, S. O segundo sexo. São Paulo: Difel, 1967.
BIENENSTEIN, G.; SANCHEZ, F. O que está em jogo? Contradições, ten-
sões e conflitos na implementação do PAN-2007. In: VII Encontro Nacional da
ANPEGE, Niterói, RJ, 2007.
81 Podemos citar como exemplo Joaquim Nabuco, com sua obra O abolicionismo; João Batista Lacerda, com
seu ensaio sobre as raças humanas, apresentado no Congresso das Raças em 1911; Sylvio Romero com o
debate sobre assimilação, que incorporava leituras de Friedrich Ratzel; Oliveira Viana com sua regionaliza-
ção a partir da pigmentação da pele, entre muitos outros.
82 O darwinismo social foi uma teoria baseada nas premissas do evolucionismo apresentadas na obra de
Charles Darwin, aplicadas aos grupos humanos. Cientistas sociais do século XIX utilizaram algumas leis
presentes na obra A origem das espécies, para legitimar a espoliação e a dominação de europeus sobre os
continentes africano, asiático e americano.
83 Da mesma forma, aconteceu uma grande corrente imigratória para países da América do Sul como Argen-
tina e Uruguai. Em países da África como África do Sul, e da Ásia como Austrália, ainda que de maneiras
diferentes, essa política de incentivo à imigração de europeus também foi significativa.
84 Já existem trabalhos aprofundados sobre o que foi a ideologia e a política de branqueamento aludida no
início do artigo, e que podem ser encontradas em Skidmore (1973), Schwarcz (1993) e Houfbauer (2006),
e, com isso, ainda que localizemos o debate, não temos como objetivo reapresentá-lo.
85 A concepção de democracia racial é adotada a partir dos trabalhos de Gilberto Freyre e difundida como
teoria que explica as relações raciais no Brasil. A principal característica dessa teoria é a concepção de relação
harmoniosa entre negros africanos, brancos europeus e amarelos indígenas, constituindo uma sociedade livre
de preconceitos. Para ver a crítica a essa teoria indicamos a leitura de Munanga (2010) e DaMatta (1990).
86 O debate sobre colonialidade pode ser encontrado em vários capítulos deste livro, ou ainda em QUIJANO
(2005, 2010), MIGNOLO (2003, 2005), PORTO-GONÇALVES (2001, 2005) e LANDER (2005).
Esta prática, não só não terminou87 com o tempo, mas, sob novos discursos,
ganhou força no cenário nacional atual.
b) O branqueamento do território se apresenta enquanto estratégia da prática
do poder para manutenção da colonialidade. Ele se configura enquanto um
dispositivo, uma forma de exercício do poder, desta, na medida em que é con-
sequência de ordenamentos jurídicos e simbólicos, visíveis ou não, passados
ou presentes, fundamentadas em raciocínios baseados e/ou materializados no
espaço, que tem como elemento ordenador a raça. Uma forma de ordenamen-
to territorial constituído por características eurocêntricas e coloniais.
87 WAISELFISZ (2014) demonstra através de dados que a população negra (principalmente entre 15-29
anos) morre proporcionalmente quase 80% mais que a branca. Já dados do IPEA mostram que a ocupação
em imóveis superlotados é de maioria negra, assim como as residências sem saneamento básico e os aluguéis
de quartos em cortiços, e casas em favelas.
88 Para entender melhor sobre o debate dos grupos que eram a favor e os que eram contra a miscigenação ver
Costa (2006).
89 Azevedo, em livro publicado no final dos anos 1980, destaca que o branqueamento não tinha apenas como
influência as teorias racistas da Europa, mas também o medo das elites, principalmente após as revoltas que
ocorreram no século XIX e a própria proporção do quilombismo pelo território.
90 Não descartamos a possibilidade de que muitas dessas políticas fossem respeitadas, porém o fato de elas
estarem presentes no corpo jurídico mostra o prestígio dado aos imigrantes em detrimento da população
negra que vivia no território.
91 O art. 1 do decreto apresenta critérios para essa imigração: “1º É inteiramente livre a entrada, nos portos da
Republica, dos indivíduos válidos e aptos para o trabalho, que não se acharem sujeitos á acção criminal do
seu paiz, exceptuados os indígenas da Ásia, ou da África que sómente mediante autorização do Congresso
Nacional poderão ser admittidos de accordo com as condições que forem então estipuladas” (ortografia
oficial da época).
92 Entre os benefícios se encontram flexibilidade no acesso às terras, amparo do Império caso haja perda do
patriarca dentro de um ano, auxílio se o mesmo for invalidado durante o serviço, em certas condições,
passagem paga. Prêmio financeiro para as empresas marítimas que conduzirem o transporte de imigrantes
sem reclamações. Limite máximo de preço para venda de terras aos imigrantes, dentre outros.
93 Entre os artigos temos dois que chamam atenção: “Art. 29. Ao immigrante estrangeiro, que, sendo agri-
cultor e contando menos de dous annos de entrada no paiz, contrahir casamento com brazileira ou filha
de brazileiro nato, ou o agricultor nacional que se casar com estrangeira, aportada ha menos de dous annos
como immigrante, será concedido um lote de terras com titulo provisorio, que se substituirá por outro definitivo
de propriedade, sem onus algum para o casal, si este tiver, durante o primeiro anno, a contar da data do
titulo provisorio, convivido em boa harmonia e desenvolvido a cultura e o aproveitamento regular do lote
com animo de continuar. Art. 30. Ao immigrante estrangeiro ou ao nacional, nas condições do artigo an-
tecedente, que quizer adquirir um lote a titulo definitivo, immediatamente após o casamento, vender-se-ha
por metade do preço que estiver estipulado” (ortografia oficial da época) (grifos nossos).
O resultado dessas políticas pode ser notado no gráfico abaixo, em que é visí-
vel a diminuição no número de negros94 e o aumento no número de população
branca, a partir de 1872. Esses números só mudam a partir de 1950, quando
diminui o fluxo de imigração, e inicia-se um debate sobre o racismo no Brasil
Diante dos dados é possível afirmar que a política imigrantista e racista, apesar
de não alcançar o que desejava, obteve relativo sucesso até metade do século XX,
no que diz respeito à composição étnica da população.
O processo de constituição da população e também do território não depen-
dia apenas da imigração, mas também da organização do espaço que cada grupo
iria ocupar. Cabe lembrar que o contexto dos anos de 1880 envolvia o fim jurí-
94 Para o IBGE, devido à semelhança existente nas estatísticas sociais entre pretos e pardos, é possível agrupá-
-los em uma categoria única, a de negros. Logo, essa base de classificação analítica leva em conta a análise
dos indicadores sociais.
95 O censo de 1872 tinha como opções as categorias: Branca, Preta, Parda e Cabocla; o de 1890, Mestiça,
Preta e Cabocla; o de 1940: Branca, Preta, Amarela e Parda, mantendo-se até 1991, ano em que entrou a
categoria Indígena que permanece nos censos subsequentes. Baseando-se nos dados de população absoluta,
os dados disponíveis nas séries históricas incorporam as categorias Cabocla e Mestiça na categoria Pardo.
Em 1900 e 1920, as informações sobre cor/raça não foram coletadas, e em 1910 e 1930 não foi realizado o
censo no Brasil.
Isso se aplica aos lugares que cada um deve ocupar, o papel que devem exercer, e os
padrões simbólicos a serem valorizados, contribuindo para a manutenção de um
padrão eurocêntrico no que diz respeito à reprodução material e simbólica.
As políticas de modernização e/ou revitalização do espaço urbano são um
exemplo de continuidade dessas práticas, em que o branqueamento do território
parece funcionar como um dispositivo da colonialidade. O discurso de moder-
nização defende a realização de reformas de áreas consideradas degradadas, com
a instalação de aparelhos técnicos que possam ajudar na circulação de pessoas;
na inserção de bens simbólicos que valorizam o padrão arquitetônico, criação de
áreas de lazer com museus, cinemas, teatros, e junto a isso um “embelezamento”
composto por jardins e praças da paisagem97.
Estas áreas degradadas em grandes centros são ocupadas em muitos casos por
populações negras98, e, como consequência dessas revitalizações, grande parte dos
grupos que não possuem o título de propriedade são expulsos, e os que con-
seguem permanecer sofrem com especulações e ameaças. O branqueamento do
território aqui aparece como face oculta do processo de modernização, tal qual a
colonialidade da modernidade.
É preciso dizer que, como dispositivo da colonialidade, é importante entender
o branqueamento, não apenas no que diz respeito ao aspecto da ocupação. A ex-
propriação pode ocorrer, por exemplo, através do branqueamento da imagem em
que há perda de referenciais de valorização que influenciam na continuidade dos
grupos. Em determinados casos os processos que envolvem o ordenamento terri-
torial têm um caráter tão violento que, “mesmo com uma ‘territorialização’ (física)
aparentemente bem definida, o outro está de fato desterritorializado, pois não exerce
efetivo domínio e apropriação sobre seu território” (HAESBAERT, 2006, p. 262).
Uma das formas efetivas desse branqueamento da imagem é a manipulação
das narrativas, produto de uma relação de poder. Forjam-se fatos, presenças são
97 Um estudo interessante sobre este processo é o de Oliveira (2014), que problematiza a relação às políticas
de city-marketing com a inscrição espacial de um projeto de dominação racial na cidade do Rio de Janeiro.
98 Segundo livro produzido pelo IPEA, Situação social da população negra por estado (2014), com base nos
dados do PNAD de 2011, das famílias que têm como chefe do domicílio pessoas negras, apenas 61% vivem
em moradia adequada (acesso a água potável, esgoto, casa com telha ou laje, acesso a energia elétrica e a
telefonia, e máximo de duas pessoas por dormitório) no meio urbano e metropolitano e 41% no urbano
não metropolitano. Quando esses números são comparados aos chefes de domicílio branco, observamos
uma taxa de 77% de morarias urbanas metropolitanas e 61,9% em urbanas não metropolitanas. Uma
observação é que, se a comparação for restrita à Região Sudeste, a diferença entre eles é ainda maior.
99 Essa dimensão do branqueamento é comum nas disputas de narrativas para a emissão do título de comuni-
dades quilombolas pelo Brasil. Em alguns casos, a narrativa hegemônica da região não incorpora as comu-
nidades negras como grupo que ali esteve, e é utilizada no movimento de deslegitimação de comunidades
durante o processo de titulação garantido no artigo 68 do ADTC. Acreditamos, inclusive, que foi a própria
dimensão do branqueamento da imagem que ocasionou o desconhecimento de inúmeras comunidades ne-
gras pelo território brasileiro e possibilitou que o artigo 68 fosse aprovado, dando condições para diversas
comunidades pleitearem seus territórios, em um número que hoje chega a quase 2 mil territórios em disputa.
100 Nos últimos anos tem crescido o número de ataques a terreiros de Candomblé. Fonseca e Giacomini
(2013) apontam que, dos mais de 800 terreiros visitados durante a pesquisa, mais da metade relatou sofrer
agressões. No caso das denúncias de intolerância religiosa, a Secretaria Nacional de Direitos Humanos
aponta que só o Rio de Janeiro teve 39 queixas dentre as 149 realizadas no Brasil inteiro. Em alguns casos as
queixas viram agressões e ganham repercussão nacional, como foi o caso do incêndio ao barracão do terreiro
da Mãe Conceição de Lissá em Duque de Caxias, Rio de Janeiro, como pode ser visto na reportagem do
Estadão: http://brasil.estadao.com.br/noticias/rio-de-janeiro,terreiro-de-candomble-e-incendiado-na-bai-
xada-fluminense,1519654 (acessado em 2/21/2015).
101 Mesmo com a Lei n. 10.639/03, que obriga a inserção do debate das relações raciais nos currículos, ainda
é baixa a incorporação da temática em sala de aula. Na geografia uma iniciativa para propor uma agenda no
ensino foi feito por Santos (2006), que buscou posicionar como o debate das relações raciais pode contri-
buir para o ensino de geografia.
102 Concordamos que este debate começa a ganhar relevância, o que pode ser visto no aumento (e aceitação)
de trabalhos de pós-graduação no tema (CERQUEIRA; CORRÊA, 2012) e até mesmo na presença de me-
sas sobre relações raciais em encontros nacionais como o ENG (Encontro Nacional de Geógrafos), porém,
isso não exclui os questionamentos, já que, a inserção desse debate na graduação ainda é restrito a pessoas
envolvidas no tema.
Referências
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imigrantes na República dos Estados Unidos do Brasil.
Lei n. 514 de 28 de outubro de 1848 com o planejamento das despesas do Impé-
rio nos próximos anos.
IPEA. Situação social da população negra por estado. Instituto de Pesquisa Aplicada;
Secretaria de políticas de Promoção da igualdade Racial – Brasília: IPEA, 2014.
muitas vezes a vivência nessa fronteira acaba nos induzindo também a perceber
e buscar metodologias de trabalho que deem conta deste encontro de saberes.
Aliás, uma outra experiência que eu diria que é marcante […] foi recentemente
a realização de uma disciplina na UFJF da qual fui um dos coordenadores, que
foi a disciplina Encontro de Saberes, uma iniciativa do professor José Jorge
de Carvalho da UNB, que nós conseguimos reproduzir dentro da UFJF na
qual nós possibilitamos que alunos de graduação tivessem uma disciplina cujos
mestres foram mestres da cultura popular. No caso nós levamos lideranças
indígenas, mães de santo, mestres jongueiros e agricultores familiares ligados à
agroecologia. Então foram essas pessoas, alguns deles analfabetos, que deram
essa disciplina de graduação para os estudantes.
Nos dias antigos, acrescentou, os africanos olhavam para o mar e o que viam era
o fim.
O mar era uma parede, não uma estrada. Agora, os africanos olham para o mar e
veem um trilho aberto aos portugueses, mas interdito para eles.
Na fala, Ivanir relata ainda que esse despertar para a questão racial foi poten-
cializado com o discurso de Paulo Freire na faculdade sobre o oprimido:
A re-existência passa pela luta e pelo conflito, mas também por negociação,
invisibilidade, visibilidade etc. – enfim, múltiplas formas de reprodução da
vida. Essas são características da experiência socioespacial de identidades cons-
tituídas no/pelo colonialismo (em situações em que a racialização e o patriar-
calismo são elementos fundamentais). Como aponta Porto-Gonçalves (2004,
p. 21-22), o conflito é uma forma de expressão de uma determinada luta social
na qual se colocam frente a frente dois ou mais sujeitos sociais, é um momento
de “tensão criativa”, a partir do qual “esperam mudar de lugar”.
No encontro dessas diferentes experiências – forçado para os(as) negros(as)
escravizados(as) e os(as) indígenas – o domínio da racionalidade branca euro-
peia implicou para os(as) negros(as) e os(as) índios(as), não só subalternização,
mas também re-existência e re-invenção cotidiana.
3. A partir de suas experiências específicas, os palestrantes apontam caminhos
possíveis para fazer pesquisa e produzir conhecimento do ponto de vista do
diálogo entre distintos saberes e matrizes de racionalidades, avançando-se
assim em direção a o que Walsh (2007) denomina “pluri-versalidad episte-
mológica” – perspectiva de conhecimento que considera com seriedade as
epistemologias que têm suas bases em filosofias, racionalidades e cosmovisões
distintas da ocidental, relacionadas às “práticas-no-lugar”, que permitam não
se reproduzir padrões de subalternização de subjetividades e saberes, de racia-
lização e de colonialismo.
A integração ensino-pesquisa-extensão representa para Leonardo a possibili-
dade de construção do que Walsh (2001) expressa como necessário: novos
marcos epistemológicos que incorporem e ponham em negociação e tradução
os conhecimentos populares e acadêmicos.
Renato e Denilson deixam claro que colocar em evidência as múltiplas formas
por meio das quais, no Brasil, o racismo se configura enquanto um dos elementos
da colonialidade do poder e do saber nos reposiciona no campo de disputas por
definição e interpretação da realidade social. Apontam ainda que, no que tange à
geografia, a compreensão dos conhecimentos e das experiências das pessoas em
contextos racistas coloniais passa pelo entendimento de que esses sujeitos foram
constituídos na/pela racialização, no/pelo patriarcalismo, na/pela re-existência.
Como demonstra Mignolo (2008), essas formas de pensar e agir se constroem na/
Referências
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no, 2007.
Jorge Montenegro
Otávio Gomes Rocha
partir da noção de heterarquia para uma leitura sobre a complexidade das formas
de dominação e resistência relacionadas aos povos e comunidades tradicionais.
103 Essas cartografias foram apoiadas desde o início por várias organizações e pesquisadores articulados no Núcleo
de Pesquisadores de Cartografia Social da Região Sul do Brasil. Desde 2012, esses pesquisadores propõem
o grupo Identidades Coletivas e Conflitos Territoriais no Sul do Brasil como forma de dar continuidade às
dinâmicas de mapeamento. O Coletivo ENCONTTRA se insere nessa dinâmica a partir de 2009.
104 Vários movimentos sociais foram criados paralelamente aos processos de cartografia, como a Articulação
Puxirão de Povos Faxinalenses (APF), o Movimento dos Ilhéus do Rio Paraná (MOIRPA), o Movimento
dos Pescadores Artesanais do Litoral do Paraná (MOPEAR), o Movimento Interestadual das Cipozeiras e
Cipozeiros (MICI) e o Movimento Aprendizes da Sabedoria (MASA). Em outros casos, os movimentos
já existiam: como a Articulação dos Povos Indígenas do Sul (ARPIN-Sul), a Federação de Comunidades
Quilombolas do Paraná (FECOQUI) e o Fórum Paranaense de Religiões de Matriz Africana (FPRMA).
Todos eles formam, a partir de 2008, a Rede Puxirão de Povos e Comunidades Tradicionais.
105 Para consultar cartografias sociais similares ver, entre outros, o Projeto Nova Cartografia Social da Amazô-
nia: <www.novacartografiasocial.com>.
106 Um dos conflitos mais enigmáticos, “Impedimento de luz”, apontado no “Mapeamento Social dos Impactos
Provocados pelas Plantações de Eucaliptos no Município de Imbaú-PR”, resulta também em um dos mais
paradigmáticos do choque entre modelos. Os eucaliptos plantados indiscriminadamente em todos os lugares
pela empresa Klabin, no município de Imbaú-PR, supõem uma ameaça às plantações dos moradores locais,
mas também à própria vida destes. Na sombra dos eucaliptos “a terra é morta”, como diz um dos impactados.
Não podia buscar lenha, o guardião tinha que acompanhar. Teve tiro na vez
que nos entramos lá [primeira ocupação 1996] e saímos com a polícia (...)
Muita gente tinha medo que eles iam fazer alguma coisa para nós. Tínhamos
medo do sequestro. E davam pedrada, cortavam a lona do barraco (NOVA
CARTOGRAFIA SOCIAL, 2009a)
107 A Comunidade Quilombola Paiol de Telha foi reconhecida pelo INCRA no dia 21/10/2014. Depois de
mais de 40 anos da expulsão de seus locais de origem (e de quase 10 da abertura do processo) esta comu-
nidade se converte no primeiro território quilombola reconhecido no Paraná. Para mais informações, ver
Terra de Direitos (2014a; 2014b)).
áreas possam ser retiradas do mercado de terras como territórios titulados cole-
tivamente para essas comunidades. O discurso e a prática do desenvolvimento
linear (e infinito) que fundamenta o modelo primário-exportador se chocam vio-
lentamente contra os direitos territoriais das comunidades. A disputa pelo sentido
do mapa representa também uma disputa territorial material evidente.
(...) 1977 a primeira grande (cheia), 1979 fecharam a Itaipu, em 1980 deu
aquela grandona. Nos tiraram o direito de viver aqui e jogaram à margem
O ardil da sustentabilidade
A chamada “ambientalização” dos conflitos sociais (LOPES, 2006; ACSEL-
RAD, 2010) retrata uma progressiva participação desses temas não só nos entra-
ves sociais, mas também na forma em que os movimentos sociais expõem suas
reivindicações. No caso dos grupos analisados no Paraná e em Santa Catarina a
partir dos 17 automapeamentos registrados, essa “ambientalização” ganha feições
contraditórias ou no mínimo ambíguas.
Por exemplo, ilhéus, pescadores artesanais, cipozeiros e benzedeiras registram
problemas com a criação de unidades de conservação de proteção integral que
limitam suas possibilidades de reprodução. A proibição de continuar fazendo
hortas, de caçar ou de extrair alguns produtos da mata são imposições que essas
unidades determinam, ainda quando não existe um plano de manejo que regu-
lamente os usos (como no caso do Parque Nacional do Superagui, onde após 25
anos de criação do mesmo o plano ainda não foi aprovado) ou foram construídos
sem a participação efetiva das populações. Luiz Castanho Cunha, pescador arte-
sanal afirma de forma clara,
Apesar dos conflitos gerados, o que pudemos perceber é que as populações não
são contra a criação de unidades de conservação. O problema reside em que essas
unidades são implantadas nos seus territórios em virtude da conservação histórica
que as próprias comunidades promoveram (e que singularizam esses espaços em
relação ao seu entorno), mas limitam as formas de uso dos bens naturais até o
ponto de impedir a própria reprodução social das famílias moradoras. A exclusão
dos seus saberes e de suas práticas resulta manifesta na sua relação com os gestores
das unidades de conservação de proteção integral108. Os conhecimentos de uma
ciência moderno-ocidental que separa homem e natureza rejeitam as complemen-
taridades que esses grupos estabelecem.
Resulta interessante como essa cisão entre homem e natureza cria dois proble-
mas para as comunidades tradicionais: por um lado, a ideia da submissão da na-
tureza aos fins de acumulação dos homens sustenta o modelo de desenvolvimento
destruidor que apontávamos nos itens anteriores; por outro lado, a proteção da
natureza que deixa fora o humano, como compensação da lógica anterior, nega a
importância desses grupos na construção da própria natureza existente em toda
sua diversidade.
108 O próprio Ministério Público Federal, através da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão (CCR), admite:
“(...) deslizes semânticos e os equívocos de aplicação dos dispositivos da Lei n. 9.985/2000, que criou o
Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza, e que impõe, em alguns de seus preceitos,
restrições em desconformidade com os tratados internacionais de direitos humanos e com a própria Cons-
tituição Federal” (6ª CCR, 2014, p. 17).
práticas sociais ameaçadas e dos conflitos grafados nestes mapas em ícones que
representam as múltiplas frentes de atuação do desenvolvimento. Como mostra-
mos, os ícones que manifestam o padrão multifacetado e heterárquico do desen-
volvimento são diversos: a exploração do trabalho artesanal; as ameaças aos ofícios
tradicionais; os impactos socioambientais (barragens e desmatamento etc.); as
medidas preservacionistas impactantes à reprodução social; os monocultivos; o
envenenamento e a contaminação da água; o preconceito étnico; a repressão das
igrejas e dos médicos em relação às práticas tradicionais de cura etc.
Enfim, a relevância dos conflitos expressados nas cartografias estudadas dispa-
ram os alarmes de um modelo de desenvolvimento intransigente frente a outras
racionalidades, outros valores, outros usos etc. A construção desse outro proble-
mático, fora da norma, arcaico e condenado a desaparecer, choca com a teimosia
de quem r-existe (PORTO-GONÇALVES, 2002), mobilizando múltiplas estra-
tégias e oferecendo caminhos civilizatórios outros.
Essas r-existências que os povos e comunidades tradicionais realizam e que
registram desde suas autocartografias nos oferecem um ponto inicial desde o qual
interpelar esse desenvolvimento multifacetado que reflete e constrói ordem social
com múltiplas hierarquias.
alcançar a paz e a prosperidade), aliviar seu sofrimento e atingir suas aspirações de uma vida melhor. Nesse
sentido, o American way of life se estabelece como o modelo a seguir. O discurso original pode ser consul-
tado em: <http://avalon.law.yale.edu/20th_century/truman.asp>.
110 Segundo Ramón Grosfoguel (2007, p. 67), o desenvolvimento faria parte de uma matriz colonial de impo-
sição e violência: “Nos últimos 510 anos de sistema-mundo europeo/euro-americano capitalista/patriarcal/
moderno-colonial passamos do “cristianiza-te ou te disparo” no século 16, ao “civiliza-te ou te disparo” no
século 19, ao “desenvolve-te ou te disparo” no século 20, ao “neoliberaliza-te ou te disparo” no final do
mesmo século, e ao “democratiza-te ou te disparo” a inícios do século 21.
Em vez de destruir, para que se possam liberar das cadeias econômicas que
os prendem, imaginam sua resistência como uma reconstituição criativa das
formas básicas de interação social. Criaram assim, na vizinhança de suas casas,
aldeias, bairros, novos espaços coletivos que lhes permitam viver segundo seus
próprios termos. (ESTEVA, 2000[1992], p. 77)
111 Para entrar em contato com as principais críticas desta corrente, consultar: Peet (2007), Escobar (2005) e
Radomsky (2011).
(...) os faxinalenses não pensam em ter títulos de terra ou ter dívida e preten-
dem permanecer nessa cultura porque é uma herança que herdaram dos seus
pais e dos seus avós e por isso nós achamos importante permanecer essa vivên-
cia, permanecer essa vivência em comum com o uso da terra coletivo. (NOVA
CARTOGRAFIA SOCIAL, 2008)
112 No texto original de Nancy Fraser (2001, p. 21) a palavra utilizada é “in contrast” (“Members of the se-
cond, in contrast, seek recognition of the distinctive perspectives...”, grifos nossos), que não necessariamente
deveria ser utilizada no sentido dicotômico de “ao contrário”.
que se percebe uma ampliação nas críticas das formas de dominação (para além
dos paradigmas economicistas) quando se disputa o direito a ser reconhecido como
diferente, não é tão evidente que isso fortaleça per se as demandas por redistribui-
ção, ao contrário, em alguns casos se percebe uma fragmentação das lutas por essas
demandas. Conseguir articular ambas (como duas lentes que se superpõem na hora
de focar a realidade) é um desafio que segundo a filósofa teria a ver com afastar os
processos de reconhecimento das políticas de identidade, já que estas acabam ten-
tando configurar grupos homogêneos que escondem as disputas internas. Frente a
isso, uma verdadeira justiça “bifocal” radicaria na possibilidade de real participação
e representação na sociedade em geral e dentro dos grupos em particular.
Com estes pontos de partida, Cruz (2013) vai problematizar a emergência
das lutas dos povos e comunidades tradicionais no Brasil (e com referências
explícitas e pertinentes à América Latina), no sentido de pensar como se dá
a relação entre estes, mais ligados à questão do reconhecimento (identidades
coletivas baseadas em costumes em comum), e os grupos vinculados à questão
da redistribuição (lutas contra a exploração, a marginalização e pela terra). O
autor, moldando os argumentos de Fraser, mobiliza a importância do território
como campo de articulação,
(...) quando se afirma que esses grupos sociais não lutam somente por terra mas
também por território, estamos afirmando que as suas concepções de emanci-
pação e justiça são mais complexas, pois abarcam dois eixos simultaneamen-
te, o eixo da redistribuição e o eixo do reconhecimento. Trata-se do recurso
material, a terra, mais a cultura, o modo de vida, transformando a terra em
território. (CRUZ, 2013, p. 169)
(...) el programa M/C debe ser entendido como una manera diferente del pen-
samiento, en contravía de las grandes narrativas modernistas – la cristiandad,
el liberalismo y el marxismo –, localizando su propio cuestionamiento en los
bordes mismos de los sistemas de pensamiento e investigaciones hacia la posi-
bilidad de modos de pensamiento no-eurocéntricos. (ESCOBAR, 2003, p. 54)
(...) um piso básico de práticas sociais comuns para todo o mundo, e uma esfe-
ra intersubjetiva que existe e atua como esfera central de orientação valorativa
do conjunto. Por isso as instituições hegemônicas de cada âmbito de existência
social, são universais para a população do mundo como modelos intersubjeti-
vos. (QUIJANO, 2000, p. 223)
Heterarquias da dominação
O padrão heterárquico que articula a coexistência de múltiplas e enredadas
formas de dominação e controle aparecem na grafia dos povos tradicionais a par-
tir da denúncia de seus conflitos. A produção destes grupos como não existentes,
ou o fenômeno da invisibilidade (como eles se referem), resulta da coexistência
heterárquica de diversas formas de subalternização e classificação social, que con-
tradizem modelos etapistas e de linearidade histórica.
Nesse sentido é que a noção de heterarquia é apresentada por Grosfoguel
(2008 p. 124) como “uma enredada articulação de múltiplas hierarquias, na
qual a subjectividade e o imaginário social não decorrem das estruturas do siste-
ma-mundo mas são, isso sim, constituintes desse sistema”. A heterarquia é uma
característica estrutural do padrão colonial de poder por sua capacidade de en-
raizar-se de forma, ao mesmo tempo, simultânea, descontínua e conflitiva sobre
múltiplas formas de subalternização (ou produção de ausências).
Articulando referências de diversas procedências epistemológicas, Ramón Gros-
foguel propõe um deslocamento de perspectiva na geopolítica do conhecimento ao
tecer uma rede de estruturas heterárquicas de poder a partir da exposição de diferen-
tes hierarquias imbricadas que foram mencionadas no ponto anterior.
A noção de heterarquia trazida por Grosfoguel esmiúça a noção de hetero-
geneidade histórico-estrutural, que preconiza sobre a coexistência de múltiplas
formas de exploração do trabalho e formas de existência social. O continente lati-
no-americano é atravessado em toda sua história, da conquista ao neoliberalismo
(e ao neodesenvolvimentismo!), por múltiplas e simultâneas formas de controle
do trabalho e das subjetividades humanas: escravidão, servidão, acumulação pri-
mitiva e por espoliação, racismo, machismo, patriarcado, violência epistêmica
etc. A condição de subalternização imposta aos povos e comunidades tradicionais
revela, a partir da ótica dos conflitos, o seu padrão heterárquico, ao articular de
maneira combinada, simultânea e interdependente diferentes formas de domina-
ção. Não se trata de efeitos derivativos de uma lógica única e exclusiva de produ-
ção de injustiças, mas sim de uma rede intersecional de hierarquias, que podemos
perceber ao redor de dois grandes eixos, mas não limitados a eles: a acumulação
capitalista e formas de controle social.
As heterarquias que se manifestam nos conflitos denunciados pelos povos
tradicionais – e daí uma possível potencialidade descolonizadora da cartografia
Heterarquias da resistência
Por outro lado, padrões heterárquicos também podem ser verificados no que se
refere às práticas sociais desempenhadas pelos grupos sociais que negam ser incor-
porados à lógica unidirecional do desenvolvimento. As cartografias sociais analisa-
das demonstram a simultaneidade de práticas sociais e ações de resistência que coe-
xistem no mesmo tempo-espaço apesar de aparentarem pertencer a lógicas distintas
de racionalidade espaçotemporal. A negação da incorporação em certos nichos da
economia capitalista não significa um arraigo ancestral que reivindica uma volta ao
passado ou um legado pré-capitalista. Ao contrário, a insistência em resistir aponta
para a construção de futuros possíveis, de projetos civilizatórios outros.
As contradições da razão eurocêntrica em relação à produção da “monocultura
do tempo linear” (SANTOS, 2004, p. 789) revela-se em diversas experiências
sociais que, ora são tachadas de atrasadas em relação ao fio condutor da história
moderna/ocidental, mas terminam por serem cooptadas, redefinidas e apresentas
como la nouveauté por este mesmo projeto que as condenara. Por exemplo, a cres-
cente tendência do turismo de base comunitária em territórios tradicionais, que
incorpora nesses territórios lógicas capitalistas de competitividade e exploração
do trabalho a partir da premissa da contemplação da vida tradicional, que seria
entendida, agora, como algo a ser admirado (um museu ao vivo!?).
Contudo, a heterarquia das práticas sociais também se manifesta nas ações
dos povos tradicionais que combinam nas mesmas experiências o velho e o novo,
Horror al vacío que la noche de este fin de siglo abre ante nosotros. Horror ante
las certezas levantadas para impedir o por lo menos retardar la travesía. Pero,
sobre todo, horror frente al vacío de las ilusiones, de las nuevas seguridades que
se construyen con el fin de habitar más cómodos en este mismo vacío. Horror
frente al horror al vacío. (p. 1, grifos do autor)
113 “Un manifiesto es antes que nada um escrito que desvela aquello que no es evidente y lo hace engarzándolo
con un proyecto” (LÓPEZ PETIT, 1996, p. 1)
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114 A Doutrina Truman nasceu dos propósitos do presidente eleito dos Estados Unidos em 1949, Harry
Truman, e inaugurou uma nova era na compreensão e no manejo dos assuntos mundiais, em particular
daqueles que se referiam aos países economicamente menos avançados (ESCOBAR, 1998).
[…] crear las condiciones necesarias para reproducir en todo el mundo los
rasgos característicos de las sociedades avanzadas de la época: altos niveles de
industrialización y urbanización, tecnificación de la agricultura, rápido cresci-
miento de la produción material y los valores culturales modernos. (p.19-20)
115 Desenvolver: evolver, volver: voltar, retornar; e-volver: voltar a si mesmo, envolver; de onde des-e-volver: não
voltar-se a si mesmo, não envolver.
116 Abya Yala, na língua do povo Kuna (habitante originário da Serra Nevada, na Colômbia), significa “Terra
madura”, “Terra viva” ou “Terra em florescimento”, e vem sendo usado pelos povos originários do conti-
nente em oposição a América (PORTO-GONÇALVES, 2009).
A ideologia dos “espaços vazios” permeia todos esses momentos e não reconhe-
ce que os espaços escolhidos para a implantação dos projetos desenvolvimentistas
constituem, de fato, territórios tradicionalmente ocupados por povos originários
indígenas, comunidades campesinas, quilombolas, pescadoras, dentre outras. Por
seu turno, as “vocações” predeterminadas definem o destino econômico de favo-
recimento ao capital, em detrimento das outras economias locais já existentes.
No estado do Espírito Santo, é notória a presença dessas ideologias que con-
formam um imaginário profundamente colonial, onde o ideário desenvolvimen-
tista se explicita nas “vocações” que são definidas pela elite econômica e pelo
Poder Público como saída para sua situação de “economia deprimida” (BECKER,
1973), dentro da região mais rica do País. “Economia deprimida” constitui uma
classificação que tem como parâmetro ideal o desenvolvimento capitalista e des-
considera todos os outros modos de viver existentes, considerados inferiores. Essa
classificação revela a força do imaginário colonial não só junto à elite e ao Poder
Público, mas também como ideologia impregnada junto ao senso comum.
Destacaremos alguns processos que explicitam o imaginário colonial nessa his-
tória. A começar pela colonização portuguesa nesse território da então Capitania
Hereditária de Vasco Coutinho117, que em 1535 já trazia esses referenciais e bus-
cava se impor aos povos originários e seus territórios tradicionalmente ocupados.
Considerando a forte resistência dos povos originários, o projeto colonial buscou
reforço na catequese dos jesuítas, que aí se fizeram presentes desde o ano de 1546
(SALETTO, 2011) com o intuito de domesticar e dominar o imaginário indígena.
117 Essa Capitania foi doada pela Coroa Portuguesa a Vasco Coutinho em 1534 e, posteriormente, originou o
atual estado do Espírito Santo.
118 Iniciada em 1903 (Vitória/ES), a EFVM atingiu o rio Doce em 1905 (Colatina/ES) e Itabira (MG) em
1944, movimentada pelo transporte do café e madeira. A partir de 1945, como propriedade da Companhia
Vale do Rio Doce, passou a servir ao transporte de minério de ferro em grande escala, favorecendo a im-
plantação de um parque siderúrgico na região.
119 O Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF) foi criado em 1967, com essas funções.
120 Nos anos 1960 e 70, as principais empresas do setor no País constituíam-se em associação de capitais
nacionais e internacionais, estatais e privados, dentre elas: a Companhia Vale do Rio Doce – CVRD (ES
e MG); a FLONIBRA – Empreendimentos Florestais S/A (ES e sul BA); a CENIBRA (MG); a JARI
FLORESTAL e AGROPECUÁRIA (AM e PA); a PLANTAR – Planejamento, Técnica e Administração de
Atividades Rurais Ltda. (SP); e a ARACRUZ CELULOSE S/A (ES), sucessora da Aracruz Florestal S/A.
(GOLDENSTEIN, 1975).
meira fábrica, que passou a expandir seus plantios aos municípios de São Mateus
e Conceição da Barra, visando à produção de celulose para exportação.
O discurso elencava alguns fatores favoráveis para a escolha dessas localidades,
como a topografia plana dos Tabuleiros Terciários – propícia à mecanização –, a
dinâmica climática e a proximidade do Porto de Vitória, que facilitava a expor-
tação. No entanto, essas condições também se faziam presentes no município de
Linhares, situado entre Aracruz e São Mateus; porém ali não se estabeleceram os
monocultivos de eucalipto. O que se verifica é que as localidades escolhidas cons-
tituíam territórios étnicos que vinham sendo ocupados de forma ancestral e não se
legitimavam pela lógica da propriedade privada capitalista da terra-mercadoria, mas
sim pela apropriação da terra-patrimônio como sustentação da vida. Constituíam
formas de apropriação que não contavam com a documentação da terra, diferen-
temente de Linhares, onde a propriedade privada já se encontrava consolidada
nos grandes latifúndios de gado da oligarquia regional.
O atual município de Aracruz era parte do território Tupiniquim, que se es-
tendia do sul do estado da Bahia ao Paraná. Os indígenas Tupiniquim foram
os que primeiro sofreram com o processo da dominação e aculturação colonial
(MOREIRA, 2001), pois se encontravam na região costeira, “porta de entrada”
do território. No contexto da chegada da empresa Aracruz Florestal (1967), en-
contravam-se classificados pela sociedade local como “caboclos”, ou seja, “não
indígenas”, e portanto sem qualquer direito ao seu território. A chegada de um
grupo indígena Guarani do Sul do País, em uma caminhada em busca da “Terra
sem males” orientada pela xamã Tatãtim Yva Re ete121, construiu o encontro entre
ambos os povos indígenas nesse momento de expropriação territorial e contribuiu
para fortalecer o processo de resistência: em contato com os Guarani, os Tupini-
quim iniciaram um processo de reconstrução de sua identidade étnica profunda-
mente arraigada ao território ancestral. Juntos, Tupiniquim e Guarani passariam
a resistir à expropriação territorial e a articular processos de retomada de seu
território (MARACCI, 2008).
Os municípios de São Mateus e Conceição da Barra constituíam territórios de
antigos agrupamentos negros rurais, oriundos dos tempos da escravidão guiada
121 Tatãtim Yva Re ete foi uma mulher xamã Guarani Mbyá que liderou a caminhada de seu grupo desde o
Paraguai até o município de Aracruz, no Espírito Santo, onde criou a aldeia Boa Esperança, seguindo o
caminho dos jesuítas no território das missões, atravessando a Argentina e o Uruguai até chegar ao Brasil
(CICCARONE, 2001, apud MARACCI, 2008).
122 De acordo com a Petrobras, a área total da província do Pré-sal chega a 149 mil km² e estende-se entre os
estados de Santa Catarina e o Espírito Santo, que tem a segunda maior reserva de petróleo do Brasil e é o
segundo maior produtor do País (ECODEBATE, 2015).
123 O Plano de Desenvolvimento ES 2030 foi formulado numa parceria entre a Petrobras, a Secretaria de Estado
de Economia e Planejamento (SEP), o Fórum de Entidades e Federações (FEF), a Ong empresarial “Espírito
Santo em Ação” e o Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN)/ SEP, e produz um planejamento econômico
estratégico para o estado, com destaque à produção de petróleo e gás como indutora do “progresso”.
Para abastecer o boom petroleiro atual, suas plataformas, navios, dutos, instala-
ções, alavanca-se em larga escala a mineração e a siderurgia, por exemplo. Bem
como os setores de logística, naval, além dos complexos portuários, ferroviários
e rodoviários. Cria-se uma rede de empreendimentos tanto no mar quanto em
terra. E isso vem acontecendo em todo o território do Espírito Santo. (ECO-
DEBATE, 2015)
124 Segundo informações da Frente Parlamentar Ambientalista do Espírito Santo, está cogitada a construção
de 5 unidades portuárias em São Mateus (uma já em construção); 3 em Linhares (uma já em construção);
7 em Aracruz, junto ao Portocel, da empresa Aracruz Celulose-Fibria (estaleiro Jurong já em construção);
3 em Vitória; 2 em Anchieta, junto ao Porto de Ubu, da empresa Samarco; 2 em Itapemirim; e 2 em Pre-
sidente Kennedy.
125 Essa aliança histórica se faz presente não só com o estado do Espírito Santo, mas também com o Estado
brasileiro.
126 Criado em 1952, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) é um dos grandes
financiadores dos grandes projetos desenvolvimentistas no Brasil, que também se expandem para outros
países considerados “não desenvolvidos”.
3. Experiências de r-existência
Nos processos apresentados, pode-se verificar que os conflitos entre a matriz de
racionalidade de origem colonial e a dos povos que foram (e ainda são) subalter-
nizados por ela concretizam-se em disputas territoriais, simbólicas e cognitivas.
Entendemos o território enquanto fruto e processo relacional de apropriação
social do espaço, sempre em movimento. Todos os sujeitos e grupos sociais cons-
troem sua existência material, simbólica e afetiva a partir da apropriação do espa-
ço, no qual tecem seus modos de viver (FERREIRA, 2009). A combinação dessas
relações irá configurar as características do território, de acordo com as formas
de apropriação, uso e/ou domínio do espaço que se efetivam e se desdobram ao
longo de um continuum que vai da dominação político-econômica à apropriação
mais subjetiva e/ou cultural-simbólica, conforme os projetos dos sujeitos e gru-
pos sociais (HAESBAERT, 2004). Essas relações existenciais e/ou produtivistas
vivenciadas pelos sujeitos sociais constituem a multidimensionalidade do vivido
territorial e caracterizam as marcas da apropriação do espaço que se efetivam, ou
seja, suas formas de territorialidade (RAFESTIN, 1993 [1980]).
As distintas formas de territorialidade diferenciam-se de acordo com as
relações de apropriação e/ ou dominação do espaço que efetivam: no espaço
apropriado e vivido pelas comunidades campesinas e tradicionais, produz-se
um saber-fazer, do tato e do contato, um “saber com” a natureza; enquanto no
127 Embora o licenciamento ambiental tenha sido uma conquista da Política Nacional do Meio Ambiente
(1981) no sentido de planejar e fiscalizar, com a participação social, o uso dos recursos naturais, o que se
tem assistido se aproxima mais de rodadas de negociações de impactos, ou seja, o empreendimento negocia
o quanto deve pagar aos sujeitos impactados para poder provocar os danos previstos nos Estudos de Impac-
to Ambiental e seus respectivos relatórios (isso quando os danos aparecem em tais estudos!).
128 O posicionamento inicial da FUNAI foi de esvaziar o território indígena, encaminhando os Guarani e
alguns Tupiniquim para a “Fazenda Guarani”, em Minas Gerais – inicialmente denominada Reformatório
Indígena Krenak, Colônia Penal que tinha como objetivo “a recuperação dos índios delinquentes” – ou seja,
aqueles que resistiam à expropriação de seus territórios (CICCARONE, 2002, apud MARACCI, 2008).
129 Nesse processo, foi fundamental a participação de estudantes da Universidade Federal do Espírito Santo,
organizados no coletivo denominado “Brigada Indígena”, onde merece destaque a participação de alguns
estudantes do curso de Geografia, que dialogavam seu conhecimento no manejo dos sistemas de navegação
por satélite, o GPS (Global Positioning System), com o conhecimento empírico dos Tupiniquim e Guarani
a respeito do território.
130 Segundo Barcellos (2008), antes da chegada da empresa Aracruz Florestal, existiam 37 aldeias Tupiniquim
no município de Aracruz (ES).
131 COIMBRA, Ubervalter. Cinco décadas de luta: finalmente, os indígenas capixabas têm as escrituras de
suas terras. Século Diário, 30/4/2015. Disponível em: http://seculodiario.com.br/22513/10/cinco-decadas-
-de-lutas-finalmente-indios-capixabas-tem-as-escrituras-de-suas-terras
132 14.227 hectares como “Terra Indígena Tupiniquim” e 3.800 hectares como “Terra Indígena de Comboios”
(MARACCI, 2008).
133 “O primeiro aldeamento constituído pela Diretoria do Rio Doce em 1824 foi o de São Pedro de Alcântara,
localizado na margem direita do rio, próximo à sua foz, e reunia 47 Botocudos” (MARINATO, 2008, p.
53). Ao que nos parece, essa localização remete à atual Vila de Regência, no município de Linhares (ES).
134 Atualmente, as Terras Indígenas demarcadas e pertencentes aos povos Botocudos são aquelas habitadas pelos
Krenak (considerados os últimos Botocudos de Leste), cuja população, no Brasil, é estimada em 350 pessoas
distribuídas entre a Terra Indígena Krenak (MG), a Terra Indígena Vanuire (SP), e a Terra Indígena Fazenda
Guarani (MG). Outras duas terras indígenas com presença Krenak encontram-se em processo de identifica-
ção: a Terra Indígena Krenak de Sete Salões (MG) e a Reserva Indígena Krenheré (MT) (ISA, 2015).
135 O Observatório dos Conflitos no Campo (OCCA) é um Projeto de Extensão vinculado à UFES desde o
ano de 2007 e atualmente encontra-se sob minha coordenação. Tem como objetivos registrar e monitorar
os conflitos no campo no estado do Espírito Santo e também produzir estudos no intuito de fortalecer os
processos de resistência dos grupos ameaçados de expropriação territorial.
136 Conforme pesquisa realizada pela historiadora Francieli Marinato no Arquivo Público do Estado do Espíri-
to Santo (APE-ES), no período de 1814 a 1889 numerosos casos de fuga escrava foram registrados em toda
a província, com destaque aos centros da economia colonial, onde se concentravam as fazendas escravistas:
Itapemirim, Guarapari, São Mateus e os atuais municípios da Grande Vitória (RTID São Domingos e
Santana, 2006).
identidade negra passou a ser construída com profundos contornos políticos liga-
dos à questão da perda da terra, e teve como apoiadores a Comissão Pastoral da
Terra (CPT) e suas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), bem como o Sindi-
cato dos Trabalhadores Rurais. Essa construção política receberia um reforço nos
anos de 1980, com o estabelecimento do Grupo de Consciência Negra (Grucon)
em São Mateus, que trazia a discussão da necessidade de reparação dos danos
provocados pela escravização africana. Em escala nacional, o movimento negro
se articularia durante a Assembleia Constituinte de 1988 e conquistaria o Artigo
68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que determina o dever
do Estado em reconhecer e garantir a propriedade definitiva das terras ocupadas
pelos remanescentes de quilombos.
Embora algumas lideranças constituíssem os trabalhos do Grucon desde os
anos de 1980, a construção do movimento quilombola no norte do estado foi em
grande parte alimentada pela articulação do coletivo político denominado Rede
Alerta Contra o Deserto Verde –, cuja atuação explicitou os impactos provocados
pela implantação da produção de celulose junto a comunidades tradicionais e
campesinas do estado137 – conjugada à promulgação do Decreto n. 4.887/2003,
que regulamentou o Artigo 68 e instituiu a política de regularização dos territó-
rios das comunidades quilombolas. Essa política nasceu fundamentada no prin-
cípio da autoatribuição, que já havia sido determinado em 1989 pela Convenção
169 sobre Povos Indígenas e Tribais da Organização Internacional do Trabalho
(OIT), ratificada pelo Estado brasileiro em 2002. O princípio da autoatribuição
percorre toda a Convenção 169 no tocante à afirmação identitária dos grupos e
também à escolha dos caminhos para seus territórios. Nesse sentido, desconstrói a
postura da colonialidade do saber e do poder (QUIJANO, 2005), profundamente
marcada pela hierarquia que impõe definições e classificações aos povos e comu-
nidades subalternizados.
Nesse contexto se estrutura e se amplia o movimento quilombola no Brasil, e o
quilombo passa a ser significado não só como território originário das fugas escra-
vas, mas como qualquer espaço de afirmação étnica afrodescendente. Sob a nova
orientação, iniciaram-se os primeiros estudos de identificação dos territórios, que
137 A Rede Alerta Contra o Deserto Verde nasceu nos idos de 1999 da articulação entre sujeitos e grupos
impactados pelos projetos desenvolvimentistas de produção de celulose, apoiados por entidades, sindicatos,
associações, organizações não governamentais, pesquisadores. Inicialmente, envolveu os estados do Espírito
Santo e Bahia; posteriormente, foi se ampliando para outros estados onde os impactos também se faziam
presentes, como Minas Gerais e Rio Grande do Sul.
138 Ao consultarem a documentação das terras nos Cartórios de Registros de Imóveis, esses estudos vêm evi-
denciando numerosos problemas nas Cadeias Dominiais da terra, que explicitam operações fraudulentas
em sua aquisição por empresas e fazendeiros (FERREIRA, 2009).
139 Através dos Contratos de Comodato, a empresa Aracruz Celulose (atual Fibria) vem cedendo áreas onde
determinadas comunidades possam fazer seus plantios, excluindo “bens de raiz”. Dessa maneira, ao mesmo
tempo em que inaugura uma nova postura amistosa na relação com as comunidades, a empresa consegue
reforçar que “a terra é de sua propriedade”. Esses procedimentos vêm provocando a divisão interna em algu-
mas comunidades quilombolas, uma vez que desvia o foco da luta política pelo território. Outra estratégia
por nós presenciada foi a proposta de “negociação do tamanho do território” apresentada pelo presidente
nacional do Incra à Comunidade Quilombola de São Domingos, numa reunião ocorrida na sede do Incra-
-ES em 13/11/2013.
4. Considerações finais
Como procuramos trazer aqui, o estado do Espírito Santo configura um forte
exemplo de lugar onde o imaginário colonial é dominante não somente no con-
texto da colonização europeia, mas se perpetua propagado pelos grupos sociais
dominantes. Esse imaginário colonial coloca na invisibilidade todos os sujeitos
e processos que não condizem com o ideal desenvolvimentista de matriz euro-
cêntrica e capitalista. Assim aconteceu e ainda acontece com os povos originários
que habitavam e ainda habitam esse território; assim aconteceu e acontece com os
povos originários arrancados da África negra como escravos da economia colonial
e seus descendentes. Assim aconteceu e ainda acontece com a implantação dos
projetos desenvolvimentistas sobre os territórios tradicionalmente ocupados.
No entanto, esses povos e comunidades sempre apresentaram seus processos
de r-existência à expropriação de seus territórios e modos de viver. Esses processos
são alimentados pelo desejo de criação dos territórios subjetivos de liberdade, que
possibilitam a germinação das lutas pela retomada dos territórios; pelo reconheci-
mento da própria dignidade; pelo respeito aos seus modos de vida.
A fim de fortalecer esses processos de r-existência, é necessário provocar um
olhar descolonizador que passe a desconstruir o lugar de invisibilidade e inferio-
ridade em que foram colocados os povos originários e as comunidades tradicio-
nais, desde o início da colonização. É preciso, portanto, descolonizar o imaginário,
possibilitar outros olhares acerca do contexto mundial e de seus processos insti-
tuintes, perceber e reconhecer a diversidade de outras possibilidades de vida que
acenam, deslocando a hegemonia da racionalidade eurocêntrico-capitalista, que
se impôs como o padrão civilizatório superior e normal.
Outros caminhos são possíveis fora desta linha rígida da normalidade e supe-
rioridade eurocêntrica que há séculos alimenta os processos des-envolvimentistas
e provoca fome e miséria, a perda da diversidade biológica e cultural, e a degrada-
ção ambiental de dimensões mundiais. Muitos desses outros caminhos possíveis
encontram-se e/ou vêm sendo pensados, experienciados por povos e comunida-
des tradicionais do mundo colonizado do Sul. E para conhecer, é preciso saber
ouvir e efetivar os diálogos entre saberes.
As possibilidades de atuação política da pesquisa se revelam nas escolhas temá-
ticas e metodológicas. Nossa atuação junto aos processos de r-existência de povos
originários e comunidades tradicionais no Espírito Santo vem se concretizando
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rollo territorial rural en América Latina. In: FERNANDES, Bernardo Mançano
(Org.). Campesinato e agronegócio na América Latina: a questão agrária atual. Bue-
nos Aires: CLACSO, 2008, v., p. 249-274.
Introdução
Este texto é um esforço no sentido de trilhar por algumas das felizes provoca-
ções propostas para este seminário, particularmente o desafio de tentar compre-
ender “como os conhecimentos e as epistemologias construídas nas lutas sociais
oferecem horizonte de sentidos para a construção do pensamento descolonial”
e como “as teorias, os conceitos e as interpretações do pensamento descolonial
conseguem dialogar com a diversidade de experiências de lutas sociais concretas”.
Pensar estes desafios e questões e tentar escrevê-los já promove inquietações e
conflitos com os condicionamentos coloniais e é, por si, revelador dos enormes
limites que se nos apresentam quando ainda não criamos uma política da nar-
rativa e escrita libertas do que se convencionou como sendo um texto científi-
co. O que fazer com nossas experiências e com o que sentimos quando estamos
pesquisando, escrevendo, dentro do um e para território do saber acadêmico?
140 Texto elaborado para o 1º Seminário “Geografia e giro descolonial: experiências, pensamentos e horizontes
de renovação do pensamento crítico”. NETAJ – PPGEO/UFF e NEGRA – FFP-UERJ, 2014. Baseia-se
na tese de minha autoria Progresso da morte, progresso da vida: reterritorialização conjunta dos Tupiniquim e
dos Guarani no processo de luta pela retomada de suas terras-territórios no Espírito Santo (PPGG/UFF, 2008).
Utilizo no corpo do texto diversos trechos da tese, com diversas, alterações, adaptações e atualizações que se
fizeram necessárias. Sobre a expressão Progresso da vida, progresso da morte que compõe o título da tese, re-
fere-se à expressão insistentemente dita por Werá-Kwaray (Toninho), cacique Guarani da Aldeia Tekoa Porã
(Boa Esperança), município de Aracruz, nas diversas ocasiões do conflito com a empresa Aracruz Celulose:
“Dizem que somos contra o progresso. Somos contra o progresso da morte. Queremos o progresso da vida!”
(Werá Kwaraí).
142 “Para nós, em suma, o célebre título lévi-straussiano La pensée sauvage não se referia de modo algum
à ‘mentalidade’ dos ‘selvagens’, mas ao pensamento insubmisso, o pensamento irredento, o pensamento
indisciplinado. O pensamento contra o Estado, se quisermos” (CASTRO, Eduardo Batalha Viveiros de.
Antropologia e a Imaginação da Interdisciplinaridade – Conferência em 18 maio de 2005. Orgs.: Instituto
de Estudos Avançados Transdisciplinares da UFMG (Ieat) e da Fundação de Desenvolvimento da Pesqui-
sa(Fundep) –UFMG – Campus Pampulha).
plina esta que estes povos, ao seu modo, explicitam na sua luta territorial. As lutas
territoriais protagonizadas pelos chamados povos originários e tradicionais explici-
tam conflitos profundos no campo das racionalidades, apresentando importantes
questões que podemos identificar como descolonialmente construídas. No entanto,
considero importante que esse percurso interpretativo se dê “sem naturalizar ou
construir lugares como fonte de identidades autênticas e essencializadas” (ESCO-
BAR, 2005, p. 2). Esforço este importante, pois, se não observado, poderemos
incorrer em projeções de nossas próprias perspectivas, o que poderia ser um fardo
pesado demais para estes povos, mesmo que nos seja sedutor atribuir-lhes certa
reserva ética e ecológica, e que nos parecem tão necessárias no atual contexto so-
cioambiental em que vivemos. Afinal, estamos mergulhados num mundo em crise
ambiental profunda, que é, sabemos, de natureza civilizacional!
Mesmo sob tais “cuidados”, me ocorre perguntar: por que captamos, percebe-
mos e/ou sentimos o que chamo aqui de “percursos descolonais” das lutas territo-
riais destes povos? Bem, o que consigo neste momento é pensar que, talvez, seja
porque somos (ou ainda somos!) o que permanece nestas comunidades. De modo
que, muito mais do que pessoas externa e altruisticamente sensíveis aos seus dra-
mas, estamos atolados dentro destes dramas enquanto humanidade. Talvez por
isso me faça tanto sentido a expressão que ouvi Carlos Walter Porto-Gonçalves
dizer algumas vezes: “Mais que geógrafos dos movimentos sociais, somos geógra-
fos em movimento”. E essa condição é que me faz ter a sensação de que algumas
fronteiras entre nossas diferenças parecem se diluir em alguns encontros no per-
curso das lutas e/ou da construção do pensamento na perspectiva da contra mão
da moderno-colonialidade.
O que trago sobre a luta territorial dos Guarani Mbyá e dos Tupiniquim no
Espírito Santo foi gestado na experiência conjunta de lutas em rede, no período
de 1999 a 2010, enquanto geógrafa membro da AGB-seção Vitória/ES e como
membro da “Rede Alerta Contra o Deserto Verde”,143 um coletivo de movimentos
e lutadores sociais do campo e da cidade: camponeses, indígenas, quilombolas,
pescadores, mulheres, estudantes, cientistas, ambientalistas, artistas, associações
científicas e culturais e outras, sindicatos de trabalhadores, entidades religiosas,
organizações não governamentais... e pessoas.
143 A Rede Alerta Contra o Deserto Verde tem início no ES e BA (1999), estende-se para RJ, RS e MG, locais
onde ocorrem os mesmos conflitos envolvendo questões decorrentes da monocultura de árvores industriais,
e alcança diversos lugares no mundo.
Sendo assim, sinto-me licenciada para dizer que o modo como percebo os
percursos descoloniais nas lutas dos indígenas no ES reflete uma articulação entre
o esforço de compreensão das suas singularidades e daquilo que constituiu as
semelhanças nas diferenças. Estes dois povos construíram juntos lutas pela reto-
mada das suas terras-territórios por 40 anos, bem como suas reterritorializações,
sendo que nos últimos anos (de 1999 a 2008 aprox.),144 integraram a citada rede
de diversos movimentos e lutadores sociais onde encontros de perspectivas de luta
foram importantes fatores na construção da sua espacialidade política, espaciali-
dade esta multiescalar desde o local ao global.
No percurso das lutas territoriais que integraram a Rede Alerta, a luta dos
Tupiniquim e dos Guarani Mbyá, assim como das comunidades quilombolas
do Sape do Norte, figuraram como centrais. As problematizações envolvendo
construções, desconstruções e reconstruções (tanto simbólicas como das lógicas
consolidadas) no embate com a Aracruz Celulose compuseram o ambiente deste
singular conflito de racionalidades distintas, onde o empreendimento celulósico
representou, é claro, a racionalidade hegemônica.
Espero que estas problematizações iniciais aqui colocadas rapidamente pos-
sam nos acompanhar nessa trajetória expositiva sobre como percebo os “percursos
descoloniais nas lutas territoriais conjuntas dos Tupiniquim e dos Guarani Mbyá
no Espírito Santo”.
Contextualizando
Para entender o contexto geográfico e político da luta territorial dos Tupiniquim
e dos Guarani Mbyá, o processo de implantação e consolidação do empreendi-
mento celulósico no Espírito Santo pelo Grupo Aracruz, mais tarde Aracruz Ce-
lulose S/A (atualmente Fibria), é um recorte que se impõe.145 Esta empresa figura
como protagonista ao mesmo tempo em que resulta de um processo de redefini-
ções econômicas e políticas nacionais e internacionais que tiveram início a partir
144 A partir de então os Tupiniquim e os Guarani Mbyá iniciam uma nova etapa de lutas para a reconversão
das terras de eucalipto em terras-territórios. Nesse novo percurso, sua espacialidade se constrói com outros
espaços e atores, não mais a Rede Alerta.
145 Falar em contexto geográfico aqui é falar da geografia que está proposta: um território do saber que tem
como objeto a complexidade espaçotemporal das relações sociais nas dimensões da natureza e da sociedade.
Portanto, o contexto geográfico se refere aos aspectos econômicos, políticos, culturais e ambientais do recorte
temporal e espacial em estudo, a saber, o complexo geográfico que envolve os territórios Tupiniquim e
Guarani Mbyá e seu entorno.
147 A Fibria (ex- Aracruz Celulose S/A) é grande produtora mundial de celulose branqueada de fibra curta para
exportação.
148 Ainda na década de 1960, o Grupo Aracruz já concentrava sob seu domínio aproximadamente 40 mil
hectares de terras no município de Aracruz (ES). Na primeira metade da década de 1990, na ocasião da
primeira expansão da fábrica de celulose, os plantios da empresa totalizavam 83 mil hectares e ocupavam
1,8% do território estadual, e 17,89% da chamada “fatia nobre” da área agricultável do Espírito Santo
(33% da área total do estado). Segundo o próprio Relatório de Sustentabilidade 2008 publicado pela Ara-
cruz Celulose, a empresa alcançava até esta data os estados do Espírito Santo, Bahia, Minas Gerais e Rio
Grande do Sul, totalizando aproximadamente 433 mil hectares de terras sob sua propriedade (ARACRUZ
CELULOSE S/A, 2008).
149 Relatório sobre os “Impactos da apropriação dos recursos hídricos pela Aracruz Celulose nas terras indíge-
nas Guarani e Tupiniquim – ES”. Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB/seção ES (AGB-ES, 2003).
Os Tupiniquim
Consta que em 1500 os Tupiniquim habitavam a faixa territorial contínua
situada entre o sul da Bahia e o Paraná, também habitavam as margens do Je-
quitinhonha em MG, a costa e o sertão da Bahia e a serra de Ibiapaba no Ceará
(GEORG, 1982). Constituem (segundo especialistas)150 um subgrupo dos Tupi-
nambá que habitavam estreita faixa de terra entre Camamu (Bahia) e o rio São
Mateus no Espírito Santo.151 Tal como ocorrera com outras populações indíge-
nas, submetidos a violentos massacres e a rigorosas restrições territoriais (políticas
de integração e aldeamentos forçados) por parte dos colonizadores, enfrentaram
uma redução populacional que quase os colocou em situação de extinção.152 Os
150 Conf.: Klítia Loureiro (2006); C. A. Rocha Freire, Museu do Índio (julho de 1998); Prezia e Hoornaert
(1989).
151 A população Tupiniquim foi estimada por John Hemming, que esteve no Espírito Santo com a frota de
Villegagnon em 1557, em 55 mil habitantes no trecho situado entre o Espírito Santo e o Sul da Bahia
(Hemming e Gold, 1978, in Revista Proposta, Dez/Mai 2005/06).
152 Em 7 de junho 1559, o português Mem de Sá, terceiro governador-geral do Brasil (1558-1572), destruiu
aldeiasTupiniquim na Bahia e relatou ao Rei de Portugal os massacres como um grande feito: “Entrei nos
Ilhéus, fui a pé e dei na aldeia e a destruí e matei todos os que quiseram resistir e a vinda vim queimando e
destruindo todas as aldeias [...] de maneira que nenhum Tupiniquim ficou vivo.[...] destruí muitas aldeias
fortes e pelejei com eles outras vezes em que foram muitos mortos e feridos e já não ousavam estar senão
pelos montes e brenhas onde matavam cães e galos e, constrangidos da necessidade, vieram a pedir mise-
ricórdia e lhes dei pazes com condição que haviam de ser vassalos de Sua Alteza e pagar tributos e tornar a
fazer os engenhos (MEM DE SÁ, 1560, citado por CAMPOS, 1981, p. 44). Segundo estudos da Funai,
“após o massacre dos Tupiniquim de Ilhéus, o governador Mem de Sá atacou os ‘gentios’ do Espírito Santo
[...] só com a presença dos jesuítas e o início dos aldeamentos, a situação ficaria ‘sob controle’, estando então
configurado o projeto colonial” (GT/Funai/ n. 0783/1994 – fl. 25).
153 Como sabemos, a Lei n. 601 de 1850 (Lei de Terras), que inaugurou uma nova ordem colonial, a do
“apagamento” dos vestígios e dos direitos das populações indígenas no Brasil, significou uma alteração
substancial no perfil jurídico de acesso à terra por parte da população indígena (JOSÉ DA SILVA, 2001).
154 Tupiniquins e Guaranis do Espírito Santo: para onde vai a Aracruz e o desgoverno. A Nova Democracia,
Ano IV, n. 29, abril de 2006.
litoral norte do estado. São os últimos de seu povo. Falantes da língua Tupi litorânea
da família linguística Tupi-Guarani no passado, atualmente os Tupiniquim usam
apenas o português, mas estão em pleno processo de recuperação do Tupi.
Os Guarani Mbyá
O grupo Guarani Mbyá liderado por Tatãtxi Ywa Reté155 (mulher xamã) che-
gou no Espírito Santo na aldeia de Caieiras Velhas (Tupiniquim) na década de
1960, seguindo sua trajetória territorial nos caminhos do sonho,156 revelação xa-
mânica, até chegar na yvy apy,157 até fundar em 1979 a aldeia Tekoa Porã (Boa
Esperança) em Santa Cruz, no município de Aracruz (ES), nas proximidades
da aldeia Tupiniquim que os recebera. A aldeia Boa Esperança representava o
anseio de vir a ser o tekoa porã, o “projeto tekoa porã, um espaço de inter-relações
materiais e simbólicas, onde o equilíbrio natural e o social se alimentam um do
outro” (CICCARONE, 2001, p. 341). “Tekoa Porã quer dizer que nunca, nunca
pode brigar [...], Tekoa é aldeia e Porã é bem, alimento, fartura, planta de comer,
fruta” (informação verbal por Marilza, neta de Tatãtxi Ywa Reté).158 É possível que
esse aldeamento do Espírito Santo seja um yvy apy, segundo Maria Inês Ladeira
(1994) e Celeste Ciccarone (2001), ou seja, a ponta ou a extremidade da terra, ou
o “fim do mundo” e também o “começo do mundo”.
Os Guarani Mbyá relatam:
155 São encontradas diversas grafias referindo-se ao nome da xamã, tais como Tatantim Rua-Retée, Tatati Yva
Re ete, Tãtãxi Ywa Reté, Tatãtxi Ywa Reté.
156 Observaram Melià e Nagel (1995) que “o Guarani sonha e sabe sonhar” e “como outros índios da família
tupi-guarani, guia-se pelos sonhos”. O sonho Guarani constitui-se em “atividade privilegiada para se rece-
ber a reza, e a reza é a forma superior da palavra, fonte de conhecimento e força para ação”, acrescentam
Melià e Nagel (1995). E ainda, “o poder e prestígio do Guarani está na palavra, sobretudo, na palavra rezada
ritualmente. Ela depende diretamente do sonho”, porque “o Guarani realiza no sonho atividades que su-
põem vida acordada. Sonhar é uma capacidade para a qual alguém se prepara”. (MELIÀ e NAGEL, 1995,
p. 9, 11-12, in: FLEK, 2003, p. 182). “Sonhar é dizer. Eis a história Guarani.” (MELIÀ, 1988, p. 12).
157 Yvy apy, local de onde é possível alcançar yvy mara ey (a terra perfeita ou terra sem mal).
que o Grande Espírito (Nhanderu), através de revelações aos mais velhos, aos
religiosos, guia nosso povo na busca de uma terra sem males, melhor para
viver no mundo, apesar dos Guarani também buscarem o espaço místico, que
é a Terra sem Males (Yvy Marã Ey). Guiando nosso povo, minha bisavó veio
caminhando. Ficava um ano, dois, em algum local, onde fundava aldeias que
ainda estão lá porque sempre permanece alguém. Depois de São Paulo, onde
morreu meu bisavô, continuou. Parou em Parati, depois em Campos, depois
em Krenak, em Minas Gerais, no Vale do Rio Doce. Veio para o Espírito San-
to, onde fez contatos com os Tupiniquim, que já sofriam com a violência da
Aracruz. Nesse tempo, minha bisavó e os clãs saíram dali e foram para Guara-
pari, no sul do ES. Era época da gerência militar, e o SPI, Serviço de Proteção
ao Índio, hoje Funai, à força, empurrou todos os índios para os caminhões e os
levaram para Minas Gerais. Lá num lugar chamado Fazenda Guarani, próximo
de Governador Valadares, o SPI tinha essa terra demarcada como se fosse um
presídio. Ali eram confinados os Pataxó, Guarani, Maxacali e outros povos,
tudo junto. Então, depois de algum tempo – nessa época eu estava com 5 ou
6 anos –, os Guarani, guiados por suas tradições, resolveram sair de lá fugindo
da vigilância do SPI. Chegamos então em Krenak, onde vivem os descenden-
tes dos Botocudos, e depois em Caieiras Velha, aqui em Aracruz, onde estão
os Tupiniquim. Nessa época, havia vários posseiros nas aldeias e as lideranças
mais velhas começaram a lutar em busca de soluções para demarcação. Aí foi
criada a luta conjunta. (Cacique guarani Werá DJekupé, entrevista à A Nova
Democracia, 2006).159
Então, deu sono e o espírito de Deus [Ñande ru] falou assim para minha mãe:
“Tem nesse lugar uma terra de Guarani e uma terra de Botocudo, índio tam-
bém. Ela, de manhã, levantou e contou para mim: ‘Olha, minha filha, Deus
[Ñande ru] falou para nós procurar porque tem um pedaço revelado para nós
morar. Tem tudo lá em Caieiras Velhas’ [aldeia Tupiniquim]”. Viemos a pé de
Vitória, procurando e, quem vem procurando, tem que rezar para Ñande ru
e aí Ñande ru mostra no sonho. Esse lugar era para ela uma terra prometida,
onde antigamente Guarani trabalhava, mas Guarani já foi. Era esse que mos-
trava para minha mãe. Foi sinal, era Caieiras Velhas. Lá tinha uma igrejinha
igual a essa, mas toda de pedra, não era de palha (Aurora Carvalho da Silva –
Krexu Miri, filha de Tatãtxi Ywa Reté).160
159 Tupiniquins e Guaranis do Espírito Santo: para onde vai a Aracruz e o desgoverno. A Nova Democracia,
Ano IV. n. 29, abril de 2006.
160 CICCARONE, 2001, p. 297. Dona Aurora, seguindo a tradição de sua mãe Tatãtxi ou Maria, exerceu
liderança espiritual em todo o território Guarani Mbyá (LADEIRA; MATTA, 2004, p. 12).
Em Caieiras Velhas tinha uma casa de pedra, é do antigo e há séculos que ele
fez a casa de pedra. Santa Cruz também tinha e por isso minha avó vinha lá do
Rio Grande do Sul, vinha conhecendo e vinha descobrindo onde o Guarani
morava. Para minha avó, quando ela estava rezando, Ñande ru mostrava a vi-
são e aí ela já sabia, falava para nós onde tinha a tava [ruína da igreja de pedra],
onde os Guarani moravam e por isso, onde tem tava é onde nós queremos
ficar. Ñande ru Tupã falava para ela: “Aqui é um lugar onde você pode ficar,
plantar, fazer a casa, fazer Opy [casa de reza]. (Jonas, neto de Tatãtxi)161
Ñande ru revelou para minha mãe uma terra e mostrou que tinha uma tava,
uma igreja de antigamente. Minha mãe me mandou procurar e nós viemos
procurar’. [...] Paramos em Caieiras Velhas [aldeia Tupiniquim] e moramos
não sei quanto tempo e o meu irmão plantou três pé de muda de coco Bahia.
(Aurora Carvalho da Silva, ou Krexu Miri, filha de Tatãtxi Ywa Reté) 162
162 CICCARONE, 2001, p. 297. Seguindo a tradição de sua mãe Maria Tatãtxi, Aurora exerceu liderança
espiritual em todo o território Guarani Mbyá (LADEIRA; MATTA, 2004, p. 12).
164 O Serviço de Proteção aos Índios (SPI) foi criado pelo Decreto-Lei n. 8.072, de 20 de junho de 1910, com
o objetivo de ser o órgão do governo federal encarregado de executar a política indigenista. O órgão foi
chefiado pelo marechal Cândido Mariano da Silva Rondon, descendente de índios. No ano de 1967, após
a saída do marechal Rondon, foi extinto o SPI devido a inúmeras denúncias de irregularidades administra-
tivas. No mesmo ano foi criada em seu lugar a Fundação Nacional do Índio (Funai).
Num desses percursos dramáticos, o que significa muitas vezes adentrar es-
paços urbanos para a venda de seu artesanato, o grupo Mbyá foi removido pela
Funai para o reformatório “Fazenda Guarani” (Carmélia/MG).165 “A estratégia
de sobrevivência pode resultar na desistência temporária do propósito de alcan-
çar e reocupar os lugares encantados” (CICCARONE, 2001, p. 258). Por fim,
conseguiram fugir tempos depois aliando-se aos Krenak e à família Tupiniquim
que lá também estava, conseguindo retornar aos poucos para a aldeia Tupiniquim
Caieiras Velhas.
Nesse retorno depararam-se com a transfiguração do aldeamento de seu povo,
agora cercado pelos eucaliptos e com parte das terras loteadas e vendidas pelo
prefeito de Aracruz. Com a implantação da empresa, Tekoa Porã tornara-se um es-
paço diminuto, de sofrimento, infortúnio, doença, mas que tinha que ser preser-
vado por ser um lugar eleito, verdadeiro para os Guarani (CICCARONE, 2001,
p. 250). Essa então necessidade que se apresentava, a de preservação do lugar
eleito, o Tekoa Porã, impulsionou-os à luta junto aos Tupiniquim pela retomada
de suas terras-territórios no ES.
Apesar destas restrições territoriais, os Mbyá habitaram (e habitam até hoje)
uma mata ainda restante nas proximidades, cerca de 40 hectares, onde está a
aldeia Tekoa Porã (traduzidas por eles como aldeia Boa Esperança) que se confi-
gura como um lugar de referência para o povo Mbyá. O pequeno grupo de 300
Guarani Mbyá permaneceu na aldeia Boa Esperança e, unidos aos Tupiniquim,
iniciaram as lutas conjuntas pela retomada de suas terras-territórios. Atualmente
os Guarani Mbyá se organizam em quatro aldeias nestas terras.
165 Parte do grupo ficou em Caieiras e outra parte (com Tatãtxi Ywa Reté) deslocou-se para o município de Guara-
pari (ES), numa mobilização inquieta por ainda não ter conseguido encontrar as condições ideais para seu modo
de ser, embora tenha encontrado a terra revelada. Conforme Ciccarone, “Funcionários do Centro de Ajustamen-
to Social da Secretaria Estadual do Trabalho e Promoção Social vigiavam os movimentos do grupo, como consta
do relatório enviado em junho de 1973 à Funai, no qual alegavam falta de recursos financeiros para assistir os
únicos indígenas que ‘surgiam’ no Espírito Santo e que continuavam perambulando em busca de abrigo. [...]
O governo estadual ganhava tempo enquanto Paulo Guarani continuava a articular os contatos com os poderes
públicos no intuito de obter a volta do grupo para Caieiras Velhas. [...] O então prefeito de Guarapari, Hugo
Borges, interessado em explorar a presença indígena como atrativo turístico, ofereceu, com a chegada do verão,
um terreno para o grupo se assentar, estipulando em troca que os Mbyá ‘andariam de tanga para atrair turistas e
participariam do lucro dos ingressos’ [segundo o Jornal do Brasil, 19 ago.1973, 1º Cad.]. O episódio de Guara-
pari tornou-se o estopim para viabilizar o plano de remoção do grupo do Estado, mantendo-o prisioneiro sob a
guarda da Funai na Fazenda Guarani, em Minas Gerais. [...] Os Mbyá se negaram a aceitar qualquer proposta
que não fosse o retorno a Caieiras Velhas e finalmente o poder público oficializava seu veto, alegando tratar-se de
áreas reservadas ao empreendimento de reflorestamento [plantios de eucalipto]” (CICCARONE, 2001, p. 307).
Hoje, basicamente, a relação do índio com sua terra é uma relação de um filho
com a mãe. É diferente da relação dos brancos ricos com a terra, de que ela tem
que produzir, gerar riqueza. Nós precisamos da terra para sobreviver. A gente
pretende criar nossos filhos e os filhos dos nossos filhos naquela terra, e morrer
naquela terra, para nós um lar, único. Falou-se inclusive uma vez de levar os ín-
dios para uma outra área, mas esse não é o nosso objetivo. Nós queremos a nossa
terra, queremos viver em cima da nossa terra e, apesar dos contras, temos manti-
do nossa posição. (Jaguaretê, cacique Tupiniquim, entrevista com AND, 2006)167
Uma empresa daquele porte fala que gera riqueza, mas é tudo para eles e entre
eles. Nunca é dividida para a sociedade. É uma coisa feita só para os grandes “em-
presários”. Como é uma empresa transnacional, o dinheiro vai para o estrangeiro.
Na verdade, eles só exploram o País. Por causa dessa destruição, hoje a gente não
consegue mais sobreviver da natureza, porque, além de transformarem em deserto,
reduziram nosso território que, antes, era imenso. Agora, estamos confinados a
apenas 7.000ha (Jaguaretê, cacique Tupiniquim, entrevista com AND, 2006).168
167 Tupiniquins e Guaranis do Espírito Santo: para onde vai a Aracruz e o desgoverno. A Nova Democracia,
Ano IV, n. 29, abril de 2006.
168 Idem
A maior conquista do nosso povo foi a pouca terra que temos hoje, conquista-
da com muita luta. Primeiro, em 1978. Depois, teve a luta de 1998, e tem essa
agora. A gente tem sobrevivido dentro dessa área, nós temos conseguido existir
somente através da luta, e, se não lutar, não consegue sobreviver. [...] A polícia
fala que a gente está afrontando a Justiça, mas na verdade nós estamos apenas
tentando sobreviver, resistir à política de eliminação, do governo e da justiça.
A justiça permanece do lado do poder financeiro. Do ponto de vista político
há uma mudança em relação a nossa causa porque estamos mais organizados.
Esses compromissos terão que ser cumpridos (Jaguaretê, cacique Tupiniquim,
entrevista com AND, 2006).171
169 Idem.
170 Em 2007 o ministro da Justiça, Tarso Genro, assinou a portaria demarcatória dos 11 mil hectares das ter-
ras-territórios reivindicadas pelos Tupiniquim e os Guarani Mbyá (GABINETE DO MINISTRO, POR-
TARIA n. 1.463, de 27 de agosto de 2007). A partir de então os dois povos iniciam uma nova etapa de lutas
para a reconversão das terras de eucalipto em suas terras-territórios.
171 Tupiniquins e Guaranis do Espírito Santo: para onde vai a Aracruz e o desgoverno. A Nova Democracia,
Ano IV, n. 29, abril de 2006.
Sabemos que não podemos continuar existindo como povo indígena se não
tivermos liberdade e autonomia e se nossas terras não forem demarcadas, para
que nossos filhos e netos possam ter um futuro seguro. Quinhentos anos atrás
cortaram as árvores que representam os povos e culturas indígenas; hoje, com
nossa luta, voltam a brotar com força as raízes indígenas no Espírito Santo. Por
tudo isso decidimos, por unanimidade, nesta Assembleia Indígena, lutar pela
retomada de nossas terras, hoje ocupadas pela Aracruz Celulose. A luta pela
terra, que é também a luta pela sobrevivência física e cultural dos Tupiniquim
e Guarani, será, daqui para frente, nosso principal objetivo, e não descansare-
mos até conseguirmos recuperar integralmente nossas terras. (Trecho da Nota
Pública da Comissão de Caciques Tupiniquim e Guarani: “Nossa Terra, Nossa
Liberdade”. Aldeia Tupiniquim de Irajá, 28 de fevereiro de 2005).
As expressões como “terra para viver e de liberdade”, por exemplo, foram uti-
lizadas intensamente nos discursos, manifestos e cartas públicas das lutas terri-
172 Idem.
toriais dos Tupiniquim e dos Guarani Mbyá. Comunicavam a ideia de que terra
é mais que terra (sentido extensão física), mas a própria experiência territorial
enquanto biodiversidade mais cultura e/ou sua possibilidade. Portanto, as terras
a serem retomadas naquele momento não eram quaisquer terras, mas terras-terri-
tórios.173 Percebendo uma correspondência conceitual entre esta noção elaborada
por estes povos e a expressão “mundos de vida” utilizada por Enrique Leff (2004),
Arturo Escobar (2005), Edgardo Lander (2005), Maritza Montero (1998), Por-
to-Gonçalves (2005, 2006), a utilização aqui da expressão “mundos de viver” neste
trabalho guarda a intenção deste diálogo conceitual.
A luta territorial para os Tupiniquim e para os Guarani assume, assim, uma
significação básica, principal, primeira, cada qual na sua singularidade, mas que,
no encontro, orienta suas estratégias de luta conjunta, suas movimentações po-
líticas, sua espacialização política e seu próprio processo de reterritorialização,
articulando os sentidos do território funcional e de poder (autonomia) ao sentido
das suas próprias existências, mesmo nas condições de restrições territoriais em
meio à sociedade envolvente atual.
Ocorrem, portanto, dois processos imbricados nessa luta conjunta: a espa-
cialização, enquanto formas e repercussões da luta territorial (multiescalar), e a
reterritorialização no campo identitário.
O processo de espacialização não se refere à apropriação espacial propriamente
dita (concreta ou abstrata) dos espaços articulados pelos Tupiniquim e pelos Gua-
rani, visto que estes não se apropriam dos espaços onde se inserem, mas refere-se
à socialização político-epistêmica no processo da luta territorial, nas suas diversas
formas, meios, linguagens e repercussões. Trata-se, portanto, das suas articulações
políticas, por meio das ações as mais diversas: inserções nos espaços da cidade e
seu entorno (marchas, atos públicos, bloqueios de estradas); midiático (articula-
ções e elaborações midiáticas próprias, mídias favoráveis ou contrárias); promo-
ção e participação por convite em eventos de temáticas socioambiental e cultural;
inserção em territórios acadêmicos por convite (palestras, eventos, estudos etc.);
alianças com outros movimentos populares do campo e da cidade, sindicatos,
organizações não governamentais do Brasil e do exterior e partidos políticos (par-
173 Expressões dos Tupiniquim e dos Guarani em suas declarações públicas “terra para viver e de liberdade”,
“nossa terra, nossa liberdade”; “nossa terra, terra que é a nossa mãe e sobre ela construímos nossa dignidade
e nossa identidade”; “a luta pela terra, que é também a luta pela sobrevivência física e cultural dos Tupini-
quim e Guarani”; “a relação que temos com a terra é espiritual, de mãe, tem toda uma vida aqui”.
cerias de luta em rede); viagens por diversos estados brasileiros e países do mundo,
por convites; articulações de diversos órgãos e instâncias do Poder Público; ocu-
pações de estruturas físicas do complexo celulósico da empresa Aracruz Celulose
(territórios indígenas a priori), construindo visibilidades políticas; notas e cartas
públicas; festas, rituais abertos etc. Adentram, assim, outros espaços e territórios,
construindo, explicitando e provocando encontros de perspectivas com outros
movimentos sociais e outros territórios numa estratégica produção mútua da crí-
tica ao poder hegemônico que a todos oprime.
Assim, o movimento indígena no Espírito Santo, para atingir seus objetivos,
espacializa a luta enquanto se reterritorializa identitariamente. Nesse processo de
reterritorialização conjunta, os Tupiniquim e os Guarani carregam consigo e ao
mesmo tempo re-significam e anunciam/socializam conjuntamente suas territo-
rialidades de matriz indígena, recuperadas (o preexistente como uma fonte de di-
reitos), re-significadas, re-inventadas, articulando conjuntamente temporalidades
de suas vivências específicas, perspectivas e ancestralidades no percurso dessa luta.
Ou seja, “articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de
fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no
momento de um perigo”. (W. Benjamin, Sobre o Conceito de História).
deias e trilhas e está associado a uma noção própria de mundo (LADEIRA, 1996,
p. 784) que conseguiram preservar apesar das intensas restrições territoriais vivi-
das, conforme vimos.
Para os Tupiniquim, mesmo considerando que as restrições territoriais vividas
desde as invasões europeias lhes impuseram perdas culturais significativas, seu
complexo processo de “re-existência” se faz por meio de um exercício territorial,
que mantém dinâmicas sociais, políticas e culturais baseadas principalmente em
práticas comunitárias, de reciprocidade e religiosidade, mesmo quando cristã,
como é o caso dos Tupiniquim.
Atingidos pela colonização e pelo avanço do capitalismo, os Tupiniquim e os
Guarani Mbyá – como todos os povos indígenas que habitaram e habitam essas
terras que aprendemos a chamar América – se veem forçados a viver em espaços
delimitados, territórios restritos a parcelas diminutas de terras, salvaguardados em
meio ao intenso processo de inferiorização nas relações interétnicas no seu entor-
no, fundados e atualizados pelo sistema-mundo-moderno-colonial.
A racionalidade hegemônica que impõe processos de apropriação privada e
de concentração da terra, depredação dos bens naturais, eliminação das “culturas
baseadas no lugar” e que sempre pressionou os povos indígenas, vem sendo agora
pressionada por eles. A demanda por terras-territórios, autonomia, recuperação
ambiental, assistência com adequação étnica à saúde, soberania alimentar e do sa-
ber, educação diferenciada, dignidade, integridade da vida etc. aumenta conside-
ravelmente. Isso porque os povos indígenas adquiriram, mais recentemente, uma
significativa capacidade de organização política. No entanto, vulneráveis frente
à violência dos grandes proprietários de terras, do próprio Estado e de todas as
forças locais, regionais e nacionais contrárias ao usufruto territorial indígena, estes
povos permanecem em estado de apreensão e insegurança diante dos avanços das
apropriações capitalistas, como temos visto cotidianamente no atual momento
brasileiro, a exemplo de Belo Monte.
Contudo, as TIs reivindicadas, demandas dirigidas ao Estado, são demarcações
dos limites físicos que ressignificam suas experiências territoriais a partir de uma
redefinição das fronteiras entre seus mundos de viver e a sociedade envolvente.
as que foram criadas por limites políticos estabelecidos pela territorialização refe-
renciada nos Estados-nação e suas unidades federativas, como no caso brasileiro.
Esse conflito e debates decorrentes nos remetem às problematizações que estas lutas
específicas dirigem às configurações societárias do mundo “não indígena”. Os direi-
tos territoriais dos indígenas que vivem no ES são questionados pela transnacional
Aracruz Celulose, dentre outras estratégias discursivas, a partir destas referências
(também territoriais) que se sobrepõem aos muitos territórios subalternizados.
Os Tupiniquim, para a empresa, não têm relações imemoriais com as terras-
-territórios reivindicadas, pois, segundos seus antropólogos e demais cientistas
empresariais, originam-se nas terras do estado da Bahia e quando chegaram ao
ES já o fizeram em condições de miscigenação e assimilação cultural colonial,
portanto, não seriam mais Tupiniquim, sequer indígenas.
Já no século XIX, embora não abandonando a resistência ao projeto cristão-o-
cidental, os Tupiniquim perderam aspectos fundamentais de sua cultura, incor-
porando cotidianamente aspectos da cultura do colonizador, processo esse que
se deu por “múltiplas estratégias de inferiorização” (SOUSA SANTOS, 1999):
guerra, violências físicas, genocídio, epistemicídio, catequese/missionação, escra-
vidão, racismo, desqualificação, assimilacionismo e outros. No entanto, mesmo
sob os imperativos da dominação colonizadora, os Tupiniquim se reivindicam
enquanto tal e continuam enfrentando, devido a isso, estratégias de inferiorização
que agora inclui a própria assimilação da cultura colonizadora como atributo
de sua inferiorização (ou do seu aprofundamento) e de, portanto, ausência de
direitos territoriais. Tal estratégia foi demasiadamente utilizada pela empresa Ara-
cruz Celulose contra os direitos dos Tupiniquim, quando os acusa de não serem
“índios” por não apresentarem “sinais diacríticos” próprios. Boaventura de Sousa
Santos percebe este aprofundamento da inferioridade produzida e diz que,
Nos embates dos Tupiniquim e dos Guarani Mbyá com a empresa Aracruz
Celulose através da sua rede de interesses incluindo a mídia e cientistas empresa-
174 Em 19 de junho de 2006, a empresa Aracruz Celulose entregou seu relatório de contestação ao laudo
da Funai, com 15 mil páginas, em 14 volumes e petição com 400 páginas. A empresa disponibilizou o
documento na íntegra, bem como sínteses da sua contestação em seu site e em alguns outros veículos de co-
municação (<www.aracruz.com.br>; <www.celuloseonline.com.br>; <www.alertaemrede.com.br>, <www.
acionistas.com.br>; <www.cresses.org.br> e outros; Aracruz questiona identidade dos tupiniquins para ficar
com terras. Repórter Brasil 2/5/2007). A síntese da sua contestação foi publicada em formato de cartilhas
impressas e distribuídas nas escolas da rede pública e privada e também em seu site. Segundo a empresa, foi
contratado um grupo multidisciplinar formada por cerca de 15 profissionais, incluindo historiador, antro-
pólogo, geógrafo e cartógrafo, com pesquisas em arquivos públicos, bibliotecas, jornais e cartórios, além de
realizar entrevistas com antigos moradores da região. A empresa não informou os nomes dos profissionais
do grupo multidisciplinar quando solicitada.
zação, construindo, assim, a deslegitimação da luta deste povo. Como nos lembra
Boaventura de Sousa Santos, nos tempos da descoberta imperial “o selvagem é
a diferença incapaz de se constituir em alteridade. Não é o outro porque não é
sequer plenamente humano” (SOUSA SANTOS, 1999).
A afirmação da diferença pela distinção étnica, agora oportuna, é exigida pela
empresa como condição de reconhecimento dos direitos territoriais destes povos
indígenas, questionando inclusive os estudos da Funai e seus critérios de identi-
ficação étnica. Se seguirmos a razão empresarial, o direito à terra-território pres-
supõe a explicitação de “sinais diacríticos” de etnicidade a partir dos critérios oci-
dentais de distinção. Eduardo Viveiros de Castro tem uma oportuna observação
sobre esse processo de identificação étnica:
175 CASTRO, E. Viveiros de..No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é. Carta de Eduardo Viveiros de
Castro em resposta à revista Veja em agosto de 2006. Disponível em: http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/
brasil-todo-mundo-indio-quem-nao
176 Frase extraída da Carta Convite para este 1º Seminário “Geografia e Giro Descolonial: experiências, pensa-
mentos e horizontes de renovação do pensamento crítico”. NETAJ – PPGEO/UFF e NEGRA-FFP-UERJ,
2014.
177 UOL. LIVROS/LANÇAMENTO – Flavio Moura entrevista Viveiros de Castro “Os índios no plural”.
Disponível em: http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/1417,1.shl
A gente entende que, como nós fomos expulsos das nossas terras, muitos não
índios como os camponeses pobres também foram expulsos de suas terras. É
uma situação semelhante à nossa a dessa classe, e nós temos trabalhado junto
com eles, temos conversado, trocado experiências. E eles têm nos apoiado, em
várias ações, inclusive para demarcar e construir as aldeias. A gente sente muito
as realidades próximas. A gente se identifica muito com eles e eles com a gente.
Estamos nos unindo para poder vencer essa política, em que só os mais ricos
têm direitos (Jaguaretê, cacique Tupiniquim, entrevista com AND, 2006).178
178 Tupiniquins e Guaranis do Espírito Santo: para onde vai a Aracruz e o desgoverno. A Nova Democracia,
Ano IV, n. 29, abril de 2006.
179 Revista Cult; entrevista com Viveiros de Castro: “Antropologia Renovada”, 2010.
São populações que geralmente foram desqualificadas e que agora vêm ao debate
político oferecendo reflexões, na minha opinião, da maior importância, não para
si próprias, mas para a humanidade como um todo. E eu penso que isso se deva
ao fato da gente estar nesse momento, exatamente, no debate, por exemplo,
implicado na questão ambiental. Exatamente em um debate onde eu considero
que o que está em curso é exatamente um debate em que a humanidade tenta se
reapropriar socialmente da natureza. (PORTO-GONÇALVES, 2011)180
Podemos pensar que a receptividade social que a luta dos Tupiniquim e dos
Guarani conquistaram nas diversas partes do mundo pode significar sinalizações
de perspectivas em que o antigo, o ancestral, os tradicionais mundos de viver,
ressignificados, apresentam-se num contexto de construção de novas possibili-
dades, de novas perspectivas de um outro mundo possível onde caibam diversos
mundos. Felizmente os indígenas se fizeram mais visíveis nas últimas décadas.
Essa visibilidade, embora paradoxalmente os coloque em situação de vulnerabi-
lidade, possibilita à sociedade envolvente identificar nas suas cosmologias fontes
importantes de reflexões sobre o mundo em crise e, o mais importante, sobre
possibilidades de sua superação.
Esta reflexão encontra correspondência com o que Arturo Escobar diz já em
1997, quando ele percebe que “as culturas baseadas no lugar”, conforme ele no-
meia, “estabelecem parâmetros alternativos para pensar a variedade de temas, des-
de a conservação da biodiversidade até a globalização” e ainda, segundo o autor,
“o que é mais importante destes modelos do ponto de vista do lugar, é que se
poderia afirmar que constituem um conjunto de significados-uso”, mesmo exis-
tindo “em contextos de poder que incluem cada vez mais as forças transnacionais”
(ESCOBAR, 1997, citado por ESCOBAR, 2005).
Considerando tais parâmetros alternativos estabelecidos pelo “conjunto de
significados-uso” apontados por Escobar, percebe-se nestas lutas indígenas e nas
das demais populações tradicionais que se confrontam com grupos empresariais e
o próprio Estado, que o território aparece figurando na centralidade. E aqui ocor-
180 Carlos Walter Porto-Gonçalves, 25/7/2011; MCP Entrevista. Disponível em: http://www.mcpbrasil.org.
br/o-mcp/item/107-entrevista-com-carlos-walter-porto-gon%C3%A1lves.
[...] o melhor exemplo das lutas dessas populações afrodescendentes que, à se-
melhança do que fizeram os seringueiros brasileiros, também souberam capturar
um dos vetores da ordem global, o ecológico, e ressignificá-lo, aqui, afirmando
que o território é igual a biodiversidade mais cultura, como explicitamente for-
mularam [Escobar e Grueso]. (PORTO-GONÇALVES, 2006, p. 170)
São novos territórios epistêmicos que estão tendo que ser reinventados junta-
mente com os novos territórios de existência material, enfim, são novas formas
de significar nosso estar-no-mundo, de grafar a terra, de inventar novas territo-
rialidades, enfim, de geo-grafar. (PORTO-GONÇALVES, 2002, p. 10)
O encontro com o mundo índio não é hoje um luxo. Tornou-se uma necessi-
dade para quem quer compreender o que se passa no mundo moderno. Não
basta porém compreender. Trata-se de tentar ir até o fim de todas as galerias
obscuras, de procurar abrir algumas portas. Quer dizer, no fundo, trata-se de
tentar sobreviver. (LE CLÉZIO, 1971)182
Considerações finais
A presença indígena com seus mundos de viver inscreve no espaço e no tempo
racionalidades que se distinguem profundamente do projeto colonial de domina-
ção política, cultural e econômica nas suas mais variadas formas de exercício até
os dias atuais. Tal presença é vista, inclusive (ou exclusive), como um obstáculo,
um entrave ao projeto de dominação gestado desde a constituição do “sistema-
-mundo-moderno-colonial” (WALLERSTEIN, 1998; QUIJANO, 2000) inicia-
do em 1492 e efetivado no Brasil desde o início do processo de colonização.
Os territórios e territorialidades indígenas, camponesas, tradicionais, por
“r-existirem” às inúmeras desterritorializações, constituem o que podemos
considerar como espaços de reserva ética e ambiental. Estas sociedades utili-
zam os ambientes naturais de maneiras muito próprias, constituindo vínculos
de continuidade entre o mundo biofísico, o humano e o supranatural (ES-
COBAR, 2005).
Os conteúdos destes paradigmas são importantes no processo socializante de
re-significações da Natureza, diante da atual crise mundial societária e ambiental,
onde se verifica a inegável insustentabilidade da lógica de mercado e consumo,
181 Palestra proferida por Eduardo Viveiros de Castro na Festa Literária Internacional de Paraty, Brasil
(FLIP/2014).
182 LE CLÉZIO, J. M. Hai, Les sentiers de la création. Paris: Skira, 1971, p. 11. O autor publicou duas tradu-
ções sobre o tema da mitologia indígena americana.
O conflito entre estes dois mundos, a que se refere o autor acima, parece exigir
que consideremos: de um lado a força homogeneizadora do poder e da hegemo-
nia do modo de viver constituídos pelos alicerces da modernidade (tanto na sua
vertente capitalista como socialista produtivista) e de outro a contra-hegemonia
que abriga incontáveis formas específicas, singulares de “mundos de viver”, cons-
tituindo e reproduzindo no seu todo tão diverso a natureza naquilo que lhe é mais
característico: a diversidade.
Os mundos de viver r-existentes das sociedades territoriais comunais (e que
afirmam a partir da biodiversidade mais cultura) apresentam nas suas narrativas e
retóricas territoriais as semelhanças com uma natureza que está se perdendo en-
quanto outra natureza a substitui (tecno-natureza). Talvez este seja um dos fatores
mais significativos de aproximação ou de encontros entre tantos movimentos so-
ciais e diversos setores das sociedades nacionais.
Para finalizar, depois de apenas “tatear” a tamanha complexidade que estas lu-
tas parecem revelar, pelas questões que ficam abertas considero pertinente deixar
as palavras finais com Arturo Escobar:
Referências
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de Octubre de 2005, Hotel Gloria, Rio de Janeiro, Brasil). Rio de Janeiro, Brasil
Introdução
Creio ser interessante iniciar esse texto com um pequeno relato autobiográfi-
co, cujo significado pode ajudar a tornar claro o que entendo por descolonização,
sendo até mesmo mais eficiente nesse sentido do que intrincadas citações acadê-
micas que, ao fim e ao cabo, podem acabar por afastar essas páginas daquelas e
daqueles a quem deveriam estar endereçadas.
No ano de 2001, em meio a um certo desencanto com as possibilidades que
a trajetória universitária no curso de Geografia parecia me oferecer até então,
decidi me afastar temporariamente das salas de aula e percorrer alguns caminhos
pelo interior de nosso continente. Não havia ali nenhuma certeza do que buscar,
mas apenas o desejo de conhecer e compartilhar experiências entre os povos desta
América Latina pela qual sempre nutri uma profunda ligação e identificação.
Sentimento esse que, nunca é demais recordar, foi fundamental pela opção por
essa carreira, em meio a outras disponíveis.
Algumas decisões são tomadas na hora certa: ao chegar numa Bolívia já visi-
tada mais de uma década antes, encontrei agora um país envolvido em intenso
processo de mobilização social que logo despertou o interesse de um ainda jovem
pesquisador. Ao procurar conhecer e compreender o que acontecia ali, pude afi-
nal ter clareza da importância do caminho que vinha trilhando em minha ainda
incipiente trajetória na universidade.
Quando busquei uma maior aproximação com alguns dos movimentos que
“entravam em cena”183, tive a oportunidade de me inserir, por um breve período,
junto às lideranças do movimento cocalero, do Chapare cochabambino184. Num
desses momentos, surgiu a possibilidade de uma entrevista com Silvia Lazarte,
uma das mais proeminentes lideranças daquele movimento e que viria a ser, anos
depois, presidente da Assembleia Constituinte convocada já sob a presidência de
Evo Morales. Após quase duas horas de conversa, nas quais ela discorreu sobre
temas variados, mas especialmente tratando sobre a conjuntura boliviana daque-
le momento e sobre quais eram as origens estruturais daquela condição, me vi
tentado a lhe perguntar sobre quais eram seus referenciais, quais as leituras que
guiavam aquela compreensão tão complexa e, ao mesmo tempo, incisiva. Ao que
ela me respondeu, com rosto sério e impassível: “nenhuma!”.
Hoje, quando recordo aquele episódio, posso entender aquele jovem que fez
uma pergunta que, sob meu olhar atual, era, no mínimo, ingênua. Ingenuidade
de alguma forma compreensível: vindo de um universo no qual se valorizavam
a erudição acadêmica, os saberes sacralizados pelas instituições autorizadas para
tanto, não era de todo surpreendente que se esperasse que aquelas pessoas que
estavam transformando radicalmente as relações políticas no país só estivessem
em condições de fazê-lo se embasadas nos cânones do saber político e social.
Essa passagem, ainda que obviamente insignificante sob qualquer ângulo em
que se possa analisá-la afora o estritamente pessoal, é, ainda assim, pertinentemente
ilustrativa daquilo que, hoje, compreendo como sendo a colonialidade (nesse caso
específico, a colonialidade do saber). Pois não estavam ali presentes a hierarquização
e a subordinação de saberes e práticas que tão longamente insistem em se manter
como padrão das relações nesse continente chamado América Latina?
A distinção entre colonialismo e colonialidade, conforme proposta por Qui-
jano (2000), é clara: findo o período da dominação colonial, a colonialidade per-
183 Analogia ao título da fundamental obra de Eder Sader (1988), Quando novos personagens entraram em cena.
Destaque-se, apenas, que o “novos”, nesse caso específico ao qual me refiro, não carece de ironia. Afinal,
mobilizações nascidas entre os povos originários marcaram presença constante, com maior ou menor inten-
sidade conforme o momento, ao longo de toda a trajetória boliviana.
184 Chapare é o nome pelo qual é conhecida a região tropical do departamento de Cochabamba, na Bolívia, na
qual ocorre o plantio da folha de coca e que foi alvo das políticas de erradicação durante o segundo governo
do general Hugo Banzer (1997-2001). O movimento cocalero reunia os camponeses plantadores da folha
de coca na defesa de seus plantios. A região, na verdade, compreende três províncias daquele departamento:
Chapare, Carrasco e Tiraque.
A descolonização do território
Quando, em 1990, movimentos pluriétnicos de Bolívia e Equador partiram
em marcha quase simultânea desde suas comunidades até as respectivas capitais
de ambos os países, unidos sob uma mesma consigna – “Marcha Indígena pelo
Território e pela Dignidade” –, estavam ali não apenas redesenhando o cenário
político local como, também, nos oferecendo uma refinada leitura de um dos
conceitos mais importantes para o saber geográfico: o território.
É sabido que essas manifestações, ocorridas contemporaneamente à perda
da centralidades das outrora poderosas centrais sindicais, representaram um
185 Contribuições nesse sentido são oferecidas por Maldonado-Torres (2007), que fala sobre a colonialidade
do ser, e Castro-Gómez (2007), sobre a colonialidade do saber.
componente essencial para a inversão da correlação de forças que até ali vigo-
rava naqueles países. No caso específico da Bolívia, o protagonismo assumido a
partir dali pelas comunidades originárias, tanto do oriente quando do ocidente
boliviano, foi o gerador de todo um processo de mobilizações que culminaria,
em dezembro de 2005, com a eleição de Evo Morales à Presidência, fato que, a
despeito das interpretações que se possam fazer hoje sobre seu governo – e sobre
os inegáveis equívocos e contradições em que incorre –, é de suma importância.
As demandas que tradicionalmente eram dirigidas aos distintos governantes do
país eram, ali, ampliadas para a inclusão desse tema de vital importância para os
distintos povos e nacionalidades indígenas cujos territórios se encontram dentro
dos marcos fronteiriços bolivianos: a autonomia territorial, cujo reconhecimento
deveria vir da convocação de uma Assembleia Constituinte que redigisse uma nova
carta magna para a Bolívia. A demanda, logo elaborada de forma a precisar seu
conteúdo, passou a afirmar a necessidade de “terra e território”. Não se falava, por-
tanto, do mero reconhecimento formal de uma extensão “x” de terras, numa locali-
zação “y”. Exigia-se, isso sim, o fato de que esse reconhecimento, ainda necessário,
deveria vir acompanhado do reconhecimento do direito daquelas comunidades ao
autogoverno; do direito a gerirem seus espaços de acordo aos seus usos e costumes;
do direito de decidirem autonomamente a melhor forma de produção e distri-
buição de recursos e a melhor forma de administração de seus conflitos. Enfim,
a possibilidade de exercerem nesses espaços as práticas sociais e culturais que os
caracterizam enquanto sociedades distintas da sociedade de matriz ocidental que
se quer hegemônica, e que caracteriza a Bolívia como um país multissocietal186.
Se pensarmos que a preocupação imediata que nos reúne, autores(as) e leito-
res(as) dos artigos aqui compilados, é buscar uma aproximação entre o que é a
descolonização, enquanto chave para a leitura dos processos sociais, e a Geografia
enquanto conjunto instituído de saberes, acredito que esses movimentos societais187
186 Tapia (2002) define o grau de diversidade encontrado em países como a Bolívia com sendo a “condição
multissocietal”, conceito com o qual demonstra que mais do que uma diversidade de línguas e de crenças
e tradições, há uma diversidade de formas de articulação das relações sociais, que produzem estruturas e
conjuntos institucionais distintos entre si que, concomitantemente, vão abrindo espaço ao surgimento de
outros tipos de conhecimento, valores, concepções de mundo. A articulação desses subconjuntos de rela-
ções forma sociedades distintas. Então, mais do que o multiculturalismo de corte liberal tão propagado nos
países centrais, estamos diante de um grau maior de diversidade que é o multissocietal.
187 Apropriamo-nos, aqui, da elaboração de Tapia e da sugestiva proposição de Raul Zibechi (em conferência
proferida durante a II Jornada Latino-americana, no dia 8/10/2014 na UFRGS) no sentido de que as fer-
ramentas para a análise e interpretação desses movimentos não podem ser, única e exclusivamente, aquelas
já propõem, desde ali, a solução para essa equação: é preciso pensarmos, mais do
que em uma Geografia, em geo-grafias (PORTO-GONÇALVES, 2002). Pois se
entendemos o ato de grafar a terra como diretamente relacionado à experiência dos
coletivos sociais na sua luta pela apropriação dos espaços para, assim, materializar
distintas formas de relação intra e intercomunitárias, e reconhecendo a diversidade
de matrizes de relações sociais que compõe o mosaico societal que caracteriza os pa-
íses surgidos do processo de dominação e conquista colonial, é obrigatório reconhe-
cermos a multiplicidade de territórios (HAESBAERT, 2008) como condição real-
mente existente dentro daquilo que se supunha um território estatal homogêneo.
Destaque-se que a demanda pela autonomia territorial, enunciada nas mar-
chas citadas anteriormente, veio a ser contemplada – ao menos formalmente –
com a aprovação da nova Constituição Política do Estado boliviano, em janeiro
de 2009. Ali podem-se ler artigos que afirmam o respeito a uma autonomia ter-
ritorial em sentido amplo, que envolve desde a possibilidade de ordenamentos
jurídico-políticos próprios às comunidades que optarem por tê-los, como um
efetivo controle sobre recursos naturais renováveis e não renováveis que estejam
localizados dentro dessas novas circunscrições territoriais188.
Porém, mais do que palavras escritas sobre um documento, são necessários
atos concretos para que, materializando esses princípios, o novo ordenamento
proposto torne-se efetivo. Infelizmente, o governo de Evo Morales acabou in-
correndo num mesmo perfil de equívocos em sua relação com os povos originá-
rios do país, dos quais, mencione-se, afirma ser representante legítimo. O caso
mais emblemático, tratado em profundidade por Porto-Gonçalves e Betancourt
(2013), é o do Território Indígena e Parque Nacional Isiboro Sécure (TIPNIS),
momento no qual a autonomia assegurada constitucionalmente se viu confronta-
da pela estratégia desenvolvimentista do governo Morales, com direito a episódios
de repressão que nos fizeram recordar os malfadados tempos em que as ditaduras
militares vigoravam neste continente.
Longe de querer aqui esgotar as análises e discussões sobre os motivos que le-
vam a um rompimento de tal envergadura entre o governo boliviano e as próprias
aplicadas ao estudo dos movimentos sociais tradicionais, surgidos em meio a um conjunto societal mais
homogêneo.
188 A Constituição Política do Estado boliviano, promulgada após aprovação em referendo popular em 7 de
fevereiro de 2009, encontra-se disponível no site da Vice-Presidência do país. Sugere-se a leitura dos artigos
2, 289 e 290. Fonte: http://www.silep.gob.bo/silep/constitucion
Descolonizar o desenvolvimento
O desenvolvimento parece ser a palavra da moda. É quase uma obsessão, oni-
presente nos discursos proferidos por órgãos públicos estatais, por instituições
privadas, por organismos multilaterais ou mesmo no senso comum. É o objetivo
sempre buscado, a justificativa para os mais diversos tipos de empreendimento.
Da geração de energia à ampliação da infraestrutura de transportes, da instau-
ração de megaprojetos de mineração à expansão do agronegócio, variadas são as
iniciativas que trazem consigo o desenvolvimento como objetivo. Embasados sob
essa justificativa, esses diversos projetos buscam atingir uma condição de consen-
so ou de incontestabilidade. Afinal, quem não quer ser desenvolvido?
Desde o momento em que fomos convencidos de que nossas carências e/ou
deficiências estruturais significavam que éramos subdesenvolvidos189, o desenvol-
vimento passou a se configurar naquilo que Garretón (2011) define como “con-
ceito-limite”: conceitos normativos, que dão sentido e organização ao conjunto
de conhecimentos e às práticas profissionais, políticas e econômicas. São “limites”
porque não se propõem metas que possam ir além deles. São igualmente “limites”
porque efetivamente impedem a adoção de estratégias que fujam das ações ado-
tadas nos lugares e tempos nos quais tais conceitos foram originalmente formula-
dos. E são, por fim, “limites”, pois não permitem o questionamento e a adaptação
desses conceitos às realidades distintas sobre as quais se aplicam.
Entender o desenvolvimento como um conceito-limite nos ajuda a compre-
ender por que é adotado como meta pelos governos da região, independente de a
qual afiliação política pertençam. As formas de atingi-lo sofrem poucas distinções
189 Para uma discussão sobre a origem da noção de “subdesenvolvimento”, ver Esteva (2009).
entre governos dos quais se esperaria diferenças mais contundentes no que diz
respeito às maneiras como conduzem as políticas econômicas de seus respectivos
países190. Sendo mais direto e objetivo: aquilo que pareceu ser uma “guinada à
esquerda” no subcontinente sul-americano, com as eleições (e reeleições) de lide-
ranças vinculadas a partidos de (centro-)esquerda, representou o reforço e/ou a re-
ciclagem de determinadas formas de práticas exploratórias que, ao fim e ao cabo,
apenas demarcam a continuidade de políticas de cunho colonial191. A busca pelo
tão almejado desenvolvimento, remédio para todas as mazelas dessas terras, se viu
atrelada a uma intensificação dos processos de exploração de recursos naturais
(extrativismo), em suposto aproveitamento daquilo que seriam nossas potenciali-
dades mais óbvias de inserção no mercado global. “Mau desenvolvimento”, como
afirmam Svampa e Viale (2014) no feliz título de um estudo pormenorizado so-
bre como esse processo se dá em sua Argentina natal. Passou-se, segundo esses
autores, do “Consenso de Washington” ao “Consenso das Commodities”.
Beneficiados por um cenário internacional no qual os valores dos produtos
primários alcançaram máximos históricos, e auxiliados pela demanda por esses
recursos oriunda dos países asiáticos, os governos de (centro-)esquerda impul-
sionaram a atividade dos setores extrativistas-exportadores, ainda que tentando,
como bem detalha Gudynas (2009), manter paralelamente políticas de cunho
social, amparadas nos recursos advindos de um novo perfil de participação estatal
naqueles empreendimentos192.
A despeito da importância das políticas sociais desses governos, das quais o
Bolsa-Família é um exemplo significativo dadas a proximidade e a relevância que
alcançou e, igualmente, o volume de críticas de que foi alvo, o que nos cabe
destacar é que nenhuma política social provocará transformações consistentes e
duradouras se não se ataca, no mesmo processo, as mesmas estruturas que cria-
ram as desigualdades que essas políticas buscam agora sanar. Sabemos que, como
característica comum, as atividades de cunho extrativo, por mais que possam
aportar ao Produto Interno Bruto dos países nos quais são realizadas, não têm um
191 Outra contribuição importante na análise desse tema, além da já sugerida de Gudynas (2010) nos é ofere-
cida por Dávalos (2011).
192 O relatório da CEPAL (2013a) sobre recursos naturais mostra que, mesmo com a queda registrada nos
valores desses recursos após a crise mundial do ano 2008, seus preços continuaram mantendo recordes
históricos em relação aos praticados antes de 2002.
193 Uma interessante análise de caso sobre México, Colômbia e Peru é oferecida pela CEPAL (2013b).
194 “Externalidade” é o termo do léxico econômico que designa os efeitos colaterais, sobre terceiros, de uma
determinada ação. É colocado aqui entre aspas de forma a destacar a absoluta ironia que o termo carrega,
como se os impactos socioambientais gerados por essas atividades não estivessem diretamente relacionados
às atividades aqui mencionadas.
195 Um exemplo são as Assembleas Ciudadanas, na Argentina, analisadas por Cerruti e Silva (2014).
196 Para um maior detalhamento da iniciativa IIRSA, ver Ceceña, Aguilar e Motto (2007).
Vê-se que, assim como nos tempos coloniais, as principais vítimas desse tipo
de empreendimento são os povos originários, quilombolas e povos tradicionais
que, ao terem sua existência ameaçada de forma ainda mais agressiva do que
naqueles tempos, privam também a nós, os que não somos oriundos de nenhum
desses grupos, da possibilidade de aprendizado a partir de suas experiências.
Aprendizado esse que é vital para a criação de um novo imaginário político-social.
197 Inevitável vir à memória o caso recente de um candidato (eleito) a senador no estado do Rio Grande do
Sul, que em ato de campanha perguntava “quantos índios no Brasil e particularmente no Rio Grande do Sul
deixaram de ser índios e são hoje profissionais respeitados e qualificados? Tem que combater a miséria em
que vivem os índios”. Fica evidente o quanto a condição indígena ainda é estigmatizada, e que para o senso
comum o combate às condições evidentemente precárias em que vive boa parte da população indígena no
País só se dará quando “deixarem de ser índios”. Mais detalhes em: http://www.radioguaiba.com.br/noticia/
indios-criticam-posicionamento-de-pre-candidato-do-pdt-ao-senado/.
vos do mundo”, enumerando, por vezes, toda uma gama de grupos socialmente
excluídos, estigmatizados, colonizados. Falava aos povos originários, mas também
se dirigia às populações negras, às mulheres, a professores(as), estudantes, a punks,
a gays e transgêneros, entre tantos outros grupos.
Forma sutil de nos recordar que a colonialidade tem classe, tem cor, tem gê-
nero, e que a combater implica recriarmos muitas das formas de relação nas quais
estamos inseridos. A descolonização é, portanto, tarefa imprescindível a todas e
todos nós que acreditamos em outro mundo possível.
Referências
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zapatistas.
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CECEÑA, Ana Esther; AGUILAR, Paula; MOTTO, Carlos. Territorialidad de
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tream/handle/11362/5369/LCL3706_es.pdf>. Acesso em: 4/2/2014.
CERRUTI, Débora Andrea; SILVA, Maria Pía. Criminalización de la protesta y
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as Ciudadanas. In: Revista Contrapunto. Universidad de la República, Uruguay.
N°2. Junho, 2013. Reedição: agosto/2014.
Eduardo Barcelos
juntos, e a Índia é três vezes maior que a Escandinávia. O modelo cartográfico que
apreendemos na escola, Galeano alerta, nos fez observar para não ver absolutamente
nada. O mundo, tal qual ele é, não é exatamente o mundo tal qual nos fazem ver, já
dizia Milton Santos, e muito menos o mundo tal qual queremos ver ou o mundo tal
qual queremos ser. Há uma força imagética, um simulacro do mundo, que ofusca,
que borra o olhar, tudo feito exclusivamente para atender as aparências.
É no tempo dos camaleões, parafraseando Galeano, da imagética colonial destes
mapas retorcidos, onde estes mundos são produzidos; e com eles produziram-se
as suas gentes. Assim, junto aos mundos divididos e deformados, gente dividida e
deformada. gente de terceira, gente pobre, gente atrasada, gentes como a natureza,
gente feia e primitiva, gente com cor e cheiro, gente perigosa e bestial, gente subde-
senvolvida. A clivagem moderna do mundo foi uma divisão classificatória. Criou-se
a ideia do “Outro”, uma invenção do pensamento social moderno, diria Santiago
Castro-Gómez (2005). O “Outro é tudo aquilo que não somos”, diria o europeu.
Mas Galeano (o Outro) diria “somos bem mais do que sabemos que somos”.
A partir da América, desde o século XVI, o eurocentrismo irá se impor mun-
dialmente como domínio da razão e da consciência, iluminada, ilustrada, de gente
erudita, tornando os homens livres e iguais pela razão: o essencial é a igualdade de
todos pela razão. A razão é o piso básico que distingue os homens livres e pensan-
tes das “desigualdades acidentais” (ZEA, 2005). Mas, e os povos conquistados? E
essa gente, o que são? São gentes primitivas, pois são povos sem experiência, sem
história com o uso da razão. São selvagens como a fauna e a flora. O povo primi-
tivo é um ideal de sociedade que tem que começar do zero, esquecer seu passado
e se submeter ao domínio da razão. Assim, os povos conquistados, povos ligados
à tradição, são “acidentais”, são povos imersos em corpos que não permitem a
razão ser tão eficaz. “A etnia é acidental, mas é esta etnia que pode impedir o bom
uso da razão”, falavam os primeiros antropólogos (Idem, ibidem). Os povos são
diferentes: são superiores ou inferiores, estão à frente ou atrasados, são brancos ou
negros, estão no domínio da cultura ou no da natureza.
Esta visão dicotômica de organizar o pensamento social moderno-colonial
(Mignolo) foi se tornando o mais eficaz mecanismo de divisão mundial e se
impôs no mundo colonial por meio da ideia de raça (QUIJANO, 2005). A
formação de relações sociais fundadas nesta ideia produziu um feito inédito: a
construção da diferença, da superioridade e da pureza de sangue da raça branca
(cristã, masculina, científica, urbana) a partir do século XVI, especialmente pela
200 O que o conceito de colonialidade do poder traz de novo, pensando nas estruturas de dominação de longa
duração (Wallerstein, Braudel) é a leitura da raça e do racismo como “o princípio organizador que estrutura
todas as múltiplas hierarquias do sistema-mundo” (GROSFOGUEL, 2008, p. 123). A modernidade só tem
sentido com o seu outro, a colonialidade: este poder espectral, racista, étnico e sexista que dividiu/diferen-
ciou a Europa de seu outro, a América, a colonizou. O fundamento da modernidade/colonialidade está no
descobrimento e na invenção da América. E se a raça/etnia é um conceito da modernidade, é porque elas
nascem com a América.
202 O desenvolvimento, diria Escobar (1995), é uma jogada colonialista que recoloca o problema das divisões.
É aquele regime de representação/discurso/instituições que relocaliza o sujeito colonial nos mundos divi-
didos. O Terceiro Mundo trouxe uma nova separação/classificação mundial: o sujeito terceiro-mundista; e
assim como a raça/etnia/gênero, dividiram o mundo colonial, a pobreza será a nova categoria/dispositivo de
poder classificatório que irá dividir o mundo contemporâneo depois da Segunda Guerra Mundial (Idem).
como aquele camaleão de Galeano, que ofusca, troca de cor nas circunstâncias,
rende-se à cultura do disfarce, fala uma dupla linguagem, uma para dizer e outra
para fazer. É aquele discurso universal, que segue uma linha evolutiva e convida o
outro para desenhá-la. É aquela ideologia que traz as noções de progresso, cresci-
mento, planejamento, negociação, ajuda humanitária, cooperação internacional,
noções bem sedutoras e facilmente encontradas nos dias de hoje. “Precisamos de
políticas de desenvolvimento sérias para retomar nosso crescimento econômico!”.
“Nosso desenvolvimento deve ser integrado e participativo!”. “Sem planejamen-
to, não há eficiência!”. “Devemos olhar para frente e ampliar nossas exportações!
Nossas negociações serão multilaterais!”. “É preciso injetar crédito na economia e
aumentar o poder de compra!” – falam os governos.
Não é de se estranhar, por outro lado que tudo isso na verdade esteja/está em
crise. Afinal, Eduardo Galeano já nos instigava, desde a década de 1970: “O sub-
desenvolvimento é uma etapa no caminho do desenvolvimento, ou é consequên-
cia do desenvolvimento alheio”? E deste modo, desenvolvimento para quem? À
custa de quê? Estas são expressões que nos convidam a olhar o desenvolvimento
por outros pontos de vista, questionar suas teses, sua pretensão universalista, ou
seja, tem a ver com a mirada (lugar) e com a experiência do sujeito no mundo.
A teoria da dependência, por exemplo, foi importante para mostrar as desigual-
dades estruturais na relação centro-periferia e revelou o caráter assimétrico do
subdesenvolvimento e sua lógica adaptativa subordinada às economias centrais
capitalistas. Sob a hegemonia deste viés econômico-estrutural estaríamos sempre
condenados ao subdesenvolvimento. Já a teoria descolonial abre uma escuta para
a experiência colonial e desvenda a partir de outros lugares de ação/enunciação,
silêncios, brechas, narrativas, interpretações, estruturas, estigmas, hierarquias e
lutas epistêmicas, políticas, étnicas que ampliam a compreensão dos processos de
dominação e dependência, para além da economia, iluminando alternativas ao
desenvolvimento. Ambas as teorias, com suas potências próprias, jogam luz para
as relações de dominação/dependência, em sentido macroestrutural, mas também
no sentido da experiência subjetiva/sensorial com a qual temos com o mundo,
ou seja, ambas mostram, de uma forma ou de outra, “o preço que se paga pelo
progresso”. Preço este, inclusive, que tem cor, classe e lugar próprios, é distribuído
de forma desigual e nem sempre beneficia a todos.
Hoje, são os povos e comunidades tradicionais, quilombolas, indígenas, popu-
lações camponesas, ribeirinhas e minorias urbanas, enfim grupos subalternos, os
que experimentam este preço salgado e amargo do desenvolvimento, em sua versão
mais profunda e dramática, nos limites da vida, nas fronteiras, nos confins do hu-
mano (MARTINS, 2014), naquelas situações em que o outro é forçado ao conflito
e se degrada pela sua condição subalterna, onde ele não tem nome, nem endereço,
é chamado de atingido, tem preço predeterminado, é quantificável e objeto das
políticas de compensação/mitigação de impacto. São estes sujeitos que recolocam,
hoje, no plano político, o esgotamento/crise do modelo de desenvolvimento como
caminho único. São estes os que provocam/enunciam uma crítica radical ao desen-
volvimento. Até porque são estes que continuamente vêm sendo os primeiros ex-
propriados por grandes barragens, monoculturas, siderúrgicas, estradas, corredores
logísticos, portos, enfim, obras do desenvolvimento, e os primeiros também a recu-
sarem estas ideias fáceis do imaginário desenvolvimentista, como progresso, eco-
nomia, justiça, sustentabilidade, avaliação de impactos, cidadania, controle social.
São estes os primeiros a expor/sentir os simulacros dos consensos presumivelmente
objetivistas/universais da técnica, do mercado e da ciência. São estes que vêm mos-
trando os limites insolúveis, borrados e pesados, que a supressão dos conflitos é algo
impossível, que seus contrastes, tensões e possibilidades se revelam nas “lutas pela
descolonização do saber, do poder e do território”, que as sociedades, quanto mais
divididas, mais policiadas são (Pierre Clastres), enfim, estes sujeitos ampliam e tor-
nam obrigatória uma mudança nas formas de pensar, de interpretar, de agir e narrar
o/no mundo, ou seja, nos provocam a pensar os vários giros de que necessitamos.
Os chamados projetos de desenvolvimento para estas comunidades/povos/clas-
ses sociais subalternas é o novo eixo de organização das hierarquias/redes/arti-
culações de poder, dos racismos e desigualdades sociais, étnicas e econômicas.
Eles impõem o lugar dos subalternos no mundo e, quando encontra obstáculo/
resistência, tornam o conflito seu elemento mais radical. Usam a violência física,
simbólica, epistêmica como práxis inevitável para destruir os obstáculos dessa mo-
dernização, uma espécie de “guerra justa” como um ato irredutível, um constran-
gimento inexorável, já que o desenvolvimento é para o bem geral da população.
Assim, matar, morrer e resistir faz parte do jogo.
Referências
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ma da “invenção do outro”. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do
saber: eurocentrismo e ciências sociais, perspectivas latino-americanas. Buenos
Aires: CLACSO, 2005.
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ción del desarrollo. Bogotá-Colômbia: Editora Norma, 1995.
GROSFOGUEL, Ramon. Descolonizando los paradigmas de la economía-política:
transmodernidad, pensamiento fronterizo y colonialidad global. Berkeley: Uni-
versidade da Califórnia, 2008.
LANDER, Edgardo (Comp.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências
sociais, perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO/Unesco, 2005.
203 Núcleo de Estudos Sobre Território, Ações Coletivas e Justiça – NETAJ coordenado pelo professor Dr.
Valter do Carmo Cruz do Programa de Pós-Graduação de Geografia da UFF.
204 Núcleo de Estudo e Pesquisa em Geografia Regional da África e da Diáspora coordenado pelo prof. Dr.
Denilson Araújo de Oliveira da FFP/UERJ.
campo do indigenismo nacional, que o “poder” que emana dessas relações não
significa a corporificação do conjunto de instituições e aparelhos garantidores da
sujeição dos cidadãos em um Estado determinado, nem como modo de sujeição
que, por oposição à violência, tenha a forma da regra, assim como não se deve
entender como um sistema geral de dominação exercida por um elemento ou
grupo sobre outro, estas perspectivas são, na verdade, formas terminais do poder
(FOUCAULT, 1988).
O poder, a que se refere a análise em voga, está inscrito na linguagem norma-
tiva expressa na e pela correlação de forças que os nominalistas denominam de
indigenismo. Este é constituído de um conjunto de intenções e diretrizes forma-
tado em campos distintos de poder da sociedade hegemônica e que, por sua vez,
operam no território nacional, carregando consigo as suas formas do poder de ori-
gem, assim denominadas de indigenismo governamental, empresarial, missioná-
rio e ambiental. Estes discutiremos, mais à frente, com mais detalhes. Ainda sobre
o poder, Foucault (1988) ressalta que este termo deve ser compreendido como:
Outro aspecto que deve ser elucidado nesse processo de reflexão metodológi-
ca, antes de submeter a análise os agentes hegemônicos, é a construção do termo
“índio” enquanto categoria política no Brasil. Elaborada no espaço-tempo dis-
tinto, contudo articulado por um conjunto de redes de orientações ideológicas
hegemônicas que obedeceu a um fluxo de políticas econômicas e ambientalistas
interligadas dialeticamente pela escala do local-global-local.
A categoria política “índio”, consagrada até a metade do século passado como
uma insólita unidade da colonialidade ocidental, passa então a constituir um
novo instrumento de disputa política por deter um poder simbólico e capital.
Essa importância parte do reconhecimento de seus direitos consuetudinários e
205 O Guevarismo, denominação dada às concepções e ideologias políticas, influenciadas pela teoria marxista,
que foram construídas por Che Guevara durante suas ações de militância revolucionária.
Pela ótica da Genealogia, Foucault (2012) afirma que o pesquisador “deve ter
a acuidade de um olhar que distingue, reparte, dispersa, deixa operar as separa-
ções e as margens”, e, mais adiante, Foucault assevera que o saber histórico ou
História “efetiva” se difere da História do historiador por não se prender a uma
constância, não ter dificuldades em colocá-los em pedaços – em mostrar seus
avatares, demarcar seus momentos de forças e de fraquezas, assim ele certifica que:
Para saber o que as pessoas fazem, é preciso supor que elas obedecem a uma
espécie de “sentido do jogo”, como se diz em esporte, e, para compreender suas
práticas, é preciso reconstruir o capital de esquemas informacionais que lhes
permite produzir pensamentos e práticas sensatas e regradas sem a intenção de
Melucci (2001, p. 30) reforça que “a ação coletiva dos movimentos remete
sempre algo de si a outro, porque, em sentido próprio, não existe”, caso contrário,
utilizando como exemplo a questão indígena, seria um tipo de indigenismo que
tem, por atribuição, doutrinas ou políticas de ações pensadas por agentes externos
ou estranhos a outros. Nesse sentido, o jogo tem no campo político dos indígenas
um conteúdo que é regrado pelo pensamento hegemônico ocidental, e, como
efeito, o seu espírito é representado no indigenismo oficial.
A observação de Melucci (2001) provoca, portanto, o questionamento: quem,
então, pensou (pensa) o indigenismo oficial para os índios no Brasil? Como e por
que é na forma que é? Pressupõe-se que, pelo conjunto de acontecimentos que
marcaram as mudanças econômicas e políticas ocorridas no plano global com
reflexos locais, foi alterada definitivamente a forma de tratamento dispensada aos
índios pelo indigenismo oficial.
indígenas, como relata o padre Dom Pedro Casaldáliga a Oliveira (1987) sobre o
projeto Suiá-Missu numa parte do Araguaia mato-grossense:
Após muitos encontros com os indígenas, presentes foram oferecidos para acal-
má-los. Posteriormente, a cada dia era oferecido um boi para os indígenas. Mas
isso estava ficando caro para a Suiá-Missu. Resolveu-se, então, transferi-los.
“Os Xavantes foram transportados em avião da FAB (Força Aérea Brasileira),
em número de 263, tendo morrido boa parte deles em poucos dias depois
de chegados a São Marcos, vitimados por uma epidemia de sarampo.” (Dom
Pedro Casaldáliga, 1987)206
207 O Clube de Roma foi uma organização fundada pelo industrial italiano e presidente do Comitê Econô-
mico da OTAN, Aurelio Peccei, em cerimônia na propriedade da família Rockfeller em Bellagio, Itália.
Aurélio Peccei era um consultor administrativo italiano (foi executivo da FIAT e da Olivetti) que esboçou
suas ideias ambientalistas na obra The Chasm Ahead, publicada em 1969. Fonte: OLIVEIRA, 2012.
Quadro 1: Acontecimentos rela vos a colonialidade do indigenismo Oficial, Indig. Empresarial, Indig. Ambientalista e do
Indig. Missionário na interface da gênese dos movimentos indígenas no Brasil, a par r do século XX.
Plano Pastoral
é criado é criado a de Conjunto é
no Brasil a CNBB aprovado pelo II Conf. Geral do é criado o Eleito 1º
Encontro
CIMI
Indigenismo ACB
CNBB Episcopado União das Deputado.
Nações Federal
dos 500
anos
Lat.Am. em Indígenas - Indígena
Missionário Carta Encíclica
Medellín
1ª Ass. dos
Povos UNI Mário Nasce a
COIAB
Cabrália/BA
Indígenas Jurunas
sobre a Paz Teologia da
dos Povos do Libertação
João P XXIII é criado a
R. Alves c/ o livro
«Da Libertação»
CPT
é criado a Conf. da
é criado o Lei de ONU_Homem
Código PNUMA:
Indigenismo
Conf. da ONU
proteção e M. Amb. /
Florestal Estocolmo Relatório de "Brudtland" RIO 92
da fauna
do Brasil
Ambiental "Nosso Futuro comum»
intensifica o nº de convenções Marcha e a
é criado o CR: Relatório internacionais em prol do Conferência
Clube de «Limites do discurso ambiental dos Povos e
Roma-CR Cresc.» Organizações
Rel. Meadows Indígenas
Fonte: Pesquisas preliminares no âmbito do doutoramento do autor, 2014. / Organização: M. V. da Costa Lima.
Movimento Indígena
Agentes
hegemôni- Objeto de interesse tangencial: Território
cos
Divergente Convergente Complementares
- Operam suas atividades - Reconhecem os direitos in- - Pautam suas lutas terri-
governamentais, deixando dígenas: a assistência social toriais nas leis voltadas à
instáveis os direitos inalie- (educação, saúde, previdência, categoria indígena (aparato
náveis dos territórios indí- segurança) mesmo no proces- judiciário).
genas. so que antecede a homologa-
- Violação de direitos a con- ção da TI. - Atraem programas de apoio
sulta prévia em prol de em- – TI “Protegida” pela Polícia e gestão da TI com financia-
ESTADO
tradicionais que respeitem guardião ou sentinela das flo- uso dos recursos naturais nos
as regras “ambientalistas”. restas (em unidades adminis- seus territórios.
- Estabelecem normas para trativas territoriais) Agregam valor ambiental
os marcos jurídicos (con- - Recebem apoio técnico e aos bens imateriais e terri-
venções) que regulamentam financeiro para a gestão am- toriais.
o uso dos recursos ambien- biental e territorial. - Fortalecem politicamente
tais às margens das práticas os direitos consuetudinários
locais. indígena pela categoria am-
biental.
Concluindo
Ao se analisar as práticas territoriais na busca de um possível indigenismo
alternativo, deve-se, contudo, submetê-las a uma intensa reflexão pelos próprios
movimentos indígenas, introduzindo preceitos, essencialmente etnopolíticos, que
garantam aos seus grupos identitários a efetivação plena do ser cidadão indígena.
Romper com os imperativos das regras do jogo hegemônico significa reela-
borar bases teóricas que submetam a agenda das políticas indigenistas aos pensa-
mentos epistemológicos dos povos subalternizados, a partir de um aporte teórico
da decolonialidade, que está sendo acentuada, principalmente pelos intelectuais
A. Quijano, W. Mignolo, I. Wallerstein, S. Castro-Gómez, R. Grosfoguel, E.
Lander, A. Escobar, N. Maldonado-Torres e C. Walsh. A conjugação da decolo-
nialidade com a cosmovisão dos povos do “sul” deve ser apropriada pelos movi-
mentos sociais indígenas, como parte de uma estratégia macropolítica, de caráter
endógeno, holístico e epistêmico, para encabeçar o seu processo de territorializa-
ção polinômico: étnico-territorial-local-global.
Referências
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COLBY, G.; DENNETT, C. Seja feita a vossa vontade – a conquista da Amazô-
nia: Nelson Rockefeller e o evangelismo na idade do petróleo. Rio de Janeiro:
Record, 1998.
Introdução
A Amazônia constitui um espaço de exuberantes imagens e representações,
por vezes grandiosas e eloquentes. A fauna e a flora imagética e de representações
da Amazônia apresentam uma diversidade ainda não catalogada ou inventariada.
Com efeito, são muitas as suas espécies e complexas as suas evoluções, mutações
e simbioses. Essa Amazônia imaginária não é tão somente um vasto compósito
de visões ou perspectivas, conjunto de imagens e ideias produzidas sobre e a partir
da Amazônia. Mas diz respeito à constituição do imaginário social amazônico,
constituem as “significações sociais imaginárias” (CASTORIADIS, 1982) que se
foram criando e acumulando, tecendo e entrelaçando-se no decorrer do processo
histórico de constituição do espaço geográfico amazônico.
Entre outros, dois grandes fluxos de representações, atualmente, convergem e
se sobrepõem, se cruzam e se confrontam em várias formas de discursos: um que
carrega as muitas águas de imagens de uma Natureza monumental e mítica, dos
povos indígenas e dos caboclos exóticos; e outro, que corre em imagens esplendo-
rosas da modernização galopante e das mazelas assombrosas do “progresso”. Mas,
de fato, estas duas correntes de produção de imagens e representações são apenas a
superfície do profundo, caudaloso e turbulento leito do magma das significações
imaginárias, apenas dois extremos de um regime de representação (HALL, 1997;
209 Texto baseado na Dissertação de Mestrado (2008): As representações espaciais no ensaísmo brasileiro de expres-
são amazônica.
(ESTAMIRA, 2007)
210 Há outras leituras sobre a construção de imagens e representações da Amazônia que não se encaixam
necessariamente nessas modalidades de abordagens, com a de Porto-Gonçalves (2001), Souza (2001) e de
Dutra (2005), a partir dos quais construímos em parte a noção de imaginário amazônico aqui proposta.
graficamente como região, seja como um conceito de base – para uma cultural
regional, uma identidade regional, uma geografia regional etc. –, seja como uma
base territorial – da qual se descolam e deslocam as imagens e representações –,
seja, a priori, como uma escala discursiva – que se produz através de imagens
e representações. Aceita-se como não problemática a ideia de que a Amazônia
constitui uma “região”, discutindo-se, apenas, como pode ser melhor definida ou
compreendida. O trabalho de Silva (2004) demonstra como historicamente se
constituiu o “imaginário da região” em conformação e contraposição ao “imagi-
nário da nação”, ou seja, como a Amazônia enquanto uma região é uma invenção
geopolítica datada da construção da nação e nacionalidade brasileira.
Nessa tentativa de abordar, analisar, interpretar e definir o imaginário ama-
zônico há algumas recorrências ou reiterações discursivas. As imagens e repre-
sentações da Amazônia são apresentadas como sinônimos, inclusive como si-
nônimo de imaginário. Em geral são indistinguíveis, e aparecem como imagem
de ou representação de, ou seja, dá-se a entender que a Amazônia é um dado
concreto, realidade anterior e exterior às imagens e representações que são exte-
rior e posteriormente construídas sobre esta. Há, nesse sentido, uma distinção e
contraposição entre imagens produzidas sobre a Amazônia (de fora) e imagens
produzidas da ou a partir da Amazônia (de dentro) (PIZARRO, 2012; POR-
TO-GONÇALVES, 2001), às vezes de forma dicotômica. Como para Bueno
(2002, p. 2), com base no esquema do endógeno e do exógeno utilizado por
Becker (2004): “Existem dois principais níveis de construção da representa-
ção sobre a Amazônia, o exógeno, estruturado pelos discursos estruturados
externamente, e o endógeno, elaborado pelos protagonistas que vivem na re-
gião”. Pizarro (2012, p. 31) inclusive coloca isso como uma característica da
“região”: “A Amazônia é uma região cujo traço mais geral é o de ter sido cons-
truída por um pensamento externo a ela”.
Assim, as imagens e representações de “fora” formariam, em geral, um discur-
so ideológico, baseado em preconceitos e estereótipos e as imagens e representa-
ções de “dentro” expressariam as perspectivas de sujeitos “locais” ou “regionais”
diversos, a partir de suas vivências amazônicas. Outra ideia bastante difundida é
da Amazônia como espaço de diversidade, heterogeneidade, pluralidade ou mul-
tiplicidade em todos os aspectos: ecológicos, sociais, culturais, étnicos, discursivos
etc. O que nos levaria a considerar a Amazônia não como uma unidade uniforme
ou homogênea, mas como uma multiplicidade. Haveria, assim, várias Amazônias
com essa abordagem explicita-se uma relação entre o poder e o espaço que se
expressa em termos de imaginário. A construção simbólica da imagem (ou das
imagens) que nos define está marcada por relações geopolíticas.
O predomínio e a recorrência às imagens forjadas pelo “olhar moderno-colo-
nial” sobre a Amazônia (CRUZ, 2006) não significa que a constituição do imagi-
nário se dá numa via de mão única e nem que simplesmente se reproduzam histo-
ricamente os mesmos significados construídos pelos discursos dos colonizadores.
Cruz (2006) define vários modos de representação das populações denomina-
das “tradicionais” da Amazônia, representações geográficas, a partir da metáfora do
olhar. Diferentes “olhares” sobre essas populações e a própria Amazônia vão de um
extremo ao outro: da construção do estereótipo que conduz a um processo de estig-
matização cultural – ou mesmo à invisibilidade de tais populações, lugares e conhe-
cimentos – à idealização romântica e idílica do chamado “caboclo amazônida”, ide-
alização também da Natureza, do indígena, da cultura e das práticas socioespaciais.
Cruz (2006; 2011) enumera três modos dominantes de representar a diferença
sociocultural das populações amazônicas: o olhar naturalista, o olhar romântico/
tradicionalista e o olhar moderno-colonial. E também identifica a emergência de
um “olhar da subalternidade” (na verdade, “olhares” da subalternidade). No nosso
entender, tanto o olhar naturalista como o romântico/tradicionalista são variações e
reiterações das significações imaginárias moderno-coloniais que vêm se desdobrando
desde a conquista e constituem o que estamos denominando de regime de repre-
sentação moderno-colonial da Amazônia. E os diferentes olhares da subalternidade
constituem o imaginário descolonial subalterno da Amazônia, constituem a emer-
gência de um regime de representação espacial descolonial da Amazônia.
Esses “olhares” da Amazônia – e o próprio termo olhar é significativo do sistema
de representação que os preside, em que predomina realmente o olhar, a visão, a
visualidade, o que Mignolo (2005b) denomina de “epistemologia de promontório”
–, ou sobre a diferença colonial espaçotemporal amazônica, principalmente os cons-
titutivos do sistema de representação do imaginário moderno-colonial mobilizam
e realizam-se através das cinco lógicas de produção de não existência, definidas por
Sousa Santos (2002; 2006), da alteridade geo-histórica e sociocultural amazônica.
A primeira diz respeito à monocultura do saber, que reduz a diferença socioes-
pacial amazônica à ignorância ou à incultura, pelos critérios únicos de verdade e
qualidade estética definidos pela ciência e pela alta cultura moderna eurocêntrica
(SOUSA SANTOS, 2002, p. 12), incluindo aí também o papel de legitimação da
Por isso, os povos desse espaço vazio são considerados “selvagens” (da selva)
ou “povos da floresta”, categorias homogeneizadoras que dissolvem ou traduzem
a diferença social na diversidade natural (DUTRA, 2005). Podemos dizer que
o olhar naturalista lê os homens e as diferenças socioculturais pelo espaço, pela
naturalização do espaço-tempo amazônico. Esses olhares, portanto, revelam uma
relação entre localizações epistemológicas (as representações espaciais, no caso) e
localizações geográficas, o lócus de enunciação (MIGNOLO, 2005b).
Porto-Gonçalves (2001, p. 12), ao se referir às imagens amazônicas, observa
que são as imagens sobre a região que prevalecem e não da região, ou seja, ima-
gens produzidas de “fora”, externamente, que se tornaram as hegemônicas, e as
de dentro, dos próprios amazônidas, principalmente os sujeitos subalternos, fo-
ram e são muitas vezes silenciadas, apagadas ou subjugadas, mesmo nas ciências
sociais. Porém, é preciso reconhecer que as significações não se fixam, os signifi-
cados estão sempre sendo disputados (HALL, 2003). Ainda que nesse processo
de construção de imagens significados sejam instituídos ou fixados, não o são de
uma vez por todas, pois essas imagens dizem respeito às significações que não se
prendem a um jogo unilateral de produção de imagens de dentro e de fora. Mas
Porto-Gonçalves (2001) não compreende esses lugares da fala (produção de ima-
211 Foucault (2001, p. 13) reconhece que há um combate “pela verdade” ou, ao menos, “em torno da verda-
de”, ou seja, da hegemonia da definição válida, legítima, é nesse sentido que podemos falar de regime de
representação (HALL, 1997, 2003; SILVA, 2003) como um “regime de verdade”, que estabelece o conjunto
das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos
de poder (FOUCAULT, 2001).
[...] a visão inaugural da Amazônia inventada pelos cronistas viajantes vai fun-
damentar, enquanto matéria-prima, as deduções teóricas e, inversamente, estas
servem de estofo aos sucessores, cujo estoque de informações impede e/ou
inibe a apreensão da variedade, da multiplicidade, da diferença, em suma, cai
na cegueira da confirmação de verdades científicas (GONDIM, 1994, p. 10).
[...] o imaginário de que falo não é apenas constituído no e pelo discurso co-
lonial, incluídas suas diferenças internas [...], mas é constituído também pelas
respostas (ou em certos momentos a falta delas) das comunidades (impérios,
religiões, civilizações) que o imaginário ocidental envolveu em sua própria au-
todescrição (MIGNOLO, 2005, p. 89).
212 Segundo a distinção de Castoriadis (1982, p. 161), entre o imaginário como derivado, ou efetivo, e o
imaginário central ou radical de uma sociedade.
213 Segundo Bhabha (1998, p. 105-106), a força da ideologia está na fixação do significado, a do estereótipo
está na ambivalência e na repetição.
Mas, esse tipo de imagem produzida pelo estereótipo e pela ideologia é uma
forma secundária de imaginário. Afastemo-nos dessa forma reduzida e redutora
de conceber o imaginário como oposto ao real, como figuração que visa resol-
ver em termos imaginários problemas, contradições e conflitos reais. Em relação
à Amazônia, não designando o imaginário como simplesmente as formas pelas
quais os problemas e conflitos “reais” da região se apresentam como imagens fan-
tasiosas ou fictícias. Ao falarmos de “imaginário amazônico” estamos nos refe-
rindo ao imaginário central do mundo colonial-moderno, no horizonte do qual
se produz e se define o imaginário amazônico, ou as significações imaginárias da
Amazônia. As imagens do imaginário em relação à Amazônia envolvem, primeira
e fundamentalmente, a criação imaginária de significados, os quais não podemos
restringir ao fictício e fantasioso, ou à verdade e à falsidade sobre a região.
214 As lutas das representações constituem e apresentam-se como: “[...] lutas das classificações, lutas pelo mo-
nopólio de fazer ver e fazer crer, de dar a conhecer e de fazer reconhecer, de impor a definição legítima das
divisões do mundo social e, por este meio, de fazer e de desfazer os grupos” (BOURDIEU, 2003, p. 113).
215 A Amazônia como região passa a ser um lócus de enunciação e um dispositivo de poder/saber privilegiado
das novas formas de discursivas utilizadas por esses sujeitos.
216 A esse respeito escreve Porto-Gonçalves (2005, p. 10), que nos sugeriu o termo: “No Brasil, há o nordes-
tino, o sulista e o nortista, mas não há o sudestino, nem o centro-oestista. Afinal, o Sudeste é o centro e,
como tal, não é parte. É o todo!”.
p. 18). Quanto a estes, observa Bueno (2002, p. 30): “Seu sentimento de perten-
cimento à Amazônia não é apenas racional e conceitual, mas também simbólico,
no qual não deixam de estar envolvidas emoções”.
A maioria dos discursos formulados por amazônidas, em particular pela elite
intelectual da região, não chegou a romper definitivamente com as representações
espaciais moderno-coloniais da Amazônia, mas introduziu representações pró-
prias do espaço vivido que não fazem eco ou reproduzem integralmente os discur-
sos coloniais, mas tensionam com esse regime de representação hegemônico. As
representações espaciais da Amazônia, da maioria desses intelectuais da região, se
instalam no discurso estatal após a década de 1960, justificam e/ou celebram suas
práticas modernizadoras e desenvolvimentistas, principalmente através do refor-
ço de dispositivos moderno-coloniais de representação colonial da Amazônia: a
noção de espaço vazio, atualizado pela definição da Amazônia como fronteira; a
noção de integração, reforçando a ideia de distanciamento e isolamento da Ama-
zônia em relação ao restante do País; a noção de atraso (subdesenvolvimento) e de
espaço desconhecido, mas repleto de riquezas naturais a serem exploradas.
Através dessa nova articulação dos dispositivos discursos coloniais e da moder-
nização desenvolvimentista da Amazônia, se faz ver de que modo representações
do espaço, espaço de representação e práticas espaciais do imaginário moderno-
-colonial se articulam com a colonialidade do poder, com a colonialidade do sa-
ber e com a colonialidade do ser (QUIJANO, 2005, 2010; CASTRO-GÓMEZ,
2005; MALDONADO-TORRES, 2010; LANDER, 2005), na produção do es-
paço geográfico amazônico. Não temos apenas a emergência de uma pluralidade
de discursos sobre a região (PIZARRO, 2012), ou melhor, uma pluralidade de
representações espaciais da Amazônia, a partir da década de 1960, temos a insti-
tuição de um novo regime de representação espacial da Amazônia, que se articula
e em parte se distingue e se opõe às representações espaciais construídas por uma
diversidade de sujeitos amazônidas subalternizados, posicionados de modo desi-
gual em relações de poder, em geral representações espaciais que apontam para
tendências de um “giro descolonial” nas representações da Amazônia, ou seja,
operam na “gramática da descolonialidade” (MIGNOLO, 2010).
A pluralidade de representações espaciais da Amazônia se configura na in-
tensificação de “luta de representações” entre regimes de representações espaciais
constitutivos de diferentes representações do espaço, espaço de representações e
práticas espaciais de sujeitos posicionado de maneira assimétrica no campo de
Considerações finais
A Amazônia é um espaço estratégico geopoliticamente importante, no Brasil
e no mundo. Sua posição atual nesse cenário geopolítico de colonialidade global
recoloca a importância do imaginário e das representações espaciais que se tecem
sobre ela. Compreender, assim, que o imaginário moderno-colonial constitui um
regime de representação espacial da Amazônia, inclusive como uma “região ge-
ográfica”, importa para o enfrentamento da retórica da modernidade e da lógica
da colonialidade que permeiam as representações do espaço e as práticas espaciais
na Amazônia de diferentes sujeitos. E muito mais ainda importa valorizar e/ou
avaliar os efeitos produtivos e positivos da constituição de representações espaciais
da Amazônia que se inscrevem na gramática da descolonialidade, ou seja, que têm
contribuído para a produção de um giro descolonial no regime de representação
espacial da Amazônia, a partir da emergência de olhares e vozes, de representações
e do imaginário de agentes sociais subalternizados.
A luta política, epistêmica e territorial pela desconstrução e superação da mo-
dernidade/colonialidade no mundo passa pela desconstrução e supressão do ima-
ginário moderno-colonial e seu regime de representações espaciais. A Amazônia
constitui um espaço e um operador estratégico nessas lutas descoloniais, não ape-
nas como um enunciado, mas como um lócus de enunciação privilegiado para
construção de novos significados e novas práticas socioespaciais de produção de
outros espaços geográficos no mundo.
Referências
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2003.
O conceito de região
A região, enquanto um conceito acadêmico, esteve/está presente na vida e na pro-
dução da Geografia, percorrendo uma trajetória epistemológica cujo surgimento se
inicia concomitantemente com o início do pensamento geográfico enquanto conhe-
cimento científico moderno. A região esteve/está no cerne da produção geográfica,
muitas vezes vista como seu tema e objeto central, outras como um conceito a ser supe-
rado217. O que define a região? Sabemos ser esta uma pergunta com muitas respostas.
rial a partir de práticas estatais de colonialidade, buscando nesse trabalho uma aná-
lise conceitual que permita reflexões acerca das relações entre região/regionalização,
colonialidade/descolonialidade e desenvolvimento/subdesenvolvimento.
(Gerd Bornheim)
218 Segundo os mesmos autores, “podemos superar a visão eurocêntrica de mundo sem que a substituamos
por uma centrada no outro polo, o colonial, e sem que permaneçamos prisioneiros da mesmo polaridade (a
Europa e...o resto). O que (...) sustentamos é que não há um polo ativo, a Europa, e outro passivo e mera
vítima da história, que é o lado colonial. É preciso superar esta visão de um protagonismo exclusivo dos
europeus e tomar os diferentes povos e lugares como constitutivos do mundo” (HAESBAERT; PORTO-
-GONÇALVES, 2006, p. 19-20).
219 Uma sequência de tratados europeus, iniciados em Vestfália, gerou as bases conceituais/políticas para a con-
solidação do Estado Moderno. A chamada Paz de Vestfália (ou de Vestefália, ou ainda Westfália), conhecida
como os Tratados de Münster e Osnabrück (ambas as cidades atualmente na Alemanha), designa uma série de
tratados que encerrou a Guerra dos Trinta Anos e também reconheceu oficialmente as Províncias Unidas e a
Confederação Suíça. Outros tratados, como o Tratado Hispano-Holandês (também de 1648) e o Tratado dos
Pirineus (1659) se seguiram a Vestfália. Este conjunto de diplomas inaugurou o moderno Sistema Internacio-
nal, ao acatar consensualmente noções e princípios como o de soberania estatal e o de Estado-nação. Embora
o imperativo da paz tenha surgido em decorrência de uma longa série de conflitos generalizados, surgiu com
eles a noção embrionária de que uma paz duradoura derivava de um equilíbrio de poder, noção essa que se
aprofundou com o Congresso de Viena (1815) e com o Tratado de Versalhes (1919). Por essa razão, a Paz de
Vestfália costuma ser o marco inicial nos currículos dos estudos de Relações Internacionais.
220 Quijano nos contribui com o entendimento do controle da subjetividade e do conhecimento como o
centro da produção do que hoje conceitualmente nominamos “colonialidade do saber”. “A incorporação
de tão diversas e heterogêneas histórias culturais a um único mundo dominado pela Europa significou
para esse mundo uma configuração cultural, intelectual, em suma intersubjetiva, equivalente à articulação
de todas as formas de controle do trabalho em torno do capital, para estabelecer o capitalismo mundial.
Com efeito, todas as experiências, histórias, recursos e produtos culturais terminaram também articulados
numa só ordem cultural global em torno da hegemonia europeia ou ocidental. Em outras palavras, como
parte do novo padrão de poder mundial, a Europa também concentrou sob sua hegemonia o controle de
todas as formas de controle da subjetividade, da cultura, e em especial do conhecimento, da produção do
conhecimento” (2005, p. 236).
221 “Cada forma de controle do trabalho esteve articulada com uma raça particular. Consequentemente, o
controle de uma forma específica de trabalho podia ser ao mesmo tempo um controle de um grupo especí-
fico de gente dominada” (idem, p. 232).
222 À frente perceberemos a importância dessa temática para a compreensão dos processos socioespaciais a
serem abordados neste trabalho.
223 “A América constitui-se como o primeiro espaço-tempo de um padrão de poder de vocação mundial e,
desse modo e por isso, como a primeira id-entidade da modernidade. (...). “Na América, a ideia de raça
foi uma maneira de outorgar legitimidade às relações de dominação impostas pela conquista. A posterior
constituição da Europa como nova id-entidade depois da América e a expansão do colonialismo europeu
ao resto do mundo conduziram à elaboração teórica da ideia de raça como naturalização dessas relações
coloniais de dominação entre europeus e não europeus” (QUIJANO, 2005, p. 228-229).
A ideia de “Novo Mundo”, bem como toda a obsessão pelo “novo”, que tanto
marcará a chamada Modernidade, o imaginário europeu ocidental desde o
Renascimento e o colonialismo, deveu-se à necessidade de afirmação frente
ao “Mundo Antigo” – o Oriente. Os europeus vão brandir a América como
a expressão do Novo Mundo e, com isso, contraditoriamente, deixam escapar
que foi essa América que lhes serviu não só de contraponto ao Oriente, mas,
sobretudo, de suporte para que se pudessem afirmar como centro geopolítico
e cultural do mundo. É a riqueza em ouro e prata saqueada de povos milena-
res como os quéchuas, aimarás, zapotecas, mixtecos, caribes, mapuches, tupis,
guaranis e tantos outros, organizados/subordinados ou não em impérios, como
o inca, o maia e o asteca, aliada à comercialização e escravização para fins
mercantis de vários povos africanos, que permitirá aos europeus concentrarem
tanta riqueza e poder para se contraporem ao Oriente e se imporem ao mundo
(HAESBAERT; PORTO-GONÇALVES, 2006, p. 19).
224 “Os europeus imaginaram (...) serem não apenas os portadores exclusivos [da] (...) modernidade, mas
igualmente seus exclusivos criadores e protagonistas (...) A modernidade é um fenômeno de todas as cultu-
ras, não apenas da europeia ou ocidental” (QUIJANO, 2005, p. 239). Segundo o autor, ideias associadas
à modernidade como novidade, avançado, racional-científico, laico, secular são fenômenos possíveis em
todas as culturas em todas as épocas históricas. “Com todas as suas respectivas particularidades e diferen-
ças, todas as chamadas altas culturas (China, Índia, Egito, Grécia, Maia-Asteca, Tauantinsuio) anteriores
ao atual sistema-mundo, mostram inequivocamente os sinais dessa modernidade, incluindo o racional
científico, a secularização do pensamento etc. Na verdade, a estas alturas da pesquisa histórica seria quase
ridículo atribuir às altas culturas não europeias uma mentalidade mítico-mágica como traço definidor, por
exemplo, em oposição à racionalidade e à ciência como características da Europa, pois além dos possíveis
ou melhor conjecturados conteúdos simbólicos, as cidades, os templos e palácios, as pirâmides, ou as ci-
dades monumentais, seja Machu Picchu ou Boro Burdur, as irrigações, as grandes vias de transporte, as
tecnologias metalíferas, agropecuárias, as matemáticas, os calendários, a escritura, a filosofia, as histórias, as
armas e as guerras, mostram o desenvolvimento científico e tecnológico em cada uma das tais altas culturas,
desde muito antes da formação da Europa como nova id-entidade. O mais que realmente se pode dizer é
que, no atual período, foi-se mais longe no desenvolvimento científico-tecnológico e se realizaram maiores
descobrimentos e realizações, com o papel hegemônico da Europa e, em geral, do Ocidente” (QUIJANO,
2005, p. 240).
Estado-nação português como o “Sul” do “Norte”, tendo em vista seu papel de de-
pendência no continente europeu. Os termos “Norte” e “Sul” não nos revelam mais
apenas hemisférios planetários, nem tampouco adjetivos de regiões definidas como
desenvolvidas ou subdesenvolvidas. “Norte” e “Sul” revelam diferenciações socioes-
paciais (re)produzidas historicamente a partir de processos intercontinentais e intra-
continentais, internacionais e intranacionais, cuja centralidade perpassa o ideal de
adjetivação do “outro” associado a seu controle e apropriação materiais e simbólicos,
assim como processos de resistência material e simbólica de grupos sociais.
(Octavio Paz)
Na época em que a maioria dos homens vivia ainda para o essencial, no qua-
dro da autossubsistência aldeã, a quase totalidade de suas práticas se inscrevia,
para cada um deles, no quadro de um único espaço, relativamente limitado: o
“terroir” da aldeia e, na periferia, os territórios que relevam das aldeias vizinhas.
Além, começavam os espaços pouco conhecidos, desconhecidos, míticos. Para
se expressar e falar de suas práticas diversas, os homens se referiam, portanto,
antigamente, à representação de um espaço único que eles conheciam bem
concretamente, por experiência pessoal.
numa divisão social do trabalho (trabalho servil), tanto quanto em torno de uma
realocação temporal que transformou, através de uma perspectiva evolucionista,
povos contemporâneos em “‘povos do passado’ versus ‘povos do futuro’”. Pode-
mos encontrar muitos paralelos entre tais mecanismos e o processo de emergência
de regiões intranacionais brasileiras, via Estado, em escalas diversas.
Não se trata aqui de um processo de expansão e conquista territorial para
fins de incorporação de novas áreas a um império em formação (lógica colonial
clássica), mas o da conquista de partes de um território (o nacional) de fronteiras
consideravelmente já bem estabelecidas, em busca de uma integração interna que
possibilite a legitimação do poder estatal, tanto quanto da expansão de um proje-
to nacional modernizador/capitalista.
As Sociedades de Geografia cumpriram relevante papel na produção de um
“inventário” acerca das potencialidades e realidades a serem incorporadas, às vezes
combatidas, para que o projeto de conquista colonial/imperial se concretizas-
se. Tais conhecimentos possibilitaram também a produção do saber geográfico
científico. A partir dos conhecimentos produzidos por diferentes expedições,
pensadores puderam, correlacionando-os a reflexões filosóficas/epistemológicas,
construir a ciência geográfica (MOREIRA, 2009).
A ciência geográfica inicia seu processo de institucionalização no Brasil ao
longo do século XIX, através do surgimento do Instituto Histórico Geográfico
Brasileiro (1838) e da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro (1883). Na pri-
meira metade do século XX, a Geografia brasileira irá se consolidar. Ocorrem o
primeiro Congresso Brasileiro de Geografia na cidade do Rio de Janeiro (1909)
e o primeiro curso de formação de geógrafos no País, o Curso Livre de Geografia
oferecido pela Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro na década de 1920. A
partir da década de 1930, surgem as instituições mais comumente associadas ao
surgimento da geografia institucional e científica brasileira: a Associação dos Geó-
grafos Brasileiros – AGB (1934), o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística –
IBGE (1937), os cursos de Geografia da Universidade de São Paulo – USP (1934)
e da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ (1935) (à época também
conhecida como Universidade do Distrito Federal) (SOUZA NETO, 2012).
Segundo Souza Neto (2012), o surgimento do saber geográfico no Brasil está
inteiramente correlacionado ao conhecimento acerca do território hoje brasileiro
e à sua consolidação enquanto espaço-nacional.
Como nos aponta Freire (2001, p. 46), a “descrença no homem simples revela
(...) um (...) equívoco: a absolutização de sua ignorância”. No cerne do processo
de “re-descoberta” regional está a invisibilização dos sujeitos sociais nele presen-
tes, através de lentes míopes marcadas por olhares etnocêntricos, economicistas,
desenvolvimentistas e evolucionistas, segundo os quais uma região é vista/dita
enquanto um conjunto de lugares e indivíduos sem história e saberes em razão de
seu discursado subdesenvolvimento material/econômico.
Moura (1988, p. 10) ressalta:
universal que lhe permite hierarquizar de maneira unívoca, segundo seu grau
de desenvolvimento ou de racionalidade, as diferentes sociedades.
O desaparecimento do saber local por meio de sua interação com o saber oci-
dental dominante acontece em muitos planos, por meio de muitos processos.
Primeiro fazem o saber local desaparecer simplesmente não o vendo, negando
sua existência. Isso é muito fácil para o olhar distante do sistema dominante de
globalização. Em geral, os sistemas ocidentais de saber são considerados uni-
versais. No entanto, o sistema dominante também é um sistema local, com sua
base social em determinada cultura, classe e gênero. Não é universal em senti-
do epistemológico. É apenas a versão globalizada de uma tradição local extre-
mamente provinciana. Nascidos de uma cultura dominadora e colonizadora,
os sistemas modernos de saber são, eles próprios, colonizadores. (2003, p. 21)
225 O presente trabalho não defende uma compreensão simplificadora acerca da existência de passados locais
absolutamente autônomos transformados, ao longo do tempo, em completamente dependentes. Considera
ser, entretanto, muito significativos a produção e/ou o aprofundamento de dependências econômicas e
políticas a partir da implantação de projetos de desenvolvimento regional que objetivam incorporar áreas a
novas divisões territoriais do trabalho em fase de reordenamento.
ainda hoje, se você para nos pontos de ônibus, tem gente que diz mais ou
menos assim: rapaz, se por acaso os holandeses não tivessem sido expulsos do
Brasil, hoje a história seria outra. Mentira! Se fosse a Inglaterra o negócio seria
outro. Mentira! Nós fomos colônia inglesa, parte de nós foi colônia holandesa,
e as coisas eram terríveis, ou mais terríveis do que com os portugueses. Não era
a lógica de ser português ou não, era a lógica colonial.
Referências
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226 Festa popular da cultura afro-brasileira que ocorre toda terça-feira na Praça de São Pedro, centro de Recife.
228 Sejam estes coletivos individualizados pela incorporação social ou indivíduos biológicos incorporados pelo
processo de socialização.
como estas percebem a si mesmas e a sua condição. Para Thompson a classe acon-
tece quando algumas pessoas, como o resultado de experiências comuns (herdadas ou
partilhadas), sentem e articulam a identidade de interesses entre si, e contra outros
cujos interesses diferem e se contrapõem aos seus230. Assim, é interessante para
nossa reflexão perceber como ele diferencia claramente a experiência de classe da
consciência de classe:
Cabe se perguntar, pensando “desde este lado do mundo”, como nos convi-
dara Milton Santos, pelas experiências comuns aos homens e mulheres das classes
subalternas nos últimos, digamos, quinhentos anos: onde foram parar? Pensando
estas relações históricas no contexto da nossa América, emerge a necessidade de
enfrentar o ocultamento historicamente produzido pela colonialidade do poder
e do saber, decorrente do papel dado à região no longo processo de consolidação
do Sistema-Mundo moderno/capitalista/colonial.
Observar a nossa história, considerando as mais diversas trajetórias dos povos
originários na sua relação com as diversas formas que adotou a expansão dos mer-
cados europeus até a consolidação das sociedades moderno-coloniais, passando
pela invasão/colonização até o imperialismo e seus desdobramentos no mundo
globalitário, permitir-nos-ia perceber que para analisar as condições de classe nas
nossas sociedades é preciso conhecer e estudar o desenvolvimento dessas traje-
tórias, enquanto experiências específicas que conferem sentido de vida e de luta
às atuais relações sociais. O conjunto de imaginários e sentidos dados a partir
das experiências vivenciadas por essas trajetórias subsistem, de forma explícita ou
imanente, no cotidiano do povo hoje, produzindo e reinventando a vida-em-re-
lação na totalidade-mundo. Perceber-se em-relação com essas trajetórias, e assim
partilhar do sentido último dessas experiências é, para o educador/pesquisador
engajado no processo de descolonização/libertação, tão importante quanto o es-
230 Idem.
231 Utilizo imaginário no sentido apontado por Glissant, na sua “Poética da relação”, como a construção sim-
bólica por meio da qual uma comunidade (racial, nacional, imperial, sexual etc.) define a si própria.
Todavia, este modo peculiar de produção e de vida não se encontra apenas nas
comunidades remanescentes de indígenas ou quilombolas, ou ali onde os povos
e nações do Abya Yala conseguiram reatualizar politicamente sua luta. Indepen-
dentemente da origem de determinadas práticas sociais, bem como de todo um
léxico relativo a elas, que implica um modo de enunciação do mundo, muitas
delas permanecem nas periferias e comunidades populares urbanas. Relativas ao
modo comunitário, seguindo o exemplo, podemos encontrar em Oaxaca, no sul
do México, o Tequio (palavra de origem Zapoteca), que se refere ao trabalho co-
munitário. O Tequio, junto com a Guelaguetza, têm servido de pilares para uma
reorganização dos modos de gestão e participação nos municípios autônomos. O
conceito seria o equivalente ao de “mutirão” no Brasil (palavra de origem Tupi,
adaptada ao português brasileiro) ou “Malón” no Chile e no Sul da Argenti-
na (palavra do Mapudungun, língua dos Mapuche). É interessante observar que
encontramos unicamente em línguas dos povos originários palavras relativas a
esse significado, que se assemelha à ideia ocidental de trabalho solidário, mas que
inclui um importante componente comunitário de reciprocidade e de celebração,
não encontrado em nenhum vocábulo das línguas coloniais.233 O tipo de trabalho
233 Cabe realizar um estudo mais aprofundado sobre o tema, que por falta de espaço não desenvolvo aqui.
Todavia, é preciso frisar que para qualquer relação vir a se estabelecer frutí-
fera para todos e todas que nela estão envolvidos, o seu constante ir sendo deve
[a] existência [dos bens culturais] não se deve somente ao esforço dos grandes
gênios, seus criadores, mas também, à corveia sem nome de seus contemporâ-
neos. Nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um
documento da barbárie. E, assim como ele não está livre da barbárie, também
não o está o processo de sua transmissão, transmissão na qual ele passou de um
vencedor a outro. (BENJAMIN, apud LOWY, 2005, p. 70)
235 Uso aqui o conceito de “cultura de massas” no sentido dado pela escola de Frankfurt, na perspectiva de
Benjamin, preservando a localização das suas reflexões em um contexto histórico determinado. Para uma
crítica ao conceito de cultura popular como cultura de massas encontrado em Adorno, ver BARRIA MAN-
CILLA, 2014.
Na sua visão, uma destas novas funções, que viria a assumir a preponderância,
seria a função política, num sentido transformador, revolucionário. Oitenta anos
mais tarde, podemos constatar que a transformação radical do modo de percep-
ção esteve determinada por uma revolução não esperada nem prevista naquele
momento: a revolução capitalista neoliberal que transformou, nas últimas três
décadas do recém-passado milênio, a forma de acumulação do capital. Refiro-me
à transformação do modo de acumulação de capital industrial, que tinha como
referente político estrutural o estado bem-estar, vigente até a crise do petróleo no
início da década de 1970, para o modo de acumulação de capital especulativo,
que impôs seu referente ideológico: o neoliberalismo.
Todavia, não foi, apenas, a mudança de fase do capital o que provocou a
mudança mais profunda, mas, como aponta Manuel Castells (1999a, p. 411), a
convergência de três processos independentes. A reformulação da sociedade ca-
pitalista somada à chamada revolução das tecnologias da informação e ao apogeu
de movimentos sociais e culturais, – como os libertários, os antiglobalização, de
direitos humanos, o feminismo e o ambientalismo – teriam feito surgir, nas três
últimas décadas do recém-passado milênio, uma nova estrutura social dominante:
a sociedade em redes. Nas palavras do sociólogo catalão, “uma nova economia,
a economia informacional/global; e uma nova cultura, a cultura da virtualidade
real. A lógica inserida nessa economia, nessa sociedade e nessa cultura está subja-
de sentido, contidas nas práticas sociais enraizadas nos lugares. Trata-se então,
de trajetórias que, em sociedades pós-coloniais, trazem inscritas no seu tecido a
marca da dominação colonial.
A relação com a cultura dominante dos povos colonizados e daqueles seques-
trados das suas terras para serem aqui escravizados tem sido por muito tempo
desconsiderada ou então lida não como relação, mas tidas como entidades cul-
turais estanques, que se excluem mutuamente. Todavia, é a estirpe delas a que
veio configurar as classes populares na nossa América – de diversos modos em
cada país, mais miscigenados em um, mais hegemônicos em outro, mas de forma
transversal e consistente em todo o continente, por mais que a colonialidade do
saber faça muitos se perceberem mais brancos do que de fato somos. O fato é que,
historicamente, as classes populares na nossa América têm sofrido a dominação
colonial dos mais diversos modos, sendo especialmente para os mais excluídos do
sistema, ainda hoje, as mudanças estruturais/institucionais que os países experi-
mentaram, apenas cosméticas.
O tempo longo da colonialidade do poder que, como nos lembra Quijano
(2001), ainda não conclui, significou para “índios”, “negros” e “mestiços” – se-
gundo as categorias coloniais – a experiência de se verem presos entre o padrão
epistemológico próprio e o padrão eurocêntrico, forçados a uma dupla consci-
ência (DU BOIS, 1999) que se transformou em racionalidade instrumental ou
tecnocrática (QUIJANO, 2001). Um certo senso comum acadêmico, atravessado
de colonialidade, considerando o fato destas populações terem sido submetidas
por tantos anos a tamanha alienação, acredita que estas, fora algumas expres-
sões remanescentes de culturas arcaicas (logo desprovidas de atualidade estética
e política), apenas se limitariam à imitação dos cânones eurocêntricos. Assim, as
diferenças entre os cânones estéticos hegemônicos na modernidade/colonialidade
e as produções simbólicas dos colonizados e seus herdeiros dever-se-iam a erros ou
incompetências na sua arte de imitar.
Todavia, não há apenas imitação e reprodução nas culturas subalternas, na
nossa América, mas a constante subversão dos cânones impostos. Para Quijano,
238 QUIJANO, 1998. Quijano desenvolve a questão da relação entre colonialidade do poder, cultura e co-
nhecimento na América Latina, em artigo publicado em 1988 no Anuario Mariateguiano, posteriormente
revisado e compilado em MIGNOLO, 2001.
239 Copia do Manifesto Antropofágico e do Manifesto do Pau-Brasil, de Oswald de Andrade, comentados. Dis-
poníveis em: http://www.ufrgs.br/cdrom/oandrade/oandrade.pdf. Acesso pela última vez em: 10/10/2013.
De um modo outro, talvez uma das mais prolíficas fontes de produção estética
e simbólica da cultura popular da América latina e do Caribe, como expressão da
sua implícita subversão cultural, encontre-se nos cultos, rituais, festas e as mais
diversas práticas religiosas de um cristianismo subvertido de sentidos ao ponto de
reinventá-lo profundamente, seja no sincretismo religioso, seja nos modos e na
estética de uma religião que, até então, não aceitava sequer a palavra vernácula
nem os instrumentos musicais, que dirá as danças ou quaisquer expressões do
corpo em transe. Para os modernistas,
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Introducción
Este artículo avanza en la relación entre sistemas de representación/prácticas,
la producción de sentido y su relación con la colonialidad del poder y del saber.
Nos concentramos aquí en discutir las formas cómo los sistemas de representa-
ción hegemónicos con sus prácticas sustentan la colonialidad del poder y del saber
(QUIJANO, 2000) y entran en disputa con otros sistemas de representación, los
subalternos, que con sus prácticas abren la posibilidad de construir nuevos hori-
zontes de sentido.
El análisis se realiza en La Macarena, una región que tiene una privilegiada
ubicación, al sur del departamento del Meta y parte del Guaviare en Colombia,
en el cruce de los ecosistemas de los Andes, la Orinoquia y la Amazonia. Por
ello ha sido zona de intercambio cultural, un encuentro de caminos entre indí-
genas, conquistadores, misioneros, caucheros, quineros, colonos y campesinos.
Pero también una frontera interna, en disputa entre las comunidades indígenas,
campesinas, las guerrillas, los ejércitos paramilitares, el capital y el Estado.
Las discusiones que aquí se presentan abordan de manera parcial la discusión
conceptual de la tesis de Doctorado en Geografía en curso que busca analizar las
relaciones/tensiones que se establecen entre las dinámicas territoriales que provie-
nen del Estado y los movimientos sociales para el control, acceso y apropiación
del espacio, en las zonas de frontera interna en Colombia.
242 Los llanos orientales ha sido otra forma como ha sido conocida la Orinoquia colombiana.
243 El Área de Manejo Especial de La Macarena cuenta con aproximadamente cuatro millones de hectáreas
244 Los parques nacionales naturales en los que se espera replicar la estrategia de relocalización voluntaria son
los parques del Área de Manejo Especial de La Macarena: Tinigua, Sumapaz, Cordillera de los Picachos y
los de Alto Fragua Indiwasi en el departamento de Caquetá y La Paya en el departamento del Putumayo.
245 El Plan Nacional de Desarrollo 2010-2014, para lograr el objetivo propuesto de crecimiento económico
sostenido y la generación de empleo, identificó la necesidad de dar fuerza a cuatro sectores de la economía
que ha llamado locomotoras, estas las define como sectores que avanzan más rápido que el resto de la eco-
nomía: (1) sector minero-energético, (2) infraestructura de transporte, (3) agropecuaria y (4) vivienda.
246 Respecto de la cifra nacional actualmente hay una discusión en relación con la veracidad de los datos pro-
porcionados para el año 2012. Según ellos, se presentó una disminución del 25% en los últimos dos años,
pasando de 64.000 en el 2011 a 48.000 en el 2012, lo que aumenta el promedio de disminución anual que
estaba entre el 8% y 11%, lo cual no parece lógico si se tiene en cuenta que hubo una disminución en las
hectáreas fumigadas así como en el área en la cual se realizó erradicación forzada.
247 El PCIM se desarrolla en cinco municipios del AMEM localizados en el departamento del Meta: Mesetas,
Uribe, La Macarena, Puerto Rico, Vista Hermosa y San Juan de Arama.
248 El Plan de Consolidación Integral –PCI– fue puesto en marcha a través de la Directiva Presidencial 01 de
marzo de 2009. Las zonas priorizadas para el desarrollo de Planes de Consolidación Integral son Macarena,
Río Caguán, Nariño, Córdoba, Bajo Cauca Antioqueño, Buenaventura, Montes de María, Catatumbo,
Sierra Nevada de Santa Marta, Cordillera Central, Putumayo, Arauca, Cauca y Chocó. Los PCI implican el
desarrollo de tres fases : la primera de recuperación –de zonas rojas–, cuyo objetivo es la seguridad territorial
con una alta intervención militar; La segunda de transición –zonas amarillas– en áreas que están bajo el
control territorial y en las cuales se inician actividades de desarrollo económico y se busca la atención de
otras instituciones del Estado; Le tercera de consolidación –zonas verdes– son áreas estabilizadas, con mayor
intensidad en el esfuerzo político y social.
los años cuarenta y por población indígena local que hoy se reduce a tres resguar-
dos y siete asentamientos249 que ocupan una extensión total de 160.618 hectáreas,
menos del 4% del área del AMEM (Unidad de PARQUES Nacionales, 2004).
El proceso de resistencia campesina que inició en la región de La Macarena
durante los años cuarenta en el período denominado de la “Violencia en Colom-
bia”, generó un frente de colonización de campesinos del Tolima y Cundinamarca
que llegarían en busca de tierra y paz. Esta migración se vería reforzada por la es-
trategia colonizadora del Estado y que finalizó en el desplazamiento de pequeños
agricultores por terratenientes.
Las movilizaciones de finales de los años ochenta de los campesinos dedica-
dos a la plantación y transformación de coca en la cuenca del río Duda, entre la
cordillera oriental y la serranía de La Macarena, terminó en la inclusión de las
Zonas de Reserva Campesina –ZRC– en la legislación nacional en el año 1994.
Esta figura está orientada al reconocimiento de las territorialidades campesinas en
zonas de frontera agraria, a través de un manejo colectivo, pero con manteniendo
la propiedad individual o familiar. De las seis ZRC que existen en el país dos están
localizadas en el AMEM y su zona de influencia, la de Calamar en el Guaviare y
la Pato-Balsillas en el Caquetá. De las cinco que están en proceso de constitución
dos están localizadas en la región, Losada-Guayabero y Güejar-Cafre, ambas en el
departamento del Meta. Hoy hay una disputa con el Estado por los sentidos de
esta figura y el gobierno ha suspendido la conformación de nuevas ZRC, así como
el apoyo a las ya constituidas en el territorio nacional. No obstante las organiza-
ciones campesinas mantienen sus posiciones en defensa de las ZRC.
Las dinámicas socio-espaciales del capital ejercen una fuerte presión sobre el
proyecto campesino dando continuidad al proyecto moderno-colonial en La Ma-
carena, e ignorando las territorialidades campesinas e indígenas y los proyectos
que estas tienen sobre ese espacio geográfico. En el sur del AMEM la exploración
y explotación de hidrocarburos avanza en sobre la potencial ZRC Losada-Gua-
yabero en el municipio de La Macarena, así como sobre la ZRC Pato Balsillas en
el municipio de San Vicente del Caguán y la de Calamar. En esta última se ha
identificado un proceso de concentración de la propiedad que avanza en la me-
dida en que la ganadería va ganando espacio dentro de la ZRC y por lo cual las
comunidades campesinas han solicitado la ampliación de la misma. En el sector
249 Los asentamientos indígenas se diferencian de los resguardos, porque en ellos aún no se ha hecho recono-
cimiento legal, a través de un título de propiedad colectiva.
250 Manifestación realizada en la reunión del 30 de mayo del Grupo Gestor del AMEM en Villavicencio, Meta.
251 La firma del Acuerdo General para la terminación del conflicto y la construcción de una paz estable y
duradera, entre las FARC y el Gobierno colombiano, el pasado 26 de agosto, ha abierto nuevamente la
posibilidad de avanzar en la búsqueda de la paz. El acuerdo consta de cinco puntos:(1) política de desarrollo
agrario integral, con énfasis en la formalización de la propiedad y el desarrollo rural; (2) participación políti-
ca, que pone de presente la salida negociada del conflicto; (3) fin del conflicto, que traería consigo el desarme
definitivo; y finalmente dos puntos de carácter geopolítico, (4) la solución al problema de las drogas ilícitas y
(5) víctimas, que busca que los firmantes queden a salvo de la justicia penal internacional.
tro del ordenamiento constitucional que resulte del nuevo contrato social pactado
en la asamblea nacional constituyente”.
Ante esta propuesta, el entonces ministro de agricultura Juan Camilo Restrepo
las llamó como “republiquetas independientes”, para asociarlas a los núcleos agra-
rios creados entre los años 1950-1956, en los cuales los campesinos organizados
en autodefensas buscaron defenderse de la violencia partidista y reivindicar sus
demandas por la tierra. Con esta afirmación cobró fuerza la criminalización de las
ZRC, como un espacio “por fuera de la ley”, lo cual generó nuevamente la suspen-
sión de las acciones de constitución de nuevas o la consolidación de las existentes,
que hasta hoy se mantiene.
Como respuesta a las presiones del desarrollo y de las estrategias de pacifi-
cación, y en medio de un proceso de paz, se intensificaron las movilizaciones
pacíficas de grupos campesinos, indígenas y afros y en general de grupos sociales
asociados al sector rural. Entre las más significativas se cuenta el Paro Nacional
Agrario que tuvo lugar en agosto del año 2013, con una duración de casi un mes,
a la cual se sumaron habitantes de las ciudades, y en particular el movimiento
estudiantil que se solidarizó y enmarcaron sus demandas en las del movimiento
agrario. En el año 2014 se dio un nuevo paro agrario, que tuvo una duración de
quince días. Como resultado se logró la promulgación del Decreto 870 del 8 de
mayo de 2014 que crea la Mesa Única Nacional de Interlocución y Participación
(MUN) para el abordaje de las temáticas de la Cumbre Nacional Agraria, Cam-
pesina, Étnica y Popular, cuya declaración final recoge el conjunto de temas de
debate alrededor del el buen vivir, la reforma agraria estructural, la soberanía, la
democracia y la paz con justicia social, planteados por una importante coalición
de organizaciones campesinas, indígenas y afrocolombianas de “comunidades
históricamente marginadas y excluidas, es un llamado de atención al gobierno
nacional sobre la urgencia de atender estructuralmente a un mundo rural que
reclama ser sujeto de derechos”.
Reflexiones finales
La región de La Macarena se ha representado como vacía, salvaje, peligrosa y
exuberante, lo cual ha sido acompañado con prácticas coherentes con estas formas
de nombrar, que han producido espacios de guerra, de dominación y zonas reser-
vadas. Y han logrado que sujetos socialmente ubicados en el lado oprimido de la
diferencia colonial, piensen sistemáticamente como los que se encuentran en las
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