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FEMINISMOS TRANSNACIONAIS

Lições curdas sobre a


libertação das mulheres
Feminismos transnacionais
| Curdistão
por Luciana Brito
17 de abril de 2020

As guerrilheiras curdas foram retratadas deste lado do


mundo como heroínas da democracia e do combate ao
terrorismo islâmico, a partir de uma narrativa orientalista
que busca enquadrar sua agência política no universo dos
valores liberais da contemporaneidade ocidental. Entretanto,
essa abordagem não compreende os processos
protagonizados por essas guerrilheiras, visto que as
unidades de autodefesa feminina são apenas uma pequena
parte da batalha dessas mulheres por sua vida e liberdade.
Confira mais um artigo do especial Feminismos
transnacionais.

Recentemente, as mulheres curdas foram incluídas nas manchetes da


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mídia ocidental por seu papel no combate ao autointitulado Estado


Islâmico (EI), especialmente na ocasião das operações de retomada de
Raqqa, na Síria.

As guerrilheiras curdas foram retratadas deste lado do mundo como


heroínas da democracia e do combate ao terrorismo islâmico, a partir de
uma narrativa orientalista que busca enquadrar sua agência política no
universo dos valores liberais da contemporaneidade ocidental.
Entretanto, essa abordagem não compreende os processos
protagonizados por essas guerrilheiras, visto que as unidades de
autodefesa feminina são apenas uma pequena parte da batalha dessas
mulheres por sua vida e liberdade.

Nas últimas décadas, a experiência do movimento radical de mulheres


curdas produziu um projeto de libertação que é, em grande medida,
crítico e até mesmo antagônico a elementos constitutivos do feminismo
ocidental, tais como a democratização das instituições, o
empoderamento feminino individual e a sororidade. Para compreender
essas críticas e as alternativas teóricas e práticas propostas por elas, é
necessário entender o contexto em que essas mulheres lutam: a
revolução no noroeste do Curdistão.

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Combatente curda da Unidade de Proteção das Mulheres

Libertando a democracia do Estado


Desde tempos imemoriais, os curdos resistem à exploração, guerras e
genocídios. Trata-se de um povo cujo território foi retalhado e usurpado
pela imposição das fronteiras de quatro Estados nacionais: Turquia, que
ocupa o norte do Curdistão (Bakur), Síria à oeste (Rojava), Iraque ao sul
(Basûr) e Irã ao leste (Rojhilat). Esses Estados têm promovido esforços de
limpeza étnica visando a destruição da identidade curda, como
deslocamentos forçados, proibição da língua, rituais e celebrações,
perseguição às organizações e lideranças, confisco de terras e
monumentos, renomeação de seus marcos históricos e geográficos
tradicionais, além do genocídio que tem exterminado fisicamente
milhares de curdos.

Na primeira metade do século XX, os movimentos nacionalistas curdos


travaram um profundo combate contra o colonialismo, reivindicando a
criação de um Estado nacional para seu povo, demanda negada pelos
tratados internacionais do Pós-Primeira Guerra Mundial. O fracasso da
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luta independentista e a perseguição imposta pelos Estados,


estimularam a reorientação estratégica de uma das organizações
políticas que atuava na luta armada pela libertação nacional do
Curdistão, o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), fundado em
1978 na Turquia. Seu novo projeto político e social, elaborado
teoricamente por Abdullah Öcalan (encarcerado em isolamento na
Turquia desde 1999), foi denominado confederalismo democrático e tem
a libertação das mulheres como um de seus eixos fundamentais.
O confederalismo democrático se tornou o paradigma adotado pelos
movimentos curdos radicais nas regiões de Bakur e Rojava1, que
deixaram de promover uma luta de libertação nacional com o objetivo de
criação de um Estado independente, e passaram a se dedicar à
construção de uma nação democrática que se autogoverna.

Nessa perspectiva, o sistema estatal é substituído por um sistema


democrático do povo sem Estado. Ao rejeitar o nacionalismo e o poder
estatal, o confederalismo democrático curdo promove uma experiência
anticapitalista, antiestatista e antipatriarcal.

No contexto da Guerra Civil na Síria, o enfraquecimento das tropas de


Assad no norte do país ofereceu a oportunidade para que a população do
Curdistão sírio efetivasse seu projeto de autodeterminação, iniciando
sua revolução em 2012. Na época, 2 milhões e meio de pessoas vivam na
região. Em 2014, é publicada a constituição federativa e autônoma de
Rojava.

Rojava é composta por 3 cantões autônomos e confederados, Cizîri,


Kobanî e Afrin. A organização nesses territórios ocorre a partir de um
sistema de conselhos populares, cuja unidade mais fundamental são as
comunas, instâncias deliberativas de bairros ou vilas de até 400 famílias,
que funcionam em um sistema assembleário em regime de democracia
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que funcionam em um sistema assembleário em regime de democracia
direta, em que todos tem direito à voz e voto. As comunas deliberam e
executam medidas políticas, econômicas, educacionais e de segurança
relativas ao seu local de moradia. As comunas enviam representantes
para os conselhos de bairros e aldeias, que representam até 30 comunas
e elegem representantes para os conselhos distritais, que tem jurisdição
sobre cidades inteiras. O conselho superior da região de Rojava é o
Conselho Popular do Curdistão (MGRK), em que participam delegados
dos três cantões. Ao lado das instâncias deliberativas, existem as
instâncias executivas, algo parecido com um parlamento, as
Administrações Autônomas Democráticas. Estruturas análogas existem
em Bakur (norte do Curdistão, região atualmente ocupada pela Turquia).

Nessa organização, o poder é descentralizado e emana da esfera local.


Cada cantão estabelece suas instituições e milícias com completa
autonomia e os princípios para sua confederação são a livre associação e
a solidariedade. As escolhas de representação nas instâncias respeitam
critérios de proporcionalidade de etnia (10% para minorias étnicas e
religiosas) e gênero (40% de mulheres). A coexistência pacífica e
colaborativa entre diferentes etnias e religiões é baseada no princípio do
pluralismo radical, que garante a autonomia organizativa e
representação a todos. Há ainda o critério de coliderança – todas as
reuniões, comitês e órgãos são presididos conjuntamente por um
homem e uma mulher. Em todos os níveis, existem as instâncias
exclusivamente femininas, que tem poder de veto sobre as deliberações
das instâncias gerais.

Nas regiões autônomas, a população local é incentivada a se dedicar à


agricultura e pecuária, atividades historicamente reprimidas pelos
regimes estatais para forçar a dependência e vulnerabilidade dos curdos.
O sistema de economia popular se baseia no trabalho coletivo e
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O sistema de economia popular se baseia no trabalho coletivo e
cooperativado, na abolição da propriedade privada da terra e
infraestruturas, na gestão dos trabalhadores e no manejo ecológico.
Existem diversas cooperativas de trabalhadoras, com a perspectiva de
restaurar a capacidade produtiva das mulheres e garantir sua
independência econômica a partir do controle sobre os produtos do
trabalho.

Autodefesa na sociedade confederalista democrática


Não se pode ignorar que esse projeto luta para se afirmar em um cenário
de guerra. Como resultado da retirada parcial das tropas dos
EUA/Coalização e da operação Fonte de Paz, quando tropas turcas
avançaram sobre território sírio e conseguiram romper a continuidade
territorial de Rojava (em 06 e 09 de outubro, respectivamente), se
intensificaram os ataques das chamadas células “dormentes” do Estado
Islâmico. Agora, seus atentados são especificamente direcionados à
membros da Administração Autônoma ou das forças de defesa curdas.

Os esforços de paz promovidos pela diplomacia curda são combinados


aos esforços de contra-ataque às violências cotidianas impostas por
esses inimigos. De ambos os lados da guerra, o que interessa não é
meramente eliminar pessoas, mas eliminar ideologias. Por isso, a
autodefesa é um dos princípios fundamentais da construção prática do
confederalismo democrático, visto que sua democracia radical precisa
ser defendida por todos os meios necessários. O Estado Islâmico e os
exércitos nacionais defendem militarmente os valores do
conservadorismo, centralismo, nacionalismo e autoritarismo,
representam a dominação masculina e estatal e, por isso, são inimigos
da liberdade das mulheres e de todo o povo curdo. O poder militar
desempenha papel muito importante na manutenção da hegemonia do
sistema capitalista e sendo o sistema autônomo curdo uma ameaça a
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essa hegemonia, precisa defender-se também militarmente. Para tanto,


existem as forças de segurança local e as milícias de autodefesa popular,
ambas contando com unidades mistas e unidades exclusivas de
mulheres.

A segurança e resolução de conflitos nas aldeias e cidades é garantida


pelas forças de proteção comunitária (Asayish), enquanto as milícias,
chamadas unidades de autodefesa, são responsáveis pela proteção
contra ataques externos, de governos e extremistas religiosos.

Atualmente, existem em Rojava as unidades de defesa do povo


(Yekîneyên Parastina Gel – YPG) e das mulheres (Yekîneyên Parastina
Jinê – YPJ), fundadas em 2012. Essas tropas constituem uma força
armada não-nacional e anticolonial que almeja defender todos os grupos
oprimidos no Oriente Médio.

O uso da força bélica é uma das formas de defesa dos injustiçados contra
aqueles que possuem o monopólio da violência. Há aqui uma perspectiva
de democratização da defesa, que visa a distribuição igualitária de seus
meios por toda a sociedade, combatendo o monopólio e a privatização
da força. A democratização da violência está intimamente associada à
democratização dos meios de justiça, pilar importantíssimo no sistema
curdo independente.

Há uma longa experiência de atuação das mulheres curdas nas


guerrilhas, pois a primeira milícia feminina surge ainda no início dos
anos 90, no Bakur. Por isso, cabe destacar que o entendimento destas
mulheres sobre o emprego da violência na luta por sua liberdade é
diametralmente oposto às posições antimilitaristas bastante comuns nos
círculos feministas ocidentais, cuja crítica à militarização das
organizações de mulheres, tem base na identificação da guerra como
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expressão da masculinidade. Ao rechaçar a reapropriação da força por


parte dos sujeitos oprimidos, as vozes humanitárias acabam,
involuntariamente, fazendo coro com a desumanidade das grandes
potências militares que se favorecem com a vulnerabilidade daqueles
que estão no caminho de seus projetos de dominação. Para mulheres
que tem seus territórios bombardeados, seus familiares brutalizados e
seus camaradas martirizados pelas mesmas forças que propagam
discursos de combate ao terror, a guerra é o caminho para a conquista
da paz.

Para o movimento de libertação curdo, as armas são um meio


fundamental de autodefesa, mas não o único. Defender-se é proteger-se
não apenas da violência física, mas também cultural e simbólica.

A autodeterminação das mulheres faz parte desta compreensão ampla


de autodefesa e defende o direito à autonomia organizativa em
instâncias sociais, políticas, econômicas e culturais. Trata-se de garantir
sua participação em todas as esferas da vida social em condições de
igualdade e solidariedade com os homens e assegurar a observação das
necessidades e interesses das mulheres nas tomadas de decisão sobre a
coletividade.

Como parte do combate às violências culturalmente enraizadas, como os


crimes de honra, casamentos forçados, a poligamia masculina e o
casamento infantil, surgiram as experiências de casas de acolhimento
para mulheres nas comunas. Essas iniciativas de proteção e apoio mútuo
para reparação de danos se ampliaram com a criação da aldeia Jinwar,
em Rojava. Este território exclusivo de mulheres foi criado como refúgio
para vítimas de crimes de guerra ou abusos domésticos, mas também
recebe mulheres de qualquer etnia ou religião que queiram abandonar o
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modo de vida capitalista para viver de forma solidária e democrática. Ali,


as casas são construídas coletivamente, com o uso de técnicas e fontes
de energia ecológicas, os alimentos são cultivados e preparados em
cozinhas e padarias coletivas. Há bibliotecas, salas de aula e parques
para as crianças e um centro de autoformação para as moradoras, onde
ocorrem as assembleias mensais responsáveis pela gestão do local. A
presença de homens em Jinwar é permitida apenas temporariamente,
como visitantes ou colaboradores em alguns trabalhos2.

O movimento das mulheres promove também o combate às violências


históricas sofridas por seu povo. São inúmeros os esforços de
manutenção e resgate das tradições culturais, de preservação e
transmissão do idioma e outros meios para afirmar a cosmovisão curda
como forma de resistência à guerra cultural travada pelos Estados
contra sua identidade.

O paradigma curdo de transformação social enfatiza a importância da


renovação das mentalidades. Um dos principais propósitos do
movimento de mulheres é o estabelecimento de novas relações sociais,
livres dos valores e preconceitos capitalistas arraigados no pensamento
dos indivíduos. Um dos esforços nesse sentido foi a criação das
academias e centros de formação antipatriarcal para mulheres e
homens. No entanto, a reeducação se dá principalmente no cotidiano da
luta comum, com destaque para o papel do sistema de crítica,
autocrítica e desenvolvimento da personalidade (Tekmîl e Assembleia).
Em momentos de algumas reuniões ou em encontros exclusivos para tal
fim todos são convidados a refletir criticamente sobre seus
comportamentos cotidianos, percebendo e discutindo em conjunto os
traços de personalidade e as práticas ainda influenciados pelo sistema
patriarcal e capitalista que condenam. Assim, por meio da fraternidade,
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se pretende combater a socialização anterior e interiorizar a ideologia


democrática e solidária.

Essas diferentes proposições demonstram como o confederalismo


democrático promove, na prática, a combinação de esforços de combate
à sujeição política e militar, à dependência econômica e à hegemonia
ideológica da modernidade capitalista. De fato, travando uma guerra em
todos os níveis.

A autodefesa e o contra-ataque antissistêmicos também são movidos no


campo teórico e científico, com a criação da chamada jineologia.

A jineologia
A fim de combater a histórica exclusão das mulheres e de suas
contribuições ao campo científico, o movimento de libertação curdo
reivindica a elaboração de um novo paradigma teórico, filosófico e
científico, mais adequado às tarefas de libertação das mulheres. A
palavra em curda jin (mulher) foi unida ao termo grego logos (discurso,
conhecimento) para descrever um sistema teórico de combate aos
sistemas de conhecimento científico patriarcais e coloniais3.

Com base nas experiências de luta das mulheres no Curdistão e na


crítica ao cientificismo positivista, a jineologia propõe bases ontológicas,
epistemológicas e metodologias alternativas a fim de promover a
autoconsciência das mulheres sobre sua própria história e, assim, a
reeducação das ciências humanas e sociais.

A história da civilização é entendida como a história da violação das


mulheres, cujos marcos principais seriam as chamadas rupturas sexuais.

A primeira, seria a transição do culto sagrado à mãe ao culto sagrado ao


pai, a fundação do sistema social patriarcal. Ao final do período
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neolítico, a divindade e sacralidade da figura da mãe-mulher, até então


característico das sociedades no Oriente Médio, foi substituída pelo
culto ao pai, ao homem forte, que se torna governante de poder absoluto
sobre o clã familiar. Assim, os homens teriam usurpado a economia
primária, do lar, e junto à toda acumulação material, convertido a
própria mulher em propriedade privada. O protagonismo social da
mulher, com base na produção, foi substituído pelo poderio social do
homem, baseado na guerra e pilhagem. A conversão das mulheres em
donas de casa é a mais antiga forma de escravidão, que possibilitou a
escravização de seus filhos e posteriormente de toda a sociedade,
quando se consolida a noção de hierarquia, o germe do Estado – a
institucionalização da autoridade baseada na força patriarcal. A
passagem do politeísmo ao monoteísmo, com a imposição da hegemonia
da figura do Deus onipotente e universal e a santificação da família
patriarcal, promoveu a segunda ruptura sexual, que tornou divina a
inferioridade das mulheres.

Contudo, o período mais brutal teria sido o de “demissão das mulheres


da economia” durante a expansão do sistema capitalista. Essa demissão
significou a exclusão ou a inclusão subordinada das mulheres nas
atividades produtivas, produzindo seu empobrecimento e intensificando
sua dependência em relação aos homens que possuíam condições de
prover a subsistência das mulheres e crianças.

Nessa concepção, a forma social capitalista representa a continuidade e


o aprofundamento da exploração que existia nas antigas sociedades. A
opressão de classes se desenvolve paralelamente à opressão sexual, pois
o surgimento do gênero dominante promoveu o surgimento da classe
dominante e de seu poder político absoluto, o Estado. Assim, o
capitalismo e o Estado-nação representam a forma mais desenvolvida,
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monopolista e institucionalizada, da ideologia patriarcal. A submissão da


mulher é percebida como pilar estrutural da modernidade capitalista,
tanto quanto o Estado-nação e o capitalismo. Esses seriam os três males
da civilização, obstáculos à liberdade.

A tarefa central das forças revolucionárias no atual momento histórico


seria, então, a de promover a terceira grande ruptura sexual – “matar o
macho dominante” (Erkegi öldürmek), ou seja, derrotar as instituições de
dominação e exploração do capital e do Estado por meio dos esforços de
homens e mulheres para construir uma vida livre.

O movimento de mulheres curdas reafirma constantemente que a


jineologia e suas práticas organizativas não seriam uma espécie de
“feminismo curdo”, como muitas vezes suas simpatizantes ocidentais
costumam apresentar. Observamos que as tentativas de “apropriação
feminista” do movimento curdo costumam ignorar sua ideologia e seu
projeto político próprio. A jineologia tem produzido uma importante
crítica ao feminismo ocidental. Especialmente, aos objetivos estratégicos
feministas que, em grande medida, limitam-se a conquistas dentro da
ordem e não apontam para a transformação estrutural da sociedade.
Isso ocorre porque suas construções teóricas e programáticas se pautam
pela noção de Estado, reproduzindo uma lógica democrática e não uma
lógica revolucionária e radical. A crítica aponta a incapacidade dos
movimentos feministas em incorporar o combate às macroestruturas
históricas e sociais de dominação e exploração, colocando-se
frequentemente à parte da realidade social.

As revolucionárias curdas apontam que quando o feminismo luta pela


democracia, o faz ignorando o papel do Estado-nação e quando
combatem exclusivamente o patriarcado, o fazem ignorando sua relação
com o capitalismo. Assim, o movimento não é capaz de compreender
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seus inimigos de maneira total e articulada e não pode ter chance de


vitória. A ilusão na possibilidade da democratização do Estado e a
assimilação do liberalismo são obstáculos que o feminismo ocidental
precisa superar. Assim como os elementos de elitismo e eurocentrismo
ainda presentes nos discursos e práticas feministas, que seriam reflexo
de sua submissão à ideologia da indestrutibilidade do sistema capitalista,
uma mentalidade patriarcal.

O lema “Erkegi öldürmek” (matar o macho dominante) é gestado como


concepção teórica, política e ideológica de combate sistêmico. Por isso,
aponta em uma direção completamente oposta às correntes feministas
que reduzem seu entendimento do patriarcado como um conflito
pessoal contra os indivíduos do sexo masculino. No paradigma curdo,
matar o macho dominante é o princípio fundamental do socialismo, que
se opõe aos radicalismos individualistas que tem permeado as
tendências feministas nas últimas décadas.

Sem dúvidas, a grande contribuição da luta das mulheres curdas para as


mulheres de todo o mundo é a poderosa compreensão de que a
libertação da mulher é uma revolução dentro de uma revolução e que
não é possível que seja de outra forma.

1 Na região de Basûr, o projeto de independência nacional avançou nos


moldes tradicionais, com a criação do Governo Regional do Curdistão
(KRG), dirigido por Massoud Barzani, cuja independência foi reconhecida
pelo governo iraquiano, em 2005. Existe uma complexa conflitualidade
entre o KRG e as administrações autônomas de Bakur e Rojava que não
pudemos explorar neste texto.
2 O minidocumentário “Gûzîken Hermel – The Hermel’s seeds”
apresenta uma bela introdução sobre a vida em Jinwar. Disponível com
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legendas em inglês e espanhol em: https://www.youtube.com/watch?


v=6GejkdzmnV8.
3 Para compreensão mais profunda das principais teses da jineologia, ver
a coletânea de textos de Abdullah Öcalan intitulada “Libertando a vida: a
revolução das mulheres”. Disponível em:
http://ocalanbooks.com/downloads/PT-Libertando-a-vida-a-
revolucao-das-mulheres_2016.pdf

Luciana Brito é professora de Filosofia, mestre e doutoranda em


Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pesquisa
educação, lutas e insurgências populares.

Leia os artigos do especial Feminismo Transnacionais, acesse aqui.

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